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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS PERFÍDIAS DA CORTE / Anne e Serge Golon
AS PERFÍDIAS DA CORTE / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

"Você é tão bela, tão mulher!" sussurra o enamorado marquês. "Eu sou apenas um soldado!"

Angélica em Versalhes!

Depois de desposar o primo, o cruel Marquês Filipe du Plessis-Bellière, finalmente a ambiciosa Marquesa dos Anjos fora admitida na corte. Levada pela mão do próprio Luís XIV, sentara-se entre as princesas de sangue. Os cortesãos inclinavam-se à sua passagem.

Contudo, apesar da euforia da vitória, Angélica não se esquecera do passado difícil, nem da promessa de que seus filhos nunca mais conheceriam a miséria. Ela própria voltaria a ser uma das mulheres mais prestigiadas do reino.

A pedido do rei, tentaria apagar de seu coração qualquer traço de amargura. Muito embora soubesse que o fogo de verdadeiro amor - a paixão pelo infeliz Conde Joffrey Peyrac - jamais se extinguiria.

Se o destino queria que recuperasse as forças na embriaguez de seu êxito e no triunfo de sua beleza, deixaria para mais tarde a retomada de seu caminho. Por ora, nada a intimidava: nem a cólera de Filipe, nem os perigos ocultos. Afinal, o próprio rei era seu maior aliado...

Verão de 1668. Versalhes está em festa. Os maiores artistas da França, de Lully a Molière, devem dar ao espetáculo um luxo sem igual. Luís XTV quer celebrar a gloriosa conquista de Flandres aos espanhóis.

A Europa, surpresa, volta os olhos para o jovem soberano, por muito tempo considerado um reizinho sem importância. Já ouviu falar de seu fausto. Agora descobre seu maquiavelismo político.

Na corte, o favor do rei é a vida ou a morte. Por um duelo, a pena é a Bastilha. Luís XIV tudo quer saber e em tudo interfere pessoalmente. Sua curiosidade e ilimitada, assim como sua disposição. Entre os deslocamentos de um castelo a outro, até que Versalhes se consagre como residência definitiva, o Rei-Sol, adorado como um deus, trabalha incansavelmente.

O rei também é um destemido, que vai pessoalmente ao campo de batalha. E caça, e joga, e se diverte, entregando-se às amantes com um vigor que se prolongará até o fim de seu longo reinado de 54 anos.

É nessa corte que Angélica se apresentará mais bela e singular que nunca, acumulando favores e honrarias. Enquanto as línguas afiadas não chegam a um acordo sobre o nome da nova favorita do rei...

Angélica atingira seu objetivo: era de novo uma grande dama, aceita na corte. Para tanto, tivera de chantagear o primo, obrigando-o a desposá-la. O cobiçado e. cruel Marquês Filipe du Plessis-Bellière, em sua cólera, seria capaz de tudo para vingar-se. A noite de núpcias fora um verdadeiro tormento: o marido quase a matara a chicotadas! Contudo, nada mais importava. Angélica estava em Versalhes e podia circular entre as princesas de sangue e as favoritas do rei.

 

 

 

 

Rapto de Angélica

Angélica dormitava, tendo o espírito agitado por alegres proje-tos, como uma garotinha na véspera de Natal. Por duas vezes levantou-se, pegou de um isqueiro e acendeu uma vela para contemplar, dispostos sobfe poltronas perto da cama, os dois trajes que usaria no dia seguinte, durante a caçada real e o baile que se seguiria. Estava bastante satisfeita com o traje de caça. Havia orientado o alfaiate para que este desse ao gibão de veludo cinza-pérola um corte masculino que contrastasse com a delicadeza das formas da jovem mulher. O grande chapéu mosqueteiro era de feltro branco, com uma alva cascata de plumas de avestruz. Mas o que mais agradava a Angélica era a gravata, um novo detalhe de vestuário com o qual contava bastante para atrair as atenções e espicaçar a curiosidade das grandes damas da corte. Consistia em um grande laço, feito de uma faixa de cambraia engomada, delicadamente bordada com pérolas minúsculas, que, após ter dado várias voltas ao redor do pescoço, desabrochava em forma de borboleta. A ideia viera-lhe na véspera. Ela hesitara longamente diante do espelho, amarrotara pelo menos dez gravatas entre as mais belas que o merceeiro da Boète d'Or lhe havia enviado, e por fim decidira-se a amarrar a fita a la cavalière, porém num laço maior que aquele usado pelos homens. Em sua opinião, axolarinho rijo do gibão de caça não se adequava às feições femininas. Aquela brancura enevoada sob o queixo daria um toque de feminilidade ao traje.

Angélica deitou-se, revirando-se na cama muitas vezes. Pensou em tocar uma sineta e pedir uma tisana de verbena a fim de poder conciliar o sono. Precisava dormir ao menos algumas horas, pois o dia seguinte seria cansativo. O encontro para a caçada teria lugar no final da manhã, nos bosques de Fausse-Repose. Angélica, como todos os convidados do rei que vinham de Paris, devia pôr-se a caminho logo ao alvorecer, a fim de se encontrar à hora prevista, junto com as equipagens vindas de Versalhes, no Carrefour des Boeufs. Era ali, no coração da floresta, que ficavam as cavalariças para onde os privilegiados enviavam de antemão seus animais de sela, que estariam então descansados quando chegasse o momento da caça ao cervo. Naquele mesmo dia, Angélica tivera o cuidado de para lá enviar, acompanhada por dois lacaios, sua preciosa égua Ceres, puro-sangue da Esparlha pelo qual havia pago mil pistolas.

Ela levantou-se e reacendeu a vela. Decididamente o traje de baile era o de melhor efeito. Em cetim rosa-fogo, com uma capa de um "aurora" mais intenso, e um plastrão rebordado com delicadas flores de nácar rosa. Como adorno escolhera pérolas rosa: em cachos para os brincos, em cordão de três voltas para o pescoço e os ombros, em diadema sob a forma de meia-lua para os cabelos. Tinham sido adquiridas de um joalheiro a quem Angélica tinha afeição, porque ele lhe falava dos mares quentes de onde vinham aquelas pérolas, das demoradas transações, difíceis avaliações, e das longas viagens por elas feitas, escondidas em saches de seda que passavam pelas mãos de mercadores árabes, gregos e venezianos. Aquele comerciante quintuplicava seu valor com a habilidade que possuía de dar a cada pérola o preço da raridade e a impressão de que fora roubada do jardim dos deuses. Apesar da fortuna que fora obrigada a despender para tornar-se sua proprietária, Angélica não remoía nenhum desses pensamentos atormentados que costumam seguir-se às transações muito disparatadas. Contemplou as pérolas com deslumbramento, em seus escrínios de veludo branco, sobre a mesa-de-cabeceira.

Todos os objetos delicados e preciosos que a vida podia oferecer despertavam sua gula. Nesse apetite de posse figurava-se a desforra pelos anos de miséria que conhecera. E por milagre ela não chegava muito tarde. Ainda estava em tempo de se adornar com os mais belos adereços, de vestir as roupas mais suntuosas e de se fazer rodear por móveis, tapeçarias e bibelôs saídos das mãos de afamados artesãos.

Tudo muito custoso, mas bem escolhido, com o gosto de uma mulher experimentada, porém não desiludida.

Seu entusiasmo continuava intacto. Ela se maravilhava às vezes, e agradecia aos céus em segredo, por jamais ter saído amargurada de suas provações. Ao contrário, seu espírito permanecia juvenil.

Possuía mais experiência do que a maior parte das jovens mulheres de sua idade, e menos desilusões. Sua vida estava semeada de prazeres cultivados e maravilhosos, como os conhecem as crianças. Quem jamais conheceu a fome pode regozijar-se em morder um pedaço de pão quente? E quem caminhou de pés nus pelas ruas de Paris, e chegou um dia a possuir semelhantes pérolas, não se deve acreditar a mulher mais feliz do mundo?

Novamente assoprou a vela e, deitando-se entre os finos lençóis que recendiam a íris, estirou-se pensando: "Como é bom ser rica, e bela, e jovem...!"

Não acrescentou "e desejável", pois isso lembrou-lhe Filipe, e sua alegria apagou-se-como sob a passagem de uma nuvem sombria.

Um profundo suspiro inflou-lhe o peito.

"Filipe!"

Que desprezo não lhe tinha ele! Rememorou os dois meses vividos depois de seu casamento com o Marquês du Plessis-Bellière, e a situação bizarra na qual se encontrara por sua própria culpa. Com o retorno da corte a Saint-Germain, no dia seguinte àquele em que Angélica fora recebida em Versalhes, ela própria tivera que voltar a Paris. Deveria, evidentemente, instalar-se na mansão de seu marido, no Faubourg Saint-Antoine, mas ao se dirigir para o local, depois de muita hesitação, encontrara a porta fechada. O suíço dissera-lhe que seu mestre seguira com o rei e a corte, e que não havia ordens com relação a ela. A jovem fora obrigada a se reinstalar na Mansão do Beautreillis, que tinha sido de sua propriedade. Ali vivia desde então, esperando um novo convite do rei que lhe permitisse encontrar sua posição na corte. Mas nada havia chegado, e ela começava a se sentir cada vez mais inquieta, quando um dia, encontrando na casa de Ninon a Sra. de Montespan, esta lhe dissera:      

- Que se passa, minha cara, você está perdendo a razão? E o terceiro convite do rei que negligencia. De uma feita você tinha a febre terçã, de outra, era o seu estômago que lhe dava vapores, ou então um botão sobre o nariz prejudicava sua beleza e você não ousava se apresentar. São desculpas mesquinhas, e que o rei não pode levar em consideração, pois tem horror às pessoas doentes. Você acabará por aborrecê-lo.

Fora assim que Angélica tivera conhecimento de que seu rnari-do, instado pelo rei a levá-la a diferentes festas, não somente nada lhe dissera como ainda a ridicularizara diante do soberano.

-       Em todo caso, previno-a - havia concluído a Sra. de Montespan - de que ouvi com meus próprios ouvidos Q rei manifestar ao Marquês du Plessis o desejo de vê-lá participar da caçada de quarta-feira. "E cuide para que a saúde da Sra. du Plessis-Bellière não a faça negligenciar mais uma vez nossas atenções, ou então eu mesmo me encarregarei de aconselhá-la por escrito a que retorne para sua província." Em suma, você está à beira da desgraça.

Aterrorizada, depois furiosa, Angélica não tardara a arquitetar um plano para reparar a situação comprometedora. Iria à caçada e colocaria Filipe diante do fato consumado. E se o rei lhe fizesse perguntas, então diria a verdade. Filipe, diante do rei, só poderia se curvar. Debaixo de grande mistério havia feito seus trajes novos e preparado o envio da égua e sua partida em coche, no dia seguinte, ao alvorecer. Um alvorecer que não tardaria a chegar sem que tivesse podido fechar os olhos. Obrigou-se, então, a cerrar as pálpebras, a não pensar em mais nada, e pouco a pouco mergulhou docemente no sono.

De repente, seu pequeno cão griffon Arius, enrodilhado sob a colcha, estremeceu e, pondo-se em pé bruscamente, começou a esganiçar. Angélica agarrou-o e enfiou-o sob as cobertas, junto dela, ordenando-lhe que ficasse quieto. O animalzinho continuou a resmungar, agitado. Consentiu em permanecer tranquilo por alguns instantes para novamente saltar, emitindo ganidos agudos.

-       Que acontece, Arius? - perguntou a jovem agastada. - Que se passa? Está ouvindo ratazanas?

Ela fechou-lhe a boca com a mão e aplicou o ouvido, tentando perceber o que agitava assim o griffon. Um ruído imperceptível, que não pôde precisar no momento, chegou até ela. Era como o deslizar de um objeto rígido sobre uma superfície polida. Arius rosnava.

-       Calma, Arius, calma!

Assim jamais conseguiria dormir! Subitamente, por trás das pálpebras fechadas, emergindo de longínquas lembranças, Angélica

teve a visão daquelas mãos escuras, sujas e rugosas dos ladrões de Paris, que nas espessas trevas da noite se colam à superfície das vidraças e fazem deslizar um cortante e invisível diamante.

Ela ergueu-se de um salto. Sim. Era isso. O barulho vinha do lado da janela. Ladrões!...

O coração pulsava-lhe tão violentamente que ela nada mais ouvia além de seu batimento surdo e acelerado. Arius libertou-se e pôs-se a emitir latidos agudos. Angélica agarrou-o e quase o sufocou para fazê-lo silenciar. Quando novamente conseguiu aplicar o ouvido, teve a impressão de que alguém estava no quarto. Tinha ouvido a janela bater. "Eles" haviam entrado.

-       Quem está aí? - gritou, mais morta que viva.

Ninguém respondeu, mas passos se aproximaram da alcova.

"Minhas pérolas", lembrou-se.

Estendeu a mão pára a frente e agarrou um punhado de pérolas. Quase ao mesmo tempo, o choque amortecedor de uma coberta pesada abateu-se sobre. ela. Braços nodosos cingiram-na e paralisaram-na, enquanto tentavam atá-la com uma corda. Ela debateu-se como uma enguia, lançando gritos através da espessura do tecido. Conseguiu desprender-se e recobrar o fôlego para gritar:

-       Socorro! Soe...

Dois grossos polegares pisaram-lhe a garganta, interceptando o grito de socorro. Sentiu-se sufocar. Parecia-lhe que clarões vermelhos explodiam diante de seus olhos. Os ganidos histéricos do griffon ficavam cada vez mais distantes...

"Vou morrer", pensou, "estrangulada por um ladrão!... Que coisa mais estúpida!... Filipe!... Filipe!..."

E tudo se apagou, por fim.

Voltando a si, a jovem sentiu um objeto deslizar de seus dedos e cair sobre o lajedo com um barulho de bolas.

"Minhas pérolas!"

Entorpecida, debruçou-se sobre a borda da enxerga onde estava estendida e avistou o cordão de pérolas rosa. Devia tê-lo mantido no punho crispado, enquanto era levada até aquele local desconhecido. Os olhos assustados de Angélica percorreram a peça. Estava em uma espécie de cela, onde a bruma da alvorada penetrava lentamente por uma pequena janela ogival gradeada, lutando con-

tra a luz amarela de um candeeiro a óleo em um nicho. A mobília consistia em uma mesa grosseira e um escabelo de três pés, além da cama precária, feita de um plano de madeira e de uma enxerga de crina.

"Onde estarei? Nas mãos de quem? Que estarão querendo de mim?"

Suas pérolas não haviam sido roubadas. Os nós que a atavam tinham sido desfeitos, mas a coberta fora mantida sobre a leve camisola de seda rosa. Angélica debruçou-se, apanhou o colar e colocou-o maquinalmente no pescoço. Depois, mudando de ideia, tirou-o e enfiou-o sob o travesseiro.

Lá fora, um sino tilintou, argentino. Um outro soou em resposta. Angélica notou uma pequena cruz de madeira negra enfeitada com um ramo de buxo, presa à parede de cal.

"Um convento! Estou em um convento..."

Ao escutar com atenção, podia surpreender os ecos longínquos de um órgão e de vozes salmodiando cânticos.

"Que significa isso? Ah! meu Deus, como me dói a garganta!"

Ela permaneceu ali por um momento, prostrada, os pensamentos em desordem, querendo persuadir-se de que estava vivendo um sonho mau e de que acabaria despertando daquele pesadelo absurdo.

O ressoar de passos no corredor fê-la reerguer-se. Passos de homem. Seu raptor, talvez! Ah! Ah! Ele não estaria livre de explicações. Ela não temia bandidos e lhe lembraria, se necessário fosse, que o rei dos malfeitores, Traseiro de Pau, era seu amigo.

Haviam parado diante da porta. Chaves giraram na fechadura e alguém entrou. Angélica permaneceu um instante estupefata, à vista daquele que se postava diante dela.

-       Filipe!

Estava a cem léguas de imaginar o aparecimento de seu marido, daquele Filipe que não se dignara visitá-la ao menos uma vez nos dois meses que ela já estava em Paris, nem mesmo por polidez, e lembrar-se de que tinha uma mulher.

-       Filipe! - repetiu. - Oh! Filipe, que felicidade! Você veio em meu socorro?...

No entanto, algo de glacial e insólito no rosto do gentil-homem sustou o arrebatamento que a atirava em sua direção.

Ele permanecia diante da porta, estático em suas longas botas de couro branco, magnífico em seu gibão de pele de gamo cinza, bordado com sutache prateado. Os anéis da peruca loura caíam, cuidadosamente dispostos, sobre a gola de renda em ponto vene-za. Seu chapéu era de veludo cinza com plumas brancas.

-       Como se sente, senhora? - perguntou. - Está bem de saúde?

Dir-se-ia que a encontrava em um salão.

- Eu... eu não sei o que me aconteceu, Filipe - balbuciou Angélica, totalmente confusa. --Fui atacada em meu quarto... Raptaram-me e trouxeram-me áté aqui. Poderia explicar-me quem foi o miserável que cometeu esse crime?,

- De bom grado! Foi La Violette, meu primeiro criado de quarto.

- ...?

-       Obedecendo a ordens minhas - completou obsequiosamente.

Angélica deu um salto. A verdade explodia.

De camisola, com os pés nus sobre a laje fria, correu até a janela, agarrando-se às barras de ferro. O sol erguia-se sobre o belo dia de verão, que veria o rei e sua corte caçarem o cervo nos bosques de Fausse-Regose. Mas a Sra. du Plessis-Bellière não estaria presente. Ela volto"u-se, fora de si.

- Você fez tudo isso para me impedir de comparecer à caçada real!

- Como você é inteligente!

- Sabia que Sua Majestade jamais me perdoará esta suprema indelicadeza, e que me enviará de volta à província?

- É justamente esse o meu intento.

- Oh! você é um homem... diabólico.

- Realmente? Saiba que não é a primeira mulher a me fazer esse gracioso cumprimento.

Filipe ria. A- cólera de sua mulher parecia vencer a resistência de seu caráter taciturno.

- Não tão diabólico assim, todavia - retomou ele. - Eu a faço encerrar em um convento para que possa regenerar-se nas preces e nas mortificações. Nem mesmo Deus teria o que censurar nisso.

- E durante quanto tempo deverei permanecer em penitência?

- Veremos!... veremos. Alguns dias, ao menos.

- Filipe, eu... eu creio que o odeia.

Ele riu com vontade, os lábios arregaçados sobre os dentes brancos e perfeitos, em um ricto cruel.

- Você reage maravilhosamente. Vale a pena contrariá-la.

- Contrariar-meL. Chama a isso contrariedade? Arrombamento!... Rapto! E pensar que foi você quem invoquei em meu socorro quando aquele bruto tentou estrangular-me...

Filipe cessou de rir e arqueou as sobrancelhas. Aproximou-se dela para examinar as manchas azuis que lhe marcavam o pescoço.

- Criatura! O patife exagerou. Mas penso que você lhe deu o que fazer e aquele rapaz só sabe acatar ordens. Eu lhe recomendei que efetuasse a operação com a máxima discrição possível, a fim de não chamar a atenção do pessoal de sua casa. Ele introduziu-se pela porta dos fundos de seu laranjal. Não importa, da próxima vez recomendar-lhe-ei menos violência.

- Pensa em uma "próxima vez"?

- Enquanto não for domada, sim. E enquanto levantar sua fronte obstinada, respondendo-me com insolência, e procurando desobedecer-me. Sou monteiro-mor do rei. Tenho o hábito de domar as cadelas ferozes. Elas sempre acabam por me lamber as mãos.

- Preferiria morrer - disse Angélica selvagemente. - Seria mais provável que você me matasse.

- Não. Prefiro submetê-la.

Ele mergulhou o olhar azul no dela, e ela acabou por desviar os olhos, oprimida. O duelo prometia tornar-se feroz, mas ela já vivera outras vezes a mesma situação e continuou a enfrentá-lo:

- E muito ambicioso, penso eu, senhor. Estou curiosa por saber o que pretende fazer para realizar seu intento.

- Oh! tenho a escolha dos meios - disse ele com expressão de desdém. - Aprisioná-la, por exemplo. Que diria de prolongar um pouco sua estada neste lugar? Ou então... Posso separá-la de seus filhos.

- Você não o faria.

- Por que não? Posso também suspender seus víveres, reduzi-la a pão e água, constrangê-la a me esmolar seu pão...

- Está dizendo tolices, meu caro. Tenho minha própria fortuna.

- Isso pode arranjar-se. Você é minha mulher. Um marido tem plenos poderes. Não sou tão tolo que não possa encontrar um dia um meio de passar seu dinheiro para o meu nome.

- Defender-me-ei.

- Quem a ouvirá? Você teve a habilidade, eu o reconheço, de conquistar a indulgência do rei. Mas, depois do impasse de hoje, temo que não possa mais contar com isso. E agora a deixo com suas meditações, pois não posso perder a partida da matilha. Penso que você não tem mais nada a me dizer.

- Sim! Eu o detesto com toda a minha alma!

- O que ainda não é nada! Um dia pedirá à morte que a liberte de mim.

- Que ganhará com isso?

- O prazer da vingança. Você me humilhou até o sangue, mas eu também a verei chorar, gritar por clemência, esfarrapada, uma infeliz semilouca.

Angélica deu de ombros.      

- Que quadro! Sendo assim, por que não a sala de tortura, o ferro em brasa na planta dos pés, o cavalete, os membros quebrados...

- Não... Não chegarei a tanto. Acontece que tenho uma certa inclinação pela beleza de seu corpo.

- Realmente? Ninguém duvidaria disso. Você a manifesta com tanta frequência!

Filipe, que já se achava próximo da porta, voltou-se com os olhos semicerrados. 

- Seria isso uma queixa, minha cara? Que feliz surpresa! Sentiu tanto assim a minjia falta? Acredita que não sacrifiquei o suficiente no altar dos seus encantos? Não haveria então um número suficiente de amantes para ali render homenagens, a ponto de você reclamar as de um marido? Eu tivera no entanto a impressão de que você se havia submetido com desagrado, mas talvez tenha me menospre...

- Deixe-me, Filipe - disse Angélica com apreensão, ao vê-lo aproximar-se.

Sentia-se nua e desarmada em sua fina camisola.

-       Quanto mais a contemplo, menos vontade tenho de deixá-la - disse.

Ele enlaçou-a, apertando-a contra seu corpo. Ela estremecia, e uma vontade terrível de explodir em soluços nervosos oprimia-lhe a garganta.

- Deixe-me. Oh! eu lhe suplico, deixe-me.

- Adoro ouvi-la suplicar.

Ergueu-a como a um filete de palha e deixou-a cair sobre a enxerga monástica.  

- Filipe, está lembrado de que estamos em um convento?

- E então? Acaso você pensa que duas horas de estada neste piedoso local lhe permitem o benefício do voto de castidade? Aliás, pouco importa. Sempre tive grande prazer em violar as freiras.

- Você é a mais ignóbil criatura que conheço.

- Seu vocabulário amoroso não é dos mais ternos - disse ele, desatando o boldrié. - Você ganharia em frequentar o salão da bela Ninon. Trégua dessas denguices, senhora. Você mé fez lembrar, felizmente, de que tinha deveres para consigo, e eu os cumprirei.

Angélica fechou os olhos. Deixara de resistir, sabendo por experiência própria o que aquilo poderia custar-lhe. Passiva e desdenhosa, suportou o penoso amplexo que ele lhe infligia como uma punição. Só lhe restava imitar, pensou, as esposas malcasadas - e Deus sabe que formam uma legião - que se resignam, pensam em seus amantes ou dizem o terço, aceitando as homenagens do qiiinquagenário pançudo ao qual se vêem ligadas pela vontade de um pai interesseiro. Não era, evidentemente, o caso de Filipe. Ele não era nem qiiinquagenário nem pançudo, e fora Angélica quem quisera desposá-lo. Mas agora podia arrepender-se à vontade. Era muito tarde. Devia aprender a conhecer o senhor que oferecera a si mesma. Um bruto, para quem a mulher não passava de um objeto por meio do qual empreendia sem nuança a busca de uma satisfação física. Mas era um bruto sólido e flexível, e em seus braços era difícil desviar o pensamento ou dizer padres-nóssos. Ele conduzia a aventura a galope, como um guerreiro que, comandado pelo desejo, houvesse perdido, na exaltação e na violência das noites de batalha, o hábito de reservar espaço para o sentimento.

No entanto, no momento de deixá-la, ele teve um gesto delicado, que ela acreditou mais tarde ter sido apenas fruto de sua imaginação: pousando a mão no pescoço inclinado da jovem, no local onde os dedos grosseiros do criado haviam deixado marcas azuladas, ali demorou-se um instante, como numa imperceptível carícia.

Mas Filipe já se punha em pé, cobrindo-a com um olhar perverso e zombeteiro.

-       Bem, minha bela, creio que você está mais bem-comportada.

Eu lhe disse. Breve você rastejará. E, enquanto se espera, desejo-lhe uma agradável estada nestes sítios de paredes espessas. Você poderá chorar, gritar e praguejar à vontade. Ninguém a ouvirá. As religiosas têm ordens de lhe dar de comer, mas sem que você arrede um passo fora daqui. Saiba que têm a reputação de se desincumbir bastante bem de seu papel de carcereiras. Você não é a única pensionista forçada deste convento. Fique a gosto, senhora! É possível que, ao anoitecer, escute as trompas da caçada real. Farei com que toquem uma fanfarra em sua intenção.

Ele saiu sob uma explosão de riso zombeteiro. Seu riso era detestável. Ele só sabia rir por vingança.

Depois que Filipe saiu, Angélica permaneceu por muito tempo imóvel, envolta na grosseira coberta, onde se demorava um perfume de homem, composto de essência de jasmim e de couro novo. Sentia-se lânguida e sem coragem. As angústias da noite, acrescidas à irritação causada pela discussão, fizeram com que se abandonasse com os nervos à flor da pele às exigências de seu marido. Violentada, não tinha mais forças, e seu corpo mergulhara em um entorpecimento próximo do bem-estar. Uma náusea tão súbita quanto inesperada subiu-lhe aos lábios e ela lutou por um momento, o suor nas têmporas, contra um incoercível mal-estar. Caindo sobre a enxerga, sentiu-se mais deprimida do que nunca. Esse desfalecimento confirmava os sintomas que quisera subestimar havia um mês. Mas agora era preciso aceiíar a evidência. A horrível noite de núpcias que vivera no Plessis-Bellière, da qual não podia se lembrar sem enrubescer de vergonha, havia produzido seus frutos. Estava grávida. Esperava um filho de Filipe, desse homem que a odiava e que havia jurado vingar-se e atormentá-la até a loucura.

Por um momento Angélica sentiu-se esmagada e teve a tentação de se abandonar e renunciar à luta. O sono chegava. Dormir! Depois recobraria a coragem! Mas não era o momento de dormir. Então seria muito tarde. Teria provocado a cólera do rei e seria banida para sempre de Versalhes, e mesmo de Paris.

Levantou-se, correu até a porta de espessa madeira, que martelou com os punhos até vê-los esfolados, gritando, berrando:

- Abram! Tirem-me daqui!

Agora o sol penetrava em flocos na cela. Naquele momento as equipagens do rei se reuniam no pátio de honra, e as carruagens dos convidados parisienses franqueavam a Porte Saint-Honoré. Somente Angélica faltaria ao encontro.

'E preciso que esteja presente! E preciso que esteja presente! Se me incompatibilizar com o rei, estarei perdida. Só o rei pode dominar Filipe. É preciso juntar-me à caçada real custe o que custar!"

"Filipe não falou das trompas da'caçada real que seria possível distinguir daqui? Estarei eu então em um convento nos arredores de Versalhes? Oh! é absolutamente necessário que consiga sair deste lugar.

Mas dar voltas ao redor da cela não a levava a nenhuma solução. Por fim, um ruído de pesados tamancos ressoou no corredor. Angélica imobilizou-se, cheia de esperança, e depois voltou ao catre, onde se estendeu com seu ar mais meigo. Uma grossa chave girou na fechadura e uma mulher apareceu. Não era uma religiosa, mas uma criada em roupas de fustão e grande touca de percal, que entrou carregando uma bandeja.

Ela resmungou um bom-dia rude e começou a dispor sobre a mesa o conteúdo da bandeja, que parecia parco. Um frasco de água, uma escudela de onde vinha um vago odor de lentilhas com toucinho, um pão redondo.

Angélica observou a criada com curiosidade. Talvez aquele fosse o único contato com o exterior que teria durante o dia inteiro. Era preciso aproveitar a ocasião. A jovem não parecia ser uma daquelas pesadas camponesas que se encontram geralmente esfregando os claustros. Bela mesmo, com grandes olhos negros cheios de fogo e de rancor, e um meneio de quadris sob as saias de fustão que muito dizia sobre suas atividades passadas. O olho experimentado de Angélica não podia equivocar-se, e muito menos diante da espécie de injúrias que a garota deixou escapar, quando derrubou por descuido a colher da bandeja. Era sem sombra de dúvida um dos mais dedicados vassalos de Sua Majestade o Grande Coêsre, rei dos malfeitores.

-       Salve, frangine, companheira - disse Angélica, em gíria.

A outra voltou-se de um golpe e seus olhos esbugalharam-se ao ver Angélica esboçar o sinal de reconhecimento dos vagabundos de Paris.

-       E essa, agora! - fez ela após ter-se recobrado um pouco de sua estupefação. - E essa agora! Se eu soubesse... Disseram-me que

você era uma verdadeira marquesa. Então, minha pobre criança, você também foi apanhada por esses sujos da Companhia do Sagrado Sacramento? Falta de sorte, hein! Com essas aves de mau agouro, não há mais como fazer o seu trabalho tranquilamente!

Ela veio sentar-se aos pés da enxerga da prisioneira, cruzando sobre os seios provocantes o xale de lã cinza.

-       Faz seis meses que estou nesta casa. Pois sim que estou brincando! É uma coisa preciosa poder vê-la. Isso vai me distrair um pouco. Em que bairro você trabalhava? Angélica teve um gesto vago:

- Um pouco em cada canto.

- E quem é seu barbillon?

- Traseiro de Pau.

- O Grande Coèsre! Com a breca, minha bela, você está bem cuidada. Para uma novata, teve uma grande estreia. Pois é novata, está claro. Eu nunca a vi antes. Como se chama?

- Bela Angela.

- E eu, Domingo. Deram-me esse nome devido à minha especialidade. Eu só trabalhava no domingo. Uma ideia que me veio por acaso para não fazer como todo mundo, e uma boa ideia, pode acreditar. Tinha conseguido ajeitar bem o meu negócio. Bater perna, só diante das igrejas. E sabe, aqueles que não estavam muito decididos na entrada-, tinham tempo de refletir fazendo suas orações. Uma bela garota <iepois de uma boa missa, por que não? Isso me dava, à saída, maisílientes do que eu podia satisfazer. Mas que algazarra entre as beatas e os devotos! Podia dizer que toda Paris faltava à missa por minha causa! Ah! Eles tiveram trabalho para me prender! Foram até o Parlamento para pedir minha prisão. Esses devotos são súditos do inferno, isso sim! Mas eles são fortes. E eis onde estou agora. Nas Agostinianas de Bellevue. Agora é minha vez de cantar as vésperas. E a você, que lhe aconteceu?

- Um protetor que queria me instalar por sua conta. Eu aproveitei como pude, fiz com que .me desse dinheiro, e depois... eu não quis mais saber. Não gostava dele. Só que ele decidiu vingar-se enviando-me a um convento, até que eu mude de opinião.

- Existe realmente gente ruim no mundo - suspirou Domingo, levantando os olhos aos céus. - Sem contar que é um avarento esse seu amigo. Eu ouvi quando se discutia o preço para guardá-la aqui, com a madre superiora. Vinte escudos, e só, como para mim. E o que paga a Companhia do Sagrado Sacramento para que eu seja guardada a ferrolhos. Sob esse regime você só tem direito a ervilhas e favas.

- Aquele sujo! - bradou Angélica, atingida duramente por esse último detalhe.

Seria possível imaginar uma personagem mais repulsiva que aquele Filipe? E avaro, além de tudo. Atémercadejá-la ao preço de uma jovem da galanteria! Ela agarrou o punho de Domingo.

-       Ouça! É preciso que você me tire daqui. Tenho uma ideia. Você vai me emprestar suas roupas e me indicar por onde devo passar até encontrar uma porta que dê para os campos.

A outra se revoltou.

- Era o que faltava! E como poderia ajudá-la a sair de um lugar de onde eu mesma não pude sair?

- Não é a mesma coisa. Você, as freiras já conhecem. Elas logo a descobririam. Mas a mim nenhuma viu ainda de perto, a não ser a madre superiora. E se elas me encontrarem nos corredores poderei lhes dizer qualquer coisa.

- E verdade - reconheceu Domingo. - Você chegou amarrada como um salsichão. Era plena noite. Fizeram-na subir direta-mente para cá.

- Você vê! Tenho boas chances de conseguir. Rápido, passe-me sua saia.

- Calma, marquesa - resmungou a pequena com um olhar maldoso. - "Tudo para mim, nada para os outros" parece ser a sua divisa. E o que ganhará com isso a pobre Domingo, que todo mundo esquece atrás de suas grades? A mer... certamente, e talvez um fundo de fossa mais profundo ainda.

- E isto - disse Angélica, trazendo à luz, com mão ágil, o cordão de pérolas rosa que estava sob o travesseiro.

Diante daquele rorejar de esplendor cor de aurora, Domingo ficou tão espantada que só conseguiu emitir um longo assobio de admiração.

- Isso é falso, frangine - murmurou, aparvalhada.

- Não. Sopese-o. Tome. É seu se me ajudar.

- Sem trapaça?

- Palavra. Com isso, quando você sair daqui poderá se vestir como uma princesa e se instalar com suas coisas.

Domingo passava entre as mãos a jóia principesca.

- Então, resolveu?

- De acordo. Mas tenho uma ideia melhor que a sua. Espere. Voltarei.

Ela deslizou o colar para dentro das saias e saiu. Sua ausência prolongou-se por uma eternidade. Por fim apareceu arquejante, com um pacote de roupas sob um braço e um boião de cobre pendurado no outro.

-       Foi a Madre Ivone, aquela peçonhenta, que quis me fisgar, ufa! Consegui mandá-la às favas. Rápido, porque a ordenha vai acabar logo. A essa hora as mulheres vêm pegar o leite na fazenda do mosteiro. Você vai colocar estas roupas de vaqueira, e pegar seu boião e sua almofada; descerá pela escada do pombal, que lhe indicarei, e quando estiver no pátio você se misturará com as outras e dará um jeito de sair com elas pelo átrio. Mas tome cuidado para que o leite se equilibre bem sobre sua cabeça.

O plano de Domingo se realizou sem problemas. Menos de um quarto de hora mais tarde, a Sra. du Plessis-Bellière, com uma saia curta listrada de vermelho e branco, e o talhe cingido por um cor-selete negro, tendo numa das mãos os sapatos, muito grandes, e na outra a alça do boião de cobre que oscilava perigosamente, se" encontrava na estrada empoeirada com a louváyel ambição de atingir Paris, que se divisava ao longe, no vale, através de uma bruma de sol.

Ela havia chegado no fim da distribuição no pátio da fazenda, onde as irmãs conversas, após terem ordenhado as vacas, distribuíam o leite entre as Jnulheres encarregadas de levá-lo até Paris e seus arredores.

Uma velha religiosa, que presidia a chamada, se perguntara de onde teria saído aquela recém-chegada; mas Angélica, com seu ar mais beato, respondera a todas as perguntas em seu patoá do Poi-tou, e, como se obstinasse em estender-lhe alguns centavos - generosamente adiantados por Domingo -, havia sido servida, e deixaram-na partir.

Agora era preciso se apressar. Estava a meio caminho entre Versalhes e Paris. Depois de refletir, havia chegado à conclusão de que se dirigir diretamente para Versalhes era loucura. Poderia ela se apresentar diante do rei e sua corte em saias listradas de Margoton?

Era melhor voltar a Paris, envergar seus adornos, tomar sua carruagem e juntar-se à caçada a galope, através do bosque.

Angélica caminhava depressa, mas tinha a impressão de não avançar. Os pés nus chocavam-se contra os pedregulhos agudos. Quando calçava os grosseiros sapatos, ela os perdia e.tropeçava. O leite marulhava, a almofada escorregava.

Por fim, a carreta de um caldeireiro que ia para Paris alcançou-a. Ela acenou-lhe vigorosamente.

- Poderia levar-me, amigo?

- Com toda a vontade, minha bela. Em troca de uma beijoca eu a levo até Notre-Dame.

- Não conte com isso! Meus beijos, eu os guardo para meu prometido. Mas lhe darei este boião de leite para suas Crianças.

- Aceito! É um ganho inesperado! Suba então, pequena tão bonita quanto esperta.

O cavalo trotava bem. Às dez horas estavam em Paris. O caldeireiro percorreu um bom pedaço até o cais. Depois do quê, Angélica correu como um elfo até sua mansão, onde o suíço quase caiu de costas ao reconhecer sua senhora disfarçada de camponesa dos arrabaldes.

Desde o amanhecer, os empregados se interrogavam sobre os mistérios daquela casa. Ao pavor de haver constatado o desaparecimento de sua senhora se havia juntado o espanto ao ver o criado do Sr. du Plessis-Bellière, um homenzarrão desajeitado, insolente e arrogante, apresentar-se para requisitar todos os cavalos e carruagens da Mansão do Beautreillis.

- Todos os meus cavalos! Minhas carruagens! - repetiu Angélica, petrificada.

- Sim, senhora - confirmou o mordomo Rogério, que viera até ali.

Ele baixava os olhos, confuso por ver sua senhora em corselete e touca branca, como se a estivesse vendo completamente nua. Angélica reagiu valentemente.

-       Pouco importa! Irei procurar a ajuda de uma amiga. Javotte, Teresa, apressem-se. Preciso de um banho. Preparem meu gibão de caça. E que me façam subir algo de comer, com um frasco de bom vinho.

O timbre claro de um relógio soando as doze badaladas do meio-dia fê-la sobressaltar-se.

"Sabe Deus a desculpa que Filipe terá inventado para explicar minha ausência a Sua Majestade! Que havia tomado um purgante e que estava de cama, contorcendo-me de enjoo... É bem capaz disso, aquele animal! E agora, sem minha carruagem, sem meus cavalos, conseguirei ao menos chegar antes do pôr-do-sol? Maldito Filipe!"

 

A Srta. de Parajonc e sua velha carruagem

"Maldito Filipe!", repetiu Angélica. Firmando-se na portinhola, ela olhava com apreensão o caminho escavado de carris por onde a miserável carruagem avançava precariamente.

A floresta adensáva-se. As raízes dos enormes carvalhos sobressaíam-se na lama como grossas serpentes verdes e se entrecruzavam até o meio da estrada. Mas poderia ser chamada de estrada aquela depressão lamacenta, lavrada pela passagem recente de inúmeros carros e cavaleiros?

-       Jamais chegaremos - gemeu a jovem, voltando-se para Léonide de Parajonc, sentada a seu lado.

A velha preciosa restabeleceu com um golpe seco do leque o equilíbrio da peruca, que um solavanco havia deslocado, e respondeu alegremente:

- Não se indisponha com o bom senso, minha bela. Sempre se acaba por chegar a algum lugar.

- Depende da equipagem e ao fim de quanto tempo - retrucou Angélica? com os nervos à flor da pele. - E quando o objetivo da viagem é o de juntar-se à caçada real, o que já devia ter sido feito há seis horas, e se corre o risco de fazê-lo a pé para ouvir o toque de retirada, motivos existem para se estar jenraivecida. Se o rei se deu conta de minha ausência, jamais me perdoará esta nova descortesia...

Um choque violento acompanhado de um estalido sinistro projetou-as uma contra a outra. -

-       Que a peste carregue com sua velha carroça! - gritou Angéliça -, ela é menos segura que um barril de arenques. Bem no ponto para se fazer uma fogueira. Dessa vez a Srta. de Parajonc se sentiu vexada:

-       Convenhamos que meu "gabinete" volante não tenha a qualidade das maravilhosas carruagens que se encontram em suas cavalariças, mas você pareceu bastante contente por encontrá-la à disposição, esta manhã, já que o Sr. du Plessis-Bellière, seu marido, julgou apropriado e divertido fazer conduzir todos os seus cavalos disponíveis a um lugar misterioso, somente dele conhecido...

Angélica suspirou de novo.

Onde estariam as gualdrapas cor de amaranto, bordadas a ouro e com franjas de seda vermelha, de sua equipagem particular? Ela que tanto se havia rejubilado por poder enfim assistir a uma caçada real nos bosques de Versalhes!

Angélica se imaginara chegando ao encontro dos convidados de honra com sua atrelagem de seis cavalos cor de ébano, seus três lacaios em libré azul e cor de junquilho brilhando de nova, o cocheiro e o postilhão com botas de couro vermelho e chapéus ornados de plumas. Cochichariam: "A quem pertence essa suntuosa equipagem? - A Marquesa du Plessis-Bellière. Vocês sabem, aquela que... Ela não é vista com frequência. Seu marido a mantém escondida. E ciumento como um tigre... Mas parece que o rei perguntou por ela..."

Angélica se havia preparado com o maior cuidado para esse dia decisivo. Estava resolvida a não mais permitir que a deixassem de lado. Assim que tivesse colocado um pé na corte, colocaria o outro, e Filipe poderia maquinar à vontade seu afastamento! Ela atrairia os olhares por sua beleza, elegância e originalidade. E se imporia, se fixaria, se incrustaria como todos os outros, parasitas e ambiciosos. Fora com a timidez e a discrição!

A Srta. de Parajonc deu uma gargalhada maliciosa por trás do leque.

-       Eu poderia dizer o que você está pensando, mesmo sem ser grande adivinha. Reconheço sua expressão de luta. Que fortaleza se prepara para conquistar? O próprio rei... ou seu marido?

Angélica deu de ombros.

-       O rei? Ele já está provido e bem guardado. Uma mulher legítima: a rainha; uma amante oficial: a Srta. de La Vallière, e todas as outras. Quanto a meu marido, por que imagina que eu me interessaria por uma praça-forte que já foi ocupada? Seria congruente, para empregar uma de suas expressões, que diante do contrato firmado dois esposos continuassem a se interessar um pelo outro? Isso seria muito burguês! A solteirona cacarejou:

-       É minha opinião que esse atraente marquês continua, no entanto, a se interessar por você de modo bastante curioso!

Ela passou a língua pelos lábios secos com voracidade.

-       Conte-me mais um pouco, minha cara. É uma das histórias mais divertidas que já ouvi. Verdade, de fato? Nem mais um cavalo em suas cavalariças esta manhã, quando quis tomar o caminho de Versalhes? E a metade de seus lacaios desaparecida! O Sr. duPlessis deve ter-se mostrado bastante generoso com seus serviçais... E você de nada desconfiou, nada percebeu...? Antigamente você era mais astuciosa, minha amiga.

Um novo choque sacudiu-as. Javotte, a pequena camareira, sentada diante delas, no desconfortável assento de dobradiças, foi pro-jetada para a frente e."acabou por esmagar o laço de tela de ouro com o qual Angélica prendia à cintura o rebenque de amazona. O laço ficou em farrapos e Angélica, em seu nervosismo, esbofeteou a garota, que retomou seu lugar choramingando. De bom grado teria completado a distribuição, aplicando energicamente a mão no rosto emplastrado de alvaiade de Léonide de Parajonc. Sabia que esta se rejubilava com seus dissabores. No entanto fora a ela, à velha preciosa, vizinha e semiconfidente-de seus sofrimentos, que Angélica se dirigira em seu desatino, quando diante do procedimento inqualificável de Filipe não tivera outro recurso senão o de pedir emprestada uma carruagem a alguma amiga. A Sra. de Sévigné estava no campo. Ninon de Lenclos bem que a teria ajudado, mas sua reputação de grande cortesã a mantinha afastada da corte e sua equipagem corria o risco de ser reconhecida. Quanto às outras relações parisienses de Angélica, ou aquelas damas estavam, elas também, naquele dia, em Versalhes, ou não estavam, e então nada se poderia esperar de seu ciumento rancor. Restava a Sita. de Parajonc.

Mas Angélica, doente de impaciência, fora obrigada a esperar que a solteirona, muito excitada, colocasse seus mais belos adornos, de um grotesco fora de moda, que a criada desembaraçasse os cabelos de sua mais bela peruca, que se tirasse a gordura da libré do cocheiro e lustrasse o verniz da precária carruagem.

Por fim estavam a caminho. E que caminho!...

- Esta estrada, esta estrada - gemeu, tentando mais uma vez divisar uma clareira em meio ao túnel intrincado de grandes árvores.

- De nada lhe adianta inquietar-se - disse doutoralmente a Sita. de Parajonc. - Só irá estragar sua pele, o que seria unia pena. Esta estrada é como deve ser. Você devia se dirigir ao rei, pois é a ele que agrada nos mandar chafurdar em tais lugares. Ouvi dizer que, outrora, por aqui só passavam alguns comboios de bois trazidos da Normandia, de onde esse nome, Chemin des Boeufs. Nosso falecido Rei Luís XIII aqui vinha caçar, mas não lhe teria vindo à ideia arrastar com ele toda a fina flor da corte. Luís, o Casto, era um homem equilibrado, simples e razoável.

Ela foi interrompida por um estalido, seguido de solavancos incontroláveis.

A carruagem pendeu para o lado, depois alguma coisa raspou com força nas pedras do caminho, e por fim uma roda se desprendeu enquanto as três viajantes caíam umas sobre as outras.

Angélica encontrava-se no fundo, do lado da roda quebrada, e pensava com desespero em sua bela vestimenta de amazona que suportava o peso duplo da Srta. de Parajonc e de Javotte. Não ousava, no entanto, libertar-se, pois a vidraça se estilhaçara contra o solo, e seria demais cortar-se e inundar-se de sangue!

A outra portinhola abriu-se, e o pequeno lacaio Flipot inclinou para ela o rosto esperto.

-       Vai mal aí, marquesa? - perguntou, ofegante.

Angélica não estava em estado de chamá-lo a uma linguagem mais correta.

-       E a velha Bastilha, ainda resiste?

-       Resiste - respondeu alegremente Léonide, a quem nada agradava tanto quanto as aventuras movimentadas. - Insolente, dê-me sua mão e ajude-me a sair daqui.

Flipot agarrou-a como pôde. Com a ajuda do cocheiro, que havia conseguido acalmar os dois cavalos e desatrelá-los, as duas mulheres e a criadinha logo se encontravam em pé no caminho enlameado.

Haviam se salvado sem um só arranhão.

Mas isso não tornava a situação menos lamentável e desesperadora.

Angélica desistiu de explodir em imprecações. A cólera de nada serviria. Estava tudo perdido! Não somente não conseguiria juntar-se, naquele dia, à caçada real, como jamais poderia retornar à corte. O rei não lhe perdoaria aquela nova ausência. Deveria ela escrever-lhe ou jogar-se a seus pés, tentar fazer intervir a Sra. de Montespan ou o Duque de Lauzun? E o que alegaria?... Um acidente de carruagem? Era a verdade, afinal, mas, infelizmente, pareceria um pretexto um tanto equívoco. Não era sempre um incidente com a carruagem que se invocava no caso de um atraso constrangedor? Ela sentou-se sobre um tronco caído, absorvida em reflexões tão amargas que não se apercebeu da aproximação de uma pequena tropa de cavaleiros.

-       Vem vindo gente - falou Flipot a meia voz.

Fez-se um silêncio através do qual só se ouvia o barulho dos cascos dos cavalos que vinham a passo. Então a Srta. de Parajonc cochichou:

-       Deus do céu, são bandidos! Estamos perdidos.

 

Angélica enfrenta o descontentamento do rei

Angélica levantou a cabeça. Na penumbra do caminho, os recém-chegados não tinham, em verdade, muito boa aparência. Eram homens altos e magros, de tez bronzeada e olhos sombrios, com aqueles bigodes e barbichas negras que já estavam se tornando fora de moda há alguns anos e se perdera o hábito de ver em lie de Fran-ce. Vestiam um uniforme de um azul apagado, com aplicações desbotadas ou arrancadas. As plumas dos chapéus descorados eram ralas. Algumas casacas, esfarrapadas. No entanto, quase todos traziam uma espada. A frente, dois latagões carregavam bandeiras ricamente decoradas, apesar de bastante rasgadas e esburacadas. Bandeiras que sem sombra de dúvida haviam conhecido o vento quente das batalhas.

Alguns homens da tropa que vinham a pé, carregando lanças e mosquetes, passaram indiferentes diante da carruagem tombada. Mas o primeiro dos cavaleiros, que devia ser o comandante, parou diante do grupo formado pelas duas mulheres e seus serviçais.

- Irra, bela gente, o deus Mercúrio, que protege os viajantes, parece ter tido a vilania de abandoná-los!

Ao contrário de seus companheiros, era bem provido de carnes. No entanto, as dobras flutuantes de seu gibão mostravam que devia ter conhecido outrora uma compleição mais satisfatória. Ao tirar o chapéu, mostrou uma fisionomia jovial e bronzeada.

O falar cantado traía-lhe as origens. Angélica sorriu-lhe graciosamente e respondeu no mesmo tom:

- Monseigneur é no mínimo da Gasconha!

- Nada se pode esconder da mais bela das divindades destes bosques! Em que podemos ser-lhes úteis?

Ele inclinava-se um pouco em sua direção e ela teve a impressão de vê-lo estremecer. Súbito veio-lhe a certeza de já ter encontrado aquele homem em alguma parte. Mas onde?-... Pensaria nisso mais tarde. Preocupada com o problema presente, disse com vivacidade:

- Senhor, poderia oferecer-nqs a maior das ajudas. Devíamos juntar-nos à caçada real, mas sofremos um acidente. Não há como recuperar de maneira rápida esta velha carruagem. Porém, se alguns dentre vocês nos levassem à garupa, a minha companheira e a mim, bem como à camareira, até o Carrefour des Boeufs, nós lhes seríamos grandes devedoras.

- Ao Carrefour des Boeufs? Pois se também vamos para lá! Com a breca, isso vem a calhar!

Não foi necessário rhais que um quarto de hora para que os cavaleiros que levavam ás três mulheres à garupa chegassem ao local do encontro.

Ao pé das colinas de Fausse-Repose, a clareira apareceu, atravancada de carruagens e de cavalos. Cocheiros e lacaios jogavam dados, enquanto aguardavam o retorno de seus senhores, ou bebiam na modesta estalagem florestal, que jamais conhecera lucro tão inesperado.

Angélica avistou seu palafreneiro. Saltou em terra, gritando:

-       Janicou, traga-me Ceres!

O homem correu para as cavalariças.

Alguns segundos depois, Angélica estava sobre a sela. Ela guiou o animal para fora daquela confusão e picou com as esporas, atirando-se na direção da floresta.

Ceres era um animal fino, elegante, cujo pêlo luzidio e dourado lhe valia a alcunha de Deusa do Verão. Angélica amava-a pelo luxo de sua beleza, pois tinha preocupações em excesso para se apegar aos animais por amizade. Mas Ceres era bastante dócil, e Angélica montava-a com prazer. Ela obrigou-a a deixar a vereda e lançou-a pelo talude até a crista de uma colina. A égua escorregou no alto tapete de folhas mortas, depois recuperou-se e escalou a encosta. No topo, as árvores continuavam a esconder o horizonte. Angélica nada podia distinguir. A jovem aplicou o ouvido. Os latidos distantes da matilha chegaram-lhe pelo leste, seguidos pelo chamado de uma trompa, que outras retomaram em coro. Reconheceu o toque de "bat l'eau" e sorriu.

- A caçada não terminou. Ceres, minha bela, apressemo-nos. Talvez consigamos salvar nossa honra.

Seguindo pela crista da colina, ela voltou a conduzir o animal a galope. Correu por entre as árvores cerradas de galhos nodosos e farta folhagem, através do profundo e selvagem daquela floresta, que permanecia desde tempos remotos quase inviolada, e que somente alguns caçadores ou intrusos isolados, a besta ao ombro, ousavam percorrer, quando não bandidos procurando refúgio. Luís XIII e Luís XIV haviam arrancado de seu sono secular os velhos carvalhos druídicos. O hálito da corte brilhante passava através de nevoeiros estagnados, e os perfumes das damas vinham misturar-se ao odor pronunciado das folhas e dos cogumelos.

Os latidos aproximavam-se. O cervo perseguido devia ter conseguido atravessar o riacho. Não se dava por vencido e prosseguia em sua corrida, com os cães em seu encalço. Vinha naquela dire-ção. As trompas tocavam conduzindo a caçada. Angélica voltou a cavalgar mais lentamente e depois parou de novo. O surdo galope dos cavalos se aproximava. Ela saiu do abrigo das árvores. Acima dela uma pequena extensão de verdura afundava suavemente, deixando entrever em seus baixios os reflexos de um pântano.

A seu redor a floresta erguia uma barreira obscura, mas do outro lado percebia-se um céu riscado por longas nuvens encarvoadas, entre as quais um sol pálido descia lentamente. A aproximação do crepúsculo acolchoava de nevoeiro a paisagem, afogava os verdes e azuis profundos com os quais o verão enfeita as árvores. Mil riachos que desciam pela colina conservavam o frescor do pequeno vale.

O latido compacto da matilha explodiu subitamente. Uma forma castanha irrompeu na orla do bosque. Era o cervo, um animal muito novo, cujos chifres mal despontavam. Seu galope fez com que a água brotasse em jorros pelo pântano. Atrás dele a massa de cães desceu como um rio branco e avermelhado. Em seguida um cavalo emergiu da mata, montado por uma amazona de gibão vermelho. Quase ao mesmo tempo, e de todos os lados, cavaleiros desembocaram e desceram ao longo da inclinação relvada. Em um instante o tenro e bucólico vale foi invadido por um tumulto bárbaro onde se misturavam os latidos persistentes dos cães, os relinchos dos cavalos, as interpelações dos caçadores e a fanfarra estrondeante das trompas que acabavam de entoar o halali. No cenário sombrio da floresta, as ricas vestimentas dos grandes senhores e nobres damas se espalharam em nuvens multicoloridas, e os últimos raios de sol faziam faiscar, bordados, penachos e boldriés.

No entanto, o cervo, com um supremo esforço, havia conseguido romper o cerco infernal. Aproveitando uma abertura, voltava a precipitar-se na direção da ramagem protetora. Houve gritos de decepção. Os cães enlameados reagruparam-se antes de voltar a correr.

Angélica conduziu Ceres lentamente para a frente e começou também a descer. O momento parecia-lhe propício para se juntar à multidão.

-       Inútil prosseguir- disse uma voz atrás dela. - O animal só poderá resistir por. mais alguns momentos; atravessar esses baixios só serviria para enlameada até os olhos. Se quer acreditar-me, bela desconhecida, é melhorTpermanecer aqui. Podemos apostar alto como os lacaios aproveitarão esta clareira para vir reagrupar os cães. E nós estaremos frescos e limpos para nos apresentarmos diante do rei...

Angélica voltou-se. Não conhecia o gentil-homem que acabava de surgir a alguns passos dela. Tinha um rosto agradável sob a ampla peruca empoada. Seu traje era bastante refinado. Para saudar a jovem, tirou um chapéu coberto de alvas plumas.

- Que o diabo me carregue, senhora, se já tive ocasião de encontrá-la. O que não é possível, pois não teria podido esquecer seu rosto.

- Na corte, talvez?

- Na corte! - protestou, indignado. - Mas se ali vivo, senhora! Não poderia ter passado despercebida aos meus olhos. Não, minha cara, não procure me enganar. Você jamais veio à corte.

- Sim, senhor.

Ela acrescentou depois de uma breve pausa:

- Uma vez... Ele se pôs a rir.

- Uma vez? Que adorável!

Ele franziu as sobrancelhas louras, refletindo.

-       Quando, então? No último baile? Não. Nenhuma lembrança. E além disso... E inimaginável, mas eu apostaria que você não estava no local de encontro em Fausse-Repose, esta manhã.

- Parece que você conhece a todos aqui...

- A todos? É verdade! Minha boa colocação o permite, e sei que c preciso lembrar-se das pessoas para que se lembrem de nós. E um princípio que tenho procurado aplicar desde a, mais tenra juventude. Minha memória é imbatível!

- Bem, nesse caso, gostaria de ser meu cicerone nesta companhia que conheço tão mal? Você me daria os nomes. Por exemplo, estaria curiosa por saber quem é aquela amazona de vermelho que seguia os cães tão de perto. Ela cavalga esplendidamente. Um homem não poderia ir mais depressa.

- Isso vem a propósito - disse ele rindo. - E a Srta. de La Vallière.

- A favorita?

- Bem, sim! A favorita - aquiesceu, com um ar presunçoso que ela não conseguiu compreender de imediato.

- Não pensava que fosse uma caçadora tão hábil.

- Ela nasceu a cavalo. Na infância, montava sem sela os cavalos mais fogosos. Partia a galope e era vista saltando sobre a montaria como uma bola.

Angélica olhou-o, atónita.

- Parece que você conhece a Srta. de La Vallière de muito perto.

- E minha irmã.

- Oh! - fez ela, sufocada. - Você é...

-       O Marquês de La Vallière para servi-la, bela desconhecida.

Ele tirou o chapéu e acariciou-lhe zombeteiramente o nariz com a fímbria das plumas brancas.

Ela afastou-se, um pouco vexada, conduzindo a cavalgadura para a parte baixa do vale, onde a bruma se adensava e escondia os charcos de água estagnada. O Marquês de La Vallière seguiu-a.

- Veja! Que lhe havia dito? - exclamou ele. - Estão dando o toque de retirada não longe daqui. A caçada terminou. O Sr. du Plessis-Bellière deve ter usado seu grande cutelo e aberto com elegância a goela do cervo. Já viu alguma vez esse gentil-homem em suas supremas funções de monteiro-mor?... O espetáculo vale a pena. Ele é tão belo, tão elegante, tão perfumado que mal o acreditariam capaz de se servir de um canivete... Pois bem! Ele maneja um cutelo como se houvesse sido criado em companhia daqueles senhores do Apport-Paris, os esfoladores.

- Filipe já era célebre na juventude por matar lobos que perseguia sozinho na floresta de Nieul - disse Angélica com ingénuo orgulho. - As pessoas da região chamavam-no "Fariboul Loupas", o que poderia ser traduzido aproximadamente como "o pequeno duende dos lobos".

- É minha vez de dizer que você parece conhecer bastante intimamente ao Sr. du Plessis.

- É meu marido.

- Oh! Por Santo Humberto,.a'coisa é divertida!

Ele explodiu em risadas. Ria com vontade, por gosto e por cálculo. Um cortesão jovial é bem-vindo em toda parte. Devia ter estudado seu riso com tanto empenho quanto um ator do Hotel de Bourgogne.

Mas logo se interrompeu e repetiu, preocupado:

-       Seu marido?... Você é então a Marquesa du Plessis-Bellière?... Ah! Mas já ouvi falar a seu respeito. Não foi você... Por Deus, você não incorreu no desagrado do rei?

Olhava-a quase corn terror.

-       Ah! eis Sua Majestade - exclamou ele, de repente.

Deixando-a bruscájhente, galopou ao encontro de um grupo que surgia na clareira. Entre os cortesãos, Angélica logo reconheceu o rei.

Seu trajar modesto contrastava com o dos outros senhores. Luís XIV gostava de se sentir à vontade em suas roupas, e comentava-se que, quando se via obrigado a envergar trajes aparatosos, ele os deixava apenas finda a cerimonia. Para a caça, muito mais do que em qualquer outra ocasião, recusava-se a embaraçar-se com rendas e penduricalhos. Naquele dia trajava um casaco em tecido de lã marrom, com discretos bordados em ouro nas botoeiras e na pala dos bolsos. Gom suas enormes botas de montaria, cujas abas envolviam-no em couro negro até a virilha, estava vestido com tanta simplicidade quanto um fidalgo de província.

Mas sua aparência não permitia que se o confundisse com ninguém. A majestade dos gestos, aos quais sabia imprimir muita graça, comedimento e serenidade, conferia-lhe em todas as circunstâncias um porte verdadeiramente real.

Trazia na mão um bastão de madeira leve que terminava em um pé de javali. Esse bastão lhe fora dado solenemente ao início da caçada, pelo monteiro-mor; era primitivamente destinado a afastar os galhos que pudessem importunar o soberano a sua passagem; representava também, há séculos, uma insígnia honorífica e desempenhava um papel importante no cerimonial da caçada.

Ao lado do rei estava a amazona de gibão vermelho. Animada pelo ardor da corrida, a fisionomia um pouco magra, e sem a verdadeira beleza da favorita, tingia-se de rosa. Angélica achou-lhe um encanto frágil que lhe despertou uma secreta piedade. Sem analisar especialmente de onde vinha esse sentimento, pareceu-lhe que a Srta. de La Vallière, embora guindada ao cume das honrarias, não fora talhada para se defender diante da corte. A sua volta, Angélica reconheceu o Príncipe de Conde, a Sra. de Montespan, Lau-zun, Louvois, Brienne, Humières, as senhoras de Roure e de Montausier, a Princesa de Armagnac, o Duque d'Enghien, e mais distante, Madame, a encantadora Princesa Henriqueta, e, naturalmente, Monsieur, o irmão do rei, tendo ao lado seu inseparável favorito, o Cavaleiro de Lorena. E outros ainda a quem conhecia menos, mas que traziam a mesma marca de luxo, saúde e avidez.

O rei olhava com impaciência para uma pequena vereda entre as árvores. Dois cavaleiros por ali vinham a passo. Um deles era Filipe du Plessis-Bellière, trazendo igualmente um leve bastão de madeira dourado, guarnecido com um pé de corça. Suas vestes e sua peruca mal tinham sido deslocadas pela confusão da caçada.

O coração de Angélica confrangeu-se de cólera e de remorso à vista de sua beleza. Qual seria a reação de Filipe quando a notasse, depois de tê-la deixado ofegante, algumas horas antes, no fundo de um convento? Angélica agarrou as rédeas em um movimento resoluto. Ela o conhecia o suficiente para saber que diante do rei ele não arriscaria nenhuma espécie de arroubo. Mas, e depois?...

Filipe continha a montaria, um cavalo branco, a fim de manter-se ao lado de seu companheiro.

Este último, um ancião de traços marcados e enérgicos, com o queixo relevado por uma mosca de fios grisalhos à moda antiga, não se apressava. Acentuava, mesmo, sua lentidão, apesar da visível expectativa do rei, enquanto se enxugava com um ar contrafeito.

- O velho Salnove acredita que Sua Majestade mais uma vez o fez correr em demasia - disse alguém perto de Angélica. - Ele se lamentava, outro dia, que no tempo do Rei Luís XIII não se atravancava a caçada com tantos corredores inúteis, que a dificultam e prolongam com sua presença.

Com efeito, Salnove era o antigo monteiro-mor do falecido rei. Ele havia ensinado ao atual monarca os rudimentos dessa arte apaixonante e se ressentia por não vê-lo manter as regras tradicionais. Fazer da caça um prazer da corte! Com efeito! O Rei Luís XIII não se atravancava com saias quando se lhe vinha o capricho de correr os bosques. O Sr. de Salnove não perdia uma ocasião de lembrar essa máxima a seu aluno. Ainda não compreendia muito bem que Luís XTV não era mais o garotinho bochechudo que içara outrora pela primeira vez sobre um cavalo, O rei, por seu turno, em sinal de cortesia e afeição, mantinha o velho servidor de seu pai em seu posto. Filipe du Plessis, monteiro-mor de fato não o era por título. Foi o que mostrou quando, chegando a alguns passos do rei, devolveu ao Marquês de Salnove o bastão de pé de corça, insígnia de seu título.

Salnove tomou-o e, segundo o cerimonial, recebeu por seu turno, das mãos do rei, o bastão de pé de javali que lhe dera na partida.

A caçada estava terminada. No entanto, o rei perguntou em tom seco:

-       Salnove, os cães estão cansados?

O velho marquês soprou ainda para recobrar o fôlego. Seu esgotamento não erisimulado. Todos os que haviam participado ativa-mente da caça, cortesãos, fnonteiros e lacaios, estavam esfalfados.

- Os cães? - fez Salnove com um levantar de ombros. - Sim, isto é, nem tanto, sofrivelmente.

- E os cavalos?

- Greio que sim.

- E tudo isso por dois cervos sem chifres - disse o rei com mau humor.

Ele lançou um olhar ao redor, sobre a multidão comprimida. Angélica teve a impressão de que aquele olhar impávido, onde nada se podia ler, passara por ela e a reconhecera. Ela encolheu-se um pouco.

-       Está bem - disse o rei -, caçaremos na quarta-feira.

Fez-se um silêncio constrangido e como que aterrado. Algumas damas se perguntavam, apavoradas, como fariam para voltar à sela no dia marcado. O rei repetiu um pouco mais alto:

- Caçaremos depois de amanhã, ouviu, Salnove? E dessa vez vamos querer um cervo de dez esgalhos.

- Sim, sire, costumo entender da primeira vez - respondeu o velho marquês.

Ele inclinou-se profundamente, depois afastou-se, mas dizendo suficientemente alto para ser ouvido pelos convidados:

-       O que me agasta é que sempre ouço perguntar se os cães e cavalos estão cansados e nunca os homens...

-        Sr. de Salnove! - chamou Luís XIV.

E quando o monteiro-mor colocou-se de novo diante dele:

-       Saiba que em meus domínios os caçadores nunca estão cansados... Ao menos assim o entendo.

Salnove voltou a inclinar-se.

O rei pôs-se em movimento, arrastando atrás de si a multidão colorida dos cortesãos, que não tinham outro recurso senão retesar valentemente a espinha.

Ao passar diante de Angélica, o rei parou por um momento.

Seu olhar pesado e impenetrável fixava-a e no entanto parecia não a ver. Angélica não abaixou a cabeça. Dizia consigo mesma que sempre havia afrontado seu medo e que não seria aquele o dia em que perderia o controle. Olhou para o rei e depois sorriu-lhe com naturalidade. O soberano estremeceu como se tivesse sido picado por uma abelha, e suas faces se coloriram.

- Mas... não é a Sra. du Plessis-Bellière? - perguntou com altivez.

- Vossa Majestade tem a bondade de se lembrar de mim?

- Certamente, e muito mais do que a senhora parece lembrar-se de nós - respondeu Luís XIV, tomando os que o acompanhavam como testemunhas de tanta inconsciência e ingratidão. - Sua saúde está enfim restabelecida, senhora?

- Agradeço a Vossa Majestade, mas minha saúde sempre foi muito boa.

- Então como se explica que por três vezes tenha declinado de nossos convites?

- Sire, perdoe-me, mas eles jamais me foram comunicados.

- A senhora me surpreende. Eu mesmo comuniquei ao Sr. du Plessis meu desejo de vê-la participar das festas da corte. Duvido que ele tenha podido ser tão distraído a ponto de esquecê-lo.

- Sire, meu marido talvez tenha julgado que o lugar apropriado para uma jovem senhora seja sua própria casa, manejando a agulha em vez de ser desviada de seus austeros deveres pelo espe-táculo das maravilhas da corte.

Em um só movimento, todos os chapéus emplumados se voltaram, junto com o do rei, para Filipe, que, sobre seu cavalo branco, era a própria estátua de uma raiva impotente e glacial. O rei compreendeu a situação. Tinha espírito e a arte de contornar com tato as situações embaraçosas. Estourou de rir.

-        Oh! Oh! marquês, será possível? Seu ciúme é tão grande que não hesita diante de nenhum meio para subtrair aos nossos olhos o tesouro encantador do qual é proprietário? É levar muito longe o espírito de avareza, pode crer. Perdôo-lhe desta vez, mas condeno-o a fazer boa figura diante do sucesso da Sra. du Plessis. Quanto à senhora, não quero levá-la muito longe no caminho da insub-missão conjugal, felicitando-a por ter passado por sobre as decisões de um esposo muito autoritário. Mas seu espírito de independência me agrada. Tome portanto parte, sem reticências, naquilo que chamou as maravilhas da corte. Coloco-me como fiador de que o Sr. du Plessis não lhe fará reprimendas.

Filipe, com o chapéu ao braço, inclinou-se profundamente, em um movimento amplo, quase exagerado, de submissão. A seu redor, Angélica não via senão sorrisos obsequiosos sobre máscaras que, três segundos antes, só respiravam uma curiosidade ávida em rasgá-la em mil pedaços.

- Felicitações!-disse-lhe a Sra. de Montespan. - Você tem a arte de se meter em situações impossíveis, mas também a de se sair à maravilha. Pareciam as hábeis manobras dos bufões do Pont Neuf. Diante da expressão do rei, pensei que você teria toda a matilha em seu encalço. No instante seguinte você fazia a vítima audaciosa que venceu mil obstáculos, até as paredes de uma prisão, para corresponder a todo custo ao convite do rei.

- Você não sabe como o diz bem!

- Oh! Conte-me o que aconteceu.

- Talvez... um dia.

- Conte-me. Esse Filipe é assim tão assustador? Que pena! Tão bonito...

Angélica afastou a conversa incitando a montaria ao galope. Por um caminho escavado, cavaleiros, cães e lacaios desciam a colina de Fausse-Repose, enquanto as trompas soavam na retaguarda para guiar os retardatários. Breve, num claro da floresta, apareceu a encruzilhada atravancada pelas equipagens.

A companhia de militares esfarrapados, cujo comandante havia socorrido Angélica e a Sita. de Parajonc, mantinha-se na orla do bosque. Quando o cortejo real apareceu, dois tocadores de pífaro e de tamboril que se mantinham à frente começaram a tocar uma marcha militar. Atrás deles, puseram-se em movimento os dois porta-bandeiras, depois o chefe, seguido de seus oficiais e suas pequenas tropas.

- Poderosos deuses - disse uma voz de mulher -, quem são esses espantalhos em farrapos que ousam assim se apresentar diante do rei?

- Agradeça aos céus por não ter tido que tratar com os espantalhos de muito perto nestes últimos anos! - exclamou um jovem senhor de tez de cor viva. - São os revoltosos do Languedoc!

Foi como se Angélica tivesse sido atingida por um raio.

O nome! O nome que procurava desde que distinguira na penumbra das folhagens o rosto acutilado do gentil-homem gascão saltava-lhe ao espírito:

-        Andijos!

Era Bernardo d'Andijos, o gentil-homem tolosano, o alegre papa-jantares do Gaia Ciência, sempre passeando sua pança satisfeita de uma partida de canções a uma partida de baile. E fora ele quem repentinamente galopara através do Languedoc semeando o fogo de uma das mais terríveis revoltas provinciais da época!...

Ela revia, na feia aurora de uma triste manhã, aquele outro companheiro de dias felizes, o jovem Cerbalaud, meio bêbado, desembainhando a espada e gritando:

-       Irra! Vocês não conhecem os gascões. Escutem todos. Eu parto

em uma guerra contra o rei.

Estaria ali também Cerbalaud, entre aqueles fantasmas emersos de uma outra época, e que parecia a Angélica extremamente distante, embora somente sete anos se tivessem passado desde a condenação iníqua do Conde de Peyrac e que estivera na origem de todos aqueles transtornos?

- Os revoltosos do Languedoc - repetia perto dela a voz um pouco cantada da jovem. - Mas não é perigoso deixá-los aproxi-marem-se do rei?

- Não, tranqiiilize-se - respondeu o gentil-homem de tez corada, que não era outro senão o jovem Louvos, ministro da Guerra. - Estes senhores vêm prestar obediência. Depois de seis anos de investidas, pilhagens e escaramuças contra as tropas reais, pode-se ter esperança de que nossa bela província do sudeste retorne ao seio da coroa. Mas fez-se necessária nem mais nem menos que uma campanha pessoal de Sua Majestade para fazer compreender a esse Sr. d'Andijos a inutilidade de sua rebelião. Nosso príncipe prometeu-lhe a vida e o esquecimento de seus erros passados. Em troca ele deve servir de mediador para acalmar os capitouls das grandes cidades do sul. Podemos apostar que Sua Majestade não terá a partir de agora súditos mais fiéis.

- Não importa, eles me dão medo! - disse a pequena dama com um calafrio.

O rei apeara, no que fora imitado por todos os cavaleiros e amazonas de seu séquito.

Ao chegar a alguns metros do grupo, Andijos fez o mesmo. Suas roupas descoradas, as botas gastas, o. rosto riscado por uma cicatriz recente, tudo nele contrastava com a brilhante sociedade em direção à qual caminhava. Era a imagem do vencido, ao qual nada resta além da honra, pois que mantinha os olhos firmes e a cabeça altiva.

Chegando diante do rei, desembainhou com vivacidade a espada. Houve uma movimentação entre os cortesãos, que queriam se interpor. Mas o tolosano, tendo apoiado a arma no solo, partiu-a com um golpe seco e jogou os dois pedaços aos pés de Luís XIV. Depois, dando mais um passo à frente, ajoelhou-se e beijou a coxa do rei.

- O passado é o passado, meu caro marquês - disse o rei, pousando levemente a mão no ombro do rebelde, em um gesto não desprovido de amizade. - A todos é dado cometer enganos, e os súditos têm mais inclinação para isso do que os reis. Estes receberam a investidura divina e podem, com maior clareza, guiar os povos. Mas não pense que esse direito esteja isento de deveres; ele inclui particularmente o de perdoar. Meus súditos rebeldes, quando tiveram a ousadia de pegar em armas contra mim, causaram-me talvez menos indignação do que aqueles que, permanecendo próximos de minha pessoa, prestavam-me serviços e cuidados, enquanto eu sabia que ao mesmo tempo me traíam e não tinham por mim nem verdadeiro respeito nem verdadeira afeição. Gosto da franqueza nas atitudes. Levante-se, pois, marquês. Só lamento que tenha quebrado sua valorosa espada. Você me obriga a lhe oferecer uma outra, pois o nomeio coronel e lhe confio quatro companhias de dragões. Agora, acompanhe-me até minha carruagem. Ali tomará lugar, e o convido a ir a Versalhes.

- Vossa Majestade me honra - disse o bravo Andijos, cuja voz tremia -, mas não estou em estado de apresentar-me a seu lado. Meu uniforme...

Pouco importa! Gosto de uma libré que cheira a poeira e a guerra. A sua é gloriosa. Eu a devolverei a você. Trará nas próximas festas o mesmo gibão azul de bandas vermelhas, mas bordado a ouro em vez de esburacado por balas. O que me dá uma ideia... Sabem, senhores - continuou Luís XIV, virando-se para seus íntimos -, que há muito tenho comigo a ideia de criar um casaco para aqueles que tiver em particular estima? Que dizem? A Ordem dos Gibões Azuis?... O Sr. d'Andijos seria seu primeiro cavaleiro.

Os cortesãos aplaudiram aquele achado. Já se podia adivinhar que os gibões azuis seriam objeto de competições encarniçadas...

Bernardo d'Andijos apresentou seus três oficiais principais.

-       Dei ordens para que sua companhia seja recebida cordialmente nesta noite e possa banquetear-se - disse o rei. - Sr. de Montausier, encarregue-se de todos estes bravos.

Em seguida cada um correu para sua equipagem. Sedentos, os caçadores chamavam os limonadeiros, pequenos comerciantes titulares da corte e que a seguiam nos mínimos deslocamentos. O tempo de virar uma caneca; era preciso partir. A noite caía. O rei estava impaciente para voltar a Versalhes. As lanternas e tochas se acenderam.

Angélica, segurando Ceres pela rédea, não sabia que partido tomar. Ainda estava sob a emoção que lhe causara a aparição de An-dijos e dos rebeldes do Languedoc. A voz da juventude, que tinha, às vezes, inflexões paternais, caíra em seu coração assustado como um bálsamo. Ela tomara para si algumas palavras.

Dar-se-ia a conhecer a Andijos? Falar-lhe-ia? Que poderiam se dizer? Um nome estaria entre eles. Um nome que não ousariam pronunciar. E a grande sombra negra do supliciado planaria sobre eles, apagando o brilho dos lampiões da festa...

Uma carruagem, fazendo a volta, passou por ela.

- Que faz você aí? - gritou-lhe a Sra. de Montespan pela portinhola. - Onde está sua equipagem?

- Para dizer a verdade, não a tenho mais. Meu carro tombou em um fosso.

- Suba, então.

Um pouco além, elas recolheram a Srta. de Parajonc e Javotte, e todo mundo voltou para Versalhes.

 

Filipe, o monteiro-mor

Naquele tempo, os bosques envolviam densamente o palácio. Quem desembocasse do cercado de árvores vê-lo-ia muito próximo, sobre sua colinaj à noite, as altas janelas cintilavam invadidas pelas estrelas moventes dos archotes, em seu vaivém.

A animação era grande. O rei expedira um comunicado, segundo o qual não voltaria à noite para Saint-Germain como previsto. Permaneceria por mais três dias em Versalhes. Em vez de aprestar a bagagem, era necessário prever o pernoite de Sua Majestade, da família real e dos convidados de honra, instalar o acantonamento dos cavalos e organizar as refeições.

O pátio de entrada estava de tal modo atravancado por veículos, soldados e criados que a equipagem da Sra. de Montespan teve que fazer alto na praça. As damas desceram. Atenaís logo foi arrebatada por um alegre grupo; Angélica deteve-se junto à Sita. de Parajonc.

- Deve apressar-se para não perder a cerimonia do encarne - disse a Solteirona com ares de entendida.

- E quanto a você? - perguntou Angélica.

- Vou sentar-me neste marco da estrada. Vai ser o diabo se não conseguir avistar nenhum rosto conhecido entre aqueles que retornam a Paris. Não sou convidada do rei. Apresse-se, minha bela. Tudo o que lhe peço é que venha fazer-me o relato dos encantamentos vividos sob a irradiação do astro.

Angélica prometeu fazê-lo, beijou-a e deixou-a ali, na noite brumosa, com sua capa e sua touca de fitas rosa de uma outra época, seu rosto branco e velho, e sua ingénua alegria por ter chegado tão próximo da corte, naquele dia memorável.

Quanto a Angélica, essa transpunha o círculo mágico e se elevava rumo aos eleitos.

"Sob a irradiação do astro", repetiu, enquanto atingia, através do tumulto, o ponto de concentração da multidão.

Era ao fundo, junto à edificação central do palácio, no terceiro dos pequenos pátios, chamado de Pátio dos Cervos. Sob a aparente desordem, a triagem das personalidades que deveriam acercar-se do rei durante o encarne era rigidamente fiscalizada. Angélica foi detida por um suíço de alabarda, e um mestre-de-cerimônias inquiriu-a respeitosamente sobre seus títulos. Assim que ela declinou o nome, ele deixou-a passar, guiando-a mesmo através das escadas e dos salões, até um dos balcões do primeiro andar, que dava para o Pátio dos Cervos.

Inúmeros archotes iluminavam o local. A fachada de tijolos rosa do palácio, sobre a qual se moviam sombras empenachadas, estava como que incandescente, e os mil arabescos dos balcões, goteiras e tocheiros folheados a ouro resplandeciam como cintilantes bordados sobre um fundo púrpura.

As trompas estrondearam.

O rei adiantou-se no balcão central, tendo a rainha ao lado e, à volta, as princesas de sangue, os príncipes e os gentis-homens de primeira linhagem.

Das profundezas da noite, subindo a colina, o latido da matilha se aproximava. Dois lacaios de cães emergiram das sombras, junto ao gradil do Pátio dos Cervos, e adentraram o círculo de claridade.

Arrastavam uma espécie de fardo inqualificável, de onde pingavam sangue e fragmentos de tripas; constituíam a mouée, composta pelas vísceras dos dois cervos mortos e transportada sobre a pele de um dos animais que acabava de ser esfolado. Atrás deles, outros monteiros em libré vermelha apareceram, tendo a seus calcanhares a matilha esfomeada, que controlavam com longos chicotes.

Filipe du Plessis-Bellière desceu a escadaria a seu encontro, tendo na mão o bastão de pé de corça. Tivera tempo para vestir um uniforme reluzente, vermelho também, porém com quarenta botoeiras douradas, horizontais, e vinte verticais sobre os dois bolsos. Suas botas de couro amarelo tinham tacões vermelhos, com esporas de prata dourada.

_ Ele tem a perna tão bem-feita quanto a do rei - comentou alguém próximo de Angélica.

-       Mas seu andar tem menos graça. Filipe du Plessis tem o ar de quem está sempre partindo para a guerra.

_ Não nos esqueçamos de que é, também marechal.

O rapaz, atento, tinha os olhos fixos no rei. Este lhe fez um sinal com seu bastão pessoal.

Filipe entregou sua insígnia ao pajem que o acompanhava. Caminhou em direção aos lacaios e tomou-lhes a carga pegajosa. Seu rico casaco de seda, com rendas e passamanarias, foi imediatamente inundado de sangue. Impassível e magnífico, o gentil-homem levou a mouée até o centro do pátio e colocou-a junto ao semicírculo formado pelos cães, cujos ganidos e latidos se multiplicavam, até se transformarem em roucos uivos. Os monteiros controlavam-nos a chicote, repetindo:

-        Para trás!... cães-Para trás!

Por fim, a um outro sinal do rei, eles foram soltos. Começaram a devorar as vísceras com grunhidos ferozes. Seus dentes aguçados brilhavam.

Percebia-se que aqueles cães, treinados diariamente, alimentados com carne crua, eram verdadeiras feras. Seu adestramento e disciplina requeriam qualidades de domador. Filipe permanecia mais próximo que todos os outros do círculo selvagem, sem outra arma que um rebenque. De vez em quando fazia-o estalar com displicência sobre os cães que, presas de disputa, estivessem prestes a se degolar.

E os animais logo se separavam, grunhindo, mas submissos. A audácia e o sangue-frio do monteiro-mor, ali em pé com suas sun-tuosas vestimentas ensanguentadas, a cabeça desdenhosa e loura, com suas rendas e anéis, acrescentavam um elemento estranho e sedutor ao selvagem espetáculo.

Angélica, dividida entre o desgosto e uma exaltação apaixonada, não podia desviar os olhos. Todos os circunstantes estavam, como ela, fascinados.

-       Cáspite! - resmungou perto dela uma voz de homem. - Quem o visse não o acreditaria capaz senão de trincar confeitos e fazer galanteios. Mas ora! Em minha vida jamais encontrei um caçador que ousasse tomar parte no encarne tão de perto sem correr o risco de ser atacado.

- Disse bem, senhor - aprovou o Marquês de Roquelaure, que estava no mesmo balcão. - Quando estiver um po'uco mais familiarizado com a corte, ouvirá repetir com frequência que nosso monteiro-mor é uma das personagens mais curiosas de toda a companhia.

- E eu o creio totalmente, senhor - respondeu Bernardo d'Andijos.

Ao fazer um movimento de saudação a seu interlocutor, notou o rosto de Angélica voltado para ele. Ao clarão dos archotes, eles se reconheceram.

Angélica deu um sorrisinho triste.

- Tu quoque Brute. Até tu, Brutus - murmurou, citando a célebre frase de César ao se dar conta da traição de seu melhor amigo.

- E você mesma - disse ele com a voz abafada. - Na floresta, há pouco, eu hesitara. Não acreditava em meus olhos. Você aqui... na corte... Você?

- Como você também, Sr. d'Andijos.

Ele quis dizer algo com uma ênfase de protesto, mas calou-se. Os olhares de ambos voltaram-se para o Pátio dos Cervos, onde as duas carcaças acabavam de ser jogadas aos cães. Os ossos quebravam-se com estalidos secos. Prosseguindo o bale selvagem, os monteiros estalavam seus chicotes ao redor da matilha, gritando:

- Halali! Cães... Halali! Halali!

- Lutamos - murmurou Andijos -, golpeamos, matamos... E como um fogo que nos devora... Por fim, a revolta... torna-se um hábito... não podemos mais conter o incêndio... E um dia não sabemos mais por que odiamos, nem pelo que nos batemos... Então chega o rei!

Seis anos de guerrilhas sem piedade, sem esperança, haviam enchido de amargura sua alma jovial e ingénua. Seis anos levando uma vida de malfeitor, de caça perseguida através das terras áridas do Midi, onde o sangue derramado seca muito rápido, tornando-se negro.

Encurralados, ele e seus partidários, nas dunas arenosas dos Landes, afundando nas areias movediças, expulsos para o mar, haviam assistido à chegada desse rei cheio de clemência, desse jovem rei implacável, mas que lhes dizia: "Meus filhos..."

_ É um grande rei - disse Andijos em tom firme. - Não há desonra em servi-lo.

_ Você fala de ouro, meu caro - aquiesceu atrás deles a voz do Marquês de Lauzun.

Com uma das mãos no ombro de Angélica e a outra no de Andijos, ele passou entre ambos seu rosto risonho, sempre esboçando alguma travessura.

- Reconhece a mim, Antonino Nompar de Gaumont de Pé-guilin de Lauzun?

- Como poderia não reconhecê-lo? - grunhiu Andijos. - Juntos cometemos nossas primeiras loucuras, fi não poucas mais. Da última vez em que nos vimos...

- Sim... Hum! Hum! - tossiu levemente Péguilin. - Se bem me lembro, estávamos os três no Louvre...

- E você a cruzar ferros com Monsieur, irmão do rei...

- Que acabava de tentar assassinar a senhora aqui presente.

- Com a ajuda de^seu caro amigo, o Cavaleiro de Lorena.

- Minhas façanhas* valeram-me a Bastilha - disse Lauzun.

- E a mim, o tornar-me um fora-da-lei.

- E quanto a você, Angélica, meu anjo, que sorte lhe foi reservada após aquela noite memorável?

Interrogavam-na com o olhar, mas ela não respondeu, e eles compreenderam seu silêncio. O Marquês d'Andijos deu um profundo suspiro.

- Certamente eu não pensava que um dia nos encontraríamos desta forma.

- Não vale mais nos revermos desta forma do que nunca mais nos revermos? - acentuou o amável Péguilin. - A roda gira; Monsieur, o irmão do rei, está a alguns passos de nós, sempre ternamente apoiado no braço de seu favorito; quanto a nós, estamos bem vivos... e bem colocados, quero crer. Deixemos em paz o passado, como bem disse, hoje mesmo, Sua Majestade. E prudência, meus cordeiros!... Cuidemos para que o olhar do mestre não pouse sobre nosso grupo, disposto a ver o germe de uma conspiração em potencial. Prudência!... Eu os amo, mas fujo de vocês...   .

Com um dedo sobre os lábios, como um valete de comédia, ele deixou-os, intrometendo-se na outra extremidade do balcão.

Sobre o lajedo do Pátio dos Cervos não restavam senão fragmentos das carcaças completamente limpas. O último lacaio de cães enterrou seu forcado no forhu, constituído pela pança diluída dos dois cervos, e, pondo-se a andar, chamou os cachorros:

-        Taiaut! Taiaut! - guiando-os na direção do canil.

As trompas anunciavam a última fase do encarne. Depois fez-se ouvir o toque de retirada.

Os balcões foram abandonados.

À entrada das salas iluminadas, o incorrigível Péguilin de Lau-zun gesticulava, macaqueando feito um arengador de feira:

-       Rejubilem-se, senhores e senhoras. Acabam de assistir ao espetáculo mais extraordinário que se viu até hoje: o Sr. Marquês du Plessis-Bellière em seu número de grande domador. Vocês fremiram, senhores. Vocês tremeram, senhoras. Desejariam ser lobas para poderem dobrar-se sob a férula de tão bela mão. Agora as feras estão alimentadas, e os deuses, satisfeitos. Nada mais resta do cervo que, nesta manhã, bramia gloriosamente no fundo dos bosques. Venham, senhoras e senhores. Vamos dançar!...

 

Uma bofetada pelo PARA

Não se dançou, no entanto, visto que a música do rei, com seus vinte e quatro violinos, ainda não chegara de Saint-Germain. Mas, em toda a volta do grande salão no rés-do-chão, latagôes tocavam em trombetas as fanfarras marciais destinadas a suscitar a emulação dos estômagos. Oficiais-de-boca começavam a desfilar trazendo inúmeras terrinas de fina prata, carregadas de guloseimas, perfumes e frutas. Sobre quatro grandes mesas cobertas com toalhas adamascadas já haviam sido dispostas travessas; algumas, cobertas com campânula? de ouro ou de prata dourada; outras, que se conservavam aquecidas sobre cubas de metal cheias de brasas; e outras ainda que expunham à cobiça dos olhares perdizes em gelatina, macedónia de faisões, cabrito montês assado, pombos à cardeal, caçarolas de arroz e presunto. No centro de cada mesa havia uma grande travessa contendo frutas de outono e a sua volta oito descansos de pratos guarnecidos com figos e melões.

Angélica, que empregava um olhar profissional para as coisas gastronómicas, enumerou oito entradas nos espaços entre os assados, a par de quantidades de saladas. Admirou a beleza da roupa de mesa, perfumada com água de nêspera, e a arte das diversas formas em que foram dobrados os guardanapos. E tratava-se de uma "simples" colação!

O rei sentou-se sozinho com a rainha, Madame e Monsieur. O Príncipe de Conde quis por todos os meios servi-los, com o guardanapo ao ombro, o que colocou o Sr. de Bouillon, camarista-mor encarregado daquelas funções, fora de si. Ele não ousou, porém, manifestá-lo de forma muito evidente, visto o alto grau de parentesco do príncipe.

À parte desse incidente, todo mundo lambeu os beiços com gosto. As tampas erguidas revelavam quatro cabeças de javali, enormes e negras, nadando em um ragu de trufas verdes e desprendendo um odor divino, tetrazes com suas plumas vermelhas e azuis, lebres recheadas com amêndoas e funcho, e tantas sopas que seria impossível degustá-las todas. A elas preferiam-se os vinhos tintos escolhidos com prazer entre vinhos novos mas bem encorpados, e que se acabava de aquecer, mergulhando nas jarras barras de metal incandescente.

Angélica regalou-se com uma perdiz frita e algumas saladas que o Marquês de La Vallière lhe passava, pressuroso. Ela bebeu um copo de vinho de framboesa. O marquês insistia para que provasse o rossoli, "o licor da diversão". Um pajem lhes levaria dois copos até um canto de janela e eles se divertiriam. Angélica esquivou-se.

Com a curiosidade e a gula saciadas, voltou a lembrar-se da Srta. de Parajonc, sentada no marco da estrada, em meio à neblina que subia dos pântanos à noite. Furtar as sobras da mesa real para sua velha amiga seria o cúmulo da vulgaridade; mas foi o que Angélica fez com destreza. Escondendo entre as amplas dobras do vestido um pão doce de amêndoas e duas belas peras, deslizou para fora da multidão. Mal havia dado alguns passos no exterior, quando foi chamada por Flipot, que lhe trazia seu manto, uma pesada capa de cetim e veludo que ela havia deixado há pouco na carruagem de Léonide.

- Então você está aí! O carro pôde ser consertado?

- Pois sim! Dali não se salva nada. Quando percebemos que anoitecia, nós dois, o cocheiro e eu, pegamos a estrada real e viemos até aqui no carro dos tanoeiros que subiam para Versalhes.

- Encontrou a Srta. de Parajonc?

- Lá embaixo -- disse ele, indicando os baixios obscuros onde se agitavam lanternas. - Ela falava com uma outra das vossas amigas de Paris e a ouvi dizer que poderia levá-la em sua carruagem de aluguel.

- Isso me alegra. Pobre Léonide! Será preciso que lhe ofereça uma nova equipagem.

Por medida de segurança pediu que Flipot a conduzisse através da inacreditável confusão de carros, cavalos e liteiras até o lugar onde ele vira a Srta. de Parajonc. Avistou-a a distância e reconheceu na "outra amiga de Paris" a jovem Sra. Scarron, viúva pobre e digna que vinha com frequência à corte como solicitante, na esperança de um dia poder obter um emprego ou cargo modesto que a tirasse por fim de sua eterna miséria.

Elas estavam subindo em uma carruagem de aluguel já abarrotada, ocupada principalmente pelas pessoas mais simples, muitas das quais, também, solicitantes e que retornavam de mãos vazias da sua estada em Versalhes. O rei havia feito divulgar que não receberia as petições naquele dia, mas no seguinte, após a missa.

Alguns pedinchões ficaram, sújeitando-se a dormir a um canto de pátio ou cavalariça do vilarejo. Outros, retornando a Paris, pegariam de madrugada o carro de água do Bois de Boulogne, e depois, cortando caminho através dos bosques, voltariam a se encontrar, tenazes, na antecâmara do rei, com suas súplicas na mão.

O carro de aluguel já se punha em movimento quando Angélica o alcançou, e ela não pôde se fazer ver por suas duas amigas. Estas partiam encantadas com seu dia na corte, onde conheciam a todos, embora ninguém as conhecesse. Eram daquelas abelhas ativas que gravitam ao redor da colmeia soberana e fazem o mel do mínimo incidente'a seu alcance. "Sabiam" melhor a corte que muitas mulheres ali admitidas sem dificuldade por sua linhagem, mas inexperientes, ignorando os arcanos complicados da etiqueta, as prerrogativas que lhes eram facultadas por sua posição, mas frequentemente também pelo favoritismo, pela proteção do rei ou de alguém poderoso. -

Já estariam sem dúvida a par da afronta que o Príncipe de Conde infligira ao Sr. de Bouillon, pegando o guardanapo para servir o rei. Pediria o Sr. de Bouillon uma reparação? Teria o príncipe o direito de fazer o que fez, visto seu título e seu passado glorioso? Haveria longas discussões sobre o assunto na cidade e na corte. Léonide de Parajonc destrincharia depois de longos debates aquele caso espinhoso. A Sra. Scarron ouviria, refletiria, aprovaria ou então não diria nada... Angélica prometeu a si mesma visitá-las em breve. Necessitava de seus conselhos.

Colocou o manto sobre os ombros e deu o pão e as frutas que havia trazido ao pequeno lacaio.

- É muito bonito aqui, marquesa - eochichou o garoto, com os olhos brilhando. - Chegamos com os tanoeiros pelo lado das cozinhas. A Boca do Rei, é como chamam aquilo. A Boca do Bom Deus, é o que se devia dizer. O paraíso não seria melhor. É quente ali dentro, e o cheiro é bom. Tantas aves no espeto que a gente fica com comichão... A gente anda sobre penas até os joelhos... E todos aqueles cozinheiros preparando os molhos, com punhos de renda até as falanges, a espada ao lado, a grande faixa de não sei o quê sobre o ventre...

Não fosse sua posição de convidada do rei, Angélica teria de bom grado seguido o criadinho para desfrutar, por seu turno, do espe-táculo descrito. Ao se olhar para a ala direita do palácio, em cujo rés-do-chão estavam instaladas as cozinhas, podia-se adivinhar a animação pitoresca no flamejar de fornos e braseiros ao ar livre, que avançavam até a beira dos jardins do Midi.

- Também vi Javotte por lá - disse Flipot. - Ela subia para preparar os aposentos da senhora marquesa.

- Meus aposentos? - disse Angélica surpresa.

Ela ainda não havia pensado em que condições passaria ali a noite.

-        Parece que é lá em cima.

Com os grandes braços sempre descrevendo círculos ele apontava o céu completamente escuro, onde o cimo do palácio só era percebido através das fileiras de águas-furtadas iluminadas.

-       Ali estava também La Violette, o criado de quarto do senhor marquês, dizendo que a cama de seu mestre já havia sido arrumada li em cima. Então Javotte quis levar até lá a sua trouxa. Também acho que ela queria ouvir uns galanteios de La Violette.

Gritos e estalidos de chicote obrigaram-nos a encostar-se no parapeito que rodeava o grande pátio de entrada. Viram passar furgões e vários fiacres, e depois duas carruagens, das quais desceu uma nuvem de abades de peruca empoada, cabeção de rendas, sobrecasaca e meias negras, e sapatos com fivelas.

Disseram que era a Capela do rei que chegava. Pouco depois vieram os músicos com seus instrumentos e os coristas, um grupo de adolescentes agasalhados até os olhos e que um homenzinho sanguíneo e agitado perseguia com recomendações rabugentas.

-       Não abram a boca enquanto não estiverem no coberto. Eu os amasso com bengaladas se respirarem aqui. Nada é mais perigoso para a voz do que a neblina deste maldito lugar.

Angélica reconheceu o Sr. Lulli, chamado de o Bufão do Rei, e a quem assistira muitas vezes em Paris, regendo bales encantadores dos quais se pretendia o autor. Suspeitavam que ele fosse um impostor, tal a discrepância entre seu caráter execrável e suas obras.

-        Veja se descobre Javotte - disse Angélica a Flipot -, e quando a tiver encontrado mande-a até aqui; ou melhor, volte você mesmo para me guiar até o quarto que me foi reservado. Tenho medo de me perder.

- O senhor marquês não o mostrou?

- Nem mesmo sei onde está o senhor marquês - replicou ela secamente.

- Aquele tipo... - começou Flipot, que tinha suas próprias opiniões sobre o modo como o marquês tratava sua senhora.

Ela o fez calar-se com um tabefe, e antes de deixá-lo ir apalpou, por hábito, os bolsos de sua libré. Gostava de Flipot e de bom grado tê-lo-ia feito seu pajem, se ele pudesse livrar-se daquele falar calão, do nariz ranhoso e da detestável mania de "colher" a seu redor pequenos objetos que não lhe eram destinados. Mas cada qual sabe como é difícil livrar-se de uma primeira educação. Angélica encontrou em seus bolsos uma tabaqueira, um anel, dois colares de vidrilhos que estariam fazendo chorar naquele momento algumas jovens da cozinha, um lenço de rendas.

- Que seja, desta vez - disse-lhe com severidade. - Mas que eu nunca o pegue com ouro ou com relógios.

- Relógios? Irra! - disse Flipot com um ar de asco. - Eu não gosto daqueles bichos, não. Aquilo olha a gente e tagarela como se estivesse vivo.

Ela voltava para os salões, mas a animação do ambiente não podia mais distraí-la de suas preocupações. De um momento para outro teria que se encontrar diante de Filipe. Não conseguia decidir que atitude tomar: furiosa? indiferente? conciliadora?

De pé na soleira das grandes salas iluminadas, procurou-o com os olhos, mas não o viu.

Notou a uma das mesas a Sra. de Montausier e outras damas, entre as quais a Sra. du Roure, a quem conhecia, e ali foi sentar-se com a intenção de jogar um pouco. A Sra. de Montausier olhou-a com ar chocado e, levantando-se, disse-lhe que não poderia ali ficar, pois àquela mesa só se sentavam as damas com direito a subir na carruagem da rainha e comer em sua companhia.

A jovem desculpou-se. Não ousou sentar-se a outra mesa, com medo de cometer novo equívoco, e resolveu procurar seu quarto por conta própria.

Nos primeiros andares não havia mais alojamentos para os cortesãos. A exceção dos aposentos reais, imensos compartimentos de recepção estavam sendo arrumados. Em compensação, as águas-furtadas ofereciam múltiplas câmaras, grosseiramente vedadas e reservadas em princípio à criadagem, mas onde os mais importantes senhores estavam bastante satisfeitos por encontrar um refúgio naquela noite. Ali reinava uma atividade de colmeia, cada qual se movimentando de célula em célula, em meio à desordem de cofres e guarda-roupas trazidos pelos criados, ao enervamento das damas com suas roupas, atormentando as criadas embaraçadas com vestidos enormes, e à inquietação da maior parte dos convidados, que vasculhavam a esmo os corredores estreitos, em busca da "toca" que lhes fora reservada.

Marechais de alojamento em uniforme azul, encarregados dessa tarefa, acabavam de escrever com giz nas portas os nomes dos ocupantes de cada quarto. Eram seguidos por grupos excitados em meio a murmúrios de decepção ou gritos de satisfação.

Angélica foi chamada pelo esperto Flipot:

-        Psiu! por aqui, marquesa.

E acrescentou com desprezo:

-       Não é muito grande o seu "quadrado". Como é possível se alojar desse jeito no palácio do rei?!

Todas as suas ideias sobre o fausto dos poderosos estavam transtornadas. Javotte apareceu; tinha as faces vermelhas e um ar agitado.

-       Tenho comigo o seu estojo de viagem, senhora. E não o larguei de modo algum.

Avançando um pouco mais, Angélica descobriu a causa daquela agitação. Era La Violette, primeiro criado de quarto de seu marido.

Aquele sólido latagão só tinha de modesto o nome, La Violette. Era um gigante, jovial como um soldado, esperto como um parisiense, embora fosse do Poitou, e ruivo como um inglês; seus ancestrais deviam estar entre os que ocuparam a Aquitania nos séculos XIV e XV. Muito à vontade em sua libré e em seu papel de lacaio, apesar do talhe de estivador, ele era ágil, alerta, industrioso, sempre bem informado e falastrão.

Mas sua loquacidade desapareceu de súbito ao ver Angélica, e ele encarou-a com a boca aberta como se fosse uma aparição. Seria a mesma mulher a quem algumas horas antes havia enrolado como um salsichão e levado às boas irmãs do convento das Agos-tinianas de Bellevue?

- Sim, sou eu mesma, seu patife! - gritou Angélica, rubra de cólera. - Fora da minha vista imediatamente, miserável, que quase estrangulou a mulher de seu senhor!

- Senhora... Senhora marquesa - balbuciou La Violette, voltando a usar, em sua confusão, um acento camponês -, não foi minha culpa. Foi o senhor marquês que... que...

- Fora daqui, já lhe disse!

Com o braço estendido, ela se'pôs a descarregar sobre ele, no patoá de sua infância, todo o repertório de insultos a sua disposição.

Aquilo foi demais para La Violette, e ele desabou. Quase tremendo, com os ombros descaídos, passou diante dela e dirigiu-se para a porta. Na soleira, chocou-se com o marquês.

- Que está acontecendo? Angélica sabia enfrentá-lo.

- Boa noite, Filipe - disse.

Ele baixou sobre ela um olhar de cego. Mas súbito ela viu seu rosto se convulsionar, os olhos arregalaram-se com uma expressão de estupefata consternação, depois de terror, e aos poucos quase de desespero.

Ela não pôde se impedir de se voltar, convencida de que veria no mínimo o diabo atrás de si.

Mas viu apenas a folha oscilante da porta, onde um dos furriéis azuis havia escrito em branco o nome do marquês.

- Eis o que lhe devo! - explodiu ele, golpeando a porta com repetidos socos. - Eis a afronta que lhe devo... A desconsideração, o esquecimento, o abandono do rei... a desgraçai...

- Mas como? - disse ela, convicta de que ele estava ficando louco.

- Pois não vê o que está escrito nessa porta?

- Claro... seu nome.

- Sim, meu nome! É exatamente isso - escarneceu ele -, meu nome. E mais nada.

- Mas que queria você que houvesse além disso?

- O que tenho visto há anos em todas as residências aonde tenho acompanhado o rei, e o que sua estupidez, sua insolência... sua imbecilidade me fazem ver hoje suprimido. O PARA... O PARA!

- O para...? Para quê?

- PARA o Sr. Marquês du Plessis-Bellière - volveu ele, com os dentes cerrados, lívido de raiva e de dor. - "PARA...", a palavra, o convite especial de Sua Majestade, com o qual o rei assinala sua amizade, como se ele mesmo o recebesse à soleira deste quarto. O gesto com o qual designava a estreita e atulhada mansarda devolveu a Angélica seu senso de humor:

- Penso que você se aflige em excesso pelo seu "PARA" - disse, controlando-se para não estourar de rir. - Deve ser um esquecimento de um dos furriéis, Filipe. Sua Majestade o tem sempre na maior estima. Não foi você o encarregado de levar esta noite "o castiçal" para o aposento do rei?

- Pois então, não! - disse ele. - O que bem prova o descontentamento do rei em relação a mim. Essa insigne honra acaba de me ser retirada há apenas alguns instantes!

Os gritos do rapaz haviam atraído para o corredor os ocupantes dos quartos vizinhos.

- Sua mulher tem razão, marquês - interveio o Duque de Gra-mont. - Você se aflige sem razão. Sua Majestade tomou a si próprio o encargo de comunicar-lhe que, se ele lhe pedia que renunciasse esta noite ao "castiçal", era para conceder essa honra ao Duque de Bouillon, que não se conformava de ter sido obrigado a ceder suas atribuições ao Sr. Príncipe, durante a colação.

- Mas e o PARA? Por que não o PARA? - gritou Filipe, voltando a socar a porta com desespero. - E devido a essa rameira que vejo meu favor diminuir.

- E qual a minha falta para com o seu sagrado PARA? - gritou, por sua vez, Angélica, encolerizada.

- Você desagradou ao rei por sua demora em responder a seus convites, por suas chegadas intempestivas...

Angélica sufocava.

- Você ousa censurar-me quando foi você quem... quem... Todas as minhas carruagens, todos os meus cavalos ausentes.

- Já basta - disse friamente Filipe.

Ele ergueu a mão. A jovem sentiu a cabeça explodir e viu tre-meluzirem as velas contra um fundo escuro. Ela levou a mão ao rosto.

-       Vamos! Vamos, marquês! - disse o Duque de Gramont. -Não seja brutal.

Angélica tinha a sensação de jamais ter sofrido semelhante mortificação. Esbofeteada! Diante de seus criados e dos cortesãos, durante uma sórdida cena doméstica!

Rubra de vergonha, chamou Javotte e Flipot, que saíram do quarto um tanto aturdidos, carregando seu "enxoval" e o manto.

- É isso - disse Filipe -, vá dormir onde quiser e com quem quiser.

- Marquês! Marquês! Não seja grosseiro - interveio outra vez o Duque de Gramont.

- Monseigneur, "muito pode o galo no seu poleiro" - replicou o irascível gentil-homem, batendo a porta no nariz do agrupamento.

Angélica abriu o caminho e afastou-se sob comentários falsamente apiedados e sorrisos irónicos. Um braço saído de uma porta a agarrou.

-       Senhora - disse o Marquês de La Vàllière -, não existe uma mulher em Versalhes que não desejasse obter de seu esposo a autorização que recebeu. Tome ao pé da letra essa grosseira personagem e aceite minha hospitalidade.

Ela desprendeu-sei com impaciência.

-        Por favor, senhor...

Queria fugir o mais rápido possível. Enquanto descia as largas escadas de mármore, duas lágrimas de rancor brilharam em seus olhos.

"E um idiota, um espírito masculino sob ares de grande senhor... Um idiota! Um idiota!"

Mas era um idiota perigoso, e ela própria forjara as cadeias que a ligavam a ele, dando-lhe direitos temíveis, os de um esposo sobre sua esposa. Obstinado em vingar-se, ele não lhe concederia nenhum perdão. Ela adivinhava a tenacidade sorrateira e a satisfação com que ele perseguia o objetivo de submetê-la, de humilhá-la. Só conhecia um defeito naquela armadura: o sentimento extraordinário para com o rei, que não era medo nem afeição, mas uma fidelidade exclusiva, um devotamento insuperável. Era com esse sentimento que deveria jogar. Fazer do rei um aliado; obter dele um cargo permanente na corte, que obrigaria Filipe a se inclinar diante de suas obrigações, e pouco a pouco colocar Filipe entre a alternativa de cair no desagrado do rei e a de renunciar a atormentar sua mulher. E a felicidade em tudo isso? Aquela felicidade com a qual, apesar de tudo, ela havia timidamente sonhado, quando uma noite, no silêncio da floresta de Nieul, a lua se havia elevado, redonda, sobre as torrinhas do pequeno castelo renascença, para celebrar sua noite de núpcias... Amarga derrota! Amarga recordação! Ao lado dele tudo havia fracassado.

Ela duvidou de seus encantos e de sua beleza. Uma mulher que não se sente amada acaba por não mais se sentir digna de amor. Conseguiria prosseguir no combate em que se havia engajado? Conhecia suas próprias fraquezas: amá-lo e tê-lo feito sofrer. Em sua desmedida ambição, ela o havia constrangido, acuado, colocando-lhe nas mãos a escolha entre desposá-la ou lançar seu nome e o de seu pai diante da cólera do rei. Ele preferira desposá-la, mas não a perdoara. Por culpa de Angélica, a fonte sobre a qual eles poderiam debruçar-se estava poluída; a mão que ela teria podido lhe estender causava-lhe horror. Angélica olhou suas mãos brancas, abertas diante de si, com de-salento e tristeza.

-       Que nódoa você não pode apagar, ó encantadora Lady Macbeth? - perguntou a seu lado a voz do Marquês de Lauzun.

Ele se inclinou.

- Onde está o sangue de seu crime?... Mas suas mãozinhas estão geladas, minha bela. Que faz você nesta escada entre as correntes de ar?

- Eu não sei.

-       Sozinha?... Com tão belos olhos? E imperdoável. Venha, então, comigo.

Um grupo de jovens damas veio ao encontro deles com exclamações. A Sra. de Montespan estava entre elas.

- Sr. de Lauzun, estávamos a sua procura. Tenha compaixão de nós.

- Eis um tipo de compaixão bastante fácil de fazer brotar em meu coração. Em que posso servi-las, senhoras?

- Aloje-nos. Parece que o rei fez construir para você uma residência no vilarejo. Aqui não teremos direito nem a um ladrilho na antecâmara da rainha.

        - Mas vocês não são damas de honra da rainha, tanto vocês quanto a Sra. du Roure e a Sra. d'Artigny?

- Por certo, mas nosso quarto habitual foi completamente demolido pelos pintores. Parece que querem ali colocar Júpiter e Mercúrio... no teto. Enquanto isso, esses deuses nos expulsam...

- Está bem, não se aflijam. Eu as conduzirei, todas, à minha residência.

Saíram. Lá fora a neblina se tornava mais e mais densa, trazendo o odor da floresta próxima.

Lauzun chamou um lacaio que carregava uma lanterna e guiou o grupo das jovens colina abaixo.

- É aqui - disse, parando diante de um amontoado de pedras brancas.

- Aqui? Como?

- Minha residência. É bem verdade que o rei está fazendo com que seja construída, mas por ora só puseram a primeira pedra.

- Você é um gracejador de mau gosto! - sibilou Atenaís de Montespan, furiosa. - Fazer-nos gelar até a medula, chafurdar neste entulho...

- Tomem cuidado para não cair também em um buraco - advertiu Péguilin, obsequioso. - A terra foi muito revolvida por aqui.

A Sra. de Montespan partiu; tropeçou repetidas vezes, torceu o tornozelo e voltou a explodir em imprecações, outorgando ao marquês, no caminho até o castelo, epítetos que não desmereceriam os soldados do corpo da guarda.

Lauzun ainda ria, quando o Marquês de La Vallière, que passava por lá, gritou-lhe que iria atrasar-se para "a camisa". O rei se dirigia a seu quarto e/os gentis-homens deveriam estar presentes ao cerimonial do deitar do rei,, quando então o primeiro criado entregaria a camisa ao camarista-mor, que a passaria ele próprio ao rei. O Marquês de Péguilin deixou precipitadamente as damas, não sem antes reiterar que, apesar de tudo, lhes oferecia hospitalidade... em seu quarto, situado "em algum lugar lá em cima".

As quatro jovens, seguidas de Javotte, voltaram então para cima, onde o aperto era, segundo a expressão da Sra. de Montespan, "de fazer rachar os lambris".

Depois de muito procurar, acabaram por descobrir a inscrição honorífica em uma pequena porta:

"PARA o Marquês Péguilin de Lauzun".

- Feliz Péguilin! - suspirou a Sra. de Montespan. - Não importa que cometa todas as tolices do mundo, o rei continua a tratá-lo como favorito. E no entanto é um homem de estatura pouco avantajada e de fisionomia comum.

- Mas que compensa esses dois defeitos com duas grandes qualidades - disse a Sra. du Roure. - Ele tem muito espírito e um não sei quê que faz com que as damas que o conheçam não o deixem de bom grado por outro.

Aquela era também, sem dúvida, a opinião da jovem Sra. de Roquelaure, a quem encontraram no quarto, apresentando-se de maneira bem simples: sua criada acabava de lhe passar uma camisa de cambraia ornada de rendas aracnídeas e destinada a não ocultar nenhum dos predicados da bela dama. Depois de um momento de embaraço, ela recompôs-se e disse com muita graça que, se o Sr. de Lauzun enviava suas amigas para se abrigar em seu quarto, seria injusto levá-lo a mal. Ajudar-se mutuamente era o mínimo que se podia fazer em ocasião tão excepcional quanto uma estada em Versalhes. A Sra. du Roure estava encantada: de há muito suspeitava que a Sra. de Roquelaure fosse a amante de Péguilin. Agora, finalmente, tinha certeza.

De vasto o quarto só tinha a água-furtada que se abria para os bosques. A cama com cortinas que os criados acabavam de armar ocupava-o por inteiro. Depois que todas entraram, não havia como se deslocar ali dentro. Felizmente, dada sua exiguidade, o local estava aquecido e o fogo da pequena lareira queimava alegremente.

-       E agora - disse a Sra. de Montespan, tirando os sapatos enlameados -, livremo-nos um pouco do espírito desse maldito Péguilin.

Ela enrolou as meias encharcadas, e suas companheiras a imitaram. Sentaram-se as quatro no chão com suas grandes saias e estenderam os lindos pés para o fogo.

-       E se comêssemos bolinhos assados? - propôs Atenaís..

A criada foi enviada até as cozinhas, e voltou com um serviçal

de boné branco, que trazia um cesto cheio de massa crua e um longo garfo de dois dentes. Instalaram-no a um canto da lareira, com seus utensílios. A Sra. d'Artigny tirou da bolsa um tapeti-nho de pelúcia, que estendeu, e um baralho, que começou a em-baralhar agilmente.

- Você joga? - perguntou à Sra. du Roure.

- De bom grado.

- E você, Atenaís?

-       Não tenho mais um centavo. Perdi tudo ontem à noite, em casa da Sra. de Créqui.

Angélica recusou. Queria conversar com a Sra. de Montespan. A Sra. d'Artigny insistia: eram precisos quatro para sua partida. Em desespero de causa, engajou um dos criados e o cozinheiro.

- A gente não sabe jogar cartas, senhora - disse o garoto, intimidado.

- Então façamos uma bassette - disse a condessa, pegando um copinho para dados.

-       E eu, senhora condessa, a gente não pode perder muito dinheiro - disse o criado, esquivo.

A Sra. d'Artigny jogou-lhes uma bolsa, tirada de sua inesgotável provisão.

-       Aqui têm, para começar,, E você não tem necessidade alguma de abrir a boca até as orelhas. Vou recuperar tudo isso com poucos lances.

Começaram a jogar os dados. O ajudante de cozinha tinha em uma das mãos o copinho e na outra o garfo para os assados.

O Sr. de Lauzun voltou, acompanhado de um gentil-homem seu amigo, que tomou o lugar do criado. O Sr. de Lauzun e a Sra. de Roquelaure foram deitar-se. Depois que fecharam as cortinas, ninguém mais se ocupou deles.

Angélica pegava as guloseimas com as pontas dos dedos e mordis-cava-as melancolicamente pensando em Filipe. Como enfraquecê-lo, como vencê-lo, ou ao menos como escapar a sua vindita e impedi-lo de malbaratar seu destino, tão penosamente arquitetado?

Ela recordava os conselhos daquele filósofo da ladroagem, Traseiro de Pau, quando, no fundo de seu antro, tendo por trono um estrado de madeira, ele lhe dizia: "Não se deixe dominar por Ca-lembredaine, senão você morrerá... da outra morte, a pior, a morte do seu eu..."

Mas podia-se comparar o grosseiro Calembredaine ao refinado marquês?... Angélica chegava a se perguntar se o mais temível não seria este último... Dia viria em que aborrecimentos estúpidos como o furto da carruagem cederiam lugar a atitudes mais perigosas. Ele sabia como atingi-la. Por meio de seus filhos ou de sua liberdade. Se lhe ocorresse a crueldade de torturar Florimond e Cantor, como já o fizera, de que modo poderia defendê-los?... Felizmente os dois garotinhos estavam protegidos, em Monteloup, onde adquiriam cores correndo pelos campos com os pequenos campônios do Poitou. A sorte deles não a preocupava no momento. Disse consigo mesma que seria tolice perder-se em temores imaginários, quando estava vivendo sua primeira noite em Versalhes.

O fogo se avivava. Ela pediu a Javotte qye lhe passasse seu estojo, de onde tirou dois protetores contra calor em pergaminho delicadamente decorado. Ofereceu um deles à Sra. de Montespan. A bela dama admirava a pequena arca de couro vermelho, forrada de damasco branco e incrustada a ouro. Seu interior encerrava, separados por divisões, um castiçal de marfim, um saquinho de cetim preto com dez velas de cera virgem, um porta-alfinetes, dois espe-lhinhos redondos e um outro maior, oval, guarnecido de pérolas, duas toucas de renda acompanhando uma camisola de fino linho, um estojo de ouro com três pentes e um outro para as escovas. Estes últimos objetos eram obras de arte, de escamas amarelas e vermelhas realçadas por arabescos em ouro.

- Eu os fiz talhar nas carapaças daquelas tartarugas que se pescam nos mares quentes - explicou Angélica -; não se trata de chifre de boi e muito menos de casco de asno.

- Bem vejo - suspirou com inveja a Marquesa de Montespan. - Ah! O que eu não daria para possuir acessórios tão encantadores! Quando seria bastante justo se não tivesse que penhorar minhas jóias para saldar minha última dívida de jogo. O que não fiz. Como poderia aparecer esta noite em Versalhes? O Sr. de Venta-dour, a quem devo mil pistolas, esperará. É um cavalheiro.

- Mas você não foi nomeada dama de honra da rainha? Não se ocupa esse cargo sem obter certas vantagens...

- Ora! Uma miséria! Vi dobrarem os gastos com minhas roupas. Gastei duas mil libras na fantasia que usei no bale de Orfeu que o Sr. Lulli compôs e que dançamos em Saint-Germain. Oh! Era adorável. Minha fantasia, sobretudo. Aliás, o bale também. Eu estava vestida de ninfa, com todos aqueles penduricalhos imitando as ervas de uma nascente. O rei estava de Orfeu, naturalmente. Ele abriu o baile comigo. Benserade comentou-o em sua crónica. O poeta Loret também.

- Em geral fala-se muito das atenções que o rei tem para com você - acentuou Angélica.

Os sentimentos que a Sra. de Montespan lhe inspirava estavam bastante abrandados. Invejava-lhe, se não a beleza um pouco semelhante à sua, da bela raça do Poitou, ao menos a radiosa ousadia de sua postura e de suas palavras. Junto a Atenaís, Angélica, apesar de seu dom de réplica fácil, sentia-se inferiorizada e calava-se, de preferência. Tinha consciência da grande sedução da linguagem da jovem marquesa; tudo o que havia de exagerado em suas ideias fundia-se e ligava-se por meio de uma elocução deliciosa, de tal forma que as pessoas se sentiam surpresas por não se chocarem de modo algum. Esse género de eloquência, onde a naturalidade e a graça faziam aceitar e mesmo admirar uma conversação quase cínica, constituía um talento de família: chamavam-no de a língua Mortemart. As duas irmãs da Sra. de Montespan, a Sra. de Thianges e Maria Madalena, a encantadora Abadessa de Fontevrault, seu irmão, o Duque de Vivonne, cada qual dela dispunha em abundante provisão. Seus discursos causavam deleite e temor ao mesmo tempo.

Constituíam também uma família importante, os Mortemart de Rochechouart. Angélica de Sancé, possuindo, como era obrigatório, o armoriai de sua província, não deixara de ficar impressionada pela magnificência das recordações que se ligavam a uma das mais importantes casas do Poitou. Em outros tempos, Eduardo da Inglaterra havia dado uma de suas filhas a um Sr. de Mortemart. E o atual Duque de Vivonne tivera por padrinhos o rei e a rainha-mãe.

Nos olhos de um azul esplêndido da Sra. de Montespan, podia-se evocar o orgulho de sua um tanto disparatada divisa:

"Antes que existissem as águas do mar

Já havia ondas em Rochechouart".

O que não a impedira de chegar a Paris em grande pobreza, sem outros bens além de uma velha carruagem, e de se debater desde seu casamento com odiosos apuros financeiros. A jovem, muito orgulhosa e mais sensível do que se supunha, sofria até as lágrimas.

Angélica, melhor que ninguém, conhecia os humilhantes problemas com os quais se debatia a gloriosa Montespan. Tivera muitas vezes a ocasião, desde que conhecera o casal, de acalmar credores irascíveis, emprestando somas que jamais tornaria a ver, e que nem mesmo pensavam em lhe agradecer. Isso não impedia que Angélica experimentasse um prazer manifesto em obsequiar os Montespan. Por vezes ela se interrogava sobre aquela amizade singular, dizendo consigo mesma que Atenaís era, no fundo, bem pouco simpática, e que a mais elementar prudência tê-la-ia aconselhado a afastar-se dela. Mas a vitalidade da jovem a atraía. O faro de Angélica sempre a conduzira instintivamente na direção das pessoas destinadas a obter sucesso. Atenaís estava entre elas. Sua ambição transbordava como o mar do qual se prevalecia; melhor seria .segui-la e deixar-se levar pela maré do que tentar navegar contra a corrente.

Por seu turno, Atenaís devia julgar cómodo contar em suas relações com uma amiga tão generosa, cuja fortuna era sólida, pois que devida a empreendimentos comerciais; amiga que se podia no entanto frequentar sem se sentir diminuída. Angélica, apesar de sua beleza, não lhe fazia sombra.

Diante da alusão feita por sua amiga aos favores do rei, a fisionomia da Sra. de Montespan, que refletia naquela noite uma profunda preocupação, distendeu-se um pouco.

-       A rainha está no fim de uma gravidez, a Srta. de La Vallière começa uma outra. O momento parece propício para atrair a atenção do rei - disse ela com seu sorriso faiscante, sempre marcado a um canto por uma ponta de maldade. - Oh! Angélica, o que você me leva a dizer, e mesmo a pensar! Eu me sentiria bastante pesarosa e envergonhada se o rei quisesse fazer de mim sua amante; não mais ousaria apresentar-me diante da rainha, que é uma mulher tão boa.

Angélica não se deixou lograr totalmente por esse protesto de virtude. Havia, no entanto, certos aspectos do caráter de Atenaís que a espantavam, sem que ela pudesse discernir se se tratava de aparência hipócrita ou de sentimento sincero: sua piedade, entre outras coisas. A frívola Montespan não faltava a uma missa ou ofício, e a rainha repetia a quem quisesse ouvir que estava bastante contente por ter enfim uma servidora piedosa.

- Você se recorda - retomou Angélica rindo - daquela visita que fizemos junto com Francisca Scarron à adivinha Monvoisin? Você já tinha, se me parece, a vontade de lhe perguntar se conseguiria fazer-se amar pelo rei.

- Passatempos! - disse a marquesa com um gesto que ironizava seus próprios caprichos. - Aliás, eu ainda não havia sido nomeada para a comitiva de Sua Majestade e procurava meios de me sobrelevar na corte. A Voisin não disse senão tolices...

- Que nós três seríamos amadas pelo rei!

- Até mesmo Francisca!

- Oh! perdão. Se tenho boa memória, o destino de Francisca deve ser ainda mais brilhante. Ela desposará o rei!

Riram juntas de bom grado.

-       Francisca Scarron!... Rainha de França!

Os jogadores não davam por aquela hilaridade. Só se ouvia o barulho dos dados nos copinhos e o dos escudos que os ganhadores deslizavam para suas bolsas. O cozinheiro deixava queimar os bolinhos.

Angélica pegou uma acha e colocou-a na lareira.

-       Avistei Francisca, esta noite mesmo. Deixava Versalhes depois de ter esperado em vão a oportunidade de entregar uma nova súplica ao rei. Pobre Francisca!

- Ela exagera com suas súplicas. É vista por todo lado. Estava também na terça-feira em Saint-Germain. O rei voltou-lhe imediatamente as costas, e o ouvi dizer ao Duque de Saint-Aignan: "Chovem, em verdade, memoriais da Sra.-Scarron. Quando cessará ela de me importunar?"

- Felizmente essa observação'não caiu no ouvido da pobre suplicante!

- Oh! Mesmo que tivesse o ouvido atingido por esse maldoso cumprimento, isso não a teria dissuadido de solicitar; conheço Francisca, nada esmorece seus intentos. Há dois anos que pede sem sucesso. Você sabe o resultado? Ela se apresenta com mais e mais frequência. Acabará por ser confundida com uma personagem das tapeçarias de Saint-Germain, de Versalhes ou Fontainebleau.

- É um modo de se fazer notar. Francisca tem belos olhos, uma tez sedutora e as mais lindas formas do mundo.

- Ela é um tanto^morena, você não acha? Mas reconheço que tem oficiosidade, capacidade. Mereceria obter um cargo modesto. É raro encontrar uma dama de boa educação e no entanto tão desenvolta.

"Sim... desenvolta como a pobreza aprende a ser", disse Angélica consigo mesma.

Atenaís de Montespan havia empregado nesse pequeno panegírico sobre sua antiga companheira de pensão, Francisca d'Aubig-né, todas as suas possibilidades de se interessar por alguém que não fosse sua cintilante pessoa.

- Como sou infeliz! - suspirou bruscamente. - Afigure-se-lhe que devo mil e oitocentas libras a meu mestre-segeiro, que é também seleiro, e que me preparou os arreios de hoje. Não sei se você notou a beleza do couro. Eu os quis dourados, semelhando um tecido bordado. Uma verdadeira maravilha!

- Mil e oitocentas libras...

- Oh! a dívida não é enorme! E eu desdenharia de bom grado as queixas do Sr. Gaubert e lhe pediria-que esperasse do mesmo modo que seus confrades, o mestre-alfaiate, o bordador ou o joalheiro. Mas meu insuportável marido Pardaillan meteu-se com ele para empenhar um par de brincos com três pendentes, guarnecido com três grandes brilhantes, ao qual sou muito apegada. Se não pagar amanhã, perco meu adereço! Já viu um marido envolver-se em tais negócios com tanta falta de jeito e de consciência? Ele não consegue segurar o dinheiro... Ele joga! Ele joga! Não consigo chamá-lo à razão em relação ao jogo. E além de tudo as ideias mais extravagantes... Estou vendo o momento em.que vou acabar minha vida como minha tia de Bellegarde, você sabe, a duquesa?... É da família dele, não da minha, apresso-me a dizer... O marido tomou-se de ciúmes por ela. Tem setenta e cinco anos, e ela, cinquenta e cinco. Ele encerrou-a em seu castelo, privou-a do necessário, e ela está reduzida a rasgar os lençóis para fazer suas camisolas... Eis o que me espera por ter tido a imprudência de aceitar essa aliança. Todos esses Pardaillan de Montespan têm algo de bizarro.

Angélica, com a face ainda ardendo da bofetada de Filipe, não achava as histórias da Sra. de Montespan muito divertidas. Sua expressão rejubilava visivelmente a maligna jovem.

-       Não fique remoendo ideias sombrias. Você controla seu Filipe por outros meios que a afeição conjugal. Comenta-se que você o deixa escavar sem limite em seus cofres de mercadora.

Na corte, Angélica desejava ser a Marquesa du Plessis-Bellière, e nada mais. A alusão da Sra. de Montespan a suas atividades comerciais fê-la rilhar os dentes.

-       E você, não se preocupe, pois, em saber se me deixarei sequestrar ou não - disse, encolerizada. - Será uma boa oportuni

dade para avaliar o que terá perdido. Se você fosse uma mulher

inteligente, antes me ajudaria a ligar-me à corte, indicando-me, por

exemplo, um cargo vago que pudesse comprar.

Atenaís ergueu os braços aos céus.

- Minha pobrezinha, que está você pensando? Um cargo vago na corte? É o mesmo que procurar agulha em palheiro. Todo mundo está à espreita, e mesmo a preço de ouro não se consegue prover-se de um.

- No entanto, você bem adquiriu o cargo de dama de honra da rainha.

- O próprio rei indicou-me. Várias vezes eu o fiz rir em casa da Srta. de La Vallière. Sua Majestade pensou que eu poderia distrair a rainha. O rei tem muitas atenções para com sua mulher. Fazia tanto empenho em minha presença junto a ela que teve a delicadeza de pagar o excedente de um cargo que eu teria bastante dificuldade em saldar. Mas é preciso proteção, e como a do rei é importante! Vejamos, por quem você poderia passar? Ou então poderia criar algo para seu uso e apresentar a petição a Sua Majestade. Sua proposta será examinada pelo Alto Conselho. Se você conseguir seu registro no Parlamento, está colocada.

- Isso me parece bem difícil e complicado. Que você quer dizer exatamente com alguma coisa para meu uso?

- Bem, não sei... Basta ter urrj pouco de imaginação... Bom, veja um exemplo recente. Eu sei que o Sr. du Lac, mordomo do Marquês de La Vallière, associou-se com Collin, criado de quarto da duquesa, para pedir a graça de perceber, dois sóis por jeira sobre todas as terras vagas compreendidas entre a comuna de Meu-don na direçao de Saint-Cloud e o vilarejo de Chagny, situado próximo a Versalhes. A ideia é um achado, pois, com a escolha que o rei fez daquela região, muitas terras serão compradas por lá. E que se compreende exatamente por terras vagas? A petição, trazendo a recomendação da Srta. de La Vallière, foi imediatamente subscrita pelo rei. Ele jamais lhe recusa alguma coisa. O Parlamento nada pode fazer a não ser registrá-la. Esses dois senhores, garantidos por um tal privilégio, arriscam-se a se encontrar um belo dia abarrotados de escudos... Aliás, é um erro de nossa favorita outorgar tantas vantagens à criadagem! Ela não sabe dizer não. O rei começa a se sentir embaraçado com a nuvem de solicitantes de que ela o sobrecarrega. A frente deles vem seu irmão, o marquês: um verdadeiro génio na arte de pedir. Você poderá consultá-lo com proveito. Ele a aconselhará com o maior bom grado, se creio ter notado que você não lhe é indiferente... Enquanto se espera, posso apresentá-la à rainha. Você lhe falará. E possível que consiga prender sua atenção.

- Faça isso - disse Angélica com ênfase. - E prometo-lhe que encontrarei em meus cofres de mercadora maneira de apaziguar seu mestre-seleiro.

A Marquesa de Montespan estava radiante e não o escondeu.

-       Entendido. Você é um anjo... E será um arcanjo se pudesse obter-me, além disso, uma arara. Sim, um .daqueles grandes pássaros das ilhas com os quais você faz comércio... Você sabe, com plumas vermelhas e verdes... Oh! Sonho com eles.

 

Barcarola, o bobo da rainha

Com a aurora, a Sra. de Montespan bocejou e espreguiçou-se. Havia continuado a conversar com Angélica a intervalos; o desconforto da peça não lhes permitia estirar-se para repousar um pouco.

O cozinheiro roncava apoiado na lareira. A Sra. d'Artigny se havia eclipsado. A Sra. du Roure e o jovem que lhes servira de parceiro no jogo conversavam familiarmente em voz baixa, agachados lado a lado sobre o lajedo. Não se tratava de amor, mas de acerba contabilidade. Angélica ouvia as palavras "encargos... vacância... quartéis... excedentes".

Por trás das cortinas da grande cama, dois corpos sonolentos viraram-se, bocejaram também e depois houve um terno murmúrio.

- Creio que eu faria bem em descer - disse Atenaís. - A rainha irá chamar por suas damas de honra. Quero ser uma das primeiras a chegar para acompanhá-la à missa. Você vem também?

- Talvez a hora não seja muito propícia para me apresentar a Sua Majestade.

- Não é. Esperarei nosso retorno da capela. Você deve se colocar junto à passagem. Mas antes é preciso que lhe mostre os bons lugares para que possa em todas as circunstâncias ver Suas Majestades e, se possível, ser vista por elas. É uma arte difícil. Desça comigo. Eu lhe indicarei também um pequeno gabinete de banhos contíguos aos aposentos da rainha, de que suas damas podem dispor para reunir-se e pentear-se. Você tem outros trajes além de seu gibão de caça?

- Sim, em uma arca. Mas é preciso que encontre meu pequeno lacaio para que vá pegá-la no quarto de meu marido.

-       Use algo simples durante a manhã. Depois da missa o rei receberá os solicitantes e em seguida irá trabalhar com seus ministros. Em compensação, creio que esta noite haverá comédia e partida de bale. Você poderá exibir suas mais belas jóias. Agora, venha.

Fora do quarto o tempo estava glacial e ú-mido. A Sra. de Mon-tespan desceu as escadas sem se preocupar com as correntes de ar que sopravam sobre suas belas espáduas nuas.

-       Não está com frio? - perguntou Angélica.

A marquesa teve um gesto de despreocupação. Tinha a resistência dos cortesãos habituados a suportar os piores incómodos, tanto o frio como o calor, em salas abertas a todos os ventos, ou, ao contrário, sufocantes sob a chama de milhares de velas, a fadiga das longas estadas em pé, as noites sem dormir, o peso dos vestidos sobrecarregados^ de douraduras e de jóias.

Angélica conservara a sensibilidade ao frio dos mal nutridos. Não podia dispensar os mántôs. Tinha toda uma coleção deles. E muito belos. O que ela trazia era em quadradinhos alternados de veludo e cetim, de um verde azulado que combinava com seus olhos. O capuz era ornado com uma renda veneziana que podia abaixar sobre o rosto, quando não desejava ser reconhecida.

A Sra. de Montespan deixou-a na entrada da Sala dos Festins. A exceção dos suíços em. seus postos, imóveis como estátuas, com suas alabardas e golas pregueadas engomadas, ninguém parecia ter ainda despertado no grande palácio. A claridade do dia mal começava a dissolver a obscuridade dos salões. Galerias e vestíbulos escancaravam-se sobre as trevas como grutas imensas e fabulosas onde se adivinhava o brilho dos ouros e dos espelhos.

A maior parte das velas estava apagada.

- Eu a deixo - sussurrou a dama de honra da rainha, invadida pela solenidade de um silêncio bastante raro naquele local. - Por ali há um pequeno gabinete onde você poderá sentar-se enquanto espera. Os cortesãos que devem presenciar o despertar do rei não vão tardar a aparecer. Sua Majestade é matinal. Logo voltaremos a nos ver.        

Ela distanciou-se, e Angélica foi abrir a porta dissimulada por uma tapeçaria, que lhe havia sido indicada.

-       Oh! perdão - disse, fechando-a depressa.

Ela deveria ter imaginado que um recanto, por pequeno que fosse, desde que comportasse um sofá, só poderia ser ocupado de maneira galante.

"É curioso", considerou, "não imaginava que a Sra. de Soubise tivesse tão lindos seios. Ela esconde seu jogo e seus encantos."

Naturalmente seu par não era o Sr. de Soubise. O que também poderia ter imaginado. Em Versalhes, fechavam-se os olhos à licença, mas os divertimentos conjugais pareceriam por demais burgueses e teriam chocado a todo mundo.

Angélica não tinha outro recurso a não ser errar pelas salas abandonadas.

Deteve-se na primeira. Era a Sala Jónica, assim chamada devido às dozes colunas que sustentavam a cornija. Já havia uma certa luminosidade. Podia-se distinguir a graça das brancas volutas, desenrolando seus anéis à beira das sombras como as vagas de um mar plácido sobre um oceano obscuro. O teto, com seus profundos cai-xotões de ouro e ébano, permanecia invisível. Dali emergia o cristal dos lustres, maravilhas glaciais, estalactites feéricas suspensas por fios invisíveis. Nas paredes, três conjuntos de espelhos refletiam as janelas, invadidas pouco a pouco pela claridade do dia.

A jovem foi apoiar-se nos montantes de mármore e olhou para fora. Também o parque saía da noite. O terraço arenoso ao pé do castelo, despojado, sem sombras, tinha a nitidez de uma praia. Os flocos de neblina pairavam mais baixo, envolvendo as altas carpas severamente talhadas e cuja arquitetura batizava uma espécie de cidade fantasma, de muralhas brancas e azuladas, guardando o segredo dos jardins perfeitos com seus canteiros de bordados, seus tanques de água negra e verde onde cisnes avançavam.

Quando o sol surgisse, ver-se-iam reverberar aquelas águas de longe em longe, dos dois tanques do terraço ao de Latona e ao de Apolo, desenhado com a forma de um disco de prata; depois à cruz de ouro do Grande Canal, onde se detinham, domadas, outras águas, mortas e selvagens, aquelas dos grandes pântanos, domínio do pato e da cerceta, e que se estendiam a perder de vista.

-       Com que está sonhando, marquesa?

A voz era sussurrante e a personagem a quem pertencia, invisível. Angélica olhou a seu redor com a impressão desconcertante de que somente a estátua de mármore a sua frente teria podido dirigir-lhe a palavra.

-       Com que está sonhando, marquesa?

- Mas... quem fala?

- Eu, Apolo, o deus da beleza, a quem você teve a amabilidade de vir fazer companhia nesta hora matinal.

- Está fresco, não é mesmo? Você ainda tem um manto, mas eu estou completamente nu. Um corpo deunármore não é quente, você sabe.

Angélica deu um salto, olhou para trás da estátua e nada viu. Um amontoado de panos multicoloridos sobre o solo, junto ao pedestal, chamou no entanto sua atenção. Ela debruçou-se e para ali levou a mão. O amontoado deu então um salto como um cabrito e, com uma pirueta, um curioso gnomo surgiu diante dela, tirando o capuz com o qual escondia o rosto.

- Barcarola! - exclamou Angélica.

- Para servi-la, Marquesa dos Anjos.

O anão da rainha inclinava-se em profunda reverência. Não era mais alto que uma criança de sete anos. Diante da deformidade daquele pequeno corpo atarracado, apoiado sobre perninhas tortas, esquecia-se a beleza de seu rosto inteligente. Usava um chapéu de cetim carmesim enfeitado com medalhas e guizos. O colete e o gibão eram também de cetim, metade carmesim e metade pretos, mas sem guizos ou ornamentos. Trazia punhos de renda e uma espada em miniatura. Há muito que Angélica não o via. Achou-o com um ar de gentil-homem e disse-lho.

-       Não é? - falou Barcarola, satisfeito. - Tirando o meu talhe, creio que posso igualar-me a qualquer um destes belos senhores que se pavoneiam por aqui. Ah! se nossa boa rainha quisesse consentir que me tirassem esses poucos guizos que ainda trago no chapéu, far-me-ia um sensível favor. Mas ela sustenta que na Espanha os bufões sempre usam guizos e que, se não mais ouvir esse pequeno carrilhão ao seu redor, ficará mais triste, ainda. Felizmente meus dois companheiros e eu temos um aliado inesperado. É o rei. Ele não consegue nos suportar. Não perde uma ocasião, quando vem aos aposentos da rainha, de nos expulsar a bastonadas. Nós nos salvamos com algumas cabriolas, fazendo soar bem forte todos os nossos berloques. Em todas as ocasiões, enquanto ele palestra, ou até mesmo em conjunturas mais íntimas e delicadas, agitamos freneticamente nossos chocalhos. Isso o deixa com um terrível mau humor. A rainha acabou por notá-lo. Ela suspira então e nada mais diz quando, por acaso, um de nossos guizos arrancados não é reco-sido. Breve empreenderemos a obtenção de um outro privilégio.

- Qual?

- A peruca - disse Barcarola, revirando os olhos. Angélica ria.

- Creio que você está se tornando pretensioso, Barcarola.

-       Procuro elevar-me, lançar-me no mundo - disse o anão com presunção.

Mas em seu olhar de homem maduro ela podia ler a expressão melancólica e a ironia. Ele zombava de si mesmo.

- Estou muito contente por revê-lo, Barcarola. Conversemos um pouco.

- Não receia por sua reputação? Comentarão sobre nós. Se seu marido me desafiar para um duelo?...

- Você tem uma espada.

- É verdade! A um coração valente nada é impossível. Então lhe farei a corte, bela marquesa. Mas olhemos para a janela. As pessoas pensarão que admiramos os jardins e não poderão perceber minhas declarações inflamadas.

Ele trotou em direção à janela e colou o nariz a uma das vidraças, como fazem as crianças.

-       O que acha do lugar? Agradável, não é? Marquesa dos Anjos, você, uma grande dama, não renega a sua amizade com o bufão da rainha?

Angélica estava em pé, a seu lado, com os olhos também voltados para os jardins. Ela pousou a mão sobre o ombro do homenzinho.

-       As recordações que nos unem não são daquelas que podem ser renegadas, Barcarola.

Ela acrescentou, mais baixo:

-       O que seria mesmo desejável, mas impossível...

Agora o sol dissipava a neblina. O dia seria límpido. Um desses dias doces e luminosos como um dia de primavera. Libertas das brumas, as carpas recobravam sua tintura verde, os tanques, transparências azuladas, as flores, coloridos vivos. Os jardineiros chegavam com suas carriolas e seus ancinhos. Eram bastante numerosos, mas pareciam pequenos na escala da vasta esplanada.

-       Por vezes - disse Barcarola em voz baixa - nossa rainha se inquieta. Ela não me ouviu durante todo o dia. Onde poderia ter ido seu anão preferido?... Ele está em Paris, mesmo que isso desagrade a Vossa Majestade. Para render homenagem a uma outra Majestade, que nenhum súdito se permitiria negligenciar, o Grande Coèsre Traseiro de Pau, rei dos malfeitores. Oh! súditos da nossa espécie, Marquesa dos Anjos, não existem muitos. Capazes de cuspir nas bolsas cheias, gordas como melões. Creio que Traseiro de Pau gosta de mim.

-       De mim também ele gosta - disse-Angélica.

Ela evocou o rosto impressionante do aleijado. Quem poderia imaginar aqueles passeios clandestinos que às vezes conduziam a bela Marquesa du Plessis-Bellière, mascarada, vestida de sarja, até os confins do Faubourg Saint-Denis? E cada semana os empregados de sua casa, escolhidos entre os antigos companheiros da malta, levavam até lá cestas contendo finos vinhos, aves e assados.

-       Não tema nada, Marquesa dos Anjos - murmurou ainda Barcarola -, nós sabemos guardar o segredo. E não se esqueça de que, conosco, você jamais estará sozinha nem em perigo... mesmo aqui.

Ele voltou-se e com um gesto enfático de seu bracinho englobou o esplêndido cenário.

-       Aqui!... no palácio do rei, onde cada qual está mais sozinho e sob ameaça do que em qualquer outro lugar da Terra...

Os primeiros cortesãos começavam a chegar, dissimulando um bocejo atrás dos punhos de rendas. Os tacões de madeira ressoavam longe sobre o piso de mármore. Criados apareceram trazendo achas de lenha. Acendia-se o fogo nas monumentais lareiras dos salões.

-       A "velha" não vai tardar. Ei-la, aí vem ela.

Angélica viu passar a silhueta de uma mulher de certa idade, envolta em uma capa com capuz. Trazia sobre os cabelos grisalhos uma touca camponesa engomada, feita da mais fina cambraia. A sua passagem, alguns gentis-homens afastaram o pé à guisa de leve reverência. Ela pareceu não os ver. Prosseguia em seu caminho com tranquila majestade.

- Para onde vai ela?

- A câmara do rei. É a Sra. Hamelin, sua ama-de-leite. Ela conservou o privilégio de entrar pela manhã em sua câmara, antes de quem quer que seja. Ela abre as cortinas e o beija em sua cama. Pergunta-lhe se dormiu bem e se está bem-dispostcConversam um pouquinho. Os grandes deste mundo sapateiam à porta... Depois que se retira, não é mais vista durante todo o dia. Não se sabe onde ela se enterra com sua roca... É um pássaro da noite, a "velha". Mas os ministros, os príncipes e os cardeais a cada dia engolem o desgosto de ver essa pequeno-burguesa de Paris obter o primeiro sorriso do monarca e lhe subtrair frequentemente seu primeiro favor.

O rei se levantava.

Sobre os passos da ama, que se retirava, entravam os três médicos em suas túnicas negras, tendo, sobre opulentas perucas de cachos brancos, o chapéu em ponta, insígnia de sua respeitável profissão. Um após outro tomavam o pulso do rei, informavam-lhe sobre sua saúde, trocavam algumas palavras em latim e depois saíam.

Então tinha lugar a primeira entrada, a dos príncipes de sangue.

Diante dos príncipes de sangue inclinados, o rei descia da cama. O camarista-mor passava-lhe seu chambre, que o primeiro criado carregava. Sua Majestade tinha o direito de vestir, ele mesmo, seus calções, e depois um dos grandes oficiais precipitava-se para amarrar as jarreteiras.

Como fosse privilégio do primeiro gentil-homem apresentar a camisa, era preciso que ele aparecesse caminhando orgulhosamente à frente da segunda entrada, composta por membros da alta nobreza e por senhores com autorização especial.

Após ter o rei recebido sua camisa, o primeiro criado de quarto apresentava a manga direita; o primeiro criado do guarda-roupa ajudava a vestir a manga esquerda.

A terceira entrada, composta por duques e pares, se fazia às cotoveladas, com um rumor alegre e uma multiplicidade de reverências que faziam vergar os gibões bordados como um campo de flores sob uma ventania.

Enquanto isso o mestre do guarda-roupa atava a gravata. Era seu direito. Mas o gravateiro, tendo-a julgado mal-arrumada, retocava-a ou voltava a amarrá-la. Era seu direito também. Com a condição de se ter assegurado antes de que nenhum oficial superior de quarto se achasse presente.

A quarta entrada, dos secretários de Estado, a quinta entrada, dos embaixadores, a sexta entrada, violeta e púrpura, dos cardeais e bispos, lotavam pouco a pouco a câmara do rei.

Com um olhar o rei reconhecia cada um e notava as ausências. Fazia perguntas, informava-se sobre os boatos e se divertia com alguma resposta espirituosa. E os santos do paraíso versalhês, pensando nos simples mortais relegados para fora das portas douradas, saboreavam a alegria inefável de serem admitidos a contemplar o rei de chambre.

 

Angélica é convocada ao gabinete do rei

Angélica vira desfilar todos os "santos" com direito de acesso ao santuário.  

- Nós somos as "almas do purgatório" - disse-lhe, rindo, uma das damas que já alf estavam, bastante ataviadas, desejosas de ser as primeiras à passagem do rei e da rainha, quando estes se dirigissem à capela.

O Marquês du Plessis-Bellière fizera parte da segunda entrada.

Angélica esperou, para se assegurar de vê-lo penetrar no quarto do rei.

Lançou-se em seguida aos andares, e sofreu todas as penas do mundo para se situar no labirinto dos corredores atravancados por uma desordem inominável onde reinava um odor de pós de íris e de velas apagadas.

O Sieur La Violette polia as espadas de seu mestre, trauteando uma canção. Ele ofereceu-se humildemente para laçar as roupas da senhora marquesa. Angélica colocou-o para fora sem rodeios. Vestiu-se como lhe foi possível, não tendo tempo de sair à procura de Javotte ou de uma camareira. Depois partiu, correndo, e chegou a tempo de ver o pequeno cortejo da rainha. Esta tinha o nariz vermelho, apesar do pó com que fizera cobrir o rosto corado. Havia passado toda a noite chorando... O rei não viera, nem mesmo "uma horinha", como ela confiava, desolada, a suas damas, o que era uma omissão bem rara, pois Luís XIV tinha sempre o interesse de salvaguardar as aparências, indo introduzir-se ao menos "uma horinha" no leito conjugal. Para ali dormir na maior parte das vezes, mas, enfim, ele ia. Fora mais uma vez aquela La Vallière que o inflamara, fazendo-se de amazona de Diana caçadora, no dia anterior nos bosques.

O grupo da rainha encontrou o de La Vallière, que também se dirigia para a capela. Maria Teresa passou, muito digna, o lábio espanhol tremendo sobre soluços ou talvez injúrias sufocadas. A favorita fez humildemente sua reverência. Quando se ergueu, Angélica viu seus olhos azuis, muito suaves e com uma expressão um pouco acuada. Na luminosidade e no brilho de Versalhes, ela não era mais caçadora, porém uma corça cercada. O juízo de Angélica se confirmava. Ela não tinha fibra. Seu favor declinaria, se isso já não acontecera! Maria Teresa equivocava-se em temê-la. Havia, não longe dali, rivais a postos, e bem mais temíveis...

Um pouco mais tarde o rei retornou da capela e saiu para os jardins. Haviam-lhe informado que alguns doentes escrofulosos dos arredores, sabendo de sua estada, se haviam reunido atrás dos gradis na esperança de alcançar o "toque" milagroso. O rei não lhos podia recusar. Não eram em grande número. Seria uma cerimonia rápida, e em seguida Sua Majestade receberia as petições dos solicitantes no salão de Diana.

Um jovem senhor do séquito do rei atravessou a multidão e inclinou-se diante de Angélica.

- Sua Majestade faz lembrar à Sra. du Plessis-Bellière que conta sem falta com sua presença na caçada de amanhã, à primeira hora.

- Agradeça a Sua Majestade - disse ela, rígida de emoção - e assegure-lhe que somente minha morte poderia impedir-me de estar presente.

- Sua Majestade não pede tanto. Mas acentuou que, se a senhora tivesse algum impedimento, ele estaria desejoso de conhecer a razão.

- Eu o farei, pode assegurar-lho, Sr. de Louvois. É o senhor, não é verdade?

- Com efeito.

- Gostaria de lhe falar. Seria possível?

Louvois pareceu espantado e disse que, se a Sra. du Plessis permanecesse na galeria, talvez pudesse encontrá-la à hora em que o rei ganhasse seu gabinete de trabalho, após a entrega das petições.

- Eu o esperarei. E confirme a Sua Majestade minha presença amanhã na caçada.

- Não, não irá - disse a voz de Filipe a seu ouvido. - Senhora, a mulher deve obediência a seu marido. Jamais lhe dei autorização para aparecer na corte e você aí se introduziu contra minha vontade. E eu lhe ordeno que parta e que volte para Paris.

- Filipe, você é absurdo - respondeu Angélica no mesmo tom baixo. - Absurdo e desajeitado, além de tudo. Só obterá proveitos com minha presença na corte. Com que direito me atormenta assim?

- Com o direito que você teve de me atormentar primeiro.

- Você é pueril. Deixe-me em paz.

- Com a condição de que deixe Versalhes imediatamente.

- Não.

- Não irá amanhã à caçada.

- Irei!

Louvois não era testemunha da discussão, pois se distanciara para juntar-se ao séquito do rei. Seus vizinhos olhavam-nos com ar de chacota. As cenas domésticas.dos Plessis-Bellière estavam em via de se tornar celebrei!

O que lhes estava nmais próximo, com uma expressão de quem olhava para outro lado, era o jovem Marquês de La Vallière, com seu perfil de pássaro zombeteiro.

Angélica interrompeu a conversa para escapar ao ridículo.

-       Basta, Filipe. Eu me vou. Não falemos mais nisso.

Ela o deixou e se contentou em atravessar a galeria e refugiar-se em um dos grandes salões onde havia menos gente.

"Se tivesse um cargo oficial na corte, eu dependeria do rei, e não do humor desse extravagante", repetia-se ela.

Como se fazer outorgar tal cargo, e sobretudo rapidamente?

Eis por que havia pensado subitamente em Louvois, enquanto lhe falava.

Sua imaginação comercial já trabalhava. Lembrara-se de que, ao tempo em que ela havia montado seu negócio de carroças a cinco centavos em Paris, Audiger lhe falara daquele Louvois, grande cortesão e homem político, mas igualmente proprietário de um privilégio sobre as diligências e os transportes entre Lion e Grenoble.

Certamente tratava-se do mesmo Louvois. Ela não o acreditara tão jovem, mas não devia esquecer que era filho de Le Tellier, secretário de Estado e chanceler do rei para o Alto Conselho.

Iria propor-lhe uma troca de negócios, tentar obter seu apoio e o de seu pai...

O Marquês de La Vallière, bordejando de grupo em grupo, tentava juntar-se a ela.

Seu primeiro impulso foi o de se eclipsar, mas depois reconsiderou.

Haviam-lhe falado daquele Marquês de La Vallière, tenazmente à espreita de umas tantas combinações que podiam lhe render benefícios. Ele "sabia a corte" melhor do que qualquer outro. Ela poderia se informar junto a ele.

-       Creio que o rei não se mostrou aborrecido com você pelo seu atraso de ontem à caçada - disse-lhe, abordando-a.

"Eis aí por que você ousa prosseguir sua pequena intriga comigo", pensou ela.

Mas obrigou-se a fazer boa figura diante dele. Quando lhe falou de um cargo na corte, ele riu de piedade.

- Minha pobrezinha... você perdeu a razão! Seria preciso matar não uma, mas dez pessoas, para ter vaga a mínima colocação. Lembre que todos os ofícios da câmara do rei e da rainha só se vendem... por quartéis.

- Quer dizer?...

- Que só se pode adquiri-los por três meses. Depois do quê, são novamente postos em leilão. O próprio rei está irritado com isso, porque vê a todo momento novos semblantes nos cargos onde gostaria de conservar seus hábitos. Como ele não quer se separar a nenhum preço de Bontemps, seu primeiro criado de quarto, tem que ajudá-lo sem cessar, não somente a recomprar seu cargo, mas ainda a pagar pelo direito de poder comprá-lo. E isso traz descontentamentos.

- Senhor, quantas complicações! O rei não pode impor sua vontade e interditar essas transações bizarras?

- É preciso tentar contentar a todos - disse o Marquês de La Vallière, com um gesto indicador de que, para ele, aqueles costumes estranhos eram tão inelutáveis quanto a marcha das estações.

- Mas você mesmo, como se arranja? Disseram-me que você está muito bem provido.

- Exageram. Eu possuo o cargo de lugar-tenente do rei, dos mais módicos quanto ao soldo. Com quatro companhias para equipar e manter, e minha posição a sustentar na corte, eu não veria a sombra desse dinheiro se não tivesse algumas ideias pessoais que...

Ele interrompeu-se para segurar pelo braço alguém que passava.

-       Foram condenados? - perguntou com ansiedade.

- Sim.

- À roda?

- A roda, com degolação.

- Perfeito - disse o jovem marquês com satisfação. - É precisamente uma de minhas especialidades - explicou a Angélica, cujo ingénuo espanto o envaidecia. -- Eu me ocupo sobretudo das "heranças jacentes". Não sabe de que sé trata, aposto.

- Eu me ocupei de muitas Coisas, na verdade, confesso que...

- Bem, você não ignora que, quando um dos súditos do reino é condenado, seus bens, seja qual for a importância, revertem para a coroa. O rei dispõe deles e geralmente presenteia com eles a quem deseja favorecer. Minha especialidade é a de estar à espreita desses negócios e de ser o primeiro a fazer uma solicitação. O rei mostraria má vontade se mo recusasse. Não lhe custa nada, não é mesmo? Assim, acabo de acompanhar o processo do vice-bailio de Chartres, um grande e consumado ladrão, carregado de crimes. À força de espoliar i região, ele acabou por se fazer prender, assim como dois de seus cúmplices de pilhagem, os senhores de Cars e de La Lombardière. Como você acabou de ouvir, foram condenados. Vão cortar-lhes a cabeça. Bom negócio para mim!

Ele esfregou as mãos.

- Era a informação que eu espreitava esta manhã, e por isso não segui o rei durante o "toque das escrófulas". Espero que ele não se tenha dado conta de minha ausência; mas não podia perder a notícia. Esses bandidos têm polpudos bens, sem contar o produto de suas espoliações; redigi adiantado meu pedido para ser seu beneficiário. Vou poder apresentar minha petição agora mesmo. Em tudo isso, o que conta é a rapidez. E também o faro. Verá, tenho uma outra pista, mais delicada, mas onde conto sair-me bem, e chegar primeiro. É a do Conde de Retorfort, um francês que acaba de ser morto a serviço do rei da Inglaterra, em Tânger. Se conseguir provar que esse Retorfort era inglês, poderei candidatar-me à sua herança, porque os bens dos estrangeiros residentes na França revertem igualmente para o domínio real, depois de sua morte...

- Mas como você poderá provar que esse francês era inglês?

- Eu me arranjarei. Terei alguma ideia. Sou fértil delas... Eu a deixo, minha bela, pois creio que Sua Majestade não vai tardar a voltar dos jardins.

"De fato, a esse belo senhor não falta habilidade", disse consigo mesma Angélica, um pouco desconcertada, "mas ele tem atitudes de gato cruel e uma mentalidade de carniceiro".

Louvois voltava e, passando a seu lado, inclinou-se ligeiramente e cochichou que, a seu grande pesar, era obrigado a assistir o rei em uma segunda audiência, em seguida à qual ele faria a si mesmo o prazer de lhe consagrar alguns instantes "porque depois participaria ainda do serviço de mesa de Sua Majestade e não teria realmente tempo para si mesmo".

Angélica aquiesceu com resignação, pondo-se a admirar a capacidade de trabalho do jovem rei que, tendo-se deitado, como se comentava, pelas três horas da manhã, se encontrara em pé para a missa às seis horas e estava depois "a negócios" sem se alterar.

Ao deixá-la, Louvois se dirigira a um jovem mal vestido, com um ar um pouco deslocado na elegante assembleia. Seu rosto trigueiro contrastava com a gravata de rendas e a peruca, que parecia suportar com incómodo. Ele fez uma saudação seca e confirmou:

-       Sim, sou o enviado da ilha Dauphine.

Depois as duas personagens submergiram no gabinete do rei, apesar dos protestos indignados e veementes de um outro gentil-homem de postura militar, que acabara de chegar.

- Senhor, o rei me convocou para esta hora e com urgência. Tenho que ser o primeiro!

- Eu sei, senhor marechal, mas sou militar também e devo executar as ordens do rei, o qual, sabendo que o senhor aqui presente acaba de chegar, ordenou que ele passasse na frente de quem quer que fosse.

- Tenho precedência sobre todos os marechais, e não me sustarei a que um vulgar oficial de marinha me suplante.

- Este oficial é convidado do rei e tem por isso toda a precedência, em que me pese, Sr. de Turenne.

Turenne, um rude soldado de cinquenta e dois anos, empalideceu e depois retesou-se.

-       Sua Majestade parece não ter mais consideração pelo cargo com que ele mesmo me gratificou. Está bem. Ele me reconvocara quando tiver um pouco mais de tempo para consagrar aos velhos servidores e às pessoas úteis.

Turenne atravessou a multidão de cortesãos como se passasse suas tropas em revista. Seus olhos muito negros reluziam sob as espessas sobrancelhas encanecidas. Dois jovens alferes que permaneciam perfilados a uma das portas desembainharam imediatamente os sabres e o ladearam.

-       Oh! meu Deus, será que vão prendê-lo? - exclamou Angélica, transtornada.

O Marquês de La Vallière, que se encontrava como que por acaso a seu lado, explodiu em risos.

- Mas que lhe sucede, cara amiga, para emprestar a nosso soberano tão negros desígnios? Por Deus, drr-se-ia que você jamais deixou sua província. Prender o senhor marechal! E para quê, poderosos deuses?

- Ele não acaba de proferir palavras insultosas contra o rei?

- Ora! O Sr. de Turenne tem o falar franco de todos os militares. Quando é vítima de alguma injustiça, ele se enraivece. No que não está errado. E é bastante justo que ele tenha o privilégio de possuir uma guarda particular de cavalaria e dois alferes que o acompanhem, com o sabre desembainhado, a toda parte onde tenha quartel, mesmo junto ao rei.

- Se ele goza de privilégios tão importantes, por que se aborrece por tão pouca coisa?

O marquês retesou-se.

- Eu partilho um pouco da raiva de nosso marechal. Como chefe supremo do exército ele deve ser o primeiro sempre. O exército é o primeiro corpo do reino.

- Antes da nobreza? - perguntou ela, insistente.

O sorriso desdenhoso do jovem La Vallière acentuou-se.

- Sua pergunta é a de um pequeno-burguês. Devo recordar-lhe que o exército é a nobreza e que a nobreza é o exército? A quem incumbe pagar o imposto de sangue no reino? Aos nobres! Desde a mais tenra idade, meu pai ensinou-me que eu devia carregar a espada, e que essa espada e minha vida estavam a serviço do rei.

- Você não tem necessidade de me dar uma aula - disse Angélica, que havia enrubescido. - Minhas origens são ao menos tão nobres quanto as suas, Sr. de La Vallière. Pode informar-se sobre isso. E ademais sou a esposa de um marechal da França.

- Não iremos nos indispor por tão pouco - disse o marquês, estourando de rir. - Você é um pouco ingénua, mas encantadora. Creio que seremos excelentes amigos. Se você me viu aborrecer-me, é porque achamos, na corte, que meu real "cunhado" se mostra por demais generoso para com os burgueses e as pessoas comuns. Assim, fazer passar na frente do Sr. de Turenne um navegador pouco civilizado...

-       Esse navegador não traria, talvez, notícias que interessassem a Sua Majestade neste momento, particularmente?

Uma mão pousando em seu ombro fê-la estremecer. Viu diante de si uma personagem em roupas escuras, e que a princípio, apesar de forçar a memória, não conseguiu identificar.

Uma voz rouca, baixa, e no entanto cheia de autoridade, ressoou em seus ouvidos:

-       Precisamente, senhora. E preciso que me conceda de imediato uma entrevista urgente sobre esse assunto.

-       Que assunto, senhor? - perguntou Angélica, perturbada.

La Vallière, há poucos instantes orgulhoso gentil-homem, multiplicava as reverências.

-       Senhor ministro, suplico-lhe que lembre a Sua Majestade minha muito humilde súplica, concernente à minha indicação para a sucessão vacante do vice-bailio de Chartres. O senhor sabe que esse grande bandido acaba de ser condenado a ter o pescoço cortado.

A austera personagem lançou-lhe um olhar sem amenidade.

-       Humm... veremos - resmungou.

Angélica acabava de nele reconhecer o Sr. Colbert, o novo superintendente das Finanças e membro do Alto Conselho.

Colbert deixou o cortesão curvado e levou com uma firmeza sem réplica a Sra. du Plessis a um recanto da galeria, no exterior.

Entrementes, Colbert fizera sinal a um auxiliar que o seguia e subtraiu-lhe o conteúdo de um grande saco de veludo negro no qual havia uma massa de dossiês. Dali ele tirou uma folha amarela.

-       A senhora sabe, creio, que não sou nem cortesão nem nobre, mas um comerciante de tecidos. Ora, a partir dos negócios de que juntos tratamos, tive conhecimento de que, apesar de nobre, a senhora também está no comércio... Em suma, é a um membro das corporações de mercadores que me dirijo, na sua pessoa, para lhe pedir um conselho...

Ele procurava dar um tom jocoso a suas palavras, mas não tinha jeito para tal. Angélica ficou indignada. Quando então aquelas pessoas cessariam de lhe jogar seu chocolate na cara?

Ela contraiu os lábios. Mas, ao olhar Colbert, deu-se conta de que ele tinha a fronte molhada de suor, apesar do frio. Sua peruca estava um pouco deslocada, e ele certamente se impacientara com seu barbeiro, naquela manhã.

A prevenção da jovem cedeu. Iria fazer-se de pretensiosa? Disse bastante pausadamente:

- Tenho, com efeito, empreendimentos comerciais, mas de bem pouca importância em comparação àqueles de que o senhor trata, senhor ministro. Em que posso ser-lhe útil?

- Ainda não sei, senhora. Veja por si mesma. Encontrei seu nome como proprietária com plenos direitos em uma lista da Companhia das índias Orientais. Prendeu-me a""atenção o fato de não ignorar que a senhora faz parte da nobreza. Seu caso é, pois, particular; e, como disseram-me depois serem prósperos os seus negócios, pensei que poderia esclarecer-me sobre certos pormenores que me escapam, concernentes àquela companhia.

- Senhor ministro, o senhor sabe, como eu, que aquela companhia, tanto quanto a dos Cem Associados, que era o dobro dela e da qual eu possuía também cinco ações, trabalhava no comércio das Américas, e atualmente, juntas, não valem mais um sol!

- Não lhe falo do valor das ações, que, com efeito, não estão mais cotadas, mas dos-ganhos reais que a senhora deve, contudo, ter obtido nesse comércio onde outros perdiam dinheiro.

- Meu único ganho real foi o de me instruir sobre aquilo que não se devia fazer, e paguei muito caro a lição. Porque esses negócios eram geridos por ladrões. Eles contavam com ganhos miraculosos, quando esses empreendimentos que se efetuam em países longínquos são, sobretudo, fruto do trabalho.

O rosto do Sr. Colbert, sulcado de rugas devido à insónia, iluminou-se com uma espécie de sorriso, que ganhava seus olhos sem lhe distender os lábios.

- O que a senhora me revela seria então, de certa forma, minha própria divisa: "O trabalho tudo pode"?

- "...e é a vontade que confere prazer a tudo o que se deve fazer" - recitou Angélica de um fôlego, e levantando um dedo: - "e é a aplicação que traz a alegria."

O sorriso iluminou completamente as ingratas feições do ministro, a ponto de torná-las graciosas.

- A senhora conhece até mesmo a frase de meu relatório sobre a referida companhia de navegação longínqua - disse ele com um espanto e uma precipitação apaixonados. - Pergunto-me se há muitos entre os honoráveis acionistas da companhia que se deram ao trabalho de ler minha frase.

- Eu estava interessada em saber o que pensava sobre o assunto o poder que o senhor representa. A transação, em si mesma, era viável e lógica.

-       Mas, então, acredita que tal empresa possa e deva ter êxito?

- perguntou o ministro, vivamente.

Mas logo ele se acalmou, e foi em um tom neutro e monocór-dio que enumerou os haveres secretos da Sra. du Plessis-Bellière ou Sra. Morens:

- Plenos direitos sobre a nau São João Batista, de seiscentas toneladas, equipada para o corso com doze canhões, e também mercante, e que lhe traz cacau, pimenta, especiarias e madeira preciosa da Martinica e de São Domingos...

- E exato - confirmou Angélica. - Era preciso dar continuidade a meu comércio de chocolataria.

- Colocou o corsário Guinam como comandante?

- De fato.

- Não ignorava, quando o tomou a seu serviço, que ele havia pertencido ao Sr. Fouquet, atualmente na prisão? A senhora pensou na gravidade de tal conduta, ou foi Fouquet quem a aconselhou?

- Jamais tive a oportunidade de falar com o Sr. Fouquet - disse Angélica.

Ela estava longe de se sentir segura. Colbert sempre se mostrara um inimigo encarniçado de Fouquet, e havia sorrateiramente tecido a rede na qual este acabara por se deixar prender. Tudo o que tivesse ligação com o antigo superintendente conduzia a um terreno incandescente.

- E a senhora enviou esse barco para comerciar na América. Por que não às índias? - inquiriu bruscamente Colbert.

- Às índias. Pensei nisso. Mas um navio francês não conseguiria empreender a viagem sozinho, e não tenho meios para adquirir muitos deles.

- No entanto seu São João Batista faz o caminho para a América sem problemas.

- Não há corsários barbarescos a temer. Diante deles, um navio sozinho não tem nenhuma oportunidade de ultrapassar o cabo Verde, e, se não for abordado na ida, ele o será na volta.

- Mas como fazem, então, os navios das Companhias das índias holandesas e inglesas, que são tão florescentes?

- Eles vão em grupo. São verdadeiras frotas de vinte a trinta navios de grande tonelagem que deixam Haia ou Liverpool. E nunca há mais de duas expedições por ano.

- Mas então por que os franceses não fazem o mesmo?

- Senhor ministro, se o senhor não o sabe como poderia eu sabê-lo? Questão de caráter, talvez? Ou de dinheiro? Poderia eu sozinha me proporcionar uma frota pessoal? Também seria preciso, para os navios franceses, uma escala de reabastecimento, cortando em duas a longa rota das índias Orientais.

- Na ilha Dauphine, por exemplo?

- Na ilha Dauphine, sim, mas com a'condição de que não sejam militares nem gentis-homens, principalmente, que detenham o comando supremo em tal empresa.

- E quem, então?

- Ora, simplesmente aqueles que têm o hábito de abordar as terras novas, de comerciar e de contar, quero dizer, os mercadores - respondeu Angélica com ênfase para subitamente explodir em risos.

- Senhora, estamos falando de assuntos sérios - protestou o Sr. Colbert, melindrado.

- Desculpe-me, más imaginava entre outros um gentil senhor como o Marquês de Ea Vallière no papel de comandante de desembarque em meio aos selvagens.

- A senhora poria em dúvida a coragem desse gentil-homem? Sei que ele já deu provas dela a serviço do rei.

- Não é uma questão de coragem. Como procederia o Sr. Marquês de La Vallière ao desembarcar em uma praia e ver correr em sua direção uma nuvem de selvagens, todos nus? Ele degolaria a metade e transformaria os outros em escravos.

- Os escravos representam uma mercadoria necessária e que traz lucros.

- Não o nego. Mas, quando se trata de estabelecer feitorias e fincar raízes em um lugar, o método não é borri. É o mínimo que se pode dizer, e que explica o fracasso das expedições e o porquê de os franceses que ali permanecem serem periodicamente massacrados.

O Sr. Colbert lançou-lhe um olhar onde havia admiração.

-       Com os diabos se eu esperava...

Ele coçou o queixo mal barbeado.

- Aprendi mais sobre isso em dez minutos do que em muitas noites de vigília passadas sobre estes malfadados relatórios.

- Senhor ministro, minha opinião é suspeita. Eu escuto as recriminações dos comerciantes e dos navegadores, mas...

- Não é um boato a ser negligenciado. Eu lhe agradeço, senhora. Far-me-ia um obséquio considerável se consentisse em esperar ainda uma meia hora na antecâmara.

-       Que não seja por isso, senhor ministro.

Ela voltou para a antecâmara onde o Marquês de La-Vallière comunicou-lhe com maldosa alegria que Louvois perguntara por ela, e que depois partira para almoçar.

Angélica reprimiu um movimento de contrariedade. Era sua oportunidade. Esperava especialmente por essa entrevista com o jovem ministro da Guerra para solicitar seu cargo na corte, e agora, devido a esse encontro inopinado com Colbert, que lhe falara de comércio marítimo, ela perdera a oportunidade. Ora, o tempo urgia, que ideia extravagante poderia ainda germinar no cérebro de Filipe? Se ela lhe resistisse muito abertamente, ele seria bem capaz de aprisioná-la. Os maridos tinham absoluta autoridade sobre suas mulheres. Era preciso que se implantasse ali, antes que fosse muito tarde...

Angélica quase sapateou de raiva e seu desalento redobrou, quando os cortesãos anunciaram que Sua Majestade retomaria suas audiências no dia seguinte e que todos podiam partir.

Quando já se encaminhava para a saída, o auxiliar do Sr. Colbert abordou-a:

-       Se a senhora marquesa quiser seguir-me, está sendo aguardada.

O cómodo onde acabavam de introduzir Angélica era de amplas dimensões, mas menos espaçoso do que os salões. Somente o teto muito alto, abrindo-se sobre as nuvens azuis e brancas de uma paisagem do Olimpo, lhe dava proporções intimidantes. Às duas janelas, pesadas cortinas de seda azul-escura, brocadas de flores-de-lis em ouro e prata, combinavam com a mesma seda que revestia as poltronas de espaldar amplo e os três tamboretes alinhados junto à parede. Os lambris das paredes eram, como todos os de Versalhes, ornamentados com elegantes trabalhos em estuque representando frutas, pâmpanos, guirlandas, e reluziam com todo o brilho do ouro novo, cuidadosamente aplicado sobre cada moldura, folha por folha. A combinação entre o ouro e o azul profundo conferia ao conjunto um aspecto a um tempo grave e suntuoso.

Angélica considerou tudo aquilo com um simples olhar. Era o reduto de um homem, criado para um homem.

O Sr. Colbert estava em pé, dando-lhe as costas. No fundo do cómodo havia uma mesa feita de uma única placa pesada de mármore negro, sustentada por patas de leão em bronze dourado.

Do outro lado da mesa estava o rei. Angélica ficou boquiaberta...

-       Ah, eis o meu agente de informações - disse o ministro, voltando-se. - Por favor, senhora, aproxime-se e queira colocar Sua Majestade a par de sua experiência como... como armadora, em suma, na Companhia das Indias,-que ackra tão singularmente muitos aspectos da questão.

Luís XIV, com a cortesia com que honrava cada mulher, mesmo as mais simples, levantara-se para saudá-la. Angélica, confusa, deu-se conta de que não havia feito nem mesmo sua reverência de corte e mergulhou em uma profunda genuflexão, maldizendo o Sr. Colbert.

- Sei que o senhor não tem o hábito de pilheriar, Sr. Colbert - disse o rei -, mas eu não contava com que o agente de informações, porta-voz dos navegadores que o senhor me anunciava, se apresentasse sob os traços de uma das damas da corte.

- A Sra. du Plessis-Bçllière não é somente uma acionista muito importante da companhia- Ela armou um navio com a intenção de comerciar nas índias e teve que renunciar a isso, voltando seus esforços para a América. São as razões desse abandono que ela vai nos expor.

Angélica perguntava-se que atitude adotar. O rei esperava pacientemente. Seu olhar castanho observava a jovem, e ela leu nele aquela sabedoria minuciosa e prudente que devia marcar a maior parte das ações de Luís XIV, qualidade espantosa da parte de um soberano de vinte e sete anos, que bem poucos, entre seus ministros, haviam notado. Seu lábio distendeu-se em uma expressão sorridente e ele disse com delicadeza:

- Por que se perturba?

- Eu sei que Vossa Majestade não gosta das reputações excêntricas. E entre elas está, me parece, a de ser dama da corte e ocupar-se com navegação, e temo que...

- A senhora não tem que temer nos desagradar, falando-nos abertamente. Navegação ou outros assuntos, verá que na corte se encontra de tudo, e, de minha parte, não me espanto com mais nada. Se o Sr. Colbert estima que suas informações podem nos esclarecer, fale então, senhora, com a única preocupação, que espero ser a sua, de bem servir aos nossos interesses.

Ele deixou-a em pé, para assinalar que a recebia da mesma forma que a seus colaboradores, os quais, quaisquer que fossem a idade ou dignidades, jamais deviam sentar-se em sua presença, a não ser quando recebidos em particular.

Ela teve que explicar ao rei por que seu navio havia renunciado a comerciar com as índias Orientais, apesar dos proveitos que contava obter. Era devido ao perigo representado pelos piratas barba-rescos que cruzavam ao largo de Portugal e das costas dá Africa, e cuja única indústria consistia em pilhar os navios isolados. Não estaria ela exagerando as desvantagens representadas por esses piratas? Muitas naus francesas, navegando sozinhas, voltavam gloriosamente do longo périplo pelo cabo da Boa Esperança. Angélica fez notar que não se tratava de navios comerciais, mas de corsários, contando com sua rapidez para escapar aos bárbaros, e que voltavam com os porões quase vazios, contentando-se com o comércio de ouro, pérolas e pedras preciosas. Mas um navio de grande tonelagem, abarrotado de mercadorias, era incapaz de fugir das ligeiras galeras argelinas ou marroquinas. Seria como um grande escaravelho atacado por formigas. Os canhões frequentemente atiravam muito longe. Logo, nada restava à tripulação senão levar desvantagem no momento da abordagem. Assim, fora graças aos marinheiros do São João Batista que, por duas vezes, seu navio pudera escapar à rapinagem. O que não acontecera sem grandes combates. Um deles ocorrera ao largo do golfo da Gasconha; o outro, na escala da ilha de Gorée. Muitos marinheiros haviam sido mortos ou feridos. Ela havia desistido...

O rei escutava, pensativo.

- E então uma questão de escolta?

- Em parte, sire. Os ingleses e holandeses partem em grupo, escoltados por navios de guerra, e conseguem com isso manter seu comércio.

- Não gosto muito desses mercadores de arenques salgados, mas seria tolice não aproveitar os métodos de nossos inimigos, naquilo que têm de bom. O senhor irá providenciá-lo, Sr. Colbert. Partidas importantes de grandes navios mercantes, escoltados por navios de guerra...

O rei e o ministro discutiram um longo espaço de tempo sobre os pormenores daquele projeto; depois, virando-se para Angélica, o rei perguntou-lhe por que se mostrava cética em relação a sua realização. Ela teve que confessar que as viagens coletivas não agradavam ao temperamento francês. Cada um gosta de conduzir seu negócio a seu modo. Alguns armadores estariam prontos a se lançar ao mar, ao passo que outros não disporiam de dinheiro para armar. Já se havia tentado obter a necessária união para formar importantes comboios, o que nunca fora conseguido. A mão de Luís XTV pousou sobre a mesa e ali se apoiou com força.

-       Desta vez agirão sob a ordem do rei - disse ele.

Angélica olhou aquela mão que traía o peso de uma vontade soberana. Há mais de uma hora encontravam-se naquele escritório, e ela tinha a sensação de que o rei não a deixaria ir, senão quando lhe tivesse confiado inteiramente o resultado de suas bem ou malsucedidas experiências como armadora. Ele tinha o dom de fazer perguntas, de obrigar seus interlocutores a esclarecer as situações. Quais eram os outros motivos do fracasso da navegação para as índias Orientais? A demora da viagem, a falta de uma escala francesa na rota... Ele já havia pensado nisso. Não teria ela ouvido falar que, dois anos antes, uma expedição havia partido para assegurar a possessão da ilha Dau-phine? Sim, ela não o ignorava, mas ninguém contava muito com aquilo, porque aquela expedição estava destinada ao fracasso.

O rei levantou-se de um salto e cerrou os dentes.

-       Como o sabe? Acabo de receber o enviado do Sr. Montevergue, comandante da expedição. Seu imediato aportou em Bordeaux há alguns dias. Ele estava em Versalhes, esta manhã, e tinha ordens de nada comunicar a ninguém, antes de me ver. Eu o recebi assim que chegou, e ele acaba de sair de meu gabinete. Ter-se-ia permitido fazer comentários?

Era preciso dizer tudo. De como os "navegadores estavam a par, há muito tempo, das dificuldades da expedição da ilha Dauphine, tendo alguns navios trazido a bordo os doentes assolados pelo escorbuto ou feridos pelos selvagens... De como os armadores recebiam informações mais rápido do que o rei graças ao sistema de seguros pagos entre os navios das diferentes nações e que se encarregavam do correio... Por que a expedição estava destinada ao fracasso, sendo apenas militar, quando seriam necessárias mercadorias etc. ...

Ela falava com segurança sobre as coisas do mar porque, assim como aqueles que possuem uma imaginação viva, cada palavra, para ela, criava um quadro preciso, e a atenção fixa do rei a encorajava.

Ás portas daquele escritório detinham-se rumores frívolos, as tagarelices incoercíveis da corte, e a sorte do mundo podia-se decidir ali dentro, enquanto lá fora continuava a festa. Assim trabalhava o rei, capaz de se isolar de tudo para perseguir, a cada momento, um só objetivo.

Foi somente quando ele se levantou que ela se apercebeu de como estava cansada, com fome, e que tinha estado conversando com o rei durante duas horas, como com um amigo de longa data. O Sr. Colbert se retirou. Angélica ia imitá-lo, quando o rei -a reteve.

-       Queira permanecer, senhora.

Ele contornou a mesa para ir a seu encontro. Estava descontraído, afável. Abriu a boca, e depois renunciou a falar. Seu olhar vagava sobre aquele rosto de mulher erguido em sua direção, e subitamente parecia descobrir por trás da aparência sedutora daquela feminilidade o que jamais procurava: uma alma, um pensamento, uma personalidade.

Ele disse docemente, com um modo sonhador:

- Virá a minha caçada amanhã?

- Sire, é minha firme intenção.

- Falarei com o Marquês du Plessis para que a mantenha nessas boas intenções.

- Sire, eu lhe agradeço.

Fez-se novo silêncio. O coração de Angélica saltou-lhe duas vezes no peito, sem que soubesse por quê, e ela teve consciência de que enrubescia.

Entrementes, o primeiro gentil-homem da câmara do rei, o Duque de Charost, apresemou-se. Sua Majestade assistiria ao Grand Couvert ou desejava ser servido em particular?

-       Já que o Grand Couvert está previsto, não decepcionemos os basbaques que fizeram a viagem a Versalhes para assistir a ele, - disse o rei. - Vamos jantar.

Angélica fez uma reverência, que renovou à saída do gabinete do rei. Sua Majestade disse-lhe ainda:

- Creio que a senhora tem filhos, não? Estão em idade de servir?

- Sire, eles são muito jovens: sete e nove anos.

- Têm a idade do delfim. Ele logo deixará o governo das mulheres e será colocado com um preceptor. Queria dar-lhe companheiros que partilhassem suas brincadeiras e o animassem um pouco. Apreseme-os a nós.

Sob o olhar invejoso dos cortesãos reunidos, Angélica fez uma terceira reverência.

 

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O rei jantava.      

Um exército de servidores, comandados pelos oficiais-de-boca, aprestara a mesa e .'dispusera protocolarmente os assentos; o camarista-mor, apósínspeção, -abrira a sala aos membros da corte desejosos de presenciar a refeição de Sua Majestade, que se enfileiraram numa ordem estabelecida de antemão, enquanto na antecâmara e nos corredores se comprimia o público admitido a desfilar diante da mesa de seu rei.   -

O rei surgira no enquadramento da porta, detivera-se, inclinando-se para corresponder à reverência das pessoas já presentes. Em seguida entrara sorridente, tomando seu lugar à mesa.

Imediatamente, Monsieur, seu irmão, precipitara-se e, numa profunda inclinação, ofereceu-lhe o guardanapo.

Em pé, atrás do soberano, o camarista-mor, Sr. de Bouillon, trazia seu guardanapo com mão firme, e, no olhar, claramente manifestava que não concederia a mais ninguém, nem a um príncipe de sangue, o direito de usurpar seu lugar.

Na antecâmara, guardas incitavam a multidão a deixar a passagem livre, enquanto avançava um cortejo, lembrando um pouco uma procissão.

Um guarda em uniforme de gala precedia servidores que traziam aos ombros uma enorme caixa coberta com um tecido bordado em ouro e prata; aos carregadores se seguiam o mordomo, munido de seu bastão de comando, o porteiro de sala, o padeiro-mor, oficiais, clérigos e criados de copa.

A caixa continha "a comida do rei".

Diante da mesa real, a multidão desfilava lentamente. Burguesas e burgueses de Paris, pequenos empregados, artesãos, operários, mulheres do povo, cada qual absorvia do espetaculo as lembranças que a memória poderia reter, menos ofuscantes pelo brilho dos cristais e da baixela de ouro do que pela visão do rei de França se alimentando em sua glória.

O rei falava pouco, mas tinha o olhar atento a tudo. Angélica viu-o levantar-se ligeiramente por várias vezes, era saudação a damas da corte que chegavam, enquanto o camarista-mor apressava-se a providenciar um tamborete. Para outras damas não havia nem saudação nem tamborete. Eram as damas "não sentadas", as mais numerosas. Angélica, que estava entre elas, começava a não mais sentir suas pernas.

A Sra. de Choisy, a seu lado, cochichou-lhe:

-       Ouvi o que o rei lhe dizia, há pouco, a propósito de seus filhos. Minha cara, que sorte a sua! Não hesite. Seus filhos irão longe se você os acostumar a frequentar somente as pessoas de qualidade. Cedo se habituarão à complacência e guardarão por toda a vida esse ar de civilidade que permite ter sucesso na corte. Veja meu filho abade. Eu o eduquei com esse objetivo desde a mais tenra idade. Não tem vinte anos, e já soube se situar tão bem que está a ponto de obter um bispado.

Mas, naquele momento, Angélica sentia-se menos motivada em relação ao futuro de Florimond e de Cantor do que diante da possibilidade de mastigar alguma coisa e, se possível, confortavelmente.

Ela deixou a Sala dos Festins o mais discretamente possível e achou-se, mais adiante, em meio a uma reunião de damas instaladas ao redor de mesinhas de jogo. Criados passavam travessas de vitualhas, que as belas elegantes beliscavam, com os olhos voltados para as cartas.

Uma alta e robusta dama levantou-se e, vindo até Angélica, beijou-a em ambas as faces. Era a Grande Mademoiselle.

- Sempre me alegra vê-la, minha bela. Você se aborreceu com a corte, me parece. Isso me surpreendeu por várias vezes, nestes últimos meses, mas eu não ousava interrogar o rei. Você sabe que as conversas entre ele e mim começam sempre mal e nunca terminam bem. No entanto é meu primo, e nós nos apreciamos enormemente. Mas, enfim, ei-la aqui. Sua expressão é a de quem procura por alguém.

- Que Vossa Alteza me desculpe, mas procurava um lugar onde me sentar.

A boa princesa lançou a seu redor um olhar perplexo.

- Aqui não lhe é permitido fazê-lo, pois Madame está entre nós.

- E sei também que minha linhagem não me permite sentar-me diante da senhora, Alteza.

- É onde você se engana. Você é uma dama de qualidade e eu, apenas neta de França por parte de .meu avô, Henrique IV. Você tem pois o direito de sentar-se em,minha presença, sobre um ladrilho ou até sobre um tamborete, o que lhe permitiria de bom grado, minha pequena amiga, mas diante de Madame, filha de França por seu casamento com Monsieur, é absolutamente impossível.

- Compreendo.

Angélica deu um pequeno suspiro.

- Mas estou sonhando - retomou a Grande Mademoiselle. - Venha partilhar nosso jogo. Procuramos uma parceira. A Sra. d'Arignys acaba de nas deixar; está completamente sem dinheiro.

- E como poderia- jogar sem me sentar?

- Mas poderá sentár-se! - exclamou a outra, irritada. - Venha. Venha, pois.    

Ela levou-a para fazer sua reverência a Madame, que, munida de um jogo de cartas numa das mãos e uma asa de ave na outra, dedicou-lhe um sorriso distraído.

Angélica ainda não tomara seu lugar, quando foi agarrada pela Sra. de Montespan, que. entrava apressada.

-       Eis o momento de se apresentar à rainha. Apresse-se.

A Sra. du Plessis balbuciou algumas desculpas a seu redor e seguiu a amiga a passos largos.

- Atenaís - disse ela, no caminho -, esclareça-me sobre a questão do "tamborete". Não consigo compreender. Quando, por quê, em que circunstâncias e a que título uma dama da corte tem o direito de colocar uma cadeira sob o traseiro.

- Quase nunca. Nem diante do rei nem da rainha, se ela não pertencer à família real. No entanto há toda espécie de regras e exceções. Ah! O direito ao tamborete! Obtê-lo é o sonho de cada um, e sobretudo de cada uma, desde a corte dos velhos reis celtas. Contaram-me que naquele tempo era um-direito que só se aplicava aos homens. Ele sobreviveu na corte de França, e para as mulheres também. O tamborete é sinal de alta linhagem ou de grande favor. Tem-se direito a ele quando se faz parte da casa da rainha ou do rei. Há também os pretextos.

- Os pretextos?

- O jogo, por exemplo. Se você joga, pode sentar-se, mesmo diante dos soberanos. Se faz trabalhos de agulha, também. E preciso ao menos ter nas mãos alguma coisa que faça pensarem uma ocupação. Há algumas presumidas que se contentam em ter um laço de fita nos dedos. Enfim, você está vendo que há mil maneiras de se acomodar à situação...

A rainha estava entre as mãos de suas damas, que a adornavam e penteavam para as festas da noite. Sobre um consolo, escrínios abertos abrigavam algumas jóias da coroa. Maria Teresa experimentava-as uma a uma: golilhas de diamantes montadas sobre ouro ou prata dourada, brincos feitos de um único diamante, talhado em forma de pêra e de tamanho único no mundo, que se dizia provenientes das índias, braceletes, diademas.

Angélica mantinha-se um pouco afastada, após ter feito múltiplas reverências e beijado a mão da rainha. Pensava na infanta, que havia visto na noite de seu casamento com o rei, em Saint-Jean-de-Luz. Onde estavam os pálidos cabelos de seda loura, avolumados por postiços, as pesadas saias à espanhola armadas hieraticamente pelas anquinhas fora de moda? A soberana vestia-se agora à francesa, mas aquela moda não se adequava a sua silhueta robusta. A tez delicada, muito pálida e rosada, outrora conservada pela sombra dos palácios madrilenos, havia se tornado barrosa. O nariz facilmente se avermelhava. Causava surpresa a majestade natural dessa pobre criatura tão desvantajada. Apesar de piedosa e um tanto falta de espírito, ela possuía jovialidade. Eram de um humor bem espanhol suas cóleras ciumentas e a paixão que votava ao rei. Gostava dos divertimentos da corte e dos mexericos, e a mínima atenção do rei provocava-lhe um ingénuo arrebatamento.

Notando o olhar de Angélica fixo sobre ela, disse, mostrando a golilha de diamantes que cintilava sobre o peito e os ombros:

-       E para cá que se deve olhar... e não para cá - completou, apontando o rosto com um sorriso humilde.

A um canto, anões brincavam com os grijfons favoritos da rainha. Barcarola dirigiu a Angélica uma piscadela cúmplice.

Em seguida houve passeio nos jardins, porque o tempo estava ameno e a hora era propícia. Depois, com a chegada dos archotes, um grande rebuliço agitou a corte, cada qual aprestando-se, pressuroso.

Angélica pôde vestir-se na antecâmara das damas de honra da rainha. A Sra. de Montespan fez-lhe ver que as jóias que trouxera eram muito modestas para a ocasião. Não havia mais tempo para fazer trazer outras da Mansão do Beautreillis, em Paris. Dois ourives lombardos, ligados à corte, foram-lhç imediatamente enviados com seus escrínios; em troca de "módico" pagamento, alugavam jóias durante algumas horas, muito belas, aliás; um maço de papéis a assinar os garantia contra o risco de ver seus augustos clientes escaparem não se sabe para onde, com suas jóias alugadas.

Angélica assinou e, aliviada do "módico" pagamento que se elevava no entanto a duzentas libras (!) - com aquela quantia poderia ter adquirido pelo menos dois braceletes de valor -, desceu até a grande galeria ao rés-do-chão, onde estava armado o teatro.

O rei já havia tomado seu lugar. As exigências da etiqueta não deixavam um único assento disponível. Angélica teve que se contentar em ouvir as gargalhadas dos espectadores dos primeiros lugares.

-       O que acha da aula que nos ministra o Sr. Molière? - disse uma voz a seu ouvidé. - Não- é das mais instrutivas?

A voz era tão afável que Angélica pensou estar sonhando ao deparar com Filipe, empertigado, a seu lado, a sua maneira de aparição, em um casaco de cetim rosa brocado de prata, que somente sua tez amêndoa e seu bigode louro permitiam-lhe envergar sem parecer ridículo. Ele sorria, e Angélica esforçou-se por responder com naturalidade:

-       A aula do Sr. Molière deve ser, por certo, das mais divertidas, mas do lugar onde me encontro devo confessar que nada distingo.

-       É uma grande pena. Deixe-me ajudá-la a ganhar algumas fileiras.

Ele passou-lhe um braço à volta da cintura e arrastou-a. Cediam-lhes passagem de bom grado. O favor de Filipe, conhecido de todos, tornava as pessoas pressurosas em relação a eles. Ademais, seu posto de marechal facultava-lhe grandes prerrogativas, como a de poder fazer entrar sua carruagem no pátio do Louvre ou sentar-se diante do rei. Sua mulher, no entanto, não gozava desses benefícios. Eles puderam colocar-se com facilidade à direita do palco. Era preciso permanecer em pé, mas ouvia-se perfeitamente.

-       Estamos no ponto exato, penso eu. Vemos o espetáculo e o rei nos vê. Perfeito!

Ele não havia retirado a mão da cintura de Angélica; ao contrário, ainda inclinava o rosto em sua direção, e ela sentia a peruca sedosa roçar-lhe a face.

- É absolutamente necessário que me estreite tão de perto? - perguntou ela secamente em voz baixa, concluindo, depois de re-fletir, que essa nova atitude de seu marido só podia ser suspeita.

- Absolutamente necessário. Sua maldade julgou hábil envolver o rei em seu jogo. Não quero que ele duvide de minha boa vontade. Seus desejos são ordens.

- Ah! então é isso - disse ela, olhando-o.

- E isso... E continue a fixar-me assim, nos olhos, por alguns segundos. Ninguém mais terá dúvida de que o Sr. e a Sra. du Plessis-Bellière se reconciliaram.

- Isso é importante?

- O rei o deseja.

- Oh! Você é...

- Permaneça tranquila.

Seu braço tornara-se um círculo de ferro, embora a voz continuasse controlada.

- Acabará por me sufocar, seu estúpido!

- Eis o que me daria imenso prazer. Paciência, isso virá com o tempo. Mas não é o dia, nem o momento... Veja, eis Arnolfo, que faz Inês ler as onze máximas do casamento. Aplique o ouvido, senhora, eu lhe peço.

A peça que estava sendo encenada ainda não fora levada a público. O rei tinha a primazia de vê-la. Em cena, Arnolfo, prestes a convolar justas núpcias, entregava a sua jovem noiva um longo formulário:

- "E aqui trago em meu bolso um escrito importante

Que vos ensinará o dever da mulher.

Ignoro o autor, mas é bom no mister.

E que só a isto tenhais por distração.

Vejamos se o lereis com correção".

Molière representava o papel de Arnolfo. Seu rosto espirituoso sabia refletir os sentimentos mesquinhos e desconfiados de um burguês um tanto falto de espírito. A mulher do comediante, Armande Béjart, estava igualmente a contento no papel de Inês, jovem beldade tida por ignorante e tola. Lia, com voz límpida e dócil:

-"Aquela que em laço honesto

Outro leito partilhar

Deve entender por correio

Contra o que possam falar

Que somente pertence a quem a desposar".

- Explicar-lhe-ei o que isso quer dizer - replicava Arnolfo. - Mas, no presente instante, limite-se a ler.

-"Deve apenas se adornar

Quanto possa desejar

O marido que a possui,

Que sua beleza só a ele deve mirar."

Angélica escutava, distraída. Gostava bastante de comédias, mas sentir Filipe tão próximo a perturbava.

"Se pudesse ser verdade"; pensava, "que ele me mantivesse assim junto dele, sem rancor e sem recordações de nossos dissentimentos..."

Ela queria voltar-se para ele e dizer-lhe: "Filipe, deixemos de proceder como crianças amuadas e impertinentes... Há em nós, da parte de um e de outro, muitas coisas que fariam com que nos entendêssemos e talvez nos amássemos. Eu o sinto e creio nisso. Você era o meu primo importante, a quem admirava e com quem sonhava em menina".

Ela endereçava-lhe olhares furtivos, surpresa por ver que sua agitação não se comunicava àquele corpo magnífico, tão viril apesar da preciosidade de apresto. As tagarelices propagavam em vão as atrocidades atribuídas ao Marquês du Plessis; ele não era um Petit Monsieur nem um Cavaleiro de Lorena: era o deus Marte, o deus da guerra, duro, implacável e frio como o mármore.

Onde se esconderia, por trás daquele disfarce, o calor vivo desse homem que parecia desprovido das reaçòes elementares de um homem? Angélica tinha a sensação de não ser para ele mais do que uma estátua de madeira; o que era muito deprimente.

O Sr. Molière, em seus ensinamentos de Escola de Mulheres, só pensara nos homens, iguais a tantos outros, burgueses ou gentis-homens, que são presa de fúria quando enganados, caem em ridículo por um par de belos olhos e mudam de cor quando uma linda mulher se apoia um pouco mais languidamente neles. Mas, para um Filipe du Plessis-Bellière, a psicologia do grande comediante permaneceria em débito. Por onde atingi-lo?...

No palco, Arnolfo acabava de descobrir não somente que Inês não o amava como ainda ardia em chamas unicamente pelo louro Horácio. Ele explodia em imprecações:

-"Não sei que me detém que, com uma pancada

Não faça por vingar tanta fanfarronada.

Enraiveço-me ao ver frieza tão picante,

Mas alguns bons socos deixar-me-iam radiante".

Molière estava magnífico em sua fúria burlesca e, no entanto, tão humana. As pessoas sabiam-no ciumento e torturado pela co-queteria da encantadora Béjart.

-       "Coisa estranha, o amor, e que por tais tratantes

Os homens se arrisquem a fraquezas de amantes.

Não há quem não conheça sua imperfeição,

Só têm na vida disparate e indiscrição.

O espírito é malévolo, a alma é frágil,

Nada mais infiel, e, com defeitos tais,

Que não faz o mundo por esses animais!..."

- Ah! Ah! Ah! - faziam os espectadores.

- Imbecis! - disse Filipe a meia voz. - Riem e, no entanto, não há um entre eles que não esteja disposto a tudo fazer por esses "animais".

- Eles, ao menos, têm sangue nas veias - retrucou Angélica.

- E o coração cheio de estupidez.

- Ah! quanta afronta, é muita provocação... - uivava Arnolfo.

- "Seguirei meu desejo, bicho, renitente,

E logo deste burgo estareis ausente.

Rejeitar-me e pisar-me, aí está vosso intento,

Mas tereis por castigo o fundo de um convento."

A plateia vinha abaixo sob risadas.

- O fim agrada-me bastante - disse Filipe. - E você, o que acha, minha cara?

- Esse Molière é um homem hábil - retomou ele um pouco mais tarde, quando após o término da representação cada qual retornava à sala de baile, passando pelos jardins. - Ele sabe que escreve em primeiro lugar para o rei. é a rainha. Então coloca em cena burgueses e gente do povo. Mas, como pinta o homem eterno, cada um aí se reconhece, apesar de tudo, sem se sentir atingido.

"Esse Filipe não é tão tolo, afinal", pensou Angélica, surpresa. Ele tomara-lhe o braço, familiaridade que ela não recebia sem apreensão.

- Não receie que eu a magoe - disse Filipe.- Está combinado que não lhe farei nenhum mal em público. É um princípio venató-rio. Para domar as ferais é preciso estar a sós com elas, a portas fechadas. Bem, façamos urna avaliação de nossos negócios se o quiser. Primeira parte. Você ganhou a primeira partida constrangendo-me a desposá-la. Ganho a segunda infligindo-lhe uma pequena e merecida correção. Você venceu a "negra", pois, apesar de minhas proibições, se apresentou em Versalhes e aí foi recebida. Inclino-me, e passamos à segunda parte. Eu ganho a primeira partida raptando-a; você ganhou a segunda evadindo-se. Aliás, estou curioso por saber de que modo. Em suma, eis-nos Com a "negra"-. Quem a vencerá desta vez?

- A sorte decidirá.

- E o valor de nossas armas. É possível que você triunfe ainda uma vez. Suas possibilidades são grandes. Mas atenção! Quero preveni-la de algo: o fim do torneio será a meu favor. Tenho a reputação de ser tenaz em meus projetos e de me aferrar a minhas posições. Quanto você aposta que um dia se encontrará, por meus esforços, no fundo de um convento de província, a trabalhar numa roca, sem jamais ter a esperança de sair dali?

- Quanto você aposta que um dia se apaixonará loucamente por mim?

Filipe imobilizou-se e respirou profundamente como se essa simples suposição o transtornasse de indignação.

-       Então, apostemos, já que você o sugere - retomou Angélica rindo. - Se você ganhar, deixar-lhe-ei toda a minha fortuna, meu comércio, meus navios. Que importância terá para mim, não é fato, possuir tudo isso, se estarei enclausurada, disfigurada, descarnada e louca sob o peso das torturas?

- Você está rindo - disse ele, olhando-a -, está rindo - repetiu.

- Que quer você, não se pode sempre chorar.  

Mas seus olhos encheram-se subitamente de lágrimas, e, como levantasse a cabeça para olhá-lo, ele viu na base do delicado pescoço, sob o colar alugado para dissimulá-las, as pisaduras que ela lhe devia.

-       Se eu ganhar, Filipe - murmurou -, pedirei o pingente de ouro que sua família carrega desde os tempos longínquos dos primeiros reis, e que cada primogénito deve colocar ao pescoço de sua noiva. Não me recordo muito bem da lenda ligada a esse colar, mas sei que comentavam na região que ele tinha o poder mágico de dar às mulheres da família Du Plessis-Bellière a virtude da coragem. Comigo você desdenhou a tradição.

-       Você não tinha necessidade dele - replicou Filipe bruscamente.

E deixando-a ali, plantada, dirigiu-se a passos largos para o palácio.

No dia seguinte, pela aurora, tada a corte, a cavalo, descia para a floresta.

A caçada foi bem-sucedida. Ao meio-dia, um cervo esplêndido, coroado por dez chifres, era abatido sobre o musgo.

O retorno a Saint-Germain foi decidido logo após o encarne. Angélica voltava a Paris em uma carruagem emprestada pela Sra. de Montespan. No momento da partida, viu o Príncipe de Conde, que lhe acenava a distância, amigavelmente, com a bengala.

Ela foi fazer-lhe uma reverência.

- Meu senhor - disse-lhe -, a corte é um lugar bem surpreendente. O senhor, que tem grande experiência nesse mundo, poderia dar-me alguns conselhos?

- Minha cara - respondeu ele -, na corte não se tem de fazer senão três coisas: falar bem de todo mundo, perguntar por tudo o que ficar vago e sentar-se onde puder!

 

O brilho do favor começa a envolver Angélica

Angélica retornava de Versalhes para Paris em fiacre.

O trajeto pareceu-lhe curto, tanto.os pensamentos se entremeavam em sua cabeça. Mal podia imaginar que apenas três dias se haviam escoado. Toda aquela vida nova na corte a intrigava, inquietava, e encantava também. Estava longe de desembaraçar os fios daquele emaranhado complexo. O fausto e os divertimentos haviam-na subjugado menos, desta vez, que a vida fervilhante daquele mundo fechado, regrado como um bale e explosivo como um vulcão.

A calma de sua mansão da Rue du Beautreillis far-lhe-ia bem. Ela sofria com os membros doloridos, principalmente os joelhos, em consequência das múltiplas reverências distribuídas. Imaginou que o lugar de cortesão devia ajudar a manter a flexibilidade dos músculos até uma idade avançada. Quanto a ela, ainda lhe faltava preparo.

"Um banho quente, uma ceia, e cama! Filipe não me fará encerrar num convento até amanhã. E, quem sabe, talvez a admoestação do rei o mantenha sob controle durante algum tempo."

Seu otimismo voltava a crescer. Contemplou Paris e achou-a bem I cinzenta à noite, ao lado das perspectivas douradas de Versalhes, I mas repousante.

O portal que dava para o grande pátie de entrada da mansão estava aberto de par em par.

"Irei repreender vivamente o porteiro por essa desobediência", disse consigo mesma saltando à terra, aproveitando uma parada momentânea do carro de aluguel diante do alojamento do suíço.

Flipot, cuja vivacidade era sempre batida pela de sua senhora, deu um salto para vir carregar-lhe a cauda do manto.

-       Perdão, desculpe, marquesa - balbuciou.

Angélica nem mesmo o repreendeu, tanto o espetáculo com que deparara a absorvia.

-       Mas é uma feira em minha própria casa, palavra de honra!

O pátio, que ela deixara particularmente vazio três dias antes, estava agora atravancado por um amontoado de caleças, fiacres de aluguel, liteiras e até mesmo três carruagens, modestas é verdade, mas ocupando bastante espaço.

-       Acho, marquesa, que existe em sua casa, como diria, um cano de despejo da cidade. Estão tomando a sua casa por uma pousada de caridade... com o devido respeito.

A Sra. du Plessis abriu caminho com dificuldade através da multidão heteróclita de cocheiros e lacaios, de baixa condição sem dúvida alguma, visto que a maior parte não trazia libré ou insígnias e nem mesmo conhecia a proprietária do local.

Um deles, tipo grosseiro de nariz vermelho e fedendo a vinho, só lhe abriu passagem vociferando:

-       Não se apresse, minha bela, chegou muito cedo! Há muitas outras pessoas, mais importantes, que esperam desde a manha.

Flipot berrou ao insolente que era à patroa que ele se dirigia. O outro mal se alterou:

-       Não tente me enganar. A patroa deste lugar é uma grande senhora, dona de milhões, e que o rei não deixa um minuto, ao que parece. Ela não viria até cá numa velha carroça, e justo com um criadinho como você atrás dela. Eu, que nada faço além de

servir o primeiro criado de La Vallière, lhe digo que, mesmo sendo ele primeiro criado, é mais rico que sua marquesa. Veja, repare

na sua carruagem, lá no canto. Vocês não teriam o topete de pretender ser recebidos antes dele. Ora, acontece cada uma!

Angélica empurrou a personagem e passou, perseguida pelas vaias da criadagem e por algumas exclamações divertidas.

Dissimulando uma inquietação crescente, penetrou na antecâmara e encontrou-a abarrotada de pessoas que lhe eram totalmente desconhecidas.

-       Teresa! Marion! - chamou.

Nenhum de seus empregados apareceu. No entanto, aquela interpelação acalmou um pouco o zunzrm dos "invasores".

Um dentre eles, que envergava rica libré e uma infinidade de fitas, precipitou-se sobre ela... para mergulhar imediatamente em uma reverência cortesã que nenhum príncipe teria desacreditado.

-       Que a senhora marquesa perdoe a extrema liberdade que me permiti tomar - começou elej empalidecendo, enquanto procurava febrilmente alguma coisa sob as abas da sobrecasaca. - Ah! Enfim! - suspirou de alívio, extraindo um rolo de pergaminho

atado com um esplêndido laço de seda, enquanto prosseguia: - Sou o Sr. Carmin, primeiro criado de quarto de La Vallière, e venho entregar-lhe uma súplica para o "privilégio de locação" das carruagens entre Paris e Marselha...

À vista do papel caligrafado, toda a multidão de miseráveis endo-mingados pareceu desabrochar em retângulos brancos. Dir-se-ia uma revoada de gaivotas... salvo que os "pássaros", esses continuavam ali.

-       Eu também tenho uma súplica: sou antigo capitão de armas de Luís, o Décimo Terceiro. Veja minha barba quadrada. É para um privilégio... locação de cadeiras de espetáculos reais... qixe encheria de alegria um dos mais antigos servidores da realeza...

O pobre velho tremelicava apesar da postura marcial, e fazia pena vê-lo.

Uma gorda e velha dama, que devia ser de boa nobreza, mas cujo xale remendado em muitos pontos traía a pobreza, jogou-se aos pés de Angélica, chocando-se com o veterano.

-       Eu sou a Baronesa de Vaudu, mas para sustentar minha posição encontro mil dificuldades. Consiga para mim apenas a exclusividade do desembarque das carroças de peixe fresco à entrada de Paris e fará a felicidade de meus velhos dias.

Por efeito de uma reação nervosa, Angélica foi presa de uma irresistível vontade de gargalhar. Com a voz alteada por soluços, perguntou:

-       Peixe fresco?... Mas, minha pobre baronesa, mal a vejo distinguir um arenque de uma cavala...

A velha dama pôs-se em pé e lançou-lhe um olhar viperino.

-       Ora, minha cara marquesa! Não serei eu a me ocupar desses horrores. É evidente que encontrarei um velho marselhês para me alugar, vitalícia e imediatamente, o privilégio que seu favor junto a nosso todo-poderoso soberano não deixará de me obter. Alguns sois por carroça de peixe que franquear a Porte Saint-Denis.

Um velhote baixo, de barbicha rala, afastou deliberadamente a baronesa com uma força inesperada.

- Sra. du Plessis-Bellière, é a mim que deve escutar, eu a conjuro, pois venho por uma descoberta científica, mas ultra-secreta.

- Senhor, eu não o conheço e nem tenho por que fazê-lo. Procurai o Sr. Colbert: ele se interessa pelos sábios.

Um lerdo colosso, de aspecto bonachão, acompanhado de um agradável rapaz, interpôs-se:

- Esqueçamos esse mercador de tecidos avarento! Ele não conhece mais das belas-letras do que das ciências. Senhora, ao menos não seja injusta para com o Sr. Perrault e para comigo, pois que nos vimos em casa da Srta. de Lenclos, e da Sra. de Sévigné também.

- Ah! estou reconhecendo-o, Sr. de La Fontaine e também, creio, o Sr. Perrault. O senhor é intendente de construção no palácio real, não é verdade?

- Sim, senhora - respondeu o rapaz, quase enrubescendo.

- Entrem os dois - disse-lhes Angélica. Ela os empurrou para uma das peças no rés-do-chão, que lhe servia de gabinete de trabalho. - Ufa! - fez ela, quando conseguiu fechar a porta.

Ela viu que o velhote de barbicha havia aproveitado a oportunidade para se esgueirar até ali dentro, mas não teve coragem de começar uma discussão para se livrar dele.

Com o Sr. de La Fontaine ela jamais conversara, mas vira tantas vezes e, por todo lado, sua longa silhueta mal-ajambrada, a peruca roída pelas traças e sempre colocada de través que quase se tratava de uma antiga relação. Comentava-se que era homem de belas-letras e que fazia versos. Dizia-se também que era bastante sonhador, a ponto de esquecer durante três semanas que era casado. Ele divertia Ninon com suas brincadeiras e seu espírito. Angélica não lhe votava uma irrestrita simpatia, surpreendendo naquele pensionista do rei as mil artimanhas dos parasitas, que só sabem viver de mendicidade disfarçada.

- Como e por que vieram parar nesta feira? - perguntou ela com severidade. - Não sabiam que eu estava em Versalhes?

- Ao contrário, nós o sabíamos. E foi para colhê-la imediatamente ao seu regresso desses lugares abençoados que aqui estamos desde a manhã. Os rumores sobre seu favor...

- Mas que favor é esse, que vem sempre ter aos meus ouvidos? Diabos, não fui a única pessoa a ser recebida em Versalhes! Ali estive praticamente pela primeira vez.

- O que não impediu o rei de retê-la, a sós, por mais de duas horas.

- A sós? Ali estava o Sr. Colbert e era o gabinete de trabalho de Sua Majestade... Se soubessem com o que nos entretivemos, não imaginariam tantas histórias. Tratava-se de... Mas isso não lhes diz respeito.

- Tem razão - sussurrou La Fontaine com um gesto significativo de que um simples mortal como ele hão tinha o direito de penetrar o segredo dos deuses. - Basta-fios saber que Júpiter encontrou-se com Vénus; tendo sido esse encontro apadrinhado por Mercúrio, o Olimpo reunido só pode augurar as maiores felicidades por um tal acontecimento.

Angélica deixou-se cair sobre um divã e abriu o leque.

- Não sou Vénus e, afinal, o rei não me pareceu tão próximo de Júpiter. Quanto ao Sr. Colbert, se o tratasse por Mercúrio, não me espantaria que o desagradasse; ele deve ter pensado que escarnecia, pois malgrado seus muitos atributos ele nada tem de alguém que carregue asas nos tacões.

- Precisamente, era à sua grande inteligência comercial que eu fazia alusão. A senhor ignora que Mercúrio é considerado o grande deus do comércio?

- Ignorava. E o sr. Colbert também, sem dúvida. Como é triste a ignorância! - disse ela com um trejeito de ironia.

- Eis por que esse ministro obtuso professa um tal desprezo pelas belas-letras - disse o poeta em tom um tanto azedo.

- O senhor exagera; sem dúvida...

- De que outro modo se explicaria o ato de vandalismo que acaba de cometer, retirando as pensões de três quartos dos escritores sustentados por Sua Majestade?

- Não teria eu ouvido dizer que seria para examiná-las com cuidado e devolvê-las, à maior parte deles, sem dúvida aumentadas?...

- Enquanto espera, como pode um poeta viver contando unicamente com o soldo da Academia de Belas-Letras, fixado em trinta e dois sóis por dia?

- Com trinta sóis o senhor pode comprar uma libra de boa manteiga, dois frangos, uma dúzia de ovos, um pote de cidra e duas libras de grão-de-bico ou de favas. E ainda lhe sobrará para tomar chocolate na "Anã Espanhola" - disse a jovem,"rindo, percebendo finalmente aonde queria chegar aquele poeta, tão prático quanto sonhador.

O bom La Fontaine assumiu um ar de cómico sofredor.

-       Ai de mim! cara marquesa, se suas contas são impiedosamente exatas, a senhora tem por nulos muitos imponderáveis que existem. Assim, para perceber o soldo da academia somos constrangidos a horas de presença, a justificar nossas atividades, como se a atividade de um poeta pudesse ser medida feito um tecido! Em suma, trabalhamos muito mais, portanto temos muito mais fome. Angélica levantara-se e pegara uma bolsa em seu cofrezinho.

-       Aqui tem com o que esperar até o retorno de sua pensão, Sr. de La Fontaine. Quanto a meu favor junto ao rei, não conte muito com isso, pois, como sabe, a trombeta da Fama faz de um simples pedregulho uma montanha.

A mímica do poeta mostrava que, por hora, o viático de Angélica satisfazia suas esperanças.

- E o Sr. Perrault - perguntou, voltando-se para o rapaz -, que deseja?

- Eu, senhora - sobressaltou-se ele -, mas... Não... eu não creio... quer dizer... seus desejos é que vêm primeiro.

- Oh! Então, nesse caso, eu os revelarei a vocês sem rodeios. Gostaria que me deixassem em paz para tomar um bom banho.

- Susana no banho - exclamou La Fontaine, lírico -, o quadro encantador!

Como ela se dirigisse para uma pequena porta que dava para seus aposentos, ele colou-se a seus passos.

- Eu não sou Susana - disse, categórica - e vocês não são anciãos.

- Sim, eu sou - acudiu o terceiro visitante, que ela havia esquecido.

- Como o senhor?

- Eu sou um ancião, se é o que procura, bela senhora... e sou também Savary, boticário, e devo vê-la em particular, para um negócio que diz respeito ao rei, à senhora e sobretudo à ciência.

- Oh! piedade - gemeu ela. - Estou com dor de cabeça, não compreende? E nem as musas nem a ciência me são da menor valia. Aqui tem,, tome esta bolsa, o senhor também, mas parta!

O velhote não pareceu ver o dinheiro que ela lhe estendia, mas, acercando-se dela, colocou-lhe, autoritário, alguma coisa na boca, que em sua estupefação ela engoliu imediatamente.

- Nada tema, senhora! São pílulas contra as dores de cabeça mais rebeldes, cujo segredo eu trouxe do Oriente, pois sou droguista-boticário, como já tive a honra de lhe dizer, e também .antigo mercador do Oriente.

- Mercador, o senhor? - espantou-se Angélica, examinando a figura insignificante do velho homem.

-       Estou associado aos dois almotacéis do Escritório de Comércio de Marselha, e foi assim que ouvi o Sr. Colbert comentar que a senhora tem um comércio marítimo.

A jovem observou, com reticência, que seu único navio fazia apenas o comércio das índias Ocidentais, e de modo algum com o Oriente.

-       Isso não importa - insistiu çle -, não estou aqui devido a seu navio, mas, sim, por um negó.cio que interessa à pessoa do rei e à senhora mesma.  

A Angélica agradaria mandá-lo para o inferno. Aliás, as duas glórias da academia retiravam-se enfim, muito civilizadamente, por uma porta dos fundos.

-       Meu pedido parecer-lhe-á extremamente singular - continuou o farmacêutico, indiscreto e mesmo impertinente. - Não importa! Porque espero tudo da senhora e não posso recuar. Serei breve. Sua Majestade irá receber, dentro de alguns dias, um embaixador extraordinário,-cuja visita até mesmo ignora. Em todo caso é oficioso. Serei mais breve ainda. É o enviado de Sua Majestade Nadreddin Xain, xá da Pérsia, que virá negociar um tratado de assistência mútua e de amizade com o rei de França.

-       E o senhor é um agente secreto do xá da Pérsia? - zombou ela.

O rosto do velho senhor contristou-se a tal ponto que semelha va um bebé infeliz. Ele prosseguiu choramingando:

- Pobre de mim! bem quisera sê-lo! E não teria me saído pior que qualquer outro. O persa, o turco, o árabe e o hebreu são línguas que pratico e escrevo correntemente. Fui escravo durante quinze anos: primeiro junto ao Grande Turco em Constantinopla, depois no Egito, e ia ser comprado pelo sultão do Marrocos, que ouvira falar de meus conhecimentos médicos, quando, pela intervenção dos padres da Mercê, um parente pagou minha alforria. Mas não é esse o problema. O que desejo é que, no interesse de seu rei e também no seu, assim como no da ciência, consiga obter uma frágil amostra de uma mercadoria raríssima que o embaixador da Pérsia irá certamente trazer ao nosso monarca. Trata-se de um líquido mineral conhecido como "múmia", à falta de melhor denominação. Os persas o possuem em estado puro, ao passo que eu só consegui obter amostras, nas tumbas egípcias, desse líquido que servia, precisamente, para embalsamar múmias.

- E é essa imundície que acabou de me fazer engolir? - perguntou Angélica.

-       Não se sente melhor?

Surpresa, ela percebeu que sua enxaqueca havia desaparecido.

- O senhor é um mágico! - observou, sorrindo a contragosto.

- Um pesquisador científico, se tanto, senhora. E se a senhora pudesse obter-me uma amostra desse líquido, eu a abençoaria, pois isso me ajudaria nos trabalhos aos quais consagrei toda a minha vida. Jamais consegui obter-lhe uma gota. Apenas o vi em um frasco, guardado por três mamelucos. Vi e aspirei. Aquilo fede num raio de cem toesas. Odor tão abominável quanto delicioso. Aquilo cheira a cadáver e a almíscar... E maravilhoso! - exultou.

Ela começava a desconfiar que estava tratando com um louco ou um simplório presa de senilidade precoce. "Primeiro, não contrariá-lo", disse consigo mesma. Tentou desembaraçar-se do visitante despedindo-o com brandura. Prometeu fazer o possível. Embora duvidasse que pudesse ter acesso a um mimo tão precioso.

-       A senhora pode tudo! - afirmou ele com ênfase. - E absolutamente necessário que esteja presente quando o embaixador trouxer essa dádiva. E se acaso o séquito do rei e seus médicos ignaros menosprezarem o valor desse objeto e cometerem a blasfémia de querer jogá-lo fora, promete-me recolhê-lo até a mínima gota. Oh, antes de qualquer coisa, salve minha múmia minera!l

Angélica prometeu tudo o que ele queria.

-       Obrigado! Mil vezes obrigado, oh, bela senhora! A senhora me devolveu a esperança.

Com flexibilidade surpreendente ele ajoelhou-se diante dela e tocou várias vezes o tapete com a fronte encanecida. Depois levantou-se, desculpando-se por aquele hábito oriental que conservara de seu longo cativeiro junto aos bárbaros.

Angélica renovou suas promessas enquanto o empurrava insensivelmente para a saída. No entanto, não pôde se impedir de perguntar a que vinha aquela súbita invasão de solicitantes.

O ancião retesou-se, recobrando-se de sua exaltação, parecendo muito senhor de si e muito lúcido. Disse que, ao ver Angélica, havia compreendido que ela fora criada para ocupar o primeiro lugar onde quer que passasse.

- Mas onde o senhor me viu?

- Na corte.

- Na corte? O senhor?

- Não lhe disse que tenho ligações com os almotacéis do Comércio de Marselha? Sem maiores explicações, ele continuou:

- Não posso ignorar sua fortuna ascendente junto ao rei, pelas razões que lhe expuseram há pouco esses senhores da academia. Mas o que a sobreleva é também ,d descrédito crescente da Srta. de La Vallière na corte.

- O descrédito? Eu a acredjtava no apogeu de seu favor.

- Ela está, senhora; mas um sábio como eu pode inferir, apenas por esse fato, que sua queda só pode estar, próxima, pois a um pico numa curva, um "máximo", como o disse Descartes, corresponde fatalmente uma queda denominada "mínimo". Mas a estas previsões, de qualquer forma matemáticas, eu somo outras, naturais e de ordem instintiva, fenómenos que fazem com que os ratos abandonem os" navios em perigo. Os que frequentam habitualmente -a Srta. de La Vallière, até seu primeiro criado de quarto, desertaramía para vir até a senhora. Isso significa que, na corrida que se prepara para saber quem será a próxima favorita de Sua Majestade, a senhora já partiu como ganhadora em potencial.

- Absurdo! - disse Angélica, com um movimento de ombros. - Mestre Savary, o senhor tem muita imaginação para sua idade.

- Veremos! Veremos! - disse o velhote, cujos olhos cintilaram por trás dos vidros do grosso lornhao.

Por fim ele se eclipsou.

Ao ficar sozinha, Angélica deu-se conta de que algo mudara na casa. Havia um silêncio, súbito e total.

Ela vibrou uma sineta, não ousando se arriscar à antecâmara. Ao cabo de um momento, ouviu os passos de Roger, o mordomo, que se apresentou.

- Senhora, a ceia está servida.

- Não é sem tempo! Mas onde estão os outros solicitantes?

- Fiz correr a notícia de que a senhora havia partido secretamente para Saint-Germain. E todos aqueles brutos imediatamente deixaram a mansão, partindo em .seu encalço. Que a senhora marquesa me perdoe, mas não sabíamos como fazer diante de tamanha afluência de pessoas.

- Você deveria sabê-lo, mestre Roger, ou me privaria de seus serviços - disse ela em tom cortante.

O jovem mordomo dobrou-se em dois para afirmar que, doravante, faria a triagem de todos os visitantes com o maior cuidado.

Angélica fez uma ceia leve: sopa, ovas de carpa, cevada descascada e uma salada de brotos de couve, conhecidos então-como bró-colis. Depois foi para a cama e caiu imediatamente no sono.

No dia seguinte, antes de qualquer outra coisa, ela instalou-se em seu escritório e redigiu uma missiva endereçada a seu pai, no Poitou. Pedia-lhe que enviasse o mais breve possível a Paris seus dois filhos, Florimond e Cantor, com seus criados, dos quais ele se encarregava há alguns meses. Quando tocou para fazer vir o "galopador" da casa, o mordomo lembrou-lhe que o homem em questão havia desaparecido há alguns dias junto com os cavalos, como aliás todo o pessoal ligado às cavalariças. A senhora marquesa decerto não desconhecia que suas cavalariças estavam vazias de carros, animais e homens, à exceção de duas liteiras ali esquecidas.

Foi com o maior esforço que Angélica se conteve diante do subalterno. Disse-lhe que, assim que aqueles lacaios sacripantas se apresentassem, ele deveria pô-los para fora a bordoadas e reter seus últimos soldos. Mestre Roger, sempre calmo, fez-lhe notar que haveria poucas probabilidades de vê-los apresentarem-se, pois já haviam sido tomados a serviço do Sr. Marquês du Plessis-Bellière. Ademais, acrescentou o homem, a maior parte daqueles garotos não vira maldade no fato de transportar os cavalos e carruagens da senhora marquesa até as cavalariças do senhor marquês.

-       Aqui, só a mim devem obedecer! - disse Angélica.

Ela recompôs-se e disse a mestre Roger que fosse o mais rápido possível à Place de Greve, onde se podiam ajustar criados. E em seguida à feira de Saint-Denis, para os cavalos. Uma atrelagem de quatro animais e mais dois corcéis de reserva seriam suficientes. Por fim seria -preciso fazer vir o segeiro da rua, da loja com a insígnia de "Roda Dourada", que já lhe fornecera carros. Àquilo se chamava jogar dinheiro pelas janelas, e da parte de Filipe era um roubo, nem mais nem menos. Poderia ela denunciá-lo ao sargento de ronda ou na justiça? Não, nada podia fazer a não ser submeter-se. O que era justamente a atitude mais contrária a seu temperamento.

- E quanto à carta que a senhora marquesa queria enviar ao Poitou? - perguntou o mordomo.

- Faça-a despachar pela posta pública.

- A partida do correio só terá lugar na quarta-feira.

-       Pouco importa! A carta chegará.

Para acalmar os nervos, a Sra. du Plessis-Bellière se fez transportar em cadeirinha até o cais da Mégisserie, onde tinha seu entreposto de aves das ilhas.

Escolheu uma arara multicolorida que praguejava como um bu-caneiro de São Cristóvão; mas esse pormenor não era de molde a ferir os ouvidos de Atenaís, muito ao contrário.

Angélica juntou-lhe um negrinho, vestido com as cores do pássaro: turbante laranja, gibão verde, calções vermelhos bordados a ouro. Com calçados de laca negra tão reluzentes quanto sua face, o pequeno mouro assemelhava-se àqueles tocheiros venezianos de madeira pintada, cuja moda começava a se expandir.

Era um presente principesco. Angélica sabia que a Sra. de Mon-tespan o apreciaria e, a seus olhos, o sacrifício estava bem empregado. Enquanto os imbecis, sobre indícios mal fundados, se apressavam em vê-la como futura favorita, ela seria quase a única a fazer a corte na díreção correta. Não pôde se impedir de rir à ideia de quão estúpida era a humanidade!

No entanto, sua particular "transação com a corte" ainda não estava resolvida. E doravante seria preciso juntar aos dissabores pelas inumeráveis e estéreis diligências aquelas que desviariam até sua antecâmara os solicitantes de toda espécie, importunos e daninhos como moscardos em pleno mês de agosto!

Três deles já a aguardavam, pertinazes, quando entrou na Rue du Beautreillis. Ela viu tudo vermelho a sua frente e só faltou pegá-los pelo colarinho e pô-los porta afora.

-       Bom dia, Angélica - disseram em uníssono.

A penumbra não lhe permitira reconhecer de imediato seus três irmãos mais novos: Dionísio, Alberto e João Maria.

Ela os via periodicamente, quando precisavam de subsídios. Dionísio, que se tornara um enorme latagão de vinte e três anos, servia no exército,.no regimento de Touraine. Todo o seu magro soldo de oficial era devorado por dívidas de jogo. Chegava a vender seu cavalo e alugar seu criado. Alberto e João Maria, com dezessete e quinze anos, ainda eram pajens, um junto ao Sr. de Saint-Roman e o outro junto ao Duque de Mazarino.

Angélica não perdeu tempo em perguntar o que queriam. Dinheiro, como de hábito. Foi até seu cofrezinho e contou alguns escudos, dispensando-se naquele dia de lhes fazer admoestações. Dionísio e João Maria retiraram-se satisfeitos. Mas o jovem Alberto seguiu-a até o quarto.

- Agora que você está bem colocada, Angélica, será preciso que me obtenha um benefício eclesiástico!

- De quanto você dispõe para adquiri-lo?

- Você me ajudará. Ouvi dizer que a Abadia de Nieul iria ficar vacante.

Angélica, que começava a desacolchetar o corpete diante do psi-chê, voltou-se:

- Você está louco?..

- A Abadia de Nieul está situada em suas terras do Plessis...

- De modo algum! É um enorme domínio independente, uma verdadeira senhoria. Existem, ademais, muitos beneficiários que dela dependem. O abade é o principal deles, mas ele deve receber as ordens e ali residir.

- Por intermédio de Raimundo, nosso irmão jesuíta, eu poderia obter dispensas...

- Não é possível, você recebeu uma estocada, meu pobre amigo! - disse-lhe a irmã, olhando-o com desprezo.

Ela não gostava dele. Tinha uma beleza pálida em muito semelhante à de Maria Inês, mas ela não reconhecia em seu comprido corpo desengonçado a robustez dos garotos De Sancé. Encontrava nele maneiras dissimuladas que não eram próprias à maior parte dos membros de sua família. Em suma, ele se assemelhava a Hortênsia.

-       Um pequeno libertino como você, abade de Nieul! Existem, ao menos, limites! Eu sei da vida que você leva. Não faz muito tempo, você se fazia tratar por um empírico do Pont Neuf, de uma doença de rapaz que pegou só o diabo sabe onde. Como vê, estou bem informada...

O jovem pajem engoliu a saliva com um ar melindrado.

-       Não lhe sabia tão virtuosa. O que lhe vai muito mal, aliás.

Não importa! Passarei sem seus serviços.

Afastou-se com passo altivo, mas antes de fechar a porta lançou-lhe:

-       Assim mesmo alcançarei meus objetivos. Sempre consigo obter o que desejo.

Por essa última tirada, era bem um Sancé. No instante seguinte já não pensava mais nele. Acabavam de anunciar o Sr. Binet, seu cabeleireiro. Ela desfrutou de momentos de repouso ao se entregar às mãos do artista e ao observá-lo dispor com cuidado seus pentes e ferros, seu pequeno aquecedor de prata dourada, seus frascos e caixas de unguentos.

- Os negócios vão bem, Binet?

- Poderiam ir melhor, senhora.

- Seu espírito inventivo está em recesso para criar novas maravilhas sobre a cabeça das damas e dos cavalheiros?

- O espírito inventivo ainda é -uma das mercadorias de que disponho mais facilmente, e que me custa menos caro. Não lhe falaram de um bálsamo de cinzas de abelha que compus para fortificar cabelos ralos? Ele traz bastante esperança a muitas pessoas que não têm a fortuna de possuir uma cabeleira como a sua, senhora.

Com mão experiente, levantava a massa de cachos sedosos de um louro-escuro entremeado de reflexos mais claros, como reverberações do sol.

- Ouvi dizer que foi grande o seu sucesso em Versalhes e que a senhora reteve por Jnuito tempo a atenção do rei.

- Também o ouvirdizer - disse Angélica, com um suspiro resignado.

- A senhora sabia que minha modesta profissão corre o risco de ser cruelmente abalada, e que pensei na senhora para uma intervenção que talvez nos salvasse, a nós modestos artesãos-cabeleireiros, de um grave dano?

Sem esperar resposta, ele explicou-lhe que um certo Sr. du Lac havia solicitado ao rei permissão para estabelecer "um escritório" em Paris, aonde todas as perucas seriam levadas e submetidas a controle de qualidade; uma marca seria aposta no interior da peruca e haveria a proibição de debitá-las sem esse registro de controle, sob pena de confisco e multa de cem libras. Pela tarefa de controle, o Sr. du Lac se reservaria o direito de perceber dez sóis por peruca.

- O caso é constrangedor, mas é quase certo que o rei se recuse a dar-lhe prosseguimento. Ele não se preocupa com tais tolices...

- E onde a senhora se engana. O Sr. du Lac faz parte da casa da Srta. de La Vallière, e Sua Majestade aceita todos os pedidos apresentados por ela. Este de que lhe falo já está em estudo no Alto Conselho.

- Então nada resta a fazer senão apresentar um pedido contrário pelas mãos de alguém poderoso entre os que cercam o rei.

- A senhora, por exemplo - Binet apressou-se em dizer, retirando de uma bolsa uma missiva lacrada. - Sua bondade não deixará de intervir para depositar esta justa reclamação nas mãos de Sua Majestade...

Angélica hesitou um instante sobre o que convinha fazer. Ela fazia questão de estar bem penteada. Uma mulher que sabe de que elementos se compõe seu êxito no mundo não contraria seu cabeleireiro quando da abertura da estação das grandes festas de inverno.

Pegou, então, a petição, mas recusou-se a se envolver. Binet explodiu de satisfação.

- A senhora pode tudo, estou convencido disso, eu a conheço há muito tempo. Vai ver, eu a adornarei como a uma deusa.

- Não desperdice o seu génio tão cedo. Eu nada prometi e não sei, com os diabos, como farei... O que você espera? Não tenho nenhum cargo na corte, onde só estive por duas vezes.

Mas o otimista Binet tinha-lhe absoluta confiança. Ele a reteve durante duas horas sob sua dependência volúvel e entusiasta. Depois do quê, Angélica não pôde se impedir de sorrir ao espelho.

- Completei minha reclamação com um pedido - explicou ainda Binet, antes de deixá-la. - Solicito o cargo de cabeleireiro junto a Sua Majestade.

- Sua ambição tem endereço errado. Acontece que ninguém no reino tem menos necessidade de seus serviços do que o rei. Ele possui uma cabeleira natural que vale todas as perucas do mundo e que não sacrificaria sem relutância.

- A moda é a moda - fez Binet, sentencioso. - Mesmo os reis têm que se inclinar diante dela. Ora, a moda é usar peruca. Ela dá majestade ao rosto mais comum, graça aos traços menos convidativos. Preserva os calvos dó ridículo e os velhos, da coriza, e prolonga para os dois a idade das agradáveis conquistas. Quem pode passar sem peruca doravante? Cedo ou tarde o rei chegará a ela. E eu, Francisco Binet, acabo de confeccionar um modelo especialmente estudado para Sua Majestade, que lhe permitirá usar a peruca sem por isso sacrificar sua cabeleira nem dissimulá-la inteiramente.

- Você me intriga, Binet.

- Senhora, só confiarei meu segredo ao rei.

No dia seguinte, tendo decidido que não podia mais se privar da atmosfera da corte, Angélica tomou o caminho de Saint-Germain-en-Laye, onde Luís XIV fixara, havia três anos, sua residência habitual.

 

O rei a recebe em Saint-Germain

Angélica pôs o pé em terra à entrada dos jardins. A animação era maior do que em Versalhes. A cidadezinha inteira participava da vida da corte. Curiosos, solicitantes, funcionários e criados iam e vinham livremente...

O terraço, com mais de cinco léguas de comprimento, realizado por Le Nôtre, prolongava-se dominando um dos mais belos panoramas de lie de France.

Naquele mesmo instante chegava o rei em sua carruagem puxada por seis cavalos isabéis brancos suntuosamente ajaezados e rodeada por quatrocentos senhores, a cavalo e de chapéu na mão. A extraordinária assembleia destacava-se em seu múltiplo colorido sobre a frondosidade avermelhada da floresta, enquanto ao longe se distinguia a planície em tons de azul suave e verde acinzentado, onde brilhava o curso ondulante do Sena.

O Marquês de La Vallière, um dos primeiros a chegar, ofereceu-se para acompanhar Angélica; o Marquês de Roquelaure, Brienne e Lauzun acercaram-se a seguir. Estavam bastante excitados, discutindo a última novidade na ordem do dia. O rei fizera chamar seu alfaiate a fim de lhe dar as diretivas para a confecção dos famosos gibões azuis, com os quais desejava criar uma ordem bem pouco monástica, mas bastante honorífica. Seriam escolhidos sessenta gentis-homens, que poderiam acompanhar o rei em seus passeios sem necessitar de permissão. Para tanto envergariam o uniforme, que seria, aos olhos de todos, a flagrante testemunha da amizade que o soberano lhes votava; casacão de chamalote azul, era o que se comentava, forrado de vermelho com desenhos bordados a ouro e um pouco de prata, de adornos e jaqueta vermelha.

-       Nosso amigo Andijos nos devia uma agradável surpresa - disse Lauzun. - Creio que está no auge de seu favor e que podemos passear juntos sem receios. Conhece as grutas de Saint-Germain, minha bela?

Diante da negativa de Angélica, ele tomou-lhe o braço e, arrebatando-a, autoritário, de seus outros admiradores, levou-a para ver as curiosas grutas animadas ou falantes, que datavam do bom Rei Henrique. Artistas italianos, os Francinet, nomeados em 1590 "mestres na arte de utilizar a água para o embelezamento dos parques e jardins", haviam-nas povoado com toda uma mitologia mecanizada que a água fazia como que viver e falar.

A primeira gruta era habitada por Orfeu tocando harpa. Animais apareciam alternadamente, cada qual emitindo a voz de sua espécie.

A segunda abrigava um pastor, que cantava acompanhado de um coro de pássaros.

Na terceira, onde se podia ver um Perseu autómato libertando Andrômeda, enquanto tritões sopravam em suas conchas, Lauzun e sua companheira encontraram a Srta. de La Vallière e algumas de suas damas de companhia. Estava sentada na borda de um dos tanques, mergulhando os finos dedos na água murmurante.

O Marquês de Lauzun cumprimentou-a, e a jovem respondeu-lhe com jovialidade. Submetida desde a juventude às regras da conversação, um longo trato com o mundo havia-lhe vencido a timidez e a vergonha que não podia se impedir de sentir desde que se tornara, aos olhos de todos, amante do rei.

Sofria por ter que se mostrar, mas continuava alegre e graciosa. Seu olhar voltou-se para Angélica com interesse.

-       A Srta. de La Vallière atrai a afeição, mas não o devotamento - observou Angélica, enquanto continuava seu passeio sob a cobertura das galerias de verdura.

Lauzun não reforçou aquelas palavras. Examinava-a com o canto dos olhos. Ela prosseguiu em seu raciocínio:

-       Esses criados e parasitas que ela sustenta sem o saber, e quase sem o querer, estão prontos para abandoná-la ao mínimo vento contrário. Não houve certamente na história uma favorita menos exigente para consigo mesma e que dê tanto a impressão de pilhar o tesouro real. Os protegidos da Srta. de La Vallière representam um flagelo. São encontrados em toda parte, com suas longas presas, a mão estendida, insaciáveis.

__ Suas breves apreciações sobre os corrilhos da corte me parecem já bastante claras para sua pouca experiência - disse Lauzun. - Espere! - disse ele, detendo-se. - Levante os olhos para as árvores, por favor.

Ela atendeu, sem compreender.

-       Admirável! - suspirou Lauzun. - Assim, seus olhos tornam-se verdes e líquidos como a água dé uma fonte. Poder-se-ia refrescar-se neles.

Ele beijou-lhe as pálpebras. Ela o afastou com um leve golpe do leque.

- Não se acredite na obrigação de representar o papel de sátiro só por estarmos na floresta.

- No entanto, há muito que a adoro.

- Sua adoração é das que produzem as boas amizades. Gostaria que a colocasse a meu serviço para que me fosse possível adquirir um cargo na corte.

- Angélica, você é uma criança muito séria. Mostramos-lhe belos brinquedos mecânicos- e você os contempla distraidamente, pensando em seus deveres escolares. Elogiamos seus belos olhos e você fala de cargos e colocações.

- Quem não fala neles por aqui?

- Fala-se também de belos olhos!.... E de amor - disse Lauzun, passando-lhe um braço afaganteao redor da cintura.

Ela não quis escutá-lo e precedeu-o na entrada da quarta gruta, onde Vulcano e Vénus vogavam juntos em uma concha de prata. Havia ali uma multidão; achegando-se, ela reconheceu o rei.

-       Ah! Eis a encantadora Bagatela - disse ele ao notá-la.

Angélica executou sua primeira grande reverência do dia. E renovou-a para Monsieur e Madame, também presentes.

Como o rei se pusesse a conversar com o Marquês de Lauzun, ela misturou-se ao grupo de damas e de cortesãos, seguindo-os durante o passeio pelos jardins. Pouco depois, Péguilin retornou, pegou-a pela mão e conduziu-a para junto do rei.

-       Sua Majestade quer trocar duas palavras com você...

Angélica fez uma nova reverência e permaneceu próxima a Sua Majestade, enquanto a massa de acompanhantes guardava alguma distância.

Mais duas conversas como essa e verei dobrar o número de solicitantes à minha porta", pensou.

- Senhora - disse o rei -, desde nossa última entrevista em Versalhes, tivemos por diversas vezes a oportunidade de nos felicitarmos pelas opiniões bastante acertadas, razoáveis e inéditas que nos expôs. E pensamos que a senhora foi mal recompensada por elas. Se a senhora tem algum favor a nos pedir, nós o subscreveremos com o maior prazer.

- Sire, Vossa Majestade já teve a bondade de se interessar pelo futuro de meus filhos.

- O que era excusado pedir! Mas não teria a senhora uma requisição mais precisa a me dirigir?

Angélica lembrou-se imediatamente do pedido de Binet e tirou do corpete a petição fortemente perfumada com as essências da Provença do cabeleireiro.

- Um cabeleireiro? - disse o rei, surpreso. - Falava-lhe de uma petição mais importante.

- Mas um cabeleireiro é alguém muito importante - afirmou Angélica, séria. - E aos meus olhos, este o é mais do que todos os outros cabeleireiros de Paris, pois é o meu. Ademais, ele afirma possuir um segredo que permitiria a Vossa Majestade usar a peruca, sem com isso ter que sacrificar ou mesmo esconder seus cabelos, que os tem muito bonitos.

- Realmente?! - exclamou o rei, detendo-se no meio da aléia. - Como seria isso possível?

- O Sr. Francisco Binet disse-me que só confiaria seu segredo a Vossa Excelência, em particular.

- Que o diabo me carregue se tenho paciência de esperar até amanhã para conhecer a solução do problema! Estou sempre me perguntando: cortarei? Não cortarei? Mas se esse artista, de quem ouvi falar muito bem, aliás, encontrou um modo de conciliar esses dois extremos, palavra de honra, fá-lo-ei duque!...

Rindo com a animação a que se abandonava em seus momentos de despreocupação, Luís XIV fez um sinal a seu primeiro gentil-homem, entregou-lhe a petição de Binet e deu-lhe ordens para que se fizesse vir o cabeleireiro a Saint-Germain.

Ao retornar, ao anoitecer, a sua morada parisiense, Angélica experimentava uma alegria pueril por ter obtido tão rapidamente sua primeira requisição. Sentia-se quase todo-poderosa, embora devendo confes-sar-se que seus negócios pessoais não haviam progredido. Tomara parte em uma colação seguida de uma partida de baile, falara com uma infinidade de pessoas, executara um número incalculável de reverências e perdera cem libras durante uma partida - sentada - de lansquenê.

Contudo, no dia seguinte, e nos subsequentes, ela retomava o caminho da corte.

Não mais-via Filipe em nenhuma parte.-Pelos boatos soubera que fora enviado para uma inspeçãó de alguns dias na Picardia. Estaria ele em desgraça? Não, pois o monteiro-mor fora um dos primeiros a envergar o famoso casacão azul, tão disputado. Angélica também se avistara com o Marquês de Louvois. A seu pedido de tramitações de negócios, o ministro erguera os olhos aos céus e passara a expor-lhe a situação ridícula e desastrosa em que se encontrava. Por certo era proprietário, e há muito tempo, dos benefícios dos transportes entre Lyon e Paris. Mas não se dera o caso de um rematado patife^ um tal de Collin, ter tido a ousadia de pedir o mesmo privilegie, e o rei concordar com o pedido? Agora, via-se obrigado a tratarcom um maldito lacaio de baixa condição, fosse para recuperar seus direitos oferecendo ao referido Collin uma substancial indenização, fosse para partilhar com ele aqueles direitos, ou para renunciar a tudo. Naturalmente esse Collin pertencia à casa da Srta. de La Vallière, o que tornava a situação espinhosa junto ao rei. Louvois estendeu-se longa e maçantemente sobre o caso desagradável e esqueceu os cumprimentos que havia preparado para a encantadora marquesa, cuja beleza e expressão ao mesmo tempo sagaz e ingénua começavam a povoar seus sonhos.

O Marquês de La Vallière, a quem aquela longa conversação com Louvois deixara enervado, veio ao encontro de Angélica com recriminações nos lábios, mas tornou-se afável quando ela lhe perguntou se conseguira "anglicizar" seu francês morto em Tânger, e de quem cobiçava os bens. Sim, a naturalização póstuma estava bem encaminhada. As investigações do Marquês de La Vallière haviam-lhe revelado uma origem escocesa na ascendência do pobre Conde de Retorfort.

E os bens do vice-bailio de Chartres tinham vindo dar a sua escarce-la? Com um movimento de ombros, João Francisco de La Baume Le Blanc, Marquês de La Vallière, dera a entender que conseguira seus ob-jetivos e, ao mesmo tempo, que a parte obtida não satisfazia seu apetite.

Por duas vezes Péguilin de Lauzun conseguiu arrastar Angélica a um canto com o objetivo explícito de arrancar-lhe alguns beijos.

Sem mostrar que dava pela coisa, ela perguntou pelo Sr. Duque de Mazarino. Seus escrúpulos religiosos haviam-no afinal levado a se desfazer de um de seus cargos em proveito do Sr. de Lauzun?

Com as faces vermelhas de excitação, Péguilin respondeu-lhe que sim e não. Era um quebra-cabeça, mas estava a ponto de ser resolvido.

O Duque de Mazarino demitira-se, com efeito, de seu cargo de grão-mestre, a pedido da Sra. de Longueville, que intentava comprá-lo para seu filho. Quando, porém, com o acordo acertado, a Sra. de Longueville solicitara a aprovação do rei, este lhe dissera que a transação não lhe convinha e que ignorava o fato de o Duque de Mazarino querer desfazer-se de seu cargo. O Duque de Mazarino dissera, então, que não queria mais vendê-lo.

O rei, por seu turno, mostrara escrúpulos em conservar-lhe o cargo. Fixara, pessoalmente, um preço, decidira delegar as funções inerentes a ele ao Sr. de Louvois e resolvera que o titular do cargo se limitaria às ações de guerra. Ele sugerira que o Sr. de Lauzun deixasse o cargo de general dos dragões e tomasse aquele, efetivo, de grão-mestre...

Como a Sra. du Plessis podia imaginar, Lauzun sentira-se ofendido em ocupar um cargo cujas funções seriam exercidas pelo Sr. Louvois.

Ele suplicara a Sua Majestade que lhe desse um lugar junto a sua pessoa, que lhe permitisse agir segundo melhor aprouvesse ao rei.

Se aceitasse o cargo, teria desentendimentos com o Sr. de Louvois.

O rei louvava os sentimentos do Sr. de Lauzun e, com a intenção de dar mostras de maior confiança, entregara-lhe a guarda de sua pessoa e tomara a decisão de lhe oferecer o cargo de capitão das guardas do corpo do rei.

Em consequência disso, ele fizera do Conde de Ludre grão-mestre. Este cedera seu cargo de primeiro gentil-homem ao Sr. de Gesvres, que colocara seu posto de capitão das guardas do corpo do rei nas mãos do Sr. de Lauzun. O Sr. de Lauzun, por sua vez, cedera o cargo de coronel-general dos dragões ao Sr. de Roure, que se desfizera daquele que possuía na cavalaria ligeira e cujo valor servira para recompensar o Sr. Duque de Mazarino por seu cargo de grão-mestre.

Eis como Angélica soube da história. Com as mãos juntas sobre os joelhos e um ar aplicado, ela acompanhou a aula, aprendendo, por um lado, os arcanos complicados das intrigas e, por outro, que o mais hábil sistema de defesa de uma linda mulher que queria fugir às homenagens muito afoitas consiste em jogar o audacioso na narrativa de suas esperanças e de suas ambições práticas. Surpresa, percebia que naquela corte, tida por muito galante, o amor vinha, por vezes, após o interesse, e que, como teria narrado o fabulista La Fontaine, o pequeno deus Eros devia com frequência retirar-se, vencido, diante do casal temível que formavam a Fortuna, cega, montada em sua roda, e Mercúrio, de pés alados. O rei orquestrava aquele bale complicado com uma consciência minuciosa, atenta, que jamais esmorecia. Ele "levava para a frente" todos aqueles que serviam a sua volta. Era preciso ser visto e revisto. Uma insolência pesava menos que uma ausência.

Pouco tempo depois ela soube que Binet recebera o cargo de primeiro cabeleireiro do rei. Ele conquistara o reconhecimento do soberano apresentando-lhe uma peruca que trazia aberturas pelas quais Sua Majestade podia fazer sair amplas mechas de sua própria cabeleira. Assim, o rei não precisaria sacrificar seu ornato natural e aproveitaria ao mesmo tempo as vantagens e comodidades da peruca.

Toda a corte quis fazer^se pentear por ele ou usar perucas de sua criação. Só se estariarna moda depois de ter passado por suas mãos.

Os elegantes criaram uma palavra nova.

- Que pensa de minha binette? - perguntavam ao se encontrar.

 

A caça ao lobo - Lauzun seduz Angélica

Com a chegada das primeiras neves, que foram precoces naquele ano, toda a corte partiu para Fontainebleau. Os camponeses da região haviam solicitado o apoio de seu senhor, o rei de França, para livrá-los dos lobos, que estavam causando grandes devastações.

Através dos campos imaculados, sob um céu carregado, a longa fila de carruagens, furgões, cavaleiros e homens a pé se pôs em movimento.

Era toda uma cidade que mudava de lugar. A "Boca do Rei", à "Capela do Rei", à "Casa do Rei", se haviam juntado a casa da rainha, o jogo de péla, a casa militar, a montearia e o mobiliário da coroa, até as tapeçarias suntuosas que se pregariam às paredes como proteção contra o frio. Seriam oito dias de caça ao lobo, o que não impediria a realização dos bailes, teatros e das agradáveis colocações à meia-noite, chamadas de "medianocbe".

Ao anoitecer, acenderam-se as tochas de resina junto às portinholas. E em meio a um rorejar de lágrimas de fogo chegou-se a Fontainebleau, antiga residência dos reis de França no século XIV, que fora transformada por Francisco I, amante do local, numa das jóias da Renascença, antes de Carlos V ser ali recebido.

Em Fontainebleau, a etiqueta se abrandava. Todas as damas, mesmo as que não tivessem direito ao tamborete, podiam sentar-se diante do rei e da rainha, algumas sobre uma almofada, e outras sobre o lajedo. Angélica imaginou que, devido ao frio, não abusaria daquela permissão. A Grande Mademoiselle, a quem agradava o papel de cicerone, fê-la visitar a morada real. Mostrou-lhe o teatro chinês, a Galeria Henrique II e o aposento onde, dez anos antes, a Rainha Cristina, da Suécia, fizera assassinar seu favorito, Monaldeschi. Mademoiselle conhecera bem a singular soberana do Norte, quando de sua passagem pela França.

- Ela vestia-se de um modo que mais fazia lembrar um lindo rapaz. Não havia nenhuma mulher em seu séquito; um criado de quarto a vestia, colocava-a na cama e, já que é preciso tudo dizer, acalmava seus desejos quando um. dos favoritos não se achava presente para fazê-lo. Da primeira vez que viu nosso jovem rei, tímido à época, perguntou-lhe sem cerimónia e diante da rainha-mãe se ele tinha amantes. O Cardeal Mazarino não sabia como desviar o assunto, e o rei ficara tão vermelho quanto a veste do cardeal... Hoje, sentir-se-ia menos embaraçado...

Angélica escutava-a distraidamente, procurando Filipe com os olhos. Não sabia ao certo se por desejo ou por medo de vê-lo. Nada havia de bom a esperar daquele encorftro. Ele só lhe teria uma palavra dura, um olhar de desprezo. Seria melhor que fingisse ignorá-la e que fosse menos cortês com relação a ela do que com qualquer outra mulher da corte. Ele parecia ter.aceitado sua presença, mas não seria isso uma trégua em deferência às recomendações do rei? Angélica permanecia em guarda, e, no entanto, quando avistava Filipe, não podia se impedir de experimentar um sentimento complexo, feito de humilde admiração e secreta esperança, no qual reconhecia seus sonhos de outrora, quando então não passava de uma garotinha desajeitada diante do elegante primo de cachos dourados.

"Como custam-nos morrer os sonhos de infância!", pensou.

Filipe conservou-se invisível durante o primeiro dia de chegada a Fontainebleau. Ele preparava a caçada. Eram constantes os comentários sobre quão aterrados estavam os camponeses com as feras. Carneiros haviam sido roubados até mesmo dos currais. Uma criança de dez anos fora atacada e degolada. Um bando particularmente perigoso parecia ser guiado por um grande macho, "gordo como um bezerro", afirmavam os campônios que o haviam visto rondar os limites dos vilarejos. Sua audácia era inacreditável. A noite, vinha resfoligar e arranhar as portas das choupanas, onde as crianças, gritando de pavor, agarrayarri-se a suas mães. Todos se aterrorizavam, desde o anoitecer.

A caçada tornara-se violenta e implacável. Todos estavam no encalço da besta-fera. Os camponeses, em grande número, haviam se apresentado, armados de forcados e de chuços. Misturados aos monteadores, ajudavam a guiar os cães. Ninguém ficava para trás.

Gentis-homens e amazonas conheciam os lobos. Não havia entre eles quem não tivesse escutado em sua infância, no fundo de um castelo, histórias sobre suas maldades, e era o mesmo ódio ancestral contra o carniceiro temível, flagelo dos campos, que arrastava nobres e camponeses às veredas selvagens. Ao entardecer, seus cadáveres já se alinhavam na neve.

Entre os galhos avermelhados das árvores os célebres rochedos da floresta de Fontainebleau, as surpreendentes falésias negras, os belvederes de arenito e os balcões franjados de gelo vibravam com o contínuo chamado das trompas.

Angélica acabava de desembocar em uma pequena clareira, que formava um tapete branco, estreitamente protegida por um maciço de altos rochedos, como Ô fundo de um poço coberto de musgo. O canto das trompas ali repercutia de modo harmonioso e envolvente. Ela deteve o cavalo e pôs-se a escutar, invadida pela melancolia de reminiscências longínquas. A floresta! Há quanto tempo não adentrava uma floresta! O ar úmido, recendendo a velhas árvores e folhas mortas, varreu de um golpe os anos passados na fetidez ruidosa de Paris, levando-a de volta a suas primeiras alegrias na floresta de Nieul. Contemplou as árvores de coloração cálida, ferrugem e púrpura, que o outono ainda não desfolhara. A neve, der-retendo-se em um murmúrio de fonte, avivava o colorido das folhagens e dava-lhes, sob a carícia de um sol tímido, um faiscar de pedras preciosas. Na penumbra da vegetação que crescia entre as árvores, Angélica viu brilhar as pérolas vermelhas de uma moita de azevinho. Lembrou-se de que, em Monteloup, aquela planta era colhida às braçadas na época do Natal. Como aquilo tudo estava distante! Poderia o presente de Angélica du Plessis-Bellière reencontrar o passado de Angélica de Sancé por meio de um simples talo de azevinho?

"A vida jamais nos separa de nós mesmos", pensou, enlevada, como se tivesse recebido uma promessa de felicidade.

Podia parecer infantil, mas ainda não renunciara aos impulsos pueris, apanágio de todas as mulheres. Abandonar-se a eles era um luxo que, agora, podia se oferecer.

Ela deslizou de seu cavalo e, após amarrar as rédeas de Ceres a um galho de aveleira, correu até a moita de azevinho. Entre as bugigangas que toda mulher elegante trazia à cintura, encontrou um pequeno canivete com cabo de madrepérola, com o qual principiou a colheita. O que não se fazia sem dificuldade.

Angélica não se deu conta de que o som das trompas e o burburinho da caçada se distanciavam, e nem notou, a princípio, a agitação de Ceres, que puxava, as rédeas, nervosa. Só atentou para a perturbação do animal no momento em,que Ceres, com um relincho de pânico, arrancou o galho de avelã e fugiu a galope.

-       Ceres! - gritou Angélica.- Ceres!

Foi então que percebeu o que causara a agitação da égua.

Do outro lado da clareira, ainda meio escondida pela moita, rondava uma forma.

"O lobo", pensou.

Quando ele saiu de entre a ramagem, avançando cauteloso sobre o tapete imaculado, compreendeu que se tratava do grande macho, terror da região. Um;animal enorme, na verdade, cinza e avermelhado como a floresta, com o dorso arqueado e o pêlo eriçado. Ele imobilizou-se, os olhos fosforescentes fixados em Angélica.

Ela emitiu um grijo agudo.

A fera deu um salto para trás, e depois voltou a se aproximar, com as mandíbulas arregaçadas emitindo ferozes grunhidos. De um momento para outro daria o bote...

Ajovem lançou um olhar para a falésia que se erguia atrás dela.

"É absolutamente necessário que tente alçar-me o mais alto possível."

Tomou impulso e conseguiu elevar-se um pouco, mas logo teve que se deter. Suas unhas escorregavam sobre uma superfície lisa onde não encontravam nenhum apoio.

O lobo saltara, mas só conseguira abocanhar-lhe a extremidade do vestido. Caíra, e a espreitava, andando à volta com os olhos injetados de sangue. Ela gritou mais uma vez, com todas as forças. Seu coração batia tão forte que ela nada ouvia além de seus golpes surdos e descompassados. Rapidamente reuniu algumas palavras em forma de oração:

-       Senhor! Senhor! Não permita que eu morra tão estupidamente!... Faça alguma coisa!...

Um cavalo surgiu a galope e estacoujde. chofre, em meio a uma nuvem de flocos de neve. O cavaleiro saltou em terra.

Como em um sonho, Angélica viu aproximar-se o monteiro-mor, seu marido, Filipe du Plessis-Bellière. Era uma aparição tão extraordinária que em um segundo todos os detalhes saltaram-lhe aos olhos.

Filipe estava cingido por um gibão de pele branca, guarnecido com largos bordados em prata. O colarinho e as dobras das mangas eram forrados com uma peliça na mesma cor de sua peruca.

Ele avançava a passo uniforme, em suas botas de courobranco e galões prateados.

Ao saltar do cavalo, havia arrancado as luvas. Suas mãos estavam nuas. A direita empunhava uma faca de caça afilada, com cabo de prata.

O lobo voltara-se para aquele novo adversário. Filipe caminhava em sua direção sem se apressar, mas de modo implacável. Estava a apenas seis pés do lobo quando este atacou, com a goela vermelha aberta soltando grunhidos agudos.

Com um gesto rápido como um raio o marquês avançou o braço esquerdo, a mâo fechando-se como tenaz ao redor do pescoço do animal. Com a outra mão rasgou-lhe o ventre de alto a baixo, de um só golpe. A fera debatia-se em horrível estertor, o sangue jorrando. Por fim sua resistência esgotou-se. Filipe jogou de lado o corpo anelante, que desabou, enquanto as entranhas espalhavam-se na neve.

De todos os lados, monteadores e cavaleiros invadiam a clareira. Os lacaios controlavam a matilha delirante ao redor do cadáver.

-       Belo golpe, senhor marechal - disse o rei a Filipe.

Na confusão, a situação de Angélica passava ainda despercebida. Fora-lhe possível deslizar para a base do rochedo, limpar as mãos arranhadas e pegar o chapéu.

Um dos batedores trouxe-lhe seu cavalo. Era um homem grisalho, que se ocupara a vida toda com a montearia, e de falar franco. Lançara-se nas pegadas de Filipe e presenciara o fim do combate.

-       A senhora causou-nos um medo e tanto, marquesa! - disse. - Sabíamos que o lobo estava por aqui. E quando vimos seu cavalo voltar com a sela vazia, e ouvimos seu grito!... Palavra de monteador, senhora, foi a primeira vez que vi o senhor monteiro-mortornar-se pálido como a morte.

Somente ao acaso da festa que se seguiu pôde Angélica encontrar-se com Filipe. Procurara em vão estar com ele, desde o instante em que, retesado em seu gibão ensanguentado, ele lhe lançara um olhar furioso antes de voltar a seu cavalo. Sem dúvida alguma, ele estivera a ponto de administrar-lhe um par de bofetadas. No entanto ela estimava que uma mulher que teve a vida salva pelo marido deve-lhe ao menos alguns agradecimentos.

-       Filipe - disse, no momento em que conseguiu retê-lo por entre duas mesas do banquete real -, sou-lhe tão grata... Sem você estaria perdida.

Foi o tempo de o gentil-homem depositar na bandeja carregada por um valete que passava o copo que tinha na mão; pegando no pulso de Angélica, apertou-o a ponto dejssmagá-lo.

- Quem não sabe acompanhar uma caçada deveria permanecer em casa, fazendo tapetes -- disse em voz baixa, encolerizado. - Você não cessa de colocar-me em situações ridículas. Não passa de uma camponesa grosseira, de uma mercadora sem educação. Um dia saberei como fazer-lhe expulsar da corte e livrar-me de você!

- E por que não ter deixado esse encargo ao Senhor Lobo, como ele tanto o desejava?

- Era meu dever matar aquele lobo, e sua sorte pouco importava. Não ria, você me exaspera. É como todas as mulheres que se imaginam irresistíveis e que pensam que se morreria por elas com alegria. Não sou'dessá espécie. Um dia você saberá, se ainda não compreendeu, qlie eu também sou um lobo.

- Não creio nisso, Filipe.

- Saberei prová-lo - disse ele, com um sorriso frio que acendeu em seu olhar um brilho de maldade.

Pegou-lhe na mão, com uma delicadeza da qual ela não desconfiou, levando-a aos lábios.

-       O que você colocou entre nós, no dia de nosso casamento,

ódio, rancor e vingança, jamais se apagará. Tenha-o por dito.

Ele mantinha junto aos lábios o delicado pulso. Súbito, mordeu-o cruelmente.

Angélica teve que controlar-se ao máximo para não gritar de dor. Ao recuar, esmagou com o salto o pé de Madame, que se levantava de uma das mesas e que, ela sim, gritou.

Angélica, muito rubra e depois muito pálida, balbuciou:

-       Que Vossa Alteza me perdoe!

-       Minha cara, você é uma desajeitada...

Filipe acrescentou, num tom de desagrado:

-       De fato, tenha um pouco de cuidadccom seus movimentos, senhora. O vinho não lhe cai bem.

Seus olhos brilhavam com maldosa ironia. Ele inclinou-se profundamente diante da princesa, e depois deixou as senhoras para acompanhar o rei, que se dirigia aos salões.

Angélica pegou seu lencinho de rendas e aplicou-o à mordedura. A dor brutal repercutiu em seu estômago. Ela sentiu-se mal.

Com o olhar enevoado, esgueirou-se por entre os grupos e conseguiu chegar a um vestíbulo, onde estava mais fresco.

Sentou-se no primeiro sofá a sua frente, em um dos nichos que enquadravam as janelas. Com precaução ergueu o pedaço de cambraia amarfanhado e contemplou o pulso perolado de gotas de sangue pisado. Com que selvageria ele a havia mordido! E que hipocrisia em seguida! "Tenha cuidado com seus movimentos, o vinho nào lhe cai bem." Espalhariam o boato de que a Sra. du Plessis estava embriagada a ponto de chocar-se com Madame... Uma jovem incapaz de frequentar a aristocracia!...

O Marquês de Lauzun, que passava por ali, ele também de casaco azul, reconheceu a silhueta feminina sentada.

-       Desta vez vou passar-lhe uma descompostura - disse, aproximando-se. - Novamente sozinha!... E sempre sozinha!... Na corte!... E bela como o dia!... E escondida, para cúmulo do escândalo, neste canto preferido pelos enamorados, tão discreto e encoberto que foi apelidado de gabinete de Vénus! Sozinha!... Você é um desafio às regras ele mentares do decoro, para não dizer às leis da natureza, em uma palavra.

Ele sentou-se a seu lado, adotando a expressão severa de um pai que ralhasse com a filha.

-       Que bicho a mordeu, minha criança? Que demónio lúgubre a domina, levando-a a desdenhar homenagens, a fugir da companhia dos galanteadores? Esqueceu que o céu dotou-a com os maiores encantos?... Quer insultar os deuses com... Mas que vejo?... Angélica, meu coração, não é verdade!

Em outro tom de voz, tocou-lhe o queixo com um dedo, obrigando-a a erguer a cabeça.

-       Você está chorando? Por causa de um homem?...

Ela acenou afirmativamente, com pequenos soluços convulsivos.

-       Mas então - disse Lauzun - já não se trata mais de uma falta; isto é um crime! Seu dever essencial deveria ser o de fazer os outros chorarem... Minha criança, não há um homem aqui por quem valha a pena você derramar lágrimas... Salvo por mim, é

claro. Mas eu não ousaria esperar que...

Angélica tentou' sorrir. Por fim conseguiu articular:

-       Oh! não é nada grave. É mais nervosismo... Porque estou sentindo dores.

-       Dores? Mas onde?

Ela mostrou-lhe o pulso.

- Quisera muito saber quem foi o sujo que a tratou dessa maneira! - gritou Péguilin, alterado. - Diga-me seu nome, senhora, e tomar-lhe-ei satisfações por tal procedimento.

- Não se indigne, Péguilin. Ele tem, infelizmente, todos os direitos sobre mim.

-       Quer dizer que se trata dó belo marquês, seu esposo?

Angélica não respondeu, pondo-se de novo a chorar.

-       Ora! Que mais se pode esperar de um marido - disse Péguilin com um ar desgostoso. - É bem no estilo daquele que você escolheu. Mas então por que você se obstina a viver com ele?

Angélica sufocava as lágrimas.

-       Vamos! Vamos! - retomou mais docemente Péguilin. - Não é preciso chegar a esse estado. Por um homem! E por um marido, além de tudo... Mas você está fora de moda, meu tesouro; está doente ou... Aliás, há bastante tempo existe algo de errado com você. Quisera já ter-lhe faiado a respeito... Mas assoe-se primeiro.

Com uma cambraia imaculada que tirara do próprio bolso, ele enxugou-lhe delicadamente o rosto e os olhos. Ela via muito próximo aquele olhar reluzente e zombeteiro, do qual toda a corte, incluindo o soberano, aprendera a temer o lampejo de malícia. A existência mundana, os desregramentos já marcavam com uma ruga os cantos da boca sarcástica. Mas havia em toda a sua fisionomia uma agradável expressão de vida e de contentamento. Ele era do sul, um gascão ardente como o sol e vivo como a truta que se pesca nas torrentes dos Pireneus.

Ela olhou-o com amizade. Ele sorriu.

- Está melhor?

- Creio que sim.

- Daremos um jeito nisso - disse ele.

Deixou escoarem-se alguns momentos, examinando-a em silêncio, com atenção.

Eles encontravam-se isolados do vaivém da galeria, percorrida sem cessar por cortesãos e criados. Era-preciso subir três degraus para ter acesso àquele recanto, quase inteiramente ocupado pelo canapé cujos braços escondiam os ocupantes dos olhares alheios.

Com o crepúsculo precipitado do inverno, a claridade existente provinha somente da janela, onde brincava o ouro rubro do sol poente. Podia-se distinguir, invadido pela bruma, o terraço arenoso com vasos de mármore e os reflexos de um tanque.

- Você disse que este canto discreto em que nos encontramos é chamado de gabinete de Vénus? - perguntou Angélica. '

- Sim. Aqui se está, tanto quanto é possível nesta corte, ao abrigo da curiosidade, e correm à solta os comentários de que os amantes muito impacientes aqui vêm por vezes, oferecer sacrifícios à amável deusa. Angélica, não há nenhuma falta que a condene diante dela?

- Da deusa dos amores?... Péguilin, a mim é que caberia censurá-la por se mostrar negligente a meu respeito.

- Não tenho tanta certeza disso - disse ele, sonhador.

- Que quer dizer?

Ele balançou a cabeça, e meditou, um punho sob o queixo.

- Infame Filipe! - suspirou. - Quem saberá o que se esconde naquele corpo estranho? Você jamais tentou introduzir algum pó benéfico em seu copo, à noite, antes que ele venha ao seu encontro? Comenta-se que o banhista La Vienne, cujo estabelecimento fica no Faubourg Saint-Honoré, dispõe de drogas apropriadas para devolver o vigor aos amantes esgotados por sacrifícios frequentes, como também aos velhos ou àqueles que uma disposição pouco ardente desvia do altar de Vénus. Há, entre outras, uma substância conhecida como pelleville da qual se dizem maravilhas.

- Não duvido. Mas esses métodos não me agradam. Além de tudo, seria necessário que pudesse aproximar-me de Filipe vez por outra para tocar ao menos... seu copo. O que não acontece com frequência.

Os olhos de Péguilin escancararam-se.

-       Não está querendo dizer que seu esposo é tão completamente indiferente a seus encantos, a ponto de jamais se apresentar em seus aposentos!

Angélica deu um pequeno suspiro entrecortado.

- Sim, é o que acontece - disse num tom morno.

- E... o que pensa disso seu amante?...

- Não tenho amante.

- Como?

Lauzun deu um salto.

- Então, digamos... seus amigos de passagem?

- Ousará acaso confessar-me que não existem?

- Sim, Péguilin, pois é a verdade.

- I-na-cre-di-tá-vel! - murmurou Péguilin, tendo no rosto a expressão de quem desabava diante de uma notícia trágica... - Angélica, você merece uma surra.

- Como? - revoltou-se ela. - Mas não é minha culpa.

- É somente sua a culpa. Quem possui sua pele, seus olhos e suas formas, só a si mesmo pode culpar por tal situação. Você é um monstro, uma criatura exasperante e temível!

Ele tocou-lhe as têmporas com o dedo em riste.

-       Que existirá nessa maldosa cabecinha? Cálculos, projetos, planos perigosos sobre negócios complicados que deixam atónitos até o Sr. Colbert e pesaroso o Sr. Le Tellier? Os graves homens de bem tiram o chapéu diante de você; e os jovens, aflitos, não sabem como proteger seus últimos centavos de suas mãos rapaces. E, além de tudo, um rosto de anjo, olhos que se inundam de luminosidade, lábios que não se podem contemplar sem o desejo de esmagá-los com beijos! Sua crueldade beirão refinamento. Você se apresenta surpreendentemente como uma deusa... Para quem, pergunto-lhe?

A violência de Lauzun desconcertava Angélica.

- Que quer você - aventurou ela -, tenho tanto que fazer...

- Mas que diabos uma mulher tem para fazer a não ser amar?... Na verdade, você não passa de uma egoísta encerrada em uma torre que construiu para preseryar-se da vida.

Angélica ficou surpresa com tanta perspicácia sob aquela leve peruca de cortesão.

-       É isso, e não é nada disso, Lauzun. Quem poderá compreender-me?... Você não esteve no inferno...

Ela pendeu a cabeça para trás e fechou os olhos, presa de grande lassidão. Há pouco estava febril, mas agora parecia sentir o sangue frio em suas veias. Algo que se assemelhava à morte ou à aproximação da velhice. Teve vontade de pedir socorro a Péguilin, e ao mesmo tempo a razão lhe mostrava que aquele salvador poderia arrastá-la a outros perigos; decidiu afastar-se do terreno escorregadio. Recompôs-se e perguntou num tom jovial:

- Com efeito, Péguilin, você não me disse se conseguiu enfim obter seu cargo de grão-mestre.

- Não - disse calmamente Péguilin.

- Como não?

- Não, você me aplicou esse golpe repetidas vezes, mas agora não me deixarei apanhar. Você ainda não está quite comigo. Neste momento não é meu cargo de grão-mestre que me interessa, mas saber por que sua vida como mulher se encontra refugiada aqui, neste pequeno crânio duro, e não aqui - acrescentou, colocando, num gesto preciso, a mão no peito da jovem.

-       Péguilin! - protestou ela, levantando-se.

Mas ele agarrou-a com presteza e, cercando-a com o braço direito, deslizou a mão esquerda sob seus joelhos, o que a fez perder o equilíbrio, obrigando-a a ficar semi-estendida no sofá, com o busto nele apoiado.

- Cale-se e acalme-se - ordenou, erguendo um dedo doutoral. - Deixe que a faculdade examine o caso. Eu o considero crítico, mas não desesperador. Vejamos, um primeiro passo. Recite-me sem mais delongas os nomes de todos os gentis-homens que rondam a sua volta e perdem o sono à simples lembrança de sua pessoa.

- Na verdade... você acredita que sejam tantos assim?

- Proíbo-a de parecer surpresa com minha pergunta.

- Mas, Péguilin, asseguro-lhe que ignoro a quem você faz alusão.

- Mas como? Não percebeu realmente que o Marquês de La Val-lière se agita como uma borboleta louca quando você aparece, que Vivonne, o irmão de Atenaís, gagueja, ele, tão glorioso, que Brien-ne compõe frases espirituosas... E os senhores de Saint-Aignan e Ro-quelaure, e até aquele sujo Louvois, que não tem outro recurso a não ser o de se fazer sangrar, após ter conversado dez minutos com você...

Ela ria divertida.

-       Proíbo-a de rir - atalhou Péguilin. - Se você não se deu conta de tudo o que acontece, então está pior do que eu pensava. Não sente então todo esse fogo, todas essas chamas que a rodeiam? Por Belzebu, você tem a pele de uma salamandra...

Ele roçou-lhe o pescoço com o indicador.

- Ninguém diria, no entanto.

- E você, Sr. de Lauzun, não se coloca na lista dos inflamados?

- Oh, não, não eu! - protestou ele, vivamente. - Oh! não, eu jamais ousaria, teria muito medo.

- De mim?

Os olhos do marquês ficaram enevoados.

-       De você... e de tudo o que a rodeia. Seu passado, seu futuro, seu mistério.

Angélica olhou-o fixamente por um momento. Depois sentiu um calafrio e escondeu o rosto no casaco azul.

-       Péguilin!

Péguilin o Leviano, era um velho amigo. Estava ligado a seu antigo drama. Em todos os momentos trágicos de sua vida ela o vira surgir como uma marionete de comédia. Ele aparecia, desaparecia, reaparecia.

E estava ali, naquela noite, sempre o mesmo.

- Não, não, não - repetiu ele. - Não gosto de correr grandes riscos. Os tormentos do coração me assustam. Não conte comigo para fazer-lhe a corte.

- Então, que está fazendo agora?

- Oferecendo-lhe consolo. Não é a mesma coisa.

Seu dedo descia ao longo do pescoço acetinado, desenhava alguns riscos, seguindo a curva do colar de pérolas rosa, cujo brilho leitoso resplandecia sobre a pele branca.

-       Causaram-lhe um grande mal - murmurou ele ternamente -, e esta noite você está muito, muito triste. Irra! - impacientou- se ele - cesse de retesar-se como uma espada. Palavra de honra, dir-se-ia que jamais a mão de um homem a tocou! Anseio por dar-lhe uma pequena aula...

Ele debruçou-se. Ela ainda tentou desvencilhar-se, mas ele segurou-a com vigor. Seus gestos tinham a autoridade do homem que perdeu a conta de seus casos bem-sucedidos; seu olhar tinha um brilho estranho.

-       Você nos fez esperar muito tempo, daminha! A hora da vingança soou. Aliás, morro de vontade de acariciá-la, e creio que você tem grande necessidade disso.

Ele se pôs a dar-lhe beijos nas pálpebras e nas têmporas. Depois, seus lábios quentes pousaram no canto da boca de Angélica.

Ela estremeceu. O chicote de um desejo animal estalou, repentino, sobre ela. A ele misturava-se uma espécie de curiosidade perversa à ideia de conhecer por experiência própria os talentos do célebre dom-juan da corte.

Era Péguilin quem estava com a razão. Filipe não contava. A festa louca, o bailado dourado da corte arrastavam Angélica. Ela sabia que não poderia viver sempre à -margem dos acontecimentos, sozinha, com seus belos vestidos e suas jóias custosas. Deslizaria por entre os outros, semelhante a eles enfim, arrebatada pelo fluxo das intrigas, comprometimentos e adultérios. Era uma bebida forte, envenenada e deliciosa.

Devia beber-lhe a taça para não morrer.

Ela emitiu um profundo suspiro. No calor reconfortante das carícias masculinas, reencontrava o gosto pela despreocupação. E quando os lábios do Marquês de Lauzun pousaram nos seus, ela correspondeu, hesitante, a princípio, e depois, pouco a pouco, com a mesma paixão que deles vinha.

O brilho dos archotes e tocheiros que duas filas de criados traziam e dispunham ao longo da galeria separou-os por um momento.

Angélica não compreendia como a escuridão já chegara até ali.

Junto ao local um criado dispôs sobre um consolo um castiçal de seis braços.

- Ei, amigo - sussurrou Péguilin, debruçado no braço do canapé -, pendure um pouco além a sua lanterna.

- Não posso, senhor. Corro o risco de ser repreendido pelo senhor oficial das luzes, responsável por esta galeria.

- Então sopre ao menos três velas - replicou o marquês, lançando-lhe uma peça de ouro.

Ele voltou-se e retomou a jovem em seus braços.

-       Você está aqui? Como você é bela! Como é saborosa!

A espera exasperara a ambos. Angélica gemeu e mordeu violentamente a ombreira achamalotada do belo casaco azul. Péguilin riu baixinho.

-       Calma, lobinha... você será contentada... Mas estamos numa passagem; deixe-me dirigir a manobra.

Ela obedeceu, ofegante e dócil. O véu dourado do esquecimento voluptuoso caía sobre seu sofrimento. Era agora apenas um corpo ardente, ávido por seu próprio prazer, e sem a preocupação com o lugar onde se encontrava, nem mesmo com o parceiro hábil que a fazia vibrar.

- Minha criança, você cometeu muitos pecados, mas, diante do arrependimento de que deu prova e o ardor com o qual se propôs a reparar suas faltas, não creio dever recusar a bênção do pequeno deus Eros nem sua absolvição. Como penitência você recitará...

- Oh! você é um horrível libertino - protestou ela, ainda lânguida, com uma risadinha rouca.

Péguilin pegou um anel de cabelos louros e beijou-o. Ele se espantava, em segredo, com seu próprio júbilo. Nada havia nele que se assemelhasse ao sentimento desabusado que se segue ao gozo. Por quê? Que espécie de mulher era aquela?

- Angélica, meu anjo, temo ter esquecido minhas sábias resoluções... Sim, eu ardo por conhecê-la melhor. Quer... Peço-lhe, venha ter comigo, esta noite, depois que o rei se recolher.

- E a Sra. de Roquelaure?

- Pouco importa!...

Angélica desprendeu-se do ombro onde se demorava e cobriu o peito com as rendas do corpete. O gesto permaneceu em suspenso.

A alguns passos de distância, destacando-se em negro no cenário incandescente da galeria iluminada, havia uma personagem imóvel. Não era preciso distinguir-lhe os traços para reconhecê-lo: Filipe!

Péguilin de Lauzun possuía longa experiência nesse género de situação. Com mão ágil retificou a desordem de suas roupas, levantou-se e inclinou-se profundamente.

- Senhor, escolha suas testemunhas, sou seu...

- E minha mulher é de todo mundo - respondeu Filipe, em voz lenta. - Eu lhç peço, marquês, não incomode a ninguém.

Com a perna curvada, saudou tão profundamente quanto Péguilin e afastou-se em seu passo soberbo.

O Marquês de Lauzun parecia ter-se transformado numa estátua de sal.

-       Com os diabos! - praguejou. - Jamais encontrei um marido dessa espécie.

Desembainhando a espada, cobriu de um salto os três degraus do estrado e lançou-se atrás do monteiro-mor.

Desembocou, assim, correndo, no Salão de Diana, no momento exato em que o rei, seguido das damas de sua família, saía de seu gabinete.

-       Senhor - gritou Péguilin, com voz estrondeante -, sua atitude desdenhosa é um insulto. Eu não a admitirei. Sua espada deve responder a isso.

Filipe baixou sobre o rival gesticulador os olhos frios.

-       Minha espada pertence ao rei, senhor. Jamais me bati por prostitutas.

Em sua raiva, Lauzun retomava seu acento meridional:

-       Fiz de você um corno! - gritou ele, ébrio de despeito. - E exijo que me peça reparação.

 

Detenção de Filipe

Angélica ergueu-se na cama, a cabeça pesada e a boca amarga. A aurora apontava, cinzenta.

Ela passou os dedos pelos cabelos embaraçados; doía-lhe o couro cabeludo. Quis apanhar o espelho sobre a mesa-de-cabeceira e teve um esgar de dor: a mão estava inchada. Entorpecida, Angélica considerou o ferimento em seu pulso e bruscamente lembrou-se: Filipe!

Pulou para fora da cama e calçou as chinelas, cambaleando. Era preciso ir à caça de notícias o mais rápido possível, saber o que aconteceu a Filipe e a Lauzun. Teria o rei conseguido convencê-los a não se baterem? E se duelassem, que sorte aguardava o sobrevivente? A detenção, o encerramento, a desgraça?...

De onde quer que contemplasse a situação, ela se lhe mostrava terrível e sem saída.

Um escândalo! Um terrível escândalo!

A vergonha consumia-a como um braseiro, à simples lembrança do que acontecera em Fontainebleau.

Revia Filipe e Péguilin desembainhando a espada e colocando-se em guarda diante mesmo do rei, os senhores de Gesvres, de Créqui e de Montausier separando-os, Montausier contendo com o braço o corpo do indignado gascão, que bradava: "Fiz de você um corno!", e todos os olhos da corte voltando-se para Angélica, enrubescida, com seu suntuoso vestido cor de aurora em eloquente desordem.

Que prodígio de vontade a fizera, malgrado a situação, encaminhar-se até o rei para fazer-lhe, bem como à rainha, uma grande reverência, e depois afastar-se, muito tesa, por entre duas alas de olhares zombeteiros e escandalizados, de murmúrios, de risos sufocados, e, por fim, sob um silêncio tão profundo e aterradpr que ela tivera vontade de arrepanhar as saias com as duas mãos e fugir, correndo?

Mas controlara-se até o fim e saíra sem apressar o passo para depois desmoronar, mais morta que viva, em uma banqueta de patamar, em um canto deserto e mal iluminado.

Fora ali que a Sra. de Choisy a encontrara pouco depois. Engolindo a saliva com a expressão de um pombo escandalizado, a nobre dama informara à Marquesa du Plessis-Bellière que Sua Majestade estava repreendendo o Sr. de Lauzun em particular, que o senhor príncipe se havia encarregado do marido ofendido e que se esperava que aquela desagradável querela parasse por ali. No entanto, a Sra. du Plessis compreenderia que sua presença na corte tornara-se indesejável e que a Sra. de Choisy recebera do rei a incumbência de comunicar-lhe quedeveriadeixar Fontainebleau imediatamente.

Angélica acolhera p veredicto quase com alívio. Jogara-se em sua carruagem e rodara toda a noite, apesar dos resmungos do cocheiro e dos lacaios/ que temiam ser assaltados por bandidos ao atravessar a floresta.

"Eis a minha sorte!", disse consigo mesma, contemplando com amargura a imagem de pálpebras azuladas de fadiga, no alto psi-chê de seu gabinete de toalete. "A.cada dia e a cada noite na corte, um número incalculável de mulheres enganam os maridos com a maior facilidade do mundo, e, quando isso me acontece uma vez, o fogo do céu cai sobre a terra. Verdadeiramente, não tenho sorte!"

A beira das lágrimas, começou a sacudir todas as sinetas. Javot-te e Teresa apareceram bocejando, sonolentas. Ordenou que a ajudassem a vestir-se e depois mandou procurar Flipot, dizendo-lhe que corresse até a mansão do Marquês du Plessis no Faubourg Saint-Antoine e lhe trouxesse as notícias que conseguisse obter.

Ela acabava de se vestir quando o barulho de uma carruagem penetrando lentamente no pátio da mansão fê-la gelar, o coração aos pulos. Para que viriam a sua casa às seis horas da manhã? Quem poderia ser?... Precipitou-se para o vestíbulo e, descendo alguns degraus com passo trôpego, debruçourse" nó corrimão.

Avistou Filipe, seguido por La Violette, que carregava duas espadas, e pelo capelão particular do marquês.

O Marquês du Plessis levantou a cabeça.

- Acabo de matar o Sr. de Lauzun - disse.

Angélica agarrou-se ao corrimão para não cair. Seu coração recomeçava a saltar. Filipe! Ele estava vivo!

Ela desceu rapidamente e viu, ao aproximar-se, que o plastrão e o colete do marido estavam manchados de sangue. Pela primeira vez ele trazia o casaco sem elegância, pois segurava o braço direito com a outra mão.

-       Você está ferido! - disse ela com voz apagada. - É grave?

Oh! Filipe, é preciso medicá-lo. Venha, eu lhe peço!

Ela o guiou, quase sustendo-o, até seú quarto, e sem dúvida ele estava bastante aturdido, pois seguiu-a sem comentários. Deixando-se cair pesadamente numa poltrona, cerrou os olhos. Estava branco como seu colarinho.

Angélica, com as mãos febris, pegou de seu estojo de acessórios de costura uma tesoura, com a qual começou a cortar o tecido enrijecido pelo sangue, ordenando às criadas que trouxessem água, tiras de linho, pós, bálsamos e licor da rainha da Hungria.

-       Beba isto - disse ela, assim que Filipe reanimou-se um pouco.

O ferimento não parecia grave. Um corte partia do ombro direito até o flanco esquerdo, mas só atingira a carne superficialmente. Angélica lavou-o, aplicando-lhe mostarda de Maille e pó de caranguejo. Filipe submeteu-se impassível a esses cuidados, até mesmo ao contato da mostarda, parecendo refletir profundamente.

- Pergunto-me como se procederá para fazer cumprir a etiqueta - disse por fim.

- Que etiqueta?

- Para a detenção. Em princípio, é o capitão da guarda do corpo do rei que procede à detenção dos duelistas. Mas o atual capitão da guarda não é outro senão o Marquês de Lauzun. E então? Ele não pode prender a si próprio, não é mesmo?

- Ele pode menos ainda por estar morto - acentuou Angélica com um riso nervoso.

- Ele?... Não tem um arranhão!

A jovem permaneceu em suspenso, com a tira de linho na mão.

- Mas não acabou de dizer que...

- Queria saber se desfaleceria.

- Eu não iria, malgrado a situação, desfalecer por um Péguilin de Lauzun... Estava aflita, é verdade... Mas então o derrotado foi você, Filipe?

- Era preciso empenhar-se em acabar com essa estupidez. E eu não iria desfazer uma camaradagem militar de vinte anos com Pé-guilin por uma... bagatela. Sua tez empalideceu e o olhar enevoou-se sob um acesso de fraqueza.

-       Creio que é assim que o rei a chama: Bagatela.

Os olhos de Angélica voltaram a encher-se de lágrimas. Ela pousou a mão na testa de Filipe. Como parecia fraco, ele, tão duro!

-       Oh! Filipe - murmurou -, que transtorno! E você, que pouco antes me havia salvado a vida!... Oh! Por que as coisas não se passaram de outro modo?... Eu gostaria tanto de... poder amá-lo.

O marquês ergueu a mão em um gesto quê impunha silêncio.

-       Creio que chegaram - disse.

Ouviu-se na escada de mármore o retinir de esporas e de sabres. Em seguida a porta abriu-se lentamente e o Conde de Cavois avançou com expressão perturbada.

-       Cavois! - disse Filipe. - Veio deter-me?

O conde confirmou com um movimento de cabeça desolado.

-       A escolha foi boa. Você é coronel dos. mosqueteiros, e, depois do capitão da guarda do rei, é a você com efeito que incumbe

a função. Que aconteceu a Péguilin?

-       Já está na Bastilha.

Filipe ergueu-se penosamente.

-       Eu o sigo. Senhora, faça o obséquio de colocar-me a veste nos ombros.

Mas, ao ouvir a palavra Bastilha, Angélica fora tomada por uma vertigem. Tudo recomeçava!... Mais uma vez vinham arrancar-lhe o marido para encerrá-lo na Bastilha. Pálida até os lábios, ela juntou as mãos.

- Sr. de Cavois, oh! eu lhe suplico, não na Bastilha.

- Senhora, lamento, mas são as ordens do rei. A senhora não ignora que o Sr. du Plessis cometeu uma grave contravenção batendo-se em duelo malgrado os éditos severos que o proíbem. Não se atormente, no entanto. Ele será bem tratado, bem medicado, e seu criado recebeu autorização para acompanhá-lo.

Ele estendeu o braço para que Filipe pudesse apoiar-se. Angélica deu um grito de animal ferido:

-       Na Bastilha, não!... Encarcere-o onde quiser, mas não na Bastilha!

Os dois gentis-homens, que ganhavam a porta, voltaram-se para ela com o mesmo olhar de incompreensão e desagrado.

-       E onde queria você que ele me prendesse? - disse Filipe, alterado. - No Châtelet, talvez? Com os maltrapilhos!

Tudo recomeçava! A espera, o silêncio, a impossibilidade de agir, a catástrofe irremediável. Via-se tornando a percorrer, trôpega, o mesmo caminho, e já a angústia a sufocava como nos pesadelos onde se procura fugir, mas em vão, como se pregado ao solo por pés de chumbo. Durante algumas horas, acreditou que fosse perder a razão.

As criadas, confusas por ver em tal estado a senhora que conheciam sob uma aparência mais enérgica, entreviram por fim uma solução para acalmá-la.

-       É preciso ir ver a Sita. de Lenclos, senhora. A Sita. de Lenclos.

E colocaram-na quase à força em sua cadeirinha.

O conselho era bom. Somente Ninon, com seu equilíbrio, sua experiência, sua compreensão e coração delicado, poderia ouvir Angélica sem tomá-la por uma louca ou sem se escandalizar.

Ela embalou a jovem em seus braços, chamou-a de "Meu doce coração" e, quando o pânico pareceu decrescer um pouco, pôs-se a demonstrar-lhe como o incidente era de pouca importância. Havia muitos exemplos para prová-lo. A cada dia viam-se maridos due-larem para vingar a honra ultrajada.

-       Mas... a Bastilha!

O nome abominável inscrevia-se em letras vermelhas diante dos olhos de Angélica.

- A Bastilha! Mas pode-se sair dali, minha querida.

- Sim, para ser jogado na fogueira! Ninon acariciou-lhe a fronte.

-       Não sei a que você faz alusão. Sem dúvida existe em suas lembranças um acontecimento atroz que se liga a tudo isso e lhe faz perder seu sangue-frio. Mas, quando você tiver recobrado um pouco do bom senso que lhe é característico, considerará, como eu, que a fama da Bastilha se impressiona, não aterroriza. É o gabinete negro do rei. Poderíamos contar ao menos um entre nossos belos senhores que ali não tenha estado durante algum tempo para pagar uma insolência ou indisciplina às quais o seu caráter inflamado arrasta com frequência? O próprio Lauzun ali volta pela terceira vez, se não a quarta. E seu exemplo bem prova que se sai da Bastilha, e por vezes para desfrutar de maiores honrarias que antes de lá ter entrado. Deixe, pois, ao rei o tempo e o direito de fazer sentir sob sua férula esse rebanho indisciplinado. Ele será o primeiro a suspirar aliviado com a volta daquele maldoso traquina de Lauzun e de seu monteiro-mor...

À força de palavras persuasivas, conseguiu fazer voltar a calma ao espírito de Angélica, que conveio ser seu pavor ridículo e infundado.

Ninon recomendou-lhe que nada tentasse fazer no momento, a fim de deixar que os rumores se desfizessem.

-       Um escândalo apaga outro! Acorte é fértil deles! Paciência. Aposto que dentro de oito dias um outro nome substituirá o seu nos lábios do mexeriqueiros.

Diante desses conselhos Angélica tomou a resolução de fazer um retiro no convento das carmelitas, onde sua jovem irmã Maria Inês era noviça. Seria a melhor solução para estar ao abrigo dos comentários, sem, contudo, deixar o lugar.

Sob a touca de religiosa a jovem Maria Inês de Sancé, com seus olhos verdes, rosto alongado e sorriso matreiro, assemelhava-se a um desses anjos um pouco inquietantes por sua graça, que nos acolhem nos pórticos das velhas catedrais. Angélica espantava-se por vê-la persistir em sua decisão de tomar o véu quando mal atingia vinte e um anos. Uma vida de privações e de preces parecia bem pouco adequada ao temperamento da irmã mais nova, de quem se dissera, já aos doze anos, que tinha o diabo no corpo, e cuja breve carreira entre as damas da rainha fora um fogo ardente de curtas e libertinas aventuras. Angélica tinha a impressão de que, no capítulo do amor, Maria Inês possuía bem mais experiência do que ela. Aquela parecia ser, também, a opinião da jovem religiosa, que, após ter escutado sua confissão com expressão indulgente, suspirou:

-       Como você é inexperiente! Por que tanto transtorno por uma história tão banal?

- Banal, Maria Inês! Acabo de lhe dizer que traí meu marido. É um pecado, se me parece.

- Nada é mais banal que o pecado. A virtude é que é rara. Tão rara nos nossos dias que se torna original.

- O que não compreendo é como isso foi acontecer. Eu não queria, mas...   

- Escute - disse Maria Inês no tom cortante, característico da família -, essas coisas, nós as queremos ou não. E, se não as queremos, a única coisa a fazer é não viver na corte.

Ali estava, talvez, a explicação de sua ruptura total com o mundo.

No silêncio abafado do santo local, onde vinham morrer os ruídos da cidade, Angélica pensou por um instante em fazer penitência. A visita da Sra. de Montespan sustou seus impulsos em direção ao céu e trouxe-a de volta aos complexos problemas da terra.

- Não sei se o que faço é acertado - disse a bela Atenaís -, mas, afinal, pareceu-me apropriado vir adverti-la. Você pode proceder como quiser, e, sobretudo, sem me envolver. Solignac tomou a seu cargo essa história de duelo. O que significa que as coisas vão mal para o lado de seu marido.

- O Marquês de Solignac? Mas por que se envolve nisso?

- Como sempre, pela defesa de Deus e de seus sagrados direitos. Eu a adverti de que é uma criatura rabugenta e contestadora. Ele meteu na cabeça que o duelo é um dos pivôs da heresia e do ateísmo e, agarrando-se ao ocorrido entre Lauzun e seu marido, está pressionando o rei para que se mostre severo, a fim, disse ele, "de fazer disso um exemplo". Ao ouvi-lo, tem-se a impressão de que seria preciso acender uma fogueira.

Vendo que Angélica empalidecera, a aturdida marquesa deu-lhe um golpe amigável com o leque.

-       Eu pilheriava. Mas acautele-se! Esse furioso devoto é bem capaz de obter ao menos um encarceramento prolongado, um desvalimento notório, quem sabe? O rei ouve com atenção, pois se recorda de que Lauzun já o irritou muitas vezes. Ele não está satisfeito por ver que seus dois gentis-homens passaram por cima de seus desejos de acomodação. O duelo em si não o choca. No entanto trata-se de uma questão legal. Enfim, a opinião geral é de que as coisas não vão bem. No seu lugar, eu tentaria intervir enquanto há tempo e o espírito do rei oscila.

Angélica pôs de lado os livros de orações e deixou imediatamente o piedoso local.

Ninon de Lenclos, que ela tornou a visitar, obstinava-se em não levar a sério aquela história de marido traído. Quem seria tolo a ponto de fazer daquilo um processo?

A ideia do processo, Luís XIV sorrira. O que era bom sinal.

No entanto, a cortesã franziu o cenho, quando Angélica falou-lhe no papel que se atribuía ao Sr. de Solignac. Recordou-se de que Richelieu fizera tombar cabeças nobres e loucas sob o machado do verdugo, a fim de "dar o exemplo" e obrigar os jovens senhores a renunciar ao detestável costume dos duelos que os dizimavam.

- Se o Sr. de Solignac meteu na cabeça que a causa de Deus foi atingida pela espada de seu marido, podemos estar certas de que importunará o rei com a obstinação que outros empregariam em obter um favor.      

- Você acredita que o rei seja.capaz de se deixar influenciar?

- Não é uma questão de fraqueza da parte dele. Mesmo que o rei julgue o Sr. de Solignac insuportável, os argumentos que este invoca têm o seu peso. Ele tem a lei religiosa e a lei propriamente dita a seu lado. Se o rei for intimadq a aplicar uma ou outra lei, não poderá se esquivar. A coisa só poderia se arranjar se fosse cercada de discrição. E no entanto está sendo proclamada em altos brados.

Angélica baixara a cabeça e refletia. Agora que havia uma batalha a sustentar, cessara de se afligir.

- E se eu fosse procurar o Sr. de Solignac?

- Tente.    

 

Angélica joga-se aos pés do rei

Angélica permaneceu imóvel por alguns instantes, sob a chuva torrencial, diante das grades do Castelo de Saint-Germain. Acabavam de informá-la de que a corte se deslocara para Versalhes. Ela quase desistiu. Depois, recobrando o domínio, voltou à carruagem.

-       Para Versalhes - gritou ao cocheiro, que, resmungando, manobrou a atrelagem.

Através da água que escorria pelas vidraças, a jovem via desfilar as árvores desfolhadas da floresta, envoltas em cinzenta neblina.

Chuva, frio, lama! Era o inverno maçante. As neves cintilantes que anunciavam o Natal eram esperadas com ansiedade.

Angélica estava insensível a seus pés gelados. De tempos em tempos comprimia os lábios, e em seus olhos acendia-se o que a Srta. de Parajonc chamava de seu olhar de batalha.

Revivia a entrevista com o Marquês de Solignac. Ele aquiescera em recebê-la. Não em sua casa, muito menos na de Angélica, mas, com toda a espécie de mistérios, em um pequeno e glacial parlató-rio, no convento dos celestinos. Longe dos reflexos da corte, onde seu alto talhe e a peruca monumental conferiam-lhe uma certa nobreza de porte, o camarista-mor da rainha aparecera-lhe como uma personagem mirrada e inexplicavelmente desconfiada.

Tudo parecia fornecer-lhe pretexto para indignar-se. E ele não escondeu que, para uma entrevista tão solene, faltava modéstia à aparência de Angélica.

-       A senhora acredita-se ainda sob os lustres da corte e me toma por um desses rapazes louros capazes de se inflamar como uma borboleta diante de seus atrativos? Ignoro a razão por que quis ver-me, mas, dada a triste situação na qual a colocou sua leviandade, tenha ao menos o pudor de encobrir esses funestos atrativos que carregam a responsabilidade de uma grande desgraça.

Ela não cessaria de caminhar de surpresa em surpresa. O Sr. de Solignac, com os olhos semicerrados deixando apenas filtrar uma luz incisiva, perguntara-lhe, então, .sé jejuava às sextas-feiras, se dava esmolas e se assistira ao Tartufa, e quantas vezes.

Tartufo era uma peça do Sr. Molière, que, segundo comentários, fora mal acolhida pelas pessoas devotas. Ela não assistira à peça, por não estar na corte quando de sua apresentação. Subestimando a força que representava a Companhia do Santo Sacramento, Angélica encolerizou-se. A discussão envenenou-se, tornando-se áspera.

- Pior para aquele, ou para aquela, que é atingido pelo escândalo! - concluiu o marquês, intransigente.

Angélica deixou-o,-completamente derrotada. A cólera substituiu a coragem. Ela resolveu procurar o rei.

Passou a noite em um albergue nos arredores de Versalhes. Desde a primeira hora, ela aguardava no salão dos solicitantes, depois de ter feito sua reverência à nave de ouro que, sobre a lareira de mármore, representava a pessoa do rei. A hora das petições trazia sob os tetos trabalhados de Versalhes o habitual contingente de velhos militares sem pensjk), de viúvas espoliadas e nobres arruinados, pobres destroços que, cansados de se verem abandonados pela sorte e pelos homens, dirigiam-se ao rei todo-poderoso e dos quais a Sra. Scarron, em pé não longe dali, em sua capa surrada, representava um dos tipos mais perfeitos e quase o símbolo.

Angélica não se dera a conhecer, mantendo o véu do capuz sobre o rosto.

Quando o rei passou, ela permaneceu profundamente ajoelhada, limitando-se a entregar-lhe a petição que havia preparado, onde a Sra. du Plessis-Bellière suplicava humildemente a Sua Majestade que lhe concedesse uma entrevista.

Notou com esperança que o rei, após ter lançado um olhar à suplica, conservou-a na mão ao invés de- entregá-la, segundo o hábito, ao Sr. de Gesvres.

Foi este, no entanto, que, após a multidão ter-se dispersado, aproximou-se da silhueta encoberta e pediu-lhe em voz baixa que o seguisse. Pouco depois, a porta do gabinete do rei abriu-se diante dela.

Angélica não esperava ser tão rapidamente atendida. Com o coração batendo desordenadamente, deu alguns passos e deixou-se cair de novo de joelhos, assim que a porta foi fechada.

-       Levante-se, senhora - disse o rei -, e aproxime-se.

A voz não era atemorizante.

A jovem obedeceu e, chegando diante da mesa, ousou afastar o véu.

Estava bastante escuro; nuvens pesadas acabavam de invadir o céu e lá fora ouvia-se o barulho da água fazendo espirrar a areia dos canteiros. Apesar da semi-obscuridade, ela podia distinguir o esboço de um sorriso no rosto de Luís XTV. Ele disse com benevolência:

- Aborrece-me saber que uma de minhas damas acredita-se obrigada a tanto mistério para me abordar. Não podia aparecer e fazer-se anunciar em público? A senhora é mulher de um general.

- Sire, minha confusão é tal que...

- Está bem. Aceito sua confusão como desculpa. Teria sido mais acertado que não tivesse deixado Fontainebleau tão precipitadamente na outra noite. Aquela fuga não esteve à altura da dignidade de que a senhora dera prova durante o penoso incidente.

Angélica conteve um movimento de surpresa; esteve a ponto de lembrar ao soberano que fora por sua ordem, transmitida pela Sra. de Choisy, que ela abandonara o local.

Mas ele voltava a atalhar.

- Deixemos isso de lado. Qual é oobjetivo de sua visita?

- Sire, a Bastilha...

Interrompeu-se, o fôlego suspenso à simples menção daquele nome. A frase fora mal começada. Ela perturbou-se e contorceu as mãos.

- Entendamo-nos bem - disse o rei com doçura. - Por quem veio interceder? Pelo Sr. de Lauzun ou pelo Sr. du Plessis?

- Sire - exclamou Angélica com ardor -, minha única preocupação é com o destino de meu marido!

- É pena que não tenha sido sempre assim, senhora! Se devo acreditar nos rumores, parece-me que, durante alguns instantes, talvez breves, mas efetivos, o destino do marquês e mesmo sua honra passaram para segundo plano, em meio a suas preocupações.

- E verdade, sire.

- Está arrependida?

- Estou, sire, do fundo de minha alma.

Diante do olhar penetrante do rei, ocorreu-lhe o que ouvira dizer sobre a curiosidade do soberano para com a vida privada de seus súditos.

Mas a indagação se fazia debaixo de absoluta discrição. O rei sabia, mas não falava. Mais ainda: ele fazia calar.

Como sempre, manifestava sobretudo o interesse profundo que tinha pelas pessoas e o desejo de conhecerias em seu íntimo, para ali encontrar o meio mais seguro de guiá-las e, quando necessário, de sujeitá-las.      '

Angélica dirigia o olhar, daquele rosto sério voltado em sua dire-ção e modelado em pálida claridade, para as mãos pousadas sobre a mesa negra, mãos em repouso, imóveis e poderosas, sem um tremor.

-       Que tempo! - disse ele bruscamente, afastando a poltrona para levantar-se. - Seria necessário pedir as velas em pleno meio-dia. Não consigo distinguir seu rosto. Vamos, venha até a janela para que a examine.

Ela o seguiu, dócil e, quando chegaram ao enquadramento da janela, por onde escorria a chuva;

- Não posso verdadeiramente acreditar que o Sr. du Plessis seja tão indiferente aos encantos de sua mulher quanto ao uso que ela faz deles. A senhora deve ter culpa nisso. Por que não habita a mansão de seu marido?

- O Sr. du Plessis jamais me convidou.

- Estranhos modos!- Vamos, Bagatela, conte-me, então, o que ocorreu em Fontainebleau.

- Sei que meu comportamento não tem desculpa, mas meu marido acabava de ofender-me... gravemente, em público.

Ela olhou maquinalmente para o pulso que trazia ainda as marcas reveladoras da ofensa. O rei tomou-lhe a mão, olhou-a e nada disse.

-Eu me sentara afastada. Estava aflita. O Sr. de Lauzun passou...

Contou como Lauzun procedera para consolá-la, primeiro verbalmente, e depois de modo mais concreto.

- E muito difícil resistir às manobras do Sr. de Lauzun, sire. Sua habilidade é tanta que, quando pensamos em indignar-nos ou defender-nos, a situação já é tal que não seria possível esclarecê-la sem o risco de uma grande confusão!.-?.

- Ah! Ah! Então é assim que procede!...

- O Sr. de Lauzun tem tanta experiência! É debochado, sem escrúpulos e, no fundo, o melhor coração do mundo. Enfim, Vossa Majestade o conhece melhor do que eu.

-       Hum! - fez o rei, trocista -, isso depende do sentido a que alude, senhora. Você é encantadora quando enrubesce assim - retomou o rei. - Há em sua pessoa contrastes muito agradáveis. E tímida e audaciosa, alegre e grave... No outro dia visitei as estufas, já instaladas, e quis ver as flores que ali foram colocadas. Entre as tuberosas, notei uma flor que perturbava a ordem das cores. Os jardineiros queriam arrancá-la, dizendo que se tratava de uma planta selvagem. Ela era, na verdade, tão deslumbrante quanto as outras, e no entanto diferente. É nesta flor que me faz pensar quando a vejo entre minhas damas... E agora estou em dúvida e inclinado a acreditar que a culpa pende para o lado do Sr. du Plessis...

O monarca franziu o cenho e seu rosto, há pouco tão afável, tornou-se sombrio.

- Sua reputação de brutalidade sempre me desagradou. Não quero em minha corte gentis-hotnens que mostrem diante dos estrangeiros que os costumes franceses permanecem grosseiros, e mesmo bárbaros. Preconizo a cortesia para com as damas como uma disciplina necessária ao bom renome de nosso país. É verdade que seu marido lhe bate, e em público?

- Não! - disse Angélica, recalcitrante.

- Bem! Creio que o belo Filipe obteria grande proveito de uma meditação um pouco prolongada entre os muros da Bastilha.

- Sire, vim até aqui para pedir que o liberte. Tire-o da Bastilha, sire, eu lhe suplico!

- Você o ama, então? No entanto, seu casamento parece antes marcado por amargas lembranças que por felizes reconciliações. Vocês se conheciam pouco, disseram-me, e mal.

- Pouco, mas há muito tempo. Era meu primo importante... quando éramos crianças...

Reviu-o com seus cachos louros sobre o colarinho de rendas, no casaco azul-celeste que vestia quando aparecera pela primeira vez no Castelo de Sancé.

Ela sorriu, o olhar voltado para a janela. Cessara de chover. Um raio de sol surgiu entre duas nuvens, fazendo reluzir os pisos de mármore, onde chegava uma carruagem alaranjada, puxada por quatro cavalos negros.

-       Aquela época ele já se recusava a me beijar - suspirou ela - e agitava o lenço de rendas com horror a sua volta, quando nos aproximávamos dele, minhas irmãzinhas e eu.

Ela se pôs a rir.

O rei a fixava. Sabia que era muito bela, mas, pela primeira vez, tinha a impressão de vê-la tão próxima. Observava a textura de sua pele, o frescor aveludado das faces e a polpa dos lábios. Sentiu seu perfume quando ela fez um movimento para afastar uma mecha loura das têmporas. Dela se desprendia umà impressão calorosa de vida. Bruscamente, estendeu as mãos na direção daquele objeto atraente e tomou-o. Achou-a maravilhosamente flexível. Inclinou-se sobre aquela boca que sorria. Era saborosa e agradavelmente morna. Ele entre-abriu-a, encontrou os dentes, lisos e duros como pequenas pérolas...

Angélica ficou tão estupefata que permaneceu sem reagir, com a cabeça inclinada sob a pressão do beijo, até que o calor daquela boca penetrou-a e fê-la estremecer violentamente. Então suas mãos se crisparam sobre os ombros do rei.

Ele parou imediatamente e disse, calmo e sorridente:

-       Nada tema. Eu sp queria desempatar as responsabilidades e perceber se não havia,"de sua parte, algum problema de frieza, de reticência, suscetível íle paralisar os impulsos legítimos de um esposo.

Angélica não se deixou convencer totalmente pela desculpa. Tinha suficiente experiência para sentir que o rei acabava de ser, diante dela, presa de um irresistível desejo.

- Creio que Vossa Majestade emprega no estudo da questão uma consciência que o assunto não merece - disse, com um sorriso.

- Deveras?

- Deveras.

O rei afastou-se e retornou a sua mesa de trabalho. No entanto sorria e não parecia aborrecido.

-       Não importa! Não lamento ter levado muito longe o processo. Agora, minha opinião está feita... O Sr. du Plessis é o último dos imbecis. Mereceu cem vezes seu infortúnio, e terei o cuidado de dizer-lhe isso pessoalmente. Espero que desta vez ele leve em conta minhas advertências. Quero também enviá-lo durante algum tempo para a Picardia, como lição. Mas não chore mais, Bagatela, breve seu primo lhe será devolvido.

Sob as janelas, no pátio de mármore, o Sr. de Solignac, camarista-mor da rainha, descia da carruagem alaranjada.

 

Retorno de Florimond e de Cantor

A Sra. du Plessis-Bellière voltou a casa com a cabeça ardendo.

Dessa vez encontrou o pátio da mansão atravancado por uma mala-posta já desatrelada e da qual descarregava-se numerosa bagagem.

Nos degraus da escadaria de entrada, dois garotinhos de faces rosadas aguardavam-na de mãos dadas.

Ela caiu das nuvens.

- Florimond! Cantor!

Esquecera-se por completo da carta expedida para o Poitou, pedindo sua vinda. Seria aquela chegada oportuna, ou não?

A alegria de revê-los venceu-lhe as preocupações. Ela abraçou-os com vontade.

Eles estavam tão embaraçados, taciturnos e apatetados como rústicos camponeses que estivessem na cidade pela primeira vez. Calçavam sapatos ferrados e meias de lã que lhes caíam pelas pernas, e suas roupas fediam a estrume. Mas Angélica ficou estupefata com o talhe de Cantor, que, aos sete anos, era tão alto como o irmão mais velho, também já bastante desenvolvido. Não havia nenhum ponto em comum entre os dois irmãos, à exceção da cabeleira abundante e encaracolada, negra em Florimond e castanho-clara em Cantor. Florimond era um filho do sul, de olhar ardente e vivo. Os olhos verdes de Cantor semelhavam a planta da angélica, que reluz na penumbra líquida dos pântanos do Poitou. Sua limpidez tinha algo de impenetrável e nada deixava revelar.

Bárbara, a serva que os criara, degelou a atmosfera com sua presença. Estava radiante por se achar de volta a Paris. Ela via-se mal, dizia, passando o inverno no fundo de um castelo de província, entre camponeses obtusos e dois fedelhos malvados que o ar livre desencaminhara. Ninguém podia mais com eles. E o senhor barão, seu avô, fazia-lhes todas as vontades, assim como a velha dama. Era mais que tempo de colocá-los nas mãos de um bom mestre que lhes ensinasse o alfabeto sem poupar as vergastadas.

-       Eles irão para a corte - confioú-lhe Angélica, em voz baixa

_- para servir de companhia a Monseigneur, o delfim.

Bárbara escancarou os olhos em êxtase, juntou as mãos e contemplou seus dois bandidos com respeito crescente.

- Será preciso fazer com que aprendam alguns modos.

- E a trazer a espada e o penacho.

- E a fazer a reverência.

- E a assoar-se, a não cuspir, a não p... por toda parte.

- A falar e a responder às damas sem ser por meio de grunhidos de porco...

A educação completa e rápida dos dois jovens futuros cortesãos apresentava-se, evidentemente, como um problema. A Sra. de Choisy encarregou-se de resolv.ê-lo. Viram-nà apresentar-se, já no dia seguinte, na Mansão do Beautreillis, franqueada por um abadezinho magro como uma menina, em seu gibão negro, e abrindo uns olhos de corça sob os anéis da peruca empoada. Ela apresentou-o como pertencendo ao ramo caçula dos Lesdiguieres da região de Chartres, o que lhe dava uma família de qualidade e de boa nomeada, mas de poucos bens. Fora encarregada por aquela gente, com quem era aparentada, de lançar o jovem Maurício no mundo. Ela não podia fazer melhor, segundo entendia, do que recomendá-lo à Sra. du Plessis-Bellière, para que esta lhe confiasse a educação de seus dois filhos.

Ele havia feito bons estudos e servira como pajem junto ao arcebispo de Sens.

A Sra. de Choisy acrescentou que seria necessário juntar-se-lhe um preceptor, bem como um mestre de dança, um mestre de equitação e um mestre de espada. Tinha em mãos três rapazes que fanam o serviço. Um de nome Racan, da casa de Bueil. Ele fizera estudos de direito, mas, sendo muito pobre para comprar um cargo de advogado, desejava arrumar trabalho. O mestre de dança era um neto do Marquês de Lesbourg, velho senhor de Flandres, que, como se sabe, sempre teve cavaleiros do Tosão de Ouro em sua casa. O terceiro era de uma outra espécie, pois, excepcionalmente, pertencia a uma família muito rica, da qual teria podido ser o único herdeiro, mas tomara-se da idéia-de se fazer criado gladiador, de sorte que perdera sua herança. Sabia manejar todas as armas conhecidas, incluindo-se o estoque e o arcabuz, e ensinaria aos garotos a arte do carrossel, da corrida de argola e tudo o que se desejasse. Em suma, era varonil e folgazão. A Sra. de Choisy recomendava igualmente duas senhoritas de Gilandon, da região de Chambord. Sua avó pertencia à casa de Joyeuse, e sua irmã havia desposado o Conde des Roches. Não eram de forma alguma estúpidas, porém não tinham beleza e contentar-se-iam com um pequeno soldo, pois seu pai as arruinara, por encontrar sua mãe grávida ao retornar da Espanha.

- Mas que farei com essas senhoritas? - perguntou Angélica.

- Você as tomará em seu séquito. É vista somente acompanhada de criadas de touca. Isso não assenta em uma grande dama com seu renome, e que deve ascender na corte.

Ela explicou a Angélica que em uma casa bem caracterizada deveriam encontrar-se entre os serviçais todas as ordens do Estado: o clero, na pessoa dos capelães e dos preceptores, a nobreza com o gentil-homem, o mestre de equitação, os pajens e os criados, a burguesia com o intendente, o mordomo, os criados de quarto, o chefe de cozinha e por fim o povo: uma multidão de lacaios e servas, criados de copa e de cozinha, postilhões e palafreneiros.

A Sra. du Plessis não possuía uma comitiva digna de sua reputação e de sua linhagem. A Sra. de Choisy nada pedia além de ajudá-la. Apenas esperava que a jovem marquesa tivesse suficiente seriedade para não descuidar de que o pessoal de sua casa fizesse suas preces pela manhã e à noite e recebesse os sacramentos regularmente.

Angélica ainda não havia atinado com o papel desempenhado pela Sra. de Choisy em Fontainebleau. Teria ela, por excesso de zelo, interpretado erroneamente as ordens do rei? Embora parecesse, então, indignada, eis que agora transbordava de obsequiosidade.

Era uma dama que já passara dos quarenta anos, mas cujos olhos ainda tinham "fogo", e o sorriso, atr.ação. No entanto, havia algo nela que esfriava a amizade. A criadagem contava à solta que sua casa era uma espécie de prisão. Quando uma jovem ali houvesse entrado, não mais poderia sair; ela obrigava-as a trabalhar e castigava-as rudemente. O suíço não ousava abrir a porta sem sua permissão, e, por ter uma vez infringido suas ordens, fora açoitado. Fizera aplicar uma surra de correia em uma serva, que com isso quase morrera. Comentava-se que havia mandado açoitar o próprio marido, mas ficara de tal modo arrependida que, como penitência, enfiara-se em um charco até o pescoço.

Angélica acreditava que as pessoas aumentavam os boatos, e não dava crédito a tais disparates.. Mas a propensão da Sra. de Choisy a se ocupar com os problemas alheios não deixava de ser embaraçosa. Com receio de vê-la oferecerainda novos protegidos, Angélica, um pouco submergida pelos Racan, Lesdiguières e Gilandon, tomou-os a todos, incluindo as duas senhoritas.

Ademais, urgia colocar Florimond e Cantor entre mãos preparadas para endireitá-los. Estavam na idade em que se cavalga em tudo o que puder ser montado. A falta dos mulos de seu avô, contentavam-se com o corrimão de madeira preciosa da escadaria principal, e, passado o primeiro momento, a Mansão do Beautreillis vibrava com o barulho das batalhas e das galopadas.

Como essas lides domésticas ocupassem alguns dias, foi pelo rumor público que Angélica soube da libertação de Filipe. Ele não veio vê-la. Ela hesitava sobre o<jue convinha fazer. A Sra. de Mon-tespan insistiu para que voltasse à corte com a cabeça erguida.

- O rei perdoou-a. Todos sabem que a recebeu em longa sessão. Ele admoestou o Sr. du Plessis em particular, mas à noite mesmo este teve a honra de "apresentar a camisa" no coucher do rei, em Saint-Germain. Todos compreenderam em quanta amizade Sua Majestade os tem, a um e outro.

A Sra. de Choisy apoiou aquelas palavras. E, como o rei manifestara o desejo de ver a Sra. du Plessis apresentar seus filhos, ela devia obtemperar sem esperar que aquela boa disposição se evaporasse do pensamento real. A Sra. de Choisy visitara a Sra. de Montausier, mulher do fututo preceptor do delfim e atual governanta dos filhos de França. Combinou-se a data.

E, com isso, Florimond e Cantor foram apresentados à corte, quando de uma passagem sua por Versalhes. Ambos estavam vestidos de cetim azul-pavão, com o devido número de rosetas e fitas, meias brancas e frisos laterais em ouro, tacões altos, espada de prata lavrada à ilharga. Sobre a cabeleira frisada traziam chapéus redondos de feltro negro com uma pluma vermelha, não em penacho, mas tombando sobre a aba, segundo a nova moda que começava a se impor. Como estivesse frio e houvesse nevado, envergavam um manto de veludo negro bordado com sutache de ouro. O Abade de Lesdiguières dizia que Florimond sabia "carregar o manto" naturalmente, o que é uma arte que se adquire por nascimento. Algumas pessoas do vulgo não o conseguem jamais.

Cantor era mais desajeitado. O pequeno séquito daqueles senhores confessava estar mais ou menos tranquilo quanto ao comportamento de Florimond, que assimilara rapidamente curvaturas e rapapés. Mas não se sabia o que esperar de Cantor, que podia sair-se muito bem quando o desejava. Só restava pedir aos céus que o inspirassem no caminho do bom senso.

O aposento reservado às crianças reais tinha uma marca de intimidade pouco habitual à residência versalhesa. O ambiente era cálido. A um canto ficava uma grande gaiola de pássaros. As duas embala-deiras da pequena Madame traziam as coifas de suas regiões de origem, num delicado edifício de custosas rendas. Quando se lhes juntava a coifa da Sra. Hamelin, a velha ama-de-leite do rei, que ali ia com frequência fiar em sua roca, era como se um bater de asas brancas trouxesse alegria ao local. A Sra. de Montausier, uma boa mulher, não havia criado seu real pupilo com muito vigor. Breve viria o tempo em que ele se inclinaria sob a férula dos preceptores e se dobraria às regras da etiqueta que entravariam cada um de seus passos de criança.

Era um gordo garotinho, a boca sempre entreaberta, pois seu nariz "se entupia com facilidade", dizia a governanta. De inteligência mediana, parecia, já aos seis anos e meio, pouco à vontade em seu difícil papel de filho de Luís XIV, atitude que deveria guardar por toda a vida. Crescera como filho único, pois duas princesinhas tinham morrido logo ao nascer, uma delas trigueira como uma moura, dizia-se, "pois a rainha havia bebido muito chocolate enquanto a esperava".

Angélica pensou consigo mesma que seus filhos, mesmo tendo sofrido um brusco emagrecimento, tinham mais graça, mais desenvoltura, enfim, mais boa presença que o herdeiro da coroa. Olhou-os com admiração quando saudaram em perfeita harmonia, o pé arqueado, o chapéu baixo, e se adiantaram, um após o outro, para beijar a mão que o delfim estendia-lhes com apreensão enquanto espreitava o olhar de encorajamento da Sra. de Montausier. E encheu-se de orgulho enquanto Florimond disse com voz natural e gentil, embora respeitosa:

- Monseigneur, o senhor carrega uma linda concha.

Ocorria que aquela concha era uma decoração pessoal do delfim, uma jóia sem igual que encontrara naquela manhã mesmo na areia do canteiro, e da qual não mais quisera desfazer-se, exigindo que fosse presa a seu casaco, entre a Gruz de São Luís e a de grande almirante da frota, capricho a que as damas de honra acabaram por ceder.

A observação de Florimond atraiu o interesse do delfim para seu tesouro, que quis mostrar em pormenores aos novos amigos. Sua timidez desapareceu e ele levou-os a admirar sua coleção de bonecos de cerâmica, seu pequeno canhãe e seu mais belo tambor revestido com tela de prata.

Tanta intuição da parte de Elorimond no emprego da lisonja e no comércio com os grandes encheu de alegria seus educadores. O abadezinho e o preceptor Racan trocavam olhares cúmplices, e Angélica, muito satisfeita, prometeu a si mesma oférecer-lhes à noite uma gratificação de trinta escudos.

Entrementes, e segundo o protocolo previsto, a rainha, uma dezena de suas damas e alguns gentis-homens apresentaram-se.

Após a troca de reverências, Cantor foi convidado a cantar diante da soberana. Houverentão, um ligeiro embaraço no perfeito desenrolar da apresentação, pois o garoto, colocando um joelho ena terra, preludiou às primeiras notas de sua canção preferida:

- "O rei quis mirar suas damas

E fez soar o tambor".

O abade precipitou-se e disse que o alaúde não estava bem afinado. Enquanto ajustava as cravelhas do instrumento, falou em voz baixa a seu pupilo, que, com a maior graça do mundo, iniciou uma nova canção. O incidente mal foi notado, sobretudo pela rainha, que, espanhola, não tinha nenhuma ideia do folclore francês. Angélica lembrou-se vagamente dos amores ilegítimos do Rei Henrique IV. Ficou grata ao abade por ter desfeito a tempo o equívoco. Decididamente, agradeceria mais uma vez à Sra. de Choisy pela boa escolha de seus recrutas.

A voz de Cantor só poderia comparar-se à de um anjo. Era de uma pureza indizível, e no entanto firme, bem empostada, emitindo notas longas que não se enfraqueciam. Era clara e cristalina, mas sem a insipidez um pouco piegas das vozes infantis.

As damas, que se haviam preparado-para escutar com polidez a criança prodígio, logo se transportaram ao auge do arrebatamento. Florimond, que primeiro retivera as atenções, passava agora para segundo plano. Fixavam o rosto agradável do pequeno cantor, menos belo que o irmão, mas com olhos de rara nuança, que se enchiam de luz quando cantava. O Sr. de Vivonne era o mais entusiasta de todos, e o desejo de adular Angélica nada tinha a ver com seus cumprimentos ditirâmbicos. Como muitos dos alegres convivas da corte, ele possuía alguns talentos secretos, praticados como amador, por divertimento. Vivonne, irmão da Sra. de Montespan, ao mesmo tempo que era capitão das galeras e tenente-general dos mares, versejava, compunha, tocava muitos instrumentos. Repetidas vezes foi-lhe confiada a coordenação dos bales da corte. Ele saía-se muito bem. Pediu a Cantor que interpretasse algumas de suas cançonetas, escolhendo entre as menos lestas de seu repertório. Havia até uma arieta para missa de Natal, plena de graça gentil, que transportou toda a assembleia. A rainha quis que se procurasse o Sr. Lulli imediatamente.

O superintendente da música do rei ensaiava os coristas na capela. Apresentou-se de má vontade, mas seu rosto rabugento e afogueado distendeu-se ao escutar a criança. Uma voz de tal fineza era rara, disse. Não quis acreditar que Cantor mal completava oito anos; ele tinha uma "caixa" de onze anos. Aliás, o músico logo se contristou. A carreira do pequeno fenómeno estava destinada a ser breve, sua voz sendo daquelas que a mudança de idade destrói quase com certeza. A menos que se fizesse uma voz "à castre", privando-o de sua virilidade pelos dez ou onze anos. Vozes como aquela eram muito procuradas. Os jovens efebos, de rosto imberbe e timbre seráfico, permaneciam o mais belo ornamento das capelas principescas da Europa. Eram recrutados principalmente entre filhos de músicos pobres ou de bailarinos, desejosos de assegurar uma carreira a seus filhos, em lugar de uma vida normal, mas votada à mediocridade.

Angélica protestou com veemência. Castrar seu vigoroso pequeno Cantor! Que horror! Era um gentil-homem, louvado seja Deus, e seu destino não sofreria com a perda de seus dons. Aprenderia a manejar a espada a serviço do rei e teria assegurada numerosa descendência.

As opiniões do Sr. Lulli foram matéria de alguns gracejos nos moldes da corte, onde damas e senhores eram hábeis em manejar a linguagem picante. Cantor passou de mão em mão e foi mimado, cumprimentado, incentivado. Ele aceitou as homenagens com seu costumeiro ar de gato pacífico, mas que tem opinião.

Conveio-se que, quando Monseigneur, o delfim, fosse entregue às mãos dos homens, Florimond e Cantor tomariam lugar entre os senhores de seu séquito, a fim de acompanhá-lo ao manejo, ao jogo da péla e muito em breve à caça.

 

O velho boticário Savary

Era a estação em quê Paris desperta pouco a pouco, ao som dos violinos e com o estrépito dos risos.

Malgrado a paz doi tratados, o hábito da guerra continuava a manter a maior parte- dos gentis-homens ausente.

Angélica dava-se conta, com mau humor, das dificuldades que experimentava ao se movimentar. A maternidade tornava-a mais pesada. Mais uma vez Filipe era a causa de um embaraço que breve a obrigaria a manter-se afastada do mundo. De nada adiantava tentar espartilhar-se, ou mesmo a moda mostrar-se generosa para com as formas exuberantes. Já não podia envergar seus mais belos trajes. Estava bem de acordo com sua falta de sorte que aquela criança fosse a maior de quantas já carregara.

A parte as festividades reais, ela continuava a frequentar Saint-Germain, onde todos podiam apresentar-se sem convite. O andamento dos negócios do reino enchia os corredores com um mundo heteróclito, onde os auxiliares dos ministros, a pluma de ganso a orelha, passavam ao lado de embaixadores, e onde doutos almo-tacéis discutiam negócios com circunspecção entre as grandes damas que agitavam seus leques.

Ela ali encontrou, certo dia, o velho farmacêutico Savary, que se apresentara em sua casa como solicitante, e a quem, em seu espirito, chamava de "o mago". Parecia tão à vontade na brilhante assembleia como um peixe em seu aquário.

Ele disse-lhe numa mímica confidencial:

- Senhora, não esqueça... a múmia!

- Mas quando, afinal, chegará seu embaixador com sua múmia?

- Psiu! Eu a avisarei, e a guiarei então, passo a passo. Enquanto isso, silêncio, discrição!...

Uma jovem que passava parou, soltando um gritinho, e agarrou o velho Savary pelo peitilho, olhando-o com paixão. Angélica reconheceu a Srta. de Brienne.

- Senhor - disse, em voz baixa -, eu o conheço. Sei que é adivinho, e até um pouco feiticeiro. Quer partilhar um negócio?

- A senhora está enganada. Tenho minha modesta reputação, é verdade, e fala-se bem de mim nesta casa, mas não sou senão um modesto sábio.

- Eu sei - insistiu ela, com os belos olhos brilhando como carbúnculos -, eu sei que o senhor pode muito. Tem filtros que trouxe do Oriente. Escute, é absolutamente necessário que me obtenha do rei um tamborete. Faça seu preço.

- Essas coisas não se obtêm com dinheiro.

- Então lhe pertencerei de corpo e alma.

- Mas você está louca, minha pobre criança!

- Pense bem, Sr. Savary. Isso não lhe deve ser tão difícil. E não vejo mais nenhum modo de constranger o espírito do rei a oferecer-me um tamborete. Eu o quero, eu o quero, definitivamente. Estou pronta a tudo para obtê-lo.

- Está bem! Está bem! Eu pensarei - disse o velho boticário, conciliador.

Mas recusou a bolsa que a Srta. de Brienne queria a toda força passar-lhe.

-       Em que me teria envolvido, se aceitasse - disse a Angélica, quando a Srta. de Brienne os deixou. - Veja como são essas tolinhas! Um tamborete! Um tamborete diante do rei! Eis o que têm na cabeça assim que colocam o pé na corte.

Meneando a cabeça com indulgência, tirou das abas da casaca um grande lenço de quadrados com o qual começou a limpar os vidros de seu lornhão.

- Eh! Eh! Sr. Savary, não estou longe de atribuir-lhe um certo poder de feitiçaria. As mais difíceis beldades da corte vêm jogar-se a seus pés...

- Não me tome por um sátiro. Nada tenho â ver com isso. As jovens e sobretudo as adolescentes têm, às vezes, certas ousadias que desconcertam um velho navegante como eu. Essa descerebra-da está mais roída pela ambição que uma odalisca de harém.

- Conheceu haréns?

- Naturalmente, posto que minhas drogas encontravam entre aquelas damas sua clientela preferida. Oh! Não é comum ver um homem, mesmo grisalho, penetraram tais-recintos. Eu era conduzido até ali de olhos vendados e cercado por três eunucos, de cimitarra em punho. Uma vez, por trás do véu que cobria o rosto de uma favorita do sultão otomano Ibrahim, uma voz francesa interpelou-me. Tratava-se de uma linda jovem de La Rochelle que fora raptada com a idade de dezesseis anos pelos bárbaros. Mas não me faça embarcar em lembranças, senhora. No momento só devemos ocupar-nos da múmia. Posso lembrar-lhe sua promessa de ajudar-me?

-       Está combinado. Farei o melhor possível e não reclamarei um tamborete. Mas creio que está iludido quanto a meu poder.

Mestre Savary exaiiáinou-a com um olho escrutador.

- Não sou de modo algum adivinho, como insinuou a pequena descerebrada, mas mesmo assim posso predizer que a senhora terá um tamborete, e no entanto mal a vejo permanecendo por muito tempo sentada em algum lugar e principalmente em Versalhes, e mesmo diante do rei...

- Se um dia obtiver um tamborete, quando nem posso ainda obter um cargo, saiba que não serei tão tola a ponto de deixá-lo por decisão própria.

- Senhora, não se irrite. No Oriente aprenderia que a cólera dispersa as forças vitais. Ora, tem a necessidade de conservar todas as suas forças.

- Para espreitar a chegada de sua múmia? - ironizou ela.

- Para isso, e para outra coisa também - respondeu o velho homem com serenidade.

Ela ia responder-lhe com algum sarcasmo, quando percebeu que ele se eclipsara sem ruído.

"Terá sido, provavelmente, nos países estranhos onde vendia suas drogas que aprendeu a caminhar e a esvanecer-se como um puro espírito", pensou ela, "mas ele é divertido..."

Um pouco mais tarde reencontrou a Sita. de Brienne a uma mesa de jogo.

-       Que conseguiu obter do pequeno boticário - perguntou-lhe a jovem com avidez -, prometeu ajudá-la? Comenta-se que é mais forte que a adivinha Monvoisin em influenciar a distância.

Angélica limitou-se a sorrir e embaralhou as cartas. A Srta. de Brienne era uma linda morena, picante, um pouco exaltada e principalmente muito mal-educada. Vivia na corte desde a infância, o que significava que seu cérebro de pássaro estava impregnado de uma moral particular. O jogo, a bebida e o amor eram para ela passatempos tão inofensivos quanto a tapeçaria e a renda para as jovens burguesas.

Ela perdeu naquele dia dez mil libras jogando com Angélica. Confessou que não poderia obtê-las de imediato para acertar sua dívida.

-       Bem lhe havia dito que aquele diabólico droguista lhe daria sorte - disse ela com um beicinho de criança, a ponto de chorar.

- Que poderia prometer-lhe para que se ocupe também de mim? São quase trinta mil libras que perco em uma semana. Meu irmão vai passar-me nova descompostura e dizer que o arruino...

Depois, vendo que Angélica não parecia em nada decidida a oferecer-lhe crédito por muito tempo, acrescentou:

-       Não quer comprar meu cargo de cônsul de Cândia? Estava

em conferência para vendê-lo. Vale quarenta mil libras.

A menção da palavra "cargo", Angélica ficara atenta.

- Cônsul? - repetiu.

- Sim.

- De Cândia?

- É uma cidade, creio - informou a Srta. de Brienne.

- Mas onde?

- Nada sei a esse respeito.

- Mas uma mulher não pode ser cônsul!...

- Decerto que sim. Há três anos sou sua proprietária. E um dos cargos que não pedem obrigatoriamente residência efetiva, e por outro lado dão uma certa posição na corte, onde qualquer cônsul, mesmo de saias, tem a permissão e mesmo a obrigação de residir. Ao comprá-lo, esperava também que os benefícios fossem interessantes. Pobre de mim! Nada disso. Os dois administradores que lá coloquei são uns piratas e traficam por conta própria, enquanto me obrigam a pagar suas despesas de representação. Não deveria dizê-lo a você já que lhe proponho a sua compra, mas sou tão tola! E quem sabe se nãa se sairá melhor que eu. Quarenta mil libras não é caro. E isso deixar-me-á mais à vontade, permitindo-me saldar minhas dívidas.

-       Eu refletirei - disse vagamente Angélica.

Na verdade estava um pouco confusa. Cônsul de França! Ela considerara vários títulos, mas não. esse. Partiu à procura de Savary e tevea boa fortuna de reencontrá-lo.

- O senhor, que tanto viajou,pode dizer-me onde se localiza Cândia?    .

- Cândia? Ora veja, sim, eu sei. Embora jamais tenha lá estado. E o lamento. E uma ilha do Mediterrâneo bastante interessante. Ali se encontra, e em nenhum outro lugar, uma substância chamada ladanum, que permanece até hoje a única matéria conhecida, juntamente com o almíscar, que dá fixidez e permanência aos melhores perfumes. Tenho algumas amostras em pequenas ampolas muito delgadas; Apresenta-se como uma substância goma-resinosa, de origem provavelmente vegetal, mas ignoro de onde provém exatamente;e como é recolhida...

- O que me interessaria, Sr. Savary, seria saber a quem pertence Cândia e se os franceses ali têm grande poder.

Mestre Savary mascava pensativamente a ponta da barba.

- Cândia! Cândia! E preciso que vá até lá; não se pode relegar o mistério do ladanum ao insondável...

- Cândia - disse uma voz atrás deles -, ah! a ilha de Creta, o labirinto, o Minotauro, todas as cruéis recordações da Grécia. Interessa-lhe a história dos antigos, senhora?

Angélica reconheceu o poeta La Fontaine, que, após tê-la saudado, dirigiu muitas reverências a Savary. Depois tomou com familiaridade o braço da jovem e conduziu-a, enquanto explicava:

- Eu sempre saúdo as pessoas das quais tenho vaga lembrança, porém, o mais das vezes, não consigo lembrar-me dos nomes. Onde terei encontrado esse nobre ancião? Quem poderá dizer-mo?

- Eu, pois foi em minha mansão que o encontrou. Agora informe-me a respeito de Cândia.

- Fora com isso! Cândia é um nome muito novo. Ilha de Creta e o que se deve dizer. O mel e o leite' deslizam ao pé do monte Ida, onde Teseu matou o Minotauro. Quer que lhe conte a lenda de Ariadne?

Angélica recusou com polidez. Gostava de se instruir, mas a noite caía e ela devia retornar a Paris.

- Ao menos aceite a homenagem que me preparava para lhe fazer - disse o poeta, tirando um livrinho de um saco de pelúcia gasto. - Este foi para mim um grande dia, pois ofereci ao rei um exemplar da primeira edição de meus Contos. Desejaria ofertar-lhe um, também, pois foi graças à sua generosidade que a impressão tornou-se possível.

Angélica agradeceu. Já havia ouvido falar daqueles contos. Ni-non de Lenclos chamava-os de "o breviário de uma mulher sensível" e fizera correr cópias deles. O próprio poeta lia por toda parte aquelas galanterias reforçadas com o sangue-frio que teria colocado na leitura de um sermão... A Sra. de Sévigné dizia que ele imitava, por vezes, Boccaccio, mas que o ultrapassava pela ingenuidade de poder falar-lhe pertinentemente de sua obra. Ele tratou-a de "adorável mecenas", e ela teve grande dificuldade em desembaraçar-se dele.

 

Angélica, cônsul de França em Cândia

A habitação do Sr. Colbert e seu gabinete de trabalho guardavam a aparência de um confronto burguês sem rebuscamento. O homem frio que a Sra. de Sévigné chamava com um calafriozinho de "O Norte" nãorpossuía a paixão do luxo. Nele a economia era uma qualidade marcadamente hereditária. A vaidade, ele a colocava em outro lugar: no trato impecável e minucioso de suas contas e no estabelecimento de sua árvore genealógica.

Nesse assunto ele não se mostrava mesquinho e pagava numerosos auxiliares especialmente encarregados de pesquisar em obscuros documentos uma ascendência que o ligasse ao menos um pouco à nobreza. Pequena fraqueza que não o impedia, porém, de discernir com lucidez os defeitos dos nobres e a influência que iria adquirir a burguesia, único corpo a um tempo ativo e inteligente do reino.

A Sra. du Plessis desculpou-se por incomodá-lo. Estava prestes a adquirir, dizia, o cargo de cônsul de Cândia, e, sabendo que o ministro tinha poder de decisão na distribuição desses postos, solicitava sua opinião. Colbert, a princípio taciturno, descontraiu-se. Não era comum que, antes de se fazer adjudicar uma colocação, as belas des-cerebradas se lembrassem de pensar nas consequências. Na maior parte do tempo, cabia a ele, Colbert, o papel ingrato de colocar um pouco de ordem nos malabarismos das petiçòes, sendo obrigado a suspender os pedidos mais disparatados ou incongruentes, ou que dificultassem o bom andamento dos negócios, ou muito pesados para as finanças, atribuição que lhe ocasionava inúmeros aborrecimentos entre as reclamantes decepcionadas.

Angélica constatou que a nomeação de uma mulher como cônsul de França não o chocava. Era algo comum. Entre a opinião profissional de mestre Savary e a mitológica do bom La Fontaine, ele emitiu uma terceira.

A seu ver, Cândia, capital de Creta,, representava o melhor mercado de escravos do Mediterrâneo. Era mesmo o único lugar onde se podiam conseguir russos, raça de homens sólidos, sóbrios e que eram obtidos por cem e cento e cinquenta libras cada um. Eram comprados aos turcos, que os capturavam em suas contínuas batalhas na Arménia, Ucrânia, Hungria ou Polónia.

- Essa praça não é negligenciável, no momento em que voltamos nossos esforços para a marinha e quando se trata de aumentar o número de galeras reais no Mediterrâneo. Os mouros, tunisinos ou argelinos que capturamos nos combates com os piratas fazem mal o seu trabalho. São utilizados principalmente para completar as equipagens, quando há escassez de braços, ou trocados por cristãos cativos na Barbaria. Quanto aos condenados de direito comum, os forçados, esses não têm nenhuma resistência, não aguentam o mar e morrem como moscas. Até hoje, os melhores remadores foram, pois, recrutados entre os turcos, e também entre esses russos comerciados em Cândia. São, além de tudo, excelentes marinheiros. Impressionou-me que a base das equipagens nos veleiros ingleses seja constituída por esses mesmos escravos russos. Os ingleses têm-nos em apreço e mostram-se bons pagadores para com aqueles que possam obter-lhos. Por todos esses motivos, Cândia parece-me um ponto não falto de interesse.

- Qual é ali a situação dos franceses? - interrogou Angélica, que ainda não se via muito bem como mercadora de escravos.

- Nossos representantes são respeitados, creio eu. A ilha de Creta é uma colónia veneziana. Já há alguns anos os turcos têm em mente apoderar-se dela, e a ilha teve que repelir muitos assaltos.

- Mas então é perigoso investir dinheiro nesse local.

- Depende. O comércio de uma nação por vezes pode beneficiar-se com as guerras, se não tomar partido nelas. A França tem boas alianças com Veneza, tanto quanto com o Corno de Ouro.

- A Srta. de Brienne não me ocultou que esse cargo quase nada lhe rendia. Ela acusa os que obtiveram o posto de administradores, que, segundo disse, trabalham por conta própria.

- É bem provável. Forneça-me os nomes e poderei proceder a uma inquirição.

- Então... o senhor sustentaria minha candidatura a esse cargo, senhor ministro?

Colbert permaneceu em silêncio um momento, o cenho franzido. Por fim, disse:

- Sim. De todos os modos ele ganhará por estar em suas mãos, Sra. Morens, mais do que nas:da Sita. de Brienne ou mesmo de qualquer gentil-homem descerebrado. Por outro lado, isso se ajusta perfeitamente aos projetos que tenho para a senhora.

- Para mim?

- Sim. Acredita que aceitemos ver aptidões como as suas não serem utilizadas para o bem do Estado? Um dos grandes dons de Sua Majestade é o de fazer flecha de toda madeira. No que lhe diz respeito, ele tem dificuldade em se persuadir de que uma linda mulher possa juntar a seus atrativos outras qualidades, como inteligência prática. Con.venci-o de que a senhora poderia prestar-lhe os maiores serviços^ Ademais^ sua fortuna é grande e sólida. Isso lhe confere poder.

Angélica contristou-se.

- Tenho dinheiro, é sabido - disse -, mas não certamente com que salvar o reino.

- Quem lhe fala de dinheiro? E de trabalho que se trata. O trabalho é que formará o país e reconstituirá a riqueza desaparecida. Veja: eu era um simples mercador de tecidos; eis-me ministro, mas isso não me envaidece. Embora tenha orgulho em ser diretor das manufaturas reais. Nós podemos e devemos fazer melhor na França que no estrangeiro. Mas estamos muito divididos. Não sei o que me leva a falar sobre isso. A senhora tem um certo dom de escutar e de se interessar pelos pensamentos de outrem. Deverá utilizar tal dom a nosso serviço. Lisonjeará os velhos tolos com sua atenção. Para os jovens, a sedução de sua pessoa será suficiente. Quanto às mulheres, sua elegância persuadi-las-á facilmente a seguir suas opiniões. Em suma, a senhora dispõe de armas não negligenciáveis.

-       E com que objetivo deveria mobilizar todo esse arsenal?

O ministro permitiu-se ainda alguns instantes de reflexão.

-       Antes de tudo, não deve deixar a corte. Estará ligada a ela; a senhora a seguirá em seus deslocamentos e fará por conhecer-lhe o maior número de pessoas possível, e com o máximo de precisão.

A jovem teve dificuldade em dissimular a intensa satisfação que essas prescrições lhe davam.

- Esse... trabalho não me parece tão temível.

- Então nós a utilizaremos em diferentes missões que terão relação sobretudo com o comércio marítimo, com o comércio pura e simplesmente e com seus derivados, entre os quais, a moda.

- A moda?

- Acrescentei a moda para convencer Sua Majestade a confiar à senhora, uma mulher, atribuições mais importantes. Explico-me. Por exemplo, quero descobrir o segredo do "ponto veneza", aquela renda que faz furor, até agora inimitada. Tentei interditar sua venda, mas esses senhores e damas passam uns aos outros colarinhos e punhos sob a capa, e com isso mais de três milhões de libras por ano escapam para a Itália. Que aconteça, aberta ou fraudulentamente, é deplorável para o comércio francês, quando não haveria nenhuma razão para não surpreender o segredo dessa renda que enlouquece nossos elegantes, a fim de estabelecer aqui uma manufatura.

- Ser-me-ia preciso ir a Veneza.

- Não creio. Em Veneza suspeitariam de sua presença, enquanto tenho boas razões para acreditar que é na própria corte que residem os fraudadores. Por meio deles, poderíamos remontar à mercadoria, saber ao menos onde se abastecem. Suspeito de dois delegados no comércio marselhês. Esse tráfico deve trazer-lhes fortunas imensas...

Angélica estava pensativa.

-       Esse género de atividade que me sugere assemelha-se em muito à espionagem...

O Sr. Colbert concordou. A palavra não o chocava de modo algum. Espiões?... Todo o mundo os empregava, e por toda parte.

- O comércio caminhará junto. Assim, novas ações da Companhia das índias Orientais serão emitidas em breve. Seu local de atividade será a corte. A senhora caberá lançar a moda das índias, persuadir os avaros, que sei eu? Há dinheiro na corte. É preciso que não se transforme em fumaça, em dissipação... Enfim, pode perceber que terá muitas oportunidades de exercer seus talentos. O embaraçoso para nós era dar a suas atividades um caráter oficial. Se fosse preciso, criar um cargo sob que título? Seu consulado de Creta servirá de fachada e de álibi.

- Os lucros são magros.

- Não se faça de sonsa! É coisa entendida que por seu trabalho oficioso receberá vultosas prebendas. Serão fixadas para cada negócio. Poderá ter participação nos que forem bem-sucedidos. Por hábito, ela regateou.

- Quarenta mil libras é muito.

- Uma pitada de sal para a senhora. Lembre que por um cargo de procurador se pagam cento e setenta e cinco mil libras, e pelo de seu predecessor, o ministro das Finanças, um milhão e quatrocentas mil libras. O rei tomou-o em sua conta, pois me queria neste lugar. No entanto, sinto-me em dívida para com ele. Eis por que não estarei tranquilo enquanto não lhe fizer ganhar muitas vezes essa soma, pela prosperidade de seu reino.

"Eis a corte", dizia consigo Angélica. "Ela é, nesta noite em que dançamos no Palais-Royal, tal como o povo ingénuo a imagina: banhada em luz e palco de uma eterna festa."

Atrás da máscara tle veludo que lhe dissimulava o rosto, ela seguia com os olhos osj?ares que dançavam.

O rei acabava de abrir o baile com Madame. Ele representava Júpiter no bale O Olimpo em Festa. Atraía os olhares só para si. Trazer a máscara não o conservava incógnito. A sua era em ouro. Um capacete de ouro com folhagem enriquecida por cabuchões e rosas de diamantes erguia sobre sua cabeça uma crista de plumas cor de fogo.     -

Sua roupa era toda em brocado de ouro e resplandecia com mil reflexos de diamantes engastados nos bordados. Para exaltar no dia seguinte aquele traje, o próprio poeta Loret só conseguiria dizer:

- "A vestimenta daquele príncipe

Valia ao menos uma província..."

"Tanta riqueza", pensava Angélica. "Eis a corte."

Monsieur, que recebia seu irmão, devia apresentar uma aparência mais modesta. Reconhecia-se, no entanto, sua silhueta rechonchuda e saltitante, acolchoada de cetim e de arminho. Sua máscara era de rendas.

O príncipe traía-se por suas turquesas. O duque, por suas pérolas.

Um "rio" de barbas brancas, coberto de escamas de prata, de guirlandas de caniços e de plantas marinhas em cetim azul e verde, roçou em Angélica.

Um Éolo, em roupa de plumas brancas e cor da aurora, com um moinho de vento na cabeça, arrastou-a a uma "corrente". Ela acompanhou a dança rápida, em que a dançarina passava de um cavalheiro para outro. Suas mãos pousavam em mãos cobertas de- anéis faiscantes, que ofuscavam a sua passagem. Máscaras de ouro, máscaras de prata, máscaras de veludo, máscaras de rendas, máscaras de cetim. Risos sonoros, perfumes. O odor dos vinhos e o odor das rosas, O assoalho estava juncado de pétalas. Rosas em dezembro...

Eis a corte. Loucura. Profusão. Mas, se nos aproximamos, que surpresa! Vemos um rei jovem e reservado, puxando os cordões de suas marionetes. E, se nos aproximamos ainda mais, as próprias marionetes deixam cair a máscara. Estão vivas, devoradas por paixões ardentes, por ambições tenazes, por dedicações estranhas...

A conversa recente com o Sr. Colbert descortinara para Angélica horizontes insuspeitos. Ao pensar no papel que ele queria atribuir-lhe, ela se perguntava se todas aquelas máscaras não escondiam, elas também, suas missões clandestinas. "Não está nos projetos do rei deixar sem utilidade as aptidões..."

Outrora, naquele mesmo Palais-Royal, que se chamava então Palais-Cardinal, Richelieu passeara sua samarra violeta e seus projetos de dominação. Ninguém ali penetrara sem estar a seu serviço. Sua rede de espionagem era como uma imensa teia de aranha. Ele empregava muitas mulheres. "Essas criaturas", dizia, "têm o dom natural da comédia e da dissimulação..." Estaria o jovem rei retomando por sua conta os mesmos princípios?

Como Angélica deixasse a dança, um pajenzinho entregou-lhe um sobrescrito. Era um bilhete do Sr. Colbert.

"Considere-se", escrevia-lhe ele, "de posse do cargo permanente que solicitou na corte, nas condições estipuladas. Seu título de cônsul de França em Cândia ser-lhe-á outorgado amanhã."

Ela dobrou a carta e enfiou-a em sua bolsa. Um sorriso brincava-lhe no canto dos lábios. Havia triunfado.

E, considerando tudo, nada havia de bizarro em que uma marquesa fosse cônsul de França, naquele mundo em que as baronesas ocupavam-se de venenos, as duquesas requeriam o monopólio das cadeiras de teatro, onde o ministro do Exército solicitava o cargo das mudas de cavalos de posta e onde os maiores libertinos do reino eram proprietários de benefícios eclesiásticos.

 

A cólera de Filipe

Angélica despia-se com vagar. Havia dispensado a ajuda de suas criadas e das senhoritas Gilandon. Em seu espírito ela revivia as últimas fases de sua vitoria. Naquele mesmo dia seu intendente entregara ao intendente da Srta. de Brienne quarenta mil libras bem sonantes, enquanto ela recebia do Sr. Colbert, e da parte do rei, sua "nomeação". Ela imprimira seu selo em uma impressionante papelada, secara suas páginas de escritura e ainda pagara "uma ninharia", a título de taxas e outros, que se elevava, no entanto, a dez mil libras suplementares.

Não estava, por isso, menos satisfeita, mas inquietava-se intimamente ao pensar em Filipe.

Que diria quando soubesse do acontecido? Ele a desafiara a manter-se na corte, deixando claro que tudo faria, por seu turno, para afastá-la. Mas a estada na Bastilha e seu afastamento do exército haviam deixado a Angélica todo o tempo para levar a bom termo seus negócios. Ela triunfara... Não sem remorsos. Havia uma semana que Filipe retornara da Picardia. O próprio rei comunicou-o a Sra. du Plessis-Bellière, dando a entender o quanto a intenção de agradar-lhe o levara a passar a esponja sobre uma falta grave, qual seja, a indisciplina de Filipe ao bater-se em duelo. Tendo agradecido a Sua Majestade por sua clemência, Angélica se interrogava sobre o que convinha fazer. Qual deveria ser a atitude de uma mulher para com o marido, levado à prisão por ela o ter traído? Ela hesitava, mas tudo fazia crer que a atitude de seu marido seria bem mais incisiva. Escarnecido, admoestado pelo rei, perdendo por todos os lados, seu humor para com Angélica não devia ter abrandado. Ao considerar com isenção todos os agravos reais que Filipe podia atribuir-lhe, ela compreendeu que devia esperar pelo pior. De onde a pressa em concluir um comércio que erguesse uma barreira entre ela e o ostracismo de seu esposo. Agora a coisa estava feita. De Filipe, nenhuma manifestação. Comentava-se que se apresentara ao rei e que fora recebido com afeição. Em seguida fora visto em Paris, na casa de Ninon. Depois, por duas vezes acompanhara o rei à caça. Naquele mesmo dia, enquanto ela assinava papéis com o Sr. Colbert, ele estava no bosque de Marly.

Estaria resolvido a deixá-la em paz? Gostaria de poder convencer-se disso. Mas Filipe a habituara a seus revides cruéis. Seu silêncio não seria o do tigre prestes a dar o bote? A jovem suspirou.

Absorta em seus pensamentos, desatava o plastrão de laço de cetim, colocando os alfinetes, um a um, em uma taça de ônix. Tirou o corpete e desamarrou os atilhos das três saias, que caíram a sua volta em pesadas pregas.

Ela passou por sobre aquela barreira de veludo e de seda e apanhou no encosto de uma poltrona a camisola de fina cambraia que Javotte havia preparado. Em seguida inclinou-se para desatar as jarreteiras de pedras preciosas. Seus gestos eram tranquilos e sonhadores. Nas últimas semanas, perdera a agilidade costumeira.

Aproximou-se do toucador enquanto tirava os braceletes, para depositá-los em seus escrínios. O grande espelho oval devolveu-lhe sua imagem, dourada pela suave luz das velas. Com prazer um tanto melancólico, detalhou a perfeição de seu rosto, onde a carnação das faces e dos lábios tinha um frescor de rosa. A renda da camisola ressaltava os ombros roliços, de contorno juvenil, que sustentavam o pescoço liso e bem-conformado.

"Esse ponto veneza é decididamente uma maravilha. O Sr. Colbert tem razão em querer fabricá-lo na França."

Ela percorria com o dedo o ornato aracnídeo. Através das flores vazadas do delicado trabalhosa pele nacarada parecia brilhar. A renda avançava sobre os seios, deixando transparecer duas flores mais escuras.

Angélica ergueu os braços nus para soltar o adorno de pérolas colocado em forma de diadema sobre seus cabelos. Os cachos caíam pesados, com quentes reflexos. Malgrado o talhe espesso que a camisola vaporosa revelava, ela disse consigo mesma que era bela. A pergunta insidiosa feita por Lauzun tornou a seu espírito.

"Para quem?"

Ela experimentou a solidão de seu corpo, a um tempo tão cobiçado e desdenhado.        

Voltou-se com um novo suspiro e pegou o chambre de tafetá púrpura, envolvendo-se nele cuidadosamente.

Que faria nessa noite? Não tiijha sono.

Escreveria a Ninon de Lenclos? Ou à Sra. de Sévigné, a quem negligenciara um pouco? Ou faria algumas contas, com a aplicação habitual de seus tempos de comerciante?

Um passo de homem avançando na galeria começou a subir rapidamente a escada, fazendo soar as esporas. Era sem dúvida Mal-brant, o mestre de equitação de Florimond e de Cantor, apelidado de Malbrant Golpe de Espada, retornando de uma alegre jornada.

Mas o passo continuava a se aproximar.

Angélica sobressaltóú-se. Atinando quem poderia ser, quis alcançar a porta de um'-salto a fim de empurrar o ferrolho.

Era tarde demais. A porta abriu-se e em seu enquadramento surgiu

o Marquês du Plessis-Bellière.   

Ainda vestia a sobrecasaca de caça cinza-prateada guarnecida com pele negra, chapéu negro com uma única pluma branca e longas botas negras cobertas de .lama e neve derretida. Nas mãos, protegidas por luvas também negras, trazia o longo chicote para cães.

Permaneceu um instante imóvel, plantado nas pernas afastadas, e com um olhar cobriu o quadro formado pela jovem loura diante da penteadeira, em meio à desordem de adornos e jóias. Um lento sorriso distendeu-lhe os lábios.

Entrou e fechou a porta. A ele coube, de um golpe seco, estalar o ferrolho.

-       Boa noite, Filipe - disse Angélica.

Ao contemplá-lo, um misto de alegria e medo fazia-lhe pulsar o coração.

Era belo. Esquecera-se de quanto era belo e da marca de perfeição que sabia imprimir a toda a sua pessoa. Era o mais belo gentil-homem da corte. E lhe pertencia, tal como ela sonhara quando, garotinha apaixonada, mirava o belo adolescente.

- Não esperava por minha visita, senhora?

- Mas claro. Esperava por ela... Eu a desejava.

- Palavra que não lhe falta coragem. Não teria boas razões para temer minha cólera?

- Certamente. Eis por que pensava que, quanto mais cedo tivesse lugar esta entrevista, melhor seria. Nada se ganha em recuar o momento de engolir uma poção amarga.

O rosto de Filipe ensombreceu-se de cólera.

- Pequena hipócrita! Traidora! Você está em boa situação para fazer-me crer que minha presença era desejada, quando já tudo fez por levar-me de vencida. Não acabo de saber que adquiriu dois cargos permanentes na corte?

- Ah!... Você está ao corrente dos fatos - disse ela debilmente.

- Sim. Estou ao corrente dos fatos - ladrou ele, fora de si.

- Você não... não parece muito satisfeito.

- Você contava satisfazer-me buscando meios de me fazer encerrar na prisão para tecer em paz sua teia de aranha? E agora... agora acredita ter-me escapado. Mas ainda não foi dita a última palavra. Far-lhe-ei pagar caro o seu comércio. E não incluiu no preço o corretivo que lhe administrarei.

O chicote estalou no soalho, com um barulho seco de detonação. Angélica emitiu um grito. Sua resistência cedia.

Ela refugiou-se na alcova e pôs-se a chorar. Não, não, jamais teria forças para reviver a terrível cena do Plessis.

-       Não me faça mal, Filipe - suplicou. - Oh! eu lhe peço, não me faça mal... Pense na criança.

O jovem estacou. Suas pálpebras se estreitaram.

- Criança... Que criança?

- A que carrego comigo... seu filho!...

Um pesado silêncio tombou entre eles, perturbado apenas pelos soluços abafados de Angélica.

Por fim, o marquês tirou cuidadosamente as luvas, pousando-as, bem como ao chicote, sobre a penteadeira, e caminhou para a mulher com ar ressabiado.

-       Mostre-mo - disse.

Afastou as bordas do chambre e em seguida, jogando a cabeça para trás, explodiu em risadas.

-       Mas é verdade, por minha fé! Palavra, você está prenhe como uma vaqueira!

Sentou-se junto dela na borda da cama e estreitou-lhe os ombros, atraindo-a para si.

-       Por que não tê-lo dito antes, animalzinho indócil? Eu não a teria aterrorizado.

Ela chorava, emitindo pequenos soluços nervosos, o espírito em desordem.

-       Vamos, não chore mais, não chore mais - repetia ele.

Como era estranho ter a cabeça contra o-ombro brutal de Filipe, o rosto perdido em sua peruca, loura, com aroma de jasmim, e sentir-lhe a mão acariciando docemente o ventre onde estremecia uma nova vida, ainda mergulhada no limbo da gestação!

- Quando ele deve nascer?

- Breve... Em janeiro.

- Foi então no Plessis - retomou, após um instante de meditação. - Confesso que isso me rejubila. Não me desagrada que meu filho tenha sido concebido sob o teto de seus ancestrais. Hum! Deve-se acreditar que a violência e a cólera não lhe fazem medo. Será um guerreiror aceito o augúrio. Não tem com que beber à sua saúde?  

Foi, ele mesmo, apanhar de sobre a credencia de ébano duas taças de prata dourada e um frasco de vinho de Baume, ali colocado diariamente para prováveis visitas.

-       Vamos, beba! Mesmo se bebericar comigo não lhe agrada, manda o bom-tom que nos felicitemos por nossa obra. Por que me olha com esse pasmo estúpido? Porque ainda uma vez encontrou um meio sorrateiro de me desarmar?... Paciência, minha bela. Estou muito satisfeito à ideia de um herdeiro, para não lhe poupar. Respeitarei a trégua. Mas nós nos reencontraremos mais tarde. Que o diabo não a faça aproveitar ainda de minha bondade, para armar-me uma de suas jogadas traiçoeiras... Em janeiro, você disse?... Bom. Até lá, contentar-me-ei em tê-la sob minha mira.

Erguendo o cotovelo, bebeu um gole e jogou a taça no lajedo, gritando:

- Viva o herdeiro dos Miremont du Plessis de Bellière!

- Filipe - murmurou Angélica -, você é em verdade o indivíduo mais surpreendente, mais desconcertante que já encontrei. Nenhum homem que recebesse de minha parte uma tal confissão num momento como este teria deixado de lançar-me ao rosto,o meu intento de fazê-lo endossar uma paternidade de que não era responsável. Estava persuadida de que você me acusaria de tê-lo desposado já grávida.

Filipe calçava as luvas com cuidado. Lançou-lhe um olhar demorado e sombrio, quase furioso.

- Sem demonstrar - disse ele - que, malgrado as lacunas de minha educação, eu sei contar até nove, e que, se essa criarrça não fosse minha, a natureza já a teria constrangido a colocá-la no mundo, ajuntarei o seguinte: acredito-lhe capaz de tudo, e de algumas coisinhas mais, porém não desse género de baixezas.

- Elas são, no entanto, habituais nas mulheres... De você, que tanto as menospreza, eu esperava uma reação de dúvida.

- Você não é uma mulher como as outras - disse Filipe em tom arrogante. - Você é minha mulher.

Ele saiu a passo largo, deixando-a pensativa e agitada por uma emoção que semelhava a esperança.

 

Nascimento do pequeno Carlos Henrique

Numa pálida manhã de janeiro, em que o brilho da neve punha reflexos irreais nas tapeçarias escuras, Angélica sentiu que o momento havia chegado. Ela fez chamar a parteira do bairro do Ma-rais, a Sra. Cordet, 3e quem solicitara os ofícios. Várias grandes damas entre suas amigas haviam-na recomendado. A Sra. Cordet tinha um caráter decidido e a bonomia necessária para ser bem-sucedida junto a uma clientela difícil. Fazia-se acompanhar por duas aprendizes, o que lhe conferia importância. Mandou armar diante da lareira uma grande mesa apoiada em cavaletes, onde "trabalhariam" mais confortavelmente.

Foi trazido um braseiro para elevar a temperatura do quarto. As criadas enrolavam bandas de linho e ferviam água em tachos de cobre. A Sra. Cordet ali mergulhou algumas ervas, e o local impregnou-se de aromas medicinais que lembravam os campos sob um sol de verão.

Angélica estava terrivelmente nervosa e impaciente. Aquele parto não lhe interessava. Enfurecia-se por não haver quem o fizesse em seu lugar.

Incapaz de permanecer no leito, caminhava de um lado para outro, detendo-se diante da janela para contemplar a rua completamente branca e acolchoada de neve. Através dos vidros encaixilhados em chumbo podiam-se adivinhar as silhuetas vaporosas dos passantes. Uma carruagem que rodava oscilando abria caminho com dificuldade, e o bufo dos quatro cavalos escapava em nuvens azuladas no ar cristalino. O proprietário bradava à portinhola. O cocheiro praguejava. As comadres riam.

Era o dia que se segue à Epifania, data de júbilo, passada entre enormes bolos dourados e taças de bom vinho tinto e branco. Toda Paris tinha a garganta ardendo por ter gritado em excesso "O rei bebe".

Na Mansão do Beautreillis, todos se regalaram, como mandava a ocasião, ao redor de Florimond, reizinho da fava, coroado de ouro, e que erguia seu copo de cristal sob os vivas. Hoje, todos tinham sono e bocejavam. Era bem o dia de pôr uma criança no mundo!

Para iludir sua impaciência, Angélica informava-se sobre detalhes domésticos. Haviam recolhido as sobras para os pobres? Sim, quatro corbelhas foram distribuídas naquela manhã, diante do pórtico, aos aleijados da esquina.

E duas panelas de esmolas haviam sido levadas aos enfants Meus, os órfãos do bairro do Temple, que vestiam azul, e aos enfants rouges, os órfãos do Hôtel-Dieu, de roupas vermelhas.

Haviam posto as toalhas de molho, guardado a louça, lavado ó talher com água de farelo e polido as facas com cinza de feno?...

A Sra. Cordet procurava acalmar a paciente. Que necessidade havia de se ocupar desses detalhes? A criadagem era suficientemente numerosa, que o mordomo se encarregasse de tudo. Havia mais em que pensar. Mas era o que Angélica não desejava fazer.

-       Ninguém diria que é a sua terceira criança - dizia a parteira, ralhando com ela. - A senhora faz tanta comédia como por uma primeira.

Não fora tanta assim, na verdade. Revia-se dando à luz Florimond, jovem mãe tensa, assustada, mas silenciosa. Era, então, bem mais corajosa. Guardava a força dos animais jovens, que não passaram pela vida e se acreditam invencíveis.

Um rosto inclinava-se sobre ela. Uma voz terna e profunda lhe dizia: "Meu coração... você sofre. Perdoe-me. Não imaginava que sofreria tanto..." O grande Conde de Toulouse compungia-se à tortura do corpo amado.

Como fora feliz àquela época!

Mas sua energia fora minada por muitos golpes. Hoje, tinha os nervos frágeis.

- É que a criança é muito pesada - gemeu. - As outras não eram tão pesadas...

- Bah! Bah! Quer engambelar-me. Encontrei seu filho mais jovem na antecâmara. Encorpado como é hoje, não deve ter feito rir quando pôs o nariz no mundo.

O nascimento de Cantor! Não queria recordá-lo. Fora um pesadelo fétido, um abismo escuro e glacial, onde conhecera todas as dores. Mas ao pensar no horrível Hôtel-Dieu, onde tantos inocentes davam seu primeiro grito sobre a ferra, Angélica teve vergonha de suas jeremiadas, e isso incitou-a a mostrar-se mais razoável.

Consentiu em sentar-se numa grande poltrona, uma almofada sob os rins e um tamborete sob os pés. Uma das senhoritas Gilandon propôs-se a ler-lhe algumas orações. Angélica mândou-a passear. Que fazia aquela estouvada no quarto de uma mulher grávida? Que procurasse o Abade de Lesdiguières e, se nada tivesse de melhor a dizer um ao outro, fossem acender um círio na Igreja de Saint-Paul.

Por fim as contrações tornaram-se mais frequentes e mais intensas, e a Sra. Cordet deitou-a na mesa, diante do fogo. A jovem mãe não mais contro4ava.as queixas. Era o momento difícil e angustiante em que o fruto, prestes, a soltar-se, parece arrancar as raízes da árvore que o carregou. Os ouvidos de Angélica zuniam sob o assédio de vagas dolorosas. Acreditou ouvir uma agitação no exterior e uma porta bater.

A voz de Teresa disse: "Oh! o senhor marquês!"

Só compreendeu o que acontecia ao ver Filipe a sua cabeceira, altivo, magnífico e insólito entre as mulheres azafamadas, com sua sobrecasaca, sua espada, punhos de renda, peruca e chapéu de plumas brancas.

-       Filipe! Que faz aqui? Que quer? Por que veio?

Ele teve uma expressão irónica e altiva.

-       Hoje é o dia do nascimento de meu filho! A coisa me interessa, ora veja!

A indignação reanimou Angélica. Ela ergueu-se sobre um cotovelo.

-       Veio para ver-me sofrer - gritou. - Você é um monstro. O homem mais cruel, mais ignóbil, mais...

Um novo espasmo cortou-lhe a palavra. Jogou-se para trás, procurando alento.

-       Vamos! Vamos! - disse Filipe. - Não deve enervar-se.

Ele pousou a mão em sua fronte úmida e começou a acariciá-la lentamente, enquanto dizia palavras que ela mal compreendia, mas cujo murmúrio a tranquilizava.

-       Calma! Calma! Vai tudo bem! Coragem, minha bela...

"É a primeira vez que me acaricia", pensou Angélica. "Retoma comigo os gestos e palavras que emprega no canil ou no estábulo, para a cadela ou a égua que deve parir. E por que não? Que sou neste momento, senão um pobre animal... Contam que ele pode ficar horas confor-tando-os pacientemente... que os mais selvagens lhe lambem as mãos..."

Era, na verdade, o último homem de quem esperaria ajuda nesse momento. Mas estava escrito que Filipe du Plessis-Bellière jamais cessaria de surpreendê-la. Sob sua mão, ela relaxava e recobrava forças.

"Imagina que não conseguirei pôr seu filho no mundo? Mostrar-lhe-ei do que sou capaz. Não darei um único grito!"

-       Assim! Assim! - dizia a voz de Filipe. - Não tema nada... E vocês, criaturas estúpidas, ajudem-na um pouco. Que bicho lhes mordeu?

Falava-lhes como aos criados do canil.

Na semi-inconsciência do momento decisivo, Angélica ergueu os olhos para Filipe. Naquele olhar acuado, arregalado e como que velado por uma doçura patética, ele vislumbrou como seria seu abandono... Essa mulher que ele imaginava feita de dureza ambiciosa e de premeditação seria capaz de fraqueza? Aquele olhar atravessava o passado. Era o olhar de uma garotinha de vestido cinza que ele trazia pela mão, e que apresentara aos risos zombeteiros de seus amigos: "Eis a Baronesa do Triste Vestido".

Filipe cerrou os dentes e cobriu com mão rápida aquele olhar.

- Nada tema - repetia -, nada mais tema, agora...

- É um menino - disse a parteira.

Angélica via Filipe estender à frente um pacotinho vermelho, envolto em um pano, e gritar:

-       Meu filho! Meu filho!

Ele ria.

A jovem foi transportada para sua cama de lençóis perfumados, onde o esquentador de cobre passara muitas vezes.

O sono invencível das mulheres que acabam de dar à luz pesava sobre ela. Procurou Filipe com os olhos.

Ele se debruçava sobre o berço do filho.

"Agora não lhe interesso mais", disse consigo mesma, tomada de decepção.

No entanto, uma impressão de felicidade acompanhava-a em seu repouso.

 

A canção de Cantor

Foi quando depositaram pela primeira vez o bebe em seus braços que Angélica compreendeu o que aquela nova existência significava.       

O pimpolho era belo. Haviam-no enfaixado com tiras de linho debruadas com um galão de cetim que cobriam seus braços e pernas e enrolavam-se em capuz ao redor da cabeça. Não ficava à mostra senão uma redonda carinha de porcelana branca e rosa, onde se abriam duas pupilas de um azul indefinido, mas que logo adquiririam o mesmo safira transparente das de seu pai.

A ama-de-leite e as criadas repetiam admiradas que ele era louro como um pintainho e rechonchudo como um amor.

"Essa criança saiu do meu ventre", disse Angélica consigo mesma, "e no entanto não é filho de Joffrey de Peyrac! Misturei meu sangue, que só a ele pertencia, a um sangue estranho."

Aterrada, via nela o fruto de uma traição que só agora compreendia. Disse a meia voz:

-       Não sou mais sua mulher, Joffrey!

Mas não o quisera assim?

Ela pôs-se a chorar.

-       Quero ver Florimond e Cantor - gritou em meio aos soluços. - Oh! suplico-lhes, que façam vjr..rheus filhos.

Eles vieram. Adiantaram-se, e ela estremeceu ao ver que o acaso fizera-os vestir naquele dia um traje idêntico de veludo negro. Diferentes e semelhantes, com o mesmo talhe, tez mate e cabeleira espessa caindo sobre a grande gola de renda branca, estavam de mãos dadas, gesto familiar no qual desde a mais tenra infância pareciam cavar forças para seguir o caminho de seu destino ameaçado.

Saudaram e sentaram-se com polidez em dois tamboretes. O es-petáculo inusitado de sua mãe estendida entre lençóis impressionava-os.

Angélica procurou dominar o desespero que lhe apertava a garganta. Não queria emocioná-los.

Perguntou-lhes se haviam visto seu novo irmão. Sim, haviam-no visto. Que pensavam dele? Ao que tudo indicava, não pensavam nada. Após consultar Cantor com o olhar, Florimond afirmou que era um "encantador querubim". Os resultados dos esforços conjugados dos quatro preceptores eram realmente notáveis. O método, em que entravam vergastadas e a palmatória, contribuía em parte para isso, porém, mais ainda, a mentalidade das duas crianças, desde cedo dobradas por terríveis disciplinas. Por terem passado fome, frio e medo, pareciam adaptar-se a tudo. Abria-se-lhes a porta dos campos: logo galopavam e transformavam-se em selvagens. Impunham-se-lhes costumes refinados, a obrigação de saudar e fazer cumprimentos: tornavam-se então perfeitos jovens senhores.

Pela primeira vez pensou nessa flexibilidade inata de seu cará-ter. "Flexíveis como a pobreza ensina a ser!"

- Cantor, meu trovador, não quer cantar-nos alguma coisa?

A criança buscou a guitarra e preludiou alguns acordes.

- "O rei quis mirar suas damas

E fez soar o tambor.

Ao ver surgir a primeira,

Ficou perdido de amor..."

"Você me amou, Joffrey. E eu o adorei. Por que me amou? Porque era bela?... Você tão apaixonado pela beleza! Um belo ob-jeto no seu Palácio da Gaia Ciência... Mas você me amava para além disso! Eu o soube quando seus rijos braços me estreitaram até fazer-me gemer... No entanto, eu ainda era infantil... Porém, íntegra. Talvez tenha sido por isso que você me amou tanto..."

-"Quem é a bela, pergunta

Ao marquês, caso o souber.

E o marquês logo ajunta:

Sire, é minha mulher."

"Minha mulher... Como ele disse essas-palavras na outra noite, o louro marquês de olhar impenetrável! Não sou mais sua mulher, Joffrey! Ele me reclama. E seu amor afasta-se de mim como uma barca que me abandona numa margem gelada. Nunca mais! Nunca mais!... É difícil dizer a si mesmo: nunca mais... admitir que você se torna uma sombra para mim também."

-"Marquês, tens mais sorte que eu

Por teres esposa tão bela.

Porém, se o consentisses,

Com prazer-cuidaria dela."

Filipe não voltou para vê-la. Não mais lhe manifestou interesse. Agora que ela cumprira a tarefa, ele a desdenhava. Para que esperar? Ela jamais o compreenderá. Que dizia Ninon de Lenclos a seu respeito? "É um nobre por excelência. Fica em transe por questões de etiqueta. Teme uma mancha de lama em sua meia de seda. Mas não teme a morte. E, quando morrer, estará sozinho como um lobo e não pedirá socorro a ninguém. Não pertence senão ao rei e a si mesmo."

-"Sire, se não fôsseis o rei,

Faria por ser vingado.

Porém, senhor, sois o rei

E eu sou vosso criado."

O rei... O rei todo-poderoso que caminha em seus faustosos jardins. A geada adornou as alamedas arborizadas com novas luzes. Seguido pelo vasto cortejo empenachado, ele vai de bosquete em bosquete. Os mármores têm o brilho- da neve. Na extremidade de uma aléia cor de malva, Ceres, Pomona e Flora, estátuas de ouro, cintilam e se miram no gelo de um tanque redondo. O rei traz seu bastão na mão enluvada, mão de rapaz e de soberano, que também decide dos destinos, distribui a vida e a morte.

-"Adeus, coração, minha vida.

Adeus, esperança minha.

Se temos que servir ao rei,

Devemos, então, separar-nos..."

"Senhor Deus! Não é a canção que Cantor quase entoou diante da rainha, no outro dia, em Versalhes? Sem o Abade de Lesdiguiè-res, que disparate não teria cometido!... O abade decididamente tem expediente. Será preciso remeter-lhe nova gratificação."

-"A rainha compôs um huquê

De flores-de-lis com beleza,

E o perfume desse buque

Levou ã morte a marquesa."

"Pobre Rainha Maria Teresa! Será incapaz de enviar buques de flores envenenadas às suas rivais, como o fez, outrora, Maria de Médicis a uma das favoritas do amante do belo sexo. Só lhe resta chorar e assoar o nariz vermelho. Pobre rainha!..."

 

Visita da Sra. Scarron

A sra. de Sévigné escreveu à Sra. du Plessis-Bellière, contando-lhe as novidades da corte. "  

"Hoje, em Versalhes, o rei abriu o baile com a Sra. de Montes-pan. A Srta. de La Vallière-estava presente, mas não dançou. A rainha, que ficou em Saint-Germain, não faz tanto caso..."

As tradicionais visitas à parturiente, que deveriam prolongar-se até a cerimónia de ação de graças, revestiram-se, na Mansão do Beautreillis, de um brilho inusitado.

O favor com que o rei e a rainha haviam acolhido seu novo súdito no mundo incitara os representantes do tout-Paris a vir fazer a corte à cabeceira da bela marquesa.

Angélica mostrava com orgulho a pequena arca forrada de cetim azul achamalotado de flores-de-lis, presente da rainha, e que continha um grande cueiro em tela de prata e dois lençóis da Inglaterra escarlates, uma manta de tafetá azul e um encantador enxoval com camisinhas em tela de Cambrai, toucas bordadas e babadouros floridos.

O rei havia ajuntado duas bomboneiras em prata dourada e pedrarias, cheias de confeitos.

O camarista-mor, Sr. de Gesvres, entregara pessoalmente à jovem mãe os presentes de Suas Majestades e transmitira-lhe seus cumprimentos. Essas atenções reais, por mais-envaidecedoras que tossem, não transgrediam a etiqueta: a mulher de um marechal de França fazia jus a elas.

Mas foi o suficiente para fazer voltar, qual chama temporariamente abafada, o boato de que a Sra. du Plessis-Bellière arrebatara o coração de Sua Majestade. Houve mesmo as más-línguas a aventar que o robusto pimpolho instalado numa almofada de veludo carmesim, entre a ama-de-leite e a embaladeira, tinha nas veias o sangue de Henrique IV.

Angélica dava de ombros e desdenhava tais alusões. Aquelas pessoas estavam loucas, mas eram, afinal, divertidas! Seu quarto não se esvaziava. Recebia em sua intimidade como uma preciosa. Muitas fisionomias um pouco esquecidas voltaram a aparecer. Sua irmã Hortênsia, a mulher do procurador, veio com toda a ninhada. Alçava-se a cada dia nos degraus da alta burguesia e não podia desdenhar uma relação tão em evidência como sua irmã, a Marquesa du Plessis-Bellière.

A Sra. Scarron também apareceu. Por acaso, Angélica não estava com visitas. Elas puderam conversar à vontade.

A companhia da jovem viúva era agradável. De humor estável, ela parecia ignorar à maledicência e a ironia, a violência e a irritação. Não era maçante nem rabugenta. Nem severa. Angélica espantava-se por sentir em relação a ela a amizade calorosa e confiante que lhe inspirava Ninon de Lenclos.

Francisca continuava lá embaixo, pois, na luta que travava, não entendia abandonar nem sua virtude nem sua dignidade. De uma economia escrupulosa, não despendia um único sol inutilmente. Prudente, não se engajava em nenhum negócio arriscado. Malgrado sua pobreza e sua beleza, não se lhe conheciam nem dívidas... nem amantes. Contentava-se em apresentar petições com inalterável perseverança. Mendigar do rei não é mendigar. E reclamar do reino sua parte de vida, seu lugar ao sol. Até então haviam-no recusado. Ela era tão pobre! Com riqueza, podia-se conseguir algo mais.

- Não gosto de me tomar como exemplo - explicou Francisca -, mas considere que apresentei ao rei em pessoa, ou por meio de amigos altamente colocados, mais de mil e oitocentas requisições!

- Hein?! - exclamou Angélica, erguendo-se no leito.

- E que, à parte alguns magros benefícios que logo me foram retirados, nada mais obtive. Mas não perco a coragem. Pois dia virá em que o que posso propor de honesto e útil para o serviço de Sua Majestade ou de alguma grande família terá seu preço... Talvez devido à sua raridade mesma.

- Está tão segura de que é bom o seu sistema? Ouvi contar que Sua Majestade lamentava "que choviam memoriais da Sra. Scarron como folhas de outono" e que, a seus olhos, você está a ponto de tornar-se uma personagem tão imutável quanto as das tapeçarias de Saint-Germain e de Versalhes. A serenidade de Francisca não pareceu se alterar.

- Essa notícia não é má. Embora o rei proteste, nada lhe agrada tanto quanto a assiduidade, e para.tèr sucesso é preciso primeiro atrair a atenção do soberano. E a coisa está feita, você o disse. Agora estou certa de que atingirei meu objetivo.

- Quer dizer...

- O sucesso!

Uma chama brilhava em seu olhar. Ela continuou, baixando a voz:

- Acautelo-me com as pessoas loquazes, mas você não é desse tipo, Angélica! Pois, se você discorre de bom grado e não sem espírito, o faz frequentemente para iludir e dissimular o que existe de mais caro em sua pessoa. Continue a calar-se. É o modo corre-to de viver no mundo,, permanecendo protegida. Venho me calando há muitos anos. Mas lhe farei uma confidência, de que ainda não fiz parte a ninguém, e que explica o segredo de minha perseverança: fui objeto de uma profecia.

- Você fala das predições absurdas feitas pela adivinha Monvoi-sin, quando a visitamos, nós três, Atenaís de Montespan, você e eu?

- Não. Na verdade, a Voisin inspira-me bem pouca confiança. Busca em excesso sua eficácia no vinho. A profecia a que aludo foi-me feita em Versalhes, há três anos, por um jovem operário. Você sabe que muitas das pessoas simples, que fazem trabalho braçal, e cujo cérebro jamais foi cultivado, têm o dom de dupla visão. Era um aprendiz de pedreiro gago e coxo. Eu atravessava um dos canteiros de obras ao redor do palácio, onde Sua Majestade está sempre fazendo novos embelezamentos. Aquele jovem ergueu-se, veio até mim e fez-me profundas reverências. Seus companheiros estavam intrigados, mas não zombavam, pois o tinham por adivinho. Ele disse, então, com o olhar iluminado, que saudava em mim "a primeira mulher do reino" e que, de onde nos encontrávamos, via o Palácio de Versalhes ainda mais imenso e majestoso, com todos os cortesãos se inclinando, de chapéu na mão, a minha passagem. Quando me sinto desencorajada, recordo-me dessas palavras e torno a Versalhes, pois ali me espera o destino.

Ela sorriu, mas em seus olhos escuros continuava a brilhar um fogo ardente.

Esse discurso, vindo de outra pessoa, teria feito rir Angélica. Mas, feito pela Sra. Scarron, ela ficou impressionada. Via-a agora sob sua verdadeira luz. Desmesuradamente ambiciosa, com um amor-próprio sem limites. Humilde e modesta na superfície, tenaz e cheia de orgulho no fundo.

Longe de ver aumentar sua antipatia, a amizade com a Sra. Scarron pareceu-lhe mais preciosa a conservar.

- Esclareça-me - disse ela -, você que tem a compreensão de tantas coisas. Confesso que não atino com os obstáculos que se erguem à minha frente na corte. Durante longo tempo suspeitei que meu marido fosse um intrigante...

- Seu marido é inocente. Ele sabe o que se passa, pois tem grande experiência da corte, mas nenhuma vontade de intervir. O que ocorre é que você é muito bela!

- Como isso pode prejudicar-me? E a quem? Há mulheres mais belas que eu, Francisca! Não me lisonjeie sem motivo.

- Você é também bastante... diferente.

- O rei já me disse algo assim - murmurou Angélica, pensativa.

- Está vendo! Não somente você se coloca entre as mais belas mulheres da corte, e se adorna à maravilha, seduzindo e divertindo os que a cercam assim que abre a boca, como tem ainda essa coisa inestimável que tantas beldades frívolas sonham adquirir, sem jamais consegui-lo...

- Mas o quê, então?

- Uma alma - disse a Sra. Scarron, em tom lastimoso.

O ardor extinguira-se de sua face. Contemplava suas mãos encantadoras, pousadas sobre os joelhos, e que os duros trabalhos domésticos haviam magoado, malgrado os cuidados que tomava.

-       Nessas condições, como você quer evitar... levantar legiões de inimigos... assim que aparece - concluiu, com um suspiro de solado.

E rompeu em lágrimas.

- Francisca - suplicou Angélica -, não diga que chora por minha causa ou de minha alma!

- Não... na verdade. Pensava em minha própria sorte. Ser mulher, ser bela e ter uma alma, quanto sofrimento e como encontrar um dia o próprio caminho... Quantas oportunidades já-me foram recusadas por isso!

O incidente acabou de persuadir Angélica de que a Sra. Scarron jamais seria sua inimiga; e que era, apesar de tudo, vulnerável, e tinha os nervos à flor da pele. Talvez a reflexão do rei a tivesse atingido mais do que deixava transparecer. Com remorsos, Angélica disse consigo mesma que a jovem viúva por certo não se alimentava bem há muito tempo. Qúâse tocou a sineta para ordenar aleo de comer, mas conteve-se com receio de rhagoá-la.

- Francisca - disse com energia -, seque suas lágrimas. E pense na profecia do seu pedreiro. O que considera prejudicial representa, ao contrário, um sério trunfo que a levará mais longe que aos outros. Você é hábil e já obteve importantes er sérias prote-ções. A Sra. d'Aumont a protege, segundo me disseram.

- E também a Sra. de Richelieu e a Sra. Lamoignon - completou a Sra. Scarron, que dominara aquele momento de fraqueza. - Já há três anos frequento assiduamente seus salões.

- Salões austeros - fez Angélica com uma careta. - Ali sempre me entediei ao extremo.

- São tediosos, mas ali.se progride aos poucos. Eis onde a espreita o perigo, Angélica. E onde está seu erro. Pelo" mesmo erro a Srta. de La Vallière se põe a perder. Desde que você frequenta a corte, ainda não pensou em separar seus inimigos. Você não pertence ao clã da rainha, nem ao de Madame ou aos dos príncipes. Você não escolheu entre os "importantes" e os "elegantes", nem entre os "libertinos" e os "devotos".

- Os devotos? Você acredita que tenham um papel importante a desempenhar? Não me pareceu existir lugar para Deus nesse mundo frívolo*

- Ele existe, acredite-me, e não sob o aspecto do Senhor indulgente cuja imagem gostamos de rever em nossos missais, mas sob o do Deus de justiça que carrega uma balança.

- Você me confunde.

- O espírito do mal não enverga na corte sua máscara mais perigosa? É preciso o deus dos exércitos para expulsá-lo.

- Em suma, você me aconselha a escolher entre Deus e o Diabo.

- Exatamente - confirmou a Sra. Scarron docemente.

Ela levantou-se, tomou seu manto e seu leqire negro, que jamais abria para esconder-lhe o desgaste. Depois de beijar a fronte de Angélica, afastou-se sem ruído.

 

Filipe faz raptar seu filho - Aceita Angélica em sua casa

-É bem o momento de falar de Deus e do Diabo, senhora. Que terrível desgraça!

Bárbara, o rosto afogueado, inclinava-se entre as cortinas. Achava-se ali há algum tempo. Fora ela quem acompanhara a Sra. Scar-ron até a porta. Depois voltara, o olhar assustado. Não conseguindo com seus suspiros e soluços convulsivos atrair a atenção da patroa, absorta em reflexões, decidira-se a falar:

- Senhora, que terrível desgraça!

- Que acontece, agora?

- Nosso Carlos Henrique desapareceu.

- Que Carlos Henrique?

Angélica ainda não se habituara ao nome do recém-nascido: Carlos Henrique Armando Maria Camilo de Miremont du Plessis-Bellière.

- O bebé, você quer dizer? A ama-de-leite esqueceu onde o colocou?

- A ama também desapareceu. E a embaladeira. E a pequena que enrola as faixas. Enfim, toda a "casa" do Sr. Carlos Henrique.

Angélica afastou as cobertas em silêncio e começou a vestir-se.

- Senhora - gemeu Bárbara -, está louca! Uma grande dama que deu à luz há seis dias não pode levantar-se.

- Então por que você veio procurar-me? Suponho que na intenção de que faça alguma coisa. Isso, se essa história da carochinha tiver alguma base real. Mas suspeito muito de que você se abandone a uma certa inclinação pelo vinho. Desde que o abade tomou para si o encargo dos meninos que você não deixa a despensa. O ócio só a prejudica.

No entanto teve que se render aos fatos: a sobriedade da pobre Bárbara não estava em questão. O aposento reservado ao bebé mostrou-se deserto. O berço, a arca contendo seu enxoval, os primeiros brinquedos e até o frasco de óleo de absinto e de creme de almíscar que a ama lhe passava no umbigo haviam desaparecido.

Alvoroçados por Bárbara, os criados comprimiam-se aterrados diante da porta.

Angélica passou às perguntas. A partir de que momento a ama e suas ajudantes não haviam mais sido vistas? Ainda pela manhã, a pequena tinha vindo às cozinhas buscar uma bacia de água quente. As três guardiãs do pequeno senhor haviam jantado lautamente, como de hábito. Depois, havia um vazio. Descobriu-se que, à hora em que a criadagem se deixa em geral ganhar por uma doce sonolência digestiva,"o porteiro fora jogar uma partida de quilha com os cavalariços no p£tio dos fundos. A guarita e o pátio de entrada ficaram, pois, desertos por urna boa hora. Tempo suficiente para que três mulheres carregando um bebé, um berço e uma arca de enxoval pudessem sair.

O porteiro jurou que a partida não durara mais que um quarto de hora.

-       Então você estava de conluio com aquelas celeradas - lançou-lhe Angélica.

Prometeu-lhe umas bastonadas, o que jamais ocorrera com qualquer de seus servidores. A medida que os minutos passavam, vinham-lhe à memória aterradoras histórias de crianças mártires, raptadas e imoladas. A ama fora recomendada pela Sra. de Sévig-né, que a tinha por simples e afável. Mas como fiar-se nessa casta de criados que tinham um pé na casa de seus mestres e outro na terrível matterie?

Flipot chegou nesse meio tempo, gritando que sabia de tudo. Com o faro de um velho mion do Pátio dos Milagres, tinha sido lesto em encontrar a pista. Carlos Henrique du Plessis-Bellière havia simplesmente se mudado, com toda a sua '-Nrâsa", para a mansão de seu pai, no Faubourg Saint-Antoine.

-       Maldito Filipe!

Não podia fingir diante de seus empregados, que a haviam visto, cinco minutos antes, desvairada de ansiedade. Então deixou que sua cólera explodisse. Disse-lhes, para ganhá-los, que aquela era a oportunidade de desancar a criadagem insolente do Marquês du Plessis, que os tratava de "lacaios de mercadora", quando tinham, como outros, o direito à libré "camurça e azul" da casa, e quando ela era recebida e distinguida pelo rei...

Disse-lhes que se armassem; e então, munidos de bastões, alabardas e espadas, desde o último ajudante de cozinha até o jovem abade, todos tomaram o caminho do Faubourg Saint-Antoine. Angélica ia em sua cadeirinha.        ;

Compunham uma bela tropa, em grande algazarra. As pessoas do bairro, gulosas por tais rixas, e não eram raras entre as diferentes criadagens dos grandes senhores, acompanharam o movimento com entusiasmo.

A vaga foi bater na porta de carvalho negro da mansão do Plessis. Da janela gradeada da guarita, o suíço tentou parlamentar. Era ordem do senhor marquês não abrir a porta a ninguém. A ninguém, sem exceção, em circunstância alguma.

- Abra à sua senhora - rugiu Malbrant Golpe de Espada, brandindo dois petardos surgidos, por que milagre?, das abas de seu casaco -, ou palavra de Golpe de Espada que ponho estas duas "tochas" no seu nariz e faço saltar o portão e sua guarita.

Racan já pusera fogo a uma vareta com pavio.

O porteiro, aterrorizado, disse que abriria a porta lateral à senhora marquesa, sob a condição de que a canalha ficasse do lado de fora. Com a promessa de Angélica de que não haveria batalha nem assalto imediatos, ele entreabriu a porta e ela precipitou-se na mansão, seguida das senhoritas de Gilandon. Não teve dificuldade em encontrar os trânsfugas no andar de cima. Esbofeteou a ama-de-leite, pegou o bebe, e ia descer quando La Violette posse diante dela. Com ele vivo, o filho do senhor marquês jamais deixaria a casa do pai. Ele o jurara.

Angélica apostrofou-o em dialeto do Poitou, de onde ele também era originário.

O arrogante criado acabou por perder o sangue-frio. Desmoronou de joelhos diante dela, suplicando-lhe, a voz embargada, que se apiedasse dele. O senhor marquês ameaçara-o com os piores castigos, se deixasse a criança partir. Há anos servia o senhor marquês. Juntos haviam matado seu primeiro esquilo na floresta de Nieul. Ele o acompanhara em todas as suas campanhas.

Nesse meio tempo, um lacaio de libré camurça e amarela galopava a toda a brida na estrada de Saint-Germain, na esperança de encontrar o marquês antes que seus criados e os de sua mulher se degolassem em Paris.

Era preciso ganhar tempo.

O capelão do marquês veio tentar fazer com que a mãe espoliada se mostrasse razoável. Em desespero de causa, foram procurar o intendente da família, Sr. Moliijes.

Angélica não o sabia em Paris. Ao reconhecer a silhueta austera, sempre tesa e segura, malgrado os cabelos embranquecidos, cedeu em sua vindita. Com Molines poderia se entender.

O intendente pediu-lhe que tomasse lugar junto ao fogo. Elogiou a bela criança, que folgava em ver nascer no lar de seu senhor.

- Mas ele quer raptar-mo!

- E seu filho, senhora. E, creia em meu espanto, jamais vi um homem de sua condiçâo-tão estupidamente feliz por ter um filho.

- Você o defende sempre - disse Angélica com mau humor. - Custo a imaginá-lo f&liz por alguma coisa, a não ser pelo sofrimento que inflige. Sua maldade ultrapassa em muito o quadro tão sombrio que você havia pintado.

Consentiu, no entanto, em mandar de volta seu pessoal e em esperar pacientemente pela chegada do marido, contanto que Molines servisse de árbitro imparcial.

Quando, ao cair da noite, Filipe entrou, fazendo soar as esporas, encontrou Angélica e o intendente em palestra amigável, ao lado da lareira.

O pequeno Carlos Henrique, abraçado junto a um seio ciumento, mamava avidamente em sua mãe. O movimento das chamas punha reflexos no colo alvo e roliço da jovem. Tal espetáculo surpreendeu o gentil-homem o suficiente para dar tempo a Molines de levantar-se e tomar a palavra. Contou-lhe o quanto a Sra. du Plessis ficara transtornada com a partida de seu filho. O Sr. du Plessis ignorava que o jovem Carlos Henrique devia ser alimentado pela mãe? A saúde do bebé não era tão perfeita quanto sua aparência exterior pudesse fazer crer. Privá-lo-do leite da mãe seria colocar sua vida em perigo. Quanto à Sra. du Plessis, seu marido ignorava que ela corria o risco da febre quarta? Era o menor dos aborrecimentos que causaria um aleitamento bruscamente interrompido.

Sim, Filipe o ignorava. Aquelas considerações estavam, por certo, muito longe de suas preocupações habituais. O rosto arrogante escondia a custo um misto de inquietação e ceticismo. Mas Molines sabia o que dizia. Era pai de família e até avô.

O marquês teve um último ímpeto de defesa.

- É meu filho, Molines! Quero que permaneça sob meu teto.

- Mas não seja por isso, senhor marquês, a Sra. du Plessis quedar-se-á com ele.

Angélica e Filipe estremeceram e guardaram obstinado silêncio. Depois trocaram um olhar de crianças agastadas prestes a se reconciliar.

- Não posso abandonar meus outros dois filhos - disse Angélica.

- Instalar-se-ão aqui, igualmente - disse Molines. - A mansão é vasta.

Filipe não o contradisse.

Molines retirou-se após cumprir sua missão. Filipe continuou a caminhar de um lado para outro, lançando por instantes um olhar sombrio a Angélica, que dava toda a atenção ao apetite do jovem Carlos Henrique.

O marquês acabou por puxar um tamborete e sentar-se, junto da jovem. Angélica lançou-lhe um olhar inquieto.

- Vamos - disse Filipe. - Você tem medo, confesse-o, sob seu ar insolente. Talvez você não contasse com que as coisas se passassem desse modo. Ei-la no covil do lobo. Por que me olha com desconfiança, ao me instalar a seu lado? Mesmo a um camponês, não sendo um bruto, apraz sentar-se junto à lareira, para contemplar sua mulher amamentando seu primeiro filho.

- Justamente, Filipe. Você não é camponês... e é um bruto.

-       Vejo com satisfação que seu ardor guerreiro não se extinguiu.

Ela voltou a cabeça para ele num gesto pleno de doçura, e o olhar do jovem deslizou do colo gracioso para o seio branco junto ao qual a criança adormecera.

-       Não imaginava que você me pregaria tão cedo uma partida, Filipe. Você se mostrou bom comigo, no outro dia.

Filipe sobressaltou-se como se tivesse recebido um insulto.

-       Você se equivocou. Não sou bom. Só não gosto de ver um animal de raça prejudicado por um parto malfeito. Era minha obrigação ajudá-la. Minhas opiniões sobre a espécie humana e a suavidade das mulheres, em particular, não mudaram. Pergunto-me, aliás, como seres que se aparentam tão de perto à espécie animal podem ainda se permitir ter orgulho. Não tinha tanta altivez na outra manhã. E, como as cadelas mais indóceis, na hora do parto encontrou a mão confortadora do mestre.

- Não o nego. Mas sua filosofia é um pouco limitada, Filipe, porque se entende melhor comos animais que com os humanos, julga os últimos pelos primeiros. Para você, uma mulher não representa senão uma vaga mistura entre a cadela, a loba e a vaca.

- Juntando-se-lhe o espírito da Serpente.

- O monstro do Apocalipse, em suma.

Olharam-se, rindo. Filipe cerrou os lábios, engolindo aquele movimento de alegria espontânea.

-       O monstro do Apocalipse - repetiu, fixando o rosto de Angélica, que as chamas avivavam de rosa. - Minha filosofia vale tanto quanto qualquer outra - retomou, após um instante de silêncio. - Põe-me ao abrigo de emoções perigosas... Assim, na outra manhã, à sua cabeceira, lembrèi-me de uma cadela, a mais feroz da matilha, que assisti toda uma noite, quando pôs no mundo uma ninhada de sete cãezinhos. Seu olhar era quase humano;

abandonava-se a mim com simplicidade tocante. Dois dias mais tarde, degolou um criadinho que quis aproximar-se dos filhotes!

Súbito perguntou, curioso:

- É verdade o que me contaram, que você fez colocar petardos diante da guarita do suíço?

- Sim.

- Se ele não capitulasse, tê-lo-ia feito explodir?

-       Sim, eu o teria feito - disse Angélica, enfurecida.

Filipe ergueu-se, explodindo em risadas.

-       Pelo Diabo que a criou, você acabará por divertir-me. Podem atribuir-lhe todos os defeitos da terra, mas não o de ser aborrecida.

Pôs as duas mãos em seu pescoço.

-       Pergunto-me, às vezes, se não há outras soluções além de estrangulá-la ou de...

Ela fechou os olhos sob o cerco daquelas mãos.

- Ou de?

- Eu refletirei - disse, deixando-a -r mas não cante triunfo muito cedo. Por ora, você está em meu poder.

Foi o tempo de Angélica instalar-se sob o teto do marido, com seus filhos e criados e os poucos servidores que desejava ter junto de si. A mansão era escura e não tinha a graça da Mansão do Beautreillis.

Mas ali encontrou, para si mesma, um aposento encantador, no melhor da moda. La Violette contou que havia pertencido à marquesa viúva, mas que o senhor marquês mudara toda a forração alguns meses antes. Angélica, surpresa, não ousou perguntar: "Para quem?" Pouco tempo depois, um convite do rei para um grande baile em Versalhes fê-la deixar a nova morada. Para uma grande dama da corte, provida de dois cargos, já consagrara bastante tempo a seus deveres familiares. Devia retornar à vida mundana, à qual Filipe dedicava-se por inteiro. Via-o menos ainda que quando frequentava a corte. Compreendendo que as noites ao pé da lareira não retornariam, Angélica retomou o caminho de Versalhes.

A noite, com a proximidade do baile, ela sofreu todas as penas do mundo para achar um canto onde trocar de roupa. Era a preocupação permanente das damas, quando estavam em Versalhes. Ao menos para as que ainda se sacrificassem ao pudor. Para as outras, era um fácil pretexto de se oferecer aos olhares pressurosos.

Angélica abrigou-se em uma pequena antecâmara, contígua aos aposentos da rainha. Não tendo encontrado suas camareiras, ela e a Sra. du Roure prestaram-se mútua assistência. As idas e vindas eram constantes. Os gentis-homens de passagem lançavam galanteios e alguns ofereciam ajuda, diligentes.

-       Deixem-nos, senhores - protestava a Sra. du Roure, aos gritos -, farão com que nos atrasemos, e sabem que o rei tem horror a isso.

Ela teve que ausentar-se, à cata de alfinetes.

Angélica, sozinha por instantes, aproveitava para prender as meias quando um braço musculoso tomou-a pela cintura e derrubou-a, com as saias levantadas, sobre um pequeno sofá. Uma boca gulosa colocou-se-lhe ao pescoço. Transtornada, lançou um grito, debatendo-se com violência, e, quando pôde soltar-se, esbofeteou o insolente por duas vezes.

A mão não baixou uma terceira vez, e ela permaneceu petrificada diante do rei, que levara a mão à face.

- Eu... eu não sabia que era o senhor - balbuciou.

- Também não sabia que era você - disse ele, com mau humor. - Nem que você tinha pernas tão bonitas. Por que, diabos, mostrá-las e ficar aborrecida em seguida?

- Não posso calçar as meias sem mostrar as pernas.

- E para que veio calçar as meias na antecâmara da rainha, senão para mostrar as pernas?

- Porque não tenho um buraco onde possa me vestir.

- Quer insinuar que Versalhes não é grande o suficiente para sua preciosa pessoa?         '

- Talvez. E vasto, mas faltam-lhe bastidores. Preciosa ou não, minha pessoa é obrigada a permanecer em cena.

- E são essas as suas desculpas para uma conduta inqualificável!...

- E as suas para uma conduta não menos inqualificável!

Angélica levantou-se, esticando as saias nervosamente. Estava furiosa. Mas, ao lançar um olhar à fisionomia contrita do rei, recuperou seu senso de humor. Ela esboçou um sorriso. O rosto do rei desanuviou-se.-

- Bagatela, sou um-tolo!.

- E eu sou muito impulsiva.-

- Sim, uma flor selvagem! Creia-me, se a tivesse, reconhecido, não teria me comportado desse modo. Mas, ao entrar, não vi senão uma nuca loura e, palavra, duas pernas admiráveis e... muito atraentes.

Angélica olhou-o de esguelha, com a expressão indulgente e divertida que uma mulher dirige a um homem para mostrar que não está muito aborrecida desde que ele não recomece. Mesmo um rei tinha o direito de ficar embevecido diante de um sorriso como aquele.

-       Você me perdoa?

Ela estendeu-lhe a mão e ele beijou-a. Ela não o fez por coquete-ria. Era o gesto franco que põe fim à querela. O rei disse consigo mesmo que era uma mulher deliciosa.

Pouco tempo depois, ao atravessar o pátio de mármore, ela foi abordada por um guarda que parecia à procura de alguém:

-       Venho de parte do camarista-mor de Sua Majestade para informá-la de que seus aposentos estão reservados, no fim da ala dos príncipes de sangue, à direita. Devo conduzi-la até lá, senhora?

-       A mim? Cometeu um erro, meu bravo.

O homem consultou uma tabuleta.

-       Sra. du Plessis-Bellière. E esse o nome. Pensei ter reconhecido a senhora marquesa.

-       Com efeito.

Surpresa, ela seguiu o militar. Ele fê-la atravessar os aposentos reais, e depois os dos primeiros príncipes de sangue. No fim da ala direita, um dos furriéis de casaca azul acabava de inscrever com giz em uma porta:

"PARA a Sra. du Plessis-Bellière".

Angélica ficou encantada. Quase saltou de alegria ao pescoço dos dois militares. Ofertou-lhes várias peças de ouro:

- Eis com que beber à minha saúde.

- Desejamo-la boa e vigorosa - responderam com uma piscadela cúmplice.

Pediu-lhes que prevenissem seus lacaios e criadas para que trouxessem seu guarda-roupa e sua cama. Depois, com prazer infantil, tomou posse dos aposentos, compostos de dois compartimentos e uma alcova.

Sentada sobre uma almofada, Angélica meditou com júbilo nas sensações inebriantes que os favores de um monarca podem inspirar. Depois saiu para contemplar mais uma vez a inscrição:

"PARA a Sra. du Plessis-Bellière".

- Então o obteve, o famoso PARA!

- Parece que os "homens azuis" inscreveram o seu PARA. A novidade já se alastrara. À soleira do salão de baile, Angélica

era objeto de admiração e de inveja. Ela brilhava. A chegada do cortejo da rainha esfriou um pouco seu entusiasmo.

A soberana saudava graciosamente, a sua passagem, as pessoas que reconhecia. Mas, quando se viu diante da Marquesa du Plessis-Bellière, afetou não vê-la e tomou um ar glacial. Sua atitude não escapou aos circunstantes.

- Sua Majestade a rainha lhe faz cara fechada - disse o Marquês de Roquelaure. - Ela cobrava esperança, diante do favor declinante da Srta. de La Valliere, mas eis que se ergue uma nova rival, ainda mais deslumbrante.

- Quem?

- Você, minha cara.

- Eu? Sempre essa tolice! - suspirou a jovem, irritada.

Ela não vira no gesto do rei senão o que ele, sem dúvida, ali colocara: o desejo de se fazer perdoar e de remediar, como senhor da casa, um incómodo do qual ela se queixara. E os cortesãos viam nisso mais uma prova de seu amor por ela.

Angélica, contrariada, demorou-se à entrada do salão de baile.

Era uma sala forrada de tapeçarias de vivo colorido. Trinta e seis lustres pendentes da abóbada iluminavam-na com suas numerosas velas. Em dois patamares construídos face a face, postavam-se, à direita, as damas e, à esquerda, os senhores. O rei e a rainha tinham um camarote à parte. Ao fundo, sobre um estrado emoldurado por guirlandas de folhagem dourada, ficavam os músicos, sob a direção do Sr. Lulli.

-       A rainha chorou por causa da Sra. du Plessis-Bellière - sussurrou uma voz rouca. - Disseram-lhe que o rei instala os aposentos de sua nova amante. Acautele-se, marquesa!

Angélica não teve que se voltar e baixar os olhos, para saber de onde vinha aquela voz que parecia brotar da terra. Sem mover-se, respondeu: 

- Sr. Barcarola, não dê crédito a tais palavras. O rei não me cobiça. Não mais do que a qualquer dama de seu séquito.

- Então acautele-se mais ainda, marquesa. Preparam-lhe um golpe perigoso.

- Quem? Por quê? Que sabe você?

- Não muita coisa. Apenas sei que â Sra. de Montespan e a Sra. du Roure foram até Voisin para encontrar um meio de envenenar La Vallière. Ela aconselhou-as a influir no espírito do rei pela magia, e Marieta, sua sacerdotisa sacrílega, já virou alguns pós em seu cálice.

- Cale-se! - disse ela, com um sobressalto de horror.

- Acautele-se com essas rameiras. O dia que puserem na cabeça que é a você que devem fazer passar para o outro lado...

Os violinos atacavam o prelúdio numa cadência viva e arrebatadora.

O rei ergueu-se, e, após ter-se inclinado diante da rainha, abriu o baile com a Sra. de Montespan.      

Angélica adiantou-se. Era tempo de tomar seu lugar.

A sombra de uma tapeçaria, o gnomo coberto de plumas escarnecia...

A Srta. de La Vallière no exército - Festa em Versalhes

O rei ocupava-se dos assuntos da guerra. Um campo de manobras foi erguido na reserva de Saint-Germain. As tendas eram muito belas. A do Sr. de Lauzun - que recuperara seu favor - era em seda carmesim. Ele ali recebeu o rei e houve uma grande festa.

Em Fontainebleau, para onde a corte se dirigiu a seguir, tropas se reuniam, e as damas tiveram o espetáculo das revistas militares, quando o rei se comprazia em fazer admirar a disciplina e o aprumo de seus homens.

La Violette polia a armadura do mestre - o colete de aço mais decorativo que o necessário -, que o marechal traria sob as golas de rendas. A tenda rebordada valia duas mil libras. Cinco mulos carregariam as bagagens. Montarias haviam sido previstas. E os mosqueteiros da companhia pessoal do Sr. du Plessis cobriam-se com um pano camurça da espessura de um escudo de prata, com correame dourado e calções de couro branco com costuras douradas.

Sim, o espírito da época estava voltado para a guerra. O chamado da prostituta que, pelas margens do Sena, gritava: "Ei! Rei de França, quando nos dará a guerra... a bela guerra!..." não chegara ao jovem soberano, ele também ouvindo pelo vento o chamado da glória?

Somente a guerra traz a glória. O triunfo das armas completa a grandeza dos soberanos.

A guerra emergia de sete anos de paz como um espectro envolvente no qual todos, desde o rei, os príncipes, os gentis-homens até a massa errante de espadachins desempregados, de cabeças ávidas de aventuras, reconheciam o apetite de sua raça pelo grande jogo épico do combate. Os burgueses, artesãos e camponeses não eram consultados. Teriam mostrado reticência? Certamente, não. A guerra, para a nação que a empreende, é a vitória, promessa de enriquecimento, sonho enganador da libertação de insuportáveis servidões. Confiavam em seu rei. E não amavam os espanhóis. Nem os ingleses, holandeses, suecos ou imperiais.

Parecia chegado o momento de mostrar à Europa que a França era a primeira nação do mundo, e não entendia mais obedecer, mas ditar suas ordens.

Faltava o pretexto. Casuístas foram encarregados por Luís XrV de extraí-lo do passado e do presente políticos. Depois de muita reflexão, descobriu-se que a Rainha Maria Teresa, filha do primeiro casamento de Filipe IV da Espanha, tinha direito de herança sobre Flandres, em detrimento de Carlos II, filho do segundo casamento. A Espanha fez ver quê esse direito não era fundado senão num uso local, restrito à província dos Países Baixos, que excluía da sucessão os filhos do segundo casamento -"em favor daqueles do primeiro casamento. E que ela, Espanha, senhora daquelas províncias, não desejava levá-lo em conta. Lembrava, aliás, que ao se casar com o rei de França, Maria Teresa renunciara solenemente a qualquer herança espanhola.

A França respondeu que a Espanha, não tendo entregado os quinhentos mil escudos que; segundo o tratado dos Pireneus, devia ao rei de França como dote de Maria Teresa, faltava com a palavra, o que anulava as promessas precedentes.

A Espanha replicou que não se via obrigada a fazer a entrega do dote, quando aquele estipulado pela filha de Henrique IV, ao tornar-se rainha espanhola em 1621, não fora tampouco fielmente pago pela corte do Louvre.

E a França parou por ali com as reminiscências dos diplomatas, base-ando-se no princípio de que em política é preciso ter memória curta.

O exército partiu para a conquista de Flandres, e a corte acompanhou-o a passeio.

Era primavera. Primavera chuvosa, é verdade, mas também a estação que com as macieiras faz florescer os projetos belicosos. Havia tantas carruagens acompanhando as tropas quanto canhões e equipagens de guerra.

Luís XIV desejava que a rainha, herdeira das cidades picardas, fosse aclamada soberana em cada cidade conquistada. Queria ofuscar com seu fausto as populações acostumadas, havia mais de um século, ao ocupador espanhol, arrogante mas miserável.

Queria, enfim, dar a primeira estocada na industriosa Holanda, cujas pesadas naus singravam os mares até Sumatra e Java, enquanto a frota francesa, reduzida a zero, arriscava-se, por todo lado, a se ver sobrepujada no campo comercial.

Para dar aos estaleiros franceses o tempo de construir navios, era preciso arruinar a Holanda.

Mas este último objetivo, Luís XIV não o confessava. Era um segredo entre Colbert e ele.

Sob a chuva torrencial, carruagens, carros e cavalos de reserva avançaram por estradas onde a infantaria, a artilharia e a cavalaria haviam desfilado. O caminho estava reduzido a ravinas e lama.

Angélica partilhava a carruagem da Srta. de Montpensier. A princesa tinha-a em amizade desde que o Sr. de Lauzun saíra da Bastilha. Em uma encruzilhada, foram detidas por um tumulto ao redor de uma carruagem que acabava de tombar. Disseram-lhe que era a das damas da rainha. Mademoiselle avistou a Sra. de Montespan sobre um talude e acenou-lhe intensamente.

-       V.enha conosco, há um lugar vago.

A jovem alcançou-as saltando de poça em poça, a terceira saia erguida sobre a cabeça. Precipitou-se, rindo, na carruagem.

- Jamais vi algo tão engraçado - contou - como o Sr. de Lauzun com todo o cabelo sob o chapéu. Há duas horas que o rei o mantém à sua portinhola. Tinha a peruca tão encharcada que acabou por tirá-la.

- Mas isso é horrível! - exclamou a Grande Mademoiselle. - Assim acabará doente.

Ela fez apressar os cavalos. Na primeira volta, seu carro topou com o do rei. Lauzun ali estava de fato, a cavalo, ensopado, com o aspecto de um pardal depenado. Mademoiselle tomou-lhe a defesa com voz patética.

-       Meu primo, você não tem um pouco de coração? Você faz esse gentil-homem correr o risco da febre terçã. Se é tão inacessível à piedade, considere ao menos o que seria a perda de um de seus mais valorosos servidores.

O rei, com os olhos fixos em um binóculo de ébano e ouro, não se voltara.

Angélica olhava a sua volta. Achavam-se em uma ligeira elevação e dominavam a planície picarda, parda e molhada. Uma cidadezinha, parda também em seu cercado de muralhas, perfilava suas ameias sob o céu carregado. Através da cortina de chuva, parecia morta como um destroço no fundo das águas.

A trincheira francesa envolvia-a num cerco implacável. Uma segunda trincheira, acompanhando a primeira, estava em via de ser terminada. Na retaguarda, o fogo dos canhões apontados para a cidade lançava a breves intervalos uma luz avermelhada no crepúsculo. O ruído das detonações era ensurdecedor. A Grande Ma-demoiselle tapava os ouvidos, depois retomava seu discurso.

Por fim, o rei baixou o binóculo.

-       Minha prima - disse pausadamente -, você é eloquente, mas sempre escolhe mal o momento para fazer suas arengas. Creio que a guarnição vai render-se.

Ele transmitiu a Lauzun a, ordem de cessar fogo. O marquês partiu a galope. Distinguia-se, com efeito, um movimento à entrada da cidadela.

-       Vejo a bandeira branca - gritou a Grande Mademoiselle, batendo palmas. - Em três dias, sire. Você a conquistou em três dias! Ah! como a guerra é apaixonante.

A noite, acantonados na cidadezinha conquistada, enquanto as exclamações dos habitantes vinham ter às portas da habitação onde a rainha se alojara, o Sr. de Lauzun aproximou-se de Mademoiselle e exprimiu-lhe o reconhecimento por sua intervenção. A Grande Mademoiselle sorriu. Uma onda rosada tingiu-lhe a tez delicada. Desculpou-se junto à rainha por deixar a mesa de jogo, pediu que Angélica a substituísse e conduziu Lauzun até um vão de janela.

Com o olhar brilhante erguido para ele, bebia suas palavras. A luz fraca de um candelabro pousado em um consolo, parecia quase jovem e linda.

"Mas ela está apaixonada!", disse Angélica consigo mesma, enternecida.

Lauzun tinha sua expressão de sedutor, à qual mesclava sabiamente a dose de respeito necessária. Maldito Péguilin da Gasconha! Em que aventura não voltaria a se perder, atraindo o coração de uma neta de Henrique IV!

A peça estava lotada mas silenciosa. Havia quatro mesas de jogos.

Somente as chamadas monótonas dos jogadores e o tilintar dos escudos amontoados vinham perturbar o namoro que se prolongava.

Também a rainha tinha expressão feliz! A alegria de contar com mais uma cidade entre as pérolas da coroa, misturavam-se satisfações mais íntimas. A Srta. de La Vallière não tomava parte na viagem. Permanecera em Versalhes por ordem do rei. Antes de partir em campanha, Luís XTV, num ato público registrado pelo Parlamento, doara à amante o ducado de Vaujours, na Touraine, e o baronato por suas rendas e pelo número de feudos dependentes... E reconhecera a filha que tivera com ela, a pequena Maria Ana, que viria a ser a Srta. de Blois.

Esses favores notórios não enganavam a ninguém, nem mesmo à própria interessada. Eram o presente de rompimento. A rainha neles via um retorno à ordem, uma espécie de liquidação dos erros do passado. O rei cercava-a de atenções. Ela ia a seu lado, quando entravam em uma cidade, e partilhava os cuidados e esperanças da campanha. Uma muda inquietação ainda vinha apertar o coração da soberana, quando seu olhar caía sobre o perfil daquela Marquesa du Plessis-Bellière, a quem, segundo comentavam, o rei se afeiçoara, impondo-a a seu séquito.

Mulher muito bela, em verdade, cujos olhos claros tinham seriedade e os gestos, uma graça a um tempo contida e espontânea. Maria Teresa deplorava a desconfiança que lhe haviam incutido. Aquela dama agradava-lhe. Quisera tê-la como confidente. Mas o Sr. de So-lignac dizia que era uma mulher libertina e sem piedade. E a Sra. de Montespan acusava-a de ter uma doença de pele contraída nos meios de baixa condição que frequentava por vício. Como fiar-se nas aparências? Ela parecia tão sã e fresca, e seus filhos eram tão belos! Se o rei a fizesse amante, quanto aborrecimento! E quanta dor!... Jamais haveria repouso para seu triste coração de rainha?

Sabendo o quanto sua presença era penosa para a rainha, Angélica aproveitou o primeiro pretexto para afastar-se.

A casa que o burgomestre pusera à disposição dos soberanos era pequena e incomoda. As damas e os primeiros gentis-homens ali se empilharam, enquanto o resto da corte e o exército alojaram-se com os habitantes. A acolhida por parte da população evitava a violência e a pilhagem. Nada havia a tomar, pois que tudo se dava. de bom grado. O ruído das canções e dos risos chegava amortecido ao fundo da residência mal iluminada, onde ainda flutuava o perfume caseiro da imensa torta picarda de peras, coberta de creme e ovos, que três damas da cidade tinham trazido em uma bandeja de prata.

Chocando-se com arcas e bagagens, Angélica subiu a escada. O quarto onde se alojara com a Sra. de Montespan situava-se à direita. Os quartos do rei e- da rainha, à esquerda.

Uma pequena sombra ergueu-se à luz da lamparina de óleo e dela emergiu uma máscara negra com olhos de esmalte branco.

-       Não, senhora, não entre.

Angélica reconheceu o negrinho que oferecera à Sra. de Montespan.

- Boa noite, Naaman. Deixe-me passar.   -

- Não, senhora.

- Que acontece?

- Há alguém...

Ela ouviu um murmúrio e acreditou distinguir um galanteio.

-       Está bem. Eu me vou.

Os dentes do pajenzinho de ébano brilharam num sorriso cúmplice.

-       O rei, senhora. O rei.," psiu!

Angélica desceu a escacla, pensativa.

O rei e a Sra. de Montespan!

No dia seguinte, todos partiam para Amiens.

Angélica vestiu-se logo cedo e dirigiu-se ao quarto da rainha, como era de sua obrigação. A entrada, encontrou a Sita. de Montpen-sier em grande alvoroço.

-       Venha ver o estado em que se acha Sua Majestade. É de dar pena!

A rainha estava em prantos. Disse que acabava de vomitar e que

não podia mais. A Sra. de Montausier sustinha-a, gemendo, e a Sra. de Montespan gritava mais alto ainda, repetindo o quanto a dor de Sua Majestade era compreensível. Haviam comunicado que a Duquesa de La Vallière acabava de juntar-se ao exército. Chegara com a aurora, após ter rodado toda a noite, e viera fazer uma reverência à rainha.

-       Aquela insolente! - exclamava a Sra. de Montespan. - Deus me livre de vir a ser amante do rei! Se me ocorresse tamanha desgraça, jamais ousaria afrontar a rainha!

Que significava aquela volta?

O rei teria convocado a favorita?        

No entanto, antes de pôr-se a caminho, a corte devia dirigir-se a igreja para a missa.

Maria Teresa subiu à tribuna. A Duquesa de La Vallière já ali se encontrava. A rainha não olhou para ela. A favorita desceu. Voltou a apresentar-se à soberana quando esta subiu em sua carruagem. A rainha, porém, nada lhe disse. A decepção era muito amarga. Não mais podia ter a expressão afável que se obrigara a manter, a duras penas, quando da ligação oficiosa de seu real esposo. Em sua raiva, proibiu que lhe trouxessem de comer. Ordenou que os oficiais de sua escolta impedissem quem quer que fosse de passar à frente da carruagem, com receio de que a Srta. de La Vallière chegasse até o rei antes dela.

A noite, as equipagens que vinham sacolejando pela estrada avistaram o exército, de uma pequena elevação. A Srta. de La Vallière compreendeu que o rei devia estar lá embaixo. Com a coragem do desespero fez correr a carruagem a toda a brida pelos campos.

A rainha percebeu-o e tomou-se de terrível cólera. Queria ordenar que os oficiais perseguissem a carruagem e a detivessem. Todos suplicaram-lhe que nada fizesse e se acalmasse. A chegada do rei, que vinha ao encontro da rainha por um outro caminho, interrompeu a cena tragicômica.

Ele estava a cavalo, enlameado até os olhos, e de muito bom humor. Apeou e desculpou-se por não poder subir na carruagem devido à lama. Mas, após falar alguns instantes com a rainha pela portinhola, seu rosto ensombrou-se.

De boca em boca, tiveram a confirmação de que a vinda da Srta. de La Vallière não fora desejada nem mesmo cogitada pelo rei. Que notícia teria levado a tímida amante a sair de sua resignação habitual? Que receios? Que certezas?

Sozinha em Versalhes, cumulada de honras e riquezas, ela compreendera seu abandono. Tomada de vertigem, com os nervos à flor da pele, pedira sua equipagem e partira a todo galope em di-reção do norte, desobedecendo ao rei pela primeira vez. Não tanto por saber quanto pelo sofrimento de suspeitar ou imaginar aquele a quem amava nos braços de outra...

Ela não compareceu ao jantar da etapa seguinte. O acantonamento era abominável: um burgo onde não havia quatro casas de pedra. De resto, apenas casebres de taipa.

Angélica, que junto com as senhoritas de Gilandon e suas três criadas errava à procura de abrigo, encontrou a Srta. de Montpensier em igual situação.

- Estamos realmente em meio à guerra, minha pequena. A Sra. de Montausier dorme sobre um monte de palha em um gabinete, as damas da rainha, em um celeiro sobre molhos de trigo, e, quanto a mim, creio que contentar-me-ei com uma pilha de carvão. Angélica acabou por encontrar um celeiro repleto de feno. Alçou-se pela escada à parte de cima, onde dormiria mais tranquila, enquanto suas acompanhantes permaneceriam embaixo. Uma lanterna suspensa às traves do teto projetava uma luz avermelhada através da penumbra. Ali também, Angélica-viu surgir, numa sombria aparição de turbante carmesim é verde-maçã, a carinha negra e os olhos brancos do negrinho'Naaman.

- Que está fazendo aqui, diabinho do inferno?

- Espero a Sra. de Montespan. Estou guardando sua bolsa. A Sra. de Montespan também vai dormir aqui.

A bela marquesa apareceu no cimo da escada.

-       Boa ideia, Angélica, vir partilhar meu "quarto verde", como dizem os bravos militares. Poderemos jogar um pouco, se o sono tardar a chegar.

Deixou-se cair no feno, estiróu-se e bocejou com voluptuosida-de felina.

- Como estamos l?em aqui! Que cama deliciosa! Recorda-me minha infância no Poitou.

- A mim também - disse Angélica.

- Havia um depósito de feno próximo ao nosso pombal. Meu amiguinho vinha ter comigo. Era um pastor de dez anos. Escutávamos o arrulhar das pombas de mãos dadas.

Ela desacolchetou o rígido corpete. Angélica imitou-a. Livraram-se das duas primeiras saias, e, com os pés nus, revolveram-se no capim seco, reencontrando antigas e agradáveis sensações.

-       Do pastor ao rei - cochichou Atenaís. - Que pensa você

de meu destino, minha cara?

Erguera-se sobre um cotovelo. A luz quente e como que misteriosa da velha lanterna avivava-lhe a carnação magnífica, a alvura dos ombros e do colo. Ela teve um riso um pouco ébrio.

- Ser amante do rei, que coisa inebriante!

- Você me parece, de súbito, muito segura desse amor. Tinha dúvidas, há bem pouco tempo.

- Mas agora recebi provas que não deixam nenhuma dúvida... Ontem à noite ele veio... Oh! sabia que viria, que seria durante esta viagem. O modo como deixou La Vallière em Versalhes não era já um penhor de sua vontade? Ele ofereceu-lhe umas coisinhas como presente de rompimento.

- Coisinhas! Um ducado? Um baronato?

- Ora! Para ela pode parecer deslumbrante. Deve imaginar-se no auge de seu favor. Foi por isso que se acreditou com autorização para juntar-se à corte. Ah! Ah! as coisas não acabaram bem para ela... Mas eu não me contentarei com ninharias. Ele não me tratará como a uma jovem de Ópera. Sou uma Mortemart!

- Atenaís, você fala com uma segurança que me assusta. Tornou-se realmente amante do rei?

- Sim, sou sua amante... Oh! Angélica, como é divertido sentir-se todo-poderosa sobre um homem dessa têmpera! Vê-lo empalidecer e tremer... Suplicar, ele, tão senhor de seus nervos, tão solene e majestoso, e, por vezes, tão temível. É fato o que se comentava. No amor, é um selvagem. Perde o comedimento e o refinamento. É bastante guloso, mas creio não tê-lo decepcionado.

Falava rindo loucamente, rolando a cabeça loura no feno e estirando-se com gestos de indolente despudor, que pareciam recriar uma cena ainda próxima. A situação tornou-se insuportável para Angélica.

-       Nesse caso está perfeito - disse secamente. - Os curiosos saberão enfim quem é a nova amante do rei, e eu me livrarei das suspeitas ridículas com que me importunam.

A Sra. de Montespan ergueu-se num ímpeto.

- Oh! não, querida! Isso não. Sobretudo, nem uma palavra. Contamos com sua discrição. Ainda não é chegado o momento de ocupar abertamente o lugar. Isso criaria muitas complicações. Faça, pois, o obséquio de continuar no papel que nós a destinamos.

- Que papel? Nós quem?

- Ora!... o rei e eu.

- Quer dizer que vocês se entenderam, o rei e você, para espalhar o boato de que ele estava apaixonado por mim a fim de desviar as suspeitas sobre sua pessoa?

Atenaís vigiava a jovem por entre os longos cílios. Um brilho perverso surgiu em seus olhos de safira.

-       Mas claro. Isso resolvia tudo. Minha situação é delicada. Por um lado, sou dama de honra da rainha; e por outro, amiga íntima da Srta. de La Vallière. As atenções do rei logo cristalizariam as tagarelices em torno do meu nome. Era preciso um contra-ataque.

Não sei por quê, começaram a falar de você. O rei reforçou os rumores, cumulando-a de benefícios. Agora a rainha a trata com frieza. A pobre Luísa desmancha-se em lágrimas mal a vê. E ninguém mais pensa em mim. A jogada está armada. Sei que você é bastante inteligente para ter compreendido desde o início. O rei lhe é bastante grato... Você não diz nada? Estaria aborrecida?

Angélica não respondeu. Pegou um filete de palha e mordiscou-o um tanto nervosamente. Sentia-se magoada interiormente e mais tola do que poderia ser. Devia usar de astúciaxom os^nais hábeis comerciantes do reino! No plano das intrigas mundanas seria sob certo aspecto sempre a mesma, com um fundo de ingenuidade camponesa irremovível.

- Aliás, por que o estaria? - retomava melosamente a Sra. de Montespan. - A coisa é envaidecedora para você e dela você já retirou benefícios e brilho. Está desapontada? Não, não posso imaginar que tenha levado essa pequena comédia a sério... E parece que você está apaixonada. Por seu marido. Eis o.que é divertido... Ele não é carinhoso, mas é tão belo! E contam que começa a amansar...

- Quer jogar uma partida? - perguntou Angélica com voz neutra.

-       De bom grado. Tenho um baralho em minha bolsa. Naaman!

O negrinho passou-lhe o estojo de viagem. Jogaram um pouco, sem convicção. Angélica, alheia ao jogo,perdeu, o que lhe acentuou o mau humor. A Sra. de Montespan acabou por dormir, com um sorriso nos lábios. Angélica não conseguiu imitá-la. Roía uma unha, no auge da irritação, e, à medida que a noite se escoava, a cabeça se lhe enchia de ideias de vingança. No dia seguinte o nome da Marquesa de Montespan já estaria em todos os lábios. A bela marquesa fora bastante imprudente. Angélica não se deixaria enganar por palavras hipócritas. Atenaís usufruíra de um prazer refinado em revelar-lhe seu triunfo e o papel que lhe fora reservado. Contando com o apoio do rei e com sua ascendência sobre ele, dera-se ao prazer de fazer em pedaços uma mulher que invejava há muito, mas a quem manejava por interesse. Já não mais necessitava dela, ou de seus escudos. Podia humilhá-la e fazê-la pagar caro o pouco sucesso que a beleza e a riqueza da Sra. du Píessis lhe haviam tomado.

"Imbecil", pensou Angélica, mais exasperada ainda consigo própria.

Envolveu-se no manto e deslizou até a escada.

A Sra. de Montespan continuava a dormir sobre o feno, em meio a seus atavios, como uma deusa em uma nuvem.

Fora, a aurora nascente tinha um sabor de chuva. Do leste, onde o céu se avermelhava entre duas nuvens, vinha um som de pífaros e tambores. Os regimentos levantavam acampamento.

Angélica patinou na lama viscosa e chegou à casa da rainha, onde sabia que encontraria a Srta. de Montpensier. À entrada, avistou sobre um banco, tiritante, miserável, a Srta. de La Vallière acompanhada de dois ou três servidores e de sua jovem cunhada, morna e sonolenta. Ficou tão compungida à vista do quadro desolador que se deteve a contragosto.

-       Que faz aqui, senhora? Assim perecerá de frio.

Luísa de La Vallière ergueu os olhos azuis, desmesurados no rosto ceroso. Estremeceu como se saísse de um sonho.

- Onde está o rei? - disse. - Quero vê-lo. Não partirei sem tê-lo visto. Onde está? Diga-me.

- Ignoro-o, senhora.

- Você o sabe, tenho a certeza! Você o sabe...

Num impulso de piedade, Angélica tomou as mãos magras e glaciais que se estendiam para ela.

- Juro-lhe que o ignoro. Não vejo o rei há... há não sei quanto tempo, e asseguro-lhe de que também ele não se preocupa comigo. É loucura continuar aqui em noite tão fria.

- Não me canso de repeti-lo a Luísa - gemeu a cunhadinha. - Ela está no limite de suas forças e eu também. Mas continua a obstinar-se.

- Vocês não têm um quarto na aldeia?

- Sim, mas ela queria esperar pelo rei.

- Basta de tolices!

Angélica tomou-a energicamente pelo braço e obrigou-a a levantar-se.

-       Primeiro você deve esquecer-se e repousar. O rei não se mostraria grato por ter de contemplar um rosto de fantasma.

Na casa onde fora reservado abrigo à favorita, Angélica pressionou os lacaios a que avivassem o fogo, fez passar o aquecedor entre os lençóis úmidos, preparou uma tisana e pôs a Srta. de La Vallière na cama com uma autoridade que não encontrou réplica. Estendida sob as cobertas que Angélica acrescentara, ela parecia extremamente frágil. O epíteto de "descarnada" que lhe atribuíra outrora um panfletário venenoso não parecia exagerado. Os ossos sobressaíam-lhe na pele. Estava no sétimo mês de uma gravidez, a quinta em seis anos. Não tinha senão vinte e três anos; e já atrás de si um deslumbrante romance de amor e, pela frente, uma longa vida de lágrimas ardentes a derramar. No outono, a Srta. de La Vallière, de amazona, vivera seu esplendor final. Não era possível reconhecê-la agora, tão profunda fora a mudança.

"Eis a que o amor por um homem pode reduzir uma mulher", pensou Angélica, num assomo de cólera.

Ao recordar a confidência de Barcarola sobre as rivais que queriam envenená-la, estremeceu...

Sentou-se à cabeceira da cama e tomou entre as mãos vigorosas e firmes aquela outra mão, franzina, onde os anéis giravam, muito largos.

- Você é boa - murmurou Luísa de La Vallière. - No entanto me haviam dito...        

- Por que dá ouvidos ao que dizem? Você se prejudica inutilmente. Nada posso contra as más-línguas. Sou como você...

Esteve a ponto de acrescentar "tão estúpida como você. Não fui senão um pára-vento involuntário". Mas para quê? Por que orientar o ciúme de Luísa em outra direção? Com isso descobriria uma traição ainda mais dolorosa, pois que vinda de sua melhor amiga.

-Durma agora - murmurou. - O rei a ama.

Caridosa, dizia a única coisa capaz de acalmar a dor do coração despedaçado. Luísa deu um sorrisinho, desolado.

-Ele o prova bem mal...

-Como pode você dizê-lo? Ele não acaba de testemunhar sua afeição com títulos e presentes que não deixam nenhuma dúvida sobre o bem em que a tem? Você é Duquesa de Vaujours e sua filha não será condenada à obscuridade.

A favorita sacudiu a cabeça. Dos olhos fechados, lágrimas escorreram-lhe lentamente pelas faces. Ela, que sempre escondera heroicamente suas gestações ao preço de males inenarráveis; que vira seus filhos serem-lhe arrebatados logo ao nascer; que não tivera a liberdade de chorar a morte de três filhos, comparecendo aos bailes sorridente para iludir os comentários; que dera tudo de si para desmentir sua escandalosa situação, via-se de repente declarada mãe da filha do rei por uma medida pública sobre a qual não fora sequer consultada. E não comentavam que o Marquês de Vardes seria chamado de volta do exílio para desposá-la por ordem do rei?

Não mais adiantavam as palavras de consolo, as exortações, os conselhos. Chegavam muito tarde. Angélica nada mais disse e continuou segurando-lhe a mão até que ela adormeceu.

Ao regressar à casa da rainha, viu uma luz na vidraça. Pensou na rainha, que também esperava pelo rei, inventando mil suposições fortificantes e imaginando-o nos braços de La Vallière, enquanto esta se enregelava no andar de baixo, durante uma parte da noite.

De que valeria gritar o nome da verdadeira rival? Acrescentar mais uma gota à mistura envenenada?

A Sra. de Montespan tinha razão em dormir tão tranquilamente em seu ninho de feno. Ela sabia - sempre o soubera - que a Sra. du Plessis jamais falaria.

Charleroi, Armentières, Saint-Vínoux, Douai, Oudenarde, o Forte de la Scarpe, Courtrai caíam como castelos de cartas.

O rei e a rainha eram recebidos sob dosséis enaltecidos pelos almotacéis e, após atravessar as ruas atapetadas, iam ouvir o Te Deum em uma daquelas velhas igrejas do norte em renda de pedra, cuja aguda flecha parece perfurar o céu pesado.

Entre um e outro Te Deum, a guerra, em breves convulsões, sacudia o horizonte com tiros de canhões e de mosquetes. As guarnições expunham-se a surtidas, por vezes sangrentas. Mas os espanhóis eram pouco numerosos e, sobretudo, a Espanha estava longe. Privados de quaisquer reforços e sob a pressão das populações que não se dispunham a padecer os horrores da fome pela glória do ocupador, acabavam por se render.

Em Douai, um cavalo de guarda do rei caiu morto a seu lado., Luís XIV expunha-se demais. O cheiro da pólvora inebriava-o. De bom grado estaria no comando de um esquadrão de ataque.

Durante o cerco a Lille, descia todos os dias à trincheira como um simples granadeiro, para grande inquietação dos cortesãos. Certo dia, ao ver o rei coberto de terra pela queda próxima de uma bala de canhão, o Sr. de Turenne ameaçou abandonar o cerco, se ele persistisse em se mostrar imprudente. Mas o rei, que avançara até as paliçadas à vista do exército, hesitava em recuar. O Marechal du Plessis-Bellière disse-lhe então: "Tome meu chapéu e dê-me o seu; se os espanhóis minarem o penacho, equivocar-se-ão de alvo".

No dia seguinte, o rei expôs-se menos. Filipe recebeu o cordon Meu.

O verão chegava.

Já fazia bastante calor. A fumaça dos morteiros punha nuvenzi-nhas no céu de um azul esverdeado inalterável.

A Srta. de La Vallière ficara em Compiègne. A rainha juntou-se ao exército; em sua carruagem vinham a Srta. de Montpensier, a Princesa de Bade, as senhoras De Montansier e De Montespan, e em outra,

logo atrás, as senhoras D'Armagnac, De Bouillon, De Créqui, De Béthune e Du Plessis-Bellière, todas terrivelmente cansadas e sedentas.

Ao desembarcar, foram surpreendidas pela passagem de um carro onde se via o agradável cintilar de refrescantes pedaços de gelo, escoltados por três ou quatro homenzarrões de bigode de ébano, olhar sombrio e uniforme remendado. 0 oficial que os acompanhava a cavalo não deixava qualquer dúvida quanto a sua origem.

Com uma gola pregueada opulenta e um ar altaneiro, era um puro fidalgo de Sua Majestade muito Católica.

As damas ficaram sabendo que o Sr. de Brouay, governador espanhol de Lille, enviava todo dia, por galanteria ou bravata, gelo ao rei de França.

- Pedi-lhe que mo envie em maior quantidade - disse o rei ao portador.

- Sire - respondeu o castelhano -, meu general o envia porque tem como "certo;que o cerco será longo e teme que falte gelo a Vossa Majestade.^

O velho Duque de Charost, ao lado do rei, gritou ao enviado:

- Bem, bem, recomende também ao Sr. de Brouay que não imite o governador de Douai, que se rendeu como um patife.

- Está louco, senhor? - disse o rei com vivacidade, surpreso com aquele discurso. - Encoraja meus inimigos à resistência?

- E uma questão de amor-próprio familiar, sire - desculpou-se o duque. - Brouay é meu primo!

Enquanto isso, a vida da corte continuava no acampamento.

A planície estava coberta de tendas matizadas, dispostas simetricamente. A mais vasta era a tenda do rei, composta de três salas, um quarto e dois gabinetes, armada em cetim da China e guarnecida com móveis dourados.

O lever e o coucher do rei aconteciam exatamente como em Versalhes.

Ofereciam-se suntuosas refeições, que as pessoas degustavam com especial prazer, pensando nos espanhóis, por trás das escuras muralhas de Lille, sem outro alimento que rábanos para roer. No exército francês, o rei recebia as damas a-sua mesa.

Numa noite, ao jantar, seu olhar caiu sobre Angélica, sentada não longe dele. As vitórias recentes e aquela mais íntima que obtivera sobre a Sra. de Montespan haviam, na alegria do triunfo, embotado um pouco as habituais faculdades de observação do

soberano. Acreditou ver a jovem pela primeira vez, desde o início da campanha, e perguntou-lhe amavelmente:

-       Com que então você deixou a capital? Que diziam em Paris,

quando você partiu?

Angélica dirigiu-lhe um olhar frio.

- Diziam as vésperas, sire.

- Pergunto quais eram as novidades.

- As ervilhas frescas, sire.

As réplicas pareceriam engraçadas se não tivessem sido pronunciadas num tom tão glacial como os olhos da bela marquesa.

O rei não tinha o espírito pronto. Emudeceu de espanto e suas faces se coloriram.

A Sra. de Montespan salvou a situação com seu riso encantador. Disse que dar respostas precisas num tom impertinente era o jogo da moda. Em Paris, os salões e ruelles das preciosas fervilhavam de trocadilhos. A Sra. du Plessis era bastante hábil nisso. Todos quiseram logo experimentá-lo. A refeição teve fim alegre.

No dia seguinte, Angélica acabava de émpoar-se diante do espelho sob o olhar interessado de uma vaca, quando o Marechal du Plessis-Bellière se fez anunciar.

Assim como todas as grandes damas, ela também não sofria com as incomodidades de uma viagem no campo. Desde que pudesse armar seu toucador em algum canto, mesmo num estábulo, tudo estava bem. O odor do pó-de-arroz e dos perfumes misturava-se ao esterco, mas nem a grande dama de chambre vaporoso nem as boas vacas brancas e negras que lhe faziam companhia pareciam incomodadas.

Javotte apresentava a primeira saia em cetim rosa listrado de verde-claro, e Teresa preparava-se para amarrar os cordões.

Ao ver o marido, Angélica dispensou as criadas e voltou a debruçar-se sobre o espelho. O rosto de Filipe refletia-se por trás dela com expressão encolerizada.

- Chegaram-me rumores desagradáveis sobre você. Acreditei-me na obrigação de vir repreendê-la, se não puni-la.

- Que rumores são esses?

- Disseram-me que mostrou mau humor diante do rei, o qual lhe dera a honra de dirigir-lhe a palavra.

- Apenas isso? - disse Angélica, enquanto escolhia uma mosca numa caixinha de ouro trabalhada. - Correm outros rumores a meu respeito, que de há muito deveriam tê-lo atingido. Mas é verdade que não lhe recorda a qualidade de marido, senão para fazer-me sentir a férula matrimonial.

- Respondeu ao rei com insolência? Sim ou não?

- Tinha minhas razões.

- Mas... você falava ao reiL.

- Rei ou não, isso não o impede de ser-um rapaz que precisa ser colocado no seu lugar.

Uma blasfémia não causaria pior efeito. O jovem parecia sufocar.

-       Palavra, você perdeu a razão!

Filipe deu alguns passos de um lado para outro; depois apoiou-se na manjedoura e pôs-se a contemplar Angélica, enquanto mordiscava um filete de palha.

-       Agora vejo o que acontece. Deixei-a um tempo à vontade em atenção ao senhor meu filho, que você carregava e amamentava, e com isso você concluiu que poderia erguer a cabeça. Já é tempo de retomar o adestramento.

Angélica deu de ombros. Conteve,, no entanto, uma réplica exaltada e voltou sua atenção para o espelho, na delicada operação de fixar uma mosca na fronte direita.

- Que castigo escolherei para ensiná-la como se comportar à mesa dos reis? - retomou Filipe. - O exílio? Hum! Você acharia um meio de aparecer no outro extremo do caminho, mal lhe voltasse as costas. Um bom corretivo com chicote de cães que você já conhece? Sim. Recorda-me que você saiu com a cabeça baixa. Ou então... Penso em algumas humilhações que lhe parecem particularmente dolorosas e que me sinto tentado a infligir-lhe.

- Não canse a imaginação, Filipe. Você é um mestre muito escrupuloso. Por três palavras ditas ao acaso...

- ...que se endereçavam ao rei!

- O rei é, às vezes, um homem como os outros.

- É onde você se engana. O rei é o rei. Você lhe deve obediência, respeito, devoção.

- E que mais? Devo dar-lhe o direito de reger meu destino, manchar minha reputação, escarnecer de minha confiança?

-       O rei é o senhor. Tem todos os direitos sobre você.

Angélica voltou-se prontamente e sondou Filipe com olhar sombrio.

Muito bem!... E se lhe viesse a fantasia de querer-me como amante, que deveria fazer?

-       Consentir. Não compreendeu que todas estas damas, cada qual mais bela e ornamento da corte de França, ali estão para o prazer dos príncipes?...

- Permita-me compreender seu ponto de vista de marido mais que generoso! A falta de afeição, ao menos seu instinto de proprietário deveria revoltar-se.

- Todos os meus bens pertencem ao rei - disse Filipe. - Jamais poderia recusar-lhe o que quer que fosse.

A jovem teve uma exclamação de despeito. Seu marido tinha o dom de feri-la profundamente. Que poderia esperar de sua parte? Um protesto de ciúme? Seria exagero. Não se sentia ligado a ela e mostrava-o abertamente. As atenções passageiras ao pé do fogo não se dirigiam senão àquela que tivera a honra de conceber seu herdeiro. Ela voltou-se, fora de si, derrubou a caixa de moscas, e com a mão trémula de cólera pegou um pente e depois outro.

Filipe, atrás dela, observava-a com ironia.

A mágoa de Angélica irrompeu num fluxo de palavras amargas.

- E verdade, já o esquecia. Uma mulher não é para você senão um objeto, uma peça de mobiliário. Boa apenas para pôr crianças no mundo. Menos que uma égua, menos que um criado. Podem comprá-la, vendê-la, usar de sua honra para honrar os outros, tratá-la como refugo quando não serve para mais nada. Eis o que uma mulher representa para os homens de sua espécie. Quando muito um pedaço de doce, um prato de comida ao qual se atiram quando estão com fome.

- Imagem divertida - disse Filipe -, a que não nego verdade. Com essas faces brilhantes e essa roupa vaporosa, confesso-lhe que você me parece bastante apetitosa. Palavra, sinto minha fome despertar!

Aproximou-se lentamente e pousou duas mãos possessivas nos ombros roliços da jovem. Angélica desprendeu-se e fechou com firmeza a abertura do corpete.

-       Não conte com isso, meu caro - disse friamente.

Com um gesto furioso, Filipe voltou a abrir-lhe o corpete, fazendo saltar três alfinetes de diamante.

-       Acaso lhe perguntei se isso lhe agrada, pequena presumida?

- trovejou ele. - Ainda não compreendeu que me pertence? Ah! Ah! Eis onde lhe aperta o sapato. A bela marquesa persiste em se ver cercada de atenções!

Despojou-a com brutalidade do corpete, rasgou-lhe a camisa e tomou-lhe os seios com uma brutalidade de mercenário em noite de pilhagem.

- Esqueceu de onde saiu, senhora marquesa? Não era outrora senão uma pequena miserável de nariz sujo e pés encardidos. Estou vendo-a de saia esburacada e cabelos nos olhos. E já então cheia de arrogância.

Conservava o rosto dela próximo ao seu e apertava suas têmporas com tal rudeza que ela sentia que seus ossos iriam estalar.

- Isto sai de um velho castelo prestes a desmoronar e se permite falar ao rei com insolência!... Um estábulo; esse é o seu cenário, Srta. de Monteloup. Está bem aqui, hoje. Despertarei suas recordações campestres.

- Deixe-me! - gritou Angélica, tentando golpeá-lo.

Mas esmagou os punhos contra sua couraça e teve que sacudir os dedos doloridos com um gemido. Filipe explodiu em risadas e enlaçou-a enquanto ela se debatia.

-       Vamos, pastorinha, abandone-se sem mais histórias.

Ergueu-a vigorosamente e carregou-a até um monte de feno, em um canto escuro no .celeiro. Angélica gritava:  

- Deixe-me! Deixé-me!

- Cale-se! Irá alvoroçar toda a guarnição.

- Tanto melhor. Saberão como você me trata.

- Que belo escândalo! A Sra. du Plessis violada pelo marido.

- Odeio-o!

Sufocava no feno em que a luta a mergulhava. Mas conseguiu morder, até sangrar, a mão que a segurava.

-       Animal indócil!

Ele bateu-lhe na boca repetidas vezes. Depois segurou seus braços para trás, paralisando-lhe os movimentos.

-       Bom Deus! - ofegava, rindo -, jamais deparei com tamanha possessa. Seria preciso todo um regimento.

Angélica, sufocada, perdia as forças. Seria tudo como das outras vezes. Deveria suportar a posse humilhante, o jugo bestial que ele lhe infligia, e contra o qual seu orgulho se acirrava. E seu amor, também. O amor tímido que dedicava a Filipe - que não morria, e ela não ousava confessar.

-       Filipe!

Ele che gava a seus fins. Não era a primeira vez que empreendia esse género de luta no escuro de uma granja. Sabia como controlar a presa e servir-se dela, enquanto ela ofegava sob ele, esquartejada.

Na profunda escuridão dançavam minúsculos pedaços de ouro, partículas de poeira captadas por um ténue raio de sol vindo de entre duas pranchas.

-       Filipe!

Ouviu-a chamar por ele. Sua voz tinha um som estranhe. Lassidão ou embriaguez involuntária provocada pelo cheiro do feno, Angélica rendia-se. Cansara de encolerizar-se. Ela aceitava o amor e os tratos desse homem que se queria cruel. Era Filipe, aquele a quem amava, já em Monteloup. Não importava que a magoasse até sangrar! Era ele que o fazia.       

No transporte que a libertava, aceitava-se fêmea sob as exigências do macho. Era sua vítima, sua coisa. Tinha o direito de servir-se dela como lhe aprouvesse.

Malgrado a tensão selvagem que o dominava, Filipe percebeu aquele súbito abandono. Tê-la-ia machucado? Ele controlou um pouco seu cego delírio, procurou adivinhar o que a sombra escondia e o porquê daquele silêncio.

Ao inclinar-se, recebeu no rosto a carícia de um sopro leve e sentiu uma emoção que o fez estremecer violentamente e se abater sobre ela, frágil como uma criança.

Praguejou repetidas vezes para iludir seu embaraço.

Ignorava, ao separar-se dela, que estivera a ponto de levá-la ao auge do prazer.

Espiou-a com o canto do olho na semi-obscuridade, adivinhando que ajustava as roupas; cada um de seus movimentos enviava-lhe um quente odor de suor.

Aquela resignação pareceu-lhe suspeita.

-       Quero crer que minhas homenagens a desagradem bastante.

Mas saiba que as inflijo como uma punição.

Ela deixou passar um momento antes de responder com voz doce e um pouco velada:

-       Poderia ser uma recompensa.

Filipe pôs-se de pé de um salto, como se diante de súbito perigo. Ainda sentia uma fraqueza inusitada. Quisera estender-se novamente no feno morno, junto de Angélica, para trocar simples confidências. Tentação desconhecida e que o indignou. Mas as palavras de defesa morriam em seus lábios.

Perplexo, o Marechal du Plessis saiu da granja com a impressão deprimente de que dessa vez ele não tivera a última palavra.

"Você é muito bela", diz Filipe. "Perigosamente bela" - O beijo do rei

Uma escaldante tarde-de julho pesava sobre Versalhes. Em busca de um pouco de frescor, Angélica foi passear no caramanchão de água, na companhiarda Sra. de Ludre e da Sra. de Choisy. Era uma aléia agradável pela sombra de suas árvores e sobretudo pela magia de uma infinidade de jatos de água que brotavam de ambos os lados, por trás de um banco de relva, e se juntavam em arcos numa abóbada sob a qual podia-se passear sem se molhar.

As damas encontraram o Sr. de Vivonne, que as saudou e abordou Angélica.

- Tencionava falar-lhe, senhora. Hoje não me dirijo à senhora como à mais deliciosa ninfa destes bosques, mas como à mãe sábia que a Antiguidade sempre reverenciou. Em uma palavra, desejava o seu consentimento para colocar seu filho Cantor a meu serviço.

- Cantor! Mas em que uma criança tão jovem pode lhe interessar?

- Para que se quer ter ao lado um pássaro melodioso? Essa criança encantou-me. Canta à maravilha, toca com perfeição vários instrumentos. Queria levá-lo em minha expedição para continuar a versejar e aproveitar sua voz de anjo.  

- Sua expedição?

- Não sabe que acabo de ser nomeado almirante da esquadra e que o rei me envia para repelir o assédio dos turcos a Cândia, no Mediterrâneo?

- Tão longe! - exclamou Angélica. - Não quero separar-me de meu filho. É muito jovem, antes de tudo. Um bravo cavaleiro de oito anos?...

- Parece ter onze e não se perderia entre meus pajens,-todos meninos de boa linhagem. Meu mordomo é homem de certa idade, ele mesmo pai de muitas crianças. Recomendar-lhe-ei essa encantadora criança em especial. E ademais, a senhora não tem interesse na ilha de Cândia? Deve enviar um de seus filhos para defender seu feudo.

Angélica recusou-se a levar a sério a proposta, mas prometeu refletir.

-       Seria hábil de sua parte contentar o Sr. de Vivonne - observou a Sra. de Choisy, quando o gentil-homem a deixou. - Ele está muito bem colocado. Seu novo cargo de tenente-general dos mares torna-o um dos maiores dignitários de França.

A Sra. de Ludre torceu a boca num sorriso avinagrado.

- E não esqueçamos que Sua Majestade se mostra a cada dia mais disposto a cumulá-lo de honrarias, ao menos para cair nas boas graças da irmã do referido almirante.

- Você fala como se o favor da Sra. de Montespan fosse um fato consumado - observou a Sra. de Choisy. - Essa pessoa mostra-se, no entanto, piedosa.

- O que se aparenta nem sempre vai de par com o que se é. A experiência do mundo devê-lo-ia tê-la ensinado. Quanto à Sra. de Montespan, talvez preferisse manter a aventura em segredo; mas seu ciumento esposo não lho permite. Faz tanto escândalo como se tivesse por rival um peralvilho qualquer de Paris.

- Ah! não me fale em tal homem. É um louco, e o maior pra-guejador do reino.

- Comentam que compareceu sem peruca a uma ceia de Monsieur; diante do espanto de todos, disse estar com duas bossas na fronte que o impediam de cobrir a cabeça. A coisa é bastante engraçada! Ah! Ah! Ah!

- Bem menos engraçada foi a afronta que ousou infligir ao rei, ontem mesmo, em Saint-Germain. Voltávamos de um passeio pelo grande terraço, quando vimos avançar a equipagem do Sr. de Montespan coberta de negro e com borlas de prata. Ele próprio estava de negro. O rei, muito afável, inquietou-se e perguntou-lhe por quem estava de luto, ao que respondeu com voz lúgubre: "Por minha mulher, sire".

A Sra. de Ludre voltou a rir com vontade, imitada por Angélica.

- Riam, senhoras, riam! - disse a Sra. de Choisy, alterada. - Não deixam de ser modos mais dignos do quarteirão dos Halles e que desonram a corte. O rei não poderá suportá-los por muito mais tempo. O Sr. de Montespan arrisca-se à Bastilha.

- Eis o que convirá a todos.

- Você é uma cínica.

- Mas o rei não pode chegar a esse extremo; isso seria uma confissão pública.

- Por mim - disse Angélica -, folgo em saber que essa história com a Sra. de Montespan tenha vindo à luz. Tive que suportar a tolice dos mexericos, envolvendo o rei e,minha modesta pessoa; agora sabe-se que não tinham nenhum fundamento.

- É verdade que, por minha parte, acreditei durante muito tempo que você iria suceder à Srta. de La Vallière - disse a Sra. de Choisy, como se o lamentasse. - Mas devo reconhecer que sua virtude mostrou-se inatacável.

Parecia ter-lhe raiva por ter sido lograda em sua perspicácia.

- No entanto, nãé correria o risco de um marido tão incómodo como o Sr. de Montespan - fez notar a Sra. de Ludre, cujas flechas estavam sempre cuidadosamente envenenadas. - Aliás, não é mais visto na corte, desde que você aqui chegou...

- Desde que cheguei, a guerra não cessou de chamá-lo até as fronteiras. Em Flandres .primeiro, no Franco-Condado em seguida.

- Não se vexe, minha cara, eu pilheriava! E ademais, não é senão um marido.

Enquanto conversavam, as três damas subiam a grande aléia que conduzia ao castelo. A todo momento viam-se obrigadas a ter cuidado com operários e criados que, armados de escadas, penduravam lampiões em todas as árvores e ao longo dos caminhos. No interior dos bosquetes ressoavam golpes apressados de martelo. O parque preparava-se para a festa.

- Talvez seja tempo de envergar nossos adornos - disse a Sra. de Choisy. - Parece que o rei nos reserva surpresas maravilhosas, porém, desde que chegamos, a companhia toda se esfalfa, enquanto Sua Majestade trabalha em seu. gabinete.

- A festa deve começar com o crepúsculo. Creio que nossa paciência será recompensada.

O rei queria celebrar com grandes festas seu triunfo nas armas.

A gloriosa conquista de Flandres, a fulgurante campanha de inverno no Franco-Condado haviam trazido seus frutos. A Europa, surpresa, voltava os olhos para o jovem soberano, por muito tempo considerado um reizinho traído pelos seus. Já haviam ouvido falar de seu fausto. Agora descobriam sua audácia de conquistador e seu maquiavelismo político. Luís XIV queria dar festas cuja repercussão transpusesse fronteiras e pontuasse, como o som fascinante de um gongo, a orquestração de sua fama.

Encarregara o Duque de Créqui, primeiro gentil-homem de quarto, o Marechal de Bellefonds, primeiro mordomo, e Colbert, enquanto superintendente de construção, de presidirem à organização dos espetáculos, festins, construções, iluminações e fogos de artifício. Eles contavam com auxiliares habituais, Molière, Racine, Vi-garini, Gissey, Le Vau, equipe de pessoas diligentes e desejosas de agradar ao senhor. Os planos logo foram concluídos e executados.

No momento em que Angélica se apresentava na galeria de baixo, envergando um vestido azul-turquesa brilhante, com uma profusão de diamantes despedindo reflexos irisados, o rei deixava seus aposentos.

Não se vestia mais suntuosamente que de costume, mas seu humor era contagiante. Todos compreenderam que soara a hora dos prazeres.

As grades do castelo foram abertas ao povo, que invadiu os pátios, grandes salões e terraços com olhos admirados, correndo de um ponto a outro do parque para ver passar o cortejo.

O rei segurava a mão da rainha. Rechonchuda, infantil, suportando bravamente sobre os ombros pequenos um vestido bordado a ouro mais pesado que uma urna merovíngia, ela não cabia em si de contente. Adorava as manifestações de grande aparato. E hoje o rei lhe fazia as honras e segurava-lhe a mão. Seu coração, magoado pelo ciúme, conhecia um pouco de repouso: as línguas bem informadas da corte não chegavam a um acordo sobre o nome da nova favorita.

É verdade que a Srta. de La Vallière e a Sra. de Montespan estavam presentes, uma bastante abatida e a outra bastante alegre, como de costume; e também aquela Sra. du Plessis-Bellière, mais bela e singular que nunca, e a Sra. de Ludre, e a Sra. du Roure; mas elas misturavam-se à multidão e nenhuma tinha direito a honrarias especiais.

O rei e a rainha, seguidos a distância pela corte, caminharam pelo lado direito do castelo, descendo pela relva na direção da Fonte do Dragão, recentemente edificada, e que o rei queria fazer admirar pela beleza e engenhosas combinações.

No meio de um grande tanque, um dragão com o flanco atravessado por uma flecha vomitava à guisa -de sangue golfadas de água em forma de chuva. Golfinhos nadavam aqui e ali, lançando água pelas goelas abertas. Montadas em cisnes cujos bicos vertiam finos jatos de água, dois amores fugiam do monstro ameaçador, enquanto outros dois atacavam-no pela retaguarda. As estátuas eram revestidas de ouro verde, à exceção dos cisnes em prata, e sob as águas que se cruzavam a cena tinha um brilho irreal, que evocava as profundezas marinhas.

Quando todos se extasiaram, o rei retomou a caminhada pelas aléias do caramanchão de água que contornavam o tanque de La-tona e conduziam ao grande canteiro, até os caminhos cheios de sombra do labirinto. Ém ali chegando, o céu tornava-se púrpura sob os últimos raios do sol. As árvores tomavam tonalidades azuis, mas ainda restava luz suficiente para fazer cintilar os quadros formados por estátuas multicoloridas. A época, todo o parque de Versalhes era aquecido pela vivacidade de uma coloração primitiva. As esculturas que não eram revestidas de ouro recebiam uma pintura "ao natural".    

A entrada do labirinto, Ésopo, o Frígio, de barrete vermelho e o corpo disforme envolvido num manto azul, acolhia os príncipes com olhos irónicos e boca maliciosa. Diante dele erguia-se o Amor, significando que, se esse deus por vezes nos lança num labirinto de inconvenientes, a malícia e o bom senso nos fornecem, também por vezes, os meios de compreendê-los e vencê-los.

O rei explicou com graça a alegoria à rainha, que aprovou e achou o grupo bastante pitoresco.

O labirinto, ornato indispensável dos jardins principescos de então, revestia-se em Versalhes de um brilho singular. Era um quadrado de vegetação nova, compacta e frondosa, onde uma infinidade de pequenas aléias se cruzavam e enredavam de tal modo que seria difícil acompanhá-las sem se perder.

A cada volta lançavam-se exclamações de admiração ao deparar cada um dos trinta e nove grupos em chumbo pintado, no centro de pequenos tanques em forma de conchas e rochas delicadas, ali dispostos para passatempo dos passeantes. Punham-se em cena os animais das fábulas de Esopo e alguns pássaros de plumagem deslumbrante, copiados das aves de Ménagerie. Trinta e sete quadras de Benserade, gravadas a ouro em cartéis de bronze, contavam a anedota.

O passeio até ali fora igual aos que se faziam todos os dias, com a corte seguindo o mestre, que jamais se cansava de admirar a beleza e os progressos de seu jardim. Mas, ao chegar a uma intersecção de cinco aléias, a companhia desembocou em um maravilhoso gabinete em forma de pentágono. Contra o fundo das grandes aléias, cada lado do pentágono era ornado com uma arquitetura de folhagens, sublinhadas por guirlandas e cujo soclo central sustentava três vasos de mármores ornados de flores vermelhas, rosa, azuis e brancas.

No centro do gabinete, um alto jato de água projetava sua alva coluna e, ao redor do tanque de onde jorrava, cinco mesas de mármore haviam sido dispostas na direção das cinco aléias. Separavam-nas vasos de faiança contendo laranjeiras com frutos cristalinos, e cada qual estava guarnecida com uma suculenta surpresa. Uma delas representava uma montanha, onde, em várias cavernas, viam-se diversas carnes frias. Outra comportava um palácio em miniatura feito de maçapão e de pasta açucarada. A terceira estava carregada com uma pirâmide de doces de frutos secos. Uma outra, com uma infinidade de taças de cristal e de jarros de prata com licores de vários tipos. A última oferecia um sortimento de obje-tos em caramelo marrom, amarelo e avermelhado, perfumados de chocolate, mel e canela...

Foi o tempo de louvar o encanto da sala fresca e reconfortante, pois mãos ávidas demoliram o palácio de maçapão, pilharam os caramelos e apossaram-se das taças de licor.

Sentados à volta, em bancos de relva, as nobres damas e os nobres senhores fizeram o mais alegre dos piqueniques.

Do ponto médio onde se encontravam, tinham a visão das cinco aléias, bordadas de arcadas de ciprestes alternados com árvores frutíferas em vasos, os galhos guarnecidos com esplêndidos frutos. Dali a pouco, ao partir, todos respigariam peras, maçãs, pêssegos, cidras e cerejas ao longo do caminho.

Na extremidade de uma perspectiva, a estátua do deus Pan despedia um último reflexo dourado, enquanto para o leste dois sátiros e duas bacantes perfilavam as escuras silhuetas no céu verde-pálido.

- Algum bom génio transportou-nos às margens da Astrée! - exclamou a Srta. de Scudéry.

- Breve veremos às margens do encantador Lignon pastores e rebanhos enfitados!

Súbito, com a noite, uma infinidade de luzes acendeu-se, correndo ao longo dos bosquetes e caminhos. Os pastores e pastoras anunciados surgiram, cantando e dançando, enquanto de um grande rochedo quarenta sátiros e bacantes irrompiam agitando tirsos e pandeiros e rodeavam a amável companhia para guiá-la ao local do teatro.

Uma caleça e uma cadeirinha receberam o rei, a rainha e os príncipes, levando-os pelas avenidas de tílias.

O teatro onde levariam a comédia fora construído num grande espaço, no cruzamento da aléia real com outros caminhos.

Ali, as coisas se tumultuaram, por uma falha de organização. O povo "que queria ver" e.os convidados de honra, os cortesãos, formavam uma multidão compacta e ululante a que a presença dos sátiros e bacantes comunicava uma aura de saturnal.

A porta abriu-se para a caleça do soberano, fechando-se em seguida. A cadeirinha da rainha não conseguiu vencer o obstáculo. Em vão os porteiros gritavam:

-       Passagem para Sua Majestade, a rainha!

Ninguém se movia. Por uma meia hora, em meio ao tumulto furioso dos que disputavam a entrada, Maria Teresa, espumando de cólera, teve que se resignar a esperar. Por fim, o próprio rei veio buscá-la.

Desde os primeiros instantes da batalha, Angélica se retirara do combate. O bom senso aconselhara-a a que não arriscasse seu frágil traje naquele pugilato. Assim, afastou-se do formigueiro alvoroçado, passando por algumas pessoas que, como ela, resignaram-se a esperar. A comédia era de longa duração. Mas a noite era amena, e o parque de Versalhes, com sua iluminação e o sussurro das aguas que brotavam do coração dos bosquetes, oferecia a seus olhos um espetáculo feérico. Ela usufruiu de-sua solidão. Um pequeno pavilhão de mármore, em um nicho de verdura pontuado de lampiões como um céu estrelado, atraiu-a. Subiu três degraus e apoiou-se a uma das delgadas colunas. Um odor de madressilva e de rosas flutuava a seu redor. O clamor da multidão decrescia.

Ao voltar-se, pensou estar sonhando. Um fantasma branco como neve inclinava-se diante dela, ao pé dos degraus. Quando se ergueu, ela reconheceu Filipe.

Não o revira desde a batalha no celeiro, encontro que Filipe quisera doloroso e que lhe deixara, embora o negasse, uma recordação perturbadora. Enquanto a corte voltava para a capital, o Marechal du Plessis permanecia no norte, e depois conduzia o exército até o Franco-Condado. Angélica estava a par desses deslocamentos pelo rumor público, pois naturalmente não seria Filipe quem se daria ao trabalho de escrever-lhe.

Ela escrevia-lhe, por vezes, curtos bilhetes em que falava de Carlos Henrique e da corte, esperando em vão por resposta.

De repente estava ali, erguendo para ela os olhos impassíveis; mas a sombra de um sorriso suavizava-lhe os lábios.

- Saúdo a Baronesa do Triste Vestido - disse.

- Filipe!... - exclamou Angélica. Ela esticou com ambas as mãos a pesada saia de brocado. - Filipe, há dez mil libras de diamantes neste vestido.

- O que você trazia outrora era cinza com lacinhos de fita azul-clara no corpete e gola branca.

- Lembra-se dele?

- Por que não me lembraria?

Subiu os degraus e apoiou-se a uma das colunas de mármore. Ela estendeu-lhe a mão. Após uma imperceptível hesitação, ele beijou-a.

- Acreditava que você estivesse no exército - disse Angélica.

- Uma mensagem do rei pedia-me que retornasse à corte para mostrar-me na grande festa que daria esta noite. Devo ser um de seus ornatos.   ,

A última frase não traía nenhuma fatuidade; apenas o cumprimento de um papel que aceitava com escrupulosa obediência. O rei desejava em seu séquito as mais belas damas e os mais soberbos senhores. Não poderia dispensar nesse dia um dos mais belos gentis-homens da corte. "O mais belo, sem dúvida", pensou Angélica, contemplando-o, esbelto e magnífico, em seu traje de cetim branco bordado a ouro. O punho da espada era de ouro fino. E dourados, os tacões dos calçados de couro branco.

Meses e meses novamente sem vê-lo!

-       È o rei quem o retém no exército? - perguntou de súbito.

- Não! Solicitei-lhe, eu mesmo, que me mantivesse no comando.

- Por quê?

- Amo a guerra - disse.

- Recebeu minhas cartas?

- Suas cartas? Bem! sim... creio que sim. Angélica fechou o leque com um golpe seco.

- Você as leu, ao menos? - perguntou, com despeito.

- Que você quer? No exército tenho mais que fazer que ocupar-me de cartas de amor e todas as suas tolices.

- Sempre tão amável!

- Sempre tão agressiva... Alegra-me encontrá-la com boa disposição. Para ser sincero, far-lhe-ei uma confissão. Fazia-me um pouco de falta seu humor guerreiro. A campanha, militar era bastante morna. Dois ou três cercos a cidades, algumas escaramuças... Certamente você teria alguma ideia para animar tudo aquilo.

- Quando você parte?-

- O rei mandou comunicar-me que doravante deseja-me na corte. Teremos tempo para Jhossas disputas.

- Tempo também para outra coisa - disse Angélica, olhando-o nos olhos.

A noite era tão suave, e o isolamento tão perfeito, na proteção do pequeno templo de amor, que ela se arriscava a todas as audácias. Ele voltara. Procurara por ela na confusão da festa. Não resistira ao desejo de encontrá-la. Abrigando-se por trás da ironia, confessara que sentira sua falta. Não estariam, ambos, a caminho de algo maravilhoso?

Filipe não pareceu compreender, mas suas mãos tomaram com um pouco de rudeza os braços de Angélica e afastaram os braceletes para acariciar-lhe a pele lisa. Depois, com dedo negligente, soergueu os pesados colares de pedras preciosas que cobriam o colo da jovem.

- Praça forte muito bem defendida - disse. - Sempre admirei a arte com que as belas se oferecem seminuas e no entanto inabordáveis.

- É a arte de adornar, Filipe. A armadura, das mulheres. É o que faz o encanto de nossas festas. Não me acha bela?

- Muito bela - disse Filipe, enigmático. - Perigosamente bela.

- Para você?

- Para mim e para outros. Mas que importa, isso a diverte. Você estremece de prazer à ideia de brincar com fogo. Seria mais fácil fazer de um puro-sangue um cavalo de arado que mudar a natureza de uma rameira.

- Filipe! - exclamou Angélica. - Oh! que pena! Você come çava a falar como um verdadeiro peralvilho.

Filipe ria.

- Ninon de Lenclos sempre me recomendou que ficasse de boca fechada. "Calar-se, não sorrir, ser belo, passar e desaparecer, eis o seu género", dizia. Conheceria os maiores aborrecimentos se me afastasse dele.

- Ninon nem sempre tem razão. Gosto de ouvi-lo falar.

-       Para as mulheres, bastaria um papagaio.

Tomou-lhe a mão e desceram os degraus de mármore.

-       O som dos violinos se amplifica. O teatro deve ter aberto suas portas. É tempo de nos juntarmos ao rei e seu séquito.

Voltaram por uma aléia guarnecida de arvorezinhas frutíferas em vasos de prata. Filipe estendeu a mão e colheu uma maça rosada.

-       Quer este fruto? - disse.

Ela aceitou, quase com timidez, e sorriu ao encontrar seus olhos.

A multidão ruidosa separou-os. Os espectadores discorriam sobre os méritos da peça e o génio de Molière; os risos que ele provocara haviam serenado os ânimos.

Já era plena noite, mas a cobertura profunda do céu e dos bosques formava o cenário ideal para o edifício de luz diante do qual todos pararam.

Novo palácio de sonho, frágil visão de uma noite que surgia na volta de uma aléia, era guardado, por faunos dourados, tocando instrumentos rústicos sobre pedestais de verdura, em vasos transparentes de onde fluíam cascatazinhas de viva água. As luzes conferiam-lhe uma carapaça cristalina.

O rei deteve-se um instante para louvar a aparição, depois penetrou no efémero palácio. O teto era de vegetação ligada por finas armações de madeira consteladas de ouro. Sobre a cornija alinhavam-se vasos de porcelana cheios de flores, alternando-se com bolas de cristal iluminadas, que semeavam a abóbada com as cores do arco-íris.

Suspensos em gazes de prata ou em guirlandas de flores, inúmeros lustres clareavam aquele salão das Mil e Uma Noites. Nos espaços entre as portas, dois grandes archotes enquadravam uma flecha

de água que, caindo numa cortina achamalotada sobre várias conchas superpostas, ia perder-se em grandes tanques.

No fundo correspondente à porta de entrada, um bufe arruma do sobre degraus reunia maravilhosas peças de ourivesaria, terrinas, jarros, caçoulas, boiões e gomis em prata, destinados ao serviço da Boca do Rei.

No meio da sala avistava-se o cavalo Pégaso, com as asas desdobradas, batendo com o casco no cimo de um alto rochedo e fazendo jorrar a fonte de Hipocrene. Por cima do cavalo simbólico, entre plantas de açúcar, arbustos com frutos cristalizados, ervas de massa e caramelos, lagos de geléia, Apqlo e as Musas, em conselho, pareciam presidir a mesa real engalanada de flores, carregada de terrinas de prata e armada em forma circular ao redor do rochedo de Pégaso. Era o momento da Grande Ceia. O rei tomara lugar à mesa, e as damas que desejara em sua companhia formavam a seu redor uma coroa brilhante. Todos rivalizavam no esplendor de seus trajes.

Angélica viu, com eerto alívio e um pouco de despeito, que não fora designada para a mesa real. Não podia mesmo esperar por tal honra. Desde a campanha de Flandres a atitude do rei para com ela permanecia ambígua. Jamais lhe testemunhava descontentamento e sua afabilidade não parecia ter-se atenuado. No entanto, uma barreira se erguera entre eles, a ponto de ela se perguntar, por vezes, se não era apenas tolerada na corte.

Com um olhar irónico identificou os nomes das eleitas que enquadravam o Rei-Sol, e disse consigo mesma que, com algumas exceções, era uma assembleia de rematadas vagabundas, de passado cheio de devassidão.

Ninguém ignorava que a Sra. de Bounelle-Bullion, mulher de um secretário de Estado, aposentada da galanteria, tinha um salão de jogo em sua casa, nem que o "mapa da corte" consignava a ilha dos Prazeres como residência habitual da Sra. de Brissac. A Marechala de La Ferté e a Condessa de Fiesque rivalizavam em afetação. As pessoas fingiam olvidar que a Histoire Amoureuse des Gaulês, do terrível Bussy-Rabutin, cobririas de sarcasmos. Mais distante, a Duquesa de Mecklembourg, antiga amazona da Fron-da, cujas intrigas e amores tiveram grande repercussão, exibia seu tausto e suas bochechas caídas.

Entre as exceções podia-se citar a grave Sra. de La Fayette e, em certa medida, a triste Duquesa de La Vallière, que, relegada à extremidade da mesa, beliscava com melancolia os pratos oferecidos pelos oficiais do rei. Ninguém mais se ocupava com a favorita em declínio. Luís XIV não mais detinha nela o olhar.

Que rosto feminino ocuparia seu espírito enquanto devorava com o costumeiro apetite a carne abundante dos cinco serviços de cinquenta e seis pratos cada um que o Sr. Le Duc, primeiro mordomo, fazia servir por prestos criados?

Tampouco a Sra. de Montespan tomava parte na mesa.

Vieram dizer a Angélica que se colocasse à mesa da Sra. de Montausier. As outras mesas haviam sido armadas sob tendas, presididas pela rainha e pelas damas de honra; a da Sra. de Montausier comportava quarenta talheres. Angélica sentou-se entre a Srta. de Scudéry, a quem conhecia um pouco por ter frequentado seu salão do Marais, e uma mulher que teve que olhar por duas vezes antes de convencer-se de sua presença.

-       Francisca! Você aqui!

A Sra. Scarron sorriu, radiante.

- Sim, minha cara Angélica! Devo confessar que estou quase tão incrédula como você, e mal posso crer em minha sorte quando penso no triste estado em que me encontrava há apenas poucos meses. Sabia que quase parti para Portugal?

- Não, mas ouvi dizer que o Sr. de Cormeil queria desposá-la.

- Ah! nem me fale nessa história. Por ter recusado o pedido, perdi todos os apoios e amizades com que contava!

- Mas o Sr. de Cormeil não é muito rico? Ter-lhe-ia assegurado vida farta e ao abrigo de suas perpétuas ansiedades.

- Porém é velho e, ademais, terrivelmente debochado. Foi o que disse aos que me pressionavam a aceitá-lo. Mostraram-se surpresos e descontentes, opinando que minha situação não me permitia fazer-me de rogada, o que não acontecera no passado quando aceitei o Sr. Scarron. E persistiram em censurar-me. Disse à senhora marechala tudo o que encontrei de mais eloquente e sensato, mas ela me condenava, imputando-me minhas desgraças. Somente Ninon deu-me razão. Sua aprovação consolou-me em parte da crueldade de meus amigos... Que acha da comparação que ousaram fazer entre aquele homem e o Sr. Scarron? Oh! Deus, quanta diferença! Sem fortuna, sem obséquios, atraía para nossa casa toda a boa companhia; o Sr. de Cormeil tê-la-ia odiado e afastado. O Sr. Scarron tinha aquela jovialidade que todos sabiam e uma bondade de espírito que quase ninguém conheceu; o outro não tem o espírito brilhante, nem divertido, nem forte; quando fala é ridículo. Meu marido era, no fundo, excelente. Eu o corrigira de suas licenças; não era louco ou viciado de coração, e tinha reconhecida probidade e um desinteresse sem igual...

Falava com fogo, a meia voz, com a paixão a que por vezes se abandonava quando sentia que podia confiar. E Angélica, sensível ao encanto de sua personalidade, disse consigo mesma que era realmente bela e atraente.

Ela destoava um pouco pela simplicidade de seu traje, mas o vestido de veludo castanho com reflexos vermelhos escolhidos com gosto e o colar de duas voltas de azeviche e pequenos rubis combinavam com sua carnação e a cabeleira morena.

Contou como, totalmente abandonada, acabara por aceitar o cargo de terceira dama de tenra, quase de camareira, da Princesa de Nemours, que iria desposar o rei de Portugal. Foi quando, ao fazer as visitas de despedida, reviu à Sra. de' Montespan. Ela ficou surpresa, e a Sra. Scarron descreveu-lhe sua miséria.

- Mas sem me rebaixar, acredite. Atenaís ouviu-me com atenção, embora estivesse se arrumando. Você sabe que somos velhas amigas de pensão e da mesma província, como você, Angélica. Desde que está em Paris tive a-oportunidade de prestar-lhe pequenos serviços. Ela acabou por assegurar-me que se encarregaria de falar ao rei sobre a pensão que me fora suprimida e as súplicas sem resposta. A seu conselho escrevi uma nova súplica, que concluía dizendo: "Duas mil libras são mais do que necessito para minha solidão e minha salvação". O rei recebeu-a com bondade e, milagre, minha pensão foi restabelecida! Quando fui agradecer a Atenaís em Saint-Germain, tive a honra de ver Sua Majestade, que me disse: "Senhora, fi-la esperar por muito tempo; mas tinha ciúme de seus amigos: quis ser o único a gozar esse merecimento junto à senhora". Palavras tão amáveis não apagariam estes longos anos desgastantes? Desde então respiro, vivo, não me vejo roída por preocupações mesquinhas. Reencontrei" minha sociedade, que se mostrava contrafeita, voltei a frequentar o mundo e... eis-me aqui, em Versalhes!

Angélica asseverou-lhe com calor que ela também, sinceramente, se rejubilava.

A Sra. de Montespan, que passava por trás dela, pousou levemente a mão no ombro da protegida.

- Então... contente?

- Ah! cara Atenaís. Toda a minha vida testemunhará o quanto lhe sou grata!

As mesas esvaziavam-se. O rei e seu séquito levantaram-se e enveredaram por uma longa aléia, enquanto a multidão, que afluía por todos os lados até o local do festim, teve permissão de pilhar os pratos e corbelhas de doces e de frutos abandonados.

A aléia, em sua extremidade, parecia fechada por uma paliçada de luz, que no entanto se abriu à aproximação do cortejo. E num concerto de águas cascateantes e rorejantes, de arabescos de luz, tritões prateados e grutas, surgiu um novo dédalo encantador.

Por corredores de verdura e caramanchões de flores, as pessoas passaram entre alas de sátiros sorridentes, ou de jatos de água, contornaram tanques onde brincavam golfinhos de ouro e depararam subitamente com as cores do arco-íris que um engenhoso sistema de iluminação fazia acender a cada passo.

O corredor feérico desembocou na sala construída para o baile, ornamentada de pórfiro e mármore. Do teto, em painéis decorados com sóis de ouro contra um fundo azulado, desciam lustres de prata. Estandartes de flores balançavam-se na cornija, e entre as pilastras que a sustentavam haviam sido armadas tribunas e duas grutas destinadas aos músicos, onde avistavam-se Orfeu e Arion dedilhando liras.

O rei abriu o baile com Madame e as princesas. Depois damas e gentis-homens avançaram, por seu turno, evoluindo com seus trajes luxuosos em complexas figuras de dança. As danças antigas eram conduzidas com mais rapidez, num ritmo frívolo de farândola. As novas surpreendiam pela lentidão hierática. Mais difíceis de se seguir, concentravam-se na postura do pé e nos gestos estudados dos braços e das mãos. Um irresistível movimento, preciso, minucioso, quase mecânico, como o de um relógio, arrastava os autómatos viventes numa ronda incansável, numa coreografia aparentemente serena, mas que, pouco a pouco, com a sustentação da música, enchia-se de tensão não formulada. Havia mais desejo contido nas pacientes aproximações, no roçar das mãos que logo se separavam, nas lentas voltas de um olhar ardente, nos gestos lânguidos e inacabados de oferecimento e recusa que na mais endiabrada das "correntes".

A corte, de sangue quente, enchia-se de paixão sob aqueles ritmos aparentemente comportados. Reconhecia, sob essa máscara hipócrita, a aproximação do Amor, nem tanto filho do fogo como da noite e do silêncio.    

Angélica dançava bem. Sentia um prazer pessoal em seguir os desenhos complicados dos bales. Pbr vezes, de passagem, dedos retinham os seus, mas ela não fazia caso, distraída. Reconheceu no entanto as duas mãos reais nas quais as suas pousaram, ao acaso de um rondo. Ergueu o olhar para os olhos do rei e baixou-o, depois, vivamente.

-       Ainda zangada? - disse o monarca a meia voz.

Angélica afetou espanto.

- Zangada? Em semelhante festa! Que quer dizer Vossa Majestade?   ".       .

- Pode semelhante festa atenuar o rancor que me votou há longos meses?

- Sire, está me confundindo. Se Vossa Majestade me atribui tais sentimentos a seu respeito, há longos meses, por que jamais o observou?

-       Temia muito que me lançasse ervilhas no rosto.

A dança separou-os.     .

Quando voltou para diante dele, ela viu que os olhos castanhos, impiedosos e doces, pediam uma resposta.

- A palavra "temer" não assenta nos lábios de Vossa Majestade!

- A guerra parece-me menos temível que a severidade de sua linda boca.

Assim que lhe foi possível, Angélica deixou a dança e veio esconder-se na última fileira das tribunas, entre as senhoras idosas que seguiam as evoluções agitando seus leques. Um pajem veio procurá-la da parte do rei, pedindo-lhe que o seguisse.

O rei aguardava, fora da sala de baile, na sombra de uma aléia onde as luzes não projetavam senão leve claridade.

- Você tem razão - disse, num tom jocoso -, sua beleza nesta noite me dá coragem. E chegado o momento de nos reconciliarmos.

- Seria o momento certo? Esta noite, toda a companhia está ávida pela presença de Vossa Majestade, e daqui a um momento todos irão procurá-lo com os olhos e interrogar-se sobre sua ausência.

-       Não. Estão dançando. Poderão sempre supor-me em outro ponto da sala. Esta é, ao contrário, a ocasião esperada para trocarmos algumas palavras sem atrair a atenção.

Angélica sentia-se enrijecer como uma barra de ferror A manobra era clara. A Sra. de Montespan e o rei entendiam-se novamente para envolvê-la no jogo de que já fora vítima.

- Como você é renitente! - disse ele, com doçura, tomando-lhe o braço. - Não tenho ao menos o direito de dirigir-lhe meus agradecimentos?

- Agradecimentos? A que título?

- O Sr. Colbert disse-me repetidas vezes que você fazia maravilhas no papel que lhe confiou junto às pessoas da corte. Você soube criar um clima de confiança em torno dos assuntos em voga, explicar, esclarecer os espíritos, e tudo num plano mundano, sem despertar desconfiança, ao contrário! Não duvidamos que lhe devemos alguns sucessos financeiros.

- Oh! é isso? - disse ela, desprendendo-se. - Vossa Majestade não tem por que manifestar-me gratidão. Ali encontro sobejas vantagens... e isso me basta.

O rei estremeceu. A sombra para que a arrastara era tão espessa que ele não podia distinguir seus traços. Reinou entre eles um silêncio tenso e embaraçoso.

- Decididamente, você me odeia! Peço-lhe, é preciso que me revele o motivo.

- Vossa Majestade ignora-o totalmente? Com sua perspicácia, isso me espanta.

-' Minha perspicácia se deixa com frequência pilhar em erro pelo humor das damas. De modo algum sinto-me seguro nesse ponto. E que homem, mesmo o rei, poderia vangloriar-se de consegui-lo?

Sob o tom folgazão, ele parecia desamparado. Seu nervosismo cresceu.

- Retornemos até seus hóspedes, sire, eu lhe peço...

- Não há pressa. Decidi ver o caso às claras.

- E eu decidi não mais servir de pára-vento a Vossa Majestade e à Sra. de Montespan - explodiu. - O Sr. Colbert não me paga para tal. Tenho muito apreço por minha reputação; dela disponho segundo minha vontade e não a ofereço a ninguém... nem mesmo ao rei.

- Ah!... Então é isso. A Sra. de Montespan quis manipulá-la como uma marionete, para desviar sobre seu suposto favor as suspeitas de seu insuportável marido. Plano hábil, com efeito.

- Que Vossa Majestade não ignorava.

- Trata-me de velhaco ou de hipócrita?

- Devemos mentir ao rei ou desagradar-tte?

- Eis então a opinião que você faz de seu soberano.

- Meu soberano não tem por que conduzir do modo como o faz a meu respeito. Por quem me toma? Serei-um brinquedo do qual se pode dispor? Não lhe pertenço.

Duas mãos violentas agarraram os punhos de Angélica.

-       Você está enganada. Todas as minhas damas me pertencem com direito de príncipe.

Ambos tremiam de cólera. Permaneceram assim um instante, os olhos faiscantes, a se enfrentar. O rei recompôs-se primeiro.

-       Vamos, não devemos partir para a guerra por futilidades. Acreditar-me-ia se dissesse que procurei convencer a Sra. de Montespan a não escolhê-la como vítima? "Por que ela?", perguntei-lhe. "Porque", respondeu, "somente a Sra. du Plessis-Bellière é capaz de sobrepujar-me. Não admitirei que se diga que Vossa Majestade me deixou por alguém que não valha a pena." Está vendo? É a prova, em certa medida, da estima que lhe tem... Ela a julgava bastante ingénua para entrar no jogo sem percebê-lo. Ou bastante dissimulada para aceitá-lo. Enganou-se de ambos os lados. Mas não é justo fazer-me suportar o peso de seu rancor. Por que esse pequeno complô magoou-a a tal ponto, Bagatela? É tão grande desonra passar por amante do rei? Você não obteria uma certa fama? Vantagens?... Lisonjas?...

Com um braço acariciante, atraiu-a para junto de si e a reteve, falando-lhe a meia voz, inclinado para ela e procurando adivinhar o rosto que a escuridão da noite lhe escondia.

-       Sua reputação denegrida, você disse? Não, não na corte. Ela ganharia um novo brilho, acredite-me... Então? Devo pensar que acabou por se deixar prender na armadilha?-Por acreditar na farsa?... E isso, então? Decepcionada?...

Angélica não respondia, a fronte escondida no veludo do gibão perfumado de íris, sensível aos braços que a retinham e que se cerraram num amplexo. Há tanto tempo não se deixava embalar assim... Doçura de ser frágil, de sentir-se pueril e de fazer-se repreender um pouco.

-       Você, tão positiva, se deixou iludir?

Ela balançou a cabeça com veemência, sem responder.

-       Não, eu o sabia - disse o rei, rindo. - E no entanto terá sido somente comédia? Se lhe confessasse que não a olhava sem desejo e que frequentemente veio-me à ideia...

Angélica desprendeu-se com firmeza.

-       Não acreditaria no que diz, sirè... Sei que Vossa Majestade ama outra pessoa. A escolhida é bela, envolvente, invencível e não apresenta senão vantagens, à parte o aborrecimento de um marido desconfiado, é verdade.

-       Aborrecimento que não é pouco - disse o rei com uma careta.

Retomou o braço de Angélica e conduziu-a ao longo de uma aléia de teixos aparados.

-       Não se lhe afigura tudo o que Montespan pode inventar para incomodar-me. Acabará por arrastar-me diante de meu próprio Parlamento. Por certo Filipe du Plessis seria um marido mais cómodo que o sacripanta do Pardaillan. Mas não é o caso - concluiu com um suspiro.

Deteve-se, segurando-lhe o braço para olhá-la bem no rosto.

-       Façamos as pazes, marquesinha. Seu rei lhe pede humilde mente perdão. Insistirá em sua frieza?

Adivinhavam-se-lhe o encanto do sorriso e o brilho dos olhos.

Ela estremeceu. Aquele rosto inclinado, de lábios flexíveis e sorridentes, e de olhar ardente, atraía-a irresistivelmente.

Súbito fugiu, erguendo a pesada saia roçagante para correr. Mas logo se deteve junto à cerca formada pelas sebes.

Ofegante, apoiou-se ao soclo de uma estátua e olhou a seu redor. Encontrava-se no bosquete da Girândola, de um negro de veludo, onde se desenhava a pluma branca de um jato de água rodeado por dez outros jatos que caíam em arcos alvacentos no tanque redondo.

Lá no alto, no céu de um azul esmaecido, a lua longe do espetá-culo mundano lançava sua plácida claridade. Da festa não vinha senão uma longínqua melodia. Ali reinava o silêncio, perturbado somente pelo sussurro da água e pelos passos do rei, que se aproximava, esmagando com os altos tacões a areia úmida da aléia.

-       Meninazinha - murmurou -, por que fugiu?

Retomou-a nos braços com força, obrigando-a a retornar ao calor de seu ombro, enquanto apoiava, a face em seus cabelos.

-       Tentaram magoá-la e você não o merecia. Sabia, no entanto, de que crueldade as mulheres, entre elas, são capazes. Cabe a mim, seu soberano, defendê-la. Perdoe-me, meninazinha.

Angélica desfaleceu, o espírito desnorteado por uma vertigem plena de doçura. Os traços do soberano permaneciam invisíveis na sombra de seu grande chapéu,- sombra que os envolvia, a ambos, enquanto ela escutava sua voz baixa e -envolvente.

-       Os seres que aqui vivem reunidos são terríveis, minha criança. Saiba disso. Tenho-os sob minha férula, pois sei muito bem de que desordens, de que loucura sanguinária são capazes, quando estão livres. Não existe um que, tendo uma cidade ou província, não esteja pronto a erguer-se contra mim, pela desgraça de meu povo. Por isso, quero-os sob minha mira. Aqui, em minha corte em Versalhes, são" inofensivos.. Nenhum escapará. Mas feras e rapaces não convivem sem dano. É preciso ter bico e garras para sobreviver. Você não "pertence ã essa raça, minha linda Bagatela.

Ela perguntou-lhe tão baixo que ele teve que inclinar-se para ouvi-la:

- Vossa Majestade quer me dizer que meu lugar não é na corte?

- Decerto que não. Quero-a aqui. Você é uma de suas mais belas jóias. Seu gosto, sua suavidade, sua graça encantaram-me. E disse-lhe o quanto dou valor a seu trabalho. Desejava apenas que você escapasse aos rapaces.

- Escapei de bem pior - disse Angélica.

O rei pousou docemente a mão em sua fronte obrigando-a a inclinar a cabeça para trás e expondo à luz do luar seu rosto de tez aveludada. No escrínio escuro dos cílios, os olhos verdes de Angélica tinham um brilho de manancial, conservando seu mistério no fundo de alguma floresta. O rei inclinou-se e quase com temor pousou os lábios naqueles jovens lábios que súbito mostravam um vinco amargo. Não queria amedrontá-la, mas logo não foi senão um homem ávido, subjugado por seu desejo e pelo contato da boca acetinada que a princípio, fechada e reticente, estremecera, depois se animara e revelara-se sábia.

"Mas... é uma mulher experimentada", vislumbrou, de repente.

Intrigado, mirava-a com novos olhos.

-       Agradam-me seus lábios - disse. - Não se assemelham a quaisquer outros. Lábios de mulher e de menina a um tempo... frescos e ardentes.

Não arriscara outras atitudes. E quando ela se desprendeu, lentamente, ele não a reteve. Permaneceram indecisos, a alguns passos um do outro. Súbito, uma série de detonações surdas sacudiu a frondosidade do parque.

-       Os senhores fogueteiros começam a acender os foguetes. Não podemos perder o espetáculo. Voltemos - disse o rei a contragosto.

Caminharam em silêncio até a proximidade da sala de baile. O rumor da multidão, pontuado por surdas explosões de fogos de artifício, chegava até eles como se fosse o ruído do mar. A claridade se fez mais viva na volta de uma moita de jasmim.

O rei tomou a mão de Angélica para afastar um pouco a jovem e contemplá-la.

- Ainda não a felicitei por seu traje. E uma maravilha que não se iguala senão a sua beleza.

- Agradeço a Vossa Majestade.

Angélica mergulhou numa reverência. O rei, inclinado, o pé curvado, beijou-lhe a mão. - Então?... Amigos, novamente?

- Talvez.

- Ouso esperá-lo...

Angélica afastou-se um pouco assustada, ofuscada por estranhas luzes e perturbada por ver que o palácio lhe aparecia ao longe como se vestido de fogo contra um fundo de trevas.

Os espectadores lançavam gritos, assombrados. No enquadramento da porta queimava uma imagem de Janus, de dupla face. As janelas do rés-do-chão sustinham troféus de guerra luminosos e as do primeiro andar, as imagens inflamadas das Virtudes. Próximo à cumeeira, um imenso sol despedia seus raios. Mais abaixo, ao nível do chão, o edifício parecia contornado por uma balaustrada incandescente.

A caleça do rei passou, puxada por seis fogosos cavalos, montados por postilhões com archotes. A rainha, Madame, Monsieur, a Sita. de Montpensier e o Príncipe de Conde ali haviam tomado lugar.

Fizeram alto diante do tanque de Latona, que prolongava a luminosidade do castelo. Não era mais que um lago de fogo onde seres irreais agitavam-se num caramanchão furta-cor de águas que se cruzavam. Inúmeros vasos fosforescentes alternando-se com candelabros antigos sublinhavam as belas curvas da Ferradura.

O rei fez parar a caleça um instante e contemplou em silêncio o harmonioso desenho das luzes. Por trás das carruagens, a multidão acorrera enchendo a noite de gritos de alegria.

Os veículos voltaram e enveredaram pela grande aléia, bordada de uma dupla fileira de termas, que graças a um incompreensível artifício pareciam translúcidas. Mas^súbito, de entre as estátuas, brotaram fachos de luz. Nas profundezas do grande parque, miríades de foguetes estrondearam como trovão. E os tanques inflamavam-se por todos os lados, como crateras de vulcão.

O alarido crescia, produzindo pânico. Mulheres amedrontadas refugiaram-se correndo nas grutas e sob as árvores. O parque inteiro de Versalhes reverberava. Os canais e lagos tornavam-se púrpura sob os reflexos incandescentes.

Grossos foguetes cortavam, fulgurantes, o céu negro; outros riscavam-no de listras. Outros ainda transformavam-se em caudas de cometa ou lagartas multicores.

Por fim, no momento em que, de todos os pontos do horizonte, foguetes convergiram numa abóbada de rastos luminosos, viram-se planar nos ares, como deslumbrantes borboletas, um L e um M, iniciais do rei e da rainha.

O vento da noite carregou-os lentamente por entre o fumo avermelhado da iluminação feérica que se extinguia.

As derradeiras luzes róseas da festa mesclaram-se às do céu, que se coloria pelo leste. A aurora despontava.

Luís XIV deu ordem de retornar a Saint-Germain. Os cortesãos, estafados, seguiam-no a cavalo ou em seus próprios carros.

Todos porfiavam em repetir que jamais se vira festa tão bela no mundo.

 

Lição de amor nos braços de Angélica

Uma festa inesquecível, dois passeios galantes na sombra de uma aléia; sentia-se arrebatar pela vaga dourada do encantamento, mas um ressaibo de ansiedade amargava-lhe a boca e perturbava as agradáveis reminiscências...

Tal era o estado de Angélica no dia que se seguiu à noite em Versalhes.

Em meio a seu pensamento errante, uma preocupação menor rondava com curiosidade e vinha se impor: o rosto redondo do pequeno Cantor, a quem o Sr. de Vivonne queria tomar como pajem.

"Acertemos essa questão primeiro", disse consigo Angélica, arrancando-se ao preguiçoso devaneio.

Deixou o divã onde repousava da fadiga da noite anterior. Ao atravessar a pequena galeria da Mansão do Plessis, chegou-lhe, vinda de cima, a voz de Cantor:

- "Marquês, tens mais sorte que eu

Por ter esposa tão bela..."

A jovem deteve-se diante da porta de carvalho negro, hesitando um instante. Jamais chegara até aquela porta, que dava para os aposentos de Filipe. Ela recuou, dizendo consigo que sua atitude não tinha sentido.

A voz de oito anos que lá do alto cantava os amores ilegítimos do Rei Henrique IV fê-la sorrir e ela reconsiderou.

Mal bateu levemente na porta, La Violette veio abri-la.

Filipe, diante do espelho, acabava de vestir o gibão azul. Estava de partida para Saint-Germain. Angélica deveria segui-lo em breve, convidada para uma partida com a rainha e uma pequena ceia que se seguiria. As pessoas da corte dispõem de pouco tempo para acertar as questões domésticas.  

O marquês, com cortesia, não mostrou surpresa ao ver sua mulher apresentar-se em seus aposentos. Pediu-lhe que se sentasse e continuou a toalete, aguardando sem impaciência que ela lhe comunicasse o objeto de sua visita.

Angélica olhava Filipe colocar os anéis. Ele os escolhia demoradamente, experimentava-os e examinava com olhar crítico a mão estendida diante de si. Uma mulher não o faria com maior cuidado.

Ela encontrou naquela máscara de homem concentrado em tarefa tão fútil a rija frieza da tolice.

Que vinha buscar junto dele? Um conselho? Isso parecia derri-sório. Para romper um silêncio que se tornava embaraçoso, acabou por dizer:       "

-       O Sr. de Vivonne solicitou a companhia de meu filho Cantor Filipe não mostrou interesse. Suspirou e retirou todos os anéis

da mão direita, cujo conjunto lhe desagradava. Permaneceu pensativo diante dos escrínios abertos; depois, parecendo lembrar-se de Angélica, disse com enfado:

- Ah! Sim? Aceite meus cumprimentos pela boa nova. O favor do Sr. de Vivonne está em ascensão e pode-se contar com a irmã, a Sra. de Montespan, para mantê-lo largo tempo em seu zénite.

- Mas o Sr. de Vivonne deve partir numa expedição ao Mediterrâneo.

- Mais uma prova da confiança que o rei lhe testemunha.

- A criança é muito nova.

- Que pensa de tudo isso?

- Quem? Cantor? Oh!... pareceu-me contente e até bastante desejoso de seguir esse gentil-homem. O que não espanta. O Sr. de Vivonne o mima e sempre o cumula de doces. Mas não incumbe a um garoto de oito anos decidir de sua sorte. Hesito em...

As sobrancelhas de Filipe esboçavam uma mímica de surpresa.

- Quer que ele faça carreira?

- Sim, mas...

-       Quantos mas! - disse com ironia.

Ela falou rapidamente, as faces em fogo:

-       O Sr. de Vivonne tem reputação de libertino. Fez parte do bando de Monsieur. Todos sabem o que isso significa. Não queria confiar meu filho a um homem que poderia corrompê-lo.

O Marquês du Plessis colocara nos dedos um grande solitário e dois outros anéis. Caminhou até a janela e fê-los reverberar à luz do sol.

- Então a quem você desejaria confiá-lo?- - disse com voz lenta. - Ao pássaro raro, de costumes puros, nem intrigante, nem aborrecido, influente junto ao rei, cumulado por ele de honras e... que não existe! Não é simples o aprendizado da vida. Agradar aos grandes não é tarefa fácil.

- É muito jovem - repetiu Angélica. - Temo que seja testemunha de espetáculos que firam sua inocência.

Filipe deu uma risadinha contida.

-       Quanto escrúpulo para uma mãe ambiciosa! De minha parte, tinha apenas dez anos quando o Sr. de Coulmers me colocou em seu leito. E, quatro anos mais tarde, mal a voz revelou minha nova condição de homem, a Sra. de Crécy, desejosa de fruir os benefícios de uma seiva primaveril, ofereceu-me, ou antes, impôs-me, o asilo de sua alcova. Ela devia ter uns quarenta anos... Que diz da aliança entre esta esmeralda e a turquesa?

Angélica não tinha palavras. Estava completamente aterrada.

- Filipe! Oh! Filipe!

- Sim, de fato não combina. Tem razão. O brilho e o verde da esmeralda prejudicam o azul da turquesa. Colocarei outro diamante perto da esmeralda.

Ele lançou-lhe um olhar e teve um risinho de mofa.

- Vamos, abandone essa expressão perplexa. Se minhas reflexões a confundem, por que pedir-me conselho? Você ignora ou afeta ignorar em que consiste a educação completa de um gentil-homem? Deixe seus filhos crescerem entre honrarias.

- Sou sua mãe. Não são só as honrarias que contam. Não posso abandoná-los moralmente. Sua mãe jamais velou por você?

Filipe esboçou um momo de desdém.

-       Oh! é verdade, eu esquecia... Não tivemos a mesma educação. Se minhas lembranças são exatas, você cresceu de pés nus, entre a sopa de couve e as histórias de assombrações. Nessas condições é possível ter mãe. Em Paris, na corte, não sucede o mesmo a uma criança.

Retornara ao toucador e abria novos escrínios. Ela não lhe via o rosto inclinado, mas somente uma cabeça loura que parecia vergar sob antigo fardo.

- Nu e tiritante - murmurou -, por vezes faminto... confiado a lacaios e criadas que me pervertiam, tal era minha vida nesta mesma mansão que herdaria um dia. Mas, quando deviam exibir-me, nada era belo demais para mim. Os mais ricos trajes, suaves veludos, golas delicadas. Horas inteiras meus cabelos eram confiados ao cabeleireiro. Terminada a ostentação, retornava a meu gabinete escuro e ao abandono dos corredores. Eu me aborrecia. Ninguém se preocupou em ensinar-me a ler e escrever. Considerei uma vantagem entrar para o serviço do Sr. de Coulmers, que minha linda aparência havia seduzido.

- Você vinha por vezes ao Plessis...

- Brevíssimas estadas. Devia aparecer e gravitar ao redor do trono. Só avança querfi aparece.. Meu pai, de quem era único filho, não admitiria deixar-me no fundo de uma província. Ele felicitou-se por ver-me tão rapidamente encaminhado... Eu era muito ignorante e sem espírito, mas era belo.

- Eis por que você jamais encontrou o amor - disse Angélica, como se falasse consigo mesma.

- Mas sim! Parece-me que nesse campo minhas experiências foram numerosas e variadas.

- Não é amor, Filipe.

Ela sentia-se gelada, triste, cheia de piedade como se diante de um infeliz privado do indispensável. "A maior morte é a do coração!" Quem lho dissera um dia, com a melancolia desdenhosa dos eleitos? O Príncipe de Conde, um dos maiores senhores pela linhagem, fortuna e glória.

-Jamais amou... uma vez sequer, com sentimento exclusivo... a uma mulher?

-Sim... Minha ama-de-leite, sem dúvida. Mas é coisa distante.

Angélica não sorriu. Olhou-o com gravidade, as mãos sobre os joelhos.

- Esse sentimento - murmurou - que transpõe em um único ser a grandeza do universo, a doçura de todos os sonhos não formulados, o alento e a força da vida...

- Você fala à maravilha dessas coisas. Por minha fé, não creio que tenha algum dia conhecido semelhante exaltação... No entanto, vislumbro o que você quer dizer. Uma vez estendi a mão, mas a miragem esvaiu-se...

As pálpebras velaram-lhe o olhar, e o rosto liso, num leve sorriso, vestiu a expressão enigmática das estátuas jacentes em pedra que se vêem no túmulo dos reis. Jamais parecera tão distante como no momento em que talvez se aproximava dela.

-       Era no Plessis... Eu completara dezesseis anos e meu pai comprara-me um regimento. Estávamos na província para o recrutamento. Em uma festa apresentaram-me uma adolescente. Tinha a minha idade, mas a meus olhos experimentados não era senão uma criança. Envergava um vestidinho cinza corn laços azuis no corpete. Tive vergonha quando ma designaram como prima. Mas, quando lhe tomei a mão para conduzi-la à dança, senti que tremia, e aquilo causou-me uma sensação nova e maravilhosa. Até então fora eu quem sempre tremera diante do desejo imperioso das mulheres maduras ou das impertinências picantes dos jovens coquetes da corte. Aquela garota devolvia-me um poder que fora escarnecido. Seus olhos admirados foram um bálsamo, um licor inebriante; senti que me tornava um homem e não mais um brinquedo; um mestre e não mais um criado... No entanto, mostrei-a zombeteiro a meus companheiros: "Apresento-lhes a Baronesa do Triste Vestido". Então, ela fugiu! Olhei minha mão vazia e tomei-me de um sentimento intolerável. O mesmo que experimentara no dia em que um pássaro que capturara, e que fizera meu amigo, voara-me das mãos. Tudo pareceu-me triste. Quis encontrá-la para acalmar sua cólera e rever seu olhar. Não sabia que fazer, pois minhas iniciadoras não me haviam ensinado a seduzir uma jovem assustadiça. De passagem, apanhei um fruto em uma taça, com a intenção de oferecê-lo em conciliação... Era uma maçã, creio, rósea e dourada como seu rosto. Procurei-a nos jardins. Mas não voltei a vê-la naquela noite...

"Que teria acontecido se voltássemos a nos ver naquela noite?", pensava Angélica. "Teríamos nos olhado timidamente... Ele ter-me-ia oferecido uma maçã, e caminharíamos à luz da lua, de mãos dadas..."

Dois louros adolescentes, pelas aléias murmurantes do parque onde vinham rondar as corças da floresta de Nieul... Dois adolescentes invadidos por uma felicidade inefável, que só se pode fruir aos dezesseis anos, quando se tem vontade de morrer sobre o musgo beijando-se na penumbra... Angélica não teria surpreendido o segredo do cofrezinho de veneno... Sua vida talvez seguisse outro destino...

- E a jovem, jamais tornou a vê:Ia? - perguntou em voz alta, com um suspiro.        

- Sim. Bem mais tarde. E veja o estranho fenómeno e as ilusões com que a juventude pode ornar as primeiras paixões. Pois ela se tornara mais má, e endurecida, ou, numa palavra, mais perigosa que todas as outras reunidas.

Estendeu as mãos abertas diante de si, pensativo.

- Que acha dos anéis? Agora, parece-me perfeito.

- Sim, de fato... Mas um único anel no dedo mínimo é mais discreto, Filipe.

- Tem razão.       .-   r*.

Tirou os anéis supérfluos, devolveu-os aos escrínios e, vibrando uma sineta, ordenou ao criado que buscasse o jovem Cantor.

Quando a criança se apresentou, Angélica e-Filipe estavam em silêncio, face a face.

Cantor vinha a passo decidido. Voltava do manejo e procurava estalar as esporas.

-       Com que então, senhor - disse Filipe, alegremente -, parte para a guerra?...

O rosto sempre um pouco taciturno do garotinho iluminou-se.

- O Sr. de Vivonne falou-lhe de nossos projetos?...

- Vejo que você os subscreve.

- Oh! Senhor, será magnífico bater-me còm os turcos!

- Acautele-se. Os turcos não são cordeiros. Não se deixarão encantar por suas canções.

- Não quero acompanhar o Sr. de Vivonne para cantar. Desejo embarcar num navio. Há muito penso nisso. Quero ir para o mar!

Angélica estremeceu e suas mãos crisparam-se. Reviu seu irmão Josselino, com a mesma chama no olhar", cochichando com paixão: "Quanto a mim, vou para o mar".

Chegara, pois, a hora da separação!... As pessoas lutam pelos filhos, protegem-nos, trabalham pensando que um dia desfrutarão de sua companhia e aprenderão a conhecê-los.

E quando chega o dia!... Já estão grandes. E as abandonam.

Os olhos do pequeno Cantor estavam claros e serenos. Ele sabia aonde queria ir.

"Cantor não mais me necessita", pensou ela. "Eu o sei. Parece-se tanto a mim! Algum dia precisei de minha mãe? Corria os campos, agarrava-me à vida com unhas e dentes. Aos doze anos parti para a América sem sequer olhar para trás..."

Filipe pousou a mão nos cabelos de Cantor.

- Sua mãe e eu decidiremos se lhe convêm o batismo de fogo. Poucos garotos na sua idade têm a honra de ouvir o estrondo do canhão. E preciso ser forte para isso!

- Sou forte e não tenho medo.

- Veremos e comunicar-lhe-emos nossa decisão.

O garotinho inclinou-se diante do padrasto e saiu, muito grave, cônscio de sua importância.

O marquês tomou das mãos de La Violette um chapéu de veludo cinza, dando um piparote numa poeirinha.

- Falarei ao Sr. de Vívonne - disse -, e verei se suas intenções são puras com relação à criança. Senão...

- Preferia vê-lo morto! - disse Angélica, feroz.

- Não fale como uma mãe antiquada. Não assenta no mundo em que vivemos. No que me concerne, penso que o Sr. de Vivon-ne é um esteta que se entusiasmou pelo pequeno artista como por um pássaro doméstico. Para ele, é um bom começo. Seu cargo não custará um centavo. Vamos, pense bem e alegre-se.

Ele beijou-lhe a mão.

-       Devo deixá-la, senhora. O serviço do rei me solicita, e os cavalos devem correr a todo galope para recuperar meu atraso.

Como na noite da festa em que ele lhe oferecera um fruto colhido nos jardins do rei, ela procurou-lhe o olhar baço e impenetrável.

-       Filipe, a garotinha de outrora ainda está aqui, você o sabe.

Mais tarde, rodando os campos avermelhados pelo entardecer, na carruagem que a conduzia a Saint-Germain, ela pensava nele.

Agora sabia o que a comprometera junto de Filipe: sua experiência com os homens. Sabia muito sobre eles. Conhecia-lhes os pontos fracos. E quisera atacá-lo com armas já provadas, quando só poderiam encontrar-se na virgindade de seus corações adolescentes. Haviam sido feitos para se encontrar aos dezesseis anos,

quando ambos viviam o tempo das curiosidades inconfessáveis e devoradoras, a presciência dos mistérios em sua pureza imaculada, tempo em que os corpos jovehs, subjugados por um desejo novo, não o abeiram, no entanto, senão com medo e pudor, satisfazendo-se com pouco, um roçar de mãos, um sorriso, e descobrindo o paraíso num beijo. Seria muito tarde para reencontrar a felicidade perdida? Filipe se extraviara em caminhos perniciosos. Angélica tornara-se mulher. Mas o poder da vida é tão grande que tudo pode reflorir, pensava, como para além das estações glaciais de uma terra enrijecida floresce a primavera.

E uma fagulha brilhou. No momento mais inesperado, o fogo abafado reanimou-se.

Naquele dia, Angélica achava-se no salão da Mansão do Plessis. Descera para examinar a peça, em vista da grande recepção que daria em breve à alta sociedade dla capital. Recepção que deveria ser faustosa, pois não sé excluía que o rei estivesse presente.

Angélica, com um momo e numerosos suspiros, correu o imenso salão, escuro como um poço, guarnecido com um mobiliário severo do tempo de Henrique IV, que em vão iluminavam dois enormes espelhos de fundo glauco. Era gélido em todas as estações. Para combater o frio, desde sua chegada Angélica fizera dispor sobre o lajedo espessos tapetes persas tirados dos salões do Beautreillis, mas a branca suavidade da lã guarnecida de rosas ainda mais acentuava a austeridade dos pesados móveis de ébano. Continuava a inspeção quando Filipe entrou, buscando condecorações, que guardava em escrínios, a uma das secretárias de múltiplas gavetas.

- Estou preocupada, Filipe - explicou-lhe. - Receber aqui me deprime. Não quero mal a seus ancestrais, mas é raro encontrar morada tão mal-ajeitada como a sua.

- Queixa-se de seus aposentos? - perguntou o jovem na defensiva.

- Não, meus aposentos são encantadores.

- Ficou bastante cara a forração - disse ele, arrogante. - Tive que vender meus últimos cavalos para fazê-la.

- Você a fez para mim?

- Para quem, então? - resmoneou Filipe, fechando bruscamente a gaveta. - Eu a desposava... contra a vontade, mas, enfim, a desposava. Diziam-na refinada, difícil. Não me sujeitaria a seu desdém de mercadora opulenta.

- Pensava aqui instalar-me, após o casamento?

- Parecia-me normal.

- Então por que nunca me convidou?

Filipe aproximou-se dela. Seu rosto era um misto indefinível de confusos sentimentos; Angélica, no entanto, teve a surpreendente impressão de que ele enrubescia.

- As coisas haviam começado tão mal entre nós que me parecia que um convite de minha parte sofreria uma recusa.

- Que quer dizer?

- Não podia ter-me senão horror, depois do que sucedera no Plessis... Jamais temi o inimigo, o rei o testemunha... Mas creio que preferiria o fogo de cem canhões espanhóis a ter que reencontrá-la naquela manhã, ao acordar... depois... Ah! e ademais, era tudo sua culpa... Eu havia bebido... Como épossível exasperar um homem que bebeu, como você o fez... Por prazer... Você me enfurecia. Comia - gritou, sacudindo-a -, comia naquela noite com apetite vergonhoso, anormal, quando sabia que me aprestava a estrangulá-la!

- Mas, Filipe - disse ela, petrificada -, juro-lhe que morria de medo. Não é minha culpa se as emoções sempre me deram fome... você tinha então interesse por mim?

- Como é possível não lhe ter interesse? - gritou, furioso. - Quanto você não inventaria para fazer-se notar! Apresentar-se ao rei sem convite... fazer-se atacar pelos lobos... Ter filhos... amá-los... que sei eu? Ah! não lhe falta imaginação... Bom Deus! quando vi seu cavalo voltar com a sela vazia, em FontainebleauL.

Foi bruscamente para trás dela e agarrou-a pelos ombros, a ponto de esmagá-los. Perguntou à queima-roupa:

- Você tinha amor a Lauzun?

- A Lauzun? Não, por quê?

Ela enrubesceu, recordando o incidente em Fontainebleau.

-       Ainda pensa no caso, Filipe? Eu não, confesso-lhe, e suponho que Péguilin não mais se importa. Como podem ocorrer tais disparates? Pergunto-me, encolerizada comigo mesma. É o acaso da festa, a bebida, o ambiente, um assomo de despeito. Você era tão duro comigo, tão indiferente. Parecia recordar-me como sua iriulher apenas para injuriar-me ou ameaçar-me. Em vão fazia-me bela... Não sou senão uma mulher, Filipe! O desdém é a única prova que uma mulher não pode vencer. Ele corrói o coração. O corpo se enfada, enlanguesce por falta de carícias. Fica à mercê Je um bom conversador como Péguilin. Tudo o que disse da beleza de meus olhos e de minha pele pareeeu-me-então refrescante como uma fonte no deserto. E ademais, queria vingar-me de você.

- Vingar-se? Oh! Você inverte os papéis. Eu é que devia vingar-me, não você. Não partiu de você forçar-me a desposá-la?

- Mas pedi-lhe perdão.

- Assim são as mulheres! Porque pedem perdão, pensam estar tudo apagado. Não impedia que continuasse seu esposo. Acredita que para apagar tão grande dano bastava pedir perdão?...

- Que mais podia fazer?

-       Expiá-lo! - gritou, erguendo a mão como para lhe bater.

Mas, como houvesse um-brilho alegre no fundo de seus olhos azuis, ela sorriu.

- Por vezes a expiação é"doce- disse. - Estão longe o cavalete e o ferro em brasa sob os pés.

- Não me provoque. Manobrei-a, é verdade. Foi um erro. Sinto que, com a ciência inimaginável de seu sexo, você me imobiliza em seus laços como um caçador furtivo o faria com um simples coelho.

Ela riu, pendendo a cabeça suavemente para trás, para apoiá-la ao ombro de Filipe. Bastaria um movimento imperceptível para pousar os lábios em sua fronte ou suas pálpebras. Ele não o fez, mas ela sentiu-lhe as mãos que se crispavam a sua cintura e o fôlego acelerado.

-       Minha indiferença pesava, você disse. Tinha contudo a impressão de que nossos encontros lhe eram penosos, para não dizer odiosos.

Angélica desatou a rir.

-       Oh! Filipe. Com um mínimo de amabilidade de sua parte, acharia nossos encontros encantadores. Era um sonho tão belo que guardava no fundo do coração, desde o dia em que você me tomou pela mão, dizendo: "Apresento-lhes a Baronesa do Triste Vesttdo". Já o amava, então.

- A vida... e meu chicote encarregaram-se de destruir o sonho.

- A vida pode reconstruir... e você poderia pôr o chicote de lado. Jamais renunciei a meu sonho. E, mesmo separados, no fundo do coração eu...

-       Esperou alguma vez por mim?

As pálpebras cerradas de Angélica faziam-lhe uma suave sombra malva nas faces pálidas.

-       Ainda o espero.

Sentia as mãos de Filipe em seus seios tornarem-se febris e impacientes.

Ele resmungou e praguejou baixinho e ela conteve-se para não rir. Então ele inclinou-se bruscamente para beijar-lhe o pescoço flexível e fremente.

- Você é tão extraordinariamente bela, tão extraordinariamente mulher! - murmurou. - E eu... não sou senão um velho soldado desajeitado.

- Filipe!

Ela olhou-o, surpresa.

- Que tolice você diz! Mau, cruel, brutal, sim, você o é. Mas desajeitado? Não. Não, tal reprimenda não me ocorreria. Infelizmente, você não me deu a oportunidade de medir uma fraqueza comum aos amantes muito apaixonados.

- No entanto, é uma reprimenda que as belas fizeram-me com frequência. Decepcionava-as, ao que parece. A crer no que diziam, um homem dotado da perfeição física de Apolo deveria atingir marcas... sobrenaturais.

Angélica riu com vontade, inebriada por uma loucura que parecia abater-se sobre eles como um gavião, vindo de um céu de luz. Há alguns segundos não eram senão contendores. Agora os dedos do gentil-homem impacientavam-se no decote do corpete.

- Docemente, Filipe, por piedade. Não vá despedaçar um plastrão de pérolas que custou dois mil escudos. Dir-se-ia que você jamais despiu uma mulher.

- Precaução vã, com efeito! Quando bastaria erguer uma saia para...

Ela pousou-lhe dois dedos na boca.

- Não recomece a ser grosseiro, Filipe. Você nada sabe do amor e da felicidade.

- Então guie-me, bela dama. Ensine-me o que suas companheiras esperam de um amante belo como um deus.

Havia amargor em sua voz. Ela lançou os braços ao redor de seu pescoço, abandonando-se, pesada, as pernas lassas, e ele docemente a trouxe até a maciez do tapete de alta lã.

- Filipe, Filipe - murmurou. - Acha a hora e o local azados para a lição?

- Por que não?

- Sobre o tapete?

- Certamente, sobre o tapete. Soldado sou, soldado serei. Se não tenho direito de tomar minha própria mulher em minha própria casa, então recuso-me a interessar-me pelo breviário do amor.

- Mas pode entrar alguém!

- Que importa! Quero-a agora. Sinto-a.quente, disposta, acessível. Seus olhos brilham como estrelas, seus lábios estão molhados...

Ele espreitava aquele rosto pendido, as faces róseas de ardor.

-Vamos, jovem prima, folguemos juntos um pouco, e melhor que em nossa juventude...

Angélica teve um gritinho -vencido e estendeu os braços. Não estava mais em estado de resistir nem de escapar ao domínio do desejo. Foi ela quení o atraiu.

-Não seja tão afoito, meu belo amante - sussurrou. - Dê-me tempo para ser feliz.

Com paixão ele tomou-a e possuiu-a, penetrado de uma curiosidade nova que o fazia atento à mulher, e surpreso por ver os olhos verdes de Angélica, de que temia a dureza, velarem-se aos poucos de uma ansiedade devaneadora. Ela esquecia de se enrijecer; não mais havia no canto da boca o desafio que ele ali lera com tanta frequência, mas os lábios entreabertos fremiam ao sopro de seu esforço. Não era mais sua inimiga. Tinha confiança nele. Isso o encorajava a procurá-la com doçura, e, em lampejos de deslumbrantes revelações, ele compreendia que ela o conduzia a sendas novas e misteriosas. Uma esperança surgia, crescia nele, com o fluxo regular da voluptuosidade. Chegara a hora de um encontro embriagador, de fazer vibrar aquela feminilidade deliciosa que tanto se furtara. Tarefa delicada, que reclamava pacientes cuidados. Toda a mestria e virilidade despertadas, ele avançava para uma presa que não mais se escondia. Lembrava que ela o humilhara e que ele a odiara até a dor. Mas, ao fitá-la, sentia o coração romper-se com o brotar de um sentimento desconhecido. Onde estaria a orgulhosa jovem que enfrentara?

Via-a de súbito render-se como um ferido assustado e ter pequenos gestos inacabados que pareciam pedir clemência.

Ora fremente, ora enlouquecida de langor, rolando a cabeça para os lados, com um movimento suave e maquinal sobre os Cabelos dourados espalhados pelo chão, desprendia-se lentamente de si mesma, atingia o ponto imaterial e escuro onde dois seres se encontram a sós com o prazer.

No longo frémito que bruscamente a sacudiu, ele sentiu aproximar-se o momento em que seria seu: dono. Cada segundo mais o exaltava, incutindo-lhe um sentimento de vitória jamais experimentado, uma força conquistadora que se projetava, segura de si, para a recompensa. Era o vencedor de um difícil torneio, que por várias vezes arriscou-se a perder, mas que vencia por sua vigilância e valor. Não necessitava mais conduzi-la. Ela esticava-se em seus braços como um arco vivo. Tenazmente solicitada, no limite de sua resistência, não era senão espera, angústia e felicidade.

Cedeu, por fim, e ele percebeu a resposta secreta daquela carne, que ele despertara e deliciara. Então ele se abandonou. Sabia que era o que lhe faltara toda a vida; a alegria dela, a confissão de seu corpo dócil e ávido, a que satisfazia com vagar, enquanto ela cobrava vida com grandes suspiros apaixonados.

-       Filipe!

Ele abateu-se sobre ela, escondendo o rosto em seu corpo. Diante da realidade que voltava com a decoração austera do velho salão dos Du Plessis, Angélica começou a inquietar-se com seu mutismo. Tão breves os instantes de abandono.

Não ousava crer no próprio delírio, na embriaguez que a deixava quase trémula e frágil até as lágrimas.

-       Filipe!

Não ousava dizer-lhe o quanto estava grata por seus cuidados para com ela. Tê-lo-ia decepcionado?

-       Filipe!

Ele ergueu a cabeça. Seu rosto permanecia enigmático, mas Angélica não podia se enganar. Entreabriu os lábios num suavíssimo sorriso e pousou um dedo no fino bigode perolado de suor.

-       Meu primo importante...

Naturalmente, aconteceu o que devia acontecer. Alguém entrou.

Era um lacaio, introduzindo dois visitantes: o Sr. de Louvois e seu pai, o velho e terrível Michel Le Tellier. O velho perdeu o lornhão. Louvois ficou carmesim. Ultrajados, ambos se retiraram.

No dia seguinte, Louvois contaria a anedota à corte inteira.

-       Em pleno dia!... com um marido!

Os amantes e apaixonados da bela marquesa suportariam tal insulto? Um marido! Um rival domésticoLA voluptuosidade a domicílio!...  

A Sra. de Choisy repetia, indignada, pela Galeria de Versalhes:

- Em pleno dia!... Em pleno dia!... Fizeram-se pilhérias, ao lever do rei.

- O rei não riu o quanto se esperava - observou Péguilin. E não fora o único a adivinhar o secreto despeito do soberano.

- Ele é sensível a tudo o que lhe diz respeito - explicou a Sra. de Sévigné a Angélica. - Reconciliava-a de bom grado com um esposo irascível. Mas não se- devia exagerar a devoção. O Sr. du Plessis pôs muito zelo em contentar o soberano. Talvez pague com uma desgraça por não ter compreendido que certas ordens não pedem execução tão à risca.

- Acautele-se com a Companhia do Santo Sacramento, minha cara - disse Atenaís com expressão maldosa. - O assunto pode irritá-los.

Angélica defendeu-se, afogueada.

-       Não vejo que réplicas possa ter a Companhia do Santo Sacramento. Se não posso receber as homenagens de meu marido, sob meu teto...

Atenaís casquinou por trás do leque.

-       Em pleno dia... e sobre o tapete! Mas é o cúmulo do vício minha cara! Isso não se perdoa senão com um amante.

Filipe, indiferente à troça e ao sarcasmo, e talvez ignorando-os, passava, soberbo. O rei teve-lhe palavras ásperas; ele pareceu não perceber. Na febre das últimas festas que o rei dava antes das campanhas de verão, Angélica não pôde aproximar-se dele.

Era estranho. Filipe voltara a ser glacial, e quando ela lhe falara, ao acaso, no baile, ele respondera em tom arrogante. Ela acabou por dizer a si mesma que sonhara o suave e perfeito instante que trazia no âmago das lembranças como uma rosa púrpura desabrochada. Mas os dedos do mundo encarniçaram-se em massacrar a flor delicada, a ponto de ainda fazê-la enrubescer. E Filipe era bem a imagem desse mundo cruel e brutal. Ela ignorava que Filipe achava-se presa de sentimentos complexos, inusitados para ele, em que as críticas de seu orgulho mesclavam-se a uma espécie de medo pânico de Angélica. Sentia não poder dominá-la senão pelo ódio. Se essa muralha cedesse, seria o servilismo. Ora, ele jurara que jamais se submeteria a uma mulher. E agora acontecia-lhe evocando certas nuanças de seu sorriso, alguns de seus olhares, sentir-se doente como um adolescente. Voltavam antigos temores. Obnubilado por uma vida libertina, em que conhecera mais desgostos que satisfações, duvidava ter fruído instantes de harmonia sobrenatural numa união física com um desses seres execráveis e desprezíveis, como se lhe apresentavam as mulheres. Devia reconhecer que era àquilo que chamavam amor? Ou não seria senão uma miragem? O medo de nova decepção o torturava. Morria de despeito, dizia a si mesmo, e de tristeza, também. Mais valiam o cinismo e a violação!...

Angélica, que jamais imaginaria tais tormentos por trás daquele rosto insensível, experimentava aos poucos uma cruel decepção. As brilhantes festas não conseguiam distraí-la. As atenções do rei irritavam-na e seus olhares insistentes faziam correr em suas veias um mal-estar. Por que Filipe a abandonava?

Numa tarde em que a corte inteira aplaudia Molière no teatro de verdura, ela sentiu-se invadir por uma grande melancolia. Parecia-lhe que voltava a ser a garotinha pobre e feroz entre os pajens zombeteiros que, no Castelo do Plessis, fugira pela noite, o coração cheio de desgosto e de ternura escarnecida. Igual desejo de fugir invadiu-a. "Odeio-os, a todos", pensou. E sem ruído deixou o palácio e fez chamar sua carruagem. Mais tarde deveria recordar esse movimento impulsivo que a arrancara de Versalhes e nomeá-lo "pressentimento". Pois quando chegou, à tarde, diante da mansão do Faubourg Saint-Antoine, reinava ali grande bulício, e La Violette preveniu-a de que o senhor era enviado para a frente do Franco-Condado e devia partir com a aurora.

Filipe ceava, sozinho diante de dois castiçais de prata, na sala de jantar de lambris negros. Ao ver Angélica, num amplo manto de tafetá rosa, franziu o cenho.

- Que veio fazer aqui?

- Não tenho o direito de voltar quando bem quiser?

- Você foi requisitada em Versalhes por vários dias.

- Pareceu-me que acabaria por morrer de tédio; então deixei aquelas pessoas insuportáveis.

- Espero que sua desculpa seja falsa, pois seria inadmissível e se arriscaria a desagradar ao rei... Quem a preveniu de minha partida?

- Ninguém, estou lhe dizendo. Surpreendim-me esses preparativos. Com que então partiria sem-mesmo dizer-me adeus?

- O rei pediu-me que cercasse a ^partida da maior discrição e, particularmente, que a ocultasse de você. É sabido que as mulheres são incapazes de controlar a língua.

"O rei tem ciúme", quase gritou Angélica. Filipe não via mesmo nada, nada compreendia, a menos que afetasse ignorância.

Angélica sentou-se à outra extremidade da mesa e tirou as luvas de fino couro marcadas por pérolas.

-       E estranho. A campranha de verão ainda não começou. As tropas continuam nos quartéis. Não sei de ninguém que o rei tenha feito partir sob pretexto de guerra. Sua convocação semelha em muito uma desgraça,-Filipe.

O rapaz olhou-a em silêncio, tão longamente que ela acreditou que ele não a ouvira.

-       O rei é senhor - disse, por fim.

Ergueu-se, rígido.

-       Devo retirar-me, pois já se faz tarde,. Cuide de sua saúde em minha ausência, senhora. Apresento-lhe minhas despedidas.

Angélica ergueu para ele os olhos transtornados. "Não haveria melhor maneira de nos despedirmos?", parecia implorar-lhe.

Ele não quis compreender. Inclinou-se e apenas beijou a mão que ela lhe estendia.

No recesso do quarto, a priminha pobre pôs-se a chorar.

Vertia as lágrimas que contivera outrora em seu orgulho de adolescente. Lágrimas de desencorajamento, de desespero.

-       Jamais compreenderei esse homem! Jamais o conseguirei.

Ele partiria para a guerra. E se não voltasse?... Oh! ele voltaria.

Não era o que temia. Mas os momentos de graça teriam passado. A lua entrava pela janela, aberta sobre or jardins tranquilos, e um rouxinol cantava. Angélica ergueu o rosto molhado. Disse consigo que amava aquela casa onde os ruídos se abafavam, porque ali vivera com Filipe. Bizarra intimidade, a deles, que mais semelhava uma frustrante brincadeira de esconde-esconde, cada qual correndo para experimentar seus adornos entre duas obrigações na corte, duas viagens, duas caçadas...

Mas também houvera os momentos fugidios, roubados à avidez mundana, os instantes em que Filipe sentara-se junta dela para contemplá-la amamentando o pequeno Carlos Henrique, as conversas em que se olharam, rindo, a manhã em que Filipe colocava os anéis ouvindo-a falar de Cantor, e o dia tão próximo em que se abandonaram à paixão de seus corpos, quando ele a tomara com um ardor e um desvelo que semelhavam o amor.

Súbito, não pôde mais se conter. Vestiu-se, envolvendo-se no vaporoso penhoar de cambraia branca, e correu, os pés nus, pela pequena galeria até o quarto de Filipe.

Entrou sem bater. Ele dormia, nu, atravessado no leito. Os pesados lençóis de renda, que haviam deslizado em parte para o chão, descobriam-lhe o peito musculoso, a que o luar esmaecido conferia o brilho e a palidez do mármore. Seu rosto era diferente no sono. A cabeleira curta e anelada que trazia sob a peruca, os longos cílios, a boca intumescida davam-lhe o ar de inocência e serenidade que se encontra nas estátuas gregas. Com a cabeça levemente pendida para o ombro, as mãos abandonadas, parecia sem defesa.

Angélica, ao pé da cama, reteve o fôlego para melhor observá-lo. Tinha o coração compungido diante de tanta beleza, de detalhes que lhe eram desconhecidos e que descobria pela primeira vez: uma correntinha de ouro com uma pequena cruz no pescoço de gladiador, um sinal no peito, à esquerda, cicatrizes, aqui e ali, como lembranças da guerra e dos duelos. Pousou a mão em seu peito, para surpreender as batidas do coração. Ele teve um leve movimento. Deslizando para fora do penhoar, encolheu-se suavemente junto dele. Seu calor de homem saudável, o contato da pele lisa inebriaram-na. Ela pôs-se a beijar seus lábios, tomou-lhe a cabeça para apoiá-la, pesada e abandonada, contra o peito. Ele moveu-se, encontrando-a na semi-inconsciência.

-       Minha bela - murmurou, enquanto lhe roçava o seio com a boca, num movimento de criança esfomeada.

Quase imediatamente ergueu-se, com olhar maligno.

- Você?... Você aqui! Que insolência! Que...

- Vim despedir-me, Filipe, a meu modo.

- A mulher deve aguardar a vontade do marido e não impor-se a ele. Safe-se daqui!

Segurou-a pelos punhos para expulsá-la do leito, mas ela agarrou-se a ele, suplicando baixinho:

- Filipe! Filipe, deixe-me ficar! Deixe-me ficar esta noite com você.

- Não.

Desenroscava seus braços com furor", masjla tornava a enlaçá-lo: tinha bastante perspicácia para adivinhar, por muitos indícios, que ele não deixava de se emocionar com sua presença.

- Filipe, eu o amo... deixe-me ficar entre seus braços!

- Que busca aqui, com os diabos?

- Você o sabe.

- Pequena impudica! Não tem amantes suficientes para acalmar seu ardor?

- Não, Filipe. Não tenho amantes. Não tenho senão a você. E você estará fora muitos meses!

- Então é isso que. lhe falta, pequena vagabunda. Sem mais dignidade que uma cadela no cio!

Por um bom tempo continuou a praguejar, tratando-a por todos os nomes, mas não mais a repelia, e ela encolhia-se bem junto dele, escutando os insultos como a mais terna declaração de amor. Por fim, ele deu um profundo suspiro e tomou-a pelos cabelos, levando-lhe a cabeça para trás. Ela sorria e o fitava. Não tinha medo. Jamais tivera medo. Fora o que o vencera. Então, com uma última imprecação, ele enlaçou-a.

Foi uma união silenciosa que encobria em Filipe o temor de fraquejar. Mas a paixão de Angélica, a alegria quase ingénua que sentia por estar em seus braços, sua habilidade de mulher amorosa, boa serva de um prazer que partilhava, venceram suas dúvidas. A fagulha brilhou, tornou-se braseiro, consumiu em Filipe as antigas obsessões. Com um grito surdo que traía a violência de seu prazer, Angélica soube enchê-lo de orgulho.

Ele nada confessou. O tempo dos arrufos, dos rancores da guerra sorrateira, que os erguera um contra o outro, ainda estava muito próximo. Ele ainda se esforçaria por mentir. Não a queria segura. E, como ela se demorasse, estendida a seu lado, no emaranhado de seus longos cabelos soltos, disse brutalmente:

-       Vá embora!

Dessa vez ela obedeceu com uma docilidade solícita e carinhosa que lhe deu vontade de bater-lhe ou de abraçá-la com paixão. Ele cerrou os dentes, lutou contra o pesar de vê-la desaparecer e o desejo de retê-la, de tê-la junto de si até a aurora, em seus braços, na sombra quente de seu corpo, como um animalzinho palpitante e sonhador. Loucura! Futilidades. Fraqueza perigosa. Queo vento das batalhas e as balas de canhão dispersassem rápido aquilo tudo!

Pouco após a partida do Marechal du Plessis-Bellière, foi a vez de Cantor juntar-se ao exército. No último momento, Angélica quis desistir. Sentia-se terrivelmente triste e assaltada por sombrios pressentimentos. Passara a escrever com frequência para o Franco-Condado, mas Filipe jamais respondia. Esse silêncio, embora quisesse negá-lo, a deprimia. Quando Filipe confessaria que a amava? Talvez nunca. Talvez fosse incapaz de amar. Ou de perceber que a amava. Não era um filósofo, mas um guerreiro. Acreditando piamente que a detestava, ainda tentava prová-lo. Mas não poderia apagar o que brotara entre eles, a cumplicidade não confessada do gozo que os traria de volta, um para o outro, fracos, e assustados. A isso, nem os devotos aborrecidos, nem os libertinos trocistas, nem o rei, nem mesmo Filipe, teriam como se opor.

Angélica esforçou-se por se ocupar da partida de Cantor. O tempo de que dispunha era pouco.

Cantor partiu.

Angélica, arrastada por inúmeras recepções, não teve tempo de se deter sobre a emoção da manhã brumosa em que o garotinho, corado de prazer, içou-se na carruagem do Duque de Vivonne, acompanhado por seu preceptor, Gaspar de Racan.

A criança envergava um traje de chamalote verde que combinava com seus olhos, com muitas rendas e rosetas de cetim. Os cabelos crespos estavam cobertos por um grande chapéu de veludo negro guarnecido de plumas brancas.

A guitarra enfitada atrapalhava-o. Trazia-a preciosamente junto ao corpo, como uma criança com o brinquedo predileto. Fora o último presente de Angélica. Uma guitarra em madeira das ilhas, incrustada de nácar e que o maior violeiro da capital desenhara e montara para ele.

Bárbara soluçava à sombra da porta-cocheira. Angélica não queria emocionar-se. Era a vida! Mas cada etapa arranca laços insuspeita-dos no coração das mães...

Informou-se, então, com acrescido interesse dos negócios no Mediterrâneo. Ao partir em apoio dos venezianos contra os turcos que queriam apossar-se do último baluarte da cristandade no Mediterrâneo, as galeras francesas cumpriam uma missão celeste e o Duque de Vivonne e suas tropas, mereciam o nome de cruzados. Angélica sorria com doçura ao pensar jio pequeno Cantor, engrenagem minúscula e inocente na santa expedição. Imaginava-o sentado na proa de um navio, as fitas tia guitarra flutuando no azul do céu.

Ela aproveitou os raros momentos de lazer em Paris para retomar contato com Florimond. Estaria ele sofrendo com a separação de Cantor? Não sentiria ciúme por ver o irmão mais novo tão brilhantemente encaminhado e já honrado com o convite para as batalhas? Ela logo se deu conta de que, se Florimond comportava-se com bastante polidez diante dela, custava-lhe permanecer tranquilo,- dez-minutos que fosse. Múltiplas ocupações o esperavam: montar a cavalo, alimentar seu falcão, tratar de seu dogue, polir sua espada, preparar-se para acompanhar Monseigneur, o delfim, no manejo ou na caça. Não se mostrava paciente senão quando uma aula de latim com o Abade de Lesdiguières estivesse em vista.

-       Minha mãe e eu estamos conversando - dizia ao preceptor,

que se retirava, não ousando insistir.

A conversação consumia-se sobretudo na demonstração dos talentos de duelista de Messire Florimond. Sob o exterior sensível e frágil, tinha terríveis vontades de "rapaz". Não sonhava senão em golpear, vencer, matar e defender sua honra. Não se sentia feliz senão com uma espada na mão e já se exercitava em atirar com mosquete. Achava Monseigneur, o delfim, bastante desajeitado.

- Tento fazê-lo perder um pouco o acanhamento, porém, pobre de mim! - suspirava. - Digo-o entre nós, minha mãe, mas minha reflexão não deve chegar a outros ouvidos. Poderia prejudicar minha carreira.

- Eu sei, eu sei, meu filho - aprovava Angélica, rindo, embora um tanto inquieta com aquela sagacidade precoce.

Sabia também que o pequeno delfim seguiria Florimond até o fim do mundo, subjugado por seus olhos negros cheios de fogo e por sua vitalidade militar. Sim, Florimond era encantador. Agradava e era bem-sucedido em tudo. Ela suspeitava-o profundamente egoísta... como todas as crianças, sem dúvida. Mas avaliava, com sutil melancolia, que ele também se distanciara dela. Ele dava voltas, a espada em punho.

- Olhe... Olhe, minha mãe. Um golpe, uma finta... e um passo à frente... Agora, bem no coração... Meu adversário jaz por terra... Morto!

Ele era belo. A paixão de viver acendera nele sua chama. Mas, se sofresse, continuaria a chorar em seu ombro? Os corações infantis logo amadurecem sob o sol brilhante da corte...

A notícia da derrota em cabo Passero chegou no meio do mês de junho, em plena festa, a última que o rei oferecia antes da campanha da Lorena.

As pessoas tomaram conhecimento de que as galeras do Sr. de Vivonne haviam sido atacadas ao largo da Sicília por uma flotilha barbaresca comandada por um renegado argelino, cujas incursões eram célebres no Mediterrâneo, conhecido como o Resgatador.

Vivonne tivera que se refugiar numa baía ao abrigo do cabo Passero.

Mostrava-se bastante abatido. No entanto, tudo não passara de uma escaramuça. Somente duas galeras, entre as vinte que comandava, haviam afundado.

É verdade que uma delas levava uma grande parte das pessoas de sua casa, e o Sr. de Vivonne tivera o dissabor de ver desaparecer no fundo das águas seus três gentis-homens, os dez oficiais-de-boca, seus quatro criados, os vinte coristas de sua capela, o confessor, o mordomo, o escudeiro, e seu pajenzinho com sua guitarra.

 

Filipe confessa-se vencido

Não se apresentaram condolências à Sra. du Plessis, pois o filho que perdera em Passero não era senão uma criança. Será que uma criança conta?      

A calma do verão, trazendo uma trégua aos prazeres da corte, permitiu-lhe amargar sua dor em Paris.

Não podia crer na terrível notícia. Era impensável. Cantor não podia morrer. Era filho do milagre! Muito antes de nascer, enfrentara o veneno com que queriam eliminar sua mãe. Viera à luz sob as abóbadas pútridas do Hôtel-Dieu, entre os últimos dos deserdados. Passara os seis primeiros meses de vida num estábulo, abandonado, coberto de crostas, sugando com a boquinha um farrapo sujo para acalmar a fome. Fora comprado pelos ciganos por sete sóis.

Sobrevivera ao pior!... E agora ousavam dizer que o corpinho robusto, indomável, fora privado de vida... Loucura! Os que assim falavam não conheciam o pequeno Cantor!

Angélica recusava-se terminantemente a aceitar a atroz realidade dos fatos.

Bárbara sufocava de dor noite e dia; Angélica, preocupada com sua saúde, acabou por sacudir-lhe um pouco o ânimo.

-' Claro, senhora, claro - murmurou a criada entre soluços. - A senhora não pode compreender. Não o amou como eu.

Angélica, aterrada, deixou-a e retornou ao quarto, sentando-se junto à janela aberta.

O outono estava a caminho. Era uma tarde de chuva fina em que reverberava a luz do dia que findava.

Angélica levou as mãos ao rosto. Tinha o coração pesado. Pesado por um remorso que nada poderia apagar: o de ter muito raramente atraído o pequeno Cantor a seus joelhos, para beijar suas faces redondas.

O semblante do filho permanecia para ela um mistério. Por assemelhar-se a ela, e a todos os irmãozinhos De Sancé que vira nascer a seu redor, não entendia com clareza que Joffrey de Pey-rac também era pai de Cantor. O espírito positivo, aventureiro e irredutível do grande conde tolosano achava-se nele...

Revia-o partindo para a guerra, grave e cheio de alegria sob o grande chapéu.

Revia-o cantando para a rainha, ouvia sua voz de anjo:

"Adeus, coração, minha vida,

Adeus esperança minha!"

E o revia ainda, pequenino, leve fardo que carregava no distante dia de inverno, quando o levara ao Temple, por uma Paris embalsamada pelo cheiro das panquecas da Chandeleur.

O passo cansado de um cavalo, embaixo, nos paralelepípedos do pátio, arrancou-a às lembranças. Lançou um olhar maquinal para fora e pensou reconhecer a silhueta de Filipe no cavaleiro que apeara e subia a escadaria de fora. Mas Filipe estava com o exército, na frente do Franco-Condado, para onde o rei se dirigia.

Um segundo cavaleiro penetrava sob a abóbada da entrada principal da mansão. Dessa vez reconheceu sem erro a alta estatura do criado La Violette, curvado sob o aguaceiro. Então era mesmo Filipe quem acabava de chegar. Antes de poder ordenar os sofridos pensamentos, ouviu-lhe os passos na galeria e ele apresentou-se, coberto de lama até a cintura e, pela primeira vez, em lastimável estado, com o chapéu e as bandas do casacão transformados em goteiras.

- Filipe! - disse, levantando-se. - Mas você está ensopado!

- Chove desde a manhã e galopei sem descanso. Ela vibrou uma sineta.

-       Pedirei uma colação quente e talvez seja necessário acender o fogo. Por que você não se fez anunciar, Filipe? Seus aposentos estão nas mãos dos tapeceiros. Pensei que seu retorno não se previa para antes do outono e imaginei... que o momento seria oportuno para... fazer algumas reformas.

Ele escutava com certa indiferença, plantado nas pernas afastadas, como já se apresentara tantas vezes.

-       Soube que seu filho havia morrido -• disse por fim. - A notícia só me chegou na semana passada... "

Fez-se um silêncio, durante o qual o dia pareceu morrer bruscamente, as nuvens de chuva velando as últimas luzes do poente.

-       Ele sonhara em embarcar para o mar - retomou Filipe - e teve tempo de realizar seu sonho. Conheço o Mediterrâneo. E um mar completamente azul e bordado de ouro, como o estandarte do rei. Uma bela mortalha para um pajenzinho que cantava...

Angélica pôs-se a chorar, os olhos arregalados sobre Filipe, a quem não mais via. Ele avançou a mão e pousou-a em seus cabelos.

- Você desejava que ele não fosse corrompido. A morte poupou-lhe as lágrimas de vergonha que vertem em segredo as crianças pegas de surpresa. Cada qual com seu destino. O dele não foi senão alegria e canções. Tinha uma mãe que o amava.

- Não tive muito tempo para ocupar-me dele - fez ela, enxugando as faces.

- Você o amava - repetiu -, lutava por ele. Deu-lhe o necessário para a sua felicidade: a segurança de seu amor.

Angélica escutava-o com uma perplexidade que aos poucos cedia lugar a uma grande estupefação.

- Filipe - exclamou por fim -, não me fará crer que deixou o exército e cobriu oitenta léguas por estradas inundadas pela chuva apenas para... para trazer-me palavras de consolo!

- Não seria o primeiro disparate que você me faria cometer - disse -, mas não vim apenas para isso. Trago-lhe também um presente.

Ele ergueu-se, pegando do bolso uma espécie de estojo em couro velho e endurecido, e o abriu. Dali tirou um colar bizarro composto de uma corrente de ouro verde e três placas de ouro rosa sustendo os grandes cabochões de dois rubis e uma esmeralda. O conjunto era suntuoso, mas de gosto bárbaro e antigo, feito para ser carregado por sólidas belezas de tranças louras, como eram as rainhas dos tempos dos primeiros Capetos.

-       É o pendente das mulheres De Bellière - disse. - Aquele que lhes infundiu durante séculos a virtude da coragem. É digno de ser usado por uma mãe que deu um filho-pelo reino. Foi para trás dela, para colocá-lo em seu pescoço.

- Filipe - murmurou Angélica, ofegante -, que quer dizer isso? Que significa isso? Recorda-se da aposta que fizemos um dia nos degraus de Versalhes?

- Recordo-me, minha cara, e você a ganhou.

Ele afastou os cachos louros e inclinou-se para beijar-lhe longamente a alva nuca. Angélica permanecia imóvel. O jovem fê-la voltar-se para ver-lhe o rosto. Ela chorava.

-       Não chore mais - disse, estreitando-a. - Vim para enxugar suas lágrimas, e não para fazê-la verter outras. Jamais suportei vê-la chorar. Você é uma grande dama, que diabo!

"Loucamente apaixonado! Loucamente apaixonado!", repetia-se Angélica, "eis o que significa o oferecimento do colar."

Amava-a, então, e o confessara com uma delicadeza que vertera um bálsamo em seu coração magoado.

Ela tomou-lhe o rosto com ambas as mãos, contemplando-o com ternura.

- Como podia saber que sob sua terrível maldade escondia-se tanta bondade? No fundo você é um poeta, Filipe.

- Já não sei mais o que sou - resmungou. - O certo é que você está com o colar dos Plessis-Bellière, o que não deixa de me inquietar. Nenhuma de minhas antepassadas o colocou sem logo pensar em guerras e revoltas. Minha mãe, com esses cabochões ao peito, recrutava exércitos no Poitou, por conta do Príncipe de Conde, você o lembra, como eu. E agora, que não inventará você? Como se necessitasse uma dose suplementar de coragem.

Cingiu-a de novo, apoiando a face em seu rosto.

-       E você sempre me fitou com seus olhos verdes - murmurou. - Eu a atormentava, batia, ameaçava, e você sempre erguia novamente a cabeça como uma flor após a tempestade. Deixava-a ofegante, vencida, e via-a ressurgir mais bela que nunca. Sim, era exasperante, mas, com o tempo, isso acabou por inspirar-me um sentimento de... de confiança. Tanta constância numa mulher! Aquilo me surpreendia. Passei a contar os pontos: será que ela resistirá?, dizia comigo. No dia da caçada real, quando a vi afrontar com um sorriso a cólera do rei e a minha, compreendi que não teria escapatória. No fundo estava orgulhoso de tê-la por mulher.

Dava-lhe pequenos beijos. Seus lábios pareciam tímidos. Desacostumado à ternura, desdenhara até então as manifestações de que agora sentia falta. Hesitou em tocar seus lábios. Foi ela quem suavemente procurou os seus.

Ela refletiu que aqueles lábios de guerreiro eram de uma simplicidade fresca, quase ignorante, e tambénvque peio mais estranho dos casos, após terem ambos passado pela vida e sido maculados por muita lama, trocavam agora o beijo casto e doce que lhes faltara outrora, na adolescência, no parque do Plessis.

-       Devo partir - disse de repente, com a brusquidão costumeira. - Já foi consagrado muito tempo ao coração. Posso ver meu filho?

Angélica chamou a ama-de-leite, que chegou trazendo a um braço o pequeno Carlos Henrique, em suas roupas de veludo branco, como um falcão ao punho do caçador. Com os cachos louros escapando-se da touca de pérolas, a tez rósea e os grandes olhos azuis, era uma criança soberba.

Filipe tomou-o nos braços, fê-lo saltar no ar e balançou-o em todas as direções, mas não conseguiu arrancar-lhe um sorriso.

-       Jamais vi bebé tão sério - explicou Angélica. - Olha a todos com ar intimidante. O que não o impede de fazer toda sorte de travessuras, agora que começa a andar. Acharam-no girando a roca da camareira, a lã completamente emaranhada...

Filipe aproximou-se dela e estendeu-lhe a criança.

-       Eu o deixo. Confio-o a você. Guarde-o bem.

-       Este é o filho que você me deu, Filipe. Ele me é caro.

Debruçada à janela, com sua bela boneca nos braços, ela viu-o saltar sobre o cavalo, na sombra do pátio, e desaparecer. Filipe viera. Criara, em torno de sua dor amarga, uma felicidade viva. Era o último de quem esperaria conforto. Mas a vida é fértil em surpresas. E ela maravilhava-se ao pensar que aquele soldado intratável, que invadira cidades inteiras a ferro e fogo, galopara quatro dias sob a chuva e o vento, porque ouvira no coração o eco de seus soluços.

 

Tragicomédia entre a Sra. de Montespan e o marido

Versalhes, na ausência do rei e da corte, achava-se mais que nunca entregue aos arquitetos, operários e artistas. Angélica, abrindo caminho entre os andaimes e o entulho, acabou por descobrir seu irmão Gontran, ocupado em decorar um pequeno gabinete que dava para o canteiro do Midi. Ali preparavam-se aposentos sem designação precisa, e usaram-se mármore e ouro em profusão, e tudo o que havia de mais precioso, para fazer do local uma encantadora morada. Como a Sra. de Montespan viesse repetidas vezes acompanhar o andamento dos trabalhos, estava entendido, até nova ordem, que os aposentos destinavam-se à favorita.

Angélica lançou um olhar distraído a todas aquelas maravilhas, às molduras em três tipos de ouro representando caniços e ervas entrelaçadas, entre as quais o pintor colocava encantadoras miniaturas em tonalidades rosa e azuis. Perguntou ao irmão se ele poderia ir num dia próximo a sua casa para fazer os retratos de Florimond e do pequeno Carlos Henrique. Não tendo nenhum retrato de Cantor, o pungente remorso que sentia levava-a a fixar na tela os traços daqueles que ainda viviam. Por que não pensara nisso antes?

Gontran resmungou que não era fácil.

- Pagar-lhe-ei bem.

- Não é esse o problema, minha filha! Far-lhe-ei presente, na ocasião. Mas onde achar tempo para escapar-me daqui? Desde que estou em Versalhes, não vejo minha mulher e meus filhos senão uma vez por semana, aos domingos. Aqui, começamos com a aurora. Temos meia hora para jantar, às dez horas, e fazer colação às onze, e os próprios mestres-de-obras cuidam que não passe de cinco minutos o tempo para satisfazermos nossas necessidades. Oh! isso dá trabalho aos mestres-de-obras, com todos esses rapazes do pântano com disenteria!

- Mas... onde você dorme? Onde come?

- Há dormitório por lá - disse Gontran, com o pincel num gesto vago, na direção da janela - e as tascas organizadas pela corporação. Quanto a folgar um áta na semana, ouaté algumas horas, nem pensar!

- Isso é inadmissível! Você é meu irmão e comprometo-me a obter autorização para liberá-lo em parte... contanto que você consinta em usufruir de uma concessão especial, cabeça de asno!

O artista deu de ombros.

- Faça o que quiser. O capricho das grandes damas é sagrado. Farei o que me disserem. Só peço que não tomem as ausências como pretexto para pôr-me na rua!

- Comigo, vocêjamais estará na rua.

- Já lhe disse que não quero viver de esmolas nem de favores.

- Que quer então, eterno descontente?!

- O que me é de direito, é tudo!

- Está bem, não vamos discutir mais. Posso contar com você?

- Sim....

- Gontran, queria ver o teto que você pintava no outro dia. Pareceu-me esplêndido. "

-       Eu pintava o deus da guerra. E a guerra veio a galope.

Ele pousou a palheta e acompanhou-a pela galeria, até o salão

de ângulo que acabavam de aprontar. Lançou um olhar desconfiado a sua volta.

- Espero que não me repreendam por ter-me ausentado por alguns instantes. Sua companhia me absolverá.

- Você exagera, Gontran. Vê-s£ perseguido por todo lado.

- Aprendi a temer os golpes da vida.

- Você devia antes aprender a evitá-los.

- Não é fácil.

- Eu o consegui - disse Angélica com orgulho. - Parti do ponto mais baixo e posso dizer, sem vangloriar-me, que cheguei ao ponto mais alto.

- Porque você lutou sozinha e em proveito próprio. Eu não estou só. Quisera arrastar ao combate e à vitória a massa dos condenados, mas é um peso enorme a ser levantado... Somos esmigalhados um a um. E o fermento da revolta morrerá antes mesmo de ter proliferado.

Impressionada pelo tom triste e cansado, mais que pelas palavras, ela não soube o que responder.

- Você tem visto Raimundo? - perguntou.

- O jesuíta? Ora... Ele não compreenderia. Ninguém pode compreender. Nem mesmo você... mas olhe!

Haviam chegado ao centro da sala e erguiam os olhos para as abóbadas de vastas praias multicores entre as divisórias de estuque dourado. O deus Marte lançava-se na apoteose do sol nascente e a luminosidade de seu corpo e rosto contrastava com as longas silhuetas negras dos lobos que puxavam seu carro.

-       Oh! Gontran! - exclamou Angélica, emocionada. - Oh! Ele assemelha-se a Filipe.

O pintor teve um sorriso displicente.

-       E verdade. Pareceu-me que nenhum gentil-homem da corte serviria de melhor modelo. Essa beleza imbatível - gritou com súbito ardor -, a perfeição do corpo e dos gestos, que júbilo acompanhar-lhe a passagem harmoniosa pela grandeza de Versalhes!

Devaneou por um instante. Depois, pôs-se a rir.

- Não precisa inchar como uma perua. Não estou procurando lisonjeá-la, por ser ele seu marido. Você nada tem a ver com isso. E bela também. Mas ele é como que intemporal. Tem a majestade melancólica das estátuas da Grécia...

- Você o pinta de memória?

- Por vezes a memória do pintor recria a realidade de modo ainda mais vivo. Se você quiser, farei também o retrato de seu filho Cantor.

Os olhos de Angélica tornaram a encher-se de lágrimas.

- Seria possível? Você o conheceu tão pouco! Mal o viu uma ou duas vezes.

- Creio que me recordarei.

Ele semicerrou as pálpebras para recompor uma imagem distante.

- Parecia com você, tinha olhos verdes. E ademais, você me guiará. Um homem de marrom aproximava-se, as mãos às costas.

- O contramestre - sussurrou Gontran.

Angélica assumiu seu ar mais altivo para explicar que o artesão com o qual conversava a interessava, que desejava contar com ele para trabalhos em sua mansão e aludiu abundantemente ao Sr. Colbert e ao Sr. Perrault, inspetor de construção do rei.

O contramestre dobrou-se em dois-repetidas vezes e asseverou ser devotado às ordens do Sr. Colbert e do Sr. Perrault. Ela reconheceu em seus traços porcinos a expressão dura e sem inteligência de um comitre.

Após deixar Versalhes, ela se fez conduzir a Saint-Germain. Queria perguntar aos Montausier se Florimond poderia ser dispensado um ou dois dias por semana de seu serviço junto a Monseigneur, o delfim. Revia sempre com grande prazer a Sra. de Montausier, que outrora, quando ainda era Julie d'Argennes, Marquesa de Rambouillet, fora a preciosa mais em evidência e a mais procurada por todos os grandes senhores da corte. Comentavam que a Srta. de Scudéry, em seu romance Le Grana Cyrus, pintara-a sob os traços de Cleomira, e que inspirara incontáveis versos a Godeau, Voiture, Benserade e muitos outros.

Igualmente notável por sua beleza, gosto e virtudes, ainda era, malgrado as marcas da idade, muito encantadora e cheia de suavidade. O que tinha de menos simpático era com certeza o marido, o Duque de Montausier, severo e austero, que professava um amor descabido pela verdade, qualidade bastante embaraçosa num mundo onde um pouco de hipocrisiaúse fazia necessário.. Nascido na religião reformada, abjurara em 1645 para desposar a bela Julie d'Argennes.

"Esses são, em geral, os mais intransigentes", pensou Angélica, ao recordar aquele detalhe.

-       Minha pobre querida-disse-lhe a Sra. de Montausier, abraçando-a -, vejo-a de luto e sei por quê. Sua dor é das que acabam por acalmar-se, mas que não têm consolo. Eu mesma fiquei bastante sensibilizada com a notícia. Aquele garotinho possuía todas as qualidades.

Falaram de Cantor um momento e Angélica expôs a requisição quanto a Florimond. A Sra. de Montausier asseverou que o duque não lhe veria inconveniente. A viagem do delfim, que deveria juntar-se ao pai no Franco-Condado, fora cancelada.

-       Prevê-se que Sua Majestade não tenha em mente uma longa campanha este ano. As damas não foram convidadas a acompanhá-lo.

A corte não se embaraçara com a estranha situação criada pela ascensão da Sra. de Montespan junto da Srta. de La Vallière. Diziam simplesmente "as damas", juntando-se-lhes a rainha quando necessário.

- A Sra. de Montespan mostrou-se bastante contristada com a decisão. Esperava ser designada sozinha. Mas o rei jamais repudiará abertamente La Vallière. Ao menos enquanto a situação da Sra. de Montespan correr o risco de um escândalo...

- Um escândalo se abafa.

-       Nem sempre, minha pequena. É que o marido é intratável. Ninguém esperava, mas é um fato. Falta pouco para que o rei se esconda em um armário quando o Sr. de Montespan vem à corte. No outro dia, esse gascão louco percorreu toda a grande galeria de Versalhes, abordando a uns e outros e repetindo com seu acento inenarrável: "Sou um corno, sim, amigos, sou um corno, corno e corno, com C maiúsculo..." Você está rindo e fico contente por alegrá-la um pouco. Mas a Sra. de Montespan veio ter comigo e chorou o dia inteiro. Disse que o rei escapou-se para o Franco-Condado diante do acontecido... e talvez não esteja errada.

Nesse meio tempo, aquela de quem falavam surgiu acompanhada pela Srta. de Desoeillet e pelo negrinho Naaman com a arara.

A Sra. de Montespan sequer saudou as amigas. Pela primeira vez, a tez resplandecente estava baça. E tinha, ademais, um ar assustado.

- Parece que meu marido está à minha procura - disse. - Vim refugiar-me com vocês.

- Vamos, não se afobe, pobre amiga - disse a Sra. de Montau-sier. - Isso está se tornando uma obsessão.

- Não durmo mais - gemeu Atenaís, desmoronando no canapé. - Não sei até onde ele poderá chegar.

- Acalme-se. Faz calor e isso a deixa nervosa. Farei vir refrescos. Depois você se sentirá melhor.

A Sra. de Montespan, com pequenos suspiros, consentiu em molhar os lábios num xarope de orchata. Mas permanecia atenta.

-       Não estão ouvindo algo?

As quatro se calaram e aplicaram o ouvido.

- Por minha fé, é nosso Pardaillan, sem dúvida - disse Angélica, enquanto uma voz de fanfarra reboava pelos corredores.

- Fechem a porta, suplico-lhes - gritou Atenaís.

Mas a Sra. de Montausier não teve tempo de concluir o gesto. O Sr. de Montespan irrompeu, empurrando brutalmente a porta e o negrinho Naaman, e precipitou-se para a mulher.

- Ah! cá está, essa tratante, essa p... Não conte continuar a escapar-me. Tinha minhas razões se a deixava em paz. Agora minha vingança está pronta.

- Sr. de Montespan, creio que esquece como se comportar - sublinhou a Sra. de Montausier com dignidade.

O marquês fê-la silenciar com grosseria:

-       Cale-se... O assumo é com ela. Com ela e com o rei!

A Sra. de Montespan, em caso de batalha, sabia como enfrentá-lo.

- Como ousa pronunciar o nome do rei sem corar de vergonha, insolente! - gritou.

- Ah!... Porque sou eu que deveria ter vergonha?

- Sim. O rei sempre mostrou-se generoso para com você. Não merece tratar com um sujeito de sua espécie^

- O que ele merece, eu o direi! - urrou Pardaillan. - Merece que lhe passe a sífilis!

Atenaís deu um grito abafado:

- Sífilis?... Mas nào tenho sífilis!

- Mas tê-la-á - tornou, num riso assustador - porque eu a tenho e vou passá-la a você, como se deve entre bons esposos.

- Socorro! Ele enlouqueceu! - gritou Atenaís, refugiando-se atrás do canapé.

O marido corria-lhe atrás. A Sra. de Montausier caíra, semides-maiada de pavor, numa poltrona. Os criados comprimiam-se à porta.

Angélica agarrara-se aoibraço do marquês, tentando em vão detê-lo e fazê-lo cobrar a razão.

- Deixe-me - rugia. - Essa meretriz deve pagar.

- Mas afinal, Pardaillan, foi você que o quis.

- Como? - disse ele, interrompendo a perseguição. - Como? É minha culpa se sou corno?

- Mas claro! Perfeitamente. Por que não permitiu que Atenaís se afastasse da corte, quando ela lhe pedia? Você, ao contrário, a encorajava a ficar e agradar ao rei. E agora protesta. Isso não tem lógica!

- Lógica! - fez num gesto trágico. - Lógica? Que é a lógica? Ah, minha cara, você não conhece os gascões!

- Graças a Deus!

- Há um mundo entre o que existe e o que poderia existir. E não posso suportar o que existe atuaimente entre o rei e minha mulher. Deixe-me, estou lhe dizendo. Não fui procurar essa sífilis no fundo de uma espelunca da Rue du Vald'Amour para nada... Ah! vadia.

Mas, aproveitando-se da trégua obtida por Angélica, a Sra. de Montespan fugira.

-       Deixe a coisa para mais tarde, marquês - disse Angélica.

Convenceu-o a acompanhá-la, levou-o de volta a Paris, até o Palácio do Luxemburgo, onde a Grande Mademoiselle abrigou Pardaillan sob sua asa, jurando que o "repreenderia cruelmente".

 

A paixão do rei

De volta à mansão, um pouco distraída pelo incidente, Angélica teve a surpresa de ali encontrar o Sr. de Saint-Aignan, que retornava do Franco-Condado com um bilhete da parte do rei.

- Do rei?

- Sim, senhora.

Angélica isolou-se para ler a missiva.

"Senhora", escrevia o rei, "a parte que tomamos na dor que a atingiu na pessoa de seu filho, morto a nosso serviço malgrado sua pouca idade, incita-nos a voltar-nos com redobrado interesse para o futuro de seu filho mais velho, Florimond de Morens-Bellière. Em vista do quê, desejamos elevá-lo a funções importantes e ligá-lo a nossa casa como pajem-copeiro sob as ordens do Sr. Duchesne, primeiro oficial do copo. Ficaríamos felizes por vê-lo, sem tardar, assumir seu novo cargo no exército, e desejamos vivamente que o acompanhe na viagem.

Luís."

Mordiscando, perplexa, o lábio inferior, a jovem demorava-se na contemplação da assinatura, de traçado imperioso: Luís. Florimond, copeiro do rei! Os jovens herdeiros das maiores casas de França disputavam o cargo, de preço elevado. A nomeação era uma honra sem precedente para o obscuro pequeno Florimond. Recusá-la estava fora de questão. Mas Angélica hesitava em acompanhá-lo. Hesitou por dois dias. Era ridículo não responder a um convite que lhe permitiria rever Filipe e que vinha a propósito, para arrancá-la a seus tristes pensamentos.

Dirigiu-se, por fim, a Saint-Germain, à procura de Florimond. A Sra. de Montausier não a recebeu. A pobre mulher estava de cama, realmente doente com as emoções causadas pelo Marquês de Montes-pan. Toda a corte troçava do incidente. As poucas testemunhas não se mostravam avaras nos detalhes, e mesmo que se desejasse olvidar o caso, a arara da marquesa encarregaríse-ia de espalhá-lo aos quatro ventos.

-       Corno! Corno! - gritava o pássaro, excitado. Seus resmungos estavam cheios de onomatopéias de sentido inequívoco, e a todo momento distinguia-se claramente; "Sífilis! P...!"

Os criados congestionavam-se à força de reter a hilaridade em público.

A Sra. de Montespan trazia com coragem a cabeça erguida, e para reduzir ao mínimo os boatos afetava encarar a coisa com jovialidade. Mas ao ver Angélica pôs-se a chorar, perguntando pelo marido.

Angélica disse quéMademoiselle conseguira acalmá-lo e que por ora ele prometera manter-se calmo.

Atenaís enxugou lágrimas de raiva.

-       Ah! se você soubesse! Sinto-me tio vexada por ver que ele e minha arara divertem a canalha... Escrevi ao rei. Espero que desta vez ele se mostre severo.

Angélica teve um gesto de dúvida. Não julgou conveniente dizer que fora convidada por Sua Majestade para juntar-se ao exército.

A carruagem chegou a Tabaux com a noite. Angélica fez-se conduzir a um albergue. Poderia ir ter ao acampamento, cujos biva-ques acendiam suas luzes pela planície. Mas estava fatigada, depois de dois dias de viagem por estradas intransitáveis. Florimond, que dormia com o queixo no jabô de renda amarrotado, a grenha revolta, não estava apresentável. As senhoritas de Gilandon dormiam de boca aberta, a cabeça pendendo para trás. Malbrant Golpe de Espada ressonava como um órgão. Somente o Abade de Lesdiguières mantinha uma postura distinta, malgrado a poeira que lhe tingia as faces. O calor era terrível e todos-estavam sujos de dar medo.

O albergue mostrou-se lotado: a proximidade do exército real animava o pequeno burgo. Mas, diante da grande dama que se apresentou com seus acompanhantes e uma equipagem de seis cavalos, os hoteleiros se desdobraram. Encontraram dois quartos e uma mansarda, com que o mestre de armas se contentou. Florimond alojou-se com o abade e, na outra peça, o leito era bastante vasto para acolher Angélica e suas duas acompanhantes. Depois de abundantes abluções, uma refeição sólida à moda da Lorena, cóift torta de toucinho, chouriço, couve na manteiga e compota de ameixa, cada qual procurou o repouso necessário, para enfrentar no dia seguinte o rei e a vida da corte no exército.

As senhoritas de Gilandon retomavam o sono, lado a lado por trás das cortinas, e Angélica, de penhoar, acabava de escovar os cabelos quando bateram levemente na porta. A resposta para que entrassem, teve a surpresa de ver esgueirar-se pela porta entreaberta a figura travessa de Péguilin de Lauzun.

-       Minha bela, cá estou!

Entrou na ponta dos pés, um dedo erguido.

- Com os diabos se esperava vê-lo, Sr. de Lauzun - disse Angélica. - Mas de onde vem?

- Do exército, cáspite! Mal tive notícia de sua chegada, levada pelo rumor público e pelos padeiros da aldeia, peguei meu fiel corcel...

- Péguilin, não vá trazer-me novos aborrecimentos!

- Aborrecimentos, eu? Que chama você de aborrecimentos, ingrata? A propósito, você está só?

- Não - disse Angélica, apontando com o queixo as cabeças inocentes das senhoritas de Gilandon, em touca de dormir. - E mesmo se estivesse, isso não mudaria nada.

- Cesse de mostrar-se rabugenta. Minhas intenções são puras, ao menos no que me concerne.

Ergueu um olhar de mártir para o teto:

-       Não estou aqui por mim mesmo, infelizmente!... Bom, não percamos tempo. Você deve despachar as duas donzelas para ou tro local.

Cochichou a seu ouvido:

- O rei está aí e deseja vê-la.

- O rei?

- No corredor.

- Péguilin, seus gracejos estão passando dos limites. Assim acabarei por zangar-me.

- Juro-lhe que...

- Você pretende que o rei...

- Pst!... Calma, ora essa. Sua Majestade deseja vê-la em segredo. Você bem compreende que ele não pode arriscar-se a ser reconhecido por ninguém.

- Péguilin, não acredito em você.

- E demais! Despache-as, estou dizendo, e verá se estou mentindo.

- Para onde quer que as despache? Para o" leito de Malbrant Golpe de Espada, talvez?

Angélica ergueu-se e atou resolutamente o cordão do penhoar.

-       Já que parece que o rei esta no corredor, então recebê-lo-ei no corredor.

Ela saiu e ficou sem ação ao ver a silhueta do gentil-homem que se conservava junto à porta.

-       Tem razão - disse a voz do rei por trás da máscara de veludo cinza. - Mesmo porque o corredor não é mal. Iluminado na medida exata e deserto. Péguilin, meu amigo, quer ir até o pé da escada para afastar possíveis importunos?

Ele pousou as mãos nos ombros da jovem. Depois, lembrando-se, tirou a máscara. Era mesmo o rei. Ele sorria.

-       Sem reverência;' minha cara.

Afastou os braceletes para tomar-lhe os punhos e atraiu-a docemente para perto da lamparina, que brilhava diante de um nicho com uma estátua.

- Tinha pressa em revê-la.

- Sire - disse Angélica, resoluta -, já exprimi à Sra. de Montespan minha recusa em prestar-me ao papel de pára-vento que me havia tão habilmente destinado, e desejava que Vossa Majestade compreendesse...

- Você repisa sempre o assunto, Bagatela. Você é no entanto bastante inteligente para encontrar um outro tema.

- Vamos, bem se vê que esta noite não se trata de pára-vento... nem de comédia. Se a procurava com o objetivo que me atribui, por que me daria ao trabalho de mascarar-me e esconder-me para vê-la?

Ela percebeu a verdade do argumento e sentiu-se desamparada.

- Então?...

- Então é muito simples, Angélica. Não acreditava amá-la... mas você me encantou com não sei que poder insidioso que você mesma parece ignorar. E não consigo esquecer seus lábios, nem seus olhos... Nem que você possui as mais belas pernas de Versalhes.

- A Sra. de Montespan é bela, também. Talvez mais bela que eu. E ela o ama, sire. Está ligada a Vossa Majestade.

-       Enquanto você?...

Um certo poder de fascínio emanava daquelas pupilas ávidas onde velavam duas faíscas douradas. Quando ele pousou a boca na sua, ela quis esquivar-se, mas não pôde. O rei insistia, forçava a-defesa que ofereciam os lábios fechados, os dentes cerrados. Quando conseguiu que cedesse, ela perdeu a paciência, açoitada pela violência de um desejo de senhor que não conhecia entraves. O beijo prolongou-se, ardente, devorador. Ele não a deixou enquanto ela não correspondeu a sua paixão. Por fim, ela viu-se livre, a cabeça vazia. Sem forças, apoiou-se à divisória. Os lábios tremiam-lhe, brilhantes e magoados.

O rei sentiu a garganta cerrar-se sob o império do desejo.

- Sonhei com esse beijo - disse a meia voz - por dias e noites. Vê-la assim, a cabeça pendida, as belas pálpebras fechadas, o lindo pescoço palpitando na penumbra... Deixá-la-ei esta noite?... Não, não teria coragem. O albergue é discreto e...

- Sire, por piedade - suplicou -, não me arraste a uma fraqueza que me causaria horror.

- Horror? Mas a senti bastante acessível, e há consentimentos sobre os quais não é possível haver engano.

- Que podia fazer? O senhor é o rei!

- E se não fosse o rei?

Angélica, recobrando a veemência, enfrentou-o.

-       Ministrar-lhe-ia um par de bofetadas.

O rei, furioso, deu alguns passos de um lado para outro.

- Você me enraivece, palavra. Por que esse desdém? Serei um amante tão imperfeito aos seus olhos?

- Sire, jamais pensou que o Marquês du Plessis-Bellière é seu amigo?

O jovem soberano baixou a cabeça, um tanto embaraçado.

- Certamente, é um amigo fiel, mas não creio causar-lhe grande pena. Todos sabem que o belo deus Marte não tem senão uma amante: a guerra. Nada pede além de exércitos e ordens de conduzi-los aos campos de batalha. E indiferente no domínio do coração e já o provou muitas vezes.

- Provou também que me ama.

O rei lembrou-se dos comentários na corte e caminhou em círculo como um animal enjaulado.

-       Marte atingido pelas setas de Vénus!... Não, não posso acreditar!... É bem verdade que você é capaz de conseguir esse género de milagre.

-       E se lhe dissesse: Sire, eu o amo, ele me ama. E um amor tão novo e tão puro. Teria coragem de destruí-lo?...

O rei observou-a com atenção; um combate se travava entre suas paixões autoritárias e sua consciência de homem.

-       Não, eu não o destruirei - disse por fim com um profundo suspiro. - Se assim é, inclinar-me-ei. Adeus, senhora. Durma em paz. Vê-la-ei amanhã, no exército, com seu filho.

 

Fim de um perfeito cortesão

Filipe aguardava-a no limiar da tenda real. Grave, num traje de veludo azul com sutache de ouro, ele inclinou-se, tomou-lhe a mão e conduziu-a pelos grupos até a mesa coberta de rendas e objetos de ourivesaria, onde o rei tomaria lugar.

- Saudações, meu marido - disse Angélica a meia voz.

- Saudações, querida.

- Vê-lo-ei esta noite?

- Se o serviço do rei o permitir.

O rosto permanecia frio, mas seus dedos estreitaram os dela num gesto cúmplice. O rei via-os avançar.

- Haverá mais belo casal que o Marquês e a Marquesa du Plessis-Bellière? - disse ao camarista-mor.

- Com efeito, sire.

- São também ambos amáveis e servidores fiéis - disse o rei tristemente.

O Sr. de Gesvres mirou-o com o canto do olho.

Angélica mergulhava numa grande reverência. O rei tomou-lhe a mão para erguê-la. Ela encontrou o olhar sombrio que a fitava, do cabelo louro entremeado de pedrarias.ao fino sapato de cetim branco, passando pelo vestido de brocado guarnecido de guirlandas de acianto. Era a única mulher convidada para a ceia do rei e, entre os senhores que ali se comprimiam, muitos havia que depois de longos meses de campanha não tinham o prazer de contemplar mulher tão linda.

-       Marquês, você é um afortunado - disse o rei - por possuir semelhante tesouro. Não há um homem nesta noite, e seu soberano está entre eles, que não inveje sua sorte. Esperamos ao menos que não a desdenhe. A fumaça dos combates, o odor da pólvora e a euforia das vitórias por vezes deixaram-no cego, ninguém o ignora, aos encantos do belo sexo.

- Sire, existem certas luzes que podem-devolver a visão aos cegos e despertar o gosto por outras vitórias.

- A resposta é boa - disse ó rei, rindo. - Senhora, recolha seus lauréis.

Ele continuava a segurar a mão de Angélica, mas com um daqueles gestos cheios de sedução, de que possuía o segredo e que se permitia na atmosfera familiar dos campos, e passou um braço ao redor dos ombros de Filipe.

- Marte, meu amigo - disse, a meia voz -, a sorte lhe sorri, mas não terei ciúme. Seu mérito e fidelidade me são caros. Recorda-se do primeiro combate, e então andávamos pelos quinze anos, quando o deslocamento de uma bala arrancou-me o chapéu? Você correu sob a metralha para apanhá-lo. 

- Recordo-me, sire.

- Era loucura de sua parte. E muitas mais você fez depois, a meu serviço.

O rei era pouco mais baixo que Filipe, trigueiro perto de seu tipo claro, mas ambos assemelhavam-se na harmonia proporção dos corpos flexíveis e musculosos, adestrados, como os jovens da época, pelos exercícios de academia, equitação e o precoce aprendizado da guerra.

- A glória nas armas pode fazer olvidar o amor, mas pode o amor fazer olvidar a amizade nas armas?

- Não, sire, eu não o creio.

- É minha opinião também... Bom, senhor marechal, já é bastante filosofia para nós, soldados. Tome seu lugar à mesa, senhora.

Filipe permanecia em pé, assistindo o camarista-mor. Única mulher na assembleia, Angélica, à direita do rei, fazia figura de rainha. O olhar ardente do rei espreitava-lhe o perfil inclinado e os reflexos dos pesados brincos que lhe acariciavam a face aveludada, a cada um de seus movimentos.  

- Seus escrúpulos se acalmaram, senhora?

- Sire, a bondade de Vossa Majestade me confunde.

- Não é questão de bondade. Minha cara Bagatela, que podemos, pobres de nós, contra o amor? - disse o rei num tom triste.

- É um sentimento que desconhece meias medidas. Se não posso agir com baixeza, vejo-me constrangido a agir com grandeza, e qualquer homem na minha situação ver-se-ia obrigado a fazer o mesmo... Notou como seu filho cumpre bem seu ofício?

Apontou Florimond, que assistia o copeiro-mor. Quando o rei pedia de beber, o copeiro-mor, prevenido pelo inspetor, pegava de um bufe uma bandeja contendo uma garrafa cheia de água, outra de vinho e um cálice e dirigia-se ao camarista-mor, precedido pelo pajen-zinho trazendo o essai. Eva. uma taça de prata na qual o camarista-mor vertia um pouco de água e de vinho, que o chefe de copa bebia. Com a prova de que a bebida do rei não estava envenenada, enchiam seu copo, carregado piedosamente por Florimond. O garotinho desempenhava o ritual com a gravidade de um menino de coro.

O rei dirigiu-lhe duas palavras de cumprimento por sua destreza, e Florimond agradeceu inclinando a cabeça encaracolada.

-       Seu filho não a semelha, com seus olhos e cabelos negros.

Ele tem a graça trigueira da gente do sul.

Angélica empalideceu e corou. O coração pôs-se a bater desordenadamente. O rei pousou a mão na dela.

-       Como você é emotiva! Quando então cessará de temer? Ain da não compreendeu que não lhe farei nenhum mal?

Ao levantar-se, a mão que lhe pousou na cintura, para fazê-la passar diante dele, perturbou-a como não o faria um gesto ousado.

Voltou com Filipe pelo campo, onde o fogo dos bivaques misturava reflexos vermelhos ao halo dourado das velas que se acendiam nas tendas dos príncipes e oficiais.

A do Marechal du Plessis era em cetim amarelo bordado a ouro. Uma maravilha de elegância guerreira que abrigava duas poltronas de madeira preciosa, uma mesa baixa, à turca, e almofadões de lamé dourado. O chão estava coberto por um suntuoso tapete, e uma espécie de divã, igualmente guarnecido de tapeçaria, conferia ao conjunto um luxo oriental. Luxo que mais de uma vez censuraram ao belo marquês. O rei, em campanha, não se alojava tão bem, mas o coração de Angélica enterneceu-se com súbita revelação. Não se fazia necessário mais força de ânimo, de vontade intransigente, para atacar o inimigo em gola de renda e apresentar-se à noite, depois da batalha, com anéis nos dedos, bigode perfumado, botas resplandecentes, que para aceitar o suor, a imundície e os piolhos como inevitáveis companheiros das campanhas militares?

Filipe desatou o boldrié. La Violette entrou, seguido de um adolescente a serviço do marechal. Dispuseram sobre a mesa uma colação i de frutas, vinhos e doces. O criado aproximou-se do mestre para ajudá-lo a despir-se, mas este, com um gesto de impaciência, dispensou-o.

- Devo chamar suas damas? - perguntou Angélica.

- Não creio que seja preciso.

Ela deixara as senhoritas de Gilandon e Javotte sob a guarda do albergueiro, trazendo apenas Teresa, que era menos arisca. Aliás, depois de ter ajudado sua senhora a ataviar-se, ela desaparecera, e certamente seria vão partir a sua procura.

-       Você me ajudará, Filipe - disse Angélica com um sorriso.

- Creio que ainda tenho muito que lhe ensinar a esse respeito.

Ela aproximou-se dele e pousou a cabeça em seu ombro num gesto terno.

- Contente em rever-me?

- Sim, infelizmente.

- Por que infelizmente?

- Você está se apoderando de meu pensamento. Tenho travado conhecimento com os tormentos do ciúme.

- Por que se atormentar? Eu o amo.

Ele pousou a fronte em seu ombro sem responder. Angélica revia na penumbra os olhos-ardentes do rei.

Fora, um soldado pôs-se a tocar no pífaro um ritornelo melancólico. Angélica estremeceu. Seria preciso ir embora, deixar Versalhes e suas festas, não mais ver o rei.

-Filipe - disse -, quando você estará de volta? Quando apren

deremos a viver juntos?

Ele afastou-a, para olhá-la com ironia.

- Viver juntos - repetiu -, seria isso compatível com a posição de marechal dos exércitos do rei e de grande dama da corte?

- Mas gostaria de deixar a corte e recolher-me ao Plessis.

- Que raça! Quando lhe suplicava aos brados que retornasse ao Plessis, você preferiria ser trucidada a atender-me. Agora é tarde demais!

- Que quer dizer?

- Você detém cargos importantes. O rei concedeu-lhe um deles graciosamente. Demitir-se seria desagradar-lhe demais.

- E devido ao rei que desejo afastar-me, Filipe, o rei...

Ela ergueu os olhos e viu-lhe o olhar gélido, como se subitamente se afastasse dela.

-O rei - repetiu com ansiedade.

Ela não ousou ir adiante e maquinalmente começcfu a se despir. Filipe parecia distante.

"Depois do que o rei disse esta noite, ele compreenderá", pensou ela. "Se já não o compreendeu... há muito... Talvez bem antes que eu..."

Ele aproximou-se, no entanto, do leito onde a jovem se ajoelhara enquanto soltava os cabelos e não repeliu os braços que ela levou a seus ombros.

As mãos do jovem procuraram as formas flexíveis do belo corpo que ela lhe oferecia, nu sob uma leve coberta. Acariciou-lhe o talhe, arqueado para trás, o sulco morno das costas macias, e veio ter aos seios túmidos, um pouco pesados da última maternidade, mas rijos e firmes.

- Bocado de rei, na verdade - disse.

- Filipe! Filipe!

Permaneceram um longo momento em silêncio, como se tomados de indizível temor. Alguém lá fora chamou:

-       Senhor marechal! Senhor marechal!

Filipe foi até o limiar da tenda.

- Acabam de deter um espião - explicou o enviado. - Sua Majestade o chama.

- Não atenda, Filipe - suplicou ela.

- Como ficaria por não atender ao chamado do rei - protestou rindo. - A guerra é a guerra, minha linda. Minha primeira obrigação é para com os inimigos de Sua Majestade.

Debruçado sobre um espelho, alisou o bigode louro e recolocou a espada.

-       Como era mesmo o refrão que cantava seu filho Cantor?...

Ah! sim:

"Adeus, coração, minha vida.

Adeus, esperança minha.

Se temos que servir ao rei,

Devemos então separar-nos..."

Ela esperou em vão na tenda bordada a ouro, e acabou por adormecer no espesso divã coberto de sedas. Quando acordou, a claridade do dia, que se irradiava pelas paredes de cetim amarelo espalhando uma luz intensa, fê-la pensar que o sol brilhava. Mas ao sair deparou com a manhã brumosa e triste, de nuvens cinza refletindo-se em grandes poças. Chovera. O campo enlameado estava quase deserto. Ouvia-se ao longe o toque de alvorada e o ruído incessante do canhoneio. Por ordem sua, Malbrant Golpe de Espada trouxe-lhe a montaria. Um militar indicou-lhe o caminho do platô.

-       Lá do alto, a senhora poderá seguir as operações.

Ela ali encontrou o Sr. de Salnove, que dispusera suas tropas na borda da falésia. A direita, perfilando-se no céu nublado onde emergia um sol tímido, um moinho de vento girava lentamente as pás.

Ao aproximar-se, Angélica divisou o panorama familiar do burgo sitiado, com a cinta de muralhas agrupando os tetos de ardósia, os campanários pontiagudos e as torres góticas. Um lindo rio ornava-o como uma "charpe branca.

As baterias francesas ordenávam-se rio acima do vale; podiam-se avistar três alas de canhões protegendo as formações da infantaria, cujos capacetes eiltas lanças refletiam em mil faíscas a luz do sol. Um estafeta atravessava a planície a toda a brida. Um grupo cintilante ia e vinha na vanguarda das linhas. O Sr. de Salnove indicou-o a Angélica com a ponta do rebenque.

- O próprio rei dirigiu-se aos postos avançados logo cedo. Está convicto de que a guarnição lorenense não tardará a render-se. Durante a noite Sua Majestade e os oficiais do estado-maior não tiveram um instante de repouso. Ontem à noite um espião detido deu a entender que a guarnição tentaria atacar com a noite mesmo. Houve, de fato, algumas tentativas, mas nós velávamos, e eles tiveram que desistir. Não vão demorar a se render.

- No entanto, o bombardeio me parece intenso.

- São os últimos fogos. O governador de Dole não pode depor as armas sem ter esgotado a munição.

- Meu marido pensava o mesmo, ontem à noite - disse Angélica.

- Alegra-me que partilhe minha opinião. O marechal tem o faro da guerra. Creio firmemente que podemos preparar-nos para cear vitoriosamente em Dole, esta noitet..

O estafeta que haviam visto há pouco surgiu na curva do caminho. O homem gritou à passagem:

-       O Sr. du Plessis-Bellière está.:.

Interrompeu-se ao ver Angélica, puxou as rédeas e veio para trás.

- Que houve? Que está se passando? - perguntou, aterrada. - Aconteceu algo a meu marido?

- Sim.

- Que está se passando? - insistiu Salnove. - Que aconteceu ao marechal? Mas fale, senhor. O marechal está ferido?

- Sim - disse o alferes, ofegante -, mas não é grave... tranqiiilize-se. O rei está junto dele... O senhor marechal expôs-se com grande imprudência e...

Já Angélica lançava a montaria pela senda da colina. Arriscou-se vinte vezes a quebrar o pescoço antes de chegar embaixo e, quando ali se achou, lançou o cavalo a toda a brida pela planície.

Filipe ferido!... Uma voz gritava dentro dela: "Eu sabia... Eu sabia que isso aconteceria". Acercava-se da cidade e dos canhões e lanças da infantaria dispostos numa malha de quadrados imóveis. Só tinha olhos para o grupo de uniformes recamados, aglomerados lá embaixo, junto aos primeiros canhões.

Como se aproximasse, um cavaleiro destacou-se do grupo e veio a seu encontro. Ela reconheceu Péguilin de Lauzun. Gritou-lhe ofegante:

-       Filipe está ferido?

Ao chegar até ela, ele explicou:

- Seu marido expôs-se de modo insano! Como o rei quisesse saber se uma investida simulada apressaria a rendição dos sitiados, o Sr. du Plessis disse que desejava reconhecer o terreno. E lançou-se para o talude que o fogo dos canhões inimigos varria desde a aurora.

- E... é grave?

- Sim.

Angélica percebeu que Péguilin colocara o cavalo atravessado para impedi-la de avançar. Uma capa de chumbo desceu sobre seus ombros. Um grito mortal invadiu-a, e seu coração se partiu.

-' Está morto, não é verdade?

Péguilin inclinou a cabeça.

-       Deixe-me passar - disse com voz sem timbre. - Quero vê-lo.

O gentil-homem não se movia.

-       Deixe-me passar! - gritou Angélica. - É meu marido! Tenho o direito! Quero vê-lo.

Ele aproximou-se e com um braço trouxe-lhe suavemente a fronte contra seu ombro, num gesto apiedado.

-       Melhor não, minha pequena, melhor não - murmurou. - Pobres de nós! nosso belo marquês! Teve a cabeça arrancada por uma bala de canhão!

Ela chorava. Chorava desesperadamente, prostrada no divã em que, naquela noite, o aguardara em vão.

Recusava os consolos, recusava que;a cercassem de palavras simplórias e estúpidas. Suas acompanhantes, os serviçais, Malbrant Golpe de Espada, o Abade de Lesdiguières, seu filho permaneciam diante da tenda, assustados com seus lamentos. Ela dizia a si mesma que era impossível, mas sabia que o desaparecimento era irremediável. E não mais poderia, por uma vez que fosse, aconchegar ao seio, no gesto maternal com que tanto sonhara, uma fronte pálida e fria que jamais conhecera a ternura, beijàr-lhe as pálpebras de longos cílios, cerradas para sempre, e murmurar baixinho: "Eu o amei... o primeiro no frescor de meu coração adolescente..."

Filipe! Filipe de* rosa:, Filipe jde azul. Vestido de neve e ouro. Peruca loura. Tacões vjermelhos. Filipe com a mão pousada nos cabelos do pequeno Cantor...

Filipe de adaga em punho e a mão na garganta do lobo.

Filipe du Plessis-Bellière, tão belo que o rei lhe chamava Marte e a quem o pintor imortalizara nos tetos de Versalhes em seu carro puxado pelos lobos.

Por que não mais existia? Por que se fora? "Num sopro de vento", como dizia Ninon. No sopro terrível e ardente da guerra. Por que se expusera daquele modo?

Os mesmos termos de que se serviram o estafeta e o Marquês de Lauzun vieram-lhe à memória. Ela ergueu-se um pouco.

-       Por quê, Filipe... - murmurou. - Por que o fez?...

O pano sedoso da entrada foi afastado, e ela viu o camarista-mor, Sr. de Gesvres, inclinar-se diante dela.

- Senhora, o rei está aí e deseja manifestar-lhe o quanto lamenta o acontecido e seu imenso pesar.

- Não desejo ver ninguém...

- Senhora, é o rei.

- Não quero saber do rei - gritou -, nem principalmente desse bando de patos bamboleantes e tagarelas que arrasta atrás de si e que vão me olhar perguntando-se quem sucederá ao marechal.

- Senhora... - disse ele, sufocado.

- Saia daqui! Saia daqui!

Jogou-se para trás, com o rosto mergulhado nas almofadas, esgotada pela tristeza, desligada de tudo, incapaz de refletir e de ter um pouco de domínio para enfrentar a vida que continuava.

Duas mãos ergueram-na com firmeza pelos ombros, trazendo-lhe uma reconfortante sensação de paz em meio à vertigem na qual mergulhara. Jamais haveria para Angélica melhor consolo que um sólido e reconfortante ombro de homem. Acreditou tratar-se de Lauzun e soluçou entre as dobras do gibão de veludo castanho que recendia a íris.

Por fim, a violência de seu desespero se acalmou. Ela ergueu os olhos vermelhos e encontrou um olhar castanho e profundo, habituado a despedir reflexos menos suaves.

-       Deixei os... senhores lá fora - disse o rei. - Peço-lhe, senhora, domine sua dor. Não se deixe levar pelo desespero. Abala-me vê-la sofrer...

Angélica desprendeu-se lentamente. Retesou-se e recuou alguns passos, permanecendo encostada à parede de cetim dourado. Assim nimbada de ouro, com o vestido escuro, o rosto pálido e sofrido, ela parecia uma iluminura antiga em que as rijas personagens choram ao pé da cruz.

Mas seus olhos, fixos no rei, tornavam-se mais e mais brilhantes, como carbúnculos, e assumiam uma expressão dura. No entanto, quando falou, o tom era comedido:

-       Sire, suplico a Vossa Majestade que me dê a permissão de retirar-me para minhas terras... no Plessis.

O rei hesitou, sem o demonstrar.

-       A permissão está dada, senhora. Compreendo seu desejo de solidão e de retiro. Parta, pois, para o Plessis. Poderá ali permanecer até o outono.

-       Sire, desejava desfazer-me de meus cargos.

Ele balançou a cabeça com suavidade.

-       Não deve agir levada pelo desalento. O tempo acalma muitas feridas. Não porei seus cargos em vacância.

Angélica teve um leve gesto de protesto. Mas o brilho de seus olhos se apagara sob as pálpebras fechadas e lágrimas corriam-lhe novamente, em fios brilhantes, pelas faces.

-       Diga-me que concorda em retornar - insistiu o rei.

Ela permaneceu em silêncio, sem um movimento. Somente a garganta agitava-se em soluços mudos e convulsivos.

O rei achou-a maravilhosamente bela. Teve medo de perdê-la para sempre e recuou, renunciando a arrancar-lhe uma promessa.

-       Versalhes a esperará - disse com doçura.

Angélica parecia destinada à fatalidade. A felicidade tão sonhada, ao lado dos filhos e do homem amado, fora-lhe definitivamente subtraída. Agora só lhe restava chorar a perda irreparável de Filipe e do pequeno Cantor.

Contudo, poderia uma mulher tão requisitada, amada e invejada viver afastada da corte? Cercada de amigos e admiradores, incluindo-se entre eles o próprio rei, não deveria ficar para sempre encerrada em seu retiro solitário no castelo do Plessis.

"Versalhes a esperará", prometera-lhe Luís XIV, com doçura, Mas por quanto tempo?

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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