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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS LENDAS VIVEM - P.2 / R. Costac
AS LENDAS VIVEM - P.2 / R. Costac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                Os Ensinamentos da Guerreira

As primeiras luzes da manhã que se derramaram sobre Faogard converteram lentamente o azul pálido matinal em um laranja radiante.

O campo de treinamento, onde houvera a luta entre Rhuror e Roger, estava quase vazio; um outro campo, ainda desconhecido pelos novatos, bem maior, era o que estava sendo utilizado pelos guerreiros experientes naquela manhã.

Guillermo, Brian e os jovens aprendizes tiveram a primeira surpresa do dia. Sobre um gifenonte negro, inquieto, coberto de listas cinzentas, e que mudava de posição constantemente, estava Talemine, a doce filha de Rhuror, ela se apresentava com trajes de guerreira: um grande arco na mão esquerda e uma aljava às costas repleta de flechas, na cintura uma espada de lâmina curta que brilhava ao sol que ainda nascia. A guerreira havia passado bem cedo no hospital para cuidar dos feri­mentos de Roger. Ao lado da bela Talemine, também sobre uma montaria dessa vez branca como leite e cortada com listas longitudinais vermelhas, uma outra guerreira ainda mais jovem que a primeira, aparentando ter quinze anos, vestia roupas milita­res de couro e metal, e como Talemine, estava fortemente armada com arco e espada.

 

 

 

 

Onde está aquela mulher delicada que havíamos conhecido ontem? - perguntou Brian a Guillermo que a olhava perplexo.

Vamos ver como se saem quando atacados — disse Talemine sacando uma flecha e prendendo-a em seu arco.

A flecha disparada zuniu no ar desfiando o cabelo de Guillermo; uma segunda veio do mesmo arco e quase atingiu a orelha do espanhol; a terceira e última flecha rasgou-lhe a camisa no lado do tórax.

O que você está fazendo? Ficou louca? - gritou Guillermo, agitando os braços sobre a cabeça, tentando inutilmente se esquivar do ataque.

As setas pararam de voar contra Guillermo que protestou irritado.

Por que fez isso, Talemine? Quase me mata com essa sua... brincadeira irresponsável.

Você já estaria morto se eu assim o quisesse — disse ela, sorridente. Seu fogoso cavalo negro e cinza não parava de se agitar.

Eu também quero ser alvo — ofereceu-se Margaret, ficando na frente de Guillermo.

Você não quer nada - proibiu Guillermo, puxando-a pelo braço. - Se ela errar eu não quero nem pensar no que pode acontecer.

Eu acho que já chega de demonstrações — disse a voz grave de Rhuror que se aproximava. — Pelo que pude ver, vocês entram em pânico por causa de algumas flechas.

O que você acha? — questionou Guillermo, inconformado. — Que no meu mundo passeamos pelas ruas nos desviando de flechas voadoras e golpes de martelo?

Bem, foram vocês mesmos que me disseram que o seu povo tem um instinto destruidor e que devemos evitá-lo — disparou Rhuror com um certo sarcasmo.

O comentário do guerreiro tapou a boca de Guillermo que se limitou a avaliar o rasgo feito em sua camisa.

Ah, sim. Quero lhes apresentar a minha outra filha, a caçula. Seu nome é Camine.

A menina cumprimentou-os com um aceno de mão e deu um sorriso amigável.

Rhuror apontou para uma mesa de madeira comprida apinhada com um amontoado de apetrechos como espadas, lanças, arcos, escudos e martelos.

Naquele balcão estão as armas que irão usar nos próximos dias. Minhas filhas estarão com vocês o tempo todo para treiná-los e auxiliá-los em qualquer coisa - Rhuror fez uma pausa e olhou diretamente para Guillermo: - E não pen­sem que elas são duas pobres indefesas, pois não são.

E, dá pra sentir que não - murmurou Rafael, abrindo um sorriso gaiato para Guillermo.

Rhuror deixou os novos alunos por conta de Camine e Talemine. O dia estava apenas começando.

Vamos começar com o arco — disse Talemine, dando um sinal para que cada um se armasse com aquele tipo de armamento. - Começaremos com os alvos fixos e quando estiverem aptos, passaremos para os alvos em movimento.

O começo foi difícil. Quando o arco era vergado, começava a tremer e as fle­chas se desviavam sem direção, mas o treinamento intenso foi aperfeiçoando suas habilidades, e no final da manhã todos já apresentavam uma grande evolução.

Uma parada para o almoço — anunciou Talemine. A refeição foi servida ali mesmo, com os recipientes com comida tendo que ser apoiados na própria mão ou colocados no chão.

Margaret sentou-se ao lado de Camine que comia com as mãos como uma selvagem.

Estou gostando de aprender essas coisas — disse Margaret, puxando con­versa, torcendo para que a menina falasse com ela.

Você vai gostar mais quando experimentar todas as armas - disse Camine, rasgando um pedaço de carne com os dentes.

Camine era parecida com a irmã. Os cabelos rubros lhe caíam sobre o rosto, escondendo os olhos vivos. A vestimenta que usava a deixava com uma aparência agressiva.

O que você faz quando não está lutando? - perguntou Margaret, desejosa por saber um pouco da menina que um dia pudesse vir a ser sua amiga.

Camine olhou a esmo buscando a resposta enquanto mastigava.

Estudo, ajudo minha mãe nas tarefas de casa, converso com minhas amigas e cavalgo sempre que posso.

Suas amigas... são assim como você? Quero dizer, utilizam arcos e flechas e tudo o mais?

Todas elas - confirmou, pegando um punhado de comida com a mão. - Fazemos isso desde crianças. Você não sabe quando vai precisar cortar a garganta de um inimigo ou quebrar seu crânio com uma boa martelada. Somos um povo de guerreiros e não há distinção entre homens e mulheres. Se for preciso, todos lutamos e todos morremos.

Tudo aquilo se colocava fora da realidade de Margaret. Uma menina tão bonita, mas com pensamentos de guerreira. Conversava sobre matança com a mesma simplicidade de quem fala em escovar os cabelos. Por outro lado, as duas garotas tinham muito em comum, como a determinação e a personalidade aventu­reira. Conversavam sobre tudo e trocavam experiências contando coisas sobre seus diferentes modos de vida.

À tarde, as flechas acertavam seus objetivos com maior precisão e o grau de dificuldade aumentou quando engrenagens colocaram os alvos em movimento.

Cansados, os recrutas encerraram os exercícios, mais capazes e confiantes, e os próximos dias deveriam lhes dar as condições necessárias para os duros desafios que certamente enfrentariam além dos muros de Faogard.

Um revigorante banho, boa comida e descanso eram o que precisavam para se encontrar em forma na etapa do dia seguinte.

Podemos ver como está Roger? — perguntou Guillermo a Talemine que acumulava as funções de instrutora de luta e enfermeira.

Acho que não há problema - consentiu, enquanto se livrava das luvas reforçadas e das peças de metal que serviam de armadura.

Você é uma excelente arqueira - comentou, tentando ser gentil.

Eu sei — concordou, sem se sensibilizar com o elogio. - E agora você também

sabe.

Guillermo franziu a testa, desconcertado com a insolente resposta de Talemine.

No hospital, os amigos de Roger constataram a sua ótima recuperação num espaço de tempo tão curto. Seu rosto já se mostrava quase sem nenhum inchaço e os hematomas quase tinham sumido. Ele estava vestido com uma roupa larga de tecido leve e branco, semelhante àquelas usadas pelos pacientes internados em hospitais. Roger reclamou.

Estou cansado de usar esse pijama engraçado. Quero minhas roupas... e quero sair desse lugar. Não estou doente. Não me sinto fraco. Se essa mulher não me der alta, vou embora assim mesmo.

O que você fez com ele? — perguntou Brian a Talemine, impressionado com a rápida recuperação de Roger, que já mostrava, ao falar, toda a sua tenacidade.

A nossa medicina é muito boa - disse ela, conferindo mais uma vez o estado dos curativos que fizera naquela manhã. Roger afastou a cabeça do toque de Tale­mine, fazendo questão de passar-lhe toda a sua insatisfação. — Precisa ser assim, para que os nossos soldados se restabeleçam logo e voltem à batalha.

Chester fez um resumo a Roger, que por sua vez tentava conter a sua impaciência sobre as atividades daquele dia. Brian explicou a decisão de ficarem alguns dias e receberem os treinamentos de luta necessários para seguirem viagem. Roger considerou a decisão apropriada sem fazer nenhuma ressalva.

Quero ver como se sai com o arco e a flecha, professor - disse Daniel a Roger, feliz por ter mostrado bom desempenho na pontaria.

Roger sorriu, agradecido pela visita de seus companheiros.

O tempo acabou — disse Talemine, movimentando os braços para que saíssem. — Deixem o meu paciente repousar agora. Meu conselho é que vocês descansem também e acordem bem dispostos para os exercícios.

Eu já estou bem melhor - protestou Roger, abominando ser tratado como um pobre coitado.

Isso quem decide sou eu - sentenciou a faogard com firmeza.

Atirar flechas o tempo todo não era um exercício tão leve quanto parecia no começo. O ato de firmar o arco e vergá-lo ininterruptamente deixava os braços e os ombros doloridos. A cama macia era o melhor remédio para tal desconforto.

A noite, portanto, era dedicada ao descanso, visto que, num povo de guerreiros, a condição física podia ser a diferença entre a derrota e a vitória.

Na varanda do quarto dos meninos se achava Daniel, jogado em um assento forrado com retalhos de tecidos diversos, massageando os próprios braços ainda doloridos pelo esforço do primeiro dia. Ao seu lado, Chester esticava as pernas sobre um banquinho e contemplava as luzes generosas que Faogard oferecia. Num outro canto da varanda, Marc e Rafael comentavam efusivamente sobre a estimu­lante experiência com o arco e a flecha. Marc estava particularmente satisfeito com a sua pontaria nos alvos móveis e dizia, zombeteiro, que a sua habilidade no violino facilitou muito o manejo de arma tão sutil.

Uma batida na porta interrompeu a conversa descontraída. Rafael se levantou para atender.

Estão todos bem? - perguntou Brian, olhando para dentro, averiguando as acomodações aparentemente em ordem.

Sim, tudo bem - respondeu Rafael, abrindo um simpático sorriso de boas-vindas. - Entre, professor, estamos relembrando o dia de hoje.

E o que acharam? - quis saber Brian, atravessando o quarto relativamente arrumado para os padrões masculinos.

Parece que estamos indo melhor do que nossas instrutoras esperavam — disse Daniel com confiança.

Só os nossos braços estão um pouco doídos, mas amanhã já estaremos em condições novamente — completou Chester, empunhando um arco imaginário pronto a disparar um flecha.

E Margaret? Pensei que estivesse com vocês - disse o professor dirigindo-se a Daniel.

Nesse instante ela já deve estar no outro lado da cidade descobrindo um lugar novo, e que ela vai nos revelar amanhã como se tivesse achado os tesouros do rei Salomão - deduziu o irmão com desdém.

E o professor Guillermo? - indagou Rafael a Brian.

-Também não o vejo faz mais de uma hora. Sumiu quando eu estava tomando banho. Deduzi que pudesse estar aqui com vocês.

Professor, tenho curiosidade em saber de uma coisa — disse Chester, aproveitando a propícia ocasião de descontração.

Prossiga — estimulou Brian, estimulando o menino com um gesto.

Por que Alexei Martov atravessou o Portal? Como se deu a vinda dele para esse mundo fascinante.

Brian sentou-se em um banquinho próximo e retraiu um canto da boca ensaiando um sorriso que não veio.

É uma história interessante, Chester. Martov era um homem cativante e um dos maiores incentivadores da preservação do segredo da Sociedade do Círculo de Pedra. Para que vocês entendam melhor o que aconteceu, é necessário que saibam do ritual dos Iniciados que, aliás, foi criado pelo próprio Martov quando um novo grupo passaria então a fazer parte de nossa Ordem Secreta.

Brian fez uma pausa e lançou um olhar aos garotos como se quisesse lhes dizer alguma coisa a mais, mas se conteve e prosseguiu:

Como eu estava dizendo, ao ser aceito, cada novo membro passava por um cerimonial que consistia em ir até a caverna e observar o grande espetáculo da abertura do Portal que seria realizado pelo próprio Martov; e era ele a única pessoa da Sociedade que tinha o dom de perceber, algumas frações de segundo antes, quando o grande disco negro começaria a girar. - Os olhos dos garotos permane­ciam pregados em Brian. - Martov punha os pés no disco e aguardava o momento certo para pular fora antes que fosse tragado definitivamente. Havia um certo ner­vosismo entre os jovens que estavam prestes a ingressar na Sociedade do Círculo de Pedra. Essa reaçáo era muito comum com os novatos: a caverna semi-iluminada, os sons das vozes sussurradas ecoando nas paredes graníticas, a expectativa pelo desconhecido. Tudo isso era motivo de grande excitação. Eu também me senti assim na primeira vez. — Brian inclinou-se, apoiou os cotovelos nas pernas, entre­laçou as mãos e continuou a falar: - Mas um dia algo deu errado. Eu e Guillermo também estávamos lá e vimos tudo. Martov, como de costume, proferiu algumas palavras sobre o que iria acontecer e pisou no portal inerte; ele continuou falando e de alguma maneira se distraiu não pressentindo que o disco começaria a girar. Quando se deu conta já era tarde demais. Os Iniciados depois nos disseram que no início acharam que tudo aquilo fazia parte do show e que só descobriram que algo havia saído errado quando viram os veteranos desesperados, sem saber o que fazer, no momento que Martov estava sendo sugado em meio as luzes que se perdiam nas profundezas. Nós, os mais experientes, nos sentimos como órfãos sem o nosso diretor. Helmut, o segundo na hierarquia da Escola, procurou acalmar os ânimos e foi figura importante para evitar que a Sociedade fosse desfeita. Passávamos horas, fechados em reuniões, tentando reorganizar o futuro da Instituição. Mas o tempo foi o nosso aliado e após algumas semanas já havíamos escolhido o sucessor de Alexei Martov que, naturalmente, deveria ser o professor Helmut Neckel, naquela época exercendo o cargo de vice-diretor. Mas mesmo assim, o episódio com Martov não abandonou nossas mentes. Foram dois anos de dúvidas durante os quais cogitamos seriamente sobre o fechamento da Escola e aventamos a possibilidade de revelar às autoridades o segredo que estava em nossas mãos há séculos.

Daniel ergueu a mão pedindo a palavra.

Por que houve tanto alvoroço pelo sumiço de Alexei Martov? Por que esse fato abalou a Sociedade do Círculo de Pedra?

Você se esqueceu de um detalhe importante, Daniel - explicou Brian com paciência. — Antes desse acontecimento e o retorno de Martov, não sabíamos da existência desse outro mundo e do que seria feito das pessoas que atravessassem o misterioso Portal. Só a partir do retorno dele nos relatando tudo pelo que passou é que a Sociedade se fortaleceu ainda mais e, aí sim, conseguimos encontrar definiti­vamente uma utilidade concreta para ela.

E outros não desejaram realizar a mesma aventura de Martov depois da sua volta? - questionou Rafael, brincando com as folhas de um galho que avançava pela varanda.

Sim — afirmou Brian com veemência. - Muito se falou sobre essa questão, mas sempre ela emperrava nos riscos e como seria o retorno. Não queríamos que houvesse falhas, e para isso, consultávamos Martov freqüentemente. Os preparativos de uma grande expedição estavam em fase de conclusão quando vocês apareceram...

E quase estragamos tudo — antecipou-se Marc, acanhado.

É, foi isso mesmo que aconteceu — assentiu Brian, devolvendo um olhar de repreensão para Marc. - Mas agora o dano está feito e não adianta perdermos tempo nos lamentando pelo que não podemos mudar - disse, levantando-se e admirando brevemente a vista privilegiada que os garotos tinham para seu deleite.

Pois bem, rapazes, irei direto para meu descanso agora, e sugiro que vocês não demorem muito para dormir, levando em conta de que teremos outro dia muito agitado amanhã. Ah, e mais uma coisa — lembrou-se Brian antes de sair não deixem Margaret ficar andando sozinha por aí durante a noite. Procurem convencê-la a ficar mais tempo com vocês - disse ele e logo depois deixou o quarto.

Até parece que ela aceitaria ficar colada na gente - murmurou Daniel para Chester.

Acho melhor aceitarmos o conselho do professor e descobrirmos onde ela está - disse Rafael mais cauteloso. - Vou atrás dela.

Eu vou junto - disse Daniel, seguindo o amigo.

Ao cruzarem a porta do dormitório se depararam com Margaret vindo tranqüilamente pelo corredor.

Onde você andava? O professor Brian esteve aqui e não achou muito bom você sumir desse jeito sem nos avisar - disse Daniel, advertindo-a.

Eu estava em muito boa companhia - disse ela com bastante independência.

Fui conhecer as amigas de Camine e já fiz uma boa roda de amizade.

Não pense que ficarei correndo atrás de você toda vez que desaparecer - disse o irmão com aspereza. - Da próxima vez mando o professor se virar para encontrá-la.

Então se é assim, está bem — respondeu com menosprezo. — Boa-noite pra vocês, meninos. E não se atrasem muito amanhã — despediu-se e fechou-se em seu quarto.

Daniel ficou com o dedo em riste parado no ar, sem ter tido tempo de respon­der a impertinência.

Sua irmã é assim, Rafael? - perguntou com irritação, lançando um olhar cheio de ferocidade para o amigo.

Não, ela ainda é muito pequena — respondeu sem conseguir encobrir um risinho.

Então, espere ela crescer e essa sua cara alegre vai desaparecer de uma vez por todas - profetizou, voltando para o dormitório, indignado.

As batidas ribombantes na porta fizeram os meninos pularem da cama como se houvesse brasas nos colchões. A porta se abriu num ranger desagradável.

Ainda estão dormindo? - surpreendeu-se Guillermo. - Já terminamos de comer e estamos quase saindo para o campo de treinamento.

Essa não! Perdemos a hora! - desesperou-se Marc, procurando suas roupas. - As instrutoras não nos deixarão em paz.

Margaret já acordou? — perguntou Daniel a Guillermo, tendo quase certeza de qual seria a resposta.

A essa hora ela já deve estar fazendo os primeiros exercícios de treinamento lá no campo. Quando ela saiu ainda estávamos nos preparando para o desjejum. Eu e Brian estamos indo, não demorem muito.

Daniel quase teve um ataque do coração.

Agora é que eu não vou ter sossego. Droga! Droga!

Os quatro aprendizes correram aos tropeções, apertando cintos, enfiando as camisas por dentro das calças e calçando as botas.

Margaret, Brian e Guillermo se postavam diante de Camine e Talemine, recebendo as primeiras lições do dia. Eles empunhavam espadas que brilhavam de longe, refletindo os primeiros raios matinais.

Os garotos se aproximaram ofegantes e envergonhados pelo atraso. Margaret os olhou com superioridade; um sorriso de escárnio nasceu dos seus lábios, mas ela logo se colocou novamente na posição que Talemine ordenara, retomando a atenção.

Peguem as espadas menores sobre o balcão e voltem aqui depressa - ordenou Talemine com frieza nos olhos. - Não temos o dia todo.

Os meninos trataram de se agilizar e em segundos se postavam lado a lado com Margaret, tentando imitar os movimentos com a espada.

Como eu ia dizendo — explicou Talemine, bastante dedicada. — A espada deve ser a extensão de seus braços. Sempre que um golpe for desferido, evitem dar as costas para o inimigo. O adversário sempre deverá estar ao alcance de seus olhos... e de sua espada.

Talemine mudou sua postura e segurou a espada com maior vigor, a ponta da lâmina para cima. Ela continuou a falar.

Vocês têm que sentir a empunhadura de modo que a lâmina possa ser girada, tanto para defender como para atacar.

Talemine olhou cada um dos aprendizes com critério.

Preciso de um voluntário — disse ela. - Você - completou, apontando para Guillermo com a mão desarmada.

Ela recuou e dirigiu-se para longe dos demais, Guillermo a acompanhou, experimentando mover sua arma, sem grande habilidade.

Agora prestem muita atenção nos erros do meu agressor - disse Talemine olhando nos olhos de Guillermo. — Ataque! — determinou a guerreira.

Guillermo hesitou por uns instantes.

O que está esperando? Venha me atacar! - exigiu Talemine com impaciência.

Mas eu posso machucar você - justificou-se, segurando a espada como se esta fosse um inofensivo cabo de vassoura.

Talemine revirou os olhos, intolerante.

Você não vai me machucar. Use a sua espada e tente me acertar bem aqui - disse, apontando para o próprio peito.

Guillermo olhou para os companheiros e não vendo alternativa, atacou.

Talemine evitou o golpe e, numa fração de segundos, encostou o fio de sua espada na garganta de Guillermo que mal entendia como tudo acontecera.

Viram? — chamou a atenção a faogard, apertando o aço mais fundo no pescoço do seu oponente. Guillermo não ousou reagir e lhe devolveu um sorriso sem graça. — Se esse confronto fosse pra valer, seu amigo estaria morto antes mesmo de cair no chão, decapitado.

Rafael e Marc se entreolharam com perplexidade.

Camine, com seu olhar jovial, observava à distância, a mão sempre apoiada no cabo da espada, preparada para a batalha.

Arqueira e espadachim. O que mais ela sabe fazer? - perguntou Brian a Margaret. A menina olhava com satisfação a guerreira que esbanjava destreza.

Sabe acabar com a soberba dos homens - respondeu, vaidosa. Brian ficou surpreso com a resposta aguçada.

Talemine prosseguiu com o treinamento.

A maneira desajeitada com que ele avançou e usou a sua arma, facilitou muito o meu contra ataque rápido e fulminante.

Maneira desajeitada? — protestou Guillermo, mas sem razão.

Talemine encarou seu adversário e o libertou com rispidez. Depois, voltou-se aos outros alunos.

Como eu havia dito no início, se vocês derem as costas ou mesmo os flancos ao seus opositores, a morte será quase inevitável. Portanto, a investida deve ser ágil e certeira, com movimentos circulares e recuos rápidos seguidos de um novo ata­que. Em poucas palavras, é assim que funciona. E é isso que vocês deverão apren­der hoje. Mas não se preocupem, as armas que estamos usando não são afiadas... por enquanto.

Grande consolo - murmurou Guillermo enquanto esfregava a garganta.

Todos, um a um, tiveram que enfrentar as irmãs guerreiras. Brian e Guillermo se revezavam confrontando Talemine e os jovens aprendizes testaram as habilidades de Camine. Como era de se esperar, todos fracassaram nas disputas com as faogards.

A pausa para o almoço era também o momento aguardado para o descanso. A disposição de Camine e Talemine para as lutas era notável.

Essas garotas parecem que nunca se cansam — observou Guillermo enquanto destrinchava com os dentes a coxa de uma ave assada; o gosto era parecido com carne de peru.

Margaret escolheu, como de costume, um canto ao lado de Camine e enquanto estavam juntas, as duas conversavam despreocupadas e as risadas apareciam uma vez ou outra.

Os olhos de rubi de Talemine se encontravam sempre atentos, como se ela estivesse constantemente esperando que um inimigo surgisse de algum lugar ame­açando o seu povo, muito diferente da Talemine de expressão meiga quando agia como enfermeira cuidando dos enfermos.

Brian terminou de comer e deixou a vasilha de lado, esticando as pernas para relaxar.

Acho que a faogard gosta de você, espanhol; ela sempre te escolhe para as suas demonstrações.

Ela quer é meu pescoço — retorquiu Guillermo, lançando um olhar mal- humorado para Talemine que estava alheia à conversa. — Provavelmente vai esma­gar a minha cabeça quando treinarmos com martelos.

Ela não é tão má assim. Viu como os cuidados dela estão fazendo Roger se recuperar em pouco tempo?

É, parece ser um costume dessa gente nos atacar com seus martelos e espadas e então tratar os nossos ferimentos com toda dedicação — disse Guillermo em tom de reprovação.

Os treinamentos continuaram na parte da tarde e o calor não diminuiu o ânimo das jovens guerreiras. Talemine convocou mais uma vez Guillermo para uma demonstração que não teve como se recusar servir de cobaia.

Quase sempre, a parte do corpo do inimigo que mais se aproxima num combate corpo a corpo, são suas mãos - instruiu a guerreira, erguendo o braço esquerdo e agitando os dedos. - Em vista disso, pode ser a partir delas que começamos a destruir o adversário — Talemine posicionou-se aguardando um ataque e ordenou: — Ataque-me novamente, senhor Guillermo.

Mais experiente no trato com a espada, o espanhol foi mais cauteloso, girando em volta de sua oponente e procurando o melhor momento para atacar. A investida foi bem rápida, mas não o suficiente para impressionar a bela Talemine; ela evitou o golpe de Guillermo e o atingiu com o lado da lâmina bem na altura do pulso, obrigando-o a soltar a espada no chão poeirento.

Ei! O que há com você, cabelos vermelhos? - reclamou, apertando o pulso dolorido. - Desse jeito, quando os treinamentos acabarem, partes do meu corpo estarão espalhadas por toda a Faogard.

Talemine quis rir, mas se conteve.

Quando se decepa a mão do inimigo, a contenda está praticamente encer­rada. Mas cuidado, a luta só termina quando se tem o opositor a seus pés total­mente imobilizado, ou se preferirem que eu seja mais clara... morto.

Os ensinamentos de Talemine auxiliados pela sua dedicada irmã só pararam quando o sol quase desapareceu por completo atrás dos muros da cidade-fortaleza.

Os recrutas retornaram para seus aposentos e cruzaram com um grande grupo de soldados, mais ou menos uns quinhentos guerreiros, que aparentemente deviam estar se recolhendo após um desgastante treinamento; não demonstravam cansaço, pois marchavam num ritmo forte e confabulavam no seu idioma tranqüilamente como se estivessem indo a um piquenique no campo em uma manhã de domingo.

Pois eu desejo mesmo é um banho relaxante e muito descanso até o próximo dia - disse Guillermo com franqueza, arrastando os pés. - Não consigo entender como aquelas duas não perdem a energia.

Treinamento, meu amigo - disse Brian com um grande sorriso, batendo nas costas de Guillermo amistosamente. — Treine bastante e logo ficará como elas e não assim, fora de forma, como um velho gordo.

Velho gordo? Eu? - questionou, apalpando o próprio corpo. - Estou mais em forma que você, seu inglês decrépito e com artrite. Seus ossos estalam quando você anda.

Mas Talemine não reclama da minha maneira de lutar como reclama da sua - defendeu-se Brian, esquentando o bate-boca.

É porque você já é um caso perdido - devolveu, meneando a cabeça como se estivesse lamentando o rendimento de Brian.

Os senhores, professores, pretendem chegar aonde com essa discussão? - quis saber Margaret, dirigindo-se a eles como uma mãe ralha com seus filhos.

Velho gordo... essa é boa - resmungou Guillermo antes de se calar.

Depois de me lavar e comer alguma coisa, quero ver como está o professor Roger — anunciou Chester, apressando-se para chegar de uma vez aos aposentos.

 

                             Garotos Apavorados

Roger estava entediado em ter que ficar tanto tempo recluso. Ele entendia que não havia mais motivo para tantos cuidados com a sua saúde, pois já não sentia mais nenhuma dor ou desconforto, a não ser a cama. Achava que estavam perdendo muito tempo em Faogard e que logo teriam de partir rumo ao longínquo reino dos crassênidas.

Os passos aumentaram e logo a enfermaria, ocupada por Roger, foi invadida pelos seus amigos de jornada.

Já está com uma cara bem melhor, professor — comentou Daniel, fazendo questão de expor a sua alegria em ver Roger recuperado.

E vocês, como estão se saindo com as armas? — indagou Roger, afastando-se da janela por onde recebia, durante o dia, a vista de um pequeno pátio em que havia uma portentosa árvore de casca escura habitada por alguns pássaros que vinham uma vez ou outra bicar as frutinhas vermelhas que se agarravam nas pontas dos galhos. Uma leve brisa ondulava as cortinas quase transparentes penduradas nos cantos da única janela que havia no quarto. Naquele momento, o que ele conseguia enxergar, eram apenas as luzes de luminita que clareavam a noite além daquele minúsculo pomar.

Estamos aprendendo aos poucos — disse Brian em resposta, sem entrar em detalhes. — Nosso amigo é que está tendo alguma dificuldade com a bela instrutora, a delicada Talemine - apontou Guillermo com um gesto de cabeça, incitando-o com ares de galhofa.

Guillermo fuzilou Brian com os olhos, mas achou por bem não recomeçar a troca de provocações.

Anime-se, meu amigo — disse Guillermo, mudando de humor, enquanto se atirava a uma cadeira ao lado da cama. — Em breve você estará livre dessa prisão de luxo. A propósito, a sua carcereira já passou por aqui hoje?

Esteve aqui a menos de uma hora me enchendo de recomendações desnecessárias como se eu fosse um menininho recém-saído das fraldas que não sabe se cuidar direito. Ela me disse que eu estarei livre amanhã, desde que eu me comporte direitinho. Essa é boa - protestou.

Então o senhor precisa ver como ela age no campo de batalha — alertou Margaret, muito orgulhosa. - Não se parece nem um pouco com a Talemine que o senhor está acostumado a enfrentar no hospital.

Acho que vou preferir a versão guerreira dela. Combina mais com meu estado de espírito — optou Roger, dando um grande suspiro, portando-se como uma fera acorrentada.

 

O dia seguinte amanheceu escuro, coberto de nuvens cinzentas e pesadas prontas para derramarem uma enorme quantidade de chuva.

Pensei que o professor Roger estaria aqui conosco, nessa manhã — disse Rafael a Chester, um pouco desapontado, aguardando as primeiras instruções de Talemine que escolhia os armamentos a serem utilizados.

Martelos! - disse ela, voltando-se para os candidatos a guerreiros, exibindo as armas em punho. — Somos o único povo que usa este tipo de instrumento de combate. Parecem pesados e desajeitados, e de fato o são, mas se manejados com força e habilidade, se tornam excelentes para, em um só golpe, desequilibrar o oponente e jogá-lo ao chão.

Talemine girou o martelo e fez a arma parecer mais leve e graciosa do que realmente era. Ela então ordenou:

Equipem-se e voltem logo para retomarmos o treinamento.

Havia martelos de vários tipos e tamanhos; os jovens escolheram os menores que estavam de acordo com a sua compleição física. Guillermo, por sua vez, optou por um maior de cabo mais fino e longo; Brian preferiu um tradicional de propor­ções equilibradas.

Todos devidamente armados, Talemine escolheu o seu voluntário preferido, se é que podia chamar Guillermo de voluntário.

Pegue também aquele escudo — disse ela, indicando um, decorado com o desenho de uma grande mão aberta que parecia servir para defender todos os golpes desferidos contra ele, e que estava apoiado em uma grossa estaca de madeira.

Guillermo atravessou o antebraço esquerdo em uma alça na face interna do escudo e agarrou firme uma segunda alça. O escudo havia ficado bem preso.

Agora ataque rapidamente e mantenha o escudo na altura do seu tronco - orientou a faogard, enquanto mudava o seu martelo de mãos, sem parar. Depois ela passou a girar a pesada arma como se fosse arremessá-la contra a cabeça de sua cobaia humana.

E você, não vai usar um escudo para se defender? - perguntou Guillermo, imaginando que daquela vez não havia como Talemine atingi-lo.

Não se preocupe - disse ela com desdém. - Daqui a pouco você vai perder o seu martelo. Vamos lá, me ataque com raiva.

Pode ter certeza disso, madame - afirmou Guillermo, apertando mais forte o cabo de seu martelo e partindo determinado para cima de Talemine.

Guillermo tentava acertar a guerreira, mas todas as suas marteladas encontra­vam o ar. A faogard respondia com golpes certeiros no escudo do espanhol, produzindo um som abafado a cada baque desferido. Ela orientava a medida que lutava.

Conserve o escudo mais próximo ao corpo e não fique tão estático; assim você se torna um alvo muito fácil.

Vou te mostrar o alvo fácil, garota — rosnou Guillermo entre os dentes. — Você vai precisar de muletas para dar aula amanhã. Já estou começando a entender melhor como se usa esse brinquedinho.

Mal Guillermo completou a frase e teve que absorver um fortíssimo impacto do martelo da guerreira e que o desequilibrou; um segundo golpe, bem mais leve o atingiu no pé, causando-lhe uma forte dor que o fez soltar o martelo e o mesmo só não aconteceu com o escudo porque estava entalado em seu braço.

Meu pé! Você quebrou meu pé! — bradava, pulando com uma perna em situação constrangedora.

Brian olhava aquilo tudo sem saber se ria ou ficava penalizado pela condição em que seu amigo se encontrava.

Os meninos demonstravam alguma preocupação e Daniel, bastante obser­vador, prestava atenção nas reações de Talemine para avaliar a real gravidade do estado do professor. Talemine não se abalava; sabia muito bem a força que o seu martelo havia caído sobre o pé de Guillermo.

Depois de mais um vexame, Guillermo caminhou com passadas duras em direção a Talemine e se colocou bem diante dela, esquecendo-se que a guerreira ainda sustentava a sua perigosa arma de espancar.

Afinal, o que você quer? Ensinar-me a lutar ou me humilhar, senhora brutamontes?

Os cantos dos lábios de Talemine se contorceram e ela lutou para não rir, esforçando-se para manter, de qualquer maneira, o equilíbrio apropriado que o momento exigia.

Esse é o seu treinamento, senhor Guillermo. Como espera enfrentar seus inimigos se qualquer pancadinha o coloca fora de combate?

Pancadinha, você diz. O meu pé está latejando até agora. Me darei por feliz se sair com vida de Faogard. - Guillermo ameaçou afastar-se de Talemine, mas voltou a encará-la bem de perto: - Você fez de propósito. Está me provocando, mocinha.

Não é muito educado desrespeitar uma dama, espanhol - avisou Brian, espetando ainda mais.

Dama, ele diz - resmungou Guillermo enquanto caminhava depositando o peso do corpo na perna saudável, para logo se sentar em um canto e começar a massagear o pé que ainda doía muito. — Ela é um animal selvagem; e o que é pior, não vai com a minha cara.

Guillermo, inconformado, não se refreou, levantou-se em seguida e sem dei­xar de mancar, foi mais uma vez ter com Talemine para despejar mais desaforos.

E tem outra coisa: no meu mundo sou conhecido como um homem que está sempre de bem com a vida, e você está acabando com uma das coisas que possuo de mais valor: o meu bom humor.

Isso é verdade — concordou plenamente Brian, com ar de quem tem uma auréola sobre a cabeça.

Após desabafar, Guillermo outra vez foi para o seu refúgio, aquietando-se, as sobrancelhas contraídas em um semblante carregado.

Camine, a jovem irmã de Talemine, convocou os meninos e deu prossegui­mento às práticas de treinamento.

Recuperado, porém com o orgulho um pouco abalado, Guillermo empunhou seu martelo e pôs-se a movimentá-lo com a intenção de familiarizar-se de uma vez com a inusitada arma de combate.

Um cheiro de terra molhada se espalhou pelo ar quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair.

Acho que os exercícios serão interrompidos — supôs Marc falando para Daniel, contemplando o céu escuro de tempestade.

A chuva apertou e os pingos se tornaram grossos e em pouco tempo encharca­ram a terra e os corpos dos lutadores.

Não parem! - gritou Talemine para que todos ouvissem. - Trabalharemos na chuva. Será um bom exercício para o aprimoramento das técnicas aprendidas até agora.

Os contendores formavam duplas para darem mais realidade às simulações de luta. Brian enfrentava Guillermo; Marc lutava com Chester; Rafael se defrontava com Daniel e, finalmente, Margaret recebia lições de sua nova amiga, Camine.

Ninguém desanimou, principalmente os jovens que encaravam tudo como uma grande e descontraída brincadeira. Os pés chapinhavam espirrando lama para todo lado. A chuva engrossava ainda mais e formava poças, que quando pisadas, esguichavam água lamacenta em todas as direções. O dia escureceu tanto que as pedras de luminita presas aos postes e na frente das casas iniciaram a emissão de luzes fracas e difusas.

Continuem! Continuem! - estimulava Talemine com disposição inabalável. — Martelo! Escudo! Martelo! Escudo! - gritava a faogard sem desanimar o ritmo. As armas se chocavam ininterruptamente, gerando diferentes sons metálicos molhados.

Não percam essa oportunidade! — gritava Talemine, vigorosamente. — Vocês podem experimentar uma situação de terem que combater em terreno chuvoso como agora.

De vez em quando, Talemine tomava a vez de Brian ou Guillermo, mostrando como se devia fazer.

Ataquem e se fechem rapidamente com seus escudos — instruía Talemine, atenta a todos os movimentos. — Um golpe desse na cabeça pode ser mortífero a qualquer um.

A chuva forte não parou e ainda se prolongou além do intervalo para o almoço. As poças do campo de treinamento uniram-se em uma só, formando praticamente um lago onde a água acumulada alcançava a altura dos tornozelos.

Talemine esquadrinhou o céu de nuvens negras que desabava todo o seu aguaceiro sobre Faogard, sem dar nenhum sinal que pararia em algum momento.

Vou interromper as atividades da tarde. Aproveitem para descansar e memorizar o que aprenderam hoje — comunicou a guerreira enquanto afrouxava as fivelas e presilhas que prendiam seu traje de couro e metal, antes de tomar o caminho de casa. Camine se despediu de Margaret e seguiu a irmã.

Os recrutas se recolheram aos seus aposentos e tomaram banhos quentes para relaxarem.

Contrariando as previsões, bem no meio da tarde, o sol surgiu entre as nuvens que, aos poucos, foram se afastando dando vez a brechas de céu azul. As nuvens assumiram um tom cinza-claro e a ameaça de voltar a chover foi praticamente desconsiderada.

Marc e Rafael entraram no quarto e encontraram Daniel e Chester dormindo em plena tarde.

Vão passar o dia todo jogados nessa cama? — criticou Marc, depois sacudiu Chester para despertá-lo do seu sono. Rafael fazia a mesma coisa com Daniel.

O que há de interessante pra se fazer lá fora? — perguntou Chester enquanto se espreguiçava, pensando em um bom motivo para não se levantar.

Um mundo inteiro pra se descobrir - respondeu Marc olhando o céu pela janela do dormitório, as nuvens brancas se afastavam cada vez mais e o céu, muito azul, convidava para um passeio pelas avenidas de Faogard.

Daniel sentou-se na cama e coçou a cabeça. Por fim, se rendeu:

Está bem, está bem. Eu me dou por vencido - disse, calçando as botas ainda sujas de terra.

Chester, da janela, contemplou a extraordinária Faogard retomar suas ativida­des após a chuvarada. Uma brisa gostosa obrigou o texano a dar razão aos amigos e querer sair daquele quarto sossegado demais, o oposto da personalidade deles.

-Aposto que a minha irmã não está no quarto dela - arriscou Daniel enquanto percorriam o corredor em direção à saída do prédio.

Adivinhou — respondeu prontamente Rafael. - Faz tempo que ela saiu e imagino com quem esteja.

A garota guerreira, Camine — presumiu Daniel descendo a escada de madeira que gemia ruidosamente com as pisadas apressadas dos quatro amigos.

Uma grande amizade havia nascido entre Camine e Margaret. As duas meninas quase da mesma idade andavam sempre juntas, e os meninos nunca sabiam o que elas tanto conversavam.

Eles ganharam a rua e vagaram por algum tempo pelas passagens e avenidas do lado norte da cidade.

Os habitantes já estavam começando a se habituar com os estranhos hóspedes, e alguns até arriscavam sorrisos desejando se mostrar um povo hospitaleiro.

Olhem, rapazes, quem está vindo em nossa direção — alertou Rafael, os olhos fixos em duas figuras bem conhecidas.

Eram Margaret e Camine subindo a rua numa passada firme e cheias de si. Eles se encontraram e Margaret prontamente se pronunciou:

-Temos boas notícias! - exclamou com um sorriso de grande satisfação. - O professor Roger está fazendo os últimos exames e daqui a alguns instantes receberá alta.

Então vamos até ele - disse Marc com decisão.

Esperem. O professor não está mais no hospital - avisou Margaret com autoridade. - Ele foi transferido para uma unidade de reabilitação.

E onde fica isso? — quis saber Daniel.

Descendo essa mesma avenida, vocês encontrarão à sua esquerda, um beco ladeado de muros altos. No final existe um prédio com uma grande porta cinza. E lá que ele está — explicou Camine indicando com acenos largos por onde deveriam seguir.

Vamos de uma vez — animou-se Chester. — Precisamos dar-lhe as boas-vindas.

Os meninos passaram a descer a rua, Camine e Margaret seguiram para o lado oposto.

Vocês não vêm com a gente? — indagou Rafael voltando-se para elas que se afastavam.

Já vimos o professor, mas agora iremos nos encontrar com outras meninas — disse Margaret se despedindo.

Foi fácil encontrar a rua estreita seguindo as orientações de Camine.

Deve ser essa mesma - deduziu Daniel, indo na frente. - Lá no fundo está o prédio com a porta cinza.

O beco, com cerca de oitenta metros de comprimento, era estreito e não havia circulação de gente como era de se supor. Eles chegaram até a porta, quando Daniel tentou abri-la.

Está trancada - ele constatou, forçando mais uma vez.

Isso aqui parece mais um depósito que um centro de reabilitação - observou Rafael, esmiuçando a fachada do prédio com o olhar, duas janelas gradeadas, uma para cada lado da porta, também permaneciam trancadas, dando a impressão que o lugar estava abandonado.

Será que não erramos a rua? - duvidou Chester, procurando em vão uma outra entrada.

Acho que não - disse Daniel sem muita convicção. - O local bate com a descrição feita por Camine. Só pode ser aqui.

Pessoal, o que é aquilo? — perguntou Chester, surpreso ao direcionar os olhos para o início da rua.

Os garotos se voltaram de uma só vez atendendo ao chamado de Chester. Os olhos deles ficaram vidrados de espanto e um arrepio correu instantaneamente pelos seus corpos.

Algo os deixou aterrorizados.

Eles estavam tendo a visão de um animal negro de olhos cinzas; assemelhava-se a um lobo com pelo menos uma vez e meia o seu tamanho; três listras acinzentadas percorriam o seu dorso no sentido do pescoço até a cauda; suas patas eram tão grandes como raquetes de tênis. O animal caminhava lentamente em direção aos garotos, obstruindo a única passagem que havia entre eles e a avenida.

Os quatro amigos se apavoraram quando a fera arreganhou a bocarra exibindo presas enormes capazes de dilacerar facilmente um ser humano.

Daniel tentou encontrar uma passagem, alguma saída que os tirasse dali, mas logo percebeu que estavam encurralados; a fera se aproximando mais e mais dos rapa­zes, e a cada passo que dava, seu corpo enorme oscilava ao caminhar num movimento sinuoso, comum aos terríveis predadores. O carniceiro crescia na frente deles.

Chester teve uma idéia desesperada.

Alguém suba aqui, depressa! — gritou, entrelaçando as mãos, oferecendo um apoio para que um de seus amigos tentasse alcançar o alto do muro.

Marc pulou na escadinha de dedos improvisada e se esticou como pôde, porém o muro era muito alto, uns quatro metros no mínimo; Marc pulou de volta para o chão, desistindo.

O animal baixou a cabeça, as orelhas pontudas voltadas para trás rentes a cabeça, selecionando a sua vítima; seus olhos ameaçadores encontraram Daniel, que entendeu imediatamente que era ele a presa escolhida.

Chester olhou em volta, procurando uma pedra ou outra coisa que pudesse jogar para afugentar o monstro que se tornava muito mais aterrador à medida que se aproximava. Não havia nada no chão que ele pudesse atirar.

Rafael correu para a porta e ainda conseguiu destravar a fechadura com seus grampos de bolso, mas não conseguiu abrir.

Está bloqueada por dentro! — apavorou-se, atirando-se contra a porta que mal se mexeu com as investidas do menino.

O animal feroz ia lentamente em perseguição a Daniel.

Ele quer você, Daniel. Fuja! - berrou Marc se apertando contra a parede.

De que jeito? - balbuciava Daniel, querendo se esquivar. - Essa coisa está me cercando.

Daniel estava certo. Não havia mais muito espaço para onde correr.

Marc conseguiu escapar, ou foi a fera de olhos cinzas como nuvens de tempestade que o desprezou; ela já tinha feito sua escolha: Daniel.

Vou pedir ajuda! - disse Marc, mas ele sabia que não daria tempo, então voltou sem saber ao certo o que fazer para ajudar o amigo.

O lobo corpulento lançava olhares ferozes para que os outros meninos não se atrevessem a atrapalhar o seu objetivo.

O enorme animal, por fim, encurralou Daniel obrigando-o a cambalear para trás; o garoto inglês desequilibrou-se e caiu de costas. Seus amigos gritavam desesperados ao verem Daniel a ponto de ser devorado, ali, na frente deles.

O gigantesco lobo negro pôs a sua enorme pata de unhas afiadas sobre o peito de Daniel já estirado no chão, sentindo a potência daqueles músculos e dentes afiados; o animal de pelagem negra poderia matá-lo apenas pressionando seu peso sobre o rapaz.

A fera aproximou o seu focinho do rosto de Daniel e um cheiro repugnante invadiu suas narinas: o animal rosnou anunciando que o fim havia chegado. O bicho parecia estar atrasando a morte de Daniel por puro prazer.

Uma dolorosa sensação de angústia se abateu sobre Marc, Chester e Rafael ao se sentirem impotentes quando mais precisavam ajudar o companheiro.

A fera negra escancarou a enorme mandíbula, exibindo toda a variedade de dentes cortantes, dilacerantes e trituradores; Daniel virou o rosto para o lado e ainda pôde ver Chester levar as mãos à cabeça em profunda aflição.

Daniel havia perdido todas as esperanças de sobreviver.

Já chega, Kranalk! — gritou uma voz feminina da entrada do beco.

Era Camine acompanhada de Margaret.

O gigantesco monstro deu uma grande lambida no rosto de Daniel e se afas­tou, pondo-se ao lado da menina guerreira, como um cão comportado.

M-Mas o que está acontecendo aqui? — gaguejou Rafael, estupefato.

Desculpem o pequeno susto, rapazes - disse Margaret toda orgulhosa de si. - Mas essa foi a maneira que eu encontrei de me vingar daquele banho forçado que tomei há alguns dias naquele rio.

Daniel, boquiaberto e perplexo, sentado no chão, todo sujo de terra e com o rosto impregnado de baba, não acreditava no que estava ouvindo.

Vocês jogaram essa monstruosidade contra mim por causa de uma desforra boba? Eu poderia estar morto a essa hora! — desabafou aos berros, socando o chão.

Kranalk inclinava a cabeça para o lado, observando, curioso, a reação desati­nada de Daniel.

Marc não sabia se ria da brincadeira ou se ficava do lado de Daniel para protes­tar contra o grande susto pelo qual também passou sem ter nada com as desavenças dos irmãos.

Rafael e Chester ainda ofegavam enquanto se restabeleciam da peça pela qual foram surpreendidos.

Se Kranalk quisesse acabar mesmo com você, garoto Daniel, já o teria feito, não é mesmo Kron? — avisou Camine enquanto acariciava o pelo espesso da fera que não parecia tão hostil como antes. Ela continuou a discursar: — Ele é muito inteligente e mais confiável do que muitos que se dizem racionais — elogiou, agora dando um grande abraço no pescoço peludo de Kranalk que respondeu o afago com outra lambida. — Além disso, Kranalk é um ótimo guarda-costas e também um excelente companheiro para caçadas e combates. Ele é mais eficaz do que cinco soldados armados e se não for parado, é capaz de deixar um rastro de sangue e morte em um campo de batalha. Vamos, Daniel, venha acariciá-lo. Ele não vai morder você — disse a garota faogard voltando a falar com voz doce.

Daniel ergueu-se batendo a roupa para livrar-se da poeira, mas não conse­guiu encobrir o orgulho ferido. Margaret o olhava com a nítida sensação do dever cumprido.

Que troco que ela deu no Daniel — comentou Marc com Chester, comprovando mais uma vez o poder de fogo de Margaret.

Foi muito perigoso o que vocês fizeram — reclamou Daniel ainda um pouco assustado, limpando o rosto grudento da saliva de Kranalk.

Não foi, não - disse Camine, indo em defesa de Margaret. — Eu sei muito bem controlar Kranalk e ele não faria nenhum mal a você... a não ser que eu qui­sesse — completou com sarcasmo. — Margaret me perguntou diversas vezes se era seguro pregarmos essa peça em você, Daniel. Ela estava realmente preocupada com o seu bem-estar, e só aceitou definitivamente quando conheceu bem Kranalk e depois que eu assegurei que o meu Kron apenas encheria o seu rosto de saliva com um suculento beijo.

Daniel fez uma cara de asco e terminou de se limpar com a manga da camisa.

Mas acho que vocês tiraram uma lição com essa história toda — disse Camine causando expectativa.

Que lição? — perguntou Rafael, arriscando tocar em Kranalk que se fez indiferente aos excessivos afagos vindos de todos os lados por parte dos garotos.

A de que vocês não devem andar por aí sem nada que possam se proteger. Se fosse uma situação real, todos os quatro seriam mortos, sem nenhuma possibilidade de defesa ou fuga. Um animal como esse é capaz de atingir grandes velocidades e saltar obstáculos maiores que esse muro. Vocês estariam indefesos e condenados a morrer - disse com severidade.

Camine encarou seriamente um a um e nem Margaret escapou do seu olhar. Ela prosseguiu.

Quando forem embora de Faogard, portem as armas como se fossem suas roupas. Em quaisquer circunstâncias elas devem ser usadas.

A dureza do discurso da pequena guerreira era contundente e contrastava com aquela menina que, quando não estava envolta em trajes de batalha, era igual a qualquer garota dos bancos escolares da Ilha da Coroa ou de qualquer outra escola comum.

O que ele é, um lobo? — quis saber Chester, olhando Kranalk com curiosidade.

Não sei o que é um lobo — respondeu Camine. — Mas ele não é isso. Kranalk é um nevolort, um exímio caçador. Os nevolorts são os melhores amigos que alguém pode ter. São corajosos e leais e se você cria um desde filhote, nunca mais ele te abandona. E pra toda a vida.

O magnífico animal causou sensação e logo se tornou alvo de admiração.

Como ele sabia que deveria atacar o Daniel e não a um de nós? - quis saber Rafael.

Os Nevolorts são especiais — disse Camine olhando com carinho para Kranalk que retribuiu lambendo a sua mão. — Eu falo com ele e ele me entende, mas para que isso aconteça, tenho que me aproximar bastante dele e sussurrar no seu ouvido o que eu quero que seja feito. Assim, Kron consegue compreender perfeitamente cada palavra, pois cada uma delas exprime um sentimento diferente. Eu já havia mostrado o Daniel, de longe, para ele, e o resto vocês viram como aconteceu.

Só isso? — admirou-se Marc com a capacidade de interação da faogard com o seu bicho de estimação.

Tem algo mais - completou ela -, todas as vezes que falo ao seu ouvido, transmito minhas vontades para a sua mente. Somente quando é feito dessa forma, é que a nossa comunicação dá certo. Por isso nos entendemos tão bem, não é mesmo Kron?

Kranalk respondeu com um estrondoso rosnado, demonstrando compreender a sua dona.

Você devia ter visto a sua cara - disse Chester a Daniel, em tom de gozação.

E a sua? Parecia que tinha visto um fantasma - respondeu Daniel, fazendo uma careta assustadora.

E o Marc, pulando como um louco nas mãos de Chester, querendo subir pela parede como uma lagartixa - lembrou Rafael, movendo os braços como se escalasse uma parede imaginária.

Olhe quem fala - devolveu Marc, desdenhando. — Você esmurrou tanto aquela porta tentando fugir que deve estar com as mãos doendo até agora.

Meninos, meninos, não precisam se atacar — intercedeu Margaret. - Nós vimos muito bem como vocês são corajosos — concluiu com ironia.

Gostaria de ver se você ficaria tão segura de si se estivesse em nosso lugar — disse Daniel defendendo a abatida honra masculina.

Sem dúvida alguma eu estaria bem! Kranalk é tão bonzinho — disse ela enquanto dava tapinhas gentis na cabeça do nevolort negro que piscava os olhos a cada pancadinha.

Ela correu os olhos, avaliando a sujeira em que Daniel se encontrava.

Parece que você vai precisar de um banho, querido irmão. Talvez um banho de rio resolva.

Margaret, isso náo vai ficar assim! — tornou a irritar-se Daniel, lembrando-se do vexame armado pelas duas garotas.

Acho que já basta — ponderou Rafael em tom bastante equilibrado. - Se vocês dois continuarem com a idéia maluca de ir à forra para devolver o insulto anterior, isso não vai acabar tão cedo — ele fez uma pausa para dar tempo que os dois refletissem sobre o assunto. — E o pior, isso pode não terminar bem.

Daniel olhou de Rafael para Margaret, pensativo.

Está bem, eu concordo em parar por aqui - ele admitiu, aceitando os argumentos de Rafael.

Margaret respondeu com um olhar amistoso para o irmão.

Aceito as condições - disse ela, como se estivesse a ponto de assinar um acordo de paz entre dois países beligerantes.

O professor Roger havia mesmo recebido alta e já se encontrava em seu novo aposento junto com Guillermo e Brian, interando-se dos detalhes dos treinamentos e quais os novos planos para seguirem jornada. Sentia-se bem melhor, princi­palmente porque havia se livrado da cama do hospital e dos cuidados exagerados - ele considerava assim — de Talemine.

Em breve teremos de deixar a hospitalidade e o conforto de Faogard — avisou Guillermo em tom de lamento, levando em conta que cada dia de atraso poderia resultar em grandes problemas no futuro.

Eles vão mesmo nos deixar partir? — perguntou Roger, ainda um pouco desconfiado das intenções dos anfitriões. Ele experimentava a maciez da sua cama, pres­sionando o colchão com as mãos. — Essa cama é mais confortável que a do hospital.

Mas é obvio que nos deixarão partir — respondeu Brian, surpreso com o questionamento de Roger. - Não somos prisioneiros, quer dizer, ao menos não somos mais. Desde o mal entendido da nossa chegada, estamos sendo bem tratados e isso não inclui Guillermo.

Brian contou a Roger como seu amigo espanhol estava passando por maus bocados nas mãos de Talemine; como quase foi flechado por ela; como quase teve a garganta e a mão cortadas e o pé esmagado a marteladas. Guillermo indignou-se ao ser lembrado pelo inglês de todas aquelas situações embaraçosas.

Ele está apaixonado - declarou Roger, friamente, enquanto tirava as botas e as empurrava para debaixo de sua cama.

O que disse? - surpreendeu-se Brian, lançando um olhar de espanto para Guillermo.

Você não notou, Brian? Guillermo está louco pela mulher faogard, e ela por ele — sustentou Roger, enquanto ajeitava suas coisas em algumas prateleiras ao lado de sua cama. - Percebi da primeira vez que os vi juntos na enfermaria - Roger vol­tou-se para Brian e Guillermo e se abriu para os dois. - Eu sei muito bem do que estou falando: uma vez me senti assim, e depois de anos havia me casado. — Ele fez uma expressão triste e suspirou profundamente ao relembrar a sua Helen. - Bem, o resto vocês já conhecem.

Isso é verdade, espanhol? Você está mesmo interessado em Talemine? - provocou Brian um tanto incrédulo.

Guillermo estava desconcertado, não sabia o que dizer.

Não é possível acontecer nada entre nós - disse, procurando desviar o ataque desferido por Brian. - Ela é diferente, parece um... ser de outro planeta.

Ela é um ser de outro planeta - afirmou Brian, não dando chance de defesa.

Lembra? Estamos em outro mundo.

Não foi bem isso que eu quis dizer - expressou-se Guillermo, buscando se defender, comportando-se como um adolescente. - Ela parece uma loba... uma leoa... um animal selvagem com olhos encarnados.

Sabe, meu amigo, se as leoas fossem como Talemine, eu viajaria até a África e voltaria casado com uma - disse Brian, admitindo a beleza atraente da guerreira.

Onde você deixou seu caliente sangue espanhol?

Acho que esqueci tudo isso quando conheci aquela garota - admitiu Guil­lermo, acanhado.

Ora, vá até lá e diga o que você sente por ela — encorajou Brian com voz firme. — Não ouviu o que Roger falou? Ela também está interessada em você, e se comportou com tanta agressividade; deve ser o jeito dela de demonstrar que está apaixonada, ou algo assim.

E se Roger estiver equivocado? E se isso que vocês estão supondo for um enorme engano? - retrucou o espanhol, inseguro dos sentimentos de Talemine.

Eu não estou equivocado — garantiu Roger com bastante segurança. — A guerreira gosta mesmo de você.

Só há um problema - disse Brian, levantando uma questão. - Ouvi dizer que para conquistar uma garota faogard o pretendente tem que lutar com o pai dela.

O que você está dizendo? — perguntou Guillermo, num misto de revolta e desânimo.

É brincadeira, Guillermo - redimiu-se Brian, mas sem conter um sorriso de escárnio. — Entretanto, não sei se Rhuror vai concordar com a aproximação de você dois.

Guillermo parou um pouco para pensar.

O que estou fazendo? — disse ele para si mesmo. — Em pouco tempo iremos embora e nunca mais verei Talemine. O mais sensato é não levar essa idéia adiante e esquecê-la de uma vez.

Não sei se eu desistiria de Talemine caso estivesse no seu lugar, Guillermo - disse Roger, em tom muito sério; seus olhos expressavam uma sinceridade angus­tiante. — Nunca contei isso pra vocês, mas quando eu ainda estava cursando o ter­ceiro ano da Escola Internacional, pus os olhos pela primeira vez na mulher que me casaria onze anos depois. - Roger olhou no vazio, seus pensamentos viajaram no tempo. - Helen se destacava das outras meninas do colégio tal era a sua beleza; seus olhos eram grandes e expressivos e quando se cruzavam, por uma fração de segun­dos, com os meus, aquele momento parecia uma eternidade para mim, uma deli­ciosa eternidade. Eu era um jovem tímido e orgulhoso de meus sentimentos, e não me dava nenhuma oportunidade de aproximação com ela. Todos os dias, quando a sirene tocava, eu saía da sala de aula e aguardava, olhando de longe, Helen também sair da sua, abraçada aos livros e cadernos, rodeada pelas suas colegas e conversando efusivamente sobre a matéria da última aula ou coisa parecida. - Roger sustentou uma das mãos no parapeito da janela que dava para a rua e viu dois guerreiros, montados em seus cavalos listrados, os gifenontes, galoparem sem pressa em dire­ção a um dos portões da cidade-fortaleza, a claridade da tarde que entrava pela janela assumia uma tonalidade amarelada quando tocava no assoalho do dormi­tório. Roger fazia questão de desabafar a sua melancolia com os companheiros. — Helen sorria fácil e cativava muita gente com sua simpatia. — Roger, então, sorriu ao se recordar de algo. — Às vezes, eu pegava um papel e uma caneta e me isolava em meu quarto ou debaixo de uma árvore e escrevia longas cartas declarando o meu amor por ela, depois rasgava tudo em pedacinhos e me certificava de que ninguém iria juntar e ler aquele monte de idiotices que eu havia escrito. Naquele instante eu me achava o garoto mais estúpido da escola, mas no dia seguinte, lá estava eu escrevendo tudo novamente. Eu era um tolo apaixonado, e nunca tive coragem de contar pra ninguém do que sentia pela minha Helen. - Guillermo e Brian ouviam em silêncio o depoimento do amigo. — Numa tarde de intenso calor, eu estava vol­tando da biblioteca e quando atravessei o jardim interno da escola, vi Helen con­versando com um rapaz do quinto ano; os dois riam e pareciam ser muito íntimos, pelo menos foi dessa maneira que eu entendi; senti meu rosto ferver e a vontade que tive foi pegar aquele aluno e atirá-lo do penhasco para que as ondas enfureci­das acabassem com ele - ele apertava os punhos com força enquanto falava. - Mas sabem o que eu fiz? Nada. Segui o meu caminho e fui remoer o meu ciúme na beira da praia. Aquela raiva perdurou por muito tempo e toda a vez que eu cruzava com aquele aluno do quinto ano, sentia uma enorme vontade de surrá-lo no meio de todo mundo, e gritar bem alto, para que todos ouvissem, que nunca mais ele sorrisse ou sequer olhasse para ela. Mas qualquer ato de agressão, como vocês bem sabem, era sumariamente punido com a expulsão do infrator.

Roger fez uma pausa e quando se deu conta que seus amigos estavam tão interessados em sua história, prosseguiu:

O tempo passava e eu não fazia idéia de que durante todos aqueles anos estava sendo observado e testado em segredo pelos membros da Sociedade do Cír­culo. Meus interesses se dividiam nos estudos e na adolescente que havia então se transformado na bela mulher que se tornaria a razão da minha felicidade.

E você, é claro, não se aproximou dela - deduziu Brian que havia acompanhado parte do drama que envolvia Roger e Helen. Brian e Roger, por pertencerem a turmas diferentes, só se tornaram amigos quando ficaram unidos pela Sociedade do Círculo de Pedra, quando concluíram o curso aos vinte e um anos.

Tentei algumas vezes, mas sempre havia alguma coisa que atrapalhava. Uma dessas vezes chegamos a conversar um pouco no intervalo de uma manhã de aula, mas era um daqueles dias de prova de final de semestre e não estávamos com cabeça para assuntos que interferissem com a nossa concentração. Numa outra ocasião, encontrei Helen sozinha entre as estantes da biblioteca, ela escolhia alguns livros sobre Biologia, sua matéria preferida; até ajudei-a a carregar os livros pesados até a mesa. Contei a ela da minha grande atração por Biologia, tudo mentira para impressioná-la, e no exato instante que senti que Helen estava preste a me convidar para sentar-me junto à ela, o sossego da biblioteca foi quebrado pelas suas colegas que ocuparam todas as cadeiras de nossa mesa. Acho até que Helen percebeu a minha decepção e perguntou se eu queria puxar uma cadeira e me juntar ao grupo; eu dei o sorriso mais amarelo do mundo e me desculpei dizendo que já tinha compromisso.

Roger fez uma pequena pausa para avançar um pouco a sua narrativa:

Então veio o dia em que eu fui admitido pela Sociedade e tive a revelação do segredo do Portal. Achei aquela experiência fantástica e confesso que deixei a Helen um pouco de lado. Pouco depois, fui designado para uma missão junto aos membros da Sociedade incorporados na marinha do meu país para estabelecer estratégias de proteção à Ilha da Coroa em caso de guerra. Desde o grande conflito em 1914, na Europa, a situação passou a ser de cautela internacional, principal­mente quando as tecnologias militares foram muito aprimoradas. A missão que deveria levar seis meses durou três anos, o que me afastou totalmente das coisas da Escola Internacional do Atlântico. Passei a me conformar de ter perdido Helen para sempre, sabem como é: um namorado firme ou algo assim - ele exemplificou enquanto virava uma jarra de água em um copo para molhar um pouco a garganta. - E se não fosse um namorado, o tempo também se esgotava para Helen que estava completando o último ano letivo na Ilha.

Sabia que o namoro de vocês foi um pouco conturbado — comentou Guillermo. — Mas não tinha noção de que havia tido tantos desencontros.

Roger assentiu com a cabeça e continuou:

Um dia, fui chamado de volta, o meu trabalho na marinha havia terminado. A Sociedade queria que eu retornasse imediatamente à Ilha da Coroa.

Lembro bem dessa época - interrompeu novamente Guillermo. - Pois eu também havia sido introduzido um ano antes nos segredos do Portal.

E eu no ano anterior - completou Brian com saudosismo.

Era primavera quando o navio se aproximou da Ilha, de modo que eu podia avistar o prédio da Escola, a floresta e o monte Cabeça do Rei. Muitos sentimentos antigos despertaram em mim. Naquele exato momento passei a ver a Ilha da Coroa como a minha casa. Vaguei pelos lugares que não via há anos e encontrei muitos alunos novos que lotavam os espaços com a vitalidade típica da adolescência.

Roger fez outra interrupção para admirar uma ave de asas muito brancas que planava enquanto escolhia um dos telhados de cerâmica cor de ferrugem de uma casa do outro lado da rua para, por fim, pousar. Ele então continuou a falar para os seus amigos.

A primavera deixava o jardim interno do prédio colorido de flores, e foi ali, num banco de finas tábuas corridas, que eu me sentei para lembrar-me da Helen. Ela costumava estudar as plantas do imenso jardim para preparar os seus estudos das aulas de botânica. Os perfumes das flores se misturavam e me devolviam as lembranças do meu tempo de estudante. Foi quando ouvi a voz dela. Roger, você voltou!

Os olhos de Roger brilharam como se ele pudesse rever a cena.

Eu me levantei num susto de felicidade. Ela estava maravilhosa. Mais linda do que nunca. Os olhos grandes e expressivos, os cabelos menos compridos, mas igualmente harmoniosos em mechas suaves realçados por um pingente lindíssimo preso por uma corrente em seu pescoço — ele apertou, junto ao peito, a única lem­brança que ainda possuía de Helen. — Evitei pronunciar qualquer palavra nos pri­meiros instantes, pois sabia que iria gaguejar e me comportar como um garotinho tolo. Em poucos minutos fiquei sabendo de tudo o que havia acontecido com ela durante os anos em que estive fora. Helen havia assumido a cadeira de Biologia e se tornara uma excelente professora, e fiquei ainda mais feliz quando ela me contou que, igual a nós, fazia parte da Sociedade do Círculo de Pedra. Bem, isso é claro que vocês sabiam - Roger sorria ao se recordar em detalhes daquele dia. — Decidi não perder mais tempo e ali mesmo, no meio das flores e plantas, me declarei pra ela, vigiado por dezenas de janelas do prédio que rodeava o jardim, como olhos curiosos a querer me intimidar. Helen ficou desorientada tal foi a minha ousadia, mas fui surpreendido quando ela disse que se apaixonou por mim na primeira vez que me viu, que teria muita vergonha se eu soubesse e que, vejam só, ela vivia escrevendo cartas de amor que nunca tinha coragem de me entregar. Rasgava todas.

Roger fez uma expressão como um pai que dá um grande conselho ao filho e falou diretamente para Guillermo:

Levando em conta tudo que eu acabei de contar pra vocês, Guillermo, se você acha que vale à pena, não desista de Talemine. Eu perdi muito tempo e o destino quis me castigar me separando da Helen tão cedo. E agora - disse com amargura — não vejo como voltar no tempo e recuperar o que perdi. Dois anos, quatro meses e nove dias foi o tempo que levou entre a data do nosso casamento e o dia em que me despedi dela, em sua lápide.

Roger, desculpe a minha intromissão, mas... não acha que já está na hora de você voltar a viver? - aconselhou Brian, desejoso por ver o fim da agonia do companheiro.

Provavelmente você vai achar que eu estou louco, mas ainda, não sei como, alimento a esperança de trazer Helen de volta. Eu sei, eu sei que parece absurdo, mas se houver um meio de encontrá-la viva e poder tocá-la, eu farei qualquer coisa.

Guillermo e Brian desconheciam esses sentimentos improváveis do amigo que sempre se mostrou frio e equilibrado.

Roger sacudiu a cabeça como se quisesse atirar as tristes recordações para bem longe.

Chega! Quero sair um pouco, conhecer a cidade — disse, esfregando intensamente a testa.

Muito bem — aprovou Brian. — Prefiro vê-lo assim. Venha, vamos mostrar- lhe a agitação de Faogard: as avenidas, as construções exóticas, os carroções abarro­tados de pedras de luminita que abastecem metade do continente e a grande feira na praça central. Sabia que os faogards veneram Sargaleu, o deus guerreiro? Nada mais apropriado, não é mesmo? — informou enquanto abria a porta do quarto, dando passagem para que Brian e Roger saíssem.

A tarde deitava suas sombras preguiçosas sobre a cidade dos guerreiros e o dourado das nuvens anunciava o fim de outro dia em Faogard.

 

                           Olhos de Prata

O grupo de aventureiros estava novamente completo.

Roger mostrava a mesma expressão vigorosa anterior à surra sofrida para Rhuror, dias antes.

Talemine, assumindo mais uma vez a função de instrutora, iniciou o dia com um comentário sobre Roger.

Dizem que você é um grande lutador, Roger. Só espero que seja mais dedi­cado com as armas do que como meu paciente.

Não tenho vocação para doente - retrucou ele no mesmo tom de disputa.

Vi quando lutou com meu pai e aprecio sua coragem, mas sem disciplina não vai aprender muita coisa sobre os modos de combate - provocou ela, procu­rando aflorar os brios de Roger.

Chester cruzou os braços, confiante no compatriota; sabia que disciplina e determinação eram marcas fortes no caráter do professor.

É bom mesmo que pense assim — disse ele em resposta. - Quero ver se você é tão eficiente como guerreira como disseram meus amigos.

Vamos ver o que sabe fazer com a espada — disse Talemine, desembainhando a sua e mostrando outras para Roger no balcão de armas. - Pegue aquela que se sentir melhor, ela deverá defender a sua vida.

Roger escolheu uma de lâmina espessa e empunhadura firme, de acordo com a sua compleição física robusta. Ele retornou e se pôs na frente da guerreira, a espada erguida.

Vai me atacar ou quer que eu o faça primeiro? - perguntou ele, sua mão movia a ponta da espada desenhando um "8" no ar.

Faremos assim, quem estiver em melhor posição faz o primeiro ataque — propôs ela, girando em volta de Roger que passou a movimentar-se oferecendo sempre a ponta da espada para a faogard.

Talemine então atacou na velocidade do bote de uma serpente, mas encontrou Roger atento que a recebeu com um movimento rápido, suas lâminas se chocaram num estridente som metálico. A força do braço de Roger afastou a guerreira que voltou com mais cautela; ela havia percebido que não seria um combate fácil. O fato de Roger ter lutado com os encapuzados no desfiladeiro lhe deu a experiência de ter que ficar sempre alerta quando a luta envolvia armas cortantes. Além do mais, Roger era um boxeador experiente, acostumado a seqüências de ataques e defesas; mas também era um cavalheiro e não se sentia muito à vontade trocando golpes com uma mulher, mesmo sendo ela uma excelente guerreira.

Talemine passou a provocá-lo com estocadas curtas para tentar distraí-lo e achar um jeito de acertar o seu peito ou, de preferência, a sua garganta, os pontos vitais. Roger não proporcionava nenhuma chance para as investidas da guerreira de cabelos vermelhos.

Guillermo assistia com apreensão; de um lado seu amigo e do outro a sua amada; torcia que nenhum dos dois viesse a se machucar.

Camine, agachada em um canto, buscava aprender, estudando em cada movimento, as falhas e os acertos.

Roger testou uma estratégia, a de arrancar a espada da mão de Talemine com um golpe forte quando ela a esticasse, aproximando-a dele; porém, a idéia foi infrutífera, pois, espertamente, Talemine tirava o peso de sua espada a cada golpe mais violento de Roger e se colocava em guarda imediatamente.

Você é grande e forte - declarou ela, admitindo a dificuldade do embate. — Mas lhe falta técnica, e foi por isso que meu pai o venceu sem muito esforço.

Roger manteve-se calado, aproveitou a distração de Talemine e, num giro rápido de sua lâmina, arrancou a espada da guerreira; a arma voou e caiu no solo ainda enlameado pela chuva do dia anterior.

Viu, moça faogard? Eu venci - disse Roger, baixando a sua espada, dando a luta por encerrada.

Talemine saltou sobre Roger como uma leoa lança-se sobre uma zebra em fuga e pressionou sua faca contra o pescoço dele.

Eu venci - decretou ela. - Eu poderia separar a sua cabeça agora e expô-la como um troféu na minha parede.

Talemine soltou-o e guardou sua faca. Ela ensinou.

Uma luta só acaba quando seu oponente está morto — disse ela a Roger. - Seus amigos já aprenderam essa lição.

Não vou esquecer disso - disse ele, reconhecendo que foi derrotado... pela segunda vez.

Tal pai, tal filha - comentou Guillermo com alguma provocação a Roger.

Foi um dia intenso de treinamentos. Talemine passou a aplicar técnicas do uso da combinação de armas ao mesmo tempo: espada e martelo; faca e arco e flecha; martelo e faca. Ela ensinou a utilização do escudo como um dos últimos recursos em caso de uma batalha feroz.

Os corpos dos contendores se entregavam de cansaço ao final de outro dia. O prazo estava para terminar; eles logo teriam que abandonar Faogard.

Como se sente, professor Roger? - quis saber Margaret enquanto depositava um martelo escuro e de cabo com tiras de couro trançadas, no balcão de armas.

Vivo! - disse ele, específico. — Eu estava, há muito, precisando de um dia como esse para afastar os meus fantasmas.

Fantasmas? — insistiu ela.

Fantasmas, mocinha, fantasmas - confirmou para ela com um olhar de docilidade e voz apagada.

Guillermo não conseguia dormir direito à noite; o tempo estava se esgotando e ele ainda não sabia direito como se aproximar de Talemine. Lembrava de cada frase, cada palavra de Roger. Detestava a possibilidade de ir embora sem dizer o que sentia pela mulher dos seus sonhos. O fato de Guillermo ser um galanteador desde muito jovem, não o preparou para tal situação que estava enfrentando. Sentia que precisava fazer alguma coisa e muito, muito rapidamente.

Tenho que falar com ela amanhã mesmo - sussurrou ele para si mesmo, procurando não acordar os amigos; depois ficou parado olhando para o teto, os dedos tamborilando no colchão almofadado.

Não! Tem que ser hoje! Pensando bem, preciso fazer isso agora! — decidiu-se abruptamente, levantando-se da cama com cuidado para não acordar ninguém.

Ele vestiu suas roupas e calçou as botas que entalaram um pouco antes que seus pés deslizassem até o fundo. Depois caminhou sorrateiramente em direção a porta.

Aonde você vai? - perguntou Brian erguendo a cabeça na penumbra do quarto. Somente um fio de luz penetrava obliquamente clareando com a sua luz azulada um canto da parede próximo a janela.

Vou falar com Talemine.

Mas agora? Sabe que horas são? - perguntou, apoiando-se em um cotovelo e esticando o relógio até a luz do luar que iluminara o mostrador. — Por Deus, homem, já entramos na madrugada.

Prefiro que seja desse jeito, amanhã não sei se terei coragem - argumentou Guillermo, fortemente determinado.

Isso é o que dá o Roger ficar colocando minhocas na sua cabeça — reclamou Brian, aceitando que o sono havia ido embora.

Deixe o espanhol fazer o que seu coração manda - disse Roger com voz sonolenta, os olhos cerrados. - Se ele for agora a garota vai aprovar a sua atitude audaciosa.

Guillermo, se você precisar de ajuda me chame. Iremos juntos e faremos uma serenata debaixo da janela da moça - Roger ainda tinha esses raros lampejos de bom humor.

Como você pretende ir até a casa dela? Você nem sabe onde ela mora — alegou-se Brian, fazendo de tudo para desencorajá-lo.

Margaret deve saber. Ela vivia andando com Camine para todos os lados - lembrou-se Guillermo enquanto agarrava a maçaneta da porta e abrindo uma fresta, preparando-se para sair.

Não ouse envolver Margaret nesse seu desvario inconseqüente, ela é só uma menina - protestou Brian energicamente.

Brian tinha toda a razão. Guillermo era impulsivo e emocional em certas ocasiões. E normalmente, as coisas não terminavam conforme fora planejado. Certa vez, de férias em Salamanca, na Espanha, Guillermo se engraçou com uma morena de olhos amendoados, descobrindo o endereço dela, e à noite, foi jogar pedrinhas em sua janela para entregar um bilhete com versos melosos. Só que ele não sabia que a linda morena era mulher de um policial mal-humorado, e muito ciumento. Até hoje, Guillermo não sabe como escapou das balas que zuniram em seu ouvido. A verdade é que ele somente se considerou a salvo quando pegou um navio de volta para a Ilha da Coroa. Passagens como essa eram bem comuns na vida do espanhol.

Margaret não é mais uma menininha — retorquiu Guillermo com veemên­cia. - E acho que ela vai gostar de me ajudar a conquistar Talemine.

Então, vejamos — preparou-se Brian. — Você vai até a casa da guerreira de olhos rubros, acorda ela e a família dela, o pai da garota fica furioso e nos expulsa da cidade sem nos ajudar com armas e suprimentos - Brian se levantou e começou a se vestir, depois voltou-se para Guillermo: - E nos arriscamos de sofrermos alguma punição mais severa por termos ofendido a honra da moça. Não conhecemos muito bem os costumes desse povo.

Talemine é uma guerreira, Brian — defendeu-se Guillermo. — Luta melhor do que nós três juntos. Quase fui morto por ela nesses últimos dias. Até o Roger passou apuros com uma faca no pescoço.

É? E o que você tem em mente? — pressionou Brian. — Colocá-la na garupa do seu cavalo e cruzar o continente; e quem sabe, atravessar o portal levando um ser mitológico para o nosso mundo?

Não sei — respondeu, cheio de dúvidas. — Mas se não falar com ela nesse momento, nunca vou saber o que pode acontecer. E você? Por que está se vestindo?

perguntou a Brian que acabara de afivelar o cinto.

Ora, que pergunta. Vou com você. Caso se meta em confusão, alguém tem que ajudá-lo a se safar, você não acha?

Os dois deixaram o dormitório e Roger só fez virar de lado e continuar dormindo.

Margaret abriu a porta, sonolenta. Quando soube da história toda ela prontamente ofereceu-se para ajudar.

Depois de minutos, os três estavam descendo a rua deserta iluminada fraca­mente pelos postes de luminita; Margaret como guia, Brian e Guillermo olhando à volta, torcendo para que nenhum soldado aparecesse. A sorte deles era que naquela hora a maioria dos guerreiros dormia; uma parte deles montava guarda nas muralhas e o último grupo, dividido em patrulhas, executava rondas pelo território distante.

Eles entraram por uma rua de residências suntuosas que, até então, somente Margaret conhecia. Era um pequeno bairro habitado pela classe mais importante daquela estranha sociedade. Não que as outras moradias fossem casebres, pois todas ofereciam dignidade aos seus donos, entretanto, era notória a diferenciação do povo faogard naquela parte da cidade.

É aquela a casa dela — informou Margaret, apontando.

A casa, de dois andares, era ampla e sofisticada. Deveria pertencer mesmo a alguém muito importante como um comandante de tropas. Duas árvores altas esti­cavam seus galhos emoldurando um arco natural na entrada que dava para o jar­dim. As paredes da casa eram levemente inclinadas para dentro, e pontos pequenos de luminita, cravejados nas paredes, circundavam a construção dando um toque de sofisticação à propriedade. Uma sacada formava um falso terceiro pavimento, como a servir de torre de vigia. Um jardim bem cuidado ornava a entrada que ter­minava em uma porta sólida de madeira clara de cor indefinida pelas sombras. Não havia muros em volta, o que facilitou a aproximação dos inesperados visitantes.

O que você vai fazer agora? — perguntou Brian, curioso. — Bater na porta e dizer: Sr. Rhuror, eu amo a sua querida Talemine e quero me casar com ela, e logo após a cerimônia vou partir com sua filha e atravessar o portal. É óbvio que o senhor nunca mais a verá, mas pode ter certeza que eu cuidarei bem dela — drama­tizou, agitando os braços em gestos exagerados.

Cale essa boca! Você só está conseguindo me deixar mais nervoso - murmurou com visível irritação.

O senhor pode tentar a janela do quarto dela — sugeriu Margaret, indicando um lado da casa.

Margaret, Guillermo e Brian contornaram a fachada da casa e passaram por uma trilha de arbustos cortados em forma de cúpulas num arranjo bastante interessante.

Margaret estava adorando participar de tudo aquilo. Estava sendo mágico para ela. Gostava de Talemine, e também gostava do professor Guillermo, e seria ótimo vê-los juntos.

É ali que ela dorme — avisou a menina enquanto esticava o braço para uma janela do segundo pavimento.

Muito bem, estamos aqui. O que acontece agora? - procurou saber Brian.

Você sabe cantar? — perguntou Guillermo ao amigo inglês.

Você náo tem um plano? — indignou-se Brian, abrindo os braços.

Eu nunca disse que tinha um plano - justificou-se o espanhol.

Os dois passaram a discutir tão alto que o resultado não poderia ser outro.

O que vocês estão fazendo aqui fora, na minha casa? - apresentou-se Rhuror com voz grave, saindo no jardim, sua espada pendia da cintura.

Bem, quero dizer... podemos explicar, senhor — atrapalhou-se Guillermo, vendo tudo ir por água abaixo.

Uma das janelas do segundo andar se abriu. Camine e Talemine apareceram pelo retângulo escuro na parede; logicamente não compreendiam o que acontecia; uma terceira cabeça surgiu sobre as das duas irmãs, era a de uma mulher mais velha, os traços eram finos e atraentes; Brian e Guillermo concluíram que a mulher só podia ser a mãe das jovens guerreiras; Margaret já possuía essa informação. Era Feneliane, a mulher discreta e de poucas palavras, matriarca da família.

Falem logo! O que vieram fazer na minha casa sem serem chamados? - enfureceu-se Rhuror, avançando em tom de ameaça.

Margaret tomou a iniciativa.

Sabe o que é, senhor Rhuror? O professor Guillermo está gostando muito da sua filha, Talemine — revelou a garota, sem rodeios. - Bem, ele quer casar com ela... eu acho.

A reação de Rhuror foi de perplexidade. Camine e Talemine se entreolharam lá do alto e Feneliane manteve-se impassível.

Pronto — sussurrou Brian a Guillermo. — Agora está feito, não há mais como voltar atrás.

Guillermo ainda pôde ouvir Feneliane falar com as filhas.

Fechem a janela e deixem seu pai resolver isso.

Um enorme animal negro de olhos cinzas que refletiam as luzes da casa apa­receu ao lado de Rhuror. Kranalk era ainda mais apavorante à noite e Guillermo e Brian se assustaram com o tamanho e o aspecto feroz do bicho.

Margaret notou o sobressalto dos seus professores e tratou de acalmá-los.

Ah... não se preocupem. Ele não faz nada. E muito bonzinho - disse, afa­gando o focinho da fera negra.

Existem severas regras entre a minha gente — avisou Rhuror com austeri­dade, sua expressão era dura como o aço. - Voltem para os seus aposentos e ama­nhã trataremos disso.

Guillermo desejou boa noite a Rhuror, mas as palavras quase não saíram de seus lábios. Brian pegou Margaret pela mão e a garota ainda teve tempo de ace­nar despretensiosamente para o guerreiro que permaneceu estacado, olhando-os se afastarem na noite.

Por que fui entrar nessa confusão? - lastimou-se Brian, correndo as mãos pela cabeça.

Agora está feito - disse Margaret, como se nada tivesse acontecido. — Pelo menos ela sabe dos seus sentimentos, professor.

Sabe, Margaret? Você fez bem em falar - aprovou Guillermo, aliviado como se a gigantesca montanha de luminita fosse tirada de seus ombros.

O melhor lugar do mundo agora é a minha cama - disse Brian, apertando os olhos, os três viraram a última esquina, fazendo o caminho de volta.

Outro dia, mais treinamentos rigorosos, mais sons de armas se encontrando violentamente e flechas assobiando no ar.

Talemine estava diferente; falava pouco e evitava olhar diretamente para Guillermo.

Roger havia ficado a par de tudo pela boca de Brian e Margaret se encarregou de contar aos garotos, de maneira teatral, as desventuras de Guillermo.

Margaret e Camine, afastadas para que ninguém ouvisse do que falavam, cuidavam das reações dos pretensos enamorados e trocavam informações como cupidos prontos a atacar. Camine contou a amiga que seu pai, o comandante Rhuror, fechou-se em uma sala com Feneliane e Talemine, e lá ficaram trancados por um tempo considerável até pouco antes das jovens guerreiras saírem para o campo de treinamento naquela manhã.

E sua irmã comentou com você alguma coisa sobre ontem? — quis saber Margaret com imensa curiosidade.

Não me disse nada - respondeu Camine, francamente. - Mas de uma coisa eu sei já faz alguns dias: minha irmã também está apaixonada pelo seu professor.

Como você tem tanta certeza?

Simples, ela me disse.

E por que você não me contou? — perguntou Margaret, surpresa, sentindo-se traída por Camine.

Ela me pediu para guardar segredo, mas agora o melhor que eu tenho a fazer é ajudá-la, espalhando para todo mundo que ela é louca por Guillermo.

Todo aquele constrangimento de ontem poderia ser evitado se eu soubesse antes dos sentimentos de Talemine pelo professor Guillermo — disse Margaret, como se fosse responsável pelo destino dos dois.

Margaret fez uma pausa quando algo lhe ocorreu. Ela olhou diretamente para Camine.

E o seu pai, o que acha que ele vai fazer?

Não sei muito bem, vai depender se ele gosta ou não de Guillermo — disse, balançando a cabeça com uma grande expressão de dúvida.

E você acha que ele gosta?

Camine encarou Margaret com incerteza no olhar.

Não sei como o meu pai vai reagir nesse caso. Ele é muito imprevisível quando existem situações que envolvem eu e minha irmã.

O que vocês duas estão fazendo aí, paradas? - gritou Talemine, com rigoroso tom militar na voz. — As armas! Lutem!

Camine e Margaret se viraram uma para a outra e entraram em ação.

No intervalo da manhã, pela hora do almoço, Margaret foi correndo contar para Guillermo a boa-nova.

Você tem certeza que Talemine está interessada em mim? — perguntou outra vez para se certificar.

Camine me garantiu. Ela não iria brincar com uma coisa tão séria — disse Margaret, as sobrancelhas contraídas, passando seriedade.

Bem, nesse caso eu vou falar com ela ainda hoje — disse, olhando para o vazio.

Camine está ajeitando tudo, convencendo Talemine para que vocês se encontrem. Deixe por nossa conta e eu o mantenho informado, professor.

Guillermo sorriu para a jovem amiga.

Você está se saindo um excelente cupido.

Eu sei — concordou ela, toda convencida. — Adoro tramar essas coisas.

Após os exercícios, Margaret voltou a se encontrar com Guillermo, o sol começava a querer se esconder nos telhados das casas.

Ela concordou em vê-lo - disse Margaret, radiante.

E onde eu a encontro? — perguntou com grande ansiedade, seu semblante tinha um ar juvenil.

Ela estará esperando o senhor em um pequeno bosque, nos fundos do templo de Sargaleu, o deus protetor dos faogards. Fica ao sul daqui. Eu sei bem como chegar até lá.

Deixe-me ver... como eu estou? — indagou Guillermo, preocupado com a aparência, arrumando os cabelos de maneira improvisada.

Está ótimo! Vamos logo, o senhor náo pode se demorar. Não é educado se atrasar no primeiro encontro.

Eu sei, mas... preciso levar alguma coisa para oferecer a ela.

Pegue algumas flores pelo caminho. A cidade tem muitas casas ajardinadas. Talemine certamente gostará. Não existe mulher que não adore flores.

Guillermo seguiu o conselho da esperta garota e colheu todas as belas flores vermelhas do canteiro de uma janela. O dono não teria gostado nem um pouco, caso tivesse visto.

Quando Guillermo e Margaret chegaram jia entrada do templo, ainda havia algum sol iluminando o final da tarde.

O templo era majestoso. A construção mais imponente que Guillermo vira em Faogard. Duas colunas escuras ladeavam a entrada do prédio construído com lajotas de pedras de um amarelo esmaecido. No alto da fachada a imagem esculpida do deus guerreiro, o olhar lançado ao infinito. Sua cabeça era adornada por um elmo cravejado de luminitas que, brilhavam à noite. A mão direita sustentava um martelo, como para evidenciar o seu imenso poder, e a outra detinha um longo escudo grudado ao lado do tronco.

Dê a volta no templo e encontrará o bosque - instruiu Margaret. — Bem, eu fico por aqui. Desejo-lhe sorte, professor. Ahh... como eu gostaria de ver vocês dois se encontrando - suspirou ela, sonhadora.

Guillermo agora estava sozinho.

As poucas pessoas que restavam no lugar foram tomando o caminho de suas casas.

A adoração ao deus guerreiro sempre devia ser feita durante o dia, pois a ima­gem de Sargaleu era ligada ao esplendor dos raios solares, por isso as áreas do templo estarem praticamente desertas àquela hora.

Guillermo seguiu a orientação de Margaret e dirigiu-se para os fundos do templo.

O bosque dedicado ao deus tinha uma vegetação luxuriante. Árvores frutíferas que os devotos visitavam para meditar e colher os frutos e levá-los em oferenda ao interior do templo. Pássaros recolhiam-se aos seus ninhos, promovendo ruídos estridentes que enchiam a floresta de vida e alegria.

Em meio às árvores, sentada em um banco de pedra, se encontrava a jovem guerreira. Um vestido de seda branco amarrado pela cintura fazia Talemine parecer mais com uma deusa e nada lembrava que ela era um membro do exército faogard.

Guillermo cuidou para manter as flores longe dos olhos de Talemine e deixou-as escondidas atrás das costas.

Pensei por um momento que não viesse - disse ela, erguendo os olhos escarlates para Guillermo. Os cabelos assumiram um vermelho ainda mais vivo ao con­trastarem com o seu vestido imaculado.

Também tive receio que você não estivesse aqui - admitiu ele, encantado com a beleza da jovem.

Guillermo olhou a sua volta, os últimos brilhos do sol viajavam por entre as folhas conferindo um aspecto de magia ao bosque.

Esse lugar é lindo - comentou Guillermo. - Combina com você.

Talemine sorriu. Era outra pessoa, muito diferente da instrutora de armas severa e aguerrida.

Então, Guillermo notou que alguma coisa estava acontecendo com Talemine. Os olhos dela estavam mudando a cor de vermelhos para prateados. Talemine agora possuía duas esferas de prata fitando o espanhol. Guillermo conseguia ver com clareza o seu próprio reflexo nos cintilantes olhos da moça.

O que está acontecendo? Você está bem, Talemine? — perguntou, impressionado diante da imagem sobrenatural em que se transformara a garota. Ele se curvou e olhou diretamente no rosto da faogard.

Ela sorriu novamente e começou a falar.

Essas flores, essas nove lindas sarmissínias vermelhas, são para mim?

Guillermo ficou ainda mais confuso, pois as flores continuavam ocultas atrás dele. Ela não poderia ter visto e menos ainda saber quantas eram. E eram realmente nove flores como Talemine havia mencionado.

O que você fez? Leu meus pensamentos?

Não - riu Talemine diante da perplexidade dele. — Mas eu conto se você me disser porque trouxe essas flores.

Ah... claro que sim. São pra você — disse, passando o ramalhete às mãos de Talemine.

Os olhos dela tornaram-se vermelhos novamente.

Olhe para trás, o que está vendo? - perguntou ela.

Guillermo olhou e só via árvores e arbustos.

Olhe melhor - insistiu ela.

Guillermo tornou a olhar e só aí percebeu que, disfarçados entre os ramos de uma das árvores, havia algumas mechas de cabelos vermelhos.

Tudo bem, Camine, pode vir! — gritou Talemine.

Camine apareceu e aproximou-se.

Oi, Guillermo! Gostou da brincadeira?

Como assim? Que brincadeira? O que vocês fizeram?

Você já vai entender - disse Talemine.

Os olhos de Talemine mudaram de vermelho à prata reluzente mais uma vez. E dessa vez, os de Camine ficaram igualmente prateados.

Vou explicar — começou Talemine. — Quando eu e Camine entramos nesse estágio de percepção, temos a capacidade de vermos tudo o que a outra enxerga. Quando os meus olhos mudaram de tonalidade, como agora, eu estava vendo pela perspectiva de Camine.

E eu via o seu rosto apavorado - disse Camine a Guillermo, em tom de brincadeira.

Isso é fantástico! - disse ele, maravilhado, fazendo crescer ainda mais sua admiração por Talemine.

Mas não são todos que têm essa habilidade - explicou Talemine, os olhos das irmãs voltaram novamente ao normal. - Isso acontece apenas entre irmãs, os homens não desenvolvem essa aptidão. Nós chamamos esse fenômeno de Visão em Espelho.

E mesmo assim, não são todas as mulheres que possuem o poder de enxergar pelos olhos da irmã. Na verdade é muito raro isso vir a acontecer - contou Camine, orgulhosa, abraçando a cintura de Talemine.

E tem mais uma coisa - completou Talemine. - A Visão em Espelho só acontece quando as duas concordam em fazer. Isso evita que uma fique bisbilhotando a outra sem o consentimento — disse com ar de repreensão para Camine.

Vejo você em casa — disse Camine a Talemine. E saiu correndo.

Guillermo ficou olhando por algum tempo a menina ir embora e voltou-se para Talemine.

Você vive me surpreendendo — disse ele em tom de elogio. — Luta como um homem, tem poderes como os de uma feiticeira e... a beleza de uma deusa.

Agora não eram só os olhos e os cabelos de Talemine que estavam vermelhos, mas sua pele enrubesceu nas palavras gentis do espanhol.

Guillermo fez uma pausa e se preparou para dizer algo muito importante.

Quero ficar com você, Talemine. Tenho uma missão a cumprir, a de levar aqueles garotos a salvo até o meu mundo, mas se me aceitar, um dia eu volto pra viver ao seu lado, pra sempre.

Talemine viu sinceridade na voz de Guillermo. Seus olhos negros transmitiam um enorme sentimento de carinho. E ela entendeu.

Guillermo não se conteve e a puxou... o beijo aconteceu no meio do bosque, no exato momento em que os poucos postes se iluminavam com a chegada da noite.

Guillermo acompanhou Talemine até a uma quadra de casa. Não queria arranjar mais confusão com Rhuror. Quando retornava aos seus aposentos foi interceptado por Parminiaf, o suboficial da guarda de Rhuror e mais dois soldados que o forçaram a mudar de caminho. A única coisa que passou pela cabeça de Guillermo foi a figura de Rhuror desafiando-o para um embate regado a martelos e espadas.

O local já era um velho conhecido do espanhol. A sala de interrogatórios de Rhuror.

Quando Guillermo entrou, viu Rhuror atrás de sua mesa; o comandante guer­reiro fez um sinal para que ele se sentasse. Os soldados foram dispensados deixando os dois a sós.

Certamente você sabe porque eu o chamei aqui - disse Rhuror, os olhos ferozes sob as sobrancelhas espessas.

Sei muito bem, senhor - disse Guillermo, educadamente.

E é claro que sabe o quanto amo a minha filha.

Guillermo assentiu com a cabeça.

E também sabe que fico furioso se alguém a magoa.

Guillermo estava em seu limite e não suportou.

Senhor Rhuror, eu amo a sua filha. Amo, amo muito Talemine e quero me casar, me unir a ela, contrair núpcias, ou seja lá o que for que vocês chamam de casamento.

Guillermo levantou-se, sua paciência havia se evaporado.

Sei que você é um guerreiro, um homem dado às armas, mas mesmo assim estou disposto a enfrentá-lo nesse seu maldito ritual de luta para que me aceite como pretendente de Talemine. Então diga logo quando lutaremos. Agora mesmo? Amanhã ao nascer do sol? Acabemos logo com isso.

Rhuror ficou olhando, por um breve instante, a inusitada reação de Guil­lermo. Em seguida se pronunciou:

De que luta você está falando? — perguntou, uma das sobrancelhas se ergueu mostrando ainda mais seu olho cor de sangue.

Ora, não temos que lutar para que o senhor concorde que eu namore Talemine?

De onde você tirou essa idéia idiota? - perguntou, franzindo a testa.

Bem, eu pensei... como vocês são um povo guerreiro, eu achei que essas coisas fossem decididas dessa maneira... Não são?

Não, não são — disse Rhuror, resoluto. — Eu havia chamado você aqui para saber como pretende alguma coisa com Talemine se vocês vão embora dentro de poucos dias?

Guillermo voltou a sentar-se.

Conversei com ela e expliquei que tenho o dever de conduzir os meninos de volta ao mundo deles, mas depois eu disse a sua filha que voltaria, e também disse a Talemine que quero muito me casar com ela e morar aqui pelo resto de minha vida.

Talemine é adulta e sabe o que faz - disse Rhuror, as duas mãos abertas sobre a mesa, parecendo patas de urso de tão grandes.

Guillermo imaginou que não teria nenhuma chance em ficar vivo caso lutasse. Então, deu graças aos céus por não ter de enfrentar o guerreiro. Rhuror continuou explanando.

Hoje, pela manhã, eu conversei com ela sobre vocês dois e Talemine admitiu que gosta muito de você. E me disse mais: que tinha alguma esperança que você ficasse em Faogard. Eu duvidei dessa possibilidade. Ela me disse então que resolveria isso de algum jeito.

Uma simpatia estava nascendo por parte de Guillermo. Rhuror, o guerreiro cruel, estava dando lugar ao homem ponderado e pai afetuoso.

Não quero e não vou desapontá-la e nem a você, Rhuror - posicionou-se com grande sinceridade.

Os dois permaneceram em silêncio por pouco tempo.

Pode ir agora — Rhuror disse por fim.

 

                                 A Desforra

A praça central estava sendo toda ornamentada com bandeirolas e lamparinas coloridas. Um palanque circular recebia os últimos retoques para, provavelmente, receber as autoridades locais que deveriam se pronunciar como era comum às gran­des festas nacionais. Os comerciantes enfeitavam suas barracas com fitas multicores. Flores de todas as espécies enchiam os cestos de vime que eram colocados sobre os balcões abarrotados de frutas, doces e outras guloseimas...

O que está havendo? — perguntou Daniel, desviando-se das caixas e outros objetos espalhados pelo chão.

É a festa anual de veneração a Sargaleu — disse Margaret, como sempre, muito bem informada. - Ela começa hoje quando o sol estiver a pino, e atravessa a noite, terminando amanhã no mesmo horário. Camine me disse que tem muita música, dança e comilança sem parar.

E poderemos participar? — perguntou Marc, inclinado a festas.

Camine nada falou sobre isso, mas acho que não haverá problema? — disse Margaret, dando um esbarrão em um homem que trazia uma pilha de pães decora­dos com pingos de caramelo; o cheiro da comida era estonteante.

Os exercícios só duraram até o final daquela manhã. Mas uma coisa ficou bem clara:

Pronto, perdemos a nossa instrutora. Agora ela só quer treinar o espanhol - observou Brian enquanto trocava golpes com Roger.

Ponham as suas melhores roupas e vamos para a festa - proferiu Camine com grande ânimo.

Que roupa? Não temos melhores roupas — lembrou Chester. — No máximo vamos tomar um banho e trocar de camisa.

Não fale por mim, Camine me emprestou um vestido bem bonito — disse Margaret, toda pomposa.

A festa já havia começado quando eles voltaram à praça. Fogos de artifício cruzavam o céu, lançando luzes de diversas cores para todos os lados; alguns deles terminavam explodindo em estampidos ensurdecedores...

Uma grande multidão de cabeças vermelhas entupiu a praça. Mal se podia andar. Parecia que toda a população de Faogard se concentrava naquele espaço, mas seria um grande equívoco pensar assim. Os habitantes se organizavam em vastas concentrações; nas praças, nos templos e nas aldeias distribuídas por todo o território faogard.

De repente a multidão silenciou. Um homem de vestes escuras e longas tomou lugar no palanque e começou a discursar na língua local.

É o sacerdote - avisou Camine, de pé entre Margaret, usando seu vestido novo com rendas nas mangas e na gola, e Rafael. — Ele vai dar início ao cerimonial.

Em dados momentos o povo ovacionava e o sacerdote continuava seu discurso em tom de oração.

Outro homem, bem mais velho, subiu no palanque escoltado por seis soldados em trajes de gala, sendo recebido entusiasticamente. Ele era bem mais velho e se tra­java com maior requinte que o sacerdote. Uma pesada capa azul cobria as suas costas e uma fina liga de ouro contornava a sua cabeça afirmando sua condição de nobreza.

Quem é aquele? — perguntou Margaret a Camine.

Ora, é o rei — disse, se esticando nas pontas dos pés, buscando uma visão mais adequada.

Vocês têm um rei? — surpreendeu-se Rafael que também ouvira Camine.

É obvio que temos — confirmou a menina. — Todas essas terras fazem parte de um reino, Faogard. Vocês não sabiam?

Um rei? Um rei de verdade, como os ingleses? - perguntou Rafael sobre a novidade. Alguém olhou para trás fazendo uma cara de quem quer silêncio.

Camine baixou a voz.

Quem são esses... ingleses? — perguntou Camine.

Eu sou inglesa! — ofendeu-se Margaret, pelo fato da amiga não saber esse detalhe.

Você nunca me disse isso - lembrou Camine, desconhecendo de verdade a origem de Margaret.

O rei de vocês, como se chama? - perguntou Rafael, sussurrando ao ouvido de Camine.

Tuldoror - disse ela. - Ele é um homem muito ocupado e quase não aparece em público. Nem minha mãe consegue falar com ele direito.

O que tem a sua mãe a ver com o rei? - indagou Rafael.

Ora, ela é a filha dele - disse com naturalidade.

Filha dele? - repetiu Margaret com grande espanto.

Espere um pouco - disse Rafael, pensando melhor. - Se a sua mãe é filha dele, então Talemine é uma princesa... e futura rainha, estou certo?

Naturalmente - respondeu Camine.

E você é filha de uma princesa, como nos contos de fada, Camine — descreveu Margaret, feliz da vida.

A notícia foi sendo transmitida para aquele que estava à direita do anterior: de Margaret para Chester, que contou para Marc e este a Daniel, que tratou logo de avisar a Brian, que por sua vez disse a Roger que tinha Guillermo ao seu lado. Roger nada falou, por enquanto.

Guillermo sentiu uma mão se entrelaçar na sua.

Não foi difícil encontrá-lo no meio de tanta gente, cabelos negros - disse Talemine.

Guillermo sorriu apertando forte a mão da guerreira. Ela usava um vestido tão azul como o céu da manhã, e motivos prateados valorizavam as finas alças que pendiam dos ombros, combinando com uma elegante gargantilha de prata.

O rei - sussurrou Roger a Guillermo, inclinando a cabeça para que ele ouvisse, sem desviar o olhar do palanque.

O que tem ele? — perguntou o espanhol, inocentemente.

É o avô de Talemine.

Avô de Talemine?

Roger balançou a cabeça positivamente para confirmar.

Isso é verdade, Olhos-de-rubi? — perguntou Guillermo voltando-se rapidamente para Talemine.

Talemine confirmou tudo, o seu estreito grau de parentesco com a nobreza faogard e como aquilo náo alterava em nada a sua vida. O mais importante para ela era ser uma guerreira e, se necessário fosse, lutar até a morte para sempre garantir liberdade de seu povo. Ela havia aprendido esses valores desde criança com seus pais ou mesmo na escola, e esses ensinamentos eram comuns a todos em Faogard.

As comemorações invadiram a noite e dos salões se ouviam música e os pés ritmados dos dançarinos faogards batendo forte no chão de tábuas corridas. Brian não pôde deixar de notar alguma semelhança com as rápidas e contagiantes danças irlandesas. Ele e o restante do seu grupo ocuparam uma mesa comprida próxima a uma das bandas que animavam a festança.

Acho que os dois estão mesmo se acertando - disse Brian a Margaret que sentava do outro lado da mesa, referindo-se a Guillermo e sua nova namorada, que não se largavam o tempo todo.

Parminiaf surgiu do meio da confusão e foi até Marc, estendendo até o menino a flauta que havia tomado fazia dias. Marc hesitou em pegá-la de volta.

Ele está devolvendo a flauta pra você — disse Camine. — Pegue!

Marc abriu um enorme sorriso.

Diga a ele que eu fiquei muito feliz em ter a flauta de volta e que estou agradecido por ele cuidar tão bem dela — tocou-a com cuidado, admirando os fios de ouro que mantinham presos os tubos do instrumento.

Parminiaf não sorriu de volta quando Camine fez a tradução, mas estava claro que o soldado se sentiu bem em unir novamente o menino e a sua flauta.

Marc pendurou novamente o seu tesouro no pescoço e murmurou carinhosamente para ela:

Você fica melhor aqui comigo. Não vou deixá-la mais se separar de mim.

Margaret olhou de lado e viu Rhuror de costas para eles, um ombro apoiado a uma das colunas que rodeavam a varanda de um dos salões. O faogard, isolado dos outros, parecia envolto em pensamentos.

Eu já volto - disse ela aos que quisessem ouvir.

A menina parou ao lado de Rhuror e puxou assunto.

O professor Guillermo é um homem muito bom.

Rhuror olhou para baixo.

Eu sei. Caso contrário não deixaria ele se aproximar da minha filha.

Sentirei falta da sua Faogard, e da minha amiga Camine - entristeceu-se ela.

Rhuror sentou-se no degrau da varanda e foi imitado por Margaret.

Percebo que vocês ficaram muito amigas.

Se eu lhe dissesse que ela foi a melhor amiga que eu tive em toda a minha vida, o senhor acreditaria?

-Vejamos... — Fez ele uma exagerada expressão de quem está cheio de dúvidas, depois sorriu. — Acredito em você, Margaret. Humm, Margaret, o que significa o seu nome?

É o nome de uma flor que nasce em meu mundo, senhor.

Deve ser bonita que nem você, imagino.

Margaret riu sem jeito.

E o seu, senhor Rhuror? É um nome forte de se pronunciar.

Rhuror, quer dizer furioso.

Bastante apropriado - julgou ela.

Dessa vez foi Rhuror quem riu do comentário.

Faogard também é um nome muito bonito e expressivo - ela comentou.

Você tem toda razão. Faogard significa: Lugar do Guerreiro ou Caminho do Guerreiro. É o que nós somos.

A propósito — disse ela. — Faogard é só a cidade murada?

Não, claro que não. Existem as aldeias nas terras férteis a leste e ao sul daqui.

Margaret! Venha logo! — chamou Camine. — Eles vão dar outro espetáculo com os fogos-voadores.

Rhuror ficou ali sentado, solitário, imaginando o que seria dos meninos, da amiguinha de sua filha, de uma noite em que sua filha Camine chegou até ele e comentou com tristeza: É muito provável que Margaret e os amigos dela morram, não é papai? E ele disse que sim. Rhuror não escondia tais coisas nem de Camine, sua caçula. Não era do seu feitio. Criava as filhas mostrando o lado verdadeiro e prá­tico da vida. No entanto, saber que um bando de crianças marcharia para a morte era algo que o estava incomodando. Lamentou ter se afeiçoado a eles. Teria sido melhor se os tivesse deixado ir embora no primeiro dia em que os viu. Talvez, se falasse com eles, poderia pensar em um jeito de ajudá-los de verdade.

Os fogos brilharam e explodiram até o último se apagar em aplausos.

Rhuror ergueu-se e foi até à mesa dos forasteiros.

Sente-se conosco - convidou Brian, educadafnente.

Rhuror arrumou um lugar entre Camine e Daniel.

Recuperou-se muito bem, senhor Roger.

Roger não respondeu e considerou o comentário uma provocação. Rhuror falou novamente.

Pelo que entendi, ainda existe uma ferida que não cicatrizou — ele encarou Roger com olhos frios. — A do seu orgulho.

Tenho muita dificuldade em aceitar uma derrota injusta - disparou Roger, a língua provocadora.

Não foi injusta, estrangeiro. Usávamos as mesmas armas quando quase acabei com a sua vida.

Admito que você é muito bom usando as suas armas, mas será que é igualmente bom sem elas?

Guillermo, que até então permanecia quieto ao lado de Roger, intercedeu.

Senhores, a festa está linda e há crianças na mesa.

Professor, eu não sou criança — retrucou Margaret, gentilmente.

A interferência de Guillermo foi inútil.

O que você sugere, forasteiro? Uma revanche?

Eu não diria isso - corrigiu Roger. - Mas, poderíamos testar um outro estilo de confronto. Apenas utilizando as mãos, sem nenhuma outra arma.

Rhuror avaliou a proposta de Roger e disse:

Acho que vou gostar de ver o que você tem para nos mostrar. - E anunciou: — Quando o sol aparecer, nós dois estaremos nessa praça acertando todas as nossas diferenças e vença quem vencer...

Não haverá ressentimentos - completou Roger, satisfeito.

Rhuror afastou-se com a intenção de avisar sobre a luta da manhã seguinte.

Brian e Guillermo chamaram Roger a um canto.

Aquelas pancadas na sua cabeça acabaram com o seu juízo? - questionou Guillermo, revoltado. — Conseguir uma luta com aquele brutamontes às vésperas da nossa partida.

Eu sei o que estou fazendo - disse Roger, calmamente.

E se ele te der outra surra, como faremos para ir embora com você todo arrebentado? - perguntou Brian, querendo fazer Roger desistir.

Eu sei o que estou fazendo — repetiu Roger, a mesma expressão tranqüila.

Já ficamos muitos dias parados. Não podemos nos atrasar mais, e se algo lhe acontecer, a nossa missão poderá ficar totalmente comprometida. — Lembrou Guillermo, segurando Roger pelo braço.

Brian. Guillermo. Eu sei o que estou fazendo — disse outra vez no mesmo tom de voz.

Eu desisto — entregou-se Guillermo. — Vou procurar Talemine.

As festividades não pararam um só minuto e avançaram pela madrugada.

Roger, pela primeira vez desde que chegou a Faogard, não dormia um sono tão reparador.

De manhãzinha, quando Roger voltou de seu descanso, teve dificuldade de chegar até o centro da praça central, tal a quantidade de gente que se acotovelava para assistir aos mesmos contendores se enfrentarem em menos de dez dias, em plenas comemorações ao deus guerreiro.

Brian e os garotos o seguiam de perto.

Não deixe ele chegar muito perto - aconselhou Brian. - Você é mais rápido, pode vencer essa luta se bater com velocidade e sair.

Acerte o queixo dele, professor - sugeriu Daniel. - E ele vai cair como uma árvore cortada.

Um direto bem dado no estômago e ele dobra as pernas — disse Chester, mostrando no próprio estômago onde Rhuror deveria ser golpeado.

Roger parou e olhou para os três.

Vocês já lutaram boxe alguma vez?

Eu, uma vez na escola - disse Brian, mostrando toda a sua experiência com o esporte.

Eu treinava no rancho com o meu tio - disse Chester.

Daniel balançou a cabeça negando qualquer contato com as luvas.

Devo deduzir que sou um pouco mais experiente que vocês, não é mesmo?

Só estamos preocupados com o senhor, professor Roger — disse Rafael, bastante tenso.

Eu sei, rapaz. E agradeço o apoio de vocês - Roger abaixou a cabeça na direção de Rafael. - Diga assim pra mim: vá lá e vença, professor.

Como quiser: vá lá e vença, professor Roger!

Assim está bem melhor - disse Roger, entrando no espaço vazio destinado aos lutadores.

Rhuror o aguardava do outro lado do círculo cercado pela aglomeração inquieta.

Sem camisa — orientou Roger despindo-se da sua, os músculos à mostra.

Rhuror se desfez do colete de couro e placas que costumava usar. A muscula­tura do faogard era mais avantajada que a de Roger.

Lutaremos até que o primeiro caia ou desista, concorda com a regra? - propôs Roger a Rhuror que aceitou e transmitiu no seu idioma para que todos soubessem.

Camine e Talemine, evidentemente, torciam pelo pai, e Guillermo só desejava que aquela luta não acontecesse.

Se precisa ser assim, só quero que acabe o mais rápido possível, de preferência, com um nocaute e que ninguém se machuque muito — desejou o espanhol, preferindo o caminho mais fácil.

Rhuror e Roger se posicionaram e o combate começou.

Venha aqui, senhor comandante de guerreiros. Quero ver se sabe mesmo usar essa massa de músculos — desafiou Roger, ao seu melhor estilo.

Roger girou em torno de Rhuror que tentava agarrá-lo ou mesmo acertar-lhe um bom soco, mas o boxeador pendulava o tronco, esquivando-se de todas as investidas do seu adversário.

Rhuror tinha velocidade, no entanto, Roger era muito ágil e eficiente naquilo que sabia fazer bem: boxear.

Você vai perder, Rhuror. Vou grudar a sua cara no chão - provocou, desti­lando veneno nas palavras.

E se eu te agarrar, vou varrer o chão com a sua — avisou Rhuror rangendo os dentes.

Então, Roger acertou o primeiro soco na altura do estômago do guerreiro. Rhuror não esperava que a mão de Roger fosse tão pesada e sentiu o golpe.

Tenho mais um monte desses guardados pra você, cabelos de fogo.

Rhuror procurou manter o controle e não cair na armadilha de provocações de Roger. Era uma estratégia que já havia feito muitas vítimas para a coleção de vitórias do americano.

Você vai cansar, rapazote, e aí eu pego você.

Não antes de você mostrar a língua vermelha de tanto cansaço, vovô. Aliás, ela combina com os seus olhos.

O repertório de provocações de Roger parecia inesgotável, e Rhuror estava começando a se irritar com os insultos recebidos na frente das filhas.

Roger girava os punhos como hélices por pura bazófia. Era uma de suas artimanhas para incitar e desestabilizar o oponente.

Rhuror era orgulhoso e se lançava ao combate com fúria, fazendo jus ao seu nome. Entretanto, Roger era liso como um peixe e não se deixava alcançar.

O tempero certo para Roger começar a ganhar uma luta então começou a ser aplicado. O americano desferiu um bombardeio de socos cruzados, diretos e gan­chos que deixou Rhuror perdido no meio do massacre.

A platéia, arrebatada, em gritos e agitação, não conhecia aquela forma de luta e foi apanhada de surpresa.

Os olhos de Roger se incendiaram de cólera e os potentes socos se sucederam até que um cruzado vindo como um raio, acertou em cheio a ponta do queixo do guerreiro que caiu de uma só vez, sentado no chão de terra. Rhuror tentou se levantar, mas as suas pernas não obedeciam, os espectadores giravam a sua volta como um carrossel descontrolado.

Isso se chama nocaute! — ensinou Roger, a luta tinha acabado.

Havia um certo ar de decepção no rosto dos que torciam para Rhuror.

Roger estendeu a mão para Rhuror se levantar. O guerreiro levantou os olhos para Roger e disse, ainda um pouco zonzo:

Estamos quites — proferiu, aceitando a ajuda de Roger.

Sacudiu a cabeça e respirou fundo para se recuperar e depois disse.

Você tem o olhar e a respiração de um autêntico guerreiro. Vi isso quando lutamos pela primeira vez — sua voz assumiu um tom de reverência. — Você é um homem de grande valor.

Havia nascido respeito e amizade entre os dois.

Com o término dos festejos, a tarde foi enfadonha e a vida em Faogard havia retomado o seu curso habitual.

Hoje será um dia diferente — disse Talemine na manhã do dia seguinte, enquanto se equipava com toda a espécie de armas. — Preparem-se agora e então ire­mos visitar um outro local de treinamento — ela mostrou as grossas vestimentas reves­tidas de pequenas chapas metálicas sobre o balcão de armas. - Vistam esses trajes, devem servir em vocês. E não se esqueçam dos elmos, eles terão muita importância nos exercícios de hoje.

De que local você está falando? — perguntou Marc, ajustando seus apetrechos, sendo auxiliado por Chester que abastecia de flechas a sua aljava.

Vocês logo saberão - respondeu, causando expectativa. - Necessitaremos dos cavalos para chegarmos até lá — disse, os eqüinos de acentuadas listras, perfilados à espera.

É mais leve do que parece - avaliou Daniel enquanto vestia sua nova roupa encouraçada, apertando as tiras para prender o colete. - Como estou?

Parece um anão preparado para a guerra — zombou Marc.

Daniel repreendeu a opinião do amigo, fazendo uma cara de desprezo.

Montem, todos! - Determinou Talemine, subindo em seu gifenonte cinza com finas listras brancas, produzindo um som de metal quando sua armadura roçou na sela.

Os cavaleiros seguiram em fila, liderados por Talemine que escolheu uma das avenidas que apontavam para o norte até alcançarem um dos grandes portões internos de muros altos de uma lado desconhecido da cidade.

Ouviram um ressoar estranho como ondas explodindo em rochedos; mas não era um som de água batendo, não havia mar a milhares de quilômetros dali. Eles se encontravam praticamente no centro do continente.

Abram os portões! — ordenou Talemine com a autoridade suprema da neta de um rei.

Os portões se dobraram para fora e por ali eles puderam contemplar a origem dos espantosos sons que rompiam por sobre os muros.

O poderoso exército de Faogard executava manobras de batalha em uma gigantesca praça de guerra...

Cavaleiros, carros de combate, soldados armados de diferentes maneiras; alguns com martelos, outros empunhando espadas, arqueiros prontos a disparar suas flechas e Rhuror, que montado em um imenso animal, dava instruções, corrigia falhas e orientava o avanço ou o recuo desse ou daquele agrupamento de guerreiros.

Que animal é aquele que seu pai está montando? - berrou Chester a Camine, para que pudesse ser ouvido.

É um drancto - respondeu a garota, enquanto entravam na praça de mano­bras. - Não é fabuloso?

O drancto era um gigantesco animal herbívoro de pele grossa e cor acinzentada; o seu tamanho chegando até duas vezes e meia o de um elefante adulto. A cabeça era larga e achatada, obrigando os olhos a permanecerem bem separados um do outro. Seu pescoço mostrava-se volumoso em relação à cabeça e as patas tinham o formato de grossas colunas, sendo as dianteiras maiores que as traseiras. A criatura movia-se pesadamente ao comando de Rhuror, os passos erguiam-se lentos e calculados.

Assumam seus lugares na batalha! — ordenou Rhuror para os recém-chegados, do alto de seu estupendo drancto. — Não parem agora! — gritou ele para um grupo de guerreiros que avançavam com seus pesados martelos.

Sigam-me! - disse Talemine, saltando de seu cavalo e posicionando-se entre os soldados da infantaria do exército à direita, logo à frente na batalha.

Ela ergueu o seu martelo e foi imitada por Guillermo, Brian, Roger e os meninos.

Camine e Margaret, que não desmontaram, escolheram o exército à esquerda, e juntaram-se à cavalaria que se perfilava logo atrás da infantaria, puxando suas espadas.

Faremos a primeira ofensiva - instruiu Talemine rapidamente, enquanto avançavam a pé. - Os arqueiros se encarregarão de encontrar brechas na defesa inimiga.

Naquele instante, flechas voaram e chocaram-se nos escudos dos soldados que iam à frente.

Estão atirando flechas! - surpreendeu-se Rafael.

Claro que estão — disse Talemine, atenta à batalha. - É para isso que você tem um escudo. Esconda-se atrás dele.

Mas isso não é um treinamento? - questionou Brian, em tom de reclamação. — Alguém pode sair ferido.

Os arqueiros não estão atirando pra matar - explicou ela. - E as flechas não têm pontas afiadas. O máximo que poderá nos acontecer é arranjarmos alguns hematomas.

Brian então constatou a quantidade de jovens da idade de Daniel e Margaret participando daquela violenta simulação. Era uma coisa normal e constante na vida daquele povo.

Os combatentes estreantes estavam perdidos no meio de tanto alvoroço.

Segurem bem firme seus escudos - aconselhou Talemine, apertando o passo. O choque entre os dois exércitos estava para acontecer em segundos. — E não os percam se querem continuar vivos.

Ela está falando sério? — perguntou Brian a Guillermo.

Acho que sim.

O choque se deu com violência entre os dois lados.

Forcem a passagem! Forcem a passagem! - berrava Rhuror, segurando o gigantesco drancto por uma rédea grossa, seu braço fazia gestos expansivos para que os guerreiros avançassem.

Usem seus martelos e golpeiem os escudos dos inimigos! — orientava Talemine, enfrentando de igual os fortes soldados que vinham em sua direção..

O barulho era ensurdecedor. O clangor das armas se fazia mais alto.

Chester perdeu os amigos de vista na confusão do combate. Ele pensou que uma guerra de verdade deveria ser bem daquele jeito, caso precisasse lutar um dia. Em meio a tanta gente, ele se sentia só e então teria que contar com os soldados que estivessem do seu lado. E foi isso que ele decidiu fazer.

Vamos, soldados, lutem! — gritou com raiva para os seus novos companheiros de cabelos vermelhos e ferozes expressões.

Um guerreiro ouviu as palavras do menino sem compreender o que significa­vam exatamente, mas viu em seus olhos que ele também se sentia um verdadeiro guerreiro faogard.

O soldado gritou de volta:

Tarm tand naar!

Chester, pela primeira vez, sentiu-se como parte do invejável exército faogard.

Um martelo atingiu de raspão o elmo que protegia a cabeça de Daniel, que se não o estivesse usando, estaria com o crânio feito em pedaços.

Margaret e Camine tentavam furar o bloqueio imposto pelos soldados adversários, impelindo seus fogosos gifenontes contra a massa de escudos, martelos e espadas que dançavam à sua frente.

Toda a manobra não durou mais de dez minutos.

Com maior eficiência para executar o ataque, o exército de Talemine atingiu primeiro o seu objetivo.

Foi então, que o drancto encheu os pulmões de ar e, sob o comando de Rhuror, emitiu um urro como se uma centena bois mugisse ao mesmo tempo.

A simulação da batalha havia terminado.

Quem ganhou? - perguntou Marc.

Acho que fomos nós - respondeu Daniel com alguma dúvida.

Participamos pela primeira vez de uma batalha - animou-se Daniel, jun­tando-se aos seus amigos.

Ainda não - retorquiu Talemine. - Olhe em volta, o que vê?

Daniel fez o que ela pediu. Talemine continuou:

Os soldados, todos vivos. E nenhum parece ferido, pelo que vejo. Numa batalha real, o chão estaria encharcado de sangue com gente morta e partes de corpos espalhados até onde seus olhos pudessem alcançar - disse com melancólico realismo.

Camine e Margaret aproximaram-se cavalgando.

Rhuror fez com que o drancto se agachasse e deslizou pelas costas do enorme quadrúpede até bater com os pés no chão.

Chester não perdeu a oportunidade de tocar no inusitado animal, que mesmo deitado, era tão grande como uma casa de dois andares.

Levem os trajes de batalha com vocês, são seus - disse Rhuror, depois de comandar toda a movimentação de seus dois exércitos.

-Todo o seu contingente está aqui? - perguntou Roger com percepção militar.

Rhuror riu.

Isso é só uma pequena parte da nossa força de guerra - garantiu. - Não teríamos como reunir todos os guerreiros entre esses muros. Por isso, dividimos as operações militares em dias de treinamento. Vejam o drancto - disse orgulhoso, mostrando o herbívoro gigante. - Dois deles juntos são fortes o bastante para derrubarem o mais resistente portão da mais poderosa fortaleza do continente. E temos mais de quarenta desses no nosso arsenal.

Chester sentiu admiração por Rhuror saber controlar um drancto com tanta facilidade quanto ele dominava um cavalo.

Rhuror tinha algo a mais para falar:

O rei convocou a presença de vocês no salão do trono. Vou levá-los até ele. Camine e Talemine, vocês ficam. O rei quer ver somente a mim e os forasteiros.

O palácio do rei era mais modesto do que o templo de Sargaleu, mas suntuoso o suficiente para dignificar a figura do soberano.

O salão do trono era espaçoso, embora só acomodasse uma única peça ao fundo: o trono, obviamente. O rei encontrava-se cerimoniosamente sentado no móvel de aparência pesada e nobre, ladeado por seis soldados, três de cada lado, que eram a sua guarda pessoal.

Os convidados postaram-se defronte ao rei e aguardaram o seu pronuncia­mento. Então ele disse:

A travessia de vocês por esse continente pode trazer conseqüências irreparáveis para todos os povos que o habitam. - Sua voz era vagarosa e entristecida pelos anos, mas trazia a sabedoria de quem governou durante muito tempo sob a pesada ameaça da guerra. Ele prosseguiu: — Mas eu soube que caso a missão que carregam não for concluída, o nosso reino corre um grande perigo de ser invadido pela gente nefasta que povoa o outro lado do Túnel de Vagtajonus - os viajantes nunca tinham ouvido alguém se referir ao portal daquele jeito.

O rei Tuldoror baixou por uns instantes a cabeça, pensativo. Depois olhou os convidados com uma expressão que deixou seus olhos vermelhos mais enérgicos.

Faremos o que estiver ao nosso alcance para que vocês cumpram essa penosa tarefa da melhor maneira que puderem. No entanto, saibam que estarão se dirigindo a terras pouco amistosas, e que até mesmo a guerra entre os povos poderá ser deflagrada - ele olhou com grande tristeza. — E é até mesmo possível que a maldição de Arkopromis volte sobre todos os povos da Cadecália mais uma vez.

O rei levantou-se e, sem mais nada declarar, se retirou.

Era a última noite em Faogard.

Roger, Brian e Guillermo arrumavam os seus poucos pertences em suas mochilas, preparando-se para darem prosseguimento à jornada.

Está pensando nela, espanhol? - indagou Brian, ele afivelava a última mochila.

Guillermo parou o que estava fazendo e respirou fundo.

Estou sim, e muito, se quer saber.

Então procure chegar vivo até o portal se deseja vê-la de novo.

Guillermo pensou por uns instantes e completou:

Eu voltarei para Talemine, Brian. Pode acreditar.

 

                                   Magia de Verdade

O portão leste de Faogard já estava aberto quando os viajantes se reuniram na saída para montarem seus gifenontes.

Margaret correu para abraçar Camine e se conteve para não chorar.

Adeus, minha amiga, talvez eu não te veja nunca mais, mas mesmo muito distante, lembrarei de você por toda a minha vida.

Eu também vou sentir muita falta de você, Margaret - disse Camine com um nó na garganta que não combinava com ela. Kranalk ao seu lado com os olhos quase azulados pela bela manhã que fazia.

Feneliane e Talemine também estavam presentes para acompanharem a partida do pequena expedição e Guillermo achou muito estranho quando a mãe abraçou a filha mais velha.

Ore no templo e peça a Sargaleu por nós, mamãe.

O que está acontecendo. Talemine? - Meteu-se Guillermo quando teve oportunidade de lhe falar.

Vou junto com vocês, Guillermo — disse a guerreira, mostrando todo o brilho dos seus olhos de rubi.

Guillermo não sabia se explodia de felicidade ou se considerava a decisão de Talemine uma grande insensatez.

Mas e seu povo, sua família? Seu pai sabe disso?

Se ele sabe? Pergunte pra ele você mesmo - disse ela apontando na direção de uma das avenidas que terminavam no portão leste.

Rhuror vinha montado em seu corpulento drancto que trazia uma conside­rável bagagem acondicionada nos alforjes que pendiam de cada lado do seu dorso largo. Prontos para a longa viagem.

Os cavalos pareciam cachorrinhos de estimação quando comparados a grande criatura de movimentos vagarosos.

Agora sim, vocês têm alguma chance — disse Rhuror, enquanto acariciava o caloso pescoço do drancto.

Eles vão mesmo com a gente? — perguntou Brian, incrédulo, referindo-se a Talemine e Rhuror.

É, tudo indica que sim — deduziu Roger, apoiando-se no estribo e se jogando para cima do seu cavalo.

As despedidas foram feitas e a tropa de aventureiros atravessou definitivamente os portões para reiniciar a difícil jornada. O drancto soltou outro fortíssimo urro, anunciando que eles estavam finalmente partindo.

Chester seguia ao lado do drancto que se movia de maneira lenta e pesada, mas que compensava tal morosidade por ter as pernas excessivamente longas.

Não se iluda com a lentidão dele - disse Rhuror a Chester. - Ele sabe correr quando é preciso.

Rafael se colocou ao lado de Chester e comentou:

Imagine o estouro de uma manada dessas coisas.

Certamente seria um terremoto ambulante — presumiu Chester, calculando as terríveis proporções.

Cerca de duas horas depois, uma patrulha cruzou por eles. Rhuror trocou algumas palavras com o líder dos soldados e depois, cada grupo seguiu seu caminho.

O que eles conversaram? — perguntou Guillermo a Talemine.

Os soldados ofereceram-se para nos escoltar até os limites do nosso reino. Meu pai recusou - disse esticando-se sobre a sela para tentar enxergar mais além. - Não há mesmo necessidade, o território está cheio de patrulhas que andam de um lado para o outro dia e noite. Ainda encontraremos outros desses patrulheiros até sairmos do reino de Faogard.

Mais três horas e eles avistaram um rio sinuoso que cruzava de sudoeste para nordeste.

Aquele é o rio Tronca — disse Rhuror, esticando o braço para mostrar. — Pararemos aqui para comermos e descansarmos por algum tempo. Não se preocupem em matar a sede dos animais. Essa região é rica em cursos d'água e a mais fértil do reino, caso se interessem em saber.

Depois da breve parada, eles seguiram para leste, mas sem perder de vista o rio Tronca que dava voltas pelo relevo ondulado correndo sempre para nordeste.

Na metade da tarde, com sol ainda forte, eles alcançaram a afluência do Tronca com o rio Dalevern. E do entroncamento dos dois, nascia outro rio, o Col. Daí era seguir margeando o Col mais doze dias para perfazerem os quatrocentos e oitenta quilômetros até o caudaloso rio Mevarnon que fazia a fronteira de Faogard com o deserto Canormut.

Os dias transcorreram em total normalidade sob a segurança reinante em território amigo.

Na tarde do décimo segundo dia, conforme o planejado, eles pararam às portas de uma cidadezinha. Os viajantes foram acolhidos no último povoado antes de pene­trarem no Canormut. Por esse motivo, o povoado era também conhecido como O Trampolim do Deserto.

Um extraordinário sol avermelhado se escondia vagarosamente por detrás das colinas rasas das já distanciadas terras do oeste.

Fena, esse era o nome do povoado. Um pacato lugar com cerca de mil habi­tantes faogards e um dos poucos onde era tolerada a presença de estrangeiros que chegavam de todas as partes para estabelecerem comércio, trocando suas mercadorias por luminita e especiarias de qualidade. Por causa do intenso comércio, a população chegava a triplicar em número. Uma guarnição de sessenta homens era a sua única proteção armada. Mas diziam que o legítimo defensor da paz de Fena era o vasto e inóspito Canormut.

Vamos nos hospedar na Ferro em Brasa - disse Rhuror, mencionando a maior e melhor estalagem da cidade.

As janelas abertas, deixando escapar o estrepitoso movimento de gente, mostravam que animação, boa comida e muita bebida eram as marcas da Ferro em Brasa.

As paredes eram todas revestidas com madeira bruta; panelas de ferro que cozinhavam a comida aqueciam o ar e exalavam um cheiro adocicado de carne temperada.

O estalajadeiro recebeu Rhuror de braços abertos.

Rhuror, seu velho preguiçoso! Pensei que nunca mais viria a Fena nos visitar.

Seu nome era Tagodhar, ele foi soldado de armas, e quando se aposentou pela idade, abriu seu próprio negócio. Não era tão grande como Rhuror, mas forte o bastante para carregar dois grandes sacos de farinha nas costas de uma vez. Batizou a sua estalagem de Ferro em Brasa para relembrar a sua função de ferreiro; orgulhava-se em exagerar que havia forjado pessoalmente as ferraduras de toda a cavalaria faogard. Quando precisava pegar em armas, Tagodhar igualmente mostrava ser um grande soldado, mas a idade chegou para ele e estava na hora de descansar ou fazer outra coisa que o fizesse se sentir vivo. A estalagem foi a solução.

Não sou culpado se você foi se meter nesse fim de mundo. Por que não abriu seu negócio na cidade grande? - justificou-se Rhuror da ausência prolongada.

Optei pelo sossego da cidade pequena. Mas veja só. Fena não é tão pacata como eu havia imaginado - disse, exibindo a farra ruidosa que era o seu estabeleci­mento. - E quem são seus amigos? - perguntou, fazendo um gesto cortês para que ficassem à vontade.

Eu também queria falar com você sobre isso - disse o chefe guerreiro com discrição. - Se hoje estamos aqui, não é só para desfrutar da sua hospitalidade. Também temos uma tarefa muito importante a cumprir.

Do que se trata? — perguntou Tagodhar enquanto enchia uma bandeja com canecas de escuras cervejas espumantes para atender ao pedido de uma das mesas.

Em seguida, rastreou rapidamente o salão, conferindo se havia satisfação nos rostos dos clientes.

Sentem-se - disse ele, oferecendo uma mesa extensa e larga destinada aos grandes banquetes dos freqüentadores mais importantes. — Vou mandar servir a melhor refeição da casa.

Rhuror contou tudo o que se passara até então e pediu para o amigo ajudá-lo a abastecer os animais com água e comida. O rei se encarregaria de recompensá-lo abundantemente pelo favor prestado.

Sabe que faço isso pela nossa amizade - disse Tagodhar, respeitosamente. — Mas não recuso umas boas moedas vindas de nosso soberano - gracejou.

O rosto de Tagodhar assumiu uma expressão mais compenetrada e ele conti­nuou falando:

Meu martelo se erguerá ao seu lado, amigo Rhuror - disse, oferecendo seus préstimos.

Não é preciso tanto - Rhuror amenizou. - Bastam os alforjes cheios de comida, os odres abastecidos com água e o seu silêncio — disse Rhuror com eloqüência.

Quanto a isso, não é preciso se preocupar — Tagodhar ficou mudo por um instante, enquanto um negociante drallengiano passava do seu lado. O estalajadeiro diminuiu a voz. — No entanto, é difícil guardar segredos num lugar como esse, cheio de ouvidos bisbilhoteiros.

Quem é ele, ou o que é ele? — sussurrou Marc a Talemine ao seu lado, mencionando o homem de pele cinza que silenciou Tagodhar momentaneamente.

O drallengiano? Ele é do reino de Drallêngia do grande vulcão.

São boa gente - emendou Tagodhar. - Um povo de guerreiros, nossos alia­dos em caso de uma guerra continental, mas nunca se sabe com quem um nego­ciante desgarrado de seu país costuma se relacionar em suas andanças.

Os drallengianos eram seres de pele cinza e olhos amarelos como gema de ovo. Habitantes de Drallêngia, ao pé do vulcão Merasgor, o maior vulcão de todo o con­tinente. Comentava-se que se o Merasgor entrasse em erupção, Drallêngia seria apa­gado do mapa, coberto para sempre de lava e cinza. Entretanto, os registros aponta­vam que a gigantesca montanha de fogo não apresentava nenhuma atividade havia mais de dois mil anos. Drallêngia também era fronteiriça a Crassen, o maior de todos os reinos em área e população e o tenebroso destino final dos viajantes.

O que está acontecendo por ali? — quis saber Daniel, tendo a sua atenção desviada para um ajuntamento de pessoas que se agitava no fundo do salão.

Ora, é o incorrigível do Luminus — disse Tagodhar, meneando a cabeça em desaprovação. — Está fazendo das suas.

Luminus está aqui? — duvidou Rhuror, demonstrando conhecê-lo bem.

Quem é esse Luminus? - indagou Chester, tendo a curiosidade avivada.

Luminus é um desenval, um feiticeiro, um mago como vocês humanos costumam dizer — informou Rhuror enquanto espiava o tumulto. — Aliás, o nome dele nem é esse pelo que sei.

Outros costumam referir-se a ele como o Desenval Inútil — disse Tagodhar, recostando-se e relaxando em sua cadeira.

Por que o chamam dessa forma tão depreciativa? — perguntou Rafael, achando o termo muito ofensivo.

E uma história um pouco incomum. Não sei se querem que eu conte - aler­tou Tagodhar olhando primeiro para Rhuror como que pedindo sua permissão. Rhuror já havia escutado aquele caso umas mil vezes, mas o guerreiro pouco se importou se ouvisse outra vez. - Vocês devem estar cansados...

Queremos sim — precipitou-se Margaret, acendendo um brilho de curiosi­dade nos olhos.

Bem, como queiram - pôs-se Tagodhar a contar. - Luminus nasceu humano, como vocês. O nome dele, deixe-me ver... ah, sim, Vincent alguma coisa. Seu pai era um explorador e comerciante, como quase todos nessa taverna, e carregava o filho por todos os lados. Um dia o pequeno Vincent e o pai dele foram bater no castelo dos desenvals em Edrendora que fica muito distante dessa vila. Os magos viram nele a possibilidade de tornar-se um grande desenval; parece que o menino tinha um dom mágico muito aguçado e se ofereceram para dar a educação e os cuidados que Vincent não tinha até aquele dia.

Tagodhar fez uma breve pausa para se lembrar de mais coisas.

O pai dele concordou e Luminus ou Vincent progrediu muito entre os desenvals e morou no castelo até se tornar um adulto, mas chegou um dia em que ele se cansou do castelo e de tudo o que estivesse ligado à rígida disciplina imposta pelos magos. Então, Luminus foi embora e carregou com ele todos os ensina­mentos que recebeu ao longo do tempo. Seus mestres ficaram furiosos com a sua ingratidão e todos os desenvals passaram a menosprezá-lo - Tagodhar apertou os olhos e prosseguiu: - Se pensam que Luminus se importou, estão enganados. Anda de cidade em cidade se exibindo para quem quiser ver. Agora mesmo ele está prati­cando a sua magia para entreter a multidão. Eu não me importo. Muitos visitam a minha estalagem só para verem um desenval de perto. Ficam maravilhados com o que ele pode fazer. Por outro lado, os desenvals e até as véussidas ficam indignados quando sabem que Luminus usou a magia para se promover.

Não poderiam castigá-lo? — Brian procurou saber. - Afinal, esses magos devem ser muito poderosos.

Não é da índole deles — explicou Rhuror. — Os desenvals preferem calar-se a terem que se expor perante o povo.

Mas o que Luminus faz é magia de verdade? Não se trata de um truque de ilusionista? — perguntou Daniel, muito interessado.

Vá lá e veja com seus próprios olhos e depois me diga se o que ele faz é truque — desafiou Tagodhar.

Posso mesmo?

Tagodhar fez um gesto incentivando Daniel a assistir.

Também quero ver, posso? — pediu Margaret ameaçando levantar-se.

É lógico! - concordou Tagodhar. — Podem ir todos.

Os meninos se levantaram quase ao mesmo tempo e se meteram no meio da platéia.

Não é de minha natureza perder uma boa apresentação de mágica - disse Guillermo, puxando Talemine pela mão.

Vão vocês também. - Estimulou Tagodhar, deixando temporariamente a mesa onde estavam. - Enquanto isso, eu verifico se os meus fregueses estão sendo bem atendidos.

Venha você também, Roger — Brian chamou. A mesa ficara vazia.

Luminus estava rodeado de curiosos. Ele era um homem alto de olhos negros, aparentando pouco mais de trinta anos; usava uma túnica azul-escura comprida e aberta na frente, deixando à mostra roupas grossas de andarilho; seus cabelos mais negros que seus olhos chegavam até a cintura, e de maneira impressionante se mexiam como uma coisa viva ondulando a cada instante em volta de sua cabeça; ora tomavam a forma de duas garras assustadoras e em seguida mudavam para a figura de um par de asas angelicais. Os meninos ficaram paralisados como bonecos de cera enquanto presenciavam aquele autêntico número de magia.

Luminus olhou de esguelha para Daniel ao mesmo tempo em que fazia materializar água do nada em um jarro vazio, depois suspendeu o recipiente e virou-o, entornando, aos poucos, todo o líquido que ao tocar o fundo de uma bacia de cerâ­mica, foi esculpindo gradativamente uma cabeça de água sólida bastante familiar, era a fisionomia de Daniel que sorriu e piscou um olho antes de desmanchar-se dentro da vasilha como água comum.

Nenhum mágico que eu conheço faz essas coisas - sussurrou Daniel, sem sentir as palavras saírem de sua boca de tão abismado que estava.

Talvez não sejam mágicos de verdade - declarou Luminus, lançando um olhar matreiro a Daniel.

Faça mais outra dessas, Luminus — pediu um velho de olhos estrábicos e sorriso ingênuo.

Certamente, nobre caixeiro - Luminus aceitou o pedido com amabilidade. - Senhoras e senhores, cuidem de suas cabeças, ou poderão ficar sem elas a partir de agora.

Dois candelabros de latão presos ao teto ganharam vida instantaneamente a um simples movimento das mãos de Luminus. Os braços dos objetos de iluminação que antes eram arqueados para cima, sustentando pequenas luminitas brilhantes que clareavam a taverna de Tagodhar, começaram a se contorcer como serpentes e atacaram quem por ventura se achasse abaixo deles.

Ei! O meu cabelo! - gritou Margaret, quando teve as compridas mechas agarradas pela bizarra peça de metal.

Ele me pegou! — reclamou Marc, sendo suspenso até o teto pelo colarinho de sua roupa.

Os braços dos lustres animados buscavam as suas vítimas que se agachavam e recuavam fugindo dos botes velozes que causavam toda aquela balburdia.

Luminus, então, elevou a mão esquerda, e os candelabros retornaram às suas formas sólidas de antes.

No entanto, o jovem Marc que havia sido abocanhado por uma das serpentes metálicas, permanecia dependurado e com as pernas se agitando quando o feitiço cessou.

Bastou Luminus fazer um movimento discreto para que Marc se desenganchasse do lustre e flutuasse suavemente até o chão.

Daniel ofegou com excitação e exclamou:

Espantoso! Como o senhor consegue fazer essas coisas?

É necessário ser especial, jovem estranho - disse Luminus com uma arro­gância afável.

Depois do susto, os espectadores juntaram-se novamente em torno de Luminus, arrumando as cadeiras e mesas que haviam sido derrubadas na confusão.

Daniel e Margaret se entreolharam com alegria, como crianças assistindo a um maravilhoso espetáculo de circo.

Um último número, Luminus. - Quase implorou um sujeito que deveria conhecer muito bem cada apresentação que o mago fazia.

Então, afastem-se, amigos. Vou mostrar-lhes porque carrego esse nome - disse o desenval com dramaticidade.

A multidão abriu o círculo, esperando o grande final da noite.

Naquele instante, o corpo de Luminus passou a irradiar uma luz fria cada vez mais brilhante, a ponto de ninguém conseguir olhar para ele tal era a intensidade de sua luminescência. As luminitas do estabelecimento perderam importância, ofuscadas que estavam e os raios de luz extravasaram as janelas, quebrando a escuridão das ruas.

O brilho de Luminus foi se desvanecendo, até que ele mostrasse outra vez as suas formas.

O desenval foi envolvido por bajulações e elogios entusiasmados.

Esperem um pouco - disse Daniel aos seus.amigos, indo em direção a porta de saída da estalagem.

Aonde você vai? - perguntou sua irmã.

Eu já volto — disse ele, olhando por cima do ombro, decidido a ir pegar alguma coisa.

Mal houve tempo para que seus amigos pudessem comentar a atitude de Daniel, quando o viram surgir de volta pela porta.

O que você vai fazer? — quis saber Margaret, grudada no irmão que se dirigia que nem uma flecha para Luminus.

Você já vai saber, cara irmã — respondeu, tirando do bolso um bolo de cartas de dakenkal, o baralho que havia conseguido em Nova Europa. — Vou dar uma lição nesse bruxo.

Você não vai nada — retrucou Margaret. — Ele faz magia de verdade, não é um ilusionista de fim de semana que nem você.

Isso eu já comprovei, mas quero saber se ele conhece o meu tipo de mágica.

Subitamente, Daniel estacou na frente do desenval que fazia os últimos agradecimentos aos louvores dados pela sua apresentação.

Escolha uma carta - disse o menino inglês, no momento que abria o bara­lho em leque voltado para baixo, de modo que Luminus não tivesse condições de visualizar as figuras.

O feiticeiro apontou uma qualquer sem tocá-la, dizendo com rapidez.

Um Zinun Lanceiro - um certo cinismo cresceu no seu olhar. - E essa tam­bém é um Zinun, e essa e esta outra.

Luminus correu o dedo pelas cartas como se deslizasse sobre as teclas de um piano, e desferiu:

Todas são Zinuns Lanceiros!

As coisas náo estavam se saindo como Daniel havia planejado e ele não teve outra alternativa a não ser desvirar as cartas em leque de uma vez. Daniel estalou os olhos ao verificar que todas as figuras do baralho eram exatamente iguais, Zinuns Lanceiros, os guerreiros de pele carmesim e pequenos chifres, que empunhavam lanças douradas cruzadas ao peito; os Zinuns habitavam a Calcávna, o outro grande continente a leste da Cadecália.

Como você fez esse truque? — perguntou o garoto, ainda inconformado pela superioridade das habilidades do mago.

Não faço truques, estimado rapaz. Sou um desenval — corrigiu.

Luminus esfregou as mãos e virou uma das palmas para as cartas de Daniel, devolvendo ao baralho o seu aspecto original.

Está melhor assim? - perguntou, mostrando um sorriso mais simpático.

Daniel não sabia o que comentar e deu-se por vencido, mas uma coisa era certa;

ele daria tudo para ter a metade dos poderes de Luminus.

O que achou? — perguntou Tagodhar a Daniel, que havia assistido de longe a tentativa frustrada do menino em subjugar Luminus.

Humilhado — reconheceu, sentando-se de volta, juntando-se ao seu grupo.

Não se envergonhe, Daniel - disse Rhuror em tom de consolação. - O desenval é muito poderoso. Só outro desenval ou uma véussida poderiam fazer frente a ele.

Quero ser como Luminus - desejou Daniel, fascinado.

Por enquanto se contente com os seus truquezinhos de cartas e moedas - disse Margaret, apenas para espezinhar o irmão. Daniel estreitou os olhos com ferocidade para ela.

Luminus chegou até à mesa onde se encontravam Tagodhar e seus convidados, trazendo sua própria caneca de cerveja e apresentou-se com distinção.

Boa noite aos simpáticos estrangeiros. Creio que a essa altura já me conheçam.

Depois do seu espetáculo circense acho difícil que haja alguém nessa taverna que não saiba quem é você, Luminus. — Espetou Tagodhar.

Noto que a sua casa está lotada, estimado estalajadeiro. Será que ela fica desse jeito quando não estou presente?

Não preciso da sua magia para preparar boa comida e servir as mesas com cerveja gelada. Mas admito que você atrai os tolos como abelhas no mel.

Onde foram parar as boas maneiras? - lamentou-se Luminus. - Ninguém até agora convidou-me para sentar.

Ora, por favor, sente-se conosco, Sr. Luminus — disse Brian com sua característica educação, indicando um lugar vazio.

Obrigado, vejo que é um cavalheiro, senhor...

Brian Hamilton, professor de Geologia.

Um estudioso das rochas, se não estou equivocado.

Pode-se dizer que sim — aceitou Brian, a resumida resposta como correta.

Mas antes tenho que fazer uma coisa para que nossa conversa tenha, digamos, mais privacidade — anunciou Luminus, acomodando-se entre Chester e Daniel.

O desenval murmurou algumas palavras aparentemente sem sentido, os seus lábios quase não se mexendo, e surpreendentemente parte do tampo da mesa onde ele se debruçava se liqüefez. Sem perder tempo, Luminus introduziu a mão até a altura do ombro através da mesa fazendo com que a madeira ondulasse como água em um lago. Logo em seguida, o braço do mago retornou trazendo um indivíduo pelos cabelos. A cabeça do sujeito ficou acima do tampo e o resto do corpo ainda permanecia oculta por baixo do extenso móvel de tábuas grossas. O indivíduo tinha o rosto fino escaveirado; um olho azul e o outro vermelho fazendo lembrar um faogard deformado; o nariz aquilino quase tomava toda a frente do seu rosto e o seu cabelo era carmesim como a pele de um Zinun.

Luminus moveu novamente os lábios em outro feitiço e a mesa endureceu outra vez, prendendo o intruso pelo pescoço.

Lughy, seu intrometido — esbravejou Tagodhar ao vê-lo. - O que você está fazendo embaixo da minha mesa?

Veja só que coisa interessante, Tagodhar. Eu me enfiei aqui para descansar um pouco e acabei dormindo — explicou-se meio sem graça. Sua resposta não foi nada satisfatória.

O que eu deveria fazer com você, seu espião da vida alheia? - disse Tagodhar, agarrando Lughy pelo queixo e virando sua cabeça para encará-lo bem nos olhos. Um estalo se ouviu quando Tagodhar quase deslocou o pescoço do impostor.

Corte a cabeça dele e atire aos nevolorts dos soldados — sugeriu Luminus com extrema naturalidade, os longos fios negros do seu cabelo formaram o desenho de uma adaga afiada que oscilava pelo ar.

Não, isso não — suplicou Lughy. - Sou inocente de tudo o que me acusarem.

O que você pretendia, Lughy? Conseguir informações para vender aos Crassênidas por umas poucas moedas? — supôs Rhuror.

Não, juro que não — respondeu com voz nervosa. — Só queria conhecer melhor esses simpáticos forasteiros.

E por que não veio até aqui de forma civilizada como eu fiz, em vez de causar essa má impressão aos nossos visitantes? - interrogou-o Luminus, sem dar crédito a uma só letra do que ele falava.

É essa minha maldita timidez que me leva a fazer essas tolices, senhor desenval.

Sua timidez. Espera que eu também acredite nisso? - disse Luminus, as duas mãos aproximando-se uma da outra lentamente.

Não quero ser indelicado, senhor Luminus, mas essa posição incômoda está deixando as juntas das minhas pernas doloridas, e acho que essa mesa está se fechando em torno da minha garganta — disse com a voz sufocada e o rosto contraindo-se em desespero.

Chega, Luminus! — interferiu Rhuror. — Liberte-o. Esse pobre coitado não ouviu nada de importante.

Luminus despejou um olhar ameaçador sobre seu prisioneiro e restituiu a ele sua liberdade, recitando pela terceira vez os versos de sua impressionante magia.

Obrigado, benevolente comandante — agradeceu Lughy, esquivando-se rapidamente por debaixo da mesa antes que Luminus se arrependesse de fazê-lo livre. Em seguida, levou as mãos ao pescoço conferindo se estava tudo em ordem. - Sou eternamente grato pela sua piedade, poderoso mago.

Suma daqui ou o transformo em um javali assado. Meus novos amigos ainda não comeram — ameaçou, erguendo a mão esquerda como se apontasse uma arma para Lughy.

Demasiadamente amedrontado, Lughy foi sentar-se em um canto da taverna, distante o suficiente para não poder ouvir nada do que fosse falado.

O maldito aproveitou a mesa vazia quando vocês foram assistir a magia de Luminus e se escondeu sob a mesa para escutar - disse Tagodhar, visivelmente irritado.

Lughy não era muito mais alto do que os garotos, tinha dedos finos e tortos como galhos secos; vestia-se modestamente, mas trazia sempre moedas de ouro e prata, pedras preciosas e outras coisas de valor em sua pequena bolsa de couro curtido. Sem dúvida, o que chamava mais a atenção nele eram seus olhos de cores diferentes.

Ele é engraçado - disse Rafael, sem ver nada perigoso no comportamento de Lughy.

Não confiem nele — avisou Tagodhar enquanto olhava para Lughy que agora discutia com dois viajantes, provavelmente com uma conversa viscosa para conquis­tar novas vítimas. — Quanto a Luminus, podem confiar nesse fanfarrão. Eu o conheço desde que ele usava fraldas e o seu pai o carregava no colo por quase toda a Cadecália.

O que há com os olhos desse Lughy? O que ele é? — quis saber Marc.

É o triste resultado da união de um faogard com uma mulher humana — disse Tagodhar, referindo-se a Lughy como se ele fosse uma aberração.

Um mal-estar surgiu dentro de Guillermo e Talemine. Tagodhar explicou melhor.

Nunca antes houve uma ligação amorosa entre faogards e humanos, pelo que se sabe. Havia, na verdade, uma certa repulsão entre as duas raças desde que os humanos chegaram por aqui. Dos dois lados havia quem desaconselhasse com veemência o casamento entre os membros dos dois lados por diversos motivos, mas com o tempo as diferenças foram amenizadas e a união dos povos passou a ser discutida e até aceita de certa forma.

Tagodhar fez uma pausa e logo continuou:

Até que um dia, foi realizado o casamento dos pais de Lughy numa grande solenidade na maior igreja de Nova Europa. Os mais conservadores protestaram, advertindo que se as raças tinham sido criadas diferentes era porque os deuses assim as queriam. Não demorou muito para que nascesse a primeira criança híbrida e que para a infelicidade de todos os que acreditavam no surgimento de uma nova raça, a decepção ficou evidente com Lughy. Quem o viu nascer, dizia que ele tinha uma aparência horrível, um ser defeituoso de corpo e mente, um castigo dos deuses pela blasfêmia cometida. Ao ficarem sabendo, os crassênidas amaldiçoaram a criança fruto do cruzamento de uma raça nobre, como os faogards, com os enviados do inferno. Lughy cresceu com problemas de saúde e muitos dizem até hoje que o seu desvio moral é decorrente dessa mistura impensada.

Tem gente que discorda dessa história - retrucou Rhuror, percebendo o semblante abatido da filha. - Várias crianças nascem com problemas no meio de todos os povos. Algumas delas apresentam defeitos bem maiores e ninguém fala nada. Não há notícias de nenhuma outra união entre humanos e faogards e, sinceramente, não vejo como afirmar que é impossível nascer uma criança saudável baseando-se apenas em um caso.

Acho que demos muito espaço para falar desse rapaz e seus problemas — inter­veio Roger com aspereza. — Suponho que estamos aqui com o objetivo de buscarmos soluções para os nossos problemas. Não temos tanto tempo como pode parecer.

Roger tem razão — acolheu Rhuror. - Temos que ser mais práticos e diretos Tagodhar colocou Luminus a par do que estava acontecendo e Rhuror destacou

que toda a ajuda dos amigos seria muito bem recebida.

Roger via as coisas com mais praticidade e por isso perguntou.

Não poderia usar a sua magia para nos transportar agora mesmo até o portal?

Infelizmente, não - lamentou-se Luminus. — Nenhuma magia tem um alcance tão grande. A maior distância que um bom desenval é capaz de atingir, não passa de uns trezentos metros, se muito.

E quanto a nos acompanhar nessa jornada. Sua força poderia ser de grande utilidade - propôs Brian.

Sinto não poder atender o seu pedido, senhor Brian, mas sou um proscrito pelo povo de Crassen que proclama que eu ofendi a todos os seus deuses, quando aprendi a sua sagrada magia milenar e depois dei as costas aos meus benfeitores.

Os crassênidas não devem gostar muito de vocês - deduziu Brian, referindo-se aos faogards. — Primeiro promovem uma união carnal com os humanos e depois abrigam um proscrito em suas terras.

Se pudessem, os crassênidas nos aniquilariam - disse Tagodhar, desviando o olhar para a cozinha e autorizando que trouxessem a desejada comida. - Acredito que todos nessa mesa estejam famintos. Portanto, vamos ao repasto.

Outro motivo me impede de seguir com vocês - disse Luminus, os cabelos entrelaçando-se para formar serpentes que deslizavam sobre seus ombros, fazendo-o se parecer com uma górgona. Um dos feixes de cabelos voltou-se para Chester e enrodilhou-se como se fosse saltar para picá-lo. - É meu pai. Fui avisado por um andarilho que esteve em Nova Europa que ele não está nada bem. Sua saúde já não é lá essas coisas e ultimamente anda muito debilitada.

As bandejas e as canecas estavam quase vazias e apenas alguns ossos repousavam nos fundos de alguns pratos.

Por isso não gosto de vir a Fena, Tagodhar — disse Rhuror se esticando na cadeira para dar espaço ao estômago enfastiado. — Sempre como mais do que o planejado.

O que estufa sua barriga é a minha cerveja, seu drancto velho — brincou Tagodhar, erguendo sua caneca como se fosse um troféu.

Daniel esperou pacientemente a noite toda para abordar Luminus com uma pergunta.

Como o senhor faz magia, senhor Luminus? Ou melhor, de onde vem o seu poder?

Garoto Daniel, essa foi a pergunta mais inteligente que eu recebi desde há muito tempo — elogiou Luminus abertamente. — A maioria das pessoas só quer saber de assistir o que eu faço, mas pouquíssimos se interessam em saber como eu produzo magia e de onde vem essa força. Pois eu vou lhe dizer.

Luminus preparou-se para falar não só a Daniel, mas a todos que estavam reunidos com ele.

Olhe a sua volta, o que consegue ver?

Muitas coisas - respondeu Daniel, sem saber direito a que coisas Luminus se referia. — Pessoas, móveis, paredes...

Perfeito! E lá fora, você pode me descrever o que consegue identificar? - prosseguiu Luminus, mostrando a paisagem que surgia por uma das janelas.

- Ora, o que posso ver... as silhuetas escuras das árvores e um punhado de estrelas por sobre as copas - relatou, conciso.

Muito bem, caríssimo Daniel. Com esses pequenos exemplos você já poderá compreender a origem dos poderes de um desenval. Tudo no universo que chama­mos comumente de matéria é meramente energia em um outro estado.

Isso nós sabemos muito bem, senhor Luminus - adiantou-se Margaret. - No nosso mundo essas idéias estão bem adiantadas.

Que bom - agradou-se o mago. - Isso facilita em muito o que vou lhes contar. Tudo no universo é energia pura: estrelas, planetas, cometas e tudo o mais que existe. As estrelas que vemos no céu estão, nesse momento, nos enviando parte de seu poder energético que constantemente atravessa os nossos corpos. Agora mesmo, estamos sendo invadidos por essas forças que viajaram por milhares ou até por inimagináveis milhões de anos antes de nos tocarem. O universo explode em energia pura o tempo todo, e as partículas circulam livremente para todos os lados, se amontoando em alguns casos, para em seguida serem atiradas como pedras quando são arremessadas de catapultas, até que um dia tudo isso acabará ao despertar de Vagtajonus, aquele que tudo resume: movimento e inércia; luz e escuro; princípio e fim.

O deus que dorme — completou Rafael.

Exato! - exclamou Luminus. — Mas isso não vem ao caso nesse momento. Agora prestem muita atenção no que vou falar. Cada indivíduo pode ser represen­tado como se fosse um objeto: a grande maioria é como peneira é que não tem a capacidade de reter nada do que passe por elas. Outros, por sua vez, poderiam ser chamados de vasilhas que armazenam algum líquido, mas por estarem racha­das ou furadas, perdem continuamente o seu precioso fluido. No entanto, existe uma terceira classe de pessoas que denominamos de vasilhas de grande retenção ou armazenagem. Essas, que podem ter variados tamanhos, acumulam enormes porções de energia no seu mais alto grau de pureza, canalizando e transformando o seu conteúdo naquilo que chamamos corriqueiramente de magia. Tais recipientes vocês devem imaginar quem são: nós, os desenvals e as véussidas. E que são os deuses? - perguntou para si mesmo. - Gigantescos lagos de poder.

Quem são as véussidas? - perguntou Margaret, recordando-se que já ouvira aquela palavra.

Fico feliz por essa pergunta ter partido de uma garota - comentou Luminus, apontando para Margaret. - Elas são o lado feminino dos grandes acumuladores de energia, os feiticeiros.

Como ficamos sabendo se um sujeito pode vir a ser um desenval ou uma véussida? - perguntou Daniel, sonhando um dia tornar-se um.

Pressentimos que algumas raras pessoas têm esse dom, mas para se ter cer­teza, são necessários alguns testes - explicou o desenval, comportando-se por uns instantes como se estivesse ouvindo ou sentindo alguma coisa. - Entre vocês, sinto que existe uma vibração emanando constantemente. Entretanto, não consigo iden­tificar de onde vem e qual a sua intensidade.

Está falando sério? - manifestou-se Margaret com entusiasmo.

Naturalmente. Vejamos, você rapaz, quer participar de uma pequena experiência? - o mago propôs a Chester, que aceitou de imediato.

Luminus então pôs a mão no ombro de Chester e orientou.

Concentre-se nesse prato - disse, trazendo um para frente do menino. - Agora faça o seguinte: procure direcionar os filamentos energéticos que você está recebendo e enviá-los a uma linha imaginária que atravesse o prato bem no meio.

E como se faz? - pediu Chester, o queixo apoiado em uma das mãos.

Pense na linha criada na sua mente. Comece a pressioná-la contra o prato como se ela fosse uma lâmina bem afiada.

Os olhos de Chester se comprimiram enquanto ele tentava...

Não aconteceu nada — disse ele, desistindo depois de quase um minuto. — Não devo ser um desenval.

Tem razão — concordou o mago. — Entretanto, você emana uma espécie de onda que eu ainda não conhecia. Mas é verdade, você certamente não tem o dom de um desenval.

Luminus lançou um olhar para Marc que estava sentado à sua frente, do outro lado da mesa.

Quer tentar?

Quero sim — disse Marc, inclinando-se para frente, colocando-se a disposição.

Faça exatamente como ensinei ao seu amigo - disse o desenval, agarrando levemente o antebraço do rapaz.

Marc tentou por algum tempo, mas também não teve êxito.

Sinto de verdade, meu amigo, você também não possui aptidão para a magia.

Com Rafael aconteceu a mesma coisa. Contudo, Luminus ainda sentia um fluxo intenso bem próximo. Ele voltou-se para Daniel ao seu lado.

É com você agora, Daniel.

Luminus tocou em seu ombro e antes que pudesse falar qualquer coisa, viu o prato sendo separado ao meio como uma faca que corta queijo macio.

Daniel quase caiu da cadeira.

Eu fiz isso?

Claro que não, seu bobo. Não notou que ele segurava o seu ombro? — disse Margaret, observadora.

Está enganada, querida - retorquiu Luminus. - Eu somente organizei o fluxo de energia no corpo de Daniel, como fiz com os outros. Porém, quem execu­tou a divisão do prato foi ele.

Você é um desenval, Daniel - disse Rafael, animado.

Não é bem assim - discordou Luminus, com prudência. - Esse é apenas um dos testes que costumamos fazer para identificar um futuro desenval. Todavia, para termos a certeza absoluta se estamos diante de um, necessitamos de mais compro­vações, e isso leva algum tempo.  

Então existe alguma chance de eu me tornar um de vocês? — perguntou Daniel, esperançoso.

Sim, há. Mas não se anime muito. Se você prestou bastante atenção no que eu disse, irá se lembrar que existem as vasilhas que são rachadas ou furadas, ou seja, que não têm a capacidade de acumular grandes volumes de energia. Você pode ser uma dessas.

Eu também quero fazer o teste - pediu Margaret, resoluta.

Certamente - consentiu o desenval. — Vamos fazer um pouco diferente dessa vez.

Luminus pegou as duas metades do prato e as juntou sobre a mesa, sem usar a magia para restaurar o objeto. Sua mão segurou o braço de Margaret quando ele determinou.

Tente unir novamente as duas partes usando sua vontade como uma cola poderosa.

Margaret suspirou fundo e se concentrou na tênue fissura retilínea produzida pelo seu irmão. Luminus manteve-se calado para não desviar a atenção da menina. Ela se esforçou por mais de um minuto, quando falou com a voz desanimada e fraca.

Não estou conseguindo, talvez não seja como meu irmão.

Você não é como o seu irmão - disse Luminus com firmeza. — Tente de novo. Mas agora, procure visualizar apenas a rachadura no prato e esqueça tudo a sua volta.

Margaret reanimou-se nos conselhos do desenval e fixou firmemente os olhos apenas na estreita fenda.

Foi só depois de outro longo minuto que a ruptura começou a sumir, devol­vendo ao prato a sua integridade.

- Consegui! - exclamou ela, soltando uma risada nervosa.

Luminus pegou o prato e o agitou como um leque para comprovar o poder de Margaret.

Lembram-se quando falei que partículas atravessam os nossos corpos? - disse ele. — Pois muito bem, vocês tomaram conhecimento dessa energia vibrando em nossas entranhas, e esse é o primeiro passo para aprenderem a controlá-la. Agora chega, vou me recolher - disse, enquanto se levantava. - Amanhã cedo estarei partindo para Nova Europa e sei que vocês têm também uma longa e difícil jornada. Desejo a todos vocês muita sorte.

Foi um prazer conhecê-lo, senhor Luminus — disse Margaret, com sinceridade.

Ora, ora, mas fui eu quem teve o maior prazer em conhecer tão bela mocinha e jovens tão simpáticos — disse o mago com exagerada delicadeza, seus cabelos entrelaçando-se no formato de uma flor oferecida a Margaret. — Se pas­sarem por Edrendora, procurem os desenvals. Embora eles me abominem, são íntegros e confiáveis.

Antes de subir para o seu quarto, Luminus aproximou-se de Tagodhar e Rhuror, e murmurou com o semblante retraído.

Não me agrada ver essas crianças a caminho de Crassen.

Não há outro jeito - respondeu-lhe Rhuror com a mesma seriedade. — Eles estão cientes das dificuldades que os esperam.

E mesmo assim arrasta a sua filha para o inferno com você? — reprovou o desenval.

Ela é uma guerreira, Luminus — respondeu o comandante faogard, endurecendo os próprios sentimentos.

 

                             Nas Areias do Canormut

O rio Mevarnon está a meia manhã daqui - informou Rhuror naquele lím­pido alvorecer, ao mesmo tempo em que puxava pelas rédeas o drancto para que ele se deitasse. — Será a última parada antes de avançarmos pelo Canormut. Como estamos de provisões, Tagodhar?

Muito bem abastecidos. Os seus animais carregam comida e água suficiente para cruzar com folga todo o deserto. E têm comida em seus estômagos para agüentarem por um longo período — disse ele, jogando um pano de cozinha sobre o ombro. — Mandarei a conta para o rei.

Cobre dele a minha comissão — brincou Rhuror, o drancto levantando-se com ele sobre as costas.

E Luminus? - quis saber Daniel.

Partiu antes que o sol saltasse do horizonte — disse Tagodhar, cobrindo os olhos com a mão para proteger-se do brilho da manhã. — Ele é assim mesmo, surge e desaparece como uma miragem.

Uma dezena de cavaleiros faogards bem armados cercou a comitiva antes que se pusesse em marcha.

Oferecemos nossa escolta, senhor — disse o chefe dos soldados.

Não é necessário, oficial - recusou Rhuror mais uma vez, olhando para baixo. - Em terras estrangeiras a presença de soldados faogards pode significar uma declaração de guerra. Vocês serão muito mais úteis em Fena.

Rhuror girou o drancto para a saída da cidadezinha e a caravana se pôs a caminho.

No final da planície, naquela mesma manhã, despontou para eles o maior rio do continente; aquele que garantiria a fertilidade de toda a parte oriental do território faogard, o Mevarnon.

As águas do Mevarnon eram preguiçosas e barrentas, embora espalhassem nutrientes e umidade por onde passassem, deixando faixas largas das margens den­samente arbustivas e cercadas de árvores frutíferas. O rio nascia nas mais altas montanhas da cordilheira de Malthar e continuava sendo alimentado por dezenas de importantes afluentes.

— Não se impressionem com essas águas turvas. Elas são de boa qualidade — disse Rhuror ao descer de seu incansável transporte. — Deixem os animais beberem à vontade.

A parada foi muito curta e logo em seguida eles atravessaram o rio por uma ponte de madeira maciça que resistia a travessias há mais de um século. Rhuror e seu drancto foram os únicos obrigados a se molhar no Mevarnon. A ponte não resistiria a tanto peso concentrado.

A vegetação foi tornando-se menos freqüente à medida que a marcha seguia mais para o leste, até que eles tiveram condições de avistar o esperado deserto.

O Canormut estava encaixado uns duzentos metros abaixo em uma gigantesca depressão que se iniciava numa descida levemente íngreme, e que não ofereceria nenhuma dificuldade para que os gifenontes prosseguissem. O que era atualmente o deserto foi outrora um lago de água doce circundado por vilas e pequenas cidades que viviam da pesca e do comércio local; barcos de pequeno porte deslizavam pelo lago, contrastando suas velas brancas com a tranqüila água azul-diáfano; no entanto, segundo uma lenda, o lago havia secado a milhares de anos quando aconteceu a céle­bre guerra dos deuses irmãos. A lenda fala que toda a água evaporou-se em menos de um dia e formou uma gigantesca nuvem negra que foi levada para não se sabe onde. O que restou, foi apenas uma lembrança transformada em história incerta contada nas noites frias, durante milênios, por todos os que percorrem o malfadado deserto.

Atualmente, a maior parte do Canormut ficou reduzida a um desolado mar de areia e dunas que podem atingir mais de cento e vinte metros de altura. Durante o dia, o calor torra o viajante ao ultrapassar os quarenta graus Celsius à sombra, se houvesse sombra; e à noite o frio despenca para menos de cinco graus positivos, forçando os desafortunados a lançarem mão de seus mais pesados casacos. Esse deserto era mais extenso e ainda mais seco que o Kundruir. Lagartos e alguns tipos de insetos eram as poucas espécies de vida que conseguiam resistir ao tratamento inóspito dado pelo Canormut; bem ao sul dele, era o longínquo oceano; do outro lado do deserto, mais ainda para leste, ficava a imponente cordilheira de Malthar que seria o próximo desafio, isso se eles conseguissem vencer o Canormut; ao norte, existiam as florestas de Sezvanell, misteriosas e quase inacessíveis; foi através delas que Alexei Martov fez boa parte de sua jornada, conforme teria registrado em seu livro de memórias.

Nos primeiros quilômetros, o terreno ainda mantinha certa consistência provocada pela umidade das águas circulantes do Mevarnon; alguns arbustos encrespados e de pouco viço eram os últimos resquícios da vida vegetal, e o vento morno e contínuo avisava que este seria a voz reinante por todo o deserto. Logo a paisagem mudaria para um terreno arenoso que reduziria o ritmo dos cavalos, exigindo um esforço maior a cada movimento.

Túnicas apropriadas protegiam os viajantes do sol e do vento seco, conser­vando a umidade e a saúde dos corpos.

Névoas de areia se levantavam das cristas das dunas, sopradas pelo vento o que causava constantes mudanças na paisagem; um objeto esquecido talvez nunca mais fosse encontrado ao ser coberto pelas areias mutantes.

O primeiro acampamento no Canormut foi erguido em terreno aberto o mais longe possível das dunas, pois o perigo das emboscadas voltou a ser um fator preocupante.

A fogueira acesa atenuava o frio e iluminava com a sua luz trêmula os corpos cansados que se reuniam ao redor dela.

Aí está você, Wengarel - disse Margaret, deitada com o rosto voltado para o infinito como se todo o deserto fosse o seu leito e as estrelas o teto de seu quarto. - Nunca a tinha visto assim tão vermelha.

E parece que ficou maior — observou Chester —, como se fosse despencar sobre nós a qualquer momento.

Um efeito atmosférico — explicou Guillermo, cientificamente. - Porém, de imensa beleza... que não se compara aos olhos de rubi de uma linda moça — disse, lançando um olhar apaixonado para Talemine. Ela respondeu com um sorriso gen­til nos lábios.

Todo o deserto foi banhado por uma impressionante tonalidade rubra vinda de Wengarel, desde as ondulações das dunas até as infinitas faixas de areia que se estendiam até onde era possível ver.

Rafael tirou a santinha de chumbo do bolso e buscou lembranças agradáveis de sua família... Ele segurava a imagem cinzenta contra a luz avermelhada da fogueira que proporcionava um efeito radiante nos contornos da pequena estatueta santificada.

E uma espécie de deusa? - perguntou Rhuror, sentando-se ao lado, a arma­dura produzindo uma sonoridade metálica.

Mais ou menos - respondeu Rafael, apreciando a luminosidade da chama em torno do seu minúsculo símbolo de fé. - Sinto muita falta dos meus pais, dos meus irmãos.

Rafael parou de prestar atenção na santinha e olhou para o homenzarrão ao lado dele.

E o senhor, por que decidiu deixar a sua família? Pouco nos conhece e sabe que pode nunca mais voltar a ver a sua Faogard.

Rhuror ouviu as palavras do garoto e depois ergueu os olhos para as estrelas.

Às vezes as nossas decisões são tomadas pelo que sentimos e não pela razão. Meu coração achou por bem eu estar com vocês até quando for necessário. Farei o melhor que puder enquanto estivermos juntos. Vê aquelas duas estrelas? - disse, apontando para duas das mais brilhantes do firmamento, a outra mão apoiada em um dos joelhos. - Fazem parte da constelação de Sargaleu, elas representam os olhos do deus que nos guia e nos protege. As estrelas, que chamamos de os olhos de Sargaleu, nos acompanharão sempre nas noites claras como essa, e mesmo durante o dia quando não conseguimos avistá-las e até pensamos que nos esqueceram, elas continuam lá, cuidando de cada um de nós. Acredito que seja desse jeito com a sua deusa, mesmo que não a veja, ela zela por você a cada instante.

Os turnos de vigília tiveram início com Brian. Os dez cajados foram dispostos, enterrados na areia, de tal maneira que uma grande área do acampamento permanecesse iluminada e pudesse denunciar qualquer invasor a uma boa distância.

Na profunda madrugada, quando quase todos dormiam à exceção de Roger, um ruído áspero cortou o silêncio; era quase imperceptível, mas foi o suficiente para que a sentinela armasse o seu arco e apontasse para um ponto na escuridão.

Viu alguma coisa, Roger? — sussurrou Rhuror, colocando-se em guarda com a espada em punho.

Vem daquele lado.

O que você viu?

Não consegui perceber nada, mas parecia que algo estava se arrastando além das luzes — disse, os olhos contraindo-se para enxergar mais longe.

Rhuror guardou a espada e puxou o arco, engatando um flecha comprida capaz de atravessar o peito de um homem.

Me dê cobertura. Se qualquer coisa se mexer, atire sem hesitar.

Àquela altura, todos já estavam de pé e munidos com as suas armas.

Talemine agarrou um cajado luminoso e correu para junto do pai, armada com sua espada de lâmina reluzente.

Tenham cuidado! - alertou Margaret, tentando não gritar.

Tem certeza que o som veio desse lado? - perguntou Rhuror, dando mais uma olhada. - Parece que não há nada por aqui.

Rhuror e Talemine recuaram com cautela, mantendo a guarda para a imensi­dão obscura do deserto.

Talvez não seja nada - supôs Rhuror, varrendo a penumbra com os olhos. - Mas você fez bem em considerar o ruído como uma ameaça.

Ainda temos muito tempo para dormir - disse Talemine, consultando a posi­ção das estrelas. — O próximo turno é o meu, senhor Roger. A partir daqui eu assumo.

Eu fico com você - apresentou-se Guillermo.

Não pode ficar acordado - ela recusou. - Você vai me substituir no próximo turno. Precisa descansar.

Perdi o sono com essa agitação. E serão mais dois olhos atentos.

Duvido que seus olhos atentos desgrudarão de Talemine - disse Brian a Guillermo, em chacota, enrolando-se no cobertor até o pescoço.

Daniel voltou a se deitar e buscou no céu, bem acima, a fascinante e misteriosa Wengarel; ele passou a observá-la minuciosamente, as manchas escuras indefiníveis, os contornos irregulares que deveriam ser montanhas altíssimas e vales imensos na superfície encarnada.

Interessante — comentou ele num murmúrio. — Wengarel parece maior.

Daniel havia observado bem. A lua estava com o dobro do seu tamanho habitual.

Vocês notaram aquilo? — disse o menino inglês, elevando um pouco o tom da voz. - Olhem para Wengarel.

Quero dormir — reclamou Margaret.

Daniel deu de ombros e preparou-se para pegar no sono, mas quando tornou a olhar para o céu, a circunferência de Wengarel estava ainda maior.

Tem alguma coisa errada com aquela lua — disse ele para Guillermo e Talemine enquanto se punha de pé novamente.

E só um efeito atmosférico. Pare de ser medroso, Daniel - caçoou Guillermo, balançando a cabeça em total menosprezo.

Guillermo ergueu os olhos mais uma vez e Wengarel já ocupava um quarto de toda a abóbada celeste.

Um vento estranho e forte penetrou por entre as dunas, levantando uma enorme quantidade de areia e jogando os cajados ao solo.

Daniel tinha grande dificuldade de divisar o que estava a um metro à sua frente por causa do turbilhão de areia que se erguia furiosamente a centenas de metros do chão, fazendo-o entrar em pânico.

A lua vermelha crescia ameaçadoramente sobre ele.

Wengarel! Wengarel vai cair sobre nós! Estamos perdidos! - berrava, esticando o braço para agarrar Margaret, mas viu sua irmã com os dedos fincados na areia, lutando para não ser levada, ela foi arrastada para longe, desaparecendo na poeira.

Margaret! Margaret! - gritou em desespero.

O vento, agora fortíssimo, arrancou Daniel e seus amigos do chão e o rapaz só conseguiu, num lampejo, olhar através da poeira em desordem pelo ar, que Wengarel havia tomado metade do Armamento e pintado com o seu escarlate tudo o que exis­tia. O drancto, tão pesado, passou girando nà sua frente como uma pena soprada.

Ao ser atirado para cima, pela ventania, Daniel viu a areia do deserto escoar para dentro da terra como farinha em uma tigela furada. O terreno rochoso exposto começou a rachar e mostrar suas entranhas de magma vermelho incandescente.

Daniel inspirou com força como se quisesse que todo o ar do planeta invadisse os seus pulmões.

Olhou em volta. Quase todos estavam dormindo. Só conseguiu ouvir um risinho discreto de Talemine para Guillermo, um pouco abafado pela brisa do deserto.

Você está bem, Daniel? — perguntou Talemine.

Foi só mais um pesadelo — pensou ele, e adormeceu.

 

A temperatura subia rapidamente no início da manhã.

Água e alimento para os animais eram a maiores preocupações de Rhuror. Se ficassem sem transporte naquele lugar, estariam condenados à morte em poucos dias. Porém, eles estavam tão abastecidos que mesmo se houvesse atraso para com­pletar o Canormut, ainda assim as reservas seriam mais do que suficientes.

Rhuror examinou o terreno onde Roger tinha ouvido os sons estranhos na noite anterior.

Pegadas — disse ele. — Quatro homens estiveram aqui à noite, e usavam roupas compridas, vejam as marcas nesse lado onde o vento não apagou os vestígios.

Rhuror olhou mais adiante.

Eles se aproximaram de nós a pé, deixando os cavalos distantes o suficiente para não fazerem barulho. Ali na frente estão os rastos dos seus animais, que se dirigem para o leste e logo adiante a pista se perde.

E quem você acha que são esses visitantes? — perguntou Roger.

Apostaria que são Seguidores de Arkopromis, ou alguém querendo se passar por eles — especulou o faogard. - Sinto-me mais seguro em movimento. Vamos embora daqui.

Três dias se passaram e a caravana havia avançado mais de noventa quilôme­tros, o que era uma boa média naquelas circunstâncias.

A areia a partir daqui é mais compacta e assim poderemos ir mais rápido - avisou Rhuror, dando um comando para que o drancto aumentasse um pouco o ritmo.

Quanto mais se aprofundavam pelo Canormut, o ar ficava mais sufocante. A necessidade de beber água aumentava e a fadiga tomava conta dos corpos.

A única coisa que separava a cabeça dos viajantes do sol abrasador era um fino, mas eficaz capuz feito de pele de gangofal, um animal semelhante ao coiote, que vive em lugares áridos, alimentando-se da fauna local como lagartos e serpentes; o seu couro é excelente como isolante do calor e largamente utilizado por aqueles que cos­tumam viajar pelos desertos. Sua pelagem é normalmente da cor da areia para facilitar a camuflagem. Alguns animais dessa espécie já foram vistos caçando muitos quilô­metros adentro do Canormut e do Kundruir, bem longe de qualquer fonte de água.

A cordilheira crescia a leste, e apesar de estarem a grande distância, já era possível distinguir toda a grandeza das montanhas com os seus picos cobertos de neve.

Não é paradoxal? Nós aqui derretendo de calor no meio desse deserto e olhando para uma paisagem de gelo e temperaturas congelantes? - filosofou Marc, saudoso do frio europeu.

Você diria o contrário se estivesse congelando lá em cima - retorquiu Rafael, tirando a tampa do seu cantil e molhando a garganta com grandes goles de água.

Ainda prefiro os dias frios de final de ano em Paris. As noites são brilhantes e a minha casa fica aconchegante com a lareira crepitando.

Bem diferente dos natais onde nasci, com muito calor mesmo durante a noite — continuou Rafael. — Sempre achei estranho encontrar o Papai Noel de mangas compridas, touca e botas desfilando pelas ruas a uma temperatura de quase quarenta graus.

Não sei se todos concordam, mas tenho a sensação de que o dia está mais quente hoje - disse Margaret, fazendo uma expressão encalorada.

Você está certa, menina Margaret — concordou Rhuror. — Estamos passando pela faixa mais escaldante do Canormut. Aqui os ventos pouco fazem pelos pobres viajantes.

Rhuror, por estar mais no alto, foi o primeiro a avistar uma coisa brilhante jogada na areia uns duzentos metros na frente. Eles se aproximaram e então viram que no caminho deles havia três adagas, cada uma delas disposta com a ponta voltada para as outras duas, formando um "Y". Eram as conhecidas adagas de lâminas bifurcadas.

Arkoprômidas, os Seguidores de Arkopromis - identificou Rhuror, ele des­ceu do drancto e se agachou tocando um dos joelhos na areia ardente, então pegou uma das adagas e examinou melhor constatando que estavam bem afiadas.

Por que eles abandonariam essas armas arrumadas desse jeito? — questionou Marc.

Não sei ao certo — respondeu Rhuror, as sobrancelhas vermelhas quase lhe cobrindo os olhos, ao se contraírem. - Mas acho que estão tentando mandar um recado. Esses sujeitos são cheios de simbolismos e a sua organização tem muitos segredos; quase nada se conhece sobre eles.

Posso ficar com uma dessas? - pediu Daniel, querendo uma adaga como se fosse um souvenir.

Receio que não seja apropriado — desaconselhou Brian. — Essas coisas podem ter tirado a vida de gente inocente e você não gostaria de carregar alguma coisa assim, não é mesmo?

Daniel assentiu com a cabeça, um pouco desolado por não poder levar uma delas; as adagas eram bonitas e exóticas com seus cabos com estranhas figuras mito­lógicas trabalhadas em bronze.

A jornada prosseguiu em velocidade constante naquele dia, de modo que ao cair da tarde, eles concluíram quarenta e dois quilômetros e ficaram um pouco mais próximos da inexpugnável cordilheira.

Os animais necessitarão de bastante água para se recobrarem do desgaste — disse Brian, desvencilhando um odre da anca carregada do drancto, afagando cari­nhosamente a queixada de seu gifenonte e lhe dizendo palavras encorajadoras. - Beba e descanse bastante meu corajoso amigo, você precisa estar bem disposto amanhã.

Aproveitaremos bem essa noite para o repouso e amanhã tentaremos superar a nossa melhor marca diária — disse Rhuror enquanto encaixava um dos cajados de luminita no chão arenoso.

Daniel aconchegou-se próximo a fogueira e notou que sua irmã estava sentada em uma atitude que lhe causou demasiado interesse. Margaret, de olhos cerrados, segurava dois ramos secos unidos pelas extremidades; ela parecia estar em transe. Seu irmão esgueirou-se silenciosamente até ela e confirmou o que já havia suspeitado.

Você está querendo grudar esses gravetos? - perguntou ele em voz alta, mostrando um sorriso sarcástico. — Olhem só! A minha irmã pensa que tem poderes mágicos como o desenval.

Daniel Crowley, por que não me deixa em paz? Eu apenas exercitava o que Luminus me ensinou. Você é um ridículo estraga prazeres — ela desabafou, os gra­vetos foram atirados na fogueira erguendo fagulhas alaranjadas.

Alguém tem uma cola para emprestar pra ela? - perguntou Daniel, quase gritando com sua voz mordaz.

Não me provoque, Daniel Crowley! Você sabe muito bem do que sou capaz?

O que vai fazer? Atiçar o drancto em mim? — provocou em tom de troça.

E, pode ser. Quem sabe ele afunda você na areia para que eu nunca mais veja a sua cara idiota novamente? — gritou a menina com raiva.

Silêncio, vocês dois! — ordenou Brian com a voz alterada. - Não ouviram aquilo?

O que foi? - perguntou Daniel, interrompido de chofre.

Um som esquisito vindo de longe. Era algo parecido com um uivo ou um gemido, mas parecia ser humano - disse Brian, com uma expressão no rosto como se tentasse ouvir de novo aquele som.

Eu também ouvi - confirmou Talemine, estando mais distante do entrevero dos irmãos. — E de fato se assemelhava a voz humana.

Está satisfeito agora, senhor confusão? - murmurou Margaret a Daniel.

Eu? Você é que náo agüenta uma brincadeirinha inocente - defendeu-se com ar de vítima.

Vão começar de novo? — intrometeu-se Rafael, decidido a dar um fim ao desentendimento familiar.

Com os estômagos cheios e a trégua que o calor havia dado durante a noite, não foi difícil que os extenuados peregrinos se recolhessem aos seus cantos no imenso areal.

Brian tirava o primeiro turno de duas horas, sem que seus olhos cessassem um só minuto de vasculhar todos os recantos longínquos da escuridão. Guillermo o rendeu, e dessa vez não havia a companhia de sua Talemine, ela se deixou vencer pela exaustão que o Canormut lhe impusera.

Daniel abriu os olhos no meio da noite, virou a cabeça e lá estava Guillermo de guarda, parcialmente iluminado pelo ondear da fogueira. O menino acomo­dava-se mais uma vez para o sono quando os seus olhos perceberam uma luz tênue, quase indistinta em um ponto distante na noite do deserto.

Oh, não! Outro pesadelo, não! - murmurou Daniel, sua voz quase não saiu.

Ele beliscou com força o próprio braço para ter certeza se náo estava dor­mindo. Não estava. Então prestou mais atenção para garantir se a tal luz não era uma simples ilusão de ótica ou mesmo a criação enganosa de sua imaginação. A luz diminuta continuava desafiando a sua curiosidade.

Guillermo! - sussurrou com cautela para não despertar os outros.

O espanhol virou-se para o rapaz que apontou para o ponto luminoso no deserto.

Consegue ver aquele brilho?

Guillermo ajeitou-se melhor e firmou o olhar no negrume além das luzes do acampamento.

Aquela luz não estava ali meia hora atrás — comentou Guillermo. - Eu certamente a teria percebido.

Rhuror ergueu a cabeça ao ser acordado pelo diálogo dos dois.

E luminita, e está a boa distância daqui — afirmou com a autoridade de quem sabe muito bem do que está falando.

Quem poderia ter colocado aquela luz? - perguntou Rafael, jogando o seu cobertor por cima do ombro para evitar o frio intenso.

Desconfio que todos imaginem a resposta — disse Talemine, encaixando uma flecha em seu arco, preparada para disparar ao menor perigo.

Os Assassinos de Arkopromis? - emendou Brian. - Foi a primeira coisa que pensei.

E se for um viajante solitário, temeroso em se aproximar? - aventou Margaret, os olhos inchados de sono.

Não acredito nisso - descartou Roger. - Se fosse um inofensivo viajante, viria até nós, demonstrando boas intenções. E se estivesse com medo, não exporia aquela luz como se fosse uma bandeira que pudesse ser vista a quilômetros.

Roger tem razão — concordou Rhuror. — Parece que quem fez aquilo quer ser notado, porém não deseja ser alcançado.

O que faremos? Iremos até lá e resolvemos logo essa questão? — quis saber Chester, impaciente.

Eu cheguei a pensar nisso - disse Rhuror, voltando-se para o garoto. - Mas acho que é isso mesmo que os nossos enigmáticos vizinhos querem que façamos. Acho mais prudente esperarmos até o dia clarear.

Conforme o dia ia nascendo, a misteriosa luz esmaecia até desaparecer por completo.

Rhuror ergueu-se no seu enorme animal e a caravana mais uma vez se colocou em marcha.

Eles avançaram pouco mais que um quilômetro até se depararem com a fonte de luz que lhes causara preocupação durante a noite toda. Fincado na areia havia um cajado de quase dois metros de altura, e no seu topo, uma luminita detalhadamente esculpida em uma forma familiar.

O deus Arkopromis! - reconheceu Daniel, espantado com a visão do rosto assustador e cheio de ódio da escultura azulada. - Era isso que brilhava o tempo todo.

É um ritual - constatou Rhuror, sem descer do drancto, cruzando os dois braços e apoiando-os sobre um joelho. - Estão querendo transmitir uma mensagem que eu não consigo decifrar.

Primeiro, as adagas, e agora, a imagem do nefasto deus deles — analisou Brian, buscando uma compreensão dos fatos. - Você disse que é um ritual. Uma preparação para algo de maior importância: uma passagem, uma mudança ou uma comemoração.

Ou tudo isso junto - supôs Guillermo, observando os detalhes bem traba­lhados enquanto passava os dedos nos entalhes do ídolo maligno. - Só não entendo por que os malditos não atacam de uma vez ao invés de nos rodearem como hienas em torno de um búfalo ferido.

Uma coisa é certa, Guillermo - disse Talemine com ponderação. — Cada gesto deles é calculado. Existe mais alguma coisa que ainda não sabemos.

Se abandonaram essa imagem pelo caminho, deve ser porque desejam que fique­mos com ela - deduziu Daniel, esperando que alguém lhe dissesse para levá-la junto.

Como um presente? - disse Roger. — Pode ser isso mesmo que eles querem. Uma pedra desse tamanho deve valer um bom dinheiro. Mas eu digo que devemos deixá-la exatamente aí, ignorando-a como fizemos com as adagas, frustrando os planos dos nossos inimigos.

E assim foi feito. Arkopromis foi deixado para trás, servindo como um pequeno farol nas noites sombrias do Canormut.

Era impressionante a capacidade que os Seguidores de Arkopromis tinham para desaparecer durante o dia como se fossem fantasmas e retornarem à noite fazendo das suas.

Somente por um momento, Roger gostaria de ter o pescoço de um deles entre suas poderosas mãos e poder apertar até ver os olhos do desgraçado agonizante se esbugalharem e a língua asquerosa de duas pontas se contorcendo já totalmente roxa e saltando para fora da boca.

Quando o sol se encontrava a pino, eles interromperam temporariamente a caminhada para dar uma boa dose de descanso aos cavalos. O drancto não tinha tal carência, mas, por via das dúvidas, o gigante cruzador do deserto aproveitava para repor as poucas energias perdidas.

Como é possível que um bicho dessas proporções não tenha tomado nenhuma gota d'água desde as margens do Mevarnon? - questionou Chester com natural admiração, tratando de saciar a sede do seu cavalo.

Ele praticamente não transpira e o seu imenso abdômen possui um reserva­tório com água suficiente para toda a nossa caravana, inclusive os gifenontes, até o fim da travessia do deserto - comentou Rhuror com satisfação estampada no rosto barbudo. - Mas aquela água é só pra ele. Nos contentemos com a que vai nos odres que ele carrega.

Roger abriu o mapa conseguido em Nova Europa para verificar a rota.

Pelas coordenadas dessa carta, já vencemos sessenta por cento do Canormut.

Estamos dentro do prazo que foi estabelecido - disse Guillermo, enquanto fazia alguns cálculos mentais. — Podemos até reduzir o percurso a trinta e cinco quilômetros diários e assim mesmo chegaremos a tempo.

As últimas gotas de água escorriam pelo bico de um dos odres atados ao drancto.

Essa bolsa esgotou - comunicou Chester a Rhuror enquanto fechava o seu cantil.

Abra um desse lado agora, para equilibrar o drancto - disse o faogard, mostrando um odre estufado de água, encoberto por um outro que já se encontrava vazio.

Chester fez um esforço para deixar o odre cheio em posição de uso e puxou a ponteira para fora. Quando o lacre foi tirado a água jorrou com força, mas tinha alguma coisa errada.

Essa água está escura, senhor Rhuror - avisou, surpreso com a consistência e a cor do líquido.

Escura? Não pode ser. Tagodhar só abastece os viajantes com água potável dos seus poços - disse Rhuror, indo conferir.

A água se tornava cada vez mais escura e, misturada a ela, era despejada uma grande quantidade de areia. O jato de água foi perdendo a força, até que restava apenas um creme de areia e água pingando da ponteira.

Rhuror pulou em cima do drancto que estava deitado, e abriu a tampa supe­rior do odre.

Só tem areia aqui dentro — disse ele, embasbacado com o que via.

Então, Rhuror foi para o próximo odre que estava coberto pelos outros que já haviam sido utilizados. Estava abarrotado de areia molhada como o primeiro.

Verifiquem os outros! - gritou, consternado.

Brian, Roger, Marc e Talemine foram abrindo os odres internos e a resposta foi idêntica.

Estão cheios de areia! — disse Roger. Talemine, Brian e Marc confirmaram a mesma coisa.

Sabotagem! — exclamou Rhuror, enraivecido.

Estivemos todo o tempo de olho no drancto, mesmo à noite — disse Rafael, imaginando uma explicação plausível. - A não ser que...

A areia foi colocada em Fena — completou Marc.

Você está certo, garoto Marc — apoiou Rhuror, ele pegou um punhado de areia de dentro do odre e o olhou com desprezo, depois deixou escorrer pela mão para o deserto. — E eu fico pensando quem poderia ter feito essa patifaria.

Acha que pode ter sido Tagodhar? — perguntou Brian, querendo acreditar que não seria aquele homem que se mostrou tão hospitaleiro e gentil.

Ponho a minha garganta no aço de uma espada por ele — disse Rhuror com firmeza. — Ele não faria isso — garantiu.

Luminus? Não, Luminus não nos trairia — analisou Daniel, torcendo com todas as suas forças que o desenval não fosse um mau caráter.

Provavelmente também não foi ele - rejeitou Rhuror tal hipótese, os olhos vagando pensativos pelo deserto.

Poderia ser qualquer um naquela estalagem, pai — considerou Talemine.

Fena recebe visitantes de todos os tipos, vindos de muitos lugares. A lista de suspeitos seria imensa.

Mas um nome não me sai da cabeça — disse Rhuror, o ódio crescendo nos seus olhos.

Você está pensando em Lughy? - indagou Guillermo, que acabava de colocar o mestiço de comportamento duvidoso como o primeiro suspeito.

Acho que não sou só eu quem desconfia dele - disse o comandante faogard, enquanto soltava as fortes presilhas que seguravam os odres no lombo do drancto.

Essa areia é peso morto. Vamos esvaziar os odres e recolocá-los nos suportes.

Uma única pessoa não teria condições de encher os odres com tal volume de areia — salientou Margaret. — Portanto, quem executou o trabalho sujo obteve ajuda de mais pessoas.

O que você diz é bastante provável — disse Brian em concordância.

Só nos restou uma bolsa com água pela metade — comunicou Talemine, após contabilizar o prejuízo causado pela sabotagem. — Não temos água o bastante para prosseguir e muito menos para voltar. Estamos presos no meio do Canormut.

 

                             Um Sombrio Ponto no Mapa

Apreensivo, Rhuror ficou em silêncio, pensando em alguma coisa que os tirasse daquele inferno.

Rafael olhou o seu cantil e se certificou que ele estivesse bem fechado; não era o momento de correr nenhum risco de desperdício. Ele confidenciou a Marc.

De repente fiquei com uma enorme sede.

Eu tive a mesma sensação — disse Marc, passando o dorso da mão no pescoço suado. — E tenho até a impressão de que estou transpirando mais que o de costume.

Tenho algumas alternativas e quero ouvir a opinião de vocês sobre elas - disse Rhuror, pulando para o chão. — Uma delas é cruzarmos o restante do deserto somente utilizando o drancto. Tenho certeza que ele suporta bem sem ter que reabastecer.

Sabemos disso, mas, e os cavalos? O que acontecerá com eles? - procurou saber Guillermo.

Nesse caso, serão abandonados a própria sorte. Não temos água para todos, e se querem saber, o que temos de reserva não chega nem mesmo para o nosso consumo. As chances de morrermos de sede pelo caminho são quase absolutas. Outro problema, é que mesmo se chegássemos vivos aos limites do Canormut, não teríamos como seguir sem os gifenontes através da cordilheira; o drancto é muito grande e sua constituição não serve para caminhar pelas gretas e escarpas que ainda estão por vir.

Não podemos deixá-los aqui - protestou Chester, temendo novamente a perda de mais cavalos.

São eles ou nós - disse Brian com desânimo.

O que mais você sugere? — perguntou Roger no mesmo instante em que abria outra vez o mapa da Cadecália, usando a sela de seu cavalo como apoio.

Uma outra possibilidade seria a de sacrificar o drancto e retirar a água de seus estômagos - sugeriu Rhuror com algum pesar, pois ele adorava o animal. - Mas o sangue poderia se misturar a ela, e a reação do sangue com o calor intenso talvez deixassem a água imprópria para o consumo.

As largas narinas do drancto dilatavam e se contraíam com a sua forte respiração.

Isso é mórbido! — censurou Chester com veemência. — Prefiro morrer de sede.

Ele só está sendo prático — disse Talemine com a frieza que as circunstâncias exigiam.

E como se mata uma fortaleza desse tamanho? - perguntou Rafael, olhando o quadrúpede gigante de pele tão grossa como um muro de pedra.

Por que você náo fecha essa boca? — reclamou Chester, desferindo um olhar exasperado para o amigo.

Tá bem, tá bem. Foi só uma pergunta — defendeu-se Rafael, as mãos erguidas em sinal de paz.

Ao esquadrinhar o mapa minuciosamente, Roger atentou para um detalhe quase sem importância.

O que é esse pequeno círculo quase imperceptível no meio do deserto?

Rhuror tomou o mapa em suas mãos e o olhou com seriedade.

Essa é a última alternativa que me ocorreu, o Zsenesh.

O que disse? - pediu Brian, para que Rhuror explicasse melhor.

Meu pai se referiu ao Zsenesh, o quase desconhecido lago situado ao sul de onde estamos - disse Talemine enquanto se aproximava de Rhuror que detinha o mapa.

Rhuror prosseguiu falando sobre o lago.

O Zsenesh fica fora de qualquer rota que cruza o Canormut, pois o seu nome está envolto em sombrias histórias que são contadas há séculos, por todos os recantos da Cadecália.

E do que falam essas histórias? - perguntou Margaret, os olhos brilhando de atenção.

São contraditórias - explicou Rhuror —, falam de magia poderosa que escraviza as almas dos desafortunados que ousam chegar na beira do lago; de monstros que habitam suas águas e devoram os incautos, e coisas do gênero. Quem passa pelo Canormut tem medo do Zsenesh, pois contam que existem maldições muito antigas que condenam os pobres infelizes a uma eternidade de terror. Por causa dessas lendas é que ninguém em seu juízo se atreve a ir até lá.

Pelo que entendi, vocês nunca visitaram o lago — disse Marc a Rhuror e Talemine.

Realmente não — respondeu o faogard. — Mas meu pai contava que esteve no Zsenesh quando ainda era garoto, mais ou menos com a sua idade. — Rhuror devolveu o mapa a Roger e continuou a falar: — Ele cruzava o Canormut numa expedição com uma tropa de guerreiros chefiada pelo meu avô. A curiosidade os levou até o lago e ele chegou a beber da água do Zsenesh.

O que ele viu lá? — indagou Daniel, se deliciando com a narrativa, deixando a imaginação voar.

Meu pai falava de uma mulher idosa que habitava uma casa simples rodeada de palmeiras e vegetação rala. O lago ficava um pouco mais distante. Ele dizia que era de uma beleza incomum e brilhava no sol forte.

E o que mais aconteceu? — perguntou Marc, ávido por saber do desfecho.

Ele não viu nada que o deixasse aterrorizado, mas mesmo depois de muitos anos, meu pai comentava que nunca se esqueceu da angústia que sentiu na beira daquelas águas, um sentimento ruim que vinha das profundezas do lago cristalino e que aquilo ficaria marcado na sua mente até o fim da sua vida.

Não me pareceu uma história tão assustadora - observou Margaret com certo desdém.

-Assustadora ou não, acho que o lago Zsenesh é a opção mais viável - posicionou-se Brian, sabendo que quanto mais tempo ficassem ali discutindo, menores seriam as chances de sobreviverem ao Canormut. - Eu digo que devemos rumar para o lago.

Meu voto é pelo lago - disse Chester, pensando na sobrevivência dos animais.

Eu quero conhecer esse misterioso lago Zsenesh - pronunciou-se Daniel, que foi seguido por Margaret, Marc e Rafael.

Bem, já que meu voto não altera nada, vou com vocês - assentiu Guillermo. - Você sabe como chegar até ele? - direcionou a pergunta à Rhuror.

O mapa não define bem, mas pelas informações que eu tenho, não será muito difícil encontrá-lo.

Rhuror olhou para o sol e avaliou a posição da cordilheira de Malthar.

Teremos que retroceder um pouco, apontando nossa rota para sudoeste. O Zsenesh deve estar a aproximadamente cento e dez a cento e vinte pharteions. — O faogard fez um breve cálculo de conversão. — Isso eqüivale a uns cento e setenta a cento e noventa dos seus quilômetros de distância. Chegaremos em quatro ou cinco dias. A água que restou no último odre será destinada aos gifenontes. Ávida de vocês depende do que estiver nos cantis, vocês entenderam?

Um silêncio de aceitação foi a resposta.

A jornada recomeçou.

Os quatro ou cinco dias estimados por Rhuror causaram inquietação ao Chester.

E muito longe. Os cavalos não agüentarão o esforço com tão pouca água — murmurou o jovem americano para que Daniel ouvisse.

Não há outra saída, Chester. Os cavalos terão de resistir.

Chester balançou a cabeça em negação. Sabia dos limites de um eqüino debaixo daquele sol escaldante sem quase ter o que beber, e ainda tendo que car­regá-lo o tempo todo.

A temperatura rompia a casa dos quarenta graus Celsius debaixo dos capuzes protetores feitos das isolantes peles de gangofal. Se não fossem essas membranas de proteção térmica, as cabeças dos aventureiros enfrentariam um calor que excederia os sessenta graus, podendo levá-los à morte em poucas horas.

Sem ter o que fazer a não ser cavalgar, Rafael pôs-se a realizar uma coisa que lhe agradava: tentar decifrar enigmas.

Tem alguma coisa que não fecha nessa história toda - refletiu ao balanço de seu cavalo. — Quem sabotou a nossa água poderia muito bem ter colocado nela algum tipo de veneno. Estaríamos todos mortos agora.

E daí? - Marc estimulou que o amigo desse prosseguimento a sua teoria.

Daí, que eu acho que o propósito de quem está por trás disso não é o de provocar a nossa morte.

Se é assim, por que nos deixaram sem água no meio do deserto?

É essa a pergunta que eu também estou me fazendo - concluiu Rafael.

A capacidade de cada cantil era de um litro e meio, o que daria uma média de trezentos mililitros diários para cada um dos viajantes.

A desidratação seria a grande inimiga nos próximos dias, e era o que mais preocupava, não saindo da cabeça atormentada de Brian.

Fique de olho nos meninos — disse ele a Guillermo que seguia ao seu lado. - Receio que os piores sintomas da desidratação se manifestarão antes que alcancemos o lago.

Preocupe-se também com você, inglês - alertou Guillermo, de volta. - O seu rosto está brilhando de suor.

O sol a pino era o momento mais crítico da viagem, exigindo muito mais dos cavalos; e quando a noite caiu sobre o Canormut, foi um grande alívio para todos que tinham as gargantas completamente ressequidas.

Viajar durante o dia e quase sem água estava fazendo os integrantes da jornada desidratarem depressa demais. Alguma coisa deveria ser feita rapidamente.

E se caminhássemos à noite? - propôs Chester a Rhuror, aliviando o seu cavalo da penosa carga. - Passaríamos o dia descansando sob as tendas, poupando mais energia.

A visão se restringe muito na escuridão. Você sabe disso, Chester. Os arkoprômidas só estão aguardando uma oportunidade como essa para nos pegar.

-Temo pelos cavalos, senhor Rhuror - insistiu o garoto -, a falta d'água pode matá-los.

Entendo a sua inquietação - solidarizou-se o faogard, apoiando a pesada mão no ombro de Chester. - Deixe-me ver o que podemos fazer.

Rhuror pensou numa maneira de evitar as horas mais quentes do Canormut. Logo ele resolveu.

Faremos desse jeito - disse ele —, quando as temperaturas se apresentarem mais altas, daremos uma parada. E seguiremos em frente até o anoitecer. - Rhuror olhou para Chester com afeto: — Está melhor assim?

Creio que sim... Espero que sim - respondeu com simplicidade.

No meio do seu sono conturbado, durante a madrugada, Daniel teve outro dos seus pesadelos: ele se viu sozinho no meio do deserto, cercado por nove cruzes fincadas na areia. Uma cova profunda estava bem ao seu lado como se esperasse pacientemente para sepultar o décimo viajante. Daniel, então leu os nomes gravados em cada cruz e seu coração bateu angustiado quando ele viu o nome de sua irmã escrito em uma delas. Ao acordar, com a respiração alterada, viu a luz da fogueira se materializando diante dos seus olhos azuis. Então, sentou-se levando as mãos à cabeça, e pensou: Quando esses malditos pesadelos me deixarão em paz?

Algum problema, Daniel? — perguntou Roger, que tirava o turno de vigia.

Não é nada. — Limitou-se a responder e deitou-se novamente, buscando o sono que havia sido interrompido.

O sol ainda não havia nascido e Rhuror já dava o sinal para que o acampa­mento fosse desmanchado. A viagem tinha que ser reiniciada antes que o calor se acentuasse e fizesse a caravana sofrer com o drástico racionamento de água.

Com o passar dos dias, e como um fantasma que anuncia uma grande des­graça, os sintomas da desidratação se manifestaram nos corpos enfraquecidos. Os cantis secaram e o calor era sufocante, e se o lago não fosse logo encontrado, não haveria mais nenhuma esperança; o pesadelo de Daniel se confirmaria e o deserto do Canormut faria o papel de túmulo, encerrando os corpos sem vida sob a fina e movediça areia, para sempre.

A presença dos seguidores de Arkopromis não foi mais notada.

Os jovens aventureiros foram os primeiros a serem afetados sentindo fortes tonturas, náuseas e latejantes dores de cabeça.

Os cantis estavam totalmente secos no quarto dia.

A visão de Margaret embaçava e a respiração tornava-se cada vez mais difícil, mas ela resistia e tentava com muito custo esconder o seu sofrimento.

Àquela altura, o lago Zsenesh já deveria ter sido avistado e Guillermo queria saber por que isso não estava acontecendo.

O que está havendo, Rhuror? Estamos perdidos?

Não entendo. Pelos meus cálculos, o lago deveria estar bem a nossa frente - respondeu o faogard, apreensivo, empenhando-se para achar algum sinal de dunas no horizonte.

Guillermo sentiu que Rhuror estava visivelmente preocupado e não resistiu em fazer uma outra pergunta.

Vamos sair dessa, guerreiro?

Iremos em frente — foi apenas o que ele respondeu.

Enquanto a tarde se arrastava, a caravana era tomada pela incerteza, e sem água, os rins também começariam a falhar.

Marc experimentava uma profunda letargia e suas pálpebras pesavam como chumbo.

Devo estar tendo alucinações - disse para Rafael, com voz arrastada, enquanto segurava sua flauta como se ela fosse um poderoso amuleto. - O relevo à nossa direita está estranho.

Rafael virou a cabeça com dificuldade para o ponto em que Marc se refe­ria. Ele firmou a vista e também percebeu algo diferente da brancura amarelada e monótona do deserto.

Mas tem alguma coisa lá — balbuciou com dificuldade, a boca seca como se mastigasse areia. — Senhor Rhuror! — esforçou-se ao máximo para ser ouvido. — O que é aquilo?

Por todos os bons deuses! — exclamou Rhuror, percebendo uma formação entre as ondulações do deserto. - São árvores. Encontramos o lago! — gritou, indi­cando a direção. — Estamos salvos, senhor Guillermo! - anunciou, dirigindo o drancto para a direita.

Um sorriso de alívio nasceu no rosto de Guillermo que forçou seu gifenonte para uma cavalgada de uns dois quilômetros que valeria muito à pena. Era a salvação de toda a expedição.

O Zsenesh ainda não podia ser visto. A vasta massa de árvores parecia querer esconder o lago, mas era sem dúvida um oásis fulgurante que brotava no meio do Canormut estéril. O terreno arenoso e instável cedia vez ao solo firme que recebia sombras frescas das folhas largas das palmeiras robustas.

Foram, talvez, os dois quilômetros mais longos que eles percorreram até então. Ao se aproximarem da primeira barreira de palmeiras, sentiram uma brisa refrescante soprada do interior do oásis.

O paraíso deve ser assim - comentou Rafael com profundo alívio.

Entretanto, as gargantas ainda estavam secas e arranhavam como se tivessem engolido arame farpado.

Roger foi o primeiro a apear e trazer o seu cavalo para a sombra; os outros fizeram a mesma coisa e só o drancto ficou impossibilitado de continuar, pois não havia espaço entre as árvores para ele, mas para o animal de grande estatura não fazia muita diferença, já que a sua pele dura também tinha a função de refrigerar o seu corpo descomunal.

Uma trilha levava para o interior do oásis e à medida que caminhavam, um perfume delicioso de frutas frescas foi tomando conta do ar.

Nada do lago por enquanto — disse Brian, enquanto tocava os troncos majestosos das palmeiras.

Nós o encontraremos a qualquer momento — disse Rhuror que seguia logo atrás. - E só uma questão de tempo.

Alguns pássaros voavam e gorjeavam entre as palmeiras trazendo alegria com estardalhaço.

Frutos secos e despedaçados, caídos das palmeiras, se espalhavam pelo chão; eram grandes como bolas de boliche e suas cascas possuíam um marrom achocolatado.

O que é isso? - perguntou Rafael a Talemine, apontando para os frutos que se encontravam próximo dele.

É uma pasca - explicou a faogard. — É boa de comer e tem muitos nutrientes que poderiam sustentar uma pessoa por toda vida, mas você não gostaria de comer só isso pra sempre, não é mesmo? Essa aí está velha e seca, mas aquelas penduradas lá em cima estão maduras, quer experimentar uma?

Quero, sim - disse o rapaz, curioso para saber como era o sabor de uma pasca.

Com naturalidade, Talemine armou o seu arco e disparou uma flecha certeira

em uma pasca que pendia da palmeira mais carregada ao lado da trilha. O fruto despencou pesadamente e se esborrachou no solo despejando imediatamente um cheiro adocicado.

Prove — convidou Talemine, ela mesma pegando um pedaço e levando à boca.

Confiando que devia ter um gosto agradável, Rafael experimentou a polpa carnuda da pasca e deu seu parecer depois de saborear por um momento.

É muito bom. Acho que deveríamos levar algumas dessas na viagem.

É uma boa idéia - disse Brian. — Mas agora, necessitamos de água, muita água.

A cabeça de Margaret doía intensamente e ela não conseguia raciocinar direito.

Preciso de água, não estou me sentindo muito bem.

Então, imediatamente depois de uma curva que a trilha fazia, eles puderam avistar uma cabana simples de paredes feitas de uma trama de raízes, estacas de madeira e o teto forrado com alguma espécie de palha grossa.

À medida que chegavam mais perto da cabana, sentiam um aroma forte de comida assando. Alguém morava ali, sem dúvida.

O alerta foi dado quando Rhuror sacou a espada e aproximou-se da entrada da casa de aparência rústica.

Ora, ora. Quem poderia imaginar. Pessoas tão nobres vieram visitar a minha humilde morada — disse uma voz esganiçada, fazendo Rhuror desviar a ponta de sua espada e Talemine vergar o seu arco e mirar rapidamente uma flecha para aquele lado.

O que viram foi uma senhora idosa, uma faogard, certamente deveria ter mais de oitenta anos, atravessando a clareira arrastando os pés e não dando nenhuma importância para as armas que estavam sendo apontadas para ela. A agitada senhora, adiantada em anos, vestia-se de maneira modesta, e o material de que eram feitas as suas vestes deveria ter sido conseguido ali mesmo naquele oásis.

Ela estacou e encarou a todos com ar sério.

O que estão olhando? Parece que viram um fantasma ou algum desses monstros das lendas.

Imediatamente, todos se lembraram do que Rhuror havia contado dias atrás sobre uma mulher que habitava as proximidades do lago.

A mulher idosa pôs-se mais uma vez em movimento e continuou falando.

Vamos, vamos, vocês devem estar com fome. A comida está quase pronta e acho que tenho o suficiente para todos - ela parou e pensou um pouco, voltou a falar como se conversasse com ela mesma. - Bem, talvez eu tenha que assar mais alguns peixes.

Na verdade, estamos à procura de água, senhora — disse Guillermo, apreensivo com o estado de Margaret.

Mas que bom ouvir outra voz que não seja a minha — disse ela com uma expressão feliz; as rugas em seu rosto se pronunciaram. — Por um momento pensei que vocês fossem alguma espécie de miragem. De vez em quando eu vejo alguma no meio desse deserto.

Ela fez mais uma pausa para raciocinar; sua memória não devia ser muito boa.

-Ah, sim, sobre a água. Receio que não disponho do bastante por aqui. Mas o lago tem água limpa e fresca e vocês podem ir até ele e pegar a quantidade que quiserem.

A garota que está conosco não passa bem — informou Brian, mostrando Margaret. - Pedimos apenas um pouco da sua água para ela.

Mas que velha desatenta eu sou - disse quando se deu conta da situação debilitada de Margaret. — Venha, minha querida, tenho uma jarra na cabana que vai saciar a sua sede. Uma jovem tão bonita como você não pode ficar desse jeito.

A anciã ofereceu um banco tosco para Margaret sentar-se e encheu um copo de madeira até a boca.

O interior da cabana era presumidamente muito modesto; alguns cestos e panelas pendiam do teto e das frágeis paredes, pendurados por ganchos. Ao lado de uma janela, dois peixes assavam sobre uma grelha. Tudo era muito simples e inofensivo.

Beba aos poucos, querida, ou você vai enjoar — disse com delicadeza. — Bebam vocês também - ela falou para os outros viajantes. - Não é muita coisa, mas dá para agüentar até que possam ir ao lago e se reabastecerem.

A velha se dirigiu a um canto dentro da cabana e mergulhou a jarra num pequeno barril com água.

Está aqui - disse ela. - Peguem o quanto desejarem. Peguem tudo.

A mulher arregalou os olhos e disse, deslocada.

Oh! Desculpem a minha falta de educação, devo estar ficando caduca. Não me apresentei ainda. Meu nome é Menagbel.

Sem tirar os olhos da simpática velhinha faogard, Rhuror encostou em Brian e Roger, e fez uma observação.

Se essa mulher for a mesma que meu pai e meu avô viram quando aqui estiveram, deve ser muito mais velha do que eu suponho. Ela já seria bem velha naquele tempo.

E se for a mesma? — perguntou Brian.

Nesse caso, ela ainda está viva sob o efeito de magia.

Eu sei o que vocês devem estar se perguntando - disse Menagbel com sorriso malicioso - o que uma velha decrépita está fazendo sozinha num oásis perdido no Canormut? Pois eu lhes digo, é o melhor lugar que conheço para se viver. Tenho comida, água e sossego de sobra, a combinação perfeita para uma pessoa na minha idade.

Aproveitando a deixa, Rhuror resolveu perguntar.

Faz muito tempo que meu pai esteve visitando o Zsenesh, e na época ele ainda era uma criança. Meu pai contava que havia uma mulher muito velha que morava aqui.

Depois de uma risada descontraída, Menagbel respondeu:

E você acha que aquela velha e eu somos a mesma pessoa. Você está certo, honrado faogard. Estou viva a muito mais tempo do que você pode presumir. São os peixes.

O que têm os peixes? — quis saber Marc, fixando o olhar nos que ainda assavam na grelha.

Com um semblante afável, Menagbel voltou-se para o garoto francês e explicou:

Acredito que esses peixes tenham propriedades mágicas que não permitem que eu deixe esse mundo. Mas pode ser a água do lago, também. Não sei direito o que acontece. Só sei que os peixes são deliciosos e a água sempre se conserva fresca mesmo nos dias mais quentes.

Erguendo as sobrancelhas como num susto, Menagbel disse.

Falando em peixes, tenho que assar mais alguns. Como serei uma boa anfi­triã se nem consigo oferecer uma modesta refeição aos meus convidados?

Pegando alguns peixes pelo rabo, Menagbel os temperou com destreza e depositou-os sobre a grelha; em seguida ela colocou os outros dois peixes, já assados, em uma travessa sobre a mesa que ficava do lado de fora da cabana.

Sempre faço as minhas refeições ao ar livre - disse ela, chamando com um aceno os novos amigos para a mesa. — É bom ficar olhando as pascas caírem das árvores. Como essas frutas há tanto tempo e ainda não me cansei delas.

Ela parou por um instante e voltou a tagarelar.

O que estão esperando? Avancem sobre a comida. Não está envenenada — ela mesma destrinchou um pedaço e comeu. — Há mais peixes no fogo, e se faltar, eu pesco mais no lago.

Eu vou provar um pouco - disse Margaret se sentindo melhor, os olhos cheios de vida novamente.

O peixe estava delicioso. Após décadas, ou talvez muito mais tempo prepa­rando aqueles petiscos, Menagbel provou, que de fato, sabia cozinhar muito bem.

Mesmo quando comia, Roger perscrutava através das árvores até o fundo do oásis. Ele desconfiava de tudo, até de uma velhinha encantadora e indefesa. Por outro lado, estar sempre alerta às vezes se tornava estressante mesmo para um homem como ele.

Talemine foi a única a não tocar na comida.

Depois de cochichar com Daniel, Margaret voltou-se para Menagbel e foi direta.

Madame, quantos anos tem?

Náo é nada educado perguntar a idade de uma senhora, ainda mais quando ela é bem mais velha do que a soma das idades de todos vocês.

Verdade? — perguntou a menina, os olhos redondos de espanto.

Quem sabe? - respondeu Menagbel sorrindo de forma enigmática.

Se ela vive a tanto tempo como diz, quero comer muitos peixes e beber muita água do lago — sussurrou Chester para Rafael.

E ficar enrugado como ela? Não, obrigado - desvencilhou-se Rafael. - Se um dia o feitiço acabasse você viraria poeira.

Menagbel lançou um olhar sinistro para os meninos.

Andei sobre esse deserto quando ele ainda era lama, logo depois que o lago deixou de existir. — Depois sorriu, zombeteira, os dentes amarelos e encavalados.

Ela náo pode ser tão velha assim - duvidou Marc, sussurrando para Daniel.

Rhuror não havia dito que o lago desapareceu há milhares de anos?

Foi o que ele disse - admitiu Daniel, sentindo-se como se estivesse olhando para Cleópatra ressuscitada.

Como veio parar aqui, madame Menagbel? - perguntou Daniel chegando mais perto.

Se vocês querem ouvir uma história sem graça, bem... então eu não me importo de contar.

Menagbel fechou os olhos procurando lembranças bem antigas, e começou:

Meus pais eram comerciantes quando eu ainda era muito, muito pequena, e sempre me levavam em suas andanças. Um dia se cansaram e vieram para esse maravilhoso oásis. Eles se fixaram por aqui e nunca mais saíram. Eu, que não conhecia ninguém além do deserto, acabei ficando e estou até hoje.

E nunca teve curiosidade de conhecer outros lugares? - perguntou Chester.

Se um dia tive, o tempo se encarregou de apagar da minha mente. Hoje só penso em cuidar das minhas palmeiras e pescar no lago. É o suficiente para quem não espera mais nada da vida.

Menagbel endireitou o corpo e falou contente:

Mas agora o que me interessa é tratar bem as visitas. Querem mais peixe?

A viagem até aqui nos deixou esgotados — disse Guillermo. — Só queremos recobrar as forças e seguir para o leste, senhora Menagbel.

Então descansem essa noite e amanhã vocês pegam a água no lago. Assim, todos estarão bem melhor para enfrentarem novamente o deserto — sugeriu Menagbel, gene­rosamente. — Não demora muito e já vai escurecer e se forem no lago agora, não conse­guirão ver o seu brilho prateado na luz da manhã. É deslumbrante!

Náo vejo outro jeito — disse Brian a Guillermo e Roger, abrindo os braços e se rendendo ao convite. — Uma noite no oásis será benéfico, principalmente para os garotos.

Ficamos por essa noite e amanhã seguimos bem cedo - concordou Rhuror.

Verei como está o drancto e limpar os odres para receberem a água.

Eu ajudo — disse Chester, seguindo o faogard por entre as palmeiras.

Com passos ágeis para a sua idade, Menagbel dirigiu-se até Talemine, parando bem à sua frente.

Você não é muito de conversa, mocinha. O seu olhar está amargo.

Só quero a água e ir embora daqui rapidamente, senhora — respondeu ela com frieza.

Você é muito sisuda para uma moça tão linda. Isso pode se tornar um pro­blema na sua vida. Um passeio no lago fará bem a você.

A minha vida e os meus problemas só competem a mim - respondeu com grosseria, encarando a mulher como se fosse agredi-la.

Oh! Perdoe-me, minha jovem. Só queria conversar um pouco e deixá-la à vontade — ergueu as mãos como se evitasse tocá-la.

Precisamos de mais peixe aqui — gritou Guillermo, como desculpa para interromper a discussão.

O espanhol se intrometeu e pediu.

A senhora poderia assar mais um pouco?

Como quiser — disse ela com brandura, e se afastou para a grelha.

O que houve, Talemine? Por que está agindo assim com ela? Qual é o problema? — perguntou Guillermo, discretamente para que Menagbel não os escutasse.

Não gosto dela. Não gosto do modo como ela faz uso das palavras.Tem alguma coisa nessa mulher que me soa com falsidade.

Ela só quer ser gentil conosco - disse Guillermo, tentando esfriar os ânimos.

Acho que você ficou tanto tempo lidando com guerreiros e armas que se esque­ceu que as pessoas podem ser amáveis de vez em quando.

Ela não é amável. É dissimulada. E por trás de cada palavra há uma outra intenção - disse com convicção, os olhos vermelhos como ferro em brasa, e saiu irritada.

Não vai comer o peixe? — perguntou numa última tentativa.

Prefiro as nossas raízes secas — respondeu decidida, sem olhar para trás. Sem saber como proceder, Guillermo deu de ombros e retornou ao peixe. Após tirarem o resto da areia dos odres, Rhuror e Chester voltaram à cabana.

Rhuror decidiu passar a noite com o drancto para evitar uma nova sabotagem.

A noite no oásis não era fria como no deserto, a ponto de não haver necessi­dade de usarem os cobertores para dormir.

Dias frescos e noites aconchegantes. Sem dúvida, alguma espécie de magia poderosa envolvia o oásis.

Passaram uma noite sossegada em frente à cabana e só acordaram quando os primeiros pássaros começaram a chilrear, iniciando uma nova manhã.

Desejando um bom dia, Menagbel trouxe um creme de pasca para o desjejum.

Essa é outra de minhas especialidades culinárias — disse ela. — Aposto que vão querer repetir quando comerem essa iguaria.

E mais uma vez, Menagbel náo desapontou. O creme de pasca estava real­mente delicioso, mas foi recusado por Talemine que se limitou a comer o que havia nos alforjes.

Terminada a refeição, Menagbel avisou enquanto recolhia as bandejas.

Esse é um bom momento para uma visita ao Zsenesh. O sol ainda não está alto e o efeito da luz da manhã sobre o lago é maravilhoso.

O drancto não passa pelo oásis sem derrubar muitas árvores... - tentou expli­car Rhuror.

Contorne pelo lado leste e há uma passagem larga o bastante para o seu animalzinho - brincou ela.

A senhora vem com a gente? - perguntou Brian.

O lago não é novidade pra mim, e posso visitá-lo quando bem entender. Mas vocês se surpreenderão quando o virem - disse Menagbel, esfregando as mãos galhudas como uma árvore velha no outono.

Margaret, movida pelo incontrolável desejo de conhecer o lago, pulou imediatamente no seu cavalo.

Não se apresse mana, a água do lago não vai evaporar - disse Daniel, ainda apertando a sela.

Você é muito mole, Daniel. Não ouviu o que Menagbel disse? A essa hora o Zsenesh está muito mais bonito e eu não quero perder essa oportunidade por nada.

Sigam por ali — disse Menagbel, apontando para um lado onde a trilha se perdia. — O Zsenesh fica a quase dois pharteions em linha reta.

Isso dá cerca de três quilômetros — calculou Roger, de cabeça.

Talemine e Guillermo não montaram em seus gifenontes.

O que vocês dois estão esperando? — perguntou Brian.

Vamos ficar e esperar vocês voltarem — avisou Guillermo. — Não temos vontade de ver nenhum lago.

Como pode ser isso? - protestou Menagbel. - O lago mais fascinante que existe e vocês não querem dar uma olhada?

Ficaremos aqui mesmo, senhora — disse Talemine, definitivamente.

Rhuror puxou a filha a um canto e perguntou num sussurro com a sua voz grave.

O que vocês pretendem?

Ficar de olho nessa bruxa. Se ela tentar nos enganar, minha espada dará um fim à sua longevidade.

Filha, cuidado para não cometer um engano.

Ò mesmo digo pra você, pai - advertiu com gravidade.

A caravana seguiu na trilha estreita até saírem numa zona de deserto circun­dada por milhares de palmeiras. Rhuror e seu drancto levariam mais tempo dando a volta por fora.

Foi então que perceberam que o oásis formava um enorme círculo que rodeava o lago distante.

Não havia calor e o sol não ardia na pele. Era como passear em um parque em plena primavera.

Viram, ao longe, um brilho intenso vindo do solo. O lago, ainda longínquo, resplandecia quando refletia os raios da manhã. Menagbel acertou quando disse que era encantador admirar o Zsenesh ao nascer do sol.

Quanto mais avançavam, encontravam pedrinhas cintilantes espalhadas por todos os lados, pedrinhas de todas as formas: esféricas, ovais, circulares e longilíneas. Apeando por um momento, Brian buscou uma e a examinou com cuidado, girando-a nas pontas dos dedos.

É vidro — disse ele, passando a amostra para Marc que a olhou contra a luz.

Mais à frente, os pequenos fragmentos de vidro se tornavam cada vez maiores, do tamanho de pratos, até que, aos poucos, toda a superfície que circundava o lago era feita de uma peça inteiriça de vidro. O chão onde pisavam era todo de vidro espesso e compacto.

O que será que aconteceu aqui? - perguntou Daniel ao professor de geologia.

Não posso dizer com certeza, mas para se produzir vidro são necessárias algumas condições, como areia submetida a altas temperaturas, algo em torno de 1250 graus Celsius; provavelmente bem mais, para que toda essa área tenha sido transformada em vidro com tamanha espessura, como vocês podem ver. Eu acredito que, em épocas remotas, um calor avassalador se abateu sobre essa região.Uma gigantesca explosão, talvez. Quem sabe, foi isso que criou o Zsenesh? — teorizou Brian, incendiando a imaginação de Daniel e seus jovens amigos.

De uma passagem larga por entre as palmeiras, Rhuror e seu drancto surgiam para se reunir ao grupo.

Os cascos das montarias tocavam instáveis no solo de vidro escorregadio, quando Chester alertou.

Cavalguem com cautela ou teremos muitos tombos e ossos quebrados antes que cheguemos ao lago.

Ele mesmo quase foi ao chão quando uma pata traseira de seu cavalo deslizou mais do que devia.

Nem o peso excessivo do drancto abalava o duríssimo assoalho de vidro que oferecia aos visitantes belas cintilações ao sol matinal.

Enfim, chegaram à beira do lago que brilhava como se uma forte luz saísse de suas profundezas para desafiar até o esplendor do próprio sol.

Apenas uma torre, também feita de vidro, erguendo-se na margem oposta do lago e contornada por uma escada em espiral da base até o alto da estrutura, quebrava a monotonia da paisagem. No topo havia uma escultura transparente pouco maior que um cavalo tigrado das tropas faogards; lembrava um dragão de olhos saltados, as asas fechadas ao longo do dorso e o rabo estendido ao lado do corpo sólido. O movimento harmonioso da água refletido na estrutura à beira do Zsenesh dava a impressão de que o dragão se movia.

Sabe mais coisas sobre esse lago, Rhuror? - perguntou Brian, ainda muito curioso como um bom professor que era.

Existem muitas versões sobre a existência do Zsenesh. Quem sabe qual é a verdadeira? - O faogard fez uma pausa para pensar e logo prosseguiu enquanto descia do seu gigante de quatro patas. - Uma das mais famosas é a que narra a vingança que os deuses irmãos desferiram sobre Arkopromis quando ele evaporou o antigo lago que aqui existia. A lenda fala de uma gigantesca explosão, assistida com perplexidade por toda a Cadecália, que sepultou uma das mais fiéis criaturas do deus maligno. E o Zsenesh foi a promessa cumprida de que sempre existiria uma porção de água, por menor que fosse, para compensar o infortúnio que fez o mar descomunal transformar-se em deserto e lembrar que Arkopromis jamais seria perdoado pela morte dos próprios pais.

Em movimentos sincronizados e contínuos, cardumes reluzentes de peixes prateados nadavam indiferentes na água tranqüila. Os viajantes ficaram imóveis por alguns instantes diante de tanta beleza.

Com olhos atentos de geólogo, Brian tentou enxergar o fundo, porém, a grande quantidade de peixes atrapalhava a visão.

O leito do lago também parece ser feito de vidro. Todo o lago é uma extensa peça côncava de vidro puro como eu nunca havia visto em toda a minha vida — disse, impressionado.

Rafael ajoelhou-se e tocou a água limpíssima, produzindo pequenas ondula­ções, espantando alguns peixes que nadavam por perto.

É fresca como disse Menagbel. Guillermo e Talemine deviam estar aqui - disse, a mão em concha levando um pouco de água à boca.

Sem avisar, Daniel sentou-se no chão liso e tirou as botas, e antes que alguém tivesse a chance de perguntar o que ele estava fazendo, o rapaz se atirou no lago, espa­lhando água por toda parte. Um esguicho saiu de sua boca antes que começasse a falar.

Olhe, professor Roger! — disse ele, nadando de costas. — Não esqueci o que o senhor me ensinou nas aulas de natação.

Com a audácia e a descontração de sua juventude, Daniel deslizava pela superfície do Zsenesh como se toda a felicidade do mundo estivesse nele.

Então, Daniel interrompeu as braçadas descontraídas e provocou os companheiros.

O que estão esperando? Pulem logo. Nunca mais terão outra oportunidade.

De uma só vez, Marc, Rafael e Chester se jogaram estrepitosamente.

Está com medo da água, mana? - disse Daniel em tom de desafio.

Eu já vou, seu bobo. Dê-me um minuto - disse ela, enquanto tentava se livrar das botas.

No instante em que Margaret fez menção para pular, foi segurada pelo braço por Roger. As feições dele se alteraram de repente ao perceber um movimento estranho no lago. Os peixes dispersaram como se fugissem de algo assustador.

Saiam da água! - disse ele, erguendo a voz. - Saiam da água, depressa! - ordenou, gritando, ao pressentir o perigo.

O que Roger viu foi algo disforme de coloração cinzenta emergindo do fundo do lago em direção aos garotos.

Mesmo sem entenderem o que estava acontecendo, os quatro rapazes puseram- se a nadar com toda a força que os seus braços, pernas e fôlegos podiam agüentar.

Os que estavam na margem do lago passaram a berrar para que nadassem mais e mais rápido.

A mão de Brian se esticou para ajudar Marc a subir de volta. A margem lisa e molhada fez com que o menino francês escorregasse antes de ficar a salvo.

Rhuror agarrou Rafael e Chester de uma só vez e os tirou da água com tanto ímpeto, que quase os dois meninos tiveram seus braços deslocados.

No entanto, Daniel não conseguiu chegar a tempo; o espectro marinho já havia escolhido a sua presa, aquela que se encontrava mais afastada da margem. A criatura sombria envolveu primeiramente as pernas de Daniel, depois seu tronco e por último seu pescoço, para que ele não tivesse nenhuma possibilidade de escapar. Foi então que a criatura se revelou: tinha um rosto feminino coberto por escamas grosseiras; os cabelos longos e louros, que causavam um inusitado contraste com o ser de pele cinza, se espalhavam pela água ondulante; os olhos verdes brilhavam estranhamente como se películas transparentes os cobrissem; seus lábios tinham o formato circular igualmente a boca de um copo, com dezenas de pequenos dentes triangulares e afia­dos projetando-se para fora; nas laterais do pescoço, guelras do tamanho de orelhas se abriam e se fechavam constantemente; no lugar de braços, havia tentáculos com ventosas que aderiam ao corpo imobilizado de Daniel; as mãos da criatura termina­vam em dedos tentaculares que se torciam, retorciam e enrodilhavam no pescoço e sobre o rosto do garoto que tinha os olhos arregalados de terror; mesmo submersos, era possível enxergar quatro tentáculos que o ser asqueroso serpenteava da cintura para baixo. Uma mistura irreal de peixe, polvo e gente.

Daniel! — sua irmã gritou, horrorizada.

Num salto ágil, Roger se atirou no lago e antes que pudesse fazer alguma coisa, o ser bizarro ameaçou.

Não tentem socorrer o menino ou ele vai comigo para o fundo do lago — disse num aterrorizante tom de ameaça.

Apesar da aparência repugnante, a voz feminina do monstro era suave aos ouvidos.

O que você quer? - perguntou Brian, optando por dialogar.

Só quero que a menina venha a mim. Prometo que não vou fazer nenhum mal a ela - disse com mansidão, os olhos verdes como esmeralda grudados em Margaret.

Não confio em você. Por que quer a garota? — insistiu Brian, ganhando tempo para pensar numa solução que aparentemente não existia.

Quero conversar um pouco com essa linda menina. Tenho um presente que ela vai adorar — a voz soava ardilosamente.

É óbvio que essa coisa está mentindo - sussurrou Rhuror para Chester que ofegava mais de nervoso do que de cansaço.

Solte o garoto e ela conversa com você — propôs Brian, pondo a mão sobre o ombro de Margaret.

Minha paciência está se esgotando, me deem a menina — irritou-se o ser aquático.

Não se você não soltar o garoto - retrucou Brian, sem saber mais o que fazer.

A menina! — exigiu, envolvendo Daniel, os poderosos tentáculos apertando o seu corpo trêmulo.

A cabeça de Daniel foi empurrada para baixo e ele começou a se debater em seu desespero para respirar.

Se não entregarem a menina, o garoto vai morrer - disse serenamente, a água a sua volta agitada pelo sofrimento de Daniel se afogando.

Roger desceu no lago e tentou nadar para perto sem que a aberração percebesse.

Não ouse se aproximar, você não é mais rápido do que eu - ela avisou, mantendo Daniel submerso.

Desesperada e pegando todos de surpresa, Margaret correu e se jogou no lago, nadando para Daniel.

Os pegajosos tentáculos libertaram Daniel e flutuaram em direção à Margaret.

Nadando como nunca, Roger buscou Margaret; Rhuror e Brian também pularam no lago. Mas foi inútil. A coisa se apoderou da garota e mergulhou nas profundezas; os cabelos ruivos de Margaret foi a última coisa que viram dela.

Meg! Meg! - gritava Daniel, após recuperar o fôlego.

Daniel não parava de se acusar pelo que aconteceu com a irmã.

A culpa foi minha — falava amargurado. - Minha irmãzinha foi levada. — Olhava para o lago, os peixes prateados de volta como se nada tivesse acontecido.

Uma luz violácea explodiu na profundidade e desapareceu tão rapidamente como havia surgido.

Segundos depois, no lado oposto do Zsenesh, alguém nadava velozmente buscando a margem.

Roger e Brian correram para os cavalos, mas o piso de vidro dificultava o movimento dos animais em circundar o lago, dando tempo de quem quer que fosse que estivesse nadando, saísse da água e exibisse suas formas. Uma bela mulher nua de cabelos louros foi o que se viu correndo para a estátua do dragão de vidro. Ao toque da mão da mulher, a escultura ganhou vida e se encolheu para que ela pudesse subir em suas costas, as asas se abriram e o animal, soltando um grito como dois pedaços de vidro que se atritam, lançou-se aos céus, refletindo a luz do sol. Uma flecha de Rhuror foi atirada, mas perdeu o alvo que voava longe.

Escapou! A desgraçada escapou! - lamentou-se Roger com raiva.

Quem era ela, Rhuror? - perguntou Brian, observando o dragão brilhante quase sumindo no infinito.

Não tenho certeza. Mas ela usou a pequena Margaret para se livrar de um feitiço muito forte.

Vários minutos se passaram e Daniel olhava aflito para a água.

Minha irmã, não voltou ainda. Ela se afogou? - perguntou a esmo, os olhos marejados e o forte sentimento de culpa.

Iremos encontrá-la, Daniel - disse Rafael para manter as esperanças.

Os peixes fugiram novamente da superfície do Zsenesh. Era o prenúncio de que alguma coisa fora do comum estava para acontecer. O vulto cinza, os movimentos sinuosos por debaixo d'água, os cabelos ruivos brotando na superfície.

Meu... Deus! - exclamou Marc, quase sem fala. - É a Margaret?

A pele cinza e escamosa, os tentáculos que não paravam de se mover; Margaret havia herdado a maldição que a transformara num monstro repugnante. Ela baixou os olhos, envergonhada da própria aparência.

Fique calma, Margaret — disse Brian para tranqüilizar a menina. - Vamos consertar tudo.

O que faremos agora, professor? - perguntou Rafael a Brian. - Como ela vai voltar ao normal?

Deixe-me raciocinar um pouco. - Brian coçou a cabeça e lançou um olhar preocupado para Rhuror e Roger que devolveram olhares de quem não sabia o que fazer.

Menagbel! - exclamou Rafael, propondo uma solução. - Se uma maldição deixou Margaret assim, então essa mesma maldição talvez possa ser passada pra frente.

Muito bom, garoto! - disse Rhuror, imediatamente entendendo a idéia de Rafael, agarrando o menino pelos ombros, com grande aprovação. - Se aquela mulher fez aquilo para Margaret, a nossa menina terá que fazer o mesmo com a bruxa velha.

Menagbel! - vociferou Roger, pegando as rédeas do seu gifenonte. — Vou caçar uma impostora e já volto.

-Traga-a viva! — gritou Brian, que conhecia perfeitamente o temperamento explo­sivo de Roger que era capaz de estrangular um estivador com as próprias mãos quando perdia a paciência. - O que estou fazendo aqui? - Brian caiu em si. - Vou atrás dele.

Rhuror voltou-se para o lago, para Margaret. Os olhos azuis da menina o contemplavam com incalculável tristeza.

Chegue mais para perto, pequena Margaret — pediu o guerreiro como um pai que acolhe a filha.

Inibida, Margaret flutuou lentamente até à margem. O guerreiro esticou o braço para ela.

Vamos, toque a minha mão - pediu, fazendo o que estava ao seu alcance para que Margaret não se sentisse rejeitada.

A garota estendeu um dos tentáculos e as ventosas se prenderam a pele do guerreiro. Ela recuou enojada de si mesma e afastou-se para o meio do lago... e ficou ali.

Quando andava de um lado para outro, Daniel deixava os amigos nervosos. Mas quem seria capaz de censurá-lo numa situação como aquela? Ele esfregava as mãos na cabeça, bufava e suspirava. Culpa, culpa, culpa, era só o que ele era capaz de sentir.

-Ajudem-me a encher os odres para ganharmos tempo - disse Rhuror, levantando-se. - Quero sair desse maldito lugar logo que isso tudo terminar.

Irem embora? E se não conseguirem desfazer a maldição do lago? Ese me deixarem aqui para sempre, sozinha e com esse aspecto horrível? Até estão pegando a água de que precisam. Eles podem muito bem ir embora sem mim. E por que ficariam? Somente para paparicar um monstro o qual me tornei? Será que meu irmão me abandonaria?

Tais pensamentos despedaçavam o coração de Margaret, empurrando-a com força para a sua profunda depressão.

Inesperadamente, ouviram um som de vidro dobrando e se quebrando. E no mesmo lugar onde havia o dragão de vidro, um outro igual nasceu e permaneceu ali, estático, com o olhar preso no vazio como se aguardasse o tempo que fosse necessário para servir ao seu propósito. Aquele fato aumentou as esperanças de Rhuror e dos meninos, pois era um sinal de que a maldição poderia ser passada de um corpo para outro e mais outro, indefinidamente.

Os dois cavaleiros entraram na clareira, parando subitamente em frente à cabana.

O que deu errado? - questionou Talemine, correndo até eles, a sensibilidade aguçada da faogard viu a ansiedade nos olhos de Roger e Brian.

Onde está Menagbel? — perguntou Roger, girando o cavalo, olhando em todas as direções.

Estava aqui até a pouco, no interior da cabana — informou Guillermo. — Nota­mos que estava tudo muito quieto e quando fomos verificar, Menagbel havia sumido.

Ela não pode ter se evaporado no ar, ou pode? — perguntou Roger, entrando na cabana para conseguir, quem sabe, uma pista.

As coisas extraordinárias simplesmente acontecem nesse mundo fantástico. Esqueceu, Roger? — ressaltou Brian.

Brian deu detalhes a Guillermo e Talemine do triste ocorrido com Margaret. E da urgência em localizar Menagbel.

Eu avisei! - despejou Talemine. - Não compreendo como vocês acreditaram na docilidade fingida daquela bruxa.

Fomos tolos em não levar a sério os seus sentimentos — manifestou-se Guillermo, arrependido. — Mas agora só nos resta acharmos rapidamente uma solução.

Venham ver isso aqui — chamou Roger, inconformado com o desaparecimento de Menagbel, ele havia vasculhado cada pedaço da casa de madeira.

Uma das paredes no fundo da casa era falsa e se abria para fora; foi por ali que Menagbel fugiu. Com raciocínio rápido, Roger deduziu:

Todo esse tempo e estávamos sendo manipulados por Menagbel — disse, se enfurecendo por ter sido feito de idiota.

Com um pontapé, Roger colocou a parede de madeira abaixo.

Se Menagbel não foi levada por um dragão de vidro ou coisa parecida, não deve estar longe - disse ele, saindo para a floresta de palmeiras.

A caçada recomeçou.

Galoparam por entre as árvores, rastreando alguma pista da pérfida Menagbel. Os vestígios levavam para dentro do oásis onde a vegetação se reduzia indo dar lugar novamente ao terreno arenoso. Dali por diante, pequenas pegadas afundavam na areia e seguiam na direção do lago Zsenesh.

Por que ela fugiria para o lago? - refletiu Guillermo. - Não conseguirá se esconder em terreno descampado.

Então vamos descobrir o motivo — disse Roger, determinado, incitando o seu cavalo a arrancar para iniciar a perseguição.

Menagbel se reduzia a um pontinho no meio da área aberta. Os passos curtos, mas ligeiros, não eram páreo para as vigorosas patas dos gifenontes. Num espaço curto de tempo ela foi cercada pelos quatro cavaleiros.

Antes mesmo de seu cavalo parar, Talemine pulou e sacou sua espada, pressionando-a contra o ventre da velha assustada, a mão da faogard apertava a garganta da foragida.

Sabe o que faço com animais como você? — rosnou, pronta para atravessar o aço da espada.

Espere, Talemine! — disse Guillermo, segurando a lâmina para evitar que a guerreira cometesse um ato impensado. — Não podemos matá-la... você sabe.

A recomendação de Guillermo conteve o impulso da furiosa faogard.

Roger agarrou o braço murcho e enrugado de Menagbel e a obrigou a montar em sua garupa.

Queremos que veja uma coisa no lago, velha traiçoeira.

Eu não sei de nada — defendeu-se ela, a voz vacilante e amedrontada. - Deixem-me pegar alguns peixes no lago. Desejo preparar a melhor ceia que vocês já tiveram em muitos anos.

Você terá todo o tempo que quiser para pegá-los - disse Roger com sarcasmo.

O último odre cheio de água acabara de ser fixado ao drancto.

Rhuror voltou-se para os cavaleiros que se aproximavam com prudente velocidade a fim de evitarem escorregões no piso de vidro.

A respiração de Daniel se prendeu e ele relaxou um pouco quando viu que Menagbel estava com eles.

Com uma brutalidade contida, Roger desceu Menagbel da montaria e a con­duziu pelo braço à beira do Zsenesh.

Onde ela está? Onde ela está? — perguntou Menagbel com grande nervosismo.

Se refere a mulher que vivia no lago? Pois sua amiga voou na estátua de vidro antes que pudéssemos pegá-la - disse Brian. — A propósito, o bicho voltou?

Não, professor Brian, esse nasceu no lugar do anterior - informou Chester.

Está vendo aquilo? - disse Roger, se referindo a Margaret, desolada, flutuando no meio do lago. - Resolva!

Não sei do que está falando - disse ela, evasivamente. - O que é aquilo? Um monstro? Matem! Matem antes que essa coisa horrorosa nos ataque.

Se tem alguém que merece morrer é você, Menagbel - disse Talemine, sacando novamente a espada. - Vou melhorar sua memória, velha louca.

É melhor você colaborar - aconselhou Guillermo com voz calma e premeditada. - Eu não pretendo impedi-la novamente de usar essa lâmina afiada no seu pescoço.

Fale de uma vez, Menagbel - Rhuror ordenou, os olhos fixos como um tigre a espreitar a presa. - Quem é você, e quem é a mulher que deixou a pequena Meg com aquela aparência.

Sem ver uma possibilidade de escapatória, Menagbel suspirou profundamente e começou a balbuciar a sua história.

Faz muito tempo, tempo demais para que a minha memória devolva tudo com nitidez. Eu era muito jovem quando o enorme lago se evaporou, quando a gigantesca nuvem negra levou a água para longe, e para sempre. Muitas famílias que habitavam as suas margens foram embora, ou de medo da ira dos deuses ou porque toda a região se tornara inabitável sem ter o que pescar para o seu sustento. Os barcos perderam sua utilidade e a imensidão de peixes mortos exalava uma podridão que se espalhou por tudo, trazendo doenças e morte. Meus pais resol­veram ficar até decidirem para onde ir, e nesse meio tempo, durante as noites, eu ficava olhando para o lago extinto e ficava curiosa pela estranha luz avermelhada que jorrava lá bem longe, perdida no horizonte do leito seco. - Menagbel fez uma pausa e sorriu discretamente, como se gostasse de lembrar da sua juventude. — Então, tomei coragem e parti para desvendar a origem do clarão que brotava todas as noites do Canormut. Eu pisava na terra, ainda úmida, e bebia da água onde meus pés afundavam. O cheiro era quase insuportável, mas aos poucos, eu fui me acostumando a ele, e quando a comida que eu levava acabou, tive que me alimen­tar dos peixes decompostos que encontrava pela frente. Não sei como consegui sobreviver naquelas condições. Acho que a magia do Zsenesh não deixou que eu morresse, pois tinha planos para mim. Andei tantos dias, que até perdi a conta de quanto tempo vaguei pelo Canormut buscando a origem do halo avermelhado que resplandecia maravilhosamente. No entanto, em nenhum momento eu desisti de querer encontrar o que produzia luz tão fascinante. - Os olhos de Menagbel para­lisaram como se ela visse nitidamente outra vez o que acontecera a milênios. — E finalmente, meu coração acelerou quando me deparei com as palmeiras altas do oásis e me emocionei ao vê-lo pela primeira vez: o Zsenesh.

Acho que ela está falando a verdade pela primeira vez desde a nossa chegada

disse Rafael a Marc.

Ela prosseguiu com sua história.

Os peixes prateados eram lindos. Peixes e pascas para comer num paraíso só meu. Voltaria e pegaria minha família e nunca mais passaríamos fome. - O seu rosto mudou para uma expressão angustiante quando ela voltou a falar: — Mas algo inesperado e terrível aconteceu quando eu me debrucei na beira do lago para pegar o meu primeiro peixe fresco depois de comer carne podre por tantos e tantos dias. Um vulto cinzento surgiu do fundo do lago e tentáculos chicotearam no ar tentando agarrar meu braço, mas por sorte eu escapei. O paraíso havia se tornado o mais pavoroso dos infernos. Klovanira era o seu nome. Por muito tempo a feiti­ceira amaldiçoada tentou me convencer a trocar de lugar com ela. Eu sempre me recusava, até que fizemos um acordo. Klovanira me possibilitaria viver eternamente deixando comer os seus peixes mágicos, mas só me daria a juventude eterna se eu lhe entregasse uma mulher para assumir o seu monstruoso lugar no lago. Por coin­cidência ou vontade dos deuses, nenhuma mulher veio ao Zsenesh desde aquele dia, milhares de anos no passado.

De onde surgiu essa tal Klovanira? — quis saber Guillermo.

Ela era a criatura mais querida de Arkopromis, e foi um duro golpe para ele quando Klovanira caiu no poderoso encantamento do lago. Mas ela me enganou e fugiu sem me devolver a juventude — a expressão de Menagbel transformou-se em aflição. - Eu não quero morrer, me ajudem. Convençam a menina a me deixar jovem de novo. Ela consegue. A maldição lhe concede esse poder - ela passou a exibir um sorriso frenético. - E caso nenhum de vocês queira ficar com ela, eu prometo cuidar dela indefinidamente.

Se acalme, Menagbel — disse Roger, com a voz serena. - Você viverá por muitos milênios.

Obrigada. Sou muito agradecida, senhor. Eu sabia que vocês não eram rancorosos e entenderiam as minhas sinceras razões — disse, aliviada, as mãos ossudas, antes tensas, se descontraíram.

-Você não entendeu, Menagbel — insistiu Roger, os olhos transmitindo ameaça.

Eu disse que você continuará vivendo, mas não como está achando que vai.

Roger lançou um olhar decidido para Margaret enquanto segurava Menagbel firme pelo braço.

Meg! Preste bastante atenção no que vou dizer agora! — ele arrastou a velha até a borda do Zsenesh. — Você deve saber como reverter essa... magia. Acha que pode?

Num acanhado balançar de cabeça, Margaret assentiu.

Então faça exatamente como a feiticeira fez com você - orientou o professor.

Aproximando-se, Rhuror grudou suas mãos fortes em Menagbel.

Eu quero ter a honra de fazer isso - disse o guerreiro.

O que vai fazer? - perguntou Menagbel, quando finalmente entendeu a intenção do faogard. - Não! Não! Solte-me! Ponha-me no chão! Não pode fazer isso comigo! - Desesperou-se.

Rhuror ergueu Menagbel acima da cabeça como se ela fosse um boneco de pano e a atirou no lago.

-Agora, Meg! - estimulou Roger, gritando. - Vá até ela e puxe-a para o fundo. Você sabe o que fazer. Vai, menina!

Entrando em um desespero convulsivo, Menagbel gritava e rogava por piedade.

Margaret hesitou por um momento, mas o seu temperamento atirado falou mais alto. Os tentáculos enrolaram-se no corpo carcomido de Menagbel que afun­dou debatendo-se e implorando.

Dois minutos que pareceram séculos, longos minutos em que ninguém sabia o que iria acontecer exatamente. Daniel torcia ansiosamente e fazia todo o tipo de promessas caso desse certo.

Vamos, garota - murmurou Guillermo —, faça alguma coisa.

Então, aconteceu mais uma vez. O fundo do lago brilhou e ficou calmo novamente.

Mais demora. Mais ansiedade.

Ela está vindo! - gritou Marc, inclinado sobre o lago, as mãos apoiadas nos joelhos, os olhos atentos. — Quero dizer, acho que é ela, tem que ser.

E era mesmo. Margaret surgiu na superfície, os pulmões quase estourando. Ela parou um pouco para recobrar o fôlego.

Todos os seus amigos gritavam incentivando para que ela nadasse logo até a margem.

Nade, Meg! Nade para nós! - gritava Brian, todos gritavam palavras de estímulo.

Se Margaret não chegasse em tempo de evitar o abraço de Menagbel, tudo estaria perdido.

Os olhos de Daniel se arregalaram quando ele viu que do fundo, uma indesejada imagem disforme se aproximava de sua irmã. Talemine também percebeu e empunhou seu arco para enterrar uma flecha na monstruosidade quando ela chegasse à tona. Por pouco tentáculos não tocaram Margaret, mas a mão de Guillermo foi mais rápida tirando-a da água.

Quase que a velhota te pegou — disse Guillermo, abraçado a Margaret, as roupas da menina em farrapos. Um cobertor foi jogado sobre ela.

Depois de tanta tensão, Margaret começou a chorar e falar com a voz entrecortada.

Tive medo... que me deixassem aqui. — As lágrimas se misturavam ao rosto molhado. - Quando vi Rhuror... abastecendo os odres com água, pensei que... fos­sem embora sem mim — sua respiração era curta e rápida, no ritmo do seu coração acelerado.

Talemine pensou ter visto os olhos de Rhuror marejarem. A guerreira piscou várias vezes como se quisesse conter uma lágrima, e ajoelhou-se ao lado de Margaret.

Jamais faríamos isso, pequena Meg. Não sairíamos daqui sem você. E foi isso que fizemos, não foi?

Ela concordou, ainda soluçando.

Menagbel, em sua nova forma repugnante, tentava desesperadamente convencer que atendessem as suas súplicas absurdas.

Devolvam a menina! Eu imploro! Não quero viver assim como um monstro solitário — ela deslizava freneticamente seus tentáculos na borda lisa do lago.

Você não está só, Menagbel — lembrou Rhuror com sarcasmo. - Tem os seus peixes para lhe fazer companhia.

Ela está na minha mira, pai — disse Talemine, o arco vergado ao máximo com uma flecha apontada para a cabeça da coisa em que Menagbel havia se metamorfoseado.

Não, filha. É melhor que a deixemos viver para cumprir o seu castigo. De qualquer modo, duvido que uma flecha seja suficiente para destruir uma maldição tão terrível imposta pelos deuses.

Mas ela pode fazer outra vítima, um dia... - disse Talemine, levantando uma hipótese plausível.

Me encarregarei de avisar toda a Cadecália sobre a verdadeira história do Zsenesh. As mulheres sentirão tamanho pavor que jamais se aproximarão desse lago maldito - previu o guerreiro, subindo no seu imponente drancto. — A grande cordilheira do Malthar nos aguarda! - bradou com voz firme, alinhando o drancto para nordeste.

Sob o som aterrador dos urros enlouquecidos de Menagbel, o Zsenesh havia sido deixado para trás, e o que restaria seriam apenas as lembranças marcantes do monstro aquático e a maldição do lago.

 

                                     A Montanha Rachada

Com o passar dos dias, a cordilheira de Malthar se agigantava aos olhos dos viajantes.

O Canormut náo era mais o deserto tórrido que quase pôs fim à expedição, recebendo as primeiras brisas que desciam pelas encostas cobertas de neve, e os sinais de vegetação rasteira que surgiam no meio da areia fina.

O assunto das conversas, por muitas vezes, foi os maus bocados que Margaret havia enfrentado no Zsenesh.

Conte mais uma vez, Meg — pedia Rafael. — O que aconteceu no fundo do lago quando aquela feiticeira te agarrou?

Ela suspirou como que enfastiada de falar sobre a mesma história tantas vezes. Por outro lado, adorava ser o centro das atenções. E descrevia.

Lembro que fui levada até uma entrada de uma caverna de vidro submersa, bem no fundo. No seu interior, senti meu corpo se contorcer como se todos os meus ossos se quebrassem - ela girava as mãos e os braços com dramaticidade. — A minha pele e os meus músculos pareciam virar do avesso, e aí, uma forte luz blo­queou minha visão. Acho que fiquei desacordada por alguns segundos, minutos talvez. Quando dei por mim, senti que podia respirar debaixo da água, e percebi o que havia acontecido.

Como conseguiu passar a maldição para Menagbel? — perguntou Marc. — Como você sabia o que deveria fazer?

Isso eu não sei responder, mas quando aconteceu, senti como se estivesse me livrando de uma apertada roupa de borracha. Quando a luz ofuscou novamente os meus olhos e não conseguia mais respirar lá embaixo, vi que era hora de subir.

Sabe, mana — disse Daniel em tom de comentário. - Sou obrigado a admitir que você estava mais bonitinha daquele jeito.

Ela deu um risinho de desprezo e devolveu:

Pois você náo fica bonitinho de jeito nenhum, seu feioso. — A resposta mordaz arrancou uma forte gargalhada de Rhuror que já considerava Margaret como a sua terceira filha.

Na penúltima manhã, antes que atingissem a base da cordilheira, a caravana acordou muito cedo; comeram pascas e beberam chá escuro como desjejum e as montarias pisaram, após muito tempo de caminhada sobre terreno movediço, a densa vegetação que antecedia o Malthar. Foram recebidos por pássaros multicoloridos e insetos estranhos que habitavam as folhas viçosas das árvores graúdas. O ar estava úmido e revigorante. Não havia trilhas naquele percurso, pois a floresta apa­gava rapidamente qualquer vestígio dos raros andarilhos que por ali transitavam. Outros caminhos eram mais utilizados para se transpor o Malthar, principalmente por serem menos perigosos.

A sensação de se confrontar com uma cordilheira daquelas proporções era única, mesmo para experientes montanhistas. De frente para o Malthar, o obser­vador que girasse a cabeça para a direita ou para a esquerda, teria a impressão de que a altíssima muralha de pedra contornava o planeta, dividindo aquele mundo em duas partes.

O sol do final da tarde tingia com uma tonalidade rosada as extensas capas de neve que cobriam as montanhas.

Enquanto cavalgava, Guillermo inspecionava atentamente as encostas íngremes da cordilheira e imaginava que Rhuror soubesse como eles poderiam chegar do outro lado do continente. Ele levantou uma questão.

Como você espera cruzar essas montanhas enormes?

Conheço duas formas de fazê-lo — disse o faogard, enquanto fazia o drancto cessar a marcha. Rhuror saltou do animal e passou a expor as suas idéias. — Fica­remos nesse descampado por hoje. Mas respondendo a sua pergunta, existem dois meios de se chegar até o outro lado do Malthar a partir daqui. Um deles é o mais óbvio: escalar os rochedos, subindo e descendo as encostas, enfrentando o frio, os perigos de avalanche e as quedas em fendas profundas ocultadas pela neve. — Ele fez o drancto se deitar para que os apetrechos de acampamento pudessem ser alcança­dos, então prosseguiu: — Se adotarmos esse caminho, retardaremos a nossa viagem, inevitavelmente. Mas existe uma outra opção. Prestem bem atenção naquela mon­tanha bem a nossa frente.

O que tem ela demais? - perguntou Marc, que não via diferença entre as montanhas, como se todas fossem uma só.

Aquela é a montanha Vorengor. Se olharem com cuidado, vocês notarão uma fissura quase imperceptível que vai de sua base até o cume. No idioma gazivian, Vorengor quer dizer Montanha Rachada. O monte Vorengor é isso, uma montanha rachada ao meio, uma fenda que atravessa a cordilheira, a passagem que encurtará em tempo e distância a nossa travessia.

Guillermo ergueu seu binóculo e conferiu que o Vorengor era uma montanha separada em dois enormes blocos maciços.

Ótimo — disse ele quando abaixou o binóculo. - Assim fica fácil decidir. Iremos pela montanha rachada - Guillermo lançou um olhar sagaz para Rhuror. - Mas não é tão fácil assim, estou certo, senhor Rhuror? A Vorengor esconde algum segredo. Uma compensação maléfica por ser uma opção tão atraente de se escolher.

Infelizmente, o seu raciocínio está correto, rapaz - disse Rhuror, concor­dando. - A história da Vorengor também é uma lenda que se perde no tempo. E mais uma vez, como em outras lendas, essa fala da luta titânica dos deuses. A tradição narra que em sua fúria, Arkopromis desferiu um único e avassalador golpe com a sua espada, fazendo surgir a cordilheira de Malthar, que quer dizer Cicatriz do Mundo, e no exato lugar onde a lâmina tocou, abriu-se uma enorme fenda que dividiu a montanha — disse, apontando para a fissura que agora passou a ter um forte significado.

E o que tem no interior da fenda? - quis saber Chester.

Ninguém saiu de lá para contar - disse Rhuror sem uma resposta conclu­siva. — Os viajantes a evitam, e os poucos que se aventuraram pelas sendas sombrias jamais foram vistos novamente.

Só faltava essa - desanimou Brian, as mãos apoiadas na cintura e a cabeça balançando negativamente. — De que jeito passaremos entre dois paredões com quilômetros de altura sem saber o que nos espera. Existe uma terceira opção?

Bem, podemos criar asas e sair voando por cima do Malthar - gracejou Rhuror.

Por alguns segundos, uns ficaram olhando para os outros sem saberem qual a decisão deveria ser tomada. Foi quando Roger falou:

Qual a distância que nos separa do outro lado?

Bem, vejamos — avaliou Rhuror. - Essa parte da cordilheira deve ter aproximadamente cinqüenta pharteions...

Uns... oitenta quilômetros. Indo pela fenda, concluiremos o percurso em dois dias se não houver nenhum imprevisto — disse Roger, e voltou a questionar Rhuror: - E se cruzarmos por cima?

Semanas, é difícil prever, e não teríamos como levar o drancto... provavelmente os gifenontes também seriam abandonados em algum momento. Receio que essa não seja uma boa escolha - opinou Rhuror.

Sei o que vocês estão pensando - disse Talemine. - A única possibilidade sensata agora é seguirmos pela fenda na Vorengor. Só assim saberemos o que há lá dentro.

Eu não me importo — disse Margaret, querendo demonstrar coragem. — Ficaria decepcionada se a escolha fosse outra.

O desconhecido merece esse nome até o instante em que revela os seus mistérios, mas ele pode ser amargo demais - filosofou Rhuror.

A fogueira foi acesa a cinco quilômetros da entrada da fenda que subia, se perdendo nas altitudes do Vorengor.

A água era abundante e descia por várias partes da encosta, alimentando os ribeiros que engrossariam os grandes rios do ocidente.

A guerreira faogard armou-se com seu arco e desafiou Guillermo a mostrar como andava a sua pontaria. Amontoaram alguns troncos caídos para servirem de alvo e Talemine fez o primeiro disparo. Em seguida era a vez de Guillermo mostrar o que havia aprendido em Faogard.

Veja o quanto consegue aproximar a sua-flecha da minha - disse Talemine, arrumando a postura de Guillermo, um pouco relaxada.

A pontaria foi acima do esperado e a flecha de Guillermo quase resvalou na flecha-alvo.

Sorte de principiante. Tente de novo - disse a guerreira com uma frieza militar.

O segundo, o terceiro e o quarto tiros foram tão bons quanto o primeiro. Guillermo a convenceu que era hábil naquele tipo de arma. Sua namorada esforçou-se para esconder um sorriso de satisfação, mas era impossível não estar orgu­lhosa com o feito do seu namorado.

Ao olharem para trás, uma fila de arqueiros havia se formado, aguardando ansiosamente a sua vez: Margaret, a primeira da fila, é claro, Daniel, Marc, Rafael e Chester, empunhavam seus arcos como se fossem as pessoas mais importantes do mundo.

Quando a noite veio, o Malthar tornou-se uma descomunal mancha escura diante do acampamento, e seus picos, altíssimos, pareciam esbarrar nas estrelas.

A história de Rhuror sobre as pessoas que sumiram no interior do Vorengor fez com que os integrantes da expedição ficassem um pouco apreensivos, mas não o suficiente para tirar-lhes o sono. Estavam começando a ficar calejados com as adversidades que enfrentavam. Roger, por sua vez, se preocupava mais com o tempo que lhes restava para chegarem ao portal de retorno. Com a sua face ilumi­nada pela fogueira amarelada, ele refazia os cálculos das distâncias e estipulava qual a média de quilômetros que deveriam percorrer por dia para concluírem a jornada na data estipulada. Contudo, havia um inconveniente: era a imprecisão do mapa que eles portavam. Portanto, só restava a Roger traçar uma reta e torcer para que os seus números não estivessem muito distorcidos.

Cinqüenta e três quilômetros por dia — disse ele, olhando primeiro para Brian e depois para Rhuror. — E a média que precisamos fazer a partir de amanhã. O que me diz Rhuror?

O faogard inclinou-se para frente e os seus cabelos vermelhos quase lhe cobriram o rosto quando ele pediu o mapa para conferir. Deu seu parecer após uma rápida avaliação.

Seus números parecem se aproximar bastante da realidade. A velocidade será uma preocupação maior daqui por diante.

Roger suspirou fundo e desviou o olhar para a gigantesca massa de rochas escuras que enfrentariam em poucas horas.

O céu no alvorecer projetava uma cor cinza-azulada sobre o Malthar e as florestas ao redor, quando Daniel despertou e não conseguiu mais pegar no sono. O rapaz fixou o olhar nas poucas chamas que insistiam em arder entre as madeiras carbonizadas da fogueira. Lembrou-se das palavras do desenval, que um dia ensi­nara como deveria manter a concentração para manipular as energias que fluíam pelo seu corpo. Sabe-se lá quanto tempo levou tentando extinguir, com a mente, o fogo que ondeava e crepitava ante seus olhos. A persistência e a concentração eram dois ingredientes essenciais para que a experiência resultasse em êxito.

Repentinamente o fogo se apagou surpreendendo Daniel e trazendo-o ao mundo real. Guillermo havia jogado um punhado de terra a fim de extinguir a fogueira por completo. Restara apenas uma fumaça cinza que se dissipava no ar.

O que houve, Daniel, assustei você?

Não, claro que não — respondeu, decepcionado com o seu insucesso.

Em pouco tempo penetrariam a fissura longilínea do monte Vorengor, que parecia aguardar impassível os aventureiros que arriscassem invadir seus obscuros domínios.

Ao erguer o braço em menção para que suspendessem a marcha, Talemine notou sinais recentes da passagem de outro grupo. Ela nem precisou saltar para tirar suas conclusões.

Dois ou três indivíduos passaram nesse lugar vindos do norte, faz uns dois dias — disse, quando examinou com mais atenção um ramo quebrado. - Ou eles são descuidados, ou não estão nem um pouco preocupados se alguém nota a sua presença. Talemine adiantou o galope e continuou: - Aqui eles mudaram a rota e foram direto para... a fenda.

Mantenham suas armas ao alcance das mãos — aconselhou Rhuror. — Não é comum encontrar alguém nessas proximidades se não se pretende usar a passagem pelo interior do Vorengor.

A mata, bem fechada, impedia a visão mais à frente, entretanto, as pistas deixadas pelo outro grupo, continuavam claras para os olhos experimentados de Talemine.

Quando a espessa vegetação findou próxima a base da montanha, o que se viu foram duas figuras bem conhecidas dormindo no meio de uma espaçosa clareira que servia como salão de entrada para o coração do Vorengor. Uma fogueira apa­gada e restos de comida estavam espalhados pelo chão. O ronco de um deles era tão alto que Talemine contraiu a face, provocando risinhos dos garotos.

São Nef e Lamdi — disse Marc, reconhecendo os aventureiros da tribo de Eutan. — Como vieram tão longe?

Vocês os conhecem? — perguntou Talemine, surpresa por ainda dormirem pesadamente, apesar de tanto barulho.

Conhecemos sim - informou Guillermo. - Nos encontramos antes de atravessarmos o desfiladeiro Blarbuk.

A jovem guerreira puxou a sua espada e usou a ponta da lâmina para cutucá-los. Eles despertaram de sobressalto.

Quem é você? O que está fazendo? - perguntou Nef, o gordinho, espremendo-se inutilmente para encolher a barriga e evitar o aço cortante.

Seu companheiro, Lamdi, confuso ao enxergar ainda zonzo, os olhos vermelhos de Talemine, arrastava-se para trás apoiado nos cotovelos, desordenadamente.

Ei! Esperem, não vou machucá-los — a faogard afastou a arma numa atitude amistosa.

Lamdi e Nef ergueram-se devagar e as expressões deles acalmaram-se quando viram rostos conhecidos.

Os estrangeiros que nos atacaram no Blarbuk! — apontou Lamdi, seu sorriso era demasiadamente inocente.

Acho que os estou reconhecendo — disse Rhuror, depois que os viu melhor, e deslizou pelo flanco do drancto até seus pés tocarem forte o chão. — Vocês não andaram pelas bandas de Fena?

Visitamos algumas vezes aquela cidadezinha acolhedora - disse Nef, estendendo a mão ao faogard. Não havia como não simpatizar com aquela dupla de bonachões. — É um lugar simpático, mas muito agitado para o nosso gosto.

Como conseguiram atravessar o Canormut a pé? — perguntou Brian.

Não viemos a pé — Lamdi franziu a testa, querendo explicar tudo. - Uma caravana cheia de comerciantes nos trouxe e depois seguiu para o sul, margeando o Malthar. Não quisemos ir com eles, a viagem já estava ficando sem graça.

Quando nos ofereceram trabalho, aí vimos que era hora de pularmos fora — completou Nef, encaixando a mão no ombro de seu amigo. - É como Lamdi falou, a viagem com os comerciantes estava ficando enfadonha, até o mestiço Lughy desistiu de tagarelar.

Você disse Lughy? - indagou Rhuror, semicerrando os olhos.

Sim, disse. Vocês devem conhecê-lo, o meio humano, meio faogard que vive aprontando das suas — respondeu Nef com alguma indiferença. - Ele abandonou a caravana logo depois do Canormut.

Todos se entreolharam com suspeita.

O que foi? Falei alguma coisa errada? - quis saber Nef, quando notou as expressões se alterarem.

Não é nada — interferiu Brian. - Lughy tem algumas informações que nos interessam e gostaríamos de falar com ele.

E o que vocês estão fazendo por aqui? — interrogou Daniel, notando de perto que as vestes dos andarilhos estavam bem surradas desde a última vez que os viram.

Decidindo — disse Lamdi, simplesmente.

Decidindo o quê? — quis saber Rafael.

Nef apontou para a entrada silenciosa do Vorengor, e completou.

Decidindo se vamos por ali ou contornamos o Malthar pelas longínquas florestas do norte.

É isso mesmo que Nef disse — continuou Lamdi com desenvoltura, o peito estufado. — Nem pensamos em subir por essas encostas sem fim. Detestamos o frio intenso lá de cima - agora ele direcionava o indicador para o alto.

Brian explicou-lhes da escolha pela fenda, mesmo sabendo de todos os rumores que envolviam o monte Vorengor. Isso agilizou a decisão dos dois amigos.

Vamos com vocês - disse Nef, sem hesitar. - E claro, se vocês não se opuserem.

O que dizem? - Rhuror questionou os seus companheiros, querendo a aprovação da maioria.

Por mim não há problema. Alguém é contra de que eles viagem conosco? — disse Brian, correndo o olhar pelos companheiros.

Enquanto discutiam a presença de Lamdi e Nef na comitiva, Marc se afastou alguns metros e se colocou de frente para a entrada da enorme fenda. A abertura no Vorengor tinha cerca de doze metros de largura e estava diante de Marc como uma sinistra bocarra escancarada, pronta para abocanhá-lo. O corte na pedra que separava a montanha era reto como queijo quando fatiado por uma faca, e regular desde a base até o pico que alcançava facilmente os quatro quilômetros de altura. Se as duas metades fossem unidas novamente, se encaixariam quase que perfeitamente uma na outra. Marc tentou enxergar o que havia dentro da montanha, porém a sua vista não alcançava mais do que uns oitenta metros de profundidade. E depois, era só a completa escuridão. O que haveria além, naquelas sombras, que provocava tanto medo e afastava os viajantes? Aquilo lhe causou calafrios. A voz de Rhuror arrancou Marc dos seus pensamentos.

Vocês vão com a gente, mas não nos causem nenhum tipo de problema — advertiu o guerreiro de cabelos vermelhos enquanto escalava a sua exótica monta­ria, dando entender que a viagem iria continuar imediatamente. — Viajarão comigo. Assim pouparão os gifenontes e poderei ficar de olho em vocês dois. Subam.

Lamdi e Nef correram para o drancto e começaram a subir de maneira desastrada. Rhuror estendeu-lhes a mão quando viu tamanha dificuldade. Em seguida, comentou:

Espero que aquele corredor não seja muito estreito pra você, meu amigo - disse ele ao drancto que começou a se locomover pesadamente na direção da fenda.

À medida que avançavam para o interior, os ruídos da mata iam sendo sufo­cados até desaparecem completamente, e só o que lhes restara eram os cascos dos cavalos tocando a rocha dura e uma corrente de ar constante que lhes soprava os ouvidos e agitava levemente os cabelos. A claridade vinda do exterior foi aos poucos se reduzindo, até que eles se viram envolvidos na penumbra. Era hora de usarem os cajados de luminita que, ao serem expostos, revelaram com a sua crescente luminescência, o caminho pedregoso e os paredões rochosos que se erguiam de ambos os lados. Tais paredões se perdiam na vertiginosa altitude escurecida e somente uma finíssima linha de claridade comprovava que a fenda se abria até o topo da montanha. Filetes de água escorriam e gotejavam pelas paredes, produ­zindo um repetitivo som de água caindo na pedra. Ao ver aquilo, Rafael comentou.

Dessa vez não teremos dificuldades com a falta de água — sua voz ecoou como se ele estivesse em um salão de teto alto.

A entrada daquele extraordinário desfiladeiro já havia ficado uns dois quilômetros para trás. Apenas um fio tênue de luz avisava que o dia começava lá fora com um sol radiante cobrindo a cordilheira. Ainda era de manhã.

Mais adiante, eles passaram por uma queda-d'água que despencava de uma nascente de uns vinte metros de altura. A água descia pela parede de granito e afun­dava em uma brecha, indo direto para o subsolo. Uma névoa úmida se levantava com o choque da água nas rochas.

Daniel foi o primeiro a ver uma coisa estranha que lhe causou espanto.

Olhem aquilo na cachoeira!

A parede de água formava rostos disformes com olhos agonizantes e bocas como se gritassem por socorro.

Não toquem na água — preveniu Roger. — Não sabemos o que pode acontecer.

O que são aqueles rostos? — perguntou Chester como quem quisesse tentar uma resposta.

Arrisco dizer que são as almas dos pobres desgraçados que um dia ousaram entrar na montanha e acabaram prisioneiros de mais uma maldição — imaginou Rhuror.

Tomara que não acabemos assim — torceu Marc, recuando o seu cavalo para que os respingos não o atingissem.

Ei, Lamdi! Eles são parecidos com você - caçoou Nef. - Feios e desengonçados.

Rhuror lançou um olhar mal-humorado para Nef.

Cuidado com o que brinca. Está zombando de coisas que desconhece.

Desculpe, senhor. Só quis descontrair um pouco.

A cachoeira enfeitiçada havia sido engolida pelas sombras quando os cava­leiros seguiram em frente, e só restou o barulho borbulhante da água caindo, até também desaparecer com a distância.

Não havia curvas e nem sequer um pequeno desnível. Uma pessoa de olhos fechados poderia caminhar em linha reta durante horas sem esbarrar nas paredes da garganta.

O brilho das luminitas começou a enfraquecer; a carga de luz que se armaze­nara nas primeiras horas da manhã estava se esgotando. A luz branca dos cajados foi cedendo lugar a um tom azulado, apagando-se lentamente.

Como vamos enxergar daqui pra frente? - inquietou-se Rafael, os olhos apertados com tanta dificuldade em ver.

Rhuror abriu uma das bolsas na lateral do drancto e trouxe para baixo alguns pedaços compridos de lenha seca. De uma outra bolsa, tirou um pote de boca estreita que continha uma substância gordurosa de cor esverdeada. Ele introduziu um dos pedaços de madeira no pote e quando o retirou, o creme esverdeado havia grudado e se cristalizado rapidamente. Rhuror, então bateu com o artefato no chão rochoso, produzindo uma fagulha que se transformou em chama viva.

Uma tocha! - exclamou Rafael, suas pupilas se contraíram com o retorno da luz.

Peguem os outros pedaços e façam o mesmo — orientou Rhuror. — Há bastante combustível e madeira para iluminar nosso caminho por muito tempo.

O que é essa coisa verde? — indagou Margaret, olhando para aquilo que havia cristalizado na sua tocha ainda apagada. A coisa exalava um odor ardido se respirado com força.

É óleo de felbiana - ensinou Rhuror. - Esse foi extraído das minas de Dulghana em Drallêngia. E o melhor de todo o continente... e muito caro, portanto não desperdicem. Pode durar horas queimando antes de atingir a lenha. Vê como crista­liza? — disse, mostrando uma tocha que estava pronta para ser usada. Com um golpe ele acendeu a próxima tocha e observou a chama: - Isso só acontece quando a felbiana entra em contato com a madeira. Por isso deve ser mantida em potes como esse.

Com a questão da iluminação solucionada, a jornada foi retomada.

As luzes oscilantes das tochas que ondulavam sobre os paredões, criavam um efeito fantasmagórico.

A fraca luminosidade externa que vinha do alto da montanha foi enfraque­cendo até se extinguir totalmente.

Já é noite — disse Talemine, quando não viu mais nenhuma luz vindo de fora, ela olhou em volta. - É como se estivéssemos no fundo de uma caverna.

Na parede do lado direito eles encontraram uma gruta de uns três metros de profundidade. Um adulto teria que se abaixar para penetrar em seu interior. No fundo da gruta havia uma fissura vertical com cerca de um palmo de largura. Nada mais havia no interior daquele buraco escavado na pedra. O curioso Lamdi ameaçou entrar, mas foi segurado pelas calças.

Que pretende fazer? - perguntou Guillermo, trazendo-o de volta.

O que pode haver ali dentro? — argumentou, justificando-se. — É só uma gruta vazia. Talvez eu durma lá dentro. Não quero ouvir essa corrente de ar assoviando a noite toda.

Deixe, Lamdi — pediu Nef. — Nós já dormimos em tantos lugares que uma noite com um ventinho à toa não será tão ruim.

Devemos estar quase a meio caminho da saída - estimou Roger. - Podemos ficar por aqui essa noite.

A sugestão de Roger foi aceita e o acampamento foi erguido.

Marc observava as profundezas escuras da fenda e imaginava que uma ameaça monstruosa poderia aparecer, atacando-os e devorando-os ou os prendendo como as imagens dos rostos atormentados que havia visto na queda d'água.

Os paredões tinham rachaduras estreitas que subiam por dezenas de metros, e de dentro delas surgiram estranhas criaturas que deixaram os aventureiros estarrecidos. Eram homúnculos, seres pequenos de, no máximo, oitenta centímetros de altura; tinham a pele branca como leite e olhos grandes e negros a tal ponto que quando vagavam nas sombras, suas faces pareciam ter dois buracos profundos no lugar dos olhos; a boca era apenas uma linha atravessada e quando se abria, mostrava duas fileiras de dentes finos como agulhas; o nariz se reduzia a dois furinhos quase imper­ceptíveis e as orelhas, de abano, deviam ser assim para detectarem qualquer ruído por menor que fosse; os dedos, muito finos, tanto dos pés quanto das mãos, eram adap­tados para se agarrarem nas pequenas ranhuras das paredes e com isso, conseguirem se locomover com facilidade pelos esconderijos verticais do Vorengor.

Lódrolls - disse Rhuror, lançando mão de uma tocha - são criaturas lendá­rias. Seres da noite, de apetite insaciável, que vagueiam à procura de tudo o que se possa mastigar. Meus ancestrais descreviam essas coisas como devoradores de carne humana. Segundo as descrições, os dentes deles inoculam uma droga paralisante, e com isso, as suas vítimas são devoradas ainda conscientes. Uma morte horrível - disse ele, avançando sobre alguns e ameaçando-os com a tocha. Os lódrolls se comprimi­ram para dentro das apertadas fendas. - Viram isso? Eles temem a luz e o fogo. As chamas nos manterão em segurança. Permaneçam perto delas o tempo todo.

Entretanto, não era seguro passar a noite no meio daqueles monstrinhos bran­cos. Então, Roger se armou com uma tocha e galopou adiante para uma inspeção. Talvez, os esquisitos habitantes das frestas se concentrassem apenas naquele local. A luz se afastou com ele e ouviu-se uma gritaria histérica vinda de longe conforme Roger se aprofundava nas trevas. Ele retornou na mesma marcha lenta e cautelosa.

São milhares. As gretas onde os lódrolls se escondem se espalham por toda parte, como artérias na pedra. O mais prudente é ficarmos bem onde estamos.

Formaram um círculo de tochas e o acampamento foi montado bem no meio como uma fortificação ardente. Por ora, estavam protegidos dos lódrolls.

As criaturinhas horríveis esticavam as cabeças para fora das fissuras e se encolhiam, como se discutissem uma maneira de vencer a barreira em chamas e lança­rem-se sobre o farto banquete de carne. De suas bocas saiam chiados longos que iriam atravessar a madrugada, dificultando o sono.

Não quero ser comida desses monstrinhos - sussurrou Margaret para Chester que se acomodara próximo a ela.

Não vai ser não, Meg. Amanhã estaremos fora desse buraco infernal - confortou-a o amigo.

Foi resolvido que Talemine, Guillermo e Nef tirariam as três primeiras horas de sentinela, e que seriam sucedidos por Roger, Rhuror e Daniel. O último turno ficaria para Brian, Marc e Lamdi. Dessa vez, Margaret, Rafael e Chester se livraram da vigília e poderiam ter uma noite de sono sem interrupções. Dormir pouco havia se tornado uma rotina para eles. Margaret juntou as mãos ao lado do rosto e apagou logo, no entanto, o seu sono era inconstante e ela acordava para ver se tudo corria bem; olhava os grandes olhos negros dos lódrolls e seus dedos finos agitados como ratos famintos, e dormia de novo. Após horas, ela desistiu de tentar o sono. Olhou em volta. Contou os integrantes do grupo e notou a falta de um.

Onde está Lamdi?

Ficou do outro lado, perto do drancto - disse Brian, agora também perce­bendo a sua ausência. Brian procurou e viu que Lamdi havia desaparecido. - Ele não está em lugar nenhum.

O falatório despertou todo mundo, e em instantes estavam andando de um lado para o outro, procurando por Lamdi. Seu amigo Nef, muito preocupado, apertava os punhos um contra o outro deixando transparecer o seu nervosismo. Os lódrolls se agitavam e guinchavam pelas paredes, como se aguardassem que um mais afoito cruzasse a proteção dos archotes, direto para as suas bocas vorazes.

Uma lembrança desagradável veio à mente de Roger e ele vasculhou o local por onde haviam passado antes.

Venham até aqui! - gritou ele. - Acho que localizei Lamdi.

Roger estava agachado e sua tocha iluminava o interior da gruta. Bem no fundo, havia uma poça enorme de sangue e fragmentos de alguma coisa que parecia ser carne.

A conclusão a que Roger chegou era inevitável.

A abertura no final da gruta é muito estreita. Ele não teria condições de entrar nela. Foi levado, aos pedaços.

O Vorengor havia feito uma vítima.

Arrumem tudo. Vamos dar o fora daqui - disse Rhuror, impaciente.

Nef se arrependeu de ter caçoado dos rostos na cachoeira. Imaginou que a alma do seu companheiro de tantas aventuras estivesse lá agora, e se tornara prisioneira do Vorengor para toda a eternidade.

A caravana investiu para dentro das trevas, onde os lódrolls se agitavam aos milhares; alguns se desentendiam no alvoroço, trocando mordidas e se empurrando mutuamente. Os lódrolls não temiam tanto o fogo como antes. O desespero por comida deixou-os enlouquecidos e desafiavam as tochas, chegando cada vez mais e mais perto. Utilizando o seu archote como uma espada, Guillermo tentou acertar alguns lódrolls, mas eles se desviaram a tempo. Muitos começaram a saltar sobre a pele dura do drancto, obrigando Rhuror e Nef a golpearem alguns com fogo e chutarem outros, fazendo-os despencar no solo. Mais lódrolls rastejavam pelo chão lutando para enterrar os seus dentes finos e pontudos como pregos nas patas dos cavalos.

Rhuror puxou o pote de óleo de felbiana para si e untou a ponta de uma fle­cha. Ela cristalizou.

Animais demoníacos! Se vamos fazer uma visita a Arkopromis, levarei muitos de vocês conosco. Provem a fúria de um guerreiro faogard!

A ponta da flecha ardeu e varou o ar, atravessando dois repulsivos lódrolls de uma só vez. Eles incendiaram como palha seca.

É por isso que eles temem o fogo! — berrou Rhuror, enquanto mergulhava mais flechas no óleo. — São inflamáveis! Peguem essas aí embaixo.

Talemine passou a flecha cristalizada pela chama e mirou no paredão que fervilhava de lódrolls.

Se meu pai estiver correto - murmurou, a guerreira, curvando o arco o máximo que podia - teremos um espetáculo inesquecível.

A flecha incendiária zuniu e cravou nas costas de um lódroll que virou uma bola de fogo como uma cabeça de fósforo quando é riscada. A chama se alas­trou rapidamente pelos esbaforidos monstrinhos e se transformou em um incên­dio, impedindo qualquer chance de fuga por parte dos demônios brancos. Mui­tas outras flechas chamejantes foram lançadas e em pouco tempo os paredões do Vorengor queimavam como a cortina do inferno. Os lódrolls caíam aos milhares, e pintavam de negro o chão do desfiladeiro com seus corpos carbonizados.

O incêndio se extinguiu e só o que restou foi um cheiro desagradável que impregnou a atmosfera do lugar.

A calma aparente voltou ao Vorengor.

Esse fedor está me sufocando - reclamou Nef, suas mãos abanavam a fumaça. — Quero ir embora de uma vez.

O pedido de Nef foi prontamente atendido e o ar ficou mais respirável con­forme eles se evadiam.

Se a maldição da fenda eram os lódrolls, acabamos com ela - comentou Nef, mais confiante. A lembrança do amigo Lamdi e a forma como ele havia morrido latejavam em sua cabeça.

O que pensa em fazer agora, Nef? - perguntou Rhuror. — Não tem mais o seu companheiro de aventuras para acompanhá-lo.

Não sei ainda — respondeu com desalento. - Quando ficarmos livres da fenda, eu decido o que farei. Pretendíamos conhecer o castelo dos desenvals nas montanhas do vale Edrendora. Provavelmente é pra lá que eu vou.

De repente, a terra começou a tremer, desequilibrando os gifenontes e quase jogando-os ao solo.

Terremoto! Segurem-se! — alertou Brian, ele mesmo sacolejando em cima de sua montaria. Teve que descer e segurar o animal assustado pelas rédeas.

Parecia que os dois lados da montanha iriam desmoronar sobre eles, todavia, o tremor não levou mais que dez segundos, mas deu a impressão de ter durado minutos.

Depois que tudo se acalmou, foi a vez de um grande estrondo vir do topo do Vorengor e deixar os viajantes atentos para outra surpresa. O som forte era o prenúncio de uma avalanche de neve provocada pelo terremoto. A neve, ao cair pela fenda, condensou-se com o calor das baixas altitudes e se precipitou inofensiva.

Está chovendo aqui dentro — sorriu Margaret, as gotas geladas molhando o seu rosto, ao mesmo tempo em que imaginou ter ouvido pedidos de ajuda trazidos pela água. O clamor desesperado lembrava a voz de Lamdi.

Dois terços da jornada haviam sido completados pelo interior da Vorengor.

O fio de luz que cruzava a extensão da montanha, pelo alto, havia reaparecido. Era dia novamente. Isso alegrou um pouco o coração de Margaret.

O semblante de Brian assumiu uma expressão interrogativa:

Vocês repararam? — atentou ele.

O quê? - indagou Guillermo.

As correntes de ar.

Não tem mais vento - entendeu Daniel, observando que as chamas dos archotes não estavam tremulando.

Não falta muito para sairmos desse beco diabólico. Fiquem mais atentos a partir de agora - disse Guillermo, como se previsse algo de muito ruim.

Brian, que cavalgava na dianteira da expedição, foi o primeiro a avistar diver­sas ondulações no terreno à sua frente. Ele ergueu a mão direita avisando que parassem e olhou atentamente os contornos indefinidos que brotavam do chão. Não havia movimento. E a penumbra não permitia que identificassem o que se espalhava pelo caminho.

Só pode ser uma armadilha — disse Roger, enxergando a saída do desfiladeiro numa distância de uns dois quilômetros e meio. Restava muito pouco para completarem a travessia do desfiladeiro. — Vamos conferir o que são aquelas coisas. — Ele atirou a sua tocha entre as saliências no solo, e foi aí que puderam ver do que se tratavam aquelas imperfeições iluminadas pelas chamas.

Rostos com expressões de agonia, mãos contraídas como se tentassem se liber­tar, ombros, pernas e pés. Corpos semienterrados, espalhados pela superfície, petrificados e imóveis como se fizessem parte da montanha. E realmente faziam.

Rhuror e Nef desceram do drancto. Rhuror examinou a passagem e os pare­dões escorregadios.

Não há outro jeito de atravessarmos que não seja por entre os corpos — concluiu ele. — O que acham?

Estamos num impasse — disse Brian, após pensar numa alternativa.

O drancto - sugeriu Chester. - Ele esmaga aqueles corpos com as suas patas.

Não deve ser tão simples assim — disse Talemine. — Está tudo muito quieto, como se esperassem o momento certo para agir.

Nef prestou mais atenção e identificou uma coisa.

Estão vendo uma coisa ali? Bem naquela direção? - ele andou um pouco, enquanto apontava. — É Lamdi! Eu conheço aquele rosto abobado. Tenho que ajudá-lo — e correu para uma formação que brotava do chão.

Não, Nef! — gritou Brian, ainda se esticando inutilmente para segurá-lo pelo braço, mas não conseguiu.

Saia daí, Nef! É uma armadilha - alertou Roger.

É só um monte de rochas com formas humanas — retrucou Nef, ele inspecionava a cabeça de pedra. — Lamdi deve estar aqui embaixo — ele olhou em volta. - Preciso de algo para bater. Vou tirar você daí de dentro, meu amigo.

Nef, seu doido, esse não é seu amigo Lamdi — disse Talemine, para convencê-lo.

Ele está louco? — indagou Rafael, espantado.

Deve estar - respondeu Rhuror com pressa. - Se afaste daí, seu idiota! — ordenou com energia.

Marc firmou a vista e viu que algo muito grandioso estava para acontecer.

Tem alguma coisa errada. O chão... O chão está se mexendo! — berrou.

A superfície de granito ondulava como um mar agitado. Nef compreendeu que tivera uma péssima idéia, mas aí já era muito tarde quando ele quis fugir. Nef desequilibrou nas dobras oscilantes do terreno e caiu. Tentou levantar-se apoiando as duas mãos que afundaram. Ele gritou desesperadamente, no entanto, ninguém podia fazer nada. Rhuror ainda correu para pegar uma corda e resgatá-lo, mas quando voltou, para perto de Nef, só conseguiram ver as costas que se transforma­ram em pedra, o resto do seu corpo sepultado para sempre.

Estava tudo quieto mais uma vez, o terreno estável, os olhares atônitos e sem ação.

Não há como passar? - perguntou Margaret, depois do choque de presenciar outra morte.

-Tem que haver — disse Roger, irredutível. - Não viemos até esse ponto para desistir.

Calado e absorto em seus pensamentos, Rafael olhava a tocha ardendo entre os cadáveres rijos. Ele voltou-se para seus amigos com um plano que talvez desse certo.

O portal.

O que o portal tem a ver com isso, garoto? - perguntou Guillermo, disposto a ouvir qualquer sugestão que levasse a uma solução.

Lembram? O Círculo de Pedra leva algum tempo para funcionar. Acho que isso também acontece aqui — o menino fez uma pausa para achar as palavras cor­retas. — Existe um intervalo antes da coisa acontecer. Eu acredito que se corrermos muito, muito rápido, poderemos escapar.

Considero boa a sua idéia, Rafael, contudo, não sabemos exatamente qual é o tamanho desse cemitério que petrifica os seus mortos - retorquiu Brian. - Pode se estender até a saída do desfiladeiro. A escuridão impede que vejamos onde ele termina. E caso seja tão longo, não conseguiremos atravessar a tempo. Acabaremos todos como esses cadáveres petrificados - disse, os olhos vagando pelas centenas de corpos semienterrados.

Com toda a força que tinha, Rhuror arremessou uma segunda tocha para bem longe. As suspeitas de Brian tinham fundamento. As desigualdades do solo indica­vam que mais corpos jaziam adiante.

Os mortos tornam o caminho acidentado. A corrida seria bastante difícil - observou Guillermo.

Podemos conseguir - garantiu Chester, seguro das suas habilidades de cavaleiro. — O que me preocupa é o drancto. Ele não me parece ser muito veloz.

Você ainda não conhece bem essa fortaleza, garoto Chester. Quando ele pega impulso, corre tanto quanto qualquer cavalo - disse Rhuror com inegável orgulho de seu companheiro de quatro patas.

A proposta de Rafael é interessante. E não consigo pensar em nenhuma melhor. Estão de acordo? — quis saber Rhuror.

É a única que nós temos. Ora, esse mausoléu dos diabos está me dando nos nervos. Faço qualquer coisa pra sair daqui - disse Brian com a sua paciência esgotando-se.

Parece que é só o que nos resta, ou voltar — disse Marc, apontando o polegar para trás.

Não há mais tempo - retrucou Roger com toda seriedade que a situação exigia. — Agora é só ir em frente.

A estratégia foi montada. Uma primeira bateria de sete cavalos se alinhariam como se estivessem prontos para a largada de um grande prêmio. Outra fila de dois cavalos largaria em seguida. Por fim, o drancto encerraria o plano de fuga. Seria feito dessa forma para que houvesse espaço suficiente e os cavaleiros não se atrapalhassem ao correrem lado a lado. Chester posicionou-se na segunda fila ao lado de Talemine e Guillermo. Ela por ser mais leve e querer estar ao lado do pai, e Guillermo por motivos evidentes.

Você vai na frente com os outros, Chester - ordenou Guillermo com voz firme.

Não vou, não - resistiu. — Sou mais leve e monto melhor que o senhor. E o alcançarei antes da metade da corrida.

Guillermo desviou o olhar para Talemine e voltou a Chester. Ele sorriu pela determinação e a coragem que o rapaz demonstrava.

Vá com os outros — Talemine pediu a Guillermo. — Estaremos bem.

Guillermo encarou Chester e o desafiou:

Vou chegar antes de você, cavaleiro - ele galopou e enfileirou-se na primeira bateria.

Chester inclinou-se até a orelha do seu gifenonte e cochichou para ele.

Você já viu uma estrela cadente, bravo amigo? Pois agora eu quero que você seja tão rápido quanto uma.

A orelha do animal tremeu. Será que Chester se fez entender? A verdade é que ele tinha uma relação com os cavalos que era quase sobrenatural.

Mirem na saída. A luz vinda de fora será o nosso guia — orientou Rhuror da retaguarda.

Todos prontos? - Brian conferiu as posições, olhando para os dois lados. - Agora! — gritou com intensidade.

Bruscamente dispararam pelas trevas. Os archotes clareavam uns poucos metros o caminho irregular. Viam os corpos convertidos em pedra correndo sob eles. Seres que um dia foram humanos, caídos em diversas posições; um cão com a boca arreganhada e os caninos à mostra; um cavalo com a cabeça erguida para o lado num último gesto de vida.

Os cascos das montarias resvalavam vez ou outra em alguma triste figura esculpida pela morte.

O final da fenda se aproximava e a esperança revigorava os ânimos dos cavaleiros em fuga.

Chester quase se deitava sobre o seu gifenonte e murmurava sem parar.

Corra, falta pouco agora. Só mais um pouco.

Mas bem à sua frente, o que ele temia aconteceu. O cavalo de Margaret tro­peçou em um dos corpos e desabou, jogando-a entre os dois braços de um cadáver com feição aterrorizada. O cavalo da menina levantou-se assustado e indeciso. Os outros interromperam a cavalgada para ajudá-la e Rhuror fez um enorme esforço para que o drancto não pisoteasse a todos, e sem conseguir parar, ele assumiu a liderança na corrida. Chester tratou de agir sem perder um segundo. Agarrou as rédeas do animal e as estendeu para Margaret.

Monte de uma vez — disse ele. — E vocês, o que estão esperando? Corram!

Uma leve vibração no solo foi o aviso. Estava acontecendo. A superfície começou novamente a ondular, roubando a estabilidade dos cavalos e fazendo as suas patas fraquejarem. Chester agora cavalgava na última posição no encalço de Margaret como uma escolta implacável. A ondulação havia aumentado e os animais não con­seguiriam se equilibrar por muito tempo.

Os primeiros cavaleiros atingiram o solo seguro, e o gifenonte de Margaret chegou logo depois dando um longo salto para se salvar.

Um grande tranco atirou Chester da sua sela, fazendo-o rolar no chão em segurança, mas o seu animal ficou preso pelos cascos que afundaram como que em areia movediça. Havia se transformado em uma estátua de pedra, paralisado, como se pretendesse dar um derradeiro salto. Não conseguiu.

Chester desesperou-se, esticando a mão como se pudesse fazer algo para aju­dar, ele gritava implorando por socorro, mas era muito tarde. Como uma praga que o perseguisse por amar tanto os animais, o jovem cavaleiro havia perdido, em pouco tempo, dois cavalos de maneira trágica. Roger ajudou-o a se levantar do chão. Chester se esticou, e com as pontas dos dedos ainda conseguiu tocar no focinho inerte do seu companheiro. O toque era frio e áspero.

A culpa foi minha — incriminou-se Margaret. — Se eu não tivesse caído, nada disso teria acontecido.

Não houve culpados, Meg — defendeu-a Guillermo de si mesma. — Se Chester não tivesse feito aquilo para ajudá-la, talvez você não estivesse viva agora. Não se torture à toa.

Um estrondo cortou o ar e ecoou na fenda, pegando-os de surpresa.

A saída! - exclamou Talemine. - Está se fechando!

Cristais negros se reproduziam em ambos os lados da saída e cresciam, edificando uma muralha que se elevava por muitos metros. O barulho era como pedra se destroçando e em poucos segundos tudo estava bloqueado. Faltavam cerca de cem metros e eles se encontravam presos. O bloqueio crescia ainda mais e já atingia quase trezentos metros de altura. Comportava-se como um organismo vivo que não parava de aumentar de tamanho...

Afastem-se para os lados! Para os lados! — ordenou Rhuror, os braços agitando-se exageradamente. - Encostem-se nas paredes!

O que ele tem em mente? — perguntou Guillermo a Talemine.

Você já vai ver, mas prepare-se pra correr como um louco.

O drancto abaixou a cabeça, feito um touro furioso, as patas dianteiras dobra­das, e arrancou com toda a intensidade que seus músculos retesados poderiam agüentar. Os outros cavaleiros o seguiram de perto ao comando de Talemine. Roger e Chester unidos na mesma montaria. O animal descomunal ganhou velocidade sem temer a muralha que se punha à sua frente em obstáculo. O rosto de Marc se contraiu prevendo a maior trombada que seus olhos teriam a oportunidade de registrar. O impacto foi tão violento que todo o lugar estremeceu. Volumosos esti­lhaços de cristal negro se espalharam numa chuva brutal. O drancto atravessou a sólida barreira e tombou, levantando uma considerável quantidade de poeira. Foi a vez de Rhuror ser arremessado longe, deslizando pela grama. Imediatamente, ao ser rompida, a abertura começou a se fechar novamente e por pouco não prendeu um dos cascos da montaria de Marc.

Com a mesma rapidez que havia surgido, a muralha negra se retraiu e desintegrou diante de olhos atônitos. A fenda estava mais uma vez preparada para receber outros visitantes incautos como uma ratoeira espera os ratos descuidados.

Com sua raiva descontrolada, Rhuror berrou para a montanha, enaltecendo o nome do seu deus e afrontando o Vorengor, as veias dos braços e pescoço saltadas como se fossem estourar. Rhuror queria extravasar toda a sua ira.

A montanha sacudiu, e das suas entranhas ouviram um som tão pavoroso que fez a nuca de Rafael se arrepiar.

Com a espada em punho, Rhuror incitava.

A vitória é nossa, Arkopromis! Vencemos a sua maldita montanha!

Guillermo trotou até o guerreiro e pigarreou antes de falar.

Não é que seja da minha conta, Rhuror, mas você não acha meio perigoso provocar um deus?

Está visto que Sargaleu nos guiou e amparou até agora. Com o auxílio dele triunfamos sobre o Vorengor. Superaremos todas as dificuldades com a proteção do deus guerreiro.

Rhuror voltou-se para o drancto que se erguia com lentidão. A testa do animal apresentava um corte profundo e o sangue escorria-lhe pelo largo focinho. O faogard ordenou que o drancto se deitasse, e pediu que Chester lhe trouxesse um fardo que guardava bálsamos com extraordinários efeitos medicinais. Então, aplicou com cui­dado o curativo no ferimento. Rhuror elogiou o drancto e se orgulhou dele por ter enfrentado com bravura a resistente muralha. Era espantoso ver o possante animal de pé em tão pouco tempo. A medicina faogard provou novamente a sua eficiência.

Para onde agora, senhor Rhuror? — perguntou Marc. Diante dele, toda uma imensidão de gramíneas, colinas suaves pouco elevadas ao fundo e um belíssimo céu azul.

Não muito distante, está o vale de Edrendora, a terra dos desenvals. E lá o nosso próximo destino, garoto Marc.

 

                                     Sonhos Mágicos

Um dia e meio de marcha nos suaves campos de gramas e arbustos, e final­mente entraram nas terras mágicas do Edrendora. Do alto da colina, avistaram o rio Edrendora que dava o seu nome ao vale. O rio nascia na parte oriental da cordilheira do Malthar e descia de noroeste em diagonal para sudeste, rasgando todo o vale com suas águas piscosas. Um vento morno e emanando um agradável cheiro de plantas frutíferas soprava nos rostos deliciados pela beleza natural do vale. A paz e o sossego deveriam morar naquelas terras mágicas.

O grupo tomou a única estrada de terra que seguia para leste até atingirem uma pequena fazenda onde um homem se preparava para semear a terra. O fazen­deiro usava um chapéu de aba muito larga que lhe cobria o rosto, e assentava no chão uma saca de sementes, preparando-se para começar a semeadura. Ao seu lado, um cavalo atrelado a uma carroça velha, pastava com indiferença. O homem parou o que fazia para dar atenção aos forasteiros. Ele caminhou sem pressa até bem perto dos visitantes sobre suas montarias e descobriu a cabeça do enorme chapéu, mostrando o rosto. Cabelos curtos e vermelhos, como também eram os seus olhos. Era um camponês faogard. Preferia cortar os cabelos bem rentes a cabeça para diminuir a sensação de calor que sempre fazia no Edrendora naquela época do ano. Na verdade, durante três quartos do ano fazia temperaturas amenas e elevadas por toda a região. O camponês cumprimentou primeiramente em gazivian e mudou para o idioma humano ao perceber que só Rhuror o entendia. Apresentou-se com o nome de Coldanur.

Para onde estão indo? — ele quis saber.

Rhuror contou que viajavam para o leste até o território crassênida, mas achou por bem não revelar o verdadeiro objetivo da missão.

Suponho que estão cientes dos perigos da jornada — disse o fazendeiro, em tom de aviso. — Se querem ajuda, procurem os desenvals no castelo do monte Ganvagor. Acho que eles oferecerão pouso apropriado e bons conselhos para vocês. Só posso lhes oferecer comida simples e a minha humilde casa.

Agradecemos, bondoso Coldanur, mas temos que ir. Necessitamos mesmo falar com os desenvals e a nossa pressa nos empurra para longe — disse Rhuror, e despediu-se.

O camponês recolocou o chapéu e retornou aos seus afazeres. Quando se afastavam, Daniel resolveu dar uma última olhada para trás e viu que o fazendeiro deslizava o braço pelo ar num gesto típico dos magos. O menino viu a terra arada abrir centenas de pequenos buracos. Em seguida, o homem pegou um punhado de sementes de dentro da saca e as atirou no ar, cada semente escolheu uma cova e caiu com precisão mágica.

Ele é um desenval! - exclamou Daniel, impressionado, um sorriso de sur­presa e alegria em seu rosto.

Todos se viraram e ainda puderam testemunhar com admiração quando as pequenas covas se fecharam ao comando mágico de Coldanur.

Todos os que vivem nesse vale são desenvals - informou Rhuror.

Puxa, se eu pudesse fazer essas coisas seria o mágico mais famoso em nosso mundo - disse Daniel com olhos sonhadores.

Passaram a noite às margens do Edrendora e pela primeira vez não recorreram aos cobertores e nem ao calor da fogueira. Rafael imaginou que o bíblico Jardim do Éden deveria ser algo parecido.

Acordaram com o céu repleto de nuvens estufadas como se elas fossem de algodão. Após o desjejum retomaram a velha estrada de terra e continuaram na direção do leste; caminharam todo o dia e quando a noite chegou, distinguiram o monte Ganvagor. Era uma montanha de encostas muito íngremes e o castelo se erguia quase no topo em uma base firme num de seus lados rochosos. A arquitetura severa, mais espantava do que atraía os visitantes. Suas torres eram compridas e desafiavam a gravidade, equilibrando-se nos paredões pendurados nos penhas­cos. Algumas janelas derramavam tímidas luzes pela noite. O dia quente trouxera nuvens escuras que prometiam chuva, o vento ficou mais forte com a mudança do tempo e fez com que a caravana se apressasse se não quisesse se molhar.

A estrada bifurcou-se em um caminho que continuava mais para leste em uma estradinha que era a passagem para a montanha. A subida contornava uma parte do Ganvagor e culminava nas portas maciças do castelo. Ventava fragorosamente e o vale, lá embaixo, se transformara apenas em contornos escuros e indiscerníveis.

Os ribombos dos trovões prenunciavam a tempestade, e um ou outro pingo grosso já se precipitava sobre os declives do Ganvagor.

Sem que batessem, a porta se abriu puxada por um rapaz que aparentava algo em torno dos dezoito anos de idade. Os olhos amarelos e a pele cinza o identificavam como um típico drallengiano das distantes terras de Drallêngia. O rapaz era educado e sua voz, branda, tentava passar a intenção de hospitalidade.

Entrem e sejam bem-vindos, senhores. Já estavam sendo esperados desde que pisaram em Edrendora.

O rapaz fez algum esforço para fechar a pesada porta, pois o vento a forçava de volta. A porta se fechou com um baque que fez eco pelo salão de entrada. O saguão era espaçoso e iluminado precariamente por archotes presos nas paredes, lembrando os antigos castelos medievais, mas o teto alto e as cinco escadas que se distribuíam em várias direções como um leque aberto, dava uma singularidade a arquitetura. Tudo era simples, mas também exótico e misterioso. Entre a segunda e a terceira escada, da direita para a esquerda, havia uma porta alta que o drallengiano indicou para que os viajantes o acompanhassem até o outro cômodo. Enquanto caminhava, Marc reparava em tudo, os desenhos nas paredes, os cantos escuros, as chamas débeis dos archotes projetando luzes amareladas que mal clareavam o ambiente antigo.

O outro cômodo era mais claro e a decoração aplicada com mais esmero que no saguão anterior. Uma mesa muito comprida com onze lugares ficava bem no centro do espaçoso salão; acima da mesa pendia um candelabro de luminita que irradiava luzes limpas e equilibradas. Não havia outros móveis, apesar do excesso de espaço existente.

O drallengiano fez um gesto discreto para que todos se acomodassem nas cadeiras e se retirou sem dizer mais nada. Todos ficaram se olhando durante algum tempo, e como nada aconteceu, Margaret se manifestou:

O que faremos agora?

Esperamos — disse Rhuror, os cotovelos apoiados na mesa, as mãos se esfregando como se ali fizesse frio.

Senti-me assim quando éramos prisioneiros em uma sala em Faogard — lembrou Marc, ele inclinava o corpo de lado para ver o que havia debaixo da mesa.

Vocês não eram prisioneiros - indignou-se Rhuror, olhando feio para o francês. - Eram nossos hóspedes... forçados, eu admito - o faogard desviou o olhar rapidamente para a filha, buscando apoio. — Mas foram bem tratados - Talemine assentiu com a cabeça e riu quando viu a expressão de Roger, em desacordo.

O drallengiano retornou acompanhado de um homem alto que devia ter algo em torno de sessenta e poucos anos, mas o vigor do seu andar era o de um jovem. Suas vestes compridas, confeccionadas em um tecido em tom marrom bem escuro, transmitiam a austeridade da posição que ocupava. Novamente era um desenval, mas dessa vez, de cabelos compridos como era o costume, e barba bem aparada. Seus movimentos eram rápidos e assertivos. Ele acomodou-se na extremidade da extensa mesa e olhou a todos com curiosidade como se estudasse cada um antes de pronunciar a primeira palavra.

Surpreende-me estarem aqui depois de atravessarem pela fenda. Tenho que admitir que fizeram uma proeza tão extraordinária, que será lembrada tantas vezes pelos próximos séculos que muitos dirão tratar-se apenas de uma lenda. O poder maligno que vive no Vorengor é tão imenso que todos os desenvals que desafiaram a fenda foram subjugados e pagaram com a vida. — Depois de algum tempo ele continuou: — Permitam me apresentar. Meu nome é Nomaktus e sou eu o eleito que dirige esse castelo.

Nomaktus olhou-os por mais um instante e questionou.

Por que vieram até o castelo dos desenvals? O que querem de nós?

Ajuda - respondeu Roger, diretamente.

Que tipo de ajuda desejam? - Nomaktus foi mais minucioso. - Comida, remédios... talvez necessitem de animais de transporte em melhores condições.

Agradecemos sinceramente a sua oferta, senhor Nomaktus - disse Brian. - Mas a ajuda a que nos referimos é para chegarmos ao portal que nos levará de volta ao nosso mundo.

O Portal que se encontra em Crassen — disse o desenval.

Exato — concordou Guillermo. — O tempo que nos resta está se escoando e se não voltarmos logo...

A Cadecália correrá o risco de ser invadida pela sua gente — completou Nomaktus, demonstrando que estava a par de toda aquela história.

Se já sabe o que está acontecendo, concorda que os nossos motivos são relevantes - disse Roger. - Quanto mais cedo puder nos ajudar, tanto mais rápido iremos embora e tudo voltará ao normal.

A situação não se resolve de maneira tão simples — retrucou Nomaktus, e olhou para o drallengiano de pé ao seu lado, o rapaz assistente entendeu e se retirou da sala. - Se os ajudarmos deliberadamente, entraremos em conflito com os crassênidas e seus aliados. A liderança de Crassen se declarou contra a entrada de vocês em seu território. Acreditam que os que vieram pelo portal são representantes do mal, filhos de Arkopromis, como reza uma lenda muito antiga — Nomaktus levantou-se e passou a caminhar lentamente ao lado da mesa, e falou mais sobre a tal lenda: - Pela tradição popular, um dia os filhos de Arkopromis virão de um outro mundo e instalarão a desgraça e a destruição entre os povos, e os crassênidas serão os primeiros a sucumbir. Eles acreditam que essa lenda é verdadeira e tiveram a certeza quando um de vocês chegou até nós há alguns anos; depois vieram mais três e agora vocês estão aqui.

Nomaktus se referia a Alexei Martov e Percy Harrison Fawcett que desbrava­ram a Cadecália. Fawcett, pelo que se sabia, ainda perambulava com o filho Jack e seu amigo pelas florestas do norte.

Margaret interferiu com uma boa argumentação.

Mas basta um desenval nos acompanhar e estaremos protegidos de qualquer ataque. Vimos, em Fena, do que vocês são capazes.

O que foi que viram em Fena? - perguntou Nomaktus.

Um desenval chamado Luminus mostrar como vocês podem ser poderosos - disse Margaret com convicção. — O que ele fez causou admiração em toda a platéia.

Espetáculos, exibicionismo, aplausos, são palavras como essas que ele valo­riza - disse Nomaktus com irritação. — Não pensem que todos os desenvals são como Luminus. Ele jogou fora tudo de bom que aprendeu nesse castelo, e o que sobrou? Um homem superficial que só pensa em si. Um irresponsável que denigre a boa imagem da nossa ordem.

Nomaktus suspirou fundo e quis esquecer por um momento o que pensava sobre o seu antigo aluno. Então se voltou para Margaret e prosseguiu:

É tolice pensar que um desenval seria a solução de todos os problemas que os acompanham. Temos grandes poderes, isso é verdade, mas talvez o que vocês não saibam é que entre os crassênidas vivem outros desenvals e véussidas que os apoiam, pois acreditam na lenda que acabei de contar. E tem mais uma coisa: existem rumores que os exércitos de Crassen se preparam para a guerra. Fomos informados que muitas de suas tropas se movimentam nas proximidades de suas fronteiras. Isso é um mau sinal.

Qual o motivo das tropas crassênidas adotarem esse comportamento? - perguntou Brian.

Estou olhando para o motivo agora - respondeu Nomaktus, correndo o olhar por todos à mesa.

Um relâmpago da tempestade que castigava lá fora clareou ainda mais a sala.

Nós? - surpreendeu-se Rafael. - Estão se preparando para uma guerra por nossa causa?

Receio que esta seja a verdade, rapaz - disse o desenval. — Entenderam agora a razão da nossa resistência em ajudá-los? Seria o estopim para a declaração de uma guerra. E tem mais outra coisa, a força militar crassênida é extremamente poderosa. Um choque entre os dois lados do continente poderia devastar, em poucos meses, todos os aliados do oeste.

Uma guerra - suspirou Brian. - É tudo o que não precisamos agora.

E ainda existem os arkoprômidas — lembrou Chester. — Eles já nos trouxeram grandes dores de cabeça.

Os seguidores de arkopromis náo se atrevem em andar por Edrendora - afirmou Nomaktus. - Quanto a isso vocês estão seguros. E se aqueles fanáticos puserem um pé em nosso vale, serão punidos com a morte. Como estava dizendo, o que nos causa inquietação fica dentro dos limites de Crassen: o poderoso exército reforçado por magos treinados e comandado por um líder desenval obstinado chamado Gosferac.

Gosferac? - repetiu Margaret.

Já lemos alguma coisa sobre ele - disse Brian, referindo-se aos registros no livro de Martov.

O senhor disse que esse... Gosferac é um desenval - retomou Daniel.

Um dos mais fortes que já surgiram - acrescentou Nomaktus. — Se aperfeiçoou por mais de vinte anos no conhecimento desenval e um dia foi embora dizendo que faria uma gigantesca revolução em Crassen. Seduziu outros desenvals crassênidas com suas idéias, e construiu outra escola que se rivalizaria com a nossa, e depois disso, nunca mais um crassênida pôs os pés em Edrendora. Gosferac não mentiu. Todas as suas promessas foram cumpridas, e agora ele jura que lutará com todas as suas forças para destruir uma profecia.

Nomaktus meditou brevemente sobre a história recente de Crassen e sentenciou.

O seu fanatismo contaminou os crassênidas que creem cegamente em seu líder, e ele corresponde preparando e mobilizando o seu enorme exército para, um dia, quem sabe, lutar por aquilo que acredita.

Mas então não há nada que vocês possam fazer para nos ajudar? — indagou Talemine.

Diretamente, não. Mas posso conseguir algumas informações que tornem a sua jornada menos árdua. Também tenho alguns presentes que poderão ser úteis um dia. No entanto, presumo que estejam com fome e queiram descansar.

Nomaktus estalou os dedos que soaram como um enorme sino para chamar os serviços de cozinha. O drallengiano adentrou o salão, seguido por um séquito de bandejas, pratos, talheres, vasilhas de louça, jarras de bebidas, que flutuaram como se fossem carregados por mãos invisíveis; com um gesto comedido do drallengiano, a comida pousou com delicadeza sobre a mesa. Um típico banquete de reis.

O rapaz drallengiano também é um desenval - sussurrou Rafael a Daniel, uma bandeja de prata contendo carne branca e cenouras rochas, acabava de ater­rissar bem nà sua frente.

Não comiam tão bem desde Fena e não se preocupavam em ter que olhar para os lados, temendo um ataque mortal. Estavam convencidos que Edrendora era bem guardada, e o castelo, uma fortaleza inatacável. Pela segunda noite, eles teriam o direito de dormirem despreocupados.

Quando a fome foi saciada, Nomaktus voltou a falar.

Compreendo que a jornada dos amigos se mostra mais difícil com o passar dos dias, contudo, desejo que passem uma noite agradável enquanto estiverem hospedados em nosso castelo — disse Nomaktus com generosidade. — Portanto, serão encaminhados aos seus quartos e a magia do sonho poderá estar em vocês.

O que ele quis dizer com isso? - cochichou Guillermo para Talemine, a faogard não teve tempo de responder. Nomaktus explicou.

Provavelmente a maioria de vocês não sabe do que estou falando. A magia do sonho lhes dá a oportunidade de sonhar como se vivessem algo real. Concentrem-se em um pensamento e o viverão como se fosse verdadeiro. A diferença entre o sonho e a realidade está na sua intensidade, na vontade em transformar o sonho em alguma coisa muito próxima da realidade. Qualquer um é capaz de fazer isso, nós apenas daremos uma pequena ajuda esta noite.

Sonho em realidade? Esse eu quero experimentar - disse Marc, ainda em dúvida sobre o que iria acontecer.

Pois se me oferecerem uma cama quente e macia, me dou por satisfeito — gracejou Guillermo.

Quando deixaram a sala, foram conduzidos pela escadaria central por Nomaktus até o pavimento superior onde começava um corredor longo e obscuro, o drallengiano foi dispensado e desapareceu nos corredores sombrios. A maioria das muitas portas permanecia fechada, porém, alguns cômodos expunham o seu interior para os curiosos transeuntes. Num desses cômodos dava para ver um desenval flutuar a dois palmos de sua cama; num outro, um rapaz meditava em meio às labaredas que devoravam as paredes de seu quarto.

O quarto está pegando fogo! - alarmou-se Margaret.

Não há perigo - disse Nomaktus com voz sossegada, sem ao menos olhar o que acontecia. - Estão em treinamento profundo. Já avisei tantas vezes para manterem as portas fechadas. Esse desleixo estraga a concentração.

O drallengiano que nos atendeu, não é de falar muito - comentou Daniel ao mestre desenval. - Ele é seu assistente?

Seu nome é Gaompovus. É um aluno muito dedicado, está conosco somente há três meses.

Três meses?! - admirou-se Daniel. - E já faz os pratos voarem?! O que ele fará em dois ou três anos, transmutar chumbo em ouro?

Mais uns seis meses e ele estará fazendo isso também — respondeu o grande mestre desenval.

O queixo de Daniel caiu. Era magia verdadeira, tudo o que ele sonhara por toda a sua vida.

O desenval parou diante da primeira porta e falou.

Esse é o quarto dos homens, aquele ao lado será destinado aos garotos e o último do corredor ficará para as jovens hóspedes. — Nomaktus assumiu um tom mais sério e instruiu: — Em cada quarto encontrarão uma ânfora. Aqueles que tiverem interesse ou curiosidade de provar da magia dos sonhos deverão beber do seu conteúdo. A poção não os fará dormir, entretanto, quando entrarem em sono profundo, estarão submetidos aos seus efeitos.. Contudo, previno-os que afastem todos os sentimentos que envolvam medo ou raiva, pois se isso acontecer, os seus sonhos se transformarão em pesadelo.

Dito isso, os viajantes ocuparam imediatamente os quartos que lhes foram destinados.

Guillermo se jogou na primeira cama que viu e experimentou a consistência do colchão que não era tão dura como ele imaginara.

Está bom, mas pensei que encontraríamos nuvens no lugar das camas. — O comentário de Guillermo causou olhares de repreensão por parte de Rhuror, Roger e Brian. — O que estão olhando? Afinal, estamos no castelo dos desenvals, não é mesmo?

O quarto ficava mergulhado em uma leve penumbra sob a luz de um único archote que ardia num canto, e duas janelas estreitas, envidraçadas com mosaicos, se comunicavam com a escuridão da noite chuvosa, de vez em quando um relâm­pago enchia o ambiente com sua luz forte e fugaz. Em outro canto, uma ânfora repousava sobre um pedestal de mármore branco. Lá estava a poção dos sonhos.

Guillermo virou-se de lado sem se importar com mais nada.

Não vai experimentar a bebida, Guillermo? - perguntou Brian, examinando dentro da ânfora sem tocá-la. A bebida tinha a aparência de chá rosado.

Não, obrigado - respondeu com voz sonolenta. - Ficarei com meus pró­prios sonhos...

Foram suas últimas e cansadas palavras antes de adormecer.

-Já bebeu essa coisa, Rhuror? - indagou Brian.

Não, mas ouvi comentários de quem tomou que é uma experiência inesquecível.

Rhuror e Brian engoliram a poção em um só gole.

Não quer provar, Roger? - disse Brian, oferecendo o copo de cerâmica.

— Ainda não, acho que vou esperar um pouco — disse com nervosismo.

No outro aposento, os quatro garotos discutiam quem seria o primeiro a beber da poção. A iniciativa ficou com Daniel.

Que gosto tem? — perguntou Rafael.

Parece um chá de ervas fortes, mas não é ruim.

Rafael tomou o copo da mão de Daniel e bebericou, depois foi a vez de Chester e Marc. Agora era só esperar o resultado.

No terceiro quarto, Talemine e Margaret beberam e se deitaram logo para aguardarem o sono chegar. De vez em quando, Margaret ainda abria os olhos depois de ouvir um trovão. O próximo estrondo não foi ouvido. Ela havia adormecido.

Deitado de costas, Rafael olhava para o teto, estava tenso. Ficou assim por muitos minutos e o sono não vinha. Olhou de lado para conferir se os seus amigos ainda estavam acordados, mas levou um susto, pois nas camas ao lado quem dormia eram seus queridos irmãos, Vitor e Duane. O seu irmãozinho dormia tran­qüilo abraçado ao elefantinho de pano. Rafael levantou-se e sentiu a respiração serena de sua irmã; seu coração apertou de saudade e ele segurou um nó na gar­ganta; estava em seu quarto, na casa de seus pais, e estendeu a mão para tocar os cabelos de Duane e depois os dedinhos de Vitor com cuidado para não acordá-los. Foi até a cômoda e pegou o porta-retratos com uma foto dos três juntos e apertou contra o peito. Caminhou até a janela e olhou a rua, a luz do poste um pouco encoberta pela copa de uma árvore. Recordou que a sua última noite em casa foi daquele jeito. Andou até a porta do quarto e ouviu os pais conversando. Falavam sobre toda a esperança que depositavam no filho para, quem sabe, um dia, poder ajudar os irmãos. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele teve que piscar muitas vezes para não chorar. A culpa invadiu a sua mente, no seu sonho. Rafael olhou mais uma vez os irmãos, e agora eles dormiam no chão, maltrapilhos e enrolados em panos velhos no lugar de colchões; a sua casa havia se transformado em um casebre de madeira apodrecida. Rafael fechou os olhos com força para apagar a triste imagem que o atormentava.

No outro aposento, Roger fixava os olhos no conteúdo do copo, não sabia ainda se deveria fazê-lo, mas era a sua chance de voltar a vê-la; olhava para a sua mão que oscilava fazendo o líquido balançar; Roger não era homem de tremer, mas naquele instante ele tremia. Ele bebeu, tomou tudo e não deixou nenhuma gota, em seguida andou até a janela e apreciou a chuva que caía no parapeito fazendo um som gostoso de se ouvir. Era bom dormir ouvindo o barulho da chuva, mas Roger nunca mais teve essa sensação depois que Helen morreu. Seus amigos dormiam inertes como uma pintura em um quadro. Se dormisse e sonhasse poderia ver a Helen, falar com ela, quem sabe ouvir a sua voz novamente, uma última vez. Ele deitou-se e deixou as pálpebras cederem e quando as abriu, estava em uma praia, a praia da Ilha da Coroa, sentiu a areia fofa nos seus pés, o barulho das ondas indo e voltando e o grasnar dis­tante das aves marinhas, sentiu o frescor da maresia e o sol aquecendo o seu rosto. Olhou por toda a praia e não viu ninguém, procurou de novo e seu coração disparou. Um bela mulher andava pela areia perto dos rochedos pontiagudos e usava um lindo vestido azul-claro que se agitava com o vento. Roger não se conteve e foi até ela.

Não é possível... - ele balbuciava - é a Helen.

Ela exibiu o sorriso mais bonito que tinha para Roger. Ele se aproximou.

Helen, é você mesma, Helen? Não pode ser um sonho, você é tão... real.

Ele a tocou, sentiu a sua mão macia apertando a dele. Passaram a caminhar juntos pela praia. Roger estava feliz como antes e Helen o abraçava como se quisesse compensar todos os anos que ficaram separados. Ela também estava radiante de tanta felicidade. Permaneceram por algum tempo se lembrando do passado e rindo juntos dos episódios engraçados que viveram. Ele dizia que nunca tinha dei­xado de amá-la e ela respondia que sabia e o abraçava outra, e outra e mais outra vez. Ele notou que o pingente pendia no pescoço dela e não mais no dele.

Quero ficar com você agora e pra sempre, Helen. Não quero perdê-la, nunca mais - disse ele aflito, olhando no fundo dos olhos dela.

Isso é impossível, Roger — respondeu com amargura.

Por que não? Podemos ficar juntos eternamente.

Não agora, não nesse momento.

E quando, Helen? Como posso ter você de volta?

Venha até a mim - pediu, os olhos angustiados.

Mas como? — perguntou, segurando fortemente as mãos da mulher que amava.

Siga o seu destino e não volte atrás. Se fizer isso você vai me encontrar. Siga o seu destino, Roger, não desista dele - a voz foi se distanciando e sua imagem desvanecendo até desaparecer. Roger se viu sozinho na praia. Ele viu que só restara o pingente em sua mão, a única recordação de Helen. O pingente incendiou e também desapareceu.

Helen! Helen! Volte! Não pode terminar assim - Roger gritava inconfor­mado. - Helen! Helen!

Acorde, Roger — Guillermo o sacudiu, a face do espanhol se materializando em seu olhos. — Você está bem agora?

Roger estava de volta no quarto. Teve que limpar o suor frio que lhe umedecia a testa.

Tive um trabalhão para acordá-lo. Desculpe tê-lo feito, mas você parecia estar sofrendo muito.

Estou bem — disse Roger com voz amargurada. Não estava.

Aqueles dois devem estar tendo sonhos maravilhosos. Nem acordaram com a sua gritaria - observou Guillermo, referindo-se a Brian e Rhuror jogados pesadamente em suas camas macias.

Ainda estão sob o efeito da poção - Roger. esfregava a nuca e se comportava como se tivesse sido atropelado por um caminhão.

Diga, Roger, o que você sonhou?

Esquece.

Tá bom — Guillermo deu de ombros e foi se deitar, outro relâmpago fez o quarto brilhar.

Margaret e Daniel tiveram sonhos muito parecidos; viram o pai deles gritando seus nomes no meio do Canormut; Rhuror e Talemine viveram batalhas grandiosas contra os crassênidas; Brian sonhou que corria para o portal sem nunca conseguir chegar até ele; Marc teve um segundo encontro musical com o fauno, e Chester, esse quase conseguiu salvar os dois cavalos que haviam morrido tragicamente... quase.

Na manhã seguinte, enquanto Brian descia as escadas, prestava atenção nas paredes e na engenharia do castelo. Um detalhe o deixou tomado pela curiosidade a qual iria esclarecer mais tarde.

No mesmo salão de jantar seria servido o desjejum; o local estava cheio de mesas compridas, algumas com mais de vinte lugares, ocupadas por aprendizes de diversas idades e que degustavam pães, bolos e bebidas doces.

De onde surgiram tantas mesas? — espantou-se Marc, comparando, ao lembrar-se que na noite anterior só havia uma única mesa na qual se serviram das iguarias oferecidas pelos anfitriões.

Ora, seu bobo, da mágica dos desenvals - respondeu Margaret que por pouco não foi atropelada por um garotinho de uns oito anos que corria para o seu lugar.

Nomaktus os aguardava em uma mesa reservada e convidou-os para unirem-se a ele.

São todos moradores do castelo? - perguntou Guillermo que puxava gentilmente a cadeira para Talemine.

Sim, aprendizes que um dia se tornarão verdadeiros desenvals — respondeu Nomaktus, dessa vez o drallengiano Gaompovus os acompanhava no desjejum.

O alvoroço que os aprendizes faziam não condizia com o silêncio encontrado na noite anterior.

Achei que os alunos fizessem menos barulho para comer — disse Daniel, reparando a falação e os talheres batendo sem parar.

Não posso controlá-los o tempo todo — disse Nomaktus que segurava um pedaço de pão, pronto a levá-lo à boca. — O castelo desenval não é um templo onde sussurram orações.

Notei que o quarto onde passamos a noite ficava em uma ala no miolo do castelo — disse Brian. — A lógica diz que ele deveria estar cercado por paredes e cômodos além da porta para o corredor, mas havia duas janelas que mostravam o vale.

De que lógica o senhor fala? — questionou Nomaktus, desafiando a inteligência do professor inglês. — Todos os cômodos desse castelo têm janelas para fora. Creio que nenhum dos meus hóspedes gostaria de dormir em um quarto abafado e bolorento.

Nomaktus fez uma pausa para saborear uma fina fatia de queijo e continuou.

Não levem muito a sério a lógica que aprenderam na escola, aqui ela não tem tanto valor.

Senhor Nomaktus, fale-me mais a respeito da magia dos sonhos — pediu Roger.

O que exatamente quer saber?

Sobre um sonho que tive ontem à noite.

Nada sei sobre sonhos. O que você sonha é seu e só seu.

Mas esse sonho é muito importante pra mim — explicou Roger, esperando por ajuda.

Então vou dizer algo que talvez lhe sirva para alguma coisa: preste muita atenção nos detalhes do que sonha. Eles são respostas às suas dúvidas. Cada objeto, cheiro ou palavra pode significar bem mais do que imagina. Pense nisso.

Roger procurou guardar na memória todos os pormenores do seu encontro com Helen. Talvez um dia aquela lembrança lhe fosse útil.

Com um sussurro, Nomaktus disse alguma coisa a Gaompovus que fez o aprendiz drallengiano se levantar e sair do salão de refeições por um breve instante. Gaompovus retornou trazendo um fardo de tecido semelhante a veludo e colocou sobre a mesa, em frente ao seu mestre que de imediato desatou o nó que mantinha o objeto lacrado. Havia um pote redondo de um palmo de altura e de igual largura, feito de madeira e fechado por uma tampa de couro; também havia uma espécie de pergaminho enrolado e preso por um cordel feito de sisal. Nomaktus passou a discorrer sobre eles.

Esses humildes presentes são mais valiosos do que parecem - ele puxou as duas pontas do laço que prendia o pergaminho, desenrolando-o e abrindo-o sobre a mesa, e se revelou um mapa não mais detalhado do que aquele que os viajantes vinham usando com imprecisão. - Parece bem simples, no entanto, existe magia refinada nessas linhas que demarcam a Cadecália.

É pequeno, como pode ser melhor do que o que temos? - perguntou Roger, não vendo nada de extraordinário naquela carta. O mapa tinha cerca de cinqüenta por trinta e cinco centímetros.

Nomaktus estendeu o mapa até Roger.

Pegue-o e coloque um dedo sobre a bússola desenhada. Agora pronuncie o nome de uma localidade, qualquer uma da Cadecália.

Roger fez o que Nomaktus lhe disse.

Zsenesh — ele aguardou por alguns segundos. — Não aconteceu nada.

Seu sotaque é horrível — criticou Nomaktus. — Carregue mais nos "esses" e tente novamente.

Pois bem - preparou-se Roger, então pronunciou: — Zsenesh.

As linhas se misturaram e formaram um novo desenho; dunas num mar de areia amarelada cresceram no mapa, e no centro, um círculo de árvores envolvia o lago.

Espantoso! - exclamou Guillermo.

-Agora atente para essas inscrições no lado esquerdo - disse o desenval. - São coordenadas precisas que conduzem o detentor do mapa para qualquer lugar que deseje ir: altitudes, distâncias, obstáculos...

Não sei ler o que está escrito - confessou Roger.

Mas eu sei - informou Rhuror. - E Talemine também sabe. É gazivian usual, esse mapa deve ter pelo menos uns mil anos.

Nomaktus admitiu a antigüidade do mapa com um gesto de cabeça.

O mapa perfeito - Brian elogiou o presente.

Gostaram? - indagou Nomaktus. - Mas as qualidades desse mapa não aca­bam aí. Vejam o desenho da bússola, notaram que agora aponta para outra direção? A agulha aponta exatamente para o Zsenesh.

Roger sorriu como se mexesse com um brinquedo novo. Depois olhou para Nomaktus com uma expressão interrogativa.

Esse instrumento é uma relíquia, está disposto a desfazer-se dele por nossa causa?

No momento ele é mais útil e necessário pra vocês do que pra mim. Se um dia puderem trazê-lo de volta, eu o aceito.

Nomaktus alcançou o outro objeto que havia no fardo.

Bem, se tiverem um pouco de curiosidade, devem estar se perguntando o que tem dentro deste pote - ele segurou o recipiente arredondado com as duas mãos e olhou para os convidados como se aguardasse um palpite.

O silêncio foi absoluto. Nomaktus continuou.

O pote guarda uma droga curativa que pode salvar as suas vidas se tiverem um ferimento grave. É chamada de handácea, na Cadecália.

Handácea! - disse Rhuror, um brilho surgiu em seus olhos. — E o medicamento mais raro já elaborado. É raríssimo! Um pote desse tamanho deve conter uma fortuna.

E sabe como usá-lo? — quis saber Nomaktus.

Claro que sei — respondeu Rhuror com um ar de indignação. — E Talemine sabe ainda melhor. Ela é uma experiente médica em Faogard. Não faz muito tempo tratou exemplarmente dos ferimentos de Roger quando eu o surrei.

Pai! — exclamou Talemine, repreendendo Rhuror com energia.

O que foi? Ora, foi só uma pequena desavença, mas agora somos amigos.

Talemine ainda olhava sisuda para Rhuror.

Está bem, Roger depois deu o troco me derrubando no chão com seus socos. Está satisfeita agora? - Rhuror voltou-se para Nomaktus: — Se um dia houver necessidade, saberemos como preparar a handácea.

Mais uma coisa antes de irem - prosseguiu Nomaktus, entregando o mapa e o pote para que Gaompovus os devolvesse ao fardo. - Como eu já havia dito, não posso enviar uma tropa de desenvals com vocês. Seria uma declaração de guerra. Mas dou um conselho: procurem as véussidas em Loreuvena, e falem com Tríssia, a líder delas. Ela é mais sábia que qualquer véussida ou desenval vivos. Temos as nossas diferenças, mas reconheço o valor daquela mulher — disse o desenval, depois fez uma pausa para estimar a distância. — Loreuvena não vai desviá-los muito do seu caminho, em três dias de trote manso estarão batendo às portas do palácio véussida.

Os desenvals abasteceram generosamente os alforjes com alimentos e cederam cobertores novos para as noites frias. Uma carga extra de óleo de felbiana garantiu outras tochas e setas incendiárias, caso precisassem delas.

O Ganvagor e seu castelo de torres altas ficariam marcados para sempre como uma boa lembrança, e um dia, alguém escreveria sobre eles em um livro de memórias.

 

                                       A Sala do Espelho

O rio Nekreagos era o limite entre Edrendora e Loreuvena. Era um curso d'água calmo e de pouca profundidade, possibilitando a sua travessia com o nível da água na altura da barriga das montarias. O Nekreagos corria tranqüilamente para alimentar as terras do sul, e depois de muitos quilômetros, desaguava sem pressa no mar.

Com o novo mapa, presente dos desenvals, aberto sobre a sela do seu cavalo em movimento, Guillermo pronunciava, com a ajuda de Rhuror, os nomes dos lugares que desejava ver surgirem como por encanto. O espanhol tentava falar Palácio das Véussidas em gazivian.

Repita com calma, agora — Rhuror ensinava.

Huzvenag Véussidas - dizia Guillermo, lentamente.

O mapa não tinha reação.

Os "esses" precisam ser ditos com mais intensidade. Sibilados - explicou o faogard. E falava do jeito correto.

Guillermo tentou mais uma vez.

Estou vendo o palácio! - gritou Margaret.

Que conversa é essa, Meg? O mapa está do mesmo jeito — contestou Guillermo.

Não! Ali na nossa frente, uma torre alta — disse Margaret, ela distinguia de longe uma estrutura grande em que se destacava sobre o corpo principal uma só torre com cerca de cento e vinte metros.

O que Margaret via era uma parte do Palácio Véussida, a torre resguardada por cinco cúpulas ladrilhadas, duas delas ladeando a torre frontal, e as outras três compondo o fundo, formando o imponente teto do palácio. O brilho do sol nos ladrilhos dava a impressão de que o Palácio Véussida era todo incrustado de pedras preciosas, um belíssimo efeito para os olhos.

Quando se aproximaram mais, puderam perceber que o Palácio ficava isolado numa ilhota no meio de um lago.

É o lago Vokferon - disse Rhuror. - Pensei que nunca iria conhecê-lo. O seu nome significa espelho... Lago de Espelho.

O nome do lago era bem apropriado. Suas águas eram calmas e cristalinas como um imenso espelho voltado para o céu. Refletia com perfeição o azul celeste e as poucas nuvens que flutuavam acima dele. Não havia nenhuma ponte ou outro meio para atravessá-lo e nenhuma embarcação foi avistada.

Margaret olhou de repente para cima, quando viu Wengarel refletida no lago.

Olhem que coisa mais estranha! Wengarel está toda dourada.

A lua imóvel cintilava como uma esfera de ouro puro e formava um efeito magnífico contrastando com o céu azul.

Como é possível? - indagou Rafael, admirado. — Há poucas horas eu mesmo a vi avermelhada.

Um efeito atmosférico — arriscou Brian, mas não havia nada no ar que sustentasse a sua hipótese.

Como vamos chegar ao Palácio? - questionou Marc. - Será que teremos de nadar até aquela ilha?

Se aceitarem nos receber, vão nos enviar um barco ou coisa assim - supôs Guillermo. - Certamente quem mora naquele palácio já sabe que estamos aqui.

Minutos se passaram e nada.

Daniel havia desmontado e sentou-se bem próximo da margem, aguardando com impaciência. Ele jogou uma pedrinha que ricocheteou por duas vezes no lago e afundou. Ele olhou para Guillermo ao seu lado, declarando.

Não acontece nada. Vamos ficar aqui o dia todo?

Paciência é a palavra adequada, garoto Daniel - antecipou-se Rhuror.

E Daniel, somente para passar o tempo, jogou outra pedra no lago, a pedra deslizou e parou na superfície, sem afundar dessa vez. Os seus olhos se fixaram com interesse na água e ele a tocou com cuidado. O lago havia ficado duro como vidro cristalino.

A água... está sólida! — ele avisou com surpresa, e se levantou: — Todo o lago virou um enorme espelho!

Vokferon... O Lago de Espelho. Muito significativo - sorriu Rhuror. - É hora de andarmos. Em frente, amigos, as véussidas querem nos ver!

Caminharemos pelo lago? — perguntou Rafael, fazendo uma cara de espanto e desconfiança. - E se o feitiço for interrompido?

Aí você vai tomar o maior banho da sua vida - disse Chester, olhando com assombro as águas profundas abaixo dos cascos do seu cavalo.

O lago era liso, mas não escorregadio, e isso fez com que ganhassem mais confiança conforme avançavam na direção do palácio.

Algumas aves sobrevoavam o Vokferon, emitindo seus cantos melodiosos, alegrando os viajantes.

Viam os peixes que nadavam por debaixo deles, ignorando-os, como se cami­nhar sobre as águas do lago fosse uma coisa corriqueira que não assustava mais os habitantes aquáticos do Vokferon.

Chester empunhou firme a rédea e fez o seu cavalo correr, não poderia perder a chance de cavalgar sobre um lago mágico; Margaret e Marc se entreolharam e fizeram o mesmo e foram perseguidos por Rafael e Daniel, entusiasmados com o divertimento.

Cuidado para não tropeçarem em uma tainha! — gritou Guillermo em tom de gozação.

Um cardume de uma centena de peixes nadava velozmente por debaixo de Chester, como se quisesse desafiá-lo em uma disputa. O garoto forçou seu cavalo a correr ainda mais rápido, um sorriso de prazer nasceu nele.

Os meninos chegaram até a ilhota e esperaram um pouco pela chegada dos seus companheiros.

O Vokferon voltou a ondular suavemente com a brisa depois que todos os viajantes tocaram o solo firme da pequena ilha.

Uma escadaria de degraus largos levava aos portões do palácio. Tudo era muito limpo e organizado como se tivesse sido construído naquela manhã. As paredes eram brancas e cobertas com desenhos de animais mitológicos e plantas exóticas, entalhados e pintados em tonalidades que passavam pelo azul, bege e púrpura.

A imensa porta abriu suavemente sem produzir nenhum ruído, como se suas dobradiças fossem feitas com o material mais liso e macio que pudesse existir.

A exemplo de Edrendora, a recepção no Palácio das Véussidas foi feita por uma pessoa jovem que deveria ser a aprendiz das artes mágicas das mulheres que domina­vam as grandes magias. Era uma moça de delicados e vivos olhos amendoados azula­dos; não devia ter mais que dezessete anos, e o seu corpo parecia ser mais esguio, pois usava um vestido longo verde-claro preso na cintura por um cordão brilhante de um material desconhecido; seu cabelo estava preso num arranjo com fios brancos que o mantinham firme atrás da cabeça. A bela jovem tinha os pés descalços e parecia não se incomodar ao pisar o chão de mármore frio. Ela sorriu antes de falar.

Sintam-se confortáveis em Loreuvena, a terra das véussidas. Meu nome é Demnisia. Acompanhem-me para a recepção.

Os meninos ficaram boquiabertos com a sua beleza.

Ela... é linda - declarou Rafael, bem baixinho para Chester.

A jovem atravessou o saguão circular, que tinha as paredes decoradas com figuras de sacerdotisas em posições de reverência, alguns animais estilizados desco­nhecidos para os humanos, e deuses sentados em seus tronos ou ostentando suas poderosas armas. O teto do saguão, que fazia parte de uma das enormes cúpulas, era transparente, permitindo entrar a luz do dia, e os desenhos nas paredes pare­ciam ganhar movimento conforme a posição do sol. Margaret imaginou como deveria ser deslumbrante aquele lugar durante a noite, quando milhares de estrelas cobririam o salão com o seu brilho cósmico. O palácio guardava a mesma quietude do castelo dos desenvals, e ninguém fora observado além da bela jovem.

Para onde vai nos levar? — quis saber Roger, alcançando a moça.

Vieram até nós com um propósito, não é mesmo? Então devem falar com Tríssia. Ela os aguarda na Sala do Espelho.

Tríssia... a sua líder... — prosseguiu Roger.

E a representante máxima das véussidas. A Primeva de Loreuvena, é como costumamos chamá-la. Ela é mais bela do que vocês imaginam e muito mais antiga do que aparenta.

Dizem que dentre as véussidas e desenvals ela é a mais antiga sobre o planeta - sussurrou Talemine para Guillermo e Marc. - Provavelmente tem mais de mil anos.

Deve ser um bom negócio ser feiticeiro - observou Daniel, cochichando com Rafael. - Eles parecem ser eternos.

Nem todos, rapaz - retrucou a véussida. - Alguns vivem muito pouco quando não sabem lidar com a magia.

Ela não deveria ter ouvido o que eu falei - comentou novamente Daniel, sussurrando tão baixo que nem seus companheiros conseguiram ouvi-lo direito.

Mas ouvi muito bem - disse Demnisia sem olhar para trás. - Quase posso ouvir os seus pensamentos.

Cuidado com o que tem em mente, Daniel — alertou Rafael em tom de brincadeira.

Você é que tem que se cuidar - avisou Chester, cotovelando Rafael. - Lem­bra o que disse sobre Demnisia quando chegamos?

Eu ouvi aquilo também — disse ela. — Mas agradeço por ser gentil — e sorriu com simpatia.

Todos notaram quando Rafael ruborizou como um pimentão.

Demnisia os levou até a sala do lado norte, a Sala do Espelho; foi quando viram outras duas véussidas deixando o ambiente, as duas cumprimentaram o grupo com acenos de cabeça sem nada proferirem. Eram igualmente belas.

Beleza deve ser exigência básica para se tornar uma véussida - comentou Guillermo; os olhos de rubi de Talemine voltaram-se para ele com uma chama de ciúmes.

Bem, certamente você seria a mais linda no meio de todas — consertou o espanhol.

Lá está ela — disse Demnisia, estendendo o braço, mostrando uma mulher no fundo da sala. Demnisia retirou-se do aposento.

Era Tríssia.

A mais importante das véussidas era também a mais alta; tinha a mesma esta­tura de Roger, os cabelos longos e muito negros até a cintura, que se destacavam ainda mais pela véussida ter a pele tão alva. Os olhos, cor-de-rosa e expressivos, observavam os visitantes com muita atenção e interesse. Tríssia usava uma veste de tecido drapeado que ia até os tornozelos, ondeando quando ela se movimentava; os pés descalços, como também fazia Demnisia, evidentemente um hábito comum entre as véussidas.

Um espelho alto e largo se estendia por toda a parede ao fundo. Os reflexos daqueles que se encontravam na sala assumiam colorações diferentes.

Estou feliz por estarem conosco - disse Tríssia, sorrindo sinceramente, convidando-os com um gesto para se sentarem em bancos de mármore, de frente para ela que ocupava uma cadeira de encosto alto, igualmente em mármore branco-esverdeado, posicionada em um nível um pouco mais elevado, fazendo-a parecer ainda mais alta.

Nomaktus nos aconselhou a procurá-la, senhora - disse Roger com objetivi­dade.

Ele fez bem — Tríssia aprovou. - A vinda de vocês até nós poderá tornar a sua jornada menos árdua, embora não haja garantia de que consigam cumprir tão intrincada missão.

Como pode nos ajudar? — perguntou Brian, sua maior preocupação no momento era o tempo que se esvaía.

A aventura do seu grupo já é conhecida em grande parte da Cadecália.

Tríssia fez uma pausa, pensativa, buscando maneiras de orientá-los corretamente.

As portas se fecham para vocês e os caminhos serão cada vez mais tortuosos. Minha sugestão é que desistam agora — o rosto da véussida se contraiu em preocu­pação. — Crassen está turbulenta e vocês são o motivo dessa inquietação.

Se não retornarmos, os nossos mundos correm o risco de se confrontarem no futuro.

Sei disso, também - disse Tríssia. — E é só por isso que não tentarei impedi-los.

Os reflexos no espelho mudavam de cor como um prisma enlouquecido.

Acho que o seu espelho está com defeito - disse Marc, incomodado com o comportamento incomum das imagens refletidas.

Tríssia riu e olhou para trás, para o espelho.

Ao contrário dos reflexos multicoloridos dos visitantes, o reflexo do rosto de Tríssia era de uma luminosidade intensa.

Acharam interessante? — disse Tríssia. - Esse espelho foi encontrado em Gazívia, um presente de Zanqeon, o deus das imagens, das cores e da luz.

Tríssia levantou-se e se pôs de lado, suas mãos e seus pés também refletiam radiantes como o seu rosto.

Parece uma deusa, um ser sobrenatural — comparou Rhuror, em contem­plação. Tríssia era uma mulher a qual ele ouvia histórias contadas desde que era criança, uma lenda antiga para ele.

Vocês dois apresentam tonalidades muito semelhantes — Tríssia analisou os reflexos de Guillermo e Talemine onde predominava o brilho violeta. - Estão apai­xonados um pelo outro.

Guillermo sorriu encabulado e apertou a mão de Talemine.

Os garotos tem cores muito parecidas entre si, azul-claro quase branco, o que é natural para essa idade, mas... você, algo o perturba há muito tempo, talvez desde o início dessa viagem, e é muito significativo — Tríssia dessa vez olhava para Rafael. - Está indeciso. Não sabe se quer voltar ou ficar nesse mundo, estou certa?

O diagnóstico de Tríssia emudeceu Rafael. Ela continuou.

Vocês dois são irmãos, isso é inquestionável, e têm um dom especial para a magia — Daniel e Margaret se endireitaram no banco, cheios de orgulho, como se tivessem recebido uma medalha.

O rapaz é um exímio músico, disso eu não tenho dúvida - declarou Tríssia, os olhos de Marc exibiam admiração.

Nós também não temos nenhuma dúvida — apressou-se Chester. — Ele até ganhou essa flauta de um fauno.

Que maravilha! - exclamou a véussida. - E raro os faunos procederem assim.

O olhar de Tríssia voltou-se para o Espelho e imediatamente para Chester.

Você também é muito especial. Uma habilidade singular com certos animais.

Cavalos - disse Chester. — Adoro eles.

Tríssia voltou-se para Brian.

Você é a âncora dessa expedição. Sem você o fracasso é definitivo. Mante­nha-se vivo... é o que posso dizer.

Tríssia olhou finalmente para Roger e Rhuror.

São os guerreiros, conheço seu valor e sua fama, Rhuror, mas... você...

A véussida viu que o reflexo de Roger era diferente.

Há algo em sua alma, em seu coração que o atormenta tanto...

O reflexo do peito de Roger não irradiava nenhum brilho. Era negro.

Uma coisa muito importante tem que ser resolvida por você antes que volte - Tríssia prestou mais atenção e estudou a sombra no peito de Roger com cuidado, o rosto da véussida se transformou e os pelos de seus braços se arrepiaram. — A sua angústia tem raízes em meu mundo.

O que está querendo dizer? — Roger levantou-se bruscamente. — O que há nesse mundo que me atormenta.

Eu... sinceramente não sei — disse ela desorientada. — Mas as respostas estão aqui, em algum lugar.

Roger levou a mão à cabeça como se sentisse uma grande dor.

Não entendo! — disse irritado, depois olhou para Tríssia como suplicasse por uma resposta. — Me ajude...

Tríssia se compadeceu, mas não sabia o que fazer. Também era confuso para ela.

Só sei lhe dizer que seu tormento pode ser resolvido de algum jeito, em alguma parte na Cadecália. Gostaria de ajudá-lo, mas sinto que só você é capaz.

Uma esperança surgiu em Roger, contudo, ela se misturava a sensação de vazio e impotência. Primeiro o sonho com Helen... e agora acontece issopensou Roger. O que devo fazer? A resposta está aqui... a resposta está aqui... Que resposta? Onde encontro? Teve pensamentos conflitantes.

A véussida tornou a sentar-se.

Vieram a nós para pedirem ajuda - disse ela. - No entanto, darei um conse­lho: vão até Paleandrus, a grande cidade a sudeste, e procurem as Armas da deusa Ninqa que serviu ao herói Andrus, quem as encontrar possuirá um enorme poder para lutar.

Paleandrus? Armas pertencentes a uma deusa? — perguntou Brian, pedindo mais clareza.

Rhuror deve conhecer muito bem toda a história que é um pouco longa — disse Tríssia.

Conto pra eles no caminho - comprometeu-se Rhuror, e ainda acrescentou:

As armas ninqanas serão um grande trunfo para quem usar: a Espada, o Elmo e o Escudo.

E sabe exatamente onde estão essas armas? — perguntou Roger dirigindo-se a Tríssia.

Ninguém sabe - respondeu a véussida. — Apenas que estão dentro das mura­lhas da cidade. Paleandrus está vazia, mas não indefesa. Muitos aventureiros reviraram a cidade na intenção de encontrarem tesouros, assim como o maior deles, as armas ninqanas... e pelo que se sabe... todos encontraram mortes horríveis.

Está querendo nos dizer que devemos roubar as tais armas? — indagou Guillermo com certa indignação.

Não - retrucou a véussida. — Apenas que as tomem emprestadas.

E morrermos tentando, não obrigado — desistiu Guillermo. — Prefiro os nossos métodos.

Não conseguirão sem as armas — assegurou Tríssia, os olhos fixos no espanhol. - Eu sei do que falo.

Faremos uma visita a Paleandrus — decidiu Rhuror. — Se concluirmos que o risco é muito grande, seguiremos sem as armas.

Há quanto tempo essas armas estão perdidas? - quis saber Brian.

Mais de três mil anos, pelo menos - disse Tríssia.

Se ninguém as encontrou até agora, isso quer dizer que elas estão bem escondidas - deduziu Brian. - Não temos tempo para vasculhar uma cidade inteira em busca de uma coisa que nem sabemos se está lá.

As poderosas armas estão em Paleandrus — garantiu a véussida.

Iremos e pronto - disse Rhuror. - O que temos a perder? Paleandrus não fica muito distante do nosso caminho. Não seremos prejudicados se passarmos pela misteriosa cidade. A maioria concorda?

Quando Brian e Guillermo, os mais resistentes, aceitaram, foi fácil a adesão dos demais. Estava feito: Paleandrus foi definitivamente incluída no trajeto.

Em outros momentos, Roger seria contra um novo atraso, mas agora tudo havia mudado, a começar por ele.

Uma pergunta arranhava a língua de Marc.

Que idade tem, senhora?

Marc! - exclamou Margaret, censurando-o.

A véussida não conteve o riso e baixou a cabeça, depois lançou um olhar desafiador para o francês.

Quantos anos acha que tenho?

A senhora me parece bem jovem, mas ouvi dizer que tem mil anos, talvez mais.

Um pouco menos, mas você quase acertou — disse ela sem dar muita importância.

Então ela já existia bem antes da América ser descoberta - disse Chester a Daniel, com olhos de espanto.

Esta noite vocês ficam conosco e amanhã partem para Paleandrus - anun­ciou Tríssia. - Demnisia! - ela chamou, sua voz amplificou como se saísse de den­tro de um grande sino de bronze.

Demnisia tornou a aparecer e informou que tudo fora providenciado.

Precisam de banho e comida - disse a auxiliar de Tríssia. — O aspecto de vocês não é dos mais agradáveis.

Experimente andar por milhares de quilômetros debaixo de sol e chuva, enfrentando um monte de perigos e depois me diga se a sua pele continuará macia — as palavras afiadas de Talemine espetaram a véussida.

Demnisia limitou-se a sorrir indiferente.

O garoto francês não se conteve novamente quando passou por Demnisia.

Qual a sua idade?

Adivinhe - disse a véussida.

Duzentos... trezentos anos?

Demnisia sorriu, os olhos azuis brilharam como pedras preciosas.

Tenho somente dezoito anos.

Foi o que eu pensei — disse Marc, e voltou-se para Rafael: — Ela é muito velha pra você, amigo.

Ora, cale a boca, Marc. Você hoje está terrível.

Margaret saiu do seu aposento e encontrou-se com os meninos.

Quero ver aquele salão iluminado pelas estrelas — disse ela. - Vi a noite pela janela do meu quarto, está maravilhosa.

Eles desceram e se encantaram com a grandiosidade da noite estrelada, vista através da cúpula tão transparente como se nada separasse o céu dos observadores, salpicando de luz o chão e as paredes de desenhos magníficos. Wengarel resplandecia como uma imensa bola de ouro maciço.

Como é possível? - encantou-se Margaret com a cor dourada de Wengarel, o dedo apontado para a lua.

Em Loreuvena, Wengarel nunca mostra a sua cor verdadeira — disse Tríssia que descia uma escadaria. - O sangue de Arkopromis nunca será bem-vindo na terra das véussidas.

E Wengarel sempre se mostra dourada? — perguntou Daniel. — Como a senhora muda a cor de um corpo celeste que se encontra tão distante?

É só uma ilusão, só é vista assim em nosso vale, mas isso nos faz sentir melhor - disse a véussida, os olhos perdidos em Wengarel. — Amanhã ela terá outra cor, quem sabe surja prateada... e depois de amanhã, um verde resplandecente ou um azul cristalino... mas jamais o vermelho-sangue de Arkopromis.

Depois de algum tempo, os outros do grupo se reuniram no salão.

O que sabe de Klovanira? - perguntou Brian num dado momento.

A feiticeira perdida? — disse Tríssia, o rosto apreensivo. - Por que me pergunta sobre ela?

Vimos a feiticeira no lago Zsenesh, mas ela escapou.

Brian contou tudo a Tríssia e como Margaret quase se tornou prisioneira da maldição para sempre.

O que me contou é muito grave — disse a véussida transtornada. - Klovanira voltou e trouxe com ela o ódio de seu pai.

Sabe como achá-la? - perguntou Rhuror.

Não, nem sabia que ela vivia no Zsenesh por todos esses séculos — Tríssia lançou um olhar angustiado para Brian. — Ela vai reunir forças e pode nos causar um grande mal. Vocês comentaram sobre isso com Nomaktus?

Não - respondeu Brian. - Não nos pareceu tão importante. Só me ocorreu falar agora porque soubemos que Klovanira é uma feiticeira como você.

Nomaktus precisa saber. Tem que estar preparado. - Um ar sombrio pairou na fisionomia da véussida. - As forças no continente se desequilibram.

A maior das véussidas tinha razão de estar em aflição. O continente começava a entrar em ebulição por toda parte. Primeiro as investidas insanas dos arkoprômidas que tenderiam a se intensificar com a volta de Klovanira; depois o movi­mento cada vez maior do exército crassênida nas fronteiras a oeste do país, em pura demonstração de força e intimidação; e por último, a própria Klovanira se reorganizaria desencadeando o poder malévolo de sua estirpe.

Os arkoprômidas sempre temeram os territórios de Edrendora e Loreuvena, e esse fato dava uma trégua aos constantes receios de emboscadas, mas agora, e cada vez mais, os assassinos de Arkopromis ficariam fortalecidos com o regresso da criatura preferida do deus do mal.

Um sentimento de culpa se abateu sobre Margaret.

Desde que chegamos, só causamos transtorno numa terra que até então era relativamente pacífica, e tudo fica claro se fizermos uma reflexão do que aconteceu: despertamos a ira desses arkoprômidas que nem sabemos direito por que nos odeiam e estamos prestes a deixar um continente em guerra, e se não bastasse, libertamos a malvada Klovanira. O que falta acontecer?

Quanto mais nos atrasamos, pior fica - disse Brian com pessimismo. - Esta­mos andando em ziguezague quando deveríamos seguir numa linha reta.

Ainda estamos no prazo - tranqüilizou Roger. - E o mapa que recebemos de Nomaktus deve melhorar bastante a precisão dos cálculos dos rumos e distâncias.

Naquela noite, Margaret foi acordada num susto. Sua nuca se arrepiou quando ela viu, na penumbra do seu quarto, sua companheira Talemine sentada na beira da cama. O que a assustou foi a maneira em que encontrou a faogard. Os olhos de Talemine brilhavam como prata. A menina já sabia que Talemine ficava assim quando se comunicava com a irmã, mas vê-la com os olhos alterados, bem no meio da noite, era diferente. Um fantasma não seria tão assustador.

Talemine! — chamou com cuidado. — Está tudo bem?

A faogard permanecia sem responder e murmurava alguma coisa que Margaret não entendia. A menina decidiu esperar até que Talemine encerrasse seu transe. Pouco tempo depois a guerreira respondeu.

Meu coração está triste. Uma enfermidade grave definha meu querido avô, o rei de Faogard. Li nos escritos diante dos olhos de Camine. Nunca imaginei que pudéssemos nos comunicar de tão longe - disse, os olhos novamente escarlates.

E a medicina de seu povo?

Tentam de tudo, mas praticamente não há esperança - disse com a voz carregada. - O conselho toma providências para uma iminente sucessão. Meu pai deveria estar em Faogard nesse momento.

Você vai falar com ele agora?

É melhor que ele durma um sono tranqüilo essa noite. Pela manhã saberá o que fazer - disse, deitando-se de lado, voltada para Margaret. - E é bom que você descanse também, desculpe tê-la acordado.

Margaret se despediu e antes que adormecesse, muitas coisas passaram pelos seus pensamentos, até da possibilidade de Rhuror e Talemine retornarem ao seu reino.

O sol ainda não havia nascido quando Margaret abriu os olhos e viu Talemine calçando as botas de cano longo.

Acordou cedo — observou Margaret enquanto esfregava os olhos sonolentos.

Não preguei os olhos — respondeu, habilmente ajustava o cinturão que pren­dia a espada. — A situação de meu avô e os assuntos de Faogard me preocupam — ela foi até a porta e girou o trinco com cuidado. — Continue a dormir, ainda resta uma hora antes da alvorada.

O que vai fazer?

Falar com meu pai. Já está na hora de ele saber o que se passa em Faogard. Durma, Meg.

Quando a porta se fechou completamente, Margaret passou a correr o olhar pelas paredes do quarto até a janela que expunha a madrugada escura; seu corpo não aceitava mais a cama, o sono havia escapado.

Margaret pulou da cama e viu, de sua janela, o lado ocidental do grande lago Vokferon que ainda refletia as últimas estrelas da noite que se extinguia. Um vulto escuro, quase imperceptível, na margem distante do lago, fez a garota apertar o nariz contra a vidraça. Quem poderia vagar sozinho naquela hora da madrugada?

Os passos se dirigiam ao aposento de Rhuror. Talemine hesitou antes de dar a primeira batida na porta, então bateu três vezes antes que a porta se abrisse. O rosto de Brian surgiu do escuro.

Talemine, o que houve?

Quero falar com meu pai.

Claro... vou acordá-lo.

O vão da entrada do quarto se encheu com a presença do guerreiro de cabelos vermelhos.

Filha, por que me procura a essa ho...

Assustadoramente, um grande estrondo engoliu o silêncio e a sossego do Palácio.

O que foi isso?! — disse Brian, saltando para o corredor.

Uma explosão — disse Talemine. — E veio do outro corredor... Meg!

Os três correram pelos corredores iluminados por luzes fracas de luminita até alcançarem o quarto onde se achava Margaret. A porta do aposento estava deslocada, presa apenas por uma dobradiça. O coração de Talemine disparou quando ela imaginou o pior. Quando afastaram a porta, o quarto estava destroçado, os móveis chamuscados e alguns pedaços de madeira espalhados pelo chão ainda sus­tentavam pequenas labaredas. Um grande buraco negro, na parede oposta à janela, exibindo pedras de alvenaria calcinadas, denunciava que bem ali tinha sido o local do impacto; Margaret, jogada a um canto perto da janela, estava imóvel, seu corpo e cabelos chamuscados e cobertos de poeira da explosão.

A guerreira correu até ela e a apoiou nos abraços.

Meg! Meg! Responda!

Margaret respirava com dificuldade. Estava viva, mas ainda era difícil de se saber a gravidade do seu estado.

Brian correu para a abertura da janela, onde não havia mais vidraça.

O que causou isso deve ter entrado por aqui — ele voltou-se para a cavidade na parede do outro lado do quarto. — E explodiu bem ali. Foi uma tentativa de assassinato.

-Arkoprômidas - disse Rhuror, avaliando a forma como foi realizado o atentado.

A líder das véussidas entrou no aposento e depois de uma rápida avaliação dos estragos, transmitiu uma ordem a outras duas véussidas.

Façam uma busca minuciosa em todo o vale e capturem quem fez isso - os olhos dela assumiram uma expressão de furor. - Cacem o autor com determinação implacável, e não voltem sem ele.

As duas véussidas desapareceram pelo Palácio e em pouco tempo toda a Loreuvena era esquadrinhada por dezenas de feiticeiras em seus cavalos de pelagem zebrada.

Os meninos, Roger e Guillermo entraram no quarto devastado e se chocaram ao verem como se encontrava a pequena Margaret.

Minha irmã! - gritou Daniel.

Tríssia agachou-se junto a Margaret desacordada e tocou-a delicadamente no pulso fraco.

Levem-na até a Sala de Cura - ordenou. - Ela precisa receber atendimento rápido.

A Sala de Cura era uma mistura de enfermaria e laboratório de alquimia, saído da Idade Média com todas as paredes ocupadas por prateleiras cheias de potes, vasi­lhames e utensílios, alguns desconhecidos; armários com gavetões guardavam todo tipo de coisas como ervas e pós estranhos. Uma luz branda clareava o ambiente envolto em sombras.

A menina foi deitada em uma cama comprida demais para o. seu tamanho e sua cabeça pendeu de lado ao tocar suavemente o travesseiro.

Tríssia deu ordens específicas a uma véussida de olhos compenetrados e dedos ágeis, que parecia conhecer perfeitamente onde se achava cada uma das centenas de substâncias guardadas naquele cômodo.

Esperem lá fora - recomendou a véussida incumbida de tratar Margaret. - Preciso de espaço para trabalhar. — Na Sala de Cura só permaneceu a véussida e sua paciente.

Um pano, fino como seda, foi embebido num preparado cor de terra e pas­sado delicadamente sobre os ferimentos no rosto, e em seguida nos braços e pernas. A véussida ergueu cuidadosamente a cabeça da menina seriamente enferma e tocou seus lábios com uma bebida de gosto amargo; Margaret recusou num primeiro momento, mas depois aceitou quando a véussida disse com voz aconchegante.

Beba isso, querida, vai lhe fazer bem... beba mais - ela engoliu o líquido com dificuldade.

Foi a primeira reação da garota, e sua respiração voltou ao normal em pouco tempo.

Agora descanse — recomendou sussurrando. — Em breve estará bem. — Margaret contraiu as sobrancelhas ao estímulo da voz hipnótica da dedicada véussida.

Não vou tolerar esse atrevimento - disse Tríssia com grande indignação, do lado de fora da Sala de Cura. — Os Seguidores do Mal provarão o sabor amargo da fúria das véussidas. Vou apurar como esse invasor penetrou em Loreuvena sem ser notado.

O temperamento de Tríssia se mostrava inconstante, ora meigo ao tratar as pessoas, ora impaciente e irritado a ponto de cometer um ato violento.

O que mais desejo agora é o restabelecimento de Meg — disse Talemine.

Daniel apertava nervosamente as mãos. Acontecera de novo com sua irmã; apesar das briguinhas tolas, estava mais apegado a ela.

As atenções preocupadas se voltaram quando a porta se abriu, a véussida diri­giu-se primeiramente a sua primaz.

A garotinha é forte - disse ela com voz tranquilizadora. - Estará recuperada em algumas horas.

Daniel soltou a respiração com grande alívio.

Posso vê-la?

Ainda não, rapazinho - recomendou a curandeira. - Mas assim que puder, você será autorizado.

Quando Margaret abriu os olhos perto do meio-dia, todos estavam olhando para ela.

E então, está me reconhecendo? — perguntou Daniel, aproximando o rosto.

Com essa cara de bobo, só pode ser o meu irmão - disse ela com voz fraca, porém venenosa.

Está nova em folha — deduziu Marc, inclinado para Margaret, a flauta balançando em seu pescoço.

Você parece uma gata, Meg - comparou Chester. - Com tantas vidas assim, vai viver uns mil anos, como a nossa anfitriã, a senhora Tríssia.

O que aconteceu? — ela perguntou ainda confusa. — Náo me lembro direito das coisas.

Brian pôs Margaret a par de tudo. Ela então contou que vira um vulto de roupas escuras na margem distante do lago, diante de sua janela.

A última coisa de que me recordo é uma luz azulada vindo rapidamente na minha direção - disse ela, o cenho contraído como se sofresse para lembrar.

Como se algo fosse disparado pelo espectro? — indagou Rhuror, conduzindo os pensamentos de Margaret.

Isso mesmo — disse, o olhar se movendo em busca de recordações. - Me joguei para o lado, para o cháo, procurando desviar do que quer que fosse, e aí acordei aqui. Tive sonhos desordenados, com muita gente falando e grande inquie­tação. Eram vocês tentando me ajudar, não era?

Era, sim — disse Talemine, sentando-se na beira do leito e segurando a mão de sua jovem amiga, a menina trazia um pouco de sua irmã, Camine, que estava tão longe.

Você disse que era uma luz azulada que foi atirada na sua direção? - insistiu Rhuror, o seu conhecimento em armas se manifestou.

É assim que me lembro dela - disse Margaret.

Como eu suspeitei, usaram dranadiken, um composto explosivo que quando ativado emite uma luz azulada, e tem médio poder de destruição dependendo da quantidade que se utiliza. Pode ter sido atirado na ponta de uma flecha que cruzou o lago, estilhaçando a janela com precisão e explodindo contra a parede do quarto.

Mas uma flecha voa tanto assim? - perguntou Daniel.

Essa voou... se foi uma flecha, no entanto ainda não dá pra saber - disse Rhuror com cautela em sua hipótese.

Então, quem fez aquilo não estava para brincadeira - disse Guillermo.

Não, não estava — disse Rhuror em concordância. - Só não consigo entender por que escolheriam justamente a pequena Meg.

Pode ser que o alvo não fosse exatamente ela - teorizou Rafael. - A margem do lago fica relativamente longe, uns trezentos metros, não daria para identificar uma pessoa na janela fechada com vidro, ainda mais sem a luz do sol.

É possível que você tenha razão - admitiu Rhuror. - Mas mesmo assim, existiu o ataque e quase perdemos a nossa Meg — o comandante faogard sorriu expressivamente para Margaret.

Por toda manhã, Tríssia havia se ausentado de todos. Ninguém sabia onde ela havia se metido, nem as véussidas mais próximas a ela.

Demnisia retornou no início da tarde com outras véussidas e relatou que as buscas haviam fracassado. Reviraram cada canto de Loreuvena e o máximo que encontraram foram pequenos animais escondidos nos arbustos, mas nenhum suspeito que se pudesse atribuir a autoria do ataque.

Não achamos nada — disse ela sem esperança, aos viajantes. — O criminoso deve estar bem longe das terras véussidas nesse momento. Onde está a menina?

Protegida por um séquito de véussidas bem atentas — informou Guillermo. — Encontraram alguma coisa que identificasse a pessoa que fez aquilo?

Nenhum vestígio — respondeu Demnisia. — Como uma lufada de vento ele veio e se foi.

Outra véussida trouxe um recado de Tríssia.

Vocês, visitantes, estão convocados pelo chamado da Primaz, na Sala do Espelho — a véussida voltou-se para Demnisia antes que essa se afastasse - Você também foi chamada.

-Já irei ter com vocês, mas antes tenho que resolver alguns imprevistos - disse Demnisia.

Ela quer você na Sala do Espelho... agora - reforçou a véussida.

Certamente estarei lá - assegurou Demnisia.

A Sala do Espelho estava ocupada por diversas véussidas, cerca de trinta delas, além de Tríssia, sentada em sua cadeira alta como uma rainha que aguarda os seus súditos.

Acho que pegaram o criminoso — sussurrou Rafael para Chester. - Vê as expressões delas?

E olhe o reflexo de Tríssia — alertou Chester. - Irradia uma luz que oscila sem parar como se ela estivesse a ponto de incendiar num fogo azul.

A Primaz véussida fez uma expressão como se procurasse alguém dentre os recém-chegados.

Onde está Demnisia?

Demnisia disse que estaria entre nós em pouco tempo — disse a véussida que havia transmitido a convocação.

Tragam-na a essa sala, agora! — ordenou Tríssia a outras três véussidas de aparência poderosa, o semblante da Primeva exibia perceptível impaciência.

Por que ela faz tanta questão da presença de Demnisia? — perguntou Chester a Brian.

Temo só de pensar, Chester — respondeu Brian que quase não articulou as palavras, olhando com interesse toda a movimentação na Sala do Espelho.

Os minutos que se passaram arrastavam-se como lesmas que sobem em um muro alto, e foi quando Demnisia foi trazida na presença de Tríssia.

Por que não obedeceu ao meu chamado, cara Demnisia? - quis saber Tríssia, a voz saía serenamente.

Muitas coisas para se resolver, Primeira das véussidas - Demnisia justificou- se, o tom de sua voz não era o mesmo, demonstrava insegurança.

E não tem mais nada para me dizer? - provocou Tríssia.

O que eu deveria ter para lhe dizer que a senhora não saiba?

Tríssia olhou friamente nos olhos de Demnisia e prosseguiu:

Poderia me dizer por que o seu reflexo brilha daquele jeito? — Tríssia apon­tou para o espelho e mostrou Demnisia brilhando um vermelho vivo como sangue quando jorra de uma garganta degolada.

A jovem véussida náo soube como se explicar, mas a sua evidente hesitação parecia prever tudo o que estava acontecendo. Ela olhou de Tríssia para as outras véussidas, e delas para os viajantes. Então disse com raiva.

Foi ela! A culpa é toda dela! — os olhos de Demnisia despejavam ódio pela sala, o seu reflexo ficou tão intensamente vermelho que impressionou até as véus­sidas mais experientes.

De quem ela está falando? - perguntou Rafael para si mesmo, e mesmo antes que alguém respondesse, ele rapidamente entendeu a quem Demnisia se referia.

Continue, Demnisia, mostre para mim o que fere o seu coração - exigiu Tríssia com brandura, os olhos fitavam a jovem véussida como uma leoa que espreita o antílope antes de dar o bote derradeiro.

Não há mais nada para esconder — disse Demnisia, a mágoa era vivida em sua voz. - Devem saber de tudo.

Mas antes de começar o seu relato, Demnisia fez uma pergunta a Tríssia:

Como descobriu o que fiz?

A Primeira das feiticeiras da Era de Loreuvena fez um gesto para que uma das véussidas mostrasse algo até então longe dos olhos de Demnisia.

Reconhece aquilo, Demnisia? — perguntou Tríssia indicando algo.

Das mãos da véussida pendia uma túnica escura que fez a jovem véussida tremer. Tríssia prosseguiu.

Foi isso que você usou como disfarce, não é mesmo, véussida tola?

Foi - disse Demnisia, se empertigando, demonstrando que não estava envergonhada nem arrependida de seus atos obscuros. - Tentei acabar com ela, mas fracassei... e tentarei novamente se tiver oportunidade.

Mas por que fez isso, Demnisia? - interrogou Guillermo, atônito com o que via. - Não fizemos nada a você.

Fizeram, sim — disse duramente. — Ela fez... Meg ou Margaret, como quer que a chamem. Ela é o demônio que veio para nos desgraçar.

Cada palavra de Demnisia causava mais perplexidade e confusão. Um burburinho se espalhou pela Sala do Espelho. Só lhes restava ouvir.

Ela é o espírito encarnado do Mal. Por causa dela, meu irmão e meu pai morreram. A Cadecália está em grande agitação desde que vocês aqui chegaram... e vai piorar.

É certo que provocamos desentendimentos, disso estamos cientes - assentiu Brian. — Mas que conversa é essa? Meg não é um ser do mal como você diz, e ela não causou a morte de ninguém.

Não? Os arkoprômidas que mataram seu amigo nas proximidades do desfiladeiro Blarbuk só queriam resolver um problema que vocês, invasores, criaram para nosso mundo. Procurei dar um fim ao nosso infortúnio e arquitetei um plano para eliminar a garota. Eu podia matá-la rapidamente quando ela pôs os pés no Palácio... poderia destruir a todos os que a protegem, mas levantaria muitas sus­peitas, e Tríssia descobriria o meu ardil, como finalmente terminou por descobrir.

É o bastante! - determinou Tríssia, fazendo Demnisia se calar. — Sei que muitos estão sem compreender o que acontece. — A maior das véussidas fez uma pausa e observou Demnisia de maneira enigmática. Não havia nenhuma necessidade de imo­bilizar a véussida transgressora; nada em Loreuvena se comparava ao poder incontes­tável de Tríssia. A revelação contundente se iniciou. - Não foi difícil concluir o envol­vimento de Demnisia com o atentado. É impossível que alguém cruze Loreuvena sem o meu conhecimento, então deduzi que o responsável pela agressão a paz das terras véussidas só poderia estar entre nós, com o meu total consentimento. Por um golpe de sorte ou por vontade dos deuses, vi Demnisia durante a madrugada, atravessar em passadas apressadas os corredores do Palácio, seus movimentos, estranhamente, eram sorrateiros, e ela transportava algo escuro em seus braços. Quando Meg descreveu as vestes da figura misteriosa, tratei de vasculhar o aposento de Demnisia e lá encontrei a prova que procurava. Um erro tolo que a denunciou. Seria prudente livrar-se da túnica, mas mesmo assim eu desvendaria o nome do culpado, obrigando um a um a ficar diante do Espelho de Gazívia... e você sabia que o seu ódio se refletiria nele, por isso tentou evitar a Sala do Espelho.

Tríssia havia revelado apenas parte do mistério, uma outra parte que daria sentido a tudo, ainda estava por vir.

Desde sua chegada em Loreuvena, para se tornar uma véussida, Demnisia lia e relia o volumoso Livro das Histórias Místicas, passando horas entre as suas páginas, e eu sabia exatamente o que mais a atraía: as histórias e profecias relacionadas ao deus Arkopromis.

De que livro ela está falando? - perguntou Guillermo a Talemine, sem des­viar a atenção do que a véussida expunha.

A guerreira faogard contou em breves palavras sobre o livro que narrava histórias, que de tão antigas, se confundiam com as lendas mais improváveis.

Por algumas horas, me ausentei e debrucei-me sobre o livro, examinando-o com cuidado - prosseguiu Tríssia: - Me ative aos contos dedicados a Arkopromis e, final­mente, encontrei o que procurava. Por uma curiosa coincidência, uma página estava marcada por uma delgada fita negra. Naquela parte do livro estava escrito o seguinte:

Tríssia passou a recitar o texto como se o livro estivesse bem na frente de seus olhos.

"Num dia longínquo, não se sabe quando, os cinco deuses reencarnarão em mortais comuns vindos de um reino distante, tão distante que não pertence às terras conhecidas. Com a chegada dos deuses de aparência estranha, ninguém os reconhecerá, e nem mesmo eles em sua imensa sabedoria divina, terão consciência das suas verdadeiras identidades. O retorno dos deuses irmãos não se dará em vão. Uma nova guerra se travará e os povos do leste serão varridos como folhas secas sopradas pelo vento forte em meio a grande destruição comandada pelas civiliza­ções que dominam o oeste, pois estas, receberão a ajuda de quatro dos deuses. A deusa Ninqa triunfará mais uma vez... e Arkopromis sucumbirá para sempre, mas antes que o mais poderoso dos deuses dê seu último suspiro, conseguirá cumprir a sua mais terrível vingança: o mar cobrirá os continentes e reinos inteiros desapa­recerão como se nunca tivessem existido, e finalmente, Wengarel será arremessada reduzindo o planeta a poeira que se perderá no infinito. Como fumaça que se dissipa no ar, o grande estrondo despertará Vagtajonus, o deus que dorme, e uma nova Era se iniciará."

Tudo fica claro agora — Marc compreendeu perfeitamente.

Que bom que entendeu a mensagem, rapaz — Tríssia elogiou. — Você e seus jovens amigos foram confundidos com os deuses irmãos, e essa incrível coincidência provocou a desconfiança e a ira de muita gente.

Como a dos arkoprômidas - disse Rafael, montando o quebra-cabeça em sua mente.

Certamente — aprovou Tríssia, e explicou melhor: - Não havia como não estabelecer uma relação entre vocês e os deuses que são quatro homens e uma mulher; Meg seria a reencarnação da deusa Ninqa, e por isso é perseguida pelos seguidores de Arkopromis; Marc foi associado a Niabardhian, o deus da música e protetor dos faunos, seus filhos queridos; o garoto Chester se identifica perfeita­mente com Zanqeon, o deus da luz e protetor dos animais. - A véussida andou pela sala e seguiu esclarecendo as curiosas semelhanças que existiam. - Sargaleu é o deus guerreiro e o responsável por unir o mundo divino com o terreno, abrindo as esplêndidas passagens existentes, essa vaga fica para você, Rafael... porque o deus maligno só pode ser atribuído a ele - o dedo longo de Tríssia apontava para Daniel.

Eu?! Isso deve ser alguma brincadeira - indignou-se o menino inglês.

Infelizmente essa é uma triste constatação — afirmou Tríssia. — Os arkoprômidas estão tentando matar Meg e separar Daniel para protegê-lo do seu suposto fim trágico. Eles acreditam que em algum momento Arkopromis ressurgirá de suas entranhas, Daniel.

Que história mais doida! — exclamou Rafael, achando como alguém poderia pensar tanta bobagem. Entretanto, tudo era possível nas terras mágicas da Cadecália.

As coisas começam a fazer sentido - refletiu Roger, recordando alguns acontecimentos antes incompreensíveis. - Uma emboscada bem feita poderia aniquilar o nosso grupo de uma vez, mas os arkoprômidas receavam ferir Daniel acidentalmente...

Por isso atacaram Meg quando ela estava sozinha com Bartolomeu — disse Brian, como um detetive que acabara de solucionar um caso policial.

E as mensagens enigmáticas deixadas pelas areias do Canormut. A pequena imagem de Arkopromis esculpida em luminita que brilhou numa daquelas noites. Havia uma intenção naquilo também — argumentou Talemine com excitação.

Lembro bem que numa das noites no deserto ouvi um uivo ou gemido quando me desentendi com minha irmã - disse Daniel. - Eles nos observavam e nossas brigas alimentavam ainda mais as suas crenças.

Daniel parou por um instante quando veio a sua mente o sonho que teve no Canormut, onde viu Wengarel despencar do céu num grande cataclismo. Não, não poderia ser um presságio. Era somente outro sonho mau que ele teve por estar sob forte pressão. Ele não queria pensar que poderia ser a encarnação de Arkopromis. Seria a idéia mais idiota e estapafúrdia que Daniel conseguiria ter.

Tragam a menina Meg a nossa presença! - ordenou Tríssia estrepitosamente, sua voz elevou-se como o de um coral de igreja.

O que está fazendo? - quis saber Guillermo, apreensivo. - Não pode deixar Meg perto de Demnisia. Você viu o que ela fez.

Não se preocupe, senhor Guillermo - a voz de Tríssia agora era leve como uma pluma que voa ao vento. — Nada de ruim acontecerá à menina enquanto eu estiver por perto. Um segundo descuido não acontecerá em Loreuvena.

Muito antes de ser trazida para a Sala do Espelho, Margaret já havia sido colocada a par de tudo pelas véussidas que a assistiam. O rosto de Demnisia se contorceu em revolta quando ela surgiu no grande salão místico. Demnisia esbravejou.

Maldita Ninqa, a mim você não ilude com esse seu rostinho inocente - os dentes da véussida rangiam enquanto ela desabafava. - Seu sangue será derramado pela Cadecália em honra a Arkopromis e sua carne apodrecerá tanto que nem os animais devoradores de carniça suportarão o seu cheiro.

Uma tocha de haste pontiaguda que ardia no salão se desprendeu de seu suporte e voou violentamente na direção de Margaret, a cabeça da menina doeu como se fosse explodir, a tocha parou a centímetros de seu rosto, neutralizada pela fortíssima magia de Tríssia. Demnisia caiu de joelhos e se dobrou com dores lanci­nantes. Ela voltou-se para Tríssia e suplicou:

Ela causou todo esse mal — disse ela referindo-se a Margaret. — Eu só queria ser uma véussida e poder servir a Senhora. Acabe com ela enquanto pode, veja o que está escrito no Livro. A Senhora não pode estar cega para a verdade - Demnisia implorava como se estivesse louca, mas suas palavras eram verdadeiramente since­ras, ela acreditava no que saía de sua boca. - As profecias já começaram a se realizar.

Se é verdade o que diz, porei a menina à prova — disse Tríssia, gesticulando para que Margaret se aproximasse do Espelho. A garota caminhou timidamente, a expressão de seu rosto confusa. - Diga, Meg, quem é você?

Só Meg, ou melhor... Margaret é o meu nome de batismo.

Você é a deusa Ninqa?

Claro que não sou Ninqa. Meu nome é Margaret Crowley.

Tríssia examinou cada tonalidade da imagem refletida de Margaret.

O Espelho mostra que ela diz a verdade — Tríssia encarou Demnisia, desafiando-a a provar o contrário. A aura de Margaret se mostrava clara e macia como era comum entre as adolescentes de sua idade.

Ela engana o Espelho — disse Demnisia em desespero. — Assim como enganou a todos vocês. Ainda há tempo. Matem a garota e salvem-se enquanto têm chance. Ela é o início do fim do mundo. O destino de toda a existência está em suas mãos... Senhora - o desânimo tomou conta da jovem feiticeira, sua cabeça pendeu para frente, parecia não ter mais forças para contra-argumentar.

Iremos embora agora mesmo - disse Brian. - Meg, você está em condições?

Margaret assentiu com um leve balançar de cabeça.

Demnisia ergueu os olhos para Talemine e Rhuror.

E vocês, faogards, como podem trair seu povo? Seu mundo? Malditos sejam! Prometo que encontrarão a morte ao lado deles.

Não tenho medo de você, véussida - Talemine chegou bem perto e a olhou de frente com ar desafiador. — Se você conseguir se safar dessa, cuidado ao andar por aí. Minhas flechas não costumam errar o alvo.

Fala assim porque estou incapaz de reagir - disse Demnisia encarando de volta, seu corpo parecia estar acorrentado por forças invisíveis vindas de Tríssia.

Ainda nos encontraremos, feiticeira, e aí veremos até onde sua magia vai ajudar você.

— Deixe-a, filha — recomendou Rhuror pegando Talemine pelo braço e a afastando. - Não é hora para confrontos.

Ainda faltavam três horas para o pôr do sol quando os viajantes iniciaram a travessia das águas sólidas do lago Vokferon, rumo ao leste.

As véussidas haviam cedido túnicas semelhantes às usadas pelos monges franciscanos na Idade Média para que todos usassem; os trajes tinham longos capuzes que escondiam providencialmente os rostos e dificultavam o reconhecimento de Daniel e Margaret; desse modo, os arkoprômidas hesitariam em atacar por corre­rem o risco de ferir ou mesmo matar por engano o menino que acreditavam ser o seu deus encarnado.

Quando Margaret olhou para o alto, contemplou uma enorme Wengarel verde-esmeralda contra o céu azul. Era o belo presente de partida que Tríssia havia preparado como um sinal de sua amizade. A encantadora lua os acompanharia com todo o seu esplendor até os limites de Loreuvena, onde voltaria a ser a Wengarel tingida de sangue.

 

                                      A Espada, O Elmo e o Escudo

As colinas Cocdais, de ondulações suaves, distavam uns quarenta quilômetros do Palácio Véussida. As Cocdais eram a primeira barreira entre Loreuvena e Paleandrus, e ficavam encravadas no território das mulheres véussidas. Depois dessas colinas, corria o rio Odael, esse sim, a fronteira natural que separava as duas terras uma da outra.

Rhuror planejava passar a noite no topo de uma das Cocdais, de onde a elevação privilegiada dava condições de vigília e defesa mesmo durante a noite.

Do alto, enxergava-se o caudaloso rio Odael que deslizava sinuosamente vindo do norte e fertilizava todo o vale por onde se deitava; da sua bifurcação nascia o rio Mondasiel que corria para Paleandrus. Árvores de copas fechadas se estendiam para além e até a base de outro agrupamento de montes sinuosos, cerca de setenta quilômetros adiante: eram os extensos montes Gavaorum, por onde o rio Mon­dasiel se afunilava, estreitando e chocando-se velozmente contra os seus paredões que serpenteavam até que as águas do rio fluíssem calmamente do outro lado para derramar-se e alimentar a lendária cidade. As colinas do Gavaorum eram o local perfeito de onde se podia ter a primeira visão da impressionante Paleandrus.

O acampamento estava montado e a fogueira luzia nas faces cansadas quando Talemine sentou-se ao lado do pai.

Tudo aconteceu tão rápido hoje, que não tive tempo de lhe falar - disse a faogard.

Falar do quê? - perguntou Rhuror dedicando mais atenção à filha.

Durante a madrugada, Camine se comunicou comigo... li os escritos diante dos seus olhos... meu avô está morrendo.

Tuldoror... — ele murmurou, os olhos se movendo, os pensamentos acelerados.

Acha que devemos voltar? — indagou a guerreira querendo dividir com o pai sua indecisão.

Rhuror pensou mais um pouco antes de responder, o olhar perdido no hori­zonte engolido pela escuridão.

Ainda não. Entraremos em Paleandrus. Quero conhecer os mistérios que aquela cidade esconde e ainda ajudar nossos amigos. Depois decido o que faremos.

As Cocdais foram vencidas e eles beberam e se refrescaram nas águas do Odael; dali, acompanharam as margens do Mondasiel até encontrarem uma estrada antiga que levava aos montes Gavaorum. A estrada, pavimentada com placas de pedras resistentes até mesmo à tonelagem descomunal do drancto, era o primeiro contato com algo construído pelo povo de Paleandrus. Floreiras ladeavam o caminho e dunins-de-ouro, os formosos passarinhos dourados, apareceram em bandos, esvoaçando com o seu canto alegre.

"Wengarel pairava vermelha no céu como antes.

A curiosidade de Rafael se acendeu quando ele se deu conta que uma terra tão maravilhosa era totalmente desabitada.

O que sabe sobre Paleandrus, senhor Rhuror? Ninguém mora aqui?

Dessas terras se originou uma das histórias mais fascinantes da Cadecália - disse o faogard. — O lugar é mesmo desabitado, mas nem sempre foi assim.Tudo começou com um povo pobre e faminto que vagava pelo continente a procura de um lugar onde pudesse viver em paz. Esse povo de que estou falando, sobrevivia nas piores condições que se possa imaginar, resistindo a fome, doenças, frio e todo tipo de desgraça. Muitas de suas crianças morriam antes mesmo de aprenderem a andar, e a força deles persistia na esperança de um dia encontrarem um paraíso com água abundante e terras tão férteis que dariam três colheitas por ano.

Enquanto Rhuror prosseguia falando, o Gavaorum, com suas encostas acessíveis, crescia na frente dos aventureiros.

De suas andanças errantes pelo continente, aquela gente miserável se arras­tou até as terras que hoje chamamos de Paleandrus. Ao se depararem com lugar tão surpreendente, acreditaram que haviam finalmente chegado ao paraíso, mas não contavam que encontrariam o terror em terras tão aprazíveis. O vale era habitado por uma das criaturas mais terríveis que já existiram: um monstro, um ser criado por Arkopromis, nascido para trazer o infortúnio e a morte a quem colocasse os pés nas terras férteis do vale. Seu nome era Yasthaur, o demônio enorme de pele negra e azul, dentes negros feitos de ferro e asas pontudas e espinhentas, e que possuía um insaciável desejo de devorar carne humana. Os primeiros infelizes que penetraram no vale dominado por Vasthaur, tiveram morte imediata. Até crianças encontraram um triste fim na garganta do perverso animal.

O interesse dos garotos foi magnetizado pela lenda que Rhuror narrava, os olhos de Daniel sequer piscavam. E Rhuror prosseguiu mais uma vez contando a lenda.

Depois disso, a cada três ou quatro dias, Vasthaur, em seu aspecto horrível, planava sobre o decrépito acampamento e capturava os que não tinham tempo de se esconder... e não havia muito onde se esconder, e assim foi por um longo tempo. Os coitados estavam em estado lastimável, não conseguiam entrar no vale sem que muitos dos seus perdessem a vida; por outro lado, também não sabiam mais para onde ir; uns diziam para irem embora e procurarem outras terras, porém, outros acreditavam na fé de um jovem escultor: seu nome era Andrus - Rhuror deteve o drancto, queria enfatizar o restante da história. Ele avaliou a encosta e a estrada que seguia por ela. - Andrus defendia que se quisessem realmente o vale, então deviam lutar por ele. Mas como se luta com uma coisa indestrutível que recebeu os seus poderes de um deus? Não faziam idéia de como destruí-lo. Andrus estava desolado com todas as mortes e sofrimento, ele mesmo perdera os pais para a fera do vale e só lhe restava a mulher e a filha pequena. Então houve uma noite - Rhuror desceu do seu animal para descansar antes de iniciarem a subida pela colina e avistarem Paleandrus — que exausto e cheio de incertezas, ele adormeceu e sonhou... o sonho mais bonito e real que teve em toda a sua vida. No seu sonho, a deusa Ninqa falava com ele e os raios de luz que emanavam da deusa subjugaram Andrus fazendo-o prostrar-se. Ela proferiu palavras que possuíam a grandeza do mar e a sutileza do vento. E dizia que o vale estava destinado ao seu povo e que deveriam lutar com perseverança pelo seu domínio. A deusa prenunciou que do céu viriam as armas que livrariam o povo de Andrus da temível besta e que o jovem escultor deveria conduzir a sua nação à vitória: "Enviarei três pedras, e delas, você fará um elmo, um escudo e uma espada para desafiar o filho de Arkopromis". Disse a deusa profetizando. E ela disse outra coisa que ele deveria fazer se quisesse vencer a dificílima batalha. "É impossível destruir Vasthaur ferindo-lhe o corpo, pois o seu maldoso coração bate no interior de uma árvore na floresta que repousa no topo de uma montanha obscura no meio do vale. Escale a montanha onde vive Vasthaur, ache a árvore e penetre sua espada no tronco, na altura de seu próprio ombro, amado Andrus, e se assim o fizer, Vasthaur morrerá e sua gente será um grande povo, respeitado e admirado por todos os reinos que agora existem e que virão um dia". Andrus arguiu Ninqa sobre como reconheceria a árvore ao que ela disse que ele saberia quando a visse.

Parte do sol foi encoberto por Wengarel e o brilho do meio-dia se esmaeceu como num fim de tarde. Uma brisa fresca que desceu da colina aliviou o calor por um breve instante. Rhuror deu seqüência ao relato após saciar a sede em seu cantil.

- Todavia, Ninqa advertiu que somente Andrus poderia guerrear com Vasthaur, caso contrário, sem a proteção das armas celestes, muitos pereceriam no acirrado combate. E Ninqa também avisou que Andrus não voltaria vivo da batalha, mas após a sua morte carnal, ele viveria para sempre, glorificado nos grandiosos jardins de Rohvenell, em Kalípria, uma das moradas dos deuses, e lá ele encontraria todos os seus que pereceram pelas garras do impiedoso Vasthaur. Por fim, o jovem escultor ouviu um grande estrondo que causou perturbação ao seu sono. Contudo, Andrus sentia-se tão bem que não queria mais despertar... nunca mais.

Isso é só uma lenda ou aconteceu mesmo? - perguntou Daniel.

Ora, Daniel, você e as suas interrupções são irritantes — esbravejou Margaret.

Esperem um pouco os dois, já estou terminando... e quando alcançarmos o alto da colina, vocês mesmos poderão tirar as suas conclusões se o que falo não passa de lenda ou se é a mais pura verdade - intercedeu Rhuror em tom apaziguador.

O sol superou Wengarel e passou a correr para o oeste, devolvendo a claridade do dia. E Rhuror continuou relatando a lenda de Paleandrus.

A mão de alguém sacudiu o ombro de Andrus despertando-o do seu sonho extraordinário. Era a amada mulher do herói, Drijnayla, que o acordou e contou, com nervosismo, que perto dali aconteceu uma grande explosão abrindo um buraco na terra. Andrus levantou sobressaltado e correu para o local com grande pressa. No lugar do impacto, ele viu uma cratera profunda e quando se aproximou da beira, distinguiu três pedras negras que ainda fumegavam como lenha em fogueira apagada. Uma das pedras era mais comprida que um braço esticado, a outra tinha o formato quase circular como a roda de uma carroça, e a terceira era redonda como um grande seixo que rola da montanha. As pessoas se amedrontaram, mas Andrus contou o que havia sonhado e isso lhes renovou as esperanças quase perdidas. No entanto, da sua triste sina, Andrus nada pronunciou. As pedras foram recolhidas e o escultor se esmerou durante dias a fio para transformar aqueles três objetos sem forma definida nas armas que Ninqa havia falado no sonho. Andrus era talentoso, e ao final, as pedras brutas deram lugar ao mais belo conjunto de instrumentos de ataque e defesa que jamais haviam visto. Após a conclusão do trabalho, as armas não aceitaram mais nenhum tipo de retoque e se tornaram indestrutíveis pela vontade da deusa.

O faogard fez outra pausa antes de começar a concluir a lenda de Andrus. O seu peito se estufou antes que ele voltasse a narrar.

Era chegado o momento - disse ele. - O Elmo se adequou perfeitamente a cabeça de Andrus, o Escudo se encaixou firmemente no seu antebraço e a sua mão empunhou a Espada afiada com irreparável tenacidade. O escultor abraçou forte sua esposa e em seguida se agachou para despedir-se de sua filhinha de cinco anos chamada Vega. A menina perguntou, na sua inocência, sem entender direito o que acontecia, se o pai voltaria logo, ao que Andrus prometeu com forte aperto em seu coração que venceria e retornaria para ela. Sob aplausos e gritos de incen­tivo, ele adentrou o território resguardado pela terrível besta e seguiu em direção a uma montanha distante e isolada no meio do vale; a montanha servia de morada ao Vasthaur, e era de lá que o monstro divisava toda a região até as encostas mais afastadas. Ninguém entrava no vale sem que Vasthaur soubesse e agisse implaca­velmente, atacando e destruindo com crueldade. Entretanto, com Andrus foi bem diferente, pois o temido filho de Arkopromis não ousou atacar de imediato e se manteve inabalável em sua base de observação, camuflado em uma floresta densa no topo da montanha que, curiosamente, tinha suas encostas graníticas expostas, totalmente livres de qualquer espécie de vegetação.

Naquela altura, os garotos já rodeavam o faogard que falava como um exímio contador de histórias.

- O herói manteve o passo determinado e estacou por um instante antes de começar a subir a montanha onde teria o seu encontro final com o monstrengo. No momento em que Andrus atingiu a metade do caminho, a fera voadora desdobrou suas longas asas e se lançou no ar para enfrentá-lo. A encosta íngreme dificultava os movimentos de Andrus que passou a receber os primeiros golpes vindos de cima. A poderosa magia da deusa Ninqa começou a funcionar: o Elmo, o Escudo e a Espada tornaram-se transparentes e brilharam como luz que atravessa o cristal mais puro. O monstro voador atacava e se afastava, preparando-se para uma nova investida, e atacava novamente ainda com maior ferocidade. Os gritos da fera ressoavam pelo vale e chegavam aos ouvidos temerosos do povo de Andrus. As garras azuis e os dentes metálicos de Vasthaur encontravam constantemente a Espada e o Escudo do guerreiro, estrondando como raios que caem sobre o rochedo, mas as forças do herói eram sempre revitalizadas pelo poder de Ninqa. E assim foi, por um dia e uma noite, que a mais feroz das batalhas entre um homem e um ser monstruoso se seguiu. Tan­tas foram às vezes que os golpes se sucederam, que as muitas faíscas produziram uma fumaça espessa que se espalhou como neblina impedindo que o povo aflito assistisse o furioso embate. Mesmo protegido pela deusa, Andrus acumulava muitos ferimen­tos e o seu sangue respingava pela encosta rochosa. Confiante pela aparente desvan­tagem de Andrus, o diabólico Vasthaur desferiu outro violento ataque e se projetou com todas as suas garras e dentes sobre o protegido de Ninqa que se fechou em seu escudo luminoso cegando a fera por uma pequena fração de tempo; foi quando Andrus afastou o escudo e contra-atacou amputando uma das garras pontiagudas do monstrengo. Mesmo ferida, a fera forçava Andrus para baixo, pois Vasthaur tinha total conhecimento da intenção do herói. Andrus, por sua vez, empregava suas forças para alcançar o alto do monte, e aos poucos, com todo sacrifício que lhe foi imposto, ele foi levando a melhor. O bravo lutador se embrenhou na floresta do alto da mon­tanha enquanto Vasthaur sobrevoava furiosamente, destruindo as copas das árvores e tentando impedir o valente Andrus de continuar indo em frente. Finalmente, em uma devastada clareira, lá estava ela, solitária: a árvore de tronco negro e galhos esfiapados como longos cabelos reinava sozinha e sugava a vida de qualquer outra planta que ousasse brotar em suas imediações. Não seria tão fácil para o escolhido da deusa cumprir o seu objetivo, pois, ao avançar pela clareira, a árvore o atacou com seus galhos movediços como se fossem mil serpentes tomadas de fúria, chicoteando-o com tanta violência que a sua carne abriu em cortes profundos; o suor que escor­ria para dentro das feridas ardia e atrapalhava o incansável combatente. O guer­reiro defendeu-se como podia e a cada passo dado, ele era devorado por impiedosa dor. "A espada deve penetrar na altura equivalente ao do seu próprio ombro". Assim ele recordou as recomendações de Ninqa. Um líquido negro como sangue coagu­lado escorreu das entranhas do tronco quando a lâmina entrou profundamente. A árvore parou de lutar e seus galhos caíram pelo chão como os cabelos de uma mulher medonha. O último grito de Vasthaur foi ensurdecedor e dizem que pôde ser ouvido além das montanhas do vale. O monstro despencou sobre a floresta e nunca mais se moveu. Para se certificar que Vasthaur morrera, Andrus cortou-lhe a cabeça e deixou seu horrendo corpo lá em cima para apodrecer. Os mais velhos contam que o corpo de Vasthaur depois foi separado em milhares de pedaços e espalhado, a mando de Ninqa, por toda a Paleandrus; dos pedaços do terrível bicho nasceram árvores que deram frutos negros e muito saborosos. Ansiosamente o povo aguardava o desfecho quando finalmente Andrus surgiu da neblina e ergueu sua espada em sinal de vitória; a poderosa arma caiu de sua mão e ele foi ao solo, ensangüentado e fraco. Vega, sua adorada filha, correu e derramou suas lágrimas sobre o rosto do pai mortalmente ferido. Andrus sussurrou para a menina que voltara como havia prometido. E foram suas últimas palavras. Vega tornou-se a primeira ceiféride no templo erigido em Pale­andrus, dedicado à deusa Ninqa... e essa é a história, amigos.

Ceiféride? - quis saber Rafael.

Uma respeitada sacerdotisa, como se diz na sua língua — explicou Rhuror. — Foi isso que Vega se tornou, uma sacerdotisa de Ninqa — o faogard agarrou as correias grossas e escalou o drancto com rapidez. - Pulem nos seus cavalos, atrás dessas colinas veremos coisas que jamais se apagarão de nossas memórias.

A estrada pelo Gavaorum começou suave e ziguezagueou pelo lado mais acessível num caminho longo e seguro.

Ao alcançarem o topo do monte, os viajantes finalmente puderam se extasiar com a magnificência que era a visão de Paleandrus. Mesmo a entrada mais próxima da cidade se distanciava cerca de dois quilômetros lá embaixo. Os altos muros que contornavam Paleandrus formavam um gigantesco desenho octangular que se per­dia de vista, e cada um dos oito lados possuía sua própria entrada, possibilitando que, no passado remoto, os habitantes e comerciantes vindos de todas as partes da Cadecália tivessem acesso facilitado ao interior da majestosa cidade. Vista do alto, Paleandrus exibia ruas e avenidas perfeitamente organizadas e simetricamente dis­postas como uma cidade bem planejada com seus prédios importantes e ricamente ornamentados. O sol dourava os telhados das casas e os templos se diferenciavam pela suntuosidade inigualável. O rio Mondasiel seguia seu curso vindo do oeste e passava pelo interior da cidade, ramificando-se em canais que forneciam água em abundância a todos os pontos da metrópole; o rio também servia como meio de navegação para outras terras do leste, e daí se propagava para todos os cantos onde houvesse civilização. Um porto suntuoso ainda agrupava navios que nunca mais navegaram, como se estivessem permanentemente à espera de sua tripulação.

A rica Paleandrus, em tempos áureos, chegou a comportar mais de um milhão de habitantes entre as suas muralhas, e essa população aumentava ainda mais nos dias que os seus portões se abriam ao comércio estrangeiro. Mas toda aquela pros­peridade se perdeu no passado.

Comparada a Paleandrus, a grandiosa Faogard pareceria um mero vilarejo.

Tamanha grandeza não se igualava ao maior ícone da cidade: uma gigantesca estátua de puro granito e com mais de seiscentos metros de altura erguia-se no centro de Paleandrus: a fabulosa estátua de Andrus, conhecida pelo nome de Kelatandrus em gazivian, ou - O Inexpugnável Andrus.

Inacreditável! — foi a única palavra que Guillermo conseguiu expressar ao contemplar a admirável Paleandrus e o seu espetacular monumento.

Nem mesmo o comandante de guerreiros, o experiente Rhuror, conteve a emoção ao vislumbrar a cidade e o seu símbolo maior que povoavam sua mente desde os tempos de criança.

Nem em meus sonhos mais fantasiosos imaginei que fossem tão belos - disse ele, embevecido.

E o impressionante gigante de granito, ao centro, eternizado como o símbolo maior da grandeza, poder e independência dos paleandreses, era simplesmente de tirar o fôlego. O colossal Kelatzandrus, a magnífica obra de escultura que durou séculos para ser concluída, foi entalhado por inteiro na montanha onde se deu a legendária batalha entre Andrus e Vasthaur. As poderosas pernas semi-abertas e bem equilibradas; o tronco reto e imponente com a espada pendendo da cintura e o escudo preso às costas; a cabeça dignamente encouraçada pelo formoso elmo; os braços erguidos acima da nobre cabeça e as mãos abertas para sustentar o imenso disco côncavo que guardava a floresta milenar suspensa a seiscentos metros do chão. Um estupendo trabalho de engenharia artística que consumiu o esforço de toda uma população durante várias gerações.

A cidade de Paleandrus espalhava-se aos pés do gigantesco Kelatzandrus em oito largas avenidas principais que se prolongavam até os portões de entrada. Uma boa parte da cidade foi construída com as pedras retiradas da montanha. E era para lá que os aventureiros estavam indo.

Os viajantes, desconcertados com a fabulosa visão da cidade, iniciaram a des­cida pela encosta oposta do Gavaorum até a sua base.

Os pássaros reapareceram com seus belos cantos e coloridos variados nas proximidades de um bosque e as árvores se encarregavam de ocultar a continuidade da estrada após uma curva.

Um andarilho encapuzado seguia mais à frente e isso acionou o sentido de alerta de Talemine que armou seu arco, pondo o estranho indivíduo em sua mira.

Conheço aquele jeito de andar - desconfiou Rhuror quando o sujeito se virou para trás e mostrou o rosto bem conhecido. - Ora se não é o bastardo do... Lughy!

Talemine esporeou o cavalo antes que Lughy saltasse para a mata e tentasse fugir, mas a única reação de Lughy foi sorrir e acenar amigavelmente.

A faogard manteve o mestiço na mira o que fez ele se espantar e mudar para uma expressão de quem não sabia o que estava se passando.

O enraivecido guerreiro Rhuror deslizou pelo drancto e veio em seguida sacando de sua espada, sua mão forte prendeu Lughy pelo pescoço como se esti­vesse a ponto de estrangulá-lo.

Vá com calma, Rhuror - recomendou Brian. - Podemos resolver isso de outra maneira.

Só conheço um jeito de tratar essa escória - retrucou o faogard, a mão se fechando no pescoço de Lughy que já esbugalhava os olhos.

Você não acha melhor interrogá-lo antes de fazer o que está pensando em fazer? - ponderou Guillermo com diplomacia.

Rhuror respirou fundo e parecia estar contando até dez, então afrouxou os dedos e deixou Lughy voltar a respirar.

O que está fazendo? - desesperou-se Lughy, a voz desafinada, e tossiu engasgado antes de continuar. — Ficou louco? A viagem cozinhou o seu cérebro?

Provavelmente sim, no sol do Canormut onde deveríamos ter morrido, mas estamos aqui, bem vivos, o que você não ficará por muito tempo, seu miserável — disse Rhuror quase espumando de raiva.

-Alguém poderia traduzir o que o senhor dos guerreiros está dizendo? - pediu Lughy, parecendo ou tentando demonstrar que de nada sabia.

E ainda por cima é cínico - encolerizou-se Rhuror, sua paciência por um triz. — Quero ver se a sua fala continua macia quando eu quebrar todos os seus ossos.

Dê-me um minuto, Rhuror - pediu Brian, e contou tudo pelo que passaram no deserto com a sabotagem nas bolsas de água.

Então simplesmente concluíram que fui eu o responsável. Não tive nada a ver com isso - defendeu-se Lughy com uma firmeza incomum ao seu caráter. - Nunca matei ninguém e nem conspirei para que tal acontecesse. Se me matarem, o culpado continuará solto e certamente tentará outra vez.

Desconfia de alguém, Lughy? - perguntou Roger.

De ninguém e de todos — respondeu com imprecisão. - Ora, qualquer um pode ter feito aquilo... e seria necessária mais de uma pessoa para colocar tanta areia nos odres. Me admira que ninguém tenha visto alguma coisa para denunciar.

Pessoas como você entram e saem dos lugares sem serem vistos — insinuou Rhuror ainda em tom de acusação.

Sou tão suspeito quanto Tagodhar, o estalajadeiro seu amigo. Ele não ficou responsável pela carga? E Luminus, o desenval? Ele poderia abarrotar os sacos com toda a areia do deserto num piscar de olhos.

Ainda quer se comparar a eles, seu inescrupuloso? — esbravejou Rhuror. - Nunca roubaram ou passaram alguém pra trás. Já, você...

Pois fique sabendo que nunca pratiquei nenhum roubo, senhor faogard. Nenhuma pessoa das que negociei fez algo contra a própria vontade.

E, isso não faz dele um ladrão — observou Rafael como se fosse o advogado de defesa de Lughy.

Espere um pouco — foi a vez de Brian. - Como você chegou até aqui tão depressa? Não daria tempo se escolhesse ter ido por cima da cordilheira e certamente morreria se usasse a fenda no Vorengor.

Usei um atalho bem mais seguro.Vim por um estreito túnel que passa por dentro do Malthar e mal cabe uma pessoa semi-agachada. Está infestado de insetos e outros bichos pegajosos - ele fez uma cara feia de repugnância. — É claustrofóbico, mas eficiente.

Rhuror e Talemine já tinham ouvido falar do túnel, entretanto, poucos sabiam a sua localização exata e de nada adiantaria se não pudessem passar com os animais.

O guerreiro faogard não havia esquecido de suas suspeitas com relação a Lughy, e deixou claro.

Não ficarei tranqüilo com ele solto por aí.

O que vai fazer, amarrá-lo ou matá-lo, pai? — perguntou Talemine com a frieza de uma guerreira e voltou a apontar sua flecha para Lughy.

Não pretendo matá-lo, mas pensando bem... — Rhuror fitou Lughy com um olhar sinistro.

Não quero ficar amarrado aqui — protestou Lughy. — Esse lugar não é muito visitado atualmente. Poderia levar semanas ou meses para alguém aparecer e me soltar.

Então você vem conosco — decidiu Rhuror, e apontou para o drancto. — Lá em cima, comigo.

Que seja - aceitou Lughy dando de ombros. - Andar sozinho às vezes se faz aborrecido.

O arco de entrada da cidade era alto, duas vezes a estatura do drancto.

A muralha que protegia Paleandrus era tão espessa que comportava torres de vigia do tamanho de uma casa. E era isso mesmo. Uma guarnição inteira ocuparia cada torre de observação. Isso, obviamente, quando Paleandrus era habitada.

As avenidas eram bem cuidadas e as construções não apresentavam rachaduras ou desgastes. Estavam intactas.

Já esteve aqui antes, senhor Lughy? - perguntou Guillermo apreciando o conjunto arquitetônico de rara beleza.

Duas outras vezes — respondeu. — Sabiam que uma maldição proíbe perambular mais de três dias entre esses muros?

Três dias? Por que isso? - interessou-se Marc.

Era um costume local, há muito tempo quando essa cidade fervia de gente — explicou o mestiço dos olhos de duas cores —, a grandiosa Paleandrus permi­tia que seus portões se abrissem aos estrangeiros apenas três dias em cada mês. Negociantes e curiosos invadiam a gigantesca praça principal aos pés do admirável Kelatzandrus. Porém, ao término do terceiro dia, todos os visitantes deveriam sair incondicionalmente. Não havia exceção. Só os descendentes diretos dos paleandre- ses estavam autorizados a morar nesse paraíso. Tudo aqui não é fabuloso? — disse, abrindo os braços para justificar a sua afirmativa.

E o que acontece a quem não respeita essa... resolução? — indagou Roger.

Pergunte ao faogard. Ele conhece muito bem cada magia de Paleandrus.

Rhuror olhava de um lado para o outro como se estivesse a procura de algo muito importante.

Ainda não o achou, Rhuror? — provocou Lughy. — Mas ele está por aí, em qualquer lugar, observando cada movimento que fazemos.

De quem você está falando, Lughy? — perguntou Brian, intrigado com a conversa enigmática entre os dois.

Lughy está falando dele - respondeu Rhuror, mostrando discretamente uma escultura em forma de ave pousada no alto de uma grande edificação, as garras fincadas firmemente sobre o umbral da fachada.

A cabeça daquela estátua está se movendo ou é impressão minha? — pergun­tou Margaret, observadora.

Não é impressão sua, Meg — disse Talemine numa mistura de temor e encantamento. —Aquele é o Cnandauro. Seu olhar nos acompanha. Ele é o guardião da cidade.

O Cnandauro era a mitológica ave de pedra, muito semelhante a Harpia sul- americana, bico curvado comum aos pássaros de rapina, olhos grandes atentos e ameaçadores feitos de pedras vermelhas como os olhos de um faogard; toda a sua constituição, da ponta do bico até a cauda, incluindo as poderosas asas de penas cintilantes, era cravejada com pedras de matizes que coloriam a ave de azul, ver­melho e dourado. Uma escultura viva de quatro metros de altura que mantinha os ladrões bem distantes de Paleandrus.

E o que ela faz além de ficar espiando como uma coruja crescida? - pergun­tou Chester.

Vê aqueles cristais jogados? - disse Lughy mostrando um punhado de pedras parecido com cristais de rocha, espalhado pelo solo. — Já foi um intruso que tentou roubar ou esqueceu-se de ir embora depois do prazo dos três dias. O resultado é sempre esse: o Cnandauro ataca e quando toca o infeliz com suas garras, o desgra­çado cristaliza e se despedaça como um vaso quando cai no chão duro.

Aquilo era um ser humano? - questionou Margaret impressionada, achando que viu a parte de um rosto em um dos pedaços de cristal que brilhava ao sol. — Não quero terminar assim.

Já tentou pegar uma lembrancinha de Paleandrus, Lughy? — perguntou Rhuror com sarcasmo.

Eu estou vivo, não estou? — disse Lughy, como se desafiasse com o olhar o guerreiro para uma luta, e voltou-se para o Cnandauro. — Se o deixarmos em paz e não transgredirmos as regras ele não nos incomodará.

O sol explodia em luzes sobre o Cnandauro que permaneceu inerte quando eles seguiram em frente.

O caminho prolongou-se entre jardins exuberantes pontilhados por flores que exalavam perfumes inundando o ar quente da tarde. Bancos de pedra artisticamente lapidados se distribuíam entre os canteiros, ofertando ao transeunte uma eterna sensação de paz.

Havia estátuas por toda parte. Uma delas tinha a feição melancólica, outra parecia querer enxergar além do horizonte com seus vividos olhos pétreos, uma ter­ceira estendia a mão parecendo esperar um presente dos deuses. Aliás, a sofisticada escultura era uma das especialidades dos paleandreses. O incalculável trabalho que tiveram para dar forma a Kelatzandrus fez deles especialistas na arte em esculpir. Suas obras estavam espalhadas por todo o mundo.

O que foi feito da população de Paleandrus? - perguntou Marc.

Sumiram da noite pro dia - disse Talemine, simplesmente. — Isso aconteceu há muito tempo, quando houve a guerra dos deuses contra Arkopromis. Certa­mente uma grande vingança do deus do mal.

E ninguém suspeita do paradeiro de toda aquela gente? — indagou Margaret.

Existem hipóteses apenas. Uma delas fala que os paleandreses estão presos em uma fenda no tempo e no espaço e se um dia retornarem, quando o encanto for quebrado, não se lembrarão de nada, como se todo esse tempo não representasse nem um segundo pra eles.

Mais à frente, os viajantes tiveram outro encontro surpreendente: um ser de pedra com formas humanas e quase dois metros e meio de altura cuidava de um canteiro, utilizando ferramentas em que ele alternava de um cinturão de metal. Tesouras, alicates e outros utensílios eram habilmente manuseados pela estranha criatura que parecia ignorar a presença dos visitantes. Uma estátua que se movia sem quebrar as articulações era algo fora do comum.

É um fenófero — ensinou Lughy. — Os fenóferos são criações da deusa Ninqa, que zelam pela cidade. São nove ao todo, e cada um deles cuida de uma fatia de Paleandrus, trabalhando sem parar dia e noite.

Então é por isso que Paleandrus está sempre limpa e arrumada — deduziu Marc.

Júlio gostaria de ter um desses como ajudante - disse Daniel lembrando do amigo que ajudava nos reparos na Ilha da Coroa.

Posso chegar perto? - perguntou Rafael dividido entre o receio e a curiosidade.

Vá em frente — estimulou Lughy.

Rafael ficou impressionado quando o fenófero virou a cabeça e o fitou por alguns segundos com seu rosto inexpressivo, antes de voltar ao trabalho; as mãos desproporcionalmente grandes demonstravam leveza ao podar os galhos e preservar as delicadas flores.

Você disse que são nove fenóferos - disse Guillermo. — Mas a cidade é dividida em oito partes. Onde está o nono?

Dizem que cuida da floresta suspensa nos braços do colosso. Ninguém o vê, mas ele está lá há muitos séculos — informou Lughy como grande conhecedor de Paleandrus.

Deixaram o fenófero entretido em sua atividade solitária e prosseguiram pelas ruas desabitadas.

Que interesse os trouxe a Paleandrus? - quis saber Lughy. - Se não pensam em roubar nada, não há muito o que fazer nessa cidade deserta.

Queremos roubar umas coisas — respondeu Rhuror conduzindo o drancto com cuidado.

Roubar... - Lughy deu um sorriso de descrença.

As Armas de Ninqa. Viemos aqui com esse propósito.

Está falando sério? - Lughy inquietou-se.

Estou, mas fale baixo. Não desejo aquele pássaro bicando os nossos calcanhares.

Quero descer. Deixe-me ir embora. Não desejo virar um monte de cacos - exigiu Lughy, a voz desafinada saindo com dificuldade.

Fique despreocupado meio-faogard, nem sabemos onde estão os tais equipamentos de batalha.

E que eles fiquem lá onde estão, bem escondidos - desejou Lughy, o rosto assumiu um ar de indignação. - Acha mesmo que sairão vivos de Paleandrus com o seu maior tesouro? O senhor me decepciona, comandante Rhuror. Imaginei que fosse mais inteligente.

O faogard não deu atenção ao que Lughy dizia e logo mudou de assunto no momento em que entraram por uma avenida de ostentosas casas cercadas por magníficos jardins.

Um desses casarões vai servir de abrigo por essa noite. Está tarde para começarmos o nosso trabalho.

Dúzias de nuvens do tipo cúmulus pairavam no céu com sua aparência fofa de algodão. Estava mais quente e abafado no final daquele dia.

As folhas secas rodopiavam carregadas pelo vento que entoava canções tristes quando passeava pelas ruas desertas.

Rhuror farejou o ar como um nevolort que procura a caça.

Vai chover essa noite - previu ele. — Chuva forte.

Escolheram uma espaçosa e confortável casa de dois pavimentos e largas sacadas que ofereciam vista ao monumental Kelatzandrus. Um jardim espaçoso, repleto de árvores frutíferas, ocupava os fundos da habitação. Um belo chafariz jorrava água límpida produzindo um sonoro e agradável borbulhar.

Num belo jardim no fundo da casa, uma árvore se destacava com seus frutos azuis de finíssimas listras negras.

É comível? — perguntou Margaret a Talemine, desejosa de provar a fruta.

É sim, e muito saborosa. Dizem que só nasce em Paleandrus.

Os garotos avançaram e morderam com prazer.

Lembram da história que meu pai contou? Em que dividiram o Vasthaur em milhares de pedaços e deles nasceriam árvores? Ele estava se referindo a essa árvore.

Margaret cuspiu o que tinha na boca.

Eu comi um pedaço do Vasthaur? - perguntou com cara de nojo.

Ela está só brincando — divertiu-se Daniel, e mordeu outro naco.

Não está, não — disse Rhuror com seriedade. - Vocês estão mesmo comendo os pedaços do monstro.

Então foi a vez de Daniel parar de mastigar e ficar em dúvida se engolia ou cuspia a fruta.

O salão na entrada do casarão não era muito diferente de uma casa em um bairro elegante de Londres ou Paris, mas uma coisa era comum em todas as mora­dias de Paleandrus: numa das paredes havia azulejos de uns vinte por vinte centímetros onde acontecimentos importantes de cada família surgiam em baixos relevos, como um nascimento, casamento ou morte. Era o registro milenar do cotidiano daquele povo misterioso. Com seu olhar de professor, Brian estudou naquelas figuras de contornos bem desenhados, um pouco do comportamento dos antigos moradores, suas atitudes e o modo de se vestirem. Comparou e concluiu como se assemelhavam aos gregos da antigüidade.

Comeram e relaxaram na mesma sala naquela noite; uma pausa confortável que fez Guillermo espreguiçar e cruzar os braços atrás da cabeça enquanto aguar­dava o sono chegar.

Uma belíssima ânfora negra com motivos amarelos foi levantada com curiosi­dade por Chester que se pôs a olhar com admiração.

Devolva isso imediatamente ao balcão — disse Lughy em tom severo.

Chester recolocou o objeto no lugar como se mexesse com explosivos. E se justificou:

Estou apenas olhando.

Então olhe somente... sem tocar — disse o meio-faogard, os olhos pregados em Chester como se quisesse hipnotizá-lo. E continuou falando pausadamente: - Nunca... tire... nada do lugar. Eu já soube de gente que morreu em Paleandrus por quebrar vasos como esse, e sem querer. Não sei como o Cnandauro consegue sentir quando algo é subtraído ou danificado... mas ele consegue.

O vento soprou lamurioso durante a noite, balançando as copas das árvores de um lado para o outro e trazendo um grosso rolo de nuvens negras tempestuosas que se desenrolou sobre Paleandrus como um tapete gigante. A chuva desabou fragorosamente e os relâmpagos iluminaram a cidade como se ainda fosse dia.

É bom dormir ao som da chuva - disse Marc escolhendo um leito que ficava de frente para uma das janelas.

Ele não para de trabalhar - observou Rafael olhando lá fora, na chuva, o fenófero que seguia com seu trabalho interminável, aparando as plantas, consertando o que fosse necessário, a chuva escorrendo pelo seu corpo de pedra.

Naquela madrugada, um trovão forte fez Roger despertar de seu sono agi­tado. Ele jogou as pernas para fora da cama e sentou-se apertando a nuca para aliviar a tensão.

O que houve, Roger? — perguntou Brian ao ser despertado do sono leve, a chuva torrencial arrebentava no peitoril da janela.

É a Helen. Ela aparece nos meus sonhos. Está tentando falar alguma coisa, mas não entendo, não ouço o que ela diz. Depois acordo e durmo novamente, então ela volta e tudo se repete.

E isso não é bom? Ver a Helen?

Não desse jeito. Ela está ansiosa. Quer me avisar de algo muito importante.

Um relâmpago clareou o semblante atormentado de Roger quando Margaret entrou no quarto.

Desculpem, mas eu ouvi vocês conversando e decidi entrar.

Não tem problema, Meg. Você está bem? - perguntou Brian, gentilmente.

Não consigo dormir direito. Uma mulher fica tentando falar comigo nos meus sonhos e eu não compreendo o que ela quer... Acho que é a Helen, professor - Margaret olhou meio sem jeito para Roger, pensando que levaria uma bronca.

Roger estremeceu. Quis saber mais o que Margaret tinha para dizer. O sonho que eles tiveram eram quase iguais.

Muito bem, Meg. Agora vá dormir - disse Brian.

Você viu, Brian? - comentou Roger com excitação, logo depois que Marga­ret se foi: - A Helen está tentando se comunicar. Acho que estou no caminho certo.

Escute um pouco - Brian ponderou: - Talvez Meg tenha ouvido a nossa conversa e inconscientemente pensou ter sonhado o seu sonho.

Não, Brian, não é isso. Helen está mais perto de mim. Não é um devaneio. Helen tem alguma coisa a ver com esse mundo, com essa misteriosa cidade.

Há certas horas em que permanecer em silêncio é a melhor coisa a se fazer. E foi essa atitude que Brian tomou.

Outro relâmpago clareou o quarto e a chuva apertou na madrugada.

Ainda havia uma larga esteira de nuvens quando o sol matutino rompeu o horizonte, fazendo com que o teto nebuloso ganhasse um alaranjado magnífico pela manhã.

O grupo retomou uma das principais avenidas em direção ao centro de Paleandrus.

Vasculhar uma cidade daquelas proporções e encontrar objetos relativamente pequenos seria desanimador se não houvesse uma forte determinação por parte dos aventureiros. Mas por onde começar? E como escapar do vigilante Cnandauro após pegarem o que procuravam?

Responda, Lughy - pediu Rhuror tratando o meio-faogard com mais complacência. - Se tivesse que esconder uma coisa valiosa em Paleandrus, que lugar escolheria?

Se eu disser, você me liberta?

Você não é um prisioneiro, só estou vigiando-o de perto.

Se acharem o que tanto procuram, eu quero sair daqui antes de tocarem naquelas perigosas armas, está de acordo?

É razoável — assentiu Rhuror. — Agora, fale.

Deixe-me pensar — Lughy olhou em volta e respondeu depois de algum tempo: — Na minha opinião, objetos de considerável valor só poderiam ser mantidos em dois locais: no templo da deusa Ninqa e... lá em cima — ele apontou na direção do Kelatzandrus e arrematou: - No imenso prato sustentado pelos braços de Andrus. A floresta no seu topo. A antiga morada do Vasthaur.

O templo, onde ele fica? — perguntou Roger.

Antes de se chegar à imensa praça central, a meio caminho do Kelatzandrus. Essa avenida nos levará até ele - Lughy passou a informação.

Cruzaram a ponte sobre um estreito canal artificial nascido do rio Mondasiel que abastecia o sudeste com suas águas transparentes.

O templo de Ninqa era cercado por colunatas brancas, translúcidas como o alabastro, mas firmes tal qual granito para suportar a pesada construção; o pórtico amplo, destinado a receber os visitantes nos dias dedicados à deusa, era envolvente e místico; duas cascatas saídas das bocarras de dragões de pedras reluzentes desciam de cada lado da entrada, e o som da água corrente se misturava ao vento encanado que penetrava pelo templo: o efeito sonoro era o de dezenas de cristais chocando-se mutuamente.

No interior do templo, aberturas, estrategicamente dispostas no teto, dei­xavam passar o sol, abastecendo de luz as luminitas que brilharam e brilhariam durante todas as noites ao longo dos séculos.

Eles vagaram pelo átrio do templo até alcançarem um grande salão coberto por majestosa abóbada dourada. No meio do salão, duas colunas uniam-se em um arco formando um entablamento reto, e o que Roger vislumbrou acima das colunas o deixou assombrado.

Helen! — ele murmurou, quase perdendo a voz.

Roger ficou estático ao deparar-se com uma estátua de mármore polido sen­tada sobre o entablamento, como se ela descansasse displicentemente em cima de um muro, as palmas das mãos apoiadas e os pés cruzados; o sorriso guardava toda a paz que alguém gostaria de ter na vida; em torno da cabeça havia uma testeira que prendia um diamante em forma de gota que irradiava uma infinita coloração violeta; do pescoço, do mesmo material da estátua, pendia um pingente que exibia o desenho de uma flor aprisionada num cristal, a célebre marca de Ninqa; os olhos, sempre fitando do alto, eram afetuosos e davam a impressão de se agradarem na presença dos visitantes. Mesmo estando sentada, a escultura de mármore atingia os três metros.

Roger parecia ter enlouquecido.

Olhem para ela! - ele exclamou, desesperado, estendendo as mãos para a estátua. — Vocês conheceram a Helen, sabem como era o seu rosto.

Guillermo e Brian trocaram olhares desconcertados.

Roger agarrou Guillermo pelo braço.

Diga! Diga se não se parece com a Helen!

A semelhança é muito grande Roger, mas acalme-se - pediu Guillermo.

Como posso me acalmar, meus amigos? — ele ria com nervosismo e causava constrangimento. — É a Helen que apareceu. Era isso que ela estava tentando me dizer essa madrugada, Brian.

Roger, é uma estátua. Você está fora de si — disse Brian com dureza.

Roger agarrou Brian pela roupa junto ao peito e rosnou com raiva.

É a Helen, e ninguém vai me convencer de que não é ela.

Subitamente ele abriu a própria camisa e puxou o pingente de ouro. O dese­nho era idêntico ao da estátua: uma flor aprisionada no interior de um cristal.

Brian empalideceu ao ver o mesmo desenho no pingente. Roger continuou falando e gesticulando continuamente.

E agora, estou mentindo? Estou louco? Isso é fruto da minha imaginação? Helen me deu isso antes de morrer. Era dela. Sempre esteve com ela... por toda a vida! — ele anunciou aos que não sabiam.

O que está se passando com ele? — perguntou Lughy. Não houve resposta.

Roger voltou-se para a estátua, para as duas colunas que a sustentavam. Havia inscrições de um azul vítreo em uma delas. Ele caminhou apressadamente até aquela e tentou ler freneticamente.

O que está escrito aqui? — perguntou a esmo enquanto corria os dedos pelas ranhuras do texto. — Rhuror, Talemine, sabem o que esses sinais querem dizer?

Pai e filha aproximaram-se e examinaram as gravações.

É gazivian primitivo - disse Talemine, desanimada. — Não entendo nada.

É completamente estranho para mim - disse Rhuror. — Sinto muito, amigo... — então Rhuror olhou para Lughy: — Mas espere um pouco, Lughy, você conhece gazivian primitivo.

Muito pouco... quase nada. Eu sabia ler alguma coisa quando ainda era pequeno, mas não faço isso há anos.

O alucinado Roger correu para Lughy e o arrastou até as colunas.

Leia! Leia pra mim! O que essas inscrições significam? — os olhos de Roger eram de um louco. — E não me engane ou eu mato você!

E muito complicado — Lughy tremia, agora sabia que corria perigo. Não se brinca com uma mente insana. — Não me ameace... estou me esforçando pra ler.

Lughy correu os olhos pelas inscrições procurando combinar os símbolos; agachou-se e tentou ler a base da coluna, depois se esticou novamente. Roger acompanhava os movimentos das mãos trêmulas de Lughy na esperança que o mestiço conseguisse decifrar aqueles caracteres estranhos. Por fim, o meio-faogard suspirou fundo e falou.

A escrita se refere a uma ceiféride. A primeira e a mais importante de todas as que cultuaram Ninqa. Nesse ponto... - e ele indicou com o dedo. — está escrito o nome dela... Vega.

A filha de Andrus - completou Chester, recordando a história contada por Rhuror.

Essa outra parte menciona o diamante encravado na cabeça da estátua, mas isso eu sabia há muito tempo... esse é o Lágrima de Ninqa.

O diamante que nasceu das lágrimas da deusa quando ela chorou pela morte dos pais assassinados por Arkopromis — explicou Talemine. - É uma história bem conhecida entre nós.

Vega falava com Ninqa através do diamante mágico, e agora estou diante dele - disse Rhuror com acentuada satisfação.

Há quanto tempo viveu essa ceiféride? - perguntou Rafael.

Estamos falando de mais de três mil e quinhentos anos - respondeu Talemine.

E como ela foi aparecer no nosso mundo, no pescoço da senhora Helen? - questionou-se Rafael, ele era atraído por mistérios.

Pelo portal, naturalmente - respondeu Margaret como se fosse a resposta mais óbvia a dar.

Após três mil e quinhentos anos? Tem alguma coisa obscura em toda essa história - disse Rafael não se dando por satisfeito.

Brian fixou os olhos no Lágrima de Ninqa.

Ele deve ter uns mil quilates. É estupendo.

Já tentaram roubá-lo - confidenciou Lughy.

E o que aconteceu com o ladrão?

Foi varrido por um fenófero... em caquinhos miúdos - disse em tom tétrico.

Roger, ainda aflito, voltou-se mais uma vez para Lughy.

Há outras coisas que você conseguiu decifrar?

O meio-faogard balançou a cabeça negativamente.

Mais nada. Lamento, mas é só isso.

A expedição pelo templo não havia terminado. Existia uma porta além das duas colunas que servia de ligação a outro salão ainda maior reservado à própria deusa, e a estátua de quase nove metros de Ninqa, localizada ao fundo, eternizada em ouro e mármore azulado. As paredes revestidas com centenas de mosaicos e caracteres indecifráveis.

Pode estar aqui - disse Rhuror ouvindo o próprio eco.

Não me sinto à vontade profanando um lugar sagrado — confessou Lughy.

Você?! Não me faça rir - zombou Rhuror. - Olhe quanto ouro. Seus dedos não ficam tentados em acariciá-los?

Costumo ganhar dinheiro de mortais, não de uma divindade capaz de amaldiçoar a minha pele — alegou.

Passaram o resto da manhã vasculhando cada canto, levantando hipóteses sobre qualquer pista que levasse às Armas.

Por fim, Guillermo não se conteve e disse o que achava daquilo tudo.

Estamos perdendo tempo. Qualquer metro quadrado da cidade pode esconder o que buscamos. As tais armas podem estar enterradas bem debaixo de nossos pés. Quantos aventureiros perderam a vida nessa busca infundada em todos esses séculos?

Recorda as palavras de Tríssia? - disse Rhuror. - Só chegaremos ao Portal se fizermos uso da proteção da deusa. Prefiro confiar no que a véussida disse. Se não acharmos nada até o crepúsculo do terceiro dia, iremos embora. O que me diz?

Guillermo concordou, mas a preocupação de chegar ao Portal no tempo calculado sempre o incomodava.

Precisamos de uma pista — refletiu Daniel revivendo os dias em que ele e seus amigos esquadrinhavam a Ilha da Coroa. - Algo que nos diga: está ali.

Foi naquele momento que Marc, num passar de olhos, notou em um dos mosaicos, o nítido desenho de uma espada, um escudo e um elmo, e algo escrito que contornava os três objetos.

O que está escrito naquela pintura? - perguntou o garoto francês.

Esse eu posso interpretar — disse Talemine. — É gazivian antigo, não o primitivo - a faogard leu com cuidado e recitou: - "Sob o peso da glória, o sangue de Paleandrus venera a sua força".

O que significa? - perguntou Margaret buscando um sentido lógico para a frase.

É óbvio que é isso um enigma - opinou Rafael. - Tem certeza que leu corretamente, Talemine?

Não tenho dúvida - confirmou. - Gazivian antigo não é como o gazivian primitivo, os seus caracteres são bem conhecidos em Faogard. Nossas bibliotecas estão repletas deles.

Roger puxou um pequeno papel do bolso e anotou os dizeres com o auxílio de Talemine. Pretendia estudá-lo meticulosamente mais tarde.

A escrita gazivian havia passado por três fases na história: a primeira, chamada de primitiva, apareceu há mais de onze mil anos no antiquíssimo e extinto reino de Gazívia que lhe deu o nome; a segunda fase, conhecida como antiga, aconteceu à cerca de oito mil e seiscentos anos quando os deuses falaram pela primeira vez aos mortais, sendo bastante modificada a ponto de a fase primitiva quase cair no esquecimento; por último, devido ao constante contato com outras civilizações, surgiu o gazivian moderno ou usual, este falado em toda a Cadecália e no ainda desconhecido continente de Calcávna.

Gazívia foi o reino mais esplendoroso de sua época.

Acho que já é o bastante por ora - disse Brian cansado de procurar em um só lugar. - Melhor tentarmos o Kelatzandrus antes que escureça.

Antes de chegarem à grande praça central, cruzaram pelo porto ao longo do trecho mais largo do rio Mondasiel. Grandes barcos se enfileiravam, esperando para serem navegados um dia.

Me admira como ainda náo apodreceram - observou Roger que conhecia bem das artes do mar. - Por estarem tanto tempo na água, a madeira já deveria ter se dissolvido.

Boa madeira. Bons navios — comentou Rhuror, não levando em conta que os barcos permaneciam inteiros por obra divina. — Deveríamos usar um daqueles maiores e encurtar centenas de quilômetros até as vastas planícies do leste.

Ouse desatracar uma dessas embarcações e seus restos se espalharão pelo convés em pedrinhas brilhantes, para que uma daquelas estátuas ambulantes venha limpar toda a sujeira - preveniu Lughy, pretendendo afastar outra idéia maluca da mente do guerreiro.

Seguiram até a vasta praça no centro da cidade. Sua largura eqüivalia ao diâmetro do gigantesco prato sustentado pela estátua de Andrus, cerca de quatrocentos e oitenta metros. Nos dias de chuva a praça permanecia praticamente seca, pois o disco servia como um imenso guarda-chuva protetor. O rio Mondasiel tornava-se subterrâneo, atravessando a praça bem no meio, sem ser notado, e um quilômetro depois, retornava à superfície e continuava correndo para o leste.

Brian inclinou tanto a cabeça para cima admirando o Kelatzandrus, que seu pescoço parecia que iria quebrar.

É impossível essa estrutura não ter desmoronado — disse ele muito impressionado. — Mesmo o granito não agüentaria tanto peso.

Magia, senhor Brian — assegurou Rhuror. — Somente magia mantém esse gigante em pé.

Como subimos nessa coisa? Pelo visto não há elevadores — descontraiu Guillermo.

Há uma entrada na lateral externa do pé direito — disse Lughy. — Mas nunca tentei subir por ela. Parece estar lacrada há muito tempo.

Eles deram a volta no pé de proporções ciclópicas e chegaram à entrada que Lughy havia mencionado.

Está mesmo fechada - constatou Guillermo, verificando que havia duas aberturas semelhantes a fechaduras. — Alguém sabe como abrir?

Rafael deve saber - adiantou-se Marc. - Ele é um exímio arrombador de portas.

E se não fosse por ele, talvez não tivéssemos conseguido atravessar o portal - completou Daniel.

Ei! Eu não sou um arrombador - defendeu-se. - Falam como se eu fosse um larápio ou coisa assim. Só tenho alguma habilidade com fechaduras.

Dá no mesmo - atacou Chester. — Você acaba abrindo portas que não se pode abrir... Como os gatunos.

Rafael balançou a cabeça com desdém e chegou mais perto, examinando as pequenas fendas ao lado da porta.

Tem uma espécie de engrenagem aqui dentro, posso ver os dentes - ele examinou mais um pouco e concluiu: — Não é de metal, como quase tudo nessa cidade, a engrenagem é feita de algum tipo de rocha... rocha polida.

Consegue abrir? - perguntou Daniel observando de perto como se enten­desse de alguma coisa.

Posso tentar, preciso de um punhal fino e uma vareta que não quebre facilmente.

O punhal foi emprestado por Rhuror e uma haste pontuda foi tirada do meio dos cabelos de Talemine.

Você usa isso nos cabelos? - quis saber Rafael, avaliando a sua rigidez.

E útil em caso de um ataque surpresa, se alguém achar que você não tem mais nada com que se defender — disse ela cheia de artifícios.

O Cnandauro pode não gostar do que estamos fazendo e nos atacar - obser­vou Margaret enquanto vigiava o céu.

Não estamos roubando nada — retrucou Marc. - Só vamos olhar o que há lá em cima.

Rafael pôs-se a trabalhar na fechadura, com empenho. Primeiramente ele for­çou as engrenagens num sentido e escutou o som seco de algo travando. Logo constatou que estava fechando ainda mais a porta.

Não é assim — disse ele e inverteu as posições das ferramentas. Rafael mordia a língua cada vez que fazia um movimento mais complicado.

Daniel riu da sua expressão engraçada.

Não dá pra fazer uma cara menos feia?

Rafael parou por um instante.

Depois que eu abrir essa porta vou tratar de trancar a sua boca.

Daniel, não o atrapalhe - repreendeu-o Margaret.

Rafael já persistia há alguns minutos quando a fechadura fez um novo estalido e a porta inteira recuou um centímetro.

Acho que é desse jeito - ele sussurrou e esmerou-se como se enfiasse linha em uma agulha.

De repente a porta voltou à posição anterior. Algo havia saído errado.

Depois de um longo suspiro, Rafael começou tudo de novo.

Pela segunda vez a porta afundou na parede. Rafael lambeu os lábios e pressionou o mecanismo com cuidado.

Parece que agora eu descobri como isso funciona — e a porta foi se enter­rando na rocha sólida à medida que ele aplicava o movimento correto.

A porta de pedra afastou-se totalmente para dentro e abriu-se para o lado, A passagem estava liberada.

Garoto, estou surpreso com você — disse Rhuror em tom de elogio. Rafael sorriu orgulhoso de si mesmo.

Na outra extremidade da praça, um homem corria desesperadamente olhando de vez em quando para trás. O motivo da sua pressa e do seu desespero vinha do alto com as garras abertas: o Cnandauro. O homem jogou-se no chão desviando do bote e obri­gando a ave a fazer uma manobra aérea para outro ataque, mergulhando. Dessa vez o fugitivo não teve a mesma sorte e uma das garras segurou-o pelo tronco, elevando-o no ar, seu corpo transformou-se imediatamente em cristal de rocha. O Cnandauro soltou a sua presa que se espatifou ao bater no chão da gigantesca praça circular, e em seguida voou para longe, para a sua vigília inexorável.

Não quero ir com vocês — disse Lughy amedrontado, afastando-se para evitar encrenca. Rhuror segurou-o pelo braço.

Ainda não fizemos nada de errado, meio-faogard — afirmou com rigor.

Ainda não, mas logo vão fazer e eu não quero estar por perto quando isso acontecer.

Ora Lughy, não há o que temer - disse Talemine calmamente. - Você estará livre antes de pegarmos as armas, confie no meu pai. - Lughy não viu alternativa e aceitou momentaneamente.

Você vai na minha frente — determinou Rhuror, empurrando Lughy.

Um odor de coisa fechada há muito tempo foi sentido quando o eles adentra­ram o vestíbulo que antecedia uma escadaria que se perdia para cima, na escuridão, pelo interior da perna direita do Kelatzandrus.

Pelo ar abafado, devia estar fechada há séculos - disse Guillermo, sendo ele o primeiro a pisar os degraus.

A escada escavada na rocha subia em uma espiral contínua até o topo. De tão escuro que era o caminho, foram obrigados a lançar mão das indispensáveis luminitas.

Os primeiros cem metros de subida foram os mais difíceis até os músculos se acostumarem ao esforço.

Uma janela quadrada feita na rocha dura aparecia em intervalos regulares de uns cinqüenta metros, deixando o ar mais respirável e permitindo entrar um pouco de claridade. Marc enfiou o tronco pela abertura e contemplou a cidade, depois inclinou a cabeça para cima.

Ainda falta muito, temos que nos apressar.

Continuaram subindo cada degrau, sem descanso, em um só ritmo. O chefe dos guerreiros faogards era o mais entusiasmado, e dizia palavras de encorajamento.

Fôlego, pessoal, não é hora de desistir - incentivava, pois esperou por aquele momento por toda a sua vida. - Estamos quase na metade do caminho.

Só na metade? - reclamou Margaret, arfando entre as palavras.

Após algumas janelas, a vista já se equiparava aos picos do Gavaorum. O Cnandauro planava lá embaixo à procura de ladrões.

Se alguém se desse ao trabalho, contaria três mil seiscentos e oito degraus percorridos em uma hora e trinta e três minutos, um tempo razoável para alcançarem aquela altura.

A claridade da saída trouxe alívio aos ânimos exauridos, e a lendária floresta finalmente se revelou.

A floresta era composta de vegetação exuberante e entremeada de flores encantadoras. Um jardim a seiscentos metros acima da fabulosa cidade. O grandioso santuário suspenso.

O vento se tornava mais intenso naquela altitude fazendo as folhagens farfalharem.

Um caminho de paralelepípedos avançava e desaparecia por entre as árvores. Alguns pássaros voejavam e bicavam frutinhas pendentes de galhos vigorosos.

Margaret tomou a frente e pôs-se a caminhar sem pressa.

Os outros garotos correram para a borda do gigantesco disco côncavo e tive­ram o privilégio de observarem Paleandrus bem do alto. O vento os empurrava levemente para trás.

Brian, ciente do perigo, alertou:

Não cheguem tão perto da borda, meninos.

Os jovens não se deram conta do aviso de Brian e prosseguiram admirando a vista magnífica.

Venham, rapazes! - gritou Guillermo. - Tem mais coisa para se ver desse lado.

Após percorrerem uns oitenta metros no meio de árvores robustas e viçosas, o caminho terminou em uma praça ajardinada e cercada por estátuas de mármore que tudo indicava serem de ceiférides em eterna adoração. Ao centro, a figura de Andrus em posição de combate, enfrentando o aterrorizante Vasthaur que atingia quatro vezes a estatura do herói. Uma outra escultura bela e radiante, a da deusa Ninqa, sustentava os braços do guerreiro e o encorajava a continuar lutando.

Se esse monstro em pedra já assusta, imaginem o verdadeiro — comparou Chester, referindo-se ao Vasthaur.

Por um breve instante, ocorreu a Guillermo que as Armas de Ninqa poderiam estar camufladas sob a própria escultura do guerreiro. Era uma suposição válida, mas houve contestação por parte de Roger.

As dimensões da estátua são um pouco exageradas, não caberiam em uma pessoa normal.

Por isso mesmo — argumentou o espanhol. — As armas em tamanho natural podem estar por baixo desse revestimento de pedra.

É uma boa teoria - disse Brian verificando as dobras e saliências que davam forma ao elmo. — Mas para termos certeza do que diz, precisaremos quebrar essa obra de arte.

Façam isso e o Cnandauro estará sobre nossas cabeças em alguns segundos — preveniu prontamente Lughy.

Roger sentou-se em uma elevação de pedra que servia como banco aos adoradores do passado e leu novamente o que havia anotado no templo de Ninqa.

"Sob o peso da glória, o sangue de Paleandrus venera a sua força" — ele analisou por algum tempo e continuou: — Não vejo como essa mensagem pode ter alguma relação com a estátua.

O que pode ser o sangue de Paleandrus? - questionou Marc. — Será que um pouco do sangue de Andrus foi preservado até hoje, guardado em um lugar secreto?

Pode ser — admitiu Rhuror. — Mas se for, onde está e como ele nos indicará o local que procuramos?

Perguntas, perguntas e mais perguntas — disse Lughy. — Desistam e vamos embora enquanto podemos sair sem medo do guardião de asas petrificadas. Se des­truírem qualquer bem material de Paleandrus, todos seremos mortos.

Eu poderia usar o meu martelo e acabar logo com essa dúvida — disse Rhuror, sua mão forte ostentava o cabo da arma brutal. — Mas isso seria um desrespeito à Deusa e ao herói. Portanto, digo que devemos pensar mais um pouco e se for da vontade de Ninqa, as suas armas serão encontradas.

E se a deusa não quiser se envolver com os nossos problemas? — perguntou Daniel.

Teremos essa resposta até amanhã quando o sol se pôr, então o poder das armas de Andrus estará conosco ou Paleandrus será apenas mais uma lembrança inesquecível aos nossos corações — ao dizer aquilo, Rhuror notou que o grupo náo estava completo. - Onde está o garoto Chester?

Aqui! — respondeu imediatamente o jovem cavaleiro. - Descobri uma coisa que os deixarão de queixo caído.

Chester se referia ao que viu além do pátio que simbolizava a lendária batalha: a legítima cabeça de Vasthaur jazia amparada em uma coluna como um troféu exibido numa clareira semi-escondida por árvores de grande porte, as feições contorcidas, a última expressão de terror ao ter o coração trespassado pela espada fulminante.

É de verdade? — perguntou Margaret, como se estivesse diante de um dinossauro recém-abatido.

Claro que é - confirmou Daniel. — Não está vendo que a pele e os músculos são autênticos?

Os dentes são mesmo de metal, como nos contou Rhuror - constatou Marc pressionando cuidadosamente com os dedos, receoso que a boca do monstro se fechasse bruscamente.

Daniel imaginou se tivesse que enfrentar aquela coisa, mesmo possuindo armas impregnadas de poderes divinos. Os olhos do bicho pareciam fitá-lo furiosamente e faziam os pelos de sua nuca arrepiarem.

No centro da clareira, seca e derrotada, jazia a árvore detentora do coração da criatura; em seu tronco curvado e enrugado, um rasgo, uma profunda cicatriz que ficou para relembrar por onde a espada penetrou triunfante. Os galhos, escorridos pelo chão como longos cabelos, sem vida, mas ainda ameaçadores.

Assustaram-se quando um fenófero passou por eles, pesado, movimentos lentos, indiferente, carregando um grande saco de tecido cheio de folhas e galhos secos, e logo voltou a desaparecer no meio do bosque.

O nono fenófero! - disse Rafael, reparando que havia pequenos detalhes que os diferenciavam entre si, mas a expressão nos olhos era sempre a mesma, vazia e distante.

Brian arriscou-se até a beirada vertiginosa do imenso prato e perscrutou compenetrado o complexo de ruas e prédios desabitados. O vento fazia seus olhos se apertarem.

O sol alaranjado iniciou seu mergulho sobre o horizonte. Era hora de descer.

A noite havia chegado. As estrelas cintilavam como nunca; eram faróis espalhados pelo firmamento de Paleandrus desafiando as milhares de luzes da gloriosa cidade.

Roger esticou-se confortavelmente na varanda da bela casa, auxiliado pela luz vinda de uma luminita; alternava o olhar entre o jardim escuro e perfumado e a leitura da mensagem cifrada; e lia alto e pausadamente para que Rhuror e Brian ouvissem.

"Sob o peso da glória, o sangue de Paleandrus venera a sua força". O que pode ser? - e ergueu os olhos para os companheiros, aguardando um palpite.

O "peso da glória" — disse Rhuror. - Não há nada mais pesado por aqui que o notável Kelatzandrus. Será que é tão simples assim?

É um bom começo — disse Roger sem se empolgar. — Afinal, o colossal Kelatzandrus representa a glória da cidade.

Mas ainda temos o "sangue" — lembrou Brian oportunamente. — E que "força" é essa? O que significa?

Essa "força" deve estar relacionada com as armas ninqanas. São os objetos mais fortes de Paleandrus e um dos mais poderosos do mundo — disse Rhuror.

Mesmo assim, a frase ainda fica um pouco sem sentido — observou Roger enquanto coçava o forte queixo. — O que é esse "sangue"?

De repente uma imagem se apoderou da mente de Brian, tomando-o de empolgação. Era a mesma que ele viu do alto da estátua de Andrus.

O sangue de Paleandrus! - exclamou entusiasmado. - O que é imprescindível a Paleandrus e está em estado líquido?

A água - respondeu Rhuror, simplesmente.

É exatamente isso! - continuou Brian a expor a sua descoberta. — A água irriga toda a vegetação, faz funcionar os chafarizes, dá vida à cidade. É o seu sangue.

Acho que estou entendendo - disse Roger, no entanto Brian não deu tempo que ele continuasse falando.

Vejam como o texto agora faz sentido: "Sob o peso da glória", sob Kelatzandrus; "o sangue de Paleandrus", a água de Paleandrus; "venera a sua força", cultua, guarda as armas.

Acho que você desvendou o enigma, Brian - disse Rhuror, felicitando o amigo. - O Mondasiel passa bem debaixo do Kelatzandrus. As armas só podem estar lá embaixo.

Tiveram um breve encontro, no dia seguinte, com o fenófero varrendo um entulho de folhas e galhos que havia podado naquela manhã. O olhar indiferente se fixou mais uma vez em Rafael, fazendo o garoto se perguntar se o ser de pedra seria capaz de pensar. Rafael jamais saberia de fato.

Encontravam-se pela segunda vez na praça central, diante do maior símbolo de Paleandrus. Roger disse após estudar de um lado a outro a grande área aberta.

O rio penetra na terra uns setecentos metros vindo daquela direção, passa sob o Kelatzandrus e retorna à superfície depois daqueles prédios do lado leste. As nossas esperanças estão no subsolo como Brian deduziu. Espero sinceramente que esteja certo.

Foi a vez de Brian expor seu plano.

Um bom nadador pode mergulhar no rio e seguir a correnteza para ver o que há lá no fundo. Já temos um voluntário — e desviou os olhos para Roger. - Roger irá sozinho, alguma pergunta?

Eu tenho, duas — interrompeu Marc. — E se ele achar as armas, como se livrará do Cnandauro? E o que faremos? Na certa também seremos alvos das garras da ave.

Não farei nada... por enquanto — explicou Roger. - Isso dará tempo até que vocês saiam da cidade em segurança. Lughy nos disse que o Cnandauro nunca vai além das muralhas de Paleandrus, mesmo para capturar um larápio.

E nunca precisou ir - disse Lughy. - O Cnandauro sempre pega a sua presa antes.

Roger continuou explanando como pretendia escapar do Cnandauro.

Caso eu consiga as armas, tentarei a fuga pelo rio, mergulhando e subindo até ficar livre.

Você já imaginou o peso dessas coisas? - questionou Guillermo. — Podem arrastá-lo para o fundo do rio. Você levaria horas para atravessar Paleandrus a nado e estaria exausto no final. Correria o risco de fracassar e morrer.

Vou mergulhar e me certificar primeiro se as ninqanas estão escondidas naquele lugar. Se alguém pensar em algo, me avise.

Eles se posicionaram na entrada onde o Mondasiel era engolido por um túnel rochoso. Roger despiu-se da camisa e tirou as botas, em seguida encaixou no ombro um rolo de corda e conferiu se sua faca estava bem presa. Então mergulhou, desa­parecendo rapidamente na água agitada.

Ele pode se afogar — temeu Margaret. - Os rios subterrâneos são sempre perigosos.

Eu confio nele — disse Chester. — O professor Roger é o melhor nadador que conheço.

Vamos para a saída do Mondasiel no outro lado — disse Rhuror. — Por aqui ele não volta mais.

Roger era puxado pelo rio em velocidade. Em vários pontos não havia como subir para respirar, a água ocupava quase todo o espaço do túnel. Somente em alguns intervalos era possível emergir a cabeça e puxar o pouco ar existente, as mãos fortes do nadador se agarravam como podiam na pedra escorregadia. Roger ganhava novo fôlego e prosseguia mergulhando. A escuridão era quase absoluta e ele precisou, mesmo lançando mão da luminita, tatear o percurso para se localizar. Após algumas cansativas subidas e descidas para renovar o ar dos pulmões, Roger, por fim, encontrou um grande obstáculo que tinha o formato de uma larga coluna cilíndrica que se ligava do teto ao leito do túnel submerso; envolvendo a parte superior da coluna, havia uma galeria natural onde o ar era abundante. O explo­rador subiu por uns segundos para respirar mais uma vez e mergulhou apalpando os lados da estrutura sem encontrar qualquer entrada, portinhola ou sequer uma simples fresta. A operação foi repetida outras duas vezes em que Roger vasculhou detalhadamente cada centímetro. Nada encontrou.

Roger surgiu onde o rio voltava a correr a céu aberto, sendo ajudado por Rhuror que o tirou da água com um puxão. Ele recobrou o fôlego e relatou o que havia encontrado.

Há uma grossa coluna lisa como espelho obstruindo parcialmente o fluxo do rio. Não há nenhuma entrada, pelo menos não encontrei uma.

O que uma coluna faz no fundo de um rio subterrâneo? - perguntou Rafael com o propósito de provocar explicações.

Guarda coisas em seu interior, eu acho — respondeu Daniel.

Consegue calcular em que posição a coluna se encontra? - indagou Tale­mine a Roger.

Acho que sim. Pela distância percorrida, sou capaz de apostar que o pilar fica sob os pés da estátua de Andrus.

O grupo se apressou em voltar ao Kelatzandrus.

Deve haver uma entrada no mesmo nível dessa praça — disse Brian, seus pensamentos avaliavam as possibilidades. - Há um vestíbulo que antecede a escadaria no interior do colosso, e é lá que devemos tentar primeiro.

Não haviam reparado antes, mas bem na entrada do colosso, que dava acesso a escadaria, havia um disco com cerca de um metro e meio de diâmetro no piso, envol­vido por dezenas de minúsculos traços perpendiculares como quando uma criança desenha um grande sol no papel. Uma tênue linha reta ia do centro até a borda da roda. Brian examinou com atenção e percebeu que a tal circunferência na realidade era uma pesada tampa de pedra precisamente cortada e encaixada no restante do pavimento. Ele forçou as frestas com a ponta de uma faca e constatou que a tampa estava tão ajustada que nem uma fina lâmina penetrava no espaço quase inexistente.

Não tem como abrir. Essa tampa é como uma rolha apertada em uma garrafa.

Tampas e portas são a mesma coisa - disse Rafael com autoridade. - Servem para bloquear passagens. Portanto deve existir algo que a desobstrua.

O garoto correu os olhos pelas paredes e o teto. Aparentemente não havia nada que lembrasse uma alavanca, botão ou fechadura. Mas havia uma outra coisa: no teto, bem acima de suas cabeças, um outro círculo menor de uns setenta centímetros de diâmetro, exatamente sobre o disco encaixado no chão; era adornado por um baixo relevo da deusa Ninqa apontando para uma circunferência ainda menor; inscrições circundavam o disco que envolvia a deusa.

Alguém consegue ler? - perguntou Rafael mostrando a figura no teto.

Outra vez gazivian antigo — disse Lughy, e inclinou bem a cabeça para fazer a leitura. — "Rodopiando como um redemoinho o sono se desfaz quando o sangue se afasta, o sol levanta duas vezes para Calcávna e se deita apenas uma vez para o distante mar enfurecido, por três vezes em Calcávna a brisa verdejante traz de longe o seu frescor e as três mãos, em sacrifício, por quatro vezes no distante mar enfure­cido, poupam o mundo de seu trágico fim".

Rodopiando como um redemoinho o sono se desfaz quando o sangue se afasta... — tentou repetir Brian. - Esse enigma é ainda mais confuso que o anterior.

Roger tratou de anotar cada palavra em seu papel amassado.

Não há tempo a perder — disse ele agachando-se e apoiando a folha no chão para que todos lessem. — Rodopiando como um redemoinho o sangue que se afasta... novamente o rio. Pode ser que o rio seque ou... mude seu curso - ele ergueu os olhos e dividiu sua dúvida. - Será isso?

Teremos que fracionar o texto se quisermos decifrá-lo de uma vez - sugeriu Guillermo, ele olhava para o céu lá fora. - O nosso tempo está acabando.

Brian fitava o teto quase sem piscar e proferiu.

Não é o rio.

O que disse? - perguntou Roger.

O sangue, não tem nada a ver com o rio. Notem aquele pequeno círculo para onde o dedo de Ninqa aponta — Brian fez uma pausa dando tempo para refletirem um pouco e continuou: - E Wengarel, a lua de sangue. Vejam agora a outra parte da frase: o sono que se desfaz pode significar que as armas que estão ocultas como se dormissem, podem despertar se uma seqüência de acontecimentos se concretizar. Agora prestem atenção como fica se a frase for interpretada de outra maneira: As armas serão trazidas à luz quando Wengarel se afastar.

Afastar Wengarel? - surpreendeu-se Margaret. — Como faremos isso?

Não a verdadeira Wengarel - disse Brian, e solicitou auxílio. - Rhuror, o seu martelo consegue pressionar o pequeno círculo ali no teto?

Rhuror não pensou duas vezes e fez o que Brian solicitou. Sua mandíbula se contraiu com o esforço.

Não acontece nada — disse o faogard concluindo que estava usando o método errado. — Se afastem um pouco. Quero tentar do meu jeito.

Rhuror empunhou o martelo e passou a girá-lo mais e mais rápido até que a arma se chocasse violentamente contra o teto de pedra.

O disco rochoso entrou no teto com o impacto da martelada certeira e destravou o disco maior aos pés de Rhuror, desequilibrando-o e quase o fazendo cair no chão.

A tampa redonda passou a girar para os dois lados com facilidade como se suas engrenagens tivessem sido azeitadas no dia anterior.

Ainda havia mais coisas a fazer antes que o disco cedesse e liberasse a passagem.

São coordenadas - disse Rafael após estudar o desenho no chão.

Todos se voltaram para ele.

Percebem? Os traços curtos em torno do disco são coordenadas, que se forem alinhados em uma seqüência correta com o risco que serve de guia e que sai do centro da roda, farão o sistema todo destravar a entrada para o interior da coluna. Só pode ser isso.

Como se fosse o segredo de um cofre - entendeu Marc perfeitamente.

Mas ainda falta a solução do enigma — lembrou Margaret, oportunamente.

Leia novamente a frase, Roger - pediu Brian.

"Rodopiando como um redemoinho, o sono se desfaz quando o sangue se afasta, o sol levanta duas vezes para Calcávna e se deita uma vez para o distante mar enfurecido; por três vezes em Calcávna a brisa verdejante traz de longe o seu frescor e as três mãos, em sacrifício, por quatro vezes no distante mar enfurecido, poupam o mundo de seu trágico fim". A primeira parte está resolvida.

Brian apoiou a testa nas pontas dos dedos enquanto olhava para o vazio, pensativo.

"Rodopiando como um redemoinho o sol se levanta duas vezes e se deita". Mas é óbvio! Leste e oeste! Leste para o continente de Calcávna e oeste para o mar enfurecido da costa junto a Nova Europa no extremo ocidental do continente. As duas primeiras coordenadas em que o disco deve se posicionar.

Mas ainda resta algo - salientou Chester. — O redemoinho que rodopia.

O sentido em que o disco deve ser girado - deduziu Margaret. - Mas é para a esquerda ou direita?

Redemoinho, redemoinho... Como se dá a rotação dos redemoinhos nesse lado do continente? - quis saber Guillermo, lançando um olhar interrogativo a Talemine.

Nunca parei para observar — disse a faogard. - Alguém sabe?

Fazem como o voo dos triônivos, as grandes aves de rapina das montanhas. Giram assim - respondeu Lughy, rodopiando o dedo indicador no sentido horário.

Então é isso - determinou Brian sem desperdiçar mais o tempo precioso. — Faremos como essas aves que Lughy mencionou. Sempre no sentido dos ponteiros do relógio. E lançou-se a mover o disco.

No exato momento em que o primeiro alinhamento foi feito, com o disco passando duas vezes pela minúscula marca que indicava o leste, ouviu-se um clique surdo no subsolo. A teoria proposta parecia estar funcionando. O segundo alinhamento para o oeste deu igual resultado, produzindo um ruído de linguetas se afastando de seus encaixes. A tampa circular estava iniciando o seu intrincado destravamento.

"A brisa verdejante traz de longe o seu frescor" - prosseguiu Roger com a leitura.

A jovem guerreira estreitou os olhos e torceu levemente a boca antes de falar.

São os ventos setentrionais que trazem a umidade das grandes florestas. Os mesmos que trouxeram as chuvas a Paleandrus durante aquela noite. Girem a roda três vezes e estabeleçam a marca guia no norte.

Camine acertou em cheio. Ruídos de mecanismos trabalhando foram ouvidos novamente. Então Roger passou a ler a próxima parte do enigma.

"E as três mãos, em sacrifício, por quatro vezes no distante mar enfurecido, poupam o mundo do seu trágico fim". O enigma termina aí — lembrou Roger.

Todos se entreolharam, buscando um no outro a conclusão do difícil texto hermético, exceto Rhuror que alisava a espessa barba rubra.

Acho que sei o que significa essa passagem final. As três mãos representam os deuses que se sacrificaram, enclausurando-se no Cenoteorus, a torre sagrada que impede que Wengarel despenque sobre nós. O Cenoteorus é a última coordenada que resta.

E você sabe precisamente onde fica a torre, Rhuror? - perguntou Roger.

Em algum ponto entre o nordeste e o leste.

Não é o suficiente - insistiu Roger. — Precisa ser exato.

Nesse caso, eu não posso ajudar — disse o guerreiro de pronto, e completou: - Mas o mapa desenval pode.

O mapa! - exclamou Daniel. - Como pudemos esquecer dele?! - e correu o mais rápido que pôde até o alforje no cavalo.

O mapa foi estendido no piso, bem no centro do disco, e Rhuror pronun­ciou a palavra Cenoteorus com seu sotaque faogard; imediatamente a bússola desenhada no tecido grosso se movimentou impulsionada por uma força sobrenatural para uma direção específica e estabilizou-se, apontando com exatidão. Obedecendo as orientações vindas da bússola, o disco foi mais uma vez girado suavemente, uma, duas, três, e na quarta vez parou definitivamente na coordenada correta. Um som forte de rodas dentadas se acomodando surgiu como se viesse de todos os lados, deixando os aventureiros atentos para qualquer surpresa. O disco, que na verdade era um sólido cilindro de pedra, passou a afundar rapidamente, só parando cerca de seis metros abaixo, revelando uma câmara de forma circular, o interior da coluna que Roger havia encontrado no rio subterrâneo. Uma luz tênue e fria emanava do salão oculto e que deveria estar lacrado há muito tempo. Reentrâncias entalhadas no túnel vertical serviam de escada para o interior do compartimento.

Brian pulou na frente e chegou ao fundo da sala que media algo em torno de seis metros de diâmetro.

De um dos lados da parede coberta de desenhos que retratavam, em cenas grandiosas, a luta titânica entre Andrus e o Vasthaur, surgia a imagem esculpida da deusa Ninqa em nobre pedra branca; seus braços estendidos para frente susten­tavam uma pesada bandeja oblonga feita em mármore esverdeado e coberta com uma riqueza de detalhes; e sobre a bandeja, as mais destrutivas armas conhecidas: a Espada, o Escudo e o Elmo, usados pelo próprio herói Andrus há milhares de anos numa batalha que se tornou uma das lendas mais exaltadas de todas as épocas.

As armas que repousavam sob a proteção da deusa, eram tão negras como o negro portal de pedra que abria passagem entre os dois mundos. Brian especulou se os dois eram feitos do mesmo material indestrutível, tão grande era a semelhança.

Não toque nelas! — advertiu Lughy com veemência, quando Brian ameaçou esticar a mão. — Se o fizer, o Cnandauro não permitirá nossa saída.

Os aventureiros rodearam as Ninqanas como se fossem adoradores de Cristo, diante da manjedoura.

Não demora muito o dia acaba — lembrou Guillermo, tirando-os do transe. - Resta-nos menos de uma hora.

Vocês devem ter um belo plano para se apoderarem dessas coisas e ainda sairmos vivos de Paleandrus - disse Lughy em tom de incredulidade.

Até então não havia um plano definido - disse Roger enquanto avaliava os contornos da câmara de paredes recurvadas. - Mas agora já sei como fazer.

Lughy foi surpreendido pela resposta de Roger, suas sobrancelhas levantando numa expressão de decepção e desânimo. Até aquele instante, o meio-faogard ainda alimentava alguma esperança de que seus companheiros temporários desistissem daquele ato insano. Roger prosseguiu expondo o seu recente plano.

Não se preocupe, Lughy, você estará longe daqui quando colocarmos as mãos nessas relíquias.

Enquanto tocava cuidadosamente as paredes, Roger mantinha o olhar voltado para cima, para a junção entre as paredes e o teto liso.

E um plano arriscado, mas é viável - ele pronunciou como quem calcula minuciosamente a solução para um grande problema.

O que tem em mente? - quis saber Guillermo, cronometrando mental­mente cada segundo.

Existe uma câmara de ar que circunda a coluna por fora. Se conseguirmos abrir um buraco nessas paredes grossas, acima da linha d'água, o rio não inundará esse compartimento e eu posso sair nadando para fora de Paleandrus como havia imaginado.

E como pretende carregar os três artefatos de pedra? - questionou Guillermo oportunamente. - O peso deles irá dificultar que você nade rapidamente e, além disso, a ave de pedra estará sobrevoando a sua cabeça. Você não terá agilidade nem força suficientes para nadar e, ainda por cima, evitar o animal enfurecido.

Roger emudeceu com as palavras de Guillermo, o amigo estava certo. Coube ao próprio espanhol trazer a solução.

Eu vou junto — disse ele, resoluto. — Sei nadar muito bem e poderemos dividir o peso da carga. De nada nos adiantará se você fracassar. Perderemos as armas e a sua ajuda pra sempre.

Guillermo tem razão — intercedeu Brian. — Mas se o Cnandauro tocar em vocês, o prejuízo será muito grande para o nosso grupo.

De que jeito imagina abrir caminho por essa coluna? — perguntou Rhuror, despejando a força de seu martelo contra a parede duríssima, sem conseguir arrancar sequer um minúsculo fragmento.

Roger pensou um pouco antes de responder.

Lembro-me que quando você nos contou sobre a lenda de Andrus, disse que as Ninqanas eram indestrutíveis.

Sim, indestrutíveis! — reafirmou o guerreiro.

Era essa confirmação que eu precisava. Se for como você diz, a Espada pode cortar qualquer coisa - concluiu Roger com um brilho no olhar.

Já não nos resta mais tempo - anunciou Guillermo com pressa. - Precisam ir agora.

Estaremos esperando na saída leste da cidade. Se apressem, pois quando escurecer, se tornará mais difícil achar a saída. Boa sorte — e foram as últimas palavras de Brian antes de subirem e deixarem Guillermo e Roger sozinhos na câmara cilíndrica.

Alguns minutos, apenas alguns minutos é o que precisamos antes que eles se afastem do colosso e o Cnandauro não os tome por ladrões - murmurou Roger, e esticou um olhar para Guillermo. - Está com medo, espanhol?

Medo? Oh, não! Só um pouco apavorado! O que você esperava, Roger? Que eu ficasse radiante de alegria por transformar minha cabeça em alvo para uma enorme ave de rapina feita em pedra? - Guillermo lançou um olhar cheio de dúvida para Roger. - E você, não está com medo?

Roger balançou a cabeça afirmativamente.

Ter medo é bom, nos mantêm vivos.

Eles aguardaram mais um pouco em silêncio.

-Acho que já esperamos o bastante - disse Guillermo, finalmente. — Você fica com qual? - disse ele, referindo-se à bela equipagem de batalha.

Fico com a Espada e o Elmo. Você carrega o escudo.

Roger cerrou os punhos antes de tocar nas poderosas armas negras. Sabia que quando isso acontecesse estariam violando objetos sagrados e não haveria mais volta; ficariam condenados a serem perseguidos implacavelmente pelo temível Cnandauro. Quando sua mão direita envolveu o cabo da Espada, ouviu-se um horrível e estridente grito vindo de fora. O Cnandauro sentiu instantaneamente a profanação acontecendo. Com o outro braço, Roger agarrou o Elmo e em seguida Guillermo abraçou o Escudo, dizendo:

É pesado como pensei, mas acho que dá pra levar.

Roger subiu na bandeja apoiada pelos braços da deusa e de lá escalou um belíssimo ornamento arqueado sobre a cabeça da divindade, dali, posicionando a Espada, apontando-a para a parte alta da parede, e lançando o braço para trás como um guerreiro prestes a atingir o inimigo.

Reze para que aquela lenda seja verdadeira, Guillermo — disse e logo desferiu um duro golpe, a lâmina batendo fortemente na coluna.

Um rasgo se abriu diagonalmente sobre a superfície de rocha, fazendo estilhaços voarem pelo salão circular.

Um grande sorriso de satisfação nasceu no rosto de Guillermo.

Mais meia dúzia de pancadas como essa e estaremos nadando no Mondasiel, Roger.

Agora não me surpreende que Andrus tenha degolado o monstro com essa espada - observou Roger enquanto preparava-se para golpear novamente. - Senti como se a parede fosse de papelão.

Uma série de golpes depois e havia uma abertura de um metro de altura por um metro e meio de largura.

As fustigantes águas do rio agitavam pelo lado externo da coluna quando Roger passou a metade do corpo pelo buraco. Se a parede tivesse sido quebrada quinze centímetros mais para baixo, a água se derramaria para o interior da coluna.

Roger saltou novamente para dentro e deu as últimas orientações ao amigo. Disse que a corrente era forte e que aquilo os ajudaria a nadar com velocidade até o rio voltar à superfície; aconselhou Guillermo a armazenar bastante ar nos pulmões, pois em vários pontos a água apressada ocupava todo o túnel, roubando-lhes a chance de respirar.

Suba na frente - disse Roger. — Eu o ajudo com o Escudo.

Roger deu mais uma olhada para a imagem de Ninqa que parecia observá-lo com uma antipatia intensa nos olhos.

Perdoe-me, Deusa - disse ele com sincera humildade. - Estamos fazendo isso por uma causa justa e honesta. Um dia eu volto para devolver o que é seu. Eu prometo.

Ele escalou a parede e juntou-se a Guillermo que quase não conseguia se equilibrar no pouco espaço existente. O seu coração estava disparado quando falou para Guillermo:

Eu pulo e você vem em seguida. O fluxo forte do rio vai nos impulsionar para longe.

Um outro grito ainda mais estridente fez Guillermo achar que os seus tímpanos iriam explodir. O Cnandauro havia enfiado a cabeça ameaçadora pela entrada localizada no pé do Kelatzandrus, mas o seu corpo avantajado não conseguia passar pela porta. A ave forçava a passagem, em desespero e ferocidade.

Foi então que Roger se atirou no Mondasiel e Guillermo fez o mesmo logo em seguida.

As Ninqanas já não pareciam tão pesadas em meio às águas em turbilhão. Era difícil imaginar que objetos tão leves tivessem tamanho poder de devastação.

O corredor de águas estava acabando e em pouco tempo, Guillermo e Roger ficariam em ambiente desprotegido com o Cnandauro que pressentiu a fuga e levantou vôo batendo raivosamente o seu pesado par de asas.

O rochoso teto protetor havia terminado e os dois se viram a céu aberto. O sol havia se escondido por trás das montanhas do Gavaorum e a coloração do dia ganhou uma tonalidade cinza-azulada; nuvens opacas viajavam contra o Armamento que mostrava suas primeiras estrelas ganhando o lado leste.

A qualquer momento a gigantesca ave poderia surgir e se arremessar contra eles.

Respire e volte a mergulhar - disse Roger a Guillermo, com a voz entrecortada quando subiu para pegar mais ar.

E permaneceram nadando alguns metros sob a água para dificultar que o Cnandauro os localizassem.

Guillermo imaginou se o pássaro fantástico necessitaria de olhos para achá-los. Mas os seus pensamentos foram interrompidos quando ele viu uma das garras afundar violentamente bem ao seu lado. O Cnandauro investiu sobre Guillermo como uma ave pescadora que almeja agarrar o seu peixe. Guillermo mergulhou ainda mais fundo, entretanto, ele não agüentaria permanecer por muito tempo submerso. Era morrer pelas garras da imensa ave ou morrer afogado.

Roger tentou algo para despistar o Cnandauro e chamar a atenção para si, dando oportunidade para que Guillermo pudesse respirar. Mostrou-se a criatura, acenando a Espada e provocando com gritos que saíam engasgados e cansados.

As asas, revestidas de longas placas de pedras brilhantes, impunham medo e respeito quando sobrevoavam mais de perto. Era hora de Roger mergulhar de novo.

O Mondasiel os ajudava expulsando-os para leste, mas a força do rio foi se reduzindo quando as suas margens se alargaram, tornando Roger e Guillermo alvos fáceis.

Os canais! - berrou Roger.

Os canais eram estreitos e se ramificavam por entre as ruas e templos; um engenhoso complexo de fornecimento de água que possibilitava que as torneiras das casas fossem abastecidas e os chafarizes funcionassem indefinidamente. Os dois fugitivos se desviaram para um deles que corria no sentido sul.

As garras afiadas roçaram fortemente o Escudo de Guillermo em outro ataque. Se fosse uma peça comum, o Escudo seria atravessado como tesoura que fura o papel fino.

O canal também não oferecia proteção alguma e o Cnandauro sabia muito bem disso. A grande ave voou alto e fez uma grande curva no ar preparando o bote definitivo. Roger percebeu a manobra e gritou a Guillermo que nadasse mais um pouco a fim de se esconderem em um estreito aqueduto que alimentava uma das desertas avenidas residenciais. Eles se enfiaram pelo encanamento rijo e se encolheram com água cobrindo-os até o pescoço. Estavam totalmente exaustos e o peito de Guillermo doía, suplicando por oxigênio.

Estamos... encurralados - disse ele, a frase não saindo de uma vez.

Roger examinou o aqueduto escuro que se afunilava e impedia que seguissem adiante. Por fim, comentou sem ânimo.

Poderíamos nos valer da força da Espada para abrirmos um túnel além dos muros da cidade, mas levaríamos semanas e acabaríamos morrendo de fome e frio.

O Cnandauro unhava a boca do aqueduto, arrancando fragmentos das bor­das e alargando o espaço para abrir caminho até que suas garras pudessem entrar. Guillermo e Roger se comprimiam no fundo.

Parece que chegamos ao fim, companheiro - observou Guillermo enquanto desviava-se das unhas do animal que passavam a centímetros de suas pernas encolhidas.

Roger não queria aceitar a derrota e espetava o Cnandauro com a ponta da Espada de Ninqa. A estocada parecia não surtir muito efeito no ser extraordinário criado pela magia suprema da deusa. E as unhas abriam e se fechavam convulsivamente, buscando suas vítimas acuadas.

Não havia muito espaço no interior do aqueduto. Não havia nada que pudessem fazer. Era esperar a morte, lutando até o fim.

Roger agarrou com força o pingente de ouro gravado com a insígnia sagrada de Ninqa e implorou por misericórdia, murmurando durante o pouquíssimo tempo que lhes restava.

Ajude-nos, senhora. Temos um bom propósito no que estamos fazendo. Sabe que há verdade nas minhas palavras - e ficou ali, em silêncio, a água sendo agitada pelas ferozes garras, agredindo seus olhos.

Inesperadamente, os crocitos aterrorizantes do Cnandauro cessaram e a garra insana recolheu-se desaparecendo na escuridão, e por último se ouviu um gigantesco bater de asas afastando-se na noite que cobria a cidade sagrada.

Roger e Guillermo cruzaram um olhar de espanto e dúvida, e por um momento avivaram a audição para um provável ressurgimento do feroz caçador alado.

Tudo continuava muito quieto um minuto depois.

Será que ele foi embora? — cochichou Roger, os olhos grudados na entrada do aqueduto que exibia suas bordas destruídas.

Quero pensar que sim - arriscou Guillermo com cautela. - Ele não desistiria depois de nos encurralar e ficar tão perto de recuperar as três peças de maior valor de Paleandrus. Algo o deteve. O que você fez quando sussurrou aquelas coisas, uma oração?

Mais que isso — disse Roger. — Acho que assumi um compromisso com a própria deusa Ninqa, e ela aceitou.

Roger esfregou o peito sentindo o pingente entre a roupa e a pele, e comentou:

Essa pequena medalha carrega um tipo de poder grandioso e creio que foi isso que nos salvou.

Não sei se estamos realmente salvos - duvidou Guillermo. — Mas só há um meio de saber.

E se arrastou pelo aqueduto, esticando a cabeça cuidadosamente para fora; só viu algumas estrelas surgindo e desaparecendo entre as nuvens e o curso do canal que transportava calmamente as águas limpas vindas do Mondasiel.

O que se faz numa hora dessa? - perguntou-se Guillermo, manifestando receio.

Confia-se na intuição - respondeu Roger, jogando-se para fora do aqueduto. - Vamos sair daqui.

Roger e Guillermo nadaram até a margem do canal e subiram para o chão firme e seco adornado por canteiros bem cuidados, certamente obra de um dos habilidosos fenóferos.

A cidade se iluminara com luminitas espalhadas por todos os cantos. Olharam em volta e para cima e náo sentiram mais a presença do Cnandauro.

Se o bicho voltar não teremos mais onde nos esconder - observou Guillermo quando passaram para uma avenida larga, rumando apressadamente para o portão leste, e os pingos de suas roupas encharcadas molhando o caminho.

Andaram pelas ruas desertas durante quase uma hora, quando finalmente avistaram o grande arco da saída oriental.

Falta muito pouco — disse Guillermo, aflito, o coração latejando descompassado. — São em momentos assim que as surpresas aparecem, como nas histórias de terror que eu lia quando ainda era menino.

Pense em algo bom e agradável — recomendou Roger, os olhos correndo de um lado ao outro com suspeita.

Roger.

O que é?

Algo bom e agradável é grande e tem asas?

Do que você está falando? — perguntou Roger se colocando em alerta.

Estou falando daquilo lá em cima - disse Guillermo apontando com um gesto de cabeça.

O Cnandauro os observava do alto da muralha que protegia Paleandrus, os olhos da criatura sobrenatural refletindo, em vermelho chamejante, as luzes da noite.

Mantenha a calma agora - aconselhou Roger, ele mesmo segurando o seu nervosismo. Se a ave resolvesse atacar, eles estariam perdidos.

Você acha que devemos correr? - indagou Guillermo, medindo a distância, calculando uns cem metros em linha reta.

Não acho uma boa idéia. Continue andando... calmamente.

Os dois amigos deram mais alguns passos e Guillermo insistiu no assunto.

Acho que dá pra correr. Falta pouco agora. Uma boa corrida e...

Não, não correremos - disse Roger com impaciência. - Cruzaremos aquele portão como estamos caminhando agora: sem pressa e naturalmente.

Ainda faltavam cerca de cinqüenta metros quando o Cnandauro abriu seu bico recurvo e emitiu um estrondoso grito que fez Roger e Guillermo estreme­cerem. Num impulso, a ave saltou na direção dos aventureiros num vôo rápido e arrebatador. Não havia mais para onde fugir e os dois se jogaram no chão para escapar das garras em gancho. O Cnandauro planou a dois metros de suas cabeças e voou como um relâmpago para algum lugar a noroeste da cidade, desaparecendo na quietude noturna de Paleandrus.

Eles nunca saberiam, mas naquela mesma noite, um ladrão de pouca sorte seria convertido em cristal de rocha e seus diminutos pedaços, recolhidos por algum fenófero de semblante frio e sem emoção.

Seus amigos os aguardavam junto a um bosque de mevoronas, árvores de troncos altos, que dão flores alaranjadas e frutos azedos como limões, comumente empregados na medicina do continente cadecaliano.

Naquela noite puseram-se a caminho das planícies do leste.

 

                                             A Pedra de Ágata

Além do território de Paleandrus, estendiam-se as vastas planícies da região do Venactane, entrecortadas por pequenos bosques e rios vagarosos.

O Venactane era terra neutra, não pertencendo a ninguém, e sendo conside­rado um lugar mágico determinado pela vontade do deus Zanqeon, o protetor dos animais. Ouvia-se dizer de seres fantásticos vistos vagando por ali. Entretanto, nin­guém se atrevia a caçá-los ou a molestá-los, temendo que Zanqeon lançasse uma terrível maldição por até nove gerações do infeliz. Este seria o implacável castigo imposto pelo severo deus irmão de Ninqa.

Desde Paleandrus, os viajantes ladearam a margem esquerda do Mondasiel que evoluía até as grandes cachoeiras e despencava trinta metros, alongando-se para o interior das planícies, dali, abastecia outro grande rio navegável: o Eudakgian, que descia para sudeste cortando as ricas e extremamente férteis terras de Drallêngia.

Os garotos retomaram o uso das vestes com profundos capuzes para confun­direm os arkoprômidas, caso estes aparecessem.

Quando a noite chegou, e todos se reuniram em volta da fogueira, Rhuror passou a falar sobre as lendas do Venactane. Contava das criaturas encantadas que só eram encontradas dentro dos bosques, e dos grandes dragões que bebiam do Eudakgian, antes de voarem para um misterioso vale entre as montanhas. Lughy sabia de algumas histórias e fez questão de relatar uma experiência pela qual passara há alguns anos ao vaguear solitário pelo território sagrado de Zanqeon.

- Numa noite fria, estava eu dormindo enrolado em meu cobertor, e os úni­cos sons que se podia ouvir eram o crepitar da lenha no fogo e o gemido do vento correndo pelas folhagens. Um nevoeiro espesso dificultava enxergar as estrelas e as árvores em torno da clareira a qual eu me recolhia — enquanto falava, os olhos de Lughy refletiam a fogueira num efeito irreal. - Então, um ruído despertou-me no meio da madrugada. Olhei a minha volta e nada vi; pensei que tivesse sonhado aquilo e cerrei os olhos, mas o sono não veio mais. Eu tinha um pressentimento ou uma certeza que presenciaria algo que jamais se apagaria da minha lembrança. E foi o que aconteceu: o ruído voltou mais forte, mais perto de mim. Soava como passadas lentas sobre as folhas caídas no solo. Meu sangue gelou e não tive coragem de abrir os olhos naquele momento, mas a minha curiosidade forçou as minhas pálpebras se descolarem e obrigar-me a testemunhar o inacreditável.

Lughy interrompeu-se e desviou o olhar, fixando-o em Marc que estava mais perto.

Sabe quando você abre os olhos, só um pouquinho, bem pouquinho, para que seus pais náo descubram que você ainda não dormiu, e assim evitar uma reprimenda?

Ah, sim! Já fiz isso muitos vezes quando ainda era um garotinho. Minha mãe exigia que eu dormisse cedo para não me arrastar de sono até a aula no dia seguinte - reconheceu Marc, achando engraçado e familiar Lughy mencionar aquilo.

E foi isso o que fiz — continuou o meio-faogard. — Semicerrei os olhos e finalmente vi algo que arrepiou todos os pelos do meu corpo. Aquela coisa estava muito, muito perto do meu rosto, mas tão próxima que eu podia ouvir e até mesmo sentir a sua respiração quente.

O suspense causado por Lughy fazia os corações dos ouvintes acelerarem.

O surpreendente ser me observava com curiosidade, o seu impressionante rosto quase tocava o meu. A criatura sacudiu meu ombro para que eu acordasse, e era tudo o que eu desejava que ela não fizesse. Quando pude vê-la de todo, tive vontade de correr de pavor. No primeiro momento identifiquei que era um ser do sexo feminino, mas diferente de todas as mulheres que eu havia encontrado. Acham esquisito eu ter um olho de cada cor? Deviam ver aquilo. A absurda criatura tinha brilhantes esferas azuis no lugar dos olhos; safiras, se conheço bem essas belíssimas jóias, parcialmente encobertas pelos longos cabelos brancos como a mais pura neve do inverno mais congelante. É isso mesmo que vocês ouviram. Acredi­tem. Sinistros olhos de puríssimas safiras me espreitando. E não pensem que ficava por aí, pois do seu tronco sem braços destacavam-se não apenas duas, mas quatro pernas, duas na frente e duas logo atrás, dando-lhe um movimento semelhante ao dos quadrúpedes - Lughy olhou muito sério para a platéia. - Mas não eram patas como a dos cavalos ou algo assim, eram pernas de mulher. Sei disso, pois pude ver muito bem os seus pés descalços saindo por debaixo da túnica de tecido roto. Cheguei a imaginar que fosse um pesadelo, mas não era.

Lughy parou um pouco de falar e contemplou o bosque escuro como se a qualquer instante pudesse ser visitado novamente pelo insólito habitante das terras do Venactane.

Contudo, todo o meu temor se evaporou quando ouvi a sua bela voz. Falava como se entoasse uma linda canção só para mim. Como por encanto, ela deixou de se parecer como um monstro assustador e fez meu coração se abrandar. As mais antigas lendas deram um nome a ela: Dasfonide, aquela que lê as estrelas. Acho que simpatizou comigo pelos meus olhos coloridos, incomuns, como os dela — disse por brincadeira. - Conversamos por um tempo que até hoje não sei definir se foram meros minutos ou muitas horas. Por último, ela ofereceu-se para ler o meu futuro no brilho das estrelas, em que consenti imediatamente. Mas deu-me uma condição que me causou espanto. Veria meu destino se eu lhe desse de comer. Parecia muito fácil se eu não tivesse que mastigar o alimento para ela, pois Dasfonide não possui nenhum dente e se não fosse daquele jeito, ela simplesmente não comeria - Lughy lembrou-se com desgosto da condição de sua impressionante anfitriã. — Como não tem as mãos para pegar e preparar a comida de modo que ela fique cremosa como mingau para a sua boca desdentada, Dasfonide pode ficar meses ou anos sem se alimentar, só vivendo da água dos rios e da luz dos corpos celestes.

Lughy afastou um inseto voador que o incomodava insistentemente, apossou-se de alguma comida e começou a triturar e amassar todos os ingredientes em uma tigela, ao mesmo tempo em que falava.

Virei-me para uns tubérculos assados esquecidos ao lado da fogueira e passei a mastigá-los como um animal ruminante. Achei tudo muito nojento, mas ela simplesmente não se importou e abriu a boca para receber a papa de comida que eu havia preparado com os meus dentes e a minha saliva. Dasfonide devorou o alimento amolecido como se saboreasse a mais requintada ceia oferecida ao mais digno dos reis. Por fim, ela fitou-me agradecida.

Não entendo por que Zanqeon a fez assim - protestou Meg, sentindo pena. - Como pode fazer uma criatura sua passar por tantas dificuldades?

Mas não foi obra de Zanqeon - disse Lughy em tom de reparação. - O monstro em que Dasfonide se transformou foi uma das muitas vinganças de Arkopromis cometida contra seus irmãos.

Você havia dito que Dasfonide leria o seu destino, senhor Lughy - lembrou Chester.

E foi exatamente dessa forma que aconteceu. Notei que o nevoeiro havia sumido como se uma boca gigante o soprasse para longe. Os cristalinos olhos azu­lados de Dasfonide voltaram-se para o céu e se perderam por um tempo que não consigo determinar. Seu olhar encantado vagava pelo infinito e parecia se fixar ora em uma, ora em outra estrela mais brilhante.Tive naquele momento, a agradável sensação de que flutuava ao lado dela entre as constelações mais distantes.

Lughy observava a fogueira e parecia não estar mais ali. Suas lembranças o afastaram para muito longe. Suavemente, como se acordasse de um sonho maravi­lhoso, ele seguiu narrando sua experiência.

Dasfonide me falou do que enxergou nas luzes estelares. A sua aparência já náo me causava nenhuma aversão. Ao final, a filha de Zanqeon revelou-me que um dia eu salvaria a vida de uma pessoa... uma pequena e bela menina.

Não pense que é com você - cochichou Daniel para a irmã. — Você já não é mais pequena, e tenho minhas dúvidas se é bela - Margaret devolveu um olhar de desprezo e achou uma boa oportunidade para iniciar outra discussão, mas preferiu adiar a contenda.

Lughy contemplou o céu com um ar de grande interrogação e deu seqüência ao relato de sua extravagante experiência.

E é só? Perguntei a ela, com alguma decepção. É só o que precisa saber. Disse-me ela com uma misteriosa simplicidade. E aquela foi a única vez em que eu a vi. Todavia, ainda pude apreciar seu canto inebriante espalhando-se pelo ar fresco na noite seguinte. Eu sentia como se toda a planície entoasse lindas canções através da sua voz. Vaguei pelos bosques escuros e campos abertos banhados pelo brilho das estrelas, em buscas inúteis. Ela nunca mais apareceu para mim.

O meio-faogard baixou o olhar, viu como havia transformado o alimento em uma substância cremosa, fácil de se deglutir, e então desejou com melancolia.

Gostaria de falar com Dasfonide, só mais uma vez... e poder oferecer-lhe essa refeição.

Alguém que tem o dom de interpretar as estrelas pode ter a resposta para muitas perguntas, e Roger saberia o que fazer se tivesse uma única chance com a vidente de múltiplos olhos.

A noite se tornou muito escura com o forte nevoeiro que se formou repentinamente durante a madrugada. A fogueira e as luminitas não bastavam para iluminar as árvores mais próximas e nem o córrego que passava silenciosamente e se perdia pela mata. A bruma envolvia o acampamento de tal maneira que Roger, o único acordado, na função de sentinela, tinha a clara impressão que nada mais havia no universo a não ser o que sua vista detectava.

No início era apenas um som muito distante que se confundia com o vento da planície, mas aos poucos, foi aumentando, e Roger pôde distinguir uma voz feminina que seduziu os seus ouvidos. Uma música cantada em língua estranha, gazivian antigo, primitivo provavelmente. Ele ficou atento por um ou dois minutos, esperando que o ser surgisse do meio da névoa branca que flutuava como fantasmas, iluminada pelas luzes do acampamento.

É ela - sussurrou Lughy, despertado pelo canto de Dasfonide.

Roger abandonou o seu posto e caminhou com curiosidade e fascinação para o interior do bosque.

Não vai achá-la se ela não quiser — murmurou Lughy, livrando-se do cober­tor, agarrando a tigela cheia de comida pastosa e seguindo Roger, cautelosamente para não acordar os outros.

Roger caminhou pelo matagal, querendo avidamente se deparar com a cria­tura que poderia dizer alguma coisa que o levasse a Helen. No entanto, a música de Dasfonide vinha de todos os lados, confundindo-o.

O vigoroso professor atravessou o pequeno bosque e contemplou as grandes planícies límpidas do Venactane. O céu brilhava com milhões de estrelas e Wengarel, esta reinando em absoluto no zênite.

Algo tocou o braço de Roger e o fez virar-se rapidamente. Era apenas Lughy.

Desista - aconselhou. — Esgotaríamos nossas vidas vagando pelo Venactane e não a encontraríamos sem o seu consentimento.

Pois eu quero falar com ela - disse Roger, perseverante. — Dasfonide deve saber de Helen. Sinto que ela pode me mostrar um caminho, Lughy - ele estancou o passo de repente, lançando um olhar esperançoso ao meio-faogard. - Agora sei que posso recuperar em seu mundo a mulher que perdi no meu.

No fundo, Lughy acreditava que algo inacreditável seria possível, por isso não contestou as palavras do seu companheiro de ronda noturna.

Roger andava de um lado ao outro como se estivesse perdido em um labirinto de sons maviosos e arrebatadores, enganado pela voz entorpecente de Dasfonide. Lughy tinha razão ao afirmar ter perdido a noção do tempo quando esteve em contato com a filha de Zanqeon. Os passos de Roger e Lughy afundavam na grama orvalhada e o frio, mais intenso, arrancava vapores finos de suas narinas. O tempo tornou-se algo incerto como se existisse entre o sonho e a realidade.

Aos poucos, Roger caiu em si e perdeu as esperanças.

Daqui a pouco vai amanhecer. É melhor voltarmos ao acampamento, já devem ter dado por nossa falta — sua voz saiu triste.

O nevoeiro se adensou ainda mais em torno deles, tornando difícil reencontra­rem o caminho de volta. Lughy sentou em um tronco caído e comentou enquanto esfregava os braços para se aquecer.

Só uma outra vez eu vi um nevoeiro como esse em toda a minha vida, quase posso pegá-lo com as mãos.

Não temos mais nenhuma referência - disse Roger, avaliando a parede de fumaça branca que os envolvia. - Estamos de fato temporariamente perdidos.

Roger sentou-se ao lado de Lughy e desabafou sob o som distante da canção de Dasfonide.

Foi tolice minha entrar no bosque e querer resolver um problema meu. Deixei meus amigos dormindo sem proteção. Fiz a coisa errada, senhor Lughy.

Não o censuro — disse Lughy, solidarizando-se, deslizando a mão pelo ar e fazendo a bruma ondular como fumaça. - Temos os nossos próprios sonhos e frustrações e às vezes não agimos conforme a razão.

Ficaram um tempo sem terem o que dizer. Foi aí que algo aconteceu, pela segunda vez para Lughy.

Não há mais música — avisou Lughy, erguendo a cabeça como um cão em alerta. — Dasfonide parou de cantar.

E o que isso quer dizer? - indagou Roger, seu coração sentindo a esperança ressurgir.

Não tenho muita certeza, mas não tire os olhos da neblina.

Rapidamente o nevoeiro foi afinando, dissipando e se esvaecendo, fazendo o bosque renascer nitidamente. Por entre as árvores ainda pairava uma atmosfera nevoenta e misteriosa. De dentro do matagal, um ruído de galhos sendo afastados para abrir passagem fez a pulsação de Roger disparar. Era exatamente como Lughy descrevera: Dasfonide, ao mesmo tempo horripilante e fascinante. A criatura mito­lógica das lendas milenares, bem ali, a sete ou oito metros, indo na direção deles, as quatro pernas trocando alternadamente o peso de seu corpo fantástico, cami­nhando com uma estranha graciosidade.

Roger, seu sortudo, ela aceitou o seu chamado — disse Lughy, sorrindo como se fosse a criança mais feliz do mundo.

Roger ficou um pouco deslocado com a aparência monstruosa de Dasfonide, mas a impressão negativa acabou quando ela falou com ele.

Você é um homem atormentado por dúvidas, detentor da Espada de Ninqa — seus olhos de um azul profundo emanavam uma luz maravilhosa como se todas as estrelas se refletissem neles.

Roger sentiu-se enlevado ao ouvir a voz suavemente modulada. Também ficou impressionado, pois Dasfonide sabia dos objetos sagrados que conseguira em Paleandrus.

Vim aqui lhe pedir um favor, pode me atender? — disse Roger, respeitosamente, escolhendo bem as palavras.

A fantástica criatura o observava. Parecia que o pedido de Roger não era o suficiente. Lughy intercedeu.

Ofereça o alimento a ela — e esticou a tigela com a comida.

Roger deu dois passos à frente e mostrou o recipiente num sinal de amizade.

Yá! Dê a comida... aproxime de sua boca - orientou Lughy. - Junte com a mão, desse jeito - e gesticulou com a mão em concha.

Roger fez como Lughy havia ensinado e Dasfonide recebeu a pasta, lambendo os dedos e a palma da mão de Roger, deliciando-se até que a tigela se esvaziasse. Naquele momento nascera um vínculo entre ele e a filha de Zanqeon. Não havia mais repugnância, só admiração.

A neblina desaparecera e as estrelas cintilaram para Dasfonide que olhava para elas como suas amigas eternas. Roger fitou o Armamento e sentiu-se envolvido pelo espaço infinito. Viajava nos olhos da vidente.

Depois de tempos o sonho cessou. Roger se viu novamente no bosque, sob um teto estrelado. Dasfonide o encarou e profetizou serenamente para ele.

O seu tempo é o tempo até que a jornada se cumpra. A tua resposta te aguarda pacientemente ao fim de tudo.

E Helen? - quis saber Roger, objetivamente.

É o que é — ela encerrou.

Do mesmo jeito que apareceu, Dasfonide se foi. Naquela noite ela não entoou mais as suas canções.

No acampamento, os questionamentos aconteceram naturalmente, e não houve um consenso sobre o tempo em que estiveram fora. Passaram-se horas para Roger e Lughy, todavia, para os que ficaram, o encontro com Dasfonide não durou mais que trinta minutos, a madrugada indo alta. Lughy dormiu muito bem pelo resto da noite e o coração de Roger conheceu uma feliz esperança em rever Helen.

O dia seguinte estava tão radiante que aquela tarde parecia ser eterna. Os perfumes das frutas e flores estimulavam os pássaros a voarem com estridência. O Venactane era terra vazia, pois os viajantes recusavam-se a pisar em seus domínios temendo as histórias terríveis sobre seres grotescos.

A expedição acomodou-se diante do vasto campo de mato alto e verdejante que ondulava com o vento morno. Os animais bebiam de um riacho nascido numa distante encosta e tudo era realmente calmo. Rhuror aguçou os sentidos ao ouvir qualquer coisa familiar, e disse com entusiasmo.

Querem ver algo muito interessante? Então me sigam.

Rhuror meteu-se entre os arbustos e se arrastou, exigindo silêncio aos que o acompanhavam.

Não façam tanto barulho ou eles vão embora - repreendeu o faogard enquanto abria caminho pelo matagal.

Rhuror afastou as folhagens do outro lado dos grandes arbustos que davam vista a uma ampla pastagem de gramíneas. A paisagem mostrou-se como um quadro imaginário de extrema beleza. Cavalos alados de todos os tipos pastavam livremente; uns abriam suas asas enormes e alçavam voo majestosamente; alguns pousavam com leveza no chão macio; e outros ainda, mordiscavam a grama viçosa. Suas pelagens eram variadas: totalmente brancos que resplandeciam ao sol, negros como petróleo cru, marrons, malhados e cinzas. Diferente de rabos, possuíam um feixe de penas que se abria como um leque para direcionar o vôo. Marc, Daniel, Margaret e Rafael mostravam suas caras com a mesma expressão de deslumbra­mento: olhos arregalados e queixos caídos. E Chester, mal podia acreditar no que via. Cavalos o fascinavam, mas cavalos dotados de asas, isso era demais para ele.

Como se cavalga essas maravilhas? - quis saber Chester, a imaginação indo longe.

Não se cavalga — explicou Rhuror, apreciando os belos eqüinos voadores —, são indomáveis.

Mas ninguém nunca conseguiu montar em um? — Chester náo se deu por satisfeito, os olhos fixos nos animais, observando cada movimento que faziam.

Soube de alguns que tentaram, preparando armadilhas para capturá-los, e até conseguiram prender alguns e colocar-lhes selas e arreios, mas quando tentavam voar, eram derrubados e os bichos fugiam. Alguns desses belos espécimes morreram de maus tratos ou até de desgosto. Eles não se assujeitam à submissão e ao cati­veiro. São livres. E quanto aos malditos caçadores... tiveram o seu merecido castigo imposto por Zanqeon.

Como são chamados? — perguntou Marc. - Que nome dão a eles?

Cilenantes. Eu poderia ficar aqui a tarde inteira olhando esses belos animais - Rhuror fez uma expressão relaxada.

O que acha de ter um no seu rancho, Chester? — brincou Guillermo, que acabara de chegar e estava igualmente extasiado. Então sacudiu uma lagarta que subia pelo seu ombro.

Não sei quanto ao rancho - desconversou Chester pulando para fora dos arbustos. — Mas quero apreciá-los mais de perto. Cilenantes foi o que disse, senhor Rhuror?

Subitamente, no instante em que Chester mostrou-se aos cilenantes, houve uma grande revoada como pombos em uma praça ao serem molestados por alguma criança curiosa. O vento das enormes asas batendo em fuga agitou vigorosamente a copa de uma árvore próxima. Somente um cilenante permaneceu.

Chester! — rosnou Brian, tentando se controlar para não berrar e assim espantar o último dos cavalos alados. - Veja o que você fez!

Eu vou com ele — disse Daniel, ameaçando sair para o campo de pastagem.

Você fica aqui — impôs Brian, amarrando a cara, o dedo indicador apon­tando severamente para o chão. — Já basta o que o seu amigo aprontou.

Chester estacou a uns vinte metros do único cilenante que não havia voado. Era um animal nobre, pelagem cinza que brilhava ao sol, fazendo-o parecer que era todo feito em prata, poderosas asas dobradas ao longo do corpo imponente, a cauda de penas retas voltada para baixo, e um olhar fixo em Chester.

Quero ver no que isso vai dar - disse Marc acomodando-se na melhor posição como se fosse assistir a uma sessão de cinema.

O que ele pretende fazer? - perguntou Lughy, adrnirando-se como o cile­nante ainda estava ali. Não era nada habitual um animal daquela espécie aceitar, por vontade própria, a proximidade com pessoas.

Chester arrastou o pé sobre o capim, conquistando o primeiro passo, e, lentamente, deu o segundo passo em direção ao animal. O cilenante permaneceu estático como uma escultura, observando o rapaz caminhar bem devagar. Chester parou ao lado de uma pena caída ao chão, devia ter uns noventa centímetros, no mínimo. Seria mesmo imprescindível penas compridas e fortes para manter um cavalo daquele tamanho nas grandes alturas. O garoto deu uma nova passada e o cilenante respondeu abrindo as asas de enorme envergadura, as patas dianteiras se dobraram, deixando a bela criatura preparada para se lançar no ar.

Não fuja - murmurou Chester, suplicante. - Não quero lhe fazer mal. Só desejo tocá-lo uma vez, só isso.

Ele não vai conseguir — assegurou Lughy. — Ninguém consegue. O cilenante vai esperar o garoto chegar bem perto e aí sairá voando, zombando dele.

Pois eu digo que consegue — retrucou Margaret, confiante.

Quer apostar? — incitou o meio-faogard. — Vinte moedas de puro ouro pelo seu lindo cavalo como o garoto não toca no cilenante.

Não aceite, Meg - aconselhou Rhuror, reprovando a proposta. - Lughy sabe que os cilenantes são indomáveis e quer levar vantagem da situação. É assim que esse aproveitador leva a vida.

Mesmo assim eu aceito - ela decidiu. - Acredito em Chester.

Então agora o problema é seu — disse Rhuror, dando de ombros.

Doze metros separavam Chester de um sonho. O eqüino de longas asas meneou a cabeça e bateu o casco escavando a grama. Ficava cada vez mais arredio.

Por favor, deixe-me afagar você. Uma oportunidade apenas - implorou Chester, bem baixinho, os braços rente ao corpo, com todo cuidado para que o cilenante não se assustasse.

Três metros faltavam para que a mão de Chester pudesse entrar em contato com uma lenda viva. Lembrou-se das histórias que leu sobre Pégaso, o lendário cavalo voador que ajudou o herói Belerofonte a derrotar a Quimera. Então poderia ser verdade. Um daqueles magníficos cavalos alados deveria ter atravessado o Portal há muito tempo e originado a célebre história que atravessou vários séculos e ficou registrada para sempre.

Faltava muito pouco para Chester. Outro e mais outro passo curto foi dado muito vagarosamente. Agora só faltavam dois metros. O magnífico animal recolheu as grandiosas asas e postou-se atento. Chester agachou-se e seus dedos agarraram um punhado de capim fresco. Ele ergueu-se, e num gesto de amizade, estendeu a mão para o cilenante que refugou a oferta afastando a cabeça, fitando o garoto de esguelha.

Tome — disse Chester com voz afável. — É pra você.

Lughy, do meio dos arbustos, abriu a boca e fez menção de falar ou gritar alguma coisa.

Lughy, se você afugentar o cilenante eu enterro a sua cabeça em seus ombros — rugiu Rhuror, mostrando o punho cerrado.

Estou torcendo pelo rapaz tanto quanto você — disse o meio-faogard, defendendo-se.

E abrir mão de suas moedas de ouro? Não espera que eu acredite nisso.

Chester insistiu, fazendo o cilenante pegar confiança e finalmente comer a grama de sua mão. Então afagou o pescoço forte do animal, o pelo era de uma só vez firme e sedoso.

Vou abraçá-lo agora - avisou Chester, ele tremia de emoção. — Não tenha medo.

E Chester envolveu a cabeça do cilenante com os seus braços, e ficou assim por um longo tempo, sentindo o seu cheiro selvagem. Ele havia conseguido a inacreditável proeza.

Esse garoto é especial — disse Rhuror, sublimado com a cena encantadora. — Nunca vi isso acontecer.

Me deve vinte moedas douradas, senhor Lughy — Margaret não desperdiçou tempo em cobrar, um grande sorriso de orgulho e vitória nasceu nela.

Chester finalmente recuou dois passos e disse ao cilenante.

Sempre, sempre, enquanto eu viver, guardarei esse momento, meu amigo. Agora vá. Voe bem alto. Quero admirar você lá em cima, entre as nuvens! - gritou emocionado.

Contudo, o cilenante não se moveu. Perdera a desconfiança. Ali havia nascido uma forte ligação entre um garoto e um cavalo voador.

Não se acostume com os homens - pediu Chester. — Podem ser perigosos. Voe agora!

O animal pareceu ter compreendido o conselho de Chester e levantou voo majestosamente, a cauda aberta numa meia-lua de penas, ele planou duas vezes sobre o campo de gramíneas e sumiu, com o sol prateando suas asas.

Não esqueça que você tem uma dívida — disse Rhuror ao passar por Lughy. — Grandioso espetáculo, Chester! — gritou, elogiando.

Durante aquela tarde fizeram mais trinta quilômetros até o sol se pôr.

Naquela mesma noite ouviu-se o tilintar de moedas caindo.

...Dezessete, dezoito, dezenove, vinte — contou Lughy, a contragosto, as moedas de ouro sendo despejadas, uma a uma, nas mãos de Margaret. - Estão todas aí. Quer conferir?

Não — disse ela, apreciando o valioso peso do metal. — Confio no senhor.

Confiar em Lughy?! - exclamou Rhuror com declarado escárnio. — Cuide bem do seu pequeno tesouro, minha querida Meg, ou ele pode evaporar de seu alforje como água no sol do deserto.

Lughy olhou-o com indignação, mas encolheu os ombros e foi sentar-se no seu canto bem perto da fogueira, ao lado de Chester.

Gostei de ver você hoje, garoto. Perder aquelas moedas não foi tão ruim. Já perdi outras vezes, mas ver você abraçar o cilenante foi comovente. Sei que Rhuror não acredita em nada do que falo, mas no final eu já estava desejando que você conseguisse, mesmo que não creia em uma só palavra que sai da minha boca.

Chester observava os olhos entristecidos de Lughy que remexia o fogo com um galho. E algo fez o jovem domador de cavalos pensar que a sua tristeza não era pelo dinheiro, e sim pelo modo como Rhuror o tratava. Porém, o pensamento de Chester desviou-se para o momento inesquecível em que estivera com o cilenante, e saboreou tantas vezes quanto podia resistir ao sono. Então dormiu e sonhou com cavalos de asas abertas e o vento batendo em seu rosto exultante.

Mal quando o sol se levantou, Roger já estudava o mapa mágico e determinou a direção a ser seguida naquele dia ensolarado. Seguiram através do Venactane e cruzaram riachos, subiram e desceram o terreno levemente irregular, galoparam ao longo das gigantescas rochas fincadas em fileiras que serviam de divisa dentro do Venactane e pararam diante de uma floresta fechada e escura, quando o sol do meio-dia esquentou as suas cabeças e secou suas gargantas. As árvores entrelaçavam seus galhos e deixavam a mata praticamente impenetrável. Os arredores da floresta eram de pântanos lodosos e só havia uma alternativa de seguirem em frente: atra­vessando pelo interior da floresta escura. O enorme pântano que cercava a floresta pelos dois lados era o habitat de milhões de mosquitos inconvenientes que zuniam permanentemente em seus ouvidos. O grupo desmontou para descansar e preparar a difícil travessia daquele trecho inóspito. Roger voltou-se para a mata densa e exa­minou por onde poderiam caminhar com alguma segurança. Galhos desciam até o solo e se emaranhavam em outros galhos formando uma intrincada teia, como se todas as árvores tivessem combinado entre si em impedirem a presença de intrusos.

Só há um meio de transpormos essa fortificação vegetal - disse Roger para si mesmo. - É abrindo caminho à força.

E brandiu a poderosa espada de Andrus antes de desferir o primeiro golpe contra uma rede de galhos retesados.

Não! — berrou Lughy, a Espada negra parou de súbito a poucos centímetros do seu objetivo. - Não corte esses galhos. Não cometa nenhuma agressão a essas árvores.

Roger ficou sem entender, e foi quando Lughy esclareceu tudo.

Olhe para cima, para as copas, está vendo aquelas coisas pontudas?

Lughy se referia a centenas de bulbos que pendiam das pontas dos galhos mais

altos, todos apontados para Roger. Os bulbos eram dotados de dardos com pontas finas como ferrões que se moviam para o seu agressor. O meio-faogard explicou então.

Essas árvores são as mortíferas agridinas. Se você tivesse atingido uma delas, mesmo por acidente, centenas de dardos venenosos voariam e se enterrariam em seu corpo e você estaria morto agora, e não gostaria nada de saber em que estado ficaria seu pobre cadáver.

Depois do dramático alerta, Roger afastou a Espada cautelosamente para evi­tar meter-se em apuros.

Após o perigo passar, Lughy falou um pouco mais a respeito:

Essa planta só nasce aqui e em nenhum outro lugar. Certa vez os drallengianos plantaram sementes de agridina, na fronteira entre Drallêngia e Crassen, para desenvolverem uma defesa natural. Nenhuma vingou — Lughy apontou de um lado ao outro da imensa barreira de árvores. - As agridinas circundam toda a floresta e jamais crescem em seu interior. São como guardas protetoras.

E de que jeito iremos passar? — perguntou Guillermo. — Não há espaço para os cavalos, e muito menos para o Drancto.

Pergunte ao guerreiro faogard - respondeu Lughy. - Não é difícil se contorcer um pouco e vencer as agridinas, mas com relação aos cavalos e ao drancto, eu não tenho como responder. E é apenas isso em que posso ajudar. Daqui pra frente, para o leste, não conheço mais nada.

Rhuror estava mudo. Desconhecia ser bem ali a morada das letais agridinas. Um erro por não conhecer bem as terras venactanes. Por fim ele viu como a pre­sença de Lughy havia sido útil ao salvar a vida de Roger. Mas sua fibra de coman­dante treinado não se deixou abater.

Se não há outra solução, contornaremos a floresta e o pântano pelo sul. Perderemos um bom tempo, mas ficaremos vivos.

Rhuror, como todo bom faogard, tinha ouvidos sensíveis, entretanto, Talemine foi quem deu o sinal.

Cavalos se aproximam, pai. Quarenta... cinqüenta deles ou mais.

Rhuror voltou-se para a direção do tropel que vinha de onde as pedras fincadas lhe escondiam a visão. Não demorou um minuto e identificaram uma tropa muita bem armada e disposta a lutar até a morte: um obstinado batalhão de... arkoprômidas.

A tropa de fanáticos manteve-se próxima as pedras fincadas, como se estives­sem organizando um definitivo ataque. Havia a possibilidade dos arkoprômidas terem mudado sua tática de salvar Daniel, o deus Arkopromis para eles, e eliminar Margaret que seria a encarnação de Ninqa. Matar a todos poderia ser uma solução desesperada, porém eficaz. O tempo também corria rápido para os adoradores de Arkopromis, pois ao cruzarem o território de Drallêngia, seriam perseguidos pelos destemidos guerreiros draliengianos, fieis aliados dos faogards.

Nunca soube da presença de arkoprômidas no Venactane — observou Lughy recuando para trás de Rhuror. — Desafiam as criaturas de Zanqeon. Estamos imprensados entre eles e a perigosa floresta.

Brian raciocinou com as informações recentes e refletiu.

Você disse que esses carniceiros não costumam andar por estes lados.

Sabem que é terra hostil - confirmou Lughy. — Não sei como tantos chega­ram ilesos até aqui.

Então teremos de atraí-los... para a floresta — disse Brian, o olhar grudado nos inimigos.

Compreendi o que pretende, Brian - disse Rhuror puxando o seu martelo que há muito tempo não manejava, prendeu Daniel pelo braço e o arrastou com brutalidade na direção da cavalaria arkoprômida, urrando como um alucinado. - O que estão esperando?! Venham até aqui buscar a porcaria do seu deus! — e empurrou Daniel com violência, provocando a sua queda.

O que o senhor Rhuror está fazendo? - quis saber Margaret, aflita com o irmão, sua feição era de evidente apreensão.

Confie nele - disse Brian. - Daniel está seguro.

Imediatamente, em reação a provocação feita, a cavalaria irada armou-se com seus punhais bifurcados e avançou entre gritos coléricos.

Querem nos pegar em um ritual - percebeu Talemine. — Utilizam somente facas curtas.

Pois irão provar da Espada de Ninqa - disse Roger, desembainhando a pode­rosa arma.

Não, Roger! - contestou Brian com energia. - Você não poderá defender todos ao mesmo tempo. Haverá mortes do nosso lado. Guarde essa espada e corra para o interior da floresta.

Lughy enfiou-se por entre os galhos para salvar a pele.

Corram! Depressa! A floresta vai nos proteger! - gritava Lughy, acenando freneticamente. - Cuidem para não ferir as agridinas, ou não verão o próximo pôr do sol.

E os cavalos? - questionou Chester.

Esqueça os cavalos - respondeu Talemine rapidamente. — Aqueles desgra­çados só querem a nós — ela olhou para Chester, os olhos transmitindo segurança. - Eles vão ficar bem. Proteja-se agora.

Rhuror suspendeu Daniel até o ombro musculoso como se o garoto fosse um saco de arroz, e correu como nunca na direção da vegetação cerrada onde seus ami­gos se protegiam. Os dois foram os últimos a se embrenharem na trama de galhos antes que os enraivecidos arkoprômidas levassem a efeito o ataque instantâneo.

E o que faremos agora? - indagou Guillermo enquanto esperava a aproxi­mação dos inimigos.

Aguardamos - respondeu Lughy, com uma expressão atenta. — Se der certo assistiremos algo impressionante.

E foi precisamente como Brian havia concebido. A raiva dos Seguidores de Arkopromis os deixou cegos para o perigo, fazendo-os correrem inadvertidamente contra as mortais agridinas, golpeando-as e dilacerando-as furiosamente. Milha­res de espinhos tóxicos foram disparados como se saíssem de zarabatanas certei­ras, cobrindo os corpos que tombavam e se contorciam dolorosamente. Naquele instante puderam assistir a um espetáculo apavorante: as vítimas começaram a arroxear numa velocidade espantosa, os dedos contraindo-se como garras secas, os lábios recuando e deixando os dentes à mostra, a pele foi escurecendo cada vez mais até ficar totalmente enegrecida. O horror ainda não havia terminado, pois raízes brotavam de muitas partes dos corpos imobilizados e se enfiavam na terra. Não eram mais pessoas, mas vegetais com horríveis formas humanas. Os poucos arkoprômidas que não foram mortos, fugiram apavorados e convencidos que o deus Zanqeon havia executado sua vingança. Chester experimentou um grande alívio ao constatar que nenhum animal fora atingido.

Sobraram nove - disse Rafael que foi o primeiro a ressurgir da floresta. - Eu contei.

Talemine armou uma flecha em seu arco e disparou, a seta acertou as costas de um arkoprômida em fuga que desabou pesadamente para frente; o arco da guerreira não tardou em atirar outra flecha e fazer mais uma vítima.

Agora são sete - disse ela em resposta a Rafael.

Nos deixarão em paz por enquanto - disse Brian. - Mas certamente irão em busca de reforços. Eles estão desesperados e dispostos a qualquer coisa para nos deter.

Passaram por cima dos arkoprômidas transfigurados em plantas e mudaram o curso para o sul, desviando-se da floresta e do pântano fétido.

Naquela mesma noite, Talemine teve uma triste notícia ao entrar em contato com Camine, sua irmã: Tuldoror havia morrido. A medicina faogard tinha conse­guido quase um milagre prolongando por tanto tempo a fraca vida de seu rei. Não era nada bom perder-se um soberano em tempos conturbados e o reino de Faogard precisava urgentemente promover a coroação de seu novo monarca. Rhuror reuniu todos os amigos e anunciou a sua decisão.

Meu povo precisa de mim. Feneliane, minha esposa, herdará o trono em breve. O reino de Crassen e seus aliados logo serão sabedores da morte do nosso intrépido rei, e esse é um momento perfeito para uma declaração de guerra por parte de nossos rivais. Esperam que um novo soberano seja fraco e inexperiente e se curve perante suas exigências. Todavia, o principal responsável por tanta hostili­dade é o seu líder, Gosferac, um homem poderoso que tem um respeitável número de desenvals e véussidas ao seu lado, e o maior exército da Cadecália submetido ao seu comando. A crença de Gosferac. em uma profecia muito antiga, a mesma que creem os arkoprômidas, é capaz de nos trazer sérios problemas — Rhuror respirou fundo e finalizou: - Volto a Faogard pela manhã, e tudo me leva a crer que guiarei o nosso exército para uma sangrenta guerra muito em breve. Necessito de todos os nossos guerreiros em condições de marcharem para o leste.

Guillermo ouviu tudo com tristeza e lamentou em silêncio a sua separação de Talemine.

No dia seguinte, Rhuror aprontou o drancto, despediu-se e convocou o seu companheiro de viagem.

Suba de uma vez. Não temos tempo a perder, Lughy.

Guillermo surpreendeu-se.

Lughy? É o Lughy que vai com Rhuror? — ele olhou incrédulo para Talemine. — Pensei que fosse você.

Sim, é Lughy que fará companhia ao meu pai. Eu sigo com vocês, até o fim. Ainda serei muito útil. Sou uma guerreira e também uma exímia médica, lembra?

Eu não quero voltar com você, Rhuror - reclamou o meio-faogard enquanto era forçado mais uma vez a escalar o drancto.

Você ainda é suspeito na questão da areia nos odres — disse Rhuror, subindo logo depois, tirando a chance de Lughy retroceder.

Essa história de novo... eu sou inocente.

Inocentes são aqueles que você enganou em Fena, como quis fazer recentemente com Meg na ocasião de Chester e o cilenante.

Ora, senhor Rhuror, quem é inocente em Fena a não ser as criancinhas? Até as aves maiores roubam minhocas do bico dos passarinhos.

Pois vou ficar de olho em você, Lughy. Até breve, filha! — despediu-se mais uma vez, conduzindo o drancto de volta para as longínquas terras do oeste. — Cuide de nossos amigos, e muito mais de você, guerreira!

A voz de Lughy ainda era ouvida longe.

Pois na primeira oportunidade eu vou fugir e...

A separação causou um vazio aos amigos, mas era daquele jeito que deveria ocorrer.

Na manhã nublada, a planície abriu-se novamente e permitiu que se enxer­gasse quilômetros de paisagem. Uma cadeia de montanhas surgia pela frente, bem no meio do Venactane. A reduzida expedição rumou até o pé de um monte coberto de arvoredos e mato úmido. Havia uma passagem que cortava caminho para um vale rodeado de montanhas isoladas. Seguiram a trilha principal e avistaram o vale estreito que tinha a forma de uma gigantesca caldeira natural, separado, solitário e silencioso como o fim do mundo. Estavam pisando no escondido Cemitério dos Dragões.

Naquele vale perdido cercado por montanhas escarpadas e coberto por escuras nuvens acinzentadas, os dragões voavam para morrer quando já eram bem velhos ou doentes. Esqueletos enormes espalhavam-se por todos os lados. Algumas ossa­das deviam estar ali há séculos, pois se achavam desconjuntadas e carcomidas pelo tempo. Outras carcaças eram bem mais recentes, porque ainda guardavam sobre si grossas camadas de couro como velhas lonas escamosas. Havia dragões menores, não tendo mais que sete metros do focinho à cauda, e outros maiores que ultrapassavam os dezoito metros. Dragões viviam no imaginário de inúmeras pessoas, contudo, dar de cara com eles era algo que muita gente desejava, mesmo que já estivessem mortos.

Rafael tocava os ossos duros e polidos, imaginando que um dia aqueles dra­gões tivessem voado livres, lançando espessas colunas de fogo pelos ares. Tais pensamentos o deixaram tanto fascinado quanto melancólico.

Um cemitério de dragões — disse ele para Talemine que caminhava ao seu lado. — São como os cemitérios de elefantes. Na verdade não existem cemitérios de elefantes, é só uma história que contam.

Elefantes, o que são? — perguntou Talemine, sua mão deslizou sobre uma arcada grande e limpa.

São animais que vivem no meu mundo - ele explicou. - Têm a metade do tamanho de um drancto, portanto são bem grandes, dois longos dentes pontudos, patas roliças no formato de colunas e um nariz muito comprido que utilizam para cheirar e pegar tudo o que encontram.

Devem ser bem feios - disse ela, julgando a aparência dos paquidermes pela descrição que acabara de ouvir.

Na realidade são até bem bonitos. Meu irmão tem um, só que é feito de pano — ele lembrou com carinho de seu pequeno irmão abraçado ao brinquedo preferido.

Ei! Todos vocês! - gritou Marc. — Vejam só isso!

Marc havia encontrado um dragão de pele prateada como um peixe. Sua cauda ondulava um pouco e os olhos tremiam querendo abrir. As asas estavam desalinhadas e esparramadas. Ainda estava vivo.

Era o que eu queria lhes mostrar - disse Marc, demasiadamente impressio­nado. — O que aconteceu a ele para estar aqui?

Não vejo ferimentos - disse Talemine, depois de andar em volta do dragão que deveria ter mais de doze metros. - É um dragão bem jovem, da maior espécie que existe.

Sua bocarra entreaberta fumegava como uma chaminé no inverno. Ele já não tinha forças para produzir fogo, nem mesmo uma centelha. Estava cansado e fraco, seu peito subindo e descendo, respirando com muita dificuldade.

Não podemos fazer nada? — perguntou Daniel, compadecendo-se do pobre animal.

Ainda não entendo por que ele se encontra desse jeito. Pode estar envene­nado ou sofrendo de alguma doença... mas, espere - Talemine olhou de novo, por trás do pescoço comprido e revestido de escamas tão duras que pareciam serem feitas de metal. - Há alguma coisa aqui, embaixo do pescoço dele. Preciso que me ajudem a mover um pouco a cabeça. Podem fazer isso?

Guillermo olhou os dentes afiados que sobressaíam como punhais enfileirados.

Talemine, se esse bicho me morder eu faço um assado com ele.

Ele náo vai te morder — garantiu Brian. - Não vê que mal consegue respirar?

Oh, claro, professor - respondeu Guillermo cheio de sarcasmo. - Havia me esquecido que você era especialista em dragões.

Os dois vão ficar aí discutindo ou preferem me ajudar a erguer todo esse peso? — impacientou-se Talemine.

Foi necessária a força de todos juntos para desencostar do chão a pesada cabeça do animal. Parte de uma haste de ferro aparecia entre as escamas e era bem ali a fonte dos problemas do dragão.

É um pedaço de flecha. Conheço bem esse tipo. Flechas compridas e de têmpera reforçada, difícil de se quebrar - identificou Talemine, forçando-a um pouco para livrar o dragão ferido. - Os crassênidas usam dessas para abater dragões no ar... e acertaram esse bem em cheio. Os arcos para impulsioná-las são fortíssimos, a ponto de fazerem as flechas de ferro transpassarem duas armaduras peitorais de uma só vez — ela puxou de novo e a flecha resistiu: — Não adianta, temos de rasgar a carne e consertar o estrago. Ajudem-me a puxar. Usem toda a força que tiverem.

Guillermo e Roger seguraram a haste de metal e deram um puxão ao comando da guerreira. Um líquido escuro borrifou do local do ferimento e se evaporou no ar.

O animal usou a pouca força que ainda lhe restava para gemer de dor num som gutural como se saísse do fundo de um poço.

É o sangue dele - explicou Talemine, empenhando-se para tapar o vaza­mento. — Não escorre como o dos outros animais, mas desaparece quando toca o ar. Por isso náo há vestígios dele sob o dragão. Foi como eu pensei, atingiu uma artéria importante. Preciso agir bem rápido antes que seja muito tarde — ela racio­cinou apressadamente e pediu: — Alguém me alcance a handácea.

Margaret disparou para o cavalo e voltou apressada, as duas mãos protegendo o pote com a droga. Talemine abriu o recipiente e retirou de dentro uma substância azul-forte e pastosa, besuntando todo o ferimento vigorosamente como se preenchesse uma rachadura na parede usando argamassa. O dragão gemeu expelindo uma fumaça débil.

Acho que vai funcionar - disse Talemine, limpando as mãos, livrando-se da handácea. — Essa coisa não pode ficar por muito tempo em contato com a pele, ou não sai nunca mais. Acaba se tornando parte da gente — ela fez uma pausa, apre­ciando o fantástico animal deitado à sua frente. — É o que irá acontecer com ele, vai guardar uma marca azulada pelo resto da vida.

Pelo que você acaba de nos dizer, o dragão vai sobreviver - deduziu Guillermo.

Creio que sim. Ele vai sofrer por algum tempo até a droga ser absorvida pelo organismo e ser incorporada aos tecidos, mas vai ficar bem.

Após alguns minutos o dragão abriu seus dois grandes olhos verdes como se fossem de vidro brilhante. Era o sinal de que ele estava reagindo ao medicamento. Então lançou um olhar sofrido para cada um dos que se encontravam diante dele, mas igualmente parecia um olhar de gratidão, era difícil definir.

O olhar de Talemine foi de Marc até o dragão e de novo para Marc. Parecia entender os pensamentos do rapaz.

O que está esperando, Marc? Que o dragão diga algumas palavras de agradecimento? Dragões não falam, mas espere até ouvir um deles emitir um rugido. Soa como um pequeno trovão.

Marc ouvira tantas histórias de dragões falantes que não se surpreenderia se aquele conversasse com ele em bom francês.

Por que os crassênidas matam dragões? — perguntou Daniel, sua mão afagava as rígidas escamas reluzentes.

De vez em quando os dragões atacam as criações dos camponeses daquele reino, assim como fazem com o rebanho dos drallengianos, faogards e outros povos, pois necessitam de farta quantidade de carne para se alimentarem. Entretanto, os crassênidas não admitem tais ataques e pelo que se sabe, quase não há mais dragões cobrindo os céus de Crassen. Ouvi casos de dragões que saltaram do ar sobre bata­lhões inteiros de crassênidas, transformando todos os soldados em um monte de carne queimada. Os ferozes dragões estão começando a perder a paciência com os matadores da sua espécie.

Ainda há muitos deles? — indagou Daniel.

Muitos vivem nas montanhas, longe daqueles que querem lhes fazer mal - disse Talemine, e olhou com ternura para o imenso animal mitológico que demonstrava uma ligeira melhora ao respirar mais profundamente. - Mas ainda existem muitos deles por toda a Cadecália.

Talemine ofereceu grandes porções de água para que o dragão não desidratasse, e após os procedimentos para salvar a criatura ferida terem sido concluídos, os aventureiros seguiram em frente, atravessando as passagens entre os montes escarpados que ocultavam o Cemitério dos Dragões.

Durante aquela noite, os olhos de Talemine cintilaram como prata pura, foi quando ela soube da grande cerimônia de sepultamento do seu saudoso avô. Em três dias Faogard teria uma rainha.

Logo que o dia raiou e a viagem seguiu em caminhada firme pelo Venactane, as pradarias foram trocadas por terreno de arenito seco com rala vegetação rasteira e dispersa. O sol estava radiante no céu de poucas nuvens, seria um dia de muito calor. Um cenário de rochas areníticas formava-se pela frente, composto basicamente de paredões retilíneos e pedras soltas. Não havia uma estrada ou sequer uma trilha para se guiarem; o melhor caminho era aquele em que podiam pisar sem escorregar nos seixos ou se enfiarem numa fenda traiçoeira. Haviam escolhido uma passagem que seguia para cima onde começava um labirinto em que o vento emitia um lamento constante. No momento mais quente do dia, descansaram no meio do arenito, comeram frutas secas e beberam dos cantis à sombra de rochedos averme­lhados. Marc e Daniel improvisaram uma excursão encosta acima, desaparecendo de vista por não mais de dez minutos. Quando retornaram, Chester trazia algo que se assemelhava a uma pedra oblonga com cerca de vinte e cinco centímetros, e coberta de manchas raiadas em tonalidades azuis e alaranjadas.

Onde conseguiram isso? — inquiriu Talemine, levantando-se de um salto, a expressão de seu rosto era como o de confrontar algo apavorante.

Encontramos escondida entre umas pedras, lá no alto — informou Chester, apontando para um conjunto de rochas achatadas que lembrava um enorme ninho encaixado no declive.

Parece ser um belo exemplar de ágata - disse Brian, olhando o ovo de perto.

Seu tolo! — disse a faogard, tomando a pedra das mãos de Chester. — Você pegou um ovo de grípharus. O grípharus pode ser terrível quando invadem o seu ter­ritório, mas se alguém lhe rouba um ovo, torna-se um feroz assassino. Este ovo estava chocando entre as pedras quentes, é assim que eles fazem quando saem para caçar.

Talemine sondou o céu com aflição.

Temos que devolvê-lo antes que o seu dono volte.

Eu faço isso - prontificou-se Brian apoderando-se do ovo e subindo rapidamente o terreno pedregoso.

Peguem suas coisas e vamos sair daqui enquanto é tempo — alertou Tale­mine, e gritou para Brian: - Seja rápido e se afaste logo desse ninho!

Brian mal acabara de ouvir o aviso dado por Talemine quando um estridente guincho vindo de cima rasgou o ar.

No alto, via-se o terrível grípharus se aproximar velozmente premeditando o ataque. O espantoso animal de pelagem quase negra era tão grande como um corcel, sua cabeça de ave de rapina, lembrando uma águia com um poderoso bico em gancho e o seu corpo de leão sustentado por um par de enormes asas escuras era como a descrição das lendas muito antigas relacionadas ao grifo. Os olhos, totalmente negros, despejavam todo ódio aos visitantes indesejados. De longe, a fera alada percebera que o seu território, normalmente despovoado, havia sido profanado. Enfureceu-se quando se deparou com o ninho vazio.

Não há mais tempo, Brian! — berrou Talemine, lançou mão de seu arco e preparou o disparo. - Solte o ovo e corra!

Brian largou o ovo que rolou pelo declive e parou numa pedra; sem desperdi­çar tempo, ele correu e escorregou pela encosta, fugindo como podia. O grípharus, ou grifo, soltou outro grito e investiu contra Brian que, procurando escapar, não conseguia ver de onde vinha o ataque surpresa.

Talemine lançou a primeira flecha e errou, o grípharus se esquivara, fazendo uma curva impossível no céu. A segunda flecha de Talemine triscou o flanco do ser de asas sombrias sem, no entanto, causar ferimento. Espertamente, a criatura voadora se colocava contra o amplo halo luminoso do sol, confundindo a visão da guerreira. Numa absurda manobra, o grípharus mudou de direção e executou uma ação ofensiva, atacando Brian pela frente, fazendo-o perder definitivamente o equilíbrio e expondo o peito às afiadas garras que entraram rasgando o tórax do professor inglês.

Brian! — gritou Roger, armando-se com a Espada e o Escudo do Herói Andrus, e correu para salvar o amigo, caso não fosse tarde demais.

Roger vibrou a Espada muitas vezes para atrair o contendor ferrenho; deveria ser daquele jeito que Andrus enfrentara o monstro da montanha há muitos e muitos séculos. O grípharus alterou momentaneamente o objetivo de sua fúria e voltou-se para Roger que enfrentou o perigo extremo com determinação, agitando a lâmina negra, mantendo o animal enlouquecido de raiva à distância. Talemine persistia em usar o seu arco em disparos sucessivos, todas as setas erravam o alvo por pouco.

Percebendo que não conseguiria atingir Roger, o grípharus voltou-se nova­mente para Brian estirado e sem nenhuma reação, uma extensa mancha de sangue espalhava-se pelo seu peito gravemente ferido.

Guillermo muniu-se de seu arco, retesando-o ao máximo, precisava ajudar o amigo a qualquer custo; se as flechas de Talemine não acertavam seu objetivo, como ele poderia ter êxito em um momento tão delicado? Contudo, o grípharus ficava atento aos movimentos da arqueira, e Guillermo posicionou-se fora do foco de visão da criatura fabulosa.

No entanto, algo surpreendente aconteceu. Por cima e por detrás dos roche­dos de arenito surgiu com a velocidade de um raio outro ser alado de envergadura equivalente ao grípharus. Era o cilenante com o qual Chester havia estabelecido o inesquecível contato de amizade. Chester logo o reconheceu pela sua cor cinza pra­teada. O cavalo de grandes asas mergulhou sobre o grípharus, escoiceando-o com toda a força de seus cascos. O grípharus foi atirado ao solo, causando um baque que fez o chão estremecer. A fera náo se abateu e contra-atacou, elevando-se da encosta, articulando suas poderosas asas. Todas as garras da monumental criatura voadora agora apontavam para o cilenante que não era páreo em um confronto direto. O grípharus era mais forte, mais ágil e possuía um arsenal de garras capazes de retalhar um cilenante como um tigre faria com um cervo. Normalmente, os cilenantes não eram agressivos, e jamais desafiavam um perigosíssimo grípharus para um enfrentamento. O cilenante voou, se esquivou como pôde, mas era uma questão de pouquíssimo tempo até ser alcançado pelo adversário impiedoso.

Não havia mais tempo. Quando caçador e caça deram um rasante, a flecha de Guillermo foi arremessada com precisão, penetrando em uma pata dianteira do implacável grípharus, as garras retraindo-se num reflexo; outra seta saída do arco de Talemine raspou o flanco direito, desestabilizando o ataque contra o cilenante; o grípharus gritou de dor e cólera, mergulhou no solo de arenito e prendeu o ovo com uma de suas patas de unhas afiadíssimas, então se lançou para o ar e voou acima dos paredões, desaparecendo de vista.

Todos acorreram para Brian e presenciaram a gravidade do ferimento. Uma única unha aguçada provocou um rasgo quebrando a clavícula, desunindo algumas costelas do osso esterno, e terminando na metade do abdômen. Numa cena de terror, as extremidades das costelas de Brian emergiam da carne, deixando parte do coração exposto e batendo aceleradamente. Brian estava morrendo.

Margaret levou as duas mãos ao rosto, chocada com o que via. Chester e Marc sentiam-se culpados vendo o querido professor Brian naquela situação deplorável, abrindo e fechando a boca numa respiração curta e rápida, a cabeça jogada para o lado, os olhos entreabertos em agonia.

A handácea! — disse Talemine enquanto avaliava como faria a intervenção cirúrgica de tamanho risco; Margaret tomou a iniciativa e correu para os cavalos.

Vai fazer com Brian o que fez com o dragão? - perguntou Guillermo, depositando toda a confiança na guerreira amada.

Tem uma idéia melhor? É o único jeito de evitar a sua morte — respondeu ela, sem outra opção. - Não sei se vai dar certo, Guillermo - o olhar da faogard tornou-se terno para ele. - O ferimento é gravíssimo e, além disso, ele está perdendo muito sangue. Nem temos como removê-lo para um lugar melhor. Terei que operá-lo aqui mesmo.

Roger dividia a atenção observando o amigo ferido e vasculhando o céu, caso o grípharus retornasse, a Espada mágica em punho pronta para ser usada.

No que o cilenante aterrou no declive, Chester foi até ele, cheio de admiração e gratidão.

Não sei realmente se me entende — disse. — Mas sou muito grato pelo que fez, arriscando a própria vida para salvar o professor. Se não fosse pela sua bravura ele teria morrido.

Chester arregalou os olhos quando uma coisa veio a sua mente.

Ah, espere! Não vá embora — as duas mãos abertas para conter o cilenante.

Ele desceu aos cavalos e retornou com um pequeno odre cheio de água, dirigindo-se prestativo ao eqüino voador.

Essa correria deve tê-lo deixado com sede, tome — e aproximou o saco de couro que foi esvaziado rapidamente ao som do cilenante sugando a água.

Chester ainda acariciou o focinho do cilenante antes que ele se lançasse no ar e desaparecesse novamente.

Náo fique triste, Chester - gritou Marc que assistia à certa distância. - Você vai vê-lo outras vezes.

Claro que vou — sussurrou para si mesmo.

Talemine abriu o pote de medicamento e ajoelhou-se ao lado de Brian, em seguida terminou de rasgar com a sua faca a camisa ensangüentada e pediu uma corda para amarrar as pernas dele, as dores lancinantes da cirurgia fariam o professor se contorcer como alguém que recebe a mais brutal das torturas. Deveriam, também, segurar-lhe os braços para impedir qualquer acidente no momento cru­cial. Ficando Brian totalmente imobilizado, Talemine orientou Rafael a pressionar as costelas dilaceradas até que elas voltassem na posição correta, ligando-as ao osso esterno no centro do peito.

Tenho mesmo que fazer isso? — disse o garoto, considerando a tarefa por demais tétrica.

É assim que deve ser. Se o coração parar de bater, teremos de massageá-lo removendo novamente as costelas. Esteja pronto pra isso também — avisou a fao­gard ao mesmo tempo em que distribuía a handácea pelo peito aberto.

A dor aguda fez Brian se agitar e gemer, sua mente inquieta estava longe, e em seu torpor ele não estava entendendo o que acontecia com o seu corpo.

Talemine quase esgotou o pote de handácea, e a cada passada de mão sobre o extenso ferimento, todos os músculos de Brian explodiam em espasmos, até que, por fim, ele perdeu os sentidos. Era de se duvidar que num ambiente contaminado e sem nenhuma assepsia preventiva não houvesse o perigo de uma infecção. Todavia, Talemine agia com tanta desenvoltura e certeza na eficácia da handácea que era de se esperar que a estranha medicação fosse verdadeiramente miraculosa.

A guerreira pediu que trouxessem um cobertor, cortando-o em uma comprida tira que foi empregada para enfaixar o tronco de Brian que já náo esboçava nenhuma resistência. Náo haveria possibilidade de tirar Brian da encosta de arenito, morada do grípharus, até que ele reunisse condições de se locomover pelas próprias pernas. Ao concluir a atadura improvisada, Talemine limpou as mãos com um trapo que restara do antigo cobertor, usou um pouco de água para eliminar os últimos resí­duos da handácea, e proferiu decididamente.

Só nos resta esperar. Em menos de um dia saberemos se ele vai viver. Esta noite passaremos nesse lugar, em vigília.

Grípharus. Grifo - disse Rafael com olhar observador para Marc. - Nomes bastante semelhantes, não é mesmo?

Sou capaz de apostar minha preciosa flauta que foi esse mesmo animal o que atacou Alexei Martov - comentou Marc em resposta.

Uma fogueira que bruxuleava com o vento, foi acesa ao lado de Brian para aquecê-lo sob as estrelas na noite fria. Brian, bastante pálido, tremia muito e pronunciava palavras sem sentido. Em seu delírio prolongado falou de Roger voltando sozinho a Paleandrus; comentou sobre a meiguice de uma bela criança; referiu-se a um homem atormentado que vagava pelas montanhas e florestas, mas não lhe atribuiu um nome; por muitas vezes balbuciou frases incoerentes.

A febre está muito alta — disse Guillermo ao tocar a testa do companheiro enfermo.

É normal isso acontecer - informou Talemine, avivando a fogueira com mais gravetos. — A handácea está interagindo com o organismo dele. Pela manhã teremos a resposta se houve ou não houve rejeição.

E se houver rejeição? — inquiriu Roger, a espada negra grudada em suas mãos alertas.

Uma sepultura solitária fará parte dessa paisagem - disse ela com sua típica dureza de guerreira faogard.

Na claridade rosada dos primeiros raios de sol, Talemine bebericava um chá bem quente para espantar o frio gélido que a noite havia trazido. Os olhos aplicados da faogard cuidavam do sono tranqüilo de Brian após muitas horas de sofrimento e agitação; a febre havia cedido e a respiração fluía normalmente debaixo da atadura grossa.

O que me diz... sobre a recuperação dele? - perguntou Guillermo a Talemine, quase num murmúrio.

O seu semblante é sereno e a cor voltou ao normal. Lembro bem quando Tríssia, a véussida, afirmou o quanto Brian é importante nessa difícil expedição. Alegro-me em dizer que o seu amigo vai sobreviver.

A guerreira lançou um olhar satisfeito para o namorado.

Senti orgulho de você. Caso não acertasse o grípharus, Brian estaria morto agora.

Guillermo correu as mãos pelo rosto cansado. Havia uma grande expressão de alívio no professor espanhol.

Foi apenas sorte de principiante, e o grifo estava tão ocupado com as suas flechas e com as arremetidas de Roger que nem reparou em mim. Mas foi um bom tiro.

Ao abrir lentamente os olhos, Brian teve uma visão embaçada de Guillermo, Talemine e Margaret observando-o com olhares interessados. Quando se acorda assim, tudo se mostra confuso. Não foi preciso mais do que cinco minutos para Brian saber do que havia ocorrido. Brian ainda recuperou-se por cerca de uma hora quando finalmente era chegado o momento de verificar o resultado do trabalho feito nele. O pano foi removido com cuidado e o tórax nu, totalmente recuperado, exibia um desenho azulado de trinta e dois centímetros que corria verticalmente.

Talemine forçou com o polegar a cicatriz resistente e flexível enquanto consultava Brian.

Está doendo?

Não, nem um pouco — então ele fez uma cara de desagrado para Talemine.

Não me diga que essa coisa azul vai ficar grudada em mim pra sempre, que nem naquele dragão.

Vai sim — respondeu ela com bastante naturalidade ao mesmo tempo em que arrumava sua bagagem alquímica para partir. — A handácea já é parte viva de você.

Brian apalpou a sua nova pele azul como se tocasse numa lesma asquerosa.

Sinto cada toque - declarou ele, perplexo. - Isto é realmente parte do meu corpo.

É flexível como a pele humana e resistente como aço. Se você for atingido, mesmo pela lâmina de uma espada ou a ponta de uma flecha, nada lhe acontecerá

explicou Talemine, detalhadamente.

Num teste final, Brian esticou-se e dobrou o tronco revitalizado, bateu os pés no chão e respirou inchando o peito; decididamente ele estava inteiro para viajar.

Quando se despediram da encosta de arenito, o grípharus retornou ao ninho, recuperando seu reinado. O formoso ser mitológico havia se livrado da flecha de Guillermo usando o fortíssimo bico. O grípharus depositou o ovo, recolheu as potentes asas e caminhou duas vezes em círculos por sobre o ninho como um gato que se prepara para deitar.

Alguma coisa deteve o ímpeto assassino do grípharus - disse Talemine, ela admirava pela última vez o adversário feroz.

Um enérgico bater de asas desviou novamente a atenção para o alto. O cile­nante havia voltado, e dessa vez para integrar a caravana onde quer que ela fosse.

Ele pode nos ser bastante útil - declarou Chester todo orgulhoso. - Será o nosso batedor e enxergará o perigo de cima, bem antes que possamos perceber.

A paisagem de arenito ficou distante, colorida de vermelho pela luz do sol matutino.

 

                               Os Deuses Reclusos

A planície majestosa que findava o Venactane era cortada pelo Libenceon, o caudaloso rio limítrofe que anunciava o início do território de Drallêngia, o reino aliado de Faogard. Há quatrocentos metros pelo norte, havia uma ponte de tijolos reforçados que atravessava o rio para o interior do segundo maior país do continente cadecaliano. A leste, três colinas cônicas, os montes Niskepelon, serviam de marco para avisar que os viajantes estavam prestes a penetrar no imenso vale Dinfalein, o Vale da Veneração. Talemine deteve subitamente o seu gifenonte logo que cruzaram a ponte. O vento soprava de oeste para leste no princípio da manhã.

Estamos sendo seguidos — ela afirmou ao sentir o ar em suas narinas.

Tem certeza? — questionou Roger, girando o seu gifenonte para oeste e fazendo uso do binóculo. Ele não viu nada fora do comum.

Não há como meu olfato errar. São muitos homens em seus gifenontes. Mais de cinqüenta cavalgam à uma hora de nossa caravana. O vento trouxe o cheiro deles, o cheiro da morte: são arkoprômidas.

Os gifenontes adiantaram o galope na direção das Niskepelon, as colinas do Dinfalein. Mas primeiro teriam que passar por pradarias descampadas antes de conseguirem abrigo entre as três elevações rochosas.

Agora foi a vez de Marc estacar seu cavalo. Ele notou um grande movimento à frente. Muitos cavaleiros se aproximando em cavalgada ligeira.

Guerreiros drallengianos — disse Talemine ao reconhecer seus reluzentes trajes de batalha.

Não tardou muito e cerca de cem guerreiros rodearam os forasteiros vindos do oeste.

São como um exército saído do mundo dos mortos — observou Marc, sussurrando para Daniel.

Suas armaduras peitorais, exibindo um vulcão lançando chamas estilizadas, reluziam como bronze polido; os olhos amarelos se destacavam da pele cinza fazendo-os se parecerem com cadáveres ambulantes. Metade dos soldados susten­tava longas lanças apontadas para cima, dando-lhes um poderoso aspecto de força e organização militar.

Aquele que deveria ser o líder apresentou cumprimentos em gazivian. Talemine avisou que seus amigos não compreendiam a língua nativa e perguntou se o oficial drallengiano conhecia o idioma dos habitantes do extremo oeste. Ele assentiu com a cabeça.

Está muito longe de casa, guerreira, ou devo chamá-la... princesa de Faogard?

As notícias sempre correm como o vento pelo continente - disse ela em resposta, pois o guerreiro drallengiano se referia a recente coroação de sua mãe, a rainha de Faogard. - No momento estou em missão militar, portanto, trate-me como um soldado.

Desde quando enfeitiçam cilenantes para que os acompanhe como um nevolort treinado? - perguntou o drallengiano com os olhos fixos no cilenante que voava em círculos sem abandonar seus novos companheiros.

É um talento especial do nosso domador de cavalos — disse a faogard, indicando Chester. — Parece que não há cavalo que ele não possa amansar. A prova está bem aí, planando acima de nossas cabeças.

O líder da tropa drallengiana modificou a expressão para um tom muito sério e pouco amigável, advertindo duramente.

Não gostamos de visitantes em Drallêngia sem nossa permissão.

Por toda a minha vida acreditei que nossos povos fossem aliados - disse Talemine desaprovando tal advertência. - E que como visitantes seríamos bem-vindos.

Faogards sempre serão merecedores de nossa hospitalidade — especificou o soldado drallengiano. - Desde que não nos tragam problemas, como motivos para uma guerra.

O impetuoso gigenonte de listras vermelhas do drallengiano trotou impacientemente diante de Talemine. O guerreiro de olhos amarelos então proferiu palavras incisivas que fizeram os viajantes colocarem em dúvida a boa vontade de Drallêngia para com a expedição até Crassen.

Se nós entregarmos os seus amigos aos crassênidas, pouparemos Drallêngia de se envolver em uma guerra sangrenta de repercussão inimaginável.

Ao ouvir aquilo, Roger levou a mão à cintura onde repousava a espada negra.

Não viemos até aqui para desistir — declarou Talemine com ferocidade. - E nunca traio meus amigos. Luto ao lado deles - ela sacou sua espada, posicionando-se para defender os amigos de jornada, mesmo que fosse obrigada a lutar contra cem guerreiros drallengianos.

O oficial drallengiano sorriu e pronunciou.

Se essa é a posição de uma guerreira faogard, julgo que Drallêngia escolheu bem os seus aliados. Que as terras de Drallêngia os recebam com cortesia. Baixe sua espada faogard, pois está entre amigos.

Os ânimos relaxaram e o guerreiro apresentou-se de maneira mais cordial.

Sou o comandante Milonícius das tropas do oeste que protegem as frontei­ras ao longo do rio Libenceon até o sul. Enviarei um triônivo com as boas novas de sua chegada.

Um dos soldados aproximou-se, havia agarrada em seu antebraço uma ave semelhante a um falcão de penas azuis da cor do céu. A cor de suas penas confundia o observador quando a velocíssima ave estava em vôo, tornando-a praticamente invisível no céu claro, tanto ao ataque de dragões e grifos quanto aos olhos de suas presas rastejantes. Quando o sol se punha, a plumagem do triônivo tornava-se negra como a dos corvos, para que a ave conseguisse voar camuflada e impercep­tível no escuro. Milonícius prendeu uma mensagem numa gargantilha e soltou o triônivo que sabia exatamente o que deveria fazer. O pássaro bateu as asas e voou para algum ponto entre o leste e o sudeste.

Não somos os únicos a adentrar o Dinfalein - avisou Talemine. - Em breve dezenas de arkoprômidas cruzarão o rio Libenceon a nossa procura, e outros se somarão a eles. Creio que hordas de arkoprômidas se avolumam procedentes do sul e do norte.

Dois de meus soldados os guiarão para além dos Niskepelon. Vão para lá e aguardem na base do Cenoteorus. Daremos uma boa recepção a esses detestáveis arkoprômidas.

Ao comando de Milonícius, a tropa cavalgou para as margens do Libenceon, as espadas e lanças alçadas para a batalha.

Os três montes se agigantaram, e por um caminho entre dois deles, a caravana seguiu avante escoltada por uma dupla de guerreiros bem armados.

A elevada estatura das três montanhas ocultava, na distância de dois quilô­metros para o lado leste, o maior símbolo de adoração dos drallengianos: o Ceno­teorus, a gigantesca torre mágica que impedia, por milhares de anos, que todo o planeta sucumbisse em um pavoroso cataclismo caso Wengarel despencasse do céu. A torre cilíndrica como uma coluna dórica atingia mais de novecentos metros de altura, e a sua base circular de construção Megalítica tinha quase cento e cinqüenta metros de diâmetro. Os próprios deuses a construíram, e três deles, Zanqeon, Niabardhian e Sargaleu, permaneciam, segundo uma lenda muito antiga, enclausura­dos em seu interior, e através do seu sacrifício, de seus poderes combinados e con­centrados na pedra Kalizoel fincada no altíssimo topo do Cenoteorus, Wengarel permanecia fixa no firmamento, prisioneira, exatamente acima da magnífica torre. O Cenoteorus, agora escurecido pela sua longa existência, outrora resplandecera em um azul inconfundível como o da turmalina.

Os visitantes, maravilhados, apreciaram o monumento de estupendas propor­ções que superava em altura até mesmo o inesquecível Kelatzandrus. Na base do Cenoteorus havia uma sinistra porta de metal negro medindo aproximadamente cinco metros de altura, as frestas que um dia contornaram toda a porta haviam se fundido com o restante da edificação, formando um maciço e impenetrável bloco; entalhados no sólido metal, baixos relevos retratavam as faces dos eternos deuses irmãos. Diante da única entrada, havia uma cúpula sustentada por dez pilastras esculpidas em formas humanas, representando cada um dos povos da Cadecália: faogards, drallengianos, anuabis, crassênidas, nesdulácios, esfégios, fherózios, gazívians, misantréios e paleandreses.

A pequena caravana foi prontamente recepcionada por dezenas de soldados drallengianos guardadores da Torre da Veneração, como eles mesmos a denominavam.

Talemine apeou, e num profundo gesto de adoração e respeito, abriu os braços e pôs-se de joelhos perante as portas dos três deuses. Ela se pôs de pé e caminhou por entre as colunas que contornavam a grandiosa cúpula das dez raças e deleitou-se ao aspirar o sagrado ar que a envolvia. No seu êxtase, os olhos da guerreira se tornaram prata para que ela compartilhasse aquele sublime momento com a sua querida irmã.

Eles estão lá dentro - disse ela ao sair do transe e voltar-se para seus amigos.

Pude senti-los, cada um deles.

Você quer dizer que... — Guillermo tentou entender.

Que os três deuses habitam o Grande Cenoteorus — ela explicou melhor. — O sacrifício deles os encarcera numa prisão eterna para que o mundo não termine em angústia e desgraça.

Um lugar bem apropriado - observou Daniel, analiticamente. - Quero dizer, para servir de morada aos deuses. Espetacular, é o que essa torre é.

Por toda a minha vida achei que deuses fossem etéreos como fantasmas - comentou Rafael, as mãos apoiadas na cintura, os olhos sem perder nenhum detalhe como um explorador que contempla uma notável descoberta arqueológica.

Eles são o que quiserem ser — esclareceu Talemine, ainda deleitando-se em comunhão com o Cenoteorus. — Por isso eles são deuses.

Impressionante como a torre aponta diretamente para Wengarel - disse Marc, a cabeça voltada para cima, a boca aberta em espanto.

Quase uma hora havia se passado quando a cavalaria de Milonícius regressou das margens do Libenceon, suas espadas e lanças ainda guardavam o sangue dos arkoprômidas.

Aqueles animais enlouqueceram de vez — disse ele num misto de indignação e perplexidade, ele correu o olhar pelos seus guerreiros, alguns feridos e outros atraves­sados nos lombos dos cavalos, mortos em batalha. - Ainda que estivessem em menor número, de um para dois, nos enfrentaram com tamanha tenacidade que cheguei a pensar que o próprio Arkopromis tivesse guiado suas amaldiçoadas armas.

Ele contabilizou as baixas e lamentou-se.

Drallêngia perdeu quatorze bravos soldados, contudo, o generoso Libenceon conduz as carcaças dos nossos inimigos, lambendo o seu sangue pestilento para depois vomitá-lo no mar longínquo - os olhos deixaram transparecer um ódio intenso quando ele pronunciou: — Matamos todos eles, os selvagens.

Sinto pelos seus guerreiros - disse Brian, manifestando seu aborrecimento por tanta matança. - Espero que essa guerra de que tanto comentam não se materialize.

Sobre esse assunto conversaremos em Ciáfragus — decidiu Milonícius mencionando a grande metrópole, capital de Drallêngia. - Sigo com vocês para onde o sol nasce. Uma escolta nos servirá de apoio enquanto a maioria de meus homens permanece aqui, resguardando o Cenoteorus - Milonícius recordou a hostilidade impensada do inimigo, justificando a presença de tantos guerreiros no Dinfalein. - Os abomináveis soldados de Arkopromis já tentaram destruir a Torre da Venera­ção por duas vezes: quando o fizeram pela primeira vez, nenhum de nós aqui era nascido, foi há muito tempo. Na segunda vez, eu era um garoto inexperiente que sonhava ser guerreiro de Drallêngia. A notícia se alastrou pelo reino. Lembro-me dos soldados atravessando os portões da cidade para defender a Torre. Atualmente um batalhão monta sentinela permanente em redor do Cenoteorus — ele endireitou o corpo sobre o gifenonte e definiu: — Reforçaremos a proteção com mais guerrei­ros para que os deuses não sejam importunados na sua sagrada missão.

Na tarde daquele dia, os aventureiros e vinte soldados comandados por Milonícius viajaram para além das colinas rasas do Dinfalein, em estradas que cortavam fazendas de terras férteis e lavouras pródigas. Os camponeses, todos de pele cinzenta e grandes olhos amarelos, saudavam seus valorosos guerreiros e olhavam com estranheza para os forasteiros de pele clara; crianças drallengianas cochichavam entre si e riam contidas, o que era natural para os habitantes daquela região que nunca haviam visto um humano pela frente. Não se via homens jovens entre os moradores do campo, todos se encontra­vam nas áreas militares em treinamento.

Milonícius obteve pouso para a sua comitiva em uma espaçosa casa rural e ordenou aos seus valorosos soldados que se montasse turnos de guarda durante o pernoite. As camas com colchões recheados de palha, de longe eram mais confor­táveis que o chão duro dos acampamentos improvisados. Foi um sono pesado para os que puderam dormir a noite toda.

Ciáfragus distava cinco dias desde o vale do Dinfalein. Os cavaleiros avançavam rapidamente pelos prados, deixando vilarejos e imensas plantações para trás.

No quarto dia, Brian espantou-se quando contemplou o horizonte. Pesadas nuvens escureciam os céus do leste. Trovões distantes se prolongavam como se avi­sassem de uma copiosa tempestade se aproximando.

Tem alguma coisa errada com aquelas nuvens — ele estranhou, pediu auxílio às lentes do binóculo de Roger e observou mais de perto: - Muito esquisitas, eu poderia jurar que...

Não são nuvens de chuva — interrompeu Milonícius, uma expressão atribulada marcou seu rosto cadavérico.

Os soldados drallengianos falavam e discutiam ao mesmo tempo como se alguma coisa muito grave estivesse acontecendo. Subitamente um triônivo mensa­geiro surgiu do céu, sobrevoando a expedição e buscando o antebraço de Milonícius para pousar. O comandante desvencilhou um minúsculo pergaminho preso ao pes­coço do animal e pôs-se a ler apressadamente, a testa contraída, os olhos muito fixos no que lia. Então amassou a mensagem no punho cerrado e pronunciou algumas palavras em gazivian que fizeram seus soldados se agitarem ainda mais. Em seguida dirigiu-se aos forasteiros.

O Merasgor está entrando em erupção — Milonícius falava com desolação na voz. - Ameaça explodir a qualquer momento.

E o que isso significa? - perguntou Guillermo. — Pelo tom que usa as palavras, não se trata de uma simples erupção.

Ciáfragus cresceu em volta do Merasgor, o maior vulcão da Cadecália. Ele esteve adormecido desde a cataclísmica guerra travada entre os deuses e depois de incontáveis séculos ninguém mais acreditava que pudesse acordar. A capital abriga mais de quatrocentos mil drallengianos que poderão morrer em minutos se o vul­cão explodir de repente.

Mas ele não dava sinais de querer entrar em atividade? — indagou Brian. - Tremores de terra e mudanças no comportamento de certos animais são comuns antes de um vulcão iniciar uma erupção.

Náo que eu saiba — respondeu Milonícius, sua aflição aumentava quando ele via as nuvens ameaçadoras espalhando-se lentamente. — Estive por mais de sessenta dias comandando as tropas no Dinfalein, e as mensagens que chegavam a mim nunca mencionavam qualquer atividade do Merasgor.

Inesperadamente os cavalos desequilibraram-se a ponto de quase derrubarem seus cavaleiros. O chão abaixo deles havia sacudido por mais de cinco longos segundos.

Aí está o seu tremor de terra - disse Milonícius a Brian, logo que se recom­pôs. - Ciáfragus precisa de seus filhos. O reino de Drallêngia corre grande perigo se a capital desaparecer sob as cinzas do Merasgor. Não têm que vir se não quiserem - ele disse olhando para Talemine e logo para Guillermo. - Podem guardar uma distância segura caso o vulcão se torne destrutivo.

Iremos com vocês e faremos o que for preciso para ajudar - disse Talemine com determinação, pedindo apoio ao olhar para Guillermo que assentiu de imediato.

Rumaram em velocidade para Ciáfragus, só parando em um ou outro riacho para abastecer as montarias.

Utilizaram parte do período da noite para avançar pelas veredas quase apaga­das e dormiram muito pouco nas curtas horas de descanso. A noite, o horizonte do lado leste se iluminava de vermelho das chamas distantes do vulcão.

Quando o sol nasceu o seu brilho não foi visto, encoberto que estava pelo gigantesco teto de nuvens cor de chumbo. Ao cruzarem o topo de uma colina, avistaram os primeiros sinais da extensa capital de Drallêngia. Telhados escuros da poeira atirada do vulcão e ruas alvoroçadas de gente em desespero era o que se assistia por toda parte. Afinal, Ciáfragus fora edificada em torno do Merasgor como Milonícius havia descrito.

O Merasgor, por sua vez, se mostrava um vulcão majestoso de quatro mil e seiscentos metros de altitude e encostas com ângulos suaves, o que aumentava consideravelmente a sua estupenda área de ocupação no centro da capital de Dral­lêngia. Uma tenebrosa fumaça espessa e escura no formato de um cone invertido era constantemente lançada da escancarada cratera da montanha explosiva, e se elevava a uma altura de trinta quilômetros sobre Ciáfragus, espalhando-se até o horizonte mais distante. O alvorecer não chegou naquele dia obscuro para o povo que se espremia aterrorizado entre as ruas. A cidade agonizante mergulhara numa assustadora penumbra. De tempos em tempos, uma forte explosão jogava incontá­veis toneladas de poeira vulcânica no ar, agravando o pavor na população que insis­tia em permanecer, esperançosa num milagre dos deuses para abrandar o vulcão tomado de fúria. Era tanta a confiança no passar dos séculos em que o Merasgor jazia completamente extinto, que muitas casas subiam pelas encostas e se equili­bravam solenemente nos penhascos do vulcão como perdizes que ciscam impertur­báveis ao lado de um lobo faminto. Quando um vulcão da categoria do Merasgor inicia o processo de erupção, materiais como rocha derretida, cinzas, gases tóxicos e blocos de pedra que podem chegar ao tamanho de uma casa são catapultados com extrema violência matando tudo a sua volta.

Fileiras de luzes de luminita avisavam que uma parcela dos moradores abandonava a cidade pelas estradas do sul e do oeste. Milonícius observou sua gente em retirada e comentou pesaroso:

Estão indo embora. Meu povo perde as esperanças - ele mal podia crer no que estava prestes a dizer. - Ciáfragus irá desaparecer ainda hoje se não houver um jeito de salvá-la. E sem Ciáfragus, sem a cabeça do reino de Drallêngia, Crassen conquistará uma estratégica superioridade emocional quando o espírito de luta do meu povo estiver enfraquecido.

Isso ainda náo aconteceu - disse Brian, levando ânimo ao nobre aliado. - Passamos por dificuldades inacreditáveis em nossa jornada e sempre encontramos um jeito. Deve existir uma solução. Pense.

A interferência de Brian estimulou Milonícius a raciocinar com mais equilí­brio em meio à severa adversidade. Ele apertou firme a rédea de seu gifenonte e disse com a voz fortalecida:

Você pode ter razão, sábio estrangeiro. Vamos entrar em Ciáfragus. Preciso urgentemente ver umas pessoas.

Lançaram-se pela estrada em direção ao portão oeste de Ciáfragus, o cile­nante apoiando-os pelo ar. Multidões andavam com pressa, a mesma expressão nos olhos: medo e desesperança. Os homens chefiados por Milonícius cavalgavam em sentido contrário da massa de gente atordoada e em fuga. Pessoas contrariadas que deixavam seus lares falavam em gazivian coisas como lamentos e advertências. Milonícius inclinou-se em seu gifenonte e segurou pelo braço um drallengiano que carregava uma grande trouxa onde trazia seus mais caros pertences. Para os que entendiam gazivian, ouviriam o seguinte diálogo:

Onde estão o rei e os sacerdotes?

Todos reunidos no templo de Zanqeon. Fazem preces aos deuses e rogam proteção para Ciáfragus - o retirante olhou repentinamente para trás, abalado com outra explosão vinda do interior do Merasgor, e então voltou o rosto amargurado para Milonícius. - Recomendaram que nos afastássemos do vulcão, mas muitos se recusam partir. Preferem morrer a deixar suas casas.

Milonícius encarou o homem, como se fosse falar algo que espinhava o seu coração, mas desistiu e apenas disse:

Siga em frente e se refugie além das colinas. Estará mais seguro.

Quando entraram na cidade viram as ruas em polvorosa. Gente ajoelhada abraçada a imagens de deuses de pedra. Soldados do reino se empenhavam em colocar um pouco de ordem na confusão que tendia a se descontrolar, caso o Merasgor final­mente lançasse de uma só vez toda a sua devastação pelos ares. A cidade era ilumi­nada pelos clarões dos relâmpagos que nasciam no interior da gigantesca coluna de cinzas e fumaça. Seria um espetáculo belíssimo se não trouxesse o clamor nefasto da morte.

Milonícius conduziu seu gifenonte às portas do templo ao pé do vulcão. O lugar de adoração fora escavado na própria rocha basáltica do Merasgor, num admirável trabalho da engenharia drallengiana.

No exato instante em que desmontaram e se preparavam para entrar, desabou uma chuva fina e constante de diminutas pedras-pomes, rochas efusivas porosas e muito leves que ao serem lançadas a grandes alturas, adquirem um aspecto esponjoso e se precipitam em quantidades incalculáveis em um raio de muitos quilômetros. O som das pedras-pomes caindo no chão e nos telhados lembrava uma chuva forte.

Reunidos no interior do templo, encontravam-se os mais dignos sacerdotes e o rei acompanhado por doze soldados da sua guarda pessoal, todos com a atenção depositada em um pesado livro aberto numa mesa circular feita de um tipo de pedra clara. Ao fundo a grande estátua do deus Zanqeon com brilhantes olhos de luminita, ocupando o seu trono magnífico de basalto escuro e lustroso.

Milonícius! — exclamou o rei, abrindo os braços para acolhê-lo. De resto nada se entendeu enquanto os dois trocavam palavras apreensivas em gazivian.

Milonícius fez rapidamente as apresentações.

Esse é o portentoso Livdonus, o monarca de toda a grande Drallêngia.

O rei voltou-se para os visitantes, o velho rosto cinza esmaecido emoldurado por cabelos e barba muito brancos. Seu nobre traje longo em negro e dourado o diferenciava com magnificência.

Sinto recebê-los nessas circunstâncias, mas estou certo de que se compa­decem do meu tormento - disse o rei, o semblante em desgosto. - Dói em meu coração pensar que Merasgor, o orgulho de Ciáfragus, poderá ser a sua ruína.

O Palácio, meu Senhor, como se encontra? - quis saber Milonícius.

Foi parcialmente destruído pelos tremores e pelas avalanches de cinza e lama que escorrem pelo declive - o rei Livdonus apontou para a mesa redonda onde traba­lhavam os devotados sacerdotes do templo, e pôs os recém-chegados a par dos acon­tecimentos. - Os sacerdotes vasculham o milenar Livro das Mensagens à procura de uma resposta que nos livre de nosso infortúnio. Descobriram que o Merasgor, depois de ficar quieto por milhares de anos quando findou a brutal batalha travada entre os deuses, foi invocado por uma força maligna que o colocou contra o meu povo. E a única coisa que pode salvar Ciáfragus desapareceu há muitos séculos como está escrito bem aqui — ele indicou uma passagem no livro que falava sobre uma lenda.

Mais um tremor balançou o templo e fez com que todos interrompessem o que faziam, os olhares receosos percorrendo as paredes. Pouco depois tudo se acalmou por um momento.

Eu posso olhar o que diz a lenda? - pediu Milonícius abrindo um espaço entre os sacerdotes que só falavam na língua gazivian.

Ele debruçou-se sobre o livro muito antigo e leu os escritos com desvelo, depois ergueu os olhos e comentou consternado.

É a história de dois objetos muito poderosos. Um deles é um punhal mágico criado pelo deus do mal, Arkopromis: o Punhal de Skenágraca. Aqui diz que quando alguém cravava esse punhal no centro da cratera de um vulcão adormecido, toda a montanha voltava a vida, violenta e destrutiva como nunca esteve antes. O despertar do vulcão se dava de maneira muito rápida e surpreendente, exatamente como está acontecendo com o Merasgor — Milonícius acrescentou uma história curiosa que acabara de conhecer no velho livro: — Uma vez, faz cerca de três mil e quinhentos anos como mostra a data aqui mencionada, um fanático sacerdote do leste acreditando cegamente em uma lenda que falava sobre a terrível destruição de sua gente, apoderou-se do punhal enfeitiçado e atravessou o portal negro com o propósito de aniquilar os demônios que habitavam o mundo das trevas. Sabendo disso, uma ceiféride de Ninqa foi atrás dele com a missão de impedir a catástrofe, pois os dois mundos precisariam um do outro para coexistir, caso contrário, na destruição de um deles, o outro mundo também desapareceria. Agora essa parte é a mais interessante - Milonícius tocou o texto que havia lhe chamado a atenção. — Havia um segundo objeto, uma contra-magia que neutralizava o poder do punhal. Foi com esse artefato que a ceiféride acreditava impedir o ato macabro do sacerdote insano. O objeto deveria ser atirado na cratera antes do vulcão explodir totalmente, e assim, evitar a catástrofe. A ceiféride também desapareceu através da passagem mágica e nunca mais voltou.

Santorini! - exclamou Brian. — A ilha vulcânica do mar Egeu que está fragmen­tada como uma meia-lua. Pelo visto ela pode ter entrado em erupção nessa época, há mais de três milênios. Existem sérias pesquisas sobre o passado vulcânico da ilha.

Nesse caso, o sacerdote deve ter tido êxito, enterrando o punhal enfeitiçado na cratera do antigo vulcão - completou Guillermo, e levantou duas importantes questões. - Mas onde ficou escondido o tal artefato por todo esse tempo? E quem o trouxe de volta a esse mundo?

Náo pode ser o mesmo punhal - retrucou Milonícius. - Ouçam isto: "ao ser evocada, a faca do mal se liqüefaz para sempre na montanha de fogo como uma poção que se dilui no cântaro. Nunca mais pode ser vista e nem tocada. Passa a fazer parte do próprio monumento de morte que um dia fez surgir".

E quanto ao segundo objeto? - lembrou Margaret, ela estava bem atenta.

Ah, sim... aqui está - Milonícius voltou-se mais uma vez para o grande livro. - Era um pingente, um amuleto no formato de um medalhão que Ninqa confeccionou com o mais puro metal trazido das profundezas da terra.

Milonícius virou a página e lá estava ele.

Esse aqui é o desenho dele - disse o drallengiano. — A marca sagrada de Ninqa.

Mas é a flor dentro do cristal! - exclamou Marc que prontamente lançou um olhar abismado para Roger.

Como o medalhão pode ter viajado por milhares de anos e acabar nas suas mãos? - questionou Talemine em tom de interrogatório, como se Roger não tivesse o direito de possuí-lo.

Roger, sem saber o que dizer nem o que pensar, ficou estarrecido ao reconhe­cer a marca de Ninqa estampada no livro. Mas raciocinou rápido e lembrou que, embora inglesa, os antepassados de Helen eram gregos. Tornara-se fácil concluir que a família de sua amada havia guardado a medalha por mais de trinta séculos e que Helen fora a sua última guardiã. Havia até a possibilidade de os ancestrais de sua esposa não conhecerem o verdadeiro valor daquela jóia. Provavelmente Helen não o conhecia, pois jamais tratava a medalha dourada que trazia no pescoço como um objeto de tanto poder, ao menos não demonstrava saber de nada.

Esperem um pouco - interrompeu Milonícius. - Do que vocês estão falando?

Eles se referem a isto - disse Roger, puxando de dentro da camisa a corrente que deixou à mostra o lendário medalhão.

Milonícius, o rei e os sacerdotes aproximaram-se curiosos e estupefatos, os olhos fixos na marca dourada conhecida por todos eles.

Inacreditável! — espantou-se o rei. — Os deuses enviaram vocês para salvar o meu reino.

Milonícius explicava em gazivian aos sacerdotes que devolviam questionamentos e exclamações de admiração.

Só um momento, só um momento — disse Roger, as mãos espalmadas para aplacar os ânimos exaltados. — Nem sabemos se é o verdadeiro medalhão. Pode ser uma réplica.

O livro diz que o autêntico medalhão possui as mesmas medidas do desenho — informou Milonícius.

Pois veremos — decidiu Roger, e retirou a medalha de ouro do pescoço, levando-a até a página aberta.

As dimensões da placa de ouro e a figura eram perfeitamente iguais.

Mas ainda assim pode ser uma cópia bem feita - insistiu Roger.

Só se tem um jeito de saber - disse Talemine considerando que o tempo se escoava. - Atirando-o na cratera.

E se não for o verdadeiro, perco a última lembrança de Helen.

E se for você evitará a morte de centenas de milhares de pessoas e salvará Ciáfragus de sua destruição. Essa gente está praticamente começando uma guerra por nossa causa, e talvez esse vulcão ainda dormisse como uma criancinha se não tivéssemos dado início a essa jornada - ponderou Brian, tocando o bom senso de Roger que refletiu por um momento.

Tem razão, estou sendo um tolo me apegando a uma coisa sem sentido — disse, dando-se por convencido. Logo o pensamento prático retornou a ele: — Mas como faremos para chegar lá em cima? Levaria dias numa escalada.

Isso é uma boa pergunta - concordou Daniel que conhecia bem de monta­nhas ao escalar costumeiramente os montes europeus na companhia de sua irmã e de seu pai. Sempre que possível, durante as férias, uma nova montanha era escolhida. Da última vez subiram o lado ocidental dos Pirineus e observaram raposas-vermelhas, esquilos e cervos da fauna local. — E o calor na boca do vulcão deve ser insuportável — concluiu, apresentando mais um problema.

Tem toda razão, rapazinho — disse o rei. — Não há tempo para organizarmos uma expedição ou mesmo prepararmos um voluntário. O material destrutivo que rola pelo Merasgor atrasaria e poderia até matar quem tentasse subir agora, sepul­tando o medalhão e as nossas esperanças.

E o cilenante? — sugeriu Chester. — Ele pode voar até a cratera e soltar o medalhão.

Ele não saberia fazer — disse o rei Livdonus depreciando a idéia. — E, além disso, um cilenante não voa tão alto, ainda mais num céu repleto de fumaça e explosões.

Mas alguém pode ir junto até aonde ele conseguir - persistiu Chester. — Depois é só escalar a encosta restante e fazer o serviço.

Muito bem, e quem convence o bichinho a enfrentar perigo tão extremo? — questionou Milonícius.

Eu mesmo posso tentar - respondeu o jovem domador de cavalos.

Temos uma maneira de saber se vai dar certo - disse Brian, finalmente. — Vamos lá fora.

O cilenante aguardava sob um beirai na entrada do templo, protegendo-se de tudo o que caía do céu. Os demais cavalos, irrequietos, relinchavam e não paravam de trotar no mesmo lugar. As pedras-pomes não haviam dado nenhuma trégua e já formavam um espesso tapete ao longo das ruas e sobre as construções. O inferno deveria ser assim: tenebroso e com o odor tétrico da morte. Uma gigantesca explosão estremeceu os alicerces do templo, prenunciando que o pior viria muito em breve.

Não resta muito tempo, Chester! — gritou Brian. - Se tem que fazer algo, que faça agora.

Chester abraçou a cabeça altiva do cilenante e colou o rosto junto à orelha comprida para pedir ajuda. Os grandes olhos castanhos do animal piscavam mode­radamente. Chester parecia orar ou fazer uma súplica que só ele e seu amigo quad­rúpede tinham a capacidade de compreender.

Ele é mais inteligente do que eu pensava — disse Chester, alisando uma das enormes asas ainda dobradas ao encerrar a sua conversa particular. Sem a luz do dia, o cilenante exibia uma cor cinza opaca; iria se misturar nas nuvens escuras e logo sumir do campo de visão. Chester apressou-se dizendo: - Preciso de rédeas para ele.

Imaginei que o cavalo faria tudo sozinho - disse Rafael. — Quem vai montá-lo?

Eu, é claro. Quem mais? — disse Chester como se ele fosse a única alternativa.

Não pode fazer isso — descartou Roger. - É uma missão muito perigosa. Convença o seu amigo a me levar.

Ouçam - Milonícius interferiu, a paciência se esgotando. — Para a nossa sorte, as paredes dessa montanha são excessivamente grossas, e isso está retardando a tragédia. Entretanto, o tempo exíguo não deve ser menosprezado. Acontece que um cilenante não consegue atingir uma altitude como a do Merasgor, muito menos carregando o seu peso, senhor Roger. Você deve ser quase três vezes mais pesado que o menino. O voluntário deve ser alguém leve que possa descer na encosta e daí iniciar a subida até a borda.

Eu me ofereço - disse Daniel. - Tenho experiência com montanhas e sou tão leve quanto Chester.

Brian assistia a discussão e pensava que tudo aquilo deveria ser uma grande estupidez. Garotos comuns discutindo quem deveria voar num cavalo com asas e enfrentar um vulcão que poderia volatilizar quem se aproximasse.

Não há melhor escolha — teimou Daniel usando sua forte argumentação. — Tem que ser eu.

Então será você — sentenciou Brian, não havia certeza para ele se aquela fora a melhor decisão tomada.

Chester ajeitou a rédea enquanto murmurava para o cilenante concordar em deixar-se montar pelo garoto inglês.

Isso é só para o meu amigo ter em que se segurar. Você não gostaria que ele agarrasse a sua crina e puxasse com força, gostaria? Quando voltar, eu prometo que liberto você disso. O cilenante, por fim, aceitou que o seu focinho comprido fosse preso aos incômodos ferros e correias.

Como pode ter certeza que ele vai fazer o que você está pedindo? - perguntou Daniel a Chester, antes de montar.

É um cavalo mágico, esqueceu? Confio nele. Suba de uma vez.

Os sacerdotes prepararam uma máscara de pano com ervas para que Daniel não se intoxicasse com o ar venenoso. Quando amarrou a máscara atrás da cabeça, Chester ainda aproveitou para fazer um comentário em tom de brincadeira.

Daniel, você está se parecendo com um daqueles bandoleiros dos filmes de bang-bang.

Chester entrelaçou as mãos fazendo uma escadinha para Daniel, que reclamou:

Não me sinto muito firme sobre ele — sua voz saindo abafada de dentro da máscara. - Acho que na primeira curva que esse bicho fizer eu despenco lá do alto.

Quer desistir, Daniel? — provocou Rafael.

Não vou desistir. Vou fazer o que é pra ser feito.

Roger esticou a mão e entregou o medalhão de ouro.

Pendure em seu pescoço e vá com ele assim até chegar a hora de usá-lo.

E o cavalo, como vai respirar lá no alto sem se envenenar com os gases? — perguntou Rafael, prudentemente.

O sistema respiratório dos cilenantes tem um tipo de filtro que retém as impurezas do ar e só absorve o ar saudável — explicou Talemine, rapidamente. — Não estranhe se ele soltar uma golfada preta pelas narinas. É desse jeito que um cilenante se limpa por dentro.

Milonícius deu as últimas orientações.

Preste atenção agora, rapaz. O vento sopra e empurra as nuvens negras para sudeste. Existe uma escadaria de pedra que começa por volta de duzentos teions abaixo da borda oeste, e sobe até o topo.

Uns trezentos metros, Daniel — lembrou Talemine.

Muito bem - continuou Milonícius está vendo para onde aponta o meu braço? É bem naquela direção — mostrou uma parte escura no flanco da grande montanha em ebulição para onde deveriam voar. Daniel balançou a cabeça para dizer que estava entendendo. — O cilenante náo terá condições de alcançar a borda da cratera, mas é bem provável que vocês consigam chegar próximo de onde come­çam os primeiros degraus. Desça na encosta e ache o caminho. Náo perca muito tempo lá em cima, as ervas que garantem a sua respiração só funcionam por cerca de duas horas. Jogue o medalhão com toda a sua força e volte o mais depressa que suas pernas agüentarem.

Chester também mostrou ao cilenante para onde deveria voar, imitando os gestos do comandante drallengiano. Esfregou afetuosamente a mão no pescoço de seu amigo alado e se afastou para abrir espaço.

O cilenante desdobrou as potentes asas, curvou as patas e saltou, distanciando-se mais e mais do solo. Daniel, experimentando um frio na barriga, via os companheiros, o templo e as casas próximas diminuindo de tamanho e serem escondidos finalmente pelo ar fumacento.

A medida que subiam, o ar ficava mais pesado e quase impossível de ser respirado. A atmosfera estava tomada de dióxido de carbono, ácido sulfúrico e gases de enxofre, acompanhados de outros vapores nocivos. Entre uma camada e outra de nuvem escura, Daniel enxergava, a milhares de metros abaixo dele, as débeis luzinhas da metrópole que lutava para sobreviver ao implacável Merasgor. Nada mais se ouvia além do bater de asas do cilenante e o rigoroso estrondear do vulcão; e a cada sacolejada, o garoto pressionava os joelhos contra o corpo largo do animal que não parava de ganhar altitude. A encosta rochosa foi se aproximando até Daniel entender que era hora de pular. Por via das dúvidas, Daniel esperou chegar um pouco mais perto. O salto não foi dos melhores, mas ele conseguiu se equilibrar no terreno irregular e inclinado, apesar de esfolar as palmas das mãos ao cair de mau jeito. A visão era dificultada, todavia, após algum tempo de procura, Daniel encontrou o começo da escadaria como Milonícius havia dito. Logo se pôs a pisar degrau por degrau, sempre em frente; ao olhar uma última vez para trás, ainda viu o cilenante voar e desaparecer no meio dos rolos de fumaça.

— Trezentos metros — sussurrou ofegante. — São só trezentos metros que me faltam.

Apertou o nó atrás da cabeça para que os gases não penetrassem em suas nari­nas e enfrentou as escadarias, enfiando-se na escuridão.

O ar rarefeito o fazia sentir-se como se tivesse corrido vinte quilômetros sem descanso; suas pernas começaram a falhar, não obedeciam direito por mais que quisesse firmá-las sobre os degraus; sua cabeça parecia que iria explodir como uma bomba. O calor era tão abrasador que provavelmente estouraria um termômetro. Daniel olhava para cima e, envolto em tantos gases cor de chumbo, só identificava três ou quatro degraus à sua frente. Quanto ainda faltava? Ele náo conseguia racio­cinar direito, mas sabia que tinha de cumprir sua obrigação. Centenas de milhares de vidas lá embaixo agora dependiam dele.

Daniel chegou a um patamar retangular e ficou aterrorizado quando viu com seus olhos impregnados de fuligem, um homem muito alto e ameaçador barrando seu cami­nho. Quem poderia estar ali naquele lugar inóspito, dominado por tanta hostilidade? Firmou mais uma vez os olhos e conseguiu perceber que não era um homem de carne e osso, nem mesmo era um espírito, mas uma estátua de Zanqeon danificada pelos constantes castigos que o Merasgor lhe impôs. Um curto tremor fez a cabeça da estátua soltar-se de seus ombros, cair pesadamente e parar aos pés de Daniel que se agachou e a abraçou com dificuldade; deveria pesar mais de quinze quilos. O jovem aventureiro arrastou-a para perto do grande corpo inerte, petrificado; então pediu, quase sem fala, e a grande cabeça de pedra dava a impressão de estar ouvindo.

Me arranje mais forças... seu povo tem que ser salvo... mesmo que a minha vida seja o seu preço — Daniel ficou ali parado por uns poucos segundos, encarando a cabeça disforme. Uma nova explosão o trouxe à realidade.

A escada continuava para cima, passando ao lado do corpo decapitado do deus dos drallengianos.

Daniel apoiou as mãos feridas nos próprios joelhos e ergueu-se num esforço doloroso, levando avante sua sacrificada peregrinação. Não suportava mais caminhar apoiado somente nas pernas fracas, dali em diante teve que engatinhar para não cair e rolar pelas escadas. Arrastava-se com a cabeça baixa e os olhos rentes aos degraus desgastados por infindáveis cortejos de adoração aos deuses, que se repetiam há milê­nios; as mãos feridas ardiam quando tocavam o chão duro e áspero. O medalhão pendia do seu pescoço, balançando num vai e vem sem parar. Daniel concentrava-se no brilho dourado e fraco da peça metálica, na flor e no cristal envolvente. Primeira­mente foi a flor a emitir um brilho chamejante que se alastrou pelo cristal, e logo era todo o medalhão que irradiava uma luz avermelhada como fogo.

O medalhão... algo está acontecendo com ele — balbuciou o garoto que já começava a duvidar da própria sanidade mental.

Daniel não estava sofrendo de uma alucinação, tampouco o artefato dourado que ele trazia no pescoço produzia qualquer magia luminosa. O que ele verdadeiramente viu foi um reflexo; e só ao erguer a cabeça dolorida pôde notar de onde vinha o rubor que cintilava como fogo. Ele havia chegado à imensa borda do Merasgor, uma caldeira fervente de mil e quatrocentos metros de diâmetro que borbulhava rocha derretida e fumegava como o inferno. Se não fosse estar usando a máscara feita com ervas especiais que faziam às vezes de filtro, Daniel estaria morto, envenenado pelo ar tóxico. Porém, ele sofria com o impiedoso calor que se desprendia da caldeira, apesar do vento forte empurrar os gases mortais para o lado oposto de onde ele se achava. Caso a corrente de ar se invertesse repentinamente, o corpo de Daniel seria reduzido a pó em segundos.

Um fortíssimo tremor quase fez Daniel despencar para dentro da caldeira, e dali em diante, o Merasgor náo parou mais de mostrar a sua ferocidade avassala­dora. Uma fratura com mais de duzentos metros abriu-se na encosta noroeste, derramando lava sob altíssima pressão. Todo aquele lado ameaçava desmoronar num espetáculo jamais visto pelos habitantes do continente cadecaliano.

Daniel encheu os pulmões com todo o ar que podia; precisava arranjar forças para arremessar o medalhão bem longe, para o interior da caldeira que queimava igual a milhões de fornalhas; os vapores venenosos fizeram os seus olhos arderem e lacrimejarem como se fossem banhados em uma solução de pimenta; por fim, desvencilhou-se da corrente que o prendia ao objeto mágico e o jogou com toda a energia que ainda possuía em seu braço. Não havia mais nada a fazer, ele tinha que sair daquele lugar o quanto antes. Desceu a escadaria aos trambolhões, tropeçando nos degraus e pensando o que faria se a caldeira transbordasse todo o oceano de magma armazenado em suas entranhas. Decerto estaria morto e nunca mais o seu corpo seria encontrado. Após completar o último degrau, havia um caminho de terra que serpenteava descendo pela inclinação irregular da encosta. A trilha estava interrompida em diversos pontos por rupturas profundas e camadas de pedras-pome. Ele recostou-se um pouco para descansar e sondou com desânimo a paisa­gem nebulosa e desoladora. Perguntou-se como o cilenante o encontraria no meio da sombria cortina de cinzas suspensas no ar. Sua respiração se fazia mais difícil; a máscara estava perdendo o efeito.

Dali a pouco, Daniel ouviu um fragor surpreendente como milhares de vidros estilhaçando, vindo de cima e de dentro da cratera. O som foi crescendo e aumen­tado, e se assemelhava a tiros de espingarda disparados no interior de uma igreja. A lava que jorrava pela grande fenda do flanco oeste estancou e endureceu como concreto, esfriando e cristalizando numa cicatriz esbranquiçada que logo assumiu a coloração rochosa escura do Merasgor. A fratura estava fechada.

Os estampidos secos do basalto foram morrendo lentamente até que só res­tassem o vento e os trovões que nasciam no centro da gigantesca coluna de nuvens negras sobre o vulcão. Quem olhasse o Merasgor de cima, veria toda a extensão da caldeira coberta por um tampão de basalto sólido. A erupção havia sucumbido ao encantamento da antiga jóia dourada. O merasgor finalmente voltara a adormecer.

Daniel enxugava os olhos ainda ardidos e ajustava o pano que lhe protegia o nariz, quando um movimento de asas revolveu a fumaça consistente bem à sua frente. O cilenante havia retornado para resgatá-lo.

Imediatamente Daniel distinguiu alguém sobre o dorso do animal quando este se aproximou mais a ponto de quase tocar o solo. Era Chester, o rosto igual­mente coberto com uma máscara de proteção contra os mortíferos gases. Chester gritou contente, estendendo a mão para que Daniel subisse em segurança.

Ótimo trabalho, Daniel, Ciáfragus está em festa. Você vai se transformar no herói da cidade. De todo o reino.

No momento só quero sair daqui - disse, quase sem voz. - Não consigo respirar muito bem - mencionou expondo uma cara de mal-estar. — O cilenante agüenta voar com o nosso peso?

Não se preocupe, descer é bem mais fácil.

Chester mais uma vez ofereceu a mão a Daniel, puxando-o, e os dois foram levados através do denso nevoeiro vulcânico.

Sobrevoaram praças e largas avenidas coaguladas de gente comemorando o fim do tormento. O cilenante fez um grande arco no céu e pousou suavemente diante do templo que por pouco não teria se transformado em um monte de escombros.

O rei Livdonus fez logo questão de demonstrar sua gratidão oferecendo aos seus convidados de honra, alojamentos confortáveis em seu palácio. Daniel, por sua vez, precisou repetir incontáveis vezes como conseguiu aplacar o furioso Merasgor. Contudo, o jovem herói só queria mesmo era descansar; estava exausto e tossia além da conta. Com preparados e poções de gosto ruim, os melhores médicos de Ciáfragus cuidaram dele e o puseram para descansar em uma cama macia, livre do burburinho dos salões do palácio real.

Chester cumpriu a promessa e libertou o heróico cilenante de suas desagradá­veis rédeas. O rapaz se assustou quando o cilenante espirrou um repugnante muco preto em sua roupa.

Ei! Eu honrei minha palavra. Olhe o que você fez na minha camisa — reclamou enquanto olhava para o próprio peito respingado da gosma escura.

Os drallengianos eram conhecidos pela sua determinação. E por serem assim, durante toda a madrugada ouvia-se os sons de pessoas trabalhando para limpar e reconstruir a portentosa cidade.

Havia agora duas grandes preocupações: colocar tudo em ordem e, a maior delas, estabelecer uma barreira militar para bloquear o poderoso exército crassênida.

Somente os drallengianos não seriam suficientes, apesar de sua bravura, para conter o avanço de Crassen. O apoio faogard se tornaria fundamental, e mesmo assim, corriam notícias de que os anuabis teriam firmado uma aliança militar com os crassênidas. Caso isso se confirmasse, uma expressiva vantagem estaria do lado inimigo. Também existiam fortes rumores que a Nesdulácia, o reino noroeste, e a Misantreia, país situado no sudeste do continente, penderiam para o lado de Crassen por questões geográficas e por convenientes razões políticas. Ninguém, além de Faogard e Drallêngia, seria imprudente a ponto de desafiar o poderio do exército mais bem equipado do reino mais rico da Cadecália. Todas essas possibilidades inquietavam os pensamentos do rei drallengiano reunido com os membros do seu conselho e os seus novos amigos. A madrugada seguia conturbada.

A erupção do Merasgor foi intencional - acusou Livdonus, ocupando o seu trono de basalto cravejado de esmeraldas, as sobrancelhas brancas sobre os olhos muito amarelos, contraídas em preocupação. - Foi um forte golpe para tentar desestabilizar o meu reino. Amaldiçoados sejam os que desvendaram o conhecimento do punhal de Skenágraca que enraivece vulcões.

A magia do punhal só poderia se manifestar pela vontade dos deuses ou por um feiticeiro que tenha poderes muito acima dos de um simples desenval ou véus­sida, majestade - informou Milonícius, apaixonado estudioso das escrituras mile­nares. — Para se forjar o punhal, são necessários tempo e profundo conhecimento. E ainda assim, seria preciso escolher o local certo: o poço de fogo de Skenágraca, a caverna na base do monte Tundagor em Misantreia. Um experiente feiticeiro levaria um excessivo número de anos para chegar ao resultado final. Muitas décadas provavelmente - Milonícius pensou melhor e especulou: - Ou o fabrico do punhal foi passado de geração para geração, ou alguém que possua a longevidade fez todo o trabalho sozinho.

Não existem muitos na Cadecália que estejam vivos a tanto tempo - disse o rei combinando as idéias, os dedos grossos entrelaçados. - A lista desses nomes é bem pequena: Nomaktus, Tríssia...

Klovanira! - interviu Talemine. - A filha de Arkopromis é muito poderosa, e viveu por milhares de anos nas profundezas do lago Zsenesh, majestade. Não faz muito tempo ela conseguiu escapar. Nós presenciamos sua fuga.

Conheço bem a história de Klovanira. E quase toda a Cadecália já tomou ciência das desventuras do grupo de vocês no deserto do Canormut - disse Livdonus, os cotovelos bem apoiados nos braços do altivo trono. — Meus espiões suspeitam que ela esteja escondida em Crassen, recuperando seus poderes... mas não, ela não teria tido tempo de fabricar o punhal de Skenágraca. Minhas desconfianças recaem sobre Gosferac, o Supremo de Crassen, um dos mais poderosos desenvals de todas as eras.

Daniel sentiu-se bem ao despertar na manhã do dia seguinte. A medicina drallengiana era tão eficiente quanto a faogard.

A primeira alimentação do dia foi servida no grande salão que dava vista para o lado sul, através de uma ampla janela que mostrava os telhados ainda carregados de pedras-pome e fuligem. O povo de Ciáfragus passara toda a noite trabalhando incansavelmente e ainda se esmerava para pôr tudo em ordem o quanto antes.

Após o farto desjejum, Milonícius convocou os aventureiros a comparecerem mais uma vez no Salão do Trono, as feições do comandante drallengiano eram graves, embora ele nada mencionasse.

Um alvoroço incomum de gente entrando e saindo do recinto real, indicou que algo muito importante estava acontecendo naquele momento. Todo o Alto Conselho se achava reunido diante de Livdonus, e a aparência do rei era tudo menos serena.

Os olhos amarelos do monarca fixaram-se em Talemine, quando ele anunciou com austeridade.

O exército de Crassen marcha contra Drallêngia, cara aliada. Estamos em guerra.

Embora aquela lastimável notícia fosse aguardada há algum tempo, saber que a guerra havia começado causou grande comoção. Tudo se tornaria mais difícil a partir dali. Realizar a travessia de desertos, desfiladeiros e florestas, infestados de seres fantásticos e perigos a espreita já se tornara corriqueiro; no entanto, numa situação de beligerância em que um pequeno grupo deve cruzar um território des­conhecido onde milhares de soldados inimigos querem a sua cabeça, era algo ainda não experimentado.

Tem alguma idéia de como a nossa caravana possa passar incólume pelos crassênidas e alcançar o Portal? - perguntou Roger avançando até o rei.

Apesar de numeroso, o exército de Gosferac não tem condições de vigiar todas as regiões de fronteira — disse Livdonus, buscando apoio nos olhos de Milonícius. — Certamente os seus soldados ficarão concentrados em setores estratégicos para desferir ataques contínuos, e assim, tentar minar os meus guerreiros. Desse modo, muitas brechas se abrirão entre Drallêngia e Crassen, e é através desses caminhos restritos que um número reduzido de viajantes consegue levar vantagem, passando praticamente despercebido tal como insetos que rastejam nas pradarias. Mas espere. O cabo dessa espada me é familiar.

Livdonus, observador, notou pela primeira vez a empunhadura negra que sobressaía da bainha presa à cintura de Roger.

Num movimento longo, Roger desembainhou a poderosa espada negra aos olhos abismados dos drallengianos.

A Espada de Ninqa! - exclamou Livdonus, erguendo-se de seu trono e aproximando-se com admiração e reverência.

O rei apreciou, assombrado, os desenhos sulcados no corpo da arma espetacular. Conhecia a lendária espada através das gravuras que estampavam os livros antigos.

É realmente a Espada da deusa Ninqa? — indagou Livdonus, ainda incré­dulo. — A arma que levou o povo de Andrus à vitória?

Ninqa está do nosso lado — interviu Talemine. — Quando a guerra se fin­dar, nosso triunfo ficará para sempre na história, majestade. Sim, é ela, a genuína Espada que derrotou o terrível monstro da montanha.

Deixe-me tocá-la... ao menos uma vez — sussurrou Livdonus, tateando a espada com seus dedos cinzentos como a pele dos mortos, o semblante em incontido fascínio. — Como a conseguiram? Essa relíquia estava desaparecida por milênios.

A Espada não repousaria em meu poder se não fosse pela vontade da deusa, grande rei — explicou Roger. - O Elmo e o Escudo também estão sob nossa guarda. E quando isso tudo acabar, o tesouro sagrado de Paleandrus será devolvido aos braços da bondosa Ninqa.

Comovido pela visão da Espada, Milonícius recitou de memória uma passa­gem que lera no Livro das Mensagens.

"O portador das Armas de Ninqa usará a força de um exército. Os adver­sários cairão à leste e a oeste, ao sul e ao norte, e pelos vales e montanhas; e até no horizonte mais distante somente se conhecerá a perdição do inimigo".

Livdonus aprumou o tronco e proferiu com voz firme:

Agora sei que a vitória será nossa. Ninqa escolheu por quem lutar — ele correu os olhos por todos no salão, não tinha mais nenhum tempo a perder. - Meu fiel comandante Milonícius, o cerimonial dos guerreiros está pronto para começar?

A sua vontade, majestade.

O rei atravessou o amplo salão, arrastando as bordas de sua longa indumentá­ria pelo chão, e com um gesto ordenou que duas grandes portas se abrissem deixando à vista um enorme espaço aberto ao ar livre sob o céu ainda nublado de pó vulcâ­nico. Ouviu-se uma balbúrdia do lado de fora do palácio. Um coro de milhares de vozes saudava a aparição de seu soberano. Incontáveis soldados perfilados diante da sacada que se elevava cerca de doze metros do solo, era um cenário espetacular do poderio de combate. Até onde a vista alcançava, só se via guerreiros com seus coletes da cor do bronze e lanças com as pontas erguidas para o alto; animais prepa­rados para a guerra como os dranctos de três chifres, uma variação dos dranctos uti­lizados pelos faogards; cramakaus, animais da estatura de um rinoceronte africano, revestidos por uma grossa pele encouraçada capaz de suportar lanças e flechas, seus únicos pontos fracos se localizavam na parte inferior do pescoço e abdômen. Os cramakaus eram usados como verdadeiros carros de combate para destroçar arqueiros e lanceiros do lado inimigo.

Milonícius convocou os convidados a se unirem ao rei no grandioso cerimo­nial que estava a ponto de ter seu início. Em menos de uma hora, todo o con­tingente de vinte mil guerreiros partiria para o norte com a missão de reforçar o exército drallengiano posicionado em uma das linhas que dividiam os reinos de Drallêngia e Crassen. Muitos outros soldados já estavam sendo treinados e apare­lhados em diferentes províncias para cobrirem os limites norte e sul do território do rico país do povo de pele cinza. A propósito, Drallêngia guardava a maior reserva de luminita do continente, além de produzir mais da metade de todo o ferro da Cadecália e possuir imensas minas de níquel, cobre e ouro. Um país rico que se permitia prover todos os seus guerreiros com reluzentes armaduras feitas de uma liga semelhante ao bronze, porém, duas vezes mais resistente. Não fosse só isso, o solo de Drallêngia, por ser de origem vulcânica, era um dos mais férteis que se conhecia, produzindo alimentos suficientes para atender a toda a sua população e ainda abastecer a Misantreia, a Nesdulácia e a região oeste de Crassen. Contudo, o fornecimento de comida estava cancelado havia algum tempo, e isso exasperava Gosferac, o todo-poderoso do império crassênida.

A um comando dado por sonoros clarins e largos tambores ritmados a qua­tro mãos, uma clareira de guerreiros se abriu no centro do pátio de apresentação. Apenas um soldado, um oficial diferenciado pelo seu colete prateado, permaneceu bem no centro do campo de exibição. Aquele era Beliafos, o comandante em chefe dos soldados que se exibiam com garbo para seu adorado rei. Ao som de uma empolgante música marcial, o guerreiro de prata colocou-se em marcha, dando início a uma coreografia extasiante que abrasou o orgulho de Livdonus, as mãos firmemente apoiadas no parapeito da sacada suspensa.

O desfile combinado com a música alta era contagiante. Algo de arrepiar. Uma encenação perfeita que, a partir de um único guerreiro, desencadeou várias formações de quadrados, retângulos e triângulos de soldados marchando numa demonstração de unidade e funcionalidade como se todos os elementos daquele exército fosse um só corpo.

Uma progressão geométrica — observou Rafael, debruçado sobre o muro.

O que foi que disse? - perguntou Marc, distraído, absorto com o desfile.

Náo vê? A formação dos soldados é uma impressionante progressão geométrica: um, dois, quatro, oito, dezesseis soldados que vão se somando e se encai­xando em grupos cada vez maiores.

Pelo visto está gostando, rapaz — disse Livdonus, os olhos de tão amarelos nas órbitas, pareciam brilhar como puro ouro.

Ah, sim. Estou gostando sim, senhor, ou melhor, sua majestade.

Havia diferenças entre os guerreiros faogards e drallengianos: os primeiros eram mais aguerridos e emocionais, sobressaindo a sua fúria no ato da batalha; os drallengianos eram mais estratégicos e metódicos, e varriam os inimigos com pre­cisão. Um dia seria possível ver os dois exércitos lutando juntos, na maior guerra entre povos no que a Cadecália serviria de palco.

Quando a apresentação das tropas terminou, Beliafos, o comandante de prata, estava exatamente posicionado à frente de um gigantesco retângulo de guerreiros, seu colete prateado destacando-se dos outros milhares de coletes de bronze. Era como se dissesse ao seu excelso soberano: estamos prontos para seguir e guerrear, Livdonus.

O rei ergueu os dois braços e os dirigiu para o norte. A ordem real fora dada. Os vinte mil homens colocaram-se a caminho imediatamente, incentivados pelos clarins e tambores estrondeantes.

Acompanhem-me — disse providencialmente o rei, conduzindo Talemine pelo braço. - Agora temos que cuidar dos planos para vocês.

Retornaram ao salão régio e Livdonus assumiu seu lugar no escuro trono de basalto.

Em breve, triônivos voarão sobre Ciáfragus, trazendo notícias das frentes de batalha — disse ele. — Conforme o desenrolar do conflito, redistribuiremos nossas tropas, mas... entramos nessa luta armada em desvantagem.

Daniel não compreendia a mecânica do embate entre os dois lados e expôs o seu ponto de vista.

Seu exército é muito numeroso e me parece bem armado. Não devem ter muita dificuldade em vencer os tais crassênidas.

Que bom se fosse assim, estimado rapaz. Contudo, receio que seja bem diferente. Os crassênidas não são difíceis de vencer por serem fortes, mas porque são muitos, centenas e mais centenas de milhares. Sabe como eles são conhecidos? - Daniel negou com a cabeça. - Homens-formigas: fracos na aparência, mas tantos que estão na proporção de oito para cada um de nós. Possuem armas eficientes e uma enorme manada de gigantescos animais que fazem frente aos nossos dranctos e cramakaus. E nossa condição piora se os Anuabis entrarem na guerra. E é isso que está para acontecer... se já não aconteceu.

Livdonus deixou seu trono e andou pelo salão ao acaso, enquanto continuava expondo a delicada situação.

Já viu um anuabi... Daniel, esse é o seu nome, correto?

Daniel Crowley, senhor. Não, nunca vi um pessoalmente, mas sei como eles se parecem nas cartas de dakenkal.

Então deve ter percebido como eles têm uma aparência selvagem, e sabem de fato ser terríveis quando entram em uma briga. Se por ventura perdem suas armas numa luta, não hesitam em usar os dentes afiados para rasgar a carne do ini­migo. São fiéis aos propósitos que acreditam... e creem totalmente na profecia do Portal, aquela que anuncia a chegada dos demônios que trazem o presságio sobre a ruína dos povos do leste... vocês são esses demônios para eles.

Já ouvimos sobre a lenda — disse Margaret. — E se ela for verdadeira, então temos mesmo que chegar ao Portal do leste para que a profecia se cumpra.

Se for tão simples assim para que os reinos do leste caiam derrotados, dare­mos toda a ajuda ao seu pequeno grupo - disse Milonícius no momento em que desenrolou um mapa e indicou uma cadeia de montanhas no lado nordeste de Ciáfragus, uma vasta e quase intransponível fronteira natural que separava os dois reinos. Ele continuou com suas orientações: - Nenhum comandante que tenha juízo se atreverá a enviar suas tropas através das Fossálidas, as montanhas-labirinto como são chamadas. As rochas são instáveis e constantemente ocorrem desmoro­namentos. As tropas que se arriscassem por aquele caminho conheceriam muitas baixas e chegariam bastante enfraquecidas no lado oposto — por fim, ele enrolou o mapa e alertou os aventureiros: - As fronteiras livres foram fechadas pelo exército inimigo e sabemos que a cada hora mais guerreiros chegam para fortalecer o blo­queio. Apesar do perigo, creio que as Fossálidas são a melhor opção de ingressarem em Crassen.

E quando devemos partir? - indagou Brian. - Não nos sobra mais tempo.

Imediatamente — disse o rei. — Providenciei coletes e elmos para sua proteção. São de uma liga reforçada não obstante serem leves e confortáveis — enquanto Livdonus descrevia o aparato militar, serviçais traziam armaduras da cor do bronze e as depositavam no chão. As couraças peitorais eram constituídas de pequenas chapas sobrepostas atribuindo-lhes um aspecto escamado; essa técnica fazia com que o colete se tornasse mais resistente a impactos e perfurações.

Em seguida foi o momento de Milonícius passar mais informações.

Um destacamento de vinte dos meus audazes cavaleiros os escoltarão até a entrada das Fossálidas. Dali por diante será com vocês... e lembrem-se, não sabemos o que encontrarão nas terras de Gosferac. O rei de Crassen não é um tolo.

Gosferac é um experiente desenval que fará de tudo para destruí-los e pôr um fim à profecia. Desviem de Benavastan, a capital de Crassen. Ela é uma cidade fortificada praticamente impenetrável, protegida por guerreiros preparados e com um único propósito, o de matar. Suas torres altas vigiam o horizonte á procura de visitantes indesejáveis. Não há como se aproximar sem ser visto.

— Quanto ao seu avô - disse Livdonus lançando um olhar respeitoso para Talemine -, não tive ainda oportunidade de falar dele para você. Era um desses amigos que não se conhece outro igual em toda uma vida - ele fitou Talemine por uns poucos instantes e viu traços de Tuldoror, o rei morto, na guerreira. — Tuldoror iria com a sua espada aos dezesseis vértices do Havormum por uma causa em que acreditava. E seria capaz de entregar a vida para defender aqueles que amava, como um verdadeiro rei. Sei que a mão de seu querido avô guiará a sua na batalha quando chegar a hora. Que o seu espírito magnânimo viva eternamente nos jardins de Kalípria - então a voz de Livdonus se fez mais forte. - Vá, guerreira! Honre o nome de Tuldoror nas terras dos nossos inimigos. Nossos olhos ainda se cruzarão com orgulho nas planícies de batalha, intrépida guerreira faogard.

No tempo em que a caravana se distanciava de Ciáfragus, os ventos das altitu­des dissipavam as nuvens negras do Merasgor para o leste, como se uma tenebrosa sombra enviasse um sinistro aviso a Gosferac.

O límpido céu azul da tarde resplandeceu no oeste. No fim daquele dia, os habitantes de Ciáfragus viram outra vez um sol alaranjado deitando no horizonte.

 

                                   No Reino Hostil

Dois dias se passaram desde a partida de Ciáfragus, e ninguém poderia supor que o reino de Drallêngia estivesse em guerra ao ver os campos cultivados e a vida correndo serenamente nas vilas e fazendas do povo de olhos amarelo-ouro.

Invariavelmente escolhiam caminhos despovoados e pouco acessíveis para diminuir o risco de serem vistos.

A caravana escoltada por silenciosos cavaleiros, percorria uma estrada de terra por entre bosques de grandiosas cimelênias e vingáfias que suavizavam o sol intenso da tarde.

O cilenante traçava um voo por cima das árvores e trazia Chester como seu leal companheiro de investidas pelo ar. Cavaleiro e montaria alada cortavam o céu e foram pousar sobre a relva onde o bosque acabava. O cilenante encolheu as asas que cintilavam na luz do dia e abocanhou um feixe de pasto vicejante, ao mesmo tempo em que Chester aguardava a passagem dos companheiros que ainda se embrenhavam pela mata.

Além do bosque, mais campos, mais cultivo, mais fazendas que prosperavam alheias à guerra que acontecia distante.

Chester e seu inseparável cilenante agora cavalgavam, alinhando-se com os viajantes em galope cadenciado.

Troque de gifenonte, Chester - aconselhou Talemine. — Os cilenantes não estão acostumados a longas caminhadas como os quadrúpedes normais. Suas asas são muito pesadas para serem carregadas por longas distâncias.

Chester saltou para o seu cavalo de jornada e livrou o cilenante de seu peso. O garoto igualou outra vez sua montaria com a de Talemine quando ela perguntou.

Que nome tem o seu amigo cilenante?

Não sei. Não pensei nisso — respondeu ele, coçando a nuca.

Tem todo direito de batizá-lo - disse ela. - Afinal, se o seu parceiro nos acompanha, é por sua causa. E pelo que me lembro, Ciáfragus não sobreviveria sem o auxílio do cavalo com asas, e sem o seu belo trabalho de mostrar a ele como deveria proceder, voando até o vulcão.

Chester pensou por um momento, e disse:

Como se traduz asas de prata para gazivian?

Denáculus - disse a guerreira faogard sem desgrudar os olhos da estrada.

Denáculus... Denáculus. É um bom nome. É como ele vai se chamar. Denáculus — aprovou Chester, e gritou para o cilenante que planava em círculos. — Ouviu, meu valoroso amigo? Agora você tem um nome! Denáculus! Denáculus, das asas de prata!

Durante a noite, sob um céu estrelado e de nuvens adelgaçadas, armaram acampamento aos pés da cachoeira que despejava as águas do rio Catranaia, que irrigava as fazendas dos arredores de todo o vale a leste de Ciáfragus. Uma patru­lha local composta de treze drallengianos se banqueteou na companhia deles, comendo peixes assados tirados do rio. O chefe do patrulhamento disse a Talemine que milhares de guerreiros anuabis se dirigiam para o norte de Drallêngia. Em conjunto com as forças crassênidas, tentariam sufocar o exército drallengiano num ataque maciço e fulminante.

O interior de Drallêngia parecia desconhecer o flagelo que se travava nas fronteiras. Não havia medo e nem desespero nos rostos das mulheres e crianças que saíam pela manhã para cuidar de suas vidas, lavrando a terra e cuidando dos ani­mais. Dava a impressão que a paz viveria ali por mais mil anos. E naquela calma a viagem se deu por outros seis dias, quando avistaram a sinistra cadeia de monta­nhas de paredões negros: as Fossálidas.

De certa maneira, as Fossálidas eram como uma versão maior dos rochedos pontiagudos que rodeavam a Ilha da Coroa. Imponente e misteriosa, a barreira de montanhas se alongava por, pelo menos, sessenta quilômetros de norte a sul, como um monumento às diferenças seculares entre Crassen e Drallêngia. Um gigantesco monstro de pedra espinhento que dormia seu sono eterno.

Não havia nenhuma trilha, uma simples picada que conduzisse à base das Fossálidas. Ninguém nunca ia lá. Só mato alto habitado por cobras peçonhentas e insetos impertinentes separava a única estrada das muralhas escarpadas.

Roger correu os olhos pela estrutura rochosa, e sem demora falou a Chester como um general que se dirige ao seu comandado:

Você e seu cavalo voador vão por cima. Os picos não são muito altos e acho que os riscos serão menores que pelo interior das Fossálidas — em seguida ele lançou um olhar mais severo para o rapaz, querendo que cada palavra fosse obedecida ao pé da letra. — Em caso de perigo, volte. Entendeu? Se esconda, entre as nuvens se necessário. Não se deixe ver.

Chester fez que sim com a cabeça, recordando os tempos em que Roger era rigoroso, quase bruto, comandando as aulas de Educação Física. Era o jeito dele, ao se dedicar para que as coisas dessem certo, sem falhas.

Antes de se despedir e desejar boa sorte, o comandante da escolta drallengiano revelou uma estreita greta, quase imperceptível, que servia de passagem ao interior do labirinto obscuro. A fenda, de pouca largura, náo permitia mais que dois cavalei­ros lado a lado. Pequenos seixos caídos das encostas retas atrapalhavam o caminho, fazendo os cavalos quase tropeçarem. Muitas outras pedras, ao despencarem pelo extenso corredor tortuoso, ecoavam como se tudo fosse desabar. Certos trechos eram apertados, formando túneis asfixiantes onde apenas um cavaleiro passava de cada vez; alguns, ainda mais afunilados, obrigavam os viajantes a desmontarem e cuidarem para que suas montarias não esfolassem o dorso no teto baixo. Em outros trechos o terreno era desnivelado, se assemelhando a degraus disformes que faziam os cavalos subirem e descerem e seus cavaleiros quase baterem a cabeça na cobertura sólida.

Parecia que era só seguir em frente quando a primeira dificuldade se apresen­tou. Uma bifurcação. As duas se perdiam em curvas e não havia nada que sugerisse a opção correta.

Abrem para lados diferentes, como um "V" — constatou Guillermo.

Pode ser que se unam mais na frente - disse Marc. - E pode ser que os dois caminhos nos levem pra fora das Fossálidas.

Há uma rajada de vento vindo dos dois lados - sentiu Talemine. - Nesse caso você pode estar certo, Marc.

E se usarmos o mapa mágico? - propôs Rafael. - Quem sabe ele nos mos­tra a saída.

Creio que o mapa não vai nos ajudar dessa vez - disse Brian em desacordo. — Ele só aponta destinos geográficos. Duvido que mostre a direção se simplesmente alguém proferir a frase "saída das Fossálidas".

Talvez funcione — insistiu Rafael.

Está bem — aceitou Brian. — Não custa tentar. Talemine, você tem a pronúncia correta. Sabe como proceder.

Ela estendeu o mapa e soletrou "saída das Fossálidas" em gazivian. Esperou.

Não deu certo — disse a faogard.

Tenho um método mais eficaz — intercedeu Guillermo. — Cara ou coroa. Alguém tem uma moeda?

Os garotos riram, mas Brian não achou nenhuma graça.

Tenho uma idéia melhor, você vai na frente e volta para nos dizer onde é a saída. Enquanto isso ficamos aqui, jogando dakenkal e contando piadas.

E se eu não voltar... — completou com um sorriso de quem espera uma resposta indesejada.

Escolhemos a outra passagem e escrevemos um comovente epitáfio na saída em sua homenagem. "Aqui jaz um herói que morreu fazendo gracinhas" - declamou, deslizando a mão no ar tocando uma placa de bronze imaginária.

Se não há nada que nos dê uma pista, podemos fazer uma votação — disse Margaret.

Não contem comigo — escapuliu Rafael. — Normalmente faço escolhas erradas.

Ótimo! — Daniel exclamou como se houvesse achado a solução. — Decida-se por um dos lados e nós iremos pelo outro.

Está fazendo escola, Guillermo - observou Brian. - Outro engraçadinho no grupo.

Após tantas discussões sem sentido, optaram pelo desfiladeiro da esquerda. Rafael murmurou a si mesmo que escolheria ir para a direita. Teoricamente estariam certos.

A senda permanecia monótona, a não ser pelos minúsculos seixos do tamanho de bolas de gude que volta e meia desabavam sem escolher o alvo. Se não fosse pelos elmos oferecidos pelos amigos drallengianos, já haveriam algumas cabeças rachadas.

Rafael notou algo que não se fazia muito lógico, e ponderou como um geó­logo experiente.

Pensem na formação das Fossálidas. Toda ela deve ter milhares ou até milhões de anos.

E daí... - disse Marc, seus olhos mais atentos nas elevações de pedra.

Por todos esses anos deve ter chovido tantas pedrinhas, que esse desfiladeiro comprimido certamente estaria abarrotado por metros de cascalho. Olhem, há tão poucos no chão que eu diria que alguém varre esse lugar todas as semanas.

Que nem os fenóferos de Paleandrus - lembrou Margaret.

Não me surpreenderia ver um por aqui — disse Marc. — Os fenóferos são criaturas solitárias dadas à quietude.

A percepção de Rafael mexeu com Brian. Onde teriam se metido as toneladas de fragmentos que se soltavam dos paredões? Quem as teria tirado de lá se ninguém costumava usar as Fossálidas ou sequer chegar perto?

Daniel se mantinha atento e percebeu algo diferente.

Está tudo muito quieto.

Tudo está muito quieto desde que chegamos, Daniel — disse Rafael.

Não — corrigiu Marc. — Entendi o que Daniel quis dizer. O cascalho não está mais se desprendendo. As Fossálidas silenciaram.

Margaret fez uma cara como se sentisse seu estômago revirar.

Eu estou tremendo ou o mundo inteiro é que está?

Os gifenontes ficaram em alvoroço quando suas pernas oscilaram.

Um tremor de terra, mas náo se preocupem, é muito lev... — Marc foi interrompido quando o solo cedeu quase embaixo dos seus pés, abrindo um abismo que interrompeu a passagem.

Isso não tem fundo! — gritou Brian, e foi apanhado de surpresa por um estrondo abafado de rochas pesadas caindo na água.

Agora tem! - disse Marc, olhando para a escuridão lá embaixo.

Mal teve chance de terminar o que dizia e o chão de pedra onde sua montaria pisava mergulhou em um abismo profundo, levando em uma queda fatal o cavalo do francês. Por sorte suas botas não se enroscaram nos estribos ou ele terminaria no leito de um rio subterrâneo. Marc se segurou como pôde na borda do buraco sem fim. Seus dedos começaram a escorregar com o abalo que não havia cessado.

Segure-se, Marc! - berrou Brian e esticou a mão para o menino.

Brian agarrou o pulso de Marc e puxou de uma vez.

Meu cavalo! Droga, perdemos outro! - protestou ao sentir-se bem seguro sobre suas pernas.

Pena ter acontecido, mas da mesma forma, poderia ter sido com você — disse Brian, olhava para todos os lados, sabia que ainda não havia acabado. - Vamos nos afastar da beirada.

Mais adiante um novo desmoronamento carregou mais pedaços do desfiladeiro.

Não há como passar! — avisou Roger que agora desconfiava da estabilidade de toda extensão da fenda. - Só nos resta o outro atalho.

Agora sabemos para onde vão os seixos que caem das encostas — disse Rafael. — Vão todos para os subterrâneos, em galerias cheias de água. Uma excelente maneira de se manter esse lugar limpo.

Fugiram de volta torcendo para que o chão onde pisavam não cedesse. Não havia onde se agarrar. A queda seria inevitável.

Voltaram cinqüenta, oitenta, cem metros. Nada de localizarem a segunda passagem.

A bifurcação deveria ficar por aqui — calculou Talemine. — Deve ser, pois nesse ponto o caminho faz um pequeno desvio para a esquerda.

A faogard sacou da espada e raspou a lâmina nas paredes, procurava uma fresta ou qualquer encaixe que denunciasse a outra saída.

Não há nada com essas rochas. É como se esses paredões sempre estivessem desse jeito.

Essa montanha não vai nos fazer de bobos - disse Roger, ao mesmo tempo em que sacava a espada negra, os dentes rangendo de impaciência. - Bem aqui, onde o desfiladeiro se curva para a esquerda, essa parede não deveria estar nessa posição impedindo a passagem, deve existir um corredor atrás dela que complete a bifurcação. É isso mesmo?

Eu apostaria minhas férias como você está certo — incentivou Guillermo.

Ótimo. Era o que eu precisava ouvir. Afastem-se.

Roger rosnou com raiva quando o primeiro golpe foi dado. E o segundo. E o terceiro. A espada enfeitiçada lhe passava um vigor tão extraordinário que ele poderia ficar golpeando daquele jeito pelo resto da vida.

Estou conseguindo enxergar o outro lado! - gritou Margaret com alegria, assistindo o bloqueio de rocha cair aos pedaços.

Mas uma coisa surpreendente começou a acontecer: a abertura feita pela poderosa espada de Ninqa tentava se fechar, se reconstituindo rapidamente.

Não pare agora, professor Roger! - estimulou Daniel.

Não vou parar! Ou eu ou esse labirinto, um de nós dois será transformado em poeira.

Como uma ferida que cicatriza numa velocidade estonteante, o buraco na pedra lutava para impedir que Roger desobstruísse a passagem. A cada choque da lâmina contra o rochedo, a fenda se quebrava mais e se recompunha logo depois. Roger então viu que entre uma bordoada e outra havia espaço suficiente para seus amigos atravessarem, um por um, saltando rapidamente como um artista de circo que pula através de um aro em chamas. Ele disse então, sem interromper as estocadas, de que jeito deveriam fazer para passar.

E os cavalos, professor? — questionou Marc, medindo a pouca abertura. — Eles não têm como atravessar por esse buraco diminuto.

Esqueçam os cavalos — disse rispidamente. - Soltem os alforjes e façam com que eles retornem a Drallêngia. .Antes que essas paredes mudem novamente de lugar.

Os gifenontess foram afugentados e conforme Roger orientara, a cada dois ou três golpes de espada, um dos aventureiros tomava impulso e se jogava para o outro corredor, até que somente restasse Roger, lutando para manter a cavidade aberta.

Não consigo bater e pular. A fenda se fecha muito rápido.

Jogue a Espada! — disse Guillermo que já havia atravessado. - Eu mantenho a passagem aberta pra você.

A Espada de Ninqa foi agilmente lançada para Guillermo que passou a desfe­rir golpes com uma fúria que não lhe era normal. Roger se atirou como se mergulhasse de ponta em uma piscina. A parede se restaurou como um olho que se fecha e o corredor sepulcral tornou a ficar quieto.

Guillermo olhava para a espada mágica com fascínio nos olhos. Havia experimentado a espantosa força de um deus atravessando o seu corpo. E não derramou uma gota de suor.

Senti como se fosse capaz de enfrentar todo o exército crassênida... e vencer — disse ele ainda chocado, entretanto, teve medo ao ser arrastado por uma imensa vontade de matar inimigos. — Pegue-a de volta, Roger, acho que ela estará melhor na sua cintura.

O desfiladeiro ondulava como uma grande cobra. Após uma curva vinha outra, e nunca se sabia o que se ocultava na próxima.

A enganosa calma dos últimos vinte minutos não iludia mais ninguém.

O que é aquilo pendendo da parede? - perguntou Margaret, a primeira a avistar estranhas bolsas roliças de cerca de oitenta centímetros de comprimento, que se assemelhavam a casulos amarelos.

Não sei o que é — disse Guillermo, preparando o seu arco. — Mas está me cheirando a mais encrenca.

Pelas paredes, penduradas por fios gosmentos, havia pelo menos uma dúzia daquelas coisas.

Algo muito ruim estava para acontecer, pois do alto da vereda rochosa, um ser aterrador de pelo menos uns três metros da cabeça à cauda surgia das sombras, agarrando-se nos paredões com as suas inúmeras patas enfileiradas produzindo o movimento das centopeias; seu corpo anelado era comprido e coberto de pelos verdes eriçados e assustadores; oito quelíceras se projetavam de sua boca esquisita, e algo como um escovão saía de dentro dela; tinha um apêndice no formato de um rabo bastante flexível que terminava em três ferrões capazes de perfurar até a rocha dura; por fim, quatro grandes olhos alaranjados não desperdiçavam nenhum detalhe, nada que pudesse servir de comida.

A coisa monstruosa se desprendeu de uma altura de vinte metros e saltou com a sua bocarra horrenda sobre Talemine, engolindo-a de uma só vez. Para assegurar que a sua presa não escapasse, a monstruosidade cravou os quatro pares de quelíceras no solo de pedra. O rabo da coisa se empinava como se ela se tornasse agora uma árvore extravagante, se remexendo freneticamente em várias direções, os três ferrões ameaçando dilacerar aquele que se aproximasse. Guillermo até disparou algumas flechas, acertando duas que entraram poucos centímetros no corpo durís­simo do animal, mas não houve efeito sobre o bicho que continuava a fazer sabe-se lá o que com Talemine presa em seu abdômen.

Talemine! — gritou Guillermo, consciente que não tinha muito tempo para salvá-la. Esquivava-se da cauda giratória e cortante que poderia dividi-lo em pedaços como um presunto fatiado.

Como um camaleão terrível, o corpo da criatura foi absorvendo a consistência da rocha. Não apenas a aparência, mas a rigidez e a inércia de uma escultura em pedra. Agora ela podia concentrar-se em dar um fim a sua vítima.

Acho que ela não pode se mexer por enquanto - disse Brian. — Se temos que fazer algo tem que ser agora.

Roger armou-se novamente da Espada de Ninqa. Os olhos explodindo em ódio quando ele partiu para cima do monstro petrificado.

De um só golpe o rabo foi decepado, rolando para um canto e voltando a mexer-se involuntariamente como o rabo de uma lagartixa quando é separado do resto do corpo.

Roger então passou a despedaçar o corpo do anelídeo gigante, partindo-o em pedaços como se fosse queijo.

Roger! — gritou Guillermo, segurando-lhe o braço. - Esqueceu quem está aí dentro?

É — disse ele como se acordasse de um sonho. - Me ajudem a descascar essa coisa. Temos de chegar a Talemine sem feri-la.

A faogard estava desfalecida sob camadas de tecido petrificado e morto. Não esboçava nenhum movimento e seu rosto parecia não ter mais vida. Talemine tinha a face branca como cera, e quando foi tirada de dentro do monstro, estava tão mole que parecia ter o dobro do peso.

Guillermo esticou-a no chão e encostou o ouvido em seu peito, pôs as costas da mão ern sua narina para saber se ainda respirava.

Os sinais vitais estão fracos — disse com inquietação. — Esse animal asqueroso parece ter sugado parte de sua vida... e da minha também — seu olhar se perdeu no vazio. — Não quero ficar sem ela. Estou gostando dessa guerreira... muito mesmo... de verdade.

Roger e Brian mantinham-se vigilantes, rastreando os esconderijos sombrios de onde poderiam surgir outros seres repugnantes como aquele.

Talemine! Talemine! - Guillermo chamou, batendo levemente em seu rosto.

Suas pálpebras tremeram e se abriram devagar visualizando a face turva, abrandada de Guillermo.

Eu estava fraca e meu coração quase não batia - ela sussurrou com uma voz doce que Guillermo teve vontade de proteger.

Meu coração bateu forte por nós dois — disse ele acariciando-lhe o rosto pálido.

Daniel aprontou seu arco e mirou para um dos casulos que pendiam como lingüiças em uma venda.

Sabe como se elimina uma praga de baratas, rapazes? — ele fechou um olho para apurar a pontaria. — Acabando com a mãe e os filhotes de uma só vez.

Não, Daniel! — Brian não permitiu que a seta fosse atirada. — Se essa centopeia crescida nos causou dificuldades, as de sua espécie poderão fazer o mesmo com os crassênidas se eles se atreverem a passear nesses becos.

Vamos cair fora desse inferno - disse Roger. - Estou perdendo a paciência com lugares fechados.

Guillermo apoiou Talemine, agarrando-a pela cintura para ajuda-la a cami­nhar enquanto se recuperava.

Como se fosse uma estátua em ruínas, os restos do animal permaneceram pelo caminho como um aviso sinistro para novos visitantes.

Andaram por mais uma hora sem outros acontecimentos inesperados, e os ânimos se elevaram quando avistaram o final da garganta.

Brian tomou a frente e ganhou a saída das Fossálidas. No mesmo instante voltou-se para trás das rochas, fazendo um gesto para que ninguém saísse da pro­teção do desfiladeiro.

Guerreiros crassênidas — disse ele. — Uns trezentos metros daqui.

Acha que viram você? — perguntou Guillermo, esticando o pescoço para arriscar uma olhada.

Acho que não. Logo que os vi tratei de me esconder... mas minha preocu­pação é com Chester.

Chester não é tolo - disse Rafael. - Certamente voou para os picos das Fossálidas. Deve estar escondido até os crassênidas irem embora.

Eles se preparam para partir. Calculo uns duzentos soldados. Parece que vão para o sul — disse Guillermo, abrindo e remexendo em seu alforje e retirando o binóculo. — Quero ver como são de verdade.

Ele descreveu os crassênidas como sendo de estatura média. Suas armaduras eram de um vermelho vivo, e tinham o desenho de dois olhos negros e furiosos gravados nos peitorais. Alguns se armavam de lanças tão vermelhas quanto suas armaduras, outros portavam afiados machados de dois gumes. Não dava para lhes ver o rosto, pois se ocultavam com seus elmos encarnados que refletiam o sol.

Bela fantasia - Guillermo continuou falando. — Mas eles não me parecem muito fortes.

Foi como avisou Livdonus — lembrou Talemine, ela já estava quase tão bem quanto antes. — A força deles reside no seu numeroso exército.

O que simbolizam aqueles dois olhos zangados? — Guillermo ficou curioso.

Os olhos vingativos de um deus que só eles cultuam — disse Talemine. — Seu nome é Namptras: um deus impiedoso do panteão antigo de Calcávna.

Momentos depois a tropa marchou para o sul deixando o caminho livre.

Brian vasculhou o céu em busca de Chester.

Onde está aquele fedelho? — e gritou: - Chester!

Chester esticou a cabeça de outra fresta bem acima deles.

Aqui, professor!

Ele contou como havia se escondido ao ver os crassênidas chegando, e achou prudente ficar bem quieto em companhia de Denáculus.

Adentraram os campos de Crassen, a pé, carregados de bagagem. Precisariam de cavalos ou outro meio de transporte, se quisessem chegar ao Portal a tempo.

Orientaram-se pelo mapa de Nomaktus. O Portal do leste era conhecido por Nebnolus na língua gazivian. Talemine pronunciou o nome e o ponteiro girou timidamente e mostrou um ponto específico entre o leste e o sudeste. Diante das coordenadas, a jornada seguiu até o final do dia por mais de trinta quilômetros em planícies desertas.

Evitaram um lugarejo vigiado por centenas de soldados escarlates, refugiando-se num platô rodeado de copas cerradas e que oferecia visão das vielas iluminadas pelo brilho das luminitas.

Os guerreiros de armadura vermelha, sempre em grupos de dois ou três, faziam rondas dentro e nas cercanias da pequena cidade crassênida.

Marc emprestou o binóculo de Guillermo e se acomodou na extremidade do platô. Do seu posto de observação, contou mais soldados do que esperava ver; prestou atenção no movimento dos habitantes indo para suas casas, mas estava escuro e não deu para distinguir os rostos do povo de Crassen.

E se algum soldado subir aqui em cima? — perguntou sem descolar os olhos do binóculo.

Estará morto antes de piscar - Talemine mostrou uma flecha pontuda, entretanto, Marc, ocupado com o binóculo, não viu o gesto da guerreira.

O vento soprou, movendo as copas e fazendo as luminitas tremeluzirem por entre as folhagens. No decorrer da noite não houve fogueira que os aquecesse na grande pedra fria, e o céu estrelado da madrugada deu lugar a um manto robusto de nuvens negras.

Chovia pela manhã quando Roger jogou a mochila nas costas e ajustou a Espada de Ninqa numa posição mais confortável. Ele liderou o grupo por uma picada que dava para um pântano de acesso ruim, cheio de árvores recurvadas como velhas bruxas reumáticas; a região pantanosa se alargava por quilômetros para qualquer lado.

Preferiram os trechos menos encharcados e usaram troncos caídos como pon­tes instáveis para atravessarem os alagadiços estagnados. Mesmo sob tais condições, avançaram vinte quilômetros em um só dia, uma boa marca levando-se em conta os escorregões, as botas atoladas na lama até o joelho e os mosquitos insolentes.

Descansaram em uma ilhota malcheirosa longe de tudo. Poderiam passar ali pelo resto de suas vidas que, provavelmente, jamais seriam vistos por um crassênida.

Com armas em punho, aproveitaram o pouco tempo disponível para treina­rem, cruzando espadas e espetando flechas nos troncos podres que boiavam nas águas sujas de betume.

No fim do pântano, havia um bosque que serviria muito bem como camu­flagem por mais alguns quilômetros, conduzindo-os mais para dentro das terras estrangeiras. Uma estradinha de terra molhada de chuva surgiu cortando a floresta densa. Marcas de cascos denunciavam que a estrada fora percorrida recentemente por mais de dez cavaleiros bem equipados com armaduras e instrumentos de batalha. Talemine soube disso ao avaliar os sulcos profundos deixados pelas patas no chão enlameado.

Os viajantes usaram as margens da estrada por um bom tempo, até que Talemine deu o alarme.

Se escondam na mata, depressa!

Denáculus foi empurrado com força até que todo o seu corpo se escondesse por entre a vegetação.

Da curva surgiram mais cavaleiros crassênidas indo para o sudoeste; as armaduras e os metais tilintando com o balanço dos animais; dava a impressão de que não havia sequer um vão na blindagem das indumentárias de metal para uma lâmina penetrar.

Onde será que eles arrumam tanta tinta vermelha para as armaduras? — sussurrou Guillermo ao ouvido de Talemine. As patas dos gifenontes passavam a menos de cinco metros deles.

Talemine emergiu da mata ao ter a certeza de que o último cavaleiro havia desaparecido entre as árvores, e esclareceu a dúvida de Guillermo.

Não são pintadas. Essas armaduras são feitas da combinação de dois metais que só são encontrados nesse reino e no sul da Anuábia. A liga adquire esse tom vermelho vivo quando se funde 63% de firincium e 37% de augamita - ela olhou para o outro extremo da estrada e viu que o caminho estava seguro: - Dizem que os crassênidas adotam a cor vermelha para disfarçar o próprio sangue e fazer o ini­migo pensar que jamais se ferem. Ver o próprio sangue escorrer pode desalentar o guerreiro durante uma batalha.

E encorajar o inimigo - arrematou Margaret. Talemine sorriu, achando bom que sua jovem companheira havia compreendido o ensinamento.

O término do bosque emendava com o fundo de uma fazenda à beira de um regato.

Um bando de aves frutívoras assaltava um pomar, grasnando de contenta­mento como se realizassem uma grande festa.

Um estábulo! — disse Chester cheio de esperança. - Devem caber uns vinte cavalos lá dentro.

Mais um pouco e escurece - observou Brian, seu olhar procurava os donos da propriedade. - Os camponeses devem estar cuidando das outras terras além do contorno do bosque.

E se tentássemos pegar os cavalos agora? - sugeriu Daniel. — Numa operação rápida estaríamos longe daqui em pouco tempo.

Prefiro esperar. E nem mesmo temos certeza se aquele estábulo não está vazio — respondeu Brian com ponderação, depois levantou os olhos para o céu: — Seremos favorecidos por uma noite nublada e escura.

Naquelas horas, se alimentaram apenas de frutas secas e água dos cantis, enquanto esperavam que tudo fosse envolto pela escuridão.

Chester foi orientado a esperar junto ao bosque. Se algo desse errado, ele sairia voando para ajudar ou fugir, conforme fosse o caso.

As luzes da casa da fazenda foram acesas, e do estábulo, somente uma luminita pendia do beirai, clareando a entrada.

Havia um odor forte de frutas vindo do pomar e se misturando com o cheiro do mato.

Os gatunos ocasionais contornaram o estábulo pelos fundos e pararam diante da porta de madeira trancada com uma corrente presa de maneira descuidada. O dono dos gifenontes não parecia se preocupar com a presença de ladrões. Aquilo não deveria ser um problema para ele.

Brian teve a incumbência de dar um jeito na corrente. Os elos, quando se batiam, davam a impressão que poderiam ser ouvidos por toda a redondeza.

Dá pra fazer mais barulho? — Guillermo reclamou com ironia, murmurando como se lhe faltasse o ar. — Acho que o som ainda não chegou em Faogard.

Estou fazendo o que posso — Brian se defendeu. - Pronto. A porta está liberada - ele depositou a corrente no chão como se fosse uma cobra se enrodilhando.

A grande porta de madeira rústica foi puxada com cuidado, o que não evitou o ranger desagradável das dobradiças.

Será que esse maldito camponês não sabe o que é lubrificante? — praguejou Guillermo.

Depois dessa noite ele não vai mais precisar nem de estábulo — escarneceu Daniel.

Tem uns quinze cavalos aqui - disse Marc, se enfiando para dentro do está­bulo escuro.

Só precisamos de nove - disse Roger, então achou uma pilha de rédeas sobre uma mureta de toras. - Usem essas nos animais e vamos embora.

Achei algumas selas - disse Rafael surgindo do fundo.

De repente, ouviu-se um grito na parte de fora seguido por sons de luta.

Talemine capturou o que deveria ser o camponês dono das terras, a adaga da guerreira posicionada na garganta fina, pronta para a degola.

Foi a primeira vez, com exceção de Talemine, que viram um crassênida cara a cara. Os olhos graúdos e negros divididos por um nariz adunco e fino e uma boca pequena como se fosse cortada a faca; os ralos cabelos louros plantados na pele quase branca como mármore revestindo um corpo de compleição magra e frágil; as pernas e os braços ossudos fazendo imaginar que ele não se alimentava há semanas. Não era exatamente assim. Crassênidas eram normalmente magérrimos, de aspecto doentio. Não devia ter mais que um metro e setenta de altura. Um ser franzino se comparado aos drallengianos e faogards. Porém, assustador como nas histórias de fantasma.

A guerreira de cabelos rubros o empurrou no chão coberto de restos de feno. Falou de maneira bruta com ele em gazivian. Discutiu e interrogou, sempre em tom de ameaça. Os olhos do crassênida exteriorizavam medo e cólera.

Que ótimo — disse Brian descontente. - Agora fomos descobertos.

A confusão atraiu o resto da família do camponês. Sua mulher de consistência débil e dois meninos esquálidos como o pai. Roger forçou-os a entrar no estábulo. Estavam assustados, e um dos garotos, o menor, fez uma careta e passou a chorar. Talemine gritou com ele, provavelmente estava mandando-o calar a boca. O garoto magrelo engoliu o choro e arregalou os olhos lacrimosos para ela.

O tumulto estava completo, não havia como voltar atrás.

Roger e Brian correram até a casa do fazendeiro e vasculharam todos os cômodos sem encontrar mais ninguém.

Talemine prosseguiu aterrorizando os crassênidas. Queria saber se havia mais alguém além dos quatro. Ameaçou matar a mulher na frente dos filhos se estivessem mentindo. O homem insistiu que eram apenas eles.

Brian e Roger retornaram ao estábulo dizendo que o número de camas conferia. Deviam estar falando mesmo a verdade.

Se os deixarmos aqui seremos denunciados — disse Brian. - Vocês viram que esse lugar é rota de tropas.

Um olhar frio brotou do rosto da guerreira faogard e uma voz insensível saiu de sua boca ditando ordens.

Levem os gifenontes para fora — disse ela, dessa vez desembainhando a espada que resplandeceu assustadoramente com a pouca luz. — Se afaste, Guil­lermo, eu dou conta de todos eles.

Guillermo olhou para ela e depois para a família de crassênidas. Não queria acreditar no que Talemine, a jovem que se apaixonara, iria fazer.

Você vai... matar essa gente?

São inimigos - disse ela friamente. - Se viverem vão contar tudo, e o exército deles cairá sobre nós aos milhares e tudo estará acabado - ela suspirou de impaciência. - Entendam, o nosso grande trunfo é que se os crassênidas não sabem de nossa presença em seu território, então não nos perseguem. Acreditam que ainda estamos em algum lugar em Drallêngia e isso nos dá uma boa vantagem.

Mas... são crianças - argumentou Guillermo, sensibilizado com os rostos apavorados dos garotos franzinos.

Crianças crassênidas também crescem — disse ela, irredutível. — Se vestem de vermelho e vão para a guerra matar faogards. Que morram antes.

Espere um pouco, Talemine — Guillermo mudou o tom da fala. — Não somos assassinos - disse apontando para os amigos de aventura. — Há uma outra maneira de resolvermos essa questão — Guillermo correu o olhar pelas paredes do estábulo. — Há cordas resistentes aqui que podem segurá-los por muito tempo, tempo suficiente até estarmos bem longe.

Talemine encarou-o desafiadoramente.

Você sabe quantos quilômetros um triônivo mensageiro faz em um só dia? Não sei quantos soldados protegem o Nebnolus, o Portal que ardentemente almejamos. Possivelmente milhares. Apenas uma mensagem enviada por uma dessas aves e eles reforçarão, a todo custo, a proteção da passagem para o seu mundo, montando barreiras militares, rastreando nosso caminho, tornando nossa marcha praticamente impossível. De modo que nem as armas sagradas que Roger carrega serão capazes de fazer-nos chegar ao fim da jornada - por fim ela disse: - Se quere­mos vencer essa guerra, temos que pensar e agir como guerreiros.

Você alguma vez matou uma criança? — ele perguntou olhando dentro dos olhos dela.

Nunca precisei matar.

Havia uma parede de gelo entre os dois.

Marc e Rafael pararam de levar os cavalos para fora por um instante a fim de ver como o impasse acabaria.

Sinto muito, minha querida - a fisionomia antes tão alegre e jovial de Guillermo estava tensa e conflituosa. - Não posso consentir que faça isso.

Vai se interpor entre eu e eles?

Guillermo não falou nada, e náo saiu da frente da guerreira dominada pela raiva.

Os olhos dela faiscaram para ele com ira e desprezo. Ela virou-se e deixou o estábulo.

Façam o que bem entenderem.

Brian correu com as cordas e foi ajudado por Guillermo e Roger a amarrar os reféns. O homem crassênida se debateu e esbravejou até fazer Guillermo per­der a paciência.

Escute aqui, feioso — ele encostou a ponta de sua faca no rosto descorado do prisioneiro. - Estou cansado, nervoso, e acabei de brigar com a minha namorada por sua causa. Não custa muito eu fazer o que ela deveria ter feito. Está me entendendo?

Guillermo deu um nó bem firme nos pulsos salientes do homem. Ele queria descarregar a sua raiva fazendo o crassênida sentir um pouco de dor.

Uns dias sem comer e beber não lhes farão mal - disse Roger depois de ver o serviço terminado.

A corrente foi passada novamente e os aventureiros se serviram de carne defumada e do pomar até que seus alforjes estivessem abastecidos.

Cavalgaram por toda noite e se ocultaram nos matagais na alvura do dia.

Não se ouvia mais a voz de Talemine, e Guillermo, por sua vez, economizava as frases, os dois sempre afastados.

Brian recostou-se em um tronco ao lado de Guillermo que parecia olhar para lugar algum.

O que foi, espanhol? Está assim pelo que aconteceu ontem à noite, acertei?

Não consigo imaginar Talemine matando crianças. Não sei o que vai ser de nosso relacionamento daqui pra frente - as palavras amargavam a sua língua.

É da cultura dela. São criados desde cedo para guerrear e matar se for preciso — ele arrancou uma folha de capim e começou a brincar sem prestar atenção no que fazia. — Talemine deixou sua gente e escolheu ficar conosco, porque o que ela queria mesmo era ficar ao seu lado.

Eu sei disso - ele fechou os olhos e esfregou a testa, querendo pôr as idéias em ordem, em seguida recostou a cabeça na árvore e olhou longe: — E é esse pensamento que está me corroendo.

Eu deveria estar no seu lugar naquele estábulo, me confrontando com ela. Assim teria poupado você — Brian suspirou profundamente. - Mas o que está feito está feito. Por que não vai até ela? Quem sabe o ressentimento não tenha diminuído.

Se consegui ler alguma coisa naqueles olhos de rubi, ela ainda vai ficar assim por muito tempo - ele se levantou e apanhou alguns cantis vazios. - Vou pegar água. Deve ter um curso d'água no meio desse bosque.

Quer que eu o acompanhe?

Não, obrigado — agradeceu Guillermo. - Desejo ficar um pouco sozinho.

Margaret desfilou na frente de Talemine até tomar coragem de sentar-se perto dela.

Eu sei que não é o momento, mas mesmo assim eu gostaria muito que você me ouvisse.

Você tem razão, não é o momento.

Margaret fez que não ouviu a resposta refratária da faogard e persistiu.

Quero dizer que você está certa e lhe dou razão de ficar aborrecida com o professor. Não sei se no seu lugar eu não acabaria com todos aqueles monstrinhos com corpo de marionetes.

Talemine desviou os olhos da menina como se não quisesse mais ouvir. Mar­garet optou por continuar falando.

O professor Guillermo é um homem muito bom, e pelo que sei, nunca matou um peru para o Natal. Bem, acho que você não sabe o que é um peru e nem o significado do Natal, mas se quer saber, de onde viemos, da Ilha da Coroa, não se executa pessoas e ninguém fica pegando em armas pra guerrear. Lá é uma escola, com professores e alunos. O professor Guillermo é um excelente professor e, bem, o que eu queria dizer é que...

Admiro sua tentativa de consertar o que aconteceu — Talemine cortou o pequeno discurso da menina. - Quando lhes dei o treinamento em Faogard, manu­seando espadas, arcos e todas aquelas armas, aquilo não foi um simples passatempo.

Preparei-os para lutar... e também matar inimigos. E sabe por quê? Porque se você não os mata, eles matam você. É simples de entender, como uma guerra. Quem se sai melhor arrancando cabeças e atravessando corações, vence — a guerreira lançou um olhar muito severo para Margaret. - A decisão tomada ontem pode ter definido o nosso destino... com o selo da morte, ouviu bem?

Talemine não media as palavras para se comunicar com uma jovem. Ela nunca fora tratada com docilidade quando se tratava de lutar pela própria vida. Margaret viu isso algum tempo atrás no temperamento de Camine, a irmã mais nova da guerreira.

- Eu sei de tudo isso e sei que você quer nos ajudar - a voz de Margaret saía entristecida quando ela se ergueu para retirar-se de perto da faogard. - Mas só pra terminar, queria te dizer que juntos ficaremos mais fortes como foi desde o início... quando me tiraram daquele lago... quando você curou o professor Brian... e quando a salvaram daquele bicho horroroso.

Talemine ficou ali, sem dizer nada, fitando os próprios pés e mergulhada em pensamentos antagônicos.

Ninguém notou quando um triônivo mensageiro riscou o firmamento para leste, sua plumagem camuflada de azul-celeste.

Pela primeira vez Guillermo viu um bando de dunins brancos, saracoteando entre os galhos mais altos. Não eram tão chamativos como os resplandecentes dunins-de-ouro, mas pareciam graciosos tufos de algodão flutuando no ar per­fumado da floresta. Ele ainda não havia encontrado água para os cantis e por isso seguiu em frente. Não havia nada ameaçador. Só a brisa fresca que farfalhava as folhas e o pio afável dos dunins.

Guillermo caminhou até um ponto onde podia se ouvir o som convidativo da água corrente. Não devia estar a mais de trinta metros de distância. Era afundar os cantis e voltar, quem sabe molhar um pouco a nuca na água refrescante.

Mas uma coisa apavorante aconteceu Com ele.

Os longos galhos de uma grande árvore próxima prenderam brutalmente os seus braços e pernas, puxando-o para junto do tronco rijo e áspero. Os cantis voaram com a violência do bote surpresa. Um outro galho fino deslizou, enrolando-se em seu pescoço como uma serpente que deseja destroçar os ossos de sua presa impotente. O galho apertava cada vez mais a sua garganta impedindo que Guillermo gritasse por ajuda, roubando a sua respiração. Ele não conseguia se desvencilhar, imobilizado que estava pelas garras compridas da árvore. Guillermo nunca ouvira falar de árvores que ganhavam vida e atacavam as pessoas. Nunca havia sido adver­tido por Talemine sobre essas coisas. Nunca lera nada no livro de Martov. O certo é que ele náo conseguia mais respirar direito. Pensou que a falta de oxigênio no cére­bro provocava-lhe alucinações, pois viu o contorno de um corpo feminino surgir de dentro da mata. Imaginou Talemine, mas não era ela. Foi então que seus olhos desesperados viram um rosto conhecido, pavorosamente conhecido.

Demnisia — ele só pôde pensar no seu nome. Sua voz não existia.

Mas olhe só quem caiu na minha armadilha - ela disse enquanto se deliciava vendo Guillermo impossibilitado de se mexer, colado ao tronco como se fizesse parte do enorme vegetal. - Está conseguindo respirar? Não? Que coisa mais desconfortável. Quer sair daí? Quer que eu o salve? - ela balançou a cabeça parecendo estar desapontada.

Então fez uma carícia na árvore como se agradasse a um bichinho de estima­ção, em seguida voltou os olhos para Guillermo, examinando-o cuidadosamente como se ele fosse uma escultura interessante.

A aparência da perversa véussida mudou quando ela dirigiu um novo olhar para ele. Seus olhos ardiam de ódio. Foi quando Guillermo conseguiu perceber que o rosto de Demnisia se alterara desde a última vez que se encontraram: os lóbulos das orelhas gravados com o sórdido "V" invertido dos arkoprômidas, e a língua bifurcada, cortada como a de uma cobra.

Você acha que essa árvore inocente é capaz de fazer essas coisas horríveis? Idiota! É apenas uma planta como outra qualquer. Eu estou no comando. É o meu poder que manobra cada fibra deste ser de madeira e seiva — a agonia de Guillermo asfixiando, contorcia-se em seu rosto. Ela instigou ainda mais o sofrimento sussur­rando para ele, os dentes quase tocando a sua orelha. — Tem consciência do que está acontecendo? Você está morrendo.

Demnisia deu uma risada sarcástica e disse para Guillermo:

- Se você pudesse se ver agora. Seu rosto está ficando roxo. Embora não possa falar, deve estar se perguntando como escapei da prisão em Loreuvena. Que pena, tive que me livrar de duas véussidas — ela fez um ar de pouco caso e caçoou: — Oh, elas se achavam muito espertas, as protegidas da toda poderosa Tríssia. Inúteis! — ela exclamou com um descontrolado desdém.

A traqueia de Guillermo era duramente comprimida contra o seu próprio pescoço. Ele queria tossir e não conseguia. Esforçava-se para aspirar um pouco do sopro da vida, mas o ar não passava. A sensação era desesperadora.

Demnisia sabia muito bem o que estava fazendo com Guillermo. Ora afrou­xava um pouco a amarra de cipó para que ele respirasse e logo depois apertava o abraço mais uma vez, estrangulando-o, retardando sua morte por puro prazer.

Gosta de segredos? Pois vou lhe revelar um. Não me preocupo, os mortos não sabem falar - ela sorriu para ele com escárnio. — Os arkoprômidas estabeleceram uma aliança com os crassênidas. Uma trégua bastante conveniente para eliminar os nossos inimigos em comum. Hoje será evitada toda essa trabalheira que estão tendo em pro­curar vocês para executá-los. Ficaremos com o menino, e nosso deus, Arkopromis, ressurgirá para governar o Havormum em uma nova Era de força e paz.

Guillermo não se importava em morrer se existisse uma única chance de avisar sobre o que estava por vir. Inutilmente ele era um mero espectador de seu próprio fim.

Mas agora basta. Eu não quero mais perder tempo com você. Onde está a sua namorada? - ela procurou em volta e retornou um olhar vingativo para Guillermo. - Não esqueci o nome dela: Talemine, a grande guerreira faogard - ela soltou uma risada irônica. - A miserável acha que aqueles brinquedinhos que chama de armas podem me fazer algum mal - e aproximou o rosto mais uma vez de Guillermo, a língua se revirando em duas pontas. - Pois ouça bem o que eu vou fazer. Primeiro mato você, em seguida dou um fim à vida dela e a de seus amigos, porém, com muita dor, e por último acho a família da degenerada em Faogard. Soube que ela tem uma linda irmãzinha. Imagina o que vai acontecer? Pense num par de pregos bem pontudos. Disseram-me que a irmã de Talemine tem belos olhos vermelhos, luzidios. Consegue conceber uma criança viver um dia de terror antes de morrer, tendo os dois olhos vazad...

Sem concluir seu intento nefasto, a face de Demnisia se contorceu estranhamente, exprimindo um espanto agonizante antes que ela caísse sobre o corpo imó­vel de Guillermo e escorregasse para o solo entrelaçado de raízes. Uma flecha havia entrado em suas costas e perfurado irremediavelmente o seu coração.

Um par de botas de guerreira, próximo ao seu rosto, foi a última coisa que Demnisia viu antes de morrer. As botas de Talemine.

Como eu havia dito uma vez: tome cuidado por onde anda, minhas flechas não costumam errar o alvo.

Logo que a vida se esvaiu de Demnisia, a árvore libertou Guillermo, deixando-o cair de joelhos, tossindo e arfando por salvadoras golfadas de ar. Talemine o apoiou por um tempo até que ele recuperasse o fôlego.

Ainda se recobrando recostado em um tronco seco, Guillermo expôs tudo o que ouviu de Demnisia aos seus companheiros. Seu pescoço ainda doía muito e uma marca roxa de bordas vermelhas ia de lado a lado, dificultando engolir a própria saliva. E por fim, da mesma forma seus membros guardavam as nódoas da tortura.

Ela nos achou antes de todos os outros - refletiu Brian com perplexidade. - Uma louca pertinaz conseguiu superar uma facção de fanáticos e um exército em seu próprio terreno, e por muito pouco não pôs um fim a nossa missão.

Mas foi ela que morreu e não nós - disse Talemine friamente, e disparou uma expressão fulminante para Guillermo. — Talvez achasse melhor se eu dialogasse com ela diplomaticamente enquanto você era enforcado por uma árvore enfeitiçada.

Guillermo deu um tapa na própria perna com indignação. Perdera a fala duas vezes num mesmo dia, dessa vez provocada pela língua ferina de Talemine.

As trevas se tornaram uma decisiva aliada no território estrangeiro. A cada noite os saudáveis cavalos percorriam cerca de cinqüenta quilômetros sem se cansarem. Chester e Denáculus sobrevoavam com alguma segurança, agindo como os batedores que vão à frente para o reconhecimento do percurso.

O sol esticou-se pelos contrafortes íngremes na outra manhã, e mesmo a total claridade não perturbou o sono fatigado da expedição.

O contraforte moldou uma depressão profunda e perfeita para foragidos se esconderem. Uma ravina oval caprichosamente esculpida pela natureza.

Roger e Brian, os únicos despertos, revisaram a rota e concluíram que resta­vam exatos sessenta e quatro quilômetros até o Nebnolus.

Brian experimentou o mapa mágico girando as posições.

Olhe isso, Roger: para o sul, na distância de duzentos e oitenta quilômetros em linha reta, está Benavastan, a capital de Crassen.

É bom que continuemos bem longe. Evidentemente há uma enorme concentração de tropas para proteger o imperador Gosferac.

No meio da tarde, Marc e Daniel se aventuraram numa escalada pelo penhasco do lado leste. Subiram até o topo e se arrastaram entre pedras irregulares e vegetação ressequida brotando do solo pobre, um pequeno lagarto se escondeu numa reentrância para fugir das mãos distraídas de Marc. Escorregaram até a borda que dava para a imensidão do vale Shelantaharn; foi quando eles arregalaram os olhos e recuaram rapidamente as cabeças da beirada. Marc voltou apressado enquanto Daniel vigiava entre os recortes das pedras.

Professor! - Marc chamou por Brian que ensaiava um cochilo no seu leito pouco macio, sacudia os braços para que subisse depressa. - Tem que ver uma coisa!

O que ele quer? - Guillermo havia despertado de um sono leve.

Não sei, mas deve ser importante.

Do alto da formação rochosa observaram um extenso acampamento militar salpicado de uniformes de metal escarlate por todos os lados, e estranhas e pesadas armas de guerra atreladas a dranctos de três cornos. Talemine subiu pouco depois e espiou por cima do ombro de Guillermo, se acomodando numa posição que abrangesse toda a aglomeração de soldados, animais e armamentos reforçados.

Denáculus saltou para cima do monte trazendo o seu cavaleiro.

Não façam barulho! - advertiu Brian fazendo uma cara feia para Chester.

Os homens-formigas, como o rei Livdonus mencionou — Daniel lembrou bem.

Obviamente não é um acampamento provisório - ela afirmou com toda a segurança. - Estão prontos para despejar essa força bélica em um ataque concentrado.

Sobre nós? — perguntou Guillermo.

Só pode ser — ela respondeu. — Não há nada de valioso num raio de cem quilômetros para sustentarem mil guerreiros alinhados, se as frentes de guerra e as cidades importantes estão a quatro ou cinco dias desse ponto.

A não ser o Portal - disse Brian.

Talemine assentiu lentamente com a cabeça e fixou o olhar no vale; o seu semblante mudou para um jeito que Guillermo já havia visto outras vezes.

Está procurando contato?

Ela fez que sim e imergiu em seus pensamentos recônditos. Alguns minutos e nada aconteceu.

Estamos muito distantes uma da outra — a faogard suspirou fundo mos­trando cansaço.

Quando as estrelas se levantaram no leste, eles ainda espreitavam o acampamento, agora pintado de luzes de fogueira e luminitas. Decididamente, o nume­roso agrupamento de tropas era uma consistente barreira para impedir o avanço daquela singular caravana que, sob hipótese alguma, poderia alcançar o Nebnolus.

Talemine, obstinada que era, esforçou-se pela concentração mental apropriada para se unir a Camine; o escuro, combinado aos pontinhos de luz lá embaixo, cola­borou para que as coisas dessem certo.

Veja os olhos dela - Margaret murmurou a Rafael. — Não ficam lindos com essa cor prateada?

A faogard varria todo o enorme acampamento com os seus cintilantes olhos de prata.

Isso, cara irmã, conte tudo ao nosso pai: as armas de mão, os carros de combate, tudo o que puder identificar para que os nossos guerreiros destruam esses desprezíveis crassênidas.

O transe de Talemine não durou mais do que um breve minuto e quando findou, ela estava orgulhosa do que fez.

O que viu através dos olhos de sua irmã? - indagou Margaret.

Não deu pra ver muita coisa. Ela olhava Faogard por uma janela, acho que do palácio real que um dia foi de meu avô. Vi as luminitas projetando sombras pelas avenidas.

Entretanto, o maior dos problemas não havia acabado: como passar por cerca de mil homens equipados com todo tipo de armas? Sessenta e quatro quilômetros, isso era o que faltava. Uma ninharia se comparada à gigantesca travessia sobre um continente de maravilhas, horrores, esperanças, sofrimento e morte.

Só falta descobrirmos um meio de passar - disse Rafael muito concentrado nas sentinelas vermelhas que zelavam pelos soldados entregues ao sono dentro das barracas de campanha.

É a sua vez, Roger — disse Guillermo confortavelmente esticado em uma pedra lisa e inclinada, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. — Vá até lá e acabe com eles. E não me importo se der conta da minha parte.

A fisionomia de Roger se alterou com o gracejo de Guillermo, fazendo-o oscilar a cabeça em aprovação.

Guillermo, você nos deu a resposta.

Que resposta? — Guillermo sentou-se num sobressalto. — Eu só brinquei.

Situações desesperadoras requerem soluções desesperadas — Roger parecia conferir algo mentalmente. O Elmo e o Escudo haviam ficado na fenda que servia de refúgio, lá em baixo. Seria hora de usá-los.

Roger explanou sua idéia maluca que recebeu insistentes manifestações contrárias. Seria suicídio.

Pelos planos do portador das Armas Sagradas, Roger desceria e escaparia pela única saída existente, um corredor de pouca largura que conduzia a uma trilha sinuosa até o nível do chão. De cima do platô, ele avistou os crassênidas se espalhando e bloqueando a saída e só não acharam a abertura para a depressão que ser­via de esconderijo por uma incrível sorte, apesar da entrada permanecer encoberta pelas curvaturas da rocha. Não havia mais como fugirem sem serem descobertos. No momento em que Roger saísse de seu refúgio, cairia sobre dezenas de soldados que dariam o alarme que desencadearia a batalha mais desigual dos últimos tem­pos. Roger, porém, acreditava ser capaz de lutar contra todos eles; o problema seria escapar das flechas e lanças disparadas à distância. Para solucionar essa questão, ele contaria com o apoio dos oito arqueiros que atacariam de uma altura de quinze metros, atirando primeiro, mais rápido e melhor. Perfeitos franco-atiradores.

Não havia outra alternativa, o plano era uma moeda com as duas faces iguais. Só existia uma opção de aposta. E assim se deu.

Os preparativos para a decisiva batalha foram iniciados com as aljavas repletas de setas com pontas de ferro deixadas ao lado dos arqueiros bem posicionados. Fle­chas faogards com pontas de ferro são ótimas para abrirem buracos em armaduras.

Quando desceu ao fundo da cavidade, Roger foi ajudado por Brian a equipar-se com um colete de metal escamado, perneiras resistentes, luvas grossas com articulações metálicas; ajustou no antebraço o Escudo que exibia orgulhosamente o desenho da flor aprisionada no cristal, apertou a Espada em seu punho e, por último, o Elmo que se encaixou como se fosse forjado com as suas medidas, milhares de anos antes.

Ele fez uma última advertência a Brian que teria que subir logo para o seu posto.

Ao ouvirem os primeiros sons de metal se partindo, atirem sem parar nos arqueiros e lanceiros.

Ele desapareceu entre os gifenontes indiferentes, nas sombras da depressão, e só o que se escutou naquele instante foi um ou outro soldado gargalhando ou falando coisas incompreensíveis.

Mirem num alvo e se concentrem nele — orientou Brian ao mesmo tempo em que aprontava seu arco, e se calou.

O coração de Margaret estava aos pulos, como deveriam estar o de seus amigos. Por que não começava de uma vez?

Ela piscou de susto quando ouviu os primeiros metais se chocando.

Atirem! - vociferou Talemine.

As flechas zuniram e atravessaram mortalmente os guerreiros mais próximos.

Um som estridente de ferro batendo e se misturando a gritos enlouquecidos acordou todo o acampamento. Soldados pulavam para fora de suas tendas, agarrados a espadas, arcos e lanças. Muitos estavam desprotegidos de suas armaduras escarlates, berrando entre si o que poderia estar havendo.

Uma massa de crassênidas tentava desesperadamente conter a fúria de um só homem que lutava com assustadora velocidade e força.

Olhem pra ele! - exclamou Chester com assombro. - O seu corpo brilha como o Sol.

Chester não estava exagerando, a resplandecência emanada de Roger era tanta que o cenário da batalha ficou claro como dia.

Até então, as poderosas Armas que um dia foram empunhadas por Andrus, ainda não haviam demonstrado todo o seu poder de extermínio. No entanto, a traição era algo que enchia os deuses de ira, e Ninqa ficou furiosa com os crassê­nidas ao formarem uma aliança com os odiados arkoprômidas. Roger havia final­mente evocado para si o poder divino da deusa.

Daniel interrompeu o arco para contemplar, bestificado, a ferocidade avassaladora de Roger. Foi surpreendido pelos gritos de Brian o repreendendo.

O que está fazendo! Não pare! Atire as flechas!

Fragmentos de soldados e metal retorcido se espalhavam pelo chão em volta de Roger como se uma explosão tivesse sido deflagrada. Um simples golpe desferido por ele deixava quatro ou cinco inimigos fora de combate. A Espada reluzente cortava os escudos como finas cortinas de seda. Os crassênidas concluíram que um confronto direto seria uma perda injustificada de homens.

O capitão de arqueiros gritou ordens para atacar de longe, morreu com uma flecha atravessada no pescoço. Guillermo havia realizado um disparo digno de elogio.

Acerte mais algumas dessas e eu te perdoo — disse Talemine, os olhos atentos ao próximo alvo.

Combinado! - ele exclamou, e imediatamente abateu outro arqueiro.

Triônivos voavam pela noite com pedidos de socorro.

Três lança-setas se posicionavam para contra golpear Roger pelas costas. Os lança-setas eram carros especializados em disparar setas de ferro de dois metros com a mesma ação destrutiva dos arpões de caçar baleias. Os crassênidas aprecia­vam o seu uso para derrubar dragões ainda no ar. Diziam eles que se os dragões não podiam ser domados ou comidos, pois sua carne era dura e de gosto ruim, e ainda atacavam as criações, então não serviam para nada. Justificava-se, portanto, a matança descontrolada daquela fabulosa espécie. Felizmente os reinos do ocidente tinham os dragões como animais sagrados e deixavam-nos viver em paz nas mon­tanhas altas e lugares isolados.

Aqueles lança-setas estão muito afastados de nossas flechas - constatou Talemine deixando passar um ar de apreensão. - Se não fizermos nada será o fim de Roger.

Havia pouco tempo, pois as engrenagens das poderosas armas disparadoras estavam girando para trás e destravando, pondo os arpões pontiagudos em posição. Apenas uma coisa retardava a morte de Roger, a lentidão do aparelho comparada a agilidade do incansável guerreiro. Contudo, eram três lança-setas que caçavam o seu alvo e que mais cedo ou mais tarde acabariam igualando a pontaria.

Chester, surpreendentemente, pulou em Denáculus, os dois voaram sobre a desordem da batalha desviando a atenção de uma leva de crassênidas aturdidos. Denáculus deu um rasante para chamar a atenção dos lança-setas, um deles tomando-o como um novo alvo. Várias flechas agora buscavam o cavalo alado e seu cavaleiro.

Roger entendeu a intenção de Chester. O braço dele girou rápido e mais duas vidas foram ceifadas. Ele mudou seu objetivo e seus olhos agora miravam o trio de carros bélicos que corrigiam suas pontarias. Em resposta, Roger correu com raiva na direção de um dos lança-setas, saltando sobre uma miríade de cadáveres dilacerados, seu escudo reluzente o defendia das enormes lanças que, ao serem impelidas com violência dos carros de combate, faziam um irritante ruído de ferro friccionando em madeira.

Denáculus bateu as asas escondendo-se na proteção das sombras quando Chester se certificou que a situação estava sob controle.

Vejamos como Roger se sai com aqueles carrinhos de pipoca — disse Guillermo enquanto fazia mais um crassênida tombar.

O Escudo ofuscante fazia os arpões colidirem e caírem aos pés de Roger como frágeis canudinhos de papel.

O furor da Espada brandindo e descendo com estrondo fez o primeiro lança- setas desmontar. Os outros dois carros tiveram o mesmo destino, destroçados como se uma mão gigante os tivesse achatado.

A horda de crassênidas estava sendo desbaratada e não existia mais um senso de organização entre eles. As fogueiras lambiam as tendas espalhando o incêndio que transformou o acampamento num enorme tapete de labaredas.

Minutos depois não havia mais batalha. Apenas um homem no meio do caos de chamas crepitantes e gemidos de dor.

Para Roger ainda não havia acabado. Algumas dezenas de feridos agonizantes conheceram a morte pelo fio de sua Espada que esmaeceu até tornar-se novamente negra; Roger não parava de esmagá-los como baratas.

Está bem, Roger! - gritou Brian, correndo para conter a sua raiva desproporcional. — Não há mais por que lutar contra os moribundos.

Roger estava banhado de sangue inimigo quando se deu conta que a batalha tinha chegado ao fim. Ele fechou os olhos por um breve instante para se acalmar. Sua respiração abrandou e suas feições se atenuaram.

Você está bem? — quis saber Guillermo.

Os olhos de Roger se abriram levemente e ele falou com uma voz distante.

Vi uma menina em meus pensamentos, ela corria pra mim com os olhos cheios de lágrimas. Havia muita tristeza nela.

Vamos sair daqui - disse Talemine com voz urgente. - Logo todo o vale estará fervilhando de armaduras vermelhas. E quando digo fervilhando, me refiro a dezenas de milhares delas.

Roger mergulhou em um rio e a correnteza se tingiu com o sangue coagulado dos mortos.

Naquela madrugada enquanto cavalgavam, Roger contou o que sentiu quando teve todo o seu corpo envolvido por aquela luz.

Senti um ódio infinito pelos crassênidas, que crescia quanto mais eu matava. Queria vê-los todos mortos, e não só isso, queria poder lacerar a sua carne e quebrar seus ossos.

Por isso não parou mesmo depois de não haver mais nenhum oponente - observou Rafael.

Roger retomou as lembranças e refletiu sobre o que havia feito. Era uma atrocidade desmedida pela qual ele se afeiçoara como uma inseparável e terrível compa­nheira, quando se achava sob a influência daquelas armas. Lidar com o poder dos deuses poderia ser mortal para ele e seus amigos. Por ora havia sido apenas para os seus declarados inimigos.

Vagaram pela noite por terrenos pedregosos de terras desconhecidas, e contemplaram o disco solar espalhando a sua luz pelos campos alaranjados de aromáticas vunínxias.

Os semblantes de Talemine e Guillermo não traziam mais o peso da desavença recíproca. A pontaria dele foi tão eficiente que era de se imaginar que uma de suas flechas acertara o coração de Talemine em cheio.

Era hora de certos assuntos serem conversados. Brian precisava falar sobre quando atravessassem o Nebnolus e saíssem em Santorini.

Prestem atenção um minuto. O Portal de chegada em Santorini fica numa caverna na base da encosta entre o mar e o rochedo. A saída sempre fica abaixo da linha da água. Se a maré estiver alta teremos que mergulhar uns quatro metros e depois subir. Na maré baixa o trabalho será menor. Nadem para longe das pedras e fujam da arrebentação. Dúvidas?

A água quase saltou do cantil de Marc quando ele tentou beber um gole. Era o conhecido efeito do disco negro.

Falta pouco agora, pessoal! - ele derramou a água num ângulo inclinado, como se uma rajada de vento soprasse o líquido para longe. O efeito magnético do Portal sobre a água estava se manifestando.

A água escorreu pelo chão desafiando um aclive e se entranhou na terra. Talemine espantou-se, só sabia da existência do fenômeno pela boca das pessoas.

Brian consultou outra vez o mapa de Nomaktus, mas para sua surpresa ele não fun­cionou. Não era mais diferente de um simples mapa de viagem, não tinha movimento, não havia mais desenhos coloridos girando para qualquer lado. Não havia magia.

Deve estar quebrado - disse Guillermo ao dar uma olhada rápida. - Sabem como é, muitos sacolejos dão nisso.

Mapas encantados não quebram, professor - retificou Margaret, aparente­mente não entendendo a piada. O que ela queria mesmo era firmar a sua posição na crença de que os artefatos mágicos eram infalíveis, pelo menos quando precisavam ser.

Percorreram um bosque de copas fechadas para a base de uma encosta. Contornaram uma colina de inclinação suave e se colocaram entre pedras grandes e arredondadas para não serem vistos. Estavam a umas poucas centenas de metros do fim de sua longa jornada.

Um grupo de soldados montava guarda em uma elevação, uma espécie de platô, trezentos metros de onde eles estavam e aparentemente não tomaram conhecimento da chegada de seus contendores. As árvores compactas fizeram um bom trabalho em encobri-los.

O Nebnolus ficava encravado no fundo de uma espécie de cratera natural com beiradas mais ou menos altas, que impediam quem se encontrava do lado de fora enxergar o seu interior, a não ser que se alcançasse a borda íngreme guardada por sentinelas incrédulos do sucesso da expedição.

E o nosso último obstáculo — lembrou Brian. - Um ataque bem feito e estaremos em casa. Se espalhem e deem cobertura ao Roger e ele fará o que for preciso.

Roger arrastou-se pela elevação a fim de pegar os crassênidas desprevenidos, assim seria mais fácil. Somente por instinto ele deslizou a lâmina de sua espada por uma protuberância rochosa no aclive. A Espada negra, que teria cortado o bloco como manteiga, sequer arranhou a pedra. Roger fez o mesmo movimento outra e outra vez. Foi o mesmo que usar uma espada comum.

Ele voltou-se para trás e sussurrou para Brian que escolhia uma das flechas mais agudas, se preparando para quando chegasse o momento de invadir a cratera.

Não está funcionando!

O que não está funcionando? - ele sussurrou de volta.

Essa Espada! - ele agitou a arma como se fosse uma vassoura. - Perdeu o encanto, não sei.

Tem certeza? - Brian resistiu em acreditar.

Roger irritou-se e fingiu que cortava o próprio pescoço.

Não vai funcionar aqui, professor - disse Margaret que acabara de ouvir os protestos de Roger. - Acho que a proximidade do Portal anula a magia dos objetos, como aconteceu com o mapa.

Brian raciocinou e concluiu que a menina estava certa.

Ainda essa, agora - e acenou para que Roger recuasse.

Teriam que mudar a estratégia'. Não era possível ver tanto sacrifício fracassar a alguns passos do Portal. Brian se preocupava, pois não demoraria muito, todo o lugar seria invadido por um exército enraivecido de crassênidas enviados por um rei louco, e sem se poder contar com os poderes da deusa Ninqa.

Os olhos de Roger correram pela borda alta.

Os soldados se distribuem por quase todos os lados e não há como se estimar quantos são.

Não devem ser muitos, pois o espaço não comportaria tantos homens amontoados numa toca abafada - supôs Daniel. — Eles nos subestimaram e concentra­ram forças pelas planícies e vales abertos. Por isso conseguimos chegar até aqui.

E já encontramos um grande problema — disse Talemine. — Que quero resolver de uma vez.

Chester ergueu a mão pedindo que o ouvissem.

Só vejo um meio de resolvermos isso. Vocês já viram que Denáculus é muito veloz quando o negócio é voar. Um pequeno número acrobático dele pelos céus é o bastante para que os soldados se distraiam. E aí vocês atacam.

E você? - Brian ergueu uma sobrancelha.

Estarei lá em cima com ele fazendo as minhas flechas choverem sobre aqueles bobocas.

Os três professores se entreolharam, todos sabiam perfeitamente qual seria a decisão.

Um triônivo, muito azul, planou pelo céu da manhã indo direto para a forta­leza côncava.

Não há mais tempo! — exclamou Talemine ao ver a ave. — Logo estarão lendo sobre nós.

Denáculus decolou e voou contra o sol; a maioria dos crassênidas só conseguia enxergar uma silhueta borrada cruzando o ar de um lado para o outro.

Talemine contou aproximadamente trinta alvos mirando o céu, loucos para derrubar um cavalo com asas. Teria que ser rápida enquanto eles não percebiam a armadilha em que estavam caindo. Quatro crassênidas mortos no espaço de quinze segundos, uma excelente marca para a arqueira.

Já era tarde demais quando os crassênidas perceberam a emboscada. Os inimigos, alguns desprotegidos de suas armaduras vermelhas, tombavam vítimas do ataque surpreendente e veloz, seus corpos rolando sem vida pelo interior inclinado da cratera. A última barreira fora aniquilada. A passagem estaria livre, se não fosse por um detalhe.

No fundo da cratera se erguia uma sólida edificação de pedra em formato circular e rodeada de colunas quadradas, duas delas ladeavam uma grossa porta de bronze. Não havia janelas ou qualquer outra abertura. Estava completamente lacrada.

Roger viu que o cenário náo batia com a descrição de Alexei Martov.

Martov escreveu em suas memórias que o Portal ficava ao ar livre - disse ele enquanto descia o declive, então parou diante da imponente fachada hermeticamente fechada como se ela guardasse um grande tesouro. O que o seu interior ocultava era muito mais que o mais rico dos tesouros existentes.

O triônivo, pousado em uma pedra, aguardava passivamente que alguém se interessasse pela mensagem presa em seu pescoço.

Essa construção é recente — disse Brian, inspecionando as junções das pedras. — Os crassênidas a construíram depois que Martov conseguiu passar, para que nin­guém mais repetisse o feito.

As paredes são resistentes. Não há como derrubá-las em tão pouco tempo — disse Rafael. — Cada bloco não deve medir menos que um metro de largura. Essa coisa foi construída para que ninguém possa entrar.

Rafael examinou melhor a arquitetura e notou três fendas verticais dispostas lado a lado nas paredes arredondadas, do lado esquerdo da pesada porta de bronze adornada por dois olhos zangados do deus crassênida Namptras. Ele fez um ar des­confiado e fechou um olho a fim de espiar por uma das fendas, depois examinou as outras duas com cuidado e se endireitou para falar.

Existem dispositivos aí dentro. São fechaduras, e o dono levou as chaves.

É um sistema de fechadura monotripla, uma chave grande para as três aberturas - disse Talemine. - Serve para se trancar coisas valiosas. Temos uma em Fao­gard no cofre do tesouro do reino - e ela completou para justificar: - Nem todos os faogards são honestos.

Consegue abrir? — Roger dirigiu a pergunta para Rafael.

Não sei. De qualquer modo, precisarei de ajuda pra tentar. Duas pessoas com dedos habilidosos e firmes — ele olhou para os possíveis candidatos e deu a sua impressão. - Pensei em Margaret por ter a mão pequena, e Marc, com tanto talento pra tocar instrumentos musicais, deve ter desenvolvido uma precisão tátil que pode nos ser útil agora.

Estava claro que todas as chances estavam nas mãos de Rafael, o que fez Brian ser contundente.

Faça o melhor que puder. Confiamos em você.

Rafael acharia melhor que Brian não tivesse dito aquilo. Afirmar que confiava nele era o mesmo que dizer: "Tudo bem, garoto, você tem um trabalho grande pra fazer, portanto, não nos decepcione". Tirou dos bolsos uma série de ferros e arames que usava com a mesma destreza que um cirurgião faz com seus instrumentos cirúrgicos, cada um com a sua função específica.

Guillermo desceu da borda trazendo um pequeno pergaminho tirado do triônivo, e o deu para Talemine ler.

"Os demônios conseguiram passar pelo nosso bloqueio sem serem notados. Não deixem que se aproximem. Usem todas as armas que dispuserem. Matem todos. Estamos enviando reforços".

Passar sem serem notados? — Guillermo sorriu com um ar zombeteiro. — Foram massacrados, isso sim.

Se a mensagem contasse a verdade, poderia desestabilizar a última resistência. O autor do texto havia agido estrategicamente - a faogard logo entendeu a intenção da mensagem.

Rafael suspirou fundo e pôs mãos a obra. Teria que ser minucioso na luta con­tra três fechaduras estranhas e ainda correr contra o relógio. Ele deu instruções aos seus dois ajudantes, explicando como se usava duas a três hastes combinadas para destravar complicadas engrenagens. Palitos e arames entravam e saiam das fendas sem nenhum resultado favorável.

Depois de cinco minutos ele mostrou-se desanimado.

Está muito difícil. Dentro de cada fenda existem quatro dentes que podem se mover para diversos lados simultaneamente. Pra piorar, os dentes precisam se movimentar de acordo com os das outras duas aberturas exatamente ao mesmo tempo. Se apenas um dente for empurrado na direção errada, todo o conjunto permanece travado, e a porta não abre.

Doze engrenagens, cada uma com quatro posições, que dariam um número enorme de probabilidades - Brian percebeu rapidamente a dificuldade. — Se não descobrirmos a combinação certa, não entramos.

Daniel olhava a uma certa distância quando algo lhe ocorreu.

Como é essa chave monotripla? — sua pergunta foi direcionada a Talemine.

Igual a um tridente de cabo curto - ela explicou. - Cada ponta é introduzida em uma abertura e um disco localizado no cabo faz com que as três pontas girem empurrando os doze pinos nas direções corretas.

Seria como isso? - disse Daniel e se afastou para uma parte aberta próxima a um grupo de arbustos.

Havia restos de argamassa endurecida que foram usados na obra recente. Alguma ferramenta havia sido esquecida ali por um breve instante enquanto a massa ainda estava mole como mingau, e ao ser retirada deixou o seu molde em detalhes como a sola do sapato de algum desatento que pisa em uma calçada de cimento fresco. Para a felicidade de Rafael cada pormenor da chave ainda estava lá, preservado no tempo.

Consegue fazer alguma coisa com esses desenhos? - quis saber Brian, agachado ao lado de Rafael.

O rapaz estudou atentamente cada detalhe, sua mente agrupando, combi­nando e desembaralhando todas as possibilidades. Ele ficou assim por um minuto, talvez dois. Então respirou como se sugasse todas as esperanças para o interior dos pulmões.

Se essa for a chave, eu acho que podemos abrir a porta.

Rafael voltou-se para seus ajudantes e os orientou de maneira tão metódica que Margaret se irritou.

Escute, não somos crianças do jardim de infância. Já entendemos perfeitamente o que você quer que façamos.

Rafael assentiu com um acenar rápido de cabeça e se posicionou entre os dois, na abertura do meio, lembrando mais uma vez.

Tudo ao meu comando.

Já sabemos disso também — ela fez uma careta impaciente.

Uma nuvem de poeira se levantou bem longe, nas colinas do leste e do sul.

Denáculus pousou num galope brusco e Chester trouxe as aguardadas más notícias. Haviam voado alto até o extremo do bosque no encalço dos primeiros vestígios de aproximação do inimigo.

Estão chegando! São como um mar de formigas saúvas fechando um ataque em massa. Devem ser mais de dez mil.

Quanto tempo acha que nos resta? - Guillermo gritou para Chester.

Cerca de cinqüenta minutos, se muito.

Os dedos de Rafael tremiam. Valia naquele momento a sua experiência. Ele deu o sinal.

Agora!

Não houve barulho de engrenagens se movimentando.

Não é possível, tinha que dar certo — Rafael disse inconformado, seu estômago doía de nervoso.

Ele correu para o molde no chão, sua testa franzida, os olhos pregados nas figuras sulcadas. Então deu um tapa na própria testa como se quisesse punir a si mesmo.

Tem horas que não entendo como sou tão imbecil - disse enquanto voltava para o seu lugar em frente à fechadura. — O desenho está ao contrário. Só tenho que inverter o processo - ordenou. — Invertam os movimentos, preparados? - Marc e Margaret concordaram com um gesto de cabeça: — Já!

Um som forte de mecanismos trabalhando arrancou um sorriso largo de Rafael.

Brian correu para a porta e jogou-se sobre o metal pesado, suas botas derrapavam no chão procurando apoio.

Pesa como dez elefantes - ele disse, e teve ajuda de Roger e Guillermo.

Estava escuro lá dentro e o ar abafado soprou nos rostos apreensivos.

O disco negro se mostrou quieto e misterioso através da luz das luminitas.

Chester e seu amigo alado foram os últimos a entrarem no ciclópico prédio circular.

Vamos, garotos, quero vocês pisando naquele disco - ordenou Brian, e em seguida deu um forte abraço em Guillermo. Um abraço de despedida.

Os garotos não compreenderam a atitude de Brian e lançaram olhares desentendidos para ele. Guillermo esclareceu ao ver suas expressões interrogativas.

Eu não vou. Não tenho como ir embora e deixar Talemine - disse ele olhando carinhosamente para sua amada. - Não posso levá-la para o nosso mundo, e nem ela abandonaria a família e seu povo na situação em que se encontra o seu país. Vou lutar ao lado dela até essa guerra acabar. — Guillermo queria aproveitar alguns segundos para dizer mais uma coisa para os jovens aventureiros: — Quero que sai­bam que foi muito gratificante viver essas aventuras com vocês, e que eu considero todos os cinco como dignos do nosso segredo.

Meu trabalho acaba aqui - disse Roger.

O que quer dizer? - perguntou Brian.

Não vou atravessar o Portal.

A decisão dele também pegou Brian e Guillermo de surpresa. Roger conti­nuou falando:

Náo faz sentido eu voltar e deixar para trás algumas dúvidas que me atormentam. Perguntas que não me foram respondidas, e uma chance, mesmo sendo inverossímil, de encontrar novamente a mulher que amo. Eu nunca seria feliz se voltasse agora — ele deu o maior sorriso desde muitos anos e disse para seus jovens alunos: - Me orgulho de um dia ter sido o professor de cada um de vocês — ele virou-se para Brian. — Agora é com você, grande amigo, a responsabilidade de completar a missão.

Chester caminhou para o disco, Denáculus trotava junto dele.

Não, Chester, Denáculus fica - disse Brian.

Os crassênidas... vão matá-lo, professor - sua face desabou em tristeza.

Pense nas conseqüências, Chester. Um cavalo com asas aparecendo em plena Europa. Os olhos do mundo se voltarão para nós. O nosso segredo estará mais uma vez ameaçado.

Chester não segurou as lágrimas. Não estava nos seus planos se separar de Denáculus. Apertou os olhos com as pontas dos dedos, seu queixo tremia involun­tariamente. Abraçou o forte pescoço de Denáculus e suas lágrimas escorreram no pelo cinzento do animal.

Vá embora, salve sua vida - ele disse a Denáculus. - Voe bem alto para que ninguém o veja - disse isso e empurrou Denáculus pela anca... e o viu partir.

Não há mais tempo — disse Brian com pressa e pôs os dois pés na superfície negra, ainda inerte.

Rafael hesitou em ir. Só ele não estava a postos.

Venha, Rafael — Brian chamou. — O disco já vai começar a girar.

Os olhos de Rafael estavam indecisos. Pelos seus pensamentos passaram o medo de ser excluído da Escola, a decepção que daria aos seus pais que confiaram tanto nele, o desespero de ter de encará-los quando fosse obrigado a contar que não haveria mais estudos na Ilha da Coroa, e nem um futuro promissor, a angústia de saber que seus queridos irmãos poderiam ficar desamparados a ponto de passarem fome como naquele sonho que teve em Edrendora.

Rafael foi arrancado de seus demônios ao ouvir os gritos distantes de Brian, o disco começava a girar. O teto tornou-se transparente como vidro revelando Wengarel, a gigantesca e silenciosa acompanhante desde o primeiro dia. O Portal estava se abrindo.

Pule, Rafael! Pule agora! — Brian gritou com energia.

Rafael correu e se atirou.

O ensurdecedor redemoinho absorveu os seis viajantes num espetacular jorro de luz branca, e em questão de minutos, tudo voltou a ficar quieto.

Vamos embora — disse Guillermo, os olhos pousados na superfície escura do disco, a agradável sensação do dever cumprido. — Temos um longo caminho de volta.

 

                                           Epílogo

O mar Egeu abriga milhares de ilhas que serviram de cenário a muitas das histórias da fascinante cultura grega. Sua mitologia, conhecida em todo o mundo, ainda parece ser murmurada pelos ventos que sopram nos litorais entrecortados, durante as noites de calor em que seus habitantes observam o mar como se aguar­dassem o retorno do heróico Odisseu, do poderoso Apolo ou da bela Afrodite, para reviver o passado glorioso.

Dentre esse universo de ilhas, existe um pequeno arquipélago vulcânico localizado a sudeste cerca de duzentos quilômetros em linha reta a partir de Atenas, a capi­tal grega. Esse grupo de ilhas, que os gregos chamam de Thira, outrora foi uma só, no entanto, em um dia fatídico, uma explosão vulcânica de proporções inimagináveis ocorrida por volta de 1.500 a.C. despedaçou-a e fez surgir as atuais ilhas que com­põem esse impressionante conjunto geológico. A explosão que destruiu grande parte da ilha deu origem a uma belíssima cratera, hoje ocupada pelo mar de azul infinito. A maior ilha do arquipélago tem a forma aproximada de uma lua crescente. Chama-se Santorini, e foi batizada assim no século XIII pelos venezianos em homenagem a santa Irene. Suas encostas, muito íngremes, atingem os trezentos metros de altura onde se agrupam casas, restaurantes e hotéis pintados quase sempre na cor branca. Do outro lado da cratera fica Thirasia, a segunda maior ilha do grupo, e no centro da caldeira inundada pelo mar estão Néa Kaméni e Palaiá Kaméni.

Santorini ainda á um vulcão ativo e o que apresenta a maior atividade entre os vulcões da região do Egeu.

E aconteceu naquele 25 de novembro de 1933.

Uma fragata da armada grega permanecia fundeada havia semanas na grande cratera azul translúcida de Santorini, nenhuma outra embarcação era avistada nas proximidades. Um marujo se debruçava indiferente sobre a amurada do navio, seus olhos sonolentos, voltados para os penhascos escarpados, como se nada de interes­sante pudesse acontecer naquela manhã de sol.

No entanto, alguma coisa fora do comum tirou o marinheiro de sua prolongada apatia, suas sobrancelhas contraíram-se profundamente e seus olhos convergiram para um ponto próximo aos rochedos de Santorini. Ele estufou o peito para gritar.

Capitão! Capitão! - berrou até que o comandante da fragata surgisse na coberta do navio. - Olhe!

O comandante Pétros Stavrópoulos apontou o seu binóculo na direção em que o braço do marujo indicava insistentemente. Braços e pernas lutavam contra o mar para alcançarem o vaso-de-guerra grego.

Stavrópoulos baixou o binóculo e sussurrou para si mesmo.

Aqueles malucos, eles conseguiram - depois gritou para a tripulação: - Homens ao mar! Andem logo com esse salvamento! Quero abraçar minha mulher e brincar com meus filhos antes que esse dia termine!

Uma hora depois, a fragata cortava as águas do Egeu rumo a Atenas.

Brian, acomodado no convés, protegido dos ventos do mar por um casacão da marinha grega, pensou pela primeira vez como os garotos haviam crescido tão rapidamente, dormindo ao relento, viajando por lugares admiráveis, conhecendo seres fantásticos e até perigosos, enfrentando e matando inimigos, amargando a sensação da perda de amigos, e tendo suas vidas por um fio. No final das contas se comportaram bem... pensando melhor, muito bem. A travessia entre os portais foi uma lição sobre maturidade que nenhuma escola teria condições de ensinar. Brian apertou os olhos ao que o navio mudou de curso fazendo os raios de sol incidirem sobre o seu rosto.

Da amurada da proa, Rafael lançava um olhar aflito para o mar.

O que está incomodando você? — quis saber Marc, seu olhar se lançava sobre o mar azul-turquesa, o vento tirava um som sibilante da gola alta dos casacos.

Se eu pudesse, ficaria pelo resto da minha vida nesse navio - ele levou os olhos do mar até Marc. — Estou com medo do que farão com a gente quando chegarmos na Ilha da Coroa. Se me expulsarem eu não volto pra casa. Desapareço e minha família nunca mais ouvirá falar de mim. Não quero desapontá-los.

Você está criando um monstro na sua mente — Marc ajeitou na cintura a calça larga que ganhou para substituir as roupas molhadas. — Eles não podem fazer nada conosco. Sabemos muitas coisas agora. Eu diria que sabemos tudo.

Para onde vamos agora?

Ouvi o professor Brian comentar com o comandante que o nosso destino é a Ilha da Coroa. A viagem até Paris seria mais curta, mas não sei se quero ir pra casa no momento e também não acredito que eles deixariam. Viu o comandante? Pétrus Stavrópoulos é o seu nome. Certamente é um membro da Ordem do Círculo de Pedra. Eles são como um exército invisível.

Rafael voltou a observar o mar.

A pequena imagem da santa que a minha mãe me deu não está mais comigo. Acho que a perdi no momento em que revirei os bolsos para usar as ferramentas que abriram a grande porta de bronze - ele sorriu melancolicamente. - Não é engraçado? Ela esteve comigo todo o tempo e se separou de mim no último minuto.

Marc ouviu aquilo e apertou o casaco para sentir a flauta contra o peito, o fio dourado dando a volta em seu pescoço. A flauta se tornara a lembrança inseparável de sua inesquecível aventura. Não poderia mais ficar sem ela.

Na mesma noite dormiram em Atenas e voaram sobre o continente europeu no dia seguinte. Seis dias depois avistaram os rochedos pontiagudos da Ilha da Coroa.

Só havia cinco tripulantes, além do comandante Hugo que evitou manter diálogo, embora mostrasse um disfarçado sorriso de contentamento como se apro­vasse tudo o que os jovens tinham aprontado.

O navio Divina Providência III teve seus cabos fixados e o reduzido número de passageiros desembarcou na ilha semi-deserta, sem alunos, todos em férias de final de ano.

Um comitê de recepção formado por monitores escoltou os aventureiros pela praia até o prédio principal.

O que vai acontecer conosco, professor? - perguntou Margaret.

Estou tão curioso quanto você — Brian dizia enquanto caminhava rapidamente, ela teve que apressar o passo para acompanhá-lo.

Diante da fachada do prédio da escola havia um rosto muito familiar, um martelo na mão e um pano encardido jogado sobre o ombro. Marc o reconheceu de imediato.

Aquele não é o...

Júlio! - exclamou Daniel. - O que está fazendo aqui?

Fui readmitido - disse ele, feliz em ver Daniel e os outros. - Essa pobre ilha não funciona sem mim, seria capaz de afundar sem os meus remendos.

Não comentem nada com ele - advertiu Brian num tom sigiloso. - Ele não é um dos nossos.

Os garotos foram enfiados no gabinete do diretor e obrigados a aguardar enquanto Brian se reunia com Helmut.

Já passei por isso uma vez - disse Daniel, lembrando que um dia, ele e Rafael, ficaram detidos naquela sala até resolverem fugir e passar pelo Portal.

Eu estava menos tenso quando quebrei a cabeça com aquelas fechaduras — disse Rafael enquanto apertava as mãos nervosamente.

Fazia mais de uma hora que Brian resumia toda a história para Helmut que andava de um lado ao outro pelo cômodo anexo, as mãos atrás das costas. O tempo parecia não ter amenizado a sua cólera com relação aos alunos transgressores. Brian permaneceu sentado em uma cadeira de encosto baixo e ouvia em silêncio o esbra­vejar do diretor, os olhos do inglês seguiam Helmut em cada canto da sala. Em um outro canto estavam o vice-diretor Ramón e o professor Rajev Shekar, de Física. O diretor parecia ter emagrecido nos últimos meses.

O que você quer que eu faça? Agradeça àqueles infratores? — Helmut se empertigou e fez uma encenação: — Oh, muito obrigado, meus estimados delinqüentes, por quase revelarem ao mundo um segredo de quatrocentos anos!

Eles são o que procuramos, Helmut - Brian argumentou com serenidade. - E depois não há mais nada o que possamos fazer quanto a eles.

Helmut apoiou uma das mãos em uma pequena mesa de mogno e fechou os olhos como se sua cabeça latejasse a ponto de explodir.

Isso nunca foi feito assim. Não desse jeito — disse o diretor aparentando ter recuperado a calma. - Você sabe muito bem, levaríamos anos até que tivéssemos absoluta certeza em escolher os próximos membros da Sociedade.

Vi aqueles jovens fazerem coisas incríveis. Eles têm habilidades, inteligência e esperteza incomuns para suas idades - Brian procurou ser convincente, falando a Helmut e depois olhando para Rajev e Ramón.

Se souberem controlar a língua já me dou por satisfeito - disse Helmut, sisudo. — Venham comigo, quero olhar nos olhos deles e dizer-lhes umas verdades.

Quando a porta se abriu, Rafael perdeu a respiração. Marc olhava para o dire­tor como se estivesse gostando de toda a situação. Helmut procurou ponderar no tom de voz.

Qualquer coisa que eu diga não muda o que aconteceu. Eu me questiono se um dia vocês foram dignos de colocar os pés nessa ilha. Isso sem levar em consideração que perderam quatro meses de aula. Como esperariam recuperar todo esse tempo perdido caso continuassem como nossos alunos?

"Continuassem como nossos alunos?". As quatro últimas palavras perfuraram o estômago de Rafael como se fossem lanças crassênidas. Ele quis falar. Fez até menção de prometer qualquer coisa em troca de não ser expulso, mas a voz não saiu.

A porta do gabinete se abriu novamente após três batidas leves. O homem que entrou tinha pouco mais de trinta anos, estatura média, cabelos claros e olhos azuis, fitou cada um dos jovens alunos como se estivesse muito curioso em conhecê-los.

Esse é o Sr. Johan Van Vossen, nosso professor interino de Geologia - disse Helmut. — Teve que vir às pressas de Amsterdã para que as aulas de Brian não fos­sem interrompidas. Vocês devem imaginar que o mesmo aconteceu para as cadeiras de Química, de Guillermo, e Educação Física, do professor Roger. Esse foi um dos problemas que enfrentamos, sem falar nas centenas de alunos que perguntavam todos os dias sobre o desaparecimento repentino de professores e alunos da noite para o dia. Inventamos uma desculpa esfarrapada sobre uma excursão de pesquisa pela América do Sul. Até hoje eu fico me perguntando se algum idiota acreditou naquela história.

Ramón mostrou cinco maços de envelopes de cartas amarrados com barbante.

Enquanto estavam fora, essas correspondências chegaram para vocês. Enviamos telegramas dizendo que no segundo semestre do primeiro ano os alunos não estavam autorizados a responder as cartas que recebiam e que esse procedimento fazia parte da adaptação dos calouros. Mais mentiras - Ramón olhou diretamente para Marc: - Caso tenha interesse em saber, a orquestra que você organizou fez uma bela estréia e continua se apresentando para as autoridades que visitam a ilha.

Bem, por ora é o que há para dizer. Vão para os seus alojamentos e fiquem lá. E não se ausentem sem autorização - e Helmut ainda completou antes que Daniel e Margaret saíssem: - Vocês ficam por enquanto. Temos mais uma coisa para conversar.

Margaret e Daniel se entreolharam e voltaram a se sentar. Agora só ficaram eles, Helmut e Ramón.

Rafael disparou pelo corredor até alcançar Brian.

O que o diretor quis dizer com aquela frase sobre se nós continuássemos como alunos?

Brian viu temor nos olhos do garoto, então dobrou um corredor enquanto Rafael o seguia.

Do que você tem medo?

Ora, do que eu tenho medo, de que me mandem embora pra casa, numa passagem só de ida — Rafael lambia os lábios numa clara demonstração de nervosismo.

Se eu tivesse certeza de que as coisas iriam terminar assim, não teria voltado, seria bem melhor travar uma guerra contra os crassênidas a decepcionar meus pais.

Sabe, rapaz — disse Brian ao mesmo tempo em que caminhava, as mãos enterradas nos bolsos da calça. — Durante esses meses vimos coisas que ninguém acreditaria — ele parou de andar por um momento e voltou-se para Rafael, encarando-o severamente como se quisesse desvendar os seus pensamentos mais ocultos.

Você seria capaz de guardar o maior segredo de todos os tempos?

Que tipo de resposta Brian esperava de um garoto que dividiu com ele tantas aventuras. Diante de tal pergunta, Rafael só sabia responder de uma forma.

E se eu lhe dissesse que sim, isso mudaria alguma coisa?

Brian fitou os próprios sapatos e então seu olhar se perdeu na penumbra dos corredores.

Acho que não. Pense no que é esconder uma coisa fascinante e nunca, nunca poder compartilhar esse segredo com seus pais, seus irmãos, sua mulher e seus filhos; ser perguntado em que está pensando e ter que mentir todas as vezes. E se quer saber, você e seus colegas caçadores de encrenca estão enterrados nessa ilha até o pescoço e pelo resto de suas vidas.

Brian não foi totalmente claro, mas o que ele disse deixou Rafael satisfeito.

Vá para o seu quarto e descanse. Leia as suas cartas e converse com seus amigos, afinal... estamos em casa.

Brian se embrenhou pelas sombras de um corredor comprido.

Professor!

Brian virou-se sem pressa.

Esses corredores ficariam bem melhor cheios de luminita - ele disse, e seu semblante esboçou alegria enquanto ele se afastava. Não existia mais o medo em seu coração.

Helmut circulou um pouco pelo gabinete e sentou-se em frente aos irmãos, olhando para os lados como se escolhesse muito bem cada palavra que iria usar.

Para que a nossa Sociedade sobreviva, necessitamos que no nosso grupo existam pessoas competentes, influentes e acima de tudo, confiáveis. Não há como pertencer a nossa Ordem sem possuir essas qualificações - Helmut ergueu os olhos para Ramón e voltou um olhar ameno para os irmãos: - John, o pai de vocês, é uma dessas pessoas.

O nosso pai? - Margaret disse como se não tivesse ouvido bem.

Helmut confirmou com a cabeça.

John Crowley é um integrante que nos auxilia há muitos anos. Foi um de nossos melhores alunos e é considerado um dos maiores colaboradores da Socie­dade do Círculo de Pedra.

Daniel e Margaret sorriram orgulhosos. Jamais imaginariam que uma pessoa tão próxima fizesse parte daquilo.

E a nossa mãe? - perguntou Margaret.

Ela não sabe - respondeu Ramón, objetivamente. - Nenhum membro pode revelar o nosso segredo para quem quer que seja. Nunca. Em hipótese alguma.

Mas o nosso pai deve estar sabendo do que aconteceu - deduziu Daniel. — Vocês o avisaram, não foi?

Helmut voltou a trocar olhares com Ramón, depois suspirou profundamente antes de começar a falar.

Nós o localizamos e o deixamos ciente de tudo — Helmut explicou. — Onze dias depois ele havia chegado a Ilha da Coroa após se desligar de uma missão no Pacífico. Eu mesmo conversei com ele e lhe disse que fizemos de tudo para contornar o problema. John errava pelos corredores deste prédio como uma fera presa numa jaula. Certa noite, alguém bateu na porta do meu quarto, consultei o relógio, passava das duas horas da madrugada. John estava lá, a mão apoiada no batente — os olhos de Helmut reviviam a cena trazida à sua lembrança. — Ele não me deu tempo de abrir a boca e disse com voz angustiada "Vou atrás deles". Uma hora depois ele partiu. Exatamente dezesseis dias haviam se passado desde que vocês se foram.

Então meu pai está do outro lado? Por nossa causa ele atravessou o Portal?

É isso mesmo - Helmut foi sucinto.

Talvez sozinho ele se saia melhor — disse Ramón com certa razão. - John é um homem que vivenciou muitas situações em várias partes do mundo, regiões em conflito onde a vida não vale um centavo.

Não com um continente inteiro em guerra - retrucou Margaret. - Só conseguimos voltar porque combinamos nossas aptidões e conhecimentos. Jamais algum de nós teria conseguido sem a ajuda dos outros.

Lamento, mas não podemos enviar outra expedição de resgate. John é um militar experiente e vai saber se cuidar. Cabe aos dois voltar pra casa daqui a alguns dias e levar um pouco de alegria e conforto à mãe de vocês — disse Helmut, mostrando-se inflexível.

Toda a sensação de culpa e responsabilidade recaía sobre os ombros de Margaret e Daniel. E se John nunca mais voltasse? Como poderiam olhar para a mãe sem jamais revelarem a verdade sobre o desaparecimento do próprio pai. A sociedade provavelmente já teria montado uma versão convincente em que John teria morrido em uma explosão que deu um fim ao seu corpo. Eles eram especialistas nesse tipo de coisa, como haviam feito em 1925 criando a lenda sobre Fawcett, o explo­rador britânico.

Os dois saíram atordoados da sala de Helmut, subiram as escadas e se arrasta­ram cada um para o seu dormitório.

Marc jogou-se na cama e leu as suas cartas sossegadamente. Em uma delas, sua mãe ressaltava o desejo de que ele desistisse e retornasse a Paris. Ela alertava para o perigo das tempestades tropicais oceânicas. Mal sabia ela que tipo de perigo o seu querido filho experimentara nos últimos meses.

Afobado, Rafael abria os envelopes - eram nove - e lia as cartas compulsivamente; queria saber o que se passara com sua família nos meses em que ele esteve ausente. Nenhuma novidade, a vida transcorria lenta e enfadonha como normal­mente costumava ser.

Chester rasgou um dos envelopes enquanto contemplava o monte Cabeça do Rei bem diante de sua janela; debruçou-se sobre o peitoril e passou a ler, a brisa que vinha do mar tremulava as pontas da folha escrita. Uma parte da carta dizia:

"Temos novidade, nasceu um lindo potro, negro como petróleo e com uma pequena mancha na testa. Ele é um cavalinho bastante arredio. Teremos dificuldade para domá-lo. O potro ainda não tem um nome, deixamos para você escolher um pra ele".

Chester sentiu uma vontade muito grande de escrever algo, arranjou papel e caneta, sentou-se na mesa junto à parede e começou a rabiscar como se conversasse com a carta que acabara de ler.

"Querido tio Fred e querida tia Mary, está tudo bem por aqui. Sinto não poder escrever antes, mas as normas da escola são rígidas e só agora me deixaram responder. Sobre o potro, se vocês não se importarem, já escolhi um nome pra ele. Não estranhem, mas eu gostaria muito que ele fosse batizado com o nome de Pesadelo."

Ele dobrou o papel e o guardou no bolso, não sabia ao certo por que fez aquilo, no entanto, sentiu uma enorme necessidade de deixar algo registrado.

Naturalmente, a primeira coisa que Daniel fez quando se reuniu com seus amigos foi contar sobre o seu pai. Mesmo sem querer, ele acabou dividindo a responsabilidade sobre o que acontecera com o comandante John. A cumplicidade nascida entre eles fazia com que aquela reação coletiva fosse algo perfeitamente normal de acontecer. Eles eram uma equipe agora.

Não foi uma noite muito tranqüila naquele prédio grande e vazio, e quando todas as luzes foram desligadas, os olhos insones se arregalaram na escuridão que­brada apenas pela rotação do farol.

Daniel não teve ânimo para se levantar tão cedo, ainda não sabia o que fazer com relação ao seu pai perdido em algum lugar da Cadecália. Por fim, o seu corpo não suportou mais o colchão macio e ele vagou pelas dependências desertas até achar a sua irmã e Chester no refeitório, os farelos de pão e os restos de fruta se espalhavam pelas bandejas. Daniel só tomou uma grande caneca de leite e os três saíram atravessando os salões de luzes fracas, sem ter para onde ir, como réus que aguardam suas condenações. Foi quando viram Rafael e Marc correndo até eles, as expressões aturdidas e a respiração ofegante.

Leia isto! - disse Marc passando um jornal para as mãos de Chester.

O que é isso? — indagou Chester não entendendo direito a que ele estava se referindo.

Um jornal, não está vendo? - disse Marc com impaciência. - Encontramos na biblioteca. Veio no navio junto com as correspondências e com os outros malotes. A data é de anteontem: 1o de dezembro de 1933.

Veja o que está escrito na primeira página - estimulou Rafael como se o jornal noticiasse o fim do mundo.

Chester desdobrou o jornal e leu a manchete:

"O chanceler Adolf Hitler incentiva o crescimento da indústria bélica alemã". E o que tem isso?

Não, não! Leia a notícia que está no rodapé da página! - disse Marc. - Olhe no rodapé!

Chester fez uma cara feia como se estivessem fazendo alguma brincadeira de mau gosto com ele, porém, sua expressão mudou e seus olhos se arregalaram ao encontrarem uma pequena nota quase despercebida.

 

                          MISTÉRIO NO CÉU DA EUROPA

VÁRIAS TESTEMUNHAS DECLARARAM TER VISTO UM OBJETO ESTRANHO SOBREVOANDO O SUL DO CONTINENTE EUROPEU NOS ÚLTIMOS DIAS. O OBJETO, QUE FOI DESCRITO DE MUITAS FORMAS,TERIA VOADO DESDE 0 MAR EGEU NA GRÉCIA, CRUZADO A ITÁLIA, A PENÍNSULA IBÉRICA, E POR ÚLTIMO TERIA SIDO VISTO SOBRE AS ILHAS CANÁRIAS RUMO AO OCEANO ATLÂNTICO.

DEPOIMENTOS CONTRADITÓRIOS SUGEREM QUE SERIA UM NOVO MODELO DE AVIÃO MILITAR, OUTROS DIZEM SER UMA AVE PRATEADA DE TAMANHO ANORMAL REMANESCENTE DOS TEMPOS PRÉ-HISTÓRICOS. CHE­GOU-SE AO ABSURDO DE AFIRMAR QUE, NA VERDADE, O QUE ESTÁ VIAJANDO PELOS CÉUS DO NOSSO PLANETA É UM CAVALO COM LONGAS ASAS COMO O PÉGASO DA MITOLOGIA. 

 

 

                                                                                R. Costac 

 

 

                                         

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