Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS LOUCURAS DO REI / Jean Plaidy
AS LOUCURAS DO REI / Jean Plaidy

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A morte de Eduardo I trouxe de volta a incerteza e a instabilidade à Inglaterra. Ao herdar a Coroa, Eduardo II cuidou para que fosse providenciada a volta de Piers Gaveston, cavaleiro gascão banido do reino por seu pai. A ligação íntima entre eles e a ascendência cada vez maior de Gaveston sobre o rei acabou despertando a revolta não só dos barões mas também da rainha Isabella, que, humilhada, assumiu as rédeas do movimento que levaria à queda definitiva do monarca. No oitavo livro da vitoriosa Saga dos Plantagenetas, Jean Plaidy reconstitui a vida e a trajetória deste homem de caráter duvidoso e extremamente influenciável, cujo governo foi marcado pela turbulência política e por uma série de loucuras que culminariam num dos mais trágicos acontecimentos da história inglesa.

 

 

 

 

O VELHO REI estava morrendo. Ali, na pequena aldeia de Burgh-onSands, onde se encontrava num ponto em que podia ver o Solway Firth, do outro lado do qual ficava

o país que planejara conquistar, ele chegara ao fim de uma longa vida de realizações e triunfos. Tirara seu país do fosso do desastre ao qual o mau governo de um

avô demoníaco e de um pai fraco o levara e tornara a Inglaterra, de novo, um país orgulhoso. Seus ancestrais, cujo principal era aquele grande Guilherme que ficara

conhecido como o Conquistador, deviam estar orgulhosos dele.

Mas Deus achara melhor levá-lo antes que sua obra estivesse completa. Ele fizera muita coisa, mas não o suficiente. Sabia que tinha sido inspirado e que iria tornar-se

uma lenda. Seus inimigos encolhiam-se diante dele, e sempre que Eduardo entrara numa batalha, aquela aura de invencibilidade entrara com ele.

- Depois que eu morrer-disse ao filho -, mande colocar meus ossos numa rede e levá-los à frente do exército, para que o inimigo saiba que estou lá em espírito.

O jovem Eduardo estava prestando pouca atenção. Havia um só pensamento que ocupava a sua mente.

Perrot!, pensava ele. Meu adorado, meu querido, meu incomparável Perrot, depois que o velho morrer, o primeiro ato de meu reinado será trazer você de volta para mim.

Ele estava vagamente ciente de que o pai continuava balbuciando sobre enviar seu coração à Terra Santa com cem cavaleiros, que deveriam servir por lá durante um ano, e estava se perguntando quando poderia enviar um mensageiro. Perrot estaria à espera. Há muito tempo que parecia que o rei estava à beira da morte. Ele vivera, na verdade, 68 anos, um tempo considerado muito longo. Mas Eduardo sempre parecera diferente dos outros homens. Alguns de seus súditos acreditavam que ele era imortal, e parecia que ele mesmo pensava assim... até agora.

O velho era fantástico. Sempre tivera o dom de ler o pensamento dos que o cercavam. Mesmo ali deitado, com a morte ao lado, quando deveria estar pensando em enfrentar o Criador, ele lançou ao filho um olhar astuto e disse:

- Nunca chame Piers Gaveston de volta sem o consentimento da nação.

Fantástico! Sim, como se soubesse que o jovem alto e bonito que estava ao seu lado - ele próprio já fora muito parecido com aquele jovem, mas apenas no que dizia respeito à aparência - não estava pensando no pai moribundo, mas no seu querido amigo Piers Gaveston, o seu Perrot.

- Sim, papai - disse ele, tímido, pois não via justificativa em discutir um assunto que decidira que seria o seu primeiro ato ao adquirir a autoridade. De qualquer modo, o velho não teria como impedir aquilo depois de morto.

Enquanto ficava ao lado do leito de morte, ele sabia que o pai não confiava nele nem no futuro do país e, no entanto, tudo o que o jovem Eduardo podia pensar era:

"dentro em breve, meu querido Perrot, você virá para o meu lado".

E então o fim ficou muito próximo. O velho rei reclinou-se para trás, murmurando sua fé em Deus - e pouco depois estava morto.

Agora, os homens olhavam para o jovem rei com aquele respeito temeroso que mostravam para com a coroa. Ele era filho legítimo do pai e, portanto, eles deviam jurar-lhe

vassalagem.

Eduardo obteve um grande triunfo. Um novo reinado começara. O seu reinado.

"Majestade", diziam eles e ajoelhavam-se diante dele. Beijavam-lhe as mãos, aqueles barões que, em mais de uma ocasião, tinham provado que podiam oferecer ao seu rei uma lealdade que nada tinha de absoluta. Precisava tomar cuidado com eles. Não devia mostrar-lhes, por enquanto, o quanto a vida seria diferente. Para começar, não deveria haver mais aquela obsessão com a Escócia. Ele odiava o país. Estava ansioso por voltar para Westminster, Windsor e para o sul. Já estava planejando deixar um exército ali e voltar para Londres... mas teria de agir com cuidado.

Tinha plena consciência disso. Lincoln, Warwick e seu tio Lancaster... todos se consideravam muito importantes e, devido apouca idade dele, queriam orientá-lo. Ele deixaria que pensassem que estavam conseguindo... só no início.

Walter Reynolds era diferente. Reynolds era seu amigo, sempre fora, desde que entrara para a sua equipe real. Perrot gostara dele, e Reynolds se unira a eles em suas proezas e, com muita frequência, dera a elas um tempero que até Perrot admirara. Reynolds, no íntimo, zombava da autoridade - em especial zombara das tradições que o velho rei tanto insistira em manter. Eles tinham tido uma grande emoção em escarnecer da autoridade. Muitas vezes, quando era apenas o príncipe Eduardo, ele se perguntara por que seu pai permitira que Reynolds entrasse para a sua equipe e, quando provocara o assunto com seus adeptos mais chegados, Reynolds explicara, com muita ironia, que até os mais virtuosos dos homens, por mais probos, justos e honrados que fossem, as vezes achavam necessário fazer pequenos negócios que deviam ser realizados em segredo, se se quisesse manter a aura de honra, justiça e nobreza. Nessas ocasiões, eles se voltavam para aqueles que os serviam sob determinados aspectos... e mantinham a boca fechada. Á fala de Reynolds era sempre cheia de insinuações. Até Perrot ficara fascinado por ela.

Reynolds era um sacerdote, o que tornava tudo aquilo muito mais divertido, mas era muito bom em representações dramáticas realizadas por amadores; sabia onde encontrar os melhores músicos e gostava de se vestir a caráter e representar. Eles tinham se divertido bastante juntos, e quando o rei reprovara o filho por suas extravagâncias e cortara sua mesada, fora Walter Reynolds que dera um jeito de abastecê-lo do que chamava de artigos caseiros básicos e que vinham a ser um novo conjunto de tímpanos ou um engradado cheio de tecidos finos para a confecção de fantasias.

Walter Reynolds era seu amigo; os dois tinham-se lamentado juntos quando Perrot fora mandado embora. Walter sussurrara, ironicamente, que aquilo não devia ser por muito tempo, ao que tudo parecia, e balançara a cabeça e piscara os olhos e andara de maneira arrogante como se estivesse acompanhando um caixão de defunto.

Walter era um homem vulgar. Mas o jovem Eduardo gostava de homens vulgares. Suas irmãs e seus pais jamais compreenderam por que ele preferia a companhia de seus serventes à de nobres. Havia exceções, claro. Havia Perrot, que era cheio das graças da corte. Ninguém dançava como ele. Ninguém era tão bonito ou gostava mais de roupas finas. Mas ele mesmo não tinha sangue real... era apenas o filho de um cavaleiro gascão a quem o rei prestara um favor por ter feito algum serviço para ele.

- Walter-disse ele quando o homem compareceu à sua presença -, está na hora de agir.

- Quais são os seus desejos, ó rei? - replicou Walter, dando aquele seu sorriso velado e irónico.

- Dentro em breve, eles estarão partindo com o corpo de meu pai.

- É verdade, majestade. E Vossa Majestade precisa ficar aqui com seu exército, e sou capaz de jurar que isso o atormenta.

- Não vai ser por muito tempo. Tenho de dar a impressão de que estou cumprindo os desejos de meu pai.

Walter sacudiu a cabeça, sério.

- Mas em breve estarei em Westminster.

- O que quer dizer, majestade? Deixar guarnições aqui, como seu pai fez?

Eduardo sacudiu a cabeça.

- É tudo o que vou fazer, e é o bastante. com todas as suas belas batalhas, o que foi que meu pai ganhou? Aqui estamos, enfrentando os escoceses como ele enfrentou há anos. É uma batalha perdida, Walter, e já estou farto dela.

- No entanto, majestade, seu tio Lancaster...

- Aquele homem é um tolo. Logo vou mostrar isso a ele. Mas mandei chamá-lo, Walter, e acho que sabe por quê.

Walter confirmou com a cabeça, rindo.

- Devo partir para o sul... a toda velocidade. Devo mandar um mensageiro à França...

- É isto. Diga ao meu querido Gaveston que ele tem de voltar para mim. Diga-lhe que o rei está mandando... bem depressa.

- Sim, majestade. Direi a ele. Aposto que ele está pronto para partir. Deve estar à espera do sinal. Esteja certo disso. Preste atenção no que vou dizer: ele estará ansioso por ajoelhar-se diante de seu rei.

- E não mais ansioso do que o rei dele está para tocar-lhe o rosto adorado.

- vou dizer isso a ele, majestade. vou dizer isso a ele. E agora, senhor meu rei, com a sua permissão, a toda velocidade para Perrot Gaveston.

Era um prazer estar cavalgando em direção ao sul. Ele cumprira com seu dever. Mandara o exército - seu exército, agora, pensou com um sorriso afetado - para Falkirk e Cumnock, embora não tivesse exatamente Jiderado à moda do pai. Ele o dirigira da retaguarda-muito mais seguro, mais confortável e mais adequado a um homem que acreditava haver algo de muito ridículo e sem sentido em entrar em guerra. Era verdade que ele recebera os juramentos de fidelidade de um ou dois dos senhores feudais escoceses, e depois decidira que não havia perigo em deixar a Escócia bem guarnecida e voltar para Londres.

Era preciso comparecer aos funerais de seu pai, e eles deveriam ser seguidos pela sua coroação e seu casamento... ah, sim, ele agora teria de se casar em breve. Já estava noivo de Isabella, filha do rei da França, que se dizia ser a princesa mais bonita da Europa.

- As princesas sempre são bonitas - dissera Perrot. - E não é estranho que a beleza delas aumenta em proporção ao seu grau de realeza e aos seus dotes?

- Então parece que Isabella tem ricos dotes - replicara ele -, porque informações sobre a beleza dela chegam de todas as partes.

Perrot encolhera os ombros. Ele fazia esse gesto com mais graça do que qualquer outro homem.

- Ela irá tirá-lo de mim-dissera ele calmamente, quase que com petulância.

- Jamais - declarara Eduardo. - Ninguém, na Terra, poderia fazer isso.

Perrot fingira não ter certeza, mas tinha. Ele sabia... os dois sabiam... que a afeição que dessem a qualquer outra pessoa jamais iria rivalizar com aquela que dedicavam um ao outro.

Ele estava sorrindo, pensando em Perrot, e seu primo Thomas, conde de Lancaster, que cavalgava a seu lado, sussurrou que confiava que não haveria perfídia por parte dos escoceses.

- Ah, os escoceses - replicou Eduardo com um bocejo -, uma raça cansativa. Você algum dia já experimentou o mingau de aveia deles, tom?

Thomas disse que sim, e que abominava o mingau.

- Meu bom Thomas, concordo com você. Vamos agradecer a Deus por termos dado as costas para o árido e inóspito país.

- É perfeitamente natural ser inóspito para convidados indesejáveis, majestade.

Eduardo soltou uma gargalhada.

- O que você diz é verdade. Vamos para onde somos desejados. Eu me pergunto que tipo de recepção o povo de Londres vai me dar.

- Uma grandiosa recepção, eu garanto. O senhor é filho legítimo de seu pai e olhando para Vossa Majestade ninguém seria capaz de duvidar.

- Não, minha santa mãe nunca foi mulher de se desviar do leito matrimonial, muito embora meu pai a tenha abandonado muitas vezes para participar das guerras dele.

- Ela o seguia nas batalhas, majestade, e nunca esteve muito atrás.

- Ah, batalhas... batalhas. A vida dele foi uma longa batalha.

- Um grande rei, majestade.

- Não diga isso dessa maneira, tom. Eu lhe proíbo.

- De que maneira, majestade?

- Dando a entender que jamais se verá um homem igual a ele outra vez. Eu lhe digo uma coisa, o filho dele não tem intenção alguma de ser a sombra do pai, e quanto

mais cedo você e os demais perceberem isso, melhor.

- Duvido que aqueles que lhe são chegados esperem isso retorquiu Thomas.

- Então, está tudo bem. Agora, precisamos dar ao rei uma despedida digna. Eu mesmo vou planejá-la. Gaveston vai me ajudar.

- Gaveston, majestade?

Eduardo lançou um olhar dissimulado para o primo.

- Piers Gaveston. Você o conhece bem.

- Mas ele...

- Vai estar esperando por mim quando eu voltar a Westminster, creio eu.

- O rei queria...

- Aquele rei está morto, primo.

- Ele queria... - A fisionomia de Thomas estava séria. Thomas dava-se ares, acreditando ter tanto sangue real quanto Eduardo, e de certo modo tinha, mas não na linha de sucessão. Ele era o filho mais velho de Edmund, irmão do pai de Eduardo, primo em primeiro grau do rei e, porque o pai morrera enquanto Thomas era um menor de idade aos cuidados do rei, tornara-se o conde de Lancaster, Leicester e Derby. Títulos de peso que, aliados ao sangue real, tinham feito com que Thomas se tivesse em alta conta. Não era de admirar que pensasse poder tratar um rei com intimidade.

- Eu repito, primo - disse Eduardo com firmeza -, aquele rei está morto. Este que está cavalgando ao seu lado está vivo.

- É verdade - replicou Thomas, em tom evasivo. Eles iriam aprender, pensou Eduardo, sorrindo.

- Você está taciturno, Thomas - prosseguiu Eduardo. - Acha que Richmond e Pembroke não vão cuidar dos problemas da fronteira?

- O falecido rei planejara um combate. Robert, o Bruce, voltou.

- Eu lhe disse, Thomas, que não vamos falar sobre o falecido rei, exceto quando se tratar de suas exéquias. Iremos até Waltham, onde ele está, e depois o levaremos para Westminster. Ele vai ter um funeral digno dele. Acho que ele iria querer ficar ao lado do pai. Ele o amava muito. Lembro-me bem das histórias que nos contava sobre nosso avô.

- O rei sempre foi um homem ligado à família.

- Ele foi um exemplo de virtudes para aqueles a quem se dedicava. Há algumas pessoas que não o considerariam tão bom assim. Mas... não vou falar mal dos mortos. A morte santifica. Mesmo os que não conseguiram conquistar respeito em vida podem muitas vezes conseguir isso depois de mortos. Assim, meu pai, cuja estatura foi enorme em vida, irá se tornar um gigante na morte. Portanto, meu bom Thomas, nós o enterraremos com tamanha pompa, que deixará satisfeito o povo de Londres.

- O senhor vai se lembrar do pedido dele, para que seus ossos marchem com o exército dele.

- Eu me lembro, primo.

O rei adiantou-se, cavalgando à frente de Lancaster. Não estava com disposição para continuar a conversa. Estava pensando em chegar a Londres, nos funerais do pai, na sua coroação. Gaveston estaria lá.

A viagem até Waltham durou duas semanas, e todos os dias o rei irritava-se com a demora. Agora, ele tinha de fazer a entrada solene em Londres e, lá, seu pai deveria ser enterrado na abadia de Westminster. Os funerais deveriam ser de grande pompa. O povo deveria estar esperando por isso. Ele podia imaginar a raiva do rei se este estivesse olhando lá de cima. Tanto dinheiro desperdiçado, dinheiro que poderia ter sido aplicado em armamentos para guerrear os escoceses e manter os rebeldes galeses sob controle.

Um rei tão formidável! Maior morto do que quando vivo. Vivo, ele tivera inimigos. Sempre tivera de estar de olho nos barões que tinham ficado poderosos desde a promulgação da Magna Carta. O velho Pernaslongas sabia como mante-los em ordem, mas até mesmo os poderosos acabavam caindo. No caixão jaziam os restos mortais de um outrora grande rei, cujos ossos - achava ele-provocariam terror no inimigo. Nada além de ossos!

E ali estava ele em Londres, a capital. A sua capital, agora. Ele adorava a cidade. Tivera por hábito perambular por ela com Perrot, incógnito, misturar-se às multidões, assumir o papel de nobres, mercadores, atores mambembes... dependendo da disposição. Seu disfarce nunca fora fácil. Era tão alto e tão louro, e tão parecido com o pai, que podia ser reconhecido com facilidade. Aquilo fora um desafio especial, e ele e Perrot se congratulavam muito se passassem por uma aventura noturna com a identidade intata! Às vezes, Eduardo desejava não ter sido filho de seu pai. Perambular pelo Chepe sobre as pedras desniveladas onde as sarjetas que corriam pelo meio muitas vezes ficavam entupidas de dejetos, passando pelas casas, lojas e barracas de madeira com seus letreiros e lanternas balançando em cordas de palha, é que era aventura. Beber uma garrafa de cerveja na taberna Mermaid ou Mitre, misturar-se a mercadores e pedintes, ordenhadoras de vacas e cambistas, comerciantes honestos e aqueles envolvidos no tráfico nefando... aquilo é que era vida, e ele e Perrot, com uns poucos companheiros bem escolhidos, fugiam para ela quando se achavam dispostos. Tinham sido dias felizes de aventura e prazer.

E depois... lavar das mãos e dos rostos a sujeira das ruas, arrancar as humildes roupas, vestir sedas e brocados e jóias finas e talvez chamar os atores a fim de representarem para eles, era puro prazer. Eram muitas as distrações, e Perrot sabia como aproveitá-las ao máximo. Perrot sabia representar e dançar melhor do que ninguém.

Como sempre, seus pensamentos voltaram para Perrot.

E para Westminster, onde teria de tomar as providências para os funerais do pai. Lancaster tivera razão. O povo estava pronto para lhe oferecer uma recepção digna de um rei. Ele se parecia muito com o pai, que estava fazendo um rápido progresso em direção à santidade. As pessoas comentavam o justo e bom governo do pai, que poucos anos antes fora chamado de severo e cruel. "Eduardo não nos deixou", diziam elas, "mas continua a viver na pessoa do filho." Poucos homens muito velhos lembravam-se de quando o antigo rei chegara de sua cruzada à Terra Santa para ser coroado rei da Inglaterra. Muito mais alto do que os outros homens devido àquelas compridas pernas normandas que IKe tinham dado o afetivo apelido de Pernaslongas, ele chegara com uma bela esposa que o acompanhara romanticamente à Terra Santa, para que não ficasse separada dele. Assim, Eduardo I chegara como um herói romântico e saíra como um santo, suas gloriosas façanhas relembradas, seus erros esquecidos.

Por isso, o povo amava o filho dele. Recebeu-o de braços abertos. Queria vê-lo coroado; queria que ele tivesse uma bela esposa.

Bem, isso teria de acontecer.

Ele teria preferido não se casar, mas sempre soubera que aquilo lhe seria exigido. Perrot e ele tinham discutido o caso com frequência. Isabella... a moça mais bonita da Europa... de sangue real, bem dotada, filha do rei da França. Todo mundo iria aprovar.

De repente, começou a rir. Se ele se casasse, Perrot também deveria arranjar uma esposa. Por que não? Imaginou o rosto de Perrot quando ele lhe fizesse aquela proposta.

Para o Palácio de Westminster, então, que fora tão amado pelos seus avós, que o tinham reformado, gasto uma fortuna nele e acrescentado finos murais e tetos pintados. Perrot gostava dele. Tinha sido ali que ele falara de suas ambições.

- Você é um príncipe - dissera ele -, o herdeiro do trono, e eu não passo de um modesto cavaleiro. Ser meu amigo é humilhante para você.

Por um instante, Eduardo ficara aturdido. Perrot, que sempre fora tão seguro de si mesmo! Perrot, que caminhava como um rei e que podia, com uma demonstração de contrariedade, reduzir Eduardo à humildade. Ele não via nada humilhante para ele. Só podia ser grato a Deus por lhe dar um amigo assim.

Então, a coisa viera à tona. Perrot quisera honrarias.

- Para que eu possa ficar ao lado de meu amigo... não como um igual... ninguém neste reino pode ser isso, mas digno dele - explicara ele.

Ele quisera ficar com Ponthieu.

- Peça ao rei. Diga-lhe que você acha que alguma honraria deveria ser concedida a mim. Diga-lhe que bom amigo eu sempre fui para você.

Eduardo, que queria acima de todas as coisas agradar ao amigo, sentira-se constrangido. Sabia que os inimigos dos dois olhavam de esguelha para a sua amizade. Algumas pessoas tinham sussurrado ao rei que não era bom para o príncipe estar com tanta frequência em companhia de Piers Gaveston.

Ele vira a expressão de súplica nos olhos de Perrot. Perrot queria ser do mesmo nível que aqueles outros que o cercavam. Lancaster e Lincoln tratavam-no como um criado mais graduado.

Querendo mostrar a Perrot o que faria por ele, Eduardo chegara mesmo a pedir Ponthieu a seu pai.

Que escândalo houvera! O velho ficara rubro. O mau génio Plantageneta que acossara a família desde a época de Henrique II estivera pronto para se manifestar. Todos eles tinham tido aquele mau génio. Em Eduardo I, em sua maior parte ele fora controlado. No rei João, desencadeara-se de tal maneira que ele mandava arrancar os olhos de um homem ou cortar-lhe as orelhas ou o nariz simplesmente por tê-lo provocado.

Pois bem, ele, Eduardo, vira os olhos do pai quando pedira Ponthieu para Perrot.

Todos os temores do pai pelo futuro, toda a sua contrariedade em relação ao filho estavam lá naquele momento quando ele o agarrara pelos cabelos e chegara até a arrancar alguns fios pela raiz.

Eduardo tocou a cabeça, recordando. Ainda doía devido ao ataque. Naquele ataque tinham estado todos os ressentimentos do pai, seu desagrado pela vida que o filho levava, sua ânsia por um filho que o seguisse nas batalhas e do qual ele teria feito um rei para ser igual a ele.

Fora um erro. Resultara no banimento de Perrot. Perrot e ele tinham feito um fiasco. Eduardo I fora complacente com os erros das filhas. Quando a irmã de Eduardo, Joana, estava viva, ela muitas vezes controlara o pai com o dedo. Mas era mulher, e o rei tinha preferência pelas filhas. Mas o filho não lhe dera o que ele queria. Ele clamava por um filho valente que fosse à guerra e levasse a Escócia para a coroa; e o destino lhe dera Eduardo, que era bonito mas não com uma beleza masculina, que era inteligente mas preguiçoso, que não gostava de batalhas e preferia divertir-se com seus companheiros doidivanas, fazendo barulho pelas ruas, ou tocando música e dançando e dedicando tempo e atenção aos músicos. Os pequenos meios-irmãos de Eduardo, Thomas e Edmund, frutos do segundo casamento do rei, ainda eram jovens demais para mostrar o que iriam ser.

Assim... à sua coroação, depois ao seu casamento... mas primeiro teria de providenciar o enterro do pai.

O caixão que carregaria o corpo do rei estava sendo preparado. Era simples, como o rei teria desejado, e feito de pedra de Purbeck preta. Não seria selado, porque seria preciso mostrar que se estava cumprindo as ordens do rei, que eram no sentido de que seus ossos fossem levados numa rede à frente do exército quando este marchasse contra os escoceses. De dois em dois anos, segundo suas ordens, o túmulo deveria ser aberto e a cera do encerado usado como mortalha renovada. O túmulo não deveria ser selado enquanto não se conseguisse uma vitória completa sobre a Escócia.

Claro que eles fariam isso. Tinham medo de fazer outra coisa. O Eduardo morto era tão aterrorizante quanto o Eduardo vivo.

Houve uma leve batida à porta, e um dos criados de Eduardo deu uma espiada. Parecia apreensivo. O rei levou um susto quando o mensageiro fez uma acentuada mesura.

- Majestade, um homem espera lá fora. Ele pede que lhe diga que esteja preparado para receber notícias graves.

- Notícias graves! Que notícias? Quem é esse homem?

- Ele mesmo vai lhe dizer, majestade. Suas ordens foram estas. O senhor vai recebê-lo?

- Mande-o aqui imediatamente.

Ele estava de cenho franzido. Notícias graves! O que seria, agora? Ele não queria nada... nada, a não ser notícias de Perrot.

A porta abriu-se. O mensageiro estava de volta. Fez uma curvatura acentuada.

- Entre, meu senhor - disse ele. - O rei irá recebê-lo.

No aposento entrou uma figura envolta numa capa que escondia tudo. O mensageiro recuou, fez uma mesura e fechou a porta, deixando-os a sós.

- Quem é você? - bradou o rei. - Por que vem desse jeito... A capa foi jogada fora e, enquanto caía ao chão, Eduardo soltou um grito de alegria e atirou-se nos braços do visitante.

- Perrot! Perrot? - bradou ele. - Ah, seu vilão... manter-se afastado de mim até mesmo por esses momentos... Esta alegria demorou a chegar.

- Para que o meu adorado rei pudesse achá-la ainda mais completa.

- Oh, Perrot, Perrot, se soubesse o que tem sido a vida sem você!

- Sei muito bem disso, meu adorado senhor. Não estive sem você? Mas agora está tudo acabado. Estamos juntos outra vez, e você é o rei. Você, meu doce amigo, é o senhor, agora. O rei adiou demais a partida, mas finalmente ele se foi.

- Oh, Perrot, que alegria! Que alegrial Você veio a toda velocidade, então.

- Eu estava pronto, aguardando o sinal. Recebera notícias de que seu pai estava próximo do fim. Assim que vi seu mensageiro, compreendi. Estava pronto e à espera.

- Deixe-me olhar para você, doce Perrot. Está um pouco diferente. O que é? Seus olhos longos, escuros, inteligentes. Não. Seus cabelos encaracolados escuros, o nariz bem arrogante, a boca risonha... não, não é isso.

- É este robe de seda. Onde você já viu uma seda como esta? Preciso lhe mostrar as roupas justas que eu trouxe. Você vai ficar assombrado. Que roupa que cai bem! Prometo que você vai adorar.

- Não me fale de roupas, Perrot. O que me importam as roupas? Você não é fácil, falar em notícias graves... um mensageiro... vindo de longe. Como pôde evitar que eu sentisse esse imenso prazer, mesmo que por um momento!

- Perdão, doce senhor. Foi uma imprudência minha. Eu tinha sofrido tanto...

- Esqueça. Esqueça. Você voltou. Como o tempo custou a passar sem você! Naquela época, você me provocava. Que falta senti de suas caçoadas! Estou cercado por esses senhores lúgubres. Eles me deixam deprimido. Eles me comparam com meu pai...

- Você é incomparável.

- Oh, Perrot, meu amor! Pensei que fosse morrer quando você partiu.

- Graças a Deus não morreu. Como é que eu poderia ter vivido sem você? Seria uma tragédia maior Perrot ficar privado do seu Eduardo do que a Inglaterra do seu rei.

Os dois falavam de forma incoerente na alegria do reencontro.

- Vamos saborear só isso-disse Eduardo.-Amanhã falaremos de muitas coisas.

Lancaster entrou de sopetão nos aposentos do conde de Warwick e, vendasuaexpressão, Warwick dispensou imediatamente as pessoas que estavam à sua disposição.

- Por Deus, Warwick-bradou Lancaster-, já soube da notícia?

- Não, senhor conde, e se a expressão do seu rosto expressa seus sentimentos, receio pelo pior.

- Ele voltou. Aquele plebeu traidor do reino, o génio do mal do rei.

- Gaveston?

- Quem mais? Por Deus, devíamos ter-lhe a cortado a cabeça antes de ele ser exilado.

- Acho que o pai do rei não teria dito não a um ato desses. Se ele tivesse pensado que o filho iria faltar com a palavra que lhe dera, Gaveston não teria vivido para trazer problemas de volta para o nosso país. Mas não adianta lamentar o que podia ter acontecido. Posso jurar que ele está com o rei.

- Está com ele desde o momento em que voltou. Os dois não vão se separar. Fico doente ao vê-lo lá. O rei vai querer ficar com ele a seu lado, à sua mesa, na sua cama. Ele jura que nunca vai deixar que ele torne a ir embora.

- O rei terá de aprender que governa pela vontade dos barões. Até mesmo o avô dele deve ter aprendido essa lição no final.

- Estou prevendo encrencas, Warwick.

- Onde Gaveston estiver, sempre haverá encrenca. Foi assim quando o rei era apenas o herdeiro do pai. Mas Eduardo é o rei, agora. O povo irá apoiá-lo... durante algum tempo.

- Quer dizer que não devemos fazer coisa alguma para provocar o banimento de Gaveston?

- Devemos agir com cuidado. Vejamos o que resulta da volta dele. O rei gosta dele, e o povo está com o rei. Sempre está, num reinado novo. Parece provável que Gaveston faça exigências tão grandes e que Eduardo as atenda, sem dúvida alguma, que o povo veja por si mesmo a ameaça que esse homem representa. Não vão gostar do relacionamento entre os dois. Por isso, o que temos a fazer no momento, meu amigo, é esperar.

Lancaster ficou desapontado. Queria uma ação imediata. Ele se destacava pela impulsividade e não era um homem especialmente sensato. Não fosse o fato de ser neto de um rei, teria sido insignificante, assim pensava Warwick.

Por isso, este estava ansioso por incutir na mente de Lancaster que eles tinham de agir com cautela. Que o novo rei era voluntarioso, era evidente, que ele tinha preferências sexuais pervertidas, também eraora, ele não era o primeiro rei a sofrer daquela maneira. Apesar de tudo aquilo, poderia ser um bom rei. Além do mais, Eduardo era jovem. Tinha muito o que aprender. Cabia aos seus barões, que estavam ansiosos pela paz e pela prosperidade do país, fazer com que ele compreendesse suas responsabilidades.

- Então Gaveston voltou-falou ele -, embora o falecido rei o tivesse exilado. Temos de aceitar isso.

- É isso-bradou Lancaster -, e o falecido rei aconselhou a nós e ao filho a nunca recebê-lo de volta.

- O jovem Eduardo é o governante agora, meu senhor. E mandou Gaveston voltar.

- Para que possa enchê-lo de presentes... terras, possessões, títulos... Vai ser uma repetição de Henrique III com seus extravagantes amigos sugando o sangue vital do país.

- Eles eram parentes da mulher dele, e eram muitos. Este é o amante do rei. Escute, Lancaster, Eduardo deve se casar de imediato. Tenho a certeza de que ele reconhece a necessidade disso. Ele precisa nos dar um herdeiro ou dois, e dizem que a jovem Isabella é muito atraente. Não, senhor conde, não façamos nada às pressas. Vamos comunicar a chegada de Gaveston aos principais barões. Digamos que vamos mantê-los em alerta... Temos de coroar o rei, e quando ele estiver casado com essa bela jovem... Ora vamos, Lancaster. Ele ainda é jovem. O pai foi rigoroso com ele. Ele agora está livre. Vamos dar-lhe uma bela esposa e uma oportunidade. Talvez Gaveston não signifique nada para ele daqui a alguns meses.

- Acho que você está achando isso fácil demais, Warwick.

- É bem possível. Mas, por enquanto, pouco podemos fazer. Ele mandou chamar Gaveston e Gaveston voltou. Vamos fazer a coroação e casar o rei, e depois, se...

- Sim - disse Lancaster. - E depois?

- Depois, senhor conde, se Gaveston for uma ameaça para o rei e para o país, teremos de arranjar um meio de nos livrarmos dele.

Lancaster olhou para o esperto rosto moreno do conde e anuiu com a cabeça.

- Perrot, estão dizendo que tenho de me casar, e em breve.

Eles estavam andando de braços dados pelos jardins. Não tinham se separado desde a volta de Gaveston.

- Eu sei. Estão tentando afastá-lo de mim.

- Bobos! Seria mais fácil conquistar a Escócia do que fazer isso.

- Eu esperava que fosse uma tarefa impossível.

- Absolutamente impossível, querido Gaveston.

- Bem, forçosamente você terá de se casar, engravidar a rainha e cumprir com o seu dever para com a coroa.

- Ora, vou fazer isso por eles.

- Dizem que ela é uma jovem bonita.

- Dizem... dizem. Como você disse antes, ela é filha do rei da França. Minha madrasta se lembra dela. Isabella era um bebé quando Marguerite deixou a França para se casar com meu pai. Há uma tradição de beleza naquela família. O pai dela é Filipe, o Belo, e a tia era tão famosa pelos encantos, que meu pai quis muito casar-se com ela e, em vez disso, casou-se com a irmã dela, minha madrasta. Marguerite não é feia. Sim, acho que vou ter uma esposa bonita.

Gaveston fez um beicinho.

- Você fala assim para me atormentar.

- Nunca, Perrot. Ela não vai significar coisa alguma para mim. Mas sou o rei, e há certas obrigações às quais devo me submeter.

- Odiosas obrigações.

- Querido Perrot, eu conheço bem os seus sentimentos. Não pense que não irei recompensá-lo. Tenho novidades para você. Sabe, não vai continuar sendo o simples Piers Gaveston por muito mais tempo. O que diria de um condado?

- Eu daria meus corteses agradecimentos, meu senhor; e meu coração ficaria contente... não pelo condado... porque outros os têm... mas pelo amor de Vossa Majestade, que não tem preço, é impossível avaliar, e significa para mim mais do que quaisquer títulos ou terras.

- Será um sinal explícito de minha devoção, caríssimo irmão.

- Meu irmão, mesmo.

Quando os dois eram crianças na sala de aulas real - onde o pai de Eduardo colocara o jovem Piers num gesto de gratidão para com o pai do menino, que lhe prestara um serviço - os dois tinham passado imediatamente a gostar um do outro. Aquela atração jamais estremecera, e a primeira coisa de efeito que Eduardo dissera ao jovem amigo tinha sido: "Você é meu irmão." Dali em diante, passaram a tratar-se de "irmão" e ainda o faziam em momentos de nostálgica ternura.

- Escute, Perrot. Em que condado você está pensando? Não, eu lhe direi. Você vai ser o conde da Cornualha.

Nem mesmo Perrot, que ia se acostumando a presentes generosos, acreditou no que ouvia.

- Cornualha! É um título real!

- Ora, Perrot, não gosta dele?

- Majestade, o que posso dizer?

- Pode dizer que acredita, agora, que o seu rei o ama. Venha, senhor conde, vamos descobrir que mansões, castelos e terras estão vinculados ao seu novo título.

Perrot ficou aturdido de tanto poder. Estava percebendo que não precisava haver um fim para a sua boa sorte. Eduardo estava tão estupidamente apaixonado por ele, que não havia coisa alguma que ele não pudesse ter. Poderia ser rei - porque Eduardo faria tudo para agradá-lo. Os velhos barões não iriam gostar. Ele teria de vigiá-los. Velhos tolos, a maioria deles; teriam de aprender que Gaveston podia passar-lhes a perna - com o rei do seu lado. Eduardo seria chamado de rei, mas seria Gaveston que iria governar.

Eles - os herdeiros de famílias nobres - sempre tinham ficado contrariados com a presença dele na casa real. Tinham desprezado sua origem humilde. Ele era filho de um cavaleiro gascão, enquanto muitos deles consideravam-se com tanto sangue real quanto o rei. Alguns deles tinham, na verdade, sido de sangue real. Ele sempre sentira uma certa afinidade com a irmã de Eduardo, Joana-que infelizmente já morrera. Ela tivera um espírito aventureiro e admirava um homem atraente. Não que Gaveston fosse o tipo dela, mas ela apreciava a inteligência dele. Joana se casara com Ralph Monthermer-um dos homens mais bonitos da corte, e de origem humilde -, apesar da ira do rei que ela tivera de enfrentar mais tarde. De modo que não podia desprezar muito sua origem humilde. Tampouco, justiça lhe fosse feita, ela mostrara ter ciência disso. Ela fora um boa companheira até sua morte súbita - de todos os membros da família real, fora, de longe, o que melhor o tratara. Agora, ele iria ser o conde da Cornualha. Estava no mesmo nível de qualquer um deles.

- E, Perrot-prosseguiu o rei -, como vou ter uma esposa, você também vai.

- Uma esposa, Eduardo. Você está brincando.

- Ah, não, meu doce amigo. Não estou, não. Só a mais nobre das esposas é boa para o meu Perrot, e por isso, quem você acha que escolhi para você?

- Diga-me.

- AfilhadeJoana:MargaretdeClare.

Eduardo recuou um pouco para ver o efeito sobre o amigo. Gaveston teve dificuldade em conter a onda de prazer. A jovem era uma das mais ricas do país - e com fortes ligações reais, também, pois era sobrinha do rei. Aquilo era um grande favor.

- Bem - prosseguiu Eduardo -, o que diz, Perrot?

- Eu diria que você está decidido a me homenagear, meu doce senhor. Não tenho vontade nenhuma de arranjar uma esposa, mas quem pode dizer não a ficar ligado ao seu senhor real através do casamento?

- Ela é jovem, e você pouco precisará vê-la. Mas ela lhe trará muita riqueza. Eu pensei: Hugh lê Despenser ficou com a irmã dela, Eleanor, de modo que o meu Perrot ficará com Margaret. Estou ansioso por comunicar à menina a boa sorte que ela teve.

- Esperemos que ela considere isso uma boa sorte.

- Como poderia ela deixar de admirá-lo? E se for uma sobrinha obediente, irá amar a pessoa que o tio e rei venera tanto.

Gaveston ainda estava perplexo. Ele esperara favores, mas não tão grandes quanto aqueles.

Eduardo era mesmo impulsivo. Não havia dúvida de que os barões logo ficariam sabendo de suas intenções, e então haveria críticas veementes.

- Precisamos fazer planos imediatos para o seu casamento continuou o rei. - Quero que ele seja realizado sem demora, antes que nossos inimigos possam levantar suas objeções.

- Meu inteligente amigo pensa em tudo.

- Quando se trata do seu bem-estar, Perrot, penso mesmo.

Era um prazer muito grande estarem juntos. Eles riam sem se conter do efeito que aquela comunicação teria sobre os poderosos barões.

Perrot se distraía dando apelidos a eles. Thomas Lancaster, pelo qual ele tinha o máximo de desprezo, era o Rabequista.

- Ele devia ser rabequista - comentou Gaveston. - Sim, ele teria se saído muito bem tocando suas músicas na rabeca. Podia ter tocado nas feiras do interior. Os matutos teriam adorado.

- Perrot, você está falando do meu primo.

- Talvez tenha sido uma piada do Todo-Poderoso. Ou talvez Ele estivesse reservando todas as perfeições para o filho do rei e não sobrou nada para os outros. O que mais temos de temer é o cão preto de Arden. Você sabe a quem me refiro.

- Acho que é Warwick. Gaveston sacudiu a cabeça.

- E quanto ao velho Barriga Explosiva, ele não pesa.

- Você se refere a Lincoln. Oh, Perrot, você vai me matar de tanto rir. É, se ele engordar muito mais, é claro que vai explodir.

Fazia bem a ele ouvir aqueles poderosos barões serem ridicularizados. Ele podia ter medo dos condes de Lancaster e Lincoln - mas não quando pensava neles como Rabequista e Barriga Explosiva.

- vou lhe dizer uma coisa, Eduardo - continuou Gaveston -, esses cavalheiros não são tão valentes ou tão importantes como pensam. E vamos provar isso a eles.

- Como?

- Vamos começar organizando um torneio. vou reunir os melhores cavaleiros da França e da Inglaterra. Todos jovens... desconhecidos. Posso trazê-los até aqui. Então, vamos ver esses poderosos barões humilhados. Que tal isso para começar?

- Um torneio. vou gostar disso. E você será o melhor de todos eles.

- Deus o abençoe, doce amigo. É uma honra que vou dividir com você.

Os dois riram juntos, fazendo planos. Tudo, pensou Eduardo, fica interessante e divertido quando Perrot está aqui.

Num frio dia de outubro, realizou-se o funeral do rei, e seu corpo foi colocado no túmulo preparado para ele na abadia de Westminster. Nas ruas, o povo falava sobre sua grandeza, mas já estava pensando no novo reinado. A beleza clara como o trigo do jovem Eduardo, tão parecida com a do pai, cativava as pessoas, mas o público ouvia sussurros sobre o favorito Gaveston, contra o qual os barões murmuravam, e o primeiro sopro de inquietação começava a tocá-lo. Nunca houvera um escândalo com relação ao rei morto; ele fora um exemplo para todos os pais e maridos e, como tal, exercera um bom efeito sobre o país.

- O novo rei é moço - diziam as mulheres - e muito atraente. Daqui a pouco, vai ganhar uma esposa. Aí, vai se acalmar.

Os homens diziam que os problemas do país eram sempre criados por estrangeiros, e Gaveston era gascão. Se o rei mandasse aquele sujeito embora, como seu pai fizera, tudo ficaria bem.

Mas aquilo ainda estava no começo, e a popularidade do rei sofrera muito pouco devido ao primeiro toque de escândalo.

Poucos dias depois, quando Piers Gaveston se casou com a sobrinha do rei, Margaret de Clare, a inquietação aumentou. Os barões ficaram muito mal-humorados, desaprovando vigorosamente o casamento. O rei, no entanto, dissera que ele tinha de se realizar, e um fator de esperança era que, como Gaveston tinha uma esposa, pudesse haver um ponto final nos mexericos sobre ele e o rei.

A jovem Margaret, que ainda era uma criança, achava o marido a criatura mais bonita que já vira, de modo que não ficara nada contrariada com o casamento, e ele passava tão pouco tempo com ela, que ela dizia que era como se praticamente não estivesse casada.

Perrot estava estirado na cama do rei, e Eduardo o observava com admiração. Ele era tão gracioso quanto um gato e tão digno quanto um rei devia ser, mas nem sempre.

Gaveston estava contente consigo mesmo. Estava se tornando, com rapidez, o homem mais importante do reino, porque aquilo que desejasse, conseguiria - o seu desejo era o de Eduardo.

Eles tinham conversado sobre Walter Langton, a quem os dois se referiam como "aquele velho inimigo".

- A mim parece estranho - estava dizendo Gaveston - que o nosso velho inimigo ainda esteja no cargo de tesoureiro.

- Não vai ser por muito tempo, Perrot, não, não vai ser por muito tempo.

- Acho que eleja ficou no cargo muito tempo. Sou de opinião, e de uma opinião da qual sei que meu adorado senhor feudal compartilha, de que aqueles que têm sido bons amigos nossos... seus, meu caro... devem ser recompensados, e de que se deve fazer com que aqueles que têm sido nossos inimigos compreendam que a sorte deles sofreu uma mudança para pior.

- Tenho pensado em Langton - disse Eduardo.

- Então, vamos pensar nele agora e não paremos de pensar nele até que eleja não esteja mais em condições de nos perturbar.

- Mandá-lo embora - disse Eduardo.

- Exatamente - replicou Gaveston.

Os dois riram, lembrando-se das escaramuças que tinham tido com Langton que, infelizmente, naquela época, estava nas boas graças de Eduardo I.

- Lembra-se de quando invadimos o bosque dele? - perguntou Gaveston.

Eduardo se lembrava. Houvera uma encrenca terrível por causa daquilo, e ele se recordava vivamente da raiva que sentira diante da humilhação a que fora submetido na ocasião, porque seu pai ficara do lado de Langton naquele caso.

Era característico que aquele tal de Langton, que o jovem Eduardo tanto odiava, gozasse das boas graças de seu pai.

O velho rei tivera um conceito tão elevado de Walter Langton, bispo de Coventry e Lichfield, que fizera dele seu tesoureiro. Ouvia seus conselhos e com frequência os seguia, porque muitas vezes declarara que a grande experiência do bispo lhe era de grande valia.

Provocado por Gaveston, Eduardo escolhera Langton para bode expiatório de seu desagrado. Como tesoureiro, Langton estava sempre questionando as despesas do jovem Eduardo, e também não era avesso a reclamar delas com seu pai. Era irritante o fato de o velho rei ficar do lado do tesoureiro e não apoiar o filho e, reclamava Gaveston, tratar o príncipe como um colegial transviado na presença do bispo, o que deixava o velho hipócrita mais decidido do que nunca a estragar seus prazeres.

Foi Gaveston que salientou que Reynolds poderia ser de alguma valia para eles. "Aquele outro Walter", como Gaveston o chamava. Como tesoureiro do guarda-roupa, Walter Reynolds podia engendrar um pouco de trapaça com as roupas, o que estava bem propenso a fazer. Na verdade, Reynolds tinha muito prazer em juntar sua astuta cabeça à de Eduardo e de seu favorito e de pregar peças no rei e Langton.

Nada mais natural do que, quando Eduardo e Gaveston estavam andando a cavalo perto das terras de Walter Langton, entrarem num bosque e caçarem antílopes. Eles tinham obtido sucesso e acabavam de abater um belo macho quando os guarda-caças de Langton os cercaram e, apesar dos protestos de Eduardo, de que era o príncipe de Gales, tinham-nos levado, da maneira mais humilhante, à presença de seu mestre como se fossem ladrões comuns.

Além do mais, mesmo quando vira que eram os detidos, Langton mostrara a mesma falta de respeito.

- Como ousam invadir minhas terras e roubar meu antílope? perguntara ele.

Eduardo respondera com altivez:

- Estas terras chegaram às suas mãos por graça de meu pai. Eu sou o herdeiro dele e, portanto, reclamo o direito de ir aonde quiser.

Gaveston balançara a cabeça em sinal de aprovação, o que dera a Eduardo a coragem de que precisava para enfrentar o ameaçador e velho bispo.

- Você ainda não ocupou o lugar de seu pai - bradara o bispo -, e peço a Deus que demore muito tempo para isso. Esperemos que quando essa hora chegar, e ela poderá ser uma tragédia para a nação, você tenha aprendido a ter um pouco mais de bom senso.

Ora, aquilo fora mais do que Eduardo pudera suportar, e ele começara a insultar Langton com termos um tanto baixos que pareciam mais divertidos porque eram dirigidos a um bispo, e Gaveston a tudo assistira morrendo de rir.

- Posso lhe dizer uma coisa-replicara o bispo -, o rei não vai suportar o seu comportamento frívolo, sua extravagância, sua libertinagem com companheiros que não são bons para você...

Gaveston sorrira com afetação e, com passinhos miúdos, aproximara-se do bispo e fingira uma atitude de quem implorava alguma coisa, que fizera com que Eduardo se engasgasse de tanto rir. O bispo ficara um pouco mais pálido enquanto dizia:

- vou comunicar este fato ao rei.

- Por favor, comunique - replicara Eduardo -, e eu comunicarei a ele a insolência de um súdito para com o filho do rei.

Langton chegara primeiro à presença do rei. Ele ficara atormentado e aflito, e o rei ficara furioso quando soubera o que acontecera.

Mandara chamar o filho, e as luzes do perigoso génio dos Plantagenetas estavam visíveis em seus olhos. O jovem Eduardo era, de todos os demais, a pessoa que mais o provocava. Á voz do rei pudera ser ouvida por todo o palácio, e as coisas que ele dissera depunham muito contra o filho. Era de enlouquecer o fato de que ele ficara inteiramente do lado de Langton.

- Como teve a ousadia de entrar nos bosques do bispo? Como teve a ousadia de caçar o antílope dele? Isso é uma ofensa passível de castigo. Você sabe disto.

- Um rei deveria caçar onde quisesse - replicara Eduardo.

- Lembre-se de uma coisa - vociferara o rei -, você ainda não é rei. E eu lhe digo que há uma grande preocupação, neste país, diante da perspectiva de você vir a ser o rei. Terá de corrigir seu modo de agir ou então, por Deus e todos os anjos, eu mesmo irei corrigi-lo.

- Majestade, isso é humilhante para a nossa condição...

- Isso é humilhante. Você é humilhante. Você e seus malignos conselheiros.

Na ocasião, pequenos dardos de medo haviam penetrado no coração de Eduardo. Ele sempre tivera medo quando o pensamento do rei se voltava para Gaveston.

Tornara-se mais calmo, mais humilde. Dera ouvidos à observação do pai e, quando fora avisado de que ele estava banido da corte, curvara a cabeça e aceitara o exílio. Fora irritante, mas seria simplesmente horrível se seu pai começasse a pôr a culpa sobre Gaveston e decidisse separá-los.

Quando o rei realmente banira Gaveston - poucos meses antes de sua morte -, Eduardo calculara que fora aquele caso que incutira pela primeira vez aquela ideia na sua cabeça.

De modo que agora, quando Perrot lhe lembrava a ocasião em que os dois tinham invadido o bosque de Langton, ele se recordou não apenas do incidente, mas da separação de Perrot que se seguira, e sentiu uma grande raiva de Langton, que fora um dos piores inimigos dos dois.

- E ele continua sendo o seu tesoureiro - salientou Gaveston. Meu querido amigo, você está sendo bom demais para com aquele velho bandido.

- Alguém terá de substituí-lo.

- Mas é claro, e há o nosso velho amigo, aquele outro Walter. Ele está esperando uma oportunidade e, meu doce príncipe, por que não deveria tê-la?

- Reynolds! - bradou o rei.

- Quem mais? Ele não nos tem servido... não o tem servido... bem?

- Tem razão. Vai ser ele. Quem vamos chamar primeiro?

- Vamos nos divertir com o bispo.

Eduardo deu uma batida na coxa, entusiasmado. Como aquilo era diferente de quando eles tinham sido levados à presença dele como humildes habitantes da floresta! Agora, era a sua vez.

- Vamos dizer a Reynolds - disse Gaveston. - Vamos escondê-lo no quarto, e ele poderá ouvir o grande homem receber a sua demissão.

- Você sempre pensa nas coisas mais divertidas, Perrot.

- É meu dever distrair o meu senhor. Às vezes penso que o meu papel é o de bobo da corte.

- Nunca houve um bobo da corte mais bonito, mais inteligente e encantador... nem mais rico.

- Isso é verdade, concordo. Agora, a diversão.

O bispo recebeu a demissão com dignidade. Ficou claro, no entanto, que em breve ele se juntaria a Lancaster e Lincoln, Warwick e outros descontentes que já estavam erguendo as sobrancelhas diante da preocupação do rei com Gaveston, muito embora Gaveston tivesse se casado fazia pouco tempo. Ele raramente estava com a mulher, e aquele casamento fora, evidentemente, um meio de passar uma fortuna para suas mãos.

- vou ser magnânimo, majestade - disse o bispo ao se despedir -, e pedir a Deus que o ajude.

- Mas, meu caro bispo - disse Gaveston -, é o senhor que vai precisar da ajuda dele, e estou certo de que, vendo a vida piedosa que o senhor tem levado, Ele não irá negá-la agora.

O bispo ignorou Gaveston. Pobre Perrot, aquilo o deixava mais enraivecido do que qualquer outra coisa. Não suportava ser tratado como se não tivesse importância.

Walter Reynolds entrou esfregando as mãos.

- Meus senhores, meus senhores, foi tão bom quanto uma de nossas peças. Vocês o puseram pela porta afora, isso sim. Aposto que o velho prelado está tremendo de raiva.

- Acho que ele esperava por isso, Walter - disse Perrot. - Ele não podia esperar continuar no cargo depois de tudo que fez ao nosso bondoso rei.

- Bem, Walter - disse Eduardo -, o que diria se eu o colocasse no lugar do velho bandido e fizesse de você o meu tesoureiro?

A resposta de Walter foi ficar de joelhos e beijar a mão de Eduardo.

- Levante-se, Walter - disse Eduardo. - Você merece essa honraria. Sirva-me bem, e haverá mais. Eu me lembro dos amigos.

- E não deve se esquecer dos inimigos, caro príncipe - disse Gaveston.

- E não vou esquecer. Não foi divertido ver o velhote ser humilhado?

- Agora vamos deixar de ser perseguidos, e precisamos pensar em outros que o ofenderam.

- E naqueles que têm sido meus amigos. Pretendo fazer com que nunca se arrependam disso.

- Este é um grande dia para os que anseiam por servi-lo bem, meu senhor. vou divulgar a notícia de que bons e leais amigos tiveram motivo para sentir-se felizes hoje. Até o nosso pequeno tambor, Francekin, vai ganhar um par de tímpanos.

- Isso me alegra - disse Gaveston. - Francekin é um bom tocador de tímpanos e, além disso, bonitinho.

Eles sentiam-se felizes, juntos, fazendo planos para o futuro.

O torneio fora planejado para acontecer na velha cidade de Wallingford, situada no vale do Tamisa, entre Reading e Oxford. Gaveston fora o organizador, e convidara todos os cavaleiros famosos pela fidalguia.

Gaveston ainda estava sentindo um pouco as dores do tratamento que recebera nas mãos de alguns dos principais barões do país - homens como Lancaster, Lincoln, Warwick, Surrey, Arundel e Hereford. Eles também tinham seus seguidores, e todos mostravam claramente o quanto deploravam sua amizade com o rei. Além do mais, estavam sempre salientando a humildade de seu berço - um ponto muito dolorido para Gaveston, que se considerava superior a eles em todos os demais pontos. Jamais iriam deixar que ele se esquecesse que era filho de um humilde cavaleiro gascão, enquanto eles pertenciam às mais importantes famílias do país. Muitos deles eram de sangue real ou estavam ligados à realeza e acreditavam que o rei devia escolher seus amigos e conselheiros de suas fileiras, em vez de cercar-se de esbirros de origem inferior.

Gaveston planejou dar uma lição neles. Iria mostrar-lhes que podia sobrepujar todos eles naquela exibição de fidalguia, considerada a própria essência de uma boa estirpe. Ele não só era gracioso montado num cavalo, mas poucos sabiam manobrar um cavalo melhor do que ele. Eduardo dizia que quando via Perrot a cavalo acreditava que se tratava de uma criatura mítica, metade cavalo e metade homem, de tão bem que ele e o cavalo andavam juntos.

Os dias que antecederam o torneio foram cheios de expectativas. Eduardo e Gaveston riam juntos da peça que iriam pregar nos arrogantes barões. Estavam levando para o país muitos jovens da França que ainda não tinham feito nome mas cuja perícia e vitalidade poderiam, Gaveston tinha certeza, superar e dominar os orgulhosos barões em todos os momentos. Perrot iria liderá-los, e o rei estaria sentado sob o dossel para assistir aos jogos e entregar os trofeus.

Iria ser uma ocasião muitíssimo emocionante.

No dia marcado, veio gente de quilómetros de distância para ver as disputas. As estradas ficaram cheias de viajantes com o costumeiro acompanhamento de pedintes e punguistas vindo atrás. Estandartes tremulavam dos pavilhões em que os cavaleiros vestiam as armaduras e esperavam a chamada para a luta. Eram bonitos, aqueles pavilhões, muitos feitos de cetim duplo, com os dosséis bordados com o mote de seus proprietários. Os Reais Construtores de Pavilhões e os Sargentos das Tendas ficaram ocupados durante todo o dia anterior ao torneio, armando-os e vigiando para que não fossem danificados. Mercadores de Londres e das grandes cidades disputavam uns com os outros o direito de obter contratos para construir e manter os pavilhões. E estes formavam uma visão cheia de cores.

Quando o rei apareceu, houve um grande grito de saudação partindo do povo, porque não havia nada de que eles gostassem mais do que de exibições daquele tipo, e já circulara o rumor de que o rei estava tendo uma certa divergência com determinados membros de sua corte que não gostavam de seu amigo Gaveston. O povo sabia, é claro, que o falecido rei banira o gascão e que o novo rei o chamara de volta e dera a ele, além de uma rica esposa de sangue real, grandes honrarias.

Vazara a sensação de que o torneio era, de certa forma, uma disputa entre o rei, que tinha ideias próprias sobre quais deviam ser os deveres de um rei, e os barões que queriam impor-lhe sua vontade.

Até aquele momento, o resultado daquela briga parecia ter pouca importância para o povo. O que ele queria ver era um torneio emocionante, e quando os combatentes aparecessem ele iria escolher os favoritos.

O rei assumira seu lugar sob o dossel real, e entre sua comitiva estava Margaret de Clare, sua sobrinha, recém-casada com Gaveston. Assim que os cavaleiros apareceram em suas esplêndidas armaduras, os olhos dela procuraram o marido entre eles e, quando o reconheceram, brilharam com um orgulho que tinha a mesma intensidade do evidente amor do rei pelo amigo.

Gaveston estava irritado por ter sido designado como um dos desafiantes, por acreditar que deveria ter sido saudado como um campeão. Pois bem, ele estava ali para mostrar àqueles arrogantes cavaleiros o que pensava deles. Ele e seu grupo de desafiantes estavam decididos a impor-lhes uma derrota da qual jamais se esqueceriam.

Seus amigos compreenderam o que se esperava deles. Eram jovens, vigorosos, e morriam de vontade de lutar. Embora os principais campeões estivessem ali, alguns já não eram tão jovens; seus membros bem poderiam estar enrijecendo um pouco, e só velocidade e agilidade eram necessárias para a luta... e não arrogância e traços de sangue real.

Foi um espetáculo brilhante. Eduardo sabia que Perrot iria vencer. Havia nele um ar de confiança, e fazia dias que ele andava reclamando amargamente do tratamento que recebia de muitos herdeiros de antigas casas.

Eles iriam receber uma lição, e Eduardo estava ansioso por vê-la ministrada.

Eduardo deixara claro que o torneio fora imaginado pelo conde da Cornualha (ele e Gaveston tinham decidido que dali por diante era esse o título pelo qual ele deveria ser mencionado) para distraí-los e que era uma Justa à Plaisance, isso significava que era puramente por esporte e que toda lança levaria o seu coronel-uma cabeça de ferro de formato rústico e com várias pontas cegas, para evitar que os combatentes fossem feridos. Era diferente de uma Justa à Outrance, isso significava que os disputantes lutavam até que um fosse obrigado a render-se e, sem dúvida, seriam feridos - muitas vezes com gravidade - ou mesmo mortos, porque as justas daquele tipo eram realizadas com uma lança pontuda.

Gaveston destacou-se com grande brilho. Em pouco tempo, estava enfrentando um de seus maiores inimigos, o líder dos campeões, John Warenne, conde de Surrey e Sussex.

com grande bravata e com um certo prazer malicioso, ele entrou na luta. Ele desafiara Warenne porque sabia que ele era um daqueles que deplorava a amizade do rei para com Gaveston e não hesitara em tornar públicos seus sentimentos.

Warenne era um bem-apessoado jovem de cerca de vinte anos. O pai morrera quando ele tinha seis meses de idade, e não se passara muito tempo e ele herdara os títulos do pai devido à morte do avô. No ano anterior, casara-se com a sobrinha do rei, Joana, filha da irmã mais velha de Eduardo, Eleanor, e do conde de Bar, de modo que se considerava membro da família real pelo casamento. Era um rapaz orgulhoso, contente por estar ligado ao rei, e em mais de uma ocasião fizera o possível para humilhar Gaveston.

Ele era famoso pela perícia na justa e tornara-se um reconhecido campeão daquela arte, e não poderia haver dúvida de que estava achando um prazer a oportunidade que lhe era oferecida de humilhar o querido amigo do rei. Gaveston, é claro, estava decidido a fazer com que acontecesse o contrário.

Muita gente percebeu, durante aqueles tensos momentos, que aquilo era algo mais do que uma Justa à Plaisance. A sensação de que havia muita coisa em jogo infiltrara-se na atmosfera, e a tensão aumentava.

Quando os dois homens entraram em campo e avançaram um contra o outro com as lanças cegas, o rei inclinou-se para a frente em seu assento.

- Vamos, Perrot - murmurou consigo mesmo. - Faça com que Warenne se humilhe na poeira.

Eles se inclinaram, cada qual altamente capacitado. Todos sabiam que Warenne era um campeão, de modo que foi Gaveston que mais os surpreendeu. Toda a habilidade de um campeão era dele. Isso ficou claro. O trovão das patas dos cavalos enquanto eles galopavam em direção um do outro; o clangor de aço quando se encontraram, e então, de repente, ouviu-se um grito. Um deles estava no chão.

Õ trovejar do coração de Eduardo igualava-se ao das patas dos cavalos. Uma névoa dançou diante de seus olhos, de modo que ele não teve certeza de quem tinha e quem não tinha caído.

- Ó, Deus, sim, é o... é o... - murmurou ele. - Warenne foi ao chão.

Que grande momento de humilhação! Que grande momento de glória!

Warenne jamais esqueceria nem perdoaria aquele momento.

Derrotado, ele, um campeão, derrotado por um presunçoso cavaleiro gascão que devia seu título ao rei, por questionáveis serviços prestados.

Nem mesmo Eduardo pôde evitar sentir um pouco de pena de Warenne naquele momento.

Warenne voltara cabisbaixo para o seu pavilhão, os urros da multidão nos ouvidos, o ódio de Gaveston no coração.

E depois foi a vez de Arundel.

Os amigos de Gaveston o avisavam:

- Você não pode esperar que a sorte continue - diziam eles. Deixe Arundel para um de nós.

Mas Gaveston estava embriagado pelo sucesso. Ele era o máximo. Tinha certeza. Organizara aquele torneio para que pudesse mostrar àquela gente que era superior a eles de todas as maneiras, e iria provar isso. Aquilo era o seu triunfo.

Ele sabia que a sorte estava-lhe sorrindo naquele dia. Estava ciente do olhar ardente do rei. Sentia como se tivesse nascido para viver aquele dia. Dali para a frente, os que se haviam colocado contra ele deveriam reconhecer o seu superior. O torneio era um símbolo, e eles sabiam disso.

E por isso, para Arundel - Edmund Fitzalan -, que recentemente se casara com a irmã de Warenne, Alice. Aqueles nobres senhores feudais formavam uma comunidade fechada. Tratava-se de mais um dos que eram contra a amizade com o rei.

A determinação cavalgava ao lado de Gaveston. Toda a habilidade que ele tanto se esforçara para adquirir teria de lhe ser de grande valia.

O clamor da multidão era ensurdecedor. Ele olhou para o dossel.

Gaveston sabia que seu querido amigo estava observando, rezando, tendo esperança...

Arundel foi derrubado. Um silêncio, depois o clamor.

Gaveston - não, o conde da Cornualha - mostrara ser um campeão dos campeões.

Dois dos maiores participantes de justas de todos os tempos, e ambos derrotados! Era realmente um triunfo.

- Você conseguiu - disse Walter Reynolds. - Descanse sobre os seus louros, Perrot. Derrubou esses dois.

Mas Gaveston abanou a cabeça.

- Não, Hereford vai também. Não vou descansar enquanto não tiver derrotado os três.

- Meu caro conde, o senhor está tentando o destino.

- Tenho feito isso a vida toda, Walter. E hoje o destino está comigo.

Não houve como dissuadi-lo, e em breve ele estava partindo para enfrentar Hereford, o orgulhoso Humphrey de Bohun, condestável da Inglaterra e outro dos que se considerava, em parte, de sangue real, por ter casado com uma irmã do rei. Era considerado um grande campeão na justa, e sua esposa, Elizabeth, estava sentada sob o dossel com o irmão, o rei.

Elizabeth estaria rezando pelo marido; mas os pensamentos do rei, é claro, estariam todos concentrados no seu adorado Gaveston.

Gaveston sentia-se como um herói lendário, naquele dia. Sabia que não podia ser derrotado. Afortuna lhe sorria. Ele, o filho de um humilde cavaleiro gascão, estava se tornando o homem mais importante do reino.

Mesmo quando Hereford galopava em sua direção, ele sabia.

E, incrivelmente, aconteceu. O poderoso conde, o justador campeão, jazia na terra, e o novo campeão, Piers Gaveston, conde da Cornualha, cavalgava em torno do campo para deter-se diante do rei.

Eduardo não conseguia esconder a alegria e o orgulho. Havia lágrimas em seus olhos.

- Meu campeão dos campeões! - murmurou ele.

E assim o dia terminou numa retumbante vitória para Gaveston e numa humilhante derrota para seus inimigos. A multidão berravao nome de Gaveston, disputando uns com os outros o direito de usar suas cores.

Gaveston perguntou ao rei se Sua Majestade estava satisfeito com o pequeno entretenimento que ele planejara para sua diversão.

- Meu caro Perrot - replicou o rei -, estou mais do que encantado. Mas vejo alguns olhares hostis à nossa volta. Está vendo?

Os dois riram juntos - um riso íntimo, dando a entender a existência de segredos compartilhados.

- Meu caro senhor - disse a jovem mulher de Gaveston -, o senhor foi maravilhoso. Não pode ter havido um cavaleiro tão nobre assim, antes.

- É mesmo? - disse Gaveston. Olhou para ela rapidamente e voltou-se para o rei.

- Magnífico Perrot - bradou Eduardo -, vou acompanhá-lo até o seu pavilhão. Quero expressar-lhe o meu reconhecimento especial.

Margaret estava prestes a acompanhá-los, quando o marido voltouse para ela. Havia em seus olhos algo que a mandava ficar onde estava. Ela ficou, desolada, acompanhando o rei e o marido com os olhos, enquanto os dois seguiam para o mais brilhantemente luxuoso de todos os pavilhões.

- Minha senhora - sussurrou Walter Reynolds, que estava perto e observara o que acontecera -, não pode ter esperanças de colocar-se entre amigos como esses.

Margaret parecia estar pronta para debulhar-se em lágrimas.

- A senhora ainda é uma criança - murmurou Walter Reynolds. O conde de Warwick perguntou a Margaret se poderia acompanhála até o palácio.

- Será um prazer, cara senhora, já que seu marido está ocupado com o rei.

Gaveston correu os olhos à sua volta e viu Warwick com sua mulher. A voz dele, sempre ressonante e clara, chegou até onde eles estavam.

- Olhe, Eduardo. O cão raivoso está tomando conta de minha mulher.

A risada dos dois foi levada pelo ar até o grupo.

O conde de Warwick ficara roxo. Sabia que algumas pessoas, instigadas por Gaveston, chamavam-no de Cão Raivoso pelas costas, e era verdade que ele tinha o infeliz hábito de cuspir quando falava, o que Gaveston chamava de espumar pela boca.

- Ele pode me chamar de Cão Raivoso - murmurou Warwick.

- Um dia, o Cão Raivoso irá agarrá-lo e destruí-lo.

Como eles comemoraram! Como riram! Walter Reynolds disse que eles precisavam de uma peça especial para celebrar a ocasião. A nobreza arrogante fora amargamente humilhada.

- Dizem - comentou Gaveston - que Hereford, Arundel e Surrey jamais se conformarão com isso.

- Espero que não tentem se vingar - comentou Eduardo, preocupado.

- Eu os desafiaria outra vez amanhã-jactou-se Gaveston.

- Ah, mas eu não quis dizer na justa. Acho que eles vão se reunir para falar contra nós.

- Os homens sempre falarão mal de quem eles sentem inveja.

- Por que iriam sentir inveja? Eles são homens ricos e têm tudo o que querem.

- Eles não têm o seu amor, meus senhor, como eu.

- Deviam saber que isso é só para uma pessoa.

- Devemos ficar vigilantes, meus senhores - disse Reynolds. Eles estão em conferência com o seu primo Lancaster e Warwick.

- Garanto que o cão raivoso está espumando pela boca-bradou Gaveston.

- E que aquele tal do Lincoln está dando batidas na barriga e ingerindo um pouco mais de comida e bebida para consolá-lo.

- E que Lancaster toca a sua rabeca para fazê-los dançar de acordo com a sua música.

- Enquanto os nossos ex-campeões lambem suas feridas.

Houve muitos risos nos aposentos reais, e quando os artistas entraram, eles fizeram com que o pequeno Francekin tocasse seus novos tímpanos para eles. Francekin era um menino muito bonito.

E então, tiveram o prazer de planejar o Natal. Que maravilha seria passá-lo juntos! Eduardo tinha uma roupa justa especial para o amigo. Tinha engastadas as jóias mais valiosas que ele conseguira encontrar. Perrot ficaria muito satisfeito com aquilo. Ele mal podia esperar para dar-lhe o presente.

Ficava deitado, sonhando com a alegria que estava reservada para o querido amigo.

Mas os pensamentos de Gaveston estavam em outro prémio valioso.

- Você sabe, meu caríssimo amigo - disse ele -, que em breve terá de ir à França.

- Por favor, Perrot, não me lembre disso - falou Eduardo.

- Não vai ficar por lá muito tempo, só o suficiente para prestar seus respeitos ao rei da França e casar-se com a filha dele. Depois, voltará para o seu Perrot.

Mas enquanto estiver ausente, deverá haver um regente. Vai ter de nomeá-lo antes de partir.

- Você sabe quem vai ser esse regente, Perrot. Meu primo Lancaster.

- O Velho Rabequista! Ah, não, isso não pode ser.

- Será só por pouco tempo. Sei que ele é um bobo, mas haverá gente suficiente em volta dele para controlá-lo.

- Meu caro, você sabe que derrotei três supostos campeões em combate. Mostrei que era superior a eles, não mostrei?

- Mostrou, realmente, Perrot. Gaveston agarrou o braço do rei.

- Então, dê-me essa oportunidade. Mostre a sua confiança em mim. Deixe-me manter o poder para você enquanto estiver longe destas plagas. Só isso poderá me dar algum consolo.

- Perrot! Eles jamais concordariam...

- Por que, majestade? Quem teria coragem de discordar do rei?

- Vão dizer que a regência deve caber, naturalmente, a Lancaster.

- Que digam o que quiserem. Cabe a você entregar a regência a quem quiser. E eu me arrisco a acreditar que você tem mais confiança em mim do que no Rabequista ou no Barriga Explosiva ou mesmo no Cão Raivoso.

- Por Deus, Perrot, vou fazer isso.

- Oh, meu senhor, meu doce senhor!

- Ficou contente, Perrot?

- Contente quando meu senhor planeja me deixar... mesmo apesar de a separação ser curta? Tem de ser curta. Como posso viver sem você? Mas vou assumir a regência e vou dizer "isso é um símbolo da confiança que ele tem por mim", e acredite-me, queridíssimo senhor, não será o poder que passará às minhas mãos que me deixará encantado, mas o reconhecimento da confiança que meu querido senhor tem em mim.

- Oh, Perrot, Perrot, em pouco tempo estarei de volta para você. Gaveston fez uma careta.

- Casado. Imagine só, majestade. Vai voltar com uma esposa.

- O que você tiver, eu terei. Nada mais.

- Esperemos - disse Gaveston com alegria - que nossas esposas sejam boas amigas e que a amizade entre as duas as recompense pela negligência dos maridos.

Gaveston estava se sentindo inebriado de tanto poder. Na verdade, ele nem acreditava. Claro que Eduardo teria parado na regência Mas estava claro que sua insensatez não tinha fim.

Isto, pensou Gaveston, é apenas o começo.

Os lordes tinham-se reunido. Entre eles estavam Warwick e Lancaster e, ainda lambendo as feridas, Hereford, Sussex e Arundel. Estavam incrédulos.

- Não pode ser verdade - bradou Arundel. - A regência. Esse arrogante. Meu Deus, Thomas, devia ser você.

- Não posso pensar que loucura pode ter tomado conta do meu primo - disse Lancaster. - Eu presumia, naturalmente, que seria eu.

- Gaveston ser colocado acima de todos nós. Esse joão-ninguém. É uma loucura.

Warwick pediu que se acalmassem.

- Ele pouco poderá fazer de mau. Vamos controlar isso, e o rei não vai demorar a voltar.

- E se ele tentar governar o país... e a nós?-perguntou Hereford.

- Saberemos como lidar com ele-respondeu Warwick.-Não, o rei voltará casado. Sua noiva é famosa pela beleza. Filipe vai casá-los com grande pompa, e quando o rei tiver uma bela esposa, se afastará aos poucos de Gaveston.

- Acha que ele algum dia vai se afastar de Gaveston? - perguntou Arundel.

Os olhos escuros de Warwick brilharam de repente.

- Se não se afastar, será nosso dever providenciar para que Gaveston seja afastado.

Afastado. Uma boa expressão. Cobria muitos significados. Era o que todos estavam pensando enquanto olhavam para Warwick.

Pequeninos pontos de espuma eram visíveis em seu queixo. O Cão Raivoso, como Gaveston o chamara. Eles se lembraram das palavras de Warwick: "Um dia o Cão Raivoso irá agarrá-lo e destruí-lo."

Talvez não chegasse a esse ponto. Quem poderia dizer? Warwick estava com um sorriso nos lábios.

- Dêem ao rei uma esposa bonita. Se alguém pode mudá-lo, pode afastá-lo dessa paixão por Gaveston, esse alguém é Isabella.

Houve uma sensação de alívio na sala. Warwick tinha razão. Eduardo ainda era jovem. Era fraco; facilmente influenciável, e Gaveston, todos tinham de admitir, inteligente.

O casamento era a solução. A bonita Isabella salvaria o rei.

- Temos de convencer o rei de que deve partir já-disse Arundel.

- Para que, quando ele voltar-continuou Lancaster -, possamos tocar adiante os planos para a coroação.

Eles balançaram a cabeça, concordando.

Estavam convencidos - a maioria-de que Isabella poderia fazer de Eduardo um bom marido e um bom pai e, então, enfraquecer e, assim esperavam, destruir a influência maléfica de Piers Gaveston.

 

A Descoberta da Rainha

FORAM DIAS emocionantes para a princesa Isabella, e sentia-se satisfeita por ser o centro das atenções. Estavam todos muito contentes com o casamento proposto; e ela também, porque ficara sabendo que o futuro marido era um dos homens mais bonitos do mundo. Nunca o vira, mas os que o tinham visto garantiam-lhe que não havia exagero quanto à sua bela aparência.

- Ele é alto - diziam -, com cabelos claros como linho. É igual ao pai, e este, quando jovem, era um homem muito bonito.

- Você será uma rainha - prosseguiam eles. - Rainha da Inglaterra... imagine só.

Ela imaginara, e a ideia a agradava. Alisava as luxuriantes ondas dos cabelos louros e garantia a si mesma que seria uma boa companheira para aquele homem bonito, porque também era reconhecida como uma beldade. Tinha, até, visto os olhos do pai se enternecerem ao vê-la, e todo mundo sabia que ele era um homem muito cruel. Ele era o mais poderoso rei da Europa, e a mãe de Isabella fora rainha antes de se casar, de modo que ninguém poderia ser mais bem-nascido do que a princesa Isabella.

Portanto, era de esperar que, devido à sua alta estirpe e à beleza notável, ela formaria um casal de classe.

Seus irmãos - Luís, que vivia discutindo, Filipe, que era alto e indiferente, e Carlos, que era tão bem-apessoado que as pessoas já o estavam chamando de Lê Bei, título que no auge da vida de seu pai fora dado a ele - estavam contentes com o casamento. O mesmo acontecia com seus tios Carlos de Valois e Luís d Evreux. Na verdade, os tios iriam até a Inglaterra quando ela e o marido partissem para o país dele.

Ela estava contente com isso. Iria tornar a despedida menos dolorosa, embora, é claro, sempre soubesse que, como princesa, um dia teria de sair de casa. Era o destino de todas as princesas. Aquilo não a preocupara muito, e embora na época mal tivesse completado dezesseis anos, estava preparada para o que a vida tivesse a oferecer. A mãe voluntariosa, que nunca se esquecera de que era tanto rainha de Navarra quanto rainha da França, e o impiedoso pai tinham-lhe transmitido algo de suas naturezas, e ela estava perfeitamente pronta para sustentar sua posição em qualquer sociedade em que se encontrasse.

Bastava ela ver o reflexo de sua imagem para ficar segura e, se não poderia ter visto por si mesma em seu espelho, os olhos dos homens da corte do pai diziam-lhe, sem dúvida alguma, que ela possuía uma atração fora do comum.

Cinco anos antes, ela ficara solenemente noiva de Eduardo, príncipe de Gales. Isso acontecera em Paris, e ela se lembrava muito bem. O conde de Savóia e o conde de Lincoln tinham representado o príncipe de Gales, e seu pai dera sua bênção e a mão dela ao herdeiro da Inglaterra. Fora um momento muito impressionante, quando ela colocara a mão sobre a de Père Gill, o arcebispo de Narbonne, que agira como procurador de Eduardo. A partir daquele momento, ela ficara ciente de que assim que tivesse idade suficiente tornar-se-ia esposa de Eduardo. Desde então, tentara ficar sabendo de tudo o que se referisse a ele. Descobrira que ele, com frequência, desobedecia ao pai, e achara engraçado. Seu pai se referira ao rei da Inglaterra como "aquele manhoso velho leão" e dera a impressão de que, de forma alguma, gostava dele, apesar de respeitá-lo. "Temos sempre de ficar de olho no velho leão", dissera ele, e sempre ficava satisfeito quando os galeses e os escoceses criavam problemas para o seu rival. Mas estava ansioso por aquele casamento e, pelo que parecia, o velho rei da Inglaterra também estivera.

A mãe explicara-lhe a situação.

- Alianças como a que você vai fazer com o príncipe de Gales são uma garantia de paz. E quando for a rainha da Inglaterra, não se esqueça da França.

Ela jurara que jamais se esqueceria.

Era reconfortante, também, o fato de sua tia Marguerite ser, agora, a rainha viúva da Inglaterra. Ela iria à França para assistir ao casamento. A rainha Jeanne, mãe de Isabella, falava muito em Marguerite.

- Sua tia é uma boa mulher, Isabella. Ela foi feliz com o velho rei. Mas Marguerite é uma mulher tão submissa e dócil que seria capaz de acreditar que era feliz, desde que o marido não a maltratasse ou não se envolvesse de forma demasiado evidente com outras mulheres. O rei da Inglaterra era um marido fiel, e isso era considerado raro. Portanto, sua tia foi uma esposa muito feliz. Ela tem dito isso com frequência.

Isabella estava bem a par da história de suas tias. Lembrava-se da bela tia Blanche, que se casara com um membro da família real da Alemanha e morrera pouco depois. Houve época em que achavam que Blanche iria se casar com o rei da Inglaterra - pelo menos, o rei da Inglaterra achara que sim, mas Filipe lê Bei tivera outras ideias em relação à irmã e enganara Eduardo, fazendo com que ele se casasse com Marguerite no lugar de Blanche. Isabella pensava no quanto seu pai era astuto. Admirava-o por causa disso, embora achasse que algumas pessoas considerassem aquilo desonesto.

Isabella sempre fora uma jovem que mantinha olhos e ouvidos abertos. Gostava de sentar-se à mesa do pai - e ele gostava de que ela ficasse ali, por orgulhar-se de sua beleza - e ficava alerta, ouvindo a conversa. Gostava de ser a filha do homem mais temido da Europa.

Filipe lê Bel As pessoas ainda o chamavam assim, apesar de agora o apelido já não se encaixar bem. Ela ouvira dizer que quando subira ao trono aos dezessete anos de idade, ele era tão bonito, que tanto homens como mulheres tinham dificuldade em tirar os olhos dele. Mas era frio por natureza, e raramente demonstrava algum calor. Às vezes ela achava que ele a admirava porque ela herdara muitas de suas características sendo a beleza a mais óbvia. Ele já não possuía a dele - ficara demasiado gordo e rubicundo -, mas se perdera na aparência, ganhara em poder. Havia quem dissesse que ele era o homem mais cruel da Europa. Era frio, severo e maquinador, e quanto mais poder conseguia, mas ele queria; e tinha poucos escrúpulos quando se tratava de obtê-lo. Que era vingativo e totalmente sem piedade, era bem sabido. Aquela era uma das razões pela qual ele era tão temido. Procurava governar não só a França, mas o mundo todo, e mesmo isso não lhe parecia um sonho impossível.

Isabella sabia o quanto ele estivera satisfeito com o fato de Eduardo da Inglaterra ser mantido ocupado com os rebeldes das fronteiras. De todos os homens, o rei da França temia o rei da Inglaterra, e a obsessão de Eduardo de colocar o País de Gales e a Escócia sob a coroa inglesa fora tão grande quanto o sonho de Filipe de um domínio completo. Eduardo morrera sem conseguir aquilo, e não havia dúvida de que o pai dela considerara a morte de Eduardo como um bom augúrio para a França.

Ela o ouvira dizer:

- Esse jovem filhote, meu genro, não vai me dar trabalho. Se der, saberei como lidar com ele. - Então, vendo a expressão do olhar da filha, ele ficara alerta. Acrescentara: - Minha filha vai me ajudar, eu sei, e ela será uma força naquele conturbado reino.

Aquilo era uma lisonja e um lembrete. Nunca se esqueça de que você é francesa, minha filha. Lembre-se sempre de a quem deve fidelidade.

Quando uma princesa se casava com um rei e tornava-se rainha, o país dele era o seu e era a ele, assim ela pensava, que ela devia fidelidade. Mas Isabella se perguntava se algum dia deveria fidelidade a alguém que não a ela própria.

Se assim fosse, estaria seguindo as lições do pai. Ela aprendera não tanto através do que ele lhe dissera, mas ao observar-lhe as ações.

Ela vivera anos emocionantes da história de seu país. Sabia que o pai sempre tentara conter o poder de Roma e o quanto ele ficava enfurecido ao perceber que para muitos de seus súditos o papa estava acima dele e que eles acreditavam que deviam, primeiro, fidelidade à Igreja, e não ao Estado. Houvera uma acalorada discussão com o papa Bonifácio, que ousara dizer que se o rei da França não modificasse o modo de agir, seria castigado e tratado como uma criança. com essa advertência viera a ameaça de excomunhão, e isto era algo que todos temiam. Um homem mais fraco poderia ter procurado contornar a situação, mas Filipe procurou vingar-se. Exigiu que seus súditos o apoiassem contra a Igreja, e eles temiam tanto a sua vingança implacável se não o apoiassem que a maioria ficou pronta a obedecê-lo. Os ricos templários foram uma das comunidades que se recusaram a fazê-lo.

Vingativo que era, Filipe jurou que não se esqueceria disso e, embora nunca tivesse escrúpulos de quebrar uma promessa se visse alguma vantagem nisso, ficara decidido a cumprir um juramento como aquele.

O pai dela era um homem forte. Só os tolos ficavam contra ele. Até mesmo a Igreja deveria ter refletido antes de agir com rigor. Isabella o admirava muito. Tinha orgulho de ser sua filha.

Filipe enviara Guilherme de Nogaret, seu ministro de confiança, a Roma, para conspirar com os inimigos do papa contra ele. Ele fizera isso com tamanho sucesso, que eles capturaram Bonifácio na cidade de Anagni e o mantiveram preso. Ele fora resgatado, mas o incidente lhe abalara a saúde e a razão, e ele morrera pouco depois. Fora eleito um novo papa, patrocinado pelo rei da França. O novo papa era Benedito.

Isabella se orgulhara do sucesso obtido pelo pai. As pessoas tinham razão quando diziam que ele era o homem mais poderoso do mundo. Até os papas deviam obedecer a ele. Mas o papa estava longe, e Benedito devia ter-se esquecido das promessas que fizera ao rei da França em troca de apoio na época de sua eleição, porque pouco tempo depois estava falando em excomungar todo aquele que tivesse causado mal ao seu predecessor Bonifácio e queria a questão de seu encarceramento e morte investigada.

Quando a sombra da excomunhão pairara sobre seu poderoso pai, Isabella tremera de medo e até ele ficara abatido, receoso de que a sentença fosse executada. Não era tanto pelo fato de ter medo de ficar naquele estado nada santificado, mas sim de que seus soldados iriam considerar-se derrotados antes de entrar em combate, e seus ministros iriam pensar que trabalhar com o rei era trabalhar contra Deus.

O rei não tinha acessos de raiva; sua raiva era fria e maquinadora, e a vingança contra os que o desagradavam era terrível.

Ela estava trabalhando no seu bordado, um dia, quando sua mãe se aproximara e sentara-se a seu lado.

- O rei está contente, hoje - dissera ela. - O papa morreu.

- É uma boa notícia para a França - bradara Isabella.

- Um tolo-comentara a rainha. - Achou que podia quebrar as promessas que fizera a seu pai.

- Então, mereceu morrer - dissera Isabella. - Ele não reinou muito como papa. Era um homem velho, a ponto de ter de morrer tão cedo?

A rainha sorrira lentamente.

- Digamos que era um homem ganancioso. Mandaram para ele uma cesta de figos frescos. Ele comeu demais.

- Ele podia morrer de tanto comer figos?

- Esse papa morreu - dissera a rainha, ainda sorrindo.

Que rumores circulavam sobre aquela cesta de figos! Dizia-se que os inimigos romanos do papa tinham mandado injetar veneno nas frutas antes de serem enviadas ao papa. Dizia-se, até, que Guilherme de Nogaret fora o responsável. Mas o principal suspeito era alguém cujo nome poucos ousavam pronunciar. O rei da França.

Claro que Filipe estivera pronto para aproveitar a vantagem e decidira que o papa seguinte seria um homem de sua confiança. Sua escolha caíra sobre Bertrand de Goth, homem de grandes ambições e que estaria pronto a fazer qualquer coisa para atingir seus fins. O homem indicado para ser o papa. Mas que oportunidade tinha o arcebispo de Bordeaux de atingir aquele poderoso pináculo? Nenhuma, sem a ajuda do homem mais poderoso da Europa. E se tivesse aquela ajuda?

- Por que não fazemos um trato? - perguntara o astuto rei da França.

Os termos foram leoninos, mas o arcebispo sabia muito bem que se tratava de sua única esperança de se tornar papa e, sendo quem era, aceitara. Pouco depois, tornara-se o papa Clemente V.

O residente papal fora deslocado de Roma para Avignon. Aquele papa era, sem dúvida alguma, homem do rei.

Isabella sabia que uma das mais urgentes necessidades de um governante era o dinheiro. Servia, com frequência, como tema de conversa em círculos familiares íntimos. Os súditos achavam que seus governantes possuíam cofres inesgotáveis, nos quais bastava enfiar a mão. A verdade era muito diferente. Precisava-se abastecer os cofres, e uma das principais preocupações resumia-se em como fazer isso. Filipe era igual aos demais, nesse caso. Não possuía segredo algum de alquimista para transformar metal não precioso em ouro. Por isso, tinha de procurar à sua volta por outros meios.

Passara a odiar os templários desde que se opuseram a ele, e o desejo de vingar-se vinha supurando em sua mente havia algum tempo. Ele teria se vingado antes, se não tivesse ficado tão envolvido em assuntos papais. Agora, via um meio de satisfazer duas ambições ao mesmo tempo. Poderia ganhar muito dinheiro, enquanto se vingava.

Cerca de dois anos antes, quando houvera arruaças em Paris, ele estivera em perigo e fora necessário procurar refúgio. Este fora oferecido pelos templários no Temple Palace, e durante a permanência por lá ele ficara ciente do enorme tesouro guardado em suas caixas-fortes.

Isabella ouvira falar muito dos Cavaleiros do Templo - a Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém. Eles formavam uma ordem militar-religiosa de cavaleiros, formada para proteger os peregrinos que iam à Terra Santa. Tinham prestado um bom serviço durante as Cruzadas e tinham sido mantidos e recompensados em muitos países, e isso se transformara na base de sua grande riqueza.

Ultimamente andavam circulando histórias sobre a ordem. Por ser rica e bem-sucedida, ela provocara muita inveja. Isabella ouvia de olhos arregalados os mexericos. Suas aias falavam dos templários em sussurros abafados, enquanto a ajudavam na toalete.

As histórias iam ficando cada vez mais chocantes.

- Eles têm cerimónias estranhas. Têm um Grão-Mestre que é todo-poderoso. Dizem que o que acontece na iniciação é maldoso demais para ser comentado.

- Mas eu quero saber - dissera Isabella. Olhares foram trocados, olhares de reprovação.

- Não se deve falar dessas coisas diante de uma princesa. Elas não são para os ouvidos de Vossa Alteza - dissera uma delas.

Nada irritava Isabella mais do que isso. Ela queria ouvir tudo, e quanto mais chocante, mais necessário era que lhe contassem. Quando ficava irritada, sabia-se que dava muitos tapas e beliscões dolorosos.

- Vocês vão me contar - dissera ela.

Houve um breve momento de hesitação, mas as aias tinham aprendido que era insensatez ofender sua ditatorial senhora. Uma delas sussurrara:

- Eles cospem no crucifixo e negam a Deus.

- O que mais? - perguntara Isabella.

- Eles têm de se comportar... de forma indecente no altar... uns com os outros.

Isabella franzira o cenho tentando imaginar que atos eram realizados, e como percebeu que algumas de suas aias tinham uma noção, não quisera mostrar ignorância e por isso repetira:

- O que mais?

- Fazem imagens obscenas e adoram bodes e gatos. E há atos indecentes com animais. Eles os beijam... em todos os tipos de lugares...

Aquilo era mais fácil de compreender, e Isabella as encarara com olhos arregalados de espanto.

- Eles têm filhos - sussurrara uma das mulheres -, quando, segundo a lei, não deviam tê-los. Depois, procuram destruí-los.

- Como?

- Eles os assam vivos sobre uma panela na qual pinga a gordura, que eles passam por cima de seus ídolos. É uma espécie de sacrifício... uma oferenda.

- Isso me deixa enojada - dissera Isabella.

- Eu sei que não devíamos ter contado à senhora.

- Quando mando vocês contarem, têm que contar, mas não acredito que cavaleiros se comportem dessa maneira.

As mulheres ficaram caladas, e Isabella dissera:

- Mas talvez se comportem assim. Meu pai os odeia. Ele vai fazer com que eles se arrependam desse mau procedimento.

E então as mulheres tremeram, porque sabiam que algum destino funesto cairia sobre os Cavaleiros do Templo.

E tinham razão.

Eles agora estavam enchendo as prisões; estavam confessando os pecados. Só havia um jeito de lidar com uma perversidade daquelas, dizia o rei. Das praças da lie de Ia Cite podia-se ver a fumaça subindo, e no ar havia o cheiro acre de carne queimando. A perseguição dos templários estava proporcionando um rico espólio, porque quando um cavaleiro era condenado a morrer por seus pecados, seus tesouros caíam, naturalmente, nas mãos do rei.

- Temos de impressionar os ingleses - disse ele a Isabella -, e como minha filha, você precisa ter um dote condizente com sua posição. Temos de bajular seu noivo quando ele vier se casar com você, porque ele é o rei da Inglaterra.

Ela gostava de olhar com triunfante satisfação os seus tesouros, com as aias à sua volta. Seu pai cumpria a palavra. Ela estaria esplendorosamente vestida, e isto devia agradecer aos Cavaleiros do Templo, pois sabia que devia seus ricos bens a eles.

- Foi Deus quem quis que eu descobrisse aquelas torpezas neste momento - comentou o rei com um sorriso irónico. - E ainda vem mais.

Esfregou as mãos uma na outra, de alegria, e a princesa sorriu para ele. Seus irmãos achavam o pai muito inteligente, e ela pensava o mesmo, mas tinha horror ao cheiro de carne queimada que parecia infiltrar-se no ar. Não queria pensar nisso. Afinal, era muita maldade eles queimarem os filhos - muito embora, para início de conversa, nunca devessem ter tido filhos - e esfregarem a gordura deles nos ídolos. Aquela imagem a perseguia, deixava-a enojada, de modo que se voltava para os seus tesouros e pensava como era muito melhor uma bela jovem ficar com eles do que deixá-los enterrados em arcas num porão sombrio.

Ela possuía duas coroas de ouro decoradas com magníficas jóias. Sabia que as jóias tinham sido tiradas do depósito dos templários, e seu pai as mandara incrustar nas coroas de ouro para ela.

- Lembre-se sempre, minha filha, de que você é minha filha. Vai ganhar um marido jovem que não é muito sério. Você deverá sempre lembrar-se de torná-lo amigo da França.

- vou me lembrar, majestade, vou me lembrar!

- Então, pode ficar com estas peças, minha filha. Veja como são bonitas. Jarras de ouro para bebidas. Quer apostar que vêm do Oriente? Aqueles malvados apanharam

lá muitos de seus tesouros. E veja, aqui estão taças de prata para combinar. Lembre-se de mim, querida filha, quando beber nelas e de que deve sua boa fortuna a seu pai. Temos aqui colheres de ouro, e veja estas tigelas, todas de prata maciça.

- São belas, majestade.

- São suas, filha. Parte de seu dote. Eu não ia querer que seu noivo pensasse que você vai para o lado dele como uma miserável. É bom que ele saiba que o rei da França tem condições de enviar a filha para o marido com seu dote. Ele deve saber que, seja uma filha ou um exército, não faltam recursos para cobrir o que precisa ser feito de forma dispendiosa.

Eram muitas as roupas que ela possuía. Havia dezoito vestidos todos de cores esplêndidas e a maioria combinando com sua beleza morena - verdes, azuis e vermelhos, todos dos melhores tecidos que o homem podia criar. Havia casacos soltos de cetim e veludo. Havia toucas e faixas para a cabeça e gorjeiras para o pescoço, além de muitas peles caras para mante-la aquecida no inverno, algumas transformadas em capas, algumas guarnecendo os vestidos longos, e outras para serem usadas como coberta para sua cama à noite. Havia tudo de que iria precisar, até tapeçarias para pendurar nas paredes, porque isso passara a ser moda na Inglaterra desde que os tapetes tinham sido levados para lá pela esposa do falecido rei, Eleanor de Castela.

Chegara a hora de partir para Boulogne, de onde ela deveria viajar com os pais e outros membros da família. Foi um cortejo brilhante, e ela era a principal atração, cavalgando ao lado do pai e da mãe, que estavam nitidamente orgulhosos da bela filha.

Os príncipes e os membros da nobreza eram liderados por seu irmão Luís, rei de Navarra, título que a mãe lhe concedera, e tal como o pai, ele insistia com ela na necessidade de lembrar-se de que era filha da França e de que na nova vida jamais deveria esquecer-se disso. Ela ouvia com atenção e assegurava aos dois, com fervor, que se lembraria.

Em Boulogne, Eduardo estava à sua espera. Era tão bonito quanto diziam. O coração dela saltou de alegria quando viu os cabelos cor de linho ligeiramente tocados pela brisa e os olhos mais azuis que ela jamais contemplara. Além do mais, era alto e mantinha a cabeça erguida, como o rei que era.

Isabella se apaixonara à primeira vista pelo rei da Inglaterra.

Ele foi encantador e cortês com ela, e seus pais olhavam o jovem casal com um prazer sincero. A querida tia Marguerite, que quando jovem tinha ido para a Inglaterra a fim de casar-se com o rei, pai do atual, estava evidentemente emocionada. Tia Marguerite era gentil e delicada, e sussurrou que esperava que Isabella fosse tão feliz na Inglaterra quanto ela. Se havia uma expressão ligeiramente apreensiva em seus olhos quando ela falava, Isabella não percebeu.

Ela não percebia outra coisa, a não ser Eduardo.

Ele tomou-lhe a mão e disse o quanto estava encantado com sua beleza. Claro que ele ouvira falar naquela beleza, mas ela excedia a todas as expectativas, e ele esperava ansioso pelo casamento.

Os preparativos tinham sido feitos com o máximo de cuidado, e a cerimónia na igreja de Notre-Dame foi impressionante. Abela aparência destacada do noivo, a delicada e estonteante beleza da noiva deixavam todos maravilhados, e para os que nada sabiam sobre o interesse do rei por Piers Gaveston, parecia o casamento perfeito.

Isabella era uma daquelas pessoas, e muitas vezes pensou, mais tarde, que se tivesse recebido alguma insinuação sobre o que teria de esperar, poderia ter lidado com a situação com uma prudência maior. Para início de conversa, nunca se teria deixado apaixonar.

Foram dias felizes - talvez os mais felizes de sua vida. Adorou a pompa e as cerimónias; adorou as honras prestadas à sua beleza e à sua posição. Na igreja de Notre-Dame, Isabella se tornara tanto rainha quanto esposa, e Eduardo parecia ter-se apaixonado profundamente por ela, tal como ela se apaixonara por ele.

Eduardo estava, na verdade, aborrecido com a separação de Gaveston. Sabia que tinha de aceitar aquilo, porque aquele casamento era necessário. Isabella era uma jovem bonita e estava apaixonada por ele, de modo que ele tinha sorte, porque poderia ter arranjado alguma mulher pela qual não pudesse afeiçoar-se de forma alguma. Aquela bela filha do rei da França precisava dar-lhe um filho, e depressa. Tanto ele como Perrot tinham chegado a um acordo quanto a isso. Ele estava contente, portanto, por Isabella não lhe ser repulsiva e por poder, com uma certa convicção, representar o papel de marido dedicado.

Foi o que fez, e com tal sucesso, que Isabella acreditou ser a mulher mais feliz da França. O casamento caía-lhe bem. Ela sempre soubera que cairia. Sempre gostara de ouvir falar nos casos amorosos de suas aias. Agora compreendia tanta coisa que jamais compreendera antes, e pouco teria a lamentar por deixar a França, porque iria para o país de Eduardo, que governaria com ele.

Percebeu logo que Eduardo era maleável e afável, e isso a encantou. Acreditava que ele era o tipo do homem que ela poderia governar. Era evidente que ele queria agradá-la. Era um bom sinal. Precisava mante-lo assim.

Logo começou a desconfiar que Eduardo era um pouco preguiçoso. Tanto melhor. Ela tinha energia suficiente para os dois. Discutia tudo com ela. Os dois iriam trabalhar juntos, mas teria de prevalecer a vontade dela.

Isabella estava muitíssimo contente com o casamento.

O rei da França caminhava de braço dado com o genro nos jardins do palácio.

- Sinto-me muito satisfeito - disse Filipe - ao ver a sua felicidade com a minha filha.

- Sua filha é a mulher mais bonita da França-replicou Eduardo.

- Vejo que estávamos destinados a chegar a um acordo. - Filipe teve seu rápido sorriso irónico.-É um bom augúrio para o futuro, meu filho, quando a França e a Inglaterra caminham juntas em harmonia.

- Serão muitos, na França e na Inglaterra, os que irão alegrar-se neste momento.

- Meu caro filho, vamos manter esta situação. Façamos um voto de amizade.

Os dois estavam prontos a fazer aquele juramento, porque nenhum deles seria inteiramente escrupuloso se surgisse a necessidade de quebrar uma ou duas promessas.

- Sem dúvida, você ouviu falar nas torpezas cometidas pelos templários - prosseguiu Filipe.

Eduardo replicou que ouvira. Era difícil estar na França e não saber que eles estavam sendo presos por todo o país e submetidos a torturas em masmorras de castelos, onde admitiam ser culpados dos crimes mais horrorosos.

- Não pode haver paz em países em que se permite que essa crueldade floresça.

- É verdade - concordou Eduardo.

- E os que procuraram refugio na Inglaterra? São muitos.

- Ah, muitos.

- Você deve persegui-los até eles saírem do país. Não deixe que eles profanem seu país.

- Ah, não, eles não vão fazer isso-replicou Eduardo; não estava pensando nos templários. Perguntava-se como Perrot estaria se saindo e se estaria tendo problemas com os barões que tinham ficado enciumados por causa da regência.

- Prenda-os. Leve-os a julgamento. Faça-os confessar suas abominações. É o único jeito.

- Ah, é o único jeito.

- Torture-os. Nada é bárbaro demais para eles. Você vai arrancar confissões deles. Depois, confisque os bens. Pode acreditar, eles conseguiram acumular grandes riquezas.

- Disso eu tenho certeza.

- Por que não usar essa riqueza a serviço do país?

- Isso mesmo: por quê?

- vou ficar interessado em saber o resultado disso.

- O senhor será mantido informado.

O rei da França pareceu satisfeito. Os dois entraram juntos no palácio.

- Fico contente por você ser da mesma opinião que eu e que estejamos de acordo quanto a este assunto - disse Filipe.

Que assunto?, perguntou-se Eduardo, de maneira irrefletida. Do que é que o velho estivera falando? Isabella juntou-se a eles.

- FJa está me repreendendo por manter o marido longe dela disse Filipe com um ar maroto que não combinava com a sua fisionomia arguta.

Isabella tomou do braço de Eduardo.

- Bem, agora eu o encontrei.

- Tivemos uma conversa interessante - disse o pai dela - e vemos muitas coisas pelo mesmo ângulo. Esta é uma era feliz para os nossos dois países.

Filipe conduziu-os até seus aposentos privados e, lá, tirou uma chave de sua corrente e abriu uma caixa de madeira que tinha uma forte fechadura de ferro. Dela, ergueu uma pesada corrente de ouro incrustada com rubis e diamantes de tamanho fora do comum e de grande beleza.

Colocou-a em torno do pescoço de Eduardo.

- Um presente para você, meu filho. Um sinal externo da nossa promessa de trabalharmos juntos.

- É deslumbrante! - bradou Eduardo.

O rei tirou um anel da caixa, incrustado com rubis e diamantes, que combinava com a corrente. Filipe colocou o anel no dedo de Eduardo.

- Um símbolo de nossa amizade - disse Filipe. - Você, agora, é meu filho.

Eduardo ficou atordoado com a magnificência dos presentes e se perguntou o que Perrot acharia deles. Perrot adorava rubis, e também diamantes!

Filipe estava com disposição de ser generoso, o que para ele era fora do comum e dava um significado especial aos presentes. Havia outras peças iguais àquelas a chegar, porque ele adquirira um tal butim dos templários, que bem podia dar-se ao luxo de abrir mão de uma parte. Apanhou um cinto e dois belos broches, todos incrustados de reluzentes jóias e alguns fardos de tecidos de linho e veludo.

Era um sinal de amizade, e os que sabiam das coisas concordavam que a generosidade de Filipe queria dizer que ele pretendia governar a Inglaterra através do genro.

- Meu pai gosta de você - disse Isabella.

Os dois estavam deitados na cama, o braço dele em torno dela, os belos cabelos dela soltos sobre os ombros. De vez em quando, ela fazia uma pausa na conversa dos

dois para beijá-lo levemente no rosto, nos lábios e na testa. Ele sorria, benevolente, diante de suas carícias. Era uma jovem bonita e ardente e não tinha sido tão difícil quanto ele imaginara cumprir com o seu dever para com ela.

- O que vou achar da Inglaterra? - perguntou ela.

- Vai adorar.

- Porque ela é bonita, ou porque você estará lá?

- Pelos dois motivos - disse Eduardo.

- Será que o povo vai gostar de mim?

- Como poderá não gostar?

- Os franceses são difíceis. Irritam-se com rapidez. De vez em quando há arruaças e o povo fala da família real.

- Isso acontece de vez em quando. Mas quando eles a virem, vão adorá-la.

- Eles gostam de você?

- Até agora, sim.

- Acha que vão mudar?

- O povo é volúvel. Vai dizer a você que meu pai foi o maior dos reis, agora que está morto, mas nem sempre se pensou assim quando ele era vivo.

- Mas o povo gosta de você, apesar do fato de você estar vivo.

- Eu sou um novo rei, e eles ainda não aprenderam a me odiar. A esta altura, culpam outras pessoas pelas minhas deficiências. Perrot... por exemplo. Eles põem a culpa nele.

- Perrot?

- Ah... é apenas um dos cavaleiros. Na verdade, o conde da Cornualha.

- Por que põem a culpa nele?

- Eles têm que acusar alguém. Mas deixe-me lhe dizer o que fiz para você. Iremos para o palácio de Westminster. Você verá o que mandei fazer, e é tudo para agradá-la. Mandei refazer o gramado dos jardins, construir treliças e plantar flores, só para você. E mandei construir um novo píer, que será chamado de Queen s Bridge.

- Tudo para mim.

- Para você, sim. Estou pronto a fazer muito por você.

Ela o beijou repetidas vezes - a princípio, leves beijos delicack Os braços dele se apertaram em torno dela.

Ah, sim, aquilo era, evidentemente, muito mais fácil do que ele acreditara possível. Ficou imaginando se Perrot achara a mesma coisa com relação à mulher dele.

A rainha viúva da Inglaterra entrou no quarto da sobrinha e, como indicasse que queria falar com ela a sós, as aias de Isabella desapareceram.

- Não é nada de mais - disse a rainha Marguerite. - Simplesmente achei que, como o que está acontecendo com você parece muito com o que aconteceu comigo, deveríamos ter uma conversa.

- Minha adorada tia, a senhora foi muito feliz na Inglaterra, não foi?

- Fui plenamente feliz. O pai de seu marido foi bom para mim. Tive medo quando deixei a França. Você não está com medo, Isabella?

Isabella abanou a cabeça, de forma negativa.

- Isso é bom, querida sobrinha. Você é jovem e bonita, e obstinada. Eu era jovem, mas aí termina a comparação.

- Ah, mas tia Marguerite, a senhora sempre foi muito bonita, e ainda é.

- Há algumas pessoas, em nossa família, que têm uma beleza que se destaca. Você é uma delas. Seu pai foi outra, e o mesmo aconteceu com minha irmã Blanche. Eduardo ouvira falar nos encantos dela e queria casar-se com ela. Então, seu pai mudou de ideia e eu fui enviada em lugar de Blanche. Não foi um bom começo. Mas Eduardo nunca demonstrou sua decepção. Ele disse, mais tarde, que ficara muito satisfeito por eu ter ido em lugar de Blanche. Foi um casamento muito feliz. Mas também Eduardo foi um bom marido... um bom pai. Adorava a família. Eu me pergunto se...

- Se o meu Eduardo vai ser o mesmo. Querida senhora, não se preocupe. Eu pretendo fazer com que seja.

- É, você vai tomar as providências para isso. Claro que os reis têm muito poder e que um número muito grande de pessoas procura agradá-los. com frequência, eles ficam tentados...

- Tentados?

- A arranjar... amantes. Isabella soltou uma gargalhada.

- Não vai haver nada disso. Ora, minha senhora, Eduardo é um homem dócil. E que não vai procurar encrencas. Não tenha medo, vou saber como lidar com ele.

- Claro que vai, querida.

- A senhora parece constrangida. Diga-me, há algum escândalo na vida de Eduardo do qual não fui informada? vou perguntar a ele. vou exigir uma confissão completa.

- Oh, não, não... Não deve fazer isso. Tudo vai ficar bem. Eu só estava preocupada demais... nada mais. Por favor, esqueça o que eu disse.

Querida tia Marguerite! Era muito simplória, mas tinha o coração mais bondoso do mundo. Estava apenas tentando prevenir a jovem sobrinha sobre a maneira de agir dos homens.

Isabella beijou-a com fervor.

- Há uma coisa que a senhora precisa saber. Estou apta a cuidar de mim mesma... e de Eduardo.

A rainha viúva sacudiu a cabeça com vigor. Claro que sairia tudo bem, assegurou a si mesma. Agora que ele tinha uma mulher jovem, aquela lamentável ligação com Piers Gaveston acabaria.

Estava na hora de partir para a Inglaterra. A jovem esposa despedira-se dos pais, que solenemente a colocaram sob os cuidados de seus dois tios, Carlos de Valois e Luís d Evreux.

- Se precisar de um conselho sobre qualquer assunto, minha filha - disse o pai -, procure seus tios. Eles lhe dirão como agir.

Ela prometeu que procuraria, e Filipe pareceu satisfeito.

A travessia do canal, apesar do frio de fevereiro, foi calma. Isabella ficou em pé no convés, ao lado do marido, e observou os rochedos brancos que se aproximavam. Avistou o castelo no alto do morro, aquela fortaleza quase inexpugnável que ela ouvira ser chamada de a chave para a Inglaterra.

Os olhos brilhando de felicidade, ela agarrou o braço de Eduardo e disse que tinha pela frente a fase mais feliz de sua vida.

Ele beijou-lhe a mão e murmurou que teria o prazer de fazê-la feliz assim. Ela não sabia o quanto havia de leviandade no que ele dizia e que a excitação que havia nos olhos dele não estava ali porque estava levando sua esposa para casa, mas porque em breve veria Gaveston.

Havia uma multidão à espera para saudá-los. Isabella viu os estandartes quando atracaram; ouviu os gritos do povo. Aquilo era, mesmo, uma recepção digna de um rei.

Eduardo segurou-lhe a mão enquanto os dois desembarcavam. Ela ouviu alguém dizer: "Ela é mesmo uma beldade." Depois, a multidão passou a gritar: "Viva Isabella, a bela! Deus abençoe a nossa rainha!"

Sentiu-se dominada pela alegria. Era uma rainha; tinha um marido bonito a quem podia amar; o seu novo povo a admirava e a recebia calorosamente na nova pátria. Aquilo ultrapassava tudo o que ela imaginara.

Aquilo era felicidade.

Houve um súbito silêncio na multidão. Um homem adiantara-se. Claro que era muito importante, porque estava acompanhado por homens vestidos de forma extravagante. Parecia um rei - era até mais imponente. Deve ser um imperador, pensou ela, ou algum governante de um nível ainda mais alto do que o próprio rei.

Sua roupa justa, de mangas também justas, brilhava de jóias, e a capa de veludo vermelho - sem dúvida que uma cor da realeza estava adornada de pele branca. Ele tinha cabelos pretos, olhos negros, era muito atraente, ágil e gracioso.

- Majestade - bradou ele, e então ele e o rei se abraçaram como se o encontro fosse a coisa mais encantadora do mundo para ambos.

Eduardo murmurava:

- Irmão... meu irmão... Parece ter sido tanto tempo!

- Claro que sim, Eduardo, mas agora você está de volta. Pensei que esta hora nunca chegaria. Pareceu uma eternidade.

- Perrot... como ficou o clima? E os senhores feudais...?

- O Rabequista tem tocado a sua rabeca e o Cão Raivoso, espumado. O que o meu querido senhor esperava?

- Ah, como é bom estar de volta!

- Majestade, peço-lhe que me apresente o seu amigo - disse Isabella.

- Minha Isabella querida, é claro... é claro... Este é o conde da Cornualha, meu irmão.

- Eu não sabia da existência deste irmão. Pensei que seus irmãos fossem crianças.

Eduardo pousou a mão acariciante no braço de Gaveston.

- Este é o meu irmão adorado. Estivemos juntos na ala infantil, e lá ele se tornou meu irmão favorito. Tem sido assim desde aquela época.

Você vai adorá-lo, Isabella. Ele é o mais divertido, interessante, encantador e agradável de todos os meus senhores feudais.

Isabella pensou perceber um ar de insolência na maneira de Gaveston olhar para ela. E pensou: o conde da Cornualha, não é? Em breve irei pôr esse sujeito no seu lugar. O que faz Eduardo dar tanta importância assim a ele?

Isabella inclinou levemente a cabeça. Percebeu, então, uma certa tensão que tomara conta das pessoas que os observavam.

- Vamos entrar no castelo - disse Eduardo.

Subiram a pé a rampa íngreme, a multidão separando-se para deixá-los passar. Os gritos em favor do rei e da rainha continuavam, mas a rainha percebeu que havia uma certa diferença entre aqueles e os que a tinham saudado quando ela chegara.

Era irritante o fato de o conde da Cornualha caminhar ao lado deles enquanto entravam no castelo.

Houve um banquete para celebrar a chegada deles, e enquanto suas aias a preparavam e estavam sempre soltando exclamações referentes à sua beleza, lembrando-lhe de como o público que se reunira para vê-la e ver o rei ficara completamente encantado com ela, o ânimo de Isabella cresceu.

Deixara-se ficar irritada com aquele homem arrogante que na verdade estivera ridiculamente vestido com exagero e tentara monopolizar a atenção do rei. Era uma coisa que ela não iria permitir. Falaria com Eduardo sobre ele na primeira oportunidade.

- Por que o conde da Cornualha se dá tamanhos ares assim? perguntou às aias.

Houve um breve silêncio, e ela prosseguiu, ríspida:

- Respondam. Ficaram todas mudas?

- Majestade, ele é um grande amigo do rei.

- Um grande amigo, não é? Acho que tinha a aparência de um governante oriental. Estava mais ricamente vestido do que o rei ou eu, e suas jóias... Se forem verdadeiras, devem valer uma fortuna.

- O conde é um homem rico, majestade. Desde que o rei concedeu-lhe os títulos, dizem que ele é o homem mais rico do reino. E também ligado à casa real porque sua esposa é sobrinha do rei.

A jovem rainha pareceu levemente acalmada. Achou que compreendia. Ele se casara fazia pouco tempo com a sobrinha de Eduardo e, por causa disso, recebera títulos. As honras recém-adquiridas tinham-lhe subido à cabeça. Isso era muito comum. Mas ele teria de aprender a se portar.

As aias, depois de terem começado o mexerico, pareciam achar difícil parar.

- Ele foi o regente durante a ausência do rei. Alguns dos barões não gostaram.

- Regente! Aquele presumido!

- O rei o acha muito inteligente. O rei é grande amigo dele. Isabella não conseguiu entender bem o significado da expressão de uma das mulheres. Estava a ponto de exigir uma explicação, mas achou melhor não. Iria falar com Eduardo.

Quando ela e Eduardo entraram no salão, houve uma explosão de uma fanfarra de trompetes. Ainda não houvera tempo de falar com ele, porque ele só chegara a tempo de levá-la para o banquete.

Ela ouviu a exclamação de assombro e sabia que era devido à sua beleza. Viu os tios trocarem olhares de satisfação. Eduardo apertou-lhe a mão.

Estava tudo bem.

Ela sentou-se ao lado do rei e, para sua consternação, do outro lado dele estava o conde da Cornualha. Ele trocara os trajes trabalhados por outros ainda mais suntuosos. Ora, quem ele pensava que era? O rei? Ah, sim, não havia dúvida de que ela falaria com Eduardo.

O conde de Lancaster estava ao lado dela. Ele era o mais importante dos barões porque era filho de Edmund, irmão de Eduardo I, e, portanto, primo de seu marido.

Isabella achou-o bastante enfadonho, e era irritante o fato de Eduardo dar tanta atenção ao conde da Cornualha. Os dois estavam rindo juntos e era evidente que tinham muitas coisas a dizer um ao outro. Claro que ele ocupara um cargo importante na ausência de Eduardo. Talvez isso explicasse aquela atitude.

Após a refeição, houve música, e ela tocou alaúde para eles, pois queria que percebessem como era prendada a sua nova rainha. Sabia que ficava muito bonita com os cabelos caindo-lhe pelos ombros. Recusara-se a deixar que os prendessem com uma touca ou qualquer coisa desse tipo. Eram realmente belos cabelos e, segundo ela, deviam ser exibidos aos novos súditos. Por isso, sentou-se com o seu alaúde e cantou as músicas que aprendera na corte do pai, e depois ela e Eduardo lideraram a dança.

- Você conversa muito com o conde da Cornualha - sussurrou a rainha para ele.

- Ah, Perrot! Ele sempre foi um amigo muito chegado.

- Houve gente que não ficou muito satisfeita.

- Algumas pessoas sempre ficarão descontentes, não importa o que se faça.

- Eu fui uma das que ficaram descontentes.

- Você, Isabella? Ah, em pouco tempo vai se acostumar com Perrot. Quero que o aprecie. Estou muito ansioso por que vocês sejam amigos.

- Não gosto de seus modos arrogantes e do seu estilo de vestir para aparecer mais do que todos nós.

- Ah, isso é típico de Perrot. Você vai compreender.

Era difícil conversar a sério enquanto se dançava, de modo que ela não disse que sentira uma antipatia imediata por Perrot e achava muito improvável que fosse tornar-se amiga dele.

Eduardo ficou com a rainha o resto da noite, e ela estava ansiosa pelo momento em que os dois fossem ficar a sós. Querido Eduardo, era muito bonito e odiava conflitos.

Estaria pronto a fazer exatamente o que ela mandasse. Era uma perspectiva muito agradável. Uma das primeiras tarefas dela seria terminar com a amizade entre ele e o conde da Cornualha. Iria fazer isso de forma gradativa, para que Eduardo não percebesse o que estava acontecendo.

Agora ansiava por que ele viesse. Perfumara os cabelos com extratos especiais que trouxera da França. Iria cobri-lo de carícias; iria deixá-lo fraco de amor por ela e, depois, quando estivessem languidamente deitados juntos, insinuaria que queria que Gaveston tivesse menos destaque na corte.

Suas aias a tinham deixado e ela antegozava a chegada dele.

- Amanhã, meu senhor da Cornualha - murmurou baixinho -, você vai perder, sem dúvida alguma, o prestígio.

Isabella sorriu no íntimo. Querido Eduardo. Era sempre muito carinhoso, muito ansioso por agradar.

Ele estava demorando a aparecer. Claro que poderia estar havendo algum empecilho. Era a primeira noite dele em seu país. Sem dúvida que nenhum daqueles enfadonhos barões iria detê-lo naquela noite? Não era hora de discutir assuntos de Estado.

Mas como ele estava demorando!

Passara-se uma hora. E ele não chegara. O que significaria isso?

Isabella levantou-se da cama e foi até a porta do quarto. Uma das aias aproximou-se de imediato.

- Alguma coisa errada, majestade?

- O rei está atrasado. Ele ainda não veio para a cama.

A mulher evitara o seu olhar, e Isabella agarrou-a pelo pulso.

- Você sabe onde ele está?

- Não, majestade.

- Descubra.

A mulher fugiu. Isabella voltou para a cama. Sentou-se nela, os olhos na porta. A qualquer momento, ele viria. Chamaria a atenção dele, faria beicinho, insistiria para que ele a acalmasse.

Mas ele não apareceu.

Num dado momento, a mulher entrou, nervosa, os olhos baixos.

- O rei foi visto conversando com um de seus ministros. Isabella conteve a raiva que aumentava. Não queria trair seus

sentimentos. As pessoas mexericavam. Não deixaria que Eduardo soubesse o quanto significava para ela. Isso não seria prudente.

- Assuntos de Estado - murmurou ela, bocejando.

- Isso mesmo, majestade.

Estava zangada. A mãe dela teria dito: "Um rei é, em primeiro lugar, um rei. Você deve se lembrar disso."

Seu pai era um homem que sempre considerava a sua posição de rei acima de qualquer outra coisa.

Mas Eduardo... quem iria acreditar! Ficaria muito zangada com ele.

O dia seguinte já ia avançado quando ela o viu. Estava em companhia de Piers Gaveston. Os dois estavam sentados juntos num banco ao lado de uma janela, a luz caindo sobre a cabeça cor de linho de Eduardo, que estava muito próxima da cabeça negra de Gaveston. Estavam rindo e sussurrando juntos. De assuntos de Estado!, pensou ela, zangada. Ela entrou na sala.

- Eduardo. - A voz era fria devido à raiva abafada.

- Ah! - Gaveston se levantara. Fez uma mesura que poderia ser chamada de irónica. - A rainha.

- Isabella! - Eduardo parecia adequadamente contrito.

- Então você está aqui - disse ela, avançando. - Seus assuntos de Estado são tão urgentes assim?

Houve um curto silêncio. Ela arregalou os olhos, porque não podia acreditar no que via - Piers Gaveston estava usando a corrente de diamantes e rubis - espólio dos templários - que seu pai dera a Eduardo.

Gaveston sabia que ela estava estupefata. Ergueu a corrente com uma mão delicada, na qual Isabella reconheceu imediatamente o anel de rubi e diamante, outro dos presentes de seu pai. Estava perplexa demais para falar.

- Muito urgentes - dizia Gaveston. - Há muito tempo que o rei e eu não estamos juntos. Tivemos muito tempo para compensar isso. Não é, meu caro senhor?

- É sim - disse Eduardo. Isabella voltou-se para o rei.

- A corrente-disse ela -, o anel. Ele deve tê-los roubado. Você não viu...?

Gaveston soltou uma gargalhada.

- Não são bonitos? Quase desmaiei de prazer quando meu querido senhor colocou a corrente em torno do meu pescoço e pôs o anel no meu dedo.

Eduardo falou, então, vacilante, os olhos ainda nela, um pouco temeroso e, no entanto, levemente desafiador.

- Perrot adora rubis e diamantes... - disse ele.

- E os dois, combinados, são irresistíveis - acrescentou Gaveston.

- Esses ornamentos são de um valor incalculável - bradou Isabella. - Foram presentes que meu pai nos deu. São para nossos filhos. Você não pode deixar este homem usá-los.

- Ah! - retrucou Gaveston com um sorriso afetado. - Sua majestade o rei jamais iria impedir-me de usar o que é meu. Eles são muito preciosos para mim, mais pelo ofertante do que pelo valor deles.

Era como um sonho, um pesadelo. Por que iria Eduardo dar presentes caros para aquele jovem? Por que iria ele abandoná-la para ficar com ele?

Isabella sentiu-se zonza de tanta preocupação. Lembrou-se de olhares irónicos que não conseguira interpretar.

- Não entendo o que isso quer dizer. Eduardo, por favor, dispense este homem. Tenho muita coisa a lhe dizer.

Eduardo olhou para Gaveston, que abanou lentamente a cabeça.

- Eduardo - gritou Isabella, arrogante e cativante ao mesmo tempo.

- Vejo você mais tarde, Isabella. Sabe, minha querida, depois de ter estado fora, há muita coisa a dizer a Perrot. Mais tarde eu explico.

Isabella sentiu-se fraca e sem condições de lidar com aquela situação, e isso não era devido a Eduardo, mas a Gaveston.

Girou sobre os calcanhares e voltou para o quarto. Dispensou as aias. Deitou-se na cama e fitou o teto. A compreensão começava a surgir. Quantas princesas tinham-se casado, ido para um novo país e enfrentado uma amante preferida do marido?

Ela não tinha que enfrentar uma amante. Tinha que enfrentar Gaveston.

Talvez tia Marguerite fosse a melhor ideia de uma confidente, porque Isabella compreendia, agora, que a tia fizera uma tentativa de prepará-la. com que tipo de homem ela se casara? Aquilo era monstruoso. Como ele pudera enganá-la daquela maneira? Ela queria que lhe tivessem contado desde o início. Ela ouvira falar naquelas coisas. Ricardo Coração de Leão havia amado o próprio sexo e desprezado a mulher; em consequência, não deixara herdeiros e o reino passara para seu irmão, o rei João. Será que o caso ia acontecer outra vez? Ela não seria uma rainha estéril. Seria mãe de reis. Estava decidida.

- Quero que me diga a verdade - disse, segurando a mão da tia.

- Que tipo de homem é este com quem me casei?

A rainha viúva enrubesceu até a raiz dos cabelos.

- Então você sabe a respeito de Gaveston.

- Eu sei que não vi o rei a noite toda. A senhora quer dizer que ele partilhou da cama daquele homem?

- Tem sido uma amizade infeliz - disse a rainha viúva, - O pai dele temia isso e tentou rompê-la. Baniu Gaveston, mas assim que Eduardo se tornou rei, mandou chamá-lo de volta.

- Ele deve ser banido outra vez. É uma criatura desprezível.

- Eu concordo, minha querida, mas será que Eduardo o exila?

- Deve-se obrigá-lo a fazer isso.

- Os barões estariam com você.

- Ah, os barões. Então, há esperança. Querida tia, eu estava tão feliz! Eduardo parecia... perfeito. Não posso acreditar nisso. Vi aquele homem usando as jóias que meu pai presenteara meu marido. Como ele pôde dá-las àquele homem!

- Ele dá qualquer coisa a Gaveston. Isabella bateu com o pé, furiosa.

- Não vou suportar isso. Não vou. Ele me enganou. Se meu pai tivesse sabido disso, jamais teria permitido que eu me casasse com ele.

A rainha viúva ficou triste. Claro que seu irmão sabia. Todo mundo sabia. Mas Eduardo era rei, e sua amizade por outro homem não precisava evitar que ele tivesse filhos. Filipe queria um vínculo entre a Inglaterra e a França. Queria paz durante algum tempo, de modo que concordara com o casamento. Iria argumentar que Isabella era uma bela e virtuosa jovem. Caberia a ela afastar Eduardo de Piers Gaveston.

- Minha querida tia, a senhora tem de me ajudar.

- É o que quero fazer, minha filha.

- Como posso me livrar daquele homem?

- Os barões estão revoltados contra ele. Dizem, em alguns setores, que não vão aguentá-lo por muito mais tempo.

Isabella semicerrou os olhos.

- É isso que vai acontecer. vou fazer o possível para ajudá-los. Quando o vi usando a corrente e o anel, não acreditei. Pensei nas minhas cunhadas. A senhora se lembra de que quando nos visitou uma vez deu a elas jóias caras como presente. Elas as deram aos seus amantes, que insensatamente as usaram na corte... exibindo-as para que todos soubessem de suas relações com aquelas loucas. Meu pai os viu. Ficou furioso. A senhora sabe como meu pai fica zangado.

- Jamais coniheci outra pessoa tão friamente cruel.

- Minha querida tia, ele prendeu aqueles dois jovens arrogantes. Sabe o que aconteceu a eles?

Marguerite abauiou a cabeça. Não queria ouvir, mas Isabella estava decidida a contar.

- Foram esfalados vivos, e minhas duas cunhadas foram mandadas para a prisão. Ainda estão lá.

Marguerite cobriu o rosto com as mãos. Ela enfraqueceu muito nesse ponto, pensou Isabella. Mas ela sempre fora frágil. Foi bom ela ter-se casado com um velho que, embora sem dúvida fosse travesso, estava pronto para :ser um bom e fiel marido para uma esposa dócil.

Isabella sabia qual seria o conselho da tia. Iria dizer-lhe que ela deveria ser uma esposa dócil, que deveria aceitar as peculiaridades do marido; deveria ter esperanças de que ele não a ignorasse de todo e que ela, em dado momento, pudesse gerar um herdeiro do trono.

Mas nada havia de dócil na natureza de Isabella. Não era como sua antecessora Berengária, que humildemente esperara pelas atenções do marido. Ela se perguntou o que tinha acontecido àquela doce rainha. Morrera abandonada e nunca houvera filhos para consolá-la.

Infelizmente Eduardo era o homem que era. Odiava pensar em como ele a enganara e em como ela se deixara apaixonar. Isabella não ficaria de braços cruzados.

Era melhor Gaveston... e Eduardo tomarem cuidado.

Ela vira muito pouco Eduardo desde aquele encontro com ele e Gaveston. Eduardo a estava evitando, o que era uma característica dele. Ele odiava conflitos e sabia que a rainha estava profundamente ofendida. Ela teve tempo de dominar o choque e a raiva até um certo ponto, e podia planejar mais calmamente seu modo de agir. Seu primeiro impulso fora ir procurar os tios e exigir sua volta para a França, mas sabia que isso não seria permitido. Era a rainha da Inglaterra, e era aquele o desejo de seu pai, de modo que teria de ficar.

Quando voltou a ficar a sós com Eduardo, agiu com distância e frieza. Ele fingiu não perceber e portou-se como se não a tivesse desprezado e tudo permanecesse como antes da descoberta que ela fizera.

- Querida, a coroação está perto.

- Então serei coroada sua rainha?

- É claro.

- Pensei que você pudesse ter reservado essa honra para Gaveston. Ele encarou-a contrafeito e riu como se um dos dois tivesse contado uma piada.

- Ele está fazendo os preparativos-disse ele, rápido. - Não há ninguém que possa cuidar desses assuntos como Gaveston. Você terá a mais suntuosa das coroações, isso eu lhe prometo.

- Esse Gaveston... tem propriedades fora da Inglaterra?

- Ele é rico. Tem propriedades na Gasconha.

- Claro, ele é gascão. Deve suspirar de saudades de sua terra natal.

- Ele se sente bem feliz aqui.

- Não duvido, mas eu diria que a felicidade dos outros deve, às vezes, ser considerada acima da dele.

- O povo está muito feliz. Todos aguardam ansiosos pela coroação. Lancaster diz que eles gostaram de você desde o começo. Nem sempre isso acontece. O povo às vezes é muito indelicado. Sabe que os londrinos quase mataram minha avó, certa vez, porque estavam contrariados com ela?

- Só quando os reis e as rainhas exercem o poder completo é que podem dar-se ao luxo de ofender o povo. Suponho que isso seja algo de que sempre devamos nos lembrar.

- Era o que meu pai sempre dizia.

- Ele foi um homem inteligente, e nunca é fácil seguir alguém assim. Ás pessoas fazem comparações. Para seguir um homem forte, é preciso ser visto como um homem tão forte quanto ele.

- A sombra de meu pai sempre me perseguiu.

- Não tenho dúvidas de que haverá mais do que a sombra dele para perseguir você se não mudar esse seu modo de viver.

- Isabella!

- É - bradou ela de repente, a raiva aumentando. - Não pretendo ser posta de lado em favor de seu amante.

- Eu... eu não compreendo.

- Compreende muito bem. Todo mundo sabe de seu relacionamento com esse homem. Isso é anormal. Tem de acabar. Você agora tem uma rainha. É nosso dever produzir um herdeiro.

- Eu sei... é o que quero.

- Então, mande esse homem embora e porte-se como o seu povo espera.

Eduardo percebeu, pela primeira vez, que sua mulher não parecia, de forma alguma, a jovem dócil que ele estivera dizendo a Gaveston. Ela agora era uma virago que o enfrentava. Ela cerrava os punhos, os olhos faiscavam, e ela tremia de raiva.

- Não vou aceitar que as pessoas falem. Não vou ser sua esposa desprezada à espera de sua vontade. Não suportarei esse sujeito insolente. Está ouvindo? vou procurar

meus tios. Estou sabendo que há muita gente no país que não gosta desse tal de Gaveston. Você irá bani-lo, como fez seu pai... caso contrário, ele irá se dar mal, eu lhe prometo.

Eduardo estava estarrecido. Fora discutir a coroação e os belos trajes que a rainha usaria e dizer-lhe o quanto ela encantara o povo com a sua graça e sua beleza. E acontecera aquilo.

Ele odiava atritos. Voltou-se abruptamente e rctirou-se.

Os barões tinham chegado ao palácio para uma audiência com o rei. Lancaster, Pembroke e Warwick estavam entre eles.

Tinham ido, disseram eles, para falar com o rei sobre a coroação, que se aproximava, já que tinham recebido notícias perturbadoras sobre ela.

Eduardo, que acabara de sair de sua entrevista com Isabella, recebeu-os com cautela.

Lancaster foi o porta-voz.

- Majestade - disse ele -, estamos aflitos por causa de certos rumores.

- Os senhores não deviam deixar-se perturbar com rumores, primo. Se assim acontecer, jamais terão um instante de paz.

- Temos tido poucos momentos de paz desde que soubemos da contrariedade da rainha, majestade.

- A contrariedade da rainha! O que significa isso?

- Foi trazido à nossa atenção o fato de que os tios reais da rainha não estão satisfeitos com o tratamento que ela vem recebendo aqui, e é certo que irão dar notícias desfavoráveis ao pai dela, o rei da França.

- O rei da França tem coisas suficientes para preocupá-lo em seu reino.

- A filha dele faz parte dessas coisas, majestade. Viemos pedir que o conde da Cornualha seja mandado para fora do país.

Eduardo ficou rubro de raiva.

- Os senhores devem estar loucos. Por que eu iria banir o conde da Cornualha?

- Porque ele constitui uma presença perturbadora e desagradou à rainha e seus tios.

- A rainha tem de se adaptar à nossa maneira de viver - balbuciou Eduardo.

- Este é um assunto com o qual ela não irá acostumar-se. Majestade, viemos aqui para dizer-lhe que não queremos Gaveston presente à coroação.

- Não o querem presente à coroação... à minha coroação! Ele foi o responsável pelos preparativos. Já estão quase prontos. A coroação vai acontecer daqui a poucos dias. O que querem dizer quando avisam que não irão comparecer?

- Não estamos sozinhos, majestade - disse Warwick, espumando de raiva contida. - Representamos um grande grupo. Ficamos ao lado de seu pai quando ele expulsou Gaveston. Queremos que faça o mesmo.

- Estou farto de ser comparado a meu pai.

- É compreensível - disse Warwick, irónico.

- vou governar à minha maneira. Não aceitarei nenhuma interferência.

- Neste caso, majestade, o número de barões que ficarão ausentes a sua coroação será maior do que o dos que comparecerão.

Lancaster curvou-se e recuou em direção à porta. Os outros o seguiram.

Eduardo ficou olhando para o ponto pelo qual eles tinham saído.

- Cães insolentes! - bradou ele. Mas estava com medo.

Era necessário adiar a coroação. Ela não podia acontecer com tantos barões ausentes. Todos tinham de estar lá para aclamá-lo como rei e mostrar sua fidelidade.

Como eles eram difíceis! Depois que Perrot fizera preparativos tão grandiosos! Perrot iria levar a coroa e a espada à frente dele, e estava muito ansioso por isso. O povo de Londres a aguardava com satisfação. O conde da Cornualha adorava celebrações daquele tipo, e o rei, casado há tão pouco tempo com uma mulher muito bonita, tornaria a ocasião duplamente alegre. Além do mais, a rainha era filha do rei da França, e isso podia significar paz no continente. Semelhantes vínculos de famílias sempre beneficiavam os que poderiam ser convocados para a luta. Poderia ser uma ocasião feliz, e os barões iam estragá-la por causa de Gaveston.

Como era impossível deixar que a coroação acontecesse no dia marcado, e o rei estava muitíssimo ansioso por que o povo não soubesse que ela estava sendo adiada devido às desavenças entre ele e os barões, ele teve uma desculpa pronta. Robert de Winchelsea, arcebispo de Canterbury, estava fora, no continente. Fora banido por Eduardo I, com quem estivera em contínua discordância, mas ao assumir o trono, Eduardo II mandara chamá-lo de volta para a Inglaterra. Infelizmente, a má saúde do arcebispo fazia com que a viagem de volta à Inglaterra ficasse muito perigosa e, portanto, era perfeitamente plausível dar a entender que a coroação não aconteceria devido à ausência do arcebispo.

A rainha mostrava-se indiferente; seus tios estavam desconfiados; e o povo não queria a coroação adiada. Se o arcebispo de Canterbury estava fora, o que havia de errado com o bispo de Winchester? O povo queria a sua coroação.

Desesperado, o rei mandou chamar os barões que o haviam enfrentado antes. Eles deviam mudar de ideia, disse-lhes ele.

- Só há uma coisa que nos fará mudar de ideia - disse-lhe Warwick. - A sua promessa de banir Piers Gaveston.

O rei ficou intimidado, mas viu a decisão nos olhos deles. Aquilo poderia ser um desastre. Talvez representasse até o início de uma guerra civil. Ah, era cruel! Piers acabara de ser devolvido a ele, e agora queriam mandá-lo embora outra vez.

Mas havia decisão no olhar deles.

- A coroação tem de se realizar... em breve - disse o rei.

Eles concordaram. Caso contrário, o povo iria saber que havia algo de errado.

- O que posso fazer? - bradou Eduardo.

- Satisfazer à rainha e ao povo - disseram-lhe -, banindo Gaveston.

- Os senhores não sabem o que pedem? - bradou o rei, angustiado.

- O que sabemos - disse o implacável Warwick - é o que vai acontecer se não o banir.

Aqueles barões! Eles tinham um poder demasiado. Desde a Magna Carta, o rei não era verdadeiramente um rei. Tinha de curvar-se à vontade deles ou enfrentar... o desastre.

O rei sabia que tinha de prometer. Afinal, nem todas as promessas tinham necessariamente de ser cumpridas.

A coroação foi um desastre. O fato de ter sido adiada maculara de certa forma a cerimónia toda, e o povo estava ciente de certas tensões. Apesar de tudo, o povo compareceu aos milhares, e a aglomeração nas ruas e em torno da abadia foi tão grande, que quando um dos cavaleiros, Sir John Bakewell, caiu do cavalo, foi morto a pisadas antes de receber socorro.

Gaveston insistira em fazer os preparativos. Ele pretendera que aquela coroação fosse mais suntuosa do que qualquer uma das anteriores - e ele deveria ser a figura mais suntuosa nela. Mas seus inúmeros inimigos tinham decidido exatamente o contrário e, naquela ocasião, mostraram-se mais eficientes do que ele.

O serviço ficou atrasado e a escuridão baixara logo após a consagração do rei e da rainha. Quando eles chegaram ao salão de banquetes, à luz de tochas, descobriu-se que a refeição não estava pronta, apesar do atraso. Os barões estavam com muita fome e reclamaram acerbamente e houve sussurros audíveis de que a partida de Gaveston não devia demorar. Quando a comida realmente chegou, foi declarada fria e malcozida, e podia-se ver olhares descontentes em todo canto.

- Isto é uma afronta a você e, portanto, à França. Não será esquecido - disse o tio da rainha, Carlos, que estava perto dela.

- Você deve escrever relatando este fato... e outros... a seu pai, e vamos ver o que ele tem a dizer - acrescentou Luís.

Era exatamente o que Isabella pretendia fazer.

Sua coroação fora um desastre e ela não se tornara o centro das atenções, porque todos os olhares tinham estado voltados para aquela impossível criatura afrontosa, Gaveston. Os olhares dirigidos na direção dele nada tinham de amigáveis, mas ainda assim fora o dia dele, como desde o início ele pretendera.

A rainha estava pronta a repreender o rei e dizer-lhe que iria queixar-se ao pai, mas ele não chegou perto dela. Tinha de passar o maior tempo possível com o seu adorado Gaveston, em especial agora que a ameaça de separação pairava sobre eles.

Isabella escreveu parao pai: "com que tipo de homem eu me casei? Eu o vejo pouco. Ele prefere a cama do seu favorito Gaveston à minha."

Seus tios informaram aos barões que estavam contrariados com o tratamento dado à rainha e que iriam considerar seu dever explicar a situação ao pai dela.

Lancaster replicou que os tios da rainha não poderiam estar mais descontentes com a situação do que os barões e que dentro em pouco eles pretendiam que Gaveston fosse banido do país.

Carlos de Valois discutiu o assunto com seu irmão Luís e os dois se perguntaram se seria prudente aconselhar o rei a mandar seu favorito embora.

- Se ele não mandar-disse Carlos -, os barões irão revoltar-se.

- Ele sorriu lentamente. - Tenho certeza de que nosso irmão não vai ficar contrariado com isso.

- E Isabella? - perguntou Luís.

- Não tenha medo, nós cuidaremos de nossa sobrinha.

Carlos tinha razão. Quando os irmãos voltaram à França, o rei ficou muito interessado em saber do descontentamento dos barões ingleses com o rei deles.

- Que bom - disse ele. - Temos de avisá-los de que se decidirem levantar-se contra ele, não deveremos ir em auxílio dele.

- Na condição de seu genro, será que ele não deveria esperar esse auxílio? - perguntou Luís.

- Não há mal nenhum no fato de ele esperar. Mas Eduardo não é tão ingénuo, meu irmão. Todo rei da Inglaterra sabe que todo rei da França não consegue deixar de observar com interesse qualquer desavença no seu reino; e como nunca podemos ter certeza de quando ele irá tentar aproveitar-se de nós, temos de ficar um tanto aliviados ao sabermos que ele tem seus problemas em outra área qualquer.

- Vossa majestade pretende agir? - perguntou Luís. O rei sorriu lentamente.

- Uma ação em segredo. Será comunicado que se os barões precisarem de ajuda, poderemos estar preparados para dar-lhes... um pouco.

Lancaster recebera um recado do rei da França dizendo que Filipe estava indignado com o tratamento que Eduardo dava à sua filha e, se Lancaster se colocasse como chefe daquele grupo que exigia providências contra o favorito do rei, teria o apoio do rei da França.

Aquilo fez Lancaster tomar uma decisão. O grupo era mais poderoso do que muitos de seus membros teriam acreditado possível. O rei jurara banir Gaveston. Lancaster e o grupo tinham de fazer com que ele percebesse que eles tinham poderes para obrigá-lo a cumprir isso.

Lancaster convocou uma reunião com os barões.

- Está claro que não podemos continuar dessa maneira - anunciou ele. - Gaveston tem de ir embora. O rei da França assim o quer, e não é de admirar. A presença de Gaveston na corte é um insulto à rainha.

Os barões concordaram, com uma exceção. Foi Hugh lê Despenser, conde de Winchester, homem ambicioso - mais do que isso, um avarento. Havia servido na Escócia com o pai do rei e, ansioso por adular o Eduardo mais jovem, viu ali uma oportunidade. Ele pedira uma audiência com o rei e, ao ser admitido, encontrara-o com Gaveston, ambos muito desanimados, porque sabiam que os barões estavam se unindo contra o favorito.

Winchester contara a eles que os barões tinham convocado uma reunião e pretendiam enfrentar o rei e exigir o banimento de Gaveston.

- Não vou deixar que ele vá - bradara Eduardo com petulância.

- Eles poderão obrigá-lo a isso, doce senhor - disse Gaveston.

- Não serei obrigado. Sou ou não sou o rei? Ainda não completei um ano de reinado e eles já estão tentando me governar.

- Penso, majestade - disse Winchester -, que eles insistirão e que talvez seja necessário, por enquanto, fazer o que desejam. Mas será que precisa ser por muito tempo, e por que vossa majestade não pode decidir para onde o conde da

Cornualha deve ir?

- Eles querem mandá-lo para a Gasconha.

- Ele poderia ir para a Irlanda, majestade. Lá, poderia agir como seu lugar-tenente. Ele poderia receber uma doação em dinheiro e viver com conforto até que vossa majestade decidisse que estava na hora de chamá-lo de volta. Se houvesse problemas sérios na Irlanda, seria necessário vossa majestade consultá-lo. E nesse caso, poderia encontrar-se com ele num ponto intermediário. Poderia acompanhá-lo em sua viagem até ele tomar o navio. Talvez isso possa abrandar um pouco a melancolia.

O rosto de Gaveston iluminara-se, mas Eduardo ainda continuara abatido.

- Não quero que ele se vá, de maneira alguma - bradara ele, de forma impaciente.

- Meu coração está em pedaços-acrescentara Gaveston -, mas o senhor conde de Winchester tem razão. Podemos atenuar o golpe. Eles estão decididos a nos separar, e receio que possam vencer. Mas vamos tornar nossa separação tão curta quanto possível. Talvez possamos enganá-los no final.

Eduardo não se conformara. Não suportaria ficar longe de Gaveston nem mesmo por uma noite.

Hugh lê Despenser observara-os juntos e pensara no quanto o rei era fraco e em como Gaveston o controlava por completo, mas com Gaveston fora do seu caminho, o rei não iria procurar novos favoritos? Não que Despenser desejasse tomar o lugar de Gaveston. Ninguém poderia toma-lo. Mas um rei fraco poderia ser bajulado e influenciado, e Hugh lê Despenser poderia ser o homem para isso.

Gaveston estava indo embora. Isso estava claro. Os barões haviam decidido e tinham até dado a entender que haveria uma guerra civil se Eduardo não obedecesse a eles. O rei tinha de fazer a opção. Se Hugh lê Despenser compartilhasse a sorte dos barões, teria muitos rivais. Lancaster - embora não fosse o mais astuto dos homens - iria liderá-los. Havia Warwick, Lincoln, Pembroke... um número demasiado de homens fortes. Mas se ele apoiasse o rei, poderia tornar-se mais poderoso do que qualquer um deles. Mesmo que Gaveston voltasse, ficaria grato a ele, porque iria defendê-lo na reunião do conselho que iria acontecer.

Ele tomara a sua decisão. Hugh lê Despenser, conde de Winchester, ficara do lado do rei e de Gaveston.

Eduardo ainda era o rei e continuaria sendo o rei. Era um ato de visão bajular reis, se se pudesse manter as boas graças deles.

No dia seguinte, na reunião do conselho, Hugh lê Despenser foi o único que falou contra o banimento de Gaveston. Os barões atacaramno, deram a entender que ele era um traidor, mas ele se limitou a rir.

Estava certo de que tomara a decisão correta e que a longo prazo não perderia coisa alguma.

Estava presente quando o ultimato foi lançado ao rei. Os barões estavam ameaçando uma guerra civil caso Gaveston não deixasse o país.

Eduardo não tivera outra alternativa que não a de submeter-se, mas expressara sua gratidão a Hugh lê Despenser pelo apoio.

- Não me esquecerei de meus amigos - dissera ele e, quando pouco depois Hugh lê Despenser foi demitido do conselho, lembrou-se daquelas palavras.

O rei cavalgou com Gaveston até Bristol, procurando tornar a viagem o mais longa possível.

No fundo, estava sofrendo. Não havia alegria na vida para ele sem o seu adorado Perrot. Gaveston declarara que sua tristeza na despedida era tão grande, senão maior, do que a do rei.

Não era verdade, claro. De fato, Gaveston estava um tanto excitado diante da perspectiva de governar a Irlanda. Lá, seria tratado como um rei. Ele partira com toda a aparência da realeza e pretendia ser tratado como tal. Fora um lampejo de inteligência ter-se pensado na Irlanda. Estava decidido a ser bem-sucedido por lá. Isso seria um golpe para seus inimigos. Todos o achavam frívolo, mas ele não era, em absoluto.

Fazia-se de frívolo para distrair o rei, só isso. As boas graças do rei lhe eram necessárias. Devido a elas, ele era o homem mais rico da Inglaterra; e tivera o cuidado de levar seus tesouros para fora do país, porque nunca estaria certo sobre quando aqueles barões iriam inventar algumas acusações contra ele, e quem sabe se eles não resolveriam confiscar seus bens. Por isso, providenciara para que seus bens fossem levados para a Gasconha, onde possuía algumas propriedades, e lá estavam à sua espera se, a qualquer momento, ele tivesse de deixar o país às pressas. Eduardo era o mais generoso dos homens e concedera-lhe os recursos que o falecido rei reunira para uma cruzada. Gaveston fez uma careta. Saberia usar bem um tesouro daqueles. Era melhor ficar com ele do que vê-lo desperdiçado numa campanha inútil para matar sarracenos sem mudar nada. Quando pensava em tudo o que fora gasto naquela tentativa sem esperança, ficava muito irritado.

Bem, agora ele precisava dizer adeus ao seu tristonho rei e assegurar-lhe que dentro de muito pouco tempo estaria de volta ao seu lado.

- Pretendo tornar essa campanha irlandesa um sucesso, doce senhor, para que seus barões arranquem os cabelos e batam no peito e, queiram ou não, joguem-se ao chão e comam os juncos.

- Era o que meu bisavô fazia.

- Eles vão fazer o mesmo, eu lhe prometo.

- Prometa-me uma coisa mais importante, meu querido. Que jamais vai me esquecer e que voltará me amando tanto quanto partiu.

- Dou-lhe minha palavra, querido senhor. Eduardo ficou na praia, vendo o navio partir. Depois, voltou-se tristemente e afastou-se.

- Não serei feliz enquanto Perrot não voltar para mim.

 

Assassinato em Blacklow Hill

EDUARDO FICOU desolado, mas Isabella parecia triunfante. Estava furiosa, é claro, por ter sido preterida em favor de Gaveston, e sua tendência era desprezar o marido,

mas amadurecera desde que se casara e não agiria de maneira que poderia ser-lhe prejudicial. Por estranho que parecesse, continuava fisicamente apaixonada pelo marido. Quando corria os olhos pela corte, não encontrava um só homem que fosse tão bonito aos seus olhos. Quanto a Eduardo, ele era dócil, afável e estava ansioso por acalmá-la, e ela achava sua melancolia atraente. Pensava como seria confortador conquistá-lo, tomando-o de Gaveston, e quando aquele sujeito voltasse, como sem dúvida voltaria, ela veria com grande satisfação Eduardo recusar-se a recebê-lo devido ao seu amor pela mulher. Seria uma tarefa difícil a realizar com uma pessoa com as tendências de Eduardo, mas a própria extensão da tarefa a deixava intrigada e inspirada. Havia outra consideração - a principal de todas -: ela queria filhos. Precisava ter um filho homem que herdasse o trono. Se tivesse, poderia orientá-lo e dominá-lo; e se Eduardo desagradasse tanto aos barões que estes o depusessem - o que, segundo já lhe ocorrera, não era uma impossibilidade -, ela estaria lá com o filho, pronto para assumir a coroa. Isso era prever acontecimentos para dali a muitos anos, mas ela estava se tornando astuta e sensata. Eduardo a humilhara acima do que era normal suportar. Muito bem, por que não usá-lo para obter o que queria da vida? A determinação tomara o lugar da humilhação e a vida tornara-se muito divertida e excitante.

com Eduardo não era isso, em absoluto, o que acontecia. Sentia desesperadamente a falta de Gaveston. Às vezes, pensava em abrir mão de tudo e ir juntar-se a ele na Irlanda. Claro que não poderia fazer isso, e no íntimo se perguntava se Perrot iria achá-lo tão atraente caso ele não fosse rei .Tinha de manter a sua realeza-Perrot dava muita importância a isso. Adorava ver a fisionomia de Perrot animar-se quando lhe presenteava, e só os reis podiam dar os presentes que Perrot queria.

Havia problemas na Escócia. Robert, o Bruce, que fora coroado rei, estava tentando recuperar a totalidade do seu reino e expulsar os ingleses. A melhor coisa que acontecera à Escócia, do ponto de vista de Bruce, fora a morte de Eduardo I, aquele que chamavam de Martelo dos Escoceses, aquele Eduardo que ordenara que seus ossos fossem colocados numa rede e levados à frente do seu exército. Bruce dizia, com cinismo, que tinha mais medo dos ossos de Eduardo I do que do filho deste e de qualquer exército por ele comandado. Palavras insultuosas, mas Eduardo não se importava com isso. Como posso estar na Escócia, quando há tanta coisa a fazer aqui e não tenho certeza quanto à fidelidade dos que me cercam?

Seu sogro vivia dando conselhos. Na verdade, desde o casamento Filipe deixara claro que se interessava muito pelos problemas de Eduardo. Filipe mantinha o papa sob controle; queria que o mesmo acontecesse com o genro.

Chegara à Inglaterra um mensageiro do papa e disse ao rei que seu senhor estava muito perturbado pelas práticas executadas pelos templários e que queria que a ordem fosse reprimida na Inglaterra, tal como estava acontecendo na França.

Eduardo ficou alarmado. Ele sempre acreditara que havia algo de santo em relação aos templários. Sabia que ao longo dos séculos eles tinham acumulado uma grande riqueza, mas se lembrava de seu pai dizendo que tinham sido magníficos durante a sua cruzada e que a presença deles tinha sido de grande auxílio para os soldados.

Mandou chamar Walter Reynolds, que fora um grande consolo para ele desde a partida de Gaveston.

Walter ficou pensativo quando soube das instruções do papa.

- Pode estar certo de que é mais ideia do rei da França do que de Sua Santidade - comentou.

- Filipe começou a reprimir os templários. Walter, receio que isso vá me trazer azar. Tenho medo de que, se fizer isso, aconteça alguma coisa horrível. Talvez eu nunca mais torne a ver Perrot.

- O rei da França conseguiu uma grande riqueza com a supressão dessa ordem, majestade.

- Eu sei muito bem.

- E nunca um rei precisou mais de dinheiro do que Vossa Majestade.

- Isso me parece a maneira errada de consegui-lo.

- Se for verdade que eles praticam esses atos obscenos... Walter lambeu os beiços, e Eduardo entendeu que ele estava pensando que gostaria muito de presenciar alguns deles.

- Acredita nisso, Walter? Walter deu de ombros.

- Seria uma maneira de reabastecer os cofres reais, majestade. Eduardo estremeceu.

- Não farei isso. Francamente, Walter, não acredito. Meu sogro é um homem cruel. Precisa de dinheiro, de modo que olha em volta para ver de quem pode tirá-lo. Ele se concentrou nos templários. Acho que isso vai-lhe trazer azar. Os templários são... ou eram... homens de Deus.

- Vossa majestade, sem dúvida, irá submeter o assunto ao conselho?

- É o que tenho de fazer, mas de algum modo, Walter, acho que eles também não concordarão. Os templários têm vivido pacificamente aqui há muitos anos. Eu preferiria que continuassem assim.

- O rei da França é o homem mais poderoso da Europa, majestade. Foi uma bênção vossa majestade ter-se casado com a filha dele. Walter fez uma careta. - Ultimamente, a rainha parece um pouco mais contente com a vida. Não tenho dúvidas de que essa situação chegou aos ouvidos do rei francês.

- Se ele pensa em mandar em mim - disse Eduardo com uma certa petulância-, vou desafiá-lo.

- Quem é o rei da França para governar o rei da Inglaterra! Mas ele está decidido a que os templários sejam reprimidos, e não apenas no país dele. Talvez ele queira diminuir o peso de sua consciência, deixando que outros compartilhem da culpa... se é que há culpa.

- Se esses homens forem inocentes, Walter...

- Duvido que sejam. Ser inocente não é uma característica do homem, e quando uma ordem reúne uma grande fortuna, pode ficar obcecada por ela e ansiosa por vê-la multiplicar-se. Dizem que houve muita tolerância entre esses homens. Viviam no luxo, acreditavam em suas leis santas. Ah, sim, parece muito provável, majestade.

- Mas será que isso merece tortura e morte?

- O rei da França acha que sim.

- Você acha que ele teve uma vida tão virtuosa assim?

- Isso não vem ao caso, se me permite dizer, majestade. Filipe é um rei; esses homens proclamam-se cavaleiros santos. Foram tolos. Não deviam ter-se tornado tão ricos, porque onde há riqueza sempre haverá quem a cobice e planeje apossar-se dela. Não há dúvida de que Filipe está decidido a destruí-los. Mandou chamar o grão-mestre, Jacques de Molai, sob o pretexto de que queria falar com ele. Molai saiu de Chipre e foi a Paris e foi bem tratado, a princípio, para diminuir as suspeitas. Então, de repente, Filipe caiu rapidamente sobre Molai e sessenta de seus cavaleiros de alto nível. Eles foram levados para masmorras repulsivas e ali, todos os dias, aqueles templários são submetidos a uma horrenda tortura.

Eduardo cobriu o rosto com as mãos.

- Eu odeio ouvir falar nisso, Walter. Não vou permitir que se faça isso aqui.

- Sob essa tortura, muitos dos cavaleiros têm confessado atos obscenos.

- O que eles dizem sob tortura não tem valor.

- Tem, sim. A finalidade da tortura é reduzi-los a tal agonia, que eles fazem qualquer coisa para acabar com ela.

- Não quero isso aqui, Walter. Não quero. Por que as pessoas não podem ser divertidas, alegres, e rir e cantar juntas? Por que tem de haver tais torpezas?

- Vossa majestade é delicado e bom. Nem todos os reis são assim. Muito menos o seu sogro. Ele age com uma fúria demoníaca contra os templários. Quer o dinheiro e os tesouros deles, e quer uma desculpa para pegá-los. Sem dúvida, os cavaleiros estariam dispostos a dá-los a ele, mas isso não lhe convém. Filipe precisa aplacar a consciência.

Portanto, tem de provar ao mundo e a si mesmo que aqueles homens merecem ter os bens confiscados. Isso, o rei da França faz através da tortura, quando eles confessam os pecados que ele e seus amigos como Filipe de Matigny, arcebispo de Sens, e seu ministro, Guilherme de Nogaret - inventaram para eles.

- Talvez eles se recusem a confessar - disse Eduardo. - E aí?

- Aí, haverá mais tortura, e de um tipo a que poucos possam resistir. Ouvi dizer que muitos ficaram impossibilitados de usar os pés, depois de submetidos a uma certa forma de tratamento no qual as solas dos pés são lambuzadas de graxa e colocadas numa tela, que é colocada em frente a uma fogueira. Eu soube que essa tortura é uma das mais agoniantes criadas pelo homem. Há muitas outras...

- Não quero ouvir falar nelas - bradou Eduardo. - Walter, não quero que os templários da Inglaterra sejam presos. Talvez pudessem ser avisados. Talvez pudessem abrir mão de parte de sua riqueza... mas não quçro que sejam torturados ou queimados numa estaca. Estou certo de que Perrot concordaria comigo se estivesse aqui.

- Ah, Perrot-suspirou Walter.-Mas como são boas as notícias dele na Irlanda!

Eduardo animou-se.

- Tenho muito orgulho dele. Até o Cão Raivoso Warwick teve de admitir que a notícia era boa. A maneira pela qual ele enfrentou a rebelião em Munster foi excelente.

Walter balançou a cabeça.

- Se ele continuar assim, vossa majestade poderá sugerir a volta dele.

- Você acha que eles dariam atenção?

- Quem sabe? Poderiam estar dispostos a atender. Deixe-o continuar por algum tempo tal como começou, e até mesmo seus piores inimigos não terão como negar que ele fez um bom trabalho na Irlanda.

Eduardo esqueceu a tristeza que sentia em relação ao tratamento dos templários, ao pensar naquela gloriosa possibilidade.

Mas quando se sentou com o conselho e expressou o seu ponto de vista quanto aos templários, ficou satisfeito ao descobrir que a maioria dos ministros concordava com ele.

Todos os dias chegavam notícias do terrível destino que se abatia sobre os templários na França, relatando que muitos eram presos e levados perante o conselho instituído pelo arcebispo de Sens. Alguns não confessavam seus supostos pecados nem mesmo sob a mais violenta das torturas e eram levados para as estacas, que eram erguidas por toda a Paris, e queimados até a morte.

Nada era revoltante demais para ser alegado contra eles, e seus inimigos estavam muito empenhados em inventar novos crimes que poderiam ter cometido. Muitos estavam fugindo da França, e isso não interessava a Filipe. Ele queria que a ordem inteira fosse eliminada. Exigiu que outros países o imitassem; ficou muito contrariado com a atitude do genro. Sua maior vantagem partiu de seu fantoche, o papa. Os templários têm de ser destruídos, vociferou Clemente. A excomunhão bem poderia ser a pena dos que ignorassem a ordem.

A ameaça de excomunhão sempre provocava alarma. Eduardo foi convencido pelos seus ministros de que, embora pudesse desafiar o sogro, não podia desafiar o papa. Era verdade que o papa estava aluando por instrução do rei da França, mas por trás do papa estava a imagem da Santa Sé, e o povo tinha medo dela.

Houve uma tentativa não muito forte, na Inglaterra, de reprimir os templários, mas não era possível deixar-se que continuasse assim, e pouco depois o papa enviou seus inquisidores para tratarem do assunto. Foi a primeira vez que a Inquisição se instalou na Inglaterra; houve muita gente, na época, que decidiu que ela nunca deveria voltar ao país e, por uma sorte muito grande, não voltou.

Ela levou consigo uma mudança na atitude do povo. O medo penetrara o país. Houvera perseguições antes, é claro; havia crueldade; mas o sinistro corpo de inquisidores, envoltos em fervor religioso com seus instrumentos de tortura e o uso secreto desses instrumentos tinham levado para o país algo que nunca estivera por lá antes.

À Inquisição não faltavam vítimas. Foram feitas inúmeras prisões. As histórias do que acontecia naquelas sombrias câmaras de sofrimento eram contadas em sussurros, em cantos escuros. A insegurança estava no ar.

Eduardo dissera que não ia querer queimações em estacas, e ordenou que os templários fossem dissolvidos, que suas propriedades fossem confiscadas e que eles podiam encontrar lugares em que pudessem ter uma vida civil.

Os templários não acreditavam na boa sorte, porque estavam bem cientes do que acontecia na França. Teriam de encontrar novos meios de vida, mas pelo menos tinham ficado com a vida.

Á Inquisição acabou indo embora da Inglaterra, para grande alívio do povo.

Nunca, nunca, jurou ele, ela deveria voltar àquelas plagas.

Naquele ínterim, as horríveis torturas continuavam na França, e o próprio grão-mestre sofreu. Ele estava na casa dos setenta anos e, para deleite do rei da França, não podia resistir à tortura e estava pronto a confessar qualquer coisa de que pudesse ser acusado, mas Filipe não podia mandá-lo para a fogueira. Ele precisava receber a sentença de morte do papa. Isso aconteceria no devido momento.

Enquanto isso, Filipe se contentava com homens de menor categoria e deleitava-se com os bens deles, que eram maiores do que nem mesmo ele ousara esperar.

Eduardo também reabastecera seu tesouro, o que lhe deu um grande alívio, mas se sentia contente por não ter na consciência o pecado do assassinato.

Seu comportamento no caso dos templários dera-lhe uma certa popularidade junto ao povo. Na verdade, o povo sempre gostara dele e culpara Gaveston pelos problemas existentes no reino. Quando saía a cavalo com a rainha, ele era ovacionado e, vendo-os juntos, o público achava que, agora, o escandaloso caso entre o rei e Gaveston acabara.

Se a rainha pudesse dar à luz um filho homem, os dois ficariam verdadeiramente populares.

No íntimo, Eduardo não ligava muito para isso. Tudo o que queria era a volta de Gaveston, e começou a planejá-la.

Perrot era inteligente. Estava se saindo tão bem na Irlanda, que até o seu pior inimigo - talvez Warwick - teve de admitir esse fato.

Quanto a Eduardo, ele procurava aplacar exatamente os mesmos homens que tinham expulsado Perrot, e eles não estavam contrários a isso. Ele era, no final das contas,

o rei, e a amizade do rei devia significar muito para todos eles. Eduardo percebia, cada vez mais, que só havia uma coisa que desejava - o retorno de Gaveston, e estava disposto a fazer qualquer coisa para provocá-lo.

Sua amizade com Walter Reynolds sempre fora motivo de irritação para a nobreza, que lamentava a parcialidade do rei para com os homens de berço humilde. Havia pouco tempo, ele fizera de Walter bispo de Worcester e chegara mesmo a comparecer à consagração feita pelo arcebispo Winchelsey em Canterbury. Àquilo foi um grande sinal de favor. Walter era bem conhecido como amigo íntimo do rei e de Gaveston; estava, agora, do lado de Eduardo contra os barões e, segundo se acreditava, trabalhava pela volta de Gaveston. Por isso, foi um ato inteligente de Eduardo enviá-lo numa missão papal à corte de Avignon, onde ele ficaria por algum tempo. Aquilo não era tudo. Havia um homem que os inimigos de Gaveston estavam ansiosos por ver removido de sua posição junto ao rei. Era Hugh lê Despenser. Ele fora expulso do conselho na época do banimento de Gaveston, mas ainda continuava perto do rei.

A partida de Walter Reynolds deixara os barões tão satisfeitos, que Eduardo teve outra ideia, que confidenciou a Hugh.

- Meu caro amigo - disse ele -, você sabe a consideração que tenho por você. Jamais pense que ela diminuiu. Sou um amigo fiel, assim espero, para os que me servem bem.

- Sua fidelidade para com o conde da Cornualha não pode ter sido ultrapassada, nunca - disse Hugh.

- Ah, Perrot! Que saudades tenho dele! Mas ele vai voltar para nós, Hugh. Estou decidido.

- Rezo por isso noite e dia, majestade.

- Sei que você é bom amigo nosso, Hugh. É por isso que vai compreender o que vou fazer. Tenho de trazer Perrot de volta. Morrerei se ele não voltar para mim em breve. Mandei Walter para a França. Viu o efeito que isso causou? Eles nem acreditaram e tomaram isso como um sinal de que modifiquei meu sistema de vida e que vou ser o tipo de rei que eles tanto desejam.

- Eu percebi, majestade. Walter estava desolado por ter de partir, e vossa majestade, de perdê-lo.

- Ele compreende, como você tem de compreender, Hugh. Eu vou dispensá-lo.

A fisionomia de Hugh ficou impassível. Ele estava ansioso por não demonstrar suas emoções.

- Vai parecer que você não me agrada mais como amigo íntimo, mas isso não é verdade. Você tem de compreender isso. Serei visto em toda parte com Isabella. Por favor, compreenda o que isso significa para mim. Preciso ter Perrot de volta.

- Compreendo bem, majestade. Vai conquistar os barões e a rainha para o seu lado, e depois dirá que não há motivo para que o conde da Cornualha não volte. Ele provou ser um lugar-tenente capaz e um bom servidor do país; e vossa majestade deve ter perdido o fascínio por ele, porque está dispensando seus velhos amigos e tornando-se um bom marido para a rainha.

- Você entendeu, Hugh. Acha que vai funcionar? Hugh ficou pensativo por uns momentos. Depois, disse:

- É possível. Quanto a mim, embora eu vá triste por ser mandado embora, estou pronto a fazer qualquer coisa a seu serviço.

O rei abraçou Hugh.

- Meu querido e bom amigo, nunca me esquecerei disso.

Os barões, como Eduardo previra, ficaram devidamente impressionados por aqueles sinais de reforma, mas não seriam enganados de todo.

O rei era demasiado extravagante. Havia um número exagerado de funcionários da corte que tinham poder em demasia. As leis da justiça precisavam ser revistas e deveria haver uma ação mais drástica contra os que enfraquecessem a moeda. Na verdade, os barões fizeram uma longa lista de mudanças necessárias.

Quando foram apresentadas a ele, Eduardo disse:

- Eu estaria pronto a concordar com essas alterações, com uma única condição.

- E que condição é essa, majestade? - perguntou Warwick.

- Que o conde da Cornualha volte para a Inglaterra e suas propriedades lhe sejam restituídas.

Houve fisionomias fechadas em torno da mesa, mas ele viu que algumas vacilavam. Eles concordaram que gostariam de discutir o assunto se o rei lhes desse permissão.

Todo charme e tolerância, o rei concordou. Eles voltaram. Ele viu que Lincoln parecia arrependido, mas Warwick permanecia inflexível. Era natural. Ele jamais perdoara Perrot pelo sucesso no torneio e, acima de tudo, por lhe dar o apelido de Cão Raivoso.

Warwick era o homem forte e foi firme na sua denúncia de Gaveston e salientou sua determinação de não permitir sua volta.

Eduardo teve vontade de chorar de raiva. Quis prender Warwick e mandá-lo para a torre. Mas ficara ardiloso no grande desejo de trazer Gaveston de volta.

Curvou a cabeça e aceitou a decisão daqueles barões. A hora ainda não chegara.

Mas no dia seguinte, três dos barões pediram uma audiência com ele. Eram Lincoln, Pembroke e Surrey.

Lincoln estava ficando cada vez mais difícil de manejar. Pobre Barriga Explosiva! Eduardo podia ouvir a voz zombeteira de Perrot, e a ânsia por ele era quase insuportável. E havia Aymer de Valence, conde de Pembroke, que se considerava de sangue real porque o pai era meio-irmão de Henrique BI. Perrot também tinha um apelido para ele: José, o Judeu, porque era moreno, rosto pálido e nariz aquilino. E John de Warenne, conde de Surrey, um daqueles que Perrot derrotara no torneio.

Lincoln foi o porta-voz. Tinha ido, declarou ele, para dizer a Eduardo que ele e seus amigos deploravam o estado de inimizade que parecia existir entre o rei e os barões e que como o rei se mostrara disposto a aceitar suas reformas, eles iriam mostrar seu reconhecimento concordando com a parte dele no trato.

Eduardo ficou tonto de alegria. Tinha conseguido. Ah, como fora inteligente! Em breve Perrot estaria em seus braços. Como iriam rir juntos, quando ele ficasse sabendo da astuta diplomacia usada por Eduardo! Pensar que ele pudera conquistar o velho Barriga Explosiva para o lado deles. O Cão Raivoso ainda estava espumando veneno pela boca, mas maldito fosse o Cão Raivoso. Eles viveriam muito bem sem ele.

- Piers Gaveston, pelo que parece, saiu-se bem na Irlanda-disse Pembroke. - É bem possível que se tenha tornado um homem sério e mudado de vida.

"Ah, Deus não permita que ele faça isso", rezou Eduardo. "Que o meu Perrot volte para mim exatamente como era quando partiu."

- Os títulos deverão ser devolvidos a ele - disse Eduardo, um trinar de felicidade na voz.

- Seria bom ele se portar com mais decoro do que se portava antes de ir embora - aconselhou o pesado Lincoln.

- Ele aprendeu a lição - disse Eduardo; e pensou: e eu também. Depois que você voltar, doce Perrot, não haverá mais saídas. Posso prometer-lhes que irá se comportar.

Surrey ergueu a mão. Eduardo imaginou que ele praticamente não tinha ido ali por sua livre vontade. Calculou que eles tiveram de discutir com ele, acalmá-lo. Ele jamais perdoaria Perrot por derrotá-lo em Wallingford e tirar-lhe para sempre o título de campeão.

- Gaveston terá de andar com o máximo de cautela - avisou Surrey.

- Prometo que se comportará - bradou Eduardo.

Estava claro que eles tinham concordado com relutância com a volta de Gaveston.

Eduardo não perdeu tempo. Enviou logo o mensageiro. "Volte, irmão Perrot. Estou esperando por você."

Eduardo foi até Chester. Aquela bela cidade que seria o local de encontro dos dois. Enquanto isso, Gaveston partira da Irlanda imediatamente. Chegou como um grande guerreiro, porque mantinha o amor pela pompa e pela cerimónia - com ele próprio no centro. Desembarcou em Milford Haven com uma comitiva de seguidores - irlandeses, ingleses e jascões.

Impaciente, o rei esperava por ele. Ficava de pé em cima daquela muralha construída por Márcio, rei dos britânicos, de prontidão à espera da chegada do amigo. Caminhava pelos três quilómetros de pedra vermelha da muralha e subira ao alto da velha torre quadrada de Júlio César, quando finalmente viu Gaveston chegando.

Pediu um cavalo e saiu a galope ao encontro dele.

Ali, os dois se abraçaram.

- Perrot, Perrot, meu adorado. Finalmente você voltou. Gaveston olhou ansioso para o rosto do rei.

- Nada mudou - disse ele, - Diga-me que nada mudou.

- Está tudo como sempre esteve, querido amigo-assegurou-lhe orei.

A rainha ficou furiosa. Então tinham trazido Gaveston de volta! Eduardo estava totalmente apaixonado por ele. Aquilo a enojava. Até ali, ela não ficara grávida. Se tivesse, poderia ter ficado mais calma. Era de enlouquecer o fato de ela, uma das mais bonitas rainhas, ser tão desprezada. Um dia, ela se vingaria.

Se não fosse rainha, teria arranjado um amante. Havia muitos que estariam prontos a correr grandes riscos por ela. Mas não, nem mesmo ela tinha coragem. Não podia haver dúvida alguma quanto ao sangue real de seus filhos. Seria a velha batalha com Gaveston outra vez.

Ela percebeu, com uma certa exultação, que Gaveston era ingénuo. Fora banido mais de uma vez, e deveria estar prevenido; mas parecia que a presunçosa vaidade do homem seria a sua derrota, como acontecera em outras ocasiões. Depois de sentir o poder dos barões, ele deveria ter feito o possível para manter-se nas boas graças deles. Deus sabia que eles haviam cedido com relutância. Mas, não! O Perrot de Eduardo não podia esquecer-se de que era o favorito do rei; queria governar o país por meio do rei, e era isso que estava tentando fazer. Quanto ao pobre e enfatuado Eduardo, não podia negar coisa alguma ao seu favorito. Aquilo era repugnante.

Mas ela podia observar divertida, porque sabia que a queda de Gaveston não podia estar muito longe. Era dever dela atrair Eduardo para a sua cama quando pudesse. Insistira com ele sobre a necessidade de ter filhos e ele percebia isso. Por Deus, pensava ela, se não fosse isso, eu o desprezaria, Eduardo Plantageneta. Você pensa que não tenho orgulho? Eu, uma princesa da França, ser preterida em favor de um aventureiro de origem baixa!

No fundo do coração, porém, eJa sabia que um dia seria vingada.

Enquanto isso, observava o ingénuo Gaveston pavonear-se pela corte. Via as ofensas que ele fazia com gente de todos os níveis. Estava se tornando cada vez mais insolente e falava em tom audível do Sr. Boele Crevée na presença do conde de Lincoln, chamando atenção para a enorme barriga do conde, e embora homens mais humildes pudessem adotar o apelido de Barriga Explosiva, não admiravam Gaveston por usá-lo.

O cunhado de Gaveston, o conde de Gloucester, que outrora fora um bom amigo seu, irritava-o e ele tivera a desfaçatez de chamá-lo de filho da puta, o que era um desrespeito à mãe dele - Joana, tia do rei.

Gaveston acreditava que a grande estima que o rei tinha por ele dava-lhe o direito de portar-se exatamente de acordo com o seu humor do momento.

Que faça, pensou Isabella. Ele está afiando o machado que, um dia, irá separar aquela insolente cabeça de seus ombros.

Gaveston voltara fazia apenas três meses quando Eduardo convocou um conselho para comparecer a York. Foi desconcertante quando alguns barões, liderados por Lancaster, recusaram-se a comparecer, e quando o rei quis saber a razão, foi-lhe dito com toda a franqueza que era por causa da presença de Gaveston.

- Estão todos com inveja de mim - disse Gaveston, jubiloso. Eles têm inveja do amor de vossa majestade.

Mas ele não pensava realmente que fosse aquela a razão. Eles o invejavam porque ele era mais rico, mais bonito e muito mais inteligente do que eles.

- Maldito seja o conselho deles - acrescentou ele. - Venha sentar-se, majestade, e conversemos sobre outros assuntos que não essa enfadonha comunidade de obtusos imbecis.

- Não deve falar assim das minhas relações, seu malvado.

- Como já lhe disse muitas vezes, majestade, as perfeições concedidas à sua família foram todas poupadas para vossa majestade.

Por isso, os dois riram e fizeram careta para os barões, mas aqueles que os cercavam sabiam que estavam caminhando para uma repetição do que acontecera antes.

- Vamos fazer uma peça para o Natal - sugeriu Gaveston. - O que me diz, majestade?

- Você sempre soube como me distrair.

- Então, iremos até Langley e passaremos o Natal lá, juntos. Ah, como fico contente só em pensar nisso!

- Fico transbordando de alegria por ter você de volta ao meu lado - disse Eduardo com carinho.

E assim passaram o Natal em Langley, em Hertfordshire, divertiram-se bastante e, durante dias, foram felizes juntos. Eduardo cobriu Gaveston de presentes e, calculando o valor deles, Gaveston achou que fora mesmo um agradável Natal que eles passaram em Langley.

Fevereiro chegou, e estava na época de comparecer ao Parlamento em Westminster. Eduardo e Gaveston seguiram para o sul juntos, lamentando o fim da feliz temporada do Natal.

Os dois sabiam que haveria encrenca. O que acontecera em York fora um indício. Ali seria mais grave. Ali era Westminster. Se qualquer um dos barões se recusasse a comparecer ao Parlamento e desse como motivo a presença de Gaveston, isso teria de ser levado a sério.

Eduardo estava deprimido, com um medo terrível de que aquilo fosse significar uma nova separação. Gaveston parecia mais otimista.

- Vamos encontrar uma saída, doce senhor-disse ele.-Deixe por minha conta.

- Você é inteligente, Perrot, eu sei - replicou Eduardo. - Eu odeio esses homens! Acho que, acima de todos, odeio Warwick. O apelido que você deu a ele é adequado.

Ele parece um cão raivoso, e eu tenho medo de cães raivosos. A mordida deles pode significar a morte.

- Vamos tirar os dentes dele, majestade, antes que tenha tempo de nos inocular o seu veneno.

Mas foi como Eduardo temia. Warwick, Oxford, Arundel e Hereford, liderados por Lancaster, recusaram-se a comparecer. O motivo da ausência foi o de antes. A presença de Piers Gaveston.

Eduardo ficou num dilema. Precisava haver uma sessão do Parlamento, porque ele precisava de dinheiro e só o Parlamento poderia concedê-lo. E também havia uma animosidade no ar, e ele sabia a quem ela era dirigida.

Temia pelo que pudesse acontecer a Perrot.

Os dois discutiram o assunto juntos, e até Gaveston abandonou seu otimismo fácil. Todos estavam dispostos a destruí-lo, e ele sabia disso.

- Você precisa sair daqui - disse o rei. - Fico com o coração partido, mas tem de ir. Não poderei ficar em paz enquanto você estiver aqui, porque tenho medo do que lhe possa acontecer. Parta imediatamente para o norte. Irei ter com você assim que puder. vou convocar o Parlamento e ele irá se reunir, porque você não estará mais comigo.

Era uma atitude drástica. Era de revoltar. Mas os dois entendiam que uma separação combinada por eles próprios era melhor do que uma que lhes fosse imposta.

E assim se separaram, e Gaveston cavalgou em direção ao norte.

Foi uma infelicidade o fato de mais ou menos nessa época o conde de Lincoln ter morrido. Ele afastara-se do rei por causa de Gaveston e ficara profundamente ofendido pelo insolente apelido de Barriga Explosiva que lhe deram, mas embora fosse um tanto corpulento, tinha sido uma influência constante e conquistara o respeito de Eduardo I. O segundo Eduardo fora tão diferente do pai que Lincoln resolvera mudar sua fidelidade, o que ele achara ser o certo para o país.

Sua morte representou um golpe muito duro para o rei porque Thomas, conde de Lancaster, que se casara com a filha de Lincoln, herdou, com a morte deste, os condados de Lincoln e Salisbury por intermédio da mulher. Como Lancaster já tinha, além do nascimento na realeza, os condados de Lancaster, Leicester e Derby, ele era, sem dúvida alguma, um dos mais ricos e mais influentes homens do país.

Sendo sete anos mais velho do que o rei e consideravelmente mais maduro, ele se tornara, da noite para o dia, um poder ainda maior do que antes no país. Mostrara ser um dos mais ferrenhos inimigos de Piers Gaveston e, com Lincoln morto, barões descontentes esperavam que ele liderasse a facção que iria exigir o banimento definitivo de Gaveston.

O rei estava muito preocupado.

Eduardo não perdera tempo para juntar-se a Gaveston com o pretexto de guerrear contra a Escócia, e estava em Berwick quando recebeu a notícia da morte de Lincoln e da ascensão de Lancaster aos condados.

Era bom estar bem longe do conflito.

- Sabe, majestade, devíamos agradecer aos seus inimigos, os escoceses - comentou Gaveston.

Os dois riram juntos e conversaram naquele estilo íntimo que tanto encantava o rei, e perguntavam-se por quanto tempo seriam deixados em paz para desfrutar da companhia um do outro.

O prazer foi interrompido por um comunicado de que Lancaster estava se dirigindo ao norte a fim de jurar vassalagem ao rei pelos condados de Lincoln e Salisbury, que ele acabara de adquirir. Àquele, dizia ele, devia ser o seu primeiro dever.

- Maldito seja - bradou Eduardo. - Nunca confiei nesse homem.

- Ele agora vai ficar insuportável - concordou Gaveston, e acrescentou, invejoso: - Vai ser o homem mais rico do reino... sem exceção.

- O meu Perrot deve estar em segundo, mas muito perto dele disse o rei, carinhoso.

- Mas cinco condados! Ele vai-se achar mais importante do que orei.

- Ele achava isso com três.

- Precisamos encontrar um jeito de reduzir um pouco a importância desse sujeito arrogante, majestade.

Eduardo concordou, mas era Lancaster que iria reduzir a importância de Gaveston.

Um dos homens de Lancaster chegou a Berwick com uma mensagem de seu senhor.

O rei ouviu o que o homem tinha a dizer e ficou rubro de tanta raiva.

Gaveston estava com ele, e sua indignação foi tão grande quanto a do rei, porque a mensagem de Lancaster dizia que ele se recusava a ir até Berwick. Ele devia vassalagem ao rei por suas terras na Inglaterra, e como Berwick ficava do outro lado da fronteira, na Escócia, não ficaria bem ele ir até onde estava o rei. O rei deveria ir ao encontro dele.

- Nunca ouvi falar de tamanha insolência! - bradou Gaveston. Eduardo ficou contrafeito.

- Haverá quem diga que ele tem razão. Berwick está, mesmo, do outro lado da fronteira e estamos em território da Escócia.

- Quer dizer que vai ceder a esse homem.

- O senhor conde disse que se vossa majestade não aceitar a vassalagem dele, ele terá de voltar para o sul sem ela - disse o mensageiro.

Eduardo percebeu o que aquilo significava. A qualquer momento, Lancaster poderia levantar um exército contra ele - e era capaz e rico bastante para isso-e não ficar sujeito às penas da lei, porque não jurara vassalagem.

- Não há nada a fazer, a não ser atravessar a fronteira e encontrarme com ele - disse Eduardo. - Ele tem de fazer o juramento de vassalagem.

Gaveston teve de concordar, e o rei mandou o mensageiro de volta com o recado de que receberia Lancaster em Haggerston, um lugarejo próximo a Berwick e que ficava logo depois da fronteira com a Inglaterra.

Lá, os dois se encontraram - um Lancaster muito arrogante e enriquecido, e um Eduardo um tanto humilhado, acompanhado de Gaveston, que sentia vontade de fomentar discórdia e, ao mesmo tempo, sentia-se excessivamente invejoso em relação àquele homem cujos berço e casamento lhe haviam proporcionado cinco condados e tudo a que eles davam direito.

O rei recebeu a vassalagem do conde com Gaveston ao lado. O comportamento de Lancaster foi muito correto no que dizia respeito ao rei, mas o desprezo com que ignorou Gaveston foi evidente. Eduardo ficou furioso, mas nada podia fazer sobre isso em público, embora vociferasse contra Lancaster em particular.

Quanto a Gaveston, estava furioso, e com a sua fúria misturava-se uma profunda preocupação. Ele percebera que o poderoso Lancaster era o mais acirrado de seus inimigos, depois de Warwick, e com aqueles dois - e muitos outros - contra ele, sua situação tornava-se realmente muito precária.

Lancaster partiu, e Eduardo e Gaveston voltaram paraBerwick, mas sabiam que não podiam continuar juntos por muito mais tempo. O rei tinha de ir para Londres, para outra sessão do Parlamento.

Temerosos, os dois deixaram Berwick juntos, mas a separação estava próxima.

- Que seja no castelo de Bamborough - disse Eduardo.-É uma fortaleza resistente, e eu vou ter a sensação de que você está a uma distância suficiente de Westminster para ficar a salvo até que possamos estar juntos outra vez.

Assim, seguiram para Bamborough, e no imponente castelo, situado no alto de um rochedo perpendicular dando para o mar, tiveram uma dolorosa despedida.

O rei cavalgou em direção ao sul, decidido a desafiar os barões, enquanto Gaveston, no interior dos muros de pedra de Bamborough, analisava seu caso. Ele mantivera as boas graças do rei por um longo tempo, muito mais longo que ele ousara esperar. Era um homem rico. Fora prudente ao levar grande parte de sua riqueza para fora da Inglaterra, porque sempre estivera ciente de que um dia poderia perder tudo o que ficasse ali. Suas propriedades e seus bens na Gasconha eram imensos. A qualquer momento, ele podia fugir para eles. Mas adorava tanto ter bens que nunca resistia ao desejo de conquistar mais. Gostava muito do rei. Sentia-se altamente lisonjeado por ser tão adorado por ele. Eduardo fora fiel desde a época da infância dos dois, e Gaveston era inteligente bastante para saber que sua fama e sua fortuna apoiavam-se inteiramente nas boas graças do rei. Mas chegaria o dia em que ele deveria deixar aquele rico campo, muito embora ainda houvesse muito a ser recolhido. Teria de escolher aquele momento e não deixar que a avareza dominasse seu bom senso.

Em Bamborough, aquele castelo que estava sobre o seu rochedo desde a época em que os romanos o haviam construído, ele podia olhar para um mar tempestuoso e pensar no seu destino, como tantos outros tinham feito antes dele. Bamborough, batizado em honra à rainha Bebba, esposa do rei Ida dos anglos, que transformara a fortaleza

romana num castelo, só podia oferecer um refúgio temporário. Ele caminhava pelas muralhas e pensava em Eduardo e perguntava-se qual seria o resultado daquela visita a Westminster.

"Banir Gaveston!" Era o que eles queriam.

Eram fortes demais para ele. O caso era: Gaveston tem de ir embora, ou haverá uma guerra civil.

Será que um dia um rei fora tão perseguido assim? Eles queriam privá-lo da coisa mais importante sobre a terra para ele, e ele, o rei que poderia ter mandado em todos eles! Nunca se deveria ter deixado que os barões ficassem tão poderosos. Eles tinham obrigado o seu bisavô, rei João, a assinar a Magna Carta, e desde então o rei não governava tanto o país quanto os barões.

Guerra civil. Meditou sobre ela. Seria insuportável. Imaginou ele e Perrot fugindo deles, sendo capturados e, depois, o que fariam a Perrot? Iriam matá-lo como um traidor. Era o que queriam fazer. O banimento era a melhor alternativa. Pelo menos ele saberia que Perrot estava vivo e aguardando o momento em que pudesse voltar.

Eduardo tentou resistir, mas foi inútil. Eles estavam decididos a fazer com que Perrot deixasse o país. Ele argumentou; chegou até a implorar. Eles permaneceram inflexíveis. Gaveston tinha de ir embora.

Gaveston tentou consolá-lo.

"Meu amigo", escreveu ele, "se me banirem, eu voltarei. Achaque eles podem nos manter afastados para sempre? Não, nós vamos superar isso, como fizemos nas outras ocasiões. Mantenha o ânimo, meu caro senhor."

Não adiantava. Ele estava desolado.

Os barões tinham dado o ultimato. Gaveston tinha de deixar o país até o primeiro dia de novembro, ou seria preso.

Isabella estava com o rei outra vez. Tratava-o com frieza, mas não o reprovava. Estava tão ansiosa por ter um filho que se achava pronta a pôr de lado a raiva pelo tratamento que ele lhe proporcionava. Um dia, iria vingar-se dele, mas sabia que a hora ainda não chegara. Nada adiantava escrever para o pai e reclamar. Ele não tinha tempo para ouvi-la. Estava ocupado demais com seus problemas; continuava com a perseguição dos templários e Jacques de Molai ainda era seu prisioneiro, aguardando a sentença de morte dada pelo papa.

Isabella lamentava o fato de os barões não terem matado Gaveston.

Ainda estavam, talvez, com um pouco de medo de Eduardo, caso contrário poderiam tê-lo feito. Eles insistiam no exílio perpétuo para Gaveston. A morte teria sido melhor, porque enquanto ele vivesse Eduardo continuaria a ansiar por ele.

Ainda assim, devia mostrar-se suficientemente agradável para o marido, a fim de garantir a visita dele ao seu quarto de vez em quando. Era aborrecido, humilhante ao extremo, mas, claro, necessário.

Eduardo estava sempre à espera de mensageiros que lhe trouxessem notícias do seu querido Perrot. O que estaria ele fazendo agora? Quem estaria beneficiando-se de seu brilhante espírito e do puro prazer de olhar para a sua bela e graciosa forma? Haveria alguma coisa que pudesse fazer para ajudar o adorado amigo? Aqueles barões severos tinham proibido que ele fosse para a Gasconha, de modo que devia estar perambulando pela França, sem saber onde encontrar refúgio. O rei da França não o ajudaria. Devia ter recebido informações maldosas sobre ele, por intermédio de Isabella. Eduardo não podia culpar Isabella por sua atitude para com Gaveston. Tinha de ser justo com ela. Fora uma esposa tão boa quanto ele esperara. Ele estava pronto a admitir que sua paixão por Perrot devia ser um sofrimento para ela. Era por isso que, sempre que pudesse dispor-se a isso, iria passar algum tempo ao lado dela. Ficaria tão encantado quanto ela ao saber que estava grávida. Aquilo aliviaria muito sua consciência.

O que podia ele fazer para minorar o seu sofrimento? Vivia pensando em Perrot e nos lugares em que os dois tinham estado juntos, e tinha por hábito visitá-los e tentar reviver aqueles tempos felizes.

Wallingford! com que frequência tinham estado lá naquele antigo castelo à margem esquerda do Tamisa. Ele sempre gostara do castelo, desde que, ainda criança, ouvira falar que o seu grande antepassado Guilherme, o Conquistador, fora convidado até lá pelo saxão Wigod, que era o dono, para receber a vassalagem dos principais nobres antes de marchar para Londres.

Perrot adorara o castelo. Fora ali que ele se destacara naquele inesquecível torneio, quando humilhara a tal ponto os campeões, que eles jamais o perdoariam.

O Natal chegaria em breve. Como seria triste sem Perrot!

Houve uma delicada batida à porta. Ele deu permissão para que entrassem. Arregalou os olhos. Depois, a violenta alegria tomou conta dele.

- Perrot!

- Nada menos-exclamou Gaveston.-Uma vez mais, enfrentei perigos para estar com o meu senhor.

Estavam um nos braços do outro, e Eduardo tremia com a alegria violenta que o dominava.

- Então você voltou para mim, Perrot, meu amigo adorado!

- Não sou andarilho, Eduardo. Quero ficar com o meu querido rei. Nada me importa, desde que estejamos juntos.

- Perrot, o que vão dizer? O que eles vão fazer?

- Isso fica para amanhã-disse Perrot, jovial.

O rei o manteve a seu lado. Os dois não suportariam ficar separados. Perrot não podia mais ficar longe. Para onde iria ele, ainda que fosse possível ser feliz longe do seu rei? Holanda? França? A primeira o entediava, e dificilmente ele seria bem recebido pelo pai da rainha. A Gasconha, sua terra natal, lhe era negada. Ele cerrava os dentes ao se lembrar de todos os tesouros que guardara em segurança na Gasconha. Mas aquela não era a verdadeira resposta. Fora a necessidade de estar com o seu adorado rei que o fizera enfrentar a ira dos terríveis barões. O que eles poderiam fazer? Haveria encrenca quando se soubesse que voltara. Ele recebera ordens de ir embora e dera a palavra de que iria.

- Por você, meu rei, eu quebraria mil juramentos-disse Gaveston.

- E eu por você, querido amigo.

A rainha ficou furiosa quando soube da volta de Gaveston. Foi até Wallingford e apareceu de sopetão diante do rei. Felizmente, foi num daqueles momentos em que Gaveston não estava com ele.

- Gaveston está louco-bradou ela.-Os barões mandaram que ele saísse do país.

- Os barões terão de aceitar o fato de que ele voltou.

- Eduardo, você quer mergulhar este país numa guerra civil?

- Você é muito dramática, Isabella. Não pode haver guerra porque um homem volta a este país quando querem que ele fique fora.

- Pode haver - disse Isabella -, e vai haver.

Ela pensou em sua recente passagem por Londres e em como o povo a ovacionara. Isabella, a Bela, era como a chamavam. As pessoas adoravam ver a sua fulgurante beleza e sentiam-se indignadas porque o rei a ignorava. Não podiam entender como ele podia preferir aquele seu afetado amigo à sua bela rainha. Quanto mais aumentava o ódio do público por Gaveston, mais Isabella era adorada. Por estranho que parecesse, o povo não culpava tanto o rei quanto Gaveston. Talvez se ele tivesse sido menos atraente, menos alto, menos parecido com o pai, as pessoas poderiam tê-lo culpado. Mas Eduardo era o seu rei ungido, a herança do pai dele para elas, e queriam que ele continuasse sendo o rei, mas que se comportasse como o pai.

Isabella sabia que tinha o povo do seu lado. O que ela queria era um filho homem - um filho que se parecesse com o pai e fosse como o avô, e então o povo teria muito prazer em cerrar fileira em torno dele, e tomando conta dele, naturalmente, estaria suamãe. Talvez então Isabella pudesse devolver os insultos que tivera de aceitar de Eduardo e Gaveston.

Mas ainda não seria agora. Como podia ficar grávida quando as atenções do marido eram tão esporádicas? Dormiam juntos apenas por um dever da parte dele e ambição por parte dela. Um dia, prometia a si mesma, teria um amante com uma natureza apaixonada à altura da sua. Mas, primeiro, precisaria ter um filho. Estava ansiosa por isso; rezava por isso; e isso era a única razão pela qual abafava o desprezo e o ódio que sentia pelo marido.

Até certo ponto, ela exultara com o retorno de Gaveston, porque ao voltar ele desafiara os barões e o arcebispo de Canterbury. Sabia que nenhum deles iria aceitar com humildade um desprezo tão espalhafatoso pela palavra que ele dera. Estava fermentando um problema sério para Gaveston, e se ele e o rei estavam apaixonados demais um pelo outro para perceber, que passassem as horas com frivolidades, por enquanto, antes que o destino os alcançasse.

Ela estava com a razão. Chegaram notícias de Londres. Ficara-se sabendo que o favorito quebrara o juramento e voltara. Ficara-se sabendo que ele estava com o rei e que Eduardo ficava com ele os dias e as noites inteiros.

Grupos de homens treinados como soldados marcharam pelas ruas de Londres. Queriam que o favorito perdesse a cabeça na Inglaterra, já que não queria perder-se no estrangeiro. Isabella era uma santa. Londres a amava tanto quanto odiava Gaveston. Era a mulher tripudiada, a bela princesa que os encantara, que eles tinham acreditado que iria fazer do rei deles um homem. E o que acontecera? Ele não lhe dava atenção.

Tratava-a com desprezo; passava as noites na libertina companhia de Piers Gaveston, cuja mãe, diziam os rumores, fora queimada por ser uma feiticeira. Gaveston herdara, evidentemente, alguns de seus poderes, porque enfeitiçara por completo o rei. Queriam o sangue de Gaveston. Queriam que ele fosse levado para Londres e que sua cabeça fosse cortada e espetada na Ponte de Londres.

O que era ainda pior, os barões estavam se reunindo. Era impensável que fossem permitir que Gaveston zombasse deles. O arcebispo de Canterbury, o velho Robert de Winchelsey, excomungou Gaveston por quebrar o juramento feito aos barões. Isso amedrontou Eduardo, mas Gaveston não deu importância.

- O velho tolo - disse ele. - Já estava na hora de ter morrido. Você devia fazer de Walter Reynolds seu arcebispo de Canterbury. Ora, eis aí um homem que trabalharia para você.

- vou nomeá-lo - bradou Eduardo - assim que Winchelsey morrer... e ele não pode durar muito mais tempo.

- Se ao menos ele estivesse no cargo agora.

Até mesmo Gaveston estava com um pouco de medo da excomunhão. Eduardo percebeu que o apetite do amigo diminuía e que ele perdera um pouco de sua fulgurante saúde.

Isabella sabia que os barões estavam se reunindo e iriam marchar contra Eduardo. Se ao menos eu tivesse um filho, um menino que fosse herdeiro do trono!, pensou ela. Então, acredito que eles estariam prontos a depor Eduardo e fazer de meu filho o rei e eu, a mãe, seria a regente, porque o povo me ama e quer me recompensar pelas injustiças que tenho sofrido através de Eduardo. Era verdade. O povo envergonhava-se de seu rei. O fato de ele se casar com uma bela princesa francesa e ignorá-la em troca de um vaidoso favorito era uma desgraça. O povo sentia vergonha de seu rei inglês. Sim, o povo estaria com ela e contra o marido enquanto ele mantivesse Gaveston a seu lado.

Um filho! Como ela ansiava por um filho, rezava por um filho, e usava de todas as artimanhas que conhecia para atrair Eduardo para sua cama. Havia uma coisa que poderia levá-lo até lá, e era o dever e a ideia de que tão logo ela ficasse impregnada com a sua semente ele poderia ser deixado em paz.

Enquanto isso, Gaveston definhava e o rei ficava desolado. Se eles estivessem em Londres, ele teria mandado que seu médico ficasse ao lado da cama do amigo. Adotou a segunda melhor opção e mandou buscar o melhor médico do norte, Guilherme de Bromtoff. Gaveston iria recuperar-se, disseram a Eduardo. Ele precisava de repouso.

- vou dar a ele uma poção para fazê-lo dormir. É de repouso que ele precisa, mais do que qualquer outra coisa.

Enquanto Gaveston dormia, Eduardo sentou-se ao lado de sua cama até que a rainha deslizou em silêncio para dentro do quarto.

- Como vai ele? - sussurrou ela.

- Ele murmura enquanto dorme.

- Ele está ciente de sua presença aqui. O médico disse que ele precisa de paz e repouso. Deixe-o, Eduardo. Deixe que durma sozinho. Ele vai se recuperar melhor.

- E se ele acordar e quiser a minha presença?

- Nesse caso, vai mandar chamá-lo. Neste momento, ele está cônscio de que você está aqui e fica preocupado por não poder falar com você.

Por fim, Eduardo deixou-se levar. No quarto dele, a rainha o acalmou com uma bebida especial feita de leite quente, cerveja e vinho que as mulheres faziam na França para provocar o ardor dos amantes. Levou-o para a cama dela e, com a ajuda de suas atenções, suas orações, e talvez da bebida, naquela noite ela ficou grávida.

Gaveston recuperou-se lentamente. A primavera chegara, e não seria de esperar que os barões deixassem que ele continuasse a zombar deles. Os Lordes estatutários, os condes, barões e bispos que tinham redigido os estatutos para a reforma do reino, tinham-se reunido e jurado defendê-los e, por esse motivo, estavam prontos a marchar contra o rei, porque ao receber Gaveston e devolver-lhe as possessões Eduardo os desafiara abertamente. Estava claro que ele precisava aprender uma lição.

Lancaster, com o poder recém-adquirido, era o mais importante dos condes. Tinha seu próprio exército particular. Ficou combinado que os condes e os barões deveriam organizar torneios em seus castelos, onde homens preparados para a guerra deveriam reunir-se. Quando estivessem prontos, iriam juntar-se todos e marchar rumo ao norte, onde o rei e Gaveston estavam vivendo juntos. Prenderiam Gaveston, e se o rei fizesse objeção, não restaria outra coisa a não ser pegar em armas contra Eduardo.

Era uma situação perigosa, e esperava-se que o rei percebesse o quanto era grave.

Eduardo percebera. Para sua grande alegria, Gaveston recuperarase por completo e havia outro motivo para regozijo. Isabella estava grávida.

Eduardo estava encantado. Ninguém podia dizer que ele não cumprira com o seu dever. Rezava com fervor para que fosse um menino.

Era o mês de maio. Isabella concebera em fevereiro e seu estado começava a se fazer notar. O rei, com sua comitiva, fora para Newcastle e lá ficaram sabendo que os hostis barões se aproximavam.

- Temos de partir logo - bradou o rei. - Para onde podemos ir? Perrot, o que será de você se cair nas mãos deles?

- Eles vão inventar alguma acusação contra mim, sem dúvida, e mandar minha cabeça enfeitar a Ponte de Londres.

- Não fale assim, eu lhe peço. Vão ser todos enforcados antes de eu permitir uma coisa dessas.

- Meu rei, você teria condições de impedir isso? - disse Gaveston, com tristeza.

A rainha entrou às pressas. Estava com medo do que pudesse acontecer à criança.

- Venham, não vamos esperar aqui - disse ela. - Vamos fugir logo. Se formos para Tynemouth, poderemos tomar um barco para Scarborough, e isso nos dará tempo para pensar.

- Isabella está certa - disse Eduardo. - Vamos, Perrot. Chegaram logo a Tynemouth e, lá, Eduardo ordenou imediatamente que um barco fosse preparado para eles.

- Vamos descansar uma noite e partir pela manhã. A maré será propícia e nos levará para um lugar em segurança.

Isabella voltou para o seu quarto, deixando os amigos juntos.

Ficou imaginando o que os barões iriam fazer com Gaveston quando o capturassem, porque isso ocorreria dentro em pouco.

Pensou nos inimigos dele, principalmente em Lancaster. Sentia uma grande atração por Lancaster, e ele por ela. Ouvira dizer que o casamento dele não era feliz. Alice de Lacy levara para ele seus condados de Lincoln e Salisbury, mas pouca felicidade. Não gostava do marido e não fazia segredo de seus sentimentos. Ele não ligara para a antipatia dela e dizia-se que arranjava muitas amantes. Era o barão mais poderoso do país, e Isabella unha atração pelo poder. Ela jamais poderia amar o seu marido. Era fraco demais, e aquele traço de sua natureza que o tornava o apaixonado escravo de Gaveston a deixava enojada.

Lancaster lideraria os barões contra Gaveston, e como Eduardo se aliara ao amigo, isso queria dizer contra Eduardo. Que ingénuo era aquele homem com quem a tinham casado! Será que ele não via que estava pondo o trono em risco? Os dois, ele e Gaveston, eram loucos. Pareciam cegos quanto ao ponto para o qual a loucura os estava levando. Por que Gaveston não podia ter-se portado com decoro? Por que tinham eles que ostentar seu relacionamento, de modo a que ficasse evidente para todos? Por que Gaveston tinha de exibir seu espírito inquestionável e zombar de homens que eram muito mais poderosos do que ele? Como Eduardo se tornara escravo dele de maneira tão completa?

Pouco importava. Um dia seria diferente. Se aquela criança que ela gerava fosse um menino...

A rainha dormiu de forma intermitente aquela noite, pois o sono foi perturbado por sonhos e vagas movimentações pelo castelo; de manhã ela compreendeu a razão daquelas perturbações.

Quando suas aias chegaram para fazer-lhe a toalete, viu logo que havia algo de errado.

- É melhor me contarem logo - ordenou, séria.

- Majestade, o rei foi embora. Ele e o conde da Cornualha partiram antes do amanhecer.

Ela não respondeu. Não queria que as aias soubessem o quanto se sentia zangada e humilhada. Esperou.

- Majestade, dizem que o conde de Lancaster está a apenas poucos quilómetros do castelo e marchando nesta direção... vindo, segundo dizem, para levar o conde da Cornualha. O rei ficou tomado de ansiedade e ele e o conde partiram logo.

Então eles tinham ido embora, deixando-a para enfrentar os inimigos dele. Como os odiava, tanto Eduardo como Gaveston! Que consideração Eduardo tinha por ela, a esposa que estava para dar à luz o seu filho? Nada importava para ele, desde que Gaveston estivesse a salvo.

- Então-disse ela-o conde de Lancaster está perto do castelo.

- Há quem diga que está cercando o castelo com seus homens, majestade.

- É tudo "dizem" e "há quem diga". É melhor me ajudarem a me vestir. Preciso estar pronta para os inimigos do rei, quando vierem me procurar.

Ela escondeu muito bem a raiva que fervilhava. Que ousadia, a dele! O que aquelas criadas estavam pensando? Então é assim que o rei trata a esposa. Não tem a menor preocupação com ela. Para ele, tudo o que importa é o seu amante Gaveston. Ele devia pagar por isso, um dia. Oh sim, um dia a humilhação com que ele a tratara deveria ser paga com juros. Assim que aquela criança nascesse... e se fosse um menino... Deus permita que seja um menino. Então, Eduardo, o marido infiel, deveria tomar cuidado.

A rainha estava vestida. O frio brilho por trás dos olhos, quando nada, aumentava sua beleza. Ficava alucinada quando via aquele fulgurante reflexo, aquela destacada beleza que fizera com que menestréis a cantassem na corte de seu pai, porque aquilo não exercia efeito algum sobre seu marido. Por que não a tinham casado com um homem?

- Agora - disse ela - vou saber o que está acontecendo. Lancaster a colocou a par. O castelo não podia oferecer resistência

alguma. Além do mais, a rainha não estava certa de que queria que isso acontecesse.

Lancaster entrou a pé no castelo, e quando soube da fuga do rei com Gaveston durante a noite, pediu uma audiência com a rainha.

Fez uma acentuada mesura e beijou-lhe a mão. Seus olhos diziamlhe que ele a achava uma mulher extraordinariamente bonita e, como tal, prestava suas homenagens a ela.

- Majestade - disse ele -, peço-lhe que me perdoe por essa intromissão.

Ela sorriu e pensou: "Por que não era Lancaster o rei? Eu não teria reclamado se ele tivesse sido meu marido." Podia ter sido assim, com muita facilidade. O pai dele tinha sido irmão de Eduardo I e ele era, portanto, primo em primeiro grau de Eduardo, marido dela.

Tinha sangue real; era poderoso e rico; e era homem por inteiro.

- Intromissão?-Ela ergueu as sobrancelhas e virou a cabeça em direção à janela pela qual via que o exército particular de Lancaster estava acampado em torno das muralhas. - É uma maneira branda de expressar o fato. O senhor e seus homens tomaram o castelo?

- Majestade, enquanto a senhora estiver aqui, eu jamais o permitiria. Viemos à procura do traidor Gaveston, que quebrou sua palavra e voltou para a Inglaterra e que está excomungado.

- Quem dera que eu o pudesse entregar ao senhor. Ele e o rei partiram pouco antes de sua chegada.

- Então ele escapou por entre os nossos dedos. Não tenha receio. Iremos alcançá-lo.

- O rei está com ele, senhor conde. Lancaster sacudiu a cabeça, sério.

- É uma pena, mas se for assim, ele terá de aceitar as consequências.

- O que quer dizer? O senhor veio enfrentar o rei?

- Majestade, eu vim prender Gaveston.

- E se o rei não o entregar?

- Mesmo assim, teremos de pegá-lo.

- Isso poderia significar... guerra?

- Guerra por um aventureiro que nada vale! Não, vamos esperar que não chegue a esse ponto. Mas estamos decididos a pegar Gaveston. Então vossa majestade não seguiu com eles.

- Não.-Ela não conseguiu esconder o veneno que havia na voz.

- Eles não pensaram em salvar-me de seus perseguidores. Pensaram apenas neles mesmos.

- Não há motivos para vossa majestade ter medo.-Ele dera um passo em direção a ela. - Eu a protegerei contra todos os que lhe possam fazer mal.

- O senhor é um bom amigo para mim, primo.

- Majestade, eu a servirei à custa de minha vida. Esteja certa de uma coisa: nada de mal lhe acontecerá enquanto eu estiver por perto para protegê-la.

- Obrigada, conde Lancaster. Ao me proteger, o senhor pode muito bem estar protegendo o seu futuro rei.

Ele teve um sorriso lento.

- É mesmo, majestade? Neste caso, devemos nos alegrar.

- Obrigada, primo.

Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.

- vou livrá-la de Gaveston - disse ele. - Prometo-lhe que ele não viverá por muito mais tempo para atormentá-la.

- Como o senhor sabe, ele enfeitiçou o rei.

- Isso é feitiçaria. A mãe dele era uma feiticeira. Está na hora de ele ser afastado, e se não deixar o país, teremos de adotar medidas para fazer com que deixe este mundo.

- O que o senhor vai fazer agora?

- Persegui-los, majestade. Não há outra coisa a fazer. Pembroke e Warenne estão em marcha com soldados. O rei não tem chance alguma de salvar Gaveston. Descanse aqui, majestade. Prometo-lhe que nada de mal lhe acontecerá.

Ela estendeu-lhe a mão.

- Eu me lembrarei disso, primo.

Ele se curvou e retirou-se, os olhos demorando-se nela como se achasse difícil desviá-los.

Depois que o conde saiu, ela prestou atenção aos sons no castelo. Estavam à procura de indícios para onde a dupla tinha ido. Em pouco tempo iriam descobrir que tinham partido por mar. Deveriam estar chegando a Scarborough. Por isso, Pembroke e Warenne marchavam para o norte, e Lancaster marcharia para o sul.

Eduardo teria de entregar-lhes Gaveston, caso contrário, haveria uma guerra civil.

Graças a Deus pelo filho. Se ao menos fosse um menino, ela poderia olhar o futuro com muita animação. Estava cansada de Eduardo, e aquilo era mais humilhante porque, se ele tivesse gostado dela, poderia ter-se apaixonado por ele. Seria difícil encontrar um homem mais bonito. Era enlouquecedor e humilhante o rei tê-la abandonado à própria sorte a fim de fugir com Gaveston. Como iria ele saber que seus inimigos não iriam considerar-se inimigos dela também? No entanto, a deixara, grávida, para enfrentá-los. Que homem digno desse nome faria isso? Se ela tivesse tido uma centelha de afeto por Eduardo, esse afeto, agora, acabara.

Pensou em Lancaster... se não tivesse sido rainha, se não tivesse de gerar o filho do rei... Ela vira na expressão de seus olhos, quando ele a olhara, que a achava desejável.

O conde tinha fama pelos casos com mulheres. Era compreensível. Ele não gostava de Alice, sua mulher, que também não gostava dele. Se alguma vez houvera um casamento por conveniência, tinha sido aquele. Mas ele pouco tinha a reclamar. Sem dúvida que Alice tinha. O casamento dera ao conde os condados de Lincoln e Salisbury. O que o casamento dera a Alice? A rainha pensava nela e se perguntava se ela não teria arranjado um amante.

Se ao menos... pensou a rainha. Como teria sido fácil com um homem como Lancaster. Ele demonstrara claramente que iria considerar-se um felizardo se ela o chamasse. Os dois seriam discretos... mas não havia discrição que pudesse salvá-la do escândalo. E ela tinha de produzir os herdeiros do trono.

Isabella era uma mulher voluptuosa, mas era ainda mais ambiciosa.

Queria o poder através dos filhos. Queria humilhar o homem que a humilhara. Talvez mais do que qualquer outra coisa, queria vingança.

A rainha estava em segurança em Tyneside. Lancaster lhe prometera que nada de mal lhe aconteceria. Iria livrá-la de Gaveston, dissera ele. Era uma promessa que ela sabia que ele faria o possível para cumprir. Sentiu-se tranquila. Suas aias diziam que com toda a certeza o filho seria menino. Ás sábias empregadas idosas tinham certeza disso, pela aparência dela. Ela se cuidava. Nada podia sair errado. Precisava ter uma criança saudável. E se até ela nascer Lancaster tivesse cumprido com a palavra e a tivesse livrado de Gaveston, quem sabe qual seria o resultado?

Precisava ter mais filhos. Claro que eles não iriam nascer de um ato de amor. Nunca, nunca perdoaria Eduardo pelo seu último insulto. Deixá-la junto com o filho deles, ainda não nascido, para os seus inimigos, era demais para suportar. Como ele iria saber que seus inimigos poderiam ser amigos dela?

Era necessário, diziam suas aias, fazer exercício. Ela não devia andar a cavalo. Poderia ser prejudicial à criança, e por isso ela passou a caminhar pelos campos e bosques em redor do castelo, e foi ali, um dia, que encontrou o menino Thomeline. Pobre e miserável órfão. Estava seminu, sujo e amedrontado e, no entanto, tão desesperado que ousou aproximar-se da rainha e pedir uma esmola.

Suas acompanhantes o teriam afastado para longe e ela teria evitado o contato com ele, mas ela hesitou. Talvez fosse devido ao filho que estava esperando que estivesse interessada em crianças. Não tinha certeza, mas algo nos olhos do menino a emocionara de uma maneira inexplicável, porque ela não era uma mulher sentimental que meditasse sobre os erros de outras pessoas.

- Não - disse ela -, deixem o menino falar. O que você quer, menino?

- Estou com fome, rainha - respondeu ele.

- Onde está seu pai?

- Morreu.

- E sua mãe?

- Morreu, também. Os soldados mataram eles. Os escoceses atravessaram a fronteira. Queimaram nossa cabana e levaram tudo o que tínhamos.

- E deixaram você viver?

- Eles não me encontraram. Eu estava escondido no mato. Eles não me viram.

- Dêem a esse menino roupas e dinheiro no valor de seis xelins e seis pence - ordenou ela.

- Majestade! - bradaram as aias. - Ele é um mendigo, com histórias de mendigos.

- Ele é uma criança-respondeu ela -, e eu acredito nele. Façam o que mandei.

O menino caiu de joelhos e beijou a beira do vestido da rainha.

Ela seguiu em frente, pensando na sua reação. Havia muitos órfãos no mundo. Por que ficar transtornada por um deles?

Mas ela gostara que o menino a fizesse parar. E depois ficou satisfeita por ter agido daquela maneira, porque ouvia as aias conversando sobre a sua piedade e suas boas ações. Precisava da opinião favorável dos súditos do marido. Quando se afastassem dele, deveriam voltar-se para ela.

Pensou bastante no menino, e poucos dias depois quis saber se suas ordens tinham sido cumpridas com relação a ele, e pediu que o levassem à sua presença.

Ele chegou vestindo a roupa nova e ficou diante dela olhando-a com admiração.

- Muito bem, garoto-disse ela -.então você comeu e tem boas roupas.

Os olhos dele encheram-se de lágrimas e ele se ajoelhou e preparou-se para beijar o vestido dela, mas ela disse:

- Levante-se. Venha para perto de mim. Onde você dorme à noite? Os olhos dele brilharam de satisfação.

- Tem um velho barraco. Os escoceses não se deram ao trabalho de queimar ele. Eu encontrei ele. Lá me protejo contra o frio.

Isabella observou como ele era magro. Precisava de cuidados. Isso era óbvio.

- Depois que eu for embora daqui - disse ela -, você voltará a passar fome.

Ele confirmou com a cabeça. Depois, sorriu:

- Mas sempre vou me lembrar da senhora. Nunca vou esquecer que vi a rainha.

- Quando estiver com frio e com fome e pessoas maiores e mais fortes o expulsarem do barraco, você irá se esquecer de mim.

- Nunca vou me esquecer - disse, incisivo.

- Então será sempre meu súdito leal?

- Eu morreria pela senhora, rainha.

- O que fiz foi pouco - disse ela. - Eu gastaria o que lhe dei com faixas para usar na minha cintura.

- E é assim que deve ser - disse o menino -, porque a senhora é bonita como nenhuma outra foi antes da senhora. A senhora é uma rainha e um anjo vindo do céu.

- Sou uma rainha para todos, mas apenas um anjo para você. vou fazer com que fique gostando mais de mim, meu pequeno Thomeline. Não vai tornar a passar fome, nem dormirá no barraco. Que tal ir para Londres? Mas como pode saber? Não tem ideia do que é Londres, certo? Tenho um organista lá. Ele é francês e se chama Jean. Ele tem uma esposa chamada Agnes. Ela sempre quis ter filhos, mas nunca pôde. Por isso, vou dar a ela um garotinho e, a você, uma mãe e um pai. Que acha disso?

- Eu ia poder ver a senhora, rainha?

- É bem possível que sim.

- Por favor, posso ir?

- Você irá. Será bem vestido e alimentado e aprenderá muitas coisas. Precisa de boa comida, porque não é muito forte. Eles vão transformá-lo num menino saudável.

- Será que vão me querer como filho deles?

- Vão, se eu mandar.

- A senhora pode fazer qualquer coisa, rainha.

Isabella mandou darem um banho nele e vesti-lo, e ficou com ele a seu lado por algum tempo. Gostava da adoração do menino. Ela atenuava a ferida deixada pela deserção de Eduardo. A fé do menino em sua bondade e o óbvio desejo de Lancaster por ela lhe eram de grande consolo.

Mandou um mensageiro ao seu organista francês, Jean, e à mulher dele, Agnes, para lhes falar sobre a chegada do menino e dizer que ela esperava que o tratassem como um filho.

Depois, mandou-o para Londres. Ele relutou em ir, não porque não quisesse, mas porque aquilo significava deixá-la. A vida dele sofrera uma mudança impressionante - o órfão que fora obrigado a sobreviver sozinho era, agora, alimentado com regularidade; estava tendo aulas. De vez em quando, sentava-se ao lado da rainha.

Por isso, quando teve de ir embora, ficou muito triste e, embora também lamentasse vê-lo partir, a rainha gostou de seus sentimentos para com ela.

Estava impressionada consigo mesma. Não era uma mulher compassiva e delicada. Talvez o motivo de ter-se preocupado com Thomeline fosse o fato de ir ter um filho. Além disso, a extasiada adoração do menino fora irresistível.

No entanto, havia um vínculo entre os dois.

Ela pensou: "Se chegar a hora de eu ficar contra Eduardo, ali estaria um de meus súditos leais."

- Rainha - disse ele, porque ela gostara de vê-lo dirigir-se a ela dessa maneira e nunca o impedira de fazer isso -, a senhora tem feito tudo por mim. O que posso fazer pela senhora?

Ela sorriu delicada para ele.

- Reze para que eu tenha um filho saudável... um menino que vá gostar tanto de mim quanto você.

- vou rezar para isso, rainha. Mas não é possível. Ninguém pode amar a senhora como eu... nem mesmo o seu filho.

Depois que ele partiu, a rainha pensou no quanto aquele interlúdio fora agradável.

Eduardo e Gaveston tinham chegado a Scarborough.

- Seria melhor pararmos aqui - disse Eduardo, e Gaveston concordou com ele.

Scarborough, na verdade, oferecia um refúgio ideal. Como o nome dava a entender, tratava-se de um rochedo fortificado. Acima da baía erguia-se um alto e íngreme promontório, no ponto mais alto do qual ficava o castelo. Fora construído durante o reinado do rei Estêvão, e Eduardo I, com frequência, ali reunira a corte com grande esplendor, porque Scarborough era de fácil acesso por ser um porto, e em sua baía era constante o movimento de navios que chegavam e partiam em várias direções. Naquele castelo podia-se ficar protegido assim como fugir, em caso de necessidade.

Gaveston estava menos exuberante do que Eduardo já vira, e o rei temia pela segurança do amigo. Afinal, ele faltara com a palavra ao voltar para Inglaterra e provocara a inimizade de quase todos os barões do país.

- Estaremos a salvo aqui, querido amigo - disse Eduardo, mas sabia que aquele refúgio seria temporário, e depois de terem descansado da viagem e ficado deitados conversando, concordaram que não podiam descansar em paz por muito tempo.

Na verdade, no dia seguinte ao de sua chegada, descobriram que os membros da guarnição do castelo, embora não fossem abertamente desleais para com o rei, conversavam sobre o que teriam de fazer se os barões tentassem tomar o castelo.

Persistiam rumores de que os soldados de Lancaster estavam a caminho.

- O que nós podemos fazer? - bradou Eduardo. - Acha que podemos defender o castelo?

- Por algum tempo, talvez - replicou Gaveston.

- Se eu pudesse reunir uma força...

- Não pode fazer isso aqui, majestade.

- Não. Mas eu sou o rei. Poderia convocar homens para a minha bandeira. Eles iriam apoiar o rei. Eles não gostam de Lancaster. Acha que eles seguiriam Pembroke ou Warenne? Acredita que o Cão Raivoso poderia levantar um exército contra nós?

- Poderiam, sim - replicou Gaveston. - Mas talvez não o fizessem se você tivesse um exército... homens leais que apoiassem a coroa.

- Neste caso, sairei daqui. vou, primeiro, a York. Reunirei meu exército e depois virei a Scarborough e o salvarei, Perrot. Você precisa resistir até eu chegar.

Por um raro momento sem egoísmo, Gaveston pensou no que o rei se propunha a fazer. Iria reunir um exército a fim de enfrentar Lancaster e os que vinham capturar Gaveston. Porque seu amigo, o rei, estava disposto a mergulhar numa guerra civil.

Tinha de impedi-lo. Aquilo poderia fazer com que Eduardo perdesse a coroa. Mas, para onde deviam ir? Fugir juntos? Era impossível. Não, a única maneira era Eduardo desafiar os barões, ficar ao lado do amigo e dizer a eles: "Vocês baniram Gaveston, mas eu o trouxe de volta. Reconduzi-o à sua posição e sou o rei."

Sim, era a única maneira.

- Farei o possível para resistir até você voltar com seu exército - disse Gaveston.

- Então, meu adorado amigo, preciso me despedir já.

- Nós iremos nos encontrar outra vez, querido senhor. Um dia mostraremos a esses enfadonhos barões quem é o rei. Você e eu mostraremos a eles, Eduardo... juntos.

- Juntos - disse Eduardo -, sempre juntos, até o fim de nossos dias.

Os inimigos de Gaveston estavam às portas do castelo. Á guarnição oferecia apenas uma fraca resistência e estava ficando claro, a cada hora que passava, que não tinha ânimo para lutar.

Gaveston tentou agir, mas sentiu-se derrotado. Como poderia o rei reunir um exército e chegar até ele a tempo? Seus criados não gostavam dele. Ele jamais se preocupara em cultivar-lhes a amizade. Na verdade, nunca pensara em ninguém, a não ser em si mesmo. O rei adorara-o tanto quanto ele se adorava, e antigamente não houvera necessidade de acalmar ninguém. Tinha tudo o que queria, dado pelo seu apaixonado rei.

E agora que o rei estava ausente, não havia ninguém em quem ele pudesse realmente confiar.

Observou uma acentuada mudança na atitude dos criados. Havia uma certa insolência velada, e ele julgava a opinião deles sobre suas chances pela maneira como o tratavam. Claro que sempre havia a possibilidade de que o rei pudesse reunir seu exército e voltar para salvá-lo, e por isso eles não ousavam ir muito longe. Por isso agiam daquela maneira.

Por quanto tempo poderia resistir? Como estava o abastecimento do castelo? Lá fora, Pembroke e Warenne pareciam ter-se instalado para ficar à espera. Sem dúvida que dentro em breve Lancaster iria juntar-se a eles. Seus inimigos ferozes, todos eles.

Um dos criados pediu permissão para entrar na sala em que ele se achava desconsoladamente sentado.

- É um mensageiro dos exércitos que estão lá fora, senhor conde. Ele pergunta se o senhor receberia o conde de Pembroke, que gostaria de falar com o senhor.

- O quê? Deixar que ele entre no castelo. Pembroke!

- Ele viria sozinho e desarmado, senhor. Quer falar com o senhor... para estabelecer condições.

- Eu o receberei - disse Gaveston. - Ele é um homem que se orgulha de sua honra. Sou capaz de jurar que é por isso que o enviam.

Aymer de Valence, conde de Pembroke, estava diante de Gaveston.

Pembroke era um homem orgulhoso. Era filho do meio-irmão de Henrique III - um terceiro filho, mas os irmãos tinham morrido enquanto o pai vivia e ele herdara o título.

Suas ligações reais, seu importante título, sua riqueza e seu poder tinham-no transformado numa força no país; mas era um homem que se orgulhava de manter a palavra. Sua máxima favorita era a que dizia que honra e Pembroke eram sinónimos.

Olhou para Gaveston com antipatia. Não o perdoara pela derrota na justa de Wallingford e sabia que por ter cabelos pretos, ser pálido, e seu nariz ter a tendência de ser aquilino, Gaveston se deliciava em referir-se a ele como José, o Judeu. Desde o banimento dos judeus por Eduardo I, o epíteto era ainda menos lisonjeiro do que antes. Gaveston calculou que Pembroke era homem de guardar rancor.

Pembroke foi direto ao assunto.

- O castelo está cercado. Podemos toma-lo com facilidade. Talvez você prefira entregar-se sem reagir.

- Por que iria me entregar? O rei está a caminho com um exército para me salvar.

- Não acredita que homens iriam aderir ao rei para salvar você. Não há, na Inglaterra, um homem mais desprezado. Isso eu lhe digo.

- O rei está confiante de que reunirá um exército.

- Neste caso, o rei está vivendo num sonho. Ele jamais levantará um exército para salvá-lo, Gaveston.

- Existem homens leais na Inglaterra.

- Leais à Inglaterra, mas não a um aventureiro gascão.

- Você se esquece de que está falando com o conde da Cornualha?

- Sei muito bem com quem estou falando. Vamos, homem, seja sensato. Quer entregar-se com dignidade ou ser levado à força?

Gaveston ficou em silêncio por alguns momentos. Era verdade o que Pembroke dizia. Seria uma operação simples tomar o castelo. Eles o pegariam de forma ignóbil, talvez o acorrentassem. Pembroke era um homem honrado. Sabia que um ato daqueles poderia provocar a guerra civil e não queria lutar contra o rei. Sua pendência não era com Eduardo mas com Gaveston. Mas iria agir, caso necessário. Warenne não hesitaria em tratá-lo com indignidade, porque ele, mais do que qualquer outro, jamais o perdoara pela justa em Wallingford.

Gaveston sabia que aquela poderia ser a sua única oportunidade de chegar a um acordo. Tomou uma decisão rápida.

- Se eu me render a vocês - disse ele -, será com a condição de que poderei ver o rei e terei um julgamento justo.

Pembroke hesitou. Seria imprudente Gaveston e o rei tornarem a se encontrar. Mas Gaveston deveria receber um julgamento justo. Não tinha dúvida de que havia provas suficientes contra ele para condená-lo à morte. Ele fugira de Tynemouth com tanta pressa que deixara para trás inúmeros bens, entre os quais havia algumas jóias da coroa. Gaveston alegaria que o rei as dera a ele, mas isso não iria salvá-lo. Ele não tinha direito de tê-las em seu poder. Além do mais, fora repetidas vezes um traidor da Inglaterra. Retornara quando fora banido.

Levá-lo agora... facilmente... submetê-lo a julgamento, seria um triunfo. Warenne concordara com ele que não queriam derramamento de sangue.

- Assim será-disse Pembroke.

- Tenho a sua palavra de homem honrado.

- Tem - foi a resposta.

Pembroke retirou-se do castelo para informar a Warenne o acordo realizado.

A viagem para o sul foi lenta. Gaveston era um prisioneiro e sabia disso. Cavalgava entre Pembroke e Warenne e nunca lhe permitiam ficar longe dos olhos de um deles. À noite, guardas dormiam do lado de fora de sua porta.

Todo dia, ele aguardava um sinal da parte do rei. Procurava por indícios de que o exército dele estava-se aproximando. Não havia sinal algum. Então, disse a si mesmo que devia ser sensato. Quem iria lutar por causa de Gaveston? Os ingleses queriam que o rei abandonasse o amigo e vivesse normalmente com a sua bela rainha.

Por fim, chegaram a Northampton e, numa noite de junho, entraram na cidade de Deddington, perto do Tamisa, e ali decidiram descansar.

Pembroke, acompanhado de Warenne, escolheu uma casa na cidade e nela Gaveston passaria a noite bem vigiado.

Os dois prosseguiram até um castelo que ficava a poucos quilómetros de distância, onde sabiam que uma boa recepção os esperava.

Um terrível senso de presságio tomara conta de Gaveston. Fazia mais de um mês desde que se tornara prisioneiro deles e muito em breve iria a julgamento. Não tinha visto o rei e perguntava-se o que Eduardo estaria fazendo àquela hora. Que não conseguira reunir um exército, estava claro. Será que ele sabia o que aqueles homens estavam fazendo com o seu adorado amigo?

O sono não vinha fácil, e ansiava por ele. A única hora em que se sentia em paz era quando conseguia mergulhar em sonhos. Aí, voltava ao passado com Eduardo ao seu lado, alimentando-o com os doces do poder, mostrando-lhe de uma centena de formas que ninguém, -a não ser o seu Perrot, significava algo para ele. Às vezes, os sonhos tomavam a forma de pesadelos. Os inimigos cercavam-no e à frente deles estava um homem com uma cara que parecia de um cachorro... um cão raivoso espumando pela boca, mandíbulas babando, tentanto saltar para agarrá-lo pelo pescoço. De todos, tinha mais medo de Warwick. Pembroke era, de fato, um homem honrado, orgulhoso de sua realeza, de seu bom nome. Warwick, não. Era o mais cruel dos barões. Depois, havia Lancaster, que o odiava e que, segundo Gaveston soubera, prometera à rainha que iria destruir o homem que ela odiava mais do que qualquer outra pessoa no reino - o próprio Gaveston.

Talvez ele e Eduardo não tivessem dado à rainha a importância necessária. Ela parecera muito insignificante. Eduardo admitira que achava enfadonhos os momentos passados com ela, porque eles o tiravam do seu adorado, e que não escondia isso dela. A rainha exibira uma calma fora do comum, o que talvez pudesse ser um ressentimento reprimido. Ela inspirara em Lancaster uma decisão de destruí-lo, porque Lancaster, segundo se dizia, parecia apaixonado por ela.

A rainha aparecia em seus sonhos, o belo rosto uma máscara de resignação que escondia as verdadeiras emoções. Estranho que ele fosse pensar naquilo agora. Devíamos ter prestado mais atenção na rainha. Aquilo girava sem parar na sua cabeça. Era absurdo. O que uma mulher podia fazer? As mulheres talvez fossem mais perigosas do que alguns homens, porque agiam de modo mais misterioso. O ódio era evidente nos olhos de José, o Judeu, na fisionomia astuta de Lancaster e nos espumantes lábios do Cão Raivoso Warwick. Mas como podia saber que maquinações estavam sendo feitas por trás do bonito rosto de Isabella, a Bela?

Ele foi despertado de um sonho agitado. Havia ruídos lá embaixo. Ouviu os gritos dos guardas e, depois, o silêncio. Sentou-se de um salto, mas antes de poder levantar-se a porta foi aberta e figuras de seu sonho estavam ao lado da cama.

Warwick, o Cão Raivoso, olhava para ele.

- Então, meu belo jovem, nós o pegamos, hein? - disse ele. Gaveston ergueu os olhos para aquela cruel cara carrancuda, notou a saliva em torno dos lábios finos e disse, numa tentativa de usar o seu cinismo de costume:

- Quer dizer que o Cão Raivoso de Arden chegou à reitoria de Deddington.

- Isso mesmo - bradou Warwick. - Ele está aqui. Vai levá-lo para o lugar em que você merece estar. Tome cuidado, pois caso contrário ele poderá agarrá-lo pelo pescoço e matá-lo.

- Não pode tocar em mim. Tenho a palavra do conde de Pembroke. Terei um julgamento justo e falarei com o rei.

- Desde quando o conde de Pembroke dá ordens a Warwick? Levante-se. Senão, vamos levá-lo assim como está... nu. As masmorras de Warwick não foram feitas para oferecer conforto. Seja inteligente e vista-se com roupas que o aqueçam. Se fizer isso depressa, ainda poderá ter tempo.

- Eu protesto...

- Levem-no como está, então - bradou Warwick.-Ele gosta que o vejamos tal como a natureza o fez. Ele se acha mais bonito assim do que nas mais finas roupas. Pode ser, Gaveston, mas a nossa natureza não nos permite admirar isso. Levante-se. Se não, chamo meus guardas.

Gaveston apanhou as roupas e, sob os olhares de Warwick, vestiu-se depressa.

Em torno do pescoço ele usava uma corrente incrustada de jóias e havia vários anéis nos dedos. Era tudo o que levara consigo de Scarborough.

Warwick percebeu-os.

- A corrente foi um presente do rei francês ao nosso rei – disse ele. - Os anéis também são da família real, certo? Como você adora jóias. Jóias da coroa, de preferência. Você as roubou do Tesouro.

- Não roubei. Não roubei. O rei me deu... tudo...

- Ah, deu. Deu a honra dele, a consideração de seu povo e, talvez, o reino. Guardas. Levem-no.

- Terá de responder ao conde de Pembroke. Ele me deu sua palavra.

- Deixe o conde de Pembroke comigo. Você deveria estar preocupado consigo.

Ao sair para o ar noturno, ele sabia para onde estavam indo e um terrível desespero encheu-lhe o coração.

Quando Pembroke chegou à reitoria a fim de se preparar para continuar a viagem, ficou horrorizado ao saber que Warwick levara o prisioneiro.

- Isso é imperdoável - bradou ele. - Eu dei a minha palavra pela segurança de Gaveston. Isso é uma mancha na minha honra.

Estava num dilema, pois jurara ao rei que nada de mal aconteceria a Gaveston, e comprometera suas terras nisso.

Pouca coisa poderia ter sido mais perigosa para Gaveston do que cair nas mãos de Warwick; e Pembroke sabia que se alguma coisa acontecesse ao favorito, o rei ficaria muito alucinado de dor e insistiria para que tirassem as terras de Pembroke.

Pembroke apelou a Warwick, que riu dele e declarou que Gaveston era seu prisioneiro e continuaria assim. Lancaster, Hereford e Arundel estavam a caminho de Warwick, onde decidiriam o destino de Gaveston.

Aflito, Pembroke foi procurar o jovem conde de Gloucester, primo de Eduardo, porque a irmã do rei, Joana, era sua mãe. Gloucester ficara neutro no caso de Gaveston porque sua irmã Margaret era a mulher de Gaveston. Pobre Margaret, mulher de um homem como aquele era um título nulo, e há muito tempo ela deixara de admirá-lo, o que na época do casamento, quando era muito jovem, ela fizera porque ele era muito bonito. Mas quando soubera da verdadeira natureza dele, mudara seus sentimentos. No entanto, ao mesmo tempo Gaveston tornara-se membro da família, e em geral as famílias mantinham-se unidas, embora Gloucester não tivesse apoiado Gaveston, porque o favorito o ofendera certa vez, ao chamá-lo de filho da puta-uma pejorativa referência à sua mãe, a princesa Joana, que se casara com o velho Gloucester e quase que imediatamente depois da morte dele voltara-se para Ralph de Monthermer e casara-se com ele em segredo.

Gaveston estivera muito confiante em si mesmo, naquelaépoca. Ele era um doidivanas, como uma encantadora libélula deleitando-se ao sol dos favores reais, jamais fazendo uma pausa para pensar que as nuvens baroniais poderiam erguer-se e cobri-lo.

Gloucester deu de ombros diante da sugestão de Pembroke, de que deviam unir-se e tomar de assalto o castelo de Warwick para resgatar o favorito.

- Não espera que eu entre em guerra por causa de Gaveston! bradou ele, pasmo.

- O rei estaria do nosso lado.

- O rei... contra Warwick, Lancaster, Arundel e Deus sabe quantos mais! Você quer mergulhar este país numa guerra civil por causa desse homem?

- Eu dei minha palavra.

- Neste caso, deveria ter-se esforçado mais para não deixar de cumpri-la.

- Parecia bem seguro. Ele estava bem vigiado. Warwick chegou durante a noite com uma força esmagadora.

- Você nunca devia tê-lo deixado sozinho. Por que não o levou para o castelo com você?

- Agora eu sei disso. Mas na ocasião parecia seguro. Gloucester deu de ombros.

- Hipotequei minhas terras ao rei em troca da segurança dele implorou Pembroke. - vou perder tudo.

- Então isso vai ensiná-lo a ser melhor negociador na próxima vez.

- Mas prometeu-se a ele um salvo-conduto.

Gloucester recusou-se. Não conseguia apagar a visão da cara de Gaveston, os olhos falseando, a boca ligeiramente erguida num dos cantos. "Aquele filho da puta do Gloucester..."

Gaveston iria pagar, agora, pela fúria que ele provocara no coração de homens poderosos.

Chegara a vez deles.

Lancaster, Hereford e Arandel tinham chegado ao castelo de Warwick.

- Então você está com ele aqui - disse Lancaster.

- Ele está numa das masmorras. Perdeu sua fala bombástica. Agora está cheio de medo quanto ao que planejamos para ele.

- E devia estar, mesmo - replicou Lancaster, sério.

- O que faremos com ele? - perguntou Warwick.

- Não se deve deixar que ele viva-salientou Lancaster. - Cada dia que ele estiver vivo pode significar perigo. E se o rei reunisse um exército e viesse pegá-lo? Qual seria a nossa posição, então?

- Estaríamos lutando contra a coroa - declarou Warwick. Guerra civil. Houve muitas nos reinados de João e Henrique.

- Só há uma coisa a fazer - disse Lancaster, conciso. Temos de pronunciar a sentença e executá-la. O homem é um traidor. Roubou as jóias da coroa. Uma fortuna em bens valiosos foi abandonada em Scarborough. Ele está excomungado. Merece a morte, e num julgamento seria considerado culpado. Senhor conde, só há uma coisa que temos de fazer. Temos de executar a sentença antes que haja mais encrencas.

- Ele merece a morte dos traidores.

- Enforcado, estripado e esquartejado. Sim, mas como? Além do mais, ele está ligado, pelo casamento, à irmã de Gloucester, o que lhe dá um vínculo com a família real. Basta que ele perca a cabeça.

- Quem vai desferir o golpe? - perguntou Hereford, olhando de Warwick para Lancaster.

- Aquele que o fizer correrá perigo - alertou Arundel.

- Não é hora de pensar nisso - retrucou Lancaster, ríspido. - O golpe deve ser dado. Ele tem de perder a cabeça.

- Quando? - perguntou Arundel.

- Hoje à noite.

- Tão logo, assim?

- Ora, homem, quem sabe o que pode acontecer amanhã? bradou Lancaster. - E se o rei chegasse para tirá-lo de nós?

- Não haverá paz neste país enquanto ele viver-disse Warwick.

- O povo vai levantar-se contra o rei se Gaveston voltar para ele. O povo não gosta desse relacionamento entre os dois. Quer que ele fique com a sua rainha. Quer um outro homem como o pai dele foi... um homem de família que dê herdeiros ao país.

- O grande Eduardo I nos deu o nosso rei atual. Ele foi grande em tudo, exceto numa coisa: em dar um herdeiro.

- Não fale assim, senhor conde. Isso é traição.

- Traição... entre amigos. Sabemos que tudo isso é verdade.

- Pode ser. Mas vamos livrar o país de Gaveston e ver o que acontece depois.

- Ele tem de desaparecer.

Todos concordaram com isso. Mas quem iria desferir o golpe? O homem que o fizesse seria inimigo do rei para sempre.

Chegaram a uma conclusão. A mão que matasse Gaveston deveria ser desconhecida. Os nobres condes seriam meros espectadores, e os homens que aplicassem os golpes deveriam ser humildes soldados cuja identidade desapareceria quando se misturassem aos seus companheiros.

Era a única maneira.

- Venha, Gaveston - falou Warwick. - Está na hora de partir.

- Para onde?

- Para onde o Cão Raivoso o levar.

- Você nunca se esquece disso, não é?

- Há coisas que jamais são esquecidas.

- Você guarda mais rancor contra mim por chamá-lo assim do que por derrotá-lo nas justas em Wallingford.

- Pare. Não há tempo para pilhérias desse tipo. Você devia estar fazendo suas orações.

- Então, vão me matar?

- Você receberá o que merece.

- E o meu julgamento justo? E meu encontro com o rei?

- Eu não prometi nada disso.

- Você terá de responder perante Pembroke.

- Isso não lhe interessa, Gaveston. Você devia estar rezando pela sua alma suja.

- Há pouco tempo para isso, agora.

- É verdade. Pois o use.

Levaram-no para fora do castelo. Ele viu os nobres condes montados a cavalo, à espera. Estavam imóveis como estátuas feitas de pedra.

Colocaram-no sobre um cavalo. Ele saboreou os odores e sinais da noite. A boa terra; o cheiro do capim; o céu escuro, pontilhado de estrelas. Nunca observara a beleza deles antes. Adorara o azul da safira, o forte vermelho do rubi, o brilho do diamante, porque eles tinham representado os símbolos da riqueza e do poder. Agora, queria saborear outras belezas, mas era tarde demais.

Para onde o estavam levando? Para longe de Warwick? Por que, perguntava-se. O Cão Raivoso estivera ansioso por levá-lo, mas talvez não estivesse tão ansioso assim por participar de sua morte.

Percebeu, então, que Warwick não estava entre eles.

Lancaster seguia à frente com Hereford e Arundel. Estavam entrando em propriedades de Lancaster, que faziam divisas com as de Warwick e não podiam ter avançado mais do que uns poucos quilómetros.

Estariam indo para Kenilworth?

Mas não. Tinham parado.

Mandaram que ele desmontasse. Ele obedeceu e uma tropa de soldados o cercou.

Avançaram a pé; Gaveston com eles, então. Tinham chegado a um morro que ele conhecia de outros tempos. Blacklow Hill. Lembrava-se de ter passado por ali quando estava em companhia de Eduardo. Era estranho não ter tido premonição alguma daquilo.

Os três condes não o seguiram. Sabia o que isso significava. Estavam com medo. Queriam vê-lo morto, mas não queriam fazer isso com as próprias mãos. Aquela era uma tarefa para outras pessoas. Então aquele era o momento.

Os soldados estavam à sua volta. Ele ficou ao pé do morro. Olhou para trás. Seu último olhar para a terra: o morro escuro à sua frente; o silêncio da noite quebrado apenas pelo murmurar de um riacho próximo. Os odores da terra, a beleza da terra... tanta coisa que nunca tivera tempo de observar antes.

Olhou para os vultos dos três condes montados em seus cavalos. As sentinelas das portas da Terra, berrando para ele: você não pode entrar, Gaveston. Está banido... banido da vida.

Alguém se aproximara. Ele teve apenas tempo de ver o brilho do aço. Depois, escuridão e ele estava caindo... Sua vida fora encerrada por uma mão desconhecida, mas aqueles homens montados em seus cavalos, calados, imóveis como pedra, eram os responsáveis pelo seu assassinato.

Percebeu um movimento impetuoso em seus ouvidos. Vingança, Vingança, parecia dizer, e depois outra coisa... talvez a sua própria voz.

Eduardo... Eduardo... isto é o fim.

Warwick, aguardando no castelo, estava com medo do que tinham feito. Deviam ter esperado, levado-o a julgamento, pois seria considerado culpado. Mas tinham feito justiça com as próprias mãos.

Ele o capturara, levara para o castelo de Warwick e mandara avisar Lancaster. Mas não os tinha acompanhado até Blacklow Hill.

Houve uma batida forte à porta do castelo. Ela ecoou estranhamente pelos tetos abobadados.

Warwick abriu a porta. Dois homens estavam ali. Carregavam um corpo sem cabeça.

- Ele não existe mais, senhor conde. O conde de Lancaster está com a cabeça. Trouxemos o corpo para o senhor.

Warwick recuou e olhou para os horríveis restos mortais daquele outrora gracioso corpo que enfeitiçara o rei.

- Levem-no! - bradou ele. - Levem-no daqui! Não quero ter nada a ver com isso.

- Senhor conde, para onde quer que o levemos?

- Levem-no... - procurou pensar. - Para qualquer lugar bradou ele -, mas para longe daqui. Levem-no para os dominicanos em Oxford. Eles darão a ele um refúgio temporário.

O aspecto dele era muito selvagem, com a espuma na boca - era, realmente, o cão raivoso de Gaveston.

Os homens saíram depressa. Sabiam que Gaveston não podia ser enterrado em terreno sagrado. Ele morrera excomungado e cheio de pecados.

Só Lancaster assumiu a responsabilidade pela morte de Gaveston. Ele desprezou os outros pelo medo que tiveram. Os demais tinham odiado aquele homem tanto quanto ele, e tinham concordado que devia morrer.

Nada poderia ter salvado Gaveston perante um tribunal. Ele desobedecera às leis. Roubara uma fortuna do rei. Não, nada poderia tê-lo salvado.

- Não tenho medo - disse Lancaster. - O rei vai me odiar por isso, mas o povo estará do meu lado. A rainha irá me aplaudir. Prometi livrá-la desse homem, e assim Fiz. Por que iria ter medo do rei? Tenho meu exército particular. Tenho tanto sangue real quanto ele. Se o rei não pode governar o país, outros terão de governá-lo em seu lugar.

Thomas Lancaster acreditava que podia admitir com audácia a execução judicial de um malfeitor, ladrão e um homem que ameaçava a paz do país.

- Gaveston está morto - disse Lancaster. - Seguiremos daqui para a frente.

 

QUANDO O REI soube do assassinato de Gaveston, os que o cercavam pensaram que sua dor fosse deixá-lo maluco. Durante dias, trancou-se em seus aposentos e não quis ver ninguém. Seus assistentes o ouviam lamentando-se em seu sofrimento. Encontrava algum alívio em clamar vingança contra Lancaster, Warwick, Hereford e Arundel, os responsáveis pela morte do melhor homem sobre a Terra.

Ninguém conseguia consolá-lo naqueles primeiros dias, mas depois a rainha insistia em ir procurá-lo.

Estava com a barriga grande, agora, e vê-la parecia dar ao rei um certo consolo.

Ela fingia compaixão, mas não sentia nada, apenas júbilo porque Gaveston estava morto. Ela pensara com frequência em Lancaster e na ardente expressão nos olhos dele quando dissera: "vou livrá-la de Gaveston."

Ele fora sincero. Correra grandes riscos e tirara Gaveston da vida deles para sempre.

Eduardo falava demais sobre os talentos de Gaveston. Ela fingia ouvir e deixou a mão repousar sobre o filho e pensou: "Nós vamos mostrar a este homem o tolo que ele é, quando você nascer, meu filho. Você crescerá e será um grande rei, e sua mãe estará sempre a seu lado.

O povo despreza seu pai, mas vou dar à Inglaterra um outro rei como o primeiro Eduardo, e o povo irá receber você em lugar de seu ignóbil pai." Como ela o desprezava - os olhos vermelhos de tanto chorar, seus estúpidos comentários sobre as virtudes de Gaveston. Gaveston não tinha virtude alguma. Tudo o que ele tinha era um talento para se autopromover, e nem mesmo era esperto o bastante para isso porque, apesar de tudo o que conseguira durante alguns anos, acabara decapitado em Blacklow Hill.

Agora, ela ficaria vigilante. Faria o seu próprio jogo inteligente. Seria reservada, e ninguém saberia realmente o que lhe passava pela cabeça. Usaria Eduardo para conseguir o que queria. Mas assim que o momento fosse propício, mostraria a ele que nunca fora perdoado pela humilhação que lançara sobre ela. Sempre se lembraria de que quando fora para o lado dele, uma jovem recém-casada pronta para amá-lo, ele a desprezara em favor de Gaveston.

- Matá-lo dessa maneira - disse Eduardo. - Tratá-lo assim. Isabella, não posso suportar a vida sem ele.

Ela acariciou-lhe os cabelos. Como era ingénuo! Tal como uma menina. Mas era realmente bonito. Quem teria acreditado que aqueles fortes traços louros - herdados do pai - ocultavam uma natureza própria de uma menina? Uma pobre e fraca criatura fazendo-se passar por um rei.

Ele agora seria o seu fantoche. Isabella tinha amigos poderosos. Lancaster, sem dúvida alguma, era um deles, e quando a criança nascesse, se fosse menino...

Se! Tinha de ser menino. Queria um menino. E se não fosse... Então ela tentaria, até ter um menino.

- O que posso fazer sem ele, Isabella? Você sabe o que ele significava para mim.

- Ele deve ter um funeral decente - disse ela. - Por que não manda levarem o corpo para Kings Langley? Você tem falado dos dias felizes que passou lá com ele, na sua infância.

Ele agarrou-lhe as mãos.

- Isabella, você é boa para mim. Você me dá coragem. Você me dá esperança.

No íntimo, ela riu. Seu tolo. Não sabe que odeio Gaveston mais do que qualquer um deles? Ele granjeara a inimizade de Warwick ao zombar dele e chamá-lo de o Cão Raivoso de Arden. Deixou outros enfurecidos com a sua língua ferina. Mas ninguém sofreu mais humilhação do que eu por você e, assim como os barões, jamais me esquecerei disso.

- Muito bem, então, vamos pensar no túmulo de Gaveston, e não acha que devem ser feitas orações pela alma dele? Lembre-se acrescentou, maliciosa-de que ele morreu com todos os pecados.

- Gaveston vai encantar os anjos. Ele não precisa ter medo.

- Eles podem não partilhar de suas tendências, Eduardo disse, ríspida. E, então, acrescentou depressa: - Seria bom mandar rezar missas pela alma dele. Estou certa de que entende o que quero dizer.

- Isso será feito. Isabella, deve ser feito depressa. Nada... simplesmente nada deve ser esquecido.

- Vamos providenciar isso juntos - disse ela. -. Mandarei cortar a cabeça de Lancaster por isso.

- Precisa ficar vigilante com relação a Lancaster, Eduardo. Ele é o homem mais poderoso do país.

- Mas eu sou o rei, Isabella. Já se esqueceu disso?

- Eu, não. Mas outros podem ter esquecido. Por mais que você gostasse de Gaveston, o povo não partilhava desse sentimento.

- Ele ouvia mentiras.

- O povo não gostava da influência dele sobre você. Barões como Warwick e Lancaster tinham decidido que ele tinha de morrer. Gaveston nunca deveria ter voltado.

- Se não tivesse voltado, ainda estaria vivo.

- Agora, ele vai descansar em paz em Kings Langley. Eduardo, os barões estão prontos para se levantar contra você. Precisará ter cuidado com Lancaster.

- Lancaster! vou mandar cortar-lhe a cabeça.

- Seu primo. Ele é popular junto ao povo.

- Devo lembrá-la outra vez, Isabella, de que sou o rei.

- Os reis caem. Lembre-se de seu avô Henrique. Houve uma época em que Simon de Montfort o manteve preso. Seu bisavô João passou por uma situação ainda pior.

- Eu gostaria que as pessoas não falassem sempre desses dois. Olhe para o meu pai. Homens tremiam ao vê-lo e ao som de sua voz.

- Eduardo, você não é seu pai.

Ele ficou calado. Até mesmo a menção do pai ainda podia moderálo.

- Ouça - disse ela. - Pembroke e Warenne estão desgostosos com Lancaster, Warwick, Hereford e Arundel. Pembroke lamenta ter sido forçado a faltar com a palavra e está com medo de perder as propriedades para você.

- Ele devia ter tomado mais cuidado.

- Devia, mesmo. Alie-se a Pembroke, Eduardo. Não está vendo que essa divisão entre os barões pode ser a sua salvação? Pembroke e Lancaster estão empenhados numa luta que é maior do que aquela entre você e Lancaster.

- Nada poderia ser maior do que essa luta. Considero Lancaster como o assassino de Perrot.

- Sim, sim. Mas Pembroke é um homem poderoso. O povo admira-o. E devido ao que aconteceu, ele vai ficar com você... e não contra. Não está vendo, o resultado não foi assim tão mal. Rogo-lhe que não comece a falar outra vez das virtudes de Gaveston. Temos de deixar isso para trás. Dê a ele o melhor funeral possível e uma boa chance no céu através de exortações aos santos. Acenderemos nossas velas e que orações sejam feitas pela sua alma. Mas Gaveston se foi, e nós estamos aqui.

Enquanto os dois conversavam, chegaram mensageiros apressados à procura do rei, enviados por Pembroke. Lancaster, Hereford e Warwick estavam marchando sobre Londres. Sabiam perfeitamente que o rei iria agir contra eles e estavam agindo primeiro.

Isabella sorriu no íntimo. Lancaster era um homem destemido. Mas aquele não era o momento de depor Eduardo. Primeiro, o filho dela tinha de nascer. Ela tinha de ter um menino, um símbolo, um novo rei antes que o velho fosse posto de lado.

Gloucester estava lá fora. Um jovem sério e leal ao rei. Ajoelhou-se e beijou a mão de Eduardo.

- E então, primo? - disse Eduardo.

- Majestade, Lancaster marcha sobre Londres. Ele tem um forte apoio. Não se deve permitir que entre na cidade.

- Deixe-o vir - retorquiu Eduardo. - Eu mandaria cortar-lhe a cabeça. Eu mostraria a ele o que sinto por ele agora que me roubou o meu melhor amigo.

- Se ele chegar a Londres, poderá haver uma guerra civil - alertou Gloucester. - Mande fechar as portas, majestade, e avisar aos londrinos que fiquem de guarda.

- Nosso primo tem razão, Eduardo - interrompeu Isabella. Não é hora de conflitos.

E assim foi feito, e o próprio Lancaster ficou aliviado por não haver um conflito aberto. Agora haveria conferências entre os barões que poderiam durar semanas e, enquanto isso, o rei poderia abafar sua dor e, talvez, esquecer sua ira; e talvez a difícil situação fosse atenuada de algum modo. Não era provável que o rei algum dia fosse perdoar os assassinos de seu adorado Gaveston. Mas era sempre melhor deixar as coisas se acalmarem antes de tomar uma atitude precipitada.

A rainha fora para Windsor, para o parto. Finalmente a espera acabara e o desejo de segurar o filho nos braços a obcecava.

Ela escolhera Windsor para o nascimento do filho. Era um de seus lugares favoritos, como fora da rainha Eleanor, que levara os filhos para lá, por considerar as correntes de ar da Torre de Londres prejudiciais à saúde deles.

Isabella estava deitada na cama e pensava como sua vida se alteraria com o nascimento daquela criança. Se fosse menino, tudo teria valido a pena.

As dores estavam começando. Ela recebeu-as de bom grado. Rezava para a Virgem, que devia interceder pelas mulheres.

- Ó Santa Maria, dai-me um filho homem. Esperei muito tempo. Tenho sofrido uma humilhação difícil de suportar para uma mulher de minha índole orgulhosa. Por favor, dai-me um filho homem.

A dor tomou conta dela. Isabella não recuou. Qualquer coisa... qualquer coisa, mas dai-me meu filho.

Perdeu a consciência e foi despertada pelo som de vozes à sua volta. E então... o choro de uma criança.

- Vejam, a rainha está abrindo os olhos - disse alguém.

- Majestade...

Como demoraram! Parecia que o tempo reduzira o seu ritmo.

- Meu... filho...

E então, as benditas palavras:

- Um menino, majestade. Um menino saudável... membros sadios e uma voz boa. Um belo menino.

Um sorriso de triunfo estava em seus lábios quando ela estendeu os braços.

Ela o acariciou. Examinou-o. Era perfeito.

- As pernas são compridas - disse ela. - Será como o avô. Elas observaram que a rainha não falara no pai.

- Ele é bonito. Vejam... os cabelos já são muito claros. Como uma penugem dourada. É um Plantageneta. Isso já é evidente.

Concordaram com ela. As amas murmuravam sobre o menino. Nunca tinham visto uma criança assim, garantiram. Ele ultrapassava todas as outras crianças.

Claro que ultrapassava. Ele seria rei.

- Ele vai se chamar Eduardo - disse a rainha.

- O rei ficará satisfeito.

Ela pensou: "Não é em homenagem a ele. Em homenagem ao avô. Rezo para que não seja como o pai. Não, não pode ser. Alto, belo, másculo. Um grande rei. Mas um rei que ouça o que sua mãe diz."

Eduardo chegou. Olhou para a criança e ninguém o vira tão encantado desde a morte de Gaveston. Ele estava sorrindo. Só por alguns instantes, esqueceu-se do adorado amigo.

- Ele é... perfeito - bradou, incrédulo.

- Isso mesmo-garantiu-lhe a rainha.-Dê-me ele. Não aguento deixar de olhá-lo o tempo todo.

- Meu filho - disse Eduardo, como se estivesse perplexo. Meu filho.

- Seu filho - respondeu ela - e meu.

- Há alegria por todo o país - prosseguiu o rei. - Estão comentando isso na corte. Querem que ele se chame Luís.

- Não vou admitir isso - disse a rainha. - O nome dele é Eduardo. Luís não é nome de um rei da Inglaterra e sim da França. Ele se chamará Eduardo. Não aceitarei outro nome.

Eduardo ajoelhou-se ao lado da cama e beijou-lhe a mão.

- Estou muito orgulhoso dele. Meu filho.

- É, Eduardo - respondeu ela -, e meu também.

O rei pegou a criança no colo e andou pelo quarto com ela.

Esqueceu Gaveston... por uns momentos, pensou Isabella.

Ficou contente ao ver o encanto dele pelo filho, mas suas intenções para com ele não haviam mudado coisa alguma. O rei gerara o filho, e eles precisavam ter mais. Mas o pequeno Eduardo era dela, só dela.

Enquanto jazia na cama com o recém-nascido ao lado, a rainha pensava no futuro. O povo estaria ao seu lado. O povo gostara de sua beleza jovem assim que a vira, e o tratamento que o rei lhe dera deixara as pessoas tão enfurecidas, que imediatamente tomaram o partido dela. O fato de Isabella parecer tê-lo perdoado pelo seu vergonhoso comportamento com Gaveston e agora ter dado ao povo o herdeiro tão desejado fazia com que parecesse uma santa aos olhos dele.

Ela jamais deveria perder o respeito do povo e, em particular, dos habitantes da cidade de Londres.

Portanto, decidiu fazer com que todos soubessem da chegada de seu filho, enviar-lhes uma mensagem pessoal e ordenar que houvesse comemorações por toda a capital.

Escreveu aos cidadãos de Londres:

Isabella, pela graça de Deus rainha da Inglaterra, senhora da Irlanda e duquesa de Áquitânia, aos nossos mui prezados prefeito e edil e à comunidade de Londres, saudações. Visto que, segundo acreditamos, os senhores teriam prazer de receber boas notícias nossas, comunicamos-lhes que Nosso Senhor, em sua Graça, fez com que déssemos à luz um filho homem, no dia 13 de novembro, cora segurança para nós e para a criança. Que Nosso Senhor os proteja. Passado em Windsor na data acima citada.

Enviou mensagens avisando que a cidade deveria ter três dias de comemorações para dar as boas-vindas ao recém-nascido. Haveria vinho nas ruas e a rainha esperava

que não houvesse ninguém que não bebesse à saúde de seu filho. Acreditava que a população saberia como transformar aquilo numa festa alegre e teria prazer em saber que todos comemoravam.

- Deus abençoe a rainha - gritava o povo de Londres. - Deus abençoe o pequeno príncipe.

Havia poucas aclamações ao rei. Mas dizia-se que a oportuna chegada da criança evitara atritos com os barões, porque estavam todos tão encantados com o fato de haver um herdeiro, que agora parecia praticamente improvável que os críticos do rei tivessem alguma chance contra ele. Quanto ao rei, devia esquecer seus ressentimentos contra os que haviam matado Gaveston.

Gaveston estava morto, e bons ventos o levassem.

Havia, agora, um herdeiro recém-nascido. Que o rei passasse a viver com sua bela mulher que era tão popular junto ao povo. Que levasse uma vida normal de casado e gerasse mais filhos.

 

A Maldição dos Templários

NAQUELA OCASIÃO, o arcebispo de Canterbury, Robert de Winchelsey, morreu. Ele andara doente durante algum tempo e era um homem idoso, de modo que sua morte não foi inesperada.

Walter Reynolds, bispo de Worcester, que fora amigo íntimo de Gaveston, pediu uma audiência com o rei, que foi concedida de imediato. Reynolds era um homem ladino. Não foi direto ao assunto, pois achava que até mesmo Eduardo poderia considerá-lo um pouco audacioso. Mas Walter Reynolds sempre fora de opinião que nenhuma consideração de sentimentos devia colocar-se entre um homem e suas ambições. A Sé de Canterbury estava vaga. Um novo arcebispo teria de ser nomeado e, em vista da intimidade de sua amizade com o rei, talvez Walter Reynolds pudesse assumir aquele lugar tão recentemente deixado vago por Robert de Winchelsey.

Reynolds caiu de joelhos e beijou a mão do rei.

- Majestade, majestade, vejo o quanto ainda sofre por causa da nossa terrível perda.

- Estou sempre pensando nele - replicou o rei.

- Como eu também.

- E a maneira da morte dele, Walter, jamais esquecerei ou perdoarei.

- Nem poderia, majestade. Os tempos felizes que passamos juntos...

Os dois falaram sobre aqueles tempos por alguns momentos, Reynolds provocando deliberadamente o desespero do rei. Era mais provável que ele concordasse quando estivesse tomado pela emoção. Afinal, os três tinham estado muito juntos. Reynolds tomara para si a obrigação de proporcionar o conforto deles. Fora Gaveston o primeiro a achar que Walter devia ser recompensado.

- Há o caso de Canterbury - disse Reynolds, por fim.

- Ah, é. Pobre Robert. Jamais gostei dele. Um homem incómodo, mas um homem bom sob todos os aspectos.

- Vossa majestade não vai lamentar vê-lo partir. Precisa colocar no lugar dele alguém de sua confiança.

- Os monges já elegeram Cobham.

- Cobham. Não vai dar certo.

- Eles alegam ter esse direito.

- Mas, majestade, os monges de Canterbury não têm direitos acima dos do rei.

- Eles sempre foram um grupo maçante. Ao longo de séculos, criaram problemas para os meus ancestrais.

- Isso não é motivo para que criem problemas para vossa graciosa majestade. Sujeitos insolentes.

Eduardo suspirou.

- Se ele estivesse aqui, zombaria deles.

- Ele ficaria zangado com o modo pelo qual eles tratam vossa majestade.

- Ele sempre esteve ansioso por me defender- disse Eduardo, delicado. - Sabe, Clemente assinou uma bula há cerca de um mês reservando-se o direito de nomear o arcebispo.

- Clemente! Ele oscila com o vento. O rei francês assobia e ele vai. Há uma coisa que sei que poderia fazer com que ele mudasse de ideia.

Eduardo ergueu as sobrancelhas, e Walter prosseguiu:

- Dinheiro. Pobre Clemente, o que é ele a não ser um fantoche de Filipe? Filipe o tem lá em Avignon, sob o seu nariz. Filipe diz: "Venha cá. Vá para lá." "Faça isso. Faça aquilo." E o que faz Clemente? Obedece. Ele tem perseguido os templários. Por quê? Porque Filipe mandou. Há uma coisa que ele pode fazer sem a ajuda do rei da França, e é juntar dinheiro. Ouvi dizer que faria muita coisa por dinheiro. Eduardo ficou pensativo.

- Ora, Walter, como seria animador se você fosse o arcebispo de Canterbury.

Walter dobrou a palma das mãos juntas e voltou os olhos para o teto.

- Eu iria servi-lo à custa da minha própria vida, querido senhor.

- Então, caiu de joelhos. - Se ao menos isso pudesse acontecer! Não está vendo o nosso querido amigo olhando para nós lá do céu? Às vezes penso, senhor, que ele está trabalhando a nosso favor. Jamais poderia esquecer-se de nós, como nós não poderíamos esquecê-lo. Eu me pergunto se Clemente chegaria a esse ponto.

- Vamos investigar - disse Eduardo.

Investigaram e descobriram que o papa estava pronto a chegar a um pontOTnuito distante em troca de 32 mil marcos.

Representava muito dinheiro, mas valia a pena para ter no importante posto de arcebispo de Canterbury um homem que servisse mais ao rei do que à Igreja, e se a sua reputação não era a que seria de esperar de um bom homem da Igreja, o rei não se importava. Era reconfortante ter Walter num cargo daqueles. Os dois poderiam encontrar-se com frequência e conversar sobre o passado. Juntos, poderiam chorar a perda do incomparável Gaveston.

- O rei está louco - disse Lancaster.

Pembroke concordou com ele, mas havia um conflito entre eles porque Lancaster, Warwick e os demais tinham feito com que ele faltasse com a palavra. Pembroke cortejava o rei, pois temia que lhe fossem tiradas as terras.

Se não tivesse havido essa discórdia entre os barões, eles teriam ficado contra aquela nomeação de Walter Reynolds para a importante Sé de Canterbury, mas, como havia, ela aconteceu.

Chegaram notícias da França sobre os últimos atos de Filipe contra os templários e, quando a história foi contada, Eduardo ficou contente por ter agido de forma diferente com relação àquela organização de cavaleiros. Na Inglaterra, eles tinham-se misturado ao resto da comunidade, e quando refletissem sobre o que acontecera a seus correligionários na França, deveriam ficar eternamente gratos ao rei e aos ingleses.

Filipe o Belo, os perseguira com uma ferocidade difícil de compreender. Era verdade que ele queria a riqueza deles, mas poderia tê-la tirado sem aplicar-lhes aquelas torturas. Os rumores que chegavam da França eram de horrorizar. A rainha ouvia-os e dizia para consigo mesma que pelo menos o pai era um homem forte. Os franceses tremiam à menção de seu nome. com Eduardo, isso jamais aconteceria. Mesmo agora, muitos dos barões estavam contra ele, e ela calculava que Lancaster estava esperando o momento em que pudesse tomar o poder. Eduardo era fraco. Era um tolo e quando o jovem Eduardo ficasse mais velho, algo iria acontecer, disso estava certa.

Enquanto isso, precisava mostrar um pouco de afeição pelo marido, mesmo sem sentir. Precisava ter mais filhos, e estava decidida a isso. Seu saudável Eduardo era o encanto de sua vida. Mas queria que ele tivesse um irmão... vários, se possível.

Embora muitos dos templários tivessem sofrido as mais cruéis torturas e sido queimados vivos na estaca, o seu grão-mestre, Jacques de Molai, permanecia vivo. De Molai era um nobre borgonhês que aderira às cruzadas e lutara valentemente contra o Infiel. Quando convidado a ir a Paris, alguns anos antes, fora sem desconfiar de coisa alguma e quase que de imediato fora preso, acorrentado e submetido a uma tortura tão dolorosa que não resistira e confessara as práticas cruéis das quais dizia-se ser o responsável.

O fato de homens possuidores de um raciocínio lógico não acreditarem que fosse culpado nada significara. A tortura fora tão violenta, que poucos poderiam ter resistido, e evidentemente não um homem com a idade de Molai.

Àquela altura, a Ordem fora eliminada e suas riquezas estavam nas mãos do rei da França, mas o grão-mestre e o mestre da Normandia ainda viviam, porque se descobrira que, devido ao nível deles na Ordem, a sentença de morte só podia ser sancionada pelo papa.

Ciente que a morte estava próxima, e como sofrera tanto que para o seu pobre corpo tomado pela dor não fazia diferença se houvesse ou não mais sofrimento, o grão-mestre afirmou que lamentava profundamente suas declarações anteriores. Ele falara daquela maneira sob coação. Queria, agora, dizer ao rei da França e a seus acusadores que sua confissão fora arrancada à força de seu fraco corpo. Sua alma estava protestando, e ele agora queria declarar a verdade. Erainocente. A ordem toda estava inocente. A destruição dela fora obra de seus inimigos gananciosos.

O mestre da Normandia juntou sua voz à de Molai.

Como isso aconteceu ao lado do cadafalso erguido no pátio da frente de Notre-Dame, não havia como abafar o caso, porque muitas pessoas tinham-se reunido para ver o fim daqueles homens. Suas vozes ecoaram com nitidez, e a multidão ficou em silêncio, e parecia, disseram alguns, que o próprio Deus estava falando por intermédio do grão-mestre.

Diante do fato de terem anulado a confissão que fizeram e para aplacar a crescente preocupação e a raiva da multidão, anunciou-se que a sentença de morte dos dois seria suspensa temporariamente e os homens seriam levados de volta para a prisão.

Quando o rei soube do acontecido, ficou furioso. Ele não podia descansar enquanto de Molai vivesse. Esperara muito tempo para acabar com ele, como dizia, e agora ter o caso adiado uma vez mais era mais do que ele podia suportar.

Enquanto isso, os prisioneiros tinham sido mandados de volta ao preboste de Paris.

- Mais delongas! - vociferou o rei. - Não haverá paz verdadeira enquanto esses homens não estiverem mortos. - Tomou uma decisão. Não esperaria por mais alegações. - Hoje é o dia em que eles terão o seu fim - declarou ele. - Serão queimados vivos na estaca, na lie de Ia Cite, à hora das vésperas.

A palavra do rei era lei; e a notícia do que estava para acontecer espalhou-se pela cidade. Então, pouco antes da hora marcada, as ruas estavam lotadas e parecia que Paris inteira dirigia-se para o local das execuções.

O povo ficou aterrado ao ver Jacques de Molai e seu companheiro, porque os dois pareciam brilhar com uma força especial.

Os pobres homens abatidos que eles tinham sido não estavam mais lá. Jacques mantinha a cabeça bem erguida e a luz de seus olhos parecia iluminar-lhe o rosto. As pessoas perceberam que suas mãos não tremiam quando ele desnudava o peito.

Quando suas mãos estavam prestes a ser amarradas, ele disse aos guardas:

- Permitam que eu dobre as mãos por um instante e faça minha oração a Deus, porque este é o momento exato. vou morrer daqui a pouco, mas injustamente, Deus sabe. A morte está próxima, e estou inocente daquilo de que me acusam. Pôr causa disso, a desgraça cairá em breve sobre os que nos condenaram sem motivo. - E então bradou, numa voz alta que foi ouvida por toda a praça lotada: - Deus vingará nossa morte.

Houve um profundo silêncio. Algumas pessoas baixaram a cabeça e rezaram. O espetáculo de homens sendo queimados vivos já não as excitava. Naquele dia, havia uma enorme sensação de mau presságio na multidão.

O estalar da madeira parecia agourento e, quando ela fez-se em chamas e a fumaça subiu, muita gente caiu de joelhos e rezou.

Eles acreditavam que não seria bom para a França. O rei da França estava amaldiçoado. O mesmo acontecia com o papa fantoche. Porque aqueles dois eram os responsáveis pela destruição dos templários.

A lenda desenvolveu-se, e quando um mês depois o papa morreu, o público teve a certeza de que a maldição existia. O próprio Filipe só viveu oito meses depois daquele dia em que Jacques de Molai e o mestre da Normandia foram mortos na fogueira na De de Ia Cite.

 

Bannockburn

EDUARDO UNHA alguma coisa pela qual congratular-se. Desde a morte de Gaveston, o povo passara a ser mais generoso em relação a ele. Aquilo se devia, em grande parte, à rainha, cuja beleza agradava às pessoas e cuja aparente resignação diante da conduta do marido granjeara a admiração do público. O fato de o rei e a rainha serem vistos mais frequentemente juntos, e de terem o saudável jovem Eduardo como um sinal certo de que de vez em quando viviam como marido e mulher, agradara ao povo. O rei jamais poderia ser igual ao grande Eduardo I, mas talvez com o seu génio do mal, Gaveston, afastado para sempre, houvesse esperanças do retorno a um estilo de vida normal.

Além do mais, o conflito entre os barões estava a seu favor, porque já não estavam juntos contra ele. O partido de Lancaster era forte, mas o poderoso conde de Pembroke discutira com ele por causa da morte de Gaveston, e Pembroke unira-se ao rei.

Eduardo sentia que poderia gozar de um período de paz, tanto quanto isso fosse possível sem Gaveston. E então houve problemas no norte.

Os escoceses tinham-se alegrado com a morte de Eduardo I e com a subida ao trono do filho dele, que resultara na salvação deles. A Escócia, sob o governo de Robert, o Bruce, ficara mais forte, enquanto a Inglaterra, sob o governo de Eduardo II, ficara mais fraca. Bruce era o homem exato para aproveitar-se de uma situação daquelas. Aos poucos, mas com constância, começara a livrar o seu país da dominação inglesa instalada por Eduardo, o Martelo dos Escoceses.

Estava claro que Eduardo II não tinha ânimo para lutar. Não era a forte figura guerreira que o pai representara. Retirara-se do campo de ação tão logo lhe fora possível e deixara o conde de Richmond no norte, concedendo-lhe o título de Guardião da Escócia. A tarefa nada tinha de invejável, e uma guerra intermitente acontecera entre os escoceses e os ingleses e, havia pouco tempo, Bruce fizera incursões através da fronteira, entrando na Inglaterra e em cada ocasião retornando com valiosos espólios.

A situação estava se tornando perigosa. Uma a uma, as fortalezas mantidas pelos ingleses estavam caindo em mãos dos escoceses. Eduardo resmungava e amaldiçoava os escoceses, mas pouco fazia para evitar a desintegração do poder inglês. Bruce, intimamente exultante, muitas vezes se perguntava o que o Grande Eduardo iria pensar se pudesse ver o que se passava. Se ele tivesse vivido, teria sido realizada a conquista da Escócia. Na verdade, fora um dia feliz para os escoceses quando ele morrera e seu filho assumira a coroa.

Os escoceses não tinham respeito algum por Eduardo, e um exército sem um líder, por mais bem equipado que estivesse, não podia deixar de provocar grandes esperanças no coração dos adversários.

Uma a uma, as fortalezas caíram. Perth, Dumfries e Rosburgh foram tomadas. Linlithgrow fora inteligentemente tomada quando um soldado do clã dos Douglas, disfarçado de carroceiro, pedira licença para entrar com uma carroça de feno no castelo. Quando ela parou no portão embaixo da grade levadiça, homens armados saltaram de baixo do feno, entraram no castelo e pegaram os defensores de surpresa. Incidentes como esse davam ânimo ao exército de Bruce. Não estavam tão bem equipados quanto os ingleses e tinham de valer-se da astúcia. Parecia que tinham bastante e, sob a liderança de Bruce, suas esperanças eram grandes.

O castelo de Edinburgh parecia apresentar a maior de todas as dificuldades, pois se encontrava cercado por três lados considerados precipícios e de impossível acesso. Os escoceses tinham perdido a esperança quando um dos soldados procurou o comandante Randolph e lhe disse que, quando jovem, tivera uma amante que morava no castelo e ele talhara degraus na face do rochedo para poder visitá-la. Ele compreendia que todas as vezes que a visitara arriscara a vida, mas nada lhe acontecera e agora poderia mostrar-lhes o caminho.

Eles decidiram tentar e, com a ajuda de escadas de corda, chegaram realmente a subir pela íngreme face do rochedo até as muralhas do castelo. Subiram, invadiram o castelo, mataram as sentinelas que de nada suspeitavam, e tomaram o castelo.

Foi o maior dos triunfos, e incidentes como aquele valiam, dizia Bruce, mil homens.

Àquela altura, só restavam três castelos importantes em mãos inglesas: Stirling, Dunbar e Berwick. Desses, Stirling era o mais importante. Bruce decidira que tinham de ocupá-lo, mas o castelo era bem defendido, e Bruce sabia que tentar toma-lo de assalto significaria a perda de homens e munição que ele não podia dar-se ao luxo de perder. Como grande soldado, ele era menos sanguinário do que seus soldados e sabia que, embora fossem obtendo sucessos nas circunstâncias existentes, a coisa seria diferente se o exército inglês marchasse até a Escócia. No entanto, quanto mais fortalezas ele pudesse arrancar deles antes do ataque principal, melhor, e Stirling era da máxima importância.

Portanto, mandou seu irmão Eduardo Bruce cercar o castelo. Eduardo atormentou os ocupantes do castelo de todas as maneiras, e o governador, Sir Philip Mowbray, ficou impossibilitado de conseguir os suprimentos de que necessitava. No entanto, faltava a Eduardo Bruce a astúcia do irmão. Sir Philip Mowbray convocou-o para uma reunião. Tomar o castelo seria dispendioso para os escoceses, em homens e armas; além do mais, havia uma possibilidade de que a operação não fosse bem-sucedida.

- Os exércitos de Eduardo estão vindo para defender Stirling argumentou Sir Philip. - Posso resistir até a chegada deles. Isso poderia significar uma derrota para vocês que poderia ser desastrosa para a causa escocesa.

Eduardo Bruce replicou que todos sabiam das tendências do rei da Inglaterra. Ele não era como o pai. Parecia provável que não tinha intenção alguma de levar um exército à Escócia. Caso em que em determinado momento os escoceses tomariam Stirling como tinham Edinburgh, Linlithgrow e o resto.

- É verdade - replicou Mowbray. - Por isso, estou disposto a fazer uma trégua com vocês. Se o exército inglês não estiver a três léguas deste castelo até a festa de São João Batista, me renderei a vocês sem a perda de uma única vida por qualquer dos lados.

Eduardo Bruce concordou. Quando seu irmão soube do que ele fizera, ficou muito contrariado mas, decidido a tirar o máximo de proveito da ocasião, começou a perceber que a combinação iria dar-lhe uma oportunidade de reunir um exército para resistir aos ingleses, se estes chegassem.

Pembroke chegou apressado para falar com Eduardo.

- Vossa majestade vai entender a urgência desse assunto-disse ele. - Mowbray precisa de ajuda em Stirling, e temos pouco tempo para isso.

- Esses escoceses maçantes! - suspirou Eduardo.

- Mowbray é um soldado valente e um servidor fiel - continuou Pembroke, um pouco impaciente.-Precisa de ajuda e tem de recebê-la.

- Pois então vamos enviá-la.

- Majestade, isso só não basta. Desde que seu pai morreu, temos perdido muito do que ele ganhou. Uma a uma, as cidades-guarnições estão saindo de nossas mãos. Temos de acabar com isso, e a única maneira é reunir um grande exército e marchar contra a Escócia.

- Os barões...

- Esta é uma oportunidade de uni-los numa mesma causa. Não importa quais sejam os conflitos entre eles, o dever deles para com a coroa continua de pé. Eu estou pronto a esquecer minhas diferenças com Lancaster e Warwick até que este assunto seja resolvido, e o mesmo deve acontecer com eles.

- Entendo que poderia ser possível - disse Eduardo.

- Tem de haver uma invasão pelo mar e por terra, usando todos os recursos de que dispomos. Os escoceses têm um grande líder na pessoa de Bruce. Nunca estiveram tão unidos... nem mesmo sob o comando de Wallace. A hora é esta, majestade. Se permitirmos que Stirling caia nas mãos dos escoceses, será um desastre. Devemos a Mowbray o envio de auxílio, o mais rápido possível.

- Isso será feito - bradou Eduardo. Sentiu um súbito entusiasmo pela luta. Era verdade que ela iria unir os barões, e ele estava cansado... e com um pouco de medo... da contínua guerra de palavras entre eles. Aquilo iria ajudá-lo a esquecer Gaveston. As pessoas estavam sempre comparando-o com seu pai; agora, iriam ver que ele também podia ser um guerreiro. Daria uma lição aos escoceses.

- Devemos convocar os condes e os barões, sem falta - disse Pembroke.

- Faça isso - respondeu Eduardo.

Em poucos dias, as ordens foram expedidas a oito condes - entre os quais Lancaster - e 87 barões.

Deveriam reunir-se em Berwick até o dia 10 de junho.

Os preparativos seguiam a passo acelerado. Eduardo ordenou que se reunisse nos Cinque Ports uma frota de 23 navios, com a finalidade de invadir a Escócia.

O tempo todo, Pembroke estava do lado do rei. Tentava incutir em Eduardo o respeito pelo adversário. Não seria a primeira vez que Pembroke enfrentaria o Bruce. Ele o vencera em Methuen e fora derrotado por ele em Loudoun Hill e sabia que se tratava de um inimigo respeitável. Eduardo ria de seus conselhos. Bruce era um homem que se devia respeitar, sim, isso ele aceitava. Mas um exército tão poderoso iria enfrentá-lo que o dele ficaria em total inferioridade numérica.

- Nem mesmo meu pai poderia ter resistido a um exército desses, se estivesse do lado contrário - disse Eduardo.

- É verdade, majestade - replicou Pembroke. - Mas não podemos cometer o erro de esperar uma vitória fácil.

Pembroke era um mestre na arte da guerra. Tomou as providências para que o exército tivesse as provisões necessárias; destacou homens em cuja eficiência ele podia confiar para cuidar dos estoques. Precisavam levar no cortejo ferreiros, carpinteiros, pedreiros e amieiros, carroças para transportar as tendas e os pavilhões e tudo o que era necessário a um conflito armado. Muitas batalhas, lembrou ao rei, tinham sido perdidas devido à falta de atenção a esses detalhes.

Tampouco devia o rei esquecer-se de pedir a ajuda de Deus, e seria um bom gesto de sua parte fazer uma peregrinação a St. Albans com a rainha e seu filho.

Isabella não se fez de rogada. Gostava muito de exibir-se ao povo, e o fato de que iria exibir seu filho deixou-a encantada.

Ao longo das estradas, pessoas saíam para apresentar saudações reais enquanto eles passavam. Era como antigamente, quando o Grande Eduardo ia para a guerra, comentavam. Ali estava o rei com sua bela rainha e seu filho, o herdeiro do trono. Aera Gaveston terminara. Aquele homem fora funesto. Era filho de uma feiticeira e durante um certo tempo enfeitiçara o rei. Tudo o que Eduardo precisava, agora, era de uma vitória na Escócia, e o povo teria a certeza de que os velhos tempos haviam voltado.

Infelizmente não seria tão fácil assim, como ele descobriu quando chegou a Berwick.

Pembroke levou-lhe a notícia.

- Lancaster, Arundel, Surrey e Warwick não virão em pessoadisse ao rei.

Eduardo viu-se tomado de uma raiva repentina.

- Por que não? Que ousadia! Eu não os convoquei?

- Convocou, majestade, e eles enviaram um número simbólico de soldados, de acordo com seus votos feudais para com a coroa. Dizem que deveriam ter sido consultados antes de vossa majestade pegar em armas.

- Traidores! - bradou o rei.

- Não podemos dizer isso, majestade. Eles cumpriram seus compromissos, embora a um grau mínimo, é verdade, e não teremos a força que esperávamos deles.

- Pensei que numa ocasião como esta eles fossem pensar no seu dever para com o país.

- Eles só pensam no proveito próprio, majestade. E diriam que fizeram o que lhes era exigido. Temos de nos esquecer deles desta vez. Muitos serviram na Escócia antes, e no País de Gales também. Seus serviços serão da máxima valia para nós.

O rei concordou e fulgurou de orgulho e otimismo quando inspecionou o exército. Devia haver cerca de quarenta mil soldados, um grupo do qual até mesmo seu pai teria ficado orgulhoso.

Eduardo mostraria aos escoceses que o espírito de seu pai continuava vivo. Faria com que eles engolissem as palavras. Aquela seria uma grande vitória, tal como qualquer outra que tivesse glorificado o nome de seu pai.

com seus soldados, ele marchou para Edinburgh.

Robert, o Bruce, ciente do avanço inglês, devia ter ficado apreensivo. Estava, mas havia nele uma esperança crescente, pois ele acreditava estar destinado a expulsar os ingleses da Escócia, e quando Eduardo I morrera e ele começara a perceber a natureza de seu sucessor, sabia que conseguiria.

Tinha havido muitos fracassos; os escoceses não podiam esperar levantar um exército que pudesse comparar-se ao de Eduardo no que se referia a experiência; quanto ao equipamento, eram muitíssimo inferiores; no entanto, o espírito ali estava. Os homens que estivessem defendendo a pátria sempre levavam vantagem sobre o invasor. Se tivessem um chefe inspirado, poderiam fazer milagres. Bruce era inspirado. Sofrera muitas derrotas, mas sabia que no fim venceria. Gostava de contar a história da aranha, isso atraíra sua imaginação e a de seus seguidores.

Ele ficava sentado à luz do acampamento e falava com eles sobre a época em que andara solitário, deprimido e derrotado, quando fora desbaratado e mal conseguira salvar a vida. Ficara na cama e observara uma aranha tentar seis vezes prender, sem sucesso, seu fio numa viga. A aranha insistiu, até que na sétima vez foi bem-sucedida. Aquilo parecia significativo para Bruce porque, por seis vezes, ele reunira exércitos e tentara derrotar os ingleses, e todas as vezes fora derrotado.

- Agora, será que essa aranha vai me ensinar o que fazer?-disse ele. - Assim como aquele bicho fracassou, eu também fracassei; e assim como ela conseguiu no fim, eu também serei bem-sucedido. Ela me deu uma lição da qual jamais esquecerei, que é a de nunca aceitar a derrota. Se fracassar, vou tentar mais uma vez e insistir até a derrota se transformar em vitória.

Aquilo era muito comentado em seus acampamentos. Sabiam que o rei deles jamais faria mal a uma aranha, e eles tampouco, porque passara a existir a superstição de que o azar cairia sobre quem o fizesse.

Aquela aranha o ajudara, porque a lenda que se criara em torno dela era de que Robert, o Bruce, venceria, tal como a aranha vencera. Ele iria expulsar os ingleses da Escócia.

Aquela poderia ser a hora. Tinha de ser a hora, porque o próprio rei estava na Escócia com um poderoso exército, e a batalha que inevitavelmente se seguiria poderia ser decisiva. Apesar de o Grande Eduardo não mais existir, o exército ali estava, e como poderia o exército escocês, com um terço do número de seus homens, resistir a ele?

Robert, o Bruce, reunira seus soldados em Torwood, perto de Stirling, onde fez uma recapitulação de suas chances. com um exército menor, teria de valer-se de suas qualidades como general, da determinação de seus soldados e do seu conhecimento do terreno onde a batalha iria acontecer. Tinha de manobrar de maneira a poder escolher o local e, como dispunha de poucos homens de cavalaria e os ingleses estavam bem equipados naquela área, decidiu que a batalha teria de ser travada a pé. Ele próprio escolheu o campo de batalha. Seria New Park, entre a aldeia de St. Ninían s e o pequeno curso d água do Bannock, conhecido no distrito como Bannockburn. Ali, à beira d'água, a terra era pantanosa, o que ofereceria perigo aos cavalos ingleses.

Robert convocou os principais generais de seu exército para uma reunião. Lá estavam seu irmão Sir Eduardo Bruce, Sir James Douglas, Randolph, conde de Moray, e Walter, o alto comissário da Escócia.

Ele estava muito sério quando se dirigiu ao grupo.

- Temos uma inferioridade numérica na base de três por um, mas não deixem que os soldados saibam disso. Examinei com cuidado o terreno e quero a ala direita do exército às margens do riacho. Lá, podemos ter a certeza de que não seremos atacados pelo flanco. A frente do exército irá estender-se até a aldeia de St. Ninian s.

- A esquerda ficará menos protegida do que o resto do exército - assinalou Moray.

- É verdade. Ficará exposta à guarnição do castelo de Stirling. Por isso, mandei cavar fossos naquela área, onde serão colocadas pontas de ferro.

- É uma grande ideia - bradou Douglas.

- E os vazios serão cobertos de galhos quebrados - prosseguiu Bruce.

- Nenhum cavalo poderá passar por aquele terreno - comentou o comissário.

- A intenção foi essa-disse Bruce, sorrindo. - E agora, vamos em frente com uma confiança discreta. As probabilidades estão contra nós, mas poderemos vencer.

- Temos de vencer - disse Randolph.

- Agradeço a Deus por não ser o pai do rei inglês que vem nos atacar - murmurou Bruce.

- Sem dúvida eles levarão os ossos dele à frente do exército disse o comissário, que não era um veterano de batalhas como os outros.

Bruce sorriu para o jovem e liso rosto.

- Aprendemos a acreditar apenas nos agouros que nos trazem o bem - disse ele.

- Mal... bem... os dois nascem na mente. E o mesmo acontece com vitória

e derrota. Meus amigos, vamos dizer juntos: "Hoje, vamos vencer." Venham, vou falar com

os soldados. Quero que cada homem que lutar sob a minha bandeira hoje esteja lá porque quer ver a Escócia livre. Não quero homens indecisos no meu exército.

Seguiu em frente, montado em sua pequena mula cinza, um animal que nada tinha de impressionante mas que tinha um andar seguro e fora escolhido por esse motivo. Bruce vestia uma armadura e sobre o elmo usava um pequeno bracelete de ouro, para que todos pudessem identificá-lo como o rei e, apesar da montaria que nada tinha de realeza, havia em torno dele aquela coisa que inspirava os soldados e que nunca estivera mais aparente do que naquele momento.

Ele falava em tons claros e sonoros. O inimigo estava perto. Muitos dos homens presentes ali naquele dia iriam lembrar-se das sangrentas batalhas entre a Escócia e o rei anterior. Aquele rei estava morto, agora, e ele acreditava que eles pouco teriam a temer de seu filho.

- Se houver um homem entre vocês que não esteja plenamente decidido a vencer este campo ou morrer com honra, que largue as armas e vá embora. Não quero um homem desses em meu exército. Prefiro ter apenas a metade dos homens que estão à minha frente agora, mas que sejam bons e bravos, leais à Escócia, do que o dobro do número atual com traidores ou indecisos entre vocês. Agora é a sua chance. Falem agora, se quiserem. Ofereço-lhes a liberdade de ir ou ficar.

Houve um silêncio profundo. O coração de Bruce batia na incerteza. E se houvesse homens covardes entre eles? E se, sentindo a morte por perto - porque sem dúvida ela chegaria a alguns deles naquele dia -, perdessem o entusiasmo e pensassem, com saudade, nos filhos e nas suas lareiras lá num canto remoto da Escócia, longe de St. Ninian s e de Bannockburn?

Nenhum movimento nas fileiras. Nenhum som a se ouvir, a não ser o murmúrio do riacho.

Então ergueu-se um grande grito.

- Vitória para Bruce e a Escócia para sempre!

Tenho homens bons e fiéis para me servir, pensou Bruce. Isso é um bom agouro para a Escócia.

O grande desejo de Eduardo era ver o fim da batalha. Ele não tinha dúvida do resultado. Contava com um belo exército. Se seu pai estivesse olhando lá de cima para ele, agora, ficaria contente. Os escoceses não poderiam resistir a ele. Ficara com raiva por causa daqueles barões que se haviam recusado a juntar-se a ele, mas agora ria ao pensar o quanto eles iriam arrepender-se quando voltasse vitorioso para a Inglaterra.

A primeira coi sã a fazer era auxi li ar Mo wbray no castelo de Stirling. Seria um belo gesto. Mandou chamar Sir Robert Clifford e ordenou que levasse um grupo avançado de oitocentos homens da cavalaria e capturasse o castelo.

Sir Robert partiu. Os escoceses estariam esperando aquela manobra. O castelo de Stirling era um ponto estratégico e era para auxiliar o governador que o exército inglês fora à Escócia. Portanto, ele deveria ficar vigilante. Sabia onde o exército inimigo estava localizado e, em vez de seguir um caminho direto que poderia resultar na sua descoberta, contornou em silêncio, com seus soldados, a aldeia de St. Ninian s, tomando o cuidado de se manterem, tanto quanto possível, ocultos. Desse modo, Randolph, conde de Moray, a quem Bruce ordenara que ficasse de olho exatamente numa manobra como aquela, não viu o que acontecia e foi o próprio Robert, o Bruce, que viu Sir Robert e seu grupo seguindo com cautela para o castelo.

Bruce dirigiu-se às pressas para onde estava Randolph e quis saber o que significava aquilo.

- Você desprezou muito a incumbência que lhe dei. Uma rosa caiu hoje de sua grinalda, meu sobrinho.

Horrorizado, Randolph partiu imediatamente em perseguição a Clifford que, ao ouvir a aproximação, deu ordens para que seus homens fizessem meia-volta e atacassem.

Randolph tinha apenas quinhentos homens e se encontrava em inferioridade numérica, mas formou seus soldados num quadrado, com lanças empunhadas à frente. Os ingleses avançaram, mas não conseguiram passar pelas lanças escocesas, e Clifford deu ordem para cercar os escoceses. A cavalaria inglesa estava fortemente armada e as armas escocesas não passavam de lanças compridas, cutelos e achas-de-armas. Os escoceses lutaram de forma magnífica, mas estavam contra as armas pesadas da cavalaria inglesa e, cercados daquela forma, parecia inevitável sua derrota, embora pudessem causar pesadas baixas nos adversários.

Bruce observava a batalha a uma certa distância, Sir James Douglas ao lado.

- Meu Deus, majestade - disse Douglas -, isso será o fim de Randolph. Preciso ajudá-lo.

- Não - disse Bruce. - Isso significaria uma alteração dos nossos planos. Randolph deveria tê-los detido antes de se adiantarem tanto. Ele que lute para sair vitorioso.

- Para ele, será a morte. Eles serão dizimados... a força toda. Enquanto o conflito entre Randolph e Clifford acontecia, o exército inglês fizera uma parada enquanto se decidia se o combate começaria naquele dia ou se esperaria até o dia seguinte. Tanto homens como cavalos estavam cansados da longa marcha, e por fim decidiu-se que o dia seguinte seria mais indicado.

Robert, o Bruce, pensava a mesma coisa a respeito do momento de começar a luta. A possível perda de Randolph significara que ele precisava fazer modificações nos planos, e ele cavalgava ao longo da linha de seu exército, não num cavalo de batalha, mas na sua pequena mula cinza, levando como única arma a sua acha-de-arma de aço, quando foi avistado por um dos cavaleiros que se viu repentinamente tomado do desejo de conseguir a glória. Os de Bohun pertenciam a uma das principais famílias da nobreza, e seu prestígio aumentara muito quando Humphrey, o quarto conde de Hereford e o terceiro conde de Essex, casara-se com Elizabeth, filha de Eduardo I, depois que ficara viúva do conde de Holanda. O rei poderia não ter escolhido aquele casamento para a filha, mas Elizabeth gostara de Humphrey de Bohun e declarara que, como se casara uma vez por interesse do Estado, deviam permitir que da segunda vez ela se casasse com alguém de seu agrado.

Um vínculo daqueles era altamente interessante, e Henry, jovem sobrinho de Humphrey, sentiu uma repentina ânsia por conquistar uma glória maior não só para a família, mas para ele próprio e, com isso, conquistar a admiração de seu influente tio.

Ali estava Robert, o Bruce, rei dos escoceses, já uma lenda, e de Bohun lembrou-se do antigo e reverenciado costume de que as batalhas podiam, muitas vezes, ser resolvidas por um combate isolado e que se o líder de um exército pudesse ser abatido daquela maneira, a batalha estaria praticamente vencida.

Seria uma grande honra para a família de Bohun e, em particular, para Sir Henry se ele desafiasse o poderoso Bruce e o abatesse? E ali estava ele, montado numa pequena mula cinza-sem outra coisa a não ser uma acha-de-arma na mão e a única maneira de poder ser reconhecido como o rei era o pequeno bracelete de ouro sobre o elmo.

O jovem SirHenry avançou.

Robert, o Bruce, foi apanhado momentaneamente de surpresa. Olhou para o jovem cavaleiro magnificamente equipado, num belo cavalo de batalha, armado para o combate. Era loucura responder ao desafio. Ele estava montado em sua firme mula cinza. Ela era ágil e de andar seguro em terreno pantanoso, mas como poderia enfrentar aquela poderosa figura de armadura?

Recusar o desafio, nem pensar, mas aceitá-lo talvez fosse uma loucura. Mas ele tinha de aceitá-lo. Podia imaginar as comemorações que haveria nas fileiras inglesas se se dissesse que ele tivera medo de enfrentar o jovem cavaleiro.

Tinha de atacar, e precisava agir rápido.

Ouviu a respiração presa dos que o cercavam quando esporeou a mula cinza e saiu ao encontro de de Bohun.

- Loucura, loucura! - murmurou Douglas, e pensou: "onde isso vai acabar? Randolph prestes a ser dominado pelos ingleses, o rei aceitando esse desafio desigual..."

As patas do cavalo de batalha batiam no chão enquanto de Bohun, lança em posição, partiu como um trovão em direção a Robert, o Bruce.

Os escoceses observavam com medo, os ingleses, exultantes. Praticamente não havia um só soldado inglês que não quisesse estar no lugar de de Bohun. Seu nome seria lembrado para sempre.

Então veio a surpresa. A lança devia ter perfurado o coração do Bruce, mas isso não ocorreu porque, com uma agilidade incrível, ele se desviou precisamente no momento exato. O golpe de lança não o atingiu e, erguendo-se nas esporas, Bruce ergueu a acha-de-arma e baixou-a sobre a cabeça de de Bohun, que ficou praticamente partida em duas.

O Bruce voltou para o lado de seus soldados. Eles o cercaram.

- Majestade, majestade, vossa majestade poderia ter morrido. Isso poderia ter sido o fim.

Ele parecia triste.

- Quebrei minha acha-de-arma-disse ele. - Ela era boa.

No íntimo, estava exultante. Podia imaginar o efeito que aquilo teria sobre o inimigo e, mesmo, sobre os seus soldados.

Considerariam o fato como um bom agouro, e quando um pequeno exército enfrenta um grande os bons agouros são muito bem recebidos.

Douglas presenciara a aventura do rei e, considerando-a extremamente irrefletida, decidiu que ele próprio agiria. Não deixaria que Randolph fosse inteiramente aniquilado pelos soldados de Clifford, não importava o que Bruce dissesse. Se o rei podia agir com imprudência levado por um impulso, Douglas também tinha esse direito. O rei arriscara a vida por um gesto. Ora, Douglas faria o possível para que Randolph não perdesse a dele.

Convocou seus soldados e partiu veloz em direção ao castelo onde o combate entre Randolph e Clifford prosseguia, mas ao se aproximar, ele mal acreditou no que via, pois o chão estava coberto de ingleses mortos e ele viu que Randolph não só estava resistindo, mas ganhando.

- Parem! - bradou Douglas. - Não vamos ajudá-lo. Isso seria tirar dele a honra que lhe pertence.

Ele tinha razão; enquanto ficava ali olhando, a cavalaria inglesa ou pelo menos o que podia fugir - saía a galope, perseguida por alguns escoceses.

Parecia um milagre.

Randolph rechaçara o pretendido ataque a Stirling.

- Deus está sorrindo para nós, hoje - disse Douglas.

A noite caiu sobre os acampamentos. Os ingleses tinham caído na realidade diante da morte de de Bohun e da derrota da cavalaria que seguia para o castelo, mas não muito. Eles tinham superioridade numérica sobre os escoceses e o espírito do Grande Eduardo marchava com eles.

Naquela segunda-feira, dia 24 de junho do ano de 1314, enquanto rompia o alvorecer, o exercito escocês ouviu a missa rezada por Maurice, abade de Inchaffray.

Todos estavam de joelhos. Eduardo, de longe, viu isso e comentou com Robert de Umfraville:

- Está vendo? Estão de joelhos.

Robert, conde de Angus desde a morte do pai em 1307, e que lutara contra os escoceses em muitas ocasiões e como conde de Angus era regularmente convocado para os parlamentos escoceses, conhecia bem os escoceses e respondeu:

- Sim, majestade, estão de joelhos. Mas diante de Deus, não de nós. Majestade, aquele exército vai vencer ou morrer neste campo de batalha.

- Neste caso, temos de fazer com que morra no campo de batalha, Angus.

- Majestade - prosseguiu Angus, que se anglicizara e acreditava que a aliança da Escócia com a Inglaterra seria vantajosa para os dois países e, portanto, jurara

fidelidade à coroa inglesa -, eu conheço os escoceses. Eles serão grandes combatentes, mas lhes falta a disciplina do seu exército. Se vossa majestade fingir que

recua do acampamento, eles irão avançar correndo para atacar e com isso se desorganizarão.

- Dar a impressão de retirada - bradou Eduardo. - Nunca. Em sua brilhante armadura, ele se sentia o máximo. Pensou momentaneamente: "quem dera que Perrot pudesse me ver agora."

Ele venceria. Deixaria perplexos todos eles, os que tinham falado mal dele e que haviam jurado que ele jamais poderia comparar-se ao pai.

Ele brilhou de emoção ao dar a ordem de atacar.

Gloucester e Hereford prepararam-se para avançar em direção à ala direita dos escoceses, que estava sob o comando de Eduardo Bruce.

- vou seguir à sua frente, Hereford - murmurou Gloucester.

- Senhor conde de Gloucester, esse lugar será o meu - retrucou Hereford.

- Engana-se, senhor conde - bradou Gloucester -, se pensaque vou segui-lo.

Enquanto eles discutiam, os escoceses avançaram, e Gloucester, com poucos homens, seguiu em frente. Foi uma loucura, porque eles se viram cercados por escoceses e sem apoio suficiente para resistir. Assim, a discussão colocara Gloucester e Hereford em desvantagem inicial.

A batalha começara.

Os ingleses deviam ter levado vantagem. Sua cavalaria era magnífica, mas os escoceses empregavam o costumeiro método do schiltrom, que era uma formação como se fosse uma cerca, com cada soldado segurando a sua lança de quase quatro metros à sua frente, de modo que até mesmo a mais pesada das cavalarias tinha de hesitar antes de lançar-se contra aquelas enormes lanças.

Os arqueiros proporcionavam o pior perigo para os escoceses, e nem mesmo o schiltrom podia suportar as chuvas de flechas mortais que continuavam caindo e dizimando-os. Os escoceses, no entanto, levavam achas-de-arma além das flechas, e assim, depois que tivessem esgotado o suprimento de flechas, podiam avançar com suas achas e fazer a sua devastação.

As horas se passavam, e a batalha campeava. O ânimo de Bruce era elevado. A sorte estava do seu lado. Ele escolhera o lugar certo para a luta, e estava em sua terra natal. Os ingleses pareciam exaustos por causa da viagem para o norte; não estavam em sua terra natal. Não havia um só escocês que não teria morrido pela Escócia naquele dia, porque ninguém sabia qual seria o seu destino se caísse nas mãos dos ingleses.

Os ruídos da batalha eram ensurdecedores. Os cavaleiros lançavam seus gritos de guerra enquanto mergulhavam na luta, e lança tilintava contra lança no conflito mortal; flechas que voavam furavam a pele dos cavalos, levando os animais à loucura antes de morrerem, e o ar estava cheio dos gemidos de homens feridos e moribundos; estandartes jaziam no chão por entre bandeiras e lanças partidas, e o capim estava salpicado com o sangue de escoceses e ingleses. E a batalha continuava.

O exército escocês tinha, em sua esteira, os seguidores de acampamentos - homens velhos demais para o combate, mulheres que queriam ficar com seus homens, crianças ainda sem idade para a luta mas que estavam ansiosas por ver como se desenvolvia a batalha e por estar presentes quando a vitória estivesse completa, talvez para pegar a sua parte do butim existente. Independente do que acontecesse, ficariam em casa enquanto se decidia o futuro da Escócia.

Bruce lhes ordenara que ficassem escondidos pelo morro, e com eles estavam a bagagem do exército e os suprimentos extras do quais estavam encarregados.

Não havia dúvida de que a batalha estava se desenvolvendo em favor da Escócia. Gloucester morrera, o mesmo acontecera com Sir Robert Clifford, e Hereford fora feito prisioneiro.

Os guarda-costas do rei aglomeravam-se em torno dele, e o conde de Pembroke gritou:

- Majestade, é imprudente ficarmos aqui por mais tempo. Temos de abandonar o campo de batalha agora mesmo.

- Não vou abandonar meu exército - bradou Eduardo, furioso.

Mas Pembroke agarrou o bridão do cavalo do rei e prosseguiu:

- Sou o responsável pela sua segurança. Majestade, pense no que aconteceria à Inglaterra se vossa majestade caísse nas mãos de Bruce.

- Onde meu exército tiver morrido, eu também morrerei, se necessário - replicou Eduardo.

- Palavras nobres, majestade. Mas temos de pensar na Inglaterra sem um rei. Não, se não quiser vir por sua livre vontade, terei de levá-lo à força.

Os cavaleiros cercaram o rei. Concordavam com Pembroke. A batalha estava perdida, isso era evidente. O rei achava-se em perigo. Sua única esperança de sobreviver estava na ruga.

Eduardo ficou desolado. Por que a má sorte o perseguia tanto? Será que não havia coisa alguma que ele pudesse fazer que desse bom resultado? Se seu pai tivesse estado ali...

Não, não. Não era culpa sua. Bruce era um génio, tal como Eduardo I fora. Ninguém podia enfrentar homens desse tipo. Havia neles algo de sobre-humano. Não podiam ser julgados pelos padrões de outros homens, e de nada adiantava deplorar o fato de não se poder enfrentá-los à altura.

Ele sentiu uma profunda desilusão.

O dia começara de forma muito gloriosa. Tivera tudo a seu favor. Mas Bruce era o seu inimigo, e homens como Bruce, Wallace, seu pai Eduardo, eram temidos e respeitados; tinham suas batalhas meio ganhas antes de começar.

Deprimido e inconsolável, o rei deixou-se levar para fora do campo de batalha. Chegou a desejar ser abatido, e isso poderia ter ocorrido se Bruce tivesse tido condições de persegui-lo.

Seguiram para Linlithgrow e, por fim, chegaram a Dunbar. Ali encontraram refúgio por algum tempo antes de poder tomar o navio para Berwick.

Foi uma recepção angustiada para Eduardo. Ele não conseguia parar de pensar em tudo o que fora perdido - as vidas de tantos soldados, que alguns diziam que tinham sido trinta mil. Tanta coisa perdida além de vidas, armas, cavalos, acessórios, vasos de ouro e prata, tesouros... tudo perdido. E tal vez o principal-a honra. Agora, ninguém respeitaria o rei da Inglaterra. E ele tinha de voltar à Inglaterra, onde iriam dizer: "Ah, se tivesse sido o pai!"

O tema de sua infância e sua juventude. Era difícil, para um filho indigno, seguir um pai daqueles. Teria de viver à sombra da grandeza que tornava suas deficiências ainda mais evidentes.

Na Escócia houve comemorações.

- Durante anos - disse Robert, o Bruce-os escoceses vibrarão de orgulho quando falarem em Bannockburn.

 

O REI ESTAVA desesperado. Nada saíra certo para ele desde o assassinato de Gaveston, lamentava-se ele. Desejava muito a volta daquela época feliz em que ele e seu

querido Perrot tinham cantado, dançado e conversado com tanta animação. Por que não o deixavam em paz? Por que tinham de tirar-lhe Perrot? Muitas vezes, sonhava com o sofrimento de Perrot. Como será que ele se sentiu quando o levaram para Blacklow Hill? Um simples soldado perfurara o seu coração; um outro cortara-lhe a cabeça. Aqueles bravos e ousados barões não haviam tido a coragem de fazer aquilo. Pouco importava. Eram eles os culpados. Jamais os perdoaria, e à frente deles estava Lancaster.

Lancaster era seu inimigo, e desde Bannockburn o poder de Lancaster aumentara. Comentava-se que agora era Lancaster que governava o país.

Lancaster era rico demais, poderoso demais, e tinha um sangue demasiado real. Tinha a si mesmo em conta demasiado alta, e desde que assumira os títulos de conde

de Lincoln e Salisbury (além dos que já possuía) considerava-se o homem mais importante do país. Supunha-se que sua mulher - por intermédio da qual ele adquirira os títulos de Lincoln e Salisbury - não o tinha em conta assim tão alta. Havia rumores de que aquele casamento estava numa situação tão lamentável que a senhora estava à procura de um meio de fugir dele. Boa sorte para ela, pensou Eduardo, perverso.

Lancaster recusara-se a ir até Bannockbura, embora tivesse agido dentro de seus direitos ao enviar uma força simbólica. Teria feito alguma diferença se ele tivesse ido? Teria a batalha sido ganha? Ninguém podia dizer, na verdade, e no entanto era exatamente isso que as pessoas estavam dizendo. Circulavam rumores desagradáveis. Se Lancaster tivesse sido filho de Eduardo, e não do irmão dele...

Deus do céu!, pensou Eduardo. Lancaster quer governar este país.

Muita gente o apoiaria.

Bannockbura. Desastre, derrota, desgraça para a coroa e para a Inglaterra! Eduardo sabia que enquanto vivesse, e talvez depois de sua morte, falariam de Bannockburn.

Desde quando o rei João se envolvera em conflito com os barões, aquele grupo de homens ambiciosos vinha tendo ideias pretensiosas sobre sua importância. Não permitiam

que um homem fosse rei. Queriam-no como testa-de-ferro deles, para seguir para cá e para lá, de acordo com a vontade deles.

Era uma vida miserável. E sem Perrot para animá-la!

Perrot, na realidade, nunca tivera um sepultamento adequado. Eduardo lhe daria um enterro grandioso. Mandaria fazer um túmulo tão bonito que seria digno dele-um túmulo que o próprio Perrot aprovaria. Iria entregar-se à dor e sentir-se totalmente desgraçado e iria esquecer-se daqueles barões agitadores reunindo-se à sua volta gritando Bannockburn. Bannockburn... como se tudo fosse culpa dele.

Como fora humilhante fugir do campo de batalha, como ele fora obrigado a fazer. Jamais se esqueceria: galopando com Pembroke ao lado, seguindo para Dunbar e fazendo uma pausa para um breve descanso antes de pegar o navio para Berwick. O horror que fora aquilo, com o exército todo em fuga. Muitos dos soldados morreram afogados na tentativa de atravessar o estuário; muitos caíram nos fossos cavados pelos homens de Bruce; o total em bens de valor perdidos o deixava horrorizado. Raramente houvera um tamanho desastre na história inglesa. Todas as vitórias de seu pai tinham sido eliminadas de um só grande golpe.

Em Pontefract, Lancaster estivera à espera com um exército homens que deviam ter ficado ao lado de seu rei em Bannockburn, e Lancaster não conseguiu esconder a satisfação ao ver o rei fugitivo.

Um exército! Por que ele reunira um exército? Era porque, dera ele a entender, ele acreditara que, se Eduardo tivesse sido o vencedor na Escócia, teria virado seu exército vitorioso contra Lancaster e contra os condes que não tinham estado com ele na batalha.

Depois, Eduardo tivera de seguir, lado a lado, com Lancaster até York, onde um parlamento fora convocado. Não haveria um fim para a humilhação que um destino cruel jogava sobre ele?

Em York, ele ficara ciente do desprezo de seus súditos. Quisera gritar com eles quando a todo momento invocavam o nome de seu pai. O Grande Eduardo, era como o chamavam, como que para diferenciá-lo do filho ineficaz.

Um dia eu me vingo de todos, prometera Eduardo a si mesmo.

Disseram-lhe claramente o que tinha a fazer, e era de enlouquecer perceber que não lhe restava outra alternativa senão obedecer. Tinha de confirmar os Estatutos; tinha de aceitar de volta às suas boas graças os condes com os quais recentemente ele se desentendera. Aquilo queria dizer os assassinos de Perrot e, o que era mais humilhante de tudo, comunicaram-lhe que sua ajuda de custo seria reduzida para dez libras por dia.

Ele ouvira em silêncio, mas por dentro fervia de raiva.

Lancaster o observara com brandura. Eduardo era o rei no nome, mas agora Lancaster se achava no comando.

Lancaster encarava o rei. Eduardo pensava: "Perrot sempre odiou você. Ele sabia que você não queria me fazer bem, apesar de ser meu primo. Mas talvez, por ser meu primo e estivesse tão perto do trono, você sempre acreditou que seria um rei melhor."

Lancaster estava, de fato, pensando em como Eduardo era medíocre e parecia exultante com a derrota em Bannockburn. Sem dúvida que aquilo mostrava ao povo o tipo de homem que tinham como rei. Quantos ingleses estavam dizendo, naquele dia: "Se ao menos Lancaster tivesse sido filho de Eduardo I."

Agora, pouco importava. Ele estava no comando. Eduardo sabia disso, porque era óbvio.

- Majestade - disse Lancaster -, deverá haver certas mudanças de cargos. Há muito tempo que sinto... e outros partilham do meu ponto de vista... que os ocupantes dos mais altos postos do país nem sempre são dignos deles.

Eduardo teve vontade de gritar de raiva. Controlou a ira e disse friamente:

- Não é uma situação rara, para os ansiosos por governar, não gostar de amigos do rei.

- Se fossem apenas seus amigos, majestade, ninguém se alegraria mais por eles do que eu. Como sabe, caro senhor e primo, meu sincero desejo é servi-lo.

- Fico satisfeito por saber disso - respondeu Eduardo, carrancudo.

- Então, majestade, fica decidido que Walter Reynolds, ao ser investido do alto cargo de Canterbury, deve renunciar ao Grande Selo. Não se pode esperar que ele desempenhe dois cargos de tal vulto da maneira que deles se exige.

Então Walter iria agradecer a Deus por Eduardo ter-lhe dado Canterbury. Não poderiam destituí-lo do seu arcebispado.

- E a quem você daria o Grande Selo, primo?

O sarcasmo não causou efeito algum em Lancaster. Nunca fora homem de procurar sutilezas. Estava com a resposta pronta.

- Eu... e outros achamos que John Sandale deve ficar com o Selo. John Sandale. Um bom clérigo e um dos homens de Lancaster.

O que o rei podia dizer? Walter ocupava os dois cargos, e muitos concordariam que não tinha qualificações para isso. Na verdade, um número muito grande de pessoas pensava ser lamentável que um homem mundano como aquele exercesse as funções de arcebispo de Canterbury. Eduardo sabia que ele não ousaria protestar.

Triunfante, Lancaster mencionou outros membros da equipe do rei que ele achava melhor substituir.

No íntimo, Eduardo se contorcia de vergonha. No entanto, o que podia fazer? Quem estava ali para defendê-lo, agora? Aqueles que o tinham apoiado em Bannockburn já não eram estimados pelo povo. Compartilhavam da mesma vergonha pela derrota. Pembroke e Hereford tinham escapado da batalha, era verdade, mas despidos das honras que possuíam no passado. Gloucester, que poderia tê-lo apoiado, morrera. Eduardo jamais perdoaria Warwick pelo seu papel no assassinato de Perrot e, de qualquer modo, a saúde de Warwick se deteriorara tanto que era um homem doente. Eduardo não tinha certeza quanto a Warenne, cuja lealdade oscilava. A vida política de Warenne refletia-se em seus assuntos domésticos, que invariavelmente estavam num torvelinho. Seu casamento com Joan de Bar, filha única da filha de Eduardo I, Eleanor, com o conde de Bar, era infeliz, e ele, naquele momento, vivia com Matilda de Nerford, filha de um nobre de Norfolk-um fato deplorado pela família dela e pela própria Igreja; e o bispo de Chichester ameaçara excomungar Warenne se ele não corrigisse seu comportamento. Ele estava tentando anular o casamento com Joan, com base nas antiquadas alegações de parentesco próximo. Enquanto isso, continuava a viver com Matilda, que já lhe dera vários filhos.

Não, Eduardo não podia procurar ajuda junto a um homem na situação de Warenne. Nada havia que pudesse fazer, exceto ceder.

Muito bem, que fizessem o que quisessem. Ele os esqueceria. Iria dedicar-se aos preparativos do enterro de Perrot

Querido Perrot. Ele sempre o consolara. Inclusive agora.

Lancaster deixou o rei e cavalgou de volta a Kenilworth, muito contente com a vida. Aquilo que sempre desejara estava-lhe caindo nas mãos. Que Eduardo não merecia ser o rei, a maioria sabia. Era estranho pensar que ele permanecia dizendo tolices a respeito de Gaveston. Estava pensando em dar-lhe um enterro pomposo. Que desse. Aquilo iria mante-lo quieto enquanto se resolviam assuntos mais importantes.

Rei praticamente só no nome. A situação não podia ser melhor. Se Eduardo fosse deposto, ainda haveria o jovem Eduardo rei da Inglaterra, e quem melhor para guiá-lo do que seu parente de sangue real, Lancaster? Sim, que Eduardo se preocupasse em cobrir de honrarias o querido amigo morto. Aquilo o manteria ocupado e lembraria ao povo - se é que o povo precisava disso - aquela ligação que tivera um poderoso papel em levá-lo à atual posição humilhante.

Lancaster entrou no castelo. Cavalariços acorreram para pegar seu cavalo.

Ele se sentiu momentaneamente deprimido ao pensar como teria sido agradável ter encontrado uma esposa dedicada à sua espera, ansiosa por saber de seus triunfos.

Alice estava lá, de acordo com as boas maneiras, para saudar o seu senhor, mas o seu olhar era frio como gelo. Lancaster se lembrou de que, para ele, sempre fora frio. Alice era bonita, nobre como seria de esperar da filha de Henrique de Lacy, conde de Lincoln e Salisbury. Gaveston, aquele herege, chamarão conde de Barriga Explosiva, devido ao tamanho de sua cintura, mas isso não podia desmerecer sua posição no país como um dos primeiros condes do reino - rico e poderoso. E Alice era sua herdeira. Algo que ela jamais esquecera.

O casamento de Lincoln e Salisbury com Lancaster, Leicester, Ferrers e Derby deveria ter sido um casamento ideal - e de certa maneira, era. Mas Alice mostrara logo que tinha pouca consideração para com ele e que sabia que os títulos de Lincoln e Salisbury é que tinham sido o seu grande atrativo. Talvez se eles tivessem tido filhos... Mas nunca tiveram e, agora, jamais teriam. Alice deixara perfeitamente claro que nem mesmo em nome da transmissão daqueles títulos pomposos ela retomaria um relacionamento que pudesse resultar em filhos.

Aquilo não era nada satisfatório.

De forma obediente, ela despejou o vinho e ofereceu-lhe ataça. Ele a tomou desconfiado, pensando no brilho frio que havia nos olhos dela. Perguntou-se frivolamente

se a mulher ficaria contente ao vê-lo morto. Duvidava. Ela parecia totalmente indiferente à sua existência.

- Estou vindo de um encontro com o rei.

- E subjugou-o como devia? - perguntou ela.

Ele lançou um olhar nervoso para trás. Alice devia lembrar-se de que tinham de falar com cautela.

Alice percebeu a preocupação dele e pareceu achar divertido. Ele ficou imaginando se ela iria sorrir daquela maneira ao vê-lo preso como traidor.

- O rei está ansioso por recuperar o apoio de seus súditos - disse ele. - Ele está muito abalado com Bannockburn.

- Não é de admirar - replicou ela. - E garanto que não está nada satisfeito com aqueles que não o seguiram até lá.

- Ele está agradecido por ter sido poupado. Teve de fugir com Pembroke e poderia facilmente ter sido capturado pelos escoceses.

- Estamos vivendo numa época agitada - replicou Alice. - O país ficará grato por existirem homens que, tendo preservado suas forças durante a campanha escocesa, estão disponíveis para orientar as rédeas do governo.

Alice estava sorrindo com desdém, odiando-o. E ele a odiava. Ele pensou: "quem dera que eu pudesse me livrar dela. Quem dera que pudesse arranjar como esposa uma mulher agradável, uma mulher que me recebesse com prazer, me aplaudisse, se interessasse pelos meus feitos, tivesse orgulho pelo fato de o marido ter sangue real e ser, agora, o homem mais importante do país."

Em vez disso, ela o estava desprezando e, acreditava ele, criticando-o no íntimo por não ter ficado do lado do rei em Bannockburn.

Na verdade, a condessa não pensava muito no marido, nem na defesa em Bannockburn e na sua ascensão ao poder.

Seus pensamentos estavam todos voltados para um proprietário rural que conhecera quando saíra a cavalo. Seu cavalo ficara manco, e ele fora em seu auxílio e a levara para a casa dele. Era uma casa pequena, pelos padrões aos quais estava acostumada, mas lhe parecera acolhedora e confortável. Aquele homem mancava, o que, por estranho que pudesse parecer, ela achara atraente.

Os dois haviam conversado enquanto o ferreiro dele ferrava o cavalo, e durante aquele momento algo se passara entre os dois.

Ele era mesmo muito humilde, um simples proprietário rural, mas orgulhoso de sua terra e ansioso por cuidar dela e dos que o serviam. Alice achara aquilo muito encantador. Ele riabastante, era bem instruído e espirituoso. Ela gostara tanto do encontro que decidira que devia ser repetido.

Isso ocorrera havia algum tempo.

Agora, era frequente ela cavalgar até a casa dele - de pedras cinzentas com pequenas torres cobertas de trepadeiras. A casa tornara-se um castelo encantado para Alice quando ela e seu proprietário rural tinham se tornado amantes.

Agora, enquanto o marido falava sobre seu crescente poder sobre o rei, Alice se perguntava o que ele diria se soubesse que sua mulher arranjara um amante e que se tratava do Sr. Ebulo Lê Strange, um cavalheiro muito modesto quando comparado ao poderoso conde de Lancaster.

Perrot teria ficado encantado se pudesse ter visto a bela cerimónia.

Eduardo ordenara que os restos mortais do querido amigo fossem tirados dos Frades Negros de Oxford, que até então tinham ficado com eles, e levados para Langley.

Era oportuno que fosse em Langley, o local onde os dois talvez tivessem sido mais felizes. Ali tinham organizado suas peças. Que ator inteligente fora Perrot; e um perito em indicar o caminho a outras pessoas. E como fora divertido quando Walter Reynolds os surpreendera com caixas de roupas e artigos de que precisavam para as peças. E agora, Perrot estava morto, e Reynolds era arcebispo de Canterbury. Quanto a Eduardo, ainda era o rei, mas praticamente não o era com Lancaster acima dele e deixando claro para todos que as ordens partiam dele.

Que Lancaster se danasse! Naquele dia, não podia pensar em outra coisa, a não ser na dor pela perda de Perrot.

O funeral custara caro. Pouco importava. Ele empenharia tudo que tinha por Perrot.

Walter estava ao lado dele - graças a Deus pelo Walter, que ordenara que quatro de seus bispos e 14 abades comparecessem à cerimômia. Os barões ficaram longe, o que era significativo. Já não achavam necessário agradar ao rei, e Lancaster poderia considerar um ato de desafio a ele próprio se comparecessem às exéquias de um homem de cujo assassinato ele fora o principal instigador.

No entanto, a cerimónia foi impressionante, e Gaveston foi sepultado na igreja dos dominicanos em Langley.

O rei chorou abertamente, e comentou-se que ninguém iria ocupar, no coração dele, o lugar de Gaveston.

Durante os dias seguintes, Deus parecia ter-se voltado contra os ingleses. O tempo ficou tão ruim, que as safras foram perdidas, e isso significou fome por todo o país e miséria para muitos. O preço do trigo, grãos e ervilhas tinha subido para vinte xelins o quarto, um preço fora do alcance da maioria das bolsas, e devido à escassez, mesmo a mesa real nem sempre conseguia encontrar mantimentos.

O país poderia ter-se recuperado a tempo daquela primeira safra desastrosa, mas a seguinte também foi fraca. Os cereais ficaram tão escassos, que os cervejeiros foram proibidos de transformá-los em malte, de modo que havia não apenas uma escassez de alimentos, mas também de bebida.

Durante o verão inteiro, a chuva foi torrencial; campos ficaram imersos, muitas aldeias foram inundadas por completo e, assim, além de ficar sem alimentos, muita gente ficou sem casa. As safras apodreciam nos campos e o povo era obrigado a matar cavalos e cachorros para comer.

As doenças alastravam-se. Muitas pessoas que tinham sobrevivido à fome morreram de males misteriosos e havia uma crescente insatisfação por todo o país.

Além do mais, praticamente não se poderia esperar que depois da grande vitória de Bannockburn os escoceses fossem ganhar fama e acomodar-se em suas terras. Aquele homem enérgico, Robert, o Bruce, consolidou os lucros e fazia investidas através da fronteira, chegando a penetrar, em direção sul, até Lancashire. Os galeses, vendo aquela oportunidade, haviam-se levantado sob o comando de Llewellyn Bren, que tinha seis filhos vigorosos, e os sete haviam tomado, em pouco tempo, todo o Glamorganshire.

Os barões da fronteira tinham-se reunido e feito os galeses recuar, e como consequência Llewellyn Bren fora capturado e levado para a torre. Este fora o único sucesso desde Bannockburn e seu crédito não cabia ao rei, porque fora provocado pelo poder dos barões da fronteira, entre os quais se destacavam os poderosos Mortimer.

Eduardo Bruce, irmão de Robert, desembarcara na Irlanda. Eduardo Bruce era um homem ambicioso; e também um grande soldado, mas faltava-lhe o génio do irmão, embora isso não atrapalhasse o seu desejo de partilhar da coroa da Escócia. Sabiamente, Robert decidira que ser o rei da Irlanda poderia deixar Eduardo satisfeito; e agora que os ingleses tinham sido dispersados com tanta firmeza chegara o momento de tentar conseguir aquela coroa.

Foi desconcertante saber que Eduardo Bruce desembarcara naquela problemática ilha e, com o conde de Moray, ocupara Carrickfergus e fora coroado rei da Irlanda.

Parecia não haver limite para a queda da Inglaterra.

O povo, cansado da fome e ilogicamente culpando os governantes por ela, começava a ficar decepcionado com Lancaster, que parecia incapaz de ajudá-lo mais do que o rei.

Dizia-se, com frequência, que se o Grande Eduardo fosse vivo teria encontrado algum modo de corrigir-lhes os erros. O fato de Eduardo II ser tão parecido com o pai tornava as pessoas mais críticas.

Assediadas pela fome, pela doença e pelo conhecimento de que Robert, o Bruce, os desprezava tanto que penetrara bastante no país, que os galeses tinham ousado provocar uma rebelião e que a Irlanda estava em mãos dos escoceses, começaram a procurar à sua volta um bode expiatório.

A rainha, sentada tranquilamente fazendo sua tapeçaria, com as aias à sua volta, não estava, no íntimo, tão serena quanto aparentava.

O jovem Eduardo estava com quatro anos de idade. Uma criança saudável cuja saúde não dava preocupação alguma, tinha pernas compridas, cabelos da cor do linho, muito animado e dedicado à mãe.

Isabella tomara as providências para que isso acontecesse. Naquela criança repousavam suas esperanças. Estava certa de que chegaria a hora em que os dois ficariam juntos - talvez contra o pai dele. Julgara que esse dia poderia estar próximo quando Lancaster tirara o poder do rei; ela admirara Lancaster, mas agora não estava tão certa assim. Não era um homem ativo; na verdade, parecia preguiçoso. O que estava fazendo a respeito da fome e das desastrosas incursões dos escoceses no norte da Inglaterra e na Irlanda?

Lancaster não era o homem de que ela precisava e parecia que o momento ainda não chegara. Mas precisava ficar vigilante.

Enquanto ela bordava, uma de suas aias disse para uma outra:

- É uma história muito boba. Estou certa de que ninguém acreditou.

Isabella teve a atenção despertada e quis saber do que se tratava. A mulher ficou confusa.

- Nem gosto de contar, majestade. Era evidente que devia ser um louco...

- Mesmo assim, eu quero ouvi-la.

- Majestade, ela é tão boba...

- Já disse que quero ouvi-la - retrucou a rainha com frieza. As aias tinham medo de Isabella. Ela jamais fora severa com elas e, no entanto, percebiam que havia nela uma certa crueldade. Muitas vezes, admitiam entre si que não gostariam de desagradar à rainha. E tremiam e depois se perguntavam por que sentiam tanto aquele medo dela.

- Foi só um mexerico, majestade - disse a mulher, rápido. Estavam falando do rei... Foi uma coisa sem sentido.

Um leve rubor surgiu no rosto da rainha; seus olhos faiscaram e a mulher continuou:

- Disseram... me desculpe, majestade... devem ter sido palavras de um louco... disseram que o rei fora trocado ao nascer... que não era o verdadeiro filho do Grande Eduardo. Disseram que uma das amas deixara o príncipe cair no chão quando era um bebé. Ele morrera e a tal ama, muito aterrorizada, colocara outro bebé em seu lugar.

A rainha estourou numa gargalhada, à qual se juntaram, aliviadas, as aias.

- Uma história realmente ridícula! Você tem razão em achá-la assim.-Ela sorriu para a aiaque lhe contaraahistória.-Já viu alguém mais parecido com o pai do que o rei?

- Não, majestade, nunca.

- Já ouvi dizerem que ele é a imagem do que o antigo rei era na idade dele.

- É isso mesmo, majestade.

- Aquela ama foi muito inteligente, não?... encontrar um bebé que se parecesse tanto com o rei?

Elas riram e, tagarelando, recordaram-se de outros mexericos absurdos que tinham ouvido de vez em quando.

Mas a rainha não tratou o assunto com a serenidade que fingira. Na verdade tratava-se de uma história ridícula, mas o simples fato de ter sido inventada e divulgada era indício de como a mente das pessoas estava funcionando.

Elas estavam ficando decepcionadas com o rei. Devia haver uma ideia - por ténue que parecesse - de depô-lo; motivo pelo qual se permitia que ganhasse força a teoria de que fora trocado pelo verdadeiro Eduardo quando bebé.

O povo já não o admirava. Queria um rei como o primeiro Eduardo, um governante forte, vitorioso em combate, à menção de cujo nome o inimigo se acovardava. Robert, o Bruce, nunca respeitara muito Eduardo II. O que ele dissera? "Tenho mais medo do espírito de Eduardo I do que dos exércitos de Eduardo II. Era mais difícil arrancar um centímetro quadrado de terra do primeiro Eduardo do que seria tirar um reino do segundo."

Estavam começando a desprezar o rei. Por isso, a história da troca de bebés era bem recebida.

Na noite daquele dia, Isabella foi ao quarto de Eduardo e conversou com ele sobre o funeral de Piers Gaveston. Queria ouvir o quanto o ato fora impressionante e como Walter Reynolds o presidira com grande pompa.

Como Isabella o desprezava enquanto ouvia! Como ele era bobo! Numa época daquelas, em que o povo sofria por causa dos desastres nas safras, como ele podia gastar tanto dinheiro no enterro do homem que o povo odiara mais do que nenhum outro?

Será que ele não via o quanto a sua situação era precária? Teria ele esquecido o que acontecera a seu avô, o rei Henrique III, e a seu bisavô, o rei João?

Eduardo era um bobo... um bobo fraco.

Ela acariciou-lhe os cabelos. Precisava ter filhos. Qual seria a posição dela sem filhos? Contava com o seu saudável jovem Eduardo, mas não era o bastante. As crianças eram muito delicadas - em especial, segundo parecia, quando se tratava de meninos. O poderoso pai dela tinha morrido - vítima, dizia-se, da maldição de Jacques de Molai. Era pouca a ajuda que ela poderia esperar de sua família. O irmão Luís, chamado de lê Hutin porque discutia com todo mundo, estava doente. Comentava-se, em toda a França, que nenhum dos filhos homens de Filipe, o Belo, poderia prosperar, devido ao que o pai fizera aos templários. Isabella tremia ao pensar em como deveria ter sido horrível a cena com o grão-mestre declarando a sua maldição sobre a casa real da França enquanto as chamas o consumiam. A rainha de Luís estava grávida e havia temores de que a maldição pudesse impedir que ela tivesse um filho homem sadio, que se fazia necessário com muita urgência.

Não, não havia esperança de auxílio por parte de Luís.

Isabella teria de agir sozinha, e agora que sabia que Lancaster era um homem fraco, teria de procurar outro apoio, se quisesse um dia salvar-se da humilhação que o rei a fizera sofrer.

Mas jamais se esqueceria.

Naquele meio tempo, quanto mais filhos ela tivesse, maiores seriam suas esperanças. Precisava desesperadamente de outro filho homem.

Por isso se fazia de charmosa para Eduardo, e ele, obtuso que era, acreditava que a atitude da rainha para com ele significava amor.

A rainha engravidara e, embora o rei estivesse contente com isso, e quando a rainha passava a cavalo pelas ruas de Londres o povo a ovacionasse, o ressentimento do público contra o rei estava crescendo.

Era o velho problema - rei contra barões, e sempre o perigo de que aquilo rebentasse numa guerra civil. Só um rei forte poderia manter os barões acuados, e Eduardo não era nada disso.

O que mais o deixara com raiva com relação à maneira arrogante de Lancaster fora o fato de que ele lhe tirara os amigos. A saída que mais lamentava era a de Hugh lê Despenser, um homem de mais de cinquenta anos, que servira bem a Eduardo I e estivera pronto a fazer o mesmo com o filho dele. Na coroação de Eduardo, carregara parte das insígnias reais e, daquele momento em diante, mostrara ser o homem de confiança do rei.

Quando os barões tinham ficado contra Perrot, Hugh lê Despenser fora o único que lhe dera apoio. Aquilo era algo de que Eduardo iria sempre se lembrar.

Na época, comentara-se muitas coisas cruéis sobre ele. Diziam que era avarento e que ao bajular o rei e seus favoritos seria bem recompensado. Aqueles barões eram fortes e o tinham destituído do conselho.

Mas Hugh tinha uma capacidade de recuperação muito rápida, e não demorou muito e ele estava de volta. O rei ficou encantado ao vê-lo e deu-lhe de presente os castelos de Marlborough e Devizes. Quando Gaveston foi assassinado, Hugh ficou ao lado do rei, tentando proporcionar-lhe aquele consolo que, na verdade, ninguém poderia dar. Hugh compreendeu perfeitamente, e o rei gostava dele.

Os dois costumavam conversar muito. Hugh odiava Lancaster.

- Desculpe a minha raiva, majestade - dissera Hugh -, porque estou falando de seu primo, mas eu quisera poder desafiá-lo para um combate. com que prazer eu atravessaria aquele corpo arrogante com minha espada!

- Ah, Hugh - replicara o rei -, você é um amigo de verdade. E Deus sabe que pouco me restou. Quando Perrot estava vivo...

E então Eduardo falara sobre a vida maravilhosa que os dois tinham tido juntos e descobrira que podia rir outra vez com o espírito de Piers Gaveston com alguém que compreendia.

Depois viera Bannockbum, onde Hugh estivera com o exército naquele desastre e depois, quando Lancaster relacionou quem devia servi-lo, Hugh fora um dos dispensados.

- Ser rei e não ser um rei - lamentava-se Eduardo. - Eu me sentiria mais feliz como um dos meus mais pobres súditos.

Hugh lê Despenser tinha um filho também chamado Hugh. O jovem Hugh era um homem muito bonito - que chegava mais perto de Perrot nesse aspecto do que nenhum outro poderia chegar aos olhos do rei, e agora tornara-se seu camareiro.

Por estranho que parecesse, ele fora mandado por Lancaster, porque aquele belo jovem se aliara, contra o pai, aos barões.

Era um prazer conversar com ele, o rei achava-o divertido e alegre. Era despreocupado, alegre e, sempre que ganhava um presente, ficava tão encantado que Eduardo sentia um grande prazer em dar-lhe presentes.

Isabella obervara com profunda irritação a crescente concentração do rei no jovem Hugh lê Despenser.

Vai se repetir o caso Gaveston, pensou ela. Por que me casaram com uma criatura dessas?

Havia momentos em que ela tinha dificuldade em controlar a fúria. Odiava Eduardo; no entanto, estava atada a ele. Ansiava por um homem forte e apaixonado, alguém que trabalhasse com ela, que fosse ambicioso e, acima de tudo, percebesse tudo que ela tinha a oferecer. No entanto, estava casada com uma pessoa que considerava só metade homem, mas era o rei e, como queria tanto poder como adoração e afeto, teria de ser cuidadosa. Se a criança que estava gestando fosse um menino, teria dado mais um passo à frente. Tinha que ter filhos homens.

Isabella via o que estava acontecendo com muita clareza. compreendia as pessoas que a cercavam como Eduardo jamais poderia compreender.

O Hugh lê Despenser mais velho mandara o filho para o lado dos barões. Aquele velho maquinador astuto! Ela compreendia que bem poderia ser porque ele achasse que um deles devia estar num dos dois lados. "Você, meu filho", Isabella estava certa de que ele dissera, "vai procurar os barões e apoiá-los, enquanto eu fico do lado do rei. Então, para qualquer lado que a maré se virar, um de nós estará no navio seguro. Nossas propriedades estarão salvas e não deverá ser impossível o vencedor salvar o perdedor."

Um raciocínio lógico e digno do ardiloso e velho Despenser.

Então, o empavonado Lancaster entrara em cena. O jovem Hugh era um rapaz apresentável, que bem poderia cair nas graças do rei. Que fosse para a equipe real, ficasse de olhos abertos e comunicasse aos seus senhores tudo o que valesse a pena observar.

Deveria ser um bom espião para o grupo de Lancaster.

Inteligente!, pensara Lancaster, sem dúvida.

Que bobo, pensava Isabella. Não vai levar muito tempo para que mesmo Lancaster perceba o que fez.

E pensar que houvera época em que ela pensara em unir o seu destino a ele. Fora esperta em esperar, fazer o seu jogo com cautela.

Teria mais alguns filhos com Eduardo - e não deveria haver, na cabeça de ninguém, dúvidas de que se tratava de filhos de sangue real - e, então, iriam ver.

Em princípios de agosto, ela voltou a Eltham Place para aguardar o nascimento do filho e, para grande alegria sua, no dia 15 daquele mês nasceu outro menino.

Houve grandes comemorações, e o filho foi batizado com o nome de John.

Ficou conhecido como lohn de Eltham.

Houve mais um ano de fome. A chuva caíra incessantemente durante todo o verão; os campos viraram pântanos, e as safras, mais uma vez, ficaram destruídas.

O povo dizia que não eram os franceses que estavam amaldiçoados, mas os ingleses.

- Isso nunca teria acontecido na época do Grande Eduardo - era o comentário constante. Ele jamais teria deixado que seu povo sofresse. Teria feito alguma coisa. Jamais admitiria uma derrota para os escoceses. Fora um grande rei. E o que tinham, agora?

Havia piadas sobre o relacionamento do rei com o belo Gaveston. Será que as pessoas se lembravam de todo o dinheiro gasto para fazer uma bela sepultura para ele em Langley? Uma extravagância daquelas enquanto o povo passava fome.

Havia algo de errado com a Inglaterra, como os acontecimentos estavam provando, e o povo tinha de procurar a explicação junto ao rei.

Então apareceu John Drydas.

Era filho de um curtidor de Powderham e a vida toda as pessoas haviam comentado sobre suas pernas compridas, seus cabelos da cor de linho e sua semelhança com o rei.

As pessoas sacudiam a cabeça e piscavam o olho e diziam que se Eduardo I não fosse um homem de moral, que pelo que se sabia nunca se afastara do leito conjugal, seria quase certo que John de Powderham era o resultado de algum adultério cometido pelo rei.

A semelhança era impressionante.

John de Powderham era um sonhador. Costumava imaginar que era filho do rei. Quando a fome atingira Powderham, ele sentava-se no gramado com os aldeãos à sua volta e dizia-lhes o que faria se fosse rei. Tomaria as providências para que o povo fosse alimentado; mandaria que se rezasse nas igrejas, mandaria fazer orações e oferendas aos santos para que intercedessem junto a Deus para que Ele parasse a chuva e fizesse o sol aparecer. Havia muita coisa que ele faria se fosse rei.

É pena você não ser o rei, John Drydas - diziam os amigos.

- Está perdendo tempo curtindo peles.

Ele começou a pensar que estava, mesmo. Desde criança que se interessava pelo rei, porque a semelhança ficara evidente desde cedo. Havia quem dissesse que um dos ancestrais do rei poderia ter tido um filho com uma prostituta do interior fazia muitos anos e que a semelhança se transmitira nos descendentes dela. Os maridos fiéis, Henrique III e Eduardo I, não podiam, claro, levar a culpa. Mas os traços reais ali estavam.

Quando se espalhara a história da troca de bebés, John de Powderham ficara muito interessado nela. Durante dias, não falara em outra coisa.

Então, tivera uma ideia.

- Parecia um sonho-dissera ele-e, no entanto, não era sonho. Tratava-se de uma ideia que tive há muito tempo... Eu estava deitado num quarto cheio de sedas e veludos... Lembro-me disso de forma um tanto turva... como se houvesse um nevoeiro entre aquele dia e eu.

Os amigos insistiam em que ele tentasse se lembrar. Era impressionante como as visões estavam sempre voltando.

- Eu era muito criança - dizia-lhes ele. - Mas creio que uma criança tem esses lampejos de memória.

A aldeia ficara agitada. Era raro ter tanta coisa sobre o que falar e aquilo era um descanso das contínuas discussões sobre pobreza e agruras.

Então, um certo dia, quando seus admiradores estavam sentados em círculo à sua volta, ele disse-lhes que era, na verdade, filho do rei Eduardo I e, portanto, rei deles.

Ele começava a se lembrar. Uma noite, enquanto dormia no seu grandioso berço, chegaram uns homens e o levaram embora. Ele era criança demais para saber o que estava acontecendo, e suas primeiras recordações depois disso eram da cabana de um curtidor. Estava perfeitamente claro. O homem que se dizia chamar Eduardo II não passava de um impostor. Estava bem claro, não estava? Vejam o que acontecera quando ele fora à Escócia. Vejam a vida que ele levara com o depravado Gaveston. Era isso que se poderia esperar do filho de Eduardo I? Tudo o que ele fazia indicava o fato de que não se tratava do filho verdadeiro de seu pai.

Parecia-se muito com ele, assinalavam alguns.

- Ele é alto e tem cabelos claros. Há muitos homens altos e de cabelos claros. E o que dizer de mim, então? Não sou o fiel retrato dele?

Tinham de admitir isso.

- O que você vai fazer quanto a isso, John? - perguntou o moleiro.

- Devia fazer alguma coisa - disse John.

- Você devia percorrer o país, dizendo ao povo que é o verdadeiro rei.

- Talvez eu faça isso.

John de Powderham parecia apreensivo. Proclamar-se o verdadeiro rei era uma coisa, mas percorrer o país dizendo isso a outras pessoas era diferente.

Mas os amigos estavam decididos.

Tinham de pôr um paradeiro na situação atual, tão logo quanto possível. Queriam um rei de verdade para governá-los e ver John Drydas, de pé com toda a sua altura, os cabelos louros jogados para trás e as compridas e bem feitas pernas... Ora, se aquela não era a imagem morta do Grande Rei Eduardo, eles não sabiam o que era.

- Isso, depois da história da troca de bebés, é demais-disse a rainha.

- Todo homem alto de cabelos louros pretenderá ser o rei. Você tem de fazer desse um exemplo, Eduardo.

Eduardo concordou com ela. Discutira o assunto com Hugh, que chegara a ver o homem.

- Ele é bem atraente-foi o comentário de Hugh. - Alto e louro. E não há dúvida de que tem uma certa semelhança com o falecido rei e vossa majestade. Mas que diferença!

A pobre criatura não tem graça, nem charme. Ele é um caipira inculto.

- O que você espera que ele seja? - perguntou Isabella, mordaz.

- Criado por um curtidor! Duvido que o senhor ficasse tão encantador e gracioso se tivesse sido criado num casebre, em vez de na casa ancestral dos Despenser.

Hugh teve um riso sufocado bajulatório. Os dois estavam começando a se odiar. Chegaria a hora, pensou Hugh, em que não teria de acalmar a ela. Seria o contrário.

- Creio que não se deve tratar esse homem como se isso fosse uma bobagem - disse a rainha.

Eduardo olhou para Hugh. Ó Deus, rezou Isabella, permita que eu me controle. Isso vai ser uma repetição exata do querido Perrot.

Hugh não estava inteiramente certo de sua posição, e por isso foi logo dizendo:

- É muito importante isso que vossa majestade disse.

- Pobre sujeito - disse Eduardo -, duvido que sua intenção seja prejudicar alguém.

- Ele está apenas ajudando a tornar você mais impopular do que já é.

- O povo é muito tedioso - disse Eduardo, irritado. - Eu sou culpado pelas condições meteorológicas?

- Ele não vai culpá-lo pelas condições meteorológicas - disse a rainha -, mas por não fazer nada para combater os efeitos delas. As pessoas não percebem que agora é Lancaster que as governa... e não o rei.

Isabella não discutiria com eles. Se o rei gostasse de ser leniente para com aquele homem, que fosse. Sua loucura o estava levando bem depressa ao desastre.

Deixou os dois amigos juntos. Agora, eles iriam ficar bem juntos e falar sobre o passado. Hugh deveria ficar enjoado de ouvir falar nos talentos e nas virtudes do querido Perrot.

Mas não deixaram que John de Powderham ficasse em liberdade. Ele foi detido e preso. Deram-lhe uma oportunidade para apresentar uma prova que pudesse fundamentar suas alegações de que era filho do rei.

O pobre sujeito não podia fazer nada disso. Mas insistia na reivindicação. Sabia que tudo acontecera como ele contara. Que maiores provas queriam do que o caráter do rei atual?

Ele dera a seus acusadores a oportunidade de que precisavam.

O pobre John de Powderham foi sentenciado àquela coisa horrorosa que se tornara conhecida como a morte dos traidores. Foi enforcado, estripado e esquartejado.

Um exemplo para todo aquele que pudesse ter ideias de que Eduardo II não era o verdadeiro rei da Inglaterra.

Houve mais sinais de inquietação.

Pouco depois do caso de John Drydas, um tal de Robert Messager estava numa taverna, depois de beber um pouco mais do que de hábito, quando declarou que não era de admirar que as coisas andassem erradas no país quando se pensava na vida que o rei levava.

Fez-se silêncio na taverna enquanto ele prosseguiu, falando com muita franqueza das relações do rei com Gaveston e que agora parecia haver um novo jovem favorito. Era espantoso a rainha - que Deus a abençoasse - suportar a situação. Muitos dos que estavam na taverna concordaram, e quanto mais Robert Messager bebia, maior a franqueza com que discutia os amigos do rei.

Tinha de haver alguém que comunicasse a terceiros aquela conversa, e na noite seguinte, quando Messager estava na taverna, ali também se achava um homem que lhe ofereceu vinho à vontade e levou a conversa para os hábitos do rei.

Messager, vendo-se o centro do grupo e que contava com o interesse de todos, usou o que mais tarde foi classificado de "palavras irreverentes e indecentes" a respeito do rei.

Enquanto ele as proferia, o estranho fez um sinal e guardas entraram na taverna.

Pouco depois, Messager viu-se preso numa pequena e escura masmorra na torre. Percebendo o que fizera, ficou subitamente sóbrio quando foi tomado pelo desespero e pela percepção de que sua própria irresponsabilidade o levara até ali.

Houve muita coisa a comentar pela cidade inteira sobre Robert de Messager. Era um cidadão de Londres, e Londres cuidava de seus cidadãos. Messager falara do rei numa taverna de Londres. Limitara-se a dizer o que todo mundo sabia ser verdade. Talvez tivesse sido indiscreto. Talvez devesse ao rei uma pequena multa. Mas se fosse condenado à morte dos traidores, haveria confusão.

A rainha, como sempre, estava ciente dos sentimentos do povo. Quando saía a cavalo, as pessoas a ovacionavam. Parecia que, quanto mais desprezavam Eduardo, mais a tratavam com carinho. Viam-na como a princesa há muito sofredora, que tentara ser uma boa esposa e a rainha de seu dissoluto monarca.

- Vida longa para a rainha Isabella!

E então, ela ouviu uma voz na multidão:

- Salve Messager, senhora.

Salvar Messager! A rainha o salvaria. Iria mostrar ao povo de Londres que o amava tanto quanto ele a amava.

Olhou na direção de onde viera a voz. Ouviu-se novamente um grito:

- Salve Messager.

- Farei o possível para salvá-lo-respondeu ela, numa voz clara. Mais saudações. A mais melodiosa das músicas para os ouvidos dela. Um dia, tudo seria diferente.

A rainha exercia uma certa influência junto a Eduardo. Ele a respeitava. O fato de ela nunca o ter censurado pela vida que levava com Perrot e Hugh merecia sua gratidão. Ela lhe dera os filhos - dois meninos. O que poderia haver de melhor? Precisavam ter mais, dissera ela. Dois não eram suficientes. O rei realmente lhe devia muito por ter tanta consideração. Estava pronta a recebê-lo, para que pudessem ter filhos, e amava os dois meninos-tanto quanto ele. Havia um elo entre os dois e ele estava pronto a ouvi-la.

- Você tem de perdoar Messager-disse ela.

- Sabe o que ele disse a meu respeito? - perguntou Eduardo. Ela sabia. Não acrescentou que Messager dissera a verdade.

- Mesmo assim, quero que o perdoe. O povo me pediu para interceder em favor dele, e acho que será bom as pessoas acreditarem que você tem alguma consideração por mim.

- Mas sabem que tenho. Você não teve dois filhos meus?

- Os londrinos querem que ele seja perdoado e me pediram que fizesse o possível. Querem que ele seja perdoado, Eduardo.

- Mas falar do rei dele dessa maneira...

- Eduardo, é melhor deixar isso para lá. O povo falará menos se você agir assim. Não é muito frequente eu lhe pedir qualquer coisa. Mas agora lhe peço pela vida desse homem.

Eduardo raramente se sentia plenamente à vontade com a esposa, e a perspectiva de ela implorar aquele favor, que se referia à vida de um homem, invocava o seu senso de romantismo.

Libertar o homem. Mostrar ao povo que ele não ligava para as calúnias dele e fazer um belo gesto para com a sua rainha.

Quando Robert de Messager foi libertado, as multidões reuniram-se para ovacioná-lo. Ele dera um golpe em favor da liberdade. Chegara perto de uma morte horrível e graças a Deus - e à rainha-escapara.

- Deus salve a rainha-gritava o povo de Londres. Ela passou a cavalo no meio dele.

- Como é bonita! - gritava o povo.

- Que vergonha do rei-diziam algumas pessoas.-Uma rainha tão boa e adorável, e ele se volta para os seus rapazes!

Ela sorria e agradecia as saudações leais.

O povo a amava. Estava do seu lado. Um dia, precisaria dele.

Outro incidente infeliz aconteceu pouco depois.

Era a semana de Pentecostes, a corte se encontrava em Westminster, e as celebrações tinham lugar em público, segundo o costume. Em épocas assim, as portas do palácio eram abertas e o público podia entrar se quisesse ver a família real à mesa.

Numa fase como aquela, com a fome espalhada pelo país inteiro, representava encrenca permitir que os pobres vissem a fartura existente na mesa real. Houvera escassez de certos produtos nas cozinhas, mesmo nas dos mais ricos, mas para os pobres os quartos de vaca e a crosta dourada das tortas pareciam muito convidativas.

O rei e a rainha estavam sentados lado a lado à grande mesa, e o rei começava a perceber que com a rainha a seu lado - como deviam fazer as rainhas - o povo ficava mais inclinado a ser benevolente para com ele.

No entanto, enquanto estavam à mesa houve uma agitação lá fora e então, de repente, apareceu à porta uma mulher alta montada num magnífico cavalo. O rosto da mulher estava inteiramente coberto por uma máscara, de modo que era impossível reconhecê-la.

Ela entrou no salão e levou o cavalo até a mesa à qual o rei estava sentado. E então entregou a ele uma carta.

Eduardo estava sorrindo, e o mesmo acontecia com a rainha.

- Um gesto encantador de um de meus leais súditos - disse Eduardo. - O que diz a carta?

Deu-a a um de seus escudeiros e mandou que fosse lida em voz alta para que todos os presentes pudessem ouvir.

Ele estava esperando um panegírico daqueles que os monarcas estavam acostumados a receber em ocasiões como aquela quando, para seu espanto, o escudeiro começou a ler em voz alta uma lista de reclamações contra o rei e a maneira pela qual o país era governado.

- Tragam de volta essa mulher - disse ele, porque a mascarada já estava à porta.

Foi capturada e logo deu o nome do cavaleiro que pagara para que entregasse a carta ao rei.

O cavaleiro foi levado perante o rei, que quis saber como ele tinha a ousadia de se portar daquela maneira. O cavaleiro caiu de joelhos.

- Quero preveni-lo, majestade. Sou um súdito tão bom e leal quanto todos os demais que vossa majestade já teve. Mas o povo está murmurando contra vossa majestade e creio que devia saber disso. Minha intenção era de que a carta fosse lida por vossa majestade em particular. Eu estava pronto para arriscar a vida para lhe contar.

Um profundo silêncio caiu sobre o salão. Eduardo estava na dúvida. A rainha dirigiu-se a ele em voz baixa.

- Tem de deixá-lo em liberdade, tal como fez com Messager. Puni-lo iria provocar a fúria dos londrinos.

Eduardo entendeu. Não queria encrencas provocadas pela capital do seu reino.

- Pode ir - disse ele ao cavaleiro. - Não gosto de sua conduta, mas sei que ela não se baseou numa vontade de me prejudicar. Da próxima vez, fale comigo pessoalmente. Não precisa ter medo. Soltem a mulher. O assunto está encerrado.

Era o único jeito de lidar com uma situação daquelas. Mas ela mostrava o estado de espírito do povo.

 

A VIDA NÃO estava sendo tranquila para o conde de Lancaster. Era presidente do Conselho e estavam reclamando de sua má administração; era o comandante contra os escoceses, e a situação na fronteira tornava-se pior. Eduardo Bruce estavareinando como rei da Irlanda e dizia-se que ele, Lancaster, que tanto criticara a maneira pela qual o país fora governado sob as ordens de Eduardo, causara um desastre do tamanho do causado pelo próprio Eduardo.

Estava na hora de Lancaster ser afastado do cargo. Era essa a opinião de John Warenne, conde de Surrey e Sussex, e ele estava pronto a unir-se ao rei para provocar aquela situação conveniente.

Warenne não era o mais confiável dos aliados; suas lealdades oscilavam, não tanto porque procurava vantagens pessoais quanto pelo fato de que suas opiniões mudavam de tempos em tempos. Odiara Gaveston desde o momento em que este o humilhara na justa de Wallingford, mas não aprovara o assassinato de Gaveston e fora de opinião que o favorito deveria ter sido levado a julgamento, conforme o prometido.

Seus assuntos domésticos causavam-lhe muita preocupação, uma vez que ele odiava a mulher, Joan de Bar, e há algum tempo vinha tentando divorciar-se dela, sem sucesso. Tinha vários filhos com a amante, Matí Ida de Nerford, e por ser dedicado a ela e às crianças, estava ansioso por vê-la com o seu sustento garantido. O rei fora compreensivo diante daqueles problemas, e naquele momento Warenne estava se desviando para o lado de Eduardo.

Foi a conselho de Warenne que o rei convocou um conselho em Clarendon. Ali ficou decidido, em segredo, que deveria ser feito um ataque a Lancaster e que o próprio Warenne ficaria encarregado disso.

No devido momento, Warenne, com um selecionado grupo de soldados, marchou para o norte em direção a Pontefract, mas ao se aproximar do território de Lancaster e perceber a riqueza e o poder do adversário, sentiu um medo repentino e chegou à conclusão de que se atacasse àquela altura seria, com toda certeza, derrotado.

Mandou que parassem e decidiu voltar para o sul a fim de pensar em outro plano de ação.

No caminho, juntou-se a ele um de seus escudeiros, que estivera viajando pelo sudoeste. O homem ficara em Canford, Dorset, onde Lancaster tinha propriedades, e enquanto estivera por lá fora hóspede da condessa de Lancaster. Percebera logo que se tratava de uma mulher infeliz.

- Ela lhe fez confidências? - perguntou Warenne, surpreso.

- De certo modo-foi a resposta. - Claro, senhor conde, não é segredo que a condessa não está muito satisfeita com o casamento.

Warenne sacudiu a cabeça, com pena. Ele, mais do que ninguém, sabia o que significava estar infelizmente unido a uma pessoa da qual era difícil se livrar.

- Uma senhora muito encantadora e bonita, senhor conde. E desesperada, acho eu.

- Não estou surpreso. Lancaster deve ser um deplorável companheiro de cama.

- É o que parece.

- Eu gostaria de conhecer essa senhora - disse Warenne.

- Dizem os rumores, senhor conde, que arranjou um amante. Foi então que a ideia surgiu na cabeça de Warenne.

- Vamos seguir para Canford - disse ele. - Eu gostaria de conhecê-la. Apresentaria a ela minha solidariedade e talvez lhe desse alguma ajuda.

- Ela foi muito hospitaleira, senhor conde.

- Será que seria hospitaleira para com os inimigos do marido?

- Sem dúvida, e principalmente para com eles, porque, se forem inimigos dele, poderão ser amigos dela.

Warenne soltou uma gargalhada.

- Quanto a isso, você tem razão, meu amigo.

Alice de Lacy recebeu bem os visitantes.

O conde, disse-lhes ela, estava em Pontefract. Ela ouvira a respeito de uma reunião em Clarendon, à qual ele não comparecera.

Era realmente uma mulher bonita, e jovial. Lancaster deveria considerar-se afortunado, pois, além de todo aquele charme e dignidade, ela lhe levara Lincoln e Salisbury.

Que odiava o marido era óbvio; bastava o nome dele ser mencionado para haver um lampejo de desprezo em seus olhos.

A solidariedade de Warenne foi atingida. Aqueles casamentos arranjados podiam arruinar a vida de uma pessoa. Como seria diferente se ele nunca tivesse se casado com Joan e se ele e Matilda tivessem se conhecido antes de ser obrigado a se casar. Ele teria resistido a todas as coações. Teria sido muito simples. Toda aquela confusão com todas as frustrações seria evitada. As crianças estariam protegidas... A vida teria sido tão mais tranquila e fácil. Sim, ele se solidarizava muito com a mulher de Lancaster.

- Creio que o conde raramente está em sua casa, minha senhora - disse ele.

- Assim é, e dou graças por isso - replicou ela.

Ele não insistiu no assunto naquele momento, mas quando a noite avançava e os menestréis entoavam canções de amor desenganado, falou de seus problemas.

- Casado quando se é jovem demais para protestar e depois ver-se impossibilitado de escapar. Minha senhora, há anos que sou infeliz no casamento. Não recebo ajuda alguma de Roma. Mas tenho tido um pouco de felicidade. Conheci uma senhora que é dedicada a mim, que me deu o único lar que jamais prezei de verdade. Isso a deixa chocada?

- Na verdade, não. Fico contente pelo que o senhor fez, senhor conde. O senhor foi ousado e isso foi recompensado. O senhor tem filhos?

- Tenho, Matilda e eu temos uma bela família. Quem dera que meu filho pudesse herdar meu titulo e minhas terras. Nossas leis, as vezes, são ridículas. A senhora não acha que se duas pessoas não fossem feitas uma para a outra deveria ser a coisa mais fácil do mundo desfazer a união?

- Infelizmente, senhor conde-suspirou a dama-, o senhor não é a única pessoa que está nessa situação. Estou pensando numa que está em situação muito menos feliz do que o senhor. Sabe o que significa estar casada com Lancaster?

Warenne sacudiu a cabeça com ar de pesar, como se não fosse preciso falar.

- Eu não queria o casamento - prosseguiu ela. - Foi arranjado para mim. Meu pai achava que era bom eu me aliar a Lancaster, e Lancaster queria Salisbury e Lincoln.

- As duas cidades o enriqueceram bastante.

- Não fizeram com que ele passasse a ser mais aceitável para mim. Mas não posso livrar-me dele. O senhor, pelo menos, não está obrigado a viver com quem não gosta,

- Não, eu abandonei minha mulher. Fui viver com Matilda e temos um lar. Encontrei alguém a quem podia amar e venerar.

- E eu... - disse a condessa e interrompeu-se. Warenne deixou que um certo tempo se passasse em silêncio.

- Eu falo com demasiada franqueza - disse a condessa.

- Minha senhora, pode falar comigo como quiser, e prometo que nada dito aqui passará dessas quatro paredes.

- É um grande alívio falar... e com alguém que tenha sofrido a mesma coisa.

Contou que estivera cavalgando um dia e conhecera um homem que a ajudara a cuidar de seu cavalo manco. Os dois tinham tornado a se encontrar.

- Encantador - murmurou Warenne.

- Estamos apaixonados, mas que esperança haverá para nós? Qual a chance de sermos felizes?

- Matilda e eu também falávamos assim, e então aprendemos que se aproveitarmos as oportunidades, se formos suficientemente ousados, destemidos, a maioria das coisas se torna possível.

- O senhor deixou sua esposa e montou casa com a sua Matilda. Para o senhor, foi fácil.

- Minha cara condessa - replicou Warenne -, a senhora teria a mesma coragem que eu?

A condessa olhava-o com os olhos brilhantes.

- Eu sou mulher. Não é tão fácil.

- É verdade, mas mesmo assim não é impossível. Matilda fez isso.

- Acha que eu poderia, se fosse corajosa bastante, sair daqui... abandonar Lancaster e montar uma casa com Ebulo lê Strange.

- Poderia. Quem é esse homem? Eu não o conheço.

- O senhor não iria conhecê-lo. É apenas um proprietário rural.

- A voz dela abrandava-se quando falava sobre o amante. - Estou ansiosa por partilhar da casa dele, viver com tranquilidade... em harmonia, ter filhos...

- Então, vá para o lado dele.

- Sr. de Surrey, está realmente falando sério?

- Estou - bradou Warenne. - Vá para junto dele.

- Como eu poderia fazer isso? Poderia levar meus criados comigo... criados dele! Será que iriam...? Como poderia confiar neles?

- Vá sem os criados.

- O que Lancaster poderia fazer com ele? Lancaster é o homem mais poderoso do país.

- O poder dele está diminuindo. Ele é um bobo. Teve tudo... todo o poder que um homem poderia desejar, mas não foi inteligente o bastante para usá-lo. Agora, está perdendo-o depressa. Se a senhora quiser deixar Lancaster, o momento é este.

- Eu o faria, mas tenho medo do que possa acontecer a Ebulo. Lancaster poderia forjar alguma acusação contra ele. Ebulo não passa de um modesto proprietário rural. O poder de Lancaster pode estar declinando, mas ainda é o primo do rei.

- Se a senhora for acolhida em um de meus castelos, em algum lugar onde Ebulo possa visitá-la em segredo, ninguém precisará saber que ele esteve envolvido.

- O senhor pensa nas coisas mais escandalosas.

Os olhos de Warenne faiscavam. Toda a malícia de sua natureza estava no ponto máximo. Gostava da condessa. Gostava de mulheres atraentes. Era charmosa, e quando falava no amante ficava muito bonita. Ele gostava de ajudar amantes, em especial aqueles para os quais a vida não estava correndo com tranquilidade. E que maneira verdadeiramente maravilhosa de atacar Lancaster. Era muito melhor do que marchar sobre Pontefract e travar uma batalha.

- É necessário agir assim para obter a felicidade - disse ele.

- E então... o que farei, senhor conde?

- A senhora e eu partiremos daqui amanhã. Vamos sair como se fôssemos à caça. Leve as jóias que puder carregar. A senhora tem alguns criados de confiança, aqueles que seriam capazes de servi-la à custa da própria vida? Mande-os empacotar outros bens de valor e ficar prontos para segui-la com um cavalo de sela.

- Está falando sério, mesmo?

- Se a senhora estiver, condessa. Vamos planejar isso com cuidado e, quem sabe, talvez amanhã a senhora terá deixado Lancaster para sempre.

Alice de Lacy entrelaçou as mãos e disse:

- Creio que a Providência o mandou a Canford, senhor conde de Surrey. Porque eu não poderia suportar por muito mais tempo essa situação.

- Então... amanhã, cara condessa, desataremos a união. Fugiremos juntos e dentro em pouco a senhora estará tomando as providências para que seu amado fique a seu lado.

- O que posso lhe dizer? Como posso lhe agradecer? - Então uma expressão astuta surgiu-lhe nos olhos.-O senhor tem suas razões. Talvez deteste tanto Lancaster quanto eu.

- Eu o detesto, minha senhora, tanto quanto adoro ajudar uma dama em dificuldades.

Foi uma resposta perfeitamente satisfatória. Aquilo tinha de acontecer, pensou a condessa. E agora chegou o momento.

Àquela altura, a rainha estava grávida outra vez. Seu plano estava funcionando bem. Tinha o jovem Eduardo, agora com seis anos de idade e saudável; havia John, com dois anos, e agora outro filho a caminho. John não parecia tão saudável quanto o irmão mais velho, mas talvez só parecesse um pouco delicado porque Eduardo era muito forte; no entanto, sua saúde não dava motivos para preocupação. Ela estava reunindo sua pequena família.

Era maçante o fato de haver tanta demora, mas inevitável. A cada dia, desprezava mais Eduardo, mas sabia que logo estaria livre dele. Chegaria o dia em que iriam se separar, quando faria com que ele pagasse todas as humilhações que lhe causara; e valia a pena esperar por esse dia.

Isabella recebia com prazer notícias da França, porque suas esperanças estavam fixas em sua terra natal. Luís lê Hutin morrera. Sua rainha dera à luz um menino, Jean, pouco depois de sua morte, mas ele morrera em uma semana.

Pobre rei da França, que nunca soube que herdara uma coroa! O irmão de Isabella, Filipe, agora era o rei. Era chamado de o Alto devido à sua altura fora do comum.

As pessoas diziam que a maldição dos templários estava funcionando na família real da França. Ela matara primeiro o pai de Isabella, poucos meses depois de ter sido lançada, e agora o irmão e o filho dele. Ela sabia que o povo se perguntava que outras desgraças estariam aguardando a família do homem que destruíra os Cavaleiros do Templo. Isabella não tinha grandes esperanças em relação aos irmãos. Eram fracos. Teria sido diferente se seu pai tivesse vivido.

Ainda assim, esperaria e, quando a oportunidade chegasse, estaria pronta a aproveitá-la.

Muita coisa estava acontecendo no país. Todos comentavam agora o rapto da condessa de Lancaster por John lê Warenne, conde de Surrey e Sussex.

Que caso extraordinário, aquele. Fazia muito tempo que ela sabia que Alice de Lacy não gostava do marido e recusara-se a viver com ele como esposa. Pobre Lancaster! Por que ela, um dia, o admirara? Podia, num determinado momento, tê-lo desejado como amante; isso teria acontecido se não estivesse decidida a fazer com que ninguém pudesse lançar suspeita sobre ela enquanto não estivesse em condições suficientes para suportar um ataque desses; e estava decidida a fazer com que ninguém ousasse sussurrar que seus filhos poderiam não ter sido gerados pelo rei.

Warenne era o marido dedicado em tudo, exceto no nome, para Matilda de Nerford, de modo que era estranho que tivesse fugido com Alice de Lacy. Era compreensível a fúria de Lancaster e, que dera vazão à sua ira atacando as terras de Warenne ao norte. Uma guerra particular estava acontecendo entre os dois e sendo conduzida com todos os métodos de uma guerra civil. Isabella dissera a Eduardo que ele devia acabar com a desavença. Não era bom haver batalhas travadas no país dele pelos seus barões - um contra o outro.

Era melhor, dissera Eduardo, que eles lutassem um com o outro do que contra ele.

Tinha razão, mas para ele era humilhante ter de ficar de lado e ver aqueles dois homens envolvidos numa guerra só deles. Warenne seria fácil de controlar, mas Lancaster era forte demais para ele. E parecia que para Warenne também, pois Lancaster já capturara os castelos de Sandal e Conisborough, e a única maneira de Warenne poder salvar Grantham e Stamford era passá-los às mãos do rei.

Em vão Eduardo ordenara que as hostilidades cessassem. Warenne alegara que era impossível desistir enquanto Lancaster o atacasse, e Lancaster, é claro, fazia suas próprias leis.

E a condessa?, perguntou-se Isabella. O que se passava com ela? Era um caso misterioso, porque não podia acreditar que Warenne e Alice de Lacy fossem amantes. Naquela pequena aventura havia mais do que parecia haver.

Talvez no momento oportuno ela descobrisse, mas os seus problemas eram de uma importância muito maior. E a maior irritação de sua vida era o jovem Despenser. Ela entendia o que estava acontecendo. O bem-apessoado jovem estava-se insinuando no lugar que fora ocupado pelo detestável Gaveston; e, tal como Gaveston, o jovem Hugh sabia que ela o detestava, como era natural. Aos poucos, iria trabalhar contra ela. Precisava estar atenta àquilo.

Enquanto isso, havia a criança.

Ela estava em Woodstock, em Oxfordshire, para o parto. Sempre adorara Woodstock, lugar que tirara o nome das magníficas florestas que o cercavam. Vudestoc era o velho nome saxão, significando um local de madeira. Ethelred reunira ali o seu Wittenagemot (Parlamento), mas Woodstock era famoso principalmente por ser o local em que Henrique II, tataravô de Eduardo, mantivera a amante, a Bela Rosamund, e onde aquela pequena intriga fora descoberta pela vingativa rainha de Henrique, Eleanor de Aquitânia.

Ali estava uma mulher que Isabella admirava. Tomara uma drástica providência contra o marido que procedera mal. Aquilo resultara na prisão dela, mas recebera apoio de dois filhos.

Isabella estava contente por ter ido para Woodstock a fim de ter o filho.

Foi um parto fácil, e dessa vez foi uma menina.

- vou chamá-la de Eleanor - disse ela -, em homenagem à sua grande ancestral.

Parecia que o período de má sorte estava passando. Os verões tinham voltado ao normal, a safra melhorara; e havia boas notícias da Irlanda, onde Eduardo Bruce se instalara como rei. Eduardo Bruce, grande soldado que era, não tinha o génio do irmão Robert; dizia-se que o seu orgulho era imenso e que ansiava por estar acima de todos os outros. Os colonos ingleses na Irlanda tinham estado em luta contra ele desde que ele desembarcara, mas em geral ele safa vitorioso, porque quando estivera em dificuldades, o irmão Robert juntara-se a ele com reforços, e tudo ia bem enquanto os dois estavam juntos. Mas Robert não podia deixar seu reino recém-adquirido por muito tempo, e havia problemas constantes na fronteira, de modo que Eduardo Bruce ficava sozinho no comando.

Veio a batalha de Leinster. Os assessores de Eduardo Bruce avisaram-no de que os inimigos eram uma força poderosa e que ele devia esperar reforços antes do ataque, mas ele respondeu com desdém, dizendo que um escocês era tão bom quanto cinco ingleses e que a inferioridade numérica não o assustava. Ficou provado que estava errado, fatalmente errado para ele. Foi morto em Dundalk e seu exército foi desmantelado. Sua cabeça foi enviada ao rei Eduardo e seus quartos foram instalados em quatro cidades, a fim de que todos ficassem sabendo que o antigo rei da Irlanda estava morto.

Os escoceses já não controlavam a Irlanda.

Eduardo estava eufórico.

- No fim, tudo acaba bem - disse ele.

Ele deixara de lamentar tanto a perda de Gaveston, agora que havia Hugh lê Despenser para consolá-lo.

Lancaster estava, uma vez mais, em ascensão. Saifra vencedor contra Warenne, embora não tentasse insistir na volta da mulher e ela continuasse a viver em relativa obscuridade, apesar de todos saberem que estava sob a proteção de Warenne.

Warenne fora forçado a entregar sua propriedade em Norfolk, e suas possessões ficaram muito reduzidas pela atitude que tomara. Sobrancelhas se ergueram quando ficou-se

sabendo que Alice de Lacy concedera a Warenne a posse de várias das propriedades que herdara do pai.

Àquele era um caso misterioso, e embora Lancaster tivesse saído ostensivamente vencedor, os inimigos zombavam dele pelas costas e o fato de não poder controlar melhor seus problemas domésticos fazia com que perguntassem uns aos outros como ele esperava cuidar dos problemas do país.

Na aparência, entretanto, ainda era o homem forte, o rei em tudo, exceto no nome.

Os Despenser - os dois Hughs, pai e filho - estavam tomando posse do rei. Parecia não haver limite para a avareza dos dois; quanto mais recebiam, mais queriam, e o ressentimento contra os dois crescia.

No momento, estava havendo uma disputa, porque desde a morte do conde de Gloucester em Bannockburn suas propriedades tinham passado para a família e deveriam ser divididas entre as três irmãs de Gloucester, uma das quais fora casada, quando jovem, com o Hugh lê Despenser mais moço. Os outros dois maridos eram Hugh d Audley e Roger d Amory, que reclamavam que Hugh lê Despenser não só reivindicara quase a totalidade de Glamorgan como sua parte mas, por estar casado com a irmã mais velha, assumira o título do conde de Gloucester.

Era uma situação preocupante. Isabella a observava com olhos interesseiros. Estava ciente de que os Despenser estavam se insinuando cada vez mais nas boas graças do rei, e a medida do sucesso deles se refletia na atitude dos dois para com ela. Não estava de todo certa, mas acreditava perceber uma insolência velada.

Estourou uma rebelião no norte, e isso significava que todas as atenções se voltavam para a fronteira. Eduardo marchou para o norte, em companhia de Lancaster, para cercar Berwick. Isabella e suas aias ficaram em Brotherton, uma aldeia perto de York. Ela começava a ficar impaciente. Estava com vinte e tantos anos; tivera três filhos, nascidos, como muitas vezes pensava, em humilhação. Ela, reconhecida como a princesa mais bonita da Europa em determinada época, e ninguém podia negar que continuava uma mulher atraente, era uma esposa notoriamente desprezada. Jamais desculparia Eduardo pela humilhação que a fizera sofrer. O povo da Inglaterra a amava-mas em parte porque tinha pena. Muito bem, um dia ela usaria aquela solidariedade. Mostraria a Eduardo que sempre o desprezara e que gerara seus filhos por conveniência. Sua natureza se revoltara. Não podia amar profundamente aquelas crianças porque também eram filhas de Eduardo e tinham sido concebidas por necessidade. Mas era dedicada ao seu primogénito, talvez porque todas as suas esperanças repousassem nele. Imaginava o dia em que ele pudesse ficar a seu lado contra o pai. Durante sua estada em Woodstock, achara-se parecida com Eleanor de Aquitânia, cujos filhos homens tinham ficado ao lado dela contra o pai.

Houve uma agitação lá embaixo. Homens estavam entrando a cavalo no pátio. Pondo-se rapidamente de pé, ela desceu para ver o que acontecia e ficou perplexa ao encontrar homens que reconheceu como criados do arcebispo de York.

- Aconteceu alguma coisa - bradou ela.

- Majestade - disse o porta-voz dos homens que ela viu serem soldados -, o arcebispo nos mandou aqui a toda velocidade. Ele lhe pede que se prepare para partir sem demora. Black Douglas está por perto com dez mil de seus soldados e parece que pretende toma-la como refém.

Refém de Black Douglas! Um grande soldado e patriota com uma pele tão escura que lhe valera o nome. Os olhos dela brilharam diante da ideia de uma aventura. Pelo menos, pensou, Black Douglas era homem.

- É mesmo - disse ela. - E como ficaram sabendo disso?

- Se vossa majestade se preparar para partir já, ouvirá tudo quando estiver a salvo.

Ela hesitou.

- Há uma força de soldados leais cercando o castelo - disse o porta-voz. - Vossa majestade deve partir logo; caso contrário, correrá um sério perigo. Os escoceses são incultos. Poderão não saber como tratar uma rainha.

Em menos de uma hora, Isabella afastava-se do castelo em companhia dos soldados do arcebispo.

Então soube o que acontecera. Um dos batedores escoceses fora descoberto na cidade e, por causa de seu sotaque estranho, desconfiaram dele. Fora levado à presença do arcebispo e solicitado a explicar o que fazia. Isso ele não conseguira responder de modo a deixar o arcebispo satisfeito e, por fim, ao ser ameaçado de tortura, admitira que Black Douglas estava marchando sobre York, para raptar a rainha e mante-la prisioneira.

Quando chegou a York, ela foi recebida pelo arcebispo, que estava encantado por tê-la salvado mas, ao mesmo tempo, acreditava que seria perigoso ela ficar e que devia partir de imediato para Nottingham.

O rei expressara pouca preocupação com Isabella. Ela soube disso e teve ódio dele. Lembrou-se do quanto ele ficara triste quando Gaveston fora ameaçado e de como certa vez a abandonara em Scarborough ao fugir com o amigo adorado. Se Hugh lê Despenser estivesse em perigo, ele estaria em pânico.

Aquilo era imperdoável.

Eduardo não podia levar adiante a guerra escocesa. Os escoceses não foram expulsos de Yorkshire. Eles contavam com um grande líder na pessoa de Bruce, e o que faltava aos ingleses era justamente uma liderança daquele tipo. Eduardo não passava de um fraco; Lancaster, pouco melhor. Era uma época lamentável para a Inglaterra.

Eduardo se vira forçado a sugerir uma trégua de dois anos com a Escócia e, para sua grande surpresa, Bruce concordara. Ele não sabia, então, que Bruce estava ficando alarmado com o seu estado de saúde. Anos antes, ele estivera em contato com leprosos e a terrível doença começara a aparecer. Aquilo era alarmante, e ele precisava de descanso dos rigores da vida de soldado e, por esse motivo, estava disposto a concordar.

Eduardo ficou eufórico. Era o tipo de homem que podia viver feliz o momento e fechar os olhos para os desastres que ameaçavam o futuro e que, a olhos perspicazes, pareciam inevitáveis. Estava se portando de maneira irresponsável em relação a Hugh lê Despenser, como fizera com Gaveston, e a lição daquele relacionamento anterior parecia não ter-lhe causado impressão alguma. Os Despenser eram tão gananciosos quanto Gaveston, com a mesma sede de poder e, por isso, estavam ficando tão impopulares quanto ele junto ao povo.

Ele jamais vai aprender, pensava Isabella.

Ficou contente com o fato de Eduardo ter de ir à França prestar vassalagem ao rei - Filipe V, irmão de Isabella - por causa de Ponthieu. Aquilo daria a ela a oportunidade de sondar Filipe e ver que tipo de ajuda poderia receber dele se precisasse. Ela se perguntava se poderia ser possível, um dia, colocar-se à frente daqueles barões que já estavam fartos do rei e dos Despenser. Muitas vezes, pensara nisso quando Gaveston estava vivo, mas na época não fora possível. Naquela época, ela não tinha sido mãe de dois belos meninos. O jovem Eduardo estava crescendo com as pernas longas e os cabelos da cor do trigo, como o pai e o avô; estava, também, demonstrando uma certa seriedade que parecia agradar a todos.

- Esse aí vai ser uma repetição do Grande Eduardo - ouvira alguém dizer.

A rainha gostava de ouvir isso.

Agora, havia a viagem a Amiens. Ela adorava viajar, e em sua terra natal era sempre recebida com um afeto leal. Percebia que o público era menos efusivo com relação

a Eduardo. Era natural. As notícias do seu desprezo por ela deviam ter chegado ao país e o povo se sentia ofendido por causa dela.

Era agradável estar de novo na corte francesa. Achava-a mais graciosa do que a da Inglaterra. As mulheres usavam roupas mais elegantes. Sentia vergonha das suas e decidiu mandar fazer alguns vestidos para usar na França e levar na volta.

Eduardo prestou a vassalagem necessária, e ela teve oportunidade de conversar a sós com o irmão.

Pobre Filipe! Não parecia nada bem. A pele estava amarelada e ele envelhecera mais do que o normal para a sua idade. Estava no trono há apenas quatro anos, e parecia seguir pelo mesmo caminho de Lê Hutin.

- Você está muito mais magro, Filipe - disse, aflita. - Já consultou os médicos?

Filipe deu de ombros.

- Concluíram que vou morrer em breve. A maldição, irmã.

- Eu não daria importância a isso e diria a eles que você se recusa a morrer por ordem de Jacques de Molai.

- Não mencione esse nome - disse Filipe, rápido. - Ninguém menciona. Ele é azarento.

Isabella abanou a cabeça. Se estivesse no lugar do irmão, teria berrado aquele nome lá das torres. Teria feito um desafio ao grão-mestre. Teria deixado que o povo da França visse que ela podia amaldiçoar em tom mais alto do que os templários mortos.

Mas ela não estava sujeita à maldição.

- Carlos está esperando para assumir meu lugar - disse Filipe.

- Isso ocorrerá daqui a muitos anos, e talvez nunca. Filipe abanou a cabeça.

- Eu acho que não. E depois... chegará a vez dele. Fale-me da Inglaterra, irmã.

- Precisa perguntar? Você sabe o tipo de homem com que me casei.

- Ele ainda a ignora e prefere a cama de seu camareiro à sua?

- Quem dera que meu pai tivesse me casado com um homem!

- Ele casou você com a Inglaterra, irmã. Você é rainha, lembre-se.

- Uma rainha... que não tem importância alguma! Eu odeio

aqueles Despenser.

- Os dois?

- Pai e filho. Ele bajula os dois, mas claro que o belo jovem é o preferido.

- Ora, irmã, você tem um belo menino. Ela sacudiu a cabeça e sussurrou:

- Tenho, irmão. Fico contente. Dois meninos, e o jovem Eduardo parecendo-se mais com o avô a cada dia que passa. As pessoas comentam isso.

- A Inglaterra precisa, agora, de alguém igual a Eduardo I.

- A Inglaterra não precisa de Eduardo II.

- Mas é o que ela tem, Isabella.

- Talvez não para sempre. Não por muito mais tempo. Ele ficou perplexo.

- O que quer dizer?

- Há comentários contra o rei. Os barões odeiam os Despenser, tanto quanto eu. Se a coisa chegasse a um... conflito...

Ela viu a expressão do rosto do irmão endurecer e pensou: como estive errada ao esperar ajuda dele. Tudo o que o preocupa é a sua infeliz maldição.

- Seria sensato você continuar a agradá-lo.

- Continuar! Eu jamais comecei.

- Ora, vamos, irmã, você tem três filhos com ele.

- Gerados na vergonha.

- Não devia falar assim. São filhos de vocês dois.

- Eu sei. Mas o que tenho de suportar...

- Os príncipes e as princesas têm sempre de aceitar os seus destinos, irmã.

De que adiantou tentar obter ajuda de Filipe?

Mas houve outra pessoa que chamara sua atenção durante aquela visita à França. Foi Adam de Orleton, bispo de Hereford, que lhe disse ter uma grande admiração pela sua fortitude quanto ao seu relacionamento com o rei.

Não demorou muito e os dois encontravam oportunidades de conversar.

Ele deplorou a situação do país e os problemas entre os barões. Deu a entender que considerava os Despenser responsáveis por grande parte do crescente descontentamento do povo.

- Majestade - disse ele -, isso é uma repetição exata do caso de Piers Gaveston.

Isabella concordava com ele. Ansiava por falar de suas ambições, mas era astuta demais para isso. Por isso, deixou que ele falasse. Ele lhe disse que havia crescentes suspeitas em relação a Lancaster.

- Ouvi comentários, feitos em sussurros, majestade, de que ele tem estado em contato com Robert, o Bruce, que o tem subornado para trabalhar com ele contra o rei.

- Não posso acreditar. Lancaster jamais trabalharia contra a Inglaterra, e Robert, o Bruce, tem dificuldades para pagar aos seus soldados. Como poderia ter condições de pagar suborno?

- É o que andam dizendo-replicou o bispo. - Talvez Lancaster pense que ele saiba, melhor do que o rei, como conseguir a paz com a Escócia, Quando os escoceses fazem incursões em território da Inglaterra, nunca tocam em terras de Lancaster.

- Preciso investigar isso-disse a rainha. - O senhor contou ao rei?

- Majestade, achei mais prudente contar à senhora.

Ela ficou exultante. O que significava aquilo? Seria possível que os homens estivessem começando a se afastar do rei e a ir procurá-la?

Considerou a viagem a Amiens um sucesso, muito embora percebesse que praticamente não receberia ajuda do rei da França.

Os Despenser deviam saber do ressentimento contra eles, mas tão cegos estavam para qualquer coisa, a não ser suas vantagens pessoais e a certeza de que manipulavam o rei, que ignoravam os avisos.

O problema da herança de Gloucester fez com que a situação chegasse a um ponto crítico. Os três cunhados ainda estavam discutindo sobre suas quotas quando o jovem Hugh, num acesso de raiva, ocupou Newport, que pertencia a Hugh de Audley.

Audley reclamou a Lancaster, que reuniu os barões, acreditando ter recuperado seu prestígio desde o caso com Warenne, derrotado por ele de forma tão irrestrita.

- Precisamos nos livrar dos Despenser - anunciou ele.

- O rei nem vai querer ouvir falar nisso - foi a resposta.

- O rei não queria ouvir falar do banimento de Gaveston, e no entanto ele foi banido - retrucou Lancaster. - É, e perdeu a cabeça, também, e embora muitos gostassem de fingir não ter participado no caso, nunca tive medo de admitir que estava lá e acredito... e o mesmo acontece com outros homens corretos... que um dos melhores atos que qualquer inglês já fez foi livrar o país daquele parasita.

Aquele era o velho Lancaster. Muitos dos barões estavam, agora, procurando-o uma vez mais para exercer a liderança, e certamente não seria difícil levantá-los contra os Despenser. Até Warenne estava do lado de Lancaster naquilo, assim como Hereford e Arundel; e os irascíveis barões da fronteira também odiavam os Despenser, pois eles haviam tomado terras perto do território da fronteira.

Os mais destacados dos barões da fronteira eram os Mortimer. Eles eram reis de seus territórios, o que acontecia havia séculos. O Conquistador os usara para manter a paz na fronteira galesa, e o poder deles crescera ainda mais desde a subordinação dos galeses. Os líderes do clã dos Mortimer eram os dois Rogers - o mais velho, o lorde de Chirk, tivera participação ativa nas batalhas de Eduardo I, mas sempre fora um homem decidido e perdera o apoio do rei por ter deixado o exército na Escócia sem permissão. Naquela época, suas terras e bens móveis tinham sido confiscados, mas depois da morte de Eduardo I, Eduardo II devolvera suas possessões e lhe dera um poder maior. Combinava com a natureza indolente de Eduardo nomear um homem como Mortimer e dar-lhe autoridade sobre muitos castelos galeses, fazendo com que parecesse um rei em seu condado.

O sobrinho dele, o outro Roger de Mortimer, barão de Wigmore, unira-se a ele e os dois tinham trabalhado unidos havia alguns anos. O Roger de Mortimer mais jovem era um homem de personalidade irresistível. Era alto e extremamente atraente, e moreno. Tornara-se conde de Wigmore quando o pai morrera. Roger estava, então, com pouco mais de treze anos e, como fosse menor, Eduardo I o colocara sob a tutela de Gaveston, porque na época Eduardo não percebera a má influência que Gaveston estava exercendo sobre o seu filho. Roger fora notado pela destacada boa aparência quando foi feito cavaleiro juntamente com o príncipe de Gales, e na coroação do jovem Eduardo tinha sido portador das túnicas. Junto com seu condado, ele herdara importantes propriedades e pouco depois arranjaram-lhe um casamento que aumentaria ainda mais suas possessões. Joan de Genville estava ligada aos Lusignan e, portanto, tinha associações com a família real e, entre outras vantagens, levou para Mortímer a cidade de Ludlow e propriedades na Irlanda.

Naquele país conturbado, ele obtivera um grande sucesso, pois suas experiências com os galeses o tinham ensinado a lidar com os irlandeses.

Chegara aos ouvidos de Roger de Mortimer a notícia de que o jovem Hugh lê Despenser andara prevenindo o rei de que estava na hora de conter o poder dos Mortimer que, na opinião dos Despenser, estavam-se tornando poderosos demais na região da fronteira e consideravam-se como governantes de lá, sem dever subserviência a ninguém. Assim, quando se soube que Lancaster estava levantando os barões contra os Despenser, os Mortimer deram logo o seu apoio.

Por serem um tanto impetuosos e indisciplinados, não podiam esperar por conferências. Partiram para o ataque de imediato, e como o Despenser filho ocupara terras em área da fronteira que ele jurara que lhe pertenciam por ser parte da herança de Gloucester, saquearam aquelas terras, ocuparam o castelo, fugiram com objetos de valor e gado e declararam guerra aberta.

O jovem camareiro foi procurar o rei, desesperado.

- Veja os que esses Mortimer fizeram - bradou ele. - Foi um erro permitir que tivessem tanto poder.

- Meu caro Hugh - bradou o rei -, nós os puniremos, eu lhe prometo. Tudo será devolvido.

- Mas como? - bradou Hugh.

- Meu caro, eu lhe prometo que alguma coisa vai ser feita. Emitirei um edito proibindo que qualquer pessoa ataque você e seu pai. vou ameaçá-los de morte. Isso é traição. Sim, Hugh, haverá um edito, e tudo o que os Mortimer lhe tiraram será devolvido.

Mas nem o rei nem Hugh tinham percebido o quanto a oposição era forte. Sob a liderança de Lancaster, os barões ficaram unidos, insistindo que Eduardo convocasse um parlamento para discutir o caso dos Despenser, e quando se reuniram, os barões estavam presentes em grande quantidade, todos usando insígnias brancas nos braços para indicar ao rei que eram unânimes em sua decisão de livrar-se dos Despenser.

Lancaster liderou o ataque. Disse ele que os Despenser tinham-se apropriado de fundos do tesouro real. Ele tinha provas. Tinham ficado mais ricos do que o que recebiam justificava. Deviam ser banidos do país e o que obtiveram de forma ilícita devia ser tirado deles.

O furioso desespero do rei de nada adiantou.

O Hugh pai viu que o país estava à beira da guerra civil. O rei descobriria que praticamente não havia um nobre disposto a apoiá-lo. Ele seria derrotado e deposto. Seu filho estava com nove anos; a rainha não ficaria do lado do rei e tinha amigos na França; eles podiam instalar uma regência sob o controle de Lancaster. Devido a essa situação, o Despenser mais velho decidiu que os dois deveriam retirar-se em silêncio.

Os Despenser deixaram a corte, e o problema arrefeceu.

Eduardo chorou. Era uma repetição exata do problema com Gaveston.

A rainha ficou satisfeita. Tudo estava funcionando à sua maneira. Ela estava grávida uma vez mais, e na ocasião do banimento a hora do parto estava muito próxima. Ela decidira que, dessa vez, iria para a torre para o parto. Lá, refletiria sobre o futuro. Tinha dois meninos e a filha Eleanor. Estavam todos bem de saúde. Se o quarto filho fosse menina, talvez seus planos fossem adiados. Mas ela já contava com dois meninos. Não, depois do quarto filho não haveria mais nenhum. Estava farta de humilhações, farta de ficar de lado em favor dos favoritos de Eduardo.

Já gestara o suficiente. Agora era sua vez.

Enquanto estava deitada à espera do nascimento do filho, ela se perguntava por que escolhera um lugar tão lúgubre. Embora se estivesse no mês de junho, havia frieza nas paredes de pedra, e ela percebera que grande parte da torre precisava de reparos.

O telhado não estava impermeável, e quando chovia suas roupas de cama ficavam molhadas. A construção toda fora desprezada, e ela sabia de quem era a culpa. Os Despenser tinham usado, para atender a suas necessidades, dinheiro que deveria ter sido gasto em reformas. Era um golpe conhecido, e fora uma das razões pelas quais se considerava uma dádiva conseguir a custódia de lugares assim.

Malditos Despenser! Primeiro Gaveston, e agora, eles. E se alguma coisa de má acontecesse ao jovem Hugh lê Despenser, como seria? Passado algum tempo, apareceria um novo rapaz.

Que homem para ter como marido! E que piada ela ter conseguido ter quatro filhos dele. Era uma grande realização.

Mas estava acabado. Aquilo era o fim da história, prometia a si mesma. Agora, começaria a trabalhar em direção à meta que já estava em sua mente havia algum tempo.

O parto não foi difícil. Tinha filhos com facilidade; e veio outra menina.

Decidiu chamá-la de Joana, e se tornou conhecida como Joana da Torre.

Eduardo foi ver a criança.

- Outra menina-disse Isabella, observando-o bem de perto. Ele continuava bonito. Ficava zangada quando olhava para ele, porque no começo, se tivesse estado disposto a ser um bom marido, o teria amado e apoiado. Então, não teria havido aquele perpétuo problema que repetidas vezes surgia das paixões dele - primeiro, Piers Gaveston, e agora Hugh lê Despenser. Se ao menos ele fosse mais razoável para com eles; se ao menos não tivesse que tornar os relacionamentos tão flagrantes, teria sido muito mais fácil. Tal como era, aquilo provocava observações como as que quase tinham custado a vida de Messager, e incidentes como o do pobre Drydas, que o levara a uma morte horrenda. Se ao menos ele pudesse ser discreto; se ao menos não tivesse que mante-los a seu lado o tempo todo, mimá-los, dar-lhes presentes caros. Eduardo, você é um tolo. Gostaria de saber qual será o seu fim. Nosso filho Eduardo está crescendo. Nove anos, uma idade razoável e mostrando todos os sinais de parecer-se com o avô. Assim dizem as pessoas quando ele sai a cavalo. Ele é uma crescente ameaça para você, Eduardo, seu bobo.

Eduardo ria sozinho, como se saboreando uma piada que só ele ouvira. Mal olhara para o bebé. Ela esperou que ele lhe contasse.

- É Hugh - disse ele.

A expressão dela foi de frieza, mas ele não percebeu.

- Sabia que ele está numa ilha do canal de Bristol?

- Eu não sabia, e por que está lá? Ele não foi banido do país?

- Ele virou pirata. - Eduardo estava rindo tanto que mal podia continuar. -Ele tem um navio armado e capturou dois navios mercantes. Eles estavam indo para Bristol cheios de carga valiosa. Ele tirou a carga deles e mandou-os seguir viagem vazios.

- Ele sabe qual é o castigo para a pirataria?-perguntou Isabella.

- Isabella, que história é essa? Isso foi feito a título de brincadeira.

- O capitão do navio e os donos dos outros dois pensam assim?

- Eles serão informados e compreenderão. Mas não é coisa típica deHugh?

- Exatamente - retorquiu ela com aspereza. - O papel de pirata deveria cair-lhe muito bem.

- Não vai demorar e ele estará de volta - disse Eduardo, pensativo. - Não me sentirei feliz enquanto ele não voltar.

A rainha olhou-o com cinismo. Seu tolo, pensou. Está assinando sua sentença de morte.

 

EM SINAL DE GRATIDÃO por outro parto e outra rápida recuperação, a rainha tinha de ir ao santuário de São Tomás em Canterbury, para apresentar seus agradecimentos.

Partiu da torre, e que alegria atravessar Londres a cavalo, onde o povo a ovacionava com tanta lealdade! Era a bela rainha deles, que permanecera fiel ao rei e lhe dera filhos, muito embora ele se portasse tão mal com aqueles seus amigos que pareciam sanguessugas.

- Deus salve a rainha! - gritavam e ela achava engraçado ao pensar que se o rei estivesse ao seu lado, ainda seria ela que o povo ovacionaria.

Era uma distância muito grande até Canterbury, e seu marechal sugeriu que deveria fazer uma parada no castelo dela em Leeds, enquanto ele mandava um mensageiro avisar ao zelador, lorde Badlesmere, que eles estavam caminho.

O mensageiro chegou a Leeds, mas infelizmente lorde Badlesmere se achava fora e Lady Badlesmere estava no comando.

Os Badlesmere eram fortes adeptos da causa da Lancaster e contra o rei. Tinham ficado enfurecidos com a atitude de Eduardo para com os Despenser, e Lady Badlesmere comentara que a realeza só devia receber respeito quando o merecesse.

Lorde Badlesmere dera instruções para que ninguém - não importava quem fosse - devia ser recebido no castelo, a menos que fosse portador de uma ordem dele ou do conde de Lancaster. Quando soube, pelo mensageiro da rainha, que a visitante seria a rainha Isabella, Lady Badlesmere decidiu que não desobedeceria às ordens recebidas, nem mesmo por ela.

- Vá embora! - bradou ela para o mensageiro. - Não deixarei ninguém entrar no castelo, a menos que traga uma ordem do meu marido ou do conde de Lancaster.

- Minha senhora - replicou o mensageiro -, entenda que se trata da rainha da Inglaterra?

- Como posso ter certeza? E se você for um inimigo disfarçado?

- A senhora verá quando a rainha chegar.

- Meu bom homem, volte para a sua patroa. Diga a ela que não vou deixar ninguém entrar... ninguém... a menos que venham a mando de meu marido ou do conde de Lancaster.

O perplexo mensageiro perguntava-se como poderia voltar e dizer à rainha que o acesso a seu próprio castelo lhe estava sendo negado, quando ouviu os sons de aproximação. A comitiva da rainha chegara aos muros do castelo.

- A rainha está aqui - disse o mensageiro. - Lady Badlesmere, já pensou que este castelo pertence à rainha e que seu marido é apenar o zelador?

- Eu repito minhas ordens, e pretendo cumpri-las. -insistiu Lady Badlesmere. - Se for mesmo a rainha, terá de arranjar hospedagem em outro lugar.

A rainha, ouvindo a discussão, ficou assombrada e ordenou aos guardas que se aproximassem da ponte levadiça, mas Lady Badlesmere deu uma ordem a seus arqueiros e dos muros do castelo saiu uma onda de flechas que atingiram seis membros da comitiva da rainha, matando-os.

Antes que a furiosa Isabella pudesse avançar, um de seus guardacostas agarrou o bridão de seu cavalo e obrigou-a a recuar.

- Temos de fugir dessa louca, majestade - disse ele, e saiu a galope com ela.

A rainha tremia de raiva. Que ousadia, uma súdita portar-se daquela maneira com ela! Conhecia Lady Badlesmere fazia muito tempo. Uma mulher que pensava estar sempre com razão e saber como lidar com os problemas dos outros.

- Por Deus - bradou ela -, ela vai receber uma lição por causa

disso.

A comitiva da rainha, sem os seis mortos, afastou-se para passar a noite com anfitriões mais hospitaleiros. Lady Badlesmere ficou, na verdade, um pouco perturbada quando encontrou os seis mortos junto às suas portas. Mandou retirá-los e enviou imediatamente um mensageiro ao conde de Lancaster.

Ela sabia que haveria encrenca. A rainha fora grosseiramente insultada e seis de seus comandados tinham sido mortos. Talvez, pensou Lady Badlesmere, ela tivesse sido um pouco imprudente. Mas acreditava que Lancaster ficaria encantado com aquele insulto à família real. Afinal, ela agira segundo suas ordens e aquilo era mais uma prova de que ele era mais importante do que o rei.

Esperou muito tempo por uma resposta de Lancaster e, por fim, mandou outro mensageiro. Dessa vez, veio a resposta. Fora loucura negar à rainha admissão ao seu próprio castelo. A rainha estava fervendo de raiva e não deixaria o assunto passar em branco. Lancaster dissociava-se do caso. Os Badlesmere, sozinhos, teriam de enfrentar a tempestade que haviam provocado. Ele, Lancaster, não tivera participação alguma no caso e não pretendia envolver-se agora.

Até Eduardo foi despertado da letargia em que mergulhara com o banimento dos Despenser.

Isabella esbravejou com ele.

- Não se pode deixar que isso fique assim. O que se iria pensar de um rei que não vingou tal insulto à sua mulher?

Ele concordou que alguma coisa tinha de ser feita. Lancaster declarara que não estava envolvido, de modo que não seria difícil tomar Leeds e deixar que Isabella se vingasse dos Badlesmere.

Quando o povo de Londres soube do insulto à rainha, ficou enfurecido. Marchou pelas ruas exigindo que ela fosse vingada. Muitos dos participantes eram homens fortes, fisicamente aptos, e tinham tomado parte em combates quando houvera necessidade. Estavam prontos a fazer o mesmo outra vez pela sua querida Isabella.

Eduardo tomou-se do entusiasmo deles e, pouco depois, marchava à frente de um respeitável exército para Leeds. Era estimulante verificar que seus soldados estavam do seu lado. Mal podiam esperar pela batalha. Estavam decididos a tomar Leeds e depois deixar que aqueles que se haviam portado com tanta insensibilidade com a sua adorada Isabella começassem a rezar.

O castelo de Leeds fora construído sobre duas ilhas em um lago de cerca de cinco hectares de tamanho. Uma ponte levadiça dupla ligava as duas ilhas, mas as duas construções separadas eram capazes de uma defesa em separado. A água passava entre elas em três lugares, o que era de grande ajuda para os defensores.

Apesar disso, Eduardo levara um exército poderoso e desfechou um ataque feroz. Em poucos dias, Lady Badlesmere foi obrigada a se render. O marido a apoiara pelo que fizera, mas não voltara ao castelo para ajudá-la a resistir ao cerco.

O exército tomou o castelo de assalto, tendo à frente Eduardo, o rei.

Lady Badlesmere foi levada à presença dele. Encarou-o, atrevida, e não demonstrou medo.

- O que a fez tratar a rainha daquela maneira? - perguntou ele.

- Eu era a zeladora do castelo na ausência do meu marido. Eu tinha o direito de dizer quem deveria e quem não deveria entrar.

- Você está errada, mulher. O castelo de Leeds pertence à rainha. No entanto, você recusou-se a deixá-la entrar. Isso é traição.

Ela não vacilou nem diante daquilo, sabendo quais seriam as penalidades.

- Lorde Badlesmere vai me apoiar.

- Deixaremos por conta dele cortar a corda na qual você será enforcada nas suas ameias.

- Que seja - disse ela, dando de ombros. - Serei outra vítima da tirania dos reis.

Eduardo ficou pasmo ao ver que ela falava assim diante da morte e, no íntimo, sabia que seria impossível executar uma mulher daquelas.

Na verdade, ele não tinha coragem de enforcar uma mulher. Seria presa, disse ele. Que fosse levada para Londres e instalada na torre.

Seus conselheiros abanaram a cabeça. Ela merecia a forca devido ao que fizera à rainha. Mas Eduardo não quis ouvi-los. Em vez disso, enforcaram o senescal Walter Colepepper e 11 de seus criados, o que foi gritantemente injusto, porque eles tinham simplesmente obedecido as ordens da patroa.

No entanto, precisava castigar alguém.

A atrevida Lady Badlesmere foi levada para Londres e, ao passar pelas ruas, as pessoas saíam para zombar dela e jogar-lhe lixo e ameaçá-la com o que iriam fazer com ela.

Os guardas conseguiram protegê-la das turbas iradas, e ela foi levada para uma masmorra na torre.

Eduardo estava triunfante. A captura de Leeds foi o seu primeiro sucesso em combate. Sentia-se como um conquistador.

Isabella estava encantada. Ele agira em seu favor e, pela primeira vez, mostrara ter alguma consideração por ela. Recebeu-o calorosamente em Londres. Fora bom que Lady Badlesmere não tivesse sido enforcada mas tivesse sido levada para a torre. Se tivesse sido enforcada, poderia ter virado mártir.

- Você precisa se aproveitar do seu sucesso - disse a rainha. Veja bem, Eduardo, Londres inteira está do seu lado. Os barões verão isso e talvez não fiquem tão ansiosos por ficar contra você.

Ela estava com a razão. Vários dos barões que tinham ficado pasmos com o fato de a rainha ter sido impedida de entrar no seu próprio castelo, agora, iam procurar o rei com os seus seguidores, para mostrar-lhe que já estavam fartos das vacilações de Lancaster.

- Está na hora de acabar com o poder de Lancaster - disse a rainha.

Os dois, ela e Eduardo, estavam juntos como nunca haviam ficado antes, mas se ele pensava que ela iria esquecer insultos passados diante da mudança da sorte, estava enganado. A vitória em Leeds fora fácil um exército contra uma mulher defendendo um castelo - e a rainha estava trabalhando para atingir uma meta que não incluía o rei. Mas agora ela iria usá-lo; e como Lancaster provara que não era seu amigo de verdade-embora no começo desse essa impressão-estava pronta a eliminá-lo.

- Você sabe que Lancaster é um traidor - disse a rainha.

- Já tive provas evidentes disso - replicou Eduardo. - Ele vive conspirando contra mim.

- E já se perguntou por que, nas suas incursões, os escoceses nunca tocaram em terras dele?

- Há rumores de que ele mantém um acordo com Robert, o Bruce.

- Um acordo com Robert, o Bruce! Quando ele é seu súdito!

- Nós temos, se possível, que pôr as mãos nas cartas que foram trocadas por Bruce e Lancaster, se pusermos... se pusermos... quem poderá negar que temos um traidor entre nós?

O estado de espírito de Eduardo mudara. Agora estava preparado para o sucesso.

Marchou até a fronteira galesa e à terra dos Mortimer.

Os Mortimer mandaram logo avisar Lancaster de que o exército do rei estava em marcha. Deveriam unir-se e, então, poderiam derrotá-lo. Eduardo não era famoso pela sua habilidade em combate e, com o poderio de seus dois exércitos, eles seriam invencíveis.

A resposta de Lancaster foi que de fato seria aquilo mesmo que aconteceria, mas não enviou seu exército e, sem ele, os Mortimer não eram fortes bastante para enfrentar os milhares de seguidores do rei que, agora que tinham um Eduardo mais resoluto à sua frente (desde a vitória em Leeds), estavam prontos a dar tudo na luta.

O resultado do encontro foi a derrocada dos homens da fronteira e, para grande surpresa de Eduardo, ele descobriu que dois de seus maiores inimigos eram seus prisioneiros - Roger de Mortimer, lorde de Chirk, e seu sobrinho, Roger de Mortimer, lorde de Wigmore.

Eles foram levados imediatamente para a torre.

Era um sucesso com o qual Eduardo jamais ousara sonhar. Sabia, agora, como seu pai se sentira durante a longa vida de combates.

 

O REI AGORA voltou a atenção para Lancaster.

Foram encontradas cartas. Lancaster estivera de fato se comunicando com o rei da Escócia, e nas cartas que enviara a Bruce ele se assinara Rei Artur, Aquilo era agourento, e Isabella estava certa. Ele tinha de destruir Lancaster. Não poderia haver paz para ele enquanto isso não fosse feito. com esse objetivo em vista, Eduardo planejou marchar para o norte.

Agora estava claro que Lancaster estava fazendo uma firme oposição ao rei. Ele havia, realmente, entrado em negociações com os escoceses, cujo grande desejo era ver uma guerra civil na Inglaterra. Sir Andrew Harclay, administrador de Carlisle, sabia disso e foi correndo procurar Eduardo a fim de informá-lo do que se passava. Eduardo mandou-o de volta a Carlisle, com instruções de atacar os traidores ingleses e informá-lo imediatamente se os escoceses se juntassem a eles.

A ação aconteceu numa longa ponte que cruzava o rio Ure. Essa ponte era muito comprida mas estreita, e nos seus acessos os seguidores de Lancaster viram-se frente a frente com Sir Andrew Harclay e sua força, que fora convocada dos condados de Cumberland e Westmorlland. Aqueles homens tinham uma razão muito boa para odiar os escoceses e seus aliados; e o fato de estes serem ingleses os enfurecia.

Humphrey de Bohun, lorde Hereford, tentou tomar a ponte a pé, enquanto Lancaster tentava atravessar o rio a cavalo e atacar os homens de Harclay pelo flanco. Lancaster, no entanto, achou Harclay forte demais para ele e sofreu grandes baixas. Enquanto isso, de Bohun, enquanto estava na ponte, foi morto por uma lança enfiada por baixo, por uma fresta nas tábuas da ponte, que lhe penetrou no corpo.

A Batalha de Boroughbridge terminara com a aniquilação das forças de Lancaster e a sua captura.

Em Pontefract, Eduardo esperava para receber o primo.

Lancaster encarou-o sem ânimo. Sabia que a longa batalha entre eles terminara. Desprezava Eduardo e perguntava-se o que o futuro lhe reservava. Deu de ombros. Independente de qual fosse, não teria consequência alguma para ele.

Não tentou lembrar ao rei o parentesco dos dois; não pediria pela própria vida.

Estava acabado. Ele gozara de poder, mas não possuíra talento para mante-lo.

- Seu julgamento será realizado já - disse o rei. Lancaster curvou a cabeça e foi retirado da presença do rei.

O julgamento foi rápido, e Lancaster foi considerado culpado de conspirar com os escoceses contra o rei. Usara o pseudónimo de Rei Artur no trato com Robert, o Bruce. Rei Artur! - o tribunal abafou o riso. Estava claro que Lancaster tinha a si mesmo em alta conta e sabia onde estava o alvo de suas ambições.

Tinham sido encontrados papéis dirigidos a Bruce contendo uma sugestão para que ele entrasse em território da Inglaterra com um bom exército, e Lancaster providenciaria para que se fizesse um acordo de paz.

Eduardo ficou sentado observando o primo, e estava pensando: você matou Perrot. Você se vangloriou disso. Sim, você se orgulhava disso. E quando pensou naquele belo corpo sendo destruído, quase chorou. Mas aquilo era a vingança. Seria o fim de Lancaster.

Ele quase podia ouvir Perrot rindo a seu lado. Caro Perrot, ele devia ser vingado.

Eduardo prestou atenção às palavras da acusação.

- Por isso, o nosso soberano senhor, o rei, depois de avaliar devidamente as monstruosidades e ofensas do referido Thomas, conde de Lancaster, e sua notória ingratidão, não tem motivo algum para mostrar complacência...

Ele deveria ter a morte dos traidores, aquela morte horrível, que agora se tornara costume - enforcamento, estripamento enquanto ainda vivo e queima das entranhas, depois do quê o corpo era cortado em quatro pedaços e distribuído para ser exibido.

Mas no caso de nobres, a sentença era mudada para morte por decapitação, e como Lancaster tinha sangue real, seria isso que fariam com ele.

Colocaram-no num pónei cinza e assim ele atravessou a cidade, onde as pessoas foram às ruas para zombar dele e atirar-lhe tudo que considerassem bem nojento. Pedras cortavam o seu rosto e ele não se voltava nem para a direita nem para a esquerda, e era como se estivesse completamente alheio ao sangue que lhe escorria pela face.

- Rei Artur-gritava a turba-, onde estão seus cavaleiros, hein? Por que não vêm salvá-lo? Deixe que eles o levem de volta para sua távola redonda.

Ele olhava firme para a frente. Gaveston sofrera um destino semelhante, dez anos antes. Seria por isso que o estavam levando para o morro? Seria por isso que o faziam cavalgar o pequeno pónei, por isso que procuravam tirar-lhe a dignidade?

Todos devem morrer num determinado momento, mas era triste um conde de sangue real chegar ao fim daquela maneira. Então, de repente, a enormidade do que estava lhe acontecendo pareceu forte demais para ele.

- Rei do céu - murmurou ele -, conceda-me a misericórdia, porque o rei da Terra esqueceu-se de mim.

Chegaram a St. Thomas s Hill, fora da cidade de Pontefract. Ele viu o cepo. Estava cônscio dos rostos que estavam observando - ávidos por sangue, ansiosos por verem o ignóbil fim de alguém que, não fazia muito tempo, fora o homem mais poderoso do país.

Ele voltou o rosto para o leste.

- Vire para norte, homem - gritou alguém. - É lá que estão os seus amigos.

Ele foi empurrado com violência. Agora, estava olhando para a frente, na direção em que, do outro lado da fronteira, ficava a terra dos escoceses.

Ajoelhou-se e colocou a cabeça no cepo toscamente construído.

O machado desceu, e Lancaster deixou de existir.

Warennc levou a notícia para a mulher de Lancaster. Alice de Lacy olhou para ele, sem acreditar.

- É verdade - disse Warenne. - Foi considerado culpado de conspirar com os escoceses, e isso foi a sua desgraça. Foi condenado à morte dos traidores, mas devido ao seu berço nobre não foi enforcado, estripado e esquartejado, mas levado a St. Thomas s Hill, perto de Pontefract, onde o decapitaram.

- Pontefract - murmurou ela. - Era o seu local favorito.

- Bem, acabou, Alice. E agora?

- Estou livre. É aquilo por que eu e Ebulo ansiávamos. Mas eu gostaria que tivesse acontecido de maneira diferente. Pobre Thomas, tão orgulhoso... e inteligente, de certa maneira, mas não sabia como lidar com as pessoas. Foi isso que o derrotou.

- Já não há mais necessidade de você continuar escondida.

- Tenho tanto o que lhe agradecer.

- Lancaster era meu inimigo, como sabe. Foi um prazer desconcertá-lo.

- O senhor tinha uma certa bondade, no coração, por uma mulher na situação em que eu estava.

- Pode ser. E agora?

- vou para junto de Ebulo. Vamos nos casar.

- A filha do conde de Lincoln, a esposa de Lancaster de sangue real, casar-se com um humilde proprietário rural!

- Até mesmo as filhas e as esposas de condes têm o direito de se casar por amor - respondeu ela.

Pouco depois, a nobreza ficou assombrada ao saber que a condessa de Lancaster casara-se com Ebulo lê Strange, o proprietário rural que não só estava muito abaixo de seu nível social, mas também era manco.

 

A SEDE DE PODER tomara conta, agora, de Eduardo. Era como se com a morte de Lancaster ele tivesse adquirido uma nova vida. Além do mais, a trégua com a Escócia chegara ao fim, e Robert, o Bruce, estava comemorando isso atacando cidades inglesas. Quando ele chegou até Preston, no sul, ficou decidido que estava na hora de tentar mais uma vez a invasão da Escócia.

Todos pareciam assombrados pela mudança em Eduardo. Os londrinos estavam, sem exceção, do lado do rei. Ele vingara o insulto feito a Isabella e gostavam dele por causa disso. Os Despenser estavam banidos. Que a praga os pegasse. Agora talvez o rei tivesse ultrapassado a fase de loucuras e tosse mostrar-lhes que era o verdadeiro filho do Grande Eduardo.

A certa altura, os ingleses atravessaram a fronteira e entraram nas Lothians. Chegaram a Holyrood House e a tomaram. Deviam ter ficado pasmos com a falta de resistência de um comandante como Bruce. Era tarde demais quando perceberam que ele cruzara a fronteira e avançara até Yorkshire, com o objetivo de atacar o exército de Eduardo por trás.

Isabella seguia viagem com o exército e fora instalada fora da cidade de York. Estava pensativa. Os acontecimentos estavam alterando rapidamente suas perspectivas. Eduardo começava a conquistar a confiança do povo. Para ele, o caso do castelo de Leeds fora como uma bênção. Ao vingá-la, ele conquistara a aprovação de todos e, em particular, dos londrinos, e estava gozando de uma popularidade que jamais conhecera.

Independente do que acontecesse agora, ela não queria Eduardo. O plano que estivera se formando em sua mente havia algum tempo ainda não estava plenamente desenvolvido, mas nada que Eduardo pudesse fazer agora iria fazê-la querer alterá-lo. Em resumo, Eduardo devia ser deposto e o filho deles, Eduardo, ficaria com a coroa, com a mãe ao lado como regente. Mas, e se Eduardo fosse modificar a maneira de viver? Se resolvesse ser um rei vitorioso e um marido fiel, o que fazer, então?

Jamais o perdoarei pela humilhação que tenho sofrido em suas mãos, pensou ela.

Enquanto meditava sentada, ouviu sons de gente que chegava apressada. Levantou-se e desceu até o grande salão, para ver o que se passava.

Ao vê-la, um dos homens que acabara de chegar bradou:

- Majestade, apresse-se. Temos de sair daqui. O exército do rei está desbaratado e os escoceses estão vindo para cá para prendê-la.

Era o velho esquema. Por que ela pensara, por um instante, que Eduardo iria tornar-se um general vitorioso?

Não, ele falhara uma vez mais.

Pouco importava. Aquilo tornava mais fácil ela continuar com o seu plano.

Preparou-se às pressas para partir. Depois de galopar até Tynemouth, pegou um navio. Foi uma travessia difícil, mas ela não se importou.

Não podia demorar para que os acontecimentos começassem a seguir como ela queria.

Houve desespero no norte entre os leais seguidores de Eduardo, pois estava claro que ele não era adversário para Robert, o Bruce. Uma vez mais, ele fora posto para correr e escapara por pouco. Ele não tinha pendores para o combate. A tragédia da Inglaterra era que o rei anterior tivera um filho daqueles e morrera antes de poder completar sua tarefa. Eduardo estava impaciente. Não queria mais guerra com a Escócia. Não gostava de guerras. Só por um breve instante ele tivera sorte, e isso acontecera quando atacara o castelo de Leeds, defendido por uma mulher.

Havia desilusão, e era desconcertante ver que seus adeptos do norte começavam a perceber, agora, a futilidade de depender dele.

Eles estavam, na verdade, tentando chegar a um entendimento particular com os escoceses, porque parecia provável que as investidas contra as fronteiras fosse continuar por muito, muito tempo.

O bispo de Durham e os monges de Bridlington mandaram seus objetos de valor para o sul e procuravam fazer um tratado com Bruce, fato que mostrava claramente que não tinham confiança alguma em Eduardo e estavam cuidando de seus próprios interesses. Eduardo ficou profundamente chocado quando soube que Andrew Harclay, o conde de Carlisle, chegara a viajar até Dumfries e tivera uma conferência com Bruce, na qual se oferecera a reconhecê-lo como rei da Escócia em troca de paz entre eles e de segurança contra ataques a suas propriedades.

Isabella ouviu a noticia e disse para si mesma que aquele homem do norte mostrava bom senso. Todo aquele que confiasse em Eduardo era um tolo. Eles pelo menos tinham aprendido a lição. O país todo devia aprender lições assim. Ficariam mais felizes ao vê-lo pelas costas.

A rainha contava com muitos amigos para apoiá-la. O principal deles e aquele no qual ela mais confiava era Adam de Orlton. Ele odiava os Despenser tanto quanto ela e vibrara ao vê-los banidos. Desde a prisão dos Mortimer, ele vinha correndo um certo perigo, porque com a morte de Lancaster e com os Mortimer presos, as pessoas estavam se voltando para ele como o homem mais importante do grupo que ficara contra os Mortimer. Eduardo o odiava e quisera eliminá-lo, chegara até a levá-lo perante um tribunal leigo - a primeira vez que isso acontecera com um bispo. Ele poderia ter sido condenado à morte se não estivesse sob a proteção dos arcebispos de Canterbury e York - que tinham, naturalmente, de proteger seus bispos -, porque eles ordenavam que não se pusessem mãos violentas num homem da Igreja. O rei, no entanto, insistira na continuação do julgamento, e Adam fora considerado culpado e, embora não pudesse ser condenado à morte, suas possessões foram confiscadas. Ele estava, naquele momento, protestando junto ao papa e vivia na torre, não exatamente um prisioneiro, mas como uma pessoa que teria sido presa se não fosse a influência da Igreja.

Isabella visitava a torre com frequência e ficava nos aposentos em que sua filha Joana nascera. Mantinha uma comunicação constante com Adam.

Apesar do que estava acontecendo no norte, Eduardo poderia ter mudado todo o curso de sua vida naquela época. Seus inimigos estavam mortos ou presos. O principal deles era Thomas Lancaster, agora morto, e os Mortimer, presos na torre, embora com a sua costumeira falta de visão ele subestimasse o Roger de Mortimer mais moço. Eduardo poderia ter mandado executá-lo com a morte dos traidores, mas, na sua usual maneira dilatória, permitira que ele ficasse preso na torre.

Pobre Eduardo, pensou Isabella. Jamais aprenderiacom os próprios erros. Seria de pensar-se que, por ter visto o país levado quase à guerra civil por causa de Gaveston e dos Despenser, ele fosse reconhecer os sinais de perigo.

Mas parecia que não conseguia. O pequeno sucesso que iluminara sua carreira de fracassos deixara-o cego para a realidade.

Chamou os Despenser de volta.

Infelizmente, agora não havia ninguém para dete-lo. Eleja não era apenas rei só no nome. com a morte de Lancaster, era ele, Eduardo, que agora dava as ordens.

Os Despenser responderam com entusiasmo, e não demorou muito para que alardeassem sua autoridade com o espalhafato de sempre.

Eles ordenaram que um amigo de Harclay fosse visitá-lo em seu castelo e, quando chegasse, o prendesse em nome do rei. Assim aquele bravo soldado, que teria servido ao rei se não tivesse visto a inutilidade de um serviço desses, depois de um curto julgamento sofreu as agonias da morte dos traidores.

Com a ajuda dos Despenser Eduardo obteve uma trégua de 13 anos com Bruce, e eles se congratularam por terem conquistado a paz, esquecendo-se de que o estado de saúde de Bruce - a terrível doença da lepra podia, agora, ser observada por qualquer pessoa - fora o motivo principal de sua concordância.

Depois, voltou-se ao velho sistema. Os Despenser tinham de ser agradados. O rei não cabia em si de alegria por ter o querido Hugh de volta para ele. Ele nunca mais, nunca mais, se afastaria de novo, declarava Eduardo.

A rainha passara a residir temporariamente na torre. Gostava, dizia, de ficar perto de seus bons amigos, os habitantes de Londres. Na verdade, com a volta dos Despenser, ela estava ficando impaciente para entrar em ação e queria realizar conferências secretas com o seu bom amigo, Adam de Orlton.

Um lugar sombrio, a torre de Londres. Era estranho que ela contivesse uma prisão e um palácio. Ali muitos prisioneiros tinham ficado, em desespero. À noite, os que tinham imaginação acreditavam ouvir os gemidos dos que tinham morrido fazia muito tempo. Dizia-se que nas escadas em caracol e nos aposentos frios e úmidos apareciam figuras fantasmagóricas, homens e mulheres que jamais iriam descansar enquanto não tivessem uma indenização por parte dos que lhes tinham destinado uma vida de inferno na terra entre aquelas escuras paredes. Não havia outro lugar, no país, que fosse tão assombrado.

Guilherme, o Conquistador, mandara construí-lo, e Gundulf, o bispo de Rochester, o projetara. Ele ficara como um símbolo do poder do Conquistador para um povo conquistado. Sofrera acréscimos desde então e não era mais a fortaleza fria da época de Guilherme. Vinte anos depois da primeira fortaleza, ela fora cercada por uma muralha ameada de pedra e um fosso profundo. Depois, aquele arraigado construtor, Henrique III, avô do rei, construíra a Torre do Leão e fizera acréscimos nas reformas da Torre Branca. O fosso fora alargado pelo pai de Eduardo. Cada rei parecia querer deixar sua marca na Torre de Londres. Mas não o atual, pensava a rainha, impiedosa; Eduardo era indolente demais. A torre, para ele, não passava de uma fortaleza poderosa, para a qual ele se podia retirar quando seus súditos estivessem revoltados contra ele.

Uma melancolia envolvia a torre, mas também havia algo que a deixava excitada. Das janelas estreitas, ela podia olhar o rio e ver os bons mercadores desempenhando suas atividades e sentia-se consolada ao entender que eram seus amigos.

Não havia motivo algum para que alguém especulasse sobre a sua presença ali. Aquela era, afinal, uma das mais importantes residências reais. O jovem Eduardo estava nas boas mãos de Ricardo de Bury, que fora nomeado seu tutor e guardião; as outras crianças estavam em Pleshy, em Essex, em casa do conde de Hereford, que era o guardião delas. Ela não era exatamente uma mãe apaixonada pelos filhos nem fingia isso. Mas mantinha um controle firme do jovem Eduardo e o via com frequência. Estava ansiosa por que ele se sentisse dependente dela e tinha o cuidado de fazer tudo para conseguir a devoção do menino.

De sua janela, ela via um dos pequenos jardins da torre confinado por uma cerca alta, e um dia ali apareceu um homem alto, moreno, um tanto pálido, em companhia de Gerard de Alspaye, que ela sabia ser subtenente da torre. Havia algo no modo dele se portar que atraiu sua atenção. Pensou: obviamente é um prisioneiro, mas anda como um rei.

Ficou à espera de tornar a vê-lo, o que aconteceu em outra ocasião e, atendendo a um impulso, mandou chamar Alspaye e perguntou-lhe quem era o prisioneiro de aparência distinta.

Alspaye ficou confuso, e ela adivinhou que era contra as ordens deixar um prisioneiro andar ao ar livre.

- Não precisa ter medo - disse ela. - Eu seria capaz de jurar que esse homem é um dos prisioneiros do rei e sei que você tomou as providências para que não houvesse nenhuma consequência adversa por ele tomar um pouco de ar.

- Isso mesmo, majestade. Ele acaba de sofrer uma perda. O tio dele, que estava na mesma masmorra, morreu.

- Morreu de quê?

- Dos rigores da prisão, majestade. Falta de comida. A masmorra não é ventilada, não tem um única janela; a umidade escorre pelas paredes; no verão, é sufocante, e terrivelmente fria no inverno.

- Qual foi o crime desses homens?

- Foram capturados em combate.

- Pelo rei? - Ela não pôde tirar o tom de desprezo da voz, mas Alspaye pareceu não perceber.

- Na região da fronteira, majestade.

- Então ele é...

- Roger de Mortimer, majestade, conde de Wigmore, e o tio que morreu há pouco tempo era o lorde de Chirk.

- Ouvi falar muito desses Mortimer - disse ela. - Lembro-me da surpresa quando foram presos. - Ela sorriu de repente. - Eu gostaria de falar com esse homem. Vai tornar a levá-lo ao jardim em breve?

- Eu o levarei até lá quando vossa majestade quiser.

- Ande com ele por lá amanhã, e irei juntar-me a vocês. Não o deixe saber que falei nisso. Deixe que pareça um acaso.

- Será como deseja, majestade.

Estava tomada por uma inexplicável agitação. Ideias faiscavam em sua cabeça e eram descartadas quase mesmo antes de surgir. Roger de Mortimer, um dos grandes barões da fronteira! Ouvira Eduardo falar dos Mortimer com algo parecido com medo na voz. Sim, não havia dúvida de que ele via os Mortimer com respeito. O tio e o sobrinho. Os dois viviam como reis em seu território. Eduardo considerava um erro permitir que pessoas sem sangue real detivessem tanto poder.

E agora, um deles estava morto e o outro, aquele pálido prisioneiro, ainda mantinha o porte de um conquistador.

Na manhã seguinte, ela deu um passeio a cavalo pelas ruas de Londres - sempre uma experiência animadora. Ela se esforçara bastante para cuidar da aparência. Era um prazer ouvir gritarem por Isabella, a Bela. Independente do que acontecer, achava ela, o povo de Londres estará do meu lado.

A tarde, foi ao jardim. Cumprindo a palavra, Alspaye lá estava com Roger de Mortimer.

A rainha encarou-os, as sobrancelhas erguidas como se estivesse surpresa..

Roger Mortimer adiantou-se e fez uma mesura acentuada.

- Por favor, diga-me quem é o senhor - disse ela, com pompa.

- Mortimer, as suas ordens, minha senhora. Alspaye dera um passo atrás, e ela voltou-se para ele.

- Um de seus prisioneiros? - perguntou ela.

- O conde de Wigmore sofreu recentemente uma grande perda.

- Ah, sim - disse a rainha -, o lorde de Chirk. Os rigores da prisão foram demais para ele.

- Ele era um homem idoso, minha senhora - disse Mortimer. Ela sacudiu a cabeça.

- E o senhor está sendo trazido para fazer exercício, para evitar que também sucumba. Não é isso, tenente?

- Pareceu um ato de misericórdia - foi a resposta.

- E foi. Sr. Mortimer, dê uma volta comigo - Ela olhou para Alspaye, que recuou alguns passos. E então, para Mortimer: - Venha, senhor conde. O senhor já está aqui há algum tempo, creio eu.

- Uns dois anos.

Ela olhou para ele com atenção. A palidez da pele acentuava as sobrancelhas muito pretas; e pensou como ele era atraente, apesar das privações que sofrera.

- Posso apostar que sentiu profundamente a morte de seu tio.

- Estávamos juntos há muito tempo. Meu pai morreu quando eu tinha sete anos de idade, e a partir de então meu tio foi um pai para mim. Sim, minha senhora, eu sinto profundamente a perda dele... - Ele cerrou o punho. - Um dia...

A rainha sentiu uma exultação tomar conta dela. Mortimer era um homem de paixões violentas.

- Sim, senhor conde, um dia?

- A senhora deve perdoar minha emoção. Tratava-se de um tio adorado... um tio que fora como um pai para mim. Estou há muito tempo na prisão...

- Eu sei - respondeu, delicada.-Mas pode dizer que teve sorte. O rei poderia facilmente ter condenado o senhor à morte.

- Condenou, mas... e isso me parece estranho... comutou a sentença em prisão perpétua.

- Prisão perpétua! Talvez a morte tivesse sido preferível.

- Não, penso que não. Sou prisioneiro do rei. Passo meus dias numa horrível masmorra... exceto quando meu bom amigo Alspaye me dá um pouco de ar fresco. Mas ainda assim me agarro à vida. Ainda tenho a esperança, minha senhora, de que um dia estarei livre deste lugar.

- Acha que o rei o perdoaria?

- Não enquanto os Despenser estiverem com ele. Mas é possível que não estejam lá para sempre.

- Acha que ele irá livrar-se deles?

- Não, mas é possível que outros o livrem. Não despacharam Piers Gaveston um tanto depressa para junto do Criador? Mas eu falo demais. Desculpe. Estou isolado há muito tempo. Faz anos desde que tive a boa sorte de conversar com uma dama, e no entanto aqui estou... neste jardim de uma prisão e caminhando com a rainha de todas elas.

- Não se esqueceu de como fazer elogios, senhor conde.

- Na sua presença, majestade, eles chegam naturalmente aos lábios de qualquer homem.

- Então sabe quem eu sou?

- Majestade, estou há muito tempo nesta prisão repulsiva. Dizem que muitos têm sofrido de visões. Não posso deixar de me perguntar se não é isso que está acontecendo comigo agora. Talvez seja um sonho do qual vou acordar em breve. Neste sonho, estou falando com a mulher mais bonita da Inglaterra e da França e do mundo inteiro, ousaria eu dizer. A rainha em pessoa.

Sim, o senhor realmente faz belos elogios. Não sou uma visão, Mortímer. Sou a sua rainha. vou me despedir. O tenente está pasmo. Majestade, se eu pudesse...

- Sim, Mortimer, o que gostaria que eu fizesse?

- Tenho medo de pedir.

Você, com medo? Duvido. Você parece um homem que pouco sabe sobre o medo.

- Se eu pudesse vê-la outra vez...

- Quem sabe? Pode acontecer.

Ela girou sobre os calcanhares e deixou os jardins.

Em seus aposentos, foi até uma janela e olhou para fora. Ele continuava no jardim e falava animado com Alspaye. Quanto a ela, uma violenta agitação a invadira.

Aqueles olhos ardentes... olhos grandes, escuros e apaixonados. Ela sentira a vitalidade dele... a masculinidade essencial.

- Esse tempo todo, encarcerado na torre - murmurou ela. Recentemente de luto com a perda sentida de um tio adorado e, no entanto, nunca vi um homem que tivesse mais ardor. Os olhos dele faiscavam quando falou de Gaveston e dos Despenser. Um homem do tipo dele desprezava homens como estes. Ele desprezaria também Eduardo.

Mortimer - o rei das terras da fronteira. A vida toda, pensou ela, venho querendo encontrar um homem assim!

Precisava tornar a vê-lo em breve. Iria fazer com que Alspaye compreendesse que ele deveria ser levado ao jardim no dia seguinte e que ela estaria lá.

Talvez devesse ser mais discreta. Mas estava farta de discrição. Depois de tanta humilhação durante um tempo demasiado longo, talvez aquele fosse o momento de agir.

Ela praticamente não dormiu aquela noite. Só podia pensar que em algum lugar daquela torre ele também estava dormindo.

Alspaye estava ansioso por agradar a rainha. Ele também estava sob o feitiço de Mortimer; Isabella percebeu isso e não ficou surpresa. Alspaye estava encantado com o fato de a rainha estar interessada por um prisioneiro seu.

A rainha juntou-se a eles no jardim.

- Sua visão voltou, Mortimer.

- Para colocar uma tal esperança em meu coração, que não tenho coragem de acreditar - replicou ele.

- Você teria coragem para qualquer coisa.

- Já fui conhecido pela minha ousadia - concordou ele.

- E tornará a ser, disso eu não duvido.

- Isso é para o futuro.

- E acredita no seu futuro?

- Estou começando a acreditar, majestade.

- Fique certo de que sua fé não será em vão.

- A senhora é boa para mim.

- Gosto de gente como você, Mortimer.

Ele compreendeu logo que aquilo era uma referência ao rei e a pessoas do tipo dele.

- Quando um homem perde a liberdade, pouco importa o que mais possa lhe acontecer. Ele diz o que pensa. Sempre tive um sentimento muito profundo por vossa majestade. Se vossa majestade tivesse reunido um exército para expulsar do país aqueles que a desagradavam, eu teria estado à frente dele.

- Sim, Mortimer, você é mesmo imprudente quando fala de reunir exércitos.

- Como poderia eu reunir exércitos, quando sou um pobre prisioneiro?

- Mas um instante atrás você admitiu que isso era apenas uma situação temporária. Um dia desses...

Mortimer voltou-se para ela e os dois se encararam. Uma certa compreensão passou de um para o outro. Naquele momento, ambos perceberam o profundo significado daquele encontro.

- Mortimer, creio que há muita coisa que devamos dizer um ao outro.

- Estar aqui com a senhora é, para mim, um deleite total. Aqui estou eu, um prisioneiro, a morte pode chegar a qualquer momento, e no entanto posso dizer que nunca fui, em toda a minha vida, tão feliz quanto me sinto agora.

- E por que isso?

- Porque a descobri.

Ela estava trémula de emoção e disse:

- Fui eu que o descobri, certo?

- Digamos que descobrimos um ao outro.

- Nós nos encontramos apenas duas vezes, e isso neste jardim da prisão, com Alspaye vigiando você.

- Alspaye é um bom amigo. Ele odeia os Despenser.

- Quantas pessoas neste país odeiam os Despenser?

- Uma infinidade. Temos apenas de encontrá-las... provocá-las. Então, eu lhe juro que em muito pouco tempo o belo Despenser vai ter o mesmo destino que Gaveston.

- Como você odeia Despenser!

- Odeio-o mais do que nunca, agora que conversei com a minha incomparável senhora rainha.

- O rei é o que é...

- Isso não é jeito de um rei ser.

- Ele tem cumprido com o seu dever. Sabe que tenho um belo filho... dois filhos homens.

- O jovem Eduardo está crescendo. Isso é motivo para comemorar.

- O que você está dizendo é traição, Mortimer.

- Eu sei. Como posso evitar de pensar em traição ao rei quando estou tão perto da rainha?

- Quer dizer...

- É melhor eu não dizer. Mas sendo tanto mulher como rainha, vossa majestade deve saber.

- Não devo ficar aqui. E se formos vistos?

- Seria comentado, senhora.

- Por isso não devemos nos encontrar mais.

- Majestade, temos que nos encontrar outra vez.

Ele agarrou a mão de Isabella e a pressão de seus dedos a emocionou. Ela pensou: "Já esperei demais. Mortimer é o homem ideal para mim."

- vou dar um jeito - disse ela numa voz ofegante.

Ela mandou chamar Alspaye.

- O seu prisioneiro Mortimer me interessa.

- Sim, majestade.

- Quando conversei com ele no jardim, ele falou muito à vontade.

- Os prisioneiros tornam-se imprudentes, majestade.

- Acho que devia ter outra conversa com ele. Devo descobrir o que se passa na cabeça dele.

Alspaye curvou a cabeça.

- Vossa majestade quer ir à cela dele?

- Isso iria provocar especulações, não?

Ela pensou nas celas, umidade nas paredes, sem ventilação e abafadas. Não, aquilo não era o lugar em que ela e Mortimer deveriam estar juntos.

- Se eu mandar chamá-lo para vir aos meus aposentos...

- Ele viria com os guardas, majestade. As ordens do rei foram no sentido de que ele deveria ser vigiado de maneira muito especial.

- E no entanto, ele caminha com você pelos jardins.

- É verdade, majestade, mas os guardas estavam por trás das portas que dão para os jardins. Como ele estava comigo, eles o deixaram ficar fora de suas vistas.

- E se eu mandasse chamá-lo, para conversar com ele... aqui... digamos que nos meus aposentos...

- Nesse caso, eu o traria aqui e ficaria a uma distância em que pudesse ouvir o seu chamado, majestade.

- E os guardas dele?

- Ficariam por perto, à espera para escoltá-lo.

Ela ficou irritada. Não havia jeito de ela e Mortimer poderem ficar a sós sem ser observados.

Ela não se importava que Alspaye soubesse. Era um homem discreto e já testemunhara os encontros dos dois no jardim. Mas ela devia ter a liberdade de ficar a sós com Mortimer. O desejo de emoção e aventura, depois de abafado aqueles anos todos, não ficaria mais assim. Estava pronta a correr os riscos.

- Não tenho dúvidas de que os guardas tomam um pouco de vinho de vez em quando.

- Quando estão de serviço, majestade, eles bebem muito pouco. Mas há muita embriaguez quando ficam de folga. A vida na torre parece estimulá-los a beber vinho.

- Que se dê a eles uma quantidade extra de vinho, e providencie para que seja um vinho forte.

- Vossa majestade quer dizer drogado?

Ela não respondeu, mas seu sorriso foi suficiente.

- Quando estiverem dormindo, Mortimer deve ser trazido aqui... por você. Serei responsável pela segurança dele.

- Se vossa majestade ficar responsável por ele...

Já lhe disse que ficarei.

Nesse caso, verei o que se pode fazer.

- Não apenas ver - retorquiu ela-, mas fazer. vou me lembrar de você... com gratidão.

Mortimer entrou nos aposentos dela. Parecia diferente. Usava sua confiança como uma roupa.

Dirigiu-se rápido para ela e, tomando-lhe a mão, beijou-a com fervor. Seus lábios eram ardentes. Depois, ergueu os olhos brilhantes para o rosto dela.

Ela deu um passo na direção dele e colocou a mão sobre o seu ombro. Foi o suficiente. Logo em seguida, ele a tinha tomado nos braços e a mantinha junto ao seu corpo.

Isabella sentiu os lábios dele nos seus, exigindo, confiante em si mesmo... Impertinência!, pensou, indulgente. Não sou a rainha? No íntimo, ela estava rindo.

- Mortimer - murmurou ela. - Talvez isto faça parte da visão.

- Não, não. Desde a primeira vez que a vi, isso tem acontecido muitas vezes em meus sonhos... e agora vem a realidade.

- Eu... a rainha - começou ela.

- Minha rainha, minha rainha para sempre.

Ele era um amante experiente. Imaginou que ele tivesse conhecido muitas mulheres. E o que ela havia conhecido? O relutante do Eduardo! Como odiava Eduardo, ainda mais agora que sabia o que era deitar-se com um homem de verdade.

- Mortimer, Mortimer - gemia ela -, meu adorado Mortimer... desde o primeiro momento eu sabia que era você...

A resposta dele estava no seu ardente ato de posse. Os dois ficaram deitados lado a lado, os dedos entrelaçados.

- Há muita coisa de que devíamos falar - disse ela.

Mas não havia tempo para conversar. Tinham de fazer amor repetidas vezes. Nada mais satisfaria a ele... ou a ela.

Ela desejava poder fazer o tempo recuar. Como iria viver sem Mortimer depois daquilo? Era uma mulher ardente que estivera abafando suas verdadeiras emoções por um tempo demasiado longo. Agora, estavam se liberando. Era uma torrente que estourava as margens; estava inundando suas resoluções, suas ambições, tudo. Não havia coisa alguma, em sua vida, naquele momento, a não ser sua necessidade de Mortimer.

Era mais do que a consumação dos dois. Significava o começo de uma nova vida para ela. Mortimer seria mais do que seu amante. Isso era algo que os dois sabiam por instinto; e ela jamais esqueceria que, embora ele estivesse ciente disso, tinha de pôr tudo de lado a fim de que os dois pudessem, primeiro, saciar aquele violento desejo que os possuía.

- Você tem alguma dúvida - murmurou Mortimer - de que fomos feitos um para o outro?

- Nenhuma. Meu querido, estou grata por ter encontrado você. Mas os dois tinham que se separar. Aquilo era frustrante. Se ao menos pudessem ficar deitados juntos a noite toda e conversar fazendo amor. Teria sido delicioso.

- Sim, pelo menos fizemos isso. Não nos esqueçamos - disse Mortimer.

- Quando estaremos juntos outra vez? - bradou Isabella. Alspaye vai saber o que aconteceu.

- Creio que podemos confiar em Alspaye.

- E os guardas? Não podemos drogá-los todas as noites.

- Não, mas precisamos encontrar um jeito.

- Como? Onde? No jardim? Em sua cela? Não, doce Mortimer, meu amor, precisamos encontrar um jeito, porque não posso ficar longe de você, Mortimer. Você me mostrou o que eu estava perdendo. Mortimer, por que você não foi filho do rei da Inglaterra?

- Minha rainha, minha rainha! Eu jamais acreditaria existir uma mulher assim. Se eu pudesse levá-la para a minha região da fronteira, lá, a defenderia contra todos os que fossem tirá-la de mim.

- Um dia, Mortimer... Um dia. Eu juro. Eu juro. Há tanta coisa a dizer. Mas você está aqui. Precisamos libertá-lo... Esse será o primeiro passo. Precisamos tirá-lo da torre.

- Quando poderei ficar com você outra vez?

- Precisamos ter cuidado. Há muita coisa em risco.

- Mas tenho de vê-la em breve. Como posso ficar longe de você... depois disso? Sabendo que estamos os dois nesta torre juntos... e que essas grossas paredes nos separam...

- Providenciarei alguma coisa. Querido Mortimer, agora precisa se vestir. Tem de voltar para sua masmorra. Alspaye não pode esperar muito mais tempo. Os guardas estarão acordando do seu sono. Querido Mortimer, sua vida é a coisa mais preciosa para mim sobre a terra. Ela deve ser preservada... para o futuro. Um dia, meu amor... um dia...

Mortimer viu que ela estava com a razão. Os dois vestiram-se depressa. Um último abraço, e Alspaye entrou para conduzi-lo à sua masmorra.

Ela estava sendo levada à loucura. Tinha-o visto no jardim, mas o que os dois podiam fazer ali, a não ser tocarem-se as mãos? Podia ficar perto dele, sentir a força de seu corpo. Aquilo a enlouquecia, e a ele também. Os dois haviam despertado ondas tão intensas de paixão um no outro, que era quase impossível contê-las.

- O que podemos fazer? - bradava Mortimer, desesperado. Não era fácil arranjar outra noite, mesmo com a conivência de

Alspaye, que, naturalmente, adivinhara a situação e compreendia a emoção da rainha. Pobre mulher, não estivera casada com Eduardo aqueles anos todos?

Uma noite providenciou-se para que algumas portas fossem abertas e os guardas ficassem bêbedos outra vez, e dessa vez, após os amantes relaxarem um pouco seu desejo ardente, Isabella insistiu que tinham de preparar a fuga de Mortimer da torre.

- Irei para a região da fronteira e você se juntará a mim lá. Vamos organizar um exército contra o rei.

- Não, Mortimer, a região da fronteira pode não ser segura. Você tem de ir para a França.

- E você?

- Eu encontraria um jeito de me juntar a você lá. Meu irmão nos ajudará. E voltaríamos para lutar contra Eduardo e os Despenser. Levarei meu filho comigo e farei tudo para colocá-lo no trono. Você e eu, doce Mortimer, governaremos em nome dele até que atinja a maioridade.

- Se se pudesse conseguir isso...

- Por que não? O povo me adora... - Ela fez uma pausa. O povo a adorara porque a achava não apenas bonita, mas virtuosa; ela se deixara humilhar por Eduardo e ainda lhe dera filhos. Quando o povo soubesse que Mortimer era seu amante, continuaria a amá-la da mesma maneira? Claro que sim. Ela o encantaria com sua beleza e estaria apenas dando ao povo o filho - tão parecido com o avô - em lugar do seu dissoluto rei. - Sim, o povo estará do meu lado. Ele odeia os Despenser. Quer vê-los banidos. Teríamos o povo conosco.

- Assim será - bradou Mortimer. - Minha rainha, você trouxe para a vida um amor com que nunca sonhei e, com ele, a esperança.

Ela nunca estivera tão agitada. Tudo o que quisera estava lhe acontecendo. Sabia da sua natureza sensual e ardente, e ficava impressionada por ter conseguido abafar seus desejos naturais por tanto tempo. Mas precisara de um homem como Mortimer para provocá-los. E ali estava ele, e junto viera a possibilidade de que os sonhos que há muito acalentava estivessem prestes a se tornar realidade.

Sempre desejara um homem forte para ficar a seu lado. Ali estava ele, sem a menor dúvida. E esse homem, que teria toda a sua confiança e que ficaria ao seu lado, independente do que acontecesse a eles, inevitavelmente teria de ser seu amante.

A vida nunca parecera tão promissora.

Agora, ela devia dedicar-se à tarefa com sua ilimitada energia. Aquilo iria ajudá-la a desviar o pensamento dos ardentes desejos de seu corpo.

E a tarefa era libertar Mortimer da torre.

Ela saiu da torre a cavalo. Estava deixando o palácio por alguns dias. Era melhor assim, no caso de haver comentários. Além do mais, tinha trabalho a fazer. Ia falar com Adam de Orlton, bispo de Hereford.

Nunca era fácil uma rainha ir a algum lugar sem levar consigo uma grande comitiva, de modo que era uma felicidade Adam estar, naquele momento, em Londres e ela poder cavalgar como se estivesse apenas querendo tomar um pouco de ar fresco.

O bispo deu-lhe uma recepção calorosa. Ele estava em desgraça junto ao rei, mas a rainha jamais fora inamistosa para com ele. O bispo era contra os Despenser, e ninguém poderia ser mais contra eles do que a rainha. Ela acreditava poder contar com a ajuda de Adam.

Ele mesmo teria estado na torre não fosse o fato de ser um homem da Igreja e estar sob a proteção de Canterbury e York, de modo que ela podia contar com sua solidariedade.

- Senhor bispo - disse ela. - Tenho assuntos de grande importância para discutir com vossa reverência. Preciso de sua ajuda.

- Majestade - replicou o bispo -, se estiver ao meu alcance, conte comigo.

Não posso mais suportar o governo dos Despenser.

- Majestade, a senhora não está sozinha em seus sentimentos. Se fosse possível perguntar ao país, eu garanto que seriam poucos os que não concordariam com vossa majestade.

- Está na hora deles irem embora. O rei nunca deveria tê-los chamado de volta.

- Infelizmente, foi o que ele fez.

- Senhor bispo, para mim está claro que se nos livrássemos dos Despenser, em pouco tempo eles seriam substituídos... assim como esse jovem Hugh substituiu Gaveston.

O bispo sacudiu a cabeça, concordando.

- Não se deve deixar que isso aconteça, senhor bispo – insistiu a rainha.

- Majestade, será que pode ser evitado?

- De certa maneira. O filho do rei e meu está crescendo depressa.

- Mas ainda é um menino, majestade.

- com idade suficiente para ser coroado rei. Tem havido outros com a idade dele.

- Uma regência? - perguntou o bispo, ansioso.

- Escolhida com cuidado. Senhor bispo, o que estamos falando e muitíssimo confidencial. Só por causa da terrível necessidade e que falo dessa maneira.

- Sei muito bem, majestade. Mas essas questões estão na cabeça dos homens e é bom que se fale delas... entre aqueles que poderiam ter nas mãos o poder de evitar desastres.

- Mesmo assim. Preciso de sua ajuda, senhor bispo. Há um homem na torre que jurou me apoiar.

O bispo ergueu as sobrancelhas e aguardou.

- Roger de Mortimer.

Adam sacudiu a cabeça. .

- Um homem realmente forte. Governou as terras da fronteira

com o tio e dizem que parecia um rei. - O tio morreu na prisão. O sobrinho ainda vive. Ele é jovem e vigoroso. Ele ficaria do nosso lado.

- Vossa majestade o testou?

A rainha abriu lentamente um sorriso:

- Sim, senhor bispo, eu o testei.

- Sim - disse o bispo -, um homem forte. Ele poderia levantar a região da fronteira.

- Primeiro, precisa fugir.

- Da torre! Sou capaz de jurar que está rigorosamente vigiado.

- Ele tem amigos.

- Quem, majestade?

- O subtenente, Gerard Alspaye.

- Isso é bom. Ele poderia fazer muita coisa.

- Senhor bispo, o que o senhor poderia fazer?

- Nada, de dentro da torre. Fora. Eu poderia colocar cavalos esperando num lugar combinado. Ou mesmo um barco para levá-lo para o outro lado do rio e dali para a costa.

- E o senhor faria isso?

- Eu faria o possível por vossa majestade.

- Eu lhe agradeço de todo o coração.

- Se pudermos livrar este país de suas influências maléficas, a Inglaterra toda irá agradecer a vossa majestade de todo o coração.

- Eu posso, e vou livrar, com a ajuda de Deus e de meus amigos. - Então, a primeira coisa a fazer é tirar Mortimer da torre. O que ele vai fazer na França?

- Procurar meu irmão. Contar a ele como estou detida aqui. Obter auxílio dele. vou tentar juntar-me a ele... se possível. Mas tenho de levar meu filho Eduardo comigo.

- Entendo. Isso poderia significar uma guerra civil.

- Caso o rei encontre alguém que fique do seu lado.

- Haverá alguns, disso eu não duvido. Os Despenser lá estarão, e não se engane porque por trás do rosto bonito há uma mente astuta.

- Sei bem disso. Mas primeiro precisamos libertar Mortimer. Deposito minhas esperanças nele. Senhor bispo, dependo do senhor para providenciar tudo que precisarmos assim que Mortimer fugir da torre.

- Deixe o resto ser providenciado lá de dentro, e depois agiremos juntos.

- Deus o abençoe, senhor bispo. O senhor é um bom amigo meu e de seu país.

- com a ajuda de Deus, majestade, eu servirei a ambos, até Ele achar por bem levar-me.

Ela se deu por satisfeita. Sua agitação era intensa. Estava tudo saindo como ela desejava.

Havia sussurros na escuridão da noite. Eles estavam ficando afoitos. A necessidade de ficarem juntos os obsedava; assim como o reconhecimento de que em breve teriam de separar-se. Alspaye estava ficando aflito. Era possível arranjar aqueles encontros, mas iriam necessariamente tornar-se cada vez mais perigosos à medida que surgissem as inevitáveis suspeitas. Poderia ser possível uma noite, ou mesmo duas, deixar uma porta sem trancar, um corredor sem vigias, deixar guardas sonolentos com o vinho.

Mas aquelas ocasiões estavam se tornando frequentes demais.

- Não podemos pôr o plano em perigo - disse Mortimer.

- Não podemos, mesmo - concordou Isabella -, mas quando você estiver na França já não estaremos juntos.

- Mas você tem de ir depois. Precisa usar de toda a sua habilidade para ir.

- Eu vou. Eu vou. Confie em mim.

Abraçaram-se com paixão; conversaram com entusiasmo; e continuaram a se encontrar.

Gerard de Alspaye estava aflito. O que aconteceria a ele, perguntava-se, quando um importante prisioneiro como Roger de Mortimer fugisse da torre? Ele seria considerado culpado. Sabia que sua cabeça não valeria muito.

Só havia um caminho a seguir, disse Isabella. Quando Mortimer fugisse, Gerard deveria ir com ele.

O ânimo de Alspaye ficou muito mais aliviado diante daquela perspectiva.

Havia encontros com Alspaye lá fora. Ele recrutara a ajuda de dois ricos londrinos, John de Gisors e Richard de Bettoyne, que forneceriam o barco que levaria Mortimer e Alspaye para o outro lado do rio e os cavalos que poderiam levá-los até a costa. Providenciariam para que barco e cavalos estivessem à espera prontos nos locais indicados. A velocidade era essencial, e os fugitivos deviam ir para a França de imediato, porque seria perigoso ficarem na Inglaterra um único dia além do necessário. Assim que o desaparecimento deles fosse descoberto, haveria um clamor público, e até mesmo Eduardo perceberia o perigo de deixar um homem como Mortimer fugir de suas garras.

- Bem, que seja em breve - concordou a rainha, e acrescentou que era uma felicidade o verão ter chegado.

- Na noite de primeiro de agosto, os guardas da torre sempre celebram a festa de São Pedro ad Vincula - disse Alspaye.

- Nessa ocasião - interrompeu Mortimer -, deve haver uma festa com uma animação especial. Temos de providenciar para que o vinho flua livremente.

- vou colocar dois notórios bebedores encarregados do senhorprosseguiu Alspaye - e farei com que sejam bem abastecidos de bebidas. Garanto que não vai demorar para que fiquem embriagados. Isso nos dará uma oportunidade de fazer os preparativos.

Muitos planos tinham sido discutidos e postos de lado, e eles tinham chegado à conclusão de que a forma mais segura era Mortimer fugir por meio de uma escada de

cordas. Ele tinha de sair da cela, e embora a maioria dos guardas fosse estar bebendo bastante, poderia haver um ou dois abstêmios, e era lógico supor que numa ocasião como aquela eles estivessem com a atenção redobrada.

A masmorra de Mortimer ficava ao lado da cozinha, de onde se podia sair para o telhado de um pátio interno. Era ali que entraria a escada de cordas. Durante várias semanas, Mortimer, com a ajuda de Alspaye, conseguira soltar parte das pedras da parede. Não era difícil Alspaye dizer que queria falar com o prisioneiro e dispensar os guardas enquanto fazia isso. Durante o tempo que passavam juntos, os dois trabalhavam na parede, de modo que, quando chegasse o dia 1 de agosto, fosse simples

tirar as pedras que tinham soltado e fazer um buraco de tamanho suficiente para que eles o atravessassem.

Estariam, então, na cozinha, onde Alspaye teria de fazer com que os criados estivessem comemorando com os guardas ou bêbedos demais para perceber o que se passava.

Da cozinha, eles podiam chegar a um dos pátios internos e ali precisariam de uma escada de corda para levá-los ao pátio externo, e então seguiriam para o trecho

do rio onde os mercadores de Londres, John de Gisors e Richard de Bettoyne, mandariam um barco resgatá-los.

Eles haviam repassado o plano todo na mente, à procura de possíveis falhas. Serem descobertos significaria morte certa para Mortimer e Alspaye. Mas os dois estavam

decididos a ir em frente.

Talvez a rainha fosse a mais aflita dos três. Vira em Mortimer sua grande esperança. Além do mais, estava violentamente apaixonada por ele e achava um milagre ter

encontrado um homem que era não só seu amante mas seu salvador.

Tinha um medo terrível de que alguma coisa acontecesse a ele.

O dia 19 de agosto amanheceu. Isabella seguiu para a igrejinha de São Pedro ad Avincula, em Tower Green, e pediu a ajuda do santo para que tudo desse certo.

No decorrer da manhã, Mortimer teve permissão para caminhar no jardim, e Alspaye dispensou os guardas com instruções para que esperassem ao lado da cerca, e enquanto ele e Mortimer caminhavam repassaram mais uma vez os detalhes.

A rainha juntou-se a eles.

- Sei que não devia ter vindo - disse ela -, mas eu tinha de vir. Depois de hoje à noite, vai-se passar muito tempo até que eu torne a ver vocês dois.

- Temos de fazer tudo para que não demore muito - disse Mortimer.

- Não vou conseguir suportar. Encontrarei um meio de fugir para a França.

- O ideal seria se sua ida para a França não parecesse uma fuga - disse Mortimer. - Se você pudesse ir com base num motivo qualquer e levar o jovem Eduardo com você...

- vou fazer isso. vou fazer isso.

Eles entrelaçaram as mãos. Foi o mais próximo que chegaram de um abraço.

Ela estava impressionada e encantada com a calma de Mortimer. Era um homem de ação e não podia deixar de vibrar diante da perspectiva de fugir de uma prisão, muito embora isso fosse significar uma separação temporária da rainha. Ele não tinha dúvidas quanto ao sucesso da aventura.

Nem ela, quando estava com ele.

Não se demoraram demais no jardim. Alspaye escoltou Mortimer de volta à sua masmorra, e em seus aposentos a rainha disse às aias que queria ficar a sós. Estava tensa

demais para uma conversa despretensiosa e tinha medo de que seus modos denunciassem alguma coisa.

Por toda a torre, o espírito festivo era aparente. São Pedro ad Vincula era um santo muito especial, e os encarregados e os guardas diziam uns aos outros que consideravam justa, naquele dia, a homenagem prestada a ele.

Veio o crepúsculo. Estava na hora. Havia sons de folia por toda a torre. A rainha disse estar contente com o fato de os empregados da torre comemorarem a ocasião, mas ela iria retirar-se cedo e descansar.

Ela esperou. Tudo fora programado com perfeição. Ela rezava para que não houvesse falha alguma. Alspaye providenciara para que os guardas que ficavam por perto da masmorra de Mortimer fossem servidos de um vinho muito forte; além de também ter sido misturado com ervas especiais que, segundo se dizia, aumentavam o poder sonífero.

Faltava pouco, agora.

Ela visualizou a cena na masmorra. O guarda à porta caído no chão. Alspaye e Mortimer retirando a pedra, passando em silêncio para a cozinha. Haveria alguma falha ali? E se um dos cozinheiros não estivesse inteiramente bêbedo. Ah, mas estariam, sim. Eles, assim como os guardas, tinham bebido do mesmo vinho com as ervas.

Eles deviam muito a Alspaye. Aquilo jamais poderia ter sido providenciado sem ele. Tinham sido espertos. Ajuda do lado de dentro, ajuda do lado de fora. Sem dúvida que daria certo.

Enrolando-se numa capa que a escondia, ela saiu de seus aposentos no palácio e seguiu para o pátio interno.

Nenhum sinal deles. O coração dela parecia querer parar. Se algo desse errado, ela não suportaria, porque se Mortimer fosse apanhado em sua tentativa de fuga, não haveria esperança para ele.

Eduardo tinha sido tolo por mandar prendê-lo. Mas graças a Deus pela tolice de Eduardo. Qualquer pessoa, exceto ele, teria reconhecido as grandes qualidades de Mortimer e jamais o teria deixado viver. Graças a Deus pela tolice de Eduardo.

Um ruído por trás dela. Um movimento. Lá estavam os dois. O alívio tomou conta dela. Salvos! A parte mais difícil fora realizada.

Eles a viram, e Mortimer correu em sua direção. Tomou-a nos braços.

- Meu adorado Mortimer - bradou ela -, se eu pudesse ir com você!

- Não há tempo a perder - avisou Alspaye. - A qualquer momento eles podem descobrir nossa fuga.

- Onde está a escada? - perguntou Mortimer.

Coubera a ela a tarefa de levar a escada para os dois. Entregou-a a Alspaye que a atirou por cima do muro.

- Agora, Sr. Mortimer, suba primeiro.

- Deixe que eu seguro para você - disse a rainha. - Adeus, querido Mortimer.

Um último abraço.

- Para a França e para o nosso encontro - disse ele. - Deus queira que seja em breve.

Ele passara pelo muro. Isabella olhou para baixo e o viu ali de pé... a salvo, do outro lado do muro.

Chegara a vez de Alspaye. Em poucos segundos, ele estava de pé ao lado de Mortimer. Ela jogou a corda para baixo e voltou a seus aposentos para esperar a descoberta da fuga do prisioneiro.

Não foi difícil achar o caminho até o ponto em que o barco estava à espera deles. Os mercadores não tinham falhado.

O barco estava lá.

- Conseguimos! - bradou Mortimer.

- Ainda não, senhor conde - replicou Alspaye. - Fugimos da torre... façanha nada desprezível, eu concordo. Mas não podemos nos jactar do sucesso enquanto não estivermos a salvo na França.

Na verdade, eles tinham bons amigos. Os cavalos estavam à espera -descansados e prontos para a jornada, sob os cuidados de sete homens da casa de Mortimer.

Aquilo era realmente uma sorte.

- Sr. conde - disse Alspaye -, o senhor tem amigos que o consideram muito.

- Ou que talvez odeiem os Despenser - replicou Mortimer. Cavalgaram durante a noite até chegarem à costa de Hampshire. Ao largo estava um navio, que os levaria para a França.

Não foi difícil alugar um pequeno barco.

Mortimer disse a seus homens que tivessem cuidado, porque àquela altura era bem possível que a sua fuga tivesse sido descoberta e se tivesse dado um aviso para ficar-se de sobreaviso sobre qualquer pessoa que partisse para o continente.

- Diga a eles - disse ele - que queremos um pequeno barco para ir à ilha de Wight.

Assim o fizeram, o barco foi conseguido e pouco depois deslizava pela água.

Mortimer subiu a bordo do grande navio. O capitão, que estivera esperando por ele, deu ordens para partir assim que a maré e os ventos fossem favoráveis.

Mais tarde, naquele dia, Roger de Mortimer e Gerard de Alspaye desembarcaram na França.

Enquanto bebiam vinho numa taverna às margens do rio e se congratulavam pela boa sorte, Mortimer disse:

- Até aqui, nós chegamos. Agora começa o trabalho de verdade.

 

EDUARDO ESTAVA em Lancashire quando chegou um mensageiro de Londres com a notícia da fuga de Roger de Mortimer da torre.

Uma fúria tomou conta dele. Percebeu, logo, que não devia ter deixado aquilo acontecer. Que estupidez, aquela. Ter deixado que Mortimer conservasse a sua cabeça.

Isso aconteceu porque o querido Hugh não estivera com ele à época da captura de Mortimer, que ficara na torre quando Hugh voltara. Hugh era muito esperto. Ele previra um desastre. E agora, Mortimer estava livre!

Hugh chegou e o viu e ficou nitidamente preocupado com aquela notícia.

- Não se preocupe, meu doce senhor, não precisamos ter medo dele. Vamos resistir a ele e a todos os seus barões da fronteira.

- Eu sei, Hugh, eu sei. Mas pensar que deixaram que ele fugisse da torre. O que pode ter acontecido?

- A festa de São Pedro ad Vincula, não foi? Você sabe como é essa gente. Dê a eles uma oportunidade de farrear... e se esquecem de suas obrigações.

- Alguém deve responder por isso.

- Vai responder, querido senhor, vai responder.

Quando tiveram alguma informação sobre como a fuga acontecera, ficaram ainda mais perturbados.

- Ele só poderia ter feito isso com ajuda lá de dentro - declarou Hugh.

- Ajuda de dentro e do lado de fora. - Concordou o rei. - Isso dá a entender que temos inimigos.

Hugh teve um sorriso triste. Inimigos! Eles o rodeavam e eram inimigos do rei por sua causa.

Pouco importa, o rei era o seu amigo muito querido; não havia limites para o que podia fazer pelo seu adorado Hugh. Os dois ficavam juntos dia e noite, e Hugh e seu pai estavam se tornando os homens mais ricos da Inglaterra. Era muito compensador ter o apoio real, e quando esse apoio resultava de uma afeição apaixonada, a pessoa era mesmo afortunada.

- Sou capaz de jurar que ele foi para aregião da fronteira- disse Eduardo.

- Para a região dele, é claro. É lá que ele vai requisitar apoio.

- Planejaremos uma campanha à costa galesa. Então o pegaremos, Hugh, e dessa vez não será uma masmorra na torre para ele.

- Mortimer é um homem bonito-disse Hugh, pensativo -, mas duvido que fique tão bonito sem a cabeça.

Enquanto isso, Mortimer, depois de desembarcar a salvo na Normandia, estava a caminho de Paris.

Por uma grande sorte, o envolvimento de Isabella na fuga de Mortimer não passou pela cabeça do marido. Algumas pessoas da torre tinham visto o encontro dos dois e a conexão da rainha com Alspaye, agora considerado um traidor, porque logo depois se descobrira que ele fugira com Mortimer. Adam de Orlton, também, era suspeito

de ser a influência externa que ajudara a tornar possível a fuga. Sem dúvida que parecia incrível que Isabella tivesse tido uma participação no caso, e presumiase que fosse apenas uma coincidência ela estar no palácio da torre na ocasião.

No entanto, a atitude dela para com o rei mudara. Ela deixava claro que não queria mais intimidades com ele. Não que ele insistisse. Aquilo só ocorrera por causa da necessidade de dar herdeiros ao país. Eles tinham o saudável Eduardo, que estava com quase treze anos e jácônscio de suas responsabilidades futuras.

Elas chegarão mais cedo do que você pensa, meu filho, pensava Isabella, séria.

Para os outros filhos, ela tinha pouco tempo. Estavam bem e felizes, isso era tudo o que ela queria saber. Só se preocupava com o jovem Eduardo, e insistia em ficar

sempre ao lado dele.

Seu grande desejo era ir para a França, juntar-se a Mortimer, e começar o plano de ação para depor o marido.

Podia dizer a si mesma que estava com o direito do seu lado. A situação do país piorava cada vez mais. Os Despenser eram uma influência maligna. Eduardo e seus odiados favoritos tinham de ir embora. Isabella visualizava uma situação ideal, com ela e Mortimer governando através do jovem Eduardo.

Ela estava começando a formar uma pequena roda seleta à sua volta - todos inimigos dos Despenser, todos com as mesmas reclamações contra o rei, e como a rainha sofrera mais humilhações do que ninguém com aquela infeliz ligação, era para ela que começavam a olhar. Todos tinham um único objetivo em comum, destruir os Despenser, que, segundo se acreditava, estavam no verdadeiro cerne do indigno desempenho de Eduardo como rei - tal como Gaveston fora nos primeiros anos de seu governo.

Thomas, conde de Lancaster, era lembrado e começava-se a dizer que ele fora tratado com injustiça. Fora humilhado e decapitado de uma maneira muito imprópria para uma pessoa de sua posição. Histórias sobre a bondade dele-com pouca base na verdade-eram divulgadas. Isabella mal podia acreditar no que ouvia quando soube que ele fora chamado de santo. Não demorou muito para que se dissesse que estavam sendo realizados milagres junto ao seu túmulo.

Seu irmão Henry, agora conde de Lancaster, procurou a rainha para dizer-lhe o quanto compreendia a aversão que ela sentia pelos Despenser.

Aquilo era significativo. Henry de Lancaster - sem dúvida não o combatente e líder que o irmão tinha sido - estava lhe oferecendo apoio. Até mesmo os meios-irmãos do rei, Thomas, conde de Norfolk, e Edmund, conde de Kent, foram vê-la para jurar-lhe uma vassalagem especial, porque também estavam cansados da preocupação de seu irmão com os Despenser.

- Não vai ser fácil levá-lo a declarar o banimento - disse ela aos cunhados.

- Isso deve ser feito - replicou Kent.

- O rei lutaria até a morte para salvá-los - disse Isabella.

- Ainda assim - repetiu Kent, com voz firme -, deve ser feito. Era uma indicação de como as pessoas estavam pensando, e constituía uma grande satisfação para Isabella.

Ela procurava desesperadamente por uma oportunidade que a levasse à França, onde deveria reunir-se a Mortimer.

Embora os Despenser parecessem, às vezes, correr em desatinada disparada por aquela estrada da loucura que levara Gaveston à desgraça, eles eram astutos. Tinham percebido uma mudança na atitude da rainha para com o rei. Haviam ficado bem cientes de que anteriormente ela os tolerara e recebera o rei pelo único motivo de conseguir ter filhos. Compreendiam que, agora que estava com quatro, ela decidira que aquilo bastava.

Aquilo era bem razoável, mas ela estava se voltando cada vez mais contra o rei - um fato que não teria sido motivo de preocupação, não fosse a popularidade de que ela gozava junto a certas pessoas.

As principais eram os londrinos, que sempre tinham estado a seu favor e sentiam uma ojeriza especial pelos belos jovens do rei. Os londrinos estavam, àquela altura, irritados com o rei porque ele retirara uma placa da igreja de São Paulo que fora afixada a fim de exaltar as boas ações de Thomas, conde de Lancaster. Como ele estava morto e morrera de maneira tão ignóbil - eles tinham decidido transformá-lo num santo. Esqueceram-se de sua indolência e de sua incompetência; dotaram-no de virtudes que não possuía; estavam sempre dizendo uns aos outros que se ele ali estivesse, a vida seria diferente. Aquilo era perigoso, e em especial quando se dizia que milagres aconteciam tanto no ponto em que a placa estivera como junto ao túmulo de Lancaster. Era um sinal dos tempos.

O principal motivo de preocupação dos dois era Isabella.

- Aonde quer que a rainha vá, o povo a ovaciona - reclamou Hugh.

- O povo sempre a estimou - replicou Eduardo.

- Sim, às suas custas! Não gosto disso.

- Querido Hugh, você se preocupa muito comigo.

- E não devia eu me preocupar com o meu senhor feudal?

- Pronto, deixei-o rubro de indignação.

- Fico indignado, mesmo, com qualquer coisa que represente um mau presságio para o meu senhor.

- O que representa um mau presságio agora, querido sobrinho? Eduardo dera para chamar Hugh de soorinho. Dizia que se tratava de relacionamento agradável e que algumas pessoas deduziriam, por aquele tratamento que era assim que ele considerava Hugh.

- A rainha, penso eu, majestade.

- A rainha! De que modo?

- Ela está inquieta. Tem ciúme de mim. Recebe gente demais.

- O que devemos fazer? Diga-me.

- Vamos analisá-la.

- Analise-a, Hugh.

- O irmão é rei da França e ela escreve para ele com frequência. Nas cartas há reclamações sobre o tratamento que o senhor dá a ela.

Eduardo deu de ombros.

- Duvido que o irmão tenha tempo para mexericos.

- O rei da França sempre tem tempo para ouvir falar mal do rei da Inglaterra.

- Ela não fala nada de mau. Simplesmente reclama que eu passo mais tempo com você do que com ela. Ora, não pretendo passar mais tempo com ela se isso significar sentir falta da sua companhia.

- Eu sei disso, e me sinto feliz. Eu me pergunto se o papa concederia uma anulação.

- Uma anulação! É ela a irmã do rei da França!

- Não, ele teria medo da França. Jamais concederia a anulação. Mas poderíamos tentar.

- Teria de ser em segredo.

- Seria. Mas o senhor deveria tirar algumas das terras dela. Ela tem muitos dotes.

Eduardo sacudiu a cabeça.

- Pois então que se tire.

- Não é prudente que ela mantenha os criados franceses. Como vamos saber se eles não podem ser espiões da França?

- O que você sugere?

- Que sejam mandados embora. A verba dela devia ser reduzida para vinte xelins por dia, o que é suficiente para ela. Se for maior, ela poderá usá-la para fomentar discórdia. Creio que está se correspondendo com alguém na França.

- Sei que ela escreve de vez em quando para o irmão.

- É... e tal vez para outras pessoas.

- O que quer dizer, Hugh?

- Não tenho certeza, mas pelo seu bem eu gostaria de mandar vigiá-la.

- Vigiá-la, meu querido?

- Minha mulher poderia ser a... como vamos chamá-la... governanta dela. Ela nos informará o que se passa por lá.

- Ela desempenharia uma missão dessas?

- Claro, se lhe dessem ordens para isso.

A mulher de Hugh era filha do conde de Gloucester e da princesa Joana, filha de Eduardo I, e, portanto, sobrinha de Eduardo. Hugh já se apossara de sua parte no espólio dos Gloucester por intermédio dela, de modo que estava contente com o casamento. Se Eleanor lê Despenser estava contente com o dela, era outra história.

No entanto, seria possível fazer com que agisse como governanta de Isabella e informasse para onde se dirigia a correspondência da rainha.

Assim foi providenciado.

A indignação da rainha, quando percebeu o que se passava, foi enorme; mas para grande surpresa dos que a cercavam, ela pouco reclamou. Estava à espera do momento propício. Dentro em pouco, seria ela a dar as ordens.

Era de revoltar, a rainha ser submetida a tamanha indignidade. A sobrinha do rei sendo sua guardiã - aquela tola que tinha medo do marido afetado! Que ousadia! E no entanto, claro, a pobrezinha tinha medo de não fazer aquilo. Isabella percebeu que a ingénua mulher tentava pegar suas cartas e levá-las para o marido espião. Será que ela pensava que Isabella seria tola o suficiente para deixá-la fazer aquilo? Será que ela pensava que Isabella não tinha amigos que levassem o que ela escrevesse e o entregassem ao seu destino sem ter sido aberto?

Carlos, o último de seus três irmãos, era agora o rei da França. Era conhecido como Carlos, o Belo, por ter herdado os belos traços do pai, Filipe IV. Dizia-se que ele estava condenado, assim como todos os descendentes em linha direta dos Capelo, e a maldição parecia continuar. Primeiro, o pai dela, depois Luís lê Hutin, depois Filipe, o Alto, e agora só restava Carlos.

Ele ainda vivia, mas, como acontecia com o povo da França, Isabella estava preparada para receber a notícia de que alguma catástrofe lhe acontecera.

Escrevia arrebatadamente para o irmão, cartas que se destinavam a ser lidas apenas por ele. Podia ele manter-se indiferente e ver a irmãuma princesa da França - ser tratada daquela maneira? Ele já sabiao mundo todo sabia que o marido dela preferia a cama de seu camareiro à dela. O marido era um avarento. Tinha-lhe roubado as terras e as possessões; reduzira a quase nada a quantia que ela passara a receber. Ele a estava privando não só de sua posição como rainha, mas de tudo o que ela possuía. A maior de todas as indignidades fora colocar uma governanta para controlá-la. Uma mulher - pobre criatura - que tinham casado, ainda criança, com Despenser, por causa da fortuna dela. A mulher devia espioná-la, roubar-lhe as cartas, tratá-la como uma prisioneira. Será que ele, seu irmão e rei da França, podia ficar de lado e ver isso acontecer com um membro da grande família real da França?

Carlos, o Belo, decidiu que poderia acalmar a irmã lembrando a Eduardo que ele lhe devia uma vassalagem pessoal pelas províncias que controlava na França, e que considerava dever do rei da Inglaterra ir à França cumprir com sua obrigação.

- Pode estar certo - disse Hugh lê Despenser -, a rainha provocou confusão. Cartas dela chegaram até o rei da França, e este é o resultado. Mande seu jovem meio-irmão Edmund ir à França. Isso evitará que ele faça bobagem. Ele poderá explicar a Carlos, o Belo, que você está muito envolvido com assuntos de Estado para fazer a viagem neste momento.

Eduardo sempre estivera decidido a aceitar o conselho de Hugh, e Edmund, conde de Kent, foi enviado à França.

Carlos recebeu o conde com uma grande demonstração de hospitalidade e preparou algumas magníficas recepções em sua honra.

O jovem conde não estava à altura do rei da França. Além do mais, enquanto Kent estava de visita à Aquitânia, Carlos de Valois, irmão mais novo de Filipe, o Belo, e tio do rei, invadiu o ducado e teve tanto sucesso, que o conde foi obrigado a concordar com uma paz que lhe foi muito desvantajosa e deu aos franceses a posse de quase toda a Aquitânia.

Isabella acompanhava esses acontecimentos com muita atenção e acreditava que via neles a chance que estivera esperando.

Humildemente, mandou um recado a Eduardo, perguntando-lhe se poderia falar com ele. Ele praticamente não podia recusar um pedido daqueles e ficou surpreso ao ver a humildade com que a rainha se apresentou.

Hugh, como sempre, sabia das coisas, pensou o rei. Eles a estavam tratando da maneira correta.

Ela não fez referência ao desprezo que ele lhe dedicava. Foi direto ao assunto e disse que estava muito triste ao ver o conflito entre ele e o irmão dela. Não sabia no que estaria pensando seu tio para atacar a Aquitânia com tanta torpeza.

- Os franceses sempre estiveram atrás dela - disse Eduardo. Acho que meu irmão Kent não teve experiência suficiente para lidar com a situação.

- Pobre Edmund, ele fez o possível.

- O possível dele foi uma técnica sofrível como estadista-disse Eduardo.

Ela teve vontade de rir. E você, meu belo homem, pensou, o que dizer de sua técnica como estadista? A inépcia de Edmund não é nada, comparada com a sua.

- Meus irmãos sempre gostaram muito de mim-prosseguiu ela.

- Eduardo, creio que se eu fosse procurar Carlos, poderia apresentar sua defesa a ele. Acredito que poderia fazer com que ele entendesse. Talvez eu pudesse fazer com que meu tio revisse o tratado. Eu gostaria de tentar.

- Você ir! Seria inútil. Eles jamais lhe dariam ouvidos.

- Sempre fui tratada com muito respeito na corte de meu pai disse ela, com grande dignidade. - Duvido que fosse receber menos do que isso por parte da corte de meu irmão.

Eduardo olhou para ela pensativo. Ela conseguira conquistar a aprovação dos londrinos. Hugh estivera falando sobre isso fazia pouco tempo. Ele dissera que ela sempre tivera o cuidado de não fazer coisa alguma que pudesse perder aquele respeito.

- Terei de pensar nesse assunto - disse ele.

Claro, pensou ela, pergunte ao Sr. Hugh se ele permite que a rainha visite o irmão.

O ânimo dela desabou. Ela poderia ter capacidade para iludir Eduardo. Hugh lê Despenser era diferente. Apesar de permitir que sua natureza aquisitiva lhe trouxesse uma impopularidade cada vez maior a cada semana que passava, era astuto. com toda certeza, não podia tê-la ligado à fuga de Mortimer. Fora cuidadosa em relação a Mortimer. Nunca escrevera a ele. Teria sido demasiado perigoso, muito embora ela tivesse amigos fiéis em quem podia confiar para a entrega de cartas importantes. Ela tivera medo de colocá-lo em perigo. Não, Hugh lê Despenser não podia saber do relacionamento entre ela e Mortimer.

Nada havia a fazer, exceto deixar Eduardo consultar o seu querido Hugh. Enquanto isso, rezaria para que conseguisse permissão para partir. Seria tão mais satisfatório do que tentar fugir, porque eles ainda não estavam preparados para executar o que pretendiam.

Hugh pensou no caso.

- Então ela quer ir falar com o irmão.

- É o que ela diz. Seria a mediadora em prol de melhores relações entre nós. Esse tratado que meu irmão fez significa um desastre para nós.

Hugh ficou calado, e Eduardo prosseguiu:

- Ela já provou, antes, que tem uma certa percepção dos fatos. Acredito, também, que o irmão gosta muito dela. É possível que ele lhe dê ouvidos.

- Ele vai insistir em que você vá prestar-lhe vassalagem.

- Eu não vou.

- Pode haver confusão, se você não for.

- Por isso achei que seria uma boa ideia deixar Isabella ir e ver o que consegue fazer. Sei que ela está ansiosa por nos causar boa impressão.

- É - concordou Hugh. - Ela mudou, de uns tempos para cá. Ficou resignada. Houve uma época em que pensei que havia uma leoa em estado latente dentro dela, à espera para o ataque. Agora, ela mudou.

- Foi o fato de ter os filhos. Ela é muito dedicada ao jovem Eduardo, como sabe.

Hugh sacudiu a cabeça.

- Então, deixe que ela vá. Não vejo mal nisso.

Quando Isabella ouviu a notícia, mal pôde acreditar na sua boa sorte.

Não perdeu tempo em partir para a França.

Mal podia conter a exultação enquanto fazia os rápidos preparativos. O plano de anos chegava ao seu clímax. Como fora esperta! E inteligente ao agir com tanta discrição ao longo dos anos. Agora, tinha o seu filho, seu pequeno Eduardo - não tão pequeno, com idade suficiente para ser coroado rei, com mãos a guiá-lo... as delas e as de Mortimer.

Meu adorado Mortimer, estar com ele em breve, abraçá-lo, deitar a seu lado, fazer amor, fazer planos.

Nada deveria sair errado, agora.

Maio era um belo mês, com as árvores em flor e os pássaros cantando de alegria - uma manifestação dos sentimentos dela. Aquela era a primavera de sua vida - embora estivesse com 29 anos. Era um começo, e aquela não era uma idade avançada. Um pouco madura, talvez, mas era preciso maturidade para planejar com cuidado. Sentia-se inclinada a pensar que tudo estava acontecendo no devido tempo.

Sua comitiva consistia apenas em lorde John Cromwell e quatro cavaleiros, afora suas aias pessoais. O vento lhes fora favorável, e ao pisar em solo francês não pôde conter as expressões de alegria. Lorde John observou que o amor pela terra natal era algo que jamais abandonava uma pessoa. E deixou que ele pensasse que era essa a razão de sua exultação. Se ele soubesse, seus pensamentos estavam na Inglaterra mas não na Inglaterra como era naquele momento, governada por um rei fraco e seu preferido.

Isabella estava feliz. Em breve, estaria com Mortimer.

Foi mais cedo do que ela ousara esperar, porque ele soube de sua chegada e apressou-se a ir cumprimentá-la.

Fez uma mesura acentuada. Não devia mostrar uma familiaridade indevida diante da comitiva, mas em seus olhos ela viu tudo o que queria saber.

- Meu amor - sussurrou ele enquanto se curvava diante dela. Pareceu tanto tempo!

- Finalmente, aqui estou.

Então ele estava dizendo que soubera de sua chegada e viera escoltá-la até a corte do irmão em Paris.

Mortimer providenciara para que eles passassem a noite num chateou colocado à disposição dela pelo seu primo Robert d Artois, que ouvira falar bastante de sua humilhação nas mãos do marido e ficara furioso com o fato de uma filha da casa real da França ser tratada daquela maneira.

Enquanto cavalgavam, Mortimer lhe falava sobre suas aventuras desde que fugira da Inglaterra. Ele caíra nas graças do irmão dela, o rei, o que talvez não fosse surpresa, porque os reis franceses estavam sempre prontos a tratar bem os inimigos dos reis da Inglaterra. Ele falara muito com Carlos sobre a influência que Hugh lê Despenser exercia sobre o rei, e naturalmente que Carlos, vendo claramente a loucura de Eduardo, não ficara contrariado com isso.

- Tenho o prazer de dizer - disse Mortimer - que o rei, seu irmão, não tem demonstrado coisa alguma, a não ser amizade, para comigo. - Ele curvou a cabeça e sussurrou: - Hoje à noite... Tem de ser hoje à noite.

- Hoje à noite - confirmou ela.

Quando chegaram ao chateau, o primo dela estava ansioso por lhe dar uma recepção digna de uma rainha. Deixou claro que ficara muito impressionado com a sua beleza. Isabella sentia como se tivesse voltado à vida, reconhecida pelo que sempre soubera que era, uma mulher encantadora e sensual.

Lorde John Cromwell ficou um pouco apreensivo com o que chamou de indevida familiaridade de Mortimer.

- Ele foi, majestade, prisioneiro do rei - explicou ele a Isabella.

- Agora, é um exilado. Se voltasse à Inglaterra, perderia a cabeça.

- É verdade, meu senhor-respondeu Isabella, e pareceu refletir. -Mas a mim parece que estou numa missão difícil. Tenho de conseguir boas condições para meu marido junto a meu irmão, e se Mortimer diz a verdade, ele tem uma relação de amizade com Carlos. vou precisar de todos os amigos disponíveis. Não seria prudente manter Mortimer fora disso.

Lorde John concordou.

- Mas eu não confiaria demais nele, se fosse vossa majestade, se me perdoa tocar neste assunto.

- Está perdoado, lorde John. Sei que o senhor é fiel a mim e ao rei.

- Os Mortimer sempre foram uma família agitada, majestade. Governavam a região da fronteira e o poder está no sangue deles.

- Concordo com o senhor. Confie em mim, serei cuidadosa. Ela riu bastante quando, naquela noite, ficou nos braços de Mortimer.

O reencontro fora de uma satisfação completa. O fato de ter sido planejado com cuidado aumentara o prazer. Os dois falavam em sussurros a noite toda, porque antes do alvorecer ele precisava ir embora. Não seria admissível que alguém, àquela altura, descobrisse que ela havia ido à França para encontrar-se com o amante.

- Jamais voltarei sem você - disse ela. - Quando voltarmos, será com um exército. Vamos vencer.

- Claro que vamos.

- Doce Mortimer, temos de vencer. Você e eu juntos, e Eduardo conosco... meu jovem Eduardo. Precisamos encontrar um jeito de trazê-lo para cá.

- Como ele se sente em relação ao pai?

- Perplexo. Não passa de um menino. Mas um menino inteligente... que sabe qual é o seu destino. Ele ouve os mexericos sobre Hugh lê Despenser. Isso o deixa perturbado.

- Meu amor... meu amor - bradou Mortimer. - Que dia feliz aquele em que fui mandado para a torre!

- No jardim, aquele dia, percebi que estivera à sua espera a vida inteira.

- Ninguém jamais amou como nós.

- E ninguém jamais fez um projeto tão importante deitado no leito de amor.

- Quanto falta até o alvorecer? Quem dera que eu pudesse parar o tempo.

- O futuro nos pertence, meu amor.

- Ah - respondeu ele - nos pertence.

- Chegará o dia em que você não precisará sair às escondidas antes que os primeiros raios de luz apareçam no céu.

Mortimer se perguntou se ela estaria dando a entender que se casaria com ele. Poderia a rainha da Inglaterra casar-se com um Mortimer? Ele tinha uma esposa. Ela, um marido. Mas obstáculos desse tipo podiam ser eliminados.

Ambição. Amor. Que glória quando os dois andavam juntos! Fazer amor! Fazer planos! A vida era boa. Nenhum dos dois sonhara com as delícias que a vida agora lhes oferecia.

- Quem dera pudéssemos ficar assim para sempre - disse Mortimer.

- Não, meu amor - respondeu a rainha. - Isto é apenas a primavera da nossa união. Um verão deslumbrante está à nossa frente.

- E o outono e o inverno? - disse ele.

- O outono virá com os frutos dos nossos esforços - disse ela.

- E se houver um inverno, saberemos como aquecer um ao outro. Que conversa para amantes. Vamos falar quando não pudermos amar. Concorda, querido Mortimer? Mortimer concordou.

 

HOUVE UMA RECEPÇÃO digna de uma rainha para Isabella na corte do irmão.

Carlos não parecia ter boa saúde, e assim que o viu ela pensou na maldição dos templários. Ele possuía aquela destacada beleza que se revelava na família. Isabella a possuía, assim como seu pai, e ela aparecia outra vez em Carlos. Agora, havia nele uma aparência de fragilidade.

Ele lhe concedeu de imediato uma audiência em particular, pois estava muito ansioso por saber se eram verdadeiros os rumores que ouvira sobre o rei da Inglaterra.

Isabella começou dizendo como estava encantada por voltar a sua terra natal. Tivera uma vida muitíssimo infeliz na Inglaterra e tudo se devia àquela desviada natureza do rei.

- Ele é anormal, irmão. Você deve saber que o grande favorito dele era Piers Gaveston, que foi sucedido por Hugh lê Despenser. Eles estavam sempre juntos. Eu praticamente não o via.

- Vocês têm quatro filhos - disse Carlos.

- Eu insisti para que tentássemos ter filhos, e conseguimos.

- Então ele não esteve com o favorito, nessa ocasião.

- Já imaginou a minha humilhação? Filha e irmã de reis da França ser tratada dessa maneira.

- Foi bom você ter tido seus filhos... e entre eles dois meninos. Carlos falava com amargura. A maldição dos templários dava a entender que a linha dos Capelo acabaria com eles. Era muito bom desprezar a maldição, mas ela persistia. Luís e Filipe tinham morrido sem deixar herdeiros. Se existiam filhos, estes eram doentios. Precisavam desesperadamente de um herdeiro homem, porque a lei sálica vigorava na França e dizia que a coroa da França era tão nobre que não podia ser entregue a uma mulher.

Carlos não podia deixar de sentir inveja dos dois filhos homens da irmã. Tinham sido grandes as comemorações quando sua mulher, a rainha, ficara grávida. Mas que amarga decepção quando ela dera à luz uma menina. Falou-se outra vez sobre a maldição, e parecia mesmo que os reis estavam condenados. Ele não sabia o que aconteceria quando ele morresse sem herdeiros. Talvez o irmão mais moço de seu pai, Carlos de Valois, ou seu primo Filipe, ocupasse o trono. Seria, então, o fim da linha direta dos Capelo quando a Casa de Valois assumisse o poder.

Mas ele ainda não tinha morrido. Havia esperança. Não fosse a miserável maldição...

Isabella adivinhou o que o irmão estava pensando, mas parecia pouco preocupada com os assuntos da França. Os da Inglaterra a absorviam.

- Aproveitei essa oportunidade para fugir, tão grande era minha ânsia por ver a França e abandonar o marido que aprendi a desprezar.

- Ele é um tolo - concordou Carlos. - Roger de Mortimer me contou muita coisa sobre a situação inglesa. Esse é um homem de vitalidade. Eduardo foi um tolo ao deixar que ele fugisse. Um tolo ao prender um homem desses. Devia ter mandado cortar-lhe a cabeça enquanto podia.

- Eduardo vai sempre tomar as decisões erradas. Foi um tolo ao mandar Kent aqui para cuidar de assuntos importantes. É um jovem muito inexperiente.

- Ele devia ter mandado Pembroke.

- Pembroke morreu antes que Eduardo pudesse enviá-lo. Ah, sim, teria sido diferente se Pembroke tivesse vindo. Os velhos amigos de Eduardo estão morrendo ou abandonando-o. Ele adora os Despenser, mas ninguém mais gosta deles.

- Ele deu logo o consentimento para que você viesse?

- Os Despenser ficaram contentes por se livrarem de mim, e por isso deixaram que eu viesse. Sabe, o povo gosta de mim. Ele me ovaciona nas ruas. Isso deixa Eduardo furioso, porque quando ele sai as pessoas se mostram mal-humoradas.

- E os Despenser?

- Se tivesse oportunidade, o povo arrancava-lhes membro a membro.

- Não é uma situação muito saudável.

- Uma situação doente, diria eu, irmão. Sinto-me feliz por estar aqui. Tudo é tão mais elegante. vou mandar chamar algumas de minhas costureiras francesas à corte. Ninguém faz roupas como elas. Veja como nos vestimos tão mal na Inglaterra. Eu pareço indigna de você, irmão.

- Ouvi várias pessoas comentarem sobre sua beleza. Dizem elas que você está radiosa. Nem parece que tem sido maltratada na Inglaterra.

- É porque voltei para casa. Eu gostaria de ter roupas francesas. Você não fará objeção se eu chamar as costureiras?

- Chame, se quiser, irmã.

- Então vou dar as ordens imediatamente. Depois, preciso falar com você sobre assuntos de Estado. Sabe que estou aqui para fazer um apelo em nome de Eduardo

- Sei muito bem. Você será capaz de apresentar um pedido em favor de uma pessoa que despreza com tanta certeza?

- Tenho um filho homem, Carlos. Peço em nome dele. Apesar de muito jovem, é um menino inteligente. Quero que ele tenha um reino quando chegar a hora de assumi-lo.

Carlos alternava entre indignação pela maneira como a irmã fora tratada, graça pela capacidade de ela pensar na aparência num momento como aquele, satisfação pelo fato de o rei da Inglaterra ter tido de mandar a irmã procurar o rei da França a fim de apelar em seu nome, prazer por ter devolvida a ele a irmã pela qual sempre tivera uma certa afeição, e certas dúvidas na cabeça quanto a se haveria algo por trás de tudo o que ela dizia e fazia.

Agora, Isabella estava vestida com requinte. Convocara as melhores costureiras de Paris; escolhera

os tecidos mais deslumbrantes e, na verdade, parecia uma rainha.

Nunca, nem mesmo na época de sua juventude, estivera tão bonita. Irradiava aquele fulgor íntimo que tomara conta dela quando conhecera Mortimer. Sentia-se profundamente apaixonada; e estava cheia de planos para o sucesso. Nunca vivera de forma tão completa, tão perigosa e tão emocionante quanto naquele momento.

Tornou-se o centro de uma pequena corte. Descobriu sua fascinação latente. Atraía as pessoas pela radiante beleza, pelo espírito, pela vitalidade, e pelo encanto. Dizia-se que era a mulher mais bonita da Europa.

Mortimer a adorava, e ela pertencia inteiramente a Mortimer. Mas outros se apaixonaram por ela. O primo Artois, por exemplo. Ele ficava cada vez mais indignado diante do modo pelo qual ela fora tratada na Inglaterra; disse a ela que seu grande desejo era servi-la.

Os ingleses cujo dever os levara à França formavam um círculo à sua volta. Mortimer, é claro, à frente deles, e unindo-se a ele e a Artois estavam os bispos de Winchester e Norwich, que atuavam como embaixadores de Eduardo em Paris. Outros homens, enojados com o modo de vida de Eduardo e sem esperança quanto ao futuro da Inglaterra sob o reinado dele, prestavam homenagens à sua rainha. Eles adivinhavam que havia algo mais na presença dela ali do que interceder junto ao irmão em favor do marido.

O jovem Edmund, duque de Kent, que estava muito deprimido devido ao seu fracasso na França, foi procurá-la e ela o consolou, assegurando-o de que não fora o responsável pelo que acontecera. Não havia respeito algum por Eduardo no exterior, disse ela, e qualquer missão dele deveria fracassar enquanto a situação fosse aquela. Passou várias horas com Kent acalmando-o, conquistando-o para o seu lado. Era um daqueles que parecia apaixonado por ela.

- É bom ter o irmão do rei do nosso lado - disse Mortimer.

Outros, como o conde de Richmond e Henry de Beaumont, eram uma presença constante. Todos adeptos úteis, todos inimigos dos Despenser, que os ofendera acima dos limites.

Assim, o plano progredia bem.

Mas ela devia dar a impressão de estar realizando a tarefa que fora realizar.

Depois de um certo tempo, Carlos concordou que não enviaria mais tropas à Gasconha e refletiria na possibilidade de devolver à Inglaterra as províncias conquistadas se Eduardo fosse prestar a vassalagem que estava devendo há muito pelas suas possessões francesas.

Ela teve muitas oportunidades de conversar com Mortimer, porque este fazia parte daquela pequena corte que a cercava, e se ela podia falar a sós com seu primo Artois e com os bispos de Norwich e Winchester, podia fazer o mesmo com Mortimer.

- E se ele vier? - perguntou ela.

- Os Despenser irão convencê-lo a não vir.

- O rei e eles estão ansiosos pela paz.

- Sim, mas eles não deixarão que ele venha só, e eles seriam bem recebidos na corte de seu irmão? Há uma alternativa.

- Eu sei - disse ela. Os dois entreolharam-se e ficaram maravilhados com o fato de chegarem até a ter os mesmos pensamentos.

- Acha que ele permitiria? - perguntou Mortimer.

- Ele é ingénuo o bastante para permitir.

- Se tivéssemos o menino aqui, estaríamos a meio caminho da vitória.

- Podemos tentar - disse a rainha.

- com o máximo de cuidado. Deixe-o pensar que você está fazendo isso para poupar o trabalho dele e porque acha que está na hora de o menino começar a ter noção de suas obrigações.

- Farei isso-disse Isabella.-Mas primeiro tenho de conseguir a aprovação de meu irmão.

- Primeiro - disse Mortimer -, vamos esperar e ver qual será a resposta de Eduardo. Não devemos, de forma alguma, parecer ansiosos demais para que o menino venha em lugar dele. Temos de caminhar com muito cuidado, querida.

- Eu sei muito bem disso - replicou Isabella.

Quando os Despenser ouviram as condições que o rei da França estabelecera, ficaram, como Isabella e Mortimer tinham previsto, muito perturbados.

O assunto fora submetido ao Conselho e ali fora decidido concordar com a ida de Eduardo a Paris. Os Despenser ficaram preocupados. Discutiram acaloradamente o assunto e chegaram à conclusão de que não se deveria, de forma alguma, deixar que o rei fosse.

- Sem a proteção dele haveria alguma desculpa para nos agarrarem - disse o mais velho para o mais moço. - Aí, eu não daria um níquel pelas nossas chances.

- Eduardo jamais permitiria que nos prejudicassem.

- Meu querido filho, eles não iriam esperar pela volta de Eduardo. Veja como trataram Gaveston, e até mesmo Lancaster foi levado as pressas para a morte. Assim que nos pegassem, pode estar certo de que estaríamos mortos antes que Eduardo pudesse fazer qualquer coisa para nos salvar.

- Ir até lá é a única maneira de ele poder salvar suas possessões francesas.

- Ficar é a única maneira de ele poder nos salvar. Não, Hugh, meu filho, o rei não deve ir à França. Você tem de convencê-lo a não ir. Ele tem que ficar aqui. Sem ele, com o país no estado de espírito em que se encontra, nós estamos perdidos.

- A coisa está tão ruim como o senhor imagina, papai?

- Meu filho querido, você está constantemente com o rei. Você o distrai. Você é o maior amigo dele. Eu tenho tempo de olhar à minha volta e ver o que está acontecendo. Henry de Lancaster tem escrito para aquele tal de Adam de Orlton que, eu tenho certeza, esteve envolvido na fuga de Mortimer da torre. Ele erguera uma cruz em memória do irmão em Leicester e está espalhando mais histórias sobre outros milagres junto ao túmulo de Lancaster. Não, Eduardo não deve ir. Você precisa detê-lo. Não o deixe dar uma resposta direta.

Eduardo estava mais do que disposto a protelar. Não tinha vontade alguma de ir procurar Carlos da França e prestar-lhe vassalagem. Aquele era um ato que jamais fora apreciado por qualquer um de seus antecessores.

Eduardo ficou encantado quando chegou o recado de Isabella.

Ela falara com o rei da França e ele concordara que se Eduardo achasse difícil afastar-se de seu reino naquele momento, ele aceitaria a vassalagem jurada pelo jovem Eduardo, filho deles. Ela acreditava que aquilo era uma excelente ideia, e se o rei concordasse em enviar o filho, seria um bom exercício de diplomacia para o menino e ela cuidaria bem dele.

Se ele concordasse, o jovem Eduardo poderia ser nomeado duque da Aquitânia e conde de Ponthieu e poderia, então, prestar vassalagem ao irmão dela por aquelas províncias.

Eduardo ficou encantado. Os Despenser discutiram o assunto juntos. Aquilo manteria Eduardo na Inglaterra, e a vida deles poderia depender disso.

- Deixe o menino ir - disse Hugh ao rei. - Será uma boa experiência para ele. Eduardo está crescendo. Está na hora de começar a participar dos assuntos. Ele pode aliviar o seu fardo, majestade. Sim, deixe que ele vá.

A vida de Eduardo fora uma longa série de erros, mas ao enviar o filho à França ele cometeu o maior de todos os seus erros.

Isabella e Mortimer mal podiam acreditar na boa sorte. O plano deles estava progredindo acima das esperanças mais absurdas.

Foi com uma enorme alegria que ela cavalgou até a costa para aguardar a chegada de seu príncipe! Mortimer estava a seu lado.

- Em breve estaremos voltando para casa - sussurrou ele. Iremos à frente de um exército. Nada poderia ter nos ajudado mais do que a vinda do jovem Eduardo. O fato de o rei enviá-lo mostra que ele é indigno de governar. Nossa tarefa, agora, é fazer com que o menino fique do nosso lado.

- Não tenha receio, eu posso conquistá-lo para nós - replicou a rainha:

- Ninguém pode resistir ao seu encanto - garantiu-lhe Mortimer -, muito menos um menino... e que é seu filho.

Foi um momento maravilhoso quando o jovem Eduardo desembarcou. Era um menino muito bonito, mostrando a promessa dos belos traços dos Plantagenetas. Seria tão alto quanto o pai e o avô; tinha cabelos cor de linho e penetrantes olhos azuis, alerta, inteligente, com ânsia de viver, cônscio de seu destino e decidido a realizá-lo.

Estava acompanhado dos bispos de Oxford e Exeter e um grande número de cavaleiros. Todos eles, pensou a rainha, devem ser conquistados para a nossa causa.

O menino estava evidentemente dominado pela mãe. Teria se curvado diante dela, mas ela dispensou a cerimónia.

- Meu filho! - exclamou ela.-Meu filho adorado, fico tão feliz ao vê-lo! Tão bonito, tão saudável! Meu querido menino, sinto-me tão orgulhosa de você!

O jovem Eduardo teve um leve rubor. Ele sempre admirara a mãe; era muito bonita e sempre deixara claro que dos filhos ele era o favorito. Ouvira dizer o quanto ela fora paciente ao suportar as humilhações. Começava a compreender o modo de vida do pai e lamentava aquilo. Sabia que havia problemas sérios no país por causa daquilo e que um dia ele seria o rei. Quando esse momento chegasse, seria diferente. Ele garantia. Ouvira falar muito sobre o avô e queria ser igual a ele.

Walter Stapledon, bispo de Exeter, conversara com ele sobre a sua missão e incutira nele a ideia de que sua vida precisava ser dedicada ao serviço de seu país. Por isso, ficou encantado por estar com sua mãe e seguir ao lado dela para Paris. Não sabia ao certo como devia sentir-se em relação a Mortimer. O conde fora prisioneiro de seu pai e fugira da torre. Mas sua mãe parecia ser muito amiga dele e não havia dúvida de que Mortimer fazia um grande esforço para agradar ao jovem príncipe. E até mesmo seu tio, o rei da França, mostrava afeição por ele e lhe disse o quanto estava contente por seu pai ter concordado com sua viagem.

Num dia de setembro, no castelo de Bois de Vincennes, perto de Paris, o jovem Eduardo jurou vassalagem a Carlos IV da França, substituindo seu pai. Foi uma cerimónia impressionante e realizada com uma demonstração de amizade, mas o rei francês era astuto demais para cumprir o seu trato por inteiro. Ele poderia devolver a Gasconha e Ponthieu, mas reclamou que sofrera grandes baixas e, por isso, achava perfeitamente justo que ficasse com Agenais.

Isabella e Mortimer assistiram à cerimónia com prazer. O problema era que, agora que a vassalagem fora prestada e o rei da França estava satisfeito, já não havia razão para que a comitiva inglesa continuasse na França.

Partir significaria dizer adeus a Mortimer. Além do mais, se voltasse para a Inglaterra, Isabella ficaria na mesma situação de antes. Claro que ela não devia voltar, e a tarefa, agora, era reunir o máximo de pessoas possível para a sua bandeira, e quando tivessem um exército bem numeroso, seria a hora de atacar.

Já havia um núcleo de pessoas descontentes vindas da Inglaterra, e que aumentava todos os dias. Mas não era um exército. Isabella se perguntava se o irmão iria ajudar, mas Carlos estava desencantado com a guerra e não tinha intenção alguma de levar a efeito uma guerra na Inglaterra.

Ele oferecera hospitalidade a Mortimer porque achava que este poderia fornecer informações úteis sobre a Inglaterra; além do mais, Mortimer era inimigo confesso de Eduardo e, portanto, era prudente tê-lo por perto. Naturalmente que ele recebera a irmã, que também era a rainha da Inglaterra, mas não esperava que nem mesmo ela se demorasse muito na visita.

Mortimer e Isabella chegaram à conclusão de que, embora a primeira parte da missão estivesse cumprida, eles tinham tido uma sorte incrível. Mas agora precisavam fazer surgir um exército de algum lugar. Como?

Era verdade que a causa estava crescendo. Muitas das pessoas que faziam parte do círculo dos dois poderiam reunir homens na Inglaterra.

A situação ficava mais difícil a cada dia. Até o rei começava a se perguntar por que a comitiva inglesa não fazia os preparativos para partir. Isabella e Mortimer tinham encontros ansiosos. Os dois não se separavam. Além do mais, seria muito perigoso ela partir agora. Não havia dúvida de que existiam espiões na corte e era bem possível que alguém tivesse percebido o relacionamento entre eles e o tivesse comunicado à Inglaterra.

- Isso daria a ele uma oportunidade de se livrar de você - disse Mortimer e acrescentou com um tremor: - Ele poderia acusá-la de traição. É de tempo que precisamos, minha adorada. Tempo.

- Então, precisamos encontrá-lo - replicou Isabella com firmeza. - Não vamos titubear agora.

- Stapledon exerce grande influência sobre o jovem Eduardo assinalou Mortimer.

Isabella concordou.

- Estou um pouco preocupada com Stapledon - acrescentou ela.

- Ele deixa claro que me considera um traidor - acrescentou Mortimer.

- Que velho tolo. vou sondá-lo, para descobrir o que se passa na cabeça dele.

- Vá com cuidado.

- Pode confiar em mim - replicou Isabella.

- Eduardo deve considerá-lo muito, para ter confiado o filho a ele.

- Eduardo sempre confia na pessoa errada. Verei o que se pode fazer com o velho bispo.

Mortimer concordou. O poder de fascínio de Isabella aumentara desde que ela fora para a França. Ela mudara da rainha humilhada, à qual a todo momento o marido mostrava o quanto achava mais atraentes suas amizades masculinas.

Walter Stapledon, bispo de Exeter, era tido como um homem íntegro. Era culto e membro da Universidade de Oxford. Na verdade, fundara a Faculdade de Exeter, agora conhecida como Stapledon Hall. Interessara-se muito pela reconstrução de sua catedral e gastara parte de sua renda para torná-la encantadora.

Entrara para a política fazia alguns anos, quando Eduardo I o enviara numa missão à França. Mais tarde, voltara à França, dessa vez com Eduardo II; lamentara as diferenças

existentes entre Lancaster e o rei e tentara uma reconciliação entre os dois; e a confiança de Eduardo nele estava demonstrada no fato de mandar o filho à França sob os seus cuidados.

A rainha abordou-o com cautela.

- Senhor bispo-disse ela -, como acha que meu filho responde a suas responsabilidades?

- Ele tem se saído bem, majestade - respondeu o bispo.

- Ainda bem que o senhor concorda comigo. Dizem que ele vai ser igual ao avô. Estou rezando para que isso aconteça.

O bispo não a encarou. Ele disse:

- Há uma semelhança entre o príncipe e o pai e o avô.

- Espero que ele seja igual ao avô - disse a rainha, com firmeza. O bispo estava alerta. Ele ouvira rumores. Seria verdade que a rainha estava mantendo uma relação adúltera com Mortimer? Havia, no jeito dos dois quando estavam juntos, algo que sugeria que poderia ser verdade. Mortimer - um traidor do rei -, um homem que fugira da prisão, à qual fora condenado por traição, ser recebido como era, ser homenageado pela rainha e pela corte da França! Era uma situação que deixava o bispo muito desconfiado.

- Senhor bispo - prosseguiu a rainha -, como todo homem de bem, o senhor deve estar triste com o que está acontecendo na Inglaterra.

Isabella esperou a resposta dele, mas como não houve, ela continuou, um tanto impaciente:

- O senhor não pode estar satisfeito com a obsessão do rei por Hugh lê Despenser.

- Eu respeito o direito que o rei tem de escolher seus ministros - replicou o bispo, um tanto frio.

- Ministros, senhor bispo - disse a rainha, muito inflamada. O senhor chamaria o belo Hugh de ministro?

- Ele detém o cargo de camareiro, concedido pelo rei, majestade.

- Senhor bispo - retrucou a rainha -, não deve pensar que eu iria considerar traição se o senhor dissesse o que pensa.

- Posso assegurá-la, majestade, de que meus pensamentos não são passíveis de ser considerados traição.

O bispo curvou-se com dignidade e pediu permissão para se retirar.

A rainha percebeu logo que cometera um erro. Ele não estava do lado deles. Tinha o tipo de lealdade cega que lhe dizia que tinha de apoiar o rei a todo custo.

Isabella foi imediatamente procurar Mortimer e contou-lhe sobre a entrevista, repetindo-a, palavra por palavra.

- Ele pode ser perigoso - concordou Mortimer. - E vai falar com Eduardo.

- Meu querido, o que podemos fazer? Mortimer olhou para um ponto distante.

- Se ele representar uma ameaça para nossa causa, deve ser eliminado.

- Como? - sussurrou a rainha.

- Precisamos encontrar a resposta para isso, meu amor. Não deve parecer que estivemos envolvidos. É uma causa importante demais para ser prejudicada por um padre com um senso errado de dever.

Walter Stapledon foi para o seu quarto e se trancou. É verdade, pensou. A rainha, junto com Mortimer, está tramando derrubar o rei. É por isso que queriam o príncipe aqui; é por isso que não voltam para a Inglaterra e apresentam desculpa atrás de desculpa para ficar.

O que podem estar planejando? Levantar um exército? Invadir a Inglaterra? Até que ponto o rei da França está envolvido?

E a rainha sabia que ele estava ciente do que se passava. Ela e Mortimer... seu amante... Culpados de traição e adultério... Nada os deteria. No momento em que ele e a rainha tinham-se encarado, ela sabia que lhe revelara suas tramas malévolas.

Walter Stapledon, disse ele, sua vida não vale um níquel.

Talvez naquele exato momento o assassino estivesse espreitando, pronto para atacá-lo.

Mandou chamar seu criado - homem em quem podia confiar.

- Você tem algumas roupas que não ficariam desajeitadas demais em mim?

O homem olhou para ele, assombrado.

- vou lhe dizer uma coisa - disse o bispo. - Tenho de fugir da corte o mais rápido possível. Preciso de um bom disfarce. Pode arranjar alguma coisa... para você e para mim? Então, meu bom amigo, iremos para a costa a toda velocidade e tomaremos o navio para a Inglaterra.

- Se é o que deseja, senhor bispo.

- Não só o que eu desejo, mas é do que eu preciso.

A sorte estava com o bispo. Ele e o criado chegaram à costa sem contratempos e logo encontraram um navio para levá-los à Inglaterra.

Ele foi a seus aposentos e, ali, desfez-se do disfarce e, vestido com sua túnica de bispo, marcou uma audiência com o rei.

Como seria de esperar, Hugh lê Despenser estava ao lado do rei.

Eduardo expressou surpresa e consternação ao vê-lo.

- Senhor bispo, sua missão era estar ao lado do príncipe. Ele está com o senhor?

- Deixei a corte da França às pressas, majestade - disse o bispo -, e disfarçado. Se não tivesse feito isso, jamais conseguiria fugir e contar a vossa majestade o que está acontecendo por lá.

O rei ficou intrigado, mas Hugh ficou alerta.

- Por favor, continue, senhor bispo - disse ele.

- Majestade, eu hesito em dizer isso. Tampouco o diria se não acreditasse firmemente que é verdade. A rainha e Mortimer estão envolvidos numa intriga adúltera.

- Mortimer! - bradou o rei. - Mortimer e Isabella!

- Está claro que ela teve participação na fuga dele. Eles tinham planejado isso. Tramaram ter o príncipe com eles e, assim que isso aconteceu, ficaram mais descuidados do que antes. Os dois estão reunindo os descontentes e os planos não são de bom agouro para vossa majestade.

- O senhor não sabe o que diz, bispo - disse o rei. Mas Hugh colocara a mão em seu braço.

- Isso parece verdade, querido senhor-disse ele.-Como sabe, há muito tempo que desconfio da rainha.

- O que ela pode fazer? - perguntou Eduardo.

- O rei da França está com ela? - bradou Hugh.

- Não sei. Tão logo percebi que minhas suspeitas estavam corretas, achei que era meu dever vir correndo procurar vossa majestade. Como não iria trabalhar com eles, minha vida corria perigo.

- Isso é monstruoso! - bradou o rei. - O que podemos fazer?

- Temos de chamar a rainha e o príncipe de volta, sem demoradisse Hugh. - Mortimer não pode fazer nada sozinho.

- Eu gostaria de saber até que ponto ele chegou-disse Eduardo, pensativo.

- Meu querido senhor - replicou Hugh -, não é nada que não possamos enfrentar. O rei da França não vai enviar soldados para a Inglaterra. Ele poderia ajudar com armas e solidariedade, mas não poderá fazer coisa alguma contra o exército que iremos levantar. Mas, primeiro, não vamos divulgar que sabemos da vilania deles. Chamaremos a rainha e o príncipe de volta. Quando estiverem aqui, será necessário confinar a rainha. Duvido que o veneno tenha penetrado muito na cabeça do príncipe. Ficaremos gratos ao senhor bispo pela sua lealdade.

- Meu caro bispo - disse o rei -, isso não será esquecido.

- Não procuro recompensa pela minha lealdade, majestade disse o bispo com dignidade.

- Sei muito bem disso - replicou Eduardo, caloroso. - Dou graças aDeus por ter muitos bons amigos em meu reino, dos quais posso depender e que irão me servir não importa quem esteja contra mim.

Seguindo o conselho tanto de Hugh como do bispo, Eduardo escreveu, naquele dia, ao rei da França dizendo-lhe que, agora que o caso da vassalagem estava resolvido, ele gostaria de ver o retorno de sua rainha e de seu filho.

O rei da França mandou chamar a irmã, e quando ela chegou abraçou-a sem entusiasmo e disse:

- Está na hora de você voltar para a Inglaterra. Isabella aparentou exatamente a tristeza que sentia.

- Fico triste ao pensar em voltar - disse ela. - Tem sido tão maravilhoso estar em minha terra natal. A vida é muito diferente aqui. Se você soubesse, irmão, o que tenho suportado.

Carlos deu umas batidinhas na carta que segurava.

- Eduardo chama a minha atenção para o fato de que está na hora de você voltar. Deve fazer os preparativos.

Ela hesitou. Queria contar-lhe os planos deles. Dizer o quanto estava acontecendo em favor deles e como precisavam de tempo.

- Se você não for - prosseguiu o rei -, Eduardo vai pensar que a estou detendo contra a sua vontade.

- Ele diz isso?

- Não. Ele dá a entender que a relutância é sua.

- E tem razão! Carlos, você não sabe o que tenho sofrido por causa daqueles Despenser!

- Você tem mencionado isso repetidas vezes, irmã - replicou Carlos, com uma frieza cada vez maior.

Que Deus me ajude, pensou Isabella. Ele vai me mandar de volta.

- Você quer que eu vá, não quer? - perguntou ela, com franqueza.

- Minha querida irmã, você já está aqui há muito tempo. Sua missão está resolvida. É natural que volte para o lado de seu marido.

- Você está zombando de mim. Meu marido! Você sabe o que ele é.

- Você e seu filho devem voltar para casa.

- Ele pede que você nos mande embora, não é? Sob que condições?

- Ele pergunta por que está havendo demora na sua volta e menciona que você já ficou longe tempo suficiente.

- Carlos, estou com medo.

- Você, Isabella... com medo! Sei que você é muitas coisas, mas estou surpreso por descobrir que você tem medo.

- Eles vão me matar se eu voltar - disse com calma. - Matá-la. Minha irmã. Teriam de responder perante mim, se o fizessem. Não acho que iriam querer isso.

- Carlos, não pareceria assassinato. Mas seria. Os Despenser me odeiam. Você sabe como era antes de eu vir para cá. Eu era quase que prisioneira deles. É isso que eles querem. Eles não vão me cortar a cabeça. Nem me darão uma dose de veneno que me elimine imediatamente... mas, mesmo assim, vão me matar. Vão me prender e, lentamente, vão me tirar a vida.

- Isabella, você está se agitando de forma exagerada.

- Você não estaria muito agitado, irmão, se estivesse diante de assassinos? Deixe-me ficar aqui, só um pouco mais, eu lhe prometo. vou fazer planos... mas ainda não posso voltar para Eduardo e os Despenser.

Ela caíra de joelhos e erguera os olhos em súplica. Era muito bonita e era sua irmã, e só restavam os dois dos filhos de seu pai. O próprio Carlos não se sentia muito seguro com a maldição dos templários pairando sobre sua cabeça.

Ergueu-a e beijou-a levemente na face.

- Não seja tão dramática, Isabella. Claro que pode ficar mais um pouco. Responderei qualquer coisa para Eduardo. Mas você deve se comportar. Entendeu?

- Por que você fala isso?

- Existem rumores. Ouvi dizer que você está sendo cordial demais para com Roger de Mortimer.

- Que calúnias! Claro que sou cordial para com os ingleses que estão aqui na França.

- Você reuniu um bom número deles à sua volta.

- Na verdade, por que não deveriam eles falar comigo? Estão tão contrariados com o rei quanto eu.

- Não admitirei que minha corte seja local de tramas.

- Meu caro Carlos! Você vai ser o meu bom irmão. Prometo-lhe que vou fazer meus planos para a viagem de volta, e assim que tomar coragem, partirei.

- E quando for, leve seus descontentes com você.

- E você vai escrever para Eduardo.

- E dizer a ele que a sua viagem foi temporariamente adiada mas que daqui a algumas semanas você estará fazendo planos para partir.

O rei da França olhava de cenho franzido para uma carta que recebera do rei da Inglaterra. Algumas semanas se haviam passado desde que ele dissera a Isabella que ela poderia ficar por mais algum tempo, mas até aquele momento ela nada dissera sobre a partida.

"Mui querido e adorado irmão", escrevera Eduardo,

"Recebemos e analisamos bem suas cartas(...) Parece que você soube, adorado irmão, por pessoas que considera dignas de crédito, que nossa companheira, a rainha da Inglaterra, não tem coragem de voltar para nós, por estar em perigo de vida, segundo acredita, por parte de Hugh lê Despenser. Na verdade, adorado irmão, não é possível que ela tenha medo dele ou de qualquer outro homem do nosso reino. Se Hugh ou qualquer outro ser vivo nos nossos domínios quisesse fazer mal a ela e isso chegasse ao nosso conhecimento, nós o castigaríamos de maneira tal que serviria de exemplo para todos os demais.(...)

"Nós também lhe rogamos, queridíssimo irmão, que faça o favor de nos entregar Eduardo, nosso querido filho mais velho, seu sobrinho (...) Rogamos que o faça vir para nós com toda presteza, pois temos mandado buscá-lo com frequência e muito desejamos vê-lo e falar com ele, e todos os dias ansiamos pelo seu retorno(...)"

O cenho de Carlos estava franzido. A carta era autêntica, e embora desprezasse Eduardo por ser um governante incompetente, não o acreditava capaz de tramar o assassinato da esposa. Ao passo que podia acreditar que sua irmã estava dedicada a alguma intriga

Independentemente do que fosse, ele não queria ter participação alguma. Sentia-se fraco de saúde, com falta de vitalidade; duvidava que algum dia tivesse um filho homem e herdeiro. A maldição dos templários atuava forte sobre ele e não iria procurar confusão fora do seu reino.

Isabella teria de levar seus problemas para outro lugar.

Pelo mesmo mensageiro chegaram cartas para Isabella e o Jovem Eduardo.

Isabella, com Mortimer ao lado, leu a dela em voz alta:

"Senhora, com frequência temos lhe comunicado, tanto antes como depois da vassalagem, o nosso grande desejo de tê-la conosco, e a nossa dor no coração diante de sua longa ausência; e por entendermos que a senhora nos causa muito mal ao fazer isso, queremos que venha para o nosso lado a toda pressa e sem mais desculpas.

"Antes de a vassalagem ser prestada, a senhora fez do progresso daquele ato uma desculpa, e agora que lhe enviamos pelo dignissimo padre,o bispo de Winchester,o nosso salvo-Conduto, a senhora não quer vir por ter medo e dúvidas a respeito de Hugh lê Despenser , diante do que a nossa perplexidade não tem hmites(...)

"E na verdade, senhora, sabemos ser verdade, e a senhora também o sabe, que ele sempre conseguiu de nós tudo o que podia em favor da senhora e que a senhora nunca sofreu maldade ou vilania desde que passou a ser a nossa companheira (...) e sentimo-nos muito contrariados, agora que a vassalagem já foi prestada ao nosso queridíssimo irmão, o rei da França, e temos muitas perspectivas sinceras de amizade, pelo fato de a senhora, que enviamos para fazer a paz, ser a causa (que Deus nos livre) de aumentar o fosso entre nós por coisas que são inventadas e contrárias à verdade. Portanto, nós a exortamos, com a urgência que nos é possível, a que, acabando com todos os pretextos, adiamentos e falsas desculpas, volte para nós o mais depressa possível. Nosso bispo nos informou que seu irmão, o rei da França, lhe disse, na presença dele, que, pelo conteúdo do seu salvo-conduto, a senhora não será detida ou molestada ao vir para nós, como uma esposa deve ir para o lado do marido (...) E também exigimos da senhora que o nosso querido filho Eduardo volte para nós a toda pressa possível, porque muito desejamos vê-lo e falar com ele (...)"

Isabella acabou de ler e olhou desanimada para Mortimer.

- Está claro que ele está ficando ansioso - comentou ele.

- Ele deve ter escrito ao meu irmão - replicou Isabella. - Meu querido, em breve será impossível continuarmos na França.

- E é igualmente impossível você voltar para a Inglaterra. Temos de reunir um exército. Temos de ter certeza de uma boa recepção quando voltarmos à Inglaterra. Se ao menos tivéssemos mais alguns meses...

- Meu irmão não pode me obrigar a ir.

- Acho que pode. E não há dúvida de que fará isso, se Eduardo continuar a exigir a sua volta.

- Deve haver um jeito - bradou Isabella. - Já avançamos tanto e agora não podemos jogar tudo fora. Além do mais, apesar dos protestos de Eduardo, eu não daria muito valor às minhas chances com os Despenser se eu voltasse à Inglaterra.

- Não vamos entrar em pânico. Vejamos qual será o efeito das cartas que Eduardo deve ter enviado ao seu irmão.

- Há mais uma coisa - bradou Isabella. - Ele deve ter escrito ao meu filho.

Fez-se silêncio.

- Tenho de ir falar com Eduardo e ver o que o pai dele escreveu. O menino está fazendo perguntas diretas.

- Ele não vai querer deixar você - assegurou-lhe Mortimer. Você o enfeitiçou, como a todos nós.

- Ele gosta muito de mim, mas é inteligente. Pensa muito em quando será o rei.

- Isso não faz mal. Quanto mais cedo ele for o rei, melhor.

- Mesmo assim, Stapledon incutiu nele um pouco de amor filial. Maldito seja aquele homem. Essas cartas são um resultado direto de sua fuga e do seu relatório ao rei.

- Está feito. Prosseguiremos a partir de onde estamos no momento.

- Tem razão, meu amor. vou procurar agora o jovem Eduardo. O jovem príncipe estava, naquele momento, lendo a carta do pai.

"Mui querido filho,

"Como você é jovem e de tenra idade, nós o lembramos daquilo de que o encarregamos e que lhe ordenamos quando de sua partida de Dover e você respondeu, então, como sabemos de boa-fé, que você não vai transgredir ou desobedecer a quaisquer de nossas injunções em qualquer ponto, para ninguém . E como a sua vassalagem foi recebida pelo nosso adorado irmão, o rei da França, seu tio, faça o favor de despedir-se dele e voltar para nós a toda velocidade em companhia de sua mãe; se ela vier depressa, e se ela não vier, venha você sem mais demora, pois temos um grande desejo de vê-lo e falar com você; portanto, não fique para atender à sua mãe nem a qualquer outra pessoa, com a nossa bênção(...)"

Claro que eles deviam voltar para a Inglaterra, pensou Eduardo. Ele se perguntava por que sua mãe adiava o assunto todas as vezes que ele o sugeria. Tinha sido agradável na corte da França, mas esperava ansioso a volta para casa. Falaria com a mãe o mais cedo possível.

Não teve de esperar muito. Enquanto estava colocando a carta numa gaveta, a rainha entrou no quarto.

- Eduardo, filho querido - bradou ela, abraçando-o -, gostou da caçada? Ouvi dizer que trouxe um belo cervo.

- Acho que nunca vi um mais bonito - replicou Eduardo, com entusiasmo. - Majestade, recebi notícias de meu pai.

- Eu também.

Ela esperou, e Eduardo disse:

- Ele está impaciente, querendo o meu retorno. Quer que partamos tão logo seja possível.

Isabella se aproximou dele e passou o braço pelo dele.

- Eduardo, meu adorado, eu comecei a me apoiar em você. Considero-o meu protetor. Você não deixaria que nada de mal me acontecesse, deixaria?

Eduardo ficou ruborizado.

- Eu a protegeria com a minha vida.

- Minha querida criança, o que teria eu feito sem você? Minha vida não tem sido feliz, sabe? Seu pai e eu...

Eduardo franziu o cenho. Ele odiava ser desleal para com o pai. Walter Stapledon incutira nele a ideia de que o rei era o ser supremo e que devia ser sempre obedecido. Mas ao mesmo tempo aprendera a proteger os fracos; e percebera que ultimamente tornara-se muito importante para a mãe e sabia que ela falava a verdade quando dizia que dependia dele para ficar ao lado dela. Quando ele entrava numa sala, os olhos dela procuravam imediatamente os seus. Uma compreensão sempre passava entre os dois. Ela estava lhe dizendo, imaginou, que se sentia feliz agora que ele estava ali. E ele respondia que estaria sempre ao lado dela caso precisasse de seu apoio.

- Para mim, não é fácil dizer isso, querido Eduardo. Posso continuar?

- Vossa majestade deve fazer o que deseja.

- Espero que você compreenda e não faça mau juízo de mim.

- Eu jamais poderia fazer mau juízo de minha mãe adorada respondeu o menino.

- Neste caso, vou falar... mas com relutância. Você sabe que há muito descontentamento em nosso país.

- Sei, sim.

- Seu avô, com quem você se parece muito, sabia como manter os barões em ordem. A Inglaterra precisa de um rei forte, Eduardo. Você vai ser um rei forte. Tenho ouvido dizer que é uma pena você não ser mais velho e que a coroa não esteja na sua cabeça.

- Mas meu pai ainda tem muitos anos pela frente.

- Meu querido, é de seu pai que tenho de falar. É por isso que me embaraço e tergiverso, porque não consigo ter a coragem de dizê-lo.

O menino mostrou-se firme, de repente, dando um indício do que seria quando chegasse ao trono.

- A senhora tem de me contar. Não tem cabimento que logo eu, entre todas as pessoas, seja mantido na ignorância.

- Foi o que pensei enquanto lutava com minha consciência. Você vai saber. Seu pai não é como seu avô. Seu avô foi um marido bom e fiel.

- Meu pai é infiel à senhora! Ela sacudiu a cabeça.

- Não com mulheres. Eduardo, querido, você deve ter ouvido falar de Gaveston. Ele foi o amor da vida de seu pai enquanto viveu. Aqueles que queriam o bem-estar desse país levaram-no até um morro e cortaram-lhe a cabeça. Depois, ele foi substituído por Hugh Despenser. Você tem idade suficiente para saber a humilhação que sofri.

- Minha querida mãe!

- Eu sabia que a sua solidariedade estaria comigo. Durante anos suportei esse humilhação. Cheguei até a obrigar a mim mesma a ter filhos, porque achava meu dever fornecer herdeiros ao país. Agora, minha vida está em perigo. Se eu voltar para a Inglaterra, os Despenser me matarão.

- Eles não teriam coragem.

- Eles o fariam com sutileza, como tenho tentado explicar ao meu irmão. Eduardo, se nós voltarmos para a Inglaterra agora, dentro de poucos meses você terá perdido sua mãe.

Eduardo se voltou para ela e envolveu-a com os braços. Ela o abraçou com força.

- Você não vai deixar que isso aconteça comigo, meu filho.

- Eu mataria quem quer que tentasse fazer mal à senhora.

- Foi o que pensei. Maldita fui eu por ter o marido que tenho, mas abençoada fui pelo filho que tenho. Eduardo, eu tenho bons amigos aqui. Você sabe como eles se reúnem à minha volta. São todos homens de bem. Sabiam o que se passava na corte. Compreendem o poder dos malvados dos Despenser. Preciso ficar por aqui o tempo que puder. Você vai ser paciente comigo? Vai recusar os apelos de seu pai?

- Eu jurei obedecê-lo.

- Sim, meu adorado, mas não vai ser a seu pai que você estará obedecendo, será aos malvados dos Despenser. Ele está em poder deles. Eles o enfeitiçaram. Confie em mim, querido filho. Confie em mim... só por um curto espaço de tempo, e então lhe provarei a verdade de tudo que lhe contei.

Ela apoiou-se no filho e enxugou os olhos. Eduardo estava emocionado. Sua inteligente e bela mãe ser tratada daquela maneira era insuportável!

- Você vai ficar do meu lado, querido Eduardo - suplicou ela.

- Querida mãe - respondeu o menino -, vou defendê-la de todos os que vierem contra a senhora.

- Todos?

- Todos - replicou ele, com fervor.

- Você me deixou muito feliz-disse ela, e depois de despedir-se dele foi direto falar com Mortimer.

- Eduardo ficará do nosso lado - disse a rainha. - Ele jamais ficará contra mim.

- bom trabalho - disse Mortimer. - Agora, sejamos pacientes enquanto olhamos para o futuro. Temos de encontrar algum meio de levantar um exército. Meus espiões da Inglaterra me dizem que o país fica cada vez mais irado com os Despenser. Se pudéssemos desembarcar com uma força razoável, seríamos bem recebidos.

- Vamos conseguir - disse Isabella com firmeza. - Enquanto isso, como você diz, paciência.

 

ERA UMA SITUAÇÃO incómoda, pensou o rei da França. De certo modo, ele se sentia contente pelo fato de seu irmão da Inglaterra estar em situação difícil, mas desde os primeiros dias de casamento ficara clara a preferência de Eduardo por rapazes bonitos, deixando sua bela mulher de lado. Os parentes franceses de Isabella tinham ficado muito irritados com a situação na época. Eles tinham sabido da existência de Gaveston, é claro, mas tinham acreditado que assim que o rei estivesse casado com uma bela mulher como Isabella, aquele lado de sua natureza seria abafado.

Por outro lado, Carlos não queria, em absoluto, que sua corte fosse usada como um centro de rebelião. Queria a paz, e uma situação daquelas podia facilmente explodir numa guerra. Eduardo estava escrevendo cada vez mais cartas; elas chegavam todos os dias. Era perfeitamente claro que ele estava ficando impaciente.

Na última, ele se referira a Mortimer, e havia uma sugestão de que Isabella e Mortimer eram amantes.

"Nós queremos que você se lembre, o que em diferentes ocasiões transmitimos a você, da maneira muito imprópria com que sua irmã, nossa esposa, tem-se conduzido, afastando-se de nós e recusando-se a voltar em atenção à nossa ordem, enquanto notoriamente se une e mantém relações com o nosso traidor e inimigo mortal, Mortimer (...)"

Aquilo só podia significar uma coisa. Isabella e Mortimer estavam empenhados numa intriga adúltera em sua corte.

Eduardo estava ficando cada vez mais determinado e, sem dúvida, seguindo os conselhos dos Despenser, informara o papa sobre a situação muitíssimo insatisfatória. Em consequência o papa escrevera a Carlos - ele jamais teria tido a ousadia de escrever daquela maneira ao pai de Carlos, mas a monarquia ficara enfraquecida desde a morte de Jacques de Molai na fogueira, quando lançara a maldição-declarando que seria examinada a possibilidade de aplicar a excomunhão se ele mantivesse a irmã na corte, onde, segundo se dizia, ela estava vivendo em adultério com Roger de Mortimer.

Aquilo deixou Carlos amedrontado. Excomunhão, aliada à maldição, seria o seu fim.

Iria escrever a Isabella. Conhecia os artifícios dela bem demais para tentar transmitir verbalmente o que ele tinha de fazer.

Assim, Isabella recebeu um bilhete do irmão, no qual ele mandava que ela deixasse o reino sem demora, ou ele seria obrigado a fazer com que ela saísse.

Isabella ficou com muita raiva quando leu a ordem do irmão. O fato de ele se portar daquela maneira para com a irmã e nem mesmo falar com ela chocou-a profundamente.

- Não acredito que ele me obrigue a sair - disse a Mortimer. Ele jamais teria coragem. Está ficando cada dia mais fraco. Tenho um pressentimento de que meu irmão não vai durar muito.

- O papa o está ameaçando de excomunhão.

- Que ameace. Vamos nos demorar mais um pouco ainda.

No início da noite seguinte, Isabella recebeu uma visita. Era seu primo Robert d Artois. Ele chegou apressado e quis falar com ela com urgência e em particular.

Assim que ficaram a sós, ele disse:

- Vim avisá-la, bela senhora. Há uma trama para prender a senhora e o jovem príncipe e mandá-los de volta para a Inglaterra sem mais demora.

- Você quer dizer que meu irmão...

Robert sacudiu a cabeça.

- Não pude resistir ao desejo de vir contar à senhora, embora fosse me custar a vida, sem dúvida, se o rei soubesse que fiz isso. Ele disse que a única maneira de evitar confusão é forçá-la a partir. A senhora deverá, portanto, ser confinada e enviada de volta à Inglaterra.

- Quando?

- Amanhã. A senhora tem pouco tempo.

- Robert, como poderei agradecer-lhe?

- A senhora sabe que eu a serviria até a morte.

Isabella passou os braços em torno dele e por um momento ele a segurou num abraço apaixonado.

- Adorada prima, a senhora sabe perfeitamente o que significa para mim e vem significando há algum tempo.

- Você sempre tem se mostrado um amigo...

- Um amigo... um modo brando de descrever meus sentimentos! Eu sei que Mortimer tem o seu coração e a senhora, o dele. Mas os meus sentimentos pela senhora são tão profundos e tão ternos, que lhe digo: fuja... fuja com ele agora. Amanhã pode ser tarde demais. Vá para um dos estados independentes. Lá, poderão encontrar abrigo até reunirem o exército de que precisam.

- Meu primo, como posso agradecer-lhe?

- Sou eu que agradeço à senhora por me permitir ajudá-la. Uma devoção igual àquela era estimulante.

Isabella foi falar imediatamente com Mortimer. Eles não podiam hesitar, disse ela.

Partiriam durante a noite, replicou Mortimer. Os dois e o jovem Eduardo, com tantos amigos quantos pudessem reunir. Os demais poderiam ir depois.

Naquela noite, eles dirigiram-se furtivamente aos estábulos e fugiram da corte da França, seguindo em direção à província de Hainault.

Não tinham se distanciado muito de Paris quando a eles se juntou o restante da comitiva, que fora avisada da fuga da rainha e fora juntar-se a ela. Todos concordaram que seria mais seguro sair o mais rápido possível da França, e foi com grande alívio que atravessaram a fronteira e entraram em Hainault.

Cansados com o cavalgar de um dia e sentindo agora que poderiam desfrutar de um descanso por um curto período, chegaram à cidade de Ostrevant e pararam numa casa que, segundo se apurou, pertencia a um cavaleiro chamado Sir Eustace d Ambreticourt. Quando ele percebeu que se tratava da rainha da Inglaterra, sentiu-se extremamente honrado por conhecê-la e sua família insistiu para que ela descansasse em casa deles com os poucos de seus seguidores que pudessem acolher, e na cidade seriam arranjadas acomodações para os demais.

Isabella ficou encantada com tamanha hospitalidade. Como era diferente, disse a Mortimer, da maneira pela qual fomos tratados na França!

- Ah, meu amor - disse Mortimer, rindo -, nós fomos bem recebidos pelo seu irmão até demorarmos demais. Mas concordo que a recepção desse simples cavaleiro me enche de satisfação.

Sir Eustace disse que precisava informar ao conde de Hainault que estava com tão augustos visitantes, e tinha a certeza de que o conde iria querer cumprimentar os convidados.

A resposta do conde foi enviar o irmão para encontrar-se com o grupo e oferecer-lhe a hospitalidade de seu castelo. Foi assim que Isabella esteve, pela primeira vez, com Sir John Hainault.

Sir John era jovem, romântico, idealista, e estava ansioso por mostrar ser um cavaleiro galante, e ali estava uma dama em dificuldades. E que dama bonita! Isabella analisou rapidamente a sua natureza e decidiu parecer feminina e patética. Representou bem seu papel, e ele viu-se tomado do desejo de servi-la.

- É muita bondade sua procurar-me e oferecer-me tanta gentileza - disse ela. - Tenho sido tratada com muita rispidez, ultimamente, onde esperava ter recebido amor e compreensão.

- Majestade - bradou Sir John -, esteja certa de que não receberá nada, a não ser calor e afeto nesta terra.

Isabella deixou as lágrimas surgirem apropriadamente nos belos olhos. Sir John as viu e ficou muito angustiado.

- Senhora - declarou ele -, a senhora está vendo à sua frente um cavaleiro que jura fazer tudo o que estiver ao seu alcance para ajudá-la. Ele não hesitará em morrer a seu serviço. Quando os demais a tiverem esquecido, eu estarei lá.

Aquilo era uma devoção de mau gosto pelo excesso de lisonja em tão pouco tempo de conhecimento, mas Isabella viu que Sir John, na sua exuberância juvenil, estava sendo sincero. Era uma satisfação, e ela se sentiu melhor do que se sentira desde que descobrira que o irmão pretendia mesmo expulsá-la de sua corte.

- Majestade, pode confiar em mim - prosseguiu Sir John. vou ajudá-la a voltar para a Inglaterra com seu filho, quando desejar. Depois que eu explicar o seu caso ao meu irmão, tenho a certeza de que ele lhe dará homens e armas. Ele vai ajudá-la... tanto quanto eu. Arriscarei a vida por vossa majestade. Prometo-lhe que não precisará ter medo do rei da França ou do rei da Inglaterra.

A rainha ergueu-se de sua cadeira e tão encantada estava, que teria se colocado de joelhos aos pés de Sir John, mas com um gesto horrorizado ele evitou que ela fizesse aquilo.

- Deus me livre de a senhora se ajoelhar para mim. Alegre-se. Minha promessa está de pé. Meu irmão lhe dará atenção. Muitas vezes ele tem expressado admiração por vossa majestade. vou levá-la até ele e apresentá-la à sua condessa e aos filhos deles.

A rainha esfregou os olhos.

- O senhor é mais bondoso para mim do que sonhei que alguma pessoa pudesse ser. Mostrou-me bondade de coração e cortesia. Prometo-lhe que jamais esquecerei isto. Meu filho e eu ficaremos eternamente gratos ao senhor e lhe pediremos que nos ajude a governar a Inglaterra como aquele país deve ser governado.

Os dois conversaram durante algum tempo e ficou claro que o jovem estava completamente dominado pelo encanto e pela beleza da rainha e estava sendo sincero quando declarava, repetidas vezes, que morreria pela causa que ela defendia.

Estava ansioso por levá-la ao irmão, e ela despedia-se de Sir Eustace d Ambreticourt, dizendo-lhe que quando retornasse à Inglaterra queria que ele fosse até lá e levasse a família, e ela providenciaria para que tivessem uma recepção digna de membros da família real.

A rainha partiu, então, com Sir John, que a levou para a corte do irmão, conde William de Holland e Hainault. Lá, com a esposa, a condessa Jeanne, que era filha de Carlos de Valois, filho de Filipe UI da França, e, portanto, parenta de Isabella, ele recebeu a comitiva com muito entusiasmo e teve muito prazer em apresentar Isabella a suas quatro jovens filhas, Margaret, Filipa, Joana e Isabel. Eram jovens de faces rosadas, alegres, tipicamente flamengas, simples, hábeis em prendas domésticas, e encantadoramente inocentes.

Quando Isabella apresentou com orgulho Eduardo, as meninas fizeram mesuras para ele, e Isabella ficou logo chocada pela falta de formalidade na família. Eduardo estava chegando aos quinze anos de idade-um menino de beleza destacada, já alto para a sua idade, pernas longas, cabelos claros e olhos azuis.

As meninas, a mais velha delas devia ter a idade dele, e a mais moça não muito mais jovem, porque haviam nascido uma logo atrás da outra, ficaram evidentemente intrigadas com um menino tão bonito assim, e Eduardo se divertiu com as quatro e com os esforços que faziam para agradá-lo.

A condessa estava ansiosa por mostrar que podiam receber seus convidados em Hainault com a mesma pompa com que se podia receber na França, fato de que ela se lembrava ao recordar os tempos de criança, e foram dadas muitas festas, banquetes e diversões de um modo geral.

Nesse ínterim, Eduardo foi deixado em companhia das quatro meninas..Eles cavalgavam juntos, jogavam, apresentavam uns aos outros os costumes de seus respectivos países, e foi uma temporada agradável para todos. Eduardo sentia que fora tirado das terríveis dúvidas que o assaltavam. Sabia que sua mãe estava atuando contra seu pai. Ele a amava muito, mas estava aflito; e descansar um pouco na corte muito simples mas honesta de Hainault, onde o conde e a condessa eram dedicados um ao outro e suas quatro alegres filhas não faziam ideia do que era um conflito em família, para ele parecia uma pausa maravilhosa.

Das quatro meninas, Eduardo escolheu Filipa como a favorita, mas era polido demais para demonstrar sua preferência. No entanto, quando saíam cavalgando floresta adentro juntos, ele dava um jeito de ficar sozinho com Filipa.

- Vamos nos perder dos outros - disse ele.

As faces habitualmente rosadas de Filipa ficaram um tom mais forte.

- Acha que podemos? - perguntou ela.

- Se você quiser - respondeu Eduardo. - Você quer?

- Quero - bradou ela, honesta demais para dizer outra coisa que não a verdade.

- Siga-me então.

Ele ouviu a risada em tom agudo enquanto esporeava o cavalo. A menina obedeceu e pouco depois os dois tinham galopado para longe e tinham chegado a uma clareira na floresta. Ele parou o cavalo e os dois ficaram em silêncio por um instante, sorrindo um para o outro.

- Está contente por termos vindo aqui? - perguntou Eduardo.

- Estou. Estava muito sem graça antes de vocês chegarem. Você acha isso aqui sem graça, Eduardo?

- Quando estou com você, não.

Ela ruborizou-se encantadoramente e sorriu com timidez.

- Fala sério? Acredito que sim, pois está dizendo. Você se refere as outras também, acho eu. Margaret é muito mais inteligente do que eu, e Joana e Isabel são mais bonitas.

- Isso não é, em absoluto, verdade - respondeu ele.

Ela pareceu perplexa, e Eduardo percebeu que estava sendo sincera e parecia difícil aceitar o fato de que ele realmente a preferia às suas irmãs.

- O que mais me chama atenção a seu respeito - disse ele - é a sua honestidade. Você nunca diz o que não está pensando?

- Do que adiantaria isso? - perguntou ela. - A fala é para expressar o que sentimos.

- Gosto de você, Filipa. Você é diferente das outras pessoas. Começo a achar que, lamentavelmente, vivo num mundo de falsidade.

Ele estava com o cenho franzido. Não podia dizer à inocente Filipa que acreditava que Mortimer era amante de sua mãe e que seu pai a tratara de forma horrível porque se cercava de favoritos a quem amava mais do que a ela.

- O que quer dizer, Eduardo? - perguntou Filipa.

- Não importa - disse ele, abanando a cabeça. - Está uma manhã bonita demais para falar dessas coisas. Conte sobre a sua infância aqui. Sei que foi uma infância feliz. Seu pai e sua mãe se amam muito e amam vocês também.

- Mas é claro. Somos todos uma família.

Ele sentiu um impulso de inclinar-se para a frente e beijá-la, e foi o que fez.

Ela recuou, ruborizando-se um pouco.

- Gosto muito de você - explicou ele.

- Eu também gosto de você, Eduardo.

- Por ser menina - continuou ele -, um dia você terá de sair de

casa e se casar.

A fisionomia dela ficou sombria.

- Sei que às vezes meus pais pensam nisso. Ouvi meu pai dizer a minha mãe que ela queria manter todas nós crianças para sempre.

- E você quer ficar menina para sempre? Ela ficou pensativa.

- Não. Agora, não. Além disso, de nada adiantaria, não é? Eu digo, sim, que um dia terei de ir embora. Margaret irá primeiro porque é a mais velha.

- Os meninos são mais afortunados, especialmente os herdeiros de coroas. Não têm de deixar seus países.

- Não. Você vai ficar na Inglaterra, e sua esposa irá para onde você estiver. Mas é claro que ela terá de deixar a casa dela. Mas não se importará.

- Como você sabe?

- Sei que ela não vai se importar assim que olhar para você.

- Filipa, você se importaria? Ela abanou a cabeça.

- Não, eu ficaria contente.

Então, achou que falara demais, porque os olhos dele tinham adquirido um tom mais profundo de azul e ele estava sorrindo.

Pareceu que, de repente, houvera um silêncio na floresta. Então, Filipa disse:

- Você vai ser rei, e rei da Inglaterra. Terão de arranjar para você uma excelente princesa para ser sua rainha.

A boca de Eduardo estava firme e os olhos brilhantes fixaram-se nela quando ele disse:

- Eu mesmo vou escolher minha rainha.

Filipa sentiu um pouco de medo. O instinto avisou-a de que não devia estar ali a sós com o príncipe. Sua mãe iria dizer que era errado ela deixar-se levar. Ela sempre obedecera à mãe.

Instintivamente, deu meia-volta, fazendo seu cavalo avançar. Eduardo colocou seu cavalo a passo ao lado dela e pouco depois os dois tinham saído da clareira.

Antes de voltar para o castelo, tinham-se juntado ao resto do grupo.

A rainha sabia que não podia demorar-se demais, mesmo quando recebia tamanha hospitalidade. O conde e a condessa tratavam-na como uma hóspede de honra, e Sir John rondava-a em adoração mas, como ela disse a Mortimer, precisavam seguir viagem. No entanto, ela achavaque ir a Hainault iria mostrar ter sido um dos melhores caminhos que poderiam ter tomado. Falaria com o conde sobre a sua situação, mas primeiro precisava conversar com Sir John. Ele ficou muitíssimo encantado por desfrutar um tête-à-tête com ela, e fazendo-se passar pela dama patética em dificuldade - que era o papel em que achava que ele mais gostava de vê-la -, ela lhe fez uma longa narrativa de seus sofrimentos durante sua vida com Eduardo e como a situação chegara a um ponto em que ela já não podia mais suportar. Ele ficou pálido de horror quando ela mencionou o medo que tinha dos perversos dos Despenser e disse acreditar que se ela pisasse na Inglaterra seria o seu fim.

- Vossa majestade não deve voltar sem uma proteção adequada - declarou ele.

- O senhor tem razão, claro, meu caro amigo, mas como posso arranjar essa proteção?

- Eu irei com a senhora.

- O senhor é muito bom para mim, mas um homem sozinho, por mais valente que seja, não poderia salvar-me.

- Não irei só. Levarei um exército comigo. O coração de Isabella deu um pulo de triunfo.

- O senhor faria isso?

- Seria um prazer e um privilégio.

- Um exército... - começou ela.

- Sim, um exército para juntar-se ao seu. Marcharíamos sobre Westminster e obrigaríamos o rei a entregar aqueles homens desprezíveis. Não vou descansar enquanto não tiver a cabeça deles, porque vejo que vossa majestade não estará em segurança enquanto eles viverem.

- Eu não poderia acreditar que alguém pudesse ser tão bom para mim como o senhor.

- Vossa majestade verá-prometeu ele.-Vossa majestade verá.

- O senhor percebe, meu caro Sir John, que isso significa ir para um país estrangeiro e lutar pela causa de terceiros?

- É lutar pela sua causa, querida senhora, e não peço nada melhor do que isso.

- O senhor precisaria do consentimento de seu irmão.

- Não tenha medo, falarei com ele.

Isabella desanimou. Aquele era um jovem romântico. O irmão dele, o conde mais maduro que controlava Sir John e seus exércitos, poderia não concordar.

- O senhor acha que ele vai concordar?

- vou pedir e implorar e continuar fazendo isso até ele ficar tão cansado da minha impertinência que terá prazer em livrar-se de mim.

- Agradeço a Deus por ter-me colocado em seu caminho.

Ele beijou-lhe a mão. Iria falar imediatamente com o irmão, disse ele, e dizer-lhe que se propunha a ir à Inglaterra com ela, a fim de colocar o filho dela no trono e depor aquele Eduardo que perdera a confiança do povo... e, o que era o pecado mais odioso de todos, maltratara a mulher mais maravilhosa do mundo.

Embora compreendesse o problema, o conde não ficou nada entusiasmado com o projeto.

- Meu caro irmão - disse ele -, você está se propondo a entrar num país estrangeiro e meter-se numa guerra que na verdade não lhe diz respeito.

- O fato de Eduardo da Inglaterra ter maltratado uma dama, sem dúvida alguma diz respeito a qualquer cavaleiro.

- Você é jovem e romântico - replicou o conde. - Isso não é boa política.

- O que você sugeriria que eu fizesse?

- Escolte a senhora até a costa. Deseje-lhe felicidades. Ofereçalhe amizade, mas não um exército.

- Eu não poderia fazer isso.

- Você não pode envolver Hainault em assuntos ingleses.

- Não é uma questão de política. É uma questão de cavalheirismo,

- Ora, irmão, acho que a rainha da Inglaterra é uma senhora muito astuta. Vai saber como cuidar de si mesma. Não, não posso lhe dar permissão para levar um exército à Inglaterra.

- Eu levantaria esse exército. A responsabilidade seria minha.

- Lembre-se de que é meu irmão. Não, eu não poderia consentir. Os lábios de Sir John tinham uma expressão de teimosia. Pela

primeira vez, havia uma frieza entre ele e o irmão. O conde pensou: se eu não consentir, ele vai agir assim mesmo. Isso é certo.

Isabella, sabendo que a entrevista acontecera, estava ansiosa por saber do resultado. Abordou Sir John de surpresa e ficou imediatamente impressionada com o seu ar de desânimo.

- O senhor conversou com seu irmão? - perguntou, aflita. Sir John sacudiu a cabeça, triste.

- Ele é contra. Acredite em mim, ele tem o máximo de simpatia pela sua situação. Ele faria muito para ajudá-la...

- Mas a generosidade dele iria parar no envio de um exército.

- Isso é o que ele diz. Mas eu não desanimo. vou convencê-lo...

- E se ele não concordar... Ele beijou-lhe a mão.

- Jamais a abandonarei.

Isabella procurou uma oportunidade para falar com o conde a sós, mas não mencionou o fato de que o irmão falara com ele.

- Tem sido um grande prazer descansar sob o seu teto, senhor conde - começou ela -, e sabe o que mais me agradou? Foi ver a amizade que nasceu entre os nossos filhos. Eduardo está muito encantado com suas maravilhosas filhas, e acho que elas não estão descontentes com ele.

O conde estava alerta. Ele tinha um grande respeito pelas estratégias de Isabella.

- Ele é um menino encantador. Bonito, alto, forte e nobre de caráter. Isso está claro.

- É um prazer - respondeu ela - perceber essas qualidades no herdeiro de uma grande coroa.

- Ele tem, de fato, o porte de um rei.

- Estou ansiosa por que ele faça um bom casamento - prosseguiu a rainha -, e por este termo me refiro a um casamento feliz. Jamais me esquecerei de minha chegada a um país estranho e do que me foi revelado quando cheguei. - Ela teve um estremecimento. - Quero que Eduardo tenha um pouco de liberdade de escolha quando se tratar de seu casamento. Eu gostaria que ele tivesse conhecido a noiva antes e descoberto que gostava dela... antes da cerimónia.

O coração do conde começara a bater depressa. Estaria ela dando a entender que uma de suas filhas poderia ser rainha da Inglaterra? Era uma perspectiva estonteante. Ele e Jeanne queriam bons casamentos para as filhas, mas ao mesmo tempo felizes, e estava claro que as quatro já estavam um pouco fascinadas pelo belo Eduardo.

Ele foi direto ao assunto:

- Majestade, está querendo dizer que iria pensar na possibilidade de uma de minhas filhas ser a esposa de seu filho?

- Era o que eu tinha em mente - respondeu Isabella. - Acredito que o senhor acharia um casamento digno.

- Não vou fingir, majestade, que eu não tivesse sonhado tão alto. Mas ouvi dizer que o rei da Inglaterra está disposto a arranjar um casamento para o príncipe com Aragão.

- O que o rei arranjar não terá importância quando a justiça for feita. Eu decidirei com quem meu filho vai se casar. Quando eu levar um exército à Inglaterra, meu objetivo será afastar os vilões Despenser do rei, e se ele protestar, será meu dever para com o meu filho e para com a Inglaterra transferir a coroa do pai indigno para o filho digno. Fique tranquilo, senhor conde, não será Eduardo, no momento rei da Inglaterra, quem decidirá com quem meu filho vai se casar. Eu decidirei. Meu filho vai me ouvir; e se a jovem for a pessoa escolhida por ele... acredite-me, não haverá obstáculo.

- Confesso - disse o conde - que a sua sugestão me pegou de surpresa.

A rainha curvou a cabeça. Devia ter sido uma surpresa, mesmo. O futuro rei da Inglaterra casar-se com a filha de um conde de Hainault! Mas tudo... tudo em troca de um exército.

- Eu gostaria de discutir isso com a condessa - prosseguiu o conde.-Ela sempre se preocupou muito com o futuro de nossas filhas.

- Discuta-disse Isabella. - Mas lembre-se de que essa situação feliz só poderá acontecer se conseguirmos livrar o país dos Despenser.

Ela não acrescentou: e depondo o rei e colocando meu filho no trono. Mas era isso que queria dizer.

O conde apressou-se a ir falar com a mulher e os dois discutiram o assunto pela noite adentro.

- Jamais haverá outra oportunidade como esta - disse o conde. A condessa concordou.

- Além do mais - acrescentou ela-, as meninas já estão, todas, apaixonadas por Eduardo. Trata-se de um menino muito atraente. Confesso que ficaria muito orgulhosa se ele se tornasse nosso genro. E depois... a coroa da Inglaterra.

- E se a tentativa da rainha de depor o rei fracassar?

- Se ela tivesse soldados suficientes para atacá-lo, por que iria fracassar? Você sabe como está a situação na Inglaterra. Nossos amigos de lá nos dizem que as pessoas estão se voltando contra o rei a cada dia que passa.

- Sim, mas na verdade elas estão contra os Despenser. Se o rei mandá-los embora...

- Ele jamais mandará. Quanto mais fraco fica, mais depende deles.

- Mas ser envolvido numa guerra contra a Inglaterra... porque é disso que se trata!

A condessa era astuta.

- Há um jeito - disse ela. - Você poderia fornecer um exército sem se envolver pessoalmente.

- Como assim?

- A rainha da Inglaterra quer que o filho se case com uma de nossas meninas. Nós concordamos. Você vai dar o dote, que será suficiente para que a rainha levante um exército com gente nossa. Depois... se algo der errado, você simplesmente deu um dote, não um exército.

O conde olhou para a esposa com admiração.

- A resposta é esta - disse ele. Os dois ficaram calados por uns instantes, ambos pensando como seria a glória o dia em que uma de suas filhas se tornasse rainha da Inglaterra.

- Deve ser Margaret-disse a condessa, decidida. - Ela é a mais velha e é apropriado que seja a primeira a se casar.

- Será como você diz - replicou o conde.

Isabella e Mortimer não cabiam em si de contentes. Finalmente, a oportunidade chegara.

- É uma bênção - bradou Isabella - o conde de Hainault ter quatro filhas em idade casadoura.

Sir John ficou arrebatadoramente feliz pelo fato de o assunto ter sido resolvido com tanta inteligência, e pôs-se de imediato a reunir o exército.

O fato de o dote fornecido pelo conde possibilitar que aquilo fosse pago não foi mencionado, e nem Eduardo nem as meninas perceberam que um casamento fora motivo de conversações.

Eles continuaram a se encontrar com frequência, e muitas vezes Filipa e Eduardo conseguiam fugir sem serem percebidos quando estavam cavalgando com um grupo.

Ele falava muito sobre a sua juventude e contava que havia problemas em seu país, agora, devido a um conflito entre seu pai e sua mãe. Filipa parecia muito compreensiva. Imaginava como aquilo devia ser entristecedor. Ele dizia que gostaria de mostrar a Inglaterra a ela e que quando ele voltasse para casa e todos os problemas se acabassem, insistiria para que ela fosse até lá. Teria prazer em mostrar-lhe o seu país.

- Você será rei dele um dia-disse ela, os olhos azuis arregalados com uma espécie de admiração especulativa.

- Terei de esperar até meu pai morrer. Pretendo ser um grande rei, Filipa- vou ser como meu avô...

Ele parou, lembrando-se de que estava repetindo o que lhe fora dito tantas vezes e de que aquilo era uma deslealdade para com seu pai. Filipa entendeu logo. Ela e suas irmãs tinham ficado muito interessadas na Inglaterra desde a chegada de Eduardo e sua mãe a Hainault, e faziam muitas perguntas sobre ela. Tinham percebido que havia alguma coisa fora do comum em relação ao rei daquele país, mas não sabiam o que era.

- Ele não é como o pai de vocês - dissera a condessa decidida e não dera maiores esclarecimentos; mas dera a entender que devia haver algo de muito errado com alguém que tão enfaticamente não era como o pai delas.

com a exuberância de Sir John e a determinação da rainha e de Roger de Mortimer, o exército foi formado num prazo muito curto.

Chegou o dia em que precisavam partir.

As quatro meninas, todas tristes com a partida do jovem príncipe, ficaram ao lado da mãe enquanto a rainha se despedia carinhosamente deles e dizia que nunca, nunca se esqueceria da bondade que recebera do conde e de sua querida prima em sua hora de necessidade. Abraçou as meninas, e por fim chegou a vez de Eduardo.

Ele ficou diante deles, assombrosamente bonito, já parecendo, como perceberam alguns, um rei.

Despediu-se do conde e da condessa e depois voltou-se para as meninas de faces rosadas.

Estava dizendo a elas o quanto desfrutara de sua estada com elas, que jamais esqueceria a bondade delas, quando viu que as lágrimas nos olhos de Filipa tinham começado a rolar-lhe pelas faces; e então, de repente, antes que pudesse se controlar, ela estava soluçando amargamente.

O príncipe aproximou-se da menina e colocou-lhe as mãos nos ombros.

- Não chore, pequena Filipa - disse ele, mas ela havia coberto o rosto com as mãos. Então, ele disse: - Olhe para mim. - Ela baixou as mãos, e ele disse: - Tornaremos a nos encontrar. Eu lhe prometo.

Acondessa passara o braço pelos ombros da filha enquanto a rainha pensava no quanto eles eram informais em Hainault. Ficou contente por Filipa ter-se emocionado daquela maneira. Foi muito comovente.

Mas ela estava ansiosa por ir embora.

Tinha seus exércitos... dois... o contingente inglês liderado por Mortimer e os homens de Hainault liderados por Sir John.

Estava pronta para a conquista.

 

A RAINHA E SEUS exércitos haviam chegado a Dort, onde embarcaram nos navios que os aguardava com Mortimer ao lado, a rainha observou o carregamento dos navios; o vento pegou seus cabelos e, com o corado do triunfo nas faces, ela nunca estivera tão bonita.

- Doce Mortimer - disse ela -, tenho um pressentimento de que Deus está conosco hoje. Tantas coisas pelas quais eu ansiava têm acontecido! Graças a Deus por Eduardo, que dentro em pouco será o nosso rei.

- E cujo noivado com uma das risonhas meninas flamengas nos deu os exércitos.

- Não se esqueça, querido Mortimer, que um dia uma dessas meninas será a rainha da Inglaterra.

- Você é a mulher mais esperta sobre a Terra, e também a mais bonita.

- E você é o homem mais inteligente sobre a Terra, Mortimer, por ter-se juntado a mim.

Mortimer afastou-se para supervisionar o exército. O príncipe estava ao lado dele, e Sir John se achava igualmente ocupado.

Pouco depois, eles estavam navegando e o litoral da Holanda desapareceu no horizonte.

Infelizmente, surgiu uma tempestade e alguns dos navios ficaram seriamente avariados. Então, a rainha ficou aterrorizada, achando que isgo poderia destruir todos os seus planos bem-feitos. Rezou para que Deus não a abandonasse agora. Durante horas, a tempestade desabou, atrasando a viagem - houve momentos em que ela acreditou que o fim chegara. Mas a alegria foi imensa quando, finalmente, ela viu o litoral da Inglaterra e foi para o convés e olhou à sua volta. Viu logo que muitos dos navios haviam sofrido muitos danos, e alguns tinham sido realmente feito em pedaços pela terrível tempestade. Restava, agora, desembarcar e avaliar os danos.

Era meio-dia quando ela avistou o litoral, mas a meia-noite chegou antes que tudo tivesse sido levado para terra. Embora alguns soldados e armas tivessem sido perdidos, restava uma força considerável. Seus cavaleiros e auxiliares armaram uma tenda para ela com tapetes e acenderam uma fogueira para que ela se aquecesse. O vento estava forte e foi uma noite sem conforto, mas ficou aliviada ao saber por Mortimer e Sir John que os danos e perdas tinham sido menores do que a princípio se temia.

Assim que o dia irrompeu, eles ficaram ansiosos por sair da praia varrida pelo vento e, pouco depois, estavam na cidade de Harwich, onde o cunhado de Isabella, o meio-irmão de Eduardo, Thomas de Brotherton, foi recebê-la.

Ela sempre tivera um relacionamento muito amistoso com os meios-irmãos de Eduardo, Edmund de Kent e Thomas de Brotherton; a mãe francesa deles, Marguerite, segunda mulher de Eduardo I, era, naturalmente, parente muito próxima de Isabella. Marguerite criara os meninos para que observassem certos costumes franceses, e isso significava que houvera um entendimento imediato entre eles e Isabella.

Em momentos como aquele, isso ficava muito aparente, e para ela era uma felicidade eles estarem mais dispostos a ficar do seu lado do que do lado de Eduardo. Além do mais, como tanta gente na Inglaterra, eles estavam do lado de qualquer pessoa que estivesse contra os Despenser.

A notícia de sua chegada espalhou-se pela região rural. Ela era a esposa enganada de um rei pervertido, dizia-se; fugira da Inglaterra com medo das perversidades dos Despenser, que tinham enfeitiçado o rei tanto quanto Gaveston - de péssima reputação-fizera. Eles aderiram à bandeira dela; não só as pessoas simples, mas os barões que havia muito estavam decididos a aproveitar a primeira oportunidade de livrarse do favorito do rei.

Adam de Orlton, bispo de Hereford, que tanto fizera para ajudar Roger de Mortimer a fugir da torre, ficou muito contente quando soube da chegada da rainha e seu exército. Ele estivera levando uma vida de angústia na Inglaterra, protegido apenas pela sua posição; e sabia que se o rei e seus amigos um dia tivessem oportunidade de se vingar dele, iriam aproveitá-la.

Agora, com a chegada da rainha com seu exército, aquela oportunidade ficara ainda mais afastada.

Ele partiu ao encontro de Isabella a fim de assegurá-la de sua devoção, o que na verdade era desnecessário; ele a demonstrara quando ajudara com tanta competência a fuga de Mortimer.

Foi recebido com afeição pela rainha e por Mortimer, e logo no dia seguinte Tez um sermão na presença deles, ao qual compareceu tanta gente que a igreja não pôde abrigar a todos, e as pessoas se espremiam na entrada e nas janelas para ouvi-lo.

Ele se valeu da oportunidade para vociferar contra o rei e tirou o tema do quarto capítulo do segundo livro dos Reis, quando o homem se queixou de uma doença na cabeça e pouco depois morreu.

- Quando a cabeça de um rei fica toda tomada pela doença vociferou Adam -, ela deve ser retirada, e de nada adianta apelar para outros remédios.

A congregação ouvia num silêncio respeitoso. A rainha olhou para Mortimer, que sorria tranquilo. O príncipe estava aflito, mas agora acreditava plenamente que o que o pai estava fazendo era contra o bem da Inglaterra, e a cada dia que passava o filho ficava mais certo quanto ao seu destino.

Ele acreditava, agora, que o que fosse bom para a Inglaterra devia ser feito, e ali estava um santo bispo, no púlpito, confirmando tudo o que ele soubera por intermédio de sua mãe.

Era lamentável. Era trágico. Mas era o certo.

O rei estava no palácio da Torre de Londres quando lhe levaram a notícia da chegada da rainha à Inglaterra com um exército chefiado por Roger de Mortimer e um outro por John de Hainault. E eles tinham ido para enfrentá-lo!

Imediatamente, mandou chamar Hugh. Nunca vira Hugh tão perturbado antes. Hugh sempre o consolara, recusando-se a acreditar no mal, sempre vendo o lado bom da vida. Aquilo era uma das qualidades de que Eduardo gostava muito nele.

- Eles não vão conseguir - bradou Hugh. - Vamos reunir um exército.

- Como? - perguntou o pai dele.

- Vamos conseguir - insistiu Hugh. - Primeiro, temos de fugir daqui. Os londrinos sempre tiveram antipatia por você e adoram a rainha. Quando a notícia chegar a

Londres, será tarde demais.

Embora fosse um dia fresco de setembro, na torre estava frio como sempre, e no entanto o suor porejava na testa de Eduardo e ele sentia um medo terrível. Iam tirar-lhe Hugh. Aquilo ele jamais permitiria. Aceitaria qualquer coisa, menos aquilo.

Voltou-se para Hugh com um olhar de súplica.

- Nós temos que ficar juntos - disse ele.

- E vamos ficar, majestade. Mas teremos de sair logo de Londres.

- As crianças... - começou Eduardo.

Seu filho John de Eltham e suas duas filhas, Eleanor e Joana, estavam em seus aposentos na torre. Poderiam levá-los? Hugh abanou a cabeça.

- Minha mulher vai cuidar deles - disse ele. - Devemos fugir, e o mais rápido possível.

- E Londres? Quem a defenderá?

- O bom bispo Stapledon tem-se mostrado nosso amigo. Vamos deixá-lo aqui para defender a cidade para você.

- Excelente - bradou Eduardo. - Que se faça isso.

- Eu sugiro - disse o Despenser mais velho - que sigamos para Bristol. Depois, se houver necessidade, poderemos pegar um navio para a Irlanda.

- Acho que tem de ser assim - disse o rei, suspirando. - Quem iria acreditar na possibilidade de a minha rainha voltar-se assim contra mim!

- Ela sempre teve ciúme de mim - replicou Hugh.

- Mas parecia não ligar. Estava sempre muito disposta a ficar comigo...

- Não percebíamos, majestade, que tínhamos uma loba entre nós.

- E ela está com Eduardo! Isso eu acho difícil de suportar.

- Ela está com John de Hainault e Mortimer...

- Aquele traidor! Haverá um preço para a cabeça dele. Por que não arranquei aquela cabeça quando tive a chance?

Eduardo suspirou e recordou um reino de oportunidades perdidas, mas agora não havia tempo para lamentações. Os condes de Arundel e Hereford chegaram à torre. Tinham ido avisar ao rei.

- Ainda me restam alguns amigos, então - disse Eduardo. Concordaram que o melhor plano era sair de Londres o mais rápido

possível e seguir para Bristol.

Foi impossível manter a partida em segredo, e pouco depois sussurrava-se por todas as ruas de Londres que o rei fugira e a rainha estava chegando.

As ruas ficaram cheias de pessoas, que gritavam:

- Abaixo o rei! Abaixo os Despenser! Viva a rainha e viva o príncipe Eduardo!

Não havia dúvidas de que, sem uma única exceção, Londres apoiava a rainha.

Walter Stapledon ficou profundamente perturbado com os gritos que ouvia nas ruas de Londres e estava a caminho da torre, de cuja custódia o rei o incumbira. Estava-se perguntando se as crianças reais que lá se achavam estariam a salvo sob a guarda da mulher de Hugh lê Despenser, e achou que talvez ela não tivesse sido uma boa escolha. Qualquer pessoa ligada aos Despenser seria impopular aos olhos da turba.

Ele pretendia fortificar a torre, para o caso de os londrinos tentarem ocupá-la. Precisava agir com presteza.

Enquanto seguia apressado, ouviu chamarem seu nome.

Teve um estremecimento. Alguém o reconhecera. Apressou o passo, mas percebeu que estava sendo seguido.

- Stapledon - ouviu ele. - O bispo do rei! Ele denunciou a rainha.

Ele estava no meio de seus inimigos. Entrou depressa num beco e mudou de direção. Seguiria para a catedral de St. Paul e, com isso, para um abrigo. Se a turba fosse provocada contra ele, seria o fim.

Mas era tarde demais. Eles o estavam cercando por todos os lados.

- É o bispo traidor - zombavam eles. - O querido amigo de Eduardo e dos Despenser. Sabemos o que fazer com gente dessa espécie, não sabemos, mesmo que ele seja um

bispo?

Ele ouviu a gargalhada zombeteira; viu os olhares de soslaio... teve consciência da turba implacável.

Alguém puxou-lhe a capa. Em poucos segundos, tinham-lhe tirado a camisa. Ele ficou nu diante dos olhos zombeteiros.

- Aí está um espião e um traidor da senhora nossa rainha.

Ele sentiu o corte de uma faca penetrando-lhe a carne. O sangue escorria pela face e ele oscilava diante deles.

Caiu, e eles o chutaram; pisotearam-no; vagamente, ele ouvia as vozes zombeteiras.

- Espião! Inimigo! Amigo dos sabujos... Bispo ou não, ele tem de morrer...

Ele acreditou estar rezando, mas não tinha certeza. Mas sabia, isso sim, que estava morrendo. Queriam matá-lo, mas não tão depressa. Queriam, primeiro, divertir-se. Estavam arrastando-o pelo chão. Seu corpo estava mutilado e cortado em alguns lugares. A obscenidade estava no ar. Estariam falando dele? O que importava o que fizessem com ele? Estava apagando lentamente.

- Está acabado - disse uma voz na multidão.

- O que faremos com ele, agora... com o nosso belo bispo?

- Vamos trinchá-lo e mandar a cabeça para a rainha... um presente do leal povo de Londres. Quem dera que tivéssemos Despenser aqui.

E assim, marcharam até a torre levando a cabeça do bispo, que ainda sangrava, e lá exigiram que o príncipe John e as duas princesas fossem colocadas aos seus cuidados, a fim de serem enviadas para junto da rainha.

Aquilo foi um símbolo do amor de Londres por aquela mulher.

Os mensageiros foram levados à presença de Isabella no castelo de Gloucester, e um deles levava a cabeça de Walter Stapledon.

Isabella olhou para ela e lembrou-se de que o dono daquela cabeça se recusara a unir-se a ela em Paris e fugira para comunicar ao rei o que ela estava fazendo.

- Sua recompensa justa - disse ela. - com os cumprimentos do povo de Londres, majestade - disse um dos mensageiros.

- Voltem e digam ao povo que eu o amo tanto quanto o amor que demonstraram por mim.

O mensageiro curvou-se e se retirou.

Outro mensageiro foi levado à presença dela. Disse-lhe que o povo de Londres libertara seus filhos da torre e, por acreditarem que ela iria querer tê-los a seu lado, haviam-nos mandado para Gloucester.

- Minhas bênçãos a todos - bradou ela. - Que meus filhos sejam trazidos para perto de mim.

Ela os abraçou com calor. Parecia ter-se passado muito tempo desde que os vira: John, com dez anos, Eleanor, com oito, e Joana, com cinco. Os três se agarraram à

mãe, porque tinham ficado amedrontados com tudo o que estivera acontecendo. O pai deles partira de repente e os abandonara, e houvera uma grande gritaria do lado

de fora da torre antes de pessoas a invadirem. Então, eles tinham sido avisados de que estavam sendo levados para junto da mãe.

- Foram meus amigos que os trouxeram até aqui, meus queridos - bradou a rainha. - Pronto. Está tudo bem, agora. Vocês verão seu irmão Eduardo, pois ele está aqui comigo.

- Quando vamos ver nosso pai? - perguntou John.

- Ah, disso não temos certeza - respondeu a mãe dele com presteza. - Pouco importa, vocês agora estão a salvo comigo.

Joana estava pronta para ser feliz, mas os dois mais velhos pareciam inquietos, pensando no pai. Ele agira de modo estranho quando ele e Hugh tinham ido embora, e dissera às crianças que fizessem tudo o que Lady lê Despenser mandasse; e Lady lê Despenser andara chorando muito, de modo que eles sabiam que alguma coisa estava errada.

John consolara as garotinhas e dissera-lhes que estaria tudo bem quando vissem Eduardo, e iriam vê-lo agora.

Naquele momento, os três não podiam deixar de ficar assombrados com sua bela mãe que de repente passara a gostar tanto deles, apesar de nunca lhes ter dado muita atenção antes. Só se preocupara com Eduardo. Mas agora eles esqueceram isso. Era reconfortante ser abraçado pela mãe e receber muitas atenções e ouvir que ela estava muito contente por tê-los a seu lado.

As crianças foram apresentadas a Roger de Mortimer e a Sir John de Hainault, que sorriram com afeição para elas e agiram como se estivessem encantados ao vê-las. De repente tinham ficado importantes, e isso era muito agradável.

Encantada com a chegada dos filhos e da cabeça do bispo de Exeter, Isabella ficou ansiosa por mostrar aos londrinos seu agradecimento.

Disse a Mortimer que pretendia nomear um novo governador da torre e um prefeito de Londres, e acreditava que ele iria aprovar a escolha.

- Lembra-se dos dois mercadores que foram tão solícitos quando você fugiu da torre?

- Claro que me lembro. Não creio que pudéssemos ter-nos saído tão bem sem eles.

- Foi Adam quem providenciou tudo, é claro.

- Sim, Adam é um bom amigo, mas devemos bastante a de Bettoyne e de Gisors.

- Foi o que pensei. É por isso que decidi nomear de Gisors guardião da torre, e de Bettoyne prefeito de Londres.

- Excelente escolha - disse Mortimer, sorrindo.

- Isso vai mostrar a eles que me lembro dos que me servem bem - murmurou Isabella.

Eduardo, acompanhado pelo Hugh mais moço, retirou-se para o castelo de Bristol, deixando o velho Hugh e o conde de Arundel encarregados da defesa da cidade para ele.

Não havia uma única esperança de que Bristol fosse resistir às forças invasoras da rainha. O povo não queria resistir. Como o resto do país, ele estava contra o rei.

Por isso, o exército da rainha foi bem recebido, e o povo saiu às ruas para ovacionar os soldados que passavam marchando pelas ruas com Roger de Mortimer à frente.

Quando descobriu que o velho Hugh estava na cidade, ele ficou muito contente. Chegara o momento de acenar velhas contas.

- Não pode haver demora - disse ele. - Despenser, e Arundel com ele, deve ser julgado e sentenciado já.

A rainha concordou com ele e os dois foram levados perante ela e os barões, à frente dos quais estavam Mortimer e Sir John de Hainault, porque ela disse que eles tinham de ser julgados segundo os atos cometidos.

Sir Hugh ergueu bem a cabeça e enfrentou o olhar da rainha com firmeza.

- Ah, majestade - disse ele, calmamente. - Que Deus nos conceda um juiz íntegro e uma sentença justa. E se não pudermos encontrar isso neste mundo, talvez o encontremos num outro.

Ele sabia que a morte era iminente, porque não poderia esperar misericórdia por parte da rainha ou de seu amante. O fato de ser um homem de 64 anos não os emocionou nem um pouco. Ele era um dos Despenser odiados pela rainha e pelo país. Ele fora avarento, era verdade, mas tentara fazer o que achava certo para o país, desde que aquilo não interferisse com sua vantagem pessoal. Não era um homem bom, não era um grande homem; cometera pecados; mas havia muitos que prosperaram e mereciam muito mais a morte do que ele. Era isso que ele queria dizer aos juizes, mas eles não estavam interessados em sua defesa. Tinham decidido, desde o começo do curto julgamento, mostrar que ele era culpado.

Assim o fizeram, e ele e Arundel foram sentenciados à morte cruel que se tornara hábito impor aos traidores. Eles acreditaram, até o fim, que sua nobreza os fosse salvar do fim bárbaro e que em seu lugar fosse aplicada a decapitação. Mas não seria assim.

Não deveria haver misericórdia para um Despenser e aqueles que os defendiam, decretaram a rainha e Mortimer.

Por isso, os dois homens foram levados e enforcados, estripados e esquartejados.

A rainha ficou exultante.

- Menos um Despenser - disse ela.

- Ainda falta um para sofrer um destino igual - replicou Mortimer, sério.

Eduardo, no castelo de Bristol, estava quase louco de dor e medo.

Hugh, de uma janela no castelo, ouvira os gritos do povo. Ele avistara o corpo de seu pai pendurado numa corda e sabia que torturas viriam em seguida.

Sentiu-se mal de tanta dor. Ele e o pai tinham trabalhado juntos a vida toda; tinham-se divertido com os triunfos de cada um e lamentado os fracassos de um ou de outro. E pensar naquele venerado velho nas mãos de seus cruéis carrascos era mais do que o filho podia suportar.

Eduardo tentava consolá-lo, mas não havia consolo para Hugh.

O que havia era a terrível percepção de que muito em breve eles iriam buscá-lo, e sabia muito bem que um destino semelhante o aguardava.

Eduardo agarrava-se a ele, aterrorizado.

- Hugh, eles fizeram isso com seu pai! Eles são uns demónios! Vão queimar no inferno por causa disso. Seu querido, querido pai...

- Eles virão aqui à minha procura - disse Hugh, com tranquilidade -, e farão o mesmo comigo.

- Não - bradou Eduardo, com voz estridente. - Eu jamais permitiria. Eu iria proibir. Eles teriam de me ouvir... ouvir o rei.

Hugh olhou para ele com tristeza. Pensou: eles jamais tornarão a lhe dar atenção, pobre Eduardo. Isso pode significar o seu fim.... e se for o seu, será o meu também.

Mas eles ainda não tinham sido presos, embora pudesse ser apenas uma questão de horas antes da chegada dos inimigos. Iriam assistir ao horrendo espetáculo da execução de seu pai e depois iriam buscá-lo e torná-lo o próximo ator principal de seu pavoroso desempenho.

- Ainda há tempo - disse, levantando-se de repente.-Eduardo, não podemos continuar aqui. Eles vão marchar contra o castelo. Talvez estejam se preparando para isso agora. Precisamos fugir.

- Para onde? - perguntou Eduardo. - Você se refere a apenas nós dois? Onde estão todos os meus amigos leais? Ainda devem haver alguns.

- Meu pai está morto. Arundel está morto. E eles morreram de forma cruel. Não, Eduardo, não temos ninguém, a não ser nós mesmos. Temos de fugir. Há um barco na costa. Talvez possamos ir para Lundy.

- Para Lundy, sim. Para Lundy. Estaremos a salvo lá, Hugh.

- Então, venha. Não há um só momento a perder. Leve uma capa pesada. Poderá precisar dela. Não pare para pegar mais coisa alguma. É possível que eles já estejam às portas do castelo.

Rápida e silenciosamente, eles saíram do castelo e chegaram à costa.

O barco lá estava. Eles entraram, e Hugh agarrou os remos. O vento forte tocou-lhes os cabelos, mas eles estavam livres.

- Para Lundy! - bradou Eduardo. - Assim que chegarmos lá, faremos planos. Talvez possamos fugir para a França. Ah, isso não vai demorar, querido Hugh. O povo vai se virar contra aquela loba com quem me casei. Meu filho Eduardo jamais agiria contra mim.

Hugh não lembrou ao rei que o jovem Eduardo estava ao lado da mãe e fora com ela para Bristol. Talvez o menino se voltasse contra aquela perfídia com o tempo, mas no momento estava sob os encantos de sua bela mãe, e enquanto estivesse com ela, deveria agir contra o pai.

O vento ficou muito forte, e o barco não conseguia avançar. Repetidas vezes, era soprado de volta para a costa. De nada adiantava remar contra um mar daqueles.

Jamais alcançariam Lundy àquele ritmo.

Hugh abanou a cabeça, triste. Teriam de abandonar todas as esperanças de sair do país. com uma certa dificuldade, Hugh levou o barco de volta à terra e os dois desembarcaram na costa do País de Gales.

Hugh e o rei dormiram aquela noite ao abrigo de um bosque, e no dia seguinte andaram até chegar à cidade de Cardiff. Hugh vendeu uma jóia para comprar comida e os dois descansaram numa estalagem, onde conversaram com homens que tinham ouvido falar que a rainha chegara à Inglaterra e se colocara contra o rei.

- Ela não passa de uma prostituta - disse um dos homens. - O verdadeiro rei vai se levantar. Pode estar certo, homem. Deus não vai apoiar aqueles que vivem em adultério.

Aquele tom de conversa tentou o rei a revelar sua identidade, e ele foi calorosamente recebido e vários homens juraram ficar do seu lado. Seu pai havia derrotado os galeses, mas levara um bom governo para o país, e eles não queriam uma adúltera e seu amante como governantes.

O rei encheu-se de esperança. Hugh era mais realista. Poucos homens numa estalagem de pouco valeriam contra os exércitos que a rainha levantara.

Ainda assim, era bom ver Eduardo mais animado, e eles conversaram a noite toda sobre como reunir homens e como Eduardo deveria recuperar o que perdera.

Pela manhã, estavam menos sanguinários. O terrível destino do Hugh mais velho os deixara com os pés mais no chão. Eduardo estava horrorizado mais por causa do amigo

do que por ele mesmo. Tinha a certeza de que não ousariam fazer-lhe mal.

- O que temos de fazer - disse Hugh - é nos disfarçarmos, sondar as pessoas e, se muitos pensarem como esse estalajadeiro e alguns de seus amigos, poderemos levantar homens para lutar por nós.

- Tem razão, querido Hugh - disse Eduardo.

- Acho que podemos confiar no estalajadeiro - replicou Hugh.

Confiaram, e o homem ficou visivelmente emocionado por ser incluído na conspiração. Galeses de moral severa, reiterou ele, jamais apoiarão uma prostituta e seu amante.

Durante alguns dias, eles viveram com grande esperança. Eduardo concentrava sua fé no filho.

- Ele ainda não passa de um menino-disse ele.-Quando ficar um pouco mais velho, jamais se voltará contra o pai, isso eu sei.

- Mas ele tem de crescer, e muita coisa pode acontecer antes disso

- lembrou-lhe Hugh.

Havia dias em que a causa deles parecia ter esperanças, mas embora houvesse alguns homens que se solidarizassem com ele, não queriam entrar em combate por ele.

Não demorou muito para que a rainha e Mortimer soubessem de suas aventuras.

- É uma tentativa lamentável, mas seria mais prudente acabar com as perambulações dele - disse Mortimer. - Além do mais, nós queremos Despenser. Vamos enviar uma força para apanhá-los e trazêlos para cá. Essas perambulações podem prejudicar-nos.

- Mandaremos Henry de Lancaster, primo de Eduardo. Isso mostrará que autoridades estão conosco. Lancaster não deve ter muita dificuldade para encontrá-lo.

A notícia de que Henry de Lancaster penetrara no País de Gales à procura do rei espalhou-se rapidamente, e Hugh sugeriu que eles se escondessem, porque ele não tinha certeza sobre quem eram seus amigos.

Os dois se disfarçaram de camponeses e deixaram o pequeno grupo de adeptos que tinham conseguido reunir, para perambular pelo país como dois trabalhadores rurais itinerantes. Foram descobertos por um fazendeiro dormindo em um de seus campos. O fazendeiro disse que precisava de homens para ajudar a revolver um campo e que eles receberiam comida e alojamento pelo trabalho.

Hugh foi logo dizendo que eles teriam prazer de fazer jus a alojamento e comida, mas que estavam tão necessitados da segunda, que precisavam comer antes de trabalhar.

O fazendeiro estudou-os, desconfiado, e por fim concordou, segundo disse, para animá-los, e por isso receberam bacon frio e pão com cerveja que, devido à fome que sentiam, eles acharam saborosos.

Depois, puseram-se a trabalhar. Por estranho que pareça, foi Hugh, e não Eduardo, que os denunciou. Eduardo manejava perfeitamente uma pá. Quando jovem, ele gostava muito de fazer trabalho físico para relaxar dos estudos. Gostava de trabalhar com o ferreiro e muitas vezes ajudara a colmagem de casas e a escavação de valas. Naquela época, também, procurava o convívio com cavalariços e operários, de modo que entrou com naturalidade no papel de trabalhador agrícola.

Já Hugh, não, e para o fazendeiro ficou muito claro que tinha em casa uma dupla fora do comum.

Tinham corrido rumores sobre o rei e Despenser, e ele ouvira dizer que os dois estavam naquelas vizinhanças. Não queria se envolver naqueles assuntos. Só Deus sabia para onde eles podiam levar um homem. Logo em seguida, alguém o estaria chamando de traidor.

Mandou um de seus trabalhadores até uma cidade próxima, com uma mensagem para o prefeito. Estava com uma dupla estranha trabalhando para ele e achava que devia contar a alguém mais inteligente do que ele e que saberia o que fazer em circunstâncias assim.

Foram feitas perguntas ao mensageiro. Realmente, os itinerantes eram interessantes. Pela descrição, pareciam-se bastante com a dupla que estava sendo muito procurada, o rei e seu favorito. Tendo na memória o que acontecera ao pai do segundo-e o país inteiro estava ciente disso -, ninguém queria envolver-se muito com aqueles assuntos. Um ato descuidado poderia levar uma pessoa ao terrível destino estabelecido por aquela nova lei contra os traidores, que fazia com que homens honestos tremessem em seus leitos só de pensar.

Não demorou muito para que chegassem homens de Lancaster à fazenda.

- Fomos traídos - disse Hugh. - Majestade, isso será o fim.

O rei foi tratado com respeito. Hugh, não. Foi agarrado com brutalidade por soldados que se deliciavam em tratá-lo com indignidade.

- Venha, bonitinho - disseram eles. - Para você, agora vai ser muito diferente.

Arrastaram-no para longe do rei, que protestava.

- Para onde o estão levando? - perguntou Eduardo.

- Aposto que para o seu Criador, majestade - foi a resposta. Eduardo cobriu o rosto com as mãos. Queria impedir a entrada da visão dos olhos suplicantes de Hugh enquanto era arrastado para longe, desaparecendo de vista.

Eduardo foi tratado com cortesia. Deveria ir para o castelo de Llantrissaint, segundo lhe disseram.

- Por ordens de quem? - perguntou ele. Eles não responderam.

- Vocês se esquecem de que sou o seu rei.

Mas, na verdade, não estava interessado no seu próprio destino. Só podia pensar no que tinham feito com o pai de Hugh. Se fizessem o mesmo com Hugh, ele morreria de desespero.

com que então os dois estavam finalmente separados. As tentativas de fugir tinham dado em nada, como deveriam ter sabido desde o princípio.

E ele deveria ir para o frio castelo de Llantrissaint, prisioneiro de alguém - de sua mulher, imaginou. Mortimer?

Enquanto isso, Hugh lê Despenser estava a caminho de Bristol, para ser entregue à rainha.

Hugh estava de pé diante deles. Estavam sentados em cadeiras semelhantes a tronos - a poderosa e bela rainha, que antes dera um espetáculo de humildade e tivera tanto cuidado de esconder dele seu ódio, e Mortimer, forte, ousado, viril, tão diferente de Eduardo como qualquer outro homem. Dizia-se que a rainha estava perdidamente apaixonada por ele e a união deles já durava fazia algum tempo. Olhando para o passado, Hugh viu que aquilo fora inevitável desde o momento em que os dois se conheceram. Eles combinavam um com o outro - eram pessoas apaixonadas e ambiciosas. A rainha era tão implacável quanto seu pai, que destruíra os templários. O que teria ela planejado para Eduardo? Hugh tremia ao pensar. Que seria diabólico, ele não duvidava. O pai dela atraíra para ele a maldição dos templários. Talvez ela fosse atrair uma vingança para si, também. E o jovem Eduardo? Onde estava? Se ao menos eu pudesse ver o jovem Eduardo, pensou Hugh, poderia haver uma chance. Eu poderia comovê-lo a ponto de fazer com que sentisse pena da difícil situação do pai.

- Então aqui está Hugh lê Despenser - disse a rainha. - O senhor parece menos feliz, conde, do que da última vez em que o vi.

- Isso foi há muito tempo, majestade.

- Foi, mesmo. Ora, naquela ocasião o senhor parecia um cachorro de estimação. Sentava-se na almofada de cetim do seu dono e era bem alimentado com doces.

- Não haverá mais doces para Hugh lê Despenser - interveio Mortimer, sério.

- Não espero que haja - replicou Hugh com dignidade.

- Bem, o senhor se entalou enquanto eles lhe foram servidos disse a rainha, rindo. - Agora vai ser muito diferente para o senhor, sabe?

- Foi o que pensei.

- Estamos indo para Londres - disse a rainha. - Receber as homenagens do meu bom e fiel povo. Infelizmente para o senhor, penso que eles não gostam muito do senhor.

Por um momento, Hugh pensou no bom e honesto Walter Stapledon e imaginou como teria sido a sua hora final nas mãos da turba de Londres.

- Tenho de aceitar meu destino, porque todos chegam a isso.

- Ele abre mão de sua vida de luxo com uma facilidade muito maior do que pensei que abriria - comentou a rainha.

- Ah, ele ainda tem muito que aprender - respondeu Mortimer, sério.

Hugh estava rezando em silêncio: "Deus, dê-me forças para enfrentar o que vai me acontecer."

- Levem-no - disse a rainha.

Eles deixaram Bristol em direção a Londres. Isabella seguia à frente de seu exército, com Mortimer de um lado e Sir John de Hainault do outro. Adam de Orlton os acompanhava. Ele estava decidido a participar das decisões.

Na bagagem da rainha estava a cabeça de Walter Stapledon. Mortimer sugerira que fosse colocada na Ponte de Londres, mas a rainha era astuta demais para isso.

- Não-dissera ela -, ele era um homem da Igreja e muita gente iria dizer que fora um homem bom. Era nosso inimigo e nunca fingiu outra coisa. Homens assim têm o hábito de se tornar mártires, e eu tenho mais medo de mártires do que de soldados. Não. vou mostrar minha virtude enviando-a para Exeter e mandando enterrá-la na catedral que pertencia a ele. Isso será lembrado a meu favor.

- Tem razão, meu amor-replicara Mortimer.-Mas também, você tem sempre razão, certo?

Ela sorriu para ele com ternura. Desejou, como desejara tantas vezes, que Mortimer tivesse sido o filho do rei e ela tivesse chegado ali casada com ele, e não com o inútil Eduardo.

Hugh lê Despenser cavalgava com eles. Eles tinham tido o prazer de achar um matungo para ele montar. Ele e o rei sempre tiveram paixão por cavalos e houvera época em que tinham possuído alguns dos melhores animais do reino. Aquele pobre e esquálido animal chamava mais atenção para a degradação dele, e para evitar que alguém não reparasse nele quando entrassem na cidade através da qual as procissões passavam, Isabella e Mortimer haviam ordenado que soassem trompetes para anunciar a chegada de Hugh lê Despenser e que se chamasse atenção para ele enquanto ele marchasse a furta-passo no seu lamentável matungo.

Hugh estava desesperado. Um destino semelhante ao dado a seu pai estava à sua espera e sabia que não havia meio de evitá-lo. Esperava fervorosamente poder enfrentar a morte com coragem.

Ele não comera nada desde que fora preso. Estava ficando magro e doente, mais de aflição do que por falta de alimentação.

Isabella o observava, apreensiva.

- Ele parece quase morto-disse ela.-Será que nossa vingança vai nos escorrer por entre os dedos?

- Elepode morrer-concordou Mortimer.-De fato, parece estar por pouco. Eu diria que ali está um homem à procura da morte.

- Ele não precisa chegar a tanto. Não precisa procurar a morte.

- Não devíamos esperar a chegada a Londres. Duvido que ele sobreviva à viagem. Devíamos parar em Hereford e julgá-lo lá. Seria mais seguro.

- É pena, porque eu queria dar um presente aos meus fiéis londrinos. Como teriam gostado do espetáculo do bonitinho Hugh no cadafalso!

- Eu diria que é Hereford ou uma morte tranquila.

- Então, tem de ser Hereford - disse a rainha.

Eles tinham chegado a Hereford e ali se detiveram para o julgamento de Hugh lê Despenser.

Os guardas dele disseram-lhe que o dia do julgamento chegara.

- Você nem pensou, quando se distraía com o rei, que isso iria levá-lo a esta situação - escarneceu um deles.

Hugh ficou calado. Sentia-se cansado demais para falar. Além do mais, nada havia a dizer.

Foi levado para o salão em que os juizes o aguardavam. Eram comandados por Sir William Trussell, homem em quem se podia confiar que não lhe mostraria favor algum. Trussell lutara contra o rei em Boroughbridge, e quando Lancaster fora derrubado, fugira para o continente. Voltara para a Inglaterra com Isabella e tornara-se um de seus inabaláveis adeptos.

Ele agora estava dirigindo a Hugh um discurso veemente, relacionando os crimes dos quais ele era acusado. Tinha administrado mal os negócios do reino a fim de ganhar dinheiro e possessões; fora responsável pela execução daquele santo Thomas de Lancaster e tentara esconder o fato de que aconteciam milagres junto ao túmulo dele. Sua ineficiência fora a causa da derrota de Bannockburn. Na verdade, todos os males que tinham acontecido à Inglaterra desde a morte de Gaveston e o governo dos Despenser eram devidos à iniquidade de Hugh.

Claro que não havia esperança para ele.

- Hugh, todos os homens de bem deste reino consideram, por unanimidade, você um ladrão e deverá ser enforcado, e que você é um traidor e, portanto, deverá ser estripado e esquartejado. Você foi posto fora da lei pelo rei e por unanimidade, e voltou à corte sem autorização, e por isto deverá ser decapitado; e por ter provocado a discórdia entre o rei e a rainha e outros deste reino, deverá ser eviscerado e suas entranhas deverão ser queimadas; por isso, vá para o seu julgamento, seu maléfico traidor proscrito.

Hugh ouviu a terrível sentença quase que apático. Não era surpresa. Acontecera com seu pai.

Era a vingança deles, e ele soubera, desde o momento em que o haviam prendido, que ela chegaria.

Só lhe restava rezar para ter coragem, para que pudesse suportar com firmeza o que ia acontecer.

Não deveria haver demora, ordenou a rainha. A demora era perigosa. Ele poderia morrer e privá-los da satisfação.

Quase logo após a sentença ser pronunciada, ele foi vestido num longo manto preto, com o seu brasão de cabeça para baixo. Tinham dito que ele deveria ser coroado, porque mandara no rei, de modo que colocaram uma coroa de urtiga em sua testa, para acrescentar um pouco mais de desconforto, e ele foi arrastado para fora do castelo.

Enquanto se preparavam para pendurá-lo da forca de quinze metros de altura a fim de que o maior número possível de pessoas pudesse presenciar o espetáculo, a rainha sentou-se com Mortimer de um lado e Adam de Orlton do outro, para que pudessem regozijar-se com o sofrimento imposto ao favorito do rei.

O belo corpo, agora pálido a ponto de estar irreconhecível, pendia da corda, e Isabella temia que ele pudesse morrer antes que pudessem baixá-lo e concluir o resto da terrível sentença.

Para seu deleite, viu os lábios de Hugh mexerem-se ligeiramente enquanto o deitavam e desnudavam-lhe o corpo para a horrível provação.

Este é o homem que ele preferia, pensou Isabella. Fui humilhada por causa dele. Ele me tirou os amigos; privou-me de meus direitos. E agora que está em minhas mãos, este é o castigo que ele merece.

Mas a satisfação foi pequena, porque Hugh estava muito quieto. Uma vez, ela ouviu um leve gemido, mas não houve gritos por misericórdia.

Ela estendeu a mão para segurar a de Mortimer. Ele a segurou e apertou.

Aquele era o fim de Hugh, estavam os dois pensando. Faltava o rei.

 

EDUARDO ESTAVA entorpecido de tanta dor. Por que a vida era tão cruel assim? Primeiro, tinham levado Gaveston, e agora, Hugh. Por que seu amor sempre provocava uma desgraça?

E agora? Parecia entorpecido demais para se importar.

Estavam-no levando para Kenil worth. Seu primo Henry de Lancaster fora procurá-lo e dissera que Eduardo seria seu hóspede.

Assim, cavalgaram lado a lado até o castelo de Kenilworth, pertencente a Lancaster, que ficava entre Warwick e Coventry. Lancaster tinha orgulho de sua propriedade. O avô de Eduardo, Henrique III, dera-o ao filho caçula e por isso Lancaster o herdara.

- Não tenha receio, não lhe farei mal, majestade - disse ele.

Eduardo pensou como era estranho um súdito falar ao seu rei daquela maneira. Ele poderia ter ficado furioso, apreensivo, mas não podia pensar em coisa alguma, a não ser na morte de Hugh.

Deitou-se no quarto que fora preparado para ele. Havia guardas à porta para lembrá-lo de que era um prisioneiro. Uma situação realmente irónica. Um rei prisioneiro de sua rainha!

Ó Isabella, Isabella, pensou ele. Na verdade, jamais a conheci. Durante todos aqueles anos, você foi muito humilde; gerou meus filhos. Esperou pacientemente até que eu tivesse tempo de me dedicar a você.

Gaveston jamais soube o que você pensava na verdade. Tarde demais, Hugh descobriu; e mesmo então, eu não podia acreditar. E agora Mortimer é seu amante. Você... Isabella.

Ela era igual ao pai - Filipe, o Belo, cruel, implacável, temido por todos até aquele dia final de ajuste de contas, quando ele jazia em seu leito de morte e sabia que a maldição lançada pelos templários sobre ele e seus herdeiros estava sendo cumprida.

Isabella era cruel. Isabella era implacável. Ela o odiava. Ele se perguntava o que ela e Mortimer iriam fazer agora.

Os dias passavam. Lancaster ia vê-lo - delicado e com ar de quem pedia desculpas. Ele parecia dizer: "A culpa não é minha por vossa majestade estar aqui, mas estou cumprindo ordens."

Nunca era prudente ofender um rei. Por mais baixo que ele tivesse caído, quem podia saber quando voltaria a assumir o poder?

Aquele era um pensamento animador. Seria por isso que Lancaster parecia sempre respeitoso? Não, era mais do que isso. Henry era seu primo; os dois tinham sangue real; os homens que estavam próximos ao trono tinham um grande respeito pelo trono.

Henry e ele jogavam xadrez juntos. Aquilo ajudava o passar das horas.

- Henry - perguntou ele -, por quanto tempo vai me manter aqui?

Henry ergueu os ombros. A decisão cabia a Mortimer. Aquele novo-rico da região da fronteira, um homem que fora prisioneiro do rei e fugira! Ah, que bobagem não ter mandado cortar-lhe a cabeça há muito tempo! Mas quando olhava para trás, era para ver uma vida inteira de loucuras. Um Mortimer sem cabeça jamais teria fugido da torre, jamais teria se tornado amante da rainha, jamais teria capturado o rei.

Talvez Mortimer fosse apenas a ferramenta. Ela teria encontrado outro amante, outro homem para chefiar seus exércitos. Ela, a Loba da França, era o seu verdadeiro inimigo.

O rei tentou concentrar-se no jogo. Até nisso era derrotado. Jamais conseguia planejar uma estratégia engenhosa. Lancaster podia derrotálo no tabuleiro como o irmão o fizera na vida. Mas Lancaster tivera um fim trágico. No fim, não ganhara.

- Xeque-mate - disse Henry, triunfante. O rei deu de ombros e disse:

- Você é um carcereiro mais delicado do que eu poderia desejar, primo.

Lancaster rearrumou as peças no tabuleiro.

- Não me esqueço de sua realeza, majestade - replicou ele.

- Você jamais me perdoou pelo destino de seu irmão - disse Eduardo. - Mas não tive culpa. Se ele não tivesse entrado em entendimentos com os escoceses... estaria vivo hoje.

- Ele foi um grande homem, majestade. Seu julgamento foi apressado e ele não teve chance de se defender.

- Não vamos repassar o passado - disse Eduardo. - Acabou, e não volta mais. Houve muitos erros. Não os lamentemos, primo. Você tem sido meu inimigo, e é por este motivo que a rainha e seu amante entregaram-me à sua guarda. Você tem feito o possível para manter a honra de seu irmão, e isso eu compreendo. Você construiu um cruzeiro pela alma dele nos arredores de Leicester. Proclamou que têm havido milagres junto ao túmulo dele e tentou torná-lo um santo, sabendo perfeitamente bem que quanto maior o número de pessoas que o venerassem, mais elas iriam injuriar o rei.

- Foram suas amizades, majestade, que fizeram com que o povo o injuriasse.

- Fui caluniado e condenado - bradou o rei. - Perdi aqueles a quem mais amava. Mas o que posso dizer é que tenho recebido bondade enquanto estou sob sua guarda, e que não esperava por isto. Você e eu não temos sido amigos, Henry, embora sejamos primos. E é por causa da inimizade entre nós que estou sob os seus cuidados. No entanto, você demonstra bondade para comigo. Isso me emociona.

O primo baixou os olhos para o tabuleiro.

- Outra partida, majestade? Quer ter a sua revanche?

O rei teve vontade de soltar uma gargalhada. Sua revanche. Sim, ele gostaria de uma revanche... uma revanche contra os assassinos de Hugh e do pai dele. Quantas torturas tinham impingido àquele amado corpo! Sua revanche contra Isabella, a traidora.

Se ao menos ele deslocasse os homens e mulheres de seu reino para onde queria que fossem, com a mesma facilidade com que podia mexer as peças no tabuleiro de xadrez!

A rainha saiu a cavalo, no seu vestido de seda adornado de brilhantes botões de ouro; a saia espalhava-se sobre o palafrém, e em volta dos ombros havia um casaco de arminho. Estava bonita e tinha um ar de realeza. O povo de Londres a ovacionava. Ela, agora, era a governante dele. Estava na hora de o rei ser posto de lado. Desde o dia em que usara a coroa, ele se mostrara indigno. O povo sempre adorara a rainha. Ela respondera à admiração dele; mostrara-lhe claramente que, de todas as pessoas da Inglaterra, os londrinos vinham em primeiro lugar em seu coração.

Ao lado dela cavalgava o filho Eduardo - o rosto jovem com uma expressão carrancuda. Ele crescera depressa nas últimas semanas e começava a compreender o que lhe seria exigido.

Ela estava indo à torre, para receber os membros do Parlamento e saber a decisão deles.

Ela já adivinhava. Iriam depor o rei, e o jovem Eduardo seria proclamado Eduardo

III. Era para isso que ela trabalhara! Seu filho rei, e ela e Mortimer os regentes

que iriam controlá-lo e governar o país.

Era como a realização de um sonho.

Ela e Mortimer, enquanto se achavam deitados na cama na noite anterior, tinham conversado sobre o poder que estava para chegar. Eduardo iria procurá-los para pedir conselhos e eles governariam o país em nome dele. Pensava, com frequência, o quanto fora inteligente ao manter-se humilde e dócil até ter tido os filhos.

- Eduardo está agindo de maneira estranha - disse Isabella. Ele anda calado... pensativo.

- Ora vamos, meu amor-bradou Mortimer -, ele é um menino. Ele a considera

uma deusa. Você não terá dificuldades em fazer com que ele a obedeça.

Ela deixou que Mortimer acreditasse que aceitava aquilo, mas continuou preocupada.

No entanto, eram calorosas as saudações dos londrinos. Ela era uma tola por ter aquelas dúvidas.

O prémio estava prestes a lhe ser entregue. Um rei que ainda era um menino e que precisaria de um regente, e quem deveria ser esse regente, a não ser sua mãe, que levantara um exército e o trouxera do outro lado do canal para depor o pai dele, do qual todos queriam livrar-se?

Isabella entrou na torre. Nos aposentos reais, ela e Mortimer esperaram a chegada dos ministros.

Ela os recebeu com ansiedade e as primeiras palavras deles fizeram com que seu ânimo alçasse voo.

O Parlamento decidira que Eduardo II devia ser deposto e seu primogénito, Eduardo, devia ser coroado como Eduardo III. Aquilo fora um acordo unânime de todos os barões e do clero.

Isabella entrelaçou as mãos e tentou não demonstrar sua alegria.

- Meu filho ainda é jovem - disse ela, devagar.

- Haverá uma regência, majestade.

Uma regência, sim! A rainha. Quem mais? E ela iria escolher o querido e doce Mortimer para ficar a seu lado.

- O assunto foi muito examinado, majestade. O Parlamento irá selecionar quatro bispos, quatro condes e seis barões para formarem uma regência. A opinião é de que um bispo, um conde e dois barões devem prestar uma assistência constante ao jovem rei.

Ela não podia acreditar que tivesse ouvido bem. Uma regência que não a incluía! O que estavam pensando? Aos esforços de quem eles deviam a derrota do rei? Quem, a não ser Isabella, os livrara do inútil Eduardo?

com um admirável controle, Isabella escondeu a fúria.

Dispensou-os dizendo que iria comunicar a decisão ao jovem rei.

Foi imediatamente falar com Mortimer, e sua raiva explodiu.

- Que ousadia, a deles! Eu gostaria de mandar enforcá-los todos. Depois de tudo o que fiz. Não passa pela cabeça deles me citar. Por quê? Porque sou mulher? É isso? Quem levantou o exército? Quem levou anos planejando? Tenho certeza de que não existe uma só pessoa... ela olhou para Mortimer e acrescentou: - Não, que não existam duas pessoas que seriam os regentes naturais?

- Meu amor - disse Mortimer -, isso é um golpe cruel, mas vamos planejar com cuidado. É o seu filho que vai decidir a quem vai ouvir. Deixe que eles lhe dêem seus barões e seus bispos. Você continua sendo mãe dele.

Ela estendeu a mão, e Mortimer a beijou.

- Você está sempre me consolando, Mortimer.

- É a minha finalidade na vida, minha adorada.

- Sim, vamos derrotá-los - disse ela. - Você e eu não seremos postos de lado por esses homens.

- Claro que não.

Os dois sentaram-se em um dos bancos junto à janela, e ele passou um braço em torno dela.

- Como você estava bonita, hoje, no seu arminho real - disse ele, em tom suave. - Uma rainha de verdade.

- Mas que não serve para ser a regente deles - disse ela, com amargura.

- Isabella, meu amor. Vamos derrotar todos eles. Não se esqueça. Temos o jovem Eduardo.

Ela sacudiu a cabeça, mas não estava inteiramente à vontade. Começara a ter dúvidas a respeito de Eduardo.

Ela acertara ao pensar que o jovem Eduardo estava ficando apreensivo. Ele começava a compreender mais o que se passava à sua volta. Não podia sentir orgulho dos pais, e agora sabia por que as pessoas o estavam sempre comparando com o avô.

O pai fora fraco e dissoluto, preferindo rapazes bonitos e desperdiçando a riqueza do país em presentes extravagantes para eles. A mãe estava vivendo em franco adultério com Roger de Mortimer, e os dois não tentavam escondê-lo.

Eduardo pensava muito naquele curto período em que eles tinham ficado em Hainault e ele e Filipa tinham conversado. Ele lhe falara muito sobre suas perplexidades e, embora ela tivesse estado muito isolada do mundo e não compreendesse metade daqueles problemas que o perturbavam, demonstrara uma maravilhosa solidariedade, quase uma adulação, que para ele fora muito cativante.

Ele lhe dissera que se casaria com ela. Fora uma felicidade ter havido algum acordo entre sua mãe e os pais dela, segundo o qual ele deveria casar-se com ela ou com uma de suas irmãs.

- Esteja certa, Filipa - prometera ele -, vai ser com você.

A jovem acreditara nele. Embora fosse apenas uns meses mais velho do que ela e os dois estivessem apenas com quinze anos, havia nele uma firmeza que ela estava certa

que iria proporcionar a Eduardo o que ele quisesse. Para Filipa, Eduardo era como um deus, forte, bonito, determinado a fazer o que fosse correto. Jamais conhecera alguém como ele, dissera ela; e Eduardo replicara que ela achava isso porque os dois estavam destinados um para o outro.

Coisas estranhas estavam acontecendo à volta dele. Seu pai estava preso. Era errado, sem dúvida, que um rei se tornasse prisioneiro de seus súditos. Mas não tinham sido exatamente os súditos que o haviam prendido. Mas sim a mulher dele, a rainha.

Ele gostara do pai, como gostara da mãe, porque o pai sempre fora bom para ele, mostrara-lhe afeição e sentira orgulho dele. A mãe, porém, o encantara. Quando o levara para a França, ele começara a sentir-se angustiado por causa dos problemas a respeito do pai. Hainault fora um curto descanso, porque Filipa estava lá. Mas desde que tinham voltado para a Inglaterra, os acontecimentos tinham-se acelerado. Tinha havido uma guerra de verdade entre seu pai e sua mãe, e sua mãe saíra vitoriosa. Os Despenser tinham sido brutalmente executados, e seu pai estava preso. O que fariam com ele?

Um frio sentimento de horror tomou conta dele.

- Não estou gostando - disse ele em voz alta -, e por ser quem eu sou, estou no centro disto.

Quando, a mãe foi procurá-lo em companhia do arcebispo de Canterbury e de seus tios, condes de Kent e de Norfolk, ele estava preparado para eles.

Todos se ajoelharam diante dele; havia um novo respeito no comportamento deles; Eduardo acreditou que alguma coisa acontecera com seu pai.

O arcebispo foi o primeiro a falar:

- Senhor-disse ele-, orei, seu pai, tendo-se mostrado indigno de usar a coroa...

Eduardo suspendeu a respiração.

- Meu pai... morreu?

- Não, senhor. Ele vive, está preso em Kenilworth. Lá está sendo bem tratado pelo conde de Lancaster. Mas, por ter-se mostrado indigno de governar, vai ser deposto. O senhor é o novo rei deste país.

- A coroa é muito pesada para a frágil cabeça dele - prosseguiu o arcebispo. - O senhor será o rei. Não precisa ter medo. O senhor é jovem e terá uma regência para lhe mostrar como governar.

- Não tenho medo algum no que me diz respeito - disse o jovem Eduardo. - Mas tenho medo quanto a meu pai. Eu gostaria de vê-lo.

- Isso, senhor, é impossível - disse-lhe o arcebispo.

- Isso só iria atormentar seu pai, Eduardo - disse a rainha. - O melhor é deixá-lo em paz onde está. Eu soube que ele está satisfeito. Mais do que isso, está feliz por ter sido substituído nos deveres de um rei, que foram demasiados para ele.

- No entanto, ele governou por muitos anos - disse Eduardo.

- E veja a que situação chegou o país! - replicou a rainha. Eduardo, você deve se lembrar de que é jovem. Durante algum tempo, terá de ouvir conselhos.

- É aconselhável que o senhor seja coroado com a maior brevidade possível - acrescentou o arcebispo.

Eduardo olhou para o rosto deles. Sentiu o sangue subir no dele.

- Eu concordaria, com uma condição - disse ele.

- Condição, Eduardo! - bradou a rainha. - Será que você percebe a honra que lhe está sendo concedida?

- Percebo perfeitamente o que isso significa, majestade - replicou Eduardo com firmeza -, mas não serei coroado rei deste reino enquanto não tiver a palavra de meu pai de que ele me dá a coroa.

A consternação foi geral. O menino mostrara uma firmeza de propósito que ninguém esperara. Ele ficou ereto, esticando-se em toda a sua altura, que era considerável, apesar de ainda estar em crescimento; seus olhos azuis brilhavam com decisão, a luz do inverno cintilava em seus cabelos cor de linho. Poderia ser o avô dele que estava ali de pé.

Todos sabiam que seria inútil tentar coagi-lo. Ele iria fazer o que acreditava ser o certo.

Teriam de obter a permissão do antigo rei para coroar o novo antes que pudessem fazê-lo.

Os ventos de janeiro fustigavam os muros do castelo de Kenilworth. Lá fora, o gelo brilhava sobre os galhos nus das árvores. Era uma perspectiva sombria, mas não tão sombria quanto os sentimentos do rei enquanto ele se sentava encolhido em seu quarto na torre de César, numa vã tentativa de se manter aquecido.

Ele ouvira o tropel de chegadas no pátio lá embaixo. Ficou imaginando o que seria. Toda vez que alguém visitava o castelo ele temia que a chegada pudesse dizer-lhe respeito e que até mesmo aquelas miseráveis condições mudassem para pior.

Aquela era uma visita importante.

Lancaster estava parado no portal.

- Sua presença é exigida lá embaixo, majestade.

- Quem é, primo?

- Uma delegação. Eles estão sisudos. O bispo de Hereford os vem chefiando.

- Adam de Orlton - bradou o rei. - Então, isso para mim não é um bom presságio. Ele sempre foi meu inimigo. Quem está com ele?

- Entre outros, Sir William Trussell.

- Um grupo de meus inimigos, pelo que vejo. Diga-me, os maiores de todos vieram a Kenilworth para me ver?

Lancaster ficou em silêncio e o rei continuou.

- Você está se perguntando a quem estou me referindo? Vamos, primo. Você sabe muito bem. Estou me referindo à rainha e a Mortimer.

- Eles não estão aqui, majestade.

- Por que esses homens vieram, primo? Você sabe.

- Eles não disseram a que vieram, majestade. Vamos, agora vista-se. Eles estão esperando.

- E o rei não deve deixar seus inimigos esperando - retrucou Eduardo com amargura. - Dê-me a minha túnica, primo.

Ele jogou longe a pele com a qual se envolvera e vestiu uma túnica de sarja preta barata - o tipo que os homens pobres usavam quando estavam de luto, porque ele estava de luto, disso sabia, por uma coroa perdida.

Encarou o grupo - os traidores que já não lhe mostravam a homenagem devida a um rei. À frente deles estavam dois de seus mais ferrenhos inimigos. Adam de Orlton

e William Trussell. Como ele odiava Trussell, que sentenciara Hugh à terrível morte que fora executada de maneira tão bárbara!

Os olhos de Trussell - como os de Adam de Orlton - brilhavam de triunfo. Aquele era um momento pelo qual eles tinham trabalhado à sua maneira tortuosa durante muitos anos.

Não se curvaram para ele. Consideravam-no como se fosse um criminoso de baixa classe.

Então, Adam começou a falar; relacionou os crimes do rei. Acontecimentos havia muito esquecidos foram lembrados, e a culpa por eles foi atribuída a ele. Bannockburn... Será que eles nunca se esqueceriam de Bannockburn? Quantos tinham sido acusados por aquilo!

Ele baixou os olhos. Não queria olhar para aquelas fisionomias perversas. Perguntava-se o que planejavam fazer com ele. Não o que tinham feito com Hugh... o adorado Hugh. Não podiam. Não teriam coragem. Ele ainda era o rei deles.

Os rostos deles pareceram recuar, e ele pensou que Gaveston estivesse ao seu lado... Gaveston... talvez o mais amado de todos eles. Gaveston...

Lancaster o amparara nos braços. Ele ouviu a voz dele vindo de muito longe.

- O rei desmaiou.

Ele estava voltando à realidade. O mesmo quarto... os mesmos rostos à sua volta. Então podia ter sido só por um momento.

Trouxeram uma cadeira para ele. Estava muito cansado. Não queria ouvir o que diziam.

Percebeu, vagamente, que estavam dizendo que ele iria ser afastado, a coroa lhe seria tomada e queriam o seu consentimento para isso.

Que delicadeza, a deles, pensou Eduardo. Queriam o seu consentimento! Por quê? Não podiam fazer com ele o que quisessem? Cortar-lhe a cabeça... Levá-lo dali e fazer com ele o que fizeram com Hugh... Não, ele não suportava pensar no que tinham feito com Hugh. Aquilo assombrava os seus pesadelos. Hugh... belo Hugh.

- Seria bom o senhor dar o seu consentimento - estava dizendo Adam de Orlton. - Caso contrário, quem sabe o que acontecerá? Poderia significar que não só o senhor perderia a coroa, como também sua família.

- Meu filho - sussurrou ele. - Meu filho Eduardo...

- Seria coroado rei imediatamente, se o senhor concordasse em abdicar.

- Ele é apenas um menino...

- Não pode haver demora.

- Meu filho... ele tem que ser o seu rei.

- Foi o que pensamos - prosseguiu Adam. - Renuncie à sua coroa e ele a receberá em seguida. Recuse-se a fazer isso, e quem sabe o que acontecerá.

Eduardo agarrou os lados de sua cadeira. Pensou no Eduardo de cabelos louros, o menino de quem tanto se orgulhara.

- Estou em suas mãos - bradou ele. - Devem fazer o que acharem certo.

O alívio foi intenso. Sir William Trussell não perdeu tempo. Pôs-se de pé diante do rei para declarar, como disse, em nome de todo o reino, que deixavam de existir toda a vassalagem e a fidelidade que lhe eram devidas.

Trussell agarrou o bastão de comando e o quebrou em dois, como símbolo da dissolução da casa real.

Eduardo Plantagenetaera, agora, um cidadão privado; seus direitos como rei da Inglaterra lhe haviam sido tirados. Sentia-se humilhado e, no entanto, sabia que seus próprios atos o haviam levado aquela situação. Ficou contente por seu pai não estar ali naquele dia.

Sua voz tremia de emoção enquanto ele dizia:

- Sei que é devido aos meus pecados que sou levado a essa situação, e para mim é muito doloroso ter provocado o descontentamento do povo. - Os olhos estavam brilhantes em seu rosto pálido, e a voz parecia mais firme quando ele acrescentou: - Mas fico contente com o fato de que meu filho Eduardo vai ser o rei dele.

Nem Adam de Orlton nem Sir William Trussell fizeram qualquer tentativa de se curvar. Ele já não representava mais a coroa; era um cavaleiro comum. Não lhe deviam nenhum respeito especial.

Eles se retiraram, e Eduardo ficou sentado num banco e cobriu o rosto com as mãos.

Lancaster encontrou-o assim e chegou a ter pena ao vê-lo.

- Deixe-me ajudá-lo a ir até o seu quarto, primo - disse ele, delicado. - Foi uma experiência muito penosa para você.

- Henry - replicou Eduardo -, já não sou o seu rei.

- Eu sei - respondeu Lancaster.

- Ele quebrou o bastão diante dos meus olhos e de tal maneira, primo, que vi que para ele aquilo era um prazer.

- Descanse um pouco. vou mandar trazer comida e vinho para você.

- Agora, meu filho é o rei. O jovem Eduardo... Ele ainda é jovem... um menino.

- No entanto, com idade suficiente para exigir que lhe façam a vontade, primo. Ele não quis receber a coroa enquanto não tivesse o seu consentimento.

Um sorriso tocou o rosto maltratado de Eduardo.

- É mesmo?

- É verdade. Ele disse que, primeiro, tinha que ter o seu consentimento e não queria saber de coisa alguma sem ele.

- Então alguém ainda se importa um pouco comigo. Eduardo cobriu uma vez mais o rosto com as mãos. Estava vendo

o jovem rapaz-alto, muito louro, os olhos azuis brilhando, a boca com uma expressão de teimosia que ele sabia possível. Teria enfrentado os inimigos do pai quando o tentaram com a coroa. Suas mãos estavam molhadas pelas lágrimas.

- Que Deus o abençoe, filho - murmurou ele. - Que seja mais feliz que seu pai.

Lancaster conduziu-o delicadamente até o quarto, onde ele se deitou na cama e, embora os pensamentos sombrios o cercassem como nuvens carregadas, havia em meio a elas um brilhante raio de esperança.

- Meu filho, meu filho-murmurou ele.-Você gosta um pouco de mim.

 

O INVERNO estava passando. O jovem Eduardo fora coroado em fins de janeiro pelo arcebispo de Canterbury, aquele Walter Reynolds que outrora fora amigo íntimo do pai do novo rei e que agora unira-se àqueles que estavam contra ele. Walter Reynolds sempre fora um homem que estava pronto para passar para o lado em que pudesse encontrar maior vantagem.

A rainha estava animada. Podia não ser a regente, mas dava um jeito para que ela e Mortimer tivessem uma grande influência junto ao jovem rei.

Sir John de Hainault voltara para sua terra natal com seus soldados, porque eles tinham ficado impacientes depois de tanto tempo longe de casa. Quanto a Sir John, que prestara uma ajuda inestimável a ela, Isabella lhe deu uma pensão de quatrocentos marcos por ano, que ele relutara em aceitar, declarando que tudo o que fizera fora por amor a ela.

Ela estava no auge do poder e da beleza, pois esta havia desabrochado desde que ela se desfizera da capa de docilidade. Muitas vezes ria consigo mesma ao refletir como todos sabiam de sua ligação com Mortimer e, no entanto, ninguém se manifestara contra.

Muitas vezes, eles conversavam sobre isso, mas à medida que o inverno ia passando, ela começou a ter pensamentos inquietantes. Discutia esses pensamentos com frequência com Mortimer, que tentava tranquilizá-la. Mortimer estava aproveitando ao máximo sua posição. Seu sucesso tinha sido além do que ele sonhava. Todas as suas propriedades tinham-lhe sido devolvidas, junto com as de seu tio que morrera na torre. Honrarias tinham sido garantidas à sua família, e ele mesmo recebera o título de conde de March. Era praticamente o rei daquele reino: tudo o que precisava fazer era agradar à amante, e isso era fácil, porque era uma mulher ardente que durante muito tempo se vira privada daquela satisfação que os dois tinham encontrado tão espontaneamente juntos. O jovem rei tinha de ser manobrado com cuidado, e ultimamente havia sinais de que ele começava a ficar inquieto em seu arnês. A rainha percebera, mas Mortimer recusava-se a acreditar que houvesse qualquer justificativa para preocupação.

- Ele questiona tudo - insistiu a rainha.

- Claro que questiona. Ele tem consciência de que é o rei. Mas é jovem demais, muito inexperiente na arte de governar e em relação a como o mundo funciona. Ainda vai continuar com essa mentalidade por mais ou menos um ano.

- Ele não é igual ao pai, você sabe. É inteligente. Aprende depressa.

- Minha adorada, não se preocupe com ele. Saberemos como tratá-lo quando chegar a hora.

- E o pai dele? Eu me preocupo com ele.

- Preocupar-se com um prisioneiro de Kenilworth! Ele jamais voltará ao poder.

- Mas está vivo. E se angariar homens para o lado dele?

- Eduardo? Meu amor, você não pode estar falando sério. Ele é desprezado por todos. O povo está encantado com o jovem rei e seus novos governantes. O povo é dedicado a você. Já se esqueceu de como a ovacionam quando você sai às ruas?

- Os londrinos sempre me foram fiéis, eu sei. Mas pode-se confiar no povo? Um dia, ele está a seu favor, e no dia seguinte, contra.

- Há muito que ele vem sendo fiel a você.

- Porque odiava os amigos de Eduardo e ele jamais fez um mínimo de esforço para agradá-lo.

- Vamos, minha querida, concentremo-nos em outros assuntos mais urgentes.

Mortimer soltou uma gargalhada enquanto a apertava nos braços. Sabia como distrair os pensamentos dela. Tratava-se de uma mulher cujo apetite sexual era insaciável e durante muito tempo esse sentimento ficara abafado; agora que encontrara o parceiro completamente sintonizado com ela, Mortimer podia distrair-lhe os pensamentos com uma facilidade incrível. A ambição dela era grande, mas ligeiramente menor do que o seu desejo por Roger Mortimer. Ele exultava com aquilo, explorando ao máximo o poder que aquilo lhe dava.

Mas embora durante algum tempo seus pensamentos pudessem estar voltados para uma única direção, havia ocasiões em que ela pensava, com uma preocupação cada vez maior, no marido preso.

Começou a perceber, quando passava a cavalo pelas ruas, que as pessoas pareciam menos entusiasmadas. Chegou até a ouvir murmúrios contra o recém-criado conde de March. Roger era ganancioso demais. Ela percebeu que podia haver perigo quando ouviu o sussurro de que aquilo era uma repetição do caso de Gaveston e dos Despenser, porque o rei e seu amante tinham sido substituídos pela rainha e o dela. Achava, também, que o jovem Eduardo estava mudando em relação a ela. Acreditava que ele estava fazendo aos que o rodeavam perguntas sobre o pai. Estava crescendo. Desde a coroação, ficara muito sério, abandonando todos os seus passatempos de menino, estudando documentos oficiais e agindo como um rei.

Estava certo que Roger dissesse que eles tinham um controle completo. Podiam segurar as rédeas naquele momento, mas o jovem corcel estava ficando folgazão, e às vezes Isabella sentia que ele tentava livrar-se das cordas que o guiavam.

Então, os pensamentos dela dirigiram-se ao prisioneiro que estava em Kenilworth.

Decidiu ter uma conversa séria com Roger. Não deixaria que ele a fizesse desviar-se para a sensualidade. Aquele assunto era vital, e estava decidida a fazer com que ele o visse da mesma forma que ela. Era uma mulher, disse ela, com a intuição feminina, e sentia o cheiro de perigo no ar.

- Escute o que tenho a dizer, meu adorado Mortimer. Ouvi dizer que Lancaster e o rei estão ficando cada vez mais íntimos. Os dois são primos, lembre-se, e Lancaster não vai se esquecer de que Eduardo já foi rei. Dizem que eles passam longas horas conversando. Sobre o que você acha que eles conversam?

- Sobre o que Eduardo conversava com seus queridos amigos?

- Você não pode comparar Lancaster com Gaveston e Despenser. Lancaster é um homem de poder. Poderia tornar-se como o irmão que, poderíamos dizer, governou este país num determinado momento. Roger, quero que Eduardo seja tirado de Kenilworth.

Roger ficou pensativo.

- Sim - insistiu a rainha. - Eles ficam muito tempo juntos. Ele não é tratado como prisioneiro. Podem muito bem estar tramando juntos. Meu filho estará indo à Escócia em breve. É o que se espera que ele faça. Vão obrigá-lo a agir como o avô, e você sabe como ele massacrou os escoceses. Lancaster deve ser convocado para juntar-se ao exército de Eduardo, e isso significa que já não pode ser o guardião do rei prisioneiro. Vamos, meu querido, diga-me sob a guarda de quem meu cansativo marido deve ser colocado.

Mortimer ficou pensativo. Depois, envolveu a rainha com um braço e beijou-a nos lábios.

- Como sempre, você tem razão - disse ele. - Temos de ficar vigilantes. Lancaster está muito íntimo dele. Primeiro, vamos tirá-lo de Kenilworth. Que o rei chame Lancaster para discutir com ele a expedição escocesa. Já sei. O marido de minha filha, Thomas Berkeley, será o carcereiro. Eduardo será levado para o castelo de Berkeley, Posso lhe prometer que não será tratado, lá, como hóspede de honra.

- Como sempre, adorado Mortimer, você consegue acalmar meus temores.

- Então - disse Mortimer -, amanhã mesmo colocarei esse plano em ação. Nosso prisioneiro será mandado para uma prisão mais rigorosa, onde encontrará carcereiros sem a menor tendência de ser seus amigos.

- Ele não merece bondade alguma. Ele me humilhou amargamente durante muitos anos. Se você soubesse...

- Meu amor, meu amor, eu sei perfeitamente. Ele deu as costas para a mulher mais bonita do mundo e dedicou-se aos seus desprezíveis rapazes. Mas agora está tudo acabado, Isabella. Às vezes me pergunto se poderíamos ter conhecido a plenitude do nosso prazer mútuo se não tivéssemos tido que esperar por ele.

Ela estava pronta para ser tranquilizada, ser possuída. Ela exultava por ter Mortimer.

Eduardo gostou que o inverno tivesse acabado. Seu primo providenciara para que ele não sofresse demais com o frio, o que ele bem poderia ter sofrido. No aposento em que se encontravam e jogavam xadrez, sempre havia uma grande fogueira e havia peles de animais para a cama de Eduardo e outras para ele se enrolar quando o vento assobiasse em torno dos muros do castelo.

Lancaster estava mudando, passando a gostar do seu prisioneiro. Começava a se perguntar se, afinal, fora uma troca de governantes tão boa assim. Mesmo a Kenilworth chegavam rumores sobre a arrogância de Mortimer, do modo franco de que ele e a rainha viviam abertamente em adultério. Mortimer era não só o homem mais poderoso do país, mas estava se tornando, rapidamente, o mais rico. A ganância fora a ruína de Gaveston e dos Despenser. Mas ali estava um homem ganancioso que agarrava o que podia como nenhum outro antes.

Quanto mais descontente Lancaster ficava com a rainha e seu amante, mais solidário ia ficando com seu patético prisioneiro.

Um dia de maio, quando se levantara da cama, ele descobriu que tinham chegado visitantes ao castelo. Recebeu-os imediatamente, porque vinham da corte. Foi logo informado de que o rei queria que ele se preparasse para deixar Kenilworth e juntar-se a ele em Londres. Sua assessoria fazia-se necessária com relação à campanha escocesa.

Lancaster ficou surpreso.

- E o meu prisioneiro? Devo levá-lo comigo?

Não, foi a resposta. Dentro de poucos dias Sir Thomas Berkeley e Sir John Maltravers estariam chegando ao castelo. Eles iriam assumir os encargos do conde de Lancaster.

Lancaster fez um lento gesto afirmativo com a cabeça.

Sabia que num determinado momento Eduardo seria tirado de sua guarda.

Não gostou muito da tarefa que tinha pela frente, de comunicar a Eduardo que iriam separar-se.

Olhou com compaixão para a alta figura magra - agora quase macilenta, com as manchas escuras sob os desbotados olhos azuis.

- Thomas, meu primo - murmurou Eduardo -, eles vão me separar de você.

- Isso já era de esperar - disse Lancaster. - Tenho minhas obrigações. vou para junto do rei.

Eduardo fechou os olhos, e as rugas de desespero eram evidentes em torno de sua boca. Depois abriu-os e o violento medo que havia neles deixou Lancaster profundamente perturbado.

- É porque você tem sido bom demais para mim-disse ele, com veemência.

- Disseram-me que o rei está mandando que eu vá para perto dele.

- E nós sabemos quem manda no rei.

- É possível que o senhor tenha o prazer de uma troca de castelos.

- De quem, primo?

- Berkeley. Thomas Berkeley.

- Ele não se casou com a filha de Mortimer?

- Penso que sim.

- Está vendo, primo? vou ser colocado com meus inimigos. Berkeley! Ele não era meu amigo.

- As terras dele foram confiscadas - disse Lancaster. - Creio que foram dadas a Hugh lê Despenser.

Eduardo estremeceu.

- Não é meu amigo - murmurou ele. - E vão me tirar daqui.

- Para o castelo de Berkeley, sem dúvida.

- Primo, não vá. Não me abandone. Vamos ficar aqui juntos. Você tornou a vida suportável para mim, aqui.

- Meu querido senhor, tenho de obedecer ao rei.

- Eu sou o seu rei, Thomas.

Mas Lancaster abanou a cabeça, triste, e o silêncio caiu entre os dois. Eduardo o rompeu:

- Maltravers, foi o que você disse?

- Sir John Maltravers. Uma escolha natural, porque ele se casou com a irmã de Berkeley.

Eduardo abanou a cabeça.

- Outro traidor... para mim. Fugiu da Inglaterra e uniu-se à rainha na França.

- Seria difícil, meu senhor, eles escolherem amigos seus.

- Primo, um presságio muito mau tomou conta de mim.

- É a ideia de mudança.

- Não, primo. Aqui, eu aceitei meu destino. Fiquei acostumado à sua companhia, que se tornou muito agradável. E agora... e agora... sinto que se aproxima de mim, primo... uma escuridão, um horror...

- Meu senhor, é esse choque.

Tudo vai sair bem. Quando o senhor chegou aqui, nós não éramos tão amigos assim... com o tempo, o senhor e Berkeley e Maltravers... Eduardo abanou a cabeça.

- Primo - disse ele -, rogue a Deus que me ajude. Lancaster segurou a mão de Eduardo, ajoelhou-se e beijou-a, e foi como se Eduardo tivesse se tornado rei outra vez.

- vou rezar para o senhor. Anime-se. É bem possível que a vida ainda lhe seja boa.

Mas Eduardo continuou a abanar a cabeça. Amais profunda melancolia tomara conta dele.

Lancaster fora embora e seus novos guardiões tinham chegado. Maltravers era visivelmente insolente, Berkeley quase que timidamente insolente, como se não pudesse deixar de se lembrar de que aquele pobre homem macilento já tinha sido seu rei.

- Levante-se - disse John Maltravers. - Há uma viagem a ser feita agora mesmo. Você acha que ele deve ser preso com cordas, Thomas?

- Não se preocupe - replicou Berkeley. - Ele não está em condições de fugir de nós.

Ele, que outrora tinha sido um rei diante do qual os homens se curvavam, era motivo de conversas em sua presença como se fosse um móvel a ser levado para onde interessasse aos seus donos. Era mesmo uma humilhação! Mas ele estava acima das humilhações! O terrível medo que tomara conta dele quando Lancaster lhe dissera que ia embora não o deixava. Tinha medo daqueles homens.

Seguiram para o castelo de Berkeley. Parecia muito diferente de quando ele o vira da última vez. Naquela ocasião, ele entrara como rei, e lá desfiles e festividades o receberam. Como estava diferente, agora! Sombrio! Agourento! Teve um impulso de gritar que não ia entrar. Que o matassem ali... naquele instante. Não entraria naquela fortaleza de muralhas de pedra. Todo o seu ser bradava contra aquilo. Queria voltar para Kenilworth, implorar a eles que mandassem seu primo Lancaster de volta.

Maltravers virou a cabeça como faria com um cavalariço.

- Por que a hesitação? - bradou ele. - Está perdendo o seu tempo, Eduardo Plantageneta.

Como eles adoravam mostrar-lhe que ele, que outrora fora o rei deles, já não tinha importância!

Entrou no pátio externo e passou por baixo da portaria provida de balesteiros. Ficou imaginando se algum dia sairia dali em liberdade.

Seu cavalo foi levado-um pobre animal miserável, para assinalar a sua condição, e o contraste entre o seu cavalo e os corcéis montados por seus captores era patético. Maltravers colocou mãos indelicadas nele e empurrou-o para a frente.

- Por aqui - murmurou ele.

Lancaster, bem-nascido, jamais mostrara tamanho desrespeito. Eduardo devia, agora, considerar os dias que passara em Kenilworth como dias felizes.

Estava no salão principal - um belo local, no fundo do qual ficava a capela.

- Eu gostaria de rezar - disse ele. - Permitam que eu vá até a capela e me ajoelhe diante do altar.

- Pode rezar no seu quarto - disse Thomas Berkeley.

- Você devia ter pensado mais em rezar quando tinha tempo disse Maltravers, zombeteiro. - Poderia ter ajoelhado diante de seus altares naquela época, em vez de se ajoelhar diante de Hugh.

Eles estavam decididos a atormentá-lo. Percebeu que seriam carcereiros cruéis.

Estava subindo pela grande escada que levava à torre de menagem e seguindo por uma galeria quando chegaram a um aposento que estava fortemente trancado.

- Seu novo palácio, majestade - disse Maltravers com uma mesura zombeteira.

Berkeley abriu as trancas e a porta abriu com um ranger que dava a entender que fazia muito tempo que não era usada. O aposento era escuro. A única luz que entrava vinha de uma fresta na parede, no alto. A fresta era estreita, com espaço suficiente para um homem meter o braço, nada mais. No chão estava um catre de palha; havia um banco e uma pequena cómoda de madeira que servia de mesa.

- Vocês não podem me alojar aqui! - bradou Eduardo.

- O homem é ingrato - bradou Maltravers, voltando os olhos para o teto.

Berkeley pareceu contrafeito.

- Meu senhor - disse ele -, este foi escolhido como o quarto que o senhor vai ocupar enquanto estiver aqui.

Eduardo estremeceu e não disse mais nada.

Os dois o deixaram, e ele ouviu a chave girar na fechadura.

Aquilo era uma miséria abjeta.

Ele se ajoelhou e rezou.

- Ó Deus - disse ele -, permita que eu morra... agora. Permita que essa desgraça acabe. Deus me ajude.

Pôs-se de pé e deitou-se no catre de palha. E então pareceu que Deus atendera ao seu pedido de ajuda, porque começou a pensar no filho. Àquele querido menino gostara muito dele. Era verdade que não ligara para o filho. Parecia que nunca havia tempo para se preocupar demais com filhos que estavam na sala de aula. Hugh exigira muito de sua atenção. Mas sempre mostrara amor e afeto pelo filho. Eduardo não poderia saber que o pai estava sendo tratado daquela maneira. Ele jamais permitiria.

A esperança entrou no triste quarto.

Eduardo, o rei, iria salvá-lo. Se ao menos pudesse saber o que estava acontecendo com o pai, iria salvá-lo.

Se ao menos ele pudesse mandar um recado para Eduardo. Enquanto isso, ali estava no castelo de Berkeley, nas mãos de homens que o odiavam.

E como o odiavam! Sentiam prazer em cobri-lo de insultos. Maltravers era o pior. Às vezes, Eduardo achava que percebia um lampejo de piedade nos olhos de Berkeley, e quando o visitava sem Maltravers, comportava-se quase que de forma humanitária. O desconforto de seu quarto era intenso. Felizmente estavam no verão. Não suportaria viver um inverno naquele aposento. Mas talvez até lá Eduardo já tivesse ido salvá-lo. Se ao menos ele pudesse mandar um recado para o filho!

A comida que levavam para ele era quase intragável - acreditava tratar-se de restos dos pratos dos criados. Levavam-lhe uma água fria e barrenta, tirada do fosso, para que ele se barbeasse, e Maltravers levara uma grinalda de hera para colocar na sua cabeça, como se fosse uma coroa.

Ele empedernira a mente contra a chacota deles.

Ele sempre gozara de saúde física. Tal como o pai, quando jovem ele fora pleno de vigor. Preferira a vida ao ar livre aos estudos. O mesmo acontecera com o pai, mas este jamais deixara que aquela preferência impedisse a atenção aos assuntos de governo e o estudo de documentos que faziam parte dos deveres de um rei.

Deitado na cama, deixando-se levar para o passado, viu que falhara lamentavelmente. Sabia que merecia perder a coroa, mas não aquela degradação. Não, nenhum homem, quaisquer que fossem seus pecados, devia sofrer daquela maneira.

Não conseguia comer a fétida comida que lhe mandavam. Às vezes, pensava em Kenil worth como uma espécie de paraíso. Comparado com aquilo, era o que tinha sido.

Se ao menos Lancaster estivesse ali para que pudesse conversar com ele... Ele não teria se importado sobre o que falassem, desde que conversassem.

O odor da comida no prato o enojava. Ele ansiava por que alguém a levasse dali.

Deitou-se na palha e fechou os olhos.

Havia vozes em seu quarto.

- Talvez devêssemos mandar chamar um padre. - Quem falava era Berkeley.

- Um padre! Do que adianta? Ele que vá para o inferno sem se confessar e ser absolvido! - Típico de Maltravers.

- Mesmo assim, vou mandar um frade para ele. Nenhum homem deve ter negado esse privilégio em seu leito de morte.

- Quem iria pensar que ele poderia viver tanto assim? Ele tem a força de um touro.

- Ele se parece com o pai. Esses Plantagenetas são uns gigantes.

- Se o pai dele pudesse vê-lo agora...

- Talvez o veja, Maltravers.

- Você está nervoso, Thomas. Tem estado sempre assim. Não pode esquecer que ele já foi rei?

- vou mandar um frade para ele.

- Se é o que você deseja. Eu me pouparia o trabalho de mandar chamá-lo.

Fez-se silêncio no quarto.

Eles tinham ido embora e a morte estava próxima - tão próxima, que parecia que Berkeley iria mandar um frade para ele.

Recebo a morte com prazer, pensou. Se eu fosse para o inferno, não poderia ser pior do que isto. Tenho visto Satã em pessoa em Maltravers. Cheguei ao fundo do poço. Não posso afundar mais.

Eduardo, meu filho, um dia você virá me buscar. Se soubesse o que estão fazendo com seu pai, não deixaria que isso me acontecesse.

Eduardo, venha até aqui, antes que seja tarde demais.

Alguém estava se ajoelhando ao lado de sua cama. Uma mão fria tocava sua testa.

- Está com força suficiente para rezar comigo, majestade?

- Quem é você? - perguntou Eduardo.

- Sou Thomas Dunhead, da Ordem Dominicana.

- Então veio rezar por mim?

- E rezar com o senhor.

- Obrigado. Estou precisando de orações.

- É o que penso, majestade. Rezemos para que o senhor recupere a saúde.

- Pare - murmurou Eduardo. - Se eu recuperar a saúde, o que me espera? Para mim, é melhor morrer. Parece que estou a meio caminho para a morte e não pode haver muito mais a percorrer.

- A vida é uma dádiva de Deus. Temos de esperar até sermos chamados a abandoná-la. Até que essa hora chegue, é nosso dever agarrarmo-nos a ela, preservá-la, e vivê-la da maneira que mais agrade a Deus.

- O senhor é um homem livre, frei Thomas.

- Vamos rezar juntos - disse o frade.

- O senhor voltará a me ver?

- Amanhã.

- Se eu ainda estiver aqui.

- Deverá estar. Seus pecados são muitos, e vai precisar de tempo para fazer jus à remissão.

Depois que o frade se retirou, Eduardo sentiu-se melhor. Era reconfortante ter contato com seres humanos.

No dia seguinte, o dominicano voltou. Quando ficaram a sós, ele tirou de sua túnica carne e pão.

- Eu trouxe comida para o seu corpo e para a sua mente - disse ele. - O senhor precisa de nutrição, se quiser viver o suficiente para se arrepender, Eduardo apanhou os alimentos e comeu-os com voracidade.

- Isso é bom-disse o frade. - vou trazer mais amanhã. Vamos trabalhar juntos para salvar sua alma.

No dia seguinte ele tornou o voltar.

Primeiro, eles rezaram, e depois o dominicano disse:

- Conversei com meu irmão Stephen sobre seu estado. Ele é um rapaz ousado. Tem muitos amigos. Quando eles souberam do que estava acontecendo com o senhor aqui, ficaram furiosos, porque sabem que sua rainha vive em adultério com Roger de Mortimer.

- Isso tudo está muito longe para mim - disse Eduardo. Praticamente não penso nisso agora.

- O povo está ficando inquieto. Meu irmão Stephen adora uma causa, desde que a considere boa. Majestade, quando sua força estiver recuperada...

- Sim? - disse Eduardo lentamente.

- Meu irmão está pensando num plano de resgate.

- Deus está atendendo a minhas orações - disse Eduardo. - E meu filho... o senhor poderia falar com meu filho?

- Não seria fácil abordar o rei. Ele vive cercado por homens que são inimigos de vossa majestade. A mãe dele e Mortimer não deixarão ninguém se aproximar dele. Meu irmão, que é um conspirador nato, diz que seria melhor vossa majestade fugir do castelo primeiro. Depois, poderia reunir adeptos e avisar ao rei onde está.

- Será que estou sonhando? - perguntou Eduardo. - Às vezes eu sonho. Depois acho difícil saber se estou no passado ou no presente.

- Isto não é um sonho. Temos amigos lá fora. Agora, o senhor precisa fingir estar muito doente. Não podem saber que lhe trago alimentos. Quando a hora estiver propícia, virei aqui vestindo duas túnicas com capuz. Na cela, tirarei uma delas, que o senhor vestirá. Vamos sair do castelo juntos. Mas antes disso, vou trazer um de meus irmãos, para que os guardas se acostumem a ver duas pessoas. Está entendendo?

- Estou - disse Eduardo. - Estou, sim.

- O senhor deve fingir estar doente. Se eles pensarem que está fraco demais para levantar-se de sua palha, ficarão descuidados. As portas ficam destrancadas até depois de eu sair. Talvez possamos provocar sua fuga.

- Se o senhor for descoberto...

- Isso me custaria a vida, eu sei. Eu iria perdê-la da maneira mais bárbara, através da morte dos traidores. Mas nesse caso eu chegaria mais cedo ao céu. É possível que Deus tenha me escolhido como seu instrumento. Ele não pode querer que o casal adúltero governe nosso país.

- Se eu escapar daqui, jamais o esquecerei.

- Meu irmão e eu não trabalhamos em troca de recompensas, mas pela glória de Deus e pela supressão do mal.

- Posso fazer isso - disse Eduardo. - Estou vendo que é a resposta as minhas orações. vou sair daqui e ver meu filho outra vez. Quando olhar para o rosto querido e vir nele a compaixão pelo pai, saberei que Deus me tomou aos seus cuidados uma vez mais.

Ele estava ficando mais forte. Sua constituição era tal que reagiu rapidamente à alimentação que frei Thomas Dunhead lhe levava. Extraía novas forças do reconhecimento de que não estava abandonado. Tinha alguns amigos no mundo.

Aconspiração foi como uma nova vida. Ele conseguiria. Aquilo não era o fim. Ele e Thomas Dunhead sairiam do castelo juntos. Exultava ao pensar no que iria fazer quando estivesse livre.

E então, tudo o que queria agora era viver tranquilo, em paz e com dignidade.

Não era difícil enganar Berkeley e Maltravers. Parecia que eles não queriam que ele morresse. Se morresse, eles ficariam privados do cargo e da diversão. Talvez ele não devesse pensar em Berkeley, porque este mostrava ter consciência. Agora que o senso de percepção de Eduardo estava aumentando, podia perceber que Berkeley não gostava de sua missão e que a repulsa por ela aumentava. Não era um homem do tipo do Maltravers.

E assim Eduardo ficava deitado em sua cama de palha durante o dia e esperava pelo momento em que sairia do castelo a pé.

Stephen chegou com o irmão. Vestido como um dominicano, ele teve permissão para entrar no quarto-prisão. Eles devem pensar que eu estou para morrer, pensou Eduardo.

Stephen tinha uma exuberância que faltava ao irmão. Os olhos brilhavam de amor por uma aventura.

Ele achava que seria perigoso entrar um frade e saírem dois. Alguns dos guardas poderiam ser observadores. Nesse caso, o plano todo estaria perdido.

Ele iria com o irmão com os hábitos de um dominicano. Por baixo deles, o irmão estaria vestido de mendigo. No quarto, ele daria o seu hábito a Eduardo, que deveria sair do castelo com Thomas. Stephen fugiria do quarto nos trajes de mendigo, para que não fosse notado. Eles arrumariam a cama de modo a dar a impressão de que Eduardo estava ali deitado. Então, talvez a fuga só fosse percebida no dia seguinte.

Parecia um bom plano, se funcionasse.

Finalmente, chegou o dia. Os dois homens entraram no quarto. Ajoelharam-se e rezaram por algum tempo. Depois, Eduardo vestiu o hábito e ele e Thomas saíram do castelo sem protesto. Stephen, como mendigo, saiu pouco depois.

A cerca de um quilómetro e meio de distância do castelo, havia cavalos à espera.

Sentir o ar fresco deixou Eduardo inebriado. Sentiu-se repentinamente jovem e forte outra vez, cheio de esperança.

- Está acabado - bradou ele. - Passei pelo inferno. Deus está comigo.

Ele cavalgava entre os irmãos Thomas e Stephen.

- Para o castelo de Corfe - disse Stephen. - Lá, o senhor será recebido por amigos seus. Assim que a notícia da sua fuga se espalhar, muitas pessoas se reunirão à sua volta. O povo está cansado da ganância de Mortimer e dos pecados da rainha.

- E o rei...

- O rei não passa de um menino, mas há sinais de que tem uma sensatez acima do normal para sua idade e não gosta da conduta da mãe. Ele está descontente com Mortimer... Tudo ficará diferente em breve, majestade.

- Eu não desejaria ser colocado de novo no trono - disse Eduardo. - Aceito o meu desmerecimento. Mas se ao menos pudesse ver meu filho... se pudesse prestar vassalagem a ele como rei da Inglaterra... eu ficaria contente.

O castelo de Corfe ergueu-se diante deles. Um dos mais fortes castelos do reino, colocado ali na península de Purbeck, inexpugnável, ameaçando os inimigos, protegendo a terra.

- Daqui por diante, sempre amarei o castelo de Corfe - disse Eduardo.

Os portões foram abertos, O grupo entrou a cavalo. A recepção foi muito diferente.

- Como poderei agradecer-lhes? - bradou Eduardo.

- Apenas cumprimos com o nosso dever - respondeu Thomas Dunhead.

- Meu primeiro desejo é mandar uma mensagem a meu filho disse Eduardo.

- Isso será feito. Primeiro vamos descansar um pouco e depois levaremos sua mensagem. Stephen e eu iremos levá-la juntos.

- Agradeço a Deus a sua misericórdia - disse Eduardo.

Eles comeram e beberam vinho, e Eduardo foi levado para o quarto que havia sido preparado para ele.

Ele não pôde evitar de compará-lo com a miséria de Berkeley.

- Vamos partir ao amanhecer - disse Thomas.

- Sei que meu filho estará comigo em breve-replicou Eduardo.

Caiu num sono profundo. Estava claro quando acordou. Alguma coisa o acordara. Fora cutucado. Estava sentindo a dor aguda nas costas.

Abriu os olhos.

Era um pesadelo. Não podia ser verdade. O destino não podia ser tão cruel assim.

De pé ao lado da cama estavam Berkeley e Maltravers.

- A tentativa de vossa majestade deu em nada-disse Maltravers em tom de fingida preocupação.

- O que aconteceu? - bradou Eduardo, erguendo-se de um salto.

- O plano não deixou de ter a sua astúcia - prosseguiu Maltravers, falando acima dele -, mas não foi tão fácil enganar a gente. A cama vazia foi descoberta quase assim que Eduardo Plantageneta saiu. Ele deve pensar que em Berkeley nós somos tolos. Descobrimos a direção em que ele fugira e aqui estamos em Corfe, para continuar cuidando bem dele.

- Vossa majestade deve compreender que temos o nosso dever a cumprir - disse Berkeley, com delicadeza.

- Pegamos o dominicano. No curto tempo que lhe resta, não há dúvida de que ele vai se arrepender de sua irresponsabilidade.

- O irmão dele escapou - acrescentou Berkeley.

- Mas não por muito tempo - disse Maltravers.-Para eles será a forca e a sentença dos traidores. Talvez se arrependam da loucura que cometeram quando a corda for coitada e atearem fogo em suas entranhas.

Eduardo estremeceu, e Berkeley disse:

- Vamos aguardar ordens, majestade. Enquanto isso, ficaremos aqui.

E assim ele ficou deitado na cama e o desespero tomou conta dele. Achou que Deus o abandonara.

 

A RAINHA ficou frenética.

- Pense no que poderia ter acontecido. Ele poderia, até, ter levantado homens para apoiá-lo.

- Ele jamais poderia ter feito isso - declarou Mortimer.

- Poderia ter mandado um recado para o rei.

- Mas não mandou, meu amor. E não deve ter outra chance de chegar tão perto de fazê-lo.

Isabella olhou para ele, os belos olhos brilhando da excitação que queimava dentro dela. Havia algo na maneira de Mortimer falar que lhe disse que os pensamentos

dele eram iguais aos dela.

Em casos assim, só havia um jeito, e um único jeito.

Enquanto Eduardo vivesse, haveria perigo, e quanto mais velho o rei ficasse e menos populares a rainha e seu amante ficassem, maior seria o perigo.

Mortimer ficou imaginando qual seria a vingança de Eduardo contra cie caso o rei detivesse o poder.

Mortimer sabia que seria a morte dos traidores.

Eles não deviam ser escrupulosos. Há muito tempo que lhe parecera óbvio e também devia ter parecido a Isabella - que para eles só havia um caminho aberto.

O rei tinha de morrer.

Eles não precisavam dizer as palavras. Compreendiam bem demais o raciocínio um do outro.

- O seu genro é muito delicado - disse ela.

- Eu sei muito bem.

- Neste caso, deve ser afastado. Mortimer sacudiu a cabeça.

- Berkeley é atrapalhado pela consciência. Não se esquece que Eduardo já foi rei.

- Então, ele não é o homem para vigiá-lo.

- Quero que voltem para Berkeley. Tem de ser em Berkeley. Meu genro vai levá-lo de volta.

- E depois...

- vou arranjar umadesculpaparaafastar Berkeley emandar outro homem para ajudar Maltravers.

- Quem?

- Estou pensando. Talvez Gurney, Thomas Gurney. Eis um homem que vai trabalhar bem por dinheiro e pela perspectiva de subir na vida.

- Meu querido - disse a rainha depressa -, não deve parecer que foi assassinato. Não pode haver ferimentos.

Mortimer sacudiu a cabeça.

- Você está certa, como sempre. Uma morte lenta... falta de comida, falta de ar fresco... desespero... serão estas as nossas armas.

- Mas não podemos esperar demais. Eduardo está impaciente. Não fosse o caso escocês, ele iria querer ver o pai. Meu querido Mortimer, não temos condições de esperar.

- E não vamos esperar. Em breve, eu lhe prometo, esse fardo será tirado de nossas costas.

- Nunca se esqueça, deve parecer que foi um ato de Deus.

- Assim será - prometeu Mortimer.

Então ele estava de volta a Berkeley... dessa vez, não no mesmo quarto. Tinham escolhido um quarto em cima da capela mortuária. O mau cheiro era nauseante. A comida que lhe levavam era intragável. Embora fosse ficando mais fraco, sua força resistia e ele deixava os carcereiros impressionados com a maneira pela qual ele se agarrava à vida.

Maltravers contou-lhe como o seu amigo dominicano tinha morrido.

- Um grande espetáculo! Eles o enforcaram, cortaram a corda com ele vivo...

- Não quero ouvir - replicou Eduardo.

- Mas, meu senhor, já não está em condições de decidir o que vai ou não ouvir. Quero lhe contar como foi que o seu querido amigo morreu.

- Pare com isso-murmurou Thomas Berkeley. - Isso de nada adianta. O dominicano morreu como um bravo... e deixe para lá.

Sim, pensou Maltravers, estava na hora de Berkeley ser mandado embora.

Naquela noite, Berkeley foi até o quarto.

- Vim me despedir - disse a Eduardo. Eduardo agarrou-lhe a mão.

- Não, não. Você precisa ficar comigo.

- Tenho ordens da corte para deixá-lo. Outra pessoa virá me substituir.

- Não... eles o estão afastando de mim porque você é o único amigo que me resta.

- Meu senhor - bradou Berkeley -, vou rezar pelo senhor.

- É estranho - disse Eduardo - que só depois de se tornar meu carcereiro você ficou meu amigo.

Berkeley não disse nada. Suas emoções eram muito fortes para ele. Lamentara a conduta do rei deposto. Fora um dos que tinham trabalhado para derrubá-lo. Mas devia ter pena do homem, e estava convencido de que ninguém devia ser tratado como ele fora, independente de quais fossem seus crimes. Seus instintos clamavam contra aquilo; e ele estava cheio de desconfianças, porque sabia que era por isso que estava sendo afastado do cargo. A rainha e seu amante não teriam misericórdia.

Ajoelhou-se diante de Eduardo e beijou-lhe a mão, como se estivesse se despedindo do seu rei.

Depois que ele saiu, um completo desespero tomou conta de Eduardo.

Pensou no bravo dominicano sendo torturado; o único alívio que sentiu foi pelo fato de Stephen ter escapado. Lancaster fora afastado dele, e agora Berkeley. E isso porque se tratava de homens de espírito humanitário.

Isabella mandara chamar Sir Thomas Gurney. Mortimer estava com ela quando o homem chegou.

- Siga imediatamente para o castelo de Berkeley-disse a rainha.

- O senhor vai assumir o lugar de Sir Thomas Berkeley. Ele já terá partido quando o senhor chegar.

Thomas Gurney fez uma mesura.

- O senhor compreende bem a situação - prosseguiu Mortimer.

- O antigo rei é um empecilho para o bem do país. Ele está muito fraco. Não pode haver dúvida de que seus dias estão contados. Seria uma bênção fazer com que ele morresse.

Gurney fez uma mesura. Compreendeu que sua tarefa seria apressar a partida de Eduardo.

- Não deve haver sinal algum de que o rei foi ajudado a morrer - disse a rainha. - Nada de violência externa. Isso faria com que o povo o venerasse. O senhor sabe como o povo todo está à procura de mártires.

- Eu compreendo, senhor conde, majestade - disse Gurney.

- Não esqueceremos quem nos serve - replicou Mortimer.

E assim Sir Thomas Gurney retirou-se e partiu a toda velocidade para Berkeley.

Eduardo ficou com ódio do homem assim que o viu. Era mais um igual a Maltravers. Ele sabia que pretendiam fazer-lhe mal.

Ficava deitado na cama à noite e prestava atenção para ver se ouvia passos, à espera que eles chegassem e o matassem.

Porque era isso que iriam fazer. Estava demorando demais a morrer, e eles estavam impacientes. Via isso nas suas fisionomias. De manhã, eles entraram para olhar para Eduardo, que fingiu dormir.

- Parece que ele fez um pacto com o demónio - resmungou Maltravers. -Tem a constituição de um touro.

Maltravers apanhara o banco e parecia que ia abatê-lo na cabeça de Eduardo.

- Tenha cuidado - falou Gurney. - Você sabe quais são as ordens. Nenhum sinal de maus-tratos. Um golpe desferido por você poderia custar-lhe a cabeça.

- É verdade-concordou Maltravers, e Eduardo o ouviu colocar o banco no chão.

- Esses Plantagenetas são fortes - murmurou Gurney, o novo carcereiro.

E por isso eles o insultavam e lhe levavam água barrenta para beber e uma comida que o gado teria recusado. Mas apesar de fraco, Eduardo continuava vivo. Havia nele uma tenacidade maldosa. Não iria morrer só para agradar a eles.

O mensageiro surgira a toda velocidade, vindo da região da fronteira, que tinha sido devolvida a Mortimer desde que este voltara para a Inglaterra. Ele tinha notícias urgentes para o seu senhor.

Assim que foi admitido à presença de Mortimer, ele caiu de joelhos, porque sempre se temia homens poderosos quando lhes eram levadas más notícias. Talvez naquele caso o grande Mortimer, agora virtualmente governante da Inglaterra, fosse recompensar o seu bom servo.

- Senhor conde, senhor conde, não perdi tempo. O senhor vai querer saber que seu inimigo Sir Rhys ap Griffith está convocando homens para a sua bandeira. Está insistindo com eles para que lutem em favor do verdadeiro rei, que neste momento está definhando numa prisão.

- Por Deus - bradou Mortimer -, eu devia ter adivinhado que Rhys ap Griffith provocaria confusão, se pudesse. Que reações ele está conseguindo?

O mensageiro deu a impressão de que preferia não dizer, e Mortimer berrou:

- Não tenha medo. Quero saber de tudo.

- Muitos galeses estão aderindo à bandeira dele. Estão falando coisas horríveis sobre o senhor, conde. Estão dizendo que irão libertar o rei. Achei que o senhor devia saber.

- Fez bem em vir me procurar - disse Mortimer. - Eu lhe digo uma coisa: Rhys, aquele novo-rico, vai descobrir, em breve, que se meteu e meteu seus adeptos numa encrenca.

- O meu senhor vai me dar ordens? Mortimer ficou pensativo.

- Volte - disse ele. - Observe e mande-me dizer como é que ele está se saindo.

Depois que o mensageiro foi embora, Mortimer ficou pensativo. Nenhum exército que Rhys ap Griffith pudesse reunir poderia ter alguma chance contra o dele e o de Isabella. Não era a ideia daquela força insignificante que o perturbava.

Era o crescente apoio ao rei em todo o país.

Quando ele e Isabella tinham ido para a Inglaterra, o país inteiro parecia apoiá-los. Agora, havia murmúrios. Primeiro, o caso Dunhead. Àquilo fora um aviso. Se o plano tivesse sido bem-sucedido e Eduardo tivesse instalado seu quartel-general em algum lugar, poderia ter atraído homens à sua causa. Graças a Deus fora frustrado antes de dar frutos. E agora, aquele inimigo estava tentando levantar a bandeira do ex-rei no País de Gales. E se se começasse a fazer isso por todo o país?

Não seria prudente levar um exército para o País de Gales e esmagar Rhys ap Griffith. Isso faria com que outros seguissem seu exemplo.

Só restava uma coisa a fazer, e depressa. O motivo da rebelião tinha de ser eliminado. Por que ele não morria? Fora submetido ao máximo de desconforto; deixado quase a morrer de fome, instalado em cima da capela mortuária em Berkeley, cujo fedor já deveria ter matado um homem doente.

Mas Eduardo continuava vivo.

Tinham sido delicados com ele. Claro que tinham. Seria imprudente ver-se que ele fora assassinado. Deus sabia que castigo iria perseguir os que assassinassem um rei.

Seriam perseguidos pelo medo o resto da vida.

Eduardo tinha de morrer... mas de causas naturais.

Devia ser eliminado com tal habilidade, que todos acreditassem fora morte natural.

Mas não devia haver demora. Eles já haviam tergiversado demais. Agora, tinham de agir com presteza.

Mortimer mandaria chamar um homem que conhecia-um homem que tornara o assassinato uma profissão, um homem tão experiente na sua atividade que podia causar morte por violência sem que ninguém tivesse condições de perceber qualquer sinal disso.

Não, pensando bem, ele não mandaria chamar o homem. Aquilo era um assunto muito privado. Iria procurá-lo e dizer-lhe o que devia ser feito.

O dia transformava-se em noite e a noite, em dia. Estava escuro no quarto, e ele praticamente não percebera a chegada do alvorecer. Ele se recuperara um pouco. Tinha uma finalidade na vida. Queriam que ele morresse, e estava decidido a não morrer.

Tinham feito o possível para prejudicar-lhe a saúde. O cheiro que vinha lá de baixo era tão irritante que no princípio lhe provocara ânsias de vómito, mas o homem pode se acostumar à maior parte das coisas. Agora sentia menos o cheiro. Sonhava com banquetes, quando se sentara lado a lado com Gaveston ou Hugh e imaginava que a fétida comida que lhe mandavam era algum prato especial que um de seus queridos rapazes preparara para ele. Não iria morrer para agradá-los.

Eles o observavam diariamente. Ele sentia falta de Berkeley, Berkeley teria mudado em relação a ele, tal como acontecera com Lancaster. Ele e Berkeley teriam ficado amigos, se deixados em paz. Ele teria recebido cobertas de pele para a cama, uma pele para envolvê-lo, uma fogueira brilhante, um jogo de xadrez. Eles tinham sabido disso, e tinham mandado Berkeley embora.

Maltravers e Gurney continuavam. Jamais haveria qualquer amizade entre eles e Eduardo.

Uma sombra fúnebre entrara no castelo.

Havia um terceiro homem. Eles o chamavam de William Ogle. Quem seria aquele homem? Andava de mansinho, como um gato. Ria bastante. Era uma risada alta, sem alegria. Àquilo começava a deixar Eduardo preocupado.

Quando a escuridão caía, ele ficava ciente das sombras. Tinha pesadelos nos quais William Ogle aparecia de repente na escuridão do quarto.

Sempre que Ogle estava no quarto, uma sensação estranha dominava Eduardo. O corpo todo sentia como se estivesse coberto de formigas. Ele tremia, embora seu corpo parecesse em brasa.

Era esse o efeito que William Ogle tinha sobre ele.

No entanto, o homem era respeitador - mais do que Maltravers e Gurney, chamando-o de majestade e curvando-se de vez em quando.

Há alguma coisa de má com relação a esse homem, pensava Eduardo. Espero que ele não fique aqui por muito tempo.

Noite. Passos no corredor. Eduardo estava de bruços, respirando profundamente.

Os três homens entraram no quarto. Um deles levava uma lanterna. Ficaram por alguns segundos olhando para o homem que dormia.

Na porta aberta, um braseiro lançava uma luz fraca e havia um cheiro de ferro em brasa.

Era evidente que William Ogle estava dando as ordens. Fez um gesto para que se aproximassem dele.

- Está tudo pronto? - perguntou Maltravers. Ogle confirmou com a cabeça.

- Lembre-se. Suas mãos não devem tocá-lo. Não deve haver contusões. Tragam a mesa, coloquem-na em cima dele e segurem-na de modo a que ele não possa se mexer. Depressa, agora... enquanto ele está dormindo. Não se pode tocar nele. São ordens. Nenhum sinal visível.

Os dois homens, em silêncio, ergueram a mesa e colocaram-na sobre Eduardo, de modo que os lados dela o prenderam à cama.

Ele acordou e pensou que se tratava de um de seus pesadelos.

Estava nu. Tinham tirado sua túnica. Viu de relance Ogle se aproximando da cama, tendo na mão um espeto comprido, aquecido ao rubro.

E depois, uma agonia com que nenhum homem jamais sonhara. O espeto aquecido ao rubro foi enfiado em seu corpo.

Ele berrou violentamente enquanto o terrível instrumento de tortura e morte penetrava em seus órgãos.

- Pense em Gaveston - berrou Ogle. - Pense em Hugh. Pense neles, majestade... Pense neles...

Eduardo tentou lutar, mas a mesa o mantinha imóvel. Seus gritos eram tão altos que penetravam nas grossas paredes do castelo. Todos os que estavam entre aquelas paredes naquela noite devem tê-lo ouvido.

- Ele não pode durar muito - disse Ogle, e até Maltravers e Gurney estavam abalados.

Eduardo já não gritava; a respiração chegava em longos arfares torturados.

- A esta altura, as entranhas estarão transformadas numa massa queimada - disse Ogle. - E não haverá marca no corpo para que alguém veja. O espeto está protegido por um chifre, de modo que não haverá nem mesmo um indício de queimadura.

Ele parecia orgulhoso de seu trabalho manual. Eduardo, agora, estava imóvel. Ogle retirou o espeto. Ao fazê-lo, não houve movimento algum do corpo.

- Tirem a mesa, agora-disseOgle.-Não haverá uma só marca no corpo dele. Nenhum sinal de violência, nenhuma contusão, nenhuma queimadura. Ninguém vai saber que os intestinos dele foram destruídos pelo fogo.

A mesa foi colocada no chão. Nem Maltravers nem Gurney queriam tocar no homem. Foi o assassino experiente que tocou nele. Ele o virou e sufocou um grito de espanto ao fazê-lo.

- Tragam a lanterna mais para perto - ordenou ele.

Os três homens ficaram ao lado da cama, olhando para o rosto imóvel, morto, no qual havia uma expressão de terror e agonia como eles jamais tinham visto antes.

A fisionomia estava fixada naquele horrível sorriso de dor. Nada poderia ter proclamado de maneira mais clara que Eduardo II tivera a morte mais horrível, violenta

e cruel que o homem podia arquitetar.

- Ele morreu dormindo - disseram eles. - Foi um fim tranquilo.

Não havia marca de violência em nenhuma parte do corpo. Mas aquela expressão em seu rosto era clara para todos que a contemplavam.

Os três assassinos trocaram ideias entre si.

- Você disse que não haveria sinal algum - reclamou Maltravers.

- Como é que eu ia saber que ficaria estampado na cara dele? resmungou Ogle.

Disse que apenas cumprira ordens. Todos tinham cumprido ordens, mas eles acharam prudente fugir em silêncio do país e esperar o resultado.

O abade de Gloucester foi ao castelo e levou o corpo, que ficaria aos cuidados dele até que se pudesse providenciar um enterro pomposo. Por todo o país, o povo falava

sobre o finado rei. O que acontecera a ele? Havia um certo mistério a respeito de sua morte.

Sua mulher não estava vivendo em adultério com o poderoso e ganancioso amante?

O jovem rei estava assumindo com rapidez a sua responsabilidade. Ele fora orientado pela mãe e pelo amante dela durante um tempo longo demais.

Havia perguntas que ele queria fazer. Onde estavam aqueles que tinham mantido seu pai preso? Por que tinham fugido do país? Havia muita coisa que ele queria saber. Em todos os lados havia escândalos envolvendo sua mãe. Ele estava livrando-se de seus grilhões. Havia muita coisa que ele tinha

de descobrir, e estava decidido a aprender.

A tempestade estava se formando e havia prenúncios de que seria muito grande.

 

 

                                                                                                    Jean Plaidy

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades