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Spector puxou o cadeado com a mão enluvada, e o fecho se abriu. Ele destravou a porta de aço corrugado e apoiou o corpo contra ela, empurrando-a para cima e para o lado, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Deslizou o corpo magro pela fresta e fechou a porta. Até então, tudo estava indo exatamente como tinham dito. O lugar cheirava a poeira e tinta fresca. A luz era fraca, vinda de uma única lâmpada no centro do armazém. Ele se deteve para que os olhos se ajustassem à baixa luminosidade. Havia máscaras por toda parte. Palhaços, políticos, animais, alguns rostos humanos comuns. Pegou uma máscara de urso e a enfiou na cabeça — era melhor se precaver, para o caso de alguém acender as outras luzes. O plástico fazia pressão no nariz, e os buracos dos olhos eram menores do que ele gostaria. A visão periférica ficou prejudicada. Spector moveu-se lentamente na direção da luz, virando a cabeça para ambos os lados, tentando se certificar de que não havia ninguém à espreita. Estava alguns minutos adiantado. Achava que era a atitude mais sensata possível. Alguém tinha passado por maus bocados para encontrá-lo e marcar essa reunião. Ou a pessoa estava desesperada, ou queria armar uma emboscada. De qualquer maneira, poderia trazer confusão. Os olhos estavam irritados por causa do ambiente empoeirado, mas não havia o que ele pudesse fazer, usando aquela máscara. Parou a uns três metros da luz e aguardou. O único som era o das mariposas batendo as asas na cúpula de metal da lâmpada. — É você que está aí? — A voz soava abafada, mas definitivamente masculina. Vinha do outro lado da área iluminada. Spector pigarreou. — Sim, sou eu. Por que não vem até a luz, para que eu possa te ver? — Não sei quem você é, e você não sabe quem eu sou.
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Vamos manter as coisas assim. — Houve uma pausa. Da escuridão, veio um barulho de papel sendo amassado. — Beleza. Sou todo ouvidos. — Spector deu um suspiro longo, tranquilo. Não parecia uma emboscada, e as cartas em sua mão pareciam boas. Um braço surgiu sob a luz. A pessoa era baixa como uma criança, mas com braços grossos e musculosos. Os dedos eram curtos. Uma luva descartável despontava por baixo de outra de couro. O sujeito obviamente estava tomando bastante cuidado. A mão estendia um envelope pardo. — Tudo o que você precisa saber está aqui. — Jogue para cá. — O braço jogou o envelope na direção dele. O papel pardo aterrissou pesadamente e deslizou até o limite da área iluminada, levantando uma nuvem de poeira e lascas de tinta. — Gostei do som que isso fez. Spector foi até o envelope. Droga, tinha deixado que o cara o visse com a máscara de urso. Não importava. Ergueu o envelope e o abriu com o dedão. Havia vários maços de notas de cem dólares amarrados com esmero, uma passagem de ida e volta para Atlanta, sob o nome de George Kerby, e um pedaço de papel dobrado duas vezes. Spector supôs que tinha mais de cinquenta mil dólares ali. — Metade agora. O restante quando o trabalho estiver terminado. — A voz mudara de lugar, agora vinha de um ponto entre Spector e a porta. Spector abriu o papelzinho e o ergueu sob a luz, para lê-lo. Deu um suspiro. — Que merda. Nunca me pedem nada fácil. E ainda por cima em Atlanta. Vai ser uma confusão. Por que não esperar até ele voltar à cidade e pegar um reembolso da passagem de George Kerby? — Quero que isso seja resolvido até semana que vem. Amanhã seria perfeito. Concorda? — Tá, beleza — respondeu Spector, dobrando o envelope e enfiando-o no bolso da camisa. — Você deve odiar mesmo esse sujeito. A porta se abriu. Spector teve um vislumbre do homem antes que ele a fechasse. Um metro e vinte e com o corpo musculoso de um linebacker de futebol americano. Um anão. Não havia muitos por aí. E só um deles tinha uma rixa com o cara que ele fora contratado para apagar. — Ouvi dizer que você estava morto, Gimli. Não houve resposta. Mas não podia esperar resposta de alguém que supostamente tinha sido empalhado e exposto no Museu Popular Carta Selvagem. Ainda assim, Spector sabia muito bem que não havia garantias de que uma pessoa de quem diziam que passara desta para melhor não necessariamente passara por coisa nenhuma.
Era no Beco do Rato, onde os homens mortos perdiam os ossos. Onde estava o Jokers Wild, ficava o Beco do Rato. Devia ser um bom beco para os ratos. O último dos clientes cambaleantes saiu pela porta, aberta feito uma boca arreganhada na face nua e imbecil de uma parede de tijolos. A entrada tinha um tamanho normal, mas a maioria das pessoas abaixava a cabeça com as golas murchas de suor, numa mistura de medo, expectativa e alívio — e permanecia assim enquanto atravessava um caminho de poças cor de madrepérola, em meio à glória desbotada das embalagens de comida, ao cheiro rançoso de uma cidade com proteínas vencidas e hidrocarbonetos complexos envelhecendo sem a menor delicadeza. Uma figura insignificante estava parada perto da entrada. Um sujeito que parecia o James Dean, só que corcunda, com o Keds preto encostado na parede atrás de si e o branco pisando na sujeira, balançava a cabeça e cantarolava baixinho para garantir que a clientela noturna continuasse andando na direção
certa. Não era difícil. Os que ainda estavam lá dentro queriam deixar para trás a ameaça bêbada e sorridente de Luarento e, assim que saíam, a direção correta era para longe dele. Do outro lado da porta, uma figura corpulenta enrolada em capa preta e bombachas assentia e sussurrava palavras afetivas comuns aos gerentes por trás de uma máscara de palhaço perfeita. — Obrigado. Volte sempre. Obrigado. É sempre um prazer recebê-lo. A resposta vinha no máximo na forma de um meneio de cabeça. Os últimos a sair foram um grupo de jovens beldades, quase adultos que ainda conseguiam transparecer juventude em seus cortes à escovinha ou penteados noveaux desleixados: os funcionários do Jokers Wild. O sujeito que parecia o James Dean, frustrado, ficou olhando enquanto eles andavam. Ele não percebeu, mas suas pupilas dilataram quando fitou os garotos atléticos, de músculos e membros tão definidos que pareciam jovens heróis de Robert E. Howard. Deviam ser todos uns afrescalhados, de qualquer forma. Esse tipinho estava espalhado por todos os cantos, nunca dava para saber. Mackie sentia as bolas e as pontas dos dedos coçarem só de pensar. Tinha umas coisas planejadas que gostaria de fazer com algum afrescalhado. Não que tivesse muitas oportunidades. O Porteiro e o Homem sempre insistiam para ele ter cuidado quando usava seus poderes. E em quem. Quando a última pessoa saiu do Beco do Rato, o homem com máscara de palhaço fechou a porta. A pintura externa era verde, a tinta estava lascada. O sujeito agarrou o batente com dedos brancos enluvados, arrancando-o da parede. Por trás, havia apenas tijolo. Dobrou a porta e o batente como se dobrasse um cavalete de artista e enfiou o embrulho debaixo do braço. — Comporte-se, Mackie — disse o sujeito com máscara de palhaço, estendendo a mão para dar um tapinha em seu rosto magro coberto com uma fina camada de pelos. Mackie não se afastou. O Porteiro não era um dos afrescalhados, ele sabia disso. Gostava quando o mascarado o tocava. Gostava da aprovação. Não havia muito disso para um adolescente expatriado, magrelo e corcunda. Ainda mais quando a Interpol queria dar uma palavrinha com ele. — Pode deixar, Porteiro — respondeu, abrindo um sorriso torto e meneando a cabeça. — Eu sempre me comporto. — As palavras saíam no ritmo bem marcado da fala do norte da Alemanha. Porteiro encarou-o por mais um instante. Só em poucas ocasiões era possível ver seus olhos. Naquele momento, eram só dois pontos escuros encobertos pela máscara. Seus dedos enluvados deslizaram pelo rosto de Mackie, raspando de leve. Ele deu as costas e se afastou, atravessando o beco com um passo meio bamboleante, carregando o fardo debaixo do braço. Mackie foi na direção contrária, desviando com cuidado das poças no caminho. Odiava ficar com os pés molhados. Na próxima noite, o Beco do Rato seria em outro lugar. Ele encontraria, não havia com que se preocupar. Sentia o chamado, o canto da sereia do Jokers Wild — assim como os outros que participavam, as vítimas e o público, cuja excitação começava em parte por saberem que seus papéis eram permutáveis.
Mas não para Mackie. No Jokers Wild, Mackie era intocável. Ninguém se engraçava com ele na boate dos amaldiçoados. Emergiu na Nona, envolta numa brisa com os cheiros do rio Hudson e fumaça de diesel. Suas feições se contorceram num breve esgar de ódio e nostalgia: era como as docas de Hamburgo, onde crescera. Enfiou as mãos nos bolsos e virou o ombro mais alto — o direito — contra o vento. Precisava verificar uma mensagem deixada para ele numa espelunca na Bowery. O Homem estava fazendo algo grandioso, lá em Atlanta. Talvez precisasse de Mackie a qualquer instante. Mackie Messer não queria perder um momento em que fosse necessário. Começou a cantarolar sua música, sua balada. Ignorando o grito de coelho torturado dos freios de um ônibus, continuou sua caminhada.
7h00
Os loucos tinham saído cedo. Assim que passou pelo perímetro da polícia, no Atlanta Marriott Marquis, Jack Braun viu centenas de delegados da convenção, a maioria usando roupas casuais, chapéus ridículos e coletes cobertos de buttons de campanha. A comitiva tinha várias limusines levando os mais velhos do partido; um Chevrolet Impala chumbo, modelo de 1971, com uma bandeira da suástica tremulando na antena e três soldados da tropa de assalto nazista uniformizados sentados no banco da frente, todos com o rosto pétreo — por algum motivo, ninguém estava no banco de trás —; além de duas gangues de curingas que enfiavam as cabeças desfiguradas para fora de um micro-ônibus da Volkswagen caindo aos pedaços, acenando para a multidão e gargalhando com a reação dos pedestres. Os micro--ônibus estavam cobertos de adesivos de Hartmann e outros slogans políticos. LIBERTEM O HOMELECA, dizia um deles. CÃO PRETO É QUEM MANDA, dizia o outro. Gregg Hartmann não aprovaria, pensou Jack Braun. Associar quem o público acreditava que fosse o próximo presidente a um terrorista curinga não era uma boa estratégia política. Jack sentia o suor brotando no couro cabeludo. Mesmo às sete e meia da manhã, Atlanta era úmida e abafada. Café da manhã de reconciliação. Em uma hora, ele e Hiram Worchester deveriam virar bons amigos. Jack se perguntou por que deixara Gregg Hartmann enfiá-lo naquela furada. Pro inferno com essa minha ideia de dar uma caminhada, pensou, irado. Esvaziaria a cabeça de outra forma. Deu meia-volta e retornou ao Marriott. Jack passara a noite anterior em sua suíte no Marriott, se embebedando com quatro superdelegados ainda indecisos do árido centro-oeste. O coordenador de campanha de Gregg Hartmann, Charles Devaughn, telefonara e sugerira que um pequeno charme hollywoodiano talvez trouxesse os indecisos para o lado de Gregg. Resignado por ora, Jack sabia perfeitamente bem o que aquilo significava. Fez algumas ligações para agentes que conhecia. Quando os superdelegados chegaram, o quarto estava cheio de uísque americano, uísque escocês e atrizes iniciantes da Geórgia, veteranas de filmes locais com títulos como Mulheres acorrentadas e Carnificina na pista. Quando a festa finalmente acabou, por volta das três da manhã, e o último congressista do Missouri saiu aos tropeços, de braços dados com a Miss Peachtree de 1984, Jack imaginou que pusera ao menos mais dois votos no bolso de Hartmann. Às vezes, era fácil. Por algum motivo, políticos sempre se derretiam com celebridades. Até mesmo com famosos ases traidores e Tarzans de TV fracassados como eu, pensou Jack . O carisma hollywoodiano esmaecido, combinado com sexo barato, dobrava até mesmo o político mais empedernido. Isso, claro, sem contar com a ameaça velada de chantagem. Jack sabia que Devaughn adoraria aquilo.
Um tambor ressoava no crânio oco de Jack . Ele massageou as têmporas enquanto esperava o semáforo ficar vermelho. O dom de carta selvagem de enorme força e eterna juventude não o poupava das ressacas. Pelo menos não era uma festa para os colegas de Hollywood. Se fosse, precisaria ter providenciado uma grande quantidade de cocaína. Enfiou a mão no bolso da jaqueta de safári Marks & Spencer e tirou seu primeiro Camel sem filtro do dia. Quando se curvou para proteger o fósforo entre as mãos grandes, viu o Impala avançando pela rua na sua direção outra vez, a bandeira da suástica tremelicando. Dava para ver a silhueta do quepe achatado dos soldados delineada no para-brisa. O carro aumentou a velocidade quando a luz do semáforo ficou amarela. PODER BRANCO. Diziam os adesivos no para-choque. AUSLANDER RAUS! “Fora estrangeiro”, diziam em alemão. Jack lembrou-se de que, anos antes, ergueu um Mercedes cheio de peronistas e jogou-o de cabeça para baixo. Lembrou-se de ter gritado, cheio de raiva, quando as metralhadoras alemãs se viraram para transformar o rio Rapido, na Itália, em espuma branca, de como seus braços doeram quando ele puxou o bote de borracha já afundando até a margem superior, onde os arbustos já estavam cheios de capacetes pretos e ponchos camuflados da Divisão Das Reich da SS. O ataque fora iniciado por ordem dos vigias de Monte Cassino, e as balas corriam para todos os lados. Metade de seu esquadrão estava morto ou ferido, os corpos espalhados no fundo do bote numa mistura de água do rio e do próprio sangue… Pro inferno com a política, pensou Jack. Só precisava entrar na frente do Impala. Tinha como garantir que o impacto o jogaria para baixo do carro e, enquanto estivesse ali, conseguiria arrancar os eixos do motor e deixar aqueles milicos encalhados no centro de Atlanta, cercados por militantes curingas, uma grande população negra e todos os sujeitos malucos, pirados e potencialmente violentos atraídos pela loucura e pela confusão da Convenção dos Democratas de 1988. Jack jogou o fósforo longe e pôs um pé para fora da calçada. O Impala aproximou-se a toda velocidade, tentando cruzar o semáforo amarelo. Jack recuou e observou quando os nazistas passaram em disparada. A suástica preta queimava em seus olhos. Os Quatro Ases tinham sido mortos quase quarenta anos antes. Jack não fazia mais esse tipo de coisa. Uma pena.
8h00
Do rádio no volume máximo saía o som da banda U2, e o adolescente acompanhava as batidas com o garfo enquanto bebia suco de laranja ruidosamente. Os cabelos ruivos estavam cortados bem rentes ao crânio, restando apenas uma trança fina e longa pendendo sobre a jaqueta de couro preta. Tênis pretos de cano alto e calças de sarja completavam o visual. A imagem era agressivamente punk , mas o rosto sob os cabelos ruivos era suave e jovem demais para pertencer a um punk durão. O contraste com seu avô, de frente para a televisão, era assustador. Estreitando os olhos, o Dr. Tachyon ouvia com interesse enquanto Jane Pauley conversava com especialistas políticos, no programa de entrevistas Today. O Dr. Tachyon estava com o violino enfiado embaixo do queixo pontudo, tocando uma animada sonata de Paganini. Talvez ouvisse uma palavra a cada três, mas não importava. Já tinha ouvido aquilo tudo. Muitas e muitas vezes. Principalmente quando os meses de campanha se resumem àquele lugar — Atlanta —, àquela época — julho de 1988 —, a um homem em especial — Gregg Hartmann — e a um prêmio específico — a presidência dos Estados Unidos da América. Tachyon virou-se para Blaise, apontando com o arco para a televisão. — Vai ser uma batalha sangrenta. E, como se estivesse se preparando para a batalha vindoura, o alienígena usava botas e calças compridas, além de uma estola preta enrolada sobre o colarinho de renda alto. Um oficial do exército de Napoleão não se pavonearia mais que a figura magra e diminuta em trajes verdes brilhantes. No peito, em vez da insígnia da ordem da jarreteira, pendia um crachá de plástico indicando que o portador fazia parte do time de imprensa do Grito do Bairro dos Curingas. Blaise fez uma careta e deu uma bela mordida no croissant. — Que tédio. — Blaise, você já tem treze anos. Idade suficiente para deixar as infantilidades de lado e começar a demonstrar interesse pelo mundo. Em Takis, você já estaria deixando os aposentos das mulheres. Preparando-se para a educação intensiva. Assumindo responsabilidades com a família. — Pois é, mas não estamos em Takis, e eu não sou um curinga, então estou pouco me fodendo. — O que você disse? — perguntou o avô, enfático. — Disse que estou pouco me fodendo. Sabe o que significa fodendo? É o gerúndio de… — A grosseria não é uma característica pertinente aos cavalheiros. — Se você diz. — É algo raro. E, por favor: faça o que eu digo, e não o que faço. — Mas Tachyon teve a boa vontade de sorrir, acanhado. — Mas bem, rapaz, curingas ou não, precisamos nos preocupar. Também somos indivíduos únicos, e, se Barnett e sua filosofia de opressão chegarem à Casa Branca, seríamos devorados junto
com a maioria dos miseráveis do Bairro dos Curingas. Ele quer nos mandar para os sanatórios. — Tachyon bufou com desprezo. — Por que ele não usa logo aquele nome horrendo: campos de concentração? “Somos alienígenas, Blaise. Você pode até ter nascido na Terra, mas meu sangue corre em suas veias. Você carrega meu poder, e isso sempre o distinguirá dos terráqueos. Já faz algum tempo que a tendência natural de todas as espécies, de se aterem ao conjunto do “nós” e se manterem afastadas do grupo “deles” está dormente no espírito da humanidade, mas isso pode mudar…” Blaise estava bocejando. Tachyon cerrou os dentes, contendo o fluxo interminável de palavras. Os jovens eram sempre insensíveis e otimistas. Mas Tach tinha pouco espaço para otimismo em sua vida. Desde aquela noite fatídica, em junho de 1987, Tachyon carregava em seu DNA o padrão deturpado e mutante do vírus carta selvagem. Por ora, o vírus permanecia adormecido, mas Tachyon sabia que um momento de estresse, dor extrema, terror ou até mesmo alegria poderia despertá-lo. E, se ele não fosse sortudo o bastante para puxar uma rainha negra e morrer, talvez se tornasse um curinga. Seria demais esperar que caísse naquela minoria sortuda que virava ás. Alguém bateu à porta da suíte. Erguendo as sobrancelhas, surpreso, o alienígena mandou Blaise atender enquanto guardava o violino. — George! — Tachyon ficou parado, tenso, à porta da sala de estar, agarrando o batente com força para não liberar a onda gigantesca de raiva e medo que o continham. — O que está fazendo aqui? — perguntou, num tom baixo, controlado. George Steele, também conhecido como Victor Demyenov, também conhecido como Georgy Vladimirovich Polyakov, recebeu a hostilidade parcamente velada do alienígena com um leve franzir de cenho. — Aonde mais eu poderia ir? — Blaise soltou-se do abraço forte do senhor corpulento, e George deu um beijo estalado em cada bochecha dele. — Eu trabalho para o Brighton Beach Observer. Tenho uma história para cobrir. — Ah, pelo Ideal, você é uma droga de um espião russo enfiado num hotel apinhado de agentes do Serviço Secreto. E na minha suíte! — Tachyon de repente levou a mão ao coração, acalmando o fôlego e reparou em Blaise, ouvindo atentamente. — Vá lá para baixo, Blaise, e… e… — Ele fuçou a carteira. — E compre uma revista. — Não quero. — Pelo menos uma vez na vida, não discuta comigo! — Por que não posso ficar? — Já tinha começado o choramingo. — Você é só um garoto. Não devia estar envolvido nisso. — Um minuto atrás eu já tinha idade suficiente para ter interesses adultos em assuntos adultos. — Pelos ancestrais! — Tachyon caiu no sofá, segurando a cabeça entre as mãos. Polyakov permitiu-se abrir um sorrisinho. — Talvez seu vovô esteja certo… e isso aqui vai ser um tédio, Blaise, meu filho. — Ele tocou de um jeito amigável o ombro do garoto e levou-o até a porta. — Vá e se divirta enquanto seu avô e eu discutimos assuntos obscuros.
— E não se meta em encrencas! — gritou Tach, quando a porta se fechou atrás de Blaise. O alienígena passou geleia num croissant. Olhou bem para o resultado. E jogou-o de volta ao prato. — Por que você consegue lidar com o garoto melhor que eu? — Você tenta amá-lo. Acho que Blaise não reage bem ao amor. — Não quero acreditar nisso. Mas o que são esses assuntos obscuros que precisamos discutir? Polyakov sentou-se, preocupado, beliscando o lábio inferior com o dedão e o indicador. — Essa convenção é crítica… — Ah, não brinca? — Cale a boca e escute! — E, de repente, a voz recuperou toda a antiga firmeza e imponência de muitos anos antes, quando Victor Demyenov resgatou um takisiano bêbado e acabado da sarjeta de Hamburgo e treinou-o na arte delicada da espionagem moderna. — Preciso que faça um trabalho para mim. Tachyon recostou-se com as palmas da mão diante do corpo. — Não. Nada de trabalhos. Já dei a você mais do que deveria. Deixei que entrasse na minha vida, que se aproximasse do meu neto. O que mais você quer? — Muito, e eu mereço. Você me deve, Dançarino. Sua omissão em Londres custou minha vida, meu país. Você me fez virar um exila… — Outra coisa que temos em comum — retrucou Tachyon, amargurado. — Sim. E o garoto. — Polyakov apontou para a porta. — E o passado que não pode ser apagado. Ele beliscou o lábio outra vez, ansioso. Curioso, Tachyon inclinou a cabeça e suprimiu o desejo de deslizar por baixo das camadas daquela mente secreta. O protocolo takisiano ditava que não era permitido invadir a privacidade da mente de um amigo. E houvera amizade o bastante naqueles anos na Berlim Ocidental e Oriental para manter a cortesia. Mas Tach, em todos esses anos, nunca tinha visto Polyakov tão agitado, tão nervoso. O alienígena flagrou-se relembrando os incidentes do ano anterior: as noites bebendo depois de Blaise ir para cama; Polyakov fazendo as vias de audiência exuberante e nada crítica quando Tach e Blaise se lançaram à Dança Húngara de Brahms para piano e violino; as ocasiões em que o russo impediu que Blaise exercesse seu poder terrível em seres humanos indefesos que o cercavam. Tachyon cruzou a sala, agachou-se diante do velho e apoiou o braço no joelho de Polyakov para se equilibrar. — Pelo menos uma vez na vida, não banque o russo enigmático. Diga o que quer sem rodeios. Me conte o que teme. Polyakov agarrou a mão direita de Tachyon de repente. DOR! O fogo vindo de dentro, correndo braço acima, pelo corpo todo, fervendo o sangue. O suor brotando dos poros, as lágrimas escorrendo dos olhos. Tach caiu com os cotovelos no chão. — PELO CÉU EM CHAMAS! — Uma exclamação adequada — retrucou Polyakov , com um sorriso sem humor. — Vocês, takisianos, sempre têm uma resposta pronta.
Tachyon secou o rosto com um lenço, mas as lágrimas continuavam a cair. Engoliu um soluço. O russo franziu a testa para ele. — Que há de errado com você? — Você não poderia ter me dito que era um ás?! — exclamou Tach, contrariado. Polyakov deu de ombros. Levantou-se e tirou um lenço do bolso do casaco. Os dedos de Tachyon agarravam com força o próprio lenço, encharcado. — Qual é o problema? Eu lhe dei apenas uma faisquinha do meu fogo. — E eu estou infectado com o carta selvagem, então sua faisquinha poderia ter despertado o vírus. Tachyon viu-se esmagado por um abraço corpulento. Ele afastou o abraço e assoou o nariz com força. — Então hoje é o dia dos segredos, não é? — Há quanto tempo? — Um ano. — Se eu soubesse… — Eu sei. Eu sei, você nunca teria me assustado nem em um milhão de anos com essa pequena demonstração. — Suas roupas estavam com um cheiro forte de suor e medo. Tachyon começou a se despir. — Então, agora sei por que está tão interessado nesta convenção. — Vai além do fato de eu ser um carta selvagem — grunhiu Polyakov. — Sou russo. — Sim — concordou Tach, olhando para trás, enquanto caminhava até o banheiro. — Eu sei. — O estrondo do chuveiro afogou as palavras de Polyakov. — QUÊ? Grunhindo, o russo seguiu-o até o banheiro, abaixou a tampa da privada e se sentou. Detrás da cortina do boxe, Tach ouviu o estalar de metal em vidro. — O que está bebendo? — O que acha? — Quero também. — São oito da manhã. — Então, vamos juntos e bêbados para o inferno. — Tach aceitou o copo e deixou que a água batesse nos ombros enquanto bebericava a vodca. — Você bebe demais. — Nós bebemos demais. — Verdade. — Tem um ás nessa convenção. — Tem um monte de ases nessa convenção. — Um ás secreto. — É, ele está sentado na minha privada. — Tach botou a cabeça para fora da cortina. — Quanto tempo isso vai levar? Não consegue ser um pouquinho menos cauteloso e confiar um pouquinho em mim? Polyakov suspirou pesadamente, encarando as mãos como se contasse os pelos dos dedos. — Hartmann é um ás.
Tach enfiou a cabeça outra vez para fora da cortina do chuveiro. — Há! Duvido. — Estou dizendo, é verdade. — Tem provas? — Tenho suspeitas. — Não é o bastante. — Tach fechou a água e enfiou a mão para fora da cortina. — Toalha. Polyakov jogou uma toalha em seu braço. Saindo do chuveiro, o alienígena examinou a imagem no espelho enquanto secava os cabelos ruivos cortados na altura do ombro. Observou as cicatrizes no braço esquerdo e na mão, onde os médicos haviam reparado os ossos esmagados durante o resgate improvisado de Angelical. A cicatriz enrugada na coxa, legado de uma bala terrorista em Paris. A longa cicatriz no bíceps direito, recordação de um duelo contra o primo. — A vida cobra muito caro, não acha? — Quantos anos você tem? — perguntou o russo, curioso. — Ajustando para o período rotacional da Terra… uns 89, 90. Por aí. — Eu era jovem quando nos conhecemos. — Era. — Agora estou velho, gordo e apavorado. Você não terá problema em descobrir se meus medos são reais ou mera paranoia. Sonde Hartmann, leia a mente do homem, então aja. — Gregg Hartmann é meu amigo. Eu não sondo amigos. Eu não sondo nem você. — Eu lhe dou permissão. Se for ajudar a te convencer. — Pelo Ideal, você deve estar mesmo apavorado. — Estou. Hartmann é… maligno. — Uma palavra estranha para um velho especialista em dialética materialista. — De qualquer forma, é a palavra correta. Tachyon balançou a cabeça, entrou no quarto e pegou uma cueca limpa na gaveta. Conseguia sentir George atrás de si, uma presença atarracada e irritante. — Não acredito em você. — Não, você não quer acreditar em mim. Há uma diferença fundamental. Quanto você conhece da vida pregressa de Hartmann? Sua passagem pelo mundo deixou uma trilha de mortes misteriosas e vidas estilhaçadas. O treinador de futebol do colégio, o colega de quarto na faculdade… — Então ele teve a infelicidade de estar ligado a acontecimentos violentos. Isso não faz dele um ás. Ou você o condenaria por associação? — Que tal um político ter sido sequestrado duas vezes e escapado dos dois sequestros em circunstâncias misteriosas? — O que tem de tão misterioso? Na Síria, Kahina voltou-se contra o irmão e o esfaqueou. No caos que se instalou, nós escapamos. Na Alemanha… — Eu estava trabalhando com Kahina. — Quê? — Quando vim pela primeira vez aos Estados Unidos. Gimli também, aquele
idiota, pobre coitado. Gimli morreu, e Kahina desapareceu, e temo que ela também esteja morta. Ela veio aqui para expor Gregg Hartmann. — É o que você diz. — Tachyon, eu não minto para você. — Não, você simplesmente me diz apenas o que lhe convém. — Gimli suspeitava dele, e agora está morto. — Ah, então agora Gregg é responsável pelo Croyd Tifoide? Gimli morreu por causa daquele vírus, e não nas mãos de Gregg Hartmann. — E Kahina? — Quero ver um cadáver. Quero provas. — E a Alemanha? — O que tem a Alemanha? — Um dos principais agentes do GRU, Direção Central da Inteligência Militar das Forças Armadas da União Soviética, estava no comando daquela operação, e fugiu como um soldado raso. Ele foi manipulado, estou dizendo! — Você está dizendo! Você está dizendo? Você não me diz nada! Só fala calúnias e insinuações. Nada para corroborar essa alegação fantasiosa. — O que custa sondar o sujeito? Leia a mente dele e prove que estou errado. Tachyon cerrou os lábios, teimoso. — Você está com medo. Medo de que o que estou lhe dizendo seja verdade. Não é por causa da honra e da reserva takisianas. É pura covardia. — Há pouquíssimos homens que poderiam dizer isso para mim e sair vivos. — Tachyon enfiou os ombros na camisa e continuou, num tom seco, quase reprovador: — Sendo um ás, você deve ter considerado o panorama político. Supondo que você esteja certo e que Gregg Hartmann seja um ás secreto, qual seria o problema? Não há nada de muito suspeito num homem com aspirações políticas escondendo sua carta selvagem. Não estamos na França, onde é chic ser um ás. Vai condená-lo por manter um segredo que você mesmo escondeu a vida inteira? — Ele é um assassino, Tachyon, eu sei disso. Por isso que está se escondendo. — Os cães estão se unindo, George. Estão quase mordendo nossos calcanhares. Logo, vão querer provar sangue. Gregg Hartmann é nossa única esperança para manter o ódio na rédea curta. Se mancharmos Hartmann, abriremos caminho para Barnett e os insanos. Vai ficar tudo bem com você. Você vai pode se esconder atrás desse rosto tranquilo, comum. Mas e quanto aos outros? E meus filhos adotivos desgraçados, esperando no parque, com as deformidades óbvias expostas para o mundo todo? O que digo a eles? Que o homem que os protegeu e defendeu por vinte anos é maligno e deve ser destruído porque talvez seja um ás e manteve isso em segredo? Tachyon arregalou os olhos quando considerou essa nova possibilidade. — Meu Deus, pode ser essa a razão de você ter sido enviado para cá. Para derrubar o candidato que o Kremlin teme. A presidência de Hartmann… — Que bobagem é essa? Está lendo romances de espionagem sensacionalista? Eu fugi da minha antiga vida. Até o Kremlin pensa que estou morto. — Como posso acreditar? Por que devo confiar em você?
— Só você pode responder a essas perguntas. Nada do que eu disser ou fizer vai te convencer. Digo apenas uma coisa: esperava que este último ano tivesse ao menos servido para demonstrar que não sou seu inimigo. Polyakov foi até a porta. — Desistiu? — Parece inútil continuar dando voltas com essa discussão. — Você vem até aqui, na maior calma, anuncia que Gregg Hartmann é um ás assassino e vai embora? — Eu já disse tudo o que sei. Agora está nas suas mãos, Dançarino. — Ele pareceu travar uma luta interna, então acrescentou: — Mas, se não agir, fique alerta… eu ficaria. ♠ Depois que atravessou a rua, Jack percebeu que não precisava se expor ao calor de julho por muito mais tempo: poderia voltar para o Marriott pelo Peachtree Mall. O ar-condicionado era um alívio. Subiu de escada rolante até o último andar e deu de cara com um grupo de católicos carismáticos apoiadores de Barnett, todos andando em círculos, contando seus rosários e entoando a avemaria enquanto carregavam placas com a foto do candidato. DIGA NÃO À VIOLÊNCIA DO CARTA SELVAGEM, diziam algumas. Era o slogan daquela semana para disfarçar a verdadeira campanha: “Mandem os cartas selvagens para os campos de concentração.” Estranho, pensou Jack. Barnett professava que a Igreja Católica Apostólica Romana era uma ferramenta de Satanás, mas estavam orando por ele. Passou pelo grupo. O suor que cobria sua testa foi esfriando. Duas crianças negras cheias de buttons de Jesse Jackson lançavam grandes planadores de plástico e espuma de um lado para outro. Delegados com chapéus ridículos enchiam os restaurantes em busca de uma refeição matinal. Um dos planadores flutuou na direção de Jack, na direção do térreo. Ele abriu um sorrisinho e agarrou o planador antes que chegasse ao chão. Dobrou o braço para lançá-lo de volta para o dono, mas parou para admirar o planador, surpreso. O brinquedo fora criado com a imagem de Peregrina, as asas estendidas em quase sessenta centímetros. Os famosos seios, que Jack encarara em muitas ocasiões memoráveis a bordo do Cartas Marcadas, estavam representados em detalhes cuidadosos. Apenas a estrutura da cauda, provavelmente necessária para a aerodinâmica adequada, não era anatômica. Letras pequenas vinham impressas nessa parte: Ases Voadores ®, diziam, complete sua coleção! Jack ficou se perguntando se Peregrina recebia royalties. Os dois garotos estavam a mais ou menos quinze metros de distância, esperando o lançamento. Jack inclinou a mão para trás e atirou o brinquedo com o mesmo movimento que usava para jogar futebol americano, muitos anos antes, acrescentando apenas um pouco de seu poder. Uma leve aura dourada saiu faiscando de seu corpo. O planador disparou em linha reta pela extensão do shopping, zumbindo como um inseto. As crianças encararam primeiro o planador, depois Jack, então voltaram os
olhos para o planador. Depois, saíram em disparada atrás de sua Peregrina. Todo mundo olhou. Jack sentiu um otimismo delirante. Retornar à vida pública talvez não fosse tão ruim assim. Deu risada e voltou a andar pelo shopping a passos largos. No caminho, encontrou o vendedor de planadores, os modelos montados dispostos numa mesa dobrável diante de si. Reconheceu J. J. Flash e o JB-1 de Jetboy. Havia um objeto parecido com um frisbee, que obviamente era o Tartaruga. Jack mostrou sua identificação e a chave do quarto para o cordão de isolamento policial diante do Marriott e entrou no saguão cavernoso em forma de tubo de Venturi. O Marriott era o quartel-general de Hartmann, e quase todas as pessoas à vista usavam a logo dele. Planadores de Ases Voadores, lançados das sacadas, mergulhavam em curvas ousadas sobre a cabeça da multidão. Fora de vista, alguém tocava fanfarras num órgão portátil. Jack foi até a recepção para ver se havia recebido alguma mensagem. Charles Devaughn esperava um telefonema seu, além de outro de uma das atrizes iniciantes da Geórgia. Jack tentou lembrar qual delas era Bobbie. A ruiva cheia de curvas? Ou a loira do Mulheres acorrentadas, que passou metade da festa falando dos implantes dentários caríssimos e fazendo demonstrações de exercícios contra celulite? De qualquer forma, o mais provável era que não houvesse tempo para a vida pessoal, naquela convenção. Jack guardou as mensagens no bolso e se afastou da recepção. Um planador de Ases Voadores girou no chão diante de seus pés. Sem nem pensar, ele se abaixou para pegá-lo e viu o cachecol branco moldado, o capacete de aviador e a jaqueta de couro. Encarou o brinquedo por um bom tempo, o planador pendendo de sua mão. Oi, Earl, pensou. Por um tempo, achara que ficaria bem. Conseguira chegar a uma trégua com Tachyon e pensara que talvez Gregg Hartmann pudesse convencer os velhos teimosos, como Hiram Worchester. Que talvez todos os outros já tivessem esquecido os Quatro Ases, o HUAC e a traição de Jack . Que talvez ele pudesse sair em público e fazer algo de útil sem fracassar, sem ser perseguido pelas lembranças do passado. É melhor andar na linha, moço da roça. Engraçado como depois de todos esses anos ele ainda sabia exatamente o que Earl Sanderson diria. Jack endireitou o corpo e olhou por cima da multidão, ponderando se alguém teria jogado o planador de propósito, querendo lembrá-lo que nem tudo fora perdoado. Deve ter parecido ridículo — oh, céus — inclinado sobre o planador com a consciência pesada transbordando do rosto, a efígie do amigo, sua vítima, pendendo de seus dedos. Tchau, Earl, pensou. Cuide-se. Dobrou o braço e lançou o brinquedo. O planador zumbiu quando se ergueu no saguão, subindo sem parar até sumir de vista. ♦
Gregg sentia a fome implacável. Não tinha nada a ver com política ou com a expectativa de que, no fim daquela semana, pudesse ser eleito como candidato dos Democratas. Ao descer no elevador do Marriott para a reunião matinal com Jack Braun e Hiram Worchester, a fome queimava suas entranhas como fósforo brilhante — uma violência pulsante que alguns croissants e um pouco de café não conseguiriam aplacar. A fome era do Titereiro, e ele queria dor. Sua expressão deve ter deixado transparecer um pouco de sua luta interior. Amy Sorenson, sua assistente, inclinou-se e tocou seu ombro, hesitante. — Senhor…? Perto da porta do elevador, Billy Ray, que fora destacado para a segurança pessoal de Hartmann durante a convenção, em seu uniforme branco impecável de Carnifex, olhou por cima do ombro. Gregg forçou um bocejo e um sorriso profissional. — Só estou cansado, Amy. Só isso. Foi uma campanha longa e, Deus que me perdoe, vai ser uma semana mais longa ainda. Só preciso de umas xícaras de café e vou ficar bem. Pronto para encarar as hordas. Amy sorriu. Billy Ray voltou a atenção solene para a porta, ignorando a visão do saguão imenso e surreal do Marriott Marquis. — Ellen não está com problemas, está? — Não, não. — Gregg ficou olhando o chão do lobby ficar cada vez mais próximo. Um planador de espuma espiralou preguiçosamente, passando por eles até o restaurante lotado lá embaixo. Quando o elevador passou pelo brinquedo em pleno voo, Gregg reparou que o corpo era de uma mulher com asas de pássaro. As feições lembravam muito as de Peregrina. Agora que havia notado o primeiro, viu vários planadores fazendo acrobacias pelo lobby. — Ela não tem enjoos matinais desde o primeiro trimestre. Estamos bem. Só cansados. — Você não me contou se prefere que seja menino ou menina. — Tanto faz. Contanto que tenha saúde. Os indicadores de andar piscaram. Os ouvidos de Gregg estalaram com a mudança de pressão. Dentro dele, o Titereiro rosnou. Você não está bem. “Só preciso de umas xícaras de café”… Argh! A presença irradiava nojo. Sabe há quanto tempo estou esperando? Sabe? Fique quieto. Não temos como resolver isso agora. Então é melhor dar um jeito nisso logo. Sem demora, ouviu, Greggie? Gregg forçou o poder de volta para a gaiola mental. Foi preciso um esforço enorme. O Titereiro lutou; sua fúria era uma presença contínua, irritante. Ele sacudiu as barras. Ultimamente, vivia sacudindo as barras. O problema começara nos últimos meses. No começo era raro, e Gregg pensou ser uma estranha obra do acaso ou uma loucura atribuída ao desgaste da longa campanha. Mas estava acontecendo com uma frequência cada vez maior. Uma muralha mental se assomava entre o Titereiro e suas vítimas. Justamente quando ele estava prestes a alimentar aquelas emoções obscuras e
violentas, era interrompido, empurrado para trás por alguma força externa. O Titereiro uivava quando o elo com sua marionete era desfeito. Gregg rezava para que o problema desaparecesse, mas só piorava. Nas últimas duas semanas, o bloqueio tinha se erguido todas as vezes que o Titereiro tentava se alimentar. Mas, nos últimos tempos, Gregg começara a ouvir uma gargalhada zombeteira chegando com a interferência, uma voz suave, sussurrada, praticamente inaudível. A força dentro de Gregg estava ficando desesperada e incontrolável. E ele temia que a luta interna já estivesse evidente para todos. Se me fizer esperar mais, vou mostrar o que realmente é uma marionete. Vou demonstrar , com ilustrações, quem é que está no comando. O poder esquivou-se de seu controle por um momento, desafiador. Gregg queria que o Titereiro ficasse quieto, mas ele ainda gritava quando as barras mentais foram erguidas outra vez. O Titereiro espumava de raiva. Você é a porra da marionete, ouviu bem? Vou te deixar no chão! Entendeu? Você precisa disso tanto quanto eu. Se eu morrer , você morre. Você não é nada sem mim. Gregg suava com o esforço, mas conseguiu vencer. Fechou os olhos e recostou-se na parede do elevador, que sacudiu e parou no térreo. O Titereiro fez um silêncio taciturno lá dentro. Amy o olhava, preocupada. As portas se abriram, e Gregg foi atingido pelo ar fresco e pelo barulho do saguão. Algumas pessoas da multidão — a maioria com buttons e chapéus de Hartmann — o viram. Gritos ecoaram pelo ambiente, e as pessoas, agitadas, foram em sua direção. Mais do que depressa, os homens do serviço secreto que o aguardavam formaram uma barreira, contendo os partidários. Gregg acenou e sorriu. Todos começaram a entoar: “Hartmann! Hartmann!” O saguão ecoava a saudação. Amy balançou a cabeça. — Que circo, hein? Ray levou Gregg para a sala particular, onde ele encontraria Hiram e Braun. Em seguida, assumiu seu posto do lado de fora. Gregg entrou. O ar-condicionado ali era mais opressor do que o do saguão. Ele estremeceu e esfregou os braços. Apenas Jack — o Golden Boy — estava presente: um homem alto, bonito, que parecia não ter envelhecido um dia nas últimas quatro décadas, desde o apogeu dos Quatro Ases, ainda parecia a estrela de cinema que fora um dia. Ele se levantou para cumprimentar Gregg. Braun parecia com o rabinho entre as pernas, o que não foi muita surpresa. Gregg não achava que Jack fosse gostar muito da tentativa de reconciliação. Francamente, ele não dava a mínima se Jack estava feliz ou não: faria os dois enterrarem aquela contenda. Ao menos publicamente. — Senador, Amy — cumprimentou Braun. Seus olhos ficaram pousados mais tempo do que o necessário em Amy. O que também não surpreendeu Gregg: sabia que estavam tendo um caso. O Titereiro sabia muitas coisas ocultas. — Bom dia. Como está Ellen? — Maior a cada dia — respondeu Gregg. — E muito cansada. Como todos nós.
— Nem me fale. Pronto para começar a labuta? — Achei que já tinha começado, Jack — comentou Gregg. Sua voz soava melancólica e irritada em comparação com a cordialidade de Braun. Ele se obrigou a sorrir. Braun olhou para Gregg de um jeito estranho, mas deu risada. — Dá para dizer que sim. Você conhece os californianos: já é ruim que todos estivessem sofrendo de jet lag. Passei a noite de ontem quase toda com seus superdelegados indecisos. Acho que já resolvemos as coisas. Ei, achei que você tivesse dito que Worchester estaria aqui. — Você não o viu hoje de manhã? — Gregg franziu o cenho, irritado. — Ainda não. E não que ele vá recusar um café da manhã… mas acho que ele deve trazer a própria refeição. Ouvi dizer que ele não considera nem o Bello Mondo de seu agrado. — Jack fez careta e deu de ombros. — Ei, sei que o motivo de você convocar esta reunião era para fazer nós dois acertarmos nossas diferenças, e agradeço a consideração… Também gostaria de que isso acontecesse. Mas talvez Hiram não esteja tão disposto a perdoar quanto você pensa. — Não acredito nisso, Jack. Jack abriu um sorriso meio torto e amargo. — Ele nunca lhe serviu um prato de trinta moedas de prata. — Amy… — começou Gregg. — Já estou indo, senhor — disse a assistente. — Vou encontrá-lo, ou morrerei de fome tentando. Guarde um pãozinho para mim, está bem? Quando ela saiu do recinto, Gregg virou-se para Braun. — Tudo bem, vamos comer. Se Hiram aparecer, apareceu. — As palavras saíram mais ríspidas do que pretendia. Não estava com disposição para joguinhos, não com o Titereiro esmurrando seus bloqueios. Braun o encarava de um jeito estranho outra vez, mas, antes que o ás pudesse dizer alguma coisa, Gregg balançou a cabeça e afastou a raiva. — Meu Deus, isso soou muito mal, Jack. Desculpe. Não estou muito bem, hoje. Por favor, me leve até uma cafeteira. ♥ Estranho, pensou Jack. Nunca se sentira desconfortável na presença de Gregg Hartmann. Ainda assim, estava ali, cara a cara com o homem que esperava ser o próximo presidente, o homem que o convencera a sair de seu isolamento público e juntar-se à sua cruzada pelo cargo… mas estava faltando alguma coisa. Estou cansado, pensou Jack . Gregg também. Ninguém consegue ser carismático o tempo todo. Serviu-se de café. A xícara tilintou no pires — culpa da ressaca, talvez, ou do nervosismo. Não fosse a convocação de Gregg para esse encontro, não estaria ali. — Vi um carro cheio de nazistas lá fora — comentou. — Nazistas uniformizados. — A Klan também está aqui. — Hartmann balançou a cabeça. — Pode haver
um confronto sério. A direita maluca gosta desse tipo de coisa… dá publicidade. — Sorte que o Tartaruga está por aí. — É mesmo. — Hartmann o encarou. — Você não conheceu o Tartaruga, conheceu? Jack ergueu a mão. — Por favor. — Ele sorriu para cobrir o nervosismo. — Vamos nos resumir a uma reconciliação por dia, tudo bem? Hartmann fez careta. — Tem algum problema entre vocês? Jack deu de ombros. — Não que eu saiba. Só… supus que haveria. Hartmann foi até Jack e pousou uma das mãos em seu ombro. Seus olhos estavam cheios de preocupação. — Você supõe coisas demais, Jack . Acha que todo mundo se ressente por conta do seu passado, e isso não é verdade. Você precisa baixar a guarda, deixar que o conheçam melhor. Jack encarou o café girando na xícara e pensou em Earl Sanderson voando em círculos até despencar aos seus pés. — Está bem, Gregg. Vou tentar. — Você é importante para esta campanha, Jack . É o chefe da delegação da Califórnia. Eu não teria escolhido você se não fosse o cara certo para o trabalho. — Você poderia se queimar um pouco por minha causa. Eu avisei. — Você é importante, Jack . É o símbolo de uma coisa ruim que aconteceu muito tempo atrás, uma coisa que estamos tentando impedir que aconteça outra vez. Os outros Quatro Ases foram vítimas, mas você também foi. Eles pagaram com a prisão, o exílio ou a vida, mas você… — Hartmann abriu um sorriso meio maroto, meio culpado. — Talvez você tenha pagado com seu amor-próprio. Quem disse que isso não é o que vale mais, a longo prazo? A agonia deles terminou, mas a sua, não. Acho que tudo foi resolvido de forma justa e equilibrada, muito tempo atrás, acho que todo mundo pagou um preço alto demais. — Ele deu uma apertadinha no ombro de Jack. — Precisamos de você. Você é importante para nós. Fico feliz que esteja conosco. Jack encarou Hartmann, o ceticismo ressoando em sua mente como sinos de um funeral. Será que Gregg estava falando sério? Achava mesmo que vidas, sanidade e ser preso se equiparavam com sua mísera perda de dignidade? Hartmann só podia estar rindo por trás daquela expressão sincera. Estava zombando dele. Jack balançou a cabeça. Desde quando o conhecera, a bordo do Cartas Marcadas, Hartmann fora um homem que conseguia fazê-lo sentir-se bem consigo mesmo. O que ele lhe dizia agora não era substancialmente diferente do que dissera antes. Mas a mensagem parecia refletir a postura de um político, não a de um amigo preocupado. — Tem alguma coisa errada, Gregg? — indagou Jack . Hartmann baixou a mão, virando-se um pouco de lado. — Desculpe — pediu. — A vida anda um pouco complicada. — Você precisa descansar.
— Acho que todos nós precisamos. — Hartmann pigarreou. — Charles me disse que você fez um ótimo trabalho, ontem à noite. — Deixei alguns congressistas bêbados e arranjei umas transas, só isso. — Hartmann deu risada. — Charles me deu os nomes e números dos quartos. Vou telefonar para eles assim que terminar o café da manhã. Quem sabe… A porta se abriu. Jack se sobressaltou, derramando café. Ele se virou e, em vez de Hiram Worchester, viu Amy. Envergonhado com seu nervosismo, pegou um guardanapo. — Desculpem a interrupção, cavalheiros. Acabei de receber um telefonema do Peludo, no Bairro dos Curingas. Temos um problema em potencial. Crisálida acabou de ser encontrada morta, em Nova York . Envolve algumas capacidades de ases. Uma sensação de surpresa invadiu a mente de Jack. Passara meses com a Crisálida a bordo do Cartas Marcadas e, embora nunca tivesse se sentido confortável perto dela — com os músculos e órgãos visíveis através da pele transparente, ela o lembrava muitas coisas que vira na Segunda Guerra Mundial e na Coreia —, Jack desenvolvera uma admiração abstrata pela maneira com que Crisálida lidava com sua deformidade, pelo sotaque sofisticado, a cigarrilha, o jogo de cartas antigas e o temperamento seco. O rosto de Hartmann ficou rígido. Quando o candidato falou, a voz saiu tensa. — Mais detalhes? — Ao que parece, foi espancada até a morte. — Amy comprimiu os lábios. — Barnett pode criar alguma propaganda com isso… Mais “violência de carta selvagem” que precisa ser controlada. — Eu e ela nos conhecíamos bem — comentou Hartmann, com a voz tensa. O rosto inexpressivo mais parecia uma máscara, algo incomum num homem tão aberto com os amigos. Jack se perguntou se haveria detalhes dessa morte que ele não ouvira. — Tony Calderone chegou ontem, tarde da noite — acrescentou Amy. — Você devia pedir a ele para preparar uma declaração, caso Barnett tente usar isso. Hartmann respirou fundo. — Sim. Vou ter que fazer isso. — Ele se virou para Jack. — Jack, acho que vou ter que deixá-lo. — Devo ir embora também? A preocupação invadiu os olhos de Hartmann outra vez, quando ele encarou Jack. — Eu gostaria muito que você ficasse. Você e Hiram Worchester são dois de meus apoiadores mais famosos… Significaria muito para mim que vocês conseguissem resolver suas diferenças. Jack pensou por um momento, se perguntando se por acaso Judas e São Paulo alguma vez resolveram as diferenças. Ele suspirou. Teria que acontecer mais cedo ou mais tarde. — Eu não tenho nenhum problema com Worchester, Gregg. Ele é que tem problemas comigo. Hartmann abriu um sorriso.
— Ótimo — respondeu. Ele ergueu a mão e apertou o ombro de Jack de novo. O recinto parecia muito vazio depois que Hartmann e Amy saíram. Jack ficou olhando para o café da manhã que esfriava na mesa do bufê. Em sua mente, o planador de Earl não parava de cair.
9h00
— Sara — chamou Ricky Barnes —, você precisa parar com essa coisa de Hartmann. Está te deixando maluca. Você está parecendo obsessiva compulsiva. Estavam sentados diante de uma mesa redonda coberta por um encerado verde quadriculado perto da vitrine do Le Peep’ s. Lá fora, um bando de delegados do interior, todos com gravatas escandalosas, pairava sobre o intestino retilíneo e azulejado do Peachtree Center, seguindo para o saguão do Hyatt. Mais delegados competiam por espaço com samambaias, tentando tirar sustento da fraca cozinha do New Egg. Era isso, fast-food ou os restaurantes de hotel, com listas de espera até a virada do século. — A Roling Stone disse que é a doença dos anos 80 — comentou Sara Morgenstern, dissecando sua omelete com o garfo. O cabelo loiro-acinzentado passou do lado direito da cabeça para o esquerdo. Ela usava um vestido rosa simples que ia até os joelhos cruzados. As meias eram bem pretas, e os sapatos de salto Anabela, brancos. Barnes deu uma bocada em sua omelete de tofu e espinafre. O casaco perfeitamente preto de duas peças estava pendurado no espaldar arredondado da cadeira. Com suspensórios e camisa branca, Barnes poderia ter se passado por um ministro sulista da Igreja Metodista da época de O vento será tua herança, exceto pelos óculos caros com armação retrô de ouro. — Está numa concorrência acirrada com a AIDS — concordou. — Mas, falando sério, você está longe de arranjar aqueles furos costumeiros do Bairro dos Curingas. A editoria de Washington está lidando com tudo que vem de fora de Atlanta esta semana, e eles não vão ser indulgentes com as histórias fracas, como o escritório de Nova York . O Senador Gregg é o bichinho de estimação do Post. É como se a própria Katie Graham o tivesse inventado. Eles não vão ficar felizes com você jogando pedras. — Somos jornalistas, Ricky — retrucou ela, inclinando-se para a frente e estendo a mão, como se para tocar a dele, que estava pousada ao lado do prato. Dedos brancos pararam a milímetros dos dedos morenos. Ricky não reagiu. Era um velho amigo que fizera o seminário de jornalismo dela em Colúmbia, poucos anos antes, e Sara sabia que a reticência nada tinha a ver com sua raça. — Precisamos expor a verdade. Ricky balançou a cabeça alongada e de cabelos bem cortados. — Sara, Sara. Você não é tão ingênua assim. Relatamos o que os donos dos jornais querem, ou o que nossos colegas desejam. Se algum aspecto da verdade por acaso for inconveniente, não atrai muito interesse. E o que é a verdade, afinal? — A verdade é que Gregg Hartmann é um assassino e um monstro. E eu vou expor esse homem. ♣
Jack levou um susto quando Hiram Worchester entrou no recinto, cambaleando. Por reflexo, começou a se levantar antes de decidir não fazê-lo. Recostou-se de volta na cadeira, com o café e o cigarro. Ele e Hiram estiveram no Cartas Marcadas juntos: mesmo que não fossem amigos, formalidades não eram necessárias. Hiram parecia não ter dormido. Avançou em silêncio até o bufê, pegou um prato e começou a se servir. Jack sentiu a transpiração salpicar o couro cabeludo. Seu coração parecia mudar de ritmo a cada poucos segundos. Perguntou-se por que diabos estava tão nervoso. Deu um grande trago no Camel. Hiram continuou enchendo o prato. Jack ponderou se seu carta selvagem de repente se transformara em invisibilidade. O recém-chegado se virou e sentou-se diante de Jack. No Cartas Marcadas, Hiram usava seu controle de gravidade para remover muito de seu peso, algo que o deixava estranhamente ágil. Não parecia estar fazendo o mesmo naquele momento. Olhou para Jack com os olhos baços, indiferentes. — Braun — cumprimentou. — Este encontro não foi ideia minha. — Nem minha. — Você era meu herói, sabia? Quando eu era jovem. Um dia, todos temos que crescer, pensou Jack, mas decidiu não falar aquilo em voz alta. Deixaria que o sujeito tivesse seu momento. — Eu mesmo nunca aleguei ser um herói — continuou ele. Jack teve a sensação de que aquele discurso estava sendo preparado havia algum tempo. — Sou um homem gordo, dono de um restaurante. Nunca fui capa da Life nem estrelei um longa-metragem. Mas, independentemente disso, sou leal aos meus amigos. Que bacana para você, camarada. Dessa vez, Jack quase falou. Mas pensou em Earl Sanderson pairando até cair no chão do Marriott e não disse nada. Piscou para tirar o suor dos olhos. Por que estou fazendo isso comigo mesmo? Hiram prosseguiu com a fala robótica. — Gregg me disse que você fez um bom trabalho na Califórnia. E que poderíamos ter perdido sem as celebridades e o apoio financeiro que você trouxe. Sou grato por isso. Mas gratidão é uma coisa, confiança é outra. — Eu não confiaria em ninguém do mundo da política, Worchester — retrucou Jack. Em seguida, se perguntou se aquela amostra de ceticismo moderno era real, já que de fato confiava em Gregg Hartmann, sabia que era um sujeito genuinamente bom e queria que ele vencesse mais do que quis qualquer coisa nos últimos trinta anos. — É importante que Gregg Hartmann vença essas eleições, Braun. Leo Barnett é o Nur-al-Allah com trajes norte-americanos. Você se lembra da Síria? Dos curingas apedrejados até a morte nas ruas? — Havia um brilho esquisito nos olhos de Hiram. Ele ergueu a mão e cerrou o punho, esquecendo que ainda estava segurando metade de uma rosquinha. — É isso que está em jogo aqui, Braun. Eles vão fazer qualquer coisa para nos impedir. Vão subornar, difamar, seduzir, recorrer à violência. E onde você vai estar , Braun? — Ele elevou a voz. — Onde você vai estar quando a pressão de verdade começar?
De repente, o nervosismo de Jack desapareceu. Sentiu uma raiva fria zumbindo dentro de si. Já ouvira demais. — Você… não estava… lá — declarou. Hiram hesitou, então reparou na massa da rosquinha vazando entre os dedos da mão erguida. — Você… não estava lá… porra. As palavras saíram rangendo lentamente de um lugar dentro de Jack que mais parecia um cemitério no ocaso: um lugar sem calor, uma planície infinita de grama outonal marcada com pedras cinzentas que indicavam a passagem de Earl, de Blythe, de Archibald Holmes, de todos os jovens que conhecera na Quinta Divisão, todos os que morreram cruzando o rio Rapido, pequenas figurinhas espalhadas como muitos punhados de terra embaixo das armas inclementes de Cassino… Jack se levantou e jogou o cigarro longe. — Para alguém que não alega ser um herói, Worchester, você com certeza faz grandes discursos. Talvez devesse considerar a carreira política. Com movimentos rápidos e astutos, Hiram limpou a massa de rosquinha da mão usando um guardanapo. — Falei para Gregg que você não era confiável. Ele me disse que você tinha mudado. — Talvez ele esteja certo — retrucou Jack . — Talvez esteja errado. A questão é: o que você pode fazer quanto a isso? Hiram jogou o guardanapo longe e se levantou erguendo todo o volume do corpo, uma montanha pálida se preparando para a batalha. — Posso fazer o que for preciso! — respondeu, ríspido. — Isso é mesmo importante! Os lábios de Jack se esgarçaram num sorriso malicioso. — Você não sabe disso. Não foi testado. Você não estava lá. — Soltou uma risada teatral, era um Basil Rathbone de pé no parapeito, zombando dos camponeses. — Todo mundo sabe o que eu fiz, Worchester, mas você ainda não foi pressionado. Ninguém nunca te pediu para trair seus amigos. Você não estava lá, e não pode saber o que faria ou não até acontecer com você. — Ele sorriu de novo. — Pode acreditar. Hiram pareceu murchar diante do sorriso de Jack. Então empalideceu e, para surpresa de Jack , pareceu cambalear para trás e cair. Os parafusos da cadeira estouraram quando Hiram caiu sentado. Ele puxou a gola da própria camisa como se estivesse engasgando, revelando um hematoma feio no pescoço. Jack o encarou, surpreso. A montanha de granito derretera como marshmallows. E, de repente, Jack sentiu-se muito esgotado. Um resíduo leve da ressaca latejou em suas têmporas. Não queria mais olhar para Hiram. Avançou para a saída. Mas parou ao lado da porta. — Estou aqui por Gregg. Acho que o mesmo vale para você. Então, vamos dizer ao Gregg que somos melhores amigos e vamos fazer o que for preciso. Tudo bem?
Ainda puxando a gola da camisa, Hiram assentiu. Jack foi para o corredor e fechou a porta da sala. Sentia-se como um colegial valentão provocando o gordinho da sala. Do fundo do corredor veio o grito rouco dos membros da convenção em seu primeiro dia na cidade. Jack seguiu na direção dele.
10h00
Gregg estava cansado de falar com os delegados para quem Jack arranjara transas na noite anterior. Estava cansado de parecer animado. Alex James já era uma marionete desde o início da campanha. Grande parte do pessoal extra do serviço secreto atribuído a Gregg era desinteressante para o Titereiro, muito dedicado e sem falhas ocultas das quais se alimentar. Mas Alex… ah, Alex passou com tranquilidade na bateria de exames psicológicos e verificação de antecedentes. Como a de Billy Ray, a alma de Alex era mesclada com um vestígio delicioso de sadismo, manchada com a ânsia verde-jade de ostentação e abuso de poder. Tirando isso, ele talvez fosse apenas um pouco zeloso demais em suas funções, um tanto ríspido quando afastava as pessoas, preferindo confrontar a situação a aliviá-la. Ninguém teria notado. Mas o Titereiro sabia. O Titereiro via todas as brechas na cobertura de uma alma e sabia melhor do que ninguém como abri-las ainda mais. Gregg estava sentado na sala de estar da suíte. A televisão Zenith pregada à parede do gabinete estava ligada na CBS, com a cobertura de Dan Rather sobre o início da convenção. Com muito zelo, Gregg abaixou as barras que controlavam o Titereiro. O poder avançou, buscando a presença de Alex. Havia pouco tempo, Gregg vira o homem no corredor fora do quarto, e sabia que Ray acabara de mandar que ele verificasse as escadarias. Sempre tinha gente nas escadas: lobistas procurando um caminho até os andares do candidato, repórteres, tietes ou apenas curiosos. Havia boas chances de Alex encontrar alguém. O Titereiro estendeu suas garras e se infiltrou nos recessos familiares da mente do vigia. Dessa vez, disse a força, com um suspiro. Dessa vez. Tenha cuidado, alertou Gregg. Lembre-se do que aconteceu nas últimas vezes. Vá com calma. O Titereiro respondeu com um rosnado. Cale a boca! Está tudo bem. Tudo voltou a fluir do nosso jeito. Finalmente deram um jeito na Crisálida. Estranheza vai encontrar a jaqueta e mandamos Mackie atrás de Downs. A convenção começou bem. Preciso disso. Não consegue sentir a fome? Lembre--se: se eu cair , você cai comigo. Vou garantir que isso aconteça, ouviu? Com a ameaça, o poder se afastou voraz e repentinamente. Através do Titereiro, Gregg conseguia sentir uma onda de ansiedade em Alex. Sabia o que aquilo devia significar — o guarda encontrara alguém. Gregg podia imaginar a cena: um desses jovens ativistas — provavelmente um dos seguidores dos ensinamentos de Nat King Cole — vestido com calças jeans desbotadas, uma camiseta larga cheia de buttons de “Hartmann 88” e uma máscara barata do Bairro dos Curingas cobrindo o rosto perfeitamente ordinário. Alex encarando o sujeito, as mãos perto demais da saliência da jaqueta esportiva, berrando ordens. O Titereiro penetrou a matriz emocional de Alex, jogando para longe as pesadas camadas azuis de dever e a ligação amarronzada de moralidade até descobrir aquele núcleo vermelho-alaranjado de brutalidade psicótica. O
Titereiro alimentou o núcleo, abanando-o até ficar incandescente. O vermelho se avivou sem dificuldade, aquecendo. Agora… (Alex gritando, as veias saltadas no pescoço, as bochechas vermelhas de sangue fervilhante. Estendendo a mão, agarrando a camiseta — os buttons de campanha tilintando como pratos de sobremesa — e sacudindo o adolescente como a um cãozinho desobediente. A máscara caindo no chão, sendo esmagada pelos sapatos Florsheim de Alex.) … sim. O Titereiro sentia o gosto, e Gregg também. Era uma fúria crua, um banquete exposto. O Titereiro se inclinou sobre aquilo, faminto, provocando outra vez as emoções, aumentando um pouco os ajustes… (A mão de Alex avançando, a palma aberta estalando no rosto do jovem, virando a cabeça para o lado. O sangue escorrendo de um corte no lábio, o jovem chorando de medo e dor, subitamente apavorado.) … e aconteceu de novo. Em sua mente, Gregg sentia a interferência como uma parede fria de obsidiana, erguendo-se entre ele e Alex e fazendo o Titereiro cambalear para trás. O poder dentro de Gregg uivou de frustração e ódio, lançando-se contra a parede diversas vezes, mas sempre sendo repelido. Gregg ouvia a gargalhada por trás da parede, aquela voz quase inaudível. Só daquela vez, daquela vez, ele conseguiu ouvir as palavras. Você é um filho da puta, Hartmann, mas eu finalmente encontrei um jeito de te derrubar , não é? Encontrei a porra da sua fraqueza, Greggie, meu velho amigo. Encontrei o camaradinha desgraçado dentro de você, o ás que você usou em mim, em Misha, em Morgerstern e em todos os outros. Só que agora eu posso brincar com o seu ás do jeito que você brincou com a gente. Posso manter ele longe das marionetes; deixá-lo morrendo de fome, essa desgraça. E aí o que vai acontecer com você, senador? O que vai acontecer quando o seu poder se voltar contra você? As palavras diminuíram de volume, deixando para trás uma risadinha zombeteira. E Gregg, com horror crescente, reconhecia aquela voz. Sabia quem estava por trás da parede, e sabê-lo o deixava gelado e trêmulo. Gimli. Era Gimli. Você está morto, gritou para a voz. Você está morto, eu vi sua pele empalhada no Museu Popular . Croyde Tifoide matou você. Morto? A gargalhada soou de novo. Eu pareço morto para você, Hartmann? Pergunte se sou real a esse amigo que você mantém trancado dentro de si. Não, não estou morto. Só mudei um pouco. Levei um tempo para conseguir voltar… A voz diminuiu e desapareceu. A parede sumiu. O Titereiro berrava coisas incompreensíveis para o lugar onde a parede antes estava. Me solte de novo, exigiu o poder. Não é tarde demais, Alex… Não! Gregg olhou para as mãos: estavam tremendo sobre o colo. Sentia o suor escorrendo pelas costas da camisa. A adrenalina pulsava no peito. Queria correr, gritar. A normalidade do quarto do hotel e a voz monótona de Rather pareciam caçoar dele. Estava com muito, muito medo. Você precisa me deixar sair . Não tem escolha. Não!
Não tem escolha, entende? O poder saltou para cima dele, estocando fundo a força de vontade de Gregg. Hartmann ofegou, surpreso, e sentiu sua presença perder a força. As mãos cerraram os punhos , e ele começou a se levantar do sofá. Como um autômato, com as pernas rígidas, o Titereiro o fez andar pela sala. Os músculos do rosto de Gregg estavam travados numa careta dolorida, e espasmos percorriam as pernas enquanto ele lutava para reaver o controle. Indefeso, observou quando sua mão agarrou a maçaneta do quarto, girou-a e abriu a porta. Deus, não… — Gregg? — Ellen estava lendo na cama, o livro apoiado na barriga inchada. — Ponha a mão aqui, o bebê passou a manhã toda chutando. — Ela se virou para olhá-lo, e suas feições aristocráticas e sofisticadas da Nova Inglaterra expressaram confusão. — Gregg? Tá tudo bem? Gregg sentia o corpo todo tremelicando, equilibrado entre a vontade do Titereiro e a própria. Cada um puxava as cordas do corpo, tentando arrancá-las das mãos do outro. Mesmo quando Gregg montou essa imagem na cabeça, o Titereiro escarneceu. Somos a mesma pessoa, sabe? Sou apenas seu ás, seu poder . Estou fazendo o que precisamos fazer para sobreviver . Ellen está aqui. Use-a. Não! Não desse jeito. Ela só é mais uma droga de marionete. Mais maleável que a maioria, inclusive. A dor dela é tão boa quanto a de qualquer outro. É arriscado demais. Não aqui, não agora. Se não for aqui e agora, prepare-se para perder tudo. Vamos, já! Gregg sentiu o corpo dar outro passo cambaleante para a frente. O punho fechou-se e se ergueu. Havia um medo claro nos olhos de Ellen. Ela fechou o livro e se esforçou para se levantar da cama. — Gregg, por favor, você está me assustando… Ele soltou todas as amarras do corpo, como se estivesse cansado da batalha. O Titereiro gritou, vitorioso. Quando os braços se ergueram para o primeiro golpe, e o Titereiro relaxou em antecipação, Gregg agarrou o poder outra vez. Surpreso com o contra-ataque, o Titereiro perdeu o controle. Ignorando a luta e os impropérios, Gregg empurrou-o para o fundo, mais fundo do que ficara em anos, fechando e trancando a gaiola mental, então enterrando-o nas profundezas da mente. Quando não conseguiu mais ouvi--lo, parou e voltou a si. Estava arfando ao lado da cama. A mão ainda erguida, com Ellen encolhida embaixo. Gregg abriu o punho e levou a mão lentamente até o rosto da esposa, enquanto sentava-se ao seu lado. Sentiu-a recuar, depois relaxar aos poucos quando ele começou a acariciar seus cabelos. — Não precisa ter medo de nada, minha querida — disse. Tentou rir, mas, em vez disso, ouviu a dor. — Ei, eu não te machucaria, você sabe disso. Não faria isso com a mãe do meu filho. Nunca machucaria você. — Você parecia tão irritado, tão violento. Por um segundo… — Não estou me sentindo bem. Não é nada. Cólicas estomacais. Nervoso… Estou pensando na convenção. Tomei um Maalox. Vai passar. — Você me assustou. — Desculpe, Ellen — respondeu ele, tranquilizador. — Por favor…
Teria sido tão fácil com o Titereiro. Ele conseguiria fazê-la acreditar no que dizia sem o menor esforço. Mas aquele poder não era seguro, não naquele momento. Ellen o encarou, e ele pensou que a esposa diria mais alguma coisa, mas ela apenas assentiu. — Tudo bem. Tudo bem, Gregg. Ellen se aninhou nele. Gregg recostou-se na cabeceira da cama. Através dos tentáculos diáfanos de sua capacidade de ás, sentia como ela relaxava e esquecia. Desde que engravidara, Ellen ficava cada vez mais ensimesmada. As coisas externas não eram tão importantes. Era menos ameaçador aceitar suas desculpas, então ela as aceitou. A percepção tranquilizou muito pouco sua mente. Meu Deus, o que vou fazer? Ouvia a gargalhada de Gimli. Ela latejava em sua cabeça. O telefone ao lado da cama tocou. Gregg atendeu, pensando que isso talvez afastasse o anão. — Hartmann. — Senador? — A voz do outro lado da linha estava ofegante, agitada. — É Amy. Más notícias. Corre o boato de que teremos uma grande briga hoje à noite pelas credenciais da delegação da Califórnia… Ele mal ouvia a assistente sob a risada trovejante de Gimli. ♠ A ressaca de Jack finalmente cedeu depois de duas doses de vodca. Tinha passado a última hora em sua própria suíte, conversando pelos muitos telefones com Emil Rodriguez, seu segundo em comando, e tentando preparar todos os delegados e informá-los sobre a briga de plataformas que aconteceria no dia seguinte. Ouviu uma batida na porta. Jack disse a Rodriguez que ligaria mais tarde e abriu a porta. Amy Sorenson estava do lado de fora, carregando uma pilha de papéis de coletiva num envelope. Seus cabelos castanhos estavam presos no alto da cabeça. — Oi, Amy. — Jack beijou-a com carinho, depois puxou-a mais para perto e tentou beijá-la de novo. Ela virou o rosto. — Agora não, Jack. Não estamos em Buenos Aires. Meu marido está aqui. Jack suspirou. — Então você veio aqui a negócios. Amy se desvencilhou dos braços dele e ajeitou o terninho azul sedutor. — Prepare-se — disse ela. — Tenho más notícias. — Estou preparado. Estou constantemente preparado há meses. Amy retorceu o nariz para o fedor apavorante de tabaco, bebida e restos de perfume. Ela se sentou na ponta de uma cadeira e, em seguida, empurrou cuidadosamente um cinzeiro cheio de charutos para longe. Jack puxou uma cadeira e se sentou ao contrário, olhando-a por sobre o espaldar. — O que foi? — Você não vai gostar disso. Vai ter uma grande briga de credenciais hoje à noite por conta da delegação da Califórnia.
Jack a encarou. — O pessoal de Jackson vai cair em cima da gente. Estão alegando que uma primária com o vencedor levando tudo é inerentemente discriminatório contra as minorias. — Besteira. — A resposta de Jack foi imediata. — Desde que me entendo por gente, na primária da Califórnia o vencedor sempre leva tudo. — A contestação dá a todos uma chance para desmembrar nosso maior bloco de delegados, e fazer isso por uma causa justa. — Seguimos todas as regras. Vamos vencer a primária jogando limpo. Amy parecia exasperada. — As regras são as que a convenção define, Jack. Se tirarem nossos delgados, abrem a convenção para uma série de batalhas parlamentares e processuais que poderia bagunçar tudo. É o que Jackson, Gore e Barnett querem… Se as coisas ficarem caóticas, as chances deles de conseguirem a nomeação aumentam. Se puderem nos foder e encontrar uma derrota processual antes do primeiro escrutínio, vão ficar esperando angariar desertores do nosso lado durante o segundo escrutínio. — Ótimo. Que ótimo. — Engraçado como ele não conseguia se acostumar com mulheres que usavam palavras como foder. Caramba, ultimamente, Jack não conseguia se acostumar com homens que usavam palavras como aquelas. Uns dias, mais do que em outros, ele se sentia uma relíquia. — O confronto todo vai ser sobre os livros de regras e quem pode manipulálas melhor. Quem é o especialista parlamentar da delegação? Jack se remexeu na cadeira, desconfortável. — Acho que sou eu. — Você sabe alguma coisa sobre procedimento parlamentar? Jack pensou um pouco. — Já estive em muitos conselhos corporativos. Você ficaria surpresa com alguns truques que tenho na manga. Amy suspirou. — Conhece Danny Logan? Ele é nosso especialista parlamentar de campanha. Quero que você pegue instruções com ele. — Da última vez que vi Logan, ele estava caído embaixo de um banquinho de bar no Aeroporto Internacional de Los Angeles. Os olhos de Amy faiscaram. Ela tirou os cabelos castanhos dos olhos. — Hoje ele vai estar sóbrio, eu prometo. Jack refletiu por um instante. — Nós temos os votos? — Não sei. Dukakis está cercando, como sempre. Quem pode nos salvar são os superdelegados. A maioria é de congressistas e senadores que fariam de tudo para impedir um derramamento de sangue. Podem votar na gente só para manter tudo no eixo. E, claro, conhecem Gregg muito melhor do que conhecem Duke e Jackson, sem falar em Barnett. — Isso é loucura. — Os democratas não têm uma convenção que passe do primeiro escrutínio desde 1932. Todo mundo vai improvisar um pouco.
Jack pousou o queixo nas mãos grandes. — Eu me lembro dessa convenção. Minha família acompanhou pelo rádio. Éramos Roosevelt até o último fio do cabelo. Eu me lembro de meu pai abrindo uma garrafa de bebida ilegal quando Jack Garner, do Texas, desertou de Smith e deu a nomeação a Roosevelt. Amy sorriu para ele. — Eu ainda penso em você como minha indiscrição… mais jovem. Não consigo imaginá-lo com idade suficiente para ter vivido esses tempos. — Até Gregg chegar, o único candidato à presidência em quem votei foi Roosevelt, em 1944, quando eu estava fora do país. Antes disso, eu era jovem demais para votar. Em 1948, não consegui me decidir entre Truman e Wallace, então não dei meu voto para ninguém. — Você quase votou em George Wallace? — Amy parecia um pouco chocada. — Não parece muito o seu estilo. Jack sentiu-se terrivelmente velho. — Henry Wallace, Amy. Henry Wallace. — Ah, desculpe. — Só para deixar bem claro: o Roosevelt que mencionei foi o Franklin, não o Teddy. — Disso eu sei. — Ela abriu um sorriso. — Como foi a reunião com Hiram? Posso perguntar? Jack balançou a cabeça. — Foi estranha. Realmente não sei o que pensar. — Ele olhou para a assistente. — Worchester está bem? Achei que estivesse doente. Ele não parecia muito saudável. — Hum… — Está com uma ferida grande no pescoço. Li em algum lugar que ferimentos como aquele podem ser sintomas de AIDS. Amy piscou várias vezes, surpresa. — Hiram? Jack deu de ombros. — Não conheço o cara, Amy. A única impressão que tive foi de que ele realmente não tinha interesse em mim. — Bem. — Ela arriscou um breve sorriso. — Acho que isso significa que vocês se deram bem. — Pelo menos ele não me chama mais de Judas. — Isso é animador. — Ela inclinou a cabeça e o encarou. — Conheci uma celebridade hoje de manhã. Josh Davidson. Você o conhece? — O ator? O que ele está fazendo aqui? — A filha dele é uma das nossas delegadas. Ele veio como observador. Achei que vocês pudessem se conhecer, por serem atores e tudo o mais. — Tem alguns atores que eu não conheço. Sério. — Ele é muito charmoso. Bem refinado. Jack sorriu para ela. — Parece que está considerando uma indiscrição… hum… mais velha. Amy gargalhou.
— Bem, talvez, se ele fizesse a barba. — Duvido. A barba é uma de suas marcas registradas. Um dos telefones de Jack tocou. Ele olhou para a fileira de aparelhos na bancada e tentou descobrir qual seria. Amy se levantou. — Preciso ir, Jack. Deve ser Danny Logan. — É. — Táticas parlamentares, pensou Jack . Ah, que ótimo. Outro telefone começou a tocar. Jack atravessou a suíte e atendeu. Ouviu apenas o som de chamada. Parecia que estava começando um dia daqueles.
11h00
Com um guincho nasal de fúria, Mackie arrancou o calendário do papel de parede manchado. A imagem era de uma vagina de lábios abertos, apresentada para sua aprovação — que não viria —, emoldurada por pelos pretos e a pele morena da coxa, além do sorriso hesitante de uma porto-riquenha pairando a certa distância. Mackie fez os dedos zumbirem e os passou pela foto. Pedaços da mulher voaram para todos os lados, um alvoroço e uma chuva de papel colorido. Aquilo o fez se sentir melhor. Era quase tão bom quanto a realidade. Mas embora pudesse ser um alívio, em nada servia para abrandar sua irritação, para começo de conversa: o homem que ele fora matar não estava ali. Mackie não lidava bem com decepções. Talvez, se esperasse um pouco, Digger Downs voltaria para casa. Deu um chute numa mesa baixa de chapeado claro, parecido com madeira, comprada em alguma loja barata e foi para a cozinha — os tabloides, tabelas de corridas de cavalo e edições do Photo District News voaram para o chão como pássaros feridos. O estéreo SounDesign na estante de tijolos e tábuas cuspia música eletrônica nas costuras gastas às costas de sua jaqueta de couro. O refrigerador era um automóvel de Detroit dos anos 1950: grande e volumoso, com faixas cromadas que haviam perdido o brilho falso muito tempo antes. Só faltavam as barbatanas. Ele abriu a porta com tudo. Lá dentro havia um monte de caixinhas de papelão com restos de fast-food; metade de um sanduíche enterrado em papel filme, a carne já com tons de bolor; uma caixa de ovos com a tampa arrancada e duas das cascas furadas, como se espetadas por um dedão bêbado enquanto algum de seus camaradas estava prestes a fazer uma omelete de ressaca; dois fardos de seis latas de Little King e um de refrigerante sem rótulo; além de potes plásticos de margarina cheios disso e daquilo, a maioria mofo. Havia alguns cilindros cinzentos de plástico que obviamente continham rolos de filme. Mackie os abriu e desenrolou, banhando-os alegremente na iluminação duvidosa de uma lâmpada nua que se projetava do teto como uma hemorroida. Ele fechou a porta, fez uma das mãos zumbir e golpeou. O metal grosso partiu-se com uma chuva de centelhas e uma vibração deliciosa que subiu pelo braço e chegou até o pau. Só pele era mais divertida de cortar que o bom e velho metal. Agarrou o refrigerador, empurrou-o, sacudindo-o com uma força surpreendente para seu corpo pequeno, magro e deformado, e empurrou a coisa para longe com uma pancada satisfatória no linóleo rachado. Em seguida, voltou a atenção para os armários que ladeavam a pia, cheios de pratos que emanavam um cheiro frutado, fecal e avinagrado, com uma crosta de sujeira que daria para enterrar uma colher. Os armários eram revestidos de camadas de esmaltado brilhante, como as
mãos das esposas de evangelistas de TV. Embora não parecesse que tinham sido esmaltados nos últimos tempos, soltavam um cheiro de pintura misturado a eras de fumaça de cigarro que permeavam os gabinetes até as fundações de madeira, cujo estado competia com a podridão orgânica da pia. Dentro dos armários havia dezesseis sacos de Doritos, duas latas de feijão — uma delas aberta, devolvida e esquecida durante as laricas — e uma caixa de Sucrilhos. O tigre Tony parecia adoentado. Os feijões tinham cheiro de gato morto. — Aqui é Randy St. Clair, e daqui a pouco estarei de volta com mais música da sua cidade na WBLS-FM, 107.5, no fim do dial — dizia o rádio, quando ele voltou para a sala de estar. — Mas primeiro, nas notícias de última hora, Sandy vai nos contar como os delegados estão se preparando para uma semana longa e quente de verão em Atlanta e também comentará sobre os relatos constantes do genocídio na Guatemala. Também trará as últimas notícias sobre o horrível assassinato de uma celebridade no Bairro dos Curingas. Sandy? Ele franziu o cenho. Era uma pena o que aconteceu com Crisálida. O Homem tinha prometido que o próprio Mackie um dia poderia matá-la. Mas ele nunca saberia como é botar as mãos naquela pele transparente como vidro. Era uma nova chateação, e aquilo o deixou irritado outra vez. Foi de cômodo em cômodo do apartamento apertado, quebrando o que encontrava pela frente, alternando entre o desvario e o exame calculado: isso vai me fazer sentir melhor? O vandalismo servia como droga sintética. Num canto da cama havia uma pilha de livros: francês, técnicas de câmara escura, um texto policial sobre investigações. Não havia colcha. O lençol era estilo tie-dye com fluídos corporais do tipo que seria melhor restringir ao látex e não fazer em contato físico. Rasgou tudo aquilo. Quando saiu, estava começando a ficar incomodado com Downs outra vez. Der Mann não ia gostar nada daquilo, nem um pouquinho. Bem, Downs não estava ali. O Homem nem poderia culpá-lo; não era culpa dele. Foda-se. Desintegrou o corpo, atravessou a parede e saiu do apartamento. Quando o fez, uma porta no final do corredor se abriu. — Estou dizendo, são aqueles chineses — ia dizendo uma mulher, naquele tom alto e choroso que, para Mackie, fazia os nova-iorquinos parecerem grandes insetos gorduchos. — São todos traficantes, sabe? Eu aprendi tudo sobre eles no 60 Minutes. Esse Sr. Downs é meio que um repórter investigativo com visão social. Imagino que tenha se aproximado demais deles, e a máfia chinesa mandou alguém para revirar o apartamento. Devia ter uma dezena deles, pelo barulho que faziam. Com marretas e serras elétricas. A mulher atravessou o corredor como um reboque no East River, com um roupão e pantufas peludas e fluorescentes cor-de-rosa, um lenço cobrindo os bobes no cabelo e um zelador em seu encalço. O zelador era um homem negro, não muito mais alto que Mackie, com bigode e cabelos pontilhados de fios grisalhos saindo de trás e debaixo de um boné de beisebol do Expos de Montreal. Usava um sobretudo cinzento e manchado de tinta. Meneava a cabeça distraidamente para a mulher enquanto murmurava sozinho, agitando o enorme chaveiro em busca da chave mestra para abrir o apartamento de Digger. Ele não notou Mackie.
Mas a mulher notou. E gritou. Ele sorriu. Era a coisa mais bela que tinham lhe dito durante todo o dia. O zelador o encarou, a boca aberta num grito róseo no rosto negro. Mackie sentiu as mãos vibrarem sozinhas. No fim das contas, não seria uma viagem perdida. ♦ Jack viu as estranhas pirâmides vermelhas que lembravam algum tipo estranho de azulejo acústico coroando o Omini Center, então seguiu na direção delas. Perdera-se no Peachtree Center enquanto procurava cigarros e acabou pegando o caminho errado para a convenção. O Centro Omini de Ted Turner fora construído com um novo tipo de aço, projetado para enferrujar. A teoria era que a ferrugem protegeria o aço abaixo, e, pelo que Jack vira — e ele construíra muitos prédios nos últimos trinta anos —, a teoria era perfeitamente correta. Mesmo assim, o prédio era horrível. Estava se aproximando de uma das entradas dos fundos. Um guarda uniformizado estava diante da porta fechada. Jack assentiu para os óculos do homem antes de tentar passar. — Espere um minuto. — A voz do guarda era ríspida. — Aonde pensa que vai? — À convenção. — Ah, não vai, não. Jack olhou para ele. Connally, dizia o distintivo do sujeito. Tinha o nariz quebrado e uma pequena cruz cristã de prata presa à gola. Ótimo, pensou Jack . Deve ser partidário de Barnett. Tirou sua identificação e credencial de entrada do bolso e as balançou diante do rosto do guarda. — Sou delegado. Posso entrar. — Ninguém passa por essa porta. Nunca. Essas são minhas ordens. — Mas eu sou delegado. Connally pareceu reconsiderar. — Tudo bem. Deixe-me ver a identidade. Jack a entregou. Connally estreitou os olhos enquanto a examinava. Quando o encarou de volta, havia um sorriso maldoso no rosto. — Você não parece ter 64 anos — comentou. — Estou bem conservado. O guarda pegou o walkie-talkie. — Aqui é o Connally. Situação três. Jack agitou os braços. — Que diabos é isso? — Está preso, babaca. Passando-se por delegado. — Eu sou delegado. — O Serviço Secreto está a caminho. Você vai poder falar com eles. Jack encarou o guarda com desespero cada vez maior. Então deu-se conta de que ainda era segunda-feira.
12h00
— Demônios e ancestrais. O que você está fazendo aqui? Jack Braun encarou Tachyon com um olhar azedo. — Estou indo para aquele bar. — Seu braço longo apontou para a parte inferior do piano-bar elevado. — Para uma bebida… ou duas… ou três. E se alguém se meter no meu caminho… — Você deveria estar na plenária. — Eu estava tentando chegar à plenária quando um guarda bunda-mole alegou que eu estava me passando por um delegado e mandou me prender. Charles Devaughn precisou me salvar. Então tive uma manhã bastante exigente, Tachyon, e vou tomar umas. — O pessoal de Barnett está fazendo manobras políticas desesperadas para conquistar delegados. Você precisa estar lá para manter a Califórnia unida. — Tachyon, caso você tenha esquecido, eu sou o chefe da delegação californiana. Acho que consigo lidar com isso! — berrou Braun, e vários repórteres, sempre atentos, esticaram o pescoço para ver a briga. — Meu Deus, você é cidadão norte-americano há quanto tempo? Uns cinco, seis meses… E já é autoridade em política dos Estados Unidos. — Tudo o que faço, faço bem — retrucou Tachyon, afetado, mas se esforçando para segurar um sorriso. Braun percebeu e também riu. — Relaxa, Tachyon. Gregg não vai perder a Califórnia. — Jesse Jackson quer falar comigo — comentou Tach, numa de suas mudanças abruptas e desconcertantes de assunto. — E você vai? — Não sei. Talvez fique sabendo de alguma coisa. — Duvido. Jesse é um operador esperto. E, além disso, você não está trabalhando para a campanha de Hartmann. A imprensa precisa ser imparcial, e tudo o mais. Tachyon franziu a testa. — O que você acha que ele quer? — Meu palpite é que ele quer o seu apoio. — Eu não tenho delegados, nem influência. — Besteira. Essas convenções são como um grande dinossauro andando com dificuldade, Tachyon. Um chute na bunda às vezes pode mandar o bicho inteiro para uma direção completamente diferente. Se você passasse a apoiar outra pessoa, muitos curingas também mudariam de lado. As pessoas talvez achem que você sabe de alguma coisa. Poderia pender a balança para Jackson, e é atrás disso que ele está. — Então não vou vê-lo. A convenção já está muito próxima. — Quer beber alguma coisa? — Não, obrigado. Acho que vou até o centro de convenções. Jack começou a subir as escadas. Tachyon encarou as costas largas e os
ombros poderosos do outro e se perguntou se poderia jogar alguns de seus fardos naqueles ombros. — Jack. Algo de sua confusão e medo devia tê-lo absorvido, pois Braun parou no meio da escada e desceu devagar. Pousando as mãos nos ombros de Tachyon, ele franziu o cenho para o homenzinho. — O quê? Que foi? — Você acha… acha possível que um dos candidatos seja um ás? — Onde, aqui? — É, claro que aqui! Não, o candidato para homem da carrocinha em Shawnee, Oklahoma. Não seja estúpido! — Não sou, você só me pegou desprevenido, foi isso. Por quê? Soube de alguma coisa? — Não — respondeu, despreocupado, e a suspeita incendiou os grandes olhos azuis do ás. — É besteira… boataria. Ninguém poderia manter uma coisa dessas escondida da imprensa. Lembre-se de Hart. — Ele era descuidado. — Se você estiver preocupado, melhor verificar. Pode fazer isso com o pé nas costas. — Sim, mas informações recebidas via telepatia não são prova admissível. Aliás, pelo clima atual no país, o que fariam se descobrissem que usei meus poderes mentais alienígenas em potenciais candidatos à presidência? — Arrancariam seu couro extraterrestre e botariam para secar ao sol. — Exatamente. — Tach deu de ombros. — Bem, esqueça. Eu só pensei em mencionar isso… ouvir sua opinião… — A voz foi morrendo. — Esqueça, Tachy. — Jack o sacudiu um pouco. — Tudo bem? — Tudo bem. — Agora vou pegar minha bebida. — Não demore muito! — gritou Tach, atrás dele. — Ah, vá para o inferno. ♥ — Uísque americano. Puro. Um duplo. Dois duplos. — Dia pesado, senhor? — Álcool da pesada para um dia pesado — concordou Jack . Ele colocou a pasta no chão e percebeu, pela primeira vez — o que tinha de errado com ele? —, que a garçonete pequenina e loira ali no lounge do saguão era muito atraente. Deu aquele sorriso hollywoodiano que praticara em incontáveis espelhos durante o fim da década de 1940. — Também devem ter te obrigado a fazer hora extra — disse a ela. — Aliás, eu me chamo Jack . — Hora extra é um saco, Jack — respondeu ela, então saiu bamboleando, com um molejo nos quadris que não ficara muito evidente para nenhum dos outros clientes. Jack começou a se sentir um pouco melhor.
Depois que o Serviço Secreto comprovou a veracidade de suas credenciais e o liberou, Jack passou a maior parte da manhã falando a seus delegados que teriam os votos retirados se não agissem com cautela. Em seguida, Tachyon o perturbara por não estar fazendo seu trabalho, deixando-o com a pulga atrás da orelha sobre um ás secreto. E o especialista parlamentar de campanha, Logan, que deveria encontrá-lo ali no lounge do Marriott, já estava atrasado. O alegre rebolar do traseiro de uma garçonete é suficiente para dar a um homem coragem para lutar, pensou. Planadores dos Ases Voadores mergulhavam no ar, numa dança que acompanhava seus pensamentos. A garçonete trouxe as bebidas. Jack conversou um pouco com ela — seu nome era Jolynn — e mandou o primeiro drinque goela abaixo. Logan ainda não aparecera. Jolynn precisava atender outro cliente, e Jack deu dez dólares de gorjeta, pensando que, no fim das contas, adorava ser rico, mesmo ao custo de ter tido que fingir conversas inteligentes com um chimpanzé na TV durante quatro anos. Observou quando um jovem com smoking branco cruzou o átrio do lounge até o piano igualmente branco, sentou-se e dedilhou os acordes iniciais de “Piano Man”. Jack sentiu a cabeça se retrair entre os ombros, como uma tartaruga. Moss Hart, pensou, desesperado. Kurt Weill. George e Ira Gerschwin. Richard Rodgers — Jack ainda conseguia se lembrar da noite de estreia de Ao Sul do Pacífico. Talvez pudesse simplesmente dar uma gorjeta de cem pratas para o rapaz e lhe dizer para não tocar nada. “Honky Tonk Women” foi a próxima, seguida por “New York, New York”. Onde está Morrie Ryskind quando se precisa dele?, pensou Jack. Logan ainda não tinha aparecido. Jack bebericou o segundo drinque e encarou fixamente o traseiro em forma de coração de Jolynn enquanto ele perambulava até a outra ponta do lounge. Outra figura feminina chamou sua atenção. Piranha à direita, pensou, uma expressão que adquirira décadas atrás, no Camp Shenango. A mulher avançava direto para ele. Depois, percebeu que ela estava usando um button de Barnett. Uma piranha do Senhor, concluiu. Só então a reconheceu. Era a coordenadora de campanha de Leo Barnett — o que já era bem ruim —, mas os dois tinham um histórico que deixava tudo muito pior. Ai, meu Deus. O piano soltou as notas iniciais de “Don’t Cry for Me, Argentina”. Mais um conjunto de lembranças o invadiu, inclusive a cusparada de uma peronista que levara no ano anterior, em Buenos Aires. Jack se levantou, o coração pesado como chumbo, e preparou o rosto para mais cusparadas. — Jack Braun? Esperei tanto tempo para encontrar você outra vez. Aposto que sim, pensou Jack . A voz estava diferente, percebeu. Blythe tinha um sotaque senhorial de Nova York do tipo que não existe mais, que morreu com Franklin e Eleanor. E Blythe
estaria de batom vermelho, como todas as mulheres nos anos 1940 — um contraste carmesim brilhante no rosto pálido de cabelos escuros. — Fleur van Renssaeler, presumo — cumprimentou Jack. — Que surpresa você se lembrar de mim. Aquilo era a coisa mais civilizada a se dizer, mas perfeitamente ridícula. De acordo com algumas pessoas, Jack assassinara a mãe dela — o que Fleur devia achar impossível de esquecer, mesmo que quisesse. O rosto em formato de coração inclinou-se para trás, para encará-lo de frente. — Eu tinha… quantos anos? Três, quatro? — Algo assim. — Lembro que você brincava comigo no chão da casa do meu pai. Jack a encarou, lívido. A mulher estava prolongando a situação eternamente. Por que não cuspia nele, arranhava seu rosto ou acabava com aquilo de uma vez? — Sempre quis dizer o quando o admiro — prosseguiu Fleur. — Sempre foi um de meus heróis. O choque correu como fogo frio pelas veias de Jack . Não que ele acreditasse na sinceridade daquelas palavras… o choque vinha do fato de a filha de Blythe provar ser adepta do sadismo. — Eu não mereço. — Era verdade. A mulher sorriu. Era um sorriso muito terno. Jack percebeu que a moça estava muito próxima, e sua virilha coçou com o pensamento de que ela talvez tentasse erguer o joelho entre suas pernas. Seu carta selvagem o protegia de danos, mas antigos reflexos não morrem nunca. — Tirando o Reverendo Barnett — continuou Fleur —, você é um dos homens mais corajosos que conheço. Arriscou tudo para derrubar os ases e… aquele alienígena. Considero vergonhoso o tratamento que tem recebido desde então. Afinal, sua carreira inteira foi destruída por aqueles liberais de Hollywood. Os pensamentos de Jack se arrastavam com lentidão glacial. Emudecido, ele percebeu que Fleur estava sendo absolutamente sincera. Sentiu uma coisa fria subindo por sua espinha como um inseto à espreita. — Estou… surpreso — comentou. — Por causa da minha mãe? — Ela ainda sorria, ainda estava próxima. Jack queria correr o mais rápido que suas pernas aguentassem. — Minha mãe era voluntariosa e obstinada. Ela abandonou meu pai para se deitar com… aquela criatura alienígena. Com aquele que trouxe a praga para o mundo. — Jack percebeu que ela não conseguia se obrigar a dizer o nome de Tachyon. — Ela me descartou, assim como fez com você. Jack lembrou que estava segurando a bebida. Tomou um longo gole, precisando do ardor do uísque para devolver os sentidos abalados à realidade. — Ficou surpreso com o que eu disse? — perguntou Fleur. — A Bíblia é bem explícita quanto ao adultério e suas consequências. Certamente morrerá o adúltero e a adúltera. Levítico 20. — A Bíblia também foi clara quanto a quem pode atirar a primeira pedra. — A língua de Jack estava dormente. Ficou surpreso por conseguir falar. Fleur assentiu.
— Fico feliz que você consiga citar as Escrituras. — Aprendi muitos versículos quando era criança. A maioria em alemão. — Ele tomou outra bebida. “Don’t Cry for Me, Argentina” ressoava em seu crânio. — O que me surpreende — comentou Fleur — são suas companhias nos dias atuais. — Ela se aproximou mais um passo e tocou o pulso de Jack. Ele mal conseguiu se segurar e não sair correndo da própria pele. — O Senador Hartmann com certeza é herdeiro moral da gangue de Roosevelt-Holmes, que quase destruiu nosso país na década de 1940. Você nos salvou daquelas pessoas na época, e agora decaiu de novo para a linha humanista liberal. — Esse sou eu. — Jack conseguiu sorrir. — Um decaído. — Pensei que pudesse se reerguer. — Os dedos de Fleur corriam para cima e para baixo em seu pulso grosso. É mesmo uma piranha do Senhor, pensou Jack. — Queria falar pessoalmente com você. Por isso estou aqui n… — Ela deu uma risada afinadíssima. — Nesses salões impuros. — Todo mundo precisa visitar uns pardieiros, de vez em quando. — Ele a encarou, o enjoo subindo pelo estômago. Fleur van Renssaeler, percebeu, era a vagabunda mais perversa que ele já conhecera. Mais ainda que sua terceira esposa. — Pensei que pudéssemos nos encontrar. Falar sobre… política. Falar sobre o Senador Hartmann, o Reverendo Barnett. — Barnett quer me mandar para um campo de concentração. — Você, não. Você é comprovadamente patriota. O Senhor transformou sua maldição em bênção. Jack já sentia o gosto da bile. — Fico feliz em saber que sou imune à perseguição divina. E quanto a todos os outros desgraçados que contraíram o carta selvagem? — Ah, se eu pudesse explicar. Levá-lo de volta ao caminho correto. O caminho de meu pai e do Reverendo Barnett. A raiva de Jack finalmente subiu rugindo até a superfície. Viu a cabeça de Logan acima da multidão de delegados e soube que era hora de partir. — Não posso falar sobre o caminho de Barnett — respondeu, enquanto pegava sua pasta. — Mas conheci seu pai muito bem. Ele chafurdava como um porco no cocho público e fodia garotos negros no Harlem por diversão. Nunca falei essa palavra com “F” para uma mulher, pensou, seguindo na direção de Logan. No entanto, precisava dar um crédito a Fleur. Ela era profissional. O sorriso não desapareceu, lembrou, mas deu uma amarelada. Sentiu-se um tanto animado. Um triunfo morno e barato era melhor que triunfo nenhum.
14h00
— Escuta aqui só, Sara — ia dizendo Charles Devaughn. — Seja lá o que tenha acontecido entre você e Gregg naquela turnê mundial, acabou. Virou história. Aceite. O coordenador da campanha de Hartmann tinha o tipo de aparência brusca e antenada que todos achavam que o senador tinha — ninguém via Hartmann como o sujeito ordinário, meio corcunda, que era. Sara sentiu as bochechas começarem a reluzir como uma colher no microondas. — Caramba, Charles, não é essa a questão. Preciso falar com você sobre a forma como o senador tem agido… Metido num terno azul-marinho impecável, feito sob medida, Charles retrucou, já virando as costas: — Não tenho mais comentários a fazer, Sra. Morgenstern. Gostaria de pedir para que não incomodasse mais a equipe de campanha do senador. A imprensa tem certas responsabilidades, e seria inteligente não ignorá-las. Ele se afastou. — Charles, espere! É importante… Suas palavras bateram na curva das costas dele e se separaram, passando a perseguir umas às outras como animais arbóreos no saguão elevado de formas orgânicas do Marriott, que certa vez ela ouvira um repórter de algum jornal periférico descrever como a traqueia de Antoni Gaudí. Os delegados, que se acotovelavam no saguão do lado de fora das salas de atividades viraram-se para olhar. Seus rostos eram luas pálidas pendurados sobre jardins de faixas berrantes e buttons de campanha. No meio de cada um reluzia uma plaquinha quadrada, como uma exposição de jardim botânico, identificando a qual subespécie de vigarista político insignificante — ou aspirante a — cada um pertencia. Frustrada, ela bateu duas vezes nas coxas com a palma da mão. Você está perdendo o controle, Sara. No momento correto, seu projetor mental trouxe a imagem de Andrea, sua irmã mais velha, delicada e linda como uma escultura de gelo. Uma voz cristalina, sorridente, brincalhona, os olhos derretendo como neve: perfeição que a pequena e tímida Sara nunca conseguiria atingir. Andrea, que morrera trinta anos antes. Andrea, assassinada pelo homem que se tornaria presidente dos Estados Unidos. Que tinha o poder de deturpar a vontade alheia. Como deturpara a dela. Não havia provas, claro. Deus sabia como ela levara anos para reconhecer primeiro a suspeita e, em seguida, ter a terrível certeza de que havia mais na morte brutal da irmã do que a ânsia de uma adolescente retardada. Demorou um tempo para perceber que fora por isso que entrara no jornalismo, em primeiro lugar, e que fora por isso que se sentira atraída pelo Bairro dos Curingas. Lá no fundo, Sara sabia que havia algo mais. E, com o passar dos anos, enquanto
estabelecia uma reputação como a repórter dos assuntos relacionados aos curingas, percebeu uma presença no gueto — secreta, manipuladora… maléfica. Tentou rastrear essa presença. Mas mesmo uma repórter investigativa de primeira linha — mesmo uma investigadora obsessiva — não conseguiu encontrá-la com facilidade para rastrear as cordas invisíveis de um mestre titereiro demente. E ela perseverou. Estava convencida de que era Hartmann mesmo antes de embarcar no Cartas Marcadas. Tinha certeza de que descobriria a prova final para acusá--lo na excursão da OMS. E tinha tentado. Sentiu o suor frio surgindo no couro cabeludo enquanto se lembrava de como suas suspeitas começaram a ruir, logo em seguida rodopiando para longe de seu alcance, como um tronco à deriva se distanciando dos dedos de uma mulher lutando para não se afogar. Chegara até a pensar que o amava — e o tempo todo uma voz interna mínima gritava: Não, não, o que está acontecendo comigo? Recordou-se da fricção da pele suada de quando ele a penetrava com força, de como desejara lavar suas partes íntimas para sempre. Ele a controlara, assim como fizera com o pobre Roger Pellman naquela tarde em Cincinnati, quando sua irmã morrera. Ele a usara porque percebera como Sara via a si mesma como uma imitação barata da linda irmã que perdera. Ao menos os dois compartilhavam aquela obsessão pelo que fora perdido. Muito bem, conseguira provas. Ainda sentia os pontos onde as cordas do titereiro tinham sido amarradas na sua psique. E, às vezes, quando faziam sexo, Sara ouvia o nome Andrea sendo grunhido entre os carinhos — algo dentro dela congelava mesmo quando o corpo e a mente reagiam com desejo ansioso. Mas não tinha provas para alguém que não pudesse ler seus pensamentos. Sentiu que divagava, percebeu que estava sendo tragada por algum instinto jornalístico até a Zona 3, as salas de atividades apinhadas além das escadas rolantes circulares. Prestara pouca atenção ao fenômeno da convenção, perdida como estava em seu frenesi crescente para encontrar alguma prova que pudesse convencer alguém que visse de fora, fazer essa pessoa enxergar além da máscara sóbria do estadista, do ar de compaixão por todos aqueles tocados pelo carta selvagem, dessas coisas que ocultavam o titereiro. A culpa a açoitou: Você deveria estar lidando com os assuntos relacionados ao carta selvagem. O ódio contra si mesma inflamou: O que poderia ser mais importante para os curingas — para qualquer pessoa — do que a possibilidade de um ás psicopata se tornar o próximo presidente dos Estados Unidos? Pensou no dedo do titereiro pairando sobre o famoso botão vermelho e teve vontade de vomitar. Delegados e repórteres fluíam da grande Sala Sidney, no canto, afogueados e barulhentos como colegiais. — O que está acontecendo? — perguntou para um sujeito, principalmente porque ele era um pouco mais alto do que ela. — São os malucos do Barnett — respondeu o homem. — Descobriram alguma sujeirada sobre o Hartmann. — O homem vibrava com uma satisfação maliciosa. Usava óculos e um grande button de Dukakis. Será que aconteceu?, indagou-se, começando a se sentir enganada por não
ter sido a pessoa que enterrara a estaca no coração do monstro. — Eles encontraram alguém que estava na excursão da OMS no ano passado. Descobriram que Hartmann passou o tempo todo tendo um caso com alguma repórter safada do The Washington Post. ♣ O desfile de delegados e políticos pela suíte de Gregg parecia infinito — ele tinha que admitir que Amy fizera um trabalho maravilhoso ao entrar em contato com toda aquela gente em tão pouco tempo. Mas, pensando bem, a maioria dos delegados estava ansioso para conhecer o candidato favorito, e nenhum dos oficiais eleitos iria querer ofender aquele que poderia ser o próximo presidente. Para Gregg, a tarde interminável estava cobrando seu preço. Tinha pensado que conseguira trancar bem o Titereiro. Chegara até mesmo a achar que talvez, só talvez, a voz dentro de sua cabeça fosse ficar quieta pelo resto da semana. Mas as barras que continham o Titereiro estavam começando a enfraquecer. Ouvia o poder alternando entre súplicas e ameaças. Deixe-me sair! Você precisa me deixar sair! Gregg ignorou o quanto pôde, mas sua paciência estava mais curta que de costume, e seu sorriso às vezes parecia mais uma careta de dor. Era pior com os políticos, cuja maioria ele poderia ter levado a concordar com um simples toque da influência do Titereiro, mas que naquele momento conseguiriam negá-lo sem sofrer quaisquer consequências. Era quando os gritos do Titereiro ficavam mais altos. Os Senadores Glenn e Metzenbaum, de Ohio, foram pontuais. Ellen os recebeu na porta enquanto Gregg trocava de camisa no quarto. De lá, pôde ouvir Metzenbaum, lisonjeador como sempre. — Então é verdade: futuras mães brilham mesmo. Ellen gargalhava quando Gregg entrou na sala de estar. — John, Howard — cumprimentou, meneando a cabeça para os dois. — Peguem alguma coisa do bar, se quiserem, e agradeço por terem chegado com tanta pontualidade. Estou tentando encontrar o máximo de pessoas influentes que conseguir… E vocês foram os primeiros da lista. Vão embora. Isso era o que realmente queria dizer. Estou cansado, destroçado, e minha mente está partida ao meio. Me deixem em paz. Metzenbaum deu um sorriso educado, e Glenn, com a calma exagerada de um velho astronauta, apenas meneou a cabeça, até um pouco mais sério que de costume. Os dois examinavam Ellen com atenção. Gregg não precisou se pronunciar: Ellen tinha bastante experiência em entender as deixas. — Bem, vou deixar vocês tratando de política — anunciou ela. — Tenho uma reunião com minhas delegadas da Organização Nacional das Mulheres. Vocês estão apoiando a Emenda de Igualdade de Direitos, certo? — Ela abriu outro sorriso e se retirou. Gregg a acompanhou até a porta. Por impulso, puxou-a nos braços e beijou-a com vontade. — Ouça, Ellen, quero que saiba o quanto aprecio sua ajuda hoje. Sem você… Bem, sobre aquele incidente pela manhã. Por favor, não pense mais nele. Só
estou cansado, é isso. O estresse… — Parecia que não conseguia parar de falar. As palavras não paravam de sair, e havia meses que não se sentia tão próximo da esposa. — Eu nunca levantaria a mão para te machucar… Glenn e Metzenbaum os encaravam. Ellen interrompeu o falatório com um beijo rápido. — Você tem convidados, querido — lembrou, olhando-o com estranheza. Gregg sorriu como se pedisse desculpas — parecia mais o sorriso de uma caveira. — Sim, acho que… vejo você no jantar. Bello Mondo, certo? — Seis e meia. Amy disse que vai te ligar para lembrar. — Ellen abraçou Gregg. — Te amo. — Encarou-o mais uma vez e saiu. Lá no fundo, o Titereiro uivou, clamando por atenção. Gregg sentiu o suor brotando na testa. Limpou-a com as costas da mão e voltou para a sala. — Ohio tem sido muito bom comigo, cavalheiros — comentou. — E grande parte disso é graças a vocês dois. Acredito que ambos saibam que estou buscando apoio nos que se enquadram na Regra 9(c) e na Califórnia… — Eles não estavam ouvindo. Gregg parou no meio da frase e perguntou: — O que foi? — Temos um problema maior, Gregg — alertou Glenn. — Receio que sejam más notícias. Começou a circular um boato maldoso sobre você e a Morgenstern na excursão com os ases… Gregg parou de prestar atenção. Sara Morgenstern. Sua carreira parecia inexoravelmente ligada a ela. A primeira vítima do Titereiro fora Andrea Whitman, de 13 anos, irmã de Sara. Na época, Gregg tinha apenas 11 anos. Foi só por uma coincidência bizarra que Sara passou a suspeitar, muitos tempo depois, que Gregg tivera algum envolvimento na morte da irmã. Para anular a voz da mulher e satisfazer as necessidades do Titereiro, ele tomara Sara como marionete, um ano antes. Durante a excursão dos cartas selvagens, da forma mais discreta possível, os dois se tornaram amantes. Gregg pôde ver tudo desmoronando — a nomeação, a presidência, a carreira. O que acontecera com Gary Hart poderia, no fim das contas, também acontecer com ele. Por dentro, a voz parcamente abafada, o Titereiro berrava. ♠ Por certo tempo, ela simplesmente perambulou. Quando voltou para seu quarto no Hilton, a luz de mensagem recebida no telefone brilhava como um alerta no console de um reator com sobrecarga. Quando ligou para a recepção, descobriu que havia mais de dez mil mensagens de Braden Dulles, do Distrito de Colúmbia, esperando por ela. Recebeu outra ligação enquanto pegava o recado, e a operadora telefônica do hotel, parecendo irritada, repassou o telefonema. — É verdade? — perguntou o interlocutor. Ela sentiu a respiração ficar presa num nó na garganta. Foi como a primeira vez que experimentou cocaína, num passado longínquo, quando ainda estava casada com David Morgenstern, então advogado em ascensão: os músculos do
peito simplesmente se recusavam a funcionar. — É. Na porta, veio a primeira batida.
17h00
Amy Sorenson encontrou Gregg e Ellen atrás da tela do palco. Do outro lado das cortinas pesadas de veludo, dava para ouvir as conversas altas dos repórteres. O brilho das luzes de vídeo vazava por baixo das dobras vermelhas do tecido. — Estão todos preparados — anunciou Amy. — Seus convidados estão na sala ao lado, vou buscá-los depois que você entrar. — Ela tocou o receptor sem fio no ouvido e prestou atenção no que diziam do outro lado. — Tudo bem, Billy Ray disse que está tudo em ordem. Pronto? Gregg assentiu. Fora uma tarde longa e difícil — tentando obter notícias de Nova York, trabalhando com Jack e um Danny Logan bem bêbado (Logan definitivamente era uma marionete de quem havia abusado) numa estratégia para a disputa pela Califórnia que aconteceria logo mais, abafando os boatos sobre o caso com Sara, arranjando as coisas com o Departamento de Justiça e organizando aquela coletiva de imprensa. Gregg ficou um pouco preocupado, pois o estresse poderia trazer o Titereiro de volta à consciência, apesar de o poder ainda estar quieto e enterrado. Só sentia o farfalhar mínimo de sua agitação. Mas Gimli — isso se realmente fosse Gimli… Aquela presença ainda era muito forte. Gregg ouvia a risadinha maligna do anão e se perguntou, como fizera diversas vezes naquela tarde, se não estava prestes a ter um colapso. Com o pensamento, a voz de Gimli veio à tona. Está sim, Greggie, disse a voz. Vou garantir que essa porra aconteça. Ele respirou fundo e fingiu não ouvir. Pegou a mão de Ellen, apertou-a de leve e acariciou a barriga enorme. — Estamos prontos. Vamos seguir com esse circo, Amy. Gregg estampou um sorriso no rosto quando a assistente puxou as cortinas. Ele deu três passos até o palco de uma vez só, enquanto Ellen o seguia mais devagar. As câmeras clicavam como uma praga de insetos mecânicos, flashes eletrônicos lançando seus breves relâmpagos. No púlpito, Gregg esperou até os repórteres se aquietarem nas cadeiras e olhou para o esboço do discurso de Tony Calderone em sua mão. Em seguida, ergueu a cabeça. — Como de costume, não tenho uma declaração formal — anunciou, exibindo uma única página manuscrita. Aquilo gerou uma risadinha do público, como era esperado: Gregg tinha a reputação de improvisar e desviar do texto preparado por Tony, e a maioria dos repórteres na plateia já acompanhava sua campanha havia meses. — Também tenho bons motivos para isso. Eu realmente não tenho muito a dizer nesta coletiva de imprensa. Sinto que quanto menos eu reagir a boatos odiosos e infundados, melhor. E sei o que vocês vão dizer: “A culpa não é nossa. A imprensa tem responsabilidades.” Espero que se sintam melhor agora que já passamos dessa fase. Mais umas risadinhas, a maioria vinda daqueles que o apoiavam. Os outros aguardavam, sérios. Ele hesitou, deu uma olhada nas anotações que Tony, Braun, Tachyon e ele
mesmo tinham feito. Ao mesmo tempo, como uma pessoa que cutuca constantemente um dente quebrado, buscou o Titereiro, mas nada sentiu. Relaxou um pouco. — Todos sabemos por que vocês estão aqui. Vou falar o que preciso, responder a algumas perguntas, se quiserem, e continuarei com outros assuntos. Já vimos um colega candidato ser arruinado pelo que foi essencialmente uma insinuação de uma circunstância. Se Gary Hart de fato fez qualquer coisa, isso é irrelevante. Ele foi atingido por boatos e talvez tenha perdido a credibilidade, mesmo não tendo feito nada. Bem, eu não sou Gary Hart. Ele é mais bonito. Até Ellen acha isso. A plateia deu uma risadinha quase unânime, e o próprio Gregg riu com eles. Deixando as anotações de lado, tomando cuidado para que notassem seu gesto, ele se inclinou para a frente sobre os cotovelos. — Acho que posso realçar outras diferenças. O Carta Marcada não era o Monkey Business. Fomos a Berlim, não a Bimini. E Ellen esteve comigo a viagem toda. — Gregg olhou para Ellen e assentiu. Aceitando a deixa, ela devolveu o sorriso. — Senador? Gregg estreitou os olhos diante das luzes e viu Bill Johnson, do Los Angeles Times, acenando com uma caderneta. Gregg gesticulou para quer ele continuasse. — Então o senhor está negando que teve um caso com Sara Morgenstern? — perguntou Johnson. — Claro que conheço a Sra. Morgenstern, assim como Ellen, e ela se tornou amiga da família. Tem seus problemas, e não tenho conhecimento do que exatamente ela disse ou deixou de dizer, recentemente. Mas não faço nada pelas costas da minha esposa. Ellen inclinou-se na direção de Gregg com um olhar travesso. — Bill, na verdade, eu flagrei Gregg dando umas olhadas na Peregrina, mas ele com certeza não foi o único. Risos. As câmeras começaram a pipocar outra vez, e a tensão na sala se dissolveu a olhos vistos. Gregg sorriu, mas a expressão em seu rosto era fria e indiferente. A voz de Gimli parecia sussurrar em seu ouvido. Você fodeu com ela, Hartmann. Abriu as pernas da mulher nos cinco continentes, e seu pequeno ás a fez sorrir e pensar que estava gostando. Mas ela não estava, não é? Não mesmo. Ela não tem uma opinião muito boa sobre você, não mesmo. Não sem o Titereiro. Ellen sentiu o desconforto de Gregg, que sabia que a mão estava fria e suada na mão da esposa. Ela ainda sorria, mas havia preocupação em seus olhos. Ele sacudiu a cabeça de leve, apertando os dedos dela. E que mulher profissional você tem ao lado, caramba. Ela sabe exatamente o que fazer , não é? Sorri no momento adequado, fala só as coisas certas, deixou até que você a engravidasse para parecer amável e maternal durante a convenção. Parecesse um paizão orgulhoso. Você é um desgraçado, Hartmann. Eu também sou, e esse desgraçadinho aqui vai acabar com a sua vida. Vou fazer esse seu ás de estimação te rachar ao meio para todo mundo ver .
Como estava ouvindo a voz, demorou um pouco para reagir. Ouviu as risadas morrendo, o momento passando. Apressou-se para alcançá-las, dando as costas para a corrente contínua de investidas de Gimli. — Tudo bem, como disse Ellen, sou culpado por essa luxúria do coração à la Jimmy Carter. Duvido que muitos aqui não sejam assim… Peregrina ficaria decepcionada se fosse o contrário. Além disso, acho que vocês se enganaram. Há um boato, e nada mais. A partir de hoje, vou considerar este assunto encerrado. Vamos tentar nos concentrar em questões reais. Se quiserem mais histórias assim, procurem suas fontes. Perguntem a si mesmos que motivos realmente foram responsáveis por espalhar esse tipo de lixo. — Está acusando Leo Barnett ou sua equipe? — A voz veio do fundo: Connie Chung, da NBC. — Não dou nome aos bois, Srta. Chung, pois não sei nome nenhum. Gostaria de acreditar que um homem temente a Deus, como o Reverendo Barnett, se recusaria a lançar mão de tais táticas, e tenho certeza de que não jogarei a primeira pedra. — Outra onda de risos. — Mas a mentira começou em algum lugar… vejam se conseguem rastreá-la. Acho que a Sra. Morgenstern não foi citada diretamente por nenhum de vocês. Eu não vejo qualquer prova tangível. Talvez isso lhes diga alguma coisa. Gregg os dominara. Virara a mesa. Podia ver, sentir. Ainda assim, havia pouca sensação de triunfo em seu interior. Por trás de tudo aquilo, detectava uma agitação familiar. O Titereiro se erguia, ainda lá no fundo, rumando para a superfície. Só mais um dia, pensou. Me dê esse tempo. Você não pode detê-lo por tanto tempo, Hartmann. Está viciado. É isso que o Titereiro é: sua maldita droga. E vocês dois precisam de uma dose, não é? Gimli deu uma risadinha. Para consegui-la, precisa passar por mim. Porra, que pena, não? Ellen e Amy o encaravam. Ele estava parado, paralisado. Gregg deu de ombros, num gesto de desculpas para as duas, e continuou: — Poucos minutos atrás, Bill Johnson me chamou de “senador”. Bem, faz mais de um ano desde que renunciei ao mandato para me candidatar, mas entendo o equívoco. Bill me chama de senador há anos, isso quando não me chama de outras coisas. — Um leve ar de divertimento moveu as fileiras diante dele. — É a força do hábito — continuou Gregg, voltando com tranquilidade ao discurso de Tony. — É fácil deixar que os hábitos nos dominem. É fácil nos atermos a preconceitos antigos, visões turvas e invenções imediatas. Mas não podemos fazer isso, não agora. Ouvimos muitos boatos sem fundamento e acabamos acreditando neles. Temos esses hábitos e ouvimos essas mentiras há anos: que curingas foram vítimas de alguma maldição; que temos o direito de odiar os outros, sejam curingas ou não, porque parecem ou agem de forma diferente; que as pessoas não podem mudar; que o jeito que as coisas são é como devem ser. Se acreditarem que opiniões e sentimentos são talhados em concreto, então vocês têm razão: não podem mudar, não podem crescer. Mas, quando fazemos algo que desafia essas crenças… bem, para mim uma cobertura jornalística vale mais do que boatos sensacionalistas sobre infidelidade. Gregg olhou para Ellen, que assentiu. Gimli continuava lá, e sua cabeça doía
com o som de sua voz, mas ele piscou várias vezes e prosseguiu. Queria sair do púlpito, ficar sozinho em seu quarto. Estava acelerando, falando rápido demais. Forçou-se a reduzir a velocidade. — Tenho a satisfação de dizer que algumas coisas que pensamos ser eternas vão passar. Baseei minha campanha inteira na ideia de que agora é hora de curar as feridas. Opiniões mudam. Podemos abraçar aqueles que odiamos no passado. Isso é importante. Isso vale uma notícia. E essa também não é minha história. Consigo entender uma pessoa que leva seu fervor longe demais. Consigo entender a convicção apaixonada, mesmo quando discordo dela. Todos temos coisas em que acreditamos com firmeza, e isso é bom. Mas isso se torna um problema quando essa paixão cruza a linha do fervor e vira violência. Há organizações curingas que algumas vezes cruzaram essa linha. Gregg apontou para o fundo do palco. — Amy, por favor, traga-os aqui. As cortinas ao fundo do palco se abriram, e dois curingas adentraram no facho de luz. Um tinha a pele marcada com finos sulcos serrilhados, enquanto o outro era diáfano, e dava para ver um pouco das cortinas através de seu corpo. Os jornalistas começaram a murmurar. — Tenho certeza de que não preciso apresentar Lixa e Mortalha para vocês. Seus rostos apareceram muito em seus jornais e suas transmissões, no ano passado, quando a CJS finalmente foi desmantelada. — Gimli gargalhou com a frase. Gregg engoliu em seco. — Alguns membros da CJS, aqueles que pareciam secundários ou inócuos, simplesmente foram multados e liberados. Outros, aqueles que pareciam de fato perigosos, foram detidos. Lixa e Mortalha estavam numa prisão federal desde então. Talvez tenha sido merecido, pois ambos confessaram atos extremamente violentos. Ainda assim… eu fui vítima direta de um tanto dessa violência, e conversei muito com Lixa e Mortalha, no ano passado. Sinto que os dois aprenderam uma lição dura e dolorosa e estão genuinamente arrependidos. “Vou defender minhas palavras e convicções. Acredito na reconciliação. Precisamos perdoar, precisamos nos esforçar para entender os menos afortunados que nós. Hoje, num acordo com o governador Cuomo, de Nova York, o Departamento de Justiça e o Senado de Nova York, consegui liberdade condicional para Lixa e Mortalha.” Gregg abraçou os curingas, sentindo a pele grossa de Lixa e os ombros brumosos de Mortalha. — Isso é muito mais importante que boatos. Isso é verídico, e também não é a minha história… é a deles. Vou deixar que eles os convençam, assim como me convenceram. Conversem com eles. Façam suas perguntas. Amy, se você puder moderar… Quando as primeiras perguntas chegaram da multidão aos berros e Lixa se aproximou do microfone, Gregg respirou fundo e recuou. Você não entende?, provocou Gimli, quando ele saiu do palco e partiu para os elevadores. Você não se livrou de mim. Não pode fugir da minha obsessão particular . Eu estou aqui. É para ficar . Não se esqueça disso. Não mesmo.
♦ Com os dedos dormentes, Sara recolocou o telefone no gancho. Ela saiu correndo do quarto, em lágrimas, misturando-se à multidão, aproveitando-se da pequena estatura e de um certo tino para a invisibilidade que lhe serviu bem em vários momentos da carreira. No início, funcionou. Até que a chamaram no saguão, despertando uma nova matilha de repórteres que saiu ladrando atrás dela, todos famintos por ossos lascados dos quais a negação afável de Hartmann não filetara os últimos pedaços de carne. Hartmann está dizendo a verdade? Por que Barnett citou seu nome no anúncio? Qual é a sua relação com a campanha de Barnett? As perguntas pareciam divididas entre tentar fazer com que ela admitisse que fora para a cama com Hartmann ou que conspirava com os fundamentalistas para acabar com o bom nome do senador. Parte dela ansiava por usar o palco oferecido e anunciar: Sim, fui pra cama com Gregg Hartmann e descobri que ele é um monstro, um ás secreto que transforma as pessoas em marionetes. A covardia interferiu. Ou teria sido a sanidade? Suas revelações — ou alegações, como seriam vistas — eram extravagantes demais sem precisar transformá-las em estofo para manchetes do Midnight Sun. Sara virou o rosto e declarou: — Sem comentários. Então engoliu todos os nacos fumegantes de abuso. — Quando você decidiu tentar esta abordagem de merda? O público tem o direito de saber. Você é uma jornalista, pelo amor de Deus. Por fim, uma atendente de collant metida numa daquelas saias pretas curtas levou-a pelo braço e a conduziu até o gabinete da gerência do lounge Marriott. O receptor fez um clique alto, determinado como um cartucho entrando num carregador de pistola. Alguém levara a sério o que ela tinha a dizer. O telefonema era de Owen Rayford, do escritório de Nova York do Post. Crisálida tinha morrido. Assassinada. Poderes de ás estavam envolvidos. Será que era uma marionete? Sara duvidava. As cordas de Hartmann afinavam depressa e rompiam com a distância — sabia disso por experiência própria. Havia alguns ases dominados — Pancada, Carnifex, talvez o Dorminhoco, se ainda estivesse desaparecido na psicose de anfetamina — que eram capazes de tal feito. Aquela era a ironia sobre Hartmann: em sua posição, mal precisava do poder de ás para praticar um ato maligno. Dinheiro, poder e influência não haviam se tornado forças mais fracas para lidar com o aspecto humano do que tinham sido até 15 de setembro de 1946. O medo vivia dentro dela, enrodilhado como uma serpente, queimando como uma estrela. Trazia uma certeza terrível: a única esperança de segurança estava em arriscar tudo. O gerente e a atendente que a haviam resgatado estavam ali, observando-a com curiosidade educada. Sara abriu um sorriso e se levantou. — Esse lugar tem alguma saída pelos fundos? — perguntou.
18h00
Precisou tomar um Valium antes de conseguir fazer a droga do acoplador acústico funcionar. O laptop tinha modem inboard, mas os hotéis não confiavam muito em aparelhos sem fio, preferiam manter os telefones bem presos à parede, à moda antiga. Então ela precisou primeiro lidar com o defasado modem externo, que não perdoava qualquer erro na hora de encaixar: tinha que ser do jeito certo. No fim das contas, conseguiu. Então ficou sentada na penumbra, iluminada apenas pelo fiapo de luz da tarde que entrava pelas frestas das pesadas cortinas, fumando e estreitando os olhos para a tela enquanto o contador de registros transferidos girava e sua história circulava pelos cabos do laptop NEC até os computadores do Post. Tudo saiu num jorro orgástico: a morte de Andi; sua suspeita; a presença sinistra e oculta no Bairro dos Curingas, que dera pistas perturbadoras de sua existência — e identidade — durante as revoltas paralelas a outra convenção dos Democratas, doze anos antes; sua busca pessoal que levou à própria captura na mesma rede que lutava para encontrar. E, finalmente, o assassinato. Duas pessoas, escreveu, mantinham os dedos no pulso do Bairro dos Curingas. Na verdade, três. Tachyon era o terceiro, literal e figuradamente. Mas estava cego por uma consideração pessoal que tinha por Hartmann, além de pelos favores políticos recebidos e concessões que o mantinham vivendo uma vida digna de um príncipe — o que ele na verdade era. Sara não tocaria em seu nome. As outras duas eram Crisálida e ela. O Crystal Palace nunca fora mais que uma fachada para a verdadeira ocupação de Crisálida: negociar informações sobre tudo que acontecia no Bairro dos Curingas. Observadores próximos consideravam que, cedo ou tarde, ela puxaria uma meada e encontraria uma cobra na ponta do fio. A cobra chamava-se Hartmann. E Crisálida puxou o fio bem no momento em que ele estava cheio de veneno e pronto para dar o bote. Por que não confiei nela?, perguntou-se, vendo os números de cristal líquido piscando na penumbra. Tiveram tempo o suficiente para conversas quando desenvolveram uma amizade comedida a bordo do Cartas Marcadas, durante o ano anterior. Mas Crisálida permanecera, em certo sentido, uma rival. E Sara não era o tipo de mulher que achava fácil compartilhar segredos. UPLOAD CONCLUÍDO, anunciava a tela, com um bipe enfático. Ela mais do que depressa interrompeu a conexão e começou a desconectar o modem. A calma assentou-se em seu ser, estranha e um pouco assustadora. A calma de uma vítima de acidente. Sou um alvo, pensou, sem emoção. Se Crisálida sabia do segredo, ele deve supor que eu também sei. Arrependeu-se de ter forçado tanto a barra com os assistentes de Hartmann, naquele dia. Ele com certeza já sabia, e a inferência
seria inevitável. Você é tão inocente, repreendeu-se. Ingênua, como Ricky chamou. Mas não era uma completa idiota. Estava nadando num tanque de tubarões. Aprendera vários truques durante a longe e bem-sucedida carreira jornalística. Nada daquilo bastaria para levá-la sã e salva à terra firme. Talvez essa certeza fosse a coisa mais importante que sabia, naquele momento. Desligou o NEC e fechou a tampa. Enfiou o laptop na bolsa a tiracolo e se levantou. Tem que ser Tachyon, ela sabia. Ele devia ter algumas suspeitas sobre o que estava acontecendo no Bairro dos Curingas durante todos esses anos — sobre o que tinha acontecido na Síria e em Berlim. Podia ler sua mente, se duvidasse do que ela dissesse. Além disso, ele me acha… atraente. Mesmo que o sujeito se recusasse a acreditar, havia uma maneira de unir-se a ele. Sara já tinha se preparado para se oferecer ao alienígena antes, quando estivera convencida de que o caso do Doughboy a levaria a Hartmann. Tach até tinha certo magnetismo. Talvez não fosse tão ruim assim. Não se engane. Não se deitara com homem algum desde a excursão. Não sentia falta. Mesmo antes do famoso caso, sexo não era sua maior prioridade. Mas sobrevivência, sim. Ao menos até conseguir vingar Andrea. Tachyon, pelo menos, parecia o tipo que se apressava em sentir o prazer e ficava logo satisfeito — sem grunhidos e gemidos prolongados, ou “foi bom para você também?”. Sara esmagou a bituca de cigarro no logotipo em relevo do Hilton, no cinzeiro de plástico. Depois de uma pausa para jogar um pouco de perfume nos pulsos, onde as veias azuis saltavam na pele branca, saiu pela porta.
19h00
A convenção tinha sido interrompida para o jantar e seria retomada às nove horas da noite. Jack dividia o elevador panorâmico com um homem que carregava uma pilha alta de pizzas da Domino’ s e mantinha-se virado com determinação para a porta — odiava alturas, uma fobia desenvolvida depois de Tachyon enfatizar, quarenta anos antes, que uma queda longa era uma das poucas coisas que poderia matá-lo. As portas do elevador se abriram, e Jack seguiu as pizzas pelo corredor, satisfeito, até o quartel-general de Hartmann. Acordes de “Don’t Cry for Me, Argentina” flutuavam no saguão. Pianistas de bar só têm uma especialidade, pensou. Billy Ray, estufando o peito enquanto mantinha a guarda no corredor, vestido em seu traje branco de Carnifex, deixou o entregador passar, mas colocou-se diante de Jack com a rapidez de um lutador de artes marciais, quando ele tentou passar. — O senador te chamou, Braun? Jack olhou para ele. — Não force a barra. Foi um dia difícil. O rosto de Ray, que fora literalmente rearranjado numa briga, encarou Jack com malícia. — Seu pedido me deixa muito emocionado. Vamos ver o que tem na pasta. Jack engoliu a chateação e abriu a pasta, revelando o telefone celular e o sistema de discagem operado por computador que o mantinha em contato com seus delegados e com o QG de Hartmann. — Quero ver a identidade. Jack tirou o cartão laminado do bolso. — Você é mesmo um babaca, hein, Ray. — Babaca? Que merda de palavra é essa? — Por um breve instante, Ray voltou o rosto deformado para a identidade de Jack. — Isso não é o tipo de ofensa que o ás mais forte do mundo usaria. É algo que só poderia sair de um merdinha insignificante. — Ele lambeu os lábios, como se saboreasse a ideia. — Sr. Merdinha. É. É você. Jack olhou para Ray e cruzou os braços. Já fazia mais de um ano que Billy Ray o perturbava, desde que se conheceram no Cartas Marcadas. — Saia da minha frente, Billy. Ray ergueu o queixo. — O que vai fazer se eu não sair, Sr. Merdinha? — Ele sorriu. — Vamos ver do que você é capaz. Ao menos tente. Jack confortou-se por um momento imaginando que esmagava a cabeça de Ray como uma abóbora. O carta selvagem do guarda-costas lhe dava força, velocidade e acesso ao kung fu — ou qualquer que fosse o nome da habilidade —, mas Jack achava que ainda assim conseguiria derrubá-lo com um soco. Mas pensou melhor: não era para isso que estava ali.
— Neste momento, meu trabalho é fazer com que o senador seja eleito. Lutar com o guarda-costas dele não vai ajudar. Mas, depois que Gregg estiver na Casa Branca, prometo que vou chutá-lo como uma bola de futebol, está bem? — Mal posso esperar, Sr. Merdinha. — A qualquer momento, depois de 8 de novembro. — Vejo você um minuto depois da meia-noite do dia 9, Sr. Merdinha. Ray abriu caminho, e Jack entrou no quartel-general. Caixas de pizza abertas cercavam os assistentes de campanha, que se empanturravam. Monitores de TV tagarelavam análises a ouvidos surdos. Jack descobriu qual quarto Danny Logan estava usando, pegou uma caixa de pizza e partiu para lá. O especialista parlamentar de campanha era um ex-congressista barrigudo e de cabelos brancos do Queens que perdera o cargo quando seu eleitorado irlandês fora substituído por porto-riquenhos. Ele agora assessorava candidatos democratas sobre como angariar votos de descendentes de irlandeses. Jack o encontrou estirado na cama, cercado por garrafas vazias e folhas amarelas amassadas cobertas com números. — Melhor comer alguma coisa — comentou, largando a caixa de pizza em cima da barriga larga de Logan. — Não vai fazer a menor diferença — respondeu o sujeito. Tinha a voz arrastada. — Não temos o necessário. Vamos perder a 9(c), o caso de teste. Jack esfregou os olhos. — Refresque minha memória. — Bem, 9(c) é a fórmula usada para distribuir delegados que estavam comprometidos a candidatos que saíram da corrida eleitoral. Segundo a 9(c), os delegados dos ex-candidatos são divididos entre os candidatos remanescentes na proporção do número de votos que os supérstites vencerem naqueles estados. Em outras palavras: depois de Gephardt despencar, seus delegados de Illinois foram divididos entre Jackson, Dukakis e a gente de acordo com o percentual de votos. — Ótimo. — Barnett e mais alguns dos membros mais velhos do partido estão contestando a Regra 9(c). Querem liberdade para os delegados votarem em quem bem entenderem. Barnett acha que assim conseguirá reunir mais alguns votos, enquanto os mais velhos do partido querem começar um movimento para Cuomo ou Bradley, que estão entre os não comprometidos. — Logan passou a mão pelos cabelos brancos e ralos. — Anunciamos nosso apoio à norma pensando em ver quem se alinha contra e a favor, para ter uma pista de como será o desafio da Califórnia. — E estamos perdendo na 9(c)? — Jack pegou uma garrafa e bebeu direto do gargalo. — Gregg está dando alguns telefonemas. Mas, desde que Dukakis se opôs, estamos lutando uma batalha perdida. — Ele bateu com o punho na cama. — Não param de falar daquela história sobre o senador e aquela jornalista. De dizer que teremos outro fiasco à la Hart. É onde a resistência se instalou. Todos farejando o sangue de Gregg. — O que posso fazer? — perguntou Jack. — Só tente atrasar as coisas. — Logan deu um arroto alto. — Tem muitas
maneiras de atrasar este jogo. — E depois? — Depois Gregg vai começar a trabalhar no discurso de concessão. A raiva estalou dentro de Jack como uma trovoada. Ele agitou o punho enorme. — Nós vencemos as grandes primárias! Conseguimos mais votos que todos. — É por isso que somos um alvo. Ah, merda. — Lágrimas rolaram dos cantos dos olhos de Logan. Ele as limpou com as costas da mão avermelhada. — Gregg ficou ao meu lado o tempo todo, quando perdi meu cargo. Não conheço homem vivo mais decente que ele. Gregg merece ser presidente. — Seu rosto se contorceu numa careta. — Mas não temos os votos necessários! Jack ficou olhando Logan chorar com a caixa de pizza pulando sobre a barriga larga. Deixou a bebida no criado-mudo e saiu da sala. Por dentro, a desesperança cantava como um vento choroso. Todo esse trabalho, pensou. Toda a esperança renovada que o levara de volta à vida pública. Tudo aquilo para nada. Na sala principal, a equipe de campanha ainda estava reunida ao redor das caixas de pizza. Jack perguntou onde estava Hartmann, e lhe disseram que o senador estava montando uma estratégia junto com Devaughn e Amy Sorenson. Depois disso, tentariam um ataque de telefonemas de última hora para ganhar alguns superdelegados ainda não comprometidos. Sem nada mais a fazer, Jack pegou uma fatia de pizza e sentou-se diante dos monitores. — Vai ser uma votação acirrada. — A voz de Ted Koppel soou em seus ouvidos, falando do espaço quase vazio da convenção para um David Brinkley com olhar cínico, na cabine superior. — As forças de Hartmann estão contando com esse teste para mostrar a que vieram antes do grande embate da Califórnia. — Não. Seria. Uma. Estratégia. Arriscada? — A postura seca de Brinkley parecia inflar cada palavra, transformando-a numa sentença. — A estratégia de Hartmann sempre foi arriscada, David. Sua articulação de princípio político liberal numa disputa dominada por personalidades superficiais da mídia sempre foi considerada arriscada, até por seus próprios estrategistas. Mesmo se perder a Califórnia hoje, o coordenador de campanha de Hartmann me disse que ainda defenderá os direitos dos curingas na luta de plataformas, amanhã. Brinkley fingiu surpresa, desconfortável. — Ted, você está me dizendo. Que neste momento. Um homem conseguiria. Liderar o páreo. Com uma articulação pública. De princípios? Koppel abriu um sorriso. — Foi isso que eu disse, David? Não quis sugerir que a campanha de Hartmann não tem conhecimento de mídia… só que é coerente com a imagem apresentada ao eleitorado, assim como as campanhas de Leo Barnett e Jesse Jackson, os outros candidatos mais próximos, também foram coerentes. Mas, como eu disse, qualquer estratégia tem seus riscos. A campanha de Walter Mondale, em 1984, serve de exemplo para qualquer político que ouse ser coerente e articulado demais. — Mas vamos supor. Que Hartmann perca a batalha. Como ele conseguiria.
Retomar o impulso? — Pode ser que não consiga, David. — Koppel estava obviamente empolgado. — Se Gregg Hartmann não conseguir vencer com no mínimo uma pequena margem na luta pelos delegados da Regra 9(c), ele talvez perca tudo. O grande desafio da Califórnia pode se mostrar um anticlímax… Ele pode perder a disputa toda aqui, na luta pelos 9(c). Que drama, pensou Jack . Tudo precisava ser dramatizado. Cada voto precisava ser o voto, aquele voto significativo, aquele voto crucial. Do contrário, os deuses midiáticos vorazes ficariam infelizes e não teriam o que usar para preencher o ar além de seus meandros. Jack jogou a fatia de pizza meio comida de volta na caixa. Cruzou a sala e encontrou Amy Sorenson saindo da reunião. Havia desespero em seus olhos escuros. Hartmann estava ao telefone, avisou ela, tentando angariar votos de última hora. Sem chance, pensou Jack. Pegou sua pasta, saiu do QG e atravessou o corredor até o quarto de Logan. O especialista parlamentar estava desmaiado na cama, agarrado a uma garrafa de uísque como se fosse uma mulher. Sozinha num canto, a televisão tagarelava. Cronkite e Rather analisavam a estratégia de Hartmann e concluíam que dessa vez ele talvez tivesse extrapolado. Lembraram Jack de um par de críticos de filmes televisivos estraçalhando um lançamento. E se não tivesse o drama?, perguntou-se. E se o voto passasse e nada acontecesse, fosse apenas um detalhe dos procedimentos? Será que ficariam surpresos se acabassem com o drama? E se alguém, algum deus da imprensa ou coisa do tipo, cancelasse o showzinho de Leo Barnett? Jack percebeu que estava encarando sua pasta. Abriu-a, pegou o celular e ordenou à pequena memória computadorizada que ligasse para Hiram Worchester. — Worchester? — chamou. — Aqui é Jack Braun. Estou falando em nome de Danny Logan. — Logan já tem os números? Pelo que posso ver, estamos enrascados. Jack estendeu a mão para o criado-mudo e engoliu o que restava da bebida. — Eu sei — respondeu. — Por isso que, quando começar a batalha pelos 9(c), quero que você dê metade dos seus votos para Barnett. — É melhor você não estar nos traindo, Braun. — Não estou. — Seria seu clássico estilo de ás Judas, não? Uma punhalada rápida nas costas seguida de um novo emprego na imprensa, cortesia de Leo Barnett. Jack cerrou os punhos. O copo na mão estourou num flash de luz dourada. — Você vai fazer isso ou não? — questionou. Ficou olhando o vidro esmagado esvair-se como areia da mão fechada. — Quero discutir isso com Gregg. — Pode ligar, se quiser, mas ele está ocupado. Prepare-se para reduzir a contagem de delegados pela metade. — Você se importa em me explicar o que está acontecendo? — Estamos cancelando o enfrentamento. Se Barnett vencer por uma
margem muito grande, não vai provar nada. Só vai significar que decidimos não lutar. Nos filmes, não tem como ter um duelo de armas com apenas um homem na rua. O público vai debandar. Um longo silêncio se instalou do outro lado da linha e, em seguida: — Quero falar com Logan. — Ele está na outra linha. — Por que acha que eu vou confiar em você? — A raiva furiosa do gordo atingiu os ouvidos de Jack. — Não tenho tempo para discutir. Faça ou não faça, não me importa. Só esteja pronto para apresentar sua decisão mais tarde. — Se isso custar a eleição de Gregg… Jack gargalhou. — Você viu a ABC? Já estão fazendo nosso homem renunciar. Jack desligou o telefone e ligou para seu assistente, Emil Rodriguez. Disse a ele que não estaria na convenção, naquela noite, e que a delegação ficaria sob os cuidados dele; mas que dividisse os votos meio a meio no 9(c) e se posicionasse totalmente contra o desafio da Califórnia. Na sequência, começou a ligar para todos os chefes de delegação, em ordem de número de votos. Quando fez a última ligação — para o sujeito que controlava os dois votos de Hartmann nas Ilhas Virgens — a convenção tinha recomeçado. Ainda inconsciente na cama, Danny Logan começou a roncar. Jack ligou a televisão e se sentou no canto com a garrafa de uísque do sujeito adormecido. A atmosfera na plateia era intensa. Delegados andavam ao redor de seus líderes. A orquestra tocava — só podia ser brincadeira — “Don’t Cry for Me, Argentina”. Um nó de medo começou a se formar no estômago de Jack. Jim Wright, representante do Congresso e presidente que a convenção elegera naquela tarde, pediu ordem. Um senador de Wyoming levantou-se para pedir a revogação da Regra 9(c). Todas as tropas estavam prontas, não houve debate. Jack serviu-se de um drinque bem longo. A chamada começou. Durante os dez minutos seguintes, Peter Jennings, apoiado por seu pessoal na plateia, falou em tons sérios sobre a derrota impressionante de Gregg Hartmann. Jack ouvia as pessoas fora do quarto andando de um lado para outro. Bateram à porta em dois momentos diferentes, e nos dois momentos ele ignorou. Em seguida, David Brinkley, com seu sorriso sardônico fixo no rosto, começou a refletir em voz alta se sentia a presença de um traidor. Ele, Koppel e Jennings começaram a espalhar essa ideia enquanto os números desiguais aumentavam, para em seguida concluírem, por unanimidade, que a disputa toda tinha sido um ardil e que Barnett, Gore e os outros tinham caído na armadilha. Mais batidas na porta do quarto. — Logan? — Era a voz de Devaughn. — Você está aí? Jack não disse uma palavra. Depois que a análise dos repórteres vazou para o pessoal na convenção, a multidão foi à loucura. Os delegados andavam de um lado para outro, parecendo pedaços de madeira arrastados pela correnteza. Jack pegou o telefone e ligou para Emil Rodriguez.
— Puxe o assunto da Califórnia. Agora mesmo. Os adversários de Hartmann ficaram desestruturados. A estratégia inteira se desintegrou. Hartmann venceu o desafio da Califórnia de lavada. Um urro de celebração foi surgindo, cruzando a porta do quarto de hotel. Jack escancarou a porta de Logan, pendurou uma placa de “não perturbe” e saiu para o corredor. — Jack! — Amy Sorenson, com os cabelos castanhos esvoaçantes, correu até ele entre a multidão zonza de tanto celebrar. — Você estava aí dentro? Você e Logan pensaram nisso? Jack a beijou, sem dar a mínima se o marido estava presente. — Sobrou pizza? — perguntou. — Estou ficando com fome.
20h00
Um grupo de pessoas na entrada principal do Marriott se afastou, alarmado, quando o Tartaruga pousou na calçada. Batendo na lateral do casco com o salto das botas, Blaise deslizou até o chão. Tachyon deu uma batidinha carinhosa no casco antes de descer. — Obrigado por esta tarde ótima, Tartaruga. É uma cidade elegante vista de cima. — Quando quiser, Tachy. O casco voou para longe. — Dr. Tachyon. O alienígena virou-se para aquela voz suave e bem-modulada com seu forte sotaque sulista. — Reverendo Barnett. Nunca tinham se encontrado, mas o reconhecimento foi instantâneo. Estavam nos degraus do Marriott, um encarando o outro, buscando a chave para desvendar seu caráter. Leo Barnett era um jovem de estatura mediana, loiro, de olhos azuis e com uma covinha no queixo. Era um rosto bonito e, por um instante, o takisiano esforçou-se para conciliar a imagem odiosa de seus sonhos com aquele homem de voz suave. Em seguida, lembrou-se dos rostos lindos de seus parentes e amigos — todos brutamontes assassinos —, e a perturbação momentânea passou. — Doutor, ninguém lhe disse que há coisas que não fazemos em público para não assustar as crianças e os cavalos? O humor adornava as palavras, e Tachyon, que se preparara para um ataque, relaxou. — Reverendo, estou na Terra há mais tempo que o senhor, e acho que nunca ouvi essa expressão. Uma mulher saiu do meio da multidão que cercava Barnett. — Em geral esse ditado se refere a sexo, mas você já deve saber tudo sobre isso. Os cabelos muito pretos na altura dos ombros, cascateando até os seios, cílios longos e escuros que revoavam sobre bochechas de alabastro, pálpebras piscando que revelavam olhos de um azul profundo… Não, castanhos! A realidade mudou como um bonde descarrilhando. O fôlego de Tach parecia ter se perdido em algum lugar entre o diafragma e a garganta. Ele cambaleou, buscando o ombro de Blaise, e Leo Barnett deu um passo à frente para apoiá-lo. — Doutor, está tudo bem? — Vi um fantasma — murmurou Tachyon. A fraqueza estava passando, e ele ergueu os olhos para a mulher. — Minha coordenadora de campanha, Fleur van Renssaeler — apresentou Barnett, olhando ansioso para a mulher.
— Eu sei — respondeu Tachyon. — Você é muito esperto, doutor. — As primeiras palavras dela tinham sido agressivas, mas agora um sarcasmo amargo envolvia cada sílaba. — Você tem o rosto da sua mãe… — O alienígena tremeu de leve sob a fúria reluzente daqueles olhos castanhos. — Mas os olhos dela eram azuis. — Mas que memória extraordinária. — Nunca esqueci nenhum detalhe do rosto da sua mãe. — Era para eu achar isso bom? — Espero que ache. Estou muito feliz em ver você. Toda semana, durante quase dois anos, nós brincamos juntos. — Ele deu uma risada gentil. — Eu me lembro de como você gostava daquele doce horroroso e grudento que parecia um grão de milho. Meus bolsos ficavam grudentos por dias. — Você nunca foi à nossa casa. Meu pai não permitiria uma coisa dessas. Tach ficou boquiaberto. — Mas eu controlava a mente dos servos. Sua mãe queria muito ver você… — Minha mãe era uma vagabunda herege. Abandonou meu pai e os filhos por você. — Não, isso não é verdade. Seu pai a expulsou de casa. — Porque ela estava trepando com você! — A mão de Fleur disparou, e a cabeça do alienígena virou para o lado com a força do golpe. Hesitante, Tachyon tocou o rosto afogueado e começou a se aproximar dela. — Não… Barnett pousou a mão sobre o ombro de Tach. — Doutor, é óbvio que esta conversa lhe desagrada, assim como desagrada a Srta. Van Renssaeler. Acho que deveríamos deixar esse assunto de lado. O ministro estendeu a mão para Fleur. Os lábios dela pareciam frouxos, um tanto mais pesados. Estava cercada por uma aura sexual. Barnett colocou-a no táxi, parecendo ávido para ir embora. — Talvez possamos conversar mais em outra hora, doutor. Confesso que tenho muita curiosidade sobre as crenças religiosas do seu mundo. — Leo hesitou, a mão na porta do táxi. — O senhor é cristão? — Não. — Então deveríamos conversar. O séquito se afastou, e Tach ficou encarando o táxi em que Fleur partia, inexpressivo. — Pelo Ideal, o que aconteceu aqui? — A frase takisiana falada no sotaque inglês forte de Blaise deixou Tachyon ainda mais desorientado. O alienígena levou os dedos unidos aos lábios. — Ah, pelos ancestrais. — Ele passou o braço pelos ombros de Blaise. — 1947. — Não brinca. Que porra é essa de que você está falando? — Olha a boca! Os dois entraram no hotel, e Blaise perguntou: — K’ijdad, quem é aquela femme velha? — Ela não é velha… é só um pouco mais velha do que a mãe dela era, quando eu a perdi. E pode parar de usar francês e takisiano na mesma frase. Me
deixa doido. — Me conte essa história — exigiu o rapaz. Os olhos de Tachyon foram dos elevadores para o bar. — Preciso de uma bebida. O pianista estava ao piano, dedilhando uma versão de “Smoke Gets in Your Eyes” em ritmo de jazz. — Conhaque — declarou o alienígena, para uma garçonete que passava. — Cerveja. — Blaise encolheu-se sob o olhar penetrante do avô. — CocaCola — corrigiu, num tom mais suave. Ficaram em silêncio até as bebidas chegarem, e Tachyon tomou um grande gole. — Foi poucos meses depois da liberação do vírus. Blythe tinha contraído o carta selvagem e foi levada ao hospital onde eu trabalhava. Era a mulher mais bela que eu já tinha visto, e acho que me apaixonei no instante em que a vi. — Blaise revirou os olhos. — É verdade — defendeu-se o alienígena. — E aí, o que aconteceu? — O poder de Blythe permitia que ela absorvesse mentes. Archibald Holmes recrutou-a para uma organização antifascista chamada os Quatro Ases. Jack era um dos membros, Earl Sanderson e David Harstein também. Blythe tornou-se o repositório das mentes de Einstein, Oppenheimer e muitos, muitos outros, inclusive a minha. Enquanto isso, Jack, Earl e David voavam pelo mundo derrubando ditaduras, capturando nazistas e coisas do gênero. “Então, em 1948, eles tentaram resolver o problema na China. David era a chave das negociações, pois possuía um poder imenso de feromônios. Ele fazia qualquer um concordar com o que quisesse. Conseguiu até deixar Mao e Kuomintang aos beijos, proclamando amizade eterna. Mas, depois que ele e os outros saíram da China, a coisa toda ruiu, naturalmente." Tach ergueu um dedo para pedir outro conhaque. — Durante esse período, havia uma desconfiança crescente em relação aos cartas selvagens. Muito parecido com o que acontece hoje em dia. A China foi a desculpa de que precisavam. Foram atrás dos Quatro Ases acusando-os de serem comunistas. Mas era só uma desculpa. Seu verdadeiro pecado era serem diferentes, mais que humanos. Fomos todos chamados pelo Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara. Queriam o nome de cada um dos ases que eu tinha tratado. Eu me recusei a dar a informação, mas… — Tachyon tomou um longo gole de conhaque. Aquela história nunca ficava mais fácil de contar. — Continue — insistiu Blaise, os olhos escuros brilhando de empolgação. Numa voz esvaziada de emoção, Tachyon retomou a narrativa: — Jack tornou-se o que chamamos de “testemunha amigável”. Ele contou ao comitê que Blythe tinha absorvido minha mente, minhas memórias. Eles a levaram para depor e começaram a interrogá-la. Blythe estava… frágil, devido ao estresse de lidar com tantas mentes. E prestes a revelar os outros ases. Eu não podia permitir que aquilo acontecesse. Então a controlei e fiz sua mente se romper. Ela ficou completamente louca e acabou internada pelo marido. Morreu num sanatório em 1954. — Quem era o marido?
— Um congressista de Nova York . Eles tinham três filhos. Henry Jr., Brandon e Fleur. Perdi o contato com as crianças durante os anos que passei na Europa. — Que foi quando você conheceu George. — Sim. — É tão confuso. — Imagine só viver isso. — Então é essa a história antiga que você não gosta de falar sobre, sempre que pergunto por que você e Jack brigam tanto? — Sim. Passei anos culpando Jack pela destruição de Blythe. Até que percebi que fui eu quem a destruí. Jack foi só um fator numa longa fila de aspectos que contribuíram: minha família, que desenvolveu o vírus, para começo de conversa; Archibald Holmes, que a recrutou; o marido dela, que a rejeitou; Jack, que foi fraco; e a humanidade, que é corrupta. Blaise sugou o líquido ruidosamente pelo canudinho, acabando com a CocaCola. — Cara, que história pesada. — Ela é linda, não é? — Fleur? — O jovem deu de ombros. — É, acho que sim. — Tenho que encontrar essa mulher, Blaise. Explicar, botar o passado a limpo. Fazer com que ela me perdoe. — Por que você se importa? — Pelo céu fumegante, olhe a hora! Eu deveria ter encontrado a delegação do Texas cinco minutos atrás. Vá comprar o jantar, deixe-o no quarto e fique longe de problemas. Preciso me trocar. Quando entrou no quarto, o telefone estava tocando. Tachyon tirou o aparelho do gancho sem demora e ouviu o chiado da ligação de longa distância. Um tom frio e entediado de operadora perguntou: — Aceita uma ligação a cobrar do Sr. Thomas Downs? Por um instante, a descrença pela ousadia do jornalista o manteve em silêncio, e Tach conseguiu ouvir Digger ao longe, balbuciando freneticamente. — Tachy, você precisa me ouvir… — Senhor, a chamada ainda não foi aceita. — Uma bronca da operadora fria. — Tachy, escute! Uma coisa horrí… — Senhor! — … me ajude… — Senhor, aceita a ligação a cobrar? — … um problema enorme! — A voz de Digger soava quase em soprano. — Não! — Tachyon bateu o telefone tão forte que o aparelho soltou um pio de protesto. Estava vestindo a camisa quando ouviu o toque outra vez. — Ligação a cobrar… — NÃO! Tocou mais sete vezes. Depois da terceira, Tach parou de atender. O toque estridente era uma perfuratriz em sua cabeça. Ele se vestiu depressa, com as mesmas roupas exóticas e elaboradas de sempre. Em tons claros de rosa e lavanda com babados prateados. O telefone ainda tocava quando ele saiu para o
corredor. Por um momento, hesitou. Me ajude. Ajudá-lo como? Tach balançou a cabeça, enfático, e fechou a porta. Digger o envolvera vezes demais em seus probleminhas baratos de jornalista barato. Dessa vez, não. Já tenho problemas o bastante. ♥ Spector não entrara na loja havia um ano e meio, desde o Dia do Carta Selvagem, quando o Astrônomo desapareceu em labaredas de glória. Com uma ajudinha dele, claro. O terno que comprara na época não durou até o fim do dia, mas muitas coisas não tinham sobrevivido àquele dia. O velho que cuidava do lugar parecia ser um cara legal. Que inferno, devia ter comprado mais coisas. Não podia ficar hospedado num hotel cheio de pompa sem roupas decentes. Ficaria exposto como um curinga num desfile de moda. Assim que entrou, soube que cometera um erro. Antes, a loja era velha, escura e empoeirada — como o dono. O lugar fora repintado e reformado, e uma iluminação mais clara fora instalada. O recinto até cheirava a novo. Quando Spector se virou para sair, ouviu uma voz chamando. — Olá, senhor, pode entrar. Se está atrás de roupas finas a preços ótimos, veio ao lugar certo. Sou Bob, meu nome está na placa lá fora. É só dizer o que deseja que eu arrumo sem demora. Spector olhou para Bob. Estava muito bem-vestido — embora as roupas não disfarçassem o fato de que estava entrando na meia-idade —, mas tinha os olhos e o sorriso de um vigarista. Spector só queria comprar algumas peças e sair. — Preciso de dois ternos, um cinza-escuro e outro cinza-claro. Trinta e oito, largo. Nada muito caro. Bob esfregou o queixo e fez uma careta. — Acho que cinza não é a cor certa para você. Talvez um marrom-claro. Venha aqui. Ele segurou Spector pelo cotovelo e levou-o até um dos espelhos. — Espere um segundo. Spector examinou a loja. Não viu mais ninguém. Era só Bob e ele. O vendedor voltou trotando, trazendo um terno marrom. Virou Spector para o espelho e segurou a peça diante dele. — O que acha? Ótimo, não é? E está uma pechincha, só 450 dólares. Mais os ajustes, claro. — Quero dois ternos. E do jeito que eu falei. Um cinza-claro. E outro cinzaescuro. Bob soltou um suspiro. — Dê uma olhada lá fora. Sabe quanta gente usa terno cinza? Se quiser se destacar, causar uma impressão, precisa se vestir bem. Confie em mim. Spector não estava mais ouvindo. Tentava acalmar a respiração, concentrando-se. Lembrando-se da dor. Da agonia da própria morte. — Tudo bem, senhor? Spector virou-se para encarar Bob e o fitou nos olhos. Houve a conexão. Bob não conseguia afastar o olhar, e Spector não queria desviar. A lembrança da
própria morte borrava todo o restante. Entregou-a para o homem diante de si. Suas entranhas se retorceram e queimaram. A pele se rompeu e derreteu. Músculos rasgaram-se, ossos estalaram. A própria morte revivida em sua mente. E Bob também a sentiu. Spector estremeceu quando se lembrou do coração explodindo. Bob arfou. As pernas cederam, e o vendedor despencou. Morto. Como Spector, antes de Tachyon trazê-lo de volta à vida. Ele olhou ao redor. Ainda estavam sozinhos. Agarrou Bob por baixo dos braços e arrastou-o para dentro de um dos provadores, depois foi até a arara e pegou dois ternos cinza. Um escuro e outro claro. Envolveu-os num pedaço de plástico e saiu. — Os clientes têm sempre razão, Bob. É a primeira regra dos negócios.
21h00
— O problema de ter Jackson na cédula democrática é que pode nos custar a eleição. Não quero soar preconceituoso nem nada… — Mas está — interrompeu Tachyon. Um franzir de cenho de proporções colossais encrespou o topo da cabeça de Bruce Jenkins. Como os únicos fios de cabelo restantes eram um tufinho sobre cada orelha vermelha, a cabeça inteira parecia estar se entortando, como uma Terra arrasada por terremotos. — Não estou sugerindo que o senhor seja preconceituoso — apressou-se a acrescentar, percebendo que a falta de tato takisiana poderia parecer deslocada numa convenção política. — Mas, afinal, por que estamos discutindo o terceiro lugar, não importa quão interessante ou carismático? O verdadeiro interesse está no Senador Hartmann e em Leo Barnett. — Reverendo. — Como? — Reverendo Barnett. Se você vai mencionar o título de Hartmann, Leo também merece o mesmo tratamento. — Vamos logo ao que interessa, Sr. Jenkins? — Sim. O Texas em peso apoia o reverendo. — E o senhor pretende manter a situação assim? — Se eu puder, sim. Mas isso não quer dizer que Gregg Hartmann não seja um bom homem. Ele é, por isso que acho que a cédula com Barnett-Hartmann talvez seja realmente poderosa. — Impossível! — Veja bem, não vamos nos precipitar. A política parece muito com a venda de cavalos, doutor. Não se pode ser rígido demais. — Sr. Jenkins, se a questão for o triunfo da cédula democrática, em novembro, uma cédula encabeçada por Leo Barnett seria um desastre. Ainda tem muita gente que se oporia à ideia de uma figura religiosa comandando o país. Além disso, Barnett é um candidato de uma nota só. — Nada disso, é aí que o senhor se engana. O senhor o vê como candidato de uma nota só porque está obcecado com os cartas selvagens, mas Leo dialoga com a maior parte da população norte-americana comum, preocupada com a decadência moral deste país. Saíram do restaurante Bello Mondo. À esquerda, vinham barulhos de talheres na louça enquanto jornalistas, acompanhantes e delegados menos abastados jantavam na cafeteria do Marriott. Tachyon franziu o cenho para as faixas estendidas no átrio gigantesco. Ele ouviu o estalo penetrante de saltos altos, deu um pulo e se virou quando sentiu dedos frios se enrolarem em seus cabelos, tocando sua nuca. Sara encolheu-se com a pressão da mão de Tachyon ao redor dos seus dedos. As bochechas dela enrubesceram, mas o vermelho parecia de fúria sobre o branco pouco natural de sua pele.
— Vim buscar uma declaração e ver se eu posso ajudar. Tachyon balançou a cabeça. — Como? Ela se afastou um pouco, infando as narinas. — Crisálida. — O que tem ela? — Morreu. O tom direto acertou-o com tanta firmeza quanto o tapa de Fleur. Ele cambaleou para a frente, buscando apoio. As mãos fecharam-se nos ombros de Sara. — Morta! — Você não sabia? — Não… eu… estava ocupado. O dia todo. — Pois é. — O tom era amargo. Em seguida, de repente, suas feições pálidas formaram uma máscara gentil e compassiva. — Sinto muito por ter que dar essa notícia. Jenkins aproximou-se com cautela. — Doutor, parece que o senhor recebeu más notícias. Conversaremos mais tarde. Sara segurou o braço de Tachyon com as duas mãos e puxou-o para os elevadores. — Foi um choque. Você está muito pálido. Talvez seja melhor se deitar. — Preciso de uma bebida. Sara ficou séria, agarrada ao braço de Tachyon. — Não tem nada no seu quarto? O alienígena franziu o cenho para ela. — Tem. — Vamos… vamos pra lá. — Ela passou a língua de leve pelos lábios finos demais. — Eu… preciso falar com você. A vertigem física somou-se à emocional quando o elevador disparou para cima. — Crisálida. — Ele balançou a cabeça. — Conte o que aconteceu. Ela contou, em frases concisas e rápidas, os olhos pálidos fitando os dele, de um tom lilás. Sara parecia estar forçando um contato mental, e ele intensificou o autocontrole. Não queria saber o que se passava por trás daquele rosto intenso. Levou-a até sua suíte. Ficou ali parado, de pé, encarando-se no espelho sobre o bar, a mão fechada frouxamente ao redor de uma garrafa de conhaque. Espelhos. Crisálida amava espelhos, enchera seu boudoir deles. Imaginou o crânio com a espiral de purpurina numa das bochechas transparentes, sua marca registrada. Imaginou-o transformado numa polpa sangrenta. O tilintar de vidro contra vidro ressoou alto. Ele se virou e estendeu o copo, mas Sara não estava mais ali. Ouvindo o ruído de alguém subindo num colchão, entrou no quarto e encarou, atordoado, a pose da mulher. Os ombros descansavam sobre a colcha. Uma das pernas inclinada sobre a outra. A saia subira até o meio das coxas. Sara aceitou a bebida e, timidamente, deu tapinhas no colchão ao seu lado. Sentindo-se como um homem que divide um banco com
uma aranha, Tach se sentou, desconfiado. — Segredos. — Ele suspirou e tomou um gole. — Suponho que Crisálida tenha finalmente descoberto o segredo que a matou. — Verdade. — Sara encarava a parede ao fundo, rígida. Estremeceu e pousou a mão no braço do alienígena, largado na cama, pesado e sem vida. — Sei o quanto isso deve doer. Vocês dois eram muito próximos. Tach segurou a mão da mulher, apertou-a e deixou-a de lado. — Não sei se chegava a tanto. A mão voltou, dedos apertando de repente sua coxa. Sara começou a acariciá-lo. Tach olhou para ela, nervoso. O suor já brotava no couro cabeludo, e os lábios dela apertavam-se numa linha fina. Sara sentiu o olhar perscrutador dele e sorriu, as pálpebras semicerradas, os lábios projetados. Tachyon virou o copo. O músculo da perna começava a ficar dormente pelo ataque furioso da jornalista. — Quer o outro? — Ele indicou o copo. Ela respondeu rouca. Gutural. — Ah, sim. Por favor. Ficaram sentados, bebendo em silêncio. Tachyon sentiu as entranhas se apertarem. — Eu me pergunto se… MEU DEUS! Tach bateu na ponta da cama e deslizou para o chão, o conhaque caindo em sua virilha. Enfiou o dedo mínimo na orelha e limpou a umidade deixada pela estocada repentina da língua de Sara. Parecia que alguém enfiara um cotonete mergulhado em vaselina gelada em sua orelha. Sara se pendurou na ponta da cama, encarando-o com olhos febris, e arfou: — Quero você! Quero você! Era como receber um golpe de um ancinho. Joelhos ossudos, cotovelos, a pélvis enterrando-se em seu peito, virilha e coxas enquanto ela voava para cima dele. Eles se debateram por alguns momentos, Sara dando beijos inexperientes em qualquer parte da anatomia do alienígena que conseguia alcançar. Tachyon jogou-a longe e cambaleou para o outro lado da cama. — O que diabos você está fazendo? — Lágrimas de vergonha e raiva encheram os olhos dele. — Quero fazer amor com você. — Se é alguma piada, é de muitíssimo mau gosto! Ou, na verdade, seria o gosto perfeito se você tiver interesse pelo cruel humor takisiano. — Que bobagem é essa? — gritou a mulher, jogando os cabelos para trás. — Eu estou impotente! Impotente! IMPOTENTE! — Ainda? — Um assombro honesto recobria a palavra. O que despedaçou o último vestígio de autocontrole. — Sim, vá à merda! Suma daqui! Vá para o inferno, fora! A vermelhidão queimou as bochechas de Sara. A mulher se lançou sobre o peito dele, as mãos enganchadas com ânsia em sua nuca. — Não, por favor, não posso ir embora. Eu sou a próxima, você não vê? Só você pode me manter a salvo! — Ficou doida? Mantê-la a salvo de quê?
— De Hartmann! HARTMANN! Ele matou Andi, matou Crisálida, e agora está vindo me matar! — Não vou ouvir mais nenhuma palavra. — Ele é um monstro. É desumano. Maligno. — Um ano atrás você estava fodendo com ele até se acabar. Ela estava ofegante, arfando. — Ele me obrigou. — Era só o que me faltava. Você é louca. — Tachyon se lançou pela sala de estar, arrastando Sara como um potro recalcitrante. Abriu a porta com tudo. — Sai, sai, sai! A mulher se desvencilhou e se jogou na cama. Enrodilhada com um travesseiro no peito. — Não, não, você não pode me obrigar. Não vou embora. Você precisa me ajudar — ela choramingava enquanto Tach a pegava nos braços e cambaleava de volta para a porta. — Leia minha cabeça. Entre na minha mente! — sibilou ela, agarrando-se à lapela do casaco dele. — Não vou nem tocar nessa fossa que você chama de mente. O fogo se avivou quando as unhas dela arranharam seu rosto alienígena. — QUANDO EU ESTIVER MORTA, VOCÊ VAI SE ARREPENDER! — Eu já me arrependi. Tach bateu a porta com tudo, limpou o casaco com desgosto e foi até o bar. Agarrou a garrafa de conhaque e bebeu direto do gargalo. Quando o calor foi demais para sua garganta, cuspiu. Passou a mão no rosto e soltou um grito ao contato do álcool com os cortes deixados pelas unhas de Sara. Me ajude. Você não quer acreditar . Quando eu estiver morta, você vai se arrepender! A garrafa explodiu contra a parede. — ESTOU CANSADO DE ME ARREPENDER!
23h00
Spector penteou o cabelo para cima e passou a tesoura nas pontas. Mechas castanhas escorridas caíram na pia suja. O resultado estava quase digno de um barbeiro. Trabalhava cortando cabelos nas horas vagas, quando estava juntando dinheiro para pagar os estudos, e tinha ficado bom com a tesoura. Pegou o espelho de mão rachado e verificou a nuca. — Nada mau, meu caro — disse a si mesmo. Molhou um dedo com loção para a pele e esfregou-a sobre o lábio superior avermelhado. Sem o bigode e os cabelos compridos, parecia anos mais jovem — não muito diferente de quando estava na faculdade. Só os olhos cheios de dor tinham mudado para sempre. Com o cabelo lavado e seco, ficaria irreconhecível a qualquer um que tivesse conhecido desde que se tornara o Ceifador. Exceto Tachyon. O alienígena o reconheceria, não importava como estivesse. Pensar no alienigenazinho transformou seu humor em geral tristonho numa raiva torturante. A execução atingiria Tachyon. Meneou a cabeça para o espelho e entrou na sala de estar. A decoração era melhor do que a de seu apartamento no Bairro dos Curingas. As paredes eram verdes acinzentadas, a mobília, de mogno ou de outra madeira escura. Até se sentiu mais animado. Decidira voltar a Teaneck depois que o Dorminhoco o moera de pancada. Considerando o inferno que se desencadeou pouco depois, tinha sido uma boa ideia. Jogou-se no futon preto e pegou o controle remoto da TV. Seu voo sairia apenas no dia seguinte, às dez. Teria muito tempo para fazer as malas pela manhã. Pôs na WABC. O aparelho acordou, e Ted Koppel surgiu na tela. — … pouco se sabia sobre a mulher com pele transparente que decidiu erguer seu império no centro do Bairro dos Curingas, em Nova York. — Koppel franziu o cenho com mais intensidade que de costume. — Embora a polícia quase não se pronuncie sobre o suposto assassinato, foi um caso muito brutal. Existe a possibilidade de um ás com força sobre-humana estar envolvido. Antes de apresentar um pouco do histórico que temos sobre essa mulher chamada Crisálida, vamos ver o que Angela Ellis, capitã da delegacia do Bairro dos Curingas, disse hoje mais cedo. A filmagem passou para uma área de imprensa sombria. Uma mulher baixinha de cabelos escuros e olhos verdes estava diante de um punhado de microfones. Ela tossiu, hesitou e pousou as mãos sobre o púlpito. — A mulher conhecida como Crisálida foi encontrada morta em seu local de trabalho nesta manhã. Se o legista determinar que ocorreu um homicídio, este departamento conduzirá uma investigação completa. No momento, não temos mais informações. — Vozes de repórteres questionadores soaram imediatamente, num rugido. Ellis ergueu uma das mãos. — É isso. Manteremos vocês informados à medida que os fatos forem esclarecidos. Spector pegou a garrafa de uísque que sempre mantinha ao lado do futon. Tirou a tampa e deu vários goles.
— Merda. Nunca tinha se importado muito com aquela puta, de forma alguma, mas algo naquela morte o deixara inquieto. Havia sangue e morte no ar, e, embora isso em geral o fizesse se sentir em casa, estava achando que teria que se arriscar bastante para cometer seu assassinato. Uma pena. O dinheiro dos Punhos Sombrios já estava acabando, e ele precisava de outro lance grande. Aquele caíra em seu colo, e não podia desperdiçar a oportunidade. Vários goles de uísque e o tom monótono e familiar de Koppel o ajudaram a relaxar. Ficou sonolento, se perguntando como estaria o clima em Atlanta. ♣ Tachyon curvou-se sobre o balcão, os tornozelos encaixados nas pernas do banco alto e cromado. A luz refletindo nas taças de vinho penduradas faziam sua cabeça doer ainda mais, porém ele não conseguia reunir forças para desviar o olhar. Espelhos. Os espelhos da Funhouse se estilhaçaram quando os sequestradores foram buscar Angelical. Um crânio refletido em centenas de ângulos diferentes entrou no boudoir de Crisálida, no último andar do Crystal Palace. Os lábios transparentes pintados de rosa-claro, a espiral de purpurina na bochecha, os olhos azuis flutuando estranhamente nas órbitas ósseas. Tach nem conseguia se lembrar por quantos anos bebera naqueles dois lugares. E a Funhouse estava fechada desde a morte de Des, um ano antes. O que seria do Crystal Palace? A autocomiseração bêbada trouxe lágrimas aos olhos de Tachyon, e ele considerou seu estado desolador. — Ei, camarada? — chamou o jovem e alegre barman. — Mais uma dose? — Claro, por que não? O barman preparou outro copo de conhaque, e Tach ergueu-o diante de si. — À morta perdida e pesarosa. — O alienígena bebeu tudo, rabiscou o número do quarto no papel da conta e deslizou para fora do banco. O saguão ainda estava bem agitado, mesmo àquela hora, mas ele não encontrou nenhum conhecido. Pensou em ligar para Jack , mas queria beber e falar sobre Crisálida, e o grande ás não a conhecera. A caminhada sem rumo levou-o até o andar que abrigava a comitiva de Barnett. Por trás das portas, ouvia o murmúrio baixo de vozes. Encarou uma das portas, muito sério, desejando que Fleur saísse dali. Não funcionou. O exame silencioso da suíte atraiu a atenção de um guarda do Serviço Secreto. Tach percebeu que ele se aproximava e cambaleou de volta para os elevadores. Quando chegou outra vez ao quarto, encarou os cabelos bagunçados de Blaise. Soluços o sacudiram enquanto ele se ajoelhava ao lado da cama e abraçava o rapaz adormecido. Todo mundo sempre me abandona. Todo mundo que amo me abandona. Eu te amo tanto. Não me abandone, nunca. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo II
Terça-feira, 19 de julho de 1988
8h00
Estava tão bêbado e arrasado na noite anterior que não tinha percebido a luz de mensagem piscando na secretária eletrônica. Depois de atingir um estado em que conseguia focar os olhos num ponto e a cabeça não parecia tanto com um inimigo enorme montado em seus ombros, Tachyon começou a bebericar o Alka-Seltzer enquanto ouvia o tom de discagem. — Clínica Blythe van Renssaeler. — Aqui é Tachyon, quero falar com Finn. — Oi, doutor, você já deve estar sabendo. — Sim. — As coisas estão em polvorosa aqui. Uma bomba foi detonada na missão de Barnett, na noite passada, além do que só posso descrever como demonstrações gratuitas do acontecido em plena praça Chatham. Passei a tarde toda tentando entrar em contato. — Só voltei para o quarto muito tarde. — Eu acompanhei a autópsia. Quer detalhes? Tachyon suspirou. — Acredito que deveria ouvi-los. Finn discorreu sobre as descobertas. Ao fundo, Tach ouvia quatro batidas estalando quando o centauro do tamanho de um pônei se remexia, nervoso, sobre os cascos delicados. Exausto, o médico curinga concluiu: — Parece que o velório vai ter que ser com um caixão lacrado. — Caramba, o funeral. Quando é? — perguntou Tach. — Amanhã de manhã, às onze. — Vou estar aí, com certeza. — Como estão as coisas por essas bandas? — Confusas. Não sei nem a contagem atual de delegados. — Ele olhou para o relógio. — Preciso ir. Vejo você amanhã. Pegando um chapéu, Tachyon se deteve diante da porta do banheiro e teve que gritar por cima do estrondo de água caindo. — Vou sair para tomar café com Jack. Me encontre às dez e meia para irmos ao Omni. Não se atrase. Não houve resposta. Blaise estava tramando alguma coisa ou fazendo cara feia. Nenhuma das perspectivas era animadora. ♠
— Sra. Morgenstern. — Braden Dulles era um sujeito mais jovem, mas usava uma voz oficial, um estrondo autoritário no melhor estilo Ben Bradlee, como um carro passando por uma estrada de cascalho durante um dia de inverno na Nova Inglaterra, inclusive com o gelo rachado crepitando de vez em quando. — Você deixou este jornal numa posição muito difícil. Sara se endireitou na cama e puxou uma almofada para perto do peito. Estava com uma camisola pesada de flanela azul. Era como sempre ficava em hotéis: no inverno, desligava a calefação; no verão, colocava o ar-condicionado no máximo e se encapotava. Gostava da sensação de isolamento gerada pelas várias camadas de roupa de cama. Movia as pálpebras para cima e para baixo, ponderando. Em geral, era uma pessoa matutina. Mas, na noite anterior, depois de Tachyon expulsá-la — aquele desgraçado! —, ficou totalmente sem rumo. Não tinha ideia do que fazer, mas arriscou voltar ao quarto, onde dormira o sono dos clinicamente depressivos. Olhou para o rádio relógio no criado-mudo. Oito horas. Se a ligação de Dulles não a tivesse acordado, Sara talvez tivesse dormido até a tarde. Como ela não respondeu, Braden continuou: — O que nos preocupa é que, ultimamente, a senhora tem conduzido o que parece uma vingança pessoal contra um dos principais candidatos à presidência. A amargura estourou como uma bolha. — Você quer dizer seu candidato favorito. — O Post tem por tradição assumir consciência de suas responsabilidades como jornal de renome na capital do país. O Senador Hartmann obviamente é o candidato mais bem qualificado no presente momento. — Acha que o presente momento é propício para deixar um ás psicopata no comando da Casa Branca? Meu Deus, tudo que Ronnie Reagan fez foi invadir um país novo e alheio a nós a cada dois anos. Esse homem… essa criatura… ele se alimenta da miséria humana, Braden. Silêncio angustiado. Podia ver a expressão no rosto de jovem aristocrata de Dulles, as narinas se dilatando, a profundidade dos muitos sulcos — mais do que o esperado para a idade — que cercavam a boca e irradiavam dos cantos dos olhos, que Dullan cultivava, pensando que lhe conferiam um ar de seriedade. Como se tivesse detectado um aroma de bosta de cachorro dentro do santuário estéril e sagrado do Post. — Sentimos que sua… obsessão… não a favorece como profissional, nem a nós como jornal. Seu último relato, se é que posso chamá-lo assim, foi simplesmente inacreditável. Mesmo que estivéssemos inclinados a aceitar essa mistura de acusação insana e insinuação, o departamento jurídico nunca permitiria que imprimíssemos uma coisa dessas. "E essa tentativa de Leo Barnett de sujar o Senador Hartmann… francamente, Sara, como você pôde se prestar a um ato tão… sórdido e sem escrúpulos?" — O pessoal de Barnett não me perguntou nada, Braden. Eu não sabia de nada, juro por Deus. — Ela se agarrou ao fone como se fosse a única coisa que a mantivesse em pé. Era um talismã frio de dureza contra sua bochecha. — A senhora me disse que as alegações eram verdadeiras. Ainda assim, em
questão de horas, o Senador Hartmann expediu uma declaração negando tudo. Julgamos a declaração bastante convincente. Porque quiseram que fosse. Sara tentou imaginar o Post aceitando uma negação improvisada e dúbia de um político a quem não lançassem seus holofotes dourados. Um Nixon, um Robertson, até mesmo um Bush seriam caçados até o fim do mundo. Mas não conseguia falar. Tinha uma boa lábia de repórter quando precisava arrancar confissões. Porém, não sabia como, as palavras pronunciadas sempre a traíam quando Sara tentava expressar algo que realmente importava para ela. — Por fim, Sra. Morgenstern, estamos bastante preocupados com sua aparente falta de intenção de voltar a Nova York. A senhora é uma autoridade jornalística reconhecida no Bairro dos Curingas. Consideramos bastante problemática sua falta de interesse no assassinato de uma das cidadãs mais proeminentes da comunidade. Assassinato este que, diga-se de passagem, envolveu o uso de poderes de ases. Alguém chegou a comentar que a vítima era uma amiga pessoal sua. Parece que você vai encontrar uma história por lá. — Encontrei uma história aqui, Braden. Isso aqui é maior que um assassinato no Bairro dos Curingas. Diz respeito a todos nós … a você, a mim, aos ases, aos curingas, ao povo de Uganda, ao mundo todo. O presidente tem tanto poder, tantos… — Parou de falar antes de se precipitar. Era por isso que preferia as palavras escritas; as faladas tendiam a escapar do controle. Respirou fundo. — Além disso, Braden, ele está aqui. O assassino da Crisálida está aqui. Você não leu o meu artigo? — Está sugerindo que o Senador Hartmann espancou a Sra. Jory até a morte? — Não. Caramba, Braden, não seja tão obtuso. Ele cometeu o crime quando usou seu ás, quando usou sua posição. Que diferença isso faz, porra? Ele ainda é culpado, como um don da máfia que ordena uma execução. Dulles deu um suspiro. — Realmente sinto muito que tenha chegado a este ponto. Seu profissionalismo foi seriamente afetado pela destruição da sua personalidade. Portanto, sentimos que a manutenção de sua associação com este jornal não é mais de seu interesse, muito menos do nosso. — Você está me demitindo? — Sua voz ecoou no quarto. — Diga, Braden. Tenha os colhões de dizer. — Já disse tudo que precisava, Sra. Morgenstern. Só posso esperar que busque a ajuda de um terapeuta o mais breve possível. A senhora é boa demais no que faz para colocar tudo a perder por causa de um vício. — Vício? — Ela mal conseguiu pronunciar a palavra. — Vício de temer. Vício da empolgação, da emoção de ser a figura central num mistério vasto, sombrio e ameaçador. O vício é a doença dos anos 1980, Sara. Adeus. Ela ouviu o clique e o ruído da conexão interrompida. Visualizava mentalmente as mãos de Braden Dulles, esfregando-se até assumir um brilho rosado, como se estivessem se lavando no ar. Jogou o telefone do outro lado do quarto e levantou-se para se vestir. Sentia-se uma boneca de porcelana rachada. Como se a qualquer momento uma lufada de
ar pudesse estilhaçá-la sobre o carpete.
9h00
Com uma explosão de prazer quase culpado, Tach percebeu que continuava sendo notícia, mesmo entre os maiores da nação. As pistas discretas que ele e Jack haviam deixado no dia anterior já rendiam frutos. Repórteres corriam e se acotovelavam, testando microfones, verificando câmeras. Jack fizera um belo trabalho com a encenação do assunto todo, selecionando uma mesa próxima à divisão que separava a cafeteria do átrio principal. Um técnico acendeu a luz da plateia, banhando o grande ás loiro. Jack estreitou os olhos e cobriu-os com as mãos. — Noite ruim? — perguntou Tach, ocupando a cadeira diante de Jack. Mantinha a voz muito baixa para evitar os falos de espuma que os repórteres já estendiam em sua direção. — Noite longa. Tivemos um problema com a Regra 9(c), que rege a proporção de delegados anteriormente comprometidos… — Jack, poupe-me dos detalhes tediosos. Vencemos ou não? — Vencemos, mas graças a mim, que montei uma armação para nos conduzir à vitória no desafio da Califórnia. — Jack tomou um gole de café e acendeu um cigarro. — Alguma ideia de como vamos agir neste cenário? — Não. — Ótimo. — A resposta foi azeda. Os cantos da boca de Tachyon repuxaram-se para baixo. — Acho que agora posso dar a volta na mesa e te dar um beijo. — Eu te mato. Tach cobriu os olhos com uma das mãos e examinou a multidão, notando a presença de Brokaw e Donaldson. Peregrina, que sempre soubera o momento exato de fazer uma aparição, veio voando do décimo andar. A batida de suas grandes asas farfalhava cardápios e arruinava penteados feitos em salões. As câmeras se ergueram para documentar a aterrissagem. Tachyon cumprimentou-a telepaticamente. Bom dia, doçura. Pronta para nos ajudar a engabelar o povo? Prontíssima, Tachy, querido. — Sr. Braun, doutor, que companheiros mais inusitados para um café da manhã! — cantarolou Peri. — Em que sentido? — perguntou Tach, gentilmente. Sam Donaldson não perdeu a deixa, soltando um comentário em seu tom seco e firme. — A antipatia mútua entre vocês dois está muito bem documentada. Numa entrevista de 1972 para a revista Time, doutor, o senhor disse que Jack Braun era o maior traidor da história norte-americana. Jack ficou tenso e apagou o Camel, esmagando-o no cinzeiro. Tachyon sentiu um arrependimento momentâneo pelo que teria de suportar. — Sr. Donaldson, talvez o senhor tenha notado que essa entrevista foi há
dezesseis anos. As pessoas mudam. Aprendem a perdoar. — Então o senhor perdoou Braun pelo que aconteceu em 1950? — Perdoei. — E quanto ao Sr. Braun? — indagou Buckley, do New York Times. — Não tenho nada a perdoar. O que tenho são arrependimentos. O que aconteceu em 1950 foi uma farsa. Vejo que está acontecendo novamente, e por isso vim aqui disparar o alerta. O Dr. Tachyon e eu compartilhamos mais que um passado. Nós nos aproximamos pela admiração que sentimos por Gregg Hartmann. — Então foi o senador quem arranjou a reconciliação? — Apenas através do próprio exemplo — respondeu Tach. — Ele era uma das forças de liderança por trás da excursão da Organização Mundial de Saúde, ano passado, que investigou o tratamento dos cartas selvagens em todo o mundo. O senador fez um discurso tocante sobre reconciliação e a cicatrização de antigas feridas. — Tach olhou para Jack. — Acho que talvez nós dois tenhamos aprendido a lição. — Também temos outro laço — completou Jack. — Sou um carta selvagem. Um dos primeiros. Tachyon passou 42 anos trabalhando entre as vítimas do vírus. Era um exagero agradável, mas Tach não o corrigiu. Se o fizesse, teria de trazer à tona o fato de que, durante treze anos, de 1950 a 1963, Tachyon fora um vagabundo alcoólatra inútil, perambulando pelas ruas e sarjetas da Europa e do Bairro dos Curingas. E o que o levara à desintegração e deportação tinha sido justamente aquelas audiências fatídicas perante o HUAC e a traição de Jack. — … e não gostamos do que está acontecendo com o país. O ódio voltou, e nós tememos isso. Tachyon lutou para se livrar das lembranças. — Então o senhor acusa o Reverendo Barnett de atiçar as chamas do ódio e da intolerância? — perguntou um jovem de rosto sério da CBS. — Acredito que Leo Barnett é um homem de princípios… próprios. Mas o mesmo se podia dizer de Nur al-Allah, na Síria, e, quando visitei aquele pobre país, vi curingas inocentes sendo apedrejados até a morte nas ruas. Será que realmente desejamos ver esse tipo de coisa em nosso país? — Tach negou com a cabeça. — Acho que não. Gregg Hartmann… — É um ás secreto e um assassino. — Declarou uma voz aguda e abafada no meio da multidão. As pessoas se afastaram, repelidas pela loucura no rosto magro de Sara. Tachyon quase se levantou. — Merda! — murmurou Jack. — O que o senhor vai fazer, Dr. Tachyon? Hartmann é um dos seus. Um desses enteados demoníacos, e só você pode impedi-lo. — As lágrimas embotavam as palavras de Sara. — Faça alguma coisa. Controle a mente dela. Qualquer coisa — sussurrou Jack. E piorar uma situação que já está péssima?, respondeu Tach, numa mensagem telepática amarga. A multidão de repórteres se voltara para a mulher como uma alcateia
sentindo cheiro de sangue. Ela empalideceu e recuou. — Sra. Morgenstern! Em que… a senhora… que provas… o Post tem… A intensidade dos clamores aumentou. Para os nervos de Tachyon, já tensos além da conta, o som parecia assumir uma manifestação física — uma onda prestes a quebrar sobre aquela forma frágil. Sara deu meia-volta e desapareceu no meio da multidão de curiosos. Tachyon encarou os rostos ansiosos da imprensa e inclinou a cabeça. Precisavam ser alimentados. Mães da minha mãe, perdoem-me, rezou, então lançou Sara aos lobos. — Essa moça infeliz não lida bem com estresse — comentou, com a voz clara e penetrante. — As revelações de ontem relacionadas a ela e ao Senador Hartmann… — Então houve mesmo um caso? — questionou Donaldson. — Não. A menina estava apaixonada pelo senador e não conseguiu aceitar suas recusas contínuas. Acho que ela está dividida entre o amor pelo senador e um desejo de vingança. Lembrem-se, nem no inferno há ferocidade maior… — A voz dele foi sumindo. — É — interviu Jack. — Tentei mostrar meus encantos à jovem durante a excursão, mas ela estava obcecada pelo senador. — Uma pena — concluiu Tachyon. Mas não tanto quanto o que acabei de fazer com ela. ♦ — Quem diabos é você? — questionou Sara, num berro agudo. O homem que segurava seu braço a ignorou. Ou talvez o tumulto das perguntas e da raiva caindo sobre eles como um tsunami tenha afogado suas palavras. Algo na atitude do sujeito dizia que era a primeira opção. Os primeiros a se deslocarem tinham sido os capangas discretos da segurança, claro, avançando nos ternos escuros de três peças, murmurando nos microfones da lapela enquanto convergiam para ela. Sara estava parada, ereta e sozinha, desafiadora em sua saia verde-chá e camisa branca de manga comprida, o queixo erguido sobre um babado consideravelmente mais modesto que o de Tachyon. Deixou que o barulho passasse ao largo. Despejara a verdade no carpete como merda brilhante e fedorenta sob as luzes quentes da TV, onde não podia ser ignorada ou encoberta. Agora, aceitaria as consequências. Foi agarrada pelo pulso. Girou, pronta para mirar o chute num saco coberto por gabardine. Mas, em vez de um jovem parrudo, deu de cara com um careca pequeno, grisalho e com uma barriga redonda coberta por uma camiseta do Mickey Mouse. Os seguranças nem estavam ali perto. Foi então que o grisalho a arrastou para uma porta lateral com a autoridade modesta, porém irresistível, de um rebocador do East River. Os brutamontes da segurança ficaram presos no turbilhão de delegados e repórteres gritando perguntas uns aos outros. A última visão que ela teve da sala foi Jack Braun encarando-a com o rosto enrugado, parecendo um Sonny Tufts surpreso. Tachyon, a seu lado, olhava ao redor com pavor neurastênico, como um galã desnutrido do período regencial inglês cujo companheiro machão acabara de
peidar no armário. Seu salvador — ou o que quer que fosse — arrastou-a por um corredor, passando por transeuntes apáticos até um corredor de serviço lateral. Ele usou o impulso da caminhada para girá-la de costas contra a parede. Um grupo de repórteres passou por eles, tomando o caminho errado. — Não é assim que se faz — declarou o sujeito. Tinha o tipo de rosto bronco e afável reservado apenas aos atores de televisão. Seu sotaque era… russo? Sara se descontrolou. Aquilo era simplesmente estranho demais. Ela afastou a mão, com mais pânico pelo contato do que por qualquer consequência. O sujeito a encurralou. — Não! Você precisa me ouvir. Está correndo um perigo enorme… Não me diga, camarada. Sara se contorceu para escapar dele e saiu correndo, quase descalçando um sapato no caminho, batendo na parede, tateando, usando as mãos como apoio enquanto sacudia os pés, freneticamente, tentando se libertar. — Tola! — gritou o homem, atrás dela. — A verdade que você carrega pode matá-la! O sapato finalmente se soltou e saiu voando até a parede. E Sara correu.
10h00
Gregg não se lembrava de ter dormido nem um pouco durante a noite. Às seis, Amy ligou para repassar a agenda matinal e lembrá-lo do café da manhã com Andrew Young, às sete, no Pompano’ s. Às sete e quarenta e cinco ele estava em reunião com Tachyon, Braun e outros lobistas e delegados--chave, discutindo a plataforma dos Direitos dos Curingas e o programa do partido. Às oito e dez, teve pequenas dificuldades com a delegação de Ohio, que parecia considerar Gregg como “filho favorito”, pois nascera em seu estado, e sentia que merecia acesso privilegiado a ele. Às oito e meia conversou com Ted Kennedy e Jimmy Carter sobre os discursos de nomeação do dia seguinte. Amy e John Werthen se aproximaram para confirmar o restante da agenda matinal, então Gregg conversou brevemente com Tony Calderone sobre o andamento de seu discurso de aceitação. Por volta das nove e meia, Tachyon chegou como uma tormenta para reclamar que Sara Morgenstern passara dos limites. Ele informou a Gregg sobre as declarações no saguão. — Ela está completamente louca — reclamou o alienígena, furioso. — Paranoica e com mania de perseguição. Precisamos fazer alguma coisa. Gregg concordou mais do que Tachyon imaginava. A mulher ficara imprevisível e perigosa, e ele não ousava usar o Titereiro para neutralizá-la. Era arriscado demais, com a interferência de Gimli. E, depois dos problemas que tivera com o Titereiro nas últimas semanas, não podia se dar ao luxo. Uma cena em público arruinaria tudo. Pouco depois das dez, finalmente conseguiu se retirar para o quarto por alguns minutos. Ellen estava cumprimentando delegados e fazendo campanha lá fora, e os quartos estavam abençoadamente desertos. Uma dor de cabeça latejava em suas têmporas, e ainda ouvia a voz de Gimli. Por que se preocupar com Morgenstern? Claro, ela está totalmente descontrolada, mas não é um problema tão grande quanto eu, não é mesmo? Você conseguiria lidar com ela, se ousasse soltar o Titereiro. Ainda consegue senti-lo, Greggie? Consegue ouvi-lo uivar , pedindo uma dose? Eu consigo. E você também vai, a qualquer momento. — Cale a boca, maldito! — Só percebeu que falara em voz alta quando escutou o eco suave de sua voz. Gimli gargalhou. Claro. Vou ficar quieto por um tempo. No fim das contas, já até fiz você falar sozinho. Só não esqueça que ainda estou aqui, esperando. Por outro lado, duvido que vá se esquecer disso, não é mesmo? Você não pode. A voz desapareceu, deixando Gregg gemendo e segurando a cabeça. Um problema de cada vez, disse a si mesmo. Primeiro, Sara. Ele se recompôs, pegou o telefone e discou. Um leve chiado de chamada de longa distância e, em seguida, o telefone tocou na outra ponta. — Hartmann 88 — disse uma voz com forte sotaque do Harlem. — Escritório
de Nova York, Matt Wilhelm falando. — Peludo, como estão as coisas aí em cima? Uma gargalhada veio do outro lado da linha. Wilhelm — também conhecido como Peludo no Bairro dos Curingas — preferia seu nome de curinga, como Gregg sabia. — Senador, que bom ouvir sua voz. Deveria saber que era o senhor nesta linha. Vai tudo bem, talvez um pouco lento. Estamos esperando o pronunciamento oficial de que o senhor é nosso candidato, daí vamos aumentar o ritmo. Como estão as coisas aí em Atlanta? — Quente e abafado, e terrivelmente morno lá na convenção, até onde sei. — Muita resistência à plataforma — concordou Peludo. Gregg podia imaginar as feições leoninas do curinga já franzidas. — Era o que esperávamos. — Temo que sim. Mas vamos continuar insistindo até dar certo. — Faça isso mesmo, senador. Por enquanto, o que Peludo pode fazer pelo senhor? — Gostaria que você fizesse algumas ligações. Eu mesmo poderia fazê--las, mas tenho uma reunião daqui a alguns minutos, e Amy e John estão enrolados com esse assunto da plataforma. Você ou alguém de nossa equipe tem tempo para me dar uma mãozinha? — Claro. É só pedir. — Ótimo. Primeiro, entre em contato com o gabinete de Cuomo, transmita nossos agradecimentos pela ajuda de ontem, com Lixa e Mortalha, e descubra exatamente quando ele vai chegar em Atlanta, amanhã. Quero saber que acordos foram feitos e me certificar de que um dos nossos vá buscá--lo no aeroporto. Em seguida, ligue para nosso quartel-general, em Albany, e peça para alguém confirmar minha reserva lá para a primeira semana de agosto. Amy disse que nunca deram retorno. Também preciso que ligue e garanta que o apartamento de Nova York vá estar pronto para Ellen na manhã de segundafeira. Aliás, ela mudou o horário do voo para o Tomlin, mas John vai ligar para você com todos esses detalhes. — Entendido, senador. Mais alguma coisa? Gregg cerrou os olhos, afundando-se no abraço estofado do sofá. — Sim. Outra ligação. — Recitou o número que memorizara antes de deixar Nova York. — Não precisa falar com ninguém, só deixe um recado na secretária eletrônica — explicou. — Não se preocupe. Só precisa deixar uma mensagem curta. Diga apenas para reservarem um voo para Atlanta o mais rápido possível. Vão saber o que significa. — Reservar um voo o mais rápido possível. Sem problemas. Só isso? — Sim. Obrigado, Peludo. Vejo você em breve. — Só consiga uma plataforma em que nós, curingas, possamos nos apoiar. — Faremos de tudo para conseguir. Cuide-se. Mande um abraço para sua equipe. Não conseguiríamos nada sem vocês. Gregg pousou o fone com cuidado no gancho. Estava feito. Mackie estava a caminho. Gregg não queria aquele ás volúvel em Atlanta, mas precisava fazer alguma coisa. Mackie já devia ter liquidado Downs, agora cuidaria de Sara.
Uma voz sardônica respondeu, bem baixinho, vindo de seu interior. Mas e eu? O que você vai fazer quanto a mim? ♥ — Um homem da KGB passeando na Convenção dos Democratas? — Ricky Barnes balançou a cabeça magra. — Todo mundo acha que você está associada com Barnett, mas talvez devesse pensar em trabalhar para Robertson. Parece algo que o pessoal dele inventaria. Algo como mortos se levantando e as informações sobre o paradeiro dos reféns do voo 737 sendo mantidos em Calcutá. — Não tem graça, Ricky. — Sara se sentou no canto da cama bem-arrumada, ansiosa, picotando um lenço de papel. Falava sem ardor. Ricky talvez fosse a primeira pessoa que encontrara na vida que poderia provocá-la sem provocar dor. — Bem, primeiro você faz aquela cena no meio das juras de amor de Tach e Jack . Depois, diz que foi tirada do caldeirão fervente por um velhote usando uma camisa do Mickey Mouse. Onde já se viu um homem da KGB com camisa do Mickey Mouse? — E que roupa os homens da KGB usam, Ricky? — Roupas amassadas, Rolex falsificado. Eu conheci homens da KGB, Sara. Você também. Ela jogou o lenço de papel esmigalhado no chão. — Bem, então quem era ele? — Alguém com muito mais bom senso do que você está mostrando ter, querida. Ela colocou as pernas para cima da cama, cruzou-as e pousou a cabeça nas mãos. Ricky a observava da mesa, onde repousava aberto seu antigo laptop Epson Geneva. Usava colete e calças listradas marrom-escuros, uma camisa cor-de-rosa e gravata-borboleta marrom. Com o rosto alongado e brancos dentes de cavalo, lembrava o pobre Ronnie, assistente de Gregg, que sempre desaprovou a relação do chefe com Sara. Fora executado pela Facção do Exército Vermelho quando sequestraram Hartmann, em Berlim. Sara culpava Hartmann pela morte do assistente. Mas a lembrança do assistente azarado de Hartmann ficava só na aparência. Ricky a via com bons olhos. Sempre fora assim. Às vezes, com bons olhos até demais, ela suspeitava. — Acha que estou louca? — perguntou. — Caramba, acho. Mas pense só se você estiver certa, Rosie. — Rosie era um apelido para ela. Ricky dizia que ela parecia uma Rosanna Arquette albina. — Diante de Deus e do mundo, anunciando que o Senador Gregg é um ás assassino… consegue pensar numa maneira mais rápida de fazê-lo ir atrás de você, se for mesmo verdade? — Estou falando sério sobre Hartmann. Todo mundo me trata como se eu fosse uma leprosa porque não acho que Gregg é a reencarnação de Abraham Lincoln, ou algo do tipo.
Ricky bateu com a mãos nos lábios e coçou o queixo com a ponta dos dedos. Era um pianista bem razoável em seu tempo livre, e tinha mãos para tanto: longas, magras e finas. — Preciso dizer que isso me parece bem improvável. Toda essa coisa de controle mental, e tudo o mais. Como ele poderia ter mantido isso em segredo por todos esses anos? — Sara parecia estar se preparando para uma torrente. Ricky estendeu uma das mãos espalmadas entre os dois, na defensiva. — Mas espere aí. Você é uma repórter excelente, uma pessoa excelente… Acho que suas matérias talvez tenham feito mais para promover a compreensão de curingas e de seus problemas do que a postura do Senador Gregg e seus folhetos bem-feitos. Irmão Malcolm nos ensinava o significado de quando o Homem estende a mão auxiliadora. Sei que você não está inventando essas coisas. “Mas ainda assim… Sei que você ainda sente muito intensamente a perda de sua irmã. Será que existe alguma chance de isso estar afetando sua opinião?” Sara deixou o rosto cair entre as mãos, parecendo segurar a cabeça pelos seus cabelos quase brancos. — Quando eu era menina, sempre que eu fazia algo bonitinho ou inteligente, percebia que meus pais estavam pensando: se ao menos fosse a Andi. Sabe o que isso significa? Quando eu era malvada ou desajeitada, vinha um olhar de: Andi nunca faria isso. Bem, eles não diziam nada tão horrível, nem em voz alta. Mas eu sabia. Era como se eu tivesse um carta selvagem, um dom psíquico venenoso que me permitia ler seus pensamentos. Ela já estava chorando, as lágrimas escorrendo como se alguém tivesse enfiado uma furadeira enorme em seus olhos e atingido um reservatório gigantesco de tristeza. Ricky estava ao lado dela na cama, aninhando-a no peito magro como uma raquete, acariciando os cabelos com os dedos esplêndidos enquanto a maquiagem se desmanchava no rosto e sujava sua camisa da Brooks Brothers com grandes manchas feiosas. — Sara… Rosie… está tudo bem, querida, tudo bem, vamos dar um jeito nisso. Vai ficar tudo bem. Você está bem, meu amor, tudo vai ficar bem. Sara se agarrou a ele como um filhote de gambá, aceitando o contato humano por um raro momento, deixando que ele murmurasse palavras tranquilizadoras, deixando que ele a abraçasse. Só espero que ele não insista demais, pensou. ♣ As pessoas que transitavam pelos corredores da área de embarque do aeroporto LaGuardia abriam bastante espaço para o jovem magro de terno preto puído. Não era só por causa do cheiro rançoso de suor que emanava de suas roupas e de seu corpo raramente lavados. Mackie estava tão ansioso por ter recebido O Chamado que mal conseguia se conter, e todas as partes de seu corpo zumbiam. Os ruídos subliminares irritavam os passantes. Ele olhou para os monitores próximos ao portão da Eastern. Os números e as letras cinzentos confirmaram outra vez que seu voo sairia no horário. Inclusive, dava para ver o avião através do vidro polarizado, uma aeronave branca e larga
reluzindo como muco sob o sol matutino de verão. O envelope de papel que continha seu bilhete e cartão de embarque em sua mão estava começando a murchar, mas Mackie não queria largá-lo, nem mesmo enfiá-lo num dos bolsos. Crisálida estava morta, e Digger, desaparecido, mas Mackie mataria uma vítima ainda melhor. A mulher. O Homem lhe contara sobre ela. A mulher tinha feito aquilo com o Homem, durante a excursão. Quando eles terminaram, ela enlouqueceu — agora estava tentando fazer alguma coisa com o Homem — seu Homem. Ele quis sair para encontrá-la assim que ouviu essa conversa, fazer um bom zumbido, cortá-la e ficar vendo o sangue jorrar, mas o Homem tinha dito que não. “Espere meu chamado.” O chamado chegara meia hora antes, numa ligação em código no sistema de mensagens do Bowery. Ficou feliz por não ser permitido fumar nos aviões. Odiava fumantes: curingas fumantes. Tinha viajado uma vez de avião, quando saiu da Alemanha para ficar mais perto do Homem. Ergueu o passaporte diante do rosto, abriu e folheou. Mal conseguia ler a letra vermelha, e não porque estava borrada. Não tivera o que se podia chamar de boa educação, na Alemanha. Nunca aprendera a ler direito, embora tivesse aprendido a falar inglês. Com a mãe. Aquela puta. O bilhete de embarque estava esperando por ele, quando Mackie foi ao balcão da Eastern. A atendente teve medo dele. Mackie podia sentir. Era uma puta gorda e preta. Achou que ele fosse um curinga. Dava para ver naqueles olhos estúpidos de bezerro. As pessoas sempre achavam que ele era um curinga. Especialmente as mulheres. Era por isso que o Homem tinha soado estranho. Aquela mulher estava atrás dele. Mulheres sempre faziam isso. Mulheres eram uma merda. Pensou na mãe. A puta gorda que fedia a conhaque. O gargalo da garrafa enfiado na boca da mãe, que ele visualizava mentalmente, transformou-se num pau grosso e preto. Mackie ficou vendo o pau entrar e sair por um tempo, umedecendo os lábios. Sua mãe trepava com pretos. Trepava com qualquer um disposto a pagar, lá no distrito de Sankt Pauli, em Hamburgo. Reeperbahnstrasse, a “área da luz vermelha” de Hamburgo. Onde Mackie crescera. Um deles a engravidou. Quando a mãe ficava bêbada e o espancava, dizia que seu pai era um desertor, um soldado americano que viera do Vietnã para Estocolmo. Mas seu pai era um general. Ele sabia disso. Mackie Messer era mau até o último fio de cabelo. Seu pai não podia ser qualquer um, não é mesmo? A mãe o abandonara. Natürlich. As mulheres sempre faziam esse tipo de coisa. Faziam amar para depois poder ferir. Queriam que os homens pusessem suas coisas nelas para depois levá-las embora: arrancar com uma mordida. Tentou imaginar a mãe arrancando fora o pinto preto imenso, mas ele se dissolvia em lágrimas que corriam pelo rosto e pingavam do queixo na gola da camiseta do Talking Heads. A mãe morrera. Estava chorando por ela, de novo. — Voo 377 da Eastern Airlines para Raleigh-Durham e Atlanta, embarque liberado para passageiros das fileiras de um a quinze — anunciou o teto. Mackie secou as lágrimas, assoou o nariz na mão e juntou-se ao grande fluxo
de gente. Ia para um lugar onde o queriam por perto, e estava contente. ♠ Spector estava no banheiro minúsculo do avião, jogando um pouco de água da pia no rosto. O estômago fervilhava, e a pele estava fria. Tinha ido ao banheiro na esperança de vomitar, mas não tivera muita sorte. Estava tão nervoso que não conseguia nem tirar água do joelho. Uma batida impaciente na porta. — Já estou saindo — anunciou, secando o rosto com a manga do casaco. Outra batida. Dessa vez mais forte. Spector suspirou e abriu a porta. Um curinga corcunda com camiseta dos Talking Heads estava parado ali fora. O sujeito o empurrou para fora, entrou e fechou a porta. Os olhos da criaturinha eram meio mortos, piores ainda que os de Spector. — Foda-se você também, fracote. — Spector foi mancando de volta ao assento sem esperar resposta. Era a primeira vez que voava. O avião era muito menor do que esperava e sacudia loucamente. O capitão chamara aquilo de “uma leve turbulência”. Spector já esvaziara duas garrafinhas de uísque e pedira à comissária de bordo para trazer mais duas. Mas ela ainda não tinha voltado. Estava sentado entre um cara que tinha sido piloto de helicóptero no Vietnã e um repórter. O repórter mexia num laptop, mas o ex-piloto não parara de tagarelar desde o embarque. — Tá vendo aquela ruiva ali na frente? — Spector seguiu o dedo do homem até uma mulher, algumas fileiras adiante, que olhava para eles. O batom e o vestido apertado eram de um tom carmim brilhante. Os olhos verdes estavam muito maquiados. E ela lambia os lábios de forma exagerada. — Ela me quer. Disso eu tenho certeza. E me quer muito. Já trepou num avião? — Não. — Spector batia as duas garrafinhas vazias na palma suada da mão. O ex-piloto se recostou, tirou um fiapo da lapela e encolheu a barriga. — Mas vou fingir que nem vi. — Ele olhou para a janela e cutucou Spector. — Está vendo aqueles pontos pretos na asa? É onde os rebites chacoalham para a frente e para trás. Nossa, odeio voar nessas máquinas mortíferas. Já vi um errar a pista de pouso no National, em Washington. Ninguém saiu vivo. Se não for pelo impacto, o fogo e o gás venenoso fazem o serviço. Eu estava mais seguro no Vietnã. Spector enfiou as garrafinhas no bolso do casaco e procurou outra vez a comissária. A mulher não estava em lugar nenhum. Devia ter se enfiado na primeira classe, chupando algum babaca rico. Tinha sido idiota ao escolher a econômica, mas era prisioneiro de sua criação de classe média. — Hora da grande jogada — anunciou o ex-piloto. Fitando os olhos da ruiva, ele foi devagar até o fundo do avião. A mulher sorriu e assentiu, dando risadinhas quando ele desapareceu no banheiro. — Não se deixe enganar — comentou o repórter, sem erguer os olhos. Tinha pouco mais de trinta anos, a altura de Spector e já estava ficando careca. — Essas belezinhas são o que há de mais seguro.
— Verdade — comentou Spector, tentando soar o mais indiferente possível. — É. Ele reparou que você está com medo. Só está tirando um sarro da sua cara. — O repórter fechou o computador e olhou para a ruiva. — Espero que ele se divirta batendo uma sozinho, lá atrás. A comissária, uma loira de cabelos curtos que parecia um pouco grande demais para o uniforme, entregou a Spector um copo de plástico com gelo e mais duas miniaturas de Jack Black. — Obrigado — disse ele, tirando uma nota de baixo valor da carteira. Já abrira uma garrafa e se servira antes de ela conseguir dar o troco. — Está indo a Atlanta para a convenção? — perguntou o repórter. — Hum, não. — Spector tomou um gole longo e refrescante. — Na verdade, não ligo muito para política. Vou cuidar de outros negócios. — Não se interessa por política? — O repórter balançou a cabeça. — Deve ser a convenção mais animada desde 1976, em Nova York. Vai ser uma rinha. Estou apostando em Hartmann. — O repórter soava como um apostador numa corrida de cavalos. — Quando se trata de política, pode acontecer um monte de coisas curiosas. Spector virou o copo e abriu a outra garrafinha. Uma sensação morna e vazia espalhou-se confortavelmente por suas entranhas. — Se eu fosse você, não apostaria todas as minhas fichas. O ex-piloto voltou devagar pelo corredor, as mãos enfiadas nos bolsos. Olhava para a ruiva. O avião sacudiu, e ele tropeçou no corcunda. As mãos do curinga pareceram borradas por um instante, e Spector pensou ter visto pedaços de pó subindo dos apoios de braço. Torcia para que fosse só efeito do Jack Black. — Não existem certezas — comentou Spector.
11h00
Cinco televisores berravam na sala de estar da suíte que o contingente de Hartmann ocupara como quartel-general, todos ligados em canais diferentes. Na tela mais próxima a Gregg, Dan Rather debatia com Walter Cronkite, sempre patriarcal, na cobertura especial da convenção. Cronkite, como sempre, soava como a voz de Deus. — … percepção é que, apesar da recomendação da maioria, Hartmann simplesmente não é forte o bastante para garantir a aprovação da plataforma de direitos dos curingas. Isso indica que o senador não é forte o bastante para vencer, uma vez que os delegados estão liberados das obrigações da primeira votação. E que Barnett, Dukakis, Jackson ou um azarão como Cuomo podem, no fim das contas, emergir como nomeado? — Walter, ninguém está com essa convenção no papo. A proximidade dos resultados das primárias comprovou isso. Hartmann é visto como um liberal do Norte que não conseguiria vencer no Sul e, francamente, seu longo envolvimento com as causas dos curingas não é visto com bons olhos longe dos litorais e das áreas metropolitanas. Barnett tem o apelo sulista e poderia encantar eleitores de Bush, sobretudo entre as facções fundamentalistas. Ainda assim, é conservador demais e extremamente religioso para o eleitorado democrata. Dukakis é o Sr. Calminho; não há nada de especial contra ele, mas também nada particularmente favorável. Jackson tem carisma, mas existe a dúvida se ele conseguiria vencer fora das cidades com grandes populações negras. A única esperança de Gore, Simon, Cuomo ou qualquer azarão que venha a aparecer é que a convenção acabe num entrave e se volte para um candidato compromissado. Tudo isso se reflete na amarga luta de plataformas. Claro que… Gregg girou o botão de volume, tirando o som no meio da frase. Os outros aparelhos continuavam a tagarelar. — Rather só enxerga o próprio umbigo — comentava John Werthen. — Só precisa do candidato à vice-presidência certo e… bum!… lá se vai qualquer fraqueza regional. — Falando sério, todos sabem disso — comentou Tony Calderone, do outro lado da sala. — Estão só fazendo drama. É culpa dos roteiristas. Cansado, Gregg assentiu para o nada. O Titereiro estava quieto, Gimli parecia ter desaparecido por ora, e Mackie logo estaria a caminho, isso se já não estivesse no voo. Sentia-se exaurido, letárgico. A reunião de equipe durou uma hora. Copos plásticos de café frio estavam espalhados pelo aposento, bitucas de cigarro jogadas para todo lado, pilhas de papel caídas da mesa, biscoitinhos petrificando em caixas de papelão empilhadas no chão. A equipe de Gregg corria para lá e para cá no ar tingido de azul, algumas poucas conversas concorrendo com os aparelhos de TV. Amy entrou no quarto às pressas. — Barnett oficializou tudo — anunciou, quando todos se viraram para ela. —
O relatório minoritário não está apenas contra qualquer plataforma de direitos dos curingas, Barnett está invocando pessoalmente o retorno das Leis Exóticas. O cômodo se encheu de comentários descrentes. Com as emoções afloradas, Gregg sentiu o Titereiro aparecer pela primeira vez no dia. — Isso é loucura — retrucou Tony. — Ele não pode estar falando sério. — É idiota demais. Não tem como ser aprovado — concordou John. Amy deu de ombros. — Está feito. Deveriam ver o caos na convenção. Devaughn vai enlouquecer tentando acalmar nossos delegados. — Barnett não está preocupado com o público. É fora da convenção que ele quer ser influente — anunciou Gregg. — Senhor? — Os curingas do lado de fora do Omni, no Parque Piedmont. Quando eles souberem das notícias, vão explodir. É só mais alimento para a retórica contra os curingas. O Titereiro agitou-se com o pensamento, erguendo-se. Gregg o reprimiu. — Ele vai perder delegados mais afastados. Vão achar a atitude militante demais — comentou John. Gregg assentiu. — É um candidato monotemático: só fala de curingas. Está obcecado. — Esse cara não é racional. — Isso a gente só pode dizer aqui. Uma risada curta ecoou pelo quarto. Gregg mexeu os pés e ajeitou a gravata, passando os dedos pelos cabelos grisalhos. — Tudo bem. Já sabem por onde começar. Se Barnett vai começar a pressionar, temos de pressionar de volta. Corram para os telefones. Comecem usando toda a influência que temos. Precisamos conseguir tirar todos os neutros de cima do muro. Todos concordamos que o caminho de Barnett vai aumentar a violência nas ruas, sem falar na falta de compaixão que isso demonstra. Digam isso, pressionem, convençam. Mandem todo o nosso pessoal fazer o mesmo. Amy, veja se consegue uma reunião para mim com Barnett. Talvez o que ele queira, na verdade, seja um compromisso. Nesse meio-tempo, preciso entrar em contato com Ellen e saber como ela está. Daí, vou ver o que consigo fazer de bom lá fora. As últimas palavras saíram com uma ansiedade estranha, um sentimento que ele não esperava. Gregg começou a se perguntar se o Titereiro estava mesmo enterrado tão fundo quanto pensava.
12h00
Spector seguiu o repórter até o banheiro. Os corredores estavam apinhados, e ele tinha certeza de que o homem não perceberia que estava sendo seguido. Spector não sabia o nome do repórter. Preferia que fosse assim, quando estava prestes a matar alguém. O repórter foi até o fundo do banheiro cheio e entrou na última cabine. Spector avançou devagar até a cabine ao lado e fechou a porta. Sentiu-se um pouco mal com tudo aquilo. Mas o cara tinha dado com a língua nos dentes sobre como a segurança seria rígida no hotel e como molhara muitas mãos para conseguir um quarto por lá. Eram coisas que ele não havia considerado. Não tivera tempo de pensar num plano. Em geral, fazia tudo no improviso. Escutou as páginas de uma revista sendo viradas na cabine ao lado, mas não parecia haver progresso nas atividades. Inclinou-se para garantir que ninguém estaria perto o bastante para ver o que estava rolando. Viu todos os pares de pés virados na direção dos espelhos ou se movendo para a saída. Respirou fundo e deslizou da privada até o chão. Sentia o ladrilho frio e úmido através do terno. Spector agarrou a parede de metal entre as cabines e puxou-se pela abertura por baixo. O repórter dobrou a revista e olhou para baixo. Conseguiu piscar algumas vezes, antes de Spector fixar seu olhar. Sua experiência para a morte correu sem obstáculo em direção à mente do repórter. O homem soltou a revista e caiu de lado, a saliva pingando do canto da boca. As calças amarfanhadas nas canelas. Spector vasculhou os bolsos e puxou a carteira, em seguida deslizou de volta para a cabine e sentou-se de novo na privada. Ficou um bom tempo esperando ouvir algum som que indicasse que fora visto. Havia apenas o ruído incessante de sapatos no ladrilho e de água corrente, pontuado por descargas ocasionais. Spector abriu a carteira. Tudo o que ele imaginava que precisaria estava lá — carteira de motorista, credencial de imprensa sem foto, cartão do SSN. A falta de identidade dificultaria o reconhecimento do cadáver. Provavelmente pensariam que algum oportunista roubara a carteira antes de chamá-los. As coisas estavam indo melhor que de costume. Spector se levantou e deu descarga, abriu a porta e foi até o espelho. Ergueu o queixo e virou a cabeça de um lado para outro. Aprumado e tranquilo, pensou. Piscou para o espelho e deu um sorriso com o canto da boca. Se tudo corresse bem, estaria num avião de volta para Jersey no dia seguinte. E os democratas teriam um concorrente a menos no ringue. ♦ Era como se o Bairro dos Curingas, em Nova York, tivesse sido virado de cabeça para baixo e jogado sobre as ruas de Atlanta. Toda cidade grande tinha uma pequena versão de um Bairro dos Curingas,
mas Atlanta nunca testemunhara esse tipo de manifestação. Um sol ofuscante cintilava no céu azul sem nuvens sobre um mar de placas, máscaras e corpos estranhamente deformados. A multidão — estimada pelas autoridades em quinze mil — saíra em marcha do Parque Piedmont e sitiara o Omni Coliseum. Fileiras de policiais e de homens da Guarda Nacional observavam, aguardando. No meio da manhã, quando parecia que o relatório majoritário não seria adotado depressa, acenderam uma fogueira perto do Omni. Diante das câmeras que os incentivavam, curingas, cantando e gritando, queimaram as máscaras nas chamas. Um planador de ás pairava sobre a multidão, um pouco perto demais do fogo. O isopor derreteu, as asas ficaram amarronzadas, enrugadas e deformadas. Um curinga pegou a coisa fumegante. — Olha, um Maldito Curinga Voador! — gritou. Os outros entenderam a piada amarga. Planadores em toda a área voaram para dentro da fogueira ou eram alterados com isqueiros Bic. A polícia de Atlanta, nada inteligente, escolheu aquele momento para evacuar a área. Uma linha dupla de oficiais com capacetes atacou os manifestantes. Os curingas, previsivelmente, revidaram: pedras foram atiradas, alguém com um ás menor jogou os policiais longe, e de repente estava armada a confusão. Curingas, repórteres e curiosos receberam cacetadas indiscriminadamente. O Tartaruga chegou tarde na contenda, urrando para pedir ordem. Seu poder telecinético separou à força os curingas remanescentes e a polícia. Cerca de sessenta pessoas foram presas e, embora a maior parte dos ferimentos fossem pequenos, as fotografias de cabeças sangrando eram espetaculares. O humor dos manifestantes, já frágil, ficou horrendo. A alguns blocos do local da convenção, os curingas voltaram a se reunir. Abriram hidrantes para aplacar o calor do dia. Os policiais sempre os fechavam, mas evitaram confrontos diretos. As fileiras trocavam insultos a torto e a direito. Uma contramanifestação da KKK chegou ao centro da cidade no fim da manhã, causando escaramuças esparsas entre os homens da Klan e os curingas nas ruas. Na verdade, a Klan era mais brutal que a polícia: houve relatos de tiros, e curingas alvejados foram levados aos hospitais locais. Boatos se espalhavam depressa pela multidão, boatos sobre a morte de dois curingas e sobre a polícia não estar prendendo membros da KKK, e sim permitindo que passassem pelas barricadas. Ao meio-dia, chegou a notícia de que Leo Barnett estava pedindo a volta das Leis Exóticas. Um boneco de Barnett foi crucificado diante do Omni. O casco do Tartaruga pairava acima de todos como se arrebanhasse os manifestantes, mantendo um espaço bem delimitado entre os curingas e a polícia. — Não gosto nada disso, senador — comentou Billy Ray, quando ele e Gregg saíram da limusine perto das barricadas. Foram cercados por mais homens do Serviço Secreto, com seus ternos de três peças. A multidão curinga se enfureceu, lançando gritos e xingamentos. — Não acho que seja uma boa ideia. Gregg fez uma careta, irritado. Acenou para o curinga com rispidez. — E eu estou ficando cansado de gente me dizendo o que devo fazer. Ray comprimiu os lábios, tenso, ao ouvir a reprimenda. Antes que pudesse responder, uma sombra se assomou sobre eles, e uma voz ribombou pelos alto
falantes. — Senador! Oi, o senhor veio ajudar? O barulho fez as câmeras se virarem. Gregg acenou para o casco do Tartaruga — um esquadrão de frisbees dos Ases Voadores com o formato do Tartaruga pairava ao seu redor como elétrons circundando um núcleo. Os poucos Malditos Curingas Voadores estavam misturados ao grupo. — Tinha esperanças de ao menos acalmar um pouco as coisas. Sei que você está fazendo o que pode. — É. Truques de frisbee. A última moda no quesito controle de multidão. Os frisbees começaram a girar mais depressa, ziguezagueando em padrões intrincados. — Acha que pode me colocar no meio dessa gente? — Sem problemas. Os frisbees choveram na calçada. O casco desceu com graça, pousando atrás das barricadas e se virando para encarar a multidão. Os alto-falantes chiaram quando o volume aumentou. — TUDO BEM, ABRAM AS BARRICADAS. ABRAM CAMINHO PARA O SENADOR, OU EU MESMO VOU TER QUE ABRIR CAMINHO PARA ELE. VAMOS LÁ, PESSOAL! Pairando na altura das cabeças dos curingas, o Tartaruga deslizou tranquilamente através das barricadas, adentrando a multidão de curingas como faca na manteiga. Gregg avançou em seu encalço. Carnifex, o pessoal do Serviço Secreto e vários policiais o seguiram. Repórteres e câmeras acotovelavam-se para conseguir espaço. Gregg foi reconhecido imediatamente. O coro foi aumentando nos dois lados do Tartaruga e de seu séquito. “Hartmann! Hartmann!” Gregg sorriu, estendendo a mão para tocar aquelas que se esticavam na sua direção, das primeiras fileiras. “Hartmann! Hartmann!” Ostentava um sorriso enorme, sem o casaco do terno e com a gravata folgada, uma trilha de suor escurecendo as costas da camisa: o Candidato Trabalhador. Sabia que a cena seria destaque em todos os jornais noturnos. Por dentro, não se sentia tão tranquilo. A multidão estava carregada de energia emocional. A corrente era quase visível, pulsando e aumentando, e isso atraiu o Titereiro como um chamariz. Sentia o poder se fortalecendo, aumentando, crescendo. Me deixe sair, pedia ele. Quero ter um gostinho. E Gimli?, lembrou ao Titereiro. Lembre-se de 1976. Como se Gregg tivesse feito uma invocação, a voz suave de Gimli ecoou em sua mente. Eu me lembro de 1976, Hartmann. Lembro muito bem. E também me lembro do que aconteceu ontem, com Ellen. Me diga: você gostou de ser a porra da marionete? Vá em frente, deixe seu amigo sair . Não vou impedir desta vez. Claro que, se eu impedisse, ele talvez ficasse louco. Talvez o Titereiro lhe faça dar mais umas voltinhas. As agências de notícia iriam adorar . O Titereiro rosnou para Gimli, e Gregg estremeceu por trás do sorriso. O Titereiro sacudiu as barras da jaula quando a energia dos curingas cintilou ao redor deles. Gregg se esforçou muito para manter as portas fechadas. “Hartmann! Hartmann!”
Ele sorriu. Meneou a cabeça. Tocou. A tentação de deixar o Titereiro sair e avançar com ele era enlouquecedora. Nisso Gimli estava certo — Gregg também queria. Queria aquilo tanto quanto queria qualquer outra coisa. O Tartaruga parou no meio da International Boulevard, perto do boneco de Barnett. — Vá em frente, senador — disse. O casco foi descendo até chegar a apenas trinta centímetros da calçada. Gregg subiu nele. Billy Ray e os outros cercaram o Tartaruga. Um grito se ergueu na multidão quando ele escalou o casco. Sensível, apesar de ter enterrado o Titereiro, ele quase cambaleou com o impacto emocional da adulação em massa. Gregg escorregou, por pouco não caiu. Sentiu o Tartaruga erguê-lo com um empurrão quase terno. — Caramba, senador, desculpe. Acho que eu não estava pensando… Gregg ergueu-se no topo do casco. Rostos de curingas o observavam, apertados contra a barreira telecinética do Tartaruga. O som de vivas ecoava do Omni e do WCC, ensurdecedor. Ele balançou a cabeça e deu aquele sorriso modesto e meio tímido que havia se tornado sua marca registrada durante a longa campanha. Gregg deixou o coro continuar, sentindo-o como o bater insistente de um martelo. O Titereiro pegou carona. Embora Gregg o mantivesse sob controle, não conseguia impedir que o poder se elevasse até a superfície da mente. Olhou para os curingas e viu rostos familiares: Amendoim, Pisca, Cara-de-Pum, Cravo e um que se chamava Covafunda, que conseguira derrubar Croyd Tifoide. O Titereiro também os viu, e o poder bateu forte contra as barras mentais, rosnando e arranhando. Gregg tremeu com o esforço de controlar a personalidade ávida. Sabia que não aguentaria passar muito tempo ali fora. Seu controle estava desmoronando sob o ataque das emoções da multidão. (Cores brilhantes, não diluídas, giravam ao redor dele. O Titereiro quase podia tocá-las, via-as girando como fumaça colorida…) Gregg ergueu as mãos, pedindo silêncio. — Por favor! — gritou, ouvindo a voz amplificada ricochetear nos prédios ao redor. — Ouçam. Entendo as frustrações de vocês. Sei que vocês desejam retaliação após quatro décadas de maus-tratos e incompreensão. Mas não assim. Não agora. Não era o que eles queriam ouvir. Sentiu o desgosto da multidão e se apressou em acrescentar: — Dentro daquele prédio, nós estamos lutando pelos direitos dos curingas. — (… gritos de incentivo: verde ânsia e amarelo lâmina de faca…) — O que estou pedindo é que vocês me ajudem nessa luta. Vocês têm direito de se manifestarem. Mas eu lhes digo que a violência nas ruas será usada como ferramenta contra vocês. Meus oponentes vão apontar e dizer: “Estão vendo? Curingas são perigosos. Não podemos confiar neles. Não podemos dei-xá-los viver ao nosso lado.” Agora é a hora de todos os curingas finalmente tirarem as máscaras, mas vocês precisam mostrar ao mundo que o rosto por baixo delas é um rosto amigo.
(… as correntes escuras ficando amarronzadas como barro, com confusão e incerteza. O brilho diminuindo…) Com minha ajuda, você conseguiria convencê-los. Seria fácil. O Titereiro zombava. Olhe para essa multidão. Juntos, poderíamos virar esse jogo. Poderíamos acabar com a manifestação. Você seria um herói. Só me deixe sair . Gregg estava perdendo a atenção do público. Mesmo sem o elo direto do Titereiro, sabia disso. Gregg Hartmann de repente estava dizendo as mesmas palavras que eles tinham ouvido de todos a vida inteira. Não havia mais magia. Não havia Titereiro. (… mudando para um violeta-escuro, sombrio: um tom perigoso, uma cor inflamável. O Titereiro gritou…) Gregg precisava ir embora. As emoções, como a maré mexida com a tormenta batendo na costa, erodiam o tênue controle de seu poder. O Titereiro escaparia. Precisava acabar com aquilo. Precisava sair de perto do banquete estendido diante de seu poder. — Então estou pedindo… implorando… para vocês ajudarem aqueles que estão lá embaixo, na convenção. Por favor. Não deixem a raiva arruinar tudo. Foi um término horrível, abrupto. Gregg sabia disso. A multidão o encarava em silêncio. Alguns tentaram recomeçar o coro, mas o clamor logo morreu. — Me bote no chão — sussurrou Gregg. O Tartaruga ergueu-o de leve e baixou-o até o asfalto. — Vamos sair daqui. Fiz tudo que podia. O Titereiro o arranhava, desesperado, atacando sua mente como um animal enlouquecido. O Tartaruga voltou devagar pela multidão na direção da limusine que os esperava. Gregg mantinha o cenho franzido. Não viu nem ouviu nada do que havia diante de si. Manter o controle sobre o Titereiro tomava toda a sua concentração.
13h00
Estava no táxi havia mais de uma hora. O trânsito já estava um caos assim que deixaram o aeroporto. Carros engarrafados, para-choque contra para-choque, buzinas soando por todo o caminho até o centro da cidade. Pedestres, a maioria curingas, dominavam as ruas. Alguns usavam máscaras. Alguns carregavam placas. Todos exalavam um humor perigosamente sombrio. Mais de uma vez, sacudiram o táxi enquanto o veículo passava lentamente entre eles. Spector dera uma nota extra de cem dólares ao motorista para levá-lo até o quarteirão do hotel. A julgar pelo grunhido no assento da frente, o sujeito já estava arrependido. A carteira de motorista foi fácil. Já lidara com outras. Depois de remover a película plástica, cortou a foto do repórter com muito cuidado e a substituiu por uma sua. Em seguida, usou a máquina de plastificação do aeroporto para terminar o serviço. O repórter — Herbert Baird — tinha quase o mesmo peso, altura e idade de Spector. Mas, naquele momento, ser pego com uma identidade falsa era a menor de suas preocupações. Queria chegar inteiro ao Marriott. Um curinga com dobras imensas de pele rosa e enrugada pulou no capô e balançou uma placa que dizia “OS LIMPOS SÃO IMUNDOS” de um lado, e “E A GENTE?” do outro. Havia um coro mais à frente. Spector não conseguia compreender o que diziam. — Só vou avançar até aqui, senhor — anunciou o motorista. — Não quero bancar a isca de curinga, nem por uma nota de cem dólares, nem por mil. — Quanto falta até o hotel? — A bagagem estava no assento traseiro, junto com ele. Imaginou que o centro da cidade devia estar uma confusão. Não queria passar mais tempo do que o absolutamente necessário no meio de uma multidão de curingas putos da vida. — Uns dois quarteirões adiante. — O motorista olhou ao redor, ansioso, quando alguém chutou uma das luzes de freio. — Eu andaria depressa, se fosse o senhor. — Certo. — Spector abriu a porta do carro com cuidado e saiu para a calçada lotada. Alguns dos curingas fizeram caretas para ele ou ergueram os punhos, mas a maioria não lhe deu trabalho. Ele avançou devagar, com a infeliz ciência de que o terno novo e a bagagem o deixariam exposto como um provável alvo. Depois de dez minutos de empurra-empurra, o hotel surgiu do outro lado da rua. Spector estava coberto de suor, começando a cheirar como as aberrações ao seu redor. Um curinga com unhas parecidas com agulhas parou diante dele e golpeou a bagagem, rasgando-a de um dos lados. Spector travou contato visual e provocou dor o suficiente para fazê-lo cair. Não queria se arriscar a provocar a multidão com um assassinato. Agitados como estavam, aqueles idiotas não pensariam duas vezes em ver alguém desmaiado. Quando ele entrou no saguão do hotel, a multidão estava começando a se separar, sem dúvida para se reunir em outro lugar. Era aberto até o terraço. As curvas do prédio lembravam o interior de algo morto. Spector respirou o ar
fresco e caminhou até a área de segurança. Herbert Baird, você é Herbert Baird, Herbert Baird, pensou. Vários policiais uniformizados e homens de terno com fones de ouvido estavam esperando por ele. — Identidade, por favor — pediu um dos policiais. Spector puxou a carteira, tentando se obrigar a relaxar, e mostrou a carteira de motorista. O policial pegou-a e passou para um homem sentado num terminal de computador. O sujeito digitou por um instante, os dedos pareciam um borrão sobre as teclas, então parou e, finalmente, assentiu. — Posso ver sua bagagem, Sr. Baird? — O policial olhou para as marcas de garras na lateral. — Um pouco perigoso lá fora, não? — Muito mais do que estou acostumado. — Spector sorriu. Aquelas pessoas estavam entediadas e não prestariam muita atenção nele. Ia conseguir entrar. O policial pôs a mala na máquina de raios X e apontou para um detector de metal. — O senhor poderia passar por ali? Quando Spector se submeteu ao detector, o alarme apitou. Ele parou como um cadáver de pé e, lentamente, levou a mão ao bolso. Sentia ao menos vinte pessoas o encarando. Puxou um punhado de moedas e entregou--as ao policial. Tinha precisado delas para a máquina de laminação. — Posso ir de novo? Com um lento gesto de mão, o policial acenou para ele seguir em frente. Spector passou sem fazer ruído e deu um suspiro. O policial estendeu a mão e devolveu os trocados. Spector os guardou no bolso e deu outro sorriso. — Sua bagagem está bem ali. — O policial apontou e, em seguida, voltou para a entrada do hotel. Spector pegou a mala. Estava pesada e quase escorregou da mão suada. Atravessou o saguão devagar até o balcão da recepção. Não havia muitos ternos sem grandes volumes ocultos por baixo. Chegar ao quarto demoraria mais do que deveria. O atendente era um babaca gordo e impertinente que o encarou quando Spector disse que pagaria em dinheiro. O nojentinho estava tentando impressionar os rapazes do Serviço Secreto, ou qualquer coisa idiota do tipo. Devia ser sua única chance na vida de se sentir o maioral. Spector voltaria para apagar o moleque, um dia. Pegou a chave com rispidez assim que o atendente a ofereceu, seguindo depressa para os elevadores. Já estava quase lá quando ouviu alguém chamando. — James. James Spector. Ei, Specs. A voz soava familiar, mas aquilo não era necessariamente bom. Ele se virou, hesitante. O homem foi até ele sorrindo e estendeu a mão. Usava um terno cinza e tinha cabelos cuidadosamente penteados. Era um pouco mais baixo que Spector, mas muito mais musculoso. — Tony C. — Ele exalou e relaxou os ombros. — Não acredito que é você. Ele e Calderone tinham crescido juntos em Teaneck , mas Spector perdera contato com ele anos antes. Tony estendeu a mão, agarrou a de Spector e apertou-a com firmeza. — Meu melhor jogador. O rei da finta, no basquete. O que está fazendo aqui?
— Hum, lobby. — Spector tossiu. — E você? — Trabalho para Hartmann — respondeu Tony. Spector ficou boquiaberto, mas fechou a boca mais do que depressa. — É difícil de acreditar, eu sei. Mas sou seu primeiro consultor de discursos. — Ele esfregou as mãos. — Sempre escrevi bem. — Especialmente para as garotas. — Spector mexeu os pés, desconfortável. Ao que parecia, nenhum dos guardas que verificara sua identidade tinha ouvido Tony, mas ainda assim se sentia exposto. — Olha, foi ótimo te encontrar, mas quero ir me acomodar. Está um verdadeiro zoológico lá fora, pode acreditar. — Se acha que está um zoológico lá fora, tem que ver o que tá rolando lá dentro. — Tony deu um tapinha no ombro de Spector. Havia afeto real no gesto, do tipo a que Spector não era exposto havia anos. — Qual o número do seu quarto? Spector ergueu o cartão-chave. — 1031. — 1031, beleza. Vamos jantar juntos, enquanto você ainda estiver por aqui. Temos muito a conversar. — Tony deu de ombros. — Não tenho notícias suas desde o colegial. — Claro. Tenho bastante tempo para matar enquanto estiver por aqui — respondeu Spector. O elevador apitou atrás deles. Tony recuou e acenou. Spector tentou soar como se não tivesse medo da ideia. — Te vejo mais tarde. Aquilo estava ficando mais estranho que o bar Freakers na noite de ano-novo. ♥ Hiram estava dando uma recepção em seu quarto no Marriott. Gregg talvez aparecesse, então os quartos estavam cheios de delegados de Nova York e suas famílias. A maioria das suítes em que Tachyon entrou fedia a cigarro e pizza velha. A de Hiram fedia a cigarro, mas as bandejas estrategicamente espalhadas pelos quartos tinham quiches e pasteizinhos russos. Tach mordeu um, e a massa folhada explodiu em sua boca, logo seguida pelo sabor intenso do recheio de cogumelos. Limpando as migalhas da ponta dos dedos e da lapela do casaco, Tach estendeu a mão e deu um tapinha no ombro de Hiram. O grande ás estava vestido com sua elegância habitual, mas as olheiras pareciam escoriações inchadas, e a pele tinha a aparência adoentada de massa úmida. — Não me diga que teve tempo de descer até a cozinha e preparar tudo isso — provocou o alienígena. — Não, mas minhas receitas… — Eu já suspeitava. — Tach curvou-se e, com a ponta do lenço, limpou uma migalha da bota de couro. Quando ele se levantou, reuniu coragem. — Hiram, está tudo bem? A resposta veio numa baforada repentina. — Por quê? — Você não me parece bem. Passe no meu quarto mais tarde, quero uma olhada em você.
— Não. Obrigado, mas não. Estou bem. Só cansado. — Um sorriso abriu-se no rosto largo, como se tivesse sido pintado de repente num desenho animado. Tachyon deu um suspiro contido e balançou a cabeça enquanto observava Hiram abrir caminho para cumprimentar o Senador Daniel Moynihan. O alienígena circulou, sorrindo, apertando mãos — ainda ficava surpreso com o costume, mesmo depois de todos esses anos. Em Takis, havia dois extremos: o contato limitado entre telepatas, porque o toque casual era considerado repugnante, ou um abraço de verdade entre amigos próximos e parentes. Qualquer uma das escolhas causava problemas na Terra. O toque leve parecia esnobe, e o abraço completo suscitava reações homofóbicas nos machos deste planeta. Então, Tachyon ponderava e observava a mão enluvada ser engolida várias vezes por dedos humanos, ávidos e envolventes. Num sofá posicionado debaixo de uma das janelas, havia um homem cercado por três mulheres às gargalhadas. A mais nova estava apoiada no joelho dele. Atrás, a irmã da moça inclinava-se e envolvia o pescoço do homem com os braços. Ao lado dele, no sofá, estava uma mulher bela com cabelos cinzentos. Os olhos escuros mostravam carinho ao fitar o rosto do sujeito. Havia certa ternura na cena que parecia tocar o vazio que Tachyon sentia em sua própria vida. — Vamos, pai — implorava a mais nova. — Só um discursinho. — A voz alterou-se de leve, ganhando sonoridade e profundidade. — Que tendes a confiar-me? Sendo assunto do bem público, em frente de um dos olhos me ponde a honra e na do outro a feia morte, que eu, sem tremer, as fixarei de face. Sejam--me em tudo os deuses favoráveis, como a honra prezo e a morte não receio. — Não, não e não. — O homem pontuava cada palavra com um balançar da cabeça. — Júlio César talvez não seja a melhor escolha para uma convenção política — comentou Tachyon, baixinho. Quatro pares de olhos escuros o encararam. Em seguida, o homem baixou os olhos, e os dedos cofiaram a barba grisalha com nervosismo. — Perdoem minha intromissão, mas não pude evitar ouvir. Sou Tachyon. — Nós meio que adivinhamos — comentou a garota atrás do sofá. Ela examinou o brilhante traje verde e rosa do takisiano e lançou um olhar de zombaria para a irmã. — Josh Davidson. — Apresentou-se, o homem, então apontou para a mulher ao lado. — Minha esposa, Rebecca, e minhas filhas, Sheila e Edie. — Encantado. — Tachyon salpicou beijos nas costas de três mãos. Edie deu uma risadinha, o olhar pairando entre o pai e a irmã. As emoções rodopiavam naquele pequeno encontro. Havia algo pouco abaixo do superficial que Tachyon não identificava, mas era deliberado. As pessoas tinham seus segredos, e só porque Tachyon conseguia lê-los não significava que tinha o direito. Outra lição aprendida depois de quarenta anos na Terra era a necessidade de filtrar os pensamentos que recebia. A cacofonia de mentes humanas não treinadas o teria deixado louco se não vivesse escondido atrás de seus escudos. — Ah, agora reconheço você — comentou o alienígena. — Uma atuação brilhante no inverno passado, em A casa de bonecas.
— Agradeço. — Você é delegada? — Ah, meu Deus, não. — A mulher deu risada. — Não, minha filha, Sheila, é nossa representante. — Papai é um pouco cético quando se trata de política — comentou a irmã mais velha. — Temos sorte de tê-lo trazido até aqui. — Estou de olho em você, mocinha. — Ele acha que eu ainda tenho dez anos — confidenciou ao takisiano, com uma piscadela. — Uma prerrogativa comum aos pais. — Davidson o encarava de forma tão intensa que Tachyon imaginou se esse pai em especial também estava mandando um alerta para ele: se encostar nas minhas filhas, vai perder as bolas. Tach decidiu provocar, por pura diversão. Virou o olhar incendiário para as adoráveis filhas de Davidson. — Talvez eu pudesse levar as Davidson para almoçar amanhã. — Senhor — retrucou Sheila, com seriedade, mas os olhos bailavam. — Sua reputação o precede. Tach pousou uma das mãos sobre o coração e se inclinou para a frente. — Ah, minha fama, minha fama lamentável. — Como se você não a adorasse — retrucou Davidson, e sobreveio uma expressão distante e estranha em seus olhos expressivos. — Uma condição que a gente talvez compartilhe, Sr. Davidson? — Não, ah, não. Acredito que não. Murmúrios educados se elevaram em volta, e Tach seguiu em frente. Sentiu olhos perfurarem o centro de suas costas, mas não olhou para trás. Não incentivaria nenhuma daquelas garotas amáveis. Estava condenado a decepcioná-las.
17h00
Gregg tomou a maioria dos candidatos como marionetes por questão de rotina. Era muito fácil. Só precisava tocá-los por alguns segundos. Um aperto de mão demorado era o bastante para o Titereiro cruzar a ponte do toque e rastejar para dentro da mente da outra pessoa, vaguear nas cavernas dos desejos e emoções ocultos, trazer toda a sujeira à superfície. Assim que o elo se estabelecia, Gregg não precisava mais de contato físico. Contanto que a marionete estivesse a poucos metros de distância, o Titereiro conseguia fazer o salto mental. De forma astuta, Gregg usava o poder de ás durante a campanha para fazer os outros candidatos tropeçarem em alguma questão ou parecerem contundentes e diretos demais ao declarar suas posições. Fizera aquilo até Gimli começar a interferir, no fim das primárias, e o Titereiro se tornar errático e perigoso demais para ser usado. Embora tivesse oportunidade, deixou Jesse Jackson em paz. O reverendo era carismático e contundente, um orador poderoso. Gregg até o admirava. Decerto ninguém mais na campanha tinha sido tão descaradamente direto, tão valente em fazer declarações ousadas. Jackson era um idealista, não um pragmático como os outros. Aquilo era um golpe contra ele. E Gregg sabia, por experiência própria, que o preconceito também era real, que era fácil para a pessoa comum expressar simpatia, mas não agir de acordo com ela. O preconceito contra curingas era real. O preconceito contra os negros era real. Com ou sem Titereiro, Jackson não se tornaria presidente nem se conseguisse a nomeação. Não naquele ano. Não ainda. Era algo que Gregg não ousava dizer em público, mas também sabia que Jackson tinha plena ciência do fato, não importava o que o homem dissesse. Então, deixou que ele seguisse seu caminho. De certa forma, aquilo tornara a campanha das primárias mais interessante. Agora, com o Titereiro uivando por dentro e suspeito demais para ficar solto outra vez, Gregg era forçado a admitir que fora um erro. Teria tornado as coisas mais fáceis. O Reverendo Jackson estava sentado do outro lado do quarto, diante de Gregg, numa poltrona de couro grande, as pernas cruzadas com calças pretas impecavelmente passadas, a cara gravata de seda amarrada com firmeza ao redor da garganta. Espalhados pela suíte de campanha de Jackson, seus assistentes fingiam não observar. Dois dos filhos dele flanqueavam o reverendo em cadeiras de madeira. — Barnett está zombando da plataforma dos direitos dos curingas — dizia Gregg. — Está diluindo o impacto ao fazer intriga com todos os grupos especiais em que consegue pensar. O problema é que, sozinho, não consigo impedi-lo. Jackson comprimiu os lábios, batendo neles com o indicador. — Você veio pedir minha ajuda agora, senador, mas assim que a briga de
plataformas terminar, os negócios vão voltar a ser negócios. Por mais que eu discorde do Reverendo Barnett em questões básicas, entendo a realidade política. A plataforma dos direitos dos curingas é um filhote seu, senador. Sem aprovação, o senhor dificilmente vai parecer um líder muito eficaz para o país. No fim das contas. É uma questão fundamental sua, e o senhor não consegue nem mesmo fazer seu próprio partido lhe dar ouvidos. Jackson parecia quase contente com a perspectiva. Eu posso cuidar disso. Só me deixe… O Titereiro estava nervoso, irritado. O poder empurrava as restrições, querendo investir contra Jackson, que parecia tão confiante. Deixe-me em paz. Apenas por alguns minutos. Deixe-me cuidar disso. Gregg empurrou o poder para trás, recostando-se no assento para encobrir o conflito interno momentâneo. Jackson o observava, cauteloso e atento. O homem tinha olhos de predador, hipnóticos e perigosos. Gregg sentia o suor começando a brotar na testa, e sabia que Jackson também percebera. — Não estou preocupado com a nomeação, neste momento — retrucou, ignorando o Titereiro. — Estou querendo ajudar os curingas que vivenciam o mesmo preconceito que seu povo. Jackson assentiu. Um assistente trouxe uma bandeja e deixou-a na mesa de centro entre os dois. — Chá gelado? Não? Muito bem. — Jackson tomou um gole e deixou o copo de lado. Gregg sentia o homem pensando, mensurando, refletindo. E comigo você poderia saber de verdade. Poderia controlar os sentimentos dele. Fique quieto. Você precisa de mim, Greggie. Precisa, sim. Concentrado em manter o Titereiro sob controle, perdeu uma parte da fala. — … rumor é que o senhor está exigindo demais do seu pessoal. Chegou a ficar irritado com alguns deles. Ouvi histórias sobre instabilidade, sobre uma repetição de 1976. Gregg enrubesceu, começou a retorquir num tom exaltado, então percebeu que estava sendo provocado. Era exatamente a reação que Jackson tentava arrancar dele. Forçou-se a sorrir. — Todos estamos acostumados a um tanto de difamação, reverendo. E, sim, estou exigindo bastante. Sempre exijo, quando acredito em alguma coisa. — E a acusação o deixa nervoso. — Jackson sorriu e assentiu. — Ah, eu conheço a sensação, senador. De fato, eu tenho a mesmíssima reação quando as pessoas questionam meu trabalho com os direitos civis. Eu já esperava. — Ele uniu as mãos sob o queixo e inclinou-se para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos. — O que exatamente o senhor quer, senador? — A plataforma dos direitos dos curingas. Nada mais. — E como espera obter meu apoio? — Esperava que o senhor concordasse apenas em nome dos curingas. Por motivos humanitários. — Eu sinto muito pelos curingas, senador, acredite. Mas também sei que uma plataforma num programa são apenas palavras. Um programa não obriga
ninguém a nada. Vou lutar pelos direitos de todos os oprimidos, com ou sem plataformas. Não prometi plataformas ao meu povo. Prometi que faria o meu melhor para vencer nesta convenção, e é o que estou fazendo. Não preciso de uma plataforma. Quem precisa disso é o senhor. Jackson pegou o copo outra vez. Tomou um gole, esperando e observando. — Tudo bem — retrucou Gregg, por fim. — Falei com Devaughn e Logan sobre isso. Se o senhor mantiver seus delegados em harmonia, vamos liberar nossos delegados do Alabama após a primeira votação com a recomendação firme de que escolham o senhor. — O Alabama não é importante para a sua campanha. O senhor conseguiu, o quê, 10% dos delegados de lá? — Esses 10% poderiam ser seus. O senhor está atrás de Barnett no Alabama. E, mais importante, talvez isso indique que o impulso no Sul está migrando para longe de Barnett, o que o beneficiaria. — O mesmo para o senhor — pontuou Jackson. Ele deu de ombros. — Eu também estou em segundo no Mississippi. Filho da puta. — Vou ter que confirmar isso, mas provavelmente também posso liberar meus delegados de lá. Jackson hesitou. Olhou para os filhos, então de volta para Gregg. — Preciso pensar sobre isso — disse ele. Você está deixando escapar , caramba! Ele só vai pedir mais. Poderia ter feito o homem concordar sem nenhuma concessão. Você é um tolo, Greggie. — Não temos tempo — retrucou Gregg, ríspido. Arrependeu-se das palavras no mesmo instante. Jackson estreitou os olhos, e Gregg apressou-se em atenuar a gafe. — Desculpe, reverendo. É que… é que, para os curingas lá fora, o programa não representa apenas palavras. A plataforma será um símbolo para eles, um símbolo de que sua voz foi ouvida. Todos temos a ganhar, todos que os apoiarem tem. — Senador, o senhor tem um passado humanitário ótimo. Mas… Deixe-me pegá-lo…! — Reverendo, às vezes minha paixão foge do controle. Mais uma vez, peço desculpas. Jackson ainda estava com a testa franzida, mas a raiva desaparecera dos olhos. Você quase pôs tudo a perder . Cale a boca. Foi interferência sua. Me deixe cuidar disso. Você precisa me deixar sair . Logo. Logo. Prometo. Só fique quieto. — Tudo bem — respondeu o reverendo. — Acho que posso ajeitar as coisas com o meu pessoal. Senador, o senhor terá meu apoio. Jackson estendeu a mão. Gregg sentia os próprios dedos tremendo quando a segurou. Meu! Meu! O poder estremecia por dentro, gritando, arranhando e jogando-se contra as barras. Controlar o Titereiro exigiu todas as forças que tinha ao dar a mão para Jackson, e interrompeu o contato depressa. — Senador, o senhor está bem?
Gregg sorriu para Jackson, exausto. — Estou bem — respondeu. — Obrigado, reverendo. Só estou com um pouco de fome, é isso.
18h00
— Onde fui criada, é descortês se sentar à mesa de outra pessoa sem ser convidado. Tachyon folheou os sete bilhetes rosa — todos de Hiram — e enfiou-os no bolso. — Onde você foi criada, também é descortês não reconhecer e agradecer alguém por um presente. Eu sei, eu estava lá quando você aprendeu a balbuciar obri-gadu, sempre que eu lhe trazia doces. A fúria que inflamou os olhos castanhos de Fleur era tão intensa que Tachyon se encolheu e quase ergueu a mão na defensiva. — Me deixe em paz! — Não posso. — Por quê? — Ela crispou as mãos, os dedos se retorcendo desesperadamente uns contra os outros. — Por que está me torturando? Não basta ter matado minha mãe? — Com toda a franqueza, acredito que seu pai e eu temos que dividir essa culpa. Eu destruí a mente dela, mas foi seu pai que permitiu que sua mãe fosse torturada no sanatório. Se ele a tivesse deixado comigo, talvez eu tivesse encontrado uma maneira de repará-la. — Se essa era a opção, fico feliz por ela ter morrido. Melhor do que sendo sua prostituta. — Sua mãe nunca foi prostituta. Você desonra Blythe e a si mesma com essas palavras. Esse seu sentimento não pode ser verdadeiro. — Bem, é verdadeiro, e por que deveria me sentir diferente? Nunca a conheci. Devo isso a você. — Eu não expulsei sua mãe de casa. — Ela poderia ter ido para a casa dos pais dela. — Ela me amava. — Não consigo imaginar por quê. — Me dê uma chance que eu mostro. E, assim que o comentário improvisado e com jeito de flerte passou pelos lábios de Tachyon, ele soube que fizera uma besteira muito grande. Como se para controlar as palavras, apertou os dedos contra os lábios, mas já era tarde. Muito tarde. Tarde demais. Quarenta anos de atraso? Fleur ergueu-se da cadeira como uma deusa da ira e lhe deu um tapa estalado no rosto. A unha arranhou o lábio inferior de Tach, rasgando-o, e ele sentiu o gosto forte e acobreado do sangue. Todas as conversas do Pompano’ s cessaram. O silêncio fez a pele do alienígena coçar, e Tachyon engoliu a humilhação que enchia a boca de um gosto podre. O estalar dos saltos altos da mulher, quando ela irrompeu para fora do restaurante, ressoava como um apito dentro de sua cabeça.
Com cuidado, ele ergueu dois dedos diante do rosto. Contou-os. Molhou-os no copo com o guardanapo que ela jogara na mesa. Tinha o cheiro leve de seu perfume. Enrijeceu a mandíbula numa linha teimosa.
20h00
— Distrofia muscular. É sim ou não para esclerose múltipla, Charles? — Meu Deus! — A voz de Devaughn rugia pelo celular de Jack, parecendo mais bronca do que nunca. — Acho que não podemos nos posicionar contra a Jerry’ s Kids,1 não acha? A banda da convenção arrastava-se nos últimos compassos de “Mame”. Louis Armstrong poderia ter tocado melhor com a mão nas costas. Jack estava na plateia da convenção, de pé sobre uma cadeira cinza dobrável, toda riscada, cercado por sua turma de californianos. — Sim ou não, Charles? — questionou Jack . — Sim. Merda. Sim. — Jack conseguia ouvir o punho de Devaughn batendo numa mesa. — Merda, merda, merda. Merda, porra, caralho. Aquela puta. Aquela vadia, branca, CAROLA. — Quero torcer o pescoço da Fleur van Renssaeler. — Entre na fila depois de mim, amigo. — Estão recolhendo os votos. — Emil Rodriguez puxou a manga de Jack, que desligou o celular e fez sinal de positivo para sua horda de delegados. Tentou imaginar milhares de norte-americanos em cadeiras de rodas e próteses para pernas comemorando e trocando seu alinhamento político, mas a imaginação falhou. Rodriguez, um homem baixo e parrudo, encarou-o com fúria nos olhos. — Que merda, cara — soltou ele. Jack desceu da cadeira e acendeu um cigarro. — Tem razão, hombre. Jim Wright pediu ordem. Jack olhou para os grupinhos de delegados que se separavam e considerou o caos que atingira Atlanta, naquele dia. As manifestações violentas, a luta de plataformas, a interrupção bizarra de Sara Morgenstern na coletiva de imprensa daquela manhã. Ás secreto?, pensou. E, em seguida: Qual deles? Por horas, a convenção digladiou-se sobre a plataforma de direitos dos curingas. O comitê do programa fora aprovado com forte discordância do pessoal de Barnett, que levou a questão para discussão, embora ninguém estivesse prestando atenção. Foi quando a briga começou de verdade. O pessoal de Barnett uniu-se contra a plataforma, Hartmann posicionou--se a favor, e Jackson se alinhou a Hartmann por uma questão de princípios. Os outros tentaram só atrasar a decisão até conseguirem avaliar quantos passos avançariam se declarando a favor de um ou de outro. Tudo teria sido resolvido depressa, não fosse pela violência no entorno do campo de curingas daquela tarde. Os candidatos indecisos enrolaram o máximo possível, se questionando se haveria uma revanche anticuringas, mas, no fim das contas, os delegados começaram a se deslocar para o ponto de vista de Hartmann.
Foi quando a campanha de Barnett deu o golpe de mestre. Como perceberam que não poderiam impedir a aprovação da plataforma, começaram a tentar diluí-la. Por que o partido só deveria se posicionar a favor dos direitos dos curingas?, perguntaram. O partido não deveria se declarar também a favor dos direitos de pessoas com outras deficiências? Logo, houve uma oscilação de votos sobre se as vítimas de esclerose múltipla deveriam ser incluídas na plataforma de direitos civis. Enquanto os coordenadores de Hartmann xingavam e arremessavam móveis, sabendo perfeitamente bem que estavam sendo sabotados, a moção foi aprovada por unanimidade: nenhum democrata deveria se opor a pessoas com doenças crônicas. Outras doenças se seguiram: esclerose lateral amiotrófica, síndrome de Guillain-Barré, espinha bífida, síndrome pós-pólio — cujo voto foi encerrado principalmente porque ninguém nunca ouvira falar disso — até chegarem à Jerry’ s Kids. Barnett estava conseguindo fazer com que toda a questão dos direitos dos curingas parecesse ridícula. A chefe dos delegados de Barnett no Texas, uma mulher de cabelos azuis com chapéu de caubói branco, botas vermelhas envernizadas, saia e colete combinando com franjas brancas esvoaçantes de Buffalo Bob, estava de pé anunciando outra moção. Jack mandou o celular ligar para o QG e subiu na cadeira outra vez. — Pelo amor de Deus — disse Rodriguez. — É AIDS. Um grito de pânico ergueu-se na convenção. Barnett dera seu golpe final. Os olhos de toda a plateia estavam grudados no televisor, todos apavorados com a histeria homofóbica do retrovírus, prontos para ver se os democratas apoiariam a contaminação por fluídos corporais de sodomitas e drogados à espreita, escorrendo contaminação por todos os orifícios. Além disso, muito convincente, Barnett relacionou a AIDS com o xenovírus Takis-A. — Sim ou não, Charles? — perguntou Jack, exausto. — Fodam-se os veados! — urrou Devaughn. — Para o inferno com tudo isso! Jack abriu um sorrisinho e pôs o dedão para baixo. O retrovírus sofreu uma perda acachapante. A convenção já se fartara da tática de Barnett. As distrações tinham sido divertidas por um tempo, e tinham atingido seu objetivo principal — fazer as convicções de Hartmann parecerem idiotas —, mas já estavam cansativas. A senhora do Texas recebeu instruções do alto escalão e não requisitou mais votações. O pessoal de Hartmann, sem muito escândalo, propôs que todas as pessoas que sofressem de doenças fossem incluídas na plataforma de direitos civis. A proposta foi aprovada por unanimidade. O programa foi apresentado e aprovado. Jim Wright, exausto, bateu o martelo, encerrando mais um longo dia de convenção. Chapéus, placas e planadores de Ases Voadores ergueram-se no ar pelas mãos de delegados agradecidos. Jack disse a seus delegados para estarem prontos e a postos bem cedo no dia seguinte. No fim da quarta-feira haveria ao menos duas votações, e eles seriam
parte importante do rumo da convenção. Acendeu outro Camel e observou os milhares de delegados apinhando--se nas saídas. A banda encerrou com “Don’t Cry For Me, Argentina”. Jack não reagiu à canção tão odiada, para variar. Estava pensando no ás secreto.
21h00
Billy Ray ligou para Gregg do saguão do Marriott. — Senador, o senhor ainda tem interesse em se reunir com Barnett? A Srta. Black acabou de me dizer que ele está a caminho do hotel, vindo de uma reunião. Fora um dia horrível. A tarde e a noite ainda piores que a manhã. Amy, John e, por fim, Devaughn tentaram em vão fazer uma conferência com Barnett. Conseguiram contato com Fleur, que lhes dissera sem rodeios que Barnett não tinha interesse em falar com Gregg. A batalha na convenção refletira essa falta de cooperação. Barnett e Fleur van Renssaeler haviam se mostrado estrategistas políticos hábeis. Foi necessária toda a influência de Gregg para manter uma espécie de plataforma dos direitos dos curingas no programa, e teria sido impossível sem o apoio de Jackson. A plataforma, por fim aprovada, era uma versão fraca e desenxabida da original, restrita por condições e linguagem nebulosa. A coisa mais gentil que se poderia dizer sobre o fato: aquela era uma plataforma de Direitos dos Curingas, a primeira. As redes de televisão talvez a chamassem de “um pequeno triunfo” para Hartmann e os curingas, mas as multidões nervosas nas ruas sabiam que nada significava. Com o programa estabelecido, os motivos para uma reunião com Barnett haviam desaparecido. Todos, menos um. A voz interior foi enfática. Vá até lá. — Senador? Se por acaso estivermos no corredor ou algo assim quando ele… O pior de tudo era que, desde o incidente na rua, precisava lidar com o desespero cada vez maior do Titereiro. Tentara, mas não conseguira fazer o poder voltar a submergir. O Titereiro estava lá, junto com ele. As pessoas estavam começando a notar. Jackson com certeza percebera. Ellen o encarava quando achava que ele não estava olhando. Amy, Braun, Devaughn, todos ficavam cheios de dedos ao falar com ele. Se quisesse aquela nomeação, teria de fazer alguma coisa sobre o Titereiro. Não podia se dar ao luxo de ter a atenção tão drasticamente dividida. — Obrigado, Billy. Parece uma boa ideia. Ainda temos alguns minutos? Gostaria de me recompor. — Claro. Eu subo depois para te buscar. Gregg desligou e foi ao banheiro. Encarou o espelho. — Você está descontrolado — sussurrou. A risada fria de Gimli respondeu. Os esforços do dia cobravam seu preço — a imagem que o encarava no espelho parecia exausta. Barnett é meu, insistiu o Titereiro, e Gregg quase achou que veria seus próprios lábios se moverem com as palavras. Assim que o tivermos como marionete, poderemos manipulá-lo igualzinho fizemos com Gephardt e Babbit. Só um empurrãozinho aqui e ali… Íamos tentar isso antes, num dos debates, lembrou-o Gregg. Ele sempre se
manteve longe, nunca deixou que apertássemos sua mão ou o tocássemos. Isso é loucura. O Titereiro zombou. Dessa vez ele vai deixar . Você precisa confiar em mim. Não vai conseguir vencer sem minha ajuda. Mas Gimli… Temos que tentar . Se parar de me combater , vamos conseguir . Tudo bem. Tudo bem. Billy Ray insistiu em tagarelar durante os poucos minutos que levava para descer ao andar de Barnett. Gregg deixou o monólogo correr sem interrupções e não ouviu uma palavra sequer. Quando as portas do elevador se abriram, Ray ergueu a identificação para falar com os guardas daquele andar. Gregg foi até a ponta da sacada e olhou para o saguão reluzente embaixo. Um planador estava pousado no carpete ao seu lado: Mistral. Pegou o brinquedo e jogou-o com suavidade. O planador girou em loop e caiu de uma vez. Alguém a poucos andares abaixo viu e soltou um viva embriagado. Cinco minutos depois, um elevador apitou. Gregg virou-se e viu a Srta. Black saindo, seguida por Fleur e Leo Barnett. Gregg abriu um sorriso e avançou a passos largos. — Reverendo Barnett, o senhor está muito bem protegido por sua equipe. A Srta. Black abriu caminho, mas Fleur permaneceu entre Gregg e Barnett, mal-humorada, sem dar opção: era parar ou atropelá-la. Gregg deu um passo para o lado e estendeu a mão para Barnett. O Titereiro armou o bote, pronto para saltar. Barnett era de uma beleza extravagante, uma visão de cabelos claros do pregador sulista. Um sorriso leve esgueirou-se em seus lábios cheios, e o sotaque fanhoso de suas origens habitava a voz ressonante. — Senador Hartmann, desculpe. Minha equipe às vezes parece pensar que eu preciso de mais proteção do que a de Deus. O senhor entende. — Ele olhou para a mão estendida, e aquele leve sorriso estampou-se em sua boca outra vez. — Eu adoraria cumprimentá-lo, senador, mas infelizmente minha mão está dolorida. Um pequeno acidente lá embaixo, no saguão. O Titereiro blasfemou. Gregg recolheu a mão. — Conte a ele que foi um curinga, reverendo — comentou Fleur, com frieza e rispidez. — Conte a ele que o senhor apertou a mão do pecador, e que ele tentou esmagá-la. Ainda acho que deveríamos ir ao hospital. Uma fratura… — Foi só uma contusão, irmã. Por favor… — Barnett sorriu para Gregg, como se tivessem uma piada interna em comum. — Tenho certeza de que o senador já teve experiências similares. Apertos de mão são a perdição dos políticos. — Tem razão — concordou Gregg. Estava exausto de tanto sorrir. Assentiu para o rosto fechado de Fleur. — E fico especialmente sentido que tenha sido um curinga. — Um curinga com um dos seus buttons de campanha — retrucou a mulher, bufando. — Que meu pessoal, como o seu, distribui aos milhares — argumentou Gregg, um pouco ríspido demais. Ele se virou para Barnett. — Já temos mal
entendidos o suficiente. Queria dar ao senhor e a sua equipe os parabéns pela luta acirrada pelo programa e dizer que fiquei feliz por finalmente chegarmos a um acordo. Aquilo fez os lábios de Barnett se retorcerem, e Gregg sabia que tocara num ponto nevrálgico. — Eu não concordei com a plataforma modificada — respondeu Barnett. — Bem, havia almas fracas de coração entre meus delegados que acharam adequado aceitar, apesar de meus protestos. Foi um erro e… devo confessar minha vaidade… fiquei enojado. Mas o Senhor também usa as derrotas, senador. Ele me mostrou que eu estava errado ao querer entrar nesses jogos políticos. Acho que essa convenção não é mesmo lugar para alguém como eu. Por um momento, Gregg sentiu um aumento de otimismo. Se Barnett fosse se retirar da nomeação, mesmo se instruísse os delegados a votarem em Dukakis ou Jackson… Mas Barnett estava sorrindo de novo, tirando a Bíblia gasta do bolso do casaco e dando tapinhas na capa com detalhes dourados. — Sou um homem de Deus, senador. Durante o restante desta convenção, pretendo fazer o que sei de verdade: vou orar. Vou trancar as portas deste mundo e abrir as portas de minha alma. O rosto de Gregg deve ter mostrado a confusão. — Não houve derrota para o senhor, reverendo, nem vitória para mim. Eu gostaria que trabalhássemos juntos para criarmos um novo caminho, um em que nós e nosso partido possamos trilhar. O isolamento não trará a resposta. Barnett assentiu, sério, como se ponderasse o argumento de Gregg. — Talvez o senhor esteja certo, senador. Se estiver, então preciso confiar que Deus me mostrará isso. Ainda assim, quero mesmo passar o restante da convenção em oração, e não em jogos de poder. Fleur está preparada para lidar com tudo isso, nos próximos tempos. Às vezes me comporto como um tolo teimoso. Não acredito em transigência, não tenho ilusão de que existe mais de um caminho correto. O Deus que conheço e o Deus que vi na Bíblia não cede. Deus nunca chegou a “acordos”, Deus nunca fez “concessões a realidades políticas”. — Barnett olhou para Gregg, a preocupação estampando a testa alta. — Não quis ofendê-lo, senador, mas tenho que falar o que acredito. — Eu acredito nesse mesmo Deus, reverendo. Nós somos apenas homens, não podemos nos colocar no lugar Dele. Nós dois damos nosso melhor, não somos inimigos. É o orgulho humano que nos separa. O mínimo que podemos fazer como líderes é dar as mãos e tentar resolver as diferenças. — Gregg talhou as palavras com convicção. — Pelo bem de todos. Este seria um ato verdadeiramente cristão. — Ele soltou uma risadinha franca, autodepreciativa, e estendeu a mão mais uma vez. — Prometo não apertar. O Titereiro estremeceu de ansiedade. Por um momento, teve certeza de que funcionaria. Barnett hesitou, balançando o corpo para a frente e para trás. Em seguida, o pregador agarrou a Bíblia com as duas mãos, pensativo. — O ato que gostaria de ver compartilhado por nós, senador, é o da oração. Posso fazer um convite? Junte-se a mim na minha vigília. Vamos deixar a política para os delegados e nos ajoelhar pelos próximos dias. — Reverendo… — Gregg começou a falar. Ele balançou a cabeça.
Por quê? Por que ele nos evita toda vez? Barnett assentiu, quase tristonho. — Acho que não — disse. — Seguimos caminhos muito diferentes, senador. Barnett começou a avançar para o quarto com a Bíblia agarrada na mão direita. Gregg deixou a mão cair ao lado do corpo. — Você não aperta a mão de inimigos, reverendo? — A voz de Gregg era ríspida, tingida com o sarcasmo do Titereiro. Fleur, seguindo Barnett de perto, corou de raiva. Barnett simplesmente deu outro de seus sorrisos ressentidos e misteriosos. — As pessoas esperam citações bíblicas de um homem de Deus, senador — disse ele. — Não me surpreende, pois a Bíblia com frequência tem a palavra justa para ocasião. Como me vem à mente agora, do Livro 1 de Timóteo: “Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; Pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência.” Agora, essa é uma hipérbole, senador, mas acho que… sem saber, talvez… um demônio marque suas palavras. Não somos inimigos, senador. Ao menos, acho que não. E, mesmo se fôssemos, eu ainda oraria para o senhor vir para a luz e se purificar. Sempre existe esperança para a redenção. Sempre. Barnett lançou um olhar longo e fixo a Gregg. Houve um estalo distinto quando ele trancou a porta atrás de si. ♣ O conhaque continuava ardendo no corte do lábio e, a cada vez, arrancava um gemido. Além de um sorrisinho malicioso da atendente do bar. Tachyon considerou mandá-la à merda, mas logo se lembrou da imagem que devia estar passando. A marca das unhas de Sara, por conta do fiasco da noite anterior, eram sulcos vermelhos cavados na pele branca da bochecha. O lábio inferior estava cortado e levemente inchado pela unha de Fleur. Que devasso incrivelmente malsucedido ele era. Não era surpresa que a jovem atrás do balcão sorrisse com afetação. Mulheres. Sempre unidas. — Oi. Posso me sentar aqui? Josh Davidson deslizou para o banquinho ao lado dele. Tach virou-se para cumprimentá-lo com prazer genuíno. — Claro, sem problema. — Quando um homem está encurvado num banquinho de bar, em geral significa que ele quer ficar sozinho, mas resolvi arriscar. — Fico feliz que tenha arriscado. Posso pagar uma bebida para você? — Claro. Um silêncio desconfortável instalou-se entre os dois, pontuado apenas pelo pedido de Davidson. De repente, eles se viraram para encarar um ao outro, e ambos disseram, em coro: — Eu admiro… — Eu sempre admirei…
Ambos riram, e Tachyon disse: — Bem, não é conveniente? Obviamente temos bom gosto. — Tach parou e bebericou o conhaque. — Por que está aqui embaixo? Davidson deu de ombros. — Curiosidade. — Sobre o quê? — O processo político. Um homem poderia fazer a diferença? — Ah, poderia, tenho certeza disso. — Mas você vem de uma cultura que valoriza o esforço individual — disse Davidson, rolando o copo entre a palma das mãos. — Creio que você não concorde com isso. — Não sei. Parece uma proposição questionável permitir que a visão e a opinião de um homem moldem a política. — Mas nesse sistema político nunca acontece. Mesmo na minha cultura aristocrática, o déspota absoluto é uma fantasia. Sempre há interesses concorrentes. — Sim, então como você escolhe entre eles? Franzindo a testa, Tachyon respondeu: — Você toma a decisão. — Parece tão fácil. Mas que direito você tem de substituir sua opinião por… por… — Pela vontade do povo? — sugeriu o takisiano. — É. Tachyon juntou os dedos diante da boca, jogou a cabeça para trás e observou as taças de vinho penduradas como estalactites de cristal no suporte. — Um representante deve ao povo não apenas sua dedicação, mas sua opinião, e seria traição sacrificar essa dedicação em detrimento da opinião… Edmund Burke. A risada de Davidson foi alta e clara. Tachyon ficou tenso. — Doutor, você me surpreende. Tachyon não respondeu. Sabia que surpreendia as pessoas. Surpreendia--as desde que chegara no planeta. 23 de agosto de 1946. Pelo Ideal, o que tinha acontecido com todo aquele tempo? Quarenta e dois anos. Vivera quase o mesmo período de tempo em seu mundo. Lar. — Oi? O pensamento viajou para onde? — Olhos pretos e pensativos, suaves de preocupação. — Para um mundo que não existe mais para mim. A saudade de casa pairou como um nó serrilhado no fundo da garganta de Tach. “Minutos, horas, dias, semanas, meses e anos Passaram-se até o fim em que foram criados, Trariam ao túmulo silente cabelos grisalhos. Ah, que vida foi esta! Tão doce! Tão agradável! Não dá o espinheiro aos pastores cansados Sombra mais doce para olhar a ovelha afável,
Do que dá a liteira tão cheia de adornos Aos reis que temem a traição dos governados? Os homens se encararam. — Não seria Takis? — perguntou Davidson, com a voz suave. — E a Terra. A traição talvez seja a única constante neste universo inconstante. — Tach levantou-se de repente. — Queira me desculpar. Você tem razão, preciso ficar sozinho.
23h00
O dia fora um fracasso total. Spector estirou-se na cama, com dois travesseiros de apoio. Tinha o controle remoto da televisão numa das mãos e uma garrafa de uísque na outra. Era seu ritual pré-sono que o ajudava a se sentir menos deslocado. Não conseguiria matar Hartmann naquele prédio, não sem uma sorte fora do comum. E esgotara sua sorte chegando até ali. Não tinha acesso a áreas do hotel em que Hartmann estaria, exceto durante as coletivas de imprensa. E notara que os políticos raramente olhavam as pessoas nos olhos, a não ser que lhes fizessem uma pergunta. Não era idiota a ponto de chamar atenção daquela forma. Tomou um gole da bebida e zapeou pelos canais. Atlanta tomara outra surra, dessa vez do Cardinals. O noticiário estava cheio de merdas políticas, claro. Hartmann estava comendo aquela repórter vagabunda? Leo Barnett realmente acreditava que Deus falava com ele? Spector queria ter contrato para matar todos eles. Políticos, em sua maioria, eram pessoas praticamente sem moral e ética para sequer serem advogados. No fim das contas, deixou a TV num filme antigo. Era um filme de época, passado na França durante a Revolução Francesa. Um dos personagens falava como o capataz Odie Cologne, dos desenhos do King Leonardo. Spector achou que o ator tinha um papel duplo, mas não estava prestando tanta atenção para ter certeza. Nenhuma das cores parecia natural. Só tons pastel que se borravam e manchavam uns aos outros quando alguém se movia. Os filmes de Ted Turner pareciam tão bons quanto seu time de beisebol. Tinha sido bem estranho cruzar com Tony, e mais estranho ainda descobrir que ele era um dos mandachuvas de Hartmann. Tony era um cara legal, Spector gostava dele, mas sempre tivera um coração meio mole. O ator estava na merda, seguindo para a guilhotina. Não parecia especialmente chateado. Spector estaria chutando e gritando. Sabia como era morrer. Podia usar Tony para chegar a Hartmann, se não encontrasse outra maneira. Spector sempre se orgulhara do fato de nunca ter ferrado com a vida dos amigos. Nunca teve muitos, então não era difícil. Mas o trabalho vinha em primeiro lugar. O ator acabara de enviar um beijo para uma figurante loirinha na grande lâmina, e agora era sua vez. “É a melhor coisa que eu já fiz na vida. Vou para um descanso melhor do que qualquer um que eu conheça.” O ator parou diante da guilhotina, nobre e destemido. Naturalmente, a câmera se deslocou para que ninguém visse a cabeça dele voando para o cesto. — Que imbecil — resmungou Spector, desligando a televisão. Deu outro trago no uísque e apagou as luzes. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo III
Quarta-feira, 20 de julho de 1988
7h00
O roncar pesado dos motores retumbou em cada nervo. Sombrio, Tachyon olhou pela janela do avião até retornar ao presente com uma cutucada nas costelas de seu vizinho de assento. A comissária apontou para a bandeja coberta com os olhos e ergueu a sobrancelhas. — Não, obrigado. Mas eu gostaria de uma bebida. Um screwdriver. Vamos aproveitar aquele suco de laranja. — Ele sorriu para ela. A mulher não reagiu. De fato, seu olhar claramente dizia: seu bêbado. Ele voltou à contemplação mal-humorada das nuvens escuras e agitadas a dois mil pés de altura. A comissária retornou com a bebida, e Tach enfiou a mão no bolso em busca de dinheiro. Tirou uma pilha de três centímetros de bilhetinhos rosa. Tachyon, me liga, caramba! Hiram. Pagou a mulher e encarou de novo a mensagem acintosa e não comunicativa de Hiram. Que porra o Worchester queria, e que porra Davidson quis dizer? Quis implicar que Tachyon era um pastor, e os curingas, “ovelhas afáveis”? Ou era a referência a um rei voltada a ele? Ou aquilo continha um significado mais pessoal? Davidson estava estranho. Seria só afetação irritante por parte de um ator profissional que não conseguia entabular uma conversa sem um roteirista? — Ovelhas tolas. Que se dane. — Tach puxou um lenço e assoou o nariz brevemente. Vou para casa enterrar uma das minhas ovelhas perdidas. Ah, Crisálida. Apoiou a cabeça nas mãos.
9h00
Precisou esperar quase quarenta e cinco minutos para se acomodar. A cafeteria do átrio estava uma loucura. Garçons e garçonetes iam de mesa em mesa como bolas de fliperama. Spector sentou-se diante de uma mesa pequena, ignorando o tagarelar de todos ao redor. Examinou os arredores muito lentamente. Havia muitos olhos vermelhos e expressões doloridas. Imaginou que a maioria fodera ou fora fodida (ou ambos) na noite passada. Ele mesmo não conseguiu dormir muito até as primeiras horas da manhã. Uma garçonete passou pela sua mesa e fez uma cara que talvez tivesse sido um sorriso na primeira das milhares de vezes que a fizera. Puxou uma caderneta e um lápis e ergueu as sobrancelhas, na expectativa. — Em que posso lhe ajudar esta manhã? — As palavras saíam de forma rápida, cortada. Era o fim da hospitalidade sulista. — Só café, por enquanto. — Spector abriu um sorriso lento. Queria comida também, mas queria fazer seu dinheiro valer nas costas daquela vadia. A garçonete lhe lançou um olhar irritado e se afastou da mesa. Spector recostou-se na cadeira e forçou a vista até desfocar o ambiente. Precisava pensar num plano para chegar a Hartmann. A dor o comia por dentro com força, naquela manhã, dificultando o pensamento. Talvez conseguisse dados confidenciais de Tony. Descobrir onde e quando o senador estaria mais exposto. Precisaria de gente suficiente ao redor para que ninguém percebesse exatamente o que acontecera. Ao menos, não por um tempo. A garçonete voltou e bateu o café com força na mesa, derramando no pires. — Desculpe — declarou ela, sem a menor sinceridade. — Vai querer mais alguma coisa? Spector esperou um bom tempo antes de responder. — Vou precisar de mais alguns minutos. A garçonete revirou os olhos e se afastou. Spector pegou a xícara e tomou um grande gole. O café queimou a boca e a garganta ao descer. Sem problema: elas se curariam antes de ele decidir o que pedir. Nunca mais ficara com bolhas na língua. Spector olhou para a fila de pessoas esperando para se sentar. Um homem mais velho, com cabelos bem penteados e barba, passou pela multidão e olhou ao redor. O homem viu Spector e começou a avançar, obstinado, para a mesa dele. Spector sentiu as pernas ficarem tensas, prontas para se mexerem em caso de necessidade. De algum jeito, o homem parecia familiar. Ele parou do outro lado da mesa e sorriu. — Perdoe-me, hoje está muito lotado. Se importaria se eu me sentasse com o senhor? Meu nome é Josh Davidson. — Spector estava prestes a lhe dizer para ir se foder em outro lugar quando lembrou que Davidson era um de seus atores favoritos. Toda a tensão desapareceu quando o homem sorriu outra vez. — Não, por favor, sente-se, Sr. Davidson. — Spector entregou seu cardápio
ao ator e olhou para a garçonete. Só por cima do cadáver dele é que Josh Davidson teria de esperar pelo serviço, se ele pudesse fazer algo a respeito. — Muito obrigado — agradeceu o homem, sentando-se com delicadeza. Puxou um jornal dobrado debaixo do braço e o abriu. Spector encontrou a garçonete e estava prestes a acenar para ela quando um homem grande surgiu na multidão. Hiram Worchester alisou os amassados da lapela e olhou de mesa em mesa. — O senhor se importa se eu ler um dos cadernos? — Spector estendeu a mão para pegar as primeiras páginas, que Davidson deixara de lado. — Fique à vontade. Mais do que depressa, Spector agarrou o jornal e o abriu. Espreitou por cima dele. O Bolão ainda estava olhando em volta. Se ele estiver procurando Davidson, estou ferrado, pensou. Por mais que talvez fosse satisfatório matar o gordo desgraçado, não podia atrapalhar o serviço. Um garçom foi até Worchester e assentiu para ele, com deferência. — Vou ter que sair, Sr. Davidson — anunciou Spector. — Não estou me sentindo muito bem. Se importa se eu ficar com a capa do jornal? — De forma alguma. É o mínimo que posso fazer. Spector se levantou e avançou devagar na direção da porta, mantendo o jornal erguido diante de si. Era estúpido, mas melhor do que Worchester reconhecê-lo. A garçonete passou por ele quando saiu. — Já vai tarde — comentou a mulher, alto o suficiente para ele ouvir. Spector estava preocupado demais para se importar.
11h00
Tachyon recostou-se na lateral do banco e lambeu o suor que se acumulara sobre os lábios. Estava com medo de acabar desmaiando por conta do calor abafado, e os quatro enormes ventiladores no fundo da Igreja de Nossa Senhora da Perpétua Miséria pouco faziam para mexer o ar úmido e pesado. Pensou em tirar o casaco de veludo, mas aquilo revelaria os círculos escuros de suor embaixo dos braços, e seria uma aparência ofensiva para dar o último adeus a Crisálida. Precisava verbalizar aquele adeus. Reunir palavras brilhantes e pungentes sobre o que Crisálida representou para o Bairro dos Curingas. E não tinha ideia do que diria. Não conhecia Crisálida de verdade e, em algum nível, nem gostava muito dela. Mas não podia dizer aquilo num panegírico. Encarando o caixão rodeado de flores, Tach se perguntou se o fantasma de Crisálida estava pairando por perto, ouvindo o murmurar apressado da Sociedade do Rosário Vivo recitando os terços e oferecendo orações para o descanso de sua alma. O cortejo começou, liderado por um coroinha curinga carregando uma cruz de bronze com o Jesus curinga. Foi seguido por outros dois, que sacudiam turíbulos, soltando nuvens de incenso no ar já muito fedorento. Tach tossiu e cobriu a boca com o lenço. — Odeio toda essa tolice católica. Ela foi criada como batista e deveria ter sido enterrada como batista. Tach virou a cabeça devagar e encarou o sujeito sentado ao seu lado no banco. Era um homem grande, de rosto encarquilhado, com tons vermelhos sob o bronzeado. O casaco do terno preto estava esticado na barriga, e filetes de suor faziam brilhar as linhas do papo. Não parecia esperar uma resposta, então Tach ficou quieto. — Sou Joe Jory, pai de Debra Jo. — Como vai? — murmurou Tach, quando Padre Lula, resplandecente em sua sobrepeliz mais elegante, passou com dignidade pesada. O padre chegou ao altar, deixou o missal no lugar, depois se voltou para a multidão e abriu os braços, anunciando, com a voz suave e triste: — Vamos orar. Durante toda a missa, Jory e Tachyon esforçaram-se para acompanhar, sempre um segundo atrás dos católicos que se levantam, ajoelhavam e sentavam. No ano anterior, passara pela mesma situação no funeral de Des e, naquele momento, Tachyon sabia que era sua vez de falar no panegírico. Parou de tentar entender a cerimônia, para ele, alienígena, e simplesmente ficou sentado de cabeça abaixada, as lágrimas correndo devagar por baixo das pálpebras fechadas enquanto compunha os pensamentos. O pequeno coroinha curinga cutucou seu ombro, e Tach acordou do devaneio. Um cesto que continha pequenos pedaços de pão. O takisiano tirou um pedaço e passou o cesto adiante. O pão pareceu inchar na boca seca, e ele engasgou
tentando engoli-lo. Com um olhar sorrateiro para os dois lados, pegou a garrafinha e tomou um gole do conhaque. O Padre Lula acenou, e Tach tomou seu lugar no púlpito. Puxando o lenço, enxugou o rosto, respirou fundo e começou: — Exatamente um ano atrás, no dia 20 de julho de 1987, nós nos reunimos nesta igreja para a cerimônia de Xavier Desmond. Fiz seu panegírico, como farei o de Crisálida. E fico honrado por isso, mas a verdade melancólica é que estou cansado de enterrar meus amigos. O Bairro dos Curingas fica mais pobre com essa passagem, e tanto a minha vida quanto a de vocês diminui um pouco com a perda. Tach fez uma pausa e olhou para as mãos, agarradas ao púlpito. Ele se obrigou a relaxar. — Um panegírico é um discurso em homenagem a uma pessoa, mas vejo que este será bem difícil. Eu me dizia amigo de Crisálida. Eu a via com frequência. Cheguei até a viajar o mundo com ela. Mas agora percebo que não a conhecia de verdade. Eu sabia que ela chamava a si mesma de Crisálida e que vivia no Bairro dos Curingas, mas não sabia seu verdadeiro nome ou onde ela tinha nascido. Sabia que ela fingia ser britânica, mas nunca soube por quê. Sabia que ela gostava de beber amaretto, mas nunca soube o que a fazia sorrir. Sabia que ela gostava de segredos, de estar no controle, de parecer fria e intocável, mas nunca soube o que a fez ser daquele jeito. “Pensei sobre tudo isso no voo de Atlanta para cá e decidi que, se eu não pudesse expressar minha homenagem a ela, ao menos poderia falar em honra de seus feitos. Um ano atrás, quando a guerra assolou nossas ruas e nossos filhos estavam em perigo, Crisálida ofereceu sua casa, seu palácio, como refúgio e fortaleza. Era perigoso para ela, mas o perigo nunca a perturbou. “Ela era uma curinga que se recusava a agir como curinga. A dama de cristal nunca usou máscara. Ou a aceitavam do jeito que era, ou podiam ir se danar. Dessa forma, talvez, ela tenha ensinado a alguns dos limpos como ser tolerante; e, a alguns curingas, como ser corajoso.” Lágrimas rolavam em seu rosto. Para vencer o nó na garganta, Tach elevou a voz. — Como adoramos nossos ancestrais, os funerais takisianos são mais importantes que os nascimentos. Acreditamos que nossos mortos ficam próximos para guiar seus descendentes tolos; uma crença que pode ser terrível ou consoladora, dependendo da personalidade do ancestral. A presença de Crisálida, creio eu, será mais aterradora que consoladora, porque exigirá muito de nós. “Alguém a assassinou. Isso não pode ficar impune. O ódio se ergue como uma onda fumegante neste país. Precisamos resistir. “Nossos vizinhos são pobres e famintos, amedrontados e destituídos. Precisamos alimentá-los, abrigá-los, confortá-los e ajudá-los. “Ela esperaria tudo isso de nós.” Tachyon fez outra pausa e examinou os congregados. A bancada de velas votivas que queimavam próximas do púlpito atraiu sua atenção. Caminhando até ela, ergueu uma das pequenas velas e voltou ao púlpito. A chama tremeluzia, hipnótica, diante de seus olhos.
— Em apenas um ano, o Bairro dos Curingas perdeu dois de seus mais importantes líderes. Estamos assustados, entristecidos e confusos pela perda. Mas eu digo que eles ainda estão aqui, ainda estão conosco. Sejamos dignos deles. Honremos sua memória. Nunca nos esqueçamos. Curvando-se, Tach puxou a faca do estojo da bota. Fixou a vela no púlpito e posicionou o indicador sobre o fogo. Com um movimento rápido, cortou o dedo e apagou a chama com uma gota de seu sangue. — Adeus, Crisálida. ♠ Encontrar o Bolão o deixou um pouco nervoso, mas alguns goles de uísque o ajudaram a se acalmar. Spector se sentou e curvou as costas na ponta da cama, olhando para a manchete. “DISCURSO DE HARTMANN NO PARQUE HOJE.” O senador faria um apelo público aos curingas para se manifestarem sem violência. Era arriscado, com todos aqueles lunáticos perambulando por lá. Mas ninguém era mais doido do que um político acuado. E Hartmann estava mesmo entre a cruz e a espada. Spector ligou a televisão e sintonizou num canal que mostrava os horários e os lugares dos eventos do dia. Depois de alguns instantes esperando, lá estava. Um discurso à uma da tarde, sem nenhum aviso de cancelamento. Spector mordeu o lábio e folheou o jornal, distraidamente. Precisava de um ângulo. Precisava de uma maneira de se misturar à multidão e, ainda assim, se destacar o bastante para conseguir capturar o olhar de Hartmann. Um anúncio pequeno, de canto, chamou sua atenção. Era da Keaton’ s Kostumes. MÁSCARAS, MAQUIAGEM, FANTASIAS, ARTIGOS PARA FESTAS E MAIS, prometia. Um homem fantasiado segurava uma lista com um sorriso estúpido, exagerado. Parecia o Marcel Marceau. Spector jogou o jornal de lado, limpou as manchas de tinta nas calças cinza e começou a rir. ♦ Jack atravessou a enorme porta giratória de latão para entrar no saguão do Marriott, viu os enxames da imprensa e os delegados de Hartmann e tentou não pensar em porcos num cocho. A direção da campanha estava fazendo o máximo para alimentar seu pessoal e fazer todo mundo voltar ao auditório no menor tempo permitido pelo recesso de almoço, e o Marriott servia um enorme bufê que contava com salada de macarrão e rosbife às toneladas. Jack conseguiu ver Hiram Worchester encarapitado num sofá gasto perto do piano do lounge, um prato bem cheio equilibrado nos joelhos. Os elevadores de vidro estavam lotados de repórteres e delegados levando putas para uma rapidinha pós-prandial. O pianista estava tocando “Piano Man” de novo. Jack tinha a sensação deprimente de que sabia muito bem que canção viria a seguir. Felizmente, não precisava se apinhar ao redor das mesas de bufê e engolir seu almoço com os outros enquanto o pianista oferecia sua saudação inevitável a Eva Perón — Jack tinha uma mesa permanente reservada no Bello Mondo,
garantida com o oferecimento de uma nota de cem novinha ao maître, todos os dias. Uma boa refeição e uns uísques duplos cairiam muito bem. Apesar de aquela ter sido uma manhã preguiçosa. Comentaristas da CBS falaram durante todo o discurso de apoio de Jimmy Carter a Hartmann, e as outras redes haviam cortado para os comerciais. O presidente do partido, Jim Wright, que Jack imaginou que quisesse a vitória de Hartmann, acenou para a banda tocar “Stars and Stripes Forever” no fim do discurso, provocando uma manifestação gigantesca da plateia que os espectadores da TV perderam. Jack poderia jurar que ouvira os gritos de Devaughn lá do Marriott. Jack estava começando a acreditar, de um jeito puramente supersticioso, na existência de um ás secreto que estava por ali para derrubar Hartmann. Ou talvez eram apenas os Gremlins do Kremlin. — Jack! Sr. Braun! — Um camarada afável que lembrava o Papai Noel avançava na sua direção, com um chapéu de palha que cobria os longos cabelos brancos e a barba desgrenhada. Louis Manxman, repórter do LA Times, que estivera a bordo do avião de campanha de Hartmann desde o início. Havia uma expressão resoluta no olhar do repórter. — Oi, Louis. — Jack enfiou a pasta embaixo do braço, pôs as mãos nos bolsos da jaqueta de fotojornalista da Banana Republic e tentou passar direto. Manxman foi se posicionando de forma a bloquear seu caminho de propósito e sorriu, encarando-o através dos óculos bifocais metálicos. — Quero a matéria daquela votação-teste de segunda à noite. — Já é passado, Louis. — Os jornais estão elogiando a estratégia magistral de Danny Logan, a maneira como ele a criou no último minuto. Nem Devaughn sabia o que estava acontecendo, dava para ver na cara dele. Mas eu conheço Logan desde sempre, e não parece o tipo de jogada que ele faria. Conversei com cada chefe de delegação que consegui encontrar, e eles todos disseram que as ordens vieram de você, não de Logan. — Logan sabia o que eu estava fazendo. — Jack tentou dar um passo para a esquerda. Manxman bloqueou a passagem de novo. — Uma fonte me disse que o velho irlandês estava desmaiado na noite de segunda. — Estava comemorando. — Um passo para a direita. — Comemorando desde o café da manhã, pelo que ouvi dizer. — Bloqueado. Jack o encarou com raiva. — Estou ocupado, Louis. Que diabos você quer, de uma vez por todas? — Foi você ou não foi? — Não vou confirmar nem negar. Está bem? — Por que negar? Você é um cara de Hollywood… deveria adorar uma publicidade. Não seja tímido. Jack parou por um momento e imaginou se “tímido” seria uma palavra importante para aquela convenção. O inevitável aconteceu, e o homem de fraque branco tocou as notas iniciais de “Don’t Cry For Me, Argentina”. Jack sentiu a paciência se esgotar.
— Estou atrasado para o almoço, Louis. Não vou confirmar nem negar nada. Pode registrar isso, é minha declaração. Entendeu? O olhar de Papai Noel desapareceu. — Quarenta anos de atraso para se apoiar na Quinta Emenda, Jack. O ódio roncou dentro de Jack. Ele fitou o repórter com um olhar frio e avançou, como se fosse atropelá-lo. Estavam se aproximando do piano branco. O homem de fraque branco ainda dedilhava o canto de vitória do fascismo sul-americano. A raiva começou a exasperar Jack na esteira do medo e da humilhação. Ele se despediu de Amy e se aproximou do piano. O homem de fraque branco abriu um sorriso automático. Havia um grande pote de vidro sobre o piano, com uma camada de gorjetas ao fundo. Jack segurou a borda de vidro, fez um pequeno esforço e arrancou um pedaço do tamanho da mão. O campo de força dourado reluziu de leve. O pianista o encarava. Jack pulverizou o vidro, em seguida estendeu a mão, abriu o bolso frontal do casaco do homem e despejou os cacos lá dentro. “Don’t Cry For Me, Argentina” parou de uma vez. — Se tocar essa música de novo, eu te mato — anunciou Jack. Afastando-se, sentiu que devia sentir vergonha da ter aquela satisfação barata. Mas, de alguma forma, não sentia.
12h00
Troll carregou sozinho o caixão de Crisálida. O gigantesco chefe de segurança da clínica do Bairro dos Curingas levava o caixão nos braços como se fosse uma criança dormindo, guiando o cortejo até o cemitério da igreja. Mais orações foram entoadas, e o Padre Lula abençoou o túmulo com incenso e água benta. Tachyon pegou um punhado de terra e despejou lentamente sobre o caixão. O som resultante era oco, como se arranhasse a madeira, como garras em vidro, e Tachyon estremeceu. O sol parecia inchado e adoentado enquanto flutuava na mortalha do dia enfumaçado de verão em Nova York . Tach ansiava pelo fim daquilo. Os mortos foram enterrados. Atlanta o chamava. Mas ainda havia uma fila de condolências para aguentar, além de trinta minutos de apertos de mão humanas. Tach decidiu poupar-se de algumas nojeiras. Pegou um par de luvas vermelhas de pele de cabra e calçou as mãos finas e brancas. — Olá, padre — cumprimentou uma voz familiar à esquerda. — Que bom revê-lo, Daniel. Tachyon não conseguiu se conter. Jogou-se nos braços de Brennan, abraçando-o com muita força, uma mostra de emoção desnuda que sabia que o outro apenas tolerava. Com um suspiro, Tach segurou Brennan pelos ombros e o encarou com um olhar urgente. — Precisamos conversar. Venha. Andaram para os fundos do cemitério, até estarem parcialmente protegidos por várias lápides intrincadas. Ao lado de um anjo choroso, Tachyon espreitou a mulher que os encarava, curiosa. — A loira bonita deve ser Jennifer. — É — respondeu Brennan. — Eu diria que você é um homem de sorte, mas isso seria menos que adequado, considerando que você está sendo acusado de assassinato. É isso que o trouxe de volta? — Em parte. Principalmente. Na verdade, vim para descobrir quem matou Crisálida. — E como está indo? — Não muito bem. — Alguma teoria? — Achei que fosse obra de Kien. Tachyon negou com a cabeça. — Não faz sentido. Fizemos um acordo que resultou em você saindo da cidade e a guerra encerrada. Por que ele arriscaria recomeçar todo um ciclo de assassinatos? — Quem sabe? Vou só cutucar até que alguma coisa pule. Seco, Tach respondeu: — Só tome cuidado para não pular em você. Queria poder ajudar, mas
preciso voltar a Atlanta. Você vai manter contato? — Não. Assim que terminar, Jennifer e eu vamos embora de Nova York . E, dessa vez, vai ser para valer. — Se não for manter contato, ao menos tenha cuidado. — Essa parte eu aceito.
13h00
O Parque Piedmont estava lotado. Spector abriu caminho para o palco através da multidão. Sentiu-se um idiota no traje justo, preto e branco. A pele estava sufocando embaixo da tinta oleosa. Mal conseguiu chegar no local a tempo. A loja de fantasia estava entupida, a maioria dos clientes era curinga. Por sorte, a reunião no parque esvaziara as ruas. Tinha deixado as roupas e os outros pertences num armário. A chave estava enfiada no pulso do collant. Ainda restava alguns centenas de metros até o palco. O pessoal lá tinha feito um teste de microfone, mas até o momento nada de Hartmann. Uma sombra moveu-se lentamente sobre a multidão. Spector ergueu os olhos, cobrindo-os para protegê-los do brilho, e viu o Tartaruga pairando silenciosamente acima deles na direção do palco que estava sendo preparado para o discurso do senador. Houve aplausos e alguns vivas. A multidão era majoritariamente composta de curingas, embora houvesse alguns grupos de limpos apinhados nas laterais. — Olha, mamãe, que homem engraçado. — Uma menina curinga apontou para Spector. Ela estava sentada num carrinho surrado, segurando uma flor. Os braços e as pernas eram finos como varetas, com pelotas de cima a baixo. Pareciam ter sido quebrados vinte vezes. Spector deu um sorrisinho amarelo, esperando que a tinta oleosa ao redor dos lábios os fizesse parecerem maiores. A mãe da garota sorriu de volta. Padrões de pigmento vermelho manchado escorriam sobre a pele. Enquanto Spector observava, um dos círculos se fechou num pontinho, e o sangue vazou. A mulher limpou num movimento rápido e envergonhado. Pegou a flor da mão da filha e estendeu-a para Spector, que pegou a flor, com cuidado para não tocar na pele da mulher. Ser um dos limpos numa multidão de curingas, mesmo vestido como um mímico, lhe dava arrepios. Ele se afastou. — Faça alguma coisa engraçada — pediu a garotinha. — Mamãe, diz pra ele fazer alguma coisa engraçada. Houve um murmúrio de aprovação da multidão. Spector virou-se, hesitante, tentando pensar no que fazer. Engraçado era algo que ele nunca fora acusado de ser. Tentou equilibrar a flor na ponta de um dedo. Incrivelmente, conseguiu. Silêncio mortal. O suor pingou sobre a testa pintada e caiu para dentro do olho. Sua respiração estava pesada. Tudo continuava muito quieto. Uma mão enluvada surgiu diante do rosto de Spector, puxando a flor. Ele colocou o talo entre os lábios pintados e parou numa pose afetada. Risos da multidão. O outro mímico fez uma grande reverência e se ergueu devagar. Spector deu um passo para trás. O outro mímico agarrou-o pelo cotovelo, depressa, e balançou a cabeça. Mais risadinhas da multidão. Era a última coisa de que Spector precisava. Não apenas tinha virado o centro das atenções, mas ainda estava muito longe de onde precisava estar. Hartmann poderia aparecer a qualquer segundo, e Spector não conseguiria chegar lá a tempo.
O outro mímico olhou para baixo, fez uma careta e apontou para os pés de Spector. Instintivamente, Spector olhou para baixo. Não viu nada, mas foi bem quando a mão do mímico se ergueu sob seu queixo e jogou sua cabeça para trás. Gargalhada geral. O mímico pôs as mãos na cintura e riu sem fazer barulho. Spector esfregou a boca —tinha mordido a língua. Cerrou os dentes embaixo do sorriso pintado. O outro mímico pousou um dedo no alto da cabeça de Spector e dançou ao seu redor como um mastro de festejos. Parou diante dele e apertou suas bochechas. Spector já aguentara demais. Era hora de acabar com o babaca. Aproximouse e fitou os olhos do outro. Quando os olhares travaram, ele liberou a dor, agarrando os ombros do mímico quando este ameaçou cair. Spector deixou-o no chão, devagar, juntando as mãos do mímico sobre o peito. Os olhos do imbecil estavam vidrados com a morte, ainda surpresos, quando ele foi deitado na grama pisoteada. Spector enfiou a flor nas mãos do cadáver e aplaudiu de um jeito melodramático. A multidão gargalhou e comemorou. Alguns deram tapinhas nas costas dele; outros observavam o outro mímico, esperando que ele se levantasse. — Meus amigos. — A voz amplificada veio do palco. A multidão virou-se. Spector se preparou e começou a abrir caminho. — Hoje teremos o privilégio de ouvir o único homem que poderá nos conduzir nos próximos anos de dificuldade. Um homem que prega a tolerância, não o ódio. Um homem que une em vez de dividir. Um homem que liderará seu povo, não o arrebanhará. Trago a vocês o próximo presidente dos Estados Unidos da América, Senador Gregg Hartmann. Os aplausos foram ensurdecedores. Houve gritos e assobios estranhos, ruídos de curingas. Spector tomou uma cotovelada na orelha de um monstro com braços que pendiam ao lado dos joelhos. Ele sacudiu a cabeça e continuou avançando. — Obrigado. — Hartmann fez uma pausa enquanto os aplausos e vivas continuavam. — Muito obrigado a todos. Spector conseguia vê-lo, mas não havia como travar contato com seus olhos àquela distância, mesmo se Hartmann estivesse olhando para ele. A multidão estava colada ao palco. Spector cavalgou por entre a enxurrada de equívocos humanos, estreitando os ombros para abrir caminho. Mais um minuto ou dois e estaria na posição. — Disseram que sou um candidato pró-curingas. — Hartmann ergueu as mãos para acalmar os aplausos antes que pudessem começar. — Isso não é estritamente verdade. Eu sempre coloquei um princípio sobre todos os outros. Que este país deveria existir como nossos pais fundadores o planejaram. Direitos iguais a todos, garantidos pela lei. Nenhum indivíduo seria melhor que seu semelhante. Ninguém, por mais poderoso que fosse, estaria imune à lei. — Hartmann fez uma pausa. A multidão aplaudiu de novo. Spector estava a cerca de cem metros, no centro da multidão. Hartmann usava um terno bege. Uma brisa leve bagunçava seus cabelos. Os agentes do Serviço Secreto flanqueavam o púlpito, seus olhos escondidos por trás de óculos escuros. O olhar do senador varreu a multidão, mas ignorou Spector. Precisaria de concentração total para travar o olhar no instante que tivessem contato visual.
Se acontecesse. — Preciso da ajuda de vocês para vencer a nomeação do partido e me tornar o próximo presidente deste país. — Hartmann estendeu as mãos para a plateia. — A presença de vocês aqui, em Atlanta, só poderá me ajudar se suas manifestações forem ordenadas. Qualquer ato de violência, provocado ou não, com certeza será usado contra nós. Vocês têm a oportunidade de declarar sua posição de forma simples mas eloquente. Uma posição defendida por Gandhi e Martin Luther King Jr. Que a violência é um ato abominável. Que vocês não vão tolerar a violência sob nenhuma circunstância. Os olhos de Hartmann pairaram novamente pela multidão e seguiram direto para ele. Spector prendeu o fôlego e se concentrou, a dor uivando em sua mente. Só um pouco mais. Ficou na ponta dos pés. Os olhos travaram… … ouviu-se um som. Um homem do Serviço Secreto derrubou Hartmann no chão. Tiros. Gritos por todos os lados. A multidão tentava escapar, mas estava muito apinhada. Spector olhou para o outeiro. Devia ter cerca de cem homens com uniformes dos Confederados. Baforadas de fumaça saíam das armas, seguidas pelo eco dos disparos ao longo do parque. Hartmann desaparecera. Não haveria outra chance. Não ali, de qualquer forma. Spector pulou nas costas de um curinga que tinha a largura de três homens. Não importava aonde ele estava indo. Seria mais seguro que ficar ali. O Tartaruga passou zumbindo lá em cima. Houve mais alguns disparos, então os tiros pararam. Spector pisou em algo que estalou. Um gemido. Estava sobre o cinto de couro do curinga, com as palavras CARGA PESADA pintadas em dourado. Que merda, pensou Spector. Mas era a última vez que ficava feliz em ter a companhia de uma aberração obesa.
18h00
No fim do corredor, Mackie observou o homem alto e magro com pele cor de café com leite fechar e trancar a porta do quarto. 1531, exatamente como der Mann dissera. Achou que a Amerika estivesse em decadência, bem como seus camaradas falecidos da Facção do Exército Vermelho costumavam dizer. Onde mais no mundo um homem via um preto trajar um terno que custava um dinheiro que Mackie Messer jamais tivera na vida e caminhar pela cidade de braços dados com uma mulher branca? Riu sozinho com a aparente tentativa de disfarce do alvo. Ela parecia uma das garotas da Reeperbahnstrasse coberta dos pés à cabeça para se proteger da luz do dia não costumeira. Era adequado. Era só uma puta, outra maldita puta, que seduzira o Homem e pagaria por isso. Os dois se afastaram dele, indo na direção dos elevadores. Mackie se desgrudou da parede e do extintor de incêndio na caixa de vidro. Não poderia acabar com eles ali — já estava pensando neles; uma questão de lógica, não podia deixar testemunhas —, porque aquele palácio burguês maluco era vazio por dentro, como a cultura que o construíra, e qualquer pessoa numa das dezenas de níveis podia ver tudo que acontecia nas passarelas que cercavam o átrio. Precisava atacar na encolha, der Mann fora bem explícito. Mas não era problema. Mackie, Navalha, era a sutileza em pessoa. Como sua música. Ele os seguiria e saberia o momento certo. Talvez entrasse no elevador com eles. Lambeu os lábios com a brincadeira. Seria mesmo kriminell. Nunca suspeitariam. Talvez nem o notassem. Talvez estivessem apaixonados. Talvez o negro ostentasse uma ereção. Ele se moveu. Uma voz o chamou. — Ei, você. Por que tanta pressa? Mackie se virou. Um branco baixinho de terno marrom com um fio pendurado na orelha. Um babaca do hotel. Mackie tinha gradações de polícia marcadas a fogo em seu sistema nervoso autônomo, da época em que era uma criança brincando nos paralelepípedos de Sankt Pauli. Fora o mais discreto possível, permanecendo antes da entrada do quarto, onde ficava a ruidosa máquina de gelo, atravessando a parede para dentro de um depósito de ferramentas quando as pessoas se aproximavam demais. Mas havia um limite de quanto até mesmo Macheath conseguia se esconder, mantendo-se ali sobre sessenta metros de vazio, naquele lugar perturbador, ao mesmo tempo dentro e fora. O cara agarrou seu braço. Não se podia fazer isso, não com Mackie Messer. — Você tem sorte — murmurou ele. Tocou a bochecha do homem, zumbindo um dedo. O sangue começou a escorrer. O homem gritou e se contorceu, batendo a mão no rosto. Mackie desapareceu através da porta corta-fogo de aço e começou a descer as escadas às pressas. Não ousaria perder a presa de vista. As mulheres
estavam sempre mudando de ideia; não dava para saber se ela voltaria àquele lugar. ♥ Spector sentou-se na beirada da cama, os pés cruzados embaixo do corpo. Ficou quase surpreso ao encontrar o quarto limpo quando voltou. Fazia muito tempo que não se hospedava num hotel. Estava planejando a próxima investida e vendo televisão. Naquele momento, o telejornal chamara sua atenção. Um repórter local, tentando não parecer perdido, entrevistava Hartmann no saguão. — Senador, o senhor acredita que o Reverendo Barnett tenha algo a ver com os incidentes desta tarde? — O repórter estendeu o microfone para o senador, que hesitou antes de responder. — Não. Acho que, por mais que haja diferenças entre nós, Leo Barnett não se rebaixaria a essas táticas. O reverendo é um homem honrado. — Hartmann tossiu. — Mas sinto que aqueles indivíduos que interromperam o discurso possivelmente compartilham de muitas de suas visões perigosas e tacanhas. É precisamente esse tipo de fanatismo injustificado que devemos lutar para eliminar. Leo Barnett quer resolver o problema apartando as vítimas do carta selvagem da sociedade. Eu quero superar o próprio ódio. — Hartmann retomou seu assento, cruzou as mãos e encarou a câmera, sério. — Porra, esse cara é bom — comentou Spector. — Mas não vai fazer a menor diferença. A tela voltou ao estúdio. Uma repórter negra virou-se para seu coapresentador. — Obrigada, Howard, pela entrevista. Dan, o que a polícia descobriu até agora sobre os responsáveis pelo incidente? — Acredito que não muita coisa. Vários suspeitos estão presos, capturados pelo Tartaruga, mas há pouca cooperação com a polícia. — O repórter uniu os polegares. — Há rumores de que a maioria seja membro da Ku Klux Klan, mas não ficou comprovado. Embora o incidente tenha obviamente sido bem planejado, nenhum dos indivíduos envolvidos assume a liderança. E, até o momento, não há pistas de onde vieram os uniformes e arcabuzes autênticos dos Confederados. — O repórter franziu a testa e se virou para a mulher negra. — Bem, tenho certeza de que as autoridades nos manterão informados se houver novas informações sobre esse incidente bizarro. — A negra balançou a cabeça. — Embora a munição usada fosse de festim, várias pessoas ficaram feridas devido ao pânico causado. — As imagens passaram para uma gravação em vídeo do pânico no parque: o câmera corria com todos os demais durante a agitação, fazendo a imagem chacoalhar. — Pelo menos uma pessoa, um artista de rua, supostamente foi pisoteada até a morte. Por ironia, acredita-se que, no momento, ele estava se fingindo de morto. Seu nome está sendo mantido em segredo, pois a polícia aguarda a notificação de algum parente próximo. — Genial — murmurou Spector, desligando a televisão. Ao menos estava livre daquela morte. Mas aquilo não o deixava nem um pouco mais próximo de Hartmann. Quase sentia que algo o segurara no instante em que travaram
olhares. Não. Era só imaginação. Para fazer isso, Hartmann teria que contar com poderes como os do Astrônomo ou de Tachyon. — Astrônomo, presidente. — Ele deu uma risadinha. — Isso faria até o Reagan parecer bonzinho. Saltou da cama e caminhou devagar pelo chão acarpetado, considerando as opções. Matar Hartmann talvez estivesse além de suas capacidades. Podia pegar o dinheiro e partir para outro lugar, outro país, talvez. Quem sabe trabalhar num cassino em Cuba. Não. Sempre fizera o que era pago para fazer. Mais uma vez sofria com a porra da ética da classe média. Não o impedia de matar pessoas, mas fazia com que cumprisse seus contratos. Suspirou e foi até o telefone. Tony era sua única chance; soubera disso desde que haviam se encontrado no saguão. Coisa do destino, ou algo assim. Mas não impedia que se sentisse um merda. Discou o número e esperou. Uma voz feminina desconhecida atendeu ao telefone. — Gostaria de falar com Tony Calderone, por favor? — Ele não pode atender agora. Quer deixar recado? — A mulher parecia cansada. — Sim, diga a ele que James ligou. Ele vai saber do que se trata. Diga que eu gostaria de confirmar o jantar. — Sim, James, hã, qual é o seu sobrenome? — Apenas James. Ele vai saber quem eu sou. — Eu passo o recado. — Obrigado. Spector desligou o telefone e suspirou. Talvez pedisse um bife no serviço de quarto e torcesse para que os Peaches estivessem de novo na TV, àquela noite. Se forem a equipe dos Estados Unidos, pensou, estamos na merda.
20h00
Os holofotes ofuscaram seus olhos. As longas lentes das câmeras de televisão apontavam para ele como se fossem espingardas. Uma pontinha de medo do palco fazia seus joelhos tremerem. Jack não fazia esse tipo de coisa havia anos. Ergueu os olhos para as luzes, ofereceu ao mundo uma risadinha maliciosa — que bom, os reflexos estavam voltando — e fez sua declaração: — O trigésimo primeiro estado, o Estado Dourado, tem o orgulho de entregar seus trezentos e catorze votos à causa dos direitos dos curingas e ao próximo presidente, Senador Gregg Hartmann! Gritos. Aplausos. Chapéus idiotas e planadores dos Ases Voadores tomaram o ar. Jack tentou parecer nobre, alegre e triunfante até os holofotes partirem para o presidente da delegação do Colorado. Toma essa, Ronald Regan, pensou. Eu vou te mostrar como trabalhar com uma câmera. Desceu do pequeno púlpito com as cores vermelha, branca e azul que fora disposto ali apenas para aquilo. O cara do Colorado, sem saber seu somatório total de votos, gaguejou no discurso. Por sorte, Colorado ficou com Dukakis e Jackson. O primeiro escrutínio dera 1.622 votos a Hartmann; Barnett ficara com 998; Jackson, Dukakis e Gore dividiram o restante. Ninguém estava nem perto de vencer. O caos se deflagrou na plateia enquanto os comentaristas da imprensa apresentavam opiniões prudentes e aventavam previsões sobre o que aconteceria em seguida. A Regra 9(c) foi defenestrada logo ao final da primeira votação, e os coordenadores de campanha na plateia já faziam promessas aos delegados não comprometidos. Logo, a segunda votação foi convocada, trinta minutos depois da primeira. Só assim os coordenadores conseguiam ter números suficientes para ver como estavam indo as coisas. Hartmann ganhou cerca de cinquenta votos, principalmente às custas de Dukakis e Gore. A convenção explodiu numa série de reuniões apressadas, enquanto os comentaristas tentavam decidir se cinquenta votos significavam um “favoritismo” para Hartmann ou apenas um “indício”. Os coordenadores na plateia surtavam ao pensar nos delegados escapando pelos dedos. O pandemônio durou mais quatro horas. Quando Jim Wright, já sonolento, convocou a terceira votação, pouco antes da meia-noite, as três redes comerciais de televisão tinham morrido com a inércia e voltado à programação habitual de verão, com reprises do programa de Johnny Carson. Apenas a PBS cobria os eventos para um público de alguns mil viciados em política. Hartmann chegou a quase 1.800 votos. A tendência se solidificava. Chapéus e planadores voavam. Jack agarrou seu púlpito e jogou-o a uns trinta metros no ar, girando como um sinal de triunfo coberto de estrelas, em seguida estendeu a mão e pegou-o no ar antes que pudesse rachar a cabeça de alguém.
As celebrações em sua suíte continuaram até altas horas. Estava tropeçando para a cama quando percebeu que devia ter chamado Bobbie. Mesmo tendo se mostrado uma estrelinha obsessiva por celulite, Jack imaginou que poderia ter lhe dado exercícios saudáveis o bastante para deixá-la feliz.
22h00
…Peachtree, com seu pavimento e seus ecos. Caminhavam de braços dados. Sara bebera duas taças de vinho. Era a primeira bebida alcoólica que ingeria em um ano. Nunca fora muito de beber — exceto nas semanas após a excursão. Ricky a divertia com as últimas piadas de candidato que rolavam por ali. — Que tal essa aqui: se Dukakis, Hartmann e o irmão Leo fossem velejar juntos no lago Lanier e o motor do barco explodisse e a embarcação afundasse, quem se salvaria? — A nação — retrucou Sara. — Da última vez que eu ouvi essa foi com Reagan, Carter e Anderson. Mas acho que você é jovem demais para lembrar. — O que vai, volta, Rosie. Mas eu já tinha idade para votar em 1980. — Você deve achar que eu sou uma velha maluca papa-anjo. — Ela franziu o cenho. Aonde aquilo ia dar? Contenha-se, disse a si mesma. Ricky deu tapinhas em sua mão. — Espero que sim, Rosie. — Então riu para mostrar que era uma piada. Ainda assim, Sara sentiu a tensão dentro de si. Um som fino atravessava o corredor, entre os ruídos de suas risadas. — Que música é essa? — perguntou. Ele ergueu a sobrancelha. — Não conhece? Conhecia, mas precisava de algo para dizer. — É “Mack the Knife”. Faz parte do cancioneiro de todo cantor de bar de segunda categoria no hemisfério norte. O sistema de música ambiente daqui quebrou, então contrataram aquele branquelo ali para assobiar por aí. Ela riu e apertou o braço dele de leve. Caramba. O que estou fazendo? Sara olhou ao redor, quase como se buscasse alguma causa externa para seu comportamento. Movimentos lá atrás. A língua passou entre os lábios repentinamente secos. Virou o rosto para o lado, como se para admirar a ousadia da moda pendurada em manequins decapitados, prateados-e-pretos-e-verde-oliva, que posavam na vitrine da butique. — Alguém está nos seguindo. Não, não olhe! — Me dê algum crédito, Rosie. Sou jornalista, lembra? Não dormi no seu seminário. Ele olhou para o lado e para a frente. — É só um rapaz de jaqueta de couro. — Um franzir de cenho arruinou a perfeição suave de sua testa. — Parecia corcunda. Pobre-diabo. Sara olhou de novo para trás. — Pode parar, ou vai virar uma estátua de sal. Era você quem queria sutileza. — Não gosto do jeito que ele nos olha — comentou ela. — Ele parece meio deslocado. — São só os instintos de uma repórter ás experiente falando. Bem experiente.
— Isso é uma piada sobre minha idade? — Sobre todas as suas reportagens de sucesso. — Ricky deu mais tapinhas em sua mão. — Esse é o espírito da coisa. É como assobiar ao passar por um cemitério. Continue andando. Mantenha a cabeça erguida. Nunca deixe que vejam que você está com medo. Isso desencadeia todos aqueles instintos predatórios nórdicos. Sara conteve os músculos do pescoço que tentavam girar a cabeça na direção do garoto com a jaqueta de couro. — Acha que poderia ser um dos ajudantes menores de Barnett? — Depois de tudo que aconteceu durante esta convenção, Rosie, não seria uma ironia sermos atacados por suspeitarem que estamos torcendo por Hartmann? Dessa vez, ela não olhou para trás. O sujeito andava tranquilo, com as mãos nos bolsos, primeiro o sapato branco, em seguida o preto. Ele tinha razão: um ombro definitivamente era mais alto que o outro. Parecia um pouco exagerada a falta de atenção que o sujeito lhes dispensava. Pelo menos ele é pequeno. Por outro lado, Ricky não era exatamente o Arnold Schwarzenegger… Assim que viraram a esquina, Ricky segurou sua mão, e os dois saíram correndo, Sara cambaleando nos saltos altos, os sapatos Gucci de Ricky estalando no piso emborrachado. A passagem dava voltas e mais voltas. Sara não parava de olhar para trás, sem notar nenhum sinal de perseguição. Reduziram o passo, ela estava sem fôlego, Ricky era elegante demais para admitir que precisava de ar. — Mais uma esquina e chegamos ao Hyatt — comentou ele. — Outro confronto potencialmente feio evitado. É como nós, dos anos 1980, lidamos com as coisas. Os dois viraram a esquina, e lá estava ele. Recostado e com a bochecha apertada contra os azulejos frios, medindo-os. O sujeito começou a assobiar “Mack the Knife”. Sara agarrou o pulso de Ricky e saiu outra vez em disparada, até sumirem de vista. — Não sei se é uma boa ideia, Rosie — comentou ele. — Deveríamos simplesmente passar por ele. — Você não entende? — O terror a dominara. Reluzia em seus olhos como fios incandescentes. — Ele passou na nossa frente. — Deve ter pegado algum atalho. Estamos quase no hotel. Se ele causar problemas, podemos fazer barulho e alguém virá nos resgatar. Então o sujeito saiu da parede, partindo para cima deles, avançando como um tubarão. Tal qual um dançarino, Ricky puxou Sara para trás de si. — Que diabos você acha que está fazendo? — Festa, festa — disse o garoto, com um sotaque alemão, rindo, espalhando perdigotos dos lábios frouxos. — Hoje todo mundo vai cair na farra. Havia um zumbido no ar, opressor como a noite úmida fora do frio artificial do Peachtree Center. Com a mão posicionada como um golpe de cara-tê, o
garoto atacou a lateral do pescoço de Ricky. Não era à toa que Ricky era excelente no squash. Não havia nada de errado com seus reflexos, e ele bloqueou o golpe com o antebraço fino. A mão passou através de seu corpo. Houve um momento de berro descontrolado, como uma serra elétrica batendo num nó de madeira, e, em seguida, o antebraço de Ricky e a mão esticada tombaram no chão. Ele ficou olhando o jorro vermelho de sangue saltando do toco coberto pela manga do terno. Sara gritou. Ricky estendeu o braço, lançando o próprio sangue nos olhos do agressor. O garoto caiu para trás, cuspindo e limpando o rosto. Ricky se lançou para cima dele, debatendo os braços. — Rosie, corra! Suas pernas não se moviam. Ricky espancava o garoto com o toco e o punho inexperiente. Parecia uma versão ruim de bullying escolar: Rick era mais de um palmo mais alto, com uma boa vantagem de quinze centímetros… Aquele som de novo. Sabia que o ouviria sempre que fechasse os olhos, pelo resto da vida. Sentiu um cheiro parecido com cabelo queimado. O braço de Ricky despencou na altura do ombro. O sangue esguichava na parede, branca com um mosaico salpicado de azul, verde e amarelo. Ele virou o rosto de mártir para ela. — Rosie — pediu, e suas gengivas eram duas fontes de sangue. — Corra, por favor, pelo amor de Deus… A mão cruzou o ar, alegremente. A mandíbula foi serrada com o restante das palavras. A língua ficou pendurada, sacudindo-se, uma paródia apavorante de um gesto de luxúria. Sara se virou e fugiu, o som de um ossuário perseguindo-a. Quando virou a esquina, o salto do sapato esquerdo quebrou. Ela caiu de joelhos com um impacto de tiro e deslizou por seis metros, batendo numa parede. Tentou se levantar. A perna não aguentou seu peso, e ela desabou no chão. — Ai, Ricky — choramingou. — Sinto muito. Lamentava ter arruinado a fuga que ele pagara com a vida; lamentava a estranha onda de alívio e culpa por baixo do terror, pois não teria de encarar outra vez a pergunta que surgiria entre eles após mais uma noite no mesmo quarto. Começou a se levantar, joelhos para cima, arrastando-se de lado sobre os quadris. Ele virou a esquina. Parecia ter seis metros. O sangue espalhava-se sobre o couro da jaqueta e a pele, com um brilho fora do normal à luz fluorescente. Estava sorrindo, e os dentes pareciam uma cerca derrubada. — Der Mann manda lembranças. Decidida, Sara se arrastou. Não havia nada no mundo além de movimentos de uma corrida perdida. …E vozes, no fim do corredor, erguendo-se onde a passagem do Hyatt descia para a Center Avenue. Parte dos delegados com buttons de Jackson apareceu, negros, de meia-idade, bem-vestidos, conversando alegremente sobre um aumento significativo nos votos de seu candidato, no fim do dia. O matador em roupas de couro ergueu a cabeça. Uma mulher parecida com
um pombo, de vestido salmão e um laço embaixo dos seios amplos, viu-o coberto de sangue — a vítima estendida no corredor. Ela cerrou os punhos e gritou como se tivesse visto o diabo. Os olhos do garoto chamejaram sobre Sara. — Lembre-se de Jenny Towler — rosnou ele. E atravessou a parede.
23h00
Meu! O Titereiro sentiu a ameaça abrasadora e deturpada se aproximando. Gregg virou-se quando Mackie atravessou a parede do quarto, um sorriso deformado sobre ombros deformados. Havia uma mancha marrom na mão direita, que ia até o cotovelo — só podia ser uma coisa. Meu! — Todos os quartos desse hotel são iguais… — comentou Mackie. — Saia já daqui — ralhou Gregg. O sorriso de Mackie desapareceu do rosto esmurrado. — Eu queria contar — começou, o sotaque alemão mais forte que de costume. — Eu apaguei o preto, mas a mulher… Meu! Ele é meu! Gregg ficou surpreso por conseguir ouvir a voz de Mackie por cima da voz do Titereiro. O poder não cansava de atacar a contenção, várias e várias vezes. A insanidade pura e violenta de Mackie irradiava-se loucamente, vazando dos poros do garoto com um odor de carne em decomposição, espalhando-se diante do Titereiro como um banquete podre. Gregg precisava se livrar de Mackie depressa, ou perderia o pouco controle que mantinha sobre si mesmo. — Fora — repetiu, desesperado. — Ellen está aqui. A boca de Mackie se retorceu com desdém. Ele ficou agitado, trocando o peso de um pé para o outro. — É, eu sei. No outro quarto, assistindo àquela TV desgraçada. Estavam passando o funeral de Crisálida. Eu a vi, mas ela não me viu. Consegui enganá-la, fácil. — Ele lambeu os lábios. Seu olhar nervoso revoava sobre o corpo de Gregg como um chicote, enquanto o Titereiro esmurrava as barras de novo. — Não sei onde a Morgenstern está — disse, por fim. — Então vá encontrá-la. — Eu queria ver você — sussurrou Mackie, como um amante, uma voz de lixa aveludada. O desejo era um creme melífluo, dourado, forte e doce. O Titereiro berrou, ávido. As barras na mente de Gregg começaram a ruir. — Saia daqui — chiou, entre dentes. — Você não pegou Downs, e agora vem me dizer que não consegue encontrar Sara. De que adianta ter você? Você é um punk inútil, com ou sem o poder de ás. Sempre fora tranquilo com Mackie, acalmando o rapaz, alimentando seu ego. Mesmo com o Titereiro controlando as emoções do corcunda, tinha medo dele. Usá-lo era como fazer malabares com nitroglicerina: parecia fácil, mas sabia que só poderia errar uma vez. Gregg pensou que talvez tivesse errado, naquele momento. O rosto de Mackie ficou frio e sinistro. O desejo mudou depressa para algo mais simples e mais perigoso. A mão direita estava começando a vibrar inconscientemente quando um zumbido ameaçador fez o ar tremer. — Não — retrucou Mackie, balançando a cabeça. — Você não sabe. Você é
o Homem. Eu amo… Gregg o interrompeu. Se era para haver uma explosão, que fosse uma das grandes. — Eu disse para você matar duas pessoas que são uma ameaça para nós. As duas estão lá fora agora, enquanto você fica me dizendo o quanto é bom e o quanto eu significo para você. Mackie piscou, agitando-se. — Você não está ouvindo… — Não, não estou. E não vou ouvir até que a gente resolva todas as pontas soltas. Entende isso? Mackie deu um passo hesitante na direção de Gregg, a mão erguida. Os dedos eram um borrão perigoso. Gregg olhou-o de cima. Foi a coisa mais difícil que já fizera. O Titereiro era uma coisa enfurecida por trás de seus olhos, balbuciando e babando com a proximidade de Mackie e o refluxo emocional que se espalhava ao redor dele. Sabia que tinha poucos segundos antes de o Titereiro emergir por inteiro, antes de os laços mentais se reverterem e ele ficar por baixo. Por outro lado, enquanto continha o Titereiro, não havia controle sobre Mackie — nenhuma maneira de atenuar a loucura. Se o ás desse mais um passo, se passasse aquela mão em Gregg… Ele estremeceu com o esforço. — Venha me ver depois, Mackie — sussurrou. — Depois de tudo ter terminado, não antes. Mackie baixou a mão, os olhos. A violência rubra ao seu redor diminuiu um pouco. — Tudo bem — respondeu, a voz baixa. — Você é o Homem. É. — Ele estendeu a mão, sem zumbido e segura, e Gregg reteve o impulso de se afastar e correr. Concentrou-se em segurar o Titereiro apenas por mais um momento. As pontas secas dos dedos de Mackie passaram pelo rosto de Gregg com uma doçura estranha, raspando a barba rala. Ele fechou os olhos. Quando os abriu de novo, Mackie já tinha desaparecido. ♣ Passando os dedos pelas cordas, Tachyon tirou um suspiro de música do violino. O agente do Serviço Secreto virou a cabeça daquele jeito lento e pesado de um búfalo enfrentando uma irritação. Tach assentiu educadamente. O homem animou-se bastante, lançando um olhar furtivo para trás, e avançou depressa até onde o alienígena estava sentado de pernas cruzadas no chão, diante do quarto de Fleur. Os sons de farra cruzavam o corredor, vindo de uma festa num cômodo próximo. — Oi. — Olá. — Minha filha é louca pelo senhor e vai me matar se descobrir que eu o encontrei e não peguei seu autógrafo. O senhor se importa?
— Não, ficaria contente. — Tach puxou uma caderneta do bolso. — O nome dela? — Trina. Para Trina, com carinho. Assinou seu nome com um floreio. — Hã, desculpe, mas o que o senhor está fazendo aqui? — Vou tocar violino para a senhorita neste quarto. — Ah, um romancezinho, hein? — Espero que sim. Não causarei problemas. Posso ficar? O agente deu de ombros. — Sim, caramba. Mas se o pessoal reclamar… — Não se preocupe. Tach ergueu o arco, encaixando o violino sob o queixo. Alguns anos antes, fizera um arranjo para o Estudo de Chopin em lá bemol para solo de violino. As notas caíam das cordas como contas de cristal, como água tamborilando sobre pedras. Mas embaixo da alegria havia um traço de tristeza. O rosto das mulheres. Blythe, Angelical, Roleta, Fleur, Crisálida. Adeus, velha amiga. A porta do quarto se abriu com violência. Tach encarou os olhos castanhos fumegantes. Olá, meu amor? — O que está fazendo? Por que não me deixa em paz? Por favor, por favor, só me deixe em paz! — Os cabelos voavam ao redor do rosto. — Não consigo. A mulher ficou de joelhos diante dele, as mão segurando os ombros. — Por que não? — Não faz sentido para mim. Como posso explicar? — Você deturpou e corrompeu tudo que tocou. Agora está tentando fazer isso comigo. Ele não negou. Não podia negar. — Acho que poderíamos fazer bem um ao outro. Deixar a culpa para trás. — Só Deus tem esse poder. Hesitante, Tach tocou uma mecha do cabelo dela com a ponta dos dedos. — Seu rosto. Será que você não tem a alma dela? — Seu tolo, idiota! Você a transformou em algo que nunca existiu. Fleur afastou a cabeça. Os dedos dele roçaram o rosto da mulher, e Tach sentiu a umidade. A retirada violenta levou-a a poucos passos para a esquerda. Fleur recostou a testa contra a parede, cada linha de seu corpo talhada em agonia. Tach encostou o arco nas cortas. E tocou.
0h00
Com a máscara emborrachada de palhaço, Gregg era só mais um dos curingas tentando resistir à umidade grudenta de Atlanta. A temperatura mantinha-se em constantes 32 graus, e a brisa fazia parecer uma sauna móvel. A máscara estava um forno, mas ele não ousava tirá-la. Levou algum tempo para organizar a fuga do hotel. Ellen finalmente dormira, mas ele não tinha como dizer quando acordaria. Odiava se arriscar, mas precisava fazer algo a respeito do Titereiro. O poder ganhara a força do desespero. Gregg temia que seus embates internos tivessem ficado visíveis. Planadores de Ases Voadores descartados, transformados em Malditos Curingas Voadores, estalavam sob seus pés enquanto ele atravessava a sarjeta e entrava no Parque Piedmont. Formas moviam-se por entre a árvores e ao redor dos outeiros gramados. A polícia varria o perímetro com regularidade, tentando manter os curingas lá dentro, e o restante das pessoas, fora, mas foi relativamente fácil passar por eles na escuridão e chegar ao mundo surreal do parque. Uma vez lá dentro, a cidade às costas ficava esquecida. Um vilarejo de tendas fora erguido num dos lados da colina, espalhando risadas altas e luz. Uma fogueira crepitava nas proximidades. Ele ouvia cantorias. Os curingas que passavam na frente do fogo lançavam sombras longas e agitadas sobre a grama. Mais ao fundo do parque, atrás das tendas pontudas, Gregg notou um brilho errático e fosforescente — eram curingas cuja pele brilhava, piscava ou irradiava luz. Tornara-se um costume noturno para eles se reunir numa colina em plena escuridão, como vagalumes humanos: uma foto tirada por um fotógrafo da UPI tornou-se uma das imagens mais memoráveis da convenção-fora-daconvenção. Gregg perambulou pelo parque sob a orientação do Titereiro, seguindo o puxão dos cordões mentais das marionetes dentro da multidão. Havia muitas delas ali, a maioria antigos moradores do Bairro dos Curingas cujas neuroses e pontos fracos eram familiares — território muito viajado pelo Titereiro. Ele com frequência os ignorava devido ao estímulo vindo de alguma nova marionete que se dobrava à sua vontade, mas não naquela noite. Naquela noite, estava atrás de sustento e de alívio das necessidades do poder, e tomaria o caminho mais fácil e rápido. Um dos fios levava até Amendoim. Amendoim: marionete desde meados dos anos 1970, um dos que ele usara durante a tragédia da convenção de 1976. O curinga era um homem triste, ingênuo, cuja pele ficara frágil, endurecida e dolorida. Era comparsa de Gimli dentro da extinta CJS, e seu braço direito fora decepado por Mackie Messer um ano antes — Amendoim ficara entre Mackie e Kahina, a irmã de Nur al-Allah. Preso com outros da organização após a morte de Gimli, Amendoim logo foi
liberado após o gabinete de Gregg interceder a seu favor. Amendoim sempre ficara atormentado pelo ódio profundo que Gimli nutria por Gregg. Ele admirara o Hartmann que conhecia. Depois de sua liberação, chegou a trabalhar como voluntário para a equipe de campanha de Nova York , fazendo pesquisa de opinião no distrito do Bairro dos Curingas durante a primária. Amendoim era como um antigo amante. Gregg sabia exatamente como abordá-lo. Ninguém prestava muita atenção a ele. A maioria dos curingas estava sem máscara, exibindo sua curinguice, mas vários ainda as usavam, e Gregg não estava totalmente exposto. Manteve-se nas proximidades das tendas, às margens da multidão ao redor da fogueira. Sentou-se contra uma árvore com um pôster de “Libertem o Homeleca” castigado pelo vento. O suor escorria de seu rosto e cobria toda a camiseta do Cão Preto. Viu Amendoim de relance, à direita. Derrubou as barras em volta do Titereiro — a prisão desapareceu rápido demais, enfatizando como seu controle sobre o poder era pífio. O Titereiro lançou-se para cima de Amendoim, examinando as cores da mente turva do curinga e procurando algo… saboroso. Os tons da mente de Amendoim eram simples e comuns. Era fácil separar os filamentos e encontrar aqueles que o Titereiro poderia usar. Com Amendoim, como em muitos dos curingas que pegara, os filamentos estavam ligados ao sexo. O Titereiro sabia que, não importava o quanto negassem, a maioria dos curingas odiava a própria aparência. Odiavam aquilo que viam no espelho. Muitos achavam outros curingas simplesmente repulsivos. Fortunato fora um entre as dezenas que lucravam com essa verdade: havia um mercado vigoroso e próspero no Bairro dos Curingas para prostitutas limpas, dispostas a entreter clientes curingas. Amendoim sofreu tanto quanto qualquer um pelo estigma. Os tecidos de seu corpo eram rígidos e sulcados. O rosto parecia ter sido coberto de lama e deixado ao sol para secar. Nas juntas, a pele rachava e se partia com frequência, criando feridas e escaras que se enchiam de pus e demoravam a curar. Amendoim era feio, além de ser inteligente apenas o bastante para perceber o quanto seu raciocínio era lento. Para um limpo, era uma combinação infeliz. No Bairro dos Curingas, era muito, muito pior. Para Amendoim (Gregg sabia disso), sexo era uma mistura rara de dor e prazer. As ereções doíam, e a pele curtida do membro rachava e sangrava com a fricção do contato sexual. Sofria por dias depois do ato. Ainda assim, o carta selvagem não diminuía sua necessidade ou o impedia de ansiar pelo alívio que o ato trazia. Na verdade, sua pulsão era mais forte que o normal. Amendoim era um cliente contumaz das putas baratas do Bairro dos Curingas. Mesmo quando não conseguia pagar pelos serviços indiferentes, ele se masturbava em seu quartinho, uma ação rápida e cheia de culpa. O Titereiro sabia disso, sabia muito bem. Houve muitas vezes em que pensou que aquele carta selvagem fora feito estritamente para seu benefício. Acarinhando a mente de Amendoim, via o amarelo pulsante do desejo e sabia que o sujeito não transava havia dias. A necessidade já estava ali, latente. O Titereiro aproximou-se, dando cada vez mais brilho à cor e saturando-a até que
não houvesse espaço para mais nada. Gregg ficou observando e viu a careta de Amendoim. O curinga levantou-se e se afastou da fogueira. Gregg esperou, depois o seguiu. Havia matizes e sombras dentro do dourado principal: um laranja-claro de sadismo mudo, o desejo azul-celeste pelos limpos, a preferência verde--coral pelo estímulo oral. O Titereiro vira essas facetas em cada marionete. Desejo era sempre complicado e, às vezes, contraditório. Em geral, essas coisas permaneciam amortecidas ou até mesmo negadas — material de fantasias e visões masturbatórias, espirais menores no dilúvio. Mas o Titereiro conseguia fazer as tendências se avivarem, torná-las paixões dominantes. Conseguia forçar alguém a se tornar um estuprador violento ou um escravo humilhado, fazê-lo seduzir uma criança ou o cônjuge de um amigo. Era seu truque favorito. Faça o que quiser . Só seja rápido. Lembre-se de Gimli… O Titereiro rosnou com o lembrete. Cutucou a mente de Amendoim com brutalidade e esperou para ver o que aconteceria. O curinga perambulou pelos limites do acampamento, onde um bosque abrigava a escuridão. Parecia agitado, o corpo inteiro virando enquanto olhava de um lado para outro. Gregg observou, por trás de uma das tendas, quando Amendoim pareceu tomar a decisão de entrar no bosque. Gregg o seguiu. Quase atropelou o curinga. Amendoim parou poucos metros depois da entrada no bosque. Gregg conseguiu ouvir o que o fez parar: gemidos arfados só podiam significar uma coisa. Amendoim estava imóvel, observando o casal curinga transando escondido. As cores de sua mente eram confusas, incertas. Titereiro tocou-o de novo. Sente? Não pode ficar apenas aí parado, assistindo. Olhe para ela. Olhe para as pernas dela ao redor dele. Veja como ela move o traseiro embaixo dele, erguendo os quadris para que ele penetre mais fundo, mais ávido, quente e molhado. Poderia ser você. Você a quer . Quer sentir as pernas em volta de seus quadris, sentir seu pau dentro dela, quente, ouvi-la sussurrar no seu ouvido, pedindo para fodê-la, fodê-la fundo, com força, deliciosamente… até você jorrar dentro dela… Amendoim puxou a fivela do cinto com a única mão. As calças caíram ao redor dos tornozelos. Mas ela não quer você. Não, Amendoim. Você é nojento, feio, pontudo. Você é estúpido. Ela ficaria enojada, se sentiria suja e violentada… O Titereiro sentia o desejo e a raiva formando um concerto. Ele o orquestrou, adicionando pressão até sentir borbulhar. Você precisaria ser o mestre. É o que você quer , o que ela quer . Eu conheço você. Sei o que você pensa quando se acaricia… Foi a vez do Titereiro suspirar, pronto. Pronto para se alimentar, finalmente. Amendoim se agachou, caçando entre os arbustos. Quando se levantou, Gregg viu um galho grosso preso na mão. O curinga ergueu a arma. Vá em frente. Acerte o cara e pegue aquela vadia. Você quer . Você precisa… E Gregg ouviu a gargalhada profunda, zombeteira.
Gimli. Onde você está, maldito?, perguntou Gregg. Onde você está se escondendo? Ora, bem aqui, Greggie. Bem aqui. Gimli deu risada e, naquele momento, a muralha do anão ergueu-se como fizera todas as vezes nas últimas semanas. O Titereiro uivou de frustração quando as cordas de Amendoim foram cortadas repentina e violentamente. — Não! — O grito poderia ter sido de Gregg, poderia ter sido do Titereiro. O poder lançou-se contra a barreira mental, tentando rompê-la antes que fosse tarde demais. Amendoim, assustado, virou-se para ver a figura com a máscara de palhaço. O galho caiu de sua mão enquanto o casal no chão tentava se levantar. O que foi, Greggie? Não consegue controlar a porra do seu bichinho de estimação? Exausto e fraco, o Titereiro se encolheu. Gregg fugiu, com medo de ser visto. Nunca fora pego, sempre passara despercebido. Os galhos o chicoteavam durante a corrida às cegas. Alarmado, Amendoim gritou atrás dele. Mas não havia como fugir da voz de Gimli. Ele continuava lá — enquanto Gregg abria caminho através do acampamento, enquanto cambaleava do parque para as ruas e encontrava o caminho de volta ao Marriott. Quanto tempo mais consegue segurá-lo, Greggie?, provocou o anão. Um dia? Talvez dois? Aí esse desgraçado vai TE COMER VIVO. O Titereiro vai se libertar e vai te devorar inteiro. ♠ Spector não conseguia vê-los do outro lado do saguão, mas sabia que estavam lá. Uma embolação de gente, Hartmann e seu séquito, seguia na sua direção. Não havia muito barulho. Ele deu um passo adiante para encontrá-los. As pessoas olhavam na sua direção sem notá-lo. O pulso acelerou quando se aproximaram. Câmeras acionaram flashes ao redor de Hartmann, que estendeu a mão para Spector. Spector estendeu a mão e percebeu que usava luvas brancas e um collant preto. Todos começaram a rir e apontar. Spector cerrou os dentes e travou os olhos com o senador. Sentia o sangue de Hartmann fervendo com a dor, a respiração difícil, o coração martelando até o esquecimento. Um instante de satisfação, então estaria feito. Foi ao chão. Silêncio absoluto. Os flashes continuaram piscando ao redor deles. Spector o empurrou com o pé. Era Tony. Seu rosto estava distorcido, preso num último grito. Hartmann gargalhou, e ele ergueu os olhos. Estava cercado pelo Serviço Secreto. Puxaram as armas e apontaram-nas para Spector. Os canos eram incrivelmente grandes. Spector estava abrindo a boca para dizer alguma coisa quando o primeiro tiro atingiu sua mandíbula, arrancando-a. Tentou se afastar, mas outras balas o derrubaram. Partes dele sendo despedaçadas. Um dos olhos se apagou. Já tinha sido alvejado antes, mas nunca desse jeito. Conseguiu sentir a chuva de projéteis empurrando seu corpo para o chão. Vários dedos de uma das mãos tinham
desaparecido. Ergueu a outra diante do rosto. Ainda estava perfeitamente branca, sem nem uma gota de sangue. O outro olho escureceu. Gritou e rolou da cama, então rastejou para baixo do móvel. Não havia som de tiroteio. Mexeu a mandíbula e as mãos. Os olhos se ajustaram lentamente à escuridão. Deslizou de debaixo da cama e ligou a luminária do criado-mudo. Estava sozinho no quarto. O ar-condicionado estalou. Deu um pulo. — Pesadelo do caralho. — Balançou a cabeça e voltou para cama. — Jesus, que pesadelo do caralho. Tateou em busca do controle remoto e ligou a TV. Era outro filme velho. Reconheceu John Wayne. Por algum motivo, ver o Duque o acalmou. Estendeu a mão embaixo do criado-mudo e puxou a garrafa de uísque. Restava menos de meio gole. Pegou o telefone para pedir outra garrafa para o serviço de quarto. No dia seguinte, encontraria outro lugar para ficar. Logo alguém sentiria falta do verdadeiro Herbert Baird, e Spector não queria estar no quarto dele quando a polícia batesse à porta. Conseguiria ligar para o hotel de qualquer lugar para ver se Tony deixara alguma mensagem. Desejava muito estar de volta em Jersey, com tudo aquilo já terminado. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo IV
Quinta-feira, 21 de julho de 1988
1h00
— Desgraçado! O arco caiu das cordas num guincho dissonante. Hiram encarou Tachyon com ódio. Seus olhos, enterrados em bolotas pastosas de gordura, estavam injetados. — Hiram, está tarde. Todos estamos muito estressados. Então, vou ignorar o insulto. Worchester se esforçava visivelmente para manter o controle e, em seguida, disse: — Deixei 27 mensagens para você, desde terça-feira à noite. Tachyon deu um tapa na própria testa. — Ah, pelos Ancestrais, Hiram, me perdoe. Hoje… ontem — corrigiu, olhando para o relógio — eu fui para Nova York, para o funeral… — Você encontrou Jay? — perguntou Worchester. — Jay? — Ackroyd. A memória voltou: Jay Ackroyd, um detetive particular pouco importante, às vezes ás e sempre amigo de Worchester. Tinha uma espécie de teletransporte projecional que usara no Dia do Carta Selvagem de 1986 para resgatar Tachyon de uma situação delicada. — Ah, ele. Não. — Venha comigo. Temos um problema sério. Acho que só você pode resolver. Graças a Deus parece não ser tarde demais. Se fosse, você realmente teria motivo para se sentir culpado. Tachyon fechou o estojo do violino e seguiu Hiram. — Então, o que foi? Worchester manteve a voz baixa. — Crisálida contratou um assassino. — Quê? O homenzarrão estalou os dedos diante do rosto de Tachyon. — Acorde, Tachyon. — Pelo sangue e pela linhagem, não consigo acreditar. — Acredite. Jay raramente se engana. E, mesmo se ele estiver enganado, podemos mesmo nos dar ao luxo de arriscar? Chumbo frio parecia ter se acomodado no fundo do estômago de Tachyon. — Tem ideia do alvo? — Jay acha que é Barnett, mas, por garantia, acredito que não devemos
deixar ninguém de fora. A segurança deve ser reforçada para todos os candidatos. O problema é como alertar o Serviço Secreto sem revelar tudo que sabemos. Meu Deus, isso botaria tudo a perder. A voz de Hiram reduziu-se ao retumbar de um baixo. As palavras perderam o sentido, e Tach se viu num inferno particular, encarando os nós dos dedos da mão direita enquanto embranqueciam aos poucos. … ele matou Crisálida, e agora está vindo me matar . Você não quer acreditar . Me ajude. NÃO! — Meu Deus! Você não ouviu uma palavra do que eu disse! — O suor formara círculos escuros sob os braços do ás. — O que vamos fazer? — Vou dizer ao Serviço Secreto que estava examinando a multidão a esmo e rastreei os pensamentos superficiais do assassino. Entendi a intenção, mas não o alvo ou o método. — Sim, sim, isso é bom. — Uma nova preocupação surgiu. — Mas será que vão acreditar em você? — Vão, sim. Vocês, humanos, ficam impressionados com meus poderes mentais. — Ele deu um tapinha no braço de Worchester. — Não se preocupe, Hiram. Vamos impedi-lo. Era pura bravata. E Tach teve a sensação de que Hiram sabia.
5h00
— Tem certeza de que quer descer aqui, senhora? — perguntou o motorista uniformizado, estendendo o pescoço para espreitar pela janela o acampamento que brotara como cogumelos depois da chuva no Parque Piedmont. O dia estava começando de verdade, empalidecendo as chamas da fogueira ocasional na grama pisoteada. — Tenho — respondeu ela, saindo do carro. O ar já se adensava com um coloide de calor e umidade, as descargas de diesel e o cheiro de secreções, humanas ou não. Ela fechou a porta. A viatura se afastou. Resistiu à necessidade de mostrar o dedo do meio para o carro. Quando pediu proteção policial, eles simplesmente a encararam. Na esperança de conter a histeria e a especulação, a polícia de Atlanta estava escondendo o assassinato em Peachtree. Até o nome de Ricky fora mantido em segredo, pois ainda não haviam conseguido notificar sua mãe, na Filadélfia. O envolvimento de Sara também não fora mencionado — talvez em parte como um gesto de barganha, a porta-voz do Departamento de Polícia de Atlanta dissera à imprensa que a pessoa que acompanhava o homem assassinado estava sendo mantida sob custódia. Sara sabia muito bem que a polícia de Atlanta estava tentando conter a dinamite num pote de geleia — a explosão, se acontecesse, seria muito pior que essa tentativa. De qualquer forma, estava feliz com isso. Os colegas de Ricky saberiam de sua identidade mais cedo ou mais tarde e infeririam que ela era a mulher que estava com ele quando foi morto. Temia que isso acontecesse. Nem sequer teve a tentação de usar o interrogatório inevitável para expor Hartmann. Sabia como seria fútil: Tachyon fizera bem seu trabalho. Pondo o chapéu de aba larga, pendurou a alça da bolsa no ombro. A repórter intrépida — agora uma freelancer caminhando entre as aberrações da Terra, sem mencionar os horrendos — recolhia suas histórias de angústia e repressão: um ato que poderia durar algumas horas no meio de uma multidão. Tinha medo de ficar sozinha. Morria de medo. Mancando, começou a subir a colina.
9h00
Gregg não achava que dormira muito na noite anterior. A última votação só aconteceria de manhã, daí haveria uma pequena celebração da equipe no salão verde — ele rompera a barreira dos 1.800 votos. A esperança era de que o impulso o lançaria aos 2.081 e à nomeação durante a noite. — Trezentos votos. Fácil — comentara Devaughn. E Gregg não se importava. Não se importava. Diante da janela da suíte, olhava para as multidões que passavam lá embaixo sob o sol matutino — apoiadores de Hartmann, em sua maioria, considerando os chapéus. Esfregou os olhos e bebericou do café preto no copo de isopor. A bebida queimou no estômago, enquanto o Titereiro queimava na cabeça. — Porra, você precisa me alimentar — choramingou o Titereiro. Com sua voz veio a agonia, aquela lenta sensação desesperadora de fome. — Não posso. — Gregg sentia o vazio em seu estômago, uma ânsia constante. — Eu quero, mas não posso. Você sabe disso. — Você não tem escolha, porra, não mais. — O Titereiro o arranhou com as garras mentais. Os dedos de Gregg apertaram-se nas cortinas pesadas. A visão das pessoas caminhando à luz do sol era uma afronta à fome do Titereiro. Ele as queria. Queria saltar lá embaixo como uma pantera e destruí-los. Seus dedos ficaram brancos com a intensidade com que cerrava os punhos. — Quando voltarmos a Nova York — começou Gregg, mas o Titereiro o interrompeu. — Agora! Só vamos voltar a Nova York daqui uma semana. Não posso esperar tanto. Você não pode esperar tanto. — Que diabos você quer que eu faça? — enfureceu-se Gregg, desesperado. — Não sou eu, é o Gimli. Temos de fazer algo a respeito dele. Me dê mais um dia — implorou. — Agora! — Por favor… — Gregg estava quase soluçando. A cabeça latejava com a dor de segurar o Titereiro. Queria abrir o crânio e arrancar o poder exigente com as próprias mãos. — Então que seja LOGO, porra! Que seja logo, ou deixo você rastejando outra vez. Vou arrancar sua roupa e fazer você bater uma na frente da imprensa. Está me ouvindo? Vou engolir você se não puder comer outra pessoa. Gimli está certo. O Titereiro arranhou sua mente de novo, e Gregg arfou de dor. — Me deixe em paz! — gritou. Seus dedos fechados arrancaram a cortina da parede com fúria. O tecido foi ao chão num estrondo de ganchos e varas. Gregg lançou o café longe, molhando a mobília de veludo e queimando a mão. — Só me deixe em paz! — berrou, arrastando os dedos sobre o rosto. — Gregg! — Senador!
Ellen veio do quarto. Ao mesmo tempo, Billy Ray veio do corredor. Os dois encararam Gregg e a sala bagunçada. Com o horror estampado no rosto, Ellen cobria a barriga com as mãos de forma protetora. — Meu Deus, Gregg — murmurou ela. — Eu ouvi você discutindo… achei que tivesse mais alguém aqui… — A voz foi sumindo. Gregg piscou, chocado. Pela primeira vez, percebeu que o Titereiro falara em voz alta. Tivera uma droga de uma conversa com o Titereiro em voz alta e não tinha percebido. O horror o fez gemer. Ellen se virou para Ray. Billy olhou de Ellen para Gregg, encarando-os por longos segundos. Em seguida, saiu da suíte e fechou a porta. Gregg estava arfando no meio do quarto. Esforçou-se para respirar mais devagar. Tentou dar de ombros, fingir que não tinha acontecido nada. — Ellen… — começou, mas não conseguiu dizer mais nenhuma palavra. De repente, irrompeu num choro, como uma criança com medo do escuro. Ellen foi até ele com um sorriso encorajador, aninhando a cabeça do marido no ombro e acariciando os cabelos. — Tudo bem, Gregg — murmurou, mas ele identificou o terror na voz da esposa. — Está tudo bem. Tudo vai ficar bem. Eu te amo, querido. Você só precisa descansar. Palavras. Só palavras. Gregg ouviu a risada de Gimli e — apenas por um momento — perguntou-se por que Ellen parecia ignorá-la. ♦ — O grande estado de Iowa! Terra de Deus! Terra do milho! (Tachyon se perguntou como o homem conseguia manter tamanho entusiasmo depois de tantas votações.) Dá quatro votos para o Senador Al Gore! O Omni lembrava um funil gigantesco. Pessoas eram grãos ínfimos de especiarias, todos grudando-se nas laterais inclinadas enquanto a gravidade tentava tombá-los, por bem ou por mal, para a área plana da quadra de basquete. Era um exagero, claro, mas o lugar lhe causava vertigens. Limpando o açúcar de confeiteiro do casaco, Tachyon equilibrou a rosquinha sobre a xícara de café, pegou a caneta-tinteiro e anotou o número. Em seguida, olhou para a contagem total do momento nas cinco colunas, cada qual encabeçada por uma inicial. Gore estava mesmo na lanterna. Era só questão de tempo. Hartmann arrastava-se dolorosamente para os 1.900. Com as costas da mão, Tach esfregou os olhos doloridos, parecendo cheios de areia. A reunião com o Serviço Secreto durara até as cinco da manhã. Àquela hora, pareceu inútil ir para cama. — Seu garoto está com problemas — comentou Connie Chung, ocupando uma cadeira dobrável ao seu lado. O fone de ouvido com antena fazia a mulher parecer um inseto retorcido. — Meu garoto, como você diz, está indo muito bem. Assim que Gore cair… — Você vai ter uma baita surpresa.
— Como assim? — perguntou Tach, alarmado. — Ele vai ter que escolher entre três liberais do Norte e um conservador do Sul. O que acha… — Não — respondeu Tach, irritado. A mulher espanou o açúcar do queixo do alienígena. — Você é mesmo um menino nessa área, doutor. Veja e aprenda. — Ela começou a se afastar, olhou para trás e acrescentou: — Ah, aliás, Gore convocou uma coletiva para as dez. ♥ O telefone tocou durante o primeiro Camel do dia. Jack demorou um pouco para encontrar a pasta, depois descobriu que estava embaixo da mesa de centro. Pegou o aparelho e despencou no sofá. Era Amy Sorenson. — Estamos encrencados. Gregg quer você aqui agora. Jack encarou o teto com os olhos inchados. — Qual é o problema? — Gore convocou uma coletiva para hoje de manhã. Ele vai renunciar e dizer a todos para apoiarem Barnett. — Que filho da puta! Esse yuppie filho da puta! — Para variar, Jack não ficou envergonhado por usar palavrões na frente de uma mulher. Saltou do sofá, jogando a mesa de centro longe. — Ele vai ser vice do Barnett, não é? — É o que parece. — Só pode ser piada. — E algum carta selvagem talentoso estraçalhou um membro do Quarto Poder no Peachtree Mall, ontem à noite, então você pode imaginar quem vai tirar proveito da situação. Venha logo. A reunião de campanha não resolveria nada, só os faria aguentar firme e esperar as deserções. O apoio de Gore não seria mais do que uma grande negociata, e talvez ofendesse alguns de seus apoiadores que não conseguiam suportar Barnett. Hartmann ganhou mais 104 delegados no quarto escrutínio, então os piores medos de Jack não se concretizaram. Mas Barnett conseguiu quase trezentos, e a vantagem definitivamente tinha sido dele. Em seu pequeno rádio Sony, Jack ouviu Dan Rather relatar histórias de poderosos articuladores do partido que estavam tentando formar um movimento “Qualquer um, menos Hartmann”. Especulações sobre a chapa dos sonhos Dukakis/Jackson eram apimentadas com a lembrança enfática de que Jackson tinha mais delegados, e talvez na verdade fosse Jackson/ Dukakis. Analistas consideravam se Jackson estaria disposto a aceitar a derrota para ser vice-presidente. Ao que parecia, não estava. O movimento Q1MH, como Rather começou a chamá-lo, parecia permanecer na fantasia de alguns mercenários do partido e da equipe de campanha de Barnett, que considerava “Qualquer um, menos Hartmann” o equivalente a “Por que não o Rei da Bravata?” Qualquer um, menos Hartmann. Jack não conseguia acreditar que estava ouvindo aquilo. Por que diabos não era "Qualquer um, menos Barnett?".
Um ás secreto, pensou. Talvez haja um ás secreto. A hipótese dos Gremlins do Kremlin estava perdendo terreno. ♣ No início, tudo correu bem. Sara podia fazer aquilo dormindo, as entrevistas mecânicas, artigos para o suplemento dominical a cada três semanas e matéria de interesse humano no noticiário de cidade pequena às dez da noite: Como é ser um curinga nos Estados Unidos? Não era bom jornalismo. Era algo que ela detestava: reportagens de famílias de astronautas mortos no espaço ou que perguntam como é ser estuprada. Mas claro que aquilo não era jornalismo, era sobrevivência. Tudo ia bem até ela ser reconhecida. Os curingas acampados no parque vinham de todos os lugares: Califórnia, Idaho, Vermont, até do Alasca e do Havaí. Enquanto os mais bem informados reconhecessem seu nome por ser uma das principais jornalistas de questões dos cartas selvagens no mundo, no fim das contas não era repórter televisiva. Todos conheciam o rosto de Connie Chung, mas ninguém conhecia o dela. Aquilo sempre a deixara bem. Mas também havia muitos de seus antigos companheiros do Bairro dos Curingas por ali. Não pensara em qual seria a reação deles até a mão peluda e com garras pegá-la pelo ombro e virá-la, arrastando-a para longe da mãe curinga e dos dois filhos desesperadamente diferentes, de quem ela desfiava uma meada de banalidades. Foi obrigada a enfrentar a explosão do hálito quente e fedorento de predador. — O que você pensa que está fazendo? — perguntou uma voz. A primeira reação de pânico ainda ecoava nos corredores do cérebro de Sara, é ele eu queria ter uma arma meu Deus Ricky, até ela reconhecer a pessoa que a abordou. Era difícil se confundir: tinha um metro e oitenta da ponta do nariz preto e úmido na frente da cabeça em formato de cunha até a ponta da cauda; orelhas arredondadas; máscara de bandido; pelos pretos nas costas por cima da pele de couro, e a pelugem ia ficando prateado na direção da barriga, como um furão antropomórfico dos desenhos da Disney. A única coisa que usava era um colete verde cheio de buttons de Hartmann e slogans curingas amargos: POR QUE SER NORMAL?; CJS!; LEVE UM LIMPO PARA ALMOÇAR. Sara a conhecia muito bem: devia ter sido outra adolescente italiana usando uma saia xadrez azul desleixada para ir ao Colégio St. Mary. Prenderam-na pela primeira vez aos catorze anos, durante uma manifestação para libertar Doughboy. — Mustelina — cumprimentou. — Oi. Como você está? — O que você pensa que está fazendo aqui, sua vaca? Sara encolheu-se com a veemência daquelas palavras. Era incrível como esse pessoal da Disney sempre esquecia os detalhes, como as presas de seis centímetros que brotavam da arcada superior. — Como assim? — O tempo que passara entre os curingas a preparara para aquilo, de forma que não se afastou um milímetro da respiração da garota. O curinga de Mustelina incluía um desejo compulsivo por carne viva. Por sorte,
havia muitos ratos no Bairro dos Curingas. Uma multidão estava se formando. Muitos dos curingas de cidade pequena pareciam anônimos por trás das máscaras, mas o contingente do Bairro dos Curingas costumava ostentar sua condição, usando as deformidades como um estigma orgulhoso. Reconheceu Vaga-lume, o Sr. Queijo e Amendoim, com o toco de braço de pele rígida e um olhar estranho no rosto. Eram seus amigos. Mas, naquele momento, havia pouca amizade em seus rostos. — Você sabe muito bem sobre o que estou falando. Você nos vendeu para o Barnett. Ela piscou, lágrimas quentes brotando. — Não entendo… — Você tentou sujar a imagem do Senador Gregg — respondeu uma voz sulista atrás de uma máscara de kabuki, com sobrancelhas arqueadas e uma testa branca como uma cúpula. — Você traiu Hartmann — acusou Mustelina. — Traiu a todos nós. Você tem mesmo muito sangue-frio para vir até aqui. — É, traidora! — gritou mais alguém. — Limpa! — Maldita, puta judia! Sara tentou se afastar. Eles a cercaram de todos os lados, os rostos grotescos de Goya, Hokusai e Bosch, máscaras hostis com penas e plástico liso como osso. Por que você veio até aqui? Esse é o povo de Hartmann. De repente, Mustelina tomou um golpe no rosto e voou uns quatro metros. Curvou-se como uma bola, rolou, ergueu-se e estalou como uma fileira de bombinhas. Uma figura branca e imensa agigantou-se sobre a multidão incipiente. Ergueu a mão gorducha, pálida e brilhante como massa crua. — Venha, Sara — sibilou, com voz de criança negra. — Vou levar você para um lugar seguro. Ela segurou a mão. Doughboy começou a avançar em seu passo ondulante, com Sara ao lado. A multidão recuou. Ele não era violento. Mas pesava mais de 250 quilos e tinha a força de três ou quatro limpos. A seu modo, era bem irresistível. — Eu te vi na televisão do Mecano — comentou. — Tava falando umas coisas horríveis do senador. Tudo mundo te acha uma traidora. Sara o encarou. Seu rosto era uma lua sem manchas. Ele deu um sorriso sem lábios nem dentes. — Você é minha amiga, Sara. Sei que nunca faria nada de errado. Ela o abraçou. E seguiu seu caminho. Aquele era o lugar ideal para a marionete assassina de Hartmann atingi-la, o que lhe ocorreu um pouco tarde demais. Não fosse a chegada de Doughboy, o trabalho teria sido feito. Algumas pessoas da multidão os seguiam. — Pode me comprar uns doces, Srta. Sara? — pediu Doughboy. — Ninguém me compra doces desde que o Sr. Engraxado foi embora. — Ele parou na rua e a encarou. — Quando o Sr. Engraxado vai voltar? Acha que demora? — Ele não vai voltar, querido — respondeu ela, gentil. — Você sabe disso.
Engraxado tivera um derrame em janeiro. Doughboy o encontrou paralisado no colchão no pequeno apartamento na Eldridge Street, carregou-o pelas ruas chorando e implorando para que alguém o consertasse. Chegou à Clínica do Bairro dos Curingas antes que uma ambulância com suspensão pesada o bastante para carregá-lo pudesse ser encontrada — ninguém tentaria separá-lo de seu amigo e tutor. Quando chegaram, não havia nada que o Dr. Tachyon pudesse fazer. As lágrimas rolaram dos olhos apertados de Doughboy. — Eu sinto falta dele. Sinto muita falta. Sara estendeu a mão. Não era tão alta. O curinga se curvou até ela conseguir passar os braços ao redor de seu pescoço. — Eu sei que sente, querido — respondeu, também entre lágrimas. — Obrigada pela ajuda. Já vou trazer seus doces. Eu te amo, viu? Ela deu um beijo no rosto do curinga e saiu às pressas, sem olhar para trás.
11h00
— Doutor! Ele examinou o rosto belo e moreno, os olhos intensos analisando o saguão do Marriott. Sem perder nada. Tach curvou-se de leve. — Reverendo. — Abandonando a convenção? — Caótica demais. — E decepcionante? — sugeriu Jesse Jackson, baixinho. — Tudo vai ficar bem. — Tach inclinou a cabeça, especulando. — E o senhor, entrando na fortaleza do inimigo? — Gregg Hartmann não é meu inimigo. — Ah, então o senhor não teria objeção em renunciar e entregar seus delegados ao senador? Jackson soltou uma gargalhada. — Doutor, o senhor está apressando as coisas. Podemos conversar? Ele apontou para um sofá próximo à parede do saguão superior. AP, Time, Sun Times e o Post começaram a circular ao redor deles como barracudas. Flecha Aprumada, um ás mórmon de Utah e guarda-costas de Jackson, encarava-os sem nem piscar. As notícias da bomba de Tachyon tinham se espalhado depressa pelas forças de segurança. Para o olho experiente do alienígena, o saguão parecia cheio de homens discretamente armados. — Não teríamos mais privacidade em sua suíte? — perguntou o takisiano, num tom seco. A luz dos dentes brancos refletiu por trás do bigode. — Não quero privacidade. Deixe que especulem. Tachyon refletiu. Decidiu que talvez ele e o Reverendo Jackson pudessem ser úteis um ao outro. Alguns talvez especulassem que o apoio de Tachyon a Hartmann estava estremecido. Outros poderiam concluir que Jackson estava pensando em apoiar Hartmann. Acomodaram-se no sofá. O negro alto e o alienígena diminuto com uma perna dobrada embaixo do corpo. — Quero que o senhor transfira seu apoio para mim — declarou Jackson, sem rodeios. — Simples assim? — Simples assim. Sou o candidato mais óbvio para representar curingas e ases. Juntos, podemos construir um mundo novo. — Estou aqui há 42 anos, reverendo, e ainda espero esse mundo novo. — Você não pode se render ao ceticismo, ao pessimismo e ao desespero, doutor. Não esperava isso do senhor. O senhor é um lutador… assim como eu. — Tachyon não respondeu, e Jackson continuou: — Temos os mesmos interesses. — Temos? Quero ver meu povo protegido. O senhor quer ser presidente. — Me ajude a virar presidente, e posso proteger seu povo… qualquer povo.
— Ele franziu a testa na direção da parede ao fundo. — Doutor, meus antepassados vieram para os Estados Unidos em navios negreiros. O senhor chegou aqui numa espaçonave, mas agora estamos no mesmo barco. Se Barnett se tornar presidente, todos vamos sofrer. Tachyon fez que não com a cabeça, mais em confusão que em negação. — Não sei. Gregg Hartmann é nosso amigo há vinte anos. Por que eu o abandonaria agora? Me ajude. Vai me matar . Acredite em mim. Tach silenciou as vozes brutalmente. — Porque ele não pode vencer. O senador está estagnado. Meu pessoal descobriu que as coalizões “Qualquer um, menos Hartmann” estão para todos os lados da convenção. Se Gregg Hartmann não conseguir impedir Leo Barnett, Michael Dukakis certamente não conseguirá. — E o senhor? Aquele sorriso autoconfiante que cativara um país. Como um arco de luz intensa. — Sim, posso. — O sorriso esvaneceu, e ele encarou Tachyon com atenção. — Eu entendo. Conheço o abandono e os maus-tratos das pessoas que dizem que a gente não é nada e ninguém e nunca poderá ser nada. Eu entendo. — Ele pousou a mão no ombro do takisiano. Tachyon pôs a mão sobre a de Jackson. As mesmas unhas manicuradas à perfeição, os mesmos dedos longos e finos, mas branco sobre negro. — Por que o senhor e Barnett servem o mesmo deus, se seus deuses parecem tão diferentes? — Uma boa pergunta, doutor. Uma excelente pergunta. Um Ás Voador raspou de leve as lajotas aos pés de Tachyon. Ele o tomou, acariciou o cachecol moldado com o indicador. Jackson encarou o rosto negro pintado. A mão se ergueu por reflexo, e ele passou os dedos na bochecha. — Sua relutância deve-se inteiramente à sua lealdade ou é porque sou negro? A cabeça de Tachyon ergueu-se de uma vez. — Pelos céus em chamas, não. — Ele se levantou. — Acredite, reverendo, se eu tivesse que transferir meu apoio, o senhor seria minha primeira escolha. O senhor tem um carisma quase takisiano, tamanha a magnitude. Jackson sorriu. — Posso tomar isso como um elogio? — Dos mais altos, reverendo, dos mais altos.
12h00
O almoço servido no quarto de Gregg estava intocado e frio na mesa de centro da suíte. A televisão Sony berrava sem ninguém para assisti-la, e Tachyon estava sentado no sofá como uma porra de um deus de madeira. Gregg ouvia a voz do Titereiro mesclada à gargalhada zombeteira de Gimli, ambas perigosamente próximas da superfície. Precisava de toda a sua concentração para não se perder na tagarelice subliminar e dizer algo que revelaria seu conflito interior. E o pior de tudo: Gregg tinha medo de que o Titereiro voltasse a falar em voz alta. Andava de um lado para outro diante das janelas. Sentia o tempo inteiro os olhos violeta de Tachyon sobre ele: julgadores, avaliadores, frios. Gregg sabia que estava falando demais, mas o movimento e o monólogo pareciam ajudar a manter o Titereiro sob controle. — Barnett teve mais cem votos na última votação. Cem votos! Nós ganhamos o quê… uns vinte e poucos? Alguém precisa tapar os buracos, doutor. Caramba, Charles disse que conversou com a equipe de Gore e soube que ele estava planejando continuar. Foi ontem à noite, pelo amor de Deus. Barnett deve ter prometido a vice-presidência em troca de delegados. Metade da imprensa não para de falar sobre o movimento “Qualquer um, menos Hartmann”, o que significa que alguns dos delegados indecisos vão começar a acreditar nisso. Barnett já se beneficiou desse lixo, e Dukakis está lá atrás, sorrindo e balançando as mãos, esperando um impasse ou um acordo. — Sei de tudo isso, senador — respondeu Tachyon. Havia um traço de impaciência em sua voz, quando cruzou as mãos delicadas sobre o colo. — Então comece a fazer alguma coisa a respeito, caramba. A arrogância do alienígena fez o humor de Gregg piorar, e o Titereiro ergueu-se com a irritação. Não, idiota, disse ao poder. Com ele não, de jeito nenhum. Por favor . — Estou fazendo o que posso — retrucou Tachyon com palavras precisas, enxutas. — Amedrontar aqueles que o apoiam provavelmente não levará o senhor a lugar nenhum, senador. Ainda mais entre seus amigos. Gregg não tinha amigos, nenhum confidente — a menos que contasse com o Titereiro. Suspeitava que Tachyon fosse igual. Eles se chamavam de “amigos”, mas era mais o resquício de um relacionamento político-social que remontava a meados dos anos 1960, quando Gregg foi conselheiro e, mais tarde, prefeito de Nova York. Gregg fizera favores a Tachyon, que fizera o mesmo por ele. Os dois afetaram a política dos liberais da esquerda. Até aí, eram amigos. Tachyon era um ás. Gregg tinha medo de ases, sobretudo dos que conseguiam ler mentes. Sabia que se Tachyon suspeitasse da verdade, o alienígena não hesitaria em expor Gregg ao público. A amizade não resistiria. Esse pensamento deixou Gregg ainda mais furioso. — Então, vamos falar com franqueza. Como amigos — retrucou. — O boato está circulando pela convenção. Você está perseguindo Fleur van Renssaeler
como um adolescente tarado. Existem coisas mais importantes que suas gônadas, doutor. Gregg nunca ousara falar com Tachyon dessa maneira, não com uma pessoa com poder mental tão formidável, não com o Titereiro espreitando em sua mente. Tachyon enrubesceu intensamente. Levantou-se depressa, a dignidade ofendida. — Senador… — começou, mas Gregg o interrompeu, cortando o ar com a mão. — Não, doutor. Não. Sua raiva era um carvão incandescente no peito. Queria usar os punhos naquele homem vestido de forma exagerada e ver aquele nariz fino, aristocrático, esmagado e jorrando sangue sobre a camisa de cetim cheia de franjas. Gregg cerrou os dentes para não berrar de fúria, não estapear o rosto arrogante de Tachyon. Ansiava por dar um chute no maldito saco do alienígena. Não era só Tachyon. Era todo aquele dia desgraçado — a maneira como seu impulso começara a ser refreado na convenção, o rosnar eterno do Titereiro, as gargalhadas de Gimli, Ellen, os erros de Mackie em Nova York e ali, em Atlanta, desde a morte de Crisálida: tudo. Por apenas um momento, ele se perguntou se o Titereiro não atiçara as braças. O pensamento o tranquilizou. Fez uma careta. — Preciso de você. Pode fingir ser apenas um correspondente, mas todo mundo sabe. Você é um apoiador muito, muito visível — disse a Tachyon. — Todo mundo está ciente da sua ajuda na minha campanha e da nossa posição nas questões do carta selvagem. Que imagem será passada para o restante da convenção se o bom doutor estiver mais preocupado em arrumar uma transa do que em garantir que seu candidato seja nomeado? Prioridades, doutor. Prioridades. Tachyon respirou fundo pelo nariz, erguendo o queixo. — Não preciso de reprimendas, como uma criança malcriada. Não de você, senador, e especialmente não depois de ter passado a manhã inteira trabalhando para você. Acho suas acusações de extremo mau gosto. — O quanto será de mau gosto se Barnett for o próximo presidente, doutor? Ele pode fingir ser compassivo, mas todos sabemos o que vai acontecer. Acha que ainda terá recursos para sua clínica? O que vai acontecer com os curingas vale alguns minutos de paixão ofegante entre as pernas de uma mulher? — Senador! — exclamou Tachyon, indignado. Gregg gargalhou. O som era maníaco, cortante. Estava suando, a camisa da Brooks Brothers já tinha círculos embaixo dos braços. — Doutor, sinto muito. Peço desculpas se o ofendi. Estou sendo direto porque estou preocupado. Comigo, sim, mas também com os curingas. Se perdermos aqui, todo mundo afetado pelo carta selvagem também perde. Sei que você entende isso. Os lábios de Tachyon eram linhas finas, pálidas. O rubor de raiva cobria as maçãs do rosto. — Entendo melhor do que ninguém, senador. Seria muito bom se você se lembrasse disso.
O alienígena deu meia-volta num giro gracioso de balé e caminhou a passos largos até a porta. Gregg achou que ele iria parar para dizer mais alguma coisa, mas Tachyon simplesmente saiu, assentindo para Billy Ray, parado do lado de fora. — Nem uma maldita palavra de despedida — comentou alguém, na voz de Gregg. Ele não sabia quem tinha falado.
13h00
Uma briga foi deflagrada entre uma mulher membro da delegação de Nova York e uma senhora da Flórida. As duas haviam passado dos empurrões para os dentes esgarçados e unhadas. Com sangue subindo pelo rosto e os olhos quase saindo das órbitas de fúria, Hiram afastou as cadeiras do caminho e avançou sobre as duas. No palco que lembrava um bolo de casamento, Jim Wright, desesperado, batia o martelo inutilmente. Ficou boquiaberto quando a cabeça do martelo se soltou e aterrissou entre as pessoas à frente. Correndo através da multidão que se debatia, Tachyon viu Hiram fechando o punho, em seguida uma expressão indescritível tomou o rosto do ás, deixando as feições brancas como areia da praia depois do recuo de uma onda. A mão gorducha e manicurada caiu aberta ao lado do corpo. A velha usava um button de Barnett e uma grande cruz de madeira. Por um instante, o takisiano hesitou, em seguida, vendo o bico afiado do sapato da delgada da Flórida erguendo-se num chute, lançou a cautela às favas e controlou a mente das duas. A imprensa chegou. A segurança chegou. Fleur chegou. — Como ousa? Solte-a! — Fleur abraçou a delegada de Barnett de forma protetora. Tach percebeu que Hiram segurava a nova-iorquina. Então fez uma reverência irritada. — Com prazer, contanto que ela não me acerte. — AI, MEU DEUS! ELE INVADIU MINHA MENTE! ELE ME CORROMPEU! SEU ALIENÍGENA DE… — Senhora, devo dizer que nunca corrompo mulheres na sua idade e situação com meus fluidos alienígenas preciosos. Ou meu tempo alienígena precioso. — Desgraçado! — exclamou Fleur, arrastando a mulher soluçante para longe. Hiram esfregou a testa com as costas da mão. — Quanto tato, Tachy. — Ultimamente ando sem tato. Isso é um desastre. — As brigas são inevitáveis num lugar com tanta gente — comentou Hiram. Eles se sentaram nas cadeiras vazias. Os joelhos de Tach quase chegavam ao queixo, de tão apertadas que estavam as cadeiras. Com um olhar furtivo para a segurança ou as câmeras, o takisiano pegou a garrafinha. Hiram tomou um grande gole do conhaque e engasgou. Tach se viu tremendo de angústia quando as lágrimas começaram a rolar sobre as bochechas gordas de Worchester, encharcando a barba preta e espessa. Soluços faziam o corpanzil tremer. Tachyon abraçou Hiram, dando tapinhas nas costas, balançando, acalmando. Um monte de palavras sem sentido, carinhosas e tranquilizadoras, saíram de seus
lábios. Sua voz parecia sobressaltada. A tempestade emocional passou, e Tach ofereceu seu lenço. Hiram tocou a testa e os lábios com dedos hesitantes. — Desculpe. Desculpe. — Não tem problema. Estamos todos sob uma pressão imensa. — Tachyon, ele precisa vencer! O alienígena fitou os olhos intensos e concentrados de Hiram, as mãos fechadas como pinças ao redor de seus braços. Os nós dos dedos daquele humano estavam embranquecendo com a força. Tachyon tocou uma das mãos com delicadeza e pediu, com muita suavidade e gentileza: — Hiram, por favor, você está me machucando. Worchester soltou-o, sobressaltado. — Desculpe, desculpe. Tachyon, temos de fazer o que for preciso, não é? É importante demais para deixar à mercê do acaso… da boa vontade dos outros. Este é o momento em que os fins podem justificar quaisquer meios. Não é? Com olhos cerrados, Tachyon lembrou-se da Síria. Curingas sendo apedrejados até a morte nas ruas, diante de olhos entediados ou ávidos dos transeuntes limpos. África do Sul. Num tempo não muito distante, quando não era considerado crime estuprar uma mulher curinga — apenas um lapso de mau gosto. — Sim, Hiram. Talvez você tenha razão. Dando tapinhas distraídos no ombro do homem, Tach saiu em busca de Charles Devaughn. O que estava considerado… não, tinha se comprometido… era insano. Era com certeza injusto. Mas desde quando o takisiano se importara com fair play? Não fazia sentido aproximar-se de delgados comprometidos com Barnett. Só levantaria suspeitas, e os efeitos talvez não durassem. Mas os não comprometidos… se eles mudassem de opinião depois de um pouco de politicagem fervorosa de Devaughn e do Dr. Tachyon, tão persuasivo, tão carismático… e Michael Dukakis? Podia se dar ao luxo de perder um pouco. Sua única esperança era ser escolhido como candidato à vice-presidência… ♠ Pareceu voar do nada e parar em suas mãos. Mal precisou se mover ou desejar, e estava segurando o objeto. Caminhou até Harris, examinando-o: um Ás Voador com a imagem de J.J. Flash, com furos cuidadosamente queimados em seu corpo e suas asas, feitos com um fio ou uma vareta quente. O rosto fora riscado com caneta preta até desaparecer, tudo com uma maldade cuidadosa. Um casal de pequenas crianças negras passeava na outra direção, encarando todas aquelas pessoas estranhas. — O que tem aí, moça? — perguntou o de camiseta do Run DMC. Ela olhou a coisa na própria mão, sem compreender direito. — Um Maldito Curinga Voador — respondeu ela. ♦
O quarto não era tão bom quanto o do Marriott. Havia persianas de madeira velha no lugar de cortinas; as molas da cama rangiam; e a pintura pastel estava descascando ao redor dos rodapés. O hotel ficava a 45 minutos do centro da cidade, e ele precisou dar uma nota de cinquenta ao recepcionista para conseguir o quarto. Ainda assim, Spector sentia-se muito mais confortável ali. Havia uma loja de bebidas 24 horas no fim do quarteirão e uma hamburgueria do outro lado da rua. Estava terminando um sanduíche engordurado com duas carnes e queijo duplo e tentando inventar algumas mentiras críveis para contar a Tony. Ainda tinha a chave do quarto do Marriott, então entrar no hotel não seria problema. Passariam a maior parte do jantar conversando sobre os velhos tempos. Pelo menos, era o que ele esperava. Sua vida antes de tirar a rainha negra era um borrão desesperançado. Não pensava muito sobre o passado e considerava o futuro apenas um pouco melhor. Em geral, pensava na morte. Não que gostasse dela, e sim porque era difícil não pensar. A morte punha tudo numa perspectiva insignificante. Se todos os políticos, advogados e figurões corporativos entendessem a maldita do mesmo jeito que ele, nem se importariam em sair da cama pela manhã. Spector pegou o telefone — um modelo antigo de disco, todo bege — e ligou para o Marriott. Depois de vinte toques, atenderam. — Marriott Marquis. — A voz era seca e aguda. Devia ser o idiotinha que estava na recepção quando ele entrou. — Alô. Tem alguma mensagem para o 1031? Foi jogado na musiquinha de espera sem nem mesmo um “aguarde, por favor” ou “um momento, vou verificar”. Spector tamborilou os dedos na coxa. Devia ter sido deixado esperando de propósito. Pior, talvez tivessem descoberto o que aconteceu com Baird e estavam rastreando a chamada. Levaria no mínimo um minuto ou dois. Esperaria mais alguns segundos. — Sim. O Sr. Calderone pede para encontrá-lo no saguão às seis horas. — Clique. — Foda-se você também — retrucou Spector, batendo o fone na quina do criado-mudo. Colocou o fone no gancho e seguiu para o banheiro. Por que hotéis bacanas só contratavam idiotas? O recepcionistazinho estava subindo na sua lista. Suas chances de sobreviver à semana eram ainda menores que as de Hartmann.
15h00
A cabine de imprensa de vidro da CNN pendia como uma visão dos céus no alto da central. Tachyon subiu os degraus, cansado. Preparando-se mentalmente para outra rodada de conversas com jornalistas. Um estrato da sociedade que compartilhava muitos traços com pássaros carniceiros, concluiu com amargor. Precisam de uma matéria. Quanto mais trágica, horrenda, aterrorizante, melhor. A estrela de Hartmann, tão brilhante no início da longa trilha desta campanha, parece estar se apagando tristemente nas fogueiras incandescentes desta convenção dos Democratas. Aquele comentarista untuoso balbuciou a metáfora idiota, que agora parecia estar virando uma profecia prestes a se realizar. A porta para a cabine de imprensa se abriu. Fleur emergiu. De repente, a escadaria pareceu insuportavelmente claustrofóbica. Ficariam cara a cara. Era inevitável. Tachyon se preparou. Do nada, o salto de Fleur escorregou, e ela despencou pelas escadas de cabeça. Com os músculos da panturrilha doendo pelo esforço, Tach curvou-se nos degraus e agarrou-a um segundo antes de a cabeça bater no concreto. O coque se soltou, e mechas do cabelo preto penderam ao redor do rosto. Ele a ergueu, e mais alguns grampos de cabelo tilintaram no chão. — Você está bem? — Sim, estou. — Ela levou a mão à testa, olhando ao redor, confusa. — Eu podia ter morrido. — Os braços dele ainda estava ao redor dela. Fleur olhou para baixo, erguendo os olhos hesitantes para o rosto dele. — Você ainda está me segurando. — Peço desculpas. — Ele começou a recuar. Fleur pousou a mão no ombro do alienígena, segurando-o no lugar. Tachyon sentiu a coxa firme da mulher por baixo da saia de seda, colando-se à sua. Seu pau deu sinal de vida. — Você poderia ter me deixado cair. Seria a reação normal depois… depois do modo como te tratei. — Eu nunca deixaria você… cair. Dedos, suaves como borboletas, exploraram o rosto do alienígena, acariciando seus lábios. — Você salvou minha vida. — Não exagere. Fleur apertou o corpo contra o dele. Tach grunhiu de leve quando o pênis endureceu, implorando atenção. De repente, a mulher tomou seu rosto entre as mãos e o beijou. Todos os vestígios de autocontrole desapareceram. A língua avançou fundo na boca feminina, suas mãos agarraram o traseiro dela. O ofegar dos dois deixava um contraponto estranho à chamada que estrondava no auditório. As mãos de Tach percorriam o corpo de Fleur freneticamente. Ela se afastou. Esforçou-se para reabotoar a blusa. Tachyon agarrou seus dedos trêmulos. — Aqui, deixe que eu abotoo. — Me leve para seu quarto.
Ele ergueu os olhos, os dedos paralisados num botão. Fleur levantou a mão alienígena, mordendo o indicador com força. Me ajude. Um grito de sua alma? Ou um pensamento aleatório de Fleur? Ele ignorou a voz plangente. — Não podemos ser vistos saindo juntos — sussurrou Fleur. Ele lhe entregou a chave do quarto. — Eu vou… depois. ♥ O telefone de Jack apitou outra vez. Tocou durante todo o almoço no Bello Mondo, e os outros clientes já estavam começando a se irritar. O porta-voz da câmara dos deputados dos EUA, na verdade, olhava feio da mesa ao lado. Jack lançou um olhar de desculpas para Jim Wright, do Texas, abriu a pasta e pegou o aparelho. — Aqui é Tachyon. Estou ligando da sala de imprensa. Preciso sair e preciso de alguém aqui com seu carisma. — Para quê, exatamente? — Informo quando você chegar. Por favor, rápido. — Ei, nem venha para cima de mim com essa merda de realeza takisiana cheia de pressa. Mas Tachyon já desligara. Jack considerou esmagar o telefone até virar pó. Em vez disso, terminou o último bocado da sobremesa cara demais e passou a nota de cem ao maître. A distância do Marriott até o Centro de Convenções era precisamente a de um Camel sem filtro. O pescoço de Jack coçava. Trombara com Fleur van Renssaeler numa porta que levava ao Centro de Convenções. Psicopatas — sua terceira esposa fora um caso real de loucura — deixavam-no nervoso. Apesar da maneira como Fleur o assustava, Jack acenou com garbo e sorriu, recebendo um sorriso amarelo em resposta. Viu uma chave de quarto do Marriott na mão da mulher e imaginou que estivesse seguindo para o hotel para fazer um boquete divino em algum repórter, talvez para convertê-lo à causa de Barnett. Tachyon aguardava bem embaixo do camarote da ABC, usando a casaca com cortes e pregas, as calças de montaria e botas. O rosto do alienígena estava tenso. Quando viu Jack, os olhos violeta brilharam. — Por que demorou tanto? — Oi, boa tarde para você também. — É imperativo que você fale com a imprensa imediatamente — anunciou Tach, agitando o chapéu plumado embaixo do nariz de Jack . — Está bem. — Ele tirou outro cigarro do maço. — O que preciso falar com eles? — Essa coisa de “Qualquer um, menos Hartmann”. Se a imprensa continuar batendo nesta tecla, vai se tornar uma profecia, e uma prestes a se tornar realidade. — Tudo bem. — Jack abriu um sorrisinho quando acendeu o Camel. —
Connie Chung vai estar lá? E, se ela for casada, o marido está por aqui? — Não temos tempo para… — Tachyon começou a balançar o chapéu de novo, mas engoliu as palavras. Suas bochechas enrubesceram. Com isso, uma certeza fria e desesperadora emergiu na mente de Jack. — É Fleur, não é? Ela acenou para mim com sua chave. — Ela não acenou… — O alienígena engoliu as palavras de novo. Tachyon se empertigou em toda a altura principesca acima dos saltos, cerca de 20 centímetros menor que Jack , e o encarou com a fúria do olhar violeta. — Não permitirei que minha vida pessoal seja questionada. Este assunto não lhe diz respeito. — Claro que este assunto não diz respeito a mim. Recusei essa mulher dias atrás. Tachyon esgarçou os dentes. — Como se atreve! Você sabe com quem está falando? Jack deu uma baforada de fumaça bem calculada. — Estou falando com alguém que está sendo guiado pelo pau, o que é bem engraçado, considerando o tempo que passou sem saber como é isso. Tachyon ficou vermelho de raiva. O medo gélido tocou a espinha de Jack quando pensou que talvez tivesse ido longe demais, que o alienígena fora criado para matar ao menor insulto, que tinha mesmo jurado assassinar Jack no passado e talvez concluísse que ignorara o voto por tempo demais… Mas, em vez disso, Tachyon simplesmente passou por ele, esbarrando de propósito, saindo do Centro de Convenções. Jack o seguiu, as pernas longas sem dificuldade para se manter em ritmo com os passos rápidos do alienígena. — Tach, tudo bem, isso não foi legal — disse. — A questão é que Fleur se insinuou para mim outro dia. — Não acredito — retrucou Tachyon, entre dentes, os saltos da bota estalando no concreto. — Ela está tentando atrapalhar a campanha. Você sabe tudo que a questão Sara Morgenstern nos custou. Talvez haja meia dúzia de câmeras de televisão atrás de espelhos falsos observando vocês enquanto transam. — No… meu… quarto? — A resposta medida de Tachyon saiu como um grito meio estridente. — Ainda é uma possibilidade. Quer me ouvir? — Ele agarrou o braço de Tachyon. — É a porra de um… — Me deixe em paz! — O alienígena soltou-se. — Ela é uma psicopata. Não é a mãe dela. Entende? Não é Blythe. Tachyon parou de andar e se virou para encarar Jack. Seu rosto estava lívido. — Não permita que o nome dela passe pelos seus lábios de novo — mandou. — Você não tem esse direito. Jack o encarou, a irritação virando uma fúria borbulhante. — É para o seu próprio bem — argumentou. Pôs o cigarro na boca, ergueu Tachyon e o carregou debaixo do braço. Começou a caminhar na direção do Omni Hotel enquanto o alienígena chutava e se contorcia. — Pelo sangue e pelos ossos! Me solte!
— Vou encontrar um chuveiro frio e botar você embaixo dele — anunciou. — Considere um castigo por jogar aquela bomba em mim em Paris. Se quiser transar depois disso, conheço uma Miss Peachtree que ficará feliz em… Jack parou de se mover. Pôs Tachyon no chão. Marchou pela rampa até a escada que levava ao camarote. Jogou o cigarro no chão de concreto, amassou-o com o sapato e entrou. Em seguida, piscou, respirou fundo e tentou não cair para trás. Tachyon bagunçara sua mente como um jornal jogado na ventania. Repórteres entediados esperavam, espalhados pelas mesas. Alguns o encaravam. Reunindo a tranquilidade de algum lugar que ele não sabia que tinha, Jack abriu um sorriso e acenou, avançando para fazer sua parte.
16h00
— Quer uma bebida? — Não. — Ela estava de braços cruzados, na defensiva. Tachyon ergueu a garrafa. Às vezes, o álcool funcionava como inibidor. Abaixou-a depressa. Abraçou o corpo. Encarou o chão. Estavam separados por trinta centímetros. Poderiam ser anos-luz. Nunca se sentira tão estranho. O ciciar da seda o fez erguer a cabeça. A saia de Fleur caiu no chão. Ela encarou a parede com um franzir de cenho distraído, enquanto desabotoava a blusa e abria o sutiã. Os seios pesados balançaram, livres. Eram maiores que os da mãe. Tachyon não sabia dizer se gostava. A boca estava seca de nervoso. Observou as covinhas na lombar quando ela subiu na cama. — Espere — pediu, com dificuldade. — Vamos logo. — Como frase de sedução, deixava muito a desejar. Tach enfiou as mãos nos bolsos. Deu um giro rápido pela sala. Notou que a ereção voltara. — Estou com medo. Apoiando os cotovelos nos joelhos, as mãos pendendo entre as pernas sobre o sexo escuro, Fleur retrucou, com a voz seca: — Digo o mesmo. — Me ajude um pouco. — Como? — Tire minha roupa. Seja carinhosa. Ela saiu da cama e puxou o jabô de renda em sua garganta. Desabotoou a camisa e puxou-a pelos ombros. De olhos fechados, Tach sentia os cabelos dela passando por sua pele. O aroma de baunilha e especiarias o envolveu: Shalimar. O aroma de Blythe. Trouxe tudo de volta com força. Aquele dia quente de verão em 1948, o estalar das anáguas enquanto abraçava Blythe, o cheiro e o gosto de Shalimar quando seus lábios exploraram seu pescoço. Fleur serpenteou seu corpo como uma adoradora de algum altar ancestral. Os lábios recostaram-se na barriga do alienígena quando ela abriu as calças e puxou-as pelos quadris. Sua ereção latejava no ritmo das batidas do coração. Em frenesi, ele chutou os sapatos para longe e se esforçou para se livrar do tecido constritor das calças. Fleur soltou uma risada rouca e baixa quando ele perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão. Beijando, agarrando, ofegando, acentuando o fluxo desesperado de carinhos com gemidos profundos, os dois se lançaram sobre a cama. Um pingo único de esperma escorreu da cabeça do pau alienígena. Aterrorizado com a possibilidade de não se segurar, ele abriu as pernas de Fleur murmurando obscenidades takisianas como uma litania pagã. Os lábios da vulva o envolveram. O toque de sua mente. Roleta. Veneno, morte, terror , loucura. Começou a perder o controle. O ferro vazando de seu pênis. De repente, outras mãos agarraram seus cabelos longos. Uma voz doce e rouca o
encorajava. O estalo baixo das cortinas de contas soava gentilmente numa brisa quente. O disco riscado de “La Traviata” lançava sons, como lascas de luz, em todo o apartamento. Blythe em seus braços. Penetrou-a fundo. Soltou um grito agudo e triunfal. Blythe. Blythe. Blythe.
18h00
A noite se aproximava. Tinha certeza. Sentada embaixo de uma folha fendida de uma planta no saguão do Marriott, conseguia senti-la se arrastar como uma fera cruel para dentro de Atlanta. Quando chegasse, faria a multidão se dispersar. Tiraria, um a um, a floresta de árvores caminhantes e falantes na qual ela se escondia. Até não haver mais esconderijo. Era uma matemática simples: se a segurança estava nos números, subtraí-los equivalia à morte. A noite era o ambiente natural da marionete corcunda de Hartmann. Ela sabia disso. Como também sabia que, cedo ou tarde, a noite viria. Precisava encontrar um ser invisível que a protegesse. Ou a criatura grudada na pelagem da barriga preta da noite a tomaria. Tachyon falhara com ela. Tal qual Ricky — embora sua falha tivesse sido nobre e concedido 24 horas de tranquilidade. Precisava encontrar alguém capaz de protegê-la, alguém que aceitaria a única moeda com que poderia pagar. E antes da placenta do dia estourar. Conhecia o homem certo para isso. ♣ A banda tocava “Stars Fell on Alabama”, que Jack esperava com todas as forças não ser algum tipo de afiliação política. Depois de onze votações inúteis, quase qualquer coisa poderia ser considerada um presságio por delegados esgotados e desesperados. Jack torcia para que a canção fosse apenas um calmante para a multidão depois de um dia de sete brigas físicas na convenção, a última entre um delegado de Jackson que se bandeara para o lado de Hartmann e um coordenador que tentava dissuadi-lo. Houve um pedido para que a convenção fosse encerrada pelo dia, o que estava em perfeita harmonia com o cansaço prematuro dos delegados. Jack atravessou a multidão para encontrar Rodriguez. — Olha só, hombre. Estamos fortes com Hartmann até agora. — Certo. — Todo mundo virá atrás da gente hoje à noite. Uma rachadura na fachada da Califórnia sólida, e o povo vai perceber que a temporada de caça está aberta. O suor corria pelo rosto de Jack. Havia manchas empapadas embaixo dos braços da camisa feita sob medida. Em algum momento naquela tarde, os aparelhos de ar-condicionado pararam de funcionar. — Convoque uma reunião para depois do jantar. Às nove. Presença obrigatória. Rodriguez olhou para ele. — A reunião é sobre o quê? — Quem se importa? Vamos pensar em alguma coisa. Só precisamos contar as cabeças, ter certeza de que nenhum dos outros está falando com os nossos. Se
mantivermos os delegados ocupados, vamos afastá-los dos adversários. Rodriguez abriu um sorriso. — O que vai fazer depois disso, cara? Inspeção de dormitórios? — Algo do tipo. — O sorriso de Rodriguez desapareceu. Jack falou, apressado: — Estamos todos juntos no Marriott. Quero que você ponha alguém de confiança em cada andar, verifique quem entra e quem sai, faça uma lista, pegue identidades. Não podemos impedir as pessoas erradas de visitarem os nossos delegados, mas podemos garantir que eles sejam vistos quando o fizerem. Rodriguez parecia desconfiado. — Você viu todas aquelas putas lá fora. Acha mesmo que vamos conseguir o nome delas? — Faça o que mandei — ralhou Jack. Caramba. Seu temperamento estava piorando junto com o de todo mundo. — O pessoal de Barnett está tentando nos comprometer — disse, baixando a voz. — Uma das tontas de Cristo está trepando com Tachyon neste exato momento. Rodrigues pareceu horrorizado. — Tudo bem — completou. — Eu vou dar um jeito. Jim Wright pareceu aliviado quando batia o martelo para encerrar mais cedo, deixando as televisões frenéticas e tentando marcar os horários das retransmissões do horário nobre. O mau humor de Jack grunhiu em sua mente quando ele saía aos tropeços pela porta. A coisa toda tinha ido longe demais, dois dias de votação seguidos de dois dias de brigas processuais, e bem no meio do verão sufocante da Geórgia. Fleur van Renssaeler estava fodendo com Tachyon, esperando conseguir sabeDeus-o-quê, e Tach deixara Jack enfrentar a imprensa sem a menor preparação. Não só isso: Connie Chung estava claramente decidida a permanecer fiel ao marido. Pelo menos tinha a mesa lhe esperando no Bello Mondo, e uma noite inteira pela frente. Fazia uma semana que não transava com alguém. Não tinha nada melhor para fazer naquela noite do que consertar o descuido. Outra mensagem de Bobbie lhe esperava na recepção, mas não teve resposta quando retornou a ligação. Tomou banho, trocou-se e superou os horrores do elevador envidraçado quando desceu do quarto para o Bello Mondo. O garçom, reconhecendo-o, trouxe o uísque duplo sem que ele pedisse. Então Sara Morgenstern, parecendo conectada a uma bateria de carro, sentou-se diante dele. Estava agarrada a uma bolsa a tiracolo, como se fosse tudo que tinha. — Posso me sentar com você? Jack a encarou. Ela preenchia bem as roupas, até mesmo o vestido de baile de formatura amarrotado, azul e branco, mas os cabelos platinados estavam desgrenhados e havia uma expressão inquieta em seus olhos profundos. — Não quero ouvir nada daquilo, Sara — disse Jack. — Posso pegar um cigarro? Estou um pouco confusa. Presenciei um assassinato na noite passada. — Aquele do shopping? As mãos de Sara tremeram quando ela puxou um Camel.
— Era um ás — disse. — Um adolescente estranho, perturbado. Ele cortou Ricky em pedaços. Na minha frente. Jack concluiu que não queria a companhia daquela mulher por mais nenhum segundo. — Sara — começou. Ela o encarou. Jack percebeu que havia muita maquiagem ao redor dos olhos, tentando esconder os efeitos de uma noite insone. — A questão é que não quero ficar sozinha hoje à noite — explicou ela, tentando sorrir. O que talvez mude a situação, pensou Jack . Enfiou a mão no bolso do casaco para pegar o isqueiro e acendeu o cigarro de Sara. Tragou e começou a tossir, descontrolada. Lágrimas saltaram de seus olhos. — Meu Deus — comentou —, que cigarro é esse? — Do tipo que aprendi a fumar no Exército. — Eu fumava Carlton na faculdade. Realmente não deveria recomeçar. Ai, que inferno. — Ela amassou o cigarro como se enterrasse uma adaga em seu pior inimigo. — Tome alguma coisa. Dura mais tempo. — Jack acenou para o garçom. Pelo menos, pensou, com nobreza, essa louca descontrolada fica fora do jogo por algumas horas, talvez por uma noite inteira. E eu aproveito para dar uma trepada. Olhou para Sara e teve uma ideia. Talvez pudesse tirá-la de circulação por mais tempo do que imaginava. ♠ A Rodovia Expressa Norte estava congestionada, mas Tony manobrava o Regal preto sem esforço. Spector ficou feliz por não jantarem no Marriott. Havia consideravelmente menos chance de alguém reconhecê-lo longe do hotel. Tony estava com um terno azul-marinho feito sob medida e uma gravata combinando. Spector estava de cinza. O traje ainda tinha cheiro de loja. — Aonde estamos indo? — perguntou. — LaGrotta. — Tony passou a toda por duas pistas de tráfego para pegar a saída para Peachtree. — Se eu sair daqui com vida. Você vai amar esse lugar. Um dos melhores restaurantes italianos da cidade. Não é Nova York , claro, mas a gente faz o que pode. — Sim, claro, obrigado por tirar um tempo para jantar. Sei que está bem ocupado. — Faz um tempão que não te vejo, cara. É prioridade. — Tony sorriu. Aquele sorriso derretia o coração das mulheres e ganhava a simpatia dos homens desde que Spector o conhecia. Era difícil não gostar dele. — E acabou trabalhando com Hartmann? — Spector queria manter Tony falando de si. Assim ele não faria muitas perguntas. Tony deu de ombros. — Uma improbabilidade levando à outra. Consegui um empréstimo e voltei à faculdade de direito. Fiz alguns trabalhos para a política local. Por acaso, estive
no lado vencedor algumas vezes. Alguém na campanha de Gregg me notou e, bem, também tem a questão da minha etnia. Isso ajuda. — Além disso, você é bom. Sempre foi. Bom no arremesso do basquete, bom na conversa com as garotas. — Spector sorriu. — Caramba, você conseguia convencer qualquer boa garota católica a tirar as roupas em menos tempo que o restante de nós penteava o cabelo. — É pecado desperdiçar um talento dado por Deus. — Tony balançou o indicador para Spector. — E você sabe como evito pecar a todo custo. — Sei. — Spector olhou pela janela. Nuvens escuras juntavam-se sobre a copa das árvores, acinzentando os pedaços abaixo, onde a chuva já caía. — Parece que a gente vai se molhar. — Meu amigo, por um jantar desses você nadaria no Hudson até Teaneck. — Tony soltou um ruído de satisfação. Olhou para Spector e beijou a ponta dos dedos. — Confie em mim. Trovões estrondaram no céu. — Confio, velho amigo. Spector desejou poder dizer que era uma via de mão dupla.
19h00
Acordou de repente. Pleno de uma sensação de bem-estar completo. Talvez pleno não fosse a palavra correta. Vazio, flutuando, liberto por fim de dois anos de pressão e ansiedade. Tach chutou os lençóis emaranhados para se livrar deles. O aroma de suor e sexo pairava pesado no quarto. Com um arrepio de decepção, percebeu que a cama estava vazia. Sentou-se e, em seguida, se recostou nos travesseiros ao ouvir a descarga no banheiro. Fleur saiu, os seios balançando. Percebeu que ele acordara, e seus braços se cruzaram sobre o peito. — Não, eu gosto de olhar para você. — Você é um bárbaro. — Sim. E você é uma cortesã. Ela abriu as cortinas e olhou para fora. — Isso não foi legal da sua parte. — Era para ser um elogio. Por que não se casou? — Como sabe que não me casei? — Ela se recostou à janela, uma nádega apoiada no caixilho estreito. — Não vejo nada que indique o contrário. Ela ficou tensa. — Está lendo minha mente? — Não. — Você tentou na segunda vez que fizemos. — Teria tentado na primeira, mas estava ocupado demais garantindo que eu ficaria… hum… firme. — Não leia a minha mente! — Tudo bem. Isso melhora o sexo para mim, mas tudo bem. — Acho horrível você poder violar as pessoas dessa maneira. — Fleur, tenho que lembrá-la que não li sua mente. Senti sua oposição e recuei. Sou uma pessoa muito bem-educada, sem mencionar charmosa, bonita e inteligente… — Não houve melhora na expressão sóbria, e ele caiu num silêncio envergonhado. Procurou a garrafa no criado-mudo e tomou um gole. — Sua mãe queria tantas coisas para você. Marido, filhos, lar, felicidade. — Não quero falar sobre ela. — Por que não? — São águas passadas. — Fleur voltou para a cama, a mão envolvendo o pau dele. — Quero você na cama comigo, não com ela. ♦ Spector afrouxou o cinto. Pediu salada e cozido de cordeiro. Spezzatino de Montone, chamou Tony, experimentando um bocado para garantir que estava
bom. Tony comeu um prato de frango com amêndoas e guarnição de arroz na manteiga. Dividiram um strudel com creme de sobremesa, e Spector se fartou. Não estava acostumado a comer tanto e praticamente sentia a comida no fundo da garganta. Tony suspirou. — Não falei? — Tão bom quanto o prometido. — Spector secou o que restava de vinho na taça. — Ficamos tão ocupados comendo que nem tive a chance de perguntar para o que estava fazendo lobby. Spector ficou tenso. Até agora, tinham falado sobre a antiga vizinhança, garotas, basquete, o que acontecera com as pessoas. Tony fora seu único bom amigo durante os anos de escola. Não era que as pessoas odiassem Spector, mas não o percebiam. Tony era o carisma em pessoa. Eram amigos improváveis, mas mesmo assim próximos. A pergunta de Tony o lembrou que estava ali para matar Hartmann. Era um fato inevitável. — Bem, vamos dizer que meus empregadores não compartilham todas as visões do seu senador. Spector não queria mentir, mas tinha absoluta certeza de que também não queria dizer a verdade. Melhor o meio-termo. Tony assentiu e mexeu algumas migalhas caídas do strudel com o garfo. — Não quer falar sobre isso, tudo bem. Tem algum sentimento sobre as vítimas do carta selvagem… digo, pessoalmente? — É uma questão difícil. — Spector sabia disso mais do que ninguém, tendo tirado a rainha negra. Só Tachyon teria a ideia estúpida de trazê-lo de volta. — Mas há muitas questões difíceis. Algumas pessoas assumem um pouco mais que outras. — Não acha que os curingas estão sendo chutados para lá e para cá? — Tony olhava para Spector com seriedade. De alguma forma, tinha parte naquilo. Algo que ia além da postura política. — Claro. Mas o que vocês vão fazer quanto a isso? — Spector pegou a garrafa de Pinot Nero e serviu-se de mais vinho. — Garantir que seus direitos sejam protegidos, como os de qualquer outro cidadão norte-americano. É isso que eu quero. É por isso que estou trabalhando para Hartmann. — Tony ficou em silêncio por um instante. — Não acho que seja pedir demais, não é? Spector balançou a cabeça. — Não. Eu já estive com muitos curingas. Mas é diferente com eles. Negros, italianos, não importa, eles ainda parecem pessoas. Não é culpa deles, mas muitos curingas parecem prontinhos para ir pro zoológico. A maioria das pessoas reage com os instintos, não com o cérebro. — Spector sabia, sempre seguia seus instintos. Se ele mesmo não tivesse o vírus, provavelmente também se juntaria aos outros no ódio aos curingas. Tony jogou o guardanapo na mesa e sinalizou para o garçom trazer a conta. — Tem tempo para dar uma volta comigo? — Claro — disse Spector, tomando o vinho todo. — O que tem em mente?
— Só visitar alguns amigos. Bons amigos. Gostaria que os conhecesse. — Tony abriu outro sorriso. Spector não poderia dizer não. — Talvez, depois que terminarmos, você possa me apresentar para seu chefe. Gostaria de conhecê-lo. Spector sentia-se desconfortável, e não era totalmente culpa do estômago estufado. — Talvez — concordou Tony. — Mas uma coisa de cada vez. Certo, pensou Spector, uma coisa de cada vez. ♥ Todas as antigas habilidades tinham voltado. Sua situação estava realmente controlada. Tachyon sorriu para o pênis, que se erguia agressivamente dos pelos pubianos acobreados. Rindo, mergulhou entre as pernas de Fleur, mordiscando as coxas, lambendo, provocando. Só faltava uma coisa. Juntar-se completamente a ela. Unir suas mentes. Faria aquilo quando estivessem no clímax, decidiu. Colocaria um ponto final no terror de Roleta. Retorcendo--se sobre o corpo, chupou um mamilo escuro. Penetrou-a. Seus pensamentos eram afiados, tão irregulares como o vidro. Você parece sua mãe, e ela era uma vadia… vadia… VADIA. Uma voz odiosa. Não a ouvia fazia 38 anos. Mesmo filtrada pelas camadas de lembranças de Fleur, Henry van Renssaeler ainda tinha o poder de enojá-lo. Melhor você provar o quanto me ama. Eu te amo, papai. Te amo. O ritmo suave de Leo Barnett. Abram seus corações para Jesus, e todos os seus pecados serão perdoados. O resto seguiu em imagens rápidas e dolorosas. A percepção de Fleur de como ele estava usando seu poder sobre os delegados não comprometidos. A falsa queda. A paixão fingida. O nojo e o deslocamento quando ela tentou se conformar com o fato de que estava na cama com o amante da mãe. Mesmo enquanto estava agarrada a seu corpo úmido de suor, fingia que ele era Leo Barnett. A fúria tomou conta dele, e Tachyon se sentiu mais perto de bater numa mulher do que estivera em toda a vida. Vingou-se terminando o ato, saciando os desejos do corpo com carne alugada. Quando acabou, rolou para fora da cama e, juntando as roupas da mulher, jogou-as em cima dela. Fleur o encarou, a surpresa cobrindo os olhos castanhos. — Saia. — Você leu minha mente… — Li. — Você me violou. — Sim. Ela se enfiou às pressas nas roupas, embolando a meia-calça e socando-a na bolsa, arrumando os cabelos embaraçados. Ao parar na porta, apontou para ele: — Consegui o que precisava. Mantive você longe da convenção. — Então merece algo pelo incômodo. — Tachyon pegou duas notas de vinte
e entregou na mão dela. — Jack estava certo. Você não é sua mãe. Você é uma vadia. Fleur bateu a porta do quarto com força. O ar-condicionado estava gélido em sua pele nua. Tach serviu-se de uma bebida e respirou fundo várias vezes, tentando diminuir o ritmo do coração acelerado. Em seguida, enquanto levava o copo à boca, a porta se abriu, batendo na parede com um estrondo como o disparo de uma pistola. Conhaque se derramou no peito e na barriga. — Ah, pelo Ideal! — Esperando alguém? — questionou Polyakov secamente quando encarou a ereção de Tachyon. Mas os olhos estreitos e a tensão no queixo fizeram Tachyon achar que a mente do russo estava em qualquer lugar, menos em sua vida sexual. — Se você puder botar o cérebro de volta na cabeça principal, precisamos discutir um problema bem sério. — Muito engraçado. — Tach caminhou até o aparador e serviu outra bebida. Blaise estava sentado de pernas cruzadas na cama, encarando as mãos. George estava parado no meio da sala. — Então, qual é o problema grande e sério? — Fomos presos. — QUÊ? — Tach virou-se como uma cobra preparando-se lentamente para o bote. — O que você fez? — Nada — choramingou Blaise. — Ah, não, só brincou de mestre titereiro com um curinga, um homem da Klan, um neonazista e um policial — ralhou Polyakov. Tach sacudiu a cabeça como um pônei desconcertado. George prosseguiu, carrancudo: — Era de se imaginar que, com um poder sutil e invisível, teria inteligência o bastante para não anunciar quando o estivesse usando. Algo tremeluziu entre o homem e o garoto. Desconfiado, Tach estendeu a telepatia, mas tudo que flagrou foram pontas delicadas de pensamentos fugazes. O sabor da conspiração. — Estavam todos lá, querendo provar que eram machos. Eu estava dando a oportunidade de provar se eram mesmo durões. Aquele curinga estúpido e feioso estava tentando correr… — CALE A BOCA! — Até Tachyon teve um sobressalto com a fúria e a firmeza na voz do russo. Polyakov deu as costas para o rosto enrubescido do rapaz. — As preambulações de um Calígula adolescente superpoderoso não são o problema. O problema é Henry Chaiken. — Fascinante. E, pelo Ideal, quem é Henry Chaiken? — Um repórter da Associated Press que trabalhava como correspondente no exterior. Ele me reconheceu como Victor Demyenov, repórter do Tass. — Pelo sangue e pelos ancestrais. — Os joelhos de Tach vacilaram, ele tateou em busca da ponta da cama e sentou-se de uma vez. — Claro, a polícia… Frustrado com o desenrolar lento da história, Tachyon tomou a lembrança da
mente do neto. A rua ao lado do Parque Piedmont. Olhando para baixo para ver as pegadas empoeiradas deixadas por seus tênis no capô do carro. O círculo de rostos suados cercando o pequeno tablado. Bocas escancarando-se com excitação, olhos brilhando. Livrou-se das mãos de George, que o seguravam. "Venham. Venham! Ponham seu dinheiro aqui. Não apostem no curinga feio, ele vai virar picadinho." O policial estremeceu quando Blaise puxou o cordão que ligava o ser humano à criança um quarto takisiana. "Ele não vai ajudar o curinga. Ele também os odeia. Eu sei. Estou na cabeça dele." — Logo depois chegou um batalhão de policiais, e Blaise descobriu o limite de seu poder — continuou Polyakov, sem perceber que Tachyon lera tudo. Um arrepio, como um dedo gélido, correu por suas costas quando Tach pensou que, no fim das contas, Blaise controlara nove pessoas. O limite de Tachyon era três para controle pleno, e isso demandava um esforço tremendo de mente e corpo. Nove. E ele tinha apenas treze anos. E eu o treinava. Seus olhos encontraram o olhar frio e implacável do garoto chateado. — Chaiken era um dos espectadores interessados em tudo isso, e ele achou engraçado que meu nome atual não combine com a lembrança que ele tinha de mim. Contei uma história sobre a alteração de nome quando mudei de vida, mas, se não forem idiotas, vão verificar. — Seus documentos? — São muito bons, mas não no lugar errado. Uma foto mostrada ao homem errado… — Polyakov deu de ombros. — Você precisa sair daqui. Do país. Se precisar de dinheiro, eu empresto… — Não. Eu vim até aqui com uma missão. Não vou embora. — E eu? — Você não importa mais do que eu. Faço o que faço talvez por uma crença patética num ideal. Um conceito familiar para você, Tachyon. Você blasfema, enquanto eu acredito. Não somos muito diferentes. Nós dois temos honra. Infelizmente, é sempre adquirida com sangue. Mais uma vez aquele olhar fugidio entre o russo e Blaise. Tachyon deslizou para trás dos escudos imperfeitos do adolescente. — Você não pode usar Blaise. Eu o proíbo! Um arquear infinitesimal de sobrancelha. A boca de Polyakov se retorceu num sorriso leve, amargo. — Vou fazer o que o Tio George quiser! — berrou Blaise. — Eu te mato antes — retrucou Tachyon, os olhos travados nos do russo. — Não sou seu inimigo, Dançarino. Ele é. — Um indicador gorducho apontou para o teto e para a suíte de Hartmann, sete andares acima.
20h00
De pé, com as folhas de uma samambaia caindo sobre o rosto como franjas, Mackie Messer observou Sara e o imbecil saírem do restaurante. A mulher o manteve longe o dia todo, unindo-se às multidões, sem deixar que tivesse uma chance a sós com ela. Tinha certeza de que ela iria para o quarto que dividia com o preto para tomar banho — mulheres eram loucas por higiene. Nunca assistira Psicose, então não entendia que aquela era a última coisa que uma mulher da geração de Sara faria nas circunstâncias atuais. A lembrança de apagar o preto garboso abriu um sorriso em seus lábios. Foi bom sentir a mão no osso. Mas aquela empolgação definhava. Estava faminto. Só encontrou Sara no meio da manhã, no parque dos curingas. Não teve nem a chance de atravessar a parede de uma cozinha de restaurante para fazer uma boquinha. A fome alimentava a raiva frustrada que crescia dentro dele o dia todo. A puta. Tenho que matá-la. Não posso decepcionar o Homem. Teria que agir em breve, fazer algo violento para extravasar o sentimento. Ela e o novo namorado seguiram para os elevadores de braços dados. Indo lá para cima com o imbecil — as mulheres eram todas iguais. Seguiu os dois, desviando dos delegados que não se dignavam a reparar no garoto deformado. Chegou diante do elevador a tempo de vê-los entrar em deles, a porta se fechar. Riu alto. — Isso. Amor, vai. Tudo que precisava fazer era ver em que andar sairiam. Em seguida, encontrá-los. Lambeu os lábios. Espero que estejam fazendo aquilo quando eu os pegar . Pensou no pau grande do homem entrando em Sara e em sua mão dura entrando nele e quase melou a calça jeans. ♣ Bebidas, exaustão e uma refeição pesada tinham feito o trabalho em Sara. Seus joelhos começaram a vacilar, e ela se apoiou em Jack quando entraram no elevador panorâmico. Jack fechou os olhos para evitar a vertigem. Em seguida, pensou no frasco de Valium na bagagem e sorriu por dentro. Sara estava obviamente no limite de suas forças. Ficaria desligada por horas e, em algum momento perto da manhã, Jack sairia da cama, encontraria os Valiuns, esmagaria alguns num copo de suco de laranja do serviço de quarto e daria para ela com a refeição. Aquilo, concluiu, impediria a louca descontrolada de ficar andando por ali por grande parte da sexta-feira, se não durante todo o dia . Jack levou Sara pela sacada curva do átrio, em seguida pelo corredor curto até sua suíte. “Piano Man” ecoava lá embaixo. Sara entrou pela porta e ficou parada, a bolsa pesada a tiracolo a fazendo se inclinar. Jack pendurou uma placa
de NÃO PERTURBE na porta, fechou-a e trancou, então pôs o braço ao redor de Sara, por trás. Apesar do álcool, o corpo da mulher estava tenso como uma mola de despertador. Tirou os cabelos despenteados do pescoço dela e começou a beijar sua nuca. Por um momento, Sara não reagiu. Em seguida suspirou e virouse para ele. Beijou-a nos lábios. Ela demorou um pouco para reagir, finalmente envolveu seu pescoço com os braços, abriu os lábios e deixou a língua deslizar para dentro da boca. — Isso — disse Jack, sorrindo. — Fica melhor quando você coopera. — Que era a deixa que Bacall fala para Bogart em Uma aventura na Martinica. Sara não sorriu. — Preciso ir ao banheiro. Volto já, tudo bem? Jack observou seu caminhar cambaleante até o toalete. Uma sensação pesada o envolveu. Estava parecido demais com seu segundo casamento. Tirou o casaco e serviu-se de uísque. Ouviu a água correndo no banheiro, depois o silêncio. Talvez ela estivesse arrumando os cabelos ou retocando a maquiagem. Talvez estivesse sentada na privada, revivendo a morte do amigo. Jack acendeu um cigarro e pensou sobre a primeira vez que vira uma morte violenta, quando sua companhia foi pega num contra-ataque alemão na Rodovia 90, entre Avellino e Benevento. Lembrou que a experiência não o fazia se sentir muito sensual. Caramba, pensou. Aquelanoitetinhaopotencialdeserbastantedeprimente. A porta do banheiro se abriu, e Sara lhe deu um sorriso corajoso quando entrou no quarto. Ela arrumara os cabelos e a maquiagem, e parecia muito diferente do espantalho que se sentara diante dele no restaurante. Jack apagou o cigarro e foi até a mulher. Estava prestes a tomá-la nos braços quando um rapaz corcunda com jaqueta de couro atravessou a parede atrás dela, sorriu e avançou com a mão estendida como uma lança. Sem pensar, Jack ergueu Sara, deu um meio giro e jogou-a gentilmente no sofá atrás de si. O ar reluziu com sua luz dourada. Houve um som estridente de serra circular zumbindo e atingindo uma estaca enterrada numa árvore, um som que fez os pelos de seu corpo se arrepiarem e lançou um jorro de adrenalina por todo o seu corpo. Jack virou-se para o intruso a tempo de perceber um olhar chocado no rosto jovem e pálido. Em seguida, bateu com o punho no homenzinho, um golpe suave com as costas da mão. Num fulgor de luz amarela, o garoto saiu voando contra a parede do banheiro, gerando um estrondo de ossos estalando. Como uma boneca de pano, ele foi ao chão. Sara gritou quando se virou e viu o assassino. Jack teve um sobressalto. — Peguei ele, Sara — disse Jack . Ela continuou gritando. Jack ouviu os sons que ela fazia ao se esforçar para ficar em pé. Jack avançou para o garoto de jaqueta de couro e se inclinou sobre ele. Os olhos do rapaz se abriram de uma vez, e as mãos atacaram, brilhando como facas. Quando o atingiram, houve um clarão de luz amarela, o barulho de serra circular guinchando e pedaços da roupa de Jack saíram voando como os pelos de um gato brigão. Ele nem sentiu os golpes. Ergueu o invasor pela jaqueta de couro e o manteve longe. O corcunda,
como se não conseguisse acreditar no que estava vendo, continuava a atacar seu braço, cortando a camisa Givenchy azul-clara em tiras. Ao que parecia, o garotinho nunca se deparara com um oponente invencível. — Acabe com ele! — Era a voz de Sara. — Jack, acabe com ele agora! Jack não concordou. Queria apagar aquela figura e descobrir para quem ele estava trabalhando. Mirou um tapa lento de mão aberta na cabeça do garoto, um que pudesse apagá-lo por algumas horas. O tapa atravessou a cabeça do corcunda sem atingir o corpo. A outra mão, que segurava a jaqueta do garoto, subiu até bater no próprio queixo, e Jack de repente não estava segurando nada. Um sorriso deslumbrado e triunfante surgiu no rosto do rapaz quando ele pairou — pairou lentamente, não caiu — até o chão. — Jack! — choramingou Sara. — Jack, ai, Jesus, Jesus, Jesus… Uma ponta de medo percorreu seus nervos. Desferiu socos, um-dois, e ambos passaram pelo rapaz sem tocá-lo. Os pés do garoto tocaram o chão. Seu sorriso se retorceu, e ele avançou — o corpo passando direto através de Jack, partindo para Sara. Jack se virou e foi atrás. Sara cambaleava na direção da porta, segurando a bolsa a tiracolo como se aquilo pudesse protegê-la. O garoto estendeu as mãos para a frente, cortando a bolsa pela metade com um barulho rascante, tal qual um papelão grosso rasgado por um canivete. Jack agarrou a gola de couro do corcunda e o puxou para trás com toda a força. O garoto ficou insubstancial antes que os pés saíssem do chão, mas Jack conseguiu empregar um certo impulso, e ele voou para cima e para trás. Viu o rosto pálido avermelhar-se com fúria ao desaparecer através do teto. A parte debaixo do corpo permaneceu visível quando ricocheteou para trás e para baixo. — Meu Deus, meu Deus! — Sara arranhava a porta da suíte, tentando destrancá-la. — Ai, caralho! Jack entendera. O rapaz precisava tornar-se sólido para usar as mãos de serra circular. Ficava vulnerável quando tentava matar. Era tão mais fácil quando tudo que precisava fazer era agarrar carros cheios de nazistas fugitivos e virá-los de cabeça para baixo. Sara conseguiu abrir a porta e desapareceu pelo corredor, aos berros. O garoto de jaqueta de couro foi correndo atrás dela, a cabeça aparente, e Jack bateu nele algumas vezes só para garantir que ele não fosse tentar ficar sólido de novo. O corcunda continuou flutuando e atravessou a parede até o aposento de Jack. — Merda — resmungou o ás. Pensou em atravessar a parede atrás dele e decidiu não fazê-lo — poderia ficar preso. Correu para a porta do quarto e atravessou-a como um flash brilhante. Viu o garoto de jaqueta de couro sólido e de pé, correndo para a parede que levava ao corredor do lado de fora. O assassino ficou insubstancial e mergulhou. — Merda — repetiu Jack , dando meia-volta e disparando para a porta do corredor. O garoto estava bem diante dele. Sara não estava à vista, devia ter corrido para a sacada do átrio.
“Don’t Cry for Me, Argentina” subia do térreo. Jack acelerou, deu um soco e errou a nuca do garoto por centímetros. O impulso do murro lançou-o para fora do rumo e o fez dar uma cambalhota até bater na parede, e o garoto continuou a se afastar. O corcunda devia ter ouvido Jack atrás de si, porque, quando chegou à sacada do átrio, virou-se e abriu aquele sorriso maníaco. Apenas para fins demonstrativos, uma das mãos de serra circular limou um pedaço de concreto da parede da sacada. Jack ainda avançava com impulso considerável. Plantou os pés na frente do garoto e usou o movimento para lançar o tronco para frente, a mão direita batendo no peito do corcunda com cada grama de força que possuía. O assassino ficou insubstancial. A força do murro fez com que Jack atravessasse o parapeito da sacada com o brilho de luz dourada. ♠ Sara saiu correndo pela porta na direção do corredor — a escadaria parecia se fechar ao redor dela, prestes a brotar um braço que a partiria ao meio. O terror era um nó sólido em sua garganta. Não tinha ideia de para onde estava indo. Uma parte distante de sua mente observara que, naquele momento, apenas o pânico era seu amigo. Porque não tinha aonde ir, logicamente, e o pânico era melhor que o desespero. Eu deveria voltar lá e oferecer minha garganta, pensou, ensandecida. Mas as pernas continuavam a avançar. A parede fez mesmo brotar uma mão, que envolveu seu pulso. Sara gritou. Era como se o coração estivesse explodindo e o som saísse pela boca. Despencou, aterrorizada. — Levante-se — disse uma voz, suave, mas enérgica. Com sotaque. Ergueu os olhos para o velho que a perseguiu depois que escapara do café da manhã de Tachyon. Em vez da camiseta do Mickey Mouse, usava um blazer verde-limão. — Levante-se — ordenou o sujeito, mais uma vez. — Agora você sabe que o que eu disse é verdade. Sara deixou que ele a erguesse, assentindo. Não encontrou palavras. Perdera os sapatos. — Venha comigo. Vou te levar para um lugar seguro. Ela foi. ♦ O átrio do Marriott se abria lá embaixo, e Jack teve todo o tempo do mundo para pensar em como fora estúpido. Caiu, agitando os braços e as pernas. As sacadas giravam ao passar. A vertigem e o terror repuxavam seu estômago. Gritou só para dar às pessoas lá embaixo a chance de abrir espaço. “Don’t Cry for Me, Argentina” subia em sua direção.
Ocorreu-lhe fazer alguma coisa para impedir a queda. Estendeu braços e pernas como um paraquedista e tentou estabilizar e reduzir a velocidade com que despencava. Seu estômago deu outro nó quando o corpo chacoalhou forte, mas a técnica logo surtiu efeito. A vertigem diminuiu. Os destroços da camisa Givenchy tremulavam atrás dele como uma bandeira, os restos da manga estalando em pequenos ruídos sônicos perto da orelha. O soco o levara direto para dentro do átrio, e não parecia haver chance de guiar a queda, então bateria numa sacada, em vez de cair até o térreo. Esforçou-se para pensar. Havia tirantes presos aqui e ali, com pedaços coloridos de tecido servindo como pequenas bandeiras abstratas de brilho contra a estrutura intimidadora e sáuria do átrio. Tentou alinhar a queda na direção de um deles. Possivelmente a interromperia. Jack gritou de novo, pois o esforço de guiar a queda resultou numa guinada de cabeça para baixo. Agitou os braços e se estabilizou, em seguida desejou poder pensar em algo corajoso e inspirador para dizer. Não que alguém fosse ouvir, com o som do piano. Errou o alvo por seis metros. Começou a se concentrar na tentativa de aterrissar onde não houvesse pessoas. Deu outro berro. Ases Voadores dançavam e planavam abaixo dele, pontos brilhantes e zombeteiros de cor. As pessoas no térreo deviam ter ouvido, pois estavam tentando sair do caminho. Havia um espaço branco lá embaixo que parecia um bom alvo. Tentou ajustar a queda naquela direção. Conseguia ver as pessoas. Uma puta negra de cabelos loiros tentava correr, mas usava saltos tão altos que só conseguia saltar como um pardal. Um homem de fraque branco olhava para cima, como se não acreditasse nos próprios olhos. Hiram Worchester pulava e agitava o punho. Earl Sanderson passou por ele, flutuando, asas estendidas seguindo para a luz. Jack sentiu uma onda repentina de tristeza. Tarde demais, pensou e, em seguida, imaginou o que queria dizer com aquilo. De repente, o som do vento nos ouvidos de Jack pareceu diminuir. Sentiu um puxão na barriga, como quando o elevador começa a se mover. O chão não estava mais se aproximando tão rápido. Percebeu que estava mais leve. Hiram reduzira seu peso, mas não fora capaz de impedir a queda. Viu que o espaço branco era o grande piano. Estava prestes a mergulhar no instrumento. Pelo menos não vou mais ouvir aquela música estúpida sobre a Argentina, pensou. ♥ Spector percebeu que tinham seguido para o Bairro dos Curingas de Atlanta. O verdadeiro Bairro dos Curingas ficava em Nova York , mas a maioria das grandes cidades também tinha um gueto para os esquisitões. Os prédios estavam em
ruínas, queimados ou dilapidados. A maioria dos carros na rua pareciam lixões imóveis. Havia frases pichadas nos muros, MATEM OS BIZARROS ou PURÊ DE MONSTROS. Obviamente não eram feitas pelos curingas da vizinhança. O Bairro dos Curingas de Atlanta não era tão grande a ponto de impedir que limpos malucos fizessem uma visitinha para quebrar as coisas ou bater em algum de seus moradores. Spector ouviu um estrondo que não era de trovão e olhou para trás. Um Chevy 57 rosa e branco estava no encalço deles. O abafador estava quebrado, e o carro fazia muito barulho. Não dava para ver direito e ter certeza, mas imaginou que devia ser pilotado por vândalos pirados. — Não se preocupe — comentou Tony, estacionando depois de um Rambler morto. — Quem está preocupado? — Não era só papo. Spector matara mais brigões de rua do que podia contar. Abriu a porta do carro e olhou para Tony. — Venha comigo. — Tony deu a volta no carro e subiu alguns degraus até uma porta bem iluminada. Apertou a campainha e esperou. Spector seguiu devagar atrás dele, ainda de olho na rua. O Chevy passara devagar e virara a esquina. Ainda podia ouvi-lo na rua seguinte. A porta se abriu. Uma curinga num vestido azul simples sorriu para os dois. Estava coberta de algo que pareciam cabelos amarelos de borracha. — Tony! — Ela agarrou Calderone e lhe deu um abraço. — Não esperávamos vê-lo nesta viagem, você anda tão ocupado. — Nunca perco a chance de fazer uma visita, Shelly, você sabe disso. — A mulher deu um passo para trás e puxou Tony para dentro pela manga da camisa. Spector o acompanhou. — Shelly, este é Jim Spector, um velho amigo de Jersey. Shelly o encarou, confusa, e Spector teve medo de que ela o tivesse reconhecido pelo nome. Mas, um instante depois, a mulher estendeu a mão. Spector a cumprimentou. Os pelos emborrachados eram estranhos, e a mão cedeu demais quando apertada. — Muito prazer, Jim — cumprimentou ela, recolhendo a mão, então virou-se para Tony: — Por que não avisou que vinha? E ainda por cima acompanhado. Eu teria dado uma geral no lugar. Tony balançou a cabeça. — Shelly, minha casa nunca fica tão arrumada quanto essa. Spector olhou ao redor. O cômodo era surpreendentemente limpo. A mobília era barata, mas limpa e brilhante. Um negro estava sentado no sofá, assistindo a um filme. Esta família, como quase todas as famílias de curingas, nada tinha a ver com relações consanguíneas. Eram as deformidades que os uniam. — Este é Armand. — O sujeito se virou quando Tony anunciou seu nome. Sua mandíbula abria ao contrário, a boca era uma fenda rósea e vertical. Não tinha lábios ou narinas, pelo que dava para ver. Armand deu a mão para Tony e depois estendeu-a para Spector. — Prazer em conhecê-lo — cumprimentou Spector. Ao menos parecia normal. — As crianças estão na sala de jogos? — perguntou Tony, avançando para a
sala seguinte. — Estão. Jogando cartas, eu acho. Vocês aceitam um café? — Ela olhou para Tony, em seguida para Spector. Tony olhou para Spector, que negou com a cabeça. — Não, obrigado, Shelly. Acabamos de nos empanturrar no jantar. — Tony deu um tapinha no ombro dela e foi para a próxima sala. Spector deu um sorriso amarelo e o seguiu. Estavam sentados diante de uma mesa de jogos. A garotinha, um pouco mais velha, era bonita, exceto pelos braços, cobertos de fileiras do que pareciam espinhos de rosa. O menino à sua frente segurava as cartas nos pés preensores. Não tinha braços, e a cabeça era muitas vezes maior do que o normal. Estava sustentada por uma armação de metal presa às costas da cadeira de rodas. — Oi, tio Tony — disseram os dois. Pareciam mais interessados nas cartas. — E aí, meninos. — Ele se sentou à mesa com eles. — Quero que conheçam um amigo meu. O nome dele é Jim. — Olá, crianças — cumprimentou Spector. Sentiu-se totalmente deslocado, teria ficado mais confortável com um cabo de vassoura enfiado na bunda. — Eu sou Tina — disse a garotinha, virando uma carta. — Jeffrey. — O garoto não se virou para olhá-lo. De qualquer forma, não parecia ser muito fácil fazê-lo. Ele virou uma carta e gargalhou. Seu valete derrotara o oito da menina. Pôs as cartas de volta no fundo do maço. A pilha de cartas de Jeffrey era um pouco maior que a de Tina. — Jogando rouba-monte? — Rouba-monte curinga — corrigiu Tina. Tony ergueu os olhos. — É igual, só que os curingas ganham de tudo. E a rainha negra mata a carta da outra pessoa. — Tony sorriu. Spector não conseguia imaginar por que a porra do amigo estava tão feliz. Jeffrey pegou outra carta. — Acho que ele entendeu sua jogada, Tina — disse Spector. Tina franziu o nariz e lhe lançou seu melhor olhar matador. Spector deu um passo para trás, fingindo ter medo. Jeffrey não parecia tão desgraçado como devia ser. Spector quis matá-lo e salvar o garoto de uma vida infernal, mas, como se dizia, aquilo não estava nas cartas. — Mamãe disse que podemos ver um filme mais tarde — comentou Tina. Ela virou as cartas e deixou Jeffrey pegá-las. Vai passar Sob o domínio do mal. Tony suspirou. — Política, controle da mente e assassinatos. Não é filme para crianças. Vou falar com a Shelly e… — Não faça isso, tio Tony — implorou Tina. Ela olhou para Spector. — Senhor, não deixe ele fazer isso. A mamãe prometeu. Spector deu de ombros. — Não quero me encrencar com você, meu amigo. Tony ergueu as mãos. — Democracia em ação — retrucou ele, voltando para a sala de estar. — Eba! — comemorou Tina.
— Minha rainha mata seu último ás. — Jeffrey abanou as cartas com os dedos do pé. — Ganhei. — Parabéns, crianças — disse Spector. — Às vezes, isso basta. Não esqueçam. ♣ Depois da queda, quando aterrissou bem no meio do piano e atravessou o assoalho para cair na área de serviço do andar inferior, o que o surpreendeu foi começar a flutuar para cima de novo, através do buraco que acabara de abrir. Hiram o deixara mais leve que o ar. Merda. Antes que pudesse flutuar para o espaço, Jack agarrou uma das barras de suporte retorcidas que seguravam o assoalho do átrio. Ficou pendurado de cabeça para baixo. Os bulbos dos flashes o deixaram tonto. Um refletor de televisão apontava para o meio de seus olhos. O pianista cambaleava como se estivesse bêbado. Da luz ardente conseguiu ver Hiram espreitando o rosto gorducho. — Tem um assassino à solta! — gritou. — Um rapazinho com jaqueta de couro! É um carta selvagem! — Onde? — Hiram arregalou os olhos para ele. — No andar do senador! Hiram ficou branco como cera. Virou-se e saiu correndo, os braços e as pernas sacudindo. A multidão espalhou-se num pandemônio. — Hiram! — gritou Jack. — Worchester, que inferno! Ainda estava mais leve que o ar. E era o único que sabia a aparência do assassino e como pará-lo. O pianista dançou diante dele em seu fraque branco. Apontou para Jack. — Ele tentou me matar! Ele me ameaçou mais cedo! — Cale a boca, seu merda — retrucou Jack . O pianista ficou branco como o fraque e desapareceu. A dose antigravidade de Hiram diminuiu em poucos minutos, e Jack tentou correr para o elevador. Ainda estava muito leve e quicava como um astronauta na lua. Continuou pulando pelo átrio sem chegar perto dos elevadores. O pessoal da segurança estava no processo de barrar as portas, o que não deteria alguém que conseguia atravessar as paredes. Por fim, um estranho o levou pela mão até o elevador. Enquanto Jack subia, tentou não pensar no corcunda magrelo sentado lá em cima, cortando cabos com as mãos de serra circular. A segurança estava concentrada no corredor que levava ao apartamento de Hartmann e ao QG. Billy Ray destacava-se em seu traje branco, flexionando os músculos diante de uma bateria de ternos cinzentos do Serviço Secreto. Alguns deles nem escondiam as metralhadoras. Tirando o concreto pulverizado das roupas rasgadas, Jack foi até Ray e descreveu o assassino, inclusive o fato de que conseguia se desmaterializar. Para variar, Ray levou o trabalho a sério e não simplesmente ignorou Jack. Passou adiante a informação via rádio e pediu a ele que entrasse em outra sala para responder a algumas perguntas. Jack perguntou se podia trocar de roupa primeiro — as suas estavam destruídas. Ray assentiu.
Jack voltou ao apartamento. Quando passou pela porta, percebeu que não se dera ao trabalho de dizer que fora ali que a briga ocorrera. Foi para o quarto, e seu pé bateu em algo que jazia no carpete. Olhou para baixo e viu parte da bolsa a tiracolo de Sara. Curvou-se e sacudiu o pedaço de bolsa. Encontrou um terço de um laptop fatiado, junto com pedaços de papel que voaram para o chão. Abaixou-se para pegar os papéis. Havia várias páginas grampeadas e cortadas com cuidado na parte superior, um folheto de imprensa com as datas de aparições de Leo Barnett nos dias anteriores à campanha. Outro era o topo de uma página de bloco amarela rabiscada com esferográfica azul. A expressão “Ás Secreto” estava sublinhado várias vezes. Embaixo havia apenas rabiscos, uma fileira de cruzes, uma lápide. A próxima página era uma fotocópia impressa nos antigos papéis brilhantes de fotocopiadoras. Obviamente um documento oficial. Estava escrito: DEPARTAMENTO DE DEFESA, DD #864-558-2048(b) EXAME SOROLÓGICO DE XENOVÍRUS TAKIS-A O restante estava cortado. Jack encarou o papel por um bom tempo. O segredo do ás secreto, pensou, talvez não durasse muito mais.
22h00
Spector ficou aliviado quando chegou a hora de ir embora. Todos se despediram, exceto Armand, que parecia não conseguir falar. Tony deixou um envelope com Shelly quando pararam na entrada. Spector imaginou que contivesse um cheque. A mulher curinga acenou em adeus e fechou a porta. Spector e Tony desceram as escadas e foram para o carro. — Vê o que acontece quando você dá uma chance para eles? — comentou Tony. — Ah, merda. — Estava olhando para o carro. Alguém pichara a lataria com BARNETT PARA PRESIDENTE! em letras amarelas enormes. Spector não respondeu, mas imaginou que os adesivos de Hartmann no carro de Tony tinham sido uma tentação para os idiotas com lata de spray. — Quer apostar que foram aqueles babacas no Chevy? — É bem provável. — A voz vinha de trás deles. Spector e Tony se viraram de supetão. Eram sete, de calças jeans e camisetas manchadas de suor. O maior usava uma jaqueta marrom de couro no estilo aviador. — Mas não gostamos de ser chamados de babacas. Acho que precisamos ensinar boas maneiras para os dois. Os outros soltaram grunhidos de aprovação. Spector já tinha visto e ouvido tudo aquilo, mas daquela vez era diferente. Não podia simplesmente matar os valentões, ou Tony descobriria que ele era um ás. Sete contra dois era uma perspectiva péssima. Tomariam uma surra. O garoto de jaqueta encaixou um soco-inglês nos dedos e foi direto para Tony. Os outros se espalharam e se aproximaram. Tony se encolheu com os punhos levantados. Spector se aproximou. Por sorte, conseguiu manter o rapaz com o soco-inglês ocupado. Machucou, mas se curaria num estalo. Tony, não. Ao menos nenhum deles parecia portar facas ou armas. O líder soltou um golpe para cima de Tony e recebeu um soco de direita no queixo como prêmio. O garoto recuou um passo, mas os outros se juntaram à briga. Spector acertou sem querer o cotovelo na garganta de um dos valentões, mas aquele não era seu tipo de briga. Foi derrubado depressa, e começaram a chutá-lo na barriga. Spector se encolheu e protegeu a cabeça. Continuaram chutando com vontade, então pararam. — Vamos dar uma lição de verdade a esses adoradores de curingas. — O garoto falou com a arrogância própria de um valentão de rua com cérebro de ervilha. Spector rolou para o lado e ergueu os olhos. Tony estava caído ao seu lado, o sangue escorria da boca e do nariz, os olhos fechados. Estava apagado. O garoto de jaqueta puxou um canivete e o abriu com um clique. Spector sabia que a brincadeira acabara. Piscou algumas vezes para desanuviar a mente antes de matar o garoto. Atrás dele, ouviram um tiro vindo de uma janela. O garoto caiu com um olhar estranho no rosto, e o canivete voou para a escuridão. Os outros valentões
se dispersaram antes que Spector pudesse se levantar. O garoto se recuperara do choque inicial e estava gritando na calçada. Seu braço direito era uma massa sangrenta entre o ombro e o cotovelo. Spector cambaleou para se levantar e chutou a boca do rapaz. — Cale a boca ou arranco sua língua, seu babaca. O rapaz parou de gritar, mas ainda soltava gemidos patéticos. Armand desceu as escadas segurando um rifle. Shelly estava um passo atrás, a mão emborrachada sobre a boca. Tina estava com o rosto grudado na janela, espiando a calçada. Luzes de alpendres — as que funcionavam — acendiam e apagavam pela rua. Vários vizinhos se aproximaram. Spector virou o amigo com cuidado de barriga para cima. Tony tinha um corte sério na testa e vários dentes da frente estavam lascados ou quebrados. — Ele está bem? — Shelly enxugou o sangue no rosto de Tony com a manga do vestido. — Acho que vai ficar bem — respondeu Spector, abrindo a porta de trás do carro e erguendo Tony por baixo dos braços. — Me ajude a levantá-lo. Precisamos levá-lo ao hospital. — Armand pegou as pernas de Tony, e os dois o deitaram no banco de trás. Spector virou-se para Shelly. — Sabe onde fica o hospital mais próximo? Shelly assentiu. — Então suba no banco do carona e me diga aonde ir. — Spector pegou as chaves do carro de Tony, fechou a porta e foi para o banco do motorista. Armand agarrou-o pelo cotovelo e apontou para o garoto com um menear de cabeça. Spector tossiu. — Tony diria para você entregá-lo à polícia e esperar pelo melhor. Mas, pessoalmente, eu cortaria a garganta dele e daria de comida para os cachorros da vizinhança. O rosto de Armand mudou, mas Spector não tinha certeza se era um sorriso. Sentou-se no banco do motorista e ligou o Regal. — Ponha o cinto, Shelly — mandou, fazendo o mesmo. Ela obedeceu. Tony gemeu quando Spector pisou fundo no acelerador. Saíram cantando pneus noite adentro. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo V
Sexta-feira, 22 de julho de 1988
6h00
A escuridão deveria ter sido tranquilizadora. Em vez disso, o ar-condicionado rosnava como uma fera maligna letárgica, e demônios dançavam no reino penumbroso do teto. Gregg sentia as mãos trêmulas. Estava à beira de um ataque de nervos. O pânico ameaçava tomá-lo e deixá-lo aos berros. — Gregg? — sussurrou Ellen, ao seu lado. A mão macia tocou o peito do marido. — Ainda são seis da manhã. Você deveria estar dormindo. — Não consigo. — Mal abriu a boca para soltar a frase, temendo que pudesse começar a gritar de novo. A mão da mulher acariciou seu peito, e o pânico foi cedendo aos poucos, embora sua sombra permanecesse ao fundo. Ficou deitado, tenso, sentindo o Titereiro rastejar lá dentro, como uma lesma por baixo da pele. — Não importa o que aconteça, vou ficar feliz quando essa convenção terminar — comentou a esposa. — Estou perdendo tudo, Ellen. — Gregg fechou os olhos e respirou fundo, lentamente, mas isso não o acalmou. As aparições continuavam a dançar por trás das pálpebras. — Está tudo desmoronando ao meu redor, tudo. — Gregg… meu amor… — Os braços de Ellen o envolveram, o corpo se recostando no dele, e ela o abraçou. — Pare. Está deixando o estresse te dominar, é só isso. Se você falasse com Tachyon, talvez ele possa receitar… — Não — interrompeu Gregg, com veemência. — Não há nada que um médico possa fazer. Ellen recuou com o tom ríspido, depois retomou: — Eu te amo — disse, sem saber como confortá-lo. — Eu sei. — Ele suspirou. — Eu sei. Isso é muito bom. Meu Deus, você tem sido tão compreensiva com o jeito como tenho agido… — Por um momento, esteve a ponto de confessar, de simplesmente deixar a loucura sair para botar um ponto final naquilo tudo. Então, o Titereiro se contorceu em seu íntimo, num lembrete, e ele empurrou a força para trás com cuidado. Você não pode falar , disse a força. Eu não vou deixar . — Está se preocupando demais. A nomeação vai ser sua, ou não vai ser. Se não for este ano, você estará em boas condições para 1992. Podemos esperar. Teremos tempo para o bebê crescer um pouco. — Gregg a sentia sorrir corajosamente, sua pequena obsessão. — Vai ter o suficiente para mantê-lo ocupado com nosso filho ou filha. Uma pequena parte de nós. Ellen tomou a mão de Gregg e a pôs sobre a barriga inchada, bem abaixo do umbigo.
— Consegue sentir? — perguntou. — Está chutando muito, ultimamente. O bebê está ficando mais agitado a cada dia, cada vez mais forte. Está acordando. Sentiu isso? Diga oi para o papai! — arrulhou ela. De repente, Gregg desejou que ela estivesse certa, que tivesse acabado. Ellen trouxera o tema à tona depois dos meses agitados da excursão, e ele ficou surpreso por ter concordado tão fácil. Parecia certo, um símbolo de normalidade depois da violência e do ódio. Levou alguns meses, e ele ficou feliz quando descobriram que Ellen estava finalmente grávida. Apesar de tudo, queria a criança tanto quanto ela. Gostava de bancar o pai orgulhoso, ansioso. Até mesmo a força dentro dele parecia compartilhar dessa felicidade. Uma pequena parte de nós. Agora, mal conseguia se lembrar daquilo. O orgulho, o amor e a esperança tinham sido afastados pelas necessidades do Titereiro. Sentiu um leve tremor na ponta dos dedos. Ellen gargalhou com os movimentos do bebê. Tempo para o bebê crescer um pouco. E Gregg quase tirou a mão, como se queimasse. A suspeita foi como um golpe físico. Ele sabia e, com isso, o Titereiro uivou lá dentro. As dificuldades do Titereiro tinham começado poucos meses antes, a princípio lentas e intermitentes. Na época, a presença de Gimli era leve, fraca e disforme, facilmente afastada. Ficando mais agitado a cada dia, cada vez mais forte. — Ai, meu Deus — sussurrou Gregg. O feto chutou de novo, suave. Deixou o poder sair só um pouco. Olhou dentro de Ellen, para as cores primárias do feto. Lá, envoltos como uma videira na matriz emocional da criança, havia outros tons. Matizes e sombras muito familiares. Gimli dissera: Não, não estou morto. Só mudei um pouco. Levei um tempo para conseguir voltar… — Às vezes eu não acredito. — Ellen riu. — É tão incrível sentir, saber que essa vida, o nosso filho, está crescendo dentro de mim. Gregg ficou deitado, os olhos arregalados, encarando a barriga da esposa e a própria mão. — Sim. Sim, é incrível. — Fico imaginando a quem ele vai puxar. — Ellen deu tapinhas na mão de Gregg. — Aposto que vai sair parecido com você. Não pode ser verdade, disse a si mesmo. Por favor , não pode ser verdade. Mas sabia que era.
7h00
— Meu Deus, pare de me beliscar! Não preciso dessa merda! — Jack agarrou as mãos do takisiano e as afastou. — Jesus! Tach reprimiu a irritação que sentiu crescer como ânsia no fundo da garganta, mas ainda assim respondeu, num tom levemente incomodado: — Eu estava preocupado. Você poderia ter morrido. O isqueiro estalou quando Jack acendeu um Camel. — Bem, encontre outra maneira de demonstrar preocupação. Aliás, você parece acabado. — Muito obrigado. Não dormi, noite passada. — Ora, eu também não. — Jack, o que houve? As notícias estão tão confusas. Eu estava lá, escovando os dentes, quando vi você mergulhando dentro do piano. — Ele inclinou a cabeça para um lado e pensou. — O que, suponho, foi a única coisa boa que resultou dessa bagunça. — Coisa boa… Eu estava mirando na droga daquele piano. — Em seguida, em frases curtas, o ás descreveu o restante da noite, a vinda desajeitada de Sara. O plano de Jack para tirar a jornalista do caminho, a chegada do corcunda horripilante, a briga. O vômito com sabor de conhaque bateu no fundo da garganta de Tachyon, e ele correu para o banheiro. — O que foi agora? — gritou Jack . Tach voltou limpando a boca numa toalha molhada. — E Sara, onde ela está? — Caramba, não sei. Ela saiu do quarto que nem um míssil, e nem posso culpá-la. Não a vejo desde então. Tachyon cobriu o rosto com as mãos. — Mães da minha mãe, me perdoem. Eu não acreditei. — Quê? — Ela me procurou na segunda-feira. Tentou me dizer que estava em perigo. Eu não acreditei. — A gravidade do que tinha acabado de dizer o abalou, e Tach cambaleou de volta ao banheiro. Só saía suco gástrico. O ácido queimou sua garganta ao subir. Assim como a acidez que dissolvia sua confiança, suas certezas. Hartmann é um ás. Me ajude. Você vai se arrepender . Segurando a privada, a borda fria de cerâmica contra o rosto fervente, Tach murmurou: — Me ajude. Jack o levantou e perguntou: — Como? Do que você precisa? Que diabos está acontecendo? Por que mencionou um ás secreto na segunda-feira? Fale comigo, Tachy.
— Agora não, Jack. Agora não. Preciso encontrar Sara.
8h00
Billy Ray bateu na porta e enfiou a cabeça por uma fresta. — A segurança mandou dizer que a escadaria está livre, senador. Vocês dois estão prontos? — Estamos indo agora — respondeu Gregg. Terminou de atar a gravata e ajustou-a no pescoço. O Titereiro estava à espreita logo abaixo da superfície, esperando como um gato habilidoso. Ellen veio do quarto e olhou para Gregg, preocupada. Ele sorriu de volta, tranquilizador, odiando a atuação. — Estou bem — falou. — Muito melhor esta manhã, depois de ter conversado com você. De volta ao normal. — Abraçou-a e acariciou a barriga da esposa. — No fim das contas, o bebê talvez tenha um pai presidente, certo? Ellen recostou-se nele. Abraçou-o sem dizer nada. — Ele ainda está chutando, querida? — Ele? O que faz você pensar que é um garoto? — provocou Ellen, abraçando-o de novo. Gregg deu de ombros. Porque meu filho é uma porra de um curinga anão que deveria estar morto. Porque eu o ouvi falando comigo. — É só um palpite, meu amor. Ellen deu uma risadinha, recostada ao peito do marido. — Bem, ele está quietinho agora. Acho que dormiu. Gregg soltou um suspiro. Fechou os olhos por um instante. — Ótimo — disse. — Vamos, então. Amy e John já devem estar esperando. Acenou para Billy. As reuniões matutinas de equipe eram realizadas no quartel-general da campanha, um andar abaixo. Gregg sempre descia pelas escadas, embora pudesse ter requisitado um elevador — o que parecia desnecessário. Ficava feliz com a rotina. Sabia exatamente o que precisava fazer. Tem certeza? Tem certeza de que isso vai acabar com ele? A força vibrava com intensidade. A voz do Titereiro era insistente. Não sei. Se não, dou outro jeito. Juro. Agora que sabemos, podemos planejar . Esteja alerta e pronto. A escadaria era um contraste feio com os corredores: patamares de concreto manchado conectados por degraus de metal altos. Assentiram para Alex James, a postos como de costume. Os ecos ressoaram quando Billy segurou a porta aberta para Ellen passar. Gregg segurou a porta e acenou para Billy ir na frente. Não quero fazer isso. Não, pensou Gregg. Não temos escolha, respondeu o Titereiro. Ávido. Buscou Gimli na cabeça e não encontrou nada. Soltou o Titereiro. Quando Ellen se aproximou da escada, a força saltou dele às pressas, temendo que, se hesitasse, Gimli o impediria de novo. Invadiu a mente da
mulher, aberta havia muito, e encontrou o que queria. Estava lá, como ele sabia que estaria: uma vertigem tênue que rodopiaria quando Ellen olhasse para baixo; uma sensação inquietante de desequilíbrio por causa do peso da barriga, que a pendia para a frente. O Titereiro afetou as duas reações, enfraquecendo tudo que restava na mente da mulher. Quando o pânico rápido e inevitável se seguiu, ele também o amplificou. Levou menos de um segundo. Foi pior do que Gregg imaginava. Ellen ficou à beira do colapso, gritou de pavor. Sua mão tentou agarrar o corrimão, mas era tarde demais. O Titereiro saltou para Billy Ray. Truncou a onda de adrenalina quando Billy viu Ellen perder o equilíbrio no primeiro degrau, retardando os reflexos excelentes do ás. O próprio Gregg não poderia ter feito nada, mesmo se quisesse, preso atrás de Ray. Billy deu um salto corajoso sobre Ellen, as pontas dos dedos tocaram o braço agitado dela e fecharam-se no vazio. A mulher caiu. Pareceu levar muito, muito tempo. Gregg empurrou um Ray horrorizado, cuja mão ainda estava estendida inutilmente para a frente. Ellen jazia contra a parede no patamar seguinte, os olhos fechados, um corte profundo na lateral da cabeça, de onde vazava sangue. Quando Gregg a alcançou, seus olhos se abriram, embaçados pela dor. Ela tentou se sentar quando ele a puxou para perto, e Ray gritou para James chamar uma ambulância. Ellen gemeu e segurou a barriga. Sangue brilhante escorria por entre as pernas dela. Seus olhos se arregalaram. — Gregg — chamou, arfante. — Ai, Gregg… — Sinto muito, Ellen. Meu Deus, eu sinto muito. Em seguida, ela começou a chorar, soluçando até perder o ar. Ele chorou junto, arrasado com a criança que poderia ter vingado, enquanto outra parte de seu cérebro celebrava. Naquele instante, odiou o Titereiro.
9h00
A turma do café da manhã já estava rareando-se. Algumas pessoas ali presentes — negras, brancas, todas trabalhadoras — precisavam pegar no batente. Spector estava muito mais confortável naquele local do que no Marriott. Havia muitas pessoas que ele desejava matar, no outro hotel e, depois do ataque da noite anterior, seu humor estava especialmente ruim. Folheava o jornal da manhã, mas, até aquele momento não vira nada sobre Tony ter parado no hospital por conta de um grupo de brutamontes anticuringas. Deixou Shelly dar a entrada de Tony no hospital. Não queria estar por perto quando os policiais aparecessem e começassem a fazer perguntas. Não havia motivo para dar chance ao azar. Shelly estranhou a saída dele, mas Spector sabia que ela não falaria nada. Estava contente por ele estar do lado deles, e aquilo já era o bastante. Spector terminou os bolinhos de batata e o bacon. O café estava quente, e enchiam sua xícara a todo o momento, então não precisava ir a lugar algum. De qualquer forma, já estava começando a perder o entusiasmo por aquele servicinho. Talvez devesse visitar Tony e dar o fora. Resolveria o problema mais tarde. Naquele momento, precisava relaxar e cuidar da própria vida. ♠ Seis jornalistas estavam alinhados no fundo da sala de espera. Gregg olhava sempre que as portas se abriam: um banho de luzes portáteis, uma confusão de flashes eletrônicos, uma barafunda de perguntas gritadas. A notícia da queda de Ellen se espalhara depressa. Antes de a ambulância chegar ao hospital, os jornalistas já estavam esperando. Billy Ray recostou-se na parede, carrancudo. — Posso pedir para a segurança retirá-los, senador. São como um bando de urubus. Gente mórbida. — Tudo bem, Billy. Estão só fazendo o trabalho deles. Não se preocupe. — Senador, eu estava tão perto, mesmo. — Billy fechou o punho diante do rosto, a boca retorcida. — Eu deveria ter conseguido segurar Ellen. Foi culpa minha. — Billy, não foi. Não foi culpa sua. Não é culpa de ninguém. Gregg estava sentado num sofá com a cabeça apoiada nas mãos, na área de espera do centro cirúrgico. Era uma pose cuidadosa: o Marido Atormentado. Lá dentro, o Titereiro estava exuberante. Cavalgava na dor de Ellen, deliciando-se. Mesmo sob a tontura do anestésico, conseguia fazê-la se retorcer por dentro. A preocupação com o bebê era azul-escuro, fria, primitiva. O Titereiro transformou a emoção num verde-safira saturado, aos poucos decaindo para o vermelho-alaranjado dos ferimentos.
Mas melhor — muito, muito melhor — era Gimli. A coisa-Gimli que se prendera a seu filho estava atormentada, e não havia drogas que atenuassem a dor, nada para impedir que o Titereiro a dobrasse e redobrasse. Gregg conseguia sentir Gimli sufocar, engasgar, gritar dentro do útero de Ellen. E o Titereiro gargalhava. Gargalhou quando o bebê morreu, porque Gimli morreu com ele. Gargalhou porque aquela insanidade acabara. A morte lenta e horrível do feto era saborosa. Era boa. Gregg sentiu isso tudo em meio a um torpor. Estava dividido. A parte dele que era Gregg odiava aquilo, estava estarrecido e enojado com a reação exultante do Titereiro. Aquele Gregg queria chorar, e não gargalhar. Você não deveria se sentir aliviado. É seu filho morrendo, cara, uma parte sua. Você o queria e o perdeu. E Ellen… ela te ama, mesmo sem o Titereiro, e você a traiu. Como pode não estar triste, seu filho da puta? Mas o Titereiro apenas zombava. Gimli teve o que merecia. Não era seu filho, não mais. É melhor que morra. É melhor que nos alimente. Em sua cabeça, Gregg ouvia os soluços de Gimli. Era um som horrendo. O Titereiro deu uma risadinha com a angústia e a desolação daquele ruído. O choro de Gimli de repente se transformou num berro crescente e desesperado. Quando sua voz ficou aguda, começou a diminuir, como se Gimli estivesse caindo num fosso profundo e escuro. Então, o nada. O Titereiro soltou um gemido orgásmico. A porta da sala de cirurgia se abriu com tudo. Uma médica de uniforme cirúrgico verde suado apareceu. Ela meneou a cabeça para Gregg e Ray, fazendo uma careta. Caminhou lentamente até eles quando Gregg se levantou. — Sou a Dra. Levin — anunciou. — Sua esposa está descansando, senador. Foi uma queda terrível para uma mulher nas condições dela. Estancamos a hemorragia interna e demos pontos no corte da testa, mas ela vai ficar com muitas escoriações. Quero tirar uma radiografia dos quadris, mais tarde. A pélvis não quebrou, mas quero garantir que não há fraturas. Precisaremos mantê-la em observação por um ou dois dias, no mínimo, mas acho que, no fim das contas, ela vai ficar bem. Levin hesitou, e Gregg sabia que ela estava esperando a pergunta. A pergunta. — E o bebê? — perguntou Gregg. A doutora comprimiu os lábios. — Não pudemos fazer nada por ele… era um menino, aliás. Estávamos lidando com o prolapso do cordão umbilical e a placenta que se soltou da parede do útero. A criança ficou sem oxigenação por vários minutos. Somando-se isso aos outros ferimentos… — Outra careta. Ela esfregou as mãos, respirou fundo e o encarou com olhos escuros e compassivos. — Deve ter sido melhor assim. Sinto muito. Billy socou a porta, criando um buraco denteado na madeira e abrindo longos vergões no braço. Ele começou a xingar baixinho, sem parar. O Titereiro virouse para alimentar-se da culpa, mas Gregg forçou o poder para baixo da superfície novamente; pela primeira vez em semanas, o poder obedeceu com docilidade. Gregg encarou a parede por um momento. Com o Titereiro satisfeito, a outra parte dele conseguiu sofrer. Engoliu a
tristeza. Quando voltou a si, a médica estremeceu num brilho de lágrimas genuínas. — Eu gostaria de ver Ellen — pediu. Sua voz soava maravilhosamente oca, com exaustão requintada, e muito pouco daquilo era atuação. A Dra. Levin abriu um sorriso fraco de compreensão. — Claro, senador. Venha comigo…
10h00
A primeira coisa que Jack pensou quando ouviu a história de Ellen foi: Pois é. O ás secreto. — Onde está o senador? — No hospital. — E onde está Ray? — Com ele. Talvez Ray pudesse manter o cara de jaqueta de couro longe, então. Jack tinha outras coisas para fazer. As anotações rasgadas de Sara pareciam um peso frio no bolso da camisa de Jack. Ele olhou ao redor, viu os trabalhadores da campanha perambulando pelo QG, discretos e silenciosos, como sobreviventes de um desastre. O que, claro, provavelmente eram. O ás secreto fora atrás de Hartmann primeiro, imaginou, porque Hartmann tinha mais votos de delegados. Aquela era a única maneira de explicar todas as coisas que tinham dado errado, das redes de televisão cortando para intervalos comerciais durante o discurso de apoio de Carter até a revolta diante da briga pela plataforma e o aborto de Ellen. O pensamento e a reflexão faziam Jack ferver de raiva. O ás secreto não só agredia um candidato, mas os civis próximos a ele. Sara Morgenstern, que sabia a identidade do ás, estava desaparecida. Jack, junto com o Serviço Secreto, passou a noite tentando encontrá-la. Devaughn não estava no QG, nem Amy. Jack foi ao telefone, pediu que mil e uma rosas fossem entregues no quarto de Ellen, cobradas em seu cartão de crédito, então se dirigiu à central de imprensa na porta ao lado. Encontrou um videocassete sem uso, pegou algumas fitas de outros candidatos, bem como suas biografias de campanha, e levou tudo para o quarto. Talvez a candidatura de Gregg Hartmann estivesse terminada. Jack não sabia dizer e, de um jeito ou de outro, nada poderia fazer para mudar as coisas. Só tinha uma certeza. Teria de ligar para Rodriguez e mandar que cuidasse da delegação e votasse como seu procurador em cada escrutínio. Jack tinha outras coisas para fazer. Como caçar o tal ás secreto. ♦ Embora um hotel fosse uma fortaleza protegida do mundo exterior, o mundo exterior conseguia entrar, ainda que de maneira sutil. Tentando passar pela multidão infernal de delegados e jornalistas, Mackie percebeu que era manhã ao notar a luz que se infiltrava, o gosto do produto do Ar Processado Particionado e Resfriado expelido pelo ar-condicionado. Talvez fosse por ser uma ratazana de porto de Hamburgo, tinha um medo instintivo da manhã; podia sentir seu cheiro quando ela espreitava lá fora.
As mãos estavam enfiadas nos bolsos, a cabeça mergulhada em lembranças. Às vezes, quando ainda era jovem e fazia alguma merda, o embotamento da bebida se dissipava o suficiente para permitir que a mãe o encarasse com um olhar sério, sombrio, e dissesse: “Detlev , você me decepciona tanto”, em vez de simplesmente gritar e bater nele com o que estivesse à mão. Era o que Mackie mais odiava. Conseguia ignorar os gritos, aguentava os golpes, abaixando a cabeça dolorosamente entre os ombros irregulares e se afastando. Mas a decepção o atravessava de ponta a ponta, não havia defesa. Cada partícula de sua vida fora uma decepção para alguém. Suas mãos eram fracas, exceto quando eram aço. Quando o sangue corria. Aí não havia decepção, ah não, só gargalhadas por dentro: isso aí. Até os últimos dois dias. Duas chances, duas falhas. Só conseguira um preto incidental usando um terno que valia mais que o corpo todo de Mackie. Tinha pensado que, pelo menos, o babacão dourado virara patê quando caiu do parapeito, na noite anterior, mas vira noticiário da manhã dizendo que ele tinha caído em cima de um piano e não se ferira. De qualquer forma, ficou feliz por causa do piano. O filho da puta nunca tocava a música dele. Mais à frente, viu um par de ternos escuros bem-recheados cercando um homem que carregava um terno dentro de uma capa no ombro, de costas para a parede, longe do fluxo de gente. Os ternos avançavam para cima do sujeito como porcos da polícia quando sabem que a pessoa está acuada. Mackie ouviu um pouco da conversa. — Não, sério, eu estava com a credencial agora mesmo. Com toda aquela confusão, alguém deve ter trombado em mim, derrubado a identificação… Aquilo fez Mackie sorrir. Não precisava de crachás. Não precisava se esquivar das autoridades, desfiando mentiras tão óbvias quanto sorriso de puta para divertir aqueles porcos e fazê-los dar risadinhas. Ainda era Mackie, MacHeath, a Faca, tão grande quanto a lenda. Não um inseto como aquele limpo que queria entrar sem convite. Desintegrou-se e andou para o lado num passo suave, através da multidão e da parede, ao encontro do amor e da decepção. ♥ John Werthen arranjou uma coletiva de imprensa improvisada no ginásio/ auditório do hospital. Enquanto Amy acompanhava Gregg atrás do pequeno palco, sentiu um movimento repentino e aflito atrás de si. — John, seu babaca — sussurrou ela, então olhou para Gregg, culpada. O auditório fora usado para uma aula do método de parto Lamaze na noite anterior. Cartazes dos estágios do parto, dilatação cervical e posições do feto estavam empilhados num canto. Quase pareciam uma gozação. Você precisou fazer isso, lembrou-se, mais do que depressa. Não teve escolha. — Desculpe, senhor — falou Amy. — Vou pedir para alguém se livrar dessas coisas. — Estou bem — afirmou ele. — Não se preocupe.
A morte trágica do bebê de Hartmann se tornara a grande notícia da convenção. Boatos incontroláveis corriam o evento: Hartmann se afastaria; Hartmann decidira assumir a vice-presidência de Dukakis, Jackson ou até de Barnett; Hartmann era, na verdade, vítima dos terroristas de Nur; atentados simultâneos tinham sido cometidos contra a vida de todos os candidatos; um curinga estava envolvido na queda de Ellen; não, o bebê era um curinga; Carnifex empurrara Ellen, ou apenas assistira à queda sem fazer nada; Barnett dissera que era obra divina; Barnett tinha ligado para Hartmann, e os dois oraram juntos. Havia uma alegria mórbida naquilo tudo. A atmosfera de circo mergulhara em algo que se dividia entre o horror e a fascinação. Um silêncio anormal pairava no auditório. — Senador, se o senhor estiver pronto… — disse Amy. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Ela chorara sem parar desde que chegara ao hospital. O Titereiro cuidou para que isso acontecesse. Ela olhou para Gregg, e as lágrimas brotaram de novo. Ele a abraçou em silêncio enquanto o Titereiro consumia a tristeza. Era fácil. Era tudo tão fácil com o Titereiro. Amy segurou as cortinas para ele, e Hartmann entrou no brilho familiar das luzes. O auditório era uma massa sólida de gente: repórteres na frente e, atrás, os apoiadores de Hartmann se misturavam a curingas e à equipe do hospital. Amy e John tentaram restringir a entrada à imprensa, mas Gregg ordenou o contrário. Um grande número de curingas cercou o hospital, e Gregg insistiu para que eles também pudessem participar. A segurança bloqueou as portas depois que a capacidade máxima fora atingida. Atrás das janelas das portas, Gregg via os corredores também cheios. "Deixe que entrem", dissera a Ray. "Os curingas são o nosso povo. Todos sabemos por que estão preocupados. Se estiverem sem armas, entregue credenciais até ficarmos sem espaço. Confio em você, Billy. Sei que nada vai acontecer ." Ray parecia pateticamente grato. O que também era saboroso. Gregg avançou devagar até o púlpito e baixou a cabeça, pegando nas laterais do móvel. Respirou fundo e escutou o suspiro ecoar nas paredes de azulejos. O Titereiro sentia a compaixão atingindo-o. Deleitava-se com ela. Gregg via suas marionetes entre as pessoas: Amendoim, Lixa, Mariposa, Vaga-lume, dezenas de outros só nas primeiras fileiras. Gregg sabia, pela longa experiência, que uma multidão era uma fera fácil de dominar. Bastava controlar um número grande o suficiente, e o restante acontecia. Seria fácil. Mamão com açúcar. Odiava isso. Gregg ergueu a mão, solene. — Eu… eu realmente não sei o quê… — Parou de falar deliberadamente e fechou os olhos. Hartmann se recompondo. Em meio ao público, ouviu um soluço reprimido. Puxou gentilmente dezenas de fios mentais e sentiu as marionetes se comoverem. Deixou a voz tremer apenas de leve quando retomou a fala: — … não sei o que dizer a todos você. Os médicos já apresentaram um relatório. Hã,
eu gostaria de dizer que Ellen está bem, mas isso não é verdade. Digamos que ela está bem na medida do possível. Os ferimentos físicos vão curar; o restante, bem… — Outra pausa. Baixou a cabeça por um instante. — O restante vai levar mais tempo. Ouvi dizer que já tem um quarto cheio de flores e cartões que alguns de vocês enviaram, e ela me pediu para agradecer. Ellen vai precisar de todo o apoio, das orações e do amor que vocês puderem dar. Ele apontou para Amy. — Eu ia deixar a Srta. Sorenson, minha assistente, ler minha declaração. Fiz um rascunho dizendo a todos que retiraria meu nome da nomeação devido ao… ao infeliz acidente de hoje. Cheguei a lê-la para Ellen. Mas ela me pediu o papel, e eu o entreguei. Aqui está o que ela me devolveu. Eles aguardaram, obedientes. O Titereiro apertou os dedos ao redor dos fios. Gregg enfiou a mão no bolso. A mão saiu fechada. Virou-a para cima e abriu os dedos. Pedacinhos de papel escorreram para o assoalho de madeira. — Ela me disse que já tinha perdido um filho — contou, em voz baixa. — E não perderia o resto. O Titereiro puxou os fios com força, abrindo as mentes das marionetes entre o público. Os murmúrios do auditório aumentaram, chegaram ao auge e diminuíram. Do fundo do ginásio, onde os curingas assistiam, começaram os aplausos, crescendo pela multidão até a maioria estar de pé, batendo palmas, rindo e chorando ao mesmo tempo. De repente, o salão ficou barulhento e enlouquecido como uma reunião de renovação carismática, todos se mexendo, gritando e chorando, sofrendo e celebrando ao mesmo tempo. Viu Amendoim, seu único braço acenando para trás e para a frente, a boca como uma fenda preta no rosto escamado e endurecido enquanto saltava. A empolgação passou para Vaga-lume: sua radiação pulsante competia com os flashes eletrônicos. As câmeras giravam, registrando tomadas panorâmicas da celebração bizarra. Repórteres sussurravam apressados nos microfones. Gregg estava lá, fazendo pose, a mão vazia sobre os papéis rasgados. Deixou a mão cair ao lado do corpo e ergueu a cabeça, como se ouvisse a aclamação pela primeira vez. Assentiu, fingindo estar estupefato. O Titereiro exultou. Gregg canalizou parte da reação roubada para si. Arfou com a força pura e integral. Ergueu as mãos para pedir silêncio quando o Titereiro soltou os fios de leve — levou alguns segundos até que pudesse ser ouvido. — Obrigado. Obrigado a todos. — Sua voz saiu embargada. — Acho que talvez Ellen mereça ser a nomeada: ela trabalhou bastante ou até mais do que eu nessa campanha, mesmo quando estava cansada com a gravidez ou com um pouco de enjoo matinal. Se a convenção não me quiser, talvez coloquemos o nome dela no meu lugar. As palavras trouxeram mais aplausos e comemorações, salpicados com risos soluçantes. Enquanto isso, Gregg abria um sorriso fraco, esforçado, que nada tinha a ver com o Titereiro. Parte dele parecia estar observando, simples e desdenhosamente. — Só queria que vocês soubessem que ainda estamos na luta, apesar de tudo. Sei que Ellen está assistindo do quarto e quer que eu agradeça a vocês pela
simpatia e pelo apoio incansável. Agora, gostaria de voltar para perto dela. A Srta. Sorenson vai responder às perguntas. Mais uma vez, obrigado. Amy… Gregg ergueu a mão para saudar o público. O Titereiro puxou com força. Eles aplaudiram, as lágrimas escorriam dos rostos. Tudo estava de volta sob controle. Tudo era seu. Ele sabia. A maior parte dele celebrava.
14h00
O som de uma novela atravessava pelas paredes de papelão e estuque, finas como papel, do quarto de hotel barato. Na tela da televisão, uma jovem curinga bela de pele azul brilhante tentava adivinhar a palavra-chave a partir das pistas de Henry Winkler. Envolta num robe barato que seu benfeitor misterioso comprara numa promoção do Kmart, Sara sentou-se na ponta da cama e encarou a tela como se as imagens ali tivessem relevância. Ainda estava tentando juntar os cacos que as notícias de última hora haviam deixado dentro de si. A esposa do Senador Gregg Hartmann abortara em consequência de uma queda trágica… Corajosamente, o senador continha sua tristeza enquanto lutava pela sobrevivência política na convenção. Simplesmente o tipo de espírito perseverante que os Estados Unidos precisavam para levá-los à década de 1990, ou era o que parecia dizer o tom do comentarista. Ou era apenas o sangue que latejava nos ouvidos de Sara. Desgraçado. Monstro. Sacrificou a esposa, o filho ainda não nascido, só para salvar a própria pele na política. Uma imagem do rosto de Ellen Hartmann passou pela mortalha que erguera sobre as lembranças da excursão da OMS. Um sorriso exausto, admirável, consciente, tolerante… infinitamente trágico. Agora ela jazia, toda arrebentada e à beira da morte, e a criança que tanto desejara estava perdida. Sara nunca fora o tipo estridente de feminista que via toda interação humana em termos de grandes coletivos, sinédoques políticas em que tudo era uma relação Homens versus Mulheres. Ainda assim, aquilo a atingia profundamente, ofendia-a num nível basal. Estava furiosa: por si mesma, por Ellen, por todas as vítimas de Hartmann, mas especialmente pelas mulheres. Por Andrea. O homem que a levara às pressas para longe do hotel na noite anterior — quando os carros de polícia chegaram, com sirenes e giroscópios ligados à última cena da batalha — sugerira uma coisa, quando conversaram, nas primeiras horas da manhã. Sara prometera considerar a sugestão antes de ele ir embora para concluir algumas coisas que pretendia fazer — nem mesmo sua curiosidade de repórter a fez querer saber o que era. Supôs que fosse uma sugestão bastante natural para um mestre-espião soviético confesso. Mas chocou a garota do Meio Oeste, transplantada para dentro do jardim neurastênico da cena intelectual de Nova York, uma que se orgulhava de ter se fortalecido nas ruas e salas dos fundos do Bairro dos Curingas. Mas ainda assim, ainda assim… Gregg Hartmann precisava ser impedido. Gregg Hartmann precisava pagar. Mas Sara Morgenstern não queria morrer. Não queria seguir a irmã com tanta urgência naquela noite, que não acreditava ter sido boa. Aquela era a condição encoberta da sugestão de George Steele, nem oculta nem declarada abertamente.
Mas que chance eu tenho contra aquela… coisa… que está atrás de mim? O garoto deturpado e gargalhante, vestido de couro, que murmura sozinho e atravessa paredes. Não podia se esconder para sempre. E, quando ele a encontrasse… Balançou a cabeça, chicoteando as bochechas com a ponta dos cabelos, cega pelas lágrimas quentes e repentinas. Na tela, a mulher azul venceu o jogo. Sara torcia para que aquilo a fizesse feliz.
15h00
— Pare com isso. O folhear contínuo e nervoso das páginas de uma revista cessou. — Por quê? — O tom de Blaise era desafiador. Tach controlou o temperamento, servindo-se de outra dose de conhaque. — Estou tentando pensar, e isso está me irritando. — Você sempre fica assim quando está fulo da vida. — Blaise, por favor. Apoiando o telefone com o queixo, Tach ligou para o quarto de Sara. O toque distante ecoou tristemente várias e várias vezes. Tach tamborilou os dedos na mesa, encerrou a ligação e telefonou para a recepção. A revista de Blaise voou pela sala como um pássaro apavorado. — É entediante ficar aqui sentado observando você ser idiota! Quero sair. — Você perdeu esse direito. — Não quero estar aqui quando a CIA vier te pegar. — O sorrisinho do garoto era horrível. — Maldito. Com o punho erguido, Tachyon avançou pelo quarto. A batida na porta o fez parar antes que conseguisse desferir o golpe. Hiram e Jay Ackroyd estavam no corredor. Hiram estava a cara da morte. O rosto de Ackroyd estava inchado, com muitas cores que um rosto normal não deveria ter. O estômago de Tachyon comprimiu-se numa bolinha apertada que tentou se retrair para a espinha dorsal. Ele recuou, hesitante, para deixá-los entrar. Hiram andou pesadamente até a janela. Pela primeira vez em todos aqueles anos, Tachyon percebeu que o ás não estava usando seu poder gravitacional para reduzir o próprio peso. Os passos de Worchester se faziam sentir pela suíte. Ackroyd acomodou-se no sofá e apoiou um terno encapado sobre os joelhos. O silêncio estendia-se como uma teia entre os três homens e o garoto. Ackroyd meneou a cabeça na direção da porta. — Mande o garoto embora. — Ei! — estourou Blaise. — Vá, Blaise. Ele abriu um sorrisinho para o avô. — Pensei que eu tivesse perdido esse direito. — VÁ, seu maldito! — Merda, bem quando as coisas estavam ficando interessantes. — Blaise ergueu as mãos com as palmas para fora. — Ei, tudo bem, já fui. A porta se fechou, e o silêncio voltou a reinar. Com os nervos em frangalhos, Tachyon estendeu a mão. — Hiram, que diabos é isso? Não obteve resposta do ás.
— Precisamos que você teste este sangue, doutor. Agora — pediu Ackroyd. Tachyon sorriu com afetação e apontou para o quarto. — Quê? Aqui? O detetive fez careta. — Não seja tolo nem banque o engraçadinho. Estou cansado pra caralho e machucado demais para lidar com isso. — Os dedos do homem tremeram de leve quando ele abriu a capa do terno. — Este é o paletó que o Senador Hartmann usou na Síria. Tachyon encarou a mancha escura no tecido com terror cego. Era aquilo. Não podia mais postergar a descoberta em virtude da intrincada honra takisiana. As acusações de Sara seriam provadas ou negadas com aquele sangue velho. — Como isso chegou às suas mãos? — É uma longa história — respondeu Ackroyd, cansado —, e nenhum de nós tem tempo para ouvir. Digamos que o consegui… com Crisálida. Foi… bem… uma espécie de legado. Tachyon pigarreou para liberar a garganta e perguntou, hesitante: — E o que vocês acham que vou encontrar? — A presença do xenovírus Takis-A. Movendo-se como um autômato, Tachyon foi até o aparador, serviu-se de uma bebida e bebeu de um gole só. — Estou vendo um paletó. Qualquer um poderia comprar um paletó e derramar sangue com vírus… — Foi o que pensei. — A voz de Hiram era um som enferrujado, rouco. — Mas ele… — um meneio de cabeça na direção de Ackroyd — … passou por muitas coisas. A ligação da Síria com este quarto de hotel é clara. Este é o casaco… de Hartmann. Hesitante, Tachyon se virou para encarar Worchester. — Quer mesmo que eu faça isso? — Temos opção? — Não. Acho que não. ♣ Durante todo o caminho até o Marriott, o Titereiro cutucou a culpa torturante dentro de Billy Ray. Era um petisco delicioso, azedado e temperado com frustração. Gregg sentia Ray revivendo o momento da queda de Ellen sem parar, sabia que em todas as vezes ele sentia os dedos raspando a mão de sua esposa. Ray estava sentado no banco da frente da limusine, observando o tráfego com muita atenção, piscando demais por trás dos óculos de sol espelhados. Gregg percebia Carnifex ávido por bater em alguma coisa, em alguém. Tão simples, disse o Titereiro, rindo. Ele faria qualquer coisa se achasse que poderia ser perdoado por seu erro. Lembre-se disso, disse Gregg. Hoje à noite, talvez. Agora que estava acabado, Gregg começava a se sentir mais normal. O entorpecimento e a sensação de estar dividido começava a ceder. Parte dele
ainda odiava o que fizera, mas, no fim das contas, que escolha tivera? Nenhuma. Nenhuma mesmo. Não havia mais nada que poderíamos ter feito, certo? Com certeza. Mais nada. O Titereiro estava orgulhoso. Quando Billy abriu a porta do quarto da equipe de campanha para Gregg, uma Peregrina de papelão passou flutuando. Alguém pintara a roupa de branco e desenhara pelos pubianos e mamilos enormes nos seios à mostra. “Desgraça voadora” estava riscado com estêncil na lateral. O lugar era um caos de felicidade. Gregg viu Jack Braun num dos cômodos, com Charles Devaughn e Logan. Metade da delegação de Ohio parecia presente na sala de estar da suíte, mergulhando na bebida empilhada atrás do barzinho e esperando sua vez de se reunir com Devaughn. Assistentes juniores estavam enlouquecidos nos telefones, enquanto voluntários andavam para lá e para cá. Bandejas de serviço de quarto enchiam o chão próximo à porta, e o carpete estava grudento de refrigerante derrubado. O lugar cheirava a pizza de uma semana atrás. Gregg observou o humor mudar assim que ele entrou. O Titereiro sentiu o júbilo histérico escurecer quando o nível de ruído se reduziu a nada. Todos se viraram para encará-lo. Devaughn afastou-se de Jack e Logan. Sua figura bemarrumada abriu caminho na sala apinhada. — Senador — murmurou ele. — Todos nós sentimos muito. Como está Ellen? O Titereiro sentiu pouca tristeza ou preocupação verdadeira no coordenador da campanha — Devaughn não sentia nada, a menos que o atingisse diretamente, daí tudo virava uma crise —, mas Gregg assentiu. — Ela está reagindo muito bem, fingindo que está muito melhor do que está. Foi um golpe para todos nós, mas principalmente para ela. Não vou ficar muito tempo aqui, Charles. Preciso voltar ao hospital logo. Só queria ver como estamos. Sei que não tenho sido de muita ajuda para o seu pessoal… — O senhor se engana, senador. Aquela coletiva de imprensa no hospital… — Devaughn balançou a cabeça. O corte de cabelo yuppie permaneceu no lugar, perfeito. — John está numa reunião com o pessoal da Flórida, da Geórgia e do Mississippi. Parece que conseguiremos arrebatar muitos delegados de Gore, no sul, que iam para Barnett. São totalmente a favor da força da família e esse tipo de coisa. Ganhamos a simpatia deles. — Devaughn nem notara a insensibilidade da observação, embora os ajudantes ao redor tivessem ofegado alto. “Meu Deus, cara…”, exclamou um deles. Devaughn simplesmente continuou: — Conversei com Jack , e o Oeste também parece consolidado. — Devaughn não conseguiu segurar a risadinha. — Conseguimos, senador — anunciou, ávido. — Estamos a cerca de cento e cinquenta ou duzentos votos da maioria, e a curva a nosso favor está cada vez maior. Mais duas votações, no máximo três. Barnett está à deriva e não vai a lugar nenhum. Nós estamos atraindo os desertores de todo mundo. Tudo está pronto, menos a decisão do vice-presidente. É melhor o senhor começar a pensar na escolha final. Com essa declaração, alguns dos funcionários deram vivas. Gregg se
permitiu um sorrisinho. Jack seguira Devaughn e estava em pé ao seu lado. Fez uma careta com toda aquela exibição, e o Titereiro sentiu um tanto de nojo. — Desculpe, Gregg — disse ele, lançando um olhar reprovador para Devaughn. — De verdade. Ninguém teria culpado o senhor, caso o senhor renunciasse. Acho que eu teria desistido, se estivesse no seu lugar. Sei que não há nada que eu possa dizer para atenuar sua dor. — Obrigado, Jack. — Gregg agarrou o ás pelo ombro. Soltou um grande suspiro e deu de ombros, envergonhado. — Acredite ou não, ouvir isso tem um significado especial. Olha, você é um dos motivos porque voltei. Ellen está pedindo para ver você e Tachyon. Acho que ela quer ter certeza de que temos boas pessoas ao meu redor, para proteção. Gregg sentiu uma pontada de Billy Ray com essa frase: mais culpa. Apenas pelo prazer que isso daria ao Titereiro, e como podia fazê-lo sem se preocupar pela primeira vez em semanas, ele provocou a culpa e deixou o Titereiro saboreá-la. O suspiro de Ray foi audível. — Acredito que Tachy esteja no Omni — comentou Jack. — Então, posso pedir um favor? Você poderia encontrá-lo e arrastá-lo de volta ao Marriott? Vamos juntos, se estiver tudo bem com vocês. Foi muito fácil arranjar tudo. Ellen era uma marionete de longa data, extremamente flexível. Acrescentaria à publicidade favorável que o acidente lhe dera. Já podia ver a foto: Senador Hartmann, Golden Boy e Dr . Tachyon junto ao leito da sra. Hartmann. Pela leve inclinação na boca de Braun, era óbvio que o ás chegara à mesma conclusão, mas ele deu de ombros. — Acho que sim. Vou ver o que posso arranjar com Tachy. — Ótimo — disse Gregg. — Espero vocês no meu quarto.
16h00
Jack não encontrou Tachyon no Omni, então decidiu ir ao hospital sem ele. Não teve coragem de dizer ao candidato que Tach provavelmente estava de volta ao Marriott, trepando com Fleur van Renssaeler. Hartmann encarou a nuca de Billy Ray em silêncio enquanto a limusine avançava lentamente pelo tráfego intenso até o hospital. Jack pensou no ás secreto. Se o fragmento da fotocópia de Sara fosse confiável, o ás desconhecido devia ser um veterano que teve o teste sanguíneo ocultado. Isso deixava de fora Jesse Jackson, que, por ser seminarista, foi dispensado do serviço militar. Os outros candidatos eram todos veteranos, mas, pelo que Jack imaginava, o suspeito mais provável era Leo Barnett. Barnett era um pregador populista e carismático que alegava interpretar a palavra de Deus, cujo rebanho votara majoritariamente em Reagan nas últimas duas eleições e o seguia cegamente nas fileiras dos Democratas. Ele pregava contra o vírus carta selvagem e a violência dos cartas selvagens, mas não tinha votos para a nomeação, a menos que irrompesse tanto caos na convenção que um retrocesso lhe desse a nomeação. Talvez Barnett estivesse em sua torre, orando para que desastres se amontoassem sobre Gregg Hartmann. Talvez os anjos fizessem suas vontades. Ou talvez não fossem anjos que faziam suas vontades. Havia outra possível pista no papel de “ás secreto” de Sara, os rabiscos que incluíam uma fileira de cruzes. Talvez Sara tivesse feito aquelas cruzes enquanto pensava no Reverendo Leo Barnett. Jack parou de conjecturar até ver as fitas cassete. Dukakis o impressionava como um sujeito esforçado, inteligente e bastante opaco. Dificilmente o tipo de pessoa que empregaria ases deturpados para fatiar seus inimigos. Mas Barnett era fascinante. Nos vídeos, ele vagava pelo palco como uma pantera à espreita, limpando baldes de suor com uma sucessão de lenços gigantescos, a voz passando de um sotaque tênue e popular da Virgínia Ocidental para um berro lacerante, desdenhoso e violento. E não era um santinho resmungão e descerebrado. Seus olhos azuis como o gelo queimavam com uma inteligência intimidadora. Suas mensagens eram tão bem construídas e bem arraigadas — ao menos dentro da estrutura apocalíptica — que suas habilidades comunicativas deviam dar inveja em qualquer redator de discursos dos outros candidatos. E Barnett era — Jack odiava admitir — sexy. Ainda tinha menos de 40 anos, e seu físico loiro de Robert Redford e o queixo com covinha obviamente dominavam o público feminino. Houve uma cena incrivelmente reveladora de Barnett montando numa jovem prostrada, meio débil, possuída pelo Espírito. Barnett berrava em seu microfone fálico enquanto a garota balbuciava em línguas, se retorcia e grunhia. Para a mente hollywoodiana saturada de Jack, pareciam claramente uma série de ápices sexuais descomunais… Olhando para
o rosto intenso do pregador e os olhos ferozes de predador, Jack sabia que Barnett sabia que estava fazendo a garota gozar apenas com a força de sua presença e de sua voz — e que o reverendo exultava na glória sexual pervertida de tudo aquilo… Jack lembrou-se de uma noite em 1948, sentado numa cafeteria da Sixth Avenue após uma estreia na Broadway com David Harstein, o membro dos Quatro Ases cujo poder de feromônios ainda não havia sido revelado ao público. Sem que eles soubessem, uma reunião do Partido Comunista dos EUA estava acontecendo na mesma rua. A reunião terminou, e vários dos membros do partido apareceram na cafeteria e reconheceram Jack e Harstein. O que começou como uma busca por autógrafos transformou-se num intenso debate político, enquanto os camaradas, inflamados pela reunião, exigiam cooperação ideológica das duas celebridades. Caçar nazistas e derrubar Juan Perón eram feitos muito bons, mas quando os Quatro Ases declarariam solidariedade aos trabalhadores? Que tal apoiar as forças anti-holandesas em Java e o exército de Mao, na China? Por que os Ases não lutavam com o ELAS, o exército da libertação na Grécia? Que tal apoiar os russos na expulsão de elementos falaciosos da Europa Ocidental? Em suma, todo o aspecto negativo de ser uma celebridade. Jack já estava prestes a dizer boa-noite e seguir seu caminho, mas Harstein teve uma ideia melhor. Seus feromônios já tinham dominado a pequena cafeteria, deixando todos receptivos a sugestões. Depois disso, portanto, os camaradas — inclusive vários estivadores enormes e um casal de intelectuais com óculos estilo tartaruga — estavam em pé no balcão imitando as Andrews Sisters. O público noturno se divertia com “Rum and Coca-Cola”, “BoogieWoogie Bugle Boy” e “Don’t Sit Under the Apple Tree”. Jack pensou em como Harstein controlara a multidão hostil enquanto assistia ao último vídeo de Barnett, filmado no Bairro dos Curingas. Barnett andava no meio de uma paisagem devastada de uma batalha de gangues em Nova York , invocando os poderes dos céus para curar Quasim, que se erguera dos mortos… vendo aquilo, Jack soube a identidade do ás secreto com toda certeza. Barnett podia fazer coisas acontecerem. Como o talento agia, Jack não sabia dizer. Barnett tinha de ser capaz de afetar coisas a distância: fazer produtores de televisão cortarem para os comerciais quando ele precisasse, obrigar candidatos como Hart e Biden a se autodestruírem, fazer seus seguidores se apaixonarem por ele e lhe darem dinheiro, talvez apagar o carta selvagem de seu registro militar, suprimir a impotência de Tachyon e fazê-lo se apaixonar por Fleur, ou ainda lhe dar orgasmos a longa distância, para ser fiel. O garoto deformado com jaqueta de couro e a mão de serra circular podia ser alguém a quem Barnett prometera curar da maldição do carta selvagem, desde que primeiro cumprisse os desígnios do Senhor. Meu Deus, pensou Jack . Alguém já tinha dado uma olhada naqueles vídeos? Alguém fora capaz de dizer como eram importantes? Eram como a mão bíblica flamejante no céu, o indicador apontando direto para Leo Barnett. Barnett. O ás secreto só podia ser Barnett. Jack mordia o lábio inferior e olhava para Hartmann, se perguntando se devia
ou não contar. Hartmann ainda encarava Billy Ray, no banco do passageiro diante dele, com uma intensidade peculiar. Jack se perguntou se Gregg estaria culpando Ray pelo que acontecera com Ellen. Pelo que os outros lhe disseram, Ray certamente estava se sentindo culpado. Jack começou a dizer alguma coisa, mas engoliu as palavras. De alguma forma, não podia interromper os pensamentos do senador, não após os eventos daquele dia. Melhor falar com Tach primeiro, pensou. Mostraria as pistas, os vídeos. A sós, conseguiriam encontrar uma resposta. De qualquer maneira, toda essa coisa de controle mental a distância era da alçada de Tachyon.
17h00
Spector estava na área de recepção do hospital, folheando uma edição do Reader’s Digest. O sofá duro era feito de vinil vermelho e fora reparado com fita-crepe. Uma luz fluorescente mortiça tremeluzia e zumbia no teto. O hospital fedia. Não cheirava apenas a antisséptico e doença, o que era normal, mas também a curingas. Os deformados tinham um fedor próprio. Aquele devia ser o único lugar na cidade que oferecia leitos para eles. Uma enfermeira jovem e magra como uma vareta, de olhos cansados, se aproximou. — O senhor pode vê-lo agora. Quarto 205. Ela se afastou sem tirar os olhos da prancheta. Spector se levantou, espreguiçando-se, e atravessou o corredor de linóleo gasto. Decidira não cumprir o contrato. Não havia maneira no mundo de ajudar Barnett e seus seguidores imbecis a chegarem na Casa Branca. Ficaria com o dinheiro, claro. Seria arriscado começar a vida em outro lugar. Voltaria a Teaneck primeiro e juntaria suas coisas, depois partiria. Talvez simplesmente giraria um globo e fosse aonde o dedo apontasse, como nos filmes. Sem dúvida haveria muitos lugares onde seus talentos seriam comercializáveis. Caso seu atual empregador quisesse tentar rastreá-lo, que ficasse à vontade para tentar. Não se preocupava com isso. Mas primeiro queria ver Tony e garantir que ficaria tudo bem. Depois disso, pularia no próximo avião de volta para Jersey. Bateu à porta aberta do quarto 205 e enfiou a cabeça na fresta. Tony abriu os olhos e sorriu. Não era o mesmo com tantos dentes quebrados. — Entre. Spector sentou-se numa cadeira perto da janela. Tony tinha uma gaze sobre um olho e um inchaço feio sob o outro. Ostentava pontos na maçã do rosto e na testa. Os lábios estavam inchados e descoloridos. — Quer que eu tire você daqui? — Talvez amanhã. Os médicos disseram que tive algumas convulsões depois da concussão. Nada sério, mas por isso não querem me transferir até a noite. Vou ficar no mesmo hospital que… — Ele fechou os olhos. Spector assentiu. — Dói para falar? — Dói até para piscar. Você está bem? Tony ergueu o corpo. — Aqueles caras pegaram leve com você, não foi? — Estou bem. Eles sempre querem provocar vocês, os galãs. Sabem que nós, os feiosos, já temos problemas demais. — Spector balançou a cabeça. — Você vai fazer algum dentista muito feliz. Ele vai olhar para sua boca e fazer uma reforma total. Tony ficou em silêncio por um momento. — Ouviu falar de Ellen?
— Sim. — As notícias sobre o aborto da sra. Hartmann tinham sido as mais comentadas do dia. — Um azar danado. Sinto muito. — Do ponto de vista pessoal, também sinto. Mas isso vai botar o homem no topo da convenção. — Tony ergueu a mão para coçar o nariz, mas se encolheu de dor. — Sei que vai soar meio frio, mas vai ajudar tanta gente que acho que, no fim das contas, foi bom. Spector olhou para o relógio digital no criado-mudo. — Tenho que ir, Tony. Preciso fazer umas coisas. Talvez não consiga ver você de novo por um tempo, mas sempre posso encontrá-lo na Avenida Pensilvânia. — Pode me fazer um favor antes de ir embora? — Claro, pode dizer. — Todas as coisas que uso para escrever estão no Marriott. Sei que vamos conseguir a nomeação hoje à noite, preciso terminar o discurso de aceitação. Tem uma pasta preta em cima da minha cama. Lá tem tudo o que preciso: meu laptop, o CD player. — Tony recostou os ombros na cama, sentando-se o mais ereto possível. — Com o acidente de Ellen e a história sobre um assassino à solta por aí, não tem mais ninguém para pegar isso para mim. Meio que fiquei perdido na confusão. — Hã, acho que não vão me deixar subir até o seu quarto para pegar suas coisas. Spector sentiu-se mal por tentar se livrar do pedido, mas não queria voltar ao Marriott. Talvez desse de cara com Barnett, então seria obrigado a matar o desgraçado. — Sem problema. Escrevo um bilhete. É só mostrar ao pessoal da segurança na entrada que eles vão cuidar disso. Posso ligar para a enfermeira da recepção e pedir para ela lhe dar a chave do meu quarto. Spector não podia dizer não, por mais que quisesse. — Tudo bem. Mas pode levar um tempinho. O trânsito está dos diabos. Tony sorriu. Mesmo com lábios cortados e roxos, ainda parecia um vencedor. Pegou a mão de Spector e a apertou. — Ainda somos uma equipe. — Muito bem — respondeu Spector, entregando-lhe uma caneta e um pedaço de papel. — Não poderia deixá-lo ir lá fora assim. Precisaria de uma máscara para cobrir todos esses pontos. Tony pegou-o pelo cotovelo. — É isso, Jim. Máscaras. É o ponto de vista no qual vou trabalhar. Algo que realmente mostre os Direitos dos Curingas. — Ele soltou Spector e ergueu as mãos. — “Povo dos Estados Unidos, usem uma máscara por um dia. Vejam como é ser tratado como algo menor que um ser humano”. Spector ficou em silêncio por um momento. — Acho que você precisa trabalhar um pouco mais nisso. — Sem problema. Agora que tenho o ponto de vista, as palavras virão. — Tony começou a escrever. — Vou pegar suas coisas e volto assim que puder. Spector só se permitiu balançar a cabeça quando saiu do quarto.
18h00
Projetado na lente do microscópio eletrônico, o carta selvagem se apresentava em seu característico padrão de cristal. — Meu Deus. — Ackroyd suspirou. — É lindo. Tachyon jogou os cachos para trás. — Sim, acho que é. — Ele fez uma careta. — Se for para criar um vírus que combine com nosso ideal estético, pode deixar com os takisianos. Ele girou no banquinho de laboratório assim que Hiram começou a escorrer pela parede. — Ackroyd! Cada um agarrou um braço, mas era como tentar impedir uma avalanche. Os três acabaram no chão. Hiram passou a mão nos olhos e murmurou: — Desculpem, devo ter apagado por um instante. Pegando o cantil, Tach encostou-o nos lábios de Hiram. Worchester engoliu o conhaque, em seguida a cabeça caiu para o lado como se o pescoço fosse frágil demais para aguentar o peso. Um ferimento enorme e feio, cheio de cascas, envolvia o pescoço. Tach tocou-o com o indicador cauteloso, e Hiram empertigou-se de uma vez. — Ei, posso tomar um gole disso daí? — Jay apontou com o queixo para o cantil. — Foi uma semana infernal. O pomo de adão do detetive subiu e desceu várias vezes enquanto ele tomava o conhaque. Ackroyd soltou um suspiro e limpou a boca. — Não há dúvidas? — Os olhos de Hiram imploraram a Tachyon. — Nenhuma. — Mas só porque ele é um ás… bem, isso não prova nada. Ele seria maluco se admitisse o vírus. Talvez esteja latente. Fez-se um silêncio inquietante entre os três. Tachyon, agachado sobre os saltos, olhou para o teto, pensativo. Ellen Hartmann estava descansando em seu quarto de hospital, três andares acima. Sonhando com o filho que havia perdido. Sem nem imaginar que o marido era um ás secreto, possivelmente um assassino impiedoso. Ou será que ela sabia? Jay pigarreou e perguntou: — Então, o que faremos? — Uma ótima pergunta. — Tachyon deu um suspiro. — Quer dizer que você não sabe? — Ao contrário da crença popular, não tenho a solução para todos os problemas. — Precisamos de mais provas — disse Hiram, se levantando. Ackroyd apontou para trás, na direção do microscópio. — Que outra prova você quer? — Não sabemos se ele fez algo de errado! — Ele mandou matar Crisálida.
Os dois homens estavam frente a frente, ofegando intensamente. — Exijo provas. — Hiram bateu o punho na palma da mão. — Estaé a prova — rugiu Ackroyd, apontando de novo para o microscópio. — Parem com isso! Parem! — gritou Tachyon. As mãos de Hiram se fecharam sobre os ombros de Tach. — Você vai até lá. Fale com ele. Deve haver alguma explicação. Pense em todo o bem que ele fez… — Ah, claro. O sarcasmo cobria acidamente as palavras. Ackroyd tomou outro gole do cantil. — Pense no que estamos prestes a perder! — gritou Hiram. — Daí ele vai mentir para Tachyon. Aonde isso vai nos levar, caramba? — Ele não pode mentir para mim. As mãos de Hiram caíram dos ombros do alienígena, e o grande ás recuou um passo. Tach empertigou-se o tanto que podia, mesmo que não fosse muito alto. Dignidade e ordem o envolviam como uma capa. — Se eu for até ele, você sabe o que farei. Os olhos de Hiram estavam cheios de uma angústia aparvalhada, mas ele assentiu, hesitante. — Vai aceitar a verdade do que eu ler na mente dele? — Vou. — Mesmo que seja inadmissível no tribunal? — Vou. O alienígena virou-se para Jay. — Quanto a você, senhor Ackroyd, pegue o casaco. Destrua-o. — Ei, é nossa única prova! — Prova? Você está realmente querendo que isso seja divulgado? Pense bem… o que temos aqui poderia desgraçar todos os cartas selvagens dos Estados Unidos. — Mas ele matou Crisálida. Se não derrubarmos o cara, Elmo vai pagar o pato. Tachyon passou os dedos pelos cabelos, as unhas afundando no couro cabeludo. — Maldito, maldito, maldito. — Olha só, não é culpa minha. Mas prefiro me ferrar a compactuar com um acordo sujo que deixe o assassino de Crisália à solta. — Juro pela minha honra e sangue que não vou permitir que Elmo sofra. — É? E o que vai fazer? — Ainda não sei! — Tachyon desligou o microscópio com um golpe forte, levou a lâmina até a pia e deixou as fibras manchadas de sangue escorrerem pelo ralo. Hiram deu um passo na direção dele quando o alienígena partiu para a porta. Tach pousou a mão no peito do ás. — Não, Hiram. Preciso fazer isso sozinho. — E se ele mandar o Garoto da Mão de Serra atrás de você? — perguntou Jay.
— É um risco que preciso correr.
19h00
Spector encaixou o crachá de VISITANTE ESPECIAL na lapela e riu por dentro. No início daquela semana, teria matado até estar com cadáveres até a cintura para conseguir um daqueles. Agora, não precisava mais. A vida era foda, mesmo. O andar de Hartmann estava surpreendentemente quieto. Esperava uma porção de auxiliares e agentes do Serviço Secreto. Spector pegou a chave do quarto de Tony e contou os números dos quartos na cabeça. Achava que era hora de sair do país. Austrália, talvez, ou algum outro lugar onde falassem algo que lembrasse inglês. Parou na frente da porta de Tony e inseriu a chave. Quando a empurrou para dentro, sentiu alguém empurrá-la pelo outro lado. Spector deu um passo para trás. Um curinga com roupas do Serviço Secreto olhou para o crachá de visitante e pediu que ele entrasse. O curinga era alto e magro e examinou Spector rapidamente quando ele entrou. A testa escamada e saliente, com algumas protuberâncias, eram os únicos sinais visíveis de sua condição. Spector imaginou que haveria mais, contudo, não estava interessado o bastante para perguntar. — Quem é você? — perguntou o sujeito, mecanicamente. — Sou amigo de Tony Calderone. Ele me enviou aqui para buscar seus materiais de escrita. — Spector apontou para a pasta preta em cima da cama. — Acho que é aquilo ali. — Sei. Poderia colocar as mãos na cabeça, senhor? Spector ficou tenso, mas obedeceu o curinga, que revistou-o depressa — ainda que fosse uma revista completa. Se o cara olhasse muito para ele, talvez o reconhecesse. Tinha certeza de que os federais o ficharam com uma legenda escrito “Ceifador” em letras garrafais. — Sou novo aqui, então vou checar com Calderone. O curinga foi até o telefone, folheou um caderno para encontrar o número e discou. Teve o cuidado de não virar as costas, mas não deu sinais de ter reconhecido Spector. — Tony Calderone, por favor. Pausa curta. — Tony. Aqui é Colin. Tem um cara aqui dizendo que veio buscar seu material de escrita. Foi você? Descreva o cara para mim. Tudo bem. Sim. Desculpe, nós esquecemos. — Colin desligou. — Você é Jim? — Sou. Acabou? O curinga ergueu a mão para pedir silêncio e pôs um dedo no fone de ouvido. — É, ainda estou no quarto de Calderone. Tem um cara aqui que vai entregar as coisas de escrita dele no hospital. Por que ninguém me lembrou? — Pausa longa. — Não, o pessoal do hotel disse que, na noite passada, não tinha ninguém no quarto de Baird. Tudo bem, vou chegar mais tarde, mas acho que estamos perdendo tempo. Falo com você depois. — O curinga suspirou e foi até a porta.
— Pode sair quando terminar — disse a Spector. — Não se esqueça de dizer a Tony que sinto muito. Spector assentiu, tenso, e não respirou até a porta se fechar. Eles sabiam sobre Baird. Não que importasse, agora que estava saindo da cidade. Ainda assim, quanto antes desse o fora dali, mais feliz ele ficaria. Sentou-se na cama e abriu a pasta. Um laptop e um tocador de CD, além de muitas outras tralhas, como dissera Tony. Fechou-a com tudo e foi até o banheiro beber água. A cidade estava um forno, sem trégua em vista. Deixou a pasta ao lado da privada e já estava estendendo a mão para a torneira quando ouviu vozes. Quem quer que fosse, não parecia feliz. Spector encostou o ouvido na parede. Seu estômago se revirou quando percebeu quem estava brigando. Tachyon. Reconheceria a voz fina e afetada daquele desgraçado em qualquer lugar. E estava discutindo com Hartmann. Spector sentou-se na privada e torceu para que ninguém entrasse no quarto enquanto estivesse ouvindo. ♠ A queda atordoante no saguão do Marriott se estendia diante dele. Tach percebeu, de maneira distanciada e clínica, que suas mãos estavam agarradas à balaustrada com tanta firmeza que os nós dos dedos haviam embranquecido. É só subir . Passar as faixas de segurança. Deixe cair . Uma longa queda até a paz. Uma chance de finalmente descansar . Não ser responsável. As lágrimas já queimavam seus olhos doloridos, mas o desespero passou depressa. Era o príncipe da casa Ilkazam, e sua linhagem não produzia covardes. Endireitando os ombros, encarou a porta da suíte de Hartmann. Talvez, como Hiram acredita, haja alguma explicação lógica. Mas Digger Jay alegou ter testemunhado Hartmann assistindo em deleite a um corcunda com mãos de serra circular eviscerar Kahina no escritório do Crystal Palace. E, na noite anterior, o mesmo corcunda tentara matar Sara e Jack. Ele matou Andi, matou Crisálida e agora vai matar a mim… a mim… a mim… A MIM. A batida na porta soou alta no corredor. O som de comemorações vinha de baixo. Gregg estava ganhando, ganhando, ganhando! E eu estou sem tempo, tempo, tempo. Carnifex abriu a porta. Parecia meio cabisbaixo. A angústia escondia-se em seus olhos verdes. — Preciso ver o senador, Billy. O ás apontou com a mão livre. Tachyon entrou na suíte. Gregg estava sentado numa cadeira ao lado da janela, revirando um drinque entre as mãos. — Celebrando? O senador ergueu os olhos, surpreso. — Bem, não ainda, mas espero que logo. Onde você estava? Mandei Jack atrás de você. Queria que tivesse ido ver Ellen comigo. Tachyon encarou aquele rosto liso. As linhas de sorriso ao redor dos olhos. A boca sensível que se apertara em fúria quando o senador fora confrontado com a
barbárie na Síria e na África do Sul. A força de Tachyon vacilou como um ser vivo, mas ele a manteve sob controle, com medo de penetrar na mente por trás daquele rosto familiar, amigável. Tachyon ficou um pouco agitado. Seu silêncio ininterrupto pareceu irritar Hartmann. — O que há de errado com você? Estou prestes a ser nomeado. — Mande Ray embora. — O quê? — Mande-o embora. Hartmann moveu os olhos expressivos na direção do ás. Era claramente uma expressão de como ele quiser. O agente assentiu e saiu. — Agora, Tachy, o que está havendo? Quer beber alguma coisa? — Ele ergueu a garrafa. — Você é um ás. Gregg deu uma gargalhada. — Sério, doutor, você está trabalhando demais… — Testei o sangue no casaco que você usou na Síria. — Por um breve instante, o homem ficou tenso. Mas o rosto que se apresentava a Tachyon era plácido. — Nego. Categoricamente. — Está provado no seu sangue. — Casaco errado. Sangue errado. Uma tramoia dos meus inimigos. — Sangue errado. — Tachyon revirou as palavras na boca, sentindo seu gosto. — Sim, você envolveu o sangue errado quando mandou matar Crisálida. — Não tenho nada a ver com a morte de Crisálida. — Está deixando pontas soltas demais, senador. Digger, Sara. Tudo está se revelando. — Ninguém vai acreditar neles. Ou em você. — Eu tenho o exame de sangue. — E você nunca vai divulgá-lo. — Hartmann sorriu, lendo a resposta no rosto de Tachyon. — Mesmo supondo que fosse verdade, o que não é. — Ele encheu o copo de novo e se recostou no sofá, exalando confiança. — Um toque do meu poder e você ficaria deitado nu na minha frente — alertou Tachyon. — Posso ler sua mente. Ver a verdade sobre quem você é. O pânico retorceu o rosto do político. Ele deu um salto do sofá, o conhaque escurecendo o carpete quando o copo caiu da mão dele. — Isso é loucura, você perdeu a cabeça. Ray. RAY! Tachyon o atingiu. Com força. Dois socos rápidos no estômago. A raiva tomou conta do alienígena como uma força física. Ele estava tremendo de raiva pela traição. Gregg cambaleou para trás, agarrando a barriga, a boca se mexendo como se ele buscasse ar. O poder de Tachyon se estendeu, agarrou o humano e o empertigou. Via o terror naquele olhos quando o senador se levantou, impotente, nas garras da ordem mental do takisiano. Ele adentrou em estado de putrescência. Olhos estreitados ardendo de fúria e revolta o encaravam. Uma coisa além de toda a imaginação. O Titereiro. Ele
uivou e lutou, retorcendo-se quando Tachyon, com a precisão de um cirurgião, afastou os anos como pedaços de pele apodrecendo. Leu um conto de morte, dor e terror. O ganancioso frenético sendo alimentado quando o bebê e Gimli caíram na escuridão. Sugando a dor e o medo de Ellen. Erguendo a luxúria no corpo de um curinga, livre de todos os freios, e observando enquanto ele estuprava uma mulher . Um festim sangrento em Berlim quando Mackie Messer , uma marionete enlouquecida e imprevisível, retalhou seus antigos companheiros. Quente, úmido e salgado. As emoções de Mackie enquanto chupava o pau de Gregg. Suborno e assassinato de um técnico que examinara seu sangue. O estalo de ossos quando Roger Pellman bateu com uma pedra no rosto de Andrea Whitman. Saboroso. Saboroso. Uma sensação orgástica. Empanturrada e distendida, a coisa alimentava-se dos indefesos, dos solitários e dos temerosos. As emoções e lembranças eram tão fortes que Tachyon sentiu um calor nas partes baixas, embora o estômago revirasse de nojo. Gritou em fúria, pois aquela coisa — aquele monstro —atraía sua natureza mais obscura. O Titereiro gargalhou, uma massa rodopiante e repugnante de violeta e vermelho. Tachyon transformou-se numa lâmina de prata e cristal e voou para cima do monstro. Atirou-o de volta no covil. Ergueu barras de fogo. Aquele era o construto mais aterrorizante e poderoso que o takisiano já encontrara. Voltando para seu corpo, Tachyon se conscientizou do fedor de seu suor, do tremor violento que sacudia seu corpo. Hartmann estava estirado no sofá. — Você nunca será presidente. Nunca! Gregg se levantou devagar, o gesto pleno de ameaça. Avançou sobre o pequeno alienígena. — Você não pode me impedir. Como pode me… nosimpedir, homenzinho? A resposta do takisiano surgiu sem pensar, mas Tachyon a suprimiu antes que pudesse pronunciá-la entre dentes: Eu te mato. Não, a última coisa que poderia fazer. A morte repentina levaria à autópsia, e a autópsia, à… ruína. Dando meia-volta, ele saiu do quarto. ♦ Spector empurrou o punho contra a parede até ouvir os nós dos dedos começarem a estalar. Agarrou a maçaneta da porta ao lado e tentou girá-la. Sem sorte. Respirou fundo, pegou a pasta e voltou para o quarto. Deixou-a na cama e esfregou o topo do nariz. Hartmann estava fazendo todos de trouxas. Tony tinha tomado uma surra tremenda por nada. Os curingas no parque apoiavam uma fraude. O desgraçado era um ás — e um dos malucos. Era um chefão maldito, como o Astrônomo, manipulando as pessoas para fazerem seu trabalho sujo enquanto mantinha as mãos limpas. Spector cerrou os dentes. Também caíra na lábia de Hartmann. E não gostava de ser pego de calças curtas. A fúria ferveu a dor dentro dele. Precisava fazer alguma coisa — o que fora contratado para fazer. Tachyon provavelmente seria inútil. Estava tão engasgado na maldita presunção que imaginava que retirar seu apoio seria o suficiente. Que
babaquinha patético. Tratar o sintoma em vez da doença, como sempre, e deixar que outra pessoa fizesse o trabalho realmente difícil. Spector estava com raiva demais para dizer quanto tempo se passara desde que Tachyon saíra do quarto do senador, mas ainda ouvia Hartmann andando de um lado para outro no cômodo ao lado. Era hora de derrubá-lo, antes que mais gente do Serviço Secreto aparecesse. Endireitou os ombros no casaco, saiu para o corredor e foi até a porta de Hartmann. A mão estava na maçaneta quando ouviu alguém perguntar: — Quem é você? Spector tirou a mão da porta de Hartmann como se tivesse tomado um choque e virou-se ao ouvir a voz. Era Jack Braun, e o Golden Boy parecia desconfiado e nada feliz. Spector não pensou, só saiu correndo. Ouvia os passos pesados de Braun atrás dele. Ao atravessar o corredor em disparada, Spector abriu a porta da escadaria com tudo. Algo agarrou seu antebraço quando ele entrou. Um agente alto e loiro do Serviço Secreto tentou empurrá-lo contra a parede. Spector derrubou os óculos do homem e fitou seus olhos. Por que esses jovens refugiados de Hitler não o deixavam em paz? Golden Boy passou pelo umbral da porta quando o agente morto caiu no chão. ♥ Jack sentou-se no QG de Hartmann, no andar de baixo, e comeu pizza, esperando Tachyon terminar a reunião com o senador. A atmosfera era eufórica. Hartmann estava a menos de cem votos dos 2.082 necessários para vencer, e parecia que todos os esforços de um pelotão de ases secretos não seriam capazes de parar seu avanço. Ases Voadores pairavam pelo quarto. Amy Sorenson gargalhava, conversando com Louis Manxman num canto. Até Charles Devaughn permitiuse momentos ocasionais de comemoração para quebrar a carranca preocupada. Ainda assim, Jack estava preocupado. Precisava falar com Tachyon. Barnett lançaria mão de medidas desesperadas, e os guardiões de Hartmann precisavam estar preparados. Terminou a pizza e atravessou a sala até o canto onde Amy estava falando com os jornalistas. — Oi, desculpe — interveio —, sabe se o senador já terminou com Tachyon? Amy ergueu os olhos para ele com um sorriso tranquilo. — Tachyon? Acho que está lá em cima ainda. Não sei. — Obrigado. Amy pareceu surpresa com a concisão. Jack virou-se e foi até a porta passando por Billy Ray, que, de guardanapo na mão, tentava limpar molho de tomate e queijo do terno branco. Jack pegou o elevador até o andar de Hartmann. Um homem de aparência comum e com um rosto cheio de marcas de acne tentava abrir a porta. Alarmes começaram a soar em sua mente. Ele passou a se mover mais rápido. — Ei — chamou. — Quem é você? O homem o encarou, surpreso, e saiu correndo. A própria surpresa de Jack quase o fez parar antes de lembrar que devia persegui-lo. Pisando duro no carpete, saiu em disparada.
Este aí, pensou ele, não vai escapar. O homem estava seguindo para a única escadaria, e Alex James estava a postos lá. Entre Alex e Jack, aquela figura não escaparia. O intruso correu a toda velocidade até a porta de metal da escadaria, abrindoa de uma vez com um estrondo que ecoou até no corredor silencioso. A porta se fechou sem demora. Sobre o zumbido do vento nos ouvidos, Jack escutou sons de briga. Em seguida, um grito. O urro de arrepiar a espinha, o som de terror mais desesperador e definitivo que já ouvira ateou fogo em seus nervos. O grito desvaneceu num murmúrio. Jack avançou como um corredor de beisebol mergulhando na segunda base e bateu com as duas mãos na barra antipânico da porta corta-fogo, que se abriu com barulho e voltou logo em seguida. Jack ricocheteou, batendo a cabeça no metal quando a porta parou seu mergulho. Grunhiu ao arrancar a porta das maçanetas, seu poder banhando o corredor de luz dourada. Alex James estava caído no patamar, o rosto ainda paralisado num urro final, as mãos no cabo da pistola. Um calafrio percorreu a espinha de Jack quando viu o rosto, e só então percebeu que o assassino talvez fosse um carta selvagem. Pior para ele, pensou. Nada de jogos com aquele ali. Não deixaria um assassino daqueles se livrar, como acontecera com o corcunda. Os passos crepitaram na escadaria enquanto o assassino girava pelo corrimão de metal até o fim do primeiro lance. Jack teve um vislumbre do rosto pálido cheio de cicatrizes e dos cabelos desgrenhados quando o intruso desceu quatro ou cinco degraus de uma vez. Jack não se deu ao luxo de segui-lo pelas escadas — em vez disso, simplesmente pulou o corrimão e se jogou direto no fim do segundo lance. O assassino estava bem embaixo dele quando ele se lançou — Jack o chutou ao cair, e seu pé acertou o peito do sujeito, jogando-o direto contra a parede e para o chão do patamar. Jack se agachou e virou-se para encará--lo. Com a face contraída de choque e dor, o sujeito começava a se levantar, apoiado no concreto manchado. O triunfo rugiu como um vento quente em seu coração. Jack pulou na frente do assassino, plantou os dois pés no chão e desferiu um soco. O homem viu o soco vindo e tentou inclinar a cabeça para sair do caminho, mas o murro o acertou na lateral do rosto. Um jorro de sangue manchou a parede de concreto rústico. O assassino ricocheteou em duas paredes diferentes e caiu pelo terceiro lance de escada, aterrissando de lado. Os pés de Jack escorregaram, e suas pernas foram para trás. Ele caiu para a frente, apoiado nas palmas das mãos. Jack se levantou, o coração palpitando, e limpou o sangue dos nós dos dedos. O assassino não se movia. Algo estalou sob um de seus pés. Jack ergueu o salto do sapato e viu um dos dentes do sujeito. Um rasto de sangue saía do rosto mutilado do homem, descendo as escadas.
A mandíbula esmagada pendia por uma tira de pele. Jack estremeceu. Precisava de tempo para se acostumar aos resultados da violência, e não tinha. Não se metera numa luta desde que o Cartas Marcadas aterrissara em Paris. Ajoelhou-se ao lado do homem e encarou o rosto ensanguentado. Talvez já o tivesse visto antes. Os olhos do assassino se abriram e encararam os dele. A morte saiu pelo olhar do homem e agarrou Jack pelo coração. ♣ Havia sangue para todo lado, e era todo seu. Spector agarrou a mandíbula deslocada, respirou fundo várias vezes e encaixou-a de volta. Piscou para se livrar das lágrimas, mas não deixou de sentir a dor lancinante. Levantou-se devagar e recostou-se na parede de concreto. O Golden Boy não se movia, e também não parecia respirar. Spector não achava que poderia machucar Braun, muito menos matá-lo, mas ficou feliz por estar errado. Não era hora de se gabar. Precisava ir embora. A luta fora breve, mas barulhenta, e a qualquer minuto chegariam mais agentes do Serviço Secreto. Tirou os sapatos com a mão livre e começou a descer as escadas. Um lance. Dois. Só estaria longe o bastante quando perdesse a conta. Talvez examinassem o sangue do patamar e descobrissem que ele era um ás. Um ás assassino. Uniu as pontas do ferimento na bochecha com o dedão e o indicador. A carne começou a se curar sozinha. Já eram dez lances? Quantos andares seriam? Uma porta se abriu na escadaria acima dele. Spector foi até a parede ao fundo e se esgueirou por ela enquanto descia. Sabia que havia alguém acima dele, olhando para cima e para baixo em busca de uma mão no corrimão ou de alguém olhando para trás. Não cometeria aquele erro. Mas qual seria seu próximo movimento? Ainda estava com a chave do 1031. Era arriscado, mas não conseguia pensar numa alternativa. As laterais do corpo o estavam matando de dor. Golden Boy também quebrara algumas de suas costelas. Mas Spector estava respirando bem; ao menos os pulmões não haviam sido perfurados. Parou no patamar do décimo andar e tirou o casaco. A mandíbula se conectara ao crânio, o que já era alguma coisa, mas não conseguiria falar por um tempo. Usou o casaco para limpar o sangue do rosto e do pescoço. Já havia um tanto encrustado, e ele precisou raspar com as unhas. De cima vieram vozes e passos rápidos. Spector não sabia dizer a que distância estavam ou se estavam descendo. Mas era um alvo fácil, ali. Daquilo tinha certeza. Cuspiu na palma das mãos e esfregou-as sobre o rosto, tentando tirar o restante das manchas de sangue. A mandíbula ainda parecia ter sido alvo do homem-músculo de algum circo. Spector calçou os sapatos de volta e abriu a porta, entrou no corredor e fez com que ela se fechasse em silêncio. Dobrou o casaco sobre o braço, para que o sangue não aparecesse, e avançou lentamente na direção do átrio aberto. A área do saguão estava mais cheia que o corredor, mas ninguém parecia prestar atenção nele. Tossiu quando um pedacinho de sangue seco se soltou do fundo da garganta. Um homem no parapeito se virou para ele e depois voltou a encarar o
espaço aberto. — Golden Boy — disse o homem, bêbado, e apontou com a mão trêmula. Spector olhou adiante e apressou o passo. Flagrou o movimento de canto de olho. Um planador do Golden Boy espiralava lentamente até o térreo. Spector sabia que rir doeria, então nem tentou. Matara Braun e o Astrônomo. Quem mais no mundo poderia ter feito isso? Se conseguisse se aproximar o suficiente de Hartmann, não importaria que o senador era um ás. Spector também o apagaria. Virou no corredor e caminhou até a porta do quarto 1031. Escapara. Era quase como se alguém estivesse do seu lado. Talvez fosse Deus, tentando compensar todos aqueles anos de merda. Continue assim, pensou. Deslizou o cartão-chave na fenda, esperou a luz verde e entrou. ♠ — A passagem de avião foi emitida no nome de George Kerby. A voz de Ackroyd ficou aguda nas duas últimas palavras. Tachyon puxou o cartão-chave da porta e enfiou-o no bolso. Quando entrou, ouviu Hiram retumbar: — Passagens em nome de um fantasma. — Um espectro. — James Spector! — exclamou Hiram. — E os dois Georges Kerbys voltaram dos mortos — comentou Jay. — Ela contratou aquele filho da puta do Ceifador. Estavam de costas para ele. Não haviam notado sua entrada silenciosa. — Temos que informá-los — disse Hiram. Cruzou a sala, pegou o telefone e discou para a operadora. — Coloque-me em contato com o Serviço Secreto. Por fim, eles o notaram. Hiram o encarava com pavor, Ackroyd, com olhos de serpente semicerrados. — Não… não é verdade, é? — indagou Hiram, desesperado. — Diga que tudo foi um engano terrível. Gregg não pode ser… — A frustração o encheu com a perda de sonhos e fé estilhaçada. — Hiram — disse Tach com suavidade. — Meu pobre, pobre Hiram. Eu li a mente dele. Eu toquei o Titereiro. — O horror daquele momento retornou, e Tachyon estremeceu. — É mil vezes pior do que poderíamos ter imaginado. A força escorreu de suas pernas, e Tach sentou-se no carpete, enterrou a cabeça nas mãos e começou a chorar. Através da agonia, ouviu Hiram dizer Deus que me perdoe. Do que Ele precisa perdoar você? Eu deveria ter visto. Vinte anos! Eu deveria ter percebido. Eu deveria saber! Soluços fortes fizeram seu peito doer. Tachyon percebeu que estava caindo numa espiral de histeria. Desanimado, tentou se controlar, e os soluços começaram a diminuir. — O que vamos fazer? — perguntou Hiram. — Botar a boca no trombone — disse Jay. Tachyon se levantou de um salto. — Não! — retrucou. — Ficou louco, Ackroyd? O público nunca deve saber da verdade.
— Hartmann é um monstro — contestou Jay. — Ninguém sabe disso melhor do que eu — respondeu Tachyon. — Eu mergulhei no esgoto daquela mente. Senti a vilania dentro dele, o Titereiro. Ele me tocou. Você não conseguiria imaginar como foi. — Não sou um telepata — retrucou Jay. —Pode me processar. Não vou ajudar a encobrir Hartmann. — Você não entende — rebateu Tachyon. — Há quase dois anos, Leo Barnett vem enchendo o ouvido do público com alertas desesperados sobre a violência dos cartas selvagens, inflamando seus medos e sua desconfiança com os ases. Agora, você propõe revelar que o reverendo estava certo desde o início, que um ás secreto monstruoso de fato subverteu o governo. Como acha que o público vai reagir? Jay deu de ombros. — Tudo bem, então Barnett vai se eleger, grande coisa. Teremos um idiota de direita na Casa Branca por quatro anos. Conseguimos sobreviver a oito anos de Reagan. Tachyon ficou estupefato com aquela estupidez. — Você não tem noção de metade do que encontrei na mente de Hartmann. Os assassinatos, estupros, as atrocidades… e ele sempre no centro da teia, o Titereiro puxando os fios. Ouça o meu alerta: se a história vazar, a repugnância pública desencadeará um reinado de terror que fará as perseguições dos anos 1950 parecerem brincadeira. — O alienígena gesticulava enfaticamente. — Ele matou o próprio filho ainda não nascido e se refestelou com a dor e o terror da morte. E suas marionetes… ases, curingas, políticos, líderes religiosos, polícia, qualquer um estúpido o bastante para tocá-lo. Se seu nome vier a público… — Tachyon — interrompeu Hiram Worchester. Sua voz era baixa, mas a angústia fazia cada sílaba sair soluçada. Tachyon olhou para Hiram, culpado. — Diga — disse Hiram. — Essas… marionetes. Eu… eu era… uma das… — Ele não conseguiu terminar, as palavras engasgadas. Tachyon assentiu. Um meneio rápido de cabeça. Uma única lágrima rolou por seu rosto. Ele se afastou. Atrás dele, Tach ouviu Hiram dizer: — De um jeito grotesco, é quase engraçado. — Mas não riu. — Jay, ele tem razão. Devemos manter segredo. Quando se virou, Tach encontrou Ackroyd olhando de Hiram para si mesmo e de volta para Hiram. Os olhos do detetive eram amargos. — O que vocês querem? — perguntou ele. — Só não esperem que eu vote no desgraçado. Nem que eu fosse registrado. De repente, Tach percebeu que isso também era importante. Não podia confiar apenas na palavra do outro. — Precisamos fazer um voto — disse Tachyon. — Um juramento solene para fazer tudo que estiver ao nosso alcance para impedir Hartmann e levar este segredo para o túmulo. — Ah, dá um tempo — grunhiu Jay. — Hiram, pegue aquele copo — disse o alienígena. Hiram entregou a bebida pela metade, e Tachyon virou o conteúdo no carpete. Ele se curvou, tirou a longa
faca da bainha da bota e ergueu-a diante dos seres humanos fascinados e parvos. — Precisamos empenhar sangue e osso. A mão segurando o cabo estava escorregadia devido ao suor, mas ele golpeou seu punho esquerdo com força. Ficou satisfeito que sua única reação tenha sido um suspiro suave, quase inaudível. Talvez a Terra não o tivesse enfraquecido tanto quanto temia. Tach ergueu o ferimento sobre o copo até haver três centímetros de sangue no fundo. Em seguida, amarrou o pulso com um lenço e passou a faca para Ackroyd. O detetive só olhou para ela. — Você só pode estar brincando. — Não. — Que tal se eu só mijar aí? — sugeriu Jay. — O sangue é o selo do juramento. Hiram avançou. — Eu faço — disse, pegando a faca. Tirou o terno de linho branco, enrolou a manga da camisa e fez o corte. A dor o fez inspirar fundo, mas sua mão não hesitou. — Muito fundo — murmurou Tachyon. O corte era fundo o bastante para ser perigoso. Hiram estava tão devastado pela traição que o suicídio parecia uma opção. Ele se encolheu e estendeu a mão sobre o copo. A linha vermelha escorreu. Tachyon lançou um olhar sério para Ackroyd. Jay respirou fundo. — Então, se vocês dois são Huck e Tom, isso faz de mim o pretinho Jim — comentou. — Lembre-se de examinar minha cabeça quando tudo isso terminar. — Ele pegou a faca e gritou quando o objeto beliscou a pele. Aceitando o copo do suarento Jay, Tachyon girou-o para misturar o sangue, em seguida o ergueu acima da cabeça e entoou, em takisiano: — Pelo Sangue e pelo Osso, assim eu juro — concluiu. Jogou a cabeça para trás e tomou um terço do conteúdo de um gole só. Tachyon estendeu o copo para Hiram. Os dois humanos pareciam enjoados. — Pelo Sangue e pelo Osso — entoou Hiram, e tomou o gole ritual. — Posso acrescentar um pouco de tabasco, talvez um pouco de vodca? — perguntou Jay, quando Hiram lhe entregou o que restava. Os comentários mordazes de Ackroyd estavam ficando cansativos. — Não — retrucou Tachyon, tenso. — Que pena — lamentou Jay. — Sempre gostei de Bloody Marys. — Ele ergueu o copo, murmurando: — Pelo Sangue e pelo Osso. — E bebeu o restante. — Hum — concluiu. — Está feito — falou Tachyon. — Agora, precisamos nos planejar. — Vou voltar para o Omni — anunciou Hiram. — Estava na lista dos primeiros apoiadores de Gregg, e ouso dizer que tenho bastante influência sobre a delegação de Nova York. Talvez possa ter algum impacto. Precisamos derrubar a nomeação a qualquer custo. — Concordo — disse Tachyon. — Queria saber mais de Dukakis… — começou Hiram.
— Dukakis, não — disse o alienígena. — Jesse Jackson. Ele vem nos cortejando desde o início. Vou falar com ele. — Tach deu as mãos para Hiram. — Podemos fazer isso, amigo. — Muito bem — respondeu Jay. — Então, Greggie não vai ser presidente. Grande coisa. E todas as vítimas dele? Kahina, Crisálida, os outros? Tachyon olhou para ele. — Crisálida, não — disse, sem acreditar que se esquecera de contar. — O quê? — perguntou Jay. — Ele ameaçou Crisálida, é verdade — disse Tach. — Obrigou Digger e ela a assistirem enquanto sua criatura torturava e matava Kahina, mas nunca cumpriu a ameaça. Quando ouviu sobre a morte, na segunda-feira de manhã, ficou tão surpreso quanto qualquer outro. — Porra, não brinca — disse Jay. — Você deve ter entendido errado. Estreitando as narinas de fúria, Tachyon se empertigou. — Sou um Lorde Psi de Takis, treinado com os melhores mestres mentais da Casa Ilkazam — disse. — A mente dele estava nas minhas mãos. Não entendi nada errado. — Ele mandou Mackie atrás de Digger! — contestou Jay. — E ordenou que Estranheza recuperasse o casaco incriminador e o destruísse. Com certeza. Depois de ter ouvido que Crisálida estava morta, ele tomou atitudes para se proteger. Mas não tem participação nessa morte. — Tachyon pôs a mão no ombro de Jay. — Sinto muito, meu amigo. — Então, quem fez isso, porra? — questionou Jay. — Não temos tempo para discutir isso agora — interveio Hiram, impaciente. — A mulher está morta, nada vai… — Quieto — retrucou Jay, com urgência. Uma notícia de última hora passou na tela. — … a última tragédia a atingir a convenção — dizia um repórter solene. — O Senador Hartmann não está ferido, repito, não está ferido, mas relatos confiáveis indicam que o ás assassino tirou a vida de dois outros homens em sua tentativa de chegar ao senador. Ainda estamos esperando a confirmação final, mas fontes não oficiais indicam que as vítimas do assassino foram Alex James, agente do Serviço Secreto designado para o Senador Hartmann… — Uma fotografia do defunto apareceu na tela, sobre o ombro do repórter — … e o presidente da delegação californiana de Hartmann, o ás Jack Braun. Braun, figura controversa que protagonizou vários filmes e a série de televisão Tarzan, mais conhecido como Golden Boy. Era considerado o homem mais forte do mundo. A primeira aparição de Braun em público… A imagem de Jack apareceu na tela enquanto o âncora continuava a falar. Estava em suas roupas antigas, ostentando um sorriso malicioso e cercado por um brilho dourado. Parecia jovem, vivo, invencível. — Ai, Jack — murmurou Tachyon. Durante quarenta anos, rezara pela morte daquele homem. Em sonhos alcoólicos furiosos, chegara a tramá-la. Agora ela acontecera, e outra pequena parte de Tisianne morrera. — Ele não pode estar morto — bradou Hiram, furioso. — Eu salvei a porra da vida desse homem noite passada! — O aparelho de televisão voou sobre o
carpete e bateu contra o teto. — Não pode! — insistiu Hiram e, de repente, o televisor estava caindo, atingindo o chão e explodindo o tubo. — Ele não teria morrido por nada — disse Tachyon. Aquilo queria dizer alguma coisa. Não achava. Falou apenas para garantir a si mesmo que ainda estava vivo. Tach tocou o braço de Hiram. — Venha. ♦ A dor era maior do que qualquer coisa que Jack havia imaginado. Queimava dos pés à cabeça, chamuscando cada nervo, cada músculo, cada milímetro quadrado de pele. O cérebro se transformou numa explosão estelar. O coração era uma turbina explodindo. Os olhos pareciam derreter. Cada célula em seu corpo estava em chamas, cada filamento de DNA parecia em revolta contra o código herdado. A rainha negra, percebeu Jack. De alguma forma, acabara de tirar a rainha negra. Conseguia sentir o corpo se apagando em protesto contra a agonia. Pouco a pouco, órgão a órgão, como alguém desligando todos os interruptores num grande edifício. A dor cessou. Viu a si mesmo caído no patamar, o rosto com uma expressão de choque aparvalhado. O assassino, que mal conseguia se mover, tirou o casaco e o enrolou na cabeça, estancando o fluxo de sangue que corria da mandíbula esmagada. — Ei — disse Jack , tentando agarrar o cara. — Pare! O assassino conseguiu se afastar, de gatinhas. — Ei, você aí, Roceiro. Jack ergueu os olhos, surpreso, ao ouvir a voz de Earl Sanderson. Earl parecia mais jovem do que quando Jack o vira pela última vez — o jovem atleta que acabara de se graduar em Rutgers, com seu antigo uniforme das Forças Aéreas com a insígnia arrancada, a jaqueta de aviador em couro com o símbolo do 332o Grupo de Combatentes, a boina preta e o longo cachecol de seda. O estudioso “Black Eagle”, atleta, advogado de direitos civis, ás… e talvez seu melhor amigo. — Oi, Earl — cumprimentou Jack. — Cara, que calma é essa? — perguntou Earl. — Devíamos estar voando para fora daqui. — Não posso voar, Earl. Não sou como você. — Calma, roceiro. — Earl estava sorrindo. — Calma. Jack ficou um pouco surpreso quando os dois começaram a voar. O Marriott Marquis desaparecera, e os dois estavam no céu, seguindo na direção do Sol, cada vez mais brilhante. — Ei, Earl — disse Jack. — O que está acontecendo? — Mais cedo ou mais tarde você vai entender, roceiro. O sol era quase ofuscante, a luz amarela cada vez mais branca, todas as cores esvanecendo. Jack viu outras pessoas lá, rapazes da 5ª Divisão e da Coreia, seus
pais, o irmão mais velho. Estavam todos voando, erguendo-se para o céu. Blythe van Renssaeler se aproximou e deu um sorriso tímido. — Caramba. Ele está assistólico — comentou. — Sem batimentos. — Hein? — Jack olhou para Blythe. Archibald Holmes avançou com confiança em sua direção, vestido num terno de linho branco. Acendeu um cigarro e o enfiou na cigarrilha. — Oi, Sr. Holmes. — Tudo bem — declarou Holmes —, já coloquei a endotraqueal. Onde está a bolsa? — Por que ele continua brilhando e apagando desse jeito? — perguntou Blythe. — Não consigo evitar. — Jack deu de ombros. — Comece a administrar o oxigênio — mandou Holmes. — Vou injetar epinefrina no tubo endotraqueal. Vou precisar de um grama de atropina daqui a um minuto. Jack olhou ao redor e viu que Earl estava de mãos dadas com uma mulher de pernas longas, cabelos loiros desgrenhados caídos sobre um dos olhos e ombros largos. — Você deve ser Lena Goldoni — comentou. — Vi seus filmes. — Temos uma fibrilação — declarou Lena. — Calma — repetiu Earl, balançando a cabeça. — Roceiros são tão calmos. Seu cachecol tremulava num vento invisível. Jack percebeu que estava ali com quase todos os antigos Quatro Ases, todos, exceto David Harstein, e começou a imaginar se deveria pedir desculpas pelo que fizera para eles, por ter destruído todos. Mas eles pareciam tão felizes em vêlo que decidiu não comentar. Mais pessoas estavam se reunindo ao seu redor. Algumas ele já havia esquecido. Até Chester, o chimpanzé que atuou com ele em Tarzan, estava lá, nos ombros de alguém. — Aplique trezentos joules — mandou o macaco. — Pare o CPR. Afastemse! Caramba, afastem-se. Pode tirar as mãos do corrimão de metal, Lois? A luz estava cada vez mais clara. Circulando ao redor deles, os raios pareciam quase palpáveis, como as paredes de um túnel. Jack sentiu a velocidade aumentar quando avançou na direção da fonte de luz. Começou a ouvir pessoas cantando, um milhão de vozes erguendo-se em júbilo. A luz ficava mais próxima — não era só luz branca, era Luz Branca. O coração de Jack se elevou. Começou a entender o que Earl queria que ele entendesse. — Trezentos e sessenta! — berrou o macaco. — Afastem-se! Afastem-se! Jack estendeu os braços e se preparou para mergulhar no coração da Luz Branca. De repente, pareceu hesitar. A luz estava diminuindo. Desesperado, tentou acelerar. Queria voar mais. E percebeu que a Luz Branca olhava para ele. — Que chorão — disse a Luz Branca. — Leve esse chorão para longe daqui. Jack tossiu, abriu os olhos e viu pessoas agachadas sobre ele, homens e mulheres que reconheceu do destacamento do Serviço Secreto para Hartmann, trabalhando com equipamentos médicos de emergência que eram parte de suas
atribuições-padrão. Sentiu uma dor no plexo solar, e não conseguia parar de tossir. Jack olhou por cima das cabeças e viu sangue espirrado nas paredes de concreto e nos degraus. — Ritmo sinusal regular — anunciou um deles. — Temos pulso. Temos pressão. — Falava na voz de Archibald Holmes. Um casal comemorou. Uma mulher alta e de cabelos castanhos estava falando num walkie--talkie. — Ambulância a caminho. — Era a voz de Blythe. — Estraguei tudo — tentou dizer Jack . Não conseguia falar com o tubo endotraqueal que haviam enfiado em sua garganta. — Estraguei tudo de novo. — Estava fraco demais para sentir muitas emoções. A equipe da ambulância chegou e o levou embora.
20h00
Já estava sob controle. A devastação emocional de uma hora antes passara. Jack estava morto. A amizade com o homem que conhecia como Gregg Hartmann estava morta. Crisálida estava morta. Muito bem. Que seja. Estava no controle. Faria o que fosse preciso. Mas aqueles idiotas importunos estavam discutindo com ele. Bocas movendose, gengivas e línguas vermelhas contra rostos negros e brancos. — Estou dizendo que o reverendo está ocupado. Vocês não têm uma reunião marcada — disse o assistente negro, paciente, como se explicasse uma soma aritmética para uma criança retardada. — Ele vai me receber. Meu nome é Tachyon — explicou o alienígena, no mesmo tom paciente e condescendente. — Vá embora e ligue para ele. Use os canais adequados — declarou Flecha Aprumada, muito calmo. — Não tenho tempo para os canais adequados — ralhou Tachyon. Estava perdendo o autocontrole, que minguava como a linha num molinete de vara de pescar. — Está tarde — intrometeu-se o assistente. A porta da suíte estava entreaberta. Tachyon mediu a distância entre os dois homens bem maiores. O espaço o acomodaria. Retorcendo-se como um peixe, disparou entre eles e entrou. — OLÁ! Gritos. Uma parede de pessoas avançou sobre ele. Telefones esganiçavam. Uma televisão despejava futilidades dentro da suíte lotada. — Saiam do meu caminho! SAIAM DO MEU CAMINHO! ONDE ELE ESTÁ? PRECISO VÊ-LO! — Sua voz soava estridente aos seus ouvidos. — Não pode ir entrando assim aqui… — berrou Flecha Aprumada. As pessoas o agarraram pelos braços e pelas pernas, erguendo-o do chão. Tach gritou, furioso, e se contorceu nas mãos estranhas. Em frenesi, controlando as pessoas com a mente, sentiu as mãos soltarem-no, em seguida apertaram de novo quando novas pessoas avançaram para substituir aquelas que haviam caído no chão, adormecidas. A porta do quarto abriu-se de uma vez, batendo violentamente contra a parede ao fundo. Com os óculos de leitura agarrado na mão, Jesse Jackson olhou feio para seus assistentes e rugiu: — SOLTEM-NO! Os dois filhos mais velhos de Jackson empurraram os membros irados da campanha para trás. Muito bonita e muito autocontrolada, Jackie Jackson o ajudou a se aprumar. Aos poucos, a ordem foi restaurada. Jesse chamou Tachyon com um gesto, e ele se juntou ao candidato no quarto. A porta se fechou, bloqueando o pior do barulho e os rostos curiosos e boquiabertos. — Aqui. — Tachyon abriu os olhos. Jackson estendeu um copo cheio de
uísque escocês embaixo do nariz. — O senhor gosta de uma bela entrada, não é, doutor? Não poderia ter me ligado e pedido para me ver? Tach apertou uma das mãos contra os olhos. — Nem pensei nisso. — Endireitou os ombros e afastou-se da parede a que estava apoiado. — Convoque uma coletiva de imprensa, reverendo. O senhor acabou de se tornar a mais nova e melhor esperança para os cartas selvagens. Jackson parecia sem palavras. Ele bateu a mão na coxa, em seguida deu várias voltas pelo quarto apinhado. — Por quê? — Seu tom e expressão eram sérios. — Depois de refletir, seus argumentos me convenceram. — Mentira. Você urrou para entrar aqui, parecia um louco. Está tremendo como uma vara verde… — Desesperado, Tachyon agarrou a própria mão para não tremer. — O que houve? O takisiano estendeu a mão num gesto ríspido. — Você quer o que eu tenho a oferecer ou não? — Sim, mas quero saber por quê. — Não. — Tudo bem. Olhe, doutor, o senhor vai ter que falar alguma coisa para a imprensa. Talvez seja melhor praticar comigo. A cama na suíte tinha um dossel elaborado. Tachyon agarrou um dos postes com as mãos e descansou a cabeça contra a madeira. Num tom monótono, ele recitou: — As instabilidades de Gregg Hartmann estão bem documentadas. Embora todos esperassem que a tragédia de 1976 tivesse ficado para trás, concluí que os eventos desta manhã abalaram muito o candidato, e não posso, em sã consciência, apoiar o cavalheiro em sua tentativa de garantir a nomeação presidencial do Partido Democrata. — Ele deixou as mãos caírem e se virou para encarar Jackson. — Pronto, é suficiente? Jackson alisou o bigode com o indicador. — Sim, acho que talvez dê para o gasto. — Seus olhos eram sérios quando encarou o pequeno alienígena. — Entende as consequências do que está fazendo? — Ah, sim. — As palavras saíram com um suspiro. — E isso não o impede? — Não posso permitir que me impeça. — Tach partiu para a porta. Parou com a mão na maçaneta e olhou para trás. — Estou confiando meu povo ao senhor, reverendo. Melhor que não mostre que minha fé é infundada.
22h00
— …instabilidades estão bem documentadas — dizia o homenzinho de cabelos longos e ruivos na tela da televisão. Ao fundo, as letras JAC e SON pairavam de cada lado do enorme homem negro sorridente junto ao sujeito. — Temo que os trágicos eventos desta manhã tenham deixado o Senador Gregg Hartmann devastado. — Seu filho da puta, filho da puta! — gritou Mackie Messer, cuspindo pedaços de costela frita na tela. O corpinho magrelo e deformado estava praticamente levitando sobre o lençol estendido do hotel, como uma partícula de supercondutor presa num campo magnético. Os pedaços de costela tinham gosto de sal e gordura. Fracasso tinha gosto de merda. Der Mann não o mandara embora. Permitira que ficasse num quarto tão roubado quanto os pedaços de costela — engraçado como sempre dava para encontrar um quarto vazio, não importava o quanto o hotel estivesse cheio. Ao menos se a pessoa pudesse atravessar paredes. Esteve bem perto. Mackie sabia. Sempre sabia quando a rejeição estava próxima. Tinha muita experiência. Tachyon olhava diretamente para o brilho prateado. Parecia afundar os olhos em fossos escuros. — Não tenho mais convicção de que as capacidades do Senador Hartmann representem adequadamente o Partido Democrata, tanto como candidato à presidência quanto como presidente. Portanto, decidi apoiar o Reverendo Jesse Jackson, que demonstrou seu compromisso com os curingas… Um preto! O alienígena desgraçado estava trocando o Homem por um selvagem! E Mackie, que poderia ter matado a puta loira que causava problemas para o Homem, estragara tudo. Era um inútil. Merecia a rejeição do Homem. Assim como mereceu ser abandonado pela mãe. Com um soluço, arrancou um travesseiro do abraço forte do lençol e o apertou contra o rosto, como se pudesse conter as lágrimas dentro de si.
23h00
O telefone tocou. Tachyon olhou de relance para a figura adormecida de Jay, mas o detetive nem se moveu. Era mais que sono, era um esgotamento profundo, praticamente uma inconsciência. Tachyon o encarou com inveja amarga. Estava cansado até a alma, mas a mente inquieta não permitiria que se aquietasse. Depois de tomar um único gole do último dedo de conhaque no copo, o alienígena estendeu a mão e pegou o telefone. — Alô. Não, não estou dando entrevistas… — Doutor Tachyon, aqui é da recepção. O Grande e Poderoso Tartaruga está pairando na entrada do hotel, chamando pelo senhor. — Diga que estou ocupado. — Mas… Tachyon desligou o telefone e voltou a beber. Alguns minutos depois, o aparelho tocou de novo. — Veja bem, caramba! Me receba agora. Precisamos conversar. Tachyon ponderou onde Tommy estacionara o casco para fazer aquela ligação. — Não, Tommy. — Você me deve essa. — Não. Ele desligou o telefone e tomou mais uma dose. A janela estourou como o som de um foguete sendo detonado. Com um grito de terror, Tachyon protegeu a cabeça com os braços quando estilhaços brilhantes choveram sobre o carpete e a mobília. O Tartaruga era um vulto grande e preto cobrindo as estrelas. Ele ouviu gritos e confusão vindos do corredor. — Um telefone poderia ser desligado. Então pensei em vir pessoalmente. — Ai, Tommy. — Precisamos conversar. — Não posso. O poder do Tartaruga o agarrou. Sacudindo-o através da janela estilhaçada e segurando-o suspenso a noventa metros sobre a calçada. — Pode, sim. Tachyon olhou para o teto dos carros que passavam embaixo. Engoliu em seco. — Tudo bem, eu posso. O Tartaruga pousou-o suavemente sobre o casco arredondado. Tach tateou em busca de um apoio para a mão. Estava bêbado demais para se equilibrar sozinho. — Por quê, Tachy? — Porque eu precisei fazer isso. — Mais uma votação e teríamos vencido. Tachyon permaneceu em silêncio.
— Fale comigo, caramba! — Não posso. — Você não pode. — Tommy imitou-o num tom choroso, fininho. A raiva agitou-se em meio ao esgotamento. — Escute aqui, Tommy, qual é o problema? Jackson defende todas as posições que Hartmann mantém. — Jackson não pode se tornar presidente. — Será? — Jackson é um negro que apoia curingas! — Decidi que ele era a melhor pessoa para representar o interesse dos cartas selvagens. — Você… você decidiu? Simples assim? Bem, e o restante de nós? — Você me conhece há 25 anos. Devia confiar em mim. — Eu confio. Embora você tenha nos traído. Você sabe o que fez. Acabou de dar a nomeação a Barnett. — Não, não dei! E você me conhece bem o suficiente para saber que eu tenho razões sólidas para o que fiz. — Então me diga que porra de razão é essa! — Não. Tach começou a chorar. — Merda, você está bêbado. Passavam pelos telhados, refletores batiam nas janelas e cornijas. O teto curvo do Centro de Convenções Omni reapareceu. Na escuridão, milhares de luzes piscavam aos pés do edifício imenso. Piscando para tirar a umidade que nublava os olhos, Tach percebeu que um mar de curingas silenciosos, as máscaras e deformidades iluminadas pelas chamas de mil velas, estavam em vigília silenciosa. — Olhe para eles. Olhe bem para eles. O que vai dizer a eles, Tach? Confiem em mim? E quando as tropas chegarem para levá-los? — Não vai chegar a isso. — E se chegar? — Não mudaria a decisão que tomei hoje. O Tartaruga entendeu a frase como arrogância e saiu do controle. — MEU DEUS, QUE MERDA VOCÊ PENSA QUE É? Vários rostos mascarados curiosos ergueram-se na direção deles. O temperamento de Tachyon se esfacelou. — Sou Tisianne brant Ts’ara sek Halima sek Ragnar sek Omian, da Casa Ilkazam, e quando faço algo é por um motivo bom e razoável. Não me questione! — Porra, não sou seu serviçal! — Não, mas é da minha estirpe, formalmente adotado por mim. É sangue e osso da minha linhagem, você e seus herdeiros estão para sempre ligados à minha casa. Não se esqueça disso! — sibilou Tach. — Ah, vá se foder! Vá se foder lá no inferno! Somos só brinquedinhos para você. É tudo que sempre fomos. Ratos de laboratório em seu grande experimento. Estavam sobre o Parque Piedmont. Tartaruga mergulhou como uma pedra
caindo e, agarrando Tachyon com a telecinese, deixou-o nos degraus de uma fonte. — Pela última vez, Tachyon, me responda. — Não posso. O poder se lançou sobre ele. Acertou-o no rosto. Tach caiu para trás nos degraus, tombando com tudo no chão. Grunhindo, esforçou-se para se apoiar num cotovelo. Estava cego pelos faróis quando o Tartaruga voou baixo. Hesitante, Tach tateou as costelas. Concluiu que estavam apenas fissuradas, não quebradas. O Tartaruga pairou por um instante, em seguida subiu com tudo e desapareceu sobre as árvores do parque. Tachyon não ignorou a mensagem ou o simbolismo daquele tapa. Dezembro de 1963. Os degraus do Túmulo de Jetboy. Você não dá a mínima para ninguém. — Dou sim. Estou fazendo isso para proteger vocês. Porque os amo. Ele tem um assassino que pode atravessar paredes. E eu fiz um juramento. Mas o Tartaruga levantara um espectro aterrorizante: Barnett como presidente. Tachyon afastara Hartmann da presidência, agora precisava impedir Barnett de chegar lá. E, para isso, precisava de Jack. ♥ Ao chegar no hospital com a ambulância, Jack estava se sentindo bem, mesmo que enfraquecido. Considerando que tivera um ataque cardíaco, fizeram uma bateria de exames. Estava fraco demais para resistir, mas, quando anunciaram que os resultados voltaram perfeitos e que fariam um encefalograma para buscar algum sinal de dano cerebral, sua força voltara a fluir, e ele foi firme na recusa. Relatou que fora ferido por um poder de ás e que sobrevivera. Não havia nada de errado com ele, fisicamente. A coisa toda acontecera em sua cabeça. Os médicos insistiram em fazê-lo passar a noite no hospital em observação. Minutos depois de as enfermeiras saírem, Jack estava ao telefone com Billy Ray, descrevendo o homem que vira e a natureza e a extensão de seus poderes. — Está trabalhando para Barnett — explicou Jack. — Ele e o outro cara, o moleque de jaqueta de couro. — Vou passar suas suspeitas adiante — declarou Ray. — Aliás, o cara que pegou você… imaginamos que seja James Spector, mais conhecido como Ceifador. Tem reputação. Ponha um par de óculos escuros, aí ele não vai poder travar os olhos com você. — Diga isso para o senador, pelo amor de Deus. Tem dois ases atrás dele. — O senador tem outras coisas em que pensar, Jack. Tachyon e os curingas passaram para o lado de Jesse Jackson. — Quê? — Jack sentou-se de uma vez na cama. — O desgraçado daquele alienígena do inferno. — Quando isso aconteceu? — Mais ou menos na mesma hora que o Sr. Merdinha tomou uma surra na escadaria. Falo com você mais tarde, seu bunda-mole. Jack desligou o telefone e encarou o televisor encostado no canto por um bom
tempo. A tela tinha a mesma cor vazia dos olhos de James Spector. Uma avalanche fria subiu por sua espinha. Então, pensou ele, foi o ás secreto. O ás secreto — droga, Leo Barnett, chame o cara pelo nome —, Barnett conseguiu pegar Tachyon. Deve ter usado Fleur . Fleur o surpreendeu sozinho, e Barnett o atingiu com alguma coisa. Jack saiu da cama e encontrou as roupas respingadas de sangue no armário. Começou a vesti-las. Estava sozinho. E sabia o que precisava fazer. ♣ Tachyon batia os punhos no balcão da estação de enfermeiras. Doía muito, mas não conseguia parar. — Como pôde deixá-lo ir embora? Como? Preciso vê-lo. Tenho que vê-lo! — Doutor — disse uma enfermeira negra e magra, gentilmente. — Vou chamar o Dr. English, da ala psiquiátrica… — Eu não… preciso… de um… psiquiatra. Eu preciso… do Sr. Braun. — E ele… não está… aqui — respondeu a enfermeira, com o mesmo enunciado cuidadoso que Tachyon usara. A mão fechou-se como um torno ao redor de seu cotovelo. — Dançarino, venha comigo. Tachyon girou, o movimento violento arrancando um gemido dele. Polyakov manteve a mão no cotovelo do takisiano, os dedos apertando a junta dolorosamente. Fraco, Tachyon permitiu que fosse levado dali. — Soubemos pelas notícias que você finalmente está em seu juízo perfeito — disse George, baixinho, quando saíram do hospital. — Soubemos? Ele acenou para chamar um táxi. — Sara. Estou cuidando dela. — Ah, graças ao Ideal. Leve-me até ela… — O que você acha que eu estou fazendo? — rosnou Polyakov , quando abriu a porta do táxi. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo VI
Sábado, 23 de julho de 1988
1h00
Estavam diante da porta de um quarto do Motel 6, na periferia de Atlanta. Tachyon tentou refletir no que diria à mulher que ele maltratara tanto, mas só conseguia pensar em como estava cansado. Tentava se lembrar de quando fora a última vez que dormira. Tinha a péssima sensação de que fora na noite de terçafeira. Polyakov bateu uma vez na porta, com força. — Sara, é o George. Tachyon ficou tenso por um momento e, no instante seguinte, Sara apareceu, o rosto pálido encarando-o com seriedade. Usava um vestido azul e branco amarrotado. A anágua estalou quando ela recuou, os braços cruzados, num gesto de proteção. Polyakov era uma sombra impassível atrás dele. Tachyon sentiu o esforço na garganta quando tentou pronunciar algumas palavras. De repente, avançou para cima dela com urgência. Apoiou-se sobre um joelho, ergueu a barra do vestido dela e levou-a aos lábios. — Sara, me perdoe. A mulher soltou uns sons agudos, baixos e inarticulados. Seus dedos roçaram de leve nos cabelos do alienígena, que se ajoelhava, baixando a cabeça diante dela. — O que ele está fazendo? — perguntou finalmente, meio sem jeito. — Um gesto takisiano extremamente dramático. Em momentos de estresse, Tach se volta para esse tipo de comportamento extraordinário — grunhiu o russo. — Vou deixar vocês a sós. — A porta se fechou suavemente, e eles ouviram passos se afastando pelo corredor. Sara puxou o ombro de Tach. — Ah, por favor, levante-se. A dor das costelas fissuradas arrancou um grunhido quando ele se levantou. — Peço perdão se a envergonhei, mas palavras não eram suficientes. Errei com você, um erro horrível. — Então… então… — Sim, você não está louca — completou o takisiano, tranquilizando o maior temor da mulher. — Eu confrontei o monstro. Sara começou a chorar. Com gentileza, Tach estendeu a ponta de um dedo e limpou suas bochechas. — Ah, Ricky. Os ombros dela eram lâminas salientes quando ele a puxou para um abraço. — Tudo bem, acabou.
Jogando a cabeça para trás, Sara ergueu os olhos para ele. — Sério? Acabou mesmo? — Sim. Cortei as asinhas dele. Ele não vai conseguir reverter a situação. Sara piscou os longos cílios sobre as maçãs do rosto cansadas. — Então estou a salvo. — Sim. Tach beijou seu rosto, sentindo o sal das lágrimas. Os cabelos loiros platinados caíram sobre os ombros quando ela descansou a cabeça contra ele. Tão pequena. Era uma das poucas mulheres naquele planeta quente e pesado que o faziam se sentir alto. Era de uma palidez élfica, aproximando-se dos padrões de beleza takisianos. Lembrou-se de que a desejara. Três anos antes, quando ela entrara em sua vida, implorando para que ele salvasse o curinga patético de Doughboy, erroneamente acusado de assassinato. Agora, ele estava completo — ou ao menos seu corpo estava. E estava solitário, perdido e com medo… e ela também. Tach transferiu os beijos para a boca da mulher. Sabia que ela não devia ser virgem, mas havia algo de deliciosamente tímido e desajeitado em suas reações. Pegou-a nos braços e deu outro gemido. A cabeça de Sara inclinou-se para cima, os tendões talhados no pescoço fino. — Você está machucado. — Não é nada. — Tach cambaleou até a cama, ignorando a dor. Deitou-a. Perguntou-se, em meio à onda repentina de libido, quando sua vida ficou em ruínas. Em seguida, percebeu como aquilo era adequado. O destemido espírito takisiano sempre buscaria extrair a vitória da derrota, criação do desespero. Tach hesitou e perguntou: — Você me deseja? — Sim, ah, como desejo. Sou tão grata… tão, tão grata. — Sara engasgou, e as lágrimas encharcavam os cabelos nas têmporas. Deslizando as mãos pelo quadril dela, Tach encaixou o dedo no alto da meiacalça e puxou-a para baixo. Percebeu que rasgos e buracos a deixaram como uma teia de aranha esfarrapada por um vento matador. — Ah, minha pobrezinha. Minha pequena. De repente, Tach começou a soluçar. A agonia atravessou seu corpo quando os paroxismos sacudiram as costelas feridas. Parecendo aterrorizada, Sara apertou a palma das mãos no rosto do alienígena. — Ah, não. Por favor, não. O que há de errado? — Eu confiei nele, e ele me traiu. E agora — seus braços se sacudiam na direção do Parque Piedmont —, todos acham que eu os traí. Estou tão cansado. Tão cansado. Sara despiu-o com mãos gentis. Levou-o para debaixo das cobertas. Sua carne nua estava mais grudenta que a dela. Passaram muito tempo apenas abraçados, estremecendo enquanto mentes e corpos tentavam relaxar. Tachyon mantinha a mão pousada sobre o seio pequeno da mulher. Sara estava deitada na curva do braço do alienígena, traçando de leve uma linha em seus lábios, com o indicador. — Deve ser bom que eu não esteja em Takis — disse ele. — Por quê?
— Eu já teria morrido há muito tempo. Se um mero ser humano, um terráqueo, consegue me manipular no jogo takisiano. — Ele balançou a cabeça. — Que jogo? — O da intriga. Conheço Hartmann há vinte anos. E nunca suspeitei. — Ele era muito astuto. Passei… — A voz da mulher ficou profunda e densa com a amargura. — E arruinei… minha vida inteira perseguindo esse cara. — E agora conseguiu. Valeu a pena? — Não sei. — Sara suspirou, e ele a beijou. Tachyon soltou uma risada curta, em seguida um gemido abafado. — Não tenho ideia de onde está meu neto de treze anos, isso não é incrível? Estou tão ocupado andando para lá e para cá no grande palco da vida que não tenho tempo para viver. Fico me perguntando como seria a vida de uma pessoa normal. — Chata. Você odiaria. Apoiando-se num cotovelo, Tach a encarou. — Acha mesmo? — Acho. Ele se deitou de volta. — Não sei. Ter esposa, filhos, amigos. — Você tem amigos. — Acho que perdi a maioria deles esta noite. Sara voltou a chorar. — Desculpe. É tudo minha culpa… Tachyon pousou a mão na boca da mulher. — Não, essa fala é minha. — Ricky me amava, e ele foi despedaçado. Nunca nem dormi com ele. O alienígena deslizou a mão pelo ventre da mulher, umedecendo os dedos entre as pernas dela. — Então vamos honrar os mortos celebrando a vida. — Não é um pouco insensível? — Fique quieta, Sara, você pensa demais.
2h00
Jack estava suando quando se sentou na cama, recostado nos altos travesseiros do hotel. Tinha nas mãos uma garrafa de uísque pela metade. Acabara com dois maços de Camel. A televisão estava ligada num filme antigo de suspense de Boris Karloff. Karloff encarava Jack com os olhos de James Spector. Ele desligou o aparelho com o controle remoto. A televisão continuou encarando-o, até ele sair da cama e virar o aparelho para a parede. Sabia o que precisava fazer. Não sabia se teria coragem de fazê-lo. Nunca tinha feito esse tipo de coisa sozinho. Sempre havia o Sr. Holmes, Earl ou alguém para lhe dar conselhos e garantir que tudo ficaria bem. O ás secreto já tentara matá-lo duas vezes. E se perguntou: a terceira vez seria bem-sucedida?
10h00
Tachyon estava sentado diante da bandeja de serviço de quarto, passando manteiga numa torrada, quando Jay saiu do cômodo. Usava um dos ternos de Tachyon e, embora ficasse muito curto nos braços e nas pernas, parecia definitivamente mais elegante e bem-arrumado. Estendido numa poltrona, Blaise olhou para cima e deu uma risadinha. Tachyon lançou um olhar sério ao neto. — Blaise, você gostou do passeio na esteira das bagagens? O garoto olhou para ele, irritado. — Não. Eu me senti idiota. — Então, pelo Ideal, trate de começar a ser mais educado — respondeu Tachyon. — Ou vou pedir para que o Sr. Ackroyd teleporte você de volta para o aeroporto de Atlanta. — Não consigo evitar, ele está engraçado — reclamou Blaise. — Parece um frutinha. — Essas são as minhas roupas — enfatizou Tachyon, tenso. — Na minha opinião, foi uma melhoria drástica. — Concordo com o garoto — disse Jay. Blaise o encarou, surpreso. Em seguida, abriu um sorrisinho. Jay ergueu um dedo num movimento rápido de sacar armas. Blaise se encolheu. — Te peguei. — Jay sorriu. Assim como Blaise. Confuso, Tachyon observou a cena. Ao que parecia, teleportar seu herdeiro extravagante por metade de Atlanta estabelecera um certo grau de afinidade. Lembrou-se de George dizendo que Blaise precisava temer uma pessoa antes de se importar com ela. Tach sentiu-se deprimido. — Ele já é bem intragável sem você incentivando — murmurou. — Ah, ele é ótimo — retrucou Jay, puxando uma cadeira até o carrinho do serviço de quarto. — Para um takisiano, ao menos. — Ergueu a cúpula prateada do prato e atacou os eggs benedict com voracidade. Tachyon limpava os lábios com um guardanapo, e Jay reunia o resto da gema do ovo com um pedaço de torrada quando bateram à porta. Tachyon se levantou. — Quem é? — Carnifex. Abra, não tenho o dia todo. Tachyon olhou para Jay. — Deixe ele entrar — disse o detetive. — Ray é durão, mas não há nada que possa fazer contra você, eu e o Cisco Kid ali. — Ele apontou para Blaise. O alienígena assentiu e abriu a porta. Carnifex olhou ao redor e entrou na suíte, usando o uniforme branco colado ao corpo que delineava cada músculo e tendão. — Os regulamentos dizem que devemos nos manter longe de toda a maldita política — disse Ray com desdém. — Bom para você. Do contrário, eu teria
acabado com a sua raça. Acho que você tem andado muito com o Braun. Deve ter pegado a doença dele. Tachyon comprimiu os lábios. — Diga o que veio fazer aqui, Ray — respondeu o alienígena, encarando o ás que servia ao governo. — Suas opiniões sobre questões políticas e morais não me interessam. — Gregg quer ver você. — O sentimento não é recíproco. — Você vai encontrar com ele — anunciou Ray, com um sorriso desonesto. — Gregg mandou avisar que quer discutir uma proposta. — Não tenho nada para discutir com o senador. — Está com medo? — indagou Ray. — Não se preocupe. Eu seguro sua mão. — Então deu de ombros. — Faça o que quiser, não estou nem aí. Mas se não vier, vai se arrepender. — O ás de terno branco olhou ao redor da suíte: as janelas que o Tartaruga estilhaçara, o televisor que Hiram derrubara, a mancha de urina no sofá. — Que festinha boa você deu por aqui. Alguém precisa te ensinar a limpar sua sujeirada, doutor. Este lugar está uma bagunça. O sujeito estava prestes a sair quando Ackroyd o chamou. — Ei, Carny. Tachyon se encolheu. Ray virou-se com um brilho furioso nos olhos verdes. — É Carnifex, idiota. Tachyon se encolheu de novo e fechou os olhos. — Vou tentar lembrar — continuou Jay. — Quantos desses ternos bem-humorados você tem? — Seis ou oito — respondeu Carnifex, desconfiado. — Por quê? — Deve ser difícil tirar as manchas de sangue deles — retrucou Jay. Tachyon não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Quando era criança, Ackroyd devia ser do tipo que gostava de chutar formigueiros e investigar colmeias. Ray olhou furioso para o detetive. — Fique fora do meu caminho, detetivezinho — avisou —, ou vai descobrir como é difícil. E saiu batendo a porta. — Detetivezinho — repetiu Jay. — Ele me chamou mesmo de detetivezinho. Meu Deus, estou arrasado. — E virou-se para Tachyon. — Você vai? Tach empertigou-se e ergueu o queixo. — Preciso ir. Jay suspirou. — Tinha medo de que você fosse dizer isso. ♠ Talvez tivesse conseguido dormir, talvez só tivesse desmaiado algumas vezes. Achou que era melhor fazer o que precisava antes de toda a coordenação motora ir para o inferno e não conseguir nem apertar as teclas no celular.
— Reverendo Barnett, por favor. — Quem gostaria? — A resposta feminina tinha um forte sotaque espanhol. — Aqui é Jack Braun. A voz com sotaque era formal. — O Reverendo Barnett não está disponível para ninguém, Sr. Braun. Está em vigília de oração que deve durar até… — Ele precisa falar comigo! — A voz de Jack foi quase um grito. — Senhor — retrucou a voz, com paciência fingida —, o Reverendo Barnett… — Diga a ele que posso lhe dar a Califórnia de mão beijada — retrucou Jack . Houve uma longa pausa antes de a voz retornar. — Vou passar para a Srta. van Renssaeler. Pequenos resquícios de ressaca cobriram os olhos de Jack à menção do nome. Pelo menos estava chegando perto do reverendo. ♦ Ele está vindo. O Titereiro sentia a chegada de Tachyon através do nojo de Billy Ray. Estamos cometendo um erro ao não tentar pegá-lo… Não! Gregg foi veemente. Ele é forte demais. Se o atacarmos desse jeito, ele terá uma desculpa para retaliar . Do meu jeito é melhor . Você é fraco. Está se sentindo culpado. A acusação era quase certeira. Sim, estava se sentindo culpado. Conhecia Tachyon havia vinte anos, no fim das contas. Cale a boca, disse ao Titereiro. Deixe que eu cuido disso. Claro. Claro. A quem mais ele contou? Hiram sabe. Talvez muitos outros… Cale a boca! Gregg estava encarando a janela quando Billy — com óbvia má vontade — deixou Tachyon entrar na suíte. — Um de seus traidores, senador — anunciou Ray, segurando a porta aberta. — Quanto será que pagaram para o desgraçado? Ray fechou a porta atrás de Tachyon, tão rápido que o alienígena precisou dar um passo para dentro do quarto para não ser atingido na perna. Gregg continuou folheando as páginas da pasta que tinha em mãos, virando as folhas lenta e deliberadamente. Esperou até ouvir Tachyon bufar, irritado. — Diga o que quer, senador. Não tenho muito tempo para perder com o senhor. As palavras doíam mais do que deveriam. Eu não fiz aquelas coisas, quis dizer. O Titereiro fez. Mas não podia dizer aquilo, o Titereiro estava escutando. Virou-se para encarar o alienígena ruivo e jogou a pasta na mesa de centro diante de Tachyon. — Que matéria interessante — comentou. — Vá em frente, doutor. Pode ler. Tachyon o olhou com raiva, mas pegou a pasta com os dedos delicados. Folheou as páginas estampadas com selos do Departamento de Justiça e deu de ombros.
— O que é isso, senador? Pare com a farsa e acabe logo com isso. — É bem simples, doutor. — Hartmann sentou-se numa das poltronas, recostando-se. Pôs os pés sobre a mesa de centro com indiferença bem pensada. — Você invadiu minha mente e pegou munição para usar contra mim. Não gosto de ficar com um revólver vazio num duelo. Então, fui procurar algumas coisas sobre você. Imaginei quem estaria sussurrando sobre mim em seus ouvidos. Imaginei de onde as mentiras estavam vindo. — Não são mentiras, senador. Eu vi a sujeira nojenta e pervertida em sua cabeça. Nós dois sabemos disso. Por favor, o Titereiro implorou ao ouvir o insulto. Deixe-me tentar . Não! Gregg acenou. — Alguém convenceu o senhor a estuprar minha mente, doutor. Sei que Hiram está parcialmente envolvido, mas ele realmente quer acreditar em mim. Não deve ser a fonte. Meu palpite era que devia ser Sara, e se foi, ela talvez esteja trabalhando em conluio com outra pessoa. Veja, sei que Kahina… o senhor se lembra da pobre Kahina?… falou com Sara. Sei que ela e Gimli tiveram contato com outro homem, um russo. Eu tinha até uma fotografia. E tenho amigos importantes, lembra? Eles verificaram outras coisas para mim, checaram históricos e cronologias. O senhor ficaria surpreso com o que encontraram. Ou talvez, apenas talvez, não fique. Gregg balançou a cabeça. Abriu o famoso meio sorriso inclinado que se tornara ícone dos cartunistas para Hartmann. — É bem irônico, não é, doutor? O pessoal do HUAC estava certo desde o início. O senhor sempre foi um maldito comunista do espaço sideral. Tachyon empalideceu. Seu corpo tremeu, os lábios se estreitaram numa linha rígida. O Titereiro flagrou o transbordar das emoções e deu uma risadinha. Pegamos ele. — Bang — disse Gregg. — Viu? Também tenho algumas balas. Uma chamada Blaise, outra chamada Polyakov . Além de outros nomes. Munição de calibre bem alto. — Não pode provar nada — soltou Tachyon. — Seu pessoal diz que Polyakov está morto. Kahina está morta. Gimli está morto. Todo mundo que você toca morre. Tudo que tem são boatos e insinuações. Nenhum fato. — Polyakov foi visto aqui, em Atlanta. Os outros fatos seriam fáceis de contornar — respondeu Gregg, tranquilo. — Mas não quero problemas. — E o que o senhor quer? — Você sabe tão bem quanto eu, doutor. Quero que diga que cometeu um erro. Que diga à imprensa e aos delegados que foi tudo um desentendimento particular entre nós dois, e que tudo está bem agora. Somos amigos. Camaradas. E você ficaria muito desapontado se todo mundo não votasse em mim. Se não quiser fazer uma campanha ativa por mim, ótimo. Vá embora de Atlanta depois de dar sua declaração à imprensa. Mas, se não o fizer, vou começar a fuçar os fatos que você casualmente deixou para trás. Talvez você tire minha nomeação, Tachyon, mas posso garantir que te levo para o fundo do poço junto comigo… Você e aquele seu neto surgido do nada.
Funcionou. Gregg tinha certeza. Tachyon bufou, sem palavras, os punhos tão cerrados na pasta que o papelão amassou, manchas brilhantes e vermelhas se espalhavam pelo rosto. O pequeno covarde estava prestes a chorar, os olhos já marejados. Vencemos. Mesmo se tudo que ele fizer for manter a boca fechada, vencemos. Ficaremos bem. Viu?, disse Gregg ao Titereiro. E, depois que tudo isso terminar , descobriremos uma forma de acabar com ele. De uma vez por todas. Tachyon estava chorando, uma linha de lágrimas escorrendo dos olhos. Ele recuou como um galinho de briga, o peito estufado, e o encarou com ódio. Gregg gargalhou, desdenhoso. — Temos um acordo, então — concluiu. — Ótimo. Vou pedir para Amy providenciar a coletiva de imprensa… — Não — disse Tachyon. Ele jogou a pasta para cima de Gregg. Os papéis se espalharam como folhas outonais fantasmagóricas. — Não! — repetiu Tachyon, e dessa vez foi um grito desafiador, choroso. — Pode fazer o que quiser, senador, mas não. Pode ir para o inferno. E, quanto às ameaças de me levar junto para o fundo do poço, eu não me importo. Já estive lá. Tachyon se virou para sair quando Gregg avançou para cima dele. O Titereiro uivou por dentro, frenético. — Filho da puta! — gritou o senador. — Seu desgraçado, estúpido! Só preciso dar um telefonema e você estará acabado! Vai perder tudo! Tachyon encarou Gregg com os olhos violeta reluzentes. — Perdi tudo que importava muito tempo atrás — respondeu. — Você não tem como me ameaçar com isso. Tachyon abriu a porta, fungou alto e fechou-a com dignidade, em silêncio. ♥ Ele acordou com o som da porta se abrindo. Spector estava deitado embaixo da cama. Passara a noite lá, com medo de dormir no relento. Espreitou pela fresta de alguns centímetros entre o chão acarpetado e a ponta do lençol. Um par de sapatos de fivela marrom passou e entrou estalando no piso do banheiro. — Ninguém passou a noite aqui, de novo. — Era a voz de uma mulher negra. — Estamos perdendo nosso tempo com essa bosta. Acho que seria melhor ligar para ele para contar. — É o que mandaram fazer — concordou a voz do corredor. — Então eu faria isso se fosse você. Os pés se moveram até a cama. Spector prendeu a respiração. A mulher ergueu o receptor e digitou quatro números. Esperou. — Ele nunca está na recepção. Sempre quer ficar junto dos delegados ou do Serviço Secreto. — Ela pigarreou. — Sim, senhor, aqui é Charlene, no 1031. Não havia ninguém aqui ontem à noite. Claro, tenho certeza. Sentimos o cheiro de uísque na primeira noite em que ele esteve aqui, mas não reapareceu desde
então. — Uma pausa longa. — Sim, senhor. Vamos ficar de olho. — Ela desligou o telefone. — Cuzão. Uma gargalhada veio do corredor. A mulher caminhou de volta em direção à porta. — Sabe, se vamos fazer essa bosta de espionagem, acho que deveríamos receber um extra por isso. Não vejo por que queimar nosso rabo para deixar o senhor Hastings Bonzão brilhar. — Ela fechou a porta. Spector ouviu a mulher se afastando, fora do quarto. Mesmo um nova-iorquino teria problemas para fazê-la calar a boca. Estava morto de cansaço. A mandíbula parecia fixada no lugar com pregos imensos. Mover-se exigiria mais esforço do que estava disposto a fazer naquele momento. Fechou os olhos e ouviu o carrinho das camareiras rangendo pelo corredor. ♣ A refeição matinal de bife e café não o preparara para encarar o Reverendo Barnett e um bando de ases assassinos, mas duas doses de vodca de última hora tinham dado conta do serviço. Deixaram as mãos estáveis o bastante para se barbear — não que ele pudesse ter se cortado, mesmo que tentasse, pois até a navalha afiada não era páreo para seu carta selvagem protetor, mas odiava fazer um trabalho porco. Enquanto se vestia, assistiu ao noticiário. O escrutínio do primeiro dia fizera Hartmann perder duzentos votos. Cerca de um terço dos delegados de Jack desertara, alguns para Dukakis, outros para Jackson. Barnett recebeu um total de quarenta. Uma nova sensação de urgência tomou conta dele. Vestiu-se em seu traje poderoso de verão feito de algodão azul-marinho, costurado à mão por um velho de Nova Jersey de quem era cliente havia quarenta anos, uma camisa Arrow azul-clara, sapatos brogues italianos pretos, gravata vermelha — nunca entendera por que as gravatas da moda de agora eram amarelas, faziam-no pensar em alguém que não teve muito cuidado com os ovos, no café da manhã. Pôs os grandes óculos escuros hollywoodianos — em parte para esconder a ressaca, mas também no caso de o Ceifador estar esperando por ele — e tomou outra dose bem-vinda de vodca antes de sair. Comprou cigarros no saguão. A limusine de Barnett buscou-o na porta. O tráfego estava insuportável, mais complicado pela marcha que reunia curingas, católicos por Barnett e mutantes por Zippy Cabeça-de-Prego, além dos ônibus vomitando jornalista vindos dos hotéis da região, onde estavam aquartelados. Fleur encontrou-o na porta do Omni Hotel. Seus nervos deram sinal ao vê-la, mas ele conseguiu reprimir a vontade de ir embora. Em vez disso, abriu um sorriso e cumprimentou-a com um aperto de mão. — Tem um elevador esperando — anunciou a mulher. — Ótimo. Os dois atravessaram o saguão de piso encerado.
— Peço desculpas por qualquer dificuldade que Consuela tenha lhe causado. Ela está acostumada a atender as ligações dos intrometidos. — Sem problema. — Ela é refugiada das perseguições antilatinos na Guatemala, uma jovem viúva com três filhos. O reverendo conseguiu que ela ficasse aqui no país. Jack virou-se para Fleur e sorriu. — É notável que um homem ocupado como o Reverendo Barnett gaste seu tempo ajudando alguém assim. Fleur encarou os óculos escuros de Jack. — O reverendo é assim. Ele se importa. — Não só o reverendo, com certeza. Aposto como até você mesma foi possuída pelo espírito da caridade. Fleur tentou parecer modesta. — Bem, eu… — Quer dizer, a senhora sacrificou sua castidade só para curar o velho Tach de seu problema. Ela o encarou com os olhos arregalados. — Aliás, cá entre nós. — Jack abriu um sorrisinho. — Ele conseguiu fazer o negócio subir? Sorrindo, Jack seguiu Fleur e seus lábios esbranquiçados para fora de um elevador cuja temperatura pareceu cair cerca de dez graus. O pessoal do Serviço Secreto — Srta. Black entre eles — rondava o longo corredor que levava até a suíte de Barnett. Jack torcia para que ela não o reconhecesse. Passou por uma suíte agitada, cheia de mesas e trabalhadores de campanha. A maioria parecia ser de mulheres, muitas jovens e atraentes. Chegaram a uma porta, e Fleur bateu. Parecendo mais jovem que seus 38 anos, Leo Barnett abriu a porta e estendeu a mão. — Bem-vindo, senhor Braun — cumprimentou. Jack encarou a mão, se perguntando se Barnett poderia tomar sua mente ao tocá-lo. Então, reunindo uma coragem que não sabia de onde vinha, estendeu a própria mão e tocou a dele. ♠ Estava tremendo de novo. Tachyon hesitou, o copo quase nos lábios, e considerou. Quantos drinques já tomara naquela manhã? Dois? Três? Deixou a bebida de lado com gestos exagerados. Bateu o copo com firmeza, como se para mantê-lo no lugar, para impedir que voasse de volta para sua boca, estendeu a mão para a bandeja de café da manhã devastada e pegou um pedacinho de torrada fria. O estômago se revirou. Arfando, com suor frio brotando da testa, o alienígena cambaleou até o banheiro e jogou água no rosto. Do quarto, ouvia Blaise e Ackroyd conversando e rindo. Ao cruzar o quarto, Tachyon abriu a porta. A conversa parou. Jay ergueu os olhos, questionador, e Blaise tinha uma luz taciturna naqueles olhos estranhos preto-arroxeados.
— Sr. Ackroyd, venha aqui, por favor. Precisamos conversar. Jay deu de ombros, tentou baixar as calças que só iam até o tornozelo. Seguiu Tachyon até a sala de estar. — O que Hartmann queria? — perguntou, enquanto pegava coisas da bandeja do serviço de quarto. — Sr. Ackroyd, preciso lhe pedir um favor. — Claro, pode dizer. Tachyon ergueu a mão. — Não se apresse tanto em se comprometer. A dívida que o senhor tem comigo talvez não seja o bastante para cobrir o que vou pedir. — Meu Deus, Tachyon, diga logo. Pare com esses floreios takisianos bestas. — Jay enfiou os dentes numa fatia de laranja e arrancou um pedaço da fruta. — Hartmann está me chantageando. Eu me recusei a atender suas exigências, mas preciso de tempo. Um dia, dois no máximo, então tudo vai terminar. Hartmann terá perdido a nomeação. — A voz de Tachyon foi minguando, e ele encarou fixamente uma eternidade de esperanças perdidas. Sacudiu o corpo e retomou a fala: — O senhor pode me dar esse tempo. — Vá direto ao ponto. Ao ponto! — Preciso que tire um homem de Atlanta. Os meios mais convencionais estão fechados para nós. A desconfiança cresceu nos olhos do detetive. — Por quê? Quem é esse cara? O drinque abandonado voltou fácil para a mão, o copo frio e suado contra a palma. Tach bebeu todo o conhaque num gole longo. — Muito tempo atrás, fui salvo da morte por um homem que tem sido, alternadamente, um demônio e um anjo para mim. Ackroyd jogou as mãos para o alto. — Merda. — É difícil para mim — ralhou Tachyon. Ele passou o copo de uma mão para a outra, então falou: — Em 1957, fui recrutado pela KGB. — Abriu um sorriso triste para a expressão de Ackroyd. — Não foi tão difícil. Na época, eu teria feito qualquer coisa por uma bebida. De qualquer forma, já se passaram anos. Provei ser menos útil do que era esperado. Eles me abandonaram, e eu achei que estivesse livre. Então, no ano passado, o homem que me contratou muito tempo atrás entrou outra vez na minha vida e reclamou sua dívida. Ele está aqui. Em Atlanta. — Por quê? — Hartmann. Ele suspeitava da existência do monstro. Agora, Hartmann descobriu o homem e nossa ligação. — Ligação? — Ele é o tutor de Blaise. — Ai, caramba. — Ackroyd caiu na poltrona. — Essa é a cartada de Hartmann para me intimidar. Eu provavelmente vou para a cadeia, Sr. Ackroyd. Mas vou cuidar para que ele não avance antes disso. — E você quer que eu tire o cara daqui. — Sim. O FBI e o Serviço Secreto já foram alertados. Estão passando o pente
fino em Atlanta, procurando por George. — Você ainda é comunista? Tachyon pousou dedos enfastiados no jabô de renda ao redor da garganta. Uma sobrancelha acobreada ergueu-se, arrogante. — Eu? Pense, Sr. Ackroyd. O detetive encarou a figura magra e pavoneada vestida de verde, laranja e dourado. — É, entendi o recado. — Ele bateu nas coxas e usou o impulso para se levantar. — Bem, para mim isso é uma história ancestral. Vamos mandar esse comunista para algum lugar seguro. Tachyon abriu a porta do quarto. — Blaise, venha aqui. — Você vai levá-lo? Quer dizer, George sabe? — Claro. Venha, criança, quero que você tenha a chance de dizer adeus a George. ♦ Lá estava Jack, em seu traje mais poderoso na esperança de impressionar o pastor conservador e bem-vestido que vira nas fitas, mas Leo Barnett parecia tão formal quanto um Jimmy Carter perambulando pela casa em roupas costumeiras. Barnett usava jeans surrados, camisa xadrez e Keds pretos. Os cabelos loiros desfiados estavam meio desordenados. Ele foi até o fundo do quarto e enfiou as mãos nos bolsos. — Gostaria de tomar café da manhã? Acho que ainda tem bastante no bufê. Jack olhou ao redor do quarto onde Barnett passava sua vigília de oração. Era uma suíte de hotel normal, com uma minicozinha, um bar, uma grande TV e até uma lareira coberta com lenha enrolada em jornal. Toda a luz era artificial — as cortinas estavam fechadas, por instrução do Serviço Secreto. Uma foto da noiva de Barnett estava numa mesa, um Macintosh II em outra, e havia uma mesa prateada com rodas perto da porta, provavelmente com o café da manhã sob uma toalha. — Já comi, obrigado — respondeu Jack. — Um cafezinho, então? Jack considerou o estado de seus nervos e a ressaca. Que inferno, talvez já tivesse estragado tudo no elevador. — Haveria a chance de eu tomar um Bloody Mary…? Barnett não parecia nem um pouco surpreso. — Acho que dá para providenciar — respondeu. Virou-se para Fleur. — Poderia tentar providenciar um Bloody Mary para o Sr. Braun? Talvez a sala de imprensa lá embaixo seja um bom lugar para começar a procurar. — Claro, Leo. — O tom dela foi gélido. Barnett abriu um sorriso carinhoso. — Muito obrigado, Fleur. O olhar de Jack foi de Barnett para Fleur e de volta para Barnett. Puta do Senhor?, perguntou-se, mais uma vez. Será que a noiva dele sabe?, pensou em
seguida. — Sente-se, Sr. Braun. Jack sentou-se numa poltrona e se recostou. Pegou um Camel no bolso. Barnett puxou outra poltrona para perto, do lado direito de Jack, e se acomodou, meio inclinado para a frente, com uma atitude esperançosa. — Como posso ajudá-lo, Sr. Braun? — Bem. — Jack respirou fundo e reuniu a pouca coragem que tinha. Tentou lembrar-se das aulas de atuação que tivera quarenta anos antes. — Veja bem, reverendo — começou —, quase morri duas vezes nos últimos dias. Fui jogado de uma sacada, e isso talvez fosse o bastante para me matar, se Hiram Worchester não tivesse me tornado mais leve que o ar. E, noite passada, parece que o ás chamado Ceifador fez meu coração parar por um tempo… — Sua voz falhou. — O fato é que alguém parece estar tentando me dizer alguma coisa. Barnett abriu um sorriso desconfiado, em seguida meneou a cabeça. — O senhor não teve muitas oportunidades de pensar na eternidade, não é? — Não. Acho que não. — Para o senhor, a vida aqui na Terra sempre foi uma certeza. O senhor sempre teve a juventude eterna. Um corpo indestrutível. Suponho que não precise se preocupar com dinheiro. — Ele lançou um olhar de franca admiração a Jack. — Eu me lembro de Tarzan com muito apreço, aliás. Acho que não perdi nenhum episódio. Lembro-me de balançar numa corda sobre um lago, quando voltava para casa, tentando dar aquele grito que o senhor soltava. — Na verdade, eu nunca dei aquele grito — comentou Jack. — Era dublado, com várias vozes diferentes mixadas eletronicamente. Barnett pareceu um pouco decepcionado. — Bem, acho que ninguém pensa nisso quando tem dez anos de idade. — Abriu outro sorriso. — Aliás, o que aconteceu com o chimpanzé? — Está no Zoológico de San Diego. — Era a resposta que Jack sempre dava, embora fosse uma mentira deslavada. Pouco depois de entrar na adolescência, Chester, o chimpanzé, foi morto a tiros quando tentou arrancar o braço do treinador. Jack sabia que a maioria das pessoas preferia que Chester tivesse um final feliz — uma atitude com que ele não simpatizava, pois nunca gostara daquele animal pequeno, mal-humorado e ladrão de cenas. Barnett parecia se recompor. — Desculpe, Sr. Braun. Temo que tenha me distraído do assunto principal. — Tudo bem. Eu não tinha mesmo muita certeza do que ia dizer. — Muitas pessoas não têm condições de falar sobre a eternidade. — Barnett abriu um sorriso rápido, autodepreciativo. — Por sorte, nós, pregadores, somos mais ou menos preparados para o serviço. — É. Bem, por isso estou aqui. Jack estava tendo dificuldades para reconciliar aquele Barnett tranquilo com o pregador feroz que vira nas gravações, a pantera loira perseguindo a própria congregação, o predador que Jack sabia, com certeza, que era o ás secreto, assassino. Poderiam ser o mesmo homem? Jack pigarreou. — O senhor já viu O retrato de Dorian Gray? Excelente filme antigo de
Albert Lewin, dos anos 1940? George Sanders, Hurd Hartfield, Angela Lansbury. — Ele pigarreou de novo. O tubo endotraqueal deixara a garganta irritada, e o fumo não ajudava. — Donna Reed, acredito — continuou, tentando lembrar. — É, Donna Reed. Bem, é sobre aquele jovem que tem o retrato pintado, e a alma dele entra no retrato. Começa a viver uma vida, sei lá, realmente maluca, seja lá como o senhor queira chamá-la, mas nunca enfrenta as consequências. Simplesmente continua jovem, e o retrato vai ficando velho e… se dissipa? É essa a palavra? Barnett assentiu. — De qualquer forma, no fim do filme o quadro é destruído, e Dorian Gray recebe toda a velhice e maldade de uma só vez e cai morto. — Ele deu um sorrisinho. — Efeitos especiais, sabe? Bem, andei pensando muito sobre isso. Pensando que me mantive jovem por quarenta anos e não levei uma vida exatamente imaculada. E se ela se desgastasse? E se eu ficasse velho de repente, como Dorian Gray? Ou se algum ás maluco me matasse? Jack percebeu que estava gritando. Seu coração disparou ao perceber que não estava mais atuando, que todo aquele trauma era genuíno. Pigarreou outra vez e se recostou na cadeira. Barnett inclinou-se na direção de Jack e pôs a mão em seu braço. — O senhor ficaria surpreso com a quantidade de visitas que recebo de pessoas na sua situação, Sr. Braun. Talvez os pressentimentos delas não sejam tão… espetaculares quanto os seus, mas já vi muita gente parecida. Bemsucedidos, homens e mulheres aparentemente felizes que não pensavam na eternidade até serem tocados por ela. Talvez um ataque cardíaco de alerta, talvez um ente querido morto num acidente, uma mãe ou um pai sofrendo de doença fatal… — Ele sorriu. — Não acredito que nenhum desses alertas sejam acidentais, Sr. Braun. — Jack. — Ele amassou o cigarro. Estou quase botando tudo a perder, pensou. — Jack, sim. Acredito que haja um objetivo nesses alertas, Jack. Acredito que o Todo-Poderoso tenha maneiras de nos lembrar de Sua existência. Acredito que exista uma revelação do propósito de Deus nessas escapadas por um fio que você teve. Jack o encarou através dos óculos escuros, fitando os olhos azuis brilhantes de Barnett. — Ah, é? — disse ele. Havia uma intensidade ardente nos olhos azuis de porcelana de Barnett. — O Senhor diz: “Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro.” Olhai para mim, pensou Jack: Barnett estava falando de Deus ou de si próprio? O pregador continuou a ladainha: — Seu carta selvagem lhe deu a falsa crença na imortalidade, e o Senhor encontrou uma maneira de alertá-lo desse engano, lembrá-lo onde reside a verdadeira imortalidade e poupá-lo para que possa fazer o trabalho Dele. Veio uma batida na porta. Quando o som o tirou de sua linha de raciocínio, Barnett pareceu ter um leve sobressalto. Ele olhou para a porta. — Pode entrar.
Fleur entrou com um Bloody Mary na mão frígida. — O drinque do Sr. Braun. Jack sorriu para ela. — Pode me chamar de Jack. Por favor. A mulher olhou feio para ele enquanto Jack pegava a bebida e a examinava sob as bordas dos óculos, para ver se ela não cuspira no copo. — Muito obrigado, Fleur. — Barnett não sorriu de forma tão afetuosa, dessa vez. Suas palavras soaram com uma dispensa, e Fleur aquiesceu. Jack bebericou o Bloody Mary. Estava excelente. Ao que parecia, alguém na sala de imprensa sabia manter os jornalistas felizes. — Está bom? — Barnett parecia genuinamente curioso. — Está bem-feito. — Jack deu um gole maior. — Eu nunca… — Barnett acenou para a bebida. — Bem, não importa. — A surpresa ecoou em Jack pelo tom nostálgico de Barnett, parecia o de um garotinho cuja mãe não deixa que brinque na chuva. Talvez, pensou Jack , Barnett realmente não tenha tido escolhas na vida. Talvez todas as escolhas tenham sido tomadas para ele. Talvez o único momento em que ele fez algo que não era obrigado foi quando fugiu para a infantaria da Marinha. Porra, pensou, irritado. Ninguém obriga uma pessoa a concorrer à presidência. Barnett recostou-se na poltrona, esfregando o queixo com a ponta dos dedos. Sua atenção estava toda voltada para Jack , que olhou para o pregador com cautela por trás dos grandes óculos. — Gostaria de lhe contar sobre um sonho meu, Jack — disse Barnett. Sua voz era suave, gentil. — O Senhor pôs esse sonho na minha mente, alguns anos atrás. Nesse sonho, eu estava num pomar gigantesco. Para todos os lados que olhava havia árvores frutíferas, todas cheias da abundância de Deus. Havia todos os tipos de frutas no pomar, Jack: cerejas, laranjas, maçãs, caquis e ameixas. Toda a variedade concebível preenchendo a vasta cornucópia de Deus. O pomar era tão belo que meu coração ficou pleno de alegria e prazer. E então… Barnett olhou para o teto, como se visse algo lá. Jack reparou que seus olhos seguiam os do pregador, então se recompôs. A arte do drama, pensou, tomando um belo gole de seu Bloody Mary. — E então uma nuvem cobriu o sol — continuou Barnett —, e uma chuva escura começou a cair. A chuva caía aqui e ali, e onde ela tocava, as frutas murchavam. Vi todas as laranjas e os limões empretecendo e caindo, vi as folhas murchando e morrendo. E, mais que isso, vi o apodrecer crescente, mesmo depois de a chuva ter passado, vi a escuridão avançando para tentar manchar as árvores saudáveis. Daí ouvi uma voz. A voz do pregador mudou, ficou mais grave, mais séria. Um arrepio subiu pela espinha de Jack , ante a perfeição daquela transformação. — “Deixei este pomar sob tua responsabilidade. A ti dou a tarefa de destruir esta praga.” O tom e a postura de Barnett mudaram de novo. Estava fervoroso, exultante. Sua voz poderosa ecoava no quarto pequeno. — Eu sabia que as frutas do pomar eram os filhos de Deus, feitos à Sua
imagem. Sabia que a nuvem de chuva era Satanás. Sabia que a praga era o carta selvagem. E me prostrei no chão. “Senhor!”, eu orei, “Senhor, não sou forte o bastante. Não sou digno dessa tarefa”. E o Senhor respondeu: “Eu te darei esta força!”. — Barnett gritava. — “Farei teu coração ser de aço! Farei tua língua afiada como a espada e tua respiração será o turbilhão!” E eu soube que precisava fazer o que o Senhor tinha pedido. Barnett saltou da poltrona, caminhando para lá e para cá enquanto falava. Como se Deus estava puxando a corrente que o prendia, pensou Jack. — Eu sabia que tinha o poder de curar o carta selvagem! Sabia que o trabalho do Senhor precisava ser feito, que Seu pomar precisava ser podado! — Ele estendeu um dedo na direção de Jack . — Não como meus críticos me acusariam! Eu não podaria o pomar de forma louca, arbitrária ou maldosa. Meus críticos dizem que quero pôr os curingas em campos de concentração! — Ele deu uma gargalhada. — Quero pôr os curingas em hospitais. Quero curar sua aflição e impedir que infectem seus filhos. Acho que é pecaminoso o governo manter pesquisas sobre o carta selvagem num nível tão baixo de financiamento… eu multiplicaria esses recursos por dez! Limparia essa praga da Terra! Barnett virou-se para Jack, que, para sua própria surpresa, tinha lágrimas nos olhos. — Você tem idade suficiente para se lembrar de quando a tuberculose assolou o país como uma praga — disse Barnett. — Deve se lembrar de todas as centenas de milhares de sanatórios que surgiram em todo o Arizona e no Novo México, onde vítimas eram impedidas de espalhar a infecção enquanto a ciência buscava uma cura. É isso que quero fazer para o carta selvagem. O tom de Barnett passou a ser de suplício: — Jack! O Senhor prolongou sua vida! O Senhor o poupou da morte! Só pode ter sido porque Ele tem um lugar para você em Seu plano. Quer que você lidere as vítimas dessa praga até a salvação. “Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.” Curados, Jack! O rosto de Barnett parecia alegre, entusiasmado. Estava diante de Jack erguendo as mãos de forma triunfante. — Você não vai me ajudar, Jack? Me ajude a trazer a cura para os aflitos de Deus! Ore comigo agora, Jack! “Em verdade, em verdade vos digo: aquele que não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus… Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome.” Para seu próprio assombro, Jack sentiu como se uma mão gigante o agarrasse pelo pescoço e o puxasse para fora da poltrona. De repente, estava de joelhos diante do pregador, as duas mãos erguidas, presas entre as mãos do Reverendo Leo Barnett. As lágrimas rolavam pelo rosto do religioso, que ergueu a cabeça e gritou em oração: — “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo!” O poder desse homem é quase palpável, pensou Jack. Aquilo não podia ser só
um bom espetáculo escandaloso. Jack conhecia espetáculos, e nunca vira nada do tipo. Ele é um ás, pensou Jack. Meu Deus, ele é mesmo um ás. Talvez não tivesse acreditado naquilo até aquele minuto. Barnett era um ás, e Jack o derrubaria.
11h00
Cal Redken falava como o viciado em comidas nada saudáveis cheio de marcas de espinha que era. Ao fundo de todas as suas conversas havia o rasgar de embalagens plásticas, e as palavras saíam emboladas pelo esforço de contornar enxurradas de balas, bolinhos e salgadinhos. Soava gordo, lento e preguiçoso. Só o primeiro adjetivo era verdadeiro. Gregg o tomara como marionete muito tempo antes, mais por reflexo do que por desejo. Brincava com o apetite voraz de Redken, entretendo-se um pouco ao fazer o homem comer até que ficasse literal e repugnantemente estufado. Mas não alimentava o Titereiro muito bem, e era raro Gregg utilizar sua conexão. Redken não era Hiram, um ás com habilidades e gostos peculiares. Ele era um investigador competente, mesmo que sedentário. Não havia ninguém melhor para adentrar o confuso labirinto da burocracia. Fora Redken o responsável por juntar, da noite para o dia, a rede não comprovada de conjecturas com que Gregg confrontara Tachyon. Agora, ele garantiria que as conjecturas se tornassem fatos. O telefone tocou duas vezes na outra ponta da linha, então atendeu um gole audível seguido de um “Redken falando”. — Cal, aqui é Gregg Hartmann. — Senador. — Barulho de celofane partido ao fundo, um novo salgadinho sendo aberto. — O senhor recebeu minha encomenda? — No começo da manhã, Cal. Obrigado. — Sem grilo, senador. As coisas que o senhor me pediu para pesquisar são interessantes — acrescentou, reflexivo. Deu uma mordida e começou a mastigar ruidosamente. — É sobre isso que eu quero conversar. Precisamos encontrar mais coisas. Preciso saber se podemos fazer essas acusações contra Tachyon. — Senador — ele engoliu —, tudo que temos são fatos circunstanciais. Um agente russo destacado para a cidade correta no ano certo, outro cruzamento de caminhos coincidente em Londres, no ano passado, o contato na CJS e a história da mulher, algumas ligações tênues aqui e ali. Nada sólido. Nem de longe. — Esse negócio deixou o cara apavorado, Cal. Eu vi. Sei que deve ter alguma coisa. — Ainda está longe de ser comprovado. — Então você precisa ir mais fundo. Sei o que Vídeo nos contou, ano passado. Gimli e Kahina tinham conexões soviéticas, sem dúvida. Um agente se encontrou com eles numa noite do ano passado, em Nova York, e Gimli o chamou de Polyakov. — Polyakov está morto, senador. Todas as fontes dizem a mesma coisa, a KGB e o GRU também acreditam nisso. Talvez estejam usando esse nome só para nos confundir. — Estão todos errados. Vídeo ainda tem as imagens na mente. O cara bate
com a descrição de Polyakov . — Como alguns milhares de outros. Tem muita gente gorda, careca e velha por aí. E tem mais: o senhor nunca conseguiria fazer nenhum tribunal aceitar um talento de curinga como prova. Projeção mental não é fotografia. — É um começo. Encontre-a, veja o que ela sabe. Ouça o que tem a dizer. E continue fuçando. Redken suspirou. Plástico estalou como folhas secas, e sua voz de repente foi abafada por algo macio. — Tudo bem, senador. Farei isso. Vou tentar. Para quando o senhor precisa disso? — Para semana passada. Ontem, no máximo. Outro suspiro. — Entendi. Vou ligar para Nova York assim que voltar. Mais alguma coisa? — Rápido, Cal. Isso precisa ser rápido. — Está me pedindo para pular o almoço. — Se fizer isso por mim eu compro a porra do restaurante inteiro para você. — Promessa é dívida, senador. Falo com o senhor mais tarde. A última palavra foi abafada quando Redken enfiou outro pedaço de comida na boca. Houve um clique, e a linha ficou muda. ♥ — Alguém está nos vigiando. — Quê? — Tachyon se virou e encarou a janela traseira do táxi. Ackroyd pousou a mão em seu braço. — Relaxa. Ele é bom. Você nunca vai vê-lo assim. Motorista. — O detetive fuçou na carteira. — Cinquenta paus extra na corrida se conseguir despistar o Dodge cinza. Três carros para trás. O rosto negro do homem abriu-se num sorriso largo. — Pode deixar, patrão. Tachyon seguiu o olhar mortificado de Jay quando o detetive lhe mostrou uma nota de dez e três notas de um. Grunhindo, Tachyon puxou a carteira e tirou as notas, enfiou-as no bolso da camisa do motorista e, logo em seguida, caiu no colo de Ackroyd quando o sujeito acelerou de repente para fazer uma curva fechada para a esquerda. Rindo com deleite, Blaise agarrou-se no banco da frente como um macaquinho. — Como em Paris, K’ijdad. — Hein? — perguntou Jay. — Deixa para lá. Você já sabe segredos meus demais — rosnou Tachyon. Jay olhou para trás. — Ainda está na nossa cola. Que merda, o cara é bom. — O que vamos fazer? — O embrulho no estômago voltara, e Tach sentia um leve tremor nas mãos. Ackroyd limpou a boca com a mão. — Provavelmente não teremos tempo para despedidas longas. A placa do Motel 6 surgiu à frente.
— Sara também está lá — anunciou Tachyon. — Meu Deus. Você trouxe a Filarmônica de Nova York inteira? E os Dodgers? — Não tem graça. — Não mesmo. Vai com tudo, camarada. Tudo que a caranga aguentar. O taxista partiu a toda pela rua e virou no estacionamento cantando pneu. Os três estavam do lado de fora antes de o carro parar por completo. Jay lançou a nota que restava sobre o ombro do motorista enquanto corriam para o quarto. Sara estava encurvada na cama, as pernas dobradas embaixo do corpo, o travesseiro apertado no peito, ouvindo a televisão. Com uma expressão divertida no rosto redondo, Polyakov recuou para não ser atropelado. Jay agarrou a beirada da porta e fechou com tudo, botando o ferrolho na tranca. Tachyon correu até Sara e ergueu-a da cama. Blaise se jogou nos braços do russo. — Não há tempo para explicar. Hartmann sabe de tudo. Tem alguém atrás de nós. — Tachyon agarrou o vestido de Sara pelo pescoço e o puxou. A roupa saiu com um som alto. Sara gritou e se cobriu. Estava só de sutiã. — Para o chuveiro, rápido! Não saia e, aliás, você cobra por hora. — O alienígena a empurrou na direção da porta do banheiro, arrancando o sutiã enquanto avançavam. Passos pesados atravessavam o corredor depressa. Os olhos cinzentos de Polyakov permaneciam calmos, fatalistas. — Não temos tempo. — Sim, temos. Jay vai te tirar de Atlanta. Pelo amor dos deuses, Blaise, rápido! A água do chuveiro estrondou. Polyakov afastou o garoto gentilmente. — Abra! Abra esta maldita porta! Tachyon reconheceu a voz de Billy Ray. — Agora! — sibilou ao detetive, apreensivo. Ackroyd estendeu a mão como se fosse uma arma. Polyakov desapareceu. Houve um estalo audível quando o ar se comprimiu no espaço que o corpo ocupara. Tachyon saltou pelo quarto, agarrou a garrafa de vodca no aparador, abriu a gola da camisa e, num mergulho longo e baixo, jogou-se na cama. A porta abriu, e lascas voaram pelo cômodo quando Billy Ray entrou com tudo. Jay protegeu Blaise com o corpo, e Tach cobriu o rosto. O ás do Departamento de Justiça estava com uma Magnum .44 na mão. Tachyon encarou o cano da arma. A ponta parecia a boca de uma caverna. — Tudo bem, onde ele está? Onde ele está, porra? — Hã? — perguntou Jay. — Babaca! Ray empurrou o detetive com tudo, e Ackroyd caiu. O invasor arrancou a porta do armário das dobradiças e atirou as roupas. Olhou embaixo da cama, foi até a porta do banheiro. Tachyon cruzou os dedos e rezou para qualquer ancestral que talvez estivesse por perto. — Saia daí. Agora! A voz de Sara flutuou sobre o chiado da água caindo. Claramente feminina. Celestialmente sulista. Tachyon rezou para que só ele tivesse ouvido o pânico por baixo das palavras. — Bem, amorzinho, vão ser quantos de vocês?
A cortina do chuveiro se abriu com tudo. Sara gritou. Por um bom momento, houve silêncio no banheiro. O som estridente de um tapa. Ray entrou de novo no quarto com a marca rosa pálida de uma palma já desaparecendo no rosto, a frente do uniforme branco molhado pela água que respingava com força. Respirando pesadamente, ele disse: — Ele estava aqui. Aquele russo maldito estava aqui. Jay olhou para Tach. — Russo? Não vejo nenhum russo. Você está vendo algum russo? E a bonitinha lá com certeza não parece russa. Russas custam caro. — Ele abriu um sorriso falso para o ás raivoso. — Por que vocês tentaram fugir? Tachyon suspirou, dando um longo gole na garrafa. — Porque tive medo de que você fosse da imprensa, e eu não queria ser pego no flagra com uma prostituta. — Você sempre leva um menino? — Ele apontou para Blaise com a .44. — Poderia abaixar a arma? Fico nervoso quando balança essa coisa para lá e para cá. A maioria dos tiros fatais são acidentais, sabia? Ray o encarou com raiva. — Não seria um acidente. Responda à pergunta, porra. Com um pigarrear delicado, Tachyon disse: — Bem, em resumo: é hora de o garoto aprender. — Ele olhou ao redor do quarto de hotel. — Falta a atmosfera que eu desejaria, mas ela é muito boa. Eu a testei na noite passada. Claro, nada pode se comparar à mulher que meu pai arranjou quando eu completei catorze anos. Ray saiu como um furacão pela porta estilhaçada. — Catorze? Está brincando! — Ah, Ackroyd, por favor.
12h00
— Você convoca a coletiva de imprensa — disse Jack. — A imprensa não o vê há dias. Se eu convocar, talvez ninguém apareça. Barnett concordou. Jack observou a convenção enquanto os planos avançavam. Hartmann claramente perdera o impulso da corrida pelos votos. Os totais mudavam a cada escrutínio. O único fator constante era o avanço lento de Barnett, ganhando a cada parcial enquanto a oposição começava a se desintegrar. Rodriguez parecia abalado todas as vezes que anunciava a contagem de delegados alterada da Califórnia. Jack sentia pena. A coletiva de imprensa foi arranjada num dos espaços funcionais do hotel, o lugar que Barnett usava como gabinete de imprensa. Jack conseguiu terminar mais dois Bloody Marys antes do início da convenção. Fleur falou primeiro, de pé atrás de um púlpito coroado com uma floresta de microfones de redes televisivas. Jack e Barnett estavam ao seu lado quando ela efetuou uma longa rodada de testes de microfone. A mulher não parava de lançar olhares oblíquos para Jack. Obviamente não confiava nem um pouco nele. Mesmo escondidos por trás dos óculos escuros hollywoodianos, Jack sentia-se nu. — Antes do anúncio do Reverendo Barnett — começou Fleur —, teremos um breve comunicado de alguém que talvez surpreenda vocês. Estou falando do senhor Jack Braun, chefe da delegação californiana do Senador Hartmann, também conhecido como Golden Boy. Jack não sorriu ou acenou quando caminhou até o púlpito. Os microfones apontaram para ele como uma floresta de lanças. Ele tirou os óculos, fechou-os e sorriu para uma luz ofuscante das câmeras. Torcia para que a bebida e a falta de sono não tivessem deixado seus olhos vermelhos. — Tive uma entrevista de duas horas com o Reverendo Leo Barnett — começou Jack. Ouvia as câmeras automáticas zumbindo enquanto disparavam diante dele. Agarrou o púlpito e tentou não sentir o terremoto que sacudia seus nervos. — Esta convenção presenciou muitos eventos estranhos, muita violência. Algumas pessoas morreram. O Senador Hartmann sofreu dois atentados de ases cartas selvagens, e eu combati esses dois ases pessoalmente. O Reverendo Barnett alega que os cartas selvagens foram os responsáveis por muito do caos que assolou esta campanha. Depois de nossa reunião hoje, só posso concordar. Os reflexos de quarenta anos de Jack lidando com a imprensa lhe disseram que as longas lentes das câmeras de televisão estavam dando zoom. Exceto pelo som das câmeras automáticas e obturadores estalando, o recinto estava em silêncio absoluto. Jack retorceu o rosto numa expressão de profunda sinceridade e não parou de encarar o público, da mesma forma como, anos atrás, fizera com
seu personagem Eddie Rickenbacker ao dizer para o general Pershing que queria voar. — Há ases secretos nesta convenção — anunciou Jack . — E um em particular tem um papel muito influente. Ele é o responsável por boa parte do caos que se instalou aqui, e por ao menos algumas das mortes. Acredito que ele consiga influenciar as pessoas a distância e fazer com que ajam de maneiras contrárias à lei e a seus interesses. Outros ases, ases assassinos, trabalham para ele. E tentaram destruir seus oponentes com violência. Jack conseguia sentir Barnett e Fleur em pé de um lado, as cabeças unidas enquanto tentavam adivinhar aonde ele ia com aquela história. Jack lançou um sorriso sombrio de Clint Eastwood para as câmeras. — Depois da minha entrevista desta manhã, concluí que esse ás secreto… — Uma pausa dramática, pensou. — É o Reverendo Leo Barnett. As câmeras começaram a virar loucamente, tentando captar a reação de Barnett. Jack ergueu a voz e gritou nos microfones. — Barnett está por trás das tentativas de assassinato! — O triunfo cantou em suas veias. — Eu desafio Leo Barnett a provar que não é um ás! O reverendo ficou boquiaberto. O rosto de Fleur van Renssaeler ficou pálido como cera, a boca movendo-se com murmúrios de ódio, de fúria silenciosa. Barnett balançou a cabeça, como se estivesse se recuperando de um soco, então avançou. Embora não pretendesse, Jack se viu recuando, entregando o púlpito. O pregador se inclinou sobre os microfones, as mãos nos bolsos, e deu um sorriso hesitante. — Não sei qual é a intenção de Jack — disse ele. — Eu desci aqui por outro motivo. Mas se é isso o que ele deseja, estou disposto a passar quantas horas forem necessárias esperando reunirem uma equipe de médicos e fazer um exame de sangue. — Seu sorriso se alargou. — Sei que não tenho o carta selvagem, e qualquer um que diga o contrário é um mentiroso… — Olhou de soslaio para Jack . — Um mentiroso completamente mal-intencionado. Jack encarou os olhos azuis do pregador e sentiu o triunfo derreter até seus sapatos italianos pretos. De alguma forma, pensou, ferrei tudo de novo. ♣ Spector abriu a torneira da pia do banheiro e pôs um tanto de água na boca. Bochechou por alguns momentos e cuspiu. A água saiu amarronzada pelo sangue seco. Depois colocou outro tanto de água na boca e engoliu. Estava tão sedento quanto cansado. Era sempre assim quando precisava se curar de um ferimento maior. Testou a mandíbula. Movia-se para cima e para baixo sem muito problema, mas de um lado para outro doía muito. Sentia o osso estalar no encaixe. Depois de alguns meses talvez não ficasse tão ruim. No fim das contas, poderia ter sido muito pior. Ouviu um som na porta. Spector sabia que não teria tempo de voltar para baixo da cama. Olhou ao redor no banheiro. O único lugar grande o suficiente
era o chuveiro. Entrou assim que a porta do quarto se fechou. Alguém falava baixinho consigo mesmo, no quarto, e Spector tinha uma ideia de quem deveria ser. Quando os ruídos se aproximaram do banheiro, ele prendeu a respiração. De novo. Se continuasse prendendo a respiração assim, ficaria azul para sempre. Concentrou a dor-da-morte. Sempre estava lá, sempre pronta. Viu os dedos gorduchos na ponta da cortina do chuveiro. O homem puxou a cortina plástica para trás e abriu a boca para gritar. Spector fixou os olhos nos dele antes que o recepcionista pudesse soltar a voz. Empurrou-o até quase o ponto da morte, então parou. Pegou o homem pelo colarinho quando ele despencou. Recostou-o contra a parede do banheiro e esvaziou seus bolsos. Pegou chaves e carteira, ignorando o restante. Aquele cara devia saber tudo que era preciso saber sobre o hotel. Se Spector conseguisse fazer com que ele falasse a verdade, talvez descobrisse algumas coisas. Curvando-se, equilibrou o homem com uma das mãos e estapeou-o com a outra. Quando ele começou a voltar a si, e Spector teve certeza de que sentiria a dor, socou-o bem forte algumas vezes. O homem abriu os olhos. Spector pôs a mão sobre a boca inchada. — Quieto. Se pedir ajuda, se falar em qualquer tom que não seja um sussurro ou se não responder às minhas perguntas, eu mato você. Entendido? O homem assentiu. Spector tirou a mão de cima da boca do homem. — Quem é você? — Meu nome é — o sujeito inspirou — Hastings. Spector verificou a carteira. — Até agora, tudo certo. O que está fazendo aqui? Hastings encarou o quarto com olhos arregalados, parecia olhar através de Spector, em busca de uma maneira de fugir. — Hã, o pessoal do governo mandou procurar qualquer um que achássemos suspeito. Tive um pressentimento sobre você. — Não gosto muito disso. — Verificou o nome na carteira de motorista. — Maurice. Hastings limpou a boca. — Você não é quem diz que é. Não é Baird. É um ás. Spector assentiu. — Sabe, com suas habilidades dedutivas e seu dom para palpites, daria um excelente detetive particular. O homem abriu um meio sorriso, tentando aceitar o elogio, apesar do medo. — Obrigado. Spector esperou alguns momentos, em seguida acrescentou: — Odeio detetives particulares. — Ele se divertia demais com aquilo. Quase se esquecera daquele gordo imbecil, e agora o tinha nas mãos. — Ai, meu Deus, por favor, não me mate. Faço qualquer coisa. — Hastings tremia. Limpou a boca de novo. — Ah, não vou matar você. Não se me der o que eu quero — mentiu Spector, tentando pensar na melhor maneira de esconder o corpo. — Vamos começar com uma pergunta fácil. Onde fica o quarto desocupado mais próximo deste andar?
— Estamos lotados. Eu juro. Spector estalou a língua. — Não tente me enganar. Sei que sempre há quartos vagos para emergências. Sabe o que vou fazer se continuar mentindo? Posso fazer você ir voando do décimo andar até o saguão. A queda só vai levar alguns segundos. E vai fazer uma bagunça danada. Talvez eu possa te colocar no chuveiro e derreter sua carne. Vai escorrer pelo ralo. E dar menos trabalho. — Não, por favor. — Hastings juntou as mãos, implorando. — Acho que o 1019 está vago. Só não me mate. Desculpe se incomodei. Posso fazer o que quiser. Dou pistas ruins para o Serviço Secreto. Sério. Spector puxou um cartão da carteira de Hastings. — É o seu cartão de acesso? Ele mordeu o lábio por um segundo antes de responder. — Sim. Spector inclinou-se mais perto de Hastings e encarou seus olhos. — Não está mentindo para mim agora, está? — Não. Que Deus me mande um raio… É verdade, juro. — Certo. Entre no chuveiro. — Spector puxou a cortina. — Agora. Hastings avançou o corpo pesado para baixo do chuveiro. — Mas por quê? Spector travou os olhos de novo, e dessa vez fez o serviço completo. Hastings despencou nos azulejos. O corpo se contorceu, então parou. — Por isso. — Fechou a cortina, lentamente. — Ninguém se mete comigo e sai ileso. — Não era o melhor lugar para esconder um cadáver, mas, como sempre, precisava improvisar. Spector olhou-se no espelho mais uma vez. Agora tinha uma mandíbula torta, combinando com o sorriso torto. Talvez, quando tudo aquilo acabasse, comprasse uma casa torta nas Bahamas. Mas não até acabar com a raça de Hartmann. Depois cuidaria de suas férias.
13h00
— Seu chorão. — Havia um brilho furioso nos olhos violeta de Tachyon quando ele avançou com a maleta médica na mão. Atrás dele, repórteres estavam apinhados em três camadas ao redor de Barnett, que tinha passado no exame de sangue, claro, sem registrar a mancha de nenhuma chuva preta de Satanás. — Ah, cale a boca — murmurou Jack, do fundo de outro Bloody Mary. Erguendo o queixo pontudo, Tachyon deu meia-volta e foi marchando até parar na frente de Jack . — Talvez você tenha acabado de dar a nomeação para Barnett. Tem noção disso? — Achei que você já tivesse feito isso. — A raiva disforme de Jack concentrou-se em Tachyon. — Achei que tivesse feito isso, trepando com Fleur e apoiando Jackson quando as coisas ficaram difíceis. Tachyon enrubesceu. — Só lhe resta tentar levar a Califórnia para Jackson. Jack o encarou com desdém. — Vá se foder, seu cuzão. Pelo menos eu estou fazendo alguma coisa. Tachyon o encarou, engoliu uma resposta ou duas, então saiu, apressado. Em pé e sozinho no fundo da sala de imprensa, Jack percebeu que seria cercado por repórteres assim que Barnett terminasse o discurso. Foi em direção ao bar montado no fundo da sala, encontrou um frasco de 500 mililitros de rum e o enfiou no bolso. Percebeu que talvez estivesse mais seguro no auditório da convenção, onde poderia se esconder atrás do restante da delegação.
14h00
Gregg telefonou do quarto de hospital de Ellen. Acariciou os cabelos da esposa quando a chamada foi completada, sorrindo para seu rosto pálido e tenso. Ellen tentou sorrir de volta, mas não conseguiu. Ela parecia muito adorável e vulnerável, e Gregg sentia os olhos marejarem enquanto a encarava. Meu Deus, Ellen, sinto muito. Sinto muito, mesmo. Alguém atendeu ao telefone, tirando sua atenção dela. — Cal? É Hartmann. — Senador. — Redken parecia nervoso. Gregg sabia que ele não queria falar. — Como estão as coisas? Gordo filho da puta. Se estivéssemos lá… O Titereiro se pronunciou, irritado. — É isso que eu quero saber. Esperava alguma notícia, Cal. A frase pôs o homem imediatamente na defensiva. Gregg quase conseguia ver a vermelhidão na cara espinhenta de Redken quando ele desandou a falar. E certamente estava pegando um chocolate, consternado. — Olha, senador, não é tão fácil assim. — Uma embalagem estalou ao fundo. — O resultado sobre seu russo é que ele está morto. Morto há um ano e meio, frito como batata. De acordo com todo mundo com quem falei, o caso está fechado. E ninguém no Departamento de Justiça, na CIA ou no FBI parece disposto a reabri-lo. Estou ficando cansado de ouvir que sou maluco, um pé no saco ou idiota. Gregg conseguiu sentir o temperamento prestes a explodir. Redken estava na defensiva, arranjando desculpas. Nesse meio-tempo, Tachyon ainda estava lá, apoiando Jackson. Devaughn olhava feio e xingava, e ele tinha cobrado todos os favores políticos que lhe restavam para reduzir a queda. Ellen sorriu para ele da cama, confusa e sonolenta pela dose de Demerol. Gregg tirou o cabelo da esposa dos olhos e deu as costas para ela. Respirou fundo e voltou a atenção ao telefone. — Vídeo tem as malditas fotos, Cal. Eu sei que ela é uma curinga, mas as imagens são reais. Não dá para convencer alguém a dar pelo menos uma olhada? Não consegue o depoimento dela? E o repórter que viu Polyakov aqui em Atlanta? Ninguém acredita nele? — Ninguém consegue encontrar Vídeo, senador. Esse é o problema. O suposto reconhecimento de um repórter não é suficiente. Ninguém ouve falar em Vídeo há dias. Sem ela… bem, não sei como posso ajudar. — Isso não basta — retrucou Gregg, seco. — Não mesmo. Cal suspirou, à beira da insolência. Pôs algo na boca, mastigando ruidosamente. O Titereiro se agitou. Quando voltarmos a Washington, ele vai pagar por isso. Gregg afastou o poder com rispidez. — Desculpe, senador — repetiu Redken. — Fiz tudo que podia. Vamos continuar procurando Vídeo. Vou continuar seguindo a trilha burocrática, mas o caso já esfriou, e o senhor sabe como as coisas já podem ser lentas em tempos
melhores. Vou caçar Peters na Inteligência e dizer mais uma vez que os dados dele estão loucos. Se conseguir mais alguma coisa, garanto que as pessoas certas vão se mexer. Mas talvez demore alguns dias. O bom humor de Gregg se esgotou. — Caramba, eu não tenho alguns dias, Cal. Talvez não tenha nem esta tarde. Não houve resposta, só o chiado da conexão via satélite e o mastigar de Redken. — Escute aqui, consiga o que puder o mais rápido possível — disse Gregg, por fim. — E tenha em mente que eu vou me lembrar do seu desempenho nesse caso. — Ele bateu o telefone no gancho. — Problemas sérios? — perguntou Ellen. Ela estendeu a mão para Gregg, que a tomou. Deixou o Titereiro lambiscar a dor que vazava ao redor das beiradas de Demerol. Parecia salvá-lo da própria frustração. Temos que dar conta disso sozinhos, Gregg. Não há outro jeito. É seguro agora, sem Gimli por perto. Pense nisso. Gregg estava pensando. E sabia exatamente o que precisava fazer. — Talvez — disse, respondendo a Ellen. — Mas talvez não sejam tão sérios quanto pensei. Há outras maneiras de lidar com problemas. É hora de começar a usá-las. — Sinto muito pela sua briga com o Dr. Tachyon, Gregg. Ele é um homem ótimo, mas tão teimoso. — Não se preocupe com isso, querida. Tachyon é só um problema temporário.
16h00
Era como estar em Mercúrio. O ar-condicionado do Marriott bateu em suas costas quando ele passou pelas portas. O calor de Atlanta fez o suor escorrer em seu rosto. A calçada estava apinhada de apoiadores de Jackson acenando bandeiras vermelhas brilhantes com JESSE! Logo depois estava a limusine. Jackson pegou a mão de Tachyon e ergueu-a sobre a cabeça. Tach se contorceu, dançando na ponta dos pés. O reverendo era muito mais alto. Uma comemoração barulhenta se elevou, e eles seguiram para a limusine, sorrindo e acenando enquanto os espectadores se reuniam ao redor. Jackson cumprimentava os apoiadores e se misturava ao povo com facilidade. Tachyon olhou para ele com inveja. Ackroyd esperava na porta do carro. — Que foi agora? — Jesse quer que a gente converse com os curingas na frente do Omni — explicou Tachyon. — Ele e eu, juntos. Sua posição sobre as questões dos cartas selvagens é tão forte quanto a de Hartmann, se eles apenas ouvissem… — Deu um suspiro longo, profundo. — Jay, se tiver outras pistas para seguir, não há necessidade de nos acompanhar. Jay deu de ombros. — Talvez seja melhor — respondeu. — Não sei dançar. Pelo menos a limusine tem ar-condicionado, pensou Tachyon, aliviado, quando partiram. O guarda-costas de Jackson, um ás chamado Flecha Aprumada, encarava-o com um olhar implacável. Tach começou a perceber como aquilo tudo era desesperado, estúpido. Eles não ouviriam. A tensão fez a voz dele sair alta quando ele soltou: — Isso não vai funcionar. — Tenha fé, doutor — disse Jackson. Estava encaixado com firmeza entre Jay Ackroyd e o reverendo. Olhou desesperadamente de Jay para Jesse. — Eles me odeiam. A limusine estacionou, e Jackson examinou as fileiras de curingas em silêncio. — Só alguns deles. Não é como se você tivesse mudado seu apoio para Barnett. Eu não sou tão inaceitável, sou? — Não para mim. — Tach apertou o braço do humano alto. — E você vai convencê-los, eu sei disso. — Bem, com um pouco de ajuda. — Vou fazer o meu melhor. Flecha Aprumada abriu a porta da limusine preta com tudo, e Jackson e Tachyon saíram para o calor. A polícia abrira uma lacuna entre os curingas. No fim daquele longo corredor havia um caminhão-plataforma equipado com um sistema de som. O calor era inacreditável, saindo em ondas da calçada. Enquanto
observava, Tach viu as oito pernas dobradas embaixo de Aracna, que murchou com um suspiro. Houve uma confusão quando a filha limpa desceu do colo da mãe e começou a abanar a mulher inconsciente com um jornal dobrado. — Como podem odiá-los tanto? — perguntou Tachyon. Os olhos lilases estavam arregalados de agonia. — São tão miseráveis e tão corajosos. Muito corajosos mesmo. A multidão os avistara. A incerteza correu como um arrepio por eles, então muitos começaram a se apinhar contra as fileiras de policiais, enquanto Jackson caminhava em meio ao público. Cerrando a mandíbula, Tachyon inclinou a cabeça para trás e os seguiu. Seus olhos encontraram os de Guelra. O pescoço grosso do curinga se movia, as membranas sobre as guelras abanavam. Ele pigarreou, e uma bola de muco branco e grosso voou no rosto de Tachyon. O alienígena recuou. Então avançou com as mãos estendidas, implorando compreensão. Mas Guelra já tinha virado as costas para Tachyon. Limpou o cuspe, e continuaram a avançar pela multidão. Lá adiante, Tach ouvia a voz de Jesse, mas as palavras escapavam. Estava muito ocupado observando os espectadores, avaliando o rosto dos amigos e das pessoas. Desinteresse, ódio declarado, compaixão. Uma sombra passou por ele. Tartaruga. Tommy, porém, voou para longe. Uma figura imensa e pálida separou os braços dados de dois policiais. Uma parede de tijolos não impediria os 270 quilos de Doughboy. O garoto caminhou até parar diante do pequeno alienígena. — Doutor. — Sim, querido. — Não conseguia chamar o curinga de “Doughboy”. — Disseram que a Srta. Sara é uma traidora, e agora estão dizendo que o senhor também é. Não entendo. — É muito confuso, mesmo. — Você não ama mais o senador? Tach cobriu os olhos com uma das mãos. — Amo mais vocês. — Que jeito engraçado de mostrar isso — berrou uma voz da multidão. — Traidor. Traidor! TRAIDOR! O som o atingiu, e Tach baixou o rosto para as mãos. De repente, Jackson estava ao seu lado, um braço firme sobre seus ombros. — Venha. Você consegue. Vamos caminhar por essa multidão. Vamos subir naquele caminhão e falar. Vai ficar tudo bem. — Não, reverendo, acho que algumas coisas não podem ser reparadas. Mas tinha sido lembrado de sua obrigação. Então, com um sorriso firme, Tach começou a cruzar a fileira de pessoas. Algumas das coisas mais incríveis foram estendidas na direção dele — garras, tentáculos, pedaços deformados cobertos com jorros fedorentos. A visão da mão normal de um humano trouxe tanto alívio que Tachyon quase correu para agarrá-la. Um jovem usando uma jaqueta de couro, apesar do calor, ergueu as pálpebras pesadas para encará-lo. Seus olhos eram vazios como os de um tubarão.
♠ Curingas entupiam a rua, silenciosos e horríveis. O calor e a luz pareciam sufocar, envolver o peito como uma píton, apertando grau a grau. Mackie lembrou-se de Hamburgo no verão. Odiava tudo que o lembrava de seu lar. Odiava o calor e a umidade, e não era fã da luz do dia. Mas o que mais odiava eram os curingas. Mesmo assim, estava feliz. A redenção corria em suas veias como o barato de uma boa droga. Der Mann lhe dera outra chance. Era Macheath outra vez, deslizando através da multidão, sua música borbulhando como um mantra no fundo da garganta. Naquela massa de monstros, nada era notável. Ainda mais ele. Por ser pequeno, evitava a maior parte do contato. O calor horrível fazia tentáculos de suor rastejarem pelas costelas dentro da jaqueta e da camiseta velha, mas seu fedor pessoal se perdia na multidão. Um impacto de relance, seguido de: — Ei, seu filho da puta! — A mão em seu braço tinha penas. — Preste atenção por onde anda! Quem você pensa que é, seu idiota? — Sou Mack Navalha, sua criatura nojenta! — O ódio cresceu junto com o pau. Começou a zumbir a mão. Não! Lembre-se de seu servicinho! Rosnou algo ininteligível e se dissolveu, deixando a monstruosidade parada, segurando o ar. O olhar perplexo no que o bicho chamava de rosto o fez gargalhar. Insubstancial, caminhou através de um aglomerado de vermes horríveis que fingiam ser pessoas até encontrar um espaço grande o bastante para solidificar o corpo magro. Os curingas não lhes davam atenção. Um vozerio começou, baixo e hostil. As palavras confundiam sua mente. Não tentou entender. Curingas não tinham nada a dizer. Os animais nem sabiam que ele estava caminhando através deles! Era Mackie Messer, o mistério e a morte encarnados. Era invencível. Agigantando-se ao lado de sua presa estava o negro alto que concorria à presidência — e não era a decadência capitalista que deixava que esse tipo de gente concorresse a um cargo político? Karl Marx dissera que o homem negro era escravo, e der alte Karl sabia do que estava falando. O homem que seguia perto de Tach era muito familiar. Devia ser um dos bajuladores do alienígena, no Bairro dos Curingas. Tachyon estava percorrendo uma fileira, apertando mãos e tal. O pensamento de todos aqueles toques de curingas fazia a pele de Mackie se arrepiar. Ele circulou, como o tubarão de sua canção, com os dentes esgarçados na cara. Você precisa tomar muito cuidado, dissera o Homem. Tachyon consegue ler mentes. Não pode deixar que ele sinta suas intenções. Muito bom. Ele era Mack Navalha. Sabia como fazer aquelas coisas. Seria simples se dissolver no meio da multidão, aproximar-se por trás, zumbir a mão e atravessar a porra do coração precioso de Tachyon. Seria muito simples. Nunca fizera aquilo com um alienígena. Nem com ninguém realmente importante, famoso como Tachyon.
Queria sentir os olhos de Tachyon nele. Queria que o desgraçado soubesse quem o estava matando. Os curingas avançaram para a frente, carregando-o para onde ele precisava ir. O mundo reduziu-se a Tachyon e ao toque. ♦ A tarde veio em pequenos estouros coerentes entremeados com ruídos e movimentos inúteis, como um filme cortado em pedaços e colado aleatoriamente. Delegados avançavam para a frente e para trás, os totais de votos mudavam a cada meia hora. As únicas duas constantes eram que Hartmann estava perdendo eleitores, e Barnett, ganhando. Apesar das negações de Hartmann e Devaughn, todos presumiram que a acusação de Barnett fora a última tentativa desesperada da campanha de Hartmann de reaver seu impulso perdido. — Ei. — Finalmente Devaughn olhou feio para os repórteres que o pressionavam. — Deem um desconto para o cara. Ontem alguém parou o coração dele, quem sabe quantas células cerebrais ele perdeu? Obrigado, Charles, pensou Jack . Compassivo como sempre. O único remédio concebível era outro gole de rum. Pedindo voto atrás de voto, Jim Wright tinha a aparência de alguém cujo fígado tivesse acabado de falhar. Escaramuças físicas giravam pela plateia. A banda tocava o que estivesse à mão, qualquer coisa de Stephen Foster até JaggerRichards. Um planador de Estelar caiu na frente de Jack, que pisou no brinquedo sem querer enquanto tentava pegá-lo. Jogou a coisa esmagada longe, e ela se partiu ao meio quando saiu de sua mão. Maldito Curinga Voador, pensou ele. Quando Jack terminou a garrafa, uma espécie de lucidez voltou, uma consciência intensa do horror daquilo tudo. Ai, merda, pensou. Eu me embebedei até ficar sóbrio. Não havia escolha, concluiu, a não ser pegar outra garrafa. Cambaleou para fora de seu assento e atravessou o pandemônio na direção da saída mais próxima. Quando saiu do auditório, viu uma jovem com buttons de Hartmann conversando, séria, com um homem negro e alto com óculos estilo tartaruga. — Me desculpe, Sheila — disse o homem de óculos. — Seu velho é o cara mais legal que já conheci, e sinto muito por decepcioná-lo, mas se eu não mudar para Jesse nesse voto, posso dar adeus à minha credibilidade na vizinhança. Algum tipo de comício estava acontecendo do lado de fora do auditório. Havia um caminhão-plataforma coberto de faixas de Jackson e uma limusine tentando atravessar a multidão para chegar até ele, a buzina se esgoelando. Ao redor de tudo aquilo havia mais curingas do que Jack já vira num só lugar. Tentou atravessar a multidão, mas era densa demais. As pessoas na limusine devem ter concluído a mesma coisa, porque as portas se abriram e os passageiros saíram — Flecha Aprumada em seu uniforme cinza, um cara pequeno e branco que Jack não reconheceu, Jesse Jackson e Tachyon.
Ótimo. Todas as pessoas que Jack queria ver. A multidão rugiu. O pessoal da imprensa empurrava curingas para encontrar lugar para as câmeras. A polícia e o Serviço Secreto tentavam abrir caminho até o caminhão sem espancar ninguém. Tachyon e o candidato cumprimentavam as pessoas com apertos de mão enquanto avançavam. Alguém cuspiu no rosto de Tach. Flecha Aprumada olhou, atônito — provavelmente não por causa da saliva, mas pelo fato de que poderia facilmente ter sido uma bala de revólver. Uma sombra passou sobre eles, e Jack ergueu os olhos. O Tartaruga seguiu em silêncio. Alguém pintara HARTMANN! no casco, em letras grandes e prateadas. Jack olhou para baixo e viu, através de uma lacuna de uma fração de segundo, em meio à aglomeração, o maluco deslizando através da multidão. O garoto com mãos de serra estava a cinco metros de distância. A adrenalina tomou conta de seu corpo com a força de um furacão. — Não! — gritou, e começou a nadar pela multidão de braçadas, abrindo caminho sem se importar com os gritos de protesto. Então lá estava o maluco, inclinado para a frente sob o braço de um policial, a mão estendida. Tachyon olhou para o sujeito e sorriu. — Não! — gritou Jack de novo, mas ninguém conseguia ouvi-lo. Tachyon tomou a mão do garoto. ♥ Tachyon tomou a mão humana com uma sensação que lembrava alívio. Ele apertou com força. — Eu sou Mackie Messer — disse o sujeito, acionando o zumbido máximo. ♣ Houve uma chuva de sangue e ossos, e o zumbido de serra de que Jack se lembrava muito bem. Tachyon gritou, assim como centenas de outras pessoas. E talvez Jack também tenha gritado. Ele avançou, mas a multidão estava recuando. Depois tropeçou e quase caiu quando as pessoas passaram ao seu redor. Uma criança curinga de olhos prateados estava agarrada à sua perna. Jack tentou jogar o garoto longe, furioso. Tachyon cambaleou para trás, o sangue jorrando do pulso arrancado. Flecha Aprumada observava a multidão ao redor de Jackson, apenas virando a cabeça para compreender a situação. O policial cujo braço estava em cima do garoto com jaqueta de couro quando este estendeu o braço foi o único que teve alguma reação. Metade de seu rosto pingava com o sangue de Tachyon, e a velocidade dos movimentos tinha sido reduzida pelo choque. Ele tentou agarrar a roupa do rapaz. Se tivesse tempo de pensar, teria feito qualquer coisa, menos isso. O garoto vestido de couro virou-se para encarar o guarda, e o coração de Jack foi parar na garganta. O garoto só precisava olhar para trás do policial para ver Jack avançando em sua direção. Mas o maluco não o notou—estava ocupado demais fatiando o policial, a língua desfrutando o gosto do sangue takisiano em
seu lábio inferior. Arrancou o braço do sujeito que o segurara na altura do ombro. Então virou-se para Tachyon, de costas para Jack, que se livrou da criança curinga e correu — o braço recuando, a mão fechando-se em punho. Se o garoto fosse acabar com Tach, precisava ficar substancial. Então Jack conseguiria acertá-lo com a força de um canhão. O garoto com jaqueta de couro avançou para Tachyon. O movimento da mão era suave, quase um carinho. Mais um passo e Jack lançaria a cabeça do corcunda vinte quarteirões à frente. Jack desferiu o soco, e o maluco desapareceu com um estalo. O golpe o girou enquanto Jack gritava de raiva. O sangue de Tachyon fez seus pés deslizarem, mas ele conseguiu ficar em pé. — Quem fez isso? — berrou. Flecha Aprumada estava em pé, uma flecha fumegante erguida numa das mãos, como uma estátua de Zeus prestes a atirar um raio. O Serviço Secreto derrubara Jackson, e havia uma pilha de homens sobre ele. Várias armas tinham sido sacadas. — Ackroyd! — respondeu Flecha Aprumada. A chama desapareceu da ponta de seus dedos. A multidão gemia como se estivesse sentindo dor. Homens com câmeras de televisão circularam o cordão policial, tentando ter uma visão melhor. Os olhos da nação estavam concentrados naquilo. Tachyon piscou e caiu no asfalto. O policial estava gritando. Jack percebeu que o ferimento era alto demais para um torniquete. Jack caminhou até ele, ergueu o punho e acertou-o gentilmente na têmpora. A cabeça do policial balançou como um saco de areia, e ele caiu inconsciente. Flecha Aprumada aproximou-se de Jack. Seu rosto chocado estava pálido. Ele estendeu a mão para o ombro ferido do policial. As chamas latejaram. Sangue chiou, fervendo, enquanto ele cauterizava o ferimento. Veio o cheiro de carne queimada, e, das lembranças empilhadas de Jack, vieram os gritos de um homem queimado até a morte num tanque incendiado, em algum lugar em Cassino. Talvez a vida do policial pudesse ser salva, caso ele não morresse com o choque nos próximos cinco minutos. Jack seguiu, sentindo-se impotente, quando Flecha Aprumada parou ao lado de Tachyon e ergueu seu braço ferido. O rosto e as roupas do alienígena estavam cobertas de sangue. Coisas estalavam sob os sapatos de Jack , coisas em que ele não queria nem pensar. Flecha Aprumada cauterizou o ferimento de Tach com o mesmo pulso de chama eficiente que usara no policial. Jack virou as costas para ele, sem querer ouvir o chiado do sangue ou sentir o cheiro de carne queimada. Pegou um cigarro. A raiva dançava em seus nervos. Se tivesse conseguido chegar ao garoto, teria esmagado aquela cabecinha assassina como uma casca de ovo. Jesse Jackson estava se levantando. Pela expressão atônita, ficou claro que não tinha visto nada. Os homens do Serviço Secreto tentavam ligar para ambulâncias de seus rádios. — Ackroyd. — Flecha Aprumada se levantou. — Para onde você o mandou? Ackroyd era o homem sem traços marcantes que Jack vira sair da limusine
com Tach e Jackson. Também parecia em choque, como todos os outros. — É — disse ele. — Ai, meu Deus. — Suas mãos percorreram o corpo, como se tivesse uma coceira que não conseguia localizar. — Você! — urrou Jack. — Quem diabos é você? Ackroyd olhou para ele sem compreender. — Jack Ackroyd — disse Flecha Aprumada. — Detetive particular. Conhecido como Popinjay. — Eu estava com o desgraçado na mão! — Jack sacudiu o punho, irado, esmagando o maço de cigarros. — Podia ter transformado o cara em geleia! Que porra! — Jogou o maço de cigarros no chão e o chutou para a multidão. — Para onde você mandou o cara, Ackroyd? — Eu dei um estalo nele. Flecha Aprumada o agarrou pela lapela e o chacoalhou. — Para onde você enviou o assassino? — Ah. — Ackroyd lambeu os lábios. — Para Nova York. Prisão de Tombs. Flecha Aprumada tirou as mãos do detetive e se endireitou, satisfeito. — Ótimo. Jack quis chutar Ackroyd para o país mais próximo. — Ele atravessa paredes! — gritou. — A essa hora, já deve ter saído da cadeia! O segurança de Jackson baixou a cabeça. As sirenes das ambulâncias soaram ao longe. Jack olhou ao redor para a cena, os dois homens feridos, Jackson ajoelhado ao lado de Tachyon, os agentes do Serviço Secreto com as armas em riste, a multidão uivando e gemendo em choque, câmeras de televisão registrando tudo… Percebeu que perdera de novo. Outra tragédia que não conseguira impedir. Tudo estava se esvaindo entre seus dedos. E ninguém se beneficiaria com aquilo, a não ser Leo Barnett. ♠ Estava numa sala cercada de barras e cheia pretos enormes. Por um momento, Mackie achou que estivesse sonhando. Em seguida, tomou consciência dos pedaços quentes da carne alienígena presos no rosto e na jaqueta como plástico derretido. A mão direita segurava o ar. A esquerda estava estendida como uma lâmina, vibrando, pronta para arrancar a cabeça do Dr. Tachyon. Mas não estava mais na iluminada rua de Atlanta e não havia Tachyon. — Nein! — gritou, batendo a palma da mão na testa. — Nein, nein, nein! Falhara de novo. Não era possível. Mas falhara. Uma mão agarrou seu ombro. Um tsunami de náusea balançou de um lado para outro do estômago quando ele se viu encarando um negro gigante com o topo da cabeça raspado e um brinco dourado na orelha. — Ei, cara — disse o gigante com voz suave —, como diabos você entrou aqui? Mackie gritou de novo, dessa vez sem nem tentar articular palavras. Então,
fez as mãos funcionarem, aí foram os outros que começaram a gritar. Quando a gritaria parou, ele correu através da cela de detenção, atravessando os corredores verdes que fediam a vômito, suor e medo. Desceu as escadas e saiu para a luz imunda de Nova York. Precisava voltar a Atlanta imediatamente. Redimir-se aos olhos de seu mestre, de seu amor.
17h00
A primeira coisa que Gregg fez foi cumprimentar Jesse com um aperto de mão. O Titereiro correu para fora com o toque, abrindo avidamente a mente do sujeito. Era uma mente sofisticada, que sentia as coisas em profundidade. No fim das contas, era a melhor espécie. Surgiu um banho de vermelho--alaranjado profundo, uma lembrança de algo muito doloroso e horrível. Gregg sabia o que seria. Jackson não trocara de casaco, ainda estava respingado com o sangue de Tachyon. A visão deixou Gregg inquieto, um revoar de culpa que retornou e fez o Titereiro zombar dele por dentro. — Reverendo, obrigado por se encontrar comigo tão rápido, e depois de uma tarde tão horrível. Como… como está o Dr. Tachyon? — Lutando para sobreviver. Em estado grave. Os médicos disseram que houve dano demais para reimplantar a mão. — O rosto longo e escuro de Jackson ficou franzido. — Um incidente terrível, senador. Um incidente muito terrível. Nunca vi uma violência tão fria e doentia desde que o Reverendo King foi assassinado. O Titereiro observava as emoções de Jackson com cuidado. Havia horror, medo e repulsa, mas nada direcionado a Gregg. O que lhe dizia que Tachyon ainda se mantinha em silêncio quanto ao Titereiro. Ótimo. Então, não importa — ainda — que Mackie não tenha terminado o trabalho. Direcionado a Gregg, só havia um leve ocre amarelado de desgosto dentro de Jackson, e o Titereiro o reprimiu sem dificuldades, limpando-o com o respeito que ele sabia que Jackson tinha pela posição de Gregg em assuntos comuns. — Sinto muito em ouvir isso, reverendo. Por favor, sente-se. Falei para a minha assistente entrar em contato com sua equipe e pedir para mandarem uma muda de roupas limpas. Gostaria de beber alguma coisa? Jackson recusou com um aceno educado e se sentou. Gregg acomodou-se no sofá diante dele. Estirou as mãos espalmadas diante do rosto, como se tentasse decidir o que dizer. — Não é um momento que eu escolheria para dizer isso — disse Gregg, por fim. — Não depois dessa tarde. Mas talvez seja o melhor momento. Precisamos acabar com a violência. Precisamos unificar a convenção e começar a trabalhar numa verdadeira campanha contra Bush. — Sei o que você vai dizer, senador. E deveria saber que minha equipe quer que eu diga “não”. — Jackson parecia tranquilo e confortável, apesar do trauma da tarde. Sentou-se de pernas cruzadas, as mãos grandes encaixadas num joelho. As manchas escuras no casaco tornavam a imagem assustadoramente surreal. Por fora, era frio, contido, quase indiferente. O Titereiro sabia muito bem. Por dentro, o homem de repente ficou ávido. Conseguia ver o azul brilhante elétrico, piscando como raios.
— Querem que eu diga “não” porque estão convencidos de que, com o apoio do Dr. Tachyon, nossa Coalizão Arco-Íris vai vencer aqui — continuou. — Não meia vitória, senador, mas tudo. — Tive uma amizade de quase vinte anos com o Dr. Tachyon — disse Gregg. — Ele é um homem orgulhoso e muito teimoso. A verdade é que o senhor e eu estamos tomando votos um do outro e permitindo que Barnett vença. A verdade é que, se o candidato presidencial não for eu, também não será o senhor. Acho que nós dois sabemos disso, não importa em que gostaríamos de acreditar. Se eu não vencer aqui, Leo Barnett será o candidato. O ataque de hoje a Tachyon só fortaleceu a posição dele. O Titereiro sentia a irritação de Jackson com aquele discurso. Não era segredo que os dois pastores não se gostavam. Jackson era um idealista, bem à esquerda do partido, enquanto Barnett era direitista. Gregg deixou o Titereiro acariciar aquela irritação até Jackson fechar a cara. — Reverendo, não sei por que Tachyon procurou o senhor — continuou Gregg. — Minha equipe queria divulgar isso para a imprensa depois que Tachyon retirou seu apoio, mas eu não deixei, em respeito aos nossos vinte anos de amizade. Tachy… bem, não há um jeito educado de dizer. Nos últimos dias, o doutor se envolveu com a coordenadora de campanha de Barnett, Fleur van Renssaeler. Não sei se ela o seduziu, ou foi obra dele… Não importa. Mas quando eu o confrontei, ele explodiu. Disse que o relacionamento não me dizia respeito. Insisti que dizia, sim… Acho que isso é razoável… E pressionei ainda mais. — A expressão de Gregg era irritada, desgostosa. — Provavelmente disse algumas coisas que não deveria ter dito. Nossa briga foi intensa e dura. Ele foi embora. A próxima notícia que tive era de que estava retirando seu apoio. Gregg deu um sorriso triste. — Entendo por que ele procurou o senhor, reverendo. Temos nossas diferenças, mas acho que, se alguém verificar nossos prontuários e nossa credibilidade pública, verá que somos semelhantes. Somos contra o preconceito e o ódio de qualquer espécie, e gostamos de ver todos os lados unidos trabalhando em harmonia. Marchamos juntos na luta pelos programas de governo. Sei que nossos ideais são os mesmos. Na mente de Jackson, o Titereiro empurrava aqui, puxava ali. — Parece um de seus discursos de campanha, senador. — Um sorriso leve no rosto. — Já ouvi essa retórica. — E a retórica é barata. Eu sei. Também sei que, se o senhor verificar meu registro de votações, se o senhor olhar o que fiz como presidente do CRISE-A, procurando saber como reagi à legislação curinga ou de direitos civis, verá que não estamos muito distantes. Acho que poderíamos trabalhar bem juntos. — O que nos leva àquela pergunta que o senhor ainda não me fez, senador. Ele está interessado, mesmo sem mim. Está sentindo? Sentiu o gostinho? — O senhor saber o que estou oferecendo — respondeu Gregg. Estava declarando, e não perguntando. — O senhor está me oferecendo a vice-presidência — disse Jackson, assentindo. — Está dizendo: “Reverendo Jackson, por que o senhor não diz aos seus delegados para votarem em Hartmann-Jackson?” Com meus delegados e os
do senhor, talvez a gente consiga vencer a nomeação. — Com sua voz, com sua força, com seu poder, nós… — Gregg hesitou, enfatizando a palavra — … nós não venceremos apenas a nomeação. Venceremos a presidência. O desejo era brilhante, azul e brilhante. Embaixo, havia manchas escuras de dúvida. O Titereiro raspou a escuridão, fazendo-a esvanecer no nada. Jesse comprimiu os lábios. — Eu poderia fazer a mesma oferta ao senhor, senador… — começou, mas o Titereiro ainda estava cutucando, trabalhando em sua mente. A voz de Jackson desapareceu. Ele assentiu. E estendeu a mão. — Tudo bem, senador — disse, enquanto se cumprimentavam. — O senhor tem razão. É hora de construirmos uma ponte. É hora de nos juntarmos. O Titereiro gritou, triunfal. Gregg não conseguiu evitar a gargalhada. Conseguira. Dessa vez, ele conseguiria. Ainda precisava fazer algumas manobras, então tudo seria dele. ♦ O rum forte bateu no estômago de Jack como uma onda de chamas bem--vindas. Ele tomou mais alguns goles, em seguida tampou a garrafa e enfiou-a no bolso. Comprara-a depois que Tachyon fora levado para o hospital e o Serviço Secreto o liberou. Ainda havia sangue na barra da calça e nos sapatos. Tentava não pensar em como aquilo chegara ali, e imaginou que o rum forte ajudaria. Entrou por uma das portas dos fundos do Omni. Ai, caramba, pensou. Lá estava o guarda grandalhão com o nariz quebrado, Connally, que já balançava a cabeça, recusando a entrada de um homem grisalho, que por sua vez balançava uma credencial no rosto dele. Jack quase conseguia recitar o diálogo entre Connally e o delegado. — Desculpe. Ninguém entra por aqui. — Mas eu acabei de sair por esta porta. Você me viu. — Ninguém pode usar esta entrada. — Oficial, vou só buscar minha filha, que é delegada. Eu tenho uma credencial. Um calafrio acariciou o pescoço de Jack ao som da voz do homem. Ele parou a cerca de três metros e encarou a nuca grisalha. Onde o ouvira antes? — Bem — retrucou Connally, hesitante —, acho que não vai fazer muita diferença. Embora supostamente ninguém possa passar por aqui. — Tudo bem — respondeu o homem. Balançando a cabeça como se não percebesse por que estava fazendo aquilo, Connally pôs a mão no cinto, mostrou um monte de chaves numa corrente e abriu a porta. A surpresa dançou na cabeça de Jack. — Obrigado, oficial. Foi muito gentil da sua parte. — O homem passou pela porta.
Jack avançou. Algo estava errado. — Com licença — chamou. Connally o encarou com raiva. — Aonde acha que vai, babaca? Jack forçou um sorriso. — Sou delegado. Connally fechou a porta e a trancou com firmeza. — Ninguém passa por esta porta. São ordens. Jack espreitou pela passagem de vidro, vendo o homem grisalho se afastar. — Você acabou de deixar aquele cara passar. Connally deu de ombros. — E daí? — Ele nem é delegado! Eu sou delegado! Connally olhou para ele. — Ele não é um babaca. Você é. Enquanto Jack encarava o corredor através da porta de vidro, viu o homem grisalho olhar para trás depressa, a mão erguida para dar um aceno amigável para Connally. O sujeito olhou para Jack, e o rosto barbado ficou petrificado antes de ele abaixar o braço e seguir seu caminho. Os pelos de Jack arrepiaram-se. Tinha visto aquele rosto havia pouco, na capa da Time, depois que um ator chamado Josh Davidson atuara em Rei Lear no Central Park. O mais importante era que já vira aquele olhar. Lembrou-se de um punhado de estivadores dançando numa mesa, cantando “Rum and Coca-Cola”. Desculpe, Sheila, lembrou, seu velho é o cara mais legal que já conheci. Conhecia o olhar de Davidson. Jack o vira uma vez antes, nos anos 1950, quando saiu da sala do comitê após testemunhar diante do HUAC e passar sem dizer nenhuma palavra por onde Earl, David, Blythe e o Sr. Holmes estavam aguardando. De repente, Jack começou a correr, passando por um Connally surpreso na direção de uma das portas por onde conseguiria entrar. Jack sabia que Josh Davidson era um ás secreto. Quando entrou, a garrafa de rum deslizou do seu bolso e estourou no concreto. Ele não reduziu a velocidade. Era de conhecimento geral o fato de que Jack era o único dos Quatro Ases ainda vivo. Mas ninguém sabia ao certo, já que um dos quatro estava desaparecido. Após passar três anos na ilha de Alcatraz por desobediência ao Congresso, David Harstein escapou de barco, em 1953. Um ano depois, o Congresso aprovou a Lei Especial de Conscrição, e Harstein foi convocado. Nunca se apresentou. Ninguém o via desde então. Havia boatos de que tinha morrido, sido assassinado, debandado para Moscou, mudado de nome e se estabelecido em Israel. Não havia rumores mencionando cirurgias plásticas, um pouco de musculação, alguns quilos extras, uma barba crescida, aulas de voz e a carreira de ator na Broadway.
Seu velho é o cara mais legal que já conheci. Óbvio. Ninguém poderia desgostar de David Harstein, não quando seus feromônios entravam em ação. Ninguém poderia discordar dele. Ninguém conseguia evitar fazer o que ele queria. Jack apresentou a identidade para o homem na porta e entrou. Correu pela multidão na direção em que vira Davidson pela última vez, ignorando os olhares de outros delegados. Por sobre todas as cabeças, viu Davidson avançando para um dos corredores que levavam ao auditório. Foi atrás dele, agarrou o braço de Davidson e disse: — Ei. O homem girou, livrando-se da mão de Jack. Seus olhos eram como lascas de obsidiana. — Eu não quero falar com você, Braun. Jack começou a recuar. Sentiu a cor desaparecendo do rosto. Tomou controle dos nervos e avançou. — Eu quero falar com você, Harstein — retrucou. — Temos quase quarenta anos para colocar em dia. Harstein deu um passo adiante e levou a mão ao coração. Jack sentiu uma onda de terror: talvez ele estivesse usando o velho truque do ataque cardíaco. Estendeu a mão para segurar Harstein de pé, mas o homem bateu com frieza nas mãos de Jack , afastou-se um pouco e se recostou na parede. — Se for agora — murmurou ele —, não vai ser depois. Se não for depois, será agora. Se não for agora, será a qualquer hora. — É preciso estar preparado — completou Jack, concluindo a citação. Interpretara Laerte quando estava no colégio. Harsteins o encarou com rispidez. — Todos esses anos, e você me descobre. Parece adequado, de alguma forma. — Se você diz. — Por que estamos conversando? A menos que você queira me denunciar. Jack respirou fundo. — Não vou denunciar ninguém, David. O ator parecia desdenhoso. — Uma mudança interessante de personagem. — Você é especialista em personagens. — Também sou especialista em prisões. Passei três anos numa. — Eu não mandei você para a prisão, David — retrucou Jack . — Você foi mandado para lá antes mesmo de eu testemunhar. — Outra distinção interessante. — Davidson deu de ombros. — No entanto, se serve para aliviar sua consciência… Lágrimas arderam nos olhos de Jack. Ele desabou contra a parede. Não podia usar a defesa que usara com Hiram. Harstein esteve lá. Ele não tinha se curvado, por isso fora mandado para a prisão. E o que aconteceu com Blythe tinha sido ainda pior. Era como se Harstein tivesse fisgado o pensamento na mente de Jack. — Fui ver Blythe logo depois de sair. Novembro de 1953. Consegui convencer
os carcereiros a me deixarem entrar. Fui até a cela dela. Disse que tudo ficaria bem. Que ela estava bem. Não estava. Três semanas depois, ela morreu. — Sinto muito. — Você sente muito. — Harstein parecia desfrutar as palavras, rolando--as pela boca. — Tão fácil dizer, ainda que tenha tão pouco efeito. Podemos tornar nossa vida sublime e partir, deixando pegadas na areia do tempo. — Seus olhos encontraram os de Jack. — Um vento veio, Jack, e soprou nossas pegadas. — Ele encarou o outro por um bom tempo, um olhar implacável do qual vazaram todas as emoções. — Deixe-me em paz. Nunca mais quero ver você. David Harstein deu meia-volta e se afastou. Jack deslizou lentamente pela parede, o terror e o remorso fazendo o corpo estremecer. Levou ao menos cinco minutos para retomar o controle. Quando se levantou, tinha manchas imensas de suor embaixo dos braços. Os delegados que passavam pelo corredor o encaravam com pena ou nojo, achando que ele estava bêbado. Estavam enganados. Ele estava sóbrio, perfeitamente sóbrio. Ficara tão apavorado que o medo queimara cada miligrama de álcool no corpo. Jack voltou ao auditório quando Jim Wright estava anunciando o último total de delegados. O total de Hartmann estava indo pelo ralo.
19h00
Os corredores do hotel estavam quase desertos. A maioria das pessoas estava assistindo ao evento principal no auditório da convenção. Spector foi até a lanchonete com uma garrafa de Jack Black enfiada debaixo do braço. Dormira quase o dia todo e agora precisava comer alguma coisa. Os restaurantes do Marriott estavam fora de questão. Depois da briga com o Golden Boy, com certeza haveria gente atrás dele. Mas estava fraco de fome e precisa de comida. Caminhou pelos corredores de lanches rápidos e suvenires, pegou alguns chocolates, uma latinha de castanhas, salsichas no palito. Um jovem negro estava atrás da caixa registradora, encarando uma televisãozinha em preto e branco. Spector deixou as coisas no balcão, pegando o dinheiro no bolso. — Já vou atendê-lo, senhor — disse o funcionário. — Eles vão mostrar a mão de Tachyon explodindo depois desses comerciais. Perdi a cena ao vivo. Caramba, aposto que vai ser demais. O senhor viu? — A mão de Tachyon explodiu? Do que você está falando? — Passou o dia na piscina? — perguntou o funcionário, balançando a cabeça. — Um carinha feioso apertou a mão do doutor e a arrancou. Dizem que… Espere um segundo. Olhe. — Ele virou a televisão para Spector assistir também. O vídeo estava em câmera lenta. Tachyon avançava pela multidão, apertando mãos. — Quem pegou ele? — perguntou Spector. — Um corcundinha. Veja, lá está ele. Spector abriu a boca. Fechou-a. Era o mesmo esquisito que estava no voo com ele. O corcunda pegou a mão de Tachyon, e o sangue voou para todo lado. O cinegrafista chacoalhou com a multidão em pânico, e o vídeo terminou. — Ele ainda está vivo? — Spector sempre quis ver Tachyon morto, mas se flagrou esperando o melhor. No fim das contas, a morte de Tachyon era algo que ele planejava fazer, algum dia. — Sim. — O funcionário virou a televisão de novo e começou a registrar os produtos. — Acho que ele é mais durão do que parece. — Pôs as compras numa sacola e entregou-a com o troco. — É melhor não dar a mão ao demônio, senhor. Tarde demais, pensou Spector, sorrindo. Embolsou o troco e voltou para o quarto. ♥ — Ei, Jack. — Que foi, hombre? — Ordens do Devaughn. — Sim — respondeu Jack , sem entusiasmo. Estava se escondendo de entrevistas no meio do que restava de seus delegados leais — os desleais, um terço do total, estavam se reunindo com seus
novos coordenadores de campanha. — Depois do recesso — disse Rodriguez —, a campanha de Jackson vai apresentar um pedido para suspender as regras da convenção e abrir espaço para Jesse falar. Devemos votar a favor. Jack olhou para Rodriguez, surpreso. — Não podemos deixar um candidato falar. Caramba, eles vão todos… — A novidade é que Jackson vai pular fora. — Rodriguez sorriu e tocou o nariz. — Sinto cheiro de coisa boa, Jack. Aposto que Jackson fechou um acordo com o chefão. Aposto que vai ser vice. A mente de Jack processou a ideia. Não estava à frente de sua delegação desde que caíra da sacada, na quinta-feira — era Rodriguez quem estava conduzindo o rebanho da Califórnia e votando como procurador de Jack para Hartmann. Tinha de respeitar os instintos dele. Quanto à chapa Hartmann/Jackson: por que não? Foi o mesmo acordo que Roosevelt e Garner fecharam em 1932, durante a última convenção empatada dos Democratas. — Nossos totais e os de Jesse… — comentou. — São…? — Não são suficientes. O pessoal de Jesse está passando para Dukakis. — Barnett com certeza vai sentir o mesmo cheiro. Ou Fleur, pensou. Ela tinha um faro mais aguçado. Talvez Fleur fosse a ás secreta, não Barnett. Ele se perguntou se a mulher tinha sido militar. — Depois de hoje de manhã — começou Rodriguez, escolhendo bem as palavras —, não tem como entrar em contato com eles. Alguém falou com aquela Fleur sei-lá-das-quantas , e ela disse que não. Nem quer falar sobre o caso. Jack se levantou, fechando a cara para a proa do navio de guerra — o palco —, quando Jim Wright pediu ordem na convenção e anunciou que haveria outro escrutínio. A droga da votação duraria uma eternidade, os coordenadores já tinham perdido totalmente o controle dos delegados, e cada delegação teria de votar homem a homem. A moção para suspender as regras da convenção viria logo depois que o total de votos fosse anunciado. E daí aquilo teria de ser votado — meu Deus, quanto poderia durar isso? — Merda! Merda! — Rodriguez gritava ao celular. Ele desligou o aparelho e olhou para Jack. — Dukakis vai continuar na disputa. Ele não tem nada a perder, e talvez consiga atrair alguns delegados de Jackson. Mas não podemos mudar as regras sem Barnett. Precisamos de três quartos dos votos. — Que bosta, hombre. — Barnett vai arrebentar a boca do balão se essa jogada de Jackson não funcionar. — Rodriguez suspirou. — Tudo bem. É o que Devaughn quer. Vamos começar espalhando o boato de que Jackson está pulando fora, que tudo que ele deseja fazer é falar com a convenção e fazer um apelo em nome de seu eleitorado. Ninguém mais vai tomar decisões com seus delegados individuais. Talvez as tropas de Barnett nem prestem atenção quando ele mandar todos votarem não. — Talvez. Rodriguez deu de ombros.
— O esquema todo é um grande talvez. Jack cerrou os punhos nas laterais do corpo. Deveria haver alguma maneira de consertar as coisas, algum jeito de reparar o dano que os ases assassinos haviam causado — caramba, que ele causara. Lembrou-se dos estivadores dançando em cima de uma mesa. David Harstein, pensou. Levar Harstein para a plataforma. Usá-lo para influenciar a convenção inteira a nomear Hartmann por aclamação. Não. Idiota. Todo mundo ia reparar. As pessoas que estivessem assistindo à televisão se perguntariam por que não se sentiam tão entusiasmados quanto o pessoal da convenção. E o ar-condicionado talvez levasse os feromônios de Harstein para longe. O poder de Harstein era sutil, precisava ser usado com sutileza. Podia influenciar apenas poucas pessoas por vez. Talvez, pensou Jack, algumas pessoas importantes. Talvez a coordenadora de campanha de Barnett. Jack imaginou Fleur dançando sobre as mesas, jogando as roupas de baixo no átrio do Omni, ligando para Leo Barnett e lhe dizendo como Tachyon era bom de cama… Jack se refestelou com a imagem mental antes de a coisa toda desmoronar. David Harstein o odiava com todas as forças. Quem era ele para fazer planos que envolvessem o sujeito? Que se dane. Harstein queria Hartmann eleito, certo? No máximo, Jack poderia recorrer à chantagem. Sabia que Harstein era um ás secreto. Podia ameaçar revelar esse segredo. Pensou em si mesmo chorando no túnel, e seu estômago se revirou. Jim Wright leu o total de delegados do Alabama. Todos a favor de Barnett. Aquilo decidia o caso. Jack estava se movendo, caminhando da Califórnia para Nova York diante da frente imensa do palco. Harstein estava sentado nos bancos, assistindo a filha discursar para a delegação de Nova York . Seu olhar era triste e orgulhoso. Jack deu um tapinha no ombro de Harstein e prendeu-o ao banco. Os olhos do ator estavam velados, cuidadosos, observando. — Pensei que tínhamos chegado a um acordo. Você me deixa em paz. Eu deixo você em paz. Jack falou depressa: — Escute, é importante. Em alguns minutos, haverá um pedido para suspender as regras da convenção para deixar Jackson falar. Ele vai retirar a candidatura e apoiar nosso candidato. — Que bom para Gregg Hartmann. — Ele manteve a cara fechada. — O que isso tem a ver comigo? — O voto precisa ser unânime, porra, ou pelo menos quase. Barnett tem votos o suficiente para nos bloquear. Imagino que a gente possa falar com Fleur van Renssaeler e fazer com que ela mude de ideia. — A gente? — A ênfase fez Jack querer desaparecer. — É esse o seu plano? Ou você falou com Hartmann sobre mim? Jack negou com a cabeça. Estava tentando não se encolher.
— Ninguém além de mim sabe. Não quero dizer nada, mas você precisa me ajudar. Desgastado, Harstein coçou a testa. — E você espera que eu vá até o quartel-general de Barnett e mude a opinião de todo mundo? — Ele quase parecia falar sozinho. — Que ano você pensa que é, 1947? Esse tipo de coisa não funcionava nem naquela época, não vai funcionar agora. Ele tinha razão. Era tão óbvio. Como Jack pôde ser tão estúpido? Jack se viu a ponto de dar de ombros e se afastar. Os feromônios de Harstein já tinham feito Jack concordar. O que ele queria dizer com “não funcionava na época”? David fez Franco renunciar ao trono. Ainda assim, quando falava, não parecia convincente — nem para si mesmo. — Se não fizermos isso, Barnett vai vencer. Tudo terá sido em vão. — O suor brotava no rosto de Jack. Sentia como se o coração estivesse prestes a explodir. — Só precisamos mudar uma opinião. A de Fleur. Davidson olhou para o nada, pensativo. Jack deu um suspiro desesperado, tentando acalmar os membros trêmulos. — Eu construí uma vida — disse Davidson. — Tenho uma família. Não posso colocá-los em risco. Minha identidade forjada não vai se sustentar a uma investigação profunda. — Ele olhou para Jack. — Sou um velho. Não faço mais esse tipo de coisa. Talvez nunca devesse ter feito. A surpresa correu pelas veias de Jack. Ele quer minha compreensão, pensou. — Você está fazendo isso agora — retrucou Jack. — Não estaria aqui se não estivesse tentando influenciar as pessoas. — Jack, você ainda não entendeu, não é? Eu não posso evitar. Não posso desligar e ligar o meu poder. Por isso que não sou delegado. Por isso que me mantenho longe. Que direito eu tenho de substituir a opinião de alguém pela minha? A minha é necessariamente melhor? — Harstein balançou a cabeça. Jack lutou contra o desejo feroz de simplesmente concordar e ir embora. — Nossas opiniões — retrucou, lutando para trazer à tona cada palavra — são muito, mas muito melhores do que os delírios de um homem que nos ameaça. Sua filha… — Ele apontou para ela e se lembrou do nome: Sheila. — Sheila tem o carta selvagem. Você tem uma dose completa, os dois cromossomos, e, mesmo que sua esposa não tenha o vírus, você não teria como evitar que Sheila tivesse pelo menos em estado latente. E, se ela se casar com outro latente, seus netos podem ser um carta selvagem completo. Harstein ficou em silêncio. Os olhos seguiram até onde a filha estava, entre outros delegados. Sheila olhava para trás, o rosto preocupado. Ela já sabia da identidade do pai, e imaginou que Jack também. — Sabe o que vai acontecer com eles se Barnett se tornar presidente? — continuou Jack. — Serão confinados num belo hospital em algum local remoto, um hospital com cerca de arame farpado. E você não terá netos. Barnett vai se assegurar de que isso não aconteça. Harstein virou-se para Jack . A frieza retornara. — Faça a gentileza de não mencionar minhas filhas de novo. Nunca use esse argumento comigo. Você não dá a mínima para elas ou para mim.
Harstein ficou quieto. Olhou para as filhas de novo. Quando falou, a voz saiu mais suave. — Vimos o melhor do nosso tempo: complôs, vazio, traição e todas as desordens devastadoras que nos seguirão, inquietantes, até o túmulo. — Ele olhou para Jack. — Foi um argumento injusto, mas me convenceu. Farei o possível. — Ele hesitou. — Estou um pouco surpreso. Pensei que você iria ameaçar me expor. Estou feliz em ver que estava errado. É sempre uma opção, pensou Jack . Mas não disse isso. Não seria ruim desenvolver uma reputação de decência para variar. Levou apenas um minuto para ir do complexo Omni ao Hotel Omni, ao lado. E quase dez minutos para Jack e Harstein conseguirem pegar um elevador para o quartel-general de Barnett. Vários funcionários de Barnett estavam por ali, e muitos o encaravam. Jack os ignorou, pensativo. Suas identificações da convenção foram suficientes para fazê-los entrar no hotel e provavelmente na sala de operações. A segurança seria maior ao redor do candidato, e o quarto de Barnett ficava em outro andar. O problema de Jack seria ficar na sala de operações tempo suficiente para se aproximar de Fleur e deixar os feromônios de Harstein fazerem seu trabalho. A menção de Harstein à chantagem pôs a mente de Jack para funcionar. Enquanto esperavam o elevador, pegou um bloco de anotações do hotel na recepção e fez um bilhete, em seguida escreveu Fleur van Renssaeler no verso. O bilhete dizia: Preciso de cinco minutos do seu tempo. Se eu não os tiver , o mundo (e o Reverendo Barnett) descobrirão sobre seus pecados da carne com Tachyon. Ele considerou assinar Seu irmão em Cristo, Jack Braun, mas concluiu que talvez fosse forçar um pouco demais a barra. As portas do elevador se abriram, e Jack entrou, surpreendendo duas apoiadoras de Barnett da variedade “senhorinhas de rinsagem”. Jack deu um sorriso educado quando entrou e apertou o botão do quartel-general de Barnett. As pessoas que esperavam os elevadores sempre davam uma segunda olhada quando Jack saía, mas ninguém o impediu quando ele seguiu para o centro de operações. Passou direto pela porta, pelas várias jovens em bancadas de telefones, mas não viu nenhum sinal de Fleur. Sorriu para a telefonista mais próxima. — Onde está a chefe? — perguntou. A garota o encarou. Talvez tivesse uns dezessete anos, bela em sua loirice ainda não formada. Os óculos deslizaram pelo nariz. Seu nome, de acordo com o crachá, era Beverly. — Eu… — disse ela. — Você é… Harstein inclinou-se perto dela e disse: — Vá em frente. Pode contar a ele. — Abriu um sorriso tranquilizador. — Ah… A expressão de Harstein era gentil. — Tudo bem mesmo, Beverly — disse ele. — O senhor Braun aqui está a trabalho, e eu estou só acompanhando. Beverly apontou com um lápis.
— Acho que a senhorita van Renssaeler está no gabinete dela — sugeriu. — Duas portas adiante. No 718. — Obrigado. A sala estava começando a se agitar, alarmada. Pessoas encaravam Jack com raiva e discavam nos telefones. Jack sorriu para elas, totalmente tranquilizador, acenou e saiu. Harstein seguiu. — Espero que seja um quarto pequeno — comentou Harstein. — Não tem ideia do que o advento do ar-condicionado fez com meu poder. Cabeças saíram das portas quando Jack caminhou para o 718 e bateu à porta. Conseguiu ouvir televisores e um telefone tocando lá dentro. O telefone parou, e ele ouviu passos vindo até a porta, que se abriu. Um homem de cabelos prateados estava lá, os olhos arregalados em choque, em seguida estreitados pela raiva. Ele enrubesceu. — Sim. — Ouviram a voz de Fleur ao telefone. — Acho que ele está aqui. Obrigada, Veronica. — Você não é bem-vindo aqui — alertou o homem de cabelos prateados. — Gostaria de ver a senhorita van Renssaeler — disse Jack . O homem tentou bater a porta. Jack a manteve aberta com a mão. — Por favor — insistiu. A porta abriu-se de uma vez. Fleur olhou para Jack por cima dos óculos de leitura quadrados. Sua boca era um risco desgostoso. Dois outros homens estavam atrás dela, em várias posturas inquietas. Televisões ligadas em diversos canais tagarelavam na parede. — Não acho que tenhamos o que conversar, senhor Braun — declarou a mulher. — Temos, sim — respondeu Jack . — Para começar, gostaria de pedir desculpas. — Ótimo, o senhor já fez isso. — Ela começou a fechar a porta. — Gostaria de falar com a senhorita por um instante. — Estou ocupada. Pode solicitar uma reunião depois da convenção. — A porta fechou alguns centímetros, e Jack a bloqueou outra vez. Ele estendeu o envelope que estava no bolso. — Tudo bem — falou. — Aqui está minha solicitação. Gostaria que lesse agora. Ele jogou o envelope para dentro e deixou Fleur fechar a porta. Olhou para o corredor, onde dois homens caminhavam em sua direção, sem dúvida convocados pelas telefonistas. Sua expressão, diante de um homem que costumava jogar tanques russos de encostas coreanas, era de desconfiança. — Hã — anunciou-se o mais próximo. Jack sorriu para eles. — Não tem problema, oficiais. Vou sair assim que a senhorita van Renssaeler me conceder uma reunião. Eles se entreolharam, então decidiram esperar. — Disseram que havia um problema — respondeu um deles. — Problema? Nenhum. Os guardas não pareciam tranquilizados.
A porta se abriu. — Cinco minutos — disse Fleur. — É tudo que você tem. — Ela se virou para os homens na suíte. — Reverendo Pickens, Sr. Smart, Sr. Johnson, os senhores podem me dar licença? Algo está prestes a acontecer. Os homens passaram por Jack, deixando uma mistura de desconfiança e alívio. Jack entrou no quarto, e Harstein o seguiu. — Quem é este homem? — perguntou Fleur. — Não concordei em vê-lo. — Josh Davidson, senhora. — Harstein fez uma mesura teatral bem longa. — É um velho amigo da família. Está comigo. — Pode esperar lá fora. — Senhora, não vou interferir em seus negócios — disse Harstein. — Um velho amigo como eu acha meio difícil esperar nos corredores gelados de arcondicionado. Não vou lhe fazer mal algum. Não tenho olhos úmidos, mãos secas, faces descoradas, barba branca, pernas cada vez mais curtas e ventre aumentando sempre de volume? Sou digno de pena. Peço que não desdenhe de mim ou me jogue fora. Fleur olhou para ele. Os cantos da boca curvaram-se em diversão relutante. — Vai contra meu bom senso — respondeu ela —, mas o senhor pode ficar. Felizmente, o bom senso da mulher não prevaleceu.
21h00
A moção de Jackson foi proposta, apoiada e aprovada com maioria quase absoluta. Harstein beijou a mão de Fleur ao se despedir, e ele e Jack partiram para os elevadores. — Talvez a gente tenha acabado de eleger um presidente — comentou Jack. Sentiu-se agradavelmente inebriado, como se tivesse bebido champanhe. Harstein continuou andando para o elevador. — Ei, nós vencemos. — O que não tem remédio nem deve ser considerado — disse Harstein. O que está feito, está acabado. — Ele olhou para Jack. — E nós também acabamos por aqui. Nunca mais fale comigo, Jack , nunca mais se aproxime de mim ou da minha família. Estou avisando. Jack sentiu o sangue gelar outra vez. — Como quiser. — Deixou Harstein pegar o primeiro elevador sozinho. ♣ Sara estava com o sorriso plástico adequado moldado no rosto quando ele saiu do trem do aeroporto com a bolsa de viagem novinha em folha no ombro, vestido em seu terno de passeio. Abraçou-o pelo pescoço com um fervor que a surpreendeu. — Tio George! — Ela soltou um gritinho. — Ah, é tão bom vê-lo! Polyakov abraçou-a e deu um tapinha em seu ombro. — Não tão estridente, menina. Os tímpanos ficam mais frágeis na minha idade. Por que não me encontrou no portão? — Ele tomou o braço de Sara e levou-a para dentro da multidão, seguindo para as escadas rolantes que conduziam até as esteiras de bagagem. — Eles não deixaram ninguém entrar na área de embarque, só gente com passagens. Tem certeza de que é seguro se expor assim, publicamente? Sorrindo para parecer uma conversa alegre com um velho parente que acabara de reencontrar, ela assentiu na direção do posto de controle da segurança, onde os passageiros passavam por detectores de metal como vacas indo para seu encontro com o carrasco. Dois homens jovens estavam de um lado, encarando a multidão tão discretamente como qualquer um com aquele físico musculoso conseguiria. Os ternos escuros pareciam apertados sob o braço esquerdo. Um fio cor de pele saía da orelha de cada um. Ele sorriu. — Estão procurando espiões russos perigosos tentando sair de Atlanta, não entrar. — Mas o aeroporto… — Eu poderia ter pegado um ônibus, é verdade, ainda mais porque o amigo do bom doutor me transportou para Port Authority, na cidade de Nova York. — À
menção de Tachyon, o rosto de Sara se retorceu de leve, como se tivessem pisado em seu pé. — Mas teria sido muito lento, e, de qualquer forma, também estariam vigiando os terminais rodoviários. Além do mais, detesto ônibus. Estavam na escada rolante quando ela perguntou: — Soube o que aconteceu? — Estava em todas as televisões que infestam as áreas de espera de passageiros no LaGuardia… Como a vida capitalista de vocês deve ser solitária, para terem que usar essas produções enormes a ponto de se cercar tão completamente de companhia sintética. Um ás assassino fazendo uma tentativa de ataque à vida de um potencial candidato à presidência, ainda mais um tão controverso e étnico como Jackson… Tudo isso causou muito furor. Era como a polícia e a imprensa viam o fato, claro: o garoto corcunda com jaqueta de couro estava tentando acertar Jackson, e o Dr. Tachyon entrou no caminho. — Como está Tachyon? — perguntou o soviético. Eles tropeçaram um pouco ao sair das escadas. A mão que a acariciara e tocara na noite anterior — como poucos homens haviam feito — estava reduzida a carne queimada e ossos lascados. Como ela se sentia com aquilo, a maneira como o incidente a fazia se sentir, não era algo que enfrentaria ali. Não importa, disse a si mesma, contanto que fique viva o suficiente para vingar Andi. — O doutor — insistiu o homem, com gentileza —, como ele está? — Está no que chamam de condição estável. Tiveram que amputar o membro, mas ele se recupera bem. Levaram-no para algum hospital, a imprensa não disse qual. A polícia ligou o agressor ao assassinato de Rick e à luta com Jack Braun, na quinta-feira à noite. Sabem que ele pode atravessar paredes. O tenente Herlihy finalmente teve que engolir e admitir que tem um ás assassino à solta. Não só assassino, mas um assassino político. E está rondando a convenção. Ela não tentou manter o tom de satisfação amarga na voz. Se a polícia tivesse me ouvido, pensou, mas não era muito claro o que poderiam ter feito se de fato tivessem lhe dado ouvidos. Ao menos teria sinalizado que alguém pensara nela como algo mais que uma histérica rejeitada pelo interesse amoroso. Alguém que não fosse o homem que dizia se chamar George Steele. Caminharam até as portas automáticas, saindo para o exterior úmido. Sara deixara um carro no estacionamento — alugara o veículo com um nome falso, pois naquele momento, claro, os melhores de Atlanta estava se acotovelando para falar com ela. Mesmo se não tivesse mais nada a dizer, não tinha ilusões sobre sua capacidade de protegê-la do jovem de olhos pálidos que cantarolava enquanto matava. Polyakov balançou a cabeça. — Tempos sombrios estão chegando para os cartas selvagens deste país. Seja lá o que fizermos aqui, isso é uma verdade, e estou com medo. O que torna ainda mais importante deter o maluco do Hartmann. Talvez você precise assumir um papel mais ativo. Ela parou com tudo entre as portas, que se abriam e fechavam num frenesi mecânico.
— Não! Eu já disse que não posso fazer isso. O russo a tomou pelo braço e a empurrou para a calçada. Foram atacados por fumaça de diesel e táxis. Ignoraram ambos. — Alguém precisa fazer isso. Tachyon talvez não possa. — Por que não você? Você também é um ás assassino. Por que não usa seu poder? Ele olhou ao redor sem mover a cabeça. Ninguém estava por perto. — Bem, o nosso objetivo é impedir a Terceira Guerra Mundial. Do que serviria a esse propósito se um presidenciável norte-americano fosse morto por um ás da KGB? Aquele era o objetivo dele. Ela se virou e atravessou a rua, evitando um atropelamento mais por sorte que por estratégia. Ele a seguiu com mais cautela. Já estava bufando um pouco quando a alcançou no estacionamento. — Foi inteligente da sua parte verificar a secretária eletrônica. Estava tentando acalmá-la como faria com um animal assustado. Ela não ligou. — Foi inteligente da sua parte deixar uma mensagem por onde você chegaria e quando. — Ela abriu a porta do motorista do Corolla rosa metálico e entrou. — É meu trabalho — retrucou ele, enquanto Sara se inclinava para destravar a porta do passageiro. O russo abriu a porta traseira e pôs a mala no banco de trás. — Sou um espião profissional. Sou pago para pensar nessas coisas. — Ser espião não é muito diferente de ser jornalista — observou ela. — Pergunte ao general Westmoreland. — Ela virou a chave com força e ligou o carro. ♠ — Meu direito e meu privilégio de estar aqui — disse Jesse Jackson — foram adquiridos, e isso só aconteceu ao longo da minha vida, pelo sangue e suor dos inocentes. Da perspectiva de Jack, a figura do candidato era mínima, reduzida pelo palco branco imenso, mas sua voz ressoante de orador enchia o ar. Jack ouviu os delegados inquietos ficarem cada vez mais calados, ansiosos. Gostassem ou não de Jackson, todos sabiam que aquele momento seria importante. — Estou aqui como testemunha das lutas daqueles que se foram; como um legado para aqueles que virão. Como um tributo à resistência, à paciência, à coragem de nossos antepassados, nossos pais e mães; como garantia de que suas preces estão sendo atendidas, de que seu trabalho não foi em vão e de que a esperança é eterna… Aqueles que se foram. Jack pensou em Earl, em sua jaqueta de aviador na plataforma, sua voz de barítono estrondando dos alto-falantes. Deveria ser Earl ali, pensou, e também anos atrás. — Os Estados Unidos não são um cobertor único, feito com um só fio, uma cor, um tecido. Quando eu era menino, em Greenville, na Carolina do Sul, e minha avó não podia comprar um cobertor, ela não reclamou. E nós não congelamos. Em vez de reclamar, vovó pegava retalhos de velhos tecidos de lã,
seda, gabardine, saco de aniagem… trapos que não bastavam para limpar os sapatos. Mas não ficavam assim por muito tempo. Com mãos firmes e linha forte, ela costurava todos os tecidos para formar uma colcha, um objeto de beleza, poder e cultura. Agora, Democratas, precisamos formar nossa colcha. “Agricultores, vocês buscam preços justos e estão certos, mas não podem resistir sozinhos, pois seu retalho não é grande o bastante. Trabalhadores, vocês buscam salários justos e estão certos, mas seu retalho de mão de obra não é suficiente. Curingas, vocês buscam tratamento justo, direitos civis, um sistema médico sensível às suas necessidades, mas seu retalho não é grande o suficiente…” Anos atrás, nas aulas de voz e dicção, cortesia de Louis B. Mayer, Jack aprendera os truques da retórica. Sabia por que pregadores como Jackson e Barnett usava aquelas longas cadências, aquelas ênfases rítmicas bem pensadas… Jack sabia que as sentenças longas e os ritmos podiam levar o público a um leve transe hipnótico, deixá-lo mais suscetível à mensagem do pregador. Jack ficou imaginando como seria se Barnett estivesse ali. Que mensagem estaria se desenrolando naquelas imagens brilhantes, naqueles ritmos sedutores? — Não se desesperem! — gritou Jackson. — Sejam sábios como minha avó: juntem seus retalhos, unam-se num fio comum. Quando formarmos uma única grande colcha e encontrarmos nosso denominador comum, teremos a força para trazer saúde, moradia, empregos, educação e esperança. “Quando olho para esta convenção, vejo a face dos Estados Unidos: vermelho, amarelo, marrom, preto e branco. A verdadeira colcha de retalhos que é a nossa nação. A coalizão do arco-íris. Mas ainda não nos juntamos; nenhuma mão firme nos uniu com uma linha forte. Venho até vocês para dizer o nome do homem que unirá nossos retalhos para impedir que os Estados Unidos sintam frio nesta noite longa e congelante da economia de Reagan…” Houve um murmúrio entre os delegados. Nem todos, inclusive entre os seguidores de Jackson, tinham recebido a notícia de que aquele era um discurso de renúncia. Alguns começavam a compreender naquele exato momento. — Seus ancestrais chegaram aos Estados Unidos em navios de imigrantes — disse Jackson. — Um amigo meu, ferido de forma horrenda na tarde de hoje, quando estava ao meu lado, veio para este planeta numa espaçonave. Meus ancestrais chegaram aos Estados Unidos em navios negreiros. Mas, sejam quais tenham sido as embarcações originais, hoje estamos no mesmo barco. De colchas para barcos. Alguns aplausos, assobios, um murmúrio constante. Uma mulher estava em pé na delegação de Illinois. — Não faça isso, Jesse! — Esta convenção ameaçou afundar o barco — continuou Jackson. — Estávamos correndo de uma ponta até a outra: da progressista até a conservadora, da esquerda do barco para a direita… E pode ser que o barco vire… E pode ser que nós, os Democratas, afundemos. Portanto, é hora de dar o remo a alguém que possa conduzi-lo até um porto seguro. Nesta noite, saúdo o homem… que fez uma campanha digna e bem coordenada. “Não importa o quanto esteja cansado e por quantas provações tenha passado; ele sempre resistiu à tentação de se dobrar à demagogia. O que vi nele é
uma mente afiada, rápida no trabalho, com nervos de aço, guiando sua campanha para fora do campo lotado sem apelar ao pior que temos em nós. “Testemunhei o crescimento de sua perspectiva enquanto seu ambiente se expandia. Vi sua dureza e tenacidade, sabia de seu compromisso com o serviço público.” Jackson fez uma pausa, os olhos intensos procurando o público, as mãos agarradas ao púlpito. Imaginando, talvez, o que seu novo papel de Jesse, o Coroador, poderia trazer. — Peço a convenção que se una para apoiar este homem, este novo capitão. Peço a todos aqui, a todos os delegados, sem exceção dos meus, a votar num novo capitão antes que o barco vire e afundemos por mais quatro anos. O nome do capitão… Silêncio. Jack ouvia o próprio coração. — Senador! — anunciou Jackson. Jack olhou para Rodriguez, no assento ao lado. — Gregg! — gritou, em uníssono com Jackson. Rodriguez olhou para trás. Uma felicidade insana brilhava em seus olhos. — Hartmann! — rugiu ele, junto com Jack , Jesse e a multidão. E, de repente, todos ficaram loucos. Loucos por Gregg Hartmann. ♦ Spector sentou-se no chão acarpetado na frente da televisão. Baixara muito o volume. Ninguém poderia sequer supor que ele estava no 1019, e também não queria gente xeretando naquele quarto. Comprou uma lata de castanhas e um litro de uísque no térreo e deixou-os de lado durante a votação. Torcia para que Hartmann perdesse. Um candidato enfraquecido não teria a segurança forte de um nomeado. Como de costume, as coisas deram errado. Os delegados entoaram “Hartmann, Hartmann, Hartmann” até o nome deixá-lo fulo da vida. Jesse Jackson saíra da disputa, sabe-se lá por quê. Todos os comentaristas debatiam o tipo de acordo que devia ter sido feito nos bastidores. De qualquer forma, Hartmann chegaria ao topo na próxima votação. Placas de todos os Estados estavam sendo agitadas para lá e para cá. Havia balões, confetes e uma infinidade de discursos entediantes. O Golden Boy ainda estava vivo, o que deixava Spector ainda mais nervoso. Braun dera uma boa olhada nele, para identificá-lo. O Judas dos ases parecia bêbado ou adoentado quando as câmeras de televisão o mostraram. Spector suspirou. Em geral, quando matava alguém, esse alguém permanecia morto. No dia seguinte, se concentraria em encontrar uma maneira de chegar a Hartmann. Naquele momento, não tinha a menor ideia de como fazer isso, mas o senador não sairia vivo de Atlanta. Claro, Spector talvez também não saísse. Nem se incomodou em dizer a si mesmo que havia coisas piores do que a morte. Sabia que não adiantaria. Se conseguisse encontrar alguém para ajudá-lo, alguém poderoso, talvez pudesse escapar inteiro. E conhecia uma pessoa que talvez estivesse disposta a
ajudar. Era um grande risco, mas que se foda! Desligou a televisão, enrolou-se ao redor da garrafa quase vazia e tentou dormir. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo VII
Domingo, 24 de julho de 1988
7h00
Com uma toalha barata enrolada no corpo molhado, dos seios até as coxas, e outra nos cabelos, Sara saiu do banheiro em meio a uma baforada de vapor. Mover-se demandava esforço, e sentia o rigor mortis até o fundo da alma. — Não podemos mais contar com Tachyon. — Ela forçou as palavras como pedaços de massa de modelar numa vidraça. Não era uma pergunta. O homem que se apresentava como George Steele estava sentado na cama, de calça e regata, olhando para as costas das mãos. Eram peludas como os ombros. Ele ergueu a cabeça. — Não, não podemos. — Sabe o plano que discutimos mais cedo? Os olhos dele estreitaram-se. — Sim. — Eu vou fazer. Ela deu as costas e voltou ao banheiro para secar os cabelos.
9h00
Hospitais eram saborosos, e o Titereiro estava ficando faminto. Gregg se afastou do Compaq Portable III e esfregou os olhos. Digitou uma mensagem rápida: Tony, vou descansar um pouco. O discurso parece bom, envio em anexo minha última mudança. Vou deixar o computador ligado, pego o rascunho mais tarde. Obrigado. Enviou o arquivo via modem para o computador portátil de Calderone e esfregou os olhos de novo. — Cansado, amor? — Ellen sorriu para ele da cama do hospital, também meio sonolenta. — Acho que o futuro presidente dos Estados Unidos deveria dormir um pouco. A noite passada foi longa, e Jack me disse que você e Jesse ficaram acordados até altas horas planejando a campanha. — Foi uma noite gloriosa, Ellen. O discurso de Jesse foi uma maravilha. Senti muito sua falta. Nada disso seria possível sem você. A mulher sorriu com um laivo de tristeza. Ainda estava pálida, a pele, quase translúcida, os olhos, inchados e escuros. A morte do filho a marcara de forma mais permanente do que Gregg pensara ser possível. — Estarei lá para o seu discurso de hoje à noite. Nada vai me impedir. Me dê um beijo, futuro presidente dos Estados Unidos. — Gostou de me chamar assim, não é? — Depois da chamada de votação de ontem à noite? “O grande estado de Nova York entrega todos os votos para o futuro presidente dos Estados Unidos: Gregg Hartmann!” Quantos outros estados existem? — Ela estendeu os braços. Gregg inclinou-se sobre a cama e beijou-a com suavidade nos lábios. O Titereiro o cutucou. Me dê a mulher. Não. Deixe-a em paz. Já a fizemos sofrer demais. Estamos ficando sentimentais, não é?, a força zombou dele, mas não parecia inclinada a brigar. Então vamos para outro lugar . Estou com fome. Gregg abraçou Ellen. — Bem, vou dar uma volta. Acho que talvez fosse bom ver alguns pacientes, cumprimentar umas pessoas. — Já fazendo campanha. — Ellen deu um suspiro gozador. — Senhor FuturoPresidente-dos-Estados-Unidos. — Vá se acostumando, meu amor. — Antes de tudo acabar, você vai cansar de cumprimentar tanta gente, Gregg. Ele abriu um sorriso estranho em resposta. — Duvido. — Por dentro, o Titereiro ecoou suas palavras.
11h00
Spector acordou meio grogue, com um gosto metálico na boca e o corpo todo dolorido. Todas as suas coisas estavam no outro hotel, então não podia se barbear, nem escovar os dentes. Precisava dar uma passada lá para tomar banho antes de fazer a visita. Ficou sentado no canto da cama, tirando a sensação de areia dos olhos. Pegou a lista telefônica e folheou até encontrar os hospitais. Achou o número do que Tony estava, hesitou por um momento, então discou. — Tony Calderone, por favor — disse para a telefonista. Tocou várias vezes antes de atenderem. — Calderone. — Hã, oi. Aqui é o Jim. Queria explicar o que aconteceu no outro dia. — Tudo bem. Colin disse que você esteve no meu quarto. Espero que não tenha sido atacado de novo. — Tony parecia feliz em ouvir a voz do amigo. — Nada disso. Fiquei fora por causa dos negócios. — Spector queria lhe dizer tudo, mas sabia que Tony não acreditaria. Era comprometido demais. — Eu só queria saber se está tudo bem. — Sim, eu estava um pouco preocupado. Fiz o discurso. A melhor coisa que já escrevi. Espero que você possa ouvi-lo. — Tony hesitou. — Tem certeza de que está tudo bem? — Nada que voltar a Jersey não cure. — Spector retorceu o fio do telefone. — Foi realmente muito bom encontrar você de novo. De verdade. — Vamos nos ver mais cedo do que você imagina. Em Washington. — Tony parecia totalmente confiante. — Certo. — Spector sabia que, no fim das contas, Tony o odiaria com todas as forças, para sempre. Que belo amigo. Mas também sabia que não poderia recuar agora. — Olha, eu tenho que ir. Ainda preciso ajeitar umas coisas. — Tudo bem. Me ligue depois que tudo estiver em ordem. Até lá, cuide-se. — Até mais. — Spector colocou o telefone no gancho gentilmente. Não podia deixar que toda aquela merda sentimental o tirasse do eixo. Precisaria se manter atento. Spector guardou a garrafa de uísque no bolso do casaco e deu uma longa olhada no quarto, antes de sair. Sabia que não voltaria.
12h00
Jack não encontrara Blaise em nenhuma de suas buscas periódicas, então decidiu que era hora de seguir para o hospital e avisar Tachyon sobre o desaparecimento de Blaise. Caramba. O garoto talvez estivesse bem ao lado do leito do avô. Os apoiadores de Hartmann perambulavam pelo saguão do Marriott em vários estados, desde inebriados até exaustos. A fita amarela de perigo flutuava ao redor do buraco que Jack abrira no assoalho. Ele viu a garçonete engraçadinha que notara mais cedo e deu uma piscadinha para ela. A moça retribuiu com um sorriso amarelo. Estava tão preocupado com as ideias relacionadas à garçonete que só viu Hiram quando quase tropeçou na imensa valise — quase um baú — que o homem trazia. Hiram parecia tão surpreso quanto Jack. Os olhos do homenzarrão arregalaram-se, alarmados. Talvez a valise tivesse algo de valioso. Ele estava acompanhado de um sujeito, um curinga magro de bigodinho e uma rede de pele sobre órbitas vazias. — Ah, desculpe. — Jack deu a volta na valise. E ergueu os olhos para Hiram. — Não vai ficar para o discurso de aceitação? — Ah, não. Eu… hum… fiquei mais tempo do que deveria em Atlanta. Os olhos fundos de Hiram encararam Jack. Estava desalinhado: os cabelos desgrenhados, a gola da camisa aberta, revelando a ferida no pescoço. Parecia ter dormido com aquele terno. Pegou o braço de Jack e levou-o para longe do curinga magro. — Na verdade, estava querendo falar com você. — Também esperava vê-lo. — Jack arriscou um sorriso. — Queria agradecer pela quinta-feira. Você evitou que eu me machucasse, me deixando leve daquele jeito. — Fico feliz por ter ajudado. — Hiram olhou para trás, para o curinga, e deu um sorriso nervoso. Ele se virou de novo para Jack. — Quero lhe contar uma coisa. O tom enviou um pequeno sinal de alerta pela espinha de Jack. O que quer que fosse, sabia que não ia gostar de ouvir. — Diga. — Queria dizer que agora eu te entendo. — A voz de Hiram estava carregada. — Você tinha razão quando disse que ninguém tinha como saber até ter sido testado. — Ah. — Jack não queria ouvir aquela confissão. Não importava o que fosse ou o que tivesse feito: não queria que os pecados de outra pessoa ecoassem em sua cabeça. Já tinha problemas demais com que lidar. — Quando ataquei você, naquele dia — continuou Hiram —, eu estava atacando a mim mesmo. Estava tentando negar minhas traições. — É. — Jack só queria que Hiram e sua novela fossem embora. Que tipo de
traição alguém como Hiram poderia ter cometido? Comprar cortes de vitela de segunda para seu restaurante? Hiram o encarou com os olhos brilhantes, como se esperasse algum tipo de conselho ou ensinamento, alguma técnica para lidar com o fardo do autoconhecimento. Jack não tinha muito a dizer. — Não dá para mudar o passado, Hiram. Dá para, talvez, construir um futuro um pouco melhor. Acredito que fizemos isso com o que realizamos nessa última semana. — Hiram. — O curinga o encarava com suas órbitas vazias. Jack tinha a sensação inquietante de que estava sendo examinado. — É hora de ir. — Sim, claro. — Hiram estava ofegante, como se a conversa o tivesse exaurido. — Nos vemos por aí — disse Jack. Hiram virou-se sem se despedir e foi pegar a valise. Ou estava vazia, ou ele a deixara leve. Jack foi atingido por uma onda vertiginosa de paranoia quando viu Hiram erguendo a imensa valise e seguindo para as grandes portas giratórias. Será que Blaise… Não. A valise era grande, mas não o suficiente para carregar um adolescente. Os acontecimentos dos últimos dias o tinham deixado inseguro.
13h00
Mesmo com a medicação, o Titereiro sentia a dor de Tony Calderone. Tinha um gosto apimentado. Ele cutucou apenas por prazer. Tony fez careta e teve um leve sobressalto na cama, equilibrando o laptop na bandeja de comida. O rosto ficou visivelmente pálido. — Você está bem? — perguntou Gregg, ignorando a gargalhada interior. — Apenas uma repuxada, senador. Nada demais. — A negação ficou comprometida pelo suor que brotava na testa. O Titereiro deu uma risadinha. Deixe ele em paz. Temos trabalho a fazer . Sem problemas, Greggie. É que é muito bom estar livre de novo. Nós conseguimos isso. É tudo nosso. — Estava pensando sobre o discurso, senador — dizia Tony. — Acho que cheguei à frase de efeito que estávamos procurando. Procurei em todos os discursos antigos. Lembra-se daquele que o senhor fez no Parque Roosevelt, quando anunciou que estava concorrendo à presidência? Aquilo trouxe de volta as lembranças — fora logo depois de ter matado Kahina na frente de Crisálida e de Downs para garantir o silêncio sobre seu ás. E funcionou bem mesmo, pensou, irônico. E como, insistiu o Titereiro. Manteve as coisas quietas durante a campanha. Tachyon descobriu tarde demais. Está tudo bem, agora. Imagino que sim… — Em que frase você está pensando, Tony? — perguntou Gregg. Tony apertou um botão e leu as palavras na tela de LCD. — “Há outras máscaras além daquelas que fizeram o Bairro dos Curingas famoso.” — Também é uma frase do senhor, se me lembro bem, e das boas. —“Por trás da máscara existe uma infecção humana demais… Quero arrancar essa máscara, expor a verdadeira feiura por trás dela: a feiura do ódio.” — Tony tocou a tela. — É uma imagem poderosa. Acho que é hora de nos basearmos nisso. — Parece ótimo. O que tem em mente? — Estive trabalhando nessas frases desde ontem à noite. E tive outra ideia. Tony deu um sorriso, e Gregg sentiu um pulsar amarelo surgindo: Tony estava orgulhoso da ideia. Ele empurrou o laptop de lado e se endireitou na cama. Os dedos tamborilavam com empolgação nas coxas. — E se todos usássemos máscaras: o senhor, Jesse, todo mundo no palco e todos os delegados no público? Curingas, ases e limpos, todos mascarados, de modo que ninguém consiga fazer uma distinção. Então, quando chegar à frase correta… — Tony fechou os olhos, pensando. — Não sei, algo como: “É hora de todos nós tirarmos as máscaras do preconceito, do ódio, da intolerância”, mas mais forte, muito mais forte, num crescendo. E assim que o senhor disser isso, bum, todos tiramos as máscaras e as jogamos para o alto. Gregg deu uma risadinha. Imaginou a cena toda.
— Gosto disso. Gosto muito. — Vai dar o que falar, senador. É manchete garantida em todos os canais. Consegue imaginar todas aquelas máscaras no ar? Cara, isso sim é uma imagem. Vai estampar a questão dos curingas na mente de cada eleitor, e Bush vai penar para conseguir uma cena dessas na convenção republicana. Gregg bateu nos lençóis da cama e se levantou. — Então vamos fazer isso. Você começa a trabalhar no discurso, eu vou me reunir com Amy, John e Devaughn e coordenar tudo com o pessoal. Tony, isso é bom. Quando tiver o rascunho completo, mande para o quarto de Ellen. Configurei o modem no Compaq. — Certo, senador. — Tony sorriu. — O público nunca vai esquecer o que acontecerá hoje à noite, Tony. Mãos à obra, não temos muito tempo. Gregg sentia-se radiante ao sair do quarto. Tachyon estava fora de cena, a nomeação era certa, e tinham a imagem perfeita para a campanha vindoura. A animação era tanta que não ouviu o gemido do Titereiro, pedindo um último bocado da dor de Tony.
15h00
— Embora ainda restasse uma pequena parte do carpo, optei por amputar alguns centímetros acima do rádio. O método de abordagem do Dr. Robert Benson com seus pacientes era seco ao extremo. Nenhuma polidez de cabeceira, pensou Tachyon, encarando, horrorizado, a massa disforme de bandagens enroladas em seu braço direito. Talvez ele ache que posso aguentar , já que sou médico… Bem, ele está enganado. O braço latejava no ritmo das batidas do coração. Tach olhou para o tubo intravenoso despejando mecanicamente fluidos em gotas para dentro de seu corpo. Haviam inserido a agulha na veia grande nas costas da mão esquerda. Ótimo, perceberam que eu era destro… Não, seu idiota, não tem mais mão direita onde botar agulhas. Aquilo lhe provocou ânsias. — Sentindo-se enjoado? — Benson estendeu uma bacia embaixo do queixo do alienígena. — É normal, efeito colateral da anestesia. — Eu… sei. Quanto… que horas são? — Ah, horas. Passa um pouco das três da tarde de sábado. — Tanto… tempo. — Sim, fisicamente o senhor está bastante debilitado devido ao choque e à perda de sangue. — Ele deu de ombros. — Está doendo. — Vou mandar uma enfermeira com outra injeção. — Sou muito alérgico a codeína. Use morfina ou… — Médicos são os piores pacientes. Sempre tentando controlar o próprio tratamento. — Mas Benson sorriu enquanto fazia a anotação no prontuário. — Agora volte a dormir. Tach sentiu o lábio inferior tremendo. — Minha mão… — Pelo que vi nos noticiários, o senhor tem sorte de ter sido apenas a mão. — Doutor. — Benson parou na porta e olhou para trás. — Não conte a eles. Benson coçou o queixo. — Sobre o vírus, o senhor quer dizer? — Sim. — Não vou. De olhos fechados, Tachyon avaliou sua condição. A garganta dolorida por causa do tubo endotraqueal, a sensação completa de desorientação causada pela anestesia, a bexiga dolorosamente distendida e, acima de tudo, a dor aguda de seu braço mutilado. Os dedos fantasmas da mão esquerda contraíam-se convulsivamente. Se estivesse em casa, sabia que a mão cresceria em questão de semanas. Mas será que o vírus carta selvagem, enrolado adoravelmente em seu DNA, permitiria um crescimento normal? Ou faria brotar algum horror na ponta de seu braço?
Parecia a ironia final e máxima que, depois de matar seus parentes na tentativa de impedir a proliferação do vírus, depois passar quarenta anos trabalhando entre suas vítimas para expiar os pecados de sua raça, fosse forçado a sofrer tanto. — Apenas se manifeste e acabe logo com isso! — gritou. Lágrimas quentes rolaram sobre as têmporas e deixaram as costeletas empapadas. O vírus manteve seu silêncio orgulhoso.
16h00
Quando Jack entrou no quarto de hospital de Tachyon, encontrou o alienígena ruivo retorcendo-se na cama, agarrando o toco do braço. — Meu Deus — murmurou Jack , indo depressa até a cama. — O que aconteceu? — Eu fico tentando pegar as coisas com a mão direita — explicou ele, exausto. — Chame a enfermeira. Ponha o braço numa tipoia, ajuda a lembrar. — Sim, sim, sim. — Ainda segurava o toco. Jack pegou um cigarro e o acendeu. — Quer que eu peça à enfermeira para trazer algum remédio? — Não. — A boca de Tachyon era uma linha fina. Jack soprou fumaça nele. — As pessoas acham que eu sou um babaca machão. Elas nunca lidaram com príncipes takisianos. — Jack olhou ao redor. — Blaise passou por aqui? Procurei por ele. Quero ter certeza de que está bem. — Eu não o vi. — A preocupação cobriu as feições de Tachyon. — Alguém o viu com Jay Ackroyd. Aquele detetive que mandou a aberração para longe, antes que eu pudesse derrubá-lo. — E salvou minha vida, segundo todos os presentes — enfatizou Tachyon. A mão esquerda encostou o toco do braço. — Se Blaise estiver sozinho, pode acabar se metendo em confusão. — Exatamente o que eu penso. A postura de Tachyon voltou a ser imperiosa. — Encontre meu neto, Jack . — Vou tentar. Tachyon sentou-se, então apontou com a única mão para o armário. — Pode pegar minhas coisas? Jack olhou para o alienígena, surpreso. — Tach, não se preocupe. Vou encontrá-lo. — Preciso ir à convenção. Jack riu, nervoso. — Acabou. Você não precisa ir a lugar algum. Tachyon ficou paralisado, os olhos violetas arregalados. — Como assim? Jack suspirou. — Ninguém te contou, não foi? — O que aconteceu? Jack hesitou. Não queria entrar naquele assunto. Deu uma tragada longa no cigarro, tentando acabar rápido com a questão. — Gregg e Jesse chegaram a um acordo. Jackson retirou a candidatura e apoiou Gregg. O senador vai conseguir a nomeação, Jackson será o vice.
— Não. — Os olhos de Tachyon se arregalaram, aterrorizados. — Não, não, não. A impaciência ecoou na mente de Jack. — Pode parar de se preocupar com a estabilidade de Gregg, pelo amor de Deus? Ele conquistou isso tudo. Está na crista da onda, certo? Mesmo com todos esses ases tentando derrubá-lo. — Não! Não! Não! Um solavanco de horror atravessou o corpo de Jack quando Tachyon ergueu o braço direito e bateu com ele na grade da cama. O braço mutilado subiu e desceu várias vezes. Jack soltou o cigarro e agarrou os braços de Tach. Ele empurrou o alienígena, que se contorcia, de volta para cama, segurando-o até ele se acalmar. — Que diabos está acontecendo com você? Tachyon apenas o encarou, furioso. O pensamento atingiu Jack com a força de um furacão. De repente, sentiu como se estivesse lá, voando, girando para dentro da escuridão, carregado para um lugar sem luz, sem segurança, sem esperança. — É Gregg, não é? — indagou. — Gregg é o ás secreto. Tachyon simplesmente virou o rosto. — Caramba, me responda! — Não posso. Os joelhos de Jack começaram a ceder. Ele se inclinou para a frente, tateando por uma cadeira para sentar-se. O cigarro estava fumegando no chão. Ele o pegou e deu um longo trago. Uma calma frágil e hesitante tomou conta dele. — Fale, Tach. Preciso saber. Preciso saber se falhei de novo. Tachyon fechou os olhos. — Não importa mais, Jack. — A única coisa que fiz direito. A única coisa que fiz direito em anos, e… — Jack olhou surpreso para o cigarro que acabara de esmagar na mão. Procurou um lugar para colocá-lo e, sem encontrar, jogou no chão mesmo. — Tach. Preciso saber. Eu fiz com que Gregg conseguisse a nomeação, não importa como. Só preciso saber se fiz bem ou não. Os olhos de Tachyon ainda estavam fechados. Jack o encarou com raiva crescente. — Vamos ter de brincar de perguntas e respostas? Tachyon permaneceu calado. — Gregg é o ás secreto? Sem resposta. — Sara Morgenstern acusou Gregg de ser um assassino. É verdade? Nada. — A aberração que tentou matar Sara. Ele trabalha para Gregg? As últimas palavras foram gritadas. Tachyon ficou lá, deitado, de olhos fechados. Por fim, falou: — Vá embora. Acabou. Não há nada que possamos fazer. O ódio inflamou na mente de Jack. Ele se levantou da cadeira, avançou para
cima da cama e gritou com o alienígena: — Você é muito arrogante. É mesmo uma porra de um príncipe. Se está dizendo que acabou, então acabou. Está dizendo que o povo deveria parar de apoiar Hartmann e não dá motivos, mas acha que devem confiar em você porque é um príncipe takisiano e sabe mais que todo mundo. Será que já lhe ocorreu que, caso tivesse um pingo de humildade e nos contasse o que sabe, revelasse à ralé terrestre sobre Gregg, talvez a gente conseguisse frear a campanha sem Barnett ser eleito? Em vez disso, ordenou que eu entregasse a Califórnia para Jackson e esperou que eu dissesse: Sim, vossa alteza, como o senhor desejar. — Jack balançou o punho diante dos olhos fechados de Tachyon. — Já lhe ocorreu que talvez você possa, assim, de vez em quando, confiar num ser humano? Já? Não houve resposta. — Vá se ferrar! Tachyon continuou calado. Jack deu meia-volta e saiu do quarto como uma locomotiva expressa. Sua fúria abasteceu os passos largos para fora do hospital e para dentro de uma tarde úmida e abafada que parecia sugar a raiva do corpo. Caminhou sem pressa para o Omni. Não tinha para onde ir, na verdade. Não sabia o que fazer a respeito de Hartmann, e Blaise poderia estar naquela rua tanto quanto em qualquer outro lugar. Se o desgraçado do alienígena tivesse confiado na gente, pensou. Então lhe ocorreu que talvez tivesse sido ele, Jack, que anos antes ensinara Tachyon a não confiar em ninguém — não com algo que importasse de verdade. Aquele pensamento o deprimiu durante todo o caminho até o hotel. ♥ O discurso foi preparado, o protocolo dos pronunciamentos da noite foi ajustado com Devaughn e a equipe de Jackson e Gregg ligou para outros candidatos pedindo para que se juntassem a ele na campanha itinerante em seus estados natais. Dukakis e Gore mostraram um entusiasmo contido, parabenizando-o pela vitória e prometendo ajudar na unificação do partido. Apenas Barnett fora frio, como Gregg já esperava. Que se dane. Vamos fazê-lo de marionete e nos divertir com ele da próxima vez que nos encontramos. Ellen estava dormindo. A última versão do discurso de aceitação de Calderone estava no Compaq, esperando por ele. Ouvia Colin, o curinga do Serviço Secreto que substituíra Alex James, arrastando os pés do lado de fora do quarto. Gregg beijou Ellen e viu os olhos da esposa abrirem-se em piscadelas. — Vou voltar ao hotel para encontrar Logan e os outros — sussurrou. Ellen assentiu, sonolenta. Gregg pôs o Compaq na bolsa e chamou Colin na porta. — Voltando para o Marriott — anunciou o segurança, no walkie-talkie. — Levem o carro para a entrada lateral. Ponham algumas pessoas nos elevadores. No primeiro andar, Gregg ouviu uma voz familiar na recepção.
— Por favor, senhor. Veja, são para a esposa do senador… Amendoim. O Titereiro se agitou. — Só um minuto, Colin… — Gregg foi até o saguão enquanto o segurança repassava a mudança de planos para os outros. Amendoim segurava um buquê de flores bem desarrumado, mas imenso, tentando entregá-lo para o guarda atrás do balcão. O homem balançava a cabeça sem parar, fazendo careta. — Qual o problema, Marvin? Encontrara Marvin enquanto perambulava pelo hospital, naquela manhã. Era um guarda lento e preguiçoso, motivo de dezenas de piadas que Gregg ouvira nos últimos dias, tanto dos médicos quanto da equipe de enfermeiros e dos auxiliares. Haviam se cumprimentado com um aperto de mãos de passagem: o Titereiro na mesma hora sentiu o desgosto de Marvin por seu trabalho. Na verdade, não havia muitas coisas de que Marvin gostasse, e os curingas ficavam em último lugar. — Ele quer que eu leve as flores para o quarto da sua esposa — grunhiu Marvin, puxando o cinto escondido sob a barriga enorme. Marvin também não gostava de políticos, especialmente democratas. Encarou com nojo a figura atlética de Colin, vestida de azul. — Para mim, parece que pegou isso de alguma lata de lixo. Amendoim olhava desolado para Gregg, os olhos úmidos presos nas dobras da pele dura e franzida, as flores caindo da única mão. O Titereiro sentia a admiração pura inflando dentro do curinga abobalhado, sustentada pela tristeza surpreendentemente profunda pelo que acontecera com Ellen. — Sinto muito pela confusão, senador — disse Amendoim. Parecia prestes a chorar, olhando de Gregg para Marvin, até o olhar impassível de Colin. — Achei que talvez ela fosse gostar… Sei que não é muito, mas… — São muito bonitas — interrompeu Gregg. — Você é o Amendoim, certo? O orgulho inchou no íntimo de Amendoim pelo reconhecimento. Tentou sorrir, e a pele rachou ao redor da boca. Então assentiu, tímido. Gregg estendeu a mão para as flores. — Marvin está sendo zeloso demais — disse, sem olhar para o guarda. — Ninguém precisa de proteção contra compaixão e carinho. — O Titereiro sentiu a raiva fria de Marvin com aquelas palavras e lambeu a emoção com avidez, saturando-a. — Ellen ficará orgulhosa de receber suas flores, Amendoim — continuou Gregg, estendendo a mão. — Vou fazer com que cheguem até ela. Na verdade, tem um espaço aos pés da cama onde ela poderá vê-las assim que acordar. Vou dizer para a enfermeira colocar lá. Amendoim entregou as flores para Gregg. A mente do curinga reluzia com orgulho amarelo esbranquiçado, transbordando com o azul da adoração por seu herói. — Obrigado, senador — gaguejou ele, baixando a cabeça. — Obrigado. O senhor… bem, todo mundo ama o senhor. Todos sabemos que vai vencer. Gregg deu as flores para Colin. Ele abraçou Amendoim por um momento, em seguida sorriu para Marvin. — Tenho certeza de que Marvin ficará feliz em conseguir um táxi para você, não vai, Marvin?
Ah, o ódio. O olhar de Marvin era afiado. — Claro — disse o guarda. — Sem problemas. — Engolia o fim de cada palavra. — Vou cuidar dele, de verdade. — Ótimo. Obrigado de novo, Amendoim, por mim e pela Ellen. Ela vai amar as flores. — O senador olhou para o relógio. — Preciso correr. Amendoim, foi bom vê-lo. Colin… Eles se afastaram. O Titereiro cavalgou em Marvin. Gregg fechou os olhos na limusine quando partiram para o Marriott, desfrutando da fúria de Marvin e da dor de Amendoim quando o guarda espancou o curinga atrás de uma lixeira nos fundos do hospital. Foi um lanchinho agradável.
18h00
Spector fora para o Parque Piedmont depois de sair do Marriott. Estava perambulando entre os curingas sem ser percebido. Nunca vira tantas aberrações felizes em toda a vida. Estavam cantando, abraçando-se e beijando-se — os que conseguiam beijar. Deviam ter festejado a noite toda, pois ao menos metade da multidão estava sob alguma sombra, tirando uma soneca. Se soubessem o que ele faria, ou tentaria fazer mais tarde, eles o despedaçariam. Acabou ficando entediado com aquela cena e foi até o Cemitério Oakland. Caminhou entre os monumentos de mármore e lápides desgastadas, lendo as inscrições e aguardando que a inspiração viesse. Mas não veio. Estava só matando tempo, sabia disso. Pegou um táxi e foi até o antigo hotel, tomou um banho e pegou outro táxi até o hospital. Terminou a garrafa de uísque e comprou outra. Tomou alguns goles da nova garrafa, esperando os nervos a se acalmarem. Seguiu até a recepção e acenou para a mulher atrás do balcão. Ela assentiu e se aproximou. Era de meia-idade, levemente acima do peso e tinha o cabelo castanho-acinzentado preso num coque bem-feito. — Qual é o quarto do Dr. Tachyon? — Ele mostrou a credencial de imprensa falsa. — Vocês não conseguem deixar o pobre homem em paz? — perguntou ela, balançando a cabeça. — Desculpe, senhora. Seu trabalho é a compaixão, e o meu, as notícias. — Spector guardou o cartão. — A senhora me conta qual é o quarto, e eu não tento impedi-la de sentir pena dele. Justo, não é? — Quarto 453 — respondeu a mulher, baixando os olhos. — Obrigado — respondeu, virando-se. — É de interesse público, pode acreditar. O hospital era tão diferente daquele em que Tony estava que poderiam estar em planetas distintos. As paredes e os corredores eram imaculados. Quase não havia cheiro de desinfetante, o que normalmente há nos hospitais, e nenhum fedor de curingas. Havia pinturas nas paredes, e a locutora do sistema de altofalante parecia ter saído de um sonho erótico. Parou do lado de fora do quarto para garantir que ninguém estivesse olhando e tomou mais um gole rápido de uísque. Balançou os braços, como um atleta se aquecendo, respirou fundo e entrou. O que viu quase o fez gargalhar. Tachyon estava de costas para ele. Usava uma camisola azul de hospital, aberta nas costas, a bundinha branca à mostra. Estava segurando um urinol com a mão boa, o pinto balançando sobre ele. Nada acontecia. A ponta do outro braço era um toco coberto de gaze. Spector não conseguiu se obrigar a temer aquela coisinha. Fechou a porta atrás de si. O alienígena aleijado nem se virou para olhá-lo. — Por favor, só mais alguns minutos. Sei que consigo. Talvez se você abrir
alguma torneira ou algo assim… — Pode se virar, doutor. Tachyon teve um sobressalto e se cobriu depressa. — Pelo Ideal, vocês não têm o mín… — Ele se virou e viu Spector, em seguida fechou a boca e arregalou os olhos. — Você! Spector avançou depressa até a cama e tirou a caixinha usada para chamar a enfermeira. — Não vai precisar disso. Tachyon afastou-se de Spector e tentou ir até o outro lado da cama. — Cuidado, vai arrancar o tubo intravenoso. — Spector apontou para o tubo que terminava numa agulha no braço do takisiano. — Estou aqui para ajudá-lo. Tachyon balançou a cabeça, horrorizado. — Não. James, você não deve. Não posso permitir. — Que porra é essa de não permitir? — Spector manteve a voz baixa, mas não havia como esconder seu desgosto. — Se alguém merece morrer, esse alguém é Hartmann. Preciso que você controle a mente de algumas pessoas para eu me aproximar. Eu cuido do resto. — James, por favor. — Tachyon ainda não o encarara nos olhos. — Eu imploro… não faça isso. Uma autópsia… o escândalo. — Tachyon se recompôs antes de continuar: — Eles ficariam loucos. Caçariam cada carta selvagem. Botariam todos em quarentena. Spector não perderia seu tempo discutindo. Ele abaixou a mão, agarrou o braço mutilado de Tachyon e apertou, pondo a mão sobre a boca do takisiano para abafar o grito. Tachyon mordeu a palma da mão de Spector, arrancando sangue. Spector o soltou. — Veja só, doutor. — Ele segurou a mão na frente do rosto de Tach e observou a ferida se fechar. — Pelos Ancestrais — arfou Tachyon. — Você não sabe tudo sobre mim, sabe? Agora, mostre que tem colhões para fazer as coisas mudarem. Faça a autópsia. Ou controle a mente de quem vai fazer. Use a porra do seu poder para alguma coisa que não seja fazer essas putinhas taradas por heróis chuparem seu pintinho alienígena. — Spector soltou Tachyon e deu um passo para trás. Tach fez que não com a cabeça. — Você não entende. Preciso de descanso. De paz. — O pequeno alienígena parecia à beira da histeria. — O único descanso será a paz do túmulo. Era errado Tachyon dizer aquilo, e Spector ficou furioso. Deu um tapa forte no alienígena, mas não tão forte quanto queria. — Sentiu isso? Bem, não é nada comparado ao que eu tenho que viver cada minuto, a cada dia. Pelo resto da vida. — Spector inclinou-se para a frente. — Uma vez, matei uma garotinha. Só para ver a reação da mãe quando a encontrasse. E pensei em você. — Aquilo era mentira, mas Spector queria girar a faca tantas vezes quanto pudesse. — Se não me ajudar, vai haver muitas outras. Você me deve, doutor. Por Deus, olha o que você fez comigo. Sua dívida comigo é eterna. — Sinto muito — disse Tachyon, puxando o travesseiro para cima da cabeça
com a mão boa. — Mas não posso. — Eu devia saber. — Spector levantou-se e foi até a porta, olhou para a TV e parou. Alguém estava entrevistando o curinga do Serviço Secreto que estivera no quarto de Tony. — Então, durante o discurso de aceitação do Senador Hartmann todo mundo vai estar de máscara no palco? — O repórter que fazia a pergunta estava o mais distante de Colin que podia. O curinga pigarreou. — Sim, esse é o desejo do senador. Ele acredita que isso enviará uma mensagem correta ao público norte-americano. — Você também? — perguntou o repórter. — Sim. Já precisei usá-las no passado. — Colin parecia querer arrancar a cabeça do repórter. — É difícil acabar com um hábito. E, como a maioria de nós, sou uma criatura de hábitos. Tachyon grunhiu atrás dele, mas Spector mal notou. Então, Tony vendera a ideia da máscara ao chefe. Um grupo de gente mascarada no palco era uma jogada totalmente nova. Talvez nem precisasse daquele alienígena bizarro. Spector voltou e entregou o urinol para ele. — Quando terminar com Hartmann, venho atrás de você. Ouviu o mijo batendo no recipiente quando saiu do quarto. Spector riu. — Não diga que nunca fiz nada por você. ♣ Tach deitou-se de lado, o braço mutilado apoiado numa pilha de travesseiros. Sentia um cheiro forte de urina, e os lençóis estavam úmidos sob seu quadril. Estava tremendo tanto que acabara despejando a maior parte na cama. Tentou organizar os muitos pensamentos. Ah, pelo Ideal! James Spector , o homem que pode literalmente matar com o olhar . Eu deveria ter usado meu poder para controlá-lo… capturá-lo. Mas fiquei com medo. Pensou em como o pai teria reagido a essa confissão. Não teria sido gentil. Os príncipes da Casa Ilkazam não admitiam sentir medo. James mataria Hartmann, depois haveria uma autópsia — daí o mundo acabaria. Uma pena para Troll, o Padre Lula, Aracna, Mancha, Vídeo, Finn e Elmo — não, Elmo não saberia das reações contra o carta selvagem. Iria para Attica por um crime que não cometera, e Tach sabia o que faziam com curingas, por lá. Uma pena para todos eles. E para ele também. Blaise se fora. A cadeia o aguardava — a investigação que Hartmann iniciara continuaria após sua morte. Ainda executavam as pessoas por espionagem? E eu tinha que me tornar cidadão americano. Mas não iria para a cadeia. Spector o mataria antes. Ainda poderia ligar para o Serviço Secreto. Avisá-los sobre o assassino. Mas aí Hartmann vai se tornar presidente. Será que ele era mesmo tão ruim? Eu
poderia monitorá-lo, talvez controlá-lo… Idiota! Ele vai me matar , simplesmente. Já tentou fazer isso antes. Não vai descansar até conseguir . Mas os cartas selvagens ficariam a salvo. Não, muita gente sabia a verdade. Jay, Jack, Hiram, Digger, Sara, George e Spector. Hartmann tentaria matar todos, e, em defesa própria, eles abririam a boca. E se a reação do povo já seria horrenda àquela altura, não conseguia nem imaginar caso Hartmann fosse presidente. Não sei o que fazer! Ah, Ideal, o que devo fazer? Nada. Estava cansado demais. Triste demais. Doente demais. Fechou os olhos, melancólico, e procurou a anestesia do sono. Os analgésicos pairavam como uma névoa difusa em sua mente, mas a dor os corroía como ácido. — Não é tão ruim assim. Não dói tanto. Vai ficar tudo bem. Surpreso, Tach concordou com a voz suave. Forçou as pálpebras grudentas a se abrirem e encarou o rosto de Josh Davidson. — Olá. Como está se sentindo? — Melhor agora. Achei que todos tivessem me abandonado. — Às vezes, as pessoas se lembram das obrigações e dos deveres da amizade. — O nariz de Davidson se franziu com o odor azedo da urina. — Molhei a cama — contou Tach, triste e envergonhado. — Então vamos trocar os lençóis. Vou ajudá-lo. — Davidson baixou a grade da cama, passou um braço ao redor da cintura de Tachyon, segurou o suporte do soro e o ajudou a se sentar numa cadeira. — Espere, eu já volto. Ele voltou momentos depois com uma enfermeira. A mulher trocou e arrumou a roupa de cama. Davidson parecia impaciente, esperando ela sair. Quando a mulher fechou a porta, o ator sentou-se à mesinha, enfiou a mão no bolso do casaco e tirou um jogo de xadrez de bolso. — Pensei que podíamos jogar um pouco. — Pegou um peão de cada cor, escondeu-os às costas e ofereceu dois punhos fechados a Tachyon. Tach começou a estender o que seria a mão direita. Os dois ficaram estáticos, olhando para o coto coberto de gaze. — Esquerda — disse Tachyon. Os dedos de Davidson se abriram, revelando um peão negro. — Espere, vou arrumar as peças para você. — Havia hesitação na voz melíflua do ator. Davidson começou movendo o peão branco para a posição E4. Jogaram um tempo em silêncio. Então, Tachyon ergueu o olhar. — O Gambito Evans. Uma abertura clássica — comentou, mexendo-se um pouco porque o vinil da cadeira grudava nas nádegas nuas. — Tive um amigo que sempre usava essa abertura. — É mesmo? — Você não conhece. — O que aconteceu com ele? — Não sei. Ele se foi. Há muito tempo. Como todos os outros. — Talvez não — sugeriu Davidson. Tach tocou o cavalo com a ponta do
indicador esquerdo. — Você não quer fazer isso. Seria melhor usar o bispo — murmurou o ator. O alienígena mudou de peça e… — David! David! DavidDavidDavidDavidDavid. O soro foi arrancado de sua mão quando ele se jogou para cima do homem diante dele. E a fraqueza o traiu. Não conseguiu firmar os pés. David Harstein o segurou por baixo dos braços, e os dois se amontoaram no chão. O paletó de tweed era áspero contra a pele. Enganchava nos tocos de barba que nasciam em seu rosto. Tach estava chorando feito um bebê, mas não conseguia parar. A mão de David acariciava suavemente o cabelo cacheado. — Calma. Está tudo bem agora. É claro que estava, aquele era o poder do Embaixador. — Ah, David, você voltou. — Só por um tempinho, Tach. — O takisiano se retesou. — Estou velho, Tachy. Um dia vou morrer. — Ficaram em silêncio por alguns instantes, então David quebrou o gelo e disse: — Vamos colocar você de volta na cama. — Não, não, aqui está bom. Converse comigo. Conte tudo. Aquelas garotas lindíssimas, são… suas filhas? — São, estou muito orgulhoso delas. — Elas sabem? — Sabem. Minha família tem sido meu alicerce. Eu estava vivendo com tanta amargura quando saí da prisão. O governo tentou me recrutar para as operações secretas com ases. — Ele contorceu os lábios. — Eu fugi, e David Harstein morreu. Foi quando Josh Davidson nasceu. Eu tinha uma nova identidade, mas o velho ódio permanecia. Então conheci Rebecca. Ela acabou com toda a mágoa. Elas nunca me traíram. — Os olhos escuros do homem estavam distantes e pensativos. — Jack está… quer dizer, ele foi… — Está tudo bem, Tach. Braun e eu chegamos a um acordo, como diz nosso candidato à vice-presidência. E Braun me lembrou de que talvez tenhamos, sim, uma obrigação. — Ele fez uma longa pausa, pensando. — Na noite passada, quando todos pensamos que você ia morrer, percebi que saber que você residia no mesmo mundo que eu era um tipo estranho de âncora. Um conforto. Rebecca me lembrou de que… bom, de que saber que eu estava vivo talvez fosse um conforto para você. — E é. — Tachyon suspirou, segurando a lapela de David com mais força. — Passei trinta anos admirando e invejando os ases que tinham coragem de usar seus poderes — meditou Harstein. — Você teve essa coragem. — Sim, mas não tive sabedoria. — O problema é sempre esse, não é? No que está pensando? — perguntou o Embaixador, observando aquele rosto magro e esculpido. — O que é mais importante, David? Amor, honra, coragem ou dever? — Amor — respondeu o ator, prontamente. Tach tocou o rosto dele. — Tão gentil. — E para você?
— Honra e dever. Preciso chegar ao Omni, David. Você vai me ajudar? — Tachyon, você não está em condições. — Eu sei, mas é necessário… — Vai me dizer por quê? — Não posso. Você vai me ajudar? — Ora, que pergunta!
19h00
Spector escondeu-se atrás da cama e torceu para que as palavras de Colin sobre ser uma criatura de hábitos fosse verdade. O corpo de Hastings ainda estava no chuveiro. Só dava para sentir o cheiro de dentro do banheiro. Era óbvio que as arrumadeiras só tinham dado uma olhada rápida no quarto enquanto faziam a ronda, ou teriam encontrado o cadáver. Spector olhou o relógio. Sete horas em ponto. Se o curinga se atrasasse, ou se nem sequer aparecesse, teria que se apressar para chegar ao salão de convenções. Comprara sua própria máscara, mas temia que pudesse não combinar com as outras. Ouviu passos leves pararem diante da porta. Agachou-se atrás da cama. A porta se abriu. Fechou. Ouviu alguém farejando o ar. Pôs a cabeça para fora. O curinga tentou pegar a arma. Spector fez contato visual e atacou. As pernas de Colin falharam, ele soltou um ruído estrangulado e caiu, morto. Spector tentara fazer com que fosse rápido. A breve conversa que tivera com o curinga não lhe dera nenhum motivo para desgostar do cara. Ele só estava no lugar errado, na hora errada. Quando Spector se ajoelhou ao lado do corpo, notou uma coisa que não percebera antes. O cabelo de Colin tinha um forte brilho oleoso. Definitivamente não era um produto capilar — devia ser um efeito colateral de ser curinga. Spector lavara o próprio cabelo mais cedo, no mesmo dia, e agora estava seco como osso. Esfregou as mãos na cabeça do cadáver, depois no próprio cabelo. Após repetir o processo algumas vezes, seu cabelo adquiriu a mesma aparência do de Colin. E também, infelizmente, o mesmo cheiro de caixa de areia. Spector revistou o corpo. Colin tinha um documento de identidade, uma arma, um fone de ouvido e uma máscara. Relembrou o começo da semana na fábrica empoeirada de máscaras. Parecia ter sido um mês antes. Tirou as roupas do curinga, depois as suas. Alguns minutos depois, estava pronto. O terno era um pouco largo, e o coldre da arma prendia o ombro de forma desconfortável, mas dava para aguentar. Entrou no banheiro e colocou a máscara, depois recuou diante do espelho e encarou seu reflexo. Estava próximo da perfeição. O cabelo oleoso realmente fazia a diferença. Arrastou o corpo do curinga com cuidado até o boxe do chuveiro e o largou por cima do de Hastings. Não queria ser a arrumadeira que teria de limpar aquele lugar. ♠ O salão vazio atrás do palco reverberava como um terremoto baixo na escala Richter. Lá fora, na quadra de basquete, a multidão estava à beira do frenesi, com muita ajuda dos capatazes de Hartmann. Que idiotas, pensou Sara. Sua respiração ficava presa no interior da máscara de plumas de garça, farfalhando em seus ouvidos. É como um conto de fadas:
estão prestes a coroar o novo rei, e nem suspeitam que o homem por trás da máscara sorridente seja um demônio. O homem atarracado de macacão azul com o logo da NBC no lado direito do peito e as palavras EQUIPE ROBO em grandes letras nas costas ergueu o passe VIP de Sara e o examinou. Continha um nome fictício e uma foto. À luz fraca que vinha de longe, como chuvisco, ela conseguiu distinguir um rosto emoldurado por cabelos loiros platinados. Não era o dela. Era o de uma curinga, o tipo calculado para impedir que até o mais empedernido brutamontes — ex-soldado das Forças Especiais e agora metido num terno-padrão do Serviço Secreto — espiasse por baixo para ver se o rosto verdadeiro combinava com a foto. Ela lera Le Carré o suficiente para não se surpreender. Afinal, “George Steele” era um agente do alto escalão da KGB, devia ter recursos, e era óbvio que sua tentativa de arruinar Hartmann não fora pensada no calor do momento. Sara assentiu. Ele prendeu a credencial na frente de seu vestido branco. — Bem — começou, inclinando-se sobre uma pequena câmera da NBC que estava tombada de lado —, tem certeza de que quer fazer isso? A câmera se abriu. As entranhas de circuitos tinham sido parcialmente retiradas para abrir espaço para uma pistola compacta Heckler & Koch P7. Havia um brilho sutil no aço negro. Ele pegou a arma, puxou o slide para examinar a câmara e deixou uma bala pronta no cano. — Você se lembra do que eu lhe mostrei? Os três pontos se alinham com a mira. A arma só vai disparar se você liberar a trava de segurança aqui do lado e apertar a outra trava, atrás do cabo. Sara assentiu, impaciente. — Eu sei. Eu usava uma .22 quando era criança. Colt Woodsman. Era do meu primo. — As 9mm fazem um belo estrago, mas têm pouco poder de fogo. Sugiro que continue atirando até abater o alvo. Ou até o pessoal do Serviço Secreto me pegar . Ela estendeu a mão para a pistola e guardou-a dentro da bolsa branca de couro envernizado, fechando-a com cuidado. — A paz mundial depende de você levar isso até o fim — disse ele. O olhar de Sara encontrou o dele e se fixou. — Vingar Andi depende de eu levar isso até o fim. Assim como vingar Sondra Fallin, Kahina e Crisálida. E a mim mesma. O sujeito parou para encará-la, como se sentisse que devia dizer alguma coisa e não soubesse bem o quê. Sara ficou na ponta dos pés e deu um beijo suave em sua bochecha. Então ele se virou e se afastou depressa. Sara o assistiu partir. Pobre coitado. Acha que está me usando. Engraçado como um mestre da espionagem pode ser tão ingênuo. ♦ A cantina estava praticamente deserta. Qualquer um que pudesse se amontoar na concha profunda do Omni estava lá dentro, aplaudindo a conclusão do discurso
vice-presidencial de Jackson. Tachyon ouviu o som da multidão como um rugido vasto e gutural. Uma besta se ergue, e estou indo direto para o estômago dela, pensou. David o vestira com delicadeza, mas passar aquele braço mutilado pela manga da camisa e do casaco o deixara coberto de suor frio. Enquanto David convencia a enfermeira a deixá-los passar, Tach afanara analgésicos da bandeja de remédios da noite. Engolira-os a seco no táxi, mas ainda não tinham surtido efeito, e ele percebeu que mal conseguia ficar de pé. O agente à porta mirava a dupla com ar cético. O homem esbelto, escuro e mais velho segurava firme na cintura do takisiano. Tach apresentou a credencial de imprensa. — Não há espaço aqui dentro, doutor. — Harstein o encarou com desconfiança. — Cadê sua credencial? — Não tenho. É ele quem precisa entrar. — Não tem lugar para sentar. — Tudo bem. Eu fico de pé. — Não posso deixá-lo entrar, é arriscado. Vá para o Centro de Congressos. Pode ver na TV de tela grande. Tachyon lutou contra uma onda de tontura e náusea. Passou a mão pelo rosto úmido e frio, sentindo na palma a aspereza da barba por fazer. — Por favor — sussurrou, aninhando o braço amputado junto ao peito. — Acho que seria uma ótima ideia deixá-lo entrar — sugeriu David, em tom suave. — Que problema ele poderia causar? É um homem pequeno. — É verdade — concordou o guarda, hesitante. — Ele saiu do hospital só para presenciar este momento. Sei que você gostaria de ajudá-lo. — Ah, tudo bem. Que seja. Pode entrar. Tachyon apertou o ombro de Harstein com a mão esquerda. — David, não desapareça de novo. — Vou ficar esperando aqui.
20h00
Spector suava em bicas. Chegar ao palco não fora difícil. Obrigar-se a ficar ali, sim. O salão de convenções era enorme, muito maior do que ele tinha imaginado ao vê-lo na televisão. Milhares de pessoas, milhões, se contasse a audiência a distância, estariam olhando em sua direção. Espiou as cabines de imprensa e se esforçou para ver se reconhecia Connie Chung, Dan Rather, ou aquele cara da CNN — como era mesmo o nome dele? Isso manteve sua mente ocupada o bastante para fazer os pés continuarem plantados no palco. Jesse Jackson estava falando, a voz poderosa subindo e descendo em seu estilo costumeiro de pastor sulista. Sua nomeação como vice-presidente era obviamente o preço que Hartmann tinha de pagar para fazer com que o outro saísse da corrida presidencial. Spector não via como chegar a Hartmann enquanto ele estivesse no palco. Melhor esperar até estar escoltando o senador de volta ao hotel e cuidar disso lá. Podia correr para chamar uma ambulância e desaparecer. Todos estariam distraídos demais com o momento para notar sua ausência. Então, era só voltar a Jersey para ter um pouco de paz e sossego. Só precisava esperar o momento certo. ♥ — Foi tudo ideia minha. As pessoas estão dizendo que é coisa da campanha, mas tudo foi uma decisão minha. — Jack deu um suspiro teatral. — Eu estava errado, mas na época pareceu uma boa ideia. Os repórteres matavam o tempo entrevistando celebridades. Abaixo do camarote da CBS, a convenção murmurava, esperando o candidato. Metade das pessoas parecia estar usando máscara. Jack abriu um sorriso pesaroso para os olhos enrugados de Walter Cronkite. — Tudo parecia se encaixar. Toda a violência do carta selvagem… e lembrem-se de que eu mesmo fui atacado duas vezes… Tudo parecia destinado a entravar a candidatura do Senador Hartmann e a promover a do Reverendo Barnett. Quando vi Barnett pessoalmente, percebi o quanto ele é carismático. Com pessoas como Nur-al-Allah no mundo… e lembrem que ele é outro líder carismático que por acaso é uma carta selvagem… Olha, eu simplesmente tirei a conclusão errada. — Então tem certeza de que não há nenhum carta selvagem na campanha de Barnett? Jack abriu um sorriso cínico e ensaiado. — Se houver, estão bem escondidos. — Ele riu, dissimulado. — Teriam que estar, Walter. Atrás de Cronkite, duas dúzias de monitores mostravam as câmeras fazendo panorâmicas da convenção. As pessoas acenavam, dançavam e riam por trás
das máscaras. Homens suados usando fones de ouvido trabalhavam nos consoles. Cronkite parecia estar num estado de espírito descontraído e jovial, longe de ser o repórter durão de sempre. Ainda assim, a questão permanecia. — Você acha que deveria pedir desculpas à equipe de Barnett? Jack deu outro sorriso óbvio. — Eu já pedi, Walter. Me desculpei pessoalmente com Fleur van Renssaeler, ontem à tarde. — Ele abriu ainda mais o sorriso e olhou para a câmera. Toma essa, Fleur. — Então, como o senhor se sente agora que Gregg Hartmann finalmente conquistou a candidatura? Jack olhou para a câmera e sentiu o sorriso congelar. — Eu acho — começou, escolhendo bem as palavras — que fiz muitas bobagens para ficar feliz com alguma coisa, Walter. Cronkite colocou um fone no ouvido, ouviu por um momento, depois ergueu o olhar e disse: — Avisaram que o candidato vai falar agora. Obrigado, Jack . Ficamos com Dan Rather e Bob Scheiffer. A luz vermelha da câmera apagou. A multidão em pé rugia e dava vivas. Jack desejou de todo o coração que pudesse comemorar com eles. ♣ Por um bom tempo, Tachyon ficou desorientado. Então, avistou a bandeira da Califórnia e soube onde estava. O púlpito dos oradores avançava como a proa de um navio no salão lotado. Em suas várias fileiras e níveis estavam os grandes e poderosos. A mão se fechou como uma garra no ombro de um homem, e ele forçou o repórter a lhe dar passagem. — Ei, babaca! Tome cuidado! — Saia da frente — rosnou Tach, passando pelo homem. Mergulhou na multidão, procurando uma área livre. — … O FUTURO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS… — As palavras finalmente penetraram a névoa mental de Tachyon. — … GREGG HARTMANN! As quinze mil pessoas no Omni rugiram. A banda tocou “Stars and Stripes Forever”. Vivas, berros, assobios. Balões flutuavam e eram jogados de lado por placas em apoio a Hartmann que se agitavam loucamente. Tachyon estremeceu com a intensidade do som e a proximidade de tantas pessoas. Seus olhos doloridos focalizaram o palco. Gregg sorrindo, acenando, dando a mão a Jackson. Ellen, macilenta e esgotada numa cadeira de rodas ao lado dele, sorrindo. De repente, o que até então fora um fragmento de informação periférica o atingiu: 80% das pessoas no Omni usavam máscaras. A tarefa meramente desesperada agora se tornara impossível. Não havia jeito, por nada no universo, de localizar James Spector a tempo de impedir o assassinato. Enquanto a multidão gritava ao redor, Tachyon chorou. ♠
— …o próximo presidente dos Estados Unidos, Gregg Hartmann! A turba no Omni foi à loucura. Bandeirolas auriverdes de Hartmann se agitavam de um lado para outro enquanto a banda tocava. Das redes no teto choviam balões sobre os delegados. O Titereiro estava à beira do orgasmo. As emoções reprimidas daquela longa semana foram liberadas numa celebração imensa, e sua força em pleno vigor era atordoante. Gregg tirou a máscara de palhaço e avançou para a plataforma do microfone, erguendo os braços, vitorioso. O público reagiu com gritos ferozes, um ruído quase ensurdecedor. Ele teve que gritar para Jesse se juntar a ele. Apertaram e ergueram as mãos, acenando para o povo, e os vivas redobraram, sufocando a banda, fazendo o Omni sacudir com a aclamação trovejante. Era glorioso. Era o êxtase. A ovação durou longos minutos. Gregg acenava, erguia as mãos, assentia. Viu Jack Braun na cabine da CBS, com Cronkite, então apontou e sorriu, fazendo sinal de positivo com os polegares. Beijou Ellen na cadeira de rodas no fundo do palco. Sorriu para Devaughn, para Logan, para todos. Sabia que, por trás das máscaras, todos também sorriam para ele. Conseguimos! Seu poder estava embriagado de adulação. É tudo nosso, tudo. Gregg não conseguia parar de sorrir, concordando. É tudo nosso. Quando o público finalmente se aquietou um pouco, ele se aproximou do púlpito. Olhou para as arquibancadas lotadas, para a multidão compactada no chão. Muitos usavam máscaras, assim como as pessoas no palco. — Agradeço a cada um de vocês — disse, rouco, e o público rugiu outra vez. Ergueu as mãos; os vivas se aquietaram. Era gostoso conseguir fazer isso. — Esta foi a luta mais difícil da minha vida — continuou. — Mas Ellen e eu nunca abandonamos a esperança. Confiamos no julgamento de todos vocês, e vocês não desistiram de nós. Os aplausos percorriam todo o salão de convenções. — Hartmann! Hartmann! — Uma onda, uma torrente, ela engolia a todos. — Hartmann! Hartmann! Gregg balançou a cabeça em modéstia fingida, deixando que a maré o engolfasse, sorrindo para eles. — Hartmann! Hartmann! De repente, o sorriso congelou no rosto. Mackie estava no meio da multidão, nas fileiras da frente, sorrindo como todos os outros — um rapaz corcunda todo vestido de preto e couro. Um arrepio percorreu a espinha de Gregg. Está tudo bem, murmurou o Titereiro, em sua mente. Tudo bem. Posso controlá-lo. Mas Gregg estremeceu, e, quando se inclinou para os microfones outra vez, a voz perdera um pouco do entusiasmo. ♦ Cruzando o salão entre delegados delirantes com chapéus de plástico branco que imitava palha e o nome HARTMANN gravado, Mackie sentiu como se fosse feito de ar. Nunca se sentira diferente quando se tornava incorpóreo — dissolvido —,
mas, se sentisse, seria daquele jeito. Como se a qualquer momento fosse se dispersar feito uma nuvem. Não tinha dormido na noite anterior, espremido entre dois bêbados fedorentos no ônibus que saíra de Port Authority. O pervertido de terno com inclinações para o levemente bizarro que o pegara na Times Square obviamente percebera que o tipo de amor que estava procurando era caro na era do pânico da AIDS. Tinha um belo bolo de dinheiro enrolado no bolso. Mesmo depois que Mackie pegara a nota de cem dólares suja de sangue, restava mais do que o suficiente para uma passagem aérea. Mas não se atrevera a tomar um avião. Podiam estar vigiando os aeroportos à procura dele — já se revelara três vezes. Der Mann ficaria muito desapontado. Ele estava ali, no púlpito. Um tropismo de amor e arrependimento atraía Mackie até ele. Não deveria abordar Hartmann em público. Não o faria. Só precisava estar perto. Saiu de debaixo do conjunto de cabines de imprensa que pairavam sobre o pátio lotado como a Estrela da Morte. Com movimentos sinuosos de enguia, deslizou por entre homens com os botões da camisa estourando e mulheres gordas com vestidos em tons pastel, todos gritando, cada rosto brilhando de suor e oleosidade e cobiça pelos espólios do banquete de amor ao capitalismo. O espetáculo o teria enojado e intimidado caso houvesse espaço em sua mente para qualquer pensamento que não fosse sobre Hartmann. Sobre amor, dever e fracasso. A tribuna erguia-se diante dele como um castelo azul do Reno. Mackie ainda não vira o Homem, mas o sujeito no palco estava falando dele. Olhou para as laterais, tentando avistar Hartmann. Uma mancha branca captou sua atenção. Fileiras de camarotes VIP se erguiam de cada lado da tribuna como as camadas de um bolo de casamento. Uma figura diminuta de vestido branco abria passagem entre dignitários sentados no nível da esquerda, à altura do palco. Usava uma máscara extravagante de ave, feita com penas brancas que cintilavam como prata sob a luz. Começou a pensar: vadia curinga, imunda. Então, percebeu o que atraíra sua atenção. A forma como ela se movia. Sempre reconhecia as pessoas pela postura, pelos gestos, pelo modo como os membros e o corpo trabalhavam juntos. Sempre conseguia distinguir a mãe, aquela vagabunda, numa multidão de prostitutas de Sankt Pauli só pelo andar. Reconhecia Sara Morgenstern, que tinha mais a reclamar dele do que qualquer outra mulher desde que sua mãe morrera. Uma fúria jubilosa começou a ferver dentro de si. Mackie foi abrindo caminho à força através da massa. Não falharia com seu homem outra vez. Nem com ela. ♥ Hartmann estava falando. A multidão, entoando seu nome, mal o deixava pronunciar uma palavra. Jack contornou a cabine suspensa da CBS e tentou ficar fora do caminho. Os monitores mostravam a multidão indo à loucura. Jack
observou e imaginou o que poderia fazer. Podia contar a todos. Mas acabara de ter uma chance de fazer isso, e não conseguira. Não podia ser outra vez o Judas dos Ases. Não podia começar uma nova rodada de perseguições. Pegou um cigarro, então viu o garoto com jaqueta de couro num dos monitores. Não se enganaria quanto à figura pequena e corcunda, nem mesmo por trás da máscara. O corpo franzino e o caminhar arrogante, brusco, eram uma combinação inconfundível. — Ei! — exclamou. Uma onda de adrenalina quase o derrubou no chão. Pulou para a frente no momento em que a aberração saiu da câmera. — É o assassino! — Apontou para o monitor. — Bem ali! Para onde aquela câmera está apontando? O diretor o encarou com fúria no olhar. — Dá para você… — Chame o Serviço Secreto! É o assassino da serra! Ele está no pavilhão de convenções! — Que… — Para onde aquela câmera está apontando, porra? — Hã, a Câmera Oito? Está do lado direito do palco… — Droga! — A aberração estava logo abaixo dos candidatos. Jack olhou freneticamente ao redor. Os comentaristas, imersos num estado zen, ainda não tinham ouvido seus gritos de pânico. — Câmera Oito. — Era o diretor. — Panorâmica da esquerda para a direita. Pronto, Oito? Cortar para Oito. Jack saltou sobre a mesa diante de Cronkite e desferiu um chute. O vidro de segurança na frente da cabine suspensa afundou para fora, uma teia de rachaduras aparecendo ao redor do pé de Jack. Um Cronkite atônito girou na cadeira, xingando feito um marinheiro, enquanto Jack atravessava o vidro com o pé e depois o esmurrava, alargando o buraco. As vigas que sustentavam o teto do Omni estavam logo à frente e acima. Jack pulou e agarrou uma delas com as mãos. Foi se deslocando mão a mão rumo ao palco. Levaria uma eternidade. Balançou-se para a frente e para trás, tomou impulso, se soltou e saiu voando de uma viga para a outra. Passara anos fazendo isso, na NBC. Os velhos reflexos de Tarzan voltaram por instinto. Houve uma súbita comoção. O discurso de Hartmann fora interrompido. Era tarde demais. ♣ Enquanto Gregg Hartmann caminhava para a frente do palco em meio a torrentes de aplausos, Sara umedeceu os lábios, decidida. Como o andar dele é confiante. Pensa que é um deus. Mas não havia mais deuses. Só homens e mulheres, alguns com mais poder do que qualquer mortal poderia usar em segurança.
A bolsa se abriu entre os dedos hábeis, como se por vontade própria. Enfiou a mão enluvada lá dentro. O metal e a borracha estriada do cabo eram um fogo frio, queimando seus dedos. — Andi — sussurrou. Sacou a pistola. Deixando a bolsa pendurada no antebraço pela alça, ergueu a arma com ambas as mãos. ♠ Mackie estava praticamente correndo entre os delegados amontoados, empurrando os cotovelos que zumbiam contra os traseiros fartos para abrir caminho, desmaterializando-se quando precisava. Pegaria a porra da Sara Morgenstern em cadeia nacional, acabaria com aquela mulher metendo a mão direita bem no coração. Der Mann ficaria orgulhoso. Sentiu uma pressão nas axilas, e seus pés pisaram no vazio quando foi erguido do chão pelo colarinho da jaqueta de couro. — Devagar aí, seu curinga da porra — chiou uma voz em seu ouvido. Esperneando, ele foi virado e sentiu um hálito de álcool e tabaco jorrar na cara. Seu captor era um homem enorme de macacão branquíssimo, os cabelos negros caindo no rosto. Tinha um rosto estranho. Parecia que alguém o despedaçara e depois usara superbonder para juntar de novo os componentes. O nariz era uma massa emaranhada, as maçãs do rosto, desiguais; os olhos verdes ardiam em ângulos diferentes. — É melhor não mexer comigo, porra! — berrou Mackie, quase cego de fúria. — Não sou nenhuma merda de curinga! Sou Mackie Navalha! O grandalhão franziu o rosto diante da chuva de cuspe raivoso. — Para mim você parece Jack, o Merda Júnior. Agora, você, eu e minha mão direita vamos a outro lugar para uma conversinha particular… Mackie atacou com a própria mão direita. Seus dedos tocaram o rosto nodoso, produzindo o ruído e o cheiro de uma broca de dentista furando um dente. Atravessaram a bochecha, o lábio e o osso, cortando metade do maxilar inferior em diagonal. Dentes nus sorriram para ele uma fração de segundo antes de serem lavados por um jorro de sangue. O grandalhão o soltou e levou as mãos à ruína sangrenta do rosto. Mackie voltou-se para o palco. Uma mulher de cabelo tingido de laranja estava no caminho. A boca era um túnel levando direto à barriga. Ele a tirou do caminho com um golpe, como um explorador usando a machadinha contra um galho inconveniente. Der Mann teria que compreender. Não havia mais tempo para sutilezas. ♦ Sara não esperava que os gritos começassem tão cedo. Já que sua vida fora entregue, apostava toda a vingança em como cada olho no Omni estaria cravado no palco quando Gregg começasse a falar. Mas ninguém na área VIP mais próxima dava sinais de tê-la notado. Os três pontos da mira surgiram diante de seus olhos, luas cheias e brancas procurando um alinhamento auspicioso.
A visão periférica a traiu. Houve uma comoção em meio à delegação do Mississippi, bem diante do palco. Apesar de todos os esforços para não ver nada além de Hartmann e as luas da mira, seus olhos vagaram depressa naquela direção. Sentiu a força se esvair do corpo como o ar de um balão furado. Ele tinha chegado. O garoto de jaqueta de couro. Lançando uma faixa de sangue pela multidão, indo na direção dela. ♥ Hartmann estava falando. Hipnotizado, Tachyon observava o movimento da boca e não ouvia uma só palavra. Sobreposto às feições familiares estava outro rosto — inchado, difuso, perverso: o Titereiro o olhava de cima, malicioso. Enojado, parou de encarar e olhou vagamente para o cotoco do braço. Os pensamentos se sucediam como folhas girando ao vento. Preciso detê-lo. Como? Preciso fazer alguma coisa. O quê? Tenho que pensar . Preciso detê-lo. Como? Como? Como? Gritos interromperam as palavras do candidato e os vivas da multidão. Finos, como um fio de sangue percorrendo um corpo saudável. Espalhando-se, tornando-se uma hemorragia. Os repórteres ao redor de Tachyon sentiram que algo estava acontecendo. Começaram a avançar, levando-o junto. Esbarraram numa muralha de corpos humanos em fuga. Delegados com bocas escancaradas de terror corriam para as saídas. O mundo se reduziu a braços agitados, ao fedor do medo. As defesas de Tachyon titubearam sob a investida de 15 mil pessoas reagindo com terror ou confusão. Com os botões que cobriam o peito estalando feito castanholas, um homem corpulento atirou-se sobre o pequeno alienígena. Tach gritou, um som estridente e rasgado, quando as bandagens que cobriam a amputação bateram na fivela do cinto do sujeito e ele foi arrastado atrás daquele homem. Perdeu a firmeza dos pés e caiu, a gaze se soltando. Pés pisotearam as costas de Tachyon, roubando o ar de seu peito. Sentiu as costelas rachadas cederem. Era como se um atiçador incandescente tivesse se enfiado em seu peito, entrando mais fundo a cada respiração. Mas não era nada se comparado à agonia do braço enquanto seres humanos aterrorizados corriam por cima dele, os calcanhares moendo o coto no chão do Omni. Vou morrer . Sentia o terror denso e sufocante no fundo da língua. Um minúsculo laivo de fúria o percorreu. Não! Maldito seja se morrer desta forma humilhante. Esmagado por simplórios em pânico.
Teve de usar toda a sua concentração para pensar por sob a névoa asfixiante de dor. A mente de Braun era um clarão familiar em meio à loucura. Seu poder se estendeu, aninhando-se perto do outro como uma ave migratória voltando a um lugar seguro. Leu a confusão e a hesitação na mente do grande ás. Jack, me salve! Tach? Me ajude! Me ajude! Não conseguiu mais manter o contato. Com um suspiro, deixou de tentar. Mas Jack estava vindo. ♣ O peso de um trem de carga atingiu Mackie por trás. Empurrou sua mão direita, erguida com uma lança na ponta do braço rijo, bem no peito de um homem de camisa rosa e gravata bege. Irrefreável, a massa o forçou para a frente e para baixo. Sua mão saiu explosiva da caixa torácica do homem, numa profusão de sangue. Ele foi ao chão. A cabeça quicou nas tábuas duras do piso, e ele sentiu algo rachar no peito. Gritando de raiva e dor, ativou o zumbido por todo o corpo. O atacante uivou e rolou para longe. Mackie levantou-se de um salto. — Seu merda, seu porra, vou cortar seu pau fora e fazer você engolir! — Estava gritando em alemão, mas não importava: suas mãos diziam tudo o que precisava. Em meio ao véu de lágrimas, viu um punho crescente vindo em direção ao seu rosto. Algo repuxou sua mente, um lampejo de dúvida, de distração. Começou a se desmaterializar tarde demais. O golpe o acertou no queixo, jogando a cabeça para trás… E a atravessou sem danos. ♠ Gregg tinha parado de falar, embora, com a agitação dos aplausos, ninguém parecesse ter notado. Olhando para baixo, viu Carnifex partir como um touro para cima de Mackie, abrindo uma clareira visível na multidão. Com algum tipo de sexto sentido, Mackie notou o ás na mesma hora e se virou, rosnando. As mãos zumbiam. Alguém perto dele gritou e apontou, então todos começaram a tentar abrir espaço em torno do corcunda enquanto Carnifex gritava e atacava. O Titereiro gritou com ele, exultante. Ótimo. O garoto não tem mais utilidade. Deixe Carnifex matá-lo. Mackie vai cortá-lo em pedaços, retrucou Gregg. São duas marionetes. Podemos controlar este jogo. Era uma estranha mistura de êxtase e medo. O gosto era tão bom. Sim, livre-se de Mackie. Não seria fácil. Mackie golpeou, e uma linha de sangue seguiu o gesto, arruinando a frente do uniforme impecável de Carnifex ao mesmo tempo que o ás desferia um soco e o derrubava para trás. O vermelho da dor e do terror, pulsando e cegando, crescia na mente de Carnifex. O ás de
branco estava recuando um passo, observando as mãos de Mackie enquanto o jovem se erguia do chão, sorrindo apesar da boca moída e arrasada. O Titereiro expandiu seu alcance. Encontrou o medo em Carnifex e se aferrou brutalmente a ele. Então, alcançou Mackie, procurando o gatilho naquela mente enlouquecida que o tornaria vulnerável. Pronto, disse o Titereiro, satisfeito. Está feito. Um disparo de arma de fogo soou no ouvido de Gregg. O Titereiro se espantou, perdendo Mackie de vista por um instante precioso enquanto o auditório lotado irrompia em gritos horrorizados, o pânico e o terror se espalhando pelo ar como uma névoa densa. — Meu Deus, eles estão se matando! — gritou alguém. — Parem! — berrou Gregg, aos microfones, mas sua voz se perdeu no tumulto. ♦ Tenho que fazer isso, percebeu ela, agora. Antes que ele chegue aqui. Obrigou os braços a terem força para se firmarem, para erguer a pistola preta e áspera. Balindo de terror, um homem alto e desengonçado, o cabelo grisalho margeando o promontório estreito do crânio, veio ensandecido de sua cadeira — uma ave enorme afugentada do canavial. Um cotovelo voador acertou a arma, que voou das mãos de Sara. Ela gritou em desespero ao ver a pistola sair girando pela frente da cabine rumo à multidão. Tiros dispararam do palco, e Gregg Hartmann desapareceu sob uma onda de agentes do Serviço Secreto. ♥ Spector deu um pulo quando alguma coisa esmigalhou o vidro na cabine de imprensa. Aquilo o paralisou por um instante, e já havia agentes enxameando em torno de Hartmann e dos outros figurões, empurrando-os para as laterais ou derrubando-os no chão. Correu em direção ao senador, mas outros dois homens o jogaram de bruços atrás do palco. Os gritos eram ensurdecedores. Spector não conseguia pensar com toda a algazarra. Disparos. Viu vários agentes atirando contra um alvo na multidão. Golden Boy balançava-se nas vigas acima, rumo à área onde os homens atiravam. Spector se jogou em cima de Hartmann. O senador grunhiu, mas não se virou para encará-lo. Em breve olharia para trás, e Spector estaria esperando. ♣ Jack ia de trave em trave como um pêndulo desesperado. Não conseguia descobrir o que estava acontecendo no palco. Viu o terno branco de Billy Ray, os agentes armados, os delegados debandando — mas nada de Hartmann, nada do corcunda. Havia apenas a marca inconfundível da violência acontecendo. Ele se jogou para uma viga acima da delegação da Califórnia, e então se deteve.
Gregg Hartmann era o ás secreto, um assassino. Por que deveria se importar com o que acontecia com ele? Enquanto hesitava, ouviu um grito ressoar na mente. Tachyon estava embaixo da debandada, sendo pisoteado. Jack hesitou outra vez. O grito voltou a soar. Viu que não havia ninguém diretamente abaixo dele, então se soltou. ♠ Recuou. Sentia como se alguém o tivesse acertado no queixo com um martelo, e os músculos do pescoço ardiam. Se tivesse recebido todo o impacto do golpe, teria quebrado o pescoço. Quem é esse cara? A visão clareou. Mackie cambaleou como se tivesse levado outro soco. Era o homem de cabelo preto com o rosto feito de sobras, olhando-o com seu sorriso de caveira. A parte da frente do macacão estava borrifada de vermelho, como se ele tivesse comido espaguete com molho de tomate enquanto tinha um ataque epiléptico. O gêiser de sangue se reduzira a um gotejar. — Ôu ti ostrar ua oisa, xeu ilho da uta! — berrou o homenzarrão. Desferiu outro golpe demolidor contra Mackie. O terror martelava em sua mente. Não vou conseguir derrotar esse monstro! Lutando contra o medo, Mackie se desmaterializou pouco antes do impacto que poderia ter esmagado seu crânio. O impulso do grandalhão fez com que o punho o atravessasse inteiro. O sujeito se recuperou com a rapidez de um tigre, girando com as mãos prontas para atacar ou defender. Mackie estava logo atrás, a raiva superando o medo persistente. Mirou um golpe na têmpora. Vamos ver como ele fica com a cabeça cortada ao meio. O grandalhão ergueu a mão num bloqueio ágil. Os dedos tombaram como tocos de madeira cortados quando Mackie os fatiou. O homem de cabelo preto se jogou de costas na multidão, por pouco conseguindo impedir que a mão de serra o acertasse no crânio. A respiração doía do lado esquerdo do peito como garras cravadas. Devia ter quebrado uma costela quando o filho da puta enorme o derrubara. Desmaterializou-se para atravessar a divisória ao pé do púlpito, entrando no fosso oculto que separava os delegados do palco. Do canto, onde a coluna quadrada do púlpito propriamente dito se ligava à plataforma elevada, um jovem musculoso com um fio de comunicador no ouvido o encarava, boquiaberto. Ele tirou uma pequena pistola automática de dentro do paletó. Mackie sustentou o olhar do sujeito e sorriu, sem saber que seu nariz sangrava e o sorriso era o de um palhaço medonho. O dedo do homem do Serviço Secreto tremeu no gatilho. Um jorro de balas de 9mm passou por onde Mackie não estava e acertou a multidão atrás dele. Os gritos dos baleados quase o fizeram gozar. Cortou as pernas do agente de calças bem passadas logo abaixo do joelho. O homem desabou no fosso, berrando, espirrando sangue por toda a frente do palco. As pernas continuaram de pé por um breve instante. Os degraus brancos de um zigurate flanqueavam o púlpito, grandes demais
para servirem como escada. Mackie começou a escalá-los. Um golpe por trás o jogou por cima do segundo. Atordoado, sentiu que alguém o apanhava e jogava longe, como uma boneca de pano. Desmoronou na parede externa do fosso. Estava quebrado por dentro. — Mutti — grunhiu. — Mamãe. Era o homem de cabelo preto, que o derrubara com a mão mutilada e atirara com a mão boa. O sujeito rosnava para Mackie ao pé do pódio, arreganhando o que restava dos lábios depois de seus golpes, os dentes à mostra. O homem se recompôs e saltou como um tigre sobre a presa acuada. Em desespero, Mackie se jogou do degrau, erguendo a mão. Ativando o zumbido. A mão encontrou resistência. Fluidos ensoparam seu rosto, quentes e grudentos. O grandalhão desabou por cima da divisória, derramando laçadas de tripas que pareciam pendões roxos-acinzentados. ♦ Deitada de bruços no chão do camarote VIP, Sara tinha uma linha de tiro perfeita até Hartmann. No momento, ele estava enterrado sob uma pilha de guardas do Serviço Secreto, mas eles estavam concentrados no que acontecia na plateia. Ninguém prestava a menor atenção aos assentos dos dignitários. Quando fizessem o senador se levantar, ela o mataria de vez. Só que tinha perdido a arma. Socou o chão do camarote com uma cadência decidida de ódio por si mesma. ♥ Gregg não teve chance de se recuperar. Dois homens do Serviço Secreto o derrubaram como atacantes, jogando-o no chão com gritos guturais e inarticulados, as armas em punho. Colin, o curinga, pulou diretamente sobre ele, quase tirando seu o fôlego. Fique abaixado, senador!, rosnou o Titereiro. Ainda ouvia o zumbido de serra das mãos de Mackie, entremeado aos gritos da multidão, enquanto Carnifex investia contra o garoto. Mas não conseguia ver, não conseguia manipular os fios com facilidade, pois não sabia o que estava acontecendo. Me solte! Deixe isso comigo! É a única chance. Gregg abriu mão de todo o seu controle sobre o Titereiro. Ficou ali deitado, debaixo dos guardas, enquanto o poder se expandia, selvagem. Violentou os pensamentos de Carnifex, eliminando a dor e o medo, bombeando adrenalina com tamanha intensidade que quase sentiu o coração do ás batendo na própria mente. Ao mesmo tempo, tentou amainar a raiva insana de Mackie, mas era como lidar com fogo — queimava, retorcendo-se em suas
mãos. Acabe com ele!, gritou o Titereiro para Carnifex. Use essa maldita força e reduza esse homenzinho a outra poça de sangue no chão. Então sentiu Billy gritar em agonia, apesar do bloqueio mental, e, ao mesmo tempo que consumia avidamente a dor, soube que Mackie ganhara a batalha. O peso acima dele se fora. Meia dúzia de agentes do Serviço Secreto atiravam do palco enquanto Gregg tentava se levantar e enxergar de novo. — Ele está nos cortando em pedaços… Então, ouviu mais tiros, altos e próximos demais. ♣ Frenético, Mackie usava a palma das mãos para limpar o sangue do oponente dos olhos. A vadia sumira. Droga, droga, droga. Precisava encontrá-la, não podia falhar de novo… Olhou para cima. Hartmann não estava em lugar algum. Será que alguma coisa acontecera a ele, ao Homem? Chorando lágrimas e sangue e tossindo um muco sangrento, ele se levantou cambaleante, um brinquedo quebrado na escadaria de um gigante. Subiu desimpedido a rampa que levava a uma entrada à direita do palco. Hartmann estava deitado ali, debaixo de meia dúzia de homens de terno. Parecia bem. Lágrimas de gratidão verteram dos olhos de Mackie. Sentiu um sopro quente no rosto e ouviu um gemido de agonia atrás de si quando a bala acertou o alvo. Um homem de terno escuro se abaixou ao lado do senador, ajoelhado, apontando uma arma para ele com as duas mãos. Mackie tentou se desmaterializar. A dúvida e a fadiga tomaram sua mente. Não consigo. Um disparo amarelo partiu contra ele do cano curto. O fogo preto explodiu em seu peito. Ele caiu. ♠ Braços fortes tiraram Spector de cima de Hartmann e o giraram em direção à massa. — Ele está nos cortando em pedaços. Saque a arma. Precisamos derrubá-lo — disse o homem do Serviço Secreto que o fizera levantar. Era verdade. Um pequeno corcunda estava fatiando homens em pedaços com as mãos de serra. Spector abriu o coldre de couro e ergueu a arma. Que diabos, podia muito bem cumprir esse papel — iria ajudá-lo a fugir, depois. Spector se ajoelhou e atirou. A arma tinha um coice mais forte do que ele esperava, e a bala derrubou um homem bem atrás da luta. Apoiou a mão da pistola no braço livre e mirou, apertando o gatilho mais três vezes. O corcunda se virou e desmoronou. Spector voltou-se para Hartmann. — O senhor está bem, senador? Hartmann ergueu os olhos e o encarou.
♦ A escuridão chamava Mackie com braços sedutores. O corcunda lutou contra ela. Precisava fazer uma coisa. Matar alguém… O terror explodiu dentro dele. Os olhos se abriram. Estava estatelado num degrau. A frente da plataforma impedia que visse o senador. Der Mann precisa de mim! A necessidade deu-lhe forças. Obrigou os membros a responderem à sua vontade. Forçou-se a escalar, apesar de as mãos e os sapatos teimarem em escorregar no líquido vermelho que cobria o chão. Der Mann estava deitado onde estivera antes. Mas o pescoço estava inclinado, e ele olhava fixamente para um agente alto e magro do Serviço Secreto. Sua expressão parecia ao mesmo tempo exultante e aterrorizada. O ódio pelo agente magricela atingiu Mackie como anfetamina. Foi ele que atirou em mim! Mas, pior que isso, ele ia fazer alguma coisa com o senador. Mackie não conseguia ver, mas sabia. Avançou, mancando. Arrastava o pé direito. Cada passo dava fisgadas incandescentes em sua barriga. Ele precisa de mim. Não vou… falhar… com ele… de novo. ♥ Spector sentiu alguma coisa em Hartmann resistir por um momento, depois sugálo como um rodamoinho. Sua dor mortal fervia na mente do senador — cada detalhe excruciante, os ossos quebrados, o sangue ardente, a asfixia, tudo se esvaiu. Mas havia algo errado. A mente de Hartmann não estava reagindo como qualquer outra. Estava inchando, deliciando-se com a morte de Spector. Spector investiu com mais força. Devagar, a outra mente cedeu à pressão e começou a enfraquecer. ♣ Tão bom tão gostoso mas dói e mata… não é real não pode ser não é possível… Mas era, e a voz do Titereiro se reduzira a um sussurro até sumir completamente. Até mesmo a dor que escoara do Titereiro para Gregg era como um ácido escaldante derramando-se na psique, fazendo-o querer gritar e suplicar, implorando: não me mate não me mate não quero morrer. Mas não podia romper aquele olhar terrível, não podia se desvencilhar daqueles olhos estranhos, tristes, agoniados, aturdidos e magoados, aqueles olhos que não eram de Colin, mas de outra pessoa… … e soube que ia morrer, que seria o próximo, que seguiria Titereiro rumo ao vazio por trás daqueles olhos. — Você está me matando! — gritou Gregg, com toda a força que lhe restava, esperando que aqueles olhos piscassem, desviassem dos seus ou… … e não restava nada em seu mundo além daqueles olhos…
♠ As costas do paletó escuro estavam diante de Mackie como um penhasco estreito. Ele cambaleou. Queria deitar e dormir por muito, muito tempo. Em vez disso, ergueu a mão direita e acionou o zumbido. Olhou para os dedos: um borrão rosa. A visão lhe deu forças. Baixou a mão num golpe certeiro. ♦ Spector mal conseguia ficar de pé. Os joelhos cederam com o esforço. Usara tudo o que tinha com Hartmann, e o sentiu desmoronar. Mas o filho da puta estava olhando para ele, piscando. Era simplesmente impossível. Spector lembrou-se da arma. Centralizou-a no peito de Hartmann. Ouviu um som como o de uma abelha gigante e hesitou. Sentiu uma dor lancinante no pescoço. O salão de convenções girou, de novo e de novo, depois veio com tudo e o acertou no rosto. Um rugido invadia seus ouvidos, mas nenhum dos sons parecia fazer sentido. Um corpo estava deitado no chão, perto dele. Era Colin — pelo menos, parecia ser o curinga. Mas não tinha cabeça. Via tiras de carne esfarrapada no pescoço de onde ela saíra. Spector só via pés em disparada. Tinha que ser um sonho. Como aquele que tivera antes, só que pior. Sentiu-se nauseado e paralisado, mas ao mesmo tempo estranhamente eufórico. Era só fechar os olhos e pôr as coisas novamente sob controle. ♥ A cabeça rolara até o fundo do palco. Sentindo como se flutuasse no ar, Mackie mancou na direção dela em meio ao silêncio trovejante. Dolorido, inclinou-se para a frente. Seu corpo parecia um ramo seco que se quebrava em mais um ponto à medida que se dobrava. Pegou a cabeça e se endireitou. Ergueu-a para mostrá-la a Gregg e ao rebanho de ovelhas assustadas de chapéu branco que se atropelavam na tentativa de fugir dele. — Eu sou Mackie Messer — anunciou, com voz rouca. — Mackie Navalha. Sou especial. Trouxe a cabeça para junto do rosto e beijou-a em cheio nos lábios. Os olhos da cabeça se abriram. ♣ Spector sentiu alguma coisa na boca. Abriu os olhos. O corcunda o encarava, um sorriso de deboche nos lábios. Não era sonho. A percepção foi como um soco no peito, mas não tinha mais peito. O filho da puta decepara sua cabeça. Ele ia morrer. Depois de tudo por que passara, ia morrer! Porra! De novo! Spector lutou contra o pânico e cravou os olhos nos do corcunda. Canalizou a dor e o terror através do olhar para dentro do homem que o matara. O mundo começou a sacudir e virar um borrão. Spector sentiu a escuridão se aproximar e
tentou empurrar tudo para dentro do corcunda. Um medo conhecido o invadiu, e ele se sentiu muito sozinho. A escuridão estava completa. ♠ Mackie tentou desviar o olhar. Os olhos da cabeça o retinham, sugando-o como um buraco negro. Alguma coisa sacudia sua alma, partindo-a em pedaços. O corpo começou a tremer em solidariedade, vibrando mais e mais rápido, fora de controle. Sentiu o sangue começar a ferver, sentiu que exalava vapor de cada poro. Gritou. A pele do rosto da cabeça decepada se enrugou e enegreceu com a fricção dos dedos de Mackie. Os dedos que zumbiam encontraram o osso e, tremendo, começaram a partir o crânio em pedaços, a agitar os fluidos dentro da caixa craniana até o ponto da fervura. Mas os olhos… ♦ O garoto de jaqueta de couro explodiu. Sara escondeu a cabeça nos braços e sentiu no cabelo o impacto de pedaços úmidos que a perseguiriam para sempre. Quando voltou a olhar, não restava nada do corcunda ou da cabeça, só espirros vermelhos e pretos fumegantes espalhados por todo o palco. Houve um momento de silêncio mortal. Então, Gregg empurrou os agentes do Serviço Secreto, lutando para se levantar. A multidão escoara para longe do palco como mercúrio na ponta de um dedo. Agora, voltava a se aproximar com um rugido prolongado. É isso. Ele agora é o presidente. Isso vai garantir que seja. A morte de seu ás matador não trazia conforto. O presidente Gregg Hartmann não precisaria de psicopatas alemães para lidar com seus opositores. Se é que vai chegar a esse ponto. Steele insinuara que os soviéticos prefeririam atacar primeiro a ver Hartmann tomar posse. A cabeça de Sara era um peso morto. Deixou-a pender e permitiu que a angústia escoasse em lágrimas desesperadas. ♥ Jack foi tirando as pessoas da frente até encontrar Tachyon, então agarrou o alienígena e segurou-o firme debaixo do braço. Disparos soaram; a multidão desabalada acelerou. Houve violência no palco, uma confusão enorme. Jack não conseguia ver nada. Abriu caminho à força pela multidão, dividindo-a como o Mar Vermelho. Finalmente, ele e Tachyon chegaram diante do palco enorme e branco, mas daquele ângulo baixo ainda não conseguiam ver nada. O que quer que tivesse acontecido parecia ter acabado. Gregg Hartmann levantou-se do amontoado de
homens do Serviço Secreto e alisou a roupa enquanto caminhava, inseguro, rumo aos microfones. — Droga — disse Jack . — Chegamos tarde demais. ♣ Ainda havia pessoas gritando e berrando no salão; ainda havia pânico enquanto corriam para as saídas ou olhavam para o palco, paralisadas de horror. Mesmo assim, a impressão que Gregg tinha era de silêncio, de um momento congelado, como uma fotografia. Ouvia a própria respiração, arfante e muito alta. Sentia claramente as mãos do Serviço Secreto de cada lado do corpo. Via Jesse Jackson sendo retirado do palco, Ellen bloqueada por um cinturão de seguranças uniformizados, dignitários no chão com as mãos no rosto, fugindo às cegas. Havia mais sangue e brutalidade do que Gregg imaginava ser possível. E um vazio estranho ecoando dentro da mente. Titereiro? Não houve resposta. Titereiro?, chamou novamente. Silêncio. Apenas silêncio. Gregg tomou fôlego, estremecendo. Deixou-se levantar, depois se desvencilhou das mãos que tentavam imobilizá-lo e tirá-lo do palco. — Senador, por favor… Gregg balançou a cabeça. — Estou bem. Acabou. E o que precisava fazer estava muito claro. O caminho estava aberto diante dele, um presente. O Titereiro se fora, e a perda era como se um fardo imenso e sombrio tivesse sido tirado de seus ombros, um fardo que ele nem sabia que estivera carregando. Gregg sentia-se bem. Via a carnificina e a destruição à sua volta, mas mesmo assim… Mais tarde. Mais tarde saberemos. Alisou o paletó e endireitou a gravata. Organizou as palavras mentalmente, sabendo o que diria. Por favor . Por favor , tenham calma. Isso é o que acontece quando permitimos que a inveja e o ódio nos dominem. Esse é o fruto que colhemos da semente do preconceito e da ignorância. Este é o banquete amargo que devemos suportar toda vez que damos as costas ao sofrimento. Palavras para resgatar a presidência da ruína. Hartmann corajoso, Hartmann resistente, Hartmann bondoso. Hartmann perante os olhos da nação: um líder tranquilizador e competente em meio a uma crise. Gregg se aproximou dos microfones. Olhou para a multidão e ergueu as mãos. ♠ O braço esquerdo de Tachyon estava pendurado no pescoço de Braun. O direito, aninhado junto ao peito. O sangue manchava a bandagem da extremidade
amputada. A dor nas costelas quebradas e no braço era tão grande que ele não conseguia erguer a cabeça do ombro de Jack enquanto o grande ás o aninhava nos braços. Jack voltara ao seu lugar na delegação californiana. O Omni fedia como um matadouro, o ar-condicionado parecia incapaz de banir o cheiro doce e enjoativo de sangue. O forte odor de pólvora ainda pairava no ar, junto com o cheiro de merda liberada pelas entranhas dos mortos. O choque parecia envolver toda a convenção. James Spector estava morto. O assassino corcunda estava morto. Mas restava Hartmann. Tachyon mordeu o lábio inferior. O candidato se desvencilhou dos agentes insistentes do Serviço Secreto. Cabeça erguida, ombros aprumados, mãos erguidas num gesto de bênção, de calma e de segurança. Ele se aproximou do microfone. E, nesse momento, Tachyon soube o que deveria fazer. ♦ Gregg começou a falar, o olhar buscando e implorando às pessoas nos assentos. — Por favor — começou, a voz calma, profunda e cativante. E então… … Tachyon estava na mente dele. A presença forte e persistente tomou o ego de Gregg de assalto e o jogou para o lado, colocando-se à frente, embora Gregg resistisse desesperada e inutilmente. — Por favor, fiquem calmos… Ei, calem a boca e me escutem, porra! — gritou a voz, contra sua vontade, ecoando por todo o Omni. Ele se viu num dos monitores suspensos, sorrindo aquele sorriso de campanha ensebado e ensaiado, como se nada tivesse acontecido. — Opa, fui um pouco veemente demais, não é? Viu a si mesmo rindo. Dentre todas as coisas que podia fazer, estava rindo como uma criança. Tentou conter o riso, mas Tachyon era forte demais. Como uma marionete indefesa, Gregg pronunciou as palavras do outro. — Mas vocês têm que admitir que calaram mesmo a boca, não é? Melhor assim. Ei, eu estou calmo. Vamos ficar calmos. Nada de pânico numa crise, comigo não. Sem chance. O futuro presidente não entra em pânico. Nananinanão. No chão, o êxodo havia cessado. Os delegados o encaravam. O comportamento tranquilo e jovial do senador era mais medonho e horrível que qualquer grito poderia ter sido. Por sobre os soluços e gemidos atrás dele, ouviu Connie Chung, na área VIP, gritar ao próprio microfone: — Apontem as câmeras para Hartmann! Agora! Por dentro, continuava a lutar em vão contra as amarras que Tachyon impusera em sua vontade. Então essa é a sensação de ser uma marionete, pensou. Me solte, seu desgraçado! Mas não havia como fugir. Tachyon manipulava os fios, e era um titereiro experiente.
Gregg deu uma risadinha, olhou para a carnificina e balançou a cabeça enquanto voltava a falar com a multidão. Ergueu o braço reto diante do corpo e na direção deles, a palma para baixo, os dedos abertos. — Olhem só para isso — disse o senador. — Nem estou tremendo. Estou tranquilão. Nem me lembro mais das preocupações de 1976! Talvez isso seja bom a longo prazo, se for para deixar todo aquele papo de lado. John Werthen e Devaughn tinham se aproximado para afastá-lo do púlpito, e ele se viu agitando os braços contra ambos, afastando-os e agarrando desesperadamente os microfones. — Vão embora! Não veem que eu estou bem? Saiam! Deixem comigo. John olhou para Devaughn, que deu de ombros. Gregg ajeitou o terno irremediavelmente imundo enquanto eles o soltavam, hesitantes. Mais uma vez, deu aquele sorriso sinistro para as câmeras. — Agora, o que é que eu estava dizendo? Ah, sim. — Soltou outra risadinha e balançou o dedo em direção aos delegados. — Este não é um comportamento aceitável, e eu não vou tolerar coisa do tipo — ralhou, como se falasse com uma sala de aula cheia de crianças. — Tivemos um probleminha aqui em cima, mas já acabou. Bola pra frente. Na verdade… — Deu risada e se curvou até o chão. Quando se endireitou, o dedo indicador gotejava um líquido denso e intensamente vermelho. — Como castigo, quero que todos escrevam “Chega de Violência” cem vezes. — Esticou o braço para o painel de acrílico transparente diante do púlpito e traçou um “C” enorme e torto. O “H” seguinte foi quase ilegível. — Opa, acabou a tinta — declarou, alegremente, e se curvou de novo. Desta vez, jogou alguma coisa carnuda e impossível de identificar na base onde ficava o microfone, produzindo um som distinto e molhado. Umedeceu o dedo naquilo como uma pena no tinteiro. Alguém vomitou ruidosamente atrás dele, outra vez, e houve gritos na plateia. Ouviu Ellen soluçando, implorando para quem quisesse ouvir: — Tirem-no dali. Por favor, alguém faça Gregg parar… John e Devaughn se adiantaram outra vez, segurando-o com firmeza, um em cada braço. — Ei, vocês não podem fazer isso! — berrou Gregg, espumando. — Eu ainda não terminei. Vocês não podem… Tinha acabado. Finalmente tinha acabado. O controle mental de Tachyon cessou, e Gregg afundou nos braços dos dois, em silêncio. Tentou olhar os rostos horrorizados pelos quais passou enquanto o escoltavam para os bastidores: Ellen, Jackson, Amy. Amaldiçoou Tachyon mentalmente, sabendo que o alienígena ainda estava ali. Maldito seja por ter feito isso. Não precisava. Não precisava me humilhar e me destruir assim. Não reparou que o Titereiro está morto? Maldito seja, mil vezes.
23h00
Tachyon estava deitado na cama. Tinham tentado levá-lo de volta ao hospital, mas ele lutou como uma criatura enlouquecida, e Jack o mantivera longe das mãos dos médicos. Deixara que enfaixassem o coto e as costelas de novo, mas nada mais. Recusara até os analgésicos. Seu neto estava em algum lugar daquela cidade, e Tach precisava de clareza mental para encontrá-lo. O cérebro parecia bater nos confins do crânio enquanto procurava, mas apenas a escuridão respondia. A dor o assolou, e ele se inclinou pela lateral da cama e vomitou. A lembrança daqueles últimos minutos caóticos na convenção voltou, aumentando a confusão. A mente de Hartmann pulsando como um animal encurralado e apavorado na prisão de ferro que era o controle de Tachyon. Por um instante, foi tomado pelo remorso. Depois, aos poucos, Tachyon ergueu o coto feio e desajeitado e o observou. O ódio substituiu o lampejo momentâneo de arrependimento. Nunca mais farei uma cirurgia. Maldito seja, que vague eternamente! Cerrou a mandíbula numa linha obstinada e amarga e rastejou para fora da cama. O Nagyvary estava no estojo. A luz da cidade entrava pela borda da cortina e cintilava na superfície polida da madeira, dançando nas cordas do violino. Com cuidado, dedilhou-as com a mão esquerda, produzindo um sussurro. A raiva o dominou. Agarrando o violino, Tachyon bateu o instrumento com força contra a parede. A madeira se estilhaçou com um som terrível. Várias cordas arrebentaram em notas ásperas e agudas, um grito musical de dor. O golpe final tirou seu equilíbrio, e Tach, por instinto, estendeu a mão direita para se segurar. Gritou. Pontos negros dançaram diante dos olhos, e, de repente, sentiu mãos em seus ombros. Alguém o levantou. — Seu idiota! O que está fazendo? — perguntou Polyakov, depositando-o de novo na cama. — Como… como você… entrou aqui? — Sou um espião, esqueceu? A intensidade da agonia se abrandou. Tach tocou o lábio inferior com a língua, sentindo gosto de sal. — Não é uma carreira muito boa — comentou. — Precisamos conversar. — George revirou as roupas descartadas de Tach até encontrar o frasco. — Você poderia ter simplesmente ido embora — choramingou o alienígena, detestando-se por sua fraqueza. — Fugido para a Europa, para o Extremo Oriente… recomeçado em outro lugar. E me deixado aqui para encarar a música dissonante. Polyakov tomou um gole do conhaque. — Devo demais a você para fazer isso. Um sorriso minúsculo e amargo marcou os lábios finos de Tachyon.
— Quê? Você não acreditou no trágico colapso de Gregg? — Acredito que ele teve um pouco de ajuda nisso. Um suspiro. — Chegou bem perto. Polyakov grunhiu. — É mais emocionante assim. Tachyon aceitou a garrafa e tomou um gole. — Você não gosta de emoção. Gosta de sutileza e eficiência. George, o que vamos fazer? Dividir uma cela em Leavenworth? — O que você quer? — Não sou orgulhoso demais para implorar. Me ajude, por favor. Meus malditos filhos adotivos, meu neto… o que será deles se eu for preso? Por favor, me ajude. O colchão rangeu e entortou quando o homem se sentou. — Por que eu deveria? — Porque você me deve, lembre-se. — Provavelmente nunca mais vamos nos ver. — Também já ouvi isso antes. O russo tomou outro gole de conhaque. — Como vai controlar Blaise? — Vou fazê-lo me amar. Ah, George, aonde é que ele foi? Onde pode estar? E se estiver ferido e precisando de mim e eu não estiver lá? — A voz se elevou, estridente. Polyakov o empurrou, apoiando-o nos travesseiros. — Entrar em pânico não vai ajudar. Tach dobrou a barra do lençol e fitou a parede mais distante com olhos cansados, buscando o esquecimento. — Deixe-me tranquilizá-lo quanto a uma coisa. Já liguei para o FBI e me propus a colaborar em troca de sua imunidade. — Ah, George, obrigado. — Sua cabeça tombou no travesseiro, exaurida. — Adeus, George. Eu apertaria sua mão, mas… — Vamos nos despedir à moda russa. Polyakov deu-lhe um abraço de urso e beijou-o com força nos dois lados do rosto. Tachyon retribuiu à maneira takisiana, com um beijo na testa e outro nos lábios. O russo parou à porta do quarto. — Como sabe que pode confiar em mim? — Porque sou takisiano e ainda acredito em honra. — Não há muito disso por aqui. — Aceito o pouco que puder encontrar. — Adeus, Dançarino. — Adeus, George. ♣ ♦ ♠ ♥
Capítulo VIII
Segunda-feira, 25 de julho de 1988
8h00
— Você está acabado politicamente — declarou Devaughn. O tom era quase alegre. Gregg teve vontade de quebrar a porra da cara dele. Teria sido fácil com o Titereiro. Mas o Titereiro se fora. Estava morto. — Não estou brincando, Charles — retorquiu Gregg. — Você ficou surdo? Isso é só um pequeno contratempo. — Pequeno? Jesus, Gregg, como pode dizer isso? — Devaughn sacudiu os jornais que trouxera. — Os editoriais estão surtando. O USA tem uma enquete dizendo que 82% do público americano acha que você é doido. A ABC e a NBC passaram a noite fazendo pesquisas por telefone e agora dizem que você está atrás do Bush em 60% dos votos. A CBS nem ligou e, na pesquisa deles, 90% do público acha que você deveria renunciar à candidatura. E eu concordo. Devaughn deu outra volta na sala da sede deserta. — Jackson está puto, embora continue botando panos quentes para você — continuou ele. — O comitê quer sua renúncia por escrito hoje mesmo. Eu disse a eles que conseguiria isso. O senador afundou na cadeira. A televisão reprisava seu colapso nas mãos de Tachyon. Gregg se levantou e, com muita calma, se aproximou do aparelho. Então esmurrou a televisão. Devaughn ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. — Fodam-se as pesquisas — retrucou Gregg. Lançou um olhar furioso para Devaughn enquanto cacos de vidro caíam de seus punhos. — Não acredito em pesquisas. Porra, deixe-me debater com o Bush, vou arrancar as bolas dele. Ele é tão dinâmico quanto uma porta. Isso vai mudar o resultado das pesquisas. — Bush não vai debater com você, Gregg. Ele não vai nem se aproximar de um palco onde você esteja, e você vai parecer um idiota se insistir. Renuncie. — Olha, Charles, eu sou o candidato. Você não entendeu? Não importa o que você ou qualquer outra pessoa pense. A convenção me elegeu e, com a graça de Deus, vou concorrer. Tenho Jackson, ele é carismático… — Ele também vai pular fora se você continuar com essa farsa. — Devaughn fungou como um lorde inglês afetado. Que nem Tachyon. — Você surtou, Gregg. O país viu você na TV agindo como um idiota incoerente e está pensando em como você vai reagir a uma crise na Casa Branca. Não querem seu dedo no botão, Gregg. E, francamente, nem eu. — Que droga, não fui eu quem surtei, estou dizendo. Foi Tachyon quem fez isso. Ele dominou minha mente. Já falei mil vezes.
— Se você diz. Mas vai ser bem difícil provar, não vai? Sinceramente, Gregg, isso só vai parecer mais uma desculpa esfarrapada. Ou vai alegar que o Tachyon também fez isso em 1976? — Vá se danar! — rosnou o senador. Empurrou Devaughn com ambas as mãos, e o grandalhão cambaleou para trás, parecendo de repente amedrontado. — Não vou renunciar! — Tire as mãos de mim, Gregg. Gregg encarou Devaughn. Com o Titereiro, eu faria esse desgraçado rastejar… Respirou fundo e recuou. Esfregou as mãos nas calças como se estivessem sujas. — Já tomei minha decisão — disse, baixinho. Devaughn o encarou com desdém. — Então a convenção será convocada de novo, quer você goste ou não. Se insistir, vai sair de mãos abanando. Vão fazer você parecer um completo imbecil. Renuncie, e talvez possa salvar pelo menos a dignidade dessa bagunça. Esse é meu último conselho, senador. — Sublinhou a palavra com sarcasmo. Gregg foi até o sofá, esmagando cacos de vidro sob os sapatos. Jogou-se ali e xingou com a voz monótona e baixa, enquanto Devaughn o observava em silêncio. Quando finalmente ergueu o olhar, as palavras que cuspiu tinham gosto de cinzas. — Eu vinha aguentando com todas as forças, e agora você está se divertindo horrores, pisando em mim até eu desistir, não é? Bom, vou atender o seu desejo. Mande Tony escrever a porcaria da renúncia. Ele pode escrever o que quiser, eu não ligo. Leia você, vai ser seu maior prazer. E mande Amy organizar as coisas para Ellen e eu sairmos de Atlanta. Não quero ver nenhum repórter. Entendeu? Devaughn fungou. Sua expressão era desdenhosa e arrogante, e Gregg morria de vontade de acabar com ela, mas não tinha mais poder para isso. — Cuide disso sozinho. Não trabalho mais para você. — Devaughn balançou a cabeça. — Fiz de tudo por essa candidatura, e você arruinou tudo. Vou ver se Dukakis precisa dos meus serviços. Devaughn saiu transbordando dignidade. Um funcionário do Serviço Secreto pôs a cabeça para dentro da sala, olhou para Gregg e o vidro estilhaçado no tapete, e fechou a porta. Gregg ficou sozinho por bastante tempo.
9h00
De alguma forma, ao longo dos anos, conseguira passar muito tempo em necrotérios. E não importava o quanto fossem lindamente equipados e perfeitamente limpos, nada escondia o fato fundamental: eram congeladores para carne de gente morta. — Agradeço por ter vindo aqui — dizia o médico-legista, conduzindo Tachyon para dentro da sala de autópsia. Seus olhos foram de relance para o coto do alienígena, mas logo desviaram. — Principalmente depois… Mas nunca vi nada assim, e você é o especialista. — Não tem problema. E, de alguma forma, parece adequado. O médico-legista o ajudou a vestir o avental e a máscara. Foram até a mesa. Uma mulher de rosto lívido agarrava um cortador de ossos junto ao peito, encarando o corpo decapitado, alarmada e cautelosa. O cadáver fora cortado do esterno até os quadris, as costelas serradas e abertas para os lados. Mas uma gordura amarela meio pálida brotava dos intestinos brilhantes. As costelas expeliam galhos ósseos. A pele crescera em torno do pescoço cortado, e, saindo do centro do pescoço como um dedo, havia um minúsculo broto. Tachyon se abaixou para olhar mais de perto, fascinado, horrorizado e incapaz de se conter. — É quase como se estivesse… tentando… — Fazer brotar uma cabeça nova, sim. Tach recuou de um salto ao perceber que a cabeça embrionária tinha olhos. E se eles se abrissem de repente? O poder do Ceifador seria o mesmo? Ele cumpriria sua ameaça, mesmo no além-túmulo? Estúpido! Ele sempre matava do além-túmulo. Abaixando-se, Tachyon tirou a adaga da bainha na bota e a espetou com força numa das nádegas do cadáver. O corpo se arqueou e sacudiu. — Merda! — gritou a mulher, e o legista não parou de correr até chegar à porta de vaivém. Agarrando-se a ela, gaguejou: — Mas que… que porra é essa? — Um erro. Um pequeno erro de cálculo da minha parte. Minha nêmesis e um lembrete para não brincar de Deus. Posso sugerir que dispensemos a autópsia e passemos direto à cremação? — Ótimo. Não faço objeção. E as cinzas? Tem algum parente próximo? Um sorriso sem humor tocou os lábios de Tachyon. — Acho que estou in loco parentis. Levarei as cinzas. — Doutor, você é um cara esquisito — sussurrou a mulher, e podou uma costela que crescera para fora da cavidade torácica.
10h00
BATALHA DE ASES E BANHO DE SANGUE NA CONVENÇÃO
Sara se encolheu e deixou o jornal cair na lama ensopada pelas mangueiras e revirada por milhares de pés diferentes. Tem razão, desgraçado, pensou, caso Tachyon estivesse à escuta. Não estaria, por causa daquela honra takisiana. Aquela honra muitíssimo oportuna. O alienígena fora bem claro, tão objetivo quanto na sexta-feira à noite, e muito menos gentil: Você não pode desmascarar Hartmann. Isso entregaria a eleição de bandeja para Barnett. Quantas vidas de curingas inocentes você está disposta a sacrificar em sua vingança? — Nenhuma — declarou. Um par de curingas a encarou com ar indiferente. Nenhum dos dois a reconheceu. Naquele dia, usava uma máscara de leopardo. Ela a encontrou numa sarjeta em Peachtree. O tumulto não a destruíra a ponto de inutilizá-la. Algo rangeu sob seus pés. Chutou até ver uma placa escrita à mão emergir da lama, fora enviada à sede da LADC para a manifestação da noite passada. A mensagem quase a fez sorrir.
Jack Judas, 1950 Tach Traidor , I988 Farinha do Mesmo Saco
Com Mackie morto, pôde voltar ao próprio quarto. Naquele momento, usava calças jeans azul e uma blusa azul-clara solta no corpo. Deixou os Reeboks a levarem além da van de filmagem da CBS, onde um jornalista jovem, dedicado e negro falava num microfone que mais parecia um pênis de espuma amarela. — O Parque Piedmont continua praticamente deserto após uma noite de tumulto na qual trezentos curingas foram presos, e dezenas deles estão vagando, atordoados, entre as ruínas pisoteadas do acampamento. O prefeito de Atlanta, Andrew Young, revogou a ordem de prender imediatamente qualquer curinga encontrado nas ruas, atendendo a um pedido pessoal feito no começo desta manhã pelo governador do Massachusetts, Michael Dukakis. Ainda há um debate acirrado sobre a recusa do governador Harris em declarar lei marcial… Eram poucos, mas eram, de certa forma, seu povo. Ela caminhou entre eles pela última vez. Nenhum curinga confiaria nela outra vez, e Sara jurara por sua alma nunca revelar o segredo que a reabilitaria aos seus olhos. Pelo bem deles, precisava deixar que a odiassem. Pelo meu bem. A não ser que eu planeje nunca mais encarar um espelho. Tom Brokaw falava com ela de um televisor portátil apoiado numa caixa térmica virada para baixo. Era ignorado por um curinga negro e apático com
carbúnculos azuis brilhantes pelo rosto e pelo corpo, até onde seu macacão deixava ver. — … trégua instável que prevalece entre uma força mista de policiais e ases, e várias centenas de manifestantes curingas na frente da Clínica Blythe van Renssaeler… A câmera cortou para uma placa segurada de cada lado por seis dedos verdes com ventosas na ponta: “O Valete de Copas derrota qualquer Curinga do baralho”. Então o quadro se abriu, mostrando um curinga que Sara conhecia — chamava-se Cancro, por razões óbvias —, e a clínica do Bairro dos Curingas sitiada, ao fundo. — Os ases estão ajudando os porcos a oprimir os curingas nesta rua — declarou para a câmera, gesticulando para o cordão da polícia que mantinha os manifestantes afastados. — Um ás matou a Crisálida, e é um curinga quem vai pagar por isso. Somos nós contra eles! Tachyon, você sabia o que estava sacrificando? Ela sabia. Esta era uma das razões por que estava disposta a arruinar sua carreira e a própria reputação ao comando dele. A outra era que ela obtivera vingança, e nada mais importava. O Titereiro estava morto — era assim que Hartmann chamava seu poder, dissera Tachyon. Ceifador o matara, drenando-o totalmente através dos olhos de Hartmann antes que Mackie Messer o decapitasse. O mal não estava morto. Ah, não. Não importava o quanto Gregg chorasse, nem o quanto alegasse amargamente ser inocente. O Titereiro havia sido a cristalização dos desejos do senador. Tais desejos ainda existiam. Mas Gregg não tinha mais a capacidade de puxar cordões e fazer as marionetes dançarem para satisfazer às suas necessidades. Foi isso que Ceifador tinha destruído. E Gregg nunca teria coragem para sair à noite com uma faca na mão. Sem seu poder, estava preso no inferno. Sara não queria mais que ele morresse. Agora, esperava que vivesse por muito, muito tempo. Sentou-se numa lata de lixo virada. Andi, pensou, isso é vingança suficiente, não é? Você não ia querer que eu arruinasse a vida de cada carta selvagem dos Estados Unidos só para lhe dar um pouco mais, ia? A vagabundinha mimada provavelmente ia querer, sim. Mas Andrea Whitman também estava morta. Sara balançou os cabelos pálidos como o inverno, tirando-os do rosto com as mãos. Uma brisa soprou pelo parque, quase fresca. Ergueu a cabeça e olhou para os restos do campo de batalha. Um policial negro cavalgava em torno do parque num capão baio. Ele a observou atentamente. Um porco procurando mais vítimas? Um homem apavorado tentando fazer seu trabalho? Era uma questão de opinião, e Sara Morgenstern não tinha mais opiniões. Vítimas… Os cordões do Titereiro tinham sido todos cortados. Mas ainda restava uma vítima de Gregg Hartmann. Ela se levantou e saiu do parque com uma determinação que parecia exótica a alguém que imaginara ter esgotado todos os seus propósitos. Jogou a máscara
numa lata de lixo com os dizeres: “Preserve a Beleza de Atlanta”. ♥ Tachyon fechou a porta da suíte de Gregg depois de entrar. O senador ergueu os olhos da mala Samsonite que estava arrumando. — Doutor — cumprimentou. — Estou surpreso por ter vindo tão rápido. Amy deve ter ligado para o senhor alguns minutos atrás… — Acho que senti que lhe devia isso. — O alienígena estava se controlando, tenso, o queixo erguido sobre uma gola de rufos rendados e uma vibrante camisa azul de estampa paisley. Apesar da pose, Tachyon estava claramente à beira da exaustão. A pele parecia pálida demais, os olhos, fundos e vazios. E Gregg notou que ele mantinha o toco do braço atrás do corpo. — Não sinto culpa pelo que fiz. Ficaria feliz em fazer de novo. Gregg assentiu. Fechou, afivelou e trancou a mala. — Vou buscar Ellen no hospital daqui a algumas horas — comentou, em tom casual. Colocando a bagagem no chão, apontou em silêncio para uma cadeira. Tachyon sentou-se. O olhar violeta estava completamente inexpressivo. — Bem, vamos à cena final deste pequeno drama. Mas depressa. Há outras pessoas que preciso ver. Gregg tentou encará-lo com ar superior. Era difícil sustentar o olhar intenso e inabalável do alienígena. — Você não pode dizer nada, sabe? Ainda não. Tachyon franziu o cenho, e seus olhos escureceram como se numa ameaça implícita. — Não, você não vai fazer isso — continuou Gregg, com a voz suave. — Se revelar à imprensa o que sabe sobre mim, provará que Barnett estava certo o tempo todo. Havia um ás secreto mexendo os pauzinhos no governo. O vírus carta selvagem é mesmo algo a ser temido. Os limpos precisam de alguma coisa que os proteja contra nós. Fale, doutor, e todas as antigas leis parecerão liberdade. Eu conheço você. Tive vinte anos para observá-lo e aprender como você pensa e reage. Não, você não vai falar. Afinal, foi por isso que fez o que fez na noite passada. — Sim, você tem razão. — Tachyon suspirou e levou o cotoco ao peito, como se aquela verdade lhe doesse. — O que fiz foi contra todos os meus princípios… alguns antigos, outros recém-descobertos. Não fiz nada levianamente ou por capricho. Você é um assassino e deveria pagar por isso. — Balançou a cabeça, cansado e frustrado. — E as naves deveriam ser estrelas, mas não são, e nada jamais poderá fazer com que sejam. — Que diabo é isso? A versão takisiana do leite derramado? — Gregg andou de um lado a outro pelo quarto, depois se virou para encarar o alienígena. — Olhe, você precisa saber de uma coisa. Não fui eu. Foi o Titereiro. O poder do carta selvagem. Foi tudo o carta selvagem. Não eu. Você não entende o que era tê-lo dentro de mim. Eu precisava alimentá-lo, ou ele me destruiria. Teria dado qualquer coisa para me livrar dele, e agora isso aconteceu. Posso recomeçar do zero, posso iniciar…
— Quê? — interrompeu o rugido de Tachyon. — Sim. O Titereiro está morto. Na noite passada, no palco, Ceifador acabou com ele. Olhe dentro de mim, doutor, e me diga o que vê. Não precisava me arruinar: o mal já tinha sido eliminado. Na hora em que você dominou minha mente, eu estava livre. — Gregg olhou para as próprias mãos. Um sofrimento profundo transbordava de seus olhos marejados, que encaravam os de Tachyon. — Eu teria sido um bom presidente, doutor. Talvez até um ótimo presidente. Tachyon o encarou com um olhar de aço, implacável. — Gregg, não havia um Titereiro. Nunca houve. Havia apenas Gregg Hartmann e sua fraqueza, um homem tocado por um vírus alienígena, que recebeu um poder por meio do qual pôde nutrir os desejos mais sombrios da própria alma. Seu problema não é ser um carta selvagem, Gregg. Seu problema é ser sádico. Essa sua frágil desculpa é quase uma transferência clássica de culpa. Você construiu uma sombra para poder fingir que, de alguma forma, Gregg ainda era puro e decente. É um truque infantil. É uma ilusão infantil, e você é mais inteligente que isso. As palavras duras de Tachyon foram como um tapa. Gregg corou, furioso por não ser compreendido. Era tão óbvio. Parecia impossível que Tachyon não pudesse ver a diferença. — Mas ele morreu! — gritou Gregg, desesperado. — Vou provar a você. Vá em frente — insistiu. — Estou pedindo. Olhe dentro de mim e me diga o que vê. Tachyon suspirou. Fechou os olhos, então tornou a abri-los. Deu as costas a Gregg, andando em silêncio pelo quarto por um longo minuto, depois parou perto das janelas. Quando o encarou novamente, foi com uma estranha compaixão. — Está vendo? Eu disse — afirmou Gregg, quase rindo de alívio. — O Titereiro morreu na noite passada. E eu estou feliz. Estou feliz demais. Sentiu a risada ganhar um toque de histeria, então respirou fundo. Olhou para Tachyon, que o fitou com rigidez. Gregg se apressou a continuar: — Meu Deus, que merda, as palavras são tão inadequadas e idiotas, mas é verdade. Eu sinto muito. Sinto muito por tudo e gostaria de fazer o possível para começar a me redimir. Doutor, fui obrigado a fazer coisas que odeio. Perdi um filho porque Gimli usou o Titereiro contra mim, eu… — Você não está me ouvindo. Não havia Titereiro, e Gimli morreu um ano atrás. Não havia nem Gimli. Levou vários segundos até o impacto daquelas palavras atingi-lo. — Quê? — balbuciou. A negação veio feroz, desesperada e furiosa. — Você não sabe a merda que está dizendo, doutor. O corpo de Gimli morreu, mas a mente dele, não. Ele encontrou meu filho. Entrou na minha cabeça, quase me fez perder qualquer controle sobre o Titereiro e tudo… foi assim que começou. Ele me ameaçou, disse que ia fazer o Titereiro destruir a mim e a minha carreira. — Gimli morreu há um ano — repetiu Tachyon, irredutível. — Morreu completamente. Você mesmo inventou esse fantasma, assim como inventou o Titereiro. — Mentira! — A palavra saiu num grito. O rosto de Gregg se retorceu de raiva. Tachyon apenas o encarou, friamente.
— Estive na sua mente, senador. Conheço seus segredos. Sua personalidade é dissociativa. Você negou a responsabilidade sobre os próprios atos ao criar o Titereiro, e, quando isso ameaçou sair do controle, precisou de outra desculpa: Gimli. — Não! — gritou Gregg, mais uma vez. — Sim — insistiu Tachyon. — Vou lhe dizer de novo. Nunca houve Gimli, nunca houve Titereiro. Só Gregg. Tudo que você fez, fez sozinho. Hartmann balançou a cabeça, negando loucamente. Seu olhar suplicava, ferido e vulnerável. — Não — repetiu, num sussurro. — Gimli estava lá. — Os olhos se arregalaram de repente, assustados. — Eu… eu não teria matado meu próprio filho, doutor. — Mas matou — respondeu Tachyon, e viu no olhar de Gregg as feridas profundas que cada palavra rasgava na alma do homem, ainda que ele não admitisse. Em desafio, Hartmann já se forçava a simular calma e autocontrole. Alisou o cabelo para trás com a mão. — Doutor, não sei o que quer que eu faça. Mesmo considerando que eu desse algum crédito ao que está dizendo… — Procure ajuda. Concentrado nas próprias palavras, Hartmann quase não ouviu as de Tachyon. — Hã? — Procure ajuda, Gregg. Vá a um terapeuta. Eu posso ajudar a encontrar um… — De repente, Tachyon percebeu como isso era impossível. Teria de revelar segredos demais a um terapeuta, e tudo viria à luz. De alguma forma, tudo se explicaria. O rosto de Tachyon se franziu de frustração. Não gostava da única resposta que conseguia ver. — Vamos passar muito tempo juntos, Gregg. — Como assim? — A partir de agora, sou seu médico. Você está sob meus cuidados. Gregg deu uma risada repentina, dando as costas ao doutor. — Não — respondeu. — Nananinanão. Não preciso de psiquiatra, o Titereiro se foi. Você nem é humano, doutor. Duvido que seja qualificado para agir como psicólogo. — Considere isso como um compromisso. Garanto meu silêncio. — Eu já disse, o poder se foi. A culpa era do poder. — E vamos nos esquivar outra vez? Admita que o que estou dizendo é verdade, Gregg. Você não consegue nem mesmo me encarar. Eu vi sua culpa. Você pode negar até para si mesmo, mas eu sei a verdade. É hora de começar a encarar os fatos. Um longo silêncio se estendeu entre os dois. Finalmente, Gregg disse: — Está bem, doutor. Vamos firmar um compromisso, os políticos estão acostumados a isso. Seu silêncio pelo meu dinheiro, hein? Imagino que você vá precisar de clientes pagantes, depois que a verba for retirada. Tachyon não se dignou a responder ao insulto. — Entrarei em contato com você assim que voltar a Nova York.
— Ótimo. — Hartmann suspirou. Tentou dar aquele sorriso profissional, mas falhou. Andando até a mala, jogou-a em cima da cama. — Bom, então é isso. Vou buscar Ellen. Ela está confusa e magoada com tudo isso, o que é compreensível. — O sorriso constrangido surgiu outra vez. — Vou dizer a ela que sinto muito. Por enquanto, adeus. Acho que vou vê-lo em breve… Hartmann estendeu a mão para Tachyon. O doutor encarou a mão oferecida com amarga incredulidade. Ponderou se não seria uma última piada cruel de Gregg. Ei, tudo está perdoado. Vamos apertar as mãos e fazer as pazes. Amigos novamente. Eu não posso apertar sua mão, desgraçado. Você cuidou disso. De repente, Hartmann percebeu o que fizera e recolheu a mão. Não disse nada. Foi até a porta e a abriu. Saíram do quarto juntos. — Me acompanha até o elevador? — perguntou Hartmann. — Não. — Vou telefonar para marcar aquele encontro, então. Tachyon o viu se afastar — um homem flácido, com sobrepeso e calva pálida, os cabelos brancos recuados, parecendo asas. Sempre pensara em Gregg como um homem dinâmico e bonito. Agora, percebia que isso também fora uma consequência do seu poder. Será que errei em contar a verdade sobre esse poder? Talvez tivesse sido mais simples deixá-lo acreditar que fora possuído por Gimli e pelo Titereiro. NÃO! Ele escapou da punição. Não deixarei que escape da culpa. Mas, para todos os efeitos, o Titereiro estava morto. Agora, dependia de Tachyon mantê-lo assim. Isso significava que precisava continuar perto de Gregg Hartmann. A ideia era nauseante. O alienígena foi até a escada. O braço latejava outra vez, garras de dor que pareciam rasgar o membro e penetrar o ombro. Este pode muito bem ser o lugar onde Jack morreu, mais cedo, pensou, cansado. E, bem ali embaixo, Gregg matara o próprio filho. Eu também estou morto. Mas ninguém percebeu, porque ainda estou andando por aí. Oito dias em julho. Oito dias para perder tanto: a amizade mais antiga no planeta, a crença e o respeito por Gregg Hartmann, o amor e o respeito de seus curingas. A mão. A inocência. Mas Jack não morrera. E ele também não — não ainda. — Pare de sentir pena de si mesmo, Tis, e siga em frente com sua vida. Mas tenho que lidar com Hartmann!, gritava sua mente. — Um caso difícil. Um dia, depois que ele estiver morto e enterrado, você pode apresentar um artigo sobre ele na Associação Médica Norte-Americana. Começou a descer a escada.
11h00
— Não preciso disso! — Deixa de ser babaca, Vossa Excelência Real takisiana. — Jack armou a cadeira e a colocou junto à cama de Tachyon, no hotel. — Passei a manhã toda sem você nem essa cadeira de rodas maldita. — É, e olhe só, parece uma bola de vômito de gato. — Você deveria estar lá fora procurando por Blaise — disse Tachyon. Estava apoiado em travesseiros, pálido e sofredor. Jack suspirou. — A polícia está procurando por ele. O FBI foi avisado. Até aquele babaca cretino do Flecha Aprumada está fuçando por aí. O que eu posso fazer que eles não possam? O rosto de Tachyon estava atormentado. A única mão se agarrava às cobertas. — Preciso encontrar meu neto. Preciso. Ele é tudo que me resta. Jack sentou-se na poltrona do quarto e pegou um cigarro. — A polícia disse que ele estava com o tal do Popinjay, aquele Jay Ackroyd, no hospital, sábado à noite, depois da sua cirurgia. Estavam vendo TV na sala de espera. Uma das enfermeiras lembra que alguma coisa na TV chamou a atenção deles, e aquele Popinjay virou para o Blaise e disse. “Quer brincar de detetive?”. Ou coisa parecida. — Pelo Ideal. — Tachyon mordeu o lábio. — Se Popinjay tiver envolvido meu neto numa de suas intrigas… — A polícia está tentando descobrir a que canal eles estavam assistindo. — Jack balançou a cabeça. — Eu também não estava lá pra ajudar. Estava numa festa no sábado. — A depressão o invadiu. — Achei que o candidato certo tivesse sido nomeado. — Venho tentando telefonar para Hiram — comentou Tachyon. — Pensei que ele pudesse ter visto Blaise, mas ele também desapareceu. — Ele foi embora ontem de manhã. — Não, não foi. Eu perguntei, e ele não registrou a saída do hotel. — Eu o vi no lobby. Estava carregando uma mala. Tachyon franziu o cenho. — Jay e Hiram são melhores amigos. Se Ackroyd estivesse em apuros, Hiram seria a primeira pessoa que ele procuraria. — Tach caiu num silêncio pensativo. — Já que todos eles desapareceram, não vão nos ajudar muito. O que você precisa é de descanso. Tachyon se reclinou nos travesseiros. — Tem razão. — Fechou os olhos. — Talvez eu deva tentar detectar outra vez a assinatura mental de Blaise. Por favor, pode apagar as luzes? Talvez ajude a me concentrar. — Então acrescentou, numa voz quase inaudível: — Estou cansado.
Muito, muito cansado. — Vai atrapalhar se eu tomar um gole de bourbon? — De forma alguma. Jack apagou a luz, deixando apenas o raio de sol que entrava sob as cortinas, e levou o cigarro até as garrafas na mesa de Tachyon. Pôs gelo num copo e tateou a escuridão em busca de uma garrafa. O primeiro frasco que encontrou tinha as cinzas de James Spector. Deixou a urna de lado e pegou outra garrafa. Parecia ter um líquido da cor certa. Serviu-se. Uísque. Droga. Com certeza era um daqueles dias. ♣ Tudo parecia muito estranho. Gregg não conhecia os agentes do Serviço Secreto que o acompanhavam na limusine alugada para o hospital onde Ellen estava. Os rostos não eram familiares, e eles não conversavam. Eram estranhos, ocultos e mascarados pelos óculos escuros, ternos azul-escuros e expressões sombrias. Sempre seriam estranhos. A mente deles estava trancada, e Gregg não tinha mais a chave para abri-la. Era muito estranho ter todo aquele silêncio na própria cabeça, ser incapaz de sentir a maré vazante dos sentimentos ao redor, achar impossível nadar no oceano salgado e brilhante da emoção, não conseguir alterar suas correntes ágeis. Isso deve ser parecido com ficar cego ou surdo de repente. Chamou de novo, mentalmente: Titereiro? Mais uma vez ouviu apenas o eco dos próprios pensamentos. Morto. Acabado. Gregg suspirou, sentindo-se perdido, triste e esperançoso ao mesmo tempo. Olhava as pessoas ao redor. Elas o tocavam, mas ele se sentia isolado. Apartado. Não sabia se um dia se acostumaria a isso. Tudo que queria era fugir do forno de Atlanta, voltar para casa, ficar sozinho e pensar. Ver se conseguia curar algumas das feridas e começar de novo. Não foi culpa minha. Não mesmo. Foi o Titereiro, e ele está morto. Isso deveria ser castigo suficiente. Gregg não sabia exatamente o que diria a Ellen. Ela, pelo menos, tentara consolá-lo na noite anterior. Ela, pelo menos, dissera que estava tudo certo, que não importava, que tudo voltaria a ficar bem. Mas, por trás das palavras, sabia que ela queria saber por quê — e ele não sabia como explicar. Ellen se importava com ele. Gregg sabia disso por causa do Titereiro, mas já tinha visto o amor que ela lhe dava mesmo sem a ajuda do poder. Sim, contaria a ela pelo menos uma parte da verdade. Diria que sim, era um ás, que havia abusado da habilidade de ampliar o próprio poder, manipulado as pessoas. Sim, até ela. Mas nem tudo. Havia partes que não podia contar. A morte, a dor e a violência. O que fizera com ela e com o próprio filho. Isso não, pois aí não restaria mais esperança. Ellen era a única coisa que Gregg podia resgatar deste naufrágio. Era a única pessoa que o ajudaria a
encontrar o caminho. Precisava dela. Sabia exatamente a magnitude dessa necessidade pelo revirar em seu estômago e pelo medo gelando as entranhas. — Senador? Chegamos. Estavam na entrada lateral do hospital. O agente que ia com ele no banco traseiro abriu a porta. O calor e a luz do sol o atingiram como um soco quando ele saiu do veículo, piscando por trás dos óculos escuros. Inclinou-se para o interior fresco cheirando a couro para falar com o motorista. — Voltaremos daqui a pouco. Só vamos pegar Ellen e as coisas dela… — Senador — disse um dos guarda-costas do lado de fora. — Não é ela ali? Gregg se levantou para ver Ellen saindo do hospital numa cadeira de rodas, cercada por um aglomerado de repórteres, seus próprios agentes do Serviço Secreto afastando a multidão de câmeras fotográficas e filmadoras. Ele franziu o cenho, intrigado. O calor que ondulava sobre o asfalto esfriou: atrás de Ellen, viu Sara. A mulher estava de pé lá dentro, o rosto colado às portas de vidro. — Não — sussurrou Gregg. Correu até Ellen, os agentes abrindo caminho entre os repórteres ao redor dela. Viu a mala da esposa ao lado da cadeira de rodas. Quando se aproximou, ela se levantou. Gregg sorriu para as câmeras e tentou ignorar o espectro de Sara a poucos passos de distância. — Querida — chamou. — Amy te ligou…? Ellen o encarou, e a voz dele sumiu. A mulher o examinou longa e intensamente. Então, desviou o olhar. A boca era uma linha reta e fina, os olhos escuros pareciam severos e solenes, e um desprezo amargo espreitava por trás deles. — Não sei se tudo que Sara me contou é verdade — declarou, rouca. — Não sei, mas vejo alguma coisa em você, Gregg. Só queria ter visto isso anos atrás. — Estava chorando, indiferente e alheia aos repórteres que os rodeavam. — Maldito seja, Gregg. Maldito seja para sempre, pelo que fez. A mão golpeou inesperadamente. O tapa jogou a cabeça de Gregg para o lado e lhe trouxe lágrimas aos olhos. Ele tocou o rosto vermelho, atordoado. Ouviu as câmeras e o burburinho animado dos jornalistas. — Ellen, por favor… — começou, mas ela não estava ouvindo. — Preciso de um tempo, Gregg. Preciso ficar longe de você. — Pegou a mala e passou por ele na direção de um carro que a esperava. Por trás das portas de vidro, Sara atraiu seu olhar quando ele tirou a mão do rosto dolorido. Desgraçado, declarou a repórter, sem palavras, então deu-lhe as costas. — Ellen! — Gregg deu meia-volta, a imagem da acusação de Sara perseguindo-o. — Ellen! A esposa não olhou para trás. O motorista colocou a bagagem no porta-malas. Os guarda-costas seguraram a porta aberta para ela entrar. Com o Titereiro, Gregg poderia tê-la detido. Poderia tê-la feito correr de volta para seus braços numa reconciliação feliz e gloriosa. Com o Titereiro, poderia ter escrito um final feliz. Ellen entrou no carro e afundou no banco.
O carro partiu.
12h00
O maître esperara em vão por uma nota de cem. O hotel se esvaziara, e o Bello Mondo não estava mais lotado. Jack trouxera Tachyon para almoçar, mas não conseguia fazê-lo comer. Metade de um filé de linguado estava abandonada no prato. Jack terminou seu bife de fraldinha. — Coma, meu filho, coma. Era o que minha mãe costumava dizer em alemão. — Não estou com fome. — Você precisa recuperar as forças. Tach olhou feio para ele. — Quem de nós dois é o médico? — indagou o alienígena. — Quem de nós dois é o paciente? A resposta de Tachyon foi um silêncio pétreo. Jack finalmente tomou um gole do bourbon. Os olhos violeta foram se suavizando. — Sinto muito, Jack . A ansiedade arruinou minhas boas maneiras. — Tudo bem. — Estou lhe devendo um agradecimento. Por isso. Por tentar encontrar Blaise. — Só gostaria de poder encontrá-lo. — Jack apoiou os cotovelos na mesa e soltou um suspiro. — Gostaria que algo de bom saísse de tudo que passamos. — Pode haver alguma coisa. — A presidência para George Bush, com certeza. — Jack olhou para o prato. — É a última atividade política na qual vou me envolver. Toda vez que tento mudar o mundo, dá merda. Tachyon balançou a cabeça. — Não tenho como confortá-lo, Jack . — Eu só estraguei tudo. Até morri, pelo amor de Deus. E a única coisa que fiz direito, fiz para o homem errado. — Tomou outro gole. — Acho que estou mais confuso do que nunca. Que inferno. — Outro gole. — Pelo menos sou rico. Neste mundo, a gente sempre pode recorrer ao dinheiro. — Jack recostou-se na almofada. — Talvez eu escreva minhas memórias. Ponha tudo no papel. Aí, talvez eu saiba, pelo menos, o que significam. Um livro de memórias, pensou o alienígena. Meu Deus, ele já está tão velho assim? Quando Jetboy morreu, Jack tinha 22 anos e parecia mais jovem. Desde então, não havia envelhecido. Pelo menos, tinha visto algumas coisas. Fora um astro do cinema. Mudara o mundo, muito antes de tudo ruir. Salvara muitas vidas na Coreia, e isso depois de se tornar um imbecil de marca maior. Até assistira Sonhos dourados. Era um momento tão bom quanto qualquer outro para começar suas memórias, refletiu. Quando Jetboy morreu, eu estava vendo Sonhos dourados.
Por um longo tempo, ninguém se pronunciou. Jack percebeu que Tachyon estava cochilando. Pagou a conta e empurrou a cadeira de rodas para fora do restaurante, seguindo para os elevadores. No caminho, viu o homem que vendia planadores no shopping, a mesa dobrada e a mercadoria enfiada num par de sacos de papel, conversando com um amigo. Jack estacionou a cadeira e comprou toda a coleção. Quando voltou, carregando os planadores, viu que Tachyon estava acordado. Mostrou as compras. — Para Blaise — disse. — Quando nós o encontrarmos. — Bendito seja, Jack. Pela primeira vez na semana, Jack encontrou o elevador à espera. Apertou o botão do andar de Tachyon, e a onda de vertigem quase o derrubou quando o elevador de vidro decolou. Para não pensar em alturas, começou a montar um planador. Um Earl Sanderson de isopor olhou duramente para ele por detrás dos óculos de aviador. Jack se perguntou, sombrio, se, mesmo após todos esses anos, tinha algo a dizer para Earl. Além de pedir desculpas, é claro. Melhor começar com o básico. O elevador deu um solavanco, e o estômago de Jack também pulou. As portas se abriram e, chocado, Jack viu David Harstein entrar no elevador. Tachyon revirou os olhos culpados para ele. Jack teve a sensação de que o próprio rosto tinha a mesma expressão de inocência estúpida, exagerada. — Você sabe — disse Tachyon. — Você sabe? — respondeu Jack . — Ei, todos nós sabemos — corrigiu David, com cordialidade calorosa. A cabine de vidro subiu rumo ao céu. O estômago de Jack pulou de novo. Sentia o suor porejando da testa. Procurou alguma coisa para dizer. O elevador parou de supetão mais uma vez. A porta se abriu, e Fleur van Renssaeler entrou, olhando para trás e acenando ao se despedir de um amigo. A porta se fechou, e Fleur se virou. Todos pararam de respirar por um longo momento. O elevador subiu sacudindo. De repente, Tachyon ergueu o braço direito, apertando o botão PARAR com o toco enfaixado. O alienígena soltou um uivo animalesco de dor. David se ajoelhou depressa ao lado da cadeira de rodas enquanto o elevador parava de vez. — Calma, não dói. E é claro que não doía. Ou, pelo menos, não importava. Tachyon piscou várias vezes para reprimir as lágrimas. — David Harstein — comentou Fleur, numa voz inexpressiva. ♠ Tach sentiu um calafrio percorrê-lo. — Acabei de me lembrar de quando eu era pequena. — Fleur deu um sorriso amarelo. — O homem que perdeu a China para os comunistas. E, por todos esses anos, você estava só se escondendo atrás daquela barba. Sorrindo novamente, voltou-se para Jack.
— Um velho amigo da família — comentou, com desdém. O ás grandalhão tirou um lenço e enxugou a testa. — Pareceu uma boa ideia na época — murmurou. O planador de Earl Sanderson pendia frouxo e esquecido da mão de Jack. Tachyon estendeu a mão e o pegou. Colocou-o gentilmente no colo. — Em nada mais encontro tanta alegria — disse David — como possuir um coração que não se esquece de seus amigos. Tach olhou para ele. — Sim, todos os fantasmas se reuniram. Fleur fitou Tachyon com olhos fundos. — Eu não sou minha mãe! — Você tem os olhos do seu pai — comentou David, com a voz gentil. Era uma declaração simples. Sem acusação. Sem significado oculto. Deixoua confusa, insegura, a agressividade se esvaindo. — Você não me conhece — sussurrou ela. — Não — respondeu David. — Infelizmente. Por um momento, Fleur pareceu ter vontade de abraçá-lo. Na verdade, Tachyon queria abraçá-lo. O silêncio cresceu como teias de aranha entre os quatro. Fleur olhou nos olhos escuros e bondosos de David. As lágrimas afloraram e escorreram pelo rosto feminino. Mas o medo voltou. Ela apertou o rosto com as mãos e recuou. — Não, não faça isso comigo. Tachyon suspirou. — Precisamos conversar, Fleur. — Eu vou gritar. — Sua voz soava como uma ameaça amedrontada. — Por favor, não grite — pediu David. — Não há nada a temer. Fleur se aquietou, mas ainda conseguiu dizer: — Eu tenho muito a temer, sim. Estou sozinha com vocês. — Somos tão medonhos assim? — perguntou David. — Um ator velho, um homem maneta… — olhou para Jack — … e um fracote. — Ei! — protestou Jack, mas parou e coçou o rosto, pensativo, enquanto considerava e depois admitia a verdade nas palavras de Harstein. Fleur cruzou os braços, abraçando os cotovelos. — Vocês não entendem. Não entendem mesmo, não é? — Os três olharam para ela. — Vocês ficam aí com esses poderes que podem nos ferir e nos mudar, e se perguntam por que temos medo. Jack olhou com certa confusão para o planador nas mãos de Tach. Falou em voz baixa, escolhendo cada palavra com cuidado: — Acho que Earl diria que não se pode ter medo de uma pessoa só porque ela é diferente, porque nunca se pode traçar um limite claro. Você tem medo das pessoas por que elas têm o carta selvagem, por que têm crenças diferentes, ou por que têm a cor de pele errada…? — Tenho medo porque elas podem me machucar — insistiu Fleur. — Há muitas pessoas que podem machucar você — respondeu Jack —, e poucas têm o carta selvagem. — Falar é fácil, quando você é uma delas. Você sabe como seu povo nos
chama. Os limpos. Mas o nome não engana. Para vocês, somos cobertos de uma sujeira imaculada. Uma limpeza que incomoda, só esperando vocês nos sujarem. Temos que obedecer a lei e tratá-los bem. Mas essas mesmas leis não se aplicam a vocês. Vocês não têm que tratar bem os limpos. Não com todo esse poder. — Fleur — disse David. — É você quem tem todo o poder aqui. Minha vida está em suas mãos. Ela hesitou por um longo tempo, olhando para ele. O som do alarme foi como um picador de gelo cravado no crânio. — Não precisa se preocupar — disse, por fim. — Está a salvo de mim. David assentiu, como se soubesse o tempo todo. — Acione o elevador — sussurrou ele. Tachyon se virou, desajeitado, e apertou o botão. O elevador estremeceu e voltou a subir. — Sem querer jogar um balde de água fria nesse momento tão lindo — disse Jack para David —, mas lembra-se do Mao? Mao Tsé-Tung, o cara chinês? Cedo ou tarde vamos ter que deixá-la sair deste elevador, e aí ela vai contar para todo mundo. — É o direito dela. Isso tirou Tachyon do estado sonhador que parecia contê-lo. — Não. David voltou os olhos escuros para ele. — Sim — respondeu gentilmente. — Eu conhecia o risco. Já paguei o preço. Estou preparado para pagar de novo. Chegaram ao andar dela. As portas se abriram. Ela saiu. — Fleur — chamou Jack Braun. — Pense duas vezes antes de começar a citar nomes. Eu não pensei. Ainda estou pagando por isso. Fleur olhou para todos por um longo tempo. Tach se perguntou no que estava pensando. Era fácil descobrir. Melhor não saber. Ela saiu sem dizer nada. As portas se fecharam. Tachyon olhou para os números brilhando no painel. — Devemos estar loucos para deixá-la ir embora assim — disse Jack. — Às vezes é preciso apostar nas pessoas — respondeu David. — Ela é filha do pai dela! Tachyon se agitou na cadeira de rodas e devolveu o avião de Earl Sanderson a Jack, dizendo: — E da mãe dela também. O elevador, com sua carga de fantasmas e sobreviventes, continuou a subir rumo ao céu.
George R. R. Martin
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