Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
AS MULHERES DA CASA DO TIGRE
ADELE
A religiosa Elfrida ajoelhou no chão de pedra fria no seu lugar no templo, rodeada pelos outros Hábitos Cinzentos, entoando cânticos à Deusa e contemplando o Coração do Poder, a representação física da Deusa Brilhante e o centro vital de todos os cultos no templo. Sentia-se mais em casa no Grande Templo de Merina do que em qualquer outro local da Terra, e não tinha nenhuma dificuldade em entrar em transe quando ali se ajoelhava para rezar.
Dizia-se do Coração, suspenso do tecto a meio do templo, que era um pedaço do sol, o corpo da Deusa caído do Paraíso e que tinha aterrado naquele local ainda em chamas. O templo fora construído com o objectivo específico de o acolher e, com o passar dos anos, artesãos do templo tinham-no decorado sumptuosamente. De acordo com a lenda, este fora originalmente uma estranha rocha resplandecente, mas depois de ter descido à Terra tinha sido revestido com ouro e engastado com tantos rubis, que o ouro era inteiramente invisível. Este não era o único templo do mundo a ter em sua posse uma relíquia Daquela que Habita Para Lá das Estrelas, mas esta relíquia era uma das mais sagradas. Outras poderiam ser maiores, estar mais bem decoradas ou serem conhecidas por mais milagrosas, mas a religiosa Elfrida preferia estar ali a estar em qualquer outro lugar.
O Coração estava dependurado precisamente ao centro do tecto abobadado, tecto esse desprovido de qualquer outra decoração para além dos arcos da própria abóbada, o que fazia com que o olhar se dirigisse inexoravelmente para o Coração, qualquer que fosse a direcção inicial. Ele resplandecia sempre com qualquer luminosidade, até mesmo à luz fraca das velas do primeiro dos rituais nocturnos, atraindo para o céu a atenção dos que ali oravam, para o céu onde a Deusa se encontrava. Isso era, aliás, o mais indicado, visto que a maioria dos que ali vinham rezar, contrariamente ao que acontecia nos templos das paróquias, eram membros das Quatro Ordens, fossem eles noviços ou religiosos com votos, e não os vulgares cidadãos de Merina.
O Grande Templo de Merina não era um local de encontros românticos, coscuvilhice, ou quaisquer outras intromissões da vida mundana; intromissões que ocorriam com demasiada frequência noutros templos.
Dado que a maioria da comunidade do templo, qualquer que fosse a cor dos seus hábitos, sabia entoar os cânticos à Deusa sem ter que os ler, havia com freqüência mais gente a contemplar o Coração do que a olhar para os livros de cânticos. Era, aliás, possível distinguir os verdadeiramente devotos dos outros pela forma como enterravam, ou não, os narizes nos livros de cânticos.
A religiosa Elfrida despertou subitamente do semi-transe em que os cânticos a induziam e apercebeu-se de que alguém a olhava; teve uma sensação de presença e de que alguém estava a tentar despertar-lhe a atenção. Quem poderá ser a esta hora? Ou, talvez melhor dito, o que poderá ser...?
Desviando os olhos fatigados para mais perto do local onde estava ajoelhada (não sem alguma dificuldade, pois os seus olhos, tal como aliás toda ela, já não eram tão jovens e flexíveis como tinham sido) viu um anjo, um dos mais pequenos que serviam de mensageiros da Deusa. Por instantes sentiu o assomo de excitação e exaltação que sempre sentia quando tinha o privilégio de ver um visitante divino; um sentimento de exaltação que nunca abrandava, independentemente do número de anjos que já vira e, naquela altura, com o passar dos anos, já lhes tinha perdido a conta.
Como é evidente, isso pode dever-se à perda da minha frágil memória de mortal!
O anjo estava de pé junto ao altar, mais perto das filas de devotos ajoelhados do que do próprio altar. Poder-se-ia confundi-lo com um dos acólitos, se não fosse a sua aparência não ter nada de vulgar. Como acontecia com todos os da sua espécie, o seu rosto era assexuado e belo para lá de tudo o que é humano; e o poder nele contido transmitia a ilusão de brilhar numa luz emanada de dentro de si. O seu poder estendia-se para além da sua cabeça e dos seus ombros, criando a ilusão de um imenso par de asas erguidas a partir das omoplatas, e uma auréola luminosa em torno da cabeça acentuava a impressão de Luz. Não havia qualquer possibilidade de o confundir com qualquer outra coisa que não aquilo que, de facto, era e Elfrida sentiu por instantes piedade da sua filha e da sua neta, que não conseguiam ver aqueles mensageiros em toda a sua terrível beleza.
Assim que se apercebeu de que dispunha da sua atenção, o anjo ergueu um dos braços num gesto tão gracioso quanto a beleza do seu rosto e apontou na direcção do Palácio Real. A religiosa Elfrida susteve um suspiro de cansaço e curvou a cabeça, num assentimento para o anjo e num gesto de exaustão ou devoção para qualquer outro observador. Estava bastante certa de que mais ninguém via aquele anjo, embora muitos dos membros do templo conseguissem ver a maior parte dos anjos. Este fora-lhe enviado só a si para lhe comunicar que agora, em vez de retornar ao seu quarto no templo e dormir entre o fim deste ritual e o início do seguinte, teria que reassumir a sua identidade mundana e ir até aos seus aposentos no palácio. Alguém a procuraria ali nessa noite.
Normalmente uma pessoa não tem anjos atrás de si como se fossem jovens pajens ansiosos por transmitir mensagens. Algo de muito grave se deve estar a passar. Sabia do que certamente se trataria; o imperador Balthasar e o seu Exército Imperial caminhavam ameaçadoramente na direcção de Merina já há algum tempo, mas durante as últimas semanas o perigo tornara-se muito mais imediato. Existira a vaga esperança, havia ainda apenas alguns dias, de que ele se pudesse sentir atraído por outro fruto mais apetitoso; as terras de Sarcen com as suas sedas e pérolas, talvez. Houvera mesmo uma esperança de que ele pudesse ser atraído para longe de Merina ou mesmo que pudesse ser comprado. Esta noite, muito provavelmente, todos os planos e esperanças teriam falhado e a ameaça tornara-se realidade.
O que queria dizer que Balthasar, comandando o maior exército de conquista que o mundo alguma vez vira, marchava para conquistar o seu pequeno refúgio.
E nós não estamos em condições de resistir a um exército.
Felizmente os religiosos não falavam uns com os outros durante a noite e ninguém daria pela sua falta, a não ser que não voltasse a tempo do ritual seguinte. E mesmo que nessa altura não estivesse no seu lugar, ninguém a procuraria antes da manhã. Não era assim tão pouco usual que um religioso dormisse durante alguns dos rituais das horas de escuridão; toda a gente o fazia ocasionalmente. Ninguém podia tomar votos até ter pelo menos trinta e cinco anos, o que queria dizer que uma larga percentagem dos religiosos era, na realidade, bastante idosa, e como Elfrida poderia facilmente testemunhar, os mais idosos tinham mais necessidade de descansar do que os jovens e vigorosos.
E eu sinto mais os meus anos a cada dia que passa.
Um pesado, ainda que invisível, manto de exaustão caiu-lhe sobre os ombros. Esta vida dupla que levava não estava a ajudar nada. Ter-se-ia sentido imensamente satisfeita se pudesse arrastar os joelhos doloridos e os tornozelos ancilosados de volta à sua pequena cela para um merecido descanso, mas parecia que não iria ter essa oportunidade. Assim, uma vez terminado o serviço religioso, em vez de voltar ao seu quarto, a religiosa Elfrida desviou-se discretamente para um dos corredores secundários, desceu-o até ao nível mais baixo do templo e entrou numa passagem secreta só conhecida por ela própria e pela grande sacerdotisa Verit.
A passagem ligava o templo ao palácio, ramificando-se de forma cuidadosamente oculta para outros locais na cidade e reino de Merina. O corredor de pedra era escuro, fresco e mesmo um pouco húmido. Um truque de construção fazia com que os passos soassem abafados e fossem inaudíveis a poucos metros de distância.
Perto da entrada do palácio havia uma pequena alcova contendo uma arca, um banco, uma pequena mesa com um espelho e um candeeiro dependurado de um suporte de ferro preso à
parede de pedra. A religiosa Elfrida acendeu o candeeiro, abriu a arca, de onde retirou um roupão de brocado trabalhado e uma caixa de cosméticos; trocou o hábito cinzento e sem forma pelo roupão, e maquiou cuidadosamente o rosto. O roupão era um pouco mais quente do que o hábito, mas também era mais pesado... e os deveres que representava pesavam-lhe mais nos ombros do que o peso de qualquer tecido.
Quando ficou pronta ninguém teria reconhecido nela a religiosa Elfrida, que passara os últimos dois anos sob os votos do templo. Mas qualquer um dos habitantes da cidade teria reconhecido Adele, a rainha-mãe de Merina, a reverendíssima, a chefe secular do templo, tal como a grande sacerdotisa Verit era a sua chefe espiritual.
Adele apagou o candeeiro com um sopro, espreitou através de uma fresta na parede para se certificar de que o seu quarto estava livre e abriu o painel secreto ao lado da sua cama. O painel era mais pesado do que parecia, embora fosse mais fácil de deslocar do que se poderia pensar. Quem quer que tivesse sido o construtor daquela entrada tivera em conta o facto de aqueles que a iriam usar já não estarem provavelmente no auge da vida.
O painel era de madeira do lado do quarto, madeira entalhada que escondia as dobradiças, mas era revestido a pedra no lado interior, para que não emitisse um som “cavo” se alguém andasse à procura de passagens secretas. A maioria das portas que davam acesso às passagens secretas estavam construídas dessa forma.
A porta girava sobre um ponto de equilíbrio judiciosamente encontrado, o que permitia a uma mulher idosa, com articulações perras e músculos cansados, abri-la e fechá-la de novo. Não estavam presentes quaisquer criados, se bem que alguém da sua posição devesse ter pelo menos uma camareira; simulando uma atitude piedosa, ela dispensara todos os criados quando iniciara esta vida dupla, sabendo que uma criada se aperceberia se ela não tivesse dormido em casa.
Depois de ter fechado a porta oculta atrás de si e de a ter trancado, deitou-se pesadamente na cama decidida a dormir o tempo que pudesse antes que a procurassem. Tinha a sensação que nos dias que se avizinhavam iria necessitar de todo o descanso de que agora conseguisse desfrutar.
No entanto, não conseguiu adormecer imediatamente. Dominou o impulso de ir à procura de um criado para tentar saber o que tinha acontecido. A paciência era uma virtude e não era provável que, neste caso, a impaciência lhe trouxesse qualquer benefício. Era muito provável que ninguém, nem mesmo a princesa Shelyra, agora a responsável pelo corpo de espiões e investigadores, soubesse ainda “o que estava a correr mal.” O anjo fora enviado para lhe comunicar que ela seria necessária; não que era necessária naquele momento exacto. Quando ela lhe fizera sinal de que percebera, ele tinha, evidentemente, desaparecido. Era esse o problema dos visitantes do outro mundo. Nunca se davam ao trabalho de se explicar.
Os lençóis frios aqueceram com o seu corpo e ela começou a relaxar. Este era um conforto mundano de que sentiria falta quando chegasse o momento de se tornar verdadeiramente Elfrida. As camas nos claustros do templo não eram particularmente confortáveis, visto os pensamentos dos religiosos serem supostamente dirigidos para a Deusa e não para os seus próprios corpos... Embora talvez fosse mais fácil uma pessoa concentrar-se na Deusa se não estivesse cheia de dores nos ossos.
Compreendo a necessidade de esquecer os confortos e indulgências do mundo, mas se temos bancos para aqueles que não conseguem ajoelhar-se, não deveríamos também condescender com aqueles cujas articulações doem durante a noite?
Talvez quando chegasse a altura de ela própria substituir Verit pudesse levar a cabo essa pequena reforma. Isto desde que conseguissem sobreviver aos planos que o imperador tinha para Merina, evidentemente. E com esse pensamento animador, o sono que procurara finalmente condescendeu e desceu sobre si.
LYDANA
A mulher deitada na grande cama fechada pelo dossel acordou, mas não se moveu nem abriu os olhos, embora estivesse tão alerta como um dos bem treinados membros da guarda avançada do imperador. Ao longo dos anos, os seus cinco sentidos tinham sido deliberadamente apurados, até ficarem aguçados como um punhal bem estimado e, para além deles, dispunha também de um sexto sentido que despertava lentamente: o dom da sua casa e da sua linhagem.
Utilizou-o naquele momento, explorando o espaço como uma aranha que lança a teia. Sim, o quarto fora invadido. A sua mão moveu-se cautelosamente sob os cobertores pesados. Ousou entreabrir ligeiramente as pálpebras. Não havia qualquer luz; mesmo assim, procurou uma sombra que se movesse no escuro. A sua mão estava agora por cima da cabeça, os dedos sob a grande almofada, perto daquilo que procurava: o punho de um delicado mas mortífero punhal, concebido para ser oculto entre as pregas de um vestido durante o dia e que não produzia qualquer protuberância reveladora num leito durante a noite. Uma arma cuja eficácia provara duas vezes em anos anteriores e que estava pronta a testar de novo, ali naquele preciso momento.
A sua mão esquerda deslizou, em direcção ao outro lado da cama, tão silenciosamente como se de uma cobra de água se tratasse até tocar pele quente e firme. O seu dedo bateu-lhe de leve por duas vezes antes de falar. O olfacto viera em sua ajuda; havia no ar um levíssimo odor a sabonete de ervas.
- Então, Shelyra, andaste outra vez a explorar as passagens interiores e encontraste um novo caminho para nos surpreenderes?
Ouviu-se uma exclamação na escuridão, meio irritada, meio pesarosa.
- E a minha querida tia tem agora visão nocturna, é? - A voz era suave, mas grave para uma mulher.
- Tenho os olhos com que nasci, mas tu és menos eficiente nessas actividades furtivas do que pensas, minha querida sobrinha. Um dia destes, quando tentares uma brincadeira desse gênero, ainda encontras a Skita à tua espera e pronta a dedicar a sua atenção a alguma parte da tua anatomia que não tens vontade nenhuma de ver molestada, o que seria um acidente que todos nós lamentaríamos muito.
Lydana, da Casa do Tigre, soberana do grande porto de Merina, do Estado e da cidade, sentou-se na cama. Embora não tivesse proferido qualquer ordem, um candeeiro acendeu-se espalhando a sua luz reveladora.
Aquela que o segurava não era mais alta do que uma criança. Contudo, o seu corpo elegante e a sua bela estrutura óssea, bem como a pele cor de marfim, eram os de uma mulher plenamente desenvolvida e os seus olhos amendoados não poderiam pertencer ao rosto de uma criança.
A intrusa avançou para o círculo de luz que o candeeiro projectava. Também ela era uma mulher, ou antes, uma jovem que ainda não atingira totalmente a idade adulta por que tanto ansiava. Tinha as mesmas feições ligeiramente imperiosas da rainha, se bem que suavizadas pela juventude. O seu cabelo escuro fora entrançado e preso à cabeça, mantido no lugar por um pequeno travessão de metal. Ao lado da mulher que segurava o candeeiro, parecia enorme, coberta por um fato negro de uma só peça que se colava ao corpo e sobre o qual trazia apenas um cinto; dele pendiam, embainhados, um punhal fino e estreito e a lâmina mais longa de um punhal de caça.
A pouca pele visível estava bronzeada pela exposição aos elementos e, não fora a pequena protuberância dos seus seios, poderia ser um rapaz. Fez uma careta à mulher que segurava o candeeiro e, sem esperar por um convite, sentou-se aos pés da cama.
Uma vez sentada virou-se para enfrentar a rainha e estendeu uma das mãos. Na palma da mão tinha uma caixa oval não maior do que uma noz, totalmente coberta por uma tinta negra que a fazia parecer tão pouco interessante como qualquer pedra que se pudesse encontrar num dos caminhos fora das muralhas.
Lydana ficou a olhá-la durante algum tempo. Não havia qualquer alteração na impassividade cuidada do seu rosto, mas aquilo que via, ali, naquele momento, constituía um choque.
- Quem? - perguntou secamente.
- Suponho... - Shelyra hesitou e a sua boca fez um esgar como se tivesse mordido algo de amargo. - Rosthen.
- Supões...
A rapariga mexeu-se na cama e uma sombra de medo misturado com repugnância espalhou-se-lhe no rosto.
- Os bichos já o tinham atacado. Ele estava mesmo junto à quarta entrada. Ele... Ele tinha uma ferida entre os ombros... e deixou um rasto de sangue. Não foi atingido no sítio onde morreu.
Mantinha a voz controlada, notou Lydana, apesar do facto de estar provavelmente muito perturbada. Sim, esta filha do irmão era mesmo de sangue legítimo.
Movendo-se com rapidez, a rainha inclinou-se para a frente e pegou na pequena caixa. A unha do seu indicador pressionou a mola dissimulada e a tampa abriu-se com força, pela razão óbvia de a caixa estar tão cheia que a pressão sobre as dobradiças minúsculas era enorme. Sem que fosse necessário ordenar-lho, a pequena mulher chegou o candeeiro para mais perto, por forma que a sua luz incidisse directamente sobre a folha que Lydana alisava. Lydana leu as primeiras linhas e pela primeira vez a voz embargou-se-lhe.
- Vamos ter com a reverendíssima - disse, apertando a mensagem contra si enquanto deslizava para fora da cama.
Skita trotou na dianteira, de candeeiro na mão, Lydana e Shelyra logo atrás. Foi a mulher mais nova que afastou um painel de bordados brilhantes, abrindo espaço para que Lydana pudesse pressionar os pequenos fechos. No interior daquele palácio enorme e antigo existiam muitas passagens subterrâneas e os descendentes da Casa do Tigre aprendiam a utilizá-las desde a infância, sendo cuidadosamente instruídos na abertura de estranhas fechaduras, pressões, torções e nas voltas dos caminhos e escadas secretas.
Não andaram muito. Skita afastou-se para que a rainha batesse quatro vezes num painel macio encastoado na parede. Após uma pausa, este abriu-se. Na sua frente estava a mãe de Lydana e avó de Shelyra, a rainha-mãe Adele, que se encontrava no processo de passar da vida cheia da corte, para uma outra vida menos brilhante na aparência, mas com muito mais brilho interior, no Templo do Coração do Poder.
- Algum problema?
Na voz de Adele transparecia uma nota ofegante e Lydana questionou-se se teria razão para as suas apreensões. Os anos de Adele eram já muitos e os dois últimos anos de transição pareciam tê-la deixado exausta. Lydana sabia que Adele passava muito do seu tempo no templo e perguntava-se freqüentemente por que razão a sua mãe ainda continuava a ir à corte. Ao olhar para a pequena figura que se apoiava na moldura da porta para se manter erecta e para o rosto sombreado pela luz do quarto atrás de si, Lydana podia antever o seu próprio destino. Aqueles que não tinham conhecimento das suas vidas chamavam-lhes abençoadas; ela pelo contrário sentia muitas vezes que carregavam uma praga. Embora Adele parecesse ter acolhido a transição com uma alegria tranquila, continuava a agarrar-se à vida da corte e aquela vida repartida estava a esgotá-la.
Até à menopausa, todas as verdadeiras filhas do Tigre eram como as outras mulheres. Sim, tinham pequenos dons que exercitavam, se fossem sensatas. Mas quando a menopausa as atingia, iniciava-se a grande mudança: certos talentos adormecidos durante anos despertavam, forçando a sua detentora a usá-los.
Era então que aquela que governava a Casa e a própria Merina devia abdicar do poder temporal e trocá-lo pelo poder espiritual e ainda, segundo os rumores, tomar sobre si o fardo mais pesado de congregar as forças do outro mundo para a protecção comum.
Bem que precisariam dessas forças, pensou Lydana lugubremente, ao ver virar-se contra si todo o poderio da pior ameaça do seu mundo e do seu tempo. O que lhe trouxe a mensagem novamente à idéia.
- A Shelyra encontrou... Rosthen...
Viu as mãos da mãe erguerem-se no sinal da Bênção-aos-Mortos.
- Ele conseguiu, apesar das feridas, chegar ao quarto caminho. Trazia isto. - Deu-lhe o papel.
- Rosthen era o melhor dos nossos Olhos e Ouvidos – disse Adele. - Lê a mensagem pela qual, e para que a pudéssemos ler, ele deu a vida.
- Balthasar avança - não existe defesa contra as suas forças. Por trás dele está Apolon - um grande servo das Trevas. Apolon quer o Coração e todo o seu poder.
Adele inspirou profundamente, quase num suspiro. As suas mãos ergueram-se num gesto que lhes era familiar e os olhos da velha senhora cerraram-se. Procurava entrar em transe para melhor poder invocar os poderes em sua ajuda. Passou um minuto que lhes pareceu muito longo até que os olhos de Adele se voltassem a abrir e ela suspirou de novo.
- Assim seja - disse ela calmamente. - Merina viverá ou morrerá, dependendo da nossa decisão. Pensemos no que tem que ser feito e voltemos a encontrar-nos à terceira hora.
Lydana inclinou a cabeça, notando como a mãe usara distraidamente os horários do templo. Aqui os dias eram divididos em horas, começando a contagem na madrugada. Um encontro à terceira hora permitir-lhes-ia tomar o pequeno-almoço antes de chegar àquela que seria certamente uma decisão difícil. Shelyra pareceu querer falar, mas a tia franziu-lhe o sobrolho e ela manteve-se silenciosa. Regressaram aos aposentos da rainha pela mesma passagem secreta.
- Temos que mobilizar a guarda... as Guildas... – exclamou a rapariga, ainda o painel não se tinha fechado completamente nas suas costas. Lydana abanou a cabeça.
- Este imperador Balthasar é impiedoso. E neste momento tem o nosso mundo praticamente todo debaixo do seu punho de ferro. Filha, tu nunca viste uma cidade saqueada... o sangue de todos, até de crianças, correndo nas sarjetas, tortura, mortos aos milhares. É isso que queres para Merina? No ultramar assisti à conquista de uma cidade... - Os olhos da rainha fecharam-se por momentos e os seus lábios cerraram-se. - Era uma visão comparável à que poderá ter um condenado aos Infernos. Pensas que os nossos pequenos regimentos, cuja função é sobretudo o patrulhamento das nossas ruas, que os membros das nossas Guildas, sem qualquer treino, poderão fazer frente a um exército que não deixou senão vitórias no seu rastro?
Mas... - protestou a rapariga.
Lidana continuou impiedosamente. O melhor era a rapariga ouvir a verdade nua e crua e sem rodeios.
Balthasar cobiça Merina e o seu comércio próspero; isso já o sabemos há anos. Não pode ser comprado, pois quer ser o poder supremo em todos os locais onde se projecte a sua sombra. É essa a sua natureza. Agora, Rosthen (que os Anjos dos Guerreiros o levem, velozes, para o Local da Paz) trouxe-nos notícias bem piores. Já ouvi falar desse Apolon, mas muito pouco. Ele mantém-se nas sombras a coberto do trono do imperador e, talvez por isso mesmo, seja ainda mais mortífero. Se ele é detentor de poderes malignos, então pode mesmo influenciar de forma muito decisiva o homem que julga ser o seu senhor. Apolon quer o Coração... creio que Rosthen nos trouxe o pior dos avisos.
- Mas - a rapariga mexia agora no punho da sua faca mais longa - o Coração está para além de qualquer feitiço...
- O Coração tem agora as suas raízes na grande sacerdotisa Verit. Ela é poderosa... e tem como seus guardas os que se encontram nos claustros. Mas podemos muito bem estar perante a circunstância de uma única vida estar entre Apolon e aquilo que ele cobiça.
- Então, que havemos de fazer? Vamos carregar-nos com as correntes dos escravos e vamos saudar Balthasar deitados de rosto no pó?
- Fazemos o que a reverendíssima sugeriu: pensamos. Agora vai descansar, criança. Os problemas da manhã não tardarão a chegar.
Shelyra foi-se embora com visível relutância. Mas Lydana não voltou para a cama. Skita pousara o candeeiro numa pequena mesa e dirigira-se a um roupeiro alto, de onde tirou um fato muito semelhante ao de Shelyra. Atirou-o para cima da cama juntando-lhe uma capa e um par de botas. Lydana sorriu.
- Tens razão, minha fada guerreira, devemos também nós procurar conselho. Quando se procura aprender alguma coisa sobre armas deve-se ir ter com aquele que melhor as conhece. Que assim seja.
Vestiu rapidamente as roupas pretas, puxando o capucho da capa bem por sobre a cabeça. Skita tirara roupas semelhantes para si própria de uma caixa junto à porta. Não agarrou no candeeiro, pois não precisavam de luz para percorrer um caminho tão familiar e que tantas vezes as duas já tinham percorrido. Uma entrada estreita, degraus, uma porta baixa da qual se soltavam bagas de humidade. Chegaram então a um pequeno cais e entraram numa embarcação castanha e discreta, sem quaisquer insígnias; um barco igual a qualquer outro usado pelo mais comum dos mortais.
Os canais recortavam Merina. Embora a cidade não se debruçasse directamente sobre o mar, era um porto de primeira grandeza devido aos seus canais. Por outro lado, tornavam a cidade difícil de ser patrulhada de uma forma idêntica à que seria conseguida numa cidade inteiramente assente em terra. Lydana estava perfeitamente consciente de que contrabandistas e indivíduos com ocupações ainda mais obscuras conheciam bem os caminhos das águas. Assim como também tinha consciência da integridade da sua polícia e da sua lealdade ao Tigre.
Balthasar nunca tentara antes dominar uma cidade cruzada pelas águas. Era bem capaz de vir a descobrir que essa tarefa era mais difícil do que supunha. Pôs cuidadosamente de parte todas aquelas idéias na esperança de que amadurecessem bem e dessem os seus frutos.
SHELYRA
- Vai para a cama, criança - diz ela. Como se eu não comandasse todos os nossos espiões há mais de três anos! Como se a avó não tivesse posto o seu comando directamente na minha mão! Como se eu não tivesse sido aceite pelos Senhores dos Cavalos como uma chefe sua igual! Eles não me chamam “criança” e não me mandam para a cama!
Shelyra fervia de ressentimento, refugiando-se naquela emoção e evitando assim outros sentimentos...
Em primeiro lugar, o medo: um medo que lhe gelava a alma e a deprimia profundamente. A tia pensava que ela não compreendia a situação; e talvez até algumas horas atrás não compreendesse, de facto. Mas agora, o imperador Balthasar e os seus exércitos, que tudo conquistavam, tinham deixado de ser uma ameaça longínqua para passar a ser uma realidade.
Agora ele matara, não um estranho qualquer numa terra distante, mas alguém que ela conhecia, alguém com quem trabalhara, alguém que confiara nela; e fizera-o às portas da sua cidade.
Se o conseguira com tanta facilidade, que mais conseguiria?
Ou antes, o que não conseguiria ele?
Caminhava silenciosamente na sala grande e antiga, enquanto as poucas velas acesas àquela hora da noite projectavam manchas de luz cor de mel nas paredes e nos soalhos de madeira polida. A força do hábito fazia-a percorrer o salão para trás e para a frente de uma forma muito peculiar. Se alguém a observasse poderia pensar que estava embriagada com alguma bebida muito forte, não fossem os seus passos tão seguros.
Não estava nem embriagada nem cansada; limitava-se a evitar as tábuas que rangiam. Todo aquele átrio era em si próprio uma ratoeira para o ladrão, o assassino, o estranho; ninguém que não estivesse inteiramente familiarizado com o “átrio cantante” poderia evitar aquelas tábuas dispostas ao acaso. Ela conhecia cada uma dessas tábuas dos soalhos do palácio e também do Palácio de Verão, do outro lado do rio. Na verdade, não havia muita coisa que ela não soubesse acerca desses dois edifícios. Estava certa de que há muito extraíra todos os segredos dessas duas estruturas antigas e misteriosas.
Nem mesmo a avó ou a tia Lydana conhecem todos os segredos, as passagens, as frestas, as portas secretas...
Era uma criança pequena quando se lhe deparara a primeira das passagens secretas, descobrindo uma forma de sair do quarto das crianças que mais ninguém parecia conhecer. Uma via de fuga para quando ela devia estar a dormir, ou quando a fechavam ali, afastando-a das actividades fascinantes dos adultos; a descoberta ganhara para ela mais importância do que brinquedos ou rebuçados e decidira descobrir mais segredos daqueles.
Por fim, a sua avó Adele mostrara-lhe todas as passagens secretas que ela conhecia, mas as explorações da própria Shelyra mais do que duplicaram esse conhecimento. Utilizou um dos seus segredos quando ia a meio do átrio, esgueirando-se para um canto repleto de sombras; ela própria uma sombra entre as restantes. Introduzindo três dos dedos da mão direita no centro de três flores entalhadas na madeira, empurrou ligeiramente, enquanto puxava com a mão esquerda uma outra secção do painel. Este, inteiro, girou silenciosamente em torno de uma coluna, permitindo-lhe passar para dentro da parede oca.
Com um ligeiríssimo clic o painel fechou-se de novo, deixando-a envolta na escuridão profunda e aveludada da passagem secreta. Uma vez na segurança do interior da parede, descontraiu-se ligeiramente. Mesmo que o imperador tivesse conseguido introduzir espiões na Casa do Tigre, eles nunca conseguiriam seguir os seus movimentos ali dentro.
Sou um rato dentro das paredes. Ou, talvez, uma serpente, com dentes muito afiados.
A mão direita acariciou o punho da sua faca mais comprida, um presente dos Senhores dos Cavalos, e estendeu a mão esquerda até tocar na parede da passagem antes de avançar com confiança na escuridão. Ali o soalho não rangia, evidentemente. Não havia quaisquer frestas por onde pudesse espreitar naquela passagem que conduzia até ao seu quarto, dando voltas e reviravoltas por forma a contornar as salas que se encontravam no caminho. Sorriu para si própria, ainda que sem qualquer traço de humor. Nem a tia nem aquela estranha miniatura de mulher, que era a sua criada, tinham ainda descoberto como é que ela conseguia entrar e sair quando queria dos aposentos da rainha sem ser descoberta.
Não sou um rato nem uma serpente. Sou um espírito da escuridão, um sonho, uma visão que assombra o palácio, vou para onde quero, envolta e protegida pelas sombras.
Um orgulho sedutor; mas aquela não era altura para orgulhos nem caprichos. A sua mão deslizou pela superfície polida da parede interior, deixando-a antever as curvas, mesmo que tivesse perdido a conta dos passos que as mediavam. Ocasionalmente a passagem parecia não ter saída; essa era uma impressão ilusória e certamente enganaria qualquer um não familiarizado com as passagens secretas. Aqueles becos sem saída constituíam os únicos locais onde a parede era trespassada por uma porta; as suas mãos procuraram as reentrâncias escavadas para pôr os pés e as mãos e trepou, rastejando depois ao longo do topo da moldura da porta e voltando a descer sem sequer pensar no que fazia.
Na verdade, sentia-se ferver de ansiedade e frustração. Mentalmente estivera pronta para a batalha; parecia-lhe que a sua tia se preparava para entregar mansamente todo o seu reino.
Temos que lutar. Certamente que teremos que lutar! Mas como?
Como a tia dissera, Merina não tinha exército, nem nunca tivera. Os reis e rainhas do passado tinham confiado em alianças sagazes, subornos, chantagens e, ocasionalmente, no aluguer de forças mercenárias para manter o reino a salvo das traições de outrem. Quando os governantes de Merina não conseguiam comprar a segurança da sua cidade, conseguiam assegurar essa segurança através da utilização judiciosa das informações reunidas por uma rede de espiões que podiam muito bem causar inveja aos monarcas de reinos muito maiores.
Mas como a sua tia Lydana fizera notar com muito acerto naquela noite, nada nem ninguém se conseguiria opor com sucesso à ameaça que o imperador Balthasar tinha suspensa sobre eles naquele momento. A contra-informação não resultara, assim como não resultara a chantagem, e Shelyra instruíra os seus agentes para tentar ambas. Não que Balthasar tivesse levado uma vida imaculada, mas o poder que detinha sobre as suas terras e o seu povo era tão absoluto, que era pura e simplesmente impossível fazer chantagem com ele, pois ele não se importava com quaisquer informações que pudessem ser reveladas sobre a sua vida. Na verdade, quanto piores eram os factos revelados, mais ele parecia achar a situação... divertida.
Sobravam apenas o suborno e as alianças. Mas os aliados já tinham sido vencidos, ou tremiam de medo, esperando a sua vez. Quanto aos subornos, bem, porque haveria o imperador de aceitar o pagamento de um suborno quando podia ficar facilmente com tudo o que cobiçava?
A rainha fizera tudo ao seu alcance para evitar esta situação, quer aberta quer dissimuladamente. Só não se tentara o assassínio e essa não era uma possibilidade a ter em conta. Não importava o sangue que o imperador tivesse a sujar as suas mãos, assassiná-lo ou planear assassiná-lo mancharia as suas almas. O assassínio era um pecado terrível e não devia ser seriamente contemplado como solução. As três tinham concordado sobre essa questão.
Apesar de parecer que eu e a tia não conseguimos concordar sobre muito mais.
Lydana insistia em ver Shelyra como uma criança exaltada, descontrolada e impulsiva. Bem, ela fora tudo isso, mas um ano com os Senhores dos Cavalos modificara-a. Continuava a ter o sangue quente, mas embora pudesse dar largas à sua fúria em privado, já não agia sob o seu impulso, nem sequer a revelava em público. Conseguia planear as suas acções com o mesmo calculismo de Adele e com tanta perícia como Lydana; sim, e realizar os seus planos também!
Mas a rainha continuava a não ver como ela mudara; continuava a ver nela apenas a criança cujas travessuras tinham repetidamente levado o caos ao palácio. E também não via como a sua atitude imutável exasperava a sobrinha e fazia vir ao de cima o seu famoso temperamento exaltado, levando-o ao paroxismo, uma e outra vez.
É estranho como as pessoas podem gostar tanto umas das outras e compreender-se tão pouco!
Shelyra sabia que ela certamente não entendia a sua tia; o misticismo da avó era fácil de
entender, embora não o partilhasse, mas a atitude da rainha relativamente ao Coração e a tudo aquilo que este representava era intrigante. Por vezes agia como se fosse crente e, no entanto, não admitia a sua fé. Como se a própria idéia a embaraçasse. Quanto à própria Shelyra... bem, nunca vira um anjo e já não esperava ver. Existiam explicações perfeitamente racionais para tudo aquilo que acontecia nos claustros e quanto ao resto... isso não lhe interessava. Coisas práticas, isso sim... isso interessava-lhe. Coisas como... como defender a sua cidade! E como assegurar a sua própria segurança no processo. Que a avó invocasse anjos e ministros da Graça em sua defesa... Selyra confiaria nos Senhores dos Cavalos e na sabedoria cigana.
As mãos tacteantes de Shelyra tocaram naquilo que era, de facto, o fim da passagem: o fim daquela passagem, a porta oculta que dava para os seus próprios aposentos. Mas fez uma pausa antes de soltar o fecho e abrir a porta escondida no espaldar da cabeceira da sua cama.
Tem que haver alguma coisa que eu possa fazer agora.
Iria ser uma noite longa e insone. De qualquer forma, não iria conseguir adormecer.
Cada vez que fecho os olhos, vejo... o corpo...
Estremecimentos convulsivos abalaram-na por instantes e a náusea provocou-lhe espasmos, tirando-lhe a respiração. Engoliu com dificuldade e encostou-se à parede procurando amparo, os joelhos ameaçando ceder sob o seu peso.
Esta não é a primeira vez que vejo alguém morto – recordou novamente a si própria.
Já tinha visto o pobre Taz, que foi espezinhado por uma manada espantada... a criada que caiu repentinamente morta no meio do átrio... Finalmente, recuperou o domínio sobre si própria, endireitou-se e pensou nas horas à sua frente.
Pensar no futuro: como se poderia lutar numa cidade que se tivesse rendido? Lutar na sombra? Utilizar estratégias de ataque e fuga?
Qualquer guerra travada em Merina teria que ser travada secretamente. Entre os guardas e os membros das Guildas que pudessem ser persuadidos a mostrar alguma coragem, uma guerra de contínuo atrito poderia ser bem sucedida nas ruas e nos canais. Shelyra tinha que partir do princípio que o Grande Palácio seria invadido, evidentemente... mas o Palácio de Verão não era uma estrutura tão atraente para os conquistadores e situava-se do outro lado do rio. Uma vez tomadas as pontes, o Palácio de Verão ficaria, teoricamente, inatingível a partir da cidade. Sorriu sem alegria.
Isso era o que eles pensavam!
Mesmo a sua tia não sabia muita coisa, embora suspeitasse que Adele tivesse conhecimento da passagem por baixo do rio, entre uma certa ponte de pedra e o Palácio de Verão.
Certamente que a avó sabe da existência da passagem gémea dessa e que leva do palácio ao templo.
Shelyra não fazia a mínima idéia como fora a passagem construída através da rocha sólida do leito do rio e por que razão; a passagem era mais antiga do que a ponte e certamente tão antiga como o Palácio de Verão.
Partiria, então, do princípio que haveria uma guerrilha clandestina entre os invasores e os nativos. Nessas circunstâncias haveriam coisas que ela quereria, não, de que precisaria, que estavam ali e no Palácio de Verão, e tinha de as conseguir esconder em segurança para o caso de os invasores acabarem por tomar o Palácio de Verão. E qual seria o esconderijo mais seguro? O próprio Palácio de Verão! Mesmo que o palácio fosse ocupado, existia um palácio no interior do palácio...
Ou antes, existiam certas câmaras secretas, onde se chegava apenas através das passagens secretas; câmaras que não tinham sido perturbadas durante uma dúzia de gerações até se terem deparado a Shelyra. Porque razão alguém a procuraria, a si ou aos seus segredos, no interior do Palácio de Verão quando este fosse capturado?
Muito bem. Tinha um objectivo, pelo menos para essa noite, e provavelmente para as poucas noites que se seguiriam até que o exército do imperador chegasse finalmente. Estabeleceria esconderijos e vias de fuga para si própria, recheá-las-ia de dinheiro e outras coisas necessárias, deixaria ali os seus disfarces. E teria que trabalhar com rapidez.
Felizmente, a maior parte das coisas de que necessitava já estavam no seu armeiro no Palácio de Verão. Aquilo de que precisava dali, podia ser transportado numa só mochila.
Soltou o fecho, e o painel central do espaldar da cama deslizou para um lado, permitindo-lhe rastejar para fora da passagem por cima das almofadas até ao colchão. A cama de penas não a tentou minimamente. Uma luz de presença estava acesa ao lado da cama, alumiando o quarto com uma luz que parecia tão brilhante como o dia a quem, como ela, acaba de passar tanto tempo na escuridão de breu das passagens secretas. Saiu da cama e dirigiu-se imediatamente ao enorme armário que ocupava uma parede inteira. Abriu a porta situada mais perto da parede, tirou uma mochila de pele do seu equipamento de caça e, abrindo um compartimento dentro do armário, ignorou o guarda-jóias e a colecção de vestidos sumptuosos que ali estava pendurada.
Mais tarde levarei algumas das jóias... mas só aquelas que possa trocar facilmente.
Os vestidos brilhavam suavemente à luz quente da vela, numa exibição de luxo que, em circunstâncias normais, seria suficiente para fazer bater o coração feminino mais empedernido. Shelyra correu a mão, por instantes, pela manga aveludada de um vestido cor de safira, com alguma pena. Provavelmente passar-se-ia muito tempo até ter oportunidade de voltar a vestir um fato daqueles, se é que alguma vez a teria.
Depois, concentrou-se no compartimento de madeira de castanho. Aquele compartimento deveria ficar vazio se os invasores ocupassem o palácio, pois ali estavam os segredos que duvidava alguém suspeitasse estarem na sua posse, a não ser aqueles que lhos tinham confiado.
Os segredos que o curandeiro dos Senhores dos Cavalos e os ciganos da cidade lhe tinham ensinado alinhavam-se no interior do compartimento, cada um na sua pequena ampola própria ou na sua bainha de pele. As ampolas faziam lembrar perfumes; inócuos... e, no entanto, mortíferos. Pelo menos, alguns deles.
E perto deles estavam os meios necessários para os utilizar e ainda outras estranhas armas e o restante equipamento de que as suas incursões nocturnas necessitariam. Movia-se com rapidez e segurança, enchendo a mochila até esta quase transbordar e fechando finalmente a tampa com esforço. Recuou e examinou o compartimento com satisfação. Não havia ali qualquer sinal de que a princesa Shelyra, herdeira da Casa do Tigre, fosse outra coisa que não uma jovem aristocrata perfeitamente vulgar, com um vago interesse pela caça.
Muito bem. Mas são capazes de desconfiar de um compartimento vazio...
Agarrou em todos os frascos e potes que estavam no toucador e alinhou-os nas prateleiras.
Pronto. Assim está melhor. Não existe nenhuma razão que me impedisse de manter os cosméticos e perfumes valiosos longe do alcance dos criados. Afinal são produtos muito caros, e eu não quereria que os criados da casa lhes tivessem acesso.
Olhou mais uma vez em torno do quarto, assegurando-se de que não deixara vestígios da sua “verdadeira” personalidade.
Fora rápida e eficiente. Não havia nada ali, nem mesmo nos muitos esconderijos existentes no quarto e na mobília que o recheava, que pudesse fornecer uma pista relativamente à verdadeira natureza de Shelyra. Que Balthasar e os seus agentes procurassem uma princesa mimada quando ela desaparecesse; procurariam em vão.
Está na hora de ir.
Pendurou a mochila num dos ombros e dirigiu-se a uma outra secção da parede, junto à lareira. Uma parte do grande painel de azulejos deslizou e ela curvou-se e desapareceu no seu interior. Tinha muito que fazer... e dispunha de pouco tempo até amanhecer.
ADELE
Depois das outras terem saído, Adele voltou para a cama, deslizando para baixo dos cobertores quentes e dos lençóis macios com sentimentos muito contraditórios.
Sentia o amargo do medo pelo que lhe pudesse acontecer; a dor aguda da ansiedade em relação à filha e à neta... mas, por detrás de tudo isso, sentia um certo alívio, e não apenas por o tempo de espera estar a chegar ao fim.
Desejara inúmeras vezes poder deixar a vida na corte e devotar-se inteiramente à sua vida no templo e agora o seu desejo realizar-se-ia. Dentro de poucos dias, no máximo uma semana, poderia tornar-se verdadeiramente na religiosa Elfrida. Adele desapareceria para sempre, e com ela todos os problemas e a exaustão provocada pela identidade dupla. Mas os custos eram terríveis. Nada voltará a ser como dantes.
Virou-se de lado e aninhou a cabeça num braço. Queria chorar, chorar pela sua cidade, bem como por si própria e pela sua família. Fosse o que fosse que viesse a acontecer, algo se perderia. Vidas, bens... Privados da sua batalha, os homens de Balthasar arranjariam problemas. A única certeza que tinha era que os custos seriam menores do que os resultantes de uma batalha, quer em termos de vidas, quer em termos de dor.
Mas havia um problema, agora relativamente menor à luz da ameaça que pesava sobre as suas cabeças, que tinha sido resolvido, e essa era a causa do sentimento de alívio que começava a desaparecer.
Sabia que Lydana se tinha interrogado quanto às razões que levariam a sua mãe a levar uma vida dupla, porque não se teria limitado a entrar para o templo há dois anos atrás. Lydana não percebia, e Adele não queria elucidá-la, que a rainha que agora governava não era adequada para o templo, nem sequer para sua chefe secular. E, como se isso não fosse suficientemente mau, Shelyra era ainda pior no que dizia respeito a questões espirituais.
A minha querida família... como poderiam elas entender? Mas como poderia eu deixá-las assumir o comando de algo que não poderiam controlar? Aquele par está tão preparado para lidar com questões espirituais, como as ovelhas estão preparadas para voar.
Como sempre, o facto de pensar nisso fez com que um nó se lhe formasse na garganta e descesse sobre si a sensação de que, de alguma forma, fora enganada. Depois sacudiu esses sentimentos. Não fora enganada; Lydana e Shelyra tinham personalidades próprias e ninguém tinha o direito de partir do princípio que seriam cópias mais jovens da própria Adele. E, no entanto... desde que havia registro, as mulheres do Tigre tinham tido sempre aquele algo interior que fazia delas verdadeiras filhas da Deusa, e era muito difícil aceitar como justo que essa tradição inquebrantável fosse quebrada justamente agora.
E, não obstante, fora-o. Nem a princesa nem a rainha eram indicadas para ocupar a cadeira junto ao altar. Isso tornara-se absolutamente claro para Adele cerca de cinco anos antes, quando tinham saído juntas da cidade numa caçada. Iam as três um pouco na dianteira dos seus acompanhantes quando um anjo apareceu na sua frente. Adele viu e ouviu-o claramente, mas Shelyra comentou que o veado branco era demasiado belo para ser morto e tentou assustá-lo antes que os restantes caçadores se aproximassem.
O anjo desapareceu, com um ar divertido, e Adele perguntou-se se o facto de Shelyra ser filha do seu filho, e não da sua filha, seria o que a impedia de ter reconhecido no anjo aquilo que de facto ele era. Mas quando interrogou Lydana, percebeu que tudo o que a sua filha vira fora uma luz brilhante! Foi muito perturbador para Adele descobrir que as suas herdeiras eram cegas e surdas no que respeitava às mensagens da Deusa. Como poderia qualquer delas sentar-se no trono junto ao altar, ao lado da grande sacerdotisa, quando não dispunham da visão que lhes permitiria ver o que acontecia mesmo à frente dos seus olhos?
Virou-se, contraindo-se quando as suas costas a avisaram de que aquele movimento fora demasiado abrupto. Se eu fosse a responsável por uma carruagem poderia passar as rédeas a alguém incapaz de ver os cavalos, perceber os cavalos, e que nem sequer estivesse certo da sua existência?
Lydana aceitou com relutância o governo secular de Merina quando o irmão morreu, mas o seu desconforto, sempre que o assunto era mencionado, fizera Adele perceber que haveria rebanhos de ovelhas a voar por cima da torre do templo antes dela aceitar com alegria as tarefas não seculares. Assim, embora tivesse entregue o reino a Lydana, Adele mantivera a posição de chefe secular do templo. Esperava que o tempo melhorasse a situação para Lydana, ou que a sua filha descobrisse subitamente ter vocação. Nada disso ocorrera. Quando chegava a altura de uma qualquer cerimónia no templo, Lydana agia como um rapazinho obrigado a ficar em casa a brincar com as irmãs mais novas: contraída, ressentida, e desejando do fundo do coração estar noutro sítio qualquer.
Agora nenhuma delas manteria a sua posição; a chegada de Balthasar fizera com que isso acontecesse. Uma pontada de pena atravessou-a, tão forte como uma dor, e os olhos arderam-lhe cheios das lágrimas que não verteu.
Perda, perda e mais perda. As coisas estavam à beira de sofrer alterações drásticas e não conseguia prever qual a direcção que essas mudanças tomariam, nem qual seria o resultado dessas
transformações.
Por momentos, sentiu a garra gélida do medo cerrar-se em torno da garganta. As certezas da sua vida, que tinha progredido exactamente como ela planeara, estavam a ser-lhe roubadas. O imperador Balthasar era como as marés: nada o poderia deter pelo menos no presente. As mudanças não lhe eram estranhas, mas sempre mudanças que ela própria orquestrara. Agora estava tudo fora das suas mãos. Não as conseguia controlar, nem prever os seus resultados.
Suportou o frio do medo durante mais alguns momentos e depois, resolutamente, sacudiu-o. Certamente Lydana planeava naquele exacto momento uma fuga a coberto de um qualquer disfarce... e quanto a Shelyra, as suas incursões por entre os clãs dos ciganos providenciavam-lhe inúmeros aliados a quem poderia recorrer. Provavelmente ambas já se teriam esgueirado para fora do palácio, planeando as suas vias de fuga e providenciando locais que servissem de esconderijo. Teria sido exactamente o que ela teria feito se fosse mais nova. Na realidade, a sua dupla identidade serviria agora um objectivo muito maior do que aquele que ela antecipara.
Quando ela desaparecesse, o imperador poderia muito bem procurar uma nova religiosa entre todas as outras e, caso esta existisse, partir do princípio que seria ela. Mas a religiosa Elfrida servia no templo há já dois anos; ela não era nova no templo e era familiar a todos os outros religiosos. Mesmo que o imperador tivesse espiões no templo, não teria qualquer razão para pensar que a religiosa Elfrida e Adele fossem uma só. Poderia mesmo encenar a sua própria morte... na verdade, essa não era uma má idéia. O imperador não teria razões para procurar uma mulher que supusesse morta.
Esperava que os planos de Lydana e Shelyra fossem igualmente seguros. Certamente que Shelyra já estabelecera uma identidade nos clãs ciganos há muito tempo; uma identidade que Lydana não conhecia de todo. Se a rainha tivesse conhecimento disso, era bem capaz de ficar totalmente horrorizada só com a idéia.
Mas se Shelyra e Lydana tivessem disfarces tão perfeitos como o de Adele, e formas de sair do palácio tão eficazes como uma morte simulada, talvez as coisas não fossem tão negras.
E, provavelmente, nenhuma delas pensa por um momento sequer que eu posso adivinhar quais os seus planos.
Que seria que dava nos mais jovens, que os fazia ter a certeza de que podiam esconder as suas actividades dos mais velhos? Ela conhecia o brilho que vira nos olhos de Shelyra, o brilho que pressagiava uma noite em branco. E conhecia também a expressão correspondente nos olhos de Lydana, a opacidade súbita, que lhe anunciava que a sua filha estava a planear qualquer coisa que pensava poder não merecer a aprovação da mãe. Conheço-as desde que nasceram e elas conhecem-me há menos de metade desse tempo; será que não lhes ocorre, a nenhuma delas, que
eu tenho mais prática a decifrar as suas intenções, visto que as conheci quando ainda não eram capazes de as ocultar?
Bem, sem dúvida que a sua mãe pensara o mesmo a seu respeito.
Planearemos, conspiraremos e nós, as mulheres do Tigre, encontraremos uma forma de derrotar este imperador a partir do interior das suas próprias conquistas.
Ainda não tinham sido derrotadas. Esta era, como é que dizia um dos chefes dos mercenários?: uma “retirada estratégica.”
Havia outras formas de derrotar um exército para além de o defrontar cara a cara. Uma guerra travada em pequenas escaramuças, a partir do território que se pensava estar conquistado,
era sempre mais desgastante do que uma confrontação directa. Se arranjassem problemas suficientes a Balthasar aqui nesta cidade, talvez os distúrbios alastrassem às suas outras conquistas e estas começassem a resistir-lhe de forma semelhante. Era impossível travar batalhas em cem pequenas frentes; até ela sabia isso.
As pernas contraíram-se-lhe e depois ficaram em repouso, quando finalmente conseguiu descontrair os músculos. Enquanto uma delas fosse viva, haveria a esperança de que algo pudesse
ser feito. Tinha que manter isso presente no espírito. Sim, Balthasar era tão inexorável como a maré. Mas as marés vazavam tantas vezes quantas enchiam. As mulheres do Tigre desapareceriam e quando a maré de Balthasar entrasse na vazante, estariam prontas. E, por agora, Adele iria dormir.
LYDANA
Tinham-se mantido afastadas dos caminhos mais bem iluminados, mas foram forçadas a aproximar-se da luz quando chegaram perto do seu objectivo: A Estalagem do Dragão Marinho. Havia um guarda no cais junto à estalagem. Enquanto Lydana erguia os remos com perícia, deixando o barco deslizar, Skita atirou uma corda ao guarda. Este agarrou-a mecanicamente com uma das mãos, mas manteve a outra junto ao punho da espada.
As mãos de Lydana eram muito brancas em contraste com o negro da sua capa e os seus dedos entrelaçaram-se num determinado gesto. Ele assentiu e ajudou-as a desembarcar, desviando-se para um dos lados enquanto elas entravam na estalagem. Esta estava iluminada por um candeeiro, mas elas mantiveram as capas bem chegadas ao rosto enquanto Lydana abria a porta.
Embora já fosse tarde, ainda havia clientes sentados às mesas, os cornos de beber na mão. E o refrão de uma canção obscena, cantado por vozes muito pouco afinadas, assaltou-lhes os ouvidos. As recém-chegadas não fizeram sequer menção de entrar na sala maior, esgueirando-se até à escada que levava ao andar de cima. O átrio do andar superior estava iluminado por um único candeeiro colocado bem ao fundo, mas Lydana não teve dificuldade em encontrar a porta que pretendia. Bateu ao de leve e segundo um padrão específico. As paredes eram suficientemente robustas para que não se ouvissem os movimentos do interior, mas a porta abriu-se e a luz de um candeeiro bem levantado revelou o homem de pé no interior do quarto. Lançando-lhes apenas um olhar de relance, fez-lhes sinal para que avançassem, e elas entraram para o quarto decentemente mobilado de uma das melhores estalagens de Merina.
- Vossa Alteza... - Curvou-se. - Senhora Skita... – Com um movimento da mão indicou uma cadeira junto à lareira e um banco ao seu lado.
Aparentemente não o tinham apanhado a dormir o sono dos justos, pois embora a sua camisa estivesse aberta no peito, estava cuidadosamente entalada no cós dos calções. Contudo, tinha trocado as botas por uns sapatos de quarto mais macios.
Era um homem alto, de cintura estreita, mas ombros largos, de movimentos rápidos e seguros. Os seus cabelos ondulados eram curtos pelos padrões da cidade e tinham um tom entre o castanho-claro e o louro-escuro, que ao sol ficava cor de ouro, como Lydana muito bem sabia.
Uma cicatriz desenhava uma linha fina que ia da sobrancelha à raiz do cabelo no lado esquerdo do rosto, mas isso não desviava a atenção das linhas fortes do maxilar, da linha resoluta dos seus lábios, nem da firmeza do olhar de um verde marinho.
No conjunto era um homem bem parecido, quase a atingir a meia-idade, que se comportava com a segurança de alguém habituado a dar ordens e... a ser prontamente obedecido.
Lydana desapertou a capa e deixou-a cair sobre o espaldar da cadeira atrás de si. Quando ele fez menção de encher um copo com um jarro que estava em cima de uma pequena mesa, ela abanou a cabeça numa recusa.
- Há problemas. - Disse-o mais em tom afirmativo do que interrogativo.
O arreganhar de lábio com que Lydana respondeu dificilmente poderia passar por um sorriso.
- Quando é que não tem havido nestes últimos anos? - respondeu. - Mas agora... não, capitão Saxon, agora parece que aquilo com que nos defrontamos é uma escolha amarga... ou Merina passa para as mãos de Balthasar sem desferir um único golpe, ou será entregue às suas tropas para que dela desfrutem a seu bel-prazer.
O homem assentiu.
- É uma escolha que sempre esteve perante nós, nestes últimos anos. Lutar por uma causa perdida desde o início não nos trará qualquer vantagem. Mas... não existirá outra saída, Vossa Alteza? Posso levar-vos a vós e àqueles em quem confiais para fora da cidade e atravessar o mar até um local onde talvez possais pedir ajuda...
Agora o sorriso dela era aberto e amargo.
- Que ajuda? Mesmo as gentes de além-mar tremem um pouco quando lhes parece ouvir as trompas de guerra de Balthasar. Para além disso nós, os da Casa do Tigre, juramos manter-nos nos nossos postos nos bons e nos maus momentos há mais de cem gerações. Vós mesmo, capitão, vencestes os piratas de Rapparian que rondavam as nossas rotas para sul... mas Balthasar não comanda uma colecção desirmanada de capitães bons para a forca, suficientemente gananciosos para se juntarem e tentarem atacar-nos. Não estou a minimizar a Batalha de Ourse, capitão... é um dos nossos mais brilhantes triunfos dos últimos anos. Mas...
Ele encostara-se ao tampo da mesa com os braços cruzados sobre o peito. O seu rosto espelhava uma concentração profunda.
- Mas... - incitou-a ele. - Não, não vos incitarei a nenhuma fuga, rainha Lydana, pois não está na natureza dos da vossa linhagem fugir ao sinal de perigo. Se não podeis lutar, e não quereis fugir... então que tendes em mente?
Ela já não o olhava nos olhos, mantendo o olhar colado ao pesado anel de sinete que adornava o indicador da sua mão direita, fazendo-o girar com a mão esquerda.
- De manhã reuniremos o Conselho. Contudo, esta noite soubemos de mais uma coisa. Esse mago Apolon, que murmura ao ouvido de Balthasar, também tem um objectivo aqui em Merina. O Grande Trono do Coração, nem mais nem menos. E a sua lealdade é para com as Trevas. A reverendíssima está à beira de se retirar. Os seus poderes são crescentes, mas desenvolvem-se lentamente. Resto eu e a herdeira.
- A quem Balthasar terá sob a sua mira! - O seu queixo lançava-se agora para a frente, como se estivesse pronto a defender a sua senhora.
- Se... nos conseguir encontrar. Bem - inclinou-se um pouco para a frente, continuando a acariciar o anel – como sabeis eu sou artesã, dei provas da minha arte na Guilda dos Joalheiros. Tenho, portanto, um mister com a ajuda do qual me posso esconder...
- Podeis esconder-vos! - Ele quase soltou uma gargalhada. - Seríeis apanhada no momento em que aparecesses ao balcão de qualquer comerciante de pedras preciosas!
Ela ria-se agora abertamente.
- Manhas de mulheres, artes femininas, capitão. Tenho as minhas próprias formas de tratar desse assunto. Mas há Shelyra, que tem que sair da cidade. Ela é jovem, tem a cabeça e o coração quentes, e ainda não prestou provas em nenhuma arte.
- Gostaríeis que eu a levasse... - começou ele a dizer.
Lydana abanou a cabeça.
- Ambos sabemos muito bem que Balthasar não é estúpido. Ele terá vigias no mar para apresar qualquer navio que saia do porto nas próximas semanas. Não, tenho outros planos para ela. Agora - ergueu mais uma vez os olhos, mirando-o de alto a baixo - apelamos a vós, capitão Saxon. As Guildas fizeram de vós capitão do porto, e muito justamente, depois da Batalha de Ourse. O selo do meu pai, foi praticamente a última vez que ele o usou, está no decreto que vos concede o título que não quisestes aceitar. Mas conheceis os caminhos fluviais da cidade, do rio e do mar. Balthasar desloca-se com o seu exército. Um exército tem que ser alimentado, vestido, armado. Essas provisões estarão em constante movimento. Provavelmente, ele pensará que esses aprovisionamentos chegarão mais rapidamente por via marítima do que por terra, ainda mais quando tiver conquistado a nossa frota. Mas o mar esconde muitos perigos... como vós muito bem sabeis, capitão Saxon.
Agora o sorriso dele abrira-se totalmente.
- Absolutamente correcto, Vossa Alteza.
- Alguém que lidou com piratas,sabe certamente muitos dos seus truques, ou nunca teria conseguido vencê-los.
- É verdade, Vossa Alteza.
- Bem, o nosso tempo escasseia, capitão. Devo deixar-vos com os meus melhores desejos...
Estendeu-lhe a mão e ele, com a elegância de um cortesão, beijou a mão que ela acariciara durante todo o encontro.
- Se eu tiver que vos enviar uma mensagem - pegara na capa, mas segurou-a por instantes antes de se voltar a cobrir com ela - bem, há confessionários no Grande Templo e... - Hesitou. - Aquele ou aquela que procurarem a confissão podem muito bem fazê-lo no terceiro confessionário à direita do Supremo Coração.
Ele assentiu.
- Muito bem. - Mas quando ela fez menção de se dirigir à porta, ergueu a mão como se erigisse uma tênue barreira. - Rainha minha, aqueles que fazem um jogo tortuoso é como se caminhassem pelo fio de uma navalha à beira de um precipício. Tomai todas as cautelas que puderdes; conheço o temperamento dos membros da vossa casa e a força dessa linhagem. Tende cautela...
Mais uma vez os seus olhares cruzaram-se e ela dirigiu-lhe um sorriso de boa vontade.
- Podeis estar certo, capitão, que assim farei. E no que vos respeita a vós, tomai também vós todos os cuidados... não podemos perder alguém como vós, por azar ou má sorte.
Estavam de volta à embarcação e dirigiram-se novamente para o canal, quando Skita quebrou o silêncio.
- Senhora, se ficardes em Merina, esse imperador filho de uma porca virará a cidade de pernas para o ar à vossa procura.
- Sim, é o que ele fará, talvez, mas procurará Lydana, a rainha. E essa, não a encontrará. Skita, estou certa ao dizer que o Thom Talesmith está neste momento nas masmorras da Torre da Água?
- Que quereis com alguém da laia dele, senhora? Ele é tão escorregadio e tortuoso como uma cobra.
- É verdade. Mas mesmo as cobras têm o seu lugar no mundo. Ele é o mais engenhoso dos ladrões, o mais ardiloso dos espiões, e... foi aceite pelos Senhores dos Cavalos. Ouvi mesmo dizer que ele fez um pacto de sangue com um dos seus chefes menores. Está a chegar a época em que eles vêm a Merina para negociar. São bem capazes de se manter afastados quando souberem dos planos de Balthasar. Por outro lado, os exércitos precisam de montadas frescas em grande número e por isso eles são capazes de ter outras idéias a esse respeito. Esta noite, Skita, vais levar uma mensagem minha à Torre da Água.
Lydana começara a sentir a mesma excitação que a atingia quando planeava um negócio vantajoso com um dos seus pares da Guilda. Os seus planos, não totalmente elaborados, começavam a aprofundar-se e a encaixar uns nos outros, num padrão intrincado. Impulsionou a embarcação por forma a que esta se movesse com maior rapidez.
SHELYRA
Tinham-se passado dois dias desde que as más notícias lhes tinham chegado e Shelyra não tivera um momento de descanso desde que isso acontecera. Felizmente para Shelyra, o cargo de herdeira consistia praticamente no título e não tinha muitas tarefas atribuídas; e aquelas que lhe pertenciam eram sobretudo de natureza protocolar. Precisava de cada momento de que podia dispor para levar a cabo os seus preparativos. Quando Balthasar chegasse, não a encontraria desprevenida.
Escondera roupas, mantimentos e pequenas quantias de dinheiro junto a cada uma das saídas secretas do palácio. A sua tia também tinha algumas saídas preferidas e ela deixou essas em paz. Não queria que a rainha soubesse quão bem preparada para a fuga a sua sobrinha estava. Não tinha quaisquer dúvidas de que ela estaria a preparar a sua própria fuga e locais onde se esconder
Lydana não era tão idiota que ficasse à espera na sala do trono do palácio até que Balthasar viesse ocupá-lo! Não, a sua tia tinha plena consciência da sorte que a esperaria como a todfos os governantes, mesmo que estes tivessem abdicado voluntariamente. Se Balthasar estivesse a sentir-se generoso, limitar-se-ia a colocá-la sob uma forma qualquer de prisão domiciliária, tornando-a num ornamento da sua corte; sempre vigiada com suspeição e mantida apenas a um passo da mais total indigência. A tia nunca conseguiria tolerar tal situação. Enlouqueceria.
Quanto a Shelyra... bem, não iria permitir que ninguém, nem mesmo a rainha, decidisse a sua sorte. Havia sempre a hipótese de Lydana a tentar enviar para o templo. Se tal acontecesse, Shelyra seria provavelmente forçada a ir, mas não contava ficar por lá muito tempo. Já preparara tantas vias de fuga que, a não ser que a acorrentassem numa cela do templo, se poria em fuga no primeiro momento de desatenção daqueles que a vigiassem.
O esconderijo no Palácio de Verão também já estava bem guarnecido com água e comida, bem como roupas, armas e as suas “reservas especiais”. Poderia ficar ali escondida durante uma semana ou mais em caso de necessidade.
Mas agora tinha mais uma tarefa a desempenhar, e de acordo com todos os relatórios, o enviado de Balthasar chegaria no dia seguinte com o seu ultimato. Não tinha tempo a perder nos preparativos finais. Ela poderia viver permanentemente escondida nas passagens secretas, mas não queria fazê-lo. Queria lutar contra Balthasar e, para o fazer, teria que poder andar pela cidade.
Desta vez foi até aos estábulos sem fazer qualquer esforço para se ocultar, vestida com um bonito fato de montar de um belo veludo verde. Mas, uma vez ali chegada, dirigiu-se a um pequeno compartimento escondido por debaixo do soalho da sala dos arreios, trocando o fato de montar pelas roupas de uma criada de categoria intermédia. Escolhera o fato com todo o cuidado, decidindo encarnar uma personagem que não fosse impedida de sair dali e a quem não fizessem perguntas. Foi a criada quem saiu dos terrenos do palácio, montando um pequeno pónei
de pelo comprido, presumivelmente para ir fazer um qualquer recado, pois o pónei levava dois alforjes dependurados por trás da sela.
O seu “recado” fez com que se dirigisse abertamente ao Bairro Cigano e ao recinto murado de um negociante de cavalos, Gordo Kaldash. A vedação em torno da sua propriedade era constituída por paliçadas construídas com toros descascados e aguçados, abundantemente caiados de branco. O recinto parecia-se muito com uma fortaleza e a comparação não era de todo
despropositada. Gordo poderia agüentar um cerco ali dentro, se a isso fosse obrigado. Só essa já era razão suficiente para cultivar a sua amizade e conquistar a sua ajuda.
Ela passou os portões abertos montada no pónei, ignorando os gritos e o rebuliço em torno de si, limitando-se a registrar a razão de toda aquela actividade. Gordo não estava disposto a correr quaisquer riscos; os seus melhores animais partiam naquele dia, presumivelmente para as suas manadas de reprodução na planície, onde tanto os cavalos como os seus tratadores seriam difíceis de encontrar.
Provavelmente, ele pensa que o imperador vai querer confiscar tantos cavalos bons para a guerra quantos lhe for possível.Os póneis e os palafréns de senhora estarão bastante seguros,mas ele está a ver-se livre de todos os pesados cavalos de tiro, dos cavalos que possam ser usados pela cavalaria e das mulas.
Os seus olhos, treinados pelo trabalho que fizera com os Senhores dos Cavalos, encontraram cada animal que poderia ser de alguma utilidade para Balthasar e as suas suspeitas confirmaram-se à medida que esses animais foram sendo reunidos aos grupos que estavam de saída.
Reparou também que as vedações e os portões tinham sido cuidadosamente reparados e que alguém os reforçara nos últimos dias.
Então, o Gordo sabia o que se aproximava, provavelmente antes mesmo de o seu espião lhe ter trazido a notícia. Interessante.
- Rapariga!
Aquele grito na linguagem comum fê-la parar o cavalo. Quem assim a abordava era um rapaz cigano de bom aspecto, com cerca de vinte anos; conduzia um cavalo com cada mão, ambos garanhões muito bem comportados, visto não estarem a tentar morder-se, nem escoicear-se mutuamente ou ao seu condutor. Os cavalos não estavam, no entanto, contentes com o que estava a acontecer e ela aprestou-se a explicar a sua presença.
- Estou à procura de Gordo Kaldash - disse ela, metendo a mão por dentro do decote e mostrando brevemente um certo medalhão de bronze.
Ele olhou para o medalhão, ergueu uma sobrancelha com alguma surpresa e assentiu.
- Está no estábulo - limitou-se a dizer e seguiu o seu caminho para juntar os dois garanhões aos cavalos que estavam a ser aprontados para partir.
Naquele preciso momento dois outros grupos estavam a sair pelos portões com os seus condutores.
Ela desmontou e conduziu o pónei até aos estábulos enormes que ocupavam a maior parte do centro do recinto. E ali estava Gordo, mesmo à entrada, gritando ordens no tom de um sargento de recruta. Era um homem grande, tão peludo como os ursos que costumava ter como animais de estimação, com um peito enorme, que a camisa vermelha, tipicamente cigana, tinha dificuldade em cobrir. As pernas ligeiramente arqueadas denunciavam uma vida inteira ligada aos cavalos e Shelyra sabia que as enormes mãos, que agora agitava, eram igualmente hábeis a fazer uma cirurgia delicada num potro doente ou a dominar um garanhão espantado.
- Não é esse, seu parvo, esse fica. A égua, a égua cinzenta! Não sabes distinguir uma égua de uma mula?
Virou-se para a enfrentar quando a sentiu aproximar-se, preparando-se para a pôr a andar. Depois reparou no seu rosto e ficou calado. Um sorriso falso e afável espalhou-se-lhe nos lábios.
- Ah... Borboleta! - disse afectuosamente, e ela estremeceu ao ouvir o nome que ele decidira chamar-lhe no impulso do momento. - A tua senhora precisa de um pónei novo? Agora estou um tanto ocupado...
- A minha senhora precisa de um cavalo especial para a caça ao tigre - disse Shelyra secamente. - Preciso de discutir o negócio contigo.
Gordo empalideceu ligeiramente, depois virou-se e gritou uma catadupa de ordens aos guardadores que ainda escolhiam os cavalos nas cocheiras.
- Tratem disso! - terminou. - Já volto para ver o que fizeram! Não deixem esses cavalos irem-se embora antes de eu os inspeccionar novamente!
Depois virou-se rapidamente para Shelyra, agarrou as rédeas do pónei com uma mão e o seu cotovelo com a outra.
- Estás louca vindo aqui? - Disse-lhe na língua cigana, enquanto entregava o pónei a um moço de estrebaria. - Tens alguma idéia do que está prestes a abater-se sobre nós? Achas que é altura para brincadeiras idiotas?
- Tenho uma ideia bastante precisa do que se vai abater sobre nós - respondeu ela bruscamente. - E é por isso que aqui estou.
Rapidamente explicou-lhe a posição da sua tia: que seria um suicídio para Merina resistir, que a rainha tencionava abdicar e entregar a cidade ao imperador. Gordo ouvia e assentia com uma expressão preocupada, enquanto a levava até um pequeno gabinete junto aos estábulos.
Fechou a porta e encostou-se-lhe com os braços cruzados sobre o peito.
- Essa é uma atitude simultaneamente sensata e estúpida - disse por fim - mas não consigo pensar noutra saída para a cidade que tenha uma hipótese de a salvar. E a Casa do Tigre? Vão fugir? Estás à procura de cavalos rápidos e de uma escolta para vos levar aos Senhores dos Cavalos? Posso tratar disso.
- A minha tia pensa que devíamos fugir... ou antes, creio que ela pensa que eu devia fugir. - Deixou que aquela afirmação ficasse suspensa no ar, entre os dois.
Lentamente, o cenho franzido de Gordo transformou-se num sorriso.
- Ah! E tu não estás de acordo. Na realidade estás a pensar... o quê? Que mais tarde ou mais cedo ou gordos comerciantes de Merina se cansarão do tipo de governo que Balthasar tem fama de impor? Eles aguentarão e voltarão a aguentar até que o imperador os esprema completamente e não lhes deixe nada? Que mais cedo ou mais tarde eles agarrarão os seus mantos, que nessa altura já estarão no fio, e farão qualquer coisa para sacudir o jugo que pesará sobre os seus ombros?
- Sim, qualquer coisa desse género - admitiu ela. - É por isso que estou aqui. A minha tia é capaz de estar a planear enviar-me para fora da cidade, mas eu tenho outros planos. E tu tens uma prima afastada que já veio uma vez lá do norte para aprender a arte de curar cavalos.
- Sim, recordo-me da pequena Raymonda e, o que é mais importante, outros membros do meu clã também se lembram dela. E muito poucos de entre nós sabem que os pais de Raymonda não eram ciganos por nascimento, mas sim por pacto de sangue. - A cabeça de Gordo moveu-se para cima e para baixo duas vezes, lentamente, e a sua postura relaxou ainda que apenas ligeiramente. - Serão ainda menos aqueles que saberão que o pai dela era o rei de Merina. Mas...
- Mas eu não quero que o clã de Kaldash sofra qualquer perda de oportunidades de negócio que venham a proporcionar-se quando o imperador tomar a cidade - continuou ela suavemente. - Há outra razão que me traz aqui. Por isso, antes de continuarmos com esta conversa, manda buscar os alforjes que eu trouxe no pónei.
A expressão de Gordo manteve-se neutra enquanto entreabria a porta e gritava uma ordem nesse sentido. Passados instantes os dois alforjes estavam no chão do gabinete entre os dois e a porta voltou a fechar-se com segurança.
Shelyra procurou por entre os rolos de tecido até as suas mãos encontrarem os pesados pacotes que escondera no meio das roupas. Tirou-os para fora e largou-os no chão onde caíram com um som cavo.
- Vê - disse ela, fazendo um gesto. - O imperador confiscará tantos dos teus animais quantos for capaz e fará com que seja difícil vender os restantes. A Casa do Tigre deseja proteger os seus amigos e aliados de uma tal ruína financeira.
Gordo dobrou-se para pegar num dos dois pacotes, aquele que ela pusera mais perto dele e que Shelyra tivera alguma dificuldade em segurar, mesmo com ambas as mãos. Aliviou o nó que o mantinha fechado e o tecido pesadamente acolchoado caiu para os lados, revelando ouro e pedras preciosas que brilharam à luz da lanterna. O seu brilho não era mais forte do que o que revestia o olhar de Gordo naquele momento.
- Esse embrulho é inteiramente para o clã Kaldash – disse Shelyra. - Se fosse a ti desmontava as jóias e derretia o ouro. Tudo isso foram presentes de candidatos a pretendentes; não é provável que dêem pela sua falta, se Balthasar mandar fazer um inventário. Tenho que deixar jóias num número suficientemente plausível para uma jovem donzela, mas não tenho a intenção de lhe deixar um saque maior do que o estritamente necessário.
- E o outro? - perguntou Gordo, indicando com a cabeça o outro pacote no chão.
- É a mesma coisa - respondeu ela. - Com um pouco menos de valor. Gostaria que o convertesses numa forma mais utilizável e que o guardasses para mim... isto é, se o clã Kaldash estiver disposto a receber novamente a Raymonda.
Não era exactamente um suborno e era inteiramente possível que Gordo e a sua gente a tivessem recebido na mesma e mantido secreta a sua identidade sem aquele incentivo extra. Mas Shelyra sabia que o pagamento, ou antes, o “presente” faria com que eles ficassem em dívida para com ela, tornando mais provável que a recebessem sem ressentimentos ou arrependimentos. E uma vez aceite o presente, nada nem ninguém os faria revelar o seu segredo. Como o seu pai dissera certa ocasião, “O que eu gosto nos ciganos é que uma vez comprados, mantêm-se comprados”.
- Raymonda seria, como sempre, muito bem-vinda – disse Gordo rapidamente, enquanto se dobrava para agarrar o segundo embrulho, enfiando ambos nos grandes bolsos do seu casaco. - Então ela não é do nosso sangue?
- Vou deixar o pónei e o resto das coisas aqui contigo - replicou Shelyra com alívio.
Havia evidentemente a hipótese de Gordo ter recusado. Mas ele dissera que ela era “do nosso sangue”, atribuindo-lhe os mesmos direitos de clã de qualquer cigano. Agora que o fizera, teria tanta vontade de a trair como a um dos seus filhos.
- Os alforjes contêm o resto da minha roupa cigana e parafernália para tratar cavalos doentes.
- E voltas num barco alugado? - Quando ela assentiu, ele soltou um grunhido de aprovação. - Isso é sensato. Se alguém estivesse à espreita, nunca acreditaria que fosses deixar um animal valioso aqui, com ciganos ladrões como nós. Esperará em vão por uma criada com um pónei.
Abriu a porta do gabinete e fez-lhe sinal para que saísse.
- Eu posso não chegar a vir para aqui - avisou-o ela. - Refugiar-me junto de ti não é o meu único plano; é unicamente aquele que eu prefiro. Isso dependerá de muita coisa. Se eu não vier imediatamente, deverás esperar o tempo que te parecer razoável e aí o segundo embrulho ficará também para o clã.
Ele resmungou.
- Ou espero até que esse imperador tente expulsar-nos ou matar-nos. Os ciganos não são amigos dele e ele só nos tolera porque se nos ofendesse, os nossos primos, os Senhores dos Cavalos, não lhes venderiam cavalos.
Ela fez uma careta.
- Se isso acontecer, ninguém estará a salvo em Merina.
Não aprofundou o assunto, mas perguntou-se se, no caso de as coisas chegarem a esse ponto, não teria de pôr a hipótese da fuga e salvar pelo menos a vida.
Não. Enquanto eu viver, lutarei por esta cidade, quer ela queira, quer não!
Despediu-se de Gordo, virou o xaile do avesso, o que lhe mudou a cor de castanho para verde, e saiu com um cesto debaixo do braço. Uma vez chegada ao extremo do Bairro Cigano, chamou um barqueiro e deu-lhe a quantia necessária para que a levasse à Praça do Templo. Entrou no pequeno barco, pôs o xaile por cima da cabeça e fingiu dormitar. Nos canais não havia sinal de alguém já se ter apercebido de que algo de errado se estava a passar. Na realidade, havia até muita gente a vender flores e produtos agrícolas nos seus barcos, como de costume. O barqueiro deixou-a ao fundo da escada que conduzia ao Grande Templo; ela saiu do barco para chão firme com o à-vontade de alguém habituada toda a sua vida a andar em pequenas embarcações e nem sequer precisou do auxílio da mão dele para se equilibrar.
O templo e o palácio estavam implantados nos mesmos terrenos e os jardins que se estendiam de um ao outro eram cuidados pelos religiosos e pelos jardineiros do palácio. Quando
entrou no templo fez uma pausa, sentando-se num banco logo à entrada, para que os seus olhos tivessem tempo de se ajustar à luminosidade do interior. Estava quase na hora de um dos serviços religiosos e como habitualmente, havia no templo um número suficiente de pessoas para que a sua presença passasse despercebida. Sem grande esforço, esgueirou-se ao longo do templo até aos jardins, deixando o xaile e o cesto no banco onde estivera sentada, e depois, caminhando com ar determinado como se tivesse algo de importante a fazer, atravessou os jardins até aos estábulos do palácio. Como esperava, ninguém a interpelou. Usava as roupas adequadas para ali estar e parecia saber muito bem onde se dirigia. O que só tornava evidente como seria fácil para o imperador ter um número indeterminado de espiões entre a criadagem do palácio.
Uma vez no interior dos estábulos, voltou a trocar de roupa. Pensou por instantes no palácio e nos deveres que ali a esperavam. Os seus únicos “deveres” de momento consistiam numa aula de línguas. E não vou aprender num único dia o suficiente de “O Lar das Ilhas” para fazer a mínima diferença. A tia e a avó persistiam em fingir que aquele era um dia como qualquer outro, mas não havia razão nenhuma para que ela fizesse o mesmo.
Voltando para trás, regressou à escuridão dos estábulos em busca de um moço de estrebaria. Aquela era a altura ideal para atravessar para o Palácio de Verão e assegurar-se de certos preparativos que ali queria fazer. Talvez lhe ocorresse mais alguma coisa no caminho.
ADELE
Os últimos três dias tinham sido mais extenuantes que o habitual, pois Adele vira-se forçada a fazer tantas vezes o percurso do templo para o palácio e vice-versa, que temia que os seus sapatos se estivessem a gastar a um ritmo alarmante. Tinha que passar as noites no palácio, não fosse surgir outra emergência e não a encontrassem na cama. Uma pessoa não podia confiar complacentemente em mensageiros angélicos para nos virem acordar, como se estes não passassem de criados de quarto!
Mas, na realidade, ficava com muito pouco tempo para dormir e isso fazia com que as suas parcas reservas se estivessem a esgotar rapidamente.
Bem, pelo menos terei um aspecto mais condizente com o meu papel quando “cair para o lado”.
Informara Verit de tanto quanto se atrevera e tinham passado quase tantas horas a trocar idéias quantas as que passavam a rezar. Tinham tentado gizar um plano para proteger o templo e o Coração, mas até que vissem de facto o rosto do inimigo e as armas de que este dispunha, não havia muito de concreto que pudessem fazer.
O ambiente geral do templo, à excepção do vivido entre as Chamas, parecia-lhe cada vez mais irreal. Os religiosos comuns agiam como se aqueles dias em nada fossem diferentes dos restantes.
Não sentiriam, ao menos, a tensão crescente na cidade? Ou sentir-se-iam tão a salvo na sua suposta segurança e no refúgio que a presença do Coração oferecia, que tinham a ilusão de que ali nada jamais se alteraria?
Tal atitude era incompreensível para ela, embora Verit parecesse entendê-la bastante bem.
Continuou assim a fazer aquelas viagens entre o templo e o palácio, sentindo as forças esgotarem-se-lhe a cada viagem. Já planeara a forma como desapareceria no interior do templo. Isso era, aliás, lógico, visto os curandeiros mais próximos do palácio serem os Hábitos Castanhos. Adele entraria no templo num estado de saúde dos mais terríveis e nunca mais de lá sairia. A noite anterior não constituíra excepção ao padrão habitual, a não ser pelos seus sonhos, tão cheios de avisos e presságios, tão repletos de imagens de exércitos em marcha e armas ameaçadoras, que soube que o destino se abateria sobre si assim que acordasse. Obedecendo a um hábito já antigo, Adele acordou uma hora antes do amanhecer. Assegurando-se de que a porta do quarto estava trancada, entrou no túnel que conduzia ao templo, desmaquiou-se vestiu o hábito cinzento e apressou-se a chegar ao seu destino.
Tomou o seu lugar para o primeiro serviço da manhã, como se nada de extraordinário estivesse prestes a acontece, e entoou os cânticos com os outros religiosos. O serviço terminou com uma alegre saudação à aurora, embora naquela manhã a saudação soasse um tanto insípida.
A sensação podia ser produto da sua imaginação, mas não lhe parecia.
Ah, então os outros tinham-se apercebido, finalmente, de que algo estava errado!
Terríveis presságios pairavam no ar e, finalmente, todos os religiosos do templo tinham consciência deles sob a forma de uma atmosfera ameaçadora, mesmo que não tivessem consciência de qual a verdadeira natureza da ameaça.
As Chamas, como é evidente, já se tinham apercebido de que algo estava terrivelmente errado. Mesmo aqueles de entre as Chamas que não tinham acesso aos segredos de Verit, sentiam
algo no ar. Mas agora o alarme já alastrara à populaça em geral e o que faltava ver era se Verit os conseguiria controlar caso entrassem em pânico.
Mais do que uma vez, Elfrida pressentira alguém vacilar nos cânticos e erguer o olhar para o Coração em busca de força e consolo. À medida que os religiosos saíam do templo e se dirigiam à sala comum para tomar a primeira refeição do dia, muitos foram os que olharam em torno de si, como se procurassem alguém que pudesse saber qual a razão daquele ambiente ominoso.
O silêncio terminava oficialmente naquela altura, embora não fosse costume conversar durante as refeições, por isso Elfrida pôde falar com a grande sacerdotisa Verit imediatamente após o pequeno-almoço e obter autorização para passar o dia em meditação solitária no seu quarto. Não era nada de extraordinário; cada um dos religiosos passava um dia de retiro em jejum
e silêncio uma vez em poucos meses, o que fez com que Verit concedesse a sua permissão à religiosa Elfrida sem questões. Pela expressão dos seus olhos era, contudo, evidente que ela sabia que algo estava para acontecer e que se preparava para assegurar que o papel da religiosa Elfrida nos acontecimentos não fosse descoberto. Separaram-se junto da porta da Sala do Capítulo, a grande sacerdotisa entrando para anunciar que a religiosa Elfrida passaria o dia em retiro e a religiosa Elfrida desaparecendo nas sombras de regresso ao palácio e à sua outra vida só por mais algum tempo.
Pois aquele dia seria a última vez que Adele, a rainha-mãe, apareceria em público. Vira a imagem de si própria em câmara-ardente e rodeada por gente que a chorava. Se aquele era um presságio da sua “morte” para o exterior, ou da sua verdadeira morte, ou mesmo de uma outra morte que ela tinha de reserva, como recurso, não estava certa. Tudo o que sabia com toda a certeza era que Adele estava prestes a morrer e que a religiosa Elfrida estava prestes a nascer para a vida atarefada que era a vida das Chamas.
LYDANA
Os três últimos dias tinham sido muito duros e as três últimas noites cheias de tarefas executadas em segredo. Uma vez de volta ao seu quarto, Lydana pôs três candeeiros em cima da mesa do quarto, por forma a ter o máximo de luz possível a incidir sobre um bloco de madeira polida; da sua mesa de trabalho trouxe o estojo de ferramentas, bem como uma pequena caixa. Depois, escreveu rapidamente uma nota e selou-a com o selo real, dando-a a Skita, que esperava impacientemente.
Quando a mulher-criança se foi embora, Lydana colocou o anel em cima do bloco de madeira e abriu a pequena caixa. A sua mão moveu-se rapidamente num movimento de recuo, quando os dedos passaram sobre as pedras não engastadas, cada uma delas aninhada no seu compartimento no interior da caixa. Lydana sabia muito de pedras preciosas; nalguns aspectos talvez soubesse mais do que qualquer outro elemento da sua Guilda. Aquelas que ali estavam eram jóias que ela não utilizaria de livre vontade com outro objectivo que não fosse aquele que agora a movia. Pois aquelas eram verdadeiramente pedras de mau augúrio; pedras amaldiçoadas e que traziam consigo a má sorte, até mesmo evocações de morte. Aquela colecção era o resultado de anos de investigação. Suspirou e depois abanou a cabeça perante aqueles pensamentos carregados de remorso. Não era altura para melindres.
Extraiu uma pedra vermelha e brilhante do seu compartimento; era em tudo semelhante, na cor e nas gravações, à que estava engastada no anel real. Era o selo de Tartus, de má memória. Aquela pedra fora simbolicamente banhada pelo sangue das muitas sentenças de morte que selara, até o rei meio-louco que a usara ter sido massacrado pela sua própria guarda.
Lydana trabalhou com rapidez, com a perícia adquirida ao longo de muitos anos, soltando a pedra que era sua e inserindo no mesmo engaste a pedra de Tartus. Por fim, quando acabou, esfregou as mãos uma na outra, levantou-se e lavou-as no lavatório, como se quisesse livrar os dedos de algo maléfico.
Engastou a pedra que soltara num alfinete de peito, que se encontrava no meio das suas ferramentas e depois prendeu-o por dentro do vestido. Embora não lhe quisesse sequer pegar, voltou a enfiar o anel no indicador.
O trabalho fora bem feito, podia reconhecê-lo. Mais uma vez agradeceu de todo o coração ao seu pai pela sua sensatez. Ele reparou bastante cedo nas suas aptidões e quis ter a certeza de que ela teria meios para se sustentar. O irmão era o herdeiro. Mas, apesar disso, era instável e já pai de uma filha, embora esta fosse de uma geração mais nova e não pudesse herdar directamente o trono. Nessa altura, Lydana não previu o seu próprio reinado; como poderia qualquer um deles tê-lo feito?
Depois, quando Shelyra era pouco mais do que um bebé, o irmão e a mulher morreram de uma estranha febre que chegara a Merina trazida por um barco infestado pela peste. Nessa altura o seu pai mandou-a chamar. Ela era muito jovem, ainda mais nova do que Shelyra era agora, e tudo o que realmente lhe interessava nessa altura era a sua arte.
Recordava agora o interrogatório cuidadoso de seu pai, a que se seguira o de sua mãe, que já nessa altura conseguia ler melhor os espíritos do que a maioria das pessoas. Não, não tinha qualquer desejo de encontrar um companheiro e arranjar uma família. Mas por lei teria que se casar. Assim, o seu pai seleccionou um dos seus amigos mais íntimos, um capitão muito parecido
com Saxon, que tinha idade suficiente para ser seu pai e que passava muito tempo no mar.
Tinham casado com grande pompa para agradar à cidade e as coisas tinham ficado por ali. Compreendia agora que o seu pai tinha deliberadamente escolhido um marido a quem estava certo de que ela sobreviveria, ficando, assim, livre para tomar posse da Guilda e do trono sem ser questionada. E assim fora. Ela recordava o senhor capitão Gorganius com uma afeição tranquila, e ficou triste quando recebeu a notícia da sua morte no mar, mas ele não fizera realmente parte da sua vida.
E, no entanto, fora ele quem primeiro lhe chamou a atenção para aquelas pedras amaldiçoadas e especulou se elas realmente poderiam influenciar a vida dos homens.
Ouviu-se uma pancada na porta, o que a fez apressar-se a fechar o estojo de pedras maléficas antes de autorizar a entrada. Ficou surpreendida ao ver a sua criada com um tabuleiro de pequeno-almoço com biscoitos e vinho quente com especiarias. A noite já devia ter chegado ao fim.
- Vossa Majestade, a reverendíssima requer a Vossa atenção quando acabardes de comer... e...
Lydana seguiu o olhar que a rapariga lhe lançava. Não, teria que ir mais respeitavelmente vestida para um Conselho. Mas Esma, parecendo ler-lhe os pensamentos, já afastava as cortinas dirigindo-se para o roupeiro. Lydana comeu com apetite até à última migalha e depois vestiu-se adequadamente para uma ocasião formal.
Não se apressou, para disfarçar a urgência que sentia, mas conseguiu despachar-se a tempo, embora Adele já estivesse sentada na cadeira almofadada com um aspecto, pensou Lydana com alguma preocupação, ainda mais fantasmagórico do que o habitual.
Shelyra estava de pé junto à mesa, as faces macias afogueadas, em resultado daquilo que supôs ser ira.
- Não irei... - dizia ela quando a tia entrou, mas o resto das palavras foram abafadas pelo som forte do gongo de bronze.
Com relutância, a rapariga sentou-se no seu lugar à esquerda de Lydana quando as grandes portas se escancararam para deixar entrar os membros das Guildas. Não entraram de acordo com o protocolo habitual, mas antes lançando-se para a frente em conjunto e apressando-se a ocupar os seus lugares depois de fazerem uma vénia às três mulheres.
- Está um embaixador junto ao portão, Vossa Majestade. - Quem falou foi Totas, mestre da Guilda dos Mercadores de Seda, a sua pequena pêra cinzenta saltando para cima e para baixo à
medida que falava.
Tão... tão pouco tempo!
Lydana não olhou para Adele, mas sentiu um fluxo de energia que se desprendia dela em sua direcção.
- Deverá ser recebido com todas as honras que se concedem a um hóspede... e deverá aguardar - disse Lydana calmamente.
Observou o grupo reunido diante de si, enquanto um oficial saía da sala para se apressar a cumprir as suas ordens. Nalguns dos mais jovens conseguia sentir a ira, mas esta era abafada pelo desespero. Nenhum homem no seu perfeito juízo sugeriria que Merina tentasse resistir ao poder dos exércitos do imperador. E, nalguns dos mais velhos... bem, perguntou-se se não haveria ali um toque de satisfação dissimulada, a crença de que sob a alçada do imperador teriam oportunidade de prosperar mais depressa; que loucos eram!
- Escutem - Lydana ergueu a voz num tom imperativo. - Todos nós sabemos o que cobiçam os nossos inimigos... Somos ricos, estamos maduros para ser colhidos e temos duas alternativas. Balthasar pode muito bem hesitar em assaltar Merina... ele quer o que nós temos e não os destroços de uma cidade saqueada. Se lhe abrirmos os nossos portões, isso significará que não haverá massacre. Falaremos com o seu enviado e isto é o que lhe diremos: Esta é a cidade do Coração, aqui está situado o santuário mais sagrado do templo. Balthasar ainda pertence ao templo... pelo menos segue os seus rituais quando isso lhe convém. Então, ele que jure, através do seu embaixador e junto ao altar, que não trará dano onde não encontrar oposição, e Merina será sua.
As vozes de todos eles ergueram-se. Lydana deixou cair a mão mais uma vez sobre a mesa, com força suficiente para ser ouvida por cima do ruído das suas vozes.
- Vós sois o povo de Merina, a decisão será vossa. Deixamo-vos agora para que a tomem.
Pôs-se de pé, estendendo o braço para apoiar Adele e ficou com Shelyra a seu lado. Juntas passaram para o pequeno gabinete dos soberanos. Uma vez lá dentro, a rapariga voltou a erguer a voz.
- Entregas assim tudo. Nós somos da Casa do Tigre... onde estão agora as tuas presas e as tuas garras, tia?
- Escuta... - foi Adele quem ergueu a mão -... disse-lhes que pensassem, que planeassem, que têm agora para me propor?
- O seguinte - disse rapidamente Lydana. - Vós, reverendíssima, entrareis no claustro, embora mais cedo do que planeado. Visto termos sabido que parte das forças que se viram contra nós são das Trevas, vós sereis quem melhor poderá decidir o que lá poderá ser feito. E, além disso, escutai: embora possamos desaparecer todas, poderemos manter-nos em contacto...
Adele antecipou-se-lhe.
- Os confessionários! - Os seus olhos estavam brilhantes, talvez até demais. - Poderemos passar palavra umas às outras através dos confessionários.
- No terceiro confessionário a contar do Coração – respondeu Lydana.
Adele assentiu.
- Arranjarei forma de ali ter sempre alguém de confiança durante as horas de confissão, se eu própria não puder lá estar.
- E então eu? - O rubor de Shelyra tornou-se mais forte. - Eu não irei para o templo... não irei! - Ergueu um punho no ar e abanou-o ameaçadoramente.
- Não - concordou Lydana - tu tens o teu lugar e poderá ajudar-nos nesta batalha a que somos forçadas - esta batalha de caminhos secretos e ataques furtivos. Shelyra, noutros tempos estiveste de visita ao Povo dos Cavalos... está quase na altura de eles voltarem à cidade. Lembra-te, nenhum exército pode mover-se sem provisões. Talvez os chefes negociem com Balthasar, talvez não. Mas nunca lhe serão leais. Tu conhece-los, podes falar com os seus chefes guerreiros... sugerir estratagemas... – Tentava encontrar as palavras certas.
O rubor de Shelyra começava a desaparecer. Tinha a mão pousada no punho de uma espada longa que trazia à cintura. Desembainhou-a e voltou a embainhá-la, com força.
- Sim... - parecia uma criança prestes a receber uma prenda.
- E tu, filha? - perguntou Adele.
- Balthasar procurará uma rainha. Não a encontrará. Se houver uma pequena comerciante de pedras e coisas do gênero num dos mercados mais pobres, não suponho que ele lhe preste grande atenção.
Adele abanou a cabeça.
- Não estejas demasiado certa disso, filha. Mas compreendo que tenhas que jogar segundo as tuas próprias regras.
- Shelyra, assim que este Conselho acabar, dirige-te aos meus aposentos. Encontrarás lá Skita com mais outra pessoa. Ninguém parte para a batalha sem levar consigo um homem bem treinado que lhe cubra as costas. Vou agora providenciar-te um que é algo estranho, mas que tem as qualidades necessárias. E estas são as ordens que tenho para te dar, deixa-te guiar por ele... ele saberá o que fazer e tem um pacto de sangue com um chefe do Povo dos Cavalos.
Ao mesmo tempo que a rapariga assentia, ouviu-se uma voz por trás das cortinas.
Lydana olhou para a sobrinha e para a mãe:
- Estamos de acordo? - perguntou baixinho.
Ficaram uma vez mais de pé junto à mesa do Conselho. Lentamente, Lydana retirou o anel de Estado do dedo, pousando-o na sua frente. Era evidente que os membros das Guildas tinham chegado a um acordo, pois a simbólica chave de ouro também estava sobre a mesa. Adele inclinou-se subitamente e observou o anel; poderia muito bem estar também ela a despedir-se de um cargo que já fora seu.
O seu sussurro soou quase inaudível:
- Tem cuidado, minha filha, com os jogos que te propões jogar.
O embaixador, nas suas vestes cerimoniais, foi mandado entrar e levado à presença da rainha. Não sorria, mas tinha um certo ar de complacência, como se estivesse certo daquilo que iria encontrar.
- Já te informaram das exigências de Merina? – perguntou Lydana.
O homem assentiu com a cabeça fazendo abanar as penas do chapéu.
- Sua Majestade Imperial tem sempre em consideração os interesses do povo. Não deseja fazer a guerra quando disso não há necessidade. Como seu embaixador, prestarei juramento e será como se fosse Sua Majestade Imperial a proferir os votos.
- Ouvistes estas palavras, homens de Merina? – perguntou Lydana. - Sereis vós testemunhas, perante o Coração, destas promessas e deste juramento?
Ouviu-se um murmúrio de assentimento. Lydana indicou o anel e a chave.
- Eis aqui o selo e a chave. Leva-os ao teu senhor depois de prestares juramento...
Não pôde dizer mais nada, pois Adele caiu subitamente para a frente, tentando respirar. Teria batido na mesa se Lydana e Shelyra não tivessem saltado para a agarrar.
- A minha mãe está doente, embaixador... - Lydana quase rosnou as palavras. - Faze o teu dever, que eu farei o meu.
LYDANA
Embora Adele se conseguisse manter de pé, apoiou-se pesadamente em Lydana; mas os seus murmúrios muito fracos dirigiam-se também a Shelyra.
- Deixem-nos acreditar que eu estou muito doente. É a melhor maneira de isto resultar.
Contudo, Lydana não conseguia ter a certeza se a sua mãe estava a empregar um truque que ela própria tivesse planeado, ou se queria poupar o fardo da preocupação àquelas que tinha junto de si. Quando iam a caminho dos aposentos da mãe, vieram ao seu encontro vários Hábitos Castanhos, membros da Ordem dos Curandeiros do Templo.
- A grande sacerdotisa sabe do que se passa – explicou uma delas, enquanto pegavam no corpo frágil de Adele e a deitavam na padiola que tinham trazido consigo. - Ela enviou-nos para que levássemos a reverendíssima para o templo. Descansai os vossos espíritos, pois aqueles que pertencem ao Coração cuidam bem dos seus irmãos. Cuidai agora de Vós... e desta esperança do futuro. - Indicou Shelyra com a cabeça.
Mas Adele não estava ainda preparada para as deixar partir; virou a cabeça na direcção delas e disse, numa voz que revelava agora muito do seu antigo vigor:
- Não fiquem certas de nenhuma morte até terem visto a sepultura. Se mostrarem dor por eu ter passado o Portão Interior, desta vez esse luto será apenas um disfarce. Visto sabermos quais as ambições desse Apolon, mas desconhecermos a dimensão da sua força, tomem cuidados redobrados. Tu, filha do meu filho - dirigiu-se directamente a Shelyra - deves tentar aprender a ser mais humilde que o mais humilde e usar essa couraça em tua defesa e deves controlar o teu temperamento. Esta será uma prova por que muito poucos passaram, pois exigirá mais da força do espírito e da vontade do que da força física.
Shelyra assentiu, com os lábios comprimidos formando uma linha estreita.
- Quanto a ti, filha... - olhava agora para Lydana. – Tiveste o teu próprio treino. Uma coisa, contudo, te vou dizer: aquelas fontes do mal que guardaste, talvez não sejas imune ao que podem trazer-te de volta. Tem muita cautela quando as usares. A lei do Coração é uma só e é verdadeira: pratica o mal, mesmo que com um bom objectivo, e esse mal regressará duas vezes mais forte! Agora, vós as duas, é hora de partir. Se tivermos necessidade de nos falarmos no futuro, fá-lo-emos através do confessionário do Grande Templo. E que o Coração vos envolva e guarde até ao dia em que estas trevas maléficas possam ser expulsas.
Não voltou a olhar para trás, para nenhuma delas, quando os Hábitos Castanhos a levaram na padiola. Adele tinha razão: elas tinham os seus próprios caminhos a percorrer e para que o pudessem fazer... Lydana agarrou Shelyra por um braço.
- Vem!
Não havia guardas nos corredores; os governantes de Merina tinham-nos mantido com fins meramente protocolares e Lydana estava certa de que tinham sido convocados pelo seu comandante para que escoltassem o embaixador do imperador até ao Grande Templo. Contudo, não podia estar certa de que os seus movimentos não fossem observados e aquilo que tinham a fazer tinha que ser feito com rapidez. Com Shelyra atrás de si, entrou no seu quarto. Eles estavam
à espera. Ela não tinha quaisquer dúvidas de que estariam.
A mensagem que Skita entregara de madrugada não era de natureza a ser questionada. Não lançando um olhar sequer à pequena criada que balançava um dos pés, sentada na sua cadeirinha, a atenção de Lydana concentrou-se inteiramente no outro ocupante do quarto.
Era então este o herói de tantas baladas e histórias de embuste que provocavam o riso naqueles que não tinham sido as vítimas do seu espírito e língua manhosos. Estava ali, de pé, como se já tivesse inventariado todo o recheio do quarto, decidido quais as peças mais valiosas e de transporte mais fácil para referência futura, quando a oportunidade se lhe apresentasse. E a sua atitude deixava transparecer que essa oportunidade parecia estar, de facto, próxima.
- Thom Talesmith.
Lydana olhou-o de cima a baixo. Ele tinha o ar ingénuo de um jovem que pouco conhecesse do mundo e que se sentisse um tanto intimidado com as riquezas que este tinha para lhe oferecer. Nada podia estar mais afastado da sua reputação.
- Eu mesmo, Vossa Majestade. - Fez uma vénia tão elegante como a melhor vénia de qualquer cortesão.
- Ladrão, patife, condenado a uma sentença de morte – replicou ela no tom prático de quem sintetiza um problema.
- E, no entanto, estou aqui...
Continuava a sorrir com o mesmo ar agaiatado; tão inocente como os primeiros raios da aurora. Mas os olhos por cima dos lábios... a esses não os conseguia controlar tão bem. Mantinha-se alerta, como um animal encurralado e, tal como ele, tinha a intenção de se libertar ou, pelo menos, de fazer pagar um tributo de sangue aos seus captores.
- Foi o supremo juiz quem te condenou - fez ela notar.
- Por que razão estou então aqui por ordem real? – ripostou ele. O sorriso desaparecera e tinha o queixo lançado para a frente.
- Porque, para além de ladrão, patife e tudo o mais que dizem de ti, há também muitas outras coisas que os homens podem dizer com sinceridade a respeito de Thom Talesmith. Que tem o tipo de coragem que não vem de uma longa familiaridade com o aço, ou com os bastões, ou com o punhal do assassino furtivo.
Ele fez novamente uma vénia enquanto ela continuava:
- Sim, coragem e esperteza - também ouvi dizer isso de Thom Talesmith. Quando se compromete com qualquer empreendimento, mantém a sua palavra, não importa aquilo que possa acontecer.
Shelyra sentara-se aos pés da cama, observando-o com olhar de águia. A última afirmação da tia fizera-a morder o lábio inferior e franzir o sobrolho.
- Merina cairá - continuou Lydana.
Ele encolheu os ombros.
- Como poderia ser de outra maneira? É impossível opormo-nos a todo o poderio do imperador. E morrer inutilmente é a escolha dos estúpidos.
Foi a vez de Lydana sorrir.
- Coisa que Thom Talesmith não é! Merina pode cair, mas não morreu, nem poderá ser tranquilamente enterrada enquanto o nosso novo e ilustre amo continuar na senda das conquistas.
Estendeu a mão para a mesa mais próxima. Esta tinha em cima do tampo um pequeno punhal achatado, destinado a abrir documentos. Ele observava-a com atenção, mas sem qualquer traço de medo, apenas curiosidade e excitação.
- Que deseja a nossa graciosa rainha?
Havia um ligeiro traço de ironia naquela frase, mas Lydana continuou a sorrir.
- Os teus serviços, sob a forma de um pacto de sangue...
Ergueu o punhal, fazendo-o brilhar à luz. Ele já não sorria; Lydana viu a sua mão mover-se em direcção à faixa que tinha à cintura, como se procurasse uma arma que já lá não estava.
- Estou a dar-te uma oportunidade, Thom Talesmith; a ti que enganaste e roubaste e te tornaste o herói dos que vivem nos becos. Estou a dar-te a oportunidade de te tornares num herói de verdade.
Os olhos dele viraram-se para o punhal.
- Assassínio? De... do todo-poderoso Balthasar, o próprio?
- Nós não te pedimos o impossível. Não, o que queremos de ti é o seguinte. É ela... a próxima herdeira de Merina. – Indicou a rapariga com um aceno de cabeça. - Ela será uma das que Balthasar quererá ter ao seu alcance... ou talvez morta.
Thom desviou os olhos da faca pela primeira vez para olhar directamente para a rapariga. Olharam-se fixamente como dois gatos prontos a disputar o mesmo território.
- Diz-se que tens um pacto de sangue com um dos Senhores dos Cavalos...
Ele assentiu sem desviar os olhos dos de Shelyra.
- Então, poderás arranjar maneira de esconder Shelyra até que eles cheguem e depois até poderás falar com eles a nosso favor. Farei um pacto de sangue contigo para me assegurar de que a protegerás, protegendo através dela o futuro desta cidade.
Ele franziu o sobrolho.
- Ela é uma princesa, uma senhora muito importante. Reconhecê-la-iam imediatamente nos buracos que eu conheço.
- Então, assegura-te de que isso não acontecerá.
Antes que ele pudesse mexer-se, Lydana moveu subitamente a mão direita e agarrou-o pelo pulso, onde ainda se podiam ver as marcas das grilhetas. Ele soltou um pequeno grito e ficou a olhar para a gota de sangue que se espalhava sobre a pele encardida. Lydana manteve a lâmina firmemente agarrada para que a outra gota de sangue que ali se via não caísse e, com a outra mão, indicou a Shelyra que se aproximasse e, felizmente, a rapariga obedeceu sem quaisquer protestos. Lydana agarrou na sua mão, desta vez com a palma virada para cima e no côncavo da mão deixou cair a gota de sangue que escorria do punhal.
- Pelo Coração, pelos Grandes Poderes, por tudo aquilo que está acima de nós e que destrói as Trevas profundas, que seja testemunhado que Thom, aqui presente, tem um pacto connosco, mas também ela, da Casa do Tigre, deverá recordar que ele lutará a seu favor e não deverá quebrar os laços que a ele a unem.
Lentamente ambos murmuraram as frases do pacto de sangue, tão antigas como o mundo. Lydana lançou o punhal a Thom, que o apanhou no ar com destreza e o enfiou, desembainhado, na faixa que trazia à cintura.
- Skita conduzir-vos-á até lá fora. Está um barco à espera... levem-no e procurem o vosso esconderijo. - E de repente soltou uma gargalhada – se conseguires fazer alguma coisa que embarace o nosso novo governante... tens a minha permissão para agir, desde que Shelyra esteja a salvo.
Ele estava de novo a sorrir. Depois, ergueu a mão ligeiramente ensanguentada numa saudação, como um soldado faria a um oficial.
- Que assim seja, minha rainha.
Ela ficou a ver os três desaparecerem pôr trás de uma das cortinas. Aquele palácio era, de facto, um labirinto de caminhos invisíveis. Talvez que, se Balthasar tencionasse instalar ali o seu Governo, isso também pudesse ter as suas vantagens para elas. Fizera o que pudera por Shelyra, agora devia preparar o seu próprio desaparecimento. E, afortunadamente, ela preparara-se durante anos, sem saber por quê, para esse mesmo objectivo. Tanto quanto sabia, Skita era a única pessoa que partilhava inteiramente esse segredo. Tudo começara cerca de seis estações atrás, pouco depois de Ourse, quando se sentira inquieta e desejosa de saber mais de Merina do que a mulher que vivia rodeada do poder da Casa do Tigre e que teria eventualmente dentro de si o talento precioso, poderia alguma vez saber. Skita fora, de facto, parte disso.
Quando o capitão Saxon destruiu a frota dos piratas, fez uma grande limpeza nos seus refúgios nojentos ao longo da costa e das ilhas do sul. Foram descobertas algumas coisas muito estranhas. Se os piratas faziam escravos, estes não sobreviviam muito tempo, isso era do conhecimento geral. Mas numa gaiola, como se fosse um pássaro gigante, foi encontrada Skita. Foi o próprio Saxon quem a libertou, mas ela recusou-se a falar com qualquer dos homens e ele apercebeu-se de que ela não pertencia a nenhuma raça sua conhecida. Trouxe-a de volta a Merina quando se tornou evidente que não podia fazer mais nada para assegurar a sua protecção e apresentou-a ao rei, mas nesse dia de apresentação pública na corte, Skita limitou-se a atravessar a sala até ao estrado mais baixo onde, nesse dia, estava sentada Lydana e ergueu as mãos para a filha do rei.
Inicialmente sobressaltada, Lydana limitara-se a ficar a olhar para ela. Depois algo despertou dentro de si; uma emoção que não conseguia definir. Não tinha nada de semelhante com os sentimentos que alguma vez sentira, mas naquele momento preencheu-se um vazio dentro de si. Skita não era bem a filha que nunca tivera, mas era-lhe tão próxima como qualquer parente de sangue e, embora nunca tivesse ficado a saber mais da história da sua pequena companheira para além do facto de que ela vivera numa ilha atacada por um barco pirata que saíra da sua rota, Skita nunca exprimiu o desejo de voltar para o seu povo. Nem foi capaz, ou talvez não o quisesse fazer, de fornecer coordenadas ou o nome da sua terra natal aos escribas de mapas que Lydana consultou.
Era muito esperta e tinha certos talentos muito próprios. Frequentemente parecia ser capaz de lhe ler o pensamento, quando Lydana estava profundamente concentrada num problema qualquer e tinha uma grande capacidade de se aperceber da aproximação do perigo. Lydana ensinou-lhe alguma coisa de joalharia e ela tinha a capacidade de recordar com toda a exactidão, palavra por palavra, tudo o que ouvia ou lia. Para além disso, e Lydana nunca tentara traduzir isto em palavras, a sua companhia parecia ser encorajante e calmante. Uma pessoa até podia imaginar, se fosse dada a fantasias, que ela era um dos anjos da guarda tantas vezes referidos nos missais dos claustros e na biblioteca do Grande Templo.
Foi depois de Skita se ter integrado na sua casa, que Lydana conseguiu reunir finalmente a determinação necessária para um projecto que andava na sua cabeça desde a morte do marido. Não teria tido a liberdade de que precisava para levar a cabo os seus planos se ele continuasse a ser, tecnicamente, o chefe da sua família.
Mais uma vez, como tantas vezes antes, Lydana usou as passagens secretas do palácio. Encontrara uma pequena câmara muito adequada aos seus planos ainda inacabados e fora ali que avaliara quais as suas necessidades para a experiência de se transformar, já não numa senhora aristocrata, mas numa qualquer comerciante da cidade de Merina.
Estava lá colocada uma arca, laboriosamente transportada para ali por si própria e por Skita, um espelho na parede, e algo que nunca tivera lugar no toucador pouco fornecido dos seus aposentos oficiais: uma caixa de cosméticos vários.
Foi assim que Matild nasceu. As roupas simples e de cores escuras, que eram as preferidas de Lydana, foram ali trocadas por roupas de cores brilhantes, que a simples idéia de usar, quando encarnando a sua verdadeira identidade, a teria feito estremecer. O seu cabelo castanho-claro foi solto da sua tiara apertada e entrançada e cuidadosamente penteado uma e outra vez com uma das escovas vendidas no mercado para aquelas que, tendo já passado o auge da sua vida, não se rendiam aos cabelos brancos, escurecendo-os e dando-lhes um brilho estranhamente vermelho.
E não voltou a entrançar novamente o cabelo. Este foi antes torcido e enrolado, Lydana necessitara de fazer algumas experiências impacientes para conseguir o seu objectivo, em caracóis por cima das orelhas. Por cima dos caracóis colocou redes de prata escurecida, cujos fechos se encontravam no topo da cabeça e deixavam cair fiadas de contas de vidro brilhante sobre a sua testa.
Aprendera a apertar o espartilho de modo a realçar tanto a curva das ancas como a empurrar para cima, de forma quase indecorosa, os seios. Por cima, vestiu uma saia de seda esfiapada junto à bainha e depois um corpete justo, deixando ver, de forma questionável, o pescoço e os ombros. Antes de ajustar o corpete seleccionou, de entre os muitos cosméticos guardados na arca, um frasco do qual verteu um líquido cor de canela. Utilizou um pincel macio e um pedaço de seda suja e a sua pele cor de marfim desapareceu, dando lugar à pele tisnada de uma mulher que passava muito tempo ao ar livre e que abusara dos cosméticos durante toda a sua vida. Depois, escureceu e redesenhou as sobrancelhas e cobriu as faces com vermelhão. De uma pequena caixa tirou um sinal preto, que ficou colado à ponta do seu indicador, e colocou-o no lábio superior por cima do baton vermelho abundantemente aplicado.
Depois de se observar criticamente ao espelho, Lydana enfiou vários colares feitos de pedras semipreciosas e cristais entremeados com pedaços de prata não polida e contas de cobre. Em cada pulso enfiou uma série de pulseiras.
Enquanto Lydana se ocupava dessa forma, Skita, que acabara de regressar, tinha também assumido a sua outra identidade: a de alguém que conhecia bem os locais mais duvidosos da vida
da cidade. Utilizou uma loção semelhante à de Lydana, não apenas no pescoço, no rosto e nos braços, mas tirando a roupa toda, assegurou-se de que todo o seu pequeno corpo estava agora coberto por uma película que sugeria a necessidade de um banho, ou de uma série de banhos, antes de voltar a ficar num estado próprio à confraternização com companhias decentes.
Depois, deitou o cabelo numa taça onde despejara o resto da loção, enfiando em seguida os dedos num pote com um unguento gorduroso e passando-os repetidamente pelos caracóis até estes ficarem escorridos e emaranhados.
Com o corpo já seco, pegou numa tira de tecido cinzento grosseiro e apertou-a firmemente por cima da curva dos seios. Podia muito bem ser um rapaz, um dos membros dos grupos de jovens que frequentavam os canais. E as calças demasiado largas que vestiu, atadas com um pedaço de corda, a camisa largueirona e comprida e o cinto remendado, completavam o disfarce.
Skita deixara de existir, tal como Lydana não existia mais. No seu lugar apareciam, enquanto fechavam as arcas e se observavam cuidadosamente uma à outra, Matild, que negociava
em contas e outras bugigangas baratas e que tinha uma loja num buraco escuro junto ao canal mais a sul, e Eel 2, o malandro do seu sobrinho, cuja habilidade para separar os cidadãos das suas bolsas era motivo de comentários de admiração entre os companheiros da rua.
Matild suscitara uma tal reputação de inconstância, que as poucas esposas decentes da sua rua murmuravam à sua passagem. De acordo com os rumores, ela tinha um fraco por marujos, embora nunca ninguém a tivesse visto com um. Mas quando ela desaparecia dias seguidos, pensava-se que estaria ocupada com algum marinheiro de mãos largas de regresso de uma viagem
lucrativa. Por outro lado, embora proferissem comentários desdenhosos e dessem à língua a respeito das suas supostas actividades, as mulheres do Páteo de Stingray tinham um respeito relutante e mesmo alguma reverência, pela sua vizinha. Já provara por várias vezes ter um sexto sentido, sendo capaz de obter notícias de homens desaparecidos, ou filhas desaparecidas e dera-lhes alguns conselhos que tinham conseguido livrar parentes das garras da polícia.
Embora as suas mercadorias não passassem de bugigangas vistosas, eram suficientemente bonitas para atrair a atenção das mulheres e o seu negócio prosperava junto dos jovens aprendizes que queriam impressionar uma qualquer criada de servir.
Ainda era dia. Matild bocejou e apercebeu-se de que tinha fome. O que é que tinha comido? Tinha comido de manhã muito cedo e foram unicamente biscoitos e um copo de vinho. Mas parecia que Skita pensara nisso, pois apareceu com um cesto e partilhou com ela queijo, pão e alguma carne seca, bem como dois bolos escorrendo açúcar.
Tinham que esperar até que a cidade ficasse totalmente consciente da presença dos invasores. Agora que já se transformara, Matild sentou-se de pernas cruzadas no chão de pedra e começou a examinar detalhadamente tudo o que Lydana, a rainha, fizera nesse dia, tentando descobrir quais os pontos fracos dos seus planos improvisados.
- Thom manter-se-á fiel à palavra dada. - Skita baixara o candeeiro até este dar apenas uma luz muito fraca. - Ele é um homem de muitas facetas.
Matild suspirou.
- Uma pessoa pode ouvir dizer muita coisa, mas tudo o que é dito é distorcido elos próprios pensamentos e sentimentos daqueles que contam a história. Só espero que ele seja suficientemente engenhoso para lidar com Shelyra. De momento, ela faz o que lhe dizem por não ter tido tempo para pensar ou imaginar a sua própria forma de lidar com os acontecimentos. Mas - Matild ergueu as mãos num gesto de alguma impotência - que mais poderíamos nós ter feito em
tão pouco tempo?
- Nós tivemos o tempo necessário. - A sua boca torceu-se e o vermelho dos lábios sujou-lhe os dentes, enquanto se corrigia a si própria. - Mas era como se estivéssemos cegas... até há meio ano atrás. Vimos Balthasar e os seus exércitos activos lá no norte... uma cidade-estado... não valíamos a sua atenção até ele ter dominado os barões do Shlad. Embora, mesmo que tivéssemos decidido defender-nos, que poderíamos nós ter feito? Os homens da cidade estão dispostos a lutar pelas suas casas e pelas suas famílias, é um facto, mas não são veteranos bem treinados. Não temos muralhas capazes de aguentar um armamento igual ao usado no cerco que derrotou Hardclaw. Não, só nos resta escondermo-nos e aguardar... e usar da paciência do bicho da madeira que, através do seu labor, consegue deitar abaixo uma casa velha de um século.
Agarrou no cesto da comida, agora quase vazio, e começou a arrumá-lo com precisão. Estranhas armas, mas as melhores de que dispunha. No fundo do cesto ficou a caixa com as pedras de mau augúrio. Sobre elas, monte após monte de contas, algumas enfiadas, outras em saquetas. Era-lhe difícil controlar a sua impaciência... queria sair dali e pôr-se a caminho, mas precisavam de um disfarce para os seus movimentos.
- Deverá o Eel ir cheirar lá fora? - Skita chegou-se para mais perto dela. Talvez também ela tivesse dificuldade em agüentar a pressão que a necessidade de cautela punha sobre elas.
Matild pensou e depois assentiu e a pequena criatura moveu-se com velocidade e entusiasmo, perdendo-se de vista por trás das paredes.
Matild ficara com uma fiada de contas entre os dedos; de jade, sim, mas com falhas e de uma cor pouco bonita. Deliberadamente concentrou-se noutra pessoa, Adele, enquanto fazia correr as contas por entre os dedos, seguindo o padrão da prece silenciosa. Acreditava no templo, fora educada nessa crença e sabia que as pessoas como a reverendíssima tinham capacidades que pareciam miraculosas ao comum dos mortais. No entanto, no seu coração, lidava melhor com a acção e acreditava de alguma forma que o Coração e tudo aquilo que este representava, favoreciam aqueles que lutavam para se ajudarem a si próprios se a sua causa fosse justa.
Adele estava a salvo. Não acreditava que nem mesmo Balthasar, ou aquele mago dele que tinha poderes das Trevas, se atrevessem a entrar nos claustros. O templo fazia parte da vida do imperador de uma forma muito importante e os seus próprios chefes se virariam contra ele se fizesse tal coisa. Mas havia outras formas de entrar no templo para além de derrubar uma porta desprotegida com um grupo de homens armados. Desprotegida? Passou mais uma conta por entre os dedos sujos. Havia protecções mais subtis, e mais poderosas, do que quaisquer portões feitos pelo Homem.
A grande sacerdotisa Verit era velha. Já detinha o Grande Trono há cerca de quarenta estações, embora não parecesse ter perdido nada da sua sagacidade nem do seu poder com o passar do tempo. Teria Apolon alguma forma de provocar malefícios desconhecidos mesmo àqueles que estivessem ligados ao próprio Coração? Não valia a pena estar a preocupar-se com aquele tipo de considerações. Era melhor que pensasse naquilo que teriam de enfrentar de imediato.
Saxon, sim, o capitão do porto faria parte integrante dos planos que viesse a congeminar. Mas Saxon era uma figura tão pública como o fora Lydana quando sentada à mesa do Conselho.
Podia confiar nele para que se pusesse a salvo. De momento devia confiar nisso mesmo.
SHELYRA
Saíram os três da passagem secreta para os corredores do terceiro andar. Skita começou a descer o corredor em frente às claras. Thom Talesmith começou a seguir a pequena mulher, mas quando viu que Shelyra não se mexia, parou. Assim que ele parou, Skita virou-se para ver o que se passava. Shelyra franziu-lhes o sobrolho, mas foi a Thom que dirigiu a expressão mais reprovadora, como que dizendo, ainda que sem palavras, “Tu, pelo menos, devias ter mais juízo”.
- Volta para junto da rainha - disse a Skita com um aceno de mão. - Ela precisa mais de ti do que nós.
- Mas o barco... - protestou Skita.
Shelyra abanou a cabeça.
- Pode ser que eu leve o barco, pode ser que não. Quanto menos pessoas souberem como é que nós vamos sair daqui, tanto melhor. Mesmo tu podes ser apanhada e engaiolada para seres interrogada, Skita.
Escolhera as palavras com inteligência e, conhecendo a história de Skita como conhecia, viu a pequena mulher estremecer um pouco.
Sem mais objecções, Skita voltou para trás e apressou-se a regressar aos aposentos da rainha. Shelyra esperou até ela não os poder ver nem ouvir e depois fez sinal a Thom que a seguisse; viu pelo seu apertar de lábios que não lhe agradava nada encontrar-se na posição de ter que receber ordens e reprimiu um sorriso de cruel satisfação.
Não fora ela quem pedira para ficar amarrada àquele tipo insolente e não estava disposta a aturar-lhe quaisquer veleidades.
Não gosto da reputação deste homem e a atitude dele só confirma essa reputação. Corre riscos estúpidos só por uma questão de notoriedade; se lhe derem a escolher entre uma acção eficiente que não tenha a correspondente admiração pública e uma outra ineficaz que engrandeça a sua lenda, ele preferirá a segunda.
Soubera desde o instante em que ele a olhara, que ele contava com o seu encanto e a sua beleza e a presumível sensibilidade de Shelyra a ambas, para conseguir que ela fizesse o que ele queria. Ele esperava que ela não passasse de uma princesa mimada e aristocrata, fácil de adular, fácil de conduzir; e dissera isso mesmo. Bem, esse era o seu erro, pensar que lá por que ela tinha sido criada num palácio, não tinha qualquer experiência do mundo real.
Não levara em conta o facto de ela ter crescido num ambiente em que estivera constantemente rodeada de jovens bem parecidos, com muita ambição, mas pouca inteligência, sem nada onde empregar o tempo a não ser a cortejá-la, na esperança de que ela pudesse contribuir para a satisfação das suas ambições. Para ser honesta, muitos desses rapazes eram mais bonitos que Thom e ela sempre conseguira ver para lá das suas lisonjas.
A tia Lydana nunca soube de metade das coisas que eu fiz enquanto vivi com os Senhores dos Cavalos e não tem qualquer conhecimento da minha amizade com os ciganos. Bem, se calhar assim é melhor. Tal como Skita pode ser apanhada e interrogada, também isso pode acontecer à minha tia.
Aquela idéia fez com que os braços se lhe arrepiassem.
O melhor é eu manter-me fiel aos meus próprios planos. Os dela podem não ser seguros por muito tempo. De qualquer forma, eu não vou virar as costas e fugir, não enquanto sentir que tenho hipóteses de fazer qualquer coisa de positivo.
Entrou para o gabinete da governanta do palácio, que não chegaria antes da tarde. Thom seguiu-a, ainda de sobrolho franzido.
- O que... - começou a dizer assim que a porta se fechou por trás deles.
- Chiu - interrompeu-o ela, ainda antes dele conseguir terminar a pergunta. - As paredes têm ouvidos.
Ela dirigiu-se para o fundo do corredor, enquanto ele suspirava melodramaticamente e erguia os olhos para o céu, como que implorando aos anjos que lhe dessem paciência. Era evidente que pensava que ela estava a ser ridiculamente cautelosa. O que só fez aumentar o desdém que Shelyra sentia por ele.
Idiota! Como será que sobreviveu tanto tempo?
O fecho daquela passagem secreta estava tão bem dissimulado que nem a governanta, que usava diariamente os livros que estavam na estante ao fundo do gabinete, tinha dado por ele. Tal como a porta que Shelyra utilizara no átrio na noite anterior, aquela também girava sobre um pilar central. Tomou a precaução de interpor o corpo entre as suas mãos e os olhos de Thom, enquanto soltava a fechadura. Tencionava vencer este conflito com o imperador, o que significava que a Casa do Tigre recuperaria a posse deste palácio e não tencionava fazer com que Thom conhecesse mais dos seus segredos do que o estritamente necessário.
Não viu a expressão dele quando a estante girou sobre si própria, mas quando se voltou para lhe indicar que entrasse, o seu rosto perdera a expressão de ligeira troça.
Uma vez a salvo no interior da passagem secreta, ali, naquela passagem, as paredes eram suficientemente espessas para abafar o som, até mesmo de um grito, e num local onde não havia quaisquer frestas que pudessem deixar passar luz para o exterior, tacteou à procura dos fósforos e da lanterna que tinha sempre preparados numa prateleira junto à porta. Acendeu o fósforo e chegou fogo à lanterna, trancou a porta secreta por trás de si, por forma a que só pudesse ser aberta do interior e só então se virou para o homem que supostamente tinha um pacto consigo.
Observou-o criticamente, como ainda não tivera oportunidade de fazer. A princípio ele sorriu e posou, mas como a sua expressão não se alterasse e não houvesse qualquer relaxamento na sua atitude, o sorriso complacente desvaneceu-se e começou a aparentar desconforto perante o escrutínio implacável.
Era um homem bastante bem parecido; isto se se lavasse com mais frequência e mais cuidado. Era mais alto do que ela uma cabeça e meia, usava o cabelo louro escuro cortado abaixo
das orelhas e afastado dos olhos, surpreendentemente azuis, por uma faixa de seda vermelha. O seu rosto barbeado tinha uma expressão arrapazada, aparentemente inocente, e fazia-o parecer mais novo do que a soma dos seus anos. Vestia um casaco de cabedal castanho largo e muito usado, por cima de uma camisa de seda já no fio e que desbotara da sua cor original, qualquer que esta tivesse sido, até ficar de um bege indeterminado.
A camisa estava entalada numas calças de linho castanho, que por sua vez estavam enfiadas no cano de umas botas de cabedal até aos joelhos atadas de lado; botas do tipo das usadas pelos Senhores dos Cavalos. Ela própria tinha um par de botas daquelas, que levara para um esconderijo seguro. Um cinto de seda vermelha desbotada completava o fato, todo ele a necessitar de uma boa barrela.
Ele passou o peso de um pé para o outro, desconfortável sob aquele escrutínio continuado, enquanto ela avaliava o homem por baixo da roupa. Estava obviamente em boa forma; bem musculado, mas não em demasia; e não do seu “tipo”, seco e resistente, mas com músculos fortes e salientes. Ela soltou a respiração num suspiro.
- Não tenhamos ilusões entre nós - disse ela com um olhar sobranceiro e desafiante. - Não importa o que a rainha te tenha dito, quem manda sou eu e obedecerás às minhas ordens. Ou poderás ir-te embora assim que chegarmos à rua, deixando de me aborrecer com a tua presença não desejada e mal-vinda.
Com aquelas palavras, agarrou na lanterna e virou-se abruptamente, descendo a passagem com passadas largas, fazendo-o correr para a alcançar.
- Não, esperai um momento, Toda Poderosa - disse ele com sarcasmo, enquanto ela continuava a impor uma passada que o fazia quase correr. - Eu sou...
- Tu és um ladrão com uma reputação exagerada – respondeu ela rispidamente. - Não tens quaisquer recursos para além dessa faca que trazes no cinto e aquilo que tiveres conseguido esconder na cidade, e que os teus queridos colegas e amigos são capazes de já ter saqueado. Dentro em breve, Merina estará repleta de homens do imperador, se é que não o está já. Se quiseres partilhar dos recursos que eu escondi, eu, que não confiei esses segredos a ninguém, cumprirás as minhas ordens. Se não o quiseres fazer, podes correr os teus riscos com os homens do imperador.
A passagem fazia uma viragem brusca; ela sabia da sua existência, mas ele não. Não esbarrou com a parede, mas a súbita mudança de direcção fez com que cambaleasse e perdesse momentaneamente o equilíbrio e teve que correr para a apanhar de novo.
- Que recursos? - perguntou ele, quando já estava de novo perto dela.
Ela não lhe respondeu. Ele poderia ser útil, nem que fosse para fazer recados, mas apenas se dobrasse o seu orgulho desmedido à sua mão.
- Era suposto que tomássemos o barco... - disse ele; depois a suspeita transpareceu na sua voz. - Somos supostos ir ter com os Senhores dos Cavalos. Vós não tencionais sair da cidade, pois não?
- A tua decisão - recordou-lhe ela. - Quero saber qual é, antes de te dizer o que quer que seja. Não confio a ninguém os meus segredos, muito menos a um patife que acabou de escapar da forca e que é capaz de decidir tentar fugir da cidade pelos seus próprios meios. E de ser apanhado em resultado dos seus esforços.
Ele está nas minhas mãos e sabe disso. Deu a sua palavra e fez comigo um pacto de sangue. As minhas ordens revogam as da minha tia. Será que ela teve isso em consideração? Que ele não pensou nisso já percebi; tenho a sensação de que as suas fugas arrojadas e ardilosas foram conseguidas mais à custa da sorte do que de planeamento.
Ele grunhiu de forma exagerada.
- Que escolha é que eu tenho? - exclamou. - A rainha tem os meus votos em sangue!
- E eu tenho o poder necessário para te desligar deles - recordou-lhe ela calmamente, mantendo o passo rápido. - Ponho-te apenas a condição de deixares Merina imediatamente e de nunca mais voltares.
Pelo seu silêncio, interrompido apenas pela respiração, ela percebeu que ele se sentia dividido quanto à decisão a tomar. Com cinismo ela pensou saber qual a razão da sua indecisão.
Com os homens do imperador a tomarem a cidade haverá grande confusão e onde há confusão, existe a oportunidade de saquear e roubar. O seu rosto e o seu nome não são conhecidos dos homens do imperador e, se ele ficar comigo, tem a hipótese de conseguir algumas pilhagens de primeira escolha. Mas, se se for embora... conseguirá salvar a vida, o que não tinha qualquer esperança de conseguir ontem por esta hora. É uma escolha difícil.
Ocorreu-lhe outra idéia, outra razão pela qual ele estaria hesitante em cumprir a sua promessa de a levar a refugiar-se junto dos Senhores dos Cavalos. O rumor de que ele era irmão de um dos seus chefes por pacto de sangue podia muito bem não passar disso mesmo, de um rumor que ele próprio tivesse lançado para aumentar a sua fama e o mito que rodeava a sua vida. Não era por acaso que lhe chamavam Talesmith 3.
Naquele momento estava pronta a classificar de mentira ou de distorção da verdade até ao limite, tudo o que o homem lhe pudesse dizer. Ele que provasse a sua valia aos seus olhos; não acreditaria em nenhuma das histórias que se contavam a seu respeito. Os contadores de histórias e os baladeiros mentiam frequentemente.
E disso são testemunho todas aquelas canções idiotas que louvam as minhas maneiras delicadas e a minha pele branca como os lírios
Se na história daquele pacto de sangue não houvesse nada de mais sólido do que um par de botas, que ele próprio poderia ter comprado em segunda mão num mercado de roupa, ela tinha todas as razões para duvidar dele. É provável que ele não esperasse ser apanhado por ninguém nesta sua invenção e está a tentar pensar numa saída para esta situação. Os Senhores dos Cavalos perdem rapidamente a paciência e não recebem bem estranhos que, para além de falidos, lhes arranjam sarilhos.
Ele não tem qualquer hipótese de saber que eu tenho, por direito próprio, estatuto entre os Senhores dos Cavalos e teme o que possa acontecer se entrar nas suas terras comigo atrás, correndo o risco de ser recebido com hostilidade!
Também não se sentia particularmente inclinada para o informar dos seus próprios planos. Ele que arranjasse forma de se libertar da teia que ele próprio tecera. Seria um bom divertimento, caso ela não tivesse preocupações bem mais urgentes.
Também ela se sentia dividida entre a vontade de se ver livre dele e a vontade de o ter à sua disposição. Para os seus planos seria útil ter um homem ao seu lado, quanto mais não fosse como um meio de evitar as confrontações desagradáveis que, inevitavelmente, aguardariam qualquer pessoa do sexo feminino.
De momento, os seus planos limitavam-se a levá-lo até ao Bairro Cigano, a um certo comerciante de cavalos, junto de quem o talismã de bronze que trazia, escondido por baixo da gola do vestido, serviria para lhe dar acesso a uma posição entre os tratadores e domadores. A partir daí teria que esperar para ver o que o imperador faria... e que passos a sua avó daria.
Fervia interiormente com a vontade de fazer qualquer coisa, mas de momento não havia nada que pudesse fazer, e sabia disso.
- Fico convosco. - Ela sobressaltou-se; estivera tão concentrada nos seus próprios pensamentos que quase esquecera Thom. - Fiz os votos; não quero que se diga que Thom Talesmith voltou com a palavra atrás quando as coisas começaram a dar para o torto.
- Muito bem - replicou ela. Ele que pintasse a decisão da forma que mais lhe aprouvesse, desde que se decidisse e mantivesse essa decisão. - Por agora, vamos para o Bairro Cigano.
Ele riu-se, soltando pequenas gargalhadas.
- Ah, realmente? E ser-vos-á tão fácil passardes despercebida nesse bairro, imperatriz!
Ela ignorou o comentário mordaz, agarrando nas saias de veludo do seu vestido para poder correr e obrigando-o a fazer o mesmo. A passagem descia abruptamente, transformando-se num lance de escadas perigosamente estreitas. Ao fundo das escadas havia uma sala toda em pedra ao nível do andar térreo, embora aquela sala já não estivesse propriamente dentro do palácio.
Shelyra colocou o candeeiro em cima de uma pequena prateleira que ali estava para esse efeito e abriu o saco que ali deixara na noite anterior. Em circunstâncias normais teria necessitado dos cuidados e esforços de uma criada para desapertar as costas do vestido apertado, mas não planeava voltar a usar aquele vestido, por isso não havia realmente necessidade de perder tempo a desapertá-lo.
Levantou a saia pesada e tirou uma pequena faca de uma bainha presa ao tornozelo e depois cortou o lado esquerdo do vestido desde o sovaco até por cima da anca, ao longo da costura.
Enquanto Thom olhava para ela de boca aberta, cortou a manga esquerda, que era muito justa ao braço, e soltou-a, deixando-a cair no chão. Depois cortou o ombro e a gola subida e contorceu-se, saindo dos restos do vestido.
- Não quereis que... que eu vire as costas, ou coisa assim? - Gaguejou ele.
Ela olhou-o friamente, enquanto cortava os cordões para despir o espartilho sofisticado e retirava o pesado corpete de seda, ficando apenas com os sapatos e uma pequena camisola interior. Os sapatos eram muitíssimo mais simples e práticos do que o vestido; ela correra esse risco, esperando que o embaixador não lhe olhasse para os pés com muita atenção.
- Não – respondeu secamente. - Para quê? Eu não tenho qualquer interesse em ti e se tu tentasses qualquer coisa, ficarias sem a mão com que me tocasses.
Com aquelas palavras, virou-se para o saco. Os ciganos, que eram parentes de sangue e tinham, para além disso, pactos com os Senhores dos Cavalos, reconheciam quatro castas: Latoeiros, Artistas, Curandeiros e Domadores de Cavalos.
Na sua língua eram Caldesh, Getan, Dukke e Romer. Alguns acrescentavam “ladrões de cavalos”, mas esses só em parte tinham razão. Cada casta tinha uma forma própria de se vestir. O fato que ela tirou do saco não era o dos Domadores de Cavalos, pois alguém poderia recordar-se de que ela tinha laços com os Senhores dos Cavalos e procurá-la entre aqueles que trabalhavam com os animais, ou antes, entre aqueles que os treinavam e domavam. Era uma pena, pois a sua indumentária consistia num casaco e calças de cabedal por cima de uma camisa de linho escuro; fato muito adequado a alguém que tivesse que fugir à pressa. Também não vestiu a túnica e saia longas e castanhas dos Curandeiros, pois os seus conhecimentos no que respeitava a tratamentos não iam além de fazer pensos em feridas e àquelas doenças que atingiam os cavalos e não os humanos.
Não, ela escolhera deliberadamente a única casta com a qual não seria provável que a relacionassem: a dos Artistas. Primeiro, enquanto Thom Talesmith a observava em estado de choque, ela envergou uma túnica de um vermelho desbotado com mangas justas que terminavam em folhos largos, mesmo acima do cotovelo; sobre esta vestiu três saias rodadas: uma preta, outra amarela e ainda uma vermelha, esta última com uma cintura subida que lhe chegava às costelas. Meteu as mãos no cabelo, soltou-o dos alfinetes que o mantinham seguro e retirou o travessão de prata; abanou a cabeça até o cabelo lhe cair solto sobre os ombros, chegando-lhe quase à cintura. Como era evidente, nenhuma donzela bem nascida usava o cabelo solto e ela sabia, por experiência própria, que aquela mudança de penteado lhe transformava completamente o aspecto do rosto.
Do saco retirou um cinto enfeitado com pequenos sinos e moedas de cobre, que colocou em torno da cintura. Seguiu-se um lenço vermelho, que atou em volta da cabeça, a que juntou uma fita em torno da testa, enfeitada com mais moedas de cobre e correntes de bronze. Finas braceletes de cobre enfeitaram-lhe os braços e uns enormes discos de bronze substituíram os brincos de safiras preciosas que lhe enfeitavam as orelhas, safiras essas que atirou a Thom. Ele não estava tão espantado que não fosse capaz de as apanhar e meter no bolso.
- Uma segurança - disse ela e continuou com a sua transformação.
A última coisa a sair do saco foi um xaile que pôs pelas costas, caído por sobre os braços, um par de castanholas e as suas armas: um punhal achatado, que escondeu numa bainha entre os
seios; um outro punhal numa bainha presa à perna, seguiu o exemplo do primeiro; o seu punhal de guerra dos Senhores dos Cavalos pendia da ilharga, às claras e muito apropriadamente, do cinto de correntes e moedas. Tirou mais dois estiletes elegantes que prendeu no cabelo segurando, na nuca, o lenço e a fita.
Prendeu as castanholas ao cinto, no lado oposto ao do punhal. A bolsa que continha os seus valores, prendeu-a por baixo da primeira saia, num local a que podia aceder através de uma abertura feita de lado. Por fim, limpou a cara de todos os vestígios de cosméticos. Nenhum cigano tinha dinheiro para esse género de coisa. O seu rosto, pálido à custa de muitas camadas de pó de pérola, ficou da sua verdadeira cor.
O talismã de bronze, um disco com o Sol numa das faces e a Mão dos Curandeiros na outra, pendia agora abertamente da sua garganta, suspenso por um cordão de cabedal. Virou-se para o enfrentar, compondo uma expressão de ironia divertida.
- Creio - disse ela no meio de um silêncio tão espesso que as suas palavras soaram como pedras caindo na água - que não provocarei grande tumulto no Bairro Cigano.
Ele limitou-se a abanar a cabeça com espanto.
- Os sapatos não são do tipo indicado para as danças do Sul - foi tudo o que conseguiu dizer. - Não têm tacão para os passos de sapateado...
- Eu não sou bailarina profissional - replicou ela. - Desembaraçar-me-ei, se for forçada a dançar em público, com os passos do estilo nortenho. Os sapatos macios são adequados a esse estilo.
Ele ergueu as mãos num reconhecimento de derrota.
- E não é provável que algum dos homens do imperador já tenha estado nas planícies e visto dançar o estilo nortenho e não saberá se és uma bailarina ou uma amadora. Muito bem.
Ela fez uma vénia irônica, como o faria uma bailarina, exagerada e cheia de arrogância. Sentia-se mais livre com aquelas roupas; já não era a herdeira, mas alguém com mais opções e sujeita a menos restrições.
- Esta porta conduzir-nos-á a um canto abandonado do jardim, junto de um portão para qual só eu tenho a chave – disse ela, pondo a mão na parede branca. - Por aí poderemos aceder à rua. Veremos o que fazer com o tal barco; é capaz de acabar por nos ser útil. Estás pronto?
Ele assentiu, o seu rosto inocente vazio de qualquer expressão enquanto tentava assimilar tudo o que acabara de lhe acontecer.
Ela desorientara-o. E era assim que o tencionava manter. Sem mais uma palavra, ela correu o fecho escondido da porta que dava para o jardim e escapuliram-se juntos.
LEOPOLD
No exterior das quatro paredes de lona que rodeavam o príncipe Leopold zumbia o sussurro soporífero das vozes de muitos homens. Não havia naquele som monótono qualquer sinal de que aquela era a frente de batalha alcançada ao cabo de uma campanha muito, muito longa; o murmúrio constante era até relaxante. Leopold estava recostado numa cadeira de lona e madeira na parte de trás da tenda espartana que o seu pai usava em campanha, aguardando que o imperador Balthasar pensasse em qualquer coisa de útil para ele fazer. Endurecera os nervos para uma batalha iminente assim que o embaixador regressara, e agora... agora estava envolto na lassitude que invariavelmente se seguia quando não tinha oportunidade de dar largas à sua energia nervosa.
Sentia-se grato por não ter envergado naquela manhã a armadura completa, embora o fizesse sempre que antecipava um cerco ou uma batalha renhida às portas de qualquer cidade que
tivessem ido conquistar. Algo o fizera mandar o escudeiro embora quando o rapaz lhe trouxe a armadura e pedira em seu lugar a cota de malha preta e a túnica de cabedal da mesma cor; a que tinha placas de metal a revestir o interior. Sobre esta usava o manto com as insígnias do Império do seu pai, um Sol flamejante em ouro brilhante sobre um fundo negro, rodeado por estrelas também brilhantes.
Agora sentia-se satisfeito por ter recusado a armadura; a cota já era dificilmente tolerável quando usada durante um dia inteiro; a armadura completa de combate, essa era impossível.
A capitulação de Merina apanhou Balthasar completamente desprevenido; o imperador esperara um longo cerco, pois até mesmo Apolon declarara que nada faria os soberanos da cidade
do Coração render-se sem luta. Tudo indicava que a rainha Lydana, apesar de mulher, juntaria teimosamente a sua gente para defender as riquezas de Merina até ao mais amargo dos finais.
Mas o embaixador do imperador regressara com as chaves do palácio e o sinete da Casa do Tigre nas mãos, e a capitulação e abdicação num documento enfiado num tubo preso ao cinto. Jurara, em nome de Balthasar, que os habitantes da cidade não seriam molestados, o que não foi muito do agrado de Apolon, mas satisfez o imperador o suficiente para que o mandasse embora com uma corrente de ouro em volta do pescoço. Balthasar agarrou no anel e enfiou-o imediatamente no dedo, embora Apolon fizesse um gesto inacabado, como se o quisesse examinar primeiro.
Apolon, aquela serpente insidiosa; que é que ele queria, afinal? Arranjar maneira de se apoderar do sinete? Não que isso me espantasse!
Apolon estava furioso por a vitória ter sido tão fácil. Isso, na verdade, despertava a curiosidade de Leopold...
- E então, a rainha? - cuspiu o feiticeiro quando o embaixador acabou a recitação dos votos que jurara pelo imperador. - E a rainha-mãe, Adele? E a princesa Shelyra? Ela, pelo menos, devias ter insistido que ta dessem como refém do bom comportamento da sua cidade!
Aquilo também pareceu muito estranho a Leopold... Por quê? Por que haveria o povo de Merina de se interessar com o que acontecesse à princesa?
Apenas a sua própria família seria inibida de agir pelo facto de a termos como refém e esses abdicaram! Não há mais nada que possam fazer contra nós, mesmo que quisessem!
Muito estranho, de facto. Apolon deveria estar rejubilante com aquela vitória sem sangue; Leopold certamente que estava.
Vi demasiado sangue nestes últimos anos. Há quanto tempo ando a combater?
Desde que completara os seus catorze anos, certamente, e já passara dos vinte e seis. Uma vitória sem derramamento de sangue é preferível a uma que seja comprada com mortes. Apolon, que afirmava ter sempre em mente os melhores interesses do imperador e do Império, deveria ter-se sentido ainda mais contente com as notícias trazidas pelo embaixador do que o próprio Leopold. Em vez disso, parecia estar zangado, como se lhe tivessem negado algo de muito especial que lhe tivesse sido prometido.
- Eu não apostaria que a rainha-mãe sobreviva para lá da meia-noite - disse o embaixador, com um encolher de ombros indiferente. - Caiu para o lado quando eu me vinha embora e foi levada para o templo pelos curandeiros para cuidarem dela. Estou certo de que não sobreviverá até ao fim da semana. O rumor que corria no templo era de que ela estava a morrer. Eles culpam-nos disso, evidentemente, mas pouco importa.
- E quanto às outras duas, para onde poderiam ir? Usa a cabeça, Apolon - disse o imperador em tom conciliador. – São duas mulheres nobres e sozinhas; talvez acompanhadas de uns quantos criados fiéis, mas não mais do que isso. O mais provável é que estejam a tremer de medo no palácio, à espera que marchemos para tomar a cidade. Mesmo que tenham a coragem necessária para tentar uma fuga, para onde poderiam ir e como poderiam ter qualquer possibilidade de nos escapar? Controlamos as estradas e o rio, controlamos o mar; não conseguirão escapulir-se por entre os nossos dedos e se se esconderem na cidade, a sua natureza traí-las-á. Tê-las-emos na mão muito em breve.
Apolon calou-se, mas continuava furioso; Leopold podia vê-lo pela forma como cerrava os maxilares, a posição dos seus ombros e a tensão das suas costas. Era bastante estranho ver o feiticeiro do imperador excitado; geralmente, ele era o homem mais cinzento e desprovido de emoções que Leopold alguma vez vira.
Cinzento... da mesma forma que um escorpião é cinzento, para se poder esconder entre as ervas até estar pronto para atacar.
Leopold não gostava de Apolon nem confiava nele, embora o seu pai quase não desse um passo sem ouvir os conselhos do feiticeiro-sábio.
Se fosse como eu queria, mandava-o expulsar da tenda e correr com ele do Império como a um charlatão. Como eu gostava que ele fosse mesmo um charlatão! Infelizmente é bastante genuíno.
Apolon podia fazer, e fazia, maravilhas e as suas mágicas eram genuínas. Os seus poderes já tinham virado a sorte das batalhas por mais do que uma vez; e quando adivinhava, em vez de tratar simplesmente a informação que os seus espiões lhe traziam, nunca se enganava sobre o que o futuro próximo reservava.
Como é evidente, as pessoas temiam-no e evitavam a sua companhia a todo o custo. Apolon parecia nunca se importar com isso; na verdade, Leopold suspeitava mesmo de que ele se rejubilava da sua reputação sinistra. Apolon nunca fizera mal a Leopold directamente; nem nunca
lhe dirigira sequer uma única palavra desrespeitosa. Mas Leopold escutava os rumores que corriam no acampamento, rumores que diziam que Apolon fazia coisas inenarráveis na escuridão da noite; que enviava os seus servos às tendas dos cirurgiões para levarem os inimigos feridos, homens que nunca mais ninguém via. Nada daquilo podia ser provado, mas Leopold era soldado há tempo suficiente para saber discernir quando havia algo de verdadeiro por detrás das histórias do acampamento. Quanto mais extravagante fosse o rumor, com mais gozo este era contado e menos probabilidade havia de ser verdadeiro. Mas quando uma história era repetida com relutância, com olhares por cima do ombro, assegurando-se assim quem falava de que não o estavam a escutar...
- Eu... nós precisamos de ter essas mulheres sob custódia, Vossa Majestade - disse Apolon secamente. - Assim que seja possível. Se permitirmos que elas nos escapem por entre os dedos, poderão facilmente organizar uma rebelião contra Vós. Acabaríamos a travar uma guerra de atrito nas próprias ruas e becos desta cidade.
Balthasar acenou-lhe com uma mão.
- Descansa, que em breve as terei em meu poder. Se conseguirem reunir a coragem suficiente para tentar a fuga, do que eu duvido seriamente, as suas descrições e hábitos serão postos a circular; os seus amigos e aliados serão vigiados. Apolon, elas são nobres. Como poderiam alguma vez disfarçar aquilo que são? Se não saírem do palácio... assim que os meus homens ocuparem a cidade, tomo-as sob custódia. Para as proteger, evidentemente. Para seu próprio bem. Não passam de duas mulheres fracas e sozinhas, precisarão da mão forte de um homem que as guie e proteja das suas naturezas histéricas.
- Naturalmente.
Apolon assentiu, mas os seus olhos cinzentos estavam mais frios do que o aço e Leopold reprimiu um arrepio. Tudo no homem o revoltava, do cinzento da sua túnica de veludo e da suas calças, de uma cor demasiado semelhante à de uma mortalha, à sua pêra cinzenta meticulosamente tratada e aparada; à própria forma do seu rosto, magro e demasiado anguloso. Os lábios finos eram, de alguma forma, ávidos em vez de ascéticos; a testa larga sugeria malícia e não o estudo. Não havia nada em Apolon que evidenciasse outra coisa que não o estudioso formado pelo templo que afirmava ser, mas Leopold estava tão certo de que ele nunca pusera os pés nas escolas do templo, como estava do seu próprio nome.
Leopold estremeceu novamente e daquela vez o arrepio deve ter sido visível, pois os olhos do seu pai caíram subitamente sobre si: avaliadores, observadores, expectantes. Mas à espera de quê?
Leopold tinha as suas suspeitas. Durante os últimos seis anos, Balthasar vigiara o seu filho em busca de sinais de rebelião ou ambição, presumindo provavelmente que Leopold aproveitaria alegremente qualquer oportunidade para se apoderar da coroa imperial. Balthasar não confiava em ninguém, nem mesmo no seu próprio filho.
Já houve uma época em que ele confiava em mim, mas isso foi antes de Apolon ter aparecido.
Os olhos cinzentos de Apolon juntaram-se aos olhos escuros de Balthasar, ambos os olhares observando-o com um calculismo frio.
- Parece que não precisaremos de ti hoje, príncipe - disse o imperador sem qualquer inflexão na voz. - Talvez devas procurar ocupar-te noutro local, por agora. Trataremos desse juramento e depois deixaremos a cidade em paz por um dia para reflectir sobre as virtudes da obediência, enquanto enviamos os homens para a controlar. Pode ser que precise dos teus serviços mais tarde.
Era uma despedida muito explícita e Leopold não ficou desagradado por lhe obedecer. Ergueu-se da cadeira com a elegância que lhe era possível sob o peso da armadura e curvou-se profundamente a partir da cintura.
- Obrigado, Vossa Majestade - respondeu formalmente. - Inspeccionarei o acampamento, com Vossa permissão.
Balthasar acenou com a cabeça num gesto simultaneamente de assentimento e despedida e Leopold saiu da tenda, aproveitando a sua posição e estatuto apenas no facto de sair com as costas voltadas para o seu pai. Quando a porta da tenda caiu atrás de si, sentiu um alívio palpável assim que os dois pares de olhos deixaram de estar centrados sobre si.
“Inspeccionar o acampamento” era um mero pretexto para vaguear. Sem qualquer batalha no horizonte, os homens descontraíam-se, relaxavam, aproveitando a vitória fácil para comer as rações de festa. Enquanto atravessava o acampamento em direcção à sua própria tenda, comandantes e subcomandantes abordaram-no, pedindo permissão para que os homens celebrassem.
Leopold concedeu permissão, sabendo que as únicas tropas que Balthasar permitiria que entrassem na cidade naquele dia seriam a sua própria Guarda de Elite e as Forças Especiais.
Que os homens bebam o seu vinho; muitos deles não esperariam viver para o beber. Balthasar controlaria a cidade, mas não inundando-a de homens armados e assustando a gente vulgar que, sendo a mais numerosa, era a mais perigosa. Não, ele controlá-la-ia enviando a sua Guarda de Elite para atacar no topo. Não fora esta a primeira cidade que capitulara sem lutar, embora conquistas fáceis como essas constituíssem a excepção e não a regra.
Balthasar sabia como colocar uma cidade destas sob o seu controlo no mais curto espaço de tempo possível; atacando o verdadeiro coração da cidade, prendendo os seus chefes e privando-os da única arma de que dispunham para resistir: o ouro. Mercadores gordos e complacentes nunca esperariam que tal acontecesse. Uma vez guardados e controlados os cidadãos mais influentes e neutralizados os chefes potenciais, a cidade ficaria domesticada e deitar-se-ia mansamente no chão.
Entre aqueles que seriam presos estariam a rainha, a princesa e, partindo do princípio de que ainda fosse viva, a rainha-mãe. Por uma qualquer razão essa idéia deixava um gosto amargo na boca de Leopold.
Uma pessoa não faz guerra contra mulheres...
Leopold entrelaçou as mãos atrás das costas e vagueou através do acampamento, reparando que não havia sinais de desleixo nem de desordem em parte alguma; e era exactamente assim que devia ser. As pequenas tendas de dois homens, partilhadas pelos soldados rasos, estavam montadas em filas certas e direitas, com o equipamento à prova de água arrumado de forma ordenada à entrada de cada uma. Cada unidade tinha uma fogueira ao pé da tenda do seu sargento; cada companhia, uma tenda-cozinha e uma fogueira maior, em torno da qual os homens se reuniam naquele momento, à medida que ia sendo passada palavra da “permissão para celebrar”.
Tudo estava em ordem. O que significava que, como sempre que não estava a decorrer nenhuma batalha, Leopold não tinha nada para fazer.
Aos cinquenta anos, Balthasar tinha o aspecto e o comportamento saudável e vigoroso de qualquer guerreiro com metade da sua idade. Era perfeitamente possível que ele vivesse até aos cem anos, continuando lúcido e controlando tudo até ao fim. E em que posição é que isso deixava Leopold? Na do costume. Sem nada para fazer. A fazer recados ao imperador, mas sem qualquer autoridade real. A certa altura tinha-se falado num casamento por causa de uma aliança, mas agora já não. Balthasar não queria arriscar-se ao nascimento de mais um pretendente ao seu trono e assim foi negado a Leopold até o pequeno conforto que seria ter mulher, filhos, uma vida de família. Balthasar não se arriscaria a perder o seu filho de vista, não fosse ele começar a conspirar.
Leopold apertou as mãos com força atrás das costas para evitar deixar transparecer quaisquer sinais da sua frustração. Tinha que manter a sua fachada passiva a todo o custo. Não era nenhum idiota; sabia que era constantemente vigiado. Devia aparentar aquilo que sempre aparentava: ser um homem simples, um guerreiro sem ambições de reinar, um soldado que não tinha quaisquer interesses fora do campo de batalha.
Essa era a única forma de sobreviver, pois apesar de ser o único herdeiro do seu pai, Balthasar não precisava de o ter ali. Podia mandá-lo embora, sob uma guarda polida, mas inflexível, Para passar a vida num cativeiro de inactividade. Essa era a única alternativa possível para além de ter Leopold sob a supervisão directa de Balthasar.
E se eu penso que estou aborrecido agora...
Mas Leopold era demasiado sensato para que isso acontecesse. E, apesar de tudo, admirava o pai e ansiava pela aprovação de Balthasar com um desespero que, por vezes, parecia absurdo mesmo a si próprio. Antes de Apolon...
O pai era um verdadeiro pai para mim. Acredito... acredito que ele se preocupasse comigo, que me amasse, à sua maneira. Era um mestre severo... mas não era como é agora.
As vezes que Balthasar sorrira ao seu filho, ou até o elogiara, faziam com que tudo o resto valesse a pena. Algures, no íntimo do imperador, estava o homem que roubara tempo a importantes banquetes de Estado para contar ao filho histórias de embalar e para avisar os demónios que se escondiam debaixo da cama e no roupeiro, que teriam de defrontar a espada do imperador se se atrevessem a perturbar sequer os sonhos do seu filho.
Um dia, talvez ele se recorde disso. Um dia poderá chegar à conclusão de que não mudei.
Leopold ansiava por esse dia como ansiava por poucas outras coisas. E, entretanto, tentava provar ser digno de confiança, sendo leal e competente, esperando pelo dia em que o seu pai se apercebesse finalmente de quanto o seu filho gostava dele...
LYDANA
Um ligeiro som fê-la olhar por cima do ombro, a mão dirigindo-se para a única arma que se permitira trazer, a faca escondida na saia.
A pequena sombra de Skita, de Eel (tinha que pensar na sua companheira usando o nome que as ruas lhe tinham dado) entrou aos trambolhões.
- Vem aí o embaixador - vai para o Coração. As pessoas da cidade estão a juntar-se...
Matild mordeu o lábio e deixou que a fiada de contas de oração escorregasse para dentro do cesto. Depois, quase imediatamente, tomou uma decisão. Poderia ser arriscado, mas sentia que era algo que tinha que ser feito. Fechou o cesto com uma pancada seca.
- Também nós iremos assistir a esse juramento.
Dirigiu-se à porta escondida com o cesto enfiado no braço. Eel assentiu rapidamente com a cabeça. Encontraram o caminho por entre as passagens subterrâneas até chegarem mais uma vez à entrada secreta que dava para o canal. O barco desaparecera, portanto Thom e Shelyra tinham obedecido às suas ordens. Contudo, havia um caminho muito estreito e escorregadio, que seguiram com cuidado até chegarem a um lance de degraus ascendentes já gastos pela água.
Matild teve consciência, desde que tinham saído para o ar livre, do rugido pulsante da cidade. Parecia que todos aqueles que viviam no interior das muralhas de Merina e ao longo dos seus canais se comprimiam na direcção do Grande Templo. A multidão era tão compacta, que ela não acreditou que fosse possível conseguirem sequer aproximar-se.
Havia ira nas vozes que se erguiam e o odor ácido do medo pairava sobre a multidão. Podia ver mulheres com os filhos apertados ao peito e algumas choravam enquanto caminhavam aos tropeções. Já havia homens prontos a dirigir a multidão, mas não eram os soldados que vira frequentemente representados em pinturas como sendo os homens do imperador. Estes vestiam-se de negro, distinguindo-se pelo contraste com a multidão multicolorida. E tinham bastões, que usavam para incentivar e guiar os habitantes da cidade, como um pastor faria com o seu gado.
- Vá tu, avança!
Matild sentiu a pancada de um daqueles bastões e olhou em volta, cheia de ira. Sentindo o olhar frio do pastor, baixou os olhos e continuou, apertando o cesto contra si, não fosse a pressão da multidão à sua volta arrancá-lo das suas mãos. Eel desaparecera e devia deixá-lo à sua própria sorte.
Apesar do Grande Templo ser enorme, não conseguia conter nem uma pequena fracção da multidão que se comprimia contra ele na altura em que Matild lá chegou. Não havia qualquer esperança de conseguir ver o que se passava para lá daquelas portas. Mas a multidão não se acalmava. Palavras, bocados de frases, passavam de boca em boca uma e outra vez.
- Ela deve estar morta... a reverendíssima!
Um homem forte, membro de uma Guilda, gritou aquela frase ao ouvido daquela que era, evidentemente, a sua mulher.
- Mataram-na...! - foi o grito agudo da mulher e Matild viu como a mão do seu marido se cerrou cruelmente no seu braço.
- Cala a boca, idiota!
Olhava febrilmente por cima do ombro para o homem de negro que estava mais perto de si. Aparentemente o indivíduo não deu por nada, pois estava a olhar na direcção oposta.
A multidão por trás de Matild foi forçada a afastar-se, já não pelos homens dos bastões, mas por soldados armados, montados em cavalos nervosos e difíceis de dominar no meio de tanta gente. Atrás desta escolta vinha um outro cavaleiro. Este não era, pelas roupas que trazia, um oficial, talvez nem fosse sequer um nobre. Usava as vestes largas do templo, mas estas não ostentavam qualquer símbolo sagrado no peito ou nas costas e eram de um veludo baço cor de terra. O manto tinha um capuz que ele puxara por cima da cabeça por forma a ocultar o rosto.
Apolon! Como se o nome tivesse sido gritado em voz alta, Matild soube que era ele. Queria vê-lo para além do monte irregular de roupas anónimas, encavalitado deselegantemente no dorso de um cavalo de olhar espantado, mas não teve qualquer oportunidade. A pequena procissão já passara por si em direcção ao Grande Templo.
A passagem do homem e da sua pequena escolta parecia silenciar a multidão. Esta afastava-se espontaneamente, deixando tanto espaço livre quanto lhe era possível. Passado pouco tempo, o pequeno grupo de cavaleiros chegou ao fundo da escadaria do Grande Templo. Para surpresa de Matild, o homem não fez menção de desmontar. A cabeça encapuzada ergueu-se e girou de um lado para o outro, como se registrasse cada pormenor do edifício e o memorizasse.
Continuava absorto naquela observação quando soou um grande estrépito no interior do edifício. Aqueles que se encontravam em torno de Matild recuperaram as suas vozes. “O juramento foi prestado”, diziam uns aos outros. Havia uma expressão de alívio nos seus rostos, mas esta não conseguia apagar totalmente o medo. Contudo, a multidão começou a destroçar, e os homens dos bastões reagruparam-se até formarem um grupo próprio.
Matild içou o cesto mais para cima da anca. Bem, pelo menos de momento, Merina estava a salvo dos saques que normalmente se impunham aos países conquistados. Adele, ter-se-ia a sua
mãe enganado no diagnóstico que fizera da sua condição? Estaria de facto morta?
Não, Matild respirou fundo; nisso teria que fundar a sua esperança: quando uma das mulheres do Tigre passava o Grande Portão, todos os do sangue o sabiam imediatamente.
Adele estava viva, sem dúvida desempenhando o seu próprio papel. Como Matild tinha que começar a desempenhar o seu. Abrindo caminho por entre a multidão naquele que lhe pareceu ser o seu ponto mais fraco, Matild dirigiu-se ao seu próprio esconderijo.
ADELE
A rainha-mãe Adele estava deitada na enfermaria do templo, ouvindo os curandeiros descrever a sua condição à grande sacerdotisa Verit apressadamente convocada. Embora tentassem falar em voz baixa, a velha mulher conseguiu ouvir umas quantas palavras.
- ...o coração dela está a falhar e tem os pulmões cheios de líquido. Talvez se a sangrássemos...
- Não! - interrompeu-os Adele bruscamente. Raios! Tenho que me lembrar que, supostamente, estou a morrer. Esta exclamação foi demasiado forte. Continuou a falar, lembrando-se de ofegar a intervalos apropriados. - Se a minha hora tiver chegado, não lutarei contra a vontade da Deusa.
Ignorando os olhares horrorizados que os curandeiros lhe lançavam, fixou os olhos em Verit.
- Reverendíssima, quererás ouvir a minha confissão?
Aquela era uma indicação clara a Verit de que desejava falar com ela e a grande sacerdotisa entendeu-a como tal. Verit acenou e mandou sair toda a gente do quarto, incluindo o responsável pela enfermaria, a quem foi ordenado que assegurasse a sua privacidade ficando de guarda ao fundo do átrio.
Adele deu graças em silêncio pela regra do secretismo absoluto do confessionário. Essa regra era bem capaz de vir a salvar tantas vidas quantas almas, nos dias que se aproximavam. Quando ficaram sozinhas, Verit puxou um banco para junto da cama, sentou-se e olhou-a com atenção.
- Muito bem, já chega de fazeres de múmia. Presumo que não estejas a morrer. Quão doente estás realmente?
- Não muito - admitiu Adele, sentindo-se como uma criança marota que fingisse uma doença para evitar a professora. - Comi algumas bagas esta manhã, umas bagas que nunca costumo comer porque me fazem sempre sentir assim. Basta-me descansar e já estarei suficientemente bem a tempo de assistir ao primeiro dos rituais da noite. E, de qualquer forma, sou suposta estar em retiro no meu quarto até essa altura.
- A religiosa Elfrida, é suposta estar em retiro – concordou Verit. - E quanto à rainha-mãe Adele?
- Morrerá de ataque cardíaco dentro de algumas horas, se for necessário - disse Adele calmamente. - Podes arranjar uma efígie para o velório?
- Facilmente - replicou Verit. - Não é só contigo que os anjos falam, minha filha. A efígie já está pronta há uma semana. E cuidarei de que todos os envolvidos na organização do velório pensem que foi um outro qualquer que tratou do corpo. - Depois franziu o sobrolho. - Mas acho que é melhor esperarmos um ou dois dias, no mínimo.
- Por quê? - perguntou Adele com mais brusquidão do que desejava.
Ela já não queria ser mais ninguém senão a religiosa Elfrida! Queria que a sua vida dupla acabasse!
Verit encolheu os ombros.
- É só um pressentimento. Ou antes, é mais como se fosse uma premonição, embora nada de tão concreto como uma visão ou uma visitação. Uma vez que te tenhamos morto, não será muito fácil trazer-te de volta à vida; por isso é melhor aguardarmos até estarmos certas de que já não fazes falta viva.
Adele franziu o sobrolho, ainda não muito certa de querer continuar “viva” e, possivelmente, ao alcance do imperador. E se ele decidisse enviar soldados ao templo à sua procura, sob o pretexto de a levarem “aos curandeiros do próprio imperador”? Tecnicamente, ela não pedira asilo; ele poderia fazê-lo se assim o desejasse.
- Não consigo recordar-me de nada que tivesse deixado por fazer, mas suponho que não fará muito mal arrastar a minha última doença...
- Óptimo. - Verit pôs-se de pé, atravessou o quarto até junto de um armário que estava contra a parede e tirou um par de hábitos cinzentos. - Vamos então tratar dos nossos assuntos. Podes pôr-te de pé?
Adele sentou-se, lançou as pernas para fora da cama, esperou que o ataque de tosse que a acometeu acalmasse e pôs-se de pé. Vestiu um dos hábitos, com a ajuda de Verit e depois sentou-se enquanto esta enchia as roupas que despira com roupas de cama e enrolava um lençol numa bola para que parecesse uma cabeça. Como se já tivesse feito aquele género de coisa inúmeras vezes, Verit arranjou o “corpo” pondo-o de lado virado para a parede e cobriu-o quase completamente com o cobertor.
Adele observava-a totalmente estupefacta. E esta! É caso para pensar se Verit não terá tido uma juventude dissoluta! E qual a razão que a terá levado a adquirir este tipo de talento? Será que ela gostava de ir vadiar de noite sem o consentimento dos pais?
As duas mulheres examinaram criticamente os resultados do trabalho de Verit. À luz tremeluzente da única vela, parecia bastante genuíno. O movimento da luz criava a ilusão de respiração.
- Tem que servir - decidiu Verit. - A enfermeira arranjará forma de ninguém se aproximar. Que mais temos que fazer agora?
- O imperador tem com ele um mago das Trevas, um homem que se chama Apolon - informou-a a religiosa Elfrida. – Temos razões para acreditar que ele quer o Coração, ou pelo menos quer ter acesso ao poder que Este contém.
Enquanto pronunciava aquelas palavras, voltou a sentir o arrepio de medo que a acometera quando se apercebera pela primeira vez da ameaça que Apolon constituía. As mãos cruzadas de Verit ergueram-se rapidamente para junto do seu próprio coração e Elfrida imitou-lhe o gesto automaticamente.
- É verdade - concordou Elfrida, ao ver o horror que tal sugestão provocara na grande sacerdotisa. - Não creio que Balthasar ataque o templo abertamente... o embaixador dele fez mesmo o juramento, não fez?
Verit assentiu.
- Testemunhei a cerimônia imediatamente antes de vir ter contigo.
- Óptimo - respondeu Elfrida. - Prevejo que Balthasar e Apolon procurem Lydana e Shelyra, mas não conto que consigam encontrar o que procuram. As mulheres da nossa casa têm aptidões que o imperador não espera encontrar em mulheres aristocratas.
- Que podemos nós fazer para as ajudar? - perguntou Verit hesitante, como se se encontrasse totalmente fora do seu elemento. - Poderemos fazer alguma coisa?
- Em primeiro lugar, rezar por elas - disse a religiosa Elfrida com firmeza. Apesar de todas as capacidades que Verit tinha como grande sacerdotisa, às vezes parecia sentir-se um tanto perdida quando forçada a lidar com as coisas do mundo. - Elas escolheram caminhos muito mais árduos do que o meu.
- Não estejas demasiado certa disso - aconselhou-a Verit. - Tu começarás a trabalhar como Chama dentro de três dias.
Elfrida ergueu as sobrancelhas, surpreendida, depois sorriu com um certo sentimento de antecipação.
- Já é certamente tempo de o fazer - concordou, sentindo um toque de alegria penetrar os pensamentos ominosos que aquele dia horrível lhe provocara.
As Chamas eram um pequeno grupo de homens e mulheres recrutados de entre os religiosos das quatro ordens: Hábitos Cinzentos, Hábitos Castanhos, Hábitos Vermelhos e Hábitos Amarelos. Eram aqueles que tinham capacidades mágicas de alto nível; os que executavam os rituais mais difíceis e secretos do templo. Elfrida já seria uma Chama há mais de um ano se não fosse a sua vida dupla. Agora, a sua vida seria uma só; e seria aquela que teria escolhido há já muito tempo, não a tivessem os seus deveres e o seu coração forçado em direcção oposta.
- Há duas outras coisas que temos que fazer por elas e duas coisas que temos que fazer por nós e para protecção do Coração - continuou.
- E quais são? - perguntou Verit, como se as posições de ambas se tivessem invertido.
Bem, e de certa maneira inverteram-se. Verit sabe tudo o que há para saber dos Caminhos Interiores... mas eu é que tenho vivido no mundo. Suponho que ela entrou como noviça no templo assim que lho permitiram, e nunca mais pensou no mundo lá fora.
- Lydana quer usar o terceiro confessionário à direita do Coração para passar mensagens, por isso temos que ter sempre lá alguém de absoluta confiança durante as horas da confissão. Pensou durante alguns momentos. - Eu estarei lá sempre que puder, mas não posso lá estar sempre. Preciso de alguém que me substitua se eu tiver que estar noutro sítio. A capela de meditação, que dá para a passagem do meio, terá também que ter sempre alguém de confiança, de dia e de noite. Lydana é capaz de saber da existência dessa passagem e tenho a certeza de que Shelyra a conhece. Podem precisar de a usar. Sugiro que estejam lá sempre pelo menos duas pessoas e se pudessem ser três era ainda melhor.
- Precisamos de ter sempre hábitos das cores das várias ordens de reserva na passagem, assim, se alguém da tua família vier por ali, poderemos disfarçá-la por forma a que se confunda com os outros religiosos - acrescentou Verit com um aceno de cabeça. - Tratarei disso. E que recomendas para protecção do Coração?
Ela pensara na possibilidade de Apolon ter infiltrado espiões entre os noviços.
- Divide as ordens em quatro grupos e muda as horas dos rituais por forma a que estes tenham lugar dia e noite, assim o Coração estará sempre muito bem guardado.
Verit assentiu e Elfrida continuou:
- Se Apolon vai infiltrar espiões - e tenho a certeza de que o fará - terá que o fazer entre os nossos membros mais recentes. Eu não teria certezas em relação a ninguém no Noviciado...
- Senhora de Luz! - exclamou Verit chocada. - Mas alguns deles estão cá quase há um ano!
- E há quanto tempo é que tu achas que o imperador tem espiões em Merina? - contrapôs Elfrida. - Eu diria que, pelo menos, desde essa altura. Duvido que tenha conseguido infiltrar qualquer uma das ordens, mas os noviços? - Encolheu os ombros. - Temos sempre uns quantos cujas vocações parecem pouco firmes. Podem ser esses os espiões.
Verit assentiu com tristeza.
- Podemos usar a vigília e depois o funeral e o luto pela rainha-mãe Adele, como pretexto
para adiar os votos finais... pelo menos durante algum tempo. Depois... bem, teremos que ver o que acontece e o que poderemos fazer. Mas sinto pena dos noviços que são genuínos. É uma pena ter que os punir juntamente com os falsos.
- Muito bem. - A religiosa Elfrida assentiu bruscamente. - Se me é permitido fazer uma sugestão, mãe reverendíssima, os membros do Noviciado deveriam ser mantidos juntos e ser bem vigiados.
- Sim - concordou a grande sacerdotisa. - E os que estão nas casas dos Curandeiros? Esses estão espalhados pela cidade toda.
Ela também tinha pensado nisso.
- Tragam todos os noviços para o templo por uma questão de segurança.
- A deles - perguntou Verit secamente - ou a nossa?
- Ambas - replicou Elfrida, sentindo dissipar-se a alegria que há pouco sentira.
Começava a sentir-se numa posição muito semelhante à de um general que organizasse as suas tropas para uma batalha longa e dispendiosa... e era uma sensação um tanto deprimente.
- Apolon e quaisquer outros servos das Trevas que estejam com ele, procurarão as suas presas entre os nossos mais jovens e mais frágeis. E não queremos que ele consiga levar-nos nenhum deles para as suas perversões.
Verit estremeceu quando pensou nisso.
- Ordenarei que os noviços recolham ao templo imediatamente - disse. - E enviarei uma carta a todas as Casas, relembrando-lhes a necessidade de nos mantermos especialmente vigilantes nas nossas orações nestes tempos de mudança.
- Não podia ser dito com mais tacto. - A religiosa Elfrida sorriu amargamente. - Acho que é praticamente tudo o que temos que fazer de momento. É melhor eu voltar para o meu quarto antes que me vejam cá fora.
- Consegues ir sozinha? - perguntou Verit preocupada.
Elfrida pôs-se de pé lentamente e ajeitou o véu.
- Sim. Já me sinto muito melhor. E estes hábitos foram concebidos para que um Hábito Cinzento seja igual a qualquer outro Hábito Cinzento.
- É verdade - concordou Verit - é por isso que todos nós olhamos para os rostos e não para as roupas.
- Eu assegurar-me-ei de que ninguém me vê a cara - prometeu Elfrida.
LYDANA
A multidão formava uma barreira difícil de transpor, mas ela usou o cesto como escudo. Contudo, à medida que se aproximava dos bairros mais mal afamados da cidade, o número de pessoas ia diminuindo. Aqueles que eram os predadores das multidões, os carteiristas e seus pares, estavam convenientemente ocupados, supunha, junto ao Grande Templo. Mas o que a perturbava era o facto de não ter visto um único elemento das forças de manutenção da ordem, com os seus característicos casacos verdes e cinzentos. Os que se ocupavam da protecção de Merina e dos seus cidadãos pareciam ter desaparecido nas últimas horas em que ela própria estivera tão ocupada.
Já a tarde estava a acabar quando atravessou a última das pontes sobre os canais e chegou àquela parte da cidade que Matild tão bem conhecia. De vez em quando era cumprimentada por pessoas que a negociante de contas reconhecia: uma mulher à porta de sua casa, um lojista que fechava, horas mais cedo do que o habitual, os taipais que protegiam a sua pequena loja. Existia pobreza em Merina, como em todas as cidades, embora houvesse também trabalho, ainda que duro e exigente, para qualquer homem ou mulher forte. E o número de pedintes era, segundo ela sempre acreditara, menor do que em muitas outras grandes cidades como, por exemplo, Arkanade, a famosa capital do imperador.
Às perguntas que lhe faziam, limitou-se a responder com uma mera repetição dos rumores que tinham crescido rapidamente entre a multidão. Mas havia um ambiente estranho na rua tortuosa que conduzia ao pequeno beco da sua loja. À medida que ia avançando, apercebia-se de portas a serem fechadas rapidamente e do desaparecimento dos que, ainda há momentos, se viam na rua. Sentiu um arrepio nas costas. Era evidente que atrás de si estava alguma coisa, ou alguém, para quem era melhor não olhar. Todas as lojas estavam fechadas, mesmo aquelas que vendiam azeite para as lamparinas e as poucas coisas que poderiam ser necessárias para a noite que se aproximava, e que habitualmente ficavam abertas até depois do nascer da Lua.
Pôs-se à escuta. O silêncio era tal que ouvia o ruído dos seus próprios passos, mas agora conseguia ouvir mais qualquer coisa: uns passos mais resolutos, o ritmo bem treinado da marcha de um soldado. Contudo, ela agarrou-se à inocência do seu disfarce e não olhou para trás, embora uma vaga preocupação por Eel se começasse a intensificar.
Matild chegou ao recanto escuro do pequeno beco para onde se dirigia e tirou de dentro da roupa a grande chave que introduziu na fechadura da porta, agora quase invisível à luz do crepúsculo que descia rapidamente.
Esta parte de Merina era muito antiga. Embora as Guildas se esforçassem por manter a cidade em bom estado, emitindo resoluções que obrigavam cada proprietário a manter a sua casa em condições, a marca dos anos era bem visível ali.
Enquanto dava a volta à chave e empurrava com um ombro a porta renitente (que resistia sempre ao primeiro empurrão), Matild atreveu-se finalmente a olhar para trás. Já não conseguia ouvir a cadência dos passos, mas de facto, estavam dois homens na rua parados mesmo à entrada do seu beco, com os olhos postos nela. Mesmo que não estivessem vestidos de negro, não haveria qualquer hipótese de confundir a sua origem. Eram forças da ordem, um tipo qualquer de forças da ordem, embora a bondade das leis que impunham pudesse ser questionada. Balthasar não enviara pelotões de soldados para patrulhar a cidade recém-conquistada. Aqueles homens não eram do exército. E, no entanto, ele tivera-os a postos, prontos a agir assim que Merina se rendesse. E Matild não gostou mesmo nada do seu aspecto.
- Mulher... - Um deles ergueu a voz enquanto caminhava na sua direcção. - Esta casa é tua? - O olhar que lançou à porta e à única janela entaipada ao seu lado não era aprovador.
- Eu cá sou a Matild, filha de Ranskin, vendedora de contas autorizada.
Matild permitiu-se uma fungadela de desprezo. Acobardar-se não estava na sua natureza, e já aprendera há muito tempo que uma língua viperina era, frequentemente, a melhor forma de responder à insolência. Ele estava suficientemente perto para lhe poder bater, o que ela pensou que talvez fizesse, provando assim a sua importância a todos aqueles que agora espreitavam por detrás dos taipais e que poderiam necessitar de ser impressionados pelo seu domínio.
- E onde é que estiveste, mulher?
A sua voz mantinha-se controlada e olhava-a com atenção. Ela sentiu aquele olhar como se fossem as mãos dele que lhe percorressem o corpo e, de alguma forma, pudessem entrar na sua cabeça e espiar os seus pensamentos.
- Estive com o resto da cidade... a ver o que o homem do imperador fazia no juramento.
- Quantos é que vivem contigo? - mudou ele de assunto.
Matild pousou o cesto e pôs as mãos nas ancas olhando-o de frente.
- Quem faz perguntas tem que ter uma razão para precisar das respostas. Qual é a tua razão, homem de preto?
- Cuidado com a língua, mulher! Nós somos os novos patrulhas das ruas e verás que não somos fáceis de enganar. Cada uma das casas tem que ser identificada e haverá regras a respeitar. Se não as respeitares terás tantos problemas, que nem imaginas. Agora... quem é que vive aqui? - Fez um gesto em direcção à porta parcialmente aberta.
- Eu e o pobre do filho da minha irmã, o rapaz, o Eel. Procurem vocês mesmos, se quiserem; não vão encontrar mais ninguém...
Quase suspendeu a respiração; e se aquele bisbilhoteiro entrasse mesmo? Via-se perfeitamente que os quartos apertados não tinham sido usados recentemente, e isso desmascará-la-ia de imediato. Contudo, parecia que a sorte lhe iria sorrir. Ele encolheu ligeiramente os ombros e virou as costas. Mas ela tinha consciência de que, como qualquer agente da ordem, ele a tinha marcado e que teria que ter muito cuidado nas suas idas e vindas. Pegou no cesto e fez girar as saias enquanto entrava fechando, no entanto, a porta com cuidado e sem a bater. Estava muito escuro, mas a sua mão dirigiu-se à prateleira onde estava uma vela empoeirada e chegou fogo ao pavio.
A sala na sua frente era comprida e estreita. À sua direita, junto à janela fechada, estava dobrada a banca onde dispunha as mercadorias quando a loja estava aberta. Havia um fogão, um armário, uma mesa e três bancos. E ainda um candeeiro que acendeu com a vela. Matild cheirou o ar. Ratos, eram certamente ratos... e o odor de uma casa fechada. Que precisava de uma boa limpeza.
Encostado à parede estava o que parecia ser outro armário comprido. Matild abriu-o com um puxão suficientemente forte para abrir a porta empenada e inspeccionou os cobertores no seu interior. Teriam que ser aquecidos ao pé do fogo e batidos e defumados antes de alguém poder dormir neles.
A comida também era importante. Tinha planeado ir à loja da Berta Padeira e à loja da Lanny que vendia queijos. Mas se aquele pássaro preto de mau augúrio ainda estivesse a vigiar a rua, não o poderia fazer. Ele perguntar-se-ia, e com razão, porque é que uma dona de casa não tinha os armários mais bem abastecidos. Meteu as fiadas e a caixa de madeira dentro da gaveta comprida ao lado da banca das mercadorias e voltou a pegar no cesto. Tinham comido com apetite os provimentos do cesto antes de saírem do palácio. Pôs o que tinha sobrado em cima da mesa, com um suspiro. Naquela noite teriam que se remediar com o que ali estava.
De momento, mais importante que a comida, era a sua companheira de fuga. Sabia que Eel/Skita era dotada de uma boa dose de prudência, mas se os casacos negros já tinham chegado até àquele canto remoto da cidade antiga, era capaz de ser necessária mais do que a astúcia da rapariga para passar despercebida. Havia também, evidentemente, a entrada alternativa.
Matild empurrou a mesa e puxou um banco para o local onde esta estivera. Equilibrada em cima do banco, ergueu as mãos para a escuridão, que caía espessa como uma cortina, tacteando o vazio com os dedos estendidos até encontrar uma corda pendurada. Agarrando-a bem, puxou-a para baixo como se tocasse um sino. Tal como acontecera com a porta, a madeira velha resistiu. Depois caiu uma camada de pó, que fez com que Matild soltasse uma ou duas pragas; e um pequeno rectângulo de luz tênue apareceu por cima da sua cabeça. Tinha razão e ia mesmo a tempo, pois agora conseguia ouvir o raspar de pés por cima da sua cabeça e logo a seguir um corpo magro e jovem escorregou pelo buraco. Matild apanhou-o à altura das ancas e baixou-o até ao chão antes de puxar novamente a corrente; desta vez deu um puxão de lado, que fez com que a abertura por cima das suas cabeças se fechasse com um rangido. Eel estava de cócoras no local onde caíra no chão, respirando pesadamente. Do rosto sujo dois olhos redondos erguiam-se para a mulher.
- Guardas. - A voz soou rouca.
Matild descera do banco. Ficou subitamente tensa.
- Aqui? - perguntou.
Eel fez um gesto rápido indicando tudo o que estava para lá das quatro paredes. Matild deitou algum do vinho aguado numa pequena chávena de corno. O rapaz bebeu e engasgou-se antes de voltar a beber com mais cuidado.
- Apareceram... não se sabe de onde... do chão, talvez. - Fez uma careta por trás da chávena. - Já... já deviam estar no interior das muralhas mesmo antes de o embaixador ter chegado.
Matild mordeu o lábio. Sim, eles tinham sabido da presença de espiões do imperador em Merina. Isso era mais do que lógico. Mas tinham esperado a chegada de tropas que seriam aquarteladas em locais estratégicos, como era costume... não aqueles homens de casacos negros. Já lá deviam estar há tempo suficiente para conhecer a cidade. Deixou-se cair sentada no banco onde ainda há pouco tinha subido. Há quanto tempo... e quão bem conheceriam a cidade? Os planos, os planos incompletos que fizera, os vários estratagemas que tivera em mente quando deixara o palácio... estariam todos eles em perigo ainda antes de poder começar a pô-los em prática?
Eel tacteou entre as pregas do casaco velho que tinha vestido e estendeu a Matild o que poderia ser uma noz velha. A mulher agarrou-a rapidamente e usou a unha para abrir a tampa invisível. O que lá estava dentro era um pequeno brinco, com uma figura mítica finamente trabalhada, com um olho azul feito de safira. Era da Shelyra!
Então, pelo menos Thom cumprira o seu dever. De momento, a rapariga estava a salvo. Embora com aqueles homens de negro por perto... Teria que confiar em Thom. As suas gatunagens famosas tinham sempre sugerido que ele teria poderes quase invencíveis. Se esses poderes jogassem a favor dos dois até as coisas acalmarem um pouco, talvez ela pudesse compreender este novo problema e encontrar uma forma de contra-atacar!
Continuava a pensar, enquanto fazia sinal a Eel para que este comesse e deixava que o seu companheiro acabasse, antes de lhe perguntar tudo o que vira depois de terem sido separados pela multidão.
Os homens de negro não tinham sido vistos unicamente nas ruas da cidade, mas também em barcos nos canais. Eel vira-os tomarem posição à porta dos principais mestres das Guildas, mas nenhum dos homens de Balthasar tinha entrado ainda na cidade. Os boatos que corriam diziam que o novo senhor de Merina continuava acampado com o seu exército para lá das muralhas.
Agora, Matild respirou fundo naquilo que era quase um suspiro, era esperar para ver, até poderem perceber melhor o que se passava, embora sentisse os nervos à flor da pele enquanto se coibia de agir. Entretanto, levaria aqui a vida que planeara. Pensava que estava demasiado excitada, a cabeça demasiado cheia de preocupações para conseguir dormir. Contudo, mal ela e Eel se deitaram na cama dentro do armário, o sono chegou, profundo e sem sonhos.
SHELYRA
Se Thom esperava que ela se sentasse à popa do barco e se deixasse levar ao longo do canal, como uma mulher rica no seu barco particular, ficou provavelmente muito surpreendido quando Shelyra não fez nada disso. Saltou para o barco atracado, tão agilmente como ele e agarrou na segunda vara um segundo apenas após ele ter agarrado na sua. Foi ela quem deu a partida e foi ela também que os impeliu para longe da margem do canal e para fora do pequeno cais escondido, onde o barco estivera oculto. Era muito conveniente o facto de esta parte dos canais estar o dia inteiro a coberto da sombra e não haver nenhuma rua que corresse ao seu lado; assim não havia ninguém que se pudesse assustar com o seu aparecimento súbito.
- Para onde é que vamos? - perguntou ele por fim e com visível relutância.
- Como já te tinha dito, vamos para o Bairro Cigano – replicou ela imediatamente e depois, com marcada ironia: - Suponho que saberás como lá chegar?
A sua única resposta foi um grunhido enquanto firmava a vara. Ela fez o mesmo, mas desejou ter tido tempo de atar as saias por cima dos joelhos; isso teria tornado a sua tarefa muito mais fácil.
Foi então, subitamente, enquanto entravam num canal ladeado por um caminho, que sentiu um frio na nuca, como se alguma coisa ou alguém a observasse com más intenções. Não se virou imediatamente para ver o que era. Em vez disso, pondo todo o seu peso na vara e concentrando-se na sensação da madeira macia nas suas mãos, fez coincidir os seus movimentos com os de Thom, até que os seus movimentos provocassem uma torção natural do corpo que lhe permitisse estudar com naturalidade ambas as margens do canal, a seu lado e à retaguarda.
Havia muita gente apressada ao longo da rua, o que era pouco usual, visto que as pessoas normalmente passeavam ao longo dos canais, levando o seu tempo gozando o sol a brilhar sobre a água, ainda que esta não fosse das mais limpas. Havia uma atmosfera de medo nas pessoas, que fazia com que o cabelo de Shelyra se lhe eriçasse na nuca. Mas havia um homem totalmente imóvel e foi ele que a fez morder o lábio e virar-se antes que pudesse encontrar o seu olhar.
Estava ao lado de um poste de atracagem e envergava uma espécie de uniforme, todo negro, sem qualquer insígnia ou brasão, e na mão tinha um bastão. De alguma forma soube que era um dos homens de Balthasar... e percebeu que ele reparara em si e no seu companheiro, embora não os tivesse interpelado.
Naquele momento sentiu-se bastante satisfeita por ter tido tantos cuidados com a sua aparência, pois não havia nada em Raymonda, a bailarina cigana, que sugerisse Shelyra, a herdeira da Casa do Tigre. Mas causava algum choque ver os homens de Balthasar nas ruas da cidade, quando a tinta dos documentos de capitulação ainda não tinha tido tempo de secar.
- Faze força - murmurou para Thom. - E põe um ar determinado, como se fosses fazer um recado. Estamos a ser observados.
Mais uma vez ele soltou um grunhido.
- Olha que novidade! - retorquiu Thom. - Espero que tenhais o vosso esconderijo bem preparado. Não gosto destes pássaros esquisitos de penas negras. Sinto-me como se fosse um verme a ser observado por corvos esfomeados. Quero esgueirar-me para o vosso esconderijo e fechar a porta atrás de mim.
Depois de ter sentido aqueles olhos a observá-la, Shelyra Raymonda sentia o mesmo. Mudou rapidamente de assunto para evitar que ele se apercebesse do seu medo.
- Temos que combinar bem a nossa história antes de lá chegarmos. Eu sou Raymonda e tu és o meu... quê? O que é o Thom a Raymonda?
- O vosso amante?
A confiança e insolência do seu tom implicavam que ela receberia a sua sugestão de braços abertos e essa presunção irritou-a.
- Meu primo. Um parentesco suficientemente próximo para que não possas ser meu amante, mas menos suspeito do que irmão, visto que não somos nada parecidos. - Falou com firmeza enquanto acentuava as frases com os impulsos que dava com a vara. - E mesmo assim será normal que queiras proteger a minha...ahn... virtude.
O grunhido que obteve em resposta sugeria que Thom não estava nada satisfeito com aquele cenário, mas que, de momento, o aceitaria. E que esperava que ela se atirasse nos seus braços... mal voltasse a recuperar a razão.
Não chegas a ter os padrões morais de um gato dos telhados, Thom Talesmith, e não te deixaria aproximar da minha cama nem que fosses o único homem solteiro em toda Merina.
Entre as lendas que rodeavam o seu companheiro, estava a litania das suas muitas amantes. Ela não contava dar-lhe nem a mais pequena oportunidade de acrescentar o seu nome a essa lista.
Navegavam na direcção oposta à do Grande Templo; a maioria das pessoas parecia vir dessa direcção. O que queria dizer que o embaixador do imperador já devia ter prestado juramento. A maioria dos que se deslocavam a pé mantinha a cabeça baixa e o rosto escondido, mas as expressões que Shelyra conseguiu ver não eram de felicidade. Sentiu vontade de saber quais os boatos que corriam nas ruas.
Havia mais homens de bastão e vestidos de negro ao longo dos canais e ela sentiu-se terrivelmente satisfeita quando apareceram mais barcos à sua volta, desde embarcações muito pequenas até pesadas barcas de carga. No meio de todas elas já não eram tão conspícuos.
Dirigir o barco era um trabalho árduo, mesmo para alguém habituado a controlar um garanhão irrequieto ou a partilhar o trabalho de dirigir barcos semelhantes àquele ao longo dos rios que rodeavam o Palácio de Verão. Mas Thom estava menos habituado àquele gênero de trabalho e ela sentiu um sorriso de divertimento assomar-lhe por instantes aos lábios, quando se apercebeu de que ele abrandava o ritmo. Descansava mais do que usava a vara. Sentindo pena dele, ela abrandou o seu próprio ritmo e deixou que a corrente indolente do canal fizesse parte do trabalho.
Já não te sentes tão confiante, hem, Thom Talesmith? Claro que não, não há notoriedade nenhuma a ganhar em trabalho duro e honesto.
O tráfego que cruzava os canais parecia agora dirigir-se rapidamente em busca de segurança, o que era, de facto, estranho àquela hora do dia. Aquele não era um bom sinal; os instintos das pessoas faziam-nas buscar abrigo, e ela confiava nesses instintos.
Devíamos ter lutado! Pensou ela com rebeldia. Nada, a não ser a honra, fará o imperador cumprir a sua promessa... e que tipo de honra tem um carniceiro? Saquear-nos-á ao ritmo que desejar, em vez de o fazer de uma só vez, e matará a cidade aos poucos. Seria melhor que Merina morresse no meio das chamas!
Ela sentia-se exposta a cada minuto que estavam a descoberto. Muitíssimo, horrivelmente exposta e muito vulnerável. O tempo que levou a alcançar o bairro pareceu-lhe uma eternidade nervosa e sentia-se bastante certa de que parte do suor que encharcava a camisa de Thom não se devia unicamente ao esforço. Os canais tinham a largura de duas ruas vulgares lado a lado, para que as embarcações mais rápidas pudessem ultrapassar as restantes. Para lá das margens e dos pontões de atracagem, estendiam-se os caminhos pavimentados e por trás destes, as lojas e os lares, em prédios de dois e três andares, e tão juntos uns aos outros que um gato não passaria entre eles. Pontes arqueavam-se a espaços por sobre o canal e em cada ponte parecia estar um guarda de uniforme negro.
Tenho que pensar em mim própria como Raymonda, agir e reagir como Raymonda, recordou-se a si própria. Shelyra é uma senhora da realeza; eu sou apenas uma bailarina, sem qualquer importância para quem quer que seja, insignificante. Não posso, não me atrevo, a desafiar as autoridades; sou o tipo de mulher que poderia “desaparecer” facilmente sem que ninguém desse por isso e Raymonda está consciente disso, sente-o nos ossos.
Por fim, ao cabo do que pareceu uma eternidade, chegaram ao Bairro Cigano. A rua que se estendia ao lado do canal era ali muito mais larga, e havia cavalos por toda a parte; cavalos sendo conduzidos, levados, montados; cavalos de todos os tamanhos, cores e feitios. Havia também muitas mulheres vestidas como Raymonda e esta começou a sentir-se menos conspícua, embora não menos vulnerável.
Infelizmente, também ali havia um homem de bastão. E havia um único cais que servia para embarcações pequenas como a deles. Previsivelmente, havia ali um homem de bastão inspeccionando toda a gente que atracava um barco ao cais, interrogando as pessoas antes de as deixar passar.
Raymonda sentiu o suor correr-lhe na testa e debaixo dos braços. Empurraram a proa do barco para cima da pedra do cais e Thom saiu para o atracar sob o olhar desconfiado do guarda de negro. Ela guardou cuidadosamente as varas dentro do barco, tentando a todo o custo não encontrar o olhar do homem.
- Tu, aí! Tu... tu e a mulher! - Com ar beligerante o homem avançou três passos na sua direcção, enquanto eles saíam do barco e barrou-lhes a passagem com o bastão. – Que é que vêm aqui fazer? Onde vão? Que tencionam fazer aqui? Vivem neste bairro?
Ela sentiu-se satisfeita por ter deixado os restos do vestido no quarto secreto e mais satisfeita ainda por já ter levado para os vários esconderijos aquilo de que supunha vir a necessitar. Não trazia consigo nada mais incriminatório do que umas quantas moedas na bolsa presa ao cinto, embora tivesse gostado de ter tido uma forma de pintar o cabelo antes de sair do esconderijo. Havia alguns ciganos de cabelo claro, mas não muitos. Estariam os agentes do imperador já à sua procura? Já teriam dado pela sua falta?
Thom enfiou as mãos nos bolsos e olhou para o homem com um ar ligeiramente confundido.
- Isso são uma data de perguntas, amigo - disse ele com a fala arrastada. - Um homem nem sabe por onde começar. - Thom coçou a testa e ostentou uma expressão amigavelmente perplexa. - A verdade é que essas perguntas baralharam-se todas na minha cabeça! Não me lembro nem de uma só!
- Podes começar pelo sítio para onde vais e o que é que lá vais fazer.
Os olhos duros e frios do homem não deixavam transparecer qualquer divertimento perante a atitude descontraída de Thom, nem da sua imitação convincente de um tolo apalermado.
- Vamos ter com um negociante de cavalos chamado Gordo Kaldash; é para aí que vamos - disse-lhe Thom, continuando a ostentar um sorriso simpático e alegre. - É lá que vivemos, eu e a minha prima.
- Aí é tua prima, é? - Os olhos do homem percorreram Raymonda da cabeça aos pés e ela reprimiu a vontade de lhe puxar as orelhas pela sua insolência. - Vocês não são nada parecidos.
- O mesmo se pode dizer de alguns irmãos e irmãs, amigo - foi a resposta pronta de Thom. Depois a sua voz endureceu. - É minha parente o suficiente para que eu não deixe ninguém meter-se com ela.
A risada cruel do homem fez com que arrepios percorressem a coluna de Raymonda e fê-la tactear as suas facas por entre as dobras das saias, já sem vontade nenhuma de puxar as orelhas
ao guarda. Iria ele arranjar problemas? Quantos mais da sua laia poderia ele chamar se chegasse à conclusão de que eles eram suficientemente insignificantes e indefesos para que o seu desaparecimento não fizesse ondas?
Mas Thom assobiou estridentemente por entre dentes, um sinal que Raymonda reconheceu com surpresa, e num piscar de olhos havia uns trinta homens, todos eles da raça esguia e resistente dos Senhores dos Cavalos, aglomerados por detrás do homem do bastão.
- Eh, aí, algum problema? - perguntou um deles em voz alta. - Este gajo 4 acha que vocês não são daqui, ou quê?
O homem do bastão sobressaltou-se; era evidente que não ouvira os homens do Clã do Cavalo saírem das ruas e dos becos atrás de si. A sua expressão tornou-se gelada e virou-se rapidamente. Os seus olhos abriram-se momentaneamente de espanto ao perceber que estava em inferioridade numérica. A gente dos Senhores dos Cavalos não usava em geral quaisquer armas para além dos seus punhais de lâmina comprida, mas na generalidade não precisavam de mais do que isso. Aqueles longos punhais, em combinação com a experiência que os Senhores dos Cavalos tinham na luta corpo a corpo, tornavam uma faca tão temível como uma espada.
Os Senhores dos Cavalos distinguiam-se dos ciganos, com quem partilhavam aquele bairro, pela forma como se vestiam: era de cabedal cada peça de roupa, desde as botas atacadas de lado, às calças de combate coladas ao corpo, às túnicas de mangas compridas atadas na gola e nos punhos. Os atacadores da gola eram geralmente deixados lassos para que se vissem os medalhões do clã. As mulheres dos Senhores dos Cavalos vestiam-se como os homens, trocando ocasionalmente as calças por saias até ao joelho e abertas dos lados.
Os homens do Clã do Cavalo rodearam o estranho vestido de negro, com as mãos pousadas ao de leve nos punhos dos punhais. Ainda assim, o homem do bastão resistiu.
- Conhecem esta gente? - perguntou. - Estão registrados aqui?
Raymonda observou o grupo ali reunido e, com um alívio que lhe fez o coração bater mais depressa, viu um rosto que lhe era familiar.
- Laika! - chamou. - Dize a este... homem... que nós vivemos aqui! Ele acha que a gente do cavalo e os ciganos não conseguem dirigir um barco sem cair ao canal!
Uma gargalhada forte e desdenhosa ecoou nas gargantas dos que ali se encontravam e Laika destacou-se do grupo dos seus amigos.
- Eu conheço estes dois; eles vivem nos estábulos do Gordo - disse com arrogância, olhando sobranceiramente para o homem do bastão e como que desafiando-o a contradizê-lo. - A rapariga às vezes trata dos cavalos doentes e também dança; o primo dela faz o menos que pode.
Outra gargalhada ecoou no grupo quando Thom ergueu a cabeça com indignação. Mas o homem de negro ergueu relutantemente o bastão para os deixar passar. Raymonda passou rapidamente por ele; Thom seguiu-a num ritmo mais lento.
- Vocês digam a esse Gordo que é melhor que entregue às autoridades os nomes de todos os que vivem na sua propriedade! - gritou o homem, frustrado, nas suas costas, enquanto o grupo se fechava protectoramente em torno dos dois. - É essa a lei! A partir de agora os únicos que podem entrar neste bairro depois do pôr do sol são os que estão aqui registrados!
- E nós somos o Povo do Cavalo e vamos para onde o vento sopra! - gritou-lhe alguém em resposta. – Por que é que não vais pedir o nome ao vento e a todas as pequenas brisas já que estás com a mão na massa?
Deixando rapidamente para trás o guarda furioso, o grupo empurrou Thom e Raymonda para o labirinto das ruas que constituíam o Bairro Cigano, pondo-os assim fora da vista do homem. Uma vez a salvo, aqueles que tinham vindo em seu socorro desapareceram nas ruas, tão rapidamente como se tinham juntado, deixando para trás apenas Laika e um homem que Raymonda não reconheceu.
Mas Thom conhecia-o. Isso era evidente, quando os dois se olharam e sorrisos começaram a espalhar-se-lhes nos rostos. O estranho falou em primeiro lugar.
- Eu bem disse às raparigas para não porem cinzas nos cabelos até terem visto o corpo, seu filho da mãe! - grasnou o homem. - Thom, sua serpente escorregadia, sua raposa, conseguiste
safar-te da própria prisão da rainha!
Lançou-se nos braços de Thom, que suportou os seus abraços e palmadas nas costas com um certo embaraço.
- Não te disse que tinha mais foles do que um gato e mais sorte do que o Evan, o Rápido? - ripostou Thom, dando-lhe também algumas palmadas nas costas. - Será que nenhum de vocês ainda acredita em mim?
- Oh, eu acredito, mas... - O estranho afastou-se. - Então, quem é a bailarina? Outra das tuas...
- Não me parece, Pouli - disse Laika calmamente. - Eu conheço-a e parece-me que não foram, nem a esperteza nem a sorte de Thom Talesmith que o salvaram da forca desta vez. - Olhou em volta para a rua aparentemente vazia e franziu o sobrolho. - Mas este local não é o mais indicado. Vamos até ao Gordo e depois falamos. - Olhou para Raymonda em busca de assentimento e esta assentiu. - Deixamos os nossos irmãos a vigiar os cais em busca de mais tresmalhados, enquanto levamos estes dois para um estábulo seguro, hem?
- Muito bem - respondeu Pouli com simpatia.
Apressaram-se os quatro pelas ruas estreitas, tortuosas e escuras, tão depressa quanto lhes era possível sem correr. De uma forma geral, Raymonda estava satisfeita por ver Laika, embora ele fosse uma das únicas três pessoas da cidade que sabiam que Raymonda, a tratadora de cavalos e bailarina, e Shelyra, a princesa, eram uma só e mesma pessoa. Os outros dois eram Gordo e o senhor do seu clã, que foi o padrinho de Raymonda quando os clãs a adoptaram. O que não era o mesmo que ter um pacto de sangue, como Thom aparentemente tinha, apesar das suas dúvidas quanto à veracidade dessa história.
Ela era agora do sangue do Cavalo, tal como seriam os seus filhos e os filhos dos seus filhos. Ele continuava a ser estrangeiro, embora um aliado. Ela era um membro de pleno direito do clã, com direito à protecção e ajuda de todos os membros dos clãs. E se a rainha tivesse sabido disso, ter-lhe-ia dado uma coisa má. Thom só poderia pedir ajuda àqueles com quem tinha firmado o pacto.
Gordo Kaldash tinha aumentado as fortificações da sua propriedade, cercada pelo muro alto que englobava o pátio dos cavalos e os restantes edifícios. Havia quatro homens fortes do Clã do Cavalo a montar guarda ao portão da frente que, pela primeira vez desde que Raymonda tinha memória, estava fechado.
Algo me diz que os Senhores dos Cavalos não planeiam ter grandes negócios com o imperador. Ele deve ter feito qualquer coisa que os ofendeu. Óptimo! Isso só torna mais fácil a minha tarefa.
Um dos homens, reconhecendo aqueles que os escoltavam, bateu no portão enquanto se aproximavam, caminhando apressadamente sobre o chão empedrado. Raymonda ouviu os barulhos que indicavam uma tranca a ser tirada dos suportes do outro lado do portão; depois as portadas abriram-se ligeiramente, apenas o suficiente para dar passagem aos quatro.
Raymonda esgueirou-se para dentro em primeiro lugar, seguida pelos restantes. Assim que se encontraram no interior, as duas mulheres que estavam do lado de dentro voltaram a pôr a tranca no seu lugar, fechando o portão com firmeza.
- Muito bem - disse Laika assim que se encontraram no pátio onde, em dias mais felizes, Gordo tinha em exposição os seus cavalos à espera dos potenciais compradores. – Sabemos que a rainha abdicou. O embaixador de Balthasar fez um juramento que compromete o imperador a deixar a cidade em paz, mas nada o impede de a espremer totalmente e de pôr o pé em cima da cabeça de cada homem, mulher e criança que aqui viva; e é isso que ele está a fazer. Impôs uma taxa no valor de metade do preço de cada cavalo que o Gordo tem e tentou enviar um grupo daqueles lacaios vestidos de negro para prenderem o Gordo.
Raymonda sentiu formar-se nos lábios o primeiro sorriso verdadeiro daquele dia.
- Presumo que, visto o Gordo ainda aqui estar, os seus cachorrinhos pretos e amorosos tenham objectado a que o seu amo fosse levado - disse ela alegremente.
- Os pequenos cachorros são capazes de ter mordiscado um ou dois dos lacaios e são também capazes de ter rosnado um pouco - admitiu Laika.
Raymonda deu uma gargalhada. Os “cachorrinhos amorosos” de Gordo eram uma matilha de mastins, cada um do tamanho de um pequeno pónei. Seria necessário matar aqueles cães para conseguir tirar de casa, sem o seu consentimento, o negociante de cavalos cigano, e aparentemente os homens do imperador ainda não estavam preparados para o fazer. Mas parou de rir abruptamente quando considerou o resto do que o amigo lhe tinha dito.
- E o Gordo tem esse dinheiro para pagar os impostos? Achas que o imperador lhe confiscará cavalos para repor a diferença?
Laika encolheu os ombros.
- Não... mas nós estamos prestes a ter aqui um surto de tumores, inflamações e aguamento nos cascos. Quando os tratadores acabarem o seu serviço, aqueles cavalos não valerão o tempo que leva a matá-los. Isso fará com que o valor dos cavalos que lhe restam fique em nada, o que significa que a taxa não será mais do que uns quantos cobres, agora que ele já mandou para fora da cidade os melhores animais. - Ele observou-a especulativamente. - Podias ser útil nos estábulos, se é que conheces os truques da arte.
Ela olhou-o nos olhos.
- Conheço - respondeu corajosamente. - E talvez ainda tenha de reserva alguns truques só meus. Mas que mais novidades é que há da cidade? Estás a esconder-me qualquer coisa.
A boca de Laika contorceu-se.
- Segundo os boatos, a rainha-mãe morreu... e foram eles que a mataram.
- Ela é como uma gata dos telhados... não ponhas cinzas nos cabelos até teres visto o caixão e eu te jurar que é ela quem lá está dentro - disse Raymonda com firmeza, embora o coração lhe tivesse parado momentaneamente no peito. - Mas de momento... põe fitas pretas nos póneis para salvaguardar as aparências e ramos secos no portão da frente. Seria estranho que não puséssemos luto por ela, mesmo que não passe de um boato.
Laika acenou energicamente.
- Farei isso mesmo – disse ele - E tu vai indo para os estábulos com o teu “primo” enquanto vou dizer ao Gordo que estás cá.
Antes que ela tivesse oportunidade de responder, foi-se embora. Ela encolheu filosoficamente os ombros e virou-se para Thom e para o amigo dele, que tinham estado a ouvir a conversa com muito interesse.
- Então, quem é a tua amiga, irmão? - perguntou Pouli. - Já que Laika não se deu ao trabalho de nos apresentar.
- O nome dela é Raymonda - respondeu Thom cheio de à vontade, e Raymonda soltou um suspiro de alívio, pois não estivera certa de que ele não se descaísse e não dissesse o seu verdadeiro nome. - E do que nós estamos a precisar é de um sítio para ficar até ver quais são as intenções do imperador e depois vamos precisar...
- De uma razão para continuar aqui - interrompeu-o ela, antes que ele pudesse dizer que procuravam uma forma de sair da cidade e das terras que estavam nas mãos de Balthasar. - Mas, se vamos manter os cavalos “doentes”, isso já é suficiente para justificar a presença de uma tratadora de cavalos.
Pouli assentiu.
- Isso deve dar-vos cobertura aos dois. Qualquer idiota pode limpar esterco de cavalo; mesmo um tipo da qualidade do Thom pode fazê-lo, e cavalos doentes fazem mais esterco do que cavalos saudáveis.
Thom olhou-o com animosidade, mas não disse nada. Mais uma vez, e apesar da tremenda seriedade da situação, Raymonda sentiu vontade de rir. Talvez Thom lamentasse agora a parte que lhe cabia naquele negócio; certamente que não levara em conta a possibilidade de lhe ser exigido trabalho físico e árduo quando concordara com as condições de Lydana!
Pobrezinho, primeiro é o varejo do barco, agora é limpar esterco à pazada! E ele que pensava que se limitaria a ter que nos fazer passar despercebidamente pelo portão quando ninguém estivesse a olhar!
Laika apareceu então com uma trouxa nas mãos e um ar muito preocupado no rosto.
- Toma - disse ele, atirando-lhe o embrulho pesado e que era já seu conhecido. - O Gordo diz que lhe deixaste isto a guardar. Ele quer saber se alguém irá dar pela tua falta. Se esse for o caso, talvez devas transformar “Raymonda” em “Raymond”.
Ela abanou a cabeça.
- Ainda não, não creio... e de qualquer maneira saímos do nosso esconderijo para a rua sem que ninguém percebesse de onde vínhamos.
Segurou na trouxa com ambas as mãos, sentindo voltar a si um pouco de confiança, agora que tinha mais recursos à sua disposição. Bastante apropriados, de facto. Qualquer comerciante daquela cidade sabia que, com ouro suficiente se podia comprar o que quer que fosse, menos a suspensão da sentença do Anjo da Morte. Tinha ali naquele embrulho o suficiente para, possivelmente, conseguir até mesmo isso. Era certamente o bastante para comprar uma quantidade muito grande de coisas desagradáveis para o imperador.
Ouro era poder, como sabia qualquer descendente da Casa do Tigre, e ela detinha agora poder suficiente para fazer muitas coisas, boas ou más. Fora essa, na realidade, a razão porque trouxera para ali na noite anterior todas as suas jóias de Estado e as jóias pessoais, bem como o dinheiro em que conseguira pôr as mãos, dando a Gordo instruções para que as reduzisse aos seus componentes. Nada daquilo era agora reconhecível, pois Gordo trocara as moedas grandes por outras mais pequenas e agora estava tudo numa forma mais fácil de usar. Enquanto Shelyra, ela fechara os olhos ao facto de Gordo ser um conhecido receptador de bens roubados; como Raymonda, sentira-se orgulhosa desse facto. E ninguém ao serviço do imperador vai ser capaz de reconhecer nenhuma destas jóias, mesmo que por qualquer razão conseguissem um inventário completo do meu cofre.
- Há lugar no estábulo para ti, se quiseres, ou então há muita gente disposta a dar-te um lugar nas tendas – continuou Laika.
- Fico no estábulo - disse ela com firmeza. – Tenho que dar uma ajuda à vossa gente com os cavalos antes que os homens de Balthasar arranjem maneira de lhes pôr a vista em cima. Se pelo menos um dos vossos tratadores de cavalos estiver a dormir no estábulo, isso tornará mais plausível a doença dos animais. Indica-me o caminho.
Se eu tiver qualquer coisa para fazer, qualquer coisa que me distraia de tudo isto até estar tão cansada que caia para o lado...
Não completou o pensamento. Havia sempre a hipótese de Adele não ter simulado a sua própria morte e de Lydana não ter fugido a tempo.
Havia sempre a hipótese de nada daquilo resultar. Se tivesse oportunidade de pensar, era bem capaz de perder o controlo sobre si própria. Não se atrevia a deixar-se ir abaixo, não naquele
momento. Laika assentiu com compreensão, como se tivesse ouvido os seus pensamentos.
- Anda, então - disse ele e levou-os a todos até aos estábulos.
Assim que lá chegou, Raymonda ficou rodeada por um turbilhão de actividade, a partir do momento em que ela própria e dois dos domadores se dispuseram a dar a cada um dos cavalos da propriedade o aspecto de quem ia morrer nas horas mais próximas. Uns foram encharcados em remédios que os faziam suar e tremer como se estivessem com febre; outros levaram pensos nos joelhos ou ferraduras com formas estranhas num dos cascos, por forma a fazê-los manquejar temporariamente. A todos foram aplicados tratamentos no pêlo e na pele, que lhes deixavam o pêlo áspero e com uma cor estranha, as crinas e as caudas rígidas e crespas, e eram-lhes aplicadas falsas feridas e cicatrizes.
Quando a madrugada estava prestes a chegar, Raymonda estava quase a dormir em pé e não havia um único cavalo na propriedade que alguém aceitasse como presente. Levantou-se e sentiu uma tontura de fadiga. Thom estava mesmo a seu lado e agarrou-a, e ela dirigiu-lhe um sorriso de agradecimento. Nem dera pela sua presença.
- A pequena amiga da vossa tia apareceu aqui logo a seguir a terdes começado a tratar dos cavalos - disse ele enquanto a guiava até ao lugar onde ia dormir. - Não me soube dizer grande coisa, mas suponho que a tua tia esteja segura por agora. Dei-lhe um dos vossos brincos para ela levar, para que a vossa tia saiba que estais bem.
Raymonda assentiu manifestando a sua concordância, de uma forma que denunciava a sua exaustão.
- Isso terá que servir, mas a partir de agora... não teremos mais contactos. Não podemos
saber... - interrompeu-se para soltar um enorme bocejo.
- ... Não podemos saber se estamos a falar com alguém que tenha sido subvertido - acabou Thom por ela.
- Foi isso mesmo que eu lhe disse.
Conduziu Raymonda até uma das baias onde tinham sido colocados cobertores limpos em cima de uma cama de palha nova e espessa que, naquele momento, parecia tão convidativa como uma cama de penas. Raymonda caiu-lhe em cima assim que Thom lhe largou o braço, o corpo todo sentindo desesperadamente a necessidade de dormir. Pareceu-lhe que ele dissera mais qualquer coisa, uma pergunta talvez, mas era demasiado tarde. Ela já estava profundamente adormecida.
ADELE
- Oh Tu, que estás nos céus, tem piedade de nós – entoou a grande sacerdotisa. A religiosa Elfrida ajoelhou no seu lugar para o segundo ritual desde que saíra do “retiro”. Estava-se agora a meio da noite e ao serviço religioso normal àquela hora, a grande sacerdotisa juntara a litania pelos moribundos. Por isso, Elfrida rezava agora, juntamente com os outros religiosos, por Adele, que estava supostamente a morrer na enfermaria. E se as suas orações eram mais pelos vivos, pela filha e pela neta da que em breve seria a falecida Adele, bem, a Deusa sabia e compreendia.
Talvez devêssemos rezar também pela cidade, pensou sombriamente. Já me começo a arrepender da nossa decisão.
Elfrida olhou à sua volta, usando o livro de cânticos como um escudo para disfarçar o seu olhar. A secção junto ao coro do templo estava mais cheia do que era costume em muitos anos. Elfrida não tinha a noção da quantidade de noviços que as várias ordens tinham, mas agora estes enchiam as primeiras filas de cada uma das ordens, sujeitos ao escrutínio dos mais velhos. Procurou encontrar expressões de culpa, embora não estivesse bem certa de qual seria o aspecto de um espião. Alguns deles pareciam nervosos, mas a maioria parecia desejar unicamente poder voltar para a cama, com excepção dos Hábitos Castanhos, a maior parte dos quais se sentia abalada pelos acontecimentos do dia e parecia satisfeita por estar no templo principal.
Os curandeiros... já correm boatos de que os homens do imperador estão a arranjar problemas nas rua e os curandeiros são os primeiros a ver os resultados desses problemas.
Elfrida esperava que os noviços estivessem a salvo ali. Não era como se estes fossem crianças; o templo não recebia noviços menores de trinta anos e a idade em que mais vulgarmente se entrava para o templo era entre os quarenta e os cinquenta. A Deusa não aceitava servos que encaravam o seu serviço como uma forma de fugir à vida. Exigia que estes vivessem uma vida útil fora da Sua casa antes que lhes fosse permitido entrar. Mas aos olhos de Elfrida, os noviços pareciam muito infantis e pouco preparados para aquilo que ela temia ser o futuro próximo. Rezou também por eles e por todos os religiosos, para que estes pudessem ter a força e a pureza de coração necessária aos tempos que se avizinhavam.
Mas somos todos mortais, com os sentimentos dos mortais... quando chegar a hora do teste alguns falharão, outros procurarão fugir-lhe e alguns negarão mesmo a existência de qualquer teste.
Quando a litania terminou, Verit deu as ordens que tinham acordado na tarde anterior na enfermaria, garantindo assim a oração constante em torno do Coração.
É inteligente da parte dela, pensou Elfrida. Dando as ordens à noite, durante o Grande Silêncio, ninguém as vai discutir... pelo menos até à reunião do Capítulo após o pequeno-almoço. E não estaremos todos na reunião do Capítulo, visto termos que nos dividir para orar junto ao Coração.
Elfrida ficou satisfeita por descobrir que não fazia parte do grupo que tinha que ali ficar naquele momento; teria tempo para dormir algumas horas antes de ter que voltar para o serviço seguinte. Tencionava aproveitá-las bem.
Estranho, como no meio de uma crise, no início daquilo que ela suspeitava se revelaria um perigo terrível, o corpo insistia em fazer valer a sua vontade. Abafou um bocejo, enquanto se apressava de volta ao quarto; naquele momento, a tarimba dura e pouco hospitaleira parecia-lhe tão convidativa e desejável como a sua cama confortável do palácio...
A cama do palácio! Ficou imóvel por alguns instantes. E se Apolon lá fosse e retirasse a roupa da sua cama? Ele era um mago, certamente saberia como usar a roupa para descobrir onde ela se encontrava! E os acontecimentos dos últimos três dias não só a tinham obrigado a usar a cama, como a tensão que tinham provocado a fizera ter sonhos e pesadelos que a tinham feito transpirar e ensopar os lençóis durante o sono!
Os criados certamente que mudaram a cama, disse a si própria com firmeza, forçando-se a caminhar calma e normalmente até à sua cela.
Mesmo que não tenham mudado... porque haveria ele de se incomodar a descobrir o meu paradeiro? Ele sabe onde eu estou. E uma vez Adele morta... para quê procurar encontrar uma mulher morta?
Mas isso deixava em aberto a questão das camas de Lydana e de Shelyra... E já que pensava nisso, teriam elas levado em consideração o facto de Apolon poder usar os seus objectos pessoais para as encontrar? Alguém teria pensado nisso?
Elas não são crianças, conhecem as leis da magia, repetiu novamente para consigo. E os criados ainda lá estão. As nossas coisas têm algum valor, até mesmo a mais insignificante camisa de noite ou corpete; Balthasar certamente juntará tudo para enviar ao seu Tesouro antes que Apolon tenha possibilidade de lhe pôr as mãos.
“Provavelmentes” não constituíam, no entanto, grande conforto. Abriu a porta da cela e voltou a fechá-la atrás de si, desejando poder falar com alguém, nem que fosse com o criado mais
insignificante do palácio.
Disse a Verit que não conseguia pensar em nada que tivesse deixado por fazer, e agora lembro-me duma coisa destas, pensou ela com desconsolo, enquanto se preparava para dormir o sono que já não desejava.
De que mais me lembrarei que tenha deixado por fazer? E quão fatais serão essas falhas para nós e para os nossos planos?
LEOPOLD
Leopold acordou ao romper da madrugada, como acontecia todas as manhãs desde o início da sua adolescência. Não conseguia recordar-se de ter alguma vez ficado a dormir depois do sol nascer, nem mesmo quando ficara acordado até tarde numa das reuniões do seu pai. Só a doença conseguia mantê-lo na cama depois da hora a que os pássaros acordavam.
Dispunha somente de um escudeiro e um pajem para satisfazer as suas poucas necessidades, não era como alguns dos outros que tinham autênticos séquitos de criados, nomeadamente Apolon, para prover ao seu conforto. Os seus aposentos também não eram muito mais luxuosos do que os de qualquer um dos seus oficiais; tal como eles, tinha uma tenda suficientemente alta para se poder pôr de pé e dividida em dois compartimentos: um quarto para dormir e um outro para trabalhar. A mobília era igualmente simples: uma arca para os seus pertences pessoais, uma cama de campanha, um braseiro para cortar o ar frio, um armário para a armadura e as armas, uma mesinha e uma cadeira de dobrar. Os poucos luxos que possuía tinham sido presentes de aniversário dos seus amigos e dos poucos cortesãos que se sentiam suficientemente seguros para serem seus amigos. Carpetes evitavam que o frio e a humidade do solo penetrassem através do tecido do chão e candeeiros proporcionavam uma luz quente; alguns enfeites pendurados nas paredes da tenda amenizavam a lona das paredes. A cama tinha várias cobertas de peles, bem como algumas de boa lã. Estes eram os únicos luxos que tinha entre todos aqueles que a sua posição poderia proporcionar.
A noção de que era permanentemente observado estava sempre presente e sabia que, se incorresse em excessos, estes poderiam suscitar suspeitas. Comia com os seus homens, não mantendo cozinheiro próprio, como faziam mesmo alguns dos seus subordinados.
No momento em que se mexeu, o seu pajem já estava pronto com uma bacia de água quente e a roupa para o dia. A criança loura e com aspecto de querubim era a sua favorita, embora ele tivesse sempre o cuidado de não demonstrar a preferência. Tanto para seu bem, como para bem da criança; o favoritismo não lhe faria bem nenhum e se a preferência fosse notada, o rapaz seria transferido para outro sítio, talvez para um amo mais cruel do que Leopold. No entanto, quando estavam em privado, corrigia a criança com gentileza, quando esta necessitava de ser corrigida, e quando não necessitava, beneficiava-a com um sorriso, certificando-se de ter sempre para ela uma palavra simpática.
No entanto, ergueu uma sobrancelha quando viu a roupa que o pajem escolhera; era um fato próprio para a corte, ou o que ele entendia ser um fato de corte, bastante mais simples do que os usados pela maioria dos cortesãos. Uma túnica severa em seda crua de uma bela cor de vinho, enfeitada a ouro e adornada pelo brasão do seu pai sobre o peito e nas costas, calças a condizer e botas altas polidas até ficarem de um preto brilhante; não havia nada que marcasse a sua posição para além de uma coroa discreta bordada por cima do brasão. Qualquer dos oficiais de alta patente usava um fato semelhante.
- O vosso imperial pai requer a vossa presença assim que estiverdes vestido, meu Senhor - gorjeou a criança num soprano tremido. - Esteve cá um mensageiro ainda antes do romper da aurora.
Aquilo fez com que erguesse a outra sobrancelha. Geralmente o imperador não requeria a presença do seu filho tão cedo, nem que se vestisse tão formalmente.
- Obrigado, Peter - disse ele calmamente. - Fizeste tudo muito bem, tão bem quanto o Klaus faria. Eu visto-me sozinho; por que não vais à procura do sargento Athold para ele te dar o
Pequeno-almoço?
O pajem fez uma vénia e retirou-se, tentando não parecer demasiado apressado, mas era uma criança em crescimento e a comida tinha um papel primordial na sua vida. Leopold sorriu para as costas do pajem que se retirava e entregou-se aos seus preparativos matinais, tão depressa quanto possível. O seu escudeiro, Klaus, apareceu quando estava a terminar; ordenou ao adolescente que limpasse os arreios de parada do seu cavalo e depois, pensando melhor, ordenou que lhe trouxessem o cavalo até à tenda para o caso de este ser necessário.
Saiu da tenda para a luz ténue da manhã cheio de energia. À sua volta viam-se e ouviam-se os homens a acordarem, a alimentarem-se e a vestirem-se para o dia. Ali estava rodeado das duas tropas pessoais e cumprimentou individualmente cada homem à medida que os ia reconhecendo. Eles correspondiam à sua saudação; era um comandante popular, reconhecidamente imparcial, justo e um bom chefe. Só neste caso ele não subvertera os seus talentos naturais para evitar levantar suspeitas; não negaria aos seus homens um comando decente, mesmo que isso significasse o imperador franzir o sobrolho ao vê-lo ser vitoriado depois das batalhas.
Já havia maus comandantes em número suficiente naquele exército; não tencionava fazer com que os seus homens sofressem às ordens de mais um. Refez os passos que dera na última noite, ouvindo as vozes que vinham do interior da tenda à medida que se aproximava.
Um guarda mantinha a porta da tenda aberta para que ele entrasse e ele curvou-se um pouco para o fazer, transformando o gesto numa vénia formal quando viu que o pai tinha a corte reunida no interior.
Com o imperador estavam o general Cathal, o actual comandante do Exército Imperial, e o chanceler Adelphus, para além do sempre presente Apolon. Cathal estava com o seu aspecto de
sempre: o de uma estátua de mármore inflexível, de expressão severa, que tivesse sido trazida à vida e envolta na couraça que nunca tirava, nem mesmo para as cerimónias de Estado. Acenou num breve cumprimento e virou-se novamente para o imperador.
Adelphus, a ficar careca e um tanto curvado, envergando o fato escarlate da sua posição, dirigiu a Leopold um meio-sorriso e uma meia-vénia. Leopold sempre se dera razoavelmente bem com ele; não tinha maiores ambições do que as do próprio príncipe, sentindo-se perfeitamente satisfeito com as suas tarefas administrativas (nas quais era excelente) e deixando as intrigas para os outros. Reconhecia no príncipe uma alma gémea, pelo menos no que respeitava à falta de ambição, e fazia o seu melhor para suavizar a atitude do imperador para com o seu filho. O único defeito de Adelphus era a cupidez; adorava coisas preciosas e geralmente encontrava forma de se apropriar dos objectos que suscitavam a sua cobiça.
O imperador grunhiu um cumprimento ao filho, mas não lhe fez sinal para que se sentasse.
- Temos uma tarefa para ti, príncipe - disse ele bruscamente. - Queremos que tu e as tuas tropas pessoais assumam o comando da cidade. Ocupa o palácio; examina os seus terrenos, encontra um local adequado para instalarmos uma caserna e dá conhecimento disso a Cathal assim que tiveres encontrado um sítio bom, para que ele possa enviar as suas tropas. Prepara o caminho para a nossa ocupação. Precisamos ter uma presença imperial na cidade para que esses mercadores gordos saibam qual é a mão que empunha as rédeas. Segundo os relatórios de Apolon, demasiados entre eles parecem pensar que ainda é a sua rainha que tem a última palavra em termos de autoridade.
Elimina qualquer possível subversão, é o que ele quer dizer, pensou Leopold enquanto assentia a sua compreensão. Mas o seu estado de espírito melhorou um pouco. Uma pequena tarefa era melhor do que tarefa nenhuma.
- Apolon já enviou os seus homens para que detectassem qualquer possível subversão e tomar as medidas adequadas e para assegurar a posse da própria cidade - continuou o imperador. - Dei-lhes mão livre para que executassem algumas ordens específicas minhas; quero que os deixes em paz e que não interfiras em quaisquer das suas acções. Eles estão a resolver os problemas que surgiram com os mercadores e a registrar os cidadãos; e já têm colocados os seus próprios agentes da ordem. Limita-te a preparar o caminho para mim, pessoalmente.
A disposição de Leopold caiu a pique. Então, este era mais um encargo para não fazer nada; não passaria do ocupante de um lugar, um símbolo da atenção do imperador, até que Balthasar estivesse pronto a deixar que a cidade conquistada visse o seu novo amo.
- Procura quaisquer vestígios da rainha e da princesa – acrescentou Apolon acrimoniosamente. O sábio-mago parecia estar particularmente maldisposto naquela manhã, como se tivesse sofrido um grave desapontamento. - Conseguiram, não se sabe como, escapar-se-nos por entre os dedos na noite passada. Não podem ter ido longe, mas se as encontrares antes dos meus homens, deves enviá-las directamente a mim.
Como Balthasar não dissesse nada que contradissesse aquelas ordens, Leopold abafou uma objecção e limitou-se a assentir novamente. Mas a ordem provocou um arrepio na nuca do príncipe. Havia ali algo de muito errado. Porque insistirá ele tanto em pôr as mãos naquelas mulheres? Não pode ser para boa coisa!
- Vai... - Balthasar acenou ao filho. - Prepara as tuas tropas e faz uma entrada com toda a pompa. Assegura-te de que chegarás a tempo de assistir, sentado no lugar da rainha, ao serviço do Coração. É importante mostrar a essa gente quem é que manda e essa será a melhor forma de começar. Esta gente é muito sentimental em relação ao seu templo e todos aqueles que conseguirem estar disponíveis, vão com certeza estar no serviço.
- Ouço e obedeço, Vossa Alteza - respondeu Leopold formalmente, fazendo uma vénia e retirando-se.
Tinha a cabeça a zumbir com perguntas que não fizera e com especulações desagradáveis. Começou a dar ordens aos seus homens assim que estes ficaram ao alcance dos seus gritos. Como sempre, estes obedeceram com uma precisão louvável, não lhe deixando nada para fazer senão esperar que lhe trouxessem o cavalo e reflectir nas possíveis implicações da reunião que decorria na tenda imperial.
O pai pode estar à espera de ver se eu tento tomar a cidade para mim ou se lhe obedeço ao pé da letra. Mas... esta história das mulheres reais desaparecidas... Não gosto mesmo nada disto! O Apolon deve ter um motivo qualquer para além dos que são óbvios; uma qualquer razão para as querer ter pessoalmente sob custódia.
O escudeiro trouxe-lhe o cavalo ao mesmo tempo que os homens terminavam de empacotar as suas coisas e entravam para a formatura. Montou com facilidade, sem pensar sequer no que fazia, e sentou-se na sela numa pose aparentemente descontraída, esperando que eles formassem as colunas.
O Apolon não está a preparar boa coisa. O Cathal... bem, o Cathal está sempre do seu lado. Até se podia pensar que o Cathal era uma espécie de autómato que o Apolon tivesse animado, não fora o facto de Cathal ser um bom estratega e Apolon ser tão terrível que chega a ser patético. O chanceler não quer saber do que Apolon faz desde que não impeça as coisas de correrem sobre eixos. Tudo isso, compreendo. Mas o que não compreendo é... por que é que o pai concorda com isto? Parece-me o tipo de coisa que lhe poderá causar muitos problemas com as gentes de Merina. Um punho demasiado cerrado no seu pescoço e, se acrescentarmos a isso o extermínio da família real... O pai esquece-se de algo muito perigoso. Quando as pessoas já não têm nada a perder, têm todas as razões para arriscar totalmente em prol da mudança, não importa quão desfavoráveis as circunstâncias.
Se Apolon estivesse realmente a planear uma maldade qualquer... se ele queria realmente fazer mal às mulheres... Mas Balthasar diria que isso não faria qualquer diferença. Nessa altura, era seguramente o que ele pensava, Merina estaria totalmente debaixo do pé do imperador e o povo nada poderia fazer.
Isso é um erro. Gente desesperada faz gestos desesperados.
O cavalo de Leopold relinchou e mexeu-se impacientemente, reflectindo o nervosismo do seu cavaleiro.
Não gosto nada disto. E não tomarei parte nisso.
E eis que aparecia: o seu primeiro acto de rebelião efectiva. Mas não era rebelião contra o seu pai, pois não? Não. É contra aquele cão do Apolon. Embora tenha persuadido o pai a fazer isto, o pai nunca concordaria com tal coisa se tivesse pensado no assunto. Não, o pai é impiedoso, mas não é... mau,
E Apolon só quer mal a estas mulheres. Tenho tanta certeza disso como de me chamar Leopold.
Agarrou firmemente nas rédeas e acalmou a montada, sentindo-se um pouco melhor, pelo menos no que respeitava ao seu papel em tudo aquilo. O que quer que fosse que Apolon planeava, ele contrariaria por todos os meios ao seu alcance. Que era o que faria qualquer homem honrado.
LYDANA
Matild e Eel foram acordados pelo sino da manhã, que era tocado em cada uma das paróquias da cidade.
Matild dormira com a camisa de baixo vestida e sentiu-se ansiosa pela grande bacia de água quente que teria à sua espera no palácio. Água! Tinham que pôr o barril lá fora para encher, pois a carroça passava muito cedo. Eel já saíra da cama, aparentemente com o mesmo pensamento, pois estava a deslocar o grande casco que estava no canto mais distante do quarto, empurrando-o em direcção à porta.
Matild apressou-se a ajudá-lo. Juntos puseram-no do lado de fora da porta. Deitou um olhar à rua, para cima e para baixo. Sim, pelo menos nisto a rua apresentava o seu aspecto habitual; as barricas estavam no exterior, à espera e sentiu, o que lhe provocou uma dor ténue no estômago, o odor vindo dos fornos de pão de Berta, situados à esquina. Procurou algumas moedas de cobre na bolsa e atirou-as a Eel.
- Dois pães escuros - ordenou-lhe. - E se ela tiver um pedaço de queijo para barrar, traze também.
Ele assentiu e foi-se embora. Matild voltou para dentro e pôs-se à frente de um pedaço de espelho observando, tanto quanto lhe era possível, a sua pessoa. As pessoas como ela não costumavam relacionar-se muito de perto com a água do banho e tinha baton suficiente, bem como a sua escova, para se preparar para o dia.
Quando Eel regressou, já ela estava a abrir as grandes persianas verdes e ele deixou cair o que trazia em cima da mesa para se apressar a ajudá-la a abrir a mesa de dobrar que se prójectava ligeiramente para o beco e sobre a qual ela expunha as suas mercadorias. Dando um pontapé determinado em cada uma das pernas da mesa, com o pé calçado com sandálias de madeira, fixou-os firmemente no lugar.
Já se ouviam outros ruídos para além do enorme barulho da carroça da água. Parecia que os seus vizinhos se estavam a recompor da timidez do dia anterior. Max, o sapateiro, estava quase pronto para abrir a loja, tal como Lottie, que negociava em roupas usadas.
Trocaram os cumprimentos da manhã, embora parecesse a Matild que as suas vozes estavam mais sombrias do que o habitual e apercebeu-se de que as suas cabeças se viravam frequentemente na direcção da rua principal, mas não com a ansiedade própria de quem espera por fregueses.
O vendedor de água trazia o seu próprio fornecimento de notícia; na verdade, estava tão inchado com esse facto, que mais parecia um sapo. Não, nem o imperador nem a maior parte do seu exército tinham feito qualquer menção de entrar pelos portões escancarados da cidade. Mas o filho do imperador, esse tinha cavalgado pela cidade dentro ainda não passava uma hora da aurora, mas comandava apenas homens de armas que usavam as suas cores pessoais e apossara-se do palácio. Pensava-se que o seu pai decidira que Leopold deveria manter a cidade sob controlo enquanto o imperador se ocupava de assuntos mais importantes. Embora que assuntos seriam esses, ninguém conseguisse adivinhar.
Leopold, pensou Matild, enquanto ela e Eel empurravam cuidadosamente a barrica transbordante para o seu canto. Que sabia ela desse rebento único da casa imperial? Embora os homens se fartassem de falar, desde há anos, das conquistas de Balthasar e até mencionassem os seus mais altos conselheiros, muito pouco fora dito do príncipe. Até mesmo alguns dos oficiais eram mais conhecidos.
- Saio? - Eel acabara de comer, dera uma arrumadela rápida e impaciente à cama e estava agora junto ao cotovelo de Matild. Ela sabia muito bem que ele tinha que sair, pois conseguiria descobrir muito mais coisas do que ela. No entanto, a imagem dos homens de negro pesava-lhe no espírito.
- Tem cuidado - deu por si a dizer, embora soubesse que Eel não precisava de tais conselhos.
- As casas das Guildas? - sugeriu o rapaz.
Matild assentiu. As Guildas controlavam a riqueza de Merina, Se a cidade estivesse prestes a ser saqueada, seriam elas a atrair as atenções em primeiro lugar. E Eel foi-se embora.
Matild ocupou-se em várias tarefas como se aquele fosse um dia normal, desempacotando os colares de contas, arranjando-os na banca e prendendo os fechos que, permitindo que fossem vistos, impediam que fossem roubados. Naquela manhã tomou especiais precauções para que nenhuns dos objectos expostos valessem mais do que o preço médio, evitando bijouterias de qualidade superior.
Tendo acabado de arranjar o expositor, sentou-se num banco alto, equilibrando sobre os joelhos o tabuleiro dividido em compartimentos e que continha uma quantidade bastante grande de contas de todas as cores e feitios. Enfiou uma das suas agulhas preparando-se para trabalhar enquanto esperava por clientes.
- Ah, Matild...! que beleza! - Kassie, a caminho de uma visita tardia à padeira, olhava esperançadamente para os colares. - Aquele - espetou um dedo calejado pelo trabalho na direcção de um colar no meio do expositor - aquele... aquele era o que eu escolhia... as borboletas... parecem mesmo verdadeiras!
Matild falou bruscamente:
- Deram muito trabalho a fazer, rapariga. Custam-te cinco moedas de cobre ou uma de prata
Kassie suspirou.
- Não me parece que arranje esse dinheiro, não com aquela nariguda da segunda mulher do meu pai a vigiar a bolsa.
- Traze cá o Hughes. - Matild sorriu.
Kassie corou e depois abanou lentamente a cabeça. Pela primeira vez olhou por cima do ombro antes de responder.
- O Hughes... já não o vejo faz agora... três dias. Foi chamado quando o Conselho se reuniu, mas não voltou para casa. Bem, a esta hora ela já não deve ter nada para mim. Bons negócios, Matild.
Apressou-se a ir embora. Hughes era membro, desde há um ano, da polícia dos canais. Matild enfiou uma conta vermelha e depois uma de cobre. Que teria acontecido aos guardiães normais da cidade? Estremeceu ligeiramente. Isto tudo parecia ligeiramente irreal... Balthasar mantendo-se fora da cidade, os homens de negro...
- Olá, mulher!
Sobressaltou-se quando uma outra sombra obscureceu a parte da banca que dava para a rua. Erguendo o olhar, encontrou os olhos de um dos casacos negros. Não estava sozinho e o seu companheiro trazia um rolo de papel amarelo e espesso que mantinha aberto com uma mão, segurando um lápis com a outra.
- Contas, senhor. Encontrará aqui as melhores...
- És vendedeira licenciada?
O homem não estava de sobrolho franzido, mas a sua atitude também não se assemelhava nada à de um freguês.
Matild apontou para o pergaminho emoldurado e um tanto torto, pendurado de um gancho preso à portada de madeira. Permitiu-se uma certa brusquidão na voz quando respondeu:
- Use os olhos... ali “tão os meus negócios, assinados como deve ser pelo mestre Garmage, ele mesmo, e pela nossa graciosa rainha...”
Ele aproximou-se e inspeccionou a licença. Depois disse em voz fria:
- Não há rainha nenhuma em Merina, mulher, ainda não ouviste dizer? Precisarás de uma nova licença para trabalhar e terás que pagar uma taxa por ela no Sinal das Três Canecas antes de terem passado dois dias. O teu nome? – ladrou por fim.
- Sou a Matild filha de Ranskin e negocio em contas.
Atreveu-se a imprimir alguma brusquidão à resposta. Estabelecera uma personagem e agora era altura de se comportar de acordo com a personalidade estabelecida.
- Matild. - Um dos casacos negros acenou para o seu companheiro, que fez um risco no papel que tinha na mão. - São seis moedas de prata por meio ano da tua licença, mulher. E não aceitamos promessas, só metal sonante.
Já se virara e encaminhava para Max. Matild sabia que não deveria estar surpreendida. Afinal de contas, sempre tinham sabido que Balthasar estava decidido a extorquir tudo quanto pudesse da rica cidade portuária. Mas uma soma daquelas era impossível de reunir em dois dias por um comerciante do tipo que ela aparentava ser. Teria o imperador decidido saquear a cidade impondo taxas que nenhum dos comerciantes mais pequenos poderia pagar?
Ouviu vozes erguerem-se na loja de Max. O sapateiro era um homem com um temperamento irascível. Era também do tipo de comerciante que mordia cada moeda de cobre antes de a guardar. Um dos casacos negros moveu-se com rapidez e ela viu-o agarrar o sapateiro pela frente da camisa e abaná-lo.
‘ - Dá-te por feliz por eu estar bem-disposto - disse o agressor - ou irias parar à prisão por falar nesse tom com um dos homens do imperador. Ou pagas, ou não trabalhas, idiota.
Matild continuou a reflectir. Shelyra estava a salvo, por enquanto, mas aqueles casacos negros pareciam estar em toda a parte. E Saxon... que lhe teria acontecido? Fora sua intenção contactá-lo tão depressa quanto possível. Agora estava certa de que tinha que o fazer, se pudesse, da forma mais secreta.
Em condições normais, esperaria que os seus colegas comerciantes explodissem na rua, assim que os casacos negros se fossem embora, com gritos e invocações aos vários santos e anjos para que os ajudassem contra tal exploração. Mas o beco continuou silencioso, demasiado silencioso e ela apercebeu-se de que da rua principal também quase não chegava qualquer ruído.
Se aquelas aves agoirentas tinham vindo ao ninho dos pobres, qual seria o destino das Guildas? Descobri-lo-ia antes do virar da ampulheta, quando do regresso de Eel. Este não caminhava com a passada larga que estava de acordo com o seu papel, mas mantendo-se junto às paredes e correndo de uma ombreira de porta para outra como se esperasse ser atacado.
Contudo não trazia a respiração alterada quando entrou na loja de bijouterias, embora os olhos continuassem a mover-se de um lado para o outro, como se esperasse que algum mal estivesse pronto a saltar de trás do ombro de Matild.
- Atacaram... as Guildas - começou abruptamente. – Os casacos negros levaram todos os mestres para o palácio esta manhã. Puseram um dos homens deles em cada casa das Guildas e trouxeram escribas de negócio também deles, exigindo todos os livros. Nem sequer deixam os assalariados, homens ou mulheres, continuar a trabalhar. Fecharam as oficinas e não os deixam entrar e estão a interrogá-los sobre os negócios de cada casa.
Então não se limitavam a caçar apenas os ratos do mundo dos negócios de Merina, agora tinham atacado o topo. Sentiu uma necessidade muito forte de ir até à casa da sua própria Guilda,
para ver o que se passava.
- Levaram ainda mais homens para a Guilda do Tigre - continuou Eel. - O mestre Sameson e o mestre Kird foram levados. Estão a fazer perguntas sobre a rainha...
Sim, essa poderia ser a primeira jogada de Balthasar para tentar fazer com que ela saísse do seu esconderijo na cidade. Mas nem sequer os trabalhadores da sua maior confiança sabiam do buraco onde Matild se escondia.
O imperador daria por bem empregue o seu investimento na casa dela! Esta tinha controlado, durante séculos, o comércio das melhores pedras preciosas, e o passatempo favorito de muitos dos mestres fora pôr de lado jóias especialmente belas ou pouco habituais, quer para a colecção da casa, quer para satisfazer encomendas muito especiais. Havia, naquele preciso momento, uma dessas pedras sobre a sua mesa de trabalho no átrio da casa, a não ser que alguém tivesse tido o bom senso de a esconder. Era uma encomenda para uma coroa de casamento de além-mar; uma encomenda que desafiara os seus talentos criativos. Encolheu os ombros; o que agora estava em risco era bem mais do que uma bela peça de joalharia.
- Estão a planear uma cerimónia solene para o Grande Templo - continuou Eel. - Talvez o imperador esteja presente. Correm rumores de que fará um discurso no fim.
Aquela parecia ser a última do seu fornecimento de notícias, pois sentou-se num banco a olhar para ela.
- Saxon? - ela quase sussurrou a palavra.
A ajuda do capitão era tudo com que ela tinha contado. Já não estaria na estalagem. Talvez ele próprio tivesse ido para o porto. Acabou de encher com contas soltas os potes da sua banca de trabalho, enquanto pensava no que faria a seguir.
- Há o Jonas... - Como de costume, Eel acompanhava os seus pensamentos.
Jonas... sim! Embora Saxon fosse um homem prudente e costumasse seguir as suas próprias ideias, confiava no entanto no estalajadeiro perneta... não no dono da Dragão Marinho, mas no proprietário de uma taberna muito menos pretensiosa, frequentada por marujos vulgares. Jonas estivera vários anos ao serviço do capitão, até ter perdido a perna em Ourse, e Matild sabia que ele era a fonte de Saxon no que respeitava às informações relacionadas com os tráficos ilegais no porto e nos canais.
Mas não poderia procurá-lo em pleno dia. Matild não tinha qualquer pretexto para fechar a loja e sair para as ruas e tinha agora a firme convicção de que qualquer acontecimento fora do vulgar atrairia a atenção dos casacos negros. Mas havia uma coisa que...
- Quando é a cerimónia? - Perguntou a Eel.
- Ao meio-dia... hoje.
Bom. Muito bem, ninguém poderia questionar uma mulher que procurasse o consolo do templo depois do choque que tivera naquela manhã.
- Ficas de guarda à loja - disse ela. - Eu vou à cerimónia. Se alguém perguntar por mim, dize a verdade. Vou... vou perguntar à Berta se quer ir comigo.
Parou na padaria e encontrou a padeira gorducha lá dentro, com as faces redondas manchadas pelo choro.
- Dez moedas de prata! - Acolheu Matild com um grito de desespero. - Eu ganho aí umas cinco moedas de prata por semana... quando os outros têm dinheiro suficiente para me comprar pão. Mas tenho a minha filha Ella, e o mais novo dela está doente. Ela esta manhã foi ao dispensário da cidade e estava fechado, com uma daquelas aves agoirentas à porta a dizer que os doentes que cuidassem de si... a não ser que pagassem. Matild... este mal é...
- É pior do que temíamos - assentiu a vendedora de contas. - Hoje ao meio-dia há uma Cerimónia Solene do Alto Coração. Eu vou lá pedir misericórdia à Vontade Superior... vem comigo.
Berta bateu as palmas e a sua segunda filha espreitou da casa do forno.
- Vamos ao Coração - disse a padeira. - Olha pela loja. Nem mesmo os casacos negros me podem afastar da Misericórdia Divina...
Matild pensou, enquanto saíam juntas, se isso seria mesmo assim. A sua ideia parecia ter alguns seguidores. Havia uma corrente de gente, especialmente de mulheres. Matild perguntou-se
qual seria a razão de se verem tão poucos homens. Havia alguns de gerações mais velhas, mas os mais jovens, certamente que os homens do imperador não poderiam ter arrebanhado todos os homens de Merina! Não teriam locais onde os manter. Mais uma vez se apercebeu de que a grande praça junto ao Grande Templo se enchia rapidamente. Mas esgueirou-se em direcção ao templo, com Berta nos seus calcanhares e daquela vez conseguiu chegar aos degraus da grande nave, embora uma vez lá chegadas tivessem sido empurradas para um canto.
A lamparina do santuário estava acesa e o coro ocupava os seus lugares. Os religiosos entraram, um vulto de hábito e capuz semelhante ao que se lhe seguia. Já não havia muitos, notou Matild com uma ponta de medo, sobretudo entre os Hábitos Cinzentos. Embora outras famílias, para além das do Tigre, tivessem o dom inato, este não tinha passado para muitas das filhas durante a última geração. E visto o talento não se manifestar antes da meia-idade e as suas possuidoras frequentemente não viverem durante muitos anos, tinha havido uma erosão constante ao longo dos anos. Apenas cerca de um quarto dos bancos que lhes eram destinados estavam ocupados.
Aqueles pensamentos sombrios foram sacudidos pela procissão que saía do santuário: a grande sacerdotisa, nos seus trajes cerimoniais, mas em vez dos habituais mantos escarlates e brilhantes, envergava a púrpura do luto; luto por uma cidade já perdida.
Aqueles que se encontravam em redor de Matild ajoelharam. Ela apressou-se a imitá-los, enquanto a Chama Eterna era cuidadosamente levada até ao altar. Havia ainda as duas cadeiras de Estado, uma de cada lado do altar. A cadeira da rainha, até ao dia anterior pertença de Adele, era ocupada por um homem novo, com vinte e muitos ou trinta e poucos anos; seria o príncipe Leopold? Não havia sinal do imperador.
Nem sequer chegou depois, como os boatos diziam que faria. O serviço foi um serviço completo, mas a grande sacerdotisa não fez nenhum sermão. Limitou-se a sair da sua cadeira e a ajoelhar perante o altar, apoiada num dos religiosos, em oração silenciosa. E Matild, notando um desvio ao ritual habitual para aquele serviço, como só vira acontecer quando da morte de seu pai, temeu por Adele. Só podia ter esperança nos laços fortes que as uniam, às três; se Adele tivesse partido, ela certamente que o saberia, talvez no preciso momento da morte da mãe.
Quando o serviço terminou, agarrou Berta por um braço.
- Vou procurar conselho. - Indicou os confessionários com a cabeça.
A padeira assentiu.
- Também eu, vizinha.
Matild teve que esperar até o templo estar parcialmente desimpedido antes de se conseguir aproximar do seu compartimento especial. Ajoelhou-se reverentemente por momentos em frente do Coração e depois ergueu a cortina e sentou-se num banco baixo dentro do compartimento; o rosto enquadrado pela rede espessa da divisória que ocultava de forma eficiente a figura de quem entrava, deixando ver apenas a silhueta. Proferiu as palavras rituais com que começavam as confissões.
- Reverendíssima, o meu coração não está em paz.
- Fala filha - respondeu-lhe o murmúrio ritual – pois a tua mãe escuta-te.
Seria Adele? Não podia ter a certeza.
- Há problemas na cidade, reverendíssima... – começou ela.
Era difícil falar nos seus problemas reais quando não sabia com quem estava a falar.
- Há de facto problemas, filha.
Matild sorriu com contentamento.
- Mãe! - murmurou.
- Vigia as tuas palavras... não sabemos se estamos a ser observadas.
Não ouvia um tom tão severo na voz da mãe há já muitos anos. Rapidamente Matild comunicou-lhe tudo o que sabia. Depois perguntou:
- Tens notícias de Shelyra posteriores às que eu tive?
- Ouvi aos ciganos que por agora está a salvo. Mas aquela criança é impulsiva e o que se está a passar com aqueles casacos negros servidores de Apolon...
- Apolon? - interrompeu Matild.
- Sim, os casacos negros são fungos venenosos que ele plantou. Têm-no servido e, através dele, têm servido o imperador; tão bem que Balthasar lhes entregou o policiamento da cidade. Apolon - pela primeira vez a sua voz tremeu um pouco - é mais do que um mago, filha. Tal como Verit é mais do que uma religiosa, também ele tem uma posição de comando. Embora até ao momento não tenha tomado qualquer posição para além daquelas que servem ao seu amo, acreditamos que os seus planos ultrapassam em muito os do imperador. Levaram os mestres das Guildas e pedem um resgate: levam dois terços das suas mercadorias em troca daquilo a que chamam liberdade. As nossas forças da ordem foram para o cativeiro e estão a levar todo e qualquer rapaz novo que encontrem e enviam-no para o acampamento do imperador, a trabalhos forçados. Corre mesmo o boato de que os enviarão para as outras conquistas de Balthasar como escravos. Aqueles que de entre nós têm o dom, já começaram a espiá-los, mas não nos atrevemos a usar demasiado do nosso poder temendo atrair a atenção de Apolon... o poder atrai o poder, como tu bem sabes.
- Quem usa o anel? - perguntou Matild suavemente.
- Foi levado pelo embaixador... talvez esteja agora na mão do imperador. Lembra-te, filha, estás a brincar com o fogo quando usas essas tuas jóias amaldiçoadas.
Não podia demorar-se demasiado. Curvando a cabeça, repetiu as palavras apropriadas:
- Concede-me a bênção do Coração, reverendíssima, pois quero fazer o trabalho do Grande Poder.
- Que assim seja - ouviu a sua mãe suspirar. – Faremos o que tiver de ser feito.
ADELE
A religiosa Elfrida acabou o período que lhe estava destinado a ouvir confissões, com o espírito profundamente perturbado; uma perturbação que nem mesmo os cânticos rituais que lhe eram tão familiares conseguiam amenizar, embora lhe recordassem a presença da Deusa e os cuidados que Ela dispensava aos Seus filhos. Mas quando comparada com o desespero que testemunhara no confessionário, a compaixão da Deusa parecia-lhe ténue e distante.
Pais, irmãos e filhos tinham desaparecido, ou como que por encanto ou nas mãos dos casacos negros de Apolon. Impostos e taxas muito excessivas, quando comparadas com os lucros de qualquer negócio, tinham sido impostas tanto aos pequenos como aos grandes comerciantes, com o aviso de que a falha no pagamento corresponderia ao encerramento do negócio. Estaria Balthasar a tentar estrangular a cidade? Estaria a tentar provocar a rebelião para ter um pretexto para a esmagar? Ou estaria apenas à procura de uma forma de saque a coberto de uma legalidade
duvidosa?
Mais do que nunca, lamentou terem deixado a cidade nas mãos de Balthasar. Mas que outra coisa poderiam ter feito? Resistir teria significado uma morte rápida às mãos das suas tropas... E agora, seriam confrontados em vez disso com uma morte lenta, por estrangulamento? Tanta miséria, tantas lágrimas, e a mesma pergunta feita por todos quantos procuravam os confessionários: Por quê? Por que razão lhes tinha acontecido uma coisa daquelas a eles? Porque os tinha a Deusa abandonado? Porque os tinha a rainha abandonado? Esta última questão tinha-lhe provocado um choque e tinha-a magoado profundamente.
Só lhes podia dizer aquilo que lhe tinham dito a si: às vezes coisas horríveis acontecem a pessoas boas, não porque a Deusa lhes fosse indiferente ou os estivesse a submeter a quaisquer testes, mas unicamente porque essa era a forma como as coisas aconteciam na terra. Se a Deusa respondesse a cada oração que lhe faziam, embora fosse Omnipotente, as contradições daí decorrentes causariam mais problemas do que aqueles que inicialmente existiam. Usou um exemplo simples: se uma mulher rezasse para que a árvore nas traseiras da sua casa crescesse e lhe fizesse sombra no alpendre abrigando-a do calor do verão e a mulher da porta ao lado rezasse para que a peste matasse a mesma árvore porque as suas raízes estavam a atacar as fundações da sua casa, a que prece deveria atender a Deusa? Ou ainda, se uma tempestade destruísse um barco de pesca cheio de homens honestos, seria a Deusa responsável, ou estaria a puni-los por qualquer razão? Não havia qualquer malícia divina envolvida no que estava a acontecer a Merina...
Embora houvesse certamente malícia terrena.
Tem fé! Disse a si própria com firmeza, enquanto se encaminhava para o refeitório para ir almoçar. Talvez a comida a ajudasse a sentir-se um pouco melhor. E talvez caísse no seu estômago como um pedaço de chumbo, como acontecia ultimamente com todas as refeições que tomava.
As coisas não estavam a resultar da forma como planeara. Tudo parecera relativamente simples, há apenas três dias... “A ameaça do Maligno está na divisão e no desespero.” As palavras ecoaram na cabeça de Elfrida como que ditas por uma voz de mulher, uma voz que não conseguia situar. Aquele pensamento era certamente oportuno, mas onde teria ouvido tais palavras?
A meio da refeição, que era, como habitualmente, tomada em silêncio, lembrou-se. Fora num sermão feito há vários meses por um dos Hábitos Castanhos, uma mulher que, para além dos seus dotes de curandeira, tinha o dom natural da palavra. Tinha sido numa das Grandes Festas da Senhora e a rainha-mãe Adele assistira ao serviço. Verit tinha-lhe apresentado a religiosa depois do serviço e Adele perguntara-lhe como tinha tido tempo para preparar um tal sermão com todos os seus afazeres. Verit rira-se, dizendo à rainha-mãe que a religiosa fora informada de que iria pregar uma hora apenas antes do início da cerimónia.
Talvez eu devesse pedir à Verit que a deixasse pregar de novo, pensou Adele. Ela é verdadeiramente inspirada e as suas palavras revelam sabedoria e sensatez. O que Apolon está a tentar fazer é exactamente induzir-nos em divisão e desespero e temos que combater ambos com todas as armas ao nosso alcance.
O almoço decorreu de uma forma desusadamente pesada; Elfrida não fora a única dos religiosos a ter estado de serviço nos confessionários e parecia que toda a gente ouvira histórias de angústia semelhantes.
E tenho que voltar para os confessionários depois do almoço, pensou com relutância. Ainda vai haver confissões durante mais três horas e mais alguém pode tentar contactar-me.
Como temera, a comida ficou a pesar-lhe desconfortavelmente no estômago quando voltou a sentar-se no terceiro confessionário. Podia dizer, pela silhueta recortada contra a divisória escura, que o primeiro postulante era um homem, embora não conseguisse ver mais nada.
- Reverendíssima, o meu coração não está em paz - disse uma voz grave e agradável, mas antes que pudesse dar a resposta ritual, a voz continuou. - A raiz é profunda, a árvore ergue-se bem alto, a pantera segue o seu caminho.
Enquanto proferia aquelas palavras, a sombra de uma mão ergueu-se e empurrou qualquer coisa através de um dos cantos da divisória que estava solta. O objecto caiu no chão com um pequeno tinido e ela apanhou-o. Era um brinco, um brinco de safira, a pedra azul brilhando no olho do animal mítico. Conhecia-o, pertencia a Shelyra e ela usara-o no Conselho antes de terem desaparecido todas, separadas pelas suas vias de fuga.
- Fala, filho, pois a tua mãe escuta-te - replicou ela automaticamente, sentindo-se um pouco abalada, e depois acrescentou rapidamente - embora, a não ser que tenhas sofrido alguma transformação súbita, tu não sejas meu filho!
- Nem eu vossa avó, embora uma certa jovem senhora queira assegurar-se de que a avó dela continua entre o número dos vivos - disse o homem alegremente. - Há quem me chame Thom Talesmith, reverendíssima.
- Thom Talesmith - o patife que Lydana incumbira de cuidar de Shelyra! - Podes dizer-lhe que as notícias do meu falecimento são certamente exageradas. E podes dizer-me a mim o que está a acontecer na minha cidade!
- Os tipos emplumados de negro estão por toda a parte – disse o homem bruscamente. - Não tenho dúvidas de que já ouvistes as histórias dos seus actos. Reverendíssima... há qualquer coisa de monstruoso nalguns desses homens... - A voz faltou-lhe momentaneamente. - É difícil de explicar, mas alguns deles... não batem certo. Não parecem homens verdadeiros. Parecem... parecem ter uma ideia fixa, mas qual o seu objectivo não sei, nem quero saber.
Ela franziu o sobrolho.
- São homens de Apolon e ele é um mago das Trevas... mais do que isso, não sei. Mas eu teria cuidado com eles. Ele pode ter-lhes dado poderes com os quais não estás habituado a lidar.
A sombra assentiu com a cabeça.
- Tenho uma notícia nova para vós... o grande general, o tal a que chamam Cathal, trouxe para a cidade o seu batalhão especial de mercenários e não tenho a certeza de que o príncipe, que é suposto governar a cidade, já saiba da sua presença. Cathal aquartelou-os nos armazéns velhos e no antigo quartel junto às docas. Já vi alguns deles... conheço os da sua laia. Vão arranjar problemas, reverendíssima. Não tiveram a sua batalha, não tiveram o seu saque e andam à procura de conseguir ter as duas coisas. - A sua voz tornou-se implorante. - Podereis passar palavra entre o povo para que não os provoquem? Para que falem humildemente, sim senhor, não senhor e que mantenham os olhos no chão? Senão... eles querem sangue.
E tê-lo-iam, mais cedo ou mais tarde... Elfrida assentiu.
- Posso passar palavra nos confessionários e pedir aos outros religiosos que façam o mesmo.
Pelo menos havia alguma coisa que podia fazer, qualquer coisa que faria uma pequena diferença.
- Quanto à rapariga... - Ele hesitou, e tossiu. - Reverendíssima, eu estava encarregado de a fazer sair daqui.
- E ela recusa-se. Já esperava isso.
Apesar da angústia que sentia no peito, não conseguiu deixar de se rir um pouco com a confusão estampada na sua voz. Calculou que aquele homem devia estar habituado a levar a sua avante com as mulheres, devia estar habituado a que elas o cortejassem. Não estava acostumado a raparigas como a sua neta.
- Penso que descobrirás que conseguirás mais dela se a tentares persuadir, do que se insistires em fazer as coisas à tua maneira. No entanto, não acredito que a consigas fazer arredar pé desta cidade. Ela é da Casa do Tigre e os ossos de Merina são os nossos ossos; a água dos seus canais está no nosso sangue. Manter-nos-emos firmes a seu lado até que não haja pedra sobre pedra.
- Fiz um juramento, um pacto de sangue...
Estranho. Ele soava suplicante. Como se se sentisse envergonhado por não poder cumprir a sua promessa.
- Tenta durante uma semana; se não a conseguires demover nessa altura, eu absolvo-te - replicou ela rapidamente.
- Obrigado. - Ele suspirou. - Ela disse-me para vos dizer que não descobriu grande coisa. O príncipe ainda não está a viver no palácio; está com as suas tropas no que ela chamou de “pequeno quartel”.
- Devem ser as casernas nos terrenos do palácio, onde viviam os guardas reais - disse-lhe ela. - Isso é interessante. Será que ele anda a revistar o palácio à procura de armadilhas e outros truques antes de se decidir a mudar-se?
- Era o que eu faria, no seu lugar - disse-lhe Thom. - Vós rendestes-vos sem lutar... e se eu estivesse habituado ao embuste como estes imperiais estão, calcularia que tivésseis decidido deixar ao palácio a tarefa de travar a vossa batalha.
Humm... Só aqueles factos já lhe diziam muito acerca do príncipe e da forma como ele pensava. E no entanto, apesar do facto de ele ser seu inimigo, a sua primeira impressão tinha sido cautelosamente favorável. Se fosse ele quem estivesse realmente no comando, pensava que não teria nada a temer pela segurança da cidade. Mas não era; ele era apenas uma marioneta do pai e de Apolon.
- É tudo o que eu tenho para dizer, reverendíssima – disse Thom, quando se fez silêncio. - E visto já me ter posto em paz na Torre da Água, só o que tenho para confessar é que tive vontade de estrangular aquela rapariga uma dúzia de vezes por dia.
- Nisso não estás só - disse-lhe Elfrida, reprimindo um sorriso. - E se conseguiste dominar-te, isso já é penitência bastante. Que a paz e a bênção do Coração desçam sobre ti, meu filho - terminou com as frases rituais. - Caminha na Sua sombra e crê que Ela te ouve.
Ao ouvir aquilo, Thom Talesmith curvou a cabeça, murmurou um agradecimento e saiu do confessionário.
Elfrida concentrou-se no postulante seguinte, mas parte dela continuava cheia de espanto. Quem haveria de pensar tal coisa! Thom Talesmith, ladrão, patife, malfeitor, contrabandista, bêbado, e mulherengo afamado, era crente! Ele fora sincero, de coração, ao confessar os seus impulsos violentos em relação à rapariga! Ela reconhecia sinceridade quando a ouvia, e sentira-a na voz dele!
Não tinha qualquer dúvida de que ele fizera uma confissão completa na prisão, e de que, também então, fora sincero. E por qualquer razão, aquela revelação relativamente insignificante fê-la sentir uma pontinha de esperança e fez com que o seu estado de espírito melhorasse. Pois se Thom Talesmith se podia revelar como um verdadeiro filho da Deusa... então talvez qualquer outra coisa se tornasse também possível. Até mesmo salvar a cidade.
LYDANA
Se Berta recebera algum conforto na sua visita ao confessionário, não o deixou transparecer; as duas mulheres pagaram contrariadas os bilhetes de barco, pois estavam com muita pressa de chegar às suas casas.
Matild foi ao encontro de mais problemas. Um dos casacos negros segurava Eel e esbofeteava-o, primeiro de um dos lados da cara e depois do outro, com uma força brutal, enquanto o outro casaco negro observava de perto.
- Que é que se passa? - perguntou Matild. - Que foi que o rapaz fez?
O homem de olhar frio que já a interrogara antes olhou-a avaliadoramente.
- Está a fazer negócio sem ter licença. É um patife e será melhor empregue num trabalho honesto...
Uma das mãos de Matild escorregou por baixo do corpete, como se apertasse angustiadamente o coração. Os dedos tocaram na pedra do sinete do Estado e esta aqueceu-lhe os dedos.
- Ele é filho da minha própria irmã. - Enfrentou determinadamente o casaco negro. - E como tal, é aos olhos da lei, meu aprendiz. Não é patife nenhum, e se estava a guardar a loja é porque eu lhe disse para o fazer.
- Enquanto tu andas na vadiagem, vendedeira de contas?
- Enquanto eu vou ao serviço no templo, como está certo e é de direito. Ou será que agora nós, os de Merina, já não podemos ir ao templo? Acho que o imperador não ia querer uma coisa dessas... dizem que ele é um filho leal do templo.
O homem pestanejou, os seus lábios moveram-se como se fosse dizer qualquer coisa mas tivesse resolvido engolir as palavras. Soltando Eel, lançou-o contra a parede.
- É melhor ficares na tua loja... enquanto ainda a tens. Cuspiu e uma mancha de saliva caiu na licença debotada, mesmo por cima do selo real.
Foram-se embora e Matild, com os olhos semicerrados, viu-os saírem do beco. Depois olhou para Eel; tinha ambas as faces escarlates das pancadas que levara. Mais tarde ficaria com a cara negra. Toda a raiva que se tinha vindo a acumular explodiu dentro dela. Ficar calmamente sentada a sofrer humilhações, não era para o Tigre; o seu brasão, tão temido, sempre fora o símbolo da coragem e da fúria. Chegara a hora de fazer algo mais do que ficar a ouvir os rumores e a tentar perceber todo aquele caos.
Conduziu Eel para as traseiras da loja e procurou no armário da parede, um pote de pasta de ervas que não fosse demasiado velho e ainda pudesse ser usado. Tão ao de leve quanto lhe foi possível, consciente dos espasmos de dor que o rapaz não conseguia evitar, untou a carne inflamada.
- Que foi que os trouxe aqui? - perguntou enquanto dava a tarefa por finda.
Tinha os braços em torno do corpo do jovem, abraçando-o como se assim conseguisse preservá-lo de toda a dor.
- Vieram como se viessem comprar. - As palavras soavam abafadas pelos lábios inchados. - Primeiro perguntaram os preços... mas fizeram outras perguntas sobre ti e sobre a loja... viram os colares com amuletos um a um, como se procurassem qualquer coisa. Depois começaram a ameaçar-me... e tu apareceste.
- Os amuletos.
Matild, conservando o braço por cima dos ombros de Eel, foi até à banca onde estava o expositor. Era evidente que muitos dos colares tinham sido mexidos e que apenas os fechos de segurança que ela tinha inventado tinham feito com que se mantivessem no lugar. Um deles estava partido e as contas tinham rolado para a rua.
Nunca trabalhara com amuletos com uma crença real nos seus poderes. De tempos a tempos seleccionara algumas das várias peças por terem uma forma original ou por se enquadrarem bem nos padrões que tinha em mente. Ali estava um Coração Duplo em prata não polida, um Olho do Mar em cobre, uma representação da Chama formada por pequenas contas vermelhas coladas umas às outras e várias coisas exóticas trazidas por viajantes que as tinham trocado pelas suas mercadorias.
O templo não favorecia o uso de amuletos, embora alguns, cujo desenho era aprovado, fossem usados com frequência para enfeitar uma fiada de contas de oração. Aqueles que se apegavam sobretudo à crença no poder de tais peças não eram fervorosos seguidores do Coração. E havia muita gente que os usava com objectivos semelhantes aos de um mago...
Mago!
Apolon era um mago; os casacos negros eram verdadeiramente os seus homens. Matild tinha um espírito suficientemente aberto para saber que certos objectos, quando uma pessoa se concentrava fortemente neles, podiam suscitar emoções... se aqueles que o faziam tinham um certo tipo de talento. Que temeria Apolon tanto, que o fazia enviar os seus casacos negros à caça de amuletos, até numa pequena banca como a sua? Era outra peça que teria que ser, de alguma forma, encaixada no quebra-cabeças.
- Não prestaram atenção às peças do templo.
Eel escapara-se ao abraço de Matild e saíra para apanhar as contas espalhadas na calçada, a sua cabeça e ombros aparecendo subitamente por cima da banca.
Matild olhou para tudo o que estava exposto. Havia cinco desses colares: três tinham desenhos aprovados pelo templo e o quarto era o colar com borboletas, mantidas juntas por contas de cristal que Kassie admirara e tanto desejara possuir.
No primeiro via-se o Olho do Mar, mas isso era bastante vulgar numa cidade portuária. A maioria dos marinheiros usava um, talvez não acreditando totalmente no seu poder, mas sentindo
mesmo assim que necessitavam de toda a sorte extra que conseguissem obter.
Visto os casacos negros só terem quebrado a corrente do colar com o Olho do Mar, tinha que acreditar que a atenção deles se centrara nele por qualquer razão.
Seria o Olho do Mar um sinal? Como governante de Merina, tivera plena consciência das actividades dos contrabandistas; nunca se conseguia que esse género de actividades fosse totalmente erradicado e não esperara que Saxon o conseguisse. Essa era a arraia-miúda. Só quando algum chefe ardiloso e competente conseguia organizar uma quadrilha e começava a trabalhar numa escala maior, é que o governo actuava. Podia muito bem dar-se o caso de certos amuletos constituírem uma espécie de senha entre esses traficantes.
Visto os casacos negros parecerem estar muito bem informados, também já deviam ter ouvido dizer que muitos dos seus clientes eram homens do mar e a reputação que construíra ao longo do tempo de grande amizade com marujos, podia muito bem ter-se tornado um factor negativo em vez de ser um factor positivo.
Reuniu as contas soltas e o amuleto e meteu-os numa caixa, pondo no seu lugar um colar muito simples feito de âmbar e cristal.
Tinha que se encontrar com Saxon!
Embora tivessem a loja aberta durante toda a tarde, não apareceram clientes. Matild permitiu a Eel que fosse comprar comida suficiente para vários dias. Nesse espaço de tempo, manteve as mãos ocupadas a enfiar contas, enquanto divagava, avaliando e tentando colocar no seu lugar tudo o que descobrira.
Agora já não havia qualquer possibilidade de apelar aos recursos das Guildas. Mas ainda tinha, não só as suas pedras de mau augúrio, como uma caixa cheia de suportes onde as poderia engastar. Contudo, enquanto a loja estivesse aberta, não se podia lançar a um tal trabalho.
A tarde já estava quase no fim quando viu alguém a atravessar o beco. A loja de Max tinha estado aberta, e ela ouvira o ritmo constante do seu martelo, interrompendo-se aqui e além, embora ele não se tivesse deixado ver. Era como se uma grande e terrível sombra tivesse descido sobre todos eles. Depois Kassie saiu a correr da casa do fundo do beco. O seu rosto redondo e acriançado estava húmido de lágrimas e ela passava as mãos nas faces para a frente e para trás enquanto corria às cegas. Matild pôs-se imediatamente de pé e saiu a porta mesmo a tempo de interceptar a rapariga quando esta passava a correr. Kassie agarrou-se a ela, atirando a cabeça para trás e soltando aquilo que era quase um uivo.
- Kassie. - Matild segurou-a e depois deu-lhe um pequeno abanão para a fazer prestar atenção. - Que se passa?
Os olhos da rapariga, por entre as pálpebras inchadas, estavam tresloucados; parecia um animal acoçado. Kassie era frequentemente vítima do ciúme e mau feitio da sua madrasta, mas Matild nunca a vira num tal estado.
- Que se passa? - repetiu em voz mais alta.
- Hughes... - engasgou-se no nome ao tentar pronunciá-lo.
- Que se passa com Hughes? - perguntou Matild, dando um tom brusco à sua voz por forma a atrair a atenção da rapariga.
- Eles... aquelas aves agoirentas, foram ao ferreiro... disseram ao pai dele... ao Hanz... que o levaram... para ser um dos escravos deles! Levaram todos os agentes da ordem.
Matild sentiu um arrepio de medo. Sentira-se tão certa de que, de alguma forma, poderiam lutar... mesmo na sombra. Mas parecia que o inimigo se movia agora com tanta rapidez, que não conseguia prever de onde viria o ataque seguinte.
- Eles... eles trouxeram um ferreiro deles... vai tomar conta da forja e o Hanz não vai ser mais do que um servo deles... na sua própria casa! - Kassie acalmara-se um pouco, mas continuava com um olhar desvairado. - Por favor, senhora, por que é que eles fazem estas coisas...? nós não lutámos. Talvez... - De repente, a sua cabeça endireitou-se e esfregou os olhos com a mão uma última vez. - Talvez devêssemos ter lutado. Agora levam os nossos homens como animais para o matadouro e... e eles... enforcaram um homem mesmo em frente ao templo...
- Enforcaram um homem... por que razão? - Matild sentia-se agora completamente gelada.
- Foi o mestre Linos da Guilda do Metal... eles... eles dizem que ele não lhes obedeceu.
Um mestre de uma Guilda enforcado! Não, ela já perdera demasiado tempo sem qualquer plano de acção concreta. O Tigre, a sua cabeça ergueu-se orgulhosamente, o Tigre caçava no seu próprio território e ninguém lhe disputava a passagem. Assim tinha sido... e assim seria!
Confortou Kassie o melhor que pôde e depois voltou para a loja onde Eel estava sentado num banco, à espera, com as compras feitas. Rapidamente Matild começou a contar o que a rapariga lhe dissera, mas ele antecipou-se-lhe, juntando pormenores: de rapazes acorrentados marchando para fora dos portões; de lojas destruídas por os seus proprietários terem, de alguma forma, contrariado os casacos negros.
ADELE
A grande sacerdotisa Verit entrou, estavam eles a acabar de jantar, e chamou a religiosa Elfrida à parte. O átrio que antecedia o refeitório era suficientemente largo para que os outros religiosos pudessem passar sem perturbar a conversa murmurada.
- O príncipe Leopold deseja apresentar cumprimentos à rainha-mãe Adele - disse em voz baixa. - Consegues fingir que estás doente ou precisas de ficar mesmo doente outra vez?
Elfrida suspirou, sentindo o peso da responsabilidade inerente a Adele abater-se novamente sobre si.
- Terei que fingir - respondeu. - Não trouxe comigo nenhumas das bagas lá do palácio. Mas não penso que ele perceba que é uma farsa.
- Muito bem - disse Verit. - De quanto tempo precisas para estares pronta? Eu empatei-o ao jantar... comi e conversei com ele na minha sala... mas não o posso fazer esperar durante muito mais tempo.
Parecia preocupada e um tanto perturbada. Os seus muitos anos como grande sacerdotisa, apesar de sobrecarregados com todas as situações problemáticas com que, numa ocasião ou noutra, tem que se confrontar qualquer pessoa investida de autoridade, não a tinham apesar de tudo preparado para aquele género de situação.
Bem, também não me prepararam a mim.
Elfrida franziu o sobrolho enquanto tentava calcular o tempo de que necessitaria para a transformação.
- Empata-o o tempo que puderes. Tenho que ir buscar os cosméticos que estão na extremidade do túnel que dá para o palácio. Lembra-te que manter Adele viva foi ideia tua... eu não tinha nada preparado para essa eventualidade. Mas devo estar pronta em meia marca de vela, o mais tardar.
Verit assentiu; parte da preocupação parecia tê-la deixado, mas não estava, de forma alguma, tranquila.
- Não é tão mau como eu temia. Vou avisar a responsável da enfermaria para que esteja à tua espera. Podes ir para lá passando pela câmara de meditação; os que lá estão são de confiança. - Apressou-se em direcção à enfermaria para preparar a sua responsável para o embuste e Elfrida dirigiu-se para o túnel inferior, sentindo os músculos dos ombros contraírem-se de tensão.
Foi até ao palácio tão depressa quanto lhe foi possível. Quando lá chegou acendeu o candeeiro, agarrou na caixa de cosméticos e na sua camisa de dormir mais sofisticada e embrulhou tudo num xaile escuro.
Acho que começo a odiar a Adele.
Levando o candeeiro na mão e pensando que teria que levar o toucador para a entrada da câmara de meditação assim que tivesse oportunidade, regressou ao templo, apagando o candeeiro na extremidade do túmulo mesmo junto à câmara de meditação. A trouxa parecia-lhe inusitadamente pesada; ou seria apenas o peso da responsabilidade? A entrada da câmara dava para o lado do altar, por trás de uma das colunas gémeas que ladeavam o altar junto à parede. Havia quatro hábitos pendurados junto à entrada, um para cada uma das cores das Ordens. Estavam duas pessoas na câmara, ostensivamente em meditação; um homem envergando um hábito vermelho e uma mulher de castanho. Elfrida reconheceu os dois. O homem era o religioso Fidelis, com quem a religiosa Elfrida trabalhara já umas quantas vezes, e a mulher era aquela cujo sermão a religiosa Elfrida se recordara umas horas atrás. Infelizmente continuava sem se conseguir lembrar do nome da mulher. Isso, por qualquer razão obscura, perturbava-a. Fazia-a temer que a sua mente se estivesse a deteriorar... o que, numa altura daquelas, significaria um desastre para todos.
Não, isto é só resultado da tensão, e o facto de eu ter ouvido o nome dela apenas uma única vez. De certeza que é isso.
Ambos ergueram os olhos momentaneamente, interrompendo as suas orações o tempo suficiente para a reconhecerem, quando a religiosa Elfrida saiu de trás do pilar. O religioso Fidelis fez-lhe um pequeno aceno com a cabeça e ambos voltaram às suas orações, não lhe prestando mais atenção. Era como se ela tivesse entrado por uma porta vulgar, em vez de se ter materializado ao pé da parede. Verit sabia mesmo escolher as pessoas da sua confiança.
Elfrida foi até à enfermaria sem que ninguém desse por ela; sem dúvida por mercê da Deusa, pensou. Na verdade, não havia ninguém nos grandes átrios de pedra, apesar de ser costume haver sempre algumas pessoas por ali a qualquer hora do dia ou da noite. A responsável da enfermaria ficou de guarda à porta enquanto ela despia o hábito e o enfiava no armário, juntamente com as roupas que tinham ocupado o lugar de Adele na cama. Aplicou rapidamente uma quantidade suficiente de cosméticos para alterar a aparência do rosto, fazendo-a parecer realmente às portas da morte. Prendeu o cabelo em duas tranças e vestiu a camisa de dormir por cima da camisola interior. Ouvindo vozes no átrio, meteu-se apressadamente na cama e concentrou-se em fazer a respiração soar difícil e ofegante. Depois da sua recente viagem de ida e volta ao palácio, ofegar não representava grande dificuldade. Havia tantas coisas que podiam correr mal naquela farsa...
Esperava que o rosto estivesse correctamente maquiado, mas recordou a si própria que já fizera isto muitas vezes nos últimos dois anos.
A minha transformação em Adele deveria ser automática; e foi-o, até ontem, e não posso acreditar que tenha esquecido como se faz de um dia para o outro. Esta atrapalhação é só por não ter esperado ter que o fazer novamente.
A situação, se não fosse tão perigosa, poderia ter sido engraçada. A responsável pela enfermaria entrou, seguida pela grande sacerdotisa Verit e pelo príncipe Leopold.
- Não podeis ficar muito tempo - disse a enfermeira com firmeza e com uma autoridade que intimidaria até mesmo um general. - A reverendíssima cansa-se muito depressa.
Adele não ouviu naquela frase nada que não fosse verdade. De repente, sentiu-se completamente exausta.
Mantém-te atenta, presta atenção; não te atrevas a cometer um erro agora. Ele não pode notar nada de errado!
Esticou a mão e ela tremeu sem que fosse preciso fazer qualquer esforço nesse sentido. À luz da vela parecia particularmente translúcida e frágil. O príncipe Leopold curvou-se sobre a sua mão, comportando-se como um cortesão bem educado. Adele observou-o, não se incomodando em disfarçar o seu escrutínio. Afinal de contas, era velha e estava a morrer... que tinha ela a temer dos invasores?
Sou uma mulher velha que está prestes a passar o Véu e não é um mero mortal que me pode ameaçar. E sou uma velha intrometida que nunca hesitou em dizer aquilo que pensava.
A primeira das afirmações era uma farsa, mas a segunda era genuína e ambas lhe deram coragem para o olhar sem medo. O príncipe Leopold era um homem normal, de cabelo escuro, olhos escuros e um rosto ossudo e bastante despretensioso.
Não tinha herdado a beleza que diziam que o seu pai possuía. Tinha uma pequena ruga entre as sobrancelhas, como se estivesse sempre preocupado com qualquer coisa. O seu corpo era, no entanto, o corpo de um guerreiro e não o de um cortesão, mas não tão musculoso como se dizia que Balthasar era. Estava também vestido com simplicidade, sem qualquer insígnia que indicasse o seu nascimento ou alta patente.
Embora o tecido do seu uniforme fosse de boa qualidade, era um uniforme, sem quaisquer das fitas ou condecorações usadas pela maior parte dos “guerreiros” de sangue real, fossem ou não delas merecedores. Dizia-se que o uniforme de gala de Balthasar era tão pesado, de tanta prata e ouro nos galões e enfeites, que eram precisos dois escudeiros para lhe vestir a túnica. Aparentemente ele não saía muito ao pai.
E a sua expressão era bondosa, o que surpreendeu Adele. Não esperara encontrar um homem assim no séquito do imperador.
Mas, como era evidente, o filho único do imperador não poderia ter muitas alternativas; o seu pai tomaria as decisões no que respeitava ao seu paradeiro e às suas actividades. Presumivelmente o pai destinara-o ao exército; talvez para o poder ter debaixo de olho.
Terá sido o imperador que lhe ordenou que viesse ver como eu estava?
- Vossa Alteza, lamento imenso a Vossa doença.
Ele disse as palavras da praxe com cortesia, mas Adele percebeu que ele estava a ser sincero. Quer estivesse ali por vontade própria ou de outrem, era sincero na sua preocupação. Quando se curvara sobre a sua mão, segurara-a com gentileza e pousara-a sobre a coberta da cama com igual suavidade.
Gosto dele, pensou ela ligeiramente surpreendida. Gosto mesmo dele. É um bom homem. Quem me dera que tivesse havido alguém como ele na nossa própria corte, em vez de todos aqueles cachorrinhos ambiciosos, ignorantes e egocêntricos. Este é o tipo de homem por quem Shelyra poderia ter sentido respeito. Dirigiu-lhe um breve sorriso.
- A morte vem, para todos nós, quando é chegada a nossa hora, Vossa Alteza - murmurou.
Depois de umas quantas respirações cuidadosamente ofegantes continuou:
- Não temo por mim... mas pelo meu povo... e pela minha família. Pela minha família, sobretudo. Não tive notícias... de Lydana nem de Shelyra.
E essa é a verdade, pensou triunfante.
De quem eu tive notícias foi de Matild e de Raymonda.
- Encontrarei a rainha e a princesa - disse ele firmemente. - Cuidarei de que sejam tratadas com as honras devidas à sua posição. Cuidarei de que sejam protegidas, como é de direito, pois a rainha ofereceu, com honradez, a rendição da cidade.
Adele inclinou a cabeça. Havia algo na voz dele que lhe causou preocupação. Não estava a falar só com ela, e também não era consigo próprio que falava... era como se se estivesse a preparar para tomar posição numa discussão acesa. Quem é que quererá Lydana e Shelyra e com que objectivo as quererá? A julgar pela forma obstinada como o príncipe Leopold cerrava os maxilares, temeu que fosse Apolon. Depois, olhou-o nos olhos e soube que era Apolon; tinha tanta certeza disso como o próprio Leopold. Se o Apolon as quer... não é para boa coisa.
De repente não precisou de continuar a fingir que se sentia doente. Caiu sobre as almofadas, quase não conseguindo respirar. Mal ouviu a enfermeira escoltar com firmeza os visitantes até à porta. Não tinha a certeza de ter desmaiado ou de ter adormecido repentinamente, mas aquilo de que teve consciência a seguir foi da mão quente de Verit no seu ombro. A sua voz estava cheia de preocupação.
- Consegues levantar-te, religiosa? Perdeste o serviço da nona hora; se também faltares às Vésperas, o facto pode ser notado. Embora só tenhamos dividido as ordens na noite passada, as pessoas já sabem quem faz parte do seu grupo.
A religiosa Elfrida sentou-se, sentindo as forças voltarem-lhe.
- Apolon procura as mulheres do Tigre - disse. Como eu temia... como eu temia.
Verit franziu o sobrolho e mordeu o lábio.
- Sim, eu também percebi isso. O príncipe Leopold não está contente com esse facto.
- Ele pareceu-me um rapaz bastante decente – observou Elfrida, pondo-se de pé com cuidado e dirigindo-se ao lavatório para limpar os cosméticos do rosto. - Não é o que eu esperava
do filho do imperador. Penso que sei o que ele estava a pensar. Ele sente que as mulheres do Tigre deveriam ser protegidas, mas teme não ter o poder suficiente para o fazer.
Verit assentiu o seu acordo.
- Penso que a rainha-mãe Adele pode morrer muito em breve, o mais depressa possível. Na realidade, acho que é o melhor que ela tem a fazer, antes que Apolon descubra que pode fazer com que Lydana e Shelyra saiam dos seus esconderijos se fizer Adele prisioneira. Não te quero perto da enfermaria quando isso acontecer; tratarei disso quando estiveres a assistir a um serviço religioso.
A religiosa Elfrida voltou a vestir o hábito cinzento, sentindo um peso sair-lhe de cima no momento em que despiu a camisa de noite. Não mais uma vida dividida nem um coração dividido. Por fim.
- Muito bem - disse. - É melhor ir assistir às Vésperas. Queres que ouça confissões amanhã?
Verit abanou a cabeça.
- Acho que deverias estar tão visível quanto possível. Não quero que ninguém estabeleça a ligação entre ti e a religiosa Elfrida.
- Nem eu quero - disse Elfrida com fervor. - Na verdade... nada me fará mais feliz do que ver Adele morta e em segurança.
LYDANA
Matild, com os lábios firmemente cerrados, tratou de fechar a loja, embora ainda faltasse muito para o pôr do sol. Não perderia mais tempo; tinha que agir naquela noite. E fazer uma visita a Jonas seria a sua primeira acção.
Comeram apressadamente pão e queijo, acompanhados pela cerveja amarga que era a bebida do bairro. Depois Matild abriu a gaveta mais alta das duas que ficavam por baixo da cama. Lá dentro havia um monte de roupas, mas já sabia qual a que iria escolher.
A troca de roupa levou o seu tempo e ela estava tão impaciente que os dedos se embaraçaram com os fechos e os atilhos, mas por fim lá se despiram completamente e voltaram a vestir-se. Envergavam mais uma vez os fatos colados ao corpo, de um cinzento tão escuro que parecia preto. Por cima vestiram as capas escuras de capuz. Matild transferiu o punhal achatado para a bainha que tinha à cintura e depois enrolou à volta do corpo uma faixa de seda preta à qual prendeu as pedras de mau augúrio.
Eel abriu uma caixa e tirou dela uns quantos anéis de metal. Com uma precisão delicada enfiou-os nos dedos das duas mãos. De cada dedo saía agora uma lâmina mais espessa que uma agulha grande e tão mortal como as garras de um animal.
Matild fechou a porta, depois de ter cerrado firmemente os taipais e trancou-a. Tudo levava a crer que a loja estava simplesmente fechada para a noite. Colocou o candeeiro num local onde a sua luz ténue poderia ser vista por qualquer um que se desseao trabalho de espreitar por entre as tábuas cerradas dos taipais.
Com a ajuda de Eel, a mesa foi deslocada e o mais alto dos bancos colocado no seu lugar. Matild procurou mais uma vez, acima da cabeça, a corda que abria o alçapão. Eel tinha pendurado no ombro um rolo de corda que terminava num gancho. Quando o alçapão se abriu, Eel tomou o lugar de Matild e lançou o gancho, com a corda agarrada, para cima e para fora. Com um forte puxão assegurou-se de que o gancho estava bem seguro e trepou, desaparecendo na escuridão exterior. A corda voltou a balançar e Matild seguiu-o pelo mesmo caminho. Embora tivesse praticado aquela saída muitas vezes no passado, sem outro objectivo que não fosse a utilidade que poderia ter numa ocasião como aquela, foi com grande dificuldade que se conseguiu içar até poder lançar uma mão sobre a beira da abertura. As mãos de Eel cerraram-se sobre os seus ombros e ele esforçou-se ao limite para a conseguir trazer para cima. Aquela era uma saída estreita através da qual nunca conseguiria ter passado com roupas normais.
Eel já estava às voltas com uma segunda corda, à qual estavam atadas as duas capas que içou e Matild pôs-se de cócoras, virando a cabeça lentamente para um lado e para o outro, observando pormenorizadamente tudo ao seu redor.
A pequena loja de contas estava apertada entre dois dos seus vizinhos do beco e tinha apenas um andar. Contudo, as casas de um e do outro lado, erguiam-se mais alto. Eel não tentou trepar pelas paredes de nenhuma delas, dirigindo-se antes para o muro das traseiras. Este chegava apenas ao ombro de Matild. Ela seguiu-o passado uns momentos, escondendo-se por trás da superfície irregular da parede. Por baixo deles situava-se um campo baldio que os habitantes usavam para despejar o entulho das obras que faziam, desde há já muitos anos. O terreno tinha uma inclinação suave que descia até ao último dos canais da cidade.
- O barco... - o sussurro de Eel quase não se ouviu.
Ela conseguia ver bastante bem, apesar da luz muito fraca, o pequeno barco já com muito uso. Infelizmente, ao lado do barco estavam duas figuras meio ocultas pelas sombras e uma delas puxava já pelas amarras.
Eel soltou um rosnido muito semelhante ao de um gato prestes a saltar sobre a sua presa. Lançou-se para baixo e para a frente, aterrando junto às costas do homem que estava mais próximo. Matild não hesitou em segui-lo. Munira-se de uma pedra solta que estava em cima do muro e, aterrando um tanto desajeitadamente no monte de entulho, deixou-se escorregar na direcção do barco. O homem que estivera a mexer nas amarras virou-se rapidamente e foi apanhado pela sua tosca arma em pleno rosto. Soltou um pequeno grito e caiu.
Eel ergueu-se junto do homem que abatera e deu um pontapé no corpo, por forma a fazê-lo rolar. Matild vislumbrou um rosto muito branco do qual dois olhos espantados e vidrados
a fixavam. Não precisou ver o sangue que corria em crescendo da garganta dilacerada, para perceber que o homem estava à morte.
- Não podemos deixá-los... - Conseguiu, com um enorme esforço de vontade, continuar a pensar logicamente no que era preciso fazer.
- Barco. - Eel estava de joelhos à beira de água, lavando as extremidades das suas garras na água corrente. - Agarra-os... depois... para cima. - Fez o gesto de quem efectua um lançamento.
Matild sentiu um enjôo, contra o qual lutou com todas as suas forças. Isto era a guerra e a visão dos corpos dos inimigos não a iria derrotar tão facilmente. Nunca matara antes, mas também nunca tivera razão para o fazer.
Em conjunto com Eel, puxou os dois corpos até ao barco, que ficou perigosamente pesado quando ela e o seu companheiro ocuparam os seus lugares. Procurou sentir o pulso no pescoço do homem que atingira. Não sentiu nada. E os dois eram casacos negros. Se fossem encontrados naquele local, todos os habitantes do beco, e mesmo da rua por trás, ficariam sob suspeita. Eel tinha razão: teriam que ser levados para tão longe quanto possível. Não tinham qualquer lastro para atar aos corpos; contudo um corpo encontrado a flutuar no canal poderia ter sido lançado à água em qualquer ponto do seu curso.
Pegou nos remos e dirigiu-se para mais perto da margem esquerda. Não muito distante ficava uma das pontes e perto dela seria um bom local para se verem livres da sua perigosa carga. Os edifícios ali à volta eram armazéns e não sabia da existência de quaisquer residentes que pudessem tornar-se suspeitos.
Lutou contra a corrente até a ponte estar quase por cima das suas cabeças. O crepúsculo tornara-se noite. Viam-se os reflexos das lanternas sobre o canal, a montante e a jusante, mas esses podiam ser evitados. Conseguiram, com esforço, lançar os corpos à água, embora Matild temesse por duas vezes que o barco se fosse virar e também eles acabassem no canal. Agora o barco, muito mais leve, navegava à tona de água. Um qualquer efeito da corrente arrastou os dois cadáveres quase submersos para o meio do canal e para... montante! Ela esquecera as marés, a força das quais se reflectia nos canais. Mas agora já não havia nada que pudesse fazer, a não ser esperar que os corpos não dessem à costa num local onde pudessem arranjar problemas a pessoas inocentes.
O seu próprio desejo era sair dali tão rapidamente quanto possível e concentrou as forças que lhe restavam nos remos, fazendo com que o pequeno barco deslizasse em direcção do mar.
Se aqueles fossem tempos vulgares, haveria uma grande lanterna acesa a intervalos regulares em cada pontão. Matild agradeceu à sorte o facto de alguns dos atributos de um mundo virado do avesso jogarem a seu favor.
- Barco - sussurrou Eel.
Instantaneamente ela esforçou-se por se aproximar da margem esquerda. O seu companheiro inclinou-se por sobre a borda e agarrou uma pernada de vinha que se estendera para além dos muros de um jardim pouco cuidado. Apesar daquela ser uma âncora muito frágil, conseguiram acostar o barco. E aquele era um recanto escuro, exactamente o que ela desejara; a sorte estava de facto com eles naquela noite!
Sorte, essa teria sido a resposta imediata, mas havia outra influência mais forte que os favorecia. Não podia ver Adele e os outros possuidores de Talento nas suas orações e “visões”, mas de alguma forma sentia-se muito certa de que sobre eles havia, naquela noite, um manto protector.
O barco que tinham iludido com aquele estratagema era muito maior que o deles, quase do tamanho de uma barcaça, sem mais luzes a bordo do que aquelas que eles próprios tinham; o que significava que os seus tripulantes desejavam passar tão despercebidos quanto possível. Contrabandistas, escumalha do rio, esgueirando-se dos seus buracos por as patrulhas habituais dos canais terem sido retiradas? Ou seriam mais casacos negros prestes a fazer das suas? Não havia forma de o poder dizer.
Ela e Eel esperaram até que eles estivessem bastante longe. Ainda assim Matild não voltou a pegar imediatamente nos remos. Em vez disso, fez o que Eel já estava a fazer, agarrou-se às vinhas que revestiam o muro e puxou. Avançavam lentamente, mas tinham a vantagem de o fazerem sem ruído. A cortina de vinha não durou muito mais tempo e teve que voltar a utilizar os remos. Os ombros começavam a doer-lhe, em consequência do esforço pouco habitual que lhes era pedido, mas recusou-se a permitir que esse desconforto menor lhe causasse qualquer atraso.
Chegaram por fim a uma grande manilha destinada a escoar o excesso das águas provenientes das torrenciais chuvas de verão, tirando-as assim das ruas da cidade. Sabia agora muito bem onde se encontravam; já tinham feito dois terços do caminho. Lançou o barco desajeitadamente naquela abertura: até mesmo Eel teve que se curvar quando a cobertura arredondada ficou sobre eles.
Percorreram apenas uma curta distância até sentirem o fundo do barco raspar no chão de pedra. Felizmente não havia água suficiente para arrastar o barco de volta para o canal e podiam deixá-lo ali com a esperança de que não fosse descoberto. Matild curvou-se enquanto saltava para a água tingida pela imundície. Agarrou a capa à altura da cintura para evitar que esta se molhasse no líquido nauseabundo. Via-se um pequeno ponto de luz lá ao fundo; Eel tacteava o fundo com o pau para que pudessem avançar com alguma segurança. Conhecia aquele caminho ainda melhor do que Matild e ela sabia que não corriam o perigo de virar na direcção errada.
Passaram por duas aberturas mais pequenas por onde os líquidos mal cheirosos dos esgotos entravam no aqueduto. Depois chegaram a uma escada que se erguia da água até àquilo que era, manifestamente, uma das aberturas pelas quais os trabalhadores da manutenção e limpeza desciam quando necessário.
Eel ergueu-se e empurrou, meio curvado sobre si próprio, usando os ombros como alavanca. Matild sentiu uma ponta de alarme. E se o alçapão estivesse, por uma qualquer razão, bloqueado do lado de fora? Depois ouviu-se um raspar metálico e a tampa voltou a cair no mesmo lugar. Puxou pela perna de Eel.
- Deixa-me tentar! - ordenou.
Ele saltou da escada para que ela pudesse tomar o seu lugar e instantes depois Matild esforçava-se por abrir o alçapão, assumindo uma posição semelhante à que Eel mantivera. Qualquer coisa se soltou por cima de si e depois cedeu totalmente. A grade de ferro soltou-se com um estrondo que ressoou no aqueduto. O barulho pareceu a Matild tão alto como o tocar de um sino. Agarrou-se à escada e tentou ouvir para lá da reverberação, procurando detectar qualquer outro ruído. Mas não ouviu nada.
- Eu... primeiro... - Eel puxava por ela.
Embora quisesse recusar, Matild sabia que ele tinha razão e cedeu. Ele era mais pequeno e estava mais habituado do que ela às escapadas nocturnas. Depois, passados instantes, já ele a olhava de lá de cima.
- Está livre.
Mais uma vez Matild sentiu que estavam a ser protegidos; que estavam a fazer algo que o Grande Poder aprovava e que os Talentos estavam a ser entretecidos em torno de si. Saiu para uma viela estreita. Não muito longe estava dependurada uma lanterna, suspensa de uma corda torcida de forma elaborada. Era o sinal do Jonas! Tinham chegado ao seu objectivo, ou pelo menos até à porta do seu objectivo.
Matild virou a capa por forma a que esta ficasse do avesso e deixasse ver nódoas e remendos. Eel imitou-a e ficaram à mostra vários rasgões mal remendados. Envoltos nas capas, esgueiraram-se até à entrada da ruela e espreitaram. Mais uma vez Matild se sentiu espantada com o silêncio que ali reinava. Habitualmente era à noite que aquela parte da cidade acordava para as suas actividades características. No entanto, viam-se apenas luzes fracas numas quantas janelas e apenas uma ou duas silhuetas se abrigavam nas sombras, movendo-se rapidamente, apressando-se a cumprir as tarefas que as tinham obrigado a deixar os seus buracos.
Até mesmo a porta da frente da taberna de Jonas estava fechada, algo que só costumava ocorrer no auge das grandes tempestades. E os taipais estavam colocados. Matild ficou tão espantada por aquela falta de hospitalidade, que estacou de repente e quase se desequilibrou. Depois, pela fresta de um dos taipais vislumbrou o brilho da luz de um candeeiro e percebeu que o local não estava totalmente deserto.
A porta robusta não tinha qualquer batente, mas atreveu-se a bater-lhe com o punho fechado, duas vezes. Depois fez uma pausa e bateu quatro vezes em rápida sucessão. Ela e Eel tinham-se aproximado um do outro e chegado para a sombra da ombreira da porta tanto quanto lhes era possível. Quando já quase perdera toda a esperança, viu à luz fraca que a porta começava a abrir-se, movendo-se sem ruído, como se os grandes gonzos de ferro tivessem sido oleados recentemente. Contudo, não se abriu mais do que ligeiramente e uma voz rouca perguntou do lado de dentro:
- Quem vem lá?
- Doze setas e um escudo.
Matild pronunciou cuidadosamente as palavras. Aquela fora a senha que Saxon mencionara recentemente, e esperava que fosse suficiente.
A abertura da porta alargou-se e pôde esgueirar-se para o interior. Eel foi ainda mais rápido a entrar. Atingiu-os o cheiro a cerveja retardada, falta de limpeza e roupa a precisar de uma boa barrela.
- Ah... és tu!
O homem que lhes abrira a porta ergueu bem alto o candeeiro até então oculto atrás das costas. O seu tom dificilmente parecia sugerir que a sua visita era bem-vinda.
- Sim - replicou Matild. - Precisamos da tua ajuda...
- Como seria de esperar - ripostou ele, a nota amarga ainda presente na voz.
Jonas era habitualmente uma alma filosófica, que não procurava sarilhos, mantendo-se em paz a não ser que se sentisse muito ameaçado.
- Venham, então...
Seguiram-no, afastando-se da porta e entrando na grande sala que servia o estabelecimento. Matild ouviu uma restolhada e depois o murmúrio à sua volta. Viu então que estavam ali reunidas, pelo menos, uma meia dúzia de pessoas: alguns homens e um par de mulheres ostentando as meias-máscaras que estavam na moda naquela parte da cidade. Como estavam todos sentados em torno de uma mesa comprida, Matild supôs que tivesse interrompido uma reunião.
Mas Jonas não os conduziu até à mesa; em vez disso coxeou na sua perna de madeira até ao canto mais escuro, distante do conforto da lareira, e indicou-lhes dois bancos. Virando-lhes as costas, voltou até junto do grande casco e encheu três vasilhas ao mesmo tempo, equilibrando-as com cuidado por forma a que pudessem ser cheias uma após a outra. Voltando com os refrescos, sentou-se num banco baixo e esticou a perna postiça.
- Apanharam o capitão... foi isso, que te trouxe aqui?
Matild ficou tensa.
- Quando foi que o apanharam... como?
A sensação de estar presa numa rede perigosa que se estendia cada vez mais, abateu-se sobre si. Saxon certamente que previra o que poderia acontecer aos oficiais do governo quando Merina caísse... certamente que tinha preparado um esconderijo, tal como tinham feito as três mulheres do Tigre.
- Uma boa pergunta... - disse Jonas num tom de irritação. - Dimity? - Ergueu a voz e uma das mulheres que estava sentada à mesa comprida virou a cabeça.
Jonas ergueu o polegar, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse, e ela levantou-se do banco e aproximou-se.
- O capitão... - disse Jonas e bateu com a mão enorme na mesa.
- Mensagem. - A mulher foi tão irónica como o estalajadeiro. - Selada com o selo da rainha... ele recebeu-a quando partia para o porto. Desviou-se do caminho para a ler e aquelas aves agoirentas apanharam-no; usaram laços de corda e já o tinham tolhido antes que pudesse sacar da arma.
O selo dela... o selo da rainha! Levou a mão ao peito para sentir o sinete que tinha preso junto ao coração. Tinham usado o selo falso. Através da sua suposta esperteza, fizera com que Saxon caísse nas mãos do inimigo; bem que aquela jóia podia ser considerada azarenta!
A mão deslizou em direcção a uma das pedras que tinha presa à cinta. Mau augúrio... parecia que aqueles que queria ajudar se tornavam em alvos. E no entanto, devido ao que estudara, sentia-se certa de que aquelas pedras ainda poderiam ser usadas como armas, desde que usadas com segurança. Vazou o copo nervosamente e Eel fez o mesmo.
- Para onde o levaram? - perguntou.
A mulher encolheu os ombros.
- Tinham uma barcaça e enrolaram-no em carpetes, ou coisa do género. O Simpkin, ele também viu, estava à espera do capitão para o levar quando aqueles corvos negros o apanharam... o Simpkin é arraçado em foca, não chegaram a pôr-lhe a vista em cima. Acho que ele seguiu a barcaça. Seria mesmo ao jeito dele agarrar-se a qualquer coisa e deixar-se arrastar atrás. Pelo menos ainda não voltou.
- A Torre da Água... - pensou Matild em voz alta. Se eles tinham o Saxon lá preso... Mas essa era apenas uma hipótese.
- Houve outra pessoa que perguntou por ti - o hálito a cerveja de Jonas atingiu-a no rosto quando ele se inclinou para a frente, como se tivesse medo de ser ouvido.
A mulher que estivera de pé ao seu lado virou-se rapidamente e voltou para o grupo que estava sentado à mesa comprida.
- Quem? - incitou-o Matild, quando viu que ele parecia não ter vontade de completar a frase.
- Dá-nos uma marca de vela - indicou uma das velas, com as marcas das horas, que ardia lentamente - e vê-lo-ás cara a cara.
- Muito bem - assentiu ela. - Mas Jonas, e o capitão?
Ele mostrou os dentes amarelados num esgar semelhante ao de um cão.
- Era disso mesmo que estávamos a tratar quando tu apareceste. - Indicou com um gesto o grupo reunido em torno da mesa. - Esperamos... mais duas marcas de vela. Se o Simpkin tiver notícias para nos dar, virá aqui ter, e garanto-te que não será nenhum corvo agoirento que cheirará o rasto dele. Lakin? - Voltou a erguer a voz, e daquela vez foi um homem que se levantou da mesa. - Passa palavra a quem tu-bem-sabes-quem que tem que aqui vir... e depressa.
O homem de pele acinzentada e barba por fazer olhou com curiosidade para Eel e Matild, depois lançou-se em direcção à porta.
- O capitão - Jonas adoptou subitamente um tom confidencial, como se tivesse concluído, de alguma forma, que Matild era uma aliada - mandou uma mensagem à Irmandade... esperava ir ter com eles esta noite; era o que ele esperava. Ele sempre foi justo com eles e sabem que se o seguirem, isso será bom para eles. Aqueles diabos pretos levaram a guarda do porto e puseram lá a gente deles. Mas não conhecem lá muito bem os caminhos das águas. Muitos deles - agora o seu sorriso era aberto, já foram nadar aqui e ali... mas nunca voltaram. Nadar nestas águas não é para a laia deles; não têm as marés nos ossos.
Por qualquer razão e sem pensar, impelida por algo que não compreendia, Matild falou
- Jonas, esta noite matámos dois desses guardas.
Ele ficou a olhar para ela, e depois sorriu novamente.
- Ora, essa é que é uma notícia que um homem gosta de ouvir. Vamos fazer um brinde a isso mesmo.
Foi-se embora antes que ela o pudesse impedir, regressando com as canecas cheias a transbordar e cobertas de espuma. Embora até então não tivesse dado sinais de reconhecer o seu estatuto, naquele momento inclinou-se sobre a mesa chegando o rosto até perto do dela e perguntou suavemente:
- Livrastes-vos dos corpos, segundo espero, senhora minha?
A sua atitude casual fez com que os pensamentos lúgubres que Matild tinha, relativamente ao que fizera, ainda se tornassem mais pesados. Foi Eel quem respondeu, numa voz sem qualquer emoção.
- Atirá-mo-los ao canal.
Jonas estava novamente a sorrir.
- Bom trabalho, meu rapaz. Os afogados não contam a história de onde e como foram nadar sem querer.
- Haverá vingança.
Por agora, os acontecimentos e o tempo passavam suficientemente devagar, permitindo a Matild pensar com acerto.
- Sim. Esses corvos de má raça tratarão disso. Os tempos são difíceis, senhora.
- Não tão difíceis como os que estão para vir.
O recém-chegado aproximara-se silenciosamente e sem ser visto, como se fora uma sombra, surgindo agora nas costas de Eel. Era evidente que não entrara pela porta. E ela conhecia-o bem.
- Thom!
Ele franziu-lhe o sobrolho.
- Nada de nomes, nada de cordas penduradas nos nossos pescoços. É uma bela tarefa, aquela de que me incumbistes, senhora.
- Shelyra? - Ela percebeu imediatamente a insinuação dele.
- Shelyra... - Ele acentuou pesadamente o nome. - Tigresa, é o que ela é. A não ser que lhe dê um murro na cara e a deite ao chão para a amarrar, não há homem nenhum que controle aquela rapariga. Está de volta a casa, senhora minha. Escapou-se-me duas vezes e de cada uma delas foi direita ao palácio; garante que sabe de caminhos que aquelas ratazanas nunca descobrirão. Está a divertir-se imenso, segundo diz, a observar aquele príncipe mimado a governar. Juro que ela tem orelhas em toda a volta da cabeça, a julgar por aquilo que tem conseguido ouvir, pondo-se à escuta em locais onde eles pensam não haver ouvidos a não ser os deles.
Não valia a pena, apercebeu-se Matild, admoestar Thom. Ela conhecia a sobrinha muitíssimo bem e as explorações que Shelyra fizera das passagens secretas do palácio levá-la-iam naturalmente àquela forma de reunir informações.
- Que é que ela conseguiu descobrir? - perguntou com firmeza, consciente de que Thom devia estar preparado para ouvir um sermão em relação à sua incapacidade de controlar a princesa.
Ele respirou fundo.
- Bem, ela ouviu uma quantidade de coisas soltas. Temos tentado encaixar o que sabemos, quando finalmente consigo trazê-la de volta para local seguro. Corre entre os guardas que o Leopold não passa de uma figura de proa, que o mantêm afastado de tudo o que é importante. Parece que o galo velho não quer deixar o mais novo cantar no poleiro.
Matild assentiu; aquilo coincidia com o que ela vira; os casacos negros a fazerem o que lhes apetecia, apesar das promessas feitas pelo príncipe.
- Mandaram para cá o velho chanceler para garantir que ele não passa das marcas. O velho Adelphus não é nenhum guerreiro; o trabalho dele é gerir os territórios, à medida que o imperador os agarra, e assegurar-se de que nenhum cortesão ambicioso lhe espeta a faca. Nunca aparece sem ser acompanhado de dois guarda-costas, e são dois guerreiros duros, do outro lado do mar. O Leopold ainda não o confrontou, pelo menos não o fez enquanto Shelyra o tinha debaixo de olho.
O chanceler... tinha uma ideia para ele...
- O general Cathal, esse é que é uma má peça. Só veio ao palácio duas vezes, isto que se saiba... está sempre com o exército. Esse é todo soldado e um comandante cruel. A maioria das atrocidades do passado foram da invenção dele. Balthasar, até ao momento, tem-no mantido controlado. Acho que ele vai estar a postos para servir de ameaça, para o caso de Merina não se conformar completamente com todas as leis que lhe forem impostas. Então o general sentar-se-á no lugar do príncipe, lá no palácio.
Parou para puxar para si a cerveja em que Matild não tocara e deu um grande golo.
- E Apolon, o Mago? - perguntou Matild, como ele não continuasse após vários goles.
Thom não encarou de frente o seu olhar, olhando para o interior da caneca. Por longos instantes manteve-se em silêncio e depois perguntou lentamente:
- Senhora, já alguma vez sentistes a pele arrepiada como se um verme lhe rastejasse por cima? Eu espiei Apolon e senti isso mesmo. Esse... esse homem, pelo menos aparenta ser um homem, pertence totalmente às Trevas Profundas.
Thom ergueu então os olhos, encarando-a de frente.
- É evidente que eu não sou nenhum filho santo do templo, como muito bem sabeis, senhora. E já tive nas mãos sangue que não tinha saído das minhas próprias veias; mas nunca foi o sangue dos inocentes ou dos desprevenidos. Sou ladrão e fostes vós mesma quem me salvou de ser enforcado, para que pudesse fazer o que queríeis que fosse feito. Conheço a escumalha de Merina e até os piratas da costa e tenho visto e ouvido coisas tremendas. Não ouvi esse Apolon dizer nada a não ser trivialidades, nem o vi erguer a mão contra ninguém; ele deixa que sejam os seus lacaios a fazê-lo em nome das novas leis. Mas há nele uma tal escuridão, de tal forma maligna, que um homem sente a garganta presa quando olha para ele. Isso sou capaz de jurar. O mal que entrou nesta cidade está centrado nesse Apolon e ainda não vimos nada! - O seu discurso apressado tinha a força da convicção.
- E ele é mago... - Matild estremeceu, chegando a capa mais ao corpo. Sentia-se como se subitamente estivesse no mar; como se ventos tempestuosos a atingissem.
Ambos os homens a olhavam e, apesar da luz fraca, pensou ver algum desconforto nos seus olhares.
- Senhora - foi Thom quem primeiro recuperou a voz - tudo o que sei é que a força do Tigre é grande e que passa de geração em geração. Que outros poderes poderá um mago invocar?
Ela abriu a mão sobre a mesa. Sentia o polegar direito leve e vazio sem o anel. Devia-lhes a sua franqueza; usar agora de subterfúgios enfraqueceria todas as forças que tentava congregar.
- Um mago é, pelos nossos padrões, em primeiro lugar um estudioso, um investigador do saber antigo. Em segundo lugar, ele atinge um ponto em que procura testar o seu saber adquirido. Mas, como sempre neste mundo, há o caminho do Coração e o caminho das Trevas Malditas. O conhecimento usado para aumentar o bem-estar dos outros, esse é tão abençoado e verdadeiro como o Sangue do Coração. O saber usado para engendrar poder, para controlar, para matar, esse é o das Trevas. A Casa do Dragão produziu, no passado, três magos. Todos eles entraram no templo quando o seu Talento surgiu e se desenvolveu. Mas há duas gerações que não surgiram mais desses magos e não conheço mais nenhum caso em Merina.
Excepto... talvez Adele? E a grande sacerdotisa? O templo mantinha secreto quem tinha poder e quem não tinha, e guardava ciosamente esses segredos. Agora sentia-se feliz por assim ser.
- É o seguinte... até que o ponhamos à prova, não saberemos o que é esse Apolon, a não ser que escolheu o Caminho das Trevas. E não nos atreveremos a testá-lo até estarmos seguros de que dispomos de tantas forças quantas poderemos reunir.
- Entretanto - lançou-lhe Thom - ele pode ir corroendo as poucas oportunidades que nos restam.
Matild assentiu.
- Contudo... - As suas mãos procuraram as pedras que trazia no cinto. Os avisos da sua mãe cruzaram-lhe o espírito, mas tempos desesperados pediam medidas desesperadas e não podia esperar mais tempo.
- Contudo - recomeçou mais uma vez - há uma coisa em que o podemos pôr à prova. Quem usa o anel de Estado... Balthasar?
- Shelyra não o viu na mão de Leopold. Parece que Balthasar não o considera uma bugiganga para ser dada ao seu substituto.
- Então não é Leopold quem o usa. Agora, o chanceler que tem tanto amor à pele, ele também tem amor à riqueza?
- Guardou para si um quarto do dinheiro do resgate das Guildas - respondeu-lhe Thom.
- E o general...
Thom abanou a cabeça.
- Não vos posso dizer. Os olhos e ouvidos de que ainda dispomos não o conseguem alcançar.
Ela mudou de assunto.
- Para onde levaram Saxon? Para a Torre da Água?
Thom fez uma careta.
- Transformaram a Casa do Javali na sua nova prisão. - Acentuou a última palavra. - Desde que enforcaram lá o mestre da Guilda, levaram os homens dele para os trabalhos forçados e lançaram a Senhora Fortuna na rua com as crianças, transformaram a casa numa prisão para aqueles que consideram prisioneiros importantes. Entretanto, saqueiam as mercadorias do mestre Unois e levam-nas.
- Sim - Jonas esfregou o queixo por barbear. - O capitão... os homens conhecem-no; ele sabe mais acerca de navegação do que três quartos da frota do imperador junta. Se eles o conseguissem fazer passar para o lado deles, então... por isso talvez estejam a tratá-lo com falinhas mansas e a tentar conquistá-lo.
Matild fez um som que era quase um resmungo. E o homem rude sentado na sua frente assentiu com a cabeça.
- Sim, mas o capitão é sabido. Acho que não vai dizer que sim nem que não de um momento para o outro; vai antes ouvir o que eles têm para lhe oferecer, ou as ameaças que lhe fazem, para ver que esperanças terá de içar novamente as velas.
Ela não conhecia muito bem a Casa do Javali; era o centro dos negócios de metais da cidade e ela só estivera no seu interior nos dias de grande festa, em que era necessário visitar todas as Guildas. No entanto, havia uma coisa de que estava certa: tal como o palácio estava cheio de passagens secretas, também as Guildas tinham segredos só conhecidos dos seus mestres e respectivas famílias, que talvez os usurpadores ainda não tivessem descoberto.
Eel mexeu-se. As garras presas aos seus dedos bateram na mesa.
- A Senhora Fortuna - disse ele.
- Se a conseguirmos encontrar...
Eel sorriu.
- E eu não pertenço às sombras? Isso descubro eu num instante.
- Se conseguirmos libertar o capitão - Matild virou-se novamente para Jonas - onde estarão aqueles que obedecerão ao seu comando?
O estalajadeiro ergueu um polegar rechonchudo na direcção do grupo sentado em torno da mesa.
- Todos e cada um deles... eles fizeram um juramento ao capitão, e cada um deles pode comandar outros. O capitão estava a delinear um bom plano e tinha passado palavra mesmo antes de ser preso.
Mais uma vez Matild remexeu no cinto repleto de pedras.
- Thom - virou-se para o rapaz - tu orgulhas-te das tuas ladroagens. Conseguirás ainda tirar da Casa do Tigre uma certa coisa...
Os olhos dele estavam a brilhar.
- Eles mantêm lá uma guarda reforçada, mas isso não quer dizer que eu não consiga entrar e sair; esta noite mesmo, se é isso que desejas.
Matild mergulhou o dedo na cerveja em que Eel mal tocara e começou a desenhar no tampo da mesa.
- Aqui fica o jardim murado – explicou, ao mesmo tempo que desenhava e depois fez um pequeno sorriso - embora eu esteja certa de que tu conheces muito bem todos os pormenores das instalações dessa Guilda.
Ele respondeu-lhe com um sorriso.
- Muito bem, há um banco ao pé da fonte do jardim. Está gravado com um brasão muito trabalhado da nossa casa. Mete o dedo bem fundo no olho direito do Tigre, o direito, estando de frente para ele. Isso fará com que uma passagem se abra. Agora... - rapidamente foi desenhando mais linhas, para a esquerda e para a direita, algumas que se intersectavam e outras que se cruzavam.
Ele seguia a sua explicação com a atenção de quem já vira mapas, desenhados da mesma forma grosseira, que lhe tivessem trazido lucros.
- Dessa forma chegarás à minha sala de trabalho - disse-lhe ela por fim. - Lá dentro está uma mesa e na gaveta da mesa está um estojo, a não ser que eles já tenham limpo tudo. Só podemos esperar que isso não tenha acontecido. O estojo é mais ou menos deste tamanho. - Fez um desenho rápido no ar. - É disso que eu preciso.
Ele pôs-se de pé e levou a mão à testa numa saudação elegante.
- Tê-lo-eis.
Parecia não pôr sequer a hipótese de ser mal sucedido. Depois desapareceu. Matild fez sinal a Eel e também ele se levantou da mesa.
- Vou precisar de um sítio para trabalhar - disse Matild secamente. - Penso que a loja das contas me pode ser vedada.
- Podeis ficar com o meu armazém, senhora. E agora, que lhes hei-de eu dizer a respeito do capitão? - Mais uma vez indicou o grupo reunido em torno da mesa.
- Que ele voltará para junto deles assim que conseguirmos mexer alguns cordelinhos - respondeu ela.
Não havia nada a fazer para além de esperar e o seu corpo dizia-lhe que precisava de descansar. Seguindo a sugestão de Jonas, foi descansar para o armazém que ele já mencionara e deitou-se em cima de um monte de sacas malcheirosas. Tosca como era, era apesar de tudo uma espécie de cama e ela estava pronta a dar-lhe bom uso. Descansaria uma hora, duas no máximo, e estaria de volta à loja antes do raiar da aurora. E depois... depois veria o que poderia ser feito para minar o caminho que os invasores percorriam, pensando que não tinham qualquer oposição.
SHELYRA
Shelyra via e ouvia com total conforto tudo o que se passava na sala que Leopold usava como sala de reuniões, através do buraco junto ao tecto. Era a sala de baile mais pequena, que os jovens da corte costumavam usar para receber lições de dança. Leopold levara para lá uma pequena mesa, em torno da qual se podiam sentar seis pessoas e usava-a para receber relatórios e consultar os conselheiros de Estado do imperador. Era evidente que Leopold ainda não confiava na sala de audiências do palácio; pela forma como os seus homens inspeccionavam cada sala, ela percebeu que ele suspeitava da existência de armadilhas para apanhar os incautos.
Aquela era uma das passagens mais desconfortáveis, pois corria apenas a meia altura: tivera que rastejar durante todo o percurso, já que a passagem fora feita por cima das ombreiras das portas. Por outro lado, assim era muito menos provável que alguém a descobrisse.
Estava deitada com a cabeça em cima de um dos braços, o olho colado ao buraco e deu por si a sentir uma certa pena do atormentado príncipe, enquanto este ouvia os relatórios de dois dos seus oficiais.
Que estupidez! Eu devia sentir-me contente por as coisas serem difíceis para ele! E deveria ficar satisfeita por ele não encontrar forma de resolver os seus problemas.
- Os homens de Apolon estão em toda a parte, senhor - concluiu apologeticamente um dos capitães. - E em todos os locais onde se encontram impedem-nos de nos aproximarmos. Eu diria que aquele Apolon substituiu todos os agentes da ordem locais por homens seus, o que, na melhor das hipóteses, nos torna supérfluos.
O príncipe tamborilou com os dedos na mesa no silêncio que se seguiu. Do sítio onde estava deitada, Shelyra não podia ver o seu rosto, mas não era preciso ser-se nenhum mago para saber que ele estaria provavelmente a franzir o sobrolho.
- Não há nada que eu possa fazer se eles decidirem deixar-te de fora, Kastor - disse ele por fim. - E não quero que tentes forçar a questão. O melhor que posso fazer é avisar o imperador e fazer-lhe notar que nos será muito difícil cumprir as nossas ordens quando até somos impedidos de entrar nalgumas partes da cidade pelos homens de Apolon.
O capitão suspirou com cansaço.
- Nesse caso, senhor, talvez devêssemos ser transferidos para o palácio. Pelo menos aqui poderemos ser úteis, procurando quaisquer armadilhas que tenham sido montadas.
Ele parecia tão enojado com a situação como o próprio Leopold. Pela forma como falava, Shelyra apercebeu-se, com interesse, que os casacos negros eram quase tão impopulares entre as tropas regulares do imperador como o eram entre os cidadãos de Merina.
Leopold assentiu.
- Faze isso mesmo - ordenou. – Estamos a controlar bastante bem as estradas; ninguém poderá entrar ou sair da cidade sem passar por um dos nossos postos de controlo. Pelo menos, essa parte da nossa tarefa está cumprida.
O capitão fez continência, no que foi imitado pelo outro oficial; viraram-se energicamente e saíram.
O príncipe virou-se para a pessoa à sua direita, um homem gorducho vestido de belas roupas de um roxo escuro.
- Vês agora o que eu quero dizer, Adelphus? - disse ele com desagrado. - Decida eu o que decidir, não vou ser bem sucedido. Se ordenar aos meus homens que cumpram o seu dever e que mandem para o diabo os homens de Apolon, violo a ordem do imperador de deixar os homens de Apolon fazerem o que querem. Se der mais ordens como a que agora dei, violo as ordens do imperador de pacificar a cidade. - Ergueu as mãos num gesto de desespero. - Então, que estou eu a fazer aqui?
- Sempre fostes ver a rainha-mãe? - perguntou Adelphus a despropósito.
A mudar de assunto? perguntou-se Shelyra. Mas por quê? Talvez porque não possa responder à questão.
- Sim. - Leopold entendeu provavelmente a mudança abrupta de assunto da mesma forma que Shelyra. - Se ela não morrer dentro de um ou dois dias, não só ficarei muito surpreendido, como requisitarei os serviços do enfermeiro deles para as tropas, pois sem dúvida que nesse caso o homem seria um milagreiro. Seja lá o que for que Apolon pensa que se está a passar... bem, só posso dizer que os seus tão celebrados poderes o devem estar a abandonar. A pobre da velha mulher quase não conseguia respirar; se ele pensa que ela vai organizar uma qualquer insurreição do seu leito de morte, é porque perdeu o juízo. - O tom da sua voz transformou-se, deixando transparecer uma ira profunda, mas contida. - E vou dizer-te mais uma coisa. Também não vou mandar os meus homens à procura da rainha e da princesa só porque ele quer. Se ele as quer encontrar, que mande os seus próprios homens. Parece tê-los em número suficiente. Tanto quanto posso imaginar, elas são capazes de se ter lançado aos canais em desespero, depois da abdicação. Era o que eu teria feito no lugar delas.
- Talvez o tenham mesmo feito - disse o chanceler suavemente. - Não consigo imaginar de maneira nenhuma como duas mulheres insignificantes conseguiriam esconder-se com tanta eficiência de uma caça ao homem tão bem orquestrada. Ou foi isso, ou deixaram a cidade e estão a atravessar o mar e não têm qualquer importância para nós.
Mulheres insignificantes? Olha a lata do idiota pomposo, o parvalhão do cabeça de vento! Shelyra fumegava.
Esperem só até que ele se mude para o palácio e eu lhe consiga chegar! Eu lhe direi quem é insignificante!
- A realidade é que o único local onde consigo cumprir as ordens que aqui me trouxeram é aqui, no palácio – disse Leopold, mudando habilmente a conversa novamente para a questão que ele queria discutir. - Que devo fazer? Se me queixo ao imperador, vou parecer ineficiente; se não me queixo, não vou conseguir fazer nada!
O chanceler suspirou.
- Suponho que terei que falar desta questão ao imperador - disse com relutância. - Eu vim aqui para observar como vos estão a correr as coisas. Bem, essa é uma observação, e muito válida!
Leopold resmungou e saltou da cadeira, começando a percorrer a sala de um lado para o outro.
Ele anda tanto de um lado para o outro, que já deve ter aberto um buraco, pensou Shelyra. Quem não queria estar na posição dele era eu. Não pode ganhar de maneira nenhuma, faça ele o que fizer, e sabe disso. Ou não é lá muito esperto, ou então não percebe nada de política; não consigo perceber como é que se deixou apanhar numa situação destas.
Deveria ter-se sentido satisfeita, mas por uma qualquer razão, não sentia. De tudo o que observara, o pobre Leopold era um belo oficial, consciente quanto ao bem-estar dos seus homens; e absolutamente ineficaz. Não porque não tivesse capacidade para levar a cabo tudo o que lhe fora ordenado e muito mais do que isso, mas porque ninguém lhe permitia que o fizesse.
Deu por si a desejar, mais do que uma vez, que Leopold estivesse do seu lado. Com alguém como ele para sublevar e inspirar a populaça, Merina era bem capaz de ter podido defender-se até mesmo do imperador.
Evidentemente que, se Leopold estivesse estado do seu lado, não teria permitido que as defesas da cidade se baseassem em nada mais do que os velhos estratagemas do suborno, da diplomacia e das alianças. Teria reconhecido a ameaça que Balthasar constituía, muito antes do imperador estar em posição de pensar em tomar Merina, e teria organizado um exército permanente...
Raios! Parece-me que começo a gostar deste homem, pensou contrariada. Vale uns duzentos Thom Talesmith. O pai dele é um idiota. Mas... ele até pode ser honrado, pode até ser corajoso, mas inteligente é que não pode ser. Até um idiota seria capaz de ver que esta posição era uma armadilha.
- Bem - disse o chanceler depois de ficar durante alguns minutos a ver Leopold andar para trás e para diante - o melhor é eu voltar para o acampamento. O imperador está à espera do
meu relatório.
- Eu... - começou Leopold, mas depois abanou a cabeça. - Não interessa. Como vês, pelo menos o Grande Palácio estará pronto a ser ocupado muito em breve. Avisa-me só com a antecedência necessária para eu mandar embora os criados e trazer do acampamento os do imperador.
- Assim farei. - O chanceler ergueu-se com esforço da cadeira e bamboleou-se até à porta. - Parai de dar cabo de Vós com essas idas e vindas infernais, Leopold. Vede se descansais. Tenho a certeza de que amanhã as coisas parecerão mais risonhas.
Os dois guarda-costas do chanceler juntaram-se-lhe à porta; um par de loiros musculosos que pareciam o tipo de homem que lança vacas ao ar só para exercitar os músculos. O que tinham em força, faltava-lhes, no entanto, em miolos. Shelyra já reparara várias vezes que o dispositivo mais simples, até uma pederneira, os deixava completamente confusos. Quando lhes diziam que acendessem a luz, invariavelmente agarravam num candelabro inteiro de cima de uma mesa e chegavam-no ao fogo, o que provocava danos incríveis às velas. Fortes como toiros, burros como bois atrelados à charrua quando o cavalo morre. Se alguém atacasse realmente o chanceler, digamos que fazendo qualquer coisa de verdadeiramente inteligente, como um assassino faria, era muito provável que aquelas duas pedras não dessem por nada de errado até ele estar morto e o perpetrador fora do seu alcance.
Leopold ficou de pé ao lado da mesa durante mais algum tempo, mas Shelyra sabia o que ele faria em seguida. Ele ia ali todas as noites, imediatamente antes de sair do palácio e se dirigir para o aquartelamento, onde ficava com os seus homens. Só os criados do palácio ali ficavam durante a noite. Leopold não confiava a sua segurança, nem a dos seus homens, a um terreno de que não se sentia seguro.
Ela içou-se pela passagem secreta e dirigiu-se até à capela do palácio pelo caminho alternativo. Também ali havia um buraco-espia e Leopold tinha o hábito de falar alto quando estava no isolamento da capela. Às vezes ela descobria assim coisas que lhe eram úteis.
A capela era uma sala bastante simples; não era muito usada devido à proximidade do templo. Nem sequer tinha uma representação do Coração; apenas uma lanterna com várias saídas de luz sobre o altar, uma versão estilizada da Luz Eterna. A sua tia ordenara que a lanterna fosse colocada no lugar do Coração e a rainha era provavelmente o único membro da Família Real que utilizava a pequena capela em vez de ir até ao templo.
Contudo, Leopold parecia encontrar ali alguma paz transitória. Nunca deixava de passar por ali no final do dia, por mais cansado que pudesse parecer estar. Ele chegou lá antes dela e ficou de pé com as mãos entrelaçadas atrás das costas, olhando para a Luz, em silêncio. Por fim, quebrou o silêncio.
- Não quero realmente saber o que me poderá acontecer se cair em desgraça - disse em voz alta. - Mas os meus homens... não há outro comandante sob cujas ordens eu gostasse de os ver. Especialmente Cathal. O homem é uma besta. Contam-se histórias dele... histórias que nem consigo repetir sem me sentir enjoado. Eu vi-o quando ocupámos a cidade; sabias que as suas tropas pessoais são compostas por mercenários, pois as tropas imperiais não se sujeitam ao comando de um homem tão depravado? Que estou eu a pensar... é evidente que sabes. - Suspirou e levou uma mão à têmpora, friccionando-a. - E há mais... temo pelo que possa acontecer a esta cidade se Cathal ficar com o seu controlo. Ou Apolon, mas não me parece que o meu pai vá pôr um mago, que nunca comandou mais do que uns quantos criados, à frente da cidade. Se for Adelphus... o Adelphus não faria mal. Ele compreende o dinheiro, sabe que não se pode mungir uma vaca até ela cair para o lado, se quisermos que ela nos continue a dar leite. Ele provavelmente tornaria a vida das pessoas difícil, mas não impossível. Mas Cathal... ele não teve o seu cerco, não teve a sua batalha, não conseguiu o seu saque. Está furioso com isso. Certamente que Tu sabes disso. - A sua voz adoptou um tom um pouco mais duro. - Sempre pensei que esta cidade era especial para Ti... não podes fazer nada? Não tens que me ajudar a mim, mas devias ajudar a Tua cidade!
A voz dele soava verdadeiramente implorante; um tom que fez com que Shelyra suspendesse a respiração, tal foi a sua surpresa.
- E há mais uma coisa... podes não conseguir ler um coração tão negro como o de Apolon... descobri o suficiente para saber que, se a rainha e a princesa foram apanhadas, ele fica com elas. Está tudo decidido. Será ele que ficará encarregue delas. Há qualquer coisa que ele quer obter delas; não sei o que é, mas terá que ser algo de mau, de muito mau para elas. Ele está mesmo pronto a invadir o templo e a raptar a velha mulher, se conseguir permissão do meu pai. Penso que planeia utilizá-la para fazer com que as outras apareçam. Ora, isso é invadir o Teu santuário, para além de ser repugnante e repreensível... Quando vi a rainha-mãe, tentei avisá-la. Espero que ela tenha compreendido.
Aquela revelação fez com que Shelyra se sentisse gelar. Leopold mudava o peso de um pé para o outro, como se lhe apetecesse caminhar para a frente e para trás, mas não se atrevesse a fazê-lo, ali.
- Eu fiz o que pude sem trair a minha lealdade para com o imperador - disse ele por fim. - Terá que ficar nas Tuas mãos.
E com aquelas palavras virou-se e saiu da capela, deixando Shelyra de pé junto ao buraco-espia, completamente estonteada. Quando por fim se conseguiu mexer novamente, foi pelas passagens até aos aposentos dos criados. Se Leopold dissera que tentara avisar Adele, então fora exactamente isso que fizera. E Adele certamente que entendera o aviso. Ela não era estúpida e não estava certamente tão fraca de espírito nem de corpo como fazia crer estar.
Mas, seja como for, amanhã à noite vou ao templo, prometeu a si própria. Aviso-a nessa altura.
De qualquer maneira, nem mesmo Apolon seria capaz de entrar nos claustros sem ter de enfrentar inúmeros problemas. Não seria capaz de raptar simplesmente Adele; não saberia em que cela ela estava. Isso deixava apenas a hipótese de um ataque frontal e para um tal ataque seria necessário um batalhão dos seus homens. E um batalhão de casacos negros a marchar em direcção ao templo seria imediatamente descoberto, mesmo que saísse do palácio e não viesse da cidade.
Enquanto assim pensava, percorreu o labirinto das passagens secretas até chegar à área reservada aos pequenos quartos dos criados mais importantes e aos dormitórios dos criados de posição mais baixa.
Tentara deixar ali mensagens subtis nas noites em que vagueara pelo palácio. Murmurava os nomes dos governantes de Merina no silêncio dos dormitórios, recitando as linhagens que a tinham obrigado a memorizar quando era criança. Deixou pequenas pedras de olho de tigre no chão, em locais onde seriam encontradas pelos criados nas limpezas matinais. Por vezes deixava cair água por um dos buracos-espia situados nos olhos do retrato oficial de um rei há muito desaparecido, fazendo com que o retrato parecesse chorar. Doutras vezes murmurava frases num tom lamentoso e lúgubre... “Como podeis dormir, quando Merina jaz gemendo sob a bota do conquistador?” “Chorai, chorai, oh cidade minha! Junto às águas do rio, deitai-vos e chorai!” “Danação e agonia, danações e agonias sem fim para os cobardes que não quebrarem as correntes!” “O Tigre jaz acorrentado e a sua caverna é saqueada por gorilas gananciosos!”
Gostava particularmente daquela frase. A ideia era fazer crer que os reis e rainhas da cidade, há muito desaparecidos, percorriam incansavelmente os corredores do palácio, acordados pelos intrusos conquistadores. Não sabia dizer se estaria a resultar ou não; de dia estava demasiado ocupada a cuidar dos cavalos; a mantê-los saudáveis por dentro e à beira da morte por fora. Os casacos negros já tinham ido uma vez ao recinto do Gordo para avaliar o seu gado e tinham-se ido embora rosnando de desagrado, mas incapazes de negar aquilo que era uma evidência aos seus olhos. Visto já terem fixado a taxa da sua licença para o negócio, também não podiam compensar inflacionando essa taxa.
A taxa fizera Gordo praguejar e dar pontapés nos palheiros durante a maior parte do dia. Era um escândalo: cem vezes o que pagara sob o governo de Lydana. Como vingança, Gordo disse aos casacos negros que fossem eles próprios buscar o dinheiro, declarando que não se atrevia a deixar o seu gado doente nem por um só instante e pagou-lhes com as moedas de cobre mais pequenas que pôde encontrar. Eles tinham-se visto forçados a ir-se embora cambaleando sob dois sacos enormes e pesadíssimos, cheios de moedas. Gordo arranjara também as coisas por forma a que os sacos tivessem sido enfraquecidos nas costuras.
Segundo constava, os guardas já tinham percorrido metade do caminho até aos portões da cidade quando as costuras cederam.
Shelyra gostaria de ter visto. Thom vira, e a sua descrição dos casacos negros, de gatas a apanhar as moedas no meio do pó, fizera sorrir até o próprio Gordo. Tinham tido que despir os seus belos casacos e usá-los como sacos para levar as moedas para o tesouro do imperador.
Finalmente deu por terminados os sussurros e deixou os últimos dos seus sinais e portentos. Já era tempo de voltar para a casa de Gordo, dormir um pouco e depois tratar outra vez dos pobres cavalos.
Bocejou e percorreu o caminho até aos túneis de saída; havia ali coisas guardadas que não tinham sido deixadas por si, o que queria dizer que aquele túnel era provavelmente o que tinha sido usado pela sua tia e por Skita. Isso fez com que se lembrasse de Thom, que se tornara notado pela sua ausência, a pretexto de ir fazer observações na cidade.
Puff! Ele não quer é ser recrutado para limpar os estábulos. Os cavalos doentes fazem muito mais porcarias do que os cavalos saudáveis.
Isso até lhe convinha. Se ele não estivesse no recinto do Gordo, não a aborreceria com a história de a levar aos Senhores dos Cavalos.
Ainda há coisas que eu posso fazer aqui, pensou ela com teimosia. E até que isso mude... é aqui que eu fico.
APOLON
Na sua frente chamavam-lhe “O Mago Cinzento.” Nas costas, chamavam-lhe outras coisas. “O cão infernal de Balthasar” era um dos epítetos mais amistosos; havia outros muito mais rudes. Mas o que quer que lhe chamassem, nas suas vozes transparecia sempre um tom de receio e olhavam por cima do ombro quando se lhe referiam, temendo que ele estivesse por perto, à escuta.
O Mago Cinzento sentou-se, descontraído, na cadeira de campanha estofada, enquanto o chefe dos seus servos lhe recitava os relatórios de todos os seus espiões. Nem tudo o que Apolon fazia era através de magia; considerava alguns ouvidos e olhos mortais igualmente úteis. Tinham sido esses ouvidos e olhos mortais que lhe tinham trazido informações suficientemente encorajadoras para poder convencer Balthasar a atacar Merina.
As histórias das suas riquezas e da sua falta de defesas, tinham-na tornado um alvo irresistível para o imperador. O facto de ali se encontrar algo que Apolon desejava, e que desejava
desesperadamente, fizera com que tivesse chamado a atenção de Balthasar para a cidade.
- E Leopold tem feito perguntas acerca de vós - disse por fim o servo num murmúrio rouco. - Muitas perguntas.
Apolon franziu o sobrolho, pois não esperara essa atitude daquele príncipe insípido.
- Perguntas? - repetiu. - Que tipo de perguntas?
Que poderia querer aquele cachorrinho? Não queria certamente fazer chantagem com ele... era demasiado honrado e correcto para descer tão baixo. Que queria ele descobrir? E que tencionaria fazer das informações que obtivesse?
- Descobriu que já assegurastes a custódia das mulheres do Tigre quando forem capturadas - murmurou o servo. - E tem feito perguntas quanto ao que tencionais fazer com elas... que tipo de planos é que fizestes e por aí adiante. Tem falado com os vossos criados e tenho também a impressão de que ele está a tentar perceber como é que fazeis as vossas magias.
Apolon reprimiu uma onda de fúria e uma outra de apreensão. De todos os membros da corte, Leopold era o único suficientemente esperto para deduzir alguma coisa acerca da fonte dos seus poderes através das descrições obtidas dos criados. Ele podia ser insípido, mas não era parvo; por trás de toda aquela honra e sentimentalismo estava uma mente rápida. E Leopold era o único suficientemente inteligente para perceber que os preparativos que Apolon fizera para as duas mulheres eram, na melhor das hipóteses, de curto prazo, embora fossem, sem sombra de dúvida, preparativos muito seguros.
Juntasse ele dois mais dois, e as suas suspeitas seriam inevitáveis. Se Leopold conseguira juntar uma quantidade suficiente de informação, então conseguiria provavelmente recolher provas que consubstanciassem as suas suspeitas.
Por exemplo... poderia enviar uns quantos homens a uns quantos dos territórios conquistados pelo imperador e fazer listas dos homens desaparecidos. Nem todos os recrutas de Apolon tinham sido obtidos nas fileiras dos conquistados. Por vezes não tivera grande liberdade de escolha relativamente aos seus recrutas.
- Como é evidente não descobriu nada - continuou o servo, acalmando-o. - Aqueles que interrogou têm mais juízo do que ir contar histórias acerca do seu amo.
Apolon grunhiu. Não se sentia inclinado a dar tão pouca importância ao assunto, mas agora que fora avisado, havia medidas que podia tomar.
- E que novidades há relativamente a um local onde eu possa trabalhar livremente?
O servo curvou a cabeça.
- Lamento dizer, meu senhor, que o local mais apropriado já está ocupado. Ainda não encontramos nada que se lhe assemelhasse.
- Ocupado? - perguntou, espantado, Apolon. - Tomado? Que local é esse? Não foi certamente o Leopold quem... se um daqueles idiotas de Merina deixasse cair um pedaço de cobre, Leopold apanhá-lo-ia e devolver-lho-ia.
- Não foi Leopold, senhor - confirmou o servo. - Foi Cathal. O general Cathal. O imperador concedeu-lhe o direito de tomar os mestres das Guildas como reféns e exigir um resgate. Alguns resistiram... um recusou-se a divulgar os segredos da sua casa e Cathal ordenou que fosse enforcado e depois mudou os seus homens para a casa dele. É essa a casa mais adequada às vossas necessidades: a Casa do Javali. Tem todas as características que especificastes; nenhum outro local que tenhamos examinado até agora reúne todas essas características.
- Realmente? - Apolon considerou a questão. - E por que razão ficou Cathal com a casa?
Não esperava que o servo o soubesse, mas, surpreendentemente, o homem sabia.
- A casa tem caves, construídas para o armazenamento de armas dispendiosas, que têm boas condições para manter prisioneiros. Mas, sobretudo, existe naquela casa uma espada que se diz ter poderes místicos e Cathal a quer.
Apolon fez um gesto desdenhoso com a mão.
- Cathal pode ficar com todos os brinquedos que desejar. Eu quero a casa! Será que ele sai de lá quando conseguir o brinquedo?
O servo hesitou e depois disse:
- Creio que sim. Há sítios melhores para guardar prisioneiros e, de qualquer forma, tratando-se de Cathal, ele é capaz de não os conservar por muito tempo. Causam-lhe demasiados problemas.
Isso era suficientemente bom. Apolon mandou o eunuco embora com um gesto da mão e recostou-se na cadeira. Muito bem, então Cathal já tinha a sua parte de Merina e, previsivelmente, estava a regredir para os seus velhos hábitos. Não conseguia pura e simplesmente resistir a tomar prisioneiros e a exigir o seu resgate!
Mas também, com todos aqueles mercenários a levar em consideração, Cathal precisava de uma fonte de dinheiro mais acessível que a bolsa de pagamentos do imperador. O festim de saques tinha sido negado aos seus mercenários e ele tinha que encontrar forma de os compensar de outra maneira. Sim, isto era bastante previsível.
Isso iria irritar Leopold e de que maneira! Os seus próprios casacos negros já tinham virtualmente asfixiado a gente comum. E agora os homens de Cathal estavam a sangrar os ricos, que próvavelmente até àquele momento se tinham considerado a salvo de qualquer incómodo.
O que deixava de fora apenas o templo. Ora isso é que era um espinho cravado na sua carne!
De momento, não poderia fazer os seus casacos negros entrarem no templo sem pagar um preço muito alto. Nem ele próprio passaria a ombreira da porta, ainda não. As suas primeiras observações do local tinham-lhe demonstrado isso mesmo. Inicialmente tivera a esperança de que o templo fosse tão corrupto, e estivesse tão enfraquecido, como o de Wolderkan... aí ele fora capaz de passar a porta abertamente, com o seu exército de servos e reclamar para si os artefactos que estavam no seu interior.
Mas este templo era dirigido por gente de fé pura e verdadeira, que talvez se mantivesse assim devido à presença do Coração do Poder... o que tornava as coisas um pouco mais difíceis para si. Pelo menos até que conseguisse um local de trabalho seguro e impenetrável. Nessa altura conseguiria reunir tanto poder, que tudo estaria ao seu alcance, incluindo passar a porta do templo. Uma vez que pudesse alimentar convenientemente o seu bastão, não haveria barreira capaz de o deter.
Fechou os olhos para pensar durante alguns instantes... apenas alguns instantes... Rapidamente, sacudiu-se, obrigando-se a acordar; sentira-se adormecer. Foi percorrido por um arrepio de frio, ao aperceber-se de quão perto estivera da inconsciência indefesa.
Nenhum mago do seu tipo se atrevia a deixar-se dormir um sono desprotegido. Para dormir, tinha que estar na sua cama, rodeado pelos seus talismãs e guardiães, devidamente drogado para impedir que os sonhos perturbassem o seu descanso e a sua mente. Os magos que se tinham deixado adormecer num sono natural tinham acordado loucos; ou nem sequer tinham chegado a acordar. O seu próprio mestre fora um deles e Apolon tivera parte activa nesse facto.
Cada Mago das Trevas tinha cem inimigos ou mais, alguns deles não-humanos, à espera que um deslize lhes permitisse destruí-lo e apropriar-se do seu poder. Apolon não se conseguia recordar da última vez que lhe fora possível adormecer simplesmente, sem sequer pensar nisso.
Devia estar muito cansado para quase ter adormecido. Não voltaria a acontecer. Não agora, quando estava tão perto do seu objectivo supremo.
Haveria mais alguma coisa que tivesse de ser feita?
De momento não. Percorreu mentalmente a lista de tarefas a realizar e não encontrou nada que lhe tivesse escapado. No dia seguinte teria que falar com Balthasar acerca da forma como o rapaz estava a subverter a autoridade dos seus casacos negros. Com alguma sorte, Balthasar começaria a pensar quanto tempo levaria até que Leopold começasse a subverter a autoridade do imperador. E Apolon estaria presente para encorajar essas dúvidas.
No dia seguinte consideraria também a melhor forma de conseguir tirar a casa a Cathal. A primeira coisa a fazer seria descobrir que brinquedo era aquele que o general queria. Se ele ainda não se conseguira apropriar dele, então o objecto devia estar protegido magicamente, de uma maneira qualquer. Se fosse esse o caso, talvez ele pudesse oferecer os seus serviços.
Depois teria de descobrir uma forma de persuadir o general a abandonar a casa, deixando-a livre para si. Uma vez isso assegurado, poderia enviar alguém ao palácio para revistar os quartos das duas mulheres e procurar objectos através dos quais pudesse encontrá-las; mas primeiro tinha que arranjar maneira de reforçar as fileiras dos seus homens.
Tinha um barco no porto carregado com algumas selecções de luxo para recrutar, retiradas das ruas, mas as leis da mágica impediam-no de trabalhar ali, num barco, com água corrente em toda a volta. Não, teria que ter um local na cidade, construído em terra e quanto mais dentro do solo melhor.
Mas a Casa do Javali... essa soava prometedora. Ergueu-se da cadeira e chamou outro servo.
No dia seguinte. Sim. No dia seguinte muitas coisas seriam postas em marcha.
THOM
Thom Talesmith não era um homem feliz.
Não que se sentisse infeliz por estar entre as paredes daquela casa; se tinha que estar em Merina, então preferia estar entre os ciganos e os seus primos e aliados, os Senhores dos Cavalos. Aquele era provavelmente o local mais seguro de Merina para alguém com a sua reputação, pois até ao momento os homens do imperador não se tinham atrevido a forçar a entrada no complexo.
No entanto, continuava ali; e era isso que o fazia sentir-se assim, infeliz. Estava prestes a arrancar os seus próprios cabelos e fumegava de ira ali, de pé junto à princesa. A questão consistia no facto de eles não deverem estar ali, em hipótese alguma, fosse qual fosse a razão. E no entanto, ali estavam, numa pequena sala sem janelas e com duas portas, uma à vista e outra oculta. Já deveriam estar bem longe de Merina, a caminho das planícies infindáveis que eram a fortaleza dos Senhores dos Cavalos.
Determinada, Shelyra ignorava a sua irritação, como ignorara praticamente tudo o que ele dissera e fizera desde que os dois tinham sido acorrentados um ao outro pela sua tia. Estava sentada no único banco existente na sala, à frente de uma pequena mesa e de um pedaço de espelho, colocado por baixo de uma pequena lamparina de azeite presa à parede. Visto não haver janelas naquela sala, a lamparina tinha que estar acesa dia e noite.
Raios partam a mulher! Será que alguma coisa é capaz de incutir juízo naquela cabeça? Já é suficientemente mau ela ter voltado uma vez ao palácio... mas fazê-lo uma e outra vez, noite sim, noite não? Não terá juízo nenhum?
Era evidente que não. A princesa acabou de atacar as botas macias de sola de pele de tubarão, atou o cabelo num carrapito apertado no alto da cabeça e puxou o capuz da túnica preta e colada ao corpo por forma a cobri-lo, não deixando ver uma única madeixa. Agarrou em duas mãos cheias de carvão e esfregou a testa e as faces com o ar de quem no passado já fizera aquilo tantas vezes, que se tinha tornado como uma segunda natureza. Depois observou os resultados no espelho e assentiu com a cabeça.
- Nós devíamos ter-nos ido embora daqui. Devíamos sair da cidade enquanto ainda é possível, Vossa Grandiosidade - disse ele pela vigésima vez. - Devíamos ter partido assim que aquela criada minúscula e estranha da tua tia lhe levou o teu brinco. Os Senhores dos Cavalos estão mais do que dispostos a esconder-te e os ciganos conseguirão fazer-te sair, mas não sabemos por quanto tempo as condições se manterão assim. Prometemos à rainha...
- Tu prometeste à rainha. Eu, não fiz promessa nenhuma. - A criatura enlouquecedora completou os seus preparativos num estado de calma sombria. - Eu posso cá ficar. Há trabalho a fazer, se é que Merina quer realmente rebentar a coleira que a prende a esses cães imperiais.
- Então, pelo menos mantende-vos afastada do palácio! - implorou Thom sem qualquer esperança. - Aquilo está infestado de homens do príncipe Leopold; se eles vos apanham...
- Eles não me apanham. - Shelyra ergueu uma sobrancelha num desdém cuidadosamente estudado. - Não podem. Não existe qualquer possibilidade de aquelas passagens serem abertas por acidente, agora já não. Eu tranquei a sua grande maioria antes de deixarmos o palácio e tranquei também aquelas por onde saímos. Agora só podem ser abertas do interior. Só se lhes pode aceder através das entradas no exterior dos jardins do palácio e duvido que até mesmo os casacos negros procurem entradas nesses locais.
- Mesmo assim, ainda podem ser abertas com um machado - retorquiu Thom, sentindo o calor subir-lhe pelo pescoço em reacção ao desdém que a rapariga evidenciava. - As paredes são muito grossas; é só uma questão de tempo até que alguém do séquito de Leopold repare quão grossas são e chegue à conclusão óbvia! Sois uma tonta, rapariga. O imperador conhece muito bem todos os truques e aquele cão dele, o Apolon, ainda os conhece melhor...
- E nenhum deles está cá. - Seria a rapariga incapaz de o deixar acabar uma frase? - Só cá está o príncipe, que não me parece especialmente inteligente. - Sorriu com cinismo. - Creio bem que me conseguirei proteger dele.
- Pelo menos, deixai-me ir convosco desta vez - implorou ele.
Ela limitou-se a soltar um grunhido. Não confiava nele; já o tinha tornado abundantemente claro. Pensava que ele só queria aprender os segredos do palácio para se poder servir, posteriormente, dos tesouros ali guardados. Não que não fosse exactamente isso o que ele teria feito, em circunstâncias normais... Mas não agora. Foi percorrido por um arrepio de frio. Considerava-se um homem corajoso, mas naquele momento não tinha quaisquer intenções de entrar no palácio. Não enquanto o Império controlasse a cidade. Havia coisas que, pura e simplesmente, não valiam o risco.
Shelyra pôs-se de pé e virou-se para a porta oculta. A porta dava para uma passagem, aparentemente sem saída, na parte do edifício reservada ao armazenamento. Dali conseguiria chegar, sem ser vista, a um portão nas traseiras do complexo que dava para um beco infecto, que nem mesmo os casacos negros se davam ao trabalho de vigiar. E dali conseguiria alcançar, de uma maneira ou de outra, o palácio. Parecia muito segura da sua capacidade de não ser descoberta. Dizia que era caçadora, embora de que forma as caçadas podiam contribuir para tornar alguém capaz de passar despercebido nas ruas, lhe escapasse totalmente. Aquele género de disparates seria suficiente para eriçar os cabelos até de um santo. A Thom fazia já arrancar os seus aos punhados.
Ela tocou num fecho escondido e o painel da parede girou, abrindo-se. Ele estendeu a mão para a deter e ela virou-se para o encarar, com uma expressão de profundo desprezo. Ela pensava que ele era um cobarde. Ele! Baixou a mão num gesto automático e ela esgueirou-se por trás do painel e fechou-o atrás de si.
À falta de coisa melhor para fazer, Thom foi até ao pátio onde havia uma fogueira acesa com gente reunida à sua volta. Habitualmente reuniam-se ali bailarinos e músicos, tanto das famílias ciganas, como do Clã dos Senhores dos Cavalos. Não porque tivesse havido alguma razão para celebrar nos últimos dias, mas os músicos precisavam de praticar fossem quais fossem as circunstâncias, e muitas das danças não eram mais do que exercícios de combate elaboradamente disfarçados. Como seria de esperar, já havia editais proibindo a prática de qualquer arte marcial, mas evidentemente que não havia nada que proibisse um bailarino ou uma bailarina de praticar a sua arte.
Naquele momento os músicos eram todos homens, bem como os bailarinos, e praticavam a dança do pau dos Senhores dos Cavalos.
Muito impressionante, muito excitante, especialmente à luz das chamas. E ninguém que não conhecesse bem os Senhores dos Cavalos adivinharia que aquela era uma forma sofisticada da luta do pau, tão mortífera quanto impressionante. Levava anos a dominar; Thom nem sequer se dera ao trabalho de tentar. Havia um número finito de coisas que um homem conseguia aprender no tempo da sua vida.
Estava Thom ali, entre os ciganos, com as palmas ritmadas e o som dos tambores a marcar o ritmo do seu coração, observando as varas brancas e finas vibrar contra o fundo vermelho da luz do fogo, quando sentiu que estava a ser observado. Alguém o olhava atentamente.
Virou-se de repente e viu que era a estranha criaturinha que a rainha usava como mensageira, que estava de pé por detrás de si e o olhava; vestida como um rapaz e tão convincente no seu disfarce como da última vez que a vira. Observava-o com olhos perspicazes que não deixavam entrever nenhum dos seus pensamentos e Thom pensou que seria preciso uma pessoa muito esperta para reconhecer os pequenos sinais que revelavam que o rapaz era, na verdade, uma mulher muito esbelta e muito pequena. Quando o viu virar-se, ela fez-lhe um sinal com a cabeça indicando os estábulos e desapareceu nas sombras do pátio.
Ele abafou um suspiro e meteu as mãos nos bolsos, virando-se e caminhando na direcção que ela lhe indicara. Havia apenas uma lanterna com um quebra-luz no interior da porta dos estábulos, que lançava uma nesga de luz para o pátio. Era aí que estava a estranha mulherzinha, insolentemente recostada na ombreira da porta, parecendo, a quem a pudesse ver, um adolescente atrevidote.
Foi ela quem falou primeiro.
- Tu continuas aqui, mas a minha caixa não. - Uma afirmação seca, mas com um tom de
insinuação acusatória.
Ele sentiu-se um tanto irritado.
-- No que respeita à caixa, a noite passada não tive tempo suficiente antes do romper da madrugada. Quanto ao facto de eu aqui estar, isso dificilmente é por culpa minha - respondeu ele. - Não consigo convencer a rapariga a partir! Na verdade... - as palavras jorraram da sua boca antes que as conseguisse conter, cheias de ressentimento - na verdade, ela decidiu que ia espiar o palácio todas as noites e nada que eu diga ou faça consegue fazê-la mudar de ideias!
-- Então não a consegues controlar, hem? - Um divertimento sardónico apareceu nos olhos da pequena mulher e Thom controlou o impulso de a estrangular. - Estranho. A julgar pela tua reputação, pensaria que não terias qualquer problema em consegui-la convencer a fazer o que tu quisesses.
- Ninguém me disse que eu tinha que a controlar – disse ele amuado. - Isso não fazia parte do acordo e duvido que conseguisses convencer a rainha a concordar com o que eu teria que fazer para a “controlar”.
- Leva-a para fora da cidade - disse ela - leva-a para os Senhores dos Cavalos.
- Bem, ela está com os Senhores dos Cavalos, por isso metade da minha promessa está cumprida e se ela não quer sair daqui, apesar de todos os meus argumentos e tentativas de persuasão, considero o resto do acordo nulo e sem efeito.
A criatura deu uma risada.
- Podias, evidentemente, dar-lhe uma pancada na cabeça, enfiá-la dentro de um saco e levá-la à força, quer ela quisesse, quer não. Não terias de dizer à rainha como a tinhas levado.
A ideia tinha os seus atractivos; atractivos esses que eram contrabalançados pela certeza que ele tinha do que ela lhe faria se ele o tentasse ou, pior ainda, se fosse bem sucedido.
O soprano não é o meu tom de voz favorito, e qualquer um que tenha sido aceite no Clã dos Senhores dos Cavalos sabe como usar aquela ferramenta que eles lá têm para capar gado, com tanta destreza como a maior parte das pessoas usa um garfo.
- Isso não fazia parte do acordo - repetiu ele teimosamente. - Limita-te a dizer à tua senhora que irei esta noite buscar a caixa dela e que lavo as minhas mãos no que respeita à rapariga. Protegê-la-ei sempre que puder, mas se ela recusar a minha companhia e não me permitir que a siga, não há nada que eu possa fazer.
A mulherzinha deu uma sonora gargalhada.
- Nesse caso ainda deves à minha senhora metade da tua vida. Por isso, como forma de te redimires vai buscar a caixa que ela te pediu e faze ainda uma outra coisa, um pouco mais fácil do que a primeira.
- O quê? - perguntou ele desconfiado.
- Vem comigo e descobrirás - disse a irritante criatura em tom de troça. - A não ser que, evidentemente, sejas tão cobarde como és incompetente. Ainda não tens a tal caixa, o que para mim só pode significar que uma das duas coisas és.
Magoado, seguiu a criaturinha enquanto ela atravessava rapidamente o pátio em direcção ao portão das traseiras que Shelyra acabara de usar. O fedor que vinha do beco na escuridão da noite era suficiente para fazer desmaiar um camelo e os pés escorregaram-lhe ao pisar poças e dejectos cuja natureza ele preferiu ignorar. Por outro lado, também não queria correr o risco de encontrar casacos negros.
A criatura tinha um dom sobrenatural para evitar os casacos negros, fazendo-o parar ou acenando-lhe para que avançasse, com tal eficiência que o mais que ele viu dessas aves agoirentas foi a aba de um casaco a virar uma esquina ou a ponta de um bastão a espreitar por cima de um muro. Rapidamente recuperou o sentido de orientação; se ela estava a dirigir-se para onde ele pensava, então ia para o Pátio de Stingray, um local de pequeno comércio, de trabalhadores menores das Guildas e onde toda essa gente tinha as suas casas e os estabelecimentos que eram o seu sustento. Por fim, ela conduziu-o até um quarteirão de lojas decentes, mas em não muito bom estado; todas elas fechadas e com os taipais cerrados, como defesa contra a escuridão da noite e daqueles que nela se moviam.
Depois de olhar furtivamente em volta, a criatura correu, atravessando a rua e dirigindo-se a uma das lojas. Bateu uma vez e fez a Thom um gesto para que avançasse. Desapareceu nas sombras atrás da porta enquanto Thom lhe seguia o exemplo, correndo pela rua como se fosse também ele uma sombra.
Quando chegou ao pé da loja, a porta estava apenas entreaberta e a criatura desaparecera de vista, mas uma mão agarrou-o, puxando-o violentamente para dentro. Ele não tentou resistir e ficou parado, a piscar os olhos à luz da lanterna, enquanto a mulher o empurrava um pouco para o lado para fechar a porta.
A sala era como o exterior da loja, decente, mas em não muito bom estado. A pouca mobília denotava muito uso, mas era de uma qualidade decente, e aparentemente a janela podia ser aberta formando um expositor para o que quer que fosse que ali se vendia. Reconheceu a rainha na mulher que lhe agarrava o braço, mas apenas porque ele próprio tinha alguma experiência de disfarces. Tinha sérias dúvidas de que houvesse muita gente na cidade capaz de dizer que aquela morena, gasta pelo trabalho e com tendência para a obesidade, tinha uma ligeira semelhança com a rainha desaparecida. Bem, isso pelo menos respondia a uma questão, que era a do paradeiro da rainha. Ele não pensara que ela se tivesse mudado para a sala das traseiras do Jonas e, o que era bastante interessante, ela não parecia mais desejosa de deixar Merina do que a sua sobrinha.
O que só prova que ambas são umas idiotas!
A pequena criada da senhora acabou um monólogo sussurrado enquanto esta fechava a porta e a rainha lançou a Thom um olhar de desaprovação enquanto a pequena mulher acabava de falar. Ele limitou-se a encolher os ombros.
- Se vós não a conseguis controlar, o que vos levou a pensar que eu conseguiria? - respondeu ele àquela reprovação silenciosa. - Ela faz o que quer e, neste momento, não há nada que qualquer um de nós possa fazer para a contrariar. – Acrescentou uma outra coisa que lhe ocorrera. - Os amigos dela, entre os ciganos e os Senhores dos Cavalos, provavelmente entenderão qualquer tentativa minha de me impor pela força como um acto hostil. O pacto de sangue que eu tenho com eles não é tão poderoso como o dela e eles dão muito valor a coragem individual. Se me vêem a tentar pará-la, posso ficar numa situação muito complicada em relação a eles. Podem expulsar-me e depois ela ficaria sem ninguém a tentar proteger a sua retaguarda ou a persuadi-la a ser cautelosa.
A rainha fez uma careta e assentiu contrariada, como se reconhecesse a justeza simples da sua afirmação.
- Não penses que te safas sem ter que fazer nada para merecer a tua vida e a tua liberdade - disse então a rainha. - Continuo a precisar daquela caixa e tenho uma outra tarefa para ti. - A sua boca contorceu-se ligeiramente. - É algo que te será familiar, suponho. Preciso que roubes mais uma coisa para além do estojo.
- Não do palácio... - interrompeu-a ele.
Mas a rainha abanou a cabeça.
- Não, não é do palácio. Nem sequer é de um sítio muito complicado para alguém com a tua fama conseguir lá entrar. É nas oficinas comuns da Casa do Tigre. Está lá uma certa caixa de madeira deste comprimento - indicou o tamanho com as mãos - desta altura e desta profundidade. Deve estar entre as ferramentas, na terceira bancada a contar da porta na oficina grande. Preciso dela. Contém mais ferramentas do que aquelas que tenho comigo. Suponho que, na mesma altura, poderás trazer também o estojo que te pedi.
Ele não lhe perguntou para que precisava daquelas coisas. Sem dúvida teria as suas razões.
- E trago tudo para aqui?
Mas ela abanou a cabeça.
- Estarei... noutro sítio. Eel estará à tua espera, do lado de fora da casa; poderá levar-te até mim, ou receber as coisas de ti, se tiveres guardas a perseguirem-te. Assim, mesmo que te apanhem e revistem, não encontrarão nada na tua posse.
Ele ergueu uma sobrancelha. Eel? É esse o nome que a anã chama a si própria? Bem, é um nome bastante adequado. Fez uma espécie de continência.
- O estojo e a caixa já são vossas, senhora - replicou com um toque da sua velha segurança. -- Vou tirá-las de lá antes da madrugada. De qualquer maneira, já planeava ir lá esta noite buscar o estojo. Ontem, quando finalmente cheguei à rua, já era quase de madrugada e o risco era demasiado. Não pensei que quisésseis que eu fosse preso antes de conseguir recuperar as vossas coisas.
- Se não o conseguires nas próximas horas, melhor seria que fosses preso.
Não havia na sua voz qualquer vestígio de admiração, nada a não ser a aceitação fria do pequeno milagre que ele estava prestes a realizar. Nem sequer o reconhecimento de que se tratava de um milagre. Ele cerrou os dentes, contrariado, mas não deixou transparecer a sua irritação. Em vez disso virou-se e, quando estava prestes a sair, lançou ele também uma ferroada por cima do ombro.
- Enquanto esperas, melhor seria que pensasses numa maneira qualquer para eu poder “controlar” a tua rapariga - disse secamente. - Senão ela ainda é capaz de arranjar maneira de sermos todos mortos.
E com aquele aparte reconfortante, desapareceu nas sombras da escuridão.
SHELYRA
Preferiria morrer a admiti-lo àquele fanfarrão do Thom Talesmith, mas Shelyra sentira-se aterrorizada durante todo o percurso que a levou através da cidade. Na verdade, sentia-se aterrorizada todas as noites; não tinha tanta confiança na sua capacidade de evitar os casacos negros como afirmava. Só voltou a respirar melhor quando entrou pela porta que dava acesso ao túnel que passava por baixo do jardim. Na realidade, fez uma pausa na sala secreta, que usara quando da sua transformação em Raymonda para respirar fundo por várias vezes até o seu coração se acalmar. Não estava nada ansiosa pela viagem de regresso. Tinha havido demasiados daqueles corvos de penas negras lá fora, demasiados para o seu gosto, e pareciam ver tão bem no escuro como qualquer mocho.
Mas de momento estava ali e chegara mais uma vez a altura de avaliar os conquistadores. Tinham-se mudado finalmente para o palácio naquele dia e ela tinha que ver se havia transformações dignas de nota.
Primeiro vou ver as salas públicas e depois as áreas de trabalho, como a cozinha. Quero ver se estão a ter reuniões e quero ver como estão a tratar os criados. Isto é, se é que não mandaram os criados todos embora hoje. Duvido que os mantenham aqui durante muito mais tempo.
Deslizou silenciosamente pelas passagens secretas, dirigindo-se em primeiro lugar à sala do trono. O palácio estava silencioso; estranhamente silencioso, mesmo tendo em consideração o tardio da hora. Podia muito bem ser ela o único ser vivo em todo o palácio.
Pensara encontrar o príncipe sentado no trono da sua tia com a corte reunida, mas a sala do trono estava vazia, apenas com umas quantas velas acesas, e pelo aspecto não tinha sido usada desde a abdicação.
Isso era muito estranho, considerando estar a cidade já nas mãos do imperador já havia mais de uma semana e o príncipe residir ali havia já um dia. Mais estranho ainda era a completa ausência de ruído; também esperara encontrar soldados embriagados à solta pelos salões, apanhando tudo aquilo que estivesse à mão. Por aquela altura, a disciplina imposta pelo facto de se encontrarem em território estranho e pouco seguro já deveria ter abrandado.
Mas enquanto atravessava o labirinto de passagens secretas, a única coisa que viu foram soldados aos pares, de sentinela em cada corredor. Os seus oficiais dormiam calmamente, instalados em grupos nos aposentos que noutros tempos tinham sido destinados aos convidados e suas comitivas. Procurando os soldados rasos, encontrou-os aboletados nos quartos antigamente destinados aos criados.
Por toda a parte só encontrou disciplina e ordem. Não havia qualquer sinal de abusos ou de saque, e nem um único vaso sequer estava fora do lugar. A porta da adega estava fechada a cadeado, mas as portas da despensa não estavam trancadas, o que deixava perceber que um homem que tivesse fome poderia servir-se de comida, mas que Leopold achava melhor não criar demasiadas tentações aos seus homens.
Por fim acabou por sentir, mais uma vez, uma admiração relutante. Leopold parecia ter o respeito e a obediência das suas tropas, mesmo que não tivesse mais nada. Tinha de facto mandado embora os antigos criados naquele dia, mas isso seria de esperar. Afinal, dificilmente poderia confiar neles, especialmente depois de alguns dos truques que ela ali fizera. Como era evidente, isso significava que nada fora convenientemente limpo desde que o imperador tomara a cidade, mas ela duvidava que um pouco de pó causasse qualquer perturbação a soldados profissionais.
Infelizmente aquilo também significava que não havia ali grande coisa para descobrir naquela noite. Homens sóbrios e calmos não deixam segredos escaparem-se-lhes dos lábios. Mas a ordem que ali reinava provocava uma sensação estranha e inquietante; era como se a pessoa que comandava os casacos negros e a pessoa que comandava os soldados aboletados no palácio fossem entidades completamente distintas. Corriam boatos entre os ciganos que os casacos negros eram unicamente de Apolon e que não só não eram tropas regulares do imperador, como não tinham que lhe prestar contas pelos seus actos. Seria possível que Leopold comandasse unicamente o palácio e não a cidade, e que os casacos negros, que respondiam unicamente perante Apolon, não tivessem apenas mão livre, mas também o comando efectivo da cidade? Poderia o inimigo estar assim tão dividido? Se era esse o caso... talvez ela pudesse aumentar as divisões no seu seio.
Os lábios curvaram-se-lhe num sorriso, enquanto observava um par de soldados andar para trás e para diante num dos átrios.
Será que eles acham o silêncio e o vazio tão estranho como eu o acharia? Nunca conheci um soldado que não fosse tão supersticioso como uma criada velha. Será que os posso encorajar a acreditar que o palácio está ainda mais assombrado do que diziam os criados? Talvez eu devesse ser menos subtil nas minhas “assombrações.” E já agora, devia assombrar também o Palácio de Verão.
A ideia tinha os seus encantos, lá isso tinha! Se os palácios ganhassem fama de serem habitados por espíritos zangados, os soldados eram bem capazes de exigir ser aboletados noutro sítio! E isso separaria o príncipe dos seus guerreiros, para além de lhe proporcionar a ela um acesso mais fácil ao palácio. Originalmente o seu objectivo fora enervar os criados, fazer com que
sentissem relutância em servir os seus novos amos e espalhar a história das “assombrações” do palácio na cidade, na esperança de que isso causasse inquietação aos seus habitantes. Mas se conseguisse causar a perturbação dos soldados imperiais... isso seria ainda melhor!
Nesse caso... chega de pequenos sinais, de meros murmúrios e barulhos no escuro; chega de pequenas mudanças que ninguém a não ser um criado verá. Chegou a hora de fazer com que os “espíritos” se manifestem de uma forma muito mais óbvia.
Passou a hora seguinte saindo rapidamente de portas escondidas para salas vazias, de preferência salas que ela sabia estarem fechadas, a semear o caos. Numa das salas, deixou todas as cadeiras de pernas para o ar. Numa outra, virou todos os retratos de membros da Casa do Tigre para a parede. Empilhou ornamentos no centro de uma mesa formando uma pirâmide, despejou feijões a todo o comprimento do chão da cozinha e do quarto da sua tia tirou a roupa de cama e levou-a para o túnel, deixando apenas a coberta bordada e encharcou o colchão de penas com água. Tudo pareceria estar normal ali, até que quem usurpasse aquele quarto tentasse deitar-se!
Não conseguia ir aos seus aposentos; não naquele momento, sabendo que os usurpadores teriam revistado todos os seus haveres pelo menos uma vez. Apesar de não ter lá deixado nada de valor, excepto as jóias de Estado e os objectos demasiado valiosos para Gordo conseguir trocar, a simples ideia de um qualquer oficial imperial com as patas nas suas coisas fazia-a sentir-se ligeiramente mal. Pensar nisso já a fazia sentir-se como que violada, e não queria ter que enfrentar o facto.
O último acto de vandalismo acabou por esgotar as últimas das suas energias e voltou a desaparecer pelas passagens secretas, pensando mais uma vez no efeito que o seu trabalho teria em Leopold e na sua gente. Tomara todas as precauções para não fazer barulho durante as sabotagens, presumindo que o silêncio seria mais assustador quando os estragos fossem descobertos, do que o som de alguém a destruir as salas.
O resto do seu trabalho ainda não estava feito, mas decidiu deixar a excursão ao Palácio de Verão para a noite seguinte. Havia, no entanto, mais uma coisa que tinha que fazer antes de voltar para o Bairro Cigano. Tinha que ir ao templo; mais especificamente, tinha que entrar nos claustros.
Felizmente, essa era a tarefa mais fácil de quantas tinha desempenhado naquela noite. Adele já lhe mostrara a passagem secreta que levava dos aposentos da rainha até ao interior do templo. A grande sacerdotisa exigia, tradicionalmente, ter essa forma especial de acesso à rainha, que a seu tempo se tornaria ela própria na grande sacerdotisa.
E exigirá o imperador ser entronado como chefe secular do templo para além de ser o chefe da cidade, pergunto-me eu?
Reflectia enquanto procurava o caminho na parte menos familiar do labirinto secreto.
Pergunto-me qual será a sua reacção quando lhe disserem que nenhum homem pode ser chefe do templo. A não ser, evidentemente, que ele esteja disposto a fazer um determinado pequeno sacrifício pessoal.
Para aceder àquela última passagem, teve que esgueirar o seu corpo magro através de um pequeno túnel por cima do armário no quarto da rainha e deixar-se cair de uma passagem superior.
Só alguém tão jovem e em tão boa forma física o conseguiria; a maioria das pessoas teria entrado pela porta secreta que dava para o próprio quarto em vez de se submeter a tais contorções.
A passagem terminava numa porta de madeira espessa e pesada, que abriu cautelosamente, entrando numa pequena sala onde havia apenas uma lanterna e quatro ganchos, cada um deles com um manto disforme pendurado, das quatro cores das ordens, cinzento, castanho ferrugento, amarelo e vermelho. Espreitou através de um buraco-espia para a sala ao lado, que tinha no seu interior uma imagem do Coração, um genuflexório e uma única figura coberta por um hábito castanho ajoelhada no genuflexório.
A religiosa ergueu-se rapidamente quando a parede da sala se abriu. A religiosa acenou com a mão para que esperasse um pouco.
- Sei quem sois e a razão porque aqui viestes - disse suavemente. - Fui mandada aqui para vos levar à vossa avó.
Sorriu envergonhada; Shelyra pensou que ela devia ter cerca de quarenta anos, mais coisa menos coisa. Usava o cabelo grisalho cortado curto como o de todos os membros das ordens e tinha postos uns óculos através dos quais a olhava intensamente.
- Esta sala é supostamente dedicada à meditação. Há quatro de nós que conhecemos o vosso segredo, um por cada turno de vigia, noite e dia; só quatro e não mais, e morreremos antes de revelar tal segredo.
Shelyra entrou na sala, deixando que a porta se fechasse silenciosamente atrás de si e desejando sombriamente que a religiosa nunca se encontrasse na posição de ter que provar tal afirmação.
Shelyra puxou a prega do manto por cima da cabeça, escondendo o rosto sujo de carvão. Instantes depois percorriam as duas, pausadamente, um dos corredores de pedra dos claustros do templo, frescos e ecoantes.
Shelyra pensou que nunca teria conseguido fixar quem vivia por trás de cada uma da miríade de pequenas portas ao longo do corredor, mas a religiosa parecia não ter esse tipo de dificuldade. Bateu ao de leve numa das portas e murmurou uma frase em tom demasiado baixo para que Shelyra pudesse compreender o que dizia e a porta abriu-se. A religiosa não entrou.
- Esperarei por vós na sala - disse. - Deixarei a porta aberta para que a consigais encontrar. Vinde quando estiverdes pronta para partir e, se quiserdes sair por outro caminho, ajudar-vos-ei.
Apressou-se a regressar pelo corredor, deixando Shelyra entrar sozinha no quarto.
Se tivera quaisquer dúvidas acerca da sensatez daquela visita, estas foram dissipadas no momento em que viu a avó à sua espera, com um aspecto melhor e mais forte do que o que tivera nos últimos meses. De repente, todos os medos e incertezas que se esforçara por ignorar abateram-se sobre si e ela lançou-se nos braços de Adele com um pequeno gemido, como uma pequena criatura da floresta que procurasse abrigo.
Contudo não ficou nos braços de Adele mais do que um instante. Aquela não era altura para fraquezas e sem dúvida que Adele teria os seus próprios problemas para resolver. Depois de um abraço breve, afastou-se com um sorriso falsamente alegre estampado no rosto.
- Na cidade não paramos de ouvir rumores de que estais doente, ou até morta - disse para disfarçar a sua fraqueza. - E embora o Thom tivesse dito que falara convosco e eu soubesse que os rumores eram falsos...
- Apesar de saberes tudo isso, deve ter sido um alívio tão grande para ti veres que eu estou bem, como é para mim ver-te a ti - respondeu Adele calorosamente. - Aqui correm rumores de que os homens de Apolon te apanharam quando fugias e que te afogaram num canal, e que Lydana está presa sob a custódia do imperador. Apesar de eu saber que não era verdade, esses boatos criam sempre as mais terríveis dúvidas.
Shelyra assentiu.
- Vim cá para saber se haveria alguma coisa de que precisásseis do exterior do templo - disse. - E para vos dizer que fico na cidade. No Bairro Cigano estou tão a salvo quanto possível e não posso deixar a nossa cidade nas mãos destas bestas; não enquanto existir a possibilidade de fazer qualquer coisa de útil aqui. Tenho acesso totalmente livre ao palácio e ao Palácio de Verão, e tenciono usar esse acesso para os espiar sempre que possível.
Descreveu pormenorizadamente a Adele a situação no interior do palácio e a avó ouviu-a atentamente. Adele abanou a cabeça quando ela acabou o seu relatório.
- Parece que Leopold não comanda nada para além dos seus próprios homens, visto que os casacos negros respondem separadamente a Apolon. Que situação horrorosa para ele! Torna-o duplamente ineficaz.
Shelyra assentiu energicamente, ao ouvir como que o eco perfeito dos seus próprios pensamentos.
- Achais que eu posso aumentar a divisão? Quanto mais dividido o inimigo, melhor para nós!
Mas para seu desapontamento, Adele abanou a cabeça.
- Espera até que eu pense bem nas implicações desse plano. Se Leopold tem de facto o comando de tão pouco, a divisão é provavelmente já tão grande que estaríamos a desperdiçar energias e tempo melhor empregues noutras coisas. E se tens acesso ao Palácio de Verão, há de facto umas coisas que lá estão e de que eu preciso. Não tive tempo para trazer todos os meus livros, embora os tenha protegido magicamente no ano passado, antes de os exércitos do imperador se terem aproximado tanto. Ninguém que não seja do nosso sangue conseguirá reconhecer os livros por aquilo que eles são, e muito menos levá-los. - Sorriu fatigadamente. - Tive um aviso; talvez devesse ter-lhe prestado mais atenção.
Shelyra encolheu os ombros.
- Se a premonição fosse previsão, nunca cometeríamos quaisquer erros. Onde é que estão esses livros e como é que lhes posso aceder?
- Estão nos meus aposentos, na biblioteca mais pequena - disse-lhe Adele. - E se não quiseres transportá-los através dos túneis, trá-los para o confessionário; o terceiro confessionário à direita do Coração, como sabes. Esforçar-me-ei por lá estar todos os dias. Um em cada dois dos livros que estão nos meus aposentos é sobre magia, mas aos olhos de qualquer pessoa que não pertença à Casa do Tigre parecem simples livros de história e questões religiosas. Leitura muito maçadora, típica de uma velha tonta que pensa estar às portas da morte, e não é provável que tentem ninguém a examiná-los mais de perto.
Shelyra riu-se.
- Começo amanhã a mudá-los para uma sala secreta que descobri - prometeu. - E de lá começarei a trazê--los para aqui, alguns de cada vez. Ou mandarei alguém levar-vo-los ao confessionário, se forem demasiados para ser eu a trazê-los. Duvido que alguém suspeite das mulheres que vêm ao templo com livros de cânticos nas mãos. Até os ciganos precisam de rezar.
- Espero que sim - disse Adele secamente. - Embora por vezes tenha as minhas dúvidas. E que é feito daquele ladrão que te deveria ter feito sair de Merina?
Shelyra fungou com desdém.
- Isso foi ideia da tia Lydana, não foi minha - e, segundo suspeito, também não foi vossa. Suponho que podemos confiar nele dentro de certos limites, mas ele é muita parra e pouca uva, e eu não confio nele nem para fazer sair uma carroça de nabos da cidade. Ele não quer saber de nada a não ser de si próprio, dos seus lucros e da sua fama; não se preocupa nem com Merina nem com o Tigre.
A avó suspirou.
- Pode ser que o estejas a subestimar, mas ele é um ramo demasiado fino para que apoiemos nele todo o nosso peso; penso que és sensata em não depender demasiado dele. - Apertou os lábios, e Shelyra percebeu que ela queria dizer mais qualquer coisa mas que hesitava. - Sei que és uma criança com sentido prático... - começou com precaução.
- Ides dizer-me que puseste anjos a guardar-me? – perguntou Shelyra, só meio a brincar.
Adele via anjos e outros espíritos, ou dizia que via. Shelyra nunca vira nada fora do normal quando a sua avó tentara mostrar-lhe essas aparições espirituais, nem mesmo quando era muito pequena e supostamente mais aberta a esse tipo de coisa. Essas afirmações de Adele faziam com que, frequentemente, a rainha se sentisse muitíssimo desconfortável, embora Shelyra nunca se tivesse sentido incomodada. Se a sua avó estava iludida, não havia qualquer mal nessas ilusões e se não estava... bem, naquele momento Shelyra aceitaria alegremente a protecção de qualquer criatura, fosse ela anjo, fantasma, duende, gnomo, ou fada de asas de gaze saída de uma qualquer história de embalar.
- Não... exactamente - disse Adele com sobriedade. – A Luz não envia os seus mensageiros para agir, mas para avisar ou aconselhar. Não, queria simplesmente recordar-te o facto de que anda muita magia à solta; e grande parte dela é magia negra, muito negra mesmo. Farei o que puder, mas eu não passo de uma pobre mulher. Protege-te; não deixes para trás nada de que uma mão inimiga se possa apoderar. Sei que te defendes bem de um punhal na noite, ou de um malfeitor que encontres nalgum beco... mas tenho razões para crer que és o objectivo de uma caçada e os cães que te farejam não são deste mundo.
Shelyra mordeu pensativamente o lábio.
- Farei o melhor que puder, avó - disse por fim - mas... essas não são as minhas armas preferidas.
- Então encontra alguém de quem sejam... talvez um dos teus ciganos - insistiu Adele. - Não posso estar lá e cá ao mesmo tempo. Sentir-me-ia mais descansada se soubesse que
tinhas a protecção de alguém que fosse um mestre das artes do espírito.
Agora era a vez de Shelyra hesitar, pois os ciganos que ela conhecia e que eram competentes nas práticas da magia, não partilhavam a fé dos que adoravam no Templo do Coração e os Senhores dos Cavalos não podiam ser convencidos a entrar no templo em circunstância alguma e preferiam adorar a sua própria deusa equestre, Ekina. E embora isso não a perturbasse particularmente, Adele poderia não ficar satisfeita...
- Verei se algum deles está disposto a fazê-lo e dar-lhe-ei conhecimento de alguns dos meus segredos - contemporizou. - Nunca pediria uma coisa dessas a ninguém sem lhe dar a conhecer os perigos em que incorre.
Adele assentiu relutantemente.
- Outra coisa... não importa o que ouças dizer de mim no templo, não acredites a não ser que um dos religiosos te leve isto - estendeu a mão onde se via ainda o anel de casamento, uma aliança de ouro branco com pequenos olhos de tigre engastados - ou o ouças da boca de alguém no tal terceiro confessionário quando eu lá não estiver.
- Assim farei, e agora tenho que ir - disse Shelyra, rapidamente, antes que Adele pensasse em levantar objecções. – A aurora está prestes a romper e eu não posso ser apanhada por ela.
A avó pôs-se de pé e abraçou-a.
- É claro; perco a noção do tempo aqui entre estas paredes; aqui no Coração tudo parece intemporal. Vai depressa; regressa em segurança.
Shelyra retribuiu o abraço e saiu, desejando não deixar transparecer a vontade que tinha de sair dali. A religiosa de óculos estava à sua espera na sala de meditação, tal como prometera, e fechou cuidadosamente a porta do túnel atrás de si. Daquele túnel era fácil passar para um dos outros túneis que levavam ao exterior; aquele que ela escolheu partia do quarto da rainha-mãe.
Ainda bem que não entro e saio pelo mesmo caminho. Se alguém me estivesse a vigiar e me tivesse visto desaparecer, nunca encontraria a entrada a não ser que me visse voltar a sair.
Bocejou; fora uma noite muito longa, e a energia provocada pela excitação estava a desaparecer. Mas enquanto saía para o exterior através de uma pequena porta que dava para um canal escuro e pouco utilizado, ocorreu-lhe uma outra coisa. Em toda a noite e durante todas as suas idas e vindas no palácio, não vira nem sinais do próprio Leopold. Se ele não ocupara os aposentos da rainha-mãe nem os da rainha, onde estaria? Porque não o vira? E que estaria ele a fazer?
LEOPOLD
Leopold completou a sua inspecção ao palácio quando o sol se punha; tendo uma ideia das várias instalações, pôde destinar os alojamentos e as tarefas de forma mais eficiente e rápida. Mandara embora todos os criados naquele dia, evidentemente, assim que souberam quais eram exactamente os seus deveres e onde eram guardados todos os mantimentos; não se podia confiar neles. Na melhor das hipóteses, cumpririam relutantemente e a contragosto as suas obrigações; na pior seriam potenciais agentes de sabotagem. Não lhe pareceram, aliás, especialmente contrariados por se irem embora; os seus sargentos já lhe tinham comunicado que havia rumores entre os criados de que o palácio estava assombrado.
Deixou aos sargentos a tarefa de destinar a alguns dos homens os trabalhos que eram normalmente assegurados pelos criados. Isso seria, como era evidente, uma medida temporária; quando o imperador finalmente instalasse ali a sua residência, traria com ele todo o seu pessoal.
Quando acabou de dar as suas ordens aos oficiais, ficou parado no átrio junto aos aposentos reais, olhando para o retrato de um qualquer antepassado da anterior família real. Um homem de rosto severo, que apesar de tudo parecia ter no olhar uma sugestão de humor e nos lábios um sorriso contido. Não tinha qualquer semelhança com os retratos oficiais do imperador Balthasar. Esses eram todos muitíssimo formais, tão rígidos que poderiam ser os retratos de uma qualquer estátua inanimada...
Gostava de ter por pai um homem assim, pensou impulsivamente, sentindo-se imediatamente culpado. Que estava ele a pensar? Ele era filho de Balthasar, um filho leal. Nenhum reizinho-mercador poderia alguma vez comparar-se ao seu pai...
- Para onde devemos levar as vossas bagagens, meu senhor? - perguntou o seu escudeiro, fazendo com que saísse, com um sobressalto, do sonho em que caíra sem se aperceber. - Para os aposentos da rainha... quero dizer, de Lydana?
Ele considerou a hipótese, de sobrolho franzido, voltando a sentir o já tão familiar aperto no estômago. Até àquele dia estivera alojado com os seus homens no exterior do palácio, numa caserna velha desactivada, mas agora tinha que se instalar convenientemente no palácio. Ali estava mais uma armadilha, mais um escolho no seu caminho. Seria que nunca se conseguiria livrar delas, destas maquinações e manobras?
Se eu fico com os aposentos da rainha, isso poderá ser interpretado como uma usurpação dos privilégios do pai. Se fico com os aposentos da rainha-mãe, Apolon envidará todos os esforços para me tirar de lá. E, não sei por quê, não me apetece ficar nos aposentos da princesa. Parece... pouco cavalheiresco.
- Leva as minhas coisas para os aposentos ao fundo do corredor - disse por fim. - Sei que não foram usados nos últimos tempos, mas estou certo de que ficarão bons se forem arejados.
Aqueles quartos tinham sido ocupados em último lugar por um homem; sentir-se-ia muito melhor ali. Talvez até tivessem sido ocupados pelo homem do retrato.
O escudeiro fez uma vénia e foi-se embora sem fazer comentários.
Depois de ele se ter ido embora para ir buscar as coisas do príncipe e, presumivelmente, para ir recrutar ajuda para uma grande sessão de arejamento e limpeza, o príncipe ficou onde estava, ainda de cenho franzido. Havia alguma coisa que o estava a preocupar, embora não conseguisse perceber o que era. Seria alguma coisa relacionada com a princesa Shelyra? Alguma coisa relacionada com a forma como Apolon tencionava apanhá-la? Sim. E tem que ver com os seus aposentos.
Voltou para trás, pensativo, tentando situar o que quer que o tinha perturbado. Tinha ordenado que todas as salas fossem iluminadas por pelo menos uma vela ou candeeiro, embora isso pudesse parecer um desperdício. Queria que os guardas que patrulhavam os átrios e os corredores pudessem ver para dentro das salas se ouvissem qualquer barulho no seu interior. Não
toleraria qualquer saque e os seus homens sabiam-no. Agora tudo aquilo era propriedade do imperador e roubar qualquer coisa ali seria o mesmo que roubar o próprio Balthasar; logo, um crime capital.
Não pensava realmente que qualquer um dos seus homens se sentisse inclinado sequer a pensar em roubar... mas os seus homens não eram os únicos na cidade. Se Cathal ainda não tinha mudado os seus mercenários para o quartel, fá-lo-ia no dia seguinte e os mercenários roubavam tudo o que fosse deixado sem guarda.
E havia ainda aqueles cães vestidos de negro, de Apolon. Não confiava neles e não queria encontrar-se na situação de faltar qualquer objecto importante ou valioso enquanto fosse ele o responsável pelo palácio. Poderiam ter sido eles, aliás, os iniciadores dos boatos acerca das assombrações, tentando que o caminho ficasse livre.
Seria mesmo coisa do Apolon, tentar planear um roubo, pensou com irritação, enquanto entrava pela porta que dava acesso aos aposentos da princesa. Ou... talvez aquilo que ele mandasse os seus homens roubar não tivesse qualquer valor excepto para si próprio!
Aquela ideia ocorreu-lhe enquanto passava os olhos pelo quarto confortável da princesa, tendo mais uma vez a estranha sensação de que a sua proprietária acabara de sair e voltaria em breve. A uma investigação preliminar, parecia que Shelyra não levara nada quando desaparecera, nem mesmo os ganchos de cabelo ou quaisquer das outras bugigangas femininas que estavam em cima do seu toucador.
E fora isso que lhe provocara a sensação de “algo de errado”. Não o facto de o quarto ter ficado praticamente intocado, mas sim a hipótese de Apolon ser capaz de usar as coisas que ali estavam, exactamente por estarem virtualmente intocadas.
Leopold não era nenhum mago, mas conhecia alguns dos princípios segundo os quais a magia operava. Qualquer idiota sabia que não deveria deixar um objecto pessoal cair nas mãos de um mago. Se o mago não conseguisse usar esse objecto para controlar o seu possuidor, conseguiria pelo menos utilizá-lo por forma a encontrar o seu paradeiro e a espiar-lhe os movimentos. Mas talvez as mulheres da família real não conhecessem a forma como os objectos pessoais podiam ser usados. Talvez fosse melhor ele próprio remediar essa questão.
O Apolon quer a princesa e tenho a certeza absoluta de que ele utilizaria quaisquer meios ao seu alcance para conseguir tê-la. Deve haver aqui um sem número de coisas que ele poderá usar para a localizar!
Bem, isso Leopold poderia remediar e já que o fazia; podia encarregar-se de fazer com que os aposentos da rainha e os da rainha-mãe sofressem igual tratamento. E podia fazê-lo legitimamente, com o pretexto de “aprontar os quartos para o imperador”. Sentiu um sorriso fino formar-se-lhe nos lábios e o calor da satisfação espalhar-se-lhe pelo corpo. Não era com freqüência que tinha a oportunidade de frustrar o Mago Cinzento.
Chamou homens para que o ajudassem e começou pela cama, tirando toda a roupa, mas deixando no mesmo sítio a coberta preciosamente decorada a ouro. Isto arruma a questão dos lençóis que estiveram em contacto com o seu corpo. Seguiram-se a mesa e o armário dos cosméticos: mandou juntar todos os potes e frascos dentro de lençóis para que fossem levados, cuidadosamente esvaziados e lavados, e devolvidos aos armazéns do palácio. A escova da princesa, o seu espelho e o pente, levou-os ele quando os homens saíram; algumas coisas teria que ser ele a fazê-las pessoalmente.
Quando os homens regressaram, já ele despejara todas as gavetas e atirara para a lareira as peças mais íntimas. O linho e as rendas delicadas ardiam facilmente; finos fantasmas brilhantes, as rendas subiam pela chaminé com o calor das chamas.
O restante mandou que fosse enviado, não para os armazéns da casa, mas para os armazéns das tropas e usado como trapos. Os soldados precisavam sempre de ter à mão panos de limpeza e ele anunciou que na manhã seguinte faria uma inspecção formal. Quando a tarde seguinte chegasse, qualquer daqueles tecidos, até ao último pedaço, não teria qualquer valor para um mago, contaminados como estariam por graxa das botas e a gordura protectora do ferro das lâminas.
Embora isso fosse estranho, não recebia qualquer sensação da “pessoa” do guarda-roupa e dos belos e luxuosos vestidos que este continha. Nem qualquer das jóias invocava qualquer sinal de personalidade; e jóias era o que ali não faltava, como era aliás adequado a uma herdeira da Casa do Tigre, afamada em todo o mundo pelas suas pedras preciosas e pelas suas jóias. Os vestidos mandou que fossem armazenados no sótão; as jóias fechou-as numa arca com as suas próprias mãos e colocou-a em cima de uma mesa, em local de evidência, ao lado da cama. Balthasar reclamaria as jóias para si, ou então fá-lo-ia o chanceler; Apolon não poria as mãos em nenhuma delas. E duvidava que Apolon conseguisse distinguir os vestidos da princesa dos outros que se encontravam no sótão. Como conseguiria um simples homem distinguir o que estava na moda hoje ou tinha estado na moda cem anos atrás? Ele próprio já fora apanhado muitas vezes nessa armadilha ao cumprimentar uma rapariga pelo seu vestido, vendo-a ficar calada e tensa, e descobrir mais tarde que o fato era uma antiguidade recuperada e que a rapariga fora obrigada a usá-lo por uma madrasta ciumenta que queria fazê-la parecer ridícula.
Mandou embora os homens com o resto das roupas e ele próprio fez uma última inspecção aos quartos. Estava prestes a ir-se embora quando teve subitamente a sensação de que alguém o observava. A nuca arrepiou-se-lhe, e ficou com os braços cobertos de pele de galinha.
Girou sobre si próprio, pois aquele instinto nunca falhara. Quem poderia ter ali entrado sem o seu conhecimento? Estava alguém de pé junto ao roupeiro. Não era um dos seus homens; mesmo no escuro conseguia ver isso. Na verdade, não conseguia dizer se era macho ou fêmea, embora o rosto sem barba fosse suficientemente belo para lhe fazer doer o coração e suficientemente terrível para o fazer bater mais depressa, com medo. Não conseguia desviar o olhar daqueles olhos, daquele rosto; tinha o olhar preso e os pés colados ao chão. Não se podia mover, embora todos os seus instintos lhe gritassem que nenhum ser humano vivo deveria estar de pé na presença de algo como aquilo. Reprimiu a vontade de ajoelhar e curvar a cabeça, mas unicamente porque não teve a certeza de se conseguir erguer de novo se o fizesse.
Não teria sabido dizer o que aquela pessoa trazia vestido; tudo o que conseguia ver era o rosto, os olhos... e as mãos, compridas; mãos finas que apontavam para o roupeiro, para um compartimento que ele pensava estar vazio. O rosto da criatura era brilhante, mais brilhante do que seria natural, pois um tal brilho não podia ser o reflexo da luz que vinha da lareira e das duas velas que estavam na chaminé.
Ficou ainda mais brilhante enquanto o olhava, até ficar de tal forma ofuscante que era doloroso e ele pestanejou para afastar lágrimas que repentinamente lhe assomaram aos olhos. Desapareceu enquanto pestanejava; de um momento para o outro desapareceu completamente, como se nunca lá tivesse estado.
O único testemunho da sua presença era o facto de os seus olhos continuarem marejados e reterem uma mancha negra e brilhante com forma humana.
Começou a tremer, em reacção, e estendeu a mão para a parede em busca de apoio, pois os joelhos pareciam não querer aguentar o seu peso.
O que seria aquilo...? Os céus sejam louvados. Não admira que a primeira coisa que Eles digam aos mortais quando aparecem seja “não temas”! Mas ele era um soldado; passado pouco tempo já conseguira recuperar novamente o controlo. Esperou apenas o tempo suficiente para que a visão ficasse outra vez nítida e voltou para junto do roupeiro, abrindo as portas do compartimento que o anjo apontara e espreitou lá para dentro. Quando não viu nada, foi buscar uma das velas que estavam junto à lareira e trouxe-a para lhe facilitar a busca.
Foi então que o encontrou. Como valor, não era grande coisa; não valia praticamente nada. Mas Apolon, se ali estivesse, tê-lo-ia agarrado e levado com uma satisfação mal dissimulada. Leopold pegou no pequeno objecto metálico com um arrepio de satisfação. Era um pequeno cavalo de prata, gasto pelo muito manuseamento, como se o seu proprietário o acariciasse para dar sorte ou para se acalmar. Só havia uns ourives no mundo que faziam cavalos-amuleto como aqueles, destinados a ser presos aos arreios de uma montada favorita para lhe proporcionar as bênçãos de Ekina, a deusa do cavalo.
Os Senhores dos Cavalos. Leopold soube-o no momento em que viu o amuleto. Como pista para o possível paradeiro da princesa, era de um valor inestimável. Até àquele momento ele não fizera ideia de que ela pudesse sequer saber quem eram e o que eram os Senhores dos Cavalos e duvidava que mais alguém soubesse. Para Apolon, como uma relíquia sua, muito manuseada, seria quase tão bom como ter a própria princesa em seu poder.
Coisa que ele seria capaz de conseguir e em muito pouco tempo, com isto ao seu alcance. Leopold atirou o pequeno amuleto ao ar e voltou a apanhá-lo com a mesma mão, depois enfiou-o num bolso franzindo o sobrolho.
Bem, agora já não terá essa oportunidade! Não enquanto eu aqui estiver.
Mas quem, ou antes, o quê tinha sido a aparição? Duvidava da sua primeira identificação impulsiva, pois que quereria um anjo de alguém como ele? Seria então um fantasma? O espírito de um soberano de Merina há muito falecido? Ou algo... algo de muito menos “pessoal” e muito mais perigoso? Um demônio não, certamente quaisquer demónios estariam sempre do lado de Apolon. Isso deixava uma única possibilidade a que todos os parâmetros se ajustavam... e mais uma vez, tremeu ao recordar-se da imagem.
Não vou pensar mais nisso, decidiu resolutamente. O que quer que fosse queria que eu ajudasse Shelyra a escapar às garras de Apolon. Se era um anjo...
Abanou bruscamente a cabeça como que para sacudir aquela ideia. Não interessava. O que interessava era que ele tinha mais dois quartos para limpar. Os objectos muito pessoais, como a escova de cabelo ou o amuleto de prata, ele próprio os levaria e esconderia numa mala cheia de abafos que raramente usava e que estava no fundo do seu próprio roupeiro. Acabaria por arranjar uma forma de os “perder” num canal ou coisa do género.
O restante seria transformado, através da utilização de água e sabão, em algo que Apolon já não poderia utilizar para encontrar as mulheres. Se Leopold tivesse oportunidade, arranjaria mesmo uma costureira para desfazer os vestidos e reduzi-los a um monte de tecido, jóias, fio de ouro e rendas. Tudo o que as três mulheres que tinham vivido no palácio tinham usado ou vestido, ele desfaria, removendo cada vestígio até não haver nem um rasto frio que aquele mago pudesse cheirar.
E seria tudo na defesa dos melhores interesses do seu pai, o imperador, livrando-o de bugigangas femininas e inúteis e transformando-as em algo com valor no mercado.
Com passadas determinadas, foi até ao quarto da rainha, confiante de que quando fosse para a cama, já teria atingido completamente os seus objectivos. Afinal de contas... parecia que alguém viera em seu auxílio, ou não era verdade? Qualquer que fosse a fonte desse auxílio, ele não o iria recusar nem ignorar.
Havia mais uma coisa que iria fazer. Ia começar a fazer ainda mais perguntas acerca de Apolon; perguntas precisas. Certamente que, nalgum ponto, o Mago Cinzento cometera um erro.
Nalguma ocasião teria com certeza deixado alguém ver ou saber demasiado. Até àquele momento, Leopold só suspeitava das origens do poder de Apolon.
Agora procurarei factos, provas que possa apresentar ao meu pai e que Apolon não possa refutar. Há aqui uma podridão e a origem dessa podridão está no Mago Cinzento, e eu prová-lo-ei. Tenho que o provar. A presença do mensageiro prova isso mesmo. Tenho que pôr a nu os segredos de Apolon.
Pois se ele não fosse bem sucedido nisso, algo lhe dizia que Apolon não toleraria as suas acções e interferências por muito mais tempo...
APOLON
Apolon sorriu, um pequeno sorriso onde não havia vestígios de felicidade. A felicidade era para os idiotas que davam valor a esses prazeres efémeros. Sorria meramente como reflexo da satisfação que sentia no progresso dos seus planos até ao momento.
Leopold estava agora numa situação em que poderia ser eliminado. Não havia ninguém a supervisioná-lo directamente e uma liberdade tão pouco habitual certamente que o empurraria tentadoramente para comportamentos impulsivos e idealistas. Com um pouco de sorte, desafiaria Cathal e se Balthasar tivesse que escolher entre apoiar o general que arquitectara tantas vitórias ou o seu sentimentalão (e um tanto inconveniente) filho... bem, não havia qualquer dúvida no espírito de Apolon para que lado o imperador penderia. No mínimo, Leopold seria banido para um local inóspito e longínquo, onde Apolon poderia eliminar o príncipe quando fosse mais conveniente. Na melhor das hipóteses, o próprio imperador mataria o idiota, partindo do princípio que Leopold estava a tentar apoderar-se do trono. Havia sempre a possibilidade de aquelas muitas suspeitas que ele plantara, sobre os rapazes e a sua impaciência por governar, tivessem finalmente ganho raízes na mente do imperador.
Pelo menos isso era satisfatório. A busca das três mulheres da família real, contudo, não estava a correr bem.
O sorriso de Apolon desapareceu. Das três, a mais nova, a princesa Shelyra, era a mais importante para os seus planos, pois era ela que tinha aquilo de que ele precisava. Poder potencial, não poder secular, mas mágico; todas as mulheres possuidoras do Talento o tinham, numa espécie de reserva, até a mudança de idade, mas as da Casa do Tigre tinham-no mais abundantemente do que quaisquer outras que ele tivesse encontrado.
Um homem podia fazer magia em qualquer idade, desde que se mantivesse casto, mas o poder de uma mulher nunca era mais do que um potencial até ao fim da sua fertilidade. Então, como que recompensando-a por ter sido mantido durante tanto tempo em suspenso, este florescia, tornando-se mais forte com o avanço da idade; tão forte que, muitas vezes, as mulheres que desabrochavam tão tardiamente, se tornavam mais poderosas do que os magos masculinos que tinham praticado durante toda a sua vida.
Adele, a rainha-mãe... já deveria ser uma maga em todo o seu potencial, provavelmente já o era há alguns anos, visto ter abdicado em favor da sua filha. Felizmente para Apolon, dizia-se que a sua saúde estava em muito mau estado; na verdade, tivera um colapso depois de a cidade ter sido entregue a Balthasar. Ainda estava, provavelmente, escondida nos claustros do templo, prestes a morrer. Isto de acordo com o relatório feito por Leopold. Como todos aqueles cujos poderes nasciam das Trevas, Apolon tinha dificuldade em olhar para a Luz e não conseguia determinar números nem força quando estavam juntos mais do que dois magos da Luz. Mas se a sua sorte não o abandonasse, ela morreria; poderia ser considerada fora do jogo.
A antiga rainha, Lydana... se não conseguisse apanhar Shelyra, teria que servir. Devia estar muito próxima de ficar na posse dos seus poderes; no entanto e por isso mesmo, a energia do potencial seria muito, muito mais pequena. Todos aqueles anos que ela já vivera e que Shelyra ainda não gozara, esses anos tornariam as vantagens a tirar dela muito menores do que a tirar da mulher mais nova. E tinha sido casada, por isso já não era com certeza virgem, o que era mais um defeito, no que lhe tocava a ele. Se não conseguisse obter a princesa, procuraria mais seriamente a rainha, mas por agora concentrar-se-ia na rapariga.
Sim, na donzela. Lambeu os lábios, saboreando a ideia, mas não por quaisquer razões carnais. Apolon não atribuía qualquer utilidade aos prazeres carnais; esses eram efémeros e não tinham qualquer significado, eram fachadas ocas para tentar os imbecis. O único prazer real e eterno era cerebral e temporal: saber e poder. A utilidade de Shelyra não era servir a libido de ninguém; certamente não a de Apolon.
Primeiro, o enorme potencial de Talento contido dentro dela. Segundo, a energia dos seus anos por viver, sessenta, ou coisa parecida, se se tivesse como referência as longas vidas dos seus antepassados. Terceiro, a energia da virgindade, que era a razão por que rapazes e raparigas virgens eram tão preferidos como ofertas pelas Trevas. Se ele pudesse oferecer ao Senhor das Trevas a tenra e intocada Shelyra...
Quando ele oferecesse a princesa ao Senhor das Trevas, não haveria nada que pudesse pedir que não lhe fosse concedido. Tudo o que conseguira até àquele momento não passaria então de um punhado de berlindes comparados com a coroa imperial. Pois desde o momento em que tivera aquela ideia, a Sombra murmurara-lhe continuamente no espírito promessas que o faziam sentir-se desfalecer de antecipação. Em breve essas promessas se tornariam realidade!
Apolon recostou-se na sua cadeira de campanha e pensou no dia em que aquela cadeira se transformaria num trono e ele reinaria sobre o Império em nome do seu amo. Seria um bom dia quando os seus servos lhe trouxessem todos aqueles que alguma vez o tivessem contrariado ou insultado, lançando os corpos decapitados no chão a seus pés, até a carpete estar tingida de vermelho com os rubis do seu sangue.
Penso que manterei Cathal. Ele diverte-me. E não se rala com quem é que segura a trela, desde que as suas extravagâncias lhe sejam permitidas.
Bem, já chegava daqueles pensamentos. Havia trabalho a fazer. Fez sinal a um dos seus servos, um dos lacaios de casaco negro que agora infestavam a cidade, procurando as três mulheres de Merina e recolhendo todo o tipo de informações que pudesse ser útil ao seu amo. Este, que esperara durante uma hora que o seu amo tivesse tempo para ouvir o seu relatório, estava vivo; metade dos seus servos viviam. Os mortos não eram tão espertos como os vivos.
- Encontraste aquilo de que preciso? - perguntou. - Localizaste as mulheres?
O homem abanou a cabeça, prostrando-se na carpete aos pés de Apolon.
- Não amo. Elas podiam nunca ter vivido; não há sinais delas. Mas encontrámos as outras pessoas que queríeis e cumprimos a outra tarefa que nos destinastes: colocámos as Flores de Fogo nas casas, como dissestes. Podeis fazer deles exemplos quando assim o desejardes. Esta gente em breve perceberá como é idiota opor-se ao vosso poder e ao imperador.
Apolon inclinou-se para a frente e abriu um mapa da cidade de Merina, com cada rua e canal marcados de forma clara. Colocou-o na carpete em frente do seu servo.
- Mostra-me - exigiu. - Dize-me os seus nomes, o que fizeram, e descreve-os para mim.
Havia sempre a hipótese de um daqueles que ele decidira tornar em exemplos fosse uma das três mulheres desaparecidas. Elas não se conseguiriam esconder eficazmente. Estava certo disso. Não conseguiriam ser humildes e suportar os abusos dos seus servos com o adequado medo servil. Não tinham sido educadas para ser servis; atacariam, pelo menos verbalmente. Não o poderiam evitar.
Quando o criado começou a sua recitação (todos os seus servos tinham boas memórias, ou não eram seus servos durante muito tempo) ele ouviu-o atentamente. Mas a maioria dos cidadãos rebeldes eram homens; só havia um punhado de mulheres que demonstravam ter alguma coluna vertebral.
- ... Matild, filha de Ranskin, uma vendedeira de contas no Pátio de Stingray; é de meia-idade mas elegante e forte, e é conhecida por manter frequentemente relações com marinheiros. Os rumores dizem que ela contou o capitão Saxon entre os seus amantes. Respondeu mal aos homens que foram fazer a colecta da taxa e é insolente na postura quando o não é nas palavras. Todos os outros no Pátio de Stingray têm medo dos vossos servos, mas ela não evidencia qualquer medo e pode muito bem, a qualquer altura, organizar uma rebelião. É conhecida por freqüentar tabernas de marujos, onde a agitação é grande. Os carneiros do bairro dela estão claramente dispostos a aceitar as suas ordens e ela parece disposta a dizer-lhes o que fazer.
- Essa Matild... - Apolon debruçou-se novamente, as sobrancelhas juntas num franzir de sobrolho. - Poderia ser a Lydana disfarçada?
Mas o homem abanou a cabeça.
- Não. Tem cabelo preto e o aspecto de uma mulher que concede muito facilmente os seus favores. A tonta daquela rainha tímida desmaiaria se alguma vez encontrasse alguém como essa Matild. E é demasiado velha para ser Shelyra e muito mais nova do que Adele.
- Então não passa de mais uma bruxa intrometida. Muito bem. - Apolon fez um gesto com a mão, despedindo o criado. - Não te portaste bem, visto ainda não teres localizado nenhuma das mulheres do Tigre, mas também não mereces castigo. Vai... e vê se és mais enérgico nas tuas buscas. Para a próxima, espero um relatório mais satisfatório.
O homem saiu, transpirando de alívio. Apolon permitiu-se mais um pequeno sorriso. Os seus castigos eram na verdade muito pouco frequentes e muito menos frequentes e brutais do que os de Cathal, por exemplo. Há muito que aprendera que o medo do castigo era mais eficaz do que o próprio castigo.
Um vento frio entrou pela porta da tenda, o que transformou o seu sorriso num franzir de sobrolho. Não apreciava nada aquele modo de vida e era difícil praticar as suas magias sem qualquer tipo de segurança, que era o que acontecia ali onde qualquer um podia entrar a meio de um dos rituais. Mesmo que já tivesse conseguido ter acesso ao quarto da princesa, não teria podido usar o que quer que ali encontrasse; os seus rituais pertenciam muito obviamente às Trevas, pois todos eles exigiam o derramamento de sangue. Teria de arranjar maneira de fazer com que Balthasar se mudasse para a cidade no dia seguinte ou no outro. Podia então requisitar a tal casa, a do Javali; embora, se isso não fosse possível, fosse divertido ficar com a do Tigre: despejá-la de tudo e todos e equipá-la com os seus criados e as suas ferramentas. Poderia então trabalhar; encontrar um objecto qualquer que tivesse pertencido às mulheres e usá-lo para as localizar; isso se elas não se tivessem já protegido contra esse tipo de coisa. Não usara imediatamente a sua magia para as encontrar, simplesmente porque partira do princípio que elas tinham esse tipo de protecção. Mas do que necessitava realmente era de instalar novamente o seu “centro de recrutamento”; estava a perder servos, numa sangria lenta mas constante, à medida que estes eram emboscados por uns quantos rebeldes que tornavam alguns em inúteis para o seu serviço e faziam desaparecer totalmente outros, provavelmente lançando-os aos canais. Precisava de reforçar o seu fornecimento e para isso necessitava de um local seguro e com uma privacidade que lhe permitisse transformar idiotas mortos em servos mortos-vivos.
Balthasar era tolerante, mas havia coisas que nem mesmo ele toleraria, e a necromancia 5 era uma delas. Ele poderia talvez adivinhar o que o seu Mago Cinzento fazia, mas nunca perguntaria, para poder afirmar não ter qualquer conhecimento. Mas se se tornasse do domínio comum que Apolon não era Cinzento, mas Negro... bem, o imperador não toleraria, não se atreveria a tolerar,
um necromante ao seu serviço. O que Apolon fazia numa base regular era contrário a todas as leis do império e Balthasar mandaria chamar, ainda que contrariado, o carrasco.
Na realidade, se conseguisse encontrar uma das duas mulheres que procurava, precisaria de uma casa que tivesse uma sala à prova de som onde pudesse invocar o seu amo. Esse gênero de coisa não se fazia ao ar livre! Os riscos que corria ao executar os ritos em segredo já eram suficientemente aterradores!
Seria esse, portanto, o seu objectivo imediato. Despoletar as Flores de Fogo para amedrontar aqueles carneiros com o seu poder. Fazer com que Balthasar se mudasse para a cidade e encontrar uma casa para si próprio. Tirar Leopold do caminho. Recrutar mais casacos negros. Encontrar as mulheres.
Na verdade, caso os seus lacaios conseguissem localizar Shelyra ou Lydana, devia deixar as mulheres onde estavam até ter conseguido arranjar uma casa. Não valia a pena apanhá-las até ter um sítio para as guardar; correria o risco, nessas circunstâncias, de Balthasar descobrir que as tinha em seu poder.
Assentiu para consigo próprio, convencido de que tinha os melhores planos possíveis de momento. E convencido de que tudo correria conforme os seus planos. Afinal de contas, ele não estava a fazer tudo isto sozinho.
Tinha ajuda, não tinha? Era do maior interesse do Senhor das Trevas assegurar-se de que o seu servo não falharia. Apolon não lhe pediria ajuda, pois isso faria com que a sua dívida aumentasse para com o seu amo, mas quando essa ajuda viesse, certamente que não a recusaria.
LYDANA
Estava dentro de água, mas não nadava; parecia antes flutuar atabalhoadamente. Virando um pouco a cabeça, olhou para uma cara de horror, em que todas as feições tinham sido esmagadas e destituídas de qualquer forma humana. Matild gritou e deu aos braços, tentando com todas as suas forças afastar-se daquilo.
- Senhora! - Alguém a abanava fortemente e ela agarrou-se às mãos que a seguravam, na esperança de assim se poder afastar daquela coisa flutuante.
- Senhora! - Pestanejou e olhou para a cara da mulher a quem Jonas chamara Dimity, abafando um soluço. - Ele estava morto... - disse ela com a voz entrecortada - estava morto e fui eu quem o matou.
Apesar de na altura o seu acto ter parecido o mais lógico e, mesmo quando tinham enviado os corpos para o canal, não ter sentido que estava a abandonar um homem à maré que enchia... agora tudo aquilo descia sobre si.
Dimity já não tinha posta a meia-máscara que usara na noite anterior, não, duas noites antes. Ou teria sido há mais tempo... era difícil distinguir os dias das noites. Pareciam fundir-se todos num único pesadelo, num ciclo infinito de trabalho e conspiração, no qual ela não dormia o suficiente. Aquela vida dupla que levava era imensamente extenuante: a tensão de se esgueirar, sem ser descoberta, de volta à sua loja todos os dias; de ver os casacos negros a observá-la... tudo isso estava a esgotar as suas forças.
Dimity tinha um rosto jovem e agradável, mas os seus olhos perspicazes e vividos e as suas mãos calorosas, continuaram a envolver Matild.
- O teu primeiro, hem? - perguntou. - Bem, afecta-nos a todos da mesma maneira. Mas era capaz de jurar que não tiveste outra escolha, pois não?
Até que ponto teria ela sofrido uma transformação? Por duas vezes na sua vida assinara sentenças de morte e sentira apenas que cumpria o seu dever, mas isto era diferente. Passou uma mão pela boca que tremia.
Dimity já a largara e apontava um tabuleiro pousado numa mesa, um tanto periclitante, no santuário de Jonas.
- É melhor comeres, senhora. Thom e Eel trouxeram-te o que querias e o Thom já se foi embora outra vez. Todos temos trabalho a fazer.
Matild lavou-se numa bacia de água fria que, aparentemente, a mulher também trouxera e depois, sentindo-se ainda a tremer por dentro, lutando com todas as suas forças para varrer a recordação do seu sonho, sentou-se obedientemente para comer.
Era comida grosseira, mas descobriu que a fome era um bom condimento para o mais primitivo dos pratos e esvaziou totalmente uma malga de papas um tanto encaroçadas e comeu uma salsicha com um cheiro muito forte, entalada entre duas fatias de pão seco.
Dimity fez um aceno em resposta aos seus agradecimentos e voltou a desaparecer, mas Matild reparou então que, ao lado do tabuleiro, estavam a caixa e a pequena arca que descrevera a Thom.
Embora o edifício da taberna fosse velho e estivesse certamente a precisar das reparações impostas pela lei, não conseguia ouvir qualquer movimento na sala exterior. Não havia qualquer cadeado ou fechadura na porta; teria que se arriscar a ser interrompida.
Passando o tabuleiro para o chão, Matild chegou-se mais para a mesa, tanto quanto o banco lho permitia. Tinha tirado o cinto e remexia nos seus compartimentos, recordando o local exacto onde cada pedra estava guardada.
O chanceler era um homem ganancioso, logo o que mais o tentaria seria uma descoberta espectacular: o diamante de Asusars. Retirou essa jóia do seu esconderijo.
Durante todos os seus anos de profissão, Matild trabalhara com muitos diamantes, mas nunca gostara dessas pedras, preferindo as pedras coloridas, mesmo aquelas que não eram tão valiosas, como as opalas, com um centro de fogo e de um azul gelado; ou até as pedras de lua com as cores do arco-íris, sobre cuja superfície as cores brincavam, da mesma forma como estavam encerradas na estrutura da opala. Havia ainda o jade, que escorregava tão suavemente por entre os dedos, os rubis, as safiras...
De alguma forma conseguiu, por uns instantes, ver espalhadas na sua frente todas as suas favoritas, em vez da única pedra brilhante que parecia emitir um frio quase palpável. Mas aquela era, ao valor do mercado, uma pedra pela qual os homens combateriam sempre. Se tivesse o aspecto que, merecidamente, deveria ser o seu, estaria vermelha do sangue de vários séculos de mortes pela sua posse.
A um homem ganancioso como aquele, destinaria uma pedra que, devido à lenda, simbolizava a própria cobiça, cobiça das vidas que pela sua posse tinham sido trocadas.
Matild abriu o seu estojo de trabalho e a caixa de ferramentas. Um dos compartimentos continha uma série de bases velhas, algumas antigas mesmo, para anéis e alfinetes de peito. Muitas vezes aquelas peças eram vendidas pelo preço do metal, mas ela sempre inspeccionara aquele género de mercadorias, ficando frequentemente com um ou outro cujo desenho achava curioso.
Um anel, visto ser para um homem. Escolheu de entre a meia dúzia de anéis velhos. Prata não, embora para ela, aqueles que ali tinha fossem valiosos devido ao seu padrão. Só o brilho do ouro poderia adequar-se àquilo, àquela pedra espalhafatosa de gelo amaldiçoado.
Agora dependia do tamanho, de quão bem se poderia adaptar à base. Escolheu uma aliança grossa de ouro verde, sem qualquer enfeite, excepto em torno do engaste onde ficaria a pedra. Aí tinham sido gravados, com uma perícia minuciosa e esmerada, uma fina rede de pequenos ramos. Matild pegou numa ferramenta e iniciou a tarefa delicada de formar um leito para receber o diamante no seu ninho. Colocara o diamante de parte, agora já preparado e pronto, quando um rangido no soalho a fez virar a cabeça.
Eel, com um grande pedaço de pão e uma salsicha na mão, os quais comia vorazmente, irrompeu pela sala. Os seus olhos pousaram na mesa e quando se juntou a Matild, sentou-se do lado oposto, tão longe do anel agora acabado quanto lhe foi possível. Nos primeiros tempos, quando Eel se tornara no seu aliado de mais confiança, descobrira que ele era ainda mais sensível a jóias malignas do que ela própria e que por vezes as descobria mais rapidamente em qualquer carregamento que tivesse a infelicidade de as incluir.
- Vais ser generosa? - Comeu mais um pouco da salsicha. - Quem é o infeliz contemplado?
Matild sorriu.
- Eel, pensei que seria adequado ao chanceler. Diz-se que ele gosta deste género de coisas.
Eel sorriu.
- Não se tiver algum juízo, mas quem é que alguma vez disse que ele tinha? Mas... tenho uma história para te contar...
Encostou-se à mesa e levou algum tempo a engolir a última dentada, tendo comido muito mais do que alguém jamais pensaria ser possível.
- O capitão e alguns outros, estão mesmo na Casa do Javali. E não são os casacos negros quem os vigia. São mercenários: homens de Lakqua, acho eu. Assim como os homens da guarda do general são de Lakqua. Mantiveram alguns dos criados para maltratar, mas a senhora e as filhas foram postas na rua ao mesmo tempo que levaram o mestre para o enforcar. Não é nenhum boato; eles são muito directos a esse respeito: ele foi enforcado porque não quis entregar-lhes a espada de Gideon. Dizem que um mago fez um feitiço que a colou àquele sítio para sempre, por isso tentaram arrancar-lhe o segredo. Mas não conseguiram. Provavelmente ele não o sabia.
Qualquer cidade tão antiga como Merina tinha os seus heróis e heroínas e as suas preciosas relíquias de tempos passados. As acções podiam ser distorcidas para lá da verdade dos factos, transformadas em milagres por anos de serem contadas e recontadas.
- A espada de Gideon... - repetiu ela baixinho.
Merina tivera uma vez um inimigo que, à sua maneira, fora bem mais devastador do que o imperador se revelara até ao momento. Um estudioso do conhecimento que fora mais do que um mago, e do que um iniciado, e que profanara todas as fontes da Luz. Existira um homem (ou um ser angélico que assumira a forma de um homem) que travara uma portentosa batalha com esse homem, Iktcar. O das Trevas fora morto apesar de todas as suas artes, mas o salvador desaparecera também; ficara apenas a sua espada. Alguns quiseram levá-la para o templo. Mas as opiniões tinham-se dividido a esse respeito: uma arma (não importava quão bem os tivesse servido a todos) não era, na opinião da grande sacerdotisa da época, para ser pendurada num local de paz e serenidade.
Visto que o homem que se autodenominara Gideon fora um trabalhador da Casa do Javali até ao dia em que forjara a sua espada e partira para a sua última batalha, aqueles que trabalhavam o metal tinham-no declarado santo e pendurado a espada, protegida por todos os meios que conseguiram arranjar, na casa da sua Guilda.
- O general. Ele já foi duas vezes assistir às tentativas dos trabalhadores do acampamento para a desalojar. Agora eles pensam que ele vai tentar novamente, destruindo a vitrina.
Matild olhou para as pedras da danação. E se Cathal, para além da espada, levasse também algo de mais potente? Havia uma possibilidade de que... Depois lembrou-se da viúva do mestre.
- E a Senhora Fortuna? - Talvez, se o seu marido tivesse estado na posse do segredo, ela estivesse disposta a revelá-lo para aniquilar os seus assassinos...
-- Pediu asilo aos Servos dos Pobres - respondeu Eel prontamente. - Tem que se manter no interior dos portões, pois teme ser presa... ou que uma das suas filhas...
Muito bem... talvez ela soubesse mais do que aquilo que tinham suposto. Quanto tempo levaria a Cathal, famoso pelas suas atrocidades, a desafiar até o templo para a apanhar? Tinha a certeza de que o general não era nenhum respeitador do Coração como, pelo menos fingia ser, o imperador.
Eel foi mais uma vez ao encontro das suas ideias.
- Têm um guarda no claustro, lá isso têm, mas não é um casaco negro. Por agora ela está a salvo.
Matild assentiu. A sua mente estava já ocupada com uma segunda tarefa. Outro anel? Não, a pedra que tinha em mente era demasiado grande para os anéis que tinha consigo. Mas reparara que os oficiais da coroa imperial usavam todos uma espécie de guarda de metal no punho esquerdo; uma banda metálica larga, que podia ser utilizada como escudo em alguns tipos de combate corpo a corpo.
Tinha um protector do arco de um archeiro entre os vários objectos que guardara; um bafo de sorte que dificilmente se atreveria a esperar. Guardara-o por as suas arestas serem finamente decoradas com um desenho que nunca vira. Pegou no objecto e tirou do cinto mais uma jóia. Ouviu Eel suspender a respiração.
- Essa! Tinhas também essa, senhora!
- O capitão tirou-a a Frisai quando o derrotou no convés do seu navio em Graise. Sim, eu sei o que é... embora não saiba como foi parar às patas de Frisai. Esta é a Boca de Vor.
A pedra negra e brilhante estava cinzelada de uma forma estranha. Numa das faces tinha umas linhas gravadas que sugeriam lábios; a imagem de uma boca cerrada. A outra face era uma oval muito suave. Trabalhou rapidamente, mas era um trabalho moroso que requeria toda a sua perícia. Quando o deu por terminado, era a face suave que se mostrava ao mundo; a Boca estava oculta. Não podia saber qual a amplitude dos conhecimentos existentes entre os oficiais do imperador, mas não pensava que o seu estratagema fosse facilmente detectado.
SHELYRA
Shelyra, ou antes, Raymonda, pois era esse novamente o seu disfarce, estava de pé junto a um candeeiro, um pouco afastada do grupo de ciganos e via uma bailarina actuar para um grupo de trabalhadores pouco entusiasmados. Bocejou; fora uma noite muito longa e apesar de ter dormido um pouco mais do que o costume, não descansara o suficiente. Naquele momento tentava avaliar o estado de espírito da cidade. Não era inteiramente satisfatório. Esperara que, por aquela altura, já tivesse havido uma rebelião qualquer, mas Merina parecia acobardar-se, resignar-se, estar disposta a suportar tudo o que o imperador decidisse impor-lhe. A cidade absorvia cada nova agressão, cada novo fardo nas suas costas, limitando-se a baixar mais a cabeça sob o jugo. Não só havia os casacos negros de Apolon espalhados pelas ruas, como também os mercenários imperiais dos pelotões do general Cathal, que impunham nalguns quarteirões os caprichos específicos do seu chefe. Viam-se alguns homens de Leopold, mas não em força; não faziam qualquer tentativa nem para impor mais restrições, nem para controlar os abusos, quer dos mercenários, quer dos casacos negros. Merina não estava sob um punho, mas sob três e a confusão começara a instalar-se à medida que cada um deles impunha as suas próprias leis.
- Tu aí!
Uma mão, vinda das suas costas, agarrou subitamente no braço de Raymonda e não foi preciso fingir muito para transformar a sua reacção automática de ataque numa de recuo e medo. O homem que lhe segurava no braço não era um casaco negro, mas sim um dos mercenários. Os primeiros eram mortíferos, mas os segundos eram cães raivosos, totalmente imprevisíveis. Este tinha uma expressão cruel, a boca cheia de dentes podres e um hálito horrível.
- Que queres tu com a minha prima, hem?
Um dos seus amigos ciganos interpôs o seu corpo entre Raymonda e o mercenário, forçando-o a largá-la. Bruno era um homem grande, que conseguia controlar o mais bravo dos cavalos, até mesmo um garanhão espantado, com uma certa facilidade. Até um dos mercenários de Cathal cederia a Bruno, ainda que fosse temporariamente.
- Ela está por aqui, está vestida como bailarina, mas não dança - rosnou o mercenário. - Então para que está ela aqui? Nós temos leis imperiais para este tipo de mulher... têm que ir para casas imperiais, pagar as suas taxas, estarem onde possam ser vigiadas...
- Ela não é esse tipo de mulher, gajo - cuspiu Bruno. - Fica com as tuas ideias porcas só para ti! Ela ainda não dançou porque ainda não tocámos música do norte, não é, queridinha?
Bruno fez-lhe cócegas por baixo do queixo como se faz com as crianças; ela bateu as pestanas, baixou timidamente os olhos e assentiu com a cabeça.
- Ela dança ao estilo do norte, não faz sapateado... – continuou Bruno. - A música para isso é diferente do estilo flamank.
O mercenário interrompeu-o.
- Então, toca música do norte, homem, ou mando-a prender como prostituta! Se ela é mesmo bailarina, é melhor que saiba dançar!
Raymonda sentiu uma ponta de medo e ficou satisfeita por não ter saído sozinha do Bairro Cigano. Este grupo era suficientemente grande para a proteger, de momento, mas se se tivesse aventurado sozinha pelas ruas...
Bruno avaliou a disposição do mercenário, concluiu que tinha ido um pouco longe demais e fez sinal aos músicos.
- Zigan do norte, rapazes! E isso bem alegre!
E isso bem alegre; quanto mais depressa eu me mexer, menos óbvios serão os erros que fizer e se este bruto conhecer o estilo do norte, não reparará que não faço todos os passos, se me virar com rapidez suficiente e fizer muitos gestos. Pelo menos assim espero.
Raymonda pôs-se em posição no centro do grupo e manteve-a durante as frases introdutórias. Ao contrário do estilo da dança do sul, que também começava com uma pose estilizada, mas com uma postura orgulhosa, ela ergueu os braços por cima da cabeça, curvados e entrelaçados, com as costas ligeiramente arqueadas. Depois a melodia começou muito vivamente e ela seguiu-a. Dobrava-se e dançava como um salgueiro ao vento; girava como um turbilhão, as saias volteando ao redor dos seus pés num permanente cambiante de cor e movimento. A música sulista era composta sobretudo pela guitarra e pelas palmas que a acompanhavam; a nortenha era tocada com violinos e tamborins.
Os bailarinos de flamank desafiavam-se mutuamente e às suas audiências com uma pose orgulhosa e passos rápidos de sapateado; os zigan do norte dançavam com sedução e cativavam, imploravam, dobrando-se e ondulando agilmente, afastando-se e girando sobre si. Onde o flamank era todo ele fogo, o zigan era água e ar.
Um dos outros, um homem que ela mal conhecia, saltou para junto de si no interior do círculo. Agora já era mais fácil dançar; ele podia estabelecer um padrão para ela se guiar e ajudava-a nas voltas e nos saltos mais ousados. Ela entregou a dança nas suas mãos, agradecida, e seguiu os comandos subtis que o corpo dele lhe dirigia.
O ritmo aumentou, cada vez mais rápido, e os dois giraram e curvaram-se, rodando em torno de um centro invisível que os mantinha unidos. Ela começou a ficar cansada; a respiração saía-lhe em assobios pela boca; uma dor crescendo no seu flanco; os pulmões ardendo-lhe de cansaço. O suor corria-lhe pelo rosto e mesmo assim a música continuava, empurrando-a a si e ao seu companheiro cada vez mais, e mais...
Até que por fim parou, e as suas forças esgotaram-se com o fim da música. Caiu aos pés do parceiro no tradicional final das danças zigan. Ficou deitada no empedrado, o rosto escondido pelos cabelos, esgotada e a arquejar.
Não se ouviram aplausos, mas ela também não os esperara. Limitara-se a sentir-se grata por ter chegado ao fim sem quaisquer erros graves. Deixou-se ficar ali, onde estava, enquanto recuperava a respiração e a dor no flanco abrandava. Quando se sentiu pronta a erguer-se de novo, uma mão tocou-lhe no ombro e ela olhou para o rosto do parceiro, vendo-o sorrir e oferecer-lhe a mão. Ela aceitou-a.
- Danças bem, irmã de pacto - murmurou ele na língua cigana. - Quase tão bem como a minha mulher. Lembra-me de lhe pedir que te ensine alguns passos quando voltarmos para o acampamento. - Lançou um olhar para os mercenários mal humorados e para a multidão sombria. - Penso que isso está para breve, não temos nada a ganhar aqui.
- Vês? - retumbou a voz de Bruno no silêncio. - Ela dança. Estás satisfeito?
Contrariado, o feio mercenário arreganhou os lábios num rosnido.
- E então? Se calhar, levo-a na mesma. A tal da rapariga, a Shelyra, desapareceu... se calhar ela é a Shelyra...
Raymonda sentiu-se gelar e a sua mão dirigiu-se à faca que tinha escondida. A mão do parceiro apertou-lhe o braço num aviso.
Mas antes que alguém pudesse levar a sério tal sugestão, os próprios companheiros do mercenário rebentaram em gargalhadas divertidas.
- Ah, Guntur, apanhaste sol, ou febre dos pântanos, ou coisa assim! - riu-se um. - Ela? A princesa? Onde é que uma senhora ia aprender a dançar assim? Como é que uma senhora vinha parar ao meio desta escumalha? Roubavam-na de tudo e atiravam-na ao canal e não se falava mais nisso!
Foi então a vez de Raymonda devolver o apertão de aviso no braço do seu companheiro, quando a expressão dele se toldou perante o insulto e tentou dar um passo em frente. Pela ira estampada nos rostos dos outros membros do grupo, estes controlavam a sua fúria com alguma dificuldade.
Eles só querem provocar uma briga para terem uma desculpa para nos meter na prisão a todos; querem entrar nos nossos acampamentos e neste momento não têm uma desculpa para arrombar os portões e entrar.
Não deve ter sido ela a única a pensar assim, pois mais uma vez, Bruno deu um passo em frente e cuspiu nas pedras com desprezo, mas não perto dos mercenários.
- Bah! Só há aqui idiotas que não sabem distinguir um bom artista de um urso dançante.
Vamos para casa, pelo menos lá somos apreciados. Vamos embora, irmãos!
Caminhou na direcção do acampamento e sem qualquer hesitação, os restantes arrumaram as suas coisas e seguiram-no, com Raymonda escondida no meio das outras mulheres; o seu par agarrando-lhe o braço bem no meio do grupo. Ela agora transpirava, já não de cansaço mas de medo e sentia-se quase desfalecer de alívio. Tinha sido por pouco, muito pouco! Só o raciocínio rápido de Bruno e dos outros homens a salvara; isso e também a sorte.
Mas com as garras da armadilha a fecharem-se sobre si, durante quanto tempo poderia esperar que a sorte durasse?
LYDANA
Não tinha a noção de quanto tempo estivera a trabalhar. Eel desaparecera havia já algum tempo e ela registou esse facto apenas vagamente. Durante a maior parte do tempo o trabalho exigira uma concentração total, mas os seus pensamentos não paravam de voltar a Saxon e à espada de Gideon. Saxon teria que ser liberto e a espada... a espada teria que ser transformada numa arma, ou pelo menos assim o esperava, que pudesse ser de novo usada na salvação da gente de Merina. Recostou-se, distendeu os dedos doridos e endireitou os ombros, sentindo a rigidez e a dor que a posição que assumira ao trabalhar tinham provocado.
A sua mãe avisara-a contra os riscos que corria ao utilizar aquelas pedras de mau augúrio. Mas não as estava a utilizar de forma activa, como um mago faria, usando feitiços e outros meios
semelhantes na tentativa de aumentar o seu poder maligno. Ela estava meramente a colocá-las no caminho de homens para quem podiam muito bem ser atraentes, deixando o resto aos desígnios do Poder Eterno, esperando que o estratagema resultasse.
- Já acabaste? - era novamente Eel, fechando cuidadosamente a porta atrás de si.
- Sim. - Matild espreguiçou-se e voltou a distender os dedos.
- Então é melhor vires cá fora para ouvir isto.
Abriu a porta e fez-lhe um gesto para que o seguisse. Matild enrolou a faixa em torno de si e fez uma trouxa com o punho metálico e o anel. Deparou-se-lhe uma cena buliçosa na taberna. Homens e mulheres estavam sentados a conversar, mas um após outro iam-se levantando e aproximando de Jonas, que estava sozinho sentado a uma mesa mais pequena. Tinha na sua frente, em cima da mesa, uma corda com vários nós e Matild reconheceu a forma de registo utilizada pelos marinheiros que, muitas vezes, não tinham nada com que escrever.
Quando viu Matild, fez-lhe um sinal. O homem que estava a acabar de falar com o taberneiro lançou-lhe um olhar de soslaio, mas não foram feitas quaisquer apresentações.
- Há tantos problemas que dava para usar um rolo de corda inteiro. - Jonas abanou as cordas na sua frente. - Aqueles tipos dos casacos negros têm a cidade a suar as estopinhas. Escuta, senhora, sabes mais dos conhecimentos antigos do que qualquer um de nós -- já alguma vez ouviste falar de mortos-vivos?
O rosto de Jonas estava muito tenso, e ela viu ali mais qualquer coisa, um brilho qualquer (seria medo?) nos olhos encobertos pelas sobrancelhas hirsutas.
- Mortos-vivos?
Um arrepio gelado percorreu-a da cabeça aos pés; os conhecimentos antigos, sim. O que seria lenda e o que seria verdade após o passar dos séculos?
- Ali o Raster - continuou Jonas, como se tivesse que passar aquela informação horrorosa tão depressa quanto possível - é um homem esperto e não é tipo para ver fantasmas a cada esquina. Viu ontem um casaco negro que jura ser um companheiro dele que foi morto à facada há um ano, em Ulpar, numa briga com uns arruaceiros de um dos barcos do imperador. O Raster jura que esse tal Guloper morreu; ninguém se levanta e anda com a garganta cortada de um lado ao outro. E, no entanto, o Raster chegou aqui a bater os dentes de medo, porque viu esse Guloper a patrulhar a praça do templo. O Raster não está bêbado, e não é doido; embora possa ficar uma das duas coisas dentro de pouco tempo. Dois dos amigos dele tiveram que o levar para ali - indicou uma mesa no canto oposto da sala - e dar-lhe de beber antes que o homem enlouquecesse à nossa frente.
- Necromancia... - a voz de Matild era pouco mais do que um sussurro. - Mas... essas imundícies foram expulsas do mundo há muitos anos, quando Iktcar morreu sob a espada da Luz.
- Não sei o que lhe chamas, senhora... nós dizemos que é trabalho do diabo. Os rapazes - rolava as cordas cheias de nós entre as palmas das mãos - têm dado cabo de um ou outro casaco negro aqui e ali, discretamente e quando as culpas não podem ser deitadas para cima de quem não sabe nada do assunto. Mas não se pode voltar a matar um homem se ele já está morto, ou pode?
Matild tentou clarificar as suas ideias.
- Isso tem que ser levado ao conhecimento da grande sacerdotisa. Pensou durante alguns instantes e depois falou com maior firmeza: - A Dimity... ela está por aí?
Jonas ergueu a voz, fazendo-a soar como um sino das docas.
- Dimity, rapariga!
A mulher levantou-se de um dos bancos e aproximou-se. Matild estudou-a com olhar crítico. Aquilo que ela era, era evidente: uma mulher das docas, mas o Grande Poder não recusava ninguém quando buscava o bem geral. Ninguém ficaria surpreendido por alguém como ela ir ao confessionário do templo.
A mulher olhava-a com perspicácia, como se tivesse percebido imediatamente quem queria falar com ela.
- Então? - incitou-a.
- Vem comigo.
Matild pôs-se de pé abruptamente e dirigiu-se para a sala escura que Jonas lhe emprestara. Uma vez a porta fechada, falou rapidamente.
- Já ouviste falar nesse morto-vivo?
A mulher piscou os olhos escuros. A sua mão direita ergueu-se e fez rapidamente o sinal do Coração.
- Já todos ouvimos.
- Mas outros há que têm que saber disso - disse Matild. - Há quem esteja melhor equipado do que nós contra as coisas horríveis que isso pressagia. Vai ao templo e dirige-te ao terceiro confessionário à direita a contar do altar. Quando a reverendíssima te chamar, dizes-lhe o seguinte: “A raiz é profunda, a árvore ergue-se bem alta, o grande felino segue o seu caminho”.
Dimity repetiu rapidamente a frase e Matild assentiu. Achara logo, assim que a vira, que a mulher das docas era esperta e merecedora de confiança.
- Quando a reverendíssima te reconhecer, conta-lhe a história do Raster. Os protectores têm que saber disto.
Dimity acenou o seu assentimento.
- Isso é fácil, senhora. Os corvos agoirentos andam para aí à solta, mas até agora ainda não tentaram afastar ninguém do templo. - Hesitou e depois prosseguiu: - Agora vai lá muita gente, mulheres a quem levaram os maridos e outros que têm medo. A Promessa do Coração... é talvez a única coisa que nos resta. Mas manter-nos-emos fiéis ao Coração e à Luz, aconteça o que acontecer.
Foi-se embora no meio do turbilhão das suas saias. O melhor era deixar Dimity entregue à sua tarefa. Matild tinha que enfrentar um problema bem mais delicado. Olhou para o fato que tinha vestido desde que saíra da loja de contas. Torná-la-ia demasiado conspícua. Voltou a ir ter com Jonas...
Encontrou-o mergulhado numa grande conversa com Thom, que tinha as mãos pousadas na mesa e se inclinava para a frente para que os seus murmúrios pudessem ser ouvidos. Jonas viu-a e fez-lhe sinal para que se lhes juntasse.
Thom estava com um ar contrariado quando ergueu o rosto para a encarar.
- Uma miúda terrível, aquela com que me deixaste - quase explodiu, mas manteve baixo o tom de voz. - Bem te avisei que ela se ia meter em trabalhos. Não aceita os avisos de ninguém. E já começam a espalhar-se os rumores de que o palácio está assombrado e tudo graças a ela.
Matild suspirou. Pensara que Thom seria o tipo de companheiro que a sua voluntariosa sobrinha aceitaria, devido ao seu espírito aventureiro. Mas parecia que ambos viam aquela associação forçada como um empecilho. Fosse como fosse, ela tinha trabalho para ele. Do cinto tirou o anel de diamante. Thom susteve a respiração e Jonas soltou um pequeno soluço de admiração.
- Isso é o resgate de um general. - A mão de Thom ergueu-se como que pronta a aliviá-la de tal fardo.
- Ou um presente digno de um chanceler - replicou ela calmamente. - Não tenhas orgulho nele, Thom Talesmith; alguém tão versado em jóias como tu deve saber que algumas trazem a má sorte e a tragédia a quem as usa.
Os olhos dele semicerraram-se.
- E a Casa do Tigre - disse muito baixinho - tem uma reserva delas. Não, eu não quereria uma pedra como essa.
- Só tens que a levar a Shelyra - ordenou-lhe ela. - Dize-lhe para fazer com que vá parar às mãos do chanceler. Se ela anda a assombrar o palácio, então que tire disso todas as vantagens possíveis.
Ele não agarrou o anel, usando uma das cordas de Jonas para o segurar.
- Passa-se qualquer coisa que não é resultado das nossas acções - disse ele enquanto enfiava o anel na bolsa. - Os homens das Guildas estão a começar a pensar como homens e não como comerciantes tímidos; há armas que desapareceram. Alguma coisa se está a preparar em Merina, muito pior do que qualquer saque.
Jonas sorriu.
- Bem - bateu com as cordas no tampo da mesa - baralharemos as coisas o mais que pudermos. Senhora, precisamos do capitão!
- Sim. E vou dar o primeiro passo nessa direcção. Jonas, arranja-me roupas que uma pobre viúva pudesse usar. Vou ao Convento dos Servos dos Pobres. A Senhora Fortuna refugiou-se lá. Parece que esse santuário tem sido respeitado.
- E o capitão está na Casa do Javali - concordou Jonas com vivacidade. - Sim, é melhor preparar bem o barco antes de içar ferro. Quanto à roupa... Ei, Wanda!
A rapariga gorducha, que transportava tabuleiros de malgas com sopa fumegante, pousou o seu fardo e aproximou-se.
- Dá à senhora o que ela precisar - foi-lhe ordenado.
Passou-se algum tempo antes de Matild se aventurar a sair da taberna. Estava envolta numa saia comprida e suja de terra e num xaile encardido puxado por cima da cabeça. Felizmente
que os claustros estavam situados no local onde os religiosos eram mais necessários, numa das ruas mais pobres que ficava próxima da taberna.
Quando avistou o edifício, viu um grupo de crianças da rua, entre elas o Eel, e uma ou duas mulheres junto da porta, e percebeu que era àquela hora que havia distribuição de pão. Visto os Servos dos Pobres terem sido uma das instituições de caridade que ela mais favorecera quando habitava o palácio, conhecia bem os seus membros e tinha boas relações com a reverendíssima, a religiosa Zenia.
Também se viam casacos negros de vigia, mas do outro lado da rua. Adoptou um passo incerto e aproximou-se da orla do grupo dos pedintes que aguardavam. A porta mais pequena abriu-se e a religiosa Papania saiu com um cesto enorme na sua frente. Matild reparou que os guardas se aproximaram um pouco e que mantinham a atenção fixa na porta aberta.
- Em Nome do Grande Poder, a paz seja convosco. Ela dá aos seus filhos alimento para o corpo e paz aos corações. - A religiosa Papania recitou a bênção formal.
Houve um movimento generalizado em direcção ao cesto, mas o seu conteúdo não foi alvo de disputa violenta; uma tal conduta, de tão imprópria, teria feito aparecer a reverendíssima e ninguém queria ter que se defrontar com a sua ira. Passados alguns instantes Matild juntou-se ao grupo.
A religiosa virou rapidamente a cabeça; as grandes abas do capuz engomado evitaram que os guardas vissem o olhar que lançou a Matild. Depois agarrou a vendedeira de contas por um dos braços.
- Fazes bem em vir ter com aqueles que A servem, pobre criatura e o teu rapaz também é bem-vindo. Lá dentro estarás em bom porto, como sempre foi prometido por Ela e por quem cuida dos Seus altares.
Matild foi imediatamente conduzida à pequena cela que era pertença da reverendíssima, a religiosa Zenia, e quando deixou cair o xaile, a reverendíssima ergueu-se abruptamente.
- Senhora - foi suficientemente cautelosa para usar o título mais comum - procurais asilo? Até ao momento eles ainda não forçaram a entrada, mas vigiam-nos noite e dia e não podemos ter a esperança de iludir os seus espiões para sempre. Um vento funesto sopra sobre esta cidade.
- É bem verdade, reverendíssima. Não, não vim arranjar-vos ainda mais problemas. Procuro a Senhora Fortuna, pois preciso de falar com ela.
Zenia assentiu e pegou numa matraca de madeira, ao som da qual a religiosa Papania voltou a entrar.
- Esta senhora deseja falar, em privado, com a Senhora Fortuna.
- A senhora tem estado retirada a orar, mas se lhe puderdes trazer alguma esperança, senhora, isso já será resposta às suas orações. Vamos à capela.
Era uma capela pequena e muito simples. Por cima do altar, que não exibia quaisquer tecidos preciosos nem vasos decorados com jóias, via-se um Coração. Mas este fora talhado em madeira há já tanto tempo, que o carmim da sua pintura estava a desaparecer e mesmo os seus contornos já eram pouco definidos.
Na frente do altar estava, de joelhos, a mulher que Matild procurava. Conhecera Fortuna em dias mais felizes, quando ela era a dona de casa bochechuda de uma família numerosa, uma mulher que governava a família com firmeza e o fazia para o bem de todos. Mas o rosto que se virou bruscamente quando a religiosa Papania parou a seu lado, era quase o de uma estranha. Tinha os olhos vermelhos e inchados de muito chorar e a sua boca estava marcada por linhas provocadas por um envelhecimento súbito. As suas faces estavam cavadas, como se jejuasse há muitas semanas.
- Eles vêem aí? - perguntou numa voz resignada. – Eu vou. Dize à reverendíssima que não desejo qualquer mal aos que aqui se abrigam... mas... Lys e Rommy, têm que as entregar também?
- Não houve qualquer violação do santuário – respondeu a religiosa rapidamente. - Mas está aqui alguém com quem é melhor falardes, senhora. Pode ser que vos faça mais bem do que mal.
Fortuna olhou para lá da religiosa e viu Matild, que atirara o xaile para trás e juntara as madeixas soltas dos cabelos, afastando-as do rosto para que este ficasse bem à vista.
A senhora semicerrou um pouco os olhos, como se ao fechá-los pudesse ver melhor e depois a sua boca abriu-se e ergueu-se com esforço e esboçou uma vénia, mas Matild impediu-a de completar o gesto.
- Somos irmãs de infortúnio, senhora; aqui não há hierarquias. Mas o fardo maior foi o vosso, pois perdestes o vosso companheiro. Ficai certa de que ele está seguro, no Coração, e que o seu nome não será esquecido por aqueles por quem ele manteve a sua fé, impedindo que um tesouro caísse em mãos malignas.
A Senhora Fortuna inclinou a cabeça e uma única lágrima tombou no chão de pedra.
- Mas o nosso tempo esgota-se rapidamente e é esse mesmo tesouro que agora nos poderá servir de uma forma diferente - continuou Matild.
- Senhora... - Pareceu ser-lhe difícil pronunciar a palavra. - Se existe alguma coisa que nós, os do Javali, possamos fazer... então deixai-me que o ouça depressa.
Sentaram-se juntas no pequeno banco ao fundo da capela, ali colocado para os que não se podiam ajoelhar. Matild usou de toda a franqueza, mais do que desejaria; no entanto as circunstâncias eram tais que não tinha alternativa. Viu a expressão de Fortuna modificar-se de uma de grande interesse para uma de recusa total e grande determinação, mas sem que ela verbalizasse as suas objecções.
Pacientemente, Matild repetiu certas partes do seu plano, salientando que já corriam rumores de que o inimigo estava pronto a tomar passos bem mais decisivos para obter o que queria. Desembrulhou também aquilo que tinha no cinto, virando a guarda metálica na mão para que Fortuna, mesmo àquela luz fraca, pudesse ver a boca ominosa. A mulher estremeceu, os olhos presos à pedra.
- A espada... a espada repudiará essa... imundície!
- Não entrou já a espada numa batalha com uma imundície igual e não a venceu? Não é contra a relíquia que agimos, mas contra aqueles que a querem reclamar para si. Que a espada decida, se assim quiserdes.
A Senhora Fortuna baixou os olhos para as mãos, os dedos entrelaçados em torno de um dos joelhos.
- Existem votos que não podem ser quebrados...
- Nem mesmo para salvar o que de mais precioso existe? - perguntou Matild no mesmo tom paciente.
Voltara a embrulhar o punho metálico e a guardá-lo. Agora tudo dependia da Senhora Fortuna. Concordaria ela que para ganhar teriam que perder?
- Os feitiços do mago são fortes... o general já descobriu que assim é.
- Sim. Mas será que resistirão aos martelos que podem partir os vidros de uma vitrina à primeira ou segunda pancadas?
- Então... - a outra falou baixinho como se medisse o peso da ideia expressa pelas suas palavras - ... a força pode quebrar um feitiço. É isso o que afirmais, senhora?
- É isso o que afirmo e aquilo em que acredito.
Houve um longo silêncio entre as duas e depois Fortuna suspirou.
- Ele morreu para o manter... e vós quereis que eu o revele.
- Fortuna, o vosso homem manteve-se fiel ao que jurou. Mas, no passado, a espada foi uma luz que nos guiou à esperança e à vitória; deixai que o volte a ser de novo.
- Deixai-me ver outra vez essa... essa coisa...
Fortuna falou com brusquidão. Matild desembrulhou obedientemente o punho metálico. Embora não lhe tocasse, a senhora inclinou-se sobre ele, estudando-o como um artesão estuda uma mercadoria, procurando qualquer falha.
- Pode ser encaixado mesmo por baixo do punho, onde a lâmina entra na bainha - disse.
Matild sentiu a exaltação de uma vitória conseguida com esforço.
- Assim será! - prometeu. - E esta, Fortuna, juro-vos pela honra do Tigre, é uma arma que ainda não foi usada, mas que creio atingirá o seu objectivo.
- Então...
A senhora aproximou-se mais ficando com a boca quase colada à orelha de Matild. Repetiu palavras que a outra memorizou, assegurando-se de que a própria entoação que a outra mulher lhes dava se fixava na sua memória. Mais uma vez embrulhou bem o punho metálico. A Senhora Fortuna ergueu-se com dificuldade, como faria alguém cujas articulações idosas protestassem perante qualquer mudança de posição.
- Rezarei... - Indicou o altar.
Mas se ia acrescentar alguma coisa não teve tempo, pois a badalada de um sino ecoou na sala. Badalada... não, era um dobrar de sinos, pois seguiu-se nova badalada. Matild ficou rígida. A morte de uma reverendíssima; contava as badaladas em voz alta, mas a sua voz não se ouvia sobre o lamento dos sinos. Aquela era a grande voz do templo e só era tocada quando...
Não! Matild abanou a cabeça numa recusa. Adele não estava morta! Ela tê-lo-ia sabido, os laços que as uniam eram demasiado fortes. E, no entanto, aquelas badaladas contavam os anos da sua mãe e o facto de ser utilizado o Grande Sino, assinalava a sua posição. Adele, rainha-mãe de Merina durante algum tempo, encontrara a paz.
ADELE
A religiosa Elfrida ocupava o seu lugar no templo quando soou o toque a finados, coincidindo com o cântico final do serviço da terceira hora. Embora já esperasse ouvi-lo havia mais de um dia, o som sobressaltou-a, pois Verit não lhe dissera com exactidão a hora em que Adele “morreria”. Não foi a única a erguer subitamente a cabeça à primeira badalada do sino; por todo o templo, religiosos e pessoas da cidade viravam o rosto na direcção do sino da torre, com os olhos muito abertos, denotando sobressalto.
O sino dobrava a finados, ecoando no silêncio, vibrando no peito de cada um dos presentes. No santuário, toda a gente se mantinha em silêncio, os lábios movendo-se, contando as badaladas; como se não soubessem perfeitamente quem morrera.
Ou quem supostamente morreu. Não, Adele está morta, verdadeiramente morta. Agora, só a religiosa Elfrida vive.
Quando o eco da última badalada se desvaneceu, todos os religiosos ajoelharam como se obedecessem a um sinal invisível. Elfrida ajoelhou-se juntamente com os restantes para rezar por Adele, cuja alma necessitava certamente de mais orações do que as almas daqueles que estavam verdadeiramente mortos. Os mortos já tinham acabado os seus trabalhos; não podiam cometer mais erros. A religiosa Elfrida estava muito consciente do facto de que podia cometê-los e talvez já tivesse cometido. Estava tudo a acontecer demasiado depressa, sem deixar tempo à reflexão ou
planeamento cuidadoso.
Quantas das coisas que já fiz, ou justifiquei, custarão vidas ou mesmo almas? Lydana não é a única de entre nós que está a brincar com o fogo.
O grupo de religiosos que estava escalonado para entoar os cânticos do serviço seguinte entrou, ajoelhando-se silenciosamente nos seus lugares, mas ninguém do grupo anterior se mexeu. O que quer que fosse que tivessem planeado fazer ficara esquecido, engolido pela necessidade que sentiam de rezar.
De certa forma, Elfrida sentiu-se surpreendida com aquela demonstração de devoção; aquilo não era uma questão de “aparências”, era uma demonstração do que as pessoas sentiam em relação à rainha-mãe, tanto os religiosos como os cidadãos de Merina.
Talvez que ela represente para eles, nestes tempos de trevas, a última réstia de luz de um passado mais feliz. Ao chorá-la, choram também a perda das vidas que dantes tinham. Os rostos dos que, sentados ou ajoelhados, rezavam de olhos fechados, denotavam mais do que uma sombra de desespero. Elfrida curvou a cabeça e sentiu os olhos arderem-lhe, cheios de lágrimas. Era horrível ser tão impotente perante uma tal angústia...
Pareceu à religiosa Elfrida ter passado muito pouco tempo até a grande sacerdotisa Verit fazer a sua entrada, mais uma vez vestida de púrpura, seguida por quatro religiosos fortes, um de cada uma das ordens, transportando a urna aberta que depositaram em frente ao altar, por baixo do Coração. Verit decidira então tornar aquela uma ocasião de grande visibilidade, não fosse alguém duvidar da morte de Adele.
Alguém fizera um belíssimo trabalho na efígie; estava muitíssimo parecida com a rainha-mãe Adele. Na verdade, parecia-se mais com Adele, tal como ela fora, do que qualquer semelhança que Elfrida pudesse ter com ela naquele momento. Elfrida pensou, inconsequentemente, se teriam usado os seus próprios cosméticos no rosto da efígie.
Certamente que não irei necessitar deles.
Alguns dos homens mais fortes de entre os religiosos entraram em seguida com o biombo fúnebre, que colocaram entre a urna e a congregação. Seguiam-nos mais religiosos transportando velas enormes, que colocaram cuidadosamente junto ao topo e aos pés da urna.
A grande sacerdotisa Verit acendeu as velas com um gesto da mão, numa exibição de magia que normalmente evitava em público. Depois de alguns instantes de silêncio apropriado, anunciou que a Deusa decidira chamar à Sua Luz a Sua serva Adele. Fez na realidade um pequeno discurso muito impressionante, citando a piedade de Adele, a sua caridade e devoção ao povo que a Deusa a chamara a conduzir e como se sentira destroçada pelo facto de não poder continuar a ajudar o seu povo.
Antes de Verit acabar, já Elfrida se sentia bastante impressionada com a enumeração dos seus próprios actos. E não lhe passou despercebida a subtileza com que Verit sugeriu que o facto de ter sido forçada a entregar a sua própria cidade nas mãos pouco caridosas do imperador, fora o que realmente matara Adele. Não pronunciou uma única palavra que pudesse ser invocada como traição, mas... oh, o que ela insinuou!
Será que o imperador tem espiões entre a congregação? Se assim for, pergunto-me o que estarão a pensar. Não penso que vão levantar objecções a uma oração fúnebre, mas pode acontecer. Será que Verit pensou nisso?
Tivesse pensado ou não, quando acabou, a grande sacerdotisa ordenou que o grupo de Elfrida regressasse aos seus deveres de rotina, e solicitou aos restantes religiosos que iniciassem os cânticos e as orações que celebravam a vigília pela passagem de uma reverendíssima para as mãos da Deusa.
A religiosa Elfrida abandonou o coro como lhe fora ordenado e, recordando as ordens de Verit no sentido de se manter visível, seguiu um grupo de Hábitos Cinzentos até ao escritório onde lhe tinha sido atribuída uma secretária. Agarrou no manuscrito que andava a copiar e iniciou o trabalho, não o interrompendo até ter chegado a hora de voltar ao seu lugar em frente ao Coração para o serviço seguinte.
Quando ouviu a sineta chamando o seu grupo apressou-se, por forma a chegar ao templo um pouco antes dos restantes e efectuou uma ligeira alteração relativamente ao local onde habitualmente se ajoelhava. Colocou-se num sítio onde fosse visível para o maior número de pessoas possível, depois curvou a cabeça numa oração silenciosa enquanto os restantes membros do seu grupo iam entrando.
Havia no templo mais gente da cidade do que nunca; se o seu número continuasse a aumentar, o templo não seria suficientemente grande para os conter.
Porque não irão às capelas locais? Será que os homens do imperador os impedem? Ou será que têm que ver o corpo da rainha-mãe para acreditarem que está realmente morta? Ou será que é mais simples do que isso? Quererão todos eles fazer as suas despedidas?
A meio do serviço houve um rebuliço junto da entrada. Elfrida manteve a cabeça curvada, mas olhou cautelosamente por baixo das pestanas. Quem quer que fosse o retardatário, estava a causar grande perturbação. Depois, com um choque que quase a fez parar de cantar, viu quem entrara.
Era o príncipe Leopold, com uma escolta simbólica constituída por dois dos seus oficiais. E trazia uma banda negra em sinal de luto no braço direito. Não fez qualquer menção de subir ao altar ou de aceder à área por trás do biombo, onde estava a urna com o “corpo” jacente, que fora o que temera quando o vira aparecer, Leopold era um homem observador e Elfrida não se sentia segura de que a farsa de Verit sobrevivesse ao seu escrutínio.
Limitou-se a ocupar, juntamente com os seus oficiais, um lugar no banco da frente e a ficar ali, de pé, com a cabeça baixa e descoberta durante o resto do serviço.
No fim da cerimónia, um dos dois oficiais aproximou-se do religioso que estava de pé em frente ao biombo, no local do celebrante, e murmurou algo. As suas mãos tocaram-se, passando para as mãos do religioso qualquer coisa pequena e preta.
Uma bolsa! Elfrida estava suficientemente perto para ouvir o som das moedas. O seu espanto não teria sido maior se tivessem nascido asas ao oficial.
Um presente fúnebre! O príncipe trouxe a Adele um presente fúnebre! Em teoria, visto não existirem familiares que se encarregassem das despesas do funeral, tudo teria que ser suportado pelo templo, o que poderia significar que as cerimônias fúnebres poderiam ser menos impressionantes do que as devidas à posição de Adele. Leopold acabara de se certificar de que Adele teria umas exéquias dignas de uma rainha-mãe.
E essa não foi a última das surpresas. O oficial voltou para o seu lugar ao lado do príncipe
e os três saíram para a coxia, mas não se foram embora. Não imediatamente.
Em vez disso, lenta e gravemente, viraram-se para o biombo que ocultava a urna. Deliberadamente e com absoluta formalidade, num uníssono gracioso, colocaram os punhos sobre o coração, na saudação cerimonial geralmente só concedida ao próprio imperador.
Depois, e só então, se viraram e saíram.
A multidão abriu alas para os deixar passar. As expressões nos rostos que Elfrida conseguia ver eram uma mistura de choque, surpresa e incredulidade. Compreendeu-os; sentia-se da mesma forma. Que quereria aquilo dizer? Porque fizera Leopold um gesto tão espantoso? Significaria alguma acção mais ousada da sua parte, ou limitar-se-ia a ser a reacção de um jovem galante para com uma velha mulher que conhecera apenas o bastante para ter admirado? Ou estaria a enviar uma mensagem a alguém, a Apolon, por exemplo, de quais eram os seus sentimentos?
Qualquer que fosse a razão, de uma coisa ela estava certa: O jogo voltara a mudar.
SHELYRA
Raymonda não voltou a respirar normalmente até estarem a salvo no interior dos muros do complexo. O seu parceiro de dança não lhe largara o braço nem por um instante e ela sentia-se bastante satisfeita pelo seu apoio. Na sua atitude não havia nada de romântico; a sua solicitude parecia antes fraternal, como se a conhecesse e estivesse à espera que ela o reconhecesse também.
Ele parecia-lhe de facto familiar; era um homem muito magro, de músculos muito esguios, com um enorme nariz adunco e uma cabeleira negra e encaracolada. Não estava muito certa quanto à sua idade; tinha o tipo de rosto que poucas alterações sofreria entre os vinte e os cinquenta anos. À luz fraca do dia nublado, os seus olhos continuavam a brilhar, divertidos.
- Então, pequena rabina, voltamos a casa sãos e salvos e mesmo assim não tens uma palavra amável para o teu velho companheiro? - provocou-a ele enquanto os portões se cerravam nas suas costas. - Começo a pensar que não me reconheces! Estou devastado! Pensei que era muito mais memorável do que isso!
Pequena rabina? Esse fora o seu diminutivo na época em que era o seu pai quem a levava a visitar os Clãs dos Ciganos e dos Senhores dos Cavalos. Não podia haver mais de meia dúzia de pessoas que conhecessem aquele diminutivo. Quem era aquele homem? Abanou a cabeça cheia de dúvidas. Ele suspirou.
- E pensar que durante todo este tempo me tenho arrependido da forma como te maltratei, pensando ter-te causado grande dor e tu nunca mais pensaste nisso sequer!
A forma como te maltratei... Isso fazia-a lembrar-se de qualquer coisa! Existia apenas uma pessoa que lhe poderia dizer aquilo!
- Ilya? - disse ela, incrédula. - Que fazes tu aqui? Pensei que vivesses em Belrus! Foi para lá que o teu clã foi...
- E eu também fui, mas um cigano não consegue ficar por muito tempo no mesmo sítio, sabe-lo bem - replicou Ilya com um sorriso. Os seus dentes brancos brilhavam em contraste com a pele morena. - Então afinal sempre te lembras de mim!
- Como poderia eu esquecer-te? Foste tão cruel comigo! – replicou ela, sentindo-se inundar por memórias agridoces.
Não, não se esquecera, apesar de Ilya ter mudado imenso. O que não era surpreendente... visto ele ter apenas oito ou nove anos na altura em que o conhecera e ela apenas uns sete. Fora ideia do seu pai que ela deveria aprender as danças e os costumes dos seus hóspedes e Ilya fora indicado para seu parceiro e professor. Ele não ficara mesmo nada satisfeito por se ver a braços com a criança gajo e fora muito loquaz nas suas objecções frequentes e tonitruantes. Ela era estrangeira e não prestava para nada; porque haveria de desperdiçar o seu precioso tempo a ensiná-la a cantar e a dançar como uma cigana? Para que é que isso serviria? Ela esqueceria tudo o que aprendera assim que voltasse para casa. Ou faria troça dos seus costumes, parodiando as suas danças, para fazer rir os seus amigos ricos gajos.
Chegara mesmo a recorrer aos beliscões e pisadelas, quando ninguém estava a ver, tentando que ela desistisse da ideia. Se Ilya esperara que ela se desfizesse em lágrimas perante a chuva de abusos, tivera uma amarga surpresa. Em vez disso, ela gritara de fúria e lançara-se a ele ao murro, pontapé e à dentada.
Rindo, os pais de ambos tinham-nos separado e Ilya ensinara mesmo a jovem Shelyra como lhe fora ordenado, mas desta vez com um olho negro, canelas doridas e um respeito um tanto desconfiado pela rapariga estrangeira.
- Casaste com a tua namorada de infância? - perguntou ela, provocando-o um pouco. - Era com ela que tu querias dançar, se estou bem lembrada, razão pela qual lutaste com todas as tuas forças contra teres que passar o tempo a ensinar-me a mim.
- É claro que casei! - disse ele com orgulho. - Ela não me conseguiu resistir! Mas... - A sua expressão ensombrou-se. - Não devia esquecer a nossa situação e ficar para aqui a contar histórias. As coisas estão a ficar muito negras, pequena rabina, e para ti especialmente. A minha adorada Maya mandou-me vir à tua procura porque quer falar contigo e não é acerca de bailados.
- Que... - começou ela a perguntar, mas ele fez um gesto para a silenciar e lançou um olhar desconfiado por cima do ombro.
- Aqui não - disse. - Há por aí olhos e ouvidos invisíveis, mesmo quando pensamos estar seguros. Estes são assuntos de drukor. Vens comigo? Há uma pessoa que tens que conhecer e com quem deves falar.
Um pequeno calafrio percorreu-lhe o corpo quando percebeu o que ele estava a tentar dizer. Drukor era a palavra cigana para magia. Tentou recordar-se de Maya, mas não conseguiu lembrar-se de mais nada a não ser de uma vaga memória de uns enormes olhos tímidos e uma grande cabeleira. Ter-se-ia Maya tornado uma maga cigana? Mas como poderia isso ser possível? Nenhuma mulher se tornava maga tão jovem como Maya deveria ser!
- A avó de Maya tem muita coisa para te dizer – continuou Ilya. - Foi ela quem nos disse para te encontrarmos. Mais do que isso não te posso dizer aqui.
- Vou contigo - disse ela, decidindo-se rapidamente.
Thom não estava à vista em sítio nenhum, mas isso não importava. Ele não era o seu guardião. Ilya voltou a mostrar os dentes brancos num sorriso.
- Óptimo. Vivemos na nossa carroça, por trás dos estábulos. Não é longe.
Na verdade, era muito mais perto do que muitos dos edifícios e chegaram às carroças em não mais do que alguns minutos, atravessando o pátio e depois dando a volta para chegar às traseiras dos estábulos. Havia ali uma boa dúzia de carroças, cada uma delas alojando uma família. A mulher de Ilya, Maya, reconhecível pois continuava a ter uns enormes olhos pretos e uma cabeleira negra e encaracolada, estava sentada no assento do condutor da terceira carroça, a bordar à luz fraca, franzindo a testa cheia de concentração. Viu-os quando eles viravam a esquina dos estábulos e saltou para o chão, correndo na direcção de Ilya com um pequeno grito de satisfação.
Maya tornara-se numa mulher elegante e era uma bailarina nata; a afirmação de Ilya de que Raymonda dançava quase tão bem como a sua mulher, não era mais do que uma lisonja descarada. Raymonda, a cigana de imitação, sabia que nunca se poderia comparar com a graciosidade fluida de alguém cujas acções mais vulgares já eram, em si, um bailado em miniatura. No entanto, fora simpático da parte de Ilya tê-lo dito.
Maya beijou o marido sem qualquer embaraço e depois virou-se para a sua convidada com um sorriso tímido.
- Sei quem és e a minha avó quer falar contigo urgentemente. Ela está na carroça; aceitas a nossa hospitalidade?
- Fico muito grata - respondeu Shelyra. - Nos assuntos do... pouco usual... sou tão ignorante como um bebé. E não sou inimiga de ninguém que ame a liberdade. Ficarei muito satisfeita por ouvir o que ela tem para me dizer.
Com um assentimento cheio de gravidade, Maya conduziu-a pelos degraus que levavam à carroça, até à presença de uma mulher verdadeiramente velha; uma anciã de tal forma envolta em xailes que era impossível distinguir a sua forma. Mas quando a velha mulher ergueu o rosto, uns olhos exactamente iguais aos belos olhos negros de Maya encontraram os de Shelyra e a princesa descontraiu-se sem dar por isso. Sentou-se num banco junto a uma pequena mesa presa a uma das paredes da carroça em frente da velha mulher. A luz cinzenta do exterior entrava pela janela ao lado da mulher e iluminava-lhe suavemente o rosto.
Mas, evidentemente, nada poderia ser dito ou feito sem a aceitação ritual da hospitalidade sob a forma de um chá quente e doce e de uns biscoitos de tal forma cobertos de mel que faziam doer os dentes. Terminadas as formalidades, Maya apresentou a sua avó.
- Esta é a Mãe Bayan; no nosso clã é conhecida como uma drukorin muito poderosa - disse Maya com orgulho, enquanto a anciã sorria com desaprovação.
- Eu sou o que sou e aquilo em que o pequeno Talento que os Dois me concederam me tornaram - disse a Mãe Bayan baixinho, numa voz surpreendentemente doce e aguda. - Mas tu, pequena rabina - não, não diremos o teu nome, pois não sou tão orgulhosa que confie nos meus feitiços e protecções para nos manterem em segurança, tu corres um grave perigo relativamente às forças das Trevas.
Shelyra assentiu, reflectiu alguns instantes e decidiu arriscar tudo numa só cartada.
--Já fui avisada e aconselhada a encontrar alguém que possa guardar os meus caminhos. Será um grande atrevimento pedir-te que o faças? É um enorme favor e eu não to pediria se soubesse de mais alguém a quem me dirigir para pedir ajuda.
- Não só podes pedir, como te posso dizer que fui convocada para te assegurar essa ajuda, pequena rabina - disse a velha mulher firmemente e... surpreendentemente. - Os Dois nunca me tinham feito grandes exigências até agora... talvez tencionassem esperar até surgir uma ocasião de grande necessidade.
Fez uma pequena pausa e depois olhou para qualquer coisa que tinha entre as mãos; Shelyra viu qualquer coisa que brilhava entre as mãos da anciã, um reflexo, talvez um pedaço de espelho.
- O perigo que corres já não é tão grande como o era ontem à noite... ah! Vejo agora. - Ergueu novamente o rosto, os olhos muito abertos, mas ainda cheios de apreensão. - Tens um amigo num local inesperado. Tal como ele te serviu, também tu podes ser chamada a servi-lo para o salvar dos Poderes das Trevas que vos tentam devorar a ambos. - Os seus lábios formaram um sorriso por entre as muitas rugas do seu rosto. -Poderia dizer-te quem e o que ele é, mas não me acreditarias. Por isso limitar-me-ei a dizer-te que procures um amigo entre os mais mortais dos teus inimigos e encontrá-lo-ás quando ele estiver necessitado de ti. Se esse futuro vier na realidade a acontecer, claro.
- Se? - Shelyra estava confusa. – Por que dizes isso?
- Porque o futuro é mutável; o que nós fazemos aqui e agora pode mudar aquilo que vi - replicou prontamente a velha. - Vejo apenas o futuro mais provável e mesmo esse pode ser alterado. O teu amigo-inimigo, não o tinha visto agir na noite passada, e o perigo imediato que corrias então era muito maior do que o que corres agora, e o teu futuro mais provável está repleto de perigos terríveis que requererão uma grande coragem e muita protecção. Mas - ergueu um dedo admoestador - também posso ver o passado e esse está para lá de qualquer alteração. E nesse passado, no teu passado, está o cão infernal do imperador, Apolon.
- Apolon! - exclamou Shelyra com choque e consternação. - Que tem esse corvo agoirento a ver comigo?
- Ele procura-te para obter o poder que trazes adormecido dentro de ti - disse a Mãe Bayan, enquanto uma fria onda de medo assolava Shelyra e esta pôs os braços em torno do corpo
para se impedir de tremer. - É ele e não o imperador ou o seu general, quem te quer encontrar. E se caíres nas suas mãos - abanou a cabeça -, o teu fim será não só pior do que qualquer mortal possa imaginar, mas dará ao Cão Negro um poder de tal ordem que deveríamos todos tremer de terror só com essa ideia. O poder nas mãos dele significará o fim da liberdade para todos quantos vivem para cá das fronteiras do Império e muito para lá delas. Foi por isso que os Dois me chamaram em tua ajuda, pois todo o nosso povo sofrerá se Apolon conseguir aquilo que deseja.
Mas que confortante!, pensou Shelyra com algum desespero.
- Agora as coisas mudaram, embora a ameaça que Apolon representa para ti continue a ser grande - continuou a Mãe Bayan. - A ameaça mais imediata foi eliminada pelo teu aliado. O espelho não me mostra mais nada, o que significa que, de momento, nenhum futuro é mais provável do que qualquer outro.
Pegou num pedaço de seda e cobriu aquilo que tinha nas mãos antes que Shelyra pudesse ver do que se tratava.
- E o que é que isso significa em relação a mim? - perguntou Shelyra em voz baixa.
- Que tens que ter muito cuidado e que eu tenho que te salvaguardar o melhor que puder para que Apolon não te consiga localizar pelos sinais do teu poder potencial. - A Mãe Bayan fechou os olhos por alguns instantes. - Agora terei que te pedir que confies em mim completamente, pequena rabina - continuou. - Pois tenho que te pedir um cabelo da tua cabeça. Sem ele, não poderei tecer protecções em torno de ti, pois a magia que pratico é feita dessas teias.
Reabriu os olhos e ficou à espera, expectante, com as mãos sobre o objecto embrulhado em seda que estava em cima da mesa. Shelyra hesitou, recordando-se dos avisos da sua avó quanto ao perigo de deixar cair qualquer coisa do género daquilo que lhe era pedido nas mãos de terceiros. Mas... que poderia ela fazer? Não sabia nada de magia, nem tinha a mínima ideia de como encontrar um outro mago que a ajudasse. E mesmo que conseguisse encontrar alguém, o que lhe garantiria que esse mago mereceria mais confiança do que a Mãe Bayan? As probabilidades eram de que assim não fosse.
Ilya era seu amigo de infância; os ciganos tinham-lhe dado abrigo e protecção física. Certamente que, se a quisessem trair, havia formas mais fáceis e mais lucrativas de o fazer. Resolutamente, ergueu a mão direita, agarrou um cabelo e, com um puxão forte, arrancou-o pela raiz, fazendo um pequeno esgar de dor.
Estendeu-o à Mãe Bayan que o agarrou com muito cuidado com as mãos manchadas pela idade, como se aquele fosse o maior tesouro do mundo.
- Guardá-lo-ei como se fosse meu, pequena rabina - disse ela gravemente. - E cuidarei de o destruir se correr perigo de cair em mãos malignas. Juro pelos Dois que nenhum mal te advirá daqui ou das minhas acções.
- Isso é tudo o que eu posso pedir - replicou Shelyra com igual gravidade. - E estás a conceder-me um favor que nunca poderei pagar. Fica certa de que tenho consciência disso.
- Chiu - replicou a anciã, erguendo a mão. - Faço um favor a todos nós, protegendo-te a ti. O mundo será muito negro para o meu povo se aquele Cão do Inferno te cravar as suas presas. Este é apenas o meu dever; é a retribuição que devo aos Dois pelo poder que me concederam.
Shelyra curvou a cabeça, num gesto de aceitação daquela afirmação. Os ciganos adoravam a Luz sob a forma de dois deuses e não de um único; deuses gémeos, um masculino e outro feminino. Não sabia muito mais do que isso, pois nem os Senhores dos Cavalos nem os seus parentes ciganos faziam qualquer tentativa para converter ninguém em seus irmãos de religião, nem mesmo aqueles que recebiam nos seus clãs. Embora os Caminhos dos Dois não fossem secretos, a religião não era discutida abertamente na presença de estranhos.
- Então, Mãe Bayan, agradeço-te em nome de todos nós - disse suavemente. - E se ganharmos esta batalha... o teu trabalho não será esquecido.
Parecia não haver mais nada a dizer; Shelyra levantou-se do seu lugar e, com uma desculpa murmurada, despediu-se. Sentia que a mulher não faria mais nada até ela se ter ido embora, portanto quanto mais depressa o fizesse, mais depressa a “protecção”, fosse ela qual fosse, seria activada.
Não viu Maya nem Ilya em sítio nenhum quando saiu da carroça, por isso foi-lhe poupado ter que fazer conversa de circunstância com eles. Depois de tudo o que acontecera naquela manhã, sentia-se assolada pela lassitude da exaustão e o que sentia mesmo vontade de fazer era voltar para a sua cama nos estábulos e passar o resto do dia a dormir.
Naquela noite teria que começar o seu trabalho no Palácio de Verão, um exercício menos arriscado, mas mais exigente em termos físicos, do que as suas deambulações no Grande Palácio.
Se pudesse, tencionava levar todos os livros da sua avó para o esconderijo numa só noite; tanto quanto se recordava, a estante do quarto de Adele não tinha assim tantos volumes. Se metade deles eram sobre magia, isso significaria uns vinte, talvez trinta livros para serem transportados. Não era um número muito grande, comparado com a enorme biblioteca de que Adele já dispunha no templo. A parte mais difícil seria encontrar no Palácio de Verão outros livros para colocar nos sítios dos livros roubados, para que não se tornasse evidente que deveriam estar ali mais volumes do que os que estavam.
Terei que retirar um ou dois livros de cada prateleira no palácio, decidiu por fim. Essa será a única forma de me assegurar que não torno evidente que falta qualquer coisa. Isso levará a noite toda, entre evitar os soldados e andar às voltas com as prateleiras e as trocas de livros...
Mas os seus pensamentos foram interrompidos nesse momento. À primeira badalada do Sino Grande do templo, a cabeça de Shelyra endireitou-se sobressaltada. Ficou com o olhar fixo na pequena porção do campanário mais alto que era visível por cima dos muros e dos edifícios que a rodeavam. O Grande Sino só era tocado por ocasião da morte de alguém muito importante. Mas quem? Certamente que não fora a grande sacerdotisa...
Contou as badaladas que marcavam os anos e depois aquelas que marcavam o estatuto do falecido; estas ultrapassaram em número todas as possibilidades até restar uma única pessoa a quem ambas as séries de badaladas se aplicavam.
Adele. O Grande Sino dobrava a finados pela morte da rainha-mãe de Merina, anunciando a passagem de Adele para lá do alcance de qualquer inimigo.
LYDANA
A reverendíssima Zenia estava de joelhos, passando as contas de oração por entre os dedos e entoando o Adeus, quando Matild entrou no seu pequeno escritório. Ao vê-la, Zenia estendeu uma mão como se a quisesse abraçar e reconfortar.
- Minha querida senhora... - começou ela a dizer, mas Matild interrompeu-a.
- Reverendíssima, poderias por caridade dar-me um dos hábitos da tua casa? Tenho que ir ao templo.
A reverendíssima olhou-a demoradamente e depois pôs-se rapidamente de pé.
- Sim, isso também terá que ser feito. Dar-vos-ei o meu próprio hábito.
Havia um pequeno armário encostado à parede e ela abriu-o revelando um dos hábitos de um castanho cor de ferrugem da sua ordem que ali estava pendurado. Já tinha muito uso, com a saia cuidadosamente remendada com pedaços de pano de um castanho ligeiramente diferente do pano original. Numa prateleira na parte de cima do armário via-se uma touca de abas largas muito
branca e cuidadosamente dobrada.
O sino parara de ressoar com as suas badaladas perturbantes. Matild arrancara já a saia que trazia vestida e deixou cair o xaile para o chão. O fato justo que usava para as incursões nocturnas caberia perfeitamente por baixo do hábito que Zenia lhe estendia. Mas foi necessária a ajuda da reverendíssima para ajustar as pregas da touca e das suas abas protuberantes, embora estas pudessem vir a ser, em caso de necessidade, um disfarce ainda mais eficiente.
Zenia fez o sinal do Coração no espaço que as separava.
- Filha - a sua voz tinha agora o calor daqueles que partilham um objectivo comum - que a Sua mão se estenda sobre ti. Esta é na verdade uma hora em que deves procurar o manto da Sua infinita misericórdia.
Matild curvou a cabeça.
- Intercede por mim, oh Escolhida, percorro caminhos tortuosos, talvez mesmo caminhos de destruição e, no entanto, acredito, pelo Coração que acredito, que tenho que o fazer!
- Assim é - replicou Zenia calmamente. - Movemo-nos na Sua trama à medida das necessidades que Ela vai tendo ao tecê-la.
Voltou a fazer soar a sua matraca e a religiosa Papania materializou-se, como se o som conseguisse por si próprio fazê-la voar dos cantos mais remotos do convento.
- Ela vai, visto que a reverendíssima acabada de falecer é sua parente de sangue, rezar no altar do templo.
Já não havia pedintes à porta, mas Eel estava à sua espera, mantendo-se atento. Matild pousou a mão por alguns instantes no seu cabelo emaranhado.
- Filha do meu coração - sentiu-se pela primeira vez livre para pronunciar aquelas palavras que se tinham vindo a desenvolver dentro de si nos últimos dias - isto, tenho que o fazer... sozinha. Mas poderás continuar a ser útil, com os teus olhos e ouvidos, como tão bem fizeste no passado.
O olhar inexpressivo de Eel encontrou o seu e, por longos instantes, não se desviou. Depois assentiu rapidamente e, esgueirando-se na sua frente pela porta que a religiosa Papania entreabria, desapareceu.
Houve alguma agitação na rua. O guarda de casaco negro que vigiava o convento avançou um ou dois passos quando Matild saiu, mas depois cuspiu ruidosamente para a sarjeta e desviou o olhar.
Enquanto se deslocava para o outro lado da cidade, escolhendo um percurso que a levava a passar pelas pontes, Matild tomou consciência de uma estranha sensação. Era como se Merina tivesse tomado subitamente a forma do grande animal que era o seu símbolo e tivesse feito uma pausa no seu passeio para erguer a cabeça, cheirar o ar e avaliar as suas hipóteses de travar uma batalha.
Juntou-se à multidão crescente que se dirigia ao templo. Chegavam à praça em grupos; as mulheres chorando e as crianças caladas e assombradas; os poucos homens visíveis ostentando expressões sombrias.
Pela primeira vez havia uma fila de soldados, não de casacos negros, mas mercenários, a todo o comprimento da escadaria, fazendo afunilar a multidão que entrava. Matild viu que havia um mar de cores, enquanto abria caminho, esforçando-se por manter a cabeça baixa, a touca de abas largas encobrindo-lhe o rosto. As ordens dogmáticas, tão diferentes da mais humilde, cujo hábito trazia vestido, enchiam tudo de cor: via-se o cinzento selecto dos escolásticos, que deviam ter abandonado as suas secretárias para virem prestar esta última homenagem; os Hábitos Vermelhos, os Hábitos Amarelos e os Hábitos Castanhos, os quais, para além de ser quem ajudava os pobres da cidade, eram também os responsáveis pela manutenção dos seus famosos jardins e das casas dos animais, nas quais podia buscar socorro qualquer animal abandonado ou doente.
O biombo funerário já fora instalado. Através da sua rede Matild via a urna no seu pedestal, junto ao próprio altar, com velas acesas à cabeça e aos pés e, por cima, o Coração carmim que parecia pulsar como um órgão vivo. Os religiosos estavam de um dos lados, mas a própria Verit estava junto aos pés da urna como se fosse uma sentinela de vigia. Como de costume, o seu rosto estava impassível, mas tinha os olhos inchados, como se tivessem vertido lágrimas recentemente.
Os religiosos dos claustros estavam nos seus bancos por trás do biombo e deles partia um cântico aflautado, não de lamento, mas de exaltação. Esta era uma das suas, que passava para as mãos da Grande Mãe onde conheceria paz e repouso para além de todo o entendimento. O cântico enervou Matild. Não, não acreditaria que Adele estivesse verdadeiramente morta, nem mesmo ao ouvir cantar assim as palavras sagradas.
Ultrapassara o biombo. A urna não estava fechada... e no seu interior estava um corpo! Tinha que saber!
Um dos Hábitos Cinzentos interpôs-se na sua frente. Era evidente que encarava a sua presença como uma intromissão. Mas, sentindo o movimento brusco, Verit ergueu a cabeça e, desafiadoramente, Matild fez o mesmo, fazendo com que os seus olhares se cruzassem. A grande sacerdotisa falou, as suas palavras perfeitamente audíveis apesar dos cânticos.
- Esta religiosa era uma das mais favorecidas pela caridade da reverendíssima... deixa que avance e faça as suas despedidas.
Recuando de novo, o Hábito Cinzento deixou-a passar, e todos os outros que ali estavam agrupados fizeram espaço para ela, visto que assim fora ordenado por Verit. Chegou então junto da urna e olhou para... Adele? Não, este era o seu rosto, calmo e em paz, aparentando ter morrido na paz do Coração. Mas era... os pensamentos de Matild deram um salto em frente, numa suposição arriscada. Foi então que, dentro de si, soube a verdade. O que ali estava era uma efígie. Por uma qualquer razão, Adele deveria ter planeado aquela fuga final. Mas isso significava que estivera sob uma ameaça extraordinária e fora forçada a usar rituais que era quase uma blasfémia usar com tais objectivos. O perigo deveria ter sido enorme.
Saberia Verit ... estaria ela a tentar ultrapassar o que Matild agora temia, que as Trevas estivessem a descer rapidamente sobre Merina? Ajoelhou em frente ao caixão, a cabeça curvada em oração, os dedos passando as contas cosidas à corda do seu velho hábito.
- Filha...
Não, não fora a máscara na sua frente quem falara. Mas sentia agora percorrê-la todo o amor e confiança que tinham sido sempre características da sua mãe. Não estava segura da amplitude do Talento de Adele, nem, na verdade, do de qualquer um dos recolhidos nos claustros. Talvez que a telepatia fosse um dos dons que a meia-idade lhes trazia.
- Olhem!
Soou quase como um grito... Sobressaltada, Matild ergueu a cabeça, olhou de relance para o hábito cinzento ajoelhado ao seu lado esquerdo e para o idoso hábito castanho ao seu lado Direito. Continuavam imersos em oração, de olhos fechados.
- Olhem!
A ordem soou de novo. Matild levantou a cabeça. Precisava de a lançar bem para trás para que as abas da sua touca não a impedissem de ver algo que estivesse muito perto de si.
O fulgor do Coração aumentava de brilho, como se no seu interior pulsasse não apenas vida, mas chamas vivas. O brilho vermelho tingiu o caixão e, alargando-se, incluiu também os que
se ajoelhavam à sua volta. Quando soou a doce nota final do Adeus, pareceu a Matild que o coração tremeu.
Depois, surgiram gotas da sua ponta, sangrentas, parecendo serem feitas de sangue. Os rubis ali embutidos há tanto tempo estavam a soltar-se. Caíam sobre o altar, ressaltavam na urna e um caiu na mão aberta que Matild estendera. Soltou um pequeno grito abafado, pois este queimou-lhe a pele como se fosse um carvão em brasa. No entanto, ela fechou os dedos firmemente e aguentou.
- O Coração... sangra... chora... - gritou alguém e outros na multidão repetiram o mesmo grito. - Um milagre! Abençoados os olhos que vêem... um milagre!
Matild encostou o punho fechado contra o peito. Continuava quente, e agora, por baixo das camadas de roupa vinha uma resposta firme; uma centelha de vida brilhou também na pedra que adornara em tempos o seu anel de Estado.
Houve uma comoção em torno de si quando aqueles que estavam mais próximos apanharam os rubis caídos juntando-os para os colocarem sobre o altar. A chuva de pedras acabara; não caíram mais para se irem juntar àquelas ali empilhadas. Matild continuou a segurar aquela que parecera vir ter consigo. Não sabia exactamente a natureza daquilo que tinha na mão, excepto que era um foco de poder; e como tal poderia bem ser a arma de que mais necessitava para fazer o que tinha que ser feito.
Ouviram-se novos sons vindos do outro lado do biombo. Ouviu vozes alteradas, perguntas gritadas de forma pouco apropriada para aqueles que se encontravam entre aquelas paredes. O biombo estremeceu sob o efeito de corpos que, aparentemente, o empurravam.
A um sinal de Verit, aqueles que se encontravam à sua volta puseram-se de pé e dirigiram-se para a congregação, agora desordeira, para lá do biombo. A palavra “milagre” era gritada de uns para outros, repetida por muitos lábios.
Matild manteve-se onde estava. Depois Verit veio até junto dela e falou rapidamente:
- Vossa Majestade, temos pouco tempo... o que aqui acabou de acontecer não é evidentemente obra nossa, mas sim um Sinal Dela. A reverendíssima está viva, tal como vós pensastes. - (Ela também deve ter o dom de ler as mentes, pensou Matild nessa altura.) - Mas era necessário que ele, que nos ameaça com coisas muito piores do que aquelas que o imperador possa alguma vez imaginar, acreditasse que ela partira.
Ele? Referir-se-ia ela a Apolon?
- Vós, as do sangue do Tigre, haveis-vos tornado subitamente numa preocupação sua, como se o tivessem avisado de que, de entre todos nós, os que temos poder, fôsseis vós, as do sangue, as que ele mais deveria temer. Sabemos que ele procura diligentemente a princesa... e a vós. Protegei-vos ambas.
Ela soubera que Apolon estava à sua procura... e à procura de Shelyra. Mas não pensara que fosse por nenhuma outra razão que o valor que tinham como reféns, como garante do bom comportamento da cidade!
- Mas ainda não atingimos o tempo do Talento... - protestou Matild.
Verit encolheu ligeiramente os ombros.
- Quem sabe o que um iniciado pode fazer com alguém que utilize como instrumento? Temos que agir rapidamente...
Foi interrompida por um grito mais alto do outro lado do biombo. Uma mulher gritou e depois uma outra imitou-a. Em dois passos Verit atingiu o extremo do biombo de rede e olhou para o outro lado.
- Soldados! - A sua voz estava gelada com aquele ultraje. - Soldados, armados a atacar a nossa gente... dentro do próprio santuário.
Lançou-se para o outro lado do biombo, imediatamente seguida por Matild, tão indignada como a grande sacerdotisa.
O que ali estava a acontecer infringia todas as leis; não só as humanas, mas também as Daquela que Reina para Lá dos Céus. Eram soldados. Não eram casacos negros como Matild esperara. Ainda não tinham desembainhado as espadas, mas rodeavam a congregação empunhando lanças curtas e atingindo mulheres e homens indiscriminadamente e viam-se corpos ensangüentados jazendo no chão.
A grande sacerdotisa lançou-se para a frente para enfrentar os invasores. Aquela que Habita para Lá dos Céus estava cheia de uma justa ira e esta era bem visível na Sua serva na terra. Sem pensar no que fazia, Matild seguiu-a de muito perto e sentiu a deslocação do ar no momento em que uma lança passou rente ao seu ombro.
-- Para trás!
A voz da grande sacerdotisa era como uma trombeta, retumbando como um trovão e parecendo ser reflectida e duplicada pelas paredes que os cercavam. Aqueles que acabavam de ser empurrados como gado, viraram-se para os soldados. Matild viu o ódio estampado nos seus rostos. Embora desarmados, estavam prontos a derrubar aqueles inimigos.
- Parem! - O grito soou tão alto como o de Verit e tinha em si o tom do comando. Um oficial liderando uma pequena companhia de soldados abriu caminho no meio da confusão por forma a poder encarar de frente os atacantes. Era jovem e pelo seu uniforme via-se que era de alta patente e a ira que o tomava era tão forte e exaltada quanto a que fervia dentro de Verit.
- Fora daqui... - Agitou o bastão de comando com uma das mãos, primeiro num gesto vago e depois apontando cada um dos soldados. - Este é solo sagrado... Quem vos ordenou uma coisa destas? Saiam, apresentem-se na caserna e lá terão um tal castigo que não o esquecerão para o resto das vossas vidas. Vão! - baixou o bastão com enorme fúria e empurrou um dos soldados, fazendo-o cair para trás aos tropeções.
Um outro homem, com uma expressão dura, contornou o soldado caído para enfrentar o jovem oficial.
- Nós temos as nossas ordens, senhor.
- Ordens! - explodiu o oficial mais novo. - De quem? Eu sou o comandante em Merina, por ordem do próprio imperador! Não dei uma tal ordem, e podem agradecer aos vossos deuses o facto de o meu pajem me ter comunicado o vosso ataque antes de terem aqui ferido gravemente alguém, ou eu daria ordens para vos enforcarem!
- Foram ordens do general Cathal - replicou estoicamente o outro.
- Não quero saber se foi o Demónio dos Países Baixos quem vos deu as ordens; estas são as minhas ordens e é melhor que lhes obedeçam. Saiam imediatamente, ou providenciarei para que sejam levados pela minha guarda e isso será bem pior para todos vós!
Os maxilares do oficial de patente mais baixa estavam teimosamente cerrados, mas era evidente que não se sentia preparado para continuar a enfrentar o homem mais novo. Depois sorriu, um sorriso muito desagradável, semelhante ao sorriso dos monstros marinhos comedores de homens e ergueu o seu bastão numa continência meio jocosa.
- Muito bem, Vossa Alteza. Vós e o general podeis resolver isto um com o outro; não falo em nome do meu superior. Formem fileiras. - Deu a ordem por cima do ombro e o esquadrão disperso cerrou fileiras. - Marche...
Retiraram-se, deixando atrás de si o caos que o seu ataque provocara. Os Hábitos Castanhos das ordens dos curandeiros já se espalhavam a socorrer os feridos atingidos pelas lanças.
O príncipe virou-se para enfrentar directamente a grande sacerdotisa e inclinou cortesmente a cabeça.
- Reverendíssima, nós não somos bárbaros... pelo menos nem todos nós. Não sei o que estará por trás desta bestialidade, mas podeis ficar certa de que o descobrirei e de que sereis indemnizada.
Ela ficou a olhar para ele como alguém que estuda um difícil quebra-cabeças.
- Príncipe Leopold... como sabeis, o general Cathal tem uma das piores reputações. Agora os homens dele obedeceram ao vosso comando, mas será que as vossas ordens continuarão a ser obedecidas? Estaremos nós - fez um gesto que incluía todos à sua volta - que somos o próprio Coração do Mundo, destinados a esta violação? Aviso-vos de que Aquela que Está por Trás do Sol pode trazer a ira tal como traz a paz e a esperança. Se A provocais demasiado tereis que sofrer as consequências.
O seu rosto era magro e estava em grande parte oculto pelo elmo e pelas protecções do rosto. No entanto, mantinha-se firmemente erecto e os seus lábios formavam uma linha estreita e firme.
- As ordens do imperador revogam quaisquer outras... ele terá conhecimento disto...
Verit aproximou-se dele um passo e pegou-lhe na mão.
- Príncipe, pelo menos neste aspecto Ela protege-vos, pois envia-vos palavras de aviso através de mim, que sou Sua serva. Pode muito bem acontecer que existam armadilhas habilmente disfarçadas nos caminhos que percorreis. Confiar é muitas vezes abrir as portas ao mais terrível dos medos.
Por longos instantes os seus olhares mantiveram-se presos um no outro. Depois os lábios dele contorceram-se naquilo que tanto poderia ser um esgar como um sorriso sombrio.
- Dou crédito total às vossas palavras, reverendíssima. Ficai certa de que os vossos avisos não cairão em orelhas moucas. Mas esta é a promessa que vos faço e que manterei: enquanto for eu o comandante de Merina, este local estará seguro e aqueles que A servem - ergueu a mão em continência - não terão necessidade de temer as tropas imperiais.
- Falais a verdade... tal como a vedes... - replicou Verit. - Ela reconhece isso...
A grande sacerdotisa fez o sinal do coração no ar, concedendo-lhe a bênção devida a todos quantos vinham até ao altar sem maus pensamentos.
Matild, a mão ainda firmemente fechada sobre o rubi do Coração, conseguiu abrir caminho até ao exterior do templo. Não havia sinais dos soldados que tinham levado a cabo o ataque arbitrário; talvez tivessem mesmo regressado às casernas, obedecendo às ordens de Leopold. Mas ela estava a tentar formar a sua própria opinião acerca do príncipe.
No passado já ouvira boatos de que ele não era um dos favoritos de Balthasar. Sabia-se que argumentara, pelo menos por duas vezes, contra o saque de cidades costeiras do norte. Mas também se dizia que o imperador lhe concedia muito pouca autoridade real, que parte do exército escarnecia dele e que o seu pai não o considerava um verdadeiro filho. Talvez tivesse sido nomeado governador da cidade para que Balthasar, esperando que ele cometesse erros, tivesse um pretexto para o rebaixar, o degradar para uma posição de cortesão inútil. Ainda que Leopold fosse um inimigo, ela sentia apesar disso preocupação com o rapaz. As cortes eram frequentemente labirintos malignos da intriga mais perversa. Um homem podia ser envolvido e destruído antes mesmo de se dar conta do perigo que corria. Embora Balthasar não mantivesse uma verdadeira corte, devido ao seu insaciável desejo de conquistar todas as terras que pudesse invadir com facilidade, tinha certamente um círculo íntimo mesmo nos seus inúmeros acampamentos de campanha, repleto de gente capaz de destruir os outros para conseguir um pouco mais de poder.
Por outro lado, uma querela entre o príncipe e o imperador, não obstante estivesse claramente a ser ganha por este, talvez pudesse contribuir para afrouxar o apertado cerco feito à cidade. A não ser no que dizia respeito aos corvos agoirentos, pois não vira nenhum deles envolvido no confronto. Esses eram homens de Apolon e o mago era bem capaz de ter a sua própria receita para o príncipe e para o imperador, com resultados que só ele poderia prever.
LEOPOLD
Leopold não confiou minimamente na palavra do oficial; não depois de o homem ter ordenado aos seus soldados que atacassem pessoas desarmadas em solo sagrado. Assegurou-se pessoalmente de que os homens de Cathal tinham regressado às casernas, enviando os seus oficiais para que os seguissem e garantissem que faziam exactamente o que lhes fora ordenado. Só quando ficou seguro de que os mercenários estavam devidamente aquartelados, é que mandou chamar um dos seus escudeiros e entrou de rompante nos seus aposentos, numa raiva dificilmente controlada.
Os mercenários eram supostos agir como uma força local de polícia, garantindo o cumprimento da lei imperial. Mas nos últimos dois ou três dias recebera relatórios de abusos cometidos contra os cidadãos de Merina por esses mesmos mercenários. Quando tentou investigar os relatórios, os oficiais dos mercenários tinham sempre a “prova” de que as suas acções tinham sido justificadas e, como era evidente, não havia ninguém que pudesse testemunhar o contrário. Desta vez, contudo, era diferente. Tinham agido contra cidadãos desarmados, reunidos em adoração em solo sagrado e não houvera nenhuma acção que provocasse um ataque tão escandaloso. A ele não tinham sido dadas quaisquer ordens no sentido de dar rédea solta na cidade a Cathal, ou à escumalha que eram as suas queridas tropas! E mesmo que tivessem sido... Atacar civis desarmados no interior do próprio templo! O homem deve estar louco! Estará a tentar provocar uma rebelião?
Ao reflectir mais calmamente na questão, poderia ser exactamente isso o que Cathal procurava... pois uma rebelião dar-lhe-ia o pretexto necessário para saquear a cidade, conforme provavelmente esperara. Cathal não ficara satisfeito com a mansa rendição de Merina; a resistência ter-lhe-ia dado uma oportunidade para exercer toda a selvajaria que lhe ia naquela alma de besta. Em mais do que uma ocasião Leopold argumentara contra serem as tropas do general a entrar primeiro numa cidade, por saber que os resultados de uma tal política seriam um banho de sangue. Os homens de Cathal, tal como o seu amo, eram bestas que se deleitavam com o saque e as violações. Também eles tinham sido privados da oportunidade de dar largas aos seus apetites sórdidos.
Aqui ele não terá essa oportunidade!
Quando os seus escudeiros apareceram, Leopold ordenou-lhes que lhe trouxessem o seu uniforme de gala e que o seu cavalo fosse selado e trazido para a porta da frente. Antes que o oficial em questão tivesse oportunidade de informar Cathal do que ocorrera, Leopold levaria a situação ao próprio imperador.
Vestiu o uniforme formal enquanto o escudeiro mais velho ia buscar o cavalo e correu durante o caminho todo até aos estábulos, ainda a abotoar o colarinho. Lançou-se para fora da porta e desceu os degraus a correr, depois saltou para o cavalo sem se dar ao trabalho de usar os estribos, espantando o pobre animal de tal forma que este arrancou as rédeas das mãos do escudeiro ao recuar, assustado.
Não teve importância. Conseguiu controlá-lo novamente com as pernas e palavras adequadas, pois aquele era um cavalo treinado para a guerra e nada o espantava durante muito tempo.
Curvou-se e agarrou nas rédeas, virou o cavalo e partiu a galope, saindo os portões do palácio e dirigindo-se para o acampamento do imperador.
Por esta altura já os cidadãos de Merina tinham aprendido a afastar-se do caminho quando ouviam um cavalo à desfilada, galopando pelas suas ruas. Enquanto passava ficaram a olhá-lo, do abrigo proporcionado por portas ou ruas. transversais, mas ninguém fez qualquer gesto para impedir a sua passagem. Os cascos da sua montada de guerra, cobertos por ferraduras de ferro, faziam saltar faúlhas das pedras da calçada à medida que as pessoas se afastavam num silêncio profundo e enervante.
As sentinelas gritaram-lhe quando passou o perímetro exterior do acampamento; ele respondeu-lhes, gritando as senhas por cima do ombro, mas não parou nem por um momento. O som das pancadas dos cascos do cavalo transformou-se, de um ruído rápido e agreste, em pancadas abafadas quando a estrada deixou de ser empedrada e passou a ser de terra batida. Ele estava cheio de uma certeza sombria de que, se fosse qualquer outra que não a sua versão a chegar primeiro aos ouvidos do imperador, seria ele e não Cathal a sofrer as consequências. Sentia o estômago apertado com a tensão e foi com esforço que manteve pendurado o pingalim preso ao pulso e não o usou. O pobre cavalo já estava a dar o seu melhor; nenhum chicote o faria andar mais depressa, por mais que Leopold o desejasse.
Galopou até à tenda do imperador e refreou de forma tão súbita o pobre cavalo que espumava, que este escorregou ao tentar parar, provocando uma nuvem de pó e erguendo-se nas patas traseiras. Lançou as rédeas a um dos sobressaltados guardas, ao mesmo tempo que saltava da sela. Quando avançava a passos largos para a tenda, teve um momento de má consciência por ter tratado tão mal um cavalo tão nobre; ele não merecia tal tratamento.
Compensar-te-ei, prometeu silenciosamente; depois afastou a cobertura da porta da tenda e já não teve tempo para pensar em mais nada.
O imperador estava a sós com o chanceler, o que era de causar espanto. Nem Cathal nem Apolon estavam à vista. Os dois homens ergueram a cabeça, sobressaltados com a entrada abrupta de Leopold.
Este caiu imediatamente sobre um joelho, a cabeça curvada, para que não houvesse dúvidas quanto aos seus motivos, a sua lealdade ou a sua obediência. Esperou que o imperador lhe dirigisse primeiro a palavra e lhe desse permissão para falar, apesar de os seus nervos estarem de tal forma à flor da pele que os músculos do seu pescoço quase rebentavam com o esforço que fazia para reprimir as palavras iradas. Tinha que fazer todos os gestos de subserviência; só assim o imperador o ouviria.
- Presumo que deva haver uma razão para irromperes por aqui dentro, interrompendo-nos de forma tão pouco apropriada, príncipe Leopold - disse calmamente o imperador. - Talvez te dignes esclarecer-nos.
Aquela era permissão suficiente para soltar a torrente. Leopold começou pelo último dos actos escandalosos de Cathal e acrescentou tudo o resto: os assassínios injustificáveis de cidadãos notáveis de Merina e da permissão que ele dera aos seus homens para provocar desacatos nas ruas. O arrebanhamento das mulheres para criar bordéis imperiais; os espancamentos de qualquer um suspeito de “deslealdade”. Recitou tudo aquilo com uma raiva gelada, mas controlou cuidadosamente tanto as palavras como o tom em que as proferia, pois era dessa forma que o imperador preferia ouvir os relatos: sem paixão, pelo menos à superfície.
Mas quando acabou o relato dos excessos de Cathal, a sua raiva escapou ao seu controlo e continuou relatando as acções odiosas dos casacos negros de Apolon. Percebeu imediatamente que cometera um erro quando se instalou um silêncio total. Mas nessa altura já era demasiado tarde. As palavras já tinham sido ditas. Tentou compor a situação regressando à questão de Cathal, mas o seu pai interrompeu-o antes que conseguisse dizer mais do que umas quantas palavras.
- Creio - disse lentamente Balthasar - que já é tempo de eu fazer uma entrada formal em Merina. Hoje mesmo; dentro de uma hora. Que a cidade saiba qual é a mão que segura as rédeas e em breve se aquietará. Já é tempo de eu tornar claro quem é o senhor do Império. Penso que uma vez eu lá instalado, já não voltem a acontecer mais supostos “milagres” nem lamentações por causa de velhas que há muito excederam o seu tempo na terra.
Por momentos Leopold teve razões para crer que Balthasar levara a peito as suas palavras. Que chamaria à pedra tanto o Cão Raivoso como o Cão do Inferno, que lhes mostraria, também a eles, o chicote, forçando-os a recuar para os seus devidos lugares.
- Parece-me bem que o governo da cidade foi um esforço demasiado grande para ti, príncipe Leopold - continuou o imperador suavemente, esmagando as esperanças de Leopold. -uma cidade não é, afinal, um pelotão de soldados. Pura e simplesmente não se pode dar uma ordem e partir do princípio que um civil lhe obedecerá. Tem que se mostrar a essa gente que a nossa mão é feita de ferro, dar-lhes uma boa razão para obedecerem, provar-lhes que não admitimos que nos desobedeçam.
Eu disse coisas demais, levantei demasiadas questões, ele está a tirar-me a cidade...
- Sim, assumirei eu próprio o comando de Merina. Quanto ao meu leal comandante Leopold - continuou o imperador num tom calmo e sedoso, enquanto Leopold mantinha os olhos baixos e fixos nos desenhos geométricos da carpete vermelha e negra onde estava ajoelhado - é óbvio que mais oficiais deveriam ter a compreensão que ele demonstra. E é também óbvio que os seus deveres foram para ele um fardo demasiado pesado. Creio que poderemos aliviá-lo desse fardo e, simultaneamente, contribuir para que os oficiais mais novos ganhem alguma da sua compreensão.
O desespero de Leopold aumentou.
Não... ele não vai... Mas ia.
- Assumirei eu próprio o comando das tuas tropas - continuou calmamente o imperador -e tu, príncipe Leopold, retirar-te-ás para o outro lado do rio, para o Palácio de Verão e treinarás os oficiais mais novos que lá colocarei. Enviar-te-ei aqueles que sentir necessitarem de instrução.
Leopold não se conseguiria pôr de pé mesmo que o imperador lho ordenasse. Sentia-se dormente, como que colado ao sítio onde estava. De uma só vez fora privado do comando, exilado, retirado de uma posição que lhe permitiria desacreditar Apolon ou Cathal e privado de qualquer possibilidade de cumprir a promessa que fizera à grande sacerdotisa.
Tenho que arranjar uma forma de avisar a grande sacerdotisa do que se passa! Talvez ela consiga convencer o povo de Merina a manter-se calmo sob a mão do imperador.
- Vou mandar chamar os vossos escudeiros para que possais partir imediatamente, príncipe - disse o chanceler, destruindo as suas esperanças de conseguir avisar a grande sacerdotisa antes de Balthasar assumir de facto o controlo. - Segundo creio, as vossas coisas ainda aqui estão no acampamento?
Estonteado ele assentiu, ainda com os olhos baixos.
- Óptimo - disse calorosamente o chanceler. - Por que não ides buscá-las e depois não atravessais o rio?
Ouviu-se o ruído do atrito de panos e o chanceler avançou até ficar ao lado de Leopold, tocando-lhe no ombro e fazendo-lhe sinal para que se levantasse. Ele assim fez, ainda de tal forma chocado que se movia como num sonho, mal tendo consciência dos seus movimentos.
- Vai com ele, sim? - disse o imperador; Leopold não conseguia olhar para ele. - Cuida de que lhe dêem tudo aquilo de que precisar. Não queremos que ele parta sem os aprovisionamentos
necessários.
Sem saber como, Leopold deu por si a sair da tenda com o chanceler a seu lado. Seguramente terá feito uma vénia a Balthasar, mas não se recordava; certamente que o fizera, pois o chanceler não lhe permitiria que omitisse um gesto tão importante...
- Recomponde-vos, meu rapaz, isto não é assim tão mau - disse Adelphus assim que saíram da tenda. - Parai de agir como se tivésseis sido exilado para o fim do mundo! O Apolon goza de grande popularidade junto de Balthasar neste momento; cometestes um erro ao atacá-lo, é tudo. Ele há-de cometer um erro; os da sua laia cometem sempre, e voltareis a gozar dos favores do imperador. Agora ide, mas é para o Palácio de Verão, fazei o que o imperador vos diz e tudo ficará bem de novo.
Adelphus continuou no mesmo tom durante mais algum tempo e Leopold reprimiu a vontade de o estrangular. Balthasar não ia fazer nada em relação a Cathal! E quanto a Apolon...
Pelo menos destruí todas as suas esperanças de encontrar a princesa através da magia, pensou selvaticamente Leopold.
Mas isso não contribuiria em nada para ajudar os cidadãos de Merina. Entre os dois, Apolon e Cathal iriam reduzi-los a pó.
ADELE
A religiosa Elfrida ficou espantada com a quantidade de pessoas da cidade que estavam na nave quando entrou para a vigília seguinte; planeara a morte de Adele há tanto tempo, que esta já não lhe parecia uma novidade. Sentiu-se estranhamente tocada por ver pessoas a chorar; não esperara que Adele fosse chorada tão fervorosamente e durante tanto tempo, tendo as pessoas tantos outros motivos de desgosto. Talvez este seja um motivo relativamente ao qual sentem, que lhes é permitido chorar abertamente, pensou.
Olhou para o Coração, tentando chamar a si a serenidade adequada, numa tentativa de compor os seus pensamentos em oração. Mas até o Coração sofrera uma transformação. O ouro era visível na extremidade, pela primeira vez em décadas se não em séculos, e havia uma grande quantidade de rubis cuidadosamente empilhados no altar.
Ficou a olhar, espantada. Que acontecera ali? Não importa. Ainda não tens nada a ver com isso. E há outras coisas mais urgentes com que te preocupes. Sem dúvida que Verit lhe explicaria tudo mais tarde.
A religiosa Elfrida concentrou novamente a sua atenção no livro de cânticos e forçou os lábios a cantar as palavras adequadas, ainda que, naquele momento, não conseguisse sentir nada no seu coração. Mas ouviam-se sussurros, sussurros que perturbavam a concentração e que vinham das pessoas que estavam por trás das barreiras que as separavam dos religiosos. Noutra altura, Elfrida não teria prestado atenção; na verdade, provavelmente nem os teria ouvido. Mas agora... não se conseguia concentrar nem mesmo no mais familiar dos cânticos.
- “... milagre...” “Soldados atacaram...” “espancados em frente do próprio altar...”
Soldados no templo? Subitamente, e pela primeira vez desde rapariguinha, sentiu-se impaciente pelo fim do culto. Deveria ficar outra vez de serviço no confessionário, agora que já se mostrara suficientemente em público. Certamente que nos confessionários conseguiria algumas pistas relativamente ao que acontecera enquanto ela estivera calmamente a copiar um manuscrito.
O serviço parecia não mais acabar, mas finalmente terminou e ela apressou-se a ir ocupar o seu lugar por trás do biombo do confessionário. Quando o seu tempo de serviço ao confessionário chegou ao fim, já tinha de facto uma imagem muito aproximada dos acontecimentos. Não havia qualquer dúvida no seu espírito de que o sangrar do Coração fora um milagre; participara uma vez na limpeza do Coração, quando era mais jovem e mais ágil, e sabia que aqueles rubis estavam embutidos com toda a perícia dos melhores joalheiros do Tigre. Nada, a não ser a fundição do próprio ouro, poderia tê-los soltado.
Mas quanto à barbárie dos soldados... esse era um elemento novo e muito perturbante para a cidade inquieta. Parecia que agora já não tinham que se preocupar unicamente com os casacos negros, mas também com um corpo de mercenários que respondiam apenas perante o general Cathal e a quem pareciam ter soltado a trela. Uma das mulheres entrara no confessionário a chorar e a falar tão incoerentemente, que fora preciso bastante tempo até ela se controlar o suficiente para ser capaz de partilhar a sua aflição. O seu sobrinho, um membro das forças da ordem, fora preso e ainda não tinha sido libertado e a sua única filha, de quem ela há muito suspeitava ser de virtude muito negociável, fora arrebanhada pelos mercenários de Cathal e encarcerada numa casa guardada por forças imperiais e que só a elas servia.
Já não conheço a minha própria cidade, pensou Elfrida meio estonteada quando a mulher saiu, apenas ligeiramente confortada.
Mas a própria Elfrida também não conseguia conforto para si própria. Chegou mais gente, alguns com histórias de fogos estranhos que surgiam de lado nenhum e que reduziam os edifícios, mas apenas certos edifícios, a cinzas. Esses fogos nunca se espalhavam para lá dos edifícios onde se ateavam e nada os conseguia apagar.
Elfrida saiu do confessionário envolta numa vertigem, sentindo que os acontecimentos ocorriam demasiado depressa para que ela conseguisse sequer acompanhá-los. Foi para o refeitório para jantar, perguntando-se se os outros religiosos teriam recebido o mesmo de confissões semelhantes. Pelas expressões atordoadas e acabrunhadas dos seus rostos, provavelmente assim fora.
Um único pensamento ocupava o seu espírito enquanto engolia a comida, que não conseguia saborear.
Que aconteceu à minha cidade? E que poderemos nós, uns quantos religiosos, fazer para combater o que está a acontecer?
Mas aquele pensamento não foi a única coisa estranha que ela encontrou no refeitório, pois enquanto comia, e pela primeira vez de que tinha conhecimento, ouviu a voz da discórdia erguer-se entre os religiosos quando o silêncio foi levantado.
A sua atenção foi atraída pelo facto de alguém na mesa ao lado erguer a voz para além do habitual murmúrio, num tom que a tensão tornava agudo. Não ouvira o que iniciara a discussão, mas ouviu muito bem o que se seguiu, assim como todos os outros sentados em torno daquelas duas mesas.
- ...como podes dizer uma coisa dessas, religiosa Pátria? Isso é certamente o maior dos disparates! Ora, vejam bem a rapidez com que o príncipe trouxe os seus homens para lidar com os desordeiros! O imperador é um filho leal da Deusa e zelará sempre pela nossa protecção! Ora, ele é o soberano! É seu dever fazê-lo!
- Só porque é ele quem governa, não quer dizer que governe bem ou que não se esteja nas tintas para nós, religiosa Althe - foi a resposta ácida. - Se queres a minha opinião, ele só nos vê como mais um sítio cheio de riquezas para saquear... somos apenas uma noz um pouco mais difícil de quebrar do que uma casa vulgar.
A religiosa que primeiro erguera a voz levantou-se abruptamente, o rosto carmim.
- Bem, ninguém perguntou a tua opinião, religiosa! - gritou. - E acho que deverias falar com a reverendíssima Verit por causa desses... desses... pensamentos blasfemos e traidores!
E com aquelas palavras, a religiosa ofendida, e não era uma das mais novas, reparou Elfrida, empurrou bruscamente o banco para trás para poder sair da mesa e marchou dali para fora.
Traidores... bem, suponho que sim, se se aceitar quem quer que segure as rédeas como soberano “legítimo.” Mas “blasfemos”? Como poderia ser considerado blasfemo falar contra o imperador? Elfrida observou a religiosa Pátria sair rapidamente à porta e não foram os seus olhos os únicos que seguiram o trajecto daquelas costas indignadas. A maioria dos que a observavam tinham expressões profundamente surpreendidas. Outros, expressões onde a paciência se misturava com a repugnância. Mas alguns, para grande desconforto de Elfrida, tinham expressões
de aprovação.
Gradualmente, o murmúrio da conversação restabeleceu-se e Elfrida esforçou desavergonhadamente os ouvidos para conseguir ouvir o que a explosão de Pátria traria à luz do dia e parte do que apareceu constituiu um choque. Havia uma facção, minoritária mas ainda assim numerosa, que sentia exactamente o mesmo que a religiosa Pátria: quem quer que fosse o chefe titular do governo de Merina era o legítimo destinatário da sua lealdade, apenas em virtude do facto de ser o detentor do poder. E que não importava o quê ou quem fosse esse chefe, os religiosos do templo estariam perfeitamente seguros nos claustros e ninguém lhes faria mal. Essa facção defendia a tese de que as histórias de horror na cidade eram um grande exagero, provavelmente da autoria de potenciais rebeldes que tentavam provocar distúrbios contra o imperador. Quanto à invasão do próprio templo, isso explicavam como tendo sido ou um erro da parte do oficial que a liderara, ou davam-lhe o desconto, como tendo sido uma tentativa de mercenários desordeiros que actuavam por conta própria.
Um ou dois dos religiosos foram de tal forma firmes na sua defesa da pureza do imperador Balthasar e dos seus motivos, que Elfrida teve que fixar os olhos no prato, cerrar os dentes e dizer uma série inteira de orações para se conseguir impedir de lhes dar com o tabuleiro de madeira na cabeça para ver se assim ganhavam algum juízo. Esses, tal como Pátria, não se contavam também entre os religiosos mais novos. Na realidade, a sua maioria era dos mais velhos.
E essa poderá muito bem ser a explicação, compreendeu ela, enquanto tentava acalmar a sua ira. Vivem aqui há tanto tempo que o mundo exterior já não lhes parece real. Podem afirmar alegremente que as histórias de mortes, desaparecimentos e raptos são todas inventadas ou grosseiramente exageradas, porque não conseguem pura e simplesmente imaginar que tais coisas possam acontecer.
Eles não queriam que o mundo sofresse quaisquer transformações, por isso argumentariam até à exaustão que o mundo não mudara. E até que alguma coisa acontecesse mesmo perante os seus olhos, algo que não pudessem ignorar, continuariam a acreditar que assim era.
Mas isso significava que o templo já não estava completamente unido. E não havia dúvida de que isso debilitaria a sua força. Tal como uma pequena peça de porcelana, o poder do templo só seria suficientemente forte para resistir a um ataque exterior enquanto se apresentasse sem falhas, perfeito, sem qualquer racha ou defeito.
E aqui está uma falha, pensou ela com infelicidade. Uma falha tão perfeita quanto Apolon ou Balthasar poderiam desejar. Estremeceu, atingida por um vento frio vindo não sabia de onde, gelada por uma terrível premonição.
LYDANA
Enquanto se apressava pelas ruas, voltou a ver casacos negros. Não havia nenhum junto do templo, mas depois avistou grupos deles espalhados ao longo de algumas das ruas, embora não parecessem manifestar qualquer interesse pelas casas que as ladeavam.
Eel surgiu da ombreira de uma porta e juntou-se-lhe, seguindo o seu costume de aparecer como se se materializasse do próprio ar.
- É melhor esquecermos a vendedeira de contas - Eel afirmou abruptamente.
Ela não vacilou, mas ficou à espera de mais um golpe.
- Que foi que aconteceu?
Eel quase corria para a acompanhar.
- A loja desapareceu. No entanto, os edifícios dos dois lados não têm quaisquer vestígios de incêndio. Só o que restou entre eles foram cinzas e um cheiro horrível, tudo a céu aberto.
A destruição da loja. Significaria isso que eles cheiravam o seu rasto e estavam muito próximos de a apanhar? Fechou as mãos formando dois punhos cerrados escondidos pelas mangas largas do hábito. A lágrima de rubi continuava quente como um ferro de marcar, mas suportou alegremente a dor, sentindo-se certa de que aquela era uma promessa de auxílio que dificilmente alguém poderia almejar alcançar sem estar totalmente nas boas graças da Grande Presença.
- E os que lá vivem?... Berta, Kassie, Max... - perguntou.
- Mantêm-se em casa. Mas de momento estão bem - disse-lhe ele. - Disseram-me que tinha acontecido de noite; que se ouviu um som semelhante ao de um grande trovão e depois as chamas ergueram-se bem altas. Mas mantivera-se circunscrita à loja, como se esta fosse uma lareira bem construída a que tivessem chegado fogo.
Ela franziu o sobrolho.
- Mas quem?
Eel abanou a cabeça.
- Não há sinais de arrombamento. A Berta está morta de medo, mas ainda me conseguiu dizer isso.
- Um engenho mágico - disse Matild lentamente. - Uma coisa dessas poderia ser instalada em qualquer altura que lá não estivéssemos para ser activada mais tarde, com um feitiço... já li sobre esse género de coisas. Ah, se isso for verdade, estamos a defrontar-nos com conhecimentos bem antigos. Mas, destruir a loja para quê?
- Nós saímos pela porta escondida, como sempre - replicou Eel calmamente. - Tanto quanto o incendiário sabia, nós estaríamos aconchegadas na cama e agora não passamos de cinzas
espalhadas pelo vento. O que até poderá ser uma boa coisa, eles pensarem que nós estamos mortos - concluiu ele.
Na verdade assim era, embora não tivessem provas de que os seus rastos estivessem assim tão bem cobertos. O convento... não podia pôr os religiosos em perigo. Se aquele que a procurava conseguia localizá-la...
No entanto teria que lá ir novamente. Apressou o passo. Chegaram ao convento. Notou que os guardas no exterior eram agora três e que a sua presença era ostensiva, mantendo-se muito perto da porta do convento, embora não tivessem feito qualquer tentativa para a deter ou interrogar. Enviara Eel à taberna de Jonas para recolher quaisquer informações que os espias do taberneiro tivessem conseguido reunir a respeito das abordagens possíveis à Casa do Javali. Pois seria ali, respirou fundo, que ela própria atacaria.
Uma vez no interior das paredes dos claustros, foi novamente levada directamente à cela da reverendíssima, que estava sentada à mesa que lhe servia de secretária. Entre as suas mãos, pousado em cima da mesa, estava um quadrado de um material com uma superfície baça, que lhe pareceu um vidro opaco. A religiosa olhava para ele como que perdida numa visão. A palma da mão de Matild ardeu com o recrudescimento do calor do rubi, a um ponto que não conseguiu abafar um pequeno grito de dor. A reverendíssima pestanejou e ergueu os olhos. Tinha os olhos esbugalhados, como se tivesse testemunhado algo que sabia não ser possível.
- O Coração... sangrou! - disse num murmúrio muito baixo e repleto de espanto.
Por uma qualquer razão, Matild não conseguiu continuar de pé. Caiu de joelhos do outro lado da mesa e estendeu o punho, abrindo-o lentamente por forma a revelar o que guardava na palma da mão.
Ali estava um rubi reflectindo mais luz do que qualquer jóia comum alguma vez poderia reflectir. Mexeu-se um pouco, quando ela o libertou da prisão dos seus dedos. Por baixo dele, gravado na sua pele, estava o sinal do Coração, como se tivesse sido marcado a ferro.
Zenia olhou para a pedra e para o sinal que esta deixara. As suas mãos fizeram o sinal duplo da maior das bênçãos.
- Escolhida... fostes muitíssimo favorecida! Não existe Vontade que se Lhe possa opor quando Ela escolhe expressar-se! Quais são as Suas ordens?
Matild olhou para a pedra. Agora que já não a apertava com força, já não sentia a queimadura. E a cicatriz não tinha um aspecto inflamado; poderia ali estar já há muito tempo. O rubi rolou dos seus dedos e caiu em cima do pedaço de vidro que estava pousado na mesa. Surgiu um clarão de luz, brilhante como o sol em toda a sua glória, e que fez as duas mulheres gritarem e taparem os olhos, pestanejando, tentando livrar-se da cegueira súbita.
Quando conseguiu ver mais alguma coisa que um nevoeiro tingido de um carmim brilhante, Matild olhou para o vidro. Já não era opaco, mas tinha ficado transparente e poderia ser uma vidraça através da qual ela olhasse para uma outra sala. Ergueu as mãos e puxou para trás as abas da touca, por forma a poder ver melhor. Ao fundo via-se ainda um turbilhão de cores, como se um arco-íris tivesse sido capturado, firme e bem definido. Adele estava de pé à frente do arco-íris, olhando para elas. Os seus lábios moviam-se; Matild apreendeu pensamentos, mas não sons.
- Aqueles que A seguem pediram paciência e paz. Isso já não é mais possível, pois esta Serpente, surgida do mais profundo dos Infernos, rasteja livremente. Conseguimos provas de que ele é, verdadeiramente, um necromante, capaz de convocar os mortos para uma nova batalha, mesmo contra aqueles que no passado eram caros aos seus corações. Aproximamo-nos rapidamente da batalha final e nenhuma visão nos consegue mostrar qual será o resultado, pois quando a Luz e as Trevas se confrontam com todo o seu poder, nenhuma alma humana consegue compreender as forças assim libertadas. Devemos reunir agora as nossas forças para esse dia, para essa hora.
Os lábios de Matild moveram-se, mas não conseguiu produzir qualquer som.
- Minha filha, toma o dom da Deusa e usa-o como Ela sugerir ao teu espírito. Devemos reunir exércitos... não exactamente contra esse imperador iludido, mas antes contra essa sombra tão tremenda que está por detrás dele.
Viu-se uma outra explosão de luz e a placa de vidro ficou mais uma vez opaca e baça.
As mãos de Zenia juntaram-se numa prece; Matild, com os sentidos aguçados, talvez pelo que vira e ouvira, conseguia sentir a força fervorosa da prece erguendo-se para os céus. Mas a sua
forma de contribuir não era rezando, embora enviasse ao céu uma prece implorando força para as horas que se aproximavam, mas sim agindo.
Pôs-se de pé rapidamente e depois agarrou no rubi que estava em cima do vidro; soltou os atilhos do hábito e da túnica que tinha por baixo. Quando soltou o alfinete onde o sinete estava engastado, teve que torcer um pouco o metal, mas viu que podia, tal como calculara, esconder a pedra sagrada na concavidade que ficava por trás do engaste do selo.
Não perturbou Zenia, saindo silenciosamente da pequena sala. Da capela ouviam-se as vozes dos religiosos enviando os seus cânticos e desejos de felicidades à reverendíssima falecida. Entrando no pequeno compartimento da religiosa Papania junto à entrada, Matild tirou o hábito e soltou os cabelos da prisão da touca. Assegurou-se de que as tranças continuavam firmemente seguras. As roupas andrajosas que trouxera vestidas estavam cuidadosamente postas a um canto, e foi com elas que se vestiu novamente.
Sentiu uma punhalada de fome. Fora um dia muito longo e não tomara as refeições. Não havia qualquer razão para que jejuasse, muito menos agora que necessitaria de todas as suas forças. Foi até à cozinha e cortou uma grande fatia de um pão comprido e ficou satisfeita por ver um pote de bom mel com que barrar o pão. Comeu lentamente, empurrando com uma mistura de sumos de frutos e água que encontrou dentro de uma garrafa.
Enquanto comia, Matild reflectia também. Não havia certamente forma de os invasores conseguirem abafar a história do milagre. E, julgando pelas expressões que vira nos rostos daqueles que tinham sido afastados do altar à força de pancada, o milagre tinha constituído um poderoso incitamento contra o conformismo medroso. Jonas tinha os seus próprios olhos e ouvidos e conhecia guerreiros que se moviam clandestinamente e a quem não era fácil apanhar em combate aberto.
Mas Saxon... ah, Saxon poderia fazer ainda mais. Ele sempre tivera um grupo muitíssimo unido de seguidores; a lealdade era uma espada e um escudo nas suas mãos. Agora, era de Saxon que precisavam: um combatente e estratega de planos engenhosos, como já provara muitas vezes no passado.
Assim, o seu objectivo era inquestionável. Tinha que fazer Saxon sair da prisão e ao mesmo tempo armar uma cilada a Cathal. Matild lançou um olhar para fora da pequena janela. Embora só visse um pátio estreito, foi o suficiente para perceber que o crepúsculo se aproximava. O pátio não tinha uma porta para o exterior, mas contra o muro do fundo estava construída uma pequena arrecadação para ferramentas de jardinagem. Forçando-se a esperar o tempo suficiente para comer uma outra fatia de pão, Matild observou a arrecadação. Estava certa de que ali estava a resposta para o seu problema.
O crepúsculo caía agora rapidamente; ouviu o ruído de trovões distantes. Uma noite má; o que é que poderia servir melhor os seus intentos? Olhou uma última vez em torno de si e os seus olhos caíram sobre um instrumento de cozinha talhado em madeira e que servia para estender massa de pão. Que arma melhor poderia uma mulher desejar: fácil de transportar, silenciosa e conhecida das suas mãos?
Saiu para o jardim e já estava junto à arrecadação quando soou, mesmo por cima de si, o estrondo de um trovão, tão forte que quase acreditou que fossem quais fossem os poderes de destruição que o mago usava, estavam agora dirigidos para o próprio convento. Mas o que surgiu após o estrondo foi um relâmpago e nessa altura já ela estava bem colada à parede da arrecadação.
Matild era uma mulher alta, e embora muitos dos seus interesses fossem do tipo sedentário, o exercício físico também lhe era familiar. Não navegara em barcos sacudidos pelas tempestades e não escalara os penhascos quase perpendiculares das ilhas Yark em busca das opalas fossilizadas dos ossos dos pássaros que só aí se encontravam? Embora a saia comprida a embaraçasse, conseguiu trepar para o telhado da arrecadação, de onde podia olhar para a rua do outro lado do muro.
As lanternas instaladas para iluminar as ruas do pôr ao nascer do sol deixavam ver línguas de fogo amarelado, ao serem atingidas pelo vento forte. Viu-as apagarem-se uma após outra. Não havia ali quaisquer sinais de guardas ou vigias e também não havia quaisquer recantos ou ombreiras de portas onde se pudessem ocultar.
Matild deixou cair o chão a sua arma doméstica e saltou também ela. Primeiro Jonas: tinha sem dúvida as informações necessárias, mas ainda não obtivera o apoio indispensável para a visita que queria fazer à Casa do Javali. Além disso, não o permitisse a Grande Deusa, aquele que procurava podia já ter sido mudado de local durante o dia.
O casaco negro pareceu ter nascido do próprio chão na sua frente. Tinha uma barra apontada a si e, antes que Matild se pudesse mexer, uma luz amarela, doentia e fina, foi projectada da sua extremidade, apontada por forma a atingi-la no peito. Mas a luz não chegou a tocar o seu corpo. O velho xaile fumegou, mas a língua de fogo não passou além dele. O casaco Negro, o seu rosto era apenas uma mancha branca na escuridão, girou a barra por forma a apontar à cabeça. Mas foi demasiado lento. Muitos anos de prática persistente, passados na praça de armas a praticar combate corpo a corpo, tinham endurecido Matild. A sua moca improvisada atingiu-o primeiro e ela ouviu um som que a fez sentir-se enjoada antes de ele cair no chão. Matara de novo; estava tão segura disso como se tivesse visto a alma a sair do corpo do homem. Mas forçou-se a aproximar-se dele para agarrar a barra. Devia ser uma arma do mago, portanto não se deveria confiar nela. Mas, pelo menos, cuidaria para que não provocasse mais danos.
A dor no seu peito foi tão aguda que Matild tropeçou até ao muro e ficou ali encostada, os olhos abertos de terror. O fogo que assinalava o acordar do rubi não diminuía de intensidade. Sentiu que tinha que o afastar da sua pele e lançou as mãos à roupa, lutando com o fecho do alfinete.
No chão, o homem que abatera começava a mexer-se. Ela atreveu-se a cambalear um pouco na sua direcção e a dar um pontapé na barra, tirando-a do alcance do seu braço e dos dedos que faziam movimentos como se a quisessem agarrar, embora o homem continuasse deitado de cara no chão.
Ele conseguiu pôr-se de joelhos, não fazendo qualquer som; sem olhar sequer na direcção do local onde ela se encontrava. A cara dele... Tal como pudera ver a cara esmagada do homem que matara junto ao rio, com uma pedra, também agora via que a cabeça deste tinha uma estranha forma; que um dos olhos estava completamente fechado e que o outro olhava directa e fixamente em frente.
Ele deu um ou dois passos cambaleantes. Embora não baixasse a cabeça por forma a ver onde punha os pés, os braços, que pareciam pender soltos dos ombros, balançavam-se para a frente e para trás, como se estivesse dobrado em dois e varresse o chão em busca da arma desaparecida.
Matild conteve a respiração; havia qualquer coisa tão repulsiva naquela criatura saída da noite que já não pensava nela como num homem e não conseguia controlar completamente o seu medo e o seu horror.
Ele virou-se; a cabeça horrenda estava agora de frente para si. Mas embora se movesse, ela soube no seu coração que aquilo não vinha de nenhum mundo puro. Naquele momento não se conseguiu mexer, de tal forma estava paralisada por um terror absoluto. Ele não parecia estar a vê-la; no entanto devia ter pressentido de alguma forma a sua presença, pois lançou-se para a frente, com ambas as mãos erguidas como se a quisesse agarrar pelo pescoço. E continuava a não produzir qualquer som.
A mão de Matild, segurando no sinete e no rubi, ergueu-se num gesto de defesa inútil perante aquele horror trôpego.
Tal como a barra que ele empunhara lançava um raio mortífero como o de um relâmpago, da mão dela soltou-se um vapor, um globo luminoso e gasoso, crescendo cada vez mais à medida que se ia espalhando. Vermelho como o sangue do Coração, adensava-se e dele provinha um zumbido.
A coisa que a atacava balançou-se no local onde parara momentaneamente. Pela primeira vez ela viu expressão na cara branca e despedaçada; recuou cambaleando, mas já a luz que girava o alcançava, engolindo-o e confinando-o.
Matild não ouviu o som com os ouvidos, este pareceu antes repercutir-se por todo o seu corpo. Não foi um grito de dor, de ódio ou de medo, mas sim de uma emoção que ela não sabia nomear.
O casaco negro caiu de novo, o corpo enrolando-se numa bola, tal como o de uma criança adormecida. Depois desapareceu, deixando atrás de si apenas algumas cinzas e um monte de roupas.
Vira naquele dia o Sagrado Coração sangrar, agora vira algo mais: o movimento de forças que ultrapassavam o seu entendimento. Talvez Adele e todos os outros que tinham o Talento pudessem assistir a tais acontecimentos e não se impressionar, mas ela sentia-se fraca e enjoada; ela não tinha qualquer Talento. E dentro dela, muito vagamente, começou a surgir uma outra ideia: talvez que, indo contra toda a sua educação e a tradição, ela nunca viesse a ser capaz de aceitar que tais forças viessem a fazer parte da sua vida.
Afastou-se um pouco do muro e com a bota afastou a barra. Movida por um impulso que não era resultado de nenhum pensamento consciente, debruçou-se e correu o alfinete com o rubi
ao longo da estranha arma. A barra retorceu-se como se estivesse viva; tentou rastejar para longe dela como uma cobra o faria. Ela estava pronta para aquela eventualidade e virou o alfinete por forma a que o brilho do rubi a atingisse em cheio. A barra revirou-se, contorceu-se e lutou à sua maneira perversa, mas aparentemente a força que a animava estava selada dentro de si. Depois desfez-se também ela numa massa de metal baço no momento em que a tempestade rebentava em toda a sua força, com gotas de água suficientemente grandes para lhe magoarem a pele quando a atingiam.
A chuva caindo em bátegas fez com que Matild se recompusesse e tomasse consciência do que tinha perante si. Deveria fazer um esforço deliberado para não pensar no que ali acontecera. Mais tarde isto poderia ser relatado a Adele, cujos conhecimentos poderiam fornecer a interpretação correcta, mas Lydana não fazia parte do grupo dos visionários, mas sim do grupo dos que preferiam a acção concreta, e naquela noite tinha que agir.
Arregaçando a saia para poder caminhar a passos largos, Matild dirigiu-se à taberna de Jonas. Sentia-se agora assolada pela sensação de que lutava contra o tempo. E estava certa de que aquela noite presenciaria a sua incursão na Casa do Javali.
Virou uma esquina e sentiu toda a força do vento, sendo obrigada a lutar contra a sua fúria. Isso era ainda melhor para os seus objectivos. Haveria poucas patrulhas na rua, numa noite assim. A lanterna que assinalava a porta de Jonas ainda tinha uma pequena chama quando ela entrou, dizendo a senha que lhe deu acesso à grande sala.
Naquela noite estava verdadeiramente cheia e do meio da confusão surgiu Eel, que veio até junto de si. Matild conseguia ver Jonas com mais um grupo do outro lado da sala; todos eles com uma postura e uma agilidade evidente que os denunciava como ratos do rio.
Alguns dos ali reunidos olharam-na, enquanto ela abria caminho até junto do taberneiro. Tirara a saia e o xaile quando entrara e o fato coleante e escuro que trazia poderiam marcá-la como assassina ou ladra.
Um dos homens que estavam perto de Jonas mexeu-se e este ergueu os olhos para a encarar directamente. O seu rosto redondo tinha uma expressão decidida e ela percebeu que ele estava a meio de um qualquer plano.
- Que é que nos trazes? - Não se lhe dirigiu por qualquer nome ou título quando ela ficou à sua frente.
- Uma chave para a Casa do Javali - disse-lhe ela sem rodeios. - Podemos tirar de lá Saxon esta noite, se arranjares os homens...
Jonas soltou uma gargalhada rouca, os olhos percorrendo o grupo no centro do qual estava sentado.
- Oiçam bem isto, seus desordeiros. Uma chave! Parece que a Sorte quer mesmo favorecer-nos. Era já nossa ideia tentar assaltar essa casa esta noite - acrescentou ele, dirigindo-se a Matild.
- Muito bem - replicou ela. - Em que estavas a pensar?
- Aqui o Brock - pôs uma mão no braço do homem ao seu lado - é um homem da água. O canal do sul vira na direcção indicada. Nenhum desses três vezes amaldiçoados invasores tem a perícia suficiente para tentar navegar com este tempo. Assim, com o clima do nosso lado, que melhor oportunidade teremos nós, pobres marinheiros?
- Nenhuma, parece-me a mim. - Matild recuperara toda a força do objectivo que ali a levara. Agora tinha na sua frente as ferramentas necessárias aos seus planos e fosse lá o que fosse que eles tivessem sido, ou ainda fossem, naquele momento era neles que confiava.
APOLON
O Mago Cinzento olhava para as gavetas vazias que deveriam conter as mais íntimas das peças de vestuário feminino e, girando sobre si próprio, olhou depois para o roupeiro que continha apenas alguns vestidos impessoais de cerimónia, cada um deles usado no máximo uma ou duas vezes. Não era o suficiente para conferir a aura de “personalidade” que lhe era necessária numa peça de roupa para poder localizar quem a tinha usado. Fora roubado, roubado daquilo que mais necessitava, na altura em que mais necessitava!
Não havia nada, nada! Nem ali nas salas da princesa Shelyra, nem nas salas da sua tia e da sua avó, que tivesse mais do que uma ligação casual às mulheres do Tigre. Isso não era o suficiente, nem de longe nem de perto e a raiva ferveu dentro de si.
- Quem é que fez isto? - perguntou ele ao soldado que ali o conduzira. - Quem é que ordenou que os quartos fossem limpos?
O soldado encolheu os ombros.
- O imperador, suponho eu. Ele queria poder mudar-se para os aposentos da rainha imediatamente, e destinou-vos a vós estes aposentos e os da rainha-mãe ao chanceler. Deve ter ordenado que os aposentos fossem limpos.
O soldado reprimiu um sorriso, mas Apolon apercebeu-se dele. Ele sabia qual a causa daquele sorriso. Alguém tirara as roupas da cama da rainha, encharcara o colchão de penas com água e refizera cuidadosamente a cama. Os estragos não tinham sido descobertos até à chegada dos criados do imperador; por essa altura já o colchão de penas estava cheio de bolor e a madeira da cama também, com as tábuas negras e apodrecidas. O cheiro era inacreditável e a cama inteira tivera que ser substituída.
Apolon virou-se para as gavetas despejadas com um rosnido. Aquela era apenas a última frustração de um dia longo e difícil. No momento em que a comitiva do imperador entrava os portões da cidade, recebida pelos fracos aplausos de um público arrebanhado pelos mercenários de Cathal e pelos casacos negros de Apolon, o céu abrira-se e toda a gente ficara encharcada até aos ossos. Em vez de um desfile triunfal até ao palácio, desfile esse cujo objectivo era instilar o medo e o respeito nos cães de Merina, Balthasar conduzira os seus oficiais encharcados numa correria ignominiosa, enquanto os cidadãos dispersavam em busca do abrigo das suas casas, e nem mesmo a presença dos mercenários conseguira detê-los.
E quando o imperador chegara ao palácio, tinham descoberto que nada estava pronto para o receber. Ao enviar tão precipitadamente o príncipe para o outro lado do rio, Balthasar e Adelphus tinham-se esquecido de que não haveria ninguém que desse as ordens necessárias à preparação do palácio. O príncipe levara ali no palácio, notoriamente, uma vida tão espartana como a que levava no acampamento e muito poucas coisas tinham sido mexidas desde que a rainha abdicara. Segundo os seus oficiais, Leopold comia as rações dos soldados, passava a maior parte do tempo que estava acordado a supervisionar os seus homens e, até muito recentemente, dormira na mesma caserna dos seus soldados. Não usufruíra dos luxos que a cozinha do palácio lhe poderia proporcionar e, na verdade, todo o pessoal da cozinha fora despedido antes do restante.
Talvez tivesse sido por essa razão que ele não notara a depredação das reservas de comida. Não fora uma questão de roubo; fora desperdício; ou antes, fora sabotagem. A farinha branca e fina com que era feito o pão favorito do imperador parecia viva de tantos gorgulhos. A manteiga e o toucinho estavam rançosos; os queijos de qualidade estavam cobertos de bolor. Não havia carne; tinha sido devorada por um pequeno exército de ratazanas. O açúcar e o sal estavam em pedra; atingidos pela humidade; tinham solidificado de tal forma que só poderiam ser utilizados depois de novamente esmagados em almofarizes. Os tubérculos estavam todos podres. E, embora Apolon não estivesse certo de como isso poderia ter acontecido, o vinho de todas as garrafas que estavam na adega fechada a cadeado tinha azedado e era agora vinagre.
Tudo o que restava era a comida grosseira com que os criados se alimentavam: feijões e ervilhas secas, trigo grosseiro e farinha de centeio, carne seca, um pouco de mel, peixe salgado e queijo de má qualidade.
Também o armazém da madeira tinha goteiras e cada pedaço de lenha estava molhado. Assim, o imperador jantaria uma parca refeição constituída pela ração dos soldados e deitar-se-ia em roupas e colchões não arejados trazidos do sótão, e fá-lo-ia num quarto gelado com uma lareira fumegante de onde pouco calor se soltaria.
Corriam boatos de que o palácio estava assombrado; de que os espíritos pregavam partidas durante a noite, criando silenciosamente o caos e desaparecendo sem deixar rasto. Apolon suspeitaria de obra de mãos humanas, não fosse o facto de todos os criados terem sido despedidos antes de terem começado essas partidas e não era humanamente possível a qualquer criado conduzir hordas de ratos até à cozinha, nem tão-pouco transformar centenas de garrafas de vinho em vinagre...
Sentiu apenas por um momento um arrepio na nuca. Depois a ira fez com que aquela sensação desaparecesse novamente. Fosse natural ou sobrenatural, ele defrontaria o autor de tudo aquilo! Construiria barreiras que nem mesmo um anjo conseguiria penetrar; instalaria armadilhas que até um ratinho despoletaria. Agora que o Mago Cinzento estava no comando, não haveria mais disparates daqueles...
Depois pensou novamente com realismo. Ele poderia fazer tudo aquilo... partindo do princípio que arranjaria tempo e energia mágica para o fazer e conseguir cuidar ao mesmo tempo dos seus próprios planos. Continuava a perder servos num ritmo lento, mas constante, mas cada escravo que perdia estava perdido para sempre e levava consigo recursos preciosos. Tinha que os substituir. Não poderia continuar o seu trabalho sem eles. Tinha que encontrar a princesa. Precisava daquilo que ela representava.
- Manda subir os meus criados e que tragam as minhas coisas - disse bruscamente ao soldado que aguardava.
O homem deve ter visto qualquer coisa na sua expressão que o enervou, pois saiu rapidamente, com uma pressa que Apolon não esperara, devido aos seus modos insolentes.
O homem era, evidentemente, um dos soldados de Leopold. O príncipe mantivera uma familiaridade demasiado grande com os seus subordinados, o que encorajara aquele tipo de insolência. Agora que o imperador os entregara a Cathal, aquele homem em breve daria por si atado a um poste para ser chicoteado devido a tal comportamento.
Tinha que encontrar, algures na cidade, um local reservado; um local onde pudesse praticar a sua arte em total segredo e segurança. Isso não seria possível no palácio. Pensara que quando o imperador trouxesse a sua corte para a cidade, tudo se encaixaria nos seus lugares. Em vez disso, o seu caminho estava juncado com muitos mais obstáculos do que aqueles que ele alguma vez antecipara. Era como se uma força invisível estivesse a trabalhar contra ele; uma força tão invisível como o cheiro dos canais, mas igualmente penetrante.
Bem, existia provavelmente essa “força invisível” que lutava contra ele e que assumia a forma daquelas galinhas velhas e intrometidas, homens e mulheres, todos eles da mesma laia, e que estavam lá em cima no templo.
Os seus criados apareceram nessa altura, gratificantemente silenciosos e obedientes, e carregados com as suas bagagens. Foi até à sala e esperou que eles arrumassem os seus pertences. Levaram tudo aquilo que pertencia à princesa com excepção do cofre das jóias que estava no quarto em cima de uma mesa. Isso fora confiscado pelos homens do chanceler. Havia três cofres como aquele, um em cada quarto, todos eles levados para o tesouro pelos criados do chanceler.
Isso estava muito bem. Apolon não se interessava absolutamente nada por jóias e outros atavios, o que na realidade o tornava querido aos olhos do chanceler.
Enquanto estava sentado, aguardando que os seus aposentos ficassem prontos a ser ocupados, formulou um plano de acção. Visto os seus intentos de ficar com a princesa terem saído frustrados, teria que recorrer a outros estratagemas para a encontrar.
Para que o pudesse fazer, e para que pudesse criar mais casacos negros, teria que ter um local seguro e secreto onde pudesse trabalhar, utilizando a mais negra das magias. Por isso, esse teria que ser o seu primeiro objectivo: encontrar um bom edifício e ocupá-lo.
Seguidamente... recrutar mais casacos negros. Depois localizar Shelyra, pois por essa altura necessitaria do poder que a sua morte lhe traria por forma a conseguir concretizar e fruir dos seus restantes planos.
Mas antes de poder utilizá-la verdadeiramente, teria que fazer qualquer coisa relativamente àqueles idiotas do templo! Para isso necessitaria de muito mais cooperação por parte de Cathal e da sua gente. Os seus esforços naquela tarde tinham sido, de facto, muito pouco bem sucedidos!
Se não tivesse sido Leopold...
Apolon voltou a ranger os dentes de frustração. Amaldiçoado fosse Leopold! O imbecil era muito bem capaz de ser pago por aqueles idiotas santimoniosos do templo! E amaldiçoado fosse duas vezes por ter chamado a atenção sobre si próprio antes de Apolon ter tido tempo de chegar ao imperador e encaminhar as coisas na direcção certa!
Há muito que ele queria Leopold fora do seu caminho; o rapaz não parava de fazer recordar a Balthasar outros tempos e de cada vez que o príncipe o fazia, Apolon tinha que reparar os estragos, contrariando os regressos de Balthasar a comportamentos perigosamente altruístas. Mas queria que Leopold fosse banido para um local da sua escolha. E o último lugar do universo que ele escolheria seria o Palácio de Verão!
Ainda não localizara a biblioteca mágica que sabia estar na posse da Casa do Tigre. Não a encontrara em nenhum local do palácio, nem na casa da Guilda do Tigre. Só restava um local e esse era o Palácio de Verão do outro lado do rio, que era exactamente para onde fora mandado aquele idiota intrometido do Leopold!
Leopold já fizera demasiadas perguntas acerca das actividades de Apolon e este sentia-se meio inclinado a acreditar que fora o príncipe e não o imperador, quem ordenara aquela “limpeza” tão exaustiva dos aposentos. Não só seria impossível encontrar os livros e trazê-los sem que Leopold o soubesse, como se, por acaso, o príncipe começasse a ler esses livros, tinha grandes possibilidades de encontrar pistas suficientes para deduzir com exactidão o que Apolon andava a fazer.
E se Leopold descobrisse como é que Apolon recrutava os seus casacos negros, poderia muito bem deduzir qual era o seu plano final.
Já era tempo, e mais do que tempo, de exercer alguma da sua influência sobre Cathal. Este deveria ser capaz de arranjar um acidente adequado num dos treinos.
Mas, primeiro, havia um pequeno detalhe de que teria que se encarregar. O chanceler Adelphus vinha a demonstrar uma grande simpatia pelo príncipe e era bem capaz de querer interferir na colocação do pessoal no Palácio de Verão. O chanceler já esgotara a sua utilidade como agente independente. Já não tinha quaisquer ideias originais e os seus conhecimentos poderiam ser executados tão facilmente por uma marioneta como por um homem com ideias próprias.
- Os vossos aposentos estão prontos, amo.
O lacaio entrou silenciosamente e ficou de pé na frente de Apolon numa pose gratificantemente subserviente. Aquele não era uma das suas marionetas, mas o homem sentia-se tão amedrontado pelo seu amo, que bem poderia ser. Quase não se atrevia a respirar sem a permissão de Apolon.
- Vai chamar o chanceler Adelphus - disse Apolon secamente.
O homem fez uma grande vénia e retirou-se; os lacaios-marionetas entraram e aguardaram as suas ordens quando ele saiu.
- Façam um fogo na lareira e preparem o meu equipamento especial no quarto - disse-lhes Apolon.
O fogo não era nada satisfatório, visto ter sido preparado com a mesma madeira húmida que toda a gente estava a utilizar, mas era melhor do que fogo nenhum.
Pelo menos ele podia remediar um pouco a situação com um pequeno toque de magia, fazendo com que todo o fumo subisse pela chaminé em vez de se espalhar pelo quarto.
Esperou durante algum tempo sentado numa cadeira ao lado da lareira, tão paciente como uma aranha na sua teia. Podia permitir-se ser paciente. O chanceler não se atreveria a ignorar completamente o seu convite e acabaria por aparecer. E o resultado do encontro, quando ele finalmente chegasse, estava predestinado.
ADELE
Foi somente após o primeiro dos rituais nocturnos que Verit teve oportunidade de lhe explicar exactamente o que acontecera naquele dia. Uma grande tempestade desencadeara-se no exterior, mas no interior dos edifícios do templo, os uivos do vento e o estampido dos trovões eram pouco mais do que um murmúrio. O religioso Fidelis chamou Elfrida de parte quando deixavam a presença do Coração e indicou-lhe silenciosamente que o seguisse. Visto que ela já o vira na câmara de meditação e sabia que ele era um daqueles em que Verit confiava, acompanhou-o até uma sala próxima dos aposentos da grande sacerdotisa.
A sala era uma pequena divisão de pedra nua com um altar, também em pedra, ao centro. O altar era um cubo que chegava ao peito de Elfrida e ocupava a maior parte do espaço da sala. O pouco espaço que restava era ocupado por quatro cadeiras de braços de espaldares altos, em madeira, sem qualquer ornamentação.
O Coração, dependurado por cima do altar, era do tamanho de um coração humano e feito de uma espécie de cristal tingido de vermelho. Lydana saberia dizer exactamente de que material é feito, pensou Elfrida. Espero bem que ela esteja a salvo, assim como Shelyra.
O religioso Fidelis sentou-se na cadeira a leste do altar e indicou a Elfrida que ocupasse a cadeira a norte. Ela sentou-se silenciosamente, perguntando-se o que se estaria a passar e por que razão estaria ali. A grande sacerdotisa Verit entrou alguns minutos mais tarde, Seguida pelo Hábito Castanho que estivera na câmara de meditação com o religioso Fidelis. Sentaram-se a ocidente e a sul, respectivamente. Verit fez o sinal do Coração e os outros três imitaram-na. Depois começou a falar.
- Estes são dias de trevas, os que sobre nós se abatem - disse - e as noites são de trevas ainda mais profundas. Escolhi-vos aos três para que trabalhem comigo, para que tentemos desviar o mal que nos procura destruir e apossar-se do Coração para os seus próprios objectivos.
- Apolon - disse Elfrida. - Mago e servo das Trevas.
- Se ele serve as Trevas, será a noite a melhor altura para trabalharmos contra ele? - perguntou Cosima.
Verit suspirou.
- Religiosa Cosima - disse pacientemente - terás tu a ilusão de que eu hoje tenha tido sequer um momento livre?
Cosima abanou a cabeça.
- Não, reverendíssima.
Verit abanou também a cabeça.
- Para além das cerimônias da rainha-mãe e dos acontecimentos desagradáveis com os soldados, passei muito mais tempo do que gostaria a ouvir aqueles de entre nós que, no nosso templo, estão convencidos que o imperador e os seus seguidores não nos querem mal.
- Não nos querem mal? - exclamou Cosima.- Como podem eles dizer tal coisa depois do que se passou esta tarde?
Verit rolou os olhos, desgostada.
- São da opinião de que os soldados deviam andar à procura de algum cidadão que tivesse cometido qualquer crime.
Cosima abanou a cabeça, incrédula, enquanto Elfrida acenava em confirmação.
- Eu própria ouvi alguns deles, no refeitório - acrescentou.
- A tua questão é pertinente - continuou Verit. - Normalmente a noite não seria a altura ideal para este trabalho... os servos das Trevas têm dificuldade em suportar a Luz. Mas nós queremos ver o que Apolon está a fazer e é mais provável que ele esteja a trabalhar agora do que durante o dia.
Tirou uma placa de vidro de uma prateleira por baixo do seu assento, pôs-se de pé e colocou-a sobre o altar entre as velas que ardiam nos quatro cantos do tampo. Fidelis e Cosima puseram-se também de pé e Elfrida apressou-se a seguir-lhes o exemplo.
Verit olhou para cada um deles.
- Fidelis e Cosima, creio que já conhecem Elfrida, pelo menos de vista. - Ambos assentiram. - Pedi-lhe que se nos juntasse, embora seja uma neófita no trabalho das Chamas, pois acredito que tem dons que serão vitais para nós. Confio nela implicitamente e vocês deverão fazer o mesmo. - Apontou o vidro sobre o altar. - Elfrida, suponho que estejas familiarizada com os princípios das Visões, ainda que não tenhas participado em nenhuma antes. - Elfrida assentiu. - Vejamos então o que a senhora desejar que nós vejamos.
Fez mais uma vez o sinal do Coração e depois estendeu as mãos para agarrar as daqueles que estavam a seu lado. Todos seguiram o seu exemplo, ficando de mãos dadas num círculo, todos eles de olhos postos no vidro.
Pareceu a Elfrida que este se embaciava perante os seus olhos. Depois ele clareou e ela viu um quarto, que reconheceu como sendo o quarto de Shelyra, no palácio, onde um homem vestido de cinzento-escuro andava para trás e para a frente, gritando com o soldado de pé na sua frente.
- Era uma ordem perfeitamente simples, Cathal, e tu fizeste asneira para lá do que seria razoável esperar! Já é suficientemente mau que os teus homens não encontrem nem a rainha nem a princesa, mas não conseguirem remover um cadáver de um local público onde ninguém, a não ser eles próprios, estava armado... francamente, Cathal, por que é que haveremos de ter em conta as tuas tropas?
- Os meus homens estavam a sair-se muitíssimo bem até o príncipe Leopold ter aparecido e tê-los mandado de volta para a caserna! - replicou o general Cathal furioso. - Por que não lhe vais pedir satisfações a ele, Apolon?
- Tratarei dele quando chegar a altura própria - rosnou Apolon. - Achas que conseguirás encontrar um único homem nesse teu magnífico exército, capaz de levar a cabo uma simples tarefa? Talvez se enviasses um pequeno corpo expedicionário, umas horas antes da madrugada, quando a gente do templo está a dormir, entre os rituais... Achas que seria possível trazer-me esse corpo?
- Para que é que queres o corpo da rainha-mãe, afinal? - grunhiu Cathal. - O corpo está em velório desde esta manhã; aposto que metade da cidade já por lá passou. Toda a gente sabe que ela está morta... não é como se precisasses do corpo para o poder provar!
- O que eu quero fazer com o corpo não é da tua conta - disse Apolon friamente. - Com o que te deves preocupar é com a forma de o trazeres até mim.
- Como queiras. - Cathal encolheu os ombros. - Mas eu, se fosse a ti, teria cuidado, Apolon. Depois da cena que fizeste esta tarde quando a primeira tentativa falhou, sem dúvida que
metade do exército pensa que és necrófilo. - Virou-se e saiu sem esperar que o mandassem embora.
Apolon sorriu amargamente às costas que desapareciam.
- Necrófilo? Não, não exactamente. Mas até esses idiotas são capazes de se aproximar mais da verdade do que eles próprios suspeitam.
Verit quebrou o círculo com um pequeno grito e caiu na cadeira, recostando-se contra o espaldar. Cosima ajoelhou ao seu lado e pegou-lhe no pulso, procurando, de forma muito evidente, a sua pulsação. Fidelis sentou-se na sua cadeira e Elfrida fez o mesmo, um tanto confundida pela agitação de Verit.
- Reverendíssima, que é que te preocupa? - perguntou.
- O corpo - sussurrou Verit. - Levem-no lá para fora e queimem-no, imediatamente.
- Verit - disse Fidelis calmamente. - Está a chover a cântaros lá fora. Com este tempo não conseguiríamos queimar nem sequer um fardo de palha.
- Na lareira da cozinha, então.
Cosima olhou para ela com uma expressão estranha.
- Não podemos queimar um corpo humano na lareira da cozinha.
- Não é um corpo humano - disse Elfrida.
- Então que é? - perguntou Fidelis, os olhos muito abertos de espanto.
Verit começava a recompor-se.
- É cera, tecido e madeira.
Fidelis encolheu os ombros.
- A madeira e o tecido podemos queimar. Espero que a cera seja só à superfície e que a possamos raspar, ou então ainda pegamos fogo à cozinha toda.
- Deve ser só à superfície. - Elfrida pôs-se de pé. – Vamos então tratar disso enquanto tu recuperas, reverendíssima.
- Vamos todos. - Verit pôs-se de pé apoiando-se ligeiramente em Cosima. - De qualquer maneira vamos ser precisos os quatro para transportar o caixão.
Quando se aproximaram do templo principal, Verit disse:
- Mantenham a cabeça baixa, todos vós. É melhor que ninguém veja as vossas caras; a única pessoa cujo envolvimento nisto será do conhecimento geral será o meu. Agora sigam-me.
Encaminhou-se para o altar, com a cabeça bem erguida, enquanto os outros três a seguiam com as cabeças baixas e as mãos enfiadas nas mangas.
Verit falou brevemente com os religiosos que estavam à cabeça e aos pés da urna; eles assentiram e foram para os seus lugares nos bancos do coro. Ela apagou as velas em torno da urna e depois fez sinal ao seu grupo. Cada um pegou numa das alças do caixão e levaram-no para fora do templo e ao longo do corredor. Ninguém os seguiu e na cozinha não estava ninguém àquela hora da noite. Quando lá chegaram, Verit já tinha voltado à normalidade.
- Elfrida, vigia a porta - ordenou bruscamente.
Cosima passou-lhe as mãos e a cabeça da efígie.
- Estas são as peças que são feitas de cera; por favor, derrete-as. Podemos usar a cera para fazer velas para a sala de recreio.
- Se lhes puseram cosméticos, lavem-nas primeiro – disse Elfrida sem sair do seu posto junto à porta.
Sentia-se satisfeita por Verit não lhe ter pedido que ajudasse a desmembrar o corpo; já se sentia suficientemente estranha com toda aquela história. Nunca se apercebera de que morrer iria ser tão complicado. Ouvia o crepitar do fogo à medida que o iam ateando com carvão, e o som da chuva que fustigava as janelas da cozinha.
- Este vestido não vai arder - resmungou Verit. - Tem demasiado fio de ouro e demasiadas jóias.
- Considera-o uma doação ao templo - disse Elfrida. - Enfia-o numa das arcas da sala de costura. Pode ser desmanchado mais tarde.
- É uma boa ideia - respondeu Verit. - Mas por agora é melhor pô-lo no túnel que dá para a câmara de meditação. Não me sinto capaz de me esgueirar até à sala de costura sem ser vista; já dei escapadelas suficientes para uma só noite.
- O mesmo dizemos todos nós - disse Cosima de junto do fogão. - Fidelis, sabes onde estão os moldes para as velas? Já que isto está líquido o melhor é verter a cera nos moldes.
- Dois armários à direita na segunda gaveta a contar de baixo - respondeu Fidelis. - Verit - acrescentou - que se passa? Por que estás num tal frenesim para destruir este corpo... para já não mencionar o facto de não ser corpo nenhum? Apolon sabe que tudo isto não passou de uma farsa?
- Duvido - respondeu Verit sombriamente. - Apolon é um necromante.
Aquela afirmação provocou exclamações de espanto e choque.
- Tens a certeza? - perguntou Elfrida, virando a cabeça para olhar para Verit.
- Não o ouviste, Elfrida? - Verit franziu o sobrolho. - Pareceu-me que tinhas visto e ouvido o mesmo que todos nós.
- Vi e ouvi Apolon aos gritos com o general Cathal por não ter conseguido levar o corpo mais cedo... e quando é que foi que ele tentou roubar o corpo? Eu não assisti e nos confessionários ninguém foi muito preciso quanto à hora a que tudo isso se passou.
- Eu também não vi.
- Quem me dera também não ter estado presente - disse Cosima desgostada. - Acabei a tratar dos feridos.
- Pelo menos não morreu ninguém - disse-lhe Verit, consolando-a.- Este foi, realmente, um dia e tanto. Esta manhã, estava eu a ouvir confissões, quando apareceu uma rapariga com uma história de um marinheiro que vira um casaco negro que conhecia; o homem fora morto numa batalha já há anos.
- Conhecias a rapariga? - perguntou Fidelis.
- Não - respondeu Verit - mas ela deu-me a senha. As notícias que ela trazia eram uma mensagem da rainha.
- Então a rainha continua viva e em liberdade -disse Cosima com evidente alívio.
- Sim, eu vi-a mais tarde. Ela veio ver o corpo da mãe.
- Ela percebeu que era falso? - Elfrida esforçou-se para que na sua voz transparecesse apenas curiosidade.
- Tenho quase a certeza que sim - disse Verit - mas depois aconteceu aquilo com o Coração e o ataque dos soldados, e ela desapareceu no meio da confusão antes que eu tivesse possibilidade de lhe falar.
- Afinal o que é que se passou com o Coração? - perguntou Elfrida. - Parece que começou a desfazer-se e isso é impossível.
Cosima soltou uma risada.
- Elfrida, não tens qualquer noção do miraculoso. O Coração sangrou; pergunta a qualquer um que tenha presenciado. Toda a gente diz que foi um milagre: o Coração sangrou de desgosto pela morte da rainha-mãe.
Aquilo foi demasiado; Elfrida caiu no chão rindo histericamente.
- Um corpo de madeira, cera e tecido e um Coração a “sangrar” rubis. Terá alguma vez havido um funeral mais anormal?
- Haverá funerais verdadeiros com fartura - recordou-lhes Fidelis com sobriedade.
As gargalhadas morreram.
APOLON
Os servos de Apolon já lhe tinham trazido um jantar pouco apetitoso, de sopa de ervilhas e pão escuro, e ateado o fogo pela segunda vez antes de Adelphus aparecer finalmente. O chanceler olhou de relance para o tabuleiro que estava em cima da mesa e fez uma careta perante os restos da refeição.
- Vou mandar os criados arranjar provisões melhores antes de quebrarmos o jejum amanhã de manhã - disse com um leve tom apologético na voz. - Dei-lhes ordens para que saqueassem as casas dos ricos, se não encontrassem nada no mercado. Não teremos outra refeição como esta, se isso estiver ao meu alcance.
- Não me peças desculpas a mim - disse Apolon suavemente, no momento em que se apercebia de um novo anel na mão do chanceler.
Era um diamante enorme e brilhante, que Adelphus nunca usara antes. Muito bem. Muito, muito bem! Então o chanceler estava a ficar tão ganancioso que já se servia a seu belo prazer? Era mesmo melhor pô-lo sob controlo antes que a sua cobiça interferisse com os planos do próprio Apolon.
- Nos acampamentos já tenho comido pior, afinal de contas - continuou o Mago Cinzento, numa fria imitação de afabilidade. - Pedi ao meu criado que aqui te trouxesse, porque está uma coisa no quarto da princesa que acho melhor que vejas e era algo que não podia ser transportado.
Tal como esperara, o chanceler partiu imediatamente do princípio de que aquele “algo” era valioso.
- Oh? - replicou Adelphus, com os olhos iluminados por um brilho cobiçoso. - Então, ainda bem que me mandaste chamar. Vamos então lá ver essa... o que quer que seja.
- É claro.
Apolon sorriu e levantou-se da cadeira, fazendo sinal aos criados por trás das costas do chanceler. Um dos servos foi até à porta que dava para o exterior e trancou-a silenciosamente, enquanto o chanceler se dirigia para o quarto; um outro ficou ao pé da porta do quarto e trancou-a assim que passaram a sua ombreira e o terceiro e mais forte, foi postar-se ao lado do chanceler.
- Então? - disse Adelphus olhando avidamente em torno do quarto. - De que se trata?
Apolon fez outro sinal e o terceiro lacaio agarrou o chanceler, prendendo os braços do velho atrás das costas antes que Adelphus se pudesse aperceber do que ele fazia.
- Disto... - disse Apolon, enquanto um quarto criado o agarrava pelo pescoço e o estrangulava.
Adelphus debateu-se nos braços do criado, com o rosto cada vez mais lívido e depois arroxeado, à medida que lutava para respirar. Não valia verdadeiramente a pena o esforço. Aquele
homem tinha sido prodigiosamente forte enquanto vivera e, agora que estava morto, pequenos contratempos, como por exemplo a dor provocada por uma pancada, já não interferiam com o exercício dessa força. O servo que procedia ao estrangulamento fora pedreiro e as suas mãos eram enormes e poderosas. O fim chegou rápido e inevitável; com um bater de calcanhares no chão, o chanceler saiu desta vida de uma forma bem menos ruidosa do que aquela como entrara.
Apolon estivera à espera daquele momento. O espírito ainda não deixara o corpo e agora nunca o faria. Apolon pegou numa rede de seda tingida de sangue, com pesos de cobre feitos a partir de pregos de sepulturas e uma centena de complexos feitiços, enquanto os dois servos deixavam que o corpo caísse no chão. Lançou a rede sobre o corpo, apanhando assim o espírito antes que este se escapasse e aprisionando-o. O espírito lutou para sair; lutou durante mais tempo do que Apolon antecipara, tendo em conta o passado irregular do chanceler. Frequentemente, quando as almas acabavam por aceitar o inevitável, não se sentiam com muita pressa de enfrentar o julgamento final.
O chanceler devia ter-se sentido muito mais seguro de uma boa recepção no Além,do que aquilo que Apolon estaria disposto a garantir. Pouco importava. A alma estava aprisionada; agora teria que ser sujeita.
Apolon avançou lentamente até à mesa ao lado da cama e pegou num pequeno punhal que tirou do cinto. Com ele abriu uma veia no pulso, fazendo com que o sangue escorresse para dentro de uma taça de cobre que estava sobre a mesa. Pronunciou as palavras da Invocação, palavras que romperam o silêncio com uma frieza pesada e imponente.
Tão perto do templo, não se atrevia a pronunciar a Invocação Maior, mas a Menor também serviria.
O silêncio tornou-se mais profundo, e qualquer calor que tivesse existido no quarto foi como que sugado, até ao ponto de a respiração de Apolon provocar nuvens de condensação. Os criados não provocavam, evidentemente, tais efeitos, pois já não respiravam profundamente e não libertavam qualquer calor.
A superfície espelhada do sangue que arrefecia dentro da malga de cobre arrepiou-se, como que atingida por um vento invisível, embora não se fizesse sentir qualquer brisa. Um pequeno remoinho começou a formar-se no centro da tigela; um vórtice que sorvia lentamente o sangue contido no recipiente até a última gota ter literalmente desaparecido sem deixar qualquer rasto. A malga começou a brilhar com uma peculiar fosforescência de um amarelo-esverdeado enjoativo.
Fora por aquilo que Apolon esperara. Apontou para o corpo que jazia por terra e que continuava coberto com a rede de seda de um vermelho acastanhado.
- Sujeita! - disse secamente.
A nuvem brilhante ergueu-se do recipiente, pairou no ar por instantes e depois mergulhou sobre o corpo. Os criados recuaram tanto quanto as paredes lhes permitiam. Faziam sempre isso e Apolon perguntava-se por vezes se eles recordariam, ainda que vagamente, a dor das suas próprias sujeições.
A nuvem brilhante cobriu o corpo e a rede e um pequeno gemido saiu dos lábios lívidos do chanceler. O corpo inteiro estremeceu, com os calcanhares batendo novamente no chão com um som abafado. Apolon aguardou até que os estremecimentos parassem; lentamente o chanceler sentou-se e depois pôs-se desajeitadamente de pé, ainda envolto pela rede.
Nessa altura, Apolon estendeu a mão e retirou a rede, fazendo sinal ao criado mais próximo para que a agarrasse. O brilho continuou sobre o corpo do ex-chanceler durante mais alguns instantes, enquanto a lividez desaparecia, as pisaduras na garganta esmoreciam e a aparência de vida retornava ao rosto de Adelphus.
Apolon pronunciou mais três palavras de poder: uma despedindo a criatura invocada, outra fechando o corpo à corrupção da carne e ainda outra que permitiria a Adelphus falar quando lhe fosse dada permissão.
O chanceler tinha os olhos postos no Mago Cinzento; olhos que, por detrás do brilho baço da confusão, deixavam ver o mais puro dos horrores. Adelphus sabia o que lhe acontecera e sabia também que era absolutamente impotente para fazer fosse o que fosse.
- Cumprirás os teus deveres regulares tal como te recordas de o ter feito - disse-lhe Apolon cuidadosamente. - Não darás qualquer conselho ao imperador que não tenha sido eu a indicar-te. Se ele te pedir a tua opinião relativamente a qualquer coisa que não esteja abrangida pelas instruções que tenhas recebido, dir-lhe-ás que precisas de pensar no assunto. Se ele te perguntar alguma coisa acerca de Leopold, secunda os conselhos de Cathal.
Pensou mais alguns instantes, os seus pensamentos um pouco esbatidos e distantes, cobertos pelo nevoeiro do cansaço. Ele queria a Casa do Javali; precisava de saber se Cathal ainda a tinha em seu poder e a última coisa que queria era aventurar-se no exterior no meio daquela tempestade, que parecia querer continuar a enfurecer-se até de madrugada.
- Vai à Casa do Javali e descobre se o Cathal ainda a requer - ordenou ao chanceler. Minudências como chuvas geladas e ventos enfurecidos já não causariam a Adelphus qualquer perturbação. - Se ele já não a quiser, requisita-a para mim. Depois volta aqui e informa os meus servos das tuas acções.
Se Cathal ainda quisesse aquele local, poderia negociar com ele no dia seguinte. O que ele tinha para oferecer ao general seria certamente uma boa proposta em troca de um simples edifício.
O chanceler fez uma vénia rígida.
Aquilo deveria obviar a quaisquer problemas imediatos. Apolon daria instruções mais detalhadas à marioneta pela manhã, depois de ele próprio ter descansado. Dera ao Demónio da Sujeição um bom meio litro do seu sangue e sentia-se um pouco tonto e fraco. Idealmente teria dado ao Demónio da Sujeição o sangue de outro qualquer, mas não se atrevera a correr o risco do chanceler gritar se lhe cortassem o pescoço.
- Vem ter comigo de manhã para receberes mais instruções - terminou enquanto se agarrava à beira da mesa para não cair. - Podes ir.
O terceiro servo abriu a porta que estivera trancada e todas as marionetas saíram da sala, entendendo que a despedida se aplicava a todas elas. O que, a Apolon, servia perfeitamente; não gostava que as marionetas o despissem para ir para a cama, a não ser quando a sua fraqueza, provocada pela prática da necromancia, o tornava necessário.
Agarrando-se à mobília, conseguiu chegar à cama são e salvo e tirou apenas a roupa necessária a um sono confortável.
A alma do chanceler estava agora sujeita ao seu corpo, animando-o, mas sob o total controlo da vontade de Apolon. Apenas uma pessoa de grande devoção poderia lutar com sucesso contra uma sujeição como aquela e dificilmente se poderia incluir Adelphus na categoria dos devotos. O inconveniente era que a alma já não pensava por si própria, o que significava que uma pessoa criativa já não seria capaz de criar, mas apenas de imitar o que fizera no passado. Adelphus fora, em tempos, um indivíduo muito criativo, embora já há algum tempo que não manifestasse esses lampejos de génio. Agora certamente que não seria capaz deles... mas Apolon estava absolutamente disposto a pensar pelos dois.
A razão porque nunca fizera o mesmo a Cathal era porque não entendia verdadeiramente a estratégia militar e temia que ao transformar o general numa marioneta terminasse a série de vitórias fáceis que Cathal conseguira até àquele momento. Mas tinha suficiente influência sobre o general para o poder controlar; tinham gostos semelhantes, prazeres que a posição e o estatuto de Cathal tornavam difíceis de desfrutar. Mais precisamente, Cathal gostava de desfrutar e Apolon utilizava os resultados dos seus desfrutes. Apolon era o seu fornecedor, e o general faria qualquer coisa para manter aberta aquela linha de abastecimento. Cathal era muitíssimo mais útil como homem livre do que seria como marioneta.
Apolon subiu penosamente para a cama, tremendo um pouco com o frio e a humidade dos lençóis. O vento da grande tempestade que bramia lá fora uivava em torno dos feitiços que mantinham o fogo aceso; apercebeu-se de que se não tivesse tomado aquela precaução teria dormido aquela noite, não só em lençóis húmidos e gelados, mas também num quarto sem fogo na lareira, ou então num quarto cheio de fumo. Momentaneamente, a sua ira reacendeu-se.
Mas disse a si próprio que isso não tinha importância. No dia seguinte Adelphus trataria de providenciar todos os confortos, sendo que o conforto de Apolon viria a seguir apenas ao do próprio imperador. Aquela situação era temporária, tal como a sua fraqueza era apenas temporária.
E o desenlace de tudo aquilo valeria bem qualquer desconforto.
LYDANA
A Casa do Javali era um dos raríssimos edifícios importantes de Merina que, ficando directamente à beira do canal, não tinha qualquer jardim murado ou pátio a separá-lo da água. A entrada principal do edifício ficava do lado oposto, que dava para a rua. Contudo, para o canal dava um grande portão, com polés que permitiam baixar os equipamentos mais pesados para as barcaças de carga.
A viagem através da cidade fora muito atribulada e não fora efectuada sob o comando de Matild, mas sim sob as ordens de um dos seguidores de Jonas, cujo comando dos dois barcos e respectivas tripulações heterogéneas suscitara nela a maior das admirações. Entre eles encontravam-se uns oito ratos do rio, habituados àquelas expedições nas trevas, e a viagem fora realmente feita no meio das trevas, pois as lanternas estavam meio apagadas pela chuva e pelo vento; e também Eel, para além de quatro dos seus amigos da rua.
Matild esperara que Jonas levantasse alguns problemas relativamente aos rapazes, mas o taberneiro pareceu tratar a sua inclusão como um facto consumado. No entanto, fora uma viagem completamente louca. Antes de terem chegado à água, tiveram que fazer uma corrente humana, dando as mãos, não fosse alguém ser derrubado pelo vento, cego pela chuva e perder-se pelo caminho. Matild limitava-se a agarrar-se com todas as suas forças à tábua do assento, completamente cega e surda pela loucura que a rodeava. Mas o chefe do grupo, um tal Dortmund, acabou por conduzir o barco até ao muro liso da casa onde se dirigiam.
- Vamos a isso, rapazes!
A sua ordem brusca foi quase engolida pelo vento, mas aparentemente já ensaiara bem os seus seguidores no que tinham que fazer. Ouviu-se o assobio de uma corda a ser lançada pelos ares, atirada por uma mão com muita prática. Mas foi necessário um segundo lançamento, o que fez com que Dortmund soltasse umas quantas palavras mordazes, até que o gancho preso na extremidade ficasse seguro numa protuberância oculta na parte superior do muro.
A luz de um relâmpago permitiu a Matild ver um corpo jovem e magro que trepava pela corda, dirigindo-se ao portal. Apercebeu-se também de que alguns dos bem treinados bandidos de Dortmund estavam acocorados na extremidade do barco.
Os momentos que se seguiram pareceram não ter fim, totalmente desligados do normal correr do tempo. Depois caiu uma corda a seu lado, dando uma forte pancada no ombro de Matild. Dortmund dirigira-se para a sua ilharga e dava agora novas ordens, gritadas mesmo ao seu ouvido.
- Tem degraus... para as mãos. Vou primeiro; segue imediatamente atrás de mim, se quiseres tomar parte nisto.
Balançou-se no ar por cima dela. Sentindo-se grata pelo facto de naquela noite não ter saias a estorvá-la, Matild estendeu as mãos até estas encontrarem um grande nó. Era o suficiente para começar, mas com o vento fustigando-a com violência e fazendo-a abanar como uma bandeira solta na brisa, descobriu que aquela subida estava para além do alcance das suas forças. Foi então que se sentiu içada por mãos que a agarravam pelos ombros e pelos braços, caindo depois para a frente dentro de um buraco que cheirava a óleo, a metal e a humidade. Manteve-se onde estava até o último dos elementos do grupo ter entrado o portão.
Apesar de na sua própria arte não haver qualquer necessidade de lidar com objectos de grande dimensão, Matild sabia que quase todas as Grandes Casas tinham sido concebidas de acordo com um plano semelhante. Ouviu-se uma restolhada no escuro; uma exclamação dificilmente abafada e depois uma mão calejada apertou-lhe o braço, descendo-lhe depois até ao pulso e ela percebeu que teria que depender daquela mão para a guiar.
Não se moveram rapidamente, não podiam fazê-lo, pois tinham que contornar grandes obstáculos. Matild ouviu grunhidos e pragas abafadas e ela própria bateu dolorosamente com um joelho contra uma caixa que lhe chegava à cintura. Depois, ao nível do chão, começou a ver-se uma luz muito fraca. Um alçapão apenas ligeiramente entreaberto? Agruparam-se em torno dele. Conseguia ver parte da silhueta escura de umacabeça espalmada contra o chão à frente da pequena abertura e percebeu que alguém do grupo estudava o terreno que tinham pela frente.
- Calados - ordenou um murmúrio. - Jakkey, puxa pela roldana.
Ouviram-se instantaneamente ruídos na escuridão. Entretanto, a pequena fresta de luz que se via no chão alargou-se cada vez mais, silenciosamente, até que o alçapão se abriu completamente e foi pousado no chão com grande cuidado.
A luz, que parecera tão brilhante na sala totalmente às escuras do piso superior, era agora fraca como a luz de uma única vela. Matild avançou um pouco, determinada a ver o que se passava lá embaixo com os seus próprios olhos. Viu, obscurecido pelas sombras, o que poderia ser um segundo armazém. Também este estava cheio de caixas empilhadas, barricas e embrulhos feitos de pele cozida; carga aguardando transporte. Conseguia mesmo ver alguns dos sinais que indicavam diversos países ultramarinos, pintados grosseiramente dos lados.
Junto à porta, ao fundo da sala, estava uma vela muito grossa que ardia dentro de uma lanterna protegida. No entanto não havia sinais de movimento e nenhum guarda de sentinela.
Mais uma vez foram lançadas cordas e o grupo escorregou por ali abaixo, na sua maioria denotando o à-vontade conferido pela longa prática. Uma vez chegados ao chão, Dortmund agarrou o ombro de Matild sem qualquer cerimónia.
- Para que lado? - foi a sua pergunta murmurada.
Ela chamou à memória o que aprendera com a Senhora Fortuna. Os dois pisos superiores eram para a mercadoria prestes a sair, que assim podia ser directamente carregada nas barcaças do
canal; depois os aposentos da família; o piso por baixo desse era o da oficina. Mas onde poderia estar Saxon, isso não conseguia adivinhar. Sabia apenas onde tinha que se dirigir em primeiro lugar.
Murmurou as instruções que lhe tinham sido comunicadas; ouviu Dortmund grunhir e viu-o virar-se para agarrar outro dos seus seguidores e repetir as instruções. Mas Matild já se dirigira para a porta, embora não fosse a primeira a atingi-la. Eel estava um pouco dobrado e as suas garras estavam muito ocupadas. A fechadura que ali existia cedeu às suas tentativas e ele esgueirou-se para fora, com Matild a seu lado.
- No Grande Salão do Mestre...
Mas Eel não precisavade ouvir aquelas palavras; já ia a caminho e na direcção certa. O átrio que atravessaram era estreito, desembocando numas escadas suficientemente largas para permitir a passagem às mercadorias volumosas, como as que tinham visto nos andares superiores. Ainda conseguiam ouvir o ruído distante do vento tempestuoso, mas à parte esse barulho, podiam muito bem encontrar-se num edifício deserto. Ao fundo do lance de degraus estava um patamar que dava para duas portas. Ali estava acesa outra das velas protegidas por lanternas. Matild fez um gesto na direcção da porta da direita.
Eel ajoelhou, com um ouvido encostado ao painel da porta. Uma das mãos de garras aceradas ergueu-se, aconselhando cuidado. A porta não estava trancada, pois ele já a entreabrira. Do outro lado via-se uma luz ainda mais brilhante. Espreitar por uma fresta limita a visão, mas o que Matild procurava estava na parede mesmo em frente à porta, separada dela apenas pela largura do salão, salpicado de ilhas de mobiliário pesado e trabalhado.
Duas das cadeiras de espaldar alto e estofadas a tapeçaria estavam ocupadas por homens; mercenários aproveitando o descanso de uma escapadela. Cada um deles estava de um dos lados de um painel transparente que parecia ter sido fundido na própria pedra da parede; o estojo da espada. Esta estava ali dependurada na semiobscuridade, baça, quase como se tivesse consciência e se quisesse esconder dos seus inimigos.
Matild sentiu um calor crescer-lhe contra o peito. Sentiu ali o despertar do poder do rubi e cobriu o alfinete que agora tinha duas pedras, com a mão esquerda.
Eel observava-a, depois, ao ver os guardas, as suas próprias mãos formaram punhos mostrando todas as suas garras. O que estava prestes a fazer, Matild sabia-o, era uma total loucura, mas estava tudo tão claro na sua mente, que o seu corpo parecia mover-se como que por vontade própria. Esgueirou-se pela porta e escondeu-se, o coração a bater furiosamente no peito, por trás de um enorme sofá sobre o qual estavam empilhadas almofadas.
Eel não se lhe juntou, embora também se tivesse movido na direcção oposta e Matild sentia-se pronta a acreditar que ele utilizaria a mobília da melhor forma possível para chegar perto
dos guardas que preguiçavam.
- O velho tripas de mocho vem outra vez esta noite?
- Não me admirava. Quer apanhar-nos nas baldas. Vai pensar que numa noite má assim não vamos estar de vigia. - O homem soltou um enormíssimo arroto.
- Ninguém vai sair esta noite.
O outro parecia muito certo disso. Bocejou; tinha uma espada nua sobre os joelhos. O fogo que crescia na mão de Matild era já uma verdadeira chama. Obedecendo ao impulso que a tomou, lançou o alfinete para o meio dos homens recostados nas cadeiras, mesmo por baixo da espada.
- Que...
Um dos guardas ergueu-se um pouco da cadeira e depois caiu para trás. Tinha os olhos pregados na bola de fogo vermelho, de tal forma que a sua cabeça ficou virada de uma forma estranha. Depois curvou-se para a frente até a cabeça coberta pelo elmo repousar nos joelhos e o seu companheiro levou apenas alguns instantes até assumir a mesma posição.
Matild lançou-se para a frente e espalmou as mãos de cada um dos lados do painel protector. Procurou na memória as palavras do mago, palavras que selavam e que abriam. O painel enevoou-se e depois desapareceu. Matild mordeu o lábio. O que estava prestes a fazer poderia servir as forças do mal, mas teria que correr esse risco. Dispunham de muito poucas armas e batiam-se contra Trevas tão profundas que tinham dificuldade em avaliar e compreender a sua dimensão.
Não fez qualquer tentativa para retirar a espada dos seus suportes, antigos como o tempo; em vez disso desembrulhou o objecto que fabricara com tanto cuidado.
- Toda Poderosa - formou as palavras com os lábios, mas não as proferiu - faço isto em Teu nome, para que aqueles que são Teus filhos possam defrontar o mal. - Pensou brevemente no homem que, supostamente, forjara aquela espada e, respirando fundo, acrescentou. - Se algo de mal daqui vier, que recaia sobre mim. Que qualquer destino adverso que daqui resulte, me afecte só a mim.
Inclinou-se para a frente e enfiou o punho de ferro no punho sem adornos da espada. Este deslizou e ficou assente no punho. Estranhamente, ao tocar no metal baço, também ele ficou baço, parecendo esbater-se contra o seu novo suporte. Matild voltou a selar o nicho da espada e depois baixou-se para apanhar o nó de fogo, afastando-se de seguida. Eel apareceu de trás de uma outra cadeira de espaldar alto e dirigiram-se para a porta, tomando a precaução de se esconderem.
- Que se passa?!
Ouviu-se o estrondo de metal no chão. Um dos guardas endireitou-se e a sua espada escorregou-lhe dos joelhos para o chão. O seu camarada endireitou-se a pestanejar e depois, soltando um pequeno grito, virou a cabeça para olharpara a espada.
- Ninguém lhe tocou - exclamou em voz muito alta. - Não sei que... - empurrou o capacete para esfregar a testa. - Não aconteceu nada. - A expressão de constrangimento desapareceu do seu rosto.
- Pois...
Matild e Eel já tinham atingido novamente a protecção do grande sofá. Não se atreveram a encaminhar-se para a porta de imediato, pelo menos Matild não se atreveu. As sentinelas (embora não parecessem ter consciência do que acontecera) podiam muito bem ter ficado mais alerta. Mas Eel agarrou-a subitamente, puxando-a ainda mais para baixo, incitando-a a rastejar por baixo do sofá enorme e ela acabara de passar para baixo do sofá quando a porta se escancarou. As sentinelas pareciam ter farejado o perigo tão imediatamente quanto Eel, pois já estavam de pé empunhando as espadas nuas.
O chefe dos recém-chegados era um homem alto que caminhava inclinado para a frente como um urso da montanha e, tal como esses perigosos animais, tinha os olhos vermelhos de uma ira inata, lançando olhares desconfiados à esquerda e à direita.
- Mais luz!
Estalou os dedos e dois dos seus acompanhantes passaram apressadamente por ele, transportando enormes candeeiros de óleo. Assim enquadrado, avançou até ficar de frente para a espada.
A linha de visão de Matild e de Eel, escondidos debaixo do sofá, era muito limitada, mas ela teve a certeza de que aquele era Cathal, que mais uma vez vinha ver o objecto maior do seu desejo em Merina.
- Tragam-nos e despachem-se! - Deu outra ordem brusca.
Tudo o que os dois intrusos escondidos debaixo do sofá conseguiam realmente ver era uma série de botas, algumas do tipo das usadas pelos mercenários, outras das que eram geralmente usadas pelos habitantes da cidade.
- Muito bem, rebentem-no! Rebentem-no, já disse! Tirem-me isso daí ou tiro-vos as tripas para fazer atacadores! Despachem-se!
Os estrondos que se seguiram, uns a seguir aos outros, em pancadas quase ininterruptas, provocavam um barulho ensurdecedor, mesmo numa sala tão grande quanto aquela. Por fim, ouviu-se o ruído de estilhaços.
- Já está! - Vibrou a voz do general. - Saiam-me da frente, escumalha!
Ouviu-se um som que só poderia ter sido provocado por uma pancada e ouviu-se um pequeno gemido de dor.
- Espada de anjo uma treta! - A voz do general soou cheia de escárnio. - Lendas. Mas uma coisa é certa, esta é uma boa lâmina. Olha... o que é isto?
Matild ficou imóvel. Ele devia ter visto o punho de ferro. Lembrar-se-ia de não o ter visto antes... lembrar-se-ia?
Mas o general Cathal ria-se a bandeiras despregadas.
- O punho de um capitão, hem? Não... deve ser de uma patente mais alta, apesar de não ser muito adornada. Esse anjo... dizem que era um trabalhador, mas parece que era muito mais do que isso. E se esse Gideon achou que isto era um tesouro digno de valor... então também ficará bem a um general do imperador.
Ouviu-se um pequeno ruído provocado pelo atrito de metal contra metal e um clic, como se o general tivesse fechado a guarda de ferro no seu próprio pulso.
- Então, que se passa?
Ouviram-se passos rápidos vindos da porta.
- Então ele está aqui, não é? - disse o general em resposta a qualquer coisa que lhe fora murmurada. - Muito bem, eu já tenho o meu tesouro de Merina... ele que fique com o que lhe aprouver. Eu não sou um ganancioso, como o Adelphus. - E mais uma vez soltou uma enorme gargalhada.
Ouviram-se os passos pesados dos soldados a atravessar a sala; as botas pesadas arranhando o soalho que em tempos fora polido. Depois, foram-se embora. Atrevido, Eel atravessou o salão para espreitar lá para fora.
- Foram-se!
As lanternas das sentinelas ainda lá estavam, mas quando Matild saiu do seu esconderijo apertado e espreitou cautelosamente por entre dois almofadões, viu que as cadeiras estavam realmente vazias e só restavam os pedaços de vidro espalhados pelo chão.
- Vem!
Eel começou a puxar por ela. A porta fora deixada aberta pela saída dos soldados e do seu comandante, mas a luz brilhante dos seus candeeiros já não estava à vista e ouviu-se uma porta bater ao longe. Ela conhecia bem o plano que fora concebido. Dortmund e os seus ratos do rio libertariam Saxon enquanto ela montava a armadilha para o general. A sua parte estava feita e com sucesso. Ela e Eel recuariam novamente para o sótão. Só que, como é que os outros conseguiriam passar pelo general que, tinha boas razões para acreditar, se dirigia precisamente para onde Saxon estava? Ficariam os homens, que Jonas tão cuidadosamente escolhera, apanhados no meio de dois grupos? Mas não havia certamente nada que ela pudesse fazer para os ajudar, visto não fazer ideia para onde tinham ido, nem onde se encontravam naquele momento.
O sótão parecia ainda mais escuro depois de terem estado nas salas iluminadas dos pisos inferiores; a única vela que ali se encontrava tinha uma luz demasiado fraca para poder penetrar na obscuridade. Sentaram-se prudentemente por trás de uma barricada de grades e caixas, à espera. Ali em cima ouviam-se os uivos do vento; a tempestade não amainara. Uma dúzia de anos atrás tinha havido uma noite assim, de trovões tremendos e torrentes de chuva e quando a maré subira, a água ultrapassara os muros da maioria dos canais, provocando cheias nas ruas. Matild não percebia o suficiente dos assuntos do mar para calcular o tempo das marés, mas estava certa de que se voltassem a entrar nos barcos quando a maré estivesse a encher, seriam levados, por mais que lutassem, para o interior da cidade, para longe até mesmo da pequena protecção fornecida pela taberna do Jonas.
LEOPOLD
Leopold conseguira atravessar a ponte e chegar a salvo ao Palácio de Verão, com os seus dois escudeiros e os três cavalos de carga com a sua bagagem, um pouco antes do escurecer.
O chanceler atormentara-o com a sua jovialidade durante todo o tempo, chegando ao ponto de enviar homens buscar os escudeiros e os pertences de Leopold ao Grande Palácio para que este não tivesse qualquer pretexto para lá voltar. Talvez temesse que se as tropas pessoais do príncipe, que lhe eram fervorosamente leais, descobrissem quem era o seu novo comandante, pudessem protestar ou até mesmo encenar uma pequena revolta.
Devia saber que isso nunca aconteceria; Leopold treinava os seus homens na lealdade ao Império, não a um único comandante.
Os rapazes perceberam imediatamente, assim que chegaram ao acampamento, que Leopold caíra em desgraça, mas ambos, abençoados fossem os seus pequenos corações leais, tinham conseguido arranjar tempo no meio das arrumações para lhe dizerem firmemente que acreditavam nele e que não o trocariam por outro amo, fosse lá quem fosse, que se oferecesse para ficar com eles.
Ele não se sentia certo da razão que o levaria a merecer uma tal devoção, mas ficara à beira de um colapso emocional quando o mais pequeno lhe fez aquele discurso.
Assim sendo, que mais poderia ele fazer se não levá-los com ele para o exílio? Na altura pensara que o céu parecia ameaçador, mas não antecipara a violência da tempestade que agora rugia no exterior das janelas dos seus aposentos.
Chegaram a um edifício completamente deserto. O imperador não enviara sequer uma força de ocupação, visto nas terras do outro lado do rio, incluindo nas do Palácio de Verão, viverem apenas famílias de camponeses. Balthasar nunca prestava qualquer atenção aos camponeses, visto para a sua maioria um governante ser igual a qualquer outro e ser muito limitada a quantidade de mercadorias que se lhes podia extorquir. Dinheiro era impossível. Havia também mais algumas casas de Verão, como abrigos de caça e outras semelhantes, mas os seus proprietários estavam todos na cidade, do outro lado do rio; e agora estavam proibidos de atravessar a ponte, não fossem fugir antes de lhes ser extraído todo o lucro possível.
O Palácio de Verão e as casas de Verão dos ricos e dos nobres, ao contrário do Grande Palácio, não estavam habitadas; só lá estavam meia dúzia de criados, um par de mulheres para fazerem as limpezas e um velho e dois rapazes para cuidar dos estábulos e respectivos cavalos. Havia uma grande quantidade de jardineiros e guardas para a caça, mas esses estavam alojados em cabanas e não propriamente no recinto do palácio.
Leopold ficara até bastante satisfeito com a solidão. Francamente para ele, quantas menos pessoas testemunhassem a sua queda, melhor. Embora ninguém estivesse à sua espera, os criados do palácio aceitaram a sua presença com uma indiferença que seria enervante se não fossem tão velhos. A governanta propôs-se ir preparar-lhe os quartos enquanto jantavam, mas avisou-os de que não era boa cozinheira.
Eram cerca de dez horas quando a tempestade eclodiu, tornando a vaga ideia que tivera de enviar um dos rapazes ao outro lado da ponte, para comprar comida numa taberna, totalmente
impraticável.
- Bem - suspirou Leopold - suponho que teremos que nos desembaraçar.
Os escudeiros tinham torcido os pequenos narizes aristocratas perante a ideia de se aventurarem na cozinha para prepararem eles próprios o jantar, mas ele limitara-se a admoestá-los com um erguer de sobrancelhas. A realidade era que o facto de estar perante uma situação que podia controlar em alguma medida, já o fazia sentir-se um pouco melhor.
- Que é que vos leva a pensar que terão sempre um cozinheiro para vos preparar as refeições em campanha? - perguntou-lhes. - Acabarão por deixar o meu serviço para se tornarem guerreiros do imperador e podem um dia chefiar uma tropa avançada que tenha que viver daquilo que os cavalos podem transportar e do que pode ser tirado da terra. E, a não ser que apreciem esquilos crus e tubérculos com casca - acrescentou, enquanto a veracidade das suas palavras os atingia, fazendo com que os cantos das suas bocas descaíssem um pouco - é melhor aprenderem a cozinhar.
Os seus rostos jovens e expressivos sofreram tantas alterações enquanto ele falava, que finalmente teve algo de que se rir naquela situação miserável.
- Não é assim tão mau - prometeu. - E, pelo menos, eu sou bom cozinheiro.
Com a ajuda de uma outra mulher, que ouvia a conversa com evidentes sinais de divertimento, encontrou a cozinha. Viu que estava muito bem abastecida de alimentos não perecíveis, talvez em antecipação de alguma visita da rainha e da sua corte que nunca se chegara a realizar.
Era uma sala grande e agradável, com paredes de tijoleira e chão de pedra; uma mesa enorme no centro da área de trabalho e muitos bancos encostados à parede. Se não fosse a tempestade e o facto de ser de noite, teria sido muito arejada e luminosa, pois tinha janelas grandes, com vidraças espessas de vidro irregular. Acendeu várias lanternas que encontrou penduradas em ganchos e acendeu um fogo na mais pequena das três lareiras, na maior das quais se poderia facilmente assar um boi inteiro.
Tudo o que havia na dispensa era do género de alimentos que se podem conservar ou então daqueles que se agüentam frescos durante semanas ou meses, mas havia comida suficientemente variada para ele poder dar aos rapazes uma lição de cozinha rústica. Sem ovos nem leite não podia fazer panquecas ou qualquer outro tipo de pão, o que fora a sua ideia inicial, mas acabou por lhes conseguir dar uma boa refeição. Cebolas e batatas às rodelas, alouradas em banha e queijo, como prato principal e, para a sobremesa, que ambos os rapazes adoravam, assou na lareira umas maçãs um pouco velhas, mas ainda comestíveis, cobertas com mel. Para beber, fez chá de ervas temperado também com mel. Os rapazes olharam desconfiados para a refeição rústica; estavam habituados às rações dos soldados, mas não àquilo. Depois de terem provado, contudo, as suas dúvidas desapareceram e o mesmo aconteceu à comida.
Quanto a Leopold, só o aroma o fazia recuar a dias mais felizes, quando partilhara refeições semelhantes com o chefe dos caçadores de seu pai, junto à lareira de um dos muitos chalés de caça do imperador. As coisas nessa altura tinham sido mais simples.
O seu estado de espírito melancólico fora interrompido pela entrada da velhota, que era muito mais enérgica do que ele antecipara, dada a sua idade aparente.
- Os aposentos do velho rei foram preparados para Vossa Alteza - disse fazendo uma vénia. - Vejo que fizestes uma boa refeição... de manhã já vai haver ovos e leite. Mandei-os vir da quinta do palácio. Mas não há cozinheira... - Hesitou e olhou para ele com ar duvidoso. - Não há nenhum cozinheiro por estas paragens. A rainha trazia sempre o dela.
- Não tem importância, avózinha, cá nos arranjaremos até chegarem mais homens - tranquilizou-a ele.
Os dois rapazes olhavam para ela com olhos pestanejantes, como dois ursinhos, com as barrigas cheias de mel e prontos para dormir uma soneca.
- Devem chegar amanhã e com eles deve vir um cozinheiro.
Apesar da insistência de Balthasar de que ele deveria ter todas as provisões necessárias, não tinha sido enviado nada para além do que ele próprio trouxera. Parecia que a verdadeira incumbência do chanceler fora tirá-lo da cidade e nada mais. Na verdade, fora o que ele esperara; aquela era a medida da sua queda em desgraça. Balthasar não enviaria quaisquer dos seus homens até à tarde seguinte, na melhor das hipóteses, esperando sem dúvida que a ausência de criados o deprimisse. E deprimiria, de facto, qualquer um na sua situação.
Na verdade, e estranhamente, nele tinha o efeito oposto. Teria ficado muitíssimo feliz se o deixassem ali sozinho com os seus dois escudeiros e aqueles poucos criados que, de tão velhos, parecia já não lhes fazer qualquer diferença a quem serviam. Se ao menos o pudessem esquecer ali! Se ao menos o imperador negligenciasse mandar mais alguém e quando partisse para a sua próxima conquista, partisse sem se lembrar do seu filho! Poderia facilmente viver ali feliz para sempre, levando os rapazes à caça, instruindo-os na forma correcta de gerir uma quinta e os seus animais. Se não houvesse ali servos imperiais, nem soldados, nem toda essa parafernália, também não haveria espiões imperiais a vigiar cada um dos seus movimentos. Os seus deveres e responsabilidades pesaram-lhe como um fardo às costas durante demasiado tempo, mas agora, pelo menos durante uma noite e um dia, tinham desaparecido; já não teria que usar uma máscara em benefício de ninguém.
Pela primeira vez em muitos anos, estava livre; livre durante algum tempo, pelo menos. Livre para ser ele próprio e livre de quaisquer obrigações, excepto no que respeitava aos rapazes, que eram o mais leve de todos os seus fardos.
O mais pequeno cabeceou, quase caindo, e forçando-se a acordar no último instante. - Então é melhor subirmos para os quartos, senhora - disse Leopold com cortesia, levantando-se e pondo os pratos na bacia.
Pelo menos nisso seria aristocrata; que alguém se encarregasse das limpezas. Os rapazes apressaram-se a seguir-lhe o exemplo e os três seguiram lentamente a mulher enquanto esta os levava pelo labirinto dos corredores do palácio.
Os aposentos do rei ocupavam uma torre inteira, erigida num dos cantos do edifício principal; era um cilindro de pedra, com uma sala e duas pequenas camas no piso inferior, que era adequada para os rapazes, seguida por um quarto de leitura para ele, depois um quarto e, no cimo, um observatório. Os três primeiros pisos tinham uma parede em comum com o edifício principal e portanto só tinham janelas em metade da parede curva, mas o observatório tinha janelas viradas em todas as direcções.
Leopold certificava-se de que os rapazes se metiam na cama quando a tempestade piorou significativamente. À medida que as paredes estremeciam com os trovões e as janelas ficavam brancas com a luz dos relâmpagos, dois pares de olhos implorantes fixaram-se nele.
Talvez fosse idiota da sua parte, mas não havia ninguém ali para testemunhar a sua idiotia. Aconchegou-lhes a roupa e ficou com eles, contando-lhes as histórias que o chefe dos guardas de caça de Balthasar lhe contara em circunstâncias semelhantes, até que as barrigas cheias e os cobertores quentes venceram até o medo da tempestade e os olhos dos rapazes se fecharam no sono.
Assegurando-se de que a lareira estava bem abastecida de madeira e de que o fogo arderia a noite inteira, apagou os candeeiros e deixou-os sozinhos com os seus sonhos. Subiu as escadas, tencionando ir até ao observatório, atraído pelo som do vento assobiando em torno da torre e pelos trovões que faziam vibrar as próprias pedras do edifício.
Apesar de exposta aos elementos, a torre era apreciavelmente acolhedora; as chaminés tinham uma boa tiragem, havia um bom fornecimento de madeira em cada uma das lareiras e a velhota pusera tijolos quentes em todas as camas. Ela seguiu-o quando ele subiu as escadas, com uma expressão um pouco ansiosa no rosto simpático.
- Não acendi a lareira nesta sala, senhor - disse ela num tom hesitante, enquanto ele olhava em torno do estúdio. - Parecíeis tão cansado que não pensei que fôsseis ficar acordado.
- Sim, não faz mal, senhora - tranquilizou-a ele.
Pobrezinha da velhota; provavelmente não estava habituada a fazer tudo aquilo sozinha. A rainha devia trazer o seu pessoal todo quando para ali ia passar uma temporada.
- Vendo o que fizeste pelos rapazes, tenho a certeza de que fizeste o mesmo por mim. Por que não vais descansar? Certamente que o mereces e esta é uma noite para se estar numa cama quente e não a aturar jovens tontos e os seus caprichos.
Ela sorriu ao ouvir aquelas palavras e não se fez rogada em aproveitar a sugestão. Enquanto ela descia lentamente as escadas, ele decidiu dar uma espreitadela antes de subir. Pousou a lanterna que tinha na mão e inspeccionou rapidamente as mobílias e mais uma vez sentiu um toque de nostalgia. Aquele era evidentemente um quarto de homem: a mobília, pesada mas confortável, bem estofada com couro, com mantas de retalhos no chão e uma enorme lareira preparada para manter as refeições quentes junto ao fogo. Esperaria até ao dia seguinte para examinar os livros que forravam as paredes, mas tinha a sensação de que encontraria ali alguns volumes que seriam do seu agrado. Aquele era o tipo de sala que ele desenharia para si próprio, tivesse tido alguma vez o privilégio dessa indulgência.
Voltou a pegar na lanterna e subiu a escada, que encaracolava paralelamente à parede nua e conduzia ao piso superior.
Ali, tal como fora prometido, ardia um fogo, crepitando alegremente e sem quaisquer indícios de que os ventos que sopravam lá fora fossem fazer o fumo descer pela chaminé. Mais uma vez o mobiliário era simples: um roupeiro, uma cadeira, uma mesa de cabeceira e um lavatório com uma bacia e um jarro de água. A cama era antiga e tinha um dossel, com cortinas pesadas de um veludo espesso. Pensou que naquela noite seria uma boa ideia puxar os reposteiros em torno da cama. Por muito bem construída que a torre tivesse sido, numa noite assim haveria sempre correntes de ar desagradáveis.
Mas os trovões e os relâmpagos no exterior da única janela do quarto atraíram-no mais para cima, embora deixasse a lanterna na mesa ao lado da cama. A chuva fustigava as janelas da torre que estavam viradas a norte e a leste, tornando impossível ver mais do que um clarão de luz de cada vez que surgia um relâmpago, mas a oeste e a sul, que ficavam mais abrigados, via-se claramente. À luz do dia, a vista seria provavelmente fabulosa, mas naquela noite a tempestade mantinha-o enfeitiçado.
Pensou como estariam os seus homens e sentiu pena dos pobres diabos que fossem forçados a patrulhar as ruas da cidade com uma tempestade daquelas. Seria aquela tempestade um sinal do desagrado da Deusa pela invasão do Seu santuário durante o funeral da rainha-mãe? Seria aquele também um sinal de que Ela considerava os invasores responsáveis pela sua morte? De certa forma, esperava que assim fosse... e que alguém dissesse isso mesmo ao seu pai.
Talvez assim ele não seja tão precipitado a conceder total liberdade a Cathal para saquear e destruir o que lhe apetece. Não há muitas coisas capazes de meter medo ao meu pai, mas qualquer homem sensato teme a ira da Deusa.
Os trovões que faziam estremecer as fundações do palácio sentiam-se ali em cima em toda a sua violência. A sala estava mobilada com quatro cadeiras, uma em frente de cada janela, e ele deixou-se cair numa ficando a olhar para a fúria da natureza... ou, quem sabe, se para a fúria Daquela que Habita para lá das Estrelas.
A tempestade mantinha-o hipnotizado, concedendo-lhe a benesse de, durante algum tempo, não pensar em mais nada.
Recostou-se no conforto da cadeira de cabedal, enquanto o troar dos trovões vibrava nos seus ossos e o uivo do vento lhe enchia os ouvidos e o espírito, os olhos cheios do céu riscado pelo fogo. Mas a sala não tinha lareira e o vento sugava o calor da sala como uma sanguessuga esfomeada. Passado algum tempo começou a tremer à medida que o frio ia penetrando o seu uniforme e o gelava até aos ossos. Foi esse facto e não a tempestade, que fez com que ele descesse e fosse para a cama que o aguardava. O quarto pareceu-lhe confortável, acolhedor e agradavelmente quente depois do frio que sentira no piso superior.
Tirou o uniforme e lavou-se rapidamente com a água do jarro, depois apagou todas as lanternas e, à luz da lareira, entrou na cama macia e convidativa, fechando as cortinas em torno de si para abafar o ruído dos trovões e tapar a luz do fogo e dos relâmpagos. O tijolo que estava na cama ainda não tivera tempo de arrefecer e os lençóis de flanela aqueceram rapidamente. O quarto, as outras salas, a cama... tudo lhe pareceu bem-vindo. Ali sentia-se em casa, confortável, como não se sentira desde que tinha a idade do seu escudeiro mais velho. Talvez se estivesse a iludir, mas de momento acolhia de bom grado essa ilusão, se é que de ilusão se tratava.
E assim, mau grado tudo o que lhe acontecera naquele dia demasiado longo e verdadeiramente horrível, adormeceu rápida e pacificamente, sem qualquer ideia mais elaborada do que o pensamento de como era bom estar deitado na cama quente, a ouvir a tempestade lá fora, que não amainava.
SHELYRA
Se eu soubesse que a Deusa iria manifestar o Seu desagrado com uma tempestade, pensou Shelyra sombriamente, enquanto curvava a cabeça sob o massacre da chuva e do vento, esperaria até uma noite mais calma para fazer isto.
Shelyra mantivera-se imóvel quando o sino começara a dobrar pela morte de Adele, recordando o que a sua avó lhe dissera. A não ser que alguém viesse ter com ela trazendo o anel da sua avó, decidiu que continuaria a assumir que Adele estava a salvo e escondida nos claustros do templo.
Na verdade, depois de ouvir o que a Mãe Bayan tivera para lhe dizer, e lembrando-se dos avisos de Adele, sentia-se inclinada a acreditar que aquilo não passava de uma farsa para despistar
Apolon. Uma mulher morta não lhe seria de qualquer utilidade e, para além disso, ele deixaria de ficar atento a possíveis interferências suas.
Por isso ficara no recinto, embora outros dos seguidores do Gordo se tivessem esgueirado para a cidade para recolherem tantas informações quantas pudessem. Controlara a sua impaciência e os seus medos, sabendo que acabaria por saber o que se passava e ciente também de que com os mercenários a vaguear pelas ruas, para além dos casacos negros de Apolon, não era seguro para ela sair sem ser em grupo.
Thom Talesmith, contudo, não fora tão paciente. Enquanto “Raymonda” cobria os animais com produtos que faziam o seu pêlo ficar com um aspecto áspero e quebradiço, ele andara nos estábulos, para trás e para diante, atento ao regresso de alguém da cidade e tomado de preocupação e irritação. Ela ignorara o seu estado de espírito, como ignorava aliás a maior parte das coisas que ele fazia. Se aquilo tudo era para a impressionar com o seu grande afecto pela rainha-mãe, falhara. Ele sabia tanto como ela, deveria ter portanto depreendido que a “morte” de Adele não era certamente o que parecia. Por outro lado, se aquela era a expressão da sua natureza impetuosa e irrequieta, então ainda menos impressionada ficara.
- Vou à cidade - dissera ele finalmente, com brusquidão, e antes que ela pudesse dizer palavra, desaparecera.
- É um idiota - dissera ela ao cavalo que estava a tratar.
O cavalo deitara as orelhas para trás e batera nervosamente com os cascos.
Visto Thom não ter regressado até ela própria ter saído do recinto, sentiu-se mais inclinada do que nunca a considerá-lo um idiota.
- Também o sentes, não é? - perguntara ao cavalo.
Naquele momento franzira o sobrolho e não fora devido ao vento forte. Havia mais qualquer coisa no ar e não era apenas a tempestade. Ia haver problemas, e problemas já ela tivera que chegassem. Mas ocorrera-lhe então que os problemas nem sempre ficavam no sítio onde começavam...
Acabara de escovar o cavalo e dirigira-se ao local onde estavam a sua cama e os seus haveres, certificando-se de que tudo o que necessitava estava empacotado e pronto para ser levado a qualquer momento. Se os problemas se tivessem mudado para o recinto, como poderia muito bem ter acontecido ou vir a acontecer, havia mais de uma via de fuga que ela poderia usar e que usaria.
Colocara-se de forma a poder vigiar o portão e o regresso daqueles que tinham saído. Os ciganos e os membros do Clã dos Senhores dos Cavalos que se tinham dirigido isoladamente à cidade tinham voltado todos juntos e com eles todos os membros da casa do Gordo que se encontravam nas ruas naquele dia. E depois o portão fora trancado nas suas costas.
Um dos que tinham ido à cidade foi Ilya, que se dirigira imediatamente para ela assim que a viu de pé junto à porta do estábulo.
- Que... - começara ela a perguntar mal ele se aproximou, mas ele interrompera-a.
- Lá dentro - dissera-lhe, lançando um olhar nervoso por cima do ombro e puxando-a para dentro do estábulo.
- A rainha-mãe morreu supostamente nas horas que antecedem a madrugada - dissera-lhe então, no que era pouco mais do que um sussurro. - Têm estado a velá-la. A grande sacerdotisa apareceu no templo para dirigir o serviço fúnebre... e... houve um milagre. Vi-o com os meus próprios olhos.
Parecera tão abalado que ela não duvidara das suas palavras, mas...
- Um milagre? - repetiu incrédula. - Um milagre que todos pudessem ver?
Na altura, isso parecera-lhe pouco provável, como ainda agora lhe parecia, apesar dos muitos testemunhos de vários membros do clã do Gordo.
- Vi-o com os meus próprios olhos - dissera ele teimosamente. - O Coração começou a sangrar! Uma chuva de gotas vermelhas caiu em cima da urna! Toda a gente viu... e foi então que os mercenários nos atacaram.
Ela sentira-se empalidecer e os seus pés e as suas mãos ficaram gelados como as águas dos canais durante o inverno.
- Os mercenários de Cathal... atacaram-vos? Em solo sagrado?
Sentira-se totalmente incrédula. Certamente que nem mesmo a escumalha mercenária que constituía as tropas pessoais de Cathal era estúpida a esse ponto!
Bem, eles são suficientemente estúpidos para andarem na rua no meio de uma tempestade destas, pensou sombriamente, pois tivera que os evitar durante todo o percurso em direcção ao rio. Suponho que também serão suficientemente estúpidos para atacarem o templo.
- No meio de um serviço sagrado - afirmara Ilya desoladamente. - Empurraram as pessoas para dentro do templo e depois começaram a espancá-las com bastões e com os punhos das lanças. A grande sacerdotisa tentou detê-los, mas foi só quando o príncipe Leopold chegou com os homens dele que eles pararam com o ataque. Mandou-os embora e jurou à grande sacerdotisa que não haveria mais incidentes daqueles!
- Incidentes! - Ela soltara uma risada de escárnio. – Eu não chamaria um ataque a pessoas desarmadas em solo sagrado um incidente!
- Nem eu - concordara Ilya, com os dentes cerrados, apesar da religião do templo não ser a sua. - E o estado de espírito da cidade é mau, muito mau. Cathal, ou os seus homens, foram frustrados nas suas intenções e nós pensámos que o melhor é não sair à rua.
Ela assentira pesarosamente, desejando não ter que sair para ir buscar o raio dos livros, mas quanto a isso não havia nada a fazer.
- Obrigado por me teres vindo contar tudo isso, Ilya - disse-lhe agradecida. - Ah... e... e se eu fosse a ti, perguntaria qual é a opinião da Mãe Bayan em relação à morte da rainha-mãe.
- Sim? - perguntara Ilya em tom duvidoso, depois disse: - Oh! - quando percebera a sua insinuação. - Então muito bem. - Parecera ficar ligeiramente mais bem disposto, mas só ligeiramente. - Mesmo assim. Os ares da cidade estão perigosos e, se fosse a ti, ficava aqui.
- Ou se precisar de sair, fá-lo-ei como os gatos - prometera-lhe ela, sabendo que não poderia prometer ficar - de noite e por cima dos telhados.
Ou por cima de tantos telhados quantos a tempestade me permita! Não me vou pôr a dançar em cima de telhas molhadas, isso é que não!
A tempestade eclodira mal ela tinha saído. E se não foi exactamente por cima dos telhados, foi por caminhos que nem os mercenários nem os casacos negros seriam capazes de percorrer. Por vezes seguia por veredas estreitíssimas, outras vezes saltava muros e atravessava jardins e, nas vizinhanças do recinto do Gordo, tinha mesmo caminhado por cima dos telhados. Felizmente encontrava-se no chão quando a tempestade rebentou, ou poderia ter sido empurrada pelo vento de cima de um dos telhados!
A tempestade apanhou-a quando ela percorria um verdadeiro labirinto de passagens estreitas que passavam por entre os edifícios e que a levou a um certo abrigo para barcos na margem do rio perto da ponte. E se não fora a promessa feita à sua avó de que lhe traria os livros, teria voltado para trás quando a tempestade lançou a sua fúria sobre Merina e todos aqueles que a habitavam. Mas tinha a sensação de que tinha que levar aqueles livros a Adele, uma sensação que era tão poderosa quanto irracional, e lutou contra o vento e a chuva até estar ao abrigo da casa que era o seu objectivo.
O abrigo dos barcos parecia estar abandonado, embora fosse uma estrutura imponente de tijolo e pedra. A porta estava fechada, mas Shelyra nunca necessitara de chave para entrar naquele
edifício. Com umas quantas hesitações, conseguiu empurrar os tijolos na sequência adequada, fazendo com que a porta disfarçada na parede de tijolo rodasse para o lado apenas o suficiente para que ela se conseguisse esgueirar para o seu interior.
Ficou durante longos instantes de pé, escorrendo água no cais protegido. O cais era muito mais largo do que o necessário, mas havia uma razão para que assim fosse. Um barco estava ali acostado, uma embarcação elegante e escura como uma lança; mas daquela vez ela não estava ali pelo barco.
A luz intermitente dos relâmpagos tacteou o caminho até ao lado da casa que dava para a ponte. Uma vez lá chegada, suspendeu-se cuidadosamente do cais e estendeu um pé procurando o primeiro degrau. O rio estava cheio, mas não tão cheio que submergisse a plataforma que a largura da doca superior ocultava. Era um caminho estreito o que levava até à parede da casa dos barcos, a parede que dava para a ponte, e junto à parede a passagem já não estava assente em pilares submersos, mas sim em pedra sólida, da mesma qualidade da pedra da margem do canal.
Ali havia uma série complicada de tijolos a puxar e empurrar, fazendo com que um bloco de tijolos se soltasse permitindo-lhe entrar naquilo que em tempos fora, e podia muito bem continuar a ser, um túnel usado por contrabandistas.
Contorceu-se para conseguir entrar, com os pés para a frente e deixando-se cair agilmente no chão. Deixou o bloco de tijolos escondido por uma prancha no pavimento de pedra da casa dos barcos. As probabilidades de que alguém ali fosse e encontrasse os tijolos eram suficientemente remotas numa noite como aquela, atrevendo-se por isso a correr aquele risco.
Tacteou o caminho ao longo do túnel de tijolo usando as duas mãos, não se atrevendo a acender uma luz. Não havia forma de saber quem por ali poderia andar, embora não tivesse nenhuma razão para imaginar que mais alguém, para além da linhagem do Tigre, soubesse da existência daquela passagem.
Ainda assim, qualquer passagem secreta fora das muralhas do palácio estava sujeita a ser descoberta por estranhos. Além disso, tinham sido estranhos quem construíra a passagem e esse era um facto que ela nunca esquecia.
O túnel cheirava a bafio e a bolor e, na verdade, estando tão perto do rio, era admirável como se mantinha tão seco. De vez em quando passava por dentro de uma poça de água, ou ouvia um gotejar à distância, mas era tudo. Depois de ter percorrido uma distância que lhe pareceu interminável, as suas mãos tactearam uma parede sem saída e uma série de argolas de ferro embutidas na parede lisa.
Aquele túnel não passava precisamente por baixo do rio, na verdade corria à sua superfície, mas escondido por baixo da ponte. A ponte tinha duas torres de vigia em cada uma das extremidades, uma em cada margem. Aquela escada seguia pelo interior da parede do lado da margem de Merina e daí seguia até uma conduta arredondada, que fora construída por baixo da estrada quando da construção da ponte. O arquitecto da altura tivera a ideia de enviar cães com mensagens e embrulhos entre uma e outra torre, mas a ideia fora de uma idiotice tão evidente que os acessos das torres ao túnel tinham sido emparedados.
Aquela conduta nunca fora utilizada até que os contrabandistas, tendo ouvido falar nela, tinham construído aquele túnel que dava para a passagem e que ia do nível térreo até à própria conduta. Tinham usado alegremente aquelas passagens até serem apanhados e encorajados a descrever os seus métodos pela rainha-mãe da altura, uma senhora com um encanto muito persuasivo e um enorme Talento mágico que o reforçava.
Tanto quanto Shelyra sabia, depois disso a conduta mantivera-se no segredo do Tigre. Era um facto que nunca tinha visto sinais de alguém, para além dela própria, a utilizar. Trepou até a sua mão encontrar o vazio e, fatigada, içou-se para a entrada da conduta, ainda envolta em total escuridão. Começou então a rastejar ao longo da conduta propriamente dita. Era uma viagem longa e fatigante, toda ela feita de gatas, pois ali não havia espaço para ficar de pé. Sentia a ponte vibrar em torno de si sob o efeito da água que fustigava os seus alicerces.
Por fim, a sua mão tacteante voltou a encontrar o vazio e ela agarrou-se e contorceu-se para poder descer uma escada que era a irmã gémea da que se encontrava na outra torre. Quando chegou ao fundo, descansou alguns instantes e começou então a segunda parte do percurso. Ali, passado pouco tempo, as suas mãos tocaram a superfície de uma porta simples de madeira sem quaisquer mecanismos escondidos. Abriu-a e fechou-a atrás de si, procurando com alívio a lanterna e a pederneira que ficavam sempre numa prateleira, à altura do seu ombro, do lado esquerdo. Por fim, atrevia-se a acender a luz!
Depois do tempo que passara envolta na escuridão, o brilho da luz ofuscou-a, mas não deixava de ser um alívio; podia estar habituada a viajar na escuridão como uma toupeira, mas isso não significava que essas fossem as suas condições preferidas.
A etapa seguinte seria muito mais fácil, pois aquele túnel, que conduzia ao Palácio de Verão, fora construído pelos artesãos do Tigre. Aos vigaristas bastara uma forma de conseguir passar mercadorias pela ponte até à cidade sem ter que pagar taxas. A casa necessitara de uma via de fuga do Palácio de Verão, tão eficaz como as que existiam no Grande Palácio.
Agora que podia ver, apressou o passo até atingir um trote rápido. Embora não estivesse propriamente ofegante quando atingiu a porta seguinte (esta oculta nos tijolos daquilo que era aparentemente um beco sem saída) sentia-se bastante cansada e satisfeita por estar próxima do seu destino.
Virou um determinado tijolo e depois, enfiando a mão no buraco que se abriu, girou o fecho, o que lhe permitiu fazer a parede rodar sobre um pilar central e passar para o outro lado. Enquanto a porta girava e ficava na posição inicial, procurou cuidadosamente no chão pedaços de papel, pois estava mesmo junto da entrada do Palácio de Verão e aquele era o único local, para
além do recinto do Gordo, onde tinha uma aliada.
A governanta daquele palácio era a sua velha ama, que já fora a ama de Lydana antes de cuidar de Shelyra e antes disso fora a criada particular de Adele. O seu nome era Nan, mas depois de ficar responsável pelas crianças passou a ser, como era inevitável, Nanny 6.
A Nanny merecia mais confiança do que qualquer outra pessoa mas, acima de tudo, merecia saber o que andavam a fazer as suas amadas senhoras e que estavam bem de saúde, para que não se atormentasse de desespero com os rumores que chegavam da cidade. Shelyra não tivera quaisquer dúvidas relativamente a essa questão; não seria justo para com a velha mulher mantê-la na ignorância. Os outros criados não passavam disso mesmo: criados; podiam ser leais ao Tigre, mas a sua primeira preocupação seria sempre, naturalmente, o seu próprio bem-estar. A Nanny era da família.
Por isso, quando Shelyra fora pela primeira vez ao Palácio de Verão para esconder o seu equipamento, contara a Nanny o que se estava a passar e arranjou-lhe uma forma de ela passar mensagens, pois mais cedo ou mais tarde os invasores chegariam também ali e Shelyra queria saber quando isso acontecesse para não tropeçar neles. E, em troca, prometera a Nanny mantê-la ao corrente do que se passasse na cidade.
Ali! Um rolo de papel muito apertado estava no chão, no local que ficava por baixo do olho móvel de um tigre gravado no átrio da entrada! Shelyra apanhou-o e leu-o.
Vinde ter comigo antes de pôr os pés no palácio!!! - dizia - Perigo!
Um calafrio percorreu-lhe as costas. Alguma coisa devia ter acontecido; deviam ter chegado homens... Shelyra esperava que fossem homens do imperador e não de Apolon...
Fez mais um percurso por outro labirinto de passagens secretas até chegar aos aposentos dos criados. Nanny tinha aposentos próprios e que davam para uma porta de acesso às passagens secretas que Shelyra lhe mostrara para o caso de ela ter que fugir. Havia ali um segundo pedaço de papel, mesmo junto à porta, dizendo basicamente o mesmo que o primeiro. Shelyra apagou a lanterna com um sopro e entreabriu cautelosamente a porta oculta.
- Nanny? - murmurou na escuridão.
Ouviu-se um grande suspiro de alívio e o som de uma pederneira; um candeeiro acendeu-se, brilhando sobre o rosto enrugado de uma velha mulher sentada na cama, com o cabelo cuidadosamente metido numa touca e um xaile de lã por cima dos ombros.
- Tenho estado à espera na escuridão, na esperança de que viésseis, minha querida - disse a velhota, a expressão do seu rosto reflectindo a tensão em que estivera. - Os boatos... e há aqui homens do imperador...
- Muitos? - perguntou rapidamente Shelyra e como Nanny abanasse a cabeça, soltou ela própria um suspiro de alívio.
- Bem, deixa-me contar-te o que realmente se passou e depois tu contas-me tudo acerca desses homens.
Contou-lhe tudo o que sabia e Nanny assentiu como que em confirmação, quando lhe disse que Adele não tinha morrido.
- Pensei que assim fosse - disse calmamente. - Nunca tive o Talento da vossa avó, mas existe um laço entre nós e não senti nada de errado quando o sino dobrou a finados.
Não acrescentou mais nada, mas Shelyra acreditou nas suas palavras, pois Nanny sempre soubera quando qualquer coisa acontecera a Adele, muitas vezes incidentes que a própria Shelyra presenciara.
Contudo, os seus olhos abriram-se de espanto, quando Shelyra lhe contou o milagre que ocorrera e fez o sinal do Coração sobre o peitilho da camisa de dormir.
- E é tudo quanto sei - concluiu Shelyra, quando terminou a história de como o príncipe defendera o templo e os religiosos contra as tropas de Cathal.
- Ah! - exclamou Nanny, o rosto subitamente animado. - Então é essa a explicação! O vosso jovem príncipe caiu em desgraça, meu amor. É ele quem aqui está e sem mais escolta do que um par de escudeiros demasiado novos para serem úteis. - Sorriu.- Eu fingi ser uma velha camponesa burra, com um sotaque a condizer, para que ele não percebesse que eu sei ler e escrever e não suspeitasse de mim.
- O Leopold está aqui!? - exclamou Shelyra. - Que foi que lhe aconteceu?
A Nanny abanou a cabeça.
- Isso não vos sei dizer, mas suspeito que tenha arranjado problemas com a sua defesa do
templo. Atravessou a ponte com todos os seus haveres e a expressão mais abatida que alguma vez vi, depois do dia em que fostes apanhada a meter rãs na cama da vossa preceptora e fostes mandada de castigo para o quarto durante uma semana, para reflectirdes nos vossos pecados.
Shelyra corou um pouco e sorriu ao mesmo tempo, tentando imaginar o tão digno Leopold com a expressão de uma criança amuada.
- Está nos aposentos do rei, lá em cima na torre - continuou Nanny. - E devo dizer, meu amor, que é o homem mais doce que já vi desde que o vosso querido pai nos deixou. Qualquer outro homem teria tido um ataque de fúria quando descobrisse que não havia aqui ninguém para o servir. Qualquer outro nobre teria passado fome, ou gritado comigo até eu ter ido para a cozinha fazer uma porcaria qualquer... e depois teria gritado comigo por eu não ser boa cozinheira. Ele não fez barulho nenhum, foi para a cozinha e alimentou-se a si e aos rapazes por suas próprias mãos e depois foi deitar os rapazes e contou-lhes histórias até eles adormecerem, para que a tempestade e as circunstâncias não lhes dessem pesadelos. Não é o tipo de homem que eu imaginaria filho de Balthasar.
- Já tinha reparado nisso - admitiu Shelyra. - Há nele bondade... e não imagino onde a terá ido arranjar, pois não existe gota de bondade no corpo do imperador.
- Aquele dava um bom pai - disse Nanny pensativamente e depois abanou a cabeça. - Bem, ele está fora do caminho, se precisardes de ir buscar alguma coisa, embora não possa fazer garantias no que respeita ao que por amanhã aí aparecerá.
Shelyra fez uma expressão contrariada.
- Se ele caiu em desgraça, o imperador enviará homens seus para o vigiar. E eu vim mesmo buscar umas coisas para a avó, Nanny, e é melhor ir buscá-las já. Provavelmente não terei outra oportunidade.
- Posso ajudar? - ofereceu-se Nanny imediatamente. – Eu agora não durmo grande coisa.
- Sim, claro que podes! - replicou Shelyra com gratidão. - Achas que me consegues arranjar aí... uns vinte livros, tirando-os de lugares onde ninguém dê pela sua falta e trazendo-os para os aposentos da avó?
- Facilmente - disse a velhota com firmeza. - E será um prazer, poder finalmente fazer qualquer coisa! Posso ser velha e fraca, mas fico louca por não vos poder ajudar.
Ergueu-se da cama e vestiu um roupão. Shelyra entrou novamente na passagem secreta e dirigiu-se para os aposentos de Adele. Quando lá chegou abriu a porta, que era na realidade parte da estante dos livros que ela deveria saquear, e descobriu que os livros que Adele queria eram na realidade tão facilmente reconhecíveis como ela afirmara, embora tivesse que abrir cada volume e começar a lê-lo para poder determinar quais os que queria. Encontrara pelo menos metade dos livros sobre magia, quando Nanny regressou arrastando os pés, com os braços cheios de livros fúteis sobre lendas e poesia romântica. Não eram o tipo de coisa que Adele leria, mas os invasores não sabiam disso.
Nanny pousou os livros que recuperara em cima da cama e começou a enfiar os que trouxera nos espaços vazios da estante de Adele. Observou o resultado enquanto punha o último livro nas prateleiras e, sem dizer palavra, saiu em busca de mais livros.
Quando voltou, já Shelyra estava certa de ter encontrado todos os livros que Adele ali deixara. Já estavam todos empilhados no interior da passagem secreta, seguros de momento, e ajudou Nanny a substituir os livros retirados pelo resto dos que esta arranjara.
- Pronto - disse a velhota, virando um pouco a cabeça para observar o resultado. - Parece bastante razoável.
- Nanny, eu nunca teria conseguido fazer isto tão rapidamente sem a tua ajuda - disse Shelyra com gratidão, enquanto se dobrava para beijar a face enrugada da velhota. - Obrigada!
Nanny riu-se, deliciada.
- É bom ter finalmente alguma coisa para fazer - respondeu. - Agora... é melhor pôr-vos a andar, ou não chegareis à cidade antes do nascer do sol.
Fez um gesto com as mãos, mandando-a embora, e Shelyra obedeceu-lhe prontamente. Foram necessárias três viagens para levar todos os livros que estavam na passagem; não quis deixá-los ali, por temer que a sua presença pudesse ser pressentida por um mago. Até ali ninguém tinha ainda descoberto as passagens secretas e se Apolon ali se deslocasse, ela não lhe queria fornecer quaisquer pistas relativamente à existência de caminhos ocultos. Deixou a maior parte dos livros na sala secreta, levando apenas uns poucos que poderia transportar facilmente ao rastejar por baixo da ponte e proteger da chuva metendo-os dentro da roupa. Tinha razões para suspeitar que a sala escavada na rocha estava protegida contra a magia; fora aliás essa a razão porque trouxera as peças mais importantes do seu “equipamento” para ali. Pelo menos, agora os livros estariam a salvo das mãos de Apolon; e isso é que era importante. Não tinha grandes dúvidas de que pelo menos um dos homens que o imperador enviaria para vigiar o seu filho seria um lacaio daquele mago maléfico.
Pobre Leopold, pensou ela quando iniciou a viagem de regresso. Mesmo tendo em conta todos estes trabalhos e perigos... não trocaria o meu lugar pelo dele por nada deste mundo. É ele, e não eu, quem precisa de um anjo da guarda.
THOM
Mais do que qualquer outra coisa, a inactividade perturbava Thom Talesmith. Fora a inactividade que o levara novamente à cidade em busca de novidades nos locais que habitualmente frequentava.
Pensara em ir até ao templo, mas depois de reflectir, decidiu que isso seria um erro. Corriam rumores de que as tropas do imperador andavam a percorrer as ruas em busca de homens fisicamente capazes, forçando-os a trabalhar para Balthasar, e ele não queria ser apanhado numa dessas rusgas.
Em vez disso, dirigiu-se a um dos seus pousos habituais; não à taberna do Jonas, mas a uma outra semelhante e que era freqüentada pelo equivalente terrestre dos ratos do rio e gente das docas que frequentava o estabelecimento do Jonas. Havia já vários dias que lá não ia; deveria haver um monte de novidades à sua espera.
Verificou que os rumores correspondiam à verdade; viu mais do que um grupo de casacos negros e mercenários arrastando homens semi-inconscientes ou aos gritos, todos em perfeitas condições físicas e na sua maioria jovens. Conseguiu escapar às rusgas escondendo-se mal ouvia o som firme de passos “oficiais”. Mas, ainda assim, ocorreu-lhe pensar em qual seria a ideia do imperador. Àquele ritmo, em breve não haveria ninguém para trabalhar na cidade; e sem trabalhadores das docas, nem artesãos, nem operários, a riqueza que Merina em tempos possuíra desapareceria sem deixar rasto.
A não ser, evidentemente, que as mulheres conseguissem arranjar uma maneira qualquer de fazer o trabalho que anteriormente fora feito pelos seus homens.
Riu-se daquela ideia com escárnio. As mulheres? Não lhe parecia! Seria difícil içar uma rede de mercadorias para dentro de uma barca com fedelhos agarrados às saias! E isso se as mulheres estivessem dispostas a aceitar uma tarefa tão suja e dura... Não, as mulheres preferiam o conforto do lar; não imaginava nenhuma das mulheres de Merina a tomar a iniciativa de preencher as lacunas deixadas pela perda dos seus homens. Provavelmente ficariam em casa sentadas a torcer as mãos e a chorar.
Atravessou a cidade até ao extremo oposto ao das docas: o local onde as caravanas terrestres chegavam a Merina. Tal como a zona das docas, aquela era uma área de armazéns e trabalhadores e tal como as docas, havia locais onde o mais sensato era manter sempre uma mão na faca e saber-se muito bem para onde se ia. Ir ali à noite, como ele estava a fazer, se ali não se fosse conhecido, era a maior das loucuras.
A taberna Armas de Anjo era assinalada por um par de asas de pombo petrificadas e pregadas à ombreira da porta. Para lá chegar, Thom desceu por uma viela estreita e malcheirosa, cheia de ratos, gatos e. miúdos aos berros, até atingir as escadas que conduziam ao mais delapidado dos edifícios do quarteirão. Estava a chegar à porta quando o céu se escancarou. Sentiu-se satisfeito por poder entrar assim que a porta se abriu depois de ter batido.
Lá dentro o odor a pratos sujos, a corpos sujos, a chão sujo, à comida queimada e cerveja era suficiente para deitar abaixo qualquer incauto. Para Thom, contudo, o odor era um lembrete. É daqui que vens. E é aqui que vais acabar se não fores cuidadoso e esperto. Seria melhor, muitíssimo melhor, morrer pendurado na corda de um carrasco do que levar uma existência desgraçada a esmolar bebidas a um canto da Armas de Anjo ou outro local semelhante.
Ninguém o cumprimentou; ninguém o faria. Os nomes eram um perigo e ninguém os usava sem permissão prévia. Thom sentou-se numa mesa que estava desocupada e esperou até que uma das prostitutas, cujos serviços eram todos negociáveis, viesse receber o seu pedido.
Só que... não era uma prostituta, de olhos melados e convidativos, quem o atendeu. Quem veio receber o seu pedido foi uma criança assustada de olhos muito abertos e sexo indeterminado. Ficou a tremer ao pé da sua mesa e murmurou qualquer coisa. Não conseguiu ouvir o que a criança dizia, mas partiu do princípio que lhe perguntava o que queria beber.
- Uísque - disse ele, lançando uma moeda para a bandeja da criança. - E traze-me cá o Ard. Dize-lhe que o Thom lhe quer falar.
Ard Arnson era o proprietário da Armas de Anjo; Thom já gastara mais do que uma moeda nas informações que Ard tinha para vender. Ard provavelmente ficaria tão satisfeito por ver mais moedas dessas, que não ligaria à brusquidão da convocatória.
Na verdade, foi o próprio Ard quem trouxe o uísque a Thom; aquela era a única bebida suficientemente forte para esterilizar o copo no qual era servida. O uísque era de muito má qualidade, mas a cerveja de Ard era ainda pior. Na realidade, Ard trazia dois copos e sentou-se na frente de Thom com um grunhido.
- Onde estão as raparigas? - perguntou Thom bruscamente.
- Imperiais - grasnou Ard. - Vieram cá, juntaram-nas e levaram-nas para uma casa imperial qualquer. Apanharam todas as raparigas da rua que não se conseguiram esconder. – Apontou para as crianças que serviam às mesas. - Isto foi tudo o que consegui arranjar aqui para baixo. Tenho um par de mulheres que ainda cá estão, escondidas no andar de cima.
- Hum. - Thom bebeu o uísque de um só trago, evitando que este lhe tocasse na língua antes de chegar à garganta. - Isso é duro.
- Podes crer - continuou Ard imediatamente. - E os tipos dos trabalhos forçados têm andado a levar os rapazes também. Não vai ficar ninguém a não ser velhos, mulheres, aleijados e fedelhos. É mau p’ró negócio. Muito mau p’ró negócio.
Thom pensou naquilo.
- Faz um homem começar a pensar em lançar uns quantos imperiais ao canal - sugeriu.
Ard lançou-lhe um olhar desconfiado.
- Aqueles que o fazem, encontram imperiais debaixo da cama ao romper da manhã. Eles têm as patrulhas controladas e se um deles desaparece durante a noite, sabem onde é que desapareceu. Depois vêm ajustar contas com esse bairro. Enforcaram cinco homens na Rua Glasdon esta manhã só para servir de exemplo.
- Ai foi?
Thom brincou com o copo. Aquilo não parecia muito prometedor. As forças imperiais pareciam estar um passo adiante de tudo o que os cidadãos de Merina pudessem fazer para combater as suas depredações; e nem sequer eram justos. Era evidente que a justiça não fazia parte do vocabulário imperial.
Ard parecia ter lido os pensamentos de Thom.
- Não é justo - queixou-se. - Um homem acredita que as forças da lei obedecem à lei e não é justo quando as forças da lei deixam de cumprir as regras.
- Lá isso é - concordou Thom, depois resolveu arriscar e dizer mais qualquer coisa. - Pensas que o templo...
- E quando é que os da laia deles tiveram tempo para os da nossa laia, quando também têm a faca na garganta? – perguntou Ard. - Oh, ouvi falar no milagre e essas coisas todas, mas logo depois do milagre lá estavam os imperiais, a entrar pelo templo dentro e não houve anjos que os parassem. - Abanou a cabeça com tristeza. - Não Thom, isto está mau para toda a gente e digo-te a ti o que tenho dito aos outros. Sai daqui enquanto podes.
Thom conseguiu obter mais algumas informações de Ard, mas não eram de grande utilidade. As forças imperiais estavam a sufocar até mesmo aquele bairro, fazendo rusgas periódicas e levando todo e qualquer homem que fosse vagamente capaz em termos físicos e suficientemente descuidado para ser apanhado na rua. Alguns tinham sido libertados, depois de terem provado que não só tinham um negócio ou um emprego, como tinham também pago as taxas imperiais necessárias a esse privilégio.
Os restantes tinham sido classificados de “indigentes” e levados para os trabalhos forçados. Para onde e por quê, Ard não sabia. Thom ficou a pensar naquilo depois de Ard se ter ido embora, tentando juntar as peças do quebra-cabeças. Mas nenhuma delas se parecia ajustar...
Não, isso não era inteiramente verdade. Nenhuma delas se ajustava, se se partisse do princípio que o imperador queria manter Merina e o seu potencial, enquanto produtora de riquezas, intacto. Nenhuma cidade podia funcionar sem a sua força de trabalho, nem quando os seus trabalhadores e mercadores estavam a ser sugados até à medula. É claro que os mercadores diziam sempre que o governo os estava a sugar até à medula, mas arranjavam sempre forma de ter o dinheiro necessário para aquilo que queriam.
Mas desta vez não. Para poderem continuar os seus negócios, os mercadores eram taxados por cada moeda de cobre de lucro, e eram taxados de uma só vez, por uma licença de seis meses. Alguns teriam poupanças suficientes para cobrir aquela exigência extorsionária, mas e os outros? Tinham uma de três escolhas possíveis: fechar o negócio, dar sociedade a alguém que tivesse esse dinheiro, ou...
Ou a terceira possibilidade. Se não fechassem imediatamente a porta e continuassem em dívida, arranjariam sem dúvida um sócio. Os soldados imperiais chegariam à sua porta com um mandato na mão confiscando toda a sua propriedade e entregando-a a um cidadão imperial, ficando o pobre artesão ou mercador como servo do imperial, como forma de pagamento da “multa”, acrescida por cada hora que o negócio tivesse estado aberto sem a licença imperial. Aí as escolhas eram ainda mais reduzidas: tentar fugir e arriscar-se a ser declarado “indigente” e levado numa rusga, ou ficar um servo na sua própria casa, um escravo no seu próprio negócio.
Não, nada daquilo fazia sentido se a intenção fosse a sobrevivência de Merina. Mas se, em vez de tosquiar os carneiros, o imperador tencionava ficar com a lã, o couro, a carne, os ossos e não se preocupasse com a lã do futuro... então fazia todo o sentido.
O imperador nunca tencionara outra coisa que não pilhar a cidade. Eles tinham simplesmente tornado as coisas mais convenientes e menos dispendiosas para ele ao renderem-se.
Deveriam ter lutado. Agora, já era demasiado tarde. Talvez ainda existisse ali uma cidade quando o imperador se fosse finalmente embora, mas seria apenas o esqueleto de uma cidade, implacavelmente despojada de toda a riqueza que a mantivera, de todos os seus trabalhadores e de tudo o que pudesse ter algum valor. Seria mesmo uma cidade de mulheres, velhos, aleijados e crianças...
E, se calhar, poderia mesmo ser uma cidade só de velhos e aleijados e dos bebés demasiado novos para serem úteis. Quando as coisas chegassem a esse ponto, o que é que poderia impedir que as forças imperiais levassem todas as mulheres vagamente adolescentes para prostitutas das tropas e todos os rapazes para servos do exército? Nada, excepto a noção de decência, que segundo parecia, faltava ao imperador de forma muito evidente.
Thom virou e revirou mentalmente toda aquela teoria, todas as conjecturas e todos os factos conhecidos, tentando encontrar qualquer falha. Infelizmente, quanto mais pensava, mais sólida a teoria parecia ser.
No exterior da taberna o vento uivava como cem fantasmas juntos e os trovões faziam abanar o velho edifício e chocalhavam continuamente cada tábua solta, de tal modo que as conversas eram abafadas pelo ruído.
Thom suspirou e olhou para o copo vazio. Não lhe apetecia mesmo nada regressar ao recinto do Gordo com um tempo daqueles, mas aquele também não era o local indicado para esperar que a tempestade amainasse. Já tinha havido, anteriormente, cheias na Armas de Anjo e pela quantidade de chuva que caía, era bem capaz de vir a ficar novamente alagada naquela noite.
Atirou uma moeda de cobre à criança que veio buscar o copo, puxou o casaco contra o corpo e levantou-se. Ninguém olhou para ele ou lhe prestou mais atenção do que quando entrara.
Teve que forçar a porta a abrir-se, tal era a força do vento, e assim que saiu este arrancou-lha da mão, fazendo-a fechar-se com estrondo. O vento soprava ainda mais forte quando chegou ao nível da rua e a chuva fustigava-lhe com fúria a pele exposta, gelando-a e insensibilizando-a em curtos instantes.
Aquela era definitivamente a pior tempestade que Thom já vira e pensou se não seria a manifestação da fúria da Deusa pela violação do Seu templo. Ou... talvez pela utilização das Suas sagradas cerimónias fúnebres na ocultação do facto de a rainha-mãe estar bem viva? Não que ele tivesse a certeza de que Adele continuava entre o número dos vivos, mas a senhora que ele ouvira no confessionário parecera-lhe cheia de energia e Shelyra não mostrara qualquer sinal de ansiedade quando o sino dobrara pela morte da rainha-mãe. Juntando esses dois factos e acrescentando ainda o facto de os imperiais saberem que a rainha-mãe se refugiara no templo, tinha-se muito boas razões para acreditar que o funeral fora uma farsa.
E por que não? Ninguém procuraria uma mulher morta, por muito que desejassem tê-la em seu poder. Bem, ele esperava que aquela não fosse a expressão da ira da Deusa pela perversão dos seus ritos sagrados. Seria muito melhor se Ela estivesse a tornar claro que os imperiais tinham
transgredido.
- Seria ainda melhor se Ela desejasse agir por Sua conta – murmurou ele para dentro da gola do casaco, enquanto escorregava nas pedras molhadas do pavimento. - Sem alguns verdadeiros milagres, a cidade não irá sobreviver à mercê do imperador.
Bem, pelo menos havia uma vantagem naquela tempestade. Não haveria patrulhas a fazer rusgas numa noite daquelas. Só um idiota, alguém que estivesse desesperado, ou alguém que não tivesse alternativa, se aventuraria naquela torrente de água.
- E qual deles serei eu? - perguntou em voz alta.
E nesse preciso momento, sentiu mãos fecharem-se-lhe em torno dos ombros. Reagiu automaticamente, tentando atingir um dos assaltantes no estômago com um dos braços e o outro no queixo com o punho. Nenhum dos golpes produziu qualquer efeito. Na realidade, quem quer que o agarrava não reagiu como se tivesse sentido as pancadas!
Começou a despir o casaco, tencionando deixá-lo nas mãos deles e fugir, um truque que funcionara em seu proveito muitas vezes no passado. Nunca chegou a fazê-lo.
Acordou envolto na escuridão e no frio, mas não no silêncio. Estavam com ele pelo menos uma dúzia de homens, talvez mais. Não falavam, mas ouvia os sons que faziam ao respirar e ao mexer-se. Pigarreou ostensivamente.
- Olha, a carne fresca acordou - disse uma voz rouca na escuridão.
- Ficava melhor se um de nós lhe desse outra pancada – disse uma segunda voz com desalento.
- Onde é que eu estou? - perguntou Thom cautelosamente, enquanto se sentava com lentidão.
Ainda tinha o casaco, se bem que isso não fosse muito. Os seus companheiros de cela
não lho tinham roubado, o que significava que não eram o tipo habitual de preso. Tinha também um galo do tamanho do seu punho de um dos lados da cabeça, por isso não teve que perguntar “o que aconteceu?”
- Podes tentar adivinhar, rapaz - disse a primeira voz. - Estamos num sítio escuro, húmido e frio; é tudo o que sabemos. Isso e que fomos trazidos por casacos negros.
Casacos negros! Que poderia um mago querer dos homens?
- Eu sou quem está aqui há mais tempo, e estou aqui há um par de dias - disse um outro. - E estamos num buraco qualquer; quando trazem comida, água ou mais alguém, é através do tecto.
A última voz parecia educada.
- Como se... fosse uma cisterna fora de uso? - arriscou Thom. - Será que mais alguém se lembra do escândalo Jeckeral?
- O quê, aquelas cisternas no distrito das oficinas de metal que tinham tantas fugas que não puderam ser usadas? – disse uma voz mais grave do que as outras. - Aquelas que custaram aquele dinheiro todo e depois se descobriu que os irmãos Jeckeral tinham fugido com o dinheiro?
- Parece que Apolon arranjou uma utilidade para elas - disse bruscamente a voz educada.
Thom sentiu-se gelar.
- É ele quem nos tem aqui? - perguntou. - O próprio Apolon?
- Apolon, ele próprio - confirmou desalentadamente a voz educada. - A mim prendeu-me pessoalmente. E se sabes de alguma forma inteligente de fugir do fundo de uma cisterna, desconhecido, é melhor que a digas depressa, antes que seja tarde demais.
- Por quê? - quis saber alguém.
- Porque ele anda à procura de um local onde possa fazer as suas magias, amigo, e Apolon é um necromante. - O homem educado riu-se, mas era um riso sem qualquer humor. - Eu sei, porque descobri tudo acerca dos casacos negros dele; daqueles que nunca falam, não sentem o frio e não se queixam por passar a noite inteira na rua. Infelizmente, Apolon descobriu-me antes de eu poder informar o imperador.
- Tu és um imperial... - ouviram-se grunhidos dos outros homens, e um som que fazia crer estarem a aproximar-se do que tinha falado...
- Era - corrigiu amargamente o homem. - Agora sou apenas o mesmo que vocês e se me matarem agora seria uma bênção, por isso não pensem que vos vou tentar deter.
Pararam todos.
- Por quê? - perguntou Thom no meio do silêncio que se seguiu.
- Já te disse, Apolon é um necromante. Nenhum de vocês sabe o que isso é? - Esperou um momento e depois explicou. - Ele usa homens mortos. Sujeita as suas almas para que estas não possam fugir e transforma-os em seus escravos. Por que é que pensam que ele nos está a guardar aqui? Vai matar-nos e transformar-nos em mais casacos negros.
- Não... - murmurou alguém, horrorizado.
- Sim - disse o imperial. - E não há nada, nada, que nenhum de nós possa fazer para o evitar.
ADELE
A religiosa Elfrida, adormecida na sua cela do templo, não parava de se mexer; o seu sono era novamente assombrado por visões e estas não lhe permitiam nem que acordasse, nem que dormisse verdadeiramente. O seu sonho era uma estranha amálgama de imagens: o Coração e o rubi do anel da rainha entrelaçados um no outro, como se dançassem, mas uma espada brilhava no meio deles; uma espada brilhante com uma faixa escura em torno do punho. A espada parecia esgrimir-se perante os seus olhos, ameaçadoramente, como que assegurando-se de que ela a via.
Acordou subitamente, a tremer de exaustão e numa reacção física ao sonho, como se ela própria estivesse estado a praticar magia.
Anjos abençoados. Que terá agora descido sobre nós?
Respirou fundo, concentrando-se em acalmar-se e recompor-se, certificando-se de que toda a sua alma estava no seu corpo, a salvo, no templo.
Algo está a acontecer, ou já aconteceu, pensou com uma certeza absoluta. Agora tenho que descobrir o que foi.
Levantou-se da cama estreita e vestiu o hábito por cima da camisa com que dormira. A sua cela tinha uma pequena janela, mas quando olhou lá para fora, não viu mais nada senão a chuva que fustigava a vidraça. Era como se o próprio Céu chorasse lágrimas de raiva por todos os horrores que atingiam Merina. Teria sido ainda pior se tivéssemos lutado, recordou-se a si própria severamente.
Ainda assim, não acreditava que fosse conseguir dormir nas próximas horas. Não até que tivesse desvendado as imagens do seu sonho-visão. O que teria ela, votada ao pacífico trabalho da Deusa, a ver com uma espada? Era uma espada verdadeira e não uma das metáforas tão comuns nas visões, querendo significar guerra e conflito, disso sentia-se certa. Onde a faixa escura não obscurecera a glória da lâmina, sentira o poder da Deusa... e Ela muito raramente punha a Sua mão em qualquer arma, a não ser que fosse para confrontar o próprio poder das Trevas e, não unicamente intenções menos transparentes.
A Espada de Gideon, percebeu subitamente, era essa a espada do meu sonho! Mas que seria aquela faixa escura?
Ficou a olhar para a chuva; os relâmpagos iluminavam o céu com tal frequência que teria sido possível ler à sua luz. Aquela tempestade era muitíssimo pior do que qualquer tempestade normal para aquela época do ano.
Poderá Shelyra ter alguma coisa a ver com o sonho? Está uma noite horrível para qualquer pessoa andar na rua. Será que a Shelyra já conseguiu chegar ao Palácio de Verão? Espero que ela não tente atravessar o rio no meio desta tempestade. Descontraiu-se um pouco e deixou que aquela ideia tocasse os seus sentidos internos por um momento; tinha a sensação de que alguém do sangue andava lá por fora, no meio da tempestade, mas não era Shelyra. Nem tinha tão-pouco a sensação de que Shelyra tivesse alguma coisa a ver com o sonho. Então quem? E por quê aquela imagem do par de rubis girando um em torno do outro?
Rubis... pedras... e quem da sua linhagem andava às voltas com pedras? Quem tinha acesso a objectos de poder das Trevas? Quem tinha, de certeza, o sinete da rainha e podia muito bem ter também um rubi do Coração?
Os rubis! O da rainha e o do Coração... Verit disse que Lydana estava lá quando o Coração sangrou... será que Lydana tem agora em sua posse uma parte do Coração?
Uma sensação de certeza desceu sobre si quando pensou aquilo e todas as peças se encaixaram umas nas outras. É mesmo a Lydana, pensou sombriamente, e a sombra escura deve ser mais uma das suas pedras amaldiçoadas.
Avisei-a para que tivesse cuidado com o uso que lhes dava, mas será que ela alguma vez me ouve?
Suspirou, apercebendo-se de que aquela era a queixa de todas as mães desde o princípio dos tempos.
Ora, o mundo gira como quer, e não como eu gostaria que girasse. E se ela fez alguma coisa de verdadeiramente horrível à Espada de Gideon, em breve o saberemos. No entanto, tenho que me lembrar de contar isto à Verit. Pode ser alguma coisa de que nos devamos proteger.
E lá se iam as suas probabilidades de conseguir adormecer novamente! Abriu a porta e olhou para a vela que ficava acesa no corredor durante a noite. Ainda faltava algum tempo até ter
que voltar ao santuário, mas não queria ficar ali sozinha na cela.
Já assim me atormento o suficiente. Se vou ficar acordada, o melhor é fazer qualquer coisa de útil. E se me vou atormentar, o melhor é que seja rezando.
Percorreu silenciosamente o corredor, levando as sandálias na mão em vez de as calçar, para que os seus passos não perturbassem os outros que dormiam. O chão de pedra estava gelado contra os seus pés descalços, mas ela ignorou o desconforto enquanto descia as escadas até à sala de meditação.
A sala estava vazia, a não ser pela presença de uma figura ajoelhada envergando um hábito vermelho.
Não me pareceu que fosse a vez de Verit estar aqui, pensou Elfrida surpreendida, ajoelhando a curta distância da outra mulher. Verit levantou a cabeça e os seus olhos encontraram-se.
- Também não conseguias dormir, Elfrida? - Verit não parecia estar particularmente surpreendida.
- Não, não muito bem - admitiu Elfrida. - Sonhei e não foi um sonho agradável.
- A Cosima quase adormeceu aqui de joelhos - disse Verit baixinho. - Mandei-a deitar-se. Eu também não conseguia dormir, embora não tivesse nada de tão concreto como um sonho para me manter acordada.
Pobre Cosima! Com aquela crise, aquele Hábito Castanho estava a levar uma vida quase tão dupla como Adele levara!
- Se ela esteve hoje a cuidar dos feridos deve estar cansada - comentou Elfrida. - E os mais jovens parecem precisar de dormir mais horas do que as pessoas da nossa idade.
- É verdade - concordou Verit - mas suspeito que todos nós precisaremos de todo o descanso que pudermos ter antes desta história acabar. Que é que te atormenta esta noite? É Apolon? Estará ele a testar as nossas defesas ou tens uma premonição?
Estranhamente, as perguntas directas de Verit foram um alívio para ela. Elfrida convivera tanto tempo com o desconforto de Lydana relativamente à magia, que era uma agradável surpresa
poder falar de magia e premonições de forma aberta e casual. Elfrida abanou a cabeça.
- Não directamente - mas tive um tipo de premonição. Embora não tenha completa certeza sobre o seu significado. Dize-me, quando o Coração sangrou, poderia algum dos rubis ter sido levado por alguém para fora do templo?
Verit observou-a atentamente, ouvindo aquilo que ela não dissera.
- Os soldados não se chegaram a aproximar tanto, mas estava alguém ao lado do caixão e que depois saiu do templo.
Olhou para Elfrida numa interrogação silenciosa e esta assentiu. Verit já lhe tinha dito que Lydana viera ao funeral disfarçada de Hábito Castanho e apenas Lydana poderia ter deixado o templo.
- Então - concluiu Verit pensativa, com uma expressão especulativa estampada no rosto - uma parte do Coração saiu para a cidade. Isso pode ser bom ou pode ser mau; não sei qual dos dois será.
- Nem eu - respondeu Elfrida. - Essa parte do meu sonho não foi clara. Creio que só me foi destinado saber que a pedra do Coração estava em Merina e... nas mãos dessa pessoa. Pelo menos, não caiu nas mãos de um dos noviços.
Verit franziu o sobrolho ao ouvir aquilo, como se o comentário de Elfrida lhe lembrasse qualquer coisa.
- Temo que estivesses certa relativamente aos noviços, Elfrida. Tenho estado a vigiá-los desde que os trouxemos para o templo e há vários de entre eles que sentem uma relutância evidente em olhar para o Coração. Não sei dizer se isso será devido a uma sombra nas suas almas ou a algo de tão simples como uma consciência pesada, mas em qualquer dos casos, ainda bem que os temos sob os nossos olhos.
Elfrida sorriu amargamente.
- Foi o que eu pensei. Que tencionas fazer com eles?
Verit retribuiu o seu sorriso com outro cheio de ironia.
- Arranjei as coisas por forma a que os noviços passem todos os momentos em que não estão a comer ou a dormir, de joelhos no santuário. Aí não poderão ver aquilo que não devem... nem terão grandes oportunidades de se escapar para ir fazer relatorios a alguém. Aqueles cujas almas são puras ajudar-nos-ão com as suas preces sinceras e aqueles cujas almas não o são, terão todo o tempo para reflectir sobre as causas do seu constrangimento e desconforto.
Elfrida assentiu. Não faria certamente mal ter esperança no arrependimento, embora ela pessoalmente achasse isso pouco provável. Mas, em qualquer caso, ela era muito cínica, com demasiada experiência do mundo exterior. No mundo interior do templo, podia muito bem dar-se o caso de as esperanças de Verit terem mais força e serem mais reais do que o seu cinismo.
- Muito bem. E relativamente às casas das ordens dos curandeiros espalhadas pela cidade? Alguém os está a impedir de fazer o seu trabalho?
Verit fez um esgar como se tivesse comido qualquer coisa amarga.
- Os boticários e os curandeiros seculares foram forçados a fechar a porta, mas as ordens de curandeiros não...
- Por enquanto - concluiu Elfrida.
Verit encolheu os ombros.
- Até agora sobreviveram sem ser incomodados, embora algumas das ordens estejam sob vigilância. Os Servos dos Pobres, a casa da reverenda Zenia, tem estado sob vigilância constante desde que a Senhora Fortuna e as filhas ali se refugiaram, mas até agora ainda ninguém tentou violar o santuário. Espero bem que ninguém o faça; até hoje nem sequer consideraria essa possibilidade, mas se os mercenários se atrevem a violar o próprio templo, duvido que seja a devoção a impedi-los de invadir os claustros de Zenia.
Mas ao ouvir a menção à Dama Fortuna, Elfrida viu novamente a espada do seu sonho, dançando fantasmagoricamente no interior do seu espírito, com a sombra a envolver-lhe o punho.
- A Senhora Fortuna é da Casa do Javali, não é?
Verit assentiu.
- Por quê?
Agora as peças encaixavam finalmente umas nas outras. A ordem de Zenia era dos Hábitos Castanhos; Lydana viera ao templo disfarçada de Hábito Castanho. Teria ela tido acesso a esse disfarce por ter estado de visita a Zenia? E, assim sendo, porque outra razão ela o faria, senão para contactar a Senhora Fortuna, que tinha a chave que dava acesso à Espada de Gideon?
- Sonhei com a Espada de Gideon e esta tinha a sombra a envolver-lhe o punho. - Mordeu o lábio, atormentada. - Temo que a minha filha tenha feito qualquer coisa à espada com uma das suas amaldiçoadas jóias.
Verit suspirou e abanou a cabeça.
- Anjos abençoados. Como poderemos nós manter as nossas magias no lugar, com todas essas estranhas magias por aí à solta? Bem, avisarei aqueles que vêem no vidro para que estejam alerta a qualquer sinal da espada.
Fechou os olhos por alguns instantes e o seu rosto era o espelho da frustração que a própria Elfrida sentia.
- Por que haveria ela de ter feito uma tal coisa?
Elfrida suspirou desalentadamente, pois era essa a pergunta que ela própria fazia.
- Ela é ainda suficientemente nova para acreditar que do mal podem por vezes vir coisas boas. E, à sua maneira, ela é tão impetuosa e impaciente quanto Shelyra.
- Deverias tê-la ensinado melhor relativamente a essas coisas - disse Verit sem grande severidade, no tom de uma reprimenda leve. - O mal nunca tem outra serventia que não o serviço do próprio mal.
- Eu tentei - fez-lhe notar Elfrida acidamente, num tom muito mais duro do que era sua intenção - mas ela resistiu sempre a aprender o que quer que fosse das coisas do templo. Era como se os nossos poderes a assustassem.
- Nós assustamo-la? - disse Verit incredulamente. – Ela espalha pela cidade jóias amaldiçoadas... e nós assustamo-la?
Elfrida encolheu os ombros, pois naquela altura sentia-se tão confundida relativamente aos motivos e às acções de Lydana que esta, em vez de sua filha, poderia muito bem ter sido uma
estranha. Compreendia Shelyra muitíssimo melhor do que compreendia a sua própria filha.
- Não consigo entender. E se nos conseguirmos libertar de Balthasar, não faço ideia de quem me irá suceder como chefe secular do templo. Não consigo ver Lydana a adaptar-se a esse papel e Shelyra ainda não mostra quaisquer sinais...
- Se tivermos necessidade de o fazer - replicou Verit num tom ligeiramente provocador, apesar da gravidade da situação - podemos sempre trazer Adele de volta à vida.
Elfrida rolou os olhos.
- Depois do seu funeral milagroso? - exclamou. - E como é que conseguiríamos alguma vez explicar tal coisa? Não me apetece nada que me declarem uma espécie de santa ressuscitada! E, na realidade, neste momento, a minha falta de caridade, mesmo em relação à minha própria filha, torna-me decididamente muito pouco qualificada para a santidade!
- Fica em paz - disse Verit, o ar provocador de novo ausente da sua expressão. - A Deusa cuidará dos Seus. Venceremos esta adversidade, Elfrida, e chegaremos talvez à conclusão de que até os estranhos planos de Lydana tiveram a sua utilidade.
- Não consigo imaginar como - resmungou Elfrida.
- E é por isso que nós somos mortais imperfeitos - recordou-lhe Verit. - E é por isso que devemos rezar para ter mais paciência e uma visão mais perfeita.
Verit não teria conseguido fazer a sugestão de forma mais subtil se tivesse metido o livro de cânticos nas mãos de Elfrida. Esta assentiu e aceitou a sugestão, pondo as mãos e virando os seus pensamentos para a oração. Pelo menos, agora sabia aquilo por que devia rezar.
LYDANA
A espera era sempre a pior parte de qualquer empreendimento. Lydana cobriu o alfinete com a mão. Este tinha, na verdade, posto as duas sentinelas fora de combate, mas qual seria a grandeza do seu poder? Quantos homens conseguiria atingir simultaneamente?
Ouviram-se sons no andar de baixo. Ficou tensa e Eel, sentado junto de si ficou, também ele, com o pequeno corpo rígido de tensão. Uma pequena figura esgueirou-se, sem lhe tocar, pela porta entreaberta.
- Eel? - o nome soou como um assobio na escuridão.
- Aqui, Smert.
Matild reconheceu o nome como pertencendo a um dos companheiros de rua do rapaz.
- Eles estão a trazer o capitão. Ele está mal - temos que arranjar maneira de o conseguirem trazer até ao alçapão...
A pequena sombra puxava já por uma caixa tão alta como ela própria, tentando colocá-la por baixo do alçapão. Eel e Matild correram a ajudá-lo, puxando e empurrando com frenesim até terem improvisado uma espécie de escada, que era o melhor que podiam fazer.
- Que é que fizeram ao capitão Saxon? - perguntou Matild, ofegante, enquanto se entregava com todas as suas forças à tarefa que tinha pela frente.
- Queriam que ele falasse... mas o capitão não é dos que falam. Eles pensavam que os casacos negros o vinham buscar e queriam saber qualquer coisa antes disso acontecer. O quê, não sei!
Tinham acabado de pôr a última caixa no lugar quando a porta se abriu de par em par, deixando entrar luz suficiente para que Matild pudesse ver o grupo de salvamento. Quatro dos elementos do grupo, empunhando facas que brilhavam mortiferamente à luz das lanternas, guardavam a retaguarda. Dortmun e um homem muito alto e forte, transportavam entre eles uma figura com a cabeça pendente, que manifestamente mal se conseguia ter de pé.
- Para cima e embora! - rosnou Dortmun na sua direcção e para os rapazes.
Trepou pela escada instável seguida por três dos homens que subiram e, uma vez no topo, viraram-se para ajudar a içar o homem que tinham salvo.
Matild teve apenas um vislumbre de um rosto ferido e das faces por barbear cobertas de sangue seco. Tinha ambos os olhos fechados de tão inchados que estavam e o nariz não passava de uma mancha escura. Viu de relance que um dos braços pendia inerte, o pulso rodeado por uma pulseira de carne inchada e sangrenta.
O vento e a chuva atingiram-nos. Não havia forma de manter uma lanterna acesa, por muito bem protegida que estivesse, no meio daquela fúria. Matild limitava-se a tactear o caminho em direcção à chuva e ao vento que entravam agora pela porta de carga. Foi então agarrada pela cintura e, antes que conseguisse fazer qualquer gesto de defesa, atada a uma corda e lançada na noite tempestuosa.
Lutou para conseguir respirar no meio da ventania, novamente encharcada até aos ossos antes de ter conseguido respirar uma ou duas vezes. Balançou para a frente e para trás, suspensa da corda, até que alguém a agarrou firmemente pelos joelhos e a puxou para a barcaça que balançava furiosamente. Que aquilo fosse de todo possível de fazer já era uma medida da competência daqueles que operavam ao arrepio das leis formais.
Passados alguns momentos estava acocorada ao lado de uma forma enrolada e, guiando-se pelo tacto mais do que pela visão, conseguiu puxar-lhe a cabeça para cima dos seus joelhos. Por dentro da sua túnica o calor começou a aumentar; não a tortura ardente que antes experimentara, mas um calor reconfortante, fazendo a sua confiança aumentar, fazendo-a confiar que, apesar da loucura dos seus actos, conseguiriam levar aquele empreendimento até ao fim e com sucesso.
Por impulso, sem qualquer outro conforto para oferecer ao homem que, estava agora certa disso, se encontrava totalmente inconsciente, voltou a tirar o alfinete para fora. Movendo as mãos sobre o cobertor já completamente encharcado com que alguém o cobrira, conseguiu meter a mão por baixo da manta e pousá-la sobre o peito que não via, para que o calor das duas pedras incidisse directamente sobre o seu corpo gelado.
Ela não era nenhuma curandeira, nem eles se atreveriam a procurar um curandeiro; não naquela noite, naquela cidade.
Nem sequer tinha grandes conhecimentos do templo. Embora tivesse sido educada desde o nascimento para acreditar que o poder estava adormecido dentro de si, ela via-se cada vez menos a seguir os passos da sua mãe para o templo. Desde que o rubi caíra na sua mão, começara a sofrer transformações e certamente tudo aquilo que acontecera em Merina seria suficiente para alterar qualquer vida. Embora não tivesse Talento, tinha uma vontade, uma tal determinação de ajudar, que concentrou deliberadamente o espírito nas pedras por baixo da sua mão.
Sara... não sintas dor... as palavras pareciam arder na escuridão à sua frente, como chamas cor de carmim. Aquela não era verdadeiramente nenhuma magia curativa, mas era tudo o que tinha para oferecer. Concentrou-se em dar forças ao homem que ali jazia, em que ele sarasse, e fê-lo com toda a determinação que concentrara anteriormente nas pedras, quando estas tinham dominado as duas sentinelas na casa que agora deixavam.
Estava de tal forma concentrada naquilo que estava a fazer que se abstraiu da noite, da tempestade, da própria barcaça que saltava e girava sob os seus pés, tal era a determinação de não
deixar fugir aquilo que começava a acreditar ser um fragmento do Talento... ou mesmo um Talento.
Matild estava de tal forma absorta que não se apercebeu imediatamente das mãos que a puxavam pelos ombros. Abanou a cabeça e pestanejou. Na sua frente estava um ponto de luz que parecia não ser afectado pelo vento e aproximavam-se dele rapidamente; ou tão rapidamente quanto a tempestade o permitia.
Depois, ficaram cercados por paredes que os protegiam da chuva e do vento. O ponto de luz transformou-se em dois e depois três lanternas de grandes navios apoiadas em pilares. Aquele devia ser um dos velhos armazéns onde as entregas podiam ser feitas por água, pois à superfície não havia ruas largas, apenas labirintos de ruelas estreitas. Não conhecia bem aquela parte da cidade; mas que aquela era a coutada dos que estavam à sua volta, disso não tinha qualquer dúvida.
Sem cerimónia, foi afastada do capitão, tão violentamente que as jóias saltaram da sua mão. Embora tivesse gritado, ninguém a ouviu. Com a sua paciente sombra, Eel, ficou de pé no cais vendo trazer o capitão para cima e para a luz, ainda de tal forma envolto no cobertor que só o seu rosto desfeito estava visível. Sem uma palavra, aqueles que o transportavam apressaram-se e Matild teve que quase correr para os conseguir acompanhar. Havia mais escadas para subir e ela descobriu que tinha que se agarrar ao corrimão com força para se conseguir içar a cada degrau, de tal forma tinha as energias esgotadas.
Sentia-se um cheiro a couro que se tornava mais forte à medida que iam subindo, tornando-se quase insuportável. Mas a sala onde as escadas desembocavam não tinha os fardos e as caixas que tinham encontrado no sótão da Casa do Javali. Em vez disso, viam-se os sinais inconfundíveis de que o armazém era habitado. Junto às paredes havia enxergas, cobertas com roupas esfarrapadas. Havia também duas mesas e vários bancos. E havia gente; gente que fez Matild pensar, por momentos, que tinha entrado num pesadelo.
Viu rostos cobertos de cicatrizes, ganchos que serviam de mãos, e várias pernas de pau como a de Jonas. As mulheres que estavam à vista vestiam-se com as cores garridas das prostitutas das docas, ou com andrajos tão esfarrapados como os que cobriam as enxergas. Estava ali, de facto, o rebotalho de Merina e, ao vê-los, Matild não pôde deixar de pensar na sua própria complacência de apenas algumas semanas atrás, quando teria jurado que uma tal pobreza não existia na cidade.
Aqueles que carregavam o capitão levaram-no para a esquerda, onde duas das mulheres se tinham apressado a pôr duas enxergas uma em cima da outra para fazer uma cama mais alta, talvez mais confortável.
Pela primeira vez ele soltou um som, não um gemido como ela esperara, em resultado dos trambolhões inevitáveis que sofrera durante a viagem, mas...
- Estrela do Mar! - As palavras não soaram tão indistintas que ela não as compreendesse. O seu nome, ou antes, o nome que o seu marido lhe dera há tanto tempo atrás. Estrela do Mar: um farol para o viajante de regresso a casa.
Matild abriu os braços, empurrando os que se encontravam à sua volta e que a impediam de chegar junto dele, com a força que momentos atrás julgara ter perdido completamente. Ficou de joelhos ao lado dele e febrilmente enfiou a mão por baixo do cobertor. Não, o rubi não se perdera, ainda estava sobre o peito, no local onde ela o pusera. Deixou-o ficar onde estava e virou-se para os que estavam à sua volta.
- Cobertores quentes; tirem-lhe as roupas molhadas. Há alguém entre vós que saiba cuidar de feridas?
Uma das mulheres soltou uma risada.
- Parecemos-te curandeiros? Sim, claro, podemos cuidar dele o melhor que sabemos. O Rufon foi à procura da Feiticeira das Árvores; ela é a melhor que temos para isso.
Enquanto despiam o corpo inerte, Matild sentia-se tremer de raiva com aquilo que via. Os pulsos dele tinham sido presos com ferros, de tal forma apertados, que tinha cortes sangrentos na carne. E fora selvaticamente espancado. Não era apenas o seu rosto que estava negro e inchado, com pisaduras de todas as cores. Não fora ela saber quem tinham tirado da Casa do Javali e pensaria estar perante um desconhecido merecedor de piedade e de cuidados. Mas não teria sentido a fúria avassaladora que lutava para controlar por forma a poder melhor cuidar dele.
Eel chegou-se a ela e Matild recordou aquele passado distante em que reinara no palácio e em que descobrira que a sua pequena companheira também sabia alguma coisa da arte de curar. Trabalharam esforçadamente as duas, utilizando os trapos mais limpos providenciados pelos seus hóspedes e uma bacia de água quente. Matild desejou ardentemente conhecer as artes dos curandeiros.
Mas não foi nenhum dos Hábitos Castanhos quem se aproximou. À luz das lanternas que tinham sido trazidas para os ajudar a ver o que faziam, apareceu uma mulher cuja capa estava remendada mas não rasgada nem suja. O capuz atirado para trás revelou um rosto tão enrugado que os olhos ficavam quase escondidos, e uma boca muito encovada. Tinha a cabeça coberta por uma nuvem de cabelo de um branco amarelado e apoiava-se num bastão e no braço de Rufon; um dos rapazes vinha atrás dela, transportando um cesto que pousou no chão com um suspiro de alívio.
A mulher olhou para Saxon e depois directamente para Matild. Os seus lábios afastaram-se num sorriso, deixando ver apenas uns quantos dentes amarelados. Depois de um longo olhar avaliador, virou-se novamente para o homem inconsciente e sentou-se num dos bancos que as mulheres tinham trazido.
Atirando a capa para trás, moveu-se com uma energia que Matild julgara impossível. Trazia por baixo um vestido quase no fio, mas que estava igualmente limpo, como estava limpo o lenço que trazia em volta do pescoço enrugado.
Subitamente, lançou a mão para a frente e cerrou-a com uma firmeza férrea em torno do pulso de Matild, puxando a mulher mais nova para junto de si. Abriu muito os olhos enrugados e
de expressão atormentada, enquanto olhava a direito para os de Matild.
- Pela das Três Coroas - disse numa voz enfraquecida pelo tempo - tens as forças antigas e a vontade e a coragem para as usares. Mas agora tira daí o teu brinquedo; ele já não precisa mais dele esta noite, tem que descansar.
Quando a velha lhe soltou a mão, Matild tirou as pedras do local onde as deixara ficar, enquanto tratara cuidadosamente das feridas de Saxon. Continuavam a irradiar calor e quando voltou a cerrar o punho em torno da jóia, teve mais uma vez consciência de uma energia renovada.
Assim, nas horas da madrugada, ela que fora em tempos rainha de Merina e a quem agora só os fora da lei conheciam, uniu forças com a velha mulher para salvar uma vida e talvez um país também. E Matild apercebeu-se de que, embora nunca a pudesse encontrar nos bancos daqueles que viviam na clausura do templo, a sua nova companheira de batalha era, no entanto, uma seguidora abençoada da Dadora de Todos os Poderes.
APOLON
O que restava do chanceler estava à espera de Apolon quando este acordou, juntamente com a sua marioneta-chefe. Ambos estavam silenciosamente de pé junto à porta do quarto.
O vento continuava a uivar em torno das janelas e a chuva fustigava as vidraças. Estava tão escuro que Apolon teria pensado que era de madrugada, se não soubesse que tinha que ser mais tarde, visto sentir-se relativamente descansado.
Ordenou à marioneta-chefe que cuidasse do fogo; a madeira já tinha secado o suficiente para que não necessitasse de usar magias para a fazer arder normalmente. Depois virou-se para o chanceler.
- Faze-me o teu relatório - ordenou a Adelphus.
O seu estômago fez um barulho, recordando-lhe o jantar totalmente insatisfatório que tomara na noite anterior, e a fome sobrepôs-se à sua habitual fixação na estratégia que seguia.
- Que fizeste relativamente à situação doméstica no palácio?
- Não há muito que se possa fazer - recitou a marioneta. - As ruas estão inundadas, hoje não vai haver mercado e os criados dizem que não conseguem sair de casa.
Apolon franziu o sobrolho; aquilo não era o que ele queria ouvir, mas não conseguia, ainda, controlar o clima e não tinha qualquer autoridade sobre os criados, portanto não havia nada que pudesse fazer relativamente àquela situação.
- E a Casa do Javali? - perguntou. - O Cathal ainda a ocupa?
Daquela vez a resposta foi muito mais satisfatória.
- O general Cathal já não precisa dela e entregou-a para vosso uso - disse Adelphus sem qualquer expressão. - Está muito ocupado com os problemas dele. Os homens dele estão nas ruas por ordens suas.
- O que é que o está a preocupar?
Aquele era um comportamento muito estranho e era mais estranho ainda que os mercenários cooperassem em tal empreendimento. Cathal não deveria, certamente, estar muito preocupado com os efeitos que as cheias pudessem ter nos cidadãos de Merina. Não... os mercenários de Cathal não teriam qualquer preocupação pelas provações dos cidadãos de Merina e Cathal tão-pouco.
- Ele tinha um prisioneiro. Este fugiu na noite passada. Os homens que permitiram que isso acontecesse temem mais a fúria dele do que as cheias e a tempestade.
Apolon soltou uma gargalhada, imaginando o desgosto e a raiva de Cathal por um prisioneiro lhe ter fugido. O resgate assim perdido e o que quer que fosse que Cathal perdera para além disso com a fuga do prisioneiro, deviam fazer com que Cathal estivesse incoerente de fúria.
- Realmente! Bem, devo dizer que não fico inteiramente pesaroso por saber disso... embora Cathal vá provavelmente dirigir a sua raiva contra qualquer um que se lhe atravesse no caminho no próximo par de dias. Aconselho-te a manteres-te afastado dele.
A marioneta assentiu, mas não disse nada.
- E os meus prisioneiros? - perguntou o Mago Cinzento. - Ainda estão de razoável saúde?
Não queria ter de os mudar a não ser que isso fosse inevitável, mas eles estavam presos em cisternas e, se por qualquer razão essas cisternas começassem a deixar entrar água, teria que mandar os homens para a rua outra vez à procura de novos recrutas, e os homens em boas condições físicas estavam a tornar-se escassos. O imperador fazia as suas próprias rusgas, assim como Cathal, e os casacos negros de Apolon não passavam de mais um grupo a percorrer as ruas em busca de homens.
- E os meus casacos negros?
- Continuam de saúde e a seco - disse a outra marioneta. - Foram examinados esta manhã. E os vossos casacos negros continuam nos seus postos habituais.
Então, pelo menos, os seus lacaios cumpriam as suas ordens. Óptimo. Havia certamente vantagens em ter servos e subordinados sem vontade própria.
- Tu, Adelphus - disse ao chanceler - volta para os teus deveres normais. Se o imperador fizer qualquer comentário às tuas atitudes ou ao teu aspecto, dize-lhe que estás ligeiramente doente e atribui esse facto a - pensou durante alguns instantes - ao clima pouco saudável da cidade. Zela para que a situação doméstica seja imediatamente rectificada. Limita-te a dar ordens aos teus subordinados e a ignorar os seus protestos. Dize-lhes que os enviarás a Cathal para serem punidos se se recusarem a obedecer-te. Podes ir.
O chanceler assentiu e saiu com passadas decididas. Apolon virou-se para a sua marioneta-chefe.
- Em primeiro lugar, quero uma refeição quente e decente - ordenou. - Vai ter com o cozinheiro do imperador; se há alguém que consiga fazer qualquer coisa nesta situação, é ele. Depois, quero falar com o general Cathal tão depressa quanto possível; encontra-o e dize-lhe isso mesmo. Em terceiro lugar, quero que façam as minhas malas, empacotem tudo, menos o que está aqui neste quarto. Mudamo-nos para a Casa do Javali assim que esta maldita tempestade amaine. Agora, vai tratar disso.
A marioneta seguiu pelo caminho que Adelphus tomara, deixando Apolon sozinho no quarto. Este pensou se não seria melhor sair da cama, mas até que a tempestade acabasse, ou pelo menos até ter tomado a refeição quente, não parecia haver nenhuma razão válida para que trocasse o conforto da cama pelo frio do quarto. Esperaria até ter comido, pois por essa altura o fogo já deveria ter aquecido suficientemente o quarto.
Estranho; aquela tempestade tinha uma qualidade positivamente sobrenatural. Não se recordava de ter visto uma tempestade durar tanto e com tanta ferocidade. E a altura em que se desencadeara; a forma como surgira do nada, imediatamente após o ataque idiota e mal sucedido de Cathal ao templo...
O pensamento passageiro de que aquela poderia ser uma manifestação da ira divina ocorreu-lhe, mas apressou-se a afastá-lo. Que a tal da Deusa se enraivecesse à vontade; ele podia invocar Poderes que estavam à altura dos Dela. Assim que dispusesse de oportunidade, começaria a aplacar esses Poderes.
Não, aquilo não devia passar duma tentativa dos magos do templo de o acobardar; aquilo tresandava a uma das manobras que eles considerariam inteligentes. Bem, se aqueles idiotas piedosos do templo tinham invocado os elementos contra ele, ele teria as suas próprias armas com que contra-atacar, assim que entrasse na Casa do Javali!
Lançou um olhar de proprietário ao seu bastão, que estava encostado num esplendor solitário à porta aberta do roupeiro. Não era muito impressionante ao olhar; aparentemente era feito de madeira escura, com um castão cilíndrico de cobre. Só visto de muito perto, de mais perto do que aquilo que Apolon alguma vez permitiria a quem quer que fosse, é que era possível ver que o castão não era de cobre mas sim de ouro. E que no ouro tinham sido gravadas letras em espiral, tão finas como os fios de uma teia de aranha, formando palavras que faziam com que os olhos se desviassem sem que se tivesse consciência disso...
Sim, assim que se instalasse na Casa do Javali ficaria em condições de tratar daquelas mulheres velhas do templo. Sorriu um pouco. Arrepender-se-iam de ter sequer pensado em interferir com ele. Evidentemente que ele se teria visto livre delas em qualquer circunstância, pois interpunham-se entre ele e o Coração do Poder. Ainda assim, se não tivessem insistido em opor-se-lhe de forma tão activa, tê-las-ia deixado desfrutar de uma paz ilusória durante mais algum tempo.
A marioneta chegou trazendo um tabuleiro de comida fumegante; infelizmente, e pelos padrões de Apolon, não era comida muito apetitosa. Chá de ervas com mel, papas de aveia adoçadas com mel, pão de cevada torrado com mais mel; tudo aquilo tão doce que fazia doer os dentes. Demasiado doce para seu gosto com o mel e demasiado grosseiro e sensaborão sem ele. Mas estava tudo quente e bem confeccionado, o que tornava a refeição melhor do que o jantar quase intragável da noite anterior. Precisava mais de energia do que de um pequeno-almoço agradável. A comida estava quente; isso é que era importante.
Comeu tudo metodicamente, tentando ignorar o sabor pegajoso do mel que cobria todos os alimentos. Quando terminou, fez sinal à marioneta para que levasse o tabuleiro e finalmente espreguiçou-se e pôs os pés para fora da cama, enfiando-os cuidadosamente nos sapatos de pele de ovelha para evitar pisar o chão gelado.
Esperava que Cathal aparecesse dentro de pouco tempo; afinal de contas, com aquela tempestade, não havia grande coisa para o general fazer. Os seus homens, ou pelo menos aqueles que não andavam à procura do foragido, não deviam sentir-se muito inclinados a oferecer-se como voluntários para ir em socorro dos pobres e atormentados cidadãos de Merina naquela hora de necessidade. E, mesmo que se oferecessem, o general rir-se-ia provavelmente deles ou então puni-los-ia pela sua estupidez. Na verdade, não era provável que os homens de Cathal, sendo mercenários, saíssem para o meio daquela porcaria de tempo por menos que soldada tripla ou uma ameaça de morte.
Apolon tinha assim uma distinta vantagem sobre o general. Os seus homens fariam tudo aquilo que lhes dissesse para fazerem. Vestiu-se rápida e cuidadosamente, partindo do princípio que Cathal apareceria assim que acabasse de tomar o seu próprio pequeno-almoço.
Estivera certo; fora apenas o tempo necessário para se instalar na sala e pôr o ar de quem já ali se encontrava havia algum tempo, quando Cathal entrou de rompante pelos seus aposentos,
mais parecido com um urso do que nunca.
Apolon ergueu o olhar do livro que estava a ler e, embora não tivesse permitido que isso transparecesse na sua expressão, franziu mentalmente o sobrolho. Cathal estava... estranho. Tinha os olhos franzidos de forma muito peculiar e as suas pupilas estavam dilatadas. A boca parecia estar imobilizada num esgar. O general sempre lhe fizera lembrar um lobo enraivecido, mas agora parecia menos controlado, mais perigoso. Mais sedento de sangue. Estaria a tensão da inactividade a arrasar-lhe os nervos?
- Presumo que Adelphus te tenha dado conta do meu pedido? - disse Apolon depois de terem trocado saudações frias.
Cathal não tinha gostado do seu último encontro, mas Apolon também não gostara que ele tivesse falhado na missão de que o incumbira.
- Para ficares com a Casa do Javali? - replicou Cathal, soltando um grunhido quando Apolon assentiu. - Fica com ela - disse deselegantemente. - Mas aviso-te, duvido que lá encontres alguma coisa que possas querer. Já tirei de lá tudo o que tinha algum valor e não faço tenção de dar a ninguém aquilo que consegui.
Aquilo surpreendeu bastante Apolon. Cathal nunca lhe causara a impressão de ser um tipo ganancioso... não como Adelphus o era. Cathal saqueava pelo prazer que isso lhe dava, não pelo lucro. Que seria que Cathal considerava de valor na Casa do Javali?
Aquela casa tinha sido o lar do mestre da Guilda dos Metais; seria o prémio de Cathal alguma arma especial, talvez algo de natureza mágica? Certamente que não conseguira ficar, tão rapidamente, com a Espada de Gideon!
Olhou longa e inquisitoriamente para o general, tentando recordar-se se este costumava usar qualquer coisa em especial, fosse em ornamentos ou em armas. Tinha uma espada à cinta, mas andava sempre armado, mesmo na presença do imperador. Seria aquela espada nova?
Podia ser; Apolon não sabia o suficiente de armas para as distinguir e teria que estar em posição de a examinar minuciosamente e através de feitiços, para poder julgar se a sua natureza era mágica ou não.
Mas Cathal nunca fora visto a usar quaisquer enfeites ou jóias e agora via-se no seu pulso uma guarda de ferro cuja concepção e trabalho eram de um tipo desconhecido de Apolon e na guarda de ferro via-se uma pedra negra, brilhante e oval. Parecia exótica e bastante cara. Teria sido aquela guarda de ferro o que Cathal queria? Pensou sentir um eco de magia desprender-se daquele objecto. Teria Cathal ficado com mais do que aquilo que procurara? Teria sido aquilo que piorara a natureza, já de si agressiva, de Cathal?
Apolon decidiu que aquilo não tinha importância. Cathal já era suficientemente violento; um pouco mais de violência não faria qualquer diferença. Na verdade e a longo prazo, isso poderia tornar mais fácil ver-se livre dele.
- Obrigado - respondeu com cortesia. - Não era contudo por essa razão que eu queria falar contigo. Tenho umas ideias, em relação a um certo jovem idealista, que nos podem trazer benefícios a ambos.
Não mencionou o nome de Leopold, embora estivesse certo de que nos seus aposentos estava razoavelmente seguro. Mas não era útil ser-se demasiado confiante. O imperador tinha espiões em toda a parte. Evidentemente que, na sua maioria, também eram pagos por Apolon, mas havia sempre uns quantos que não podiam ser comprados.
- Oh? - respondeu Cathal, estreitando os olhos e ficando com os músculos do rosto muito tensos. - Verdade? E que idéias são essas?
Apolon abriu as mãos.
- Aquele idiota foi mandado embora, caído em desgraça e sozinho, para que pudesse reflectir na sua desobediência; e ambos sabemos que os locais têm atacado os nossos homens quando os apanham sozinhos.
O general sorriu num esgar de predador.
- Creio ter compreendido. Seria horrível se algum “patriota” fanático de Merina tentasse um assassínio, não seria?
Apolon assentiu e cruzou as mãos por cima do livro.
- E se esse “patriota” fosse bem sucedido na sua tentativa... bem, imagino que o imperador ordenasse uma retaliação sobre Merina devido à perda de um oficial tão importante. E as tropas cometeriam certamente alguns... excessos, acometidos de desgosto pela perda de um tão nobre camarada.
O general soltou uma risada cruel.
- Sem qualquer dúvida. Parece-me que nos compreendemos.
Apolon fez uma pequena vénia.
- Parece-me que sim. Tenho um homem que gostaria de sugerir...
- Também eu - interrompeu-o o general. - Supõe que ambos enviávamos um homem... para cuidar da protecção do rapaz. Nós, que somos leais ao imperador, temos certamente o dever de cuidar que o rapaz não esteja inteiramente desprotegido.
- Não... - interrompeu Apolon. - Não, devemos apenas juntar os nossos homens àqueles que sejam enviados pelo imperador; tenho a certeza de que serão enviados para o outro lado do rio assim que a tempestade amainar. Não vale a pena dar nas vistas.
O general assentiu lentamente.
- Posso descobrir com facilidade qual é o batalhão que vai ser enviado.
- E eu posso mandar-te o meu homem - respondeu Apolon. - Parece-te satisfatório?
O general riu-se. Era toda a resposta de que Apolon necessitava.
SHELYRA
- ...e Leopold continua sozinho, a não ser pelos dois escudeiros - contou Shelyra à avó. - Já lá vão dois dias desde que a tempestade rebentou, e não me parece que alguém tente atravessar a ponte antes de o temporal acalmar, por isso suponho que ele lá vá ficar sozinho até que isso aconteça. Parece-me que tirámos de lá os livros mesmo a tempo.
- Creio que tens razão - ouviu dizer a voz calma do outro lado do confessionário. - Os acontecimentos desenrolam-se com uma rapidez tal, que receio bem tenhamos dificuldade em os
acompanhar. Pelo menos neste caso previmos o perigo com a antecedência suficiente para que tenhamos podido fazer qualquer coisa, antes de ser demasiado tarde.
Aquela admissão por parte da sua avó chocou Shelyra para lá do que seria previsível. Tinha intermitentemente a sensação de que tinham travado uma batalha irremediavelmente perdida nos últimos três dias. Se Adele, uma maga, uma sacerdotisa, uma iniciada do templo, dizia aquilo, então que esperança lhes restava de voltar a ter o controlo da situação, de recuperar o controlo da cidade, ou mesmo de aguentar no terreno contra as investidas do inimigo?
Mas a afirmação seguinte de Adele, ou antes, a pergunta, apanhou-a totalmente de surpresa.
- O que é que sentes por esse príncipe? - perguntou. - Quero dizer, pessoalmente?
O que é que eu sinto por ele?
A sua consciência deu-lhe um severo abanão, de tal forma que se sobressaltou, acicatada pela culpa.
Os Céus me perdoem, mas eu gosto do homem! Gostaria de ser amiga dele... ou mais... e ele é o inimigo! Mas como poderia admitir tal coisa?
- Por quê? - retorquiu, tentando ganhar tempo e não se sentindo inteiramente segura de que a avó não lhe conseguisse ler os pensamentos ou, pelo menos, pressentir a sua culpa.
- Porque eu sinto pena dele, minha querida - disse Adele, surpreendendo mais uma vez Shelyra.- Penso que ele é um homem muito bom apanhado numa situação insustentável. A lealdade para com o pai exige que ele subscreva tudo o que o imperador faça e o imperador tem feito coisas e tem permitido acções aos seus subordinados, que Leopold acha absolutamente repugnantes. Está encurralado entre trair a sua lealdade ou trair-se a si próprio.
Shelyra suspirou de alívio. Adele sintetizara, de forma perfeita, pelo menos parte dos seus sentimentos, o que era arrepiante. Mais uma vez parecia que ela e a avó eram mais parecidas do que seria lógico.
- Eu penso o mesmo - respondeu ela com gratidão. - Na verdade, é estranho, mas quase que tenho vontade de... de o proteger, de tentar zelar para que ele não saia ferido de tudo isto. Sei que isso é impossível - acrescentou com uma risada nervosa. - Mas esse é o problema dos sentimentos, não são lá muito lógicos.
- Não faria mal nenhum se, pelo menos, fosses deitando um olho por ele - disse rapidamente a avó. - Ele encontra-se numa situação perigosa e podes muito bem ser capaz de o ajudar sem prejudicares a tua própria causa.
Shelyra abriu a boca de espanto.
- Provavelmente poderás descobrir tantas coisas no Palácio de Verão como no Grande Palácio - continuou Adele suavemente. - E... gostava que, por agora, te mantivesses afastada do Grande Palácio. Soubemos que Apolon está lá, nos aposentos da herdeira. Por favor, Shelyra, não me compreendas mal, mas Apolon é muito perigoso, tanto como homem como enquanto mago. E ele anda à tua procura e à procura da tua tia; não sabemos por quê, mas eu tenho receio... e Verit também. A magia de Apolon é das mais negras e se ele realmente te quer... duvido que seja para te ter como refém pelo bom comportamento da cidade.
Se Adele e Verit temiam pelo que Apolon pudesse fazer, a sua própria imaginação era capaz de lhe fornecer uma quantidade de motivos pouco atraentes pelos quais Apolon poderia querer encontrá-la. Uma das suas fraquezas, que a sua tia execrava, era pelas histórias vulgares e baladas sensacionalistas, muitas das quais tinham pérfidos magos no papel de vilãos. E, embora os contadores de histórias e os baladeiros censurassem as versões das suas histórias para que fossem adequadas aos ouvidos da princesa Shelyra, os pormenores eram fáceis de imaginar.
Posso ser um pouco descuidada ocasionalmente, mas não sou estúpida, pensou com um arrepio.
Adele continuou:
- Enquanto mantiveres uma certa distância física dele, especialmente se houver água corrente entre vós, creio que não te conseguirá encontrar. Mas, se estiveres entre as mesmas paredes que ele...
- Não te preocupes - apressou-se a dizer Shelyra. - Penso que, se for aos locais exactos, consigo saber quase o mesmo que descobriria no palácio.
- Talvez Thom Talesmith... - começou Adele.
Shelyra fez um ruído de desdém. Não se sentia nada caridosa relativamente ao seu alegado ajudante.
- O Thom Talesmith é, agora, ainda mais inútil do que antes, visto não estar em parte nenhuma. Desapareceu, a tratar lá da vida dele, mesmo antes da tempestade rebentar e ainda não voltou. Penso que é capaz de se ter aproveitado da tempestade para sair da cidade. - Mas a sua consciência pesou-lhe e acrescentou. - Ou, para ser totalmente honesta, pode ter sido ferido ou ter sido levado nas cheias. Ou... bem, há homens do imperador a fazer rusgas na cidade que apanham todos os homens que conseguem, desde que estes não justifiquem capazmente a sua ocupação. Chamam-lhes “indigentes” e levam-nos para trabalhar para eles. Ele pode ter sido apanhado.
Ele é certamente idiota o suficiente para se ter deixado apanhar, pensou amargamente. É bem feito... fugiu para se escapar a um pouco de trabalho honesto nos estábulos e acabará nos trabalhos forçados!
- O imperador não é o único que tem homens a fazer rusgas na cidade - disse Adele em voz baixa. - Apolon também tem. E os homens dele actuam de noite. E não foram, tanto quanto se sabe, impedidos de o fazer pela tempestade.
Um arrepio percorreu a coluna de Shelyra e ela estremeceu involuntariamente. Mas Thom sempre evitou facilmente os casacos negros... não há razão para que tenha deixado de o fazer, disse a si própria.
- Há mais uma coisa que tenho que te dizer acerca de Apolon - continuou Adele. - Tens que passar esta mensagem entre os teus amigos ciganos. Apolon é um... necromante.
O coração de Shelyra deixou de lhe bater no peito, e sentiu-se subitamente doente. Toda a gente em Merina conhecia a história de Iktcar.
- Há relatórios, dignos de confiança, de que homens que se sabe estarem mortos, andam pelas nossas ruas, vestidos com os casacos negros.
A voz de Adele tremeu e Shelyra não a culpou por isso. Não era para admirar que Verit temesse o Mago! Da última vez que um necromante passeara nas ruas de Merina, fora necessário um anjo sob forma humana para o matar!
- Se já ouviste histórias de mortos-vivos... bem, são verdadeiras. Tem muito cuidado quando estiveres perto de alguém que use um casaco negro.
- Terei! - assegurou-a Shelyra, rapidamente. Engoliu em seco difícil e ruidosamente. - É melhor regressar ao recinto do Gordo e contar-lhes o que me disseste.
...e depois vou ao Palácio de Verão, pensou silenciosamente. Não me parece que Apolon seja propriamente amigo de Leopold. Talvez a avó tenha razão; tenho que o vigiar, pelo menos um pouco.
- Os restantes dos teus livros trá-los-ão as ciganas, assim que a tempestade acalmar - continuou. - Serão sempre mulheres velhas. As mais jovens não saem do recinto sem uma escolta.
- Não me parece que qualquer jovem, homem ou mulher, deva sair do recinto do Gordo neste momento, com ou sem escolta - suspirou Adele. - Há demasiada gente a percorrer as ruas em busca de vítimas. Mas muito obrigada; ter os livros aqui, em segurança, já me tira um peso de cima. Prefiro que Apolon tenha tão pouca informação, relativamente àquilo que nós sabemos, quanto possível. Vai com as bênçãos Daquela que Governa as Estrelas, minha querida. E com as minhas também.
Bem, pensou Shelyra enquanto saía do confessionário e se envolvia na capa disforme para se proteger da chuva, a maior parte das novidades que ela me contou, preferia não as saber.
A cada momento que passava, a situação parecia piorar para a cidade. Shelyra baixou a cabeça sob a torrente de água que a atingiu assim que saiu do templo e ocorreu-lhe que tentar lutar contra o imperador era muito semelhante a tentar deter as águas daquela tempestade com uma bacia rota.
Por instantes, pela primeira vez na verdade, sentiu-se tentada a desistir. Podia seguir o plano que Lydana originalmente lhe destinara. Podia ir ter com os Senhores dos Cavalos e encorajá-los a não cooperarem com o imperador. Ela ficaria a salvo... Mas a sua teimosia voltou à superfície.
Não enquanto a avó e a tia Lydana aqui estiverem, pensou obstinadamente. Se elas se podem arriscar pelo bem de Merina, também eu posso. Deve haver alguma coisa que eu possa fazer e descobrirei qual é, juro!
Mas a primeira coisa a fazer era regressar ao acampamento. O Gordo e a Mãe Bayan tinham que saber a verdade acerca de Apolon e tinham que a saber rapidamente. Viu com os seus próprios olhos que as palavras da avó acerca dos homens de Apolon eram verdadeiras; estes andavam nas suas patrulhas e estavam nos seus postos de vigia, apesar da tempestade. E, aparentemente, totalmente indiferentes ao tempo que fazia. E isso, só por si, convenceu-a de que não podiam ser humanos.
E foi também isso que convenceu Gordo, quando ela conseguiu chegar finalmente ao acampamento, após vários desvios causados por ruas alagadas e pontes submersas. A Mãe Bayan,
contudo, não precisou de ser convencida.
- Nada do que me possas dizer daquele homem vil me surpreenderá - disse ela firmemente. - A maldade dele cobre-o como um manto de nevoeiro escuro. Eu, se fosse a ti, não me aproximaria dele em quaisquer circunstâncias.
Já iam no terceiro dia de tempestade e os avisos da Mãe Bayan ecoavam no seu espírito, juntando-se aos de Adele numa harmonia arrepiante, durante todo o caminho até ao Palácio de Verão. Não se sentiu verdadeiramente à vontade até ter atravessado a ponte e se encontrar no túnel, do outro lado. Parecia-lhe haver olhos maléficos à sua procura; conseguia senti-los, procurando na escuridão, esperando que ela fizesse um movimento em falso. Um único erro seria tudo quanto o dono desses olhos necessitaria; encontrá-la-ia e depois...
Mais uma vez a tentação de fugi, usar aquela oportunidade e pôr-se fora do seu alcance, foi quase avassaladora. Seria fácil fugir a partir dali, pois tinha tudo quanto necessitava na sua sala secreta. Podia juntar simplesmente as suas coisas, agarrar num cavalo e desaparecer.
Não. Não e não e não. Fugir agora seria trair tudo aquilo em que acreditava. E tanto quanto sabia, poderia ser esse o “passo em falso” de que Apolon necessitava para a encontrar!
Seria muito mais fácil identificar uma mulher num cavalo caro, correndo na direcção das terras que não estão na posse do imperador, do que identificar uma vulgar mulher da cidade.
Estou mais segura como Raymonda.
Procurou uma mensagem de Nanny, mas não havia nenhuma, nem no átrio da entrada nem do lado de dentro da porta do quarto da velhota. Os dois jovens escudeiros foram muito fáceis de localizar; os seus gritos ecoavam pelo Palácio de Verão e ela descobriu que eles tinham recreado o seu jogo favorito de quando estava sozinha no palácio...
Tinham descoberto o maravilhoso escorrega que constituía o corrimão da escadaria principal e como era fácil fazer um colchão fofo para as quedas com as cobertas de penas que se encontravam guardadas por baixo das escadas.
Nanny fazia-lhes a vontade, fingindo não dar pelas suas travessuras, tal como ignorara Shelyra quando a princesa fizera aquela mesma brincadeira. Mas Leopold não estava à vista em sítio nenhum.
Devia tentar a torre do rei, decidiu. Se ele está sozinho, é muito bem capaz de começar outra vez a pensar alto e pode ser que eu descubra alguma novidade.
Bem, fosse como fosse, era uma desculpa suficientemente boa para ir à procura dele. Encontrou-o mesmo no estúdio da torre do rei; pelo aspecto da sala, ele tinha passado ali a maior parte do dia. Havia livros empilhados pela sala toda e os restos de uma refeição substancial num tabuleiro ao pé da lareira. O seu ponto de observação era confortável. A passagem secreta que ali levava acabava na lareira e o calor do fogo tornava aquela parte da passagem quente e acolhedora. Se ficasse ali o tempo suficiente, até era capaz de conseguir aquecer o corpo gelado até aos ossos.
Mas Leopold não estava nem a ler nem a comer; estava sentado numa cadeira que ela recordava como a favorita do seu pai, com a cabeça apoiada numa mão e o olhar fixo em qualquer coisa que ela não conseguia ver do ponto em que se encontrava.
Depois ele mudou de posição e ela pôde ver bem o que era... e pestanejou de surpresa.
O objecto da sua atenção era um dos pequenos estudos para um retrato que o mestre Leonard lhe fizera, antes de pintar o seu retrato oficial para a corte. Aquele não passava de um esboço colorido, mas mostrava-a tal como ela realmente se via, pois o quadro rígido e formal que a retratava num fato de cerimônia parecia-lhe sempre a representação de uma estranha, a quem tivessem posto a sua cara. Leonard desenhara-a sentada ao pé de uma janela aberta num dia ventoso; tinha vestido o seu fato de montar, o casaco e a camisa abertos no colarinho e o cabelo solto, para que o vento pudesse fazê-lo voar. A avó adorara o esboço e mandara emoldurá-lo. Tivera-o no seu estúdio, ao lado de um esboço de Lydana a trabalhar numa peça qualquer de joalharia.
Leopold suspirou e ela sobressaltou-se. Depois ele falou e ela sobressaltou-se novamente, quando a primeira palavra que ele pronunciou foi o seu nome.
- Shelyra - disse ele - sei que isto é idiota, falar com um retrato, mas este retrato pareceu-me tão amistoso que não fui capaz de o queimar juntamente com as outras coisas que me pareceram muito pessoais. Lamento ter tido que o fazer, mas não quis que Apolon lhes pusesse as mãos. - Riu-se com tristeza. - Espero que gostes do tipo de roupas que tens vestidas neste retrato... receio bem que as roupas mais sofisticadas estejam todas em cinzas e os teus fatos foram reduzidos às suas componentes e arrumados na parte de trás dos sótãos. Fiz o mesmo pela tua tia e pela tua pobre avó, que a sua alma esteja em descanso. - Riu-se novamente, mas desta vez com mais alegria. – Quem me dera ser uma mosca, para ter visto Apolon quando ele descobriu o que eu fizera. Suponho que não devia ter ficado satisfeito, dada a forma como quer desesperadamente ter-te nas suas mãos. Espero que o saibas e tomes as devidas precauções.
Shelyra ouviu aquelas palavras com puro espanto. Leopold fizera exactamente o que a Mãe Bayan lhe aconselhara a ela a fazer!
Ela disse-me para estar alerta para um amigo num local onde não esperaria encontrá-lo - mas quem adivinharia tratar-se do filho do imperador? A ironia de tudo aquilo... que ele estivesse a falar para o retrato dela como se este fosse um velho amigo e que ela estivesse a ouvir as suas palavras, sem ser vista...
Ele esfregou a cabeça como se esta lhe doesse.
- Eu precisava de ter alguém com quem falar e duvido muito que um confessor do templo alguma vez esteja disposto a vir aqui, muito menos com este tempo. - Como se para sublinhar aquela frase, o vento fez bater as janelas da sala, e a chuva fustigou a vidraça com tal força, que mais parecia granizo. - Por isso, onde quer que estejas, espero que não te importes que eu me tenha lembrado do único rosto amigável que encontrei nesta cidade e tenha ido buscar este retrato para falar contigo.
Ela sentiu-se estranhamente tocada.
Importar-me? Como é que eu me poderia importar? Pobre Leopold, a avó tinha razão em ter pena de ti. Porque não terás tido a sorte de ter outro pai?
- Sabes que, há uns seis anos atrás, o pai pensou em arranjar um casamento entre nós? - continuou como se estivesse a ter mesmo uma conversa com ela.
Ela reprimiu uma exclamação. Ah... não, não sabia. Mas que cenário interessante teria daí resultado!
- Não deu em nada, evidentemente. A tua tia nem quis ouvir falar em tal coisa até tu seres mais velha; e eu também não o teria permitido. - Abanou a cabeça. - Imagine-se, casar uma rapariguinha com um homem de vinte e tal anos! Oh, eu sei que isso acontece imensas vezes, mas já vi qual é o resultado desses casamentos: crianças inocentes e excitadas que, numa única noite, ficam reduzidas a fantasmas de si próprias, mudas e aterrorizadas. Não, é uma crueldade, ainda que crueldade por negligência.
Shelyra moveu-se rapidamente para outro buraco-espia por forma a poder ver o seu rosto. Nunca suspeitara antes que ele fosse tão sensível. Aquilo era mesmo uma surpresa. Pouquíssimos dos homens que ela conhecia estavam tão conscientes dos sentimentos dos outros; geralmente só os seus próprios sentimentos lhes importavam. Nenhum homem que ela alguma vez conhecera recusaria uma aliança por casamento devido à tenra idade da noiva.
A expressão dele era de desagrado.
- O pai achava que a ideia de uma noiva-criança era perfeita. Não parava de me dizer que eu te poderia moldar como quisesse. Aquele tipo de atitude faz-me pensar por vezes... ultimamente tenho pensado se a mãe não terá morrido só para lhe fugir.
Seria perfeitamente capaz de compreender tal atitude, se eu fosse casada com Balthasar.
- Mas esta... - indicou o retrato - este é o tipo de senhora que acredito poderia ser minha amiga... Tive um camarada que casou com a sua amiga de infância e raramente tenho visto uma união com tanta felicidade.
E também é perspicaz. Será da idade, da experiência ou serão ambas as coisas? Ou... Ocorreu-lhe uma outra ideia. Talvez seja devido ao facto de ter sido forçado tantas vezes ao papel de observador. Teve que olhar para a vida em vez de participar nela. Mas aprendeu com o que viu.
- Não tenho muitos amigos - continuou ele melancolicamente - mas suponho que tu própria sabes que alguém com “príncipe” ou “princesa” antes do nome não tem muita gente em quem confiar o suficiente e a quem possa chamar amigo.
Ergueu as duas mãos e massajou as têmporas. Devia ter a cabeça a latejar. Ficou em silêncio durante algum tempo e, quando voltou a falar, a sua voz soou cheia de tensão.
- Shelyra, já não sei o que pensar. Sou suposto acreditar que o meu pai tem sempre razão, mas esta insanidade de guerra após guerra, após guerra... qual o tamanho do Império que um homem pode querer? Isso já é suficientemente mau, mas as coisas que ele tem permitido a Cathal e Apolon...
Ergueu-se subitamente da cadeira e começou a andar para trás e para a frente, ainda a falar com o retrato.
- Desde que ele tomou Apolon como conselheiro que eu não o consigo entender! - disse cheio de ira. - Os primeiros dois ou três países que ele ocupou... bem, havia uma desculpa. A Berengeria dava asilo a enormes bandos de salteadores e, quando ele se queixou através das vias diplomáticas, não fez nada para remediar a situação. Tínhamos uma disputa fronteiriça com Allaine que durava há séculos. E o rei de Hergovia era tão incapaz, que até um tijolo seria melhor do que ele. Mas depois disso... foi como se ele tivesse provado o sabor do sangue e quisesse sempre mais e mais.
Tinha os punhos cerrados atrás das costas, como se quisesse dar um murro em qualquer coisa.
- Foi por essa altura que Apolon apareceu, fez uns quantos truques de salão e, mal dei por isso, já era um conselheiro tão importante como Adelphus. Foi então que o pai promoveu Cathal. - Abanou a cabeça. - Consigo situar as coisas no tempo, mas não consigo encontrar as razões! Será a conquista como uma droga para ele? Estará tão embriagado de poder que a única coisa em que consegue pensar é em conseguir mais poder?
Shelyra escutava aquele espantoso solilóquio apoiando-se na parede com ambas as mãos. Nunca esperara ouvir nada daquilo da boca de um homem que considerava ligeiramente estúpido, ainda que bastante simpático. Agora parecia-lhe que estivera completamente errada; Leopold não era estúpido, ele...
- Tenho estado apenas a iludir-me, Shelyra - disse Leopold completando o seu pensamento antes que ela o fizesse. Parara de andar para trás e para a frente e estava de pé, olhando para o retrato com os braços abertos. - Eu queria tanto acreditar no meu pai que fingi haver sempre uma boa razão para tudo o que ele fazia. Tentei convencer-me de que ele era tão honrado como eu desejava que fosse... que fazia coisas tão revoltantes porque tinha que lidar com constrangimentos acerca dos quais eu nada sabia. Mas não posso continuar a iludir-me durante mais tempo.
E isso é mesmo muito bom! pensou ela com um misto de triunfo e amargura. Se tivesses caído em ti a tempo, poderíamos não estar agora nesta situação!
Mas a cabeça dele curvou-se e da sua atitude transparecia a derrota.
- E agora estou aqui, exilado. Nunca estarei em posição de influir em coisa nenhuma. Serei provavelmente deixado para trás, aqui, completamente “esquecido”, com um batalhão de guardas que se assegurarão de que eu nada farei que possa causar embaraços ao pai.
Voltou a sentar-se, deixando-se cair na cadeira, olhando para o retrato.
- Quem me dera... - disse ele baixinho. - Quem me dera que as coisas tivessem sido diferentes, Shelyra. Que hei-de eu fazer?
Ela teve a sensação de que ele ia continuar... mas ela não queria ouvir mais. Já ouvira mais do que aquilo a que tinha direito. Retirou-se do seu ponto de observação com um nó no estômago.
Ele quer saber o que há-de fazer. Bem, e que hei-de eu fazer?
LYDANA
Não havia forma de contar a passagem do tempo. Naquela sala enorme não havia quaisquer janelas que deixassem passar a luz do dia e Matild e a Feiticeira das Árvores estiveram sempre muito ocupadas a tratar de Saxon. A mulher mais nova dormiu um pouco, deitada numa pilha de farrapos muito próxima da enxerga onde ele dormia um sono irrequieto. Saxon virava-se e revirava-se, tentando levantar-se, forçando-as a pedir ajuda aos homens que vieram segurá-lo e impedir que se erguesse.
Das palavras confusas que dizia no meio dos seus pesadelos, Matild conseguiu algumas informações. Que os seus principais torturadores tinham sido Cathal e os seus homens, já ela sabia. Mas ele mencionou repetidamente um mago que assistira ao espectáculo. E, embora houvesse raiva nas suas respostas entrecortadas aos interrogadores que só ele via, o mago parecia causar-lhe mais medo do que ira.
Matild comeu tudo o que lhe deram, sobretudo tigelas de peixe ou de papas, e ajudou a Feiticeira das Árvores a verter para a boca ferida de Saxon várias poções que a velha cozinhava em panelas assentes no enorme braseiro que ordenara que lhe trouxessem.
Jonas viera vê-los duas vezes; olhara fixamente para o homem que ardia em febre e depois para Matild ou para a Feiticeira das Árvores, procurando que elas lhe dessem alguma esperança. Matild recordava-se de ele ter mencionado qualquer coisa acerca de uma busca na cidade e só esperava que não fossem expulsos daquele refúgio, apesar de este ser totalmente desprovido de conforto.
Os inchaços que deformavam o rosto de Saxon começaram a desaparecer. Logo no início, a Feiticeira das Árvores lavara cuidadosamente o seu nariz arruinado com dois líquidos diferentes que soltavam um pungente cheiro a ervas. E depois, com Matild a segurar-lhe firmemente a cabeça e estremecendo a cada gemido que ele soltava, pusera o nariz partido no lugar, cobrindo-o em seguida com uma substância cerosa que o mantinha no lugar, tendo tido o cuidado de desobstruir as narinas cobertas de sangue. Quando terminara, ele já não respirava ruidosamente pela boca.
Eel vigiava Matild, forçando-a a deitar-se, observando-a enquanto ela engolia a comida grosseira e malcheirosa. Quando Matild era obrigada a sair do lado dele, punha sempre o pregador com as duas pedras cuidadosamente no peito de Saxon, tão perto do coração quanto podia e apesar de ele se virar e revirar na cama, o pregador nunca saía do lugar até ela o tirar novamente.
Quanto tempo se teria passado até os seus olhos novamente visíveis se terem aberto e ele ter olhado para ela? Ela não tinha a noção do tempo que passara. Mas já não transpareciam naqueles olhos os pesadelos febris, mas sim o reconhecimento. A boca dele mexeu-se e ela apressou-se a soerguer-lhe a cabeça, para que a Feiticeira das Árvores pudesse dar-lhe mais um pouco de xarope. Quando voltou a deitá-lo, ele estendeu uma mão coberta com as espessas ligaduras que protegiam o pulso e ergueu-a inseguramente na direcção dela.
- Estrela do Mar... - Mais uma vez o nome que ela pensara ser um segredo e que quase esquecera com a passagem dos anos. - Tu... tu trouxeste-me a porto seguro.
Matild sentiu a tensão nos seus lábios quando estes se curvaram num movimento que há muito, muito tempo, não conheciam: um sorriso.
- Reconheces-me? - Ela queria desesperadamente ter a certeza de que ele regressara daquele reino de horrores e fantasmas.
- Vossa Alteza...
A velha saudação formal não era o que ela queria ouvir. Matild abanou a cabeça.
- A rainha morreu - disse ela rapidamente. - O que eu sou e o que faço... sou uma outra pessoa.
Os seus lábios estalados tentaram formar um sorriso e ele gemeu.
- Como teu instrumento sou uma desgraça, senhora.
- Não há instrumentos; somos nós as nossas próprias armas.
Agindo por impulso, agarrou no pregador e virou o rubi para os lábios desfeitos. Ele pestanejou; os seus olhos baixaram-se para o que ela tinha na mão e depois ergueram-se novamente para encontrar o seu olhar.
- O poder chegou-te... antes do tempo...
Havia ali uma insinuação que ela não compreendeu. Mas abanou a cabeça.
- Não, o Talento não é meu... aquilo que aqui tenho é uma prenda da Grande Deusa. Olha-a, guerreiro, e sara!
Mais uma vez sentiu a sua energia fluir, ser sugada, na direcção do rubi. Lutou para manter a mão firme, para não sair da mesma posição. Teria visto realmente o que então apareceu?
Depois nunca conseguiu ter a certeza se tivera a visão de um corpo ou de um espírito, mas fora algo de brilhante, como o brilho de uma lareira que dá as boas-vindas a um viajante numa noite de inverno, que irradiara do rubi, não concentrado num raio, mas soltando-se em ondas, cada vez mais largas.
Ele tinha agora a face cor de carmim. Era como se estivesse banhado pela própria substância das nuvens ao pôr do sol. As ondas espalharam-se pelo seu corpo. Ele manteve-se imóvel sob o seu brilho, mas os seus olhos nunca largaram os de Matild, nem ela desprendeu dele o seu olhar.
Algures, muito longe, como se fosse o eco de um eco, ouviu cânticos. Em parte familiares, tal como os que ouvira durante anos na liturgia, mas ao mesmo tempo diferentes, como se fossem entoados numa prece, numa súplica, perante um altar mais secreto e inacessível.
As ondas estremeceram, juntaram-se umas às outras, e nunca os olhos dele a deixaram. Não era possível unir as mentes, ou seria? Ela nunca entendera o Talento; não o desejava. Mas, naquele momento, soube que, através dela, aquele homem estava a ser sarado; talvez ainda mais rapidamente do que seria possível com a ajuda de um verdadeiro curandeiro.
Depois, tão subitamente como surgira, o brilho carmim desvaneceu-se.
O seu braço doeu-lhe súbita e intoleravelmente, caindo para junto do corpo, como se ela já não tivesse qualquer controlo sobre os ossos e os músculos. Mas... Saxon sentara-se na enxerga. As feridas não passavam agora de ligeiras marcas, com os cortes sarados de forma perfeita e não deixando senão a mais leve sugestão de cicatrizes.
- Aska, senhora, neigjob varter... sebo larns... - A Feiticeira das Árvores tinha a cabeça curvada em oração do outro lado da enxerga. Torcia entre os dedos deformados pela idade um pedaço de fio vermelho no qual tinham sido atadas pequenas pedras.
Talvez ela fosse tão sacerdotisa como Verit... embora de uma fé mais antiga, ainda mais próxima da Grande Deusa. Matild não reconheceu nenhuma das palavras murmuradas, mas o tom era inconfundível. Assim como as reverendíssimas rezavam com as suas contas nas celas do claustro, esta mulher vinda de um passado muito remoto entoava também os seus louvores, à sua
maneira, ao mesmo Poder.
O homem de quem tinham cuidado estava sentado, muito direito, a cabeça erguida e os ombros para trás. Já não havia nele quaisquer sinais de fraqueza ou de maus tratos. Matild suspirou e sentiu o apoio de um braço em torno dos seus ombros, pois Eel estava ali de novo, como estivera aliás durante todo o tempo que tinham lutado para salvar a vida de Saxon. Matild não teve forças para se pôr de pé.
Homens e mulheres, aqueles que ali viviam, rodeavam-nos, gritando de excitação. Matild permitiu a Eel que a deitasse na sua própria enxerga. Ali adormeceu, ainda antes de a coberta esfarrapada ser gentilmente puxada sobre o seu corpo. Sentia-se vazia, esgotada, e nada mais queria senão refugiar-se na escuridão acolhedora que lhe prometia uma segurança que não compreendia.
ADELE
A vida no templo, nos dias que se seguiram, foi tudo menos pacífica. A religiosa Elfrida passou tantas horas nos confessionários, que até a dormir já ouvia as palavras “Reverendíssima, o meu coração não está em paz”. E as histórias que se seguiam à frase ritual eram de molde a provocar pesadelos a qualquer um. Aquela pobre gente lutava até mesmo contra a tempestade para ali vir procurar um pouco de conforto!
- Quem me dera que esses idiotas, que acham que o imperador vai tratar Merina com justiça, ouvissem as confissões! - disse a Verit quando a encontrou à noite na sala de meditação.
Visto só haver quatro deles para fazerem o trabalho mágico, tinham deixado de o fazer na sala de trabalho, passando a fazê-lo na sala de meditação para que esta não estivesse vazia no caso de alguém vir pela passagem secreta em busca de ajuda.
- Uma excelente ideia, Elfrida! - replicou Verit. – Tentarei destinar essa tarefa aos que de entre eles têm o espírito mais aberto. Evidentemente que terá que ser limitado àqueles que foram ordenados; não podemos ter noviços a ouvir confissões e terei que me assegurar de que não designo ninguém cuja resposta a uma pessoa em busca de consolação pelos ultrajes cometidos contra ele ou, mais provavelmente ela, seja: “e que fizeste tu para o merecer?” - Suspirou. - O problema é que em toda a nossa História, quer na registada, quer na apenas recordada, o governo de Merina foi sempre, na pior das hipóteses, benigno e, na melhor, esteve de mãos dadas connosco. Por isso, muitos dos nossos religiosos não têm, pura e simplesmente, a imaginação necessária para acreditar que uma autoridade possa sequer errar, pois as autoridades seculares sempre foram justas. Os religiosos assim irão limitar-se a assumir que estão a ouvir as confissões de uns quantos descontentes, arruaceiros ou mesmo potenciais criminosos. Só aqueles que ainda são suficientemente flexíveis para acreditar que as coisas podem mudar para pior, assim como por vezes mudam para melhor, acreditarão no que ouvirem.
- Isso vai limitar-te bastante - disse Fidelis amargamente. - Pelas conversas da minha ordem durante o recreio, pensar-se-ia que não têm mais miolos do que as plantas de que cuidam.
- Quando é que arranjaste tempo para ires ao recreio? – perguntou Cosima com inveja. - Parece-me que há dias que não me sento a não ser para tomar as refeições. De certeza que não o faço desde que a tempestade começou e isso foi já há quatro dias.
- Tens que te esforçar por ir ao recreio, Cosima – disse Verit.
Cosima quase gritou.
- Sim, reverendíssima, eu sei que o recreio é uma parte importante das nossas vidas...
- De momento - acrescentou Verit secamente - é também a melhor forma de saber como pensam os residentes do templo e até que ponto constituirão uma ajuda ou um obstáculo, quando a crise rebentar.
Cosima assentiu com relutância.
- Esforçar-me-ei mais... mas não vou deixar um paciente a sofrer, só porque chegou a hora de me ir sentar a trocar bisbilhotices com os outros membros da minha ordem!
A Verit pareceu bastar aquela resposta.
- E que se passa na tua ordem, Elfrida?
- A maioria ignora tudo isto - respondeu Elfrida. - O assunto não é praticamente mencionado durante o recreio e se alguém é suficientemente “mundano” para o mencionar, há logo quem se apresse a mudar de assunto... especialmente depois daquela explosão no outro dia, à hora da refeição. Acho que eles ficaram embaraçados. A maior parte deles não quer saber do que o Balthasar faça ou deixe de fazer, desde que não queime a biblioteca.
Verit assentiu.
- As ordens que estão na clausura tendem a desligar-se do mundo, é por isso que é tão importante ter a noção do que pensam os Hábitos Cinzentos. Os Hábitos Vermelhos são da opinião que o Mal não conseguirá entrar no templo; a maioria deles pensa que, tanto nós como os nossos animais estaremos seguros, desde que não saiamos destas quatro paredes. - Mas parecia estar perturbada.
- E o imperador não nos fará mal - disse Fidelis em tom sarcástico, citando obviamente algo que ouvira - pois é um fiel filho do templo, ou não é?
Verit fez uma careta.
- Hesitei em mencionar esta questão... mas parte da nossa protecção pode estar a sofrer uma erosão. Quando as ordens estão unidas e rezam todas com o mesmo objectivo, as nossas protecções atingem a sua máxima eficácia.
- Já tinha pensado nisso - disse Elfrida após uma ligeira hesitação. - Há algumas escrituras que apoiam essa tese. Quando estamos unidos e rezamos todos com o mesmo objectivo, “as paredes da oração ficam fortes e sem brechas”... mas que acontecerá se metade de nós rezarmos à Deusa para que nos salve deste bandido, um quarto rezar para ser deixado em paz e outro quarto rezar pela paz a qualquer preço? - Abriu os braços num gesto de desânimo.
- Oh - disse Cosima em tom tão sarcástico quanto o que Fidelis usara - o imperador não é um bandido! É um fiel seguidor da Deusa e um filho do templo, ou já se esqueceram disso?
- Qualquer um que aprove a necromancia não é, de maneira nenhuma, filho do templo - resmungou Elfrida. - Seis das pessoas que vieram ter comigo hoje disseram-me que tinham visto, entre os casacos negros, homens que sabiam estar mortos.
- Que lhes disseste? - perguntou Fidelis. Não parecia surpreendido. Elfrida sabia que também ele tinha estado a ouvir confissões.
- Disse-lhes que rezassem por paciência para si próprios e por misericórdia para as almas dos casacos negros e para se lembrarem de que Aquela que Ilumina a Escuridão nunca nos abandona, embora às vezes o possa parecer, quando o mundo está envolto nas trevas.
- Uma resposta tão boa como qualquer outra, suponho - disse Fidelis, mas parecia ter algumas dúvidas. - Acreditas nisso?
- Sim - respondeu Elfrida com firmeza. - Acredito que as nossas orações terão resposta quando Ela o desejar. E talvez os Hábitos Vermelhos tenham razão, pelo menos em parte. - Fez uma pausa para considerar os factos em presença e não os comentários perturbadores que tinha despoletado. - Nem mesmo Iktcar, no auge do seu poder, conseguiu passar a nossa porta. Apolon não entrou no templo e mesmo o general Cathal também não o fez; enviou soldados, mas não veio ele próprio.
- Os soldados já fizeram mal que chegasse - disse Cosima em voz baixa, o rosto ensombrado.
- Mas não foram fatais - fez notar Verit. - O príncipe Leopold foi quem cá veio mais vezes, assim como alguns dos seus soldados. O imperador e o chanceler só cá vieram uma vez; o imperador para se sentar na Cadeira de Estado...
Elfrida estremeceu. A presença do príncipe Leopold não a incomodara muito, mas a ideia do imperador sentado na sua cadeira, nem que só por uma vez, fazia-a sentir-se ligeiramente indisposta.
- Aposto que o chanceler passou o tempo a deitar o olho aos rubis do altar e do Coração.
- Causou-me a impressão de um homem a fazer um inventário - admitiu Verit. - Mas só cá veio uma vez, no dia a seguir ao juramento do embaixador, e desde aí não voltou cá. – Franziu o sobrolho. - O príncipe Leopold não voltou desde que correu com os homens do general Cathal. Alguém sabe por que razão?
Elfrida e Fidelis falaram ao mesmo tempo:
- Está no Palácio de Verão.
- Despojado do seu comando e exilado – acrescentou Elfrida - é o que se depreende do que ouvi dos seus homens. E de... outras fontes, alguém que o viu lá.
- Concordo - confirmou Fidelis. - Alguns dos seus homens ainda conseguiram vir à confissão. A maioria deles confessou sentir-se irado pela forma como ele está a ser tratado e sentir ressentimento pelo seu novo comandante, o imperador.
- E que lhes disseste a eles? - perguntou Elfrida.
Verit falou antes que ele pudesse responder.
- Eu já temia isto - disse sombriamente. - Tentei avisá-lo, mas temo que houvesse pouco que ele pudesse fazer para evitar as armadilhas montadas no seu caminho. Talvez esteja mais seguro fora de cena.
- E assim se vai a promessa dele de que não voltaríamos a ser molestados - disse Cosima.
- Ele nunca teve, desde o início, o poder suficiente para poder cumprir essa promessa - fez notar Verit. - E teve a sensatez necessária para se limitar a prometer que, enquanto ele detivesse o comando, nós estaríamos seguros. Mas, até ao momento, não voltámos a ser incomodados.
- Isso poderá mudar, quando eles pensarem que têm o resto da cidade sob controlo - disse Fidelis calmamente.
Elfrida pensou se ele não teria sido soldado antes de entrar para o templo. Depois pensou em quantos religiosos teriam experiência militar. Eram bem capazes de ainda virem a necessitar dela.
- Estamos de acordo - disse Verit. - Por isso, vamos lá ver o que o Apolon está a tramar esta noite, está bem?
Não havia na sala de meditação nenhum altar central, como existia na sala de trabalho; por isso ela pousou o vidro no chão e sentaram-se todos em volta. Não era a mais agradável das posições para ossos idosos e Elfrida esperou que não ficassem naquela posição durante muito tempo.
A visão apareceu rapidamente e Elfrida foi a primeira a reconhecer o local onde Apolon se encontrava; fizera, durante muitos anos, várias visitas de cerimónia às Guildas.
- Está na Casa do Javali. Que estará a fazer ali? Ele estava a viver nos aposentos da herdeira, no palácio.
- Parece ter-se instalado ali - comentou Cosima em voz baixa.
Tinha razão. Havia um grande sofá de um dos lados da sala e, a seu lado, estava uma secretária coberta com listas. Inscrito no chão, no meio da sala, via-se um círculo com um pequeno corte. Junto ao círculo via-se um pedaço de giz. No interior do círculo estava um recipiente de bronze meio cheio de um líquido que aparentava uma semelhança muito suspeita com sangue. Dentro do recipiente estava um bastão de madeira e o nível do líquido baixava a olhos vistos, enquanto observavam, como se o bastão o estivesse a absorver. Mas a madeira não poderia absorver nenhum líquido àquela velocidade. Apolon estava de pé junto à porta falando com um dos seus casacos negros.
- Quero que me tragas os meus prisioneiros e todo e qualquer homem fisicamente apto que encontres nas ruas entre o pôr do sol e a meia-noite - ordenou.
Uma pessoa normal poderia ter questionado aquela ordem; o casaco negro limitou-se a assentir e a sair da sala, em silêncio.
- Eu diria que aquele está morto - disse Fidelis, numa voz que era pouco mais do que um murmúrio.
- Creio que tens razão - disse Verit largando as mãos que segurava e deixando que a visão se desvanecesse. - Voltaremos a encontrar-nos aqui para ver o que o Apolon planeia fazer com os homens que reuniu.
Pela expressão nos rostos dos seus companheiros, Elfrida suspeitou que ninguém estava ansioso por isso.
SHELYRA
Havia outra mensagem na entrada do túnel: “Soldados aqui. Seis. Nos quartos dos criados. Tende cuidado.”
Bem, não era certamente preciso recomendar-lhe cuidado. “Cuidadosa” era tudo o que ela fora ultimamente. Thom continuava sem aparecer e, como ninguém o vira, ela sentia-se inclinada a pensar que ele ou tinha morrido durante a tempestade ou tinha aproveitado a oportunidade para quebrar as cadeias. Gordo enviara uma mensagem aos Clãs dos Senhores dos Cavalos de fora da cidade para o procurarem.
Ela fizera viagens ao Palácio de Verão nas últimas três noites e quase sempre apanhara Leopold a falar com o seu retrato. Começava a pensar em pedir a Adele para fazerem a investidura do retrato no templo, pois este parecia servir de confessor! Uma grande parte do que assim ouviu fazia-a sentir-se profundamente desconfortável e, em simultâneo, extremamente compreensiva em relação à situação do príncipe.
Leopold tivera quase a certeza de que o seu pai o deixaria sozinho em contemplação dos seus pecados durante um ou dois dias, mesmo depois da tempestade ter amainado e provara-se que tivera razão. Shelyra pensava que Balthasar não ficaria, contudo, nada satisfeito com os resultados dessa contemplação. Sem nada em que se ocupar, Leopold tivera todo o tempo disponível para pensar na conduta de Balthasar, dos seus exércitos e dos seus conselheiros e fora forçado a admitir perante si próprio que, muito longe de ser uma conduta admirável, ultrapassara em muito tudo o que era aceitável.
Ainda não se tinha, contudo, apercebido da extensão da maldade de Apolon. Suspeitava de que o Mago Cinzento praticava magias muito negras, mas não lhe ocorrera que Apolon pudesse mesmo ser um necromante. Mas também, sem provas, quem suspeitaria que alguém tão circunspecto como Apolon pudesse ser um necromante? Os únicos feiticeiros que no passado tinham sido suficientemente depravados para descer a essas profundezas infernais, tinham sido extremamente extravagantes e o seu objectivo fora conquistar o mundo para si próprios. Não estavam certamente subjugados ao serviço de alguém.
Para grande alívio de Shelyra, o próprio Mago Cinzento tinha-se mudado do palácio para a Casa do Javali quando a tempestade amainara. E, estranhamente, o chanceler fizera o mesmo... ela não pensara que os dois fossem tão grandes aliados. Contudo, com os dois fora do palácio, sentia-se um pouco mais à vontade; teria sido um desastre se Apolon tivesse, de algum modo, descoberto as passagens secretas e pior ainda se tivesse descoberto as que conduziam ao templo!
Pelo menos, já não tinha que se preocupar com a possibilidade de Apolon descobrir algum objecto pessoal esquecido por si, pela sua tia ou pela sua avó.
Enfiou a mensagem na bota por uma questão de segurança e, impulsivamente, decidiu dar uma vista de olhos aos novos intrusos. Se eles fossem realmente homens leais a Leopold... isso seria um bónus inesperado. Com o apoio, nem que fosse de alguns homens, o príncipe era capaz de considerar uma verdadeira ruptura com o pai. Isso dividiria novamente as forças inimigas, pois uma parte do exército apoiaria o príncipe e outra o imperador. Não acreditava que Leopold chegasse ao ponto de lutar contra o pai, mas mesmo que se limitasse a tirar parte dos homens ao imperador, isso já seria vantajoso para Merina.
Só havia um único buraco-espia nas instalações dos criados e não estava localizado num sítio particularmente conveniente. Teve que se deitar no chão e encostar-lhe o ouvido para poder ouvir alguma coisa e ver não era possível, pois o buraco estava oculto por trás da cabeceira de uma das camas fixas à parede. Tinha o nariz contra o chão e pôs as mãos por baixo do queixo.
- ... então ele ainda está lá em cima a amuar? - disse uma voz masculina desconhecida, estranhamente fria e destituída de emoção.
Uma gargalhada.
- Ele ainda não desceu desde o fim da tempestade a não ser para cozinhar. Mas que guerreiro! Na cozinha a fazer o trabalho das mulheres!
Aquela voz tinha o sotaque dos mercenários, acabando com as suas esperanças de que aqueles homens pudessem ser das tropas pessoais de Leopold.
- Então não desceu vez nenhuma desde que o velho nos mandou um cozinheiro do exército? - Da primeira voz não transparecia nem sarcasmo nem divertimento. - Isso vai tornar as coisas muito mais difíceis para nos vermos livres dele.
Livres dele? Shelyra sentiu-se gelar. Quereriam eles dizer...
- Se vamos deitar as culpas para cima dos locais, temos que o atrair cá para fora de uma maneira qualquer, para podermos fazer uma emboscada - concordou a segunda voz. – Tenho tudo o que preciso para tornar a coisa convincente. Até tenho uma série de ordens seladas com o sinete da bruxa velha para deixar ao pé dele, mas não vai resultar a menos que possamos montar uma emboscada. Ninguém vai acreditar num assassínio que aconteça aqui, numa casa cheia de criados demasiado fracos até para mastigar o que comem e onde nós somos supostos estar a montar guarda.
O coração dela subiu-lhe à boca e não mais se aquietou.
Eles vão matá-lo! Eles vão matar Leopold! Tenho que fazer qualquer coisa!
Mas o quê? Não podia sair de uma parede para o avisar! E mesmo que o fizesse, dar-lhe-ia ele ouvidos? Era bem capaz mas era de a tentar capturar! Só porque falava com o seu retrato, não queria dizer que fosse dar ouvidos ao original! Também não podia matar os soldados... não tinha forma de os apanhar a todos de uma só vez e, assim que o primeiro morresse, os outros ficariam a saber que os seus inimigos tinham uma forma de entrar no palácio. E quando soubessem disso... matariam Leopold e fariam parecer que ela o tinha feito!
Que posso eu fazer? Oh, Deusa, que posso eu fazer? Tenho que o salvar...
Foi então que, repentinamente, um plano se formou no seu espírito, como se a própria Deusa ali o tivesse plantado. E tinha, ali mesmo, tudo de que necessitava para que o plano resultasse. Mas primeiro... tinha que falar com a Nanny.
Pôs-se de pé cuidadosamente, para não fazer barulho, e deslizou pelas passagens secretas tão silenciosamente como um rato, dirigindo-se ao quarto de Nanny. Tal como esperara, a velhota estava lá à sua espera, desta vez com a luz acesa. Bateu duas vezes no painel de madeira para avisar Nanny de que ia entrar e depois abriu a porta. Nanny já estava de pé, dirigindo-se à porta do seu quarto para a trancar e impedir a entrada de intrusos.
- Aqueles homens são os mais horríveis... - começou ela com o sobrolho franzido, quando Shelyra a interrompeu.
- São piores do que julgas; pelo menos dois deles são – disse ela sombriamente à velhota, descrevendo depois o que ouvira, escondida nas paredes.
Nanny empalideceu.
- Pobre rapaz! - exclamou imediatamente, confirmando a esperança de Shelyra de que talvez conseguisse convencer a mulher mais velha a ajudá-la. Não necessitaria de fazer grande coisa... mas era vital.
- Shelyra, minha querida, temos que o ajudar! Achais que o poderíamos fazer sair daqui pelas passagens das paredes? Ou...
- Vou fazê-lo sair pelas paredes, mas não da forma que estás a imaginar - disse Shelyra rapidamente. - Mas preciso da tua ajuda. Quero que vás ter com os homens que chegaram e os avises de que não vão à aldeia. Dize-lhes que há lá uma epidemia de peste. Dize-lhes - pensou rapidamente - que houve uma peste horrível igual a esta e que apareceu depois da última grande tempestade que tivemos.
- Aquela que aconteceu quando eu era rapariga - assentiu Nanny, embora continuasse com uma expressão confusa. - Mas o que é que isso adiantará?
- Nanny, se conseguirmos convencer aqueles homens de que há peste deste lado do rio, eles salvarão o príncipe em vez de nós e ficarão convencidos de que ele está morto, tudo ao mesmo tempo - disse Shelyra. - E mais, com alguma sorte e a bênção das Três Vezes Coroada, fugirão para o outro lado do rio quando tivermos terminado. Agora vai depressa, age como se estivesses aterrorizada, como se tivesses acabado de receber as notícias da aldeia. Depois vai ter comigo à cozinha.
Voltou a esgueirar-se pelo interior da parede, enquanto Nanny vestia um casaco. Agora tudo dependia da rapidez. Correu literalmente até à sua sala secreta e retirou três ampolas da sua colecção de poções e venenos. Não fazia ideia se aqueles venenos saberiam mal ou não; teria que correr esse risco. Deveriam não ter sabor; destinavam-se a cavalos e estes cuspiam tudo o que soubesse mal. Com sorte e mel suficiente, disfarçaria o paladar.
Correu de volta à cozinha e ficou à espera que Nanny aparecesse. A velhota apareceu a arrastar os pés pouco depois de Shelyra ter chegado e a rapariga saiu pelo fundo da despensa assim que ouviu os passos da mulher.
- Bem, já lhes disse e eles não estão nada satisfeitos, estão, até um pouco nervosos - anunciou Nanny. - E agora, o que é preciso fazer?
- Vamos pôr o príncipe com peste - disse-lhe Shelyra com um divertimento amargo.
Os olhos de Nanny iluminaram-se de compreensão.
- No chá da noite? - perguntou e Shelyra assentiu, passando-lhe as três ampolas.
- Põe as três, despeja-as totalmente, e adoça bastante o chá - disse-lhe. - E não o proves. Estas são poções muito fortes, Nanny, e só tenho antídoto suficiente para uma pessoa. Assegura-te de que os rapazinhos também não bebem.
A velhota dirigia-se já à chaleira, que ficara na lareira para manter a água quente e tirou dois pratos e três canecas.
- Isso é fácil - disse ela acenando com a cabeça enquanto trabalhava. - Os rapazes gostam de cidra quente. Chá para ele e cidra para eles e bolos para todos. Vou levar-lhes tudo agora.
- Óptimo.
Shelyra transpirava de nervosa que estava e lutava para impedir as mãos de tremer; não fazia ideia de quão doente Leopold iria ficar. Era até capaz de o matar, se a sorte não os favorecesse. Aquelas poções destinavam-se a incapacitar os cavalos dos inimigos sem matar animais tão valiosos; qual o efeito que teriam num homem, ela só podia adivinhar, pois não tinha qualquer experiência disso. E aquelas poções também não tinham sido concebidas para serem usadas em conjunto. Podiam muito bem anular-se umas às outras... ou podiam aumentar os sintomas ao actuar simultaneamente.
- Deixa-o sozinho cerca de uma hora e depois volta como se fosses buscar a loiça. Se ele estiver doente, corre em busca dos soldados.
Senhora Abençoada, se favoreces os homens honestos, protege então este, rezou enquanto voltava a entrar na parede, deixando que Nanny fizesse a sua parte do trabalho. Ele é um bom homem e merece viver. Ajuda-me a ajudá-lo!
Havia tanta coisa naquele plano que teria que ser deixado à sorte! No entanto, arriscaria. Ela não tinha alternativa e ele não tinha qualquer outra esperança. Os antídotos estavam no seu bolso, mas agora tinha que ir buscar o equipamento que lhe permitiria retirar um homem inconsciente ou semi-consciente do quarto, para dentro das paredes e depois para a sua sala secreta. Não iria ser nada fácil e ela teria que o fazer em silêncio.
Corda, pensou enquanto percorria as passagens obscurecidas. Uma das minhas enxergas, cobertores... os antídotos não actuarão antes de uma boa meia hora e depois ele estará fraco que nem um gatinho. Corria o risco de os homens enviados para o matar não fugirem do Palácio de Verão; isso significava que tinha que o esconder e depois arranjar maneira de fazer parecer que ele se levantara, doente, e caíra do cimo da torre. Tinta vermelha, para parecer sangue. Não pensava que alguém fosse à procura do cadáver de uma vítima da peste, mas mesmo que o fizessem, desde que encontrassem roupa manchada de sangue na base da torre, acabariam por concluir que os animais selvagens tinham arrastado o corpo.
Quando finalmente conseguiu juntar tudo de que necessitava e transportar o equipamento em silêncio até à passagem que dava para a base da torre do príncipe, já Nanny tinha tido tempo de lhe levar o chá. Trepou até ao nicho junto da lareira do estúdio do príncipe e encostou o olho ao buraco-espia.
O que lhe ocorreu imediatamente foi que passara tanto tempo às escuras, que os seus olhos lhe estavam a pregar uma partida, pois o príncipe estava de pé, com o chá fatal seguro entre
as mãos, mas a olhar fixamente para aquilo que, à primeira vista, pareceu a Shelyra ser uma chama da altura de um homem e que se erguia da carpete.
Ela abriu a boca para gritar, pensando que ele pegara fogo à sala, mas quando pestanejou a chama desapareceu. O príncipe continuou a segurar o chá por mais uns instantes e depois, num
gesto tão estranho quanto aparentemente infundado, ergueu a caneca num brinde irónico a nada nem a ninguém e bebeu tudo, com o ar de um homem que bebia algo que pensava lhe iria ser fatal. Ter-lhe-á a Nanny dito alguma coisa? Mas por que razão o faria?
Depois, ele sentou-se na cadeira e fechou as mãos sobre um livro, como se estivesse à espera que algo acontecesse. Não teve que esperar muito tempo, como Shelyra sabia que aconteceria. Passada meia hora já ele estava delirante e quase inconsciente, transpirando deitado no chão para onde caíra da cadeira. Mas... o seu rosto estava coberto com manchas lívidas e púrpura! E isso não era suposto ser um dos efeitos das suas poções!
Mas as poções são para os cavalos, e esses têm o pêlo que lhes esconde a pele, lembrou-se a si própria cheia de nervosismo, com um nó no estômago e a cabeça a começar a latejar.
As manchas púrpura no caso dos cavalos não seriam visíveis, acho eu...
Mas já era demasiado tarde, pois na altura combinada apareceu Nanny, que deitou um olhar ao pobre Leopold, soltou um grito convincente e correu pelas escadas abaixo como se tentasse salvar a própria vida.
Pouco tempo depois, dois homens meio-vestidos com uniformes imperiais subiram ruidosamente pelas escadas, com Nanny e os dois escudeiros atrás. Olharam para o príncipe, que se contorcia no chão e bateram rapidamente em retirada, sem se aventurarem mais no interior do quarto, levando os outros com eles, apesar dos veementes protestos dos dois rapazes.
- Vêm e vêm calados - disse um dos homens atingindo um dos escudeiros com um estalo que ecoou pelas escadas. - Ele está perdido... também queres morrer? Cala a boca e mexe-me esse rabo!
Os rapazes continuaram a protestar, mas o som de um segundo estalo seguiu-se ao primeiro e depois ouviu-se o bater da porta da torre do rei. Depois, para grande alegria da incrédula Shelyra, após uma espera de muitos minutos agonizantes para se certificar de que eles não voltariam para verificar se a peste estava a fazer o seu trabalho, um outro som ecoou pelas escadas da torre. Era o som de martelos a bater em madeira. Estavam a entaipar a porta que dava para a torre e a pregá-la! Nem querendo crer na sua sorte, não perdeu tempo a soltar o fecho e a irromper pelo estúdio, ainda as últimas pancadas soavam na porta no andar de baixo.
Não tenho que o transportar! Pensou ela exaltante, enquanto o embrulhava nos cobertores que trouxera, puxava a enxerga e a punha ao lado da lareira, e depois o empurrava para cima dela. Agora... se ele não estiver demasiado doente, se eu não o tiver matado, se o raio dos antídotos não o matarem...
Os antídotos eram todos líquidos. Tudo o que ela tinha que fazer era inclinar-lhe a cabeça para trás e despejá-los, um de cada vez, pela sua garganta, fechando-lhe a boca e apertando-lhe o nariz para o obrigar a engolir. Ele contorcia-se nos seus braços, mas as poções que ela lhe dera enfraqueciam-no e impediam-no de lutar. Conseguiu dar-lhe os três remédios em rápida sucessão
e depois recostou-o na enxerga, à espera que actuassem. Ele estava com um aspecto horrível, pior do que ela esperara.
Tinha o rosto coberto com aquelas marcas cor de vinho, lívidas contra a palidez do rosto. Os seus membros tinham espasmos e contorciam-se. Transpirava abundantemente e atirava a cabeça de um lado para o outro, com os olhos totalmente desvairados. Se ela não soubesse o que fizera, acreditaria que era mesmo a peste. E ele ainda poderia morrer em consequência do que ela
lhe fizera.
A meia hora seguinte seria decisiva.
LEOPOLD
Leopold ouviu os passos da velhota nas escadas e a sua voz saudando os seus pajens, com um ligeiro toque de irritação. Tinha ficado ali sozinho por uma boa razão. Esperara poder evitar os homens que o seu pai enviara tanto quanto possível e não estava com vontade de fazer conversa com uma velha, por mais encantadora que esta fosse.
Mas, em seu benefício, desfranziu apesar de tudo o sobrolho e, quando ela finalmente acabou de subir penosamente as escadas, já ele ostentava uma expressão agradável para a receber. Ficou satisfeito por ter feito esse esforço, quando viu que ela lhe trazia um chá e uma pequena merenda. Teria sido muito desagradável ser rude com ela, quando ela só queria ser atenciosa.
- Estava um pouco preocupada convosco, meu rapaz - disse ela com o seu sotaque agradável. - O que tendes comido não daria para manter vivo um cordeiro.
- Não tenho tido apetite, senhora - respondeu ele, levantando-se e tirando-lhe o tabuleiro das mãos. - Mas obrigado, muito obrigado. E detesto parecer mal-educado, mas... bem, eu estava a meditar e...
Não estou a faltar muito à verdade, pensou ele. E ela ir-se-á embora se pensar que eu estava a rezar.
Ela cerrou os lábios com um ar pensativo e assentiu.
- Muito bem, então. Vou deixar-vos sozinho, meu rapaz - disse, embora parecesse ligeiramente preocupada. - Mas vede se bebeis esse chá. Vai ajudar-vos.
- Eu bebo - prometeu-lhe e ela lançou-lhe outro olhar um tanto estranho e depois desceu as escadas.
Só então lhe ocorreu que ela poderia ter vindo até ao estúdio com objectivos bem mais obscuros do que fazer-lhe um mimo. Virou-se e olhou para a caneca de chá aparentemente inocente que estava no tabuleiro. Ela nunca lhe trouxera nada... por que o faria agora? E qual a razão da insistência para que ele bebesse o chá?
Estarei a ser demasiado desconfiado? Perguntou-se a si próprio. Depois foi até ao tabuleiro e pegou na caneca cheirando-a delicadamente. Isto tem imenso mel... e não reconheço este cheiro a ervas... Havia um odor amargo por trás do cheiro a mel, e a primeira coisa que um soldado aprendia, quando andava à procura de comida nos matos, era que algo com um sabor amargo era provavelmente venenoso. Fez menção de pousar a caneca, mas depois teve uma idéia melhor. Tinha que encontrar um sítio onde a pudesse despejar... talvez pela janela. Podia esperar, fingir que estava a dormir e então...
- Príncipe Leopold - disse uma voz atrás de si; uma voz tão clara e tão pura que, se um sino pudesse falar, era certamente assim que soaria.
Sobressaltou-se, virou-se e... ficou a olhar. Caiu sobre um joelho, a cabeça absurdamente curvada sobre a caneca que ainda tinha na mão. Não se ajoelhara da primeira vez que vira um anjo... mas esse não lhe tinha falado. Só o som da voz o enchia de espanto; a voz, combinada com a visão e o poder, era irresistível.
O anjo riu, mas ele não teve a noção de que se estivesse a rir de si.
- Ergue-te, príncipe, e não temas - disse-lhe o anjo como se fosse um estranho eco dos pensamentos que tivera da última vez que vira um deles.
Ele levantou-se, cuidadosamente e, com igual cuidado, ergueu a cabeça. O rosto, nem feminino nem masculino, brilhava com um tal poder e beleza que a sua garganta se cerrou com lágrimas não vertidas. O anjo sorria e o seu sorriso era a personificação da alegria, fazendo com que o seu coração batesse desvairadamente e a sua alma se enchesse de júbilo. O anjo estava envolto num manto de luz branca e pura, a luz rodeando-o e permeando-o.
O príncipe passou a língua pelos lábios secos, enquanto o coração lhe batia no peito e os seus nervos ficavam à flor da pele com aquela presença.
- Tens amigos onde menos esperarias, Leopold - disse o anjo suavemente. - E um perigo de morte entrou na tua vida hoje mesmo. Bebe aquilo que agora tens na mão, se quiseres evitar esse perigo... e se quiseres percorrer o caminho da Luz e da Honra, servindo Aquela que Alumia as Estrelas, confiando nos amigos que agora te querem salvar.
Sorriu-lhe novamente, preenchendo o seu coração e a sua alma com a sua beleza calma e... desapareceu.
Ele ficou ali de pé, por um longo instante, e depois os dedos começaram a doer-lhe de apertarem tanto a caneca e ele olhou para baixo, para o líquido escuro que esta continha. Perigo de morte? Bebe aquilo que tens na mão? Mas...
Mas, que tinha ele a perder? Se aquela era uma poção para o matar, e apesar das palavras tranquilizadoras do anjo podia muito bem sê-lo, pois o anjo podia ter sido enviado para o salvar de um perigo muito mais mortal do que a mera morte; que tinha ele a perder? A sua vida não tinha agora qualquer valor... não podia corrigir os erros do seu pai, nem podia aprovar o mal que o pai e os seus subordinados andavam a espalhar com as suas acções. O melhor que poderia esperar era viver uma vida inútil, constantemente vigiado, constantemente guardado, e nunca mais ser livre.
Até a morte podia ser preferível à vida impotente de um prisioneiro, forçado a ver os conselheiros do imperador cometerem atrocidade após atrocidade e Balthasar a embriagar-se de sangue e poder como homens menos poderosos se embriagavam com vinho.
Ergueu a caneca numa saudação irónica ao espírito e bebeu o seu conteúdo de uma só vez; depois sentou-se, num estado de espírito estranhamente fatalista, à espera de ver o que aconteceria. Quando os efeitos se fizeram sentir, não foram, contudo, aqueles para que ele se preparara.
Começou a sentir-se tonto e depois, subitamente, a sua visão ficou desfocada e os seus músculos pareceram liquefazer-se, fazendo com que não se pudesse mexer e começou a tremer incontrolavelmente. Passados momentos, os seus dentes entrechocavam-se e os seus membros foram acometidos de espasmos e caiu impotente da cadeira para o chão. Tentou gritar, mas tudo o que conseguiu foi um gemido.
Depois disso, tudo o que sentiu foi um frio terrível, sentindo estranhas cores e sons girarem em torno de si. Aquilo que experimentou não podia sequer ser classificado de “visões”, “pesadelos” ou “alucinações”, pois não tinham forma nem conteúdo. “Saboreou” cores, “ouviu” o odor do fumo da madeira a queimar e o cabedal da cadeira, “viu” os sons do crepitar do fogo e dos seus próprios gemidos. Os seus membros continuavam a mover-se incontrolavelmente e não havia nada que ele pudesse fazer para o evitar. Luz e sombras, as cores obscureciam tudo o que lhe poderia ter dado uma pista quanto àquilo que o rodeava. Não podia fazer mais nada senão aguentar, perdido num furacão de pura loucura.
Primeiro teve consciência de que o frio o abandonava... depois os seus membros pararam de tremer. Depois todos os seus sentidos voltaram tão subitamente aos seus lugares próprios que foi como se lhe tivessem colocado um osso deslocado no lugar. Passou-se uma pequena eternidade antes de ser capaz de abrir os olhos, mas quando o fez, não teve a certeza de não estar a ser acometido por um tipo diferente de alucinação. Uma jovem com o mesmo rosto do retrato de que se apropriara, mas vestida como uma bailarina cigana, debruçava-se sobre ele, com uma mão na sua testa, num toque tão leve que ele nem o sentira. Tinha os olhos ensombrados de preocupação.
- Consegues falar? - perguntou antes mesmo de ele ter pensado em tentar fazê-lo.
Ele lambeu os lábios hesitantemente.
- Eu... creio que sim - respondeu ainda hesitante, com a voz rouca e empastada. Falou
com cuidado. Não devo deixar que ela perceba que o chá estava... envenenado. - Que aconteceu? Estou doente? - Depois não conseguiu resistir e disse: - Tu és a princesa Shelyra, não és?
- Sou Shelyra sim, mas de momento não sou princesa. - Parecia aliviada e ele perguntou-se qual seria a razão do seu alívio. - Quanto ao que aconteceu... envenenei-te e agora dei-te os antídotos.
Bem, não podia ter sido mais directa! Não esperava que ela o admitisse... espera!
Ela admite ter-me envenenado e curado?
Começou a dizer qualquer coisa; não estava certo do quê, mas ela pôs-lhe a mão sobre os lábios para o impedir de o fazer.
- Por favor. Escuta-me, antes de falares - disse-lhe.
Ele teria gostado de se pôr de pé, mas a tentativa que fez para erguer o braço e afastar a mão dela convenceu-o de que não tinha alternativa senão escutá-la. De momento não conseguia sequer mexer um dedo sem ficar encharcado em suor em resultado do esforço. Nunca se sentira assim, tão fraco e indefeso... nem mais inclinado a recostar-se e a limitar-se a ouvir como lhe fora pedido.
Mas ela é o inimigo! Gritava uma parte do seu espírito. Acabou de admitir que te tinha envenenado! Sim, admitiu o resto da sua mente, mas lembra-te do que o anjo te disse. Vais duvidar da palavra de um deles? E quem poderia ser o amigo inesperado senão ela?
- Os homens que o teu pai enviou não foram enviados unicamente para te vigiar - disse-lhe ela com veemência. - Pelo menos dois deles foram mandados para te matar. Ouvi-os a conspirar para te atrair lá fora por forma a poderem montar uma emboscada e matarem-te, de uma forma que permitisse atirar as culpas para o povo de Merina e para a rainha.
Não, naquilo ele não acreditava!
- O meu pai não iria... protestou, tentando sentar-se.
- Ninguém disse que tinha sido o teu pai - respondeu-lhe ela, forçando-o a deitar-se novamente na enxerga. - Nem Apolon nem Cathal são particularmente solícitos no que toca ao teu bem-estar... e contigo fora do caminho, já pensaste em quem estaria mais próximo de ocupar o lugar de herdeiro aparente?
Mas como é que ela sabe disso? Fechou a boca reprimindo mais protestos.
- Mas... - começou a dizer.
- Juro-te, pelo próprio Coração, que os ouvi planear a tua morte! - repetiu ela com veemência. - Não te iria mentir sobre uma coisa dessas... nem arriscaria a tua vida e a minha na possibilidade de os conseguir convencer que tinhas apanhado a peste!
- Peste? - repetiu ele. - Envenenaste-me para que eles pensassem que eu estava com uma peste qualquer?
- Exactamente. - Ela sentou-se muito direita sobre os calcanhares, uma sugestão de prazer aparecendo por trás da sua preocupação. - E funcionou. Levaram os teus escudeiros e entaiparam
a porta da torre para que morresses aqui dentro. E há uns minutos ouvi o som de cavalos a partirem, por isso penso que devem ter levado os rapazes e fugido para a cidade em busca de segurança e dos médicos imperiais.
E como que para o confirmar, uma voz mais familiar e um tanto tremida, disse por trás dela.
- Aqueles homens exasperantes foram-se embora, querida. Trouxe o Jem e o Lew lá dos estábulos para abrirem a porta outra vez. Esse rapaz amoroso está bem?
- O rapaz amoroso já esteve melhor - disse Leopold secamente - mas agradeço-lhe a sua preocupação, senhora. – Voltou a tentar sentar-se e daquela vez Shelyra permitiu-lhe que o fizesse.
Era agora bastante óbvia a forma como a velhota, e a mulher mais nova, tinham entrado na torre. Uma parte da estante ao lado da lareira estava aberta, revelando uma passagem estreita que corria entre as paredes. O som das marteladas e da madeira a ser retirada que vinham do andar de baixo convenceu-o pelo menos de uma coisa: em vez de cuidarem dele e de correrem a ir buscar um médico imperial como deveriam ter feito, os homens que para ali tinham sido enviados, ostensivamente para sua protecção, tinham-no barricado ali para o deixarem morrer.
Então foi assim que ela ouviu os homens; e é por isso que ela sabe tantas coisas. Os dois palácios devem estar cheios de passagens, como buracos de bicho em madeira podre! Recostou-se, apoiando-se na cadeira atrás de si.
- Fala - disse por fim. - Eu ouço-te. Não prometo mais do que isso.
A fraqueza provocada por seis tipos de drogas diferentes abandonou-o lentamente enquanto a escutava. O moço de estrebaria e os seus ajudantes libertaram a porta e voltaram presumivelmente para as suas camas, visto não se terem dado ao trabalho de subir. A velhota foi à cozinha e voltou por um caminho mais convencional, trazendo brande aquecido, pão e queijo. Comeu e bebeu enquanto Shelyra falava, e o que ela tinha para lhe dizer fazia, infelizmente, todo o sentido. Pior, conjugava-se com factos que ele conhecia e não acreditava que fossem do conhecimento dela.
Evidentemente que, se ela andara a vaguear pelo interior das paredes como um rato orelhudo, podia saber essas coisas e estar a ajustar o que lhe dizia a esses factos. Mas então, porque lhe diria ela que Adele continuava viva e se escondia no templo, se o quisesse enganar?
- Não tens que acreditar em mim - concluiu ela. - Não sem teres pelo menos uma confirmação.
Interessante. Honesta. E parte do princípio que eu vou ter suspeitas.
- Posso levar-te à reverendíssima no templo, se acreditas nela. Ela dir-te-á as mesmas coisas que eu acabo de dizer, mas... - Parou e corou.
- Mas eu sinto-me mais inclinado a acreditar numa reverendíssima do que em ti, isso é verdade - disse ele gentilmente.
Não interessa que o templo seja em Merina; uma reverendíssima ao menos não mentiria. Tenho que acreditar nisso, ou tudo o resto em que eu acredito se torna inútil.
Experimentou pôr-se de pé, esperando cair de nariz no chão. Ficou surpreendido e agradecido quando isso não aconteceu. Fechou os olhos por instantes. Quanto mais depressa souber... Sentia-se simultaneamente ansioso para saber a verdade e desejoso de não ter que a saber.
- Podíamos ir lá agora, não podíamos?
Ela franziu ligeiramente o sobrolho e puxou uma madeixa de cabelo para trás da orelha.
- Creio que pelo menos um dos religiosos que eu conheço deve estar acordado. - Suspirou. - Espero que percebas que o que te vou mostrar agora tem sido um segredo da nossa família há muitos séculos. - Olhou-o com um olhar severo quando se pôs de pé a seu lado. - Eu nem sequer revelei estas passagens a um dos nossos aliados.
Ele assentiu, apercebendo-se de que não se recompusera tão completamente como pensara; a sala balançava um pouco quando mexia a cabeça.
- Shelyra, juro-te por minha honra que não utilizarei estas passagens sem a tua presença ou a tua permissão. Ficas satisfeita?
Estendera a mão sem pensar e fechara uma das mãos dela nas suas. Ela olhou para baixo por um momento, mas não tentou soltar-se.
- Se fosse outra pessoa qualquer - disse e depois abanou a cabeça. - No entanto, és tu. Sim, confiarei num juramento feito por tua honra.
Não lhe passou despercebida a ênfase que ela pusera no “tua” e pensou de quem seria a honra na qual ela não confiava.
Sorriu-lhe ligeiramente e ergueu-lhe a mão até aos lábios para a beijar antes de a soltar. Ela corou, mas retribuiu-lhe o sorriso.
- Vamos então - disse e indicou-lhe o caminho no interior das paredes.
Ele não percebeu porque é que ela estava preocupada com a possibilidade de ele aprender os segredos das passagens, pois já estava perdido antes de ter virado três vezes. A dado momento teve uma certeza bastante segura de que já estavam no exterior do palácio e quando começaram a subir, pensou que eram muito bem capazes de estar a subir as pontes do rio. Quando rastejaram ao longo de um túnel cilíndrico que não tinha mais do que metade da altura de um homem, teve a certeza de que estavam debaixo da própria ponte.
Saíram para a escuridão. Ele nunca tivera a experiência de atravessar uma cidade evitando as patrulhas dos soldados; mais uma vez a ideia que fazia das capacidades dela aumentou. Onde teria ela aprendido aquelas coisas? Talvez com os Senhores dos Cavalos; pensou ele antes de a seguir no percurso evasivo que faziam para evitar uma patrulha de dois casacos negros. Aquele não era exactamente o tipo de mulher que ele imaginara...
Mas também, quem dizia que tinha que ser? Se lhe parecia um tanto imprudente e impulsiva, naquele caso ainda bem que assim era. Doutra forma não teria confiado nele. Se não fosse imprudente e impulsiva. partindo do princípio que aquilo que lhe dissera acerca da ameaça à sua vida ser verdade, não o teria salvo.
O problema era que ela podia ter inventado a tentativa de assassínio e os factos, tal como ele os conhecia, continuariam a ajustar-se. Não era preciso ser-se traidor para trancar dentro do quarto uma vítima da peste - era unicamente preciso estar-se com medo. E o mais valente dos soldados do exército podia sentir-se justificadamente aterrado pela peste. Continuava a ter, por isso, as suas dúvidas e muitas delas eram profundas.
Estranhamente foi recuperando a força muscular e o controlo do seu corpo enquanto atravessavam a cidade, embora fosse ficando mais cansado. Levou-lhes imenso tempo a atravessar a cidade; já era quase madrugada quando chegaram ao templo.
Visto já faltar pouco tempo para o primeiro culto, puderam entrar aberta e decorosamente no templo. Ele começara a usar as suas roupas de caça vulgares e não o uniforme imperial quando fora exilado para o Palácio de Verão; não quisera usar o uniforme que já não tinha a certeza de honrar. Agora isso era-lhe vantajoso, visto não sobressair de forma nenhuma do pequeno grupo de pessoas que se dirigiam para o serviço religioso.
O serviço, estranhamente, confortou-o e acalmou-lhe algumas das suas emoções que estavam algo perturbadas. Depois do serviço, e seguindo o exemplo de Shelyra, dirigiu-se ao confessionário que esta lhe indicou.
Saiu de lá bastante abalado. Reconhecera a voz da mulher que estava no confessionário, era a voz da grande sacerdotisa Verit. Nunca esqueceria aquela voz enquanto vivesse. E nunca esqueceria o que ela lhe dissera no tom calmo e destituído de paixão daqueles que já viram demasiado para se emocionarem com os acontecimentos a que assistem. Ela dissera-lhe que, embora não tivesse pessoalmente conhecimento de uma tentativa para o matar, poderia confiar em Shelyra e que esta lhe diria a verdade.
Mas não fora isso que o deixara completamente abalado; fora o que ela lhe dissera acerca do conselheiro mais próximo do seu pai e seu mago pessoal. Pois Apolon era um necromante. Ele partira do princípio que o Mago Cinzento tivesse alguma coisa a esconder, mas nunca pensara que fosse aquilo! Não havia à face da Terra criatura mais vil do que um necromante.
E tudo o que Shelyra lhe dissera em relação à situação na corte do seu pai era verdade; na realidade, ela dissera-lhe menos do que Verit. A grande sacerdotisa tinha uma certeza bastante segura de que o imperador não sabia das verdadeiras actividades de Apolon nem da origem do seu poder, mas era inelutável o facto de que o imperador não se dera ao trabalho de o descobrir.
Saiu do templo sentindo-se como se o chão por baixo de si se tivesse tornado subitamente tão transparente como o ar; como se o mundo girasse na direcção errada e continuasse, mesmo assim, girando sobre si próprio. Shelyra agarrou-lhe no braço assim que ele saiu, o que lhe convinha. Naquele momento não conseguiria sair do seu próprio quarto.
- Vou levar-te a um sítio onde poderás descansar – disse ela baixinho.
Tudo o que ele conseguiu fazer foi assentir e deixar que ela o conduzisse pelos degraus do templo, a sua mente numa confusão total.
APOLON
A tempestade acabou depois de três dias de chuva torrencial, dando lugar a quatro dias secos, que era tempo mais do que suficiente para Apolon se instalar. O terror encheu a Casa do Javali e, numa sala grande da cave, o ar estava impregnado do odor espesso e metálico do sangue. Apolon estava no seu elemento e sentia-se bastante satisfeito. Finalmente, depois de tantas coisas lhe terem corrido mal, a maré virara a seu favor. Tinha a sua fortaleza, onde podia trabalhar em segredo e sem interferências e Cathal estava a cooperar de forma bastante satisfatória. Agora que Adelphus era uma marioneta necromântica, daquele lado já não surgiam mais problemas.
E muito em breve aquele jovem idiota e inconveniente, Leopold, estaria também fora do seu caminho. O seu agente ainda não se apresentara para fazer o relatório quando se isolara ali para iniciar o seu trabalho, mas estava certo de que seria bem sucedido naquela iniciativa. A vida, em geral, corria-lhe bem.
Agora o Mago Cinzento estava absorto no seu trabalho; a noite estava quase a terminar e ele ainda não usara todos os seus prisioneiros. Metade deles tinha sido destinada, quer a alimentar o demónio do sangue que sujeitava os espíritos das novas marionetas aos seus corpos, quer a alimentar a entidade que habitava o seu bastão. Só sangue e corpos humanos serviam para aquele fim; nenhuma daquelas entidades aceitava sangue de animais. Os prisioneiros que eram sangrados para alimentar quer uma, quer outra entidade, não serviam depois para marionetas; tanto o demónio do sangue como o do bastão retiravam a vitalidade do corpo juntamente com o seu sangue, o que tornava impossível reanimá-los depois, embora o espírito ainda pudesse ser sujeito ao corpo, se fosse suficientemente rápido. Não havia razão para que o fizesse, pois um espírito sujeito a uma coisa que não se podia mover nem falar era totalmente inútil.
Embora uma vez ele tivesse feito isso mesmo a um certo inimigo, permitindo que o homem fosse depois encontrado, aparentemente morto com um ataque cardíaco. Sentira um enorme prazer ao assistir ao funeral, sabendo que o espírito fora, para todos os efeitos, enterrado “vivo”, sabendo o que lhe estava a acontecer e impotente para se libertar.
A outra metade dos seus prisioneiros tinha-se tornado em marionetas naquela noite, morrendo às suas mãos e depois enviados para o mundo dos vivos para substituir os casacos negros vivos e os casacos negros não-vivos que tinham sido vítimas das depredações dos locais. Desses, nunca recuperara a maioria; tinham sido provavelmente atirados aos canais e arrastados para o mar. Do que lhes aconteceria, ele não estava certo; a água salgada e a água corrente conseguiam, com o passar do tempo, provocar a erosão dos seus feitiços, e talvez os espíritos se libertassem dos corpos antes que os tubarões e outros peixes os devorassem. Ele próprio tinha libertado alguns, quando tinham voltado das patrulhas num estado tal que já não tinham qualquer utilidade para o seu serviço.
Agora estava muito fatigado, com a madrugada muito próxima e deixara para o fim da noite de trabalho o tipo de escumalha que estava certo seria fácil de subjugar. Eram todos criminosos e não a ralé aterrorizada dos bairros degradados ou homens que se encontravam na rua depois de escurecer e tinham tido a pouca sorte de encontrar uma das suas patrulhas. Os agentes que colocara em Merina meses antes da invasão tinham identificado alguns espécimes de “qualidade” entre o grupo que lhe enchia as cisternas. Na sua maioria estavam tão imbuídos de crime, que fora muito fácil ultrapassar a sua resistência; não estavam interessados em passar para o outro mundo e um ou dois tinham-se agarrado aos seus corpos de forma tão determinada, que o demônio do sangue tivera muito pouco trabalho. Esses, no fim do processo, eram os que davam melhores servos. Mantinham uma certa perícia no que respeitava a aterrorizar os locais, como se ainda tirassem prazer desse tipo de comportamento.
A sua última selecção para a noite deveria ser a mais fácil: um ladrão e libertino afamado que dava pelo nome de Thom Talesmith. Pelas histórias que ouvira daquele homem, este era provavelmente também um assassino e estava certamente de tal forma coberto de crimes, que colaboraria com o demónio do sangue para se manter ligado à Terra.
Cruzou os braços no peito e observou cuidadosamente o homem quando o trouxeram. Este debatia-se nos braços de duas das mais fortes marionetas de Apolon e mantinha uma atitude
desafiadora. Ficou um pouco surpreendido com a aparência do homem. Habitualmente, os ladrões com a reputação daquele que ali estava eram homens endurecidos e com mau aspecto.
Este era diferente. Jovem e bem parecido, parecia um dos rapazes ingénuos e inocentes que se podiam encontrar entre os aprendizes dos prósperos mestres das Guildas...
Momentaneamente, Apolon sentiu-se invadir por uma raiva irracional e os seus punhos cerraram-se involuntariamente. Se ele tivesse tido as vantagens do outro, nunca teria necessitado de trabalhar, lutar e esgravatar, até conseguir chegar à sua presente situação; teria utilizado aquela beleza ingénua, teria obtido poder e riqueza através da sedução...
Mas acalmou-se rapidamente. Se tivesse sido bem parecido, poderia muito bem ter seguido o caminho fácil que aquele idiota seguira, confiando na sua beleza para enganar a arraia-miúda em vez de a usar para vigarizar peixe mais graúdo; deixando que o seu intelecto tivesse definhado. E nesse caso... poderia muito bem ter acabado, um dia, prisioneiro de um tipo mais esperto. Poderia ter dado por si a aguardar o mesmo destino que aguardava este Thom Talesmith.
Apolon tomava sempre a precaução de amordaçar os prisioneiros que sabiam o que os esperava; eles lançavam-lhe frequentemente insultos e imprecações que perturbavam a sua concentração. Talesmith olhava-o com raiva por cima da mordaça, mas os lacaios humanos que tratavam desses pormenores eram muito eficientes no seu trabalho e o máximo que ele conseguiu
produzir foi um grunhido abafado e um rosnido impotente.
Sem dúvida que o imbecil esperava que Apolon pontificasse naquela situação e lhe explicasse, com grande pormenor, a terrível sorte que o aguardava. E que lhe explicasse ainda o que levara o Mago Cinzento a tais acções. Era até capaz de esperar que Apolon se vangloriasse acerca dos seus planos para o futuro.
Tudo isso levaria imenso tempo... e seria terrivelmente ineficaz. E Apolon era absolutamente eficiente.
- Em breve compreenderás tudo - disse Apolon friamente e tirou o punhal cerimonial da manga, enterrando-o directamente no coração num golpe calculado para matar rapidamente, mas não tão rapidamente que o demónio do sangue não tivesse tempo para agir.
Viu-se muito pouco sangue; com toda a sua prática, Apolon era um perito em matar sem derramar muito sangue. Queria que as suas marionetas fossem tão-pouco danificadas quanto possível; isso faria com que tivesse muito menos estragos para reparar depois. Lançou para cima do corpo a sua rede especialmente tingida em sangue, enquanto este se afundava nas mãos das suas marionetas.
Estas deixaram o corpo cair no chão, enquanto um terceiro escravo alimentava o demónio do sangue com o sangue extraído ao prisioneiro morto antes do ladrão. Depois recuaram todos numa coreografia tão bem ensaiada, que ele já não tinha que lhes dar ordens. Os olhos do ladrão começavam a vidrar-se e o último suspiro corria-lhe na garganta. A coordenação, como era habitual, fora perfeita.
Apolon ergueu as suas mãos e o seu poder, chamou a atenção do demónio do sangue que estava absorto no seu banquete e apontou para o corpo e espírito encurralados.
- Sujeita - disse ao espírito do sangue.
E foi então que os seus planos cuidadosamente arquitectados se desmoronaram. Antes mesmo do demónio do sangue poder começar a agir, o espírito encurralado do ladrão ergueu-se e começou a rasgar a delicada teia de magia. Os seus esforços eram muito determinados e muito, mas muito mais fortes dos que Apolon já alguma vez enfrentara nas suas anteriores sujeições de espíritos!
Apolon recuou um pouco por instantes; nunca, em todo o período em que usara prisioneiros para fazer marionetas, um deles tentara combater a sujeição com aquele tipo de determinação feroz! Que tipo de homem fora aquele?
Lançou a sua magia rapidamente para a teia, sentindo o poder escoar-se dele como se tivesse uma ferida aberta de onde corresse uma hemorragia. Virou a sua vontade para o espírito e
tentou subjugá-lo. Este afastou os seus esforços como alguém faria com uma mão que, inconvenientemente, lhe pousasse no ombro e atacou a rede com vigor e desespero renovados.
Ele redobrou os seus esforços. Ainda assim, o espírito lutou contra ele... e quando o demónio do sangue o atacou, com os seus poderes e garras etéreos em evidência, o espírito desviou a atenção da rede e atacou-o directamente!
O demónio do sangue recuou perante a ferocidade do ataque e tentou fugir... e o espírito que residia no bastão despertou com um interesse indolente.
Pela primeira vez em vinte anos, o pânico assolou a negra alma de Apolon; um pânico que o invadiu e lhe cerrou a garganta, que o cobriu e prendeu nas garras frias do medo. Se o demónio do sangue fugisse ao seu controlo, virar-se-ia contra ele e a entidade no bastão poderia aproveitar-se da situação...
Não, a entidade do bastão aproveitar-se-ia da situação! A sua aliança com ela era, na melhor das hipóteses, ténue e baseava-se no seu poder aparente. Se ela se apercebesse de que ele estava a perder esse poder, agiria e atacá-lo-ia concertadamente com o demónio do sangue. E enquanto que o demónio do sangue por si só não lhe poderia causar danos, a coisa que estava no bastão certamente que o faria!
Rapidamente, pegou no punhal cerimonial e cortou o seu próprio braço, alimentando o demónio do sangue com o seu próprio sangue para o aplacar e fortalecer.
Com poder renovado, o demónio voltou a atacar o espírito que lutava. Apolon aproveitou a distracção do espírito para agarrar numa poção e bebê-la de uma só vez. Pagaria por aquilo... mas só depois de o espírito ter sido subjugado. Não se atrevia a deixá-lo livre agora, não com a entidade do bastão a observá-lo.
Não se atrevia a fazer nada que cheirasse a fraqueza.
Instantaneamente as drogas da poção libertaram um fluxo de energia e poder e ele via agora auras de poder que eram invisíveis aos seus sentidos em estado normal. O espírito era uma luz branca, brilhando intermitentemente contra o verde enjoativo do demónio. Ele próprio irradiava uma luz escura; se existisse um fogo negro, estaria envolto nas suas chamas. Concentrou essas energias no espírito, determinado a subjugá-lo, fosse qual fosse o custo para si próprio.
Por fim foi um combate de vontade contra vontade e Apolon teve que beber uma segunda poção para vencer a batalha. Enquanto a poção ainda fazia sentir os seus efeitos, sujeitou o espírito ao corpo e lançou-lhe feitiços para que esquecesse o que fora anteriormente e lhe obedecesse unicamente a ele, quando lhe desse as suas primeiras ordens verbais. Despediu o demônio do sangue, satisfeito e dessedentado, e a entidade do bastão perdeu o interesse nele, voltando a beber com satisfação e gula o sangue que lhe dera.
O que teria dado a um homem tão improvável o poder para resistir tão fortemente? Nunca teria esperado que Thom Talesmith, ladrão, sedutor, libertino com as mulheres, fosse devoto! E no entanto essa era a única explicação que ocorria ao espírito exausto de Apolon enquanto ligava a ferida que tinha no braço e abandonava a sua câmara de magias sangrentas.
O ladrão deveria ter sido, por mais inverosímil que parecesse, um bom homem e um filho fiel da Deusa. Não poderia ter sido um santo, ou teria tido direito a ajudas sobrenaturais... mas fora suficientemente bom para que, não fossem os muitos recursos de que Apolon dispunha para além dos seus poderes próprios, o Mago Cinzento nunca o tivesse conseguido conquistar.
Com uma mão na parede para compensar o rápido desaparecimento das suas forças, Apolon apressou-se a ir para o seu novo quarto, que estava bem protegido com todas as magias protectoras que conhecia. Naquela noite, ou antes naquela manhã, elas ser-lhe-iam todas muito necessárias. Estava completa e absolutamente exausto, e se qualquer coisa o tentasse atacar, fora daquele quarto protegido, ele não seria capaz de se defender.
Felizmente que não escolhera um quarto muito longe; conseguiu pôr-se a salvo antes dos últimos vestígios da poção desaparecerem e caiu literalmente na cama, completamente vestido, a consciência desaparecendo com o efeito das drogas.
Às quatro marionetas deixadas na câmara das magias sangrentas não tinham sido dadas quaisquer ordens antes de o seu senhor ter fugido dali. Para três delas aquilo não era nada perturbador para os seus pensamentos vagos e enevoados. O seu amo já os tinha deixado sem ordens anteriormente e provavelmente voltaria a fazê-lo de novo. E, naquele caso, a ordem que anteriormente lhes tinha sido dada fora para ficarem onde estavam até que ele voltasse.
Mas à quarta não tinham sido dadas quaisquer ordens, anteriormente ou não. Na realidade, nem sequer lhe fora ordenado que obedecesse. Por isso, obedeceria à última pessoa a quem jurara lealdade.
Ergueu-se do local onde caíra e ficou de pé no meio da sala. Se houvesse ali alguém que o pudesse observar, veria a testa da marioneta enrugar-se ligeiramente, enquanto esta tentava perceber o que lhe acontecera através de um nevoeiro de feitiços e coerções. Havia algo que tinha que fazer.
Tentou dar um passo na direcção da porta e sentiu vagamente que ia na direcção certa. Depois deu mais um e mais outro e seguiu o impulso, saindo a porta e atravessando o átrio. Tinha-lhe sido vestido um fato negro antes de ter sido levado à câmara do Mago Cinzento, por isso nem os servos humanos, nem as outras marionetas, lhe prestaram qualquer atenção. Se se movia, era certamente de acordo com as ordens do amo. Era assim que sempre fora; não havia razão para suspeitar agora de quaisquer mudanças.
Havia alguém que tinha que... Tinha que... o quê? A marioneta lutava para descobrir o que
era que tinha que fazer enquanto saía da Casa do Javali, descia as escadas principais e desembocava na luz fraca e cinzenta de um dia nublado. Que era que tinha que fazer? Havia alguém que tinha que avisar!
Mais uma vez sentiu a sensação de que estava certa. Ficou de pé por longos instantes nos degraus da Casa do Javali e depois, seguindo um vago sentido de que aquela era a direcção exacta, virou-se para sul. Sentiu que estava na direcção certa. Quem quer que tivesse de ser avisado, devia estar naquela direcção.
Começou a andar. Saberia quem teria de avisar quando lá chegasse. Saberia quando tivesse chegado ao sítio certo, porque esse lugar faria surgir uma sensação de certeza. Reparou que havia muitas criaturas vestidas da mesma maneira que agora estava vestida, indo todas na mesma direcção. Por falta de outra pista, seguiu-as. Ao fim de algum tempo, já a luz era mais forte, chegou a um grande edifício.
Templo, disse uma memória, e algo naquele edifício fazia com que a marioneta lá quisesse entrar. Quisesse muito.
Era como uma dor, vaga e distante, mas uma dor que ia para além do corpo e cortava mais do que uma faca. A dor pararia se entrasse no templo. Mas quando tentou fazê-lo, descobriu que não conseguia sequer subir os degraus. Havia algo que o fazia parar; tentava avançar e não conseguia. A dor aumentava quando tentava mexer-se e soube que lhe estava a ser negado algo de importante, embora não conseguisse recordar o que era.
Sentindo-se frustrada, virou-se... mesmo a tempo de ver umas quantas pessoas vestidas de forma diferente da sua e das outras marionetas, que saíam do templo.
E entre elas estava uma que reconheceu, acompanhada de outra que não reconheceu. Ignorou a segunda, mas a primeira era importante...
Na verdade, era a primeira a que ele queria! Começou a andar, desajeitada mas rapidamente, na direcção deles.
LYDANA
Matild acordou estremunhada, sentindo-se como alguém que tivesse sido levado aos extremos da exaustão. Pestanejando na luz crepuscular, sentiu-se confundida, como se todo o seu mundo tivesse sido virado do avesso. Depois a memória ocorreu-lhe rápida, como o fogo de uma pederneira.
Virando a cabeça sobre uma almofada muito dura, viu Eel a seu lado, com o aspecto de quem se preparava para ter uma paciência infinita. Ao encontrar os olhos de Matild, agora abertos, sorriu.
- Fome?
A palavra poderia ter sido a chave que abrira uma dor dentro de si.
- Sim!
Não tentou sentar-se imediatamente, mas de onde estava deitada olhou para a outra enxerga onde Saxon estivera deitado. Estava vazia. À pouca luz do sótão apercebeu-se de que havia inúmeras idas e vindas, e de que as conversas eram mantidas em murmúrios.
Eel voltou tão rapidamente quanto partira e sentou-se de pernas cruzadas a seu lado, com um prato lascado numa das pequenas mãos e uma caneca em mau estado na outra. O nariz de Matild franziu-se com o odor forte a peixe. O rapaz sorriu.
- Também trouxe um pouco de pão... estive a guardá-lo para ti. Mas agora quase só vivemos de peixe...
Por fim, Matild sentou-se e agarrou no prato. Não havia talheres e ela percebeu que ali as pessoas comiam com os dedos. Mexeu no peixe, arrancando alguns bocados e comeu esses mesmos com a ajuda de um pedaço circular daquilo que reconheceu ser pão de bordo. Acompanhou com golos apressados de uma bebida muito amarga que não reconheceu.
- O capitão?
- Anda por aí, com os melhores dos homens. Ele e o Jonas estiveram a conversar durante bastante tempo e desde então não pára de entrar e sair gente. Aqui estamos seguros... por
enquanto...
Haveria ali um tom de dúvida?
- Que aconteceu na cidade? - certamente que a fuga de Saxon teria causado algum alvoroço.
- Bem. - Eel remexeu-se um pouco como se procurasse a posição mais confortável. - A tempestade causou muitos estragos, tantos como aquela outra, de há muitos anos, e inundou a praça do templo. Manteve as ruas vazias de esquadrilhas de busca durante dois dias ou mais...
- Dois dias! Há quanto tempo é que estamos aqui?
- Há uns seis dias ao todo, talvez mais... é difícil manter a noção do tempo quando não há luz do dia. Tu estiveste muito ocupada com o capitão durante os primeiros dias.
Seis dias ou mais! Estivera fora de acção durante todo esse tempo... podia ter acontecido um desastre qualquer...
- Não podes atender a tudo. - Mais uma vez Eel captara os seus pensamentos. - Os casacos negros já estão novamente nas ruas e com eles alguns soldados... embora não pareçam trabalhar muito bem juntos. Agora, o jovem príncipe... uma pessoa acaba por pensar que ele se preocupa realmente com a cidade, pela forma como treinou tão bem as suas tropas. Os homens dele têm estado a tentar ajudar sempre que isso lhes é possível. Embora esse tipo de ajuda seja inconstante.
- Apolon... Cathal...
- O mago tem os seus casacos negros a envolver completamente as paredes do templo, mas até agora ainda não fez nada. O general... esse voltou ao acampamento, provavelmente para fazer o relatório ao imperador, que não demonstrou qualquer interesse visível pelo que aconteceu na cidade.
Ouviu-se um rebuliço na outra ponta do sótão e um grupo do seu exército andrajoso entrou imediatamente atrás de dois homens que conversavam. Saxon trazia vestida uma couraça leve de combate, do tipo preferido pelos homens do mar e Jonas trazia o peito largo coberto por um peitoral de metal amolgado e um capacete cobria-lhe a cabeça careca.
Os olhos de Saxon olharam-na de relance e deixou os seus companheiros, indo ter imediatamente com ela.
- Como estais, senhora minha?
Ela ergueu os olhos para o seu rosto onde os sinais do espancamento cruel quase já não se viam.
- E tu, como estás? - replicou ela.
Ele mexia-se com facilidade e parecia alerta e pronto para a acção, como se nunca tivesse jazido sob as suas mãos, devorado pela febre e aprisionado pela dor.
- Estou bem.
Estendeu-lhe a mão e ela, sem pensar, apertou-lha. Ele pô-la de pé e levou-a até uma mesa, em redor da qual um banco comprido e a maioria dos bancos mais pequenos já tinham sido ocupados, conduzindo-a até um lugar vago ao lado de Jonas e onde se podiam sentar juntos. Jonas já estava a remexer nas suas anotações nas cordas cheias de nós.
- Trouxeram pelo menos mais vinte barcos depois de a tempestade ter amainado. E perderam alguns dos seus corvos agoirentos ao fazê-lo, o que calha até muito bem - ribombou a sua voz. - Pensamos que eles têm pelo menos três dos cargueiros cheios. Claro que uma boa parte da frota foi destruída, mas os pescadores das outras margens mandaram-nos uma mensagem dizendo que há uma frota que se aproxima.
- A frota do imperador. - Saxon afirmou mais do que perguntou. Depois disse rapidamente a Matild. - Têm levado homens da cidade e têm-nos metido nos nossos próprios navios, nos maiores e mais resistentes, com que objectivo não o sabemos. Talvez que a frota que se aproxima venha para os levar...
- Não se vêem muitos soldados verdadeiros – interrompeu Jonas. - Na sua maioria são corvos agoirentos e alguns mercenários como os que seguem Cathal. Corre por aí uma nova história acerca dele... é melhor que a ouças já, capitão. - Virou um pouco a cabeça. - Tragam-no para cima, rapazes!
Quatro dos ratos do rio apareceram rodeando o prisioneiro tão de perto, que Matild não o conseguiu ver verdadeiramente até ele ter sido atirado para o meio do círculo de luz que provinha da lanterna dupla colocada ao fundo da mesa.
Parecia ter sido quase tão espancado como Saxon fora, mas conseguia manter-se de pé, embora cambaleasse. O seu capacete tinha desaparecido assim como a cota de malha e as suas armas e por baixo da cava do seu gibão de cabedal acolchoado via-se uma ferida sangrenta. Olhou para o grupo e nos seus olhos não havia esperança.
Mas, Matild inquietou-se, ele pouco mais era do que um rapaz, embora parecesse ser um dos mercenários!
- Apanhámos este aqui - disse um homem, que tinha um gancho no lugar de uma das mãos e que ela recordava vagamente já ter visto, com o ar de um polícia que faz o seu relatório - num barco lá mais para cima. Ele diz que já não é um homem do Balthasar.
O rapaz corou enquanto Saxon o observava.
- E o que é que provocou essa conversão? – perguntou Saxon.
- Ele... ele chicoteou o Quin até os ossos ficarem à vista! O Potton foi condecorado por bravura com a Águia do Imperador... ele... ele tirou-lhe os olhos e pior... - O rapaz mordeu o lábio inferior e Matild viu que fazia sangue. - Eu... - O rubor transformara-se numa palidez esverdeada e subitamente vomitou; os seus captores afastaram-no da mesa mesmo a tempo.
- Dá-lhe de beber - ordenou Saxon.
O mercenário tremia. Os seus guardas mantinham-se um pouco afastados dele. Matild já vira homens em situações difíceis, mas aquela fraqueza era provocada, na sua opinião, pelo horror e pelo desespero.
- Quem é que fez isso? - perguntou Saxon calmamente, depois de terem chegado um garrafão aos lábios do homem, visto os seus braços estarem presos atrás das costas, e de ele ter dado vários golos. O homem lutava de forma muito evidente para se conseguir controlar.
- O general... Cathal. Ele... ele enlouqueceu. Escolhe um homem, sem razão nenhuma, e manda chamar os seus torturadores de estimação para o trabalharem.
- O imperador permite uma coisa dessas? - continuou Saxon no mesmo tom de voz calmo.
- O imperador... não sabe... ou se calhar não quer saber - explodiu o prisioneiro. - Aqueles casacos negros estão agora tão próximos dele... eles e aquele mago! Mas Cathal... tortura homens inocentes sem qualquer razão... parece que enlouqueceu!
- Assim, com camaradas teus a passarem por isso, resolveste ires-te embora? - Saxon abanou a cabeça em assentimento. - Bem, parece-me que não há ninguém que te possa criticar. Mas o Cathal continua no acampamento?
- Até agora sim. Há também a guarda do imperador, que não recebe ordens do general, mas os corvos agoirentos mantêm-nos afastados do imperador. Agora o príncipe, esse é um guerreiro decente, sempre tratou bem os seus homens... sempre os defendeu. Mas todos dizem... - Agora parecia muito desejoso de falar e Matild perguntou-se se seria por desejo de agradar aos seus captores ou devido ao ódio feroz que nutria pelo general. - Eles dizem que o imperador mantém o príncipe afastado dele e que lhe tirou o comando. Embora ninguém saiba por quê... é capaz de ser mais um dos truques do mago.
- Dize-me uma coisa, se souberes, homem de armas: que tenciona o imperador fazer com os homens que prendeu aqui na cidade e enviou para serem mantidos nos barcos que estão no porto? - Saxon inclinou-se um pouco para a frente, mantendo o olhar do outro preso no seu.
O rapaz abanou a cabeça.
- A nós ninguém nos disse nada acerca disso, senhor. Isso também é trabalho dos casacos
negros. - De repente estremeceu como se tivesse sido envolvido por um vento frio e invernoso. - Aquele... Apolon... ele tem os seus próprios homens e criados... não nos misturamos com eles e ele também nunca tenta dar-nos ordens. É como... como se fosse um homem completamente diferente. Se forem ao acampamento deles... não há ninguém à volta das fogueiras a conversar, à noite. Nem sequer bebem quando as garrafas da vitória são passadas de mão em mão depois de uma batalha... é como se não fossem verdadeiros homens.
Mortos-vivos, pensou Matild.
- E são eles que estão encarregues desses prisioneiros?
- Tanto quanto sei, senhor.
- Senhora - Saxon virou-se para ela. - Tendes aquilo que é necessário para saber se o que um homem diz é verdadeiro ou falso...
Ela levou a mão ao peito; as pedras ocultas libertaram calor sob os seus dedos. Mas ela nunca pensara em usá-las daquela forma... porque teria aquilo ocorrido a Saxon? Contudo, naquele momento, soube que a confiança dele nos seus amuletos estava certa.
Soltou o pregador e pousou-o na palma da mão, cobrindo a marca do Coração que a ligava àquele serviço que não compreendia nem sequer parcialmente.
- Juras pelo Coração?
Ergueu as pedras e Jonas e Saxon recuaram um pouco, para que não houvesse ninguém entre eles. Ele nem sequer baixou os olhos para o que ela tinha na mão, mantendo o olhar fixo no dela. Depois, numa voz muito baixa, respondeu:
- Senhora, quem possais ser não faço ideia, mas... mas há em vós uma qualidade que não pode ser negada. Procurais a verdade e eu dou-vo-la. Sim, juro que aquilo que disse é a verdade tal como a conheço.
A uma ordem de Saxon desataram-no e foi mandado deitar-se numa enxerga a um canto, enquanto eles discutiam o que dissera.
- Cathal sempre foi um homem sanguinário e sempre se deliciou a infligir terror - disse Matild.
Depois uma ideia atingiu-a e sentiu um agudo sentimento de culpa. Ele era um monstro, de acordo com todas as histórias de guerra que no passado tinham chegado a Merina, mas agora tinha em sua posse uma jóia com uma carga de mal tão potente, que seria rejeitada, devido ao seu passado horrível, por qualquer pessoa normal. Fechou a mão com força sobre o pregador.
Se pequei ao fazê-lo, não proferiu as palavras em voz alta, mas os seus pensamentos foram claros e precisos, então que seja eu a carregar o pecado. Não o vires contra outros que nada fizeram de errado.
Quase esperava que o rubi se incendiasse, que pudesse mesmo queimar completamente a carne que o envolvia, mas isso não aconteceu. Sentiu apenas um fluxo de calor reconfortante, um pulsar de energia, a sensação de que as suas acções se enquadravam num padrão estabelecido.
- Vamos atacar os navios-prisão - disse Saxon e ela ouviu um grunhido de assentimento vindo de todos os outros que os rodeavam.
LEOPOLD
Tudo aquilo em que acreditei sobre a honra do meu pai era mentira.
Era esse o único pensamento que destruía as fundações do mundo de Leopold. Ele pode não ter conhecimento oficial das actividades de Apolon, mas ignorou deliberadamente as suspeitas. Sabe de Cathal e apoia o que o seu general faz. Vive de acordo com aquilo que lhe é mais conveniente. Honra e verdade não passam de palavras para ele.
Ele e Shelyra não tinham percorrido senão uma pequena distância a partir dos degraus do templo quando, apesar do seu estado confuso e atordoado, os seus nervos gritaram num súbito alerta.
Aquilo conseguiu penetrar o seu estado de confusão; fora soldado durante o tempo suficiente para dar imediatamente ouvidos aos seus instintos. A crise de consciência poderia esperar até que estivesse em segurança e tivesse o tempo necessário para a resolver.
Olhou discretamente para a praça fronteira ao templo, por forma a que a sua observação não fosse óbvia. Depois de ter observado o que o rodeava, não seria preciso um sábio para descobrir a razão da excitação dos seus nervos. A área em volta do templo estava rodeada pelos casacos negros de Apolon, embora não tivesse havido sinais deles quando ele e Shelyra ali tinham chegado; deviam ter avançado durante o serviço religioso. Alguns deles estavam parcialmente ocultos, espreitando por trás das esquinas ou de janelas; outros estavam ali abertamente e com ar de desafio, como se estivessem a provocar as autoridades do templo para que os enfrentassem.
Um deles avançava na sua direcção com um passo curiosamente rígido e desajeitado, como se tivesse sido drogado, ou como se estivesse estado sentado na mesma posição durante tanto tempo, que as suas pernas tivessem adormecido.
Havia mais qualquer coisa estranha naquele homem; talvez o seu próprio encontro com a morte tivesse tornado Leopold mais sensível a esse tipo de coisa... enquanto o príncipe o observava, algo de muito estranho se tornou visível em torno do homem. Parecia haver uma sombra que envolvia o casaco negro, um miasma escuro, como uma teia, que o amortalhava e obscurecia o seu rosto.
O príncipe abanou a cabeça e esfregou os olhos, mas a sombra permaneceu e mais, fazia com que ao olhá-la directamente se sentisse um pouco enjoado. E quando se virou para observar outro dos casacos negros, ficou espantado ao ver o mesmo; aquela sombra escura cobria-os a todos. No entanto, essa sombra não envolvia os cidadãos vulgares, nem mesmo um ou dois soldados imperiais que avistou.
Antes que pudesse dizer palavra, Shelyra avançou na direcção do casaco negro, no seu rosto a imagem do choque.
- Thom? - murmurou ela. - Que aconteceu? Que se passa contigo? Por que é que...?
Para lá da sombra, o homem poderia ser belo; era novo e bem parecido, com a beleza inocente dos heróis das lendas. O casaco negro tentou responder: a sua boca mexeu-se, o seu rosto contorcendo-se de tensão, como se estivesse a lutar contra um constrangimento interior.
E Leopold, observando-o com aquela curiosa visão dupla, viu a teia de escuridão que o cobria mover-se e obscurecer-lhe ainda mais o rosto e em particular a boca.
Finalmente, e após um momento agonizante e interminável de uma luta terrível, o casaco negro conseguiu proferir duas palavras em resposta às questões de Shelyra.
- Avisar... - disse numa voz rouca. - Avisar... tu...
- Avisar-me? - perguntou Shelyra, abanando perplexamente a cabeça.
Leopold não a conseguia perceber... seria ele o único a conseguir ver aquelas sombras sinistras? Ou não passariam as sombras de alucinações? Mas se eram alucinações... por que sentia tanto medo quando as olhava? Quanto mais tempo as olhava, mais gelada ficava a sua alma e, no entanto, Shelyra parecia não ver nem sentir nada.
- Avisar-me de quê? Acerca de quem?
O casaco negro aproximou-se mais e depois parou, cambaleando, o seu rosto contorcendo-se, enquanto lutava contra o constrangimento, qualquer que ele fosse, que o acometia.
- Avisar... - repetiu ele e a escuridão concentrou-se e cobriu-lhe completamente a cabeça e os ombros, fazendo-o arquejar. - Apolon...
Que coisa horrível e maligna poderia ter aquele efeito? Como poderia Apolon ter tal controlo sobre alguém... Subitamente um assomo de intuição iluminou tudo e fê-lo sentir-se doente. Leopold agarrou no braço de Shelyra e puxou-a para junto de si para lhe poder falar ao ouvido.
- Ele é um deles! - murmurou com veemência. - Não compreendes? Olha para ele! Quase não respira! Toca-lhe e verás que a sua carne é tão fria como a água do canal! O que quer que ele fosse da última vez que o viste, agora está morto! Apolon matou-o, é disso que ele te está a tentar avisar!
Shelyra girou sobre si própria para olhar, primeiro para ele, depois para o casaco negro e o seu rosto ficou com a palidez da morte. Os seus lábios contorceram-se e ela levou a mão à boca como que para reprimir um vómito.
- Oh, Deusa... - murmurou por trás da mão. - Não...
Leopold assentiu sombriamente; não se deu ao trabalho de lhe explicar a sombra que via sobre o rosto do casaco negro.
- Ele fala como o homem que conheceste? - disse. - Parece-te que age normalmente? Há quanto tempo é que ele está desaparecido?
- A tempo suficiente para isto - disse ela inexpressivamente e estendeu a mão para tocar ao de leve nas costas da mão do homem.
A rapidez com que a retirou disse a Leopold que a sua suposição estivera correcta; a pele do homem estava fria como a de um sapo. Era um morto-vivo; um escravo da necromancia do seu senhor Apolon. Como conseguira libertar-se o suficiente para os avisar era um enigma para o qual Leopold nunca teria provavelmente a resposta, pois não era um mago. O importante era que ele o fizera e que viera ter com Shelyra. Ela abanou a cabeça, atordoada.
- Que é que vamos fazer? - disse ela com a voz cheia de preocupação em pouco mais do que um sussurro.
Falava com Leopold, que não pôde senão abanar a cabeça. Não era nenhum mago, como é que haveria de saber o que fazer?
O sussurro dela fora suficientemente alto para que a... criatura a tivesse ouvido e reagisse. O seu rosto contorceu-se novamente, desta vez com uma expressão de desespero. Estendeu uma mão desajeitada num gesto implorativo.
- Liberta-me... - soluçou e uma única lágrima soltou-se de um dos olhos e correu-lhe pela face.
Aquilo foi mais do que Leopold podia suportar. Aquela coisa podia ser uma marioneta fruto da necromancia, mas dentro dela estava encurralada uma alma humana. Ele sentiu isso mesmo, embora não tivesse qualquer razão racional para tirar aquela conclusão.
- Libertar-te? - disse Shelyra à criatura. - Thom, o que queres dizer? Como podemos nós libertar-te? - Um assomo de esperança iluminou-lhe a expressão. - Estás... isso é só um feitiço; estás só sob um encantamento qualquer? Se te libertarmos voltarás a ser como eras?
Leopold não se deu ao trabalho de lhe explicar o que pensava que o casaco negro quisera dizer; as explicações podiam ficar para mais tarde, quando não estivessem sob o olhar de vinte ou trinta outros casacos negros.
Ele quer que libertemos a sua alma do seu corpo, que o libertemos da escravidão de Apolon. Só há umas quantas pessoas que eu conheço que o poderiam fazer e estão todas no edifício atrás de nós!
- Temos que o levar para o templo - disse ele na sua voz de comando mais firme. - Mas não abertamente...
Tal como ele esperara, ela reagiu positivamente à voz de comando; perdeu a expressão de
pânico e assentiu.
- Pega-lhe num braço... eu pego no outro - disse ela. - Sei de uma forma de lá entrarmos.
Ele agarrou no braço direito da criatura e ela no esquerdo, como se fossem grandes amigos. Foram-no arrastando e Shelyra falava com a criatura como se estivessem a manter uma conversa.
- Põe o ar de que acabámos de descobrir que ele é um parente há muito desaparecido - murmurou ela para Leopold, disfarçando com a conversa que ia tendo. - Tenho que o encaminhar na direcção do palácio.
Ele assentiu e seguiu-a. Ela sabia para onde estava a ir... provavelmente ia entrar em mais uma das suas passagens secretas. E isso era óptimo, pois ele estava certo de que nem todos os servos de casaco negro de Apolon eram marionetas fruto de necromancia e quanto mais depressa saíssem das suas vistas, menos provável seria que um dos casacos negros que ainda eram humanos se interrogasse acerca do que faria uma das marionetas comdois amigos merinianos.
Assim esperava que acontecesse. De momento era tudo o que podiam fazer, ter esperança. Esperança... e a bênção do Coração.
LYDANA
Parecia a Matild que tinham passado os últimos dias em conferências. Uma recordação repentina fê-la interromper, pela primeira vez desde que se tinham sentado, aquela que decorria naquele momento:
- Aqueles casacos negros têm uma arma poderosa. - Rapidamente descreveu-lhes o encontro que tivera com o homem que virara o bastão contra ela e que se dera mal.
Saxon esfregou o queixo com a mão.
- Um bastão que cospe poder... - reflectiu. - E, no entanto, não vos conseguiu atingir, senhora. Qual foi a vossa defesa?
Pesarosamente, ela abanou a cabeça.
- Uma que só a mim me protege, segundo temo. - Tirou o pregador de dentro da roupa e ergueu-o à luz para que todos o pudessem ver. - Isto - virou uma das faces para cima - é o selo de
Merina... a pedra, a que foi entregue ao imperador, era outra. - Mas não iria entrar em pormenores acerca do seu próprio arsenal de maldições cristalizadas. - E isto - virou o pregador que soltou um brilho carmim que pareceu subir pelo ar. - Já ouviram falar do que aconteceu no templo quando foi do velório da reverendíssima. O Coração chorou; esta lágrima caiu na minha mão sem que eu tivesse tentado agarrá-la.
Tanto Jonas como Saxon inclinaram-se para a frente e ela viu que o reflexo do brilho lhes tocava os rostos.
- Isso... - disse Saxon lentamente - isso foi o que usastes para me curar... não foi? - perguntou-lhe quase com ferocidade.
Matild assentiu.
- É como que um ponto de convergência. Até onde irá o alcance dos seus poderes, não faço ideia.
Ele pensou rapidamente.
- Isso liga-vos ao templo?
O rubi brilhou mais intensamente como que para lhe responder. Evidentemente, os pensamentos dela acompanharam os dele... o rubi pertencia ao Coração. Embora se tivesse soltado Dele, ainda continuaria ligado a Ele, à sua maneira, mas não tinha a certeza.
- Posso tentar.
Mais uma vez envolveu-o nas mãos. Quase hesitou tentar um tal esforço.
- Mas a reverendíssima não está morta - disse então Jonas, virando as cordas com nós uma e outra vez em torno dos dedos grossos.
Depois esticou um desses dedos, molhou-o num pouco de cerveja e desenhou ao de leve um símbolo na mesa em frente de Matild. Talvez ele já soubesse... mas tinha a certeza de que aquele homem não sabia o que era trair, não mais do que o próprio Saxon.
- Sim - disse ela audaciosamente, embora num murmúrio que só para os três seria audível - é o meu direito. - E bateu com a unha na pedra que era o sinete.
Ele sorriu-lhe.
- Dizem que o ou a Tigre reina onde quer que pouse as patas. E eu afirmo que Merina não está destituída de protectores. Que desejais de nós, senhora?
Ela abanou a cabeça
- Eu não sou chefe de guerra; contribuirei da forma que puder, mas não tenham ilusões... esse Apolon é muito pior do que alguma vez pensámos ter de enfrentar. Quanto aos planos... isso deixo ao meu senhor capitão e a ti e aos teus aliados.
E recostou-se, ficando a ouvir os seus planos. E parecia-lhe que, embora estivessem à beira de uma causa perdida, aqueles eram os homens que conseguiriam arrancar uma vitória das garras da derrota. Foi só quando começaram a distribuir as tarefas individuais e os pormenores operacionais, que ela os interrompeu.
- Nisso também tenho lugar. - Bateu ao de leve no pregador que deixara pousado na mesa, à sua frente. - São capazes de o negar?
- Mas... sendo o que sois... - disse Saxon lentamente, com os maxilares cerrados com determinação - já vistes o prémio que seríeis para Apolon? Atiraremos nós tesouros aos pés do inimigo, implorando-lhe que os leve?
Matild soltou uma gargalhada.
- Meu senhor capitão, durante anos aquilo a que os homens chamam tesouros passou pelos meus dedos. Admirei-os pela sua beleza, mas não quis saber do seu valor. Ora, beleza não tenho, mas posso ter mais valor, para vós, do que aquilo que imaginam. - Jonas - virou-se para o taberneiro - há algum sítio nesta coelheira onde eu possa estar algum tempo em privado? - Pegou finalmente no pregador devolvendo-o ao seu esconderijo.
- Há o escritório do controlador... - respondeu ele. - Agora é uma arrecadação e não oferece grande conforto, mas podeis ficar com ela.
- Mostra-me onde é. - Subitamente sentiu uma sensação de necessidade, como se estivesse prestes a entrar em acção e tivesse que estar pronta. - Eel. - Chamou a pequena criatura para perto de si.
Saxon estava de cenho franzido.
- Que é que ides fazer? - perguntou.
Mais uma vez sentiu o riso crescer dentro de si.
- Senhor capitão, tu tens os teus mistérios, deixa-me ter também os meus. Não farei nada que me leve a sair da sala segura que o Jonas me arranjou, mas o que vou fazer pode ser de grande valor para todos nós.
Ele continuou de cenho franzido, enquanto ela seguia Jonas, que atravessava, coxeando, o grande sótão do armazém, com Eel esforçando-se para a acompanhar. O gabinete era de facto bafiento e estava atafulhado com restos de caixotes e barricas que, de há tanto tempo ali se encontrarem, estavam podres de cima abaixo até ao chão, que era de melhor qualidade.
Matild escolheu uma caixa, bateu-lhe vigorosamente para se assegurar de que não se desmoronaria sob o seu peso, e sentou-se. Com um aceno, indicou a Jonas que saísse e ficou apenas com a luz da vela que Eel trouxera.
Talento... o que era o Talento? Ninguém, ao longo dos anos, o definira. Em vez disso, aqueles que não o possuíam, olhavam-no com espanto; aqueles que o tinham nunca comentavam
a forma como o usavam. Ela ainda não atingira a idade do Talento, mas talvez lhe fosse concedida mais uma graça, como acontecera com tantas outras. Abriu a mão olhando para a marca do Coração; esta ligava-a para sempre ao Seu serviço.
Agarrou no pregador. Com os olhos fechados, não tentou induzir qualquer transe; isso estava para além do seu saber e do seu poder. Mas a imagem mental de Adele começou a formar-se com solidez, pormenorizada até ao ar distante que os olhos da sua mãe por vezes ostentavam.
Adele... cujos olhos subitamente se abriram muito e encontrou o seu olhar, como se tivesse atravessado toda a cidade e se tivesse vindo sentar ali, frente a frente com ela, naquela sala abandonada.
- Vamos avançar - formou as palavras com o espírito. - Nós, os dos caminhos da água. Existe razão para nos apressarmos.
Observou o olhar directo de Adele tornar-se ainda mais perspicaz.
- O fim de tudo isto aproxima-se... - As palavras pareciam soar muito fracas e muito distantes.
Depois, subitamente, entre elas ergueu-se uma sombra escura, semelhante à superfície curva de um globo. E por trás dessa silhueta revolteava um amarelo-esverdeado nauseante, como o visco produzido por fungos apodrecidos. Matild quebrou imediatamente a concentração.
Apolon... pusera guardas ou instalara sondas para detectar exactamente o tipo de coisa que ela tentara!
- Senhora. - Eel agarrava-a, abanando-a violentamente.
Matild assentiu.
- Talvez eu tenha feito mal, se aquele indivíduo tem as suas formas de seguir os pensamentos. Mas eu não o vi, por isso ele é capaz de ter apenas suspeitas.
Aquilo foi, no entanto, o suficiente para a fazer voltar para o sótão para avisar Jonas e Saxon, mas quando lá chegou descobriu que eles, bem como a maior parte do grupo, tinham desaparecido. Ela pensara que eles certamente esperariam por ela e sentiu um assomo de ira. Iria ela ser usada daquela maneira... impedida de os acompanhar naquela acção?
Foi enquanto caminhava, furiosa, para trás e para diante a todo o comprimento do sótão, que avistou a mulher com quem partilhara a vigília por Saxon; a mulher a quem chamavam a Feiticeira das Árvores. Estava placidamente sentada num banco, com o inseparável cesto a seu lado, bebendo de uma malga que segurava com as duas mãos. Impulsivamente, Matild foi ter com ela. Os olhos quase escondidos pelas rugas encontraram os seus. Estalando os lábios, a feiticeira estendeu a malga a Eel.
- Vai buscar-me mais uma boa golada disto, jovem. Aquece os ossos velhos que doem por causa do frio da água.
Quando Eel obedeceu sem levantar objecções, fez sinal a Matild que se sentasse noutro banco. Passados instantes, Eel já estava de volta, mas a feiticeira ignorou a malga que lhe trouxe.
- Então... que tens em mente, tu que não és aquilo que pareces ser? - A pergunta foi feita com brusquidão.
Matild estudou a mulher em silêncio antes de responder. Tal como antes, sentiu a aura de poder que envolvia aquele corpo curvado pela idade. Involuntariamente, ergueu a mão e fez o sinal da Bênção do Coração entre elas. A mulher soltou uma gargalhada cacarejante.
- Saudações dos jovens aos mais antigos, é isso, senhora? Bem, tens o direito de o fazer. Aquela que para ti é o Coração, para mim reveste-se de outra imagem, mas são as Duas uma só; embora antigamente Ela fosse só Aquela de quem eu era a imagem. Estiveste a utilizar as visões e apanhaste um susto...
- Já ouviste falar de Apolon? - Matild tacteava. A sua confiança na feiticeira crescia.
Os lábios da mulher rodeados de rugas torceram-se numa careta.
- Existirão sempre esses seres tortuosos, que se metem em coisas que não são capazes nem de começar a entender. Ora, já ouvi falar de Apolon e também já ouvi falar de Iktcar e antes
dele... as Trevas têm os seus filhos assim, como Ela tem as suas filhas. A balança nunca está equilibrada neste mundo. Umas vezes pende para um lado, outras vezes pende para o outro. Então tu sabes de Apolon... que sabe ele de ti?
Matild àquilo respondeu com a verdade.
- Não sei dizer. A não ser...
Rapidamente relatou-lhe o seu esforço para comunicar com Adele e a barreira que se tinha interposto entre elas.
A Feiticeira das Árvores assentiu. Puxou o cesto e remexeu lá dentro e retirou aquilo que parecia ser um feixe de ramos frágeis, atados com um cordão de prata que ela soltou rapidamente. Nenhum dos ramos era mais comprido que o dedo médio de Matild e pareciam ter um brilho provocado pelo muito uso e pelos muitos anos.
A feiticeira esfregou-os entre as palmas das mãos, os olhos escondidos pelas pálpebras enrugadas. Matild viu os seus lábios moverem-se. mas não conseguiu perceber as palavras. Depois, com um movimento rápido do pulso, a feiticeira atirou os gravetos para o chão.
Estes não se espalharam tal como Matild previra, formando antes um padrão bem definido e quanto mais os olhava, mais distinto o padrão se tornava. Via-se aquilo que poderia ser uma sugestão de um barco, no qual estavam sentadas duas figuras. Partindo em leque da representação grosseira do barco, saíam três gravetos mais grossos, semelhantes a lanças, apontando em frente.
A feiticeira assentiu.
- Que assim seja. És chamada... pelos antigos votos que o teu sangue fez há muito tempo. Os homens lutam com aço e flechas... para aqueles que Ela favorece existem outras formas. Vai, juraste a ti própria que o farias, atrás dos guerreiros. Terás que fazer coisas muito mais poderosas que qualquer estocada que aquele teu grande capitão possa desferir.
Matild passou a língua pelos lábios.
- O poder atrai o poder... os casacos negros já infestam o porto. Se eu invocar o... - espalmou a mão no peito, sobre o pregador - ... o Apolon é capaz de conseguir localizar a fonte... e a mim... ficando assim a saber de Saxon e dos seus homens.
A feiticeira soltou uma risada.
- Pelas leis, que é que vos ensinam a vocês, jovens, hoje em dia? Estarão as verdades antigas tão esquecidas? Água corrente, água corrente, senhora minha, pensa em água corrente!
Matild franziu o sobrolho; por instantes não compreendeu o que a anciã lhe dizia. Depois, uma memória vaga de conhecimento, do tipo de conhecimento que fora em grande parte
posto de lado pelos sábios do templo, fez-lhe luz no espírito.
- O mal não pode atravessar... - disse.
- Põe a cabeça em ordem, projecto de salvadora. - A feiticeira riu-se novamente. - Usa aquilo de que dispões e toma as velhas precauções. Agora - virou-se novamente para o cesto - manda esse teu rapazinho ir buscar uma vasilha de água quente, está uma chaleira ao lume. - Acenou na direcção de um canto onde ardia um fogo numa lareira de tijolo. - Traze também um dos frascos que lá estão. - Indicou uma fila de cantis de couro que estavam pendurados de pregos. - Lava-o duas vezes com água muito quente, meu jovem, e depois traze-mo com a vasilha de água quente e limpa.
Pareceu ficar absorta enquanto Eel se apressava a cumprir as suas ordens; a sua atenção desviando-se novamente de Matild, como se estivesse a olhar para dentro e não para fora. Eel voltou com um cantil de couro molhado e a vasilha de água a ferver.
Pegando no cantil, a velha mulher cheirou o seu interior e pareceu ficar satisfeita. Mais uma vez retirou qualquer coisa do cesto, desta vez um pacote que parecia ser um saquinho de linho branco. Dobrou-se, com um gemido, como se os seus velhos ossos protestassem e lançou um pó branco para dentro da vasilha de água.
Agarrando no alguidar, balançou-o lentamente para trás e para a frente. Matild cheirou o ar. Ervas, pensou, mas uma mistura que nunca cheirara. Inspirou mais profundamente e o vapor que se libertava da água dirigiu-se na sua direcção.
Aquilo... cheirava a uma bela manhã no campo, para lá dos portões da cidade... uma manhã de primavera com o perfume de flores no ar.
Cuidadosamente, a feiticeira vazou a mistura na garrafa. Ficara um pouco de líquido na vasilha maior depois de já ter rolhado o cantil. Ofereceu-o a Matild.
- Bebam até ao fim, tu e aqui o rapazinho. Precisarão de manter o sono afastado nas horas que se aproximam... e de estarem no auge das vossas forças para fazerem o que têm a fazer.
Bebe e fica segura de que essa força te será concedida.
Matild não hesitou em beber; sabia muito bem que, se ia seguir Saxon e o seu pequeno exército de marginais, teria que estar acordada. Mas teve o cuidado de deixar metade para Eel.
- Da Sua generosidade bebei - disse a feiticeira. - Aos vossos grandes sábios do templo... aqueles que A encontraram nas primeiras florestas poderiam ensinar uma ou duas coisas. - Riu-se novamente.
- Bem - disse Matild lentamente - acredito nisso plenamente, reverendíssima. - Não hesitou em conceder a honra daquele tratamento à velha mulher vestida com um vestido remendado.
- Reverendíssima... ah... não seria isso que me chamariam no teu belo templo. É melhor dares-me o nome pelo qual fui conhecida no meu próprio tempo e no meu lugar. Eu sou a feiticeira... e isso ninguém me pode tirar, pois foi Ela Própria quem me escolheu.
A antiga tríade! Matild sentiu-se sobressaltada: Donzela, Matrona, Feiticeira; Ela era verdadeiramente três em uma e tivera em tempos as Suas servas para cada uma dessas personalidades.
A feiticeira detinha o saber acumulado de uma vida; podia curar ou matar, mas unicamente segundo a imposição do Maior dos Poderes.
- Os agradecimentos não passam de palavras - respondeu Matild - mas os sentimentos, esses vêm do coração. Se Ela te escolheu para que me indicasses o caminho, percorrê-lo-ei... nem que seja até ao Grande Portão.
A feiticeira sorriu.
- Sim, és muito determinada, mas não confies demasiado na tua própria força. Vais enfrentar aquilo que afronta toda a luz e toda a vida. Existem muitos futuros... aqueles que juram conseguir ler o futuro podem, por um acaso, pegar num e jurar que é esse o verdadeiro. Mas isto te direi, rainha que foste: rainha poderás ser novamente, mas o teu destino está agora entrelaçado num outro e podes nunca mais vir a percorrer os trilhos que o Tigre sempre conheceu. Percorrerás antes caminhos inexplorados... embora o que daí poderá vir... quem sabe?
Encolheu os ombros.
- Aceitarei o que vier, sabendo que não passo de uma pedra numa grande jóia, talvez a menos brilhante de todas. - A mulher mais nova hesitou. - Deste-me muito... como poderei retribuir?
A feiticeira olhou-a novamente nos olhos.
- Apenas isto, rainha Lydana: não esqueças o velho quando o novo chega... existe virtude nos dois. Agora vai. Vem aí uma batalha e é tanto tua como deles.
ADELE
Elfrida e Fidelis estavam sentados em silêncio na sala de meditação, aguardando que Verit e Cosima se lhes juntassem após o serviço da manhã. Ela não podia saber o que o seu companheiro sentia, mas tinha um nó no estômago e tivera que entrelaçar as mãos no colo para evitar que tremessem. Depois do que tinham visto no espelho na noite anterior, nenhum deles poderia ter a mais pequena dúvida de que Apolon praticava necromancia; se é que algum deles tivera esse tipo de dúvida antes. A Casa do Javali assemelhava-se agora a um matadouro. Não estava nada desejosa de invocar novamente o poder do espelho.
- Quantos é que ele já matou? - pensou Elfrida em voz alta, não porque quisesse realmente saber a resposta, mas porque já não aguentava mais aquele silêncio cheio de tensão.
- E quem é que está a contar? - perguntou Fidelis.
Ele parecia estar bastante calmo; ela perguntou-se como o conseguiria. Retorceu as mãos.
- Suspeito que ele... - disse ela lentamente, relutante em dar voz à sua suspeição, mas sentindo uma relutância ainda maior em não a verbalizar. Ela podia ser a única a quem tal ocorrera. - Penso que está a trabalhar com um objectivo que ainda não sabemos qual é.
- Tens alguma ideia do que possa ser? - Cosima esgueirou-se para o interior da sala com Verit no seu encalço.
Ambas caíram sobre o banco mais próximo, claramente exaustas. Tinham as duas um aspecto tão sombrio como o estado de espírito de Elfrida.
- Não - Elfrida abanou a cabeça. - Quem me dera ter. É só uma sensação; não sei o suficiente de necromancia para poder fazer uma dedução. Só sei dizer que há qualquer coisa naquele bastão que me perturba.
- Para além do facto de o bastão sugar sangue? – perguntou Verit, os lábios contorcendo-se num esgar de dor e nojo. - Não consigo imaginar por que razão ele faz tal coisa.
- Absorve mais sangue do que qualquer madeira que eu já alguma vez tenha visto - replicou Fidelis lentamente, as sobrancelhas movendo-se ao ritmo das suas ideias.
- É isso que me perturba - disse Elfrida, buscando na memória factos que lhe pudessem fornecer mais pistas e amaldiçoando a incerteza que chegava com a idade. - Não paro de pensar que devia saber o que isso significa... está num dos meus livros do Palácio de Verão, acho eu, mas ainda não consegui encontrar a passagem relevante.
- Temos que o observar novamente esta noite? - perguntou Cosima com uma voz tensa e denotando infelicidade.
Elfrida não a censurava. Devia ser difícil para uma curandeira assistir a tantas mortes e não poder fazer nada para as evitar.
- Vamos dar só uma espreitadela para nos assegurarmos de que não está a fazer outra coisa qualquer - disse Verit dando-lhe pancadinhas consoladoras na mão - e depois há coisas que temos que discutir.
Juntaram-se fatigadamente em torno do vidro que estava no chão e deram as mãos. Levou apenas alguns minutos a constatar que Apolon fazia mais mortos-vivos e que tinha prisioneiros suficientes para se manter ocupado até de madrugada, ou mesmo para lá dela. Elfrida sentiu-se nauseada pela visão e não foi a única; Cosima apertou firmemente os lábios e ficou verde.
- Pronto - disse Verit depois de terem quebrado a visão - sabemos o que ele está a fazer. Como é que o provamos aos outros?
Parecia uma questão estranha.
- A quem é que o queremos provar? - perguntou Elfrida erguendo uma sobrancelha. - E que importância teria isso? O imperador é muito capaz de saber e não se importar e de qualquer forma já cá não vem. O príncipe Leopold terá muita sorte se chegar vivo ao fim do ano, da forma
como as coisas estão. Calhai ajudaria provavelmente Apolon a matar, se lho pedissem. Não há mais ninguém... pois não?
- Temos que o provar às nossas ordens - disse Verit. - Temos que estar unidos para o que se aproxima. A divisão torna-nos uma presa fácil e estamos bastante divididos... apesar do facto de termos trazido quase toda a gente para este edifício. Lembra-te do que tu própria me disseste acerca da necessidade de as ordens estarem unidas. - A sua expressão era determinada e severa. - Creio que tens razão, Elfrida; estamos prestes a enfrentar a batalha final. Temos que nos manter perfeitamente unidos e sem uma falha na nossa fé.
As expressões sombrias e os acenos provavam que os outros concordavam com as conclusões de Verit.
- Poderíamos trazer um dos casacos negros e demonstrar a toda a gente qual a sua natureza? - perguntou Cosima em voz fraca. Tinha os lábios muito pálidos.
Verit encolheu os ombros.
- É uma ideia - concordou Fidelis - mas há vários problemas. Primeiro, nem todos os casacos negros estão mortos. Segundo, como é que arranjaríamos um? Não me parece que possamos sair para a rua e convidar um a entrar e eu prefiro não agarrar um e tentar forçá-lo.
- Podíamos tentar, se estivéssemos desesperados – disse Verit - mas, francamente, as possibilidades de sermos mortos no processo são muito elevadas. Se essa fosse uma tentativa desesperada... mas não creio que tenhamos atingido esse ponto... ainda.
Ainda.
- Nenhum dos casacos negros entrou ainda no templo - lembrou-lhes Elfrida. - Não sei se é por não o desejarem ou se por não serem fisicamente capazes.
- Achas que se dissolveriam em pó, ou qualquer coisa do género se o fizessem? - perguntou Cosima em tom duvidoso.
Abanou a cabeça, confusa. Elfrida não a censurava. Tudo aquilo tinha como que uma aura de irrealidade; subitamente, sem pré-aviso, tinham dado por si a enfrentar algo saído das lendas e das histórias. Mas se aquilo fosse uma lenda, haveria heróis com espadas mágicas esperando nos bastidores para salvar o dia...
Infelizmente, a não ser que Fidelis desenvolvesse a competência de um guerreiro trinta anos mais novo, não tinham heróis de reserva. E a única espada mágica da cidade estava nas mãos do inimigo.
- Não sei - disse Elfrida, sentindo o seu estado de espírito afundar-se. - Não sei o que conseguem e o que não conseguem fazer e não me lembro de ter lido nada nos livros acerca deles. Quem me dera que soubéssemos mais acerca deles!
- Senhora de Luz, Elfrida, nós sabemos como são feitos! – protestou Fidelis incrédulo. - Não será isso o suficiente?
Elfrida abanou a cabeça.
- Na verdade não. Sabemos como o Apolon os faz de uma forma geral, mas não conhecemos o processo nas suas especificidades e são as especificidades que são importantes. Não sabemos como é que ele fez a rede que usa ou qual é o efeito ou o significado das palavras que diz. E é muitíssimo provável que parte do feitiço seja mental e disso não temos sequer uma pista. Só sabemos o que vemos no espelho e isso não é o suficiente.
- Nem - acrescentou Verit - temos os defeitos necessários para compreender verdadeiramente aquele tipo de trabalho. - Olhou para Fidelis. - Ou temos?
- Claro que não! - ripostou Fidelis. - Mas tem que haver qualquer coisa que possamos fazer! Podemos certamente deduzir a forma como ele obtém aqueles efeitos para podermos contrariar pelo menos alguns deles!
- Ele sujeita a alma ao corpo, isso é evidente, e é necessário que o faça para obter uma coisa semelhante a um homem vivo - disse Cosima, após um longo momento de um silêncio pesado. - Verit, pensei uma coisa... há alguma forma de libertar a alma?
- Ele sujeita-a com qualquer coisa que bebe sangue - acrescentou Elfrida, sentindo que a observação de Cosima era a chave para a solução de que desesperadamente necessitavam.
- Haverá mais alguma coisa, para além dos demónios, que beba sangue? Eu nunca ouvi falar de mais nada.
- Nem eu - disse Fidelis erguendo a cabeça como um cão sentindo o cheiro da caça.
Cosima abanou a cabeça e abriu os braços. Verit franziu o cenho, em concentração.
- Tens razão, Elfrida, um demónio seria uma explicação razoável. Se a alma está sujeita por um demónio, um exorcismo deverá libertá-la. O problema é que eu nunca ouvi falar de um demónio que bebesse sangue... o que não significa que Apolon não tenha ouvido.
- Poderia um exorcismo ser prejudicial? - perguntou Fidelis bruscamente. - Não temos muito mais coisas que possamos tentar!
- Mal aos mortos-vivos não pode fazer - disse Elfrida. - Não consigo imaginar nada que possa piorar a sua situação - acrescentou, também ela, algumas observações desagradáveis. - Eles estão num tormento; disso não tenho dúvidas. Continuam conscientes do que lhes está a acontecer... pelo menos de início; isso vê-se nas suas caras.
- Mas um exorcismo pode provocar sérios danos no exorcista - recordou-lhes Verit. - Especialmente se o demónio sair do controlo mas não for banido. - A sua expressão era grave enquanto olhava para os outros elementos do grupo. - É por isso que é um rito que não é usado com leviandade.
- Se houvesse um número suficiente de nós a trabalhar juntos... - começou a dizer Elfrida, mas a sua voz tornou-se hesitante. - Parece-me que voltámos à questão da nossa divisão. Ocorre-me mesmo que aqueles que não estão connosco de todo o coração poderão até atrapalhar os nossos esforços.
- Se fizéssemos o ritual no santuário - protestou Cosima - poderíamos recorrer ao Coração como fonte de poder. Não era? Não é por isso que o Coração ali está?
- Mas estaríamos a levar a cabo um exorcismo na frente de pelo menos um quarto da nossa gente - fez notar Elfrida - e parte deles trabalha para Apolon. Se isso não é estar dividido, então não sei o que será!
- O quê? - perguntou Cosima surpreendida - que estás tu a dizer?
Elfrida ficou a olhar para ela e depois mordeu o lábio; esquecera-se de que nem toda a gente daquele pequeno grupo tinha conhecimento da sua conversa com Verit.
- Da próxima vez que estiveres no santuário - aconselhou-a Elfrida - olha à tua volta e vê quantos dos noviços não olham sequer para o Coração. Foi essa a razão porque os trouxemos todos para cá, em primeiro lugar, para os impedir de arranjar problemas noutro sítio qualquer.
- Há alguns - admitiu Verit - mas não em número suficiente para que possam interferir, a não ser que todos os outros o permitam e não há assim tantos idiotas na minha ordem...
- Nem na minha - disse Fidelis secamente. - Há uns quantos, mas não são a maioria. Elfrida?
Ela encolheu os ombros.
- Quem sabe? Os da minha ordem não discutem a situação, mas na sua maioria são suficientemente tradicionalistas para impedirem um noviço de interferir em qualquer cerimónia.
Olharam todos para Cosima, e Elfrida pensou se ela teria seguido o conselho deles desde a última vez que aquele assunto tinha sido discutido.
- Sim, ultimamente tenho ido ao recreio - disse. - E a minha ordem não está reclusa como as vossas. Os curandeiros já viram o suficiente, e falaram o suficiente uns com os outros, para saber o que se passa na cidade, provavelmente quase tão bem como vocês que escutam as confissões das pessoas. - Ergueu uma sobrancelha. - Pelo que vos tenho ouvido, podiam montar uma rede de espiões a partir dos confessionários.
- Que ideia encantadora! - Verit sorriu pela primeira vez naquela noite. - Se mais alguma vez viermos a ser invadidos, teremos que nos lembrar disso. Então o que é que os curandeiros pensam da situação?
A expressão de Cosima era amarga.
- Nós somos realistas. Apolon e os seus servos são do mal, o general Cathal é um filho da mãe sádico e o imperador não tem provavelmente noção do que se passa. Tenho ouvido vários resmungos de que nunca deveríamos ter permitido que entrassem os portões.
- Interessante - disse Fidelis pensativo. - Pensam que valeria a pena pôr o imperador ao corrente do que se passa? E será que isso é possível?
- Provavelmente não - disse Elfrida com um grande suspiro. - Quando um governante perde o contacto com o seu povo é porque não está interessado nisso ou porque alguma coisa lhe aconteceu, como ter ficado senil, por exemplo... – fez uma pausa quando outra ideia lhe ocorreu e acrescentou lentamente - ou... por estar possuído...
Que ideia horrenda!
Fidelis assobiou por entre os dentes, o seu rosto totalmente destituído de expressão devido à surpresa que sentia.
- Pensas que existe alguma possibilidade de Apolon o controlar?
- Por aquilo que tenho ouvido - respondeu Elfrida - ele é um pouco jovem para estar senil. - Depois acrescentou uma observação que só seria possível a uma mãe. - E nenhum pai digno desse nome admitiria a forma como Leopold tem sido tratado.
- Se Apolon é quem tem o controlo da situação -disse Cosima lentamente - temos que encontrar uma forma de desfazer a sujeição dos casacos negros.
Verit estava com uma expressão determinada.
- Tentaremos então um exorcismo, se essa oportunidade se nos apresentar. Por agora... a nossa melhor opção é rezar. Vamos todos ver se descansamos alguma coisa e voltamos a reunir-nos depois do ritual da manhã.
Encontraram-se na sala de meditação após o ritual seguinte; Elfrida não teve tempo de falar com Verit em privado, mas algo na expressão da grande sacerdotisa lhe disse que Verit tinha
notícias para ela.
Talvez Shelyra tenha aparecido no culto da manhã? De certa forma esperava que isso tivesse acontecido. Já se passara muito tempo sem que ela soubesse do que se passava, tanto com Shelyra como com Lydana. Corriam rumores de que algo se estava a passar no porto, mas de momento não passavam de boatos.
O espelho não mostrou ninguém na sala de trabalho e uma pesquisa de todo o edifício revelou Apolon inconsciente na sua cama, completamente vestido.
- Suponho que seria demasiado esperar que alguma coisa tivesse corrido mal - disse Fidelis em tom duvidoso. - Ele pode ter simplesmente trabalhado até à exaustão.
- A esperança é algo que nunca devemos perder – disse Cosima, calma mas firmemente.
Elfrida, ainda a olhar para o espelho, pensou por instantes na filha e na neta e no que estariam a fazer. Preocupava-se sobretudo com Shelyra, pois era óbvio, mesmo para uma mulher velha como ela, que a princesa tinha vindo a ficar muito atraída pelo seu inimigo putativo, o príncipe Leopold.
Que será que ela está a fazer agora? Se conseguíssemos arranjar uma forma de convencer Leopold a passar para o nosso lado! Ele nem sequer teria que ter um papel activo... mas eu detestaria ver um homem tão bom sair ferido desta situação só porque é leal à pessoa errada.
Aquele pensamento foi suficiente para fazer com que a visão mudasse, surpreendendo-a um pouco. Um nevoeiro cor de rubi cobriu o vidro e quando desapareceu viu-se uma nova imagem.
A luz era muito fraca, mas reconheceu Shelyra. Ela e um homem cujo rosto não era visível, pois olhava para onde punha os pés, arrastavam entre si uma figura ao longo de um túnel subterrâneo. Elfrida reconheceu o túnel como sendo aquele que conduzia à sala de meditação.
Quem é aquele? E porque estará Shelyra a trazer dois estranhos pelo túnel? A terceira pessoa não passava de uma silhueta escura, mas Elfrida captou qualquer coisa, talvez através de Shelyra. Uma ansiedade terrível... sofrimento..
Poderia aquilo ser um casaco negro? Será que alguém conhecido de Shelyra foi vítima de Apolon? Serão aqueles dois dos seus amigos ciganos?
- Estão a ver isto? - perguntou ela aos outros. - Parece-me que a Deusa está pronta a fazer uma demonstração do poder do Seu Coração. - Apontou o espelho. - Aquela é a princesa Shelyra e creio que o homem que esta a ser transportado é uma das vítimas de Apolon.
- Que queres dizer? - perguntou Fidelis, olhando fixamente para o espelho. - Porque dizes que a Deusa...
- Aquela é a passagem secreta para o templo, a que esta sala dá acesso e eles dirigem-se para cá - respondeu Elfrida. - Reconheço-a. Estarão aqui dentro de poucos minutos. Parece-me que Shelyra arranjou uma maneira de nos trazer um casaco negro... suspeito que a vítima deve ser alguém que ela conhece.
Cosima susteve a respiração; Fidelis sobressaltou-se, ficando com a expressão de um falcão que tivesse avistado uma presa. Verit quebrou o círculo e passou o espelho a Elfrida.
- Põe isso na arca que está no túnel e fica à espera deles. A mim pareceu-me que quem vinha com ela era Leopold. Só gostava de saber quem é a terceira pessoa.
- Claro - disse Elfrida pondo-se de pé com a ajuda do banco que estava ao seu lado. - Pareceu-me que me era familiar... mas conheço-lhe melhor a voz do que o rosto.
A Verit não está surpreendida... o que pode querer dizer que eram essas as notícias que tinha para me dar; que Shelyra trouxe Leopold do Palácio de Verão. Apostaria que Shelyra o trouxe para que falasse com Verit. Se antes disso não estava do nosso lado, agora não pode deixar de estar!
Era demasiado cedo para rejubilar, mas pela primeira vez naquela manhã, sentiu um toque de verdadeiro optimismo e com ele um grande alívio. Leopold poderia não ser poupado naquele conflito, mas pelo menos lutaria do lado certo.
Um momento mais tarde, a porta ao fundo da sala abriu-se e a sua neta e o príncipe entraram cambaleantes, ajoujados com o casaco negro. O casaco negro, com uma expressão de angústia no rosto, caiu inerte no chão quando o largaram, como se não se conseguisse mexer autonomamente. Foi então que Elfrida viu o seu rosto e realizou, com um choque, que conhecia o homem, e percebeu a angústia estampada no rosto da neta.
A mais recente vítima de Apolon fora Thom Talesmith. Ficou a olhar para o homem, sem lhe tocar, enquanto os outros religiosos se apressavam a disfarçar os recém-chegados com os hábitos das ordens.
Pobre Thom... como é que isto te foi acontecer? Não serias tão inteligente como nós pensávamos, ou estavas a tentar impressionar Shelyra?
Não o conhecia suficientemente bem para sentir um desgosto profundo, mas sentiu imensa piedade dele. Havia algo mais no rosto daquele homem do que o que vira nas expressões de todos os outros, mesmo nas daqueles que vira, através do espelho, serem mortos. Ele continuava a saber o que lhe acontecera... e queria ser salvo. A sua expressão, quando olhou para ela, era implorante. Não havia forma de confundir aquela expressão, por muito ténue que fosse. Ele quer ser liberto. Isto para ele é uma tortura, muito maior do que para qualquer um dos outros.
Shelyra e Leopold estavam vestidos de Hábitos Castanhos, pois Verit fizera notar que os Hábitos Castanhos iam e vinham e não eram tão bem conhecidos pela gente do templo como os membros das outras ordens.
- Há uma sombra nos olhos deste homem - disse Leopold a Verit, enquanto vestia o hábito que ela lhe estendia. - É... não sei descrever. Antes de o termos feito passar a porta, cobria-lhe totalmente a cabeça e o tronco, como uma teia de sombras, mas quando entrámos no templo recuou, de alguma forma, para dentro dele.
- Não faço ideia do que ele está a dizer - admitiu Shelyra, o seu rosto repleto de tensão e dor; mas depois acrescentou corajosamente - mas se Leopold diz que a sombra está lá, acredito nele. Não consigo ver essa tal sombra... mas este não é o Thom... ou pelo menos, sendo este o Thom, ele não está aqui totalmente. Ou coisa do género - acabou com pouca convicção. - Só vos posso dizer que este não é o efeito de qualquer droga ou veneno que eu conheça.
- E suspeito que a senhora conheça bastantes - acrescentou Leopold secamente, sendo recompensado por um vestígio de sorriso de Shelyra, enquanto tentava controlar as suas emoções.
Mas depois de Leopold lhes ter dito o que via nos olhos de Thom, os religiosos conseguiram ver também... ainda que Shelyra não conseguisse.
- Deves acreditar nele, filha - disse Verit num tom carinhoso, enquanto se inclinava para ver a pobre vítima mais de perto. - Ele está certo. Infelizmente, julgo saber exactamente o que é esta sombra.
Mas Shelyra consegue, pelo menos, ver que algo está errado, percebeu Elfrida com algum alívio, mesmo não tendo o tipo de visão que o resto de nós tem. Pode muito bem vir a tê-lo, se sobrevivermos a tudo isto.
- Têm que ajudar este homem - continuou Leopold, com toda a autoridade de um homem habituado a ver obedecidas as suas ordens. Depois atenuou o tom dizendo: - Por favor...
- Fá-lo-íamos quer no-lo ordenasses, quer não, Leopold - replicou Verit asperamente. - Disso, podes estar certo. É o nosso dever para com ele, uma alma em sofrimento, fazermos tudo ao nosso alcance.
Leopold assentiu, embora a sua expressão não ficasse menos perturbada. Não lhe passara despercebido o facto de que Verit prometera apenas fazer o que “lhe fosse possível”.
Verit decretou que Thom fosse levado para o santuário para tentarem o exorcismo e começou a dar ordens com a brusquidão eficiente de um general.
- Cosima, vais explicar a toda a gente o que se está a passar. Limita-te a contar a história do início: o que ouvimos nos confessionários, o que vimos no espelho e o que vamos fazer agora. O teu dom para o improviso pôr-nos-á no bom caminho, estou certa disso. Vai e começa já e prepara a área em torno do altar... já vamos ter contigo.
Cosima assentiu e saiu e Verit virou-se para Elfrida.
- Elfrida, tu e eu faremos o ritual.
Elfrida sentiu um arrepio de medo, bem como um assomo de perdoável vaidade por Verit a ter escolhido como acólita; era uma prova de enorme confiança.
- Fidelis - continuou Verit - quero que tu e estes dois segurem o corpo. Utilizaremos o chão em frente ao altar - onde estava o caixão. Ele é capaz de se debater um bocado, mas penso que vocês os três vão ser capazes de o segurar. Se não forem, quando chegar a altura, recrutaremos mais auxílio.
- Querem que ajudemos? - perguntou Leopold com ar duvidoso. - Mas... nós não fomos santificados...
- Do que eu preciso é de três bons pares de mãos - disse-lhe Verit. - E creio que talvez ajude se dois desses pares de mãos pertencerem a pessoas para quem aquilo que lhe aconteceu tenha alguma importância. - Sorriu ligeiramente. - A intenção desempenha um papel muito importante. E vocês são ambos firmes na vossa fé, segundo creio. Isso também é muito importante.
Leopold sorriu timidamente em resposta e Elfrida decidiu que ainda gostava mais do homem agora do que gostara antes. Gostou também da forma como ele e Shelyra estavam juntos,
da forma como orientavam os corpos; havia ali atracção e o tipo de entendimento que se tem com um companheiro em quem se confia, quer ele seja camarada de armas, um simples amigo ou um esposo.
Chegaram ao santuário quando um dos grupos estava a terminar um culto e o grupo seguinte estava a chegar. Verit pediu ao primeiro grupo que ficasse, disse ao segundo que ocupasse os seus lugares e tocou uma campainha a convocar os restantes religiosos.
- Quero toda a gente aqui - disse sombriamente - incluindo todos os noviços.
Elfrida viu que Cosima retirara tudo, excepto duas velas que estavam no próprio altar e o grande livro dos ritos. Quando todos estavam já a ocupar os seus lugares, Cosima pôs-se em frente ao altar e começou a falar. Quando terminou, o Grande Silêncio daquele dia foi pontuado por dezenas de versões murmuradas de “Não acredito” a que se juntava um ocasional “Eu bem te disse”. Verit, superintendendo aos preparativos necessários a um grande exorcismo, ignorou-os a todos. Um outro burburinho percorreu os religiosos ali reunidos quando Leopold, Shelyra e Fidelis trouxeram o corpo inerte de Thom Talesmith e o deitaram onde estivera a urna de Adele.
Ouviram-se novos murmúrios, mas desta vez provindos unicamente daqueles que estavam suficientemente próximos para poderem ver o rosto do casaco negro. A sombra que encobria os seus olhos era dolorosamente visível, como se o demónio que o habitava percebesse o que eles estavam prestes a tentar, mas a expressão de Thom era a expressão desesperada de um homem torturado que vislumbra uma liberdade que não se atreve a esperar.
Cosima juntou-se aos restantes e pegou no livro pesado que continha o ritual do exorcismo bem como outros ritos raramente utilizados. Colocou-o numa posição em que tanto Verit como Elfrida o pudessem ler e Verit iniciou o ritual, abrindo os braços e erguendo o rosto para o céu.
- Oh Tu que Habitas os Céus, ouve-nos e vem até nós.
Elfrida olhou para os olhos ansiosos da sua neta, sorriu tentando dar-lhe confiança e iniciou a récita, seguindo o exemplo de Verit.
- Quando em aflição invocamos-te, e Tu ouves-nos.
Sentiu, e não pela primeira vez, a verdade por detrás daquelas palavras e sentiu o conforto que as acompanhava.
Falavam à vez, cada uma delas proferindo uma única frase; era a vez de Verit e ela pronunciou as palavras com o som de trombetas na voz.
- Liberta a alma deste Teu servo da mentira e do engano.
Elfrida respondeu com a mesma convicção, mas num tom mais implorante.
- Liberta-o dos seus cruéis inimigos e salva-o do maligno.
Fidelis balançou um turíbulo fumegante sobre o corpo prostrado. Shelyra e Leopold seguravam-no firmemente, enquanto tentavam não sufocar com as nuvens de incenso. O corpo estremeceu ligeiramente, como que tomado por uma luta interior.
Fidelis aspergiu-o liberalmente com água benta e os estremecimentos ficaram mais fortes, quase se transformando em convulsões. Fidelis juntou as suas às mãos fortes que mantinham o corpo de Thom no lugar, em frente ao altar. Verit e Elfrida entoaram juntas o cântico final da liturgia escrita e Cosima juntou a sua às vozes delas, enquanto fechava o livro e o punha de lado.
Dali para a frente não havia um ritual predeterminado; teriam que improvisar, reagindo ao que fosse acontecendo. Verit olhou para Elfrida em busca de sugestões e Elfrida olhou para a pilha de rubis que ficara em cima do altar desde o milagre do Coração sangrante. A vítima debatia-se agora menos e ocorreu-lhe que talvez necessitassem de um elo físico entre Thom e oCoração.
- Talvez devêssemos pôr as pedras em torno dele – sugeriu num murmúrio - como velas em torno de uma urna.
- Boa ideia - sussurrou Verit em resposta.
Pegou em dois rubis e Elfrida imitou-a; ajoelharam-se à cabeça e aos pés de Thom para colocar as pedras no lugar e depois puseram as mãos sobre o corpo de Thom.
Então, pela primeira vez desde o milagre do Coração “sangrante”, o poder da Deusa manifestou-se novamente. Linhas de luz vermelha estenderam-se de cada uma das pedras até à que se lhe seguia, formando uma moldura em torno do semicadáver quase inconsciente. Um brilho enevoado espalhou-se a partir das linhas, cobrindo as seis pessoas que o rodeavam, no momento em que Cosima caía de joelhos ao lado de Fidelis, pondo também as suas mãos sobre o corpo.
Aquilo parecia ser o que o Coração esperara. Raios soltaram-se do Coração, incidindo sobre as pedras e regressando à fonte de Poder, até Thom e os seis exorcistas estarem banhados em tanta luz que mais parecia estarem dentro de um rubi gigante. A luz aumentou de intensidade até parecer a todos os que estavam no santuário que iriam cegar, mas ninguém foi capaz de desviar os olhos. Até mesmo os noviços, que anteriormente não olhavam para o Coração, tinham os olhos fixos naquele espectáculo; Elfrida viu, pelo canto do olho, dois daqueles em que reparara durante os rituais, a olharem de boca aberta para o grupo. Forçou-se a concentrar-se novamente no desempenho da sua tarefa. O calor era incrível; sentia o suor a escorrer-lhe por dentro do hábito e tinha o cabelo ensopado por baixo do véu.
A luz era tão forte que temeu nunca mais ser capaz de ver à luz fraca ou até com uma luz normal.
Thom voltava a debater-se por baixo das suas mãos, produzindo sons que estavam entre o grito e o lamento. Uma sombra de um verde amarelado, doentio, cobria o seu corpo onde as mãos não o tocavam, mas o que quer que fosse, parecia estar a bater em retirada. A sombra mirrou, afastando-se das mãos deles, até não ser mais do que uma faixa estreita em torno do pescoço de Thom, mas Elfrida não teve a noção de que estivesse a esconder-se novamente dentro dele.
Aquela... coisa... estava a ser expulsa, passo a passo, estava a ser expulsa de Thom, expulsa deste mundo, para um outro que não podiam ver nem sentir.
Ele teve um espasmo muito violento no momento em que o que restava da sombra desaparecia com um pop perfeitamente audível e um vagido agudo e fino que não saiu dos lábios dele. A respiração de Thom produziu uma estertor na sua garganta e ele ficou inerte, verdadeiramente morto, deitado no chão em frente ao altar, com um pequeno fio de sangue, provindo de uma ferida no peito, escorrendo pelos degraus de mármore branco. Mas no seu rosto via-se uma expressão de calma absolutamente radiante, como se ele tivesse vivido uma vida longa e pacífica que chegara a um fim perfeito.
O poder do Coração não tinha, contudo, terminado. A entidade que se formou por cima do corpo de Thom não era bem um anjo, pois era reconhecível como Thom Talesmith e não tinha a radiância ofuscante que Elfrida relacionava com os mensageiros do Céu. Mas já não era, obviamente, humana.
“Livre!” Exaltou uma voz no seu espírito. Olhou para baixo para os seis que tinham ajudado à sua libertação e depois para os religiosos que rodeavam o altar. “Obrigado” disse uma voz suave no espírito de Elfrida, quando os seus olhos encontraram os dele. Depois, numa voz mais alta, enquanto erguia o olhar para ir de encontro ao de todos os religiosos, um após outro, disse “Obrigado a todos...”
Surgidas da luz rosada do Coração, quatro formas de luz branca moveram-se em torno do templo. Ele sorriu-lhes, num sorriso de felicidade pura que embargou a garganta de Elfrida de emoção, e estendeu-lhes as mãos. As formas envolveram-no em asas de luz, escondendo-o do olhar de Elfrida... depois, numa explosão de luz, desapareceram.
A luz ofuscante dos rubis esmoreceu até ficar apenas rosada, mas manteve-se como que formando uma campânula protectorapor cima do corpo.
Cosima pôs-se de pé no meio do silêncio profundo.
- Está feito. Venham, religiosos, e prestem a vossa homenagem à alma de um homem corajoso, um servo fiel do Coração e um filho da Deusa.
Os religiosos ergueram-se um a um e passaram, numa só fila, pelo corpo. Ninguém proferiu palavra; Elfrida teve a sensação de que não se atreviam a quebrar o silêncio.
Levou quase uma hora até todos terem passado em frente do corpo e Elfrida sentiu-se satisfeita por ver que os noviços que lhe tinham parecido suspeitos estavam profundamente abalados pela experiência. A maioria dos religiosos e dos noviços chorava, alguns de forma enervantemente silenciosa, outros abafando os soluços com as mangas dos hábitos. Reparou que Fidelis olhava para vários membros da sua ordem que choravam, com um misto de alívio e aprovação; suspeitou que eram aqueles cujos cérebros ele tinha comparado aos das plantas de que cuidavam.
Pronto, a gente dele está finalmente a recuperar o juízo. Na verdade, parece que todos nós estamos a recuperar o juízo.
Alguns dos Hábitos Vermelhos estavam afectados de forma idêntica e reparou que muitos dos Hábitos Cinzentos olhavam o corpo com um fascínio horrorizado, como se tivessem acabado de descobrir que as histórias que tinham ouvido eram afinal verdadeiras e não apenas obscuras e antigas lendas.
Leopold mantinha-se ao lado do corpo como se estivesse em sentido, como num funeral de Estado; Shelyra chorava abertamente. Pela expressão do seu rosto, Elfrida suspeitou que um certo sentimento de culpa alimentava aquelas lágrimas, mas quanto a isso nada podia fazer.
No fim da procissão Verit pôs-se de pé e anunciou que o corpo seria velado por mais um dia para que as pessoas da cidade também o pudessem ver.
- ... mas deve ser guardado pelos mais fortes de entre nós, não vamos sofrer outro ataque semelhante ao que aconteceu quando o corpo da rainha-mãe aqui esteve.
Vários dos Hábitos Vermelhos mais jovens ofereceram-se imediatamente como voluntários, armando-se com os cerimoniais bastões de pastores que usavam nalguns dos ritos, como na Colheita, Primícias e na Bênção aos Animais. Os bastões poderiam ter propósitos cerimoniais, mas Elfrida pegara uma vez num deles e sabia que eram tão sólidos como os modelos mais práticos e menos decorativos.
Verit decretou que, devido àquelas circunstâncias perturbadoras, haveria um período extra para a confissão dos religiosos, imediatamente após o Ritual do Meio da Manhã...
- que mais vale que celebremos agora em conjunto, visto estarmos todos aqui - concluiu, lançando um olhar severo a certos religiosos. - Creio que será bom para nós que afirmemos que todos os membros deste templo estão unidos e já não divididos nas nossas... opiniões.
Elfrida viu que alguns religiosos coravam e outros mordiam os lábios, mas nenhum desviou o olhar ou ostentou as expressões de impaciência ou rebelião que vira nos últimos dias.
Enquanto Verit escolhia aqueles que ouviriam as confissões, Elfrida reparou que ela indicava aqueles que tinham acreditado que o império era benigno. As horas que se aproximam serão para eles verdadeiramente elucidativas. Mas, pela primeira vez desde a invasão, não havia sinais de discórdia entre os religiosos. Elfrida sentiu que também esse fardo lhe saía dos ombros.
Estamos todos unidos em torno do mesmo objectivo, por fim! Pensou, enquanto juntava a sua voz aos cânticos dos restantes. Mas depois, veio-lhe um pensamento bem mais sombrio:
... temo que tenha sido mesmo a tempo.
LYDANA
Os sinos do templo e das casas paroquiais mais próximas chamavam incongruentemente para o Ritual do Meio da Manhã, quando o pequeno e pouco auspicioso grupo de guerreiros se punha a caminho. Aquela era muito diferente das viagens oficiais que a rainha Lydana efectuara ao porto no passado. Agora não estava confortavelmente sentada a ouvir os cânticos de uma dúzia de homens puxando pelos remos. A embarcação que a transportava metia água, era instável e cheirava a peixe, embora os dois homens a quem a Feiticeira das Árvores ordenara que a levassem parecessem capazes de a manter sob controlo.
A primeira parte da jornada fizera-se em estranhas idas e vindas por entre postes grossos cobertos de algas verdes e às escuras, a não ser pela luz da lanterna que levavam à proa. Matild calculou que aquele devia ser um dos caminhos fluviais por baixo dos armazéns; alguns deles quase tão antigos como a própria cidade. Quando saíram para o ar livre o dia estava cinzento, com grandes nuvens no céu. À sua volta viam-se, e de quando em vez vinham de encontro a eles, destroços resultantes da tempestade, que tinham que ser prontamente afastados ou evitados. Ouviam-se os gritos das aves à superfície das águas, bem como os ruídos que os homens produziam, entregues aos seus diferentes labores.
Não foram na direcção do canal principal, mantendo-se tão próximos quanto possível da margem esquerda do canal, como se esta lhes pudesse dar alguma protecção. Àquela hora a corrente estava a favor deles, empurrando-os, de forma que usavam os remos mais para equilibrar e conduzir a embarcação do que para avançar.
Um vento forte soprava do lado do mar e Matild sentiu-se satisfeita por lhe terem emprestado uma capa antes da partida. Mantinha-se atenta ao que se passava em ambas as margens, virando a cabeça para um lado e para o outro. Normalmente aquelas águas estariam cheias de barcos percorrendo o canal para cima e para baixo, mas passaram por uma única barca e essa metia água de tal forma que se arrastava penosamente e parecia prestes a virar-se, a qualquer momento, de quilha para cima. E também não havia guardas nas duas comportas e as grades estavam erguidas, com grandes comprimentos de algas e musgo pendurados, permitindo-lhes passar livremente.
A Matild pareceram facilidades a mais. Ou teria a tempestade causado tais estragos, que as actividades do inimigo estavam suspensas por algum tempo?
Começou a ficar impaciente e lutou contra a impaciência. Não havia forma de ela poder apressar aquela viagem. Por fim, a sua necessidade de se ocupar fez com que testasse a sugestão da Feiticeira das Árvores acerca do poder da água corrente.
Fez com que Eel se virasse até ficarem sentados de frente, joelhos contra joelhos, por forma a que os homens dos remos não pudessem ver o que faziam. Tirando o pregador de dentro das roupas, equilibrou-o na palma de uma das mãos e estendeu a outra a Eel, que a agarrou imediatamente com a sua mão encardida.
Embora nunca tivesse envolvido anteriormente o seu companheiro naquele tipo de coisa, ele parecia saber exactamente o que devia fazer. Olhando fixamente para o rubi, tentou ver apenas a pedra e, por detrás da sua superfície, aquela que procurava. Adele! Chamavam os seus pensamentos.
- Mãe...
O rubi pareceu aumentar na palma da sua mão formando como que um espelho. Adele! E ela respondeu! O rosto da mãe, estranhamente lívido apesar do carmim vívido que o emoldurava, estava ali. Os seus olhos procuravam os da filha.
- Saxon vai atacar os barcos de prisioneiros... depois a frota... - Tentou formular a mensagem da forma mais concisa que lhe era possível. - Se Ela nos favorecer, voltaremos novamente para terra.
Estariam aqueles pensamentos a atingir a reverendíssima? Viu então o brilho nos olhos da outra mulher.
- Usa aquilo que tens em teu poder. - As palavras pareciam estar escritas no rubi e como que em brasa no seu espírito. - Liberta... e depois vem, oh, vem...
Embora Matild se concentrasse ferozmente, o rosto desvaneceu-se e já não conseguia aperceber-se de qualquer mensagem. Liberta? A sua mão cerrou-se novamente em torno do pregador. Quereria aquilo dizer que algum poder no interior do templo teria previsto a vitória? Mas não se devia esperar demasiado... essa era a forma de agir dos imbecis.
Alcançaram a baía e viram então os primeiros sinais de vida. Dois dos maiores cargueiros tinham sofrido bastantes estragos, mas continuavam à tona de água a alguma distância um do outro. A proa de um deles estava assente em cima de um dos cais. Por trás dele via-se uma confusão de navios em mau estado, barcos de pesca, pequenas embarcações dos serviços do porto, algumas chalupas costeiras. E a água estava cheia de ameaças flutuantes.
Conseguiu aperceber-se de que havia movimento a bordo dos cargueiros mais próximos. Não havia confusão possível; os homens que ali trabalhavam vestiam casacos negros, cortando os mastros partidos e tentando aliviar assim as embarcações em mau estado e incapazes de navegar.
Os homens dos remos já tinham desviado o seu próprio barco mais para a esquerda, para o local onde se estendiam os cais mais compridos. À medida que iam avançando, Matild deu por si a suspender a respiração; conseguiriam vê-los do cargueiro? Conseguia ver, na sua imaginação, um dos raios fatais de que eles dispunham a estender-se para acabar consigo.
Uma ave marinha guinchou e Matild viu um dos homens da sua escolta franzir os lábios e responder com um silvo igualmente agreste. Uma última remada forte lançou-os na direcção do cais, fazendo-os passar por baixo dele. Foi à justa que conseguiu obedecer ao Baixa-te” sussurrado enquanto deslizavam para a obscuridade.
Viam-se ali passagens compostas por pranchas de madeira ainda húmida e escorregadia devido à subida da água do mar e em cima delas moviam-se homens. Não ficou surpreendida ao ver Saxon caminhar na sua direcção... franzindo ominosamente o sobrolho.
Matild ergueu uma mão para impedir que as palavras que ferviam dentro dele fossem pronunciadas.
- Esta batalha é minha, senhor capitão. Gostarias que eu me encobrisse cobardemente nas sombras, enquanto aqueles corvos agoirentos têm os nossos homens em seu poder? Eu sou o Tigre dos nossos tempos e, tal como o Tigre, faço as minhas próprias caçadas. - Olhou-o fixamente, desafiando-o a contradizer a verdade das suas palavras.
Ele franziu novamente o sobrolho.
- E se morrêsseis... ou fôsseis feita prisioneira?
Ela encolheu os ombros.
- Isso ficará a cargo do destino. Já te contei a forma como esses casacos negros reagem àquilo que tenho em meu poder. Quantos conseguiste já matar à força de espada ou lança?
A sua surpresa era evidente.
- Como é que soubestes que... que eles não podem ser mortos... ou, pelo menos, ser verdadeiramente mortos com a força do aço?
- São mortos-vivos - grunhiu alguém nas suas costas encoberto pelas sombras, e havia temor na sua voz.
Matild manteve-se imóvel, concentrando-se em ordenar as suas ideias e a sua fé.
- Em que barco têm eles o maior número de homens nossos?
Para sua surpresa Saxon sorriu.
- Agora só num, senhora. Na noite passada já libertámos o que estava mais distante. Parece-me que não têm casacos negros suficientes; nesse barco estavam mercenários. E os nossos ratos do rio são muito hábeis de punhos e navalhas. Mantivemos a nossa captura secreta até agora. Há bocado foram lá ter dois casacos negros que traziam mensagens. O Thurstan rebentou os miolos de um antes de ele ter tido tempo de usar o lança-fogo e o Pequeno Piet lançou o outro ao mar. Caiu em cima de um mastro que estava à tona de água e não voltou a mexer-se até o perdermos de vista.
- Mas o primeiro...
Todo o humor desapareceu do rosto de Saxon.
- Roubámos-lhe o bastão enquanto estava por terra. Mas apesar da pancada que levou, ergueu-se... mas parecia que estava estonteado, pois virou-se e foi-se embora como se já não nos pudesse ver. E também não se dirigiu ao barco onde estavam os seus companheiros. Um dos prisioneiros disse-nos que coisas semelhantes já tinham acontecido antes, vira isso acontecer na cidade, um casaco negro que fora anavalhado levantou-se e foi-se embora, não na direcção do seu atacante, mas na direcção oposta, como se fosse em busca de algum consolo para a sua ferida.
- Para eles não existe consolo - respondeu Matild lentamente. - São servos do mal... mortos obedecendo às ordens do seu senhor. No entanto, não os devemos subestimar por isso.
- E não subestimo! - respondeu ele. - O Marson morreu vítima dos seus bastões de fogo porque se descuidou. Se conseguíssemos pôr as mãos nuns quantos daqueles bastões...
Matild abanou rapidamente a cabeça.
- Não. Se um homem honesto empunhar aquela arma pode muito bem ser apanhado na rede de Apolon! Quando se mexe no carvão os dedos ficam enfarruscados.
- Então como? - perguntou Saxon. - Temos que limpar o último dos seus ninhos e temos que o fazer rapidamente. Não só necessitamos dos prisioneiros que estão a bordo, como os pescadores nos disseram que a frota do imperador conseguiu, não se sabe como, evitar a tempestade e está aí a chegar. Se o deixarmos fazer desembarcar aqui as tropas da frota e fazer entrar na cidade os homens que tem acampados no exterior dos muros, vai esmagar Merina como se esta fosse uma noz, apesar de todos os seus juramentos!
- Ele não tem em seu poder o Coração, nem aquilo que o Coração pode manter junto ou desfazer. Acredita-me, senhor capitão - tocou-lhe ao de leve na manga - tenho na minha mão algo mais poderoso do que jamais foi empunhado contra qualquer inimigo desde que a Espada de Gideon derrotou o próprio Iktcar.
- Que podeis fazer? - contrapôs ele.
- Lutar - respondeu ela. - Deixa-me defrontar esses casacos negros... já!
Ele ficou a olhar para ela, a sua boca torcendo-se como se quisesse praguejar. Mas ela manteve o olhar fixo no dele e viu que nos olhos dele a ira dava lugar à incerteza e, por fim, à rendição.
- Que assim seja - disse ele como se estivesse a prestar mais uma vez juramento. - Dizem-se muitas coisas acerca do Tigre e se calhar algumas delas são verdade. Será a vossa própria cabeça a estar em jogo. - A voz denotava novamente a ira que sentia.
- Será a minha própria cabeça - concordou ela calmamente. - Se a minha esperança não passar de uma sombra e se desvanecer rapidamente, ter-lhe-ei no entanto dado essa oportunidade e duma oportunidade é do que nós precisamos hoje. Eel, o cantil!
Quase instantaneamente o cantil de cabedal estava na sua mão e ela deu dois golos, sentindo novamente a torrente de força e energia. Depois, tal como concordara fazer, Saxon levou-a até ao local de onde poderia aceder facilmente ao barco. Os casacos negros continuavam a trabalhar. Depois um ergueu o olhar e soltou um grito.
Matild empunhou o pregador. Continuava a ver o navio para lá do pregador. Foi então que algo se começou a formar no ar. Cresceu rápida e continuamente. O Coração estava ali, suspenso, tal como se encontrava no templo. E ela sentiu, dentro de si, o impulso que a ordenava a mantê-lo ali.
Lentamente ela deu um passo e depois outro, e o Coração progrediu na mesma proporção dos seus passos. Encontrou apoio para os pés sem ter que o procurar e subiu, passando por cima de uma amurada partida. O Coração pulsava agora, enviando ondas de carmim por sobre todo o convés. Viam-se casacos negros por terra, como que atingidos por um raio. Apercebeu-se do vulto de outro que emergia do interior do navio; a criatura cambaleou e caiu. Mas ela manteve-se firme e não surgiram raios de fogo para a aniquilar.
Mas a sua concentração estava a enfraquecer enquanto tentava manter o Coração bem à vista. Mais uma vez, ouviu no seu espírito o eco de um eco... uma voz aguda na sua mente... “Muito bem!”
As ondas vermelhas pareciam agora retrair-se sobre o convés atravancado. De alguma forma soube que faziam uma busca, procurando os casacos negros, limpando o caminho dela. Deu um passo, sentiu que uma mão a apoiava e percebeu que Eel partilhava com ela aquela batalha. Mas não se conseguiu manter firme por mais tempo, estava esgotada até à última gota de energia.
As ondas vermelhas de luz pareceram tremeluzir... e depois esmoreceram. Atrás de si sentiu o clamor daqueles que se tinham atrevido a segui-la.
- Senhora! - Um braço mais forte do que o de Eel rodeou-lhe os ombros, amparando-a contra um corpo forte e vibrante.
Tentou voltar a prender o pregador no seu esconderijo e, quando o largou, o seu braço ficou como que de chumbo, e teria caído inerte não fora um dedo ter ficado preso na faixa que trazia, à cintura. Conduziram-na até onde a confusão provocada pelo mastro caído lhe proporcionaria algum apoio.
- Senhor capitão! - O vigor daquele grito fê-la sair do nevoeiro que lhe cobria o espírito. - Olha para este! Morreu sob um machado... - A voz esmoreceu como se o seu dono estivesse demasiado espantado com o que via para poder encontrar as palavras adequadas.
Matild olhou, tal como o seu companheiro.
Estava ali, caído de costas, um dos casacos negros. Ela não esperara ver nenhum sinal exterior de feridas... mas aquilo que viu foi uma ferida horrível produzida numa batalha, um crânio rachado ao meio. Por trás daquele estava outro dos seus companheiros e um dos ratos do rio ajoelhara-se ao seu lado. Corajosamente o homem virou o corpo. Via-se uma ferida aberta na garganta.
- Mas... - Espantado, o homem saltou para trás afastando-se do cadáver, ficando a olhar de olhos muito abertos para Saxon e Matild. - Nós não usámos armas destas... eles caíram, mas não foi em resultado da batalha connosco! - A sua mão, erguendo-se, fez um sinal de esconjuro.
Matild recuperou a voz. Calculava, não sabia, o que o Sangue do Coração forjara.
- Esses homens já estavam mortos e agora exibem as feridas de que morreram. Os malefícios do necromante ficam bem à vista.
O homem pôs-se de pé e afastou-se ainda mais do corpo.
- Mortos-vivos - disse lentamente. - Um mal...
- Um mal das maiores profundezas - completou ela quando ele não o fez.
- Mas os homens... os prisioneiros... - era Saxon quem agora falava.
- São filhos do Coração, encontrá-los-ás intocados. - Cambaleou e ele sentou-a delicadamente nos destroços.
- Levantem o alçapão! - A sua ordem foi quase um grito e os homens obedeceram prontamente, debatendo-se com os fechos emperrados.
Quando a porta caiu com estrondo sobre o convés, Saxon avançou até perto da abertura.
- Vocês aí em baixo, homens de Merina - chamou - ergam-se e subam!
Foram lançadas cordas para baixo. Saíram lentamente. Ela viu entre eles os uniformes verdes da polícia marítima e, aqui e ali, um uniforme da guarda, e as cores variadas das roupas das
várias Guildas, bem como roupas andrajosas semelhantes às que os homens que os ajudavam a subir usavam. Os prisioneiros agora libertados ficaram a olhar à sua volta e para os destroços do porto, e ela viu que muitos faziam o sinal do Coração dando graças.
Mas estava demasiado esgotada pelo Poder para ver neles mais do que figuras que iam passando na sua frente. Eel continuava a seu lado; a força da sua juventude dando-lhe apoio. Depois... depois, como num sonho, caiu tudo na escuridão quando a cabeça de Matild tombou sobre o ombro do seu companheiro.
SHELYRA
Shelyra não conseguiu parar de chorar durante todo o serviço, mbora tivesse abafado os soluços nas mangas do hábito emprestado; começara a chorar no momento em que Thom parara de se debater e a sua ferida aparecera. Foi nesse momento que percebeu que ele não estava meramente sob o efeito de um feitiço, mas que estava morto, e que estivera morto aquele tempo todo e que era pelo menos em parte por culpa sua que ele estava morto.
Após o culto, encaminhara-se às cegas na direcção dos confessionários, mas Leopold agarrara-a pelos ombros e guiara-a na direcção da sala de meditação.
- Parece-me que precisas mais de conversar do que de te confessar, senhora minha - disse
numa voz baixa e gentil, tão gentil que o seu desgosto a sufocou de novo. - Dificilmente poderei ser um confessor, mas sou um par de ouvidos mais do que disponível.
- E eu também. - A sua avó apareceu à sua esquerda e acompanhou-os até a sala de meditação.
Shelyra limitou-se a acenar com a cabeça e a deixá-los levá-la para onde quisessem. Uma vez na sala de meditação, deu vazão a uma torrente confusa de frustrações e auto-recriminações entrecortadas por soluços: culpa por não ter cuidado melhor de um homem com quem tinha um pacto, ira por Thom ter sido tão descuidado, culpa por se sentir zangada, frustração por ele não ter sido capaz de admitir que ela sabia muito bem o que estava a fazer, mais culpa por ter sabido que era provável que ele se lançasse nas ruas, quando ela não lhe proporcionara uma forma mais segura de exercer os seus talentos, nem obedecera às suas ordens deixando-o levá-la para fora da cidade...
- Isto nunca teria acontecido se eu me tivesse limitado a fazer o que a tia Lydana queria! - gemeu ela por fim, sentada entre a avó e o homem que fora seu inimigo. - Se eu tivesse ido ter com os Senhores dos Cavalos...
Adele começou a dizer qualquer coisa, mas Leopold falou primeiro.
- Se tivésseis saído da cidade, senhora minha, provavelmente teríeis sido capturada - disse ele com firmeza. – A partir do momento em que a rendição de Merina foi assegurada, foram postos guardas em todas as estradas, efectuou-se o bloqueio do porto e enviaram-se patrulhas comandadas por batedores experientes para os campos circundantes. O imperador partiu do princípio que vocês tentariam fugir, vocês as três, e tencionava manter-vos reféns do bom comportamento da cidade. O conselheiro dele, Apolon, também vos queria... por outras razões. A não ser que conheçais mais passagens secretas por baixo dos montes - ela apercebeu-se de um certo divertimento na sua voz - duvido que, mesmo uma senhora tão esperta como vós, tivesse conseguido passar tudo isto.
Ela assentiu e a voz dele tornou-se mais sombria.
- Apolon quer-vos, senhora minha... quer-vos mais do que a qualquer tesouro. Faria qualquer coisa para vos apanhar. E penso que, depois do que aconteceu hoje, podemos perceber, pelo menos em parte, por quê.
- Necromancia - murmurou ela, mas Adele abanou a cabeça.
- Não creio - replicou a avó. - Não, é mais complicado do que isso. Por forma a poder negociar com... com as criaturas que o servem nas suas magias, ele tem que lhes oferecer algo que elas desejem. Sangue, evidentemente, mas também o poder que advém de terminar uma vida antes do tempo e também outros poderes que dependem do tipo e das condições do sacrifício.
Shelyra ergueu a cabeça, as faces ainda húmidas de lágrimas.
- Queres dizer que... ele só me queria para um sacrifício? - disse ela, pensando que tudo aquilo soava a algo saído de uma peça de má qualidade.
Mas Adele abanou a cabeça.
- Não era só para um sacrifício, Lyra - respondeu ela usando o velho diminutivo. - Tu és algo mais do que aqueles pobres homens que ele assassinou na sua sala de trabalho. No teu sangue está o Poder: o poder mágico que virá até a ti quando tiveres a minha idade. Isso faz com que tu valhas... oh... mil vezes mais num sacrifício do que qualquer outra pessoa.
Shelyra estremeceu, pensando noutras coisas que ouvira aos ciganos.
E além disso também sou virgem... o que é capaz de ainda aumentar o valor do sacrifício. Senhora de Luz! Não admira que Apolon me quisesse nas suas garras!
- Por isso, como vedes, se tivésseis feito o que a vossa tia queria com tão boas intenções - continuou Leopold - a vossa cidade estaria em muito pior estado do que está agora. Vós estaríeis provavelmente morta e de uma maneira muito pouco agradável e Apolon teria usado o poder que teria obtido dessa forma para se tornar um igual do imperador.
- Não. Apolon reinaria - disse Adele bruscamente e virou-se para Leopold. - Não tenho qualquer prova... mas depois de tudo isto, tenho razões para suspeitar que o teu pai... já não é o que era. Apolon deve ter morto várias centenas de pessoas nos últimos dias e nem todos foram mortos nos rituais que próduzem as marionetas necromânticas. Creio que, pelo menos em parte, essa gente serviu o propósito que ele destinara a Shelyra... e o teu pai, se não é uma marioneta, está pelo menos sob o total controlo dele. Pode até mesmo estar possesso.
Leopold empalideceu ao ouvir aquilo e Shelyra pegou-lhe na mão, instintivamente. Mas a sua voz, embora baixa, soou firme quando respondeu.
- Isso... isso explicaria muitas coisas, reverendíssima - admitiu. - E ainda explica mais, se eu partir do princípio de que o Mago Cinzento começou a exercer os seus poderes desde que veio para o serviço do meu pai, com o objectivo de chegar a este dia. E agora vejo qual a motivação para o destino de que esta senhora me parece ter salvo a mim. - Apertou a mão de Shelyra enquanto continuou. - Por isso... senhora, se tivésseis seguido as ordens da vossa tia, vós estaríeis morta, eu estaria morto e a vossa cidade estaria sob controlo total de um necromante. - Sorriu-lhe, embora fosse claro que sorria através da sua própria dor. - Pessoalmente tenho que estar inteiramente grato à vossa natureza rebelde.
- Quanto a Thom Talesmith - continuou a avó, a sua voz adquirindo um tom meramente factual - não quero dizer mal dos mortos; especialmente não quero dizer mal de um que lutou contra a criatura que o subjugava para vir aqui avisar-nos, mas devo fazer-te notar que não o obrigaste a ir para as ruas debaixo de chicote. Ele sabia quais eram os perigos; correu-os de sua livre vontade.
Shelyra assentiu e começou a sentir desfazer-se na garganta o nó de desgosto que a culpa lhe provocava.
- Chorai-o adequadamente, como se chora um amigo corajoso, senhora - disse-lhe Leopold - mas não vos sintais responsável por actos sobre os quais não tivestes qualquer controlo. - Apertou-lhe ligeiramente a mão mais uma vez. - Creio que eu próprio tenho esse defeito... parece-me que isso faz parte da autoridade que se tem sobre outrem.
Ela assentiu e viu que a avó observava Leopold com uma aprovação carinhosa.
- Bem, agora - continuou ele, largando-lhe a mão uma fracção de segundo antes de ela ter sentido a necessidade de a retirar - temos vários problemas a resolver.
- Apolon deve saber o que se passou aqui... – começou Shelyra hesitantemente.
- Certamente - concordou a avó. - E o que é mais, é que está a travar-se uma batalha no porto neste preciso momento, nos barcos que ele e o general Cathal têm usado como prisões. Não passará muito tempo antes que isso se saiba na cidade.
Shelyra não se deu ao trabalho de perguntar à avó como sabia daquilo. Se os religiosos tinham sido capazes de espiar o Apolon, certamente que também poderiam ver o que se passava em qualquer outro local da cidade.
- Rebelião aberta - disse Shelyra baixinho e Leopold endireitou-se.
- Concordo... o que significa que temos muito pouco tempo - disse. - Mesmo que a vossa gente tenha avançado em segredo para capturar esses barcos, isso não ficará em segredo durante mais do que uma ou duas horas, no máximo. O Apolon vai certamente avançar para aqui.
Adele concordou.
- Foi por isso que Verit não mandou embora os religiosos depois do Ritual do Meio da Manhã, penso eu. Defrontá-lo-emos aqui, à nossa maneira. Isso deixa Cathal... e o teu pai...
- O meu pai morreu, reverendíssima, na sequência de uma longa doença que se iniciou há muitos anos - interrompeu-a Leopold, com uma resignação espalhada no rosto que era ainda pior do que o desgosto. - O imperador é um homem que não conheço e a quem não posso servir. Ele forçou-me a escolher entre Aquela que Habita para Lá das Estrelas e ele próprio, e a minha escolha só pode ser pela Deusa.
Curvou um pouco a cabeça ao proferir aquelas palavras e Adele estendeu a mão e pousou-a na cabeça dele, numa pequena bênção. O toque dela pareceu dar-lhe algum conforto, pois Shelyra viu nos seus olhos, quando ele os voltou a erguer, menos desespero e mais determinação.
- O vosso lugar é aqui... creio que o meu - não, o nosso, se posso pedir a vossa ajuda, senhora minha - disse a Shelyra - o nosso lugar é no palácio. Cathal sempre foi uma besta, mas agora é um monstro e tenho que o eliminar. E serei talvez capaz de lidar com o imperador de uma forma que o deixe receptivo à ajuda do templo.
Adele, perante aquilo, teve que encolher os ombros.
- Não sei. Não temos prestado grande atenção ao que o imperador tem feito. - Sorriu a Shelyra. - Tivemos outras formas de sabermos quais os seus movimentos e não nos pareceu eficiente estar a usar a magia quando tínhamos informações perfeitamente seguras provindas de outras fontes.
Shelyra limitou-se a erguer uma sobrancelha.
- Então, parece-me que a primeira coisa a fazer é ir rapidamente até ao palácio e ver o que podemos fazer para nos livrarmos de Cathal antes que ele consiga reunir os seus homens. Depois disso... o que for, soará.
- Os planos de batalha raramente sobrevivem ao primeiro recontro com o inimigo - concordou Leopold. - Mas parece-me que teremos que tratar de Cathal por meio da força. Infelizmente, o nosso primeiro problema são os seus mercenários.
Shelyra apertou os lábios.
- Penso ter a solução para isso e é uma que mantenho sempre à mão.
Agarrou na bolsa que ultimamente trazia sempre presa ao cinto e tirou para fora o seu conteúdo: cinco pequenos frascos de um líquido transparente, cinquenta pequenos dardos com pontas finas como agulhas de costura guardados numa caixa chata e o tubo oco utilizado para os disparar.
- Esta arma é usada por um dos grupos dos Senhores dos Cavalos - explicou, enquanto Leopold olhava para os dardos com interesse. - E se alguma vez sentistes curiosidade em relação a isso, é assim que eles conseguem livrar as suas manadas de inimigos com tanta impunidade. O líquido não é exactamente um veneno, embora se utilizado em grandes quantidades possa matar... geralmente limita-se a fazer com que o alvo fique inconsciente durante cerca de uma hora. Os dardos só podem ser usados a muito curta distância...
- Mas entre as paredes do palácio, estaremos certamente a trabalhar com distâncias curtas - concluiu Leopold por ela, parecendo mais animado. - Nesse caso, minha senhora, visto esta ser uma arma com que estais familiarizada, deixo-vos essa tarefa. O que eu gostaria de fazer... - As suas sobrancelhas escuras juntaram-se enquanto pensava, o que fez com que o seu rosto bastante vulgar parecesse subitamente austero e implacável. - Gostaria de eliminar os mercenários da escolta de Cathal e depois o próprio Cathal. Depois, com sorte e as bênçãos da Deusa, devemos ser capazes de avaliar a situação do imperador... se ele foi afectado de alguma maneira...
Shelyra mordeu o lábio, e depois decidiu fazer uma contraproposta.
- Olhai, Leopold, se conseguirmos... incapacitar o imperador, ninguém teria forma de saber que ele não vos tinha mandado regressar para que o livrásseis de Cathal e de Apolon. Por que não havemos de fingir simplesmente que ele vos devolveu a autoridade? Os vossos homens obedecer-vos-iam sem qualquer problema e, quanto aos mercenários de Cathal, bem, sem ele presente, seguirão qualquer um que lhes continue a pagar. Isso faria com que fossem os vossos homens e os mercenários contra os de Apolon.
- Muitos dos seus homens já se estão a rebelar - fez notar Adele. - Sei que, moralmente, achas esse plano repugnante, Leopold, mas é aquele que tem mais probabilidades de salvar vidas.
Shelyra suspendeu a respiração enquanto Leopold ficava com um ar pensativo e finalmente encolheu os ombros.
- É um embuste e uma desonestidade, mas não lhe encontro falhas, senhoras - disse por fim com um suspiro. - Tendes razão, reverendíssima, salvará vidas. Vamos usá-lo.
Shelyra respirou novamente. Leopold era pragmático, para além de ser inteligente.
- Podemos sempre cuidar de que o imperador seja reposto no poder assim que volte a recobrar o juízo - disse ela, tendo o tacto de não partir do princípio que o imperador estava no mesmo estado em que Thom estivera. - Não quereis o trono imperial, pois não?
Ele abanou a cabeça.
- Não. Nunca quis - admitiu. – Fui educado para comandar e para governar, mas um império? Não, isso é demais para mim. Sentir-me-ia bastante satisfeito por governar um reino muito mais pequeno...
Como Merina? Ela não o disse alto, mas sentiu um abalo no peito. Já brincara com aquela ideia antes, mas só agora admitia que pensara nisso.
Este é um homem a quem eu poderia amar. Este é um homem com quem eu teria orgulho em partilhar a vida e o trono.
Ele abanou a cabeça, como se se obrigasse a sair de um devaneio.
- Estamos a perder tempo; cada minuto que esperamos é mais um minuto em que Cathal pode ficar a saber da revolta e sair do palácio, o que faria com que ficasse fora do nosso alcance.
- Verdade. - Adele pôs-se de pé. - Vou informar a grande sacerdotisa das linhas mestras do vosso plano. Tal como vós, espero que Apolon nos confronte aqui. Se puderem fazê-lo, ou se
tiverem o imperador sob custódia, tragam-no para aqui. Precisaremos de todos os corações fiéis e não apenas dos religiosos ordenados.
Sorriu a ambos e as suas mãos desenharam uma bênção sobre as suas cabeças e deixou-os, com o ruído ligeiro de pano a roçar a pedra.
Shelyra voltou a meter tudo na bolsa e depois levantou-se e abriu o fecho da porta que dava para a parte de trás da sala de meditação. Ela e Leopold entraram e fecharam a porta atrás de si, despindo os hábitos e pendurando-os nos cabides vazios. Tinha a mão num segundo fecho quando hesitou. Havia uma coisa que tinha que saber.
- Leopold... vistes alguma coisa lá no templo, quando fizeram o exorcismo? - perguntou.
Ele olhou para ela com uma expressão de espanto.
- E vós não? - perguntou.
Estava habituada a ouvir aquele tipo de coisa da boca da sua avó, por isso aquele género de pergunta já não a fazia sentir-se uma espécie de fenómeno. Na realidade, tanto quanto conseguia aperceber-se, não havia muita gente, além dos religiosos, que conseguisse ver o que... a sua avó via.
- Só luz - replicou. - Primeiro uma luz vermelha vinda do Coração, depois luz branca, depois a luz vermelha esbateu-se e ficou cor-de-rosa. Penso que... talvez... tenha ouvido alguém dizer “obrigado”, mas podia ter sido um dos religiosos.
Pela sua expressão surpreendida, ele vira obviamente muito mais do que ela. Mas em vez de lhe responder directamente, fez uma pausa como se estivesse a pôr as ideias em ordem.
- Antes de aqui ter chegado, nunca vi nada, nem mesmo luz - disse ele por fim. - Nem nunca esperei realmente ver.
- E agora? - incentivou-o ela.
A sua expressão tornou-se pensativa e as linhas duras provocadas pela preocupação suavizaram-se.
- Vi... seres. Presumo que, pela sua aparência, pelas suas acções, e pelo que se seguiu, fossem realmente anjos. - Olhou novamente para ela, atentamente. - Eu tinha muitas suspeitas em relação àquele chá em que pusestes aquelas coisas, lá no Palácio de Verão. A velhota nunca me tinha trazido chá antes e aquilo tinha um cheiro estranho. Sabeis por que é que o bebi?
Ela abanou a cabeça.
- Porque um anjo apareceu e disse-me que o bebesse. - A resposta dele fez com que ela se sobressaltasse e ele sorriu ao ver a sua expressão. - Verdade. Ele disse-me que eu corria um grande perigo, que tinha um amigo que não suspeitava ter e, que se quisesse escapar ao perigo, deveria beber aquele chá.
Ela suspeitou, pela expressão dele, que o mensageiro divino devia ter dito mais alguma coisa, mas cabia-lhe a ele revelá-lo, ou não, e ela não tentaria que ele o fizesse.
- Quanto ao que vi no santuário... sim, vi alguma coisa. Mais do que o suficiente para ficar a saber que o teu amigo, como disse a religiosa Cosima, pagou todos os pecados da sua vida com o seu esforço heróico para nos avisar acerca de Apolon. - Pousou uma mão cautelosa mas reconfortante sobre o ombro de Shelyra. - Acreditai-me, senhora, vosso amigo está a salvo entre as asas da Deusa.
Aquilo, vindo dele, um homem tão vulgar como o bom pão amassado em casa, era um conforto maior do que quaisquer das palavras que os religiosos tinham dito. Ela suspirou como se um enorme peso lhe tivesse sido tirado do espírito.
- Agora... temos assuntos urgentes a tratar, minha senhora - continuou ele. - E esses assuntos não esperam.
- Certo. - Ela assentiu energicamente e certificou-se de que tinha tudo dentro da bolsa antes de abrir a porta que dava para o túnel que corria entre o palácio e o templo. - Segui-me e observai o que eu faço. É melhor que saibais como abrir as portas; se tivermos que fugir, não quero que dês por vós do lado errado de uma porta fechada!
LYDANA
Pareceu-lhe, mesmo imersa em escuridão, que havia idas e vindas que não conseguia perceber. Não que se importasse muito com isso. A dado momento pareceu-lhe ter visto ao longe a forma do Grande Coração e depois um frágil nevoeiro onde se viam os olhos da sua mãe. E por trás dela um brilho colorido sem forma definida, mas que percebeu tratar-se da força vital de Shelyra empenhada nas suas próprias acções.
Por fim, deixaram-na, todos aqueles sonhos fantasmagóricos, e ficou segura e envolta no sono. Despertou com a luz do sol, que desenhava um padrão brilhante sobre a cama onde estava deitada; não era verdadeiramente uma cama, como lhe disseram os seus olhos espantados. Não, era mais uma enxerga como as que havia no armazém. Teria sido transportada de uma maneira qualquer de volta até ao esconderijo do Jonas? Sentiu um movimento a seu lado; empenhou-se na difícil tarefa de virar a cabeça.
- Skita?
Uma mão do tamanho da mão de uma criança cobriu-lhe a testa, fazendo-lhe depois uma festa na face.
- Bebei, senhora minha.
A outra mulher conseguiu erguê-la um pouco, e sentiu o bordo de um copo contra os lábios. Sentia um cheiro, embora fraco e distante, mas que lhe despertou a memória. Como uma criança obediente, bebeu. O nevoeiro que lhe embotava os sentidos foi afastado da mesma forma que o vento dispersa as mais escuras das nuvens. Olhou para lá da sua enfermeira para a parede em mau estado.
Conseguia agora sentir o odor do mar e ouvir as suas águas. E, tal como um quebra-cabeças cujas peças entrassem uma a uma nos seus lugares, a memória voltou.
- Que...?
Skita sorriu. De alguma forma, livrara-se da pele de Eel e era novamente ela própria, apesar das suas vestimentas sujas e rasgadas.
- Que se passa? Muita coisa. O senhor capitão é na realidade um chefe e tanto. Conseguiu formar um exército antes da noite terminar. Agora estão a montar uma emboscada para a frota do imperador.
- Uma emboscada?
Lydana (sim, ela era novamente Lydana e não Matild, a mulher das contas; era a sua cidade, o seu povo por quem combatiam) procurou o pregador e prendeu-o do lado de fora do casaco, visto não poder colocar o sinete no anel original naquele momento.
- A tempestade deixou o porto cheio de destroços – continuou Skita. - O senhor capitão vai fazer uso disso. Preparou barcos incendiários...
Barcos incendiários. A sua memória levou-a a dias antigos e à história de Ourse e da vitória que ali tinham tido. Subitamente, toda a sua força estava de volta; sentia-se completamente
alerta e obrigou-se a levantar.
- Quero ir ver!
- Primeiro - Skita foi veemente na sua resposta – ides comer. Aquela vossa bebida milagrosa foi bebida até à última gota. Agora tendes que arranjar forças da mesma maneira que todos nós. Ficai onde estais...
Saiu com Lydana a olhá-la. O quarto onde estava era pequeno e tinha uma única janela, sem vidraças, por onde entravam os odores e os sons do mar. Pelo equipamento pendurado nas paredes calculou tratar-se de uma cabana de pescador. Depois Skita voltou com uma bacia de água e uma toalha grosseira. Agradecida, Lydana lavou a cara, esfregando as faces com força, sentindo-se repugnada com a cor com que a toalha ficou.
Skita desaparecera novamente. Quando voltou pela segunda vez, trazia um tabuleiro de madeira com um desenho de cobre engastado e já em mau estado, uma recordação de uma qualquer viagem. Sobre ele estava um prato de faiança já lascado ao lado de uma taça de prata que poderia ser produto de um saque de piratas.
Dentro da malga estava um guisado e a seu lado um luxo: uma colher que lhe permitiria comer de forma civilizada. A taça continha vinho do sul com pelo menos três anos de envelhecimento. O pescador que ali se instalara vivia bem.
- Conta... - exigiu Lydana por entre duas colheradas.
Skita sentou-se de pernas cruzadas; tinha na mão uma salsicha, que ia trincando de vez em quando.
- Estão a tornar aptos a navegar, ou pelo menos tão aptos quanto possível, para o caso de serem necessários, três dos maiores barcos de pesca. Os corvos agoirentos e os outros... tinham guardas nos armazéns, mas não os tinham saqueado. Provavelmente queriam guardar os armazéns para a frota. Por isso, o senhor capitão pôde escolher entre o melhor material. Vão encher os barcos de fogo preso...
Lydana engoliu apressadamente, tentando não pensar nos efeitos do fogo preso.
- Há voluntários para os tripularem... na verdade os voluntários foram tantos, que o senhor capitão teve que tirar à sorte para ver quem terá esse privilégio. Os da frota mandaram uma guarda avançada de dois barcos, mas tudo o que viram foram destroços e alguns dos homens vestidos com os uniformes dos mercenários, de guarda a bordo dos cargueiros. Agora a frota vem aí. - Skita deu mais uma dentada.
Lydana esperou que ela engolisse para ouvir o resto.
- A baía está repleta de destroços; eles vão avançar com cuidado. Mas os navios incendiários parecerão barcos capturados e para além disso, parecerão estar em bom estado. O senhor capitão acredita que eles vão enviar equipas para tomar conta desses barcos. Os nossos homens estarão escondidos e quando os outros aproximarem os seus navios, então... o fogo! Os que vão tratar disso são homens escolhidos a dedo. Já trabalharam com esse género de coisa antes e pode-se confiar neles para que usem bem a experiência que têm.
- E se conseguirmos tomar a frota? - perguntou Lydana.
- O senhor capitão não acredita que possamos apanhar todos os navios, mas se conseguirmos apanhar o navio comandante e, pelo menos, três dos navios de transporte, podemos fazê-los retirar. Afinal de contas a frota do imperador nunca se defrontou com gente do nosso tipo. Ocuparam Gomba, sim, e essa era uma cidade portuária, mas os mercadores de lá dependem em grande parte de navios estrangeiros para os seus negócios e esses dispersaram assim que souberam do avanço da frota imperial. Têm navios muito grandes... construídos dessa forma, segundo penso, para sublinhar a glória suprema do imperador - o lábio de Skita revirou-se - mas a falta de mobilidade desses barcos foi aquilo de que o senhor capitão se aproveitou em Ourse. E Korsic, apesar de todas as suas piratarias, era melhor marinheiro, era capaz de o jurar, do que qualquer dos comandantes destes barcos. Balthasar tem saído vencedor há demasiado tempo... uma tal história de sucesso torna um homem vulnerável.
- E demasiado confiante - acrescentou Lydana.
Skita concordou.
- Uma vez que a frota já não represente uma ameaça, o senhor capitão levará os homens para a cidade. Não sabemos o que está a acontecer por lá, senhora. Mas alguma coisa fervilha por lá e nós vamos ajudar a atiçar o fogo.
A mão de Lydana dirigiu-se ao pregador. Atrever-se-ia a comunicar novamente? De alguma maneira sentiu que não o devia fazer. O poder que a alimentara na captura do cargueiro poderia estar a ser necessário noutro local e o mais ligeiro dos esforços que lhe fosse imposto poderia alterar perigosamente um equilíbrio delicado. Era melhor esperar para ver como funcionaria ali a estratégia de Saxon.
Com Skita a acompanhá-la cheia de cuidados, saiu do quarto, que era um dos dois existentes na cabana de pescador, tal como calculara, e dirigiu-se para o edifício com uma torre, que dominara durante gerações todos os negócios efectuados no porto. Mantiveram-se afastadas, bem longe dos homens que trabalhavam.
Via-se uma longa fila saindo do andar mais baixo, aos pares, carregando entre si grandes caixas. O fogo fora sempre uma arma de piratas, mas depois de Ourse, Saxon mandara comprar uma boa provisão para os seus próprios armazéns, uma provisão prudente que agora traria as suas recompensas.
Não viu o capitão, mas a voz de Jonas ouvia-se lá em baixo e, de vez em quando, avistava o rosto de um dos ratos do rio com quem partilhara o alojamento no armazém. Entraram pela porta mais acima e subiram à torre, passando ao longo do caminho por homens vestidos com os uniformes dos mercenários de Balthasar, embora certamente nunca lhe tivessem prestado juramento; nem a ele nem a Cathal.
Alguns deles lançaram um olhar às duas mulheres, mas nenhum deles as questionou e sentiram-se como se tivessem ficado esquecidas no meio de toda aquela actividade. Lydana entrou nos alojamentos de Saxon perto do cimo da torre. Viam-se sinais de que tinham sido saqueados. A arrumação normal do marinheiro habituado a viver em espaços apertados estava ausente. Viam-se papéis rasgados e ela viu o seu próprio retrato oficial pregado no tampo da mesa com uma faca desdenhosamente espetada em cada olho. Examinou o retrato com olhar crítico e depois pensou se haveria um espelho pendurado nalguma parede ali próxima, e se reconheceria a sua imagem presente como nem que fosse vagamente aparentada com a daquela mulher majestosa, em toda a glória dos seus vestidos e jóias só possíveis de ser encontradas nos cofres da Casa do Tigre.
Mas tinha agora coisas melhores do que aquelas pedras. A mão de Lydana dirigiu-se ao pregador. Não tomou a liberdade de ocupar a cadeira do capitão, mas ela e Skita sentaram-se num banco duplo junto à janela que ficava de frente para o porto por forma a poder ver o que se passava lá fora.
Viam-se montes de destroços, alguns deles constituídos talvez por lixo arrastado da cidade, trazido pelos canais influenciados pelas marés. O cargueiro maior continuava preso ao cais pela proa, mas um dos outros que o flanqueavam fora levado para longe.
- Os casacos negros...
Lydana quase esperou ver aqueles cadáveres ainda ali, à vista de todos. Skita produziu um pequeno som; não foi bem uma gargalhada, mas um som tão sombrio que Lydana a olhou de relance.
- Eles serviram-nos! - A pequena mulher bateu com as mãos no parapeito da janela e Lydana viu que tinha novamente postas as suas garras de combate. - Os homens estavam com medo de os terem por perto, mas o senhor capitão, o Jonas e o Dortmun tiveram uma ideia. E depois houve homens que não se importaram de pôr a ideia em prática. Os corpos tinham que ficar fora das vistas; eram demasiado aterrorizantes para alguns dos homens. Por isso, navios incendiários com eles! Depois, aqueles que não tinham ferimentos muito visíveis, ficaram a servir de tripulação visível. Com eles à vista nos navios quem irá duvidar na frota do imperador, até que já seja tarde?
- Se os nossos homens estavam com medo, quem é que cumpriu essas ordens? - quis saber Lydana.
- Os mercenários - aqueles que o senhor capitão prendeu no primeiro assalto. Estavam com tanto medo como a nossa gente, mas como são prisioneiros, não tiveram escolha e foram postos ao trabalho. O senhor capitão disse que o fogo seria também bom para limpar corpos tão impuros da face da Terra e a maioria dos homens achou que ele tinha razão.
Então os barcos incendiários seriam tripulados. Lydana rezou:
- Mãe Toda Poderosa de todos nós, estes também foram teus filhos, embora tenham sido forçados a percorrer os caminhos do mal. Permite que terminem a sua passagem neste mundo como guerreiros e que nesse fim encontrem a Tua misericórdia.
- Que assim seja - disse Skita. - Se alguma essência de alma ainda está presa naqueles corpos, que possa encontrar a paz eterna.
O fim da tarde aproximava-se. Lydana viu que três dos navios, com os mastros tortos e com cordas soltas penduradas, estavam a ser manobrados a partir de três pontos de partida diferentes, ao longo dos numerosos cais. Skita tinha razão, viam-se casacos negros nos convés, mantidos de pé não sabia por que meios e, à distância, parecendo vigilantes.
Cada um dos pequenos navios era escoltado por um par de barcos compridos que, vigorosamente impulsionados por remos, fizeram os navios dar a volta e partir na direcção da barra; os seus movimentos pouco elegantes poderiam ser atribuídos ao facto de estarem rodeados de destroços.
- Senhora... olhai!
Skita apontou para o mar com uma das suas mãos guarnecidas de garras. Alguns destroços boiavam mas, para lá deles, via-se mais qualquer coisa... barcos que se moviam. A frota do imperador, ou antes, a sua guarda avançada! Já tinham passado pelas ilhas mais distantes e avançavam a maior velocidade que os barcos incendiários.
Lydana levou os nós dos dedos aos lábios e mordeu com força até ao osso. Haveria alguém nos barcos que se aproximavam que suspeitasse daquele truque ousado? Quem teria já um binóculo assestado nos três navios que balançavam?
Poderia um binóculo assestado sobre um casaco negro deixar perceber rapidamente qual o seu verdadeiro estado: um homem duas vezes morto e que agora servia os seus inimigos?
Parecia provável que houvesse, entre os marinheiros ao serviço de Balthasar, pelo menos um capitão desconfiado, pois os barcos da guarda avançada estavam a recolher pano e a avançar agora mais lentamente. Soprava um vento forte e até àquela altura eles tinham-no aproveitado ao máximo.
Um dos barcos que escoltava cada uma das embarcações de pesca deixou-se ficar para trás, abrandando a velocidade da progressão dos navios que escoltavam. Deixaram-se ficar para trás, não tentando alcançar terra.
Não se viam naquela noite quaisquer nuvens tempestuosas e os pássaros de bico afiado sobrevoavam os barcos que supostamente navegavam. Lydana estremeceu, sabendo muito bem o que atraía os pássaros. Pois os falcões costeiros eram aves necrófilas que conheciam muito bem os sinais da morte. Alguém daria por eles e suspeitaria do que se passava?
Os veleiros mais avançados estavam a abrir alas para os barcos de pesca. O vento fazia agora avançar a frota. Não conseguia avaliar o tamanho dela; nem sequer se a totalidade dos seus barcos se encaminhava naquela direcção.
- Presa fácil. - Skita quase ronronou as palavras. - Vedes, estão a chegar-se para o lado... a abrir caminho. Os casacos negros acabaram por nos servir bem.
Na realidade, os barcos a remos tinham recuado por entre os destroços, deixando que os barcos que tinham escoltado continuassem a avançar, embora que vento ou corrente os empurrava, Lydana não pudesse adivinhar. Talvez algo de maior que os homens que lá em baixo arriscavam as suas vidas tivesse assumido o comando.
Quase nem querendo acreditar que o ardil fosse resultar com tanta facilidade, viram o primeiro dos pesqueiros passar entre os veleiros mais avançados que se afastou bastante do seu caminho; seria isso devido às figuras de negro que estavam no convés, agora demasiado distantes para que as conseguissem distinguir?
Talvez que as forças de Apolon fossem tão temidas pelos guerreiros do imperador, como por aqueles que conheciam a sua verdadeira natureza.
O segundo pesqueiro estava agora próximo dos veleiros. Estavam já demasiado distantes para poder ver qualquer acção que se desencadeasse.
Depois...
Não se ouviu qualquer som, como ela esperara; unicamente as línguas de fogo que subiam no ar. O fogo, até mesmo o fogo preso, fazia parte do Grande Poder, fora uma das primeiras dádivas feitas à humanidade; e o fogo engolfou o pesqueiro no momento em que este passava pelos dois primeiros navios de guerra da frota. As chamas corriam por cima da água e aquele fogo não era apagado pela água: era esse o maior dos seus segredos.
As velas e as cordas incendiaram-se no momento em que o segundo pesqueiro chegava ao pé do primeiro. Os veleiros tentaram afastar o terceiro, mas ficaram envoltos nas chamas vermelhas e amarelas.
Embora pela hora devesse já ser crepúsculo, a baía estava iluminada pela luz brilhante do meio do dia. As chamas não se estendiam apenas, mas através de um qualquer truque de artesão, formavam-se bolas de fogo que se erguiam e rodavam alcançando ainda mais longe, levando o fogo a navios que poderiam ter-se julgado a salvo e teriam tido uma hipótese de fugir.
Lydana tapou os olhos. Aquilo era uma coisa terrível ali em baixo havia homens a morrer um tipo de morte que lhe fazia doer o espírito.
- É um verdadeiro horror... - disse.
- Não da forma que estais a pensar, senhora. - Sobressaltada, olhou para Skita. - Eles teriam servido Merina desta forma no passado, se tal lhes tivesse sido ordenado. Já vi muita coisa... e há também aqueles que tiram um grande prazer das chacinas...
Continuava a olhar para o mar. E Lydana lembrou-se, embora Skita nunca lhe tivesse contado como acabara presa na jaula do pirata, que poderia ter sido em resultado de uma fúria semelhante à que agora observavam.
Mas guerra ou não guerra, Lydana estremeceu. Já não se atrevia a olhar por mais tempo os resultados dos seus próprios esforços. A raiva que tinha fervido dentro de si estava a ser absorvida por aquela cortina de fogo. .
Sentiu a mão pulsar e virou-a de palma para cima. A marca que o Coração lhe fizera brilhava. Ela pedira que qualquer vingança recaísse sobre ela no caso de ter errado. Seria aquilo um sinal de que chegara a hora de pagar pelos seus pecados?
- O mal volta para o mal - repetiu a velha frase do catecismo que sabia desde criança - o bem alimenta o bem. Merina através da Mão e do Coração, mas só pela graça da Deusa. Quando respiro és Tu quem comanda a minha respiração. Pela Tua misericórdia leva para junto de Ti, para a Tua paz, aqueles que agora morrem, sejam eles seguidores de Balthasar ou homens nossos apanhados pelos fogos que eles próprios despoletaram. E juro, pelo Coração cujo Sangue me corre nas veias - a sua mão marcada envolveu o pregador - que tendo servido desta forma, não voltarei a servir. Pois a marca daquilo que provoquei nunca mais me abandonará.
Quase esperava ouvir uma resposta. Mas talvez a Deusa já não se interessasse por ela; era uma pedra encastoada no seu lugar que já não precisava nem de mais polimento nem de mais retoques. Só ela sabia como as palavras que dissera eram verdadeiras; se houvera dentro de si alguma fonte de Talento, esta desvanecera-se. Usara forças que não lhe cabia controlar. Mas naquele momento não sentiu a perda, sentia unicamente ter pousado um fardo que não lhe cabia transportar.
ADELE
A religiosa Elfrida estava sentada no seu lugar no santuário, entoando os cânticos com todos os outros religiosos. Verit tivera razão; uma demonstração das verdadeiras acções de Apolon provocara uma diferença substancial na atmosfera do templo. Os poucos que não tinham compreendido o que se estava a passar durante o exorcismo, perceberam a natureza da situação quando os poucos noviços que Apolon tentara subverter começaram a falar.
Aparentemente, Apolon não levara suficientemente em conta o facto de qualquer pessoa capaz de sobreviver mais do que um ou dois meses no templo, não ser o tipo de pessoa que pudesse sentir senão horror perante a prática de necromancia. Todos os “noviços de Apolon”, à excepção do mais recente, tinham feito uma confissão pública e tinham-no repudiado e a todas as suas acções.
O mais recente, infelizmente, não estivera o tempo suficiente no templo para se ter tornado um verdadeiro filho do Coração. Cegara, pelo menos temporariamente, com a luz que o Coração emanara durante o exorcismo e embora não tivesse feito uma confissão formal, o que ele gritara quando se apercebeu do que lhe acontecera fora igualmente esclarecedor.
Elfrida tentou concentrar-se novamente nos cânticos que entoava. Naquele momento sentia-se incapaz de se concentrar naquilo que estava a fazer. Sentia-se inquieta e pensamentos aparentemente desconexos corriam pelo seu espírito.
Mas, na verdade, aqueles pensamentos não eram desconexos; eram fragmentos dos perigos e problemas que o templo estava prestes a enfrentar e para os quais ainda não havia uma resposta.
Quanto tempo passaria até Apolon fazer a sua jogada? O templo estava cercado pelos seus casacos negros e estes tinham começado a não permitir a passagem daqueles que se dirigiam aos serviços religiosos. Quanto tempo levaria a chegar aos ouvidos do imperador e dos seus conselheiros a notícia das acções de Lydana e do seu exército de maltrapilhos? E que fariam eles quando soubessem disso?
Shelyra e o seu jovem, bem, talvez não tão jovem assim, tinham desaparecido nos túneis do palácio minutos antes, talvez na missão mais arriscada de todas. Elfrida estava cada vez mais certa de que o imperador era uma marioneta de Apolon.
O Mago Cinzento parecia não ter qualquer apetência pelos sinais exteriores do poder; assim, sentia-se perfeitamente satisfeito deixando que outros fossem as testas de ferro, enquanto ele reinava por trás do trono. Se fosse aquele o caso, então o imperador representava certamente o auge da perícia de Apolon. Balthasar devia ser capaz de falar e agir convincentemente de motu próprio; isso requereria magias muito especiais, talvez até um feitiço de controlo puramente mental. Apolon certamente protegera e, de maneira muito forte, as suas magias, para evitar que alguém libertasse o imperador, como acontecera com Thom Talesmith.
Mas Thom Talesmith não foi libertado através de magias, recordou a si própria. Ele foi libertado pelo Poder do Coração. Certamente que isso, nem mesmo Apolon pode impedir!
Mas antes de Leopold e Shelyra poderem sequer determinar a causa do comportamento do imperador, teriam que passar por Cathal.
E terão, terão mesmo, que tornar Cathal incapaz de agir. Se não o fizerem, ele aliar-se-á seguramente a Apolon. Poderemos certamente defender-nos de um assalto mágico, mas não haverá grande coisa que possamos fazer para nos defendermos de um assalto de soldados.
Tentou dizer a si própria que agora tudo aquilo estava fora das suas mãos; que tinha que se concentrar no que podia fazer e confiar na Deusa e na competência dos outros à sua volta para
desempenharem as tarefas que tinham assumido.
Mas era difícil, muito difícil. Continuava habituada a ser a rainha-mãe e a interferir em todos os assuntos. Os hábitos antigos são difíceis de perder.
Sobressaltou-se, sentindo o coração parar-lhe no peito, quando alguém lhe tocou no ombro. Virou a cabeça e viu o religioso Fidelis que pôs um dedo nos lábios e depois lhe fez sinal para que o seguisse. Espantada, obedeceu. Ele levou-a até ao corredor antes de falar.
- Tal como disseste, houve um ataque aos navios-prisão no porto e um outro ataque à frota do imperador que tentava entrar no porto. Ambos foram bem sucedidos e alguém que Verit
acredita ser o capitão do porto, o Saxon, está a formar um exército no lado das docas.
Elfrida assentiu; o passo de Fidelis era demasiado rápido para ela e não falou poupando as suas forças para o conseguir acompanhar.
- Agora temos um problema; temos um exército leal a caminhar na nossa direcção, mas há também os casacos negros de Apolon. Parece-me bem que vai haver uma batalha nos próprios degraus do templo. - Fidelis abanou a cabeça. – Continuo a não estar convencido de que os casacos negros, pelo menos os vivos, não consigam passar a porta do templo. Por isso, temos que pensar em organizar a nossa defesa.
- Por que vens então ter comigo? - perguntou Elfrida ingenuamente.
Fidelis lançou-lhe um olhar de censura.
- Religiosa Elfrida, sei muito bem que deixámos para trás as nossas vidas quando tomámos os votos - replicou com alguma acidez. - Contudo, não sou cego, nem surdo, nem tão inexperiente que não consiga ver para além das roupas e dos cosméticos de uma mulher. Ajoelhei durante cinco anos à distância de uma pedrada dos Dois Tronos, rainha Adele. Soube quem tu eras no momento em que a religiosa Elfrida entrou no noviciado.
- Raios! - praguejou Elfrida, pronunciando a palavra antes que se conseguisse impedir. - Mais alguém...
- Cosima, acho eu. Mais ninguém a não ser a Verit, que obviamente conhece as identidades de todos nós. - Ergueu uma sobrancelha, - Assim, religiosa Elfrida, tu e eu somos provavelmente os únicos dois membros das ordens deste templo com experiência real de guerra, ou pelo menos de conflito. Cabe-nos a nós dois fazermos o que pudermos para preparar o templo contra um ataque físico.
Ela anuiu com vivacidade.
- E afinal, o que eras tu? - perguntou, também com alguma brusquidão na voz. - Se conheces a minha identidade, consideraria uma cortesia se...
- Ninguém especial, e ninguém de quem tenhas ouvido falar, embora nos meus tempos tivesse uma boa reputação.
Virou uma esquina e ela percebeu que ele se dirigia para as arrecadações. Aquela era uma boa ideia; embora fosse suposto haver sempre um inventário pormenorizado de todas as existências, na prática o inventário raramente estava de acordo com o que existia realmente, a não ser no que respeitava às necessidades dos escribas e às provisões alimentares. Podia ser que ali existissem materiais que pudessem servir de armas... coisas semelhantes às varas de pastor.
- Fui um capitão de mercenários que combatia por minha conta e risco - continuou Fidelis. - És capaz de já ter notado o meu sotaque.
- Humm, sim - respondeu Elfrida. - És do norte?
Ele assentiu.
- De Venikia. Tinha o meu próprio batalhão, até ao dia em que acordei e percebi que estava farto de batalhas até aos cabelos e decidi devotar o resto da minha vida a algo que valesse a pena. Nessa altura fui muito convenientemente atingido em combate; um ferimento que parecia muito pior do que na realidade era. Deixei o meu pelotão nas mãos do meu lugar-tenente e “morri” no campo de batalha. - Encolheu os ombros. - Aí está. Não havia qualquer razão para que viesse tanto para sul, mas senti-me atraído pelo Templo do Coração. Talvez houvesse uma razão, afinal.
- Suspeito que havia, dada a situação que agora enfrentamos - respondeu Elfrida sombriamente. - Suponho que Verit e Cosima têm estado a ver no espelho?
Fidelis concordou e parou em frente da porta que dava para a primeira arrecadação.
- Mas temos uma vantagem - disse-lhe. - É algo de que já tivéramos algumas pistas nos confessionários e que Cosima confirmou. Muitos dos mercenários de Cathal estão a abandoná-lo... devido às atrocidades que ele começou a cometer contra eles. Falando na minha qualidade de antigo profissional, não posso dizer que, no lugar deles, não faria o mesmo.
Seguiu-o para o interior da arrecadação e viu imediatamente algo que poderia ser útil. Estava ali uma fila de pedestais ornamentais, esculpidos em pedra artificial, que presumivelmente tinham servido de apoio a estátuas numa altura qualquer.
- Podemos usar aquilo para fazer uma barricada, ou para manter as portas fechadas - disse. - Assim só teríamos que nos preocupar em vigiar a entrada principal.
- Então, isso quer dizer que muitos dos homens de Cathal não se vão juntar aos casacos negros no assalto? Óptimo.
- Ele tomou uma nota no pequeno livro que tinha na mão.
- Sim, é exactamente isso. Assim o número daqueles que teremos que defrontar será mais pequeno.
Ela já vira mais qualquer coisa. Encostados à parede, num canto escuro e cheio de teias de aranha, estavam alguns mastros muito antiquados, que serviam para enfiar em bandeiras e pendões para decorar o santuário em certas ocasiões festivas. Aqueles mastros tinham caído em desgraça, pois imitavam lanças e foram considerados desapropriados para o templo. Agora essa semelhança era capaz de vir a ser útil.
- E que tal aqueles? - perguntou apontando para os paus de bandeira.
Fidelis virou-se e espreitou para o canto.
- Excelentes - disse. - São de metal maciço, não são?
- Penso que sim. - Abriu caminho até ao canto e pegou num para experimentar. - Parecem ser. Isso não faz com que sejam demasiado pesados para serem manejados?
- Não, se os empunharmos contra cavaleiros que tentem derrubar-nos - disse ele, num tom de tal forma casual que o sangue lhe gelou nas veias. - São demasiado pesados para lançar, é verdade, mas nós não vamos atacar, limitar-nos-emos a defender-nos. Se eles forem tão estúpidos que lancem os cavalos para cima das lanças... - Encolheu os ombros.
Elfrida voltou a esgueirar-se do canto onde estavam as lanças, enquanto ele tomava mais notas.
- Isso fornece-nos uma barreira passiva de obstrução e uma barreira passiva defensiva disse ele vagamente. - Suponho que não existe aqui nada que se pareça com espadas, pois não?
- Não - respondeu ela com toda a certeza. - A última arma verdadeira que aqui existiu foi a Espada de Gideon, e essa saiu do templo há aí uns vinte anos após a derrota de Iktcar. Tudo o que aqui possamos encontrar foi construído com outro objectivo que não o do armamento.
Ele parou de escrever e coçou o lado do nariz com o lápis.
- Sabes... tu és a escolha óbvia quando a grande sacerdotisa Verit falecer. Podias muito bem considerar a possibilidade de conceder um espaço aqui no templo a uma das ordens militares, se sobrevivermos a tudo isto.
A calma das suas palavras fez com que um arrepio a percorresse. Estará ele a prever a sua própria morte? Pensou. Era uma ideia lógica. Era provável que ele estivesse na linha da frente de qualquer confrontação que ocorresse.
- Fá-lo-ei - prometeu. - Na generalidade não tenho em grande conta as ordens militares, mas a Ordem de São Mikael tem boa reputação e eles treinam os seus guerreiros para servirem também como curandeiros.
- Era essa a ordem que eu ia sugerir - disse-lhe Fidelis. - Vivemos tempos perigosos e o Coração é uma relíquia de grande poder. É apenas uma questão de tempo até que outro Apolon a cobice.
Aquilo fez com que ela ficasse imóvel. Aquela ideia não lhe tinha ocorrido de todo.
- Apolon quer o Coração? - disse ela incrédula.
- É claro que quer o Coração! - respondeu Fidelis com impaciência. - Se eu estivesse no lugar dele também o quereria. É um reservatório de poder e de que precisa ele senão de poder?
- Mas eu pensei que ele não o pudesse utilizar – protestou Elfrida.
Fidelis limitou-se a soltar um grunhido.
- Talvez possa, talvez não possa. Se puder, pensa só o estágio avançado em que se encontra. Se não puder, se for demasiado sagrado para que ele lhe possa sequer tocar, pode ainda assim negociar com os Poderes das Trevas, oferecendo-se para o destruir.
Aquilo também nunca lhe ocorrera, mas Fidelis estava evidentemente correcto. Os Poderes das Trevas ficariam satisfeitíssimos se uma das maiores relíquias da Luz fosse removida deste mundo e provavelmente retribuiriam generosamente esse favor.
Agora a maior parte das acções de Apolon começavam a fazer sentido; um terrível sentido.
- Não vejo aqui mais nada que possa ser útil - disse Fidelis, enquanto Elfrida ficava ali, de pé, pregada ao chão. - A não ser que te lembres de mais alguma coisa.
Aquela solicitação tão terra a terra apelou ao seu lado prático e ela abanou a cabeça para espairecer o nevoeiro que lhe envolvia espírito. Lançou outro olhar em torno de si, mas tudo o resto que ali estava armazenado não passava de enfeites em madeira e tela para os vários festivais, e que serviam para pendurar no exterior do templo.
- Nada que eu veja - disse ela. - É melhor passarmos à outra sala.
Por fim saíram com uma lista que incluía mais um conjunto de pedestais, mais bastões de pastor e uma variedade disto e daquilo. Havia ali muito mais do que ela teria pensado ser possível, coisas úteis como armas para usar na defesa do templo, embora essa defesa fosse sobretudo passiva.
Aí não tinham escolha. Os religiosos não eram jovens e a sua maioria nunca tivera um treino formal de combate em toda a sua vida.
- Não vou fazer nada que coloque um estudioso sedentário na frente de um guerreiro com aço nu nas mãos - disse Fidelis sombriamente quando se separaram; uma afirmação que fez com que Elfrida se sentisse um pouco aliviada. - As escrituras proíbem o assassínio e seria disso que se trataria. Se arranjarmos forma de nos barricarmos aqui dentro, seria o melhor. Nós podemos dar-nos ao luxo de esperar que se vão embora.
Mas quando o deixou para ir ter com Verit, Elfrida pensou naquela última afirmação. Poderiam eles dar-se ao luxo de agüentar um cerco?
Não sabia. E a sua única esperança era que não descobrissem a resposta da pior forma possível.
SHELYRA
Durante dois dias, Shelyra e Leopold percorreram as passagens secretas do palácio sem poderem fazer nada. O imperador criara a sua própria sala de audiências, numa das poucas salas do palácio que não tinha passagens secretas nem buracos-espia que lhe dessem acesso. A sua frustração crescia a cada expedição ao palácio. Era como se o imperador tivesse conhecimento das passagens secretas e os estivesse a impedir de o espiarem.
Substituíra a sua guarda pessoal por uma mistura de seis casacos negros de Apolon e seis dos mercenários de Cathal.
O regimento pessoal de Leopold fora confinado às casernas por insubordinação, quando os homens saíram para tentar ajudar os cidadãos de Merina depois da grande tempestade. Evidentemente, o imperador não considerava esse comportamento adequado para as suas tropas. Leopold ouvira rumores de que Cathal tentara enviar um dos seus oficiais à caserna para assumir o comando e que os homens se tinham recusado literalmente a ouvi-lo; tinham, de acordo com os boatos, fingido que a tempestade os ensurdecera a todos.
Quanto ao próprio Cathal, o homem não pusera os pés no palácio nos últimos dois dias, mas ouviam-se histórias contadas pelos seus mercenários, homens que tinham desertado das fileiras, que horrorizavam quantos as ouviam. Parecia que, quando Cathal esgotara a reserva de civis disponíveis para serem torturados, começara a usar os seus homens para dar largas à sua frustração. Qualquer que fosse a forma de controlo que mantivera sobre si ao longo dos anos, parecia ter desaparecido e, naquele momento, já não tentava sequer fingir que os homens que chicoteava, esfolava e enforcava, tinham feito qualquer coisa de mal. Tinham tido apenas a pouca sorte de se lhe atravessar no caminho.
Assim sendo, muitos dos seus antigos soldados decidiram que a melhor forma de o evitar era desertando. Uns quantos desses homens conseguiram furar o cerco dos casacos negros e entrar no templo; um ou dois dos ciganos amigos de Shelyra fizeram o mesmo. Fora dessa forma que tinham conseguido obter informações do exterior. Os ciganos tinham partido uma vez contadas as novidades, mas os mercenários tinham ficado, um desenvolvimento que fizera o religioso Fidelis sorrir com amarga satisfação. Fidelis dispunha agora de um pequeno esquadrão de lanceiros, armados com as lanças de metal que, noutras épocas, tinham segurado as tapeçarias nas paredes do templo e que vigiavam cuidadosamente todas as entradas. Os mercenários pareciam felicíssimos por ali estarem, mas Shelyra perguntava-se se eles fariam alguma ideia do que em breve teriam que enfrentar.
Um esquadrão de lanceiros não iria adiantar grande coisa, se o imperador decidisse avançar em força contra o templo.
E também... talvez aqueles que se lhes tinham vindo juntar o tivessem feito como uma espécie de penitência. A verdade é que passavam muito tempo nos confessionários. Podiam muito bem saber, afinal, o que os esperava e esse destino podia-lhes ser preferível àquele que os esperaria no termo dos serviços prestados a alguém como Cathal.
Começava a parecer que o imperador, ou antes, Apolon agindo em nome do imperador, escolhera pôr o templo simplesmente sob cerco, partindo do princípio que, mais cedo ou mais tarde, este teria que se render. Ou talvez o imperador tivesse mais com que se preocupar do que com uma mão-cheia de homens e mulheres velhos e estudiosos, enfiados dentro de uma caixa de pedra de onde não poderiam sair. Os mercenários tinham também trazido notícias de que alguém libertara com sucesso os navios-prisão do porto e que a essa vitória se tinha seguido a destruição da frota do imperador que vinha trazer reforços e abastecimentos. Os mercenários afirmavam que os rebeldes dominavam agora toda a área da cidade fronteira ao mar e, tanto quanto lhes era possível, os magos do templo confirmaram esse facto.
Era essa a situação quando Leopold e Shelyra voltaram a entrar nos túneis na madrugada do terceiro dia do cerco. Aperceberam-se de que algo estava a acontecer assim que entraram nos muros do palácio. O local fervilhava de actividade. Homens gritavam e corriam; as suas vozes e os seus passos ecoavam elas passagens secretas numa confusão de sons abafados.
Na noite anterior o palácio estivera tão silencioso que poderia estar deserto; naquela manhã assemelhava-se a um ninho de vespas muito zangadas, procurando alguma coisa onde espetar o ferrão.
Entreolharam-se à luz fraca que saía por um dos buracos-espia maiores e entraram de imediato na passagem que conduzia à sala de audiências do imperador. Embora não pudessem espiar o que se passava dentro da própria sala, dispunham de um local de observação na antecâmara.
Por aquela altura já Leopold conhecia as passagens que Shelyra lhe mostrara tão bem como ela, e não havia confusões no escuro enquanto seguiam o seu caminho. Leopold trocara as botas de montar da tropa por umas de cabedal macio como as que os ciganos e os Senhores dos Cavalos usavam; por isso percorriam as paredes silenciosamente, como dois ratos, orientando-se na escuridão pela contagem dos passos e correndo as mãos ao longo das paredes.
Shelyra ia à frente; por isso foi ela quem primeiro chegou ao buraco-espia. Destapou-o e encostou um olho mesmo a tempo de ver Cathal entrar a passos largos na sala de audiências, a fúria transparecendo em cada um dos seus movimentos, relutantemente seguido por seis mercenários. Os seis ocuparam posições do lado de fora da porta, três de cada lado; nenhum deles seguiu Cathal para o interior da sala. Instantes mais tarde seis dos casacos negros de Apolon saíram, encaminhando-se para a saída com ar determinado. Leopold já descobrira que todos os casacos negros que serviam o imperador eram homens vivos e não mortos-vivos. Não que isso fosse realmente importante, pois os vivos eram monstros sádicos, que tiravam prazer do medo que infligiam às pessoas.
Ela disse a Leopold tudo o que vira, num murmúrio, antes de lhe ceder o seu lugar junto ao buraco-espia. Ele observou durante mais algum tempo e depois encostou o ouvido ao buraco.
- Cathal deve ter mandado os casacos negros embora para poder falar ao rei em privado. O que quer que seja que tenha acontecido, deve ser importante. Cathal já raramente aqui vem. Gritos - disse Leopold calmamente; na quase total escuridão da passagem era quase impossível dizer qual era a sua expressão, mas a ela pareceu-lhe que a voz dele estava tensa. - Mas não é o imperador quem está aos gritos, é Cathal. Soam abafados, por isso não consigo perceber nada do que dizem, mas acho que ele está prestes a ter uma apoplexia, porque Apolon mandou chamar todos os casacos negros para uma acção de grande envergadura só sua e Cathal precisa ele próprio de todos os homens que conseguir arranjar. Está a passar-se qualquer coisa importante no porto, que começou de madrugada...
Ia continuar quando mais homens chegaram a correr, interrompendo-o. Encostou rapidamente o olho ao buraco e depois a orelha.
- Eram mensageiros - disse ele com a excitação a aumentar na voz. - E deixaram aberta a porta da sala de audiências... há um levantamento no porto! Há homens armados a encaminhar-se
na direcção das linhas imperiais!
- Está a acontecer... - disse ela com o estômago subitamente embrulhado. - O Apolon está a avançar para o templo e os rebeldes estão a avançar sobre a cidade. Se vamos fazer alguma coisa tem que ser agora.
Ela percebeu que ele concordava embora não o pudesse ver. Um arrepio percorreu-lhe a coluna; se conseguissem mesmo eliminar o imperador e Cathal agora, decapitariam três das cabeças do monstro tricéfalo que devorava Merina.
- Consegues atingir todos os guardas a partir daqui? – perguntou ele.
- Penso que sim - respondeu ela enquanto tirava a zarabatana e os pequenos dardos do estojo e com eles um frasco da droga que era vital para o seu plano. Sentiu-se muito orgulhosa por as mãos não lhe tremerem, se bem que se sentisse a tremer dos pés à cabeça. - Não estão muito distantes. Vou entreabrir a porta o suficiente para apontar e disparar sem que eles dêem por isso.
A porta que dava para aquela sala ficava ao fundo de um nicho que fora construído para acolher uma estátua humana de tamanho natural. Presentemente tudo o que ali se encontrava era uma árvore artificial feita de seda, visto a estátua da rainha de Merina que ali estivera não ter merecido a aprovação do imperador.
Aquilo ia ao encontro dos objectivos de Shelyra, visto a árvore encobrir a parte de trás do nicho sem lhe obstruir o alvo. Com sorte, nenhum dos seis homens perceberia o que os “picava” até ela ter conseguido atingi-los a todos pelo menos uma vez. Aquele era um risco tão incrível que ela nem acreditava que o fosse correr!
Não sou certamente a mesma mulher de há alguns meses atrás...
A droga era muito potente, mas perdia a força rapidamente depois de secar. Os dardos só eram eficazes durante cerca de uma hora; depois disso teriam que voltar a ser molhados no veneno. A picada de um deles podia imobilizar um homem durante várias horas e um cavalo durante um terço desse tempo. E, o que era mais importante, ela duvidava que algum dos mercenários já tivesse ouvido falar daquele tipo de arma. Mesmo que um deles percebesse que fora atingido por um dardo, levaria algum tempo a encará-lo como uma ameaça séria.
Molhou as pontas de oito dos dardos e atirou fora a ampola; o que restava da droga seria tão inútil como água dentro de algumas horas e era demasiado difícil voltar a rolhar um frasquinho daqueles às escuras. Depois moveu-se para a porta escondida junto ao buraco-espia, enquanto Leopold continuava a vigiar a sala.
Cuidadosamente, entreabriu a porta; a luz pareceu-lhe por momentos capaz de a cegar, enquanto ela abria a porta apenas o suficiente para passar a extremidade da sua arma. Os homens
estavam dispostos em duas filas, três de cada lado da porta, como uma fileira de alvos num concurso dos Festivais da Primavera.
Alguém fechou a porta da sala de audiências com estrondo, enquanto ela os observava. Isso foi para ela um alívio; significava que poderia abater os homens que ali se encontravam sem que Cathal desse por isso. Na sombra provocada pela árvore artificial, ninguém reparou na porta aberta. Curvando-se apenas ligeiramente, tinha uma visão desimpedida dos seis homens.
Isto vai ter que ser muito rápido...
Ela tornara-se perita no uso daquela arma, utilizando a droga muito menos potente usada na caça pelos Senhores dos Cavalos, mas nunca fora forçada a abater tantos alvos de uma só vez. Esperava ardentemente conseguir atingir cada um deles com um dardo antes que se apercebessem que aquilo era um ataque e não apenas um aborrecimento qualquer.
Os dois factores que jogavam a seu favor eram a curta distância e a probabilidade de os homens tomarem as picadas dos dardos por picadas de insectos. Àquela distância, raramente falhava e, embora os dardos fossem minúsculos, conseguiam penetrar quase tudo.
Enfiou o primeiro dardo na zarabatana, seleccionou o homem mais distante,e soprou no tubo com a maior força que lhe foi possível. Um instante mais tarde o homem deu uma palmada no pescoço e praguejou.
- Que foi, Kappa? - perguntou o homem a seu lado soltando uma risada. - A última rapariga com quem te deitaste tinha pulgas?
- Se calhar - disse o primeiro homem, amuado.
Não parecia ter reparado no dardo minúsculo; com sorte teria caído dentro da gola do casaco. Shelyra fez pontaria ao seguinte.
- Estive a esmagar bichos a noite inteira.
- Podes tentar tomar banho - brincou um outro, no momento em que o segundo homem reagia ao dardo também com uma palmada.
- Raios! - praguejou. - Sai do pé de mim, Kappa; o raio das pulgas estão a saltar para cima de mim!
Shelyra atingiu o terceiro e o quarto enquanto os dois primeiros discutiam; a sorte continuava a favorecê-la, pois até ao momento nenhum deles tinha visto os dardos enquanto deram palmadas nas picadelas irritantes. Cathal continuava aos gritos na sala ao lado e, portanto, não poderia ouvir a discussão e abrir a porta para ver o que se passava.
O quinto mantivera-se afastado da discussão até o dardo o atingir. Foi aí que a sua sorte acabou. Deu uma palmada, tal como os outros, mas contrariamente ao que acontecera com os anteriores, o dardo veio preso à sua mão e ele ficou a olhá-lo com uma expressão perplexa estampada no rosto. Rapidamente, antes que ele pudesse chamar a atenção dos outros para a pequena agulha, Shelyra atingiu o sexto, exactamente no momento em que o primeiro parou de discutir, revirou os olhos e caiu desamparado no chão.
Os outros imitaram-no em rápida sucessão, deixando atrás de si apenas o silêncio.
Ela abriu completamente a porta e numa acção bem planeada, empurrou os ramos da árvore para o lado, correu para a porta do corredor, trancou-a e barricou-a. Isso atrasaria qualquer auxílio proveniente do exterior. Entretanto, Leopold correra para a porta da sala de audiências e escutava atentamente.
Shelyra armou-se com armas tiradas aos mercenários caídos; tal como acontecia com todos os soldados de aluguer, o seu armamento não poderia ser mais diversificado. Armavam-se a
expensas próprias e aqueles seis deviam considerar que as suas armaduras e as suas armas eram a coisa mais importante do mundo. Podiam estar a precisar de um banho, mas as suas armaduras estavam polidas, oleadas e sem vestígios de terem sido remendadas. Tinham os queixos por barbear e os dentes podres, mas as suas espadas e punhais eram materiais de primeiríssima qualidade e estavam imaculados.
Shelyra agarrou imediatamente num punhal feito para ser lançado e depois tirou a espada mais leve de todas. As restantes eram mais pesadas do que aquelas a que estava habituada e isso em combate podia ser fatal.
Combate... fez-se um nó no seu estômago. Nunca antes se vira envolvida num verdadeiro combate; só nos treinos dos Senhores dos Cavalos.
Posso matar alguém. Ou posso ser morta. Não me parece que goste muito disto...
Quando tudo aquilo começara, parecera uma aventura. Agora... agora era uma questão muito mortífera e ela queria que tudo aquilo acabasse rapidamente.
Leopold afastou-se da porta o tempo suficiente para agarrar ele próprio numa espada e num punhal. Depois acenou com a cabeça a Shelyra.
- Pronta? - perguntou baixinho.
Ela engoliu em seco e assentiu. Oh, como se arrependia de se ter envolvido naquilo, mas como era evidente, agora era demasiado tarde para recuar.
Leopold abriu a porta com um pontapé; esta escancarou-se e ele entrou de rompante. Ela entrou a seu lado, a faca preparada para ser lançada e pronta para tirar da bainha o punhal dos Senhores dos Cavalos mal lançasse a faca que tinha na mão. Só estavam três pessoas na sala e não se viam quaisquer guardas: Cathal, o chanceler e Balthasar. Cathal ficou de pé a olhar para a porta, por uma vez apanhado totalmente de surpresa.
Adelphus estava ligeiramente atrás do trono com uma expressão vazia e impassível. Balthasar estava sentado no trono e a sua expressão era idêntica à do seu chanceler.
Cathal não ficou atordoado por muito tempo; com um rugido incoerente lançou-se sobre Leopold. Shelyra não deu ao imperador a oportunidade de desequilibrar as coisas a desfavor do príncipe.
Lançou o punhal que tinha na mão na direcção da garganta do imperador, mas ele torceu-se, ágil como uma cobra, e este espetou-se na madeira das costas do trono com um dump abafado.
Aquilo pareceu, contudo, ser o suficiente para que a sua atenção se centrasse nela. Ela desembainhou o punhal dos Senhores dos Cavalos e o imperador desembainhou a sua própria espada e avançou na sua direcção com grande determinação. Ela correu em frente e depois para um dos lados, interpondo-se entre Leopold e o imperador. Já transpirava de medo e tinha na garganta um sabor amargo.
Não o posso deixar atacar Leopold; tenho que manter a sua atenção presa a mim.
Ele era velho... mas era um guerreiro experimentado; muito mais do que ela. Ela não iria permitir que ele se aproximasse, apesar de ter que se manter no centro das suas atenções!
Continuava a ter a zarabatana e dois dardos; se conseguisse atraí-lo para a outra sala, talvez pudesse atingi-lo com um dos dardos antes que estes perdessem a sua força. Por isso dançou na frente dele, tirando partido do facto de sermuito mais ágil e mantendo-se fora do seu alcance. Parecia mais fácil do que na realidade era; Leopold e Cathal estavam envolvidos numa luta terrível por toda a sala e ela tinha que se manter fora do alcance de Cathal bem como fora do alcance do imperador.
Não tinha quaisquer dúvidas de que, se se deixasse ficar ao alcance de Cathal, ele a agarraria para a usar como escudo. Assim baixava-se e rodava e tentava calcular por quanto tempo ainda os dardos se manteriam activos. Um erro de cálculo custou-lhe o punhal, pois foi forçada a desviar um golpe e perdeu-o. Ficou com a mão dormente, mas pelo menos conseguiu pôr-se fora do alcance de Balthasar antes que ele continuasse o ataque.
Os dardos não vão continuar activos por muito mais tempo, pensou, sentindo o suor correr-lhe pelas costas, enquanto conseguia escapar à justa à mão estendida de Cathal e à espada do imperador. A respiração fazia-lhe arder os pulmões e, no entanto, tudo parecia estar sobrenaturalmente claro. Na realidade, neste momento o efeito que os dardos teriam seria apenas de abrandar os ímpetos destes dois...
Bem, isso já seria melhor do que nada!
Leopold estava a passar um mau bocado e ela não conseguiria evitar Balthasar durante muito mais tempo sem escorregar. Estavam ambos cansados e nem o imperador nem o seu general denotavam quaisquer sinais de fadiga!
Por isso arriscou: deixou cair a espada enquanto corria e tirou a zarabatana. Os últimos dardos estavam na sua gola; pegou num, enquanto saltava para o trono. Inseriu-o no tubo enquanto se virava e soprou com força, fazendo pontaria.
Apanhou Cathal e não o imperador.
Saltou do trono no momento em que a enorme e pesada espada de Balthasar se abatia sobre ela. Sentiu na pele a deslocação do ar e sentiu-se terrivelmente contente por ter vestido o seufato preto e justo ao corpo, o mesmo que usava nas escapadelas nocturnas.
Mas o poderoso golpe fez com que a lâmina ficasse enterrada na madeira do trono; Balthasar debateu-se para a soltar, dando-lhe tempo a que se voltasse, agarrasse no segundo dardo, apontasse e disparasse.
Cathal não tinha dado pelo dardo, mas ela não esperara realmente que isso acontecesse, não no calor da batalha.
O segundo dardo apanhou o imperador em cheio na garganta... E ele não fez nada a esse respeito. Nem sequer pestanejou e, na pele macia da garganta, aquele dardo devia ter ferrado!
Ela escapava-se em volta do trono, mantendo-o entre ela e Balthasar; ele continuava a atacá-la, desferindo golpes enormes na madeira trabalhada do trono. Uma ideia desgarrada lembrou-a de que a rainha Lydana teria um ataque quando visse o estado em que ficara o trono...
Ele é terrivelmente desajeitado... por que será ele tão desajeitado? Ele tem fama de ser um guerreiro soberbo!
Depois uma voz espessa e peganhenta surgiu literalmente do ar e ela quase perdeu uma mão por não se ter movido com rapidez suficiente, de tão sobressaltada que ficara, pois não era a voz de Leopold, não era a voz de Cathal e certamente que não era a voz do imperador.
- Sangue! - balbuciava a voz, num som estranhamente abafado. – Beber!l
Baixou-se novamente atrás do trono, tentando manobrar o imperador por forma a conseguir ver os outros dois combatentes assim como o seu próprio opositor. Teve que reprimir um ataque de tosse, pois a respiração arranhava-lhe a garganta e o coração batia-lhe com força, de exaustão.
- Sangue! - gritou novamente a voz com maior insistência. - Já!
O que quer que fosse vinha da direcção de Cathal! Poderia o general estar possuído por um dos demónios bebedores de sangue de Apolon? Mas... o demónio que possuía Thom nunca falara!
- Sangue! - uivou a voz, enquanto Cathal cambaleava subitamente para trás, embora Leopold não o tivesse atingido. - Saaaaaaaangue!
Cathal tropeçou contra a parede e caiu, com a mão esquerda agarrada ao pulso direito como se tentasse livrar-se de algo.
Começou a bater com a mão na parede, enquanto Leopold observava emudecido; tudo o que conseguiu fazer foi forçar a mão a abrir-se, deixando cair a espada, que bateu na parede e depois deslizou pelo chão na direcção de Shelyra.
Como se aquele facto tivesse activado qualquer poder do mal de que nenhum deles suspeitara, o general gritou, desembainhou o seu próprio punhal e começou a golpear a sua própria mão direita.
Shelyra poderia ter continuado a observá-lo com um fascínio horrorizado, mas as atenções do imperador eram um pouco mais prementes. Na realidade, passados instantes, percebeu que lutava para salvar a vida.
LEOPOLD
Leopold ter-se-ia mexido caso isso lhe fosse possível, mas cada um dos seus músculos parecia paralisado pelo drama bizarro que se desenrolava sob os seus olhos. Cathal parecia tentar livrar-se de uma guarda de ferro que tinha no pulso direito e Leopold tivera a estranha sensação de que a voz sinistra que clamava por sangue vinha da guarda de ferro.
Não fazia sentido; não fazia qualquer sentido!
Mas assim que as primeiras gotas de sangue caíram do pulso lacerado de Cathal, toda a cena, que já era suficientemente estranha, ficou ainda mais bizarra.
- Sangue! - gritou a voz balbuciante, desta vez com um tom de satisfação e não de exigência - e Cathal soltou um guincho, um grito agudo e aterrorizado como nada que Leopold alguma vez tivesse ouvido sair de lábios humanos.
E o corpo de Cathal começou a minguar sob os seus olhos, como uma bexiga cheia de ar que se fosse esvaziando. Durante todo esse tempo, o próprio Cathal continuava a gritar loucamente.
Senhora de Luz... Enjoado, Leopold desviou o olhar e deu por si a olhar para a espada que Cathal deixara cair. O seu olhar ficou preso, fascinado, pois agora que Cathal já não a empunhava, a espada já não tinha o aspecto vulgar e baço que antes tivera. Agora refulgia numa luz branca e pura, uma luz branca que Leopold associou imediatamente aos mensageiros. Não conseguia, literalmente, desviar os olhos. Na verdade, a espada atraía-o, tão irresistível como uma chama para um insecto. Sem pensar, deixou cair as armas de que se apropriara e empunhou aquela...
Shelyra, pensou tardiamente. Shelyra... Senhora de Luz! Ela está a lutar com Balthasar!
Girou sobre si próprio, deu uma curta corrida através da sala e interpôs-se entre o seu pai e Shelyra, empunhando a espada com ambas as mãos.
Mas quando o seu pai fez uma pausa, olhando-o sem dar quaisquer sinais de o reconhecer, Leopold viu sobre o seu rosto uma outra espécie de sombra. Algo mantinha o imperador numa espécie de transe, mas não era a mesma espécie de demónio do sangue que subjugara Thom. Este demónio olhava-o através dos olhos do imperador, reconheceu aquilo que ele empunhava e não gostou nada do que viu.
Recordou a sugestão de Elfrida, de que Balthasar estava possesso e, movido por um instinto que não questionou, inverteu a espada brilhante entre as mãos. Erguia-a agora entre os dois, levantando-a como a um ícone, com o punho para cima.
Os olhos de Balthasar moveram-se de um lado para o outro, como se não pudesse olhar para a espada. Apareceu então uma vaga expressão de incerteza e alarme no seu rosto, embora continuasse a não dar sinais de reconhecer o seu filho. Leopold avançou um passo e o imperador recuou também um passo.
Durante todo aquele tempo Adelphus estivera calmamente de lado, fora do caminho dos combatentes, e nada fizera. Naquele momento, quando Leopold olhou de relance para o chanceler, viu uma sombra nos seus olhos que lhe era muito familiar.
Morto-vivo. Quando teria aquilo acontecido? Imediatamente após ele próprio ter sido exilado para o Palácio de Verão? Pelo menos, isso explicava a razão porque Adelphus parara de otentar ajudar. Bem, não parece que ele vá interferir. Talvez tema a espada... ou talvez não tenha ordens nesse sentido.
Posso deixá-lo para os religiosos, acho eu.
Cathal parara de gritar e Leopold não quis olhar para o que seriam provavelmente os restos do general. Em vez disso, concentrou-se no pai. Obviamente Balthasar não iria atacá-los, não enquanto Leopold empunhasse aquela espada, mas não podiam limitar-se a deixá-lo ali. Haveria alguma coisa que ele pudesse fazer? Se ele e Shelyra saíssem naquele momento, Balthasar comtinuaria à frente dos exércitos imperiais e poderia continuar a atacar o templo com Apolon. O que quer que comandava o imperador era suficientemente inteligente para comandar as tropas, pelo menos sob a direcção de Apolon. E, apesar de tudo o que ali acontecera, ele não conseguia suportar a ideia de o seu pai morrer às mãos dele, seu filho.
Mas... talvez aquela espada pudesse fazer qualquer coisa? O que quer que controlava o imperador parecia temê-la. Poderia a espada expulsar a entidade que o possuía? Pelo menos valia a pena tentar.
Deu passos lentos e deliberados na direcção do pai, forçando Balthasar a recuar contra uma das paredes, num passo cambaleante. O imperador espalmou-se contra a parede como se se quisesse enfiar dentro dela, o seu rosto curiosamente impassível, mas com a sombra que lhe cobria os olhos debatendo-se para fugir à luz pura e brilhante da espada nas mãos de Leopold.
Por trás de si ouvia Shelyra ofegar pesadamente, mas ela nada disse. Continuou a avançar lentamente na direcção do imperador, enquanto Balthasar virava a cara, fugindo à espada, os dedos esgravatando inutilmente o painel de madeira da parede, até que, por fim, restava apenas a distância de um passo entre eles. Rapidamente, antes que Balthasar pudesse estender o braço para tentar afastar a espada, Leopold pressionou o punho da arma contra o rosto do Imperador.
Houve uma explosão silenciosa de luz... um grito abafado...
E quando a luz voltou a desaparecer, o imperador escorregava inerte pela parede. Não estava inconsciente, mas os seus olhos não tinham qualquer expressão nem havia réstia de força nos seus músculos. Poderia ser um bebé do tamanho de um homem; na verdade, quando escorregou para o chão, enrolou-se numa posição fetal e enfiou o polegar na boca, fechando os olhos.
Shelyra juntou-se-lhe silenciosamente e ficou a olhar para o que restava do imperador do Mundo Conhecido. Não disse nada, mas a sua mão procurou a de Leopold e ele tirou uma das mãos da espada para agarrar a mão dela e apertá-la por uns instantes.
Um movimento visto pelo canto do olho atraiu-lhe a atenção e viu que era Adelphus, debruçando-se sobre os restos murchos e ressequidos do general Cathal. O próprio general já não se assemelhava a nada de humano, mas a marioneta Adelphus, pois certamente era isso que ele era, não pareceu reparar nesse facto ou importar-se com ele.
Claro que não se importa; ele não está vivo para se poder importar.
Soltou a mão de Shelyra e empunhou adequadamente a espada com a sua melhor mão. O que quer que fosse que controlava Adelphus provavelmente reagiria ao que quer que habitava a espada; e ainda que se limitasse a libertar a alma de Adelphus... Começou a mover-se, mas ficou imobilizado por uma voz que parecia um sino e que quebrou o silêncio.
- Espera, Leopold. És muito mais necessário noutro local.
Sobressaltado, olhou desvairadamente em torno de si, procurando a origem daquela voz. Parecia semelhante à voz que ouvira do mensageiro, mas não havia mais ninguém na sala a não ser ele próprio, Shelyra e o que restava de Adelphus e do seu pai.
-Não me podes ver, Leopold, mas empunhas a espada que eu forjei para destruir alguém semelhante a Apolon. O templo foi invadido e os religiosos estão numa situação muito delicada; não conseguem enfrentar sozinhos os Poderes das Trevas. És necessário lá e rapidamente, ou o templo cairá e o Coração do Poder será transformado no Coração das Trevas!
Leopold nem sequer parou para considerar o facto de que a voz no seu espírito poderia estar a mentir. Cada palavra estava de tal forma embebida com uma sensação de verdade, que ele não podia duvidar, nem por um instante.
Hesitou por um momento quando viu Adelphus pegar na maligna guarda de ferro que sugara a vida ao general Cathal, mas apenas por um instante. Não podia estar em dois sítios ao mesmo tempo... mas sentiu que o que quer que fosse que a guarda de ferro pudesse criar a partir de Adelphus, não passaria de uma pálida imitação daquilo que Apolon já era naquele preciso instante.
Virou-se e correu para a porta, fazendo com que Shelyra corresse no seu encalço, certo de que, por muito depressa que chegasse ao templo, nunca seria demasiado cedo.
LYDANA
- E viraram as costas e lá foram eles!
Jonas, com uma ligadura encardida apressadamente atada à testa, tinha estado a consumir, a intervalos, grandes quantidades da bebida amarga. O seu sorriso desdentado era muito aberto e via-se que estava na melhor das disposições. Em torno do pescoço muito grosso e balançando para cima e para baixo sobre a túnica manchada de gordura, via-se uma corrente de ouro de capitão de uma tal beleza, que era na verdade uma bela peça de saque.
- Tirá-mo-los da água a torto e a direito, como o capitão mandou. Muitos deles preferiam afogar-se a morrer queimados. E aqueles que foram apanhados pelo fogo já morreram.
Tinham passado dois longos dias desde que os barcos incendiários tinham içado ferro e nas últimas vinte e quatro horas os homens de Merina tinham andado a meter o nariz no local da catástrofe. Não havia praticamente saque e aquilo que encontraram foram homens; alguns tão queimados que Lydana nada pôde fazer por eles, a não ser os antigos paliativos. E esses estavam às portas da morte. Mas os seus outros companheiros estavam sob vigia nalguns dos navios em mau estado e as suas armaduras e armas tinham sido usadas para equipar as forças de Saxon.
Lydana vira o capitão uma única vez, com o braço envolto num pano gordurento e o aspecto de um homem levado ao limite das suas forças. Agora dormia nos seus antigos alojamentos na torre do porto, tendo sido forçado, algum tempo antes, a render-se às necessidades do seu corpo pelos esforços combinados de Jonas e Lydana.
As idas e vindas nos cais eram constantes. Os ratos do rio que se tinham conseguido equipar, quer a partir dos armazéns, quer com as armas dos seus prisioneiros, estavam muito ocupados a experimentar as suas novas armas, uma novidade para alguns deles, e a actuar em esquadrões improvisados. Todos eles sabiam que a batalha mais dura ainda não tinha sido travada, e que aconteceria dentro da própria cidade.
No canal o movimento de mensageiros também era constante, usando os truques dos contrabandistas, por forma a trazer notícias da cidade, embora quais delas seriam verdade e quais delas seriam apenas rumores, não pudessem ter a certeza. Esses mensageiros faziam os seus relatórios a Jonas e a Lydana. O taberneiro ia dando nós nas suas cordas, enquanto ela se debruçava sobre o mapa da cidade, um bastante pormenorizado que encontrara na secretária de Saxon, e ia marcando os vários locais onde havia problemas.
Não fizera qualquer tentativa de comunicar com Adele através do rubi de Sangue do Coração, pois tinham chegado notícias de que o templo estava sob um cerco cerrado e ela sabia que todo o poder do Talento devia ser virado agora nessa direcção.
- Então os caras de caranguejo viraram as suas presas contra Cathal - comentou Jonas, enquanto fazia mais um nó. - Bem, os mercenários combatem pelo dinheiro e nenhum homem tira lucro de ser chicoteado ou de ficar sem uma mão em resultado da fúria do seu comandante. Eles não fizeram nenhum juramento.
Os pensamentos de Lydana tentaram desviar-se das imagens que as palavras de Jonas evocavam. Parecia cada vez mais, a cada novo relatório, que o general Cathal agia mais como um dos demónios das lendas antigas do que como alguém nascido de um ser humano. E a culpa continuava a acicatá-la com a ideia de que a Boca de Vor poderia estar de alguma forma relacionada com aqueles acessos de fúria insana que acometiam o general a intervalos cada vez mais curtos.
- Balthasar - continuou Jonas - não tem muita sorte com os seus ajudantes, pois não? Nunca pensei que ele pusesse o velho chanceler a andar. Pareciam ter-se dado sempre bem. Mas agora parece que Adelphus foi apanhado a mexer demais nos bolsos imperiais. Pelo menos, o chanceler está a ser vigiado por Apolon, assim como a maior parte do seu pessoal.
- Apolon... - Os seus pensamentos levavam-na numa direcção diferente.
Jonas deixou de sorrir.
- Sim, esse. Agora parece estar mais bem encaminhado do que os outros. Parece que o Balthasar o encarregou totalmente do templo. Mas o imperador, seja lá o que for que lhe deu, não está a agir como o imperador de quem ouvimos falar durante todos estes anos. E parece que, ainda por cima e para ajudar, está com problemas lá com o filho. Ninguém viu nem ouviu dizer nada de Leopold e os homens deste não obedecem ao imperador, assim como os mercenários também não. A guarda pessoal de Balthasar é composta sobretudo por casacos negros e Apolon tem toda a atenção do imperador sempre que o deseja.
Lydana sentia-se irritada por não terem contactos com o templo, embora percebesse muito bem que aqueles que ali desenvolviam o seu trabalho não tinham, provavelmente, nem tempo nem ocasião de se preocuparem com mais nada a não ser com a situação que se desenvolvia à sua volta.
Os batedores de Saxon saíam todas as noites, usando os seus pequenos barcos e os conhecimentos que tinham dos canais para fazerem incursões na cidade. Mantinham o capitão bem informado do que acontecia nos seus bairros de origem em Merina e por vezes com notícias mesmo de fora desses bairros. Tinham sabido há algumas horas que Thom fora capturado pelos casacos negros e Lydana teve que lutar com todas as suas forças contra o desejo de usar a Visão para saber o que era feito de Shelyra.
Podia ter apenas a esperança de que, visto não correrem ainda quaisquer rumores da captura da princesa, a rapariga tivesse escapado à rede que tinha apanhado Thom.
Estava agora sentada, vestida com uma cota de malha e de cabedal, como nunca teria pensado ser possível dois meses antes e só os seus caracóis denunciavam o seu sexo. Percorrera os armazéns em busca de armamento para si e para Skita, visto nenhuma delas pensar sequer permitir àquele exército tão variado partir ao ataque da cidade, a não ser que fizessem parte dele. Nem Saxon lho poderia negar, embora tivesse insistido em arranjar seis guarda-costas, escolhidos por Jonas, para a protegerem.
No entanto, e embora estivessem ocupadíssimos a organizar as suas forças, parecia que o capitão decidira que não chegara o momento de entrar em acção.
Deixou que os seus pensamentos vogassem na direcção da cidade, não prestando atenção àqueles que, de tempos a tempos, vinham fazer os seus relatórios ao taberneiro. Por fim, foi pôr-se novamente de pé junto à janela, olhando para os destroços que cobriam o porto. À excepção de dois pesqueiros que conseguia avistar daquela posição, parecia nada mais restar da anteriormente orgulhosa frota de Merina. A reconstrução, se fossem suficientemente abençoados pelo Grande Poder e vencessem e tivessem a oportunidade de reconstruir, levaria muito tempo. Deu por si a calcular os custos de ir a Jamvar, onde os melhores construtores navais tinham os seus estaleiros e recomeçar o longo processo da reconstrução.
- Senhora! -- Skita juntara-se-lhe da sua habitual forma silenciosa. - Temos notícias...
Ansiosamente, Lydana voltou para a mesa. Reconheceu Dortmun, que falava muito depressa, gesticulando como que para sublinhar cada uma das palavras que proferia.
- Demónios... ele trouxe demónios! Jura que rebentará com o templo como uma grande ave parte uma noz! Eles continuam a aguentar-se, mas os das Trevas continuam a avançar!
- O exército? - A pergunta foi feita por Saxon num tom suficientemente forte para interromper o homem, enquanto entrava pela porta nas suas costas.
- Não avançaram... ainda. - Dortmun virou-se para ficar de frente para o capitão. - Lemmel aproximou-se até às linhas da cavalaria deles; houve mais problemas com os mercenários e o imperador ordenou que fossem desarmados pelos homens que lhe prestaram juramento. Também eles combatem entre si...
- Chegou a hora. - Saxon olhou para Lydana. - Se o templo cair...
- Se o templo cair, tudo aquilo que compõe Merina desaparecerá - disse ela e agarrou com ferocidade no pregador que agora estava enfiado num fio e balançava por cima da sua cota de malha. - Não podemos esperar mais.
Ele assentiu. E depois virou-se para alguns dos homens que o tinham seguido, disparando uma série de ordens que fez com que os homens corressem em várias direcções.
Jonas enrolou as suas cordas e enfiou-as cuidadosamente no cinto.
- Mas ainda estamos a meio da manhã - comentou ele.
- E depois? O Apolon não vai esperar que seja noite só para nos agradar. - Skita raspou as suas garras umas nas outras, como se estivesse a desafiar alguém para um combate ali, naquele momento.
Assim, os homens do porto e defensores de Merina prepararam-se para avançar para o coração da cidade. Lydana não foi questionada quando ocupou o seu lugar numa das barcas da dianteira com Jonas a seu lado. Saxon ia à proa da barca do lado e, à sua ordem, soltaram as amarras e os grandes remos entraram na água, fazendo com que os barcos vogassem no meio do canal.
Lydana olhou para trás. Outras barcas seguiam-nos, muitas mais do que ela pensara estarem a postos para aquele embate. A maioria dos homens que as ocupavam estava armada; três quartos deles usavam couraças ou cotas de malha. Não tinham a elegância das tropas disciplinadas, mas ela estava consciente de que seriam, talvez à sua maneira, mais perigosos numa luta corpo a corpo do que as tropas do imperador.
A cidade, à medida que a iam percorrendo, parecia estar deserta na periferia. Mas quando se aproximaram da Casa dos Marinheiros, pequenos barcos apareceram e começaram a segui-los e as novidades eram passadas de barco para barco.
Cathal continuava a comandar pelo menos parte das suas tropas rebeldes e embora não estivesse com elas, essas forças marchavam para o portão norte, dirigindo-se para a batalha que se travava na praça do templo. Os homens ajuramentados ao imperador tinham-se mantido afastados até ao momento, mas ninguém sabia quanto tempo isso duraria.
Mas que Balthasar se virara directamente para Cathal e Apolon em busca de apoio, disso não havia qualquer dúvida. Os seus guardas eram todos casacos negros e mercenários e ele mantinha-se afastado do resto das suas tropas. Na verdade, ninguém o vira fora do palácio havia mais de vinte e quatro horas.
Os habitantes de Merina estavam escondidos, na sua maioria, à excepção daqueles que no passado tinham prestado serviço nos guardas ou na marinha. Vários mestres das Guildas e suas famílias tinham sido raptados às claras e eram mantidos prisioneiros perto da praça do templo, guardados por casacos negros.
Sobre o peito de Lydana ardia uma chama carmim. Conseguia sentir o seu calor mesmo através da cota de malha. Seria aquilo um chamamento ou antes a explosão final de um poder sob uma enorme pressão?
Os que vinham do porto desembarcaram e formaram filas irregulares. Mas pareciam não se sentir desencorajados por aquilo que os esperava. Talvez a estranha derrota que Lydana infligira aos mortos-vivos os tivesse vacinado contra qualquer terror resultante da magia. Jonas, atrasado pela perna de pau, ficara para trás, apesar dos seus esforços para a acompanhar, mas Saxon avançava, com a espada nua na mão, o rosto encoberto pelo capacete e o sol a brilhar na protecção do peito. Embora não empunhassem qualquer estandarte, era talvez a visão do seu comandante que mantinha o resto das tropas em boa ordem.
Mas algo mais aconteceu. À medida que iam passando pelas casas, mais gente foi saindo por portas apenas entreabertas. Não envergavam armaduras nem empunhavam espadas, mas viam-se inúmeras facas e lanças da caça ao javali, relíquias de outras caçadas, bem como armas menos convencionais. Lydana viu uma mulher robusta, com as saias compridas atadas por cima dos joelhos, empunhando um espeto tirado de uma lareira.
Já conseguiam ouvir os sons de agonia da batalha de Merina; o rugido das vozes a que se misturava o embater do aço. Abruptamente deparou-se-lhes a primeira escaramuça no local onde alguns mercenários tentavam barrar-lhes o caminho. Dois homens, empunhando espadas, avançaram rapidamente para o lado de Saxon e atrás dele viam-se lanças, parecendo que aqueles que as empunhavam saltavam num e noutro pé, procurando uma oportunidade para usar as suas armas.
Lydana encostou-se à porta fechada de uma casa e manteve-se firme, a espada leve de que se apropriara na mão e pronta a ser usada. Pelo canto do olho viu silhuetas que se içavam pelos canos que levavam aos telhados das casas, com facas bem visíveis presas nos dentes. Saltaram de telhado em telhado e depois desceram, apanhando os mercenários pela retaguarda.
A resistência não durou muito. Os inimigos, em muito mau estado, foram rapidamente despojados das suas armas e de tudo o mais que os vencedores pensaram poder ser útil.
Agora o som que vinha da praça do templo, a uma distância Muito curta, era ensurdecedor: guinchos e gritos e, acima de tudo, um zumbido que pareceu encher os ouvidos de Lydana e lhe fez doer a cabeça. Viu Saxon abanar a cabeça como que para se ver livre daquele som e um ou dois dos homens mais próximos dela cobriram as orelhas com as mãos, as suas bocas abrindo-se e soltando uivos. Por baixo da mão de Lydana, o fogo do rubi cresceu ainda mais.
Saxon limpou a espada no casaco do comandante inimigo que jazia agora a seus pés. Depois espetou um polegar na direcção da porta de uma casa e depois de outra, de cada lado da rua. Aquelas não eram habitações elegantes das famílias poderosas das Guildas e a força dos ombros que se aplicaram contra as suas portas rapidamente as fizeram ceder. Aqueles que as tinham derrubado entraram. Que os donos das casas nada tinham a temer, Lydana sabia-o bem, e podia adivinhar o que Saxon tinha em mente: ou usar as portas das traseiras caso estas existissem, ou ir por cima dos telhados para poder enfrentar o que os esperava na praça que estava diante de si, numa frente mais alargada. Homens passaram por Lydana antes que ela pudesse entrar e desapareceram. Entre os primeiros estivera Dortmun e ela teve bem a noção da confiança que Saxon depositava nele.
Mais uma vez a parte principal do exército do porto avançou. E mais uma vez teve que enfrentar o inimigo. Mas daquela vez foi Lydana quem assumiu o comando, pois via-se na frente deles um grupo de casacos negros formando como que uma mancha maligna no pavimento. O rubi... alimentava-se do Coração, mas era a única defesa de que dispunham. Sentia-se dividida quando ergueu o rubi, no entanto sabia não ter escolha. Sustendo a respiração, invocou o poder da pedra. Surgiram, na verdade, ondas carmim em resposta ao seu apelo, mas desta vez alongavam-se, formando como que uma ponta de lança, atingindo directamente as criaturas imundas que lhes barravam o caminho.
Atingidos, mortos, os corpos mutilados por batalhas há muito travadas ficaram inertes no chão, fazendo com que ela e os seus companheiros tivessem que os contornar. Agora, mesmo na sua frente, conseguia ver a praça e a massa colorida atravessada pelos casacos negros de Apolon que se dirigiam para os degraus do templo.
Lydana já vira aquela praça cheia de gente, mas nessas ocasiões tinham sido multidões praticamente imóveis. Agora combatia-se por toda a praça até mesmo junto dos degraus do templo. Viam-se manchas de casacos negros, as costas viradas para a confusão que ocorria nas suas costas, virados para o enorme portão. Entre as filas dos mais próximos do portão um grande tubo estava apontado ao templo.
Na outra extremidade do tubo via-se um contentor arredondado, semelhante a uma barrica de cerveja; no entanto a superfície do líquido tinha um brilho gordurento, deixando perceber que o seu conteúdo não era lícito. Teve a certeza de que aquilo era mais um dos produtos da magia de Apolon. Saxon, virando a cabeça para um e para o outro lado, observando o avanço das suas forças, juntou-se-lhe e agarrou-lhe no braço.
- Os casacos negros...
Ela não sabia que horror estariam eles prestes a libertar, mas acreditava que dispunham de uma qualquer super arma guardada para aquele momento. Sabia também que não se atreveria a invocar o Sangue do Coração naquele momento. Todo o Poder concentrado no templo estava certamente a protegê-lo; não se atrevia a enfraquecer essa protecção, nem mesmo ligeiramente.
Saxon concordou e ergueu a voz habituada a sobrepor-se ao vento do mar:
- Ei, a mim!
Os homens formaram uma cunha. Os que se colocaram no vértice, onde Saxon assumira o comando, eram os mais bem armados e equipados e lançaram-se para a frente tão unidos e determinados, que conseguiram abrir caminho. Em torno deles aglomeravam-se os mercenários e viam-se os casacos coloridos dos homens ajuramentados do imperador. Homens caíam e os companheiros de Saxon mais atrasados passavam por cima dos cadáveres dos seus camaradas para abater os que os tinham morto e seguir o capitão.
Lydana empunhava firmemente a espada e agradeceu em pensamentos ao seu falecido marido pelas horas que este passara a ensiná-la a usá-la. Tudo o que sentia agora era a necessidade de chegar aos degraus do templo.
Então, e pela primeira vez, avistou Apolon. Embora este não passasse de um homem de estatura média que anteriormente se fizera passar despercebido, aquele que via ali perante a porta era um ser totalmente diferente. O manto cinzento que o vira usar antes desaparecera. Agora estava vestido com um fato de um escarlate vivo,justo ao corpo, e sobre a cor de sangue da sua roupa viam-se nuvens de fumo, como se vestisse um segundo fato tecido de nevoeiro.
Nas suas mãos via-se um bastão; a praga que Lydana soltou feriu os seus próprios ouvidos quando viu que o bastão agia de motu próprio. O bastão revirava-se nas suas mãos, lançando ocasionalmente chamas de Poder das Trevas, tão naturalmente como um homem que vai tirando uvas de um cacho. E onde as chamas tocavam, homens caíam mortos. Onde teria ele arranjado aquilo, em que armazém secreto o teria encontrado?
Ainda assim... esquivou-se de um golpe e desferiu uma estocada baixa com a sua espada. Percebeu que ficar ali parada a olhar seria a sua morte. Mas já tinham conseguido abrir caminho até muito próximo das escadas do templo. Um cotovelo que a atingiu nas costelas quase a fez cair no momento em que Saxon aparecia na sua frente.
- Se tens poder...
O resto da frase perdeu-se no meio do clamor, mas ela percebeu o que ele dissera. Em frente à porta Apolon ergueu o braço e deixou-o cair naquilo que era claramente um sinal. Parecia não prestar qualquer atenção aos combates que se travavam na praça.
Embora os casacos negros tivessem o tubo apontado mesmo junto às suas costas, ele nem se mexeu quando da sua boca surgiu uma chama de um enjoativo verde amarelado. A chama
contornou Apolon, aparentemente sem lhe tocar, e depois concentrou-se na porta.
Ergueu-se um cheiro a morte e a mal. E... o próprio material de que a porta era feita e que se mantivera intocado pelo tempo durante séculos, começou a derreter. Apolon não recuou, mantendo-se firme à espera que aquela barreira desaparecesse.
Nessa altura, aqueles que se encontravam em torno de Lydana começaram a tossir, sendo acometidos por espasmos e dobrando-se sobre si próprios a vomitar. Até mesmo Skita se agarrou a ela, o pequeno corpo abalado pela fúria do tumulto interior que a acometia. Só os casacos negros não demonstravam qualquer reacção. E ela própria também não, apercebeu-se Lydana. Talvez fosse devido ao talismã que usava. Delicadamente afastou Skita e começou a subir as escadas. Nenhum dos casacos negros a viu; continuavam concentrados na sua estranha arma e apontavam as chamas malignas para o interior do templo.
Mas Apolon marchou por ali dentro, com uma arrogância semelhante à do próprio imperador, no meio daquele fedor horrível. Depois as suas hostes de homens mortos seguiram-no, puxando com cordas a barrica de onde provinham aquelas emanações, enquanto quatro de entre eles se mantinham a postos segurando o tubo.
Lydana seguiu-os. Percebeu que aquilo era o fim. Cathal e o imperador estavam apenas nas franjas da batalha. Pois esta já não era travada entre homens, mas sim entre Forças. Alcançou ela própria a porta e olhou para a nave e para o altar central. Não tinham sido postos guardas do lado interior da porta, pelo menos nenhuns que fossem visíveis. Era em torno do próprio altar que estavam concentrados os defensores. E mantinham-se tão imóveis como as estátuas dos Grandes Desaparecidos. O Coração parecia ter perdido alguma da Sua glória. Sentiu um movimento, um puxão no cordão que segurava o pregador; este estava no ar, formando uma perpendicular em relação ao seu peito. Deixara cair a espada no momento em que entrara naquele
local de paz. Agarrou o pregador e tentou soltar a jóia, enquanto o calor que esta libertava lhe lacerava a mão.
Apolon continuava a avançar cheio de confiança, mas os seus casacos negros, transportando a arma pouco manejável, tinham parado. Aparentemente aquela última batalha caberia unicamente ao seu amo.
O cordão e o pregador que este segurava agitava-se agora quase com fúria. Lydana partiu uma unha, mas conseguiu libertar o rubi. Este ficou livre e saiu da sua mão, quase sem tocar a sua pele, e voou pelos ares. O seu brilho era visível no ar; voou por cima das cabeças dos casacos negros e depois desapareceu, engolido à distância pelo altar central.
O Coração brilhava, cada vez mais ofuscante. Em Lydana o deslumbramento era quase tão grande como o medo. Subitamente soube que aquele último confronto não lhe pertencia; soube que não era uma das escolhidas nem nunca o seria. Virou-se rapidamente, recusando-se a olhar para trás, embora em torno de si parecesse ter sentido movimento, como se os Grandes Desaparecidos estivessem a sair das suas posições e se preparassem para combater pela fé na qual tinham vivido e morrido.
Lydana começou a correr para fora do local onde não tinha qualquer direito de estar... Saiu às ruínas da porta e enfrentou novamente o tumulto na praça.
ADELE
Durante dois dias a atmosfera no templo fora tensa, mas confiante. Apesar do cerco continuado, nenhum dos casacos negros de Apolon tentara sequer passar a porta e os poucos grupos de mercenários que tinham feito tentativas pouco convincentes de forçar as portas tinham sido rapidamente repelidos pelos diminutos grupos de lanceiros do religioso Fidelis.
Começava a parecer, agora que os religiosos do templo estavam unidos de alma e coração, que os mais optimistas tinham tido razão: Apolon e os seus seguidores não conseguiam entrar os portões.
Mas naquela manhã, quando Leopold e Shelyra partiram para fazer mais uma investida no coração do palácio, Elfrida quase os chamou de volta. Teve uma súbita premonição de perigo; uma dor no coração e apenas o facto de não saber dizer se o perigo era para o templo ou para os dois jovens a impediu de os fazer voltar.
Ficou durante longos instantes a olhar para a porta fechada e a sua sensação de que alguma coisa estava a correr mal aumentou. Ao virar-se deu de caras com Verit. A expressão sombria da grande sacerdotisa elucidou-a.
- Apolon...? - Elfrida não conseguiu continuar a falar e sentiu um alívio momentâneo quando Verit abanou a cabeça.
- Ainda não chegou, mas vem aí em pessoa. - O alívio de Elfrida desvaneceu-se quando Verit continuou. - Estavamos a espiar a sala de trabalho dele quando o vimos entrar vestido com um fato estranhíssimo e foi direito àquela... bacia... para ir buscar o bastão que lá estava. No momento em que lhe tocou, perdemos a visão. Quando tentámos vê-lo, só obtivemos escuridão.
Elfrida levou uma mão à garganta, sentindo-se completamente gelada pelo medo. Era um truísmo para os magos do templo, detentores de Talento, que a Luz podia ver sempre o que se passava na Escuridão, devido à luminosidade que em si continha; por seu lado, as Sombras tinham mais dificuldade em ver a Luz, pois esta cegava-as. Só havia uma explicação possível para Verit ter deixado de conseguir ver Apolon. Este já não se movia nas Sombras, entrara nas Trevas, na mais total ausência de Luz; nas Trevas não havia luminosidade possível, pois estas eram o oposto da Luz.
- Mas como é que ele... - Calou-se. - Certamente que para o conseguir... o que esse poder lhe exigiu...
Verit encolheu os ombros.
- Quantas pessoas é que ele terá assassinado nos últimos dias? Suspeito que o amo dele terá exigido, originalmente, um sacrifício de qualidade, como o da princesa Shelyra, mas depois deve ter decidido aceitar a quantidade em sua substituição. Mas isso agora já não interessa. O que é importante é que ele vem a caminho e chegou a altura de prepararmos as nossas defesas.
Verit virou-se com um adejar do hábito e Elfrida seguiu-a. O ambiente no templo sofrera já uma grande alteração. Fidelis mandara embora os seus mercenários, talvez para junto de uma das portas secundárias, para tentarem a fuga se a oportunidade se apresentasse. As lanças estavam agora nas mãos dos Hábitos Vermelhos mais jovens, que formavam um quadrado em torno do próprio altar. Empunhavam as armas com firmeza, com as pontas viradas para fora, formando uma barreira eriçada contra qualquer ataque puramente físico que fosse lançado contra eles.
Os noviços e os religiosos que não tinham Talento mágico estavam agrupados por trás do altar, num amontoado de corpos ajoelhados, em oração. Se não podiam contribuir com magia, podiam contribuir com a sua fé, a sua força e as suas orações.
Em frente do altar, de pé e de frente para a porta principal, estavam os religiosos de Talento; Talento já posto à prova ou não, isso já não importava. Se sobrevivessem àquilo, teriam sido postos à prova numa situação crucial, no fundo a única que contava. Se não sobrevivessem... seria melhor morrer lutando do que cair nas mãos de Apolon. Do lado de fora das portas ergueu-se um clamor de vozes e de metal embatendo em metal que rapidamente se sobrepôs ao zumbido das orações.
Elfrida ocupou o seu lugar entre os Talentosos, enquanto Verit ocupava o seu à cabeça do grupo. Sobre as suas cabeças Elfrida sentia, num crescendo, o poder do Coração. O crescendo era lento, mas sugeria que algo, com um enorme poder, ia ganhando intensidade e ritmo. A questão que se punha era se atingiria o máximo do seu poder a tempo de lhes ser de alguma utilidade.
Elfrida forçou-se a esquecer aquelas dúvidas e a manter os seus temores bem fechados dentro de si. Fechou os olhos e juntou a sua voz aos cânticos que os outros entoavam, enquanto juntava também os seus poderes aos poderes de Verit. No exterior dos muros do templo o clamor dos combates era agora de grande intensidade; soava como se se lutasse nos degraus fronteiros ao grande templo.
Subitamente, surgiu um som estranho e sibilante que ecoou com um som tremendo pelo templo e fez com que todos eles vacilassem momentaneamente. Todos os olhares se viraram para
a porta principal, agora fechada e trancada pela primeira vez desde que, em tempos lendários, Iktcar tentara tomar a cidade. E as grandes portas de bronze, que tinham resistido àquele vil necromante e às suas hostes, cediam agora perante esta nova ameaça.
Um fumo maligno de um amarelo-esverdeado soltou-se das próprias portas e espalhou-se por baixo da soleira. Alguma coisa lá fora estava a derreter as portas, como se estas fossem feitas de madeira vulgar!
O templo era suficientemente grande para que as correntes de ar dispersassem o fumo antes que este atingisse os religiosos ali reunidos, mas Elfrida pressentiu que não seria saudável respirar aquelas emanações. Sob o seu olhar as portas derreteram-se como a neve na primavera, revelando uma multidão de casacos negros transportando uma arma muito estranha; e na frente deles estava Apolon, vestido com um fato de um vermelho fluorescente, tão diferente da cor baça das vestes dos Hábitos Vermelhos quanto era possível serem diferentes dois tons da mesma cor. Apolon, avançando no meio das chamas esverdeadas e do fumo amarelado, assemelhava-se a um dos demônios que evocava.
O Poder do Coração por sobre as cabeças dos religiosos aumentou subitamente. Elfrida nunca testemunhara, anteriormente, qualquer manifestação física do Poder, mas naquele momento o Coração começou a vibrar, com um som grave e monótono, que se sentia mais do que se ouvia e que fazia estremecer os próprios ossos. Naquele momento, os rubis que estavam empilhados sobre o altar começaram a levitar, erguendo-se no ar tão rapidamente como pedras lançadas por uma funda e voltando ao objecto matriz de onde se tinham soltado.
O próprio ar vibrava com o Poder e o Coração soltou uma luz rosada que os banhou a todos, uma luz muito semelhante à que emitira quando o espírito de Thom Talesmith fora libertado.
Apolon não pareceu ter ficado nada impressionado. Os seus casacos negros mantiveram-se fora do recinto do templo, mas o Mago Cinzento passou a soleira da porta sem qualquer dificuldade. Nas mãos trazia o bastão que Elfrida vira mergulhado num recipiente com sangue. Mas naquele momento, até mesmo à distância que os separava, podia sentir o mal que o impregnava. O mero facto de trazer aquilo para dentro do templo já era uma profanação e um sacrilégio.
Apolon observou os religiosos com um ligeiro sorriso de desprezo nos lábios. Não disse nada, limitou-se a bater três vezes com a ponta do bastão no pavimento de mármore do templo. Cada pancada do bastão ecoou e ressoou pelo templo com um som abrupto, provocando dor a quem o ouviu. Nas suas costas, as paredes do templo, os casacos negros e a sua estranha arma, tudo desapareceu. No seu lugar apareceram nuvens negras fustigadas por relâmpagos escarlates e no meio das nuvens apareceu uma porta para os Infernos Mais Profundos, vermelhos e medonhos.
Por trás de Apolon perfilava-se um exército novo e diferente: um exército de demónios, diabretes e coisas desfiguradas e sem nome. Olhos amarelos brilhavam com uma gula nauseabunda; presas brilhantes estendiam-se para ferir e rasgar. Bocas repletas de presas babavam-se de veneno verde; bocas desdentadas, em ventosa, escorriam saliva peganhenta e amarela.
De cada uma das bocas daquele exército nauseabundo soltavam-se gritos e uivos semelhantes àqueles que só os condenados aos Infernos poderiam soltar nos seus tormentos infindáveis. Elfrida quis tapar os ouvidos, mas não se atreveu a baixar as mãos que tinha postas em prece. Sentiu que um único movimento seu atrairia sobre si as atenções da horda e sabia que se desintegraria sob um tal escrutínio.
Mais do que um dos noviços por trás de Elfrida desmaiou imediatamente à visão da horda demoníaca; os próprios cânticos esmoreceram um pouco tornando-se irregulares.
A voz de Verit, clara e forte, incitou-os novamente a unir as suas vozes, enquanto enfrentava os demónios sem vacilar. Apolon ergueu o seu bastão, e a horda que o seguia interrompeu aquela cacofonia. Falou, a sua voz erguendo-se agreste por sobre os cânticos.
- Rendam-se agora e matar-vos-ei sem dor - exigiu com arrogância, a cabeça erguida como se já usasse a coroa do imperador. - E não vos tornarei meus servos. Resistam e sentirão mil tormentos antes de morrerem, e mais um milhar após a morte.
Em resposta Verit bateu três vezes as palmas, ao ritmo do cântico, provocando, a cada bater de palmas, o ruído de um trovão.
As paredes do templo do lado oposto desapareceram, bem como o tecto abobadado por cima das suas cabeças. O Coração ficou suspenso, sem qualquer suporte, entre o chão e as nuvens brancas que vogavam no céu, continuando a banhar os religiosos na Sua Luz rosada. Mas sobre o Coração, e de cada um dos seus lados, viam-se Anjos em Toda a Sua Glória.
Aqueles não eram os mensageiros que tantas vezes tinham convocado Elfrida ou lhe tinham dirigido palavras de aviso ou conselho; oh, não. Os espíritos poderosos que ali se viam estavam para os mensageiros como a luz de um relâmpago está para a chama tremeluzente de uma vela. Os seus rostos eram na realidade demasiado brilhantes para poderem ser contemplados e Elfrida sentiu-se contente por o Seu olhar poderoso não estar dirigido para ela. Se estivesse... pensou que o seu coração pararia de puro deslumbramento. Ninguém podia ficar imune à visão daqueles seres.
Empunhavam armas nas mãos, mas Elfrida também não conseguiu forçar-se a examiná-las. Aquelas não eram criaturas para serem vistas por mortais e as almas daqueles que ainda habitavam a carne não podiam suportar a presença de tanto Poder. Aqueles eram os mais poderosos dos Espíritos e a própria Verit caiu de joelhos, o rosto cheio de surpresa e choque quando Os viu. Ela não devia estar à espera que fossem Eles a acorrer quando fez as suas invocações!
Elfrida curvou a cabeça sobre as mãos, desviando o olhar e concentrando-se nos cânticos, agarrando-se às palavras como se se agarrasse à própria vida. Eles tinham respondido aos pedidos
de ajuda da grande sacerdotisa, mas a única coisa que Os mantinha ali eram as condições criadas pelas orações dos religiosos, tal como a única coisa que ali mantinha os demónios eram as condições estabelecidas por Apolon e pela entidade que habitava o seu bastão. Se essas condições se alterassem, Eles voltariam para a Sua realidade própria.
Com um grito de frustração Apolon fez avançar a sua horda.
Para os anjos não foi necessário qualquer sinal, pois nada Os impedia de atacar a não ser a Sua própria vontade. Os dois exércitos tremendos encontraram-se nas nuvens que cobriam o altar; o Coração marcando o centro do seu combate.
A julgar pelo corpos inertes que Elfrida via pelo canto do olho, metade dos religiosos estavam ou mortos ou inconscientes. Ela própria se sentia aterrorizada para além de quaisquer palavras, mas para além disso sentia-se fraca, a desfalecer, e lutava para se manter consciente. Tudo o que ela sabia lhe dizia que a presença dos anjos por sobre as suas cabeças dependia da força dos religiosos que se encontravam no solo, tal como a presença dos demónios dependia da força e da presença de Apolon. Tinha que se aguentar; ela e todos os outros à sua volta, ou Aqueles que estavam sobre si desapareceriam deste mundo, deixando o caminho aberto a Apolon e à sua horda.
Não conseguia olhar para o combate que se desenrolava por cima da sua cabeça, por isso dirigiu o olhar para o local onde antes vira o mago. Ele já lá não estava; no período que decorrera desde que invocara o seu exército demoníaco, deslocara-se. Avançara sobre o altar com o bastão erguido na sua frente como uma arma, o rosto repleto de arrogância.
Um rápido olhar em torno de si revelou a Elfrida que não restavam Hábitos Vermelhos para defender o altar e os religiosos que o rodeavam; eles tinham estado entre os primeiros a cair. Tudo o que Apolon precisava de fazer para vencer a batalha era atacar fisicamente e abater os mais fortes de entre os Talentosos e os restantes cairiam desfeitos em pedaços...
Cerrou convulsivamente os olhos. Estava prestes a morrer, quer às mãos do necromante, quer às mãos dos seus servos, e não queria ver essa morte aproximar-se. Não podia fugir ao Mago Cinzento; não se quisesse continuar com os cânticos. Era demasiado fraca para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
- Alto! - ribombou uma nova voz vinda de trás de si e à sua esquerda. Abriu imediatamente os olhos. - Alto, filho do Inferno! Volta para a imundície que te pariu ou enfrenta a Espada de Gideon!
Elfrida, ao ouvir aquilo, quase perdeu a meada ao cântico que entoava. A Espada de Gideon? Mas... era Cathal quem a tinha... não era?
O homem que caminhava furiosamente vindo da sala de meditação e se dirigia a Apolon, não era o general Cathal, mas sim o príncipe Leopold. Nas mãos empunhava a Espada de Gideon, que brilhava com fulgor idêntico ao dos rostos dos anjos por cima das suas cabeças, e empunhava-a como alguém que dela soubesse fazer bom uso.
Apolon soltou uma gargalhada.
- Oh rapazinho, devias ter continuado morto. Que brinquedo é esse que aí tens? Isso não é ameaça para mim!
As suas mãos fizeram girar o bastão nos movimentos de ataque de um perito, e avançou mais um ou dois passos.
- Então queres desafiar-me com essa tua espadazinha de latão? Muito bem; isso poupar-me-á o trabalho de te perseguir e matar mais tarde.
Leopold não perdeu tempo a responder-lhe; com uma expressão repleta de raiva saltou para a luta, enquanto Apolon erguia o bastão para lhe fazer frente.
Elfrida não era nenhuma especialista em técnicas de combate; deixara esse género de coisa para a filha e para a neta, que pareciam apreciar essas artes. Mas uma coisa sabia: num combate entre um homem com um bastão e um homem com uma espada, a vantagem não estava do lado do homem com a espada.
O combatente que empunhava o bastão tinha maior alcance e impacte e desde que o bastão não fosse de um material tão frágil que uma boa estocada pudesse partir ou rachar, era apenas uma questão de tempo até que o espadachim se cansasse ou fosse desarmado por uma pancada certeira do bastão.
Apesar disso, Leopold estava a dar boa conta de si, fazendo mesmo com que Apolon recuasse uma boa dúzia de passos. A surpresa, e depois a fúria, estampadas no rosto do Mago Cinzento eram a prova evidente de que Leopold o surpreendera e que essa surpresa não fora agradável.
Mas o Mago Cinzento não estava, de forma alguma, derrotado. Uma vez ultrapassada a surpresa inicial, manteve-se firme; o bastão tecendo uma teia de escuridão entre si e Leopold, ao mesmo tempo que a Espada de Gideon tecia uma teia de Luz entre Leopold e o mago.
Apolon não era nenhum imbecil e não chegara onde chegara sem ser observador. Não precisou de mais do que apenas alguns momentos para se aperceber do que Elfrida já sabia: a perícia podia estar do lado de Leopold, mas a força e a resistência eram um dom da espada e sem aquela espada nas mãos, Leopold não seria mais poderoso do que qualquer um dos Hábitos Vermelhos que jaziam inertes aos pés do altar.
Elfrida viu o momento em que Apolon chegou àquela conclusão. Abruptamente a sua táctica passou de uma de ataque e evasão dos golpes do adversário, para a concentração total na tentativa de o desarmar. Tinha ao seu dispor o alcance e a força necessários.
Tudo aconteceu com demasiada rapidez para que Elfrida pudesse ver os golpes com clareza. Viu apenas o movimento do bastão de Apolon e o resultado que este obteve. A espada voou das mãos de Leopold; uma seta de luz voando na direcção da sala de meditação; uma segunda saraivada de golpes fez cair o príncipe aos pés de Apolon, atordoado e imóvel.
A voz de Elfrida vacilou na entoação dos cânticos e pressionou os nós dos dedos contra os lábios para se impedir de gritar. Mas o seu espírito uivou numa angústia sem palavras e o coração parou de lhe bater no peito.
Estavam condenados... estavam todos condenados.
Apolon avançou, impante, para a figura a seus pés, o bastão erguido para desferir o golpe final no crânio de Leopold.
- Não consigo dizer-te o quanto isto me agrada, Leopold - disse ele alegremente. - Não te posso dizer quantas vezes sonhei ter-te assim, estendido e indefeso a meus pés.
Leopold gemeu, apoiou-se num cotovelo e tentou levantar-se, caindo novamente no chão com um gemido de dor. Elfrida estava paralisada pelo medo e pela exaustão... mas vislumbrou um movimento no local onde a espada caíra. Teria um dos Hábitos Vermelhos recobrado os sentidos? Conseguiria ele chegar à espada a tempo de salvar o príncipe?
- Tive que mandar os meus homens para me livrar de ti quando foste exilado para o Palácio de Verão, mas essa não era realmente uma solução satisfatória - continuou Apolon. - Não, o que eu desejava realmente era ver a tua cabeça a abrir-se em duas sob a minha arma e ouvir-te chorar de tormento quando o meu bastão bebesse o teu sangue...
- Afasta-te dele, seu filho da mãe!
Aquela não era a voz de um homem, tão aguda no seu grito que abafou o clamor da batalha que se desenrolava por sobre as suas cabeças...
Apolon ergueu o olhar, o rosto vazio de qualquer expressão, apanhado totalmente de surpresa. Fê-lo mesmo a tempo de ver a princesa Shelyra, o rosto lívido de fúria e com a espada empunhada por ambas as mãos, cobrindo a distância que os separava numa investida do tipo ou-tudo-ou-nada, que só alguém muito desesperado tentaria. Mal teve tempo para se aperceber de que ela tinha a arma quando ela, com um salto semelhante ao de uma bailarina acompanhado por um grito inarticulado de puro ódio, cobriu os últimos cinco passos que os separavam de uma só vez...
... e aterrou no solo enterrando a espada até ao punho no peito de Apolon.
LYDANA
A uma certa distância das escadarias do templo, grupos de contendores ainda lutavam, esforçando-se por abater os seus inimigos, mas mais perto dos degraus, as pessoas olhavam atordoadas em torno de si, como se tivessem ficado prisioneiras de uma névoa de espanto. O terrível fedor sufocante já começara a dissipar-se, mas os vestígios que ainda perduravam eram suficientes para Lydana ser acometida de ataques de tosse e de espirros.
Tropeçou; foi impedida de cair por mãos fortes e deu por si amparada por Saxon, que parecia já ter recuperado o suficiente do ataque dos fumos para gritar ordens numa voz tonitruante. E essas ordens pareciam estar a conseguir impor alguma ordem no caos que os rodeava. Homens e mulheres endireitaram-se, parecendo ter sido acordados do seu transe momentâneo.
De cima dos degraus conseguia ver os casacos dos homens do imperador e o aço e o cabedal dos mercenários. Alguns deles ainda combatiam, mas foi a vez de Lydana chamar a atenção do seu companheiro.
- Temos que nos afastar daqui! - gritou-lhe ao ouvido. Sentia o sangue pulsar nas veias e trovejar-lhe nas têmporas, num aviso daquilo que a esperava. - Temos que nos afastar do templo!
Ele não lhe fez perguntas, mas gritou novas ordens. Ela sentiu o calor aumentar atrás de si, como se o Coração atingisse a plenitude do Seu poder. Ainda ao lado de Saxon, desceu os degraus aos tropeções e viu aqueles que, à sua frente e virados para o templo, ficavam com os rostos tingidos de um brilho avermelhado, as expressões repletas de espanto. Até mesmo as pequenas escaramuças que ainda se desenrolavam cessaram, à medida que as ondas daquele poder crescente progrediam e se espalhavam para a periferia da multidão, até que os invasores ficaram lado a lado com o povo de Merina, os braços inertes caídos ao lado do corpo, concentrados nas entidades que se defrontavam no templo e que estavam muito para lá do alcance das suas próprias forças.
O braço de Saxon agarrou-a pelos ombros quando ela tropeçou nas pernas de um corpo caído por terra. Juntos, conseguiram virar-se para ver o que se passava. Todo o edifício do templo estava a ficar como que encoberto por uma névoa, como se fosse uma ilusão que fosse perdendo a força e não conseguisse continuar visível. Mas viam-se cores; vários tons de carmim e, irrompendo aqui e ali, as chamas verdes e amarelas que tinham conseguido fazer com que Apolon entrasse naquele último reduto.
Lydana estremeceu. O Tigre dentro de si era suficientemente forte para querer participar naquele combate, mas aquela batalha já não era sua. Não queria, nunca mais, invocar os poderes e ser atendida. O apoio forte que Saxon lhe dispensava era real e ela agarrou-se ferozmente a essa realidade. Pelo canto do olho apercebeu-se de que a multidão que combatera começava agora a mexer-se. As pessoas moviam-se, primeiro lentamente e depois à desfilada. Os homens do imperador, não respeitando já as suas formações, corriam nos calcanhares dos habitantes da cidade e os mercenários abriam caminho à cotovelada.
Apenas aqueles que tinham seguido Saxon desde o início continuavam imóveis, embora Lydana pudesse ver nas suas expressões, primeiro um enorme espanto e depois um medo crescente. Aqui e ali via um rosto que conhecia bem: Dimity com uma cota de malha demasiado grande vestida por cima das roupas vaporosas e uma grande faca, manchada de sangue, numa das mãos. A seu lado estava Dortmun, o homem que tinha um gancho no lugar da mão...
Talvez tivessem visto tantas coisas estranhas e aterradoras nos seus tempos, que aquilo não fosse o suficiente para os fazer fugir.
O jogo das cores continuava na sua frente. E Lydana não conseguia desviar o olhar. Viu, ou pensou ver, formas que se moviam no meio da luz, formas que reuniam a luz em torno de si, como vestes, e que assim se tornavam distintas. Ou talvez não passasse tudo de uma ilusão nascida da explosão da fúria do Poder. Mas começou a notar-se uma mudança. As cobras sinuosas de um verde amarelado não fustigavam o ar tão alto como pouco tempo antes; enrolavam-se e atacavam, mas parecia que encontravam uma barreira, enquanto a luz carmim continuava a brilhar com furor. Depois, tão subitamente como uma vela soprada pelo vento, as chamas horrendas desapareceram, a luz carmim explodiu iluminando os céus e desapareceu também.
- Está feito.
Não necessitou de ir até ao campo de batalha para o saber; a vitória sentia-se no próprio ar que respiravam. O que quer que fosse que Apolon tivesse sido tinha desaparecido, como se nunca tivesse existido. Os mortos-vivos que o serviam tinham sido finalmente libertados. Ouviu Saxon respirar fundo.
- Vossa Majestade, Merina está livre.
Não duvidou das suas palavras nem por um momento; não importava quantos mercenários estavam sob as ordens de Cathal, nem quantos homens seguiam Balthasar e o seu filho. O coração da invasão tinha sido Apolon e, sem ele, esta desmoronar-se-ia rapidamente como um muro mal construído submetido a uma grande pressão.
Foi a sua vez de respirar fundo. O nevoeiro carmesim que ficara a pairar sobre o templo parecia agora estar a ser sugado para o interior dos seus muros. Perante os seus olhos viam-se os destroços da porta que o mal penetrara. Não tinha qualquer desejo de voltar a subir aqueles degraus ou de ir até junto do altar. Não sentia qualquer dúvida que o Coração recuperara toda a Sua glória e que brilhava ali e ao Seu redor estariam as reverendíssimas e todas as ordens que serviam a Deusa.
O seu lugar não era entre elas; olhou por cima do ombro para a praça juncada de corpos. Assim como não era função sua limpar aquela parte de Merina. A sua cidade, por agora, o seu dever estava...
Mas ninguém estava totalmente só. Adele tinha o Talento, Shelyra os seus próprios seguidores (Lydana não tinha qualquer dúvida de que a rapariga tivera o seu papel naquele conflito final, mesmo que não tivesse ali estado fisicamente, e que encontrara outros cuja coragem igualava a sua).
Não, ninguém está totalmente só... e quando isso acontece, essa pessoa torna-se numa não-pessoa, como aconteceu com Apolon. Ela fora Lydana, rainha e artesã, um Tigre em busca da presa justa; fora Matild, a humilde comerciante de contas e enfeites (embora os produtos fossem sempre executados com grande perícia). E parecia que agora voltara a ser Lydana; no entanto, uma Lydana diferente da anterior.
- Senhora - Skita olhava para si. - Ides ter com... eles? - Indicou o templo com a cabeça.
Lentamente, Lydana abanou a cabeça.
- Nem agora nem nunca, pequenina. Vou içar as velas para uma viagem muito diferente. - Deu por si à procura das palavras exactas, sabia que tinha que as encontrar, e que o teria que fazer naquele momento, antes que algum acaso pudesse alterar o futuro. - E para uma viagem é preciso um capitão. Não é assim, senhor Saxon?
A espada dele caiu no chão com estrondo quando estendeu os braços para ela. Naquele momento ela soube que nascimento e herança não tinham qualquer significado. Eles eram camaradas de armas, mas eram também mais, muito mais do que isso. Nem se importou que os ratos do rio vissem os seus lábios encontrar os do seu herói, nem ouviu sequer as suas aclamações... encontrara o seu Talento e ninguém lho tiraria, nem ela própria o poderia ignorar.
Uma única coisa poderia ter interferido nos seus pensamentos naquele momento: uma ameaça à sua cidade. E essa ameaça surgiu, fazendo com que interrompesse o beijo para enfrentar o novo perigo.
- Fogo. - gritava uma voz histérica. - Há fogo na cidade!
E, erguendo-se acima dos telhados, na direcção das casas das Guildas, viam-se chamas muito reais erguerem-se para o céu, enquanto ela e Saxon, bem como todos os seus seguidores, corriam para combater aquele novo perigo.
SHELYRA
Shelyra ficou sentada na pedra dura e fria do chão do templo com a cabeça de Leopold cuidadosamente aninhada no colo. Outros havia que tinham ficado muito mais feridos do que ele e ela não levantou objecções quando os curandeiros atenderam esses feridos em primeiro lugar. Havia um número demasiado elevado de formas imóveis e discretamente amortalhadas em cobertores, para que ela sentisse qualquer ressentimento por o príncipe ter de esperar para ser tratado, mas por fim chegou a vez de Leopold. Olhou ansiosamente para o rosto da religiosa Cosima. Pelo menos Leopold ficara com a melhor curandeira; com a que tinha maior experiência.
- Ele vai ficar bom, não vai? - perguntou ela quando Cosima terminou o exame à cabeça ferida do príncipe.
Com ar cansado, a religiosa assentiu.
- Ele sofreu um traumatismo, minha querida e está tão exausto como qualquer um dos religiosos que ajudaram Verit na batalha mágica. E essa não é uma boa combinação, mas não será fatal para um homem novo como ele.
Cosima curvou a cabeça e deixou escapar uma lágrima. Shelyra sentiu-se instantaneamente culpada. Tantos dos religiosos tinham caído para não mais se levantarem... o medo e a tensão tinham sido fatais para um grande número de velhos corações cansados e a exaustão dos corpos tinha sido fatal a mais uma meia dúzia, incluindo o religioso Fidelis. Shelyra estendeu uma mão hesitante e depois recolheu-a novamente, não se sentindo segura do tipo de conforto que poderia oferecer, se é que poderia oferecer algum.
Mas Cosima ergueu novamente a cabeça, como se tivesse pressentido aquela oferta hesitante e conseguiu dirigir-lhe um sorriso fraco.
- Temos uma grande dívida para com vós dois, minha querida. Se não tivessem aparecido para defrontar Apolon, ele ter-nos-ia morto a todos e o caminho teria ficado livre para que fizesse... coisas que fariam com que Iktcar parecesse um pequeno criminoso. Não vos sintais culpada nem vos preocupeis com a falta de recursos; ainda há muitos curandeiros espalhados pelos conventos da cidade e vamos tratar dele muito bem para vós. Dai-nos só algum tempo para organizar as coisas.
Acabou de ligar a cabeça de Leopold e depois foi ter com a vítima seguinte do combate, deixando Shelyra novamente a sós com o príncipe.
Traumatismo. Que sei eu de traumatismos? Só sei que foi uma sorte Apolon ter um bastão e não uma espada, ou o crânio dele teria ficado aberto em dois.
Procurou na sua bolsa remédios que o pudessem ajudar, mas a única coisa que ali tinha era um líquido claro usado para as dores de cabeça e para refrescar espíritos exaustos.
Bem... pode não ajudar, mas mal também não fará. Tirou a rolha e molhou cuidadosamente o dedo com ela, traçando depois uma linha na testa dele, nas faces e nas têmporas. Um odor agreste, que fazia lembrar pinhais e montanhas em flor, penetrou o cheiro pesado a incenso. Após umas quantas inalações já ela sentia as suas energias renovadas, bem como um novo optimismo. Passados instantes, as pálpebras dele estremeceram e abriu os olhos. Olhou para ela e, para seu grande alívio, o olhar estava focado e era inteligente. Ele tossiu, encolheu-se com a dor que a tosse lhe provocou e depois clareou cuidadosamente a garganta.
- Presumo que não estejamos entre os anjos - disse – ou a minha cabeça não doeria tanto. Quer dizer então que vencemos. - Respirou fundo. - Não perguntarei com que custos; não me parece que qualquer um dos que aqui se encontravam pense que o preço foi demasiado alto, depois de termos visto o que aquela criatura maligna tinha reservado para nós.
- Eu não vi grande coisa - confessou ela. - Apenas Luz e Trevas lutando por cima das nossas cabeças, e explosões de fogo e umas coisas de um amarelo esverdeado. A única coisa a que prestei realmente atenção foi ao facto de tu estares por terra e de que ele estava, triunfante, por cima de ti.
Ele conseguiu sorrir ligeiramente.
- E a tigresa saltou novamente em minha defesa? Isso é uma sorte muito maior do que
aquela que eu mereço, senhora minha, e merece muitos mais agradecimentos dos que...
- Chiu - disse ela carinhosamente. - Tu falas demais e tens-te em muito má conta. Tens que encontrar uma mulher que te aprecie o suficiente para te envenenar para teu próprio bem.
Ele ergueu uma sobrancelha, cuidadosamente, do lado ferido da cabeça.
- Como tu, talvez? Eu sei muito bem a razão porque gostaria disso mais do que de qualquer outra coisa, mas que terias tu a ganhar com isso?
Ela tentou encolher casualmente os ombros, mas teve a sensação de que não conseguira disfarçar os seus verdadeiros sentimentos.
- Bem, tu vês anjos e a avó precisa de alguém que veja anjos para chefe secular do templo. Isso seria conveniente, dado que eu não Os consigo ver. Além disso, certamente que foste educado para governar e não és do tipo de arranjar problemas num reinado conjunto. Isso também seria conveniente, pois eu não abdicarei do meu poder.
O sorriso dele alargou-se.
- Oh, é muito conveniente, concordo - respondeu amavelmente. - Desde que o bastão de Apolon não tenha eliminado totalmente em mim essa capacidade de ver os mensageiros.
Ela soltou um resmungo delicado.
- Duvido. E se isso tiver acontecido... bem, eu agarro na Espada de Gideon e uso o punho para, à pancada, te devolver essa capacidade. E além disso - acrescentou ela docemente - eu gosto de ti. Penso que és provavelmente o homem mais espantoso e notável que já conheci. E... também eu gostaria mais disso do que de qualquer outra coisa. De acordo?
- De acordo.
Ele fechou os olhos por alguns minutos e pensou que ele voltara a adormecer, como era normal para uma pessoa com um traumatismo e apressou-se a tentar acordá-lo. Mas ele voltou a abrir os olhos no momento em que Adele se aproximava a coxear.
- É então melhor eu tornar isto oficial. Senhora Shelyra, conceder-me-ás tu o enorme favor de me dares a tua mão?
- Claro - respondeu ela com um ar muito casual, enquanto o coração lhe saltava no peito e batia desordenadamente de felicidade. - Pronto, avó, és testemunha.
- Bem, se depois de tudo isto, tu própria não tiveres adquirido bom senso e um espírito mais cauteloso - disse Adele calmamente - pelo menos tens a inteligência de te casar com alguém que tem esses atributos. Aprovo; concordo com o casamento e, se tiver que o fazer, vetarei a decisão da tua tia. Partindo evidentemente do princípio que ela ainda seja rainha quando o casamento se celebrar.
Ainda rainha? Mas... Antes que Shelyra pudesse fazer qualquer pergunta, Adele fez sinal a um par de homens que ela reconheceu serem criados do palácio e que transportavam uma maca.
- Levem-no para os aposentos do rei e tenham cuidado com ele, pois tem um ferimento na cabeça - ordenou. - Ponham-no na cama, arranjem gelo na cave do palácio e vejam se conseguem encontrar os pajens dele, para que o cuidem. Se isso não for possível, ponham uma das antigas criadas de Shelyra ao pé dele. Não pode ficar sozinho, ou pelo menos é isso o que a Cosima diz.
Os homens ergueram cuidadosamente Leopold e deitaram-no na maca sob o olhar de Shelyra, que estava preparada para lhes passar um raspanete caso o aleijassem. Mas eles saíram-se bastante bem e levaram-no, sem qualquer percalço, por uma das portas laterais que dava para os jardins. Virou-se para a avó, agora morta de curiosidade.
- Que querias dizer com, “se ela ainda for rainha?” - perguntou - que é que se passou? Que foi que a tia Lydana fez?
Adele fez-lhe sinal para que a seguisse e conduziu-a às ruínas fumegantes da porta principal.
- Começarei por responder à última pergunta, visto que esta elucida as duas primeiras -respondeu.
- A tua tia decidiu fazer uso de umas certas pedras preciosas que carregam consigo pragas muito potentes. Uma foi parar a Balthasar, outra ao chanceler e a terceira ao general Cathal. Até agora encontrámos apenas uma: a pedra do sinete amaldiçoado que foi enviada a Balthasar no anel da rainha. Verit pensa, agora que Apolon já não pode interferir nas visões, que sabe onde estão as outras.
- Onde? - perguntou Shelyra e mordeu o lábio ao recordar-se da voz estranha e espessa que vinha do pulso do general Cathal... e do que lhe acontecera.
- Ali... - Adele apontou enquanto saíam para fora do templo e os olhos de Shelyra foram de encontro a uma nuvem negra e espessa de fumo que se erguia sobre as casas das Guildas.
- Ela tentou procurar as duas pedras e só o que viu foram chamas. Creio que o que está a arder é, ou foi, a Casa do Javali, de que Apolon se apropriou para uso próprio. A razão porque as pedras ali estão, não sei, visto termos encontrado o que resta de Cathal e ele não ter consigo a sua. E ainda não encontramos o chanceler.
- Ele tirou uma guarda de ferro a Cathal - disse ela. - Agia de uma forma muito semelhante à de Thom, e pegou na guarda de ferro de Cathal e saiu, não sei para onde.
- Estava a agir como Thom, como um dos mortos-vivos? – Adele estreitou os lábios. - Ora isso é interessante. Pergunto-me se ele estaria a agir sob uma ordem geral, de levar tudo o que pudesse ser interessante ao seu amo. Não podia saber que Apolon estava no templo e não na Casa do Javali...
Ambas olharam para a cidade, os olhos atraídos pela coluna de fumo negro e oleoso.
- Verit deu ordens para que deixassem arder - disse por fim. - Enviámos gente para se assegurar de que os edifícios circundantes estão em segurança, mas ela deu ordens para que deixassem a casa arder. Não estou inteiramente certa de que as chamas possam purificar aquele local, mas já é um começo. Somos capazes de ter que passar meses em exorcismos e purificações antes que o local fique em condições de lá se poder construir novamente.
- Se alguma vez ficar. - Shelyra estremeceu. - Mas o que é que isso tem que ver com a tia Lydana?
- Verit tenciona ordenar-lhe que expie algum do mal que provocou encontrando todas as jóias que lançou no mundo e que, por suas próprias mãos, as afunde no mar por forma a que nunca mais possam amaldiçoar os homens. - Os olhos de Adele fixaram-se na distância, para lá da coluna de fogo, em algo que só ela podia ver. - Isso levará tempo e requererá o tipo de viagem marítima que Lydana sempre preferiu a ficar sentada num trono. Ela nunca reinou por escolha própria e foi-me dado a entender por uma testemunha aqui do templo, que ela parecia ter... muito afecto pelo mestre do porto, o capitão Saxon. - O seu sorriso abriu-se um pouco. - Ela sempre gostou dele e eu certamente que não tenho mais objecções a essa aliança do que tenho à tua.
Shelyra concordou, depreendendo o resto do que Adele não dissera.
A tia Lydana e o capitão Saxon? Bem, bem! Eu nunca pensei que houvesse alguma coisa para esses lados! Ela é mais inescrutável do que eu pensava!
- Ela não pode abdicar em meu favor e eu certamente que não a culpo por isso, visto não ter idade suficiente, mas o Leopold foi educado para reinar.
- E é mais velho do que tu - completou Adele. – Penso que talvez possamos resolver também uma série de outros problemas desta maneira... graças à forma conveniente como tu te apaixonaste pelo rapaz.
Mais uma vez Shelyra encolheu os ombros.
- Quanto ao amor, não sei... - respondeu, sabendo muito bem que mentia com quantos dentes tinha, mas determinada a que a sua avó não tivesse qualquer indicação desse facto - mas certamente que o respeito, admiro e gosto dele. Ele disse-me que, em tempos, houve mesmo um plano para nos prometer um ao outro. E... bem, avó, ambas sabemos que, eventualmente, eu teria que me casar com alguém, por isso prefiro que seja com um amigo.
- Hummm - disse Adele sem se comprometer, mas com uma sugestão de um sorriso de compreensão. - Talvez o bom senso seja contagioso.
O resto do dia foi passado a trabalhar muito mais do que Shelyra pensara ser possível sem cair para o lado de exaustão. Adele descartou-se temporariamente da sua personalidade de “religiosa Elfrida” e voltou a envergar mais uma vez o fato e as jóias da rainha-mãe, por forma a ajudar a restaurar a ordem na cidade. No meio da confusão daquele dia, se alguém ficou espantado pela súbita “ressurreição” de Adele, ninguém fez comentários. Talvez atribuíssem o facto a uma intervenção do Coração.
As melhores roupas que Shelyra conseguiu encontrar foram as do seu fato de caça, mas envergando o fato e montando um belo cavalo que retirou dos estábulos, viu que as pessoas a aceitavam, com visível alívio, por aquilo que dizia ser. Passou as restantes horas do dia, e a maior parte da noite, cavalgando pela cidade como Adele lhe ordenara, tentando descobrir o que se passava e passando decretos provisórios. Na maior parte dos bairros, um qualquer cidadão leal de Merina assumira o comando; ela só teve que se limitar a descobrir de quem se tratava, confirmar o homem ou a mulher no seu posto, dar ordens provisórias e acabar com os rumores.
Os mercenários, na sua maioria, já tinham fugido. Com os cidadãos armados e à sua procura para se vingarem, Merina já não era para eles um local saudável. Na verdade, no bairro onde Cathal estabelecera casas imperiais de divertimentos duvidosos, Shelyra descobriu que as raparigas que ali tinham sido encarceradas tinham-se vingado de forma terrível em cada mercenário ou casaco negro em que tinham conseguido pôr as mãos. Bastou-lhe lançar um olhar ao primeiro cadáver que encontrou, para decidir deixar que a mulher endurecida que ali restabelecera a ordem lidasse com tudo aquilo a seu modo.
Os casacos negros que tinham sido mortos-vivos tinham caído nos locais onde se encontravam quando Apolon morrera. Os restantes não tinham conseguido sair os portões da cidade. Tinham-se feito odiar ainda mais do que os mercenários de Cathal, se é que isso era possível, e os seus rostos eram muito conhecidos das suas vítimas. Shelyra não fez qualquer esforço para descobrir se os corpos de casacos negros que estavam a ser queimados em piras a cada esquina ostentavam feridas antigas ou recentes. Havia coisas que era melhor ignorar.
Quanto aos soldados imperiais... aqueles que não se tinham escapulido, presumivelmente para ir para casa, tinham-se sensatamente barricado, quer no acampamento fora dos muros, quer nas casernas do palácio. Ali, com posições suficientemente fortificadas para não serem um alvo fácil, os cidadãos não tentaram sequer desalojá-los. Um cauteloso enviado do acampamento disse a Adele que estavam à espera de saber o que acontecera ao imperador. Mas um dos homens que estava nas casernas do palácio disse brutalmente:
- Não queremos saber do que aconteça ao imperador. Queremos o nosso príncipe!
Aquilo, aparentemente, não causou qualquer surpresa em Adele. Os dois pajens do príncipe, ou “escudeiros”, como este se lhes referia, tinham sido localizados, aquartelados com estes homens e frequentemente protegidos por eles. Quando foi dito aos rapazes que Leopold ainda estava vivo e no Grande Palácio, tiveram que os segurar para que não fossem a correr ter com ele.
Ao ouvirem os rapazes declarar que Leopold estava de relativa saúde, onde se encontrava e a quem se aliara, todo o batalhão se declarou por ele, e teria despido imediatamente os uniformes imperiais se tivessem outras roupas para vestir.
Essa falha estava em processo de rectificação, através da remoção de todas as insígnias e substituição das armas do império pelas do Tigre de Merina. Pela manhã já as novas tropas estariam nas ruas, cada homem acompanhado por um dos guardas da cidade, ajudando a devolver a normalidade a Merina.
Quanto a Lydana, Shelyra descobriu-a na Casa do Javali, esperando que as chamas se apagassem, firmemente determinada a entrar nos escombros para recuperar as terríveis jóias, mesmo antes de saber do decreto de Verit. E foi ali que Shelyra ouviu a última e talvez a mais curiosa de todas as narrativas do que acontecera.
Foi-lhe contada por um criado, totalmente aterrorizado, que testemunhara os últimos momentos da não-vida do chanceler Adelphus. O chanceler entrara na Casa do Javali pouco antes de, como dizia o criado, “terem aparecido aquelas luzes todas no céu”. Limitou-se a ficar ali durante muito tempo, enquanto todos os criados que ainda estavam vivos, aproveitando o facto de os casacos negros terem saído com o seu amo, terem fugido.
Todos à excepção deste criado muito velho, que decidira fazer algum saque por conta própria antes de se ir embora. Foi enquanto se servia do que ia encontrando, totalmente ignorado pelo chanceler, que...
- Qualquer coisa aconteceu - disse o homem. – Uma espécie de uivo soltou-se da sala onde o patrão disse para nunca ninguém ir. - Começou a tremer. - Não consigo dizer bem como é que era o som...
- Não tem importância - disse Shelyra acalmando-o. – Eu posso imaginar.
E podia mesmo; havia provavelmente dúzias de espíritos maus ali aprisionados, para já não mencionar as almas aprisionadas e torturadas de gente perfeitamente vulgar. E quando a morte de Apolon os libertou...
- Bem - continuou o homem depois de engolir audivelmente - o chanceler ficou todo azul e começou a cair... mas de repente endireitou-se, e ficou com um ar muito estranho...
- Como? - perguntou ela.
Ele abanou a cabeça.
- Estranho. Como... como se estivesse a lutar com qualquer coisa. Levantou a mão, assim... - Ergueu a mão direita...
Foi nessa mão que Adelphus pôs a guarda de ferro! Pensou ela recordando a imagem de Adelphus a retirar o adorno do corpo mirrado de Cathal.
- E... e sons como se ele quisesse gritar, mas tudo o que conseguisse fosse murmurar. Como se não conseguisse respirar. Assim...
O homem fez uma imitação muito impressionante de alguém que tentasse falar com a laringe partida e Shelyra sentiu o pescoço arrepiar-se.
- Não, Pelos Poderes, não! - arquejava o homem, imitando aquilo que testemunhara. - Primeiro... hei-de... ver-te... no... Inferno!
Manteve-se ali, com o braço erguido, o tempo suficiente para Shelyra ficar toda arrepiada... Depois deixou cair o braço e encolheu os ombros.
- Depois... agarrou numa lanterna; começou a atirá-la a uma coisa qualquer e a lanterna desfez-se. Mas a lanterna aterrou em cima dos cortinados e o óleo espalhou-se e... Puf. Isto começou tudo a arder como papel. Pus-me dali para fora e quase que fiquei torrado para conseguir sair.
Lydana fez imensas perguntas ao homem, tentando conseguir determinar a localização exacta do chanceler quando caíra. Shelyra deixou-a imersa nessa tarefa, pois era óbvio quais eram as suas intenções. Finalmente, quando já tinha esgotado as últimas das suas forças, Shelyra conduziu o seu igualmente exausto cavalo de volta ao palácio e caiu nos braços reconfortantes e familiares dos criados que a levaram para a cama.
Mas não ficou lá por muito tempo; mal rompeu a madrugada já ela estava novamente de pé, às voltas pela cidade, de volta ao trabalho. Lydana voltou ao templo mais tarde nesse dia, embora não se tivesse demorado muito por lá. Estava com um ar cansado e atormentado, e Shelyra calculou que ela tivesse entrado nas ruínas da Casa do Javali e visto mais do que jamais quereria ver.
O imperador revelou-se estar totalmente louco, sem mais capacidade para falar, andar ou cuidar de si do que um bebé. Era opinião de Verit que o seu espírito deveria ter sido totalmente destruído pelo conflito entre o que quer que o possuíra e o poder da Espada de Gideon.
Os oficiais do seu exército foram trazidos à sua presença para testemunharem o estado em que ele se encontrava e voltaram imediatamente ao acampamento. Não muito depois, o acampamento foi levantado, cada comandante levando consigo os seus homens e dirigindo-se cada um numa direcção diferente. Leopold riu-se de uma forma estranha quando Shelyra lhe contou.
- Sabes o que isso significa, não sabes? - perguntou ele.
Ela abanou a cabeça.
- Foram tentar arranjar pequenos reinos para si próprios no império, antes que se espalhe a notícia de que Balthasar enlouqueceu - explicou ele. - Suponho que tiveram uma conferência e concordaram em não interferir uns com os outros durante um ano, ou coisa do género. Depois disso? – Encolheu os ombros. - Guerra generalizada. Talvez.
- Talvez? - perguntou ela e ele encolheu mais uma vez os ombros.
- Eles são soldados que estiveram em guerra durante muito, muito tempo - disse calmamente, mas com uma veemência que a fez compreender que aquilo era algo que também ele sentia profundamente. - Têm agora uma oportunidade de viver em paz. Pode ser que prefiram a paz.
Ela mordiscou o lábio durante algum tempo e depois expôs-lhe uma ideia que lhe ocorreu.
- E se eles tivessem qualquer coisa que os induzisse a preferir a paz?
Ele ergueu uma sobrancelha.
- Tal como?
Ao ouvir aquilo ela não pôde deixar de rir.
- O que é que faz sempre com que as pessoas prefiram a paz? Algum luxo... luxo que não tenha que ser obtido através da guerra.
Ele baixou a sobrancelha.
- Comércio?
Ela anuiu.
- Comércio.
Seria um bom começo.
ADELE
“Adele” desapareceu novamente assim que a crise terminou e Lydana e Saxon tinham partido numa pequena viagem, detendo-se apenas o tempo suficiente para uma cerimónia de casamento muito apressada e uma ainda mais apressada abdicação a favor de Shelyra e do seu marido, este não-identificado.
Continuavam a correr rumores de que ela própria fora uma mensageira; que viera à terra apenas o tempo suficiente para restaurar a ordem em Merina.
O marido passou a ser identificado assim que Leopold recuperou o suficiente para se submeter às cerimónias do casamento real, que duraram um dia inteiro. Ele e Shelyra provaram ser muito populares, usando generosamente o tesouro real e os recursos do Tigre para remediar o que fora destruído na cidade e para recompensar, da única forma que lhes era possível, aqueles cujas perdas não tinham sido unicamente materiais. Eles próprios viviam frugalmente e com simplicidade, recusando-se a ostentar riqueza até que a própria Merina prosperasse de novo.
Verit certificara-se de que a história da sua batalha com Apolon no templo fosse espalhada e esse facto aumentava ainda mais a sua popularidade. Afinal de contas, quem não gostaria de ter, como soberanos, guerreiros da Luz, especialmente uns tão sensíveis e sensatos no que respeitava às necessidades do seu povo como estes dois o eram?
A religiosa Elfrida tinha-se reunido discretamente às fileiras dos outros Hábitos Cinzentos, enquanto os novos soberanos de Merina se instalavam nos seus papéis. E, mesmo quando se sentia tentada a avançar novamente, por alguma palavra ou acção deles, impedia-se de o fazer. Eles tinham que cometer os seus próprios erros e talvez coisas que ela percebia como erros não passassem de diferenças de opinião e de geração.
O imperador foi enfraquecendo gradualmente ao longo de seis meses, apesar dos cuidados devotados de Cosima e dos outros curandeiros. Quando morreu, Leopold chorou-o sinceramente, mas sem lágrimas. Como ele uma vez dissera à religiosa Elfrida, a alma do seu pai morrera há muito tempo, às mãos de Apolon; aquela era apenas a morte há muito adiada do seu corpo.
As partes do Império que não tinham ficado com novos soberanos, saídos do exército do imperador, revoltaram-se quando lhes chegou a notícia da sua morte. Leopold não dava sinais de querer reaver o Império, o que causou um imenso alívio a Elfrida. Isso preocupara-a desde o casamento; Leopold poderia ter sentido inicialmente que não queria a coroa do Império, mas ela temia o que pudesse acontecer quando ele tivesse descansado e recuperado totalmente.
Mas foi o nascimento do primeiro filho que a convenceu de que Leopold se sentia satisfeito como soberano de uma pequena cidade-estado. Bastou olhar para a sua expressão enquanto ele contemplava a mãe e o bebé, para que percebesse que aquele pai nunca poria as conquistas e o poder acima do seu lar e da sua família. E houve ainda um outro facto que lhe fez ver que, para ele, o “lar” era agora Merina, pois Leopold e Shelyra tinham escolhido em conjunto o nome de “Fidelia Adele” para a sua encantadora filha.
Lydana e Saxon tinham regressado da sua segunda viagem com notícias de que as coisas estavam a estabilizar no antigo Império e de que muitos dos actores daquele jogo procuravam alianças comerciais em vez de pretextos para criar novos conflitos.
Aquelas eram boas notícias e antes de partirem novamente levando documentos com propostas de cautelosas alianças, ficaram para a cerimónia da nomeação da nova herdeira.
O templo estava a abarrotar, com as multidões extravasando para a praça. Os cofres reais tinham sido mais uma vez espremidos para providenciar comida e bebida para toda a cidade e todos os artistas de Merina tinham oferecido os seus serviços para animar as celebrações. A religiosa Elfrida estava no lugar de honra ao lado de Verit, no altar e Lydana e Saxon eram os padrinhos da bebé minúscula, mas cheia de saúde.
O próprio templo tinha sido completamente redecorado desde a terrível batalha. O Coração brilhava e refulgia por cima do altar, mas apenas devido aos reflexos do sol e da luz das velas e não devido a qualquer poder sobrenatural. As lanças que tinham sido usadas, um ano antes, na defesa dos religiosos, seguravam agora as tapeçarias e os pendões, como fora intenção de quem as concebera. Mas num estojo em frente ao altar, numa caixa sóbria com a frente em vidro, estava uma nova aquisição: a Espada de Gideon, como recordação do facto de que aqueles que seguem a Luz são por vezes chamados a defendê-la com as próprias vidas.
Enquanto os religiosos cantavam alegremente, Shelyra e Leopold, vestidos com simplicidade, mas com fatos a condizer, apresentaram o bebé à grande sacerdotisa. Verit ergueu a criança para o Coração para que esta visse pela primeira vez o centro de toda a fé em Merina e Elfrida suspendeu a respiração: não fosse a criança, por ser uma criança, fazer acidentalmente qualquer coisa que pudesse ser considerada um mau presságio.
Mas ela limitou-se a pairar e a estender as mãos para o objecto brilhante por cima de si e quando Verit a baixou e deitou no berço especial que estava junto ao altar, Elfrida respirou de novo.
A cerimónia dirigia-se agora aos pais da criança: Verit aconselhava-os relativamente aos seus deveres e obrigações referentes à pequenina. Eles responderam, jurando dar-lhe toda a educação, cuidados e amor que ela necessitasse. Elfrida ignorou tudo aquilo; já assistira àquele tipo de cerimónia vezes sem conta e não tinha qualquer dúvida de que aquela criança iria obter tudo aquilo que os seus pais lhe prometiam. À pequena Fidelia (já lhe chamavam Delia) não faltaria nada que os espíritos, mãos e corações humanos pudessem providenciar.
Verit ergueu as mãos para abençoar os pais e foi nesse momento, quando todos os olhares, à excepção do de Elfrida, estavam pousados no trio em frente ao altar, que o anjo apareceu, debruçando-se sobre o bebé que estava no berço.
Era o primeiro anjo que Elfrida via desde a horrenda batalha e momentaneamente o coração parou-lhe no peito. Que missão horrível traria ali o mensageiro?
Mas no rosto do anjo não se via nada a não ser amor e carinho e debruçando-se sobre o bebé estendeu-lhe um dedo. Delia olhou para o rosto do anjo, riu-se e ergueu a mão para agarrar com firmeza o dedo estendido.
Ela vê o anjo! apercebeu-se Adele, sentindo-se desfalecer de alívio. Ela vê-o! O Talento voltou ao Tigre.
Quase riu alto, tão grande era a sua alegria. Finalmente, ao cabo de três gerações, alguém da Casa do Tigre Os via novamente!
- Que sejas feliz, inteligente e bela, Fidelia - murmurou o anjo numa voz audível apenas para o bebé e para a sua bisavó - e cresças na Luz.
Depois o anjo desapareceu, deixando a criança a agarrar apenas uma linda flor branca.
E a religiosa Elfrida juntou a sua voz às restantes que se erguiam no cântico de júbilo.
MARION ZIMMER BRADLE
YANDRE NORTON
MERCEDES LACKEY
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