Bona Dea era a Boa Deusa, tão velha como Roma e não possuindo, portanto, nem rosto, nem forma; Bona Dea era um numen. Tinha um nome, mas esse nome era tão sagrado que ninguém se atrevia a pronunciá-lo. Nenhum homem poderia compreender o que ela significava para as mulheres romanas, nem por que razão lhe chamavam Boa. O seu culto era marginal à religião oficial do Estado, e, embora o Tesouro lhe desse algum dinheiro, Bona Dea nunca atendia as preces dos homens. As virgens vestais cuidavam dela, já que a Boa Deusa não dispunha de sacerdotisas especiais; as vestais contratavam as mulheres que tratavam do sagrado jardim medicinal da deusa e eram elas que guardavam os remédios de Bona Dea, remédios que eram apenas usados pelas mulheres.
Como Bona Dea não fazia parte do mundo dos homens, o seu enorme templo ficava fora do pomerium, na encosta do Aventino, sob um afloramento rochoso, o Saxum Sacrum, ou rocha sagrada, e perto do reservatório de água do Aventino. Nenhum homem se atrevia a aproximar-se do templo. Dentro do santuário havia uma estátua, mas não era a estátua de Bona Dea, apenas algo que fora lá posto para enganar as forças negativas geradas pelos homens e levá-las a pensar que se tratava da estátua de Bona Dea. Nada era o que parecia à primeira vista no mundo de Bona Dea, a deusa que adorava mulheres e cobras. As cobras abundavam no seu recinto e arredores. Os homens, segundo se dizia, eram cobras. E se possuía tantas cobras, para que havia a deusa de precisar de homens?
Os remédios da Boa Deusa vinham de um jardim que circundava o templo e que era constituído por canteiros de diversas ervas e por um mar de centeio doente, plantado no primeiro dia de Maio e colhido sob a direcção das virgens vestais, que, com aquelas espigas afectadas pela ferrugem, produziam o elixir de Bona Dea — enquanto milhares de cobras dormitavam ou coleavam sussurrantes no meio do cereal, ignoradas pelos humanos e ignorantes dos humanos. No primeiro dia de Maio, as mulheres de Roma acordavam a Boa Deusa do seu sono de seis meses de Inverno com flores e festividades realizadas no templo e à volta dele. As cidadãs romanas de todas as classes sociais concentravam-se no local a fim de assistirem aos ritos, que começavam ao alvorecer e se prolongavam até ao crepúsculo. A dualidade delicadamente equilibrada da Boa Deusa tornava-se evidente no nascimento da Primavera, que o primeiro dia de Maio significava, e na morte do centeio, no vinho e no leite. É que o vinho era tabu, mas tinha de ser consumido em vastas quantidades. As mulheres chamavam-lhe leite e guardavam-no em preciosos recipientes de prata a que chamavam potes de mel: mais um estratagema para confundir os homens e o mundo dos homens. Ao fim do dia, depois de terem bebido muito leite dos seus potes de mel, as mulheres regressavam cambaleantes a casa, ainda cheias de formigueiros por causa do voluptuoso coleio das cobras, e recordando o poderoso engrossamento dos músculos da cobra, o beijo de uma língua bifurcada, a terra escavada para receber a semente, uma coroa de folhas de vinha, o eterno ciclo feminino do nascimento e da morte. Mas nenhum homem sabia ou queria saber o que acontecia em Bona Dea no primeiro de Maio.
Depois, no início de Dezembro, Bona Dea regressava ao seu sono, mas não publicamente, não enquanto houvesse sol no céu ou uma mulher romana num país estrangeiro. Porque os seus sonhos de Inverno eram um segredo só seu, os ritos só eram abertos às mulheres de Roma que possuíam as mais altas linhagens. Todas as filhas da deusa podiam assistir à sua ressurreição; contudo, só as filhas dos reis podiam vê-la morrer. A morte era sagrada. A morte era privada.
Há muito que se previa que, naquele ano, a festa do descanso de Bona Dea se realizasse na casa do Pontifex Maximus; a escolha do local dependia unicamente das vestais, embora a casa em questão tivesse de pertencer a um pretor ou cônsul em funções. Desde o tempo de Aenobarbo Pontifex Maximus que os ritos de Inverno não decorriam na Domus Publica. Naquele ano, finalmente, voltariam a decorrer nesse espaço. A casa do pretor urbano César fora a escolhida, e a sua esposa, Pompeia Sila, seria a anfitriã oficial. A data era a terceira noite de Dezembro e, durante essa noite, nenhum homem — adulto, criança, cidadão, escravo — podia permanecer na Domus Publica.
Claro que César ficou encantado com a escolha da sua casa, e feliz por poder dormir nos seus aposentos da Vicus Patricii; talvez preferisse o velho apartamento da ínsula de Aurélia, mas esse apartamento encontrava-se ocupado pelo príncipe Masinta da Numídia, que era seu cliente e que acabara de perder uma acção no tribunal. Não havia dúvida que César controlava cada vez menos os seus acessos de ira! A certa altura, ficara tão furioso com as mentiras do príncipe Juba que pegara nele pela barba e assim o erguera. Não sendo um cidadão, Mas ainda arriscava-se a ser flagelado e estrangulado, mas César conseguira que ele fugisse (graças à acção de Lúcio Decúmio) e continuava a escondê-lo na sua velha casa. Naquela noite, pensou o Pontifex Maximus, enquanto se encaminhava na direcção do bairro onde nascera, talvez pudesse escolher uma daquelas mulheres deliciosamente naturais de Subura, uma daquelas mulheres que o tempo e a fortuna haviam afastado do seu convívio. Sim, era uma óptima ideia! Uma refeição com Lúcio Decúmio, primeiro que tudo, e depois enviaria um recado a Gávia, ou a Aprónia, ou a Escápcia...
A escuridão caíra já, mas, por uma vez, aquela parte da Via Sacra que serpenteava ao longo do Fórum Romanum encontrava-se iluminada por archotes; aquilo que parecia ser um cortejo infindável de liteiras e lacaios convergia na direcção das portas principais da Domus Publica, e o fumarento manto de luz revelava, de quando em quando, vestidos maravilhosamente coloridos, jóias fabulosas, rostos impacientes. Gritinhos animados, risinhos, nacos de conversa, flutuavam no ar enquanto as mulheres desciam das liteiras e penetravam no vestíbulo da Domus Publica, compondo as vestes roçagantes, ajeitando o cabelo, ajustando um broche ou um brinco. Muitos acessos de nervos e muitas dores de cabeça tinham sido causados pelo complicado planeamento de uma aparência, já que aquela era a melhor oportunidade do ano para mostrar às mulheres da mesma classe a elegância de um traje ou a riqueza do guarda-jóias. Os homens nunca reparavam nessas coisas...! Mas as mulheres reparavam.
A lista de convidadas era invulgarmente vasta, já que o recinto que albergava a festa era muito espaçoso; César cobrira com um largo pano o principal jardim do peristilo, a fim de evitar os olhares curiosos dos residentes da Via Nova, o que significava que as mulheres poderiam reunir-se aí, bem como no atrium, na vasta sala de jantar do Pontifex Maximus e na sua sala de recepção. As lamparinas brilhavam por todo o lado, as mesas estavam cheias de magníficos e saborosos acepipes, os potes de mel transbordavam de leite, o qual, aliás, era de uma excelente colheita. Grupos musicais (constituídos apenas por mulheres, obviamente) animavam a festa com as suas flautas, liras, tambores, castanholas, pandeiretas e guizos; criadas andavam constantemente de grupo em grupo, oferecendo iguarias várias e leite.
Antes de começarem os ritos solenes, todas as mulheres tinham de adoptar uma atitude correcta e adequada, o que significava que se teria de esperar um pouco, após a fase das iguarias, do leite e das conversas. Ninguém tinha pressa; havia muita coisa a pôr em dia, muitos rostos que há muito não se viam, muitas amigas desejosas de trocar os últimos mexericos.
As cobras não participavam no regresso ao sono de Bona Dea; o seu soporífero para todo o Inverno era um chicote que fazia lembrar uma cobra, um objecto de aspecto terrível que terminava com um cacho de tiras de couro, as quais, por certo, se enroscariam tão voluptuosamente como qualquer réptil na carne de uma mulher. Mas a flagelação decorreria mais tarde, depois de ter sido iluminado o altar de Inverno de Bona Dea, depois de muito leite ter sido bebido — era uma boa maneira de amortecer a dor, de a transformar numa espécie de êxtase. Bona Dea era uma rainha cruel.
Aurélia insistira para que Pompeia Sila se mantivesse ao lado de Fábia, recebendo as convidadas. Ainda bem que as damas do Clube de Clódio tinham sido das últimas a chegar!, pensou Aurélia. Bom, outra coisa não era de esperar! Velhas rameiras como Semprónia Tuditanos e Pala deviam demorar horas a aplicar tantas e tão coloridas camadas naquelas caras velhas — embora demorassem não mais do que segundos a enfiar os seus emaciados corpos na escassa roupa! As Clódias, tinha de admiti-lo, primavam pelo requinte: belos vestidos, as jóias certas (sem exageros de nenhum tipo), apenas uns toques de stibium e carmim. Fúlvia guiava-se sempre pelo seu próprio gosto: um vestido cor de fogo, várias fiadas de pérolas escurecidas; tinha um filho de dois anos, mas o seu corpo nada sofrera.
— Sim, sim, agora podes ir! — disse ela a Pompeia, depois de Fúlvia a ter saudado efusivamente; Aurélia sorriu amargamente para si mesma, enquanto a estouvada esposa de César se escapulia de braço dado com a amiga, as duas numa conversa pegada.
Pouco depois, Aurélia decidiu que faltava alguém e deixou o vestíbulo. A sua ansiedade — sim, era absolutamente necessário que tudo corresse bem — não lhe dava descanso; daí que andasse constantemente de sala em sala, examinando isto e aquilo, contando as criadas, verificando se havia comida suficiente, catalogando as convidadas e os locais onde se haviam instalado. Mesmo no meio deste caos controlado, a sua mente, qual um ábaco, não parava de fazer contas e de encaixar factos. Contudo... contudo havia qualquer coisa que a apoquentava — sim, era isso, faltava qualquer coisa, mas o quê? O que é que faltava? Ou melhor, quem é que faltava? Sim, era isso: faltava alguém!
Dois dos membros dos grupos musicais passaram nesse instante por ela, refrescando-se entre dois números. Traziam as flautas presas aos pulsos, o que lhes deixava as mãos livres para se abastecerem de bolos de mel e leite.
— Crísia, esta é a melhor festa de Bona Dea em que já participei! — disse a mais alta das duas.
— Tens toda a razão! — concordou a outra, falando com a boca cheia. — Nunca nos pagaram tão bem, Dóris!
Dóris! Dóris! Sim, era Dóris, a criada de Pompeia, que faltava! Aurélia vira-a pela última vez uma hora antes. Onde estava ela? Que andava a fazer? Estaria a dar comida às escondidas às cozinheiras, ou emborcara tanto leite que estava agora algures num canto a dormir ou a vomitar?
E lá foi Aurélia procurar a criada, ignorando as saudações e os convites para se juntar a diversos grupos, concentrada no caminho que tinha de percorrer.
Não, não estava na sala de jantar. Nem no peristilo. E também não estava no atrium, nem no vestíbulo. O que lhe deixava apenas a sala de recepção, antes de se aventurar por outros territórios.
Talvez porque o pano cor de açafrão com que César cobrira o peristilo era verdadeiramente uma novidade, muitas das convidadas tinham decidido concentrar-se nesse espaço; as restantes estavam na sala de jantar ou no atrium, que davam directamente para o jardim. O que significava que a sala de recepção, imensa e difícil de iluminar por causa da sua configuração, estava praticamente deserta. A Domus Publica provara, uma vez mais, que tinha espaço suficiente para albergar duzentas visitantes e uma centena de criadas.
Ah! Lá estava ela! Junto à porta principal, recebendo uma mulher que trazia uma lira — logo, só poderia pertencer a um dos grupos musicais que animavam a festa. Mas... o aspecto dela...! Que estadão! Uma exótica criatura vestida com a mais dispendiosa seda de Cós, decorada com fios de ouro, e usando jóias fabulosas no pescoço e na espantosa cabeleira loura. Sob o braço esquerdo, trazia uma lira magnífica de casca de tartaruga com incrustações de âmbar e com cravelhas de ouro. Possuiria Roma uma mulher que se dedicasse à música e que tivesse dinheiro suficiente para se vestir daquela maneira, para usar tão belas jóias ou tocar num instrumento daqueles? Com certeza que não, pois caso contrário seria a mais famosa das mulheres!
Mas também havia algo de errado em Dóris. A rapariga fazia muitas poses e sorria de tal maneira que parecia estar tola de todo, e tapava a boca com a mão e revirava os olhos para a outra, como que acometida de um júbilo conspirativo. Sem fazer um único ruído, colada às paredes, encoberta pelas sombras, Aurélia abeirou-se das duas. E quando ouviu a recém-chegada falar com uma voz de homem, precipitou-se sobre ela.
A intrusa era franzina e tinha uma estatura média, mas possuía a força de um homem e a agilidade de um rapaz; libertar-se de uma mulher já entrada, como era o caso de Aurélia, não seria difícil. A velha cunnus! Nunca mais o atormentariam, nem ela, nem Fábia! Mas aquilo não era uma velha...! Aquilo era Proteu...! Por muito que ele se debatesse e girasse e contorcesse, Aurélia aguentava-se firme e não o largava.
E já gritava: — Ajudem, ajudem! Fomos profanadas! Os mistérios foram profanados! Ajudem, ajudem!
As mulheres irromperam vindas de todos os lados, obedecendo automaticamente à mãe de César — uma constante da vida de Aurélia, pois toda a gente lhe obedecia. A lira da recém-chegada caiu no chão e os seus braços foram imediatamente agarrados por várias mãos fortes. Contra tantas mulheres, aquela estranha nada podia fazer. Nesse instante, Aurélia afastou-se um pouco da intrusa e virou-se para a audiência.
— Isto... — disse ela, num tom violento —, isto é um homem!
Alguém desatou a gritar “Sacrilégio! Sacrilégio!”. Lamúrias, gritos e guinchos atingiram tal volume que, em breves instantes, toda a Via Nova espreitava já à janela; as mulheres fugiam em todas as direcções, gritando que os ritos de Bona Dea haviam sido manchados e profanados, enquanto as escravas se refugiavam nos seus aposentos e as mulheres dos grupos musicais se rebolavam no chão, arrancando mechas de cabelo e arranhando os seios e as três vestais adultas tapavam com os véus os rostos devastados, a fim de que ninguém, excepto a Boa Deusa, se apercebesse do seu sofrimento e do seu terror. Nesse momento, Aurélia estava já a limpar furiosamente o rosto sorridente de Clódio com uma parte do seu vestido; o branco, o preto e o vermelho da maquilhagem tinham dado a essa parte do seu vestido uma coloração castanha.
— Vejam bem! — atroou Aurélia, com uma voz que nunca possuíra. — Exorto-vos a que testemunhem que o homem que violou os mistérios de Bona Dea é Públio Clódio!
E, de súbito, Clódio não se divertiu mais. As gargalhadas pararam e os seus olhos fixaram aquele rosto belo e firme tão perto do dele e um medo inominável paralisou-o. Sentia-se como se tivesse voltado àquele quarto anónimo em Antióquia; desta feita, porém, não temia perder os testículos, mas sim a vida. O crime de sacrilégio continuava a ser punido com a morte e nem mesmo o Olimpo dos advogados de Roma conseguiria salvá-lo. A sua mente iluminou-se, num paroxismo de horror: Aurélia era a Bona Dea!
Reuniu todos os vestígios de força que ainda lhe restavam, libertou-se dos braços que o prendiam e disparou pelo corredor que conduzia dos aposentos do Pontifex Maximus ao triclinium. Para lá do triclinium, ficava o peristilo privado, rodeado por altas paredes. Como um gato, Clódio saltou, fixou as suas garras numa falha da parede, e obrigou o seu corpo a seguir os seus braços, até chegar ao alto da parede; daí, atirou-se para o terreno vazio adjacente.
— Tragam-me Pompeia Sila, Fúlvia, Clódia e Clodila! — gritou Aurélia. — Elas são suspeitas e pretendo falar com elas! — pegou no vestido de seda e na cabeleira e entregou-os a Polixena. — Guarda isto num sítio seguro. São provas!
A gigantesca Cardixa, a liberta gaulesa que há tanto tempo servia na casa de César, aguardava silenciosamente pelas ordens. Aurélia ordenou-lhe que orientasse a saída das convidadas, tão rapidamente quanto possível. Os ritos não podiam continuar e Roma via-se mergulhada na mais séria crise religiosa de que havia memória.
— Onde está Fábia?
Terência apareceu nesse momento, com uma expressão que Clódio não gostaria de ter visto. — Fábia ficou muito combalida, mas já está melhor. Oh, Aurélia, Aurélia, isto é horrível! Que podemos nós fazer?
— Tentar reparar os danos, se não por nós, pelo menos por todas as mulheres romanas. Fábia é a chefe das vestais, a Boa Deusa está nas mãos dela. Dize-lhe que vá consultar os Livros, pois temos de saber o que podemos fazer para evitar uma catástrofe. Como poderemos enterrar Bona Dea, se não expiarmos o sacrilégio? E se Bona Dea não for enterrada, não voltará a renascer em Maio. As ervas medicinas não crescerão, todas as crianças nascerão maculadas, todas as cobras se afastarão ou morrerão, a semente perecerá, e os cães pretos comerão os cadáveres nas sarjetas desta cidade amaldiçoada!
Desta feita, a audiência não gritou. Gemidos e suspiros elevaram-se e encheram a escuridão para lá dos pilares e penetraram nos recantos mais esconsos e cravaram-se como garras em todos os corações. A cidade estava amaldiçoada.
Uma centena de mãos empurraram Pompeia, Fúlvia, Clódia e Clodila para a frente da multidão que entretanto se reduzira; as quatro mulheres choravam e olhavam confusas em seu redor; nenhuma delas estava por perto quando Clódio fora descoberto, apenas sabiam que Bona Dea fora violada por um homem.
A mãe do Pontifex Maximus examinou-as, tão justa quanto impiedosa. Teriam participado as quatro na conspiração? Mas todas elas tinham os olhos arregalados, assustados, absolutamente perplexos. Não, decidiu Aurélia, nenhuma delas participara na conspiração. Só uma mulher como Dóris, aquela escrava grega imbecil, consentiria em participar numa empresa tão monstruosa, tão inconcebível. E que prometera Clódio àquela idiota para obter a sua cooperação?
Dória encontrava-se entre Servília e Cornélia Sila, chorando tanto que o ranho e a baba corriam mais depressa do que as lágrimas. A sua vez chegaria, mas primeiro Aurélia tinha de tratar das convidadas.
— Minhas senhoras, podem sair todas, excepto as que se encontram nas quatro primeiras filas. Esta casa foi profanada, a vossa presença aqui é aziaga. Esperem na rua pelos vossos transportes, ou regressem a casa em grupos. Preciso daquelas que estão nas quatro primeiras filas para testemunharem, pois se esta rapariga não for interrogada agora, terá de esperar que sejam os homens a interrogá-la, e os homens, quando interrogam raparigas, portam-se como uns imbecis.
Chegou enfim a vez de Dóris.
— Limpa essa cara, rapariga! — berrou-lhe Aurélia. — Vamos, limpa a cara e compõe-te! Caso contrário, mando-te açoitar imediatamente!
A jovem deu um jeito ao grosseiro vestido, obedecendo às ordens, pois a palavra de Aurélia era a lei.
— Quem te convenceu a fazer isto, Dóris?
— Ele prometeu-me uma saca de ouro e a minha liberdade, domina!
— Públio Clódio?
— Sim.
— Foi só Públio Clódio, ou havia mais alguém envolvido? Que podia ela dizer para abrandar o castigo? Como podia ela
escapar pelo menos a uma parte das culpas? Dóris pensou em tudo isso com a velocidade e a astúcia de uma mulher que fora vendida como escrava depois de os piratas terem atacado a sua aldeia de pescadores, na Lícia; tinha então doze anos, uma boa idade para ser violada e vendida. Entre esse funesto acontecimento e Pompeia Sila, tivera duas amas, mais velhas e mais frias do que a mulher do Pontifex Maximus. A vida em casa de Pompeia revelara-se um Elísio, e o pequeno cofre que tinha debaixo da enxerga estava cheio de presentes; Pompeia era tão generosa como descuidada. Mas agora só uma coisa importava a Dóris: o castigo. Se lhe arrancassem a pele, Astianax nunca mais olharia para ela! E os homens que olhassem para ela, recuariam horrorizados.
— Houve outra pessoa, domina — murmurou ela.
— Fala mais alto, senão não te ouvimos! Quem mais está envolvido?
— A minha ama, domina. Pompeia Sila.
— De que modo? — perguntou Aurélia, ignorando a estupefacção de Pompeia e um tremendo murmúrio das testemunhas.
— Quando há homens presentes, domina, tu mandas sempre Polixena vigiar Pompeia. A minha função era deixar entrar Públio Clódio e levá-lo lá para cima, onde se encontraria com Pompeia.
— É falso! — berrou Pompeia. — Aurélia, juro por todos os nossos deuses que é falso! Juro por Bona Dea! Juro, juro, juro!
Mas a escrava manteve teimosamente a sua história; ninguém conseguia demovê-la.
Uma hora depois, Aurélia desistiu. — As testemunhas podem ir para casa. Esposa e irmãs de Públio Clódio, podem ir também.
Preparem-se para os interrogatórios de amanhã, pois uma de nós irá visitar-vos. Este é um caso só de mulheres; terá de ser resolvido por mulheres.
Pompeia Sila deixara-se cair por terra, onde soluçava desalmadamente.
— Polixena, leva a esposa do Pontifex Maximus para os seus aposentos e não a deixes nem por um instante!
— Mamã! — gritou Pompeia para Cornélia Sila, enquanto Polixena a ajuda a levantar-se. — Mamã, ajuda-me! Por favor, ajuda-me!
Um outro rosto tão belo quanto firme. — Ninguém pode ajudar-te a não ser Bona Dea. Vai com Polixena, Pompeia.
Cardixa regressara já, depois de ter cumprido os seus deveres junto às grandes portas de bronze; conduzira a saída das chorosas convidadas, cujos vestidos cheios de vincos e despojados de todo o brilho flutuavam ao sabor de um vento furioso, incapazes de caminhar por causa do choque sofrido e obrigadas a esperar demasiado tempo pelas liteiras e pelas escoltas, já que a sua saída só estava prevista para o alvorecer. Por isso, sentaram-se na berma da Via Sacra, muito juntas para se protegerem do frio, fitando com olhos horrorizados aquela cidade agora amaldiçoada.
— Cardixa, tranca Dóris no quarto dela.
— Que me vai acontecer, domina ? — gritou a rapariga, enquanto Cardixa a levava. — Que me vai acontecer?
— Responderás perante Bona Dea.
A noite de todas as angústias caminhava já para a alvorada; de todas as mulheres presentes, já só restavam Aurélia, Servília e Cornélia Sila.
— Vamos para o gabinete de César — disse Aurélia. — Bebamos algum vinho... — um riso triste. — Mas chamemos-lhe vinho, pois já não precisamos de lhe chamar leite.
O vinho de César ajudou-as um pouco; Aurélia passou com uma mão trémula pelos olhos, endireitou-se, fitou Cornélia Sila.
— Que pensas deste caso, avia? — perguntou a mãe de Pompeia.
— Creio que Dóris mentiu.
— Eu também — disse Servília.
— Sempre soube que a minha pobre filha era muito estúpida, mas nunca me apercebi de que fosse maliciosa ou destrutiva. Pompeia não teria coragem para ajudar um homem a violar Bona Dea. De modo nenhum.
— Mas não é isso que Roma vai pensar — disse Servília.
— Tens razão. Roma pensará em encontros amorosos durante uma das mais sagradas cerimónias. E falará. Ah, isto é um pesadelo! Pobre César, pobre César! Acontecer uma coisa destas na sua casa e com a sua mulher! Que bela festa para os seus inimigos! — exclamou Aurélia.
— A besta tem duas cabeças. O sacrilégio é a mais aterradora, mas o escândalo é capaz de permanecer por mais tempo na memória das pessoas — comentou Servília.
— Sem dúvida — disse Cornélia Sila, estremecendo. — Eu imagino o que não se dirá já na Via Nova, depois dos tumultos que aqui se passaram e com os criados desejosos de espalharem a notícia enquanto procuram os homens das liteiras pelas tabernas...! Aurélia, como poderemos mostrar à Boa Deusa que a amamos?
— Espero que Fábia e Terência — ah, que mulher excelente e sensata que ela é! — descubram rapidamente o que é preciso fazer.
— E César? Ele já sabe? — perguntou Servília, cuja mente nunca se distanciava muito de César.
— Cardixa foi dizer-lhe. Se estiver alguém presente, eles podem sempre falar gaulês.
Cornélia Sila levantou-se, fazendo um sinal para Servília de que seria melhor retirarem-se. — Aurélia, estás com um ar tão cansado... E não há mais nada que possamos fazer. Vou dormir e espero que faças o mesmo.
César, como mandavam as regras, não regressou à Domus Publica antes do alvorecer. Foi primeiro à Regia, onde rezou e ofereceu um sacrifício no altar e acendeu uma fogueira na lareira sagrada. Depois, instalou-se no domínio oficial do Pontifex Maximus que ficava mesmo atrás da Regia, acendeu todas as lamparinas, mandou chamar os assistentes sacerdotais da Regia e certificou-se de que havia cadeiras suficientes para todos os pontífices presentes em Roma. Depois, mandou chamar Aurélia, sabendo que a mãe estaria à espera disso.
Estava com um ar de velha...! A sua mãe, velha?
— Oh, mater, sinto muito! — disse ele, ajudando-a a sentar-se na cadeira mais confortável.
— O problema não sou eu, César. O problema é Roma. É uma maldição terrível.
— Roma acabará por recuperar desta crise. Todos os colégios religiosos se unirão para conseguir isso. O mais importante neste momento é que tu recuperes. Sei muito bem o significado que Bona Dea tinha para ti. Que caso mais idiota...! Idiota, bizarro, hediondo!
— Ninguém ficaria espantado se um daqueles brutamontes do bairro de Subura, transtornado pelo vinho, subisse a um dos muros da Domus Publica para espreitar as festividades... Mas Públio Clódio?! Não, não consigo entender por que razão Públio Clódio fez uma coisa destas! Sim, eu sei que ele foi criado por aquele idiota do irmão, Ápio Cláudio — e também sei que Clódio adora fazer mal. Mas disfarçar-se de mulher para violar Bona Dea? Cometer conscientemente um sacrilégio? Deve ter endoidecido!
César encolheu os ombros. — Talvez ele seja louco, mater. É uma velha família e com muitos casamentos consanguíneos. Sim, os Cláudios Pulcros têm realmente as suas taras! Sempre foram irreverentes... Pensa, por exemplo, naquele Cláudio Pulcro que afogou as galinhas sagradas e que depois perdeu a batalha de Drepana, durante a nossa primeira guerra contra Cartago... Isto para não falar da filha vestal que ele pôs num carro triunfal, quando não lhe tinha sido concedido nenhum triunfo...! Uma gente estranha, brilhante mas instável. E Clódio é como todos os outros.
— Violar Bona Dea é muito pior do que violar uma vestal.
— Bom, segundo Fábia, Clódio tentou de facto violar uma vestal. E como não teve êxito, acusou Catilina. — César suspirou, encolheu os ombros. — Infelizmente, a loucura de Clódio é do tipo considerado saudável. Não podemos pôr-lhe o rótulo de maluco e fechá-lo numa cela.
— Será julgado num tribunal?
— Como o desmascaraste diante das mulheres e filhas de consulares, Clódio terá de ser julgado num tribunal.
— E Pompeia?
— Cardixa disse-me que acreditavas na sua inocência.
— Acredito. Tal como Servília e a mãe dela.
— Portanto, tudo se resume à palavra de Pompeia contra a palavra de uma escrava — a menos que, obviamente, Clódio também
a acuse.
— Ele não fará uma coisa dessas — disse Aurélia, com um ar pesaroso.
— Porquê?
— Se o fizesse, não teria outra hipótese senão admitir que cometera sacrilégio. Clódio vai negar tudo.
— Mas houve imensas testemunhas...!
— A cara dele era só pintura. Limpei-lhe a cara e depressa chegámos à conclusão de que era Clódio. Mas julgo que se ele tiver os melhores advogados de Roma, estes acabarão por confundir as testemunhas e levá-las a duvidar do que os seus olhos viram.
— Aquilo que me estás a dizer, creio, é que seria muito melhor para Roma se Clódio fosse absolvido.
— Sem dúvida. Bona Dea pertence às mulheres. Bona Dea não gostará que sejam os homens a castigar, em seu nome, aquele que cometeu sacrilégio.
— Mas ele não poderá escapar a esse castigo, mater. O sacrilégio foi público.
— E não escapará, César. Mas o castigo terá de ser infligido por Bona Dea. Quando a deusa achar que chegou a hora. — Aurélia levantou-se. — Vou-me embora, pois os pontífices não tardam. Quando precisares de mim, manda-me chamar.
Catulo e Vátia Isáurico chegaram pouco depois. Logo a seguir, apareceu Mamerco. Só depois de os três se terem sentado é que César falou.
— Fico sempre espantado, Pontifex Maximus, com a quantidade de informação que consegues incluir numa única folha de papel — disse Catulo. — Ainda por cima, exprimes-te da forma mais lógica possível e tudo o que escreves é fácil de assimilar.
— Embora não dê prazer a nenhum leitor — disse César.
— Não, desta vez não.
Outros pontífices tinham entretanto chegado: Silano, Acílio Glabrião, Varrão Lúculo, o cônsul do ano seguinte Marco Valério Messala Nigro, Metelo Cipião e Lúcio Cláudio, o Rex Sacrorum.
— Não há mais pontífices neste momento em Roma. Concordas que comecemos, Quinto Lutácio? — perguntou César.
— Podemos começar, Pontifex Maximus.
— O meu texto descreve esta crise em termos gerais, mas gostaria que a minha mãe lhes contasse exactamente o que aconteceu. Eu sei que devia ser Fábia, mas, neste preciso instante, ela e as outras vestais adultas estão a estudar os Livros, a fim de definirem os rituais mais adequados à expiação.
— Aurélia serve perfeitamente, Pontifex Maximus.
E Aurélia veio e contou a sua história, energicamente, sucintamente, com eminente bom senso e extrema serenidade. Que alívio! Homens como Catulo apercebiam-se de súbito que César saía à mãe.
— Estás disposta a testemunhar em tribunal que o homem em questão foi Públio Clódio? — perguntou Catulo.
— Sim, mas sob protesto. Julgo que deveria ser Bona Dea a castigá-lo.
Os homens agradeceram-lhe algo constrangidos; César pediu-lhe que se retirasse.
— Rex Sacrorum, peço-te que pronuncies o teu veredicto — disse César.
— Públio Clódio nefas esse.
— Quinto Lutácio?
— Nefas esse.
E todos os homens declararam que Públio Clódio era culpado de sacrilégio.
Em tais circunstâncias, não havia hostilidades ou ressentimentos pessoais susceptíveis de dividirem os pontífices. Todos estavam absolutamente unidos, e gratos pela firme direcção de César. A política suscitava inimizades, mas uma crise religiosa diluía-as por completo. Uma crise religiosa afectava toda a gente da mesma forma e, por isso mesmo, impunha que houvesse unidade.
— Ordenarei aos quinze zeladores que consultem imediatamente os Livros Proféticos — disse César. — Pedirei também a opinião do Colégio dos Augures. O Senado reunirá e pedir-nos-á uma opinião e temos de estar preparados para essa eventualidade.
— Clódio terá de ser julgado — disse Messala Nigro, todo arrepiado só de pensar no que Clódio fizera.
— Para tal, será necessário que o Senado aprove um decreto de recomendação e que a Assembleia Popular promulgue uma lei especial. As mulheres estão contra o julgamento, mas tu tens razão, Nigro. Ele tem de ser julgado. Contudo, o resto deste mês será dedicado à expiação, e não à retaliação, o que significa que os cônsules do próximo ano herdarão o problema.
— E quanto a Pompeia? — perguntou Catulo, já que ninguém o fazia.
— Se Clódio não a implicar — e a minha mãe pensa que ele não o fará —, só uma escrava, ela própria envolvida no caso, poderá implicá-la — retorquiu César, num tom rigorosamente clínico. — O que significa que Pompeia não poderá ser condenada publicamente.
— Crês que ela esteve implicada no sacrilégio, Pontifex Maximus?
— Não, não creio. Nem a minha mãe, que assistiu a tudo. A escrava está ansiosa por salvar a sua pele, o que é compreensível. Bona Dea exigirá a sua morte — disso, ela ainda não se apercebeu —, mas isso não está nas nossas mãos. É um caso que terá de ser tratado pelas mulheres.
— E quanto à mulher e às irmãs de Clódio? — perguntou Vátia Isáurico.
— A minha mãe diz que elas estão inocentes.
— A tua mãe tem razão — disse Catulo. — Nenhuma mulher romana seria capaz de profanar os mistérios de Bona Dea. Nem mesmo Fúlvia ou Clódia.
— No entanto, no que respeita a Pompeia, há algo que tenho de fazer — disse César, acenando para um escriba. — Toma nota do seguinte:
Para Pompeia Sila, esposa de Caio Júlio César, Pontifex Maximus de Roma: Aqui e agora proclamo que me divorcio de ti e que te mando para a casa de teu irmão. Não tenho qualquer reivindicação a fazer em relação ao teu dote.
Ninguém disse uma palavra, nem encontrou a coragem suficiente para falar, mesmo depois de o breve documento ter sido apresentado a César para que este o selasse.
Depois de o mensageiro se ter retirado, a fim de ir entregar aquela mensagem a Pompeia, Mamerco levantou-se para falar.
— A minha mulher é mãe de Pompeia, mas não receberá Pompeia na nossa casa.
— Nem tal lhe deverá ser pedido — retorquiu friamente César. — Foi por isso que ordenei que ela fosse para casa do irmão mais velho, que é o seu paterfamilias. Ele está a governar a província de África, mas a mulher dele está em casa. Quer queiram quer não, terão de recebê-la.
Foi Silano quem finalmente fez a pergunta por que todos ansiavam. — César, tu disseste que acreditavas na inocência de Pompeia. Nesse caso, por que motivo te divorcias dela?
As sobrancelhas louras ergueram-se; César parecia genuinamente surpreendido. — Porque a mulher de César, tal como toda a família de César, tem de estar acima de qualquer suspeita — respondeu.
E, alguns dias depois, quando a pergunta foi repetida no Senado, César deu exactamente a mesma resposta.
Fúlvia deu tantas bofetadas no marido que lhe abriu um lábio e lhe deixou o nariz a sangrar.
— Idiota! — berrava ela a cada bofetada. — Idiota! Idiota! Clódio não fez qualquer tentativa para ripostar, nem pediu a
ajuda das irmãs, que se limitavam a observar a cena com angustiada satisfação.
— Porquê? — perguntou Clódia quando Fúlvia acabou de administrar o correctivo.
Só ao fim de algum tempo é que Clódio conseguiu responder; teve de esperar que o sangue estancasse e que as lágrimas parassem. — Porque queria que Aurélia e Fábia sofressem — foi o que ele disse.
— Clódio, tu arruinaste Roma! Estamos amaldiçoados! — gritou Fúlvia.
— Mas o que é que te deu? — berrou ele. — Um grupo de mulheres reúne-se para esconjurar os seus ressentimentos em relação aos homens! Que sentido é que isso faz? Eu vi os chicotes! Eu sei da história das cobras! Tudo um disparate pegado!
Mas tal resposta ainda piorou mais as coisas; as três mulheres atiraram-se a ele e Clódio levou ainda mais bofetadas e socos.
— Bona Dea — disse Clodila, furibunda — não é uma estátua grega! Bona Dea é tão velha como Roma, ela é nossa, ela é a Boa Deusa. Todas as mulheres grávidas que assistiram à tua profanação terão de tomar o remédio!
— E eu... — disse Fúlvia, começando a chorar — sou uma delas...
— Não!
— Sim, sim, sim! — berrou Clódia, dando um pontapé no irmão. — Ah, Clódio, porquê? Havia mil e uma maneiras de te vingares de Aurélia e de Fábia. Porquê o sacrilégio? Não escaparás à condenação!
— Eu não pensei nisso... o plano parecia-me tão perfeito! — Tentou agarrar na mão de Fúlvia. — Por favor, Fúlvia, não faças mal ao nosso filho!
— Ainda não percebeste? — guinchou ela, afastando-se. — Tu, tu é que fizeste mal ao nosso filho! O nosso filho nasceria deformado e monstruoso e é por isso que tenho de tomar o remédio! Clódio, tu estás amaldiçoado!
— Desaparece da nossa vista! — gritou Clodila. — Mas de rastos, de rastos como uma cobra!
E Clódio foi-se embora, de rastos, de rastos como uma cobra.
— Terá de haver uma nova festa em honra de Bona Dea — disse Terência a César, mal entrou no seu gabinete, acompanhada de Fábia e Aurélia. — Os ritos serão os mesmos, embora tenha de haver também um sacrifício expiatório. Dóris será punida. De que forma, não te posso dizer. Nenhuma mulher poderá dizê-lo, nem mesmo ao Pontifex Maximus.
Graças a todos os deuses!, pensou César, embora não lhe fosse difícil imaginar em que consistiria o sacrifício expiatório. — Precisam, portanto, de uma lei que proclame um dos próximos dias comiciais nefastus e querem que o Pontifex Maximus a proponha à Assembleia Religiosa das dezassete tribos. É isso, não é?
— Precisamente — disse Fábia, pensando que devia falar, não fosse César considerá-la dependente daquelas duas mulheres que não pertenciam ao Colégio das Vestais. — As festas de Bona Dea têm de decorrer em dies nefasti, e não há mais nenhum até Fevereiro.
— Tens razão, Bona Dea não pode ficar acordada até Fevereiro. Que acham do sexto dia antes dos Idos?
— Seria excelente — disse Terência, suspirando.
— Bona Dea ficará contente — confortou-a César. — Lamento que as mulheres com gravidezes recentes que assistiram à festa tenham de fazer um sacrifício particularmente duro. Mas não digo mais nada quanto a isso, pois são assuntos que só dizem respeito às mulheres. Lembrem-se também de que nenhuma mulher romana foi incriminada de sacrilégio. Bona Dea foi profanada por um homem e por uma rapariga que não é romana.
— Ouvi dizer — anunciou Terência, levantando-se — que Públio Clódio adora vingar-se. Mas não gostará da vingança de Bona Dea.
Aurélia permaneceu sentada, embora só tenha falado depois de Terência e Fábia se terem retirado.
— Mandei Pompeia fazer as malas — disse ela então.
— Leva tudo, espero...
— Estão a tratar disso. Coitada! O que ela chorou, César! A cunhada não a quer, Cornélia Sila recusa-se a recebê-la... enfim, um caso bem triste!
— Eu sei.
— A mulher de César, tal como toda a família de César, tem de estar acima de qualquer suspeita — citou Aurélia.
— Sim.
— Parece-me errado puni-la por algo que ela desconhecia por completo.
— Também a mim, mater. No entanto, não tinha outra alternativa.
— Duvido que os teus colegas se tivessem oposto, se decidisses mantê-la como tua esposa.
— Provavelmente não se oporiam. Mas eu oponho-me.
— És um homem duro.
— Um homem que não o seja, acaba dominado pelas mulheres. Pensa nos casos de Silano e de Cícero.
— Consta — disse Aurélia, aproveitando para mudar de assunto — que Silano está muito mal.
— Pelo que vi esta manhã, creio que sim, que deve estar muito mal.
— Podes vir a lamentar que te tenhas divorciado pouco antes de Servília se tornar viúva.
— Só me preocuparei com isso quando meter o meu anel no dedo dela.
— Em certos aspectos, seria um óptimo casamento — disse ela, desejosa de saber o que o filho realmente pensava.
— Em certos aspectos — concordou ele, com um sorriso inescrutável.
— Não podes fazer nada por Pompeia, para além de lhe permitires levar o dote e todos os seus bens?
— Porque havia de fazer?
— Por nenhuma razão válida, a não ser que a punição é imerecida, para além do facto de que ela nunca mais encontrará marido. Que homem quererá casar com uma mulher suspeita de conivência num crime de sacrilégio?
— Quem saiu maculado disto tudo fui eu.
— Não, César, não é verdade! Tu sabes que ela não é culpada. Porém, divorciando-te dela, foi como se dissesses a toda a cidade que ela era culpada.
— Mater, estás a tornar-te importuna — disse ele, amavelmente. Aurélia levantou-se imediatamente. — Não fazes nada por ela? — perguntou.
— Vou arranjar-lhe outro marido.
— Mas quem quererá casar com ela, depois do que aconteceu?
— Creio que Públio Vatínio ficará deliciado se lhe propuser casar-se com Pompeia. A neta de Sila é um objecto de grande valor para alguém cujos avós eram Italianos.
Aurélia reflectiu um pouco e aquiesceu. — Acho uma ideia excelente, César — disse ela. — Vatínio foi um óptimo marido para Antónia Crética, que era pelo menos tão tonta como a pobre Pompeia. Sim, uma ideia excelente! Os maridos italianos não dão muita rédea às mulheres. Pompeia andará tão ocupada que não terá tempo para o Clube de Clódio.
— Vai-te embora, mater! — disse César, com um suspiro.
A segunda festa de Bona Dea decorreu sem uma falha, mas foi preciso esperar muito tempo até que as mulheres de Roma se acalmassem; muitas foram as mulheres com gravidezes recentes que, embora não tivessem testemunhado o sacrilégio, seguiram o exemplo daquelas que assistiram à primeira cerimónia; as vestais quase esgotaram o seu abastecimento daquele remédio feito a partir do centeio da deusa. O número de bebés do sexo masculino abandonados sobre os cacos do monte Testácio não tinha precedentes e, pela primeira vez de que havia memória, os casais estéreis não iam lá buscá-los para os adoptarem e criarem; todos eles morreram, abandonados e indesejados. A cidade chorou e manteve o luto até ao primeiro dia de Maio; para cúmulo — e porque as estações e o calendário estavam completamente desencontrados — as cobras só acordariam muito mais tarde; por isso, quem poderia saber se a Boa Deusa tinha perdoado a Roma?
Públio Clódio, o causador de tanta aflição e pânico, era evitado; quem não conseguia evitá-lo, cuspia-lhe em cima. Só o tempo curaria a crise religiosa, mas Públio Clódio constituía uma lembrança viva dessa crise. No entanto, o prevaricador não estava disposto a fazer o que era sensato: deixar a cidade. Pelo contrário, enfrentava-a, protestando a sua inocência, jurando que nunca estivera na festa.
Fúlvia também precisou de muito tempo para lhe perdoar. Perdoou-lhe já depois de ter esquecido a provação do aborto, mas únicamente porque via que ele estava tão triste e arrependido como ela. Mas porque é que ele fizera uma coisa daquelas?
— Eu não pensei, eu não pensei! — respondeu-lhe Clódio, chorando no seu regaço. — Parecia-me que ia ser tão divertido...
— Cometeste um sacrilégio!
— Eu não pensei nesses termos... não pensei! — ergueu a cabeça para a fitar com os olhos inchados e vermelhos. — Quer dizer, o que eu pensei foi que aquilo fosse uma farra de velhas — uma festa em que elas se embebedavam e faziam amor ou se masturbavam ou sei lá que mais...! Nunca pensei que fosse um sacrilégio, Fúlvia!
— Clódio, Bona Dea não é nada disso. Bona Dea é sagrada! Não te posso dizer exactamente o que ela é, pois se o fizesse mirraria e daria à luz cobras pelo resto da vida! Bona Dea é para nós! Todas as outras deusas das mulheres são também dos homens, Juno Lucina e Juno Sospita e as demais deusas, mas Bona Dea é só nossa. Ela cuida de todas as coisas das mulheres, aquelas coisas que os homens não podem, nem desejariam, conhecer. Se ela não adormecer bem, não poderá acordar bem, e Roma não se resume aos homens, Clódio! As mulheres também são Roma, Clódio!
— Vão julgar-me e condenar-me, não vão?
— É o que parece, embora nenhuma de nós o deseje. Os homens vão meter-se onde não devem, vão usurpar os direitos sagrados de Bona Dea. — Fúlvia estremeceu, só de pensar nessa eventualidade. — Não é o julgamento dos homens que me assusta, Clódio. O que me deixa aterrorizada é o que Bona Dea fará contigo. O castigo da deusa não poderá ser evitado com dinheiro, ao contrário do que sucede com certos castigos dos humanos, pois muitos são os júris que podem ser comprados.
— Não há dinheiro suficiente em Roma para comprar este júri. Mas Fúlvia limitou-se a sorrir. — Haverá dinheiro suficiente
quando chegar a hora. Nós, as mulheres, não queremos esse julgamento. Se for evitado, talvez Bona Dea perdoe. O que ela não perdoará é que o mundo dos homens lhe usurpe as suas prerrogativas.
Acabado de chegar da Hispânia, onde cumprira as funções de legado, Públio Vatínio recebeu de braços abertos a proposta para se casar com Pompeia.
— Fico-te muito grato, César — disse ele, sorrindo. — Claro que não podias continuar casado com ela, compreendo isso perfeitamente. Mas também sei que não ma oferecerias se pensasses que ela havia participado no sacrilégio.
— Roma pode não ser tão caritativa, Vatínio. Há muita gente que pensa que me divorciei de Pompeia por ela conspirar com Clódio.
— Roma pouco me interessa. O que realmente me interessa é a tua palavra. Os meus filhos serão Antónios e Cornélios! Dize-me apenas o que hei-de fazer para te pagar.
— Isso será fácil, Vatínio — disse César. — No próximo ano, irei para uma província e, no ano seguinte, disputarei o cargo de cônsul. Quero que disputes o tribunato da plebe nas mesmas eleições — suspirou, e prosseguiu: — Com Bíbulo no meu ano, existe uma forte possibilidade de ele vir a ser o meu colega no consulado. No nosso ano, só há um outro nobre com possibilidades de ser eleito: Filipe. Mas desconfio que, até lá, o epicurista que existe em Filipe vencerá o político. Filipe não gostou do seu ano como pretor. Os homens que este ano exerceram o cargo de pretor eram patéticos. É muito provável que precise de um bom tribuno da plebe se Bíbulo vier a ser meu colega no consulado. E tu, Vatínio — concluiu César, com um ar animado —, serás um tribuno da plebe extremamente capaz.
— Um mosquito contra uma pulga.
— O que as pulgas têm de bom — comentou César, num tom desdenhoso — é que bastam duas unhas para as esmagar. Os mosquitos, em contrapartida, são muito mais difíceis de apanhar.
— Consta que Pompeu está prestes a desembarcar em Brundísio.
— Sim, é verdade.
— E que pretende terras para os seus soldados.
— Prevejo que não as conseguirá.
— Não seria melhor se eu disputasse o tribunato da plebe no próximo ano, César? Dessa forma, podia obter terras para Pompeu e ele ficaria em dívida para contigo. Os únicos tribunos da plebe que Pompeu tem este ano são Aufídio Lurcão e Cornélio Comuto e nenhum deles tem a habilidade ou a influência necessárias. Parece que, no ano seguinte, Pompeu terá Lúcio Flávio, mas não é de crer que Lúcio Flávio tenha grandes hipóteses.
— Não, Vatínio, não acho que fosse melhor — disse César. — Não tornemos as coisas demasiado fáceis para Pompeu. Quanto mais esperar, mais grato se sentirá. Tu és o meu homem corpus animusque, Vatínio, e eu quero que o nosso herói Magno compreenda isso. Ele esteve muito tempo no Oriente; portanto, está habituado a suar.
Quem também suava eram os boni, embora tivessem um tribuno da plebe mais satisfatório do que Aufídio Lurcão e Cornélio Comuto. Era Quinto Fúfio Galeno, de quem se dizia que daria conta dos outros nove tribunos todos juntos. No início do seu ano, contudo, era difícil descortinar a força de Fúfio Caleno, o que, em parte, explicava o abatimento dos boni.
— Temos de apanhar César, seja de que maneira for — disse Caio Pisão a Bíbulo, Catulo e Catão.
— Isso vai ser difícil, tendo em conta o caso de Bona Dea — retorquiu Catulo. — César comportou-se como devia e toda a Roma sabe disso. Divorciou-se de Pompeia sem reclamar o dote dela e aquela observação segundo a qual a mulher do Pontifex Maximus tinha de estar acima de qualquer suspeita foi tão certeira que é citada por toda a gente no Fórum. Quase podemos dizer que fez doutrina. Enfim, uma atitude brilhante! César diz acreditar na inocência de Pompeia, mas que o protocolo exigia o divórcio. Se tivesses uma mulher em casa, Pisão — ou tu, Bíbulo! —, saberias que não há em Roma uma única mulher que admita que César seja criticado. Hortênsia repete-mo vezes sem conta e Lutácia faz o mesmo com Hortênsio. Não percebo porquê, mas a verdade é que as mulheres não querem que Clódio seja julgado e todas sabem que César concorda com elas. Não há dúvida — concluiu Catulo, algo desalentado — que as mulheres são uma força subestimada do nosso sistema.
— Em breve, terei outra mulher em casa.
— Quem?
— Outra Domícia. Foi Catão quem ma arranjou.
— Resta saber se César não se aproveita — rosnou Caio Pisão. — Se fosse a ti, ficava solteiro. É isso que vou fazer.
Catão ouvia, mas não fazia comentários; limitava-se a ouvir, com o queixo descansando na mão e um ar particularmente deprimido.
Aquele ano não oferecera a Catão a tão desejada sucessão de êxitos. Com efeito, tivera de aprender mais uma lição à sua custa: quem esgotava a competição demasiado cedo, ficava sem adversários — e, sem adversários, ninguém podia brilhar. Logo que Metelo Nepos abandonou Roma para se juntar a Pompeu, o Grande, o mandado de Catão como tribuno da plebe reduziu-se à mais total insignificância. A única acção subsequente que tomou não foi uma acção popular (e, sobretudo, não foi nada apreciada pelos seus amigos boni); após a nova colheita, os preços dos cereais subiram em flecha; Catão legislou para distribuir cereais pela população a dez sestércios o modius — o que custou mais de mil talentos ao Tesouro. E César votou a favor dessa medida no Senado, onde Catão, muito correctamente, a propusera em primeiro lugar. Além disso, César fez um discurso particularmente elegante, sugerindo que houvera uma grande mudança no coração de Catão, e agradecendo-lhe a sua presciência. Para Catão, era extremamente irritante que homens como César compreendessem perfeitamente que a sua proposta era sensata e avançada, ao passo que homens como Caio Pisão e Aenobarbo tinham guinchado que nem porcos. Tinham-no acusado de pretender ser ainda mais demagogo do que Saturnino, bajulando os proletária
— Para travarmos César, teremos de pegar nas suas dívidas — disse Bíbulo.
— Não podemos fazer isso sem pôr em causa a nossa própria honra — disse Catulo.
— Podemos, sim, desde que não nos envolvamos no caso.
— Devaneios, Bíbulo! — disse Caio Pisão. — A única maneira é impedir os pretores deste ano de terem províncias. Quando tentámos prorrogar os mandados dos presentes governadores, desataram todos aos berros!
— Há uma outra maneira — disse Bíbulo. Catão ergueu o queixo da mão. — Que maneira?
— O sorteio para as províncias pretorianas será realizado no dia de Ano Novo. Já falei com Fúfio Galeno e ele está disposto a vetar a realização do sorteio, argumentando que não se poderá tomar uma decisão oficial enquanto o caso do sacrilégio de Bona Dea não for resolvido. E — prosseguiu Bíbulo, satisfeito — como as mulheres defendem que não se faça nada e pelo menos metade do Senado é muito susceptível à opinião das mulheres, isso significa que Fúfio Galeno poderá continuar a vetar durante meses. Tudo o que temos de fazer é espalhar o rumor — sobretudo junto dos agiotas — de que os pretores deste ano nunca irão para as províncias.
— Há uma coisa que eu tenho de dizer a favor de César — gritou Catão. — Ele aguçou o teu engenho, Bíbulo! Nos velhos tempos, tu não terias uma ideia tão brilhante...!
Bíbulo queria responder-lhe de uma forma grosseira; mas não o fez. Controlou-se e olhou para Catulo com um sorriso amarelo.
Catulo teve uma reacção bastante estranha. — Concordo com o plano — disse —, mas imponho uma condição: que Metelo Cipião não saiba de nada.
— Porquê? — perguntou Catão, estupefacto.
— Porque não suporto a sua eterna litania — que estamos sempre a dizer que destruímos César, mas nunca o destruímos!
— Desta vez — disse Bíbulo — não vamos falhar. Públio Clódio nunca será julgado.
— Isso significa que também ele sofrerá. Clódio foi eleito questor há pouco tempo e, se o sorteio não se realizar, também ele ficará sem deveres para cumprir.
A guerra no Senado em volta do julgamento de Públio Clódio eclodiu pouco depois do fiasco do dia de Ano Novo no templo de Júpiter Optimus Maximus (cujo interior melhorara muito no último ano, pois Catulo levara à letra as advertências de César). Talvez devido a uma relativa acalmia, foi decidido eleger novos censores; foram eleitos dois conservadores, Caio Escribónio Curião e Caio Cássio Longino, o que prometia uma forte cooperação pelo menos a nível dos censores — desde que os tribunos da plebe os deixassem em paz e era natural que Fúfio Galeno não os deixasse em paz.
O cônsul sénior era um Pisão Frugi, adoptado pelo sub-ramo Púpio do ramo Calpúrnio da família, e Pisão Frugi era um daqueles homens que tinham esposas resmungonas e impositivas. Daí que se tivesse oposto firmemente ao julgamento de Públio Clódio.
— O culto de Bona Dea não é da competência do Estado — disse ele. — Por isso, questiono a legalidade de tudo o que possa vir a ser feito, isto para além da decisão já tomada pelo Colégio dos Pontífices — ou seja, o veredicto de que Públio Clódio cometeu sacrilégio. Mas o seu crime não se encontra definido nas nossas leis. Ele não molestou nenhuma virgem vestal, nem afectou as pessoas ou os rituais de nenhum deus oficial. Nada poderá desculpar a gravidade do que ele fez, mas eu sou um daqueles que concordam com as mulheres da cidade — deixemos que Bona Dea o castigue à sua maneira e quando achar que deve castigá-lo.
Uma declaração que não agradou nada ao seu colega júnior, Messala Nigro. — Não descansarei enquanto Públio Clódio não for julgado! — declarou Nigro, e parecia estar a falar muito a sério. — Se não há nenhuma lei nas tábuas, então sugiro que elaboremos uma lei! É muito grave que se diga que um homem não pode ser julgado só porque as nossas leis não contemplam o seu crime! É bastante fácil elaborar uma lei para o crime de Públio Clódio e proponho que o façamos imediatamente!
Só Clódio, pensou César, divertido, seria capaz de se sentar nos bancos de trás com o ar de quem estava longe daquilo tudo — como se o caso não lhe dissesse respeito. Entretanto, a discussão entre os cônsules tornava-se cada vez mais acalorada e Pisão Frugi e Messala Nigro quase se travavam de razões.
Entretanto, Pompeu, o Grande, instalou-se no Campus Martius, depois de ter ordenado a dispersão do seu exército, porque o Senado não podia discutir o seu triunfo enquanto o problema de Bona Dea não fosse resolvido. Muitos dias antes de chegar a Roma, Pompeu proclamara o seu divórcio de Múcia Tércia. E, segundo os boatos, o culpado era César! Daí que César sentisse o maior prazer em assistir a uma contio especial no Circus Flaminius, um espaço onde Pompeu poderia falar. Um discurso muito pobre, como Cícero comentou.
Em fins de Janeiro, Pisão Frugi começou a recuar quando os novos censores se juntaram à batalha, e acordou elaborar uma lei que permitisse o julgamento de Públio Clódio por um novo tipo de sacrilégio.
— É uma farsa completa — disse Pisão Frugi. — Mas todos os Romanos adoram farsas e por isso acho que está bem. Vocês são todos uns idiotas! Ele vai safar-se e vai ficar numa posição muito melhor do que se tivesse continuado sob suspeita.
Foi Pisão Frugi, um bom legislador, quem preparou a lei: uma lei severa, do ponto de vista do castigo — exílio para toda a vida e confiscação de toda a riqueza —, mas que continha também uma cláusula curiosa, que previa que o pretor escolhido para presidir ao tribunal especial designasse o júri — o que significava que o destino de Clódio estava nas mãos do presidente do tribunal. Um pretor pró-Clódio equivaleria a um júri brando. Um pretor favorável à condenação equivaleria ao pior júri possível.
O que deixava os boni numa posição particularmente difícil. Por um lado, não queriam que Clódio fosse julgado, pois, logo que isso acontecesse, seria realizado o sorteio; por outro lado, não queriam que Clódio fosse condenado, porque Catulo considerava que o caso de Bona Dea não pertencia ao mundo dos homens, nem ao Estado.
— Os credores de César estão preocupados? — perguntou Catulo.
— Muito — disse Bíbulo. — Se conseguirmos continuar a vetar o julgamento de Clódio até Março, o efeito será o mesmo que se o sorteio não for realizado. Então, os credores agirão.
— Poderemos manter as coisas como estão por mais um mês?
— Facilmente.
Nas Calendas de Fevereiro, Décimo Júnio Silano acordou de um estupor agitado vomitando sangue. Há já muitas luas que pusera o sininho de bronze ao lado da cama, embora o usasse tão raramente que, sempre que o fazia, acordava toda a casa.
— Foi assim que Sila morreu — disse ele, esgotado, para Servília.
— Não, Silano — disse ela, tentando dar-lhe força —, isto é apenas um episódio. As provações por que Sila passou foram muito mais horrendas. Tu vais ficar bom. Quem sabe? Pode ser que o teu corpo se esteja a purgar.
— Não, não se está a purgar, está a desintegrar-se. Também sangro dos intestinos e, em breve, o meu corpo deixará de ter uma pinga de sangue — suspirou, tentou sorrir. — Pelo menos consegui ser cônsul. A minha casa ficará com mais uma imago consular.
Tantos anos de casamento talvez tivessem afinal algum peso; ainda que não sofresse, Servília sentia-se comovida; não pôde deixar de pegar na mão do marido. — Foste um cônsul excelente, Silano.
— Creio que sim. Não foi um ano fácil, mas sobrevivi. — Apertou com alguma força os dedos quentes e secos da mulher. — Foi a ti que não consegui sobreviver, Servília.
— Já antes de casarmos estavas doente, Silano.
O antigo cônsul calou-se; as suas pestanas absurdamente longas batiam muito sobre as faces encovadas. Que belo que ele é, pensou a mulher, e o que eu gostei dele quando o conheci...! Vou ser viúva uma segunda vez.
— Bruto está cá? — perguntou ele, momentos depois, erguendo as pálpebras cansadas. — Gostava de falar com ele.
E quando Bruto apareceu, com uma expressão sombria e infeliz, Silano olhou para Servília e pediu-lhe: — Vai lá para fora, minha querida, chama as meninas e espera. Depois, Bruto chama-te.
Ah, o que ela detestava que a mandassem embora! Mas foi-se embora e Silano só se virou para o enteado depois de se ter certificado de que ela se retirara.
— Senta-te na beira da cama, Bruto.
Bruto obedeceu, os olhos negros brilhando de lágrimas à luz bruxuleante da lamparina.
— É por mim que choras? — perguntou-lhe Silano.
— Sim.
— Chora por ti mesmo, meu filho. Quando eu partir, será muito mais difícil lidar com ela.
— Não creio que possa ser ainda mais difícil, pai — retorquiu Bruto, sufocando um soluço.
— Ela vai casar-se com César.
— É o que eu penso.
— Talvez seja bom para ela. César é o homem mais forte que alguma vez conheci.
— O casamento deles será uma guerra do princípio ao fim.
— E Júlia? Que vai ser de vós se eles se casarem?
— Vai ser como até agora. Nós cá nos arranjamos.
Silano agarrou-se fragilmente à roupa da cama. Parecia mirrado. — Ah, Bruto, a minha hora chegou! — gritou. — Tanto que eu tinha para te dizer, mas deixei-o para demasiado tarde. Mas toda a minha vida foi assim...!
Chorando, Bruto correu a chamar a mãe e as irmãs. Silano ainda conseguiu sorrir quando as viu. Depois, fechou os olhos e morreu.
O funeral, embora não fosse custeado pelo Estado, foi uma manifestação imponente, não sem um lado picante: o amante da viúva presidiu às exéquias do marido e pronunciou um belo elogio fúnebre nos rostra, como se, em toda a sua vida, nunca tivesse privado com a viúva e tivesse conhecido o marido extremamente bem.
— Quem é que foi responsável pelo facto de César ter pronunciado a oração fúnebre? — perguntou Cícero a Catulo.
— Quem achas tu que foi?
— Mas Servília não tinha o direito de escolher quem quer que fosse!
— Nem esse, nem outro, Servília não tem direito nenhum!
— É pena que Silano não tivesse filhos varões.
— Não sei se é pena. A mim, parece-me que é uma bênção. Regressavam lentamente do túmulo de Júnio Silano, que ficava a sul da cidade, junto à Via Ápia.
— Catulo, que vamos fazer quanto ao sacrilégio de Clódio?
— Que acha a tua mulher, Cícero.
— A minha mulher sente-se dividida. Diz que nós, os homens, nunca nos devíamos ter metido onde não éramos chamados. Mas, já que nos metemos, agora temos de condenar Públio Clódio. — Cícero parou. — Tenho de te dizer uma coisa, Quinto Lutácio: estou numa situação muito constrangedora e delicada.
Catulo parou. — Tu, Cícero? Como?
— Terência pensa que tenho uma ligação amorosa com Clódia. Por um momento, Catulo não conseguiu fazer outra coisa senão ficar de boca aberta; depois, inclinando para trás a cabeça, desatou a rir e riu e riu até que alguns dos participantes nas exéquias pararam espantados a olhar para ele. Pareciam extremamente ridículos, ambos vestidos com a toga preta do luto, com a fina faixa púrpura de cavaleiros sobre o ombro direito da túnica, a qual, segundo as normas, devia ser usada em caso de morte; contudo, um deles ria-se a bandeiras despregadas e o outro fitava-o com uma expressão de raivosa indignação.
— Qual é a graça? — perguntou Cícero, incapaz de conter a sua agressividade.
— Tu...! Terência...! — conseguiu dizer Catulo, limpando as lágrimas. — Cícero, não me digas que ela pensa que tu... que tu e Clódia... Não, não pode ser!
— Pois fica sabendo que Clódia me anda a fazer olhinhos há já algum tempo — replicou Cícero, todo empertigado.
— Essa dama — disse Catulo, reatando a caminhada —, é mais impenetrável do que Nola. Porque é que achas que Célere a tolera? Porque ele sabe o que a casa gasta...! Eu sei, eu sei que ela é toda amores e risinhos e olhinhos e que dá a volta à cabeça aos menos prevenidos... e quando o patinho já caiu, ela retira-se para dentro das suas quatro paredes e põe o ferrolho na porta. Clódia deve estar a divertir-se à tua custa. Dize a Terência que não seja parva.
— Diz tu!
— Obrigado, Cícero, mas já tenho lutas que cheguem com Hortênsia... Não contes comigo para andar à espadeirada com Terência! Faze o que tens a fazer, que eu já tenho a minha dose...!
— Não, não farei nada — disse Cícero, com um ar particularmente deprimido. — A propósito... Célere escreveu-me. Bom, de facto tem-me escrito desde que foi governar a Gália Italiana!
— Acusando-te de seres amante de Clódia? — perguntou Catulo.
— Não, não! Ele quer que eu ajude Pompeu a obter terras para os seus homens. É muito difícil.
— Será muito difícil, meu amigo, se te aliares a essa causa! — retorquiu Catulo com um ar sombrio. — Posso dizer-te desde já que Pompeu só obterá terras para os seus homens depois de passar por cima do meu cadáver!
— Eu já sabia que ias dizer isso.
— Então para que é que estás para aí a divagar?
Cícero ergueu os braços, furioso; até rangeu os dentes. — Eu não tenho o hábito de divagar! Mas será que Célere não sabe que toda a cidade de Roma anda a falar de Clódia e desse novo poeta, Catulo?
— Bom — disse Catulo, muito tranquilo —, se toda a cidade de Roma anda a falar de Clódia e desse poeta, então não pode levar a tua história com Clódia muito a sério, pois não? Olha, acho que é isto que deves dizer a Terência!
— Grr! — resmungou Cícero, decidindo calar-se até chegar ao seu destino.
Como mandava a decência, Servília deixou que passassem alguns dias após a morte de Silano; só então enviou uma mensagem a César pedindo uma entrevista — nos aposentos da Vicus Patricii.
O César que se foi encontrar com ela não era o César usual; tal mudança era menos provocada pelo conhecimento de que aquele encontro se transformaria num confronto do que pelo facto de os seus credores terem começado de súbito a pressioná-lo. Na Clivus Argentarius, já não se falava de outra coisa: naquele ano, não haveria províncias pretorianas, o que significava que César deixara de ser uma boa aposta para se tornar uma perda irreparável. Catulo, Catão, Bíbulo e os outros boni, como seria de esperar, estavam por detrás de tudo isso. Tinham encontrado uma maneira de recusar as províncias aos pretores e Fúfio Galeno era um óptimo tribuno da plebe. E, para piorar tudo, lá estava a frágil situação económica; quando uma personalidade tão conservadora como Catão via a necessidade de baixar o preço dos cereais, então não havia dúvida de que Roma estava a passar por uma situação no mínimo aflitiva. E a sorte... que acontecera à sorte de César? Ou estaria a deusa Fortuna pura e simplesmente a experimentá-lo?
Servília, contudo, não parecia estar com disposição para esquecer o seu estatuto de viúva; saudou-o de uma forma muito sóbria, sentou-se, manteve-se vestida. Pediu-lhe uma taça de vinho.
— Sentes a falta de Silano? — perguntou ele.
— Talvez — retorquiu ela, fazendo girar a taça entre as mãos. — Sabes alguma coisa acerca da morte, César?
— Só sei que um dia terá que vir. Só desejo que seja rápida. Se tivesse de passar pelas provações por que Silano passou, preferia suicidar-me com a minha espada.
— Há Gregos que dizem que existe uma vida depois da morte.
— Sim.
— Acreditas nisso?
— Não de um ponto de vista consciente. A morte é um sono eterno, quanto a isso não tenho dúvidas. Não nos apartamos do mundo desencarnados. Continuamos a ser nós mesmos. Mas nenhuma substância perece e há mundos de forças que nós não vemos, nem compreendemos. Os nossos deuses pertencem a esses mundos e são tangíveis o bastante para concluírem contratos e pactos connosco. Mas nós nunca pertencemos a esses mundos, nem na vida, nem na morte. A nossa função é de equilíbrio. Sem nós, o mundo dos deuses não existiria. Por isso, se os Gregos vêem alguma coisa, é isso que vêem. E quem poderá dizer que os deuses são eternos? Quanto tempo dura uma força? Formam-se novas forças quando as velhas forças mirram e perecem? Que acontece a uma força quando deixa de existir? A eternidade é um sono sem sonhos, mesmo para os deuses. É nisto que eu acredito.
— E no entanto — disse Servília, lentamente —, quando Silano morreu, houve algo que se ausentou daquele quarto. Eu não vi, nem ouvi nada. Mas que se ausentou, ausentou, César. O quarto ficou vazio.
— Suponho que aquilo que se ausentou, como tu dizes, foi uma ideia.
— Uma ideia?
— Não é isso que todos nós somos, uma ideia?
— Para nós mesmos, ou para os outros?
— Para nós mesmos e para os outros, embora não seja necessariamente a mesma ideia.
— Não sei. Só sei o que senti. Aquilo que fazia Silano viver desapareceu, foi-se, ausentou-se.
— Bebe o teu vinho.
Servília bebeu. — Sinto-me muito estranha, mas não é o mesmo sentimento de estranheza que se apoderou de mim quando era criança e assisti à morte de tanta gente. Também não tem nada a ver com o que senti quando Pompeu Magno me enviou as cinzas de Bruto, após a batalha de Mutina.
— A tua infância foi uma abominação — disse ele, levantando-se e abeirando-se dela. — Quanto ao teu primeiro marido, não o amavas, nem o escolheste. Ele era apenas o homem que te tinha feito um filho.
Servília ergueu o rosto para receber o beijo dele, mais consciente do que nunca do que representavam aqueles beijos, já que, antes, o desejo a impedira de os saborear e entender. Uma fusão perfeita dos sentidos e do espírito, pensou ela, e enroscou os seus braços no pescoço dele. A pele, curtida e áspera, cheirava vagamente a algum fogo sacrificial, a cinzas numa lareira enegrecida. E enquanto tocava e saboreava, Servília dizia para si mesma que o que queria, no fundo, talvez fosse uma parte da força daquele homem, e que parte dessa força ficasse nela para sempre; e a única forma de o conseguir era aquela, o seu corpo colado ao dele, o seu corpo dentro dela, distantes os dois, por breves momentos, do conhecimento de tudo o mais, existindo apenas um no outro...
Só voltaram a falar depois de terem passado por um breve sono agitado; e, depois, lá estava o mundo outra vez, de novo o mundo, bebés chorando, mulheres gritando, homens escarrando, o barulho dos carros na pedra da calçada, o ruído abafado de uma máquina qualquer numa fábrica próxima, a esbatida tremura que era o sinal daquele Vulcano que vivia nas profundezas...
— Nada dura para sempre — disse Servília.
— Incluindo nós, como eu te disse há pouco.
— Mas nós temos os nossos nomes, César. Se não forem esquecidos, teremos uma espécie de imortalidade.
— É a única coisa que me interessa. A imortalidade.
Um súbito ressentimento apoderou-se dela; afastou-se dele. — Tu és um homem. Tu podes ter essas aspirações. E eu?
— E tu? — perguntou, puxando-a para ele.
— Essa não é uma questão filosófica — respondeu ela.
— Não, não é.
Servília sentou-se e juntou os braços à volta dos joelhos, a espinha coberta por uma vasta massa de cabelo negro.
— Que idade tens, Servília?
— Farei em breve quarenta e três.
Era agora ou nunca; César sentou-se também na cama. — Queres casar-te outra vez? — perguntou.
— Quero, claro que quero.
— Com quem?
Os olhos dela abriram-se muito. — Com quem havia de ser, César?
— Eu não posso casar-me contigo, Servília.
A surpresa e o choque eram claramente perceptíveis; Servília encolheu-se ainda mais. — Porquê?
— Em primeiro lugar, porque existem os nossos filhos. Júlia e Bruto vão casar-se. O nosso casamento, nessas condições, não seria ilegal. O grau de consaguinidade é permissível. Mas seria demasiado constrangedor e eu não quero fazer uma coisa dessas aos nossos filhos.
— Estás a fugir à questão — disse ela, tensa.
— Não, não estou. Para mim, é uma razão válida.
— E quais são as outras razões?
— Não ouviste o que eu disse quando me divorciei de Pompeia? — perguntou ele. —
A mulher de César, tal como toda a sua família, tem de estar acima de qualquer suspeita.
— Eu estou acima de qualquer suspeita.
— Não, Servília, não estás.
— Não é verdade, César! O que se diz de mim é que sou demasiado orgulhosa para me aliar com Júpiter Optimus Maximus.
— Mas o teu orgulho não te impediu de te aliares comigo.
— Claro que não!
Ele encolheu os ombros. — Pois aí tens!
— Tenho o quê?
— Tu não estás acima de qualquer suspeita. Foste infiel ao teu marido durante anos.
— Mas contigo, César, contigo! Nunca fui infiel com mais ninguém! E, desde que te conheci, nunca te fui infiel, nem mesmo com Silano!
— Não interessa — retorquiu César, indiferente — que tenha sido comigo. És uma esposa infiel.
— Mas não te fui infiel!
— Como é que eu posso saber? Foste infiel a Silano. Nada me garante que, um dia, não me viesses a ser infiel, se te casasses comigo.
Aquilo era um verdadeiro pesadelo; Servília respirou fundo, tentou concentrar-se naquelas coisas incríveis que ele estava a dizer-lhe. — Antes de ti — disse ela —, todos os homens eram insulsus. E depois de ti, todos os outros homens são insulsus.
— Eu não me casarei contigo, Servília. Tu não estás acima de qualquer suspeita e também não estás acima da censura.
— O que sinto por ti — disse ela, lutando denodadamente
— não pode ser medido em termos do que está certo ou do que está errado. Tu és único. Eu não teria esquecido o meu orgulho ou manchado o meu bom nome por outro homem — ou por um deus! Como podes usar aquilo que eu sinto contra mim?
— Eu não estou a usar nada contra ti, Servília. Estou apenas a dizer-te a verdade. A mulher de César tem de estar acima de qualquer suspeita.
— Eu estou acima de qualquer suspeita!
— Não, não estás.
— Ah, não posso acreditar! — exclamou ela, abanando a cabeça para a frente e para trás, contorcendo as mãos. — És injusto! Injusto!
Era evidente que o encontro acabara. César levantou-se da cama.
— É natural que tenhas essa opinião. Mas isso não muda nada, Servília. A mulher de César tem de estar acima de qualquer suspeita.
O tempo foi passando; Servília podia ouvir César na casa de banho, claramente em paz com o seu mundo. Finalmente, arrastou-se para fora da cama, vestiu-se.
— Não tomas banho? — perguntou ele, sorrindo-lhe quando ela apareceu no balcão que servia de casa de banho.
— Hoje tomo banho em casa.
— Estou perdoado?
— Queres que te perdoe?
— Sinto-me muito honrado por te ter como amante.
— Acredito que sim!
— É verdade — disse ele, e estava a ser sincero. Servília comprimiu os lábios. — Vou pensar nisso, César.
— Óptimo!
E Servília percebeu que ele sabia que ela havia de voltar.
E agradeceu a todos os deuses por aquela longa caminhada até casa. — Como pôde ele fazer-me uma coisa destas? E com tanta habilidade, e com tão horrenda civilidade...!
Como se os meus sentimentos não contassem para nada — como se eu, uma patrícia, uma Servília Cepião, não contasse para nada. Levou-me a propor-lhe casamento e depois atirou-me isso à cara como se fosse o conteúdo de um penico. Rejeitou-me como se eu fosse filha de um novo-rico da Gália ou da Sicília. Eu expus-lhe as minhas razões! Eu supliquei! Deitei-me no chão e deixei que ele limpasse os seus pés em mim! Eu, uma patrícia, uma Servília Cepião! Todos estes anos o dominei e escravizei e isso nenhuma mulher conseguiu ou conseguirá — como poderia imaginar que me rejeitaria? Acreditei, sinceramente acreditei, que se casaria comigo. E ele sabia que eu acreditava nisso. Ah, o prazer que ele não terá sentido enquanto representávamos aquela pequena farsa...! Eu pensava que era uma criatura fria, mas a minha frieza é diferente da dele. Nesse caso... nesse caso porque o amo tanto? Porque continuo a amá-lo tanto? Insulsus. Foi isso que ele me fez. Depois dele, todos os outros homens são absolutamente insípidos. Ele ganhou. Mas nunca lhe perdoarei. Nunca!
O facto de Pompeu, o Grande, viver numa mansão alugada, acima do Campo de Marte, significava, de certo modo, que a única barreira entre o leão e o Senado era uma folha de papel. Mais tarde ou mais cedo, alguém cortaria um dedo e o cheiro a sangue atrairia uma garra exploratória. Unicamente por esse motivo, foi decidido realizar uma contio da Assembleia Popular no Circo Flamínio, a fim de se discutir os procedimentos de Pisão Frugi tendo em vista a acusação de Públio Clódio. Decidido a embaraçar Pompeu porque Pompeu não queria qualquer envolvimento no escândalo Clódio, Fúfio Galeno perguntou-lhe imediatamente que pensava ele da cláusula que permitia ao juiz seleccionar o júri. Os boni sorriram, radiantes; tudo o que embaraçasse Pompeu servia para apoucar o Grande Homem!
Mas quando Pompeu avançou para a plataforma dos oradores, milhares de gargantas uniram-se numa mesma e entusiástica saudação; exceptuando os senadores e uns quantos cavaleiros séniores das Dezoito, toda a gente se deslocara ao Circus Flaminius unicamente para ver Pompeu, o Grande, conquistador do Oriente. O qual, nas três horas seguintes, conseguiu maçar de tal forma a audiência, que esta depressa debandou.
— Podia ter dito aquilo tudo num quarto de hora — murmurou Cícero para Catulo. — O Senado tem sempre razão e o Senado deve ser apoiado — afinal, foi isso o que ele disse! Ah, pareceu-me uma eternidade!
— Pompeu é um dos piores oradores de Roma — disse Catulo. — Doem-me os pés!
Mas a tortura ainda não tinha acabado, embora os senadores já se pudessem sentar. Messala Nigro convocou uma sessão do Senado naquele mesmo local, depois de Pompeu ter falado.
— Cneu Pompeu Magno — disse Messala Nigro, com voz sonora —, gostaria que manifestasses, perante esta casa, a tua opinião sincera acerca do sacrilégio de Públio Clódio e da lei de Marco Púpio Pisão Frugi.
Tão grande era o medo do leão que ninguém resmungou contra este pedido. Pompeu estava sentado entre os consulares e ao lado de Cícero, o qual engoliu em seco e logo se perdeu em devaneios acerca da sua nova casa. Desta feita, o discurso durou apenas uma hora; no final, Pompeu sentou-se na sua cadeira, e com tal estardalhaço que Cícero despertou sobressaltado das suas fantasias.
Com o rosto bronzeado agora vermelho, devido ao esforço que despendera para se lembrar das técnicas da retórica, o Grande Homem rangeu os dentes. — Com certeza que disse tudo o que era preciso sobre o assunto!
— O que disseste chegou perfeitamente — retorquiu Cícero, com um sorriso amável.
Quando Crasso se levantou para falar, Pompeu perdeu todo o interesse pela reunião e começou a interrogar Cícero acerca dos acontecimentos mais palpitantes que se haviam passado em Roma durante a sua ausência, mas ia ainda Crasso no princípio do seu discurso e já Cícero estava todo direito na sua cadeira, sem prestar a mínima atenção a Pompeu. Que maravilha! Que felicidade! Crasso elogiava-o! E que elogios...! Dizia que ele fizera um trabalho magnífico quando fora cônsul, porque aproximara as Ordens; cavaleiros e senadores deviam aproximar-se, não deviam viver de costas voltadas, deviam manter um diálogo constante...
— O que é que te levou a dizer aquilo? — perguntou César a Crasso, enquanto caminhavam junto ao Tibre, para evitarem os vendedores de legumes do Fórum Holitorium, que estavam a levantar as suas tendas no final de um dia muito movimentado.
— A exaltar as virtudes de Cícero, queres tu dizer?
— Não me importava que o tivesses feito, se ele não tivesse aproveitado para fazer um interminável discurso sobre a concórdia entre as Ordens. Embora admita que, depois de Pompeu, um discurso de Cícero é um bálsamo para os ouvidos.
— Foi por isso mesmo que eu fiz o que fiz. Detesto que toda a gente se baixe perante aquele odioso Magno. Se ele olha de soslaio para eles, eles encolhem-se que nem cães. E Cícero estava sentado ao lado do nosso herói, completamente murcho. Foi por isso que achei que devia incomodar o Grande Homem.
— E incomodaste. Ao que sei, conseguiste evitá-lo na Ásia.
— Muitas vezes.
— Deve ser por isso que algumas pessoas dizem que seguiste com Públio para leste, a fim de evitares estar em Roma quando Magno cá chegasse.
— As pessoas não param de me espantar. Eu estava em Roma quando Magno cá chegou.
— As pessoas também não param nunca de me espantar. Sabias que eu sou a causa do divórcio de Pompeu?
— E não és?
— Por uma vez, Crasso, estou completamente inocente! Há anos que não vou a Piceno e Múcia Tércia há anos que não vem a Roma.
— Eu estava a entrar contigo. Pompeu honrou-te com um sorriso de todo o tamanho. — Crasso pigarreou, sinal de que estava prestes a abordar um assunto difícil. — Não te estás a sair muito bem com os agiotas, pois não?
— Tenho-os mantido à distância.
— Diz-se, nos círculos financeiros, que os pretores deste ano, por causa de Clódio, nunca irão para as províncias.
— Sim, eu sei. Mas não é por causa desse idiota do Clódio. Quem está por detrás disso é Catão, e Catulo, e todos os outros bom.
— Parece-me que conseguiste aguçar o engenho deles.
— Não te preocupes, que eu conseguirei a minha província — disse César, serenamente. — A deusa Fortuna ainda não me abandonou.
— Acredito em ti, César. É por isso que te vou dizer algo que nunca disse a ninguém. Os outros têm de me pedir — mas se achares que não consegues livrar-te dos teus credores antes de teres a província, vem ter comigo, César, por favor. Para mim, será o mesmo que apostar dinheiro num vencedor.
— Sem cobrar juros? Ora, Marco, não me venhas com essa! Como poderei pagar-te, se tu és suficientemente poderoso para obter os teus próprios favores?
— Quer dizer: és demasiado teimoso e nunca me pedirás dinheiro!
— Pois sou.
— Eu sei que os Júlios são muito teimosos. Foi por isso que eu te ofereci dinheiro. Até te pedi por favor. Outros homens cairiam de joelhos a suplicar. Tu preferirias cair sobre a tua espada, e isso seria lamentável. Não volto a falar no assunto, mas lembra-te do que te disse. Tu não estarás a pedir-me dinheiro, porque eu to ofereci e até te pedi por favor que aceitasses. Sempre é uma diferença!
Em fins de Fevereiro, Pisão Frugi convocou a Assembleia Popular e pôs à votação a sua lei tendo em vista o julgamento de Clódio. Com consequências desastrosas. O jovem Curião discursou do poço dos Comitia com tal brilhantismo que toda a assembleia se rendeu às suas palavras e acabou por aplaudi-lo entusiasticamente. Depois, foi erigida a estrutura destinada à votação, que logo foi invadida por várias dezenas de jovens membros do Clube de Clódio, conduzidos por Marco António. Para além de ocuparem a estrutura, desafiaram os lictores e os funcionários da assembleia com tal coragem que chegou a temer-se um motim generalizado. Foi Catão quem tomou o caso nas mãos, subindo aos rostra e atacando Pisão Frugi por permitir tamanha desordem. Hortênsio falou depois para apoiar Catão; perante isto, o cônsul sénior deu por encerrada a assembleia e convocou imediatamente uma reunião do Senado.
Dentro de uma Cúria Hostília a abarrotar de gente — todos os senadores tinham comparecido para votar —, Quinto Hortênsio propôs um compromisso.
— Desde os censores ao cônsul júnior, verifico que existe neste Senado um importante segmento decidido a levar Públio Clódio a tribunal, para responder pelos crimes cometidos contra Bona Dea — disse Hortênsio, no seu tom mais suave e razoável. — Portanto, aqueles Paires Conscripti que não defendem o julgamento de Públio Clódio devem reflectir seriamente sobre a questão. Há dois meses que vivemos uma situação anormal e essa anormalidade é a melhor maneira de paralisar e derrubar a governação. E tudo por causa de um mero questor e do seu bando de jovens desordeiros! Não podemos permitir que isto continue! Não há nada na lei do douto cônsul sénior que não possa ser ajustado, de forma a agradar a todos as tendências. Por isso, se esta casa mo permite, proponho-me passar os próximos dias a reelaborar essa lei, com o apoio dos dois homens que mais se opõem à presente formulação — o nosso cônsul júnior Marco Valério Messala Nigro e o tribuno da plebe Quinto Fúfio Galeno. O próximo dia comicial é o quarto dia antes das Nonas de Março. Sugiro que Quinto Fúfio apresente a nova lei ao Povo como uma lex Fufia. E que o Senado a faça acompanhar de uma severa advertência ao Povo — para que a vote e não cometa mais disparates!
— Oponho-me! — gritou Pisão Frugi, pálido de raiva.
— Oh, oh, oh, eu também me oponho! — berrou alguém nas bancadas de trás; era Clódio, que se ajoelhava no chão da Cúria Hostília, as mãos juntas numa dramática súplica. A sua actuação era tão extraordinária que todo o Senado ficou a olhar para ele, estupefacto. Estaria a ser sincero? Ou estaria a representar? As lágrimas eram de dor ou de alegria? Ninguém poderia saber.
Messala Nigro, que detinha os fasces em Fevereiro, acenou para os seus lictores. — Retirem imediatamente essa criatura desta casa — disse ele, sem mais.
Públio Clódio foi levado pelos lictores e depositado no pórtico do Senado; o que lhe aconteceu depois, ninguém soube, já que os lictores lhe fecharam as portas na cara.
— Quinto Hortênsio — disse Messala Nigro —, gostaria de acrescentar algo à tua proposta. Que seja convocada a milícia quando o Povo se reunir para votar no quarto dia antes das Nonas de Março. Agora, proponho que procedamos a uma divisão.
Havia na câmara quatrocentos e quinze senadores. Quatrocentos votaram a favor da proposta de Hortênsio; entre os quinze que votaram contra, encontravam-se Pisão Frugi e Caio Júlio César.
A Assembleia Popular seguiu o exemplo do Senado e aprovou a lex Fufia durante uma reunião que se distinguiu pela sua serenidade — e pelo número de milicianos distribuídos em torno do baixo Fórum.
— Bom... — disse Caio Pisão, enquanto a reunião dispersava. — Com Hortênsio, Fúfio Galeno e Messala Nigro, Clódio não deve ter grandes dificuldades para se safar.
— Não há dúvida que tiraram toda a força ao texto original — disse Catulo, não sem satisfação.
— Repararam no ar preocupado, no ar abatido, de César? — perguntou Bíbulo.
— Os credores perseguem-no implacavelmente — retorquiu Catão, todo feliz. — Ouvi dizer que os cobradores dos usurários batem às portas da Domus Publica todos os dias e que o nosso Pontifex Maximus, sempre que sai, leva os cobradores atrás. Ah, desta é que vamos apanhá-lo!
— Até agora, ainda é um homem livre — disse Caio Pisão, menos optimista.
— Sim, mas agora temos censores muito menos simpáticos para César do que o seu tio Lúcio Cota — disse Bíbulo. — Eles sabem o que se está a passar, mas só poderão agir quando dispuserem de provas. Isso só acontecerá depois de os credores de César comparecerem no tribunal do pretor urbano, exigindo o pagamento das dívidas. E já não falta muito...
De facto, já não faltava muito; se as províncias pretorianas não fossem distribuídas nos próximos dias, César, nas Nonas de Março, assistiria à derrocada da sua carreira. Não dizia uma palavra à mãe e assumia uma expressão tão agreste, sempre que ela estava por perto, que a pobre Aurélia só se atrevia a falar com ele das vestais, de Júlia e da Domus Publica. Que magro que ele estava! Parecia que de súbito tinha perdido muito peso e os ossos das faces sobressaíam já, tão aguçados como facas, e a pele do pescoço estava tão lassa como a de um velho. Dia após dia, a mãe de César deslocava-se ao templo de Bona Dea, a fim de deixar pires de leite (desta vez, era mesmo leite) para alguma cobra que por acaso acordasse, para mondar as ervas daninhas do jardim, para deixar oferendas de ovos nos degraus que conduziam à porta do templo de Bona Dea. Não, o meu filho não! Por favor, Bona Dea, não o meu filho! Eu pertenço-te, leva-me a mim! Bona Dea, Bona Dea, sê boa para o meu filho! Sê boa para o meu filho!
E o sorteio realizou-se.
Públio Clódio ficou com um questorado em Lilibéu, na Sicília ocidental, mas não poderia deixar Roma enquanto não fosse julgado.
Parecia afinal que a sorte de César não o tinha abandonado. O sorteio concedeu-lhe a Hispânia Ulterior, o que significava que disporia de imperium proconsular e que só responderia perante os cônsules do ano.
O novo governador receberia o estipêndio determinado pela lei, a soma que o Tesouro punha de parte para as despesas do Estado numa determinada província durante um ano. As despesas mais importantes eram os salários das legiões e dos funcionários públicos e a manutenção de estradas, pontes, aquedutos, esgotos e edifícios públicos. A soma destinada à Hispânia Ulterior era de cinco milhões de sestércios e era entregue imediatamente ao governador; tal soma tornava-se sua propriedade pessoal logo que lhe chegava às mãos. Alguns homens preferiam investi-la em Roma antes de partirem para a sua província, confiando que esta forneceria fundos suficientes para se autofinanciar. Enquanto isso, o estipêndio ia produzindo elevados lucros em Roma.
Na reunião do Senado que incluiu a realização do sorteio, Pisão Frugi, de novo detendo os fasces, perguntou a César se estaria disposto a fazer um depoimento perante o Senado, acerca dos acontecimentos ocorridos na noite da primeira festa de Bona Dea.
— Gostaria muito de aceder ao teu pedido, cônsul sénior, se por acaso tivesse alguma coisa a dizer. O problema é que não tenho — retorquiu César com firmeza.
— Ora, Caio César...! — ripostou Messala Nigro. — Pediram-te um depoimento porque, quando Públio Clódio for julgado, já tu estarás na tua província. Se há aqui algum homem que sabe o que se passou, esse homem és tu.
— Meu caro cônsul júnior, acabas de pronunciar a palavra mais importante para este caso — homem! Eu não assisti à festa de Bona Dea. Um depoimento é uma declaração solene prestada sob juramento. Portanto, deve conter a verdade e apenas a verdade. E a verdade é que eu não sei rigorosamente nada.
— Se não sabes nada, por que razão te divorciaste da tua mulher?
Desta feita, foi o Senado inteiro quem respondeu a Messala Nigro: — Porque a mulher de César, tal como toda a família de César, deve estar acima de qualquer suspeita!
Um dia depois do sorteio, os trinta lictores das Curiae reuniram-se na sua arcaica assembleia e aprovaram as leges Curiae que concediam o imperium aos novos governadores.
E, nesse mesmo dia, durante a hora da refeição da tarde, um pequeno grupo de homens com um ar importante compareceu perante o tribunal do praetor urbanus. Lúcio Calpúrnio Pisão, mesmo a tempo de o impedir de partir para casa, onde o esperava uma bela refeição. Com eles, vinha um número muito maior de homens de aspecto muito diverso, os quais se distribuíram à volta do tribunal e, educada mas firmemente, afastaram os curiosos, de forma a que não se apercebessem do que se passava no tribunal. Assegurada a privacidade, o porta-voz do grupo pediu que os cinco milhões de sestércios concedidos a Caio Júlio César fossem embargados e canalizados para pagar uma parte das dívidas do futuro governador da Hispânia Ulterior.
Este Calpúrnio Pisão não era feito da mesma massa que o seu primo Caio Pisão; neto e filho de dois homens que haviam feito fortunas colossais graças aos armamentos destinados às legiões de Roma, Lúcio Pisão era também um parente próximo de César. A sua mãe e a sua esposa eram ambas Rutílias, e a avó materna de César fora uma Rutília da mesma família. Até então, os caminhos de Lúcio Pisão e César não se tinham cruzado com muita frequência, mas costumavam estar de acordo no Senado e tinham um pelo outro um grande apreço.
Daí que Lúcio Pisão, agora pretor urbano, franzisse muito o sobrolho quando ouviu o pedido e adiasse a decisão, invocando a necessidade de estudar cuidadosamente a pilha de papéis que lhe haviam trazido. Quando Lúcio Pisão punha uma cara de poucos amigos, não era nada fácil enfrentá-lo, já que ele era um dos homens mais altos e fortes dos círculos nobres romanos, com umas sobrancelhas negras imensas e eriçadas; e quando acompanhava o franzir do sobrolho com um trejeito que revelava os seus dentes — alguns pretos, outros amarelados —, a reacção instintiva de quem com ele estava era só uma: recuar de terror. É que, nessas alturas, o pretor urbano mais parecia uma criatura feroz e selvagem, capaz de comer todos os homens que lhe aparecessem pela frente.
Claro que os usurários estavam à espera de uma decisão imediata. Mas aqueles que, em reuniões anteriores, tinham aberto a boca para protestar, ou mesmo para insistir que o pretor urbano se devia apressar, visto que estava a lidar com homens muito influentes, decidiam agora que era melhor não dizer nada e voltar passados dois dias, como lhes tinha sido ordenado.
Lúcio Pisão também era um homem inteligente; daí que não tivesse encerrado o tribunal logo que os queixosos saíram; sim, a refeição teria de esperar. Continuou a tratar dos seus assuntos até o Sol se pôr e a sua equipa bocejar. A essa hora, já havia muito poucas pessoas no baixo Fórum, mas a verdade é que, no poço dos Comitia, se encontravam uns indivíduos de aspecto muito suspeito, que espreitavam tudo o que se passava à sua volta do alto da bancada superior. Lacaios dos usurários? Sem a menor dúvida.
Depois de uma breve conversa com os seus seis lictores, Lúcio Pisão subiu a Via Sacra na direcção da Vélia. O grupo movia-se a uma velocidade incrível; quando passou pela Domus Publica, Lúcio Pisão nem olhou para lá. Diante da entrada do Pórtico Margaritária, parou, baixou-se para fazer qualquer coisa nos seus sapatos, e todos os seus lictores o rodearam, aparentemente para o ajudar. Depois, levantou-se e prosseguiu o seu caminho, ainda muito à frente dos tais indivíduos suspeitos, que também tinham parado.
No entanto, e porque estavam muito longe, os lacaios dos credores não poderiam ver que o indivíduo que envergava a toga debruada a púrpura era agora precedido apenas por cinco lictores; Lúcio Pisão mudara de toga com o mais alto dos seus lictores e escapulira-se pelo Pórtico Margaritária. Depois de encontrar uma saída no lado do Pórtico que dava para a Domus Publica, foi ter a um terreno vazio que era usado pelos lojistas para deitarem o lixo. Enrolou a toga branca de lictor e meteu-a numa caixa vazia; escalar o muro do jardim do peristilo de César não era tarefa que se fizesse com a toga vestida.
— Espero — disse ele, entrando no gabinete de César, envergando unicamente uma túnica — que tenhas um vinho decente naquela magnífica garrafa.
Poucas pessoas alguma vez tinham visto um César surpreendido. Lúcio Pisão era uma delas.
— Como é que entraste? — perguntou César, enchendo-lhe uma taça.
— Da mesma maneira que Públio Clódio saiu. Bom, pelo menos é o que consta...
— A fugir de maridos irados na tua idade, Pisão? Que vergonha!
— Não, não eram maridos irados, eram lacaios dos usurários — retorquiu Pisão, bebendo sofregamente.
— Ah! — exclamou César, sentando-se. — Serve-te à vontade, Pisão, mereces todo o conteúdo da minha adega. Que se passou?
— Há quatro horas, alguns dos teus credores — os menos respeitáveis, devo dizer — compareceram no meu tribunal, pedindo-me que embargasse o teu estipêndio. E fizeram tudo de uma maneira muito, muito furtiva. Os seus lacaios enxotaram toda a gente e foi assim que eles me apresentaram o seu caso na mais total privacidade. Deduzi que eles não queriam que a história chegasse aos teus ouvidos — estranho, no mínimo... — Pisão levantou-se e encheu outra taça. — Vigiaram-me o resto do dia, até me seguiram na rua. Por isso, troquei de roupa com o mais alto dos meus lictores e escapuli-me pelas lojas que ficam aqui ao lado. A Domus Publica também se encontra vigiada. Eu bem os vi, quando subi a colina.
— Nesse caso, vou sair pelo mesmo sítio por onde tu entraste. Atravessarei o pomeríum esta noite e assumirei o meu imperium. A partir desse momento, ninguém me poderá tocar.
— Passa-me uma autorização para levantar o teu estipêndio amanhã ao nascer do dia e eu levar-te-ei o dinheiro ao Campus Martius. Seria melhor investi-lo aqui, mas nunca se sabe o que os boni poderiam fazer nessas circunstâncias... Eles estão mesmo decididos a apanhar-te, César.
— Eu bem sei.
— Crês — disse Pisão, de novo com aquele medonho sobrolho todo franzido — que poderás dar um adiantamento àqueles miseráveis?
— Falarei com Marco Crasso esta noite.
— Estás a dizer-me — perguntou Lúcio Pisão, incrédulo —, que Marco Crasso está disposto a emprestar-te dinheiro? Se está, porque é que não lho pediste há uns bons meses atrás...? Ou mesmo há alguns anos...?
— Ele é meu amigo, não poderia pedir-lhe.
— Sim, estou a perceber a tua posição, embora eu não seja tão teimoso como tu. Mas a verdade é que não sou um Júlio. É uma situação muito difícil para um Júlio, não é?
— É. Mas ele ofereceu-me dinheiro, o que torna tudo mais fácil.
— Escreve essa autorização, César. Não podes mandar vir comida e eu estou esfomeado. Por isso vou já para casa. Além disso, Rutília deve estar preocupada.
— Se tens fome, Pisão, posso dar-te de comer — disse César, escrevendo já a autorização. — Os meus cozinheiros são dos melhores.
— Não, tens muito que fazer.
A carta estava já escrita, dobrada e selada. — Não precisas de saltar o muro. As vestais devem estar nos seus aposentos, de maneira que podes sair pela porta lateral delas.
— Não posso — disse Pisão. — Deixei a minha toga de lictor no terreno que há aqui ao lado. Agradecia que me desses uma mão.
— Estou em dívida para contigo, Lúcio — disse César, ao entrarem para o jardim. — Não me esquecerei disso.
Pisão soltou um risinho. — Não está certo que indivíduos como os usurários se aproveitem das fraquezas da nobreza romana, pois não? Nós podemos lutar como galos entre nós, mas logo que alguém de fora nos ataca, juntamo-nos todos para nos defendermos! Não, César, eu nunca deixaria que aqueles nojentos deitassem as mãos ao meu primo!
Júlia dormia já — menos uma despedida dolorosa para César. Já lhe era tão difícil despedir-se da mãe!
— Devemos estar gratos a Lúcio Pisão — disse ela. — O nosso tio Públio Rutílio, se fosse vivo, sentir-se-ia orgulhoso dele.
— Sem dúvida, mater, o nosso querido tio sentiria um orgulho imenso.
— Vais ter de trabalhar duramente na Hispânia Ulterior, César... Só assim poderás pagar as tuas dívidas.
— Eu sei o que hei-de fazer, mater, não te inquietes. E, entretanto, tu estarás em segurança caso criaturas abomináveis como Bíbulo tentem promulgar alguma lei que permita aos credores incomodar os meus parentes. Vou falar com Marco Crasso esta noite.
Aurélia não escondeu a surpresa. — Pensava que nunca aceitarias.
— Ele ofereceu-se.
Oh, Bona Dea, Bona Dea, obrigada! As tuas cobras terão ovos e leite todo o ano! Em voz alta, porém, tudo o que Aurélia disse foi isto: — Marco Crasso é um amigo leal.
— Mamerco substituir-me-á temporariamente no cargo de Pontifex Maximus. Vigia Fábia e também o nosso melro, não vá o melro transformar-se num Catão. Burgundo tratará das minhas bagagens. Eu estarei na villa que Pompeu alugou, ele não se importará de ter companhia agora que não faz outra coisa senão esperar e descansar.
— Pompeu?! Então não foste tu que o enganaste com Múcia Tércia?
— Mater! Quantas vezes fui eu a Piceno? Procura antes entre os Picentinos, se queres descobrir o infractor...
— Tito Labieno?! Por todos os deuses!
— Não há dúvida que és rápida, mater! — César segurou-lhe no rosto e beijou-a na boca. — Cuida bem de ti, por favor.
César subiu o muro com mais facilidade do que Lúcio Pisão ou Públio Clódio; Aurélia ficou a olhar para o muro durante um longo momento; depois, foi para dentro. Estava frio.
Estava de facto frio, mas Marco Licínio Crasso encontrava-se exactamente onde César pensava: nos escritórios atrás do Macellum Cuppedinis, trabalhando diligentemente, à luz de umas quantas lamparinas, tanto quanto os seus olhos permitiam, com um cachecol à volta do pescoço e um xaile sobre os ombros.
— Mereces todos os sestércios que ganhas — disse César, entrando na vasta sala tão silenciosamente que Crasso deu um salto quando o ouviu falar.
— Como é que entraste?
— Foi essa a pergunta que fiz a Lúcio Pisão há umas horas atrás. Ele subiu pelo muro do meu peristilo. Eu, entrei pela porta.
— Lúcio Pisão subiu pelo muro do teu peristilo?
— Para evitar os lacaios dos credores que cercavam a minha casa. Alguns credores — aqueles que nãoforam recomendados por ti, nem pelo meu amigo Balbo de Gades — foram ao tribunal de Pisão e pediram-lhe que embargasse o meu estipêndio de governador.
Crasso inclinou-se para trás na sua cadeira e esfregou os olhos. — Não há dúvida que tens uma sorte fenomenal, César. Ficaste com a província que querias e os teus credores menos recomendáveis foram meter-se precisamente com o teu primo. De quanto precisas?
— Francamente não sei.
— Devias saber!
— Essa foi a única pergunta que me esqueci de fazer a Pisão.
— Isso é mesmo típico de ti! Se fosses outro, atirava-te ao Tibre. Mas a verdade, César, é que tenho a certeza de que serás mais rico até do que Pompeu. Podes cair de muito alto, mas aterras sempre sobre as patas, tal e qual como os gatos...
— Deve ser mais de cinco milhões, porque eles queriam o total do meu estipêndio...
— Vinte milhões — disse Crasso imediatamente.
— Como?
— Um quarto de vinte milhões já chegaria para que eles conseguissem um lucro razoável, pois tu já deves juros compostos relativos a pelo menos três anos. Provavelmente, pediste emprestados apenas três milhões.
— Tu e eu, Marco, estamos na profissão errada! — disse César, rindo-se. — Temos de navegar e marchar por todo o globo, temos de empunhar as nossas águias e espadas contra selváticos bárbaros, temos de espremer os plutocratas locais com mais força do que uma criança espremendo um boneco, temos de nos tornar odiosos aos olhos do povo que, sob a nossa direcção, devia estar a prosperar, e, depois, quando voltamos a Roma, temos de responder perante o Povo, o Senado e o Tesouro. E, afinal, podíamos encher-nos de dinheiro sem sair de Roma.
— Eu encho-me de dinheiro sem sair de Roma — disse Crasso.
— Sim, mas não fazes empréstimos com juros.
— Eu sou um Licínio Crasso!
— Precisamente.
— Trazes roupa de viagem. Isso quer dizer que já estás de partida?
— Para já, estou de partida para o Campas Martius. Logo que assumir o meu imperium, os meus credores não poderão fazer mais nada. Pisão levantará o meu estipêndio amanhã de manhã e levarmo-á ao Campus Martius.
— Quando é que ele volta a ter uma entrevista com os teus credores?
— Depois de amanhã, ao meio-dia.
— Óptimo. Eu estarei no tribunal dele quando os usurários chegarem. E não te inquietes, César. Essa gente pouco dinheiro vai receber de mim. Pouco ou nenhum... Com Crasso a teu lado, os usurários vão ter muito que esperar...
— Nesse caso, vou deixar-te em paz. Estou-te muito grato, Crasso.
— Não penses nisso. Não te esqueças que também posso vir a precisar de ti. — Crasso levantou-se e acompanhou César até à porta da rua, segurando uma lamparina. — Como é que tu viste para chegar lá acima? — perguntou ele.
— Há sempre luz, mesmo no poço de escada mais escuro.
— Bom, isso torna tudo mais difícil...
— Tudo o quê?
— Bom... — retorquiu imperturbavelmente o imperturbável Crasso. — É que eu penso erigir-te uma estátua num local muito, muito público, logo que te tornes cônsul pela segunda vez. E vou pedir ao escultor que faça a melhor peça possível com as partes de um leão, de um lobo, de uma enguia, de uma fuinha e de uma fénix. Mas como tu aterras sobre as patas, vês no escuro e andas pelos telhados de Roma sempre à procura de gata, vou ter de pedir ao artista que junte mais um animal — o gato, evidentemente — à colecção. Talvez possa acrescentar uma pele malhada à sua estranha escultura...!
Como ninguém tinha estábulos dentro das Muralhas Servias, César não pôs a hipótese de dormir em Roma, no meio de vacas ou de cavalos. Abandonou imediatamente a cidade, embora seguisse um caminho que os usurários, por certo, não vigiariam. Subiu a Vicus Patricii até à Vicus e ao Malum Punicum, virou depois para a Vicus Longus e deixou a cidade pela Porta Colina. Daí avançou pelo alto do Pinciano, onde uma colecção de animais selvagens divertia as crianças quando o tempo estava bom; depois, foi sempre a descer até à residência temporária de Pompeu. Claro que a residência de Pompeu tinha estábulos sob os elevados balcões; em vez de acordar a sentinela, César fez um ninho no meio de alguma palha limpa e manteve-se acordado até o Sol nascer.
As suas partidas para as províncias nunca haviam sido muito ortodoxas, pensou ele com um ligeiro sorriso. Da última vez que partira para a Hispânia Ulterior, fora muito triste a despedida, por causa da tia Júlia e de Cinila. Desta vez, era um fugitivo. Um fugitivo com um imperium proconsular, nem mais, nem menos. Já tinha bem definida a sua actuação naquela província — Públio Vatínio revelara-se uma importante fonte de informação e Lúcio Cornélio Balbo Major estava à sua espera em Gades.
Balbo escrevera a César, dizendo-lhe que sofria da horrenda doença do tédio. Ao contrário de Crasso, Balbo não se sentia realizado pelo facto de acumular lucros atrás de lucros; Balbo ansiava por algo de novo, agora que ele e o seu sobrinho eram os homens mais ricos de toda a Hispânia. Balbo Minor que tratasse dos negócios...! Balbo Major era um perito em logística militar. E foi por isso que César o nomeou seu praefectus fabrum, uma escolha que surpreendeu alguns dos senadores, embora não aqueles que conheciam Balbo Major. O praefectus fabrum, pelo menos aos olhos de César, era muito mais importante do que o legado sénior (e César não tinha nomeado ninguém para esse cargo), já que o praefectus fabrum, entre todos os adjuntos de um comandante militar, só podia ser alguém que gozasse da mais absoluta confiança do seu superior — pois era o grande responsável pelo equipamento e pelo abastecimento do exército.
Havia duas legiões na Hispânia Ulterior, ambas constituídas por veteranos romanos que tinham optado por não regressar a Roma após o fim da guerra contra Sertório. Deviam ser já trintões e deviam estar ansiosos por uma boa campanha. Contudo, duas legiões não chegariam; a primeira coisa que César tencionava fazer quando chegasse à sua província era recrutar uma nova legião — formada por soldados hispânicos que tinham combatido nas hostes de Sertório. César sabia que esses homens, a partir do momento em que o conhecessem bem, lutariam por ele com o mesmo denodo com que haviam combatido por Sertório. E depois, bom, depois seria sempre em frente! Muitos territórios inexplorados esperavam por ele! No fim de contas, era ridículo dizer-se que Roma controlava toda a Península Ibérica, quando, de facto, nem um terço da Península submetera. Mas César subjugaria todo o território.
Quando apareceu no alto da escadaria da residência, deu com Pompeu, o Grande, sentado no seu balcão, admirando as vistas para lá do Tibre, o monte Vaticano e o Janículo.
— Ora bem...! — exclamou Pompeu, saltando do seu assento e cumprimentando o inesperado visitante. — Vieste dar uma volta de cavalo?
— Não. Cheguei a pé há já umas horas, mas era demasiado tarde e não queria acordar-te. Por isso deitei-me numa cama de palha... Mas é possível que te peça um ou dois cavalos quando me for embora. Mas só para me levarem até Óstia. Podes hospedar-me por uns dias, Magno?
— Com todo o prazer, César.
— Então quer dizer que não acreditas que seduzi Múcia Tércia?
— Eu sei muito bem quem a seduziu, César — retorquiu Pompeu com um ar triste. — Foi Labieno, o ingrato! Mas não perde pela demora...! — acenou para que César se sentasse numa confortável cadeira. — Foi por isso que não me vieste visitar? Foi por isso que não me disseste mais do que ave no Circus Flaminius?
— Magno, eu não passo de um ex-pretor e tu és o herói da era! Uma pessoa não se vai pôr à conversa contigo assim sem mais nem menos...
— Está bem, mas pelo menos contigo eu posso falar! Porque tu és um verdadeiro soldado e não um comandante de divã. Quando chegar a hora, saberás morrer como um homem, com o rosto e as coxas cobertas. A morte não encontrará em ti nada que não seja belo.
— Muito bem dito, Magno! E uma bela citação... Homero.
— Sim, eu li muito enquanto estive no Oriente. Tornou-se uma paixão. O que não admira, pois tinha Teófanes de Mitilene comigo.
— Um grande erudito.
— Sim, isso foi mais importante para mim do que o facto de ele ser mais rico do que Creso. Levei-o a Lesbos, tornei-o um cidadão romano na agora Mitilene, à frente de toda a gente. Depois, libertei Mitilene do tributo que tinha de pagar a Roma. A população ficou radiante.
— O que não admira. Creio que Teófanes é parente de Lúcio Balbo de Gades.
— As mães deles são irmãs. Conheces Balbo?
— Muito bem. Conhecemo-nos quando fui questor na Hispânia Ulterior.
— Balbo foi meu batedor na guerra contra Sertório. Dei-lhe a cidadania romana. Tal como ao sobrinho. Bom, dei a cidadania a muita gente... Eram tantos que tive de distribuí-los pelas famílias dos meus legados, não fosse o Senado pensar que estava a dar a cidadania a metade da Hispânia. Balbo Major e Balbo Minor ficaram com um Cornélio... Lêntulo, creio eu, embora não aquele a quem agora chamam Espínter. — Riu-se muito, e acrescentou: — Adoro alcunhas! É tão engraçado ver um homem ser tratado pelo nome de um actor que se tornou famoso por desempenhar papéis secundários. Uma alcunha diz-nos muito sobre aquilo que o mundo sente em relação a um homem, não achas?
— Sem dúvida. Mas quero dar-te uma novidade: nomeei Balbo Major meu praefectus fabrum.
Os olhos muito azuis brilharam. — Uma decisão muito inteligente! César mirou Pompeu de alto a baixo. — Para um velho, não estás nada mal, Magno... — disse ele, com um sorriso imenso.
— Tenho quarenta e quatro anos, César — disse Pompeu, afagando complacentemente uma barriga lisa.
De facto, Pompeu não estava nada mal para a idade que tinha. O sol oriental quase lhe disfarçara as sardas e tentara mesmo alourar ainda mais uma cabeleira que já era loura — e mais farta do que nunca, como César reparou, não sem algum pesar.
— Tens de me contar tudo o que se passou em Roma enquanto eu estive fora.
— Pensei que já estivesses surdo, por causa do alarido das notícias...
— Por causa dos guinchos de Cícero, queres tu dizer? Eu não dou ouvidos a esse vaidoso, César...!
— Pensava que eram amigos...
— Um homem, em política, não tem amigos — disse o Grande Homem. — Deve cultivar o que lhe convém.
— Sem dúvida — disse César, rindo-se. — Já sabes com certeza o que eu fiz a Cícero, usando Rabírio...
— Ainda bem que o fizeste, César. Caso contrário, Cícero continuaria a arengar que a proscrição de Catilina foi mais importante do que as conquistas no Oriente! É certo que Cícero é um homem válido. Mas julga que toda a gente tem tanto tempo como ele para escrever cartas enormes. Escreveu-me o ano passado e eu consegui responder-lhe: apenas umas linhas, nada mais. E sabes o que é que ele fez? Zangou-se comigo, acusou-me de o tratar friamente! Ele devia era ir governar uma província... era a única maneira de ele perceber o que é o trabalho a sério! Mas não, passa a vida no seu confortável divã e depois dá-nos conselhos, a nós, militares, sobre a melhor forma de conduzirmos os nossos negócios. No fim de contas, César, o que é que ele fez? Fez uns quantos discursos no Senado e no Fórum e mandou Marco Petreio esmagar Catilina.
— É um resumo muito resumido, Magno.
— Bom, agora que já decidiram o que hão-de fazer a Clódio, devo finalmente ter o meu triunfo. Pelo menos desta vez, fiz o que devia — desmobilizei o meu exército em Brundísio. Não podem dizer que estou a fazer chantagem com eles.
— Não contes com uma data próxima para o teu triunfo. Pompeu endireitou-se de súbito. — O quê?
— Os boni estão a conspirar contra ti. Conspiram desde o dia em que souberam que ias regressar. Tencionam negar-te tudo — a ratificação das tuas medidas no Oriente, a concessão de cidadania, as terras para os teus veteranos — e suspeito que uma das suas tácticas consistirá em manter-te fora do pomerium tanto tempo quanto possível. É que, voltando ao Senado, poderias controlar muito melhor os seus movimentos. Os boni têm um tribuno da plebe brilhante, Fífio Galeno, e acredito que ele vai vetar todas as propostas que te sejam favoráveis.
— Mas não podem fazer isso, por todos os deuses! Oh, César, que se passa com essa gente? Eu aumentei os tributos das províncias orientais de oito mil talentos para catorze mil talentos, apenas num ano! E sabes a quanto monta a parte do Tesouro nos despojos de guerra? Vinte mil talentos! Vou precisar de dois dias para o cortejo triunfal, tantos são os despojos de guerra, tantas foram as campanhas! Com este triunfo asiático, terei celebrado triunfos nos três continentes e ninguém fez isso antes de mim! Há dezenas de cidades que têm o meu nome ou o nome das minhas vitórias — cidades que eu fundei! Tenho reis entre os meus clientes!
Com os olhos molhados, Pompeu baixou a cabeça, incapaz de acreditar que as suas proezas não teriam o prémio justo. — Por todos os deuses, eu não lhes estou a pedir que me nomeiem rei de Roma! — disse ele, limpando impacientemente as lágrimas. — Aquilo que estou a pedir, comparado com o que dei a Roma, não passa de mijo de cão!
— Concordo inteiramente — disse César. — O problema é que eles sabem que não poderiam fazer o mesmo que tu e odeiam dar o prémio a quem o merece.
— Além disso, eu sou um Picentino.
— Esse factor também conta.
— Mas afinal o que é que eles querem?
— No mínimo, Magno, querem os teus tomates... — disse César, com um sorriso.
— Para ficarem com eles, pois tomates é coisa que não têm.
— Precisamente.
Aquele homem não tinha nada a ver com Cícero, pensou César, enquanto observava o rosto corado, marcado pela violência das emoções. Aquele homem podia esmagar os boni com uma só das suas garras. Mas não o faria. Não por lhe faltarem tomates, para usar a linguagem dele. Vezes sem conta mostrara a Roma que era capaz de quase tudo. Porém, algures num recanto secreto do seu ego, morava a vaga percepção de que, no fim de contas, ele não era um Romano. Todas aquelas alianças com parentes de Sila eram bem reveladoras — tal como o prazer com que se vangloriava delas. Não, ele não era nenhum Cícero. Mas tinham coisas em comum. E eu, eu que sou ou um Magno? O que me deteria? Haveria algo capaz de me deter?
Nos Idos de Março, César partiu finalmente para a Hispânia Ulterior. Reduzido a uns quantos números e palavras num único pergaminho, o seu estipêndio foi-lhe levado pelo próprio Lúcio Pisão. Seguiu-se uma agradável visita a Pompeu. César aproveitou a oportunidade para fazer ver a Pompeu que valia a pena manter uma amizade com Lúcio Pisão. O fiel Burgundo, já muito grisalho, levou-lhe as poucas coisas de que César precisava: uma boa espada, uma boa armadura, umas boas botas, boas roupas para a chuva e para a neve e o traje adequado para montar. Dois filhos do seu velho cavalo de guerra, cujos cascos, tal como os do pai, não eram fendidos. Pedra-pomes, navalhas, facas, ferramentas, um chapéu de palha, idêntico ao de Sila, para enfrentar o sol da Hispânia. De facto não era muito. Três baús de tamanho médio chegavam para tudo. Haveria luxo suficiente nas residências do governador em Gades e Castulão.
E foi assim que, com Burgundo, alguns dos seus melhores criados e escribas, Fábio e mais onze lictores, envergando túnicas carmesins e empunhando as machadas nos seusfasces, e com o príncipe Masinta escondido dentro de uma liteira, Caio Júlio César partiu de Óstia num navio alugado, suficientemente grande para acomodar a bagagem, as mulas e os cavalos da sua comitiva. Desta feita, porém, não teria de enfrentar piratas. Pompeu, o Grande, tinha varrido os piratas dos mares.
Pompeu, o Grande... César encostou-se à amurada da popa, entre os dois grandes remos do leme, e viu comovido a costa da Itália afastando-se cada vez mais, a sua mente afastando-se gradualmente da terra natal e do seu povo. Pompeu, o Grande. O tempo que passara com ele revelara-se útil e frutífero; a sua afeição por aquele homem crescera com o tempo, quanto a isso não tinha a mínima dúvida. Ou fora a afeição de Pompeu que crescera? Ou fora Pompeu que crescera?
Não, César, não tenhas má vontade contra aquele homem. Ele não o merece. Por muito irritante que fosse ver um Pompeu conquistar tanto mundo, a verdade é que Pompeu tinha mesmo conquistado muito, muito mundo. Tens de lhe dar o que ele merece, tens de admitir que, provavelmente, foste tu que cresceste. Mas o problema do crescimento é que, quando uma pessoa cresce, deixa tudo o mais para trás, tal e qual como agora deixo a costa de Itália. E por isso poucas pessoas crescem. As suas raízes encontram uma camada de rochas e ficam onde estão, limitadas. Debaixo de mim, porém, nada há que eu não possa repelir; e, por cima de mim, só o infinito. A longa espera acabou. Vou para a Hispânia comandar legalmente um exército. Finalmente. Porei em movimento uma máquina viva, a qual, nas mãos certas, nas minhas mãos, nunca poderá ser detida, vergada, desviada, esmagada. Ansiava por um comando militar supremo desde que, ainda rapaz, me sentava ao colo do velho Caio Mário e ouvia, enfeitiçado, as histórias de um mestre em histórias de guerra. Mas, até agora, nunca tinha compreendido quão apaixonadamente, quão violentamente, ansiava por esse comando militar. Comandarei um exército romano e conquistarei o mundo, pois acredito em Roma, acredito nos nossos deuses. E acredito em mim mesmo. Eu sou a alma de um exército romano. Nada me pode deter, vergar, desviar, esmagar.
DE Maio DE 60 a.C. a Março DE 58 a.C.
Para Caio Júlio César, procônsul na Hispânia Ulterior, de Cneu Pompeu Magno, triunfador; escrita em Roma, nos Idos de Maio, no consulado de Quinto Cecílio Metelo Célere e Lúcio Afrânio:
Bom, César, confio esta carta aos deuses e aos ventos, na esperança de que os primeiros dêem aos segundos a velocidade suficiente para que a recebas rapidamente. Outros mandar-te-ão também as suas missivas, mas eu fui o único que se dispôs a gastar o dinheiro necessário para contratar o navio mais rápido que havia no porto, e unicamente para levar esta carta.
Os boni controlam tudo e a nossa cidade está a desintegrar-se. Eu era capaz de viver com um governo dominado pelos boni se por acaso esse governo não fizesse nada. O problema é que um governo dos boni tem um único objectivo — não fazer rigorosamente nada e impedir todas as outras facções de alterar esse estado de coisas.
Conseguiram adiar o meu triunfo até aos dois últimos dias de Setembro — e fizeram-no da forma mais hipócrita e traiçoeira. Anunciaram que eu tinha feito tanto por Roma que merecia um triunfo no dia do meu aniversário! E foi assim que tive de esperar no Campus Martius durante nove meses. Embora as razões para tomarem tal atitude me deixem algo desconcertado, julgo que a sua principal objecção à minha pessoa é que eu tive tantos comandos especiais durante a minha vida, que está provado, mais do que provado, que sou um perigo para o Estado. Segundo eles, o meu objectivo é ser rei de Roma. Nunca ouvi maior disparate! Contudo, o facto de eles saberem que é um disparate completo não os impede de o dizerem.
Por muito que me esforce, César, não consigo entendê-los. Se alguma vez houve um pilar do sistema, esse pilar só pode ter sido Marco Crasso. Quer dizer, eu entendo que me chamem arrivista picentino, que digam que eu quero ser rei de Roma e tudo o mais... Mas Marco Crasso?! Por que raio é que escolheram Marco Crasso como alvo das suas investidas? Ele não representa qualquer perigo para os boni; de facto, Marco Crasso tem tudo para pertencer à facção dos boni... Tem uma linhagem magnífica, é tremendamente rico, e não tem nada de demagogo. Crasso é inofensivo! E digo isto, apesar de não gostar dele; nunca gostei dele, nunca gostarei dele. Partilhar um consulado com ele foi como dormir na mesma cama com Aníbal, Jugurta e Mitridates. Tudo o que ele fez foi esforçar-se por destruir a minha imagem aos olhos do povo. Mas a verdade é que, apesar de tudo isso, Marco Crasso não constitui nenhuma ameaça para o Estado.
Que fizeram então os boni a Marco Crasso para me levarem a apoiá-lo? Criaram uma verdadeira crise, foi isso que eles fizeram. Tudo começou quando os censores firmaram os contratos para a cobrança dos impostos nas minhas quatro províncias orientais. Ah, sim, claro, claro que os publicani são, em grande parte, os culpados! Viram os despojos de guerra que eu trouxe do Oriente, somaram tudo muito bem somado e decidiram que o Oriente era melhor do que uma mina de ouro. Foi por isso que apresentaram orçamentos para esses contratos que eram completamente irrealistas. Prometeram ao Tesouro milhões e mais milhões e pensaram que conseguiam esses milhões, mais um avultado lucro para os seus próprios bolsos. Claro que os censores aceitaram os orçamentos que previam as somas mais altas para o Tesouro. É seu dever fazerem isso. Mas depressa Ático e os outros plutocratas publicani se aperceberam de que as somas que tinham prometido ao Tesouro não passavam de uma miragem. As minhas quatro províncias orientais não poderiam pagar aquilo que lhes exigiam, por muito que os publicani as espremessem.
Ático, Ópio e mais uns quantos foram então ter com Marco Crasso e pediram-lhe que solicitasse ao Estado que cancelasse os contratos de cobrança de impostos para o Oriente e que instruísse os censores no sentido de firmarem novos contratos (prevendo apenas dois terços das somas originalmente acordadas). Pois bem, Crasso apresentou tal solicitação. Sem nunca lhe passar pela cabeça que os boni procurariam — ou conseguiriam! — convencer o Senado a opor-se terminantemente. Mas foi isso mesmo que aconteceu. O Senado recusou violentamente a proposta de Crasso.
Foi um NÃO rotundo. Nessa altura, confesso que me ri; era para mim um prazer indescritível ver Marco Crasso derrotado — ah, e que derrota...! Apesar de continuar com muita palha à volta dos cornos, de tanto investir contra tudo e contra todos, Crasso, o boi, estava derrotado e paralisado. Mas depois apercebi-me de que a posição dos boni primava pela estupidez. E já não me ri mais. Parece que decidiram que tinha chegado a hora de os cavaleiros perceberem, de uma vez por todas, que o Senado era a entidade suprema em Roma, que era o Senado quem governava Roma e que os cavaleiros não podiam sequer influenciar as posições do Senado. Bom, o Senado pode gabar-se à vontade de que governa Roma, mas tu e eu sabemos que não é assim. Se os homens de negócios de Roma não fossem autorizados a fazer negócios lucrativos, Roma acabava.
Depois de o Senado ter dito um NÃO rotundo a Marco Crasso, os publicani retaliaram, recusando-se a pagar ao Tesouro um único sestércio que fosse. Ah, a tempestade que isso causou! Julgo que os cavaleiros esperavam que essa posição de força levasse o Senado a dizer aos censores que cancelassem os contratos, já que estes não estavam a ser honrados — e que, quando fossem apresentados novos orçamentos, as somas previstas baixassem muito. Os boni controlam por completo o Senado e, por isso, o Senado não cancelará os contratos. Por outras palavras: estamos num beco sem saída.
Crasso sofreu um golpe colossal: para além de ter sido derrotado no Senado, o seu prestígio junto dos cavaleiros esbateu-se num ápice. Crasso era porta-voz dos cavaleiros há já tanto tempo, e com tanto êxito, que nunca lhe ocorreu (nem aos cavaleiros) que falhasse os seus objectivos. Tanto mais que o seu pedido de alteração dos contratos orientais era perfeitamente razoável.
E quem é que achas que os boni nomearam seu porta-voz principal no Senado? Pois nem mais nem menos do que o meu ex-cunhado, Metelo Célere! Durante anos, Célere e o irmão mais novo, Nepos, foram os meus mais leais adeptos. Porém, desde que me divorciei de Múcia Tércia, transformaram-se nos meus mais encarniçados inimigos. Francamente, César, até parece que Múcia foi, em toda a história de Roma, a única mulher alvo de um divórcio! Eu tinha todo o direito a divorciar-me dela, ou não? Ela era uma adúltera! Enquanto eu estive fora, manteve uma ligação com Tito Labieno, meu próprio cliente! Que havia eu de fazer? Fechar os olhos e fingir que não sabia de nada, só porque a mãe de Múcia é também mãe de Célere e de Nepos? Bom, eu não estava disposto a fechar os olhos. Porém, pela forma como Célere e Nepos se comportam, até parece que fui eu quem cometeu adultério! A sua querida irmã rejeitada pelo marido? Por todos os deuses, é um insulto intolerável!
Desde então que não me largam, esses dois. Não sei como o fizeram, mas a verdade é que conseguiram arranjar um novo marido para Múcia, e um marido de nobre linhagem e elevado estatuto, a fim de que toda a gente pensasse que ela é que tinha razão, que ela é que era a vítima! E quem escolheram eles? O meu questor Escauro, nem mais nem menos! Ela tem idade para ser mãe dele. Enfim, quase. Ele tem trinta e quatro anos e ela quarenta e sete. Mas que casal! Embora ache que, no que toca à inteligência, estão muito bem um para o outro, já que não possuem nenhuma. Parece que Labieno queria casar-se com ela, mas os irmãos Metelos opuseram-se firmemente. E lá acabou por ser Marco Emílio Escauro o escolhido, esse mesmo Escauro que me meteu naquela embrulhada com os Judeus. Corre o boato de que Múcia está grávida, o que seria mais uma mancha para o meu nome. Só espero que morra a ter a criança.
Tenho uma teoria para explicar a razão por que os boni se tornaram de súbito tão estúpidos e destrutivos. A morte de Catulo. Depois da morte dele, os boni ficaram nas mãos de Bíbulo e Catão. Imagina só! Catulo morreu porque não lhe pediram que falasse em primeiro ou em segundo lugar, entre os consulares, é claro, durante um debate no Senado! Mas foi isso mesmo que aconteceu a Catulo. E assim deixou a sua facção nas mãos de Bíbulo e Catão, que não possuem nenhum dos seus méritos, designadamente a capacidade para distinguir entre a mera negatividade e o suicídio político.
Também tenho uma teoria quanto às razões que levaram Bíbulo e Catão a investir contra Crasso. Catulo deixou um cargo sacerdotal vago, e o cunhado de Catão, Lúcio Aenobarbo, desejava ocupar esse cargo. Mas Crasso adiantou-se e conseguiu o cargo para o filho Marco. Um insulto mortal para Aenobarbo, já que não há nenhum Domício Aenobarbo no Colégio. Que coisa mais mesquinha. Ah, a propósito: fui eleito augure. Catão, Bíbulo e Aenobarbo é que não ficaram nada contentes! Foi a segunda eleição, num curto espaço de tempo, que Aenobarbo perdeu.
Quanto aos meus objectivos — terras para os meus veteranos, ratificação dos meus povoamentos no Oriente, etc. — todos eles se diluíram. Gastei milhões para conseguir que Afrânio se sentasse na cadeira de cônsul júnior — dinheiro perdido! Afrânio é melhor soldado do que político, mas Cícero diz a toda a gente que ele é melhor bailarino do que político. Isto porque Afrânio apanhou uma bebedeira monumental no banquete da sua tomada de posse, no dia de Ano Novo, e desatou a fazer piruetas no templo de Júpiter Optimus Maximus. Uma situação muito embaraçosa para mim, pois toda a gente sabe que foi com o meu dinheiro que ele conseguiu o cargo. Pensava que Afrânio conseguiria controlar o cônsul sénior, mas Metelo Célere tem-no derrotado em todas as frentes; é como se Afrânio não existisse.
Quando Afrânio conseguiu levar o meu caso a discussão no Senado, durante o mês de Fevereiro, Célere, Catão e Bíbulo deram cabo de tudo. Arrancaram Lúculo ao seu retiro — o homem está praticamente imbecilizado, por causa dos cogumelos e das outras drogas todas — e usaram-no para me deter. Ah, era capaz de os matar a todos! Todos os dias lamento ter desmantelado o meu exército, isto para não falar do facto de ter dado aos meus homens a sua parte nos despojos quando ainda estávamos na Ásia. Claro que isso também tem sido criticado. Catão disse que eu não tinha o direito de distribuir os despojos sem autorização do Tesouro — ou seja, do Senado —, e quando lhe lembrei que tinha um imperium maius, que me permitia fazer tudo o que muito bem entendesse em nome de Roma, respondeu-me que o meu imperium maiusora obtido ilegalmente na Assembleia Plebeia, que não me fora concedido pelo Povo. Um disparate consumado, mas o Senado aplaudiu-o!
Em Março, terminou a discussão do meu caso. Catão procedeu a uma divisão do Senado, propondo que nenhum assunto fosse discutido enquanto o problema da cobrança dos impostos não fosse resolvido — e os idiotas votaram a favor! Sabendo que Catão estava simultaneamente a bloquear toda e qualquer solução para o problema da cobrança dos impostos! O resultado é que nada de nada foi discutido. E quando Crasso levanta o problema da cobrança dos impostos, Catão impede que se faça o que quer que seja! E os Patres Conscripti acham-no um assombro!
Não consigo entender, César, não consigo. Terá Catão feito alguma coisa durante toda a sua vida? Tem apenas trinta e quatro anos, nunca desempenhou uma magistratura sénior, é um orador desastroso e um pedante de primeira. Mas a verdade é que, não se percebe porquê, os Patres Conscripti acabaram por convencer-se de que Catão é absolutamente incorruptível e que isso faz dele a criatura mais maravilhosa deste mundo. Será que não entendem que a incorruptibilidade é desastrosa quando aliada a uma mentalidade como a de Catão ? Quanto a Bíbulo — bom, dele também dizem que é incorruptível. E a todo o momento berram que são inimigos confessos de todos os homens que se distinguem, um palmo que seja, no confronto com os seus pares. Um objectivo louvável. Excepto que alguns homens não podem deixar de distinguir-se no confronto com os seus pares. Pura e simplesmente porque são melhores! Se todos fôssemos iguais, se todos tivéssemos de ser iguais, teríamos sido criados exactamente iguais! Mas não fomos e esse é um facto a que ninguém pode fugir.
Para onde quer que me vire, César, só encontro bandos inimigos com os dentes afiados. Será que os idiotas não percebem que o meu exército foi desmantelado, mas que os seus membros continuam em Itália? Basta-me acenar para os meus soldados, que eles logo aparecem, desejosos de me servirem! E uma coisa te digo, César, sinto-me muito tentado a fazer isso. Conquistei o Oriente, quase dupliquei os rendimentos de Roma, fiz tudo como devia. Por que raio é que eles estão contra mim?
Bom, mas chega dos meus problemas. De facto, resolvi escrever-te esta carta para te avisar de que também tu estás com problemas.
Começou tudo com aqueles relatórios magníficos que tens mandado para o Senado — uma campanha perfeita contra os Lusitanos e os Calaicos; pilhas de ouro e de tesouros; a administração correcta dos recursos e funções da província; as minas produzindo mais prata, chumbo e ferro do que em meio século; o perdão para as cidades que Metelo Pio puniu. Os boni devem ter gasto uma fortuna com os espiões que mandaram para a Hispânia Ulterior. Mas a verdade é que os boni não conseguiram deitar-te a mão; e diz-se aqui que nunca conseguirão. Não encontraram um único sinal de extorsão ou peculato. Para cúmulo, têm recebido montes de cartas de habitantes da Hispânia Ulterior manifestando a sua gratidão, pois os culpados foram punidos e os inocentes perdoados. O velho Mamerco Princeps Senatus — a propósito, Mamerco está muito mal de saúde — levantou-se numa reunião do Senado e disse que o teu comportamento constituía um exemplo para todos os governadores. E os boni não puderam refutar uma única palavra de Mamerco. Ah, ficaram furiosos!
Toda a Roma sabe que serás cônsul sénior. Para além de teres vencido sempre todas as eleições que disputaste, a tua popularidade está a crescer a um ritmo vertiginoso. Marco Crasso tem dito a todos os cavaleiros das Dezoito que, quando fores cônsul sénior, o problema da cobrança de impostos será rapidamente resolvido. Donde concluo que ele sabe que vai precisar dos teus serviços — e sabe que tu estarás de acordo.
Pois bem, César: também eu preciso dos teus serviços. E muito mais do que Marco Crasso! O problema dele resume-se a uma quebra de influência nos negócios romanos, ao passo que eu preciso de terras para os meus veteranos e de leis que ratifiquem os meus povoamentos no Oriente.
É possível que estejas já de regresso a casa — é o que Cícero pensa —, mas creio sinceramente que és como eu e que ficarás até ao último momento, pois quererás deixar tudo resolvido e impecavelmente tratado.
Os boni acabam de atacar, César, e de uma maneira extremamente astuciosa. Todos os candidatos às eleições consulares têm de apresentar as suas candidaturas até às Nonas de Junho, o mais tardar, embora as eleições só se realizem nos habituais cinco dias antes dos Idos de Quinctilis. Encorajado por Célere, Caio Pisão, Bíbulo (que também é candidato, evidentemente, mas que está em Roma porque é como Cícero, nunca quer governar uma província) e pelo resto dos boni, Catão conseguiu fazer aprovar um consultum que impõe as Nonas de Junho como a data limite para a apresentação de candidaturas. Mais de cinco nundinae antes das eleições, em vez dos três nundinae que os usos e a tradição impuseram.
Alguém se deve ter lembrado de que tu viajas como o vento, porque, depois disto, os boni tramaram outra para frustrarem os teus planos — para o caso de chegares a Roma antes das Nonas de Junho. Célere pediu ao Senado que fixasse uma data para o teu triunfo. Mostrou-se muito amável, fartou-se de elogiar o teu trabalho como governador! Mas, depois, sugeriu que a data do teu triunfo fosse os Idos de Junho! Toda a gente achou que era uma ideia esplêndida, de maneira que a proposta foi aprovada. Sim, o teu triunfo decorrerá oito dias depois do encerramento da apresentação de candidaturas. Um espanto, não é?
Portanto, César, se conseguires chegar a Roma antes das Nonas de Junho, terás de solicitar ao Senado que te autorize a disputar o cargo de cônsul in absentia. Não poderás atravessar o pomerium, não poderás apresentar pessoalmente a tua candidatura sem desistires do teu imperium e, consequentemente, do teu direito a triunfar. Acrescento que Célere teve o cuidado de lembrar ao Senado que Cícero aprovara uma lei proibindo a apresentação de candidaturas consulares in absentia. Donde concluí que os boni tencionam opor-se ao teu pedido para disputares as eleições in absentia. Apanharam-te na sua rede, tal como me apanharam a mim. Lutarei para que o nosso rebanho senatorial — mas porque é que eles se deixam manipular por meia dúzia de homens que nem sequer são nada de especial? — te permita disputar as eleições in absentia. E sei que, nessa luta, terei companhia: Crasso, Mamerco Princeps Senatus e muitos outros.
O essencial é que chegues a Roma antes das Nonas de Junho. Será possível? Chegará esta carta a tempo? Só espero que estejas já na Via Domitia...! Até mandei um mensageiro, para te pedir que te apresses!
Tens de conseguir, César! Preciso desesperadamente de ti e não tenho vergonha de o dizer. Livraste-me de apuros em tempos, no total respeito da legalidade. Tudo o que posso dizer é que se, desta vez, não tiver a tua ajuda, sou muito capaz de fazer o tal aceno para os meus soldados. E não quero fazer isso. Se o fizesse, ficaria na História como outro Sila. E toda a gente odeia Sila. É horrível ser-se odiado, apesar de Sila, aparentemente, nunca se importar com o ódio dos outros.
A carta de Pompeu chegou a Gades no vigésimo primeiro de Maio; de facto, os ventos tinham ajudado o navio que Pompeu contratara. E César estava precisamente em Gades nessa altura.
— De Gades a Roma, por terra, são mil e quinhentas milhas — disse ele a Lúcio Cornélio Balbo Major. — Ou seja, não conseguirei estar em Roma nas Nonas de Junho, nem mesmo que faça uma média diária de cem milhas. Malditos boni!
— Nenhum homem pode fazer cem milhas por dia — disse o pequeno banqueiro de Gades, com um ar ansioso.
— Eu posso, desde que vá numa carruagem veloz, puxada por quatro boas mulas. E desde que possa mudar de animais frequentemente — disse César, calmamente.
— Contudo, a estrada é muito má. Terei de ir por mar.
— A época não é a boa. A carta de Magno prova isso mesmo. Durante cinco dias, apanharam um vento forte de nordeste, o que foi bom para eles, mas seria mau para nós.
— Mas eu tenho sorte, Balbo...!
E César, de facto, tinha sorte, pensou Balbo. Por muito que as coisas parecessem correr mal, aquela sorte mágica — e era mesmo mágica — não o abandonava. No entanto, parecia que era ele quem a fabricava, quem produzia essa sorte, graças à sua força de vontade. Como se, depois de ter decidido um rumo, conseguisse obrigar as forças naturais e não naturais a obedecer-lhe. Aquele último ano constituíra a experiência mais estimulante de toda a vida de Balbo, trabalhando com César e percorrendo com César toda a Hispânia. Quem pensaria que César se faria ao oceano Atlântico e aos seus ventos temíveis, para combater inimigos convencidos de que tinham escapado ao poder de Roma? Mas não tinham. Os navios saíram imediatamente de Olisipo e, com eles, as legiões. Depois, mais viagens até à remota Brigando e aos seus tesouros extraordinários e ao seu povo que sentia pela primeira vez um vento de mudança, uma influência do mar Médio que nunca mais se esbateria. Que dizia César? Não era o ouro, era o poder de Roma que se afirmava cada vez mais, que ia cada vez mais longe. Que tinham eles de especial, aquela pequena raça de uma pequena cidade da rota do sal italiana? Porque eram eles os vencedores do mundo? Porque varriam tudo à sua frente? Não, não como uma onda gigantesca, mas mais como uma pedra de moinho, moendo pacientemente todo o grão que havia para moer. Nunca cediam, os Romanos.
— E em que consistirá agora a sorte de César?
— Para começar, um myoparo. Duas equipas dos melhores remadores que houver em Gades. Nada de bagagens, nem de animais. Passageiros, três: eu, tu e Burgundo. E um vento forte de sudoeste — disse César, com um sorriso imenso.
— Uma coisa de nada... — disse Balbo, sem retribuir o sorriso. Raramente sorria; os banqueiros de Gades, de uma linhagem impecavelmente fenícia, não encaravam a vida ou as circunstâncias de uma forma ligeira. Balbo parecia aquilo que realmente era: um homem subtil e plácido, dotado de uma inteligência e de uma habilidade extraordinárias.
César encaminhava-se já para a porta. — Vou procurar o melhor myoparo. Procura-me um piloto capaz de navegar longe de terra. Vamos pelo caminho mais directo — pelos Pilares de Hércules, uma paragem para água e comida em Nova Cartago, depois a Balear Menor. Daí seguimos directamente para o estreito entre a Sardenha e a Córsega. Temos um milhar de milhas de água à nossa frente e não podemos esperar encontrar os mesmos ventos que, em cinco dias, trouxeram a carta de Magno. Temos doze dias.
— Mais de oitenta milhas por dia. Isso já não é propriamente uma coisa de nada... — disse Balbo, levantando-se.
— Mas não é impossível. Só é preciso que os ventos não sejam adversos. Confia na minha sorte e nos deuses, Balbo! Farei oferendas magníficas aos Lares Permarini e à deusa Fortuna. Eles hão-de ouvir-me.
E os deuses ouviram-no, embora Balbo nunca imaginasse que César conseguisse organizar a viagem e partir de Gades em apenas cinco horas. O questor de César era um jovem particularmente eficiente e ficou entusiasmado quando César lhe disse que teria de organizar o transporte dos bens do governador pela Via Domícia, a estrada que ligava a Hispânia a Roma; os despojos, há muito que tinham partido, acompanhados pela legião que César escolhera para marchar com ele no seu cortejo triunfal. Para sua grande surpresa, o Senado aceitara o seu pedido para um triunfo, sem um único murmúrio de protesto dos boni, mas a carta de Pompeu explicava claramente esse mistério. Porque haveriam de opor-se os boni, se tencionavam minar esse triunfo? Um triunfo condenado. As tropas de César deveriam chegar ao Campus Martius nos Idos de Junho — uma peculiaridade irónica, dado que Célere fixara essa data para o triunfo. Se César fosse autorizado a disputar o cargo de cônsul m absentia e o triunfo se realizasse, seria de facto um triunfo muito pouco espectacular. Soldados esgotados, nada de exibições sumptuosas, os despojos amontoados à toa nos carros. Não era o triunfo por que César lutara. Contudo, chegar a Roma antes das Nonas de Junho era o problema essencial. Os deuses que mandassem um vento forte de sudoeste!
E, de facto, os ventos sopraram de sudoeste, embora não fossem fortes. Um mar muito ameno ajudou os remadores, tal como um pequeno empurrão da vela, mas era um trabalho indubitavelmente esgotante. César e Burgundo remavam também, quatro vezes ao dia e três horas seguidas de cada vez, o que agradava aos remadores profissionais tanto como a amabilidade do seu chefe. O prémio valeria a pena; e por isso empenharam-se a fundo e remaram como nunca, enquanto Balbo e o piloto andavam numa azáfama, enchendo amphorae de água com um nada de um vinho fortificante da Hispânia e distribuindo o precioso líquido por quem o pedia.
Quando o myoparo se aproximou da costa italiana e da foz do Tibre, a tripulação rompeu em gritos de alegria, após o que conduziu, a toda a velocidade, o pequeno monorreme até ao porto de Óstia; a viagem durara doze dias e a chegada ao porto ocorrera duas horas após a alvorada, no terceiro dia de Junho.
Deixando Balbo e Burgundo em Óstia, a fim de pagarem ao piloto e aos remadores do myoparo, César alugou um magnífico cavalo e galopou a toda a brida na direcção de Roma. A sua aventura terminaria no Campo de Marte, mas não os seus problemas; teria de encontrar alguém que corresse a avisar Pompeu. Uma decisão que não agradaria a Crasso, mas uma decisão correcta. Pompeu tinha razão. Ele precisava de César mais do que Crasso. Além disso, Crasso era um velho amigo; acalmaria logo que César lhe explicasse tudo.
A notícia de que César estava no Campus Martius chegou aos ouvidos de Catão e Bíbulo quase tão depressa como aos de Pompeu, já que estavam os três no Senado, suportando mais um debate sobre o destino dos cobradores de impostos do Oriente. A mensagem foi entregue a Pompeu, que soltou um grito de alegria capaz de acordar um morto e mesmo os senadores dos bancos de trás que dormitavam ao sabor dos discursos.
— Desculpa, Lúcio Afrânio, mas tenho de me retirar — cantarolou ele, já a caminho da porta. — Caio César está no Campo de Marte e eu quero ser o primeiro a dar-lhe as boas-vindas!
Este anúncio deixou os poucos senadores presentes tão descoroçoados como os publicam asiáticos. Afrânio, que detinha os fasces em Junho, deu por encerrada a sessão.
— Amanhã voltaremos a reunir, uma hora após o alvorecer — disse Afrânio, sabendo perfeitamente que iria receber o pedido de César para disputar as eleições in absentia e que o dia seguinte seria o último dia antes das Nonas de Junho, altura em que Célere, o organizador das eleições, encerraria a admissão de candidaturas.
— Eu bem lhes disse que ele havia de conseguir — disse Metelo Cipião. — César é como um bocado de cortiça. Por muito que tentemos afundá-lo, volta sempre à tona de água.
— Bom, havia sempre uma possibilidade de ele aparecer a tempo — comentou Bíbulo, com um ar raivoso. — No fim de contas, nós nem sequer sabemos quando é que ele partiu da Hispânia. Ouvimos dizer que ele pensava ficar em Gades até fins de Maio, mas nada nos garantia que ele pretendesse de facto fazer isso. Uma coisa é certa, porém — ele não faz ideia do que o espera.
— Ficará a saber, logo que Pompeu chegue ao Campo de Marte — retorquiu Catão, com evidente dureza. — Porque acham que o Bailarino convocou outra reunião para amanhã? César pedirá para disputar as eleições in absentia, tão certo como eu chamar-me Catão.
— Catulo faz-me muita falta — disse Bíbulo. — É em alturas como estas que a sua influência seria extremamente útil. Na Hispânia, César portou-se muito melhor do que nós alguma vez imaginámos e, por isso, o rebanho sentir-se-á inclinado a autorizar o ingrato a disputar as eleições in absentia. Pompeu e Crasso apoiá-lo-ão. E Mamerco! Ah, dava tudo para que Mamerco morresse!
Catão limitou-se a sorrir. Um sorriso estranho, uma expressão misteriosa.
Pompeu, que já chegara ao Campo de Marte, é que não tinha razões para sorrir, nem mistérios em que se enredar. Encontrou César encostado à parede de mármore do túmulo de Sila, com o freio do cavalo num dos braços; por cima da sua cabeça, via-se o famoso epitáfio: o MELHOR DOS AMIGOS, o PIOR DOS INIMIGOS. Tanto serviria para César como para Sila, pensou Pompeu. Ou para si mesmo, já agora.
— Mas que raio é que estás a fazer aqui? — perguntou Pompeu.
— Pareceu-me um local tão bom como qualquer outro para esperar.
— Não ouviste falar de uma villa no Pinciano?
— Não tenciono ficar aqui por muito tempo.
— Há uma estalagem na Via Lata que não fica muito longe daqui. Vamos até lá. Minício é um bom tipo, e tu precisas de um telhado, César, nem que seja por poucos dias.
— Era mais importante encontrar-te a ti do que encontrar um sítio onde ficar.
Aquela afirmação derreteu o coração de Pompeu; também ele desmontara (desde que voltara ao Senado que mantinha uma pequena cavalariça dentro de Roma), e seguia agora pela larga recta que constituía o começo da Via Flamínia.
— Nove meses de espera foi tempo de sobra para conheceres todas as estalagens da zona — disse César.
— Eu já as conhecia antes de ser cônsul, César.
A estalagem era um estabelecimento muito cómodo e respeitável e o seu proprietário estava habituado a receber militares romanos famosos; saudou Pompeu como se este fosse um amigo que não via há muito tempo e, com evidente amabilidade, deu a entender que sabia muito bem quem era César. Foram conduzidos a uma confortável sala privada, aquecida por dois braseiros. Trouxeram-lhes imediatamente água e vinho e iguarias diversas: anho assado, chouriços, pão fresco, uma salada temperada com azeite.
— Estou cheio de fome! — exclamou César, surpreendido.
— Então, empanturra-te bem empanturrado. Confesso que não me custa nada dar-te uma ajuda. Minício tem imenso orgulho nas suas comidas.
Apesar da boca cheia, César conseguiu dar a Pompeu uma ideia da sua viagem.
— Um vento de sudoeste nesta altura do ano?! — disse o Grande Homem.
— Bom, apesar de ser de sudoeste, nem por isso era um grande vento. Mas chegou para me empurrar na direcção certa. Aposto que os boni não esperavam ver-me tão cedo...
— Catão e Bíbulo apanharam um grande choque, lá isso é verdade... Ao passo que outros, como Cícero, devem ter pensado que tu já vinhas a caminho há algum tempo. Mas esses não tinham espiões na Hispânia Ulterior para os manterem informados das tuas intenções. — Pompeu franziu o cenho. — Cícero...! Mas que pedante...! Sabes que ele teve a ousadia de dizer no Senado que a sua acção contra Catilina era uma “glória imortal”? Em todos os discursos que faz, há sempre uma espécie de prédica sobre aquilo que fez, diz ele, para salvar o país...!
— Ouvi dizer que vocês agora andavam muito amigos — disse César, molhando pão no azeite da salada.
— Foi Cícero que se aproximou de mim. Anda cheio de medo.
— Medo de quê? — perguntou César, recostando-se com um suspiro de satisfação.
— Da mudança no estatuto de Públio Clódio. O tribuno da plebe Herénio levou a Assembleia Plebeia a transferir Clódio do Patriciato para a Plebe. Agora Clódio diz que tenciona disputar o tribunato da plebe e exilar Cícero para sempre, pela execução de cidadãos romanos sem julgamento. Neste momento, Clódio não tem outro objectivo na vida senão esse. E Cícero está muito, muito assustado.
— Bom, posso compreender que um homem como Cícero esteja aterrado por causa de Clódio. Clódio é uma força da natureza. Não é propriamente um louco, mas também não é lá muito saudável. Contudo, Herénio fez mal em usar a Assembleia Plebeia. Um patrício só pode tornar-se plebeu através da adopção.
Minício apareceu para retirar os pratos, criando uma pausa na conversa que tanto estava a agradar a César. Mas logo a retomaram.
— O Senado continua a bloquear os cobradores de impostos? — perguntou César.
— Continua e continuará, graças a Catão. Porém, logo que Célere encerrar a admissão de candidaturas, pedirei a Flávio, o meu tribuno da plebe, que defenda a minha lei das terras. Uma lei desfigurada, graças àquele idiota do Cícero! Conseguiu retirar da minha lei todo o ager publicus anterior ao tribunato de Tibério Graco, depois disse que os veteranos de Sila — precisamente aqueles que se aliaram a Catilina! — deviam ver confirmados os seus direitos à posse de terra, e que Volaterras e Arécio deviam ser autorizadas a manter as suas terras públicas. A maior parte da terra para os meus veteranos terá, por isso, que ser comprada, e o dinheiro terá de vir dos tributos, agora muito ampliados, do Oriente. O que deu ao meu ex-cunhado Nepos uma óptima ideia. Sugeriu que todos os direitos e taxas portuários deviam acabar em toda a Itália e o Senado achou que era uma ideia maravilhosa. Daí que Nepos tivesse obtido um consultum no Senado e tivesse promulgado a sua lei na Assembleia Popular.
— Muito esperto! — disse César, apreciativãmente. — Isso significa que os rendimentos do Estado em Itália se resumem agora a apenas duas coisas — a taxa de cinco por cento, relativa à libertação dos escravos, e as rendas do ager publicus.
— Deixa-me numa bela posição, não deixa...? O Tesouro acabará por não beneficiar nada com o meu trabalho, depois da perda dos rendimentos portuários, da perda do ager publicus quando for transferido para os meus veteranos, e dos custos que a compra de terras suplementares implicará.
— Sabes, Magno — disse César, com uma expressão amargurada —, eu nunca perco a esperança de que, um dia, esses homens brilhantes venham a pensar mais no seu país do que em atacar os seus inimigos. Todos os seus movimentos políticos têm por alvo um dos seus pares ou então destinam-se a proteger os privilégios de apenas uns quantos, e não a defender Roma e os seus territórios. Tu lutaste denodadamente para alargar o poder de Roma no mundo e para encher os cofres públicos. Eles, em contrapartida, lutam denodadamente para te liquidarem — à custa de Roma. Dizias na tua carta que precisavas de mim. Aqui estou eu para te ajudar.
— Minício! — gritou Pompeu.
— Sim, Cneu Pompeu? — perguntou o estalajadeiro, todo alegre.
— Traze-nos tudo o que é preciso para escrever.
— No entanto — disse César, enquanto completava a sua breve missiva —, creio que seria melhor que fosse Marco Crasso a apresentar a minha petição para disputar as eleições in absentia. Vou mandar-lhe esta carta por um mensageiro.
— Porque é que eu não posso apresentar a tua petição? — perguntou Pompeu, aborrecido com o facto de César ter preferido Crasso.
— Porque não quero que os boni se apercebam do acordo que existe entre nós, Pompeu — explicou César, pacientemente. — Tu já os deixaste intrigados quando saíste a correr do Senado, anunciando que ias ter comigo ao Campo de Marte. Não os subestimes, Magno. Eles não são parvos. O elo que nos liga deve manter-se secreto durante algum tempo.
— Sim, sim, eu percebo — disse Pompeu, mais apaziguado. — Só não quero que te ligues mais a Crasso do que a mim. Não me importo que o ajudes no caso dos cobradores de impostos e nas leis do suborno contra os cavaleiros, mas é muito mais importante obter terras para os meus soldados e ratificar as minhas decisões no Oriente.
— Precisamente — disse César, muito sereno. — Manda Flávio à Plebe, Magno. Isso servirá para atirar muita poeira para muitos olhos.
Nesse momento, Balbo e Burgundo chegaram. Pompeu saudou o banqueiro de Gades com grande alegria, enquanto César atentava em Burgundo, que tinha um aspecto muito cansado. Aurélia diria que ele tinha feito mal, ao pôr Burgundo a remar doze horas por dia, durante doze dias, pois Burgundo já não era propriamente um rapaz...
— Vou andando — disse Pompeu.
César acompanhou o Grande Homem até à porta da estalagem. — Mantém-te sereno e faze com que eles pensem que continuas a combater sem qualquer ajuda.
— Crasso não vai gostar, quando souber que me mandaste chamar.
— Provavelmente, nem sequer virá a saber. Ele estava no Senado?
— Não — disse Pompeu, com um sorriso imenso. — Crasso diz que o Senado lhe faz mal à saúde. Que só de ouvir Catão fica com dores de cabeça.
Quando o Senado se reuniu, uma hora depois do alvorecer do quarto dia de Junho, Marco Crasso pediu para falar. Lúcio Afrânio, que aceitava a petição de César para a disputa in absentia das eleições, autorizou-o de bom grado.
— É um pedido perfeitamente razoável — disse Crasso, no final de um longo discurso.
— E este Senado deverá aprová-lo. Todos sabemos que Caio César teve um comportamento absolutamente exemplar no governo da sua província. Ora, a lei do nosso consular Marco Cícero pune precisamente os comportamentos impróprios e não os comportamentos exemplares. Caio César fez tudo correctamente, incluindo a resolução de um difícil problema que afectava há muitos anos a Hispânia Ulterior: de facto, foi ele quem promulgou a melhor e a mais justa das legislações relativas às dívidas que alguma vez encontrei, e nem um único indivíduo, devedor ou credor, se queixou.
— É natural que isso não te surpreenda, Marco Crasso — disse Bíbulo. — Se há alguém que saiba lidar com dívidas, é com certeza Caio César. Provavelmente, também tinha dívidas na Hispânia.
— Se assim é, Marco Bíbulo, julgo que deverias pedir-lhe algumas lições — retorquiu Crasso, mais imperturbável do que nunca. — Se conseguires ser eleito cônsul, ficarás cheio de dívidas, pois terás de subornar uma imensidão de eleitores — pigarreou e esperou por uma resposta; como não a recebesse, prosseguiu. — Repito: é um pedido perfeitamente razoável e o Senado deverá aprová-lo.
Afrânio pediu a intervenção de outros consulares, e todos indicaram que estavam de acordo com Crasso. Quanto aos pretores em funções naquele ano, também não pareciam interessados em acrescentar nada. Até que Metelo Nepos se levantou.
— Por que razão — perguntou Nepos — deverá esta casa conceder um favor que seja a um indivíduo que é um homossexual notório? Já se esqueceram de como o nosso magnífico Caio César perdeu a virgindade? Deitadinho num divã, no palácio do rei Nicomedes, com um pénis real enfiado no cu! Façam o que quiserem, Patres Conscripti, mas se querem conceder a um homossexual o privilégio de se tornar cônsul sem que ele precise de mostrar a sua bela carinha dentro de Roma, não contem comigo! Não concederei privilégios a um homem que tem o ânus todo rebentado, de tanto lhe dar serviço!
O silêncio era total; parecia que ninguém respirava.
— Retira o que disseste, Quinto Nepos! — atirou-lhe Afrânio.
— Vai levar no cu, filho de Áulo! — berrou-lhe Nepos e retirou-se a toda a pressa da Cúria Hostília.
— Escribas, apaguem os comentários de Quinto Nepo — ordenou Afrânio, vermelho de raiva com os insultos que Nepos lhe tinha dirigido. — Não posso deixar de constatar que as maneiras e a conduta de certos membros do Senado têm sofrido uma clara deterioração ao longo destes últimos anos. Quando me tornei senador, o Senado era uma instituição respeitável, uma augusta instituição. Pelo que acaba de passar-se, proíbo Quinto Nepos de assistir às reuniões do Senado enquanto eu detiver os fasces. Alguém deseja intervir?
— Desejo eu, Lúcio Afrânio — disse Catão.
— Fala, então, Marco Pórcio Catão.
Catão pareceu precisar de uma eternidade para se levantar e começar a falar. Mexia-se, respirava fundo para limpar as vias respiratórias, ajeitava o cabelo, ajustava a toga. Por fim, abriu a boca para, como de costume, berrar o seu discurso.
— Patres Conscripti, o estado da moral em Roma é verdadeiramente trágico. Nós, que estamos acima de todos os outros homens, porque somos membros da mais importante instituição governativa de Roma, não estamos a cumprir o nosso dever como guardiães da moral romana. Quantos homens nesta casa são culpados de adultério? Quantas das nossas mulheres são culpadas de adultério? Quantos dos nossos filhos são culpados de adultério? Quantos dos nossos pais são culpados de adultério? O meu bisavô, o Censor, o melhor homem que houve em Roma, tinha opiniões muito firmes em relação à moral, tal como em relação a tudo. Nunca pagava mais do que cinco mil sestércios por um escravo. Nunca se aproveitava da afeição das mulheres romanas, nem se deitava com elas. Depois de a sua mulher, Licínia, ter morrido, contentou-se com os serviços de uma escrava, como é recomendável para um homem que chega aos setenta anos. Mas quando o seu filho e a sua nora se queixaram de que a escrava se tornara a rainha da casa, o Censor deixou a rapariga e casou-se de novo. Mas não escolheu uma mulher da sua classe, pois considerava-se demasiado velho e, portanto, nunca poderia ser um bom marido para uma nobre romana. Por isso, casou-se com a filha do seu liberto Salónio. Essa é a minha linhagem e orgulho-me dela. Catão, o Censor, era um homem que prezava a moral, um homem vertical, uma honra para o seu país. O Censor gostava de tempestades porque a sua esposa se agarrava a ele, cheia de terror, e, assim, ele podia abraçá-la diante dos criados e dos membros livres do seu lar. Porque, como todos sabemos, um marido romano, decente e cumpridor das normas da moral, não deve ceder aos seus apetites sensuais em locais e momentos que não sejam adequados às actividades privadas. Eu modelei a minha própria vida e conduta a partir do exemplo do meu bisavô, o qual, no momento da morte, proibiu que se gastassem somas avultadas com as suas exéquias. A sua pira era modesta e as suas cinzas foram depositadas numa vulgar jarra de barro vidrado. O seu túmulo ainda era mais simples e, no entanto, está sempre cheio de flores, levadas por cidadãos que continuam a admirá-lo. Mas, digam-me, que aconteceria se Catão, o Censor, voltasse às ruas da Roma moderna? Que veriam os seus olhos? Que ouviriam os seus ouvidos? Que pensaria aquele formidável e lúcido intelecto? Estremeço só de pensar nisso, Patres Conscripti, mas não me posso calar! Não creio que ele suportasse viver nesta cloaca a que chamamos Roma. Mulheres embebedam-se e vomitam para as sarjetas. Homens escondem-se em sombrios becos para roubar e matar. Crianças de ambos os sexos prostituem-se às portas de Vénus Erucina. Vi até homens aparentemente respeitáveis erguerem as suas túnicas e agacharem-se para defecarem na rua, a poucos passos de uma latrina pública! A privacidade das necessidades fisiológicas e o pudor na conduta são considerados ultrapassados, ridículos, risíveis. Catão, o Censor, choraria! E iria para casa enforcar-se! Ah, quantas vezes eu tive de resistir à tentação de fazer o mesmo!
— Não resistas, Catão, não resistas nem mais um momento! — exclamou Crasso.
Catão continuou, fingindo não ter ouvido nada. — Roma é um esgoto. Mas que outra coisa poderíamos esperar, quando os homens que estão nesta casa roubaram mulheres a outros homens, ou desprezam a santidade da sua carne e oferecem orifícios indecentes para actos indecentes? Catão, o Censor, choraria. E olhem para mim, Paires Conscripti! Vejam como eu choro! Como pode um estado ser forte, como pode um estado pensar em dominar o mundo, quando os homens que o governam são degenerados e decadentes, quando esses homens não passam de pústulas infectadas? Temos de acabar com esta atracção por coisas irrelevantes como os problemas dos publicam da Ásia e de consagrar um ano inteiro a mondar, a corrigir, a embelezar o jardim moral de Roma! Temos de voltar a considerar a decência como a nossa maior prioridade! Temos de promulgar leis que impeçam homens de violar outros homens, que impeçam delinquentes patrícios de se vangloriar abertamente de relações incestuosas, que impeçam governadores das nossas províncias de explorar sexualmente crianças! As mulheres que cometem adultério deviam ser executadas, tal como acontecia nos velhos tempos. As mulheres que aparecem nas reuniões públicas do Fórum e gritam insultos grosseiros deviam ser executadas — mas não como acontecia nos velhos tempos, porque, nos velhos tempos, nenhuma mulher sonhava sequer em fazer isso! As mulheres servem unicamente para terem filhos e para os criarem! Mas onde estão as leis de que precisamos para instaurar os devidos padrões morais? Essas leis não existem, Patres Conscripti! E, no entanto, se Roma quer sobreviver, essas leis têm de ser promulgadas!
— Até parece — segredou Cícero para Pompeu — que está a falar para os habitantes da República ideal de Platão, e não para homens que têm de chafurdar na merda de Rómulo.
— O que ele pretende é obstruir os trabalhos — disse Pompeu. — Os disparates que ele já disse! Os homens são homens e as mulheres são mulheres. No tempo dos primeiros cônsules, já faziam o mesmo que fazem agora.
— Mas as escandalosas condições do momento presente — atroou Catão — são o resultado directo de uma excessiva exposição à complacência oriental! Desde que estendemos o nosso domínio a regiões como a Anatólia ou a Síria, caímos em vícios horrendos e imundos, importados desses antros de iniquidade! Por cada cereja ou laranja que trazemos dessas terras, para enchermos de frutos a nossa querida terra, trazemos também dez mil perversidades! Digo-o sem rodeios: é errado conquistar o mundo. Deixemos que Roma continue a ser o que era nos velhos tempos, uma terra que seguia as normas da moral e cujos cidadãos trabalhavam sem descanso e não se metiam na vida uns dos outros e estavam-se marimbando para o que acontecia na Campânia ou na Etrúria, e muito menos na Anatólia ou na Síria! Nesses tempos, todos os Romanos eram felizes. A mudança surgiu quando homens ambiciosos e gananciosos se ergueram acima do nível que deveria ser o de todos os homens — temos de controlar a Campânia, temos de impor o nosso poder na Etrúria, todos os Italianos se devem tornar Romanos, e todas as estradas devem conduzir a Roma! O verme começou a roer — o dinheiro que chegava deixou de chegar e o poder embebedava mais do que o vinho! Pensem no número de funerais custeados pelo Estado que temos de suportar nos nossos dias! Quantas vezes, nos velhos tempos, desembolsou o Estado o seu precioso dinheiro para enterrar homens que podiam perfeitamente pagar os seus próprios funerais? E quantas exéquias paga hoje o Estado? Por vezes, até parece que temos um funeral do Estado por nundinum! Eu fui questor urbano e sei muito bem quanto dinheiro público desperdiçamos em funerais e festas! Porque há-de o Estado contribuir para banquetes públicos, a fim de que os proletarii possam empanturrar-se de enguias e ostras e levar os restos para casa? Eu vou dizer-lhes porquê! Para que certos homens ambiciosos possam chegar ao consulado!
Ah! gritam eles, mas os proletarii não me podem dar os seus votos! Eu sou um patriota, só gosto de dar prazer àqueles que não podem tê-lo! Não, os proletarii não podem dar-lhe votos! Mas todos os mercadores que o abastecem de comida e bebidas podem dar-lhe, e dão-lhe, os seus votos! Pensem nas flores que Caio César comprou quando foi edil curul! Pensem na comida e nas bebidas que ele comprou para encher duzentas mil barrigas que não mereciam banquetes! E juntem a tudo isto os vendedores de peixe e de flores que se sentem na obrigação de dar o seu voto a Caio César! Mas o que ele fez é legal, as nossas leis do suborno não lhe podem tocar...
Nesse momento, Pompeu levantou-se e saiu, logo acompanhado por uma multidão de senadores. Quando o Sol se pôs, apenas quatro homens permaneciam na Cúria Hostília para ouvir Catão: Bíbulo, Caio Pisão, Aenobarbo e Lúcio Afrânio, o consternado cônsul que, naquele mês, detinha os fasces.
Pompeu e Crasso enviaram cartas para a estalagem de Minício, onde César se instalara. Apesar de ser um homem corpulento e vigoroso, Burgundo estava muito cansado, pois já não tinha idade para suportar exercícios tão violentos como aquele a que se submetera; estava sentado a um canto da sala privada de César, observando o seu amado senhor, que conversava calmamente com Balbo. O banqueiro de Gades preferira ficar na estalagem a entrar em Roma sem César.
As missivas foram levadas pelo mesmo mensageiro e César leu-as num ápice.
— Bom, parece que não vou poder disputar o cargo de cônsul in absentia — disse ele calmamente. — O Senado parecia disposto a aprovar o meu pedido, mas Catão pôs-se a falar e acabou por obstruir os trabalhos e impedir a votação. Crasso vem ter comigo. Pompeu não virá. Pensa que está a ser vigiado e provavelmente tem razão.
— Oh, César! — exclamou Balbo; os seus olhos abriram-se muito, mas não disse mais nada; Crasso irrompeu nesse momento pela sala, tão furibundo como um toiro raivoso.
— O hipócrita...! O pedante...! Detesto Pompeu Magno e desprezo idiotas como Cícero, mas Catão... era capaz de matá-lo...! Mas que chefe que os boni herdaram...! Catulo, se o visse, imitava o pai e sufocava com os vapores da cal! Quem disse que a incorruptibilidade e a honestidade são as virtudes mais importantes? Eu prefiro lidar com o mais matreiro e nojento dos usurários a mijar para cima de Catão! É um arrivista dos piores...! Muito pior do que todos os Homens Novos que vieram para Roma à procura de posição e fortuna! Mentula! Verpa! Cunnus! Ah...!
Com um sorriso deliciado, César escutou fascinado o amigo. — Meu caro Marco, nunca pensei que precisasse de te dizer isto, mas, por favor, acalma-te! Faz algum sentido teres um ataque de coração por causa de gente como Catão? Ele não vencerá, apesar de toda a propaganda que faz da sua integridade.
— Ele já venceu, César! Tu não podes ser cônsul no dia de Ano Novo! Que vai acontecer agora a Roma? Se Roma não tiver um cônsul capaz de esmagar lesmas como Catão e Bíbulo, podes crer que enlouqueço! Será o fim de Roma! E como é que vou proteger a minha posição junto das Dezoito se tu não fores eleito cônsul sénior?
— Está tudo bem, Marco. Eu serei cônsul sénior no Ano Novo, mesmo que tenha de suportar Bíbulo a meu lado.
A raiva desapareceu; Crasso olhava boquiaberto para César. — Estás a dizer-me que desistes do teu triunfo? — perguntou ele.
— Claro que desisto — retorquiu César; virou-se na cadeira e falou para Burgundo. — Burgundo, é tempo de ires ver Cardixa e os teus filhos. Vai para a Domus Publica e fica lá. Dize à minha mãe que estarei em casa amanhã ao fim da tarde e que me mande a minha toga cândida. Amanhã, ao alvorecer, atravessarei o pomerium.
— César, é um sacrifício demasiado grande! — gemeu Crasso, à beira das lágrimas.
— Não é sacrifício nenhum, Marco! Eu terei mais triunfos, pois não tenciono ir para uma província fácil após o meu consulado. Já me devias conhecer, Marco. Já pensaste, por acaso, que, se tivesse o meu triunfo nos Idos, o cortejo pouco mais seria do que miserável? Não seria digno de mim. Não poderia rivalizar com Magno, cujo cortejo durou dois dias...! Não, quando organizar um triunfo, terá de ser com tempo e calma. E terá de ser o melhor de todos... Eu sou Caio Júlio César, e não Metelo Cabrito Crético. Roma falará do meu cortejo durante gerações. Nunca me disporei a representar papéis secundários, Marco.
— Não creio no que estou a ouvir! Desistir do triunfo? Caio, Caio, o triunfo é o auge da glória de um homem! Olha para mim! Toda a minha vida quis um triunfo e não o tive! É a única coisa que quero antes de morrer!
— Nesse caso, teremos de fazer tudo para que o tenhas. Anima-te, Crasso, por favor. Senta-te e bebe uma taça do melhor vinho de Minício. Ceemos depois. Remar doze horas por dia, durante doze dias, abre o apetite de uma maneira impressionante...!
— Era capaz de matar Catão! — disse Crasso, sentando-se.
— Como eu estou farto de dizer para muitos ouvidos moucos, a morte não é um castigo adequado, nem mesmo para Catão. A morte rouba-nos a mais apetitosa das vitórias, pois poupa ao inimigo a miséria da derrota. Eu adoro estes combates contra os Catões e os Bíbulos. Eles nunca vencerão.
— Como podes estar tão certo disso?
— É simples — disse César, surpreendido. — Eles não querem tanto a vitória como eu.
A raiva desaparecera, mas Crasso não conseguira ainda recuperar a sua expressão impassível, que lhe era peculiar, quando disse para César, algo constrangido: — Queria dizer-te uma coisa que me parece menos importante, embora tu possas ter uma opinião contrária.
— Sim?
Mas Crasso intimidou-se. — Digo-te mais tarde. Temos estado para aqui a falar como se o teu amigo não existisse!
— Por todos os deuses! Balbo, desculpa-me! — exclamou César. — Vem cá, quero apresentar-te um plutocrata ainda mais rico do que tu. Lúcio Cornélio Balbo Major, este é que é o famoso Marco Licínio Crasso.
Um cumprimento entre iguais!, pensou César. Não sei que prazer têm eles em acumular dinheiro, mas a verdade é que os dois juntos talvez fossem capazes de comprar e vender toda a Península Ibérica. E estavam encantados por finalmente poderem conhecer-se! Não, não é estranho que nunca se tivessem encontrado. Quando Crasso esteve na Hispânia, Balbo era ainda um desconhecido. E aquela era a primeira viagem de Balbo a Roma, onde espero sinceramente que venha a residir.
Os três homens tiveram uma refeição particularmente alegre, já que o imperturbável, depois de um período de perturbação, facilmente retomava o seu estado de espírito habitual. Só depois de os pratos terem sido retirados é que Crasso voltou a referir as outras notícias.
— Tenho de te falar de uma coisa, Caio, mas sei que não vais gostar — disse ele.
— Dize lá...
— Nepos fez um breve discurso no Senado acerca da tua petição.
— Contra mim, é claro.
— Completamente — disse Crasso, mas não prosseguiu.
— Então, Marco? O que é que ele disse? Não pode ser assim tão mau...!
— Pior do que tu imaginas.
— Então é melhor que mo digas.
— Disse que não estava disposto a conceder privilégios a um homossexual notório como tu. Essa foi a parte mais educada, digamos assim. Tu sabes como ele é, tem uma língua porca. O resto foi muito explícito e envolveu o rei Nicomedes da Bitínia. — Crasso parou uma vez mais, mas tratou de prosseguir, dado o silêncio de César. — Afrânio ordenou aos escribas que apagassem as declarações de Nepos e proibiu-o de assistir a reuniões do Senado enquanto for ele a deter os fasces. Para dizer a verdade, Afrânio enfrentou muito bem a situação.
Claro que César não estava a olhar para Crasso nem para Balbo, e a luz era escassa. Não se moveu, não havia na sua expressão nada que fosse susceptível de causar alarme. Nesse caso, porque é que a temperatura da sala parecia ter descido tanto e tão de repente?
Após uma pausa, demasiado curta para ser qualificada de silêncio, César retorquiu, com uma voz normal: — Foi um disparate, da parte de Nepos. Para os boni, seria preferível que ele continuasse a assistir às sessões do Senado. Ele deve estar presente em todas as reuniões dos boni — e deve ter-se tornado muito amigo de Bíbulo. Há anos que esperava que voltassem a pegar nessa mentira. Bíbulo fartou-se de falar disso durante algum tempo, mas depois a história morreu. — César pôs um sorriso imenso, mas não parecia um sorriso divertido. — Meus amigos, prevejo que estas eleições venham a ser muito, muito sujas.
— O Senado não gostou nada — disse Crasso. — Até se podia ouvir uma traça a rondar uma toga. Nepos deve ter percebido que quem saiu queimado foi ele, porque, quando Afrânio pronunciou a sua sentença, Nepos desatou com grosserias para ele, chamou-lhe
filho de Áulo
e outras coisas do género, e foi-se embora.
— Nepos decepcionou-me. Imaginava-o mais civilizado.
— Provavelmente, ele é que tem tendências homossexuais — rosnou Crasso. — Quando era tribuno, Nepos comportava-se de uma maneira estranha nas assembleias da Plebe... Claro que, na altura, era divertido... Mas, pensando bem... Os olhinhos que ele fazia e os beijos que ele mandava a matulões como Termo...!
— Nada disso interessa, Marco — disse César, levantando-se após Crasso. — O que interessa é que Nepos atentou contra a minha dignitas. Isso significa que vou ter de atentar contra Nepos.
Quando regressou à sala, depois de ter conduzido Crasso à porta, César encontrou Balbo a limpar as lágrimas.
— A chorar por causa de uma nulidade como Nepos? — perguntou.
— Eu conheço o teu orgulho, César, e sei bem como essas coisas magoam...
— Sim, realmente magoam — disse César, suspirando. — Se fosse verdade, era outra coisa. Mas não é verdade. Seja como for, em Roma, uma acusação de homossexualidade é um rude golpe para a dignitas de qualquer homem.
— Creio que Roma está errada — disse Balbo, afavelmente.
— Também eu, para dizer a verdade. Mas a minha opinião é irrelevante. O que conta é a mós maiorum, os nossos séculos de usos e tradições. A homossexualidade é condenada, não te saberei dizer porquê, mas o certo é que é. Sempre foi condenada. Por que achas que, há duzentos anos, houve tanta resistência em Roma aos costumes gregos?
— Mas também em Roma deve haver homossexuais.
— Multidões, Balbo, e não apenas entre aqueles que não pertencem ao Senado. Catão, o Censor, dizia que Cipião Africano era homossexual e sabia-se que Sila o era. Mas não te preocupes com o que se passou, Balbo. Se a vida fosse fácil, seria uma imensa chatice...!
Cônsul sénior e organizador das eleições, Quinto Cecílio Metelo Célere instalara a sua tenda no baixo Fórum, muito perto do tribunal do pretor urbano, e aí analisava as muitas candidaturas apresentadas por aqueles que desejavam disputar as eleições para pretor ou cônsul. Os seus deveres abarcavam também as outras duas eleições, que se realizavam mais tarde, em Quinctilis — o pretexto que Catão aproveitara para antecipar o encerramento da apresentação de candidaturas para as eleições curuis. Dessa forma, dizia Catão, o organizador das eleições poderia consagrar-se inteiramente às candidaturas curuis, antes de ter de tratar das eleições do Povo e da Plebe.
O homem que se apresentava como candidato a uma magistratura, qualquer que ela fosse, vestia a toga cândida, um traje impecavelmente branco — o que não admirava, pois ficava vários dias a branquear ao sol e, no fim de tudo, era esfregado com cré. Os clientes e os amigos acompanhavam-no sempre. E quanto mais importantes fossem, melhor. Os candidatos com fraca memória contratavam um nomenclator, cujo dever consistia em segredar ao candidato os nomes de todos os homens com quem se cruzava — ainda que, naqueles tempos, não fosse considerado correcto recorrer a tais serviços, pois os nomenclatores tinham sido ilegalizados.
Um candidato que fosse esperto munia-se de toda a sua paciência e preparava-se para escutar todos os cidadãos que quisessem falar com ele; não podia evitar ninguém, nem mesmo os mais prolixos. Se encontrava uma mãe com um bebé ao colo, sorria para a mãe e beijava a criancinha — claro que nem mãe nem bebé votariam, mas ela podia convencer o marido a votar. Ria-se estrepitosamente quando lhe contavam uma anedota, chorava copiosamente quando lhe contavam desgraças as mais sortidas, punha uma máscara grave e séria quando lhe falavam de assuntos sérios e graves; mas nunca exibia a máscara do aborrecimento ou do desinteresse e fazia os possíveis e os impossíveis para não dizer a coisa errada à pessoa errada. Apertava tantas e tantas mãos que, à noite, tinha de meter a mão direita em água fria. Convencia os amigos famosos pelas capacidades oratórias a subir aos rostra ou à plataforma de Castor e a dirigir-se aos frequentadores do Fórum. E que diziam esses amigos? Que o candidato era um indivíduo notável, insuperável, um pilar da sociedade, alguém que tinha o atrium a abarrotar de imagines de uma infinidade de gerações. Quanto aos candidatos rivais, eram todos sinistros, desonestos, corruptos, antipatrióticos, vis, sodomitas, coprófagos, violadores de crianças, incestuosos, animalescos, depravados, preguiçosos, glutões, alcoólicos. E o candidato prometia tudo a toda a gente, por muito estapafúrdias que fossem as promessas.
Muitas eram as leis que Roma promulgara para constranger um candidato: não deveria contratar um nomenclator, não poderia contratar espectáculos com gladiadores, só poderia receber em casa os parentes e os amigos mais íntimos, não podia dar presentes — e, obviamente, não podia subornar eleitores. No entanto, o que acontecia era que Roma fazia vista grossa a algumas dessas proibições (era o caso do nomenclator, por exemplo); quanto às outras, como os espectáculos com gladiadores e os banquetes, depressa deixaram de fazer sentido, pois o dinheiro que custavam era melhor empregue no suborno.
Curiosamente, os Romanos que consentiam em ser comprados não o escondiam. Sentiam-se honrados por isso e aqueles que negavam o suborno eram mal vistos. Abaixo dos cavaleiros das Dezoito, raros eram aqueles que recusavam o suborno — sempre era uma soma que dava muito jeito. Os maiores beneficiários eram homens da Primeira Classe abaixo do nível das Dezoito Centúrias séniores e também, embora de forma menos gritante, os homens da Segunda Classe. Com a Terceira, a Quarta e a Quinta Classes não valia a pena gastar dinheiro, pois os seus membros raramente eram chamados a votar nas eleições centuriais. Um homem capaz de atrair todas as Centúrias não precisava de subornar a Segunda Classe, já que as Centúrias estavam cheias de eleitores da Primeira Classe — que também eram os mais ricos, pois as Centúrias eram classificadas consoante os meios financeiros.
Nas eleições tribais, o suborno era mais difícil, mas não impossível. Nenhum candidato a edil ou tribuno da plebe se dava ao trabalho de subornar os membros das quatro vastas tribos urbanas; em vez disso, concentrava-se nas tribos rurais, que tinham poucos membros na cidade de Roma durante o período eleitoral.
A soma gasta pelo candidato dependia unicamente dele. Podia ser de mil sestércios para cada um dos dois mil eleitores, ou de cinquenta mil sestércios para cada um dos quarenta votantes com influência suficiente para influenciarem multidões. Os clientes eram obrigados a votar nos seus patronos, mas o dinheiro também ajudava. Um total de dois milhões de sestércios era a soma que um homem extremamente rico poderia dispor-se a gastar; nalgumas eleições, porém, havia subornadores avarentos, o que lhes valia contundentes observações da parte daqueles que esperavam ser subornados.
O dinheiro do suborno era distribuído, na sua maior parte, antes do dia da votação, embora a quase totalidade dos candidatos subornadores colocasse escrutinadores perto dos cestos — e esses escrutinadores, na medida do possível, procuravam verificar que nome os votantes inscreviam nas suas tabuinhas. O perigo estava em subornar a pessoa errada; Catão costumava reunir um bom número de homens e convencia-os a aceitar subornos, após o que os usava como testemunhas no tribunal que julgava esses casos. Isso não era desonroso, já que o homem subornado votaria obviamente como lhe fora mandado, mas não sentia qualquer problema em fornecer provas para a acusação, pois fora recrutado para fazer isso mesmo antes de receber o dinheiro. Por esse motivo, quase todos os homens processados por suborno eleitoral tinham conseguido ser eleitos, desde Públio Sila a Autrónio ou Murena. Os tribunais não costumavam preocupar-se com os vencidos.
Normalmente, havia um máximo de dez candidatos consulares, sendo seis ou sete o número mais usual (e pelo menos metade pertenciam às Famílias Famosas). O eleitorado costumava ter uma variedade de opções muito grande. Porém, no ano em que César disputou o cargo de cônsul, a deusa Fortuna favoreceu Bíbulo e os boni. Muitos dos pretores do ano de César tinham continuado nas suas províncias, e por isso não estavam em Roma para disputar uma eleição que era tão claramente favorável a um homem — de facto, todos os políticos romanos sabiam que César não perderia. E esse facto reduziu as hipóteses de todos os outros. Para além de César, só outro homem poderia ser cônsul — e esse homem teria de ser o cônsul júnior. César estava certo de que ficaria em primeiro lugar — o que significava que seria o cônsul sénior. Daí que muitos homens que aspiravam ser cônsules tivessem decidido não disputar as eleições no ano de César. Uma derrota afectá-los-ia fortemente.
Por conseguinte, os boni decidiram apostar tudo num único homem, Marco Calpúrnio Bíbulo, e trataram de persuadir todos os potenciais candidatos de famílias antigas ou nobres a não disputar as eleições. Bíbulo tinha de ser o cônsul júnior! Nesse cargo, estaria em posição de dificultar e frustrar os movimentos de César.
O resultado foi este: havia apenas quatro candidatos, e só dois deles eram provenientes de famílias nobres — César e Bíbulo. Os dois outros candidatos eram Homens Novos, e, desses dois, apenas um tinha algumas hipóteses — Lúcio Luceio, um famoso advogado e um adepto leal de Pompeu. Claro que Luceio subornaria, pois, para além de ser rico, contava com o apoio de Pompeu. O total oferecido por Luceio serviria, noutras circunstâncias, para lhe assegurar a eleição. Só que Bíbulo era um Calpúrnio, tinha os boni a seu lado e também ele — sem a menor dúvida — subornaria.
César atravessou o pomerium ao nascer do dia.
Acompanhado apenas por Balbo, desceu a Via Lata até à Colina dos Banqueiros, entrou na cidade pela Porta Fontinalis e desceu até ao Fórum, com a prisão das Lautumiae à direita e a Basílica Porcia à esquerda. Apanhou Metelo Célere de surpresa, pois o organizador das eleições curuis estava a fitar enlevado uma águia empoleirada no telhado de Castor, ignorando todas as pessoas que vinham do lado da prisão.
— Um auspício interessante — comentou César.
Célere ficou boquiaberto, engasgou-se, juntou todos os seus papéis numa pilha e, de um salto, levantou-se. — Vieste demasiado tarde, já encerrei a admissão de candidaturas! — exclamou.
— Francamente, Célere, não ousarás atentar dessa forma contra as leis vigentes. Estou aqui para declarar a minha candidatura ao consulado nas Nonas de Junho. A tua tenda está aberta e a funcionar plenamente, de acordo com as normas aprovadas pelo Senado. Quando aqui cheguei, estavas mais do que preparado para o trabalho que te incumbe. Portanto, não tens outra alternativa senão aceitar a minha candidatura. Não existe qualquer impedimento.
De súbito, o baixo Fórum ficou um mar de gente; todos os clientes de César estavam lá, bem como um dos homens mais importantes de Roma. Célere sabia que não podia atrever-se sequer a fechar a sua tenda. O homem em causa era Marco Crasso, que avançou na direcção de César e se postou ao lado dele.
— Há algum problema, César? — perguntou ele, com uma voz ameaçadora.
— Que eu saiba, não. Então, Quinto Célere?
— Não apresentaste as contas da tua província.
— Apresentei, sim, Quinto Célere. Chegaram ao Tesouro ontem de manhã, com instruções para serem imediatamente analisadas. Queres ir comigo ao templo de Saturno para ver se há alguma discrepância?
— Aceito a tua candidatura ao consulado — disse Célere. — Idiota! — rosnou. — Abandonaste o teu triunfo para quê? Bíbulo vai atar-te de pés e mãos, disso podes estar certo! Devias ter esperado pelo próximo ano.
— No próximo ano não haveria Roma, se Bíbulo fosse deixado à vontade. Ou melhor, se Bíbulo nada fizesse e proibisse tudo.
— Ele proibirá tudo, se tu fores o seu sénior!
— A pulga que se atreva...
César virou as costas a Célere, pôs o braço por cima dos ombros de Crasso e avançou para uma multidão extática mas pesarosa, triste com a perda do triunfo de César e alegre pelo seu regresso a Roma.
Por um momento, Célere observou aquela recepção emocionada; depois, fez um gesto para os seus assistentes. — Esta tenda está fechada — disse ele, levantando-se. — Lictores, vamos para casa de Marco Calpúrnio Bíbulo — e depressa!
Como eram as Nonas e não havia nenhuma reunião do Senado, Bíbulo estava em casa quando Célere chegou.
— Adivinha quem acaba de se declarar candidato? — disse ele, irrompendo pelo gabinete de Bíbulo.
O rosto magro de Bíbulo ficou ainda mais pálido do que o costume — o que era muito difícil. — Estás a brincar...!
— Não, não estou — disse Célere, afundando-se numa cadeira e olhando de relance, com evidente animosidade, para o ocupante da cadeira reservada aos convidados importantes, Metelo Cipião. Porque é que aquele mentula tinha de estar ali? — César atravessou o pomerium e entregou o seu imperium.
— Mas... e o triunfo?
— Eu disse-te — observou Metelo Cipião — que ele acabaria por vencer. E sabem por que razão ele vence sempre? Porque não pára para contar os custos. Ele não pensa como nós. Nenhum de nós teria desistido de um triunfo, já que eleições consulares, há-as todos os anos.
— O homem é louco — disse Célere.
— Muito louco ou muito são, nunca tive a certeza quanto a isso — disse Bíbulo, e bateu as palmas. Quando um criado apareceu, ordenou-lhe: — Manda chamar Marco Catão, Caio Pisão e Lúcio Aenobarbo.
— Um conselho de guerra? — perguntou Metelo Cipião, suspirando perante a perspectiva de mais uma causa perdida.
— Sim, sim! Embora te avise desde já, Cipião: não voltes a dizer que César vence sempre! Não precisamos de um profeta da desgraça e, no que toca a profetizar desgraças, tu estás ao nível de Cassandra!
— Prefiro Tirésias! — ripostou Metelo Cipião. — Não sou nenhuma mulher!
— Bom, ele foi mulher por um breve período — riu-se Célere. — E ainda por cima era cego! Tens visto ultimamente algumas cobras a copular, Cipião?
César chegou à Domus Publica já depois do meio-dia. Tudo contribuíra para o atrasar — a multidão que o fora ver ao Fórum, as pessoas que o detinham para o saudar ou falar com ele, e também Balbo, que tinha de ser apresentado a todos os homens proeminentes com quem César se cruzava.
Depois, demorou mais algum tempo a instalar Balbo numa das suites para convidados que havia no piso de cima e a saudar a mãe, a filha e as vestais. Até que, não muito antes da refeição da tarde, pôde fechar a porta do seu gabinete, desligar-se inteiramente do mundo e reflectir seriamente acerca da sua situação.
O triunfo era uma coisa do passado; não valia a pena pensar nisso. Muito mais importante era decidir o que fazer a seguir — e adivinhar o que os boni fariam a seguir. César não deixara de reparar na súbita e apressada partida de Célere: e não duvidava que, nesse preciso momento, os boni estivessem reunidos em conselho de guerra.
Lamentava que Célere e Nepos se tivessem tornado seus inimigos. Haviam sido excelentes aliados...! Por que razão haviam decidido hostilizá-lo de forma tão brutal? Pompeu era o seu verdadeiro alvo, mas nenhum deles tinha provas de que César, uma vez cônsul, tencionasse apoiar Pompeu. Sim, era verdade que sempre defendera Pompeu no Senado, mas nunca tinham sido amigos íntimos, nem havia entre eles qualquer elo de sangue. Pompeu não oferecera a César o cargo de legado enquanto estivera no Oriente; não havia amicitia entre eles. Teriam os Irmãos Metelos sido obrigados a virar-se contra todos os inimigos dos boni, como preço da sua admissão nas hostes dessa facção? Extremamente improvável, dada a influência e o peso político que os Irmãos Metelos possuíam. Não tinham a mínima necessidade de adular os boni. Estes, pelo contrário, é que fariam tudo para os conquistar.
Mais intrigante ainda era aquele ataque indecente de Nepos no Senado; revelava um rancor impressionante, uma inimizade muito pessoal. Mas porquê? Dois anos antes, não o odiavam, pois tinham colaborado, e de que maneira, com ele. César não era nenhum Pompeu, não estava sujeito ao tipo de insegurança que afectava Pompeu, não se preocupava com o facto de as pessoas o estimarem ou desprezarem; o seu senso comum informava-o agora de que, dois anos antes, essa inimizade não existia. Nesse caso, por que raio é que os Irmãos Metelos se tinham virado contra ele? Porquê? Múcia Tércia? Sim, por todos os deuses... Múcia Tércia! Que dissera ela aos seus irmãos para justificar a sua conduta durante a ausência de Pompeu? O facto de ter dado o seu nobre corpo a um homem como Tito Labieno não poderia ter agradado aos proeminentes Metelos. E, no entanto, os irmãos, para além de lhe terem perdoado, haviam-na defendido contra Pompeu! Teria Múcia Tércia acusado César, que ela conhecia desde que casara com o jovem Mário, vinte e seis anos antes? Ter-lhes-ia dito que o sedutor era afinal César e não Labieno? Um boato passa por muitas bocas, mas só de uma procede. A fonte de tudo. Haveria melhor fonte do que Múcia Tércia?
Pois muito bem: os Metelos eram agora seus inimigos. Inimigos encarniçados. Bíbulo, Catão, Caio Pisão, Aenobarbo e uma multidão de boni menos importantes, como Marco Favónio e Munácio Rufo, tudo fariam (excepto matá-lo) para o derrubar. Restava Cícero. O mundo estava cheio de homens que nunca conseguiam tomar uma decisão, homens que namoravam este grupo, que adulavam aquele grupo, e que acabavam por não ter aliados e por ficar reduzidos a poucas amizades. Esse era o caso de Cícero. A instabilidade personificada. Qual a sua posição naquele momento? Ninguém sabia. Provavelmente, nem o próprio Cícero sabia. Num momento, adorava o seu querido Pompeu, logo a seguir odiava tudo o que Pompeu era ou representava. Que hipóteses deixava isso a César, que era amigo de Crasso? Sim, era melhor não nutrir nenhuma esperança em relação a Cícero...
O mais sensato era formar uma aliança política com Lúcio Luceio. César conhecia-o bem porque tinham trabalhado juntos nos tribunais (a maior parte das vezes com César a presidir). Luceio era um advogado brilhante, um esplêndido orador e um homem inteligente que merecia enobrecer-se a si e à sua família. Luceio e Pompeu podiam dar-se ao luxo de subornar, sem dúvida que subornariam. Mas bastaria subornar? Quanto mais César pensava nisso, menos confiante se sentia. Se ao menos o Grande Homem tivesse apoiantes no Senado e nas Dezoito...! O problema é que não tinha, e sobretudo não os tinha no Senado — o que resultava do seu enraizado desprezo pela lei e pela constituição não escrita de Roma. Pompeu havia humilhado o Senado quando o obrigara a autorizá-lo a disputar o cargo de cônsul sem nunca ter sido senador. E os Patres Conscripti dessa altura não tinham esquecido. Afinal, não passara assim tanto tempo. Apenas uma década. Os únicos adeptos leais de Pompeu no Senado eram Picentinos: homens como Petreio, Afrânio, Gabínio, Lólio, Labieno, Luceio, Herénio — homens que não contavam. Nunca conseguiriam atrair os votos dos senadores das últimas bancadas — a menos que estes fossem também naturais de Piceno. O dinheiro podia comprar alguns votos, mas a logística que o suborno implicava — a distribuição de dinheiro bastante por votantes bastantes — derrotaria Pompeu e Luceio, se, como se previa, os boni também decidissem subornar.
Portanto, os boni também subornariam. Ah sim, sem a menor dúvida. E Catão não denunciaria esse suborno. Logo, não havia a menor possibilidade de o suborno dos boni ser descoberto — a menos que César adoptasse a táctica de Catão. E César não faria isso. Não por uma questão de princípio, mas apenas porque não tinha tempo, nem sabia o que havia de fazer para recrutar pessoas dispostas a denunciar o suborno. Catão aperfeiçoara a sua arte — praticava-a há anos... Portanto, César, prepara-te para a acção — quer queiras quer não, vais ter Bíbulo a teu lado, como teu colega júnior...
Que mais poderiam eles fazer? Negar o acesso às províncias aos cônsules do ano seguinte. E podiam vir a ter êxito. Nesse momento, as duas Gálias eram as províncias consulares, o que se devia aos problemas levantados pelos Alóbroges, pelos Éduos e pelos Séquanos. As Gálias eram normalmente governadas em conjunto: a Gália Italiana servia como base de recrutamento e abastecimento para a Gália Transalpina; um dos governadores combatia, e o outro funcionava como uma espécie de rectaguarda. Os cônsules daquele ano, Célere e Afrânio, ficariam com as Gálias no ano seguinte — Célere combateria do outro lado dos Alpes, Afrânio apoiá-lo-ia do lado de cá dos Alpes. Seria fácil prorrogar os seus mandados por mais um ano ou dois. O que não tinha nada de invulgar — a maior parte dos actuais governadores de províncias encontrava-se em funções há dois ou mesmo três anos.
Como os Alóbroges se tinham aquietado — toda a gente parecia estar de acordo quanto a isso —, os problemas da Gália Transalpina resultavam mais de lutas intertribais do que da animosidade em relação a Roma. Mais de um ano antes, os Éduos tinham-se queixado amargamente ao Senado de que os Séquanos e os Arvernos haviam lançado incursões em território éduo; o Senado não ligara às queixas. Agora, era a vez de os Séquanos se queixarem. Tinham firmado uma aliança com uma tribo germana do outro lado do Reno, os Suevos, e dado ao rei Ariovisto dos Suevos um terço das suas terras. Infelizmente, Ariovisto achava que um terço não chegava. Queria dois terços. Depois, os Helvécios começaram a sair dos Alpes, procurando novas terras no vale do Ródano. Nenhum desses problemas interessava verdadeiramente a César: deixava de bom grado a Célere a tarefa de enfrentar as eventuais guerras entre as poderosas tribos gaulesas — e a previsível mortandade.
César queria a província de Afrânio, a Gália Italiana. Já definira o seu rumo: Nórico, Mésia, Dácia, as terras em torno do rio Danúbio até ao mar Euxino. As suas conquistas ligariam a Itália às conquistas de Pompeu na Ásia, e as fabulosas fortunas daquele imenso rio pertenceriam a Roma, dariam a Roma uma estrada por terra até à Ásia e ao Cáucaso. Se o velho rei Mitridates pensara que poderia fazê-lo, deslocando-se de oriente para ocidente, porque não haveria César de fazê-lo, deslocando-se no sentido contrário?
As províncias consulares continuavam a ser atribuídas pelo Senado, de acordo com uma lei promulgada por Caio Graco; essa lei estipulava que as províncias deviam ser dadas aos cônsules do ano seguinte antes da eleição desses cônsules. Dessa forma, os candidatos ao consulado do ano seguinte sabiam, muito tempo antes, para que províncias iriam.
César considerava que era uma lei excelente, pois pretendia prevenir que um cônsul (já depois de eleito, naturalmente) desencadeasse qualquer conspiração para obter uma província. Tendo em conta as circunstâncias, César tinha toda a vantagem em saber o mais rapidamente possível qual seria a sua província. Se as coisas não se passassem como ele queria — se o Senado negasse as províncias aos cônsules do ano seguinte, por exemplo —, então a lei de Caio Graco dava-lhe pelo menos dezassete meses para manobrar, para pensar e para planear a melhor forma de obter a província que queria. A Gália Italiana, tinha de ficar com a Gália Italiana! Era possível que Afrânio constituísse um obstáculo mais forte do que Célere... Estaria Pompeu disposto a não premiar Afrânio (como lhe prometera) e a apoiar César, um cônsul sénior que estaria sempre do seu lado?
Durante o seu governo da Hispânia Ulterior, o pensamento de César mudara um pouco. A experiência de governação fora francamente enriquecedora. Tal como o facto de estar fora de Roma. A distância permitira-lhe entender muitas coisas que até então lhe tinham escapado. Certas ideias modificaram-se. Mas os seus objectivos continuavam a ser os mesmos: seria não só o Primeiro Homem de Roma, mas o maior de todos os Primeiros Homens de Roma.
Contudo, apercebia-se agora de que não conseguiria atingir os seus objectivos segundo os velhos processos. Homens como Cipião Africano e Caio Mário tinham passado do consulado a um comando militar com um passo de gigante — e a magnitude desse comando militar fora a base da sua influência, do seu poder, de uma fama que perdurava. Catão, o Censor, derrubara Cipião Africano depois de Cipião se ter tornado o Primeiro Homem de Roma, e Caio Mário derrubara-se a si mesmo devido à erosão da sua mente. Nenhum daqueles homens fora obrigado a enfrentar uma oposição organizada e maciça como os boni. A presença dos boni alterara radicalmente a situação.
César entendia agora que não poderia chegar lá sozinho, que precisava de aliados mais poderosos do que os homens de uma facção criada por ele mesmo e para si mesmo. A sua facção estava a formar-se a bom ritmo e integrava homens como Balbo, Públio Vatínio (cuja riqueza e inteligência o tornavam um homem extremamente válido), o grande banqueiro romano Caio Ópio, Lúcio Pisão, desde que Pisão o salvara dos usurários, Aulo Gabínio, Caio Octávio (o marido da sua sobrinha e um indivíduo extremamente rico, para além de ser pretor).
Precisava de Marco Licínio Crasso. Era extraordinário que a sua sorte lhe tivesse lançado Marco Crasso nos braços; os contratos relativos à cobrança de impostos constituíam um desenvolvimento que ninguém poderia ter previsto. Se, como cônsul sénior, resolvesse os problemas de Crasso, todos os adeptos de Crasso o apoiariam.
Mas também precisava de Pompeu, o Grande.
Sim, preciso de Pompeu Magno. Mas como hei-de prendê-lo a mim, depois de ter conseguido terras para os seus soldados e ratificado as suas decisões no Oriente? Pompeu não é um verdadeiro Romano; nem é grata a sua natureza. Não sei como, mas tenho de o conseguir. Sem me submeter ao seu domínio, tenho de mantê-lo do meu lado!
Nesse preciso instante, Aurélia invadiu a sua privacidade.
— Chegaste no momento certo — disse ele, sorrindo para a mãe e levantando-se para a ajudar a sentar-se, uma cortesia que nele era rara. — Mater, já sei para onde vou.
— Isso não me surpreende, César. O teu limite são as estrelas.
— Se não as estrelas, pelo menos os quatro cantos do mundo. Aurélia franziu o sobrolho. — Com certeza que te contaram
o que Metelo Nepos disse no Senado...
— Foi Crasso que mo contou. Muito preocupado, coitado.
— O caso tinha de voltar à superfície, mais tarde ou mais cedo. Que vais fazer?
Agora era César quem franzia o sobrolho. — Não sei muito bem... Embora esteja muito contente por não ter estado no Senado para o ouvir... Podia tê-lo morto, e isso não teria sido benéfico para a minha carreira. Achas que lhe atire beijinhos? Seria uma maneira de atirar as suspeitas para cima dele... Crasso acha que Nepos tem inclinações homossexuais...
— Não faças nada — disse ela, firmemente. — Ignora a acusação e ignora Nepos. A tua colecção de corações femininos é mais vasta do que a de Adónis. Nunca tiveste nenhuma ligação com um homem, e os teus inimigos, apesar de todas as suas tentativas, nunca conseguiram apontar um nome. Tirando o velho Nicomedes, coitado. É a única alegação que conseguiram formular, em cerca de vinte e cinco anos. Só o tempo lhe tirará substância, César. Tenho-me apercebido de que tens cada vez mais dificuldade em controlar a tua cólera, mas peço-te que a controles, sempre que o assunto em causa for referido. Ignora, ignora, ignora.
— Sim, tens toda a razão — suspirou. — Sila costumava dizer que, em toda a história de Roma, fora ele quem tivera mais dificuldades para chegar a cônsul e quem mais problemas tivera de enfrentar depois de se tornar cônsul. Mas é muito possível que, a esse nível, o teu filho acabe por eclipsá-lo.
— Essa é boa! Sila ergueu-se acima de todos e continua a erguer-se.
— Pompeu detestaria ser odiado como Sila era odiado. Porém, pensando bem, creio que prefiro ser odiado a afundar-me na obscuridade. Nunca se sabe o que o futuro nos traz. Tudo o que podemos fazer é prepararmo-nos para o pior.
— E agir — disse Aurélia.
— Sim, agir. Vamos comer? Continuo a compensar o que perdi, depois de tanto remar.
— De facto, vinha dizer-te que ia servir o almoço. — Levantou-se. — Gosto do teu Balbo. Um verdadeiro aristocrata, não é?
— Tal como eu, também Balbo possui uma linhagem impecável que remonta a um milhar de anos. É Fenício. O seu verdadeiro nome é absolutamente surpreendente — Kinahu Hadasht Byblos.
— Três nomes? Sim, então é um nobre.
Saíram do gabinete, percorreram o corredor e viraram na direcção da sala de jantar.
— Não tem havido problemas com as vestais? — perguntou.
— Nenhum.
— E o meu pequeno melro?
— Cada vez mais crescido...!
Nesse momento, Júlia vinha a subir as escadas e César pôde apreciá-la tranquilamente. Ah, o que ela tinha crescido na sua ausência! E tão bela que estava! Ou as suas opiniões seriam o resultado dos preconceitos naturais de um pai?
Não, de facto não eram. Júlia herdara a ossatura de César, que este herdara de Aurélia. Era ainda tão branca que a sua pele brilhava e a sua bela cabeleira quase não tinha cor, uma combinação que a dotava de uma requintada fragilidade que se reflectia nos enormes olhos azuis, cercados por ténues sombras violeta. Tão alta como um homem médio, o seu corpo era talvez demasiado esguio e os seus seios demasiado pequenos para o gosto masculino, mas havia nela um encanto capaz de arrebatar muitos homens. Tê-la-ia desejado, se não fosse seu pai? Não sei se a teria desejado, mas creio que a teria amado. Ela é uma verdadeira Júlia, fará os seus homens felizes.
— Vais fazer dezassete anos em Janeiro — disse ele, depois de ter colocado a cadeira dela em frente da dele, e Aurélia diante de Balbo, que ocupava o locus consularis. — Como está Bruto?
Júlia respondeu serenamente, embora a sua expressão, como o pai notou, não se animasse quando ele pronunciou o nome do noivo. — Está bem, tatá.
— Tem-se distinguido no Fórum?
— Mais nos círculos editoriais. Os seus epítomes são muito apreciados — sorriu. — Para dizer a verdade, acho que ele prefere os negócios. É pena que tenha de ser senador.
— Pode seguir o exemplo de Marco Crasso... O Senado não o limitará, se ele for esperto.
— Ele é esperto. — Júlia respirou fundo. — Bruto subiria muito mais na vida pública se a mãe o deixasse em paz.
No sorriso de César, não havia qualquer sinal de raiva. — Concordo inteiramente contigo. Muitas vezes disse a Servília que não fizesse do filho um coelhinho dócil e enfermo. Infelizmente, não há nada a fazer: Servília é Servília.
O nome chamou a atenção de Aurélia. — Eu sabia que tinha mais qualquer coisa para te dizer. Servília quer ver-te.
Mas César viu Bruto primeiro; Bruto chegou no preciso momento em que os quatro saíam da sala de jantar.
Pobre Bruto! O tempo não o ajudara nada... Tão feio como sempre, apertou molemente a mão do futuro sogro, e olhou para todo o lado excepto para os olhos de César, uma característica que sempre irritara César, pois associava-a a personalidades manhosas e traiçoeiras. O horrendo acne parecia ter piorado, embora tivesse já vinte e três anos, idade mais do que suficiente para ter uma pele limpa. Se não fosse tão moreno, o restolho que se espalhava pelas faces e pelo queixo não teria um aspecto tão detestável; não admirava que preferisse a escrita à oratória. Se não fosse a sua riqueza, se não fosse a sua linhagem impecável, quem poderia levá-lo a sério? No entanto, Bruto continuava profundamente apaixonado por Júlia. Simpático, gentil, fiel, afeiçoado. Os seus olhos, quando a fitavam, enchiam-se de ardor. Segurava a mão de Júlia como se esta pudesse partir-se. Não, César não precisava de se preocupar com a virtude da filha! Bruto nunca tentara nada, nem tentaria... Esperaria até ao dia do casamento. Esperaria até ao dia do casamento... Nesse momento, ocorreu a César que Bruto não tinha por certo qualquer tipo de experiência sexual. O casamento podia fazer-lhe bem, e a vários níveis — tanto à pele como ao espírito. Pobre Bruto! A deusa Fortuna não fora amável para com ele ao dar-lhe por mãe uma harpia. Uma reflexão que o levou a pensar como se daria Júlia com uma sogra como Servília. Seria a filha mais uma a quem a harpia deixaria sem dentes nem garras, para sempre intimidada, e obrigada a uma perpétua obediência?
César encontrou-se com a sua harpia no dia seguinte, ao fim da tarde, nos seus aposentos da Vicus Patricii. Sim, aquela mulher tinha quarenta e cinco anos, mas não parecia. A sua voluptuosa figura não fora afectada pela gordura, os seus belos seios mantinham-se firmes; de facto, Servília continuava com um aspecto magnífico.
Em vez de um assalto frenético, Servília ofereceu-lhe uma lenta e erótica languidez, absolutamente irresistível: uma emaranhada teia sensual que ela ia tecendo, desenhando complexos padrões que o reduziam a um êxtase poderoso. Nos primeiros tempos da sua ligação, César conseguia manter uma erecção durante horas, sem sucumbir ao orgasmo; contudo, como ele próprio admitia, Servília acabara por vencê-lo. Quanto mais a conhecia, menos capaz era de resistir ao seu feitiço sexual. O que significava que a sua única defesa consistia em esconder dela esses factos. Nunca revelar a Servília informações vitais! Nem pensar! Servília utilizaria essas informações, servir-se-ia delas, explorá-las-ia até mais não...
— Ouvi dizer que, desde que atravessaste o pomerium e declaraste a tua candidatura, os boni te declararam uma guerra sem quartel — disse ela, enquanto tomavam banho.
— Com certeza que não esperavas outra coisa, pois não?
— Não, claro que não. Mas a morte de Catulo libertou certas forças que estavam comprimidas. Bíbulo e Catão são uma combinação terrível, pois têm dois trunfos a que agora podem recorrer sem medo de críticas ou reprovação — um desses trunfos é a capacidade de dar a qualquer acção atroz um aspecto virtuoso; o outro é uma ausência absoluta de presciência. Catulo era um indivíduo vil porque tinha uma natureza mesquinha, ao contrário do pai — essa mesquinhez herdara-a da mãe, uma Domícia. A avó paterna de Catulo era uma Popília e os Popílios são muito melhores do que os Domícios. Apesar de tudo, Catulo tinha alguma noção do que era um nobre romano e, por vezes, até era capaz de se aperceber dos resultados de algumas das tácticas dos boni. Por isso te aviso, César, a morte de Catulo foi, para ti, um desastre.
— Magno disse algo de parecido acerca de Catulo. Eu não te peço que me orientes, Servília, mas estou interessado na tua opinião. Que achas que devo fazer para enfrentar os boni?
— Creio que é tempo de admitires que não podes vencer sem aliados muito fortes. Até agora, tem sido uma batalha solitária. A partir de agora, terás de unir-te a outras forças. O teu campo tem sido demasiado pequeno. Tens de alargá-lo.
— Com quê? Ou melhor, com quem?
— Marco Crasso precisa que o ajudes a recuperar a sua influência entre os publicam. E Ático não é idiota ao ponto de se colar cegamente a Cícero. Ático tem um fraquinho por Cícero, mas preza muito mais as suas actividades comerciais. Não precisa de dinheiro, mas anseia pelo poder. Talvez seja uma sorte que o poder político nunca o tenha atraído — caso contrário, seria um grande rival. Caio Ópio é o maior de todos os banqueiros romanos. Já tens contigo Balbo, um banqueiro ainda mais importante do que Ópio. Precisas de atrair também Ópio para o teu campo. Bruto é definitivamente teu, graças a Júlia.
Servília estava deitada na banheira, com os seios magníficos flutuando suavemente à superfície da água, a abundante cabeleira negra puxada para cima para não a molhar, e os enormes olhos negros absortos, concentrados, pensativos.
— E quanto a Pompeu Magno? — perguntou ele, num tom casual.
Servília soergueu-se; os seus olhos fixaram-se nele de súbito. — Não, César, não! O carniceiro picentino? Nem pensar! Pompeu não compreende o funcionamento de Roma. Nunca compreendeu, nunca compreenderá. Pompeu é uma mina de habilidade natural, uma força maciça, tanto para o bem, como para o mal. Mas não é um Romano! Se fosse um Romano, nunca teria feito o que fez ao Senado antes de se ter tornado cônsul. Não há nele o menor vestígio de subtileza, nem a convicção íntima da invencibilidade. Pompeu pensa que as normas e as leis são feitas para serem violadas em seu próprio proveito. Contudo, anseia pela aprovação dos outros e sente-se permanentemente dilacerado por desejos opostos. Quer ser o Primeiro Homem de Roma até ao fim da sua vida, mas não faz a mínima ideia do que há-de fazer para o conseguir.
— É verdade que não conduziu o seu divórcio de Múcia Tércia da forma mais sensata.
— Quanto a isso — disse ela —, a culpa é toda de Múcia Tércia. As pessoas esquecem-se de quem ela é. Filha de Cévola, a sobrinha querida de Crasso Orador. Só um imbecil picentino como Pompeu é que se teria lembrado de a fechar numa fortaleza, a duzentas milhas de Roma, durante anos. Por isso, quando ela o enganou, enganou-o com um camponês como Labieno. Múcia Tércia teria preferido enganá-lo contigo.
— Sempre soube disso.
— E os irmãos dela também. Foi por isso que acreditaram nela.
— Ah! Afinal sempre era o que eu pensava...!
— Mas Escauro está muito bem para ela.
— Achas, portanto, que devo manter-me afastado de Pompeu.
— Completamente! Ele não pode jogar o jogo, pois não conhece as regras.
— Sila controlava-o.
— E ele controlava Sila. Nunca te esqueças disso, César.
— Tens razão. Pompeu controlava Sila. De qualquer modo, Sila precisava dele.
— Aí está uma prova da estupidez de Sila — replicou Servília, com evidente desdém.
Quando Lúcio Flávio apresentou de novo à Plebe a lei das terras de Pompeu, as possibilidades de esta ser promulgada eram praticamente nulas. Célere estava presente, com o único objectivo de arengar e atormentar Flávio; tão azedo foi o confronto com o pobre Flávio que este acabou por invocar o seu direito a conduzir a sessão sem impedimentos e mandou que prendessem Célere nas Lautumias. Na sua cela, Célere convocou uma reunião do Senado; por isso, quando Flávio barrou a entrada da cela com o seu próprio corpo, Célere ordenou que a parede fosse deitada abaixo e ele próprio orientou a demolição. Nada o impedia de sair da sua cela (tanto mais que a prisão das Lautumias pouco tinha de prisão), mas o cônsul sénior preferia dar espectáculo, tratando dos assuntos consulares e senatoriais a partir dessa cela. Frustrado e furioso, Pompeu não teve outra hipótese senão chamar à ordem os seus tribunos da plebe. E foi assim que Flávio autorizou a libertação de Célere e desistiu de participar em reuniões da Assembleia Plebeia. Tornava-se impossível promulgar a lei das terras.
Entretanto, a campanha para as eleições curuis prosseguia a um ritmo frenético. O regresso de César estimulara fortemente o interesse dos eleitores. De algum modo, quando César não estava em Roma, tudo tendia a ser aborrecido, ao passo que a presença de César era uma garantia de acontecimentos excitantes. O jovem Curião aparecia nos rostra ou na plataforma de Castor sempre que essas tribunas estavam vagas e parecia ter decidido substituir Metelo Nepos como o crítico mais acirrado de César (Nepos partira para a Hispânia Ulterior). A história do rei Nicomedes voltava a ser contada, agora com muitos acrescentos espirituosos — embora, como dizia um exasperado Cícero a Pompeu: — O jovem Curião é que me parece efeminado. Toda a gente sabe que ele era discípulo de Catilina e talvez fosse mais do que discípulo...
— Mas Curião não pertencia a Públio Clódio? — perguntou Pompeu, que tinha sempre a maior dificuldade em entender as complexidades decorrentes das alianças políticas e sociais.
Cícero estremeceu, só de ouvir aquele nome. — Antes do mais, pertence a si mesmo — disse ele.
— Estás a fazer o teu melhor para ajudar a candidatura de Luceio?
— Naturalmente! — retorquiu Cícero, com um ar altivo.
E de facto estava, embora isso o obrigasse a encontros muito constrangedores quando passeava com Luceio pelo Fórum.
Graças a Terência, Públio Clódio tornara-se um inimigo extremamente amargo e perigoso. Porque é que as mulheres só causavam problemas? Se Terência o tivesse deixado em paz, Cícero poderia ter evitado testemunhar contra Clódio, quando o seu julgamento por sacrilégio finalmente se realizou, doze meses antes. É que Clódio anunciou que, na altura da festa de Bona Dea, estivera em Interamna, e apresentou algumas testemunhas respeitáveis para confirmar a sua versão. Mas Terência estava melhor informada.
— Ele veio ver-te no dia de Bona Dea — disse ela, gravemente. — Veio dizer-te que ia para a Sicília Ocidental como questor e que queria cumprir o seu cargo o melhor possível. Foi no dia de Bona Dea, eu sei que foi! Disseste-me que ele tinha vindo ter contigo para te pedir a tua opinião.
— Estás enganada, minha querida! — replicara Cícero, muito constrangido. — As províncias só foram distribuídas passados mais de três meses!
— Não digas asneiras, Cícero! Sabes tão bem como eu que a distribuição das províncias é previamente arranjada... Clódio sabia para onde ia! É por causa de Clódia, não é? Sim, é por causa daquela rameira! Não vais testemunhar por causa dela!
— Eu não vou testemunhar porque sinto, instintivamente, que não devo acordar aquele monstro adormecido. Clódio não me tem em boa conta, desde que eu ajudei a defender Fábia, já lá vão treze anos! Não gostei nada dele nessa altura. E continuo a não gostar. Mas Clódio tem idade suficiente para estar no Senado e é um patrício Cláudio. O seu irmão mais velho, Ápio, é um grande amigo meu, tal como de Nigídio Fígulo. A amicitia tem de ser preservada.
— Tu tens uma ligação com Clódia e é por isso que te recusas a cumprir o teu dever — disse Terência, obstinada.
— Não tenho nada, Terência! Clódia anda a desgraçar-se com Catulo, o poeta.
— As mulheres — disse Terência, com uma lógica aterradora — não são como os homens, marido. Não têm tantas flechas na sua aljava para disparar. Podem deitar-se de costas e receber um arsenal.
Cícero rendeu-se e testemunhou, anulando assim o álibi de Clódio. E embora o dinheiro de Fúlvia tivesse comprado o júri (que o absolveu, por trinta e um contra vinte e cinco votos), Clódio nunca perdoou, nem esqueceu. Além disso, quando, pouco tempo depois, Clódio assumiu o seu lugar no Senado e procurou fazer espírito à custa de Cícero, a língua deste, ingovernável como era, cobrira o seu possuidor de glória e Clódio de ridículo — mais uma razão para o rancor de Clódio.
No início daquele ano, o tribuno da plebe, Caio Herénio — que era um Picentino e que, portanto, deveria obedecer a ordens de Pompeu —, propôs a mudança de estatuto de Clódio, de patrício para plebeu, através de uma lei especial a aprovar na Assembleia Plebeia. O marido de Clódia, Metelo Célere, reagira divertido, e nada fizera para contrariar as intenções de Herénio. Agora Clódio dizia a toda a gente que, logo que Célere abrisse a sua tenda para as eleições na Plebe, se candidataria ao tribunato da plebe. E que, logo que assumisse o cargo, processaria Cícero por ter executado cidadãos romanos sem julgamento prévio.
Cícero estava aterrado e não tinha vergonha de confessar o seu medo a Ático, a quem pediu que usasse da sua influência junto de Clódia. Quem sabe, talvez Clódia conseguisse convencer o irmão a desistir dos seus intentos... Mas Ático recusou, retorquindo simplesmente que ninguém conseguia controlar Públio Clódio quando este estava decidido a vingar-se. E Cícero era, nesse momento, o seu alvo.
Apesar de tudo, aconteciam alguns encontros ocasionais entre os dois. Embora um candidato consular não pudesse organizar jogos gladiatoriais em seu próprio nome e com o seu próprio dinheiro, não havia nada que impedisse outra pessoa qualquer de oferecer um espectáculo grandioso no Fórum, em honra do tatá ou do avus do candidato, desde que o tatá ou o avus fossem também parentes do organizador dos jogos. Daí que Metelo Célere, o cônsul sénior, tivesse resolvido organizar jogos gladiatoriais em honra de um antepassado seu que era também antepassado de Bíbulo.
Clódio e Cícero escoltavam Luceio, que fazia a sua campanha no baixo Fórum; e acabaram por ficar lado a lado, devido aos empurrões da multidão que cercava César, também em campanha. E como não tinham outra hipótese senão pôr um sorriso e portar-se bem um com o outro, foi isso mesmo que fizeram.
— Ouvi dizer que organizaste jogos gladiatoriais depois de teres regressado da Sicília — disse Clódio a Cícero. — É verdade, Marco Túlio?
— Sim, é verdade — retorquiu Cícero, todo animado.
— E reservaste lugares em assentos especiais para os teus clientes sicilianos?
— Ha? Não... — disse Cícero, enrubescendo; como explicar que tinham sido jogos extremamente modestos e que os assentos nem eram adequados para os seus clientes romanos?
— É que eu tenciono convidar os meus clientes sicilianos. E quero que eles tenham assentos especiais. O problema é que o meu cunhado, Célere, não me quer ajudar.
— Porque não pedes ajuda à tua irmã Clódia? Ela deve ter uma infinidade de bancos. É a mulher do cônsul.
— Clódia? — retorquiu Clódio, todo empertigado, num tom de voz alto o bastante para chamar a atenção daqueles que ainda não tinham reparado na civilizada conversa que os dois inimigos mantinham. — Clódia?! Clódia não me dá nada!
Cícero riu-se. — Mas tu não disseste que ela se dava toda a ti?
Tinha estragado tudo! Porque é que a sua língua o traía? Todo o baixo Fórum rompeu de súbito num paroxismo de riso, e César era quem mais se ria, enquanto Clódio parecia ter-se transformado numa estátua e Cícero sucumbia ao gozo do seu próprio espírito, apesar de os seus intestinos sucumbirem a uma líquida agitação.
— Hás-de pagá-las! — murmurou Clódio, o qual, depois de ter recuperado alguma da sua dignidade, retirou-se de braço dado com a mulher. A fúria dominava a expressão de Fúlvia.
— Sim! — guinchou ela. — Hás-de pagá-las, Cícero! Pode ser que um dia te corte essa tua língua viperina!
Uma humilhação insuportável para Clódio, que podia concluir que Junho não era o seu mês de sorte. Quando o seu cunhado Célere abriu a tenda para os candidatos plebeus e Clódio apresentou a sua candidatura, Célere opôs-se terminantemente.
— Tu és um patrício, Públio Clódio.
— Não sou nada! — retorquiu Clódio, com os punhos cerrados. — Caio Herénio conseguiu retirar o meu estatuto de patrício.
— Caio Herénio não sabe nada de leis — replicou Célere friamente. — Como pode a Plebe retirar-te o teu estatuto de patrício? A Plebe não pode dizer nada acerca do Patriciato. Agora vai-te embora, Clódio, não me faças perder mais tempo. Se queres ser um plebeu, terás de ser adoptado por um plebeu.
E Clódio foi-se embora, tresloucado de raiva. Ah, a sua lista estava a crescer! E Célere, agora, tinha um lugar proeminente nessa lista.
Mas a vingança podia esperar. Primeiro, tinha de encontrar um plebeu disposto a adoptá-lo. Se era essa a única maneira...
Pediu a Marco António que se tornasse seu pai, mas António desatou numa gargalhada pegada. — Eu não preciso dos milhões que receberia por te adoptar, Clódio! Não te esqueças de que me casei com Fádia e de que o tatá dela vai ter em breve um netinho...
Curião mostrou-se ofendido. — Mas que disparate, Clódio...! Achas que estou disposto a andar para aí a chamar-te “meu filho, meu filho”? Agora que consegui ridicularizar César, achas que me ia cobrir a mim próprio de ridículo?
— E porque é que andas a fazer isso a César? — perguntou Clódio, muito curioso. — Preferia que todos os membros do meu clube o apoiassem.
— Porque ando chateado, Clódio — disse Curião. — Além disso, gostava de ver César furioso — diz-se que fica com um ar de meter medo.
Décimo Bruto também recusou. — Se o meu pai não me matasse, matava-me a minha mãe — retorquiu. — Sinto muito, Clódio.
E nem mesmo Poplicola se mostrou pelos ajustes. — Tu a chamares-me tatá? Não, Clódio, não!
E foi por isso que Clódio preferiu pagar a Herénio uma soma astronómica (com o dinheiro de Fúlvia, obviamente), na esperança de que o tribuno conseguisse promulgar a mudança de estatuto. Não gostaria que o adoptassem; seria demasiado ridículo.
Até que Fúlvia teve uma inspiração. — Não peças mais ajuda aos teus pares — disse ela. — Eles nunca fariam nada que os tornasse ridículos. Por isso, Clódio, procura um idiota.
Pois bem, idiotas não faltavam! E Clódio depressa encontrou o idiota ideal. Públio Ponteio! Que ansiava por entrar para o Clube de Clódio, mas era constantemente rejeitado. Sim, era rico; digno é que não era. Dezanove anos, sem paterfamilias para lhe tolher os movimentos, e estúpido que nem uma porta.
— Oh, Públio Clódio, que honra! — exclamou um encantado Ponteio, quando ouviu a proposta. — Claro que aceito!
— Compreendes, com certeza, que não posso reconhecer-te como meu paterfamilias, o que significa que, depois da adopção, terás de libertar-me da tua autoridade. É muito importante para mim que mantenha o meu nome.
— Claro, claro! Farei o que quiseres.
E lá foi Clódio falar com César Pontifex Maximus.
— Encontrei alguém que deseja adoptar-me, e desse modo poderei tornar-me plebeu — anunciou ele, sem mais preâmbulos.
— Preciso da autorização dos sacerdotes e dos augures para que seja aprovada uma lex Guriatã. Podes arranjar-me essa autorização?
O belo rosto de César manteve uma expressão razoavelmente inquisitiva. Não havia sinal de dúvida ou reprovação naqueles olhos claros, penetrantes. A boca não se mexia. Contudo, por um longo momento, César nada disse. Finalmente: — Sim, Públio Clódio, posso arranjar-te essa autorização, mas não a tempo para as eleições deste ano.
Clódio ficou branco. — Porque não? Não tem nada de complicado!
— Já te esqueceste de que o teu cunhado Célere é augure? E Célere recusou a tua candidatura ao tribunato.
— Ah.
— Mas anima-te, Clódio, acabarás por conseguir. Espera até ele ir para a sua província.
— Mas eu queria ser tribuno da plebe este ano!
— Não é possível, Clódio, embora tenha a maior consideração pelos teus desejos. — César fez uma pausa. — Há um preço a pagar, Clódio — acrescentou afavelmente.
— Que preço?
— Terás de convencer o jovem Curião a acabar aquelas histórias que anda a contar acerca de mim.
Clódio estendeu imediatamente a mão para um cumprimento.
— Negócio feito! — disse.
— Excelente!
— Tens a certeza de que não queres mais nada, César?
— Apenas gratidão, Clódio. Creio que darás um esplêndido tribuno da plebe, porque, sendo um vilão, conheces bem o poder da lei — e César afastou-se com um sorriso.
Claro que Fúlvia estava à espera do marido.
— Só quando Célere for para a sua província — disse-lhe Clódio.
Ela abraçou-o pela cintura e beijou-o lascivamente, escandalizando vários transeuntes. — Ele tem razão — disse ela. — Adoro César, Públio Clódio! Faz-me lembrar um animal selvagem que finge estar domado. Daria um belo demagogo!
Clódio sentiu uma pontada de ciúme. — Deixa-te disso, mulher! — rosnou. — Tu estás casada comigo e não com ele! Eu, eu é que serei um grande demagogo!
Nas Calendas de Quinctilis, nove dias antes das eleições curuis, Metelo Célere convocou uma sessão do Senado para debater a atribuição das províncias consulares.
— Marco Calpúrnio Bíbulo tem uma declaração a fazer — anunciou Célere à multidão que enchia o Senado. — Vou dar-lhe a palavra.
Rodeado pelos boni, Bíbulo levantou-se com o ar mais nobre e majestático que a sua pequena estatura permitia. — Obrigado, cônsul sénior. Estimados colegas do Senado de Roma, quer contar-lhes uma história passada com o cavaleiro Públio Servílio, meu bom amigo, que não pertence ao ramo patrício dessa grande família, mas que partilha da ascendência do nobre Públio Servílio Vátia Isáurico. Públio Servílio está incluído no censo dos quatrocentos mil sestércios — no entanto, o seu rendimento depende inteiramente de uma pequena vinha no Ager Falerno. Uma vinha, Paires Conscripti, tão famosa pela qualidade do vinho produzido que Públio Servílio o deixa a repousar nos tonéis durante anos, antes de o vender a preços fabulosos a compradores de todo o mundo. Diz-se que tanto o rei Tigranes como o rei Mitridates o compravam e que o rei Frates dos Partos ainda o compra. Talvez o rei Tigranes também ainda o compre, dado que Cneu Pompeu, erroneamente cognominado de Magno, tratou de absolver essa real personagem das suas transgressões — e fê-lo em nome de Roma! — deixando-o até ficar com a maior parte dos seus rendimentos.
Bíbulo fez uma pausa, aproveitando para fitar a assistência. Os senadores estavam imóveis e ninguém dormitava nas bancadas do fundo. Catulo tinha razão — bastava contar-lhes uma história que eles escutariam com tanta atenção como as crianças escutam uma ama. César, como sempre, estava muito direito e sereno, deixando transparecer no rosto um interesse estudado — um artifício que usava como ninguém, revelando, a quem o via, que, lá no fundo, se aborrecia de morte, mas que, por uma questão de educação, nunca o demonstraria abertamente.
— Muito bem: temos então Públio Servílio, o respeitado cavaleiro, dono de uma vinha pequena, mas extremamente valiosa. Ontem, estava apto a ingressar no censo dos quatrocentos mil sestércios. Hoje, é um homem pobre. Como é isso possível? Como pode um homem perder os seus rendimentos tão subitamente? Tinha dívidas? Não, de modo nenhum. Morreu? Não, de modo nenhum. Terá havido alguma guerra na Campânia, sem sabermos de nada? Não, de modo nenhum. Terá havido algum incêndio? Não, de modo nenhum. Uma sublevação dos escravos? Não, de modo nenhum. Talvez a negligência de um caseiro? Não, de modo nenhum.
Naquele momento, tinha-os a todos na mão, excepto César. Bíbulo pôs-se em bicos de pés e ergueu a voz.
— Pois eu vou dizer-lhes, caros senadores, como foi que o meu amigo Públio Servílio perdeu o seu único rendimento! A resposta, encontramo-la numa imensa manada que estava a ser conduzida da Lucânia para... como é que se chama aquela perniciosa região da costa do Adriático, no alto da Via Flamínia? Liceno? Ficeno? Ou começa por P...? Sim, sim, é isso, começa por P! Piceno! Piceno! Pois a manada estava a ser conduzida das vastas terras que Cneu Pompeu, erroneamente cognominado de Magno, herdou de Lucílio, para os ainda mais vastos territórios do Piceno, que ele herdou de seu pai, o Carniceiro. O gado, actualmente, pouco uso tem, excepto para aqueles que estão ligados ao negócio do armamento ou que fazem dos sapatos o seu sustento. Ninguém come a sua carne! Ninguém bebe o seu leite ou com ele faz queijo, apesar de sabermos que os bárbaros do Norte, da Gália e da Germânia, fazem com o leite uma coisa qualquer a que chamam manteiga, usada com igual liberalidade para untar o seu grosseiro pão escuro e os ruidosos eixos dos seus carros. Pobres bárbaros, não conhecem nada melhor; as suas terras são demasiado frias e inclementes para que possam cultivar a nossa bela oliveira. Mas nós, nesta fértil e temperada península, cultivamos tanto a oliveira como a vinha, os bens mais preciosos que os deuses ofereceram ao homem. Porque precisaria alguém de manter gado em Itália, quanto mais de o conduzir centenas de milhas de um pasto para outro? Só um rei do armamento ou um sapateiro! Cneu Pompeu, erroneamente cognominado de Magno, será o primeiro ou o segundo? Que faz ele? A guerra ou sapatos? Quem sabe, talvez faça a guerra e, ao mesmo tempo, botas militares! Sim, ele pode ser ambos, ele pode ser, ao mesmo tempo, rei do armamento e sapateiro!
É fascinante, pensou César, mantendo o ar de estudado interesse. Qual é o alvo dele? Eu ou Magno? Ou estará a matar dois coelhos de uma cajadada? Pobre Grande Homem, está com um ar absolutamente miserável! Se conseguisse sair sem ninguém reparar, tinha-se levantado imediatamente e deixado a sala. Mas há aqui qualquer coisa que não parece ser do nosso Bíbulo. Gostava de saber quem é que lhe andará a escrever os discursos.
— A monstruosa manada irrompeu pela Campânia, guardada por uns quantos pastores preguiçosos, se é que podemos chamar pastores àqueles que acompanham o gado — disse Bíbulo como se estivesse a contar uma história. — Como sabem, Patres Conscripti, cada municipium em Itália possui os seus caminhos e vias especiais para o transporte de animais. Até mesmo as florestas têm caminhos para o gado — para levar os porcos a comer as bolotas, nos bosques de carvalhos, durante o Inverno — para levar as ovelhas das pastagens altas para as baixas, conforme as estações — e, sobretudo, para conduzir os animais para o maior dos mercados de Itália, nas terras do Vallis Camenarum, para lá das Muralhas Servias de Roma. Estas vias, caminhos e trilhos são terrenos públicos e os animais que os usam não podem entrar em propriedade privada para destruir pastos, ou colheitas ou... vinhas.
Fez uma longa pausa. — Infelizmente — disse Bíbulo, com um pesaroso suspiro —, os mandriões dos pastores que guiavam a manada não deram com o caminho certo — embora, devo acrescentar, esses caminhos tenham sempre uma boa milha de largo! E foi assim que o gado encontrou suculentas vinhas para comer. Sim, meus caros amigos, aquelas bestas vis e inúteis, propriedade de Cneu Pompeu, erroneamente cognominado de Magno, invadiram a preciosa vinha de Públio Servílio. Aquilo que não comeram, deixaram esmagado no chão. E, se por acaso desconhecem os hábitos e as peculiaridades do gado, dir-lhes-ei o seguinte: a saliva dos animais queima a folhagem, ou, se as plantas são ainda jovens, impede que voltem a nascer durante pelo menos dois anos. Mas as plantas de Públio Servílio eram muito, muito velhas! Por isso, morreram. E o meu amigo, o cavaleiro Públio Servílio, está agora falido. E até pelo rei Frates dos Partos sinto pena, pois nunca mais beberá daquele nobre vinho!
Oh, Bíbulo, quererás tu chegar onde eu penso?, perguntou César para si mesmo, sem nenhuma alteração no rosto ou na posição.
— Como seria de esperar, Públio Servílio queixou-se aos homens que dirigem as vastas propriedades de Cneu Pompeu, erroneamente cognominado de Magno — prosseguiu Bíbulo com um soluço. — Foi-lhe dito que não havia lugar ao pagamento de uma indemnização pela perda da melhor vinha do mundo. Porque... porque, Paires Conscripti, a via por onde seguia o gado foi fiscalizada pela última vez há já tanto tempo, que as marcas que a limitam deixaram de se ver! Os mandriões dos pastores não se enganaram, porque não faziam ideia nenhuma do sítio onde estavam! Pensarão por certo os meus caros amigos: mas nunca deviam ter entrado numa vinha! E têm toda a razão, toda a razão. Mas como poderemos levar o caso a um tribunal ou, mais especificamente, ao tribunal do pretor urbano? Saberá alguém, em cada municipium, localizar nos mapas as vias, os caminhos, os trilhos reservados às deslocações dos animais? E que me dizem do facto de, há cerca de trinta anos, Roma ter absorvido toda a Itália peninsular, dando em troca direitos de plena cidadania? Ter-se-á tornado um dever de Roma assinalar as vias, os caminhos e os trilhos reservados aos animais, de um extremo ao outro de Itália? Eu penso que sim!
Catão estava inclinado para a frente, como um cão preso pela trela, Caio Pisão sucumbira a um riso silencioso, Aenobarbo rosnava; os boni estavam, muito claramente, a preparar-se para uma vitória.
— Cônsul sénior, membros do Senado, sou um homem de paz que cumpriu fielmente os seus deveres militares. Agora que estou no auge da minha vida, não me move qualquer desejo de marchar contra uma província e fazer a guerra contra os infelizes bárbaros, para encher mais os meus próprios cofres do que os cofres de Roma. Mas sou um patriota. Se o Senado e Povo de Roma me disserem que devo aceitar um dever provincial, depois de concluído o meu consulado — porque eu serei cônsul! —, então deverei obedecer. Mas que seja um trabalho verdadeiramente útil! Que seja um trabalho que, estando acima dos interesses pessoais, possa ser executado com tranquilidade e sem ostentação! Que seja memorável, não pelo número de carros da parada triunfal, mas por ser a resposta perfeita a uma necessidade imperiosa! Peço a este Senado que conceda aos cônsules do próximo ano exactamente um ano de actividade proconsular, consistindo do seguinte: inspeccionar e demarcar rigorosamente as vias, os caminhos e os trilhos públicos destinados ao transporte de gado em toda a Itália. Não posso devolver a Públio Servílio as vinhas destruídas, nem tenho esperança de aplacar a sua ira. Mas se conseguir persuadi-los a todos de que o trabalho proconsular não consiste apenas em fazer a guerra, então, de uma forma modesta, terei conseguido oferecer alguma reparação ao meu amigo, o cavaleiro Públio Servílio.
Bíbulo parou, mas não se sentou; era óbvio que pensava acrescentar mais qualquer coisa. — Nunca pedi muito a este órgão durante todos os anos em que fui senador. Aprovem este meu pedido e nunca mais pedirei nada. Têm a palavra de um Calpúrnio Bíbulo.
Os aplausos foram entusiásticos e vieram de todos os lados; César também aplaudiu calorosamente, mas os seus aplausos não tinham nada a ver com a proposta de Bíbulo. Fora tudo muito bem feito. Muito mais eficiente do que declinar antecipadamente uma província. Oferecer-se voluntariamente para um trabalho desagradável e ingrato e fazer com que os seus opositores — caso ousassem pronunciar-se — ficassem com fama de mesquinhos.
Pompeu continuava triste, enquanto vários homens o fitavam, espantados com o facto de um homem tão rico e poderoso ter tratado o pobre Públio Servílio de forma tão atroz; foi Lúcio Luceio quem respondeu, vigorosa e sonoramente, a Bíbulo, afirmando que o trabalho proposto era para inspectores profissionais contratados pelos censores e não para homens que tinham acabado de deixar o consulado. Outros usaram da palavra — mas todos para defenderem a proposta de Bíbulo.
— Caio Júlio César, tu és um dos candidatos favoritos ao cargo de cônsul — disse Célere, num tom afável. — Tens algo a acrescentar, antes de procedermos a uma divisão?
— Nem uma palavra, Quinto Cecílio — retorquiu César, com um sorriso.
Uma reacção capaz de arrefecer o entusiasmo dos boni. No entanto, a moção que atribuía aos cônsules do ano seguinte os caminhos e os trilhos dos campos e pastos italianos foi aprovada por esmagadora maioria. Até César votou a favor: quem o visse, pensaria que estava plenamente de acordo. Que estaria ele a congeminar? Porque não saíra, rugindo furioso, da sua jaula?
— Magno, não ponhas esse ar abatido — disse César a Pompeu, que permanecera no Senado depois de um êxodo em massa dos senadores.
— Nunca me falaram daquela história! Ninguém me contou nada...! — exclamou. — Espera até eu deitar a mão aos meus administradores!
— Magno, não sejas ridículo! Públio Servílio nunca existiu! Bíbulo inventou-o!
Pompeu estacou, os olhos tão redondos como o rosto. — Inventou-o? — disse ele. — Ah, isso esclarece tudo! Vou matar esse cunnus!
— Não vais nada — disse César. — Acompanha-me a casa. O meu vinho é muito melhor do que o de Públio Servílio... Ah, e lembra-me de mandar uma mensagem ao rei Frates dos Partos, está bem? Penso que ele apreciará o meu vinho. É capaz de ser uma maneira menos cansativa de fazer fortuna do que governar as províncias de Roma — ou inspeccionar os caminhos e vias para o transporte de gado.
Esta atitude despreocupada ajudou muito a melhorar o humor de Pompeu; riu-se, deu uma afectuosa palmada no braço de César e lá seguiram os dois.
— Está na altura de termos uma conversa — disse César, dispensando o vinho e a água.
— Confesso que já estava impaciente.
— A Domus Publica é uma residência sumptuosa, Magno, mas tem as suas desvantagens. Toda a gente a vê — e vê quem entra e quem sai. A mesma coisa se passa com a tua casa. És tão famoso que tens sempre turistas ou espiões a espreitar-te. — Um sorriso malicioso iluminou os olhos de César. — De facto, és tão famoso que, quando um dia destes fui visitar Marco Crasso, não pude deixar de reparar na quantidade de tendas que vendiam pequenos bustos teus. Recebes muito dinheiro pelos direitos? Os vendedores não tinham mãos a medir para atender tantos fregueses!
— A sério? — perguntou Pompeu, com os olhos brilhantes.
— Vou ter de ver isso...! Imagina só...! Pequenos bustos meus...?
— Pequenos bustos teus.
— E quem os comprava?
— Principalmente raparigas — disse César, com um ar grave.
— Bom, havia um bom número de clientes mais velhos, de ambos os sexos, mas eram sobretudo raparigas.
— Um tipo da minha idade?
— Tu és um herói, Magno. A simples menção do teu nome faz com que os corações femininos batam mais depressa. Além disso — acrescentou, sorrindo abertamente — não são grandes obras de arte. Alguém fez um molde e produziu Pompeus de gesso tão rapidamente como uma cadela dá à luz. Depois, arranjou uma equipa de pintores, os quais deram alguma cor à tua pele e pintaram de um amarelo muito vivo os teus cabelos, desenhando por fim dois olhos azuis bem grandes — para dizer a verdade, não estás muito parecido com aquele que és agora.
Num ponto tinha de se fazer justiça a Pompeu: ele também sabia rir-se de si mesmo. Recostou-se na sua cadeira e desatou a rir até chorar, pois sabia que podia permitir-se isso. César não mentia. Portanto, aqueles bustos vendiam-se mesmo bem. Ele era um herói e pelo menos metade das adolescentes de Roma estavam apaixonadas por ele.
— Vês o que perdes por não ires visitar Marco Crasso? Pompeu ficou sério. Endireitou-se lentamente, com um semblante severo. — Não posso com esse homem!
— Quem diz que têm de gostar um do outro?
— Quem diz que tenho de me aliar a ele?
— Digo eu, Magno.
— Ah! — exclamou ele, arrumando a bela taça que César lhe dera e fixando os inteligentes olhos azuis nos olhos mais pálidos e menos confortantes de César. — Não o podemos fazer sozinhos, sem intromissões de terceiros?
— Talvez pudéssemos, mas não é seguro. Esta cidade, país, lugar, ideia — chama-lhe o que quiseres — está a afundar-se, porque é dirigida por uma timocracia cujo único fito consiste em sufocar os objectivos e ambições de qualquer homem que queira distinguir-se. Num certo sentido, é admirável; ao mesmo tempo, porém, é fatal. Será fatal para Roma, se nada for feito. É necessário criar espaço para que os homens extraordinários dêem o seu melhor. E não apenas os homens extraordinários, mas também aqueles que são menos dotados, mas que, apesar disso, têm algo a oferecer em termos de dever público. O problema é que os medíocres não sabem governar. Se eles soubessem governar, entenderiam que a concentração de todas as suas forças em exercícios ridículos — como o que Célere e Bíbulo praticaram hoje no Senado — não leva a lado nenhum. Eu, que sou um homem muito dotado e capaz, vejo-me privado de ampliar a grandeza de Roma. Estou prestes a tornar-me um inspector, a calcorrear a península de uma ponta à outra, vigiando grupos de homens que, com os seus gromae, marcam as vias por onde podem avançar os animais, a fim de que estes comam e caguem legalmente...
E porque estou eu prestes a tornar-me um funcionário menor, executando um trabalho necessário, mas que, como Luceio disse, pode ser feito, com mais eficiência, por homens contratados pelos censores? Porque, Magno, tal como tu, também eu sonho com coisas mais grandiosas e sei que sou capaz de as fazer.
— Ciúmes. Inveja.
— Será? Talvez um pouco de ciúmes, mas é mais complicado do que isso. As pessoas não gostam de ser ultrapassadas, e isto inclui aquelas cujo nascimento ou cujo estatuto social as devia tornar imunes a esse sentimento. Quem são e o que são Catão e Bíbulo? O segundo é um aristocrata que Fortuna não favoreceu, tornando-o pequeno em todos os aspectos. O primeiro é um hipócrita intolerante e rígido, que leva homens a tribunal por suborno nas eleições, mas que aprova o suborno eleitoral quando ele serve os seus objectivos. Aenobarbo é um porco selvagem e Caio Pisão é um imbecil e um corrupto. Célere é infinitamente mais dotado, embora nade nas mesmas águas — em vez de esquecer as diferenças pessoais e pensar em Roma, canaliza todas as suas energias para nos esmagar.
— Estás a tentar dizer-me que eles não conseguem aperceber-se das suas limitações? Que realmente se julgam tão capazes como nós? Não, César, não podem ser tão presunçosos...!
— Porque não? Magno, um homem só possui um instrumento para medir a inteligência — a sua própria mente. Para tais medições, o nosso homem usa só um padrão: o maior intelecto que conhece. Ou seja, o seu próprio intelecto. Quando varreste todos os piratas do Nosso Mar no espaço de um curto Verão, estavas a mostrar que isso podia ser feito. Logo — conclui o nosso homem — ele também poderia tê-lo feito. Mas tu não o deixaste. Negaste-lhe essa oportunidade. Obrigaste-o a ficar quieto, pois conseguiste a aprovação de uma lei especial. O facto de, durante anos, ele não fazer outra coisa senão falar, não tem nada a ver para o caso. Tu mostraste ao nosso homem que era possível varrer os piratas do Nosso Mar. Se ele admite que não poderia fazer o que fizeste, está a dizer a si próprio que é um inútil — e isso, não o fará. Não é presunção pura e simples. É uma cegueira que o próprio promove, associada a apreensões que ele não se atreve a reconhecer. Esse homem é a vingança dos deuses sobre os homens que são genuinamente superiores.
Mas Pompeu estava cada vez mais inquieto. Apesar de ser bastante capaz na assimilação de conceitos abstractos, não encontrava qualquer utilidade naquele exercício.
— Tudo isso está muito certo, César, mas a especulação não nos leva a lado nenhum. Porque havemos de incluir Crasso?
Uma questão prática e lógica. Pena que, ao fazer tal pergunta, Pompeu estivesse a rejeitar a oferta do que poderia ser uma profunda e duradoura amizade. O que César estivera a fazer era tentar estabelecer uma ligação, uma ligação entre dois homens superiores, cada um da sua espécie. Era pena que Pompeu não fosse o homem superior certo. Os seus talentos e interesses residiam noutros campos. E o impulso de César morreu.
— Temos de incluir Crasso, porque nem eu nem tu temos uma influência comparável à que ele possui nas Dezoito — disse César, pacientemente —, nem conhecemos um milésimo dos cavaleiros que ele conhece. Sim, juntos conhecemos muitos cavaleiros, séniores e juniores, escusas de o dizer. Mas não chegamos aos calcanhares de Crasso! Ele é uma força com que temos de contar, Magno. Eu sei que, provavelmente, és bastante mais rico do que ele, mas tu não conseguiste a tua fortuna da mesma maneira que ele. Crasso é um comerciante a cem por cento, não o consegue evitar. Toda a gente lhe deve favores. Por isso é que precisamos dele! Todos os Romanos, no fundo, são homens de negócios. Não terá sido por isso que Roma se ergueu para dominar o mundo?
— Roma dominou o mundo graças aos seus soldados e generais — retorquiu Pompeu imediatamente — e defensivamente.
— Sim, isso também é verdade. E é aí que nós entramos. No entanto, a guerra é uma condição temporária. As guerras podem também ser mais inúteis e sair mais caras a um país do que muitos maus negócios. Roma seria muito mais rica hoje, se não se tivesse envolvido numa série de guerras civis nos últimos trinta anos. Foi preciso tu conquistares o Oriente para Roma equilibrar as finanças. Mas a conquista está feita. A partir de agora, temos os negócios usuais. O teu contributo para Roma, no que toca ao Oriente, terminou. Enquanto o de Crasso só agora começou. Daí o seu poder. Aquilo que se ganha com as conquistas, defende-se com o comércio. Tu crias impérios, Crasso preserva-os e romaniza-os.
— Está bem, convenceste-me — disse Pompeu, pegando de novo na taça. — Digamos que nos unimos os três, formando um triunvirato. Onde é que isso nos levará, exactamente?
— Dotar-nos-á da influência de que precisamos para derrotar os boni, porque nos dará os números necessários para promulgarmos leis nas assembleias. Não teremos a aprovação do Senado, um órgão condenado a ser dominado por ultraconservadores. As assembleias são o instrumento da mudança. O que tens de compreender, Magno, é que os boni aprenderam bem a lição, desde que Gabínio e Manílio promulgaram os teus comandos especiais. Pensa no caso de Manílio. Nunca mais o teremos por cá: por isso, ele é um bom exemplo para os candidatos a tribunos da Plebe; quando um tribuno da Plebe desafia os boni, acontece-lhe o mesmo que sucedeu a Manílio. Célere derrotou Lúcio Flávio e a tua lei das terras foi por água abaixo — nem sequer houve votação. Célere derrotou-te a ti e a Flávio. Tu seguiste os velhos processos, o velho estilo. Mas, nos dias que correm, não é possível enganar os boni. De agora em diante, Magno, a força pura é fundamental. Três é melhor do que dois, simplesmente porque três são mais fortes do que dois. Poderemos ajudar-nos se nos mantivermos unidos. E sendo eu o cônsul sénior, teremos o legislador mais poderoso que a República possui. Não subestimes o poder consular só porque os cônsules normalmente não legislam. Pretendo ser um cônsul legislador e tenho um homem muito bom para o tribunato da plebe — Públio Vatínio.
Com os olhos fixos no rosto de Pompeu, César fez uma pausa para perceber que efeitos tinham produzido os seus argumentos. Sim, Pompeu estava a captar tudo. Não tinha nada de idiota, apesar de toda a sua necessidade de ser amado.
— Considera há quanto tempo é que tu e Crasso se defrontam em vão. Após quase um ano de tentativas, conseguiu Crasso alterar os contratos para a cobrança de impostos no Oriente? Não. Após um ano e meio, conseguiste que as tuas decisões no Oriente fossem ratificadas ou que fossem concedidas terras aos teus veteranos? Não. Ambos tentaram — isoladamente — mover a montanha boni. Ambos falharam. Unidos, talvez tivessem conseguido. Mas Pompeu Magno, Marco Crasso e Caio César juntos conseguem mover o mundo.
— Admito que tenhas razão — disse Pompeu bruscamente. — Sempre me espantou a clareza da tua visão, César. Mesmo nos tempos em que pensava que seria Filipe aquele que me poderia dar o que eu queria. Filipe não mo deu. Tu deste-mo. És um político, um matemático ou um mago?
— A minha melhor qualidade é o senso comum — riu-se César.
— Aproximemo-nos então de Crasso.
— Não, Magno, eu é que vou aproximar-me de Crasso — disse César, afavelmente. — Depois da derrota que sofremos no Senado, ninguém ficará surpreendido se souber que nos reunimos para afogarmos as nossas mágoas. Não somos conhecidos como aliados naturais e assim continuaremos. Marco Crasso e eu fomos amigos durante anos. Parecerá lógico que eu me alie a ele. Nem os boni ficarão alarmados com essa perspectiva. Só temos poder a três. A partir de agora, e até ao fim do ano, a tua participação no nosso triunvirato — gosto da palavra! — é um segredo só conhecido pelos três. Que os boni pensem que ganharam.
— Espero conseguir manter a calma, quando tiver de lidar a toda a hora com Crasso — suspirou Pompeu.
— Mas, na realidade, não tens de todo que lidar com ele, Magno. Essa é outra das vantagens de sermos três. O meu lugar é no meio, eu sou o elo que torna desnecessário que tu e Crasso se vejam demasiado. Vocês não são colegas no consulado, são privati.
— Está bem, ambos sabemos o que eu quero. Sabemos o que Crasso quer. Mas que pretendes tu com este triunvirato, César?
— Eu quero a Gália Italiana e o Ilírico.
— Afrânio fica a saber hoje para onde vai.
— Ele não irá para lado nenhum, Magno. Temos de ter isso bem presente.
— Ele é meu cliente.
— Desempenha um papel secundário, ao lado de Célere. Pompeu franziu o sobrolho. — A Gália Italiana e o Ilírico por
um ano?
— Ah, não! Cinco anos!
O leão desviou de súbito os seus olhos muito azuis; ele, que estava a gostar tanto daquele sol, reparava agora que uma nuvem ocultava o astro-rei. — Que pretendes tu afinal, César?
— Um grande comando, Magno. Tens relutância em dar-mo? Toda a vida de César (ou o que ele conhecia dessa vida)
desfilou então na mente de Pompeu com a rapidez de um relâmpago: a batalha que venceu em Trales, alguns anos antes, uma Coroa Cívica por actos de bravura, um questorado positivo, mas pacífico, uma campanha brilhante no noroeste da Ibéria, que terminara recentemente, mas nada de verdadeiramente invulgar. Onde queria ele chegar? À bacia do Danúbio, provavelmente. À Dácia? À Mésia? Às terras dos Roxolanos? Sim, seria uma grande campanha, mas não tão grande como a conquista do Oriente. Cneu Pompeu Magno tinha travado batalhas contra reis formidáveis, não contra bárbaros com pinturas de guerra e tatuagens. Cneu Pompeu Magno tinha marchado à frente de exércitos desde os vinte e dois anos. Onde é que estava o perigo? Não havia perigo nenhum.
A pele do leão já não estava fria; Pompeu pôs um sorriso de todo o tamanho. — Não, César, não sinto qualquer relutância em dar-te esse comando. Desejo-te sorte.
Depois de ter passado as tendas que vendiam os grosseiros bustos de Pompeu, o Grande, Caio Júlio César entrou no Macellum Cuppedenis e subiu os cinco lanços de estreita escada a fim de se encontrar com Marco Crasso, que nesse dia não estivera no Senado — aliás, Crasso raramente se dava ao trabalho de aparecer no Senado. Fora atingido no seu orgulho, o seu dilema permanecia sem resolução. A ruína financeira nunca seria uma eventualidade a considerar, mas ali estava ele, possuidor de uma imensa influência política e completamente incapaz de resolver o que não passava de uma ninharia. A sua posição como a maior e mais brilhante estrela no firmamento dos negócios de Roma estava em risco; a sua reputação estava arruinada. Todos os dias, importantes cavaleiros vinham perguntar-lhe por que motivo não conseguira a alteração dos contratos para a cobrança de impostos no Oriente; e todos os dias Crasso tinha de explicar que um pequeno grupo de homens dirigia o Senado de Roma como um touro com uma argola no focinho. Por todos os deuses, mas ele é que deveria ser o touro! E não fora apenas a sua dignitas a ser afectada; agora, muitos dos cavaleiros suspeitavam que ele tramava alguma coisa, que estava deliberadamente a adiar a renegociação dos malditos contratos. E, ainda por cima, o seu cabelo estava a cair como o pêlo dos gatos na Primavera!
— Não te aproximes! — rosnou ele para César.
— Porque não? — perguntou César, com um imenso sorriso, enquanto se sentava numa esquina da secretária de Crasso.
— Tenho sarna.
— Estás deprimido. Mas anima-te, pois tenho boas notícias.
— Está demasiada gente aqui, mas eu estou demasiado cansado para me mexer. — Abriu muito a boca e berrou para a sala cheia:
— Vão-se embora para casa! Vá, vão para casa! Eu não desconto nos ordenados! Vá, toca a andar!
E os seus funcionários obedeceram, deliciados; Crasso queria que todos permanecessem nos escritórios enquanto brilhava a luz do dia — e como os dias estavam a crescer, com a aproximação do Verão, ainda faltava muito tempo para saírem. Claro que todos os oito dias havia um dia de descanso, tal como havia as Saturnais, as Compitais e os grandes jogos, mas os dias de descanso não eram pagos. Se não se trabalhasse, Crasso não pagava.
— Tu e eu — disse César — vamos aliar-nos.
— Não vai resultar — disse Crasso, abanando a cabeça.
— Resultará se formos um triunvirato.
Os ombros largos ficaram mais tensos, embora o rosto permanecesse impassível. — Não, César, não com Magno!
— Terá de ser com Magno.
— Não aceito. É a minha última palavra.
— Nesse caso, dize adeus ao trabalho de anos, Marco. Se não nos aliarmos a Pompeu Magno, a tua reputação como patrono da Primeira Classe será totalmente destruída.
— Que disparate, César! Assim que fores cônsul, conseguirás a redução dos contratos da Ásia.
— Hoje, meu amigo, recebi a minha província. Bíbulo e eu vamos fiscalizar e demarcar as vias de transporte de gado em Itália.
Crasso ficou boquiaberto. — Isso é pior do que não conseguir uma província...! Parece uma anedota! Um Júlio, e um Calpúrnio, já agora, a fazerem o trabalho do pessoal menor?
— Reparei que disseste “um Calpúrnio”. Crês, portanto, que Bíbulo também o fará. Mas é verdade, ele até é capaz de atentar contra a sua dignitas para frustrar os meus intentos. A ideia foi dele, Marco: isso não chega para entenderes a gravidade da situação? Os boni deixar-se-iam massacrar, se eu fosse massacrado também. Para não falar de ti e de Magno, claro. Nós somos mais altos do que o campo de papoulas, Magno. Está a passar-se connosco o mesmo que se passou com Tarquínio Soberbo.
E foi tão simples quanto isso. Para lidar com Crasso, não era necessário penetrar no reino da filosofia. Bastava pôr-lhe os factos diante dos olhos que Crasso mudava logo de opinião. Parecia mesmo contente com o projectado triunvirato, tanto mais que percebeu que, como ele e Pompeu eram privati, não teria de aparecer de mão dada com o homem que mais detestava em Roma. Com César no meio dos dois, o decoro seria mantido e a aliança a três resultaria.
— É melhor eu começar a fazer campanha por Luceio — disse Crasso, enquanto César se erguia do seu poleiro.
— Não gastes demasiado, Marco, pois esse cavalo não chegará longe. Magno tem estado a subornar fortemente nos dois últimos meses, mas, depois de Afrânio, ninguém levará a sério os seus homens. Magno não é um político, nunca faz a jogada certa no momento certo. Labieno deveria ter estado no lugar de Flávio e Luceio deveria ter sido a sua primeira tentativa para assegurar um cônsul dócil. — Depois de uma calorosa festa na careca de Crasso, César encaminhou-se para a porta. — Eu e Bíbulo seremos eleitos. Com toda a certeza.
Uma predição que as Centúrias confirmaram, cinco dias antes dos Idos de Quinctilis: César ganhou o consulado sénior, levando literalmente atrás de si todas as Centúrias; Bíbulo teve de esperar muito mais, pois a eleição para o cargo de cônsul júnior foi renhida. Os pretores eram uma decepção para o triúnviros, apesar de estarem seguros do apoio do sobrinho de Saturnino depois do julgamento de Caio Rabírio; e — quem havia de dizer? — Quinto Fúfio Galeno mostrava alguma abertura, já que as suas dívidas começavam a ser muito embaraçosas. O novo Colégio dos Tribunos da Plebe era um problema, pois Metelo Cipião decidira candidatar-se, o que dava aos boni nada mais nada menos do que quatro aliados leais — Metelo Cipião, Quinto Ancário, Cneu Domício Calvino e Caio Fânio. Quanto ao lado positivo, os triúnviros contavam com Públio Vatínio e Caio Alfio Flavo. Dois óptimos tribunos da plebe seriam suficientes.
Veio então a longa e exasperante espera pelo Ano Novo, ainda mais insuportável porque Magno tinha de se manter discreto, enquanto Catão e Bíbulo se pavoneavam, prometendo a todos que os quisessem ouvir que César nada conseguiria fazer. A sua oposição tornou-se conhecida em todas as classes de cidadãos, apesar de, abaixo da Primeira Classe, poucos perceberem exactamente o que se estava a passar. Um trovão político atroava ao longe — era tudo o que entendiam.
Aparentemente imperturbável, César, na sua qualidade de cônsul sénior eleito, comparecia a todas as reuniões do Senado para dar a sua opinião acerca de muito pouco; o tempo que lhe restava era quase exclusivamente consagrado à elaboração de uma nova lei das terras para os veteranos de Pompeu. Em Novembro, achou que já não havia razões para manter o segredo — os boni que se interrogassem sobre a sua ligação com Pompeu, estava na altura de exercer alguma pressão. Por isso, em Dezembro, mandou Balbo a casa de Cícero, com o propósito de obter o apoio deste último à lei das terras. Se isso não contribuísse para espalhar a novidade, então nada o faria.
Entretanto, o tio Mamerco morreu, um desgosto pessoal para César, mas também a abertura de uma vaga no Colégio dos Pontífices.
— Um facto que nos pode ser útil — disse César a Crasso, após o funeral. — Ouvi dizer que Lêntulo Espínter quer ser pontífice à viva força.
— E pode vir a ser se se portar bem, não é?
— Precisamente. Ele é influente, mais tarde ou mais cedo será cônsul e a Hispânia Citerior precisa de um governador. Ouvi dizer que está muito triste por não ter ficado com uma província depois do seu pretorado... Talvez possamos ajudá-lo a ficar com a Hispânia Citerior no dia de Ano Novo. Especialmente se ele já for pontífice nessa altura.
— Como vais fazer, César? A lista de interessados nunca mais acaba...
— Manipulo o sorteio, obviamente. Surpreende-me que o tenhas perguntado. É em situações destas que um triunvirato dá muito jeito, Magno. Cornélia, Fábia, Velina, Clustumina, Teretina — já temos cinco tribos, isto sem sairmos das nossas hostes. Claro que Espínter terá de esperar até que a lei das terras seja aprovada, mas penso que ele não levantará qualquer objecção. O pobre coitado continua a ocupar lugares secundários... Os boni torcem o nariz de desprezo quando Espínter protesta, mas isso só contribuirá para a sua queda. Não compensa passar por cima de homens importantes, dos quais se pode vir a precisar. E os boni, que não são sensatos, passaram por cima de Espínter.
— Ontem, vi Célere no Fórum — disse Crasso, todo satisfeito. — Pareceu-me muito, muito doente.
César deu uma gargalhada. — Não é físico, Marco. A sua pequena Nola abriu todas as suas portas a Catulo, aquele poeta de Verona. A propósito, parece que Catulo anda a namorar os boni.
Tenho como certo que foi ele quem inventou a história da vinha de Públio Servílio... Faz sentido, pois Bíbulo nunca sai de Roma. Só um rústico poderia saber tanto sobre gado e vinhas.
— Então Clódia está finalmente apaixonada...
— O suficiente para preocupar Célere!
— Célere faria melhor se rompesse com Pontino e partisse mais cedo para a sua província. Como vir militaris, Pontino não se saiu nada bem na Gália Transalpina.
— Infelizmente, Célere ama a mulher. É por isso que não quer partir para a sua província.
— Estão bem um para o outro — foi o veredicto de Crasso.
Se alguém achou significativo que César tivesse escolhido Pompeu para ser o seu augure durante a vigília no auguraculum do Capitólio, a verdade é que ninguém o disse publicamente. Desde o anoitecer e até que a primeira luz rompeu no céu, César e Pompeu, envergando as suas togas com faixas púrpura e escarlate, permaneceram juntos, mas de costas voltadas, com os olhos fixos nos céus. Foi uma sorte para César que o Ano Novo do calendário estivesse quatro meses adiantado em relação às estações, pois isso significava que as estrelas cadentes da constelação de Perseu ainda cruzavam os céus com a sua chuva cintilante; os augúrios eram muitos, incluindo um relâmpago numa nuvem à esquerda. Bíbulo e o seu assistente augurai também deveriam estar presentes, mas até aí Bíbulo quis mostrar que não manteria qualquer cooperação com César. Em vez disso, examinou os auspícios em casa — um procedimento que, embora correcto, era invulgar.
Depois, o cônsul sénior e o amigo regressaram às respectivas casas, a fim de vestirem os trajes adequados àquele dia. Para Pompeu, seria o traje triunfal, pois isso agora era-lhe permitido em todas as ocasiões festivas e não apenas nos jogos; para César, seria uma toga praetexta, nova e muito branca, com um debrum não de púrpura de Tiro, mas da mesma púrpura vulgar dos primeiros tempos da República, quando os Júlios eram tão proeminentes como agora, quinhentos anos passados. Para Pompeu, seria um anel de ouro senatorial, mas, para César, o anel era de ferro, já que, nos velhos tempos, era um anel de ferro que os Júlios usavam. Envergava ainda a sua coroa de folhas de carvalho e a túnica com faixas escarlate e púrpura do Pontifex Maximus.
César não sentia qualquer prazer em subir a Clivus Capitolinus lado a lado com Bíbulo, o qual não parava de murmurar que César nada conseguiria fazer e que o consulado de César seria um exemplo consumado de inactividade e rotina. Também não sentia qualquer prazer em ter de se sentar na sua cadeira de marfim, com Bíbulo ao lado, enquanto a multidão de senadores e cavaleiros, familiares e amigos, os saudavam e louvavam. A sorte de César, porém, não tardou a manifestar-se: o seu boi branco aceitou pacificamente o sacrifício, ao passo que o de Bíbulo caiu desajeitadamente, tentou depois erguer-se e acabou por salpicar de sangue a toga do cônsul júnior. Um mau prenúncio.
Pouco depois, na sua qualidade de cônsul sénior, César convocou uma sessão do Senado para o templo de Júpiter Optimus Maximus. Nessa mesma qualidade, fixou as feriae Latinae e procedeu ao sorteio das províncias dos pretores. Como seria de esperar, Lêntulo Espínter ficou com a Hispânia Citerior.
— Haverá algumas mudanças — disse o cônsul sénior, no seu tom de voz normal, muito grave, já que a cella onde se encontrava a estátua de Júpiter Optimus Maximus (virada para leste) possuía uma belíssima acústica. — Este ano, retomarei o hábito que prevalecia nos primórdios da República e ordenarei aos meus lictores que me sigam, em vez de me precederem, durante os meses em que não detenho os fasces.
Ouviu-se um murmúrio de aprovação, que logo se transformou numa reprovação engasgada quando Bíbulo, furioso, se virou para César: — Faze o que quiseres, César! A mim tanto me faz! Só não esperes que eu siga o teu exemplo!
— Não espero, Marco Calpúrnio! — disse César, rindo-se. Ao tratá-lo por Marco Calpúrnio, estava a chamar a atenção para o facto de Bíbulo o ter tratado pelo apelido — uma grosseira descortesia.
— Há mais alguma coisa? — perguntou Bíbulo, odiando a sua baixa estatura.
— Nada que te diga directamente respeito, Marco Calpúrnio. Eu tenho uma longa carreira nesta casa, como senador e como pontífice de Júpiter Optimus Maximus, em cuja sede o Senado se reúne precisamente neste momento. Como flamen Dialis, entrei para o Senado aos dezasseis anos. Posteriormente, após uma pausa de menos de dois anos, voltei ao Senado porque ganhei a corona cívica. Lembras-te desses meses diante de Mitilene, Marco Calpúrnio? Tu também lá estavas, embora não tivesses ganho nenhuma corona cívica. Agora, com quarenta anos, sou cônsul sénior. O que me dá um total de mais de vinte e três anos como membro do Senado de Roma.
O seu tom tornou-se então mais vivo e directo. — Ao longo destes vinte e três anos, Patres Conscripti, assisti a algumas mudanças para melhor nos procedimentos seguidos pelo Senado, com relevo para o hábito que agora temos de registar, de forma permanente, tudo o que fazemos ou dizemos. Nem todos consultam esses registos, mas eu faço-o, tal como outros políticos sérios. Contudo, esses registos depressa desaparecem nos arquivos. Além disso, tenho encontrado alguns registos que retratam de forma muito parcial a realidade.
Parou para apreciar as expressões daqueles homens, todos de pé e bastante comprimidos; no dia de Ano Novo, os senadores não costumavam sentar-se, pois a reunião era normalmente curta — só o cônsul sénior costumava intervir.
— Pensem também no caso do Povo. A maior parte das nossas assembleias realiza-se de portas abertas. Algumas pessoas interessadas, reunidas no exterior do recinto onde decorre a assembleia, escutam aquilo que nós dizemos. O que acontece depois é inevitável. Aquele que ouve melhor conta aquilo que ouviu aos outros. A onda vai crescendo, vai-se espalhando pelo lago do Fórum — e, ao mesmo tempo, vai perdendo precisão, exactidão, de tal forma que a história que finalmente é contada pouco tem a ver com o que inicialmente foi dito. Isso é aborrecido para o Povo, mas também é aborrecido para nós.
Proponho agora que tomemos duas medidas relativamente aos registos das reuniões do Senado. A primeira abrange os dois tipos de reunião — de portas abertas ou portas fechadas. Proponho que os escribas passem as suas notas para o papel, que os dois cônsules e todos os pretores — se estiverem presentes na reunião em causa, obviamente — examinem o registo e o assinem se o considerarem correcto. A segunda medida abarca apenas as reuniões realizadas com as portas abertas. Proponho que o registo dessas reuniões seja afixado numa zona do Fórum Romanum reservada para o efeito — terá de ser, evidentemente, uma zona abrigada da inclemência do tempo. Com isto, pretendo proteger-nos a todos, seja qual for a nossa posição política ou a facção que defendamos. É um processo tão necessário para Marco Calpúrnio como para Caio Júlio. Tão necessário para Marco Pórcio como para Cneu Pompeu.
— Para dizer a verdade, cônsul sénior, acho uma óptima ideia — disse Metelo Célere, nem mais, nem menos. — Duvido que venha a apoiar as tuas leis, mas quanto a esta, apoio-a sem reservas, e sugiro ao Senado que a acolha favoravelmente.
Quando se procedeu à divisão, toda a gente passou para a direita, excepto Bíbulo e Catão. Uma coisa de nada, é certo, mas fora a primeira — e fora aprovada.
— O banquete também foi aprovado — disse César à mãe, no final de um dia muito longo.
Aurélia, como seria de esperar, não se podia sentir mais orgulhosa. Tinham valido a pena, todos aqueles anos. Faltavam-lhe sete meses para chegar aos quarenta e um anos e era já cônsul sénior do Senado e do Povo de Roma. Da Rés Publica. O espectro das dívidas desaparecera logo que ele chegara da Hispânia Ulterior, com dinheiro suficiente para sossegar os credores. Balbo, esse amigo querido, andara de escritório em escritório, armado de pilhas de papéis, negociando com êxito, reduzindo o valor das dívidas de César. Algo de extraordinário. Aurélia sempre pensara que César teria de pagar a totalidade dos juros acumulados, mas Balbo sabia negociar, regatear, convencer. César não ficara com muito dinheiro para os seus acessos esbanjadores, mas pelo menos já não devia dinheiro. E o Estado, para além de uma residência maravilhosa, proporcionava-lhe um rendimento interessante.
Aurélia raramente pensava no marido, que morrera quarenta e cinco anos antes. Fora pretor, mas nunca chegara a cônsul. Essa coroa de louros, na sua geração, fora para o irmão mais velho e para o outro ramo da família. Quem poderia imaginar que a morte estava próxima, quando o seu marido se baixou para apertar os atacadores das botas? Quem poderia imaginar que, um dia, ela teria de enfrentar o choque de receber das mãos de um mensageiro um horrendo recipiente com as cinzas do marido? Nem sequer fora informada da sua morte. Se tivesse vivido mais tempo, talvez tivesse conseguido refrear um pouco a natureza indomável do filho — conseguiria...?
Caio Júlio, meu querido marido, o nosso filho é hoje cônsul sénior. Ele subirá a alturas que nenhum Júlio César atingiu.
E Sila... que teria pensado Sila? O outro homem da sua vida, embora não tivessem passado de um beijo, um dia em que comiam uvas.
O que eu sofri por ele! Um homem atormentado! As saudades que tenho dos dois. Apesar disso, a vida não podia ter sido melhor para mim. Duas filhas bem casadas, netos, e isto — este Deus que é o meu filho.
Mas tão solitário...! Em tempos, esperei que Caio Macio, o rapaz que era nosso vizinho na ínsula, viesse a tornar-se o amigo e o confidente de que ele precisava e precisa. Mas César avançou demasiado depressa... e como avançou! Será sempre assim? Não haverá ninguém neste mundo que possa ser seu amigo, seu igual, alguém para quem ele se possa voltar sempre que precisa? Rezo para que um dia encontre um amigo verdadeiro. Sim, um amigo e não uma amiga. Uma esposa nunca será essa amiga. Nós, as mulheres, não temos a largueza de visão, nem a experiência da vida pública — coisas de que ele precisa num verdadeiro amigo. Contudo, aquele boato horrível em torno da sua amizade com o rei Nicomedes, aquela mancha inventada marcou-o — ele recusará um amigo íntimo, pois sabe o que as pessoas diriam. Em todos estes anos, não houve mais nenhum boato. Era caso para pensar que as pessoas se calariam. Mas o Fórum tem sempre um Bíbulo, sempre. E Sila é sempre um aviso para César. Não, a velhice de César não será como a de Sila!
Compreendo finalmente que ele nunca se casará com Servília. Que nunca se teria casado com ela. Servília sofre, mas pode vingar-se das suas frustrações em Bruto. Pobre Bruto. Daria tudo para que Júlia gostasse dele. Mas não gosta. Como poderá resultar esse casamento?
Embora pensasse em tudo isto naquele preciso instante, Aurélia não revelou ao filho nenhuma das suas preocupações. — Bíbulo foi ao banquete? — perguntou.
— Sim, claro. Tal como Catão, Caio Pisão e todos os outros boni. Mas Júpiter Optimus Maximus é um grande templo e eles afastaram-se o mais possível de mim. O amigo de Catão, Marco Favónio, era o centro de todas as atenções do grupo, pois tornou-se finalmente questor. — César riu-se. — Cícero disse-me que Favónio é conhecido no Fórum como o Macaco de Catão. Imita Catão em tudo — nem sequer usa nada debaixo da toga —, e, ao mesmo tempo, é tão bronco e desajeitado que os seus movimentos parecem os de um macaco. Uma boa alcunha, ha?
— Certeira, sem dúvida. Foi Cícero o autor?
— Julgo que sim, mas ele hoje estava com um ataque de modéstia, provavelmente porque Pompeu o obrigou a jurar que se portaria bem comigo. E desde o caso Rabírio que Cícero odeia portar-se bem comigo.
— Pareces desolado — disse ela, com alguma ironia.
— Na realidade, preferia que Cícero estivesse do meu lado. Mas não consigo imaginá-lo do meu lado. Por isso estou preparado.
— Para quê?
— Para o dia em que ele decida juntar a sua pequena facção aos boni.
— Achas que sim? Pompeu Magno não gostaria...
— Duvido que Cícero venha a ser um ardente defensor dos boni. Eles acham-no presunçoso, tal como me acham a mim, aliás. Mas tu conheces Cícero. Ele é um gafanhoto com uma língua indisciplinada, se é que tal animal existe. Anda sempre a saltar de um lado para o outro e a sua língua anda sempre à procura de sarilhos. Repara por exemplo naquela cena que se passou outro dia, com Públio Clódio. Muito divertida, mas não para Clódio, nem para Fúlvia.
— Como vais lidar com Cícero, se ele se tornar um adversário?
— Bom, eu ainda não disse nada a Públio Clódio, mas consegui que os colégios sacerdotais o autorizassem a tornar-se plebeu.
— Célere não se opôs? Ele recusou a candidatura de Clódio a tribuno da plebe.
— E fez muito bem. Célere é um excelente homem de leis. Porém, no que toca ao estatuto de Clódio, tanto lhe faz. E percebe-se porquê. Neste momento, o único alvo da maldade de Clódio é Cícero, que não possui qualquer influência junto de Célere ou dos colégios sacerdotais. Não é costume reagir-se mal ao desejo de um patrício que pretende tornar-se plebeu. O tribunato da plebe é bom para homens com queda para a demagogia. É esse o caso de Clódio.
— Porque é que não informaste Clódio?
— Não sei sequer se o farei. Clódio é um indivíduo instável. Contudo, se tiver de enfrentar Cícero, darei rédea solta a Clódio. — César bocejou e espreguiçou-se. — Ah, estou cansado! Onde está Júlia?
— Foi a uma festa de raparigas, em casa de Servília, e eu disse-lhe que podia passar lá a noite. Naquela idade, somos capazes de passar dias inteiros a conversar.
— Faz dezassete anos nas Nonas. Ah, mater, como o tempo voa! A mãe dela morreu há dez anos.
— Mas não foi esquecida — disse Aurélia, rispidamente.
— Nem nunca será.
Fez-se silêncio, um silêncio tranquilo e bom. Sem problemas de dinheiro a apoquentá-la, Aurélia era uma maravilha, pensou o filho.
De súbito, ela tossicou, olhou para ele com um brilho especial nos olhos. — César, um dia destes precisei de ir ao quarto de Júlia dar uma vista de olhos às roupas dela. Tu podes dar-lhe jóias — sugiro que lhe dês brincos e um colar de ouro. Mas eu dou-lhe as roupas. Eu sei que devia ser ela a fazer as suas próprias roupas — eu fazia as minhas, na idade dela. Mas ela é mais dada aos livros. Infelizmente, prefere ler a tecer. Há anos que desisti de a tentar convencer a trabalhar no tear. As poucas coisas que fez eram um verdadeiro desastre.
— Qual é a tua ideia, mater? Eu estou-me marimbando para o que Júlia faz, desde que se comporte como uma Júlia.
Aurélia levantou-se. — Espera um pouco que eu já venho — disse ela, deixando os aposentos do filho.
César ouviu-a subir as escadas; passado um momento, já ela descia. Entrou, com as mãos atrás das costas. Extremamente divertido, César, olhando-a muito fixamente, tentou perturbá-la. Sem êxito. Depois, Aurélia pôs o que trazia em cima da secretária.
Fascinado, César deu consigo a olhar para um pequeno busto — nada mais nada menos do que um busto de Pompeu. Muito melhor do que aqueles que vira nos mercados, mas também produzido em massa, pois era de gesso e fora utilizado um molde; a semelhança era maior e a pintura delicada.
— Encontrei isto escondido nas roupas de criança de Júlia. Num baú que, em princípio, ninguém abriria... Aliás, eu também não teria mexido no baú, mas lembrei-me de que há imensas meninas no bairro de Subura que ficariam todas contentes se eu lhes desse as roupas velhas de Júlia. Nunca a estragámos com roupas, ao contrário de outras, como Júnia, que estreiam um vestido todos os dias, mas também nunca permitimos que ela tivesse um aspecto desmazelado. Bom, seja como for, a minha ideia era esvaziar o baú e mandar Cardixa a Subura com o conteúdo. Mas depois desta descoberta, deixei tudo como estava.
— Quanto dinheiro é que lhe dás, mater? — perguntou César, pegando no busto e fazendo-o girar nas suas mãos, com um sorriso espreitando num canto da boca; pensava em todas aquelas raparigas que se juntavam à volta das tendas do mercado, suspirando por Pompeu.
— Muito pouco, como concordámos logo que ela teve idade para receber dinheiro.
— Quanto achas que custa uma coisa destas, mater?
— Cem sestércios, pelo menos.
— Sim, julgo que tens razão. Nesse caso, ela poupou o seu precioso dinheiro para comprar este busto.
— Sim, só pode ter sido isso.
— E qual é a tua conclusão?
— Que ela tem uma paixoneta por Pompeu, tal como quase todas as outras raparigas do seu círculo. Imagino que, neste preciso momento, há uma dúzia de raparigas — Júlia incluída — reunidas em volta de um busto idêntico, suspirando de prazer, enquanto Servília tenta dormir e Bruto trabalha no seu último epítome.
— Para alguém que nunca foi indiscreto, o teu conhecimento do comportamento humano é surpreendente.
— Lá porque a minha sensatez me impediu de ser tonta, isso não significa que seja incapaz de detectar as tontices dos outros — retorquiu Aurélia, com um ar austero.
— Porque te deste ao trabalho de me mostrar isto?
— Bom... — disse Aurélia, sentando-se de novo. — É claro que não posso dizer que Júlia seja uma tonta. No fim de contas, até sou avó dela! Quando encontrei isso — disse ela, apontando para Pompeu —, comecei a pensar em Júlia de uma forma completamente diferente. Nós esquecemo-nos de que eles crescem, César. É um facto. Daqui a um ano, mais ou menos por esta altura, Júlia fará dezoito anos e casará com Bruto. Contudo, à medida que o casamento se aproxima, as minhas apreensões aumentam.
— Porquê?
— Porque Júlia não ama Bruto.
— O amor não faz parte do contrato, mater — retorquiu afavelmente César.
— Eu sei, eu sei. Aliás, nem sequer sou piegas, como sabes. Não estou a ser piegas neste momento. O teu conhecimento de Júlia é superficial porque não pode ser outra coisa. Vê-la muitas vezes, mas a Júlia que está contigo é diferente da que está comigo. Ela adora-te. Sim, adora-te. Se lhe pedisses que enfiasse um punhal no seu seio, ela, muito provavelmente, obedecer-te-ia.
César mexeu-se, constrangido. — Mater, francamente...!
— Não, estou a falar a sério. Se lhe pedisses que fizesse isso, ela pensaria que era necessário para o teu futuro bem-estar. Ela é Ifigénia em Áulida. Se a sua morte fizesse os ventos soprar e encher as velas da tua vida, ela procuraria a morte. Só pensaria no teu bem — e nunca no seu mal. É essa a sua atitude perante o casamento com Bruto — disse Aurélia. — Estou plenamente convencida disso. Júlia casará com Bruto para te agradar a ti e será uma esposa perfeita durante cinquenta anos, se por acaso ele viver tanto tempo. Mas nunca será feliz.
— Ah, não suporto essa ideia! — exclamou ele, arrumando o busto.
— Nunca pensei que suportasses.
— Ela nunca me disse nada.
— E nunca dirá. Bruto é o chefe de uma família antiga e fabulosamente rica. Casando com ele, Júlia estará a oferecer-te essa família. Ela sabe isso perfeitamente.
— Amanhã vou falar com ela — disse César, decidido.
— Não, César, não faças isso. Ela pensará que te apercebeste da sua relutância e dir-te-á que estás enganado.
— Nesse caso... que hei-de fazer?
No rosto de Aurélia, desenhou-se uma expressão de felina satisfação. — Se estivesse no teu lugar, convidaria o pobre e solitário Pompeu Magno para um simpático jantar familiar.
César, de boca aberta e com um esboço de sorriso ameaçando fechá-la, ficou com o ar que tinha em rapaz. Até que o sorriso venceu, transformando-se rapidamente numa gargalhada. — Mater, mater...! — disse ele, logo que pôde. — Que faria eu sem ti? Júlia e Magno? Achas que é possível? O que eu passei para achar uma maneira de o prender a mim...! Mas uma destas é que nunca me passou pela cabeça! Tens razão, nós não nos damos conta de que eles crescem. Quando regressei da Hispânia, pensei que sim, que me apercebera de que a minha filha crescera. Mas depois apareceu Bruto — e eu pensei que estava tudo bem entre os dois.
— O casamento entre Júlia e Pompeu só resultará se for por amor — disse Aurélia. — Por isso, não sejas apressado e não traias as tuas intenções quanto ao jantar.
— Claro, claro. Quando achas que devemos dar esse jantar?
— Espera até a lei das terras ser aprovada. E não o empurres. Nem mesmo depois de ele a ter conhecido.
— Ela é bela, é jovem, é uma Júlia. Magno pedirá a mão dela logo que o jantar termine.
Mas Aurélia abanou a cabeça. — Não, não pedirá.
— Porque não?
— Sila disse-me, em tempos, que Pompeu tinha medo de pedir a mão de uma princesa. Porque é isso que Júlia é, uma princesa. Não há melhor linhagem em Roma. Aos olhos de Pompeu, uma rainha estrangeira seria inferior a Júlia. Por isso, Pompeu não pedirá a mão de Júlia. Tem medo que lhe seja recusada. Foi isso que Sila disse — Pompeu preferia ficar solteiro a suportar a injúria à sua dignitas que uma recusa significaria. Por isso está à espera que alguém que tenha uma filha princesa lhe proponha o casamento. Tu é que vais ter de pedir, César, e não Pompeu. Mas, primeiro, deixa-o na expectativa. Ele sabe que Júlia está comprometida com Bruto. Veremos o que sucede quando eles se encontrarem, mas não deixes que se encontrem demasiado cedo. — Levantou-se e pegou no busto de Pompeu. — Vou levar isto para o baú.
— Não, põe-no numa prateleira perto da cama dela e faz o que tencionavas fazer. Dá as roupas dela — disse César, recostando-se na cadeira e fechando os olhos satisfeito.
— Ela vai sentir-se humilhada, por eu ter descoberto o seu segredo.
— Não, mãe, não vai ficar. Dize-lhe que não volte a aceitar presentes de Júnia, que tem demasiado dinheiro para gastar...! Dessa forma, ela poderá continuar a apreciar o seu Pompeu Magno sem que o seu orgulho saia ferido.
— Vai para a cama — disse Aurélia da porta.
— É o que penso fazer. E graças a ti, vou dormir melhor do que um marinheiro no mais morno e manso dos mares.
— Uma aliteração excessiva, César...!
No segundo dia de Janeiro, César apresentou ao Senado a sua lei das terras. O Senado estremeceu só de ver cerca de trinta volumosos livros espalhados pelo chão, em torno do cônsul sénior. Em comparação com aquilo, qualquer lei pareceria minúscula; a lex lulia agraria comportava mais de cem capítulos.
Como a sala da Cúria Hostília não possuía uma acústica satisfatória, o cônsul sénior ergueu bem alto a sua voz e lançou-se numa dissecação admiravelmente concisa (embora abarcando todos os assuntos) daquele maciço documento a que o seu nome — e o seu nome apenas — ficaria associado. Se Bíbulo aceitasse cooperar, a lei ter-se-ia chamado lex lulia Calpurnia agraria.
— Os meus escribas prepararam trezentas cópias da lei. Não houve tempo para fazer mais — disse ele. — Contudo, dois senadores poderão usar uma mesma cópia e restarão ainda cinquenta para o Povo. Instalarei uma tenda nas cercanias da Basílica Aemilia, com um secretário e um assistente, a fim de que os membros do Povo que o desejem possam examiná-la. Anexo a cada cópia, encontrarão um sumário com referências úteis a cláusulas ou capítulos pertinentes, caso estejam mais interessados nuns assuntos do que noutros.
— Deves estar a brincar! — atirou-lhe Bíbulo. — Ninguém se vai dar ao trabalho de ler isso!
— Espero sinceramente que toda a gente o leia — replicou César, erguendo as sobrancelhas. — Quero ouvir críticas, quero ouvir sugestões úteis, quero saber o que está errado. — A sua expressão era grave. — A brevidade pode ser o fundamento do humor, mas as leis que são breves, quando deveriam ser longas, são normalmente más leis. Todas as contingências devem ser examinadas, exploradas, explicadas. As leis mais perfeitas são as leis longas. Apresentarei também leis breves, Patres Conscripti. Mas todas as minhas leis serão elaboradas de acordo com uma fórmula concebida para cobrir todas as eventualidades.
César fez uma pausa para que os senadores comentassem, mas ninguém pediu a palavra. — A Itália é Roma: não nos iludamos quanto a isso. As terras públicas das cidades, vilas, municípios e regiões de Itália pertencem a Roma. E graças a guerras e migrações, há muitas regiões em toda a península que se tornaram tão subaproveitadas e subpovoadas como qualquer parte da Grécia moderna. Em contrapartida, a cidade de Roma tornou-se sobrepovoada. A distribuição de cereais é um fardo demasiado pesado para o Tesouro e, ao dizer isto, não estou a criticar a lei de Marco Pórcio Catão. Do meu ponto de vista, foi uma medida excelente. Sem ela, teríamos assistido a motins e a uma agitação generalizada. Mas a verdade é que, em vez de financiarmos uma distribuição de cereais cada vez mais vasta, deveríamos diminuir a sobrepopulação dentro da cidade de Roma, oferecendo aos pobres de Roma outras possibilidades para além da participação nos exércitos.
Temos também cinquenta mil soldados veteranos deambulando pelo país — inclusivamente dentro desta cidade! —, sem meios para se instalarem e levarem uma vida pacífica ao chegarem à meia-idade. Esses homens, em vez de se tornarem cidadãos produtivos e os pais dos soldados do futuro, deixam um sem número de filhos ilegítimos — as miseráveis crianças que vemos nas ruas de Roma agarradas às saias das miseráveis mães. Se não nos ensinaram mais nada, as nossas conquistas ensinaram-nos pelo menos que somos nós, os Romanos, quem melhor combate, que somos nós, os Romanos, quem dá vitórias aos seus generais, que somos nós, os Romanos, quem consegue enfrentar com serenidade cercos que chegam a durar dez anos, que somos nós, os Romanos, quem consegue recuperar das suas perdas e retomar o combate.
Aquilo que proponho é uma lei que distribuirá todos os iugera de terra pública desta península, salvo as duzentas milhas quadradas do Ager Campanus e as cinquenta milhas quadradas de terras públicas ligadas à cidade de Cápua, o nosso principal local de treino para as legiões. Esta lei inclui, portanto, as terras públicas ligadas a cidades como Volaterras e Arécio. Quando for fixar os meus marcos ao longo dos caminhos e vias para o transporte de gado em Itália, gostaria que esses marcos delimitassem o grosso das terras públicas existentes em Itália, não contando, obviamente, com a Campânia. E porque não as terras da Campânia? Simplesmente porque essas terras se encontram há muito tempo sujeitas ao regime de aluguer
— e seria repugnante obrigar aqueles que as alugam a deixar de contar com esse rendimento. Isto inclui, naturalmente, o pobre cavaleiro Públio Servílio. Espero, aliás, que Públio Servílio já tenha replantado a sua vinha e usado tanto estrume quanto o que essas delicadas plantas toleram.
Nem mesmo aquilo provocara um comentário! Como a cadeira curul de Bíbulo se encontrava um pouco atrás da sua, César não conseguia ver o rosto do seu colega, mas não deixou de achar curioso que ele se mantivesse calado. Calado estava também Catão, que voltara a usar apenas a toga desde que o seu macaco de imitação, Favónio, entrara para o Senado. Sendo questor urbano, o Macaco podia assistir agora a todas as reuniões do Senado.
— Sem desapossar nenhuma das pessoas que, actualmente, ocupam o nosso ager publicus, segundo os termos de uma lex agraria anterior, considerei que as terras públicas disponíveis chegarão para dar dez iugera a cerca de trinta mil cidadãos. O que nos deixa perante a tarefa de encontrar, entre as propriedades que actualmente pertencem a privados, terra suficiente para mais cinquenta mil beneficiários. Conto instalar cinquenta mil soldados veteranos, mais trinta mil pobres de Roma. Excluindo os muitos veteranos que se encontram em Roma, trinta mil pobres urbanos instalados em terras produtivas das áreas rurais significarão, para o Tesouro, um ganho de setecentos e vinte talentos por ano — já que o Tesouro deixará de distribuir cereais por esses pobres. Juntem-lhes os vinte mil veteranos que se encontram na cidade e os ganhos do Tesouro quase atingirão a carga adicional que a lei de Marco Pórcio Catão impôs aos fundos públicos.
Mas, mesmo tendo em conta a compra de tantas terras privadas, o Tesouro poderá fornecer o financiamento necessário, por causa da subida extrema dos rendimentos provenientes das províncias orientais — mesmo que, por exemplo, os contratos para a cobrança dos impostos sofram uma redução de, digamos, um terço. Não espero que os vinte mil talentos de lucros directos que Cneu Pompeu Magno deu ao Tesouro possam ser canalizados para a compra de terras, em consequência da lei de Quinto Metelo Nepos que acabou com direitos e tarifas, um gesto liberal que privou Roma de rendimentos de que muito precisa.
Este comentário também não suscitou nenhuma reacção. Nepos estava ainda no governo da Hispânia Ulterior, embora Célere se encontrasse entre os consulares. Já devia ter ido para a sua província, a Gália Transalpina.
— Quando examinarem a minha lex agraria, verificarão que não é uma lei arrogante. Não será possível exercer pressões sobre os proprietários de terras para que as vendam ao Estado, não haverá qualquer redução nos preços da terra. As terras compradas pelo Estado deverão ser pagas ao preço definido pelos nossos estimados censores, Caio Escribónio Curião e Caio Cássio Longino. Os documentos de propriedade existentes serão considerados inteiramente legais; não se poderá recorrer à lei para os pôr em causa. Por outras palavras: se um homem alterou a localização dos seus marcos e ninguém contestou a sua acção, esses marcos definirão a extensão das suas propriedades susceptíveis de serem vendidas.
Os cidadãos a quem forem concedidas terras não poderão vendê-las, nem abandoná-las, durante vinte anos.
E, finalmente, Patres Conscripti, a lei propõe que a aquisição e a concessão de terras sejam controladas por uma comissão de vinte cavaleiros e senadores séniores. Se o Senado me der um consultum para levar ao Povo, então esta casa terá o privilégio de escolher os vinte cavaleiros e senadores. Se não me der um consultum, o privilégio irá para o Povo. Haverá também uma comissão de cinco consulares que supervisionará o trabalho dos membros da primeira comissão. No entanto, eu não participarei em nenhuma delas. Nem na primeira, nem na segunda. Não poderá haver suspeitas de que Caio Júlio César pretende aproveitar estas medidas para enriquecer ou tornar-se o patrono daqueles que a lex lulia agraria reinstalar em novas terras.
César suspirou, sorriu, ergueu as mãos. — Mas por hoje chega, honrados membros deste Senado. Dou-lhes vinte dias para lerem a lei e prepararem o debate, o que significa que a próxima sessão sobre a lex lulia agraria decorrerá dezasseis dias antes das Calendas de Fevereiro. O Senado, no entanto, voltará a reunir daqui a cinco dias, ou seja, no sétimo dia antes dos Idos de Janeiro. — Com uma expressão maliciosa, prosseguiu: — Como não quero sobrecarregá-los, tomei já providências para que sejam distribuídas duzentas e cinquenta cópias da minha lei pelas casas dos duzentos e cinquenta membros mais séniores deste órgão. Por favor, não se esqueçam dos senadores mais juniores! Aqueles que lêem depressa, mandem-me as suas cópias logo que acabem. Há uma outra solução, claro: bastará que os membros juniores se juntem aos séniores e partilhem a mesma cópia!
Dito isto, César deu por encerrada a sessão e saiu na companhia de Crasso; ao passar por Pompeu, saudou-o apenas com uma grave inclinação da cabeça.
Catão, acompanhado por Bíbulo, desforrava-se agora do silêncio a que se submetera durante a reunião.
— Vou ler tudo! Com certeza que há alguma tramóia no meio daquilo tudo... — anunciou Catão. — E sugiro-te que faças o mesmo, Bíbulo, apesar de detestares ler leis. Todos devíamos lê-la.
— Se a lei é tão respeitável como ele diz, então não haverá grandes motivos para a criticar. Não, Catão, não deve haver tramóia nenhuma.
— Estás a dizer que és a favor da lei?
— Claro que não! — ripostou Bíbulo. — O que eu estou a dizer é que o nosso bloqueio não será considerado construtivo. O Senado achará que estamos a bloquear unicamente por despeito.
Catão ficou pasmado. — E tu importas-te com isso? — perguntou.
— Não, de facto não me importo, mas estava à espera de que a lei de César fosse uma nova versão das de Sulpício ou Rulo — enfim, que houvesse qualquer coisa em que pudéssemos pegar. Acho que não vale a pena tornarmo-nos mais odiosos do que o necessário aos olhos do Povo.
— Ele é demasiado bom para nós — disse Metelo Cipião, com um ar consternado.
— Não, não é! — gritou Bíbulo. — Ele não vencerá, ele não vencerá!
Quando o Senado voltou a reunir-se, cinco dias depois, o tema em debate eram os publicam da Ásia; desta feita, não havia capítulos intermináveis, mas apenas um rolo que César segurava na mão.
— Este assunto tem vindo a ser bloqueado há mais de um ano. Durante esse período, um grupo de cobradores de impostos desesperados tem vindo a destruir o bom governo de Roma em quatro províncias orientais — Ásia, Cilícia, Síria e Bitínia-Ponto — disse César, num tom duro. — Mesmo assim, as somas que os censores aceitaram em nome do Tesouro não foram atingidas. Este estado de coisas implica que os nossos amigos socii das províncias orientais sejam implacavelmente despojados — e que os nossos amigos socii amaldiçoem todos os dias o nome de Roma. Os governadores dessas províncias passam o tempo a acalmar delegações de irados socii e a mandar lictores e tropas para assistirem os cobradores de impostos.
Temos de reduzir as nossas perdas, Paires Conscripti. Tão simples quanto isso. Tenho aqui uma lei que vou apresentar à Assembleia Popular, pedindo-lhe que reduza de um terço os impostos das províncias orientais. Dêem-me um consultum hoje mesmo. Dois terços de qualquer coisa é infinitamente preferível a três terços de nada.
Como seria de esperar, César não obteve o seu consultum. Catão começou a falar e não mais parou. Desta feita, o tema era a filosofia de Zenão e as alterações que a sociedade romana nela introduzira.
Pouco depois do alvorecer do dia seguinte, César convocou a Assembleia Popular, cheia de cavaleiros de Crasso, e pôs a sua proposta à votação.
— Se dezassete meses de contiones sobre este tema não chegaram, então dezassete anos de contiones também não chegarão! — disse César. — Vamos votar hoje e isso significa que os publicam não terão de esperar mais do que dezassete dias!
Bastou aos boni olharem para os rostos que enchiam o Poço dos Comitia para perceberem que a sua oposição seria tão perigosa quanto infrutífera; quando Catão tentou falar, as vaias obrigaram-no a calar-se; e quando Bíbulo tentou falar, viu um mar de punhos erguidos à sua frente. Numa das mais rápidas votações de que havia memória, os rendimentos do Tesouro das províncias orientais sofreram um corte de um terço e a multidão de cavaleiros aclamou vibrantemente César e Marco Crasso.
— Que alívio...! — disse Crasso, com um sorriso radioso.
— Quem me dera que fosse tudo assim tão fácil — disse César, com um suspiro. — Se eu conseguisse agir com a mesma rapidez no caso da lex agraria, esta seria aprovada sem que os boni tivessem tempo para se organizar. Para a tua lei, não precisei de convocar contiones. Os boni, idiotas como são, pensaram que eu não iria em frente.
— Há uma coisa que me intriga, César.
— O quê?
— Os tribunos da plebe estão em funções há um mês. No entanto, tu não recorreste a Vatínio em nenhuma ocasião. E eis-te promulgando as tuas próprias leis. Eu conheço Vatínio. Estou certo de que é um bom cliente, mas não deixará de te cobrar todos os serviços que faça.
— Não deixará de nos cobrar, Marco... — disse César, afavelmente.
— Todo o Fórum está intrigado. Um mês de tribunos da plebe sem uma única lei, sem um único confronto.
— Tenho muito trabalho para Vatínio e Alfio, mas ainda é cedo. Eu é que sou o legislador, Marco, e adoro sê-lo. Cônsules legisladores são raros. Porque haveria de deixar toda a glória para Cícero? Não, esperarei até ter problemas com a lex agraria. Só então darei rédea solta a Vatínio e Álfio.
— Tenho mesmo de ler toda aquela papelada? — perguntou Crasso.
— Seria bom que lesses, porque pode ser que tenhas algumas ideias brilhantes. Claro que, do teu ponto de vista, a lei não tem nada de errado.
— Não consegues enganar-me, Caio. Não há qualquer possibilidade de instalar oitenta mil pessoas em dez iugera cada uma, sem recorrer ao Ager Campanus e às terras de Cápua.
— Nunca pensei que conseguisse enganar-te. Mas não tenciono abrir tão cedo a jaula desse animal feroz...
— Olha, ainda bem que abandonei os latifundia...!
— Porque o fizeste?
— Demasiados problemas e lucros insuficientes. Uma imensidão de iugera para meia dúzia de ovelhas e pastores e os escravos que trabalham a terra só nos dão chatices... Os homens que se dedicam a esse tipo de exploração agrícola são meros diletantes, Caio. Pensa, por exemplo, no caso de Ático. Embora o deteste, tenho de reconhecer-lhe alguma inteligência: nunca o vi explorar meio milhão de iugera em Itália. Eles gostam de dizer que exploram meio milhão de iugera, mas é falso; dizem-no unicamente por vaidade. Lúculo é um exemplo perfeito. Tem mais dinheiro do que juízo. E menos gosto do que juízo, ainda que ele o conteste. Não, Caio, eu não me oporei, os cavaleiros não se oporão. A exploração de terras públicas alugadas pelo Estado é uma diversão para senadores, não um negócio para cavaleiros. É capaz de permitir a um senador um censo de um milhão de sestércios, mas que é um milhão de sestércios, César? Uma ninharia! Isso faço eu num dia... — sorriu, encolheu os ombros. — Ah, não o devia ter dito... És muito capaz de ir contar aos censores.
César segurou nas dobras da sua toga e desatou a correr pelo baixo Fórum, na direcção do Velabro. — Caio Curião! Caio Cássio! Não vão para casa, vão para a vossa tenda de censores! Quero falar-vos de um caso!
Sob o olhar fascinado de várias centenas de cavaleiros e frequentadores do Fórum, Crasso desatou a correr atrás de César, gritando: — Não faças isso! Não faças isso!
Então César parou e deixou que Crasso o apanhasse. Desataram à gargalhada antes de partirem na direcção da Domus Publica. Extraordinário...! Dois dos homens mais famosos de Roma correndo que nem meninos? E nem sequer era lua cheia...!
Durante todo o mês de Janeiro, prosseguiu o duelo entre César e os boni em torno da lei das terras. Em todas as reuniões do Senado convocadas para a discussão da lei, Catão bloqueava os trabalhos. Querendo saber se uma tal táctica ainda funcionava, César acabou por ordenar aos seus lictores que pegassem em Catão e o levassem para as Lautumiae. Os boni foram atrás, aplaudindo o seu herói. Catão pôs uma expressão de mártir no seu rosto cavalar. Não, não ia funcionar. César chamou de volta os seus lictores, Catão regressou ao seu lugar e continou a obstruir os trabalhos.
A única solução seria levar a lei ao Povo sem o consultum do Senado. Teria de a discutir num contio durante o mês de Fevereiro. Em Fevereiro, Bíbulo detinha os fasces -— logo, poderia opor-se mais facilmente ao cônsul que não os detinha. Nesse caso, quando seria a votação? Em Fevereiro ou Março? Ninguém sabia.
— Se esta lei te desagrada tanto, Marco Bíbulo — exclamou César nessa primeira contio, na Assembleia Popular —, então dize-me porquê! Não basta gritar que te opões, tens de dizer a esta assembleia legal do Povo Romano o que tem de errado a minha lei! Aqui estou eu oferecendo uma hipótese de vida a um povo sem hipóteses, e faço-o sem levar o Estado à bancarrota e sem enganar ou forçar aqueles que já possuem terras! E, no entanto, tu limitas-te a dizer que te opões, que te opões, que te opões! Dize-nos porquê, Marco Bíbulo!
— Oponho-me, porque tu és o autor da lei, César! Essa é a única razão! Tudo o que tu fazes é amaldiçoado e ímpio!
— Deixa-te de enigmas, Marco Bíbulo! Sê claro, não te deixes levar pelas emoções; dize-nos por que razão te opões a uma lei que é absolutamente necessária! Faze as tuas críticas, por favor!
— Não tenho críticas a fazer. No entanto, oponho-me! Tendo em conta que vários milhares de homens enchiam o Poço dos Comitia, o ruído que a multidão fazia era mínimo. Havia rostos novos no meio dessa multidão — não estavam lá apenas os cavaleiros, ou os jovens do Clube de Clódio, ou os frequentadores profissionais do Fórum; de facto, Pompeu levara para Roma os seus veteranos, fosse para a votação, fosse para um combate, ninguém o sabia. Eram homens escolhidos a dedo, distribuídos equitativamente pelas trinta e uma tribos rurais e, por isso mesmo, extremamente importantes numa votação. Mas também davam muito jeito se houvesse alguma escaramuça.
César virou-se para Bíbulo e prosseguiu o seu pleito. — Marco Bíbulo, porque te opões a uma lei notável e absolutamente necessária? Porque não ajudas o Povo? Olha para os rostos destes homens! Achas que eles vão recusar esta lei? Não, não vão! Toda a Roma quer esta lei! Vais punir Roma só porque não gostas de mim, só porque não gostas de um indivíduo, de um único indivíduo chamado Caio Júlio César? Achas isso digno de um cônsul? Achas isso digno de um Calpúrnio Bíbulo?
— Sim, é digno de um Calpúrnio Bíbulo! — gritou o cônsul júnior. — Eu sou um augure, eu conheço o mal quando o vejo! Tu és a personificação do mal! Todas as tuas acções são uma manifestação do mal! Nenhum bem pode vir das tuas leis! Por essa razão, aqui e agora declaro que todos os dias comiciais do resto do ano serão feriae e que, portanto, nenhuma reunião do Povo ou da Plebe poderá ser realizada durante o resto do ano! — Pôs-se em bicos de pés, os punhos cerrados junto ao corpo, as maciças dobras da toga no seu braço esquerdo começando a desenredar-se, já que tinha os braços caídos. — Eu faço isto porque sei que devo recorrer às proibições religiosas! Porque me estou marimbando para o facto de todas as almas simples e ignorantes de Itália quererem esta lei! Enquanto eu for cônsul, não terão esta lei!
O ódio era tão palpável que muitos dos presentes (sobretudo aqueles que não estavam politicamente ligados a nenhum dos cônsules) tremeram e, furtivamente, seguraram com o polegar o dedo anelar e o do meio e espetaram o indicador e o mindinho — esse era o gesto usado para afastar o mau olhado.
— Rojem-se aos seus pés como animais servis! — gritou Bíbulo para a multidão. — Beijem-no, poluam-no, ofereçam-se a ele! Já que querem tanto esta lei, vão em frente e aprovem-na! Mas não terão esta lei enquanto eu for cônsul! Nunca, nunca, nunca!
As vaias começaram imediatamente, as vaias, os apupos, os gritos, os assobios, uma onda crescente de violência vocal, uma onda tão imensa e aterradora que Bíbulo compôs o melhor que pôde a sua toga, virou costas e deixou os rostra. Mas afastou-se apenas o suficiente para ficar a salvo; ele e os seus lictores ficaram nos degraus da Cúria Hostília, para ouvirem o resto dos discursos.
Então, como que por artes mágicas, os apupos transformaram-se em aclamações, que eram ouvidas mesmo no Fórum Holitorium; César chamou Pompeu, o Grande, e conduziu-o aos rostra.
O Grande Homem estava furioso e a fúria dava uma força inusitada às suas palavras. O que disse não agradou a Bíbulo, nem a Catão, que agora estava com ele.
— Cneu Pompeu Magno, dás-me o teu apoio contra aqueles que se opõem a esta lei? — perguntou César.
— Que haja alguém que ouse erguer a sua espada contra a tua lei, que eu logo erguerei o meu escudo! — gritou Pompeu.
Depois, foi a vez de Crasso subir aos rostra. — Eu, Marco Licínio Crasso, declaro que esta é a melhor lei das terras que Roma alguma vez teve! — gritou. — A todos os que estão aqui reunidos e que possam estar preocupados com as suas propriedades, dou-vos a minha palavra de honra que nenhuma propriedade corre perigo e que todos os homens interessados podem esperar obter algum lucro!
Espantado, Catão virou-se para Bíbulo. — Por todos os deuses,
Marco Bíbulo, viste o que eu vi? — perguntou ele.
— Os três juntos...!
— Afinal não é César que está por trás disto! É Pompeu! Andámos a perseguir o homem errado!
— Não, Catão, não é bem assim. César é a personificação do mal. Mas percebo onde queres chegar. Pompeu é o grande impulsionador disto tudo. Claro que é! Que ganharia César com isto, a não ser dinheiro? Ele trabalha para Pompeu, tem trabalhado sempre para Pompeu. E Crasso também está envolvido. Os três estão juntos e Pompeu é o chefe. São os veteranos dele que beneficiam com esta lei, nós sabíamos isso. Mas César atirou-nos poeira para os olhos com os seus pobres urbanos — restos dos Gracos e de Sulpício!
As aclamações eram ensurdecedoras; Bíbulo e Catão afastaram-se na direcção do Argileto.
— Temos de mudar um pouco a nossa táctica, Catão — disse Bíbulo. — A partir de agora, o nosso principal alvo terá de ser Pompeu.
— Um alvo mais fácil do que César — disse Catão.
— Todos os alvos são mais fáceis do que César. Mas não te preocupes, Catão. Se destruirmos Pompeu, destruímos a coligação. E quando César tiver de lutar sozinho, também o apanharemos.
— Fizeste bem em declarar feriae o resto dos dias comiciais. Foi um golpe brilhante.
— Fui buscar a ideia a Sila. Mas tenciono ir muito mais longe do que Sila. Posso não conseguir impedi-los de promulgar leis, mas posso tornar essas leis ilegais — disse Bíbulo.
— Começo a pensar que Bíbulo está um tanto ou quanto louco — disse César a Servília, algumas horas mais tarde. — Aquela conversa sobre o mal é capaz de pôr os cabelos em pé a qualquer um. O ódio explica muita coisa, mas aquilo não é só ódio. A razão e a lógica ausentaram-se daquela cabeça. — Os olhos pálidos pareciam muito cansados: os olhos de Sila. — Foi isso que o Povo sentiu. E não gostou nada. Os ataques políticos são uma coisa, Servília, todos nós temos de enfrentá-los. Mas a intervenção de Bíbulo pôs as diferenças entre nós num plano inumano. Como se nós fôssemos duas forças — eu, o mal, e ele, o bem. Talvez a total ausência de razão e lógica possa parecer, aos olhos dos observadores, uma manifestação do bem... Os homens pensam que o mal precisa da razão e da lógica. Por isso, sem se aperceber do que estava a fazer, Bíbulo — é o que eu penso — acabou por me deixar em desvantagem. O fanático seria, assim, uma força do bem; o homem pensante, o intelectual, em consequência do seu distanciamento perante as coisas, seria a encarnação do mal. Tudo isto é ridículo...!
— Não, não é — disse ela, massajando com perícia as costas dele. — Percebo o que queres dizer, César. As emoções são muito poderosas e, nelas, a lógica não está presente. É como se as emoções existissem num compartimento separado da razão. Bíbulo nunca se submeteria... No entanto, e de acordo com todas as normas do comportamento humano, deveria ter-se sentido embaraçado, humilhado, deveria ter-se submetido. Bíbulo não podia dizer a nenhum dos presentes por que razão se opunha à tua lei. E, apesar disso, continuou a opor-se-lhe — com um zelo, com uma energia impressionantes! Creio sinceramente que as coisas vão piorar para ti.
— Obrigado pelo optimismo — disse ele, sorridente, virando a cabeça para olhar para ela.
— Não contes comigo para fugir à verdade — retorquiu ela; concluiu finalmente a massagem, sentou-se na beira da cama; César afastou-se um pouco, para que ela se deitasse ao lado dele. Servília disse então: — César, eu sei que esta lei das terras se destina em parte a recompensar Pompeu — até um cego vê isso. Mas hoje, quando estavam os três lado a lado, pareceu-me que o que estava em causa não era apenas uma tentativa desinteressada para resolver um dos problemas mais persistentes de Roma — o que fazer com os soldados veteranos.
César ergueu a cabeça. — Pelos vistos, assististe a tudo — disse ele.
— Assisti. Tenho um esconderijo muito simpático entre a Cúria Hostília e a Basílica Pórcia. Não preciso de me mostrar, não quero rivalizar com Fúlvia.
— Que achas então que estava em causa? Achas que havia qualquer coisa mais entre mim, Crasso e Pompeu?
Servília passou com a mão pelo queixo; precisava de depilá-lo, pensou, mas logo se concentrou na questão de César. — Quando chamaste Pompeu, talvez fosse apenas um acto de perspicácia política. Mas Crasso chamou-me a atenção... Lembrei-me do tempo em que ele e Pompeu eram cônsules — só que, desta feita, tu estavas no meio deles... Não se notava neles qualquer constrangimento, não os vi trocarem olhares de ódio ou desagrado... Enfim, parecia que os três eram peças de uma mesma montanha. Impressionante, sem dúvida...! A multidão esqueceu-se logo de Bíbulo, e isso foi bom. Mas confesso que fiquei intrigada. César... por acaso não terás feito um pacto com Pompeu Magno?
— De maneira nenhuma — retorquiu César, com firmeza. — O meu pacto é com Crasso e um sem número de banqueiros. Mas Magno não é nenhum idiota — mesmo tu admites isso. Ele precisa de mim para obter terras para os seus veteranos e para ratificar as disposições que tomou no Oriente. Em contrapartida, a minha grande preocupação é resolver os problemas que a sua conquista do Oriente acabou por trazer. A muitos níveis, Magno não ajudou Roma; pelo contrário, levantou-lhe problemas. Toda a gente está a gastar demasiado dinheiro e a fazer demasiadas concessões aos votantes. A minha política para este ano consiste em retirar de Roma um número suficiente de pobres, de forma a reduzir o fardo do Tesouro no que toca à distribuição de cereais, e em pôr termo ao impasse nos contratos para a cobrança de impostos. Garanto-te que ambas as questões são puramente fiscais. Também tenciono avançar muito mais do que Sila, no que toca ao tratamento dos governadores provinciais: não quero que eles governem as províncias de Roma como se fossem domínios privados. Enfim, tudo isto fará de mim um herói aos olhos dos cavaleiros.
Servília parecia mais apaziguada, pois a resposta de César fazia todo o sentido. Contudo, quando ia a caminho de casa, deu-se conta de que ainda não estava totalmente convencida. César era astuto. E implacável. Se achasse que era prudente, não teria pejo em mentir-lhe. Ele era provavelmente o homem mais brilhante que Roma havia produzido; Servília acompanhara a elaboração da lex agraria e não deixara de ficar surpreendida com a clareza da sua percepção das coisas. César instalara cem escribas no primeiro piso da Domus Publica e só os deixara descansar depois de concluídas as cópias. Um homem extremamente organizado. E determinado.
Bom, não podia esquecer-se de um facto — ela amava-o. Nem mesmo a forma insultuosa como ele a rejeitara a afastara dele. Haveria algo capaz de a afastar? Era pois necessário que ela o achasse mais brilhante, mais dotado, mais capaz do que todos os outros homens que Roma produzira; pensar isso equivalia a apaziguar um orgulho ferido. Ela, uma Servília Cepião, rojando-se aos pés de um homem que não era o melhor de todos os homens que Roma produzira? Impossível! Não, um César não se aliaria a um novo-rico de Piceno! Tanto mais que a filha de César estava comprometida com o filho de um homem que Pompeu assassinara.
Bruto estava à espera dela.
Servília não estava com disposição para falar com o filho. Se fosse noutros tempos, tê-lo-ia mandado embora. Ultimamente, porém, tratava-o com mais paciência, não porque César lhe dissera que ela era demasiado dura para com o filho, mas porque a rejeição de César alterara a situação de uma forma muito subtil. Por uma vez, a sua razão (o mal?) não conseguira dominar as suas emoções (o bem?). E quando regressara a casa, depois daquele encontro horrendo, Servília manifestara toda a sua raiva e dor. Foi como se um tremor de terra tivesse abalado a sua casa. Os criados fugiram, Bruto refugiou-se nos seus aposentos. À escuta. Depois, Servília irrompeu pelo gabinete do filho e disse-lhe o que pensava de Caio Júlio César, que não se casaria com ela porque ela fora uma esposa infiel.
— Infiel! — gritava ela, puxando os cabelos, o rosto e o colo feridos por aquelas terríveis unhas. — Infiel! Com ele, só com ele! Mas isso não chega para um Júlio César, cuja esposa tem de estar acima de qualquer suspeita! Não é incrível? Eu, eu não chego para ele!
Depressa se apercebeu de que aquela explosão fora um disparate. De facto, a rejeição de César fortalecia o casamento de Bruto com Júlia, pois a sociedade não veria com bons olhos um casamento entre os pais dos noivos — pois interpretaria esse casamento como um incesto, ainda que não houvesse laços de sangue próximos entre César e Servília. As leis de Roma eram vagas quanto ao grau de consanguinidade permissível entre marido e mulher; isso, tal como muitas outras coisas, decorria mais da mós maiorum do que de leis específicas. Portanto, uma irmã não podia casar-se com o seu irmão. Mas quanto ao casamento de um sobrinho ou de uma sobrinha com uma tia ou um tio, só os usos e a tradição e a reprovação social o impediam. Havia imensos casamentos entre primos direitos. Logo, ninguém condenaria legalmente, ou religiosamente, o casamento entre César e Servília, se Bruto e Júlia, como estava previsto, se casassem também. Mas a sociedade não veria com bons olhos o casamento entre os pais dos noivos! De maneira nenhuma! E Bruto era como a mãe. Gostava que a sociedade aprovasse tudo o que fazia. Uma união não oficial entre a sua mãe e o pai de Júlia não atrairia uma reprovação tão intensa, muito longe disso; os Romanos eram pragmáticos quanto a essas coisas, porque elas, pura e simplesmente, aconteciam.
Aquela explosão de ressentimento levara também Bruto a ver a mãe como uma mulher igual às outras — e não como a personificação do poder. E criara nele um pequeno foco de desprezo em relação à mãe. Ainda não se tinha libertado dos seus medos, mas já era capaz de suportá-los mais facilmente.
Agora, apesar de não estar com disposição para falar com o filho, Servília sorriu para ele, sentou-se e preparou-se para uma longa conversa. Ah, se ao menos a pele dele melhorasse um pouco! As cicatrizes debaixo daquele horrendo restolho deviam ser horrendas e permaneceriam para sempre, ao contrário das pústulas que, apesar de tudo, tinham sempre cura.
— Que se passa, Bruto? — perguntou ela, amavelmente.
— Estás de acordo que eu peça a César que o casamento se realize já no próximo mês?
Servília pestanejou. — O que te levou a ter essa ideia?
— Nada. Mas nós já estamos noivos há tanto tempo... Além disso, Júlia já fez dezassete anos. Muitas raparigas casam aos dezassete.
— É verdade. Cícero autorizou a filha, Túlia, a casar aos dezasseis — enfim... Cícero também não é um bom exemplo... Mas dezassete anos é uma idade aceitável para os verdadeiros membros da nobreza. — Servília sorriu para o filho e atirou-lhe um beijo. — Bom... porque não?
A velha relação de domínio não podia deixar de manifestar-se. — Preferes tu pedir ou achas que devo ser eu?
— Acho que deves ser tu — disse ela. — Que maravilha! Um casamento no próximo mês. Em breve, eu e César seremos avós...
E Bruto deslocou-se imediatamente à casa de Júlia.
— Perguntei à minha mãe se se opunha a que nos casássemos no próximo mês — disse ele, depois de ter beijado ternamente a noiva e de a ter conduzido para um divã onde poderiam sentar-se lado a lado. — Ela acha que foi uma ideia maravilhosa. Por isso, logo que veja o teu pai, vou pedir-lhe o seu assentimento.
Júlia engoliu em seco. E ela que contava com mais um ano de liberdade...! Mas não podia ser... E, pensando bem, não seria melhor assim? Quanto mais tempo passasse, mais ela odiaria a ideia. O melhor era resolver tudo já! Por isso, virou-se para ele e disse-lhe, com um fiozinho de voz: — Acho um óptima ideia, Bruto.
— Achas que o teu pai nos pode receber já? — perguntou ele, impaciente.
— Bom, já está a ficar escuro, mas ele não deve estar a dormir, porque nunca dorme... A lei das terras foi aprovada, mas ele já está a trabalhar noutra grande lei. Os cem escribas ainda cá estão. O que diria Pompeia se soubesse que os seus velhos aposentos foram transformados em escritórios?
— O teu pai não pensa casar-se de novo?
— Não me parece. Aliás, nem com Pompeia ele queria casar-se. Ele amava a minha mãe.
A testa de Bruto — um mapa de cicatrizes — franziu-se muito. — O amor é um estado tão feliz... No entanto, fiquei satisfeito quando soube que o teu pai não queria casar-se com a minha mãe. Como era a tua mãe? Uma criatura encantadora, por certo...
— Eu lembro-me dela, mas não de uma forma muito clara. A minha mãe não era propriamente uma beldade e o tatá estava muito tempo fora. Mas não creio que o tatá a visse como a maior parte dos homens vêem as suas esposas. Talvez ele nunca estime uma esposa, precisamente por ser uma esposa. A minha mãe era mais uma irmã, parece-me. Eles cresceram juntos e isso criou um elo profundo entre os dois. — Júlia levantou-se. — Vem, vamos falar com a minha avó. Eu mando-a sempre primeiro, ela não tem medo de o enfrentar.
— E tu? Tens?
— Ah, ele nunca se mostraria agressivo ou brusco comigo... Mas tem tanto trabalho e eu gosto tanto dele, Bruto! Os meus pequenos problemas devem ser para ele uma maçada...
Aquela preocupação com os sentimentos dos outros era uma das razões por que Bruto a amava tão apaixonadamente. Já era capaz de enfrentar a mãe e sabia que, depois de se casar com Júlia, seria cada vez mais fácil enfrentar a mãe.
Mas Aurélia estava constipada e fora já para a cama; Júlia bateu à porta do escritório do pai.
— Tatá, podemos falar contigo? — perguntou ela.
César abriu-lhe a porta, sorriu-lhe, deu-lhe um beijo na face. Depois, cumprimentou Bruto. Entraram os dois; a luz era tanta que não paravam de piscar os olhos. César usava o melhor dos óleos e os melhores pavios e, por isso, não havia fumarada, nem qualquer cheiro a estopa queimada.
— Mas que surpresa...! — disse ele. — Vinho? Bruto abanou a cabeça; Júlia riu-se.
— Tatá — disse ela —, eu sei que estás muito ocupado e por isso não te vamos roubar muito tempo. Nós queremos casar no mês que vem.
Como é que ele conseguia fazer aquilo? Na sua expressão não se notava a menor mudança e no entanto ocorrera uma mudança. Os olhos que fitavam os dois jovens estavam exactamente na mesma.
— O que é que provocou isso? — perguntou ele a Bruto. Bruto deu consigo a gaguejar. — Bom, César, nós já estamos
noivos há quase nove anos... e Júlia já tem dezassete anos... Nós não mudámos de ideias e gostamos muito um do outro. Há muitas raparigas que casam aos dezassete anos. Júnia, por exemplo, vai casar-se quando fizer dezassete anos, pelo menos foi o que a minha mãe me disse. E Junila também. Tal como Júlia, também elas vão casar com homens e não com rapazes.
— Fizeram algo que não deviam? — perguntou César, num tom perfeitamente normal.
Júlia enrubesceu. — Oh, tatá, não, claro que não! — exclamou ela.
— Deverei concluir que, se não casarem já, cometerão alguma imprudência...?
— Não, tatá, não! — retorquiu Júlia, contorcendo as mãos, as lágrimas já visíveis. — Não é nada disso!
— Não, não é nada disso, de facto — disse Bruto, um tanto zangado. — O nosso comportamento sempre foi decente, César. Por que razão nos acusas de um acto indecente?
— Eu não estou a acusá-los de nada — disse César, num tom desprendido. — Um pai tem de perguntar estas coisas, Bruto.
Há muito tempo que deixei de ser um rapaz, há muito tempo que sei o que é ser um homem. É por isso que a maior parte dos homens protegem as suas filhas. Sinto muito que te tenha ofendido, mas não era essa a minha intenção. Contudo, só um pai idiota é que não pergunta estas coisas.
— Sim, eu entendo — murmurou Bruto.
— Podemos então casar-nos? — teimou Júlia, ansiosa por arrumar o assunto, ansiosa por uma decisão sobre o seu destino.
— Não.
Fez-se silêncio. Quem visse Júlia naquele momento, diria que ela se tinha libertado de um pesado fardo; César não perdia tempo a olhar para Bruto — era para a filha que olhava, e com toda a atenção.
— Porquê? — perguntou Bruto.
— Eu disse que só aos dezoito anos, Bruto. A minha primeira e infeliz mulher casou-se aos sete anos. Não importa que tenhamos sido felizes quando nos tornámos marido e mulher. Eu jurei que qualquer filha minha só se tornaria adulta quando chegasse a hora de se tornar adulta. Não quero roubar à minha filha a liberdade a que tem direito até fazer dezoito anos. Dezoito anos, Bruto. Dezoito anos, Júlia.
— Bom, nós tentámos... — disse ela, mal saíram. — Não te preocupes, Bruto.
— Preocupo-me e muito! — disse ele, e desatou a chorar.
E depois de se ter despedido do pesaroso Bruto, Júlia regressou aos seus aposentos. Mal entrou no quarto, pegou no busto de Pompeu, o Grande, encostou-o ao seu rosto e dançou com ele. Sentia-se muito feliz, quase que insuportavelmente feliz. Sim, ela ainda era dele!
Quando chegou a casa de Décimo Silano, no Palatino, Bruto já estava mais calmo.
— Pensando bem, prefiro que o vosso casamento seja este ano e não no próximo — anunciou Servília, da sua sala de estar, enquanto Bruto tentava avançar em bicos de pés para que a mãe não desse por ele.
Bruto entrou na sala. — Porquê? — perguntou.
— É que se vocês se casassem no próximo ano, o casamento de Júnia com Vátia Isáurico passaria para segundo plano — disse ela.
— Então prepara-te para uma decepção, mamã. César disse que não. Júlia só se pode casar quando fizer dezoito anos.
Servília ficou a olhar para o filho, estupefacta. — O quê?
— César disse que não.
Ela franziu muito o sobrolho e os lábios. — Que estranho...! Porquê?
— Tem a ver com a primeira mulher dele. Ela tinha só sete anos quando se casou. César não quer que o caso se repita. Portanto, Júlia tem de esperar até fazer dezoito anos.
— Nunca ouvi maior disparate!
— Ele é o paterfamilias de Júlia, mamã. Pode fazer o que muito bem lhe apetecer.
— Sim, mas este paterfamilias nunca faz nada por capricho. Que ideia é a dele?
— Eu acreditei no que ele disse, mamã. Embora de início tenha sido muito desagradável... Ele queria saber se eu e Júlia tínhamos... enfim... se nós tínhamos feito.
— Ah sim? — os olhos negros cintilavam. — E vocês fizeram?
— Não!
— Um sim ter-me-ia deixado muito espantada. Falta-te senso prático, Bruto. Devias ter respondido “sim”. Desse modo, César não teria tido outra opção senão deixar-vos casar imediatamente.
— Um casamento sem honra é indigno de nós! — ripostou Bruto.
Servília virou-lhe as costas. — Por vezes, meu filho, fazes-me lembrar Catão. Vai-te embora!
A um certo nível, a declaração de Bíbulo de que todos os dias comiciais do resto do ano seriam feriae (os feriae, contudo, não impediam um funcionamento normal de várias actividades, desde os mercados aos tribunais) acabou por ser útil. Dois anos antes, o então cônsul Púpio Pisão Frugi promulgara uma lei, um lex Pupia, proibindo o Senado de se reunir em dias comiciais. Essa lei visava reduzir o poder do cônsul sénior, o qual fora ampliado pela lei de Aulo Gabínio que proibia as actividades senatoriais normais durante o mês de Fevereiro, o mês do cônsul júnior; a maior parte dos dias de Janeiro eram dias comiciais, o que significava que, agora, o Senado não poderia reunir-se nesses dias, graças à lei de Pisão Frugi.
César precisava das assembleias. Nem ele, nem Vatínio, poderiam legislar a partir do Senado, pois o Senado recomendava leis, mas não as promulgava. Como dar a volta àquele frustrante édito de Bíbulo que transformava em feriae todos os dias comiciais?
César convocou uma reunião do Colégio dos Pontífices e ordenou aos quindecimviri sacris faciundis que procurassem nos livros sagrados e proféticos sinais de que, naquele ano, os dias comiciais não podiam ser feriae. Ao mesmo tempo, o chefe dos augures, Messala Rufo, convocou uma sessão do Colégio dos Augures. E o resultado foi este: Bíbulo abusara da sua autoridade enquanto augure; os dias comiciais não podiam ser abolidos por motivos de religião só porque um homem achava que deviam ser abolidos.
Enquanto prosseguiam e progrediam os contiones acerca da lei das terras, César decidiu abordar o assunto das disposições de Pompeu para o Oriente. Graças a uma hábil manobra, conseguiu convocar uma reunião do Senado para um dia comicial já em fins de Janeiro — o que só seria ilegal se, nesse dia, houvesse alguma sessão de uma assembleia. Quando os quatro tribunos da plebe pertencentes aos boni se preparavam para convocar a Assembleia Plebeia, apenas para frustrarem o estratagema de César, viram-se detidos por membros do Clube de Clódio; Clódio não recusaria um serviço ao homem que tinha o poder de o tornar plebeu.
— É imperativo que ratifiquemos as disposições e os acordos firmados por Cneu Pompeu Magno no Oriente — disse César. — Se queremos o dinheiro dos tributos, estes terão de ser sancionados pelo Senado Romano ou por uma das Assembleias Romanas. Os negócios estrangeiros nunca foram da competência das assembleias, que não entendem desses assuntos, nem sabem como devem conduzi-los. O Tesouro foi fortemente afectado por estes dois anos de inércia do Senado, mas eu estou decidido a acabar com essa inércia. Os tributos provinciais foram fixados a um nível excessivamente elevado pelos publicani, os quais também não ajudaram nada quando se puseram a protestar contra o facto de terem de pagar demasiado ao Tesouro. Esse problema já está resolvido, mas estes rendimentos não são os únicos rendimentos em causa. Há muitos reis e potentados nos novos territórios de Roma ou estados-clientes que acordaram pagar largas somas a Roma, em troca da nossa protecção. Pensem por exemplo no caso do tetrarca Deiotaro da Galácia, que concluiu um tratado com Cneu Pompeu, o qual, depois de ratificado, dará quinhentos talentos anuais ao Tesouro. Por outras palavras: por não ter ainda ratificado este acordo, Roma perdeu até agora mil talentos de tributos da Galácia — e apenas da Galácia. Mas temos outros: Sampsiceramo, Abgaro, Hircano, Farnaces, Tigranes, Ariobarzanes Filopator, mais um sem número de dirigentes menores. E todos eles se comprometeram a pagar elevados tributos — os quais ainda não foram recebidos, pois os tratados firmados com eles ainda não foram ratificados. Roma é muito rica, mas podia ser ainda mais rica! Para pacificar e administrar a Itália — apenas a Itália —, Roma precisa de ter mais do que tem. Convoquei esta reunião para lhes pedir que debatamos este tema até que todos os tratados sejam examinados e todas as objecções superadas.
César respirou fundo e fitou Catão. — Uma advertência. Se esta casa se recusar a estudar a ratificação do Oriente, pedirei à Plebe que o faça imediatamente. E eu, que sou um patrício, não interferirei, nem oferecerei nenhum conselho à Plebe! Esta é a nossa única hipótese, Paires Conscripti. Ou fazemos o trabalho, ou a Plebe pega no problema e dá cabo de tudo. Tanto me faz que vingue a primeira ou a segunda solução, pois uma delas acabará por vingar!
— Não! — gritou Lúculo, no meio dos consulares. — Não, não e não! E as minhas disposições no Oriente? Pompeu não conquistou nada, eu é que conquistei! Essa vil criatura limitou-se a colher os louros! Mas fui eu que subjuguei o Oriente! Eu tinha as minhas próprias disposições prontas a serem aprovadas! Não permitirei que esta casa ratifique nenhum dos tratados firmados em nome de Roma por um novo-rico de Piceno! E que nos domina a todos como se fosse um rei! E que se passeia por Roma em trajes carnavalescos! Não, não e não!
A paciência de César esgotou-se. O acesso de cólera era inevitável. — Lúcio Licínio Lúculo, vem cá! — rugiu César. — Diante deste estrado, já!
César e Lúculo nunca tinham gostado um do outro, embora tudo os ligasse: eram ambos grandes aristocratas, ambos tinham sido leais a Sila. E talvez aí residisse a causa do seu antagonismo — Lúculo talvez sentisse ciúmes do jovem, que era sobrinho de Sila por casamento. Foi Lúculo o primeiro a espalhar a história de que o velho rei Nicomedes sodomizara César, fora Lúculo quem oferecera de bandeja essa história a homens como Bíbulo.
Nesses tempos, Lúculo era ainda um homem frugal e equilibrado e um governador e general extremamente capaz e eficiente. Contudo, o tempo e uma paixão por substâncias extáticas e soporíferas — já para não falar dos seus apetites por vinho e comidas exóticas — haviam provocado danos irreparáveis, bem visíveis no corpo lasso e pançudo, no rosto inchado, nos olhos que mais pareciam de um cego. O velho Lúculo nunca teria obedecido àquela ordem; mas este Lúculo avançou cambaleante pelo chão de mosaicos e postou-se diante de César, temeroso e boquiaberto.
— Lúcio Licínio Lúculo — disse César numa voz mais branda, mas nem por isso mais amável —, presta bem atenção ao que te vou dizer. Retira o que disseste ou peço à Plebe que te faça o mesmo que fez a Servílio Cepião! Farei com que sejas acusado de incumprimento da comissão que o Senado e o Povo de Roma te confiaram para subjugares o Oriente e acabares com os dois reis! Levar-te-ei a tribunal e farei com que sejas condenado a um exílio perpétuo no mais miserável e desolado recanto do Nosso Mar, sem que disponhas sequer dos meios para comprar uma túnica nova! Entendeste? Não abuses da minha paciência, Lúculo, porque estou a falar a sério!
Todo o Senado parecia paralisado. Nem mesmo Bíbulo ou Catão se mexiam. Não valia a pena correr riscos quando César ficava assim. E este César fazia pensar naquilo em que poderia tornar-se se por acaso não fosse detido. Mais do que um autocrata. Um rei. Mas um rei precisava de exércitos. Portanto, nunca deveria conceder-se um exército a César. Bíbulo e Catão eram demasiado jovens para poderem ter participado na vida política nos tempos de Sila. No entanto, Bíbulo lembrava-se bem dele. E era fácil encontrar Sila naquele César. Pompeu era uma nulidade, Pompeu não tinha o sangue, a linhagem. Mas César tinha, César tinha, por todos os deuses!
Lúculo deixou-se cair no chão. Chorava, e as lágrimas confundiam-se com a baba. Pedia perdão como um vassalo perante o rei Mitridates ou o rei Tigranes, enquanto o Senado de Roma, perplexo, assistia ao drama. Aquilo não estava certo: era uma humilhação para todos os senadores presentes.
— Lictores, levem-no para casa — disse César.
Todos continuaram calados; dois dos lictores do cônsul sénior ajudaram Lúculo a levantar-se e a sair da Cúria Hostília, no meio de lágrimas e gemidos.
— Muito bem — disse então César —, onde é que nós íamos? Deseja este órgão ratificar as disposições relativas ao Oriente, ou deverei levar o problema à Plebe, a fim de que sejam discutidas e aprovadas leges Vatiniae?
— Leva o caso à Plebe! — exclamou Bíbulo.
— Leva o caso à Plebe! — berrou Catão.
Quando César ordenou uma divisão, quase ninguém passou para a direita; o Senado decidira que qualquer alternativa era preferível a ceder a César. Ele que levasse o seu projecto à Plebe, onde ficaria bem à vista o que esse projecto era: um exemplo de arrogância cujos autores eram Pompeu e César. Ninguém gostava de ser dominado, e a atitude de César, naquele dia, tresandava a supremacia e domínio. Antes morrer do que viver sob outro ditador.
— Eles não gostaram do que se passou e Pompeu está inconsolável — disse Crasso, no final daquela brevíssima reunião.
— Não tinha outra hipótese, Marco. Que achas que devia fazer? Nada? — perguntou César, exasperado.
— Teria sido melhor — retorquiu aquele bom amigo, embora não esperasse que as suas palavras fossem levadas em consideração. — Eles sabem que tu adoras trabalhar, e sabem que adoras levar as coisas até ao fim. O teu ano como cônsul vai degenerar num duelo de vontades. Eles odeiam que os empurrem. Odeiam que lhes digam que não passam de uma chusma de velhas excitadas. Odeiam todo o tipo de força que se possa confundir com uma excessiva autoridade. Tu não tens culpa de seres um autocrata nato, Caio, mas o que está a acontecer assemelha-se a uma daquelas lutas entre veados — cornos contra cornos, marradas furiosas do princípio ao fim. Os boni são teus inimigos naturais. Mas o teu comportamento faz com que todos os senadores se tornem teus inimigos. Eu reparei nas caras deles enquanto Lúculo se rojava aos teus pés. Lúculo, quando teve aquela reacção, não pretendia transformar-se num exemplo — coitado, está tão velho e arruinado que não teria por certo a astúcia suficiente para congeminar uma coisa dessas... Mas a verdade é que conseguiu transformar-se num exemplo. E todos os outros senadores começaram a imaginar-se de joelhos no chão, suplicando o teu perdão, como se eles fossem os vassalos e tu o monarca.
— Nunca ouvi maior disparate, Marco!
— A ti, parece-te disparate. Mas a eles, não. Se queres um conselho, não faças mais nada até ao fim do ano. Abandona a ratificação do Oriente, abandona a lei das terras. Recosta-te na tua cadeira, sorri, concorda com eles e lambe-lhes o cu. Pode ser que assim eles te perdoem.
— Preferia juntar-me a Lúculo no exílio a lamber-lhes o cu! — replicou César, com os dentes cerrados.
Crasso suspirou. — Já esperava essa resposta. Nesse caso, César, faze o que entenderes. A responsabilidade é toda tua.
— Estás a pensar abandonar-me?
— Não. Eu sou um importante homem de negócios, César — por isso, nunca te abandonaria. Tu significas lucros para o mundo dos negócios. Daí que possas contar com o apoio incondicional das assembleias. Mas será melhor que vigies Pompeu, pois ele é mais inseguro do que eu. E é mais inseguro porque deseja ardentemente ser aceite.
E foi assim que Públio Vatínio acabou por levar a ratificação do Oriente à Assembleia Plebeia, através de uma série de leis decorrente de uma lei geral que autorizava as disposições tomadas por Pompeu. O problema é que a Plebe, depois da excitação inicial, achou esta infindável legislação uma verdadeira maçada, e obrigou Vatínio a uma actuação rápida. Por outro lado — e porque César, cumprindo a sua palavra, se recusou a prestar qualquer ajuda a Vatínio —, o filho de um Homem Novo de Alba Fucência não sabia rigorosamente nada acerca da imposição de tributos ou da definição de fronteiras para os reinos. Daí que a Plebe avançasse às cegas na discussão e aprovação das leis, fixando tributos demasiado baixos e definindo fronteiras de uma forma muito vaga. Os boni não vetaram nada — queriam que aquilo fosse aprovado, para se queixarem depois alto e bom som, para apontarem aquelas decisões como um bom exemplo do que acontecia quando as prerrogativas senatoriais eram usurpadas pelos órgãos legislativos.
Contudo, a resposta que César lhes deu foi bem clara: — Não se venham queixar a mim! Tiveram uma oportunidade, mas recusaram-na. Vão queixar-se à Plebe. Ou melhor: como se recusaram a cumprir os vossos deveres, vão ensinar a Plebe a calcular tributos e a formular tratados. Parece que, a partir de agora, esses assuntos vão passar a ser tratados pela Plebe. O precedente está criado.
Mas isto não era nada, se comparado com a perspectiva da votação da lei das terras na Assembleia Popular. Como passara já tempo suficiente e se tinham realizado contiones bastantes, César convocou uma reunião da Assembleia Popular para o décimo oitavo dia de Fevereiro, apesar de, nessa altura, Bíbulo deter ainda os fasces. Todos os veteranos de Pompeu estavam presentes para votar e para dar à lex lulia agraria o apoio de que esta precisava para ser aprovada. Era tão vasta a multidão que César não pensou duas vezes: o Poço dos Comitia teria de ser substituído pelo templo de Castor e Pólux. Por outro lado, não perdeu tempo com preliminares. Tendo a seu lado o augure Pompeu, César, depois de ter conduzido as orações, ordenou o sorteio que determinaria a ordem pela qual as tribos votariam, pouco depois de o Sol ter subido acima do Esquilino.
No momento em que os homens da primeira tribo, a tribo Cornélia, foram chamados a votar, os boni atacaram. Precedido pelos lictores, naturalmente empunhando os fasces, Bíbulo abriu caminho por entre a densa multidão que se aglomerava em torno da plataforma; acompanhavam-no Metelo Cipião, Catão, Aenobarbo, Caio Pisão, Favónio e os quatro tribunos da plebe que controlava. Mal chegaram ao fundo da escadaria do lado de Pólux, os lictores pararam; Bíbulo avançou então e postou-se no degrau do fundo.
— Caio Júlio César, este mês tu não deténs os fasces! — gritou. — Esta reunião é inválida porque eu, o cônsul em funções este mês, não autorizo a sua realização! Se não acabares com isto, levo-te a tribunal!
Acabara Bíbulo de falar e já a multidão avançava como uma imensa onda, demasiado rapidamente para que os quatro tribunos da plebe pudessem interpor o veto, ou talvez demasiado ruidosamente para que as vozes dos tribunos pudessem ser ouvidas. Bíbulo, um alvo perfeito, foi bombardeado com lixo e excrementos; e quando os lictores avançaram para o proteger, as suas sagradas pessoas foram detidas e espancadas e os seus fasces destruídos por um sem número de mãos rudes e fortes. As mesmas mãos viraram-se depois para Bíbulo, preferindo a bofetada ao murro. Catão sofreu o mesmo tratamento; os outros escaparam, porque fugiram. Finalmente, alguém despejou um balde de esterco na cabeça de Bíbulo, mas ainda sobrou algum para Catão. Enquanto a multidão ululava de riso, Bíbulo, Catão e os lictores retiraram-se do local.
A lex lulia agraria foi tão bem aceite que as primeiras dezoito tribos votaram todas a favor. A assembleia votou de seguida os nomes que Pompeu sugerira para as duas comissões. Uma colecção impecável: entre os membros da primeira comissão, encontravam-se Varrão, Marco Átio Balbo, cunhado de César, e essa grande autoridade em suinicultura que era Cneu Tremélio Escrofa; quanto à comissão de consulares, era formada por Pompeu, Crasso, Messala Nigro, Lúcio César e Caio Coscónio (que não era consular, mas cujos serviços tinham de ser premiados).
Convencidos de uma vitória, depois desta chocante manifestação de violência pública numa reunião ilegalmente convocada, os boni tentaram derrubar César no dia seguinte. Bíbulo convocou uma reunião do Senado e exibiu as suas feridas perante toda a câmara, bem como as equimoses e as ligaduras dos seus lictores e também de Catão. Era preciso que todos os senadores vissem bem as marcas da violência.
— Não vou fazer nada para levar Caio Júlio César a tribunal por ter realizado uma assembleia ilegal! — gritou Bíbulo. — Não valeria a pena fazer isso, já que ninguém o condenaria. O que eu peço é melhor e mais forte! Quero um Senatus Consultum Ultimum! Mas não segundo a fórmula inventada para enfrentar Caio Graco! Eu quero um estado de emergência declarado imediatamente e quero ser nomeado ditador para erradicar a violência pública do nosso querido Fórum e para mandar esse cão raivoso que se chama César para longe de Itália — e para sempre! Não quero meias-medidas, como aquelas que foram tomadas quando Catilina ocupou a Etrúria! Quero que tudo seja feito correctamente, legalmente! Eu serei o ditador legalmente eleito e Marco Pórcio Catão será o meu senhor do cavalo! Tudo o que se fizer depois será da minha exclusiva competência e responsabilidade — ninguém nesta casa poderá ser acusado de traição, nem o ditador terá de responder pelo que faz ou pelo que o seu senhor do cavalo considere necessário. Quero uma divisão imediatamente!
-— Percebo que queiras, Marco Bíbulo — disse César. — Mas preferia que não quisesses. Porque hás-de causar embaraços a ti mesmo? O Senado só te dará esse cargo se, entretanto, conseguires crescer mais uns palmos... Não conseguirias espreitar por cima das cabeças dos membros da tua escolta militar, embora suponha que poderias contratar anões... A violência, foste tu que a causaste. Aliás, não se verificou nenhum motim...! Depois de o Povo te ter mostrado o que pensava da tua intenção de perturbar uma reunião legal, a assembleia voltou ao normal e a votação realizou-se. Tu foste maltratado, mas não foste estropiado. O maior insulto que te fizeram consistiu de um balde de esterco, e não há dúvida que merecias inteiramente esse tratamento. O Senado não é soberano, Marco Bíbulo. Mas o Povo é soberano. Tu tentaste destruir essa soberania, em nome de menos de quinhentos homens, a maior parte dos quais se encontra hoje aqui. E espero que a maior parte desses homens tenha a sensatez de recusar o teu pedido, porque é um pedido que não tem o mínimo fundamento. Roma não corre perigo de guerra civil. Não há nenhuma revolução, nem no mais longínquo horizonte. O único problema és tu: uma criaturinha mimada e vingativa que não suporta uma derrota. Quanto a Marco Catão, é mais idiota do que presunçoso. Reparei que os teus outros adeptos, ao contrário de Catão, não quiseram colaborar contigo na encenação de ontem, não quiseram transformar-se em vítimas para que tu, hoje, viesses reivindicar o título de ditador! Ditador Bíbulo...! Por todos os deuses, nunca na minha vida ouvi melhor anedota! Conheço-te demasiado bem dos tempos de Mitilene para não me rir quando falas nessa eventualidade! Tu nem uma orgia eras capaz de organizar em Vénus Erucina! Nem talento tens para organizar uma rixa numa taberna! Não passas de um verme incompetente e vaidoso! Vá, faze a tua divisão! Para dizer a verdade, sou inteiramente a favor de uma divisão!
Aqueles olhos tão parecidos com os de Sila passearam de rosto em rosto, detiveram-se em Cícero ameaçadores — e não foi só Cícero quem viu a ameaça. Que poder extraordinário tinha aquele homem! Era um poder que irradiava dele e todos os senadores perceberam de súbito que aquilo que resultava com os outros — até mesmo com Pompeu — não resultaria com César. César era mais do que perigoso. Perigoso era pouco, porque ele era um cataclismo.
Quando se procedeu à divisão, apenas Catão apoiou Bíbulo; Metelo Cipião e os outros boni não tiveram coragem para o fazer. Depois do que César regressou ao Povo e propôs uma cláusula adicional à sua lex agraria: que todos os senadores fossem obrigados a jurar que respeitariam a lei logo que ela fosse ratificada — ou seja, depois do período de espera de dezassete dias. Havia precedentes, o mais famoso dos quais fora a recusa de Metelo Numídico, de que resultara um exílio de vários anos.
Mas os tempos tinham mudado e o Povo estava furioso; o Senado era considerado um órgão deliberadamente obstrutivo e os veteranos de Pompeu estavam impacientes por ficar com as suas terras. De início, alguns senadores recusaram-se a jurar obediência à lei. Mas César mostrou-se determinado e, um a um, todos acabaram por jurar. Excepto Metelo Célere, Catão e Bíbulo. Depois de Bíbulo ter cedido, só faltavam Célere e Catão: que nunca jurariam, berravam eles.
— Sugiro-te — disse César a Cícero — que convenças esses dois a prestar juramento. — Pôs o mais doce dos sorrisos, e acrescentou: — Os sacerdotes e augures autorizaram-me a promulgar uma lex Guriatã tendo em vista a adopção de Públio Clódio pela Plebe. Ainda não tratei disso, Cícero. Espero nunca ter de promulgá-la. Mas a longo prazo, Cícero, isso depende unicamente de ti.
Aterrado, Cícero lançou-se ao trabalho. — Estive a falar com o Grande Homem — disse ele a Célere e Catão, sem se aperceber de que aplicara aquela denominação irónica a César e não a Pompeu. — Ele é capaz de os esfolar vivos, se vocês não jurarem.
— Pois que esfole — retorquiu Célere. — Acho que vou ficar um espanto, esfolado e pendurado no Fórum...!
— Célere, ele vai acabar com vocês! Estou a falar muito a sério! Se vocês não jurarem, o desfecho será a vossa ruína política. Não há nenhuma punição prevista para quem recuse um juramento; César está perfeitamente consciente disso. Ninguém poderá dizer que vocês fizeram algo de extraordinário ao recusar; por isso não terão de pagar nenhuma multa, nem terão de ir para o exílio. Mas o ódio do Fórum será tão violento e determinado, que vocês nunca mais poderão aparecer em público. Se não jurarem, o Povo condená-los-á por actividades obstrutivas. Será um insulto ao Povo e não um insulto a César. Bíbulo nunca deveria ter dito ao Povo que não obteria aquela lei, por muito que a desejasse. O Povo interpretou essa intervenção como um sinal de desprezo e rancor. Os boni ficaram muito mal vistos. Não compreendem que os cavaleiros são a favor da lei? Que não são só os soldados de Magno que a apoiam?
Célere já não estava tão certo da sua posição. — Não percebo porque é que os cavaleiros defendem a lei — disse ele, mal-humorado.
— Porque já andam a comprar terras por toda a Itália, a fim de as venderem à comissão com um lucro muito interessante! — atirou-lhe Cícero.
— Essa gente é nojenta! — gritou Catão. — Eu sou o bisneto de Catão, o Censor, e não me vou curvar perante um desses aristocratas amaneirados! Mesmo que ele tenha os cavaleiros do seu lado! Os cavaleiros que se danem!
Consciente de que o seu sonho de concórdia entre as Ordens era uma coisa do passado, Cícero suspirou, ergueu as mãos numa súplica. — Jura, Catão, jura! Eu percebo o que sentes quanto aos cavaleiros, a sério que percebo! Eles querem tudo à sua maneira e pressionam-nos sem qualquer escrúpulo. Mas que podemos nós fazer? Temos de viver com eles, porque não podemos passar sem eles. Quantos homens há no Senado? Não os bastantes para nos permitirmos enfrentar os cavaleiros — para nos permitirmos espetar o medicus na direcção deles. E é isso que a tua recusa significa. Com a tua recusa, estás a insultar a Ordo Equester — e a Ordo Equester é demasiado poderosa para tolerar isso.
— Prefiro enfrentar a tempestade — disse Célere.
— Também eu — disse Catão.
— Por todos os deuses, cresçam! — exclamou Cícero. — Enfrentar a tempestade? Mas vocês vão para o fundo...! Jurar é sobreviver, recusar o juramento é aceitar a ruína política. Decidam-se! — Não vendo nenhum sinal de cedência nas expressões dos dois homens, Cícero preparou-se para prosseguir a batalha. — Célere, Catão, jurem! Suplico-lhes que jurem! No fim de contas, se virmos as coisas friamente, o que é que está em causa? O que é mais importante: aceder ao pedido do Grande Homem num assunto que não os afecta pessoalmente ou aceitar o esquecimento perpétuo? Se vocês se matarem politicamente, não poderão continuar a lutar, pois não? Não vêem que é mais importante permanecer na arena do que ter uma morte espectacular?
E muito mais disse Cícero. Depois de convencer Célere, ainda precisou de mais duas horas para aplacar a teimosia de Catão. Mas Catão acabou por ceder. E os dois homens prestaram juramento — e depois de o fazerem, provaram que não abjurariam. César lembrava-se do caso de Cina e tratou de verificar que nenhum deles trazia uma pedra na mão — é que a pedra invalidaria o juramento.
— Ah, que ano horrível este! — disse Cícero a Terência, e na sua voz havia um sofrimento sincero. — É como ver um grupo de gigantes martelando a toda a hora num muro demasiado grosso e forte para se partir! Quem me dera não estar cá para ver!
Terência afagou-lhe a mão. — Marido, estás com um ar absolutamente esgotado. Porque permaneces em Roma? Se continuas em Roma, acabas por adoecer. Porque não vamos para Ântio e Formias? Podemos tirar umas férias maravilhosas e só voltar em Maio ou Junho. Pensa nas rosas têmporas! Eu sei que adoras passar os primeiros dias da Primavera na Campânia. E podíamos dar um salto a Arpino, para ver como é que vão os queijos e a lã.
A ideia era deliciosa, mas Cícero abanou a cabeça. — Oh, Terência, eu daria tudo para poder ir! Mas é impossível. Híbrida regressou da Macedónia e meia Macedónia está já em Roma para o acusar de extorsão. Ele foi um bom colega no meu consulado, por muito que digam o contrário. Nunca me causou problemas. Por isso, vou defendê-lo. É o mínimo que posso fazer.
— Então promete-me que sais de Roma logo que seja pronunciado o veredicto — disse ela. — Eu vou à frente, com Túlia e Pisão Frugi. Túlia quer ver os jogos de Ântio. Além disso, o pequeno Marco não está muito bem — queixa-se tanto das dores que receio que tenha herdado o meu reumatismo. Todos nós precisamos de férias. Por favor, Cícero!
As súplicas de Terência ao marido eram coisa tão rara que Cícero não demorou a concordar. Mal acabasse o julgamento de Híbrida, também ele partiria para férias.
O problema é que o facto de César o ter obrigado a protestar junto de Célere e Catão continuava a incomodá-lo quando se lançou na defesa de Caio António Híbrida. Doía-lhe que tivesse agido como lacaio de César; era uma atitude que não ficava bem a alguém cuja coragem e resolução tinha salvo o país.
Não admira, pois, que quando chegou o momento de pronunciar o discurso final, antes que o júri chegasse a um veredicto, Cícero não tivesse conseguido esquecer o assunto que o atormentava. Fez um bom trabalho, como era habitual, louvou Híbrida o mais que pôde, e salientou que aquele notável membro da nobreza romana nunca matara sequer uma mosca, em criança, nem estropiara um número considerável de cidadãos gregos, na sua adolescência, e ainda menos cometera os crimes de que o acusava meia Macedónia.
— Ah! — suspirou ele, a meio do seu discurso. — As saudades que eu tenho do meu consulado com Caio Híbrida! Roma era então uma cidade decente e honrada! Sim, Catilina ameaçava-nos, Catilina queria arrasar a nossa bela cidade, mas eu e Caio Híbrida enfrentámos essa ameaça e salvámos o nosso país! E para quê, dignos membros do júri? Para quê? Quem me dera saber! Quem me dera poder dizer-lhes por que razão eu e Caio Híbrida permanecemos firmes nos nossos postos e enfrentámos aqueles horrendos acontecimentos! E, afinal, tudo isso para nada: basta olharmos à nossa volta, neste dia terrível, durante o consulado de um homem que não é digno de usar a toga praetexta! Não, não estou a falar do grande e bom Marco Bíbulo! Estou a falar daquele lobo esfaimado que se chama César! Ele destruiu a concórdia entre as Ordens, ele escarneceu do Senado, ele poluiu o consulado! Ele esfrega os nossos narizes no esterco que sai da Cloaca Máxima, ele espalha-o pelos nossos corpos, ele despeja-o nas nossas cabeças! Logo que este julgamento termine, deixarei Roma, e não tenciono regressar tão cedo, pois não suporto ver César defecando em cima de Roma! Vou para a beira-mar e depois seguirei de barco para cidades como Alexandria, esse porto do conhecimento e do bom governo...
Concluído o discurso, o júri votou. CONDEMNO. Caio António Híbrida fora condenado a exilar-se em Cefalónia, uma ilha que ele conhecia bem — e que o conhecia demasiado bem a ele. Quanto a Cícero, fez as malas e deixou Roma nessa mesma tarde; Terência já tinha partido.
O julgamento terminara de manhã e César colocara-se discretamente atrás da multidão, pois queria ouvir Cícero. Antes de o júri ter pronunciado o seu veredicto, já ele tinha partido, enviando mensageiros em diversas direcções.
Aquele fora, a vários níveis, um julgamento interessante para César. Nomeadamente porque o próprio César tentara, em tempos, condenar Híbrida, acusando-o de assassínio e mutilação enquanto desempenhara o cargo de comandante de um esquadrão da cavalaria de Sila no Lago Orcomeno, na Grécia. Por outro lado, César sentia-se fascinado pelo jovem que desta feita acusava Híbrida, pois era um protegido de Cícero que, agora, tinha a coragem de enfrentar o seu protector. Marco Célio Rufo, um jovem com um rosto muito belo e uma magnífica constituição física, que fizera um trabalho excelente, deixando Cícero claramente na sombra.
Pouco depois de Cícero ter iniciado o seu discurso de defesa, já César sabia que Híbrida estava arrumado. A reputação de Híbrida era demasiado conhecida — ninguém acreditaria que, em menino, não arrancava as asas às moscas.
Por fim, veio a digressão de Cícero.
César fervia de raiva. Sentou-se no seu gabinete da Domus Publica e mordiscava nos lábios enquanto esperava pela chegada daqueles que convocara.
Com que então Cícero julgava-se imune...! Com que então Cícero pensava que podia dizer o que lhe apetecia, sem medo de represálias...! Pois bem, Marco Túlio Cícero, nem tu imaginas o que te espera! Vou tornar-te a vida muito difícil — e tu mereces, ah, se mereces! Depois de toda a abertura de que dei provas... depois de o teu querido Pompeu te ter dito que gostaria que me apoiasses...! E toda a Roma sabe por que razão adoras Pompeu — Pompeu salvou-te de teres de pegar numa espada durante a Guerra Italiana, Pompeu protegeu-te quando serviam os dois sob as ordens do pai, o Carniceiro. Nem mesmo por Pompeu te dignas confiar em mim, ha?! Por isso, recorrerei a Pompeu para te abater. Eu desmascarei-te com Rabírio, mas mais importante do que isso — ao julgar Rabírio, mostrei-te que devias ter mais cuidado com a tua pele...! E agora vais ver o que é ter de enfrentar o exílio!
Porque é que eles pensam que podem insultar-me e permanecer impunes? Bom, talvez o que vou fazer a Cícero lhes mostre que não podem. Sim, porque eu disponho do poder suficiente para retaliar. Só não o fiz até agora porque receio não ser capaz de parar.
Públio Clódio foi o primeiro a chegar, fervilhante de curiosidade. Pegou na taça de vinho que César lhe ofereceu e sentou-se. Mal se tinha sentado, levantou-se. Mas depressa voltou a sentar-se.
— Não consegues estar quieto, Clódio? — perguntou-lhe César.
— Odeio estar quieto.
— Tenta...
Pressentindo boas notícias, Clódio tentou; porém, quando conseguiu controlar o resto dos seus apêndices, a sua barbicha continuava a mexer-se, já que o seu queixo não parava, animando uma dança constante do lábio inferior. César pareceu achar imensa graça àquilo, pois desatou a rir-se. No entanto, ao contrário do que sucedia com Cícero, as gargalhadas de César não irritaram Clódio.
— Porque é que persistes em usar esse ridículo tufo? — perguntou César, já mais sereno.
— Todos usamos — retorquiu Clódio, como se isso fosse uma explicação.
— Sim, já tinha reparado. Quer dizer, só o meu primo António é que não usa.
Clódio deu um risinho. — A coisa não resultou com ele, coitado, ficou tão triste... A barbicha dele, em vez de espetar para a frente, espetava para cima e fazia-lhe cócegas na ponta do nariz...
— Julgo adivinhar os motivos que vos levaram a deixar crescer essas barbichas...
— Estou certo de que sabes porque foi, César.
— Para incomodar os bom...
— Os boni e todos os outros que tenham a triste ideia de contestar as nossas modas.
— Pois eu quero que faças a barba, Clódio. E sem demora.
— Dá-me uma boa razão para o fazer! — ripostou Clódio, agressivamente.
— Um patrício pode ser excêntrico, Clódio. É até natural que a excentricidade lhe fique bem. Mas um plebeu não pode dar-se a esse luxo, porque lhe falta a linhagem, a antiguidade. Os plebeus têm de obedecer à mós maiorum.
Um sorriso deliciado espalhou-se pelo rosto de Clódio. — Queres dizer que conseguiste a autorização dos sacerdotes e augures?
— Precisamente. Assinada, selada e emitida.
— Apesar de Célere continuar em Roma?
— Célere portou-se que nem um cordeirinho.
Clódio esvaziou a taça, levantou-se de um salto. — Tenho de ir falar com Públio Ponteio — o meu pai adoptivo.
— Senta-te, Clódio! Eu já mandei chamar o teu novo pai.
— Ah, já posso ser tribuno da plebe! O maior tribuno da plebe de toda a história de Roma, César!
Públio Ponteio, que também usava barbicha, chegou nesse momento. Foi com um sorriso vaidoso que recebeu a informação de que ele, que tinha vinte anos, passaria a ser o pai de um homem com trinta e dois.
— Estás disposto a libertar Públio Clódio da tua autoridade paternal e, já agora, importas-te de tirar essa barbicha? — perguntou-lhe César.
— Tudo o que queiras, Caio Júlio, tudo o que queiras!
— Excelente! — exclamou César, satisfeito, levantando-se para receber Pompeu.
— Que se passa? — perguntou Pompeu, algo ansioso; depois, olhou para os outros dois homens presentes. — Que se passa, César?
— Nada de especial, Magno — disse César, sentando-se de novo. — Preciso dos serviços de um augure e pensei que estarias disposto a colaborar comigo.
— Claro, César. Mas em quê?
— Bom, como julgo que sabes, Públio Clódio está desejoso de prescindir do seu estatuto de patrício por algum tempo. Este é o seu pai adoptivo, Públio Ponteio. Gostaria que isto ficasse resolvido já esta tarde e por isso preciso dos teus serviços de augure.
Não, Pompeu não era um imbecil. Num instante, entendeu o verdadeiro objectivo de César. Também ele estivera no Fórum e ouvira Cícero. E ficara mais furioso do que César, pois os insultos com que César fora brindado também o atingiam. Durante anos, suportara as vacilações de Cícero; por outro lado, não estava nada contente com a forma como Cícero se esquivara sempre que ele lhe pedira ajuda. Salvador do seu país...! Ele que sofresse agora, aquele parvalhão presunçoso! Ah, quando ele soubesse que Clódio ia finalmente persegui-lo à vontade!
— Dispõe de mim à vontade, César — disse Pompeu.
— Nesse caso, encontremo-nos no Poço dos Comitia dentro de uma hora — disse César. — Os trinta lictores das curiae também estarão presentes. Só não quero ver essas barbichas.
Clódio parou ao chegar à porta. — César... isto tem efeito imediato ou terei de esperar dezassete dias?
— Que importância é que isso tem, Clódio, se as eleições tribunícias só são daqui a alguns meses? — perguntou César, rindo-se. — Mas para que tudo fique arrumado, teremos outra cerimónia daqui a três nundinae. — Fez uma pausa. — Presumo que és sui iuris... Ápio Cláudio já não é o teu paterfamilias, pois não?
— Não, deixou de o ser quando me casei.
— Nesse caso, não há nenhum impedimento.
Poucos foram os homens importantes de Roma que assistiram à cerimónia de adrogatio, com as suas orações, cânticos, sacrifícios e rituais arcaicos. Públio Clódio, até então um membro da patrícia gens Claudia, tornava-se dessa forma um membro da plebeia gens Fonteia por breves momentos, antes de voltar a assumir o seu próprio nome e de continuar a ser um membro da gens Claudia — mas, desta feita, de um novo ramo plebeu, distinto do ramo dos Cláudios Marcelos. Com efeito, Clódio estava a fundar uma nova Família Famosa. Como não podia participar na cerimónia religiosa, Fúlvia assistiu a tudo do lugar mais próximo que encontrou. Depois, juntou-se a Clódio e, num passeio pelo baixo Fórum, não se conteve e disse a toda a gente que Clódio ia ser tribuno da plebe no próximo ano — e que os dias de Cícero como cidadão de Roma estavam contados.
Cícero soube do sucedido na aldeia de Três Tabernae, quando ia a caminho de Ântio; foi aí que encontrou o jovem Curião.
— Meu querido amigo — disse Cícero, muito afectuoso, conduzindo Curião ao seu salão privado da melhor das três estalagens da aldeia —, a única coisa que me entristece neste nosso encontro é que ele significa que ainda não retomaste os teus brilhantes ataques contra César. Que aconteceu? O ano passado, todos os dias o atacavas. Este ano, refugiaste-te no silêncio...
— Chateei-me — retorquiu Curião, sem mais; um dos problemas da proximidade com os boni era que se tinha de suportar indivíduos como Cícero, que também andava perto dos boni. Claro que não ia dizer a Cícero que deixara de atacar César porque Clódio o ajudara a resolver alguns problemas financeiros — e que a contrapartida fora o seu silêncio. Por isso, e também porque tinha algum veneno pronto a inocular, reagiu amavelmente ao convite de Cícero e deixou que este orientasse por algum tempo a conversa. Até que lhe perguntou: — Como é que te sentes, Cícero, depois de Clódio ter obtido o estatuto de plebeu?
O efeito não podia ter sido mais espectacular. Cícero ficou branco, agarrou-se à beira da mesa e pediu à vida que não o largasse.
— Que disseste? — murmurou o salvador da pátria.
— Clódio tornou-se plebeu.
— Quando?
— Há poucos dias — tu viajas de liteira, Cícero, andas a passo de caracol e, por isso, só muito tarde sabes das novidades. Eu não assisti a nada, mas foi o próprio Clódio que mo contou. Estava tão feliz! Vai disputar o tribunato da plebe. Não sei bem porquê, tirando o seu desejo de ajustar contas contigo. A certa altura, desatou a louvar César como se César fosse um deus, porque César conseguira aprovar a sua lex Guriatã. Passado um instante, porém, já estava a dizer que, logo que assumisse funções, invalidaria todas as leis de César. Enfim, é mesmo típico de Clódio!
As cores começavam a afluir ao rosto de Cícero. E de que maneira! A certa altura já estava tão vermelho que Curião chegou a temer que o seu interlocutor tivesse um ataque cardíaco. — César fez dele um plebeu?
— No mesmo dia em que deste rédea solta à tua língua no julgamento de Híbrida. Ao meia-dia, tudo estava calmo. Três horas depois, Clódio gritava dos telhados que já era plebeu. E que iria processar-te.
— Já não há liberdade de expressão...! Já não se pode falar à vontade...! — gemeu Cícero.
— Só agora é que descobriste isso? — perguntou Curião, com um sorriso de desfrute.
— Mas se César fez dele um plebeu, porque é que ele ameaça invalidar todas as leis de César?
— Ah, não é por estar zangado com César — disse Curião. — É Pompeu que ele odeia. As leis de César vão beneficiar Magno. Clódio considera Magno um tumor nas entranhas de Roma.
— Às vezes tenho de concordar com ele — murmurou Cícero. O que não o impediu de saudar Pompeu jubilosamente, quando o encontrou em Antio. O Grande Homem regressava a Roma, após uma viagem rápida à Campânia, na sua qualidade de comissário das terras.
— Já sabes que Clódio se tornou plebeu? — perguntou Cícero, logo que achou que era tempo de acabar com as cortesias.
— Não só sei, como participei — retorquiu Pompeu, com um brilho nos olhos azuis. — Fui eu que tratei dos auspícios e devo dizer-te que eram magníficos. Um fígado perfeito! Enfim, os auspícios não deixaram margem para dúvidas.
— Ah, que me vai acontecer agora? — gemeu Cícero, contorcendo as mãos.
— Nada, Cícero, nada! — disse Pompeu, cordialmente. — Clódio só tem conversa, Cícero...! Conversa e nada mais! Nem eu, nem César, deixaremos que ele te puxe um cabelo que seja dessa venerável cabeça.
— Venerável? — guinchou Cícero. — Nós temos a mesma idade, Pompeu...!
— E quem é que disse que eu não sou também venerável?
— Ah, estou condenado!
— Não digas disparates, Cícero! — disse Pompeu, afagando o pescoço dele. — Dou-te a minha palavra de honra de que ele não te fará mal!
Uma promessa em que Cícero queria desesperadamente acreditar; mas poderia alguém deter Clódio, quando este tinha um alvo em mente?
— Como sabes que ele não me fará mal? — perguntou.
— Porque, na cerimónia de adopção, lhe disse que não te fizesse mal. Era tempo de alguém lhe dizer isso, caramba! Clódio faz-me lembrar um tribuno militar júnior arrogante e briguento que julga ter muito talento e afinal não tem nenhum. Bom, mas eu estou habituado a lidar com esses rapazes! Do que ele precisava era que o pusessem na ordem. E a pessoa mais indicada para o pôr na ordem era o homem que realmente tem talento — o general!
Pois era isso mesmo: o enigma de Curião estava solucionado. Pompeu não teria ainda entendido? Um homem de origem rural, embora com um nascimento respeitável, não podia ter a ousadia de dizer a um patrício romano como havia de comportar-se. Se Clódio ainda não odiava Pompeu, passara a odiar. Ser tratado como um tribuno militar júnior no preciso momento da sua vitória era, para Clódio, absolutamente intolerável.
Foi grande a agitação em Roma durante o mês de Março: em parte, por questões políticas, mas também devido à inesperada e estranha morte de Metelo Célere. Tendo permanecido em Roma e deixado o governo da Gália Transalpina ao seu legado Caio Pontino, Célere parecia não saber o que fazer. O escândalo provocado pela escaldante ligação entre Clódia e o poeta Catulo fora algo de terrível — mas já tinha acabado. O poeta de Verona enlouquecera de dor; os seus soluços podiam ser ouvidos desde as Carinas ao Palatino — tal como os seus maravilhosos poemas. Eróticos, apaixonados, sentidos, luminosos — se Catulo pretendia encontrar o objecto de um grande amor, tinha-o por certo encontrado na sua adorada Lésbia — Clódia, a mulher de Célere. A perfídia, a astúcia, a frieza, a voracidade de Clódia inspiravam-lhe palavras que ele nunca imaginara ser capaz de produzir.
Clódia deixou Catulo quando descobriu Célio, que se preparava para conduzir a acusação contra Caio António Híbrida. O que a atraíra em Catulo, estava também presente em Célio, embora de uma forma mais romana; o poeta era demasiado intenso, demasiado volátil, demasiado propenso a depressões. Ao passo que Célio era sofisticado, espirituoso, de uma alegria inata. Tinha um pai rico que só pensava numa coisa — a eleição do filho para o consulado e a consequente glória para a família. Célio era um Homem Novo, é certo, mas não da espécie mais detestável. A beleza violenta de Catulo arrebatara-a, mas os músculos poderosos e o rosto perfeito de Célio agradavam-lhe mais; ser amante de um poeta podia transformar-se numa verdadeira provação.
Em suma: Clódia começou a ficar farta de Catulo no preciso momento em que os seus olhos descobriram Célio. E num instante acabou com o velho amante e tratou de conquistar o novo. E que lugar teria o marido, no meio de tão frenética actividade? A resposta era só uma: um lugar muito pouco recomendável. A paixão de Clódia por Célere durara apenas até aos trinta anos; depois, só cinzas, nada mais. O tempo e uma crescente confiança em si mesma tinham-na afastado do primo direito e companheiro de infância e tinham-na levado a encontrar o que procurava — fosse lá o que fosse — em Catulo, a sua segunda experiência amorosa ilícita (pelo menos, em termos de conhecimento público). O escândalo que ela, Clódio e Clodila haviam provocado, ao revelarem o seu comportamento incestuoso, excitara um apetite que acabara por ser mais forte do que ela. Além disso, Clódia descobrira que adorava ser desprezada por todas as pessoas que ela desprezava. Por conseguinte, o pobre Célere via-se reduzido a um papel de observador, impotente para fazer fosse o que fosse.
Clódia tinha mais doze anos do que Marco Célio Rufo quando começou a interessar-se por ele. Célio Rufo tinha vinte e três anos mas não era a primeira vez que estava em Roma. De facto, viera para Roma a fim de estudar sob a orientação de Cícero, três anos antes do consulado deste. Depois, estivera ligado a Catilina, e fora mandado, em desgraça, para a província de África, como assistente do governador, porque Célio Sénior possuía grande parte dos campos de trigo junto ao rio Bragadas, nessa província. Recentemente, Célio regressara a Roma para lançar seriamente a sua carreira no Fórum. E tratou logo de causar sensação. Com efeito, aproveitou a oportunidade de processar o homem que nem mesmo Caio César conseguira condenar: Caio António Híbrida.
A infelicidade de Célere crescia na exacta proporção em que o interesse de Clódia por ele diminuía. Na altura em que concluiu que não tinha outra hipótese senão jurar que respeitaria a lei das terras de César, descobriu também que Clódia tinha um novo amante, Marco Célio Rufo. Os vizinhos de Célere não precisavam de fazer um grande esforço para ouvir as horrendas brigas que a toda a hora explodiam no peristilo da casa. Marido e mulher tinham-se especializado em gritar ameaças de morte um ao outro, e nunca faltavam os ruídos de coisas partidas, o barulho da pancadaria, os gritos assustados dos criados, os guinchos capazes de gelar o sangue. Aquilo não ia durar muito tempo — especulavam os vizinhos. Só faltava saber como é que acabaria...
Mas quem poderia ter previsto um tal fim? Inconsciente, com os miolos espreitando através de uma ferida profunda, Célere foi içado da sua banheira pelos criados, enquanto Clódia gritava sem cessar, com as vestes molhadas porque se metera na banheira para tentar retirá-lo, cheia de sangue porque segurara na sua cabeça. Quando ao horrorizado Metelo Nepos se juntaram Ápio Cláudio e Públio Clódio, Clódia conseguiu dizer-lhes o que acontecera. Célere embebedara-se, mas insistira em tomar banho depois de ter vomitado — alguém podia contrariar um homem bêbedo ou convencê-lo a não fazer o que estava decidido a fazer? Depois de lhe ter dito e redito que estava demasiado bêbedo para tomar banho, Clódia acompanhou-o à casa de banho; enquanto ele se despia, continuou a gritar-lhe que não tomasse banho. Ao chegar ao degrau superior, e quando se preparava para descer para a água tépida, Célere caíra e batera com a cabeça no parapeito da banheira — aguçado, projectado, letal.
Quando os três homens foram examinar o local do acidente, encontraram no parapeito da banheira muito sangue, bem como restos de osso e miolos. Os físicos e cirurgiões deitaram Célere (já em coma) no seu leito e Clódia, com os olhos vermelhos de tanto chorar, recusou-se a deixar a cabeceira do marido, fosse por que razão fosse.
Dois dias depois, Célere morreu sem nunca ter recuperado a consciência. Clódia ficou de súbito viúva e Roma preparou-se para carpir a sorte de Quinto Cecílio Metelo Célere. Nepos, seu irmão, era o seu principal herdeiro, mas Célere deixara Clódia numa situação extremamente confortável e não havia nenhum parente agnato do falecido marido disposto a invocar a lex Voconia.
Apesar de muito ocupado com a preparação da defesa de Híbrida, Cícero escutou com toda a atenção e não menor fascínio todos os pormenores da história — que lhe foram contados por Públio Nigídio Fígulo e Ático (em Roma, durante o Inverno), os quais tinham sabido de tudo graças a Ápio Cláudio.
Quando a história acabou, só um pensamento ocorria a Cícero; deu um risinho e disse: — Clitemenestra!
Os outros nada responderam, embora parecessem claramente embaraçados. Nada podia ser provado, não houvera testemunhas, para além de Clódia. Mas sim, era verdade que Metelo Célere tinha uma ferida idêntica à do rei Agamémnon; e o rei fora assassinado no banho, com um machado; e a assassina fora a rainha, Clitemenestra, que queria manter a sua ligação com Egisto.
Mas o funeral de Célere não acabou com a agitação, pois Célere deixara uma vaga no Colégio dos Augures e todos os homens com um mínimo de aspirações queriam disputar esse cargo. Se tudo se passasse como nos velhos tempos — quando os novos sacerdotes eram cooptados pelos Colégios —, o novo augure teria sido Metelo Nepos, o irmão do morto. Mas agora, quem poderia adivinhar...? Os boni tinham apoiantes muito aguerridos, mas não dispunham da maioria. Talvez consciente disso mesmo, Nepos teria comentado que, muito provavelmente, não se candidataria, pois ficara tão destroçado que tencionava instalar-se no estrangeiro durante vários anos.
As disputas em torno desta vaga no Colégio dos Augures não terão sido tão acesas como as terríveis altercações entre Clódia e Célere; mas não há dúvida que animaram muito o Fórum. Quando o tribuno da plebe Públio Vatínio anunciou que se candidataria, Bíbulo e o chefe dos Augures, Messala Rufo, bloquearam pura e simplesmente essa candidatura. Vatínio tinha um quisto na testa que o desfigurava; não era o homem perfeito que o cargo exigia.
— Pelo menos — teria dito Vatínio, aparentemente muito bem-humorado — o meu quisto está onde toda a gente o pode ver! Mas o de Bíbulo está no cu! E quanto a Messala Rufo, tem dois quistos no sítio onde tinha os tomates! Por isso, vou propor à Plebe que, a partir de agora, os candidatos ao cargo de augure desfilem pelo Fórum nuzinhos em pêlo!
Em Abril, o cônsul júnior Bíbulo podia finalmente dizer que detinha verdadeiramente os fasces, já que o mês de Fevereiro era dedicado aos negócios estrangeiros. E deu início ao seu mês, consciente de que nem tudo estava a correr bem no que tocava à execução da lex lulia agraria: os comissários eram invulgarmente zelosos e os cinco membros da comissão de supervisão mostravam-se muito solícitos e colaborantes, mas todas as localidades de Itália que ainda detinham terras públicas procuravam obstruir a execução da lei, e a venda de terras privadas sofrera atrasos, porque até mesmo a aquisição de terras pelos cavaleiros, para posterior revenda ao Estado, demorava o seu tempo. Ah, a lei fora tão bem formulada que as coisas acabariam por se resolver! Só havia um problema: Pompeu precisava de instalar muitos veteranos — e mais depressa do que seria possível.
— Eles precisam de acção — disse Bíbulo a Catão, Caio Pisão, Aenobarbo e Metelo Cipião. — Mas essa eventual acção não se perfila ainda no horizonte. Do que eles precisam, para já, é de uma grande extensão de terras públicas, já inspeccionada e repartida em lotes de dez ilgera por algum antigo legislador que não viveu o suficiente para pôr em prática a sua lei.
O nariz enorme de Catão contraiu-se, os seus olhos faiscaram. — Nunca se atreveriam! — exclamou.
— Nunca se atreveriam a quê? — perguntou Metelo Cipião.
— Atrevem-se, sim — insistiu Bíbulo.
— A quê?
— A apresentar uma segunda lei das terras para usarem o Ager Campanus e as terras públicas de Cápua. Duzentas e cinquenta milhas quadradas de terras, divididas em parcelas por quase toda a gente desde Tibério Graco, prontas a receberem proprietários e povoadores.
— Será aprovada — disse Caio Pisão.
— Concordo. Será aprovada — disse Bíbulo.
— Mas temos de impedir que isso aconteça! — exclamou Aenobarbo.
— Sim, temos de impedir que isso aconteça.
— Como? — perguntou Metelo Cipião.
— Eu sempre pensei — disse o cônsul júnior — que a minha ideia de tornar todos os dias comiciais feriae resultaria. Mas devia ter previsto que César usaria a sua autoridade como Pontifex Maximus. Contudo, há um estratagema religioso que nem ele, nem os Colégios, poderão contrariar. Posso ter excedido a minha autoridade como augure no caso das feriae, mas não excederei a minha autoridade como augure e cônsul se abordar o problema como augure e cônsul simultaneamente.
Todos o fitavam impacientes. Catão talvez fosse o membro mais popular do grupo, mas não havia dúvida de que o heroísmo de Bíbulo, ao escolher um proconsulado sem nada de brilhante, lhe dera a supremacia sobre Catão em todas as reuniões privadas dos chefes dos boni. Catão, porém, não sentia qualquer inveja em relação a Bíbulo; Catão não aspirava a ser o chefe.
— Tenciono retirar-me para a minha casa, a fim de examinar os céus até ao final do meu ano como cônsul.
Ninguém falou.
— Ouviram o que eu disse? — perguntou Bíbulo, com um sorriso.
— Ouvimos, Marco Bíbulo — disse Catão. — Mas... resultará? Como pode resultar?
— Isto já foi feito... Além disso, não infringe nenhuma das normas da mós maiorum. Por outro lado, organizei uma investigação secreta dos Livros Sagrados e descobri uma profecia... uma profecia que pode significar que, este ano, o céu vai produzir um augúrio de extrema importância. Qual será esse sinal, bom, a profecia não o diz, e é isso que torna o meu estratagema possível... Ora bem: quando o cônsul se retira para a sua casa, com a intenção de examinar os céus, todos os negócios públicos têm de ser suspensos — e só serão reatados, quando ele sair de sua casa e retomar os fasces. E eu não tenho a mínima intenção de o fazer...!
— Não será uma medida popular — disse Caio Pisão, preocupado.
— De início, talvez não. Mas vamos todos ter de trabalhar duramente para que pareça mais popular do que realmente é... Tenciono recorrer aos serviços de Catulo — o nosso poeta é um especialista da sátira e, agora que Clódia o deixou, ele não quer outra coisa senão a infelicidade dela e do seu irmãozinho. Gostaria muito de poder contar novamente com Curião, mas ele não está pelos ajustes. Contudo, não vamos concentrar-nos em César, pois César é imune aos nossos ataques. Pompeu Magno será o nosso alvo principal. É necessário que, até ao fim do ano, juntemos no Fórum, todos os dias, o máximo possível de apoiantes nossos. Os números, por si só, não significam muito. Mas o ruído e os números no Fórum já significam qualquer coisa. O grosso da cidade e do país quer as leis de César, mas essa gente raramente aparece no Fórum — de facto, só aparece quando há uma votação ou um contio vital. Bíbulo olhou para Catão. — Tu terás uma missão especial, Catão. Sempre que isso seja possível, provocarás César, de modo a que ele perca a calma e te mande para as Lautumias. César, seja lá pelo que for, perde mais facilmente a calma quando é provocado por ti ou por Cícero. Tu e Cícero têm um talento especial para o picar. Sempre que possível, arranjaremos previamente as coisas, de forma a termos o Fórum a abarrotar de homens dispostos a apoiarem-te e a condenarem a oposição. Pompeu é o elo fraco. Tudo o que fizermos terá de ter o objectivo de o fazer sentir-se vulnerável.
— Quando tencionas retirar-te para a tua casa? — perguntou Aenobarbo.
— No segundo dia antes dos Idos, o único dia livre entre as festas de Cibele e as festas de Ceres. Nessa altura, Roma estará cheia de gente e o Fórum cheio de visitantes. Não vale a pena fazer nada sem a maior audiência possível.
— E achas que toda a actividade pública cessará quando te retirares? — perguntou Metelo Cipião.
Bíbulo ergueu as sobrancelhas. — Espero sinceramente que não! O único objectivo deste estratagema é forçar César e Vatínio a legislar, ou seja, a contrariar os augúrios. O que significa que, logo que deixem as suas funções, poderemos invalidar as suas leis. E processá-los por maiestas. Não seria uma maravilha, condená-los por traição?
— E se Clódio se torna tribuno da plebe?
— Não creio que isso possa mudar alguma coisa. Clódio, de repente, passou a detestar Pompeu Magno. Ninguém sabe porquê, mas detesta-o. Será nosso aliado no próximo ano, caso seja eleito, e não nosso inimigo.
— Mas ele também quer deitar as mãos a Cícero...
— E de que modo é que isso pode afectar-nos? Cícero não é um dos boni, o que ele é, é uma úlcera. Por todos os deuses, devia haver uma lei que o proibisse de falar sempre que ele começa a gabar-se de que foi o salvador da pátria! Quem o ouvir, é capaz de pensar que Catilina era pior do que Aníbal e Mitridates juntos.
— Mas se Clódio atacar Cícero, também te atacará a ti, Catão — disse Caio Pisão.
— Como? — perguntou Catão. — Eu limitei-me a exprimir a minha opinião numa reunião do Senado. Eu não era o cônsul sénior, nem sequer fora ainda tribuno da plebe. A liberdade de expressão está a tornar-se cada vez mais perigosa, mas não há nenhuma lei que proíba um homem de dizer aquilo que pensa durante uma reunião do Senado.
Foi Aenobarbo quem se lembrou da principal dificuldade. — Eu percebo que se possa invalidar todas as leis que César ou Vatínio promulguem até ao fim do ano — disse ele. — Mas, primeiro, teremos de ter a supremacia no Senado. Isso significa que, no próximo ano, teremos de ter homens nossos sentados nas cadeiras curuis. Conseguiremos que algum dos nossos seja eleito cônsul ou mesmo praetor urbanus? Metelo Nepos tenciona deixar Roma, por causa do desgosto com a morte do irmão. Eu serei pretor, tal como Caio Mémio, que odeia o tio Pompeu Magno. Mas quem disputará o cargo de cônsul? Filipe está nas mãos de César. Tal como Caio Octávio, casado com a sobrinha de César. Lêntulo Nigro não será eleito. Nem o irmão mais novo de Cícero, Quinto. E quem tenha sido pretor antes destes homens também não conseguirá ser eleito.
— Tens toda a razão, Lúcio, precisamos de ter cônsules nossos — disse Bíbulo, com um semblante preocupado. — Aulo Gabínio concorrerá, tal como Lúcio Pisão. Estamos ambos com um pé no campo populista. E ambos têm muitas hipóteses. Vamos ter de convencer Nepos a ficar em Roma, a disputar o cargo de augure e depois o de cônsul. E o nosso outro candidato terá de ser Messala Rufo. Se não tivermos magistrados curuis da nossa cor, ou de uma cor parecida, no próximo ano, não conseguiremos invalidar as leis de César.
— Que me dizes de Árrio, que está furioso com César, porque, segundo me disseram, César não quer apoiá-lo como candidato a cônsul? — perguntou Catão.
— É demasiado velho e tem pouco peso eleitoral — retorquiu Bíbulo, com evidente desdém.
— Ouvi dizer uma coisa muito interessante... — disse Aenobarbo, que não estava nada satisfeito; ninguém o apontara como um eventual candidato à vaga no Colégio dos Augures.
— O quê? — perguntou Caio Pisão.
— César e Magno estão a pensar pedir a Cícero que ocupe o lugar de Coscónio na Comissão dos Cinco. A morte de Coscónio veio mesmo a calhar para eles! Cícero agrada-lhes muito mais...
— Cícero é demasiado idiota para aceitar — replicou Bíbulo.
— Nem mesmo que o seu querido Pompeu lho suplique?
— Pelo que ouvi dizer, Pompeu já não é o seu querido... — disse Caio Pisão, rindo-se. — Cícero já sabe que foi Pompeu quem consultou os auspícios, durante as cerimónias da adopção de Públio Clódio!
— Cícero já deveria ter percebido qual é a sua verdadeira importância no esquema das coisas... — escarneceu Aenobarbo.
— Bom, segundo Ático, Cícero não se cansa de dizer que Roma já está farta dele!
— E tem toda a razão! — disse Bíbulo, suspirando teatralmente. A reunião terminou na maior hilaridade; sim, os boni estavam contentes.
Apesar de Marco Calpúrnio Bíbulo ter anunciado que se retirava para sua casa, a fim de examinar os céus, num discurso pronunciado nos rostra e perante uma vasta multidão (atraída, na sua maior parte, pelos Jogos da Primavera), César preferiu não lhe responder publicamente. Convocou uma reunião do Senado e conduziu-a com as portas solidamente fechadas.
— Marco Bíbulo tomou a correcta atitude de mandar os fasces para o templo de Vénus Libitina — e aí ficarão os fasces até às Calendas de Maio, altura em que, como a lei ordena, passarei a detê-los. Contudo, não podemos permitir a dissolução das actividades públicas. É meu dever, perante os eleitores de Roma, cumprir o mandato que me atribuíram — e que atribuíram a Marco Bíbulo! Ao eleger-me, Roma ordenou-me que governasse! Portanto, tenciono governar! A profecia a que se referiu Marco Bíbulo, no seu discurso dos rostra, conheço-a muito bem e tenho dois argumentos que contrariam a interpretação de Marco Bíbulo: o primeiro, é que este ano não tem nada de claro; e o segundo, é que a profecia em causa pode ser interpretada pelo menos de quatro maneiras. Portanto, enquanto os quindecimviri sacris faciundis examinam a situação e conduzem a necessária investigação, devo concluir que a acção de Marco Bíbulo não é válida. Uma vez mais. Marco Bíbulo tomou a iniciativa de interpretar a mós maiorum religiosa de Roma, unicamente para realizar os seus próprios objectivos políticos. Tal como os Judeus, também nós pensamos que a religião deve fazer parte do Estado e consideramos que o Estado não pode prosperar se as leis e os usos religiosos forem profanados. Contudo, nós somos únicos num aspecto: nós mantemos contratos legais com os nossos deuses, com quem negociamos e regateamos concessões. O importante, para nós, é mantermos as forças divinas adequadamente conduzidas — e a melhor maneira de o fazermos consiste em defendermos a nossa posição face aos deuses, mantendo, tanto quanto possível, a prosperidade e o bem-estar de Roma. A acção de Marco Bíbulo vai no sentido contrário, e os deuses não lhe agradecerão. Ele morrerá fora de Roma e no maior desconforto.
Ah, se ao menos Pompeu se mostrasse mais à vontade...! Depois de uma carreira tão longa e gloriosa, deveria saber que as coisas nem sempre corriam da melhor maneira...! Parece uma criança mimada... quer que tudo seja perfeito! Espera obter tudo o que quer e, ainda por cima, ser aprovado e aceite por todos.
— Cabe a esta casa decidir que rumo devo adoptar — prosseguiu o cônsul sénior. — Procederei a uma votação. Aqueles que acham que todas as actividades públicas devem cessar porque o cônsul júnior se retirou para a sua casa, a fim de examinar os céus, deverão ir para a minha esquerda. Aqueles que pensam que, pelo menos até à formulação do veredicto dos Quinze, a governação deve prosseguir normalmente, deverão passar para a minha direita. Não apelarei mais ao vosso bom senso, nem ao vosso amor por Roma. Procedamos à divisão, Patres Conscripti.
Era um risco calculado e César sabia, instintivamente, que não poderia adiá-lo por mais tempo; quanto mais o rebanho senatorial reflectisse sobre a acção de Bíbulo, tanto maior seria o seu medo de desafiá-la. Se atacasse já, teria por certo algumas hipóteses.
Mas os resultados deixaram toda a gente surpreendida; quase todo o Senado passou para a direita de César, uma indicação clara da raiva que os senadores sentiam perante a determinação de Bíbulo em derrotar César, mesmo que isso custasse a ruína de Roma. Os poucos boni que passaram para a esquerda ficaram parados e boquiabertos de espanto.
— Protesto, Caio César, protesto energicamente! — gritou Catão, logo que os senadores retomaram os seus lugares.
Pompeu, todo inchado com aquela vitória retumbante do bom senso e do amor a Roma, virou-se para Catão com as garras afiadas. — Senta-te e cala-te, hipócrita presunçoso! — rugiu Pompeu. — Quem pensas tu que és, para te arvorares em juiz e júri? Tu não passas de um ex-tribuno da plebe que nem sequer chegará a pretor!
— Oh! Oh! Oh! — berrou Catão, cambaleando como um mau actor trespassado por um punhal de lata. — Oiçam o grande Pompeu, que foi cônsul antes de ter qualificações para ser um simples tribuno da plebe! Quem pensas tu que és? O quê, não sabes? Então deixa-me explicar-te... Um monte de arrogância e extravagância que infringiu a constituição e os princípios de Roma — é isso que tu és! E quem és tu? És um Gaulês que pensa como um Gaulês, um carniceiro filho de outro carniceiro, um proxeneta que adula os patrícios para poder casar-se muito acima da sua posição, um pateta efeminado que adora vestir-se com os mais belos trajes para ouvir os ohs!
da multidão, um potentado oriental que adora viver em palácios, um rei que se porta como uma rainha, um orador capaz de adormecer um bode no cio, um político que tem de pagar a políticos competentes, um radical pior do que os Irmãos Gracos, um general que, em vinte anos, só travou batalhas com o dobro dos soldados do inimigo, um general que se vangloria dos seus supostos feitos e que rouba os louros àqueles que realmente cometeram proezas, um cônsul que tinha de ter um livro de instruções para saber como agir, E UM HOMEM QUE EXECUTOU CIDADÃOS SEM JULGAMENTO, POIS FOI ISSO QUE FIZESTE A MARCO JÚNIO BRUTO!
O Senado não conseguiu resistir nem mais um segundo. Rompeu em aclamações, guinchos, assobios, gritos de alegria; centenas de pés desataram a bater no chão até as traves tremerem, centenas de mãos batiam as palmas, mais se assemelhando a tambores. Só César sabia o que lhe estava a custar permanecer impassível, as mãos caídas e os pés juntos. Ah, que gloriosa diatribe! Uma obra de mestre! Ah, era um privilégio ter ouvido aquilo!
Depois, reparou em Pompeu e o seu coração quase soçobrava. Por todos os deuses...! O idiota levara a peito aqueles histéricos aplausos! Como era possível que não compreendesse? Ninguém se importava com o eventual alvo da tirada, nem com o assunto da mesma. O que se passava é que aquela era a mais perfeita invectiva que o Senado ouvira em anos! O Senado de Roma teria aplaudido um macaco da Mauritânia Tingitana invectivando um burro, se o tivesse feito tão bem como Catão! Mas Pompeu não percebera isso e parecia mais desanimado do que quando Sertório o superara na Hispânia. Derrotado! Derrotado por uma língua descarada... Só nesse momento é que César se apercebeu por inteiro da insegurança de Pompeu, o Grande, e do seu desejo irracional de ser aceite.
Era tempo de agir. Depois de ter dado por encerrada a sessão, permaneceu no estrado curul, enquanto senadores ainda extasiados se precipitavam para a saída, conversando excitadamente, a maior parte deles reunidos em torno de Catão, louvando-o e dando-lhe palmadinhas nas costas. O pior de tudo é que Pompeu continuava sentado na sua cadeira, com a cabeça baixa, e, por isso, César não poderia fazer aquilo que deveria fazer — dar os parabéns a Catão, tão cordialmente como qualquer aliado político. Em vez disso, teria de pôr um ar de indiferença, não fosse Pompeu olhar para ele.
— Viste Crasso? — perguntou-lhe Pompeu quando ficaram sós. — Viste-o? Viste como ele louvou Catão? Mas afinal de que lado é que ele está?
— Do nosso lado, Pompeu. És demasiado susceptível, meu amigo. Não podes levar a reacção do Senado à tirada de Catão como uma crítica pessoal. Os aplausos eram apenas para a tirada, nada mais. É que Catão, normalmente, é o mais maçador dos oradores. É capaz de discursar uma eternidade, só para bloquear os trabalhos do Senado. Mas aquela tirada, no seu género, foi do melhor que o Senado ouviu nestes últimos tempos.
— Mas o alvo era eu! Eu!
— Preferia que o alvo tivesse sido eu — disse César, fazendo um esforço para não perder a calma. — Fizeste mal em não aplaudir, Pompeu. Se aplaudisses, terias ficado bem visto. Em política, Magno, não devemos nunca mostrar as nossas fraquezas. Mesmo que, interiormente, nos sintamos muito mal. Ele acertou-te em cheio e tu não disfarçaste nada. Pelo contrário, mostraste as feridas a toda a gente!
— Tu também estás do lado deles!
— Não, Magno, não estou, tal como Crasso não está. Digamos apenas que, enquanto tu estavas fora, obtendo vitórias para Roma, eu e Crasso estávamos a fazer a nossa aprendizagem na arena política. — César baixou-se, pôs uma mão sob o cotovelo de Pompeu e ergueu-o com uma força com que Pompeu não contava, já que César era tão magro. — Vem, eles já se devem ter ido embora.
— Nunca mais posso entrar nesta casa!
— Não digas disparates. Estarás presente na próxima reunião, com o mesmo aspecto radioso de sempre, e irás ter com Catão e cumprimentá-lo-ás e dar-lhe-ás os parabéns. Eu farei o mesmo.
— Não, não, não posso fazer isso!
— Bom, eu não vou convocar o Senado nos próximos dias. Mas quando o convocar, terás de estar preparado. Vem jantar comigo. Caso contrário, terás de ir para aquele casarão vazio, sem melhor companhia do que três ou quatro filósofos. Do que tu precisas, Magno, é de casar outra vez.
— Eu bem gostaria, mas ainda não encontrei ninguém de quem gostasse. Mas olha quem fala...! Tu também não estás casado e nem sequer tens um filho varão.
— Seria bom ter um filho varão, mas não é absolutamente necessário. Sinto-me feliz com a filha que tenho. Não a trocaria nem por Minerva e Vénus juntas — e não interpretes as minhas palavras como um sacrilégio...
— Está comprometida com o jovem Cepião Bruto, não está?
— Sim.
Quando entraram na Domus Publica, César convidou-o a sentar-se na melhor das cadeiras do seu gabinete e serviu-lhe logo vinho; depois, retirou-se, dizendo que ia falar com a mãe.
— Temos um convidado para jantar — disse César, espreitando pela porta de Aurélia. — Pompeu. Vem jantar connosco e traz Júlia.
A expressão de Aurélia não denunciou qualquer emoção. Aquiesceu e levantou-se, abandonando o trabalho. — Com certeza, César.
— Avisas-nos quando o jantar estiver pronto?
— Claro — disse ela, e afastou-se na direcção das escadas. Júlia estava a ler e não ouviu a avó entrar; Aurélia não costumava bater à porta, pois pertencia àquela escola de pais que considerava que os jovens deviam comportar-se correctamente mesmo quando pensavam que estavam sozinhos. Era uma maneira de lhes incutir autodisciplina, de os ensinar a ser precavidos. O mundo podia ser cruel; os jovens tinham de estar bem preparados para a crueldade do mundo.
— Bruto não vem hoje?
Júlia ergueu os olhos, sorriu, suspirou. — Não, avó, hoje ele não vem. Tem uma reunião com os seus administradores e creio que alguns deles vão jantar a casa de Servília. Embora deixe o filho tratar dos seus negócios, Servília gosta de estar a par de tudo o que se passa.
— Bom, isso vai agradar ao teu pai.
— Porquê? Pensava que ele gostava de Bruto.
— Sim, ele gosta de Bruto, mas trouxe um convidado e é possível que queiram conversar em privado. Temos de sair logo que o jantar termine. Se Bruto estivesse presente, não podiam estar tão à vontade, pois não?
— Quem é? — perguntou Júlia, não especialmente interessada.
— Não sei, ele não disse. — Hmm, isto é difícil!, pensou Aurélia. Como hei-de vestir-lhe o melhor e mais vistoso dos vestidos, sem que ela desconfie? Pigarreou e decidiu-se: — Júlia, o tatá já te viu com o vestido que vestiste no teu aniversário?
— Não, creio que não.
— Nesse caso... porque não o vestes agora? E as jóias de prata que ele te deu? Foi uma decisão muito inteligente, dar-te jóias de prata, em vez de jóias de ouro. Não sei quem está com ele, mas deve ser alguém importante... Ele ficará contente se te puseres bonita!
Pelos vistos, nada daquilo soara a falso; Júlia limitou-se a sorrir e a aquiescer. — Quanto tempo falta para o jantar?
— Meia hora.
— Que significado poderá ter para nós a acção de Bíbulo? — perguntou Pompeu. — Por exemplo, as nossas leis poderão ser invalidadas no próximo ano?
— Não aquelas que foram ratificadas até hoje, Magno. Por isso, tu e Crasso podem estar tranquilos... A minha província é que está em perigo, pois terei de usar Vatínio e a Plebe. No entanto, a Plebe não se encontra limitada religiosamente: duvido, por isso, que a acção de Bíbulo torne sacrílegos os plebiscitos e as actividades dos tribunos da plebe. Seja como for, teremos de combater no tribunal e isso depende muito de quem for o pretor urbano.
O vinho, o melhor e o mais forte da adega de César, começava a restaurar o equilíbrio de Pompeu, ainda que o seu ânimo não fosse ainda o melhor. A Domus Publica estava bem para César, pensou Pompeu, pois as cores eram escuras e os dourados sumptuosos. Nós, os homens claros e louros, ficamos bem em tais cenários, disse para si mesmo.
— Sabes com certeza que teremos de promulgar outra lei das terras — disse Pompeu, bruscamente. — Vamos precisar do Ager Campanus.
— E das terras públicas de Cápua. Sim, eu sei.
— Mas Bíbulo invalidará essa lei.
— Talvez não, Magno — disse César, tranquilamente. — Se eu a apresentar como um apêndice à primeira, será menos vulnerável. Os membros das duas comissões não mudarão, mas isso não é um problema. Vinte mil dos teus veteranos poderão ser instalados em novas terras ainda este ano, mais cinco mil proletarii de Roma. E deveríamos colocar mais vinte mil veteranos noutras terras, tão rapidamente quanto possível. O que nos deixaria com tempo suficiente para garantirmos as terras de cidades como Arrécio e, por outro lado, o Tesouro sentir-se-ia menos pressionado para comprar terras privadas. O nosso grande argumento para dispormos do ager publicas da Campânia é este: o Estado é já o proprietário dessas terras.
— Mas vão acabar as rendas — disse Pompeu.
— É verdade. Mas nós sabemos que as rendas não são tão lucrativas como deviam. Os senadores mostram-se relutantes em pagá-las.
— Tal como as esposas dos senadores com fortunas próprias — disse Pompeu, com um sorriso.
— Ha?
— Terência... Ela não paga um único sestércio de renda, embora possua florestas inteiras De carvalhos. Belos pastos para os porcos. Enfim, propriedades muito lucrativas. É dura que nem mármore, aquela mulher! Por todos os deuses, a pena que eu tenho de Cícero!
— E como é que ela consegue isso?
— Afirma que há um bosque sagrado algures no meio das suas terras.
— Esperta...! — disse César, rindo-se.
— Em contrapartida, o Tesouro não tem sido nada simpático com Quinto, o irmão de Cícero, agora que ele voltou da província da Ásia.
— Que lhe fez o Tesouro?
— Insiste em pagar-lhe todo o estipêndio em cistophori.
— E qual é o problema? São moedas de prata e cada uma vale quatro denários.
— Desde que consigas convencer alguém a aceitá-las — retorquiu Pompeu. — Eu trouxe sacas e sacas dessas moedas, mas nem sequer pensei em usá-las para pagamentos. As pessoas desconfiam das moedas estrangeiras! Sugeri ao Tesouro que as fundisse e as transformasse em lingotes.
— Pelos vistos, o Tesouro não gosta nada de Quinto Cícero.
— Só gostava de saber porquê.
Nesse momento, Eutico bateu à porta para anunciar que o jantar ia ser servido. Os dois homens seguiram então para a sala de jantar. Cinco dos divãs foram afastados, pois só eram usados quando os convidados eram muitos; o divã restante, separado de duas cadeiras por uma mesa comprida, estreita e com a altura de um joelho, ficou na parte mais interessante da sala, com vistas para a colunata e o peristilo principal.
Quando César e Pompeu entraram, dois criados ajudaram-nos a despir as togas, uma peça de vestuário que, por ser tão grande e embaraçante, tinha de ser dispensada por quem queria reclinar-se. As togas foram cuidadosamente dobradas e guardadas, enquanto os dois homens se encaminharam para a extremidade traseira do divã, sentaram-se nela, tiraram os sapatos senatoriais com as fivelas consulares em forma de crescente e deixaram que os mesmos dois criados lavassem os seus pés. Pompeu, como seria de esperar, ocupava o locus consularis, o lugar de honra no divã. Deitavam-se em parte sobre a barriga, em parte sobre as ancas, com o braço e o cotovelo esquerdos apoiados numa almofada redonda. Estando os seus pés na extremidade traseira do divã, os seus rostos pairavam sobre a mesa e muito perto dela — tudo o que estava em cima da mesa estava ao alcance das suas mãos. Tinham tigelas para lavar as mãos e panos para as secar.
Pompeu sentia-se muito melhor. Já não estava tão magoado. Fitava com um ar de aprovação o peristilo, com os seus fabulosos frescos de virgens vestais e os magníficos lago e fontes de mármore. Só era pena que o sol não penetrasse mais naquele espaço. Depois, atentou nos frescos que adornavam as paredes da sala e que contavam a história da batalha do lago Regilo, quando Castor e Pólux tinham salvo Roma.
E estava ele a apreciar a entrada quando a deusa Diana entrou na sala. Sim, só podia ser Diana...! Deusa das noites de luar, parecia estar e não estar ali, pois movia-se com tal graça e beleza que os seus pés não produziam qualquer som. A deusa donzela, desconhecida dos homens, que olhavam para ela e logo se afastavam, tão casta e indiferente ela se mostrava. Mas esta Diana, agora já a meio da sala, reparou que ele a fitava arrebatado e quase tropeçava.
— Magno, apresento-te a minha filha, Júlia. — César indicou a cadeira diante do lugar que Pompeu ocupava no divã. — Senta-te ali, Júlia, e faz companhia ao nosso convidado. Ah, aí vem a minha mãe!
Aurélia sentou-se diante de César, enquanto alguns dos criados começavam a trazer as iguarias e outros traziam as taças e serviam o vinho e a água. As mulheres, reparou Pompeu, só bebiam água.
Que bela que ela era...! Deliciosa, maravilhosa...! E depois daquele tropeção que não chegou a sê-lo, comportou-se como se fosse uma criatura saída de um sonho, indicando os pratos que os seus cozinheiros melhor faziam, sugerindo-lhe que experimentasse este ou aquele, sempre com um sorriso que não era tímido, mas que também não continha qualquer convite sensual. Pompeu atreveu-se a perguntar-lhe o que fazia ela com os seus dias (que importavam os dias dela — que fazia ela com as suas noites, isso sim, isso é que importava, que fazia ela quando a Lua ia alta e o seu carro a levava até às estrelas?) e Júlia respondeu-lhe que lia, ou que passeava, ou visitava as vestais ou amigas suas, uma resposta dada numa voz branda e profunda, como asas negras batendo contra um céu luminoso. Quando ela se curvava, Pompeu podia ver quão suave e delicado era o seu colo, embora não pudesse aperceber-se de como eram os seus seios. Os braços, embora frágeis, eram cheios, com uma covinha em cada cotovelo, e os olhos eram rodeados por uma vaga sombra violeta e em cada pálpebra havia o esplendor da argêntea Lua. Pestanas tão longas e transparentes...! E sobrancelhas tão claras que quase não se viam! Não usava maquilhagem, e a sua boca, de um rosa pálido, deixava-o louco; desejava beijá-la naquele instante preciso, àquela boca tão carnuda, com vincos nos cantos, sinal de que aquela deusa gostava de rir.
Para eles, era como se César e Aurélia não estivessem presentes. Falaram de Homero e Hesíodo, de Xenofonte e Píndaro, e das viagens dele ao Oriente; Júlia escutava sequiosamente todas as palavras dele, como se a sua língua fosse tão dotada como a de Cícero, e importunou-o com todo o tipo de perguntas acerca de tudo — desde os Albanos até aos lagostins do mar Cáspio. Tinha visto o monte Ararat? Como eram os templos judeus? Era verdade que as pessoas caminhavam sobre as águas do lago Asfaltita? Alguma vez vira uma pessoa de pele negra? Como era o rei Tigranes? Era verdade que as Amazonas haviam vivido em tempos no Ponto, na foz do rio Termodonte? Alguma vez vira uma Amazona? Ao que parece, Alexandre, o Grande, encontrara a rainha das Amazonas nas margens do rio Jaxartes.
Ah, que nomes maravilhosos, Oxo, Araxes, Jaxartes — como é que as línguas humanas conseguiam inventar tão estranhos sons?
E o conciso e pragmático Pompeu, com o seu estilo lacónico e a sua pouca instrução, sentia-se profundamente contente pelo facto de Teófano e a vida no Oriente o terem convencido a dedicar-se à leitura; e agora, usava até palavras que julgava que a sua mente não havia absorvido e exprimia pensamentos que ignorava possuir. Teria preferido morrer a decepcionar aquela jovem que o fitava como se ele fosse a fonte de todo o conhecimento e a mais bela visão que ela alguma vez tivera.
A comida permaneceu na mesa muito mais tempo do que o impaciente e atarefado César costumava permitir; porém, ao cair da noite, César fez um sinal imperceptível para Eutico, e os criados reapareceram. Aurélia levantou-se.
— Júlia, são horas de irmos embora — disse ela. Concentrada numa conversa sobre Esquilo, Júlia ergueu-se de súbito, de súbito regressando à realidade.
— Já, avó? — perguntou. — Parece que o tempo correu... Contudo, como Pompeu reparou, não havia nada nas suas palavras, ou na sua expressão, que indicasse que não estava disposta a sair ou que estava zangada com a avó por esta ter acabado com uma refeição que, como a própria avó lhe dissera, era especial; quando o pai tinha convidados, Júlia não costumava comparecer na sala de jantar, pois ainda não tinha feito dezoito anos.
Júlia estendeu cordialmente a mão a Pompeu, esperando que ele a cumprimentasse. Porém, embora não fosse seu costume fazer tais coisas, Pompeu pegou-lhe na mão como se esta pudesse quebrar-se, levou-a aos seus lábios e beijou-a com a maior doçura.
— Obrigado pela tua companhia, Júlia — disse ele, todo sorrisos. — Bruto tem muita sorte. — E para César, quando as mulheres se retiraram: — Não há dúvida. Bruto teve mesmo muita sorte.
— É o que eu acho — disse César, sorrindo por causa de um certo pensamento.
— Nunca conheci ninguém como ela!
— Júlia é uma jóia sem preço.
Depois do que parecia não haver muito a dizer, Pompeu despediu-se.
— Volta em breve, Magno — disse César, acompanhando-o à porta.
— Volto amanhã, se estiveres de acordo! Tenho de partir para a Campânia depois de amanhã e vou estar fora pelo menos oito dias. Tens razão. Viver com três ou quatro filósofos não é vida. Porque é que achas que temos esta mania de hospedar filósofos?
— Porque precisamos de companheiros masculinos inteligentes. Desde que não atraiam as mulheres da casa, é claro. E também é bom para mantermos puro o nosso grego, embora me tenham dito que Lúculo teve o cuidado de incluir alguns solecismos na versão grega das suas memórias, a fim de satisfazer os literati gregos, os quais não acreditam que os Romanos possam escrever e falar um grego perfeito. Quanto a mim, nunca me senti tentado a adoptar o hábito de alojar filósofos. São uns parasitas!
— Não, César, tu não os tens em casa porque és um gato da floresta. Preferes viver e caçar sozinho.
— Mas eu não vivo só — retorquiu César, afavelmente. — Aliás, sou até um dos homens mais afortunados de Roma. Vivo com uma Júlia.
A qual subiu aos seus aposentos eufórica e exausta, a mão vibrando ainda com aquele beijo. Lá estava o busto de Pompeu, numa prateleira perto da cama; pegou nele e atirou-o para o cesto do lixo. A estátua não era nada. Já não precisava dela, agora que vira e falara com o homem. Não era tão alto como o tatá, mas era bastante alto. Com uns ombros muito largos, e um corpo muito musculado... e quando estava reclinado, a barriga permanecia tesa e dura; sim, não havia sinais da meia-idade naquele corpo. Um rosto maravilhoso, com os olhos mais azuis que alguma vez vira. E aquele cabelo...! Ouro puro, e tão farto...! Tão bonito...! Não, não era como o tatá, que era tão classicamente romano, mas era mais interessante, por ser mais invulgar. Como Júlia gostava de narizes pequenos, não encontrava nada que apoucasse o nariz de Pompeu. Ah, sim, e as pernas, que belas pernas...!
A paragem seguinte foi diante do espelho, uma prenda do tatá que a avó não aprovava, pois a sua superfície muito polida reflectia as pessoas da cabeça aos pés. Júlia despiu-se e apreciou-se. Demasiado magra...! Quase não tinha seios...! Nem covinhas no rosto...! E rompeu a chorar, atirou-se para a cama e, de tanto chorar, adormeceu, a mão que ele beijara sempre encostada à face.
— Ela deitou fora o busto de Pompeu — disse Aurélia a César na manhã seguinte.
— Edepol! Eu pensava que ela tinha gostado dele...!
— Estás enganado, César, é um sinal excelente! Ela já não está satisfeita com a réplica. O que ela quer agora é o homem.
— Ah, que alívio! — César pegou no seu copo de água quente com sumo de limão, e começou a sorver a mistura, aparentemente com prazer. — Ele hoje vem cá jantar. Usou uma viagem à Campânia como desculpa para voltar já hoje.
— Hoje, completará a conquista — disse Aurélia.
César pôs um sorriso radiante. — Creio que a conquista ficou completa quando ela entrou na sala de jantar. Eu conheço Pompeu há anos. Mordeu de tal forma o anzol que nem o sentiu. Não te lembras do dia em que ele apareceu em casa da tia Júlia para pedir a mão de Múcia?
— Lembro-me. Muito claramente. Tresandava a perfume de rosas e parecia mais louco do que um potro no campo. Mas ontem não se comportou assim.
— Pompeu cresceu um bocado, mater... Além disso, Múcia era mais velha do que ele. A atracção não é a mesma. Júlia tem dezassete anos, ele tem agora quarenta e seis. — César estremeceu. — Mater, são quase trinta anos de diferença...! Achas que estou a encarar a questão de uma maneira excessivamente fria? Eu não quero que ela seja infeliz!
— Não será. Pompeu parece ter jeito para agradar às suas esposas — pelo menos enquanto está apaixonado por elas... E a paixão dele não esmorecerá, pois Júlia é a juventude que ele perdeu. — Aurélia tossicou, ficou um pouco afogueada. — Estou certo de que és um amante esplêndido, César, mas viver com uma mulher que não pertença à tua família é, para ti, uma maçada. Pompeu gosta da vida matrimonial — desde que a mulher se adeque às suas ambições. E uma Júlia é o máximo a que ele poderia aspirar.
E, de facto, Pompeu parecia ter encontrado aquilo que mais almejava na vida. Se algo o salvara depois do ataque de Catão, fora certamente o deslumbramento que sentira ao conhecer Júlia — um deslumbramento que o acompanhava na manhã seguinte, no Fórum, e que o fazia esquecer-se de que decidira nunca mais aparecer em público. Afinal, falava com toda a gente que encontrava e não se mostrava nada preocupado com a diatribe de Catão — de tal forma que os frequentadores do Fórum concluíram que Pompeu ficara apenas chocado. Hoje, porém, já não havia ressentimentos, nem constrangimentos.
Mas tudo o que os olhos dele viam era Júlia; a imagem dela estava presente em todos os rostos que ele fitava. Criança e mulher numa só. Deusa também. Tão feminina, tão perfeita nos modos, tão despretensiosa! Teria gostado dele? Parecia que sim, mas nada, no seu comportamento, podia ser interpretado como o sinal de uma inclinação. Ah, mas ela estava comprometida! Com Bruto. Não apenas imaturo, mas também feio, muito feio. Como poderia uma criatura tão pura e imaculada suportar aquelas nojentas borbulhas? Claro que estavam comprometidos havia muitos anos. Não fora ela que escolhera. Em termos sociais e políticos, era uma excelente união. E era preciso não esquecer os frutos do Ouro de Tolosa.
E depois do segundo jantar na Domus Publica, pedi-la-ia em casamento, a despeito do compromisso com Bruto. O que é que o impedia de fazer isso? Sim, aquele velho receio de se rebaixar diante de um nobre, de um patrício como Caio Júlio César. O qual podia dar a sua filha a qualquer homem em Roma. Mas que a dera a um aristocrata com influência, riqueza e linhagem. Homens como César não paravam para pensar nos sentimentos ou desejos de uma filha. Tal como ele, afinal. A sua própria filha estava comprometida com Fausto Sila por uma única razão: Fausto Sila era o produto de uma união entre o patrício Cornélio Sila — o nome mais importante da família — e a neta de Metelo Calvo e filha de Metelo Dalmático — que, anteriormente, fora casada com Escauro Princeps Senatus.
Não, César não desejaria romper um contrato legal com um Júnio Bruto adoptado pelos Servílios Cepiões, para dar a sua filha única a um Pompeu de Piceno! Embora ansiasse pedir a mão de Júlia, Pompeu nunca o faria. E foi assim que, loucamente apaixonado e incapaz de varrer aquela deusa da sua mente, Pompeu seguiu para a Campânia, como membro da comissão das terras, e quase nada fez. O fogo do amor devorava-o; desejava-a como nunca desejara ninguém. E um dia depois de ter regressado a Roma, voltou à Domus Publica para mais um jantar.
Sim, ela estava contente por voltar a vê-lo! Júlia estendeu-lhe a mão, esperando já pelo suave beijo dele, e mergulhou imediatamente numa conversa que excluía César e Aurélia. A refeição estava já perto do fim quando Pompeu lhe perguntou, numa voz sumida:
— Quando é que te casas com Bruto?
— Em Janeiro ou Fevereiro do próximo ano. Bruto queria casar este ano, mas o tatá disse que não. É preciso que eu faça dezoito anos.
— E quando é que fazes dezoito anos?
— Nas Nonas de Janeiro.
— Daqui a oito meses.
A expressão dela mudou, uma mancha de tristeza enevoou-lhe os olhos. Contudo, respondeu com a maior serenidade. — Já não falta muito.
— Gostas de Bruto?
Aquela pergunta provocou um ligeiro acesso de pânico, que se reflectia no olhar dela; Pompeu apercebeu-se claramente disso, já que ela não desviava os olhos dele. — Somos amigos desde a infância. Aprenderei a gostar dele.
— E se te apaixonares por outra pessoa?
Júlia pestanejou, lutando contra o que parecia ser uma lágrima.
— Não posso permitir que isso aconteça, Cneu Pompeu.
— Não achas que isso pode acontecer, apesar de toda a tua determinação?
— Sim, creio que sim — disse ela gravemente.
— Que farias, então?
— Procuraria esquecer. Pompeu sorriu. — É triste...
— Não seria honroso, Cneu Pompeu. Por isso, teria de esquecer. Se o amor pode nascer e crescer, também pode morrer.
Pompeu fitava-a com uma expressão muito triste. — Tenho visto muita morte, Júlia. Nos campos de batalha. A minha mãe, o meu pobre pai, a minha primeira esposa. Mas nunca consigo ver a morte desapaixonadamente. Odiaria ver algo que cresceu dentro de ti definhar e morrer.
As lágrimas pareciam inevitáveis. Júlia tinha de se retirar.
— Desculpa, tatá, mas gostava de me retirar — disse ela ao pai.
— Sentes-te mal? — perguntou César.
— Dói-me um pouco a cabeça, é só isso.
— César, eu também vou — disse Aurélia, levantando-se. — Se Júlia está com dores de cabeça, é melhor eu ir buscar o xarope de papoulas.
O que deixou César e Pompeu sozinhos. Com um aceno, César chamou Eutico para levantar a mesa. Depois, serviu vinho, sem água misturada, a Pompeu.
— Tu e Júlia dão-se muito bem — disse ele.
— Só um homem muito estúpido não se daria bem com ela — retorquiu Pompeu. — Júlia é única.
— Eu também gosto dela. — César sorriu. — Em toda a sua curta vida, nunca me causou um único problema, nunca me deu razões para a admoestar, nunca cometeu um único peccatum.
— Ela não gosta de Bruto. Também não admira. Bruto é tão feio, tão desajeitado.
— Eu sei — disse César, tranquilamente.
— E como podes permitir que eles se casem? — perguntou Pompeu, irado.
— Como podes tu permitir, Pompeu, que Pompeia se case com Fausto Sila?
— Isso é diferente.
— Diferente como?
— Pompeia e Fausto Sila estão apaixonados!
— Se não estivessem, romperias o contrato?
— Claro que não!
— Pois aí tens — retorquiu César, enchendo de novo a taça.
— Mesmo assim — disse Pompeu, após uma pausa, olhando para o róseo fundo do seu vinho — acho uma pena que Júlia se case com Bruto. A minha Pompeia é uma rapariga sólida, robusta, vigorosa, quem manda lá em casa é ela. Saberá cuidar de si mesma. Em contrapartida, Júlia é tão frágil...
— Uma ilusão... — disse César. — Na realidade, Júlia é muito, muito forte.
— Sim, disso não duvido. Mas não é capaz de sufocar os seus desgostos.
Surpreendido, César olhou Pompeu nos olhos. — Um comentário muito perspicaz, Magno. Mas inadequado.
— Talvez eu a entenda melhor do que todos os outros.
— E porque havias de entendê-la melhor?
— Ah, não sei...
— Estás apaixonado por ela, Magno?
Pompeu desviou os olhos. — Que homem não estaria? — murmurou.
— Gostavas de te casar com ela?
A base da taça de prata escapou-lhe das mãos, derramando vinho pela mesa e pelo chão, mas Pompeu nem sequer se deu conta disso. Estremeceu, bebeu o que restava. — Daria tudo o que sou e tudo o que tenho para me casar com ela!
— Bom... — disse César, placidamente. — Nesse caso, é melhor eu começar a tratar de tudo.
Aqueles dois olhos enormes fixaram-se no rosto de César; Pompeu respirou fundo, muito fundo. — Queres dizer que concordarias em dar-me a tua filha?
— Seria uma honra, Magno!
— Oh! — exclamou Pompeu, atirando-se para trás e quase caindo do divã. — Oh, César...! Eu tratarei bem dela, nunca lamentarás a tua decisão! Júlia será mais bem tratada do que a rainha do Egipto!
— Espero bem que sim! — disse César, rindo-se. — Ouvi dizer que a rainha do Egipto foi rejeitada pelo marido, que preferiu a meia-irmã dele, filha de uma concubina da Idumeia...
Mas não valia a pena dizer fosse o que fosse a Pompeu, que continuava a fitar extaticamente o tecto. — Posso vê-la? — perguntou.
— Não, Magno, é melhor que não a vejas. Vai para casa e deixa-me desemaranhar a teia que este dia teceu. Vai haver um grande tumulto na casa que foi de Júnio Silano e agora é de um Servílio Cepião.
— Eu pago o dote dela a Bruto — disse Pompeu imediatamente.
— Nem pensar! — retorquiu César. — Levanta-te, homem, vá! — sorriu e acrescentou: — Confesso que nunca me passou pela cabeça que teria um genro seis anos mais velho do que eu!
— Achas-me demasiado velho para ela? Quer dizer, daqui a dez anos...
— As mulheres — disse César, enquanto conduzia Pompeu à porta — são criaturas muito estranhas, Magno. Quando são felizes com o que têm em casa, não se sentem inclinadas a procurar noutras paragens...
— Estás a referir-te a Múcia, não é?
— Se não a tivesses deixado sozinha tanto tempo... Não o faças com a minha filha. Júlia não te trairia, nem que ficasses vinte anos fora. Mas não suportaria tão longa ausência.
— Os meus tempos de militar acabaram — disse Pompeu. Parou, molhou os lábios nervosamente. — Quando podemos casar? Ela disse que tu só a deixavas casar quando tivesse dezoito anos.
— O que é bom para Bruto, pode não ser bom para Pompeu Magno... O mês de Maio é aziago para casamentos, mas se for nos próximos três dias os auspícios não serão maus... Dentro de dois dias será o melhor.
— Eu volto cá amanhã.
— Só voltas no dia do casamento — e não fales disto a ninguém, nem mesmo aos teus filósofos! — disse César, fechando a porta na cara de Pompeu.
— Mater! Mater! — gritou o futuro sogro, do fundo das escadas da frente.
A mãe desceu imediatamente, a uma velocidade não muito apropriada para uma respeitada matrona romana. — Já está? — perguntou ela, com um brilho nos olhos.
— Já está. Conseguimos, mater, conseguimos! Ele foi para casa completamente nas nuvens! Parecia um rapazinho...
— Oh, César! Ele é agora teu, aconteça o que acontecer!
— Sem dúvida, sem dúvida. E Júlia?
— Júlia também se sentirá nas nuvens quando souber. Eu estive com ela um bocado e escutei, com toda a minha paciência, as suas chorosas desculpas por se ter apaixonado por Pompeu Magno e os seus furiosos protestos por ter de se casar com um indivíduo tão insípido como Bruto. E tudo isso porque Pompeu avançou um pouco mais na sua corte. — Aurélia suspirou, mantendo um sorriso radiante. — Que bom, meu filho! Conseguimos o que queríamos e, ao mesmo tempo, contribuímos para a felicidade de outras duas pessoas. Um belo trabalho!
— O trabalho de amanhã ainda terá de ser melhor...
O sorriso de Aurélia esbateu-se num instante. — Servília...
— Eu ia a dizer: Bruto...
— Ah sim, coitado! Mas não é Bruto que te dará a punhalada, César. Se fosse a ti, vigiava atentamente Servília.
Eutico pigarreou delicadamente, escondendo furtivamente o seu contentamento; não havia como os criados mais velhos de uma casa para se saber quais eram as decisões mais acertadas!
— O que foi, Eutico? — perguntou César.
— Cneu Pompeu Magno está lá fora, César, mas recusa-se a entrar. Quer falar contigo, mas diz que é rápido.
— Tive uma ideia brilhante! — exclamou Pompeu, apertando febrilmente as mãos de César.
— Por hoje acabaram-se as visitas, Magno! Que ideia é essa?
— Dize a Bruto que eu lhe darei Pompeia, para o compensar da perda. Ele é que escolherá o dote — quinhentos, mil, tanto me faz...! É mais importante fazê-lo feliz do que agradar a Fausto Sila, não achas?
Com um esforço hercúleo, César manteve uma expressão séria. — Bom... obrigado, Magno. Eu posso comunicar a tua oferta, mas não faças nada de precipitado. É natural que Bruto não pense em casamentos nos tempos mais próximos...
E Pompeu foi-se embora de novo, acenando jubilosamente.
— Que foi? — perguntou Aurélia.
— Pompeu quer dar a sua filha a Bruto, em troca de Júlia. Fausto Sila, pelos vistos, não pode competir com o Ouro de Tolosa. De qualquer modo, é bom ver Magno dar sinais da sua velha personalidade. Já estava a ficar inquieto com os seus acessos de sensibilidade...
— Não vais falar da sua oferta a Bruto e Servília, pois não?
— Terei de falar. Mas pelo menos tenho tempo para elaborar uma resposta diplomática para dar ao meu futuro genro. Uma coisa é certa: ainda bem que ele vive nas Carinas...! Se vivesse mais perto do Palatino, ouviria o que Servília há-de dizer dele!
— Quando é o casamento? Maio e Junho são meses tão aziagos...!
— Daqui a dois dias. Faze oferendas, mater. Eu também farei. Prefiro que o casamento seja um facto consumado antes que Roma comece a murmurar. — Baixou-se para beijar a face da mãe. — Agora, se me dás licença, vou sair. Preciso de falar com Marco Crasso.
Como sabia perfeitamente por que razão César ia falar com Crasso, Aurélia não lhe fez qualquer pergunta. Chamou imediatamente Eutico e fê-lo jurar silêncio. Começaram logo a planear a boda. Era pena que o segredo implicasse a ausência de convidados. Mesmo assim, Cardixa e Burgundo poderiam ser as testemunhas e as virgens vestais poderiam ajudar o Pontifex Maximus a presidir à cerimónia.
— A fazer serão, como de costume? — perguntou César. Crasso deu um salto, salpicando de tinta as suas carreiras muito certinhas de M, C,e X. — Mas quando é que tu deixas de me forçar a fechadura?
— Não me deixas alternativa... Mas da próxima, se quiseres, trago um sino e um cordão para dar ao sino. Vais ver que fica bem instalado, o teu sininho — disse César, avançando pela sala.
— Pois seria bom que trouxesses! Reparar fechaduras custa dinheiro, Caio!
— Negócio feito, Marco. Eu amanhã volto com o sino e o cordão, um martelo e alguns pregos. Poderás gabar-te de que tens o único sino de Roma instalado pelo Pontifex Maximus. — César puxou de uma cadeira e sentou-se com um suspiro de profundo contentamento.
— Pareces mesmo um gato que acabou de roubar uma codorniz da cozinha, Caio.
— Muito melhor, Marco, muito melhor! Creio que roubei um pavão...!
— Morro de curiosidade.
— Emprestas-me duzentos talentos, que pagarei logo que a minha província mo permita?
— Ora aí está uma proposta sensata! Claro que te empresto.
— Não queres saber porquê?
— Já te disse que estava a morrer de curiosidade...
De súbito, César pôs uma expressão sombria. — Para dizer a verdade, é muito possível que não aproves...
— Dir-te-ei, se não aprovar. Mas só depois de saber...
— Preciso de cem talentos para pagar a Bruto, por quebra do compromisso que Júlia tinha com ele. E mais cem para dar a Magno: será esse o dote de Júlia.
Crasso arrumou lentamente a pena. Na sua expressão não se detectava qualquer mudança. Os seus astutos olhos desviaram-se de César, fixaram-se na chama de uma lamparina, mas logo voltaram a fitar o rosto de César. — Sempre pensei — disse o plutocrata — que os filhos são um investimento que só rende o máximo quando podem dar aos pais aquilo que, de outro modo, nunca poderiam ter. Sinto muito por ti, Caio, porque sei que preferias que Júlia se casasse com um homem de melhor linhagem. Mas aplaudo a tua coragem e a tua presciência. Embora não goste de Pompeu, reconheço que ambos precisamos dele. Se tivesse uma filha, era capaz de ter feito o mesmo. Bruto é demasiado jovem para poder servir os teus objectivos. Além disso, a mãe dele nunca permitirá que ele cumpra integralmente as suas potencialidades. Se Pompeu se casar com Júlia, as nossas dúvidas em relação a ele poderão acalmar. Ainda que os boni passem o tempo a picá-lo... Além disso, Júlia é um tesouro. O Grande Homem, com ela, sentir-se-á idilicamente feliz. Para dizer a verdade, se eu fosse mais jovem, sentiria inveja dele.
— Tertula matar-te-ia — retorquiu César, rindo-se. Depois, olhou inquisitivamente para Crasso. — E os teus filhos? Já decidiste com quem casarão?
— Públio casará com a filha de Metelo Cipião, Cornélia Metela. Ainda vai ter de esperar uns anos. Não é nada má, a rapariga, tendo em conta a estupidez do tatá. A mãe de Cipião era a filha mais velha de Crasso Orador. Será um bom casamento. Quanto a Marco, tenho pensado na filha de Metelo Crético.
— Um pé no campo dos boni é um pé no bom sítio — sentenciou César.
— É o que eu acho. Estou a ficar demasiado velho para tanta guerra.
— Não fales do casamento a ninguém, Marco — pediu César, levantando-se.
— Com uma condição.
— Qual?
— Que eu esteja presente quando Catão descobrir.
— Pena que não possamos ver a cara de Bíbulo...
— Não, mas podemos mandar-lhe um frasco de cicuta. Ele vai ficar com vontade de se suicidar.
Depois de ter mandado uma mensagem a anunciar a sua visita, César seguiu à primeira luz da manhã para o Palatino, mais exactamente para a casa do falecido Décimo Júnio Silano.
— Um prazer invulgar, César... — ronronou Servília, inclinando o rosto para receber um beijo.
Ao ver aquilo, Bruto não disse nada, nem sorriu. Desde que Bíbulo se retirara para examinar os céus, que Bruto pressentia que algo de errado aconteceria. Primeiro, só conseguira ver Júlia duas vezes desde esse dia e, nessas duas ocasiões, a sua noiva parecia estar na lua. Por outro lado, costumava jantar na Domus Publica regularmente; no entanto, ultimamente, sempre que sugeria a sua presença, pediam-lhe que não fosse, e invocavam visitas importantes, cujo nome lhe escondiam. E Júlia parecia radiante, tão bela e tão distante; não propriamente desinteressada, mas como se o seu interesse se concentrasse algures numa região longínqua, numa região da sua mente que nunca lhe revelara. Ah sim, ela fazia de conta que o escutava! E, no entanto, não ouvia nada, nada de nada; fitava o espaço com um ar perdido e com um meio-sorriso, doce e secreto. E não o deixava beijá-la. Na primeira visita, invocara uma dor de cabeça. Na segunda, não lhe apetecia que ele a beijasse. Pedira desculpa, tratara-o com deferência, mas nada de beijos. Se Júlia não fosse Júlia, Bruto teria por certo pensado que outro homem andava a beijá-la.
E agora ali estava o pai dela numa visita formal, anunciada por um mensageiro, e vestido com o traje do Pontifex Maximus. Teria dado cabo de tudo, ao propor o casamento um ano antes do previsto? Ah, porque é que ele sentia que tudo aquilo estava relacionado com Júlia? E porque é que ele não tinha aquele aspecto tão limpo e tão belo que César tinha? Nenhum defeito naquele rosto. Nenhum defeito naquele corpo. Se houvesse defeitos, a mamã há muito que se teria aborrecido dele.
O Pontifex Maximus não se sentou. Contudo, não parecia nervoso.
— Bruto — disse ele —, eu não conheço maneira nenhuma de suavizar as más notícias. Por isso, vou direito ao assunto. Decidi quebrar o teu contrato de casamento com Júlia. — César colocou imediatamente um rolo de pergaminho sobre a mesa. — Tens aqui uma ordem de pagamento, dirigida aos meus banqueiros, no valor de cem talentos, de acordo com os termos do contrato. Sinto muito.
Com o choque, Bruto vacilou e teve de se sentar. E ficou sentado, boquiaberto de espanto, sem uma única palavra de protesto, os olhos fixos no rosto de César — e havia nos seus olhos a mesma expressão de um cão velho quando percebe que o dono vai mandar matá-lo porque ele já não é útil. Depois, fechou a boca, tentou alinhar as palavras, mas não conseguiu falar. Por fim, a luz que havia nos seus olhos definhou tão clara e rapidamente como uma vela que acabamos de apagar.
— Sinto muito — repetiu César, desta feita mais emocionalmente.
Quanto a Servília, o choque fizera-a levantar-se. No entanto, também ela se manteve calada por um longo período. Os seus olhos fixaram-se em Bruto a tempo de verem aquela luz que se apagava
— mas Servília não fazia ideia do que realmente se estava a passar com o filho, já que, no que tocava ao temperamento, estava tão longe dele como Antióquia estava longe de Olisipo.
Foi César, e não Servília, quem se deu conta do sofrimento de Bruto. César, que nunca fora conquistado por uma mulher como Bruto fora conquistado por Júlia, compreendia, apesar disso, o que Júlia significara para Bruto. E deu consigo a perguntar-se se teria tido coragem para desferir tão rude golpe no jovem, se por acaso soubesse que aquela ligação era tão importante para ele. Mas sim, César, terias tido coragem. Já desferiste golpes destes antes e continuarás a desferi-los. Contudo, raramente de olhos nos olhos, como agora. Pobre infeliz! Não recuperará. Tinha catorze anos quando manifestou pela primeira vez o seu amor pela minha filha. E nunca vacilou desde então. Nunca. Sim, eu tê-lo-ia morto, se fosse preciso
— ou, pelo menos, teria morto aquilo que a sua mãe deixara viver. É horrível ser-se um boneco nas mãos de dois selvagens como Servília e eu próprio. Silano também o foi, mas não sofreu tanto como Bruto. Sim, nós matámo-lo. A partir de agora, Bruto será um dos lemures.
— Porquê? — atacou Servília, arquejante.
— Preciso de Júlia para uma outra aliança.
— Uma aliança melhor do que esta? Haverá melhor aliança do que com um Cepião Bruto?
— De facto, não haveria aliança mais vantajosa. A vários níveis, incluindo a simpatia, a ternura, a honra, a integridade. Foi um privilégio ter o teu filho na minha família durante tantos anos. Mas a verdade é que preciso de Júlia para formar uma outra aliança.
— Vais sacrificar o meu filho para consolidares as tuas conquistas políticas? — perguntou ela, com os dentes cerrados.
— Sim. Tal como tu sacrificarias a minha filha para alcançares os teus objectivos, Servília. Nós fazemos filhos para que eles herdem a fama e a grandeza que nós demos à família. E o preço que os nossos filhos pagam é um só: servir as nossas necessidades e as necessidades das nossas famílias. Os nossos filhos nunca padecem de faltas. Nunca conhecem a dureza da vida. Nunca lhes falta a instrução. Mas só um pai idiota não ensina aos seus filhos o preço que têm de pagar pela sua elevada linhagem, pela sua riqueza, pela sua educação. Os proletarii podem amar e estragar os seus filhos à vontade. Mas os nossos filhos são servos da família e, quando forem pais, pedirão aos seus filhos o mesmo que nós lhes pedimos. A família é perpétua. Nós e os nossos filhos somos apenas uma pequena porção dessa família. Os Romanos criaram os seus próprios deuses, Servília, e todos os deuses verdadeiramente romanos são deuses da família. Do lar, das despensas, dos antepassados, dos pais, dos filhos. A minha filha compreende perfeitamente qual é a sua função, enquanto parte da nossa antiquíssima família. Tal como eu compreendi, quando tinha a sua idade.
— Recuso-me a acreditar que haja em Roma alguém que te possa dar mais do que Bruto, do ponto de vista político!
— Isso poderá ser verdade daqui a dez anos. Daqui a vinte anos, sem dúvida. Mas eu preciso de mais peso político neste exacto momento. Se o pai de Bruto estivesse vivo, as coisas seriam diferentes. Mas o chefe da tua família tem vinte e quatro anos. E isto aplica-se tanto aos Servílios Cepiões como aos Júnios Brutos. Eu preciso da ajuda de um homem que pertença à minha faixa etária.
Bruto não se tinha mexido, nem fechado os olhos, nem chorado. Conseguia até ouvir as palavras que a mãe e César trocavam, embora não as sentisse. Aqueles dois estavam pura e simplesmente ali — e diziam coisas que ele compreendia. E que não esqueceria. Só uma coisa o deixava intrigado: porque é que a mãe estava tão pouco irada?
Na realidade, Servília estava furiosamente irada. Mas o tempo ensinara-lhe que César a venceria se ela lutasse contra ele claramente, directamente. No fim de contas, nada do que ele pudesse dizer poderia deixá-la mais furiosa do que já estava. Por isso, seria melhor que se controlasse e que procurasse uma fraqueza no adversário, aquela fraqueza que lhe permitiria atacar e vencer.
— Que homem é esse? — perguntou ela, com o queixo espetado, os olhos vigilantes.
César, há algo de errado contigo. Estás a gostar disto...! Ou melhor, estarias a gostar, se não fosse aquele pobre infeliz. Quando lhe revelares o nome, Servília ficará pior do que quando lhe disseste que não te casarias com ela. Um amor desprezado não chega para matar Servília. Mas este insulto é muito capaz de matá-la...
— Cneu Pompeu Magno — disse ele.
— Quem?
— Ouviste o que eu disse.
— Impossível! — exclamou ela, abanando a cabeça. — Impossível! — Os seus olhos pareciam querer sair das órbitas. — Impossível! — As pernas cederam, e ela dirigiu-se cambaleante para uma cadeira, tão longe de Bruto quanto possível. — Impossível!
— Impossível porquê? — perguntou ele, friamente. — Indica-me um aliado político melhor do que Magno, que eu quebrarei o contrato que fiz com ele tão rapidamente como quebrei o contrato que ligava a minha filha a Bruto.
— Ele é um... um... um novo-rico! Uma nulidade! Um néscio!
— Quanto ao
novo-rico concordo contigo. Quanto ao segundo e ao terceiro adjectivos, não posso estar de acordo. Magno não é uma nulidade, longe disso. É o Primeiro Homem de Roma. E néscio também não é. Quer queiras quer não, Servília, o Miúdo Carniceiro de Piceno abriu, na floresta de Roma, um caminho mais vasto ainda do que o de Sila. A sua riqueza é astronómica e o seu poder é maior ainda que o de Sila. Devíamos agradecer aos deuses pelo facto de ele nunca ter ido tão longe quanto Sila. Mas Pompeu nunca se atreveria. Tudo o que ele quer é ser aceite, é ser como nós.
— Ele nunca será como nós! — gritou ela, com os punhos cerrados.
— Casar com uma Júlia é um passo na direcção certa.
— Devias ser chicoteado, César! Há entre eles uma diferença de trinta anos! Ele é um velho e ela ainda nem é bem uma mulher...!
— Ah, cala-te com isso! — replicou ele, já farto. — Sou capaz de suportar muitos dos teus estados de espírito, mas francamente, não tenho paciência para a tua indignação! Toma.
César atirou um pequeno objecto para o colo dela. Depois, encaminhou-se na direcção de Bruto. — Lamento muito, Bruto. Sinceramente — disse ele, tocando amavelmente no ombro ainda caído do jovem. Bruto não fez nada para o afastar; os seus olhos ergueram-se, fitaram o rosto de César, mas a luz tinha-se apagado.
Deveria dizer aquilo que pensara dizer: que Júlia estava apaixonada por Pompeu?
Não. Seria demasiado cruel. Não, César não era como Servília. Não suportaria infligir a Bruto tamanho sofrimento. Depois, pensou em dizer a Bruto que ele acabaria por encontrar outra mulher. Mas não, não disse nada.
Encaminhou-se rapidamente para a porta e saiu.
Servília olhou para o colo. Uma pedra cor de morango: fora isso que ele lhe deixara.
Quando se preparava para a atirar pela janela que dava para o jardim, reparou que a luz provocava na pedra uns estranhos reflexos. E deteve o seu gesto. Não, não era pedra nenhuma. Tinha uma forma semelhante à do morango, mas era luminosa, brilhante, tinha um brilho tão delicado como o das pérolas. Uma pérola? Sim, era uma pérola! Uma pérola tão grande como o maior dos morangos da Campânia...! Sem dúvida uma das maravilhas do mundo...
Servília adorava jóias. E, entre todas as jóias, tinha uma verdadeira adoração por pérolas. A sua raiva foi-se esbatendo, como se a pérola cor de morango tivesse o efeito mágico de acalmar todas as iras. E que bom que era senti-la na mão; tão suave, tão fresca, tão voluptuosa!
Um ruído desfez aquelas sensações; Servília ergueu os olhos. Bruto caíra redondo no chão. Inconsciente.
Depois de ter levado o filho, ainda semi-inconsciente, para a cama, e de lhe ter dado uma poção soporífera, Servília vestiu uma capa e foi visitar Fabrício, o mercador de pérolas do Porticus Margaritaria. Fabrício lembrava-se bem da pérola, sabia de onde ela viera; e, secretamente, ficou espantado com o facto de um homem ter dado aquela preciosidade a uma mulher que não era especialmente bela — tão pouco jovem. Avaliou-a em seis milhões de sestércios e dispôs-se a pôr-lhe uma cerca do mais fino fio de ouro e a prendê-la a um pesado colar de ouro. Nem Fabrício, nem Servília, queriam trespassar a covinha que a pérola tinha no topo; uma tal maravilha devia ficar como estava.
Do Porticus Margaritaria à Domus Publica era um passo. Servília bateu à porta e pediu para falar com Aurélia.
— Claro que estás do lado dele! — disse ela, agressivamente, para a mãe de César.
Aurélia ergueu as sobrancelhas escuras; quando fazia isso, ficava muito parecida com o filho. — Naturalmente — retorquiu ela, muito calma.
— Mas... Pompeu Magno? César é um traidor à sua própria classe!
— Ora, Servília... Tu conheces tão bem César...! César faz o que quer fazer, porque aquilo que quer fazer é o que deve fazer. Se os usos e a tradição sofrerem com isso, pois tanto pior. Ele precisa de Pompeu: tu sabes de política o suficiente para perceber isso. E também sabes que seria muito perigoso depender de Pompeu, sem o prender a uma âncora mais firme — uma âncora que nenhuma tempestade abalará. — Aurélia pôs um ar sombrio. — A quebra do compromisso com o teu filho custou muito a César. Apercebi-me disso, quando ele voltou a casa. O desgosto do teu filho comoveu-o muito.
Servília nem pensara no desgosto do filho, pois via-o como um objecto seu, mortalmente insultado, e não como uma pessoa. Gostava de Bruto tanto quanto gostava de César, mas via o seu filho como um prolongamento de si mesma — e pensava que ele sentia o que ela sentia. Nunca percebera por que razão o comportamento do filho era diferente do seu. E ainda por cima tivera uma síncope: que coisa mais extraordinária!
— Pobre Júlia! — disse ela, pensando na pérola.
A avó de Júlia riu-se. — Pobre Júlia, nada! Júlia não podia estar mais feliz!
Servília ficou pálida; deixou até de pensar na pérola. — Estás a dizer-me que...?
— César não te disse? Ah, pois, deve ter tido pena de Bruto! É um casamento por amor, Servília.
— Não pode ser!
— Garanto-te que é. Júlia e Pompeu estão apaixonados.
— Mas ela ama Bruto!
— Não, Júlia nunca amou Bruto. Júlia ia casar-se com ele porque o pai lhe disse que devia fazê-lo. Porque todos nós o queríamos — e Júlia é uma menina obediente.
— Anda à procura do pai nos outros homens — disse Servília.
— Talvez.
— Mas Pompeu não tem nada de César. Júlia vai arrepender-se.
— Creio que será muito feliz. Ela sabe que Pompeu é muito diferente de César, mas também há semelhanças. São ambos soldados, ambos corajosos, ambos heróicos. Júlia nunca teve uma consciência muito aguda do seu estatuto, nunca adorou cegamente o Patriciado. Aquilo que consideras repugnante em Pompeu não fará esmorecer o amor de Júlia. Creio que ela acabará por refiná-lo um pouco, mas a verdade é que gosta dele tal como ele é.
— Estou decepcionada com ela — murmurou Servília.
— Devias sentir-te contente por Bruto. Ele agora está livre. — Aurélia levantou-se porque Eutico trouxera o vinho doce e os bolinhos. — Um fluido acaba sempre por definir o seu próprio nível, não é? Nada o pode impedir de fazer isso... — disse ela, servindo vinho e água em magníficas taças. — Se Pompeu agrada a Júlia — e se agrada...! — então Bruto nunca lhe agradaria. E isso não é nenhuma desonra para Bruto. Vê este caso de uma forma positiva, Servília, e convence Bruto a fazer o mesmo. Ele encontrará outra mulher.
O casamento da filha de César com Pompeu, o Grande, realizou-se no dia seguinte, no atrium do templo da Domus Publica. Como aquela altura do ano não era propícia para casamentos, César tratou de fazer todas as oferendas possíveis em nome da filha; Aurélia, por seu turno, cumulou de oferendas todas as divindades femininas. Embora o casamento confarreatio tivesse passado de moda há já muito tempo (mesmo entre os patrícios), César sugeriu a Pompeu que aquela união fosse confarreatio e Pompeu concordou imediatamente.
— Não insisto, Magno, mas gostaria que fosse assim.
— Também eu, César! É a última vez que me caso...!
— Espero bem que sim. O divórcio de um casamento confarreatio é praticamente impossível.
— Não haverá divórcio nenhum — disse Pompeu, cheio de confiança.
Júlia vestiu o vestido de casamento que a avó fizera para o seu próprio casamento, quarenta e seis anos antes, e achou-o mais requintado (para além de mais macio e suave ao toque) do que tudo o que pudesse comprar na Rua dos Tecelões. A sua cabeleira — farta, fina, lisa e tão comprida que podia sentar-se sobre ela — fora dividida em seis partes e apanhada ao alto sob uma tiara idêntica às usadas pelas virgens vestais, com sete pequenos rolos de lã. O vestido era cor de açafrão e os sapatos e o fino véu eram cor de fogo.
O noivo e a noiva tinham de apresentar dez testemunhas — um problema, já que aquela cerimónia teria de ser secreta. Pompeu resolveu a dificuldade, chamando dez clientes picentinos que se encontravam de visita à cidade; César escolheu Cardixa, Burgundo, Eutico (todos eles cidadãos romanos há já muitos anos) e as seis virgens vestais. Como o rito era confarreatio, tinha de se criar um assento especial, através da junção de duas cadeiras que depois eram cobertas com uma pele de ovelha; o flamen Dialis e o Pontifex Maximus tinham de estar presentes, o que não era problema nenhum, dado que César era Pontifex Maximus e fora flamen Dialis (e este último cargo não podia ser desempenhado por mais ninguém até à sua morte). Aurélia, que era a décima testemunha de César, desempenhava o papel de pronuba, a matrona de honra.
Quando Pompeu chegou, envergando a sua toga triunfal cor de púrpura e bordada a ouro, por cima da túnica triunfal com palmas bordadas, o pequeno grupo suspirou sentimentalmente e escoltou-o até ao assento coberto com a pele de ovelha, onde Júlia o esperava, o rosto oculto pelo seu véu. Já com os dois sentados lado a lado, César e Aurélia cobriram-nos com um enorme véu cor de fogo; depois, Aurélia pegou nas mãos direitas dos dois e prendeu-as com uma tira de couro cor de fogo — esse era o sinal da união. A partir desse momento, estavam casados. Mas um dos bolos sagrados, feitos com espelta, tinha de ser partido em duas metades mais ou menos iguais; cada um dos noivos tinha de comer uma metade, enquanto as testemunhas declaravam solenemente que tudo estava em ordem e que Júlia e Pompeu eram agora marido e mulher.
Após o que César sacrificou um porco no altar e dedicou todas as suas suculentas partes a Júpiter Farreus, uma das várias faces de Júpiter; Júpiter Farreus era o responsável pelo bom crescimento da espelta e pelos casamentos bem-sucedidos; daí que o bolo de casamento fosse feito de espelta. A oferta do porco agradaria ao deus e eliminaria o carácter aziago (pelo menos para os casamentos) do mês de Maio. Nunca um sacerdote ou um pai trabalhara tão duramente como César para erradicar eventuais prenúncios negativos.
A boda não podia ter sido mais alegre e divertida. O pequeno grupo de convidados sentia-se feliz porque a felicidade dos noivos era mais do que evidente; Pompeu estava radiante e nem por um momento largava a mão de Júlia. Depois, seguiram para a estupenda mansão de Pompeu nas Carinas; Pompeu foi à frente para preparar tudo, enquanto três meninos escoltavam Júlia e os convidados. E lá estava Pompeu à espera na soleira da porta, a fim de conduzir Júlia; lá dentro, estavam os recipientes com fogo e com água, e Pompeu levou-a até esses recipientes e viu-a passar com a mão direita pelas chamas e depois pela água e verificou que ela nada tinha sofrido. Após essa cerimónia, Júlia era a dona da casa, a senhora do fogo e da água da casa. Aurélia e Cardixa, que só se tinham casado uma vez, levaram Júlia para o leito nupcial, despiram-na e deitaram-na na cama.
Depois de terem saído, o quarto ficou muito tranquilo; Júlia sentou-se na cama e juntou as mãos sobre os joelhos, uma cortina de cabelo caindo-lhe sobre o rosto. Que quarto enorme...! Era maior que a sala de jantar da Domus Publica...! E tão grandioso...! Quase todas as superfícies tinham dourados, as cores predominantes eram o vermelho e o negro, as pinturas murais eram uma série de painéis representando vários deuses e heróis mantendo relações sexuais. Lá estava Hércules (o qual, de facto, precisava de ser muito forte para aguentar o peso do seu monumental pénis erecto) com a rainha Ônfale; Teseu com a rainha Hipólita das Amazonas (embora Hipólita tivesse dois seios); Peleu com a deusa do mar Tétis (aquela Tétis era uma mulher da cintura para baixo, mas um choco da cintura para cima); Zeus penetrando uma vaca (Io) que tinha um ar muito aflito; Vénus e Marte chocando como navios de guerra; Apolo prestes a penetrar uma árvore com um nó que se assemelhava às partes genitais femininas (aquela árvore seria Dafne?).
Aurélia, rigorosa como era, nunca teria permitido a exibição de tais imagens em sua casa; mas Júlia, uma jovem de Roma, conhecia bem aquele tipo de pinturas e não ficou nada perturbada com as sugestões eróticas. Nalgumas das casas que costumava visitar, o erotismo não se limitava às camas, bem pelo contrário. Em criança, rompia em risinhos envergonhados sempre que via pinturas daquele género; na sua adolescência, concluiu que imagens daquelas não poderiam ter nada a ver com ela e Bruto; sendo virgem, o erotismo na arte interessava-lhe e intrigava-a, mas não havia qualquer ponte entre esse erotismo e a realidade da sua vida.
Pompeu entrou no quarto envergando a túnica palmata e com os pés descalços.
— Como te sentes? — perguntou ele, ansioso, abeirando-se da cama tão cautelosamente como um cão se abeira de um gato.
— Muito bem — retorquiu Júlia, com um ar grave.
— Hmm... está tudo bem?
— Sim, sim. Eu estava só a admirar as pinturas. Pompeu corou, fez um gesto como que a pedir desculpa. — Não tive tempo para fazer nada quanto às pinturas. Desculpa — murmurou.
— Eu não me importo, a sério que não me importo.
— Múcia gostava delas — disse ele, sentando-se no seu lado da cama.
— Tens de redecorar o teu quarto sempre que mudas de esposa? — perguntou ela, sorrindo.
Pompeu pareceu ficar mais tranquilo, pois retribuiu o sorriso. — É melhor... As mulheres gostam que as coisas estejam a seu gosto...
— E eu não sou excepção à regra... — Júlia estendeu-lhe a mão. — Não estejas nervoso, Cneu... queres que te chame Cneu?
Pompeu apertou-lhe a mão com força. — Prefiro Magno.
Os dedos dela enlearam-se nos dele. — Eu também gosto de Magno. — Virou-se um pouco para ele e perguntou-lhe: — Porque é que estás nervoso?
— Porque todas as outras eram apenas mulheres — disse ele, passando com a outra mão pelo seu cabelo. — Mas tu és uma deusa.
Júlia nada respondeu, de súbito consciente de todo o seu poder sobre aquele homem; acabara de casar com um Romano famoso e notável, um dos mais notáveis e famosos, e ele receava-a. E isso era muito tranquilizador. E muito agradável. A expectativa crescia dentro dela — a expectativa dos mais deliciosos prazeres. Deitou-se de costas contra as almofadas e não fez mais nada senão olhar para ele.
O que significava que ele tinha de fazer qualquer coisa. Ah, aquele momento era tão importante...! Aquela jovem era a filha de César — portanto, descendia de Vénus. Que reacção tivera o rei Anquises quando Amor lhe aparecera e lhe dissera que gostava dele? Teria tremido como uma folha? Ter-se-ia perguntado se estava à altura da situação? Nesse momento, porém, Pompeu lembrou-se de Diana entrando na sala e esqueceu-se de Vénus. Ainda a tremer, debruçou-se sobre Júlia e retirou a coberta e o lençol de linho. E olhou para ela, branca como uma pedra de mármore percorrida por esbatidos veios azuis, pernas e ancas esguias, cintura estreita. Que bela que ela era...!
— Amo-te, Magno — disse ela, com aquela voz rouca de que Pompeu tanto gostava —, mas sou demasiado magra! Vais ficar decepcionado...!
— Decepcionado? — Pompeu olhava-a nos olhos; o terror de a decepcionar desaparecera como que por encanto. Tão vulnerável...!
E tão jovem...! Pois bem, ela haveria de ver até que ponto ele estava decepcionado...!, pensou Pompeu, com um riso silencioso.
As coxas de Júlia eram o que estava mais perto dele; e Pompeu começou por aí e beijou-lhe as coxas, enquanto ela lhe acariciava a cabeça. Com os olhos fechados, percorreu-lhe todo o flanco até se instalar por completo na cama. Uma deusa, uma deusa... Beijaria todo o seu corpo com reverência, com um prazer quase insuportável, aquela flor pura, aquela jóia perfeita. As tranças de prata ocultavam os seios. Lentamente, Pompeu desviou-lhe os cabelos e, arrebatado, ficou a olhar para os pequenos e suaves mamilos, tão pálidos que quase pareciam confundir-se com a pele.
— Oh, Júlia, Júlia, amo-te tanto! — exclamou ele. — Minha deusa, Diana da lua, Diana da noite!
Quanto à virgindade, havia tempo de sobra. Hoje, ela só teria prazer. Sim, o prazer primeiro, todo o prazer que lhe pudesse dar com os lábios e a boca e a língua, com as mãos e a sua própria pele. Que ela soubesse desde já que o casamento com Pompeu, o Grande, só lhe trazia prazer — prazer, prazer, nada mais do que prazer.
— Isto ultrapassa tudo! — disse Catão a Bíbulo, essa noite, no jardim do peristilo da casa de Bíbulo, onde o cônsul júnior continuava a perscrutar os céus. — Depois de terem dividido a Campânia e a Itália como se fossem potentados orientais, selaram os seus ímpios elos com uma filha virgem.
— Estrela cadente, quadrante esquerdo inferior! — gritou Bíbulo para o escriba que, sentado a alguma distância, aguardava pacientemente para anotar os fenómenos que o seu amo via, a luz da minúscula lamparina incidindo sobre a sua tábua. Depois, Bíbulo levantou-se, disse as orações que encerravam mais uma sessão de observação dos céus e foi com Catão para o interior da residência.
— Surpreende-te que César tenha vendido a filha? — perguntou, sem se dar ao trabalho de perguntar a um dos maiores alcoólicos de Roma se queria água no seu vinho. — Há muito que me vinha perguntando como é que ele conseguiria prender Pompeu. Eu sabia que ele acabaria por prendê-lo! Mas César não podia ter tomado decisão mais inteligente... Pelo que ouvi dizer, a filha dele é um verdadeiro fenómeno...
— Também nunca a viste?
— Nunca ninguém a viu, mas isso vai mudar, com toda a certeza. Pompeu exibi-la-á como uma ovelha valiosa. Que idade tem ela? Dezasseis?
— Dezassete.
— Servília é que não deve ter ficado nada contente.
— Ah, ele também lidou com ela de uma forma muito inteligente... — disse Catão, levantando-se para encher de novo a taça.
— Deu-lhe uma pérola que vale seis milhões de sestércios — e pagou a Bruto o dote de cem talentos da rapariga.
— Quem é que te contou isso tudo?
— Bruto, que me veio ver hoje. Aí tens um bom serviço que César prestou aos boni. A partir de agora, teremos Bruto inteiramente do nosso lado. Ele anunciou mesmo que, de futuro, não será conhecido como Cepião Bruto, mas apenas como Bruto.
— Bruto ser-nos-á muito menos útil do que essa aliança matrimonial é para César — retorquiu Bíbulo com uma expressão soturna.
— Sim, para já, Bruto não nos será muito útil. Mas nutro grandes esperanças em relação a Bruto, agora que se libertou da mãe. O problema é que ele não permite que se diga mal da rapariga. Ofereci-lhe a minha Pórcia, mas ele recusou. Jura que nunca se casará. — E, dizendo isto, Catão bebeu o resto do vinho; depois, levantou-se, meio trôpego, as mãos agarrando firmemente a taça.
— Marco, esta história dá-me vómitos! É a manobra política mais fria, mais odiosa, de que há memória! Desde que Bruto me visitou que tento manter a cabeça fria, que tento ver as coisas de uma maneira racional — mas não posso mais! Nada do que alguma vez fizemos se assemelha a isto! E o pior de tudo é que a manobra resultará. Para César, obviamente!
— Senta-te, Catão, por favor! Eu sei perfeitamente que resultará para César. Acalma-te! Não o vencerás com declarações bombásticas ou com a exibição da tua repugnância perante este casamento. Continua como começaste: racionalmente.
Catão sentou-se, mas, antes de se sentar, encheu uma vez mais a taça. Bíbulo franziu o sobrolho. Porque é que Catão bebia tanto? Ainda que o vinho não o debilitasse... Quem sabe, talvez fosse essa a maneira de manter toda a sua força...
— Lembras-te de Lúcio Vétio? — perguntou Bíbulo.
— O cavaleiro a quem César mandou bater com as varas? Aquele que teve de dar a mobília à escumalha?
— Esse mesmo. Ontem, fez-me uma visita.
— E depois?
— Vétio odeia César — disse Bíbulo, com um ar pensativo.
— O que não me surpreende. Toda a Roma se ri dele desde que César lhe fez isso.
— Vétio ofereceu-me os seus serviços.
— Isso também não me surpreende. Mas como é que poderás usá-lo?
— Poderei usá-lo para separar César e o seu novo genro. Catão ficou espantado. — Impossível — disse.
— Concordo que o casamento torna tudo mais difícil, mas não é impossível... Pompeu é um indivíduo extremamente desconfiado. Desconfia de toda a gente, incluindo César. E apesar de Júlia — disse Bíbulo. — No fim de contas, a rapariga é demasiado jovem para, por si só, constituir um perigo. Acabará por deixar o Grande Homem esgotado, em consequência das suas exigências físicas e dos acessos de fúria que são norma nas fêmeas imaturas. Em particular, se conseguirmos encorajar Pompeu a desconfiar do sogro.
— Só há uma maneira para lá chegarmos — disse Catão, enchendo de novo a taça. — Levar Pompeu a pensar que César tenciona assassiná-lo.
Agora era Bíbulo que estava espantado. — Não, Catão, nunca faremos uma coisa dessas! Eu estava a pensar em termos de rivalidade política!
— Mas não seria difícil... — disse Catão. — Os filhos de Pompeu não têm ainda idade para suceder ao pai. Mas César tem. Após a morte de Pompeu, muitos dos seus clientes e apoiantes passariam para César.
— Sim, é provável que sim. Mas como inculcarias um tal pensamento em Pompeu?
— Através de Vétio — disse Catão, bebendo agora mais lentamente; o vinho começava a fazer efeito: os seus pensamentos eram agora mais lúcidos. — E de ti.
— Não sei onde queres chegar — retorquiu o cônsul júnior.
— Sugiro-te que, antes de Pompeu e Júlia deixarem a cidade, o mandes chamar e o avises de que há uma conspiração para o matar.
— Sim, eu posso fazer isso... Mas porquê? E para quê? Para o assustar?
— Não. Para que as suspeitas não recaiam sobre ti quando a conspiração for efectivamente lançada... — disse Catão, com um sorriso tresloucado. — Um aviso não assustará Pompeu, mas predispô-lo-á a acreditar que existe uma conspiração...
— Esclarece-me melhor, Catão. Estou a gostar disso... — disse Bíbulo.
Um Pompeu idilicamente feliz propôs a Júlia que passassem o resto de Maio e parte de Junho em Antio.
— Ela anda muito ocupada com os decoradores — disse Pompeu a César, com um sorriso todo inchado. — Enquanto estivermos fora, os decoradores transformarão por completo a minha casa das Carinas — suspirou de felicidade. — Ah, o gosto que ela tem, César! Quer uma decoração muito leve, quase etérea, como ela diz... Nada de púrpuras de Tiro e muito menos dourados. Pássaros, flores e borboletas. Não percebo porque é que não me lembrei disso antes! Mas quero que o nosso quarto se assemelhe a uma floresta iluminada pela Lua...!
Não era fácil manter uma expressão séria, mas César, graças a um esforço considerável, não desatou a rir. — Quando partem? — perguntou.
— Amanhã.
— Nesse caso, o nosso conselho de guerra terá de ser hoje.
— Foi por isso que vim.
— Com Marco Crasso.
A alegria radiosa de Pompeu desapareceu num ápice. — Tem de ser com ele?
— Claro. Volta depois do almoço.
Antes do almoço, já César conseguira convencer Crasso a deixar uma série de reuniões importantes nas mãos dos seus subordinados.
Sentaram-se no peristilo principal da Domus Publica, pois o dia estava quente e, ali, poderiam conversar à vontade pois ninguém os ouviria.
— A segunda lei das terras vai passar, apesar das tácticas de Catão e das actividades perscrutadoras de Bíbulo — anunciou César.
— E tu serás o patrono de Cápua — disse Pompeu, em cuja expressão já não se notava a extrema felicidade nupcial; é que, agora, os assuntos a tratar eram de uma outra esfera.
— Só nesse aspecto específico será uma lex lulia. Eu, como seu autor, darei aos habitantes de Cápua o estatuto integral de cidadãos de Roma. Contudo, serás tu, Magno, quem entregará os documentos de cidadania aos felizes contemplados. As festividades na cidade ficarão também a teu cargo. Cápua considerar-se-á tua cliente, e não minha.
— E eu irei para a parte oriental do Ager Campanus, que me considerará como seu patrono — acrescentou Crasso, particularmente satisfeito.
— Mas não é a segunda lei agrária que temos de discutir hoje — disse César. — Precisamos de falar da minha província para os próximos anos, visto que não tenciono ser uma espécie de inspector proconsular. Além disso, os magistrados séniores do próximo ano terão de ser nossos. Se não forem, muito do que promulguei este ano será invalidado no próximo.
— Aulo Gabínio — disse Pompeu imediatamente.
— Concordo. Os eleitores gostam dele porque o seu tribunato da plebe produziu medidas muito úteis, para além de te ter permitido limpar o Nosso Mar. Com a nossa ajuda, Aulo Gabínio deverá conseguir tornar-se cônsul sénior. Mas quem há-de ser o cônsul júnior?
— Que me dizes do teu primo, César? Lúcio Pisão parece-me uma boa escolha — disse Crasso.
— Teremos de comprá-lo — disse Pompeu. — Lúcio Pisão é um homem de negócios.
— Nesse caso, dar-lhe-emos boas províncias — disse César. — A Síria e a Macedónia.
— Mas apenas por um ano — defendeu Pompeu. — Gabínio vai ficar contente com isso.
— Quanto a Lúcio Pisão, já não estou tão certo... — disse Crasso, franzindo o sobrolho.
— Por que raio é que os Epicuristas são tão dispendiosos? — perguntou Pompeu.
— Porque só comem ouro. E em pratos de ouro...! — retorquiu Crasso.
César sorriu. — Que tal um casamento...? O primo Lúcio tem uma filha, Calpúrnia. Tem quase dezoito anos, mas não é muito pretendida, pois não tem dote.
— Sim, lembro-me dela... Uma bela rapariga — disse Pompeu. — Ainda bem para ela que não herdou as sobrancelhas e os dentes do pai...! Só não percebo é porque é que ela não tem dote...
— Os negócios de Pisão não vão nada bem — explicou Crasso. — Actualmente não há guerras dignas desse nome e Pisão investiu todo o seu dinheiro em armamentos. Teve de recorrer ao dote de Calpúrnia para se aguentar. Mas quero desde já deixar bem claro que nenhum dos meus dois filhos casará com ela.
— E se Bruto, como espero, casar com a minha filha, eu também não posso dar nenhum dos meus rapazes a Calpúrnia! — exclamou Pompeu, todo encrespado.
Só nesse momento César se lembrou que não tinha falado a Bruto da proposta de Pompeu.
— Bruto com a tua filha? — perguntou Crasso, manifestamente céptico.
— É provável que isso não aconteça — disse César. — Bruto não está em condições para ofertas desse género, Magno. Por isso, é melhor não contares com esse casamento.
— Muito bem, não contarei. Mas com quem poderá casar-se Calpúrnia?
— Talvez comigo — disse Crasso, com as sobrancelhas erguidas.
— Seria uma solução perfeita — disse Magno.
— Sendo assim, Lúcio Pisão será, sem dúvida, o nosso cônsul júnior — disse César, com um suspiro de alívio. — Infelizmente, não nos vamos sair tão bem com os pretores.
— Tendo os dois cônsules nas nossas mãos, não precisamos dos pretores — disse Pompeu. — O que Lúcio Pisão e Gabínio têm de melhor é que são homens fortes e determinados. Os boni não conseguirão intimidá-los — nem enganá-los.
— Resta-nos debater o problema da província que eu pretendo — disse César, com um ar pensativo. — A Gália Italiana e o Ilírico.
— Vatínio promulgará uma lei nesse sentido na Assembleia Plebeia — disse Pompeu. — Os boni nunca imaginaram que teriam de lutar contra nós três, quando te deram as vias de transporte de gado — acrescentou, com um sorriso de todo o tamanho. — Tens toda a razão, César. Com esta união a três, obteremos tudo o que quisermos das assembleias!
— Não te esqueças de que Bíbulo está a observar os céus — resmungou Crasso. — Todas as leis aprovadas correm o risco de ser postas em causa, mesmo que daqui a vários anos. Além disso, Magno, temos de contar com Afrânio, que é um dos teus homens e cujo cargo na Gália Italiana acaba de ser prorrogado. Os teus clientes não vão ficar satisfeitos, se apoiares a saída de Afrânio e a sua substituição por César.
Com a pele um tanto avermelhada, Pompeu lançou um olhar penetrante a Crasso. — Muito bem dito, Crasso! — atirou-lhe. — Mas não te preocupes, pois Afrânio fará o que eu lhe mandar. Afastar-se-á voluntariamente, a fim de que César possa ser o novo governador. Gastei milhões para lhe comprar o consulado júnior e ele sabe muito bem que o seu trabalho não correspondeu ao investimento! Não te preocupes tanto com Afrânio, senão ainda tens um colapso!
— Querias... — ripostou Crasso, com um sorriso imenso.
— Vou pedir-te mais do que isso, Magno — disse César, intrometendo-se naquele diálogo. — Eu quero a Gália Italiana a partir do momento em que a lei de Vatínio for ratificada e não a partir do próximo dia de Ano Novo. Há coisas que tenho de fazer lá, e quanto mais cedo, melhor.
O leão não sentiu qualquer gelo na pele — a sua pele agora estava sempre quente, graças às atenções da filha de César; Pompeu limitou-se a aquiescer e a sorrir. Nem sequer lhe passou pela cabeça perguntar a César que coisas tinha de fazer. — Estás impaciente por começar, ha? Não vejo nada contra, César — começou a mexer-se na sua cadeira. — Está tudo debatido? Tenho de ir já para casa, pois não quero que Júlia pense que arranjei alguma namoradinha! — e foi-se embora, rindo-se do que tinha dito.
— Não há maior tonto do que um velho tonto — comentou Crasso.
— Sê simpático, Marco! Pompeu está apaixonado.
— Por ele mesmo — retorquiu Crasso; mas os seus pensamentos logo se concentraram em César. — Qual é a tua ideia, Caio? Porque precisas da Gália Italiana imediatamente?
— Entre outras coisas, preciso de recrutar mais legiões.
— Magno fará ideia de que estás decidido a suplantá-lo como o maior conquistador de Roma?
— Não, não faz. Consegui esconder-lhe isso.
— Bom, admito que tens sorte, César. Até com a tua filha tens sorte. Outra mulher ter-se-ia portado como uma Terência, mas a tua filha é tão bela por dentro como por fora. Pompeu será seu escravo durante muitos anos. E um dia ele vai acordar e descobrir que o eclipsaste.
— Pois vai — disse César, sem um sinal de dúvida na sua voz.
— E, nessa altura, nem Júlia o impedirá de se tornar teu inimigo.
— Tratarei disso quando chegar o momento, Marco.
— Se tu o dizes...! Mas eu conheço-te, Caio. Sim, é verdade que não costumas tentar saltar obstáculos antes de eles te aparecerem. Mas também é verdade que costumas prever os problemas muito antes de eles ocorrerem. És um indivíduo hábil, astuto, criativo e corajoso.
— Muito bem dito! — disse César, com um brilho nos olhos.
— Eu sei o que tencionas fazer quando fores procônsul — disse Crasso. — Vais conquistar todas as terras e tribos a norte e a leste da Itália, marchando desde o Danúbio até ao mar Euxino. Contudo, é o Senado que controla a bolsa pública! Vatínio pode conceder-te a Gália Italiana e o Ilírico, através da Assembleia Plebeia, mas mesmo assim terás de ir pedir os fundos ao Senado. E o Senado não estará disposto a dar-tos, César. Mesmo que os boni não desatem aos gritos, o Senado recusa-se tradicionalmente a pagar as guerras agressivas. Foi por isso que o Senado não pôde contrariar Magno. Todas as suas guerras foram contra inimigos oficiais de Roma — Carbão, Bruto, Sertório, os piratas, os dois reis. Ao passo que tu queres ser o primeiro a atacar, queres ser o agressor. O Senado — incluindo muitos dos teus apoiantes — não te apoiará. As guerras custam dinheiro. O Senado é a instituição que põe e dispõe em questões de financiamento. E não te dará o dinheiro de que precisas.
— Não me estás a dizer nada que eu não saiba, Marco. Mas eu não tenciono pedir dinheiro ao Senado. De facto, estou convicto de que obterei os meus próprios fundos.
— Com as tuas campanhas? É muito arriscado, Caio!
A resposta de César foi, no mínimo, estranha. — Ainda estás decidido a anexar o Egipto? — perguntou.
Crasso pestanejou perante a mudança de assunto. — Adoraria fazê-lo, mas não posso. Os boni preferem morrer a deixar-me anexar o Egipto.
— Óptimo! Nesse caso, terei os meus fundos — disse César, sorrindo.
— Confundes-me...
— Tudo será revelado no momento certo, Marco...!
Quando César foi visitar Bruto na manhã seguinte, encontrou apenas Servília, a qual, mal o viu, lhe lançou um olhar ameaçador — porque sentia que o devia fazer e não porque os seus sentimentos tivessem sofrido uma afronta irreparável, como César depressa se apercebeu. Servília trazia um pesado colar de ouro e, pendurada do colar, uma gaiola de ouro encobria a enorme pérola cor de morango. O vestido era do mesmo tom da pérola, embora ligeiramente mais pálido.
— Onde está Bruto? — perguntou ele, depois de a ter beijado.
— Em casa do tio Catão — disse ela. — Foi o que tu arranjaste, César.
— Segundo Júlia, a atracção de Bruto pelo tio nunca se desvaneceu — disse ele, sentando-se. — A pérola fica-te muito bem.
— Todas as mulheres de Roma me invejam. E Júlia, como está? — perguntou ela num tom doce.
— Bom, eu não a tenho visto, mas, a crer em Pompeu, está muito satisfeita. Tu e Bruto podem dar-se por felizes, Servília. A minha filha encontrou o seu ninho. Um casamento com Bruto não teria durado muito tempo.
— Foi o que Aurélia me disse. Ah, César, apeteceu-me matar-te naquele dia...! Mas a verdade é que Júlia sempre foi uma ideia do meu filho — e não uma ideia minha. Depois de nos termos tornado amantes, cheguei a encarar o noivado deles como uma forma de te manter perto de mim... Mas foi muito constrangedor, quando a nossa ligação se tornou conhecida... Não, o incesto não é a minha vocação, nem mesmo um pretenso incesto... — e, com uma expressão de desagrado, acrescentou: — Seria demasiado abjecto...
— As coisas estão bem assim. Uma solução intermédia é o ideal...
— A mediania não te fica bem, César... — disse ela.
— Não fica bem a ninguém.
— Que te trouxe aqui tão rapidamente? Um homem prudente teria esperado um pouco mais...
— Esqueci-me de transmitir uma mensagem de Pompeu — disse ele, os olhos brilhando de malícia.
— Que mensagem?
— Que, se Bruto quisesse, Pompeu estaria disposto a dar-lhe a sua filha em troca da minha. Uma oferta muito sincera.
Servília empinou-se como uma áspide egípcia. — Sincera! — silvou. — Sincera? Podes dizer-lhe que Bruto preferia abrir as veias a aceitar essa oferta! O meu filho? O meu filho casado com a filha do homem que executou o seu pai?
— Eu transmito-lhe a tua resposta, mas usarei de mais tacto que tu, já que ele agora é meu genro. — César estendeu-lhe o braço, fitando-a com um ar de quem estava com vontade de jogos amorosos.
Servília levantou-se. — Está um tempo muito húmido, para esta altura do ano... — disse ela.
— Pois está... Quanto menos roupa vestirmos, melhor...
— Pelo menos com Bruto fora, a casa é toda nossa... — disse ela, deitada com ele na cama que não partilhara com Silano.
— Tem a mais bela de todas as flores... — comentou ele.
— Tenho? Nunca a vi — disse ela. — Além disso, uma pessoa precisa de comparar... Mas o teu piropo lisonjeia-me... Deves ter cheirado a maior parte das flores de Roma...
— Sim, já colhi muitas e muitas flores — disse ele gravemente, os dedos ocupados. — Mas a tua é a melhor e a mais bem cheirosa. Tão escura que mais parece púrpura de Tiro — e, tal como a púrpura de Tiro, também muda de tonalidade com a luz... E estes pêlos negros são tão macios... Não gosto de ti como pessoa, mas adoro a tua flor.
Servília abriu mais as pernas e puxou pela cabeça dele. — Então adora-a, César, adora-a! — exclamou. — Ecastor, mas tu és maravilhoso...!
Ptolemeu XI Teos Filopator Filadelfo, também conhecido pela alcunha de Auletes, o Flautista, subira ao trono do Egipto durante a ditadura de Sila, não muito tempo depois de os irados cidadãos de Alexandria terem literalmente despedaçado o rei anterior, que só estivera no trono dezanove dias; essa fora a resposta de Alexandria ao assassínio da sua amada rainha, cometido por aquele que fora seu marido durante apenas dezanove dias.
Com a morte deste rei, Ptolemeu Alexandre II, extinguira-se a dinastia legítima dos Ptolemeus. As complicações tinham começado quando Sila sequestrara Ptolemeu Alexandre II durante vários anos, levando-o para Roma e obrigando-o a deixar o Egipto a Roma em testamento, caso morresse sem descendentes. Esta cláusula sobre os descendentes era no mínimo ridícula, já que Sila sabia perfeitamente que uma criatura tão efeminada como Ptolemeu Alexandre II dificilmente faria filhos. Roma herdaria o Egipto, o país mais rico do mundo.
Mas a tirania da distância derrotara Sila. Quando Ptolemeu Alexandre II disse adeus a este mundo na ágora Alexandria, os conspiradores sabiam muito bem quanto tempo a notícia demoraria a chegar a Roma e a Sila. Os conspiradores sabiam também que havia dois herdeiros possíveis ao trono que viviam muito mais perto de Alexandria do que de Roma. Eram os dois filhos ilegítimos do velho rei Ptolemeu Latiro. Tinham passado a infância na Síria, após o que haviam sido enviados para a ilha de Cos, onde tinham caído nas mãos do rei Mitridates do Ponto. E Mitridates tratou de despachá-los para o Ponto, a tempo de casarem com duas das suas muitas filhas: Auletes com Cleópatra Trifaena, e o mais jovem dos Ptolemeus com Mitridatidis Nisa. Fora do Ponto que Ptolemeu Alexandre II havia fugido, afinal para se entregar a Sila; mas os dois Ptolemeus ilegítimos tinham preferido o Ponto a Roma e permanecido na corte de Mitridates. Depois, quando o rei Tigranes conquistou a Síria, Mitridates enviou os dois jovens e as respectivas esposas para a Síria, mais exactamente para a corte do tio Tigranes. E não se esqueceu de informar os conspiradores de Alexandria da localização dos dois únicos Ptolemeus ainda vivos.
O rei Tigranes, que se encontrava em Antióquia, soube rapidamente da morte de Ptolemeu Alexandre II e tratou logo de mandar para Alexandria os dois Ptolemeus, mais as esposas. E foi assim que o mais velho, Auletes, se tornou rei do Egipto, e que o mais novo (a partir daí conhecido como Ptolemeu, o Cipriota) foi nomeado regente da ilha de Chipre, uma possessão egípcia. Como as rainhas eram suas filhas, o velho rei Mitridates do Ponto podia dar-se por satisfeito: afinal, o Egipto acabaria por ser governado por descendentes seus.
O nome Auletes significava flautista, mas Ptolemeu Auletes não recebera essa alcunha por causa dos seus inegáveis talentos musicais; na realidade, a alcunha devia-se ao facto de a sua voz ser muito aguda e aflautada. Felizmente, não era tão efeminado como o seu irmão mais novo, o Cipriota, que nunca conseguiu ter filhos; Auletes e Cleópatra Trifaena estavam confiantes de que dariam herdeiros ao Egipto. Todavia, uma educação muito pouco ortodoxa (e ainda menos egípcia) não inculcara em Auletes um respeito sincero e sentido pelos sacerdotes egípcios que administravam a religião desse estranho país, daquela faixa de duas ou três milhas de largo que acompanhava o curso do rio Nilo, desde o delta até às ilhas da primeira catarata e à fronteira da Núbia. É que ao rei do Egipto não bastava ser rei do Egipto; ele tinha também de ser o faraó — e só podia sê-lo com o assentimento dos sacerdotes egípcios. Incapaz de entender a situação, Auletes nada fez para se dar bem com os sacerdotes. Se eles eram tão importantes para o sistema, por que raio viviam em Mênfis, na junção do delta com o rio, em vez de viverem na capital, Alexandria? Auletes nunca conseguiu compreender que, para os Egípcios nativos, Alexandria era uma cidade estrangeira — uma cidade sem quaisquer elos de sangue ou históricos com o Egipto.
Por isso, Auletes ficou positivamente exasperado quando soube que a riqueza do faraó estava depositada em Mênfis e era guardada pelos sacerdotes egípcios nativos! Como rei, Auletes podia dispor dos rendimentos públicos, que eram vastíssimos. Contudo, se quisesse sentir e acariciar aquelas imensas arcas de jóias, se quisesse construir pilares com tijolos de ouro, se quisesse deslizar por verdadeiras montanhas de prata, teria de ser, para além de rei, faraó.
A rainha Cleópatra Trifaena, a filha de Mitridates, era muito mais inteligente do que o marido, que sofria dos inconvenientes decorrentes de uma longa história de casamentos entre irmãos e irmãs ou entre tios e sobrinhas. Sabendo que não poderiam ter um filho enquanto Auletes não fosse pelo menos coroado rei do Egipto, Cleópatra Trifaena tratou de conquistar as graças dos sacerdotes. E obteve bons resultados: quatro anos depois de terem chegado a Alexandria, Ptolemeu Auletes era oficialmente coroado. Mas apenas como rei. Daí que as cerimónias tivessem decorrido em Alexandria e não em Mênfis. Pouco tempo depois, nascia o seu primeiro filho — uma menina a que puseram o nome de Berenice.
No mesmo ano em que morrera a velha rainha Alexandra dos Judeus, Cleópatra Trifaena teve uma segunda filha, a que deu o nome de Cleópatra. Esse ano foi aziago, pois coincidiu com o princípio do fim para Mitridates e Tigranes, exauridos depois das campanhas de Lúculo; por outro lado, Roma voltava a pensar na anexação do Egipto. O ex-cônsul Marco Crasso mantinha-se atento, muito atento. Quando a pequena Cleópatra fez quatro anos, Crasso tornou-se censor, tentando então fazer aprovar no Senado a anexação do Egipto. Ptolemeu Auletes tremeu de medo e pagou elevadas somas a senadores romanos, numa tentativa para fazer abortar a iniciativa de Crasso. O dinheiro deu os seus frutos. A ameaça de Roma esbateu-se.
Porém, com a chegada de Pompeu, o Grande, ao Oriente, para acabar com as carreiras de Mitridates e Tigranes, Auletes ficou sem os seus aliados do Norte. O Egipto estava sozinho — pior do que sozinho, já que o seu novo vizinho era Roma, que controlava tanto a Cirenaica como a Síria. Mas esta mudança no equilíbrio do poder acabou por resolver um dos problemas de Auletes. Há algum tempo que desejava divorciar-se de Cleópatra Trifaena, pois a sua meia-irmã (como ele, filha do velho rei Ptolemeu Latiro) já tinha idade para se casar. A morte do rei Mitridates permitiu-lhe fazer o que pretendia. Não que faltasse sangue ptolemaico a Cleópatra Trifaena, tanto do lado paterno como do lado materno. Mas não era o bastante. Quando chegasse a hora de ísis lhe conceder filhos varões, seria preferível que esses filhos tivessem um sangue ptolemaico quase puro. Os Egípcios, e os Alexandrinos, ficariam contentes. E Auletes poderia finalmente ser coroado faraó e deitar as suas mãos a tesouros que lhe dariam para comprar Roma por toda a eternidade.
E foi assim que Auletes se divorciou de Cleópatra Trifaena e casou com a sua meia-irmã. O filho deste casamento, que viria a reinar como Ptolemeu XII, nasceu no ano do consulado de Metelo Célere e Lúcio Afrânio; a meia-irmã Berenice tinha já quinze anos e a meia-irmã Cleópatra tinha oito. Não que Cleópatra Trifaena tivesse sido morta ou mesmo banida. Permanecia no palácio de Alexandria, com as suas duas filhas — e conseguia manter um bom relacionamento com a nova rainha do Egipto. Uma filha de Mitridates não se deixava abater por um mero divórcio. Além disso, estava já a manobrar na sombra, a fim de conseguir o casamento entre o herdeiro ao trono e a mais nova das suas filhas, Cleópatra. Dessa forma, a presença do rei Mitridates no Egipto não morreria.
Infortunadamente, Auletes conduziu mal as negociações com os sacerdotes egípcios nativos, logo após o nascimento do seu filho; vinte anos depois de ter chegado a Alexandria, o título de faraó continuava tão longe dele como no início. Construiu templos ao longo do Nilo; fez oferendas a todas as divindades, desde ísis a Hórus, passando por Serápis; fez tudo o que lhe ocorreu, mas não fez o que era preciso.
Era pois tempo de se virar para Roma.
Foi no início de Fevereiro do ano do consulado de César que uma delegação de cem cidadãos de Alexandria chegou a Roma, a fim de solicitar ao Senado que confirmasse a nomeação do rei Auletes.
A solicitação foi apresentada, como mandavam as normas, durante esse mês. A resposta, contudo, tardava. Frustrada e deprimida, a delegação — que recebera ordens de Auletes para fazer tudo o que fosse necessário e para permanecer em Roma o tempo que fosse preciso — tratou de encontrar-se com dezenas de senadores, procurando convencê-los a apoiar a reivindicação de Auletes. Como seria de esperar, a única coisa em que os senadores estavam interessados era o dinheiro. Quanto mais dinheiro, mais votos.
O chefe da delegação era um tal Aristarco, primeiro-ministro de Auletes e chefe da facção predominante na corte. Dois a três mil anos de burocracia tinham deixado marcas evidentes no Egipto; a burocracia estava de tal modo implantada na vida egípcia que a nova aristocracia macedónia, importada pelo primeiro Ptolemeu, nunca conseguiria erradicá-la. A burocracia egípcia acabaria por se estratificar em moldes diferentes, com os Macedónios no topo, aqueles que tinham uma mistura de sangue egípcio e macedónio no meio, e os Egípcios nativos (exceptuando os sacerdotes) no fundo. Com uma complicação adicional: o exército era judeu. Aristarco, um homem subtil e astuto, era o descendente directo de um dos mais famosos bibliotecários do Museu Alexandrino e fora alto funcionário o tempo bastante para compreender como é que o Egipto funcionava. Como os sacerdotes egípcios não queriam que o país acabasse nas mãos de Roma, Aristarco conseguira convencê-los a aumentar os rendimentos de Auletes. Rendimentos afinal mais vastos do que Aristarco dava a entender ao rei.
Ao fim de um mês em Roma, Aristarco apercebeu-se de que os votos dos proletarii e dos senadores que nunca passariam do cargo de pretor não chegavam para obter a confirmação de Auletes. Precisava de alguns dos consulares — mas não dos boni. Precisava de Marco Crasso, de Pompeu, o Grande, e de Caio César. Mas chegou a essa conclusão antes de a existência do triunvirato ser conhecida e teve o azar de ir ter com o homem errado. Escolheu Pompeu, que era tão rico que não precisava de mais uns milhares de talentos sob a forma de ouro egípcio. Pompeu limitara-se a escutar, sem qualquer expressão no seu rosto, e concluíra a entrevista com a vaga promessa de que iria pensar no assunto.
Uma entrevista com Crasso dificilmente teria êxito, apesar de ser famosa a sua atracção pelo ouro. É que Crasso sempre quisera anexar o Egipto e parecia não ter mudado de ideias. Restava Caio César. A delegação de Alexandria decidiu abordá-lo no meio do tumulto causado pela segunda lei agrária e pouco antes do casamento de Júlia com Pompeu.
César sabia que uma lei Vatínia promulgada pela Plebe poderia conceder-lhe uma província, mas não lhe concederia fundos para custear as suas despesas. O Senado atribuir-lhe-ia um estipêndio mínimo: seria esse o castigo dos senadores, pelo facto de César ter recorrido à Plebe. Além disso, o Senado faria o possível para que o Tesouro retardasse o mais possível o pagamento desse estipêndio mínimo. E não era isso o que César queria. A Gália Italiana possuía uma guarnição de duas legiões e duas legiões não chegavam para aquilo que César pretendia fazer. Precisava de pelo menos quatro legiões inteiramente operacionais e convenientemente equipadas. Mas isso custava muito dinheiro — dinheiro que nunca obteria do Senado, tanto mais que não podia usar o argumento de uma guerra defensiva. César tencionava ser o agressor e não era essa a política seguida por Roma ou pelo Senado. Todos gostavam de ver novas províncias incorporadas no império, mas isso só podia acontecer na sequência de uma guerra defensiva — fora isso precisamente o que acontecera com Pompeu, no Oriente.
César ficou a saber de onde viria o dinheiro para equipar as suas legiões, logo que a delegação de Alexandria chegou a Roma. Mas esperou pelo momento certo. E fez os seus planos, que incluíam Balbo, o banqueiro de Gades, um homem da sua inteira confiança.
Quando Aristarco lhe pediu uma entrevista, no princípio de Maio, César recebeu-o com extrema cortesia na Domus Publica, e mostrou-lhe as divisões mais públicas do edifício, antes de o conduzir ao seu gabinete. Era evidente que Aristarco admirava a beleza da Domus Publica; mas também era evidente que não ficara especialmente impressionado. Para Aristarco, aquele era um edifício pequeno, obscuro, vulgar: tal reacção estava estampada no seu rosto, apesar de toda a delicadeza demonstrada. E César ficou seriamente interessado.
— Poderia usar de rodeios, mas vou direito ao assunto — disse ele a Aristarco. — Imagino que, ao fim de três meses em Roma sem conseguires rigorosamente nada, gostarias de uma intervenção mais directa.
— É verdade que gostaria de regressar a Alexandria tão rapidamente quanto possível — disse Aristarco, louro e de olhos azuis como qualquer Macedónio puro. — Contudo, não posso deixar Roma sem notícias positivas para o rei.
— Podes levar notícias positivas, se concordares com os meus termos — retorquiu César. — Ficarias satisfeito com uma confirmação senatorial da nomeação de Auletes, mais um decreto declarando-o amigo e aliado do Povo Romano?
— Só tinha esperança de obter a confirmação — disse Aristarco. — Nem mesmo em sonhos imaginei que fosse possível declarar o rei Ptolemeu Filopator Filadelfo amigo e aliado de Roma.
— Nesse caso, Aristarco, alarga um pouco o horizonte dos teus sonhos! É possível obter esse decreto.
— Mas tudo isso tem um preço.
— Claro.
— Qual é o preço, Caio César?
— Pela confirmação da subida ao trono, seis mil talentos de ouro, dois terços dos quais devem ser pagos antes da aprovação da confirmação, e um terço daqui a um ano. Para o decreto que declarará o rei amigo e aliado de Roma, mais dois mil talentos de ouro, pagos antecipadamente — disse César, com um olhar brilhante e penetrante. — A oferta não é negociável. É pegar ou largar.
— Nutres aspirações a ser o homem mais rico de Roma — disse Aristarco, curiosamente decepcionado; nunca imaginara que César tivesse um tal apetite por dinheiro.
— Com seis mil talentos? — César riu-se. — Acredita no que te digo, primeiro-ministro, seis mil talentos não farão de mim o homem mais rico de Roma! Uma parte desse dinheiro terá de ir para os meus amigos e aliados, Marco Crasso e Cneu Pompeu Magno. Eu posso obter os decretos, mas só com o apoio deles. E ninguém espera que os Romanos façam favores a estrangeiros sem uma boa recompensa... Aquilo que vou fazer com esse dinheiro só a mim me diz respeito, mas digo-te desde já que não tenciono ficar em Roma e passar os meus dias como Lúculo.
— Podemos confiar nesses decretos?
— Absolutamente. Eu próprio vou elaborá-los.
— O preço total é, portanto, de oito mil talentos de ouro, seis mil dos quais devem ser pagos antecipadamente e dois mil daqui a um ano — disse Aristarco, encolhendo os ombros. — Pois muito bem, Caio César. Concordo com o teu preço.
— Todo o dinheiro deverá ir directamente para o banco de Lúcio Cornélio Balbo, em Gades, em nome dele — disse César, erguendo uma sobrancelha. — Balbo distribuirá esse dinheiro de uma forma que prefiro manter secreta. Tenho de proteger-me. Por isso, nenhum pagamento será feito em meu nome, nem nos nomes dos meus colegas.
— Eu compreendo.
— Muito bem, Aristarco. Quando Balbo me informar de que a transacção está feita, terás os teus decretos e o rei Ptolemeu poderá finalmente olvidar que o seu antecessor fez um testamento que deixava o Egipto nas mãos de Roma.
— Por todos os deuses! — exclamou Crasso quando César o informou destes acontecimentos, alguns dias depois. — Quanto é que eu vou receber?
— Mil talentos.
— Em prata ou ouro?
— Ouro.
— E Magno?
— O mesmo.
— E tu ficas com quatro mil, para já, e com mais dois mil no próximo ano?
César inclinou a cabeça para trás e desatou a rir. — Esses dois mil nunca os verei, Marco! Logo que Aristarco regresse a Alexandria, acabou-se tudo... Não, eu pensei que seis mil talentos era um bom preço para a segurança de Auletes. E Aristarco sabe disso.
— Quatro mil talentos de ouro chegam para equipar dez legiões.
— Especialmente se for Balbo a tratar disso. Tenciono nomeá-lo de novo meu praefectus fabrum. Logo que se saiba que o dinheiro egípcio foi depositado em Gades, Balbo começará a tratar da Gália Italiana. Lúcio Pisão e Marco Crasso — já para não falar do pobre Bruto — começarão de súbito a ganhar muito dinheiro com a venda de armamentos.
— Mas... dez legiões, Caio?
— Não, não, apenas duas legiões novas para começar. Investirei o grosso do dinheiro. Será um exercício de autofinanciamento do princípio ao fim, Marco. Terá de ser. Quem controla os cordões da bolsa, controla o empreendimento. Chegou a minha hora, Marco. Alguma vez pensaste que deixaria que outros controlassem o meu empreendimento? Que permitiria que o Senado fizesse isso?
César levantou-se e ergueu os braços para o tecto, com os punhos cerrados; Crasso apercebeu-se de súbito da força daqueles músculos, apesar da magreza dos braços, afinal ilusória; e sentiu os cabelos da nuca eriçarem-se. O poder daquele homem!
— O Senado não é nada! Os boni não são nada! Pompeu Magno não é nada! Eu irei tão longe quanto tiver de ir, a fim de me tornar o Primeiro Homem de Roma — e de ser o Primeiro Homem de Roma enquanto for vivo! E depois de morrer, dirão de mim que fui o maior homem de toda a história de Roma! Nada nem ninguém conseguirá deter-me! Juro-o pelos meus antepassados — por todos eles, incluindo a deusa Vénus!
Os braços desceram, o fogo e o poder esbateram-se. César sentou-se na sua cadeira e fitou pesarosamente o seu velho amigo.
— Ah, Marco — disse ele —, tudo o que tenho a fazer é aguentar este ano até ao fim!
Crasso tinha a boca seca. — E aguentarás — disse ele.
Públio Vatínio convocou a Assembleia Plebeia e anunciou à Plebe que tudo faria para que Caio Júlio César não se visse condenado ao papel de um mero inspector.
— Porque havemos de desperdiçar os talentos de um homem como Caio César em tarefas que se adequam às capacidades do nosso perscrutador das estrelas, Bíbulo, mas que são uma afronta para um governador e um general do calibre de Caio César? Caio César mostrou-nos na Hispânia aquilo que pode fazer. Mas isso é pouco. Eu quero que ele tenha a oportunidade de se lançar em tarefas dignas do seu valor! Governar não é só fazer a guerra, chefiar um exército não é só ficar sentado na tenda de comando. A Gália Italiana não tem um governador decente há mais de uma década e, por isso mesmo, os Delmatas, os Liburnos, os lapudos e todas as outras tribos do Ilírico transformaram a Gália Italiana numa região muito perigosa para os Romanos. Já para não falar da administração da Gália Italiana, que se encontra num estado miserável. Os julgamentos sofrem atrasos incríveis e, muitas vezes, nem chegam a realizar-se. E as colónias dos Direitos Latinos para lá do Pó estão a soçobrar!
Peço-lhes que dêem a Caio César a província da Gália Italiana e o Ilírico, através da promulgação desta lei! — exclamou Vatínio, com as suas pernas diminutas escondidas pela toga e a cara tão vermelha que o quisto que tinha na testa nem se notava. — Peço-lhes ainda que Caio César seja confirmado por este órgão como procônsul na Gália Italiana e no Ilírico pelo prazo de cinco anos! E que o Senado seja destituído de toda a autoridade para alterar as disposições que tomarmos nesta assembleia! O Senado perdeu o seu direito à atribuição das províncias proconsulares, porque não conseguiu encontrar melhor tarefa para um homem como Caio César do que a inspecção das vias para o transporte de gado em Itália! Deixemos o perscrutador de estrelas a inspeccionar montes de esterco, mas permitamos que Caio César tenha melhores perspectivas!
A lei de Vatínio fora apresentada na Plebe e na Plebe continuou, contio após contio; Pompeu defendeu-a, Crasso também, tal como Lúcio Cota e Lúcio Pisão.
— Não consigo convencer nenhum dos nossos tribunos a interpor um veto — disse Catão a Bíbulo, tremendo de raiva. — Nem mesmo Metelo Cipião! É incrível...! Tudo o que me respondem é que gostam de viver! Gostam de viver! Ah, se ao menos eu ainda fosse tribuno da plebe! Eu mostrava-lhes!
— E estarias morto, Marco. O povo quer essa lei. Porquê, não sei. Estão a apostar tudo em César. Pompeu deu-lhes lucros. Mas César é uma aposta arriscada. Os cavaleiros, supersticiosos como são, acham que a sorte está do lado dele!
— O pior de tudo é que tu vais ficar com as vias de transporte de gado. Vatínio teve o cuidado de salientar que um de vocês faria esse trabalho.
— E eu fá-lo-ei — retorquiu Bíbulo, com um ar altivo.
— Temos de detê-lo! Vétio tem feito progressos?
Bíbulo suspirou. — Não tantos como eu esperava. Preferia que fosses mais manhoso, Catão, mas não és. Foi uma boa ideia, mas Vétio não é propriamente um material muito prometedor.
— Eu falo com ele amanhã.
— Não, não fales! — exclamou Bíbulo. — Deixa-o comigo.
— Pompeu vai falar no Senado. Vai defender que o Senado deveria dar a César tudo o que ele quisesse. ah!
— César não conseguirá a legião extra que pretende. Quanto a isso, não tenho qualquer dúvida.
— Eu acho que vai conseguir. Não sei porquê, mas acho. Bíbulo pôs um sorriso amargo. — Também achas que César tem a sorte pelo seu lado? — perguntou.
— Sim, não gosto dessa ideia... Até parece que César tem o apoio dos deuses...!
Pompeu falou de facto a favor das leis de Vatínio que davam a César um magnífico comando proconsular. E defendeu mesmo um alargamento desse comando.
— Devido à morte do nosso estimado consular Quinto Metelo Célere — disse o Grande Homem aos senadores —, a província da Gália Transalpina ficou sem governador. Caio Pontino continua a governá-la, em nome do Senado. Parece que o Senado está satisfeito com o seu governo, mas a verdade é que a actuação de Caio Pontino não recebeu a minha aprovação, tão-pouco a de César ou a de qualquer outro comandante militar experimentado. Aprouve a este órgão aprovar um agradecimento a Pontino, apesar dos nossos protestos, mas devo dizer-lhes agora que Pontino não é competente para governar a Gália Transalpina. Caio César é um homem de abundante energia e extrema eficiência, como o seu governo da Hispânia Ulterior nos mostrou a todos. Aquilo que seria uma tarefa demasiado exigente para a maior parte dos homens não passa de um pequeno trabalho para ele — tal como para mim. Proponho por isso que este órgão conceda a Caio César, para além do governo da Gália Italiana, o governo da Gália Transalpina, bem como a legião correspondente. São muitas as vantagens de uma tal medida. Um único governador para as duas províncias poderá movimentar facilmente as suas tropas, sem ser obrigado a distinguir entre as forças das duas províncias. Há três anos que a Gália Transalpina vive uma situação tumultuosa — e uma única legião para controlar essas turbulentas tribos é algo de ridículo. Porém, ao juntar as duas províncias sob o comando de um único governador, Roma poupará os custos de mais legiões.
Catão estava já a acenar; César, sentado na sua cadeira, pôs um largo sorriso e acedeu ao pedido. — Podes usar da palavra, Marco Pórcio Catão.
— Estás assim tão confiante, César? — rugiu Catão. — De facto, pareces estar muito confiante... De tal forma que até me convidas a falar, imaginando talvez que as minhas palavras não te afectarão...!
Pois bem, imagina o que quiseres, mas, pelo menos, o meu protesto contra este retalhamento do império ficará gravado nos nossos registos permanentes! Quão lealmente, quão esplendidamente, o novo genro defende o seu novo sogro...! Será que Roma, agora, se reduz a isto — à compra e venda de uma filha? O sogro, nesta infame aliança, já usou o seu lacaio, aquele do quisto na testa, para obter um proconsulado que eu e todos os verdadeiros patriotas tentámos, com força e determinação, negar-lhe! E agora, o genro quer dar mais uma província ao tatá! Um homem, uma província! É isto o que nos diz a mós maiorum. Paires Conscripti, não estão a ver o perigo? Não compreendem que, se acederem ao pedido de Pompeu, estão a pôr o tirano na sua cidadela com as vossas próprias mãos? Não o façam! Não o façam!
Pompeu escutara com um ar entediado. Quanto a César, mantinha uma expressão razoavelmente divertida.
— O que acabei de ouvir em nada altera a minha posição — disse depois Pompeu. — Fiz a minha sugestão pelo melhor dos motivos. Se o Senado de Roma quiser manter o seu tradicional direito a atribuir as nossas províncias aos governadores, pois que o faça. Podem ignorar-me, Paires Conscripti. Tomem livremente a vossa decisão! Mas, se o fizerem, Públio Vatínio levará o caso à Plebe e a Plebe concederá a Gália Transalpina a Caio César. O que lhes quero dizer é simplesmente isto: tomem vocês a decisão, em vez de ser a Plebe a tomá-la. Se concederem a Gália Transalpina a Caio César, estarão a manter o controlo da atribuição das províncias. Podem renovar ou não a comissão todos os dias de Ano Novo — façam como lhes aprouver. Porém, se o caso for para a Plebe, o comando de Caio César na Gália Transalpina será de cinco anos. É isso que querem? De cada vez que o Povo ou a Plebe promulga uma lei em domínios que são ou costumavam ser do Senado, é o poder senatorial que sofre e sai diminuído. Pois tanto me faz, Patres Conscripti! Vocês que decidam...!
Este era o tipo de discurso em que Pompeu mais brilhava — um discurso directo, franco, direito ao assunto. O Senado pensou no que ele tinha dito e concedeu-lhe razão, pois acabou por conceder ao cônsul sénior a província da Gália Transalpina pelo período de um ano — um comando que seria renovado se o Senado assim o entendesse.
— Imbecis! — gritou Catão, depois de realizada a divisão.
— Não passam de uns imbecis sem remédio! Há alguns momentos atrás, ele tinha apenas três legiões! Pois agora tem quatro! Quatro!
Quatro legiões, três das quais veteranas! E que vai fazer este vilão com elas? Vai usá-las para pacificar as suas províncias? Não! Vai usá-las para marchar sobre a Itália, para marchar sobre Roma, para se tornar rei de Roma!
Não era um discurso inesperado, nem mesmo um discurso particularmente violento, tendo em conta quem o pronunciava; nenhum dos presentes, nem mesmo os boni, acreditava numa palavra do que Catão estava a dizer.
Mas César perdeu a calma: um sinal das tremendas tensões que vivia há já vários meses e que se libertavam agora porque ele já tinha o que queria.
César levantou-se, com um rosto de pedra, as narinas distendidas, os olhos dardejando. — Podes urrar à vontade, Catão! — exclamou ele, com uma voz de trovão. — Podes urrar até que o céu caia e Roma desapareça debaixo das águas! Aliás, todos podem urrar! Todos podem guinchar, balir, urrar, ganir, choramingar, criticar, censurar, carpir! Tanto me faz! Tenho o que queria e obtive-o apesar de vocês! Pois agora sentem-se e calem-se, patéticos homúnculos! Eu tenho já aquilo que queria. E se me obrigarem a isso, usá-lo-ei para esmagar as vossas cabeças!
E todos eles se sentaram e calaram, fervendo de raiva.
Fosse por causa desse protesto contra aquilo que César considerava injusto, fosse por causa de uma acumulação de muitas afrontas, incluindo um casamento, a verdade é que, a partir desse dia, a popularidade do cônsul sénior e dos seus aliados começou a declinar. A opinião pública, embora furiosa com as observações celestes de Bíbulo, porque tinham permitido a concessão das duas Gálias a César, começou a inclinar-se para o lado de Catão e Bíbulo, os quais trataram rapidamente de aproveitar essa inesperada maré.
Por outro lado, conseguiram comprar o jovem Curião, que se libertara das suas promessas para com Clódio e ansiava dificultar a vida a César. Voltou a aparecer nos rostra ou na plataforma de Castor, satirizando César e o seu passado suspeito sem qualquer piedade — e de uma forma irresistivelmente divertida. Bíbulo entrou também na batalha, afixando anedotas, epigramas, notas e éditos no quadro que César criara no baixo Fórum.
Apesar disso, as leis foram aprovadas; a segunda lei das terras, as diversas leges Vatiniae que concediam as províncias a César, e muitas outras medidas, menos importantes mas úteis, que há muito César pretendia ver aprovadas. O rei Ptolemeu XI Teos Filopator Filadelfo, por alcunha Auletes, foi confirmado no trono do Egipto e declarado amigo e aliado do Povo Romano. Quatro mil talentos foram para o banco de Balbo em Gades, depois de Pompeu e Crasso terem sido pagos, e Balbo, acompanhado de Tito Labieno, partiu para a Gália Italiana, a fim de começar a trabalhar. Balbo procuraria obter armamentos e equipamento (se possível através de Lúcio Pisão e Marco Crasso), ao passo que Labieno trataria de recrutar a terceira legião para a Gália Italiana.
Decidido a fazer a guerra mais para nordeste e ao longo da bacia do Danúbio, César considerava a Gália Transalpina como um empecilho. Não chamara Pontino, apesar de o detestar, preferindo lidar com os problemas que se verificavam ao longo do rio Ródano através de meios diplomáticos. O rei Ariovisto dos Suevos era uma nova força na Gália Transalpina; dominava já toda a região entre o lago Lemana e as margens do rio Reno, que separava a Gália Transalpina da Germânia. Os Sequanos tinham prometido a Ariovisto que lhe dariam apenas um terço das suas terras. Mas tantos foram os Suevos que atravessaram o grande rio que, pouco tempo passado, já Ariovisto exigia dois terços das terras dos Sequanos. Entretanto, os tumultos tinham atingido também os Éduos, que haviam sido considerados amigos e aliados do Povo Romano muitos anos antes. Depois, os Helvécios, um clã da grande tribo dos Tigurinos, começaram a abandonar as suas regiões montanhosas e a procurar um clima e uma vida mais clementes em altitudes mais baixas, ou seja, no território da Gália Transalpina.
A guerra era uma ameaça muito concreta — de tal forma que Pontino construiu um acampamento mais ou menos permanente não muito longe do lago Lemana e instalou a sua única legião no local, a fim de seguir de perto os acontecimentos.
A visão esclarecida de César permitiu-lhe entender que Ariovisto era a chave para aquela complexa situação. Por isso, em nome do Senado, começou a conferenciar com os representantes do rei dos Suevos, a fim de concluir um tratado que manteria todos os territórios de Roma na sua posse, que deteria Ariovisto e acalmaria as tribos gaulesas que a incursão sueva irritara profundamente. O facto de estar a infringir os tratados que Roma tinha firmado com os Éduos não o preocupava rigorosamente nada. O importante era estabelecer um status quo que representasse o menor perigo possível para Roma.
O resultado de tudo isto foi um decreto senatorial que considerava o rei Ariovisto amigo e aliado do Povo Romano; a acompanhar o decreto, seguiam magníficas prendas, oferecidas pessoalmente por César ao dirigente dos Suevos. E o efeito foi exactamente o desejado. Tacitamente confirmado na sua actual posição, Ariovisto podia sentar-se no seu trono com um suspiro de alívio — a sua incursão na Gália fora reconhecida pelo Senado de Roma.
César não teve dificuldade nenhuma em obter os decretos que designavam os novos amigos e aliados de Roma; conservador por natureza, e inimigo acérrimo de elevadas despesas de guerra, o Senado depressa concluiu que a confirmação de Ptolemeu Auletes significaria que homens como Crasso depressa perderiam as esperanças de um assalto à riqueza egípcia; e que a confirmação de Ariovisto significava que a guerra na Gália Transalpina fora evitada. Nem sequer fora necessário pedir a Pompeu que falasse.
Durante este período de menor popularidade, César casou-se pela terceira vez. Com Calpúrnia, a filha de Lúcio Calpúrnio Pisão. Tinha apenas dezoito anos e viria a revelar-se como a esposa de que ele precisava naquele momento da sua carreira. Tal como o pai, Calpúrnia era alta e morena, uma rapariga muito atraente que possuía uma natureza calma e digna e que, por isso mesmo, fazia lembrar Aurélia, prima direita da avó de Calpúrnia, uma Rutília. Inteligente e culta, cultivadora de agrados e imune à tentação das exigências, Calpúrnia inseriu-se na vida da Domus Publica com tamanha facilidade que parecia ter vivido sempre lá. Praticamente com a mesma idade que Júlia, Calpúrnia era também uma espécie de compensação para a perda de Júlia. Em especial para César.
Claro que César lidara com ela com toda a cautela e habilidade. Um dos grandes inconvenientes dos casamentos arranjados — em particular os que tinham uma génese rápida — era o efeito que a mudança produzia na esposa. Esta entrava na vida do marido como se fosse uma estranha — e se fosse, como Calpúrnia, uma pessoa reservada e introvertida, a timidez e o constrangimento ergueriam uma muralha entre ela e o marido. Compreendendo isto, César tratou de demolir essa muralha. Tratou-a como tratava Júlia, com a diferença de que Calpúrnia era a esposa, e não a filha. Mostrava-se terno, compreensivo e despreocupado quando fazia amor com ela; e, a outros níveis, procurava tratá-la exactamente desse modo.
Quando soube, através de um pai deliciado, que iria casar-se com o cônsul sénior e Pontifex Maximus, Calpúrnia intimidou-se. Alguma vez conseguiria estar à altura do marido? Mas ele era tão simpático, tão compreensivo...! Todos os dias lhe dava uma prenda, uma bracelete ou um lenço, brincos, umas belas sandálias que ele vira numa tenda do mercado. Certa vez, ao passar por ela, atirara-lhe qualquer coisa para o colo (ainda que ela ignorasse a prática que ele tinha desse estilo de dar prendas). E aquela coisa mexia-se e miava... um miado muito fininho... — oh, era um gatinho! Como é que ele sabia que ela adorava gatos? Como é que sabia que a mãe os odiava e nunca a deixara ter um?
Com um brilho intenso nos olhos negros, Calpúrnia encostou aquela pequena bola cor-de-laranja ao rosto e fitou o marido com um sorriso radioso.
— Ainda é muito bebé, mas dá-mo no Ano Novo que eu mando castrá-lo — disse César, sentindo-se absurdamente contente com a alegria que inundava aquele rosto tão atraente.
— Vou chamar-lhe Félix — disse ela, ainda sorridente.
O marido riu-se. — Feliz por ser fértil? Mas no Ano Novo, isso será já uma contradição...! Se ele não for castrado, não parará nunca em casa e não te fará companhia e eu terei de lhe atirar com uma bota a meio da noite. Chama-lhe Spado, é mais apropriado.
Segurando ainda no gatinho, Calpúrnia levantou-se, pôs o braço livre à volta do pescoço de César e beijou-o na face. — Não, ele vai chamar-se Félix.
César virou a cabeça até que o beijo encontrou a sua boca. — Sou um homem afortunado — disse ele depois.
— De onde é que ele veio? — perguntou ela, imitando Júlia, sem o saber, ao beijá-lo no leque branco que ele tinha ao canto do olho.
Afastando as lágrimas, César abraçou-a. — Apetece-me fazer amor contigo, esposa. Vem comigo e deixa o Félix. Tu tornas tudo tão agradável...!
Um pensamento que César repetiu mais tarde, em conversa com a mãe.
— Calpúrnia consegue tornar agradável a vida sem a nossa Júlia.
— Tens toda a razão. Esta casa precisa de uma jovem. Bom, eu pelo menos preciso... Ainda bem que também achas isso.
— Elas não são parecidas.
— Nada parecidas, o que só pode ser bom.
— Gostou mais do gatinho do que das pérolas...!
— Um sinal excelente. — Aurélia franziu o sobrolho. — Vai ser difícil para ela, César. Dentro de seis meses, tu partes e ela vai ficar sem ti uma série de anos...
— A mulher de César?! — ripostou ele.
— Se ela gostou mais do gatinho do que das pérolas, duvido que a sua fidelidade abrande. Seria melhor se ficasse grávida — um bebé mantê-la-ia ocupada. Contudo, não podemos prever essas coisas, e não me parece que a tua devoção por Servília se tenha esbatido. Dorme mais com Calpúrnia e menos com Servília. Como pareces ter tendência para fazer raparigas, não me tenho preocupado muito com Servília. Provavelmente, nunca te dará um rapaz...!
— Mater, quanta dureza! O conselho é sensato, mas não tenciono segui-lo.
Aurélia mudou logo de assunto. — Ouvi dizer que Pompeu foi ter com Marco Cícero e lhe pediu que convencesse o jovem Curião a deixar de te atacar no Fórum.
— Que estupidez! — exclamou César, com cara de poucos amigos. — Eu disse-lhe que isso só serviria para dar a Cícero uma falsa ideia da sua importância. O salvador da pátria virou-se para os boni ultimamente e fica todo contente quando tem uma oportunidade de rejeitar as nossas propostas. Não quer pertencer à comissão das terras, não quer ser legado na Gália no próximo ano, nem sequer aceitou a minha oferta para fazer uma viagem a expensas do Estado. E, perante tudo isto, o que é que Magno faz? Oferece-lhe dinheiro!
— Claro que Cícero recusou o dinheiro.
— Apesar das suas muitas dívidas. Nunca vi homem tão obcecado em coleccionar villae!
— Quer dizer então que vais dar rédea solta a Clódio no próximo ano?
César fitou a mãe com o mais frio dos olhares. — Sem a menor dúvida.
— Que raio é que Cícero disse a Pompeu para te deixar tão furioso?
— O mesmo tipo de coisas que disse durante o julgamento de Híbrida. Mas, infelizmente, Magno manifestou dúvidas em relação à minha pessoa, de tal forma que Cícero concluiu que tinha hipóteses de afastar Magno de mim.
— Duvido que alguma vez tenha, César... Não seria lógico. Em casa de Pompeu, quem reina é Júlia.
— Sim, suponho que tens razão. Magno joga com um pau de dois bicos — e nunca revela a Cícero os seus verdadeiros pensamentos.
— Se estivesse no teu lugar, preocupar-me-ia mais com Catão. Bíbulo é o mais organizado dos dois, mas é Catão quem realmente possui influência — disse Aurélia. — É pena que Clódio não possa eliminar Catão, para além de Cícero.
— Isso seria óptimo para mim enquanto estivesse fora, mater! Infelizmente, não vejo que se possa fazer...
— Pensa nisso. Se pudesses eliminar Catão, libertar-te-ias de todas as garras que te ameaçam. Esta hidra pode ter muitas cabeças, mas Catão é a única que realmente importa.
As eleições curuis realizaram-se em Quinctilis, mas um pouco mais tarde do que o usual. Os candidatos favoritos eram Aulo Gabínio e Lúcio Calpúrnio Pisão. Compraram muitos eleitores, mas eram demasiado astutos para dar a Catão qualquer possibilidade de formular uma acusação de suborno. A opinião pública, caprichosa como sempre, afastava-se de novo dos boni. O resultado eleitoral prometia ser muito positivo para os triúnviros.
Poucos dias antes das eleições curuis, Lúcio Vétio saiu da sua toca. Foi ter com o jovem Curião (cujos discursos, ultimamente, visavam sobretudo Pompeu) e disse-lhe que sabia da existência de um plano para assassinar Pompeu. Depois, perguntou a Curião se estaria disposto a participar na conspiração. Curião escutou-o atentamente e fingiu estar interessado. Contudo, foi ter com o pai e contou-lhe tudo, já que não tinha estofo de conspirador ou assassino. Os Curiões pai e filho andavam sempre de candeias às avessas, mas as suas divergências não iam além do vinho, das aventuras sexuais e das dívidas; quando o perigo espreitava, os Escribónios Curiões uniam-se.
Curião Sénior informou imediatamente Pompeu e este pediu uma sessão do Senado. Vétio foi chamado. De início, o humilhado cavaleiro negou tudo; mas a sua resistência não durou muito e acabou por revelar vários nomes: o filho do futuro candidato consular Lêntulo Espínter, Lúcio Emílio Paulo, e Marco Júnio Bruto, até então conhecido como Cepião Bruto. Estes nomes eram tão bizarros que ninguém acreditou neles; o jovem Espínter não era membro do Clube de Clódio, nem era famoso pelos seus excessos; o filho de Lépido tinha uma velha história de rebelião, mas nada fizera de irregular desde que voltara do exílio; e a hipótese de Bruto ser um assassino era pura e simplesmente risível. Então, Vétio anunciou que um escriba de Bíbulo lhe trouxera um punhal enviado pelo cônsul júnior. Após o que Cícero comentou que era pena que o punhal não tivesse atingido aquela miserável testemunha. Contudo, todos os senadores compreenderam o significado do gesto: era a forma de Bíbulo dizer que o projectado crime tinha o seu apoio.
— Que disparate! — exclamou Pompeu. — O próprio Marco Bíbulo deu-se ao trabalho de me avisar, em Maio, que havia uma conspiração para me assassinar. Bíbulo não pode estar envolvido nisso!
O Senado chamou então o jovem Curião. Este lembrou que Paulo estava na Macedónia e salientou que tudo aquilo não passava de uma mentira pegada. O Senado sentia-se inclinado a concordar com ele. Contudo, achou que seria melhor deter Vétio para futuros interrogatórios. Havia em tudo aquilo demasiados ecos de Catilina; ninguém queria incorrer no ódio desencadeado por execuções sem julgamento (ainda que o executado fosse Vétio) e, por isso, o Senado não deixaria que aquele caso escapasse ao seu controlo. Obedecendo aos desejos do Senado, o cônsul sénior César ordenou aos seus lictores que levassem Lúcio Vétio para as Lautumias e o acorrentassem à parede da sua cela, pois essa era a única maneira de impedir uma fuga daquele arremedo de prisão.
Apesar de, superficialmente, o caso da conspiração contra Pompeu parecer absolutamente incongruente, a verdade é que César se sentia inquieto; o seu instinto de conservação dizia-lhe que devia fazer todos os esforços para manter o Povo ao corrente dos desenvolvimentos. O assunto não devia ficar confinado ao interior da sede do Senado. Por isso, depois de ter mandado embora os Patres Conscripti, convocou o Povo e informou-o do que acontecera. E, no dia seguinte, chamou Vétio aos rostra para um interrogatório público.
Desta feita, a lista de conspiradores era completamente diferente. Não, Bruto não estivera envolvido. Sim, esquecera-se de que Paulo estava na Macedónia. Bom, podia ter-se enganado quanto ao filho de Espínter, se calhar tinha sido o filho de Marcelino — no fim de contas, Espínter e Marcelino eram ambos Cornélios Lêntulos, e ambos eram futuros candidatos consulares. E tratou de atirar outros nomes: Lúculo, Caio Fânio, Lúcio Aenobarbo, e Cícero. Todos eles boni ou próximos dos boni. Enojado, César mandou-o de volta para a prisão.
Contudo, Vatínio achava que Vétio precisava de um interrogatório mais cerrado. Por isso, mandou-o chamar de novo e sujeitou-o a um impiedoso inquérito. Desta feita, Vétio insistiu que revelara os nomes correctos, embora acrescentasse mais dois: nem mais nem menos do que esse respeitável pilar do sistema que era o genro de Cícero, Pisão Frugi; e o senador Juvêncio, famoso pela sua indefinição política. A reunião foi dissolvida, depois de Vatínio se ter proposto apresentar uma lei na Assembleia Plebeia, tendo em vista a realização de um inquérito formal ao caso Vétio.
Por essa altura, nada fazia já sentido, a não ser a suspeita de que os boni estavam tão fartos de Pompeu que seriam mesmo capazes de o matar. Contudo, nem mesmo o mais perspicaz dos analistas políticos seria capaz de desemaranhar a confusa teia que Vétio tecera.
O próprio Pompeu acreditava já que existia uma conspiração, mas ninguém conseguiria convencê-lo de que os boni eram os responsáveis. Bíbulo não o avisara? Mas se os boni não eram os culpados, então quem era? E por isso, ficou como Cícero: convencido de que o inquérito de Vatínio acabaria por deslindar tudo.
César continuava inquieto, mas por outras razões. De uma coisa estava certo: Vétio odiava-o. Por isso, qual era o verdadeiro objectivo do caso Vétio? Seria ele o alvo, ainda que por vias muito tortuosas? Ou pretenderiam separá-lo de Pompeu? Por tudo isso, César decidiu não esperar pelo inquérito oficial. Chamaria de novo Vétio aos rostra. O seu instinto dizia-lhe que era vital que o fizesse - e muito rapidamente. Talvez assim o nome de Caio Júlio César não chegasse a ser pronunciado no inquérito.
Mas Vétio não chegaria a comparecer nos rostra. Quando os lictores de César voltaram da prisão, vinham sozinhos, pálidos e apressados. Lúcio Vétio fora acorrentado à parede, mas estava morto. À volta do pescoço, havia marcas de mãos fortes, à volta dos pés as marcas de uma luta desesperada pela vida. Como fora acorrentado, ninguém se lembrara de deixar um guarda na cela. Quem, pela calada da noite, silenciara Lúcio Vétio, entrara e saíra da prisão sem que ninguém o visse?
Catão, que assistia a tudo aquilo saborosamente expectante, sentiu o sangue abandonar-lhe o rosto e ficou profundamente contente ao verificar que as atenções da multidão se viravam agora para o irado César, o qual deu logo instruções aos seus lictores para que interrogassem todos aqueles que se encontravam nas proximidades da prisão. Quando os seus colaboradores e adeptos o procuraram para lhe pedir uma opinião sobre o que se estava a passar, já Catão tinha desaparecido.
Irrompeu pela casa de Bíbulo e encontrou-o sentado no peristilo, um olho no céu sem nuvens, o outro nas suas visitas, Metelo Cipião, Lúcio Aenobarbo e Caio Pisão.
— Como te atreveste a fazer uma coisa daquelas, Bíbulo? — rugiu Catão.
Os quatro homens viraram-se todos ao mesmo tempo, claramente espantados.
— Que coisa? — perguntou Bíbulo, o mais espantado de todos.
— Assassinar Vétio!
— O quê?
— César mandou buscar Vétio e encontraram-no morto. Estrangulado, Bíbulo! Porquê? Porque o mataste? Eu nunca teria consentido e tu sabes muito bem disso! Truques políticos é uma coisa, especialmente quando o alvo é aquele cão do César, mas assassínio...! É um acto desprezível, Bíbulo!
Bíbulo escutou aquilo com um ar de quem estava prestes a desmaiar; quando Catão acabou, levantou-se meio trôpego, os braços estendidos. — Catão, Catão! Conheces-me assim tão mal? Porque haveria eu de assassinar um miserável como Vétio? Se não matei César, porque haveria de sujar as minhas mãos com outro indivíduo qualquer?
A ira de Catão esbateu-se: já não parecia tão seguro. — Não foste tu?
— Não, não fui eu. Concordo contigo, sempre concordei, sempre concordarei: o assassínio é um acto desprezível.
Os outros três estavam a recuperar do choque; Metelo Cipião e Aenobarbo juntaram-se a Catão e Bíbulo, ao passo que Caio Pisão se recostou na sua cadeira, cerrando os olhos.
— Vétio está mesmo morto? — perguntou Metelo Cipião.
— Foi o que disseram os lictores de César. Eu acreditei.
— Quem? — perguntou Aenobarbo. — E porquê?
Catão abeirou-se de uma mesa e encheu de vinho uma taça. — Pensei que tivesses sido tu, Marco Calpúrnio — disse ele, e logo emborcou o vinho. — Peço-te desculpa. Não devia ter sido tão precipitado.
— Bom, nós sabemos que não fomos nós — disse Aenobarbo. — Nesse caso, quem foi?
— Só pode ter sido César — disse Bíbulo, servindo-se do vinho.
— Que tinha ele a ganhar com isso? — perguntou Metelo Cipião, perplexo.
— Nem mesmo eu te poderia esclarecer quanto a isso — disse Bíbulo. Nesse instante, os seus olhos fixaram-se em Caio Pisão, o único que permanecia sentado. Um medo horrendo apoderou-se de Bíbulo; respirou fundo audivelmente. — Pisão...! — exclamou ele, de súbito. — Não me digas que foste tu...!
Os olhos de Caio Pisão, lá muito no fundo de um rosto balofo, faiscaram de desprezo. — Cresce e aparece, Bíbulo! — retorquiu ele, irritado. — O que aconteceu teria forçosamente de acontecer. Tu e Catão achavam que Vétio teria a ousadia e a coragem de levar até ao fim o vosso plano? Vétio odiava César, mas, ao mesmo tempo, tinha um medo horrendo dele. Que amadores que vocês são! Apregoando nobreza e elevados ideais e maquinando conspirações sem terem talento nem astúcia para as fazerem resultar — às vezes, metem-me nojo, vocês dois!
— O sentimento é recíproco! — gritou Catão, erguendo punhos ameaçadores.
Bíbulo segurou no braço de Catão. — Não piores as coisas, Catão — disse ele, o rosto já mais cinzento do que pálido. — A tua honra morreu com Vétio, e tudo graças a este ingrato — e, virando-se para Caio Pisão, ordenou-lhe: — Sai da minha casa, Pisão, e nunca mais voltes!
Caio Pisão levantou-se, derrubando a cadeira. Olhou para os rostos dos outros e cuspiu para as lajes, quase acertando nos pés de Catão. — Vétio era meu cliente — disse ele. — E eu fui um bom patrono para ele! Até lhe ensinei a desempenhar este papel! Só tenho pena de não lhe ter dado os conselhos necessários. Pois bem, a partir de agora lutem sozinhos! E não tentem incriminar-me! Atrevam-se a dizer uma só palavra que eu testemunho contra vocês todos!
Catão, muito abalado, sentou-se na beira da fonte; cobriu o rosto com as mãos e, balançando-se para a frente e para trás, chorou.
— Da próxima vez que vir Pisão, dou cabo dele! — disse Aenobarbo, furioso. — O miserável...!
— Da próxima vez que o vires, Lúcio, tratá-lo-ás com educação e cortesia — disse Bíbulo, afastando as lágrimas. — Ah, a nossa honra morreu! Nem sequer podemos fazer com que Pisão pague! Se o fizermos, seremos condenados ao exílio!
A sensação causada pela morte de Lúcio Vétio foi naturalmente ampliada pelo mistério que envolveu todo o caso; o brutal homicídio emprestava um tom de verdade àquilo que, de outro modo, teria parecido uma mistificação. Alguém planeara matar Pompeu, o Grande; Lúcio Vétio soubera disso e, agora, estava morto. Aterrado porque Vétio pronunciara o seu nome (e também o nome do seu leal e adorado genro), Cícero tratou de acusar César, e muitos dos boni seguiram o seu exemplo. Bíbulo e Catão recusaram-se a comentar e Pompeu não conseguia disfarçar a sua constante perplexidade. Segundo a lógica, o caso Vétio não fazia sentido, nem tinha qualquer fundamento em factos reais; mas os supostos envolvidos não se mostravam inclinados a recorrer à lógica.
A opinião pública afastou-se de novo dos triúnviros e parecia disposta a manter-se adversa. Os boatos acerca de César proliferavam. O seu pretor Fúfio Galeno foi vaiado no teatro durante os ludi Apolinares; corria o boato de que César, através de Fúfio Galeno, tencionava cancelar o direito das Dezoito aos assentos reservados no teatro, imediatamente atrás dos senadores. Os jogos gladiatoriais financiados por Aulo Gabínio também foram palco de incidentes.
Convencido de que os seus estratagemas religiosos estavam a resultar, Bíbulo atacou. Adiou as eleições curuis e populares para o décimo oitavo dia de Outubro, promulgando para tal um édito, divulgado nos rostra, na plataforma de Castor e no quadro público criado por César. Para além de o fedor do cadáver de Lúcio Vétio permanecer no baixo Fórum, dizia Bíbulo, havia visto uma estrela cadente na zona errada do céu.
Pompeu entrou em pânico. O seu tribuno da plebe convocou imediatamente uma reunião da Plebe e o Grande Homem pôde discursar longamente sobre a irresponsabilidade de Bíbulo, mais visível do que qualquer estrela cadente nos céus nocturnos. Na sua qualidade de augure, Pompeu jurava que não havia nada de errado nos auspícios. Bíbulo estava a inventar tudo, unicamente para derrubar Roma. O Grande Homem convenceu depois César a convocar o Povo e a falar contra Bíbulo, mas César não se sentiu suficientemente entusiasmado para fazer um discurso brilhante e, por conseguinte, não conseguiu arrastar as multidões. Deveria ter defendido apaixonadamente que o Povo o seguisse até à casa de Bíbulo, a fim de lhe pedir que acabasse com aquela palhaçada — o problema é que César defendeu isso mas sem qualquer paixão, e a multidão preferiu recolher-se a casa.
— A reacção do Povo demonstra apenas o seu bom senso — disse César a Pompeu, enquanto jantavam na Domus Publica.
— Estamos a encarar este caso da maneira errada, Magno.
Muito deprimido, Pompeu calou-se por um momento, encolheu os ombros. — Da maneira errada? — perguntou, com um ar triste.
— O problema é que não há uma maneira certa, César.
— Há e tu sabes que há.
Os olhos azuis fixaram-se em César, embora continuassem cépticos. — Dize-me qual é essa maneira, César.
— Estamos em Quinctilis, não é verdade? Em tempo de eleições. Os jogos decorrem neste preciso momento e meia Itália está em Roma para se divertir. A multidão que actualmente se aglomera no Fórum é completamente diferente do habitual. Que sabe essa gente sobre o que está a acontecer? Ouvem falar de auspícios, de cônsules juniores perscrutando os céus, de homens assassinados na prisão, de uma luta tremenda entre facções e entre magistrados de Roma. Olham para ti e para mim e vêem um dos lados. Olham para Catão e ouvem Bíbulo e vêem o outro lado. Tudo isto lhes deve parecer mais estranho do que um daqueles estranhos rituais de Pisídia.
— Gabínio e Lúcio Pisão vão perder — disse Pompeu, a mão segurando o queixo. — Quanto a isso, não tenho a menor dúvida.
— Terias razão, se por acaso as eleições decorressem hoje — disse César, recuperando toda a sua vivacidade. — Bíbulo cometeu um erro, Magno. Não devia ter mexido nas eleições. Se as eleições se realizassem agora, a vitória iria para os boni. Ao adiá-las, deu-nos tempo para recuperarmos a nossa posição.
— Não conseguiremos recuperar a nossa posição.
— Não conseguiremos, se continuarmos a protestar contra este último édito. Mas vamos deixar de protestar. Vamos aceitar o adiamento, vamos considerá-lo legítimo, vamos fazer de conta que estamos de alma e coração com o édito de Bíbulo. Depois, trabalhamos duramente para recuperar a nossa influência junto do eleitorado. Em Outubro, Magno, voltaremos a ser os favoritos. Espera e verás. E, em Outubro, teremos cônsules da nossa facção. Gabínio e Lúcio Pisão serão eleitos.
— Acreditas sinceramente nisso?
— Não tenho a mínima dúvida, Magno. Por favor, Magno, regressa à tua villa de Alba e a Júlia! Não te inquietes mais com as questões políticas de Roma. Manter-me-ei na sombra até apresentar ao Senado a legislação para impedir os governadores das províncias de espoliarem as populações locais — e isso só acontecerá dentro de dois meses. Permaneceremos todos na sombra, não faremos nada, não diremos nada. Bíbulo e Catão não terão, por isso, nenhum pretexto para desatar aos berros. Ao mesmo tempo, silenciaremos o jovem Curião. O interesse morre quando nada acontece.
Pompeu sufocou um risinho. — O jovem Curião, pelo que ouvi dizer, continua a lixar-te... e de que maneira!
— Eu sei, eu sei que, agora, ele se refere ao actual consulado como o consulado de Júlio e César... em vez de César e Bíbulo... — disse César, com um sorriso de todo o tamanho.
— Essa do consulado de Júlio e César é muito boa...!
— Sim, espírito não falta ao rapaz! Eu também me ri quando me contaram. Mas até isso pode favorecer-nos, Magno. Curião deveria ter reflectido antes de dizer o que disse. Porque, sem o saber, está a reconhecer uma coisa — que Bíbulo não é cônsul, que eu tenho de fazer o trabalho de dois cônsules. Em Outubro, os eleitores já terão entendido isso muito bem.
— Consegues animar-me, César — disse Pompeu, com um suspiro. Depois, ocorreu-lhe outra coisa. — A propósito: Catão parece ter tido uma grave desavença com Caio Pisão. Metelo Cipião e Lúcio Aenobarbo apoiam Catão. Foi Cícero que me disse.
— Isso tinha de acontecer — disse César gravemente. — Catão descobriu que foi Caio Pisão quem mandou matar Vétio. Bíbulo e Catão são uns imbecis, mas não pactuam com a desonra de um homicídio.
Pompeu estava de boca aberta. — Caio Pisão? Foi Caio Pisão?
— Claro que foi. E lá teve as suas razões... Vétio vivo não era uma ameaça para nós. Vétio morto podia ser uma ameaça para mim. Cícero não tentou convencer-te de que eu estava por detrás da morte de Vétio?
— Bom... — murmurou Pompeu, muito vermelho.
— Precisamente! O caso Vétio foi congeminado com um único objectivo: era preciso que tu duvidasses de mim. Depois, quando comecei a interrogar publicamente Vétio, Caio Pisão percebeu que o estratagema ia falhar. Daí a morte de Vétio, que impediu todas as conclusões, excepto as decorrentes da pura especulação.
— E eu duvidei de ti, César — disse Pompeu, claramente zangado consigo mesmo.
— Uma reacção natural, Magno. Mas não te esqueças de que me és muito mais útil vivo! É certo que, se tu morresses, eu herdaria muitos dos teus clientes e apoiantes. Mas se tu continuares vivo, esses teus clientes e apoiantes continuarão a defender-me...! Não, Magno, eu não defendo a morte. A morte de ninguém.
Como a Plebe e os magistrados plebes não podiam ser afectados pelos auspícios, o édito de Bíbulo não podia impedir as eleições dos edis plebeus ou dos tribunos da plebe. As eleições realizaram-se em Quinctilis, como previsto, e Públio Clódio foi eleito presidente do novo Colégio dos Tribunos da Plebe. O que não surpreendeu ninguém: a Plebe só podia admirar um patrício que, de tanto que se preocupava com o tribunato da plebe, tinha até desistido do seu estatuto original. Além disso, Clódio possuía muitos clientes e apoiantes, já que a sua generosidade desconhecia limites; finalmente, o seu casamento com a neta de Caio Graco era mais um factor susceptível de explicar a sua popularidade. Nele, a Plebe via alguém que apoiaria o Povo contra o Senado; se ele apoiasse o Senado, nunca teria desistido do seu estatuto patrício.
Claro que os boni conseguiram eleger três tribunos da plebe. E Cícero tinha tanto medo de Clódio (e de um eventual julgamento) que gastara uma fortuna para assegurar a eleição do seu devotado admirador Quinto Terêncio Culeão.
— Não que eu esteja preocupado com eles... — disse Clódio a César, ofegante de excitação. — Eles que se metam comigo que eu atiro-os ao Tibre!
— Estou certo de que o farás, Clódio.
Os olhos escuros e vagamente tresloucados faiscaram. — Pensas que és o meu amo e senhor, César? — perguntou Clódio inopinadamente.
A pergunta provocou o riso de César. — Não, Públio Clódio, não! Nem em sonhos te faria essa afronta. Um Cláudio — mesmo um Cláudio plebeu! — só pertence a si mesmo.
— No Fórum, dizem que tu mandas em mim.
— E tu preocupas-te com o que dizem no Fórum?
— Acho que não... Quer dizer, desde que o que eles dizem não me afecte... — Clódio deu de súbito um salto, erguendo-se num ápice. — Bom, eu só queria ter a certeza de que tu não pensavas que mandavas em mim. Agora que já tenho, vou-me embora.
— Ah, não me prives já da tua companhia — disse César, amavelmente. — Senta-te...
— Porquê?
— Por duas razões. A primeira é que gostava de saber o que tencionas fazer durante o teu ano de tribuno. A segunda é que gostava de te oferecer ajuda. Sempre que precises, é claro.
— Estás a tramar alguma?
— Não. Estou pura e simplesmente interessado em ajudar-te, Clódio. Por certo tens consciência de que a minha ajuda na elaboração das tuas leis pode ser extremamente preciosa.
Clódio reflectiu por um momento. Depois, aquiesceu. — Sim, eu percebo — disse ele. — Há de facto uma área em que podes ajudar.
— Que área é essa?
— Eu preciso de estabelecer um melhor contacto com os verdadeiros Romanos — quer dizer, com o povo miúdo, com a multidão. Como podem os patrícios saber o que eles querem, se não os conhecem, se não se dão com eles? E nesse ponto, César, tu és completamente diferente dos outros patrícios todos. Tu conheces toda a gente, desde o mais alto ao mais baixo. Como é que fizeste isso? Ensina-me — disse Clódio.
— Eu conheço toda a gente porque nasci e cresci no bairro de Subura. Todos os dias estava com o povo miúdo, como tu lhe chamas. Pelo menos, uma coisa é certa, Clódio: não te dás ares de superioridade em relação a essa gente. Mas porque é que queres conhecer o povo miúdo? O povo miúdo não te vai valer de nada, Clódio. Os seus votos não contam.
— O povo miúdo é muita gente. Muitos homens, César! É uma questão de números, e não de votos — disse Clódio.
Que pretendia ele? Aparentemente interessado apenas por uma questão de cortesia, César recostou-se na sua cadeira e estudou Públio Clódio. Saturnino? Não, não eram do mesmo tipo. Maldade? Certamente. Que poderia ele fazer? Uma questão para a qual César não conseguia encontrar resposta. Clódio era um inovador, um indivíduo absolutamente heterodoxo, capaz de seguir um rumo inteiramente novo. No entanto... que poderia ele fazer? Esperaria atrair ao Fórum milhares de representantes desse povo miúdo de que ele falava, e intimidar o Senado e a Primeira Classe para os obrigar a fazer aquilo que esse povo miúdo queria? Mas isso só aconteceria se as barrigas dos mais pobres estivessem vazias, e embora os preços dos cereais fossem nessa altura elevados, a lei de Catão impedia que o povo miúdo fosse seriamente afectado pelos preços. A Saturnino deparara-se-lhe uma gigantesca multidão e usara-a para alcançar os seus próprios fins: dominar Roma. Contudo, quando realmente precisou dela, ela não apareceu. E Saturnino morreu. Se Clódio tentasse imitar Saturnino, a morte seria também o seu destino. Um longo contacto com o povo miúdo permitira a César um conhecimento dessa classe a que nenhum dos seus pares poderia aspirar. Bom, talvez Clódio quisesse ser outro Saturnino... Mas se assim fosse, acabaria certamente por descobrir que o povo miúdo nunca se congregaria em torno de objectivos destrutivos. Faltava-lhes a inclinação política para isso.
— Outro dia, no Fórum, conheci um amigo teu — comentou Clódio, momentos depois. — Quando tu estavas a tentar convencer a multidão a seguir-te até à casa de Bíbulo.
César fez um trejeito reprovador. — Uma estupidez da minha parte.
-— Foi o que Lúcio Decúmio disse.
O rosto impassível iluminou-se. — Lúcio Decúmio? Ora aí tens um fascinante exemplar desse povo miúdo de que tu falas! Se queres conhecer melhor o povo miúdo, vai ter com ele.
— O que é que ele faz?
— É um vilicus, o guardião do colégio das encruzilhadas que a minha mãe já albergava na sua casa antes de eu ter nascido. Mas já há algum tempo que Lúcio Decúmio anda muito triste, pois ele e o seu colégio deixaram de possuir um estatuto oficial.
— A casa da tua mãe? — perguntou Clódio, franzindo muito a testa.
— Sim, a ínsula dela. Na confluência da Vicus Patricii com a Subura Minor. Agora o colégio é uma taberna, mas eles continuam a reunir-se lá.
— Vou falar com Lúcio Decúmio — disse Clódio, muito satisfeito.
— Gostava que me dissesses o que tencionas fazer no teu tribunato — insistiu César.
— Vou começar por alterar a lex Aelia e a Lex Fufia, quanto a isso não tenho dúvidas. Permitir a cônsules como Bíbulo que usem as leis religiosas para levarem por diante os seus estratagemas políticos é, pura e simplesmente, uma coisa de doidos...! Depois disso, a lex Aelia e a lex Fufia deixarão de ter atractivos para gente como Bíbulo.
— Só posso aplaudir essa ideia, Clódio! Mas vem ter comigo, que eu ajudo-te na elaboração dessas alterações.
Clódio pôs um sorriso malicioso. — Queres que as alterações tenham valor retroactivo, não é...? Que eu declare ilegais os exames dos céus tanto antes como depois das alterações...?
— Para escorar a minha legislação? — replicou César, com um ar altivo. — Eu não vou precisar de uma lei retroactiva, Clódio. Mas dize-me: que mais tencionas fazer?
— Tenciono condenar Cícero por ter ordenado a execução de cidadãos romanos sem julgamento. E mandá-lo para o exílio. Um exílio permanente.
— Excelente.
— Tenciono também restaurar o colégio das encruzilhadas e outras confrarias que o teu primo Lúcio César ilegalizou.
— E é por isso que queres visitar Lúcio Decúmio. Muito bem. E que mais?
— Quero que os censores cheguem a consensos.
— Interessante...
— E proibir os funcionários do Tesouro de se envolverem em actividades comerciais privadas.
— Uma medida que deveria ter sido tomada há muito tempo.
— E dar ao Povo cereais completamente grátis.
O ar assobiou por entre os dentes de César. — Oh! Admirável, Clódio, mas os bani nunca te deixarão promulgar essa medida!
— Os boni não terão escolha — disse Clódio, com uma expressão severa.
— E como é que vais financiar essa distribuição gratuita? Isso custará muito dinheiro...
— Promulgando a anexação da ilha de Chipre. Não te esqueças de que o Egipto e todas as suas possessões — principalmente Chipre — foram deixadas a Roma pelo rei Ptolemeu Alexandre. Tu acabaste com a hipótese de anexarmos o Egipto, convencendo o Senado a aceitar Ptolemeu Auletes como rei do Egipto, mas a tua lei não abrange Chipre, nem o irmão de Auletes. O que significa que Chipre continua a pertencer a Roma, de acordo com o testamento de Ptolemeu Alexandre. Nunca reivindicámos Chipre, mas tenciono fazê-lo. No fim de contas, já não há reis na Síria e o Egipto não pode travar uma guerra sozinho. Deve haver milhares e milhares de talentos no palácio de Pafos, à espera que Roma lhes deite as mãos.
Aquela declaração tinha todo o ar de virtuosa e Clódio não podia ter ficado mais satisfeito com o seu desempenho. César era um indivíduo extremamente arguto; teria sido o primeiro a dar por uma eventual duplicidade. Mas César não sabia dos velhos rancores que Clódio alimentava em relação a Ptolemeu, o Cipriota. Quando os piratas tinham capturado Clódio, este dissera-lhes que pedissem um resgate de dez talentos a Ptolemeu, o Cipriota, tentando imitar o comportamento de César com os seus piratas. O Cipriota desatara a rir e recusara-se a pagar mais do que dois talentos pelo almirante Públio Clódio, afirmando que este não valia mais. Um insulto mortal. Pois bem, o Cipriota ia pagar muito mais do que dois talentos para satisfazer a sede de vingança de Clódio. O preço seria tudo o que ele possuía, desde a sua regência até ao último prego de ouro que houvesse nas portas do palácio.
Se César soubesse dessa história, não teria ficado preocupado; estava demasiado ocupado a pensar numa outra vingança. — Uma ideia esplêndida! — exclamou ele, afavelmente. — A anexação de Chipre, no entanto, é uma missão delicada. Terás de encontrar uma pessoa muito especial para a conduzir. Não poderá ser um indivíduo ganancioso, pois, dessa forma, Roma acabaria por receber menos de metade das riquezas e a distribuição de cereais seria fortemente afectada por isso. Tu também não podes ir. Terás de promulgar uma comissão especial para anexar Chipre e eu tenho a pessoa certa para executar essa missão.
— Tens? Quem é — perguntou Clódio, confuso com a malícia que enxergava em César.
— Catão!
— Catão?
— Absolutamente. Tem de ser Catão! Catão não deixará escapar um único dracma, uma única jóia, uma única taça de ouro, uma única estátua ou pintura! As suas contas serão imaculadas! Tudo o que encontrar será para o Tesouro! — disse César, sorrindo como o gato prestes a quebrar o pescoço do rato. — Tens de lhe dar essa missão, Clódio! Roma precisa de um Catão para a executar! Tu precisas de um Catão para esta tarefa! Dá o comando a Catão e terás o dinheiro para financiar a distribuição gratuita de cereais.
Clódio foi-se embora todo contente; sozinho no seu gabinete, César concluía que acabara de executar o trabalho mais satisfatório, de um ponto de vista pessoal, em muitos anos. Inimigo intransigente das comissões especiais, Catão ver-se-ia encostado à parede, com Clódio apontando-lhe lanças de todas as direcções. O mais belo trabalho da Bela, como Cícero costumava chamar a Clódio, fazendo um trocadilho com a alcunha deste. Sim, Clódio era muito esperto. Percebera imediatamente o que representava a entrega de um tal comando a Catão. Outro homem teria preferido oferecer uma saída a Catão — mas não Clódio. Catão não teria outra hipótese senão obedecer à Plebe e ficaria fora de Roma dois ou três anos. Catão, que agora odiava estar longe de Roma, pois temia que os seus inimigos tirassem partido da sua ausência. Só os deuses sabiam que danos Clódio pretendia provocar no ano seguinte. Mas se realmente eliminasse Cícero e Catão, então César não teria razões de queixa — bem pelo contrário...
— Vou obrigar Catão a anexar Chipre! — disse Clódio a Fúlvia, mal chegou a casa. De repente, a sua expressão mudou por completo. Agora, parecia zangado. — Eu é que devia ter tido a ideia, mas infelizmente César lembrou-se primeiro.
Fúlvia já sabia muito bem como lidar com aquelas súbitas e imprevisíveis mudanças de humor. — Oh, Clódio, sinto-me tão orgulhosa por ter um marido tão brilhante! — exclamou ela, adorando-o com os olhos. — César está habituado a usar os outros, mas agora és tu que estás a usá-lo a ele! Acho que fizeste muito bem em usar César.
Esta interpretação só poderia ter deixado Clódio satisfeito. Pôs logo um sorriso radioso. Sim, sim, que perspicaz que ele era!
— E continuarei a usá-lo, Fúlvia. Ele pode elaborar algumas das minhas leis.
— As leis religiosas, sem dúvida.
— Achas que devo prestar-lhe uns favores?
— Não — disse Fúlvia. — César não é idiota ao ponto de esperar que um patrício como ele lhe conceda favores — e, por nascimento, tu és um patrício, o patriciado está-te no sangue.
Fúlvia levantou-se um pouco trôpega para estirar as pernas; a sua nova gravidez começava a transformar-se num empecilho detestável. Clódio no auge do seu tribunato e ela toda pesadona...! Não que tencionasse deixar de ir ao Fórum só porque estava grávida. Não, isso nunca! Que maravilha, escandalizar Roma, aparecendo em público aos oito ou nove meses de gravidez! Ah, e não ficaria em casa mais do que um dia ou dois quando chegasse a hora do parto! Fúlvia era feliz nesse aspecto: a gravidez e o parto nunca eram para ela uma provação. Depois de ter feito um pouco de exercício, deitou-se de novo ao lado de Clódio, a tempo de sorrir para Décimo Bruto quando este entrou, com um ar jubiloso por causa da vitória de Clódio nas eleições.
— Tenho um nome: Lúcio Decúmio — disse Clódio.
— Estás a falar do teu contacto para um melhor relacionamento com o povo miúdo? — perguntou Décimo Bruto, reclinando-se no divã em frente.
— Precisamente.
— Quem é ele? — perguntou Décimo Bruto, servindo-se das iguarias.
— É o guardião de um colégio das encruzilhadas do bairro de Subura. E um grande amigo de César, segundo o próprio Lúcio Decúmio, que jura ter mudado as fraldas de César e participado em todo o tipo de maldades com ele quando César era rapaz.
— E então? — perguntou Décimo Bruto, algo céptico.
— Então, eu conheci Lúcio Decúmio e gostei dele. Ele também gostou de mim. E — disse Clódio, num murmúrio conspirativo — encontrei finalmente maneira de me infiltrar nas hostes dos proletarii
— ou pelo menos no segmento que nos poderá ser útil.
Os outros dois inclinaram-se para a frente, atentos ao murmúrio de Clódio e esquecidos das iguarias.
— Se Bíbulo demonstrou alguma coisa este ano — prosseguiu Clódio —, foi que a constituição de Roma pode conduzir ao mais ridículo dos espectáculos. Em nome da lei, Bíbulo pôs os triúnviros fora da lei. Toda a Roma sabe que ele usou um truque religioso, mas o truque funcionou. As leis de César correm perigo. Pois bem, em breve farei com que esse tipo de truque se torne ilegal! E logo que o faça, não haverá nada que me impeça de promulgar legalmente as minhas leis.
— O problema é que terás de persuadir a Plebe a promulgá-las — disse Décimo Bruto. — Quantos tribunos da plebe não viram já as suas intenções frustradas devido a esse factor? Isto já para não falar do veto, claro. Há pelo menos quatro colegas teus que vão adorar vetar-te.
— E é aí que Lúcio Decúmio entra! — exclamou Clódio, muito excitado. — Vamos manter uma multidão de apoiantes entre o povo miúdo, uma multidão capaz de intimidar os nossos adversários no Fórum e no Senado! De tal maneira que não terão coragem para interpor um único veto! Todas as leis que eu quiser promulgar serão promulgadas!
— Saturnino tentou fazer isso e falhou — disse Décimo Bruto.
— Para Saturnino, o povo miúdo era apenas uma multidão. Saturnino nunca conheceu nenhum dos seus membros, nunca bebeu copos com eles — explicou Clódio, pacientemente. — Saturnino não conseguiu fazer aquilo que um verdadeiro demagogo deve fazer — ser selectivo. Eu não quero, nem preciso, de multidões imensas. Tudo o que quero são alguns grupos de verdadeiros malandros. E bastou-me olhar uma vez para Lúcio Decúmio para perceber que ali estava um malandro de primeira. Fomos para uma taberna da Via Nova e falámos um bom bocado. Em particular do facto de o seu colégio ter sido ilegalizado. Ele está muito zangado com isso. Disse-me que, em rapaz, tinha sido um assassino — e eu não tive dificuldade em acreditar... Mas, mais importante ainda: ele deu-me a entender que o seu e outros colégios de encruzilhadas mantêm um negócio de protecção e segurança há... bom... há séculos...!
— Protecção e segurança?
— Sim, vendem protecção e segurança a lojas e a manufacturas.
— Mas protegem-nas de quem?
— Deles mesmos, claro! — retorquiu Clódio, rindo-se. — Quem não paga, leva, ou é roubado, ou fica sem as máquinas. Um esquema perfeito.
— Estou fascinado — disse Décimo Bruto.
— É muito simples, Décimo. Utilizaremos os confrades das encruzilhadas como as nossas tropas. Não há necessidade de encher o Fórum com vastas multidões. Duzentos ou trezentos homens, no máximo. Não precisamos de mais. É por isso que temos de descobrir como é que eles se reúnem, onde se reúnem, quando se reúnem. Depois, temos de organizá-los como um pequeno exército — com recrutamento e tudo.
— Como vamos pagar-lhes? — perguntou Décimo Bruto. Era um jovem arguto e extremamente capaz, apesar dos seus apetites viciosos; tudo o que pudesse afectar os boni e os conservadores em geral atraía-o irresistivelmente.
— É muito simples — retorquiu Clódio. — Pagamos-lhes o vinho. Uma coisa eu já aprendi: esses homens sem instrução farão tudo por nós se lhes pagarmos as bebidas.
— Isso não chega — disse Décimo Bruto, seguro de si.
— Eu sei — disse Clódio. — Pagar-lhes-ei também com duas leis. A primeira legalizará todos os colégios, confrarias e clubes de Roma. A segunda promulgará a distribuição gratuita de cereais. — Deu um beijo a Fúlvia e levantou-se. — Vamos a Subura, Décimo. Vamos falar com o velho Lúcio Decúmio. Precisamos de começar já a definir os nossos planos. Quero tudo preparado para o décimo dia de Dezembro, o primeiro do meu tribunato da plebe.
Durante o mês de Sextilis, César promulgou a sua lei que proibia aos governadores uma exploração desenfreada das províncias. A altura não podia ter sido a melhor, pois decorrera tempo suficiente para que toda a gente se acalmasse. Incluindo o próprio César.
— Não faço isto por uma questão de altruísmo — disse César a um Senado meio cheio. — Tão-pouco me oponho a que um governo enriqueça através de processos aceitáveis. O objectivo desta lex lulia é impedir que os governadores enganem o Tesouro e proteger o povo das províncias da rapacidade de certos governadores. Há mais de cem anos que os governos das províncias são uma desgraça. Cidadanias são vendidas. Isenções de taxas, impostos e tributos são vendidos. O governador leva consigo meio milhar de parasitas que, tal como ele, só pensam numa exploração desenfreada dos recursos das províncias. Há guerras que são travadas unicamente para que o governador possa ter um triunfo logo que regresse a Roma. Aqueles que não são cidadãos romanos são chicoteados ou mesmo decapitados, só porque se recusam a dar as suas filhas ou os seus campos de trigo. As facturas dos abastecimentos e equipamentos militares não são pagas. Os preços são fixados com uma única intenção: beneficiar o governador ou os seus banqueiros ou os seus lacaios. As práticas dos usurários são encorajadas. Será preciso continuar?
César encolheu os ombros. — Marco Catão diz que as minhas leis não são legais, invocando as actividades do meu colega consular. Eu não deixei que Marco Bíbulo fosse um obstáculo. E não permitirei que ele seja um obstáculo a esta lei. Contudo, se o Senado se recusar a dar-lhe um consultum de aprovação, não a levarei ao Povo. Como podem ver pelo número de páginas, esta lei é muito extensa. Só o Senado tem capacidade para a entender e debater, só o Senado pode apreciar os problemas que Roma tem com os seus governadores. Esta é uma lei senatorial, tem de ser aprovada pelo Senado. — Sorriu para Catão e acrescentou: — Pode-se dizer que estou a dar uma prenda ao Senado — recusem-na, e ela morrerá.
Talvez Quinctilis tivesse sido o mês da catarse, ou talvez o rancor e a ira tivessem atingido tais níveis que, depois disso, só a calma poderia sobrevir; fosse qual fosse a razão, a verdade é que a lei de César foi unanimemente aprovada.
— É uma lei magnífica — disse Cícero.
— Não tenho nenhuma objecção a pôr a nenhum dos pontos — disse Catão.
— Temos de te dar os parabéns — disse Hortênsio.
— É uma lei tão exaustiva que durará uma eternidade — comentou Vátia Isáurico.
Assim, a lex lulia repetundarum foi para a Assembleia Popular acompanhada por um senatus consultum de aprovação, acabando por ser promulgada em meados de Setembro.
— Estou satisfeito — disse César a Crasso, no meio da confusão do Macellum Cuppedenis, a abarrotar de visitantes que se encontravam na cidade para assistir aos ludi Romani.
— Só podes estar, Caio... Os boni não conseguiram encontrar nada de errado na tua lei: por isso, acho que devias pedir um novo tipo de triunfo... Um triunfo concedido aos autores de leis perfeitas!
— Os boni também não encontraram nada de errado nas minhas leis agrárias, mas isso não os impediu de se oporem — disse César.
— As leis agrárias são diferentes. Há demasiadas rendas em jogo. A extorsão das províncias pelos governadores reduz os rendimentos do Tesouro. Mas acho que não devias ter limitado a tua lei à classe senatorial. Os cavaleiros também praticam a extorsão nas províncias — disse Crasso.
— Mas só o fazem com o consentimento do governador. Contudo, quando eu for cônsul pela segunda vez, promulgarei uma nova lei da extorsão relativa aos cavaleiros. Este tipo de leis implica um processo demasiado longo. Não se pode promulgar mais do que uma por consulado.
— Tencionas portanto ser cônsul uma segunda vez?
— Evidentemente. E tu?
— Para dizer a verdade, não me importava nada — retorquiu Crasso, pensativo. — Ainda gostava de travar uma guerra contra os Partos e obter finalmente um triunfo. E só posso fazer isso se voltar a ser cônsul.
— E serás.
Crasso mudou de assunto. — Já elaboraste a tua lista de legados e tribunos para a Gália?
— Mais ou menos.
— Vais levar o meu Públio contigo? Gostava que ele aprendesse a arte da guerra sob a tua orientação.
— Terei todo o prazer em incluí-lo, Marco.
— A tua escolha para o lugar de legado com estatuto magisterial deixou-me estupefacto... Tito Labieno? Ele nunca fez nada...!
— Não te esqueças de que foi meu tribuno da plebe...! — disse César, os olhos cintilando. — Não seria estúpido ao ponto de descurar essa nomeação, Marco! Eu conheci Labieno na Cilícia, quando Vátia Isáurico era governador. Ele gosta de cavalos, o que é raro num Romano. E eu preciso de um comandante de cavalaria eficiente, porque muitas das tribos que vou ter de enfrentar possuem cavalaria. Labieno será um óptimo comandante de cavalaria.
— Continuas a pensar marchar ao longo do Danúbio, até ao Euxino?
— Quando tiver acabado, Marco, as províncias de Roma cercarão por completo o Egipto. Se derrotares os Partos quando fores cônsul pela segunda vez, Roma dominará o mundo desde o oceano Atlântico até ao rio Indo. — Suspirou. — Suponho que isso significa que terei também de subjugar a Gália Transalpina.
Crasso ficou com um ar assombrado. — Caio, estás a falar de algo que demoraria dez anos e não cinco!
— Eu sei.
— O Senado e o Povo crucificar-te-iam! Uma guerra de agressão durante dez anos? Nunca ninguém fez isso!
Enquanto conversavam, uma multidão ia passando por eles, numa massa sempre mutável, e muitos eram aqueles que saudavam calorosamente César, o qual respondia com um sorriso e por vezes lhes perguntava qualquer coisa acerca da família, do trabalho ou de um casamento. Um fenómeno que sempre fascinara Crasso: quantos habitantes de Roma conhecia César? E nem sempre eram Romanos... Libertos com o barrete da liberdade, Judeus com o solidéu, Frígios com o turbante, Gauleses de cabelos compridos, Sírios bem barbeados. Se aqueles homens tivessem votos, César nunca sairia do governo de Roma. No entanto, César sempre funcionara segundo as fórmulas tradicionais. Saberiam os boni que o cônsul sénior daquele ano tinha uma grande parte de Roma nas suas mãos? Não, eles não faziam a mínima ideia. Se fizessem, não estariam nesse momento a observar os céus. O punhal que Bíbulo mandara a Vétio teria sido usado. César estaria morto. Pompeu Magno? Nunca!
— Estou farto de Roma! — exclamou César. — Há quase dez anos que estou aqui preso — ah, estou ansioso por me ir embora! Dez anos em campanha? Oh, Marco, que magnífica perspectiva! Dez anos a fazer aquilo que mais me está no sangue — obter riquezas para Roma, enobrecer a minha dignitas e sem ter de suportar as censuras dos boni... Nas campanhas, todo o poder está nas minhas mãos. Ninguém pode contrariar-me. É maravilhoso!
Crasso deu um risinho. — Mas que autocrata...!
— Tal como tu.
— Sim, mas a diferença é que eu não quero governar todo o mundo, apenas o seu lado financeiro. Os números são entidades tão concretas e exactas que os homens costumam fugir deles a sete pés — a menos que possuam um talento genuíno para lidar com eles. Ao passo que a política e a guerra são coisas vagas. Qualquer homem pensa que, com a sorte pelo seu lado, poderá ser o melhor nesses campos. Mas eu não infrinjo a mós maiorum, nem perturbo pelo menos dois terços do Senado, com a minha autocracia — é tão simples como isso, Caio.
Pompeu e Júlia regressaram a Roma (de forma mais ou menos permanente) a tempo de ajudarem Aulo Gabínio e Lúcio Calpúrnio Pisão na campanha para as eleições curuis do décimo oitavo dia de Outubro. César, que não via a filha desde o casamento desta, ficou um tanto ou quanto chocado. Júlia era agora uma jovem matrona cheia de confiança, cheia de vida, cheia de espírito, e não a doce e gentil adolescente que povoara a imaginação do pai. A sua relação com Pompeu era surpreendente — embora César não conseguisse descobrir quem seria o responsável por aquela harmonia. O velho Pompeu desaparecera; o novo Pompeu era um homem culto, apaixonado pela literatura; falava como um erudito acerca deste pintor ou daquele escultor e não mostrava o mínimo interesse em interrogar César acerca dos seus objectivos militares para os próximos cinco anos. Ainda por cima, era Júlia quem mandava! Livre de todas as peias, Pompeu rendera-se por completo ao domínio feminino. Não havia prisão possível para Júlia nas fortalezas picentinas! Se Pompeu fosse a algum lado, Júlia lá estava a acompanhá-lo. Havia ali qualquer coisa de Fúlvia e Clódio!
— Vou construir um teatro de pedra em Roma — disse o Grande Homem. — Numas terras que comprei entre os saepta e os armazéns onde guardam os carros das corridas. Esta mania de construir teatros de madeira temporários cinco ou seis vezes por ano, ou seja, sempre que há jogos importantes, é mais do que uma mania — é uma loucura, César. Não me interessa que a mós maiorum tenda a ver o teatro como algo de imoral e decadente. A verdade é que Roma adora teatro — e quanto mais directo ele for, mais Roma gosta dele. Júlia diz que o melhor memorial das minhas conquistas que posso deixar a Roma é um teatro — um teatro de pedra, enorme, com um belo peristilo e colunata e com uma sala suficientemente vasta para albergar, numa das suas partes, todo o Senado. Dessa forma, diz ela, posso contornar a mós maiorum — um templo consagrado para o Senado numa ponta e, por cima do topo do auditório, um pequeno templo dedicado a Vénus Victrix. Bom, tinha de ser Vénus, pois Júlia descende directamente de Vénus, mas ela sugeriu que fosse Vénus Vitoriosa, em honra das minhas conquistas. Que esperta...! — concluiu Pompeu, afagando a cabeleira elegantemente penteada da esposa. A qual — pensou César, seriamente incomodado — escutava o marido com um ar insuportavelmente vaidoso.
— Parece-me uma ideia magnífica — disse César, seguro de que eles não o ouviriam.
E não ouviram. Júlia falou. — Eu e o meu leão fizemos um acordo — disse ela, sorrindo para Pompeu como se partilhassem milhares de segredos. — Eu é que escolho os materiais e a decoração para o teatro, e o meu leão fica com o peristilo, a colunata e a nova Cúria.
— E vamos construir uma villa modesta por detrás do teatro, junto aos quatro templos — informou Pompeu. — Pode vir a ser útil, caso eu volte a ficar parado nove meses no Campo de Marte. Estou a pensar disputar uma segunda vez o cargo de cônsul.
— As grandes mentes pensam de igual modo.
— Ha?
— Nada.
— Oh, tatá, havias de ver o palácio do meu leão em Alba! — exclamou Júlia, de mão dada com Pompeu. — É um espanto! Parece a residência de Verão do rei dos Partos, pelo menos é o que ele diz... — Virou-se para a avó. — Avó, quando é que nos vens fazer uma visita? Nunca sais de Roma...!
— Francamente! O meu leão...! — rosnou Aurélia, logo que o feliz casal partiu para o seu palácio das Carinas, já redecorado. — Ela mima-o de uma maneira...! Francamente!
— A técnica dela é diferente da tua, mater — disse César, gravemente. — Julgo que nunca te ouvi tratar o meu pai por outro nome que não fosse aquele que mandam as normas: Caio Júlio. Nem sequer César lhe chamavas...
— Todas as conversas de amor são ridículas.
— Apetecia-me pôr uma alcunha a Júlia... Leo Domitrix...!
— A domadora de leões. — Aurélia finalmente sorria. — Bom, do que não há dúvida é que o chicote e a cadeira estão nas mãos dela!
— Embora os use de uma maneira muito, muito suave. Por alguma razão Júlia é minha filha... O seu domínio exerce-se de uma forma muito subtil... e ele é um escravo nas mãos dela...
— Fizemos um bom trabalho. Pompeu Magno será a tua rectaguarda enquanto estiveres em campanha.
— Assim espero. E espero também que ele consiga convencer os eleitores a votarem em Lúcio Pisão e Gabínio.
Os eleitores ficaram convencidos; Aulo Gabínio foi eleito cônsul sénior e Lúcio Calpúrnio Pisão foi escolhido para o cargo júnior. Os boni tinham lutado desesperadamente para evitarem um desastre, mas César tivera razão. A opinião pública, tão firmemente ao lado dos boni em Quinctilis, apoiava agora os triúnviros. Nem todas as piadas sobre casamentos de filhas virgens com homens com idade para serem seus avós chegariam para fazer vacilar os eleitores, que preferiam os cônsules dos triúnviros ao dinheiro dos boni — provavelmente porque Roma estava vazia de eleitores rurais, que costumavam contar com o dinheiro do suborno para fazerem umas despesas extra durante os jogos.
Mesmo sem provas claras, Catão decidiu processar Aulo Gabínio por corrupção eleitoral. Desta feita, porém, não teve êxito; abordou todos os pretores que simpatizavam com a sua causa, mas nenhum deles aceitou o caso. Metelo Cipião sugeriu a Catão que levasse o caso directamente à Plebe e convocou uma assembleia tendo em vista a promulgação de uma lei acusando Gabínio de suborno.
— Como nenhum tribunal ou pretor se mostra disposto a incriminar Aulo Gabínio, é dever desta assembleia fazer o que tribunais e pretores não querem fazer! — gritou Metelo Cipião para a multidão concentrada no poço dos Comitia.
Talvez porque estava muito frio e porque caía uma chuva miudinha mas constante, a afluência era escassa; contudo, Metelo Cipião e Catão não sabiam que Públio Clódio tencionava usar aquela reunião como um primeiro teste à eficácia das suas tropas. De facto, podia já falar-se em tropas: os membros dos colégios das encruzilhadas tinham-se transformado rapidamente no exército de Clódio. A ideia deste era usar apenas aqueles membros que não trabalhavam no dia em causa e limitar o seu número a menos de duzentos. Uma decisão que significava que Clódio e Décimo Bruto haviam recorrido apenas a dois colégios — aquele a que presidia Lúcio Decúmio, e um outro, chefiado pelo maior amigo de Decúmio.
Quando Catão avançou para falar à assembleia, Clódio bocejou e esticou os braços, um gesto que poderia ter significado a satisfação de Clódio por se ter tornado um membro da Plebe e poder assistir àquelas assembleias do poço dos Comitia.
Mas o significado era outro. Logo que Clódio fechou a boca, cerca de cento e oitenta homens subiram aos rostra, pegaram em Catão e arrastaram-no até ao poço, onde desataram a bater-lhe sem dó nem piedade. Os restantes setecentos membros da Plebe entenderam o significado daquilo e desapareceram num ápice, deixando um estupefacto Metelo Cipião nos rostra, com os outros três tribunos da plebe ligados aos boni. Nenhum tribuno da plebe possuía lictores ou qualquer outro tipo de guarda-costas oficiais; horrorizados e impotentes, os quatro tribunos só podiam assistir ao espancamento. As ordens eram claras: punir Catão, mas deixá-lo inteiro. E as ordens foram obedecidas. Os homens desapareceram sob a chuva miudinha, depois de terminado o trabalho; Catão jazia inconsciente e cheio de sangue, mas inteiro.
— Por todos os deuses, Catão, pensei que estivesses morto! — exclamou Metelo Cipião depois de ele e Ancário terem conseguido reanimar o amigo.
— Que fiz eu? — perguntou Catão, ainda tonto de pancada.
— Desafiaste Gabínio e os triúnviros sem possuíres a inviolabilidade tribunícia. Há uma mensagem nisto, Catão: deixem os triúnviros e os seus fantoches em paz — comentou Ancário com uma expressão soturna.
Uma mensagem que Cícero também entendeu. Com a proximidade da tomada de posse de Clódio, Cícero andava cada vez mais aterrado. Quase todos os dias lhe falavam das ameaças de Clódio, mas os seus apelos a Pompeu redundavam em garantias mais ou menos vagas de que Clódio não podia ser levado a sério. Privado do apoio de Ático (que fora para a Grécia), Cícero não encontrava ninguém que o apoiasse. Por isso, quando Catão foi espancado no poço dos Comitia e se espalhou o boato de que Clódio fora o responsável, o pobre Cícero sentiu-se o mais desesperado dos homens.
— A Bela vai atacar e Sampsiceramo está-se marimbando! — queixou-se ele a Terência, cuja paciência estava por um fio — de facto, o que lhe apetecia era atirar-lhe com o objecto mais pesado que tivesse à mão. — Não compreendo Sampsiceramo! Sempre que falo com ele em privado, diz-me que está muito, muito deprimido... e depois vejo-o no Fórum, de braço dado com a rapariga, e todo ele é sorrisos!
— Porque é que não experimentas chamar-lhe Pompeu Magno, em vez desse ridículo nome? — perguntou Terência. — Com a língua que tu tens, qualquer dia descais-te e trata-lo por Sampsiceramo...!
— Que importância é que isso tem, Terência? Não vês que estou liquidado? A Bela vai mandar-me para o exílio!
— O que me espanta é que ainda não tenhas ido beijar os pés àquela rameira da Clódia!
— Ático fez isso por mim. Mas sem resultado! Clódia diz que não consegue fazer nada do irmão.
— Se calhar preferia que fosses tu a beijar-lhe os pés!
— Terência, eu nunca tive nada com a Medeia do Palatino! Tu, que costumas ser tão sensata, por que razão persistes nesse disparate? Pensa nos namorados dela, por todos os deuses! Todos rapazinhos... capazes de serem seus filhos...! Como o meu querido Célio, pobre rapaz! Célio anda como louco por causa dela... faz lembrar as mulheres de Roma quando vêem César...! César...! Ah, outro patrício ingrato!
— Provavelmente, César tem mais influência sobre Clódio do que Pompeu — sugeriu ela. — Porque não recorres a César?
O salvador da pátria empinou-se todo. — Preferia passar o resto da minha vida no exílio! — ripostou ele, com os dentes cerrados.
Quando Públio Clódio tomou posse do seu cargo de tribuno da plebe, no décimo dia de Dezembro, a expectativa não podia ser maior. Uma expectativa que contagiara toda a cidade e a que, obviamente, não podiam escapar os membros do Clube de Clódio e, em particular, Décimo Bruto, o general que comandava as tropas de Clódio. O poço dos Comitia era demasiado pequeno para a multidão que se concentrou no Fórum para ver o que Clódio ia fazer. Daí que o novo tribuno tivesse transferido a reunião para a plataforma de Castor, onde anunciou que promulgaria uma lei para que todos os cidadãos romanos do sexo masculino tivessem cinco modii de trigo grátis por mês. Só uma pequena porção da multidão — a porção correspondente aos colégios das encruzilhadas que Clódio recrutara — sabia que essa lei ia ser anunciada; para a esmagadora maioria dos presentes, a surpresa foi total.
O alarido que se seguiu podia ser ouvido em zonas tão distantes como as Portas Colina e Capena; e os senadores que se encontravam nos degraus da Cúria Hostília, para além de terem ficado meio surdos com o barulho, puderam assistir a um espectáculo extraordinário, com milhares de objectos arremessados ao ar — barretes da liberdade, sapatos, cintos, bocados de comida, tudo o que aquelas pessoas, exultantes com aquela notícia, tinham à mão. E os aplausos e vivas continuaram, parecendo nunca mais ter fim. A certa altura, vindas não se sabe donde, apareceram flores em todas as mãos; Clódio e os seus nove colegas tribunos viram-se de súbito afogados em flores. Clódio sorria radiante e aplaudia também, as mãos sobre a cabeça. De repente, porém, baixou-se e começou a atirar as flores para a multidão, rindo desvairadamente.
Catão, exibindo ainda as marcas da brutal tareia, chorava.
— É o princípio do fim — disse ele. — Não temos dinheiro que chegue para pagar tanto trigo! É a bancarrota!
— Bíbulo está a observar os céus — disse Aenobarbo. — Esta lei de Clódio será invalidada, tal como as outras que foram aprovadas este ano.
— Ora, meus senhores, ganhem juízo, por favor! — disse César, que estava suficientemente perto para os ouvir. — Clódio é muito menos estúpido do que tu, Lúcio Domício. Clódio manterá tudo in contio até ao dia de Ano Novo. Só haverá votações depois de Dezembro. Além disso, continuo a ter as minhas dúvidas quanto à táctica de Bíbulo relativamente à Plebe. As reuniões da Plebe não podem ser afectadas pelos auspícios.
— Eu opor-me-ei a isto! — disse Catão, limpando as lágrimas.
— Se o fizeres, Catão, depressa estarás morto — disse Gabínio.
— Pela primeira vez em toda a sua história, Roma tem um tribuno da plebe sem os escrúpulos que causaram a queda dos irmãos Gracos e sem o isolamento que conduziu à morte de Sulpício. Creio que, agora, nada nem ninguém conseguirá intimidar Clódio.
— Qual será a sua próxima ideia? — perguntou Lúcio César, pálido de espanto.
A ideia seguinte consubstanciou-se numa lei que restaurava a legalidade dos colégios, confrarias e clubes de Roma. Embora não tão popular com a lei dos cereais, foi tão bem recebida que, no final da reunião, Clódio foi levado em braços pelos confrades das encruzilhadas.
E depois disso, Clódio anunciou que iria fazer com que as manobras religiosas usadas por Marco Calpúrnio Bíbulo nunca mais pudessem voltar a repetir-se. As leis Élia e Fúfia iriam ser alteradas, de forma a que as reuniões da Plebe e do Povo pudessem realizar-se e as leis pudessem ser promulgadas, sempre que um cônsul se retirava para casa a fim de observar os céus; para invalidar essas reuniões e leis, o cônsul teria de provar a ocorrência de um auspício negativo no dia em que a reunião se realizava ou a lei era aprovada. As actividades públicas não podiam ser suspensas em consequência de eleições adiadas. Nenhuma dessas alterações era retroactiva, nem abrangiam o Senado e as suas deliberações, tão-pouco afectavam os tribunais.
— Ele está a fortalecer as assembleias à custa do Senado! — exclamou Catão.
— Sim, mas pelo menos não ajudou César — disse Aenobarbo.
— Aposto que Clódio é uma grande decepção para os triúnviros!
— Qual decepção, qual nada! — atirou-lhe Hortênsio. — Ainda não percebeste que estas leis têm a marca de César? São leis que vão longe, bastante longe, mas que nunca ultrapassam os limites impostos pelos usos e tradições. César é muito mais esperto do que Sila. Nada impede que um cônsul permaneça em casa a examinar os céus — mas há sempre maneiras de rodear isso. Além disso, César está-se marimbando para a supremacia do Senado! Não é ao Senado que César vai buscar o seu poder, nunca foi, nem nunca será!
— Onde está Cícero? — perguntou Metelo Cipião, inopinadamente. — Não o vejo no Fórum desde que Clódio assumiu o seu cargo.
— E suspeito que nunca mais o verás — disse Lúcio César.
— Cícero está firmemente convencido de que será condenado.
— E é capaz de ter razão — comentou Pompeu.
— E estás de acordo com essa condenação, Pompeu? — perguntou o jovem Curião.
— De uma coisa podes estar certo: não erguerei o meu escudo para a impedir.
— Porque é que não estás lá em baixo a dar vivas? — perguntou Ápio Cláudio. — Pensava que eras unha com carne com o meu irmãozinho mais novo.
Curião suspirou. — Acho que estou a crescer — disse ele.
— Tem cuidado, não cresças demasiado. Ainda és capaz de rebentar um dia destes... — disse Ápio Cláudio.
Um comentário que Curião entendeu na reunião seguinte. Com efeito, Clódio anunciou que iria modificar o quadro de funcionamento dos censores de Roma — e o pai de Curião era censor.
Nenhum censor poderia afastar dos censos um membro do Senado ou um membro da Primeira Classe sem um inquérito preliminar exaustivo; além disso, teria de haver um consentimento, por escrito, de ambos os censores. O exemplo que Clódio usou constituía um mau prenúncio para Cícero: o padrasto de Marco António, Lêntulo Sura (que fora ilegalmente executado por Marco Túlio Cícero, com o consentimento do Senado), fora eliminado do censo senatorial pelo censor Lêntulo Clodiano, unicamente por motivos de vingança pessoal. As depurações entre os senadores e os cavaleiros iam acabar, jurou Clódio.
Com quatro leis em debate durante o mês de Dezembro, Clódio travou o seu programa legislativo — e deixou Cícero vacilante, a um passo do abismo. Incriminaria Cícero? Ninguém sabia e Clódio não diria a ninguém.
Desde o mês de Abril que Roma não via o cônsul júnior, Marco Calpúrnio Bíbulo. Porém, no último dia de Dezembro, estava o Sol prestes a despedir-se, Bíbulo emergiu do seu refúgio e deslocou-se ao poço dos Comitia, a fim de se despedir de um cargo que escassamente exercera.
César viu-o aproximar-se, rodeado pela sua escolta de boni e precedido pelos seus doze lictores, empunhando os fasces pela primeira vez em mais de oito meses. O que ele mudara...! Ele, que sempre fora pequenino, parecia ter encolhido...! E caminhava como se uma estranha doença lhe tolhesse os ossos... O rosto, pálido e magro, parecia inexpressivo — só nos olhos se notou um desprezo gélido, quando se fixaram momentaneamente em César; uns olhos que logo se arregalaram de espanto — há mais de oito meses que Bíbulo não via César e o que agora via deixava-o muito descoroçoado. Bíbulo encolhera. César crescera.
— Tudo o que Caio Júlio César fez este ano é nulo e inválido! — gritou ele para a multidão que enchia o poço dos Comitia. A multidão respondeu-lhe com um olhar fixo e intensamente reprovador. Bíbulo tremeu de medo e calou-se.
Depois das orações e dos sacrifícios, César avançou e prestou o juramento segundo o qual cumprira os deveres de cônsul sénior o melhor que podia e sabia. Pronunciou depois o seu discurso de despedida — um discurso em que pensara durante dias, sem que tivesse chegado a uma conclusão. Por isso mesmo, decidiu naquele preciso momento que o discurso teria de ser curto e que faria o possível para não se referir àquele terrível consulado que agora terminava.
— Sou um patrício romano da gens lulia e os meus antepassados servem Roma desde os tempos do rei Numa Pompílio. Também eu tenho servido Roma: como flamen Dialis, como soldado, pontífice, tribuno dos soldados, questor, edil curul, juiz, Pontifex Maximus, praetor urbanus, procônsul na Hispânia Ulterior e cônsul sénior. Tudo in suo anno. Há mais de vinte e quatro anos que pertenço ao Senado de Roma. E durante esse período de tempo, vi o poder do Senado esbater-se, tal como a força da vida se esbate num homem velho, muito velho. Porque o Senado é isso mesmo: um homem velho, muito velho.
As colheitas vão e vêm. Num ano, temos abundância, no ano seguinte, temos fome. E foi assim que eu vi os celeiros de Roma cheios — mas também os vi vazios. Vi a primeira verdadeira ditadura de Roma. Vi os tribunos da plebe reduzidos à mais total insignificância, e vi-os crescendo exuberantemente. Vi o Fórum Romanum sob um luar calmo e frio, tão branco e silencioso como um túmulo. Vi o Fórum Romanum coberto de sangue. Vi os rostra cheios de cabeças de homens. Vi a casa de Júpiter Optimus Maximus reduzida a ruínas, e vi-a erguer-se de novo. E vi o aparecimento de uma nova força, os militares sem terras, sem meios, reduzidos à pobreza, esses soldados que, quando se retiram, têm de suplicar uma pensão à pátria que serviram — e muitas, muitas vezes, vi-lhes ser negada essa pensão.
Tenho vivido tempos turbulentos, porque, desde que nasci, há quarenta e um anos, Roma tem defrontado terríveis convulsões. As províncias da Cilícia, Cirenaica, Bitínia-Ponto e Síria foram acrescentadas ao império de Roma e as províncias que Roma já possuía sofreram tais transformações que se tornaram irreconhecíveis. No meu tempo, o mar Médio tornou-se o Nosso Mar. O Nosso Mar de uma ponta à outra.
A guerra civil assolou toda a Itália, não uma vez, mas sete vezes. Durante estes quarenta e um anos, um Romano conduziu pela primeira vez as suas tropas contra a cidade de Roma, contra a sua terra natal, embora Lúcio Cornélio Sila não tivesse sido o último homem a fazê-lo. Contudo, nestes quarenta e um anos, nenhum pé estrangeiro calcou solo italiano. Um poderoso rei que combatia contra Roma há vinte e cinco anos foi finalmente derrotado e morto. Esse rei custou a Roma as vidas de mais de cem mil cidadãos. Mesmo assim, não nos custou tantas vidas como as guerras civis. Nestes quarenta e um anos.
Vi homens morrendo corajosamente, vi homens morrendo vilmente, vi homens dizimados, vi homens crucificados. Porém, aquilo que mais toca e tocará, aquilo que mais afecta e afectará, é o empenho dos excelentes e a miséria dos medíocres.
Aquilo que Roma foi, é e será, depende de nós, Romanos. Amados pelos deuses, somos o único povo em toda a história do mundo que compreende que uma força tem dois sentidos — para diante e para trás, para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda. Daí que nós, Romanos, gozemos de algo que os outros povos não conhecem e que é uma espécie de igualdade perante os deuses. Porque nenhum outro povo compreende o que nós compreendemos. Temos de lutar agora para nos compreendermos a nós mesmos. Para compreendermos o que a nossa posição no mundo exige de nós. Para compreendermos que as lutas intestinas e os rostos teimosamente virados para o passado acabarão por nos derrubar.
Hoje, passarei do auge da minha vida, o ano do meu consulado, para outras coisas. Diferentes cumes, pois nada permanece o mesmo. Sou um Romano com raízes nos primórdios de Roma e, antes de morrer, o mundo conhecerá este Romano. Rezo a Roma. Rezo por Roma. Eu sou um Romano.
Terminado o discurso de despedida, César cobriu a cabeça com a ponta da toga debruada a púrpura e prestou o juramento. — Ó todo-poderoso Júpiter Optimus Maximus — se desejas que te trate por este nome, caso contrário tratar-te-ei pelo nome que desejes ouvir —, tu que pertences ao sexo que preferes — tu que és o espírito de Roma — peço-te que continues a dar a Roma e a todos os Romanos todas as tuas forças vitais, peço-te que te tornes ainda mais poderoso e que tornes Roma ainda mais poderosa, peço-te que nos ajudes a honrar sempre os termos dos nossos contratos contigo e peço-te que honres esses mesmos contratos. Vida eterna a Roma!
Ninguém se mexia. Ninguém falou. Todos os rostos permaneceram impassíveis.
César recuou e, graciosamente, acenou para que Bíbulo prestasse o juramento.
— Juro perante Júpiter Optimus Maximus, Júpiter Feretrius, Sol Indiges, Tellus e Janus Clusivius que eu, Marco Calpúrnio Bíbulo, cumpri o meu dever como cônsul júnior de Roma, retirando-me para a minha casa, conforme mandavam os Livros Sagrados, e aí procedi ao exame dos céus. Juro que o meu colega no consulado, Caio Júlio César, é nefas porque violou o meu édito.
— Veto! Veto! — gritou Clódio. — Esse não é o texto do juramento!
— Nesse caso, discursarei sem jurar! — berrou Bíbulo.
— Eu veto o teu discurso, Marco Calpúrnio Bíbulo! — rugiu Clódio. — Condeno-te a abandonares o teu cargo sem te conceder a oportunidade de justificar um ano, um ano inteiro, de total inércia! Vai para casa, Marco Calpúrnio Bíbulo, vai examinar os céus! O Sol acaba de pôr-se sobre o pior cônsul de toda a história da República! E agradece às tuas estrelas que eu não legisle para retirar o teu nome dos fasti e chamar a este consulado o consulado de Júlio e César!
Miserável, sinistro, triste, pensou César, enojado; e logo se afastou, sem esperar por mais ninguém. Às portas da Domus Publica, pagou aos seus lictores com extrema generosidade, agradeceu-lhes os seus leais serviços e, por fim, perguntou a Fábio e aos outros se estavam interessados a acompanhá-lo à Gália Italiana. Fábio aceitou em nome de todos.
Por um mero acaso, Pompeu e Crasso cruzaram-se pouco depois de a alta figura de César ter desaparecido por entre as sombras de um crepúsculo brumoso.
— Pois é, Marco, nós demo-nos melhor quando fomos cônsules do que César e Bíbulo — disse Pompeu. — Apesar de não gostarmos nada um do outro.
— César teve a infelicidade de ter Bíbulo como colega em todas as magistraturas séniores. Tens razão, nós demo-nos melhor, apesar das nossas divergências. Pelo menos acabámos o nosso ano como amigos. E não estávamos mudados, no final desse ano. Em contrapartida, este ano mudou muito César. Está menos tolerante. Mais cruel. Mais frio. E eu odeio ver isso.
— Quem poderá censurá-lo? Certos indivíduos estavam decididos a acabar com ele. — Pompeu deu em silêncio mais alguns passos, após o que falou de novo. — Entendeste o discurso dele, Crasso?
— Creio que sim. À superfície, não era difícil de entender. Mas a um nível mais profundo... quem poderá saber? Nos discursos de César, há sempre várias camadas — e vários significados.
— Confesso que não entendi. Pareceu-me... sombrio. Como se estivesse a avisar-nos. E que história era aquela de mostrar ao mundo?
Crasso virou-se para Pompeu, com um sorriso surpreendentemente largo e generoso. — Tenho a impressão de que um dia entenderás, Magno.
Nos idos de Março, as mulheres da Domus Publica ofereceram um almoço. As seis virgens vestais, Aurélia, Servília, Calpúrnia e Júlia reuniram-se na sala de jantar, preparando-se para passar uma tarde muito agradável.
Cabendo-lhe o papel de anfitriã (Calpúrnia nunca poria a hipótese de lhe usurpar esse papel), Aurélia serviu todo o tipo de iguarias que considerou do agrado das suas amigas, incluindo doces de mel e nozes para as crianças. Depois de terminada a refeição, Quintília, Júnia e Cornélia Merula foram brincar para o peristilo, e as mulheres juntaram as suas cadeiras e prepararam-se para uma longa e descontraída conversa. Descontraída, porque as meninas, sempre à escuta de tudo, já lá não estavam para as ouvir.
— César já está no Campo de Marte há mais de dois meses — disse Fábia, que parecia cansada e preocupada.
— Mais importante do que isso, Fábia, é o caso de Terência. Como é que ela se tem aguentado? — perguntou Servília. — Há já vários dias que Cícero fugiu.
— Bom, Terência tem reagido de uma forma sensata, como sempre. Mas creio que sofre mais do que deixa parecer.
— Cícero fez mal — disse Júlia — Eu sei que Clódio promulgou uma lei não específica proibindo a execução de cidadãos romanos sem julgamento prévio, mas o meu lê... o meu Magno diz que Cícero fez mal ao escolher o exílio. Magno pensa que se Cícero tivesse ficado, Clódio não teria tido a coragem de promulgar uma lei específica para o caso de Cícero. Mas com Cícero longe de Roma, foi fácil. Magno não conseguiu convencer Clódio a desistir da sua ideia.
Aurélia parecia céptica, mas não disse nada; a opinião que tinha sobre Pompeu era muito diferente da da neta; é uma jovem entontecida pelo amor que dedicava a Pompeu dificilmente entenderia essa diferença.
— Que coisa incrível...! Saquearam e incendiaram a sua bela casa! — disse Arúncia.
— É claro que só pode ter sido Clódio. Ainda por acima agora, que ele tem aqueles homens tão estranhos a apoiá-lo...! — disse Popília. — É tão — tão louco!
Servília falou. — Ouvi dizer que Clódio vai erigir um templo no local onde ficava a casa de Cícero.
— E Clódio será o sumo sacerdote, com toda a certeza! Francamente! — disse Fábia.
— O exílio de Cícero não poderá prolongar-se por muito tempo — disse Júlia. — Magno já está a trabalhar no seu perdão.
Sufocando um suspiro, Servília deixou que os seus olhos se encontrassem com os de Aurélia. Olharam uma para a outra em total compreensão, embora nenhuma delas cometesse a imprudência de sorrir.
— Porque é que César continua no Campo de Marte? — perguntou Popília, tirando a grande tiara de lã e revelando as marcas vermelhas que a tiara deixara na frágil pele da sua testa.
— E continuará por mais algum tempo — retorquiu Aurélia. — Só partirá depois de saber que as suas leis foram inscritas nas tábuas.
— O tatá diz que Aenobarbo e Mémio estão liquidados — disse Calpúrnia, afagando o pêlo de Félix, que dormitava no seu colo. Calpúrnia recordava a amabilidade demonstrada por César, ao convidá-la para ficar com ele regularmente no Compus Martius. Embora a sua educação e o conhecimento que tinha do marido a impedissem de demonstrar ciúme, Calpúrnia ficou extremamente contente por ele não ter convidado Servília uma única vez. Tudo o que dera a Servília fora uma pérola, uma pérola esquisita. Ao passo que Félix era a vida; Félix podia retribuir o amor da dona.
Perfeitamente consciente do que Calpúrnia estava a pensar, Servília fez o possível por manter uma expressão enigmática. Sou muito mais velha e inteligente, eu conheço a dor da separação. As minhas despedidas estão feitas. Não o verei durante anos. Mas esta pobre porquinha nunca será tão importante para ele como eu. Oh, César, porquê? A dignitas significará assim tanto?
Cardixa entrou na sala sem a menor cerimónia. — Já partiu — disse ela, sem mais, as mãos enormes pousadas nas enormes ancas.
Fez-se um silêncio total na sala.
-— Porquê? — perguntou Calpúrnia, empalidecendo.
— Vieram notícias da Gália Transalpina. Os Helvécios estão a emigrar. César seguiu para Genava com Burgundo. Tão rapidamente como o vento.
— Mas eu não me despedi dele...! — exclamou Júlia, chorosa. — Ele vai ficar fora tanto tempo! E se nunca mais o vejo...? Que horror...!
— César — disse Aurélia, espetando um dedo deformado no gordo flanco de Félix — é como ele. Tem cem vidas.
Fábia olhou para o peristilo, onde as três meninas, vestidas de branco, corriam alegremente atrás umas das outras. — Ele prometeu que as deixaria ir ao Campo de Marte para se despedirem. Coitadinhas, o que elas vão chorar!
— E porque não haveriam de chorar? — disse Servília. — Tal como nós, também elas são mulheres de César. Condenadas a ficar aqui e a esperar pelo regresso do nosso amo e senhor.
— Sim, a vida é mesmo assim — disse Aurélia, erguendo-se para pegar na garrafa de vinho doce. — Como decana das mulheres de César, proponho que amanhã vamos todas trabalhar no jardim de Bona Dea!
Colleen McCullough
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