Aos quinze anos de idade, como noiva do impotente delfim Luís, Maria Antonieta mergulhou no ambiente de intrigas de Versalhes. Frívola, mas bondosa e generosa, Maria Antonieta aviltou o protocolo da corte francesa e possibilitou aos seus inimigos que a acusassem de todos os vícios concebíveis.
Esta história se passa em cenários contrastantes: os salões dourados de Versalhes, o charme do vilarejo Trianon... e a pobreza e a fome da periferia. Esta é a história de amor da rainha e Axel de Fersen, a fuga dramática para Varennes, o caso misterioso do colar de diamantes. Aqui serão mostradas a inadequação, a timidez, a impotência prematura e as excentricidades de Luís XVI, que tornaram inevitável o caminho para a guilhotina.
A história de Maria Antonieta é a história de uma jovem que apenas quis desfrutar a vida, e que só muito tarde compreendeu o aviso de Luís XV: Après mói lê déluge.
- Ao que parece, madame, finalmente recebemos o que pode ser considerada uma oferta firme da parte de Sua Mui Cristã Majestade - disse o príncipe von Kaunitz.
Maria Teresa, imperatriz da Áustria, conteve o sorriso de triunfo que ameaçava aflorar aos seus lábios. Se Kaunitz não estava equivocado, este era um dos momentos mais felizes de sua vida. Mas ela temia que lhe restasse pouca felicidade. Estava na casa dos cinquenta e não acreditava que tinha muitos anos de vida pela frente. A regência de um império e a glorificação da Casa de Habsburg tinham exigido muito de sua argúcia natural, e seu senso de dever insistira que ela cumprisse todas as suas obrigações. Contudo, começava a perceber que era uma mulher fragilizada. Finalmente compreendia que uma mulher que dedica todos os seus pensamentos aos deveres do estado sente muita falta dos prazeres da vida em família; e Maria Teresa, arguta governante de um império, foi tomada por um desejo repentino por emoções mais suaves.
O desejo foi efémero. Se Kaunitz tinha razão, e o velho Luís realmente estava falando sério sobre casar seu neto com a filha mais nova de Maria Teresa, então não havia espaço para qualquer emoÇão além de alegria.
- Já vimos muitas promessas não serem cumpridas - disse ela.
Kaunitz meneou a cabeça, concordando.
- Mas não devido aos servos de Vossa Excelência na Corte da França. Eles sempre trabalharam assiduamente para cumprir vossos desejos. Quase nunca se passou um dia sem que alguma alusão tenha sido feita ao rei ou à arquiduquesa. Madame, Sua Majestade foi posta a par das qualidades encantadoras de sua filha.
Maria Teresa sorriu ternamente.
- Ela fica mais bonita a cada dia que passa. Tenho certeza de que se pudesse vê-la, o rei ficaria encantado.
- E, mesmo em sua idade, Sua Mui Cristã Majestade é muito suscetível à beleza feminina, madame - acrescentou Kaunitz com um sorriso.
A imperatriz franziu a testa. Era indigno discutir escândalos reais com servos, mas ao mesmo tempo era necessário saber tudo que transcorria em cortes rivais; e ela conhecia a vida bem o bastante para entender que as alcovas dos monarcas muitas vezes eram as estufas nas quais grandes eventos eram plantados e regados. Isto se aplicava particularmente à Corte da França. Ao longo dos séculos, os monarcas franceses tinham sido mais suscetíveis aos encantos femininos do que os outros reis. Na França era quase uma tradição que a amante do rei fosse a pessoa mais importante na Corte.
Incomodava-a saber que o monarca sensualista substituíra madame de Pompadour por madame du Barry que era, segundo reportavam muitas fontes, uma mulher do povo, uma nova-rica que em determinado ponto de sua carreira fora prostituta de classe baixa. E era essa Corte - a mais deslumbrante e também a mais cínica do mundo, regida por uma prostituta e por um sátiro envelhecido em busca contínua por novas sensações - à qual ela teria a felicidade de enviar sua filhinha de quatorze anos, a belíssima e encantadora Maria Antonieta.
Como Kaunitz era um servo de confiança, a imperatriz colocou sua preocupação em palavras:
Creio que Sua Majestade da França não demonstraria nada além de admiração respeitosa pela esposa de seu neto.
- Com toda certeza, madame.
- E quanto ao delfim?
Maria Teresa percebeu a expressão preocupada no rosto de Kaunitz. O delfim, o neto de Luís XV da França, era um menino tímido que gostava de se isolar dos outros; não era exatamente estúpido, mas era tão nervoso que assim parecia. O fato de que um dia ele ascenderia ao trono - um dia muito próximo, porque Luís XV contava sessenta anos e não tinha filho para sucedê-lo - parecia, ao invés de inspirá-lo, enchê-lo de medo do futuro. Apesar de toda a sua importância, apesar de ser herdeiro de um dos tronos mais cobiçados da Europa, o jovem delfim Luís, duque de Berry, era uma criatura infeliz, e os relatos grandiosos das pessoas ansiosas por promover o casamento não podiam ocultar isso completamente.
- Ele é jovem - disse agora Kaunitz. - Pouco mais que um menino.
O delfim não tinha ainda dezesseis anos. Maria Teresa disse a si mesma que devia estar satisfeita por ele não ser parecido com o avô. De uma coisa ao menos ela podia ter certeza: sua filha não precisaria seguir as ordens das amantes do marido, sina compartilhada por muitas rainhas da França.
- O delfim vai crescer - disse ela com firmeza, e se recusou a se preocupar com ele.
Esse casamento era a coisa que Maria Teresa mais desejava no mundo. Era necessário para a Áustria. Precisava haver paz entre a Áustria e sua inimiga antiga, a França. Habsburg e Bourbon precisavam dar-se as mãos e permanecer juntos neste mundo em mudança. Aquela ilhazinha nas proximidades da costa da Europa estava ficando poderosa demais. Era evidente que aquela comunidade protestante de ilhéus já contemplava a aquisição de um império que excederia em poder todos os outros. Um mundo em mudança exigia que velhos inimigos formassem novas alianças.
Kaunitz prosseguiu:
- E Sua Majestade já escolheu a data. Ele sugere a Páscoa como uma boa época para o casamento.
- Concordo inteiramente. Na Páscoa, quando o ano ainda é jovem. Teremos tempo suficiente para os preparativos.
Ela estava sorrindo, determinada a esquecer suas preocupações com este casamento. Também esqueceria suas ansiedades quanto ao seu filho Joseph, a quem tornara co-regente alguns anos antes, e cuja cabeça parecia cheia de planos loucos que ela temia serem destinados ao desastre. Esqueceria de Maria Amália, sua filha, a quem entregara em casamento ao duque de Parma e que já estava, com sua leviandade, suscitando fofocas escandalosas. Esqueceria todos os filhos que tinham- na decepcionado e pensaria apenas na caçula, a encantadora Antonieta, que faria o mais brilhante de todos os casamentos, sentaria no trono da França e firmaria a amizade entre Habsburg e Bourbon, que era tão necessária à Áustria.
Dispensou Kaunitz, porque queria ficar a sós com seus pensamentos.
Depois que Kaunitz saiu, a imperatriz caminhou até a janela e olhou para os jardins.
Estava pensando que precisava cuidar logo dos preparativos, para não permitir ao velho Luís a oportunidade de retirar sua promessa, e que devia ficar atenta a qualquer trama articulada por seu antigo inimigo, Frederico da Prússia, que naturalmente faria tudo ao seu alcance para impedir a união. Precisava contar com a discrição de Joseph, o que era arriscado; a indiscrição era uma das características mais persistentes em sua família. De quem herdaram isso? Não de sua mãe. Talvez de seu pai, François de Lorraine. Em todo caso, ela precisava proteger-se.
Maria Teresa precisava manter-se em guarda contínua. Como ansiava por passar as rédeas do governo para o jovem Joseph! Mas como confiar em Joseph? Como permitir que ele jogasse pela janela tudo que ela tinha construído com argúcia e planejamento cuidadoso? Não, ela precisava manter-se no comando até estar certa de que seu filho tinha adquirido sabedoria e compreensão.
Sentiu vontade de rir de si mesma; era uma mulher que ambicionara ser imperatriz e mãe. Quisera demais da vida.
Enquanto olhava para o jardim, escutou o latido repentino de um cão correndo, passando pela fonte, sua coleira arrastando na grama.
- Peguem ele! - gritou uma voz. - Peguem ele... depressa! Mops! Venha cá, Mopsee. Venha cá, estou mandando.
Agora a dona da voz - uma mocinha - apareceu correndo, e a imperatriz sentiu uma emoção súbita apertar sua garganta. Era adorável, essa criança; tão jovem, tão inocente.
Entre todos os meus filhos, a minha pequena Antonieta é a favorita, pensou Maria Teresa. Como é formosa! É pequena para sua idade, mas com toda certeza irá crescer. Parece uma fadinha com seus olhos azuis vivos, seus cabelos louros esvoaçantes, sua pele clara como porcelana. Decerto é a criança mais bela em todo o mundo. Fará muito sucesso na corte da França, onde a beleza feminina é tida em alta conta.
- Venha cá, Mops! Não está ouvindo?
A voz era aguda e imperiosa, mas ainda assim claramente dizia ao pequeno cão dinamarquês que aquilo era um jogo; ele estava tentando fugir dela enquanto ela estava tentando pegá-lo. Um jogo que parecia infantil demais para uma arquiduquesa de quatorze anos prestes a se tornar delfina da França.
Agora outra figura apareceu lá embaixo. Uma das jovens criadas. Maria Teresa sabia que a jovem Antonieta escolhia seus amigos onde queria, sem considerar posição ou título. Maria Teresa não havia podado esta característica de sua filha.
- Bobagem - dissera Maria Teresa. - É bom para ela tomar suas próprias decisões.
Mas será que Maria Teresa estava certa? Será que ela, tão obcecada com os assuntos do reino, havia negligenciado seus deveres como mãe? Será que era por isso que Maria Amália estava andando com amantes em Parma? Será que era por isso que Joseph parecia determinado a fazer tudo ao seu próprio modo?
Em todo caso, era hora de Antonieta parar de brincar em jardins com cães e criadas.
A criada ultrapassou Antonieta e conseguiu agarrar a correia amarrada à coleira do cachorro. O dinamarquês deu meia-volta e correu na direção de Antonieta, latindo alegremente. O cachorro passou por Antonieta, fazendo ambas as meninas colidirem uma com a outra e caírem esparramadas na grama.
Uma visão estranha, pensou Maria Teresa. Uma criada, um cão dinamarquês e uma arquiduquesa rolando juntos na grama do jardim do Palácio Imperial.
O que as damas e cavalheiros de Versalhes comentariam caso uma cena como essa lhes fosse reportada? E quem podia dizer que não seria, considerando que havia espiões por toda parte? Os espiões da própria Maria Teresa tinham assegurado que Versalhes encarava tão seriamente o protocolo que ele era mais importante que qualquer outro assunto. Um homem preferiria perder sua amante a cometer uma falha de etiqueta. O futuro de um membro da corte dependia dos atos mais triviais, de cada palavra que proferia.
Maria Teresa chamou um de seus pajens.
- Mande a arquiduquesa apresentar-se a mim imediatamente - comandou.
A menininha estava em pé diante da mãe. Maria Teresa notou a mancha verde em seu vestido, e tentou carregar sua voz com severidade ao dizer:
- Rolar na grama não é uma atividade digna da arquiduquesa da Áustria.
Lembrar o episódio fez Antonieta rir.
- Mamãe, foi tão engraçado. Sabe, o Mops está sempre fugindo. Ele não quer realmente fugir, mas gosta de ser caçado, e...
Maria Teresa levantou uma mão.
- Não tenho dúvida de que foi divertido, minha filha; mas você chegou a uma idade em que precisa pensar em coisas mais sérias do que brincar com cães.
- Eu sempre vou amar os cães - declarou a menina. - E eu sempre vou brincar com eles porque, você sabe, mamãe, os cães precisam ter com quem brincar. Eles crescem infelizes se seus donos não brincam com eles. São como crianças, mamãe. Você precisa fazer com que se sintam felizes. Se não fizer isso, você se torna infeliz... e então, quando está infeliz, não vê sentido em brincar com cães.
Minha filha, minha filha! Com quantos anos você está?
- Quatorze. Mas é claro que a senhora sabe disso, mamãe.
- Uma menina de quatorze anos não é mais uma criança, Nieta.
Antonieta abriu um sorriso encantador ao ouvir a forma abreviada de seu nome. O fato de empregar o apelido demonstrou que a imperatriz não estava realmente ralhando com a menina. Não que Antonieta tenha considerado isso em qualquer momento. Poucas pessoas ralhavam com ela. Por que deveriam? Ela nunca magoava ninguém, não de propósito. Jamais pensava em fazer isso. Era querida por todos. Os criados a adoravam. Quando ela os lembrava de que era a arquiduquesa e se comportava com apenas um pouquinho de arrogância, todos respondiam ao seu humor e lhe concediam todo o respeito que ela exigia. Quando queria estar em termos de igualdade com todos eles, praticar jogos com eles, os criados se comportavam exatamente como ela queria. O mesmo valia para os seus tutores; ela aprendera rápido como evitar as lições tediosas.
- Vamos falar sobre você - dizia Antonieta, sorrindo. Conte-me sobre sua viagem à Rússia... Inglaterra... França... qualquer lugar. Conte-me sobre os dias em que você era da minha idade.
Os tutores protestavam, Antonieta choramingava. Invariavelmente, a aula acabava transcorrendo como Antonieta queria e com os professores felizes por sentir os olhos azuis e sonhadores da menina fixos neles, ouvir seus comentários simpáticos, serem abraçados calorosamente por aqueles braços alvos e finos, e ouvirem que ela os amava. E quanto à própria Antonieta, ficava feliz por haver passado uma meia hora aprazível ao invés de ter penado sob uma lição tediosa. Em todo caso, quem queria aprender francês? Que linguagem cansativa! Quem queria aprender inglês, que era quase Pior? Quanto à matemática, que coisa intolerável! Valia a pena rogar e choramingar para depois sentir-se triunfante por ter escapado de verbos cansativos e algarismos odiosos.
Neste momento Antonieta não tinha a menor dúvida de que superaria a desaprovação da mãe da mesma maneira que superava as de seus professores.
- É verdade, mamãe. Às vezes eu me sinto muito velha.
- Minha filha querida, preciso lhe dizer que você irá nos deixar muito em breve.
- Muito em breve, mãe? - Alarme aflorou aos olhos azuis.
- Por favor, em breve não!
- O rei da França decidiu que você deve se casar com o neto dele, o delfim, até o ano que vem.
- Graças a Deus, é só no ano que vem! - A voz estava animada novamente, o sorriso sereno.
Na visão da jovem Antonieta, ano que vem ficava a uma eternidade de distância.
- Minha filha, o tempo passa rápido. Não quero que você nos desgrace quando estiver na França.
Os olhos de Antonieta arregalaram com assombro. Desgraçálos! Ela, a queridinha de todos, a pequena beldade... desgraçá-los? Antonieta não queria ir para a França, mas não lhe ocorreu por um momento sequer que não conquistaria instantaneamente a admiração e o amor da França, como sempre fizera em seu lar, o Palácio de Schõnbrunn.
- Você vai achar Versalhes um pouco diferente da sua casa, minha querida. Lá há muita cerimónia, e você terá a obrigação de seguir os costumes deles. Acho que daqui em diante você e eu devemos passar mais tempo juntas. Você precisa aprender muita coisa. Daqui em diante falaremos francês com frequência, porque como um dia você será rainha da França, precisa falar essa língua tão bem quanto uma nativa.
Maria Teresa falara a última frase em francês, e sua filha sorriu vagamente.
- Você entendeu isso, não entendeu? - indagou a imperatriz.
- Mas, mãe, você falou rápido demais! Não falamos tão rápido assim em francês. E, por favor, não converse em francês comigo.
Confesso que não gosto muito dessa língua. É muito mais divertido conversar com a senhora em nossa própria língua, afinal temos tanto para dizer uma à outra. Quando se fala numa língua estrangeira, é preciso parar para pensar... e não gosto disso.
Uma sombra de tristeza deitou sobre o rosto de Maria Teresa.
- Essa foi apenas uma das coisas que não conseguimos ensinar a você. Nos próximos meses você aprenderá muitas coisas. Primeiro conseguiremos um novo professor, um francês cujo sotaque seja impecável. E você ficará comigo em meu apartamento, para que eu possa ficar de olho em você.
A menina se jogou aos braços da mãe, rindo de felicidade.
- Mamãe, vai ser maravilhoso ficar sempre com a senhora. Maravilhoso!
O que Maria Teresa poderia fazer além de se curvar e beijar aquela menina risonha e adorável?
De repente, ela apertou a filha num abraço a um só tempo feroz e protetor, e orou silenciosamente:
- Santa mãe de Deus, proteja minha pequenina. Faça o mundo inteiro amá-la... tanto quanto sua mãe a ama.
Durante as semanas que se seguiram, Antonieta tentou esquecer, em meio à excitação dos preparativos para o casamento, o fato de que para alcançar esse casamento ela teria de deixar sua casa e sua mãe. Todos os dias chegavam a Viena mensagens vindas de Paris. Maria Teresa ouvira falar sobre o protocolo rígido de Versalhes; agora estava conhecendo-o em primeira mão. Parecia ser de suma importância qual nome devia aparecer primeiro no contrato de casamento, o seu ou o do rei da França; quantos atendentes deveriam acompanhar a noiva até a França; quantos deveriam separar-se dela na fronteira. O fato de que o dote precisava ser discutido era compreensível, mas parecia um pouco desnecessário que fosse emprestada importância a assuntos como quem exerceria certa função numa procissão, e quais presentes deveriam ser dados por quem a quem; mas na visão dos franceses, todas as negociações poderiam desabar se um desses detalhezinhos não recebesse a devida atenção.
Embora estivesse em dificuldades financeiras, Maria Teresa queria que sua filhinha chegasse ao novo país aparelhada ricamente e acompanhada por um séquito digno. As costureiras da corte estavam ocupadas e a jovem Antonieta era forçada a aguardar impacientemente enquanto linhos, sedas, veludos e as mais finas rendas eram acomodadas às suas formas delgadas. Ela experimentou jóias preciosas, o que considerou muito agradável; adorava as pedrinhas brilhantes, sendo os diamantes as que mais admirava.
As belas roupas, as jóias faiscantes e a excitação dos preparativos fizeram com que esquecesse a dor da partida, dor que na verdade era prenunciada por todas essas coisas materiais.
Não pensarei nisso, dizia a si mesma. Talvez no fim das contas mamãe vá comigo. Por que não poderia? Deixaríamos Joseph aqui em Viena.
Pensando assim, podia desfrutar dos preparativos, porque acreditava que com sua mãe ao lado, não teria nada a temer dos franceses.
Agora que dera seu sinal verde para o casamento, Luís estava determinado a mostrar ao mundo que muito pouco mudara na França desde os dias do Rei Sol. Ele ia ofuscar os austríacos com sua magnificência. Ordenou que a embaixada em Viena fosse praticamente reconstruída, porque em seu presente estado não era digna para abrigar todos os convidados que compareceriam ao casamento por procuração do delfim.
Enquanto a embaixada francesa era reconstruída, Maria Teresa passou muito tempo com a filha. Era alternadamente carinhosa e severa, mas as ralhas não eram proferidas sem ternura. Maria Teresa não era uma mulher sentimental, mas como poderia não se encantar com sua filha caçula? Antonieta era tão ávida por agradar que até suas malcriações eram encantadoras. Não se recusava deliberadamente a se concentrar nas lições, mas sentia uma dificuldade imensa nisso. Afinal de contas, havia muitas coisas mais empolgantes a fazer. Entretanto, ao menos a um dos seus tutores Maria Antonieta se dedicava arduamente: Noverre, o mestre de danças.
Noverre estava muito satisfeito com sua pupila.
A arquiduquesa é a melhor aluna que já tive! - declarou. - Tem pés ágeis, movimentos delicados, e aprende os novos passos com rapidez. Sua dança provocará a admiração de toda a França.
Mas isso porque ela, obviamente, amava dançar. Quando a lição acabava, Antonieta gritava:
- Não! Não! Quero fazer de novo!
E então, corada e bonita como uma boneca, girava nas pontas dos pés, ou se mantinha imóvel majestosamente, conforme a dança exigia. Noverre aplaudia e elogiava a menina, cuja perfeição de movimentos arrancava lágrimas de seus olhos.
Mas a história era completamente diferente quando Antonieta precisava aprender palavras em outras línguas, tecer análises literárias, ou efetuar cálculos matemáticos.
O abade de Vermond - que fora enviado a Viena para ser tutor da jovem quando Luís soubera que sua mãe tinha designado dois atores franceses para ensiná-la francês - ficou desesperado com ela.
Escreveu a Luís dizendo que o problema da moça não era estupidez-longe disso. Sua mente era vivaz, mas também impaciente, não permitindo o estudo cuidadoso que era essencial ao domínio de certas matérias. A arquiduquesa era um tanto frívola e preguiçosa no que dizia respeito a coisas que não a interessavam. Era tudo, menos preguiçosa nas aulas de dança ou quando corria pela casa e pelo jardim com seus amigos ou servos. Sua Majestade não devia pensar que sua futura neta não era uma criatura encantadora. De fato, era seu charme o próprio culpado por ela ser um pouco mimada. Não que o fato de ser mimada tivesse prejudicado sua personalidade mais do que torná-la preguiçosa para pensar e incapaz de se concentrar. Era doce, generosa, dotada de uma silhueta graciosa e um rosto bonito. De fato, se fosse um pouco mais alta (e era possível que ainda tivesse tempo para crescer) e estudiosa, portaria tamanho excesso de virtudes que espantaria a todos onde estivesse presente.
Era completamente claro que, embora o abade de Vermond estivesse à beira do desespero em sua tarefa de ensiná-la francês, estava completamente encantado com a jovem.
Luís escreveu que estava ansioso por saudar a esposa de seu neto, e que ordenara a construção de uma ópera em Versalhes para que as celebrações fossem efetuadas lá. Tinha mandado que duas carruagens fossem feitas especialmente pelo construtor de coches real em Paris, para que fossem enviadas para a Áustria para conduzir a noiva de seu neto ao seu novo lar; e a imperatriz poderia esperar para qualquer dia desses a chegada de Durfort, que ele estava enviando para Viena para escoltar a noiva até a França.
Agora Antonieta precisava pensar em sua partida. Durfort tinha chegado. Ele foi conduzido até Viena com uma comitiva de quarenta e oito cavaleiros. No centro da procissão estavam as duas carruagens que tinham sido construídas especialmente em Paris para o uso da futura delfina.
Os vienenses raramente tinham visto tanta magnificência: os coches tinham seus interiores forrados em seda, enquanto os exteriores eram pintados em cores brilhantes, decorados com pinturas de coroas douradas e cobertos por vidro. Nunca antes carruagens tão belas tinham sido vistas nas ruas de Viena, e houve muitas festividades na cidade, e por toda a Áustria, em homenagem ao casamento com a família real francesa, uma união que prometia trazer glória e longos anos de paz ao país.
Maria Teresa teve uma conversa longa e séria com a filha na intimidade de seu apartamento.
- Minha querida, não falta muito para a hora em que você terá de deixar o seu lar - começou a imperatriz.
Antonieta, vendo-se subitamente face a face com o significado de todos esses festejos, jogou-se nos braços da mãe.
- Mamãe, eu preciso mesmo ir? - perguntou num tom infantil.
- É claro que precisa! Não percebe a insensatez da sua pergunta? Como você não precisa ir, quando o rei da França mandou seu enviado para acompanhá-la até o seu novo país, quando mandou fazer especialmente para você aquelas duas carruagens magníficas, quando o seu casamento por procuração está agendado para daqui a alguns dias? Não, não nos faça perder o tempo precioso que nos resta com conversas tolas. Minha criança, você é muito jovem. Quatorze anos não é uma idade madura, mas você em breve fará quinze anos, e os herdeiros de grandes coroas não devem permanecer em sua infância. Às vezes eu me culpo. Eu tenho sido muito indulgente com você.
- Mamãe, você tem sido a mãe mais maravilhosa do mundo. Aconteça o que acontecer comigo, lembrarei disso. É melhor ter uma recordação como essa do que toda a cultura do mundo.
- Talvez você esteja certa, minha criança. Mas você tem sido desatenta nas aulas, e o seu francês não é bom. A sua ortografia é questionável e a sua caligrafia irregular. Mas não fique triste por isso. É possível que você tenha outras qualidades.
- Quais? - perguntou Antonieta alegremente.
- Você é alegre, e os franceses prezam a alegria. Você é agradável aos olhos e eles também gostam disso. Quando dança, você é graciosa e nobre. Nós teremos de nos contentar com o que você conseguiu aprender, mas por favor, minha querida, aplique-se mais. Não seja tão impaciente quando há lições a aprender. Jamais esqueça que você é a arquiduquesa da Áustria e delfina da França. Você precisa fazer a Corte amá-la e respeitá-la, e essa nem sempre é uma tarefa fácil.
- Farei isso, mamãe - disse a garota com confiança.
- Tenho certeza que fará. Mas não se descuide dos sentimentos das pessoas à sua volta. O descuido faz muitos inimigos. Você precisa cuidar para jamais ofender o rei e os seus novos parentes.
- Principalmente o meu esposo - disse Antonieta com um ar de sabedoria.
- Creio que você irá considerá-lo calmo e tolerante. Ele é muito jovem e irá amar você, mas o avô dele é o rei, e pode ter amigos a quem queira que você preste respeito. Você deve fazer isso, mas de uma forma que não desrespeite a si própria. Quando chegar a hora, você irá entender o que quero dizer. Você deve estudar os costumes deles e torná-los os seus próprios. Quando fizer a renúncia formal dos seus direitos austríacos diante do crucifixo, irá se tornar uma francesa, e jamais poderá ofender o protocolo francês. Lembre sempre que eu estarei aqui para ajudá-la. Nós poderemos não nos encontrar, mas sempre trocaremos cartas. Se você se sentir atormentada por qualquer assunto, por menor que seja, não hesite em me escrever a respeito. E sempre aceite meus conselhos.
- Oh, mamãe, não será como uma separação de verdade, será? Eu sempre poderei escrever, e a senhora poderá me dizer o que fazer.
- Sim, minha filha, e eu irei lhe dar uma lista de regras que eu quero que você me prometa ler uma vez ao mês. Fará isso, Nieta?
- Farei, prometo.
- Leia o máximo que puder, e termine o que começar a ler. Não comece a ler um livro levianamente e o ponha de lado porque quer dançar e brincar... como tem feito com tanta frequência, minha querida. Temo que você esquecerá de fazer suas preces, que se tornará negligente com seus deveres, e preguiçosa. Suprima essas falhas, filha querida. Lembre que estarei pensando em você constantemente, que estarei rezando por você, e que qualquer apelo da sua parte sempre tocará o meu coração. Jamais esqueça que eu seria capaz de dar a minha vida pela sua felicidade.
Agora haviam lágrimas nos olhos de Antonieta. Olhou para a mãe com alarme, porque compreendeu naquele momento o quanto sentiria realmente falta dela.
O clímax das cerimónias tinha sido alcançado: os bailes e banquetes, os recitais e as apresentações teatrais estavam acabados, e em todos esses eventos a jovem aparecera em vestes deslumbrantes feitas especialmente para essas ocasiões. Os vienenses ovacionaram sua arquiduquesa sempre que a viram, ficaram deliciados com sua beleza, suspiraram por sua juventude.
- Ela é jovem demais para deixar sua casa e viajar para outra Corte - murmuraram.
Mas eles se divertiram com as cerimónias, e ficaram pasmos com o esplendor dos emissários de Luís.
E chegou o grande dia - o dia do matrimónio.
Antonieta ficou em pé no altar na igreja de São Agostinho e, com o arquiduque Ferdinando representando o delfim da França, Maria Antonieta tornou-se a delfina.
Foi tenso, mas não alarmante, porque ela ainda tinha sua mãe constantemente ao seu lado e as amigas à sua volta. Ela ainda se sentia sua queridinha, sua mascote.
Mas essa situação não poderia durar muito. Sua mãe explicara-lhe longamente a importância do protocolo na corte da França. Ela foi relembrada vezes sem conta de que o rei da França, em quem ela agora devia pensar como sendo seu avô, estava insistindo que esquecesse completamente sua nacionalidade austríaca. Quando ela viajasse para a França, suas roupas deveriam ser francesas; até mesmo sua camisola deveria ser francesa; e como os franceses eram muito formais em suas cerimónias na corte, a jovem delfina deveria ser entregue ao seu novo país numa certa cerimónia, que teria lugar num edifício que fora erigido com esse propósito num banco de areia do Reno.
- Se precisa ser feito, por que não aqui? - indagou a noiva.
- Porque - explicou sua mãe - os franceses queriam que a cerimónia fosse realizada em solo francês, e nós no nosso próprio solo. Assim, chegamos a um acordo. Será em território neutro, o que satisfará ambos lados.
- Mamãe, às vezes acho que isso parece mais uma guerra do que um casamento entre dois países.
- Precisamos ter em mente constantemente o protocolo francês.
- E impossível para mim não ter isso constantemente em mente, porque não ouço falar de outra coisa. Não chamarei mais o meu novo país de a terra dos franceses; irei chamá-lo de a terra do Protocolo.
Nieta, minha querida, você precisa desbastar a sua frivolidade. Você ri com muita facilidade.
Mãe, temo que depois que deixar a senhora eu passe a chorar com muita facilidade.
A mãe não conseguiu conter seu desejo de abraçar a filha, relembrando que não restava muito tempo para abraços.
E no dia seguinte suas despedidas finais foram proferidas, e a procissão atravessou o norte da Áustria até a fronteira.
Em seu coche, magnificamente paramentada, ia a adorável pequena delfina, e enquanto a procissão seguia lentamente pelo país, as pessoas reuniam-se na beira da estrada para ver a criança que há até tão pouco tempo tinha sido sua arquiduquesa e agora possuía um título maior.
- Boa sorte! - gritavam eles. - Vida longa e feliz!
E ela esquecia temporariamente a dor ao se inclinar através da janela para sorrir e acenar para eles.
- Ela é uma pequena sedutora - diziam as pessoas umas às outras. - Os franceses irão amá-la. Como não poderiam?
Foram dias estranhos para Antonieta. Sentia-se profundamente infeliz em alguns momentos, eufórica em outros. Muitas festas e banquetes foram providenciados para ela nas várias cidades nas quais o cortejo pernoitou, mas também houve paradas longas e tediosas, quando os trezentos e quarenta cavalos na procissão precisavam ser trocados antes de prosseguir. À medida que a jornada avançava, suas amigas e as damas de honra da Corte de sua mãe ficavam mais tristes, porque sabiam que quando alcançassem a extensão arenosa de território neutro seriam forçadas a dizer adeus à sua pequena ama.
E finalmente chegaram ao prédio construído às pressas, que consistia de duas pequenas salas de frente para o banco esquerdo do Reno, um salão no centro do prédio e duas salas similares de frente para o banco direito.
Foi nesse edifício que Maria Antonieta compreendeu que os franceses podiam ser praticamente farsescos em seu amor à formalidade.
Quando chegaram, Antonieta foi conduzida a um dos quartos no lado direito do grande salão. Várias de suas atendentes austríacas estavam com ela e, esperando neste quarto, estava a condessa de Noailles.
Quando Maria Antonieta entrou, a condessa caiu sobre seus joelhos, pegou a mão da menina e a beijou.
- Estou a seu serviço, madame delfina - disse ela. - Tenho a honra de ser sua primeira dama de companhia.
Antonieta sorriu e gritou em seu francês claudicante:
Por favor, não se ajoelhe. Seremos grandes amigas, tenho
certeza.
A condessa pareceu surpresa e se levantou. Permaneceu em pé, a uma certa distância, como se estivesse a postos.
Duas das mulheres austríacas desabotoaram a cinta da delfina, e começaram a despi-la.
- Mas estou com frio! - gritou, petulantemente, Antonieta.
- Seremos rápidas, querida... - começou uma das austríacas, que ao sentir os olhos da condessa cravados nela, apressou-se em acrescentar: - ...madame.
- Sei que vocês precisam me colocar num vestido francês, mas por favor, não se demorem.
A condessa tinha se aproximado e agora estava dando ordens às austríacas.
- Tudo precisa ser removido... cada coisinha.
- Não ousem tirar a minha combinação! - protestou Antonieta.
- Madame, não pode entrar em território francês usando qualquer coisa além de vestes francesas - insistiu a condessa.
Antonieta agora estava completamente nua, tremia diante das mulheres, zangada, sentindo-se privada de sua dignidade. Contudo, sentia-se também assustada demais para protestar, porque subitamente percebera que estavam lhe tomando mais do que suas roupas.
Madame de Noailles enfiou uma veste de seda francesa na cabeça de Antonieta, e então, apiedada da menina trémula, disse enquanto acomodava a peça no corpo esguio:
- Estas anáguas foram feitas em Paris, e a madame sabe que as melhores anáguas do mundo são parisienses.
Antonieta era incapaz de controlar sua língua.
Fazemos anáguas muito boas em Viena! Madame de Noailles ignorou o comentário.
- Isto é renda francesa - disse ela. - E estes sapatos foram confeccionados pelo sapateiro real.
Depois que a tinham vestido em vestes francesas, Antonieta parecia uma pessoa inteiramente diferente mas, enquanto amaciava as dobras do vestido, percebeu que as roupas que usava agora caíam-lhe melhor que aquelas que acabara de descartar; e por mais angustiada que estivesse, o pensamento deu-lhe uma certa dose de prazer.
Madame de Noailles soltou um gritinho de horror ao descobrir um anel no dedo da menina.
- Ganhei este anel de minha mãe - esclareceu Antonieta.
- É austríaco, madame, e Sua Majestade deu ordens para a senhora não pisar em território francês usando nada que não seja francês.
- Não me desfarei do anel de minha mãe - disse a menina, desafiadora.
- Madame, são ordens do rei.
- Mas ainda não estamos na França.
- A senhora é súdita do rei, madame.
- Eu... eu... sou a delfina.
- Sim, madame, e portanto súdita do rei da França - disse madame de Noailles, removendo vigorosamente o anel.
- O que fará com ele? - perguntou a noiva.
- Será devolvido à sua mãe.
- Então pedirei a ela que o devolva a mim, e quando eu estiver na Corte direi ao rei que não irei me desfazer dos presentes de minha mãe.
Madame de Noailles pareceu não estar ouvindo. Era como se fazendo isso implicasse que o que a delfina dizia não era da sua conta. Ela fora ordenada a remover tudo que fosse austríaco da noiva do delfim, e fora isso que fizera.
E assim que o anel estava fora de seu dedo, Antonieta sentiu a desolação tocá-la. Agora estava realmente longe de casa.
Olhos reluzindo com as lágrimas rebeldes que mantinha em xeque com todas as forças de seu ser, virou-se para a porta onde o conde Starhemberg esperava para conduzi-la ao grande salão.
Pousou a mão no braço do conde, e nesse momento a mocinha pequena e esguia pareceu uma rainha. As saias deslumbrantes de seu vestido francês, tão adequadas à sua juventude e beleza, farfalhavam quando ela caminhava, e os franceses, de pé no lado oeste da grande mesa colocada no centro do salão como uma barreira entre as duas nações, sentiram-se comovidos pelo encanto jovial de Antonieta, embora seus rostos, rígidos com formalidade, não demonstrassem isso.
A mobília no salão fora emprestada por cidadãos de Strasbourg para a ocasião, e as tapeçarias que adornavam as paredes ajudavam a disfarçar a falta de um bom acabamento neste prédio erigido atabalhoadamente. Mas a jovem não tinha olhos para qualquer aparato; estava cônscia apenas dos homens solenes no lado oeste da mesa e de seus próprios compatriotas que se aglomeravam, tão significativamente, no lado leste.
O conde conduzia-a gentilmente na direção da mesa. As pernas de Antonieta tremiam e ela se perguntava como podia ter rido com tanta alegria e abandono durante as festividades que haviam prenunciado este momento.
O conde conduzia Antonieta cerimoniosamente em torno da mesa. A sala estava mergulhada num silêncio profundo, e todos os olhos estavam fixos nela. Antonieta compreendeu que este era o momento mais solene de sua vida, muito mais formal do que a cerimónia de casamento tinha sido. Para ela, aquilo tinha sido uma espécie de brincadeira de faz-de-conta, porque o homem que estivera ao seu lado não era seu marido.
Agora que tinha contornado a mesa e estava no lado oeste, teve a impressão de que os espectadores haviam deixado escapar um leve suspiro de alívio, como se todos houvessem esperado que ela se recusasse a dar os passos necessários, ou que se jogasse no chão, esperneando, protestando contra se tornar súdita do rei Luís, e exigindo ser levada de volta para a mãe, como poderia ter feito aos quatro anos de idade.
Agora estavam prontos para recebê-la - sua delfina que um dia seria sua rainha.
Um a um aproximaram-se dela; fizeram mesuras, beijaram sua mão. E quando foi a vez de madame de Noailles fazer a mesura, Antonieta não conseguiu conter as lágrimas. Ela começou a chorar em silêncio.
Madame de Noailles levantou alarmada, e virou-se para um dos criados.
- As carruagens estão aqui - disse o criado. - Podemos partir imediatamente.
Assim a cerimónia foi abortada para que as lágrimas silenciosas da nova delfina não se tornassem soluços barulhentos. Nenhum preço era alto demais para a preservação do protocolo.
Maria Antonieta deixou o território neutro do Reno, e ouvindo o repicar dos sinos de Strasbourg deu seu último adeus ao seu antigo lar e iniciou a jornada para a França.
Nos aposentos do rei da França, madame du Barry dispensou todos os atendentes, porque queria estar a sós com o rei, e a palavra de madame du Barry era lei na corte da França.
Pobre França! Pensou madame du Barry. Ele parece velho hoje.
Gostava de se referir a Luís familiarmente como França , porque a lembrava que ele era o rei e que, como detinha grande poder sobre o rei, isso a tornava, de certa forma, regente do país. Esse era um pensamento aprazível para a filha de um alfaiate em Vancouleurs. Descontando alguns momentos de inquietude, ela era uma mulher feliz. Nada a deliciava mais do que receber convidados em seu salão e ver como eles se consideravam honrados por isso, porque entendiam que se quisessem obter honras na Corte, teriam de contar com a intervenção de madame du Barry.
França fora bondoso com ela. Ele a provera com um marido útil-nenhum outro senão o conde du Barry-que, sob o comando do rei, aceitou desposá-la e em seguida remover-se da Corte para jamais constranger ninguém com sua presença. Este arranjo concedeu à amante do rei o título de uma grande dama enquanto as riquezas e as honras eram supridas por Luís. Eles era bons um para o outro - ela e Luís. Era verdade que ele estava com sessenta anos e aparentava isso; nem os reis podiam levar vidas como a de Luís XV e não ser marcado por seus vícios. Du Barry estava com vinte e sete anos e, se estava começando a parecer um pouco enrugada, sabia reparar os danos diante do espelho; e as jóias e roupas caras que não eram supridas por Luís eram fornecidas por aqueles que desejavam o favor do rei.
Desde a morte de madame de Pompadour, alguns anos antes, a condessa du Barry era a mulher mais poderosa na Corte da França.
Era uma mulher feliz. Sempre repetia para si mesma que já conhecera dias menos afortunados. Não tinha paciência para as damas que se queixavam de suas vidas indolentes. Tinha vontade de levá-las para Vancouleurs e mostrar-lhes o sótão no qual havia nascido. Tinha vontade de obrigá-las a trabalhar com suas agulhas à luz de velas bruxuleantes. Tinha vontade de soltá-las em Paris sem uma moeda de bronze no bolso, sem nada para vender além de seus corpos. Então, dizia madame du Barry aos seus botões, elas iriam apreciar sua boa sorte... assim como madame du Barry apreciava a sua.
Madame du Barry esforçara-se muito pouco para imitar os modos dessas damas. Ela era ela própria - ousada, insolente, bonita, vulgar e apaixonada pela vida.
Contudo, pairava no ar uma certa ansiedade. Luís estava envelhecendo e, caso morresse, o que seria de madame du Barry? Era natural que uma mulher tão delicada e ao mesmo tempo numa posição tão imensamente influente tivesse feito muitos inimigos. De todas as tarefas que precisava cumprir, a de manter o rei vivo era a mais importante. Ademais, gostava dele. Por mais vulgar e materialista que fosse, ela tinha um bom coração, e alguém que havia conhecido a verdadeira pobreza jamais esquecia a gratidão para com aqueles que facilitaram sua vida.
Assim, agora ela estava estudando o seu amante com solicitude terna.
- Está cansado hoje - disse ela. - A sua pequena visitante da noite passada foi demais para você.
Luís sorriu ao lembrar de sua visitante da noite anterior.
- Não, não foi não - garantiu.
- E você a achou encantadora, não achou? - murmurou du Barry, sorrindo de prazer.
Madame du Barry via o prazer do rei com as jovens encantadoras que ela lhe trazia de tempos em tempos como um cumprimento a si própria. Era sábia demais para esperar que ele permanecesse fiel para com ela. Luís praticava a promiscuidade há tanto tempo que seria antinatural para ele fazer outra coisa. Portanto, os desejos de Luís precisavam ser saciados e, embora ele precisasse extrair prazer de outras mulheres, a arguta du Barry estava determinada a compartilhar desse prazer. Dessa forma, tomava como uma de suas tarefas - sempre que imaginava que a paixão de Luís por ela estava declinando - trazer-lhe mocinhas para estimular seus desejos eróticos. Ela não era apenas uma amante indulgente e uma conselheira astuta; era também sua proxeneta.
- Mesmo assim, creio que você precisa ter agora uma noite calma - prosseguiu ternamente -, com apenas a sua amável du Barry por companhia.
Luís sorriu novamente para sua amante. Ela era divertida; era inteligente; e ele gostava dela. Ao pensar nos apartamentos suntuosos de du Barry no grande Palácio de Versalhes, com a escadinha espiral que mandara construir para conectar os aposentos dela ao dele, Luís frequentemente ria ao lembrar que apenas alguns quartos separavam os apartamentos de suas três filhas pudicas do de sua amante. Ele estava contente por vê-la como a estrela reinante de sua Corte. Luís ficara velho demais para ambições: jamais fora como o monarca precedente, seu bisavô Luís XIV, Grand Monarque, lê Rói Soleil, com suas ambições de erigir um grande império cujo centro fosse a deslumbrante e autocrática Versalhes, e, na verdade, o próprio rei. L état c est mói , ou o estado sou eu , dissera esse ambicioso Luís. E era verdade que a França conhecera muitas glórias em seu nome, embora fosse a predominância do país na literatura e na arte que tornou esse reinado eternamente memorável. Racine, Molière, Corneille, La Fontaine, Boileau! Quantas estrelas iluminaram um reino glorioso de mais de setenta anos! O Rei Sol tinha sido um dos melhores reis da França. Fora belo como um deus, adorado e duplamente abençoado, porque embora tenha subido ao trono quando era um menino de quatro anos, os assuntos do país tinham estado nas mãos capazes do cardeal Mazarin. A Corte reluzira com génios. La Rochefoucauld, Bruyère, Pascal, Poussin era possível recordar indefinidamente tantos grandes nomes.
Maior sorte ainda Luís XIV tivera por viver numa era em que os homens estavam mais propensos a aceitar os direitos divinos dos reis para governar. Embora ele próprio fosse chamado de O BemAmado, o povo não demonstrava para com Luís XV a mesma tolerância que para com Luís XIV, e apesar de toda sua preocupação com prazeres, ele estava plenamente cônscio disso.
Aposição da França no mundo tinha se deteriorado rapidamente nos anos de seu reinado. A Inglaterra estava ao comando dos mares, e a Inglaterra era a inimiga perene da França. A França estava perdendo o controle de suas colónias, e Luís era indiferente. Era velho demais para sentir qualquer coisa além de indiferença. Entregara-se aos prazeres; tinha sido governado por mulheres e não conseguia quebrar esse hábito. Agora que estava envelhecendo passava por períodos de alarme quando revisava sua vida e, durante esses períodos, era tomado por uma necessidade urgente de contrição.
Luís e du Barry viviam no máximo do esplendor, mas mesmo assim ele estava ciente da danação que os aguardava. Podia dar com os ombros e fingir que esquecia, mas sempre os recessos de sua mente eram habitados pelo medo de ser chamado para expiar seus pecados no inferno, e pelo medo sentido por du Barry com a perda de poder que sua morte significaria para ela.
Du Barry não estava preocupada com sua alma. Ainda era jovem, e o medo da vida futura era uma mazela que não atacava até a chegada da meia-idade.
Du Barry disse agora a Luís:
Quando vai dispensar Choiseul? Esse homem já não governou por tempo suficiente?
Du Barry era tenaz nas situações que envolviam seus inimigos. O grande político, Choiseul, causava-lhe certa ansiedade. Durante doze anos ele mantivera uma posição de poder indisputável. Choiseul não era o tipo de homem propenso a se curvar diante da vontade de uma mulher como du Barry, e ela não podia permitir que um homem com essa postura permanecesse em posição de tamanha importância. Fora no círculo de du Barry que a trama contra Choiseul havia chocado. Com o duque d Aiguillon e o abade Terray, du Barry assegurara ao rei que Choiseul precisava ser dispensado, e que podia ser substituído por outra pessoa mais capaz.
- Pense nos males que este homem pode causar - disse du Barry. - Já esqueceu do acordo da Guiana? Que fiasco! Pense em todos os colonos que morreram porque foram enviados para um novo país carecendo de todas as coisas das quais precisariam. A França Equinocial não permaneceu francesa por muito tempo, Luís. E em todos os outros lugares os ingleses triunfaram sobre nós. E por quê? Administração incompetente em casa! E quem administra as questões domésticas? Choiseul. Sempre Choiseul! Você sabe que já teria se livrado desse camarada há muito tempo se não fosse por sua esposa bonita que espertamente se mantém virtuosa e rejeita os avanços reais. E que imprudência essa! Rejeitar França!
- Minha querida, você está ficando veemente demais.
- E como não posso ficar ao ver uma mulher que se crê boa demais para a cama da França? Mas ela virá rápido, Luís, meu BemAmado... assim que Choiseul cair em desgraça.
- Há certa lógica nas suas palavras - disse Luís, indolentemente. - Mas não esqueça que foi ele quem arranjou este casamento com a Áustria.
- Outros casamentos igualmente bons poderiam ter sido arranjados, e não pense que Aiguillon não poderia ter arranjado o casamento se você assim o quisesse!
Luís manteve-se calado. Estava pensando em seu neto, o delfim, duque de Berry. Frequentemente ficava triste ao pensar no menino.
- Minha querida, como acha que ele se desempenhará como esposo?
- Berry?-Du Barry soltou uma risada alta e esganiçada, uma risada das feiras livres de Paris. - Ele vai crescer.
- Ele será rei da França algum dia...
- Esse dia está distante - disse fervorosamente du Barry.
O rei sorriu para ela, meio terna, meio amorosamente. Gostava de du Barry e também confiava muito nela.
O que será dela depois que eu me for?, perguntava-se com frequência.
Mas Luís não queria pensar em sua própria morte. Sempre que o fazia acabava afundando num daqueles períodos de contrição. Ele os odiava; e em todo caso ele sempre os deixava para mergulhar ainda mais fundo na vida adúltera.
- Os reis da França sempre souberam dar conta de suas mulheres - disse du Barry num tom bem-humorado.
- Tão bem que talvez esta seja a exceção ocasional.
- Bobagem, ele vai crescer.
- Ele é muito diferente dos irmãos, Provence e Artois. Às vezes acho uma pena que um deles não seja o mais velho.
- Muitos acreditam que existe profundidade nos mais quietos - argumentou du Barry. - Pelo que soube, a austriacazinha é muito formosa. Parece mesmo ser uma autêntica beldade. Ponha os dois juntos na cama e, grave as minhas palavras, França, você não precisará mais se preocupar com a falta de virilidade do delfim.
- O menino me preocupa muito - disse Luís.
Du Barry estava tensa. Precisava proteger continuamente o rei contra pensamentos desagradáveis, e sabia por experiência própria que pensar em seu neto mais novo podia induzir Luís a temporadas de contrição. Du Barry temia esses surtos, que resultavam em seu banimento da presença do rei, e que muito facilmente poderiam resultar no seu banimento da Corte.
- Faz tempo que não o vejo - disse o rei. - Mande chamálo, querida. Quero trocar uma palavrinha com ele sobre o casamento.
- Meu amor, a galantaria da noite passada deixou-o extenuado.
Ainda sorrindo, Luís disse com firmeza:
- Mande chamar o garoto, meu bem.
Com a testa levemente franzida pela preocupação, du Barry caminhou até a porta. Chamou por um pajem que estava a postos.
- Siga imediatamente ao apartamento do delfim e traga-o. São ordens de Sua Majestade.
Luís estava fitando suas mãos adornadas com anéis, não vendo-as, mas pensando no passado. Um hábito de velho, disse a si mesmo com ironia, pensar no passado e desejar que tivesse sido diferente. Se ele tivesse sido mais parecido com seu bisavô, Luís XIV, será que a França estaria em seu presente estado de inquietude? Seis anos atrás, quando ocorrera uma grande agitação contra os Jesuítas, Luís tentara permanecer neutro. Ele tinha sentido que o seu Parlamento estava usando os Jesuítas para atacá-lo. Nessa época Luís questionara-se se a monarquia, que permanecera tão firme no reinado de seu predecessor, não começara a estremecer. Luís jamais esqueceria uma carta - anónima - que fora endereçada a ele e a madame de Pompadour. A carta dizia:
Não existe mais esperança de governo. Virá um tempo em que os olhos do povo serão abertos, e incontestavelmente esse tempo se aproxima.
Jean Jacques Rousseau estava escrevendo perniciosamente contra a monarquia. François Marie Arouet de Voltaire era outro daqueles filósofos cuja leitura causava preocupações. A memória dessa carta anónima, como os pensamentos do fogo infernal, frequentemente subia pela mente do Bem-Amado como assassinos em lugares escuros e solitários.
Era por causa disso que, ao pensar em seu jovem neto, Luís sentia remorsos. Se o menino fosse diferente - digamos, um jovem Luís XIV, ou melhor ainda, um jovem Henrique IV - ele poderia esquecer seus temores. Mas o jovem Berry era de fato um problema.
A morte do delfim tinha sido um grande infortúnio. Quem poderia ter previsto tal coisa? Tinha sido há apenas cinco anos, quando ele estava acampado em Compiègne, e ali abusara de suas forças, segundo diziam. Apenas trinta e seis anos de idade! Jovem demais para morrer; e a França precisava dele.
Ele tinha sido diferente de seu pai: pio, talvez devotado demais à Igreja, mas quem pode dizer que isso seria ruim para a França? Ele tinha sido um delfim ideal. Produzira três filhos, e parecia capaz de cumprir seu dever para com a França quando o país precisasse de um pulso firme. E então sua morte desapontara os membros mais sóbrios da comunidade. Nessa mesma época ocorreram muitas mortes. A rainha de Luís, a polonesa Marie Leckzinska, morrera três anos depois de seu filho, e um ano antes aquela delfinazinha tão agradável, Maria Josefa da Saxônia, fora fazer companhia ao marido na sepultura. Essas duas mulheres, discretas e recatadas, mas argutas, faziam falta ao menino que, tristemente, necessitava de conselheiros.
Luís jamais esqueceria o dia em que fora informado da morte do filho. Mandara chamar seu neto, e o pequeno Berry pusera-se em pé à sua frente, alto para sua idade, mas tão carente de charme, tão lento... embora fosse dito que não era estúpido nos estudos. Era meramente letárgico e parecia incapaz de pensar depressa. Os tutores asseguraram a seu avô que o menino era responsável, até inteligente, mas carecia do dom da fluência, da habilidade de chegar rápido a uma decisão.
E olhando para aquele menino grande e gordo, com olhos opacos, Luís murmurara:
- Pobre França! Um rei de cinquenta e cinco anos, e um delfim de onze!
Fora nesse momento que as preocupações de Luís haviam começado.
Agora o rapaz estava sendo conduzido ao interior do apartamento de Luís. Uma pena que isso precisasse ser feito com tamanha pompa, porque o delfim sempre se sentia desconfortável em situações cerimoniosas. Ele mais arrastava os pés que caminhava, e foi assim que se aproximou do local onde o avô estava sentado. Quase caiu ao se ajoelhar diante de Luís. A mão do rei pousou em seu ombro num aperto dolorido; o rapaz estremeceu, incomodado, o que não diminuiu a ternura que Luís sentia pelo neto.
- Pode levantar-se, Berry.
O delfim se levantou. Ele não disse nada; meramente ficou em pé, expectante, com uma expressão cansada nos olhos míopes. O rei gesticulou para os pajens.
- Deixem-nos - disse ele.
Os pajens fizeram uma mesura e se retiraram. Luís estudou o neto com olhos piedosos enquanto o delfim alternava o olhar entre seu avô e a amante do rei, como se estivesse se desculpando por sua falta de jeito, sua aparência desprovida de realeza, e o fato de que não conseguia pensar em nada para dizer.
- Berry, nós o chamamos aqui para falar sobre o seu casamento e para mostrar-lhe o retrato mais recente da sua pequena delfina. Estamos encantados. Ela é encantadora. Querida, mostre o retrato a Berry.
Madame du Barry caminhou até o delfim e pousou uma mão maternal em seu ombro.
- Tome, Berry. Verá que ela é de fato a mais linda das delfinas. O delfim fitou o belo rosto ovalado, dotado de uma beleza mais
provocante do que exatamente clássica. Os lábios - herança dos Habsburg - eram um pouco grossos; a fronte era alta e a tez corada. A aparência geral da moça era tão atraente que ocorreu a Berry que, se eles tivessem procurado pela mulher que menos se parecia com ele próprio em todo o mundo, teriam escolhido Maria Antonieta.
Ele tentou dizer isso, mas hesitou. Isso poderia desagradar o avô. O delfim era cauteloso por natureza; jamais apressava-se em nada; sempre ponderava tão longa e cuidadosamente que quando formava uma opinião geralmente já era tarde demais para expressá-la.
- Ela não é linda? - incitou du Barry.
- Ora... sim... sim... de fato, é linda.
- Você é o noivo mais sortudo da França, Berry - disse du Barry.
A mulher tinha aproximado seu rosto pintado do dele, e Berry precisou conter um estremecimento. Ele odiava as sugestões nos olhos dessa mulher, que sempre provocavam uma renovação de seus temores. Ele temia o casamento, porque não era como os outros meninos de sua idade. Ele escutara-os relatar suas conquistas; até seus irmãos, jovens como eram - Provence com quatorze e Artois com treze anos -, tinham feito seus experimentos amadores. Mas não o delfim. Berry não tinha qualquer vontade de experimentar o amor, embora houvesse moças bonitas que estavam preparadas para mais do que apenas flertar com aquele que um dia seria o rei da França. O delfim evitava essas moças porque elas o alarmavam, cristalizando sua certeza de que ele era diferente. Não ligava para as aventuras eróticas que pareciam tão atraentes aos outros de sua idade. Queria apenas ficar sozinho, ou com Gamin, o ferreiro que estava ensinando-lhe seu ofício. Encontrava grande prazer em forjar e moldar usando sua força, como fazia seu amigo ferreiro. Quando estava cansado dos labores físicos, gostava de ler ou estudar os mapas geográficos que tanto o encantavam. Tinha a impressão de que era possível encontrar nos livros uma satisfação mais profunda do que na sociedade de pessoas jovens e frívolas; nos livros dos grandes escritores ele podia preservar sua solidão, fiar seus pensamentos lentamente, e afundar na paz que tanto amava.
Portanto, a visão do retrato, longe de deleitá-lo, enchia-o com apreensão.
- Pense só nisso - disse madame du Barry. - Essa delícia de criatura já é sua esposa. Ela já está vindo encontrá-lo.
O rei disse, cínico:
- Minha querida, vejo que o delfim mal pode esperar pela consumação do matrimónio.
Uma gargalhada escapou de madame du Barry. O delfim voltou lentamente seu olhar para ela. Alguns poderiam tê-la odiado devido à humilhação implícita naquela gargalhada, mas o delfim jamais odiava ou amava rapidamente. Seus sentimentos nasciam tão lentamente que quando finalmente se formavam estavam isentos de veneno ou afeto. Ele apenas se sentiu desconfortável-não tanto devido aos olhos do avô fixos nele, mas porque estava imaginando como iria receber sua esposa.
- Bem, ele é jovem, e os jovens são ardentes - disse du Barry num tom quase terno.
- Traga-me o retrato, meu amor - disse o rei. Du Barry obedeceu.
- Ah! - exprimiu Luís. - Você é realmente afortunado. Quisera eu ter dezesseis anos de idade, e ser um delfim aguardando para receber uma noiva tão linda.
Fitando o retrato, Luís lembrou daquelas jovens das quais desfrutara tanto no Pare aux Cerfs, levadas para o seu prazer em seus dias mais viris. Oh, ser jovem para sempre, estar eternamente distante dos terrores do remorso! Ele acreditava que estava perigosamente perto de um daqueles períodos de contrição.
- Neto, você aprendeu as novas danças, creio? - disse Luís.
- Bem, senhor... Eu... eu... eu... não me destaco em danças. O rei balançou a cabeça tristemente.
- Uma esposa fará diferença para você, monsieur delfim. Através dela, descobrirá muitas coisas que tornam a vida agradável.
- Sim, avô.
- Quais preparativos está tomando para ela?
- Eu... eu... Deveria estar fazendo preparativos?-Havia uma expressão indefesa naqueles olhos míopes.
- Você terá de parar de pensar em outras garotas bonitas, agora que tem uma delfina - disse du Barry falsamente, completamente cônscia de que ele não nutria qualquer interesse por garotas bonitas.
Ele fitou du Barry bem nos olhos, sem corar. Quando gaguejava, era devido à lentidão de seus pensamentos.
- De fato - disse o rei. - E Berry, queremos herdeiros para a França. Não esqueça.
O delfim disse:
- Há tempo de sobra. Somos ambos jovens.
- Meu menino, nunca há tempo de sobra para os reis. Quanto mais cedo as crianças chegarem, mais satisfeitos ficaremos nós todos: eu próprio, e o povo da França. O seu casamento se dará aqui em Versalhes, na capela do seu ancestral Luís XIV. Assim que a cerimónia tiver terminado, a delfina será verdadeiramente a sua esposa. Creio que devemos postergar a consumação até depois da cerimónia.
- Sim, devemos sim - disse o delfim, agradecido.
- Vá agora, meu menino. Leve o retrato consigo. Tenho certeza de que gostará de guardá-lo como um tesouro.
Ele aceitou o retrato, fez sua mesura desajeitada e saiu do apartamento.
- Não aguentaria olhar para ele nem por mais um segundo disse o rei depois da saída do neto. - Ele me enche de preocupações.
- Ele vai crescer.
- Jamais será um amante ardente. Ele não parece um rei da França.
- Estou lhe dizendo, quando vir essa mocinha linda, ele irá amadurecer instantaneamente. Ele está apenas entrando lentamente na maturidade. Não esqueça de que ele acabou de fazer dezesseis anos.
- Quando eu tinha dezesseis...
- Você, meu Bem-Amado... você é um deus.
- Minha querida, eu estou preocupado. Tinha apenas cinco anos de idade quando a morte do meu bisavô fez de mim rei da França. Meu bisavô, o GrandMonarque, tinha subido ao trono aproximadamente com a mesma idade, e não é uma coisa boa que menores de idade sejam reis.
- Então você não devia estar preocupado, porque o delfim agora está com dezesseis anos e é quase um homem. E você ainda tem muitos anos à sua frente.
- Os tempos mudam. Pode ser que ainda me restem muitos anos. Quem pode dizer? Mas a França não é o país que herdei de meu bisavô, nem o país que o GrandMonarque herdou de seu pai. Isso me deixa preocupado. Lembro de um dia há treze anos, quando estava descendo uma das escadarias em Versalhes, e um homem correu até mim e me feriu com um estilete. O ferimento não foi profundo e eu me recuperei em pouco tempo, mas isso me fez pensar que os países mudam, e que as pessoas que nos amam hoje podem nos odiar amanhã.
- O homem com o estilete era um fanático, um louco. Seu ato criminoso não significou que o amor do povo tinha se transformado em ódio. Ora, Henrique IV foi apunhalado até a morte, mas ainda assim foi profundamente amado, e ainda há muitos que rezam por sua alma.
- Concordo, mas eu vi a morte bem de perto naquele dia... e isso me fez pensar em muitas coisas. Os tempos mudaram desde que Damiens tentou tirar minha vida e teve como punição uma morte horrenda. Agora tenho a impressão de que estamos menos seguros. Temos nossos problemas internos e externos. Há momentos de grande atrito entre eu e meus ministros, e você sabe que quando isso acontece...
- França, pare com isso. Está ficando mórbido. Esquece que é conhecido como Luís, o Bem-Amado?
- Hoje em dia quase não me chamam assim, minha querida. Esse foi um título que me foi conferido muito tempo atrás. Ver aquele menino me deixou abalado. Começo a pensar que agora que tenho sessenta anos, a vida aqui na França é diferente de como era quando eu tinha vinte. Às vezes penso no cardeal Fleury e que os problemas na França aumentaram desde a sua morte. Ele era um bom ministro... um outro Richelieu, um outro Mazarin. Ele foi meu bom tutor, e temo que ele desaprovasse imensamente os meus atos licenciosos. Não, minha querida, a França não é o país feliz que já foi. Eu tenho sido imprudente. Eu vejo isso agora, em minha idade avançada. E agora estou cansado demais para ser diferente. Às vezes eu sonho. Ver aquele menino me faz lembrar...
- O delfim é um bom menino-assegurou du Barry. - O fato de ser sério não é uma coisa ruim.
- Ele parece carecer das qualidades régias... é isso que me amedronta. Ele arrasta os pés quando caminha. Ele carece de dignidade em tudo que faz. Como pode alguém assim honrar a França?
- Ele é apenas o delfim. Ele tem muitos anos para aprender a ser rei. Você não tem nada a temer.
De repente o rei apertou o braço de du Barry. Seus olhos estavam ligeiramente vidrados enquanto fitavam o vazio.
- Eu não tenho nada a temer. Eu vou morrer e a França vai continuar. Lê rói est mort. Vive lê rol Sempre foi assim, não foi, minha querida? Mas há momentos em que eu digo aos meus botões: O reino durará enquanto a minha vida durar, e então... après mói-k déluge.
A procissão da noiva alcançara a Alsácia. Sinos repicavam, as ruas estavam cobertas por flores, e havia vinho para tomar o lugar da água nos bebedouros públicos. Os barcos que velejavam pelo Reno estavam alumiados por tochas, e uma música suave emanava de seus conveses.
Os plebeus estavam encantados com a mocinha adorável na carruagem de vidro - uma verdadeira princesa de contos de fadas, diziam uns aos outros. Era realmente uma felicidade imensa quando um casamento unia dois países. E a noiva que estava vindo para a França e para o seu delfim era jovem, tão jovem quanto ele. Este era um bom presságio para a França.
Na Catedral, à qual foi conduzida para ouvir a missa, Maria Antonieta foi recebida pelo príncipe de Rohan. O príncipe era jovem e bonito e seus olhos reluziram com admiração ao pousar em Antonieta.
Antonieta ficou surpresa ao ver alguém tão jovem recebendo-a. Esperara pelo bispo, que sabia não ser nem de perto tão jovem ou bonito quanto aquele homem aparentemente incapaz de desviar o olhar de seu rosto.
O príncipe tomou a mão de Antonieta e seus lábios demoraram-se sobre ela. Ele não soltou sua mão, continuando a segurá-la enquanto dizia numa voz que parecia carregada de emoção:
- Você será para todos nós a imagem viva da amada imperatriz, sua nobre mãe, a quem toda a Europa há tanto tempo admira, e a quem a posteridade jamais cessará de venerar. É como se o espírito de Maria Teresa estivesse para se unir ao espírito dos Bourbon.
Ela esboçou um sorriso de agradecimento e retirou a mão. Mas enquanto o príncipe a conduziu ao altar, Antonieta permaneceu consciente dele - de sua bela aparência, de seus olhos ardentes. Antonieta sabia que, embora o príncipe tivesse falado sobre os espíritos de dois países, na verdade estava pensando em duas pessoas: ele e ela.
Era um sentimento estranho de se experimentar numa igreja, um começo estranho para sua vida em seu novo país; ele estava lhe dizendo claramente que ela era a criatura mais encantadora na qual já pusera os olhos; e naquele momento ela começou a se sentir menos miserável, menos saudosa de sua mãe e de seu lar.
Em alguns dias Antonieta esqueceria o nome do príncipe, mas naquele momento ele aqueceu o seu coração. Ele tinha feito com que Antonieta lembrasse de que era jovem e linda, e que para onde quer que fosse, suscitaria admiração.
Assim, devido aos olhares ardentes do sobrinho do bispo, Louis, príncipe de Rohan, a apreensão na mente da jovem deu lugar à empolgação.
Na floresta de Compiègne, a procissão parou. Aqui galhos tinham sido decorados com grinaldas de flores, e havia galhardetes de seda e veludo estendidos entre as árvores. As damas e os cavalheiros da Corte, belissimamente paramentados, esperavam debaixo dessas árvores pelo encontro cerimonial entre a delfína austríaca e o rei e o delfim da França.
A guarda real, em uniformes de cores berrantes, estava reunida numa clareira enquanto clarins e trombetas entoavam uma fanfarra de saudações.
O rei desceu de sua carruagem. Antonieta o viu e, com imensa graça, desceu também da sua. Antonieta, com um abandono infantil, correu até o rei da França e fez uma mesura que praticara bastante antes de partir de Viena.
Luís baixou os olhos para aquela criatura divina. Tão pequena, tão belissimamente formada que parecia uma boneca de porcelana. O encanto da jovem comoveu Luís, que tinha uma ternura profundamente enraizada por mulheres jovens.
Luís a ergueu nos braços sem conseguir desviar os olhos do rosto oval enrubescido e cheio de um desejo inocente de agradar, bem como de uma certeza de que não falharia em fazê-lo.
O rei abraçou-a com um pouco mais de fervor do que era necessário. Em seguida, segurou-a à distância de seu braço e beijou suas faces.
- Bem-vinda! - saudou-a. - Seja bem-vinda à França, pequenina!
Luís deixou sua mão permanecer no ombro de Antonieta. Que pele firme e macia, pensou o rei, e invejou o neto.
Luís estava ciente de que todos os olhavam. Eles deviam estar sorrindo, compreensivos. Provavelmente murmuravam:
- Este é um petisco que o velho glutão não pode tocar!
E era verdade. O que era lastimável... lastimável. Mas onde estava o delfim?
O rei olhou sobre o ombro. Era o sinal. O delfim deu seus passos atabalhoados para a frente-quanto mais cerimoniosa a ocasião, mais desajeitado ficava - e fitou aquela mocinha linda como se ela fosse um animal selvagem do qual sentia um medo justificável.
Por acaso ele parece um futuro rei da França? perguntou-se o rei.
Era uma pena que o mais velho não fosse Provence ou Artois. Não teria sido uma grande tragédia ter um boçal como segundo ou terceiro neto - mas ter um como o mais velho, o delfim, o herdeiro do trono! Era o sangue polonês que corria em suas veias. Sua avó Marie Leckzinska tinha sido filha de Estanislau, o rei destronado da Polónia. Sua mãe tinha sido Maria Josepha, filha do Eleitor da Saxônia. O delfim tinha herdado muitas qualidades do lado estrangeiro de sua ascendência. Era pesado, desajeitado, além de carecer da graça polida dos homens franceses.
- Minha querida-disse o rei, relutantemente tirando as mãos da pele da moça -, este é o delfim, seu noivo.
Maria Antonieta estava agora face a face com o delfim.
Meu esposo, pensou ela, e olhou ansiosamente para seu rosto.
Viu um rapaz alto não muito mais velho que ela própria, com olhos humildes e sonolentos que não pareciam querer olhar para ela, e que a faziam lembrar, por contraste absoluto, os olhares ávidos do príncipe jovem e belo de Rohan. A fronte recuava abruptamente do semblante, e o nariz era grande - o nariz da família Bourbon; o queixo era arredondado e carnudo. Era alto e não completamente desproporcionado; ela não sabia dizer por que o delfim parecia tão pouco com um membro da realeza. Seria por que suas roupas, embora elegantes, por algum motivo não lhe caíam bem? Seria porque suas mãos não eram formosas como aquelas que tinham erguido o relicário para a bênção, tão pouco tempo atrás?
O padre tinha olhado para Antonieta como se ela fosse uma noiva; seu noivo olhava-a como se tivesse pouca vontade de conhecêla melhor e estivesse se perguntando quando poderia fugir dela.
Ela viu que o pescoço dele era curto, uma falha que lhe roubava a dignidade, e que embora fosse alto, era um pouco gordo. Ainda assim, não havia uma gota de crueldade em sua expressão.
Agora ele tinha pousado as mãos nos ombros dela, como o seu pai havia feito. Todos observaram atentamente enquanto o delfim beijava as faces de Antonieta segundo a maneira formal de cumprimento.
Os beijos do rei tinham sido cálidos e demorados - beijos de admiração e afeto, mas os lábios do delfim mal tocaram a pele de Antonieta, e ele a liberou como se ela fosse um carvão quente que lhe queimava a pele.
- Vamos agora - disse o rei. - Junte-se a nós em nossa carruagem, e partiremos para Versalhes.
Acomodou-se no coche real, sentada entre o rei e o delfim. O delfim se moveu para o canto mais distante que conseguiu; o rei manteve a perna encostada na dela.
- Minha querida, este é realmente um dos dias mais felizes de minha vida - disse o rei.
- Vossa Majestade é graciosa - murmurou Antonieta.
- E será nosso grande desejo torná-la nossa neta feliz.
- Vossa Majestade é gentil.
- Você está tão feliz quanto eu... quanto o delfim? - indagou Luís.
- Sinto saudades de minha mãe - admitiu.
- Ah! - exprimiu o rei.-A tristeza da separação! Mas a vida é assim, minha querida. O delfim não permitirá que você fique infeliz por muito tempo. Não é verdade, Berry?
Os olhos do delfim estavam fixos, como se ele não tivesse ouvido nada.
- Eu estava dizendo que nosso maior desejo é fazer esta linda criança esquecer que deixou sua mãe. Devemos fazer tudo que estiver ao nosso alcance para fazê-la amar a nós e à França.
- S-sim - concordou hesitante.
O rei deu uma gargalhada e encostou a cabeça na de sua nova neta.
- Perdoe-o, meu bem - disse Luís. - Ele está aturdido com a sua beleza... tanto quanto eu.
E viajando através da França, sentada ao lado do rei, Antonieta sentiu-se tão intoxicada com os olhares de admiração do povo e de muitos homens à sua volta - inclusive o rei -, que teve a impressão de que agora era uma mulher encantadora e irresistível que guardava pouca semelhança com a menina que tão recentemente deixara a Áustria.
A segunda e verdadeira cerimónia de casamento foi realizada na capela de Luís XIV, no Palácio de Versalhes. O sol de maio era filtrado pelos vitrais coloridos e iluminavam a jovem noiva e seu noivo. Maria Antonieta jamais estivera tão bonita quanto parecia agora em suas vestes matrimoniais: era uma criatura de contos de fadas no meio de todos aqueles homens e mulheres vestidos esplendidamente que compareceram à cerimónia. Apenas aos mais nobres foi permitido comparecer. Ao seu lado, o noivo, ofegante e suando profusamente. Ele estava feliz em ver que a noiva não compartilhava seu medo. Ele próprio estava aterrorizado, não com a cerimónia -já se submetera a muitas cerimónias em sua vida -, mas com o momento em que eles seriam deixados juntos na cama nupcial. Ele temia ser incapaz de conseguir o que lhe era esperado.
Enquanto ele deslizava o anel naquele dedo delgado e dava à sua noiva as peças de ouro abençoadas pelo arcebispo de Rheims, que estava conduzindo a cerimónia, o delfim perguntou-se o que iria dizer a ela, como poderia tentar explicar sua inadequação. Que explicação havia? Será que ela entenderia? Seu avô sentiria vergonha dele; todos sentiriam vergonha dele; e ele sentiria vergonha de si mesmo.
Desejava fervorosamente não precisar casar-se. Ele preferia muito mais a companhia de Gamin do que a desta criatura jovem e bonita. Preferia moldar uma peça de ferro do que dançar, preferia ouvir o tilintar da bigorna do que as conversas vazias de pessoas jovens e fúteis.
O arcebispo estava lhes concedendo suas bênçãos, e dois pajens estavam segurando um manto prateado sobre a sua cabeça e a de sua noiva.
O delfim não conseguia prestar atenção à cerimónia religiosa. A noiva decerto estava sentindo que as mãos do delfim estavam úmidas e pegajosas. Ela que era bela e delicada como uma flor primaveril devia estar pensando no quanto o seu noivo era tosco.
Animou-se um pouco ao pensar que talvez conseguisse reunir forças para dizer a ela: Não espere nada de mim... nada... e eu não esperarei nada de você. Não é culpa nossa que eles tenham nos casado.
Mas não. Eles tinham seu dever. Ele tinha sido criado numa dieta de protocolo e sabia que não podia fugir às suas responsabilidades. Se ele fosse qualquer pessoa que não o herdeiro do trono, poderia fazer isso. Mas ele era o delfim; ele precisava produzir filhos para a França. O pensamento o horrorizava.
Sempre soubera que era diferente. Ele invejava o despreocupado Artois, que não possuía tais defeitos.
Tudo que posso fazer é tentar, prometeu a si próprio.
A cerimónia tinha terminado e o rei estava assinando o contrato de casamento.
Agora era a vez de a noiva assinar.
Ela segurou a pluma e se pôs a escrever com dificuldade, como uma criança. Os presentes trocaram olhares. A menina era linda e cheia de graça; mas sua educação devia ter sido negligenciada, considerando que ela parecia considerar o manejo da pena uma espécie de provação.
A ponta da língua apareceu no canto de sua boca enquanto ela se esforçava para escrever:
Maria Antonieta Josefa Jeanne.
Uma mancha de tinta escorreu da pena, e a noiva dirigiu um sorriso apologético ao rei.
Ela tinha estragado a página limpa, mas o olhar carinhoso do rei comunicou que ele estava disposto a perdoar pecados muito piores cometidos por uma jovem tão linda.
Assim, ela sorriu para ele e pensou no quanto era agradável ser assegurada de que era muito atraente. Apenas o seu marido não parecia impressionado com os seus encantos; e isso era estranho.
Os plebeus de Paris vieram a Versalhes para ver o delfim e sua noiva. Eles se aglomeraram nos jardins, encheram as avenidas e molharam seus dedos nos chafarizes.
Determinado a fazer com que o povo lembrasse por muito tempo o casamento de seu neto, o rei providenciou para os seus súditos prazeres que rivalizavam com os providos por seu bisavô Luís XIV
O banquete de casamento foi oferecido no grande salão. A entrada dos plebeus não foi permitida, porque nem mesmo os nobres podiam juntar-se à festividade, embora tenham recebido permissão para assisti-la das galerias. O povo podia apenas olhar através das janelas para todo aquele esplendor, mas para sua diversão especial, o rei providenciara para que todas as fontes fossem ligadas e que assim que anoitecesse fosse realizada uma queima de fogos de artifício capaz de pôr à sombra qualquer coisa que já tivesse sido vista.
Assim, os jardins estavam tão cheios que parecia que toda Paris viera a Versalhes.
Os plebeus estavam deliciados; diziam uns aos outros que nos dias de lê Rói Soleil tinha havido muitos prazeres semelhantes. Aqueles tinham sido os bons tempos. Talvez, quando o velho rei morresse e o novo rei subisse ao trono com aquela noivinha encantadora, a alegria voltasse às ruas da França.
Naquela tarde eles começaram a ansiar pelos dias em que o delfim se tornasse rei. Em vez de delfim Luís , começaram a chamálo de Luís, o Desejado .
O começo da tarde foi quente e ensolarado; o aroma das flores enchia o ar e a água espargida pelos chafarizes e pelas cascatas reluzia ao sol de maio. Mas logo o céu estava coberto de nuvens, e às três da tarde a chuva caiu.
As pessoas olhavam ansiosas para o céu.
- O tempo vai abrir logo - diziam os plebeus uns aos outros enquanto se abrigavam debaixo das copas das árvores.
Mas isso era otimismo, porque logo chovia aos borbotões e as árvores proviam pouco abrigo. Relâmpagos faiscaram e trovões rugiram.
Um final ruim para o dia do casamento, resmungou a plebe.
E logo não restava dúvida de que não haveria queima de fogos nos jardins de Versalhes naquele dia.
Molhados até os ossos, arrasados com a decepção, os plebeus começaram a se retirar dos jardins. No começo da noite a chuva ainda caía, e os jardins de Versalhes estavam desertos; a estrada para Paris estava cheia com carruagens e pessoas a pé.
Mas no grande salão as velas ardiam, os músicos tocavam, e a família real estava sentada ao banquete, sendo observada pela nata da nobreza, reunida nas galerias.
À direita do rei estava Antonieta, jovem o bastante para deliciarse com os alimentos calóricos e exóticos, jovem o bastante para ficar mesmerizada com todo aquele esplendor, mais espetacular do que qualquer coisa que já tinha visto.
O rei demonstrava claramente a sua afeição por ela. Os outros familiares, sentados em volta da mesa, estavam ansiosos por seguir o exemplo de Luís e comunicar a Antonieta o quanto ela era bemvinda. Apenas seu noivo permanecia indiferente, sentado em silêncio ao outro lado de seu avô.
Ela estava muito interessada nos membros de sua nova família. Havia dois cunhados e duas cunhadas jovens; havia as três tias do seu marido: madame Adelaide, madame Victoire e madame Sophie.
Os cunhados de Antonieta pareciam observá-la o tempo todo. O mais velho dos dois contava quatorze anos; ele era Louis Stanislas Xavier, conde de Provence, um menino orgulhoso, que parecia invejar um pouco o seu irmão mais velho. O outro irmão era um menino de treze anos, Charles Phillippe, conde d Artois; mais ladino que Provence, e imensamente deliciado com a festa, conseguia esconder melhor a sua inveja do delfim. Clothilde, a mais velha das cunhadas, era gordinha e feia; Elisabeth, a mais jovem, era muito calada e mais bonita que a irmã. Quanto às três tias, elas eram assustadoras, em parte porque pareciam recatadas demais, em parte porque nada escapava de seus olhos argutos. Antonieta tinha a impressão de estar sendo constantemente vigiada pelas três.
Havia entre os presentes uma pessoa que Antonieta não conseguiu acreditar ser um membro da família real. Era uma mulher dotada de uma beleza ousada e uma gargalhada alta e aguda, que tratava o rei com uma intimidade excessiva. Era a condessa du Barry, e Antonieta não podia entender por que ela - a única pessoa que não pertencia à família real - recebera permissão para sentar-se com eles.
Ela achou difícil conter a pergunta que se formava em seus lábios, e em dado momento começou a perguntar ao rei de que forma madame du Barry era conectada com a família.
Então ela cruzou seu olhar com o de madame Adelaide, e a expressão no rosto dessa dama mostrava tanto alarme que a pergunta morreu em sua garganta; ela percebeu que o delfim estava se mexendo desconfortavelmente na cadeira, e que o jovem Artois parecia estar contendo um acesso de tosse.
Com grande tato, o rei virou-se para ela e pousou a mão sobre a sua.
- Você precisa provar este pudim, minha querida... uma iguaria francesa. Precisamos ensiná-la a compreender os nossos... costumes.
Assim, ela experimentou o pudim, e declarou que ele estava delicioso.
A calma foi restaurada à mesa.
O banquete terminou e a noite caiu sobre o Palácio de Versalhes. Agora chegara o momento que o delfim aguardava com imenso pavor.
O rei colocou a delfina à sua direita e o delfim à sua esquerda, e os conduziu à alcova nupcial.
Foi uma cerimónia solene - tão solene quanto a que se dera na capela de Luís XIV O arcebispo de Rheims abençoou a cama, rezando para que ela fosse frutífera, e espargiu-a com água benta.
A noiva estava enrubescida e ansiosa pelo momento; o noivo estava cabisbaixo e indiferente.
Meu pobre Berry!, pensou o rei, enquanto dava ao seu neto a sua camisa de dormir, enquanto a duquesa de Chartres, na condição de dama casada com conexões reais, dava a Antonieta a sua camisola.
Com tudo pronto para a provação sobre a qual a noiva era completamente ignorante e que inspirava um terror profundo no noivo, eles se aproximaram da cama, e nela deitaram lado a lado duas crianças, a noiva mal tendo completado quinze anos, o noivo ainda por fazer dezesseis -, enquanto as cortinas da cama eram fechadas em torno deles.
No dia seguinte o delfim escreveu em seu diário uma única palavra: Rien - nada.
Não demorou muito para que Antonieta compreendesse que a vida em Versalhes não seria muito diferente daquela no Palácio de Schõnbrunn, porque sua mãe enviara instruções rígidas quanto a como sua educação deveria ser conduzida; ela até mesmo enviara o abade de Vermond, para que sua filha pudesse continuar a estudar com ele. Maria Teresa escrevera ao rei da França dizendo que sua filha era muito nova e que o casamento tinha interrompido sua educação; portanto, ela queria que a jovem vivesse o mais discretamente possível em sua nova casa até ser madura o bastante para encaixar-se em sua posição com graça.
O rei concordara prontamente. Indolente demais para se preocupar pessoalmente com a criação de sua nova neta, estava completamente preparado para permitir que sua mãe continuasse com essa responsabilidade.
O que Maria Teresa não imaginou foi que, embora fosse um trabalho relativamente fácil controlar sua filha em sua própria corte, na corte deslumbrante de Versalhes - onde os amours eram a ordem do dia e o reflexo do esplendor que agraciara a corte do Rei Sol ainda permanecia - a jovem estava destinada a considerar a vida planejada para ela extremamente tediosa.
Intrigas fervilhavam ao seu redor.
Ela logo descobriu isso quando, na manhã depois da noite de núpcias, foi visitada por suas três tias, LesMesdames , como eram chamadas por toda a Corte.
Madame Adelaide, a mais velha das três filhas não casadas de Luís XV, era claramente a dominante; madame Victoire era gentil mas neurótica e pronta a entrar em pânico diante da menor dificuldade; madame Sophie era a mais feia das três e, estando constantemente ciente disso, muito tímida. As duas irmãs mais novas viviam sob forte influência da mais velha, e as três quase sempre estavam em companhia uma da outra. A Corte inteira, seguindo o exemplo do rei, estava inclinada a tratá-las com ridículo. Eram princesas para quem não se havia encontrado maridos; estavam na meia-idade e não podiam ser consideradas atraentes; e tinham sido estúpidas a ponto de se juntarem contra as amantes do rei. Essa tinha sido uma atitude insensata, e elas tinham sofrido as consequências.
Eram pias e conservadoras, e Adelaide, incapaz de não se envolver em intrigas palacianas, carregava as irmãs consigo.
Madame Adelaide tinha desaprovado profundamente o casamento com a Áustria e estava determinada a odiar Antonieta. Mas, como ela disse às irmãs:
- Precisamos esconder isso, porque através dessa criança poderemos descobrir muita coisa.
E assim foram juntas visitar a recém-chegada, enquanto ela estava estudando com o abade de Vermond, perguntando-se que diferença havia entre ser delfina da França em vez de arquiduquesa da Áustria.
As tias entraram sem cerimónia: Adelaide primeiro, Victoire em seguida, Sophie por último.
O abade se levantou ao ver as princesas. Fez uma mesura baixa, mas elas o ignoraram.
Antonieta também se levantou; fez uma leve mesura, e Adelaide deu-lhe um tapinha carinhoso na face.
- Viemos prestar nossos respeitos à nossa pequena delfina anunciou Adelaide.
- Obrigada, mesdames - replicou Antonieta.
Adelaide curvou a cabeça em reconhecimento ao agradecimento. Victoire fez o mesmo, e alguns segundos depois Sophie imitou-as. Essas três damas de meia- idade muito parecidas entre si, paradas ali meneando as cabeças, pareciam tão estranhas que Antonieta precisou conter a vontade de rir.
Adelaide virou-se para o abade; ela não disse nada; apenas dirigiu-lhe um olhar arrogante.
- Deseja ficar a sós com a delfina, madame? - perguntou o abade.
Adelaide meneou a cabeça, enquanto as outras duas imitavam a expressão arrogante da irmã.
O abade fez uma mesura e as deixou. Ele tinha sido alertado a ser muito cuidadoso para não ofender o protocolo francês.
- Agora que o homem se foi, você pode nos chamar de tantes, Eu sou tante Adelaide, querida menina.
- E eu sou tante Victoire - disse a segunda.
- E eu sou tante Sophie - murmurou a terceira.
- Minhas queridas tias, sejam bem-vindas.
E Antonieta, mantendo-se na ponta dos pés, beijou-as por ordem decrescente de idade.
- Isso é encantador - disse Adelaide. Victoire e Sophie ecoaram:
- Encantador!
- Encantador!
- Vamos ser amigas... amigas muito próximas-disse Adelaide. Antonieta flagrou-se olhando para as outras para ver a confirmação que ela esperava.
- Foi por causa disso que viemos vê-la imediatamente-prosseguiu Adelaide.
- Antes que outros a contaminassem - colocou Victoire.
- Calada, Victoire! - ralhou Adelaide. - Mas sua tante Victoire não está errada, criança. Há muito mal na Corte da França. Você é uma menina boa e virtuosa. Posso ver isso.
Mais uma vez Antonieta relanceou os olhos para as outras. Elas assentiram, implicando que também consideravam-na uma menina boa e virtuosa.
- E você, minha querida, já começou a descobrir um pouco desse mal durante o banquete.
As outras casquinaram uns risinhos irónicos, mas Adelaide calou-as ao levantar a mão em sinal de alerta. Antonieta estava fascinada com a forma com que as outras duas obedeciam imediatamente à sua líder. Elas ficaram sérias imediatamente.
- Você estava curiosa em relação àquela criatura rude que teve a audácia de sentar- se à mesa conosco.
- Sim. Quem é ela?
- É conhecida como a condessa du Barry.
- E é uma integrante da família real?
- Uma integrante da família real! Claro que não. O rei, nosso pai... e embora seja nosso pai, nós dizemos isto porque sempre encaramos a verdade por mais feia que ela seja... o rei tem hábitos estranhos. Ele tirou essa criatura da sarjeta, e agora compartilha sua vida com ela. Você sabe o que estamos querendo dizer?
- Ela... vive como um membro da família?
- Como seu membro mais importante.
- Mas se ela é... como vocês dizem? Vulgar? Se ela é vulgar, como o rei gosta tanto dela?
- Os homens são fracos - disse Adelaide. E suas irmãs assentiram em concordância.
Antonieta olhou estarrecida de uma para a outra de suas três tias, que continuavam assentindo vigorosamente.
- Essa mulher compartilha a cama do rei... como você compartilha a do delfim- disse Victoire, rapidamente colocando a mão na boca.
As sobrancelhas de Adelaide se levantaram, e ela pareceu muito zangada.
- São duas coisas completamente diferentes - asseverou Adelaide. - Nossa pequena delfina é casada com Berry. Aquela mulher... ela não é casada com nosso pai.
- Então ela é... - começou Antonieta.
Adelaide colocou os dedos sobre os lábios. Ela aproximou o rosto da orelha de Antonieta. Antonieta olhou para a pele cinzenta e enrugada por baixo dos olhos estreitos e argutos, e sentiu um arrepio.
- Uma meretriz! - sussurrou. E então empertigou-se antes de prosseguir: - Mas não falemos sobre isso. É chocante demais. Fico feliz por estarmos aqui para protegê- la de coisas más. Nossa irmã Louise é irmã carmelita. Ela frequentemente declara que o rei pagará na próxima vida se não desistir dessa mulher. Mas ainda iremos derrotá-la. Ela nos odeia... porque ela é maligna e nós sempre levamos vidas virtuosas. Viemos aconselhar você, minha querida.
- Não deixe aquela mulher se aproximar de você!-esganiçou Victoire.
- Como ela fará isso? - perguntou Sophie.
- Ela precisa ignorá-la a todo custo - disse Adelaide. E novamente se dirigindo a Antonieta: - Seja fria com ela. Não confie nela. Se deseja confiar em alguém, lembre que suas três tias sempre estarão ansiosas por ajudá-la.
- Vocês são muito gentis - disse Antonieta. As três assentiram em uníssono.
- Não esqueça. Se você se vir em dificuldades, venha falar com tante Adelaide.
- E tante Victoire. Por favor, não esqueça de tante Victoire.
- E tante Sophie - sussurrou a tia mais jovem.
- Afinal de contas, somos todas tias do pobre Berry - emendou Adelaide.
- Por que o chama de pobre ? - perguntou Antonieta.
- O rei, nosso pai, sempre o chama de Pobre Berry - disse Victoire.
- Ele sempre foi um menino tranquilo - sussurrou Adelaide.
- Não é como os irmãos dele. Sempre foi tímido... e nunca quis brincar com os outros meninos.
- Ele nasceu desse jeito - disse Victoire. - Sempre calado, sempre fechado. Pobre Berry!
- O pai de Berry morreu quando ele tinha onze anos - prosseguiu Adelaide. - O pai dele foi um homem maravilhoso. Se não tivesse morrido, tudo teria sido muito diferente. - Como se houvessem ensaiado, as três tias enxugaram os olhos ao mesmo tempo.
- Mas ele morreu de tuberculose quando ainda era muito novo.
Ele disse Eu estou morrendo sem ter desfrutado de nada, e sem ter feito bem a ninguém.
- Ele tinha trinta e seis anos - disse Sophie. Adelaide prosseguiu:
- Aconteceu de repente, e sua esposa o seguiu logo à sepultura. Ela sofreu da mesma doença... e aquelas pobres crianças ficaram órfãs.
- Elas tinham suas tias - disse Victoire com um tique nervoso.
- Sim, elas tinham a nós. Nós fomos mães... mães... desses três pobres órfãos.
- Então eles não foram tão desafortunados-disse Antonieta.
- Em lugar de uma mãe, tiveram três.
- É verdade. Os dois irmãos mais velhos de Berry morreram. Bourgogne tinha nove anos ao morrer, e Aquitaine não mais de cinco meses.
- Assim, isso fez de Berry o delfim - disse Victoire.
- Pobre Berry! - cantarolou Sophie.
- O pai dele supervisionou sua educação - acrescentou Adelaide, determinada a dominar a conversa. - Ele o fez trabalhar duro. Ele gostava de livros. Eu não sei como ele foi parecer tão boçal. Talvez tenha sido porque os irmãos dele são muito tagarelas e alegres... particularmente Artois. Você não achou Artois bonito? Mas eu sei que achou. Eu a vi olhando para ele.
De repente havia um brilho maléfico nos olhos de Adelaide.
- Sim, eu vi você olhando para Artois. É verdade que ele é mais jovem que o irmão, mas não muito mais jovem que você. Você estava desejando que Artois fosse o delfim, não estava? Você estava desejando que o arcebispo espargisse água numa cama que você fosse compartilhar com Artois, não é mesmo?
Antonieta recuou o corpo, sentindo que a conversa deixara de ser amistosa.
- Estou muito satisfeita com o marido que tenho - disse com firmeza. - Não quero nenhum outro.
As tias trocaram olhares rápidos, e Adelaide prosseguiu, esbaforida:
- Eu sabia. Disse isso apenas para mexer com você. Foi apenas uma brincadeira, minha querida. Você vai descobrir que os franceses amam uma boa piada. Eu estava lhe contando sobre o pobre Berry, que é sempre tão quieto. Ora, quando ele era apenas um menininho, eu o chamei não sei quantas vezes ao meu apartamento e gritei para ele: Vamos, meu pobre Berry! Aqui você pode ficar à vontade. Fale, grite, faça algum barulho. Eu lhe dou carte blanche para isso. Mas ele fazia alguma dessas coisas? Não, não, não!
As outras duas balançaram suas cabeças, tristemente. Victoire disse Não, não, não , e Sophie Pobre Berry .
- Artois, é claro, é o mais brilhante. Ele já flerta, o mau menino. O completo oposto de Bérry.
- O Berry foi quieto assim ontem à noite, quando as cortinas foram fechadas? - perguntou Victoire.
As três fitaram ansiosas a jovem delfina.
- Pobre Berry - disse Adelaide, significativamente. - Temo que tenha sido.
Victoire começou a rir, mas foi silenciada por sua irmã mais velha.
- Você deve nos procurar sempre que precisar de conselhos ou qualquer outra coisa - disse Adelaide. - Nunca esqueça que somos as suas tias queridas que te amam e que querem que você seja feliz em seu novo lar. Se você estiver preocupada com alguma coisa... qualquer coisa... procure-nos. Se você achar Berry... estranho... conte-nos, e falaremos com ele. Lembre que fomos como mães para o rapaz. Criança, não há mais ninguém em quem você possa confiar tanto quanto em nós.
- Agradeço do fundo do meu coração - disse a delfina graciosamente.
Uma de cada vez, as tias a beijaram e se prepararam para sair.
- Não esqueça de uma coisa: jamais se envolva com aquela mulher depravada, aquela du Barry - aconselhou mais uma vez Adelaide. - Se o fizer, todos na Corte pensarão que você é tão pecaminosa quanto ela. Os cortesãos irão acusá-la de amar Artois de Provence mais do que ao seu marido.
- Mas por quê? - indagou Antonieta.
- Porque ela é depravada, e as pessoas achara que as iguais sempre andam juntas - assegurou-a Adelaide.
E então saíram, deixando Antonieta pensativa. E quando o abade de Vermond voltou para prosseguir a lição, a aluna foi mais desatenta do que nunca.
Os membros jovens da família estavam muito interessados em Antonieta, e ela foi recebida com deleite na ala infantil real. Ela parecia ter a mesma idade que as crianças, mas também detentora da dignidade de estar casada.
A pequena Elisabeth, uma menininha muito calma de seis anos, ficou encantada com Antonieta. Ela insistia em tocar os cabelos de sua nova irmã.
- São da cor do ouro - disse Elisabeth.
Antonieta desabrochou sob os olhares admiradores de seus novos parentes.
- Você tem irmãos e irmãs? - perguntou Clothilde, de sete anos.
- Sim, mas sou a mais nova. Eles não ficavam muito comigo.
- Nós não ficaremos juntos para sempre - disse Clothilde.
- Deveremos casar algum dia.
Seu irmão Artois, magro e elegante, que herdou menos que os outros a aparência de sua avó polonesa e sua mãe alemã, e era muito mais francês do que elas, tinha vindo admirar a recém-chegada.
- Você jamais conseguirá marido, Clothilde - disse ele. Está gorda demais... Ela não está, querida irmã?
Os olhos brilhantes e alertas de Artois estavam sorrindo para os de Antonieta, e ela retribuiu o sorriso.
- Ela ficará mais magra à medida que crescer.
- Talvez ela fique como as tias quando crescer - disse Provence.
- Não vou ficar, não vou ficar! - gritou Clothilde, indignada.
- Prefiro morrer a ser como as tias.
- Você jamais será como elas - disse Elisabeth. - E terá muitos maridos.
- Elisabeth, não diga besteira! - ralhou Provence. - Ela não sabe que um único marido é tudo o que uma mulher virtuosa deve querer.
- Talvez eu não venha a ser virtuosa - disse Clothilde.
- Você vai ser - disse Artois. - Por necessidade. É gorda demais para não ser virtuosa.
- Não provoque a sua irmã - admoestou Antonieta.
- Mas é verdade - disse Artois. - Você sabia que na Corte eles chamam Clothilde de Gros Madame?
Clothilde deu com os ombros e riu. Era evidente que ela não estava excessivamente preocupada com sua corpulência.
- E como vai sua vida aqui na França, irmã? - perguntou Provence.
- Todos são muito gentis - disse Antonieta, cautelosa.
- Mas você está desapontada-insistiu Artois.-Vamos, você não precisa de cerimónias conosco. Diga exatamente o que pensa de nós.
- Não é que eu esteja desapontada. Mas a vida aqui é muito parecida com a que eu levava em minha casa. Ouço as mesmas lições. - Ela fez uma careta que fez todos rirem. - Não devo fazer isto, não devo fazer aquilo. Madame de Noailles não se cansa de me dizer que uma delfina não deve se comportar como uma moleca. Existem mais regras para uma delfina do que para uma arquiduquesa, e eu achei que iria me livrar.
- Achou que iria de livrar do quê? - perguntou Artois.
- Do protocolo e da necessidade de fazer o que me mandam. Eu queria fazer coisas ousadas...
- Como ir a Paris vestida como uma lavadeira? - perguntou Artois.
Maria Antonieta fez que sim com a cabeça.
- Eu quero muito ver Paris. Estou aqui na França e nunca vi Paris.
- Ah, vai haver uma incursão formal - informou Provence.
- Você é a delfina e será acompanhada por pajens e soldados, e recebida com música. O povo espera esse tipo de coisa.
- Eu entendo, mas isso é tão tedioso! Eu estou aqui em Versalhes, e preciso aprender minhas lições de protocolo... protocolo... protocolo. Dizem-me continuamente: na França deve-se fazer isto... não se deve fazer aquilo. Você deve fazer uma mesura assim para certa pessoa, mas para outra pessoa, de título mais elevado, será necessário uma mesura mais profunda. E me perdoem, mas acho algumas das coisas quê vocês fazem em nome do protocolo um pouco bobas.
- Nós também achamos - concordou Artois. - Mas precisamos fazê-las. Já falou sobre isso com Berry?
- Vejo Berry muito pouco... exceto quando vamos para a cama. Os irmãos trocaram olhares, e seus lábios esboçaram sorrisos.
- E seus encontros com Berry são... aprazíveis? - perguntou Artois.
- Fique calado - disse Provence.
- Entenda, nós também vemos muito pouco o nosso irmão posseguiu o ousado Artois. - Ele se tranca com os seus livros, e também tem o seu querido ferreiro.
- Eu já percebi que ele é inteligente - disse Antonieta.
- Eu não acho muito inteligente negligenciar uma esposa como você - disse Artois ousadamente.-Acho isso uma insensatez... ainda que ele seja agradável por trás das cortinas da cama.
- Você não devia falar assim do delfim - disse Antonieta, lembrando subitamente de sua dignidade. Então sorriu para mostrar que não estava magoada.
- Berry é sempre quieto - disse Clothilde.
- Eu amo o pobre Berry - disse-lhe Elisabeth.
- O vovô fica triste quando pensa nele - disse Provence. O vovô tenta não pensar em coisas que o deixam triste, e é por causa disso que ele pensa tão pouco em Berry.
- Berry se sente mais feliz entre plebeus que com sua família e os nobres da Corte - acrescentou Artois. - Sempre foi assim. Quando conversa com Gamin ele se sente completamente à vontade. Mas conosco... ou com o vovô... ele quase nunca tem o que dizer.
- Ele fica muito triste quando vê as pessoas pobres nas ruas
- disse Clothilde, pensativa. - Quando pode fazer isso sem que ninguém saiba, ele dá dinheiro aos pobres.
- Então ele é bom - declarou Antonieta.
- Então o seu marido a satisfaz, madame. - disse Artois. E se eu lhe dissesse que, neste exato momento, em vez de procurar a sua companhia, ele está se entretendo com operários em seu apartamento? Ele está construindo uma nova parede, e é nisso que ele está trabalhando com os homens. Quando a nova parede estiver pronta, ele irá derrubá-la e construir outra. O que ele quer realmente não é uma parede. O que ele quer é desfrutar do prazer de trabalhar com as mãos, coisa da qual ele gosta tanto. Ele também gosta de conversar com os homens.
- Vamos lá ver como está o trabalho - sugeriu Provence.
- Acha que devemos? - perguntou Antonieta.
- Madame de Marsan mandou-nos entreter a delfina na ala infantil, e nos proibiu de sair do apartamento-lembrou Elisabeth.
Artois disse, com ares de superioridade:
- Então você fica, irmãzinha, já que sente medo da sua gouvemante.
- Ela vai ficar zangada se desobedecermos.
- Duvido que não exista um protocolo para visitar o apartamento do delfim enquanto ele está com operários-disse Antonieta.
- Nesse caso, não há nada que eu deseje mais do que visitar o delfim e seus operários.
Os dois cunhados riram, aprovando.
- É um pecado amarrar alguém como você com protocolosdisse Artois baixinho, aproximando-se dela e pousando uma mão em seu braço.
- Madame de Noailles é uma boa mulher, eu não duvido disse Antonieta. - Mas ela não pensa em nada além de convenções. - Eu a chamo de madame Etiqueta. Venham, vamos lá ver o delfim e seus homens trabalhando. - Ela segurou a mão de Elisabeth. - Se a sua gouvemante ralhar, direi a ela que você veio sob minhas ordens.
- Vamos ficar aqui e dançar - disse Artois. - Você sabe as danças francesas, querida irmã?
- Ensinaram-me como dançá-las.
- Vamos tentar um ou dois passos.
Como sempre gostava de dançar, Antonieta permitiu a Artois que segurasse sua mão e a conduzisse até o meio do apartamento. Clothilde estendeu a mão para Provence, que a fitou com severidade, seus olhos ficaram tristes enquanto ela observava seu irmão e sua cunhada. Eles faziam um belo par. Clothilde bateu palmas e gritou:
- Os seus passos combinam perfeitamente!
- Você acha que pratico as danças daqui como uma francesa?
- perguntou Antonieta ao parceiro.
- Você dança com mais perfeição do que qualquer pessoa, francesa ou não, que eu já vi.
- Você me lisonjeia, irmão. Em seguida dirá que falo francês perfeito.
- Mas o francês que você fala é mais encantador do que qualquer outro, porque ninguém fala igual a você.
- Já fui muito recriminada por falar mal.
- Então aqueles que a recriminaram também merecem recriminação. Eu prefiro ouvir seu francês ao francês falado por qualquer nativa.
Eles sentiram uma leve tensão entre as outras crianças, que tinham se calado.
Antonieta virou-se e viu que uma mulher tinha entrado no apartamento. Ela estava dizendo a Provence:
- Perdão, milorde. Pensei que iria encontrar madame de Marsan.
- Eu não sei onde ela está - disse Provence, arrogante. A mulher se retirou.
Artois conduziu Antonieta de volta ao grupo.
- Ela veio espionar, claro - disse ele.
- Espionar? - disse a delfina. - Mas espionar o quê?
- Mon Dieu, sei lá o quê - disse Provence.
- Ela é uma das mulheres das tias - acrescentou Artois. Elas nos espionam continuamente, e obviamente sabiam que você estava aqui. Como esposa do herdeiro do trono, você é duas vezes mais merecedora de ser espionada.
- Está dizendo que elas dirão que nós não devíamos dançar... que ofendemos o poderoso Protocolo com nossa dança?
- Não duvido que dirão isso. E você e eu dançamos juntos... e isso fará com que elas balancem suas cabeças velhas e mofadas, e Loque, Coche e Graille murmurarão que o que fizemos foi muito escandaloso.
- Quem são esses?
- Loque, Coche e Graille? Ah, é assim que o nosso avô chama as três. O seu francês não é bom o bastante para você entender, irmã? Loque significa farrapo, Coche é uma porca velha, e Graille é uma gralha. Com isso você pode ver o que Sua Majestade o rei pensa de suas três filhas!
- Ele não parece empregar o protocolo ao falar sobre elas comentou Antonieta com uma risadinha. - Os nomes lhes fazem jus. Mas eu não devia dizer isso, porque elas foram gentis comigo.
- Gentis! Com toda certeza, elas interrogaram você. Devem ter feito muitas perguntas sobre você e Berry. Isso não é gentileza. Tante Adelaide não sabe ser gentil. Quanto a Victoire, ela é uma estúpida, e Sophie é outra. Elas fazem tudo que Adelaide manda.
- Não estou mais com humor para dançar - disse Antonieta.
- Vamos ao apartamento do delfim ver a construção da parede.
Os homens estavam ocupados trabalhando no apartamento do Delfim, e Antonieta levou alguns segundos para reconhecer um deles como seu esposo. Quando entraram ele estivera conversando naturalmente com os homens, gritando ordens, dando conselhos. Ele segurava um balde, e seus cílios estavam brancos com um pó que também impregnara suas roupas. Assim que ele viu os membros de sua família, uma mudança sutil se processou nele.
- E então, Berry, você se tornou um operário - disse Artois.
- Ah, sim - balbuciou o delfim. - Eu queria que este trabalho fosse feito e eu... pensei que deveria supervisioná-lo pessoalmente.
- Muito inteligente da sua parte.
- Não há inteligência nenhuma nisso. Veja, eu queria uma partição aqui, e então mandei que as tábuas do soalho fossem retiradas e substituídas. Ainda temos muito trabalho a fazer aqui.
Provence bocejou.
- Que sujeira! - murmurou.
- Acho que a atmosfera aqui me sufoca. Berry, por que você não dá instruções e deixa esses sujeitos fazerem o trabalho duro?
O delfim não respondeu. Clothilde disse:
- Nós estávamos dançando, Berry. Por que não vem dançar conosco?
- Ele prefere ficar aqui - disse Elisabeth. Ela estava sorrindo com grande afeto pelo irmão mais velho. - É mais interessante fazer alguma coisa do que dançar, não é, Berry?
- Mas dançar também é fazer alguma coisa - insistiu Artois.
- É fazer prazer para si próprio e sua parceira.
- O prazer de construir muros dura mais do que o de dançar
- comentou Clothilde.
- Como você pode dizer quanto tempo um prazer dura? inquiriu Artois. - Ele pode permanecer na memória. Quanto aos muros erigidos pelo meu irmão... eles duram até que ele os derrube, porque ele sempre quer começar a construí-los de novo.
Enquanto eles conversavam, um dos operários caiu de sua escada; ele deixou escapar um grito de alarme e então ficou deitado, silente, no chão.
Antonieta correu até o homem e se ajoelhou ao seu lado enquanto seu vestido de seda se arrastava pelo pó e pela sujeira.
- Ele está muito ferido. - Ela gritou: - Traga-me um pouco de água quente, Elisabeth. Preciso lavar o seu ferimento. Acho melhor chamar um médico.
- Você está estragando o seu vestido - disse Artois. - Vamos embora. Mandaremos alguém vir tratar do homem. Você não deve fazer isso.
- Então eu devo deixar que ele sangre até a morte porque salvá-lo contradiz o protocolo? - gritou Antonieta, a voz carregada com escárnio. - Não, eu vou fazer o que quero. Traga-me bandagens e água quente. Você, Clothilde. Você, Elisabeth.
O delfim ajoelhou ao lado de Antonieta, e enquanto fez isso, o homem abriu os olhos.
- Ele não está muito ferido - disse o delfim a Antonieta. E então falou ao homem: - Está tudo bem.
Antonieta notou o quanto a voz do delfim era calmante, e a forma como o homem olhou-o com afeição.
- Sinto muito, senhor - disse o operário. - Não sei como aconteceu. - Devo ter escorregado.
- Madame La dauphine está preocupada - disse-lhe o delfim.
- Ela teme que você tenha se machucado seriamente.
- Madame... - começou o homem, esforçando-se para se levantar - ...estou honrado...
Ele estava fraco demais para ficar em pé, e o delfim segurou-o em seus braços fortes.
- Está vendo? Você ainda está tonto.
- Deixe ele se sentar aqui... com as costas apoiadas nesta peça de mobília - sugeriu Antonieta.
- Ele teme que não possa sentar-se em sua presença - explicou seu marido.
- Que bobagem!-Ela soltou sua risada alegre e espontânea.
- Eu suponho que se um francês estiver morrendo ele deve lembrar do protocolo, porque na França o protocolo é mais importante que a vida e a morte.
O delfim riu junto com ela. Era evidente que estava feliz por tê-la com ele.
Elisabeth e Clothilde voltaram com bandagens e água.
- O ar aqui me sufoca! - disse Artois com uma expressão repugnada.
- Venha - disse Provence. - Não podemos fazer nada aqui. Clothilde! Elisabeth! Voltem para os seus apartamentos.
As menininhas, que queriam ficar e observar o comportamento estranho da delfina, olharam sequiosamente para seu irmão mais velho; mas ele não as viu; estava observando os dedos ágeis de sua esposa enquanto ela limpava o ferimento. As duas meninas não podiam fazer nada senão obedecer às ordens de Provence.
- Pronto! - disse Antonieta. - Afinal de contas não era um ferimento muito grave. Sente-se melhor?
- Sim, graças à senhora, madame.
Os olhos do homem estavam arregalados com pasmo por essa criatura belíssima tê- lo tratado com tanto cuidado.
- Agora você deve descansar um pouco - comandou.-Não deve continuar o seu trabalho.
- É verdade-disse o delfim.-Hoje não trabalharemos mais. Os homens se curvaram e saíram, deixando o delfim e sua esposa juntos.
Quando estavam a sós, o delfim disse:
- Você foi tão rápida. Soube logo o que devia fazer e fez. Eu... esperei tempo demais. Quando vi que ele tinha caído, eu... não tive certeza do que fazer.
- Sempre me dizem que é errado agir sem pensar. Minha mãe vivia ralhando comigo por causa disso.
- Desta vez foi certo. - Ele estava fitando-a com um olhar sonhador.
Antonieta baixou os olhos para suas mãos e as marcas no vestido. Fez uma careta.
- Preciso trocar de roupas - disse ela.
- Ainda não - implorou o delfim.
- Ainda não? - ecoou ela. - Então não devo deixar que ninguém me veja, porque se me virem nestas condições, certamente irão me repreender.
- Antonieta... - disse o delfim. - Você está... você está feliz aqui?
- É isso que todos eles me perguntam. Sim, estou feliz. Mas a França não é como eu pensava. Eu pensei que teríamos bailes e festas todas as noites. Mas o que acontece? Levanto às nove e meia ou às dez, visto-me e digo minhas preces. Então alguém seca o meu cabelo. Depois é hora da igreja, e vamos à missa. Almoçamos enquanto somos observados pelas pessoas, mas todos comemos muito depressa e isso acaba logo. Então eu me retiro para o meu quarto, onde faço meus bordados. Então o abade vem para me passar lições. À noite jogo cartas com as tias. Então esperamos pelo rei, e passamos um pouco de tempo com ele. Em seguida, a cama. E é só. É chato. Não é nada diferente da vida que eu levava em Viena.
- Você ainda não viu Paris - disse ele. - Há muita alegria em Paris.
- Por que ainda não vi Paris? Quero ver Paris.
- Providenciarão isso um dia desses. Ela bateu os pés, impaciente.
- Mas eu quero agora... agora.
- Você não pode ir sem o consentimento do rei.
- E não podemos obter o consentimento do rei?
- As nossas tias são contra isso.
- As tias! Mas por quê?
- Elas acham que você é jovem demais.
- Mas ele não devia ligar para as opiniões delas.
O delfim pareceu desconfortável. Ficou calado por alguns segundos, e então disse:
- Antonieta... você... a sua mãe... conversou com você antes de vir para a França?
- Ela sempre falava comigo, e agora sempre escreve para mim. Ela me diz tudo que devo fazer. Quando quero saber alguma coisa, escrevo para ela. É como se ela ainda estivesse comigo.
- Ela... falou com você sobre... nós... sobre nosso casamento... sobre o que você precisa fazer... o que você deve esperar?
- Ah, sim. Ela disse que preciso ter filhos... e logo... porque é isso que é esperado da delfina da França.
Uma expressão de horror furtivo se instaurou lentamente no rosto dele. Antonieta aproximou-se dele e, fitando seus olhos, sussurrou:
- Você gosta de mim, não gosta, Berry?
- Sim - disse Berry, olhando com tristeza para o muro ainda não terminado. - Gosto muito de você.
Quando se virou, o delfim viu que ela tinha corrido até a porta subitamente e a abrira.
Parado no lado de fora estava um homem. Ele fez uma mesura, parecendo decididamente constrangido de ter sido pego daquele jeito.
Antonieta disse, imperiosa:
- Quem é este, Berry?
- Ora...-balbuciou o delfim. - É monsieur de La Vauguyon. Queria me ver, monsieurl
- Queria saber, senhor, como o trabalho está indo.
- Está indo bem, senhor, mas tivemos um pequeno acidente e decidimos que não trabalharemos mais hoje.
- Não creio que precisemos da sua presença aqui, monsieur de La Vauguyon - disse Antonieta. - Embora eu preferisse vêlo parado à nossa frente do que do outro lado de uma porta fechada.
O homem pareceu estarrecido, e o delfim confuso. Mas depois de uma breve hesitação, monsieur de La Vauguyon fez nova mesura e se retirou.
Antonieta virou-se para o esposo.
- Ele estava ouvindo por trás da porta. Você sabia disso?
O aceno lento do delfim disse-lhe que ele achava que isso era possível.
- Por que você não demonstrou sua raiva?
- Ele é meu tutor.
- Isso lhe dá o direito de ouvir atrás das portas?
- Não... claro que não.
- Então estamos de acordo que esse monsieur de La Vauguyon é um homem insolente.
- Ele... ele é meu tutor - reiterou o delfim.
Antonieta olhou para ele, intrigada; e nesse momento nasceu dentro dela uma ternura por esse rapaz com quem tinha se casado.
Ele era muito tímido, temeroso de muitas coisas. Ela concluiu que ele era assim porque seu avô o mantinha afastado dos assuntos do reino; era assim porque todos sempre o chamavam de Pobre Berry; e também era assim, por algum motivo, graças àquele odioso monsieur de La Vauguyon que escuta por trás de portas.
Maria Antonieta era feroz em seus ódios e amores. Ela agora estava pronta para amar o tímido delfim e odiar todos aqueles que tinham sido responsáveis por incutir-lhe medo... do que, ela não tinha certeza.
Haviam transcorrido dois anos desde o casamento de Maria Antonieta, e ela ainda levava uma vida tranquila no Palácio de Versalhes. E ainda não visitara a capital.
Sua vida obedecia a certos padrões, governada por madame de Noailles, sua primeira dama de companhia, cuja única grande paixão na vida era a observação de convenções. Madame Etiqueta enfurecia a menina e deixava-a determinada a agir de forma anticonvencional sempre que possível.
Cartas chegavam regularmente de sua mãe. Maria Teresa estava observando a carreira de sua filha de longe. O conde de MercyArgenteau, embaixador de Maria Teresa na Corte francesa, considerava um de seus deveres mais importantes espionar a menina e reportar à mãe cada detalhe trivial de sua vida diária. Antonieta estava ciente de que se encontrava sob vigilância constante, porque muitas vezes recebia uma reprimenda ou um conselho relativo a algum incidente que ela acreditara não ter sido notado por ninguém.
Todas as manhãs Antonieta precisava ir à missa, precisava visitar as tias na companhia de seu marido; precisava manter uma correspondência regular com a mãe. Ela estava bordando um colete para o rei, que ela temia que ia levar anos para completar, pois odiava sentar-se por muito tempo com sua agulha. Ela preferiria correr pelos jardins com seus cães, mas madame Etiqueta estava sempre no seu pé, admoestando-a:
- Madame La dauphine, não condiz com uma dama em sua posição...
Que rotina cansativa! Prestar reverências enquanto caminhava soberbamente pelos jardins - um sorriso brilhante para uma duquesa porque ela tinha sangue real nas veias, um aceno indiferente para um indivíduo mais humilde; e obviamente ela precisava aprender a olhar para algumas pessoas como se elas não existissem.
- Você deve fazer isto; você deve fazer aquilo.
Ela ouvia imposições de todos os lados. Ela gostava de cavalgar; mas Mercy escrevera para sua mãe a respeito dos perigos que a atividade impunha a alguém tão jovem. Dizia-se que cavalgar estragava a compleição e aumentava o peso. A impulsiva jovem delfina apelara ao esposo por uma permissão para cavalgar. Ele hesitara antes de explicar, com a dificuldade que lhe era habitual: ele não queria impedir seu prazer, ele apenas não queria contradizer a vontade de sua sogra.
- Então, se outros permitirem que eu cavalgue, você concordará com eles?
Ele admitira que concordaria; e ela providenciou isso com seu consentimento.
Na vez seguinte em que se viu com o rei, Antonieta pediu-lhe seu consentimento para cavalgar, e Luís odiava recusar qualquer coisa a jovens bonitas, e como nunca o fazia quando o que lhe pediam podia ser dado sem qualquer custo para ele, concordou que ela podia cavalgar quando quisesse.
Mas ainda assim Maria Teresa protestou. Ela ouvira que a beleza era de grande importância na Corte francesa e, através de Mercy, proibiu sua filha de cavalgar qualquer coisa, menos o jumento mais calmo.
O poder de Maria Teresa sobre a juventude de sua filha havia sido tamanho que Antonieta não conseguia escapar dele, mesmo depois de dois anos de ausência.
Ela cavalgou seu jumento e em uma ocasião, quando caiu dele e todos que estavam com ela correram para ajudá-la, ela se sentou na grama e declarou:
- Vocês não podem me tocar. Devem deixar-me aqui no chão enquanto aguardamos por madame de Noailles, que irá mostrarlhes a forma correta de levantar uma delfina que caiu de um jumento.
Desde o começo foi completamente evidente que a jovem delfina não aceitava de bom grado as imposições das autoridades e das convenções.
Através de Mercy, chegaram a Maria Teresa notícias de que sua filha tinha esnobado certos nobres de nacionalidade alemã que visitaram a Corte.
Maria Teresa escreveu à filha:
Rogo-lhe que não se envergonhe de ser alemã. Você demonstra essa vergonha com sua gaúchem para com alemães. Há sangue alemão em suas veias, e você deve aceitá-lo e sentir-se orgulhosa dele.
Maria Antonieta era fonte de grande ansiedade para sua mãe e de alguma diversão para a Corte. Era uma jovem impulsiva que muitas vezes agia de maneira inesperada. A bondade de seu coração sempre estava pronta para conduzi-la a problemas. Certo dia, durante uma caçada com a família real, um plebeu foi ferido por um cervo; Antonieta correu ao seu resgate e, para o choque de todos, insistiu em levá-lo em sua carruagem até o casebre onde morava. Em outra ocasião, um de seus postilhões foi ferido por um cervo, e foi ela quem mandou chamar o médico e permaneceu ao lado do postilhão, acalmando-o até que a ajuda chegasse.
As pessoas ouviam essas histórias e diziam:
- Como é encantadora essa pequena delfina. Será muito feliz o dia em que ela se tornar rainha da França.
Contudo, também surgiram alguns assuntos de natureza mais grave, e nos quais ela mergulhou de forma impulsiva.
Quando Maria Antonieta chegou a Versalhes, havia dois partidos opostos na Corte. Um era liderado pelo duque de Choiseul, que era o primeiro-ministro do rei; o outro era liderado pelo duque d Aiguillon, que aspirava a esse cargo. Choiseul, embora não fosse de forma alguma bonito, era um homem de grande charme, e como tinha providenciado o casamento do delfim, havia conquistado a simpatia de Antonieta. Choiseul recusava submeter-se ao domínio de madame du Barry, e já fazia muito tempo que essa mulher decidira pôr fim à sua carreira. O rei era preguiçoso; os inimigos de Choiseul cresciam em número. O abade Terray, um homem inescrupuloso, aliara-se ao duque d Aiguillon, e ambos, auxiliados por du Barry, trabalhavam para derrubar Choiseul.
Antonieta, que não tinha conselheiros na Corte (pois o delfim jamais se permitia participar de disputas políticas), estava nas mãos das três tias malévolas, que, por motivos estranhos que haviam desabrochado na mente desequilibrada de tante Adelaide, estavam determinadas a ser inimigas da delfina. As três tias, que odiavam madame du Barry, encontravam grande prazer em colocar a jovem esposa do delfim contra a mulher que desfrutava da maioria dos privilégios que deveriam caber a uma rainha.
Nessa época de sua vida, Antonieta era dominada por suas tias, que a forçavam a passar tempo demais em sua companhia. Elas estavam determinadas - como o rei as desprezava e madame du Barry era-lhes indiferente - a moldar o futuro da moça que um dia seria a rainha.
Elas conversavam com a jovem enquanto se sentavam para jogar cartas ou costurar juntas. Faziam perguntas sobre ela e o delfim e teciam comentários sobre madame du Barry a respeito da vida que ela levava com o rei.
Assim, colocaram Antonieta ao lado de Choiseul, embora a moça não conhecesse nada a respeito da política na França. Quando, sob pressão de sua amante, o rei finalmente dispensou Choiseul, Antonieta ficou zangada não com o rei, mas com a mulher que, assim as tias lhe diziam, usava de estratagemas para reger toda a França.
Assim, aqui estava ela, depois de tão pouco tempo na França, e ainda uma criança sem conhecimento do mundo, formando uma opinião sobre a política de seu país adotivo.
A outra questão que estava cada vez mais clara para ela, e que agora começava a causar-lhe grande embaraço, era a impotência do delfim.
Ao vir para a corte francesa, Antonieta tinha sido ignorante e inocente. A Corte que era regida por sua mãe não conhecia escândalos, porque Maria Teresa estabelecera o padrão, e ninguém ousava contradizê-lo.
Era muito perturbador para uma mulher com os princípios de Maria Teresa contemplar sua filha em Versalhes, onde o rei não apenas vivia abertamente com sua amante, que era tratada como rainha da França, mas se divertia com mocinhas que lhe eram providas por essa amante. Maria Teresa sempre dizia a si mesma que havia momentos em que ela devia lembrar que era primeiro uma regente, e apenas depois uma mãe.
Maria Teresa conhecia bem sua filha. Maria Antonieta era alegre de coração e desde a idade mais tenra evitava tudo que ameaçava perturbar seus prazeres. Raramente lia um livro do começo ao fim, porque cansava-se depressa de qualquer pensamento sério, e isto significava que seu conhecimento de homens e mulheres era superficial. A mãe acreditava que Antonieta melhoraria com o tempo, mas ela precisava ser vigiada com cuidado.
Chegaram aos ouvidos de Maria Teresa duas notícias. A primeira: sua filha frívola, depois de cavalgar até certa distância do palácio, estava trocando seu burro por um cavalo que lhe fora dado por suas tias más. E a segunda, ainda mais preocupante: Antonieta estava demonstrando abertamente seu desagrado por madame du Barry.
Isto exigiu uma reprimenda escrita com zelo. A imperatriz escreveu que Antonieta devia refrear seus sentimentos; devia ser graciosa para com uma dama cuja missão, segundo ouvira, era agradar o rei e mantê-lo de bom humor.
A resposta de Antonieta traiu a inocência completa da jovem. O rei era gentil com ela. Ela gostava dele. E se a missão de madame du Barry era agradar e divertir o rei, ela esperava ser sua rival.
Essas cartas encheram o coração da imperatriz de apreensão. Consternada, escreveu a Mercy, que respondeu que ouvira rumores em relação ao rei.
Agora perguntas sagazes foram feitas a Antonieta. Dicas sutis foram-lhe encaminhadas.
Ao seu modo irresponsável, ela perguntou ao esposo:
- Não deveríamos ter um herdeiro em breve? Acho que esperam isso de nós. Eu mesma às vezes faço perguntas...
O delfim ficou alarmado. Ele tentou explicar.
E assim, gradualmente, Maria Antonieta começou a compreender e a temer o momento em que as cortinas eram fechadas em torno de sua cama. Ela não temia esse momento menos por saber que o delfim o odiava tanto quanto ela.
Eles precisavam fazer o melhor que podiam, disse ele.
Mas o melhor que podiam fazer jamais gerava sucesso.
Rumores circularam pelo Palácio de Versalhes. Antonieta ainda não sabia, mas as relações entre o delfim e sua esposa eram tema de piadas nas ruas de Paris.
As cartas de Viena assumiram um tom mais urgente. Antonieta precisava contar tudo à sua mãe. Ela não podia esconder nada.
Antonieta agora sentia-se um pouco infeliz. Provence e Artois dirigiam-lhe olhares secretos, cheios de ironia e piedade. Ela se viu possuída por um desejo de ter uma criança, e quando via qualquer criança no Palácio imediatamente a chamava para brincar com ela, e tentava fingir que era sua.
Maria Antonieta não era mais inocente. Sabia por que as pessoas sorriam às suas costas e sussurravam a respeito dela e do delfim. Sabia por que não conseguia ter um filho.
E como via madame du Barry em seu relacionamento confortável com Luís, e como ouvira histórias das folias no Pare aux Cerfs e sabia com que prazer a mais nobre cortesã da França compartilhava a cama do rei, começou a odiar essa mulher com uma raiva feroz. A delfina não percebia que na verdade sua raiva originava-se do fato de que sempre que via du Barry, lembrava de sua própria situação infeliz.
Estava mergulhando alegremente nos prazeres de Versalhes e, como agora estava com dezesseis anos, recusava-se a obedecer tão rigidamente a madame de Noailles. Fazia tudo que podia para escapar daquelas tentativas desajeitadas na cama nupcial que jamais alcançavam seu objetivo. Dançava todas as noites, porque a dança era o seu passatempo favorito, e dançando podia postergar o momento em que ouviria as cortinas serem fechadas, encerrando-a com o delfim. O delfim não dançava. Ele passava cada vez mais seu tempo na oficina do ferreiro. Gostava de trabalhar até se cansar, e quando chegava a hora de ir para a cama, adormecia depressa.
Pela manhã, olhavam um para o outro e murmuravam desculpas fingidas, embora ambos soubessem que estavam congratulando-se pela folga da noite anterior. Mas o sentimento de culpa persistia, porque ambos sabiam que, como futuros rei e rainha da França, era seu dever gerar descendentes, e a geração de crianças não poderia ser feita de nenhuma outra forma senão aquela que eles odiavam porque sua realização estava além do poder do delfim.
E assim, humilhada, frustrada, metade criança e metade mulher, Antonieta passou a odiar a visão daquela mulher de rosto exageradamente pintado, que simbolizava a realização de tudo que ela e o delfim estavam tentando em vão.
Logo começou a ser notado que a delfina estava colocando madame du Barry numa posição infeliz e desagradável; pois ela se recusava a se dirigir à mulher e, segundo o protocolo francês, uma mulher de posto inferior não pode falar na companhia de uma dama de posto superior, a não ser que seja convidada a fazê-lo pela dama. Incitada pelas tias, Antonieta decidira que iria ignorar madame du Barry. Devido à morte da rainha, a delfina era a primeira dama da Corte, de modo que madame du Barry, que era regente do país em tudo menos no título, precisava sentar-se muda entre as damas porque a menina impertinente de dezesseis anos recusava-se a dar-lhe a deixa para que se juntasse à conversa.
A Corte estava encantada com sua pequena delfina. Ela estava proporcionando drama. Havia apostas sobre quando o delfim conseguiria sobrepujar sua enfermidade; e apostas sobre por quanto tempo a pequena delfina seria capaz de ignorar du Barry.
Du Barry entrou nos apartamentos do rei com a fúria de um tufão. Era calma por natureza, mas esta situação, que fora criada por uma menina impertinente determinada a humilhá-la, estava se tornando insuportável. As pessoas eram vistas rindo por trás de seus leques. Como era possível que ela - a mulher mais influente da Corte - fosse forçada, noite após noite, a sentar-se em silêncio porque a delfina de dezesseis anos recusava-se a dirigir-lhe uma palavra?
- Alguma coisa precisa ser feita - disse du Barry ao rei.
- Minha querida, não podemos alterar as regras da Corte.
- Não, querido França, mas podemos alterar a impertinência de madame La dauphine.
- Espero que ela não se revele uma pequena encrenqueira murmurou o rei.
- Ela já se revelou isso.
Luís olhou para a sua amante. Gostava muito dela. Dependia dela. Ela podia ter vindo da plebe, mas era uma mulher inteligente e ele aceitava seus conselhos em muitos assuntos. Ele jamais esqueceria como, na época em que tivera problemas com seus magistrados e sentira uma inclinação para governar sem um parlamento, fora madame du Barry - sem dúvida sob conselho de seus amigos mais astutos - que o aconselhara contra essa conduta. Ele podia visualizá-la agora, parada diante do quadro que pendurara em seu apartamento - uma pintura de Charles I da Inglaterra, pintada por Van Dyck. Ele jamais esqueceria como seus olhos tinham faiscado quando ela chorara:
- França, o seu Parlamento poderia também cortar a sua cabeça.
Ela o impressionara tanto que ele voltara atrás: e ela tivera razão. Às vezes ele se perguntava o que teria acontecido se não tivesse seguido o conselho de du Barry naquela época.
Portanto, era inconcebível e intolerável que ela fosse perpetuamente esnobada pela pequena delfina. Ademais, ao esnobar a amante do rei, a menina estava esnobando o rei.
- Minha querida, isto não prosseguirá. Eu mesmo irei falar com agouvemante da delfina.
- Trata-se de madame de Noailles. Eu mandarei chamar a mulher, para que você possa ter com ela imediatamente.
Madame de Noailles estava parada diante do rei.
De acordo com os costumes, Luís não foi direto ao ponto.
- É um grande prazer para nós termos madame La dauphine conosco aqui - disse Luís. - Ela parece ser uma jovem de grande distinção e charme.
Madame de Noailles curvou a cabeça em prazer aparente, mas sentia-se inquieta, porque sabia que o rei não a mandara chamar meramente para cumprimentar a delfina por intermédio dela.
- Ela é jovem-prosseguiu o rei.-E a juventude é uma coisa encantadora. Quem não ama a juventude? Talvez ela seja um pouco impetuosa, mas quem em sua juventude não foi impetuoso? Entretanto, a impetuosidade deve ter seus limites.
A expressão de madame de Noailles era de horror. Sua pupila desagradara o rei, e ela própria era responsável por isso.
- Nossa pequena delfina fala um pouco sem pensar, e talvez não seja tão graciosa quanto deveria com certos membros da Corte. E um comportamento como esse deve ter um efeito pernicioso na vida familiar.
O significado das palavras do rei era evidente. Madame de Noailles assegurou à Sua Majestade que faria tudo ao seu alcance para corrigir as falhas da delfina. Ela foi imediatamente falar com Antonieta.
- Madame! - gritou, desta vez esquecendo da rotina usual. -A senhora deve falar com madame du Barry ainda esta noite. São ordens do rei.
- Madame du Barry é uma cortesã - retorquiu a delfina. Não posso acreditar que o protocolo da Corte francesa exija que a primeira dama da Corte converse com uma mulher dessa laia.
Dito isso, Antonieta deixou madame de Noailles e foi direto até suas tias.
Madame Adelaide riu de alegria.
- Você está certa, minha querida - disse a ela. - Seja ousada nisto. Todos... até o rei... irão respeitá-la por isso.
As tias Victorie e Sophie menearam as cabeças, concordando.
Mas quando o abade de Vermond passou as notícias da reprimenda do rei para Mercy, e Mercy por sua vez passou-as para a imperatriz, o assunto causou grande preocupação. Maria Teresa sabia que de pequenos vendavais podiam nascer grandes tempestades.
Maria Teresa via-se num dilema. Uma mulher de princípios morais rígidos não podia insistir que sua filha fizesse amizade com uma mulher de reputação tão notória quanto a de madame du Barry. Mesmo assim, como era desejo do rei da França que a delfina o fizesse, algum compromisso era necessário. O filho de Maria Teresa, Joseph, era agora o imperador e co-regente da Áustria, e ela e ele nem sempre concordavam. Ela temia muito Catarina da Rússia e Frederico da Prússia, a quem considerava inimigos formidáveis.
Frederico e Catarina estavam determinados a fomentar a divisão da Polónia; Joseph queria juntar-se a esses dois e apoiar a divisão; e Maria Teresa, que sempre tentara viver tanto como uma boa mulher quanto como uma boa regente, estava profundamente perturbada. A divisão da Polónia era uma atitude cruel - mas se ela tentasse impedi-la poderia causar uma guerra, e a Áustria não estava em posição de travar guerra contra a Prússia e a Rússia. E agora sua filha, a quem criara para compartilhar de seus princípios, estava expondo sua desaprovação a uma cortesã - o que sua mãe aplaudiria se sua posição superior na hierarquia significasse alguma coisa. Agora aqui estava a dolorosa tarefa de comandar a garota a aceitar esta mulher porque a situação exigia que isso fosse feito.
Sentindo que não conseguiria comandar pessoalmente sua filha a fazer isso, Maria Teresa ordenou a Kaunitz que escrevesse a Mercy para providenciar isso através do embaixador.
Houve uma longa discussão. Antonieta declarou que não se poderia esperar dela, depois que tinha se recusado a falar com madame du Barry, que fosse aquela a capitular. Mercy disse que sim, essa atitude cabia a ela. Isto não se tratava de uma querela fútil entre duas mulheres; era uma questão de política. Ela queria perturbar as relações amistosas entre França e Áustria por causa de um capricho?
- Minha mãe não iria querer que eu falasse com uma mulher como essa - insistiu Antonieta.
Mercy estava ficando desesperado. O problema com a delfina era que ela jamais parecia manter sua mente focada numa única coisa por muito tempo. Enquanto ele estava tentando impressionála sobre a importância de falar com du Barry, ela estava se perguntando o que deveria vestir no jogo de cartas daquela noite.
- Preciso enfatizar que a sua mãe ordenou que você fale com madame du Barry esta noite - disse Mercy.-Providenciei para que isso seja feito de modo a não lhe causar constrangimentos. Depois do jogo de cartas você fará sua ronda pela sala, falando com cada um dos presentes. Eu estarei envolvido numa conversa com madame du Barry, e quando você nos alcançar, dirá alguma coisa a mim e então se dirigirá naturalmente a madame du Barry.
- E essas são ordens da minha mãe?
- Não apenas da sua mãe, madame, como também do rei da França.
Antonieta curvou a cabeça.
Depois que Antonieta deixou Mercy, um mensageiro abordou-a e perguntou-lhe se poderia visitar suas tias. Elas se reuniram em torno dela, rostos enrubescidos, olhos reluzindo com seu amor por intrigas.
- A que estão forçando você, minha querida? - indagou tia Adelaide.
Ela lhes contou.
As tias trocaram olhares, e Victoire e Sophie esperaram o movimento seguinte de sua irmã.
- Esta noite falarei com ela - disse Antonieta. – Mercy estará com ela, e eu falarei com ele primeiro e em seguida falarei com du Barry. Essas foram as ordens de minha mãe e também do rei.
Adelaide emitiu um resfolegar indignado, no que foi imitada imediatamente pelas outras.
- Uma menina jovem e inocente! - murmurou Adelaide. E seus olhos brilharam com malícia.
Mercy assumira sua posição ao lado da condessa du Barry, e agora os dois estavam falando sobre trivialidades.
A delfina levantara da mesa de cartas e estava fazendo a ronda pela sala antes de se retirar.
Cada dama fez a mesura esperada e respondeu quando a delfina falou com ela. A atmosfera ali estava tensa. Agora estava para acontecer o grande momento pelo qual todos estavam esperando. Madame du Barry tinha vencido, como obviamente todos acreditaram que ia acontecer. A delfina precisava reconhecer publicamente a amante do rei.
Agora Antonieta estava próxima a Mercy e madame du Barry. Antonieta estava ciente da expressão tensa de du Barry-meio apreensiva, meio triunfante. Este incidente ia proclamar seu poder mais definitivamente do que qualquer coisa que tivesse sido expressa antes.
Mas enquanto Antonieta estava passando diante de Mercy, e Mercy estava se preparando para fazer sua mesura, madame Adelaide havia deslizado para o lado da delfina com Victoire e Sophie logo atrás.
Adelaide assumiu a voz de comando de uma tia e disse:
- Venha, minha querida, é hora de irmos. O rei está à sua espera no quarto de Victoire.
Enquanto Antonieta dava-lhes as costas, um rubor se instaurou no rosto de Mercy, e madame du Barry estava subitamente roxa de raiva.
Um silêncio profundo se instalou no salão enquanto madame Adelaide, triunfal, conduziu a delfina para fora, com Victoire e Sophie seguindo-a de perto.
Todo Versalhes falava sobre este novo insulto à madame du Barry perpetrado pela delfina. As tias divertiram-se secretamente.
Adelaide falou longamente com suas irmãs, mostrando-lhes que diplomata arguta ela era. Ela não tinha conseguido impedir a delfina de ir a Paris? Fazia dois anos desde que a jovem chegara à França, e ela ainda não tinha visitado a capital. Toda a França sabia que a esposa do delfim era tratada como uma criança, e portanto destituída de importância. E depois desta noite toda a França saberia que a amante do rei também não gozava de qualquer importância.
- Isto é diplomacia de primeira ordem - disse madame Adelaide. - Nosso pai aprenderá que não pode desprezar suas filhas. Deixe-o rir de nós. Deixe-o chamar- nos de Loque, Coche e Graille. Deixe-o insultar-nos. Nós podemos fazer com que ele se sinta desconfortável, como faz nossa irmã Louise, que o alerta constantemente que ele está destinado ao fogo infernal.
- E agora madame du Barry irá odiar a delfina.
- Problemas, problemas, problemas... - murmurou Adelaide alegremente. - A delfina esnoba du Barry, e du Barry odeia a delfina... e o austríaco Mercy consulta-se com o abade de Vermond, e o tratado de amizade entre França e Áustria está prestes a ser rompido! Quem sabe não haverá guerra? E se houver, teremos sido nós as deflagradoras!
Victoire e Sophie olharam uma para outra com pasmo, mas seus olhos viraram quase imediatamente para Adelaide, sua líder e a inspiração para todas as suas empreitadas.
Mas madame du Barry estava furiosa, e inspirara o rei a compartilhar dessa fúria.
- Fomos deliberadamente esnobados e insultados! - declarou madame du Barry. - A corte inteira ri de nós.
O rei mandou chamar por Mercy.
- Seus esforços com a delfina foram inúteis - declarou o rei.
- E aparentemente sua mãe ignora meus pedidos. Parece que esta suposta amizade entre nossos dois países é uma ilusão. A imperatriz precisa saber que a França não pode ser tratada como um estado vassalo.
Mercy ficou abalado. Ele viu nas palavras do rei uma ameaça política profunda. Ele implorou ao rei por paciência e imediatamente enviou um despacho para a imperatriz, alertando-a que graças ao comportamento infantil de sua filha, a aliança austro-francesa, que tinha sido forjada pelo casamento, estava em risco de ruir.
Maria Teresa compreendeu que agora não podia mais manterse neutra. Completamente contra seus princípios, fora forçada a concordar com a divisão da Polónia; e como sempre temera a reação francesa a isso, agora estava aterrorizada com a possibilidade de que a raiva do rei da França fosse voltada contra a Áustria, fazendo-o declarar guerra devido ao problema da Polónia. Ela precisava acalmar Luís. Precisava fazer sua filha compreender que uma guerra com a França seria desastrosa, porque a Áustria não estava em posição de ir à guerra. Portanto, sobre os ombros pios de Maria Teresa repousava a tarefa de ordenar que sua filha fizesse amizade com a mais infame cortesã da Europa; e Maria Teresa temia imensamente o efeito que isto exerceria sobre a mente jovem de sua filha.
Ela escreveu para Antonieta:
Qual é o mal de dar bom-dia a alguém? Ou uma palavra gentil a respeito do vestido da pessoa, ou qualquer trivialidade do tipo? Depois de sua conversa com Mercy, e depois do que ele lhe disse sobre os desejos do rei, você ousou desobedecê-lo! Que motivo você teve para tal conduta? Absolutamente nenhum. Não lhe cabe tratar du Barry de nenhuma outra forma senão como uma dama que possui o direito de entrar na Corte e ser admitida na sociedade do rei. Você é a primeira súdita de Sua Majestade, e lhe deve obediência e submissão. Se qualquer intimidade fosse requerida a você, nem eu nem mais ninguém iria aconselhá-la a concedê-la; mas tudo que é esperado de você é que lhe dirija uma palavra indiferente, e a olhe com educação - não em benefício da própria dama, mas em benefício do seu avô, seu mestre, seu benfeitor.
Assim que leu esta carta, Antonieta soube que sua mãe estava insistindo em sua obediência.
Era o dia do Ano-Novo, e a Corte estava reunida para assistir à vitória final de madame du Barry sobre a delfina.
Antonieta manteve-se em pé formalmente enquanto as damas da Corte passavam diante dela para aceitar suas saudações de AnoNovo e dar as suas.
A duquesa d Aiguillon, que era a esposa do primeiro-ministro do estado e uma protegida de du Barry, estava com a condessa, e o grupo inteiro estava agudamente cônscio do fato de que o espaço entre as duas protagonistas na batalha estava cada vez menor.
Madame du Barry parou diante dela. A natureza inteira de Antonieta agitou-se como um mar revolto. Sua expressão se empederniu por um momento; ela estava ciente de que cada olho estava fixo nela e em du Barry; estava profundamente cônscia do silêncio que pairava no ambiente.
Ela quis dar as costas para aquela mulher, mas não ousou. Podia visualizar os olhos severos de sua mãe.
Olhando para du Barry, Maria Antonieta murmurou:
- Ily a bien du monde aujourd hui à Versailles.
A natureza calma de du Barry aflorou à superfície. A mocinha teimosa tinha proferido as palavras necessárias. A condessa era vitoriosa. Ela sabia que isso tinha custado um preço para a garota, e não era vingativa na vitória. Tudo que ela queria agora era saborear seu triunfo; e então ela estava pronta para aplacar a humilhação da delfina.
Ela borbulhou com bom humor. Declarou que, sim, havia muitas pessoas hoje em Versalhes.
A delfina já estava desejando um feliz Ano-Novo para a próxima pessoa.
A aia de du Barry rogou para ser recebida pela delfina.
Antonieta recebeu a mulher com frieza, seus olhos azuis arregalados como se tentando visualizar o que a aia de du Barry poderia propor-lhe.
- Vim falar com a senhora em nome de minha ama - disse a aia. - Chegou aos ouvidos de minha ama que o joalheiro Boehmer tem um par de brincos de diamantes no valor de setecentos livres.
Antonieta fez que sim com a cabeça. Conhecia esses brincos. Eram os mais bonitos nos quais já pusera os olhos. Antonieta experimentara os brincos e eles tinham lhe assentado perfeitamente. Os diamantes eram as suas pedras favoritas; seu brilho frio combinava bem com sua beleza cálida e jovial.
- O que têm esses brincos? - perguntou.
- Minha ama acha que eles cairiam muito bem na senhora, madame. Ela acha que pode convencer Sua Majestade a dá-los à senhora.
Antonieta se viu dilacerada entre seu desejo pelos brincos e sua determinação em não aceitar favores da mulher a quem evitara por tanto tempo reconhecer.
Antonieta sabia que, se mostrasse interesse, os brincos seriam dela; e ela ansiava por eles.
Mas ela se virou para a mulher e disse:
- A proposta da sua ama não me interessa. De fato, parece-me muito sórdida. Se eu quisesse brincos, não pediria a uma cortesã que vendesse seus favores para comprá-los para mim.
- Mas, madame...
- Sua presença aqui não é mais necessária - disse a delfina. E na vez seguinte em que viu du Barry, Antonieta olhou através da madame como se ela não existisse.
A corte achou o incidente divertido, afinal suas consequências agora eram desprezíveis. A delfina havia reconhecido du Barry e du Barry estava satisfeita.
As tias riram daquilo. E Adelaide disse a Victoire e Sophie:
- Antonieta é apenas uma menina, e quando for rainha nós saberemos como controlá- la.
Maria Antonieta tinha um grande desejo - ir a Paris. Já não é hora de fazer isso?, perguntava a madame de Noailles. A resposta: quando ela fosse a Paris, isso teria de ser feito segundo a tradição; a cidade precisava estar pronta para providenciar que sua recepção fosse um evento estatal.
Assim, ela permanecia em Versalhes, cercada por espiões - os de sua mãe, o abade de Vermond e Mercy-Argenteau, e os espiões das tias, liderados pela condessa de Narbonne, que gostava tanto de dramas que, quando eles não ocorriam, ela os inventava.
E havia também madame de Noailles, sempre observando Antonieta com atenção para qualquer falta que merecesse um reproche imediato.
Novos inimigos foram introduzidos em Versalhes. Os condes de Provence e d Artois tinham sido providos com esposas. Essas eram as filhas de Victor Amédée in, da Sardenha. Victor Amédée in não apenas governava a Sardenha como também uma parte rica do norte da Itália, e os casamentos foram considerados dignos dos netos de Luís XV, que até tentou casar Clothilde com o filho de Victor Amédée; mas Clothilde foi considerada gorda demais para a aliança. O rei da Sardenha declarou que acreditava que mulheres gordas frequentemente eram incapazes de parir filhos.
Os casamentos dos dois rapazes foram concluídos, e quando as noivas chegaram a Versalhes, Provence e Artois ficaram chocados com sua carência de atrativos. Tendo visto a encantadora arquiduquesa austríaca, eles esperavam que suas esposas fossem igualmente charmosas. Provence comparou sua Marie Josèphe e Artois sua Marie Thérèse com Maria Antonieta, que estava mais bela a cada dia.
Era justo, inquiriram um ao outro, que recebessem noivas tão feias enquanto Berry, que se importava mais com a oficina de seu ferreiro do que com o casamento, e além de tudo era impotente, tivesse a adorável Antonieta?
Antonieta era jovem demais para fazer qualquer coisa além de rir deles, empetecar-se um pouco, e fitar mais sedutoramente do que nunca os olhos dos irmãos resmungões. Isto deixou os dois com raiva de Antonieta, e suas esposas ainda mais furiosas.
As três tias perceberam a situação e riram entre si.
Era uma coisa boa, disse Adelaide, que na casa real houvesse tantas pessoas inclinadas a tratar com desconfiança a jovem e frívola delfina.
- Providenciaremos para que quando Berry for rei, Antonieta não exerça influência demais sobre ele - disse Adelaide.
Suas irmãs assentiram positivamente, como sempre. E as três tomaram como costume jogar cartas com Josèphe e Thérèse; e quando estavam todas juntas - três velhas bruxas contando segredos a duas garotas invejosas -, o assunto favorito era as muitas imperfeições de Maria Antonieta.
Antonieta estava considerando Versalhes tão tedioso que decidiu falar com o rei sobre uma visita a Paris, e aproveitou a primeira oportunidade para fazer isso.
Por mais zangado que pudesse estar com Antonieta quando ela não estava presente, Luís não conseguia sentir nenhum rancor pela jovem quando ela estava por perto. Ele a achava muito bonita. Ele queria que ela não fosse esposa de seu neto, para que pudesse seduzi-la. Ele achava que o pobre Berry era impotente, e isso deixava-o muito zangado.
- Fico muito feliz quando estou perto de Sua Majestade.
Luís abriu um sorriso.
- Então se aproxime mais e fique ainda mais feliz. Tomou a mão de Antonieta na sua e aproximou seu rosto envelhecido do rosto jovem e macio da moça.
- Você é a delfina mais linda que a França já teve - declarou. - E será a mais bela das rainhas.
Antonieta recuou, aterrorizada.
- Isso demorará muito, muito tempo.
- Creio que não - disse Luís, franzindo a testa.
O rei esqueceu a jovem por um momento. Ele não estava se sentindo muito bem, e madame Louise, sua filha carmelita, escrevera-lhe uma longa exortação para que se arrependesse. Luís estava frequentemente olhando sobre o ombro para a morte, tentando fugir da visitante maligna, não tanto porque temesse a dor que a morte traria, mas a contrição que deveria precedê-la. Temia ser obrigado a isolar du Barry antes que pudesse começar essa contrição, e odiava esse pensamento. E agora esta moça, com sua juventude adorável e resplandecente, lembrava-o da morte.
- Vai demorar sim! - exclamou Antonieta com tamanha convicção que ele deve ter acreditado nela.-Vossa Majestade parece mais jovem a cada dia. Digo à minha mãe que creio que meu rei descobriu o segredo da vida eterna.
- Você não apenas sabe como parecer bonita, como também dizer coisas bonitas, madame La dauphine. Quando damas dizem coisas assim para mim, eu sempre me pergunto se elas vão pedir alguma coisa.
Ela olhou de soslaio para ele.
- Tenho realmente um pedido, mas se Vossa Majestade recusálo, continuarei dizendo que meu rei parece mais jovem a cada dia.
- Então seria rude da minha parte recusá-lo.
- É um pedido muito simples. Estou aqui há mais de dois anos, e nunca vi Paris.
- Então a Paris tem sido negado o prazer de pôr olhos em você?
- Sim.
Pobre Paris! Vou dizer a quem cabe a culpa por isso. Aquelas três bruxas velhas: Loque, Coche e Graille. Antonieta riu alegremente.
- Vossa Majestade, podemos frustrar as bruxas?
- Não há nenhum outro curso aberto para nós, quando os desejos dessas três não coincidem com os de minha bela delfina.
- Então irei a Paris! Quando, Vossa Majestade?
- Você é muito apressada. Coisas assim precisam ser planejadas. Mas você irá. Agora beije o seu velho avô por ser tão bom com você. Não, não a minha mão. Isso é para as bruxas. Venha... beije-me como se eu fosse o jovem que eu gostaria de ser.
Ela lhe deu um beijo rápido na face, e Luís observou-a afastarse. Antonieta deixara-o com saudades de sua juventude, e ao pensar nela com seu neto, seus lábios se contorceram.
- Pobre Berry! - murmurou.
Antonieta insistiu que os membros jovens da família comparecessem ao seu apartamento. Lá estava Berry, relutante, a fuligem da oficina do ferreiro debaixo de suas unhas; e Provence e Artois com suas esposas invejosas.
- Vamos todos a Paris - anunciou Antonieta. - Tenho o consentimento do rei. Berry e eu faremos nossa entrada formal.
Os olhos de Josèphe e Thérèse reluziram com inveja. Durante a entrada formal todos os olhos estariam na delfina, a futura rainha da França; elas seriam identificadas meramente como as esposas dos irmãos do delfim. Pior ainda, aqueles parisienses iriam comparar suas carências de beleza com o charme deslumbrante da delfina. Era absolutamente injusto.
Agora a delfina expôs um plano louco. Por que deveriam esperar pela entrada formal? Como o rei dera seu consentimento, por que todos eles não poderiam ir a Paris, disfarçados - ou então mascarados, usando fantasias?
- Por favor, vamos! - rogou Antonieta. - Vai ser excitante! Durante a entrada formal, teremos alguém que cavalgará conosco a cada minuto do dia e da noite... por uma questão de protocolo. Ela fez uma careta. - Ah, como odeio protocolo! Divertido seria fazer exatamente o que quiséssemos. Falar exatamente o que quiséssemos. Ir ao baile da Ópera...
Ela puxou Artois e o fez dançar com ela. Ele sorriu de prazer, porque gostou de tê-la em seus braços antes dos outros. Thérèse observou-os com olhos inflamados.
Ela que fique com raiva, pensou Artois. Bem feito para ela, que é gorda e pesada. Bem feito para ela, que não é bela, alegre nem ansiosa por fazer coisas ousadas. Bem feito para ela, que não é Antonieta.
- Sim! - disse Artois. - Vamos todos... mascarados. Levaremos apenas uma hora para chegarmos a Paris em nossas carruagens. Eu providenciarei o transporte. Ninguém adivinhará quem somos...
Berry balançou a cabeça.
- Eu não... - começou o delfim.
Mas Antonieta correu até ele e segurou seu braço.
- Mas você precisa vir. Precisa, sim! Seremos três damas, três cavalheiros. Oh, Berry, você precisa vir! Eu insisto!
Ele baixou os olhos para o rosto belo e encantador de sua esposa. Ele sentiu que queria agradá-la, que queria compensar aquelas experiências noturnas vergonhosas e desconfortáveis pelas quais cabia exclusivamente a ele a culpa.
- Eu não acho que devamos fazer isso - disse Berry.
- Nem eu - disse Josèphe.
Mas Artois e Provence decidiram que eles deviam; e com Antonieta, eles persuadiram os outros.
Como resultado, numa noite clara e estrelada, as carruagens foram trazidas até uma porta lateral, e o grupo empolgado fez a jornada curta entre Versalhes e a capital.
Durante essa aventura noturna, Antonieta viu a cidade ao luar; viu o rio reluzente e os grandes prédios - a Bastilha, os Invalides, o Hotel de Ville, os cafés ao longo do Quai dês Tuileries e Notre Dame.
Esta, explicou o delfim, era a rota que a procissão ia tomar quando eles fizessem sua entrada formal.
Mas o que mais empolgou Antonieta foi o fato de que a cidade parecia cheia de vida, mesmo tão tarde da noite. Havia pessoas nas ruas... homens, mulheres, pessoas barulhentas que, aparentemente, jamais se importavam com aquele bicho-papão soturno, o Protocolo. Como Paris era diferente da cidade de Versalhes, com sua Place d'Armes e a Igreja de Notre Dame a um lado e a Igreja de St. Louis ao outro, e as avenidas de Sceaux, de Paris e de St. Cloud que, fora o château, pareciam compor a cidade.
Esta era uma cidade gloriosa, e uma cidade de ruas amplas e estreitas, de esplendor e escassez, de contrastes e mil deleites, onde qualquer coisa poderia acontecer.
Ela persuadiu-os a parar as carruagens para que eles pudessem visitar o baile da Ópera. Berry posicionou-se absolutamente contra isso, mas Antonieta foi firme. Eles tinham vindo até aqui. Por que estragar a aventura por medo de levá-la até sua conclusão?
Artois concordou com ela. Provence estava indesiso; e como Berry raramente expressava qualquer grande desejo ou qualquer grande aversão a fazer qualquer coisa, foram ao baile.
O esplendor do baile encantou Antonieta. Ela ficou impressionada com o fato de que Versalhes não tinha nada tão empolgante a oferecer. Aqui também havia jóias cintilantes e homens e mulheres vestidos com garbo; mas eles eram pessoas excitantes, escondidas por trás de suas máscaras. Aqui, decidiu Antonieta, havia empolgação e aventura.
Antonieta dançou com Artois. Muitos olhos estavam sobre ela, que parecia um belo adorno de Sèvres ao qual fora insuflado vida. Ela estava rindo por trás da máscara, perguntando-se o que essas pessoas pensariam se soubessem que a garota dançando tão alegremente entre eles era sua delfina.
Berry estava tenso, ansioso por ir para casa; e acabou por instilar a mesma ansiedade nos seus irmãos.
Deixaram a Ópera e voltaram para Versalhes.
Poucas pessoas no palácio souberam de sua aventura, e quando acordaram cedo para a missa da manhã seguinte, ninguém ainda sabia de nada.
Mas Antonieta sentia que nada em sua vida seria igual de novo. Ela estava apaixonada... apaixonada por Paris.
Era um dia quente de junho quando a procissão real entrou na capital.
Nos portões de Paris, o velho governador da cidade, o duque de Brissac, esperava para receber o delfim e sua esposa e presenteálos com as chaves da cidade.
Os olhos do velho reluziram com prazer ao pousar na bela e jovem delfina. Ela sorriu para ele enquanto Berry pousava as mãos nas chaves que lhe estavam sendo presenteadas sobre uma almofada de veludo. O que o duque pensaria, perguntou-se Antonieta, se soubesse que ela tinha visitado sua cidade em segredo apenas algumas noites atrás?
Mas Paris era ainda mais encantadora à luz do dia. Grandes arcos do triunfo tinham sido erigidos, e flores decoravam as ruas.
As feirantes tinham vindo de suas barracas em Halles para saudá-la. Os mercadores de St. Germain e St. Antoine entoaram saudações; e canhões foram disparados do Hotel de Ville, dos Invalides e da Bastilha. A Place du Carrousel estava colorida com flores e arcos feitos de pano dourado e veludo vermelho, decorados com lírios dourados da França. A ponte sobre o Sena parecia ser uma única massa de pessoas, todas aplaudindo, todas bradando:
- Vive lê Dauphin! Vive Ia Dauphine!
Finalmente eles estavam em pé no balcão da Tuileries, e mais uma vez a multidão bradou vivas. Antonieta jamais vira tantas pessoas, e lágrimas encheram seus olhos diante daquela demonstração de lealdade; porque lágrimas, como sorrisos e raiva súbita, afloravam no humor de Antonieta tão rapidamente quanto desapareciam.
- Mon Dieu! - exclamou emocionada. - Que de monde! O duque de Brissac aproximou-se dela e sussurrou:
- Madame, espero que Sua Alteza o delfim não entenda mal as minhas palavras, mas a senhora têm à sua frente duzentas mil pessoas... todo o povo de Paris... e cada uma delas está apaixonada pela senhora.
Ela ficou parada ali, sorrindo, feliz, encantada. Ela havia se apaixonado por Paris, de modo que achava perfeitamente natural e justo que Paris tivesse se apaixonado por ela.
Agora ela queria fazer todas as noites a jornada de Versalhes a Paris. Havia muita coisa na cidade que a deliciava; portanto, muitas razões para não querer permanecer em Versalhes. Ela agora odiava as suas tias fofoqueiras, e sabia que elas jamais tinham sido realmente suas amigas. Era agradável escapar dos olhos atentos da madame de Noailles e da vigilância constante de Vermond e Mercy. Ela gostava de dançar até as primeiras horas da manhã, de comparecer aos jogos de cartas, à Comédie Française e à Comédie Italienne; gostava de comparecer à Ópera; mas por mais deliciosas que fossem essas ocasiões, o que lhe parecia mais importante era evitar voltar cedo para a cama.
O delfim não ligava para essas pândegas. Ele era tolerante e não fazia qualquer esforço para interferir; mas depois de um dia duro de trabalho na oficina do seu ferreiro ou ao ar livre, ele queria deitar-se cedo. Portanto, embora eles devessem compartilhar a mesma cama, havia formas de não ficar nela durante as mesmas horas, e Antonieta deitava-se no começo da manhã, quando o delfim dormia profundamente.
Frequentemente seus cunhados acompanhavam-na a Paris. O rei raramente ia com eles. Luís não era popular em Paris, e Paris não hesitava em declarar sua antipatia. Havia muita insatisfação por todo o país devido a desastres causados por problemas nas relações exteriores, colheitas ruins e aumento dos impostos. Luís temia que ao passar pelas ruas de sua capital ele teria de suportar não apenas palavras hostis, mas também atos. Alguns anos antes ele construíra uma estrada que ligava Versalhes a Compiègne, eliminando a necessidade de passar através de Paris.
Antonieta logo descobriu que a impopularidade do rei não se aplicava à sua família. Ela própria era recebida calorosamente aonde quer que fosse. Sua grande beleza apelava aos parisienses; suas emoções rápidas eram evidentes, e eles tinham ouvido histórias sobre sua gentileza para com pessoas pobres. Ela sempre era bem recebida em todos os lugares.
Isto era delicioso, mas depois de algum tempo ficou tedioso, porque dela, como delfina, era esperada uma certa contenção de comportamento. Foi nessa época que ela adquiriu o hábito de ir mascarada a Paris, e particularmente ao baile da Ópera.
Ali, ela e seus cunhados, e ocasionalmente suas esposas, dançavam até depois da meia-noite; e no começo da manhã as rodas de suas carruagens eram ouvidas na estrada de Paris para Versalhes.
Houve um baile que ficou marcado em sua memória.
A grande diversão desses bailes era o fato de que ela e os membros de sua comitiva perambulavam livremente entre os dançarinos; e foi numa dessas ocasiões que ela se descobriu dançando com um rapaz alto, mascarado como ela, que Antonieta julgou ser de sua própria idade.
Ela ficou deliciada com o rapaz, porque ele era um estrangeiro em Paris e estava tão apaixonado pela cidade quanto ela.
- A senhorita é jovem demais para estar num baile como este desacompanhada - disse ele.
- Eu não estou desacompanhada.
- Então como é que... Ela riu e disse:
- Ah, monsieur, isso é um grande segredo.
- As suas mãos são as mais delicadas que já vi - disse ele. E quando vi a senhorita pela primeira vez, julguei que fosse uma estátua... até que se moveu. E quando se moveu, compreendi que afinal eu sabia o que era a verdadeira beleza.
Ela riu. Estava começando a compreender a arte do flerte, e isso a agradava.
- Pode não ser francês, monsieur, mas no seu país eles ensinam como se prestar um bom cumprimento em francês.
- É fácil prestar cumprimentos em sua presença, mademoiselle. Basta dizer a verdade.
- Fale-me sobre você.
- O que tenho a dizer? Eu estou de passagem pela França enquanto faço o Grand Tour.
- Está gostando do Grand Tour?
Ele pressionou com mais firmeza a mão dela.
- Pode duvidar?
- E está apaixonado por Paris?
- Esta noite, estou apaixonado por Paris.
- Mas apenas esta noite! É a sua primeira noite em Paris? perguntou Antonieta.
- Foi apenas nesta noite que eu compreendi que Paris é o único lugar no mundo onde quero estar.
- Esta é uma descoberta maravilhosa para se fazer, monsleur. Descobrir que onde o senhor está é onde quer ficar!
- Mas temo que toda esta felicidade fuja de mim com a mesma rapidez com que a encontrei.
- Paris não fugirá, monsieur.
- Talvez a mademoiselle fuja. Ela riu.
- Eu quero saber mais de você - disse o rapaz. - O seu nome... o que está fazendo aqui... sozinha deste jeito... tão jovem, tão bela. A sua família deveria guardá-la melhor.
- Eles me guardam tão bem que em noites como esta sinto uma necessidade de fugir.
- Diga-me seu nome. Por favor, diga-me. Como poderei chamar a senhorita?
- Pode me chamar de Marie.
- Marie... Há tantas Maries, mas nunca esse nome me soou tão belo.
- Vai me dizer o seu?
- Axel.
- Que nome estranho.
- É comum no meu país.
- E que país é esse?
- Suécia.
- Eu lembrarei: Axel da Suécia.
- Iremos nos ver novamente aqui amanhã?
- Acho que não será possível.
- A senhorita tem outro compromisso? Cancele-o, eu lhe imploro.
- Eu... é com meu avô.
- Ele é um déspota?
- Ele espera e exige obediência absoluta.
- Homem odioso! Ela riu.
- O senhor não deveria dizer isso - disse ela. - Realmente não devia.
- Chamarei de odioso qualquer homem que a mantenha longe de mim.
- Se alguém ouvisse, pensaria que o senhor me conhece há muito mais tempo que apenas meia hora.
- Às vezes é possível saber nos primeiros momentos de um encontro que esse encontro é diferente de qualquer outro que já houve... ou que haverá... em sua vida.
- Monsieur fala com fervor.
- Marie... chère Marie... Espero que concorde comigo que o que eu disse é verdade.
- O senhor disse que o nosso encontro é importante. Como pode sê-lo? Para o senhor, sou Marie... do baile da Ópera, e para mim, o senhor é Axel da Suécia.
- Conde Hans Axel de Fersen, sempre a vosso serviço.
- Eu... eu lembrarei.
- Eu confiei na senhorita. A senhorita pode confiar em mim. Ele a havia levado até uma alcova onde palmeiras e flores ocultavam-nos dos dançarinos.
Com um gesto rápido, ele removeu a máscara de Antonieta. Ruborizada, ela arrancou a máscara da mão dele. Ele agora estava muito pálido.
- A senhorita... a senhorita teme mostrar seu rosto... quando ele é o mais belo em toda Paris. Mas eu entendo o motivo, madame La dauphine.
- O senhor... então me conhece?
- Já vi retratos seus nas vitrinas das lojas.
Com dedos trémulos, Antonieta ajustou sua máscara. Ele fez uma mesura com dificuldade.
- Madame, irei conduzi-la à sua comitiva.
Ela enlaçou seu braço no do rapaz, que a conduziu de volta para o local onde Artois e Provence aguardavam-na ansiosamente. Fersen fez uma mesura breve e se retirou.
- Venha, vamos dançar juntos-disse Artois. - Mas não acho que você deveria dançar com um desconhecido, porque ele pode ser um de nós.
Josèphe e Thérèse, que estavam na comitiva, estavam olhando estranhamente para Antonieta. Ela percebeu seus olhares.
Elas vêem tudo, pensou Antonieta.
E nesse momento seu desejo por dançar a abandonou. A única pessoa com quem queria dançar era o conde Hans Axel de Fersen.
- Estou cansada - disse ela. - É hora de irmos para casa. Artois ficou surpreso.
- Cansada? Você?
- Não percebe que aconteceu alguma coisa que a deixou cansada? - disse Josèphe.
- Eu quero ir para casa - disse a delfina, imperiosa. - Quero voltar imediatamente. - Na carruagem, durante todo o percurso de volta para Versalhes, ela pensou nele, lembrando cada palavra que ele tinha dito.
Se não tivesse me reconhecido ao tirar minha máscara, ele teria me beijado.
Ela tentou imaginar como teria sido isso. De uma coisa tinha certeza; teria sido completamente diferente do abraço desajeitado do delfim.
Josèphe e Thérèse reuniram-se com as tias.
- Ela insiste em ir a Paris com frequência - murmurou Josèphe. - Raras são as noites em que ela não vai à capital.
- Paris é uma cidade pecaminosa - disse Victoire.
- Papai a odeia - declarou Sophie. - É por causa disso que ele nunca vai lá.
- Ela vai lá - declarou Adelaide, olhos estreitos. - Ela se pavoneia pela cidade, e as pessoas saem e ovacionam sua bela delfina. - Virou-se para as irmãs. - O povo de Paris odeia o papai. Eles o culpam pela fome e pelos impostos. - Continuou, como se estivesse repassando lições a crianças atrasadas: - Quando o preço do grão sobe, os parisienses acusam o papai de estar estocando. Eles então ficam muito zangados.
- Por quê? - perguntou Sophie.
- Porque eles não podem comprar pão quando o preço do grão está alto demais.
- Que pena que eles não podem ser persuadidos a comer brioche! - disse Victoire, com lágrimas de simpatia nos olhos. Eu mesma odeio brioche, mas para o povo, é melhor do que nada.
Sophie fez que sim com a cabeça, mas Adelaide disse com severidade:
- Se eles não podem conseguir pão, também não podem conseguir brioche. Você está falando bobagens, Victoire, e suas sobrinhas estão rindo de você.
- Puxa! - exclamou Victoire com tristeza.
Josèphe e Thérèse asseguraram-lhe que não estavam rindo; elas estavam quase chorando, por conta do comportamento vergonhoso de sua cunhada.
- O que ela fez agora? - perguntou Adelaide.
- Você sabe que ela vai a Paris disfarçada, não sabe? - disse Josèphe. - O que acha que ela faz lá? Ela vai ao baile, e lá dança com desconhecidos. Na noite passada ela dançou com um homem mascarado com quem desapareceu durante algum tempo. Ela pareceu muito perturbada ao dizer adeus a ele.
- Então é assim que a delfina passa seu tempo! - exclamou Adelaide. - Venha, minha querida Josèphe, e você também, minha querida Thérèse. Contem às suas tias tudo o que vocês sabem.
Elas conversaram durante um longo tempo; e depois chamaram o embaixador da Sardenha para contar-lhe a respeito da conduta da delfina.
Ele meneou a cabeça tristemente e disse como seria mais feliz para a França se a futura rainha tivesse a visão e a prudência das suas princesas.
As tias continuaram a narrar aos sussurros, fingindo deplorar, mas na verdade adorando, o que chamavam de légèreté da delfina.
Em certo dia de abril do ano 1774, o rei, que estava em sua bela casa, o Petit Trianon, que ele dera a madame du Barry, sentiu-se mais doente que de costume.
Seu servo, Laborde, ajudou-o a ir para a cama; quando madame du Barry foi sentar-se ao seu lado, ficou alarmada com sua febre e com seus tremores.
Terrificada, chamou Lemoine, o médico real. Lemoine ficou tão alarmado que convocou imediatamente o primeiro-cirurgião, La Martinière, ao leito do rei.
La Martinière examinou o corpo real e declarou que o rei precisava ser removido imediatamente para o castelo. Essa atitude foi interpretada como se ele acreditasse que o rei estava em risco iminente, porque o protocolo da Corte seria gravemente violado se o monarca morresse em qualquer outro local que não nos apartamentos reais de seu próprio palácio.
Ainda que se submetendo ao costume, o rei ficou profundamente alarmado. O transporte de forma alguma melhorou sua condição. No dia seguinte sua febre aumentou, e o tratamento por sangria não o ajudou. Antes que o dia terminasse, foi descoberto que Luís XV estava sofrendo de varíola.
O castelo ficou em polvorosa. Todos acreditavam que o rei era velho e combalido demais para sobreviver a uma doença como essa. Du Barry foi correndo ficar ao seu lado no quarto; ela declarou que iria servir-lhe como enfermeira. As três tias também foram ao quarto do rei; também elas cuidariam dele. Adelaide declarou que elas sabiam do risco de serem contagiadas por essa doença terrível, mas ele era seu pai e era dever delas permanecer ao seu lado.
O delfim e a delfina foram proibidos de comparecer ao quarto do enfermo. Havia muito risco ali para que os herdeiros desafiassem a morte.
Jazendo em seu leito, sabendo que sua última hora não estava distante, o rei sentiu o mesmo remorso profundo que o afligira muitas vezes antes. Pensou no país que ele herdara de seu bisavô, e pensou no país que estava deixando para o seu neto.
- Um reinado não muito glorioso - murmurou. - Mas um reinado longo.
Então lembrou que durante esse reinado as finanças do Estado tinham deteriorado, que o governo tinha uma dívida de setenta e oito milhões de livres. Onde ele havia errado? Ele tinha esbanjado muito com suas amantes e na manutenção de lugares como o Pare aux Cerfs; ele tinha aumentado severamente os impostos.
A Guerra dos Sete Anos acabara em desastre para a França. O país fora forçado a entregar à Inglaterra as suas possessões no Canadá. A mesma coisa acontecera na índia. Ele sabia que os franceses não gostavam do rei que travava guerras e não liderava seu povo à batalha. Ele escutara murmúrios sobre a grandeza de Henrique IV Tinham havido comparações, e o grande Henrique ganhara de longe de Luís. Havia fome, e certos homens - entre eles o rei tinham sido acusados de estocar grãos para aumentar o preço por eles. Durante seu reinado, os plebeus tinham ficado cada vez mais insatisfeitos. Eles reclamavam amarga e continuamente contra os impostos. Eles reclamavam nas ruas de Paris sobre a imposição do imposto do sal, aquele gabelle, e do imposto do vinho, o banvin. As pessoas declaravam que aqueles que tinham menos pagavam os impostos mais altos, o que era iníquo. O camponês pagava impostos ao seu rei, ao seu seigneur e ao clero.
- Não suportaremos isso para sempre!-resmungavam os famintos.
Luís vivera durante os últimos anos num estado de indiferença. O reino durará meu tempo de vida, dizia a si mesmo. A velha frase ecoava agora em sua mente :Après mói - lê déluge.
Ele não estaria aqui para ver o cataclismo. Isso caberia ao pobre Berry e àquela jovem com quem ele se casara.
Agora, com a morte próxima, ele viu como fizera mal ao pôr de lado sua responsabilidade com um Pobre Berry!
- Preciso fazer a contrição, porque sinto o peso dos pecados sobre minha consciência - declarou o rei.
Os padres foram ao leito do rei.
- Alteza, se fará a contrição, terá primeiro de mostrar um coração humilde, um desejo autêntico por perdão - disseram-lhe.
- Eu desejo a contrição - disse, choroso, o rei moribundo.
- Então Vossa Majestade deverá dispensar deste quarto a cortesã.
- Não! - protestou du Barry. - França, eu e você estamos juntos há muitos anos. Não serei separada de você agora.
- Você deve ir agora, minha querida - disse o rei. - Não é bom para você estar aqui. Este quarto é um lugar malsão. O cheiro é horrível. Eu mesmo não aguento meu fedor. Vá, minha querida. Assim é melhor.
- Eu não irei deixá-lo. Eu mesma cuidarei de você.
- Então você me ama verdadeiramente - disse o rei.
- Ficarei com você. - Ela apertou as mãos dele com força, e lágrimas desceram por suas faces.-Jamais deixarei você... jamais.... jamais...
Os padres insistiram:
- Majestade, não haverá esperanças de salvação para a sua alma enquanto esta mulher permanecer aqui; e o tempo urge. Vossa Majestade irá para o Inferno apenas pelo conforto de morrer nos braços dela?
Du Barry viu a indecisão no rosto de Luís e saiu chorando do quarto.
As portas do quarto foram fechadas enquanto os padres requeriam ao moribundo que contasse todos os pecados de sua vida. Disseram ao rei que isso era necessário, para que ele obtivesse a absolvição.
Assim, deitado na cama, quase incapaz de respirar, quase inconsciente, tentou lembrar de todas as coisas pecaminosas que tinha feito no passado. Pensou na imprudência e na indiferença que tinham apodrecido as raízes de um grande reino, cujo trono trôpego agora legava aos netos.
Mas não eram esses pecados os que mais pesavam sobre seus ombros. Haviam sido as farras no Pare aux Cerfs, e o ato abominável de viver em pecado aberto com mulheres como madame de Pompadour e madame du Barry, que tinham contaminado a moral de toda a França.
A confissão foi feita e a hóstia foi trazida debaixo de um dossel da capela até o quarto onde o rei jazia à morte. Soldados estavam posicionados nos degraus do palácio, e a Guarda Suíça enfileirava-se ao longo do palácio até o quarto do moribundo.
Espectadores apinharam-se na ante-sala para ver o rei receber a Sagrada Comunhão. O cardeal que tinha oficializado caminhou até a porta do quarto e declarou em voz alta:
- Cavalheiros, o rei instruiu-me a comunicar que ele pede a Deus perdão pelo exemplo escandaloso que passou ao seu povo. E acrescenta que, se Deus devolver-lhe novamente a saúde, ele irá se dedicar à contrição e ao bem-estar de seu povo. Alguns dias depois, Luís XV estava morto.
Nas ruas, o povo gritava:
- Lê Rói est mort! Vive lê rói!
Os cidadãos de Paris vibravam de alegria. Eles tinham odiado Luís, a quem um dia haviam chamado de O Bem-Amado. Agora voltavam seu afeto para aquele a quem tinham balizado Luís o Desejado.
Antonieta, esperando com o delfim numa saleta, sabia que o rei estava à morte. Ela sabia que, a qualquer momento agora, muitas pessoas iriam se juntar em torno deles; ela sabia que sua vida de alegria imprudente chegara ao fim, e que a delfina despreocupada não poderia ser uma rainha despreocupada.
A porta abriu de repente. Madame de Noailles entrou apressada na sala. Ela se ajoelhou, não esquecendo nem por um momento a postura correia, embora estivesse visivelmente comovida.
- Longa vida ao rei e à rainha da França! - bradou. Nesse momento outros entraram na sala. Houve muitos beija-mãos para jurar lhes servir com seus corações e corpos.
Antonieta virou-se para olhar seu marido. Ela viu o medo nos olhos dele e o compreendeu.
Um lampejo de sabedoria brilhou sobre ela naquele momento, e ela se viu fazendo uma oração silenciosa.
Bom Deus, guie-nos e proteja-nos, porque somos jovens demais para governar.
Madame du Barry chorava copiosamente em seu apartamento. Pensava nos anos em que ela e Luís tinham sido amantes. Eles haviam terminado e finalmente aquilo que ela temera por tanto tempo havia acontecido; este era o fim.
O que lhe restava agora? Nada, a não ser aguardar os eventos. E o que podia esperar do sucessor impassível de Luís, um homem que jamais conhecera os prazeres aos quais ela e seu amante haviam se entregado com tanto abandono? O que podia esperar de uma jovem rainha que havia se declarado abertamente sua inimiga?
Não podia permanecer aqui em Rueil, na propriedade do duque d Aiguillon, onde Luís mandara-a abrigar-se enquanto os padres salvavam sua alma. Du Barry tinha certeza de que d Aiguillon logo cairia em desgraça.
Iria para o Petit Trianon, aquela casinha encantadora que Luís lhe dera. Ali permaneceria entre seus tesouros, aguardando o seu destino.
Disse adeus à duquesa.
- Porque se eu permanecer aqui, a fúria real também cairá sobre vocês-justificou.
A duquesa deu de ombros e disse que achava que a partida de madame du Barry não poderia salvá-los disso.
- Oh, não tenho tanta certeza - disse du Barry.-Antonieta é uma mulher arrogante, mas é despreocupada demais para pensar em vinganças. Quanto ao novo Luís, ele é como uma barra de ferro saída de sua própria oficina. Nada é capaz de vergá-lo. Ainda assim, acho que será melhor se eu deixá-los.
Assim, du Barry partiu para o Petit Trianon, a casa na qual conhecera tanta felicidade. Amava o lugar desde que o vira pela primeira vez. Até ela reconhecera o excelente bom gosto com que o Petit Trianon fora construído, com suas janelas defronte para belos jardins que proporcionavam um espetáculo de cores gloriosas. Não era uma casa grande quando comparada com os palácios dos reis, possuindo apenas oito cómodos. Não era possível ver Versalhes dali, e mesmo assim o palácio ficava convenientemente próximo. Luís, o Bem-Amado, chamara o Petit Trianon de seu ninho de amor, e du Barry sabia que, antes dela, Luís havia entretido muitas de suas amantes ali.
Agora a propriedade era dela, sua amada casinha; e ela não percebera o quanto a amava até temer perdê-la.
Du Barry estava morando no Petit Trianon há poucos dias quando o mensageiro chegou. Ela o viu atravessar o gramado verde do jardim.
- Madame, uma mensagem de Sua Majestade.
Du Barry aceitou o pergaminho e entrou na casa, levando-o para o quarto onde ela e Luís tinham passado tantas horas interessantes e incomuns. Ela tentou adivinhar qual seria o conteúdo da mensagem antes de lê-la.
Sua Majestade estava lhe dizendo que sua presença não era mais requerida na Corte. O rei estava sugerindo que ela se retirasse para um convento.
Ela caminhou pela casa, tentando gravar na memória cada pequeno detalhe.
- Ora, eu não sou a primeira - disse a si mesma enquanto se preparava para partir para o convento. - Isso já aconteceu a muitas outras antes, e com tanta frequência que não deveria me surpreender.
E assim, a deslumbrante du Barry, que um dia havia sido a mulher mais influente da Corte, foi furtada de sua glória e se recolheu à aposentadoria.
As três tias estavam animadas. Adelaide estava planejando como dominar o novo rei; suas irmãs observavam-na, atentas a cada uma de suas palavras.
Elas não tinham conseguido conter seu alívio com a morte do pai. Lideradas por Adelaide, haviam permanecido em seu quarto até o fim, insistindo em executar as tarefas mais servis, ostentosamente arriscando-se a serem infectadas. Agora tinham a impressão de estar com auréolas em suas cabeças. Estavam convencidas de que todas as suas artimanhas, todas as suas intrigas, eram em nome da fé. Como poderia ser diferente quando elas haviam corrido tais riscos no quarto de seu pai?
Mas agora o rei estava morto, o rei que tinha desprezado suas Loque, Coche e Graille. E elas, que arriscaram suas vidas para cuidar do pai, tiveram o prazer de dirigir-lhe olhares martirizados enquanto ele jazia à morte, mostrando-lhe, como jamais tinham conseguido durante sua vida, como fora pecaminoso rir de três santas como elas.
- A próxima tarefa é providenciar para que o novo rei não cometa os erros do velho - disse Adelaide.
Victoire e Sophie olharam uma para a outra.
- Pobre Berry! - exclamou Sophie.
- Ele não é mais Berry - asseverou Adelaide. - Ele é Luís XVI. Lembrem disso. Vocês não mais devem chamá-lo de Berry. E lembrem que não o devem tratar como um sobrinho. Ele é o rei. O que precisamos fazer é impedir que aquela sua esposa pervertida o influencie e acabe por arruinar o país.
Victoire e Sophie olharam uma para a outra, e assentiram.
- Eu vou vê-lo - disse Adelaide.
- Devemos ir também? - perguntou Victoire.
- Vocês não devem ir. Esqueceram que faz bem pouco tempo estivemos no mesmo quarto que nosso pai moribundo?
Victoire e Sophie olharam-na estarrecida. Elas quiseram dizer que, se elas tinham cuidado de seu pai, Adelaide também o havia feito. Mas elas jamais questionavam as decisões de Adelaide.
- Eles irão precisar de mim - disse Adelaide.-E eu devo ir até eles.
Victoire estava pronta para sucumbir a um de seus ataques de pânico, porque, embora ela e suas irmãs tivessem recebido permissão de acompanhar a Corte até Choisy, elas haviam, devido à sua recente proximidade com um indivíduo infectado, sido instaladas numa casa fora do palácio. Ela sabia que cinquenta pessoas já tinham contraído a varíola do rei e que vários já tinham morrido, porque havia sido uma variedade particularmente violenta que causara a morte de Luís XV
Sophie olhou de uma irmã para a outra, sem saber o que fazer desta situação. Adelaide estava estalando a língua, nervosa.
- Vocês não entendem que Luís estará completamente sob o controle daquela menina estúpida? E o que ela vai fazer? Ela trará Choiseul de volta. Ela sempre foi amiga dele. Precisamos detê-la a qualquer custo.
- Seria melhor o nosso jovem rei contrair varíola e morrer, do que Choiseul retornar - disse Victoire. - Ainda teríamos Provence. Ele então seria rei.
- Não diga bobagens - ralhou Adelaide. - Mandarei que minha carruagem seja preparada imediatamente.
- O rei estará ocupado com seus novos deveres - sugeriu Victoire.
- Não ocupado demais para receber sua tia... a tia que foi como uma mãe para ele.
Sophie fez que sim com a cabeça.
- Fomos mães para Berry - disse ela.
Subitamente exibindo uma expressão matreira, Victoire disse:
- Adelaide, você está pálida. Sente-se bem?
Se Adelaide não havia estado pálida antes, estava agora. Desde que o rei morrera, as três irmãs observavam a si mesmas e uma à outra em busca de sintomas.
- Eu me sinto perfeitamente bem-disse Adelaide, obstinada.
- Sente-se - recomendou Victoire.
.- Veja, Adelaide, você está tremendo - comentou Sophie.
.- Você devia descansar em vez de ir visitar o rei - murmurou Victoire.
Adelaide estava olhando desconfiada para as duas. A lembrança do quarto do moribundo voltou à sua mente. Ela disse num tom de voz debilitado:
- Acho que irei descansar um pouco antes de ir ver o rei. Naquela noite correram notícias de que madame Adelaide sofrera de uma leve crise de varíola.
Provence estava em seu apartamento sozinho com sua esposa. Ele tinha dispensado todos os seus amigos e atendentes porque sentia-se tão empolgado que temia trair a si mesmo.
Josèphe observava-o atentamente. Ela sabia o significado dessa empolgação, e o compartilhava.
- A morte de meu avô alterou nossa posição consideravelmente - disse Provence. - Agora estamos apenas a um passo do trono.
- A não ser, é claro, que o rei e a rainha tenham um filho.
- Isso é impossível - disse Provence. Ele olhou para sua esposa e desviou rapidamente o olhar. - Parece haver alguma maldição em nossa família.
- Que não parece ter afetado o seu irmão Artois - disse Josèphe.
- Ainda não podemos dizer isso. Não podemos ter certeza.
Se eu não posso ter um filho, Antonieta também não pode, pensou Josèphe. Ela pode ser bela, mas com toda sua beleza não consegue ter um filho do rei.
- Reis e rainhas! - exclamou Provence. - Eles são infelizes quando precisam ter filhos.
- O seu pai teve três filhos e duas filhas. Provence virou-se para ela subitamente.
- Se algo ocorresse a Luís, eu teria meu lugar no trono.
- Sim - murmurou Josèphe.
E se viu desfilando por Paris, o povo aclamando-a como sua rainha, sua bela rainha, porque com mantos reais de veludo púrpura, decorados com lírios dourados, e uma coroa na cabeça, até ela pareceria bonita.
E isso poderia acontecer com muita facilidade. Apenas uma vida separava Provence da coroa, e como Luís era impotente, eles não precisavam se preocupar com a possibilidade de que mais uma vida surgisse para se impor como obstáculo.
Provence chegou bem perto da esposa e sussurrou:
- Ela pode tentar nos enganar.
- A rainha?
Ele fez que sim com a cabeça.
- Você não notou como seus olhos seguem crianças nos jardins, no Palácio, qualquer criança? Ela precisa apenas botar os olhos numa para chamá-la. Ela acaricia seus cabelos e lhes dá bombons. Seus olhos brilham quando ela escuta seus gritos absurdos. Duvido que ela não tenha a cabeça cheia de planos.
- O que você está dizendo?
- Há momentos em que penso que ela poderia fazer qualquer coisa para ter uma criança.
- Se ela adotasse uma criança... e essa seria a única forma de ela conseguir uma... essa criança não nos faria qualquer mal.
Provence olhou para a esposa com desprezo.
- Adotar uma criança! Ela não quer uma criança... ela quer um herdeiro. Josèphe, há mais de uma forma de ter um herdeiro.
- Ela não pode ter um herdeiro com Luís.
- Não com ele.
- Está dizendo...
- Houve muitas ocasiões, no baile da Ópera, em que ela desapareceu durante algum tempo. Lembra daquele sueco? Ela mudou depois que o conheceu. Pode haver outros. Uma pequena manobra e então... está me entendendo?
- Não! Ela jamais geraria um falso herdeiro para a França!
- Não sei. Sinceramente, não sei. Eu já vi o desespero nos olhos dela. - Ele inclinou a cabeça, e sua voz afundou para um sussurro, para que Josèphe quase não a pudesse ouvir: - Vigie Antonieta - disse ele. - Vigie-a como nunca fez antes, para que, caso ela tenha uma criança, nós saibamos a quem culpar.
Quando chegaram as notícias de que madame Adelaide contraíra varíola, Antonieta imediatamente esqueceu que a velha tinha sido tudo, menos amiga, e seu coração se encheu de piedade.
- Mas é tão triste que ela já esteja sofrendo pelo grande sacrifício que cometeu ao cuidar de seu pai! - exclamou.
Antonieta enviou mensagens gentis para a sua tia, dizendo-lhe que iria visitá-la se isso lhe fosse permitido; embora Antonieta já tivesse contraído varíola, o rei não iria permitir que ela visitasse suas tias.
Agora ela olhou para seu marido com medo.
- Você, Luís, nunca teve varíola. E se contrair a doença?
- Então irei me recuperar ou morrer.
- Você fala como se isso não fosse nada. Ouvi dizer que existe um novo tratamento segundo o qual a pessoa é inoculada com soro de um caso mediano de varíola. A pessoa fica doente, mas sem gravidade, recupera-se logo e portanto fica imune. Luís, quero que você experimente isso.
Luís meneou a cabeça negativamente.
- Eu tenho meu trabalho. Não posso me permitir atrasá-lo.
- Você irá atrasá-lo, e pior ainda que isso, se contrair essa doença. Luís, para me agradar, para descansar minha mente, tente esse novo tratamento.
Ele sorriu lentamente para ela. Ele também tinha ouvido falar do tratamento, e gostava de experimentar coisas novas.
Antonieta queria muito isso, e quando ela desejava alguma coisa desesperadamente, Luís sentia-se compelido a satisfazer esse desejo. Ele nunca esquecia que era por sua culpa que eles não tinham filhos. Ele sabia que a mãe de Antonieta escrevia continuamente para a filha, lembrando-a da necessidade de ter um herdeiro... como se a culpa fosse dela. Quando pensava nisso, sentia que nada que pudesse fazer por ela compensaria a posição difícil na qual a pusera.
Contudo, ele estava determinado a não permitir que ela o influenciasse em seu novo papel. Seu avô jamais fizera qualquer grande esforço para mostrar-lhe como ser rei, mas ele lera muito sobre História, e ocorria- lhe durante essas leituras que as esposas e as amantes de muitos reinos tinham sido responsáveis pela derrocada de seus reinados.
Isso não poderia acontecer sob o seu reinado.
Quando pensava em sua nova posição, ele sentia grandes desejos nascendo dentro de si. Ele tinha passeado pelas ruas de Paris e visto a miséria que se espalhava por elas. Ele queria que fosse dito que durante o reinado de Luís XVI, a França recuperou a sua grandeza. Quando passou pela estátua de Henrique IV, em Pont Neuf, foi tomado por emoções que não sabia possuir. Então ele disse a si mesmo: Um dia talvez coloquem uma estátua minha num pedestal ao lado da sua; e é possível, meu ancestral Bourbon, que eles digam: Aí estão dois grandes rei franceses.
Mas como fracassara em dar a Antonieta a criança que ela desejava, e como decidira que ela não deveria interferir demais na política, ele queria fazer suas vontades em outros assuntos.
Agora ele disse:
- Bem, irei permitir que eles me inoculem com seu soro, e então veremos quais serão os resultados.
Antonieta bateu palmas.
- E eu serei sua enfermeira.
- Fico feliz por isso, porque não quero ser tratado por nenhum servo que ainda não tenha contraído a doença.
Era característico de Luís ser cuidadoso até com o mais humilde dos criados.
Quando foi divulgada a notícia de que o rei seria inoculado, houve muitas críticas. O povo de Paris resmungava; a Corte declarava que o rei estava louco; mas Luís o Desejado era o mais popular dos reis, porque por ocasião da morte de seu avô ele distribuíra duzentos mil francos aos pobres, e declarara que tinha como intenção restaurar a grandeza da França. O povo esperava milagres; e viam nesse menino, que ainda não tinha vinte anos, o salvador de seu país.
- Em breve estaremos sendo conduzidos em nossas carruagens - disse o povo. - Os ricos não serão tão ricos e os pobres serão mais ricos. Teremos todos a mesma riqueza. Vive Louis lê Désiré!
E agora a frívola rainha persuadira-o a submeter-se a uma nova moda. O rei, recém-ascendido ao trono, estava confinado em seu apartamento com varíola. O povo sentia-se traído por seu herói.
Provence estava empolgado. Se Luís morresse... Ele e Josèphe estavam quase delirando com o pensamento. Não precisariam mais observar a frívola Antonieta. Sem Luís, ela não teria mais qualquer importância.
Mas Luís não morreu. Ele se recuperou de seu leve ataque de varíola, e agora que tivera a doença, nunca mais a teria novamente.
Provence e Artois submeteram-se também ao novo tratamento. Ambos adoeceram sem gravidade e rapidamente se recuperaram. O povo estava estarrecido. Isso era realmente uma revelação... um sinal de bons tempos por vir. Logo o mundo estaria livre dessa praga que tinha visitado cada país a intervalos curtos e roubado tantas de suas vidas.
O povo de Paris, o povo de toda a França, estava sequioso por milagres.
Alguém escreveu naquele pedestal em Pont Neuf, no qual ficava a estátua de Henrique IV: Ressuscitado.
O rei, tendo ouvido isso, fitou Antonieta com olhos preocupados.
- Preciso devotar-me ao povo-disse ele.-Preciso fazer bem a ele. Quero restaurar a moralidade e a justiça na França. Mas se eles pensam que eu sou Henrique IV, de volta dos mortos para servi-los, então estão enganados.
- Por que você não seria? - indagou Antonieta.
- Jamais houve um rei francês menos parecido com o grande Henrique do que eu.
A depressão o tocara; e também tocou Antonieta. Ambos estavam pensando no maior rei da França - o libertino que havia espalhado sua semente por todo o país, de modo que em vilas e aldeias era possível reconhecer seus traços.
E a este rei, que não podia nem mesmo dar um filho à sua esposa, o povo estava atribuindo as qualidade de Henrique IV.
- Há momentos em que tenho a impressão de que o universo inteiro caiu sobre os meus ombros.
Em todos os lugares havia retratos do novo rei e da nova rainha, sempre que eles apareciam em público, eram saudados com ovações.
O casal real firmou residência temporária no Château de La Muette, no Bois de Boulogne, e uma multidão ficava diante de seus muros do começo da manhã até a madrugada, conversando excitadamente, falando sobre o final dos dias ruins e o começo de dias bons; inquirindo uns aos outros se não era a coisa mais agradável do mundo ver esse jovem casal - ela ainda sem dezenove anos completos, ele ainda sem vinte-como seus novos rei e rainha. Duas pessoas adoráveis para estabelecer um exemplo a todos os casais casados. Como o novo rei era diferente do repugnante velho Luís com suas mocinhas, seu Pare aux Cerfs, suas de Pompadours e du Barrys gastando o dinheiro público.
Luís, cheio de ideias, determinado a fazer seu povo mais feliz do que tinha sido sob o reinado de seu avô, começou abrindo os portões do Bois de Boulogne, de modo que os cidadãos de Paris podiam ir e vir à vontade; e assim eles viam o rei e a rainha constantemente. Eles se aglomeravam em torno do casal real, aplaudindo e bradando saudações.
O povo agora sentia-se mais próximo de seus novos soberanos. Como o jovem Luís era diferente do velho Luís, que sempre permanecera em Versalhes e evitara pisar em Paris. O velho vilão sabia como seria sua recepção na capital, porque os parisienses jamais escondiam seus sentimentos.
Certo dia Antonieta estava cavalgando no Bois, e o rei aproximou-se para encontrá-la. A multidão observou a linda jovem desmontar do cavalo e correr até seu esposo com grande graça. Luís pousou as mãos nos ombros de Antonieta e, diante de todos ali, beijou sua rainha. O povo bradou vivas; alguns enxugaram os olhos.
- Isso sim é um exemplo para todos nós! - disseram os plebeus. - Agora veremos uma nova moralidade nascer na França.
Luís, vendo o prazer que suas demonstrações de afeto provocaram no povo, deu mais dois beijos calorosos em sua rainha.
E o povo cercou os dois enquanto caminhavam até o Château de La Muette, defronte do qual ficaram a aplaudir por um longo tempo.
Aquilo comoveu Antonieta profundamente. Ela foi direto ao seu quarto e escreveu para a mãe. Contou como era agradável registrar finais felizes, e descreveu sua felicidade em ser rainha. Ela já não estava preocupada como quando tnadame de Noailles liderara a comitiva para beijar-lhe a mão depois da morte de Luís XV. Agora ser rainha não lhe parecia tão ruim. A primeira atitude que tomara como rainha fora remover madame Etiqueta de seu cargo como gouvernante, porque uma das alegrias de sua posição era dispensar quem lhe desagradava. E também o abade de Vermond não podia mais lembrá-la que era hora da lição.
Era rainha; era adulta; cabia a ela dar ordens, e não receber.
Assim, com as ovações do povo ecoando em seus ouvidos, sentou-se para escrever para sua mãe - alegre, entusiasticamente, a carta de uma jovem que começava a achar a vida boa.
Luís visitou-a enquanto ela estava escrevendo.
- Estou dizendo à minha mãe como o povo nos ama - disse a Luís, em pé atrás dela.
Luís estendeu uma mão para tocá-la, mas não o fez. Era mais fácil demonstrar afeto no Bois de Boulogne, sob os olhares carregados de admiração de seus súditos, do que na intimidade do lar.
Ele ficou feliz por vê-la feliz. Sentiu naquele momento que se ela podia sentir tanta felicidade, sua incapacidade como esposo era uma tragédia menor do que pensara.
- Antonieta, é costume do rei da França dar à sua esposa uma casa quando ela se torna rainha.
- Uma casa! Está dizendo que irá me dar uma casa... uma casa só minha?
Ela se levantou, olhos cintilando.
- Não é uma casa muito grande, mas é agradável. Estou falando do Petit Trianon. - Luís deu de ombros. - Sob nenhum aspecto é a casa de uma rainha, mas achei que você gostaria de tê-la e para lá se retirar com uns poucos amigos quando sentir necessidade de alguma quietude.
- Luís, eu vou amar o Petit Trianon! - exclamou. - Quero ir ver o lugar agora mesmo.
- Podemos cavalgar até lá juntos - sugeriu Luís.
- Agora, por favor, agora. Neste exato momento.
Luís pensou no quanto ela parecia uma menininha, e mais uma vez percebeu o grande desejo que sentia em agradá-la.
Antonieta ficou deliciada com aquela casinha escondida do mundo.
Correu de um cómodo para o outro, exclamando com deleite, relembrando-se que o lugar era inteiramente dela, uma casa de bonecas na qual podia esconder-se da Corte. A decoração era elegante, mas simples em comparação com a de Versalhes; este lugar tinha sido projetado para ser um ninho de amor, e era isso que ele era. As cortinas eram em tons pastel em vez de vermelhas ou roxas; tudo era leve e ornamental. As pinturas nas paredes eram as de Jean Antoine Watteau. Havia naquele palácio em miniatura uma quietude tão rústica que era quase impossível acreditar que ele não ficava muito distante de Versalhes ou Paris.
Os jardins eram cheios de flores lindas, e as cores e o perfume eram embriagantes.
Pela janela, ela e Luís olharam o córrego que aguava o terreno, o lindo jardim inglês que o avô de Luís e du Barry tinham começado a produzir e haviam deixado por terminar.
- Eu vou terminar o jardim inglês! - prometeu Antonieta.
- Farei deste lugar um retiro para o qual poderemos vir quando quisermos nos livrar de Versalhes. Luís... Luís... Eu sei que serei feliz aqui. Abrirei os jardins para o povo uma vez por semana. Nos domingos, digamos? Eles serão recebidos aqui, verão as flores e admirarão tudo, exatamente como nós faremos. Por que eles não podem desfrutar dos meus jardins como desfrutam dos do Bois?
Luís abriu seu sorriso lento e satisfeito.
- Eles adorarão ver meus jardins! - continuou Antonieta animadamente. - Os pobres de Paris que só têm as ruas nas quais passear, e que jamais viram flores como as que cultivarei nos meus jardins... As crianças irão brincar na grama... Ah, sim, as crianças irão brincar nos meus jardins...
Luís abruptamente virou de costas para a esposa, e o sorriso de Antonieta esvaneceu. Ela não devia ter falado em crianças. Crianças faziam-nos lembrar de seus deveres para com o reino e da tristeza que sentiam.
Uma sombra introduziu-se lentamente naquela casa linda e iluminada, uma premonição de tragédia iminente.
Maria Teresa escreveu à filha:
As perspectivas são animadoras. Fico lisonjeada em ver teu reino tão feliz e glorioso. O universo inteiro está em êxtase. Há um grande motivo para isso. Um rei de vinte e uma rainha de dezenove anos, e seus atos cheios de humanidade, generosidade, prudência e sabedoria. A religião e a moralidade, que são tão necessárias para atrair as bênçãos de Deus e manter o povo em paz, não estão esquecidas. Em uma só palavra, meu coração está cheio de felicidade e rogo a Deus para preservar-te em nome do bemestar de teu povo, do universo, da tua família e da tua velha mãe, a quem insuflaste com nova vida. Como amo os franceses neste momento! Que grandes recursos existem numa nação que sente tão intensamente! Devemos apenas desejar-lhes mais constância e menos frivolidade. Corrigindo sua moral, eles também corrigirão essas características.
Antonieta mostrou a carta a Luís. Ao acabar de ler, seu cenho estava franzido.
- Esperam muita coisa de nós - disse ele.
- Pois faremos tudo que esperam de nós, e muito mais.
- Faremos o que pudermos. Ouvi falar muito sobre as injustiças no reinado de meu avô, e estou determinado a remediar isso.
- Luís, o duque de Choiseul foi um grande homem no reinado de seu avô.
- Meu avô o dispensou.
- Mas... será que isso foi sensato?
Luís olhou desconfiado para a esposa. Estava pensando em tudo que lera sobre mulheres governando por trás dos reis e a forma como o estado presente da França se devia às extravagâncias de Luís com suas amantes.
- Eu jamais o trarei de volta - disse o rei, teimoso.
- Ele é um homem bom - insistiu Antonieta. - Ele arranjou o nosso casamento. Sempre gostei muito de tnonsieur de Choiseul.
- Não se escolhe ministros por afeto - admoestou o rei.
- Jamais usarei um ministro que tenha agido contra o meu pai. Ele conteve os Jesuítas, e meu pai era um grande defensor deles. Há quem diga que Choiseul foi responsável pela morte de meu pai.
- Isso é completamente impossível! - declarou Antonieta.
- Não tenho certeza disso. Mas de uma coisa tenho certeza: não terei Choiseul como ministro.
Antonieta ficou desconsolada. Ela gostaria de prestar um favor a Choiseul.
O rei prosseguiu:
- Vou reconvocar Maurepas.
- Maurepas! Ele não é amigo de tante Adelaide?
- É possível.
Antonieta fitou-o surpresa. Ele estava permitindo que Adelaide o influenciasse.
- Não foi por causa disso que chamei Maurepas de volta apressou-se em dizer Luís. - Ele é meu ministro sem pasta e presidente do Conselho, porque eu o considero um homem hábil. Decidi dispensar todo o velho Gabinete, com a exceção do cunhado de Maurepas, de La Vrillière. Decidi dispensar o chanceler e Terray, porque o povo odeia muito os dois. Estou fazendo Turgot Administrador das Finanças Gerais, e isso deliciará o povo.
Os pensamentos de Antonieta estavam vagando, e finalmente repousaram nos jardins do Petit Trianon. Como seria divertido coletar plantas do mundo inteiro e replantá-las em seus jardins! Ela reuniria todos os arbustos mais raros: magnólias e árvores da índia e da África. Seria gratificante ver o deleite dos plebeus que perambulassem por ali durante as tardes, e com quem estariam as crianças, as adoráveis crianças, espreitando por trás das saias de suas mães para olhar a rainha.
Luís parara de falar e agora estava pensando naquele homem, Anne Robert Jacques Turgot, que já chamara atenção pela maneira com que se opusera aos impostos do abade Terray. Ele já era conhecido por toda a França como um reformador. Ele havia estabelecido seus atellers de charíté em áreas pobres para ajudar pessoas famintas. Ele construíra estradas, e suas reformas tinham feito de Limoges, sua cidade natal, uma das áreas de maior prosperidade na França. O rei sentia simpatia por ele, não apenas porque as ideias dos dois homens se harmonizavam, mas porque Anne era tão tímido e tão desajeitado quanto Luís.
- Turgot já tem um programa preparado - disse o rei. - É como se ele olhasse através de meus olhos. Ele está determinado a me ajudar a fazer o povo feliz. Ele diz que mesmo sem aumentar os impostos, a França não conhecerá a falência. Estou deliciado com suas ideias. Tenho certeza de que juntos poderemos endireitar o que está torto.
- Tenho certeza de que poderão - disse Antonieta.
- Nós mesmo precisaremos estabelecer um exemplo - disse Luís. - Não quero que façamos extravagâncias enquanto estivermos realizando reformas.
- Você tem toda razão - murmurou Antonieta.
- Decidi cortar nossas despesas pessoais - disse-lhe Luís. Quando La Ferté, que era o Administrador dos meus Menus Plaisirs, veio me pedir ordens, eu lhe disse que não mais precisaria dele, porque meus pequenos prazeres são caminhar no parque, e isso eu mesmo posso administrar.
- Essa é a forma de agradar o povo! - exclamou Antonieta.
- Direi a eles que não mais precisarei do dinheiro que é chamado de droit de ceinture (direito de cinta). Como não se usam mais cintas, não precisarei delas.
- Os súditos precisam saber dessa boa notícia - disse o rei com um sorriso. - Isso irá diverti-los, e mostrará que estamos ansiosos em fazer o que for direito.
- Luís, você está feliz, não está? Não está sentindo tanto medo de ser rei quanto pensou que sentiria, não é?
Antonieta se aproximou de Luís, e viu que ele estava tenso. Ela compreendeu que seu marido temia que ela aventasse o assunto que ele tanto odiava.
Antonieta sabia que não conseguiria persuadir Luís a contratar Choiseul. Ela estava descobrindo que seu marido era um homem teimoso. Mas ao mesmo tempo lembrava de toda a humilhação que tinha sido forçada a suportar nas mãos de madame du Barry, e estava determinada a providenciar para que o duque d Aiguillon, o protegido e amigo de du Barry, não retivesse sua posição na Corte.
Maurepas, o novo ministro sem pasta e presidente do Conselho, ainda que compreendendo que o rei estava determinado a não ser governado por sua rainha, sentia também que a rainha era frívola demais para tender a fazer isso. Ao mesmo tempo, ele lembrava da obstinação de Antonieta no incidente du Barry, e não temia contrariá-la.
Assim, Maurepas decidiu expulsar o duque d Aiguillon para acalmar a rainha e mostrar-lhe que era seu amigo. Todos os que haviam apoiado d Aiguillon culparam a rainha e estavam determinados a fazer tudo ao seu alcance para podar sua popularidade crescente.
Essas pessoas contavam com a ajuda das tias de Antonieta. Elas suspeitavam que a ambição de Provence iria trazê-lo para o seu lado, embora Provence fosse esperto o bastante para esconder sua animosidade.
Nessa época, as pessoas que queriam mal à rainha não achavam difícil agremiar uma facção forte contra ela.
Isto ficou aparente em muito pouco tempo.
Desde a ascensão de Antonieta, o seu círculo imediato desfrutava em sua presença de um relaxamento do protocolo usualmente rígido da corte. Eles gostavam disso principalmente porque se tratava de uma novidade.
- Eu não aguentava mais tantos Você deve fazer isto... você deve fazer aquilo - disse-lhes a rainha. - Creiam em minha palavra, meus queridos, eu não imporei esses rigores a vocês, porque se o fizer vocês irão me odiar, e eu quero que me amem.
As damas ajuntaram-se em torno de Antonieta e beijaram sua face, em vez de sua mão.
- Como se alguém pudesse odiar Vossa Majestade! - exclamaram.
A marquesa de Clermont-Tonnerre, a mais jovem das damas de Antonieta, e uma espécie de galhofeira, pegou uma coifa e a pôs na cabeça, fingiu uma expressão solene e gritou num sotaque muito parecido com o da banida madame de Noailles:
- Vossa Majestade não deve permitir que vossas damas a beijem na face. São as mãos de Vossa Majestade que devem ser beijadas... nãos as bochechas!
- Cale-se! - acautelaram as damas mais sérias. Mas Antonieta apenas riu.
- Você a imita muito bem - disse a rainha. - Devemos lhe dar um papel na peça de teatro, minha querida.
- Então teremos uma peça de teatro?
Antonieta não havia pensado no assunto até aquele momento. Agora decidiu que uma peça deveria ser encenada para a Corte, e que ela mesma interpretaria o papel principal.
- A Corte desaprovará veementemente - disseram a Antonieta. - A rainha interpretando um papel! Todos os nobres de Versalhes declararão que não sabem o que a Corte está se tornando.
- Então não encenaremos em Versalhes. A peça será realizada em Muette... ou talvez no meu querido Petit Trianon. Mas será realizada!
A marquesazinha ousada pegou a mão da rainha e então, ajoelhando cerimoniosamente, levou-a aos lábios.
Todas riram juntas. E depois disso as damas disseram umas às outras que a França jamais teve uma rainha tão adorável e afetuosa quanto Sua Majestade.
E então, certo dia, Antonieta precisou receber algumas damas viúvas que tinham vindo prestar-lhe condolências pela perda de seu avô, e congratulá-la por sua ascensão ao trono.
Suas damas estavam rindo como de costume enquanto ajudavam-na a envergar o sóbrio vestido de luto exigido pela ocasião.
- Agora lembrem-se de que esta é uma ocasião muito solene -lembrou-lhes Antonieta. - Essas velhas senhoras certamente esperam que eu chore. Portanto, tentem se comportar, minhas queridas.
- Claro, Vossa Majestade! - disseram em coro. Antonieta deu um tapinha na face de sua pequena marquesa.
- Você especialmente - disse ela. - Refreie seu humor até a partida das viúvas.
A marquesa abriu um sorriso encantador; duas covinhas apareceram em suas faces. Ela era uma criatura tão linda que o sorriso da rainha aumentou. Era um grande prazer escolher aquelas que ela queria à sua volta.
E então o ritual começou. Foi tão formal quanto qualquer cerimónia no remado anterior. Cada uma das damas aproximou-se da rainha, ajoelhou-se, permaneceu ali precisamente pelo segundo requerido, levantou e aguardou a palavra da rainha para poder falar; e então a rainha conversou trivialidades com cada uma delas durante um certo tempo, que nunca foi menor ou maior do que o tempo dedicado a qualquer uma das outras.
Assim elas vieram: damas velhas e tediosas usando suas coifas de luto, parecendo, aos olhos de Antonieta, um bando de corvos, como uma procissão de beguines funestos.
Essas velhas faziam Antonieta sentir-se nervosa. Seus dedos tamborilavam impacientemente em seu leque.
As damas de companhia haviam se posicionado em torno de Antonieta, a pequena marquesa de Clermont-Tonnerre imediatamente atrás para manter-se completamente oculta pelo vestido, cujas anquinhas estendiam-se para ambos lados.
E então, enquanto falava com uma das mulheres mais velhas, Antonieta ouviu uma risadinha às suas costas.
Aquela menina arteira! pensou Antonieta.
O que ela estava fazendo para provocar risos nas outras? O máximo que Antonieta podia fazer era conter um sorriso; e sorrir, ela sabia, seria uma grave ofensa nesta ocasião em que recebia condolências pela morte do rei.
- Madame, eu a agradeço do fundo de meu coração - Antonieta estava dizendo. - Este é realmente um momento de tristeza profunda para nossa família. Mas eu e o rei rezamos todos os dias para que Deus nos guie para conduzir a França à prospe...
Ela sentiu um movimento em seus pés e, olhando para baixo, viu a pequena marquesa, escondida da velha viúva pelas anquinhas do vestido de Antonieta, sentada no chão, olhando para cima, contorcendo o rosto para, a despeito de suas feições arredondadas e infantis, adquirir certa semelhança com a dama que estava parada diante da rainha.
Era tarde demais para conter o sorriso que aflorou aos lábios de Antonieta. Ela levantou apressadamente o seu leque, mas havia pessoas demais observando-os. Josèphe tinha visto. Thérèse tinha visto.
Antonieta se recompôs quase imediatamente. Ela prosseguiu o discurso, mas para uma rainha - e logo a rainha da França -, rir no meio de um agradecimento às condolências oferecidas por um súdito nobre era tão chocante que seus inimigos não permitiriam que o incidente passasse em brancas nuvens.
Josèphe e Thérèse foram o mais rápido possível conferenciar com as tias. As tias providenciaram para que a história fosse circulada nos ambientes onde causariam mais dano.
Provence aproveitou-se do deslize de Antonieta. Se em algum momento fosse necessário provar a futilidade de Antonieta, incidentes desse tipo deveriam ser lembrados. Além disso, era preciso enfatizar esses incidentes quando eles aconteciam, para que fossem mais eficazes quando a necessidade exigisse ressuscitá-los.
O grupo do duque d Aiguillon providenciou para que isso fosse repetido e exagerado não apenas na corte, mas por toda Paris.
A rapariga da Áustria tinha rido, disseram eles. Ela tinha ousado rir dos costumes franceses.
Porque tinha feito troça de grandes e nobres damas francesas. E ao fazer isso, ridicularizara também a França.
Seus inimigos escreveram uma canção, porque essa sempre era a melhor forma de atrair o povo para uma causa contra ou a favor de uma pessoa ou um princípio. Logo ela era cantada nas ruas e tavernas.
Antonieta, rainhazinha da França,
Se maltratar os franceses for seu prazer,
À fronteira a faremos correr...
Antonieta ouviu a canção. Ficou pasma.
- Mas o povo me ama! Monsieur de Brissac me disse, quando fui à cidade pela primeira vez, que toda Paris me amava!
Ela tinha aprendido outra lição. O povo podia amar num dia e odiar no seguinte, porque o povo era uma turba volúvel.
Durante o ano uma nova moda começou em Versalhes. O rei, em sua afeição pela rainha, era visto com frequência caminhando de braços dados com ela nos jardins. As damas e os cavalheiros da Corte seguiram seu exemplo, e agora maridos e esposas que odiavam uns aos outros, e até eram notoriamente infiéis uns aos outros, ainda assim precisavam perambular pela Galeria dês Glaces, a Cour de Marbre ou a Cour Royale de braços entrelaçados.
Era agradável ver o rei e a rainha tão felizes juntos, porque parecia que quanto mais o tempo passava, mais o afeto que sentiam um pelo outro crescia. Era raro ver tamanha devoção entre um rei e uma rainha da França - tão raro que muitos duvidavam de sua autenticidade.
Essas dúvidas eram alimentadas pelos inimigos da rainha.
Era possível que alguém tão jovem, tão bela, tão dada a rir e se divertir, tão frívola, tão pronta a ouvir lisonjas, poderia amar um homem tão desajeitado, gordo e feio como seu Luís?
Luís! O rei mais estranho que já sentara no trono da França. Houve uma época em que alguns dos amigos dele tentaram transformá-lo num homem normal, e falaram com ele a respeito de atrizes belas da Comédie Française. E o que disse Luís? Oh, ele não estava interessado. Se ele tinha tempo para folgar de seus deveres, preferia gastá-los fazendo travas em sua forja ou caçando cervos.
E era a esse bruto, conhecido por sua impotência (seu avô o tinha forçado a submeter-se a um exame, e o resultado era um daqueles segredos que vazam para se tornar de conhecimento público), que uma jovem linda e frívola tinha jurado fidelidade!
Mas seria realmente fiel?, perguntavam seus inimigos. E logo as pessoas nas ruas estavam fazendo a mesma pergunta.
Ela era descuidada com o protocolo.
Todos já tinham ouvido falar como era o lever da rainha. Há gerações o lever e o coucher dos reis da França eram realizados segundo o mais rígido protocolo. A camisola da rainha só podia ser-lhe entregue em sua alcova pela pessoa de título mais elevado. Portanto, a criada mais inferior devia pegar a camisola e entregá-la à sua femme-de-chambre, que devia dá-la a uma das damas de companhia e, se essa dama fosse a pessoa de título mais elevado presente, a roupa então deveria ser entregue à rainha. Mas se, enquanto essa dama de companhia estivesse prestes a dar a camisola à rainha, uma dama de título mais elevado, como madame de Chartres ou uma de suas cunhadas, entrasse na alcova, a roupa de dormir era imediatamente tirada das mãos da dama de companhia e entregue à rainha pela dama que acabara de chegar à cena.
As cunhadas maldosas faziam tudo que podiam para atormentar Antonieta e mostrar às pessoas à sua volta como ela era descuidada com as dignidades pertinentes ao trono da França.
A condessa de Provence sempre planejava entrar no momento em que madame d Artois estava ajudando Antonieta a vestir sua camisola; então o ritual precisava começar de novo com madame de Provence assumindo o papel principal.
Finalmente, Antonieta declarou que considerava as cerimónias de acordar e dormir tediosas demais, e passou a ir até seu quarto de vestir, onde podia tirar e colocar a roupa com privacidade.
Com essa atitude, Antonieta não apenas rompeu a tradição, como também privou certas pessoas de deveres que elas apreciavam e que concediam prestígio na Corte.
As cartas de Mercy a Maria Teresa estavam cheias de preocupações. O légèreté da rainha estava causando constrangimentos. O humor de Antonieta era animado demais, ela gostava muito de cavalgar, e odiava obedecer ao protocolo.
Antonieta tinha iniciado uma nova moda com a ajuda de seu cabeleireiro, monsieur Léonard, que vinha todos os dias de alguma propriedade em Paris até Versalhes, porque a rainha, temendo que ele perdesse suas habilidades caso se dedicasse exclusivamente a ela, insistia que ele continuasse a conduzir seus negócios. Ele penteava o cabelo da rainha, endurecendo os fios compridos com pomada até que ficassem eretos a partir de sua cabeça, e então com grampos de cabelo gigantescos, concedia-lhes uma forma de torre - às vezes entre noventa e cento e vinte centímetros de altura - e adornava-o com decorações de flores ou miniaturas de paisagens, jardins ou casas. Monsieur Léonard adorava temáticas, de modo que se deliciava em ilustrar pequenas cenas da vida na Corte e exibi-las no penteado da rainha. Logo todas as damas estavam seguindo as modas ditadas pela rainha. Nas ruas de Paris, a moda era ridicularizada pelos cidadãos que haviam nutrido sonhos impossíveis para este novo reinado. Desenhos circulavam pelos cafés - caricaturas da rainha com seu cabelo formando uma torre ridícula em sua cabeça.
As cartas de Maria Teresa estavam carregadas de reproches.
Não há como não tocar num assunto que foi trazido ao meu conhecimento. Estou me referindo à forma como você penteia o seu cabelo. Disseram-me que a partir da fronte ele se eleva até mais de um metro, e que fica ainda mais alto com a adição de decorações, plumas e laços.
Antonieta leu as cartas da mãe e resolveu não se importar com as suas críticas. Ela, afinal de contas, era uma rainha agora, não uma criança que precisasse de admoestações. E, como todas as damas da Corte estavam seguindo os estilos de penteado que ela ditava, eles não pareciam ridículos nos círculos da Corte - que era, em sua visão, o único lugar onde as opiniões nesses assuntos eram importantes.
Mas ela era realmente imprudente, e nunca foi capaz de diferenciar entre o que era importante e o que era trivial; ela também não conseguia compreender como era fácil passar de trivial para significativo. Assim, ela começou a fazer inimigos entre aqueles que podiam ser seus amigos.
Seu amigo, o arquiduque Maximiliano, prestou uma visita à Corte da França durante o mês de fevereiro. Ela ficou deliciada em ver seu irmão novamente e planejou muitos banquetes e bailes para entretê-lo como ele merecia.
Os ramos mais jovens da família real ficaram muito enciumados com essas honras. Era muito difícil para qualquer membro de um ramo inferior perdoar aqueles que estavam acima na árvore; o rei eles deviam aceitar como o filho mais velho de um filho mais velho da casa real. Mas essa sua esposa frívola, que insistia todos os dias em aviltar o protocolo de sua casa nobre, enfurecia a todos; e os homens e mulheres mais próximos a Antonieta se tornaram os seus piores inimigos.
Durante a visita de Maximiliano, os três líderes dos ramos inferiores da família real - o duque d Orléans, o príncipe de Conde e o príncipe de Conti - esperaram que o arquiduque fosse visitá-los; mas Antonieta e seu irmão riram da formalidade dos novos parentes dela.
- Não há nada que eu goste mais de dizer a eles: Muito bem, vocês sempre se comportaram assim, mas a partir de hoje não se comportarão assim nunca mais. Max! Você não imagina como isso os deixa furiosos.
Maximiliano não compartilhava da frivolidade da irmã, e tinha em seu lugar um pouco da pompa do irmão Joseph.
- Por que eu deveria ir visitá-los?-indagou ele. - Eu sou o convidado. Eles que venham ver-me.
- Isso! - concordou Antonieta. - Eles que venham. Agora vamos falar sobre nossa casa.
Os olhos de Antonieta reluziam quando ela falava sobre sua casa, mas ela sabia em seu coração que não voltaria ao Palácio de Schõnbrunn mesmo se pudesse. Ela não queria submeter-se novamente aos olhos vigilantes da mãe e suas reprimendas contínuas. Ora, isso seria quase tão ruim quanto a desaprovação que ela enfrentava na sua própria Corte.
Mas a questão dos parentes de seu esposo não acabou aqui. Orléans, Conde e Conti consideraram que tinham sido insultados. Será que essa jovem, essa l Autrichienne, como a chamavam, acreditava que poderia tratá-los com a falta de respeito que tinha dedicado às velhas viúvas em seu salão?
Ela ia descobrir que insultar membros da casa real era uma história bem diferente.
Além disso, Maximiliano queixou-se por não ter sido visitado pelos parentes do rei, e que considerava essa uma forma grosseira de tratar o irmão da rainha.
- E é, de fato! - gritou Antonieta, e sentou-se para escrever impulsivamente a Orléans.
Não houve resposta a esta carta, e foi deixado a cargo do rei comandar o retorno de seus parentes ofendidos à Corte. O mais zangado de todos foi Conti, que ansiava pela indulgência do rei, mas declarou que estava sofrendo de um ataque de gota que iria mantelo afastado da Corte durante algum tempo.
Mercy, obviamente, reportou tudo isto a Maria Teresa, e a imperatriz, sentindo-se velha e cansada, rezou por sua filha e se perguntou aonde sua imprudência iria levá- la. Escreveu repreensivamente a Mercy e a de Vermond, e por trás de seus reproches havia um apelo: Cuidem da minha filhinha.
A mãe escreveu mais cartas.
Antonieta confidenciou à sua querida amiga, a princesa de Lamballe:
- Há momentos em que deixo de abrir as cartas de minha mãe. Elas quase sempre contêm algum tipo de aviso para que eu não faça alguma coisa segundo minha vontade, ou algum reproche por algo que eu já tenha feito. Minha mãe é a melhor mulher do mundo. Ela me ama como apenas uma mãe pode amar, mas acho que lhe causo tanta apreensão quanto ela me causa. E agora parece que mesmo algo que deveria ser cheio de felicidade, como a visita de Max, se torna um fracasso deprimente por causa daqueles tios velhos, que estão determinados a causar problemas.
E embora Antonieta pudesse esquecer as críticas de sua mãe a respeito de seus penteados e de seu desafio às convenções, havia uma queixa contínua vinda de Viena que ela não podia ignorar.
É muito importante, escreveu a imperatriz, que haja um delfim. Maria Teresa só ficaria satisfeita quando sua filha anunciasse esse evento feliz.
Nas ruas, o povo cantava:
Chacun se demande tout bas: Lê Roipeut-il? Ne peut-il pás?
Era constrangedor ter sua vida íntima comentada e vigiada.
Ela sabia que as criadas das alcovas todas as manhãs examinavam seus lençóis com o máximo de cuidado, e imaginava que ao fazer isso cantarolavam juntas aquela música que as pessoas cantavam nas ruas.
Era mais que constrangedor. Era humilhante.
Antonieta sentiu-se aliviada quando Conti finalmente retornou para a Corte e a tratou com a deferência que lhe era devida.
- Aquele pequeno problema está superado - disse à princesa de Lamballe.
Mas ela ainda tinha muito a aprender.
Antonieta tentara compensar seu desejo por uma criança com o prazer que extraía de possuir sua própria casinha. Ali ela sentia que podia viver como uma mulher simples que não precisava preocupar-se por não ter filhos. Na casinha ela ficava em companhia de alguns de seus amigos e dizia a si mesma que havia muito a desfrutar numa existência rústica. Ela passava dias inteiros lá, chegando cedo pela manhã e retornando a Versalhes no fim da tarde. Os jardins estavam começando a parecer realmente muito bonitos. Ela estava completando o jardim inglês, iniciado por Luís XV e madame du Barry, com a ajuda do príncipe de Ligne, que tinha criado seu próprio jardim adorável em Bei Oeil.
Ela frequentemente se reunia com suas damas de companhia para conversas infindáveis sobre o plantio de flores e o formato que os canteiros deveriam ter.
Certo domingo - o dia em que as pessoas de Paris vinham ao Trianon para ver os jardins da rainha -, Antonieta, em companhia de alguns de seus amigos, incluindo o príncipe de Ligne, sentou-se à sombra das árvores para jogar conversa fora.
As pessoas passaram por ali, e não foi para as flores que elas olharam, mas para a bela rainha, que parecia mais linda em seu jardim rústico do que nunca. Ela parecia uma pastora com seu jeito informal, seu sorriso agradável e sua compleição impecavelmente branca.
Os olhos da rainha sempre seguiam as crianças. Não permitia que elas fossem reprimidas nem quando corriam pelos canteiros.
- Fazem isso porque estão felizes - disse Antonieta. - E me faz bem ver crianças felizes no meu Petit Trianon.
Agora estava dizendo ao príncipe de Ligne que gostaria de construir um pequeno vilarejo nas cercanias do Trianon - uma vila modelo com umas poucas casas nas quais viveriam famílias selecionadas por ela própria: pessoas pobres que precisavam de assistência porque não tinham conseguido viver na cidade, pessoas que amavam o campo e procuravam uma vida pacífica. Ela gostaria de ter a sua pequena vila - unpetit hameau - na qual todos viveriam uma existência rústica perfeita.
- Ah, eu sei o que a inspirou - disse o príncipe. - Você ouviu falar do plano de madame de Pompadour. Ela pensou nele, falou sobre ele, mas jamais o colocou em prática.
- Sim, eu ouvi falar desse plano - admitiu Antonieta. - Ela planejou vestir-se como pastora e criar vacas na sua fazendinha em Trianon. Deve haver uma mágica no ar que sugere um plano como esse, porque também me ocorreu como seria feliz uma vida como essa.
- A ideia nasceu de um romance escrito por um amigo de Boufflers - contou o príncipe. - Lembro-me bem. O título era Aline, Rainha da Golconde, e Aline era a rainha de seu vilarejo, encantadora em suas vestes brancas. A personagem impressionou tanto madame de Pompadour que essa dama, buscando novas experiências, decidiu que gostaria de trocar Versalhes por uma vila, e ser rainha dela.
- E nunca o fez.
- Não, o plano jamais foi completado.
- Então talvez eu o complete um dia. Antonieta estava sorrindo, olhando para o futuro.
Ela vai construir um mundo de romance para escapar da realidade, pensou o príncipe. Se ao menos ela pudesse ter um filho, ficaria feliz.
E olhando para Antonieta, o príncipe sentiu-se triste, porque estava secretamente apaixonado por ela.
Uma menininha de cabelos encaracolados puxou a saia de Antonieta.
- Rainha! - disse a menina.
O príncipe imediatamente se levantou e olhou em volta, procurando pela mãe ou pelo guardião da criança.
Mas Antonieta assegurou ao príncipe que ele não precisava se preocupar. Segurando a mão da menina, disse:
- Olá, querida.
A menina riu e esticou um dedo para tocar a seda do vestido da rainha.
- Bonito - disse a menina, correndo um dedo sujo pelo bolso do vestido.
- Quer ver o que tem nele? - perguntou a rainha. Dedos animados exploraram o bolso.
- Bombons! - exclamou a criança.
- Experimente. Acho que você vai gostar deles. A menina fez que sim.
Agora a mãe da menina tinha aparecido e estava parada em pé, a alguma distância. Ao vê-la, a criança gritou:
- Mamãe, a rainha me deu bombons!
- Madame! - exclamou a mulher, avançando preocupada.
- Rogo para que a senhora não se perturbe-disse Antonieta.
- Gosto que as crianças venham falar comigo.
Agora outras crianças tinham ouvido a palavra mágica: bombons. Elas vieram correndo e pararam perto da rainha, olhos arregalados, bocas cheias de água.
- Venham, tenho mais bombons aqui - disse Antonieta.
E logo um grupo de crianças estava em volta da rainha, comendo os doces, olhando para ela com olhos cheios de sonho e admiração. Antonieta fez-lhes perguntas, e as crianças responderam sem embaraço. François tinha três irmãos. Dali ele ia direto para casa contar-lhes sobre a linda rainha que lhe dera bombons. Marie admitiu que jamais tinha comido um bombom antes. Susette gostaria de levar alguns bombons para o seu irmão que não podia andar.
A rainha ficou tocada, e lágrimas se formaram em seus olhos. A partir daquele dia, todos os domingos ela tinha consigo um grande suprimento de bombons para as crianças.
Obviamente era inadequado para uma rainha imiscuir-se com o povo nos jardins. Não era régio permitir dedos sujos puxarem seu vestido. Esse comportamento não era apropriado à rainha da França. Os inimigos de Antonieta, observando-a, declararam que tal comportamento era mais uma prova de légèreté.
Madame de Artois, grávida, lançava um olhar de triunfo velado para sua cunhada, como para dizer: Vejam que melhor rainha eu teria sido.
Madame de Provence, que não conseguia engravidar pela mesma razão que Antonieta, mostrava-se ao mundo como um modelo de decoro, para que as pessoas dissessem: é assim que uma rainha deveria se comportar. É uma grande pena que Provence não seja o mais velho.
Quanto às tias, não perdiam oportunidades para circular fofocas. Se qualquer homem era visto falando com a rainha, Adelaide exigia saber o que significava aquilo, num tom de voz que não deixava dúvidas de que ela própria suspeitava qual seria a resposta à pergunta. Então as tias regiam de formas diferentes
- Vitória ficando excitada e dizendo que uma rainha frívola como aquela ameaçava arruinar o reino, e Sophie balançando a cabeça e murmurando Pobre Berry! e rapidamente se corrigindo para Pobre Luís!
Assim, as cunhadas, as tias e os inimigos, liderados pelo duque d Aiguillon, deliberadamente traduziram o amor de Antonieta por crianças e seu coração caridoso em maldade; e havia muitas pessoas que jamais deixavam de se referir à rainha como 1 Autrichienne.
Era uma manhã ensolarada de maio, mas o rei parecia cansado enquanto, acompanhado por alguns amigos, descia a Escalier de Marbre e passava para o Cour Royale. Ele tinha ficado acordado até tarde da noite, conversando com Turgot, seu ministro das Finanças; e Turgot, com Maurepas, acabara de partir para Paris.
Os ministros do rei tinham-no aconselhado a fazer uso do clima agradável cavalgando na floresta para caçar, porque, asseguraram-lhe, não lhe fazia bem ficar trancado no castelo, pensando em problemas. Um pouco de relaxamento, persistiram, e ele iria se sentir melhor para lidar com os problemas da nação.
Luís estava preocupado. Começava a compreender que todas as dúvidas que o tinham atormentado no começo de seu reinado não eram infundadas. Possuir ideais elevados era uma coisa, colocálos em prática era outra bem diferente. Ele tinha a impressão de que seu povo esperava que ele fizesse tijolos sem palha.
Estava cercado por todo tipo de problemas. Como era possível reparar os males que tinham se acumulado durante anos, meramente munido da vontade de fazê-lo?
O povo estava pedindo por milagres, e tudo que ele podia darlhes era sua palavra de que se importava com seus súditos, que queria ser seu paizinho, que seu grande desejo era ver uma França feliz.
Isso era bom, mas o povo queria mais. Eles queriam alívio da pobreza; queriam ver nas confeitarias pão que eles pudessem comprar.
Turgot compartilhava dos ideais do rei, e os dois homens trabalhavam em uníssono, mas Turgot também era um idealista e não um homem prático. É simples, dissera Turgot, reduzir o preço do pão introduzindo o comércio livre. Mas ele não tinha levado em consideração o fato de que colheitas ruins elevavam o preço do milho, e que ele precisava de estradas melhores e de um sistema de canais para transportar os grãos.
As colheitas do ano anterior tinham sido anormalmente ruins, e para compensar a inquietação crescente causada por isso, Turgot colocou no mercado, a preço reduzido, milho das plantações do rei.
Isso acalmou os plebeus durante algum tempo, mas quando o preço do grão necessariamente subiu, eles ficaram mais insatisfeitos do que nunca. O povo ficou ainda mais zangado com o que considerou reformas ineficazes do que tinha ficado com qualquer outra reforma. Durante o inverno, quando as estradas estavam bloqueadas com neve, era impossível conduzir grãos até Paris, e o preço do pão subiu. Ameaçado com fome, o povo procurou por bodes expiatórios, e escolheu Turgot que, segundo eles, estava persuadindo o rei a manter alto o preço do pão.
Como resultado do aumento do preço do pão, houve distúrbios em várias cidades, e eles alcançaram proporções alarmantes em Villers-Cotterets, onde homens e mulheres saquearam os mercados.
Mais alarmante era o fato de que esses distúrbios tinham sido organizados por agitadores, porque o grão roubado de barcos do Oise não foi destinado a nenhum uso útil, e sim jogado no rio.
Quando essas notícias chegaram a Versalhes, o rei ficou profundamente deprimido. Ele não suportava contemplar o sofrimento de seu povo, e foi um golpe forte compreender que as atitudes dele e de seu bom ministro Turgot estavam sendo mal interpretadas.
Então, nesta manhã, Turgot e Maurepas, temendo que os distúrbios se estendessem até Paris e que fossem mais violentos do que haviam sido nos vilarejos, partiram para a capital recomendando ao rei passar a manhã caçando, o que restauraria sua saúde abalada, e lhe daria novas forças para lidar com seus problemas.
Agora ele saiu a cavalo do castelo e viu a distância uma multidão de homens e mulheres maltrapilhos, carregando ancinhos e gritando À Versaittes . Eles pareciam muito perigosos e, enquanto ele desmontava do cavalo para observá-los, viu que eles estavam emergindo da estrada de Saint-Germain e seguindo diretamente até o mercado.
O distúrbio, ele presumiu, tomaria a mesma forma que aqueles que já tinham ocorrido em Saint-Germain, Poissy, Saint-Denis e outros lugares. Os insurgentes arrombariam as portas dos padeiros, jogariam os grãos e o pão nas ruas, e roubariam tudo que pudessem.
Pela primeira vez em sua vida, Luís compreendeu que estava cara a cara com uma situação que ele precisava controlar pessoalmente.
Seus ministros já estavam a caminho de Paris, e ele precisava agradecer a Deus por isso, porque ele podia ter certeza de que se houvesse problemas em Versalhes, haveria problemas ainda maiores na capital.
Luís mandou chamar imediatamente o príncipe de Beauvau e o príncipe de Poix, e ordenou que convocassem a guarda e fechassem os portões do castelo. Em seguida entrou para reunir-se com a rainha.
Antonieta estava em sua cama; ela fora dormir tarde na noite anterior e ainda não tinha acordado. Acordou e levantou assustada ao ver o rei, porque seu rosto estava lívido e seus lábios carnudos tremiam.
- Você precisa se arrumar imediatamente - disse a ela. Ela fitou o marido.
- Luís... O que aconteceu?
- O povo está marchando para Versalhes.
- Opovo.
- É a Guerre dês Farines. Poissy, Saint-Denis, Saint-Germain... e agora Versalhes e Paris.
- Luís... o povo... eles estão famintos? Luís assentiu positivamente.
- Mas Turgot acredita que há pessoas em nosso reino que os incitam a se revoltar. Estamos fazendo tudo que está ao nosso alcance. Nós temos os nossos ateliers de charíté... Eu não sei o que mais pode ser feito.
- Luís, há momentos em que o povo da França me amedronta. Eles nos amam devotadamente num dia e nos odeiam no seguinte. Eu não confio mais no povo da França.
- Vista-se rápido - disse o rei.-Venha ao meu apartamento quando estiver pronta.
- Luís, eles vão marchar contra o castelo e destruí-lo como destruíram as padarias? Eles vão matar a todos nós?
Ele fez que não com a cabeça.
- Mas venha o mais rápido que puder.
As damas de companhia correram até sua ama e a acompanharam ao quarto de vestir. Durante todo o tempo, o povo furioso marchando de Paris a Versalhes não saiu dos pensamentos de Antonieta. Então ela se perguntou se, caso cruzassem com o pobre monsieur Léonard, eles fariam mal ao homem.
E pensando no pobre monsieur Léonard, Antonieta parou de se preocupar consigo mesma.
A multidão havia escalado os portões e agora ocupava o pátio interno.
- Saia, Luís! - gritaram. E acrescentaram, sarcásticos: Luís, queremos ver você. Ó Desejado, saia.
Antonieta estava em pé com Luís atrás do balcão.
- Preciso sair para o balcão e falar com eles - disse Luís.
- Não faça isso. Você não deve fazer o que eles querem.
- Estão chamando por mim, e eu sou seu rei.
- Você não é culpado por este problema. Você é responsável pela colheita ruim?
- Um rei é sempre responsável. - Ele murmurou quase mecanicamente: - Tenho a impressão de que o universo inteiro caiu sobre os meus ombros.
Luís saiu para o balcão, e um grito se elevou da turba.
- Luís! - gritaram. - O que você faz aí, Luís? O que você comeu hoje, Luís? Pão... pão como este?
Vários deles balançaram no ar pedaços mofados de pão. Alguns foram atirados no balcão. Um acertou Luís na bochecha. Ele o pegou no chão.
- Experimente, Luís! - gritaram. - Coma, Luís. Já provou alguma coisa com esse gosto? Essa é a porcaria que você pede aos seus súditos que comam.
Luís levantou a mão.
- Meu bom povo... - começou.
Uma vaia escarninha se levantou da multidão.
- Queremos pão barato! - vociferaram. - Você prometeu pão barato!
As vaias e palavras de ordem prosseguiram, e era impossível para Luís fazer-se ouvir. Várias vezes ele levantou a voz. Eles não escutaram.
Antonieta o chamou:
- Volte para cá, Luís. Eles vão acabar machucando você. Eles estão despejando toda a sua fúria em você.
Arrasado, Luís retornou para a sala, bochechas gordas tremendo com emoção, olhos míopes cheios de água.
O príncipe de Beauvau saíra a cavalo para o pátio, liderando os guardas. A multidão começou a jogar nele grãos dos sacos que tinham roubado.
- Se vocês não se retirarem em ordem, serei forçado a recorrer a armas - alertou Beauvau. - O rei me ordenou a não fazê-lo exceto por autodefesa. Ele insiste que vocês não devem ser feridos.
Em resposta, um punhado de farinha foi atirado em seu rosto.
O príncipe estava desesperado. Ele podia ver que os líderes da turba estavam fazendo tudo que podiam para levar seus seguidores a um frenesi.
- Se vocês não me deixarem falar, como poderei ajudá-los? - gritou.
- Desça do cavalo, monsieur lê princel - gritou o líder. Desça e venha comer o pão mofado que você e a sua gente nos mandam comer.
- O pão mofado é o mesmo que vocês roubaram em SaintGermain? - gritou o príncipe.
- Todos os franceses da França estão comendo pão mofado
- responderam-no.
- Esse não é o pão vendido nas padarias! - gritou. - Aquele pão é bom.
Os líderes da turba agora estavam realmente zangados.
- Ao inferno com os Bourbons!-gritaram.-Ao inferno com aqueles que vivem na abundância enquanto o povo morre de fome.
Beauvau entrou em desespero. Ele lembrou dos relatos sobre os danos causados em Villers-Cotterets por homens como esses. Em sua imaginação ele viu o castelo em chamas, o rei e a rainha assassinados diante de seus olhos.
Ele levantou a mão.
- Uma palavra. Se vocês têm a justiça ao seu lado, ouçam o que tenho a dizer. Se estão se rebelando realmente porque o pão está caro e não porque são inimigos do seu rei, ouçam o que tenho a dizer!
- Bobagem! - gritou o líder. - Devemos dar ouvidos a esses príncipes? Vamos, amigos. Vamos atacar o castelo!
- Primeiro vamos ouvir o que ele tem a dizer - gritou uma voz da multidão; e outras juntaram-se a esse apelo.
Beauvau tinha apenas um pensamento na cabeça - afastar a turba de Versalhes e salvar o rei e a rainha; e vendo apenas uma maneira de fazer isso, agiu com ousadia.
- A que preço vocês querem o pão? - bradou.
- A dois sous - responderam os líderes da turba, acreditando que isso seria impossível.
Beauvau gritou:
- Muito bem! O preço será dois sous
O pátio ficou em silêncio. A multidão começou a murmurar:
- Pão a dois sous...
Não havia mais justificativas para uma manifestação. Alguém gritou:
- Vamos aos padeiros! Vamos exigir o pão de dois sousl Em poucos minutos o pátio estava vazio.
O distúrbio em Versalhes chegara ao fim.
Mas esse não foi o fim da Guerre dês Farines.
Turgot chegou correndo de Paris. Seus piores temores haviam se concretizado. O distúrbio ali tinha sido mais violento do que em qualquer outro lugar.
Beauvau evitara uma catástrofe em Versalhes, mas era impossível para os padeiros venderem seu pão a dois sous, e essa promessa teria de ser revogada. Por enquanto o preço do pão teria de
permanecer naquele valor alto que dera à plebe seu motivo para uma revolta.
Mas Turgot trazia notícias ainda mais perturbadoras. Quando fora necessário prender alguns manifestantes em Paris, descobriuse que muitos daqueles vestidos como mulheres eram na verdade homens. Eles não pertenciam à classe mais pobre, que tinha bons motivos para se queixar e não possuía condições para compreender as dificuldades enfrentadas pelo rei e por seus novos ministros. Não, eles eram homens de alguns recursos. Dois deles foram confinados no Châtelet, e identificados como Jean Desportes, um peruqueiro de renome, e Jean Lesguille, um tecelão. Os dois foram presos enquanto pilhavam uma das lojas invadidas, e foi provado que eram homens bem nutridos, com dinheiro nos bolsos, que podiam facilmente pagar por seu pão. Quanto a Lenoir, o chefe da polícia de Paris, ao invés de conter os distúrbios, ele tinha ajudado a estimulá-los.
Turgot tinha uma teoria:
- Ao que parece, o levante não foi uma manifestação do povo, revoltado por estar passando fome por causa do preço do pão. Esses levantes foram organizados com muito cuidado.
Não era normal que o rei ficasse zangado, mas agora Luís foi possuído por uma raiva que não foi menor porque sua natureza letárgica raramente o permitia perder a cabeça. Luís foi tomado por uma indignação profunda ao perceber que, embora quisesse servir seu país com toda a capacidade de seu coração e de sua mente, havia inimigos em seu reino que, tencionados a destruí-lo, fariam a França sofrer uma dor que ela não conhecia há duzentos anos.
Sua raiva foi tão grande que inundou seu constrangimento, e naquele momento Luís foi verdadeiramente rei. Ele dispensou Lenoir e conclamou seu Parlement a Versalhes.
Quando chegaram, os membros do Parlement encontraram um banquete à sua espera, e depois que haviam sido um tanto amaciados por boa comida e bebida, estavam prontos para ouvir o que o rei tinha a dizer. Luís disse-lhes que estava determinado a acabar com essas arruaças que poderiam facilmente degenerar-se em revolução. Ele queria instituir tribunais para que os verdadeiros culpados fossem descobertos.
Seu discurso foi fluente, e era como se um novo homem tivesse tomado o lugar do antigo Luís.
- Vocês ouviram minhas intenções - declarou. - Eu os proíbo de levantar protestos contra minhas ordens ou fazer qualquer coisa para contrariá-las. Confio em sua fidelidade e em sua submissão num momento em que decidi tomar medidas que garantirão que durante o meu reinado jamais serei obrigado novamente a recorrer a elas.
Depois Turgot congratulou Luís, e fez isso com pasmo no olhar. Como este podia ser o mesmo rei apático que sempre parecera tão desajeitado ao tratar com seus ministros e súditos? Como este podia ser o Pobre , como frequentemente era chamado desde os tempos de seu avô, que o apelidara de Pobre Berry ?
- O fato é que me sinto mais embaraçado com um homem do que com cinquenta - confidenciou Luís. - Além disso, eu estava tomado pela emoção.
A emoção o tomou novamente quando, na porta de seu apartamento, encontrou um bilhete que lhe dizia:
Se o preço do pão não baixar, e o ministério não mudar, atearemos fogo nos quatro cantos do castelo.
E apareceu escrito nas paredes do castelo:
Se o preço não baixar, nós vamos exterminar o rei e toda a raça dos Bourbons.
O rei estava mais nervoso do que nunca, porque agora sabia que seus inimigos estavam dentro do palácio.
Ele queria conversar sobre isso com alguém em quem pudesse confiar. Virou-se para a rainha, mas será que poderia confiar nela? Ela não lhe desejava nenhum mal, mas era impulsiva demais. Era dada a falar sem pensar. Não, ele não podia falar com a rainha.
E pensando nela, lembrou daqueles homens cujo sangue era o seu, seus próprios parentes.
Antonieta não tinha como compreender como ela ofendera profundamente os Orléans, Conde e Conti, quando seu irmão visitara a França. Antonieta jamais conseguia colocar-se no lugar dos outros. Ela via o mundo através dos olhos de Antonieta - um lugar feliz e agradável onde todos deviam ser gentis uns com os outros e todos deviam compreender que nada era de grande importância quando comparado com a alegria das horas felizes.
E pensando assim, Luís lembrou de Conti. Conti, o mais vingativo de todos eles, Conti, que se ausentara da Corte atribuindo isso à sua gota. Conti, cuja casa de Elsle Adam ficava em Pontoise, aquela área na qual, conforme se descobrira, os distúrbios haviam começado.
O rei sabia que Conti tinha especulado pesadamente sobre os grãos, e o edital de Turgot, que fora calculado para baixar os preços - e que teria sido bem-sucedido não fosse a colheita ruim e a carência de transportes - , fora criticado por ele, Conti, que era hostil a Turgot, hostil à rainha.
Era alarmante. Um inimigo tão próximo. Um inimigo em sua família. E um inimigo que podia contemplar a destruição da monarquia.
Luís tremia. Ele sabia que era preciso agir com firmeza.
O peruqueiro e o tecelão tinham sido enforcados em público, e a visão daqueles dois homens nos patíbulos deitara uma sombra de preocupação entre os agitadores.
O exemplo fora necessário. Aqueles homens que foram pagos para começar a Guerre dês Farines, e que, quando presos, tinham sido encontrados com dinheiro nas bolsas, ficaram agradecidos por serem libertados, e se mantiveram em paz.
A grande virada da vida de Luís tinha chegado; mas ele não sabia disso, e hesitou. Seu momento de determinação firme tinha acabado.
Devido às suspeitas odiosas que haviam emergido em sua mente, ele temia continuar o inquérito. Estava com medo de descobrir quem estaria por trás deste ensaio para uma revolução.
Luís não foi o único que havia desconfiado de seu primo. Nos círculos intelectuais, dizia-se à boca pequena que Conti estava profundamente envolvido nos distúrbios. Luís estava com medo, e continuava a tremer.
A Turgot ele escreveu:
A suspeita é terrível e é difícil saber que curso tomar. Mas infelizmente, aqueles que disseram isso não foram os únicos. Espero, para o bem de meu nome, que eles sejam os únicos caluniadores.
Os distúrbios tinham parado com a punição sofrida pelo peruqueiro e pelo tecelão.
A hora de ousadia de Luís havia passado. O momento em que, temendo atiçar impulsos vingativos, decidiu deixar a questão repousar, foi marcante em sua vida.
Era um dia de junho, e os cidadãos de Rheims demonstravam sua lealdade para com o rei e a rainha. Os distúrbios, ainda que recentes, estavam esquecidos. O que estava acontecendo agora era uma forma de espetáculo; a vida dos plebeus era tão difícil que os dias em que viam de perto o esplendor dos reis e das rainhas eram considerados grandes eventos.
Na noite anterior a rainha, com seus cunhados e cunhadas, fora conduzida em carruagem pelas ruas enluaradas, enquanto a multidão bradava:
- Longa vida à rainha! Longa vida à família real!
Este era o dia em que Luís XVI seria coroado rei da França.
Antonieta não estava com ele. Luís estava decidido a poupar seu país dos custos de uma coroação dupla; ele estava ainda mais ansioso por poupar seu país dos gastos de sua própria coroação tradicional.
- Prefiro segurar minha coroa pelo amor ao meu povo - declarara. - Não é preciso que eles jurem servir a mim. Que me sirvam apenas enquanto for sua vontade fazê-lo.
E além do mais, Luís odiava esse tipo de cerimónia. Mas seu desejo por manter a privacidade e evitar custos não foi compreendido. O povo queria que a cerimónia fosse executada.
- Em breve teremos mais gastos com o casamento de Clothilde
- dissera Luís. - E depois haverá o resguardo de Thérèse.
Mas não havia adiantado. O povo exigira ver seu rei em veludo vermelho. Assim, Luís precisou submeter-se, embora ele e a rainha tivessem concordado que apenas ele seria coroado.
Assim, a antiga cerimónia começara naquela manhã com a procissão chegando à alcova real e o Mestre de Coro batendo em sua porta.
As palavras ainda ecoavam nos ouvidos de Luís enquanto ele viajava em sua carruagem real até a catedral.
- Qual é o seu desejo?
- Desejo ser rei.
- O rei dorme.
Então seguiu-se uma repetição dessas palavras três vezes, quando o bispo replicou:
- Pedimos por Luís XVI, que nos foi dado como rei por Deus.
Em seguida ele fora conduzido até sua carruagem, ele se sentindo desajeitado em vestes púrpura com prata e plumas no manto e diamantes no chapéu.
Como podia não pensar nos monarcas que haviam estado naquela situação antes dele? Carlos Magno, São Luís, Henrique IV, Luís XIV... até seu avô! Como eles deviam ter parecido diferentes deste homem gorducho e feioso que era agora seu rei.
Mas, enquanto se ajoelhava diante do altar e os robes de veludo real decorados com lírios dourados eram deitados sobre ele, Luís estava jurando que jamais deixaria de amar seu país, que seu objetivo de vida seria devolver a prosperidade à França, que se fosse preciso ele daria sua vida a serviço de seu país.
Olhou para cima de repente e viu Antonieta. Ela estava numa galeria perto do altar, e viu que ela estava inclinada para a frente e chorava em silêncio.
Luís parou e ela sorriu para ele através de suas lágrimas. Muitas pessoas testemunharam essa troca de olhares, sentindo a emoção e o afeto que eles dirigiam um ao outro. Alguns choraram, e todos aplaudiram, gritando:
- Longa vida ao rei e à sua rainha!
Aquele foi um momento comovente, uma exceção à traição. E foi dito que nunca um rei e uma rainha foram tão devotados um ao outro quanto Luís XVI e Maria Antonieta.
Assim que conseguiu, juntou-se a Anotonieta. Ela estendeu as mãos e levantou seu rosto até o dele.
- Nós sempre estaremos juntos - disse Luís. Antonieta apenas fez que sim com a cabeça, porque ela, que se
emocionava muito mais facilmente que ele, não tinha neste momento nada a dizer.
O povo estava chamando por eles. Eles precisavam caminhar ao longo da galeria que fora erigida da catedral até o plácio do arcebispo.
- Venha-disse Luís, e entrelaçou o braço de sua esposa ao seu. Enquanto caminhavam, e a multidão em cada lado da galeria
via o afeto no rosto do rei, Luís viu emoção no da rainha.
- Deus os abençoe! - gritou a multidão. - Longa vida a Luís e à sua rainha!
Thérèse, condessa d Artois, jazia sobre travesseiros. Estava exausta mas triunfante. Era a primeira da família real a dar à luz a uma criança.
Thérèse tinha um bom motivo para sentir-se triunfal. Provara ser fértil, e parecia provável que nenhum dos irmãos do seu marido conseguiria prover aqueles enfants de France tão desejados. Se isto acontecesse, talvez um dia o seu filho usasse a coroa.
A câmara de resguardo estava cheia de gente, porque era costume permitir que todos que quisessem fossem observar o nascimento daquele que poderia herdar o trono francês.
Ela sabia que sua irmã Josèphe estava invejosa. Quanto à rainha, dizia-se à boca pequena que ela seria capaz de trocar dez anos de sua vida pela oportunidade de gerar um herdeiro.
Mas nenhuma delas teria seu desejo saciado. A afortunada era Thérèse, a feia Thérèse.
Antonieta agora estava em pé ao lado da cama.
- Ora, Thérèse, você é realmente uma felizarda - disse Antonieta. - O bebé é lindo... lindo...
Os lábios finos de Thérèse curvaram-se num sorriso de desdém, e Antonieta deu as costas para a cama. Ela sabia o que Thérèse estava pensando. De fato, todos os presentes estavam pensando a mesma coisa. Antonieta tinha a impressão de que os olhos de todos que tinham vindo à câmara de resguardo satisfazer sua curiosidade vulgar agora estavam fixos nela.
Porque eles não tinham vindo ver o nascimento da criança de Thérèse, mas testemunhar a inveja de uma rainha infecunda.
Ordenou que a criança fosse trazida até ela para poder abraçála. Ali estava o bebé, deitado numa almofada de veludo, cabecinha corada, mãozinhas fechadas.
- Que deus a abençoe, criança - murmurou.
Um murmúrio se levantou ao redor dela. Uma das mulheres do mercado de peixe gritou numa voz rouca:
- Devia estar segurando nos braços o seu próprio filho!
Apoissarde apenas havia posto em palavras o que todos ali estavam pensando. Antonieta virou-se para ela e meneou levemente a cabeça. E então, com grande dignidade, devolveu a criança às enfermeiras, e foi até a cama despedir-se de Thérèse.
- Você precisa de descanso - disse ela.
Thérèse concordou. Ela estava exausta, e a sala estava abafada porque havia muita gente apinhada ali dentro.
- Este é um costume bárbaro-sussurrou Antonieta.-Tanta gente reunida para olhar uma mulher numa hora como esta.
- Sim - disse Thérèse com uma pontada de malícia na voz.
- Mas vale a pena suportar essa inconveniência para ter a satisfação de parir uma criança.
- Eu também suportaria qualquer inconveniência-murmurou Antonieta. E enquanto beijava sua cunhada e se virava para sair, pensou: Suportaria com felicidade.
As pessoas recuaram enquanto Antonieta caminhava calmamente até a porta. Ela ouviu sussurros à sua volta. Afinal, o que pessoas do povo, cujo único privilégio era invadir aposentos nobres em horas como esta, sabiam sobre protocolo da Corte ou mesmo simples boas maneiras?
- Ela devia ter vergonha...
- Ela devia era passar menos tempo em seus bailes e festas, e mais tempo com o rei...
- Ainda assim, lá vai ela, arrogante como ninguém! Essas austríacas... elas não são como as francesas. Dizem que são frias. Elas não têm talento para ser mães.
- Santa mãe de Deus, por que devo suportar tudo isto? rezou Antonieta. - Por que não posso ter uma criança? Se eu tivesse uma criança... um delfim para a França... eu seria a mulher mais feliz do mundo. É muita coisa para pedir? Isso não é o meu dever? Por que deve me ser negado aquilo que eu quero mais do que qualquer coisa na Terra?
Mais uma vez ela sentiu aquela sensação de sufocamento na garganta, e teve medo de desmaiar e expor sua dor a todos eles.
Enquanto passava pelo salle dês gardes, Antonieta apercebeuse que as mulheres do mercado de peixes estavam caminhando ao seu lado.
Para aquelas mulheres, Antonieta parecia irreal. As mãos das peixeiras eram vermelhas e ásperas, prejudicadas por lidar com peixes frios e pegajosos. Mas as mãos pequeninas da rainha, reluzindo com jóias, pareciam feitas de porcelana. A própria rainha parecia feita de porcelana. Seus cabelos dourados formavam uma torre sobre sua cabeça e eram ornados com flores e laços; seu vestido era de seda, com um decote generoso para exibir seu pescoço branco e delgado, envolto por um colar de diamantes; suas saias de seda farfalhavam enquanto ela caminhava. E para essas mulheres rudes do mercado de peixe essa criatura não parecia nada mais do que uma boneca de porcelana que a França adotara como mais um ornamento em sua Corte. Ao lado dessa criatura belíssima elas se sentiam toscas e, como sempre, a inveja gera o ódio. Muitas delas tinham mais filhos do que podiam alimentar. Elas lembravam da dor de dar à luz, da repetição repugnante de conceber, gerar e parir. Por que devemos passar por tudo isso, perguntavam-se a si próprias, enquanto essa bela peça de frivolidade, que parece um ornamento de porcelana mantido numa redoma de vidro para não quebrar, sabe como ter todo o prazer no mundo e não sofrer a dor de parir uma criança?
- Quando vamos ver o seu resguardo, madame? - perguntou ousadamente uma delas.
- Não seria melhor dar uma criança para a França do que tantas festas para os seus amigos? - gritou outra.
- Mas a madame é delicada demais para ter filhos. Amadame tem medo de estragar sua silhueta.
Antonieta não podia olhar para elas; não ousava. O que iriam dizer nas ruas de Paris se essas criaturas voltassem para as suas barracas de peixe falando sobre como a rainha tinha esquecido sua majestade e chorado diante delas?
Assim, Antonieta manteve a cabeça erguida. Não olhou para a esquerda nem para a direita, e teve a impressão de que a caminhada entre a câmara de resguardo e seu apartamento seria muito longa.
As peixeiras interpretaram equivocadamente o gesto de Antonieta. O rubor em suas faces, a forma como seu queixo estava empinado demonstravam arrogância; era esse comportamento austríaco que ela estava trazendo para a França.
O sangue subiu às cabeças das peixeiras. Agora elas falavam com Antonieta e umas às outras nos termos mais rudes. Diziam umas às outras cruelmente por que Antonieta e o rei não podiam ter filhos. Elas repetiam todos os rumores, todas as histórias, tudo que estava circulando nos cafés e tavernas da cidade.
Elas estavam mostrando a essa austríaca orgulhosa que as poissardes francesas não pesavam suas palavras.
E mesmo assim Antonieta continuava caminhando. As mulheres continuavam a cercá- la, e ela podia sentir suas mãos rudes em suas roupas. Sentindo seu hálito quente, fedendo a alho, e o cheiro de peixe impregnado em suas roupas, Antonieta mais uma vez sentiu medo de desmaiar.
A princesa de Lamballe, que caminhava ao seu lado, arfava sonoramente. Antonieta compreendeu que a princesa sentia medo do povo quando ele se aproximava demais. Essas mulheres aglomeradas ao seu redor lembraram Antonieta da turba que ela tinha visto dos balcões na época da Guerre dês Farines. Eram as mesmas pessoas que tinham gritado Vive lê Rói! Vive Ia Reine! em Rheims, as mesmas pessoas mas com um humor diferente.
Finalmente elas chegaram aos apartamentos. Os pajens abriram a porta. Durante um segundo hediondo ela temeu que aspoissardes a seguissem. Nesse segundo foi possível ter outros pensamentos terríveis. Ela foi capaz de pensar nessas mulheres agarrando-a com suas mãos sujas, arrancando-lhe as roupas, enquanto suas observações obscenas ficavam ainda mais obscenas.
Antonieta pensou: sinto medo do povo da França.
Então a porta foi fechada e houve paz. Ela não podia mais escutar as vozes, não podia mais sentir o cheiro do mercado de peixes.
A princesa de Lamballe, sua amiga mais querida, estava ao seu lado.
- Não permita que elas aborreçam você - murmurou a princesa. - Elas são a ralé... por que devemos nos importar com o que elas dizem?
- Eu me importo, não por elas nem por sua obscenidade disse Antonieta.-Eu me importo com o fato de que sou uma rainha infecunda.
Então Antonieta se deitou na cama e ali chorou silenciosamente. A princesa de Lamballe fechou as cortinas e deixou Antonieta expurgando sua dor nas lágrimas.
A princesa de Lamballe, a quem a rainha selecionara como sua amiga especial depois que subira ao trono, era uma jovem encantadora, generosa e sentimental, que realmente amava a rainha, e que realmente se sentia profundamente perturbada por vê-la infeliz.
Como Marie Thérèse Louise de Savoie-Carignan, um membro da casa nobre de Savoy, ela tinha se casado muito cedo com Louis Stanislas de Bourbon, príncipe de Lamballe, que era filho único de um neto de Luís XIV e madame de Montespan. Felizmente para a princesa, seu marido tinha morrido um ano depois de seu casamento, desgastado por uma vida de abusos. E assim, a experiência da princesa com o matrimónio, tendo sido tão breve, deixara-a ávida por amizades. Era pouco vaidosa com sua aparência, e jovem demais, apesar de experiente, mas Antonieta, talvez devido às suas próprias experiências matrimoniais infelizes, gostava da companhia da garota.
Antonieta concedera à princesa o posto de superintendente de seu domicílio e, como este título não era portado por ninguém há mais de trinta anos, era claramente de pouca importância, embora trouxesse consigo um salário de cento e cinquenta mil livres. Como queria manter sua linda amiga a seu lado e fazer com que se divertisse na Corte, Antonieta tivera um grande prazer em outorgar-lhe o título.
Fora uma atitude insensata, porque havia muitas pessoas à sua volta sempre dispostas a observar e criticar seus atos, mas Antonieta fechara os olhos para as críticas.
Depois da caminhada humilhante, e até alarmante, da câmara de resguardo de madame d Artois até os aposentos da rainha, a princesa, fechando as cortinas em torno da cama da rainha, ficou parada ali hesitante, perguntando-se o que poderia fazer para confortar sua amada ama.
Vendo que Antonieta queria ficar sozinha com sua dor, ela caminhou na ponta dos pés até a porta e ali encontrou a pequena marquesa de Clermont-Tonnerre.
- Rose Bertin quer falar com você a respeito de um vestido
- disse a pequena marquesa. - Disse a ela que você estava com a rainha e que ela não tinha o direito de vir ao castelo sem que fosse requisitada. Mas eu não consegui me livrar dela.
A princesa, feliz por ter alguma coisa para fazer, disse que iria até o seu apartamento, que era adjacente ao da rainha, e que Rose Bertin poderia ser levada até lá.
Ela mal tinha chegado lá quando a modista entrou.
Rose Bertin, oriunda das classes inferiores, era uma mulher de vigor, imaginação e determinação. Como costureira das damas da Corte, sua grande ambição era servir à rainha. Em muitas ocasiões ela tentara insinuar-se no castelo, mas o protocolo rigoroso imposto aos comerciantes não lhe permitira falar com a rainha.
Madame Bertin não sabia ouvir um não por resposta. Ela havia se dedicado à sua profissão e sabia que era a melhor costureira de Paris, mas até mesmo os melhores costureiros precisavam de sorte e bons contatos para alcançar a meta que ela estabelecera para si.
Ela finalmente havia feito um vestido para a princesa de Lamballe, e sabia que essa dama tinha ficado deliciada com o seu trabalho, conforme fora justamente sua intenção. Ela tinha visualizado a admiração da rainha; e a pergunta: Mas quem é a sua costureira? E a resposta: Oh, é uma costureira humilde da rua Saint-Honoré. Seu nome é Rose Bertin. E então o comando da rainha: Convoque Rose Bertin.
Mas isso não tinha acontecido, e Rose Bertin não era o tipo de pessoa que ficava parada esperando as coisas acontecerem.
Ela estivera na câmara de resguardo; ela testemunhara a saída da rainha. A modiste dentro dela desejava vestir aquela silhueta belíssima, enquanto a mulher de negócios lembrava a si mesma quais seriam os benefícios alcançados por aquela que vestisse a rainha.
Rose trouxera consigo um rolo de seda para mostrar a uma das damas da corte que pedira para vê-lo; mas, tendo presenciado a rainha e a princesa saírem para os aposentos da primeira, decidira pedir uma audiência com a princesa; porque, se a princesa estava com a rainha, será que o nome de Rose Bertin não seria levado ao conhecimento de Sua Majestade?
Na presença da princesa, Rose Bertin desenrolou a seda.
- Acaba de chegar de Lyons, madame. Veja como brilha! Veja como é bela. Eu a vejo como uma saia longa, e em vez de anquinhas, uma nova armação em arco que inventei e que ninguém ainda viu. Para ser sincera-prosseguiu a tagarela couturíère -, eu tinha uma pessoa em mente quando projetei o novo arco. Há uma pessoa bela o bastante para exibi-lo com perfeição.
A princesa sorriu, porque naturalmente pensava que a mulher estava se referindo a ela própria. Rose Bertin sabia disso. Astuta, inventara uma forma de blefe que lhe servia muito bem. As pessoas costumavam dizer: La Bertin é franca. Ela é rude, tem modos discutíveis, mas sempre diz o que pensa.
- A rainha - disse Bertin.
O rosto da princesa ficou pensativo por um momento. A seda era maravilhosa, e a rainha se interessava profundamente por modas. Será que um interesse na nova armação de saia tiraria de sua mente aquela cena terrível na câmara de resguardo?
- Madame tem um plano? - perguntou Rose.
- Espere aqui um momento - disse a princesa.
Rose mal podia esconder seu prazer. Suas mãos capazes até tremeram um pouco enquanto ela dobrava a seda. Dali a pouco a princesa retornou.
- Venha por aqui - disse ela. - Não fique pasma. Vou apresentá-la à rainha.
- Mas isso será uma grande honra! - disse Rose.
Ela não conseguiu esconder completamente o seu sorriso de satisfação. Era gratificante ser uma mulher ambiciosa quando suas pequenas artimanhas eram bem- sucedidas.
Ela estava determinada a passar a melhor impressão possível.
Os olhos da rainha estavam um pouco injetados. Então ela ficara abalada com aquela cena humilhante. Isso era bom. Ela seria mais receptiva.
Que honra maravilhosa aquilo era para Rose Bertin. Ela sabia
- sendo Rose - que este era o começo de uma boa sorte.
A rainha ficou em pé no centro do apartamento e permitiu que Rose alfinetasse a nova seda em torno dela, e explicasse como seria eficaz a nova armação em arco.
Rose era uma artista. Alguns toques hábeis, e ela conseguia transformar uma peça de seda num vestido maravilhoso.
A rainha foi graciosa, até afável.
- Mas você é realmente genial! - elogiou.
- Se eu pudesse vestir Vossa Majestade, seria a costureira mais feliz do mundo.
- Quem não seria feliz, vestindo uma rainha? - disse a princesa.
- Uma rainha! - Rose decidiu que ser um pouco direta não faria mal nesta situação. - Não estava pensando na rainha. Estava pensando na mais bela modelo para mostrar minhas lindas criações!
- Esqueceu com quem está falando? - disse a princesa. Rose pareceu desconcertada.
- Rogo seu perdão. Sempre fui dada a falar o que penso. A isca tinha sido engolida. A rainha estava deliciada.
- Quando o vestido estiver pronto, traga-o pessoalmente disse Antonieta. - E enquanto isso traga-me esboços de mais vestidos, e mais padrões de seda.
Quando saiu dos aposentos da rainha, Rose mal podia esperar para voltar à rua Saint-Honoré.
- Essa mulher me fez bem - disse Antonieta à princesa.
- Oh, minha querida Marie, como estou feliz por você tê-la trazido.
- Fico feliz por lhe ter feito bem - disse a princesa, beijando Antonieta, porque havia o máximo de familiaridade entre elas. Vê-la infeliz magoa-me mais do que posso expressar.
A princesa não sabia, mas ao apresentar a modiste calculista à rainha, fez-lhe mais mal do que bem.
Foi depois desse incidente que Antonieta começou a levar uma vida de leviandades sem paralelos.
Rose Bertin visitava o apartamento de Antonieta duas vezes por semana, fazendo um vestido atrás do outro. A rainha recebia-a em seus petits appartements, para o desgosto da velha nobreza. Madame Bertin, arguta mulher de negócios que era, agora não servia apenas à rainha, com quem obviamente os preços jamais eram discutidos, porque obviamente todas as outras damas da Corte estavam determinadas a seguir a moda estabelecida por Sua Majestade.
Rose tinha ampliado seu ateliê e estava empregando muitas costureiras. Ela tinha colocado uma placa na frente do seu estabelecimento: Costureira da rainha . Ela tinha sua própria carruagem na qual viajava de Paris para Versalhes. Ela se proclamava não apenas costureira pessoal da rainha, mas sua amiga.
Isso é ridículo, declaravam as damas da Corte. Nunca antes na história da França uma rainha recebera costureiras em seu próprio apartamento, conversara com elas e as tratara como iguais.
Rose continuou do seu jeito arrogante. Ela tratava as damas da Corte com seu próprio estilo de indiferença.
- Oh, estou atarefada demais para vê-la, madame. Tenho um compromisso com Sua Majestade.
Nunca se ouvira nada assim. Era incompreensível. Assim como as contas que eram enviadas de tempos em tempos.
A rainha, dizia-se, escolhia seus amigos a partir de caprichos estranhos. Ela jamais dizia: Esta é a dama mais nobre da Corte; ela precisa ser minha amiga. Era fato conhecido que as damas de título mais alto - madame de Provence, madame d Artois e madame de Chartres - eram suas maiores inimigas. Não! Ela ficava encantada com a beleza de pessoas de pouca fortuna, pessoas cujo jeito de ser atraía-a mais do que títulos.
Acontecera assim com a condessa de Polignac.
Toda a Corte lembrava como essa amizade havia começado. Grabrielle Yolande era a esposa do conde de Polignac - uma criatura encantadora, com olhos azuis e cachos castanhos. A rainha notara-a num baile na Corte e a chamara.
- Eu nunca a notei antes na Corte - disse a rainha. Gabrielle abaixou aqueles seus olhos azuis encantadores e murmurou:
- Vossa Majestade, jamais venho à Corte. Eu e meu esposo somos pobres demais para viver na Corte ou comparecer a ela com frequência.
Tamanha honestidade encantou a rainha.
- E a quem devemos a presente visita?
- À minha prima Diane, que é dama de companhia da condessa d Artois.
- Fique comigo e me conte tudo a seu respeito. Antonieta riu, porque sabia que havia olhares de desaprovação
fixos nela. Obviamente, era completamente errado para uma rainha selecionar a convidada menos importante e passar quase a noite inteira conversando com ela. Apenas isso já teria sido motivo para ela querer fazê-lo.
Mas fora isso, esta pequena Gabrielle Yolande provara-se uma companhia deliciosa.
- Você deve ter uma posição na Corte - disse Antonieta. Sinto que eu e você seremos boas amigas.
Gabrielle não ficou entusiasmada. Ela disse que tinha sua vida no campo.
- E nenhuma vontade de ter uma posição na Corte?
- Madame, nós não temos os recursos para isso. A rainha sorriu.
- Uma posição na Corte irá lhe prover os recursos. Antonieta olhou para aquele rosto infantil e pensou no quanto
esta menina era bonita, embora usasse poucas jóias. Ainda assim, em alguns casos um laço cor-de-rosa podia cair melhor a uma pessoa do que jóias caras.
E Antonieta conseguiu fazer com que a garota permanecesse na Corte. Ela a manteve sempre ao seu lado e providenciou para que fossem vistas caminhando juntas pelos jardins - ela, a pequena Polignac e a princesa de Lamballe.
Mas se Gabrielle não estava interessada em tirar proveito da situação, o mesmo não podia dizer de seus parentes. Eles vieram à Corte; eles imploraram que a pequena Gabrielle falasse com a rainha em seu benefício para este ou para aquele fazer. Quanto à rainha, ela adorava agradar Gabrielle; e além do posto que conseguiu para o marido de Gabrielle, Antonieta derramou mais honras sobre outros membros da família.
Quem eram esses Polignacs?, perguntava-se na Corte. Qual era o significado das amizades passionais da rainha, primeiro com a princesa de Lamball , e agora com esta garota? A rainha não era natural. Por que ela não dava crianças ao reino em vez de passar o tempo divertindo-se com mulheres jovens?
Antonieta sabia a respeito desses rumores. Ela tinha seus amigos entre o sexo oposto. Eles eram os duques de Coigny, de Guines, de Lauzun. Havia também o conde húngaro Esterhazy. Havia o conde de Vaudreuil e o príncipe de Ligne. Vários desses homens eram devotados à rainha; eles a acompanhavam frequentemente e vários eram os olhares apaixonados que enviavam em sua direção.
Antonieta adorava ser admirada. Gostava de lembrar que não era apenas uma rainha, mas uma mulher bonita e desejável. O fracasso em ter um filho enchia-a com um grande desejo em ter homens bonitos à sua volta. Não era devido à sua falta de atrativos que o rei preferia ficar na loja do ferreiro. Ela queria reassegurar isso não apenas à Corte, mas a si mesma.
Havia uma pessoa que estava sempre com ela. Era Artois. Louis tinha seus deveres de estado, e seu relaxamento com livros e forjas. Luís gostava de deitar e levantar cedo. Provence mantinha-se afastado do séquito da rainha. Ele tinha seus motivos pessoais para isso. Agora ele acreditava firmemente que tomaria o lugar de seu irmão no trono, porque tinha certeza de que Luís e Antonieta jamais teriam filhos. Ele queria mostrar à França que era calmo e recatado - e que seria um bom rei. Ele sofria de um problema semelhante ao que afligia Luís. Era estéril, e a pobre Josèphe continuava tão infecunda quanto Antonieta.
Artois, o mais jovem dos irmãos, não tinha esse tipo de ambição. Ele queria apenas se divertir. Era muito animado e sempre estava disposto a novas aventuras. Ele já estava cansado de Thérèse, a única das esposas reais que se revelara fértil; ela já estava grávida novamente, e Artois acreditava que seu único dever era garantir que Thérèse ficasse grávida e então desertá-la e procurar suas amantes, que eram inúmeras. A paixão por se divertir que ele sentia na rainha era muito semelhante à sua. Ele gostava da companhia de Antonieta e estava sempre com ela.
E os rumores não tardaram a circular.
- Artois é o amante da rainha-dizia o povo de Paris. - Eles são vistos juntos com frequência.
Esses rumores não alcançaram o rei. Ninguém se dava ao trabalho de falar com ele sobre a leviandade de sua esposa. Quanto a Luís, ele considerava Antonieta a criatura mais bela na Corte e, devido ao seu fracasso como esposo, ainda se sentia impelido a satisfazer seus caprichos. Provence ouviu os rumores e ficou deliciado. Era astuto demais para demonstrar que não gostava da rainha; seu antagonismo era cultivado em segredo. Muitos dos rumores foram iniciados por ele mesmo e Josèphe, mas externamente ele fingia amizade.
Portanto, Antonieta foi jogada na companhia de Artois - cujo espírito combinava com o seu - e embora o visse meramente como um companheiro conveniente e irmão, os rumores de que eles eram amantes persistiam.
Eles eram vistos juntos nos bailes da Ópera. Eles iam juntos às corridas - uma moda nova oriunda da Inglaterra. Artois podia ser visto cavalgando em Paris em seu cabriolei e retornando a Versalhes nas primeiras horas da manhã. No inverno ele e Antonieta divertiam-se andando de trenó, para o profundo desgosto do povo, que considerava esta mais uma moda austríaca introduzida pela rainha. Eles formavam grupos para ver o nascer do sol. E depois disso, dizia-se que a rainha desaparecia num bosquete para retornar apenas muito tempo depois com um dos cavalheiros.
Os dias eram cheios para Antonieta e consistiam basicamente em correr de um prazer para outro. Ela raramente acordava antes das quatro ou cinco da tarde. Como poderia, tendo dançado durante a noite? O dia de Antonieta começava com ela folheando o livro no qual tinha alfinetado modelos em miniatura de todos os vestidos em seu guarda-roupa. Ela pegava um alfinete e o colocava no modelo de vestido que queria usar no começo de seu dia. Travava discussões infindáveis com suas favoritas, e madame de Polignac estava sempre perto da rainha, e a princesa de Lamballe não muito distante. E enquanto a rainha se vestia elas conversavam sobre o banquete, baile ou entretenimento daquela noite. Havia uma sessão com a querida madame Bertin que se tornara quase uma amiga tão querida quanto Lamballe e Polignac.
Certo dia a carruagem de Antonieta quebrou enquanto ela estava indo a Paris para um baile, e enquanto o condutor foi procurar outra carruagem, a rainha viu um fiacre, fez-lhe sinal e subiu em sua boleia, sentando-se ao lado do cocheiro.
Antonieta, deliciada com sua aventura, prontamente pôs-se a falar sobre ela. Fora divertido; e ela jamais andara num fiacre antes.
Esta história foi recebida com horror na Corte. Que falta de protocolo! Que desafio às normas!
O povo de Paris supriu uma continuação para a história. A rainha tivera seus motivos para andar num fiacre. Era evidente que ela estivera vindo de um encontro com seu amante mais recente.
A história gerou protestos por parte da imperatriz.
Antonieta precisava reformar seus modos. Que rumo ela estava tomando?, perguntou a mãe horrorizada. Fofocas abundavam. Ela dançava durante a noite, dormia durante o dia, mal via seu marido e ainda não conseguira dar à França um delfim.
Ela precisava mudar seu modo de viver.
Era um dia quente de verão. O calash da rainha zunia diante de um grupo de casebres quando uma criança atravessou correndo a estrada.
Um grito de agonia e o menino estava deitado ensanguentado no acostamento.
A rainha mandou imediatamente o cocheiro parar. O calash parou e Antonieta saltou.
Várias pessoas saíram correndo dos casebres, mas Antonieta não as viu; ela tinha tomado a criança nos braços e estava olhando horrorizada para o sangue em seu capuz de lã.
O menino abriu os olhos e a fitou.
- Graças a Deus, ele não está morto - disse a rainha. Ela se virou para uma mulher parada ali perto. - Podemos levá-lo até a casa dele? Ele passou correndo diante dos cavalos. Temi que ele tivesse morrido. Onde ele mora?
A mulher indicou um casebre.
- Eu o levarei até lá - disse a rainha.
O condutor do seu calash estava ao seu lado.
- Permita-me, Vossa Majestade.
Mas Antonieta, profundamente cônscia da emoção que as crianças sempre despertavam nela, manteve a criança apertada em seus braços e se recusou a entregá-la. O menino estava olhando para ela e um pouco de cor retornou às suas faces. Antonieta viu com alívio que ele não tinha ficado muito ferido.
Uma velha abriu a porta do casebre para o qual eles estavam indo. Ela viu Antonieta, reconheceu-a, e se ajoelhou ao lado de seu balde de dejetos.
- Por favor, levante - disse Antonieta. - Este menininho se machucou. Ele é seu.
É o meu neto, Vossa Majestade.
- Precisamos ver o quanto ele está ferido.
A velha virou e entrou primeiro no casebre. Antonieta jamais estivera antes num lugar como aquele. Ali havia apenas um cómodo, que abrigava uma família grande, e parecia haver crianças por toda parte. Emudecidas de pasmo, todas admiravam a esplêndida aparição que era Antonieta.
- Façam suas mesuras - disse a velha. - Esta é a rainha. As crianças fizeram mesuras desajeitadas que encheram de lágrimas os olhos susceptíveis de Antonieta.
Oh, a pobreza, o odor impuro - e tantas crianças na mesma salinha, quando o espaçoso berçário real estava completamente vazio! Aquilo era de partir o coração.
Ela deitou a criança na mesa porque não parecia haver outro lugar onde colocá-la.
- Acho que ele não está muito machucado - disse a rainha.
- Fiquei com medo quando vi o sangue em seu rosto.
- O que ele estava aprontando? - perguntou a velha. Antonieta notou que o menino se encolheu de medo ao ouvir a avó. Uma mãozinha estava segurando o vestido da rainha, e era como se aqueles olhos redondos estivessem rogando por proteção real.
- É natural que uma criança corra pela estrada - disse a rainha. - Se tivermos um pouco de água podemos banhar esse machucado em sua testa, e talvez possamos colocar um curativo.
- Odette! - gritou a velha. - Traga um pouco de água. Uma menina de olhos negros, cujos cabelos foscos caíam sobre
seu rosto, não conseguiu remover os olhos da rainha enquanto pegava um balde e saía correndo até o poço.
- Qual é o nome do menininho? - perguntou a rainha.
- James Armand, madame - respondeu a mulher.
- Ah, monsieur James Armand! - disse Antonieta. - Sente-se melhor agora?
A criança sorriu, e mais uma vez Antonieta sentiu lágrimas ajuntando-se em seus olhos. Havia uma fenda fascinante em seus dentes; ela notara que sua mãozinha tinha apertado a manga de seu vestido.
Consegue ficar em pé, querido, para podermos ver se quebrou algum osso?
Ela levantou o menino e ele ficou em pé sobre a mesa - uma miniatura de homem com capuz de lã e roupas campesinas.
Suas pernas estão boas? - indagou Antonieta.
Ele balançou a cabeça afirmativamente.
- Ele sabe falar? - quis saber a rainha.
- Oh, ele fala muito. É um menino esperto.
- Ele não fez nada errado-garantiu a rainha.-Apenas agiu como uma criança.
A menina tinha voltado com o balde de água, e a rainha tirou o capuz de lã da cabeça do menino para lavar sua fronte. Agora ela estava ansiosa por sair daquele casebre. Era muito apertado e malsão. Ainda assim, ela odiaria deixar ali o pequeno James Armand.
A água estava fria; como não havia panos disponíveis, ela rasgou seu lenço de seda em dois e molhou na água.
- Isso dói? - perguntou com ternura. - Ah, vejo que você é corajoso, monsieur James Armand.
O menininho tinha se aproximado ainda mais de Antonieta.
- A senhora tem uma família grande - disse à mulher.
- Essas cinco crianças eram da minha filha - foi a resposta.
- Ela morreu no ano passado e agora eu tenho de cuidar deles.
- Isso é muito triste. Sinto muito pela senhora.
- A vida é assim, madame - disse a mulher, estóica. Antonieta amarrou a metade seca de seu lenço na cabeça do menino.
- Pronto! Agora eu acho que você não irá sofrer nada, monsieur. Ela se afastou da mesa, mas o menino continuou segurando-a pela manga; os cantos de sua boca começaram a curvar para baixo e os olhos encheram-se com lágrimas.
- Solte a moça - ordenou a avó.
Ele recusou. A mulher estava prestes a puxá-lo com força, quando a rainha a impediu.
- Não quer que eu vá embora? - perguntou Antonieta. Fique aqui - disse o menino. - Fique aqui sempre.
- Ele é um vilãozinho audacioso, é isso que ele é - sentenciou a avó. - Você está falando com a rainha.
- Rainha - disse o menininho, e em toda sua vida Antonieta jamais sentiu tanta adoração como a que percebeu naquela voz.
Antonieta sempre foi dada a tomar decisões impulsivas.
- Deixe-me falar com ele - disse Antonieta. - Quer vir comigo? Quer ser meu menininho?
A alegria no rosto da criança foi a coisa mais comovente que Antonieta já tinha visto. A mãozinha agora estava na sua, apertando, apertando como se disposta a jamais deixá-la partir.
A rainha virou-se para a mulher.
- Se você me deixar ficar com este menino, adotá-lo, provirei os recursos para a criação dos outros quatro que ficarem com você.
A resposta da mulher foi cair de joelhos e beijar o vestido da rainha.
Antonieta jamais ficava mais feliz do que quando ofertava felicidade.
- Então levante-se - disse ela. - Levante-se, boa mulher. Não precisa mais temer por sua família. Tudo ficará bem, eu lhe prometo. E levarei o pequeno James Armand comigo agora.
Antonieta tomou a criança nos braços. Ela beijou seu rosto sujo, e sua recompensa foi um par de braços envolvendo seu pescoço um abraço apertado e sufocante.
Ela pensou: Ele precisa de um banho, ele precisa vestir-se adequadamente. James Armand, daqui em diante você será o meu filhinho.
Durante um longo tempo, Maria Antonieta foi feliz.
Cada manhã, James Armand era trazido até ela. O menino escalava sua cama, e ficava feliz apenas por estar com ela. Ele não pedia nada mais. Não era como as outras crianças. Ele ficava feliz com doces, gostava de brinquedos bonitos, mas nada dava-lhe mais prazer do que a companhia da rainha.
Se Antonieta tivesse dançado até tarde e estivesse cansada demais para ser perturbada, ele se sentava diante de sua porta e ali ficava esperando desconsolado. Nenhuma das damas de companhia da rainha conseguia tirá-lo dali com a promessa de uma guloseima.
Havia apenas uma coisa que podia satisfazer James Armand, e era a presença da mais bela rainha que, graças ao milagre de uma manhã de verão, havia se tornado sua mãe.
Às vezes ele sonhava que estava na porta do casebre observando a carruagem passar na estrada. Esse sonho era triste, porque neles o calash real não havia parado e James Armand ainda estava vivendo com sua avó em seu casebre escuro de um só cómodo... o milagre não havia acontecido, e aquela mulher encantadora não surgira.
Ele acordava chorando, e então seus dedinhos tocavam o linho delicado dos lençóis e ele via a mobília dourada de seu quarto, e sabia que tudo estava bem.
Certa vez, vendo os resíduos de lágrimas nas faces do menino, Antonieta exigiu saber o motivo.
- Sonhei que você não tinha aparecido - disse James Armand.
Então ele foi pego naquele abraço perfumado, e sua felicidade foi tão grande que ele se sentiu grato ao sonho ruim que a tornou possível.
Assim, Antonieta vivia despreocupadamente nesses dias dourados.
As horas passavam tão depressa que ela jamais tinha tempo para se entediar, e Antonieta odiava o tédio mais do que qualquer outra coisa no mundo. Ela se identificava com Artois porque ele também compartilhava desse ódio. Assim, ela precisava planejar mais vestidos com Rose Bertin; precisava organizar um baile, fazer espetáculos com fogos de artifício; passava uma hora ou mais brincando com seu querido James Armand que tanto a adorava; ia a Paris, mascarada para o baile da Ópera, como costumara fazer nos velhos tempos.
Mas alguma coisa faltava em sua vida. Suas amigas queridas, madame de Polignac e a princesa de Lamballe, não podiam compensar isso. Aqueles rapazes que pairavam ao seu redor, prestando-lhe cumprimentos que podiam ser delicados ou ousados, eram quem mais tinha chance de fazê-lo. Madame de Polignac tinha tomado um amante - o conde de Vaudreuil, um creole, não muito bonito, de rosto marcado pela varíola, mas tão inteligente e bemhumorado que era encantador. Gabrielle Yolande abria-se com a rainha, e Antonieta sentia pontadas de inveja por aquelas mulheres que podiam desfrutar desse tipo de relacionamento.
Outra mulher do convívio de Antonieta, a madame de Guémenée, tomou o duque de Coigny como amante. Antonieta não ouvia as confidências da madame, e nem mesmo gostava muito dela, mas comparecia frequentemente às suas sessões de jogos de cartas porque descobrira que o jogo era uma das formas mais certas de espantar o tédio. Era puramente pelos jogos de cartas de madame de Guémenée que Antonieta frequentava seu apartamento.
Madame de Guémenée pertencia aos Rohan e a rainha não se sentia propensa a nutrir sentimentos de amizade por um membro dessa família. Louis, príncipe de Rohan, era aquele cardeal que fora o primeiro homem a olhar Antonieta com o tipo de admiração que ela agora percebia em toda parte. Ele tinha sido o jovem que a recebera no lugar do tio, o bispo, na Catedral de Strasbourg, quando estava vindo de Viena para a França.
A rainha tinha um bom motivo para não esquecer esse homem, porque descobrira que ele escrevera linhas perniciosas a respeito de sua mãe numa carta enviada de Viena, para onde fora logo depois de seu primeiro encontro com Antonieta. Ela tinha ouvido a carta ser lida em voz alta por nenhuma outra senão a própria madame du Barry! E por causa disso, Antonieta havia jurado, ela jamais perdoaria Louis, príncipe de Rohan. Mesmo assim, não conseguia resistir às sessões de jogos de cartas de sua parente. Além disso, madame de Guémenée era amiga de Gabrielle, o que significava que a rainha precisava recebê-la e tentar gostar dela.
E assim, olhando em torno para suas amigas e vendo sua felicidade, Antonieta descobriu novas emoções ardendo em seu íntimo. Ela se flagrou ouvindo com prazer os elogios indecorosos dos homens, e se flagrou encorajando esses elogios.
O duque de Lauzun era particularmente encantador, e era conhecido como ser um cabeça quente. Durante esses dias perigosos, ele era visto frequentemente na companhia da rainha. Com madame de Polignac e seu amante, a rainha e Lauzun caminhavam pelos jardins, e dançavam seus minuetos e gavotas no gramado diante do Petit Trianon.
Começava a ser perguntado:
- Será que o duque de Lauzun é amante da rainha? Quanto a Lauzun, sentindo-se cada vez mais confiante de que
conseguiria conquistar a rainha, ele não conseguia estar em sua companhia sem cortejá-la.
Certo dia ele a encontrou sozinha em seu boudoir - aquela encantadora câmara íntima -, o local onde Antonieta frequentemente recebia seus visitantes e onde ela própria ordenara que todas as cerimónias deveriam ser esquecidas.
- Antonieta, quanto tempo prosseguiremos com isso?-perguntou Lauzun, segurando ambas as mãos da rainha.
Ela olhou para ele estarrecida, mas ambos sabiam que o estarrecimento era fingido.
- Não estou entendendo - disse num sussurro. Ele a puxou para si e murmurou:
- Então você precisa entender... porque continuar com isso é algo que eu, um simples mortal, não sou capaz de suportar... continuar a vê-la dia após dia... tão próxima... tão perto de mim... e jamais beijar seus lábios... jamais segurá-la...
- Por favor, pare! - rogou Antonieta, em pânico.
Mas ele não queria parar. Ele flertará durante muito tempo, ela fingia ter tomado um amante assim como fingia ser a mãe de um órfão.
Isto era diferente. O fingimento subitamente tornara-se realidade. Não havia como não entender o que Lauzun queria. Ele estava sugerindo que eles deveriam ser amantes - como Gabrielle e Vaudreuil eram - e mesmo como Victoire Guémenée e seu amante eram.
Antonieta sentiu-se tremer. O sangue subiu à sua cabeça e desceu de novo. Ela estava quase desmaiando de horror.
Isto jamais deveria acontecer.
E se eles tivessem um filho - um filho que todos soubessem que não era do rei?
Antonieta se levantou, empertigando completamente o corpo. Ela conteve sua raiva: ela não fitaria os olhos sequiosos do duque de Lauzun.
O jogo fora longe demais.
- Nunca, nunca, nunca - disse a si mesma. A ele Antonieta disse friamente: - Saia daqui, monsieur. Você jamais poderá vir aqui sem minha permissão. Você jamais poderá ficar comigo a sós...
- Minha amada... - começou o duque.
Mas a rainha lhe deu as costas. Saiu correndo de seu boudoir e se trancou em sua alcova.
Trémula de medo e sabendo que precisaria de todas as suas forças para não cair em tentação.
Havia espiões até no reino ideal do Petit Trianon.
Mercy estava alarmado. Ele escreveu apressadamente a Maria Teresa. Não havia motivos para admoestar Antonieta agora. Admoestações eram inúteis. O que ela dissera quando a imperatriz implorara-lhe que contivesse seu amor extravagante por jóias, tendo ouvido que ela acabara de comprar um magnífico par de brincos de diamante? Ela dissera: Então meus brincos viajaram até Viena!
Não! Cartas eram inúteis. Mas alguma coisa drástica precisava ser feita para impedir a rainha de sucumbir ao desastre.
O problema maior era a impotência do rei, ponderou a sábia Maria Teresa.
Ela chamou seu filho.
- Joseph, você precisa visitar a sua irmã-disse a ele.-Você precisa conversar com ela com o máximo de tato. Não lhe pregue sermões, porque isso apenas irá deixá- la zangada e propensa a tolices ainda mais graves. Tente instilar um pouco de bom senso nela. Ao mesmo tempo, procure fortalecer a aliança entre nossos países.
Joseph olhou ironicamente para a mãe.
- A senhora não expressou em palavras a parte mais importante da minha missão.
Ela confirmou com um meneio de cabeça.
Falarei com Luís, e verei se é possível colocar um ponto final nesta situação lastimável - garantiu Joseph.
E então, Joseph I, imperador da Áustria, foi à França.
Joseph estava inteiramente seguro de sua capacidade em consertar a situação para a sua irmã, porque Joseph tinha em alta conta seus próprios poderes. Ele via a si mesmo como o regente mais bemsucedido da Europa.
A todos os lugares que ia chamava atenção para si devido ao seu alegado desejo por informalidade. Ele não viajava como era esperado de um imperador poderoso.
- Com toda certeza, não - disse Joseph.-Todos na estrada de Viena a Paris deverão me conhecer como conde Falkenstein.
Assim, em todas as vilas e cidades, os criados de Joseph imploravam sigilo.
- Silêncio! - diziam. - O conde Falkenstein exige privacidade. Ele não quer chamar a atenção. Providencie para que haja sigilo completo acerca de sua chegada.
- E quem é o conde Falkenstein? - perguntavam os aldeões e citadinos.
Na Áustria eles sabiam, é claro. Lá as alcunhas do imperador sempre eram conhecidas.
Um aguaceiro desabava sobre Paris quando Joseph chegou à cidade. Ele chegou numa pequena carruagem aberta como qualquer nobre de título menor. Estava sentado na carruagem, molhado até os ossos, apreciando imensamente a experiência. Ele se recusou a ir a Versalhes, onde apartamentos esplêndidos lhe haviam sido oferecidos.
- Não, não, não! - protestou. - Por favor, ponham-me na embaixada. Não quero chamar a atenção. Minha cama de acampamento irá me bastar, e uma pele de urso me servirá como colchão.
Joseph sentia grande prazer - ele, o poderoso imperador em viver como um homem comum. Queria que o mundo soubesse que ele desprezava confortos físicos. Para ele, conforto era saber como reger bem seu país, fazer que seus súditos soubessem que acima de tudo ele desejava seu bem-estar.
No dia seguinte à sua chegada a Paris, quando as notícias de que ele implorara que o mantivessem longe da família real já haviam se espalhado, Joseph tomou uma carruagem até o Palácio de Versalhes.
Estou muito ansioso por evitar espectadores ou qualquer espécie de recepção , escrevera Joseph ao abade de Vermond. Quando chegar, quero que você venha me receber para então conduzir-me imediatamente até ospetits appartements de minha irmã.
Isso foi feito.
Antonieta tinha sido informada que ele estava em Paris, e embora não tivesse certeza sobre a hora que ele viria a Versalhes e de que maneira, não ficou completamente surpresa ao recebê-lo.
Ela havia se recolhido cedo na noite anterior. Estava com um pouco de medo de Joseph, ainda que ansiasse por ver alguém de casa. Afinal de contas, Joseph era quatorze anos mais velho que ela e sempre fora o irmão mais velho dominador.
- Por mais que eu queira vê-lo, sei que terei de ouvir sermões severos - dissera a Gabrielle. - Joseph nunca consegue resistir a fazer isso.
Entrou apressado no apartamento, usando orgulhosamente o casaco marrom simples com o qual acreditava adquirir a aparência de um cidadão humilde: e ele deu uma olhada em sua irmãzinha, que estava sentada diante do espelho enquanto suas damas de companhia penteavam seus cabelos. A cabeleira cascateava sobre seus ombros formosos, e até Joseph ficou comovido com uma visão de tamanha beleza.
- Joseph! - exclamou Antonieta, e lágrimas começaram a descer por suas faces.
- Minha pequena Nieta! - respondeu Joseph, genuinamente comovido por tomá-la em seus braços.
- Faz tanto tempo! - disse ele.
- Muito, muito tempo, Joseph.
Eles se mantiveram segurando um ao outro à distância de um braço, olhando para o rosto um do outro, e rapidamente puseram-se a falar em alemão.
- E como está minha mãe querida?
- Tão bem quanto é possível esperar, e ansiosa por receber notícias suas.
- Ela já recebe muitas notícias minhas.
- Espero levar notícias boas para ela.
- Oh, Joseph, Joseph! É maravilhoso ver alguém de casa.
- Você está mais bonita do que pensei - disse Joseph, movido pelos sentimentos anormalmente fortes causados pela reunião. - Se eu achasse uma mulher tão bonita como você, casaria de novo.
Isso a fez rir, abraçá-lo, olhar com cara feia para a jaqueta simples que estava usando, e chamá-lo de Herr Joseph... o simples Herr Joseph.
- Vou levá-lo até os aposentos do rei - declarou Antonieta, e o tomou pela mão.
O rei não estava completamente vestido, mas Joseph compartilhava com sua irmã um desrespeito para com cerimónias.
Joseph tomou seu cunhado nos braços e beijou suas faces. Em seguida olhou-o com um afeto que velou um certo desprezo, porque sentia-se velho e sábio na presença de Luís.
O rei estava deliciado em ver o prazer sentido pela rainha na companhia de seu irmão, e deu boas-vindas a Joseph em nome da França.
O imperador viera a Versalhes sem se anunciar, e havia muitos que desejavam prestar-lhe homenagens. Ele precisava conhecer os irmãos do rei, os ministros do rei, os nobres da Corte.
Joseph sorriu benignamente mas com um leve ar superior. Ele considerava toda essa cerimónia, todo este esplendor dourado, elementos desnecessários ao governo de um país.
Na alcova da rainha, a mesa estava posta para o jantar, e três cadeiras de braços tinham sido posicionadas para o rei, a rainha e o imperador.
- Não, não! - gritou Joseph.
Agora a emoção que ele tinha sentido durante sua reunião com a irmã havia passado e ele era ele próprio novamente, o imperador espartano, determinado a comportar-se como um homem comum, determinado a despertar atenção para o seu desejo por anonímia, determinado a receber grandes honras por seu descaso para com elas.
- Não quero uma cadeira. Não quero. Eu sou um homem simples e comum. Uma banqueta basta para o conde Falkenstein.
Assim as cadeiras foram removidas e banquetas foram trazidas. O rei e a rainha descansaram suas costas doloridas contra a cama da rainha durante a refeição, enquanto o imperador, sorrindo para a fraqueza dos dois, mantinha-se ereto em sua banqueta.
- Estou ansioso por conhecer seus irmãos e suas esposas disse ao rei. - Acredito que temos muito a dizer uns aos outros.
Ele já estava preparando os sermões que passaria aos irmãos dos reis. Provence não devia meter-se muito em assuntos públicos. Artois era irresponsável demais. O rei não detinha uma grande eloquência; precisava praticar conversação ao em vez de se trancar com seu ferreiro. Portanto, Joseph precisava ter muitas conversas com seu cunhado, visando o aperfeiçoamento pessoal deste. Estava claro que ele tinha muitos deveres a cumprir antes de retornar a Viena.
- Minha querida irmã - começou o imperador quando eles se viram a sós. - O seu interesse por divertimentos está causando muitos comentários por toda a Europa. Você deve saber que está provocando ainda mais fofocas aqui na França. Você é uma rainha, e rainha de um grande país. Não estou sugerindo que se meta em assuntos de estado, mas eu lhe rogo, tente infundir uma maior seriedade no seu comportamento. Ouvimos falar de suas extravagâncias em Viena... as jóias, os vestidos, a forma como você passa os seus dias. Ouvimos falar sobre os gastos na sua casa de campo. Isso é um absurdo.
Antonieta riu.
- Joseph, aqui não é Viena. O povo da França quer que seus reis e rainhas pareçam reis e rainhas. Eles não apreciariam um imperador espartano.
Joseph não acreditava nisso. Ele tinha certeza de que seria apreciado em qualquer lugar que vivesse.
A sua paixão pelo jogo pode ser desastrosa - prosseguiu
o imperador. - Você convive com as pessoas erradas. Essa madame de Guémenée não é sua amiga. O apartamento dela não é outra coisa senão um antro de jogo. Na noite passada fiquei chocado em ver uma pessoa ser acusada de trapacear em sua presença. Você não entende a falta de dignidade que reside nisso? E olhe o seu cabelo?
- O que há de errado com o meu cabelo? Este estilo não me
cai bem?
- Pode cair-lhe bem, mas um cabelo empilhado desse jeito me parece frágil demais para sustentar uma coroa.
- Joseph, você não sabe nada sobre os nossos costumes.
- Eu sei tudo sobre o lado sombrio do mundo, e acredito que a situação aqui não pode continuar como está. Temo pela sua felicidade. As coisas não podem continuar como estão. Você só pensa em se divertir. Não nutre nenhum sentimento pelo rei?
Joseph viu a expressão de dor nos olhos dela.
- Mas se você tivesse uma criança, as coisas seriam diferentes
- teorizou. - É preciso haver um delfim.
- Ah, Joseph, se ao menos isso fosse possível! - desabafou Antonieta.
O imperador premiu os lábios. Seu olhar implicava que, como com Deus, todas as coisas eram possíveis para o imperador Joseph.
Em todo caso, fora essa questão do delfim que o trouxera à França.
Joseph caminhava pelas ruas de Paris no seu casaco marrom simples, seguido apenas por dois lacaios trajados discretamente em cinza.
Ele foi notado. Era inevitável, porque ninguém mais parecia com o imperador.
Os cidadãos de Paris gostaram dele - gostaram de seu desapreço por pompa e cerimónias. A indiferença pela informalidade, que os parisienses deploravam tanto na irmã de Joseph, perversamente parecia atraente no imperador.
Longa vida ao imperador Joseph! - gritaram.
Em resposta, ele meneou a mão num gesto humilde.
- Meu bom povo... meu bom povo, sinto que tenham me reconhecido. Eu esperava andar entre vocês como um homem comum.
- Como ele é encantador! - disseram uns aos outros. Como um cidadão comum, Joseph visitou as lojas e comprou mantimentos. Sua conversa era animada e bem intencionada; ele sempre parecia interessado em saber sobre suas vidas, sempre muito curioso sobre os problemas dos homens comuns.
O povo de Paris passou a sentir mais carinho pela rainha porque ela possuía um irmão como aquele.
Joseph trancou-se com seu cunhado.
Joseph, o mais velho dos dois, sorriu benignamente.
- Luís, meu irmão, tenho passado dias deliciosos aqui - disse ele. - É agradável ver minha irmã em sua casa e saber que ela tem um homem tão bom como marido.
- Eu lhe agradeço, Joseph... - começou Luís. Mas Joseph levantou uma mão.
- Você sabe, falando de irmão para irmão, você aprenderá a falar melhor se praticar mais. Você é inclinado a permitir que os outros falem o tempo todo, Luís. Você devia fazer aqueles seus ministros ouvirem quando você fala. Não deixe as pessoas calarem você.
- Eu... - começou Luís.
- É muito simples - insistiu Joseph. - Mande eles se calarem. Simplesmente mande se calarem. Há um outro assunto que me preocupa imensamente, Luís. Agora precisamos ser francos um com o outro. Mas isso não é problema, não é? Afinal, não somos irmãos? Não farei segredo do fato: foi esse assunto que me trouxe à França. A rainha é frívola demais, e está claro que ela está cometendo tantas leviandades porque carece de passatempos mais importantes. Luís, a rainha devia estar pensando em filhos, não em negociar dívidas de jogo.
- Se ao menos isso fosse possível... - murmurou o rei.-Essa é a maior dor da vida de Antonieta... e da minha.
Bem, Luís, vamos considerar esse seu problema. Fale-me a respeito dele. Fale francamente. Sou o seu irmão mais velho, você sabe. Pode falar sem embaraço. Há muita coisa em jogo para nos preocuparmos com embaraços. Existem operações... operações simples, você sabe... e nossos doutores são hábeis, mais do que antes. Uma pequena circuncisão e então... tudo ficará bem, se o que ouvi sobre o que lhe aflige é a verdade.
O imperador segurou seu constrangido cunhado pelos ombros e o balançou afetuosamente.
- Agora, Luís, tenho a sua palavra de que irá se submeter a um exame? Mas é claro que tenho. Você não vai deixar de cumprir seu dever para comigo... e para com sua rainha e seu país. Daremos as ordens imediatamente, e a operação deverá ser executada. Joseph deu no rei da França um tapa nas costas, à moda burguesa. -Então tenho certeza de que tudo ficará bem no reino da França.
E o poder de persuasão do imperador era tamanho que, antes de deixar Paris, a operação já tinha sido executada.
Não demorou muito para Antonieta escrever à sua mãe:
Alcancei aquela felicidade que era de grande importância em minha vida. Faz mais de uma semana que meu casamento foi inteiramente consumado. Ontem a tentativa foi repetida. Era minha intenção enviar um mensageiro especial à minha amada mãe, mas temia que isso atraísse muita atenção e fofocas. Eu não creio que já esteja de barriga, mas tenho grande esperança de que isso aconteça a qualquer desses dias.
A corte fervilhava com empolgação.
- Você já ouviu...
- Foi aquQ apetit opémtion...
- Realmente?
- Realmente. Ainda não notou que a rainha anda com olheiras? Era verdade. O rei não resistiu a falar sobre isso. Ele também estava deliciado.
Adelaide estava ao seu lado; as outras duas tias não estavam muito distantes.
- Caro Luís, que grande mudança em você! Agora é um homem profundamente satisfeito.
- Sou realmente um homem satisfeito, querida tia.
- Foi... talvez apetit opemtion?
Todas as tias se aproximaram um pouco mais. Três pares de olhos estudaram-no intensamente; eram como brocas tentando penetrar em sua mente, trazer à superfície os pensamentos por trás de seus olhos.
- Sim, tia, foi sim. Ela me dá grande prazer.
- Ela lhe dá grande prazer! - disse Adelaide às irmãs quando estavam a sós. - Considerando isso, não demorará muito até que o casamento seja fértil.
Provence e Josèphe compartilhavam um grande medo. Será que era verdade? E se fosse, isso poria um fim nas esperanças, um fim na ambição.
- Vigie a rainha - disse Provence. - Vigie-a como nunca a vigiou antes.
O embaixador espanhol, o embaixador sardenho e o embaixador inglês estavam escrevendo cartas longas aos seus governos.
A Corte inteira aguardava ansiosamente.
Provence estava respirando mais aliviado. Estava começando a ficar claro que o novo prazer descoberto por Luís não lhe apelava tanto quanto caçar ou forjar ferro. Um bom sinal. Um sinal muito bom.
Maria Teresa escreveu cartas frenéticas à filha.
Vá para a cama cedo, junto com o rei. Não fique na sua cama de solteira no Petit Trianon.
E certo dia uma certa serenidade se fez visível no rosto da rainha. Parecia distraída quando as pessoas falavam com ela. Ela tinha desistido de dançar noite adentro; e não estava mais interessada em cartas.
Todos notaram isso, exceto o rei. Portanto, ele ficou surpreso na manhã em que a rainha adentrou sem qualquer cerimónia o seu apartamento.
Com uma expressão indignada, Maria Antonieta bateu o pé no chão.
Majestade, vim queixar-me! - gritou. - Um de seus súditos teve a audácia de me chutar a barriga!
Luís fitou-a alarmado por um instante, antes que todo seu ser fosse tomado por uma alegria sem precedentes.
Com lágrimas desaguando pelas faces, Luís estendeu os braços.
Beijaram-se, abraçaram-se, beijaram-se novamente, suas lágrimas misturando-se.
- É o momento mais feliz da minha vida - disse Antonieta.
- Só haverá um mais feliz. Aquele em que segurarei o delfim em meus braços.
Luís ficou calado, mas apenas porque as palavras não lhe vinham com facilidade. Sua alegria não era menor que a de sua esposa.
O verão e o inverno foram estações felizes para a rainha. Ela passou grande parte de seu tempo no Petit Trianon; agora ela podia observar com prazer as crianças brincando no jardim, porque em breve haveria uma criança real brincando naquela grama, vindo correndo até ela, puxando suas saias e exigindo bombons. Um delfim! Ela tinha certeza de que a criança seria um delfim.
Havia muitos assuntos agradáveis com os quais ocupar a mente, e ela conversava continuamente com Gabrielle e a princesa de Lamballe.
- Meu pequeno delfim não será enrolado num cueiro - declarou a rainha. - Isso não faz bem. É antiquado e não empregaremos métodos antiquados com monsleur lê dauphin. Ele terá tudo de moderno. Dizem que as crianças de hoje devem ficar num berço leve ou nos braços de uma pessoa, e que aos pouquinhos devem ser expostas ao ar livre e ao sol. E quando ficarem acostumados com o berço, devem ficar nele o tempo todo, com as perninhas e os bracinhos livres para mexer à vontade. Essa é a forma de deixar os bebés fortes. Mandarei fazer um pequeno cercado no terraço, e ali o delfim terá seu próprio reinozinho. Ali ele ficará sobre suas perninhas, caminhará e ganhará força.
As duas amigas ouviam Antonieta; com ela, falavam sobre as roupas que a criança deveria usar, e planejavam como seriam seus dias. Não havia nada que deliciasse mais a rainha.
Há apenas uma coisa que me atormenta - disse ela. - Monsieur lê dauphin está demorando muito para chegar.
Antonieta não conseguia sentir interesse por mais nada. Quando Artois fazia sua mesura costumeira para a estátua de Luís XIV no Orangerie em Versalhes e gritava Bon jour, vovô , Antonieta não achava mais engraçado. Quando o príncipe de Ligne sugeriu que ele deveria esconder-se atrás da estátua e, imediatamente depois que o irreverente Artois fizesse seu cumprimento, respondêlo numa voz rouca para pregar-lhe um susto, Antonieta se mostrou apenas vagamente interessada.
Como era difícil pensar em qualquer outra coisa além do delfim!
O pequeno James Armand notou essa mudança em sua mãe adotiva. Ele ficava ao lado dela, inclinado gentilmente contra seu corpo, fitando seu rosto bonito. Mas embora Antonieta cofiasse os cabelos do menino, ele sentia que aqueles dedos delicados estavam distraídos, e passou a sentir um grande medo mesmo enquanto ela o tocava, mesmo enquanto ela sorria, porque sabia que seus pensamentos estavam distantes.
- Volta! - dizia ele em pânico. - Volta. Ela sorriu.
- Como assim, querido? Voltar? Estou aqui, não estou?
- Você está muito longe.
- Você é um menininho estranho, monsieur James - disse a ele.
Antonieta notou que a mão do menino puxava sua manga da forma como fizera no casebre de sua avó. Ela lhe contou sobre o bebé que estava esperando.
- Há muito tempo aguardo por um bebé. E agora terei um.
- Você tem o seu monsieur James - lembrou-lhe. - Ele não basta?
Ela riu.
- Eu sou gananciosa. E eu amo tanto o meu monsieur James que poderia ter vinte como ele.
Isso fez o menino rir. Porém, mais tarde ela o flagrou parado num canto, ouvindo uma conversa sobre o bebé esperado, a testa franzida de preocupação.
Ela o chamou e tentou mimá-lo, dando-lhe doces, aqueles de que ele mais gostava. Mas ele estava perturbado, porque queria mais do que doces.
Foi durante esse período que o conde Hans Axel de Fersen chegou à corte.
Foi levado até Antonieta no salão do Palácio de Versalhes, onde ela estava com o rei, e cercado por membros da Corte.
Quando o conde se ajoelhou, um brilho de reconhecimento surgiu nos olhos de Antonieta.
Ela disse sem pensar:
- Ah, trata-se de um velho conhecido. Seja bem-vindo à Corte, conde de Fersen.
Ele murmurou:
- Vossa Majestade é graciosa. O rei mal o notou. Sua mente estava ocupada com assuntos de Estado. Seus inimigos, os ingleses, estavam envolvidos numa guerra com seus colonizados na América, e esta guerra seria de máxima importância para a França.
- Fico satisfeita em vê-lo aqui - disse a rainha ao conde. Ela estava lembrando daquela noite no baile da Ópera e como este homem tinha sido ousado; como ele arrancara a máscara de Antonieta e descobrira que ela era a delfina, conforme era na época.
Antonieta tinha pensado muito nele naquela época, mas então outros assuntos haviam clamado sua atenção. Estudando-o agora, ela não estava surpresa por ter ficado tão profundamente impressionada.
Ele era alto e muito esguio, e o uniforme sueco caía-lhe bem. Sua tez era muito pálida, mas tão clara que quase parecia transparente. Seus olhos, que tendiam ao negro, eram muito grandes; o nariz era reto e de linhas perfeitas; a boca era belissimamente formada; a expressão era a um só tempo máscula e terna.
Antonieta podia compreender como ele havia abalado suas emoções naquele seu encontro romântico.
Ela o fez sentar-se e contar-lhe tudo que lhe acontecera desde seu último encontro; sobre sua vida na Suécia, sobre seu pai, o senador, que era muito reverenciado e admirado.
De repente, ele disse:
Houve uma ocasião em minha vida que jamais esquecerei:
aquela noite em que dancei no baile da Ópera com Vossa Majestade.
Ficou muito chocado em descobrir quem eu era?
Foi o maior choque da minha vida.
- Você exagera, conde.
- Não, é verdade.
Antonieta sabia que não deveria mantê-lo ao seu lado falando, mas não podia resistir à tentação de fazê-lo.
- Naquela época eu era delfina. Agora sou rainha e tenho uma liberdade maior para fazer o que me apetece.
- Rainhas têm menos liberdade para fazer o que lhes apetece do que delfinas, Vossa Majestade.
Antonieta deixou escapar uma risadinha suave.
- Acho que você esteve ouvindo histórias a meu respeito.
- Guardei como um tesouro cada palavra que ouvi a seu respeito.
- Histórias maldosas? - perguntou Antonieta.
- Nada sobre Vossa Majestade pode ser maldoso aos meus olhos. O simples fato de a história ser a respeito de Vossa Majestade basta para banir qualquer mal que houver nela.
- É muita gentileza sua dizer isso.
Antonieta levantou seu leque, no qual havia uma lente instalada, e olhou através dele. Ela era um pouco míope e queria ver claramente cada linha do rosto do conde.
- Você verá que estou mudada - disse ela. - Diferente da delfina com quem dançou.
- Eu a vejo mudada, mas ainda assim igual. Eu a considero perfeita, embora também tenha considerado a delfina perfeita. Devo ir-me agora? Estamos sendo observados atentamente.
- Uma praga sobre esses olhos vigilantes! Eles estão sempre sobre mim. Se eu dispensar você, isso será considerado errado, porque tudo que faço é considerado errado por esses olhos determinados a me condenar. Como também estarei errada se ordenar a você que fique, prefiro optar por fazê-lo.
- Apesar disso, Vossa Majestade parece uma mulher muito feliz - observou o conde.
- Estou esperando a criança com quem sempre sonhei. Sinto-me imensamente feliz desde que soube que estava grávida. E agora.... um velho amigo, ou alguém a quem considero um velho amigo, retorna. Isso me deixa ainda mais feliz. Não se preocupe sobre ficar ao meu lado. O rei está atarefado com seus ministros. Eles estão tendo conversas intermináveis sobre a guerra entre a Inglaterra e seus colonos na América.
- A simpatia dos franceses está com os colonos - disse o conde.
- Decerto. As simpatias francesas são sempre contrárias às simpatias inglesas.
- Por toda a França, muitos estão dizendo: boa sorte aos que se levantam contra a Coroa inglesa.
- Eu sei. Joseph, meu irmão que esteve conosco recentemente, ficou preocupado com esses comentários. Quando as pessoas elogiavam aqueles que se rebelam contra a Coroa inglesa, Joseph ficava um pouco zangado. Só que, sendo Joseph, ele jamais demonstrava. Ele costumava dizer: Mon métier est d être roy aliste , de sua forma muito direta, que parecia anunciar: Eu, o imperador, digo isto; portanto, assim deve ser. Querido Joseph! Ele é o melhor irmão do mundo, mas não consigo não rir dele.
Fersen riu com ela porque a risada de Antonieta era contagiante.
Ele disse a si mesmo: foi um erro voltar à Corte. Se ela era delfina naquela época, é rainha agora. Está ainda mais distante de mim.
Antonieta manteve-o ao seu lado até que saiu do salão para o seu apartamento.
Joséphe e Thérèse estavam vigiando. Elas decidiram que no dia seguinte visitariam as tias no castelo de Bellevue, onde agora estavam instaladas. Elas poderiam falar sobre o comportamento ultrajante da rainha com o conde de Fersen. Obviamente, era uma pena que o conde não tivesse estado em Paris um pouco antes. Então elas poderiam ter deflagrado o rumor de que a condição da rainha poderia não ter tanta relação com apetit opération como se fizera acreditar à maioria das pessoas.
Ainda assim, sempre era agradável fazer fofocas em Bellevue, onde agora estavam reunidos todos os homens e mulheres descontentes de Versalhes, que estavam firmemente determinados a fomentar o crescente desprestígio da rainha.
Fersen foi convidado ao Petit Trianon; ele dançaria com a rainha no jardim durante suas festas informais.
- Aqui fazemos pouca cerimónia - disse-lhe a rainha. - É para cá que fugimos de Versalhes. Este é o nosso refúgio. Eu não consigo suportar a solenidade da Corte por muito tempo.
Portanto, dançar no jardim foi mais uma lembrança para eles sobre a dança no baile da Ópera de Paris.
Fersen sentira-se atraído por Antonieta desde o primeiro momento em que a vira. Poucos dias depois de sua chegada à Corte, Fersen estava apaixonado por ela.
Antonieta estava encantada com Fersen. Era tão bonito, tão atraente, tão apaixonado! Fersen a conduzia a uma emoção mais profunda do que Lauzun conseguira, mas a mente de Antonieta estava ocupada principalmente pela criança que estava esperando, e ela não era, por natureza, uma mulher promíscua. Seus desejos físicos eram moderados. Tivera medo de seu relacionamento com Lauzun devido à situação entre ela e Luís naquela época; e os reproches contínuos de sua mãe e daqueles que a cercavam, acerca do seu fracasso em gerar um delfim, produziram nela aquelas affectations nerveuses sobre as quais Mercy escrevera para Maria Teresa, e que tinham sido decisivas para a vinda de Joseph.
Fersen era sábio.
Antes ele já havia desaparecido da vida de Antonieta; agora ele sentia que a necessidade em fazê-lo era ainda mais urgente.
Certo dia Fersen conversou com Antonieta enquanto estavam sentados no jardim do Trianon com alguns membros do pequeno grupo de amigos da rainha.
- Vossa Majestade, partirei em breve da Corte.
Antonieta ficou surpresa e, como ele ficou deliciado em ver, profundamente decepcionada.
- Monsieur de Fersen! - exclamou imperiosamente Antonieta. - Não deve nos deixar. Ficaríamos muito tristes. Não deve voltar agora para a Suécia. Nós não deixaremos.
Fersen levantou seus olhos belíssimos - porque Antonieta estava sentada em sua cadeira semelhante a um trono, e seus súditos estavam sentados à sua volta no gramado - e disse lentamente:
- Vossa Majestade, não irei para a Suécia. Partirei para a América.
- Para... lutar!
- Para lutar contra as forças do rei da Inglaterra - disse ele.
- Para ajudar na causa da liberdade.
- Não faça isso! - rogou, lágrimas enchendo seus olhos. Ficou calada por um instante antes de prosseguir: - Mas se é o que deseja fazer, então faça.
Antonieta estava triste. Seus olhos seguiam Fersen, e muitos notavam que eles enchiam-se de lágrimas ao fazer isso.
A princesa de Lamballe implorou a Antonieta que não demonstrasse tão abertamente seus sentimentos pelo jovem.
- Você é vigiada dia e noite. Suas cunhadas não perdem uma só oportunidade em contar maldades a seu respeito.
- Eu sei - disse Antonieta. - E elas estão ainda mais zangadas comigo agora que espero meu delfim. Mas de que isso me importa?
- Pois deve se importar - disse a princesa. - Elas podem lhe causar muito mal.
- Não posso fingir que não fico triste quando vejo Axel. Ele logo irá para longe, e eu gosto dos meus amigos perto de mim. É triste pensar que em breve ele poderá estar à morte em algum campo de batalha porque interferiu numa causa que não era sua.
- Ele disse que sua causa é a liberdade, a justiça.
- Acho que ele vai partir porque teme ficar aqui, devido às calúnias ditas a nosso respeito.
- Então ele é sábio em partir - disse a princesa.
- É uma grande infelicidade ser tratada como sou - disse Antonieta com tristeza. E então ela riu. - Mas se é malicioso da parte das pessoas presumir que tenho amantes, certamente é muito estranho da minha parte ter tantos atribuídos a mim e na verdade ainda não ter tido nenhum!
A princesa riu com ela. Mas Antonieta continuou triste, queixando-se sobre a partida de Fersen.
E mesmo depois que Fersen havia partido, Antonieta continuou pensando muito nele, até que sua mente ficou inteiramente ocupada pelo trabalho de parto que se avizinhava.
Durante as noites, ela caminhava com os amigos no terraço do castelo. O verão estava mais quente que o normal e Antonieta passava os dias descansando, fazendo bordados enquanto ouvia música e conversava com o delfim. Portanto, era agradável caminhar durante a noite fria no terraço iluminado por estrelas, escutando a música que vinha do Orangerie. O velho costume era que em momentos como esse o povo de Versalhes recebesse permissão para entrar no castelo e até nos terraços.
A rainha, como suas damas, estava vestida em musselina branca com um grande chapéu de palha e um véu que eram a nova moda copiada por muitas mulheres. Portanto, enquanto elas ficavam sentadas ou caminhavam no terraço, e o povo perambulava livremente pelo terreno, muitos falavam com a rainha sem saber quem era ela.
Certa noite, enquanto ela estava sentada ali, um homem se aproximou e parou ao seu lado.
- Que linda noite! - disse ele, e ocupou uma cadeira ao lado dela.
- Muito linda - replicou Antonieta.
Ela acreditava que ele não sabia quem ela era, porque ele claramente era da classe dos mercadores. Como não queria humilhálo, jurou a si mesma que diria apenas algumas palavras e murmuraria que precisava ir.
Ele a fitava intensamente.
- Não há dama em Versalhes tão linda quanto a senhora! declarou ardentemente o homem.
- É muita gentileza da sua parte dizer isso. Agora, com sua licença, preciso juntar- me à minha família.
Ela se levantou e, olhando à sua volta, viu suas cunhadas paradas não muito longe, observando.
- Vamos embora - disse a elas.
Joséphe, vendo o que tinha acontecido, aproximou-se apressada.
- Vossa Majestade se cansou - disse ela audivelmente, e seus olhos reluzentes estavam no homem.
Ela viu um sorriso tocar os lábios dele, e soube que desde o começo ele estivera ciente da identidade da rainha.
Antonieta segurou o braço de Joséphe e elas se retiraram. Mais tarde, Joséphe recontou alegremente o incidente a Provence. Estava claro que muitos começavam a acreditar na promiscuidade da rainha.
Enfim dezembro chegou, e a Corte inteira estava em polvorosa.
Muitas vezes durante o dia o rei ia até os apartamentos da rainha na ala sul da Grande Galerie.
Exigia saber como ela estava. Não deveria descansar mais? Havia alguma coisa que desejasse?
Fazia muitas perguntas às aias de Antonieta. A rainha estava se sentindo um pouco cansada? Elas achavam que a rainha estava fazendo exercícios suficientes? Uma delas precisava mandar a accoucheur ao apartamento do rei. Ele queria questionar imediatamente tanto a accoucheur quanto os doutores.
- A rainha está feliz, Vossa Majestade - disseram-lhe. - E tudo está correndo como deveria.
Mas Luís sentia dificuldade em se satisfazer. Ele disse aos doutores:
- Eu gostaria que pudéssemos dispensar os costumes ancestrais e bárbaros que prevalecem na Corte em momentos como estes. É monstruoso que o povo, não apenas a minha própria família, mas qualquer cidadão francês, tenha o direito de entrar na câmara de resguardo enquanto a rainha dá à luz ao enfant de France.
Os doutores concordaram com o rei; mas o protocolo - e particularmente no presente momento - precisava ser preservado.
O rei sabia que isso era muito necessário neste caso, porque embora não tivesse ouvido todos os rumores a respeito de Antonieta e dele próprio que circulavam pela Corte e pelo país, podia imaginar o que seria dito caso se recusasse a receber testemunhas na câmara de resguardo. Em vista dos longos anos de infertilidade, decerto seria dito que a criança não era do rei e da rainha; que não houvera nascimento real. Rumores desse tipo já haviam circulado antes.
- Contudo, decidi que as telas cercando a cama devem ser amarradas com cordas para que não sejam abertas pelos espectadores.
Nas primeiras horas daquela manhã de dezembro, Antonieta acordou e chamou por suas aias. Sentira a primeira de suas dores.
A notícia correu pelo palácio. Todos os sinos repicaram para convocar os parentes da família real que estavam em Paris ou em Versalhes, aguardando o evento. Pajens e cavaleiros galoparam para Paris e St.-Cloud para trazer seus patrões ao castelo.
As damas de companhia de Antonieta, lideradas pela princesa de Lamballe e pela duquesa de Guémenée, dispuseram-se em torno da cama.
- Marie - sussurrou Antonieta, segurando a mão da princesa -, assim que a criança nascer, diga-me se... se é um menino.
- Será um menino - assegurou-lhe a princesa.
- Precisa ser um menino - disse Antonieta, seu rosto contorcido numa dor súbita.
- Aguente firme-pediu a princesa.-Os doutores e a accoucheur chegarão logo.
- Não estou me queixando das dores - disse Antonieta. Eu as recebo de bom grado. Não vai demorar muito agora, Marie. Deus, por favor, faça com que seja logo.
Por trás das telas, os príncipes e princesas, os duques e duquesas, os nobres e as mulheres de título elevado aguardavam sentados. Atrás deles apinhava-se a plebe da cidade, reunidos ali conforme era seu privilégio. Eles estavam em pé sobre cadeiras para poderem ver o que acontecia atrás das telas; eles brincavam uns com os outros e gritavam.
Era uma cena estranha - ali naquela sala real, cujo teto fora pintado por Boucher e cujas paredes eram adornadas com tapeçarias de Gobelins, a jovem rainha contorcia-se na cama, de vez em quando emitindo um grito de agonia, sempre sob olhares vigilantes, não apenas de membros de sua família, mas de qualquer um que tivesse sido rápido e forte o bastante para chegar até a câmara real e entrar nela.
Fora da câmara real no Salon de La Paix, com suas decorações belíssimas e portas douradas, uma multidão estava aglomerada. Na Grande Galerie, eles se acotovelavam e amaldiçoavam a sorte que os fizera chegar tarde demais para conseguir um lugar na câmara de resguardo.
Enquanto isso, na câmara, cujas janelas tinham sido fechadas e cobertas com papel para impedir a entrada das correntes frias de dezembro, a multidão aguardava.
A rainha jazia exausta na cama, mas finalmente sua agonia terminou, e ela deu à luz.
Os olhos de Antonieta fixaram-se na criança - a criança tão ansiada. Ela a viu- pequena, enrugada, quase dessemelhante a um ser humano. Jazia parada. Não chorava. Ela olhou para a accoucheur que a havia tirado e entregue ao doutor. Ela viu os olhos assustados da princesa de Lamballe.
Antonieta tentou falar. Mas as luzes da sala pareciam estar apagando. Ela estava ciente de um grande silêncio ao seu redor. Sentia ondas de calor cobrindo seu corpo; fazia força para respirar, porque o ar da câmara de resguardo estava quente e fétido devido à presença dos invasores curiosos.
Ela pensou ter ouvido um choro de criança. Alguém disse:
- A rainha! A rainha!
Então ela se perdeu na escuridão.
- É uma menina.
A notícia foi repetida aos gritos pela câmara.
- Então... Nada de delfim para a França!
- Mas uma criança saudável... uma menina.
- E a rainha?
Os doutores estavam ao lado da cama. A rainha jazia como uma morta, e o rei parou de pensar na criança agora. Ele caminhou até um dos médicos e o balançou.
A rainha! - disse ele. - Atenda a rainha.
- O ar... está nocivo demais - disse o médico. - O quarto deve ser esvaziado e arejado.
O rei jamais agiu tão depressa em sua vida.
- Esvaziem a sala! - gritou. - Esvaziem a sala imediatamente.
Ele abriu caminho à força pela multidão até a janela. Ele decidiu não perder tempo arrancando o papel que cobria o vidro: empurrou um cotovelo através do vidro. O ar frio entrou na sala.
Os espectadores olharam-no em silêncio. A força do rei era grande, e aumentada pelo medo, ele a usou para arrebentar todo o vidro das janelas.
Então virou-se para encará-los.
- Não ouviram minhas ordens? Saiam do quarto imediatamente.
- Majestade... - começou Provence.
Mas este foi um dos raros momentos em sua vida em que Luís exigiu obediência imediata. Luís agora era rei, como tinha sido durante um breve espaço de tempo durante a Guerre dês Farines, e ninguém ousaria desobedecê-lo.
Os guardas conduziam os plebeus para fora, enquanto os médicos gritaram pedindo água quente.
Ninguém tinha água quente preparada, porque os servos acreditavam que o aspecto mais importante de um parto real era cuidar dos espectadores. Demoraria algum tempo para que a água quente fosse trazida, e a rainha estava em perigo imediato.
Então um dos médicos perfurou o pé da rainha e o fluxo de sangue, em combinação com um repentino pé-de-vento, trouxe-a de volta à consciência.
- Meu bebé? -perguntou.
A princesa de Lamballe ajoelhou-se diante da cama, olhos cheios de lágrimas.
- Uma menininha, Vossa Majestade. Uma linda menininha. Antonieta cerrou os olhos. Então não havia um delfim. Durante um momento ela ficou desolada, porque a criança com quem sonhara durante todos os meses de espera sempre tinha sido um menino. Abriu os olhos e viu Luís parado ao lado da cama, e vendo-o tão nervoso sentiu um afeto imenso por ele.
- Querido Luís, eu o desapontei - disse Antonieta. - Você esperava um delfim.
- Desapontado? - disse Luís, sua boca tremendo com emoção. - Como eu poderia estar? Você não vai morrer... e nós temos uma filha.
Ela estendeu a mão. Ele a pegou e a beijou.
- Eu quero meu bebé - disse Antonieta.
Assim, trouxeram a criança e a puseram nos braços da rainha.
- Minha pobre criança - murmurou Antonieta. - Não queríamos uma menina, mas não será por causa disso que você será menos querida.-Levantou os olhos para todos em torno da cama.
- Ora, um filho teria pertencido mais particularmente ao reino, mas você será minha. E terá todo o meu carinho, e irá compartilhar de minha felicidade e mitigar minhas tristezas.
O rei se aproximou e olhou o bebé.
- Agora que você tem essa criança maravilhosa, precisa descansar - comandou. - São ordens médicas. Vamos, feche os olhos. Nada tema. Há muitos aqui para cuidar de madame Royale e darlhe boas-vindas ao mundo. Descanse bem. A sua provação chegou ao fím. O pai de lapetite madame compartilha da mesma satisfação que sua mãe.
Assim, Antonieta entregou a criança à princesa e afundou num sono feliz.
Luís não conseguia sair dos aposentos da rainha. Passava um bom tempo lá, ao lado do berço de sua filha, olhando para ela e maravilhando-se com a perfeição de suas mãozinhas e pezinhos. Ele sorria para os dedinhos enrolados em torno de seu dedão. Ele dizia a todos:
- Venha. Olhe só estes lindos dedinhos. Já viu alguma coisa mais perfeita? Isto não é maravilhoso?
Todos que iam compartilhar o entusiasmo com Luís concordavam com ele: sim, é maravilhoso.
A rainha sentava-se com Luís, e ambos riam de pura felicidade, perguntando um ao outro se eles trocariam, caso pudessem, esta criaturinha belíssima por outra, mesmo por um delfim.
Não, com toda certeza não o fariam. Marie-Thérèse Charlotte madame Royale - era perfeita aos seus olhos e eles não a trocariam por nada no mundo.
Luís, esposo amoroso e pai devotado, queria mostrar sua afeição em termos mais tangíveis.
Maria Antonieta amava jóias. Luís chamou os joalheiros da Corte e ordenou-lhes que fizessem para a rainha alguma coisa que a deliciasse mais do que qualquer jóia que ela já possuísse.
Quando a convocação chegou aos ouvidos de messieurs Boehmer e Bassenge, os joalheiros da corte, monsieur Boehmer esfregou as mãos com deleite.
- Chegou a hora de vendermos o colar de diamantes.
O colar de diamantes estava prestes a ser completado. Ambos os joalheiros tinham certeza absoluta de que aquele era o ornamento mais magnífico já feito, afinal quem mais no mundo disporia das condições para encontrar suas pedras e a perícia necessária para montá-las numa peça?
Eles tinham levado quatro anos para encontrar pedras de tamanho e perfeição suficientes para montá-las neste colar. O colar tinha sido feito, é claro, com a rainha em mente, e os joalheiros não duvidaram sequer por um segundo que Maria Antonieta ficaria tão encantada quando o visse que seria incapaz de resistir a ele.
O colar de diamantes ocupou os pensamentos dos messieurs Boehmer e Bassenge durante o dia inteiro e frequentemente parte da noite. Sua venda torná-los-ia homens ricos. Eles estavam bem de vida, porque os negócios andavam bem desde que a rainha adquirira um gosto muito refinado por diamantes, e a Corte seguira esse gosto. Mas o colar foi planejado para torná-los ricos.
Os diamantes que formavam uma gargantilha eram enormes, e graduavam a partir do maior, no centro; desta gargantilha pendia outro cordão no qual havia um pendente de diamantes culminando num diamante periforme. Mais cachos pendiam da gargantilha; em seguida havia uma corda magnífica de diamantes duplos da qual pendiam quatro borlas, todas compostas dos melhores diamantes do mundo.
Os joalheiros esperavam vender esta criação única por um milhão e seiscentos mil livres.
Assim, quando o rei mandou chamar por Boehmer e este presumiu que Sua Majestade queria dar um presente à rainha, ele rapidamente completou o colar e foi mostrá-lo a Luís.
- Meu rei, a peça que trago é o ornamento mais belo do mundo, do qual Sua Majestade, a rainha, decerto é digna.
Luís ficou muito impressionado com aquela jóia reluzente, embora o preço tenha lhe provocado um arrepio. Contudo, ele estava decidido a mostrar a Antonieta e ao mundo que ele era um esposo e um pai feliz.
- Conversarei com a rainha antes de comprá-lo - disse Luís. E o joalheiro se retirou, satisfeito e confiante.
James Armand estava com a rainha ao lado do berço.
Ele estava olhando apreensivo para o bebé, porque agora sabia que aquela menininha era a sua maior rival na Corte. De nada adiantava que sua amada rainha lhe assegurasse que ele era o seu filhinho. Ele sabia que não era. A rainha sempre estava distraída quando brincava com ele. De fato, ela estava brincando muito menos com ele agora.
O menino estava com medo. Lembrava do casebre de sua avó e de todos os seus irmãos que moravam lá, e de como eles tinham se recusado a brincar com ele, de como o tinham proibido de participar dos jogos porque era o mais novo.
Certa vez procurou a rainha e a encontrou embalando o bebé, cercada por suas damas de companhia, admirando a criaturinha.
- James Armand está aqui - anunciou. Todas elas riram.
- Então James Armand está com ciúmes de madame Rõyale? Uma das damas disse:
James Armand, você esquece que madame Royale é filha
verdadeira da rainha.
Eu também - declarou fervorosamente. - Eu também.
A dama sorriu e cofiou o cabelo da criança.
Coma um docinho, James Armand. Tome, este é um dos seus favoritos.
Mas o garoto saiu correndo e se escondeu.
Ficou escondido por trás das cortinas, observando a rainha com o bebé, vendo-a curvar-se diante do berço para beijar a criança.
Ele a ouviu dizer:
- O momento mais feliz da minha vida foi quando segurei meu bebé pela primeira vez.
Pensando que Antonieta tinha se referido a ele, James Armand saiu de trás das cortinas.
- Foi quando você me pegou na estrada depois que os cavalos me chutaram.
Ela entregou o bebé a uma de suas aias e abraçou o menino.
- Você não precisa temer nada, James Armand - disse ela.
- Você sempre vai ser o meu filhinho.
Ele se entregou ao prazer desse abraço, mas não conseguiu acreditar inteiramente nas palavras de Antonieta. Eram incontáveis os sinais em contrário.
A rainha estava olhando pensativamente para o menino, quando o rei entrou no cómodo.
- Boehmer mostrou-me o colar de diamantes mais magnífico que já vi.
- O colar? - Ela sorriu. - Ouvi falar do colar.
- Se o quiser, será seu.
- Creio que ele custa muito caro. O rei soergueu as sobrancelhas.
- Desde quando você começou a ficar preocupada com dinheiro?
- Talvez desde que me tornei uma mãe de verdade. Eu vou começar a mudar agora, Luís. Tenho sido muito extravagante. Tenho desperdiçado dinheiro demais. Fazia isso porque queria ser mãe, e como não era, precisava ocupar meu tempo de alguma maneira.
Agora meu maior desejo foi realizado. Tenho a minha própria filha, e terei mais crianças. Não, eu não quero o colar. Mamãe iria escrever-me queixas, e você sabe como sou continuamente recriminada por minhas extravagâncias. Tenho muitos diamantes e eles não combinam tão bem assim com as novas modas de musselina e cambraia. E decerto só usarei essa jóia maravilhosa seis a doze vezes por ano. Não, Luís, eu vou mostrar-lhe que mudei. Não quero esse colar de diamantes. Não quero nem mesmo vê-lo... porque temo ficar tentada.
- Ele custa quase dois milhões de livres... um milhão e seiscentas mil, para ser preciso. É muito dinheiro. É possível montar um exército com isso.
- Então monte o seu exército, Luís.
- Eu teria gostado de lhe dar esse colar...
- Você me deu minha pequena Charlotte. Isso basta.
Ele estava olhando para ela com olhos reluzindo com aprovação. Ela estava certa, é claro. Ela tinha sido extravagante, e seria bom mostrar ao povo que ela não era mais assim.
Luís enviou a Boehmer uma mensagem dizendo que a rainha decidira não comprar o colar.
- Estamos arruinados - disse ele ao sócio. - Pedimos emprestada uma quantia muito grande para comprar as pedras. Desperdiçamos quatro anos de trabalho neste colar. Se não o vendermos, estaremos falidos. Eu estava contando com a rainha.
- Quem podia imaginar que ela resistiria a ele? - gritou Bassenge. - Quem vai comprar agora?
- Sabe lá Deus! O valor do colar o coloca fora do mercado. Ninguém, fora o rei e a rainha, tem condições de pagar pelo colar. Muitos já o viram e o admiraram... mas evidentemente o consideraram fora de seu alcance. Só há uma coisa que podemos fazer se quisermos nos salvar. Preciso visitar todas as cortes da Europa na esperança de encontrar um comprador.
Assim, a rainha não ganhou o colar de diamantes. Em vez disso, uma centena de casais, que estavam prestes a se casar, receberam um dote, além de novas roupas, e dinheiro foi distribuído por todo país; perdões foram concedidos a certos criminosos e muitos endividados foram perdoados. Houve queimas de fogos e iluminações na capital, vinho fluiu de fontes e a Comédie Française realizou espetáculos gratuitos. Parecia que a popularidade da rainha tinha sido reconquistada, porque para toda parte a que ela ia, era aclamada com gritos de Vive La Reine!
Mas seus inimigos estavam mais fortes do que nunca. As tias continuaram a receber seus visitantes em Bellevue.
- E quanto tempo você acha que esta reforma durará, hein?
- inquiriu Adelaide às suas irmãs.
As irmãs esperaram para ouvir de Adelaide quanto tempo, mas obviamente sabiam que ela já tinha concluído que seria muito pouco.
Josèphe e Thérèse continuaram vigiando a rainha. Elas tinham certeza de que a mãe carinhosa muito em breve voltaria a ser a rainha frívola. Em primeiro lugar, ela ainda se mantinha cercada por seus favoritos. Os Polignacs estavam tão fortes quanto sempre. Gabrielle era a pessoa mais favorecida da Corte.
- Nos velhos tempos, o rei tinha amantes - comentou Josèphe. - Hoje a rainha tem amigos.
- As pessoas deviam ouvir isso! - gritou Adelaide.
As irmãs assentiram positivamente. Elas sabiam que Adelaide, Josèphe e outras pessoas providenciariam para que esse comentário fosse repetido por toda Paris.
O conde de Vaudreuil, que era amante de Gabrielle, tinha perdido dinheiro nas índias Ocidentais devido à guerra americana, e Gabrielle implorou à rainha por ajuda para o seu amante; o resultado foi que o conde obteve uma sinecura na Corte, à custa dos fundos públicos, no valor de trinta mil livres anuais. A adorável filha de Gabrielle estava prometida ao duque de Guiche. O rei concedeu-lhe um dote de oitocentas mil livres porque a rainha queria agradar sua amiga. Obviamente, monsieur de vjuiche, o noivo, também precisava receber presentes, que vieram na forma de uma comenda na companhia da Guarda, uma propriedade e uma pensão.
Gabrielle foi feita duquesa e recebeu propriedades em Bitche, e passou a ser conhecida por toda Paris como Bitchette.
Outros membros da família Polignac não foram esquecidos. Até o pai do marido de Gabrielle, o velho visconde de Polignac, que estava longe de ser brilhante, foi enviado para a Suíça como embaixador.
Os inimigos da rainha providenciavam para que o povo ficasse a par de suas extravagâncias. Eles estavam determinados a fazer com que a recém-encontrada popularidade de Antonieta não perdurasse. Ela acabou por perdê-la completamente quando, depois de um leve ataque de sarampo, decidiu convalescer no Petit Trianon.
- Farei isso para me afastar do rei, que jamais contraiu sarampo - declarou Antonieta.
- Sua Majestade não deve entediar-se durante a convalescência - disse-lhe Gabrielle. - Isso retardaria consideravalmente a sua recuperação. Vou acompanhá- la.
- Se você não teve sarampo, Gabrielle...
- Com sarampo ou não, eu estarei lá - disse Gabrielle. Quatro cavalheiros da Corte apresentaram-se para dizer que
também já haviam tido sarampo. Disseram isso com tamanha falta de sinceridade que ficou claro que não tinham certeza se haviam tido ou não, mas que consideravam o sarampo um preço pequeno a pagar para estar em companhia íntima da rainha.
Assim, com a rainha e umas poucas - muito poucas - de suas damas, partiram os duques de Coigny e de Guines, o barão de Benseval e o conde Esterhazy. No Petit Trianon, o grupo fez de tudo para alegrar a rainha durante a convalescência dela. Seu quarto era o centro das festas, e logo se tornou sabido em toda Paris que a rainha recebia esses homens em sua alcova.
Agora todos os velhos escândalos ressuscitaram. O povo nas ruas estava inventando escândalos e mais uma vez entoando músicas sobre ela.
Mercy escreveu freneticamente a Maria Teresa. Maria Teresa imediatamente enviou instruções.
Mercy visitou o Petit Trianon e, como resultado, os quatro cavalheiros receberam a ordem de não entrar na alcova da rainha depois das onze da manhã.
Mas o dano tinha sido feito.
As finanças do país estavam num estado lastimável.
Turgot tinha sido substituído por Clugny de Nuis e, quando este morreu, por Jacques Necker, o banqueiro genovês.
Necker era muito popular e todo o país comemorou sua indicação. Muito se ouvira falar sobre o déficit, e acreditava-se piamente que Necker era o homem certo para colocar a França em pé de novo.
Necker, acostumado a lidar com finanças, ficou horrorizado ao descobrir que o déficit nacional era de cerca de vinte milhões de livres por ano, e que devido à guerra americana - porque a França estava apoiando os colonos - a dívida aumentava rapidamente. Ele não ousava criar mais impostos porque sabia que o povo se levantaria em revolta caso o fizesse. Em vez disso, recorreu a empréstimos.
Com o dinheiro emprestado, pareceu que Necker estava sendo bem-sucedido. Ele estava cortando despesas em todo o país. Ele acreditava no princípio de que se conseguisse tornar a França próspera, seria capaz de pagar os empréstimos quando chegasse a hora.
Mas ele não conseguiu. A guerra estava virtualmente terminada e ele compreendeu que sua única maneira de pagar os empréstimos seria através de mais impostos que, felizmente, poderia postergar durante mais algum tempo. Determinado a não provocar pânico, Necker publicou um livrinho que ele chamou de Compte Rendu, e nele colocou os detalhes da renda e do gasto nacional. Como falsamente incluiu os empréstimos como renda, pôde mostrar, ao invés de um déficit, um balanço de crédito de dez milhões de livres.
Isso gerou um grande ânimo, e o povo clamou:
- Longa vida a Necker! Ele é o salvador da França.
Antonieta estava mais uma vez alegremente grávida.
James Armand estava atrás da cadeira de sua mãe adotiva, ouvindo-a falar sobre o novo bebé que estava vindo.
Desta vez, precisa ser um menino! - disse a rainha.
Agora Antonieta sentia um grande prazer em escrever para a mãe e em abrir as cartas que chegavam da Áustria. Maria Teresa esquecia de passar sermões quando um delfim estava a caminho.
Contudo, poucos meses depois que a criança foi concebida, a rainha sofreu um aborto. Antonieta ficou arrasada e chorou muito, mas quando seus amigos asseguraram-lhe repetidamente que ela certamente ficaria grávida de novo, seu espírito se animou.
Perto da cama, James Armand sorria de satisfação. Pelo menos por enquanto não haveria outro rival para ser colocado no berço ao lado da menininha.
Antonieta riu dele e lhe disse que ele era muito malvado para um suditozinho do rei. James Armand riu com ela. Disse-lhe que não se importava com o rei: ele era o menininho da rainha.
- Agora receberei mais cartas de minha mãe - disse Antonieta a Gabrielle. - Ela me dirá que devo a todo custo evitar lê lit à part. Pobre mãe, isto será um grande choque para ela. Ah, monsieur James, não é estranho que o que o alegra encha o coração de minha mãe com tristeza?
Mas as cartas de Maria Teresa estavam chegando cada vez menos frequentemente. Nos últimos anos ela ficara muito gorda. Ela tinha sofrido um pouco com varíola, e Antonieta não iria reconhecêla se a visse. A imperatriz sabia que não tinha muito tempo de vida; e certo dia, logo depois do aborto de Antonieta, ela pegou um resfriado a bordo de uma carruagem.
Alguns dias depois estava morta.
Quando recebeu a notícia, Maria Antonieta adoeceu de tristeza.
Sabendo o quanto sua esposa ficaria triste, Luís declarou-se incapaz de transmitir a notícia a Antonieta, e pediu ao abade de Vermond que o fizesse com toda gentileza possível. Mas enquanto Antonieta estava prostrada na cama, abatida demais para falar, Luís deitou-se ao seu lado e a tomou nos braços.
- Não consigo acreditar, Luís - confessou Antonieta. Mamãe... morta. Mas ela era tão viva. Acho que eu pensava que ela seria imortal.
- Nenhum de nós é - disse Luís.
Mas ela parecia. E pensar que às vezes eu coloquei suas cartas de lado porque sabia que elas conteriam sermões. Como se ela algum dia tenha me passado um sermão que eu não merecesse! Luís, quem vai cuidar de mim agora?
- Eu.
Ela sorriu gentilmente para ele. Querido Luís. Mas Pobre Luís. Como ele era diferente da mulher forte a quem Maria Antonieta sempre pudera recorrer.
- Eu não consigo acreditar que ela não está lá. Entenda, Luís, ela sempre esteve lá... desde que eu me entendo por gente, ela sempre esteve lá...
Ele a consolou. Antonieta sentiu-se mais perto de Luís do que nunca, e durante esses dias de luto, ela quis se isolar de tudo, menos de seu marido e suas amigas queridas, a madame de Polignac e a princesa de Lamballe.
As economias da França estavam abaladas.
Quando fizera seus planos drásticos para reduzir despesas, Necker ignorara o fato de que o resultado geraria muito desemprego e insatisfação; e as centenas de pessoas cuja sobrevivência dependia da prestação de serviços à nobreza ficariam sem condições de ganhar seu sustento.
Idealista, Necker sentia vergonha do sistema hospitalar. Ele convidara o rei a prestar visitas aos hospitais de Paris, e Luís aceitara prontamente. O rei ficou horrorizado com o que viu em lugares como o Hôtel-Dieu. Disfarçado, percorreu as enfermarias e viu os moribundos deitados nos cantos em esteiras no chão, e até quatro doentes compartilhando da mesma cama estreita, todos em estados variados de sofrimento.
Ele voltou ao palácio e contou à rainha o que vira. Luís e Antonieta choraram juntos. Alguma coisa precisava ser feita pelos hospitais. Nas cidades provincianas, eles eram moderadamente satisfatórios; era em Paris que provocavam tanto horror e vergonha.
A rainha fundou uma maternidade em Versalhes; o rei mandou que novas camas fossem instaladas no Hôtel-Dieu. Isso era admirável, mas custava dinheiro. Turgot, Malesherbes e Necker eram todos reformadores e idealistas, mas careciam dos meios para colocar em prática suas reformas.
Necker agora estava no apogeu da popularidade. Apenas Maurepas, agora na casa dos oitenta, sábio e arguto, duvidava do banqueiro. Maurepas não conseguia acreditar que o estado financeiro do país estava tão bom quanto Necker fazia com que parecesse; para a mente prática de Maurepas, isso era uma impossibilidade. O atrito entre os dois homens se intensificou quando o banqueiro rejeitou uma proposta para fortalecer a Marinha, idealizada por de Sartines, então ministro para Assuntos Navais, que contava com o apoio de Maurepas.
O conflito nos altos escalões era evidente. Necker, que era aplaudido sempre que ia às ruas, pensou em livrar-se do velho estadista exigindo o posto de ministro do Estado.
Maurepas ameaçou demitir-se e levar a administração com ele, frisando que Necker era protestante e que nenhum protestante detinha o posto de ministro do Estado desde os tempos de Henrique IV; mas Necker argumentou que, como o povo acreditava nele, novas regras deviam ser forjadas em seu benefício.
O rei e a rainha relutaram em aceitar a demissão de Necker, mas esta lhes foi forçada. Necker caiu do poder, e os homens e mulheres nas ruas queixaram-se disso.
Esse era outro fator inquietante. Muitos franceses tinham retornado da América, agora que a guerra estava chegando a uma conclusão satisfatória. Isto deixou os parisienses eufóricos. Desde o começo eles tinham estado ao lado daqueles que lutavam pela liberdade. Eles tinham aplaudido Benjamin Franklin, Arthur Lee e Silas Deane quando, alguns anos antes, eles apareceram em Paris para pedir ajuda à França. Muitos tinham viajado para a América sob as ordens do marquês de La Fayette.
O rei quisera manter-se neutro. Alguma coisa nessa guerra causava-lhe inquietação. Talvez, como membro da realeza, tivesse a impressão de que lutaria do lado errado. Toda a Europa estava contrária à Inglaterra nesse conflito, não por princípios, mas por temer seu poder crescente.
E agora a guerra tinha chegado ao fim e a Declaração da Independência fora assinada. Isto representara um sucesso para os colonos, e também para a França. O estigma da Guerra dos Sete Anos, que humilhara a França, fora apagado. Agora eles tinham sido vitoriosos sobre seus inimigos, os ingleses.
Tinha sido uma guerra fácil, como costumavam ser aquelas que não eram travadas na terra natal. A França recuperara suas colónias nas índias Ocidentais, no Senegal e na índia. Ela quisera recuperar o Canadá, mas esse país tinha se recusado a se levantar contra os ingleses.
Parecia que a França estava novamente destinada à glória, como nos dias de Luís XIV. Este era o começo da prosperidade, diziam os plebeus uns aos outros.
Eles tinham esquecido certas coisas.
O déficit estava maior do que nunca, porque a guerra custara quarenta e três milhões de livres. Aquelas reformas, que Luís quisera tão ardorosamente colocar em prática, e que tinham sido apoiadas por seus ministros, tiveram de ser postergadas em função da guerra.
Isso era ruim; mas havia mais uma coisa que, para a monarquia, era ainda mais perigosa.
Nas tavernas e cafés, os soldados falavam sobre o novo país. Na nova terra não havia reis. Havia mais liberdade no Novo Mundo.
Um novo brado substituíra o Longa vida ao rei . Era: Longa vida à liberdade!
A rainha não compreendia a mudança que ocorria no país. Sua mente estava ocupada com outra coisa. Grávida novamente, desta vez estava determinada a não perder a criança.
Ela se afastou da Corte, passou a tomar o máximo de cuidado com sua saúde e viu poucas pessoas além de Luís e de suas amigas mais queridas.
Nas ruas, o povo parara de falar sobre o Novo Mundo e estava discutindo a chegada da criança, pois um nascimento real era um evento que eclipsava todos os outros.
O rei tinha declarado com firmeza que desta vez não permitiria à rainha submeter- se ao perigo e à indignidade que sofrera durante o nascimento de madame Royale. Ele proclamou que apenas os membros mais íntimos da família, doutores, damas de honra e as pessoas necessárias à ocasião teriam acesso à câmara de resguardo. Ele não havia esquecido como a rainha estivera à beira de morrer por sufocamento durante o último parto.
Alguns dias antes da data esperada para o nascimento, o rei chamou as damas da rainha à sua presença.
- Estou preocupado com a rainha. Lembro da última vez. Se a criança for uma menina, ela ficará deprimida, sei disso. Esse fato deve ser escondido dela até que esteja forte o bastante para saber a verdade.
A princesa de Lamballe disse:
- Majestade, se a criança for um menino, não poderemos contar à rainha?
- Não - respondeu com firmeza o rei. - Porque a alegria pode ser um choque tão grande quanto a tristeza.
- E se ela perguntar, Majestade?
- Eu estarei próximo. Eu direi a ela.
Ela estava esperando. Ela sabia que não iria demorar muito.
- Santa mãe de Deus, mandai-me um delfim - orou Maria Antonieta.
A rainha caminhava em círculos pelo seu quarto. Tinha dispensado as mulheres porque queria estar a sós para pensar na criança. Tudo estava pronto, esperando pela criança.
- Deus, que seja um menino.
Se ao menos mamãe estivesse viva, pensou. Como minha mãe ficaria feliz se me visse ter um delfim. Talvez ela esteja olhando para mim lá de cima, feliz... sabendo que em breve darei à luz um menino saudável, o delfim da França.
Ela tocou a belíssima tapeçaria de Gobelins que forrava suas paredes.
- Se eu tiver um menino, nunca mais jogarei. Farei tudo que estiver ao meu alcance para agradar o povo. Serei sóbria... serei a rainha que mamãe quis que eu me tornasse. Oh, mas por que eu não fui quando ela estava viva? Quanta tristeza devo ter-lhe causado! Era tão difícil... eu estava tão entediada... tão profundamente entediada. Eu tinha de fazer alguma coisa para parar de pensar nas crianças que eu queria. Agora eu tenho Charlotte. Como eu amo Charlotte! E se eu tiver um delfim...
Ela iria ver menos Gabrielle. Começava a pensar que estava gostando menos de Gabrielle. Gabrielle estava muito envolvida com seu amante, e como ela, a rainha, esposa fiel do rei, poderia aceitar Gabrielle e seu amante como amigos íntimos? Gabrielle era muito agradável, é claro, mas seus parentes... oh, seus parentes! Havia tantos deles, e eles eram tão gananciosos! Quando Antonieta pensava em tudo que eles tinham, sentia dificuldade em acreditar que eles poderiam pedir mais. Não era de admirar que houvesse tantas reclamações a respeito deles. Eles eram tão onerosos quanto as amantes de vovô Luís tinham sido. O povo tinha razão em dizer isso.
Ela iria passar mais tempo com madame Elisabeth, sua jovem cunhada. Ela sempre gostara de Elisabeth, desde o momento em que a vira chegar à França; e, agora que Clothilde estava casada, ela e Elisabeth deveriam passar mais tempo juntas.
Era verdade que Elisabeth era um pouco puritana e, consequentemente, um pouco chata, mas ela adorava a pequena Charlotte de Antonieta e era uma companhia muito agradável.
- Oh, dê-me um delfim e eu verei menos Gabrielle! - orou.
- Cultivarei o amor de Elisabeth: ficarei com meus filhos, e logo os cidadãos de Paris não terão nada do que reclamar.
Ela ofegou subitamente.
Suas dores começavam.
Ela gritou por ajuda. Marie de Lamballe, que estava a postos não muito longe dali, entrou correndo.
O rei estava na alcova, e com ele os membros da família que tinham como dever estar presentes.
Antonieta estava deitada na cama, rodeada pelos doutores e pela accoucheur. Não muito longe, pairavam a princesa de Lamballe e a madame de Guémenée, cuja posição como gouvemante dês enfants concedia-lhe permissão para estar ali.
O labor não foi muito demorado, e dentro de três horas a criança tinha nascido.
Quando a rainha emergiu da exaustão de seu sofrimento, ela ficou imediatamente consciente do silêncio à sua volta, e ficou subitamente aterrorizada pelo silêncio.
Seus olhos procuraram os da princesa, mas Marie de Lamballe os evitou.
Antonieta agarrou os lençóis. Ela pensou: não há criança. Ela nasceu morta. Depois de todos esses meses!
Ela lambeu os lábios e disse:
- Vocês vêem como sou paciente. Eu peço... nada.
Luís estava parado perto da cama. Ele gritou alto, sua voz como uma fanfarra de trombetas:
- Monsieur lê dauphin pede permissão para entrar.
O coração de Antonieta bateu descompassado enquanto a princesa de Guémenée deitava o menino em seus braços.
O nascimento do herdeiro do trono da França foi comemorado com alegria por todo o país. Agora era hora para festas, e durante esses momentos a realidade podia ser esquecida.
Todos falavam do delfim, e o rei mais do que todos. Cada frase que ele dizia começavam com:
- Meu filho, o delfim...
Luís praticamente não saía do apartamento da rainha, e estava sempre debruçado sobre o berço.
- Madame de Guémenée, como meu filho, o delfim, está hoje?
- dizia ele. Ou então: - Meu filho, o delfim, está muito parado esta manhã. É assim que ele deve estar?
Ele recebia pessoalmente a ama-de-leite da criança, chamada de madame Poitrine pela Corte - uma plebeia rude, esposa de um dos jardineiros, mulher que não se importava com nada além do delfim, e que se recusava a obedecer ao protocolo ou demonstrar o menor respeito por seu novo local de trabalho.
Quando lhe foi pedido que empoasse o cabelo, ela rugiu com
sua voz rouca: jamais empoei o cabelo e não o farei agora. Vim aqui dar de mamar ao pequenino... não para ficar parada empertigada como uma daquelas bonecas que enchem este lugar. Não quero esse pó horrível nem perto de mim.
Ela disse isto ao próprio rei, sem um Vossa Majestade ou Alteza para acompanhar as palavras rudes. O rei sorriu para ela. Luís sabia que ela era uma mulher boa e honesta; uma mulher que serviria bem ao delfim.
- E meu filho, o delfim? - perguntou a ela. - Seu apetite está bom hoje?
- Bastante - respondeu madame Poitrine. - Delfim ou filho de jardineiro, eles são os mesmos fedelhos famintos.
- Cuide bem do meu filho - implorou-lhe o rei.
- O seu filho está bem. Não se preocupe - disse gentilmente madame Poitrine, como se o rei fosse outra de suas crianças.
Luís sentava-se na cama da rainha, e não falava de outra coisa além do delfim ou da madame Royale.
Eles eram pais orgulhosos agora, e não iriam esquecer disso.
Quando o delfim nasceu, o pequeno James Armand compreendeu que tivera bons motivos para temê-lo. A rainha raramente chamava por ele, e quando o fazia praticamente parecia não vê-lo.
As damas de companhia riam da preocupação de Antonieta com a maternidade. Fora exatamente a mesma coisa quando madame Royale nascera. No meio de uma conversa - e isto acontecia até quando ela falava com os ministros -, ela mudava de assunto para contar a última novidade sobre madame Royale, ou explicar como o delfim ria quando madame Poitrine tomava-o nos braços para alimentá-lo.
O Grão-esmoler presidiu o batismo do delfim. Ele não era outro senão Louis, príncipe e cardeal de Rohan, aquele homem que recebera Antonieta na Catedral de Strasbourg quando ela chegara à França.
Antonieta preferiria que a cerimónia fosse presidida por outra pessoa, mas isso era claramente o dever do Grão-esmoler, e como Rohan detinha esse cargo, ele precisava realizar o batismo do delfim.
Ela decidiu que iria ignorá-lo. Ela não tinha nada a dizer ao homem que falara mal de sua mãe. Antonieta também tinha ouvido o que ele falara a seu respeito com Joseph quando ele estava na Áustria, porque Joseph tinha se tornado amigo desse homem, apesar do fato de Maria Teresa odiá-lo tanto.
Provence e Elisabeth foram convidados para representar os padrinhos do bebé, que eram seu tio, o imperador Joseph, e a princesa de Piedmont.
Durante a cerimónia impressionante, Antonieta não conseguiu deixar de notar os olhares penetrantes de Rohan. Ela presumiu que, enquanto realizava seus deveres batismais, o cardeal estava pensando nela, pedindo-lhe que não o odiasse, tentando contar-lhe sobre alguma emoção forte que ela despertava nele.
Era desconfortável estar perto desse homem.
O sinos continuaram tocando na capital. Houve procissões e festividades nas ruas - tudo em honra de Luís Joseph Xavier François, o delfim da França.
As guildas comerciais juntaram-se para fazer suas próprias ofertas de ações de graças, e um dia, logo depois do nascimento, marcharam de Versalhes para Paris. O rei, a rainha e os membros da família real apareceram no balcão do apartamento do rei, enquanto os membros das diversas guildas aglomeravam-se no pátio.
Com eles vieram as mulheres do mercado, usando vestidos em seda negra, e sua líder congratulou a rainha, falando em nome das mulheres de Paris, pelo nascimento do delfim. Antonieta, esquecendo todas as calúnias cruéis a seu respeito que essas mulheres tinham ajudado a circular, derramou lágrimas de alegria e prazer ao ouvir suas palavras gentis.
Em seguida chegaram os membros das diversas guildas com suas oferendas ao delfim. Todos usavam as melhores roupas que podiam comprar, e cada um portava um símbolo da especialidade de sua guilda, para mostrar ao rei que eles iriam servir ao delfim com a mesma competência com que tinham servido aos seus ancestrais. Os açougueiros trouxeram um boi para ser assado; os carpinteiros trouxeram uma liteira, um objeto glorioso no qual sentava-se uma figura da ama-de-leite com o delfim nos braços. Os alfaiates presentearam um uniforme, perfeito em cada detalhe, calculado para caber num menininho e dar-lhe a aparência de um oficial da Guarda; os sapateiros fizeram um par de calçados belíssimos, que foram entregues ao rei para o delfim; e os limpadores de chaminé tinham construído um modelo de chaminé, no topo da qual havia um menininho - o menor dos limpadores de chaminé. Eles carregaram o modelo cerimonialmente para o pátio de Versalhes para mostrar que os limpadores de chaminés eram leais à monarquia.
Em seguida vieram os chaveiros. Entraram altivos, e seu líder pediu para ser conduzido ao rei.
O líder dos chaveiros limpou a garganta e, fazendo uma mesura até o chão, presenteou ao rei uma caixinha fechada.
- Ouvimos falar do interesse de Vossa Majestade por nossa profissão - disse ele. - É uma grande honra presenteá-lo com esta caixa com uma combinação secreta. Não duvidamos que vossa perícia em nosso ofício permitirá que Vossa Majestade descubra a combinação num tempo muito curto. Será um deleite para nós ver Vossa Majestade fazer isso aqui, diante de todos nós.
Luís, com um sorriso gentil nos lábios, profundamente comovido por toda a honra prestada ao seu filho, e sentindo que seu querido povo compartilhava sua alegria neste dia, declarou que estava interessado e que não conseguiria esperar um único segundo para tentar descobrir o segredo da combinação.
Os chaveiros observaram-no trabalhar, assentindo em sinal de aprovação, segurando a respiração em expectativa.
Houve risos e gritos de deleite; e então uma salva de palmas quando a caixa foi aberta e uma figurinha saltou de seu interior. Era um modelo em aço de um delfim: um menino em vestes reais.
O rei ficou parado, segurando o modelo em sua mão; a rainha, parada ao seu lado, esticou a mão para tocá-lo, e as pessoas que estavam perto dela viram lágrimas em seus olhos.
A multidão começou a ovacionar fervorosamente, exclamando:
- Longa vida ao rei! Longa vida à rainha! Longa vida ao delfim!
Afinal de contas, o povo nos ama, pensou Antonieta. É preciso apenas uma ocasião como esta para que eles demonstrem seu afeto.
Ela olhou para cima e viu um pequeno grupo de homens se aproximando. Carregavam pás sobre os ombros.
- Olhe, quem são esses? - disse Antonieta.
O rei, segurando o modelo do delfim nas mãos, olhou para a direção apontada pela esposa.
Alguém ao lado deles sussurrou:
- Eles são os coveiros, Vossa Majestade. Eles insistiram em mostrar sua lealdade a Vossa Majestade junto com o resto.
- Sejam bem-vindos - disse Luís. - Bem-vindos.
Mas um certo temor tocou o coração da rainha. Ela não queria ser lembrada da morte num dia como aquele. Era como se uma sombra ténue tivesse se deitado sobre sua felicidade.
Ela se sentiu incomodada, consciente dos coveiros, assim como, durante a cerimónia batismal, sentira-se perturbada pela presença do príncipe cardeal de Rohan.
Agora que era mãe de duas crianças, Antonieta estava passando cada vez mais tempo no Petit Trianon. Mas não lhe era suficiente viver em sua casa como uma senhora da propriedade; queria colocar em prática o plano para criar o seu própriopetithameau. Amadame de Pompadour fora a primeira a tecer esse plano. Antonieta iria concretizá-lo.
Antonieta reuniu seus amigos e os contagiou com o seu entusiasmo pelo projeto. Ela iria construir cabanas - cabanas ideais; havia muitas famílias pobres que ficariam felizes por viver nelas. Eles teriam uma fazenda e criariam ovelhas e vacas de verdade - as melhores ovelhas e vacas do mundo. Ela mal podia esperar para colocar seu esquema em andamento.
A rainha não estava preocupada com os custos. Maria Antonieta jamais se preocupava com custos. As contas de madame Bertin, que chegavam regularmente, jamais eram conferidas. Sua querida madame Bertin podia ser uma costureira careira, mas era a melhor de Paris.
Antonieta contou ao rei seu plano para uma aldeia modelo, seu adorável hameau. Ele ouviu-a benignamente.
- O povo vai adorar isso - explicou. - Muitas pessoas poderão desfrutar de minha aldeia modelo. Eu ficarei muito feliz em deixá-los felizes.
E ela continuava desfiando seu plano. As cabanas seriam as mais bonitas já construídas na França; as famílias seriam selecionadas para morar nelas, famílias que ficariam felizes em poder desfrutar das delícias dessas aldeia ideal. Haveriam oito casas pequenas, fazendinhas com celeiros, estábulos e galinheiros; e as ovelhas usariam laços rosas e azuis nos pescoços. A rainha e suas damas, quando estivessem cansadas de dançar na grama ou de encenar peças teatrais a céu aberto, poderiam fazer manteiga; elas seriam fazendeirazinhas. As vacas precisavam ser lavadas antes de entrar em contato com a delicada Antonieta, e seu leite seria ordenhado para vasos de porcelana decorados com o monograma da rainha.
Seria imensamente divertido. A rainha não mais usaria sedas finas. Rose Bertin precisaria fazer para ela vestidos de musselina e lindos chapéus.
Claro que ela faria, declarou madame Bertin, mas a musselina obviamente precisaria ser da melhor qualidade possível, porque ela recusaria confeccionar para uma criatura tão bela um vestido que não fosse do melhor material disponível; e para fazer um vestido de musselina era preciso tanta habilidade-se não mais-do que para confeccionar um de seda ou veludo. A rainha precisaria compreender que os tecidos finos emprestam elegância aos vestidos, mas fazer uma roupa com um plano simples requer realmente muita habilidade.
- Você está certa, é claro, querida Bertin. Você faz mágica com roupas - disse Antonieta.
E assim, vestidos de musselina foram confeccionados e as novas contas chegaram maiores do que nunca.
Em seguida Antonieta construiu um teatro, porque agora descobrira uma grande paixão pelas artes cénicas. A rainha pretendia ela própria interpretar os papéis principais.
O rei comparecia como convidado, porque Antonieta decidira que em seu Petit Trianon ela era a única regente. Luís ficava satisfeito em vê-la tão feliz. Era um grande prazer ver as damas fazendo manteiga em pires gravados com monograma da rainha, acompanhar as ovelhas decoradas com laços serem conduzidas por lindas pastorinhas, admirar a imagem idílica de mulheres lavando roupas num córrego cristalino. Era tudo absolutamente ideal... como um vilarejo num mundo perfeito.
A rainha providenciava festejos especiais para o rei visitante, aue eram realizados no começo da noite, de modo que Luís pudesse partir cedo para Versalhes e estar na cama às onze da noite.
E depois que Luís saía, a festividade animava-se mais, porque todos ficavam um pouco aliviados em se ver livres de sua presença.
Em certa ocasião, Antonieta ajustou o relógio para que o rei partisse ainda mais cedo que de costume, tão ansiosa estava por iniciar a parte dos festejos que era extravagante demais para o gosto de Luís.
Isso foi notado e deu ao país mais um chicote para açoitar Maria Antonieta.
A existência feliz continuou.
Mas os parisienses perguntavam-se quanto a frivolidade da rainha estava lhes custando em impostos; e no oeil-de-boeuf entre o chambre du rói e o chambre de La reine no Palácio de Versalhes, aqueles homens e mulheres, que tinham sido privados de seus deveres na Corte porque a rainha não mais morava em Versalhes, reclamavam amargamente.
E assim a nobreza e o povo estavam cheios de queixas contra a austríaca.
O duque de Chartres estava insatisfeito.
- O que está acontecendo com a velha nobreza - inquiriu a seu pai, o velho duque de Orléans. - Nem mais somos ricos. Esses ministros com suas reformas reduziram tanto nossas riquezas que nem mais podemos viver como antes.
- É verdade - concordou o velho duque. - Isso nos faz perguntar para onde a França está sendo conduzida.
Na verdade, o velho duque pouco se importava com isso; o antigo regime provavelmente só se extinguiria depois de sua morte. Mas ele olhou para seu filho e se perguntou o que o futuro lhe reservava.
Chartres era bonito e ambicioso.
É triste estar tão perto de um trono sem chances de possuí-lo, pensou Orléans.
Essa era uma maldição que afligira toda a linhagem dos Orléans. Chartres estava sentindo-a agora.
O velho duque compreendia o que o seu filho estava se perguntando. Por que alguém como eu - alerta, inteligente, tão merecedor da coroa-precisa ficar de lado e vê-la na cabeça daquele gordo do Luís, meramente porque sua linhagem é traçada a partir de um primogénito enquanto a minha vem de um segundo filho? A França precisa de um rei forte, de uma mão firme para governar.
Ah, pensou Chartres, como eu seria mais forte! Como eu seria mais rei do que o pobre Luís!
Chartres estava beirando os trinta e cinco anos e estava cada vez mais impaciente.
Um homem impaciente numa idade impaciente, pensou o velho duque. Mas eu não estarei aqui para ver o que ele fará de sua carreira.
- Houve uma época em que você seguiu animadamente as tendências ditadas pelo Trianon-observou o velho duque. - Sempre era você ou Artois que ficava ao lado da rainha quando ela estava jogando com dinheiro do reino ou dançando em seus bailes de máscaras.
Chartes se calou. Isso era verdade; ele sempre considerara a austríaca encantadora. Ela era a mulher mais linda da Corte, e ninguém duvidava disso. Ele sentira uma atração profunda por seus modos alegres e quase infantis.
Ele tinha sido um jovem normal; ele procurara por seus prazeres no jogo, na dança, nas aventuras ousadas, na caça. E acima de tudo... nas mulheres.
Maria Antonieta deixara-o furioso. Ela era tão coquete que dava a entender aos homens que eles tinham uma chance. Talvez quisesse deliberadamente passar essa impressão. Por que não? Ela era linda, absolutamente desejável. E o rei... todos sabiam a respeito do problema que nessa época atormentava o rei. Seria natural para uma rainha como essa tomar um amante, e um como o duque de Chartres, um príncipe de sangue real, seria eminentemente adequado. E se por acaso eles tivessem tido um filho, esse seria o primeiro, assim? E que dano isso causaria? Seu filho teria sangue real nas veias.
Mas Antonieta recuara. Aqueles olhos azuis brilhantes tinham ficado azuis como o gelo.
Oh, não, monsieur lê duc, sei que eu sou um pouco coquete.
Admito que gosto de flertar... mas apenas isso. Nada mais, por favor.
Ela era fria, ela não tinha sentimentos. Só podia ser isso. Como ela poderia ter recusado o fascinante duque de Chartres? Ele era um príncipe real... tão real quanto ela, tão real quanto o pobre e impotente Luís.
O amor de Chartres era o amor por si próprio. Ele precisava de conquistas... não para saciar o desejo por uma certa mulher para confirmar o conceito que fazia de si mesmo. Ele se via como irresistível; e passava a odiar qualquer um que lhe mostrasse o contrário.
Seu pai agora o olhava com aqueles olhos argutos que pareciam ver tanto.
- Um homem se cansa de vaidades - disse Chartres.
- Fico feliz em ouvir isso - disse-lhe o pai -, porque você sabe, meu filho, eu estou muito mais pobre que no passado e temo não poder mais pagar as despesas para viver neste lugar.
- O senhor não pode arcar com os custos de viver no Falais Royal? Mas esta é a nossa casa. O Falais Royal é para Orléans o que Versalhes é para o rei.
Orléans assentiu positivamente.
- É claro que eu não poderia abrir mão completamente da velha casa. O que você acha deste plano? Eu considero abrir o jardim ao público, e abrir no andar térreo cafés... e lojas...
- Então chegamos a este ponto! - gritou Chartres. - Luís vive com estilo em Versalhes enquanto precisamos entregar nosso palácio a comerciantes!
- Não inveje Luís - disse rapidamente o pai.
O jovem olhou fixamente para o velho.
- O que o senhor quer dizer?
- Sou um velho. A França mudou muito durante minha vida.
Muitas mudanças... mas jamais vi a França na situação que ela se encontra hoje.
- Talvez seja a guerra - sugeriu Chartres.
- Guerras colocam pensamentos estranhos nas mentes dos homens. Ora, nos dias de Luís XIV, eu nunca ouvi isso ser dito, eu nunca vi um homem dizer o que pensava. Nos dias de Luís XV ele sussurrava o que pensava. Nos dias de Luís XVI ele grita o que pensa.
- O povo da França está cansado do poder da monarquia disse Chartres. - Eu notei a diferença quando estava na Inglaterra. Eu notei a diferença no modo de governo deles. A Inglaterra é um país são e saudável quando comparado com a França.
O velho duque sorriu para o filho.
- Desde que voltou, você não fez outra coisa além de entoar odes à Inglaterra. Eu pensei que tinham sido as mulheres inglesas que o haviam encantado.
- As inglesas me encantaram, sim, mas não apenas elas respondeu Chartres. - O sistema parlamentar inglês é muito mais avançado que o nosso. Eu gostaria de ver seus métodos introduzidos aqui. Eu gostaria de ver as eleições parlamentares conduzidas do modo que elas são na Inglaterra. Na Inglaterra, o príncipe de Gales parece liderar a oposição. Um príncipe num lado... um rei no outro. Eu chamo isso de política saudável.
- Poderia ser doente.
- Não na Inglaterra. O povo não teme expressar seu ponto de vista. O senhor pode dizer que o nossoparlement representa o povo? Aqui o rei parece ser absoluto. Isso funcionou no passado, mas não continuará funcionando por muito tempo.
- Como você está tão impressionado com essas ideias democráticas, não deveria objetar tão calorosamente quando proponho abrir o andar térreo de nossa casa para o povo.
- Cafés, é o que o senhor propõe? - disse Chartres, jocoso.
- Se nós tivéssemos cafés como as cafeterias inglesas, onde os homens se reúnem para falar de política, eu não objetaria tanto.
- Então você planeja trazer os costumes ingleses para o Falais Royal.
Chartres não respondeu. Ele estava olhando para o futuro. Via-se a si próprio perambulando pelas salas no andar térreo, reunindo em volta de si homens interessados em ideias, homens que iriam tomá-lo como líder.
Pálidas luzes de alarme brilharam nos olhos do duque de Orléans.
Então ele deu com os ombros.
Tinha vivido sua vida. Não estaria aqui para presenciar os grandes eventos que sentia estarem prestes a ocorrer na França.
A rainha estava sentada em sua alcova no Petit Trianon. Segurava o delfim no colo enquanto madame Royale estava debruçada sobre madame Elisabeth, que lia uma história em voz alta. James Armand tinha espiado pela fresta da porta e saído novamente. Ele estava crescendo e era velho demais para brincar com crianças. Antonieta não estava ouvindo Elisabeth. Ela estava pensando no delfim. Ele a preocupava um pouco; não tinha a aparência saudável de madame Royale. O menino estava choramingando agora.
Meu pequeno Louis Joseph, você não pode ser adoentado, pensou Antonieta. Deve ser forte, como seu tio Joseph. Não me importarei se você achar que é completamente certo enquanto o mundo é completamente errado - como seu tio Joseph acha -, se ao menos for forte e dotado de apetite. Por favor, não recuse a comida como você faz, meu precioso.
Uma das damas entrou e anunciou que a princesa de Guémenée estava pedindo uma audiência com a rainha.
Antonieta franziu a testa. A princesa nunca tinha sido uma grande amiga sua; era verdade que ela frequentara seus jogos de carta, mas isso principalmente pela anfitriã ser amiga de Gabrielle. Agora a própria rainha já não gostava tanto de Gabrielle. E havia ainda outro motivo para Antonieta não sentir muita vontade de ver a princesa. Ela era aparentada com o cardeal de Rohan; e desde o batismo do Delfim, Antonieta pensava muito nesse homem. Aqueles seus olhos penetrantes tinham-na perturbado. Ele era um imbecil se pensava que ela iria demonstrar amizade por alguém que tinha feito troça de sua querida mãe.
Vossa Majestade, madame laprincesse está aflita.
A simpatia de Antonieta foi imediatamente despertada. Diga-lhe que ela pode vir me ver.
A princesa entrou e se jogou de joelhos diante da rainha.
- Aconteceu uma coisa terrível!-gritou.-E imploro a Vossa Majestade que me ajude.
- Que coisa terrível foi essa? - indagou Antonieta.
- Meu esposo, o príncipe, está tão terrivelmente endividado que precisou declarar falência.
- O príncipe? Mas vocês não estão juntos há tanto tempo!
- Isto me afeta ainda mais do que a ele. As dívidas dele são vastas. Ele deve trinta e três milhões de livres por todo o país, e agora seus credores declararam que não podem mais esperar pelo dinheiro.
Antonieta meneou tristemente a cabeça.
- Dinheiro! Não se fala de outra coisa hoje em dia. Não sei o que posso fazer para ajudar. Não ouso pedir para o príncipe algum posto que possa lhe conceder uma renda. Você sabe que problemas esse tipo de coisa causou com os Polignacs.
- Vossa Majestade, meu marido deve tanto que nenhum posto na corte pode salvá- lo agora. Eu vim pedir a Vossa Majestade que interceda por ele. Se Vossa Majestade puder falar com o administrador-geral, ele pode fazer alguma coisa para que os credores do príncipe ao menos parem de pressioná-lo por enquanto.
Antonieta imediatamente esqueceu seu leve desapreço pela princesa. Ela não conseguia ver ninguém em apuros.
- Posso tentar. Falarei com Fleury e verei o que ele pode fazer a respeito.
- Vossa Majestade é realmente bondosa-murmurou a princesa. - Sinto-me mais feliz agora que sei que estás ao meu lado.
- Sente-se comigo - disse Antonieta, num tom plácido. Conte-me como essa situação horrível aconteceu. Como é triste termos tantos problemas com dinheiro. Ouço queixas constantes de todos os lados, e elas sempre são sobre... dinheiro.
A rainha convocou Joly de Fleury ao seu apartamento e lhe contou que dera a Guémenées sua palavra de que a ajudaria com seu problema.
Fleury fitou-a muito sério.
Vossa Majestade, é extremamente insensato da sua parte
permitir ter seu nome associado ao dos Guémenées. A dívida do príncipe chegou a trinta e três milhões de livres. Vossa Majestade não deve estar compreendendo a importância disso. Comerciantes de todo o país deram crédito a essa gente. Agora esses comerciantes estão exigindo o dinheiro que lhes é devido. Eles precisam desse dinheiro para salvar a si mesmos da falência. Esta situação vai ser muito ruim, e não apenas para os Guémenées, madame.
- Eu sei. Eu sei. Mas alguma coisa não pode ser feita? Se os comerciantes puderem ser persuadidos a esperar um pouco, talvez o príncipe recupere sua fortuna. Se ele falir, todos sofrerão.
- Vossa Majestade, posso oferecer um conselho?
Ela meneou a cabeça, um pouco hesitante. Estava farta de conselhos.
- Mantenha distância dos Guémenées. Não permita que seus problemas toquem Vossa Majestade.
Fleury não compreendeu que Antonieta jamais sonharia em manter distância deles - ainda que jamais tivessem sido grandes amigos - apenas porque eles estavam em apuros. Era nesses momentos que ela estava preparada para ser amigável, mesmo para com aqueles de quem não gostava.
- Tenho certeza de que Vossa Majestade irá perdoar-me, mas não posso fazer nada neste caso - disse Fleury. Se Vossa Majestade insistir que devo fazer, precisarei escrever minha carta de demissão. O povo da França está atribulado e já faz algum tempo. Este caso pode gerar resultados desagradáveis. Rogo a Vossa Majestade que considere bastante antes de permitir associar seu nome ao deles.
Mas Maria Antonieta não deixaria isso assim. Ela foi até o rei. Eles não poderiam permitir que o príncipe fosse declarado falido. Que bem isso faria? As pessoas a quem ele devia dinheiro iriam recebê-lo? Não. A situação de ninguém iria mudar.
O rei, sempre ávido por fazer as vontades de Antonieta, tolamente concordou em impor uma moratória sobre as dívidas do príncipe.
Triunfante, Antonieta convocou a princesa de Guémenée à sua presença. A princesa ajoelhou-se diante da rainha, beijou sua mão e desfiou palavras gratas.
O primeiro a falir foi o fabricante de carruagens. Ele não podia pagar suas dívidas. Era um homem honesto. A única coisa que fizera de errado fora confiar no príncipe de Guémenée. Os fabricantes de luvas, os padeiros, os açougueiros... por toda Paris, e no campo também, eles estavam fechando seus negócios.
Eles haviam, cada um deles, permitido ao príncipe de Guémenée que acumulasse vastas dívidas. Nem por um momento tinham pensado em negar-lhe crédito. Também não lhes tinha ocorrido que um membro da família real poderia passar um calote na praça, e enquanto receberam a promessa de Guémenée de que pagaria, consideraram seguro continuar suprindo-lhe mercadorias.
Era isso que dava aceitar a palavra de um nobre.
As pessoas reuniam-se nas ruas - todas aquelas que tinham sofrido, e todas aquelas cujas simpatias eram pelos sofredores.
- Esses Guémenées são príncipes, não são? - diziam. - Por quanto tempo ainda deixaremos que os príncipes nos arruinem?
- Ouvi dizer que os Guémenées mudaram-se para sua casa de campo, que é muito bonita. Enquanto isso, o rei providencia para que eles não sejam importunados. E quanto à sorte do pobre Lafarge? Oh, ela não importa, porque Lafarge é apenas um comerciante humilde. E quanto ao açougueiro, o padeiro? Eles forneceram víveres aos Guémenées durante os últimos meses. Mas o que importa isso? Eles são apenas comerciantes.
- Vocês sabem por que estamos tendo todo este problema, não sabem?
- A austríaca!
- É ela que dá o exemplo para toda esta extravagância!
- Lembram da velha canção que costumávamos cantar?
Antonieta, rainhazinha da França... que pena que não a fizemos correr até a fronteira naquela carruagem, há tantos anos atrás. Teríamos poupado muitos problemas ao país se tivéssemos feito isso.
E assim as pessoas nas ruas reclamavam. E estavam um pouquinho mais zangadas, um pouquinho mais violentas do que antes do desastre causado por Guémenée.
Fleury estava em pânico; ele precisava angariar o dinheiro de alguma forma. Ele arranjou mais empréstimos.
Estava claro que O Compte Rendu de Necker tinha sido um documento muito otimista; e parecia ao rei que apenas novos empréstimos poderiam impedir o país de afundar.
Mas não era tão fácil conseguir dinheiro como fora antes. Mais impostos precisavam ser criados.
Isto fez o povo se queixar; e o próprio Parlement se declarou contra a criação de novos impostos.
Os membros do Parlement reclamaram dizendo que muito dinheiro fora desperdiçado no passado, e que o povo não estava em condições de pagar mais impostos para sustentar a extravagância de certas pessoas. Pequenos empregos com altos salários tinham sido criados para alguns. Muito dinheiro tinha sido gasto em certas casas. Esta última crítica era direta contra a rainha.
Então o Parlement declarou que se esses impostos fossem impostos, haveria um Estates-General, uma reunião de uma assembleia de representantes do país inteiro - o que na História da França só fora feito em casos de emergências calamitosas. Fleury decidiu tentar levantar dinheiro por outros meios. Ele se perguntou se seria possível criar novos cargos na Corte, pelos quais homens ambiciosos estariam dispostos a pagar grandes somas.
Mas agora ele sabia que o Parlement francês estava se colocando contra a monarquia.
Nas salas do andar térreo do Falais Royal, homens e mulheres reuniam-se para debater os últimos eventos.
Frequentemente visto caminhando entre eles, ou sentado a uma das mesas, estava aquele belo rapaz, o duque de Chartres.
Ele era um bom camarada. Ele não parecia se importar nem um pouco em misturar-se com eles - na verdade ele parecia gostar. Nada parecia deliciá-lo mais do que sentar-se a uma mesa e conversar com um membro da bourgeoísie. Ele não discordava se eles começavam a falar mal da aristocracia. Ele apenas meneava a cabeça lentamente e muitas vezes dizia.
- Isto é verdade. É verdade, meu amigo. Eu sou um deles, e você acreditará em mim se lhe disser que nem sempre me orgulho disso?
Eles calavam as desculpas do duque.
- Mas você, monsieur lê Duc, você é diferente. Ah, monsieur, se houvesse outros como você em Versalhes!
- Eu certamente vejo as coisas do ponto de vista dos cidadãos - dizia.
Em seguida ele lhes falava sobre o Parlamento inglês - uma instituição muito mais democrática que o Parlemení francês.
- Por que não podemos ter um parlamento como esse na França, monsieur duque?
- Ah! Por que não podemos? Temos uma monarquia absolutista aqui, é por isso que não podemos. O rei é o único governante. De que lhe serve um parlamento? Mas na Inglaterra a situação é diferente.
- Mas nós derrotamos os ingleses na guerra, não derrotamos, monsieur!
- Ra! Eles foram derrotados? É o que você acha? Quem é a rainha dos oceanos? Quem está criando o maior império que o mundo já viu? Não a França, messieurs. Não, meu coração sangra quando digo isso, mas não a nossa nação.
- E você acha que esse parlamento...?
- O rei é meu primo, monsieur... - disse o duque, sorrindo à guisa de desculpas.
- Monsieur duque é um bom francês.
- Eu espero.
- Então o fato do rei ser seu primo não interfere no seu julgamento?
O duque bateu seu punho cerrado na mesa.
Você está certo. Você está certo. Nada senão a justiça deve
determinar os pensamentos de um bom francês.
Monsieur duque, você já esteve na Corte... na companhia do
rei e da rainha... e essas histórias da rainha...
O duque se levantou.
Meus amigos, não posso permanecer. Não quero ouvir escândalos concernentes à rainha.
- Porque você iria defendê-la?
Precisamente porque eu não iria. É por isso que preciso retirar-me.
Era dramático, mas ele era dramático. As pessoas observaramno ir.
Monsieur duque é um bom homem, diziam entre eles. É ainda melhor porque viveu como eles, e viu como é fútil viver assim. Monsieur duque é um líder de homens.
O duque caminhava nos jardins do Falais Royal. Todos os tipos de homens e mulheres caminhavam ali. As prostitutas vinham procurar clientes e se misturavam com os políticos.
O duque de Orléans observava seu filho.
- Você até parece rei deste demi-monde - disse o velho duque.
Rei!, pensou Chartres. Sim, realmente eles me tratam como um.
Ele era bem recebido em todos os lugares. Os cafés do Falais Royal eram prósperos principalmente porque muitos dos clientes vinham na esperança de falar com ele ou ao menos ver de relance monsieur duque.
Ele era amigo dos plebeus. Eles falavam sobre o duque, o que tinha dito na noite anterior, sobre as coisas que ele vira na Inglaterra. Ele era de fato rei daquele demi- monde.
Então ele começou a sonhar em ser rei de mais do que o seu pequeno domínio.
Rei da França!
Por que não? E se o povo decidisse que já aguentara Luís e sua rainha extravagante por muito tempo? E se decidissem substituí-lo pelo rei Luís Philippe Joseph?
Assim, ele se movia entre seus amigos; e jamais perdia uma oportunidade de deixar que o lento veneno do desprezo por Luís e sua rainha penetrasse em suas mentes.
Escândalos como o caso dos Guémenées deliciavam-no. Ele estava preparado para declamar contra a extravagância da Corte, para lembrar aos ouvintes que o príncipe de Guémenée tinha sido um amigo dos Polignacs - e todos eles conheciam a história desonrosa dessa família.
Agora havia a sugestão de novos impostos.
Será que o povo da França era fraco a ponto de aceitá-los? Impostos! Com que propósito? Comprar laços rosas e verdes para as ovelhas do pequeno vilarejo em Trianon?
Repetidamente ele conduzia a conversa de volta para a rainha, porque sentia que na rainha eles viam sua verdadeira inimiga.
O rei era lento e gentil, um homem que tinha sido desviado.
E quem o desviara? A estrangeira em seu meio, a mulher malvada da Áustria.
Nos jardins do Petit Trianon, madame Poitrine embalava o bebé. Observava os trabalhadores que estavam fazendo um novo lago onde tinham construído a Torre do Pescador.
Madame Poitrine achava estranho que eles estivessem colocando peixes no lago meramente para que o rei e seus convidados pudessem tirá-los de lá novamente. Aquilo não fazia o menor sentido para a sua mente prática.
- Venha, venha, monsieur - disse ela ao bebé. - Hora de mamar!
Então ela balançou a cabeça de um lado para o outro e olhou preocupada para o pequenino. Ele não estava crescendo como ela queria, e isso não se devia a nenhuma deficiência em seu leite. Os seus próprios filhos eram bonitos e saudáveis.
- Alguma coisa no sangue - murmurou. - Há alguma coisa errada com uma criança que não chora por seu leite e que precisa ser forçada a bebê-lo.
Ela observou a torre com suas doze colunas, e estalou a língua. O delfim começou a mamar.
Assim é melhor, meu lindo. Ainda faremos de você um homenzinho forte.
Ela começou a cantar numa voz suave que era muito diferente daquela que usava quotidianamente, uma voz que ela reservava para os seus bebés.
Mallbrook s en va-t-en guerre...
E seus olhos tinham um brilho distante ao pousar em La Tour de Marlborough, como eles chamavam essa nova torre que estavam construindo.
Antonieta estava zangada.
O povo começara a odiá-la de novo.
- O que foi que eu fiz? - inquiriu à madame Elisabeth. Faz bem pouco tempo, eles estavam me aplaudindo. Fizeram isso quando o delfim nasceu. O que eu fiz desde então?
Elisabeth meneou a cabeça tristemente.
- Não se pode confiar no povo.
- Não se pode mesmo! - disse Antonieta, furiosa. - Estúpidos. Idiotas. Só há uma maneira de tratá-los. Ignorá-los.
- Se isso for possível - disse Elisabeth.
- Farei com que seja.
De repente ela se sentia triste.
- Você se importa demais com o povo - disse Elisabeth.
- Eu queria ser amada. Sempre quis ser amada. Eu achei que eles me amavam. Quando vim a Paris, monsleur de Brissac disse que toda Paris estava apaixonada por mim.
- As coisas mudam com o tempo - disse Elisabeth, melancólica.
- Eu tenho culpa se os Guémenées estão falidos? Eles me culpam. Eles me culpam por tudo. Isso me deixa infeliz.
- Reze - aconselhou Elisabeth. - Reze para Deus.
Antonieta fitou impaciente sua cunhada. Elisabeth era humilde; ela conseguia encontrar conforto em sua religião. Ela jamais irá se casar, pensou Antonieta. Joseph tinha pensado em pedir sua mão; mas os relatos que ele recebera sobre a aparência da moça não o tinham encorajado. Por mais egoísta que se sentisse por causa disso, Antonieta estava grata que tivesse sido assim. Ela gostava de ter Elisabeth ao seu lado. E talvez Elisabeth fosse o tipo de pessoa que seria mais feliz solteira.
Não era fácil falar com ela sobre o que se passava em sua cabeça. Antonieta sabia que se ela se aventurasse às ruas iria ouvir canções a seu respeito - sobre sua extravagância, sua maldade, a imoralidade que lhe atribuíam injustamente. Nada que ela fazia passava despercebido. Cada escapada inocente de sua juventude parecia ser lembrada e transformada numa canção satírica.
Panfletos tinham sido escritos sobre ela. Esses panfletos eram ilustrados, e ela sabia que os compradores ficariam desapontados se ela não aparecesse em cada ilustração.
Era insuportável contemplar essas coisa. Ela era retratada em situações comprometedoras que seriam explicadas no texto lúdido.
Esses panfletos até mesmo eram contrabandeados para dentro do Palácio. De vez em quando ela flagrava suas próprias damas de companhia enfiando-os apressadamente nos bolsos de seus vestidos. O fato de que elas tocavam nessas coisas, o fato de que as liam, e o faziam com interesse ao invés de com repulsa, fazia Antonieta perguntar-se se elas eram realmente suas amigas.
Ontem, quando ela e Luís tinham entrado no seu camarote no teatro, e ficado em pé durante algum tempo, recebendo os aplausos da plateia antes de se sentarem, Antonieta notara que embora muitos tivessem gritado Vive lê Rol! , poucos tinham bradado Vive La Reine!
E enquanto eles tinham ficado parados em pé ali, Antonieta vira o papel alfinetado na balaustrada na frente da poltrona do rei e o pegara enquanto o rei estava fazendo mesuras e sorrindo. Ela ficou feliz pelos olhos míopes de Luís não terem notado o papel. Ela mesma era míope, mas esses pedaços de papel eramlhe familiares.
O verso cruel a tinha deixado nervosa temporariamente. Estava endereçado ao rei, mas, como de costume, vilificava a rainha.
Louis, si tu veux voir Bâtard, cocu, putain Regará ton miroir, La Reine et la Dauphin.
Antonieta sabia que estava cercada por inimigos. Havia muitos poucos em quem podia confiar. Ela sabia que as tias em Bellevue, os Provences no Luxembourg, e a maioria dos Chartres no Falais Royal eram seus inimigos. Em quem ela podia confiar? Em Luís? Certamente em Luís. E em Elisabeth. A terna Elisabeth que se sentia mais feliz num berçário que na Corte!
A princesa de Lambelle era sua amiga. Quem mais?
Então retornou à Corte uma pessoa em quem ela sabia que poderia depositar toda sua confiança.
A guerra mudara Axel de Fersen. Seu rosto tinha perdido aquela compleição pálida, mas saudável; havia linhas debaixo daqueles olhos bonitos; mas parecia a Antonieta que o homem que retornara para a Corte era mais encantador que o menino bonito que partira para lutar contra os ingleses na América.
Ela não conseguiu esconder seu prazer ao vê-lo de volta.
- Você esteve longe por tanto tempo! - murmurou para ele. Os olhos que fitaram a rainha eram apaixonados e furiosos -
não furiosos com ela, mas com o destino, que fizera daquela mulher uma rainha.
Ele assegurou a Antonieta que partira não porque essa fosse sua vontade, mas porque temera ficar.
Ele era um sueco entre franceses, era menos volúvel que eles; ele não mostrava seus sentimentos; suas emoções estavam trancadas dentro dele mas não pareciam menos profundas por causa disso.
Ele disse a ela:
- Estive afastado por muito tempo, mas nunca deixei de pensar em você. Ouvi muitos rumores sobre os acontecimentos na Corte
Luís, se quiseres ver um bastardo, um corno e uma puta, olhe teu espelho, a rainha e o delfim. (N. do T.)
e, porque me ocorreu que você poderia estar menos feliz do que antes, quis vir e ver com meus próprios olhos.
- Estou feliz que você tenha voltado - disse ela. - Há momentos na vida de uma pessoa em que é agradável saber que os amigos verdadeiros estão próximos.
Ele ouvira falar das histórias sobre a rainha que tinham circulado por toda a França; ele vira muitos dos panfletos.
- Muitos nos observam - disse ele. - Precisamos tomar cuidado.
Ele sabia que seu nome já tinha sido associado ao dela, que muitos sabiam a respeito daquele primeiro encontro no baile da Ópera. Eles sabiam que ela o tinha observado partir para a América com lágrimas nos olhos. Havia muitos espiões à sua volta.
- Você precisa vir ao Petit Trianon - disse ela. - Sim, você precisa visitar-me em minha pequena casa. Lá eu desfruto de alguma privacidade.
Ele a olhou com ternura. Havia muito que ela não entendia. Havia pouca privacidade em sua vida; e eram suas atividades no Petit Trianon que haviam gerado as fofocas mais cruéis.
Mas o que ele podia fazer? Ficara afastado por muito tempo. Tinha pensado nela durante a campanha-pensado nela continuamente. É claro que tinha havido outras. Lindas garotas americanas, mas os affaires tinham sido sempre de curta duração; ele as esquecera; ele se entregara a elas meramente para esquecer os encantos da rainha que estava fora de seu alcance.
Assim, ele foi ao Petit Trianon. Caminhou com ela pelas paisagens pastorais do lugar; dançou; juntou-se às damas na feitura de manteiga; cavalgou na floresta; e cada dia sentia mais dificuldade em ocultar seus sentimentos da rainha - e dos outros.
Ele entretinha suas companhias com relatos sobre suas aventuras como auxiliar de campo de La Fayette. Ele contou como seu contingente e os insurgentes tinham derrotado os ingleses, e como eles tinham forçado Lord Cornwallis a assinar uma capitulação que fora muito mais humilhante para os ingleses que aquela de Saratoga; e como George Washington, quando recebeu a espada de O Hara, e tomara o lugar de Cornwallis, estava na verdade aceitando a independência de seu país.
Era uma história envolvente, e Fersen, com seu estilo discreto de narrar eventos - tão diferente dos franceses -, foi considerado um herói e um dos visitantes mais bem-vindos ao Trianon. Antonieta sentia cada vez mais vontade de estar com ele, e as pessoas ao redor da rainha ficavam empolgadas com as visitas de Fersen porque era divertido observar a amizade apaixonada entre a rainha e o conde sueco.
Rumores vazaram, e o pai de Fersen escreveu da Suécia exigindo saber o que estava detendo seu filho por tanto tempo na Corte da França.
Em desespero e procurando neutralizar as suspeitas do pai, Fersen declarou que estava tentando casar-se com a filha de Necker, o ex-ministro e milionário.
Era agradável esquecer as tempestades fora do Petit Trianon, caminhar pelos jardins, estar em companhia do grupo de amigos íntimos que agora sempre incluía Axel. Antonieta observava madame Royale brincando nos jardins, e o pequeno delfim, agora com dois anos de idade, cambaleando sobre suas pernas trémulas.
Antonieta pensou:
Se Axel fosse meu marido e rei da França, meu filhinho seria forte e saudável... e eu seria perfeitamente feliz.
Ela raramente perguntava por onde andava James Armand. Ele não vinha à sua presença agora. Ele sentia ciúmes demais do delfim.
- Menino estúpido! - murmurava. - Devo repreendê-lo.
Mas ela sempre esquecia de fazer isso.
James Armand devia estar crescendo. Ela esquecera quantos anos ele tinha, porque esquecera muito a seu respeito desde o nascimento de suas crianças. Madame Royale estava agora com cinco anos, e Antonieta adotara James Armand antes do nascimento da menina. Ele devia estar agora com dez anos. Um homenzinho. Ah, ele não queria agora estar em companhia de mulheres e crianças. Ele tinha gostado muito dela, mas agora certamente preferia brincar com meninos da sua idade.
James Armand realmente encontrara interesses. Ele ficava com frequência com os criados, ouvindo suas conversas; às vezes eles o levavam aos cafés no Falais Royal. Ali ele ouvia as conversas. Ele descobrira uma nova emoção - ódio por tnadame Royale e pelo delfim. No Falais Royal reuniam-se outros que sabiam como odiar. Eles odiavam a rainha mais ferozmente que qualquer outra pessoa, e James Armand começou a compartilhar desse ódio.
Enquanto isso, o pai de Axel estava alarmado. Ele procurou seu rei e lhe perguntou se o seu filho poderia ser chamado de volta à Suécia. O resultado foi uma convocação à parte do rei Gustavus.
Axel procurou a rainha e requisitou uma audiência particular. Assim que viu seus olhos, Antonieta percebeu que ele estava atormentado.
- O que aconteceu? - perguntou, temerosa.
- Fui convocado para voltar para casa.
- Oh, não! Precisamos impedir isso. Você não pode partir daqui.
Ela estendeu as mãos impulsivamente e ele as segurou com a mesma impulsividade. Axel beijou ardentemente as mãos da rainha. Ela sorriu através das lágrimas.
- Há momentos em que o fleuma sueco cai por terra - disse ela.
- Como suportarei os dias sem vê-la?
A resposta de Antonieta foi dita em voz baixa, mas apaixonada:
- Como eu suportarei os meus?
- Antonieta, você sabe que...
- Sim, você me ama. Eu sei disso, e isso me delicia, porque eu também o amo.
- Maldita convocação, que chegou agora!
- Você precisa ficar aqui. Podemos encontrar um posto para você.
- Esta convocação veio de meu rei.
- Então haverá outra, de uma rainha.
- Você é impulsiva - disse ele. - Sempre foi assim. Oh, se eu ficasse, o que seria de nós?
Eu não lhe peço nada... apenas que fique.
Ele sorriu com ternura para ela.
Simplesmente vê-la assim diante de mim... confirma a minha crença de que preciso partir.
- Se você ficasse...
- Nós nos tornaríamos amantes de verdade. Essa é uma situação impossível. Você... a rainha da França! Todos os olhos a observam. Não sabia disso?
- Eu sou inocente de tudo que me acusam.
- E inocente deve continuar. E se você fosse... culpada?
- Eu não me importaria! - exclamou. - Por que deveria? Eles me creditaram falsamente com tantos amantes. Por que eu não poderia ter um de verdade?
- Vossa Majestade não está medindo as palavras.
- Eu não deixarei que você vá. Por que faria isso? Eu o amo. Por que eu não posso conhecer esse prazer, como outras conhecem. Há anos sou frustrada...
- Há o rei.
- Oh, o rei. Meu pobre Luís! Gosto muito dele. Quem não poderia gostar de Luís? No começo... você não sabe. Eu não falarei sobre isso. Mas como eu poderia amar Luís... agora que conheço o verdadeiro amor?
- Antonieta, o povo não pode ter uma chance de espalhar novas calúnias.
- Eles as espalham de qualquer modo. Deixe-me dar-lhes justa causa para variar.
- Não. Não. Jamais esqueça que você é rainha da França, Antonieta.
- Axel, que tipo de amante é você? Você me diz que me ama, e me proíbe de amá- lo na mesma frase.
Era demais para Axel. Ele a abraçou. Mas ele era muito mais sábio que ela. Ele recentemente viera do conflito da guerra. Ele aprendera muito sobre cobiça e crueldade, malícia e inveja... particularmente, inveja. Ele via a rainha - a mulher a quem amava como um alvo para seus inimigos, um alvo frágil.
Ele sabia que não ousaria desobedecer seu rei; ele sabia que pelo bem de Antonieta ele não podia passar nem mais uma noite na França.
Pediu licença para se retirar e naquela mesma noite partiu para seu país.
A rainha preparava-se para fazer a jornada a Notre Dame para dar graças por ter- se recuperado do resguardo da gravidez. Fazia um ano desde que Axel partira, e muita coisa acontecera nesse tempo.
Evidentemente, Axel estivera certo ao decidir partir. Se tivesse ficado, nenhum dos dois teria sido capaz de conter a paixão que nascia entre eles. Sua fruição teria sido inevitável naquele início. Axel era um homem a quem Antonieta poderia amar; ele era forte; ele era competente; e sob sua calma jazia uma paixão ardorosa; ele tinha tudo que ela queria de um esposo, tudo de que Luís carecia.
E agora Maria Antonieta tinha outra criança, que muito ajudou a consolá-la. Era um menino, e desde o começo ficou claro que seria tão saudável quanto um jovem campesino. Antonieta achava triste o fato do irmão mais velho ficar mais fraco a cada dia. Temia que ele fosse uma vítima da doença debilitante que de tempos em tempos atacava os Bourbons.
O querido pequeno Louis Joseph! Antonieta rezava constantemente por ele. A saúde forte do pequeno Louis Charles, ainda que a deliciasse, também a entristecia, porque a fazia lembrar de Louis Joseph.
E agora precisava cavalgar até a Catedral de Notre Dame; e estava começando a temer suas excursões a Paris. Desta vez, o nascimento de um filho não iria reconquistar-lhe a popularidade perdida. Muitos nas ruas repetiam aquele verso maldoso contra ela e a nova criança. De quem é essa criança?, perguntavam.
Em momentos como esses Antonieta sentia uma falta terrível de Axel. Se Axel tivesse ficado e se tornado seu amante, Antonieta estaria feliz. Ela quis gritar contra aqueles que a maldiziam: Sim, vocês estão certos, eu tenho um amante, eu tenho um amante.
Mas tudo que fez foi passar entre eles, queixo erguido, nem por uma só vez perdendo a expressão de desdém arrogante que os enfurecia mais que qualquer outra coisa.
Que ano longo desde que Axel partira! E quando ele iria retornar? Será que ele iria retornar?
No começo ela não pudera fazer nada além de tentar ser alegre. Os dias tinham sido melancólicos: posar para os retratos de madame Elisabeth Vigée lê Brun, que pintara Antonieta e seus filhos com esmero e em diversas posições; dançar um pouco, jogar. Ela estava feliz por ter seu teatro. Podia esquecer de tudo assistindo comédias e tragédias serem encenadas para seu prazer. E também era muito divertido participar de algumas encenações. Frequentemente Antonieta e Artois aluavam juntos, porque o temperamento de seu cunhado mais jovem não diferia muito do seu. Durante essa época, a companhia de Artois fez-lhe bem, apesar disso ter revivido os rumores sobre seu relacionamento.
Aliás, para gerar um escândalo bastava-lhe ficar na companhia de uma pessoa, qualquer pessoa. Dizia-se que Maria Antonieta era amante não apenas de homens, mas também de mulheres. Amadame de Polignac e a princesa de Lamballe não escaparam dos escândalos que acompanhavam a rainha para onde quer que ela fosse.
Calonne tinha sido designado para o ministério; ele era um amigo dos Polignacs. Sua ideia para a recuperação das finanças do país era mais empréstimos: ele acreditava que tudo que a França precisava era de confiança em sua posição no mundo, e que gastar dinheiro em serviços públicos dar-lhe-ia essa confiança. Nós somos prósperos , diriam as pessoas uma às outras. E o padeiro gastaria com o fazedor de velas, e o açougueiro com o alfaiate. Assim, a prosperidade voltaria à França. Quando ele decidiu abrir estradas e erigir pontes, as pessoas ficaram impressionadas. Mas aquele inverno foi o mais árduo dos últimos tempos, e houve muito sofrimento por todo o país.
Necker desprezava as atividades do ministro. Pedir emprestado não era um caminho para o sucesso. Ele publicou um novo livro: Administrações das finanças da França. Na obra, criticou tão duramente a política de Calonne que este pressionou Luís a exilar o banqueiro.
Necker partiu, mas as suspeitas do povo já tinham sido despertadas. Os cidadãos começaram a desconfiar de Calonne e lembraram que o homem a quem tinham aplaudido enquanto gastava dinheiro emprestado para obras públicas era amigo dos Polignacs. Agora o povo gritou:
- Calonne! Ele é amigo da rainha!
Quando visitou a França, o grão-duque Paulo da Rússia ficou maravilhado com o teatro francês e expressou seu desejo de ver encenado no palco da França uma peça que ele lera recentemente. Tratava-se de As bodas de Fígaro de Beaumarchais, uma peça que o autor já tentara encenar, mas que fora banida pelo rei. Fígaro, o barbeiro atrevido e personagem central, era o porta-voz das visões de Beaumarchais sobre a sociedade atual da França, e muitos dos conselheiros reais tinham sido suficientemente astutos para ver que o dramaturgo estava escarnecendo da nobreza; e que se os cidadãos de Paris vissem a peça e meditassem sobre as observações de Fígaro, decerto sairiam do teatro com um respeito reduzido por seus superiores.
- Mantenha Fígaro fora do palco - haviam dito a Luís. O rei aceitara o conselho.
A facção Polignac, sempre ansiosa por mostrar seu poder com a rainha, e ainda mais agora em que o estavam perdendo, declarara-se favorável à peça e implorara a Antonieta que usasse sua influência com o rei para liberá-la.
Luís leu a peça junto com Antonieta, mostrando-lhe as alusões ao governo e à nobreza. Antonieta ficou desapontada por Luís não ter dado sua permissão, e Artois, que pensava apenas em prazeres frívolos, ansiava por ver a peça encenada. Ele, que ambicionava interpretar o papel de Fígaro, declarou que o rei já tinha mudado de ideia muitas vezes e sugeriu que os planos para a produção prosseguissem.
Entretanto, Luís estava determinado a ser firme neste caso, e interrompeu o espetáculo algumas horas antes da cortina subir.
Então Vaudreuil e sua amante, Gabrielle, decidiram realizar a peça privadamente, e o fizeram no castelo de Vaudreuil, em Gennervillers. A rainha, por mais que gostasse de teatro, e por mais que buscasse esse tipo de prazer para afastar dos pensamentos a saudade por Axel e os temores pelo filho, decidiu que não compareceria porque a peça estava sendo executada contra a vontade do rei. Artois retornou à Corte com Vaudreuil e Gabrielle, e começou a celebrar as qualidades da obra.
Antonieta foi conversar sobre o assunto com o rei.
Se você não permitir que esta peça seja executada em Paris
ou em Versalhes, eles dirão que você é um tirano. Muitos já ouviram falar de seu sucesso em Gennevillers e estão pedindo que seja encenada aqui.
Luís, que sempre se via como um papai indulgente, cedeu. A peça foi lida novamente, e quatro de seis juizes declararam que ela era adequada à encenação, porque Beaumarchais fingira cortar as falas que tinham sido objetadas, e acreditando que isso fora feito, os juizes concordaram que era seguro montar o texto.
E assim, num dia de abril, As bodas de Fígaro foi encenada no Théâtre-Français, e multidões de curiosos esperaram nas ruas durante a noite anterior para garantir que conseguiriam um lugar para assistir ao espetáculo.
Os parisienses aplaudiram os sentimentos do barbeiro imprudente, particularmente onde reconheceram alusões a certos membros da Corte.
Bateram com os pés, riram e aplaudiram. Mas depois do espetáculo ficaram reunidos diante do teatro, debatendo os comentários ousados do barbeiro cómico.
Antonieta gostou da peça e compartilhava dos sentimentos de Artois. Antonieta disse a ele como seria divertido encená-lo no lindo teatro dourado que construíra no Trianon.
Artois estava entusiasmado. Ele andava em círculos por seu apartamento, recitando as falas do barbeiro atrevido.
Mas nas semanas que se seguiram à encenação de Is bodas de Fígaro, circularam mais panfletos do que nunca. Quando se sentava à mesa, Antonieta encontrava-os debaixo do prato, e o rei os descobria entre seus papéis.
Era lamentável que a notícia da compra de St. Cloud tivesse vazado. Antonieta estava preocupada com a saúde do delfim, e quando foram iniciadas obras de reparo no Palácio de Versalhes, não quisera levá-lo para Paris. Ela tinha visitado frequentemente St. Cloud, que pertencia à família Orléans desde os dias de Luís XIV, e pensara que eles, queixando-se como faziam sobre sua pobreza, ficariam felizes em vender a propriedade a um preço razoável, ou talvez aceitar em troca uma das casas reais.
Fora preciso negociar com o duque de Chartres porque seu pai, o velho duque de Orléans, estava tão doente que decerto não tinha muito mais tempo de vida. Chartres revelara-se um negociador implacável, e Calonne, que estava cuidando da transação em nome do rei e da rainha, foi convencido a pagar uma quantia muito alta pela propriedade.
Nas ruas todos falavam sobre mais este dispêndio de dinheiro, mais esta extravagância da rainha. Rumores começaram a circular. Foi declarado que a rainha planejava gastar dinheiro em St. Cloud como gastara em Trianon.
- Que história é essa de déficit? - perguntaram os cidadãos.
- O que é déficit? O que significa essa palavra?
A resposta a isso foi:
- Só há uma pessoa que pode responder a essa pergunta, porque ela é a própria madame Déficit.
Agora nos panfletos Maria Antonieta tinha novo nome: madame Déficit.
Tudo que faço é distorcido para minha desvantagem, pensou Antonieta.
O imperador Joseph pedira aos holandeses que abrissem o Scheldt e assim trouxessem a prosperidade de volta à Holanda, que estava sob domínio austríaco. Os holandeses recusaram-se a fazer isso e inundaram seu país, como tinham feito antes para salvá-lo do invasor. Luís e seus ministros, compreendendo que uma guerra estava prestes a irromper na Europa, ofereceu mediação entre os dois países, com o resultado de que o Scheldt continuaria fechado, mas os austríacos teriam de receber dos holandeses uma grande quantia como ressarcimento. Quando os holandeses não conseguiram o dinheiro, os franceses se ofereceram para emprestá-lo. Isto não foi altruísmo da parte dos franceses; um conflito tão perto deles poderia tê-los envolvido em guerra, e uma coisa que a estrutura financeira trôpega da França não suportaria nesse momento era participar de uma guerra; portanto, cinco milhões de florins pareceram, aos ministros da França, um preço pequeno pela paz.
Mas não era possível esperar que os cidadãos compreendessem isso
Déficit! Déficit! Déficit! - gritavam. - Estamos à beira da falência. E o que fazemos? Mandamos dinheiro para a família da rainha. Com que propósito? Para que eles possam construir Petit Trianons na Áustria, para que tenham suas fazendinhas, mansões e teatros... exatamente como 1 Autrichienne faz na França. Isso sai caro, mas quem paga a conta? Perguntem à madame Déficit.
- Eles consideram qualquer coisa que eu faça ruim - disse Antonieta aos seus botões.
Ela embarcou na carruagem dourada que iria levá-la à capital.
Josèphe já estava à sua espera. Os anos não tinham sido gentis com Josèphe. Ela estava ainda mais amarga do que na época em que chegara à França, por mais incrível que isso pudesse parecer. Era tão estéril de filhos quanto de esperança, porque como agora o rei da França tinha dois filhos, ela acreditava que seu marido jamais seria rei.
Enquanto faziam a jornada de Versalhes para a capital, Antonieta percebeu que Josèphe ficou deliciada com a recepção fria concedida à rainha.
Uma multidão estava lá para assistir, mas as pessoas não ovacionaram Antonieta. Simplesmente fitaram a rainha enquanto ela passava.
Antonieta sabia que as pessoas a estavam chamando de arrogante. Se ela estivesse caminhando pelas ruas, iriam chamá-la de frívola.
Ah, quando eles sentem vontade de odiar um soberano como sentem vontade de odiar a mim, não há a menor esperança de conquistar seu afeto, pensou a rainha.
Finda a cerimónia, ela emergiu de Notre Dame.
Agora ela precisava seguir até Sainte-Geneviève. Precisava entrar na igreja e suportar mais cerimónias, porque Sainte-Geneviève era a padroeira de Paris.
Por que devo fazer isso? - perguntou a si mesma. - Estou cansada das cerimónias deles. Por que devo fazer minha parte quando eles não fazem a deles? Por que devo prolongar a cerimónia simplesmente porque eles querem que eu honre sua santa padroeira? O povo de Paris não me honra.
O coche tinha reduzido a velocidade e o abade de Sainte-Geneviève saíra para receber a rainha.
Ela respondeu à saudação do abade com candura e charme, e disse-lhe que estava atrasada para um banquete que seria realizado no palácio de Tuileries e que portanto não poderia entrar na igreja.
O abade curvou sua cabeça. O povo ficou pasmo.
- É um insulto aos nossos padroeiros! - murmuraram os plebeus. - Um insulto a Paris!
Josèphe estava sorrindo, satisfeita. Sempre lhe agradava ver aquela criaturinha frívola cometer erros.
- Você parece muito feliz, Josèphe-disse Antonieta enquanto a carruagem seguia até Tuileries.
- Como você, também estou satisfeita por saber que as cerimónias terminaram - alegou Josèphe.
- Mas nós apenas trocamos uma cerimónia tediosa por outra
- disse a rainha, entediada.
Antonieta pensou em como seria agradável sentar-se no gramado diante de sua casinha para ver as crianças brincarem, usando um de seus vestidos de musselina, com um chapéu na cabeça.
Mas as cerimónias precisavam continuar. Houve o banquete naquele palácio melancólico. E até a apresentação na Ópera, em seguida, animou muito pouco Antonieta, embora a plateia não a tenha tratado com o mesmo desprezo que lhe fora dirigido nas ruas, e tenha até ensaiado algumas ovações desanimadas.
Depois da Ópera, ela e o rei foram jantar no Templo, a casa de Artois em Paris.
Ela estremeceu ao entrar no lugar.
- É tão antigo! - queixou-se a Artois. - Por que você não se livra deste lugar e constrói alguma coisa mais moderna?
Artois curvou seu rosto travesso até o dela e sussurrou:
- E que tal se eu pedir a Calonne para intermediar a compra de St. Cloudd e você?
Eles riram. Ela se animava na companhia de Artois. Ele se recusava a encarar qualquer coisa seriamente. O povo de Paris estava resmungando sobre a compra de Saint-Cloud. Deixe-os reclamar!, era a opinião de Artois. Quem se importa com as pessoas de Paris?
Quando estava com ele, Antonieta compartilhava dessa insolência, e era como se os dois fossem jovens novamente, despertando a ira das pessoas com o hábito austríaco de andar de trenó, e cavalgando de volta para Versalhes nas primeiras horas da manhã.
- Mesmo assim, acho o Templo uma residência sombria disse Antonieta. - Eu lhe ordeno, irmão, que a troque por outra.
Artois curvou-se sobre a mão da rainha.
- O comando da rainha é meu desejo - disse ele, e beijou suavemente os dedos de Antonieta.
Artois estava no apartamento da rainha. Estava caminhando de um lado para o outro, olhos em brasa, seu olhar travesso iluminando o rosto um tanto bonito. Antonieta sorriu para ele. Ela sempre gostara muito mais de Artois que de seu irmão, Provence. Ele estava dizendo:
- Mas por que não, Nieta? Por que não? Seria um espetáculo magnífico. Uma peça perfeita para o Teatro Trianon. Digo-lhe que é ainda melhor que As bodas de Fígaro. O barbeiro está mais divertido, mais animado, mais imprudente que nunca nesta peça. Nós precisamos realizá-la. Vamos, Nieta, diga que permitirá que montemos O Barbeiro de Sevilha no seu teatro.
- Como você está tão animado... - começou Antonieta. Num instante ele estava ao lado dela, beijando suas mãos; no
seguinte tinha enlaçado-a pela cintura e agora dançava com ela pelo apartamento.
- Ainda bem que só pessoas em quem confiamos estão nos vendo.
- Nieta, a rigor nós não deveríamos confiar em ninguém retrucou Artois. Ele fez uma pose e declamou:- Como os homens não têm escolha outra senão estupidez ou loucura, se não posso lucrar, quero ao menos sentir prazer. Portanto, um viva para a felicidade. Quem pode dizer se o mundo não vai durar apenas mais três semanas? -Uma breve pausa e ele explicou: - Este é Fígaro. Que personagem! Minha querida rainha, você deve interpretar Rosine. Imagine a mulherzinha mais linda no mundo, gentil, terna, animada, apetitosa, ágil com os pés, fina na cintura, com braços bem torneados e boca úmida; e que mãos; que pés; que olhos! Pronto! Essa é Rosine. E você, querida rainha, deve interpretar Rosine. Juro que se você não o fizer, eu não interpretarei o papel do barbeiro, e o que será da peça sem mim como barbeiro?
- Você está envelhecendo, irmão. Devia demonstrar mais seriedade.
- Ra! Veja só quem está falando.
- E você, um pai!
- Pais também precisam se divertir, Nieta.
- Tenho certeza de que não esqueceu que em breve será aniversário do seu filho mais velho. Isso me lembra... tenho um presente encantador para ele. Espero que agrade ao jovem monsieurle duc de Angoulême.
- Se você escolheu o presente, certamente vai agradar - disse Artois. Ele prosseguiu: - Vaudreuil gostaria de um papel, tenho certeza.
Ela estava determinada a provocá-lo, embora estivesse interessada na peça de Beaumarchais.
- Tenho alguns galões e fivelas de diamantes para o seu filho
- disse ela. - São muito bonitos. Será que eu os tenho aqui? Gostaria de lhe mostrar.
- Primeiro vamos resolver a questão da peça.
- Há tempo para isso. - Ela chamou uma de suas aias. Henriette, Boehmer trouxe os diamantes para o pequeno duque?
- Sim, madame. Eu os tenho comigo. O joalheiro deixou junto com eles uma carta para Vossa Majestade. Ele estava um tanto agitado. Estava tão ansioso que acho que Vossa Majestade talvez deva ler a carta.
- Traga-a juntos com os ornamentos. Quero mostrá-los ao conde.
Henriette de Campan trouxe as jóias e a carta. Antonieta mostrou os ornamentos a Artois e, enquanto ele os examinava, ela abriu a carta do joalheiro.
Ao ler a carta, franziu a testa.
- Estou surpresa com isto - disse Antonieta.
Artois aproximou-se e olhou sobre o ombro dela. Os dois leram juntos a carta.
- Por quê? - perguntou o conde.
- Porque não faço a menor ideia sobre o quê o homem está falando. Henriette!
Madame de Campan veio correndo até sua ama.
- Como estava Boehmer ao deixar a carta?
- Estranho, madame. Agitado.
- Você acha que ele está... são?
- São, madame? Como assim?
- Ele me escreveu uma carta muito estranha. Não tenho a menor ideia do que ela significa. Ele diz que está muito satisfeito com os arranjos e que é um grande prazer para ele que os diamantes mais maravilhosos do mundo estejam agora na posse da mais bela das rainhas.
- Ele está querendo vender-lhe alguma coisa - especulou Artois.
- Mas escrevendo-me uma carta tão estranha? O que ele quer vender-me agora? Queira Deus que não seja aquele colar dele.
- O famoso colar! - exclamou Artois.
- Você já ouviu falar dele?
- E quem não ouviu? O homem não rodou o mundo inteiro tentando vendê-lo?
- Sim. Ele declarou que se não conseguisse ficaria arruinado. Certo dia ele me procurou e implorou que eu comprasse a jóia. Ele fez uma cena e tanto diante de Charlotte. Eu o aconselhei a desmontar as peças e vendê-las separadamente. Fazer esse colar foi uma ideia absurda. Fiquei feliz quando ele o vendeu. Quem foi que o comprou, Henriette?
- O sultão de Constantinopla comprou-o para sua esposa favorita, madame - disse madame de Campan.
- Fiquei aliviada quando soube disso - disse Antonieta. Ela olhou novamente para a carta, riu e a queimou na chama da vela. Em seguida, atirou o papel em chamas na lareira.
Esquecendo o assunto, convocou madame de Campan para guardar o presente do duque e se entregou ao prazer de discutir o convite para atuar em O Barbeiro de Sevilha.
A rainha estava ensaiando suas falas. Não havia dúvida a respeito; Beaumarchais havia se superado com o Barbeiro. Ela realmente concordava com Artois que esta era uma peça melhor que as bodas de Fígaro.
O papel de Antonieta era - depois daquele do barbeiro - o mais importante, e ela estava ansiosa por se ver banhada em honras. Seria uma daquelas ocasiões em que seria amada. O rei e todas as pessoas mais nobres na Corte estariam na plateia. Enquanto isso, ela ensaiava sem parar.
Antonieta sentia um pouco de dificuldade em concentrar-se nos ensaios, porque no dia anterior o joalheiro Boehmer tinha vindo ao Trianon e requisitado uma audiência. Antonieta recusara. Ela mandara uma aia dizer a ele que não estava precisando de novas jóias, e se com o tempo decidisse que precisava, mandaria chamá-lo.
A mulher reportou que o homem ficara desconsolado e dissera que madame de Campan sugerira que ele fosse falar com a rainha tão logo fosse possível.
- Madame de Campan! - gritara Antonieta. - Onde está Henriette? Não está visitando o sogro?
- Está sim, madame - foi dito a Antonieta.
- Então isso prova que o homem não está dizendo a verdade. E algum plano dele para obter uma plateia e então me mostrar algum par de brincos magníficos que ele fez especialmente para mim. Será a mesma situação do colar toda de novo.
Não obstante, o ocorrido deixou Antonieta preocupada. Será que o homem havia realmente enlouquecido? Aquela carta que ele escrevera sobre os arranjos satisfatórios... o que quisera dizer com isso? Realmente parecia que ele, para colocar gentilmente, estava um pouco desequilibrado.
O ensaio prosseguiu, e depois todos declararam que Antonieta seria uma Rosine encantadora - um par perfeito para o barbeiro de Artois. Ah, sim, esta certamente seria a melhor produção já encenada no Teatro Trianon.
Depois do ensaio, quando suas aias ajudavam-na a se vestir, uma delas mencionou a Antonieta que Henriette de Campan retornara de sua visita ao sogro, e que estava ansiosa para falar com a rainha em particular assim que fosse possível.
- Deixe-me agora e diga a ela para vir ver-me imediatamente
- ordenou Antonieta.
Quando Henriette chegou, Antonieta imediatamente viu que ela estava perturbada, como se alguma coisa muito grave tivesse lhe acontecido.
- Henriette, o que aconteceu?-inquiriu Antonieta. - E por que você enviou Boehmer, aquele homem absurdo, ao Trianon?
- É a respeito do colar. O colar de diamantes.
- Aquela jóia... a tal que foi comprada pelo sultão da Constantinopla?
Henriette estava fitando sua ama com olhos estarrecidos.
- Boehmer disse, madame, que a jóia não foi vendida ao sultão, mas que foi vendida à Vossa Majestade.
- Então ele está louco. Eu temia isso. Então era por causa disso que ele queria me ver. Fale, Henriette. O que você está pensando? O que ele lhe disse? Se disse que eu comprei o colar, está mentindo. Você sabe muito bem que Boehmer vendeu a jóia ao sultão.
- Madame, eu preciso lhe dizer o que aconteceu. Ele estava na casa de meu sogro. Ele disse que precisava falar comigo sobre este assunto, porque considerava difícil obter uma audiência com Vossa Majestade. Disse que estava surpreso por eu não saber que Vossa Majestade tinha comprado o colar. Ele tinha certeza que eu teria visto Vossa Majestade usá-la em alguma ocasião.
- Mas ele próprio disse que o colar foi vendido ao sultão!
- Eu lhe disse isso, madame. Ele disse que tinha recebido instruções, vindas indiretamente de Vossa Majestade, para dizer que o sultão tinha comprado a peça. Eu não acreditei nisso, porque lembrei que Vossa Majestade tinha aventado o assunto recentemente... ao receber as cartas de Boehmer. Eu lhe perguntei quando Vossa Majestade tinha dito a ele que compraria o colar. Ele respondeu que não havia tratado diretamente com Vossa Majestade.
Ah; - exclamou Antonieta. - E de fato ele não tratou. Ao menos aqui ele falou a verdade.
Ele declarou que a transação foi efetuada através do cardeal de Rohan.
O cardeal de Rohan! Aquele homem? Eu o odeio. Como Boehmer pode pensar que eu permitiria a esse homem fazer qualquer transação em meu nome?
- Ele tem documentos para provar. Ele disse que as ordens de Vossa Majestade foram passadas a ele pelo cardeal. Essas ordens foram assinadas por Vossa Majestade, e ele as mostrou a várias pessoas para obter o crédito de que necessitava. Boehmer disse que Vossa Majestade recebeu o colar através do cardeal e que ficou acordado que ele seria pago em quatro prestações a intervalos de quatro meses.
- Mas isso é absurdo! - gritou a rainha. - Jamais tive esse colar. Eu não fiz negócios com o cardeal de Rohan. O homem deve estar louco. Mande chamar Boehmer imediatamente.
Boehmer estava apreensivo ao ser recebido pela rainha.
- Que história ridícula é essa que você contou? - inquiriu a rainha.
- Madame, o colar de diamantes foi entregue ao cardeal de Rohan, que foi capaz de mostrar-me a ordem assinada por Vossa Majestade.
- Onde está essa ordem?
- Eu a tenho comigo.
A rainha pegou a ordem. Estava escrita numa imitação malfeita de sua caligrafia, e assinada Maria Antonieta da França .
- Esta não é minha letra! - disse a rainha. - E você sabe, é claro, que rainhas jamais assinam seus nomes dessa forma. Eu sempre assinei simplesmente Maria Antonieta , jamais da França . Isto, por si só, já é suficiente para mostrar que esta é uma falsificação vagabunda.
- Madame, o cardeal assegurou-me que as ordens vinham de Vossa Majestade. Estou em apuros. O primeiro pagamento deveria ter sido efetuado em primeiro de agosto. Não posso pedir a meus credores que esperem mais.
- Você está mentindo. Você sabe que vendeu o colar ao sultão de Constantinopla.
- Esta foi a história que Vossa Majestade queria que fosse contada, porque a transação precisava ser mantida em segredo.
- Nunca ouvi nada tão ridículo!
- Madame, juro que entreguei o colar ao cardeal, e que ele me assegurou que estava agindo sob seu comando.
- Eu não vejo o cardeal. Eu não verei o cardeal. Eu não o vejo desde o batismo do duque da Normandia, e mesmo então não falei com ele.
- Madame, ele me assegurou que a intermediária era uma dama... uma dama muito amiga sua.
- Que dama?
- A condessa de Lamotte-Valois.
- Jamais ouvi falar dessa mulher. A coisa toda é uma trama urdida pelo cardeal. Por favor, retire-se agora, monsieur Boehmer. Eu lhe prometo que este assunto terá minha atenção imediata... e a de Sua Majestade.
Assim que o joalheiro havia se retirado, Antonieta seguiu para o apartamento de Luís.
- Luís, preciso conversar com você a sós... agora mesmo. Luís dispensou todos seus assistentes, e Antonieta desabafou:
- Aquele homem, aquele homem malvado que difamou minha mãe, agora está determinado a humilhar-me também. Ele tramou um plano horrível para... causar- me algum dano. Embora eu não consiga ver claramente qual. Ele esteve com o joalheiro e, segundo Boehmer, comprou em minha conta aquele colar de diamantes que ele sempre tentou nos vender.
- Comprou-o... em sua conta? Mas o cardeal...
- Exatamente! Há anos não troco uma palavra sequer com esse homem. E agora aparentemente ele esteve com o joalheiro e disse a ele que eu lhe implorei para intermediar a compra desse colar. Ele forjou documentos... documentos que aparentemente possuem minha assinatura neles. Veja isto. Esta, supostamente, é a minha ordem. Você pode ver com os seus próprios olhos que é uma falsificação. Maria Antonieta da França ! Como se eu assinasse meu nome assim. Diga-me, como Rohan poderia não saber que isto se trata de uma falsificação?
Luís estava estarrecido; tudo que conseguia fazer era fitar o documento em suas mãos.
O que isto significa, Luís? O que significa?
- Você... você não comprou o colar? Antonieta dirigiu um olhar reprovador ao marido.
- Você... até você... me pergunta isso! Claro que não comprei o colar. Todos não iriam notá-lo imediatamente se eu o usasse? Por que eu faria segredo disto? Deve ter havido uma fraude terrível... uma fraude para humilhar-me e insultar-me e envolver-me em... eu não sei no quê...
Luís aconselhou:
- Acalme-se. Investigaremos este assunto, e veremos do que se trata.
Era o dia da Assunção e os membros da Corte enchiam a Salle de Glace e o Oeil- de-Boeuf esperando acompanhar o rei e a rainha à missa.
Louis, príncipe e cardeal de Rohan, que, como Grão-esmoler do rei, iria oficiar a missa, também estava esperando ali. Ele estava empolgado - como sempre ficava naquelas ocasiões em que tinha oportunidade de estar perto da rainha. Ela jamais lhe dava um sinal de que o notava; mas recentemente, desde o caso do colar, ele tinha se convencido de que ela tinha suas razões para comportar-se assim. Ela não lhe era indiferente; Jeanne de Lamotte-Valois assegurara-lhe isso.
Ele era obcecado pela rainha. Pensava constantemente nela desde que a vira pela primeira vez - uma moça tão jovem, tão inocente, um pouco assustada, deixando sua terra natal para ir a uma nova à qual ela tinha sido chamada para desempenhar um papel muito importante.
Ele frequentemente acusava a si próprio de ser um idiota, por ter escrito cartas perniciosas sobre a mãe da rainha. Mas quem teria imaginado que chegaria aos ouvidos da rainha que ele tinha feito tal coisa? Isso tinha sido um grande azar.
Desde então ela sempre o tratara com desdém, e jamais lhe dirigira mais que um olhar. Talvez tenha sido exatamente essa atitude que inflamara a paixão no coração do cardeal, porque ele era um homem de sensualidade profunda, e o fato de usar os robes da igreja jamais interferiria em suas aventuras amorosas. Porém, essas aventuras agora não mais o atraíam; havia apenas uma mulher a quem gostaria de dar seu amor, e ela estivera completamente fora de seu alcance até Jeanne de Lamotte-Valois dizer-lhe o contrário.
Então aquela aventura empolgante e incrível havia começado. Ele recebera cartas da rainha; eles tinham até se encontrado brevemente nos jardins de Versalhes. O cardeal começara a acreditar que a rainha era tudo, menos indiferente a ele, e que se ele fosse um pouco paciente, iria tê-la como amante.
Para mostrar-lhe o quão absoluta era sua fé nele, Antonieta confiara-lhe aquela transação com os joalheiros. Rohan intermediara para Antonieta a compra daquele colar de diamantes que, conforme fora-lhe dito, ela queria adquirir secretamente, porque o rei negara-se dar-lhe de presente. Rohan até mesmo havia lhe emprestado dinheiro.
A qualquer momento agora as portas seriam abertas e ela aparecia com Luís. Pobre Luís! Quem ligava para Luís? Não era de admirar que essa criatura encantadora precisasse de um amante.
E agora, o momento. As portas foram abertas.
Mas o rei e a rainha não apareceram. Ao invés, um lacaio apareceu em seu lugar.
- Príncipe cardeal de Rohan! - convocou o lacaio. O cardeal se apresentou.
- O rei exige sua presença imediata em seus aposentos particulares.
A rainha estava com o rei. Rohan dirigiu-lhe um olhar rápido, mas ela não pareceu vê-lo. Também estava presente o barão de Breteuil, o ministro do Estado. O rei disse:
Primo, você recentemente comprou diamantes com o joalheiro Boehmer?
- Sim, Majestade. Comprei
- Onde eles estão?
Rohan olhou ansiosamente para Antonieta, que olhava através dele com extrema arrogância. Ele presumiu agora que o rei sabia que o colar estava em posse da rainha, e que nada de bom resultaria de tentar esconder este fato.
- Creio que foram entregues à rainha - disse Rohan.
- Forquem?
- Pela condessa de Lamotte-Valois, que me trouxe instruções de Sua Majestade, cujos comandos executei.
Antonieta gritou, furiosa:
- Por acaso Monsieur lê cardinal acredita realmente que eu, que não lhe dirijo uma palavra há anos, tenha lhe pedido que me representasse numa compra, e que tenha feito isso através de uma mulher a quem não conheço?
Rohan ficou pasmo. O rei percebeu isso e sentiu pena dele.
- Deve haver alguma explicação - disse Luís gentilmente. Rohan murmurou:
- Majestade, acredito que fui cruelmente enganado.
- Estou esperando sua explicação - disse o rei. - Onde está o colar?
- Eu o entreguei a madame de Lamotte-Valois. Ela me assegurou que o passou à rainha. Eu tenho cartas que, segundo me foi dito, foram escritas pela rainha.
- Mostre-me as cartas - pediu Luís.
O cardeal entregou-lhe uma, e o rei olhou para ela.
- Maria Antonieta da França - murmurou Luís. - Primo, você deveria saber que nenhuma rainha assina assim. Deixe-nos agora. Este é um assunto que será necessário investigar para que cheguemos à verdade. O bom nome da rainha está envolvido, e devo expressar, primo, que isso é um assunto da maior importância para mim.
O cardeal se retirou. Na Salle de Glace e no Oeil-de-Boeuf as pessoas estavam perguntando umas às outras por que a missa estava atrasada. Eles viram o cardeal sair do apartamento do rei, a face pálida como cal, os olhos reluzindo.
Ele tinha dado apenas alguns passos quando Breteuil apareceu atrás dele e gritou uma ordem a um dos guardas posicionado na antesala real.
- Prenda Louis, príncipe e cardeal de Rohan.
Fez-se um silêncio sufocante enquanto o cardeal alto e bonito era conduzido a uma das celas na parte interior do palácio.
A apresentação de O barbeiro de Sevilha foi realizada no Teatro Trianon em 19 de agosto, quatro dias depois da prisão de Rohan.
A plateia estava um pouco distraída, porque ainda pensavam no caso absurdo do colar. As pessoas nas ruas já falavam dele, chamando-o de colar da rainha , perguntando uma às outras que nova extravagância era essa, um milhão e seiscentas mil livres gastas num só colar para adornar aquele pescoço orgulhoso, enquanto muitos em Paris não dispunham dos sous necessários para comprar seu pão. Além disso, a compra tinha sido efetuada em segredo! A rainha tinha mandado seu amante mais recente comprar o colar para ela. O que aconteceria agora?
Eles aguardavam ansiosamente pela resposta a essa pergunta.
A verdade era que uma fraude extraordinária havia sido perpetrada, e que as vítimas dessa fraude tinham sido a rainha e o cardeal de Rohan. A pessoa que urdira o plano era uma mulher sagaz e extremamente bonita que chamava a si própria Jeanne de LamotteValois, afirmando ser membro da casa real porque um ancestral seu tinha sido filho ilegítimo de Henrique II.
Jeanne tivera uma infância difícil e frequentemente fora obrigada a esmolar nas ruas. Mas ela era inteligente, com apenas sete anos de idade apresentara-se à marquesa de Boulainvilliers e lhe contara sua história de possuir sangue real com tamanha convicção que a marquesa apiedara-se da garota e recebera a ela e à sua irmã mais nova em seu lar, para ali educá-las. Finalmente, quando Jeanne casou com um capitão da guarda, ela insistiu que ele devia assumir o título de conde, que ele precisava ser merecedor de casar-se com uma descendente dos Valois. E ela acresceu Valois ao seu nome para fossem conhecidos como o conde e a condessa de Lamotte-Valois.
Jeanne logo ficou cansada de seu mando, mas com a ajuda da marquesa de Boulainvilliers, conheceu o cardeal de Rohan, um conistador notório. Jeanne era uma mulher muito bonita e não demorou para que os dois se tornassem amantes. Ser amante de um cardeal era agradável, mas Jeanne conhecia muito bem o mundo para saber que seu triunfo era efémero; ela era determinada demais para aceitar um papel menor em qualquer parceria, e imediatamente começou a se perguntar como deveria fazer para se tornar rica e independente.
Obcecada pelo pensamento de ter sangue real nas veias, decidiu descobrir se conseguiria penetrar na Corte; e a única forma que conseguiu pensar para chamar atenção para si foi desmaiando no apartamento de madame Elisabeth. Esta dama, santa por natureza, era conhecida por ter um coração bom e por ajudar os pobres. Jeanne providenciou para que houvesse por perto amigos que pudessem explicar que ela era descendente dos Valois - que eram tão reais quanto os Bourbons - e que desmaiara de inanição. O resultado disso era que madame Elisabeth levara-a para sua casa e lhe dera uma grande soma em dinheiro. Jeanne repetiu o truque do desmaio, uma vez no apartamento de madame de Artois e uma vez no de Antonieta. Em cada ocasião ela recebeu ajuda financeira, mas ninguém mostrou interesse por sua história.
Contudo, Jeanne não conseguiu resistir a falar sobre suas experiências na Corte, inventando histórias sobre como a rainha a tinha recebido e feito muito por ela, e de como tratava-a por querida prima.
Na rua Neuve-Saint-Gilles, onde morava, Jeanne tornou-se uma pessoa de suma importância. Todos os dias ia a Versalhes - visitar a rainha, alegava. Muitos afluíam à sua casa, levando-lhe presentes, porque achavam uma boa ideia conquistar o favor de uma pessoa que era tão bem recebida na Corte, principalmente por terem ouvido que a rainha escolhia seus amigos de todas as classes. Considere por exemplo madame Bertin, a couturière. Ela era amiga da rainha e conseqúentemente tornara-se uma pessoa de grande influência. E o que ela era, além de uma costureira? Ainda assim, madame Bertin podia conseguir todos os tipos de trabalhos para seus amigos, e era rainha de seu próprio círculo. Jeanne tornou-se rainha do seu.
Jeanne esperava na Galerie de Versalhes para ver a rainha passar. Ela estudava Antonieta com cuidado, e enquanto o fazia, um plano se formava em sua cabeça. Um plano que iria torná-la rica, respeitada e a faria ser recebida na Corte.
Jeanne tinha um amante... um homem ardiloso, Rétaux de Villette. O plano foi aperfeiçoado pelos dois à noite, na cama.
- Não esqueça seu bom amigo, o cardeal - aconselhou-a Rétaux. - Ele é muito rico e influente para ser esquecido.
Isso era verdade. Frequentemente Jeanne visitava o Palácio Episcopal para ver seu antigo benfeitor e lembrá-lo dos velhos tempos.
O cardeal fascinava-a. Ela o conhecia bem. Ele era um príncipe, parente da família real. Era culto e detentor de um posto elevado na Igreja, e mesmo assim, aos olhos de Jeanne, o cardeal era, sob certos aspectos, um trouxa.
Por exemplo, o cardeal vivia completamente sob a influência
- talvez sob o controle - de um homem estranho, Joseph Bálsamo, que chamava a si próprio de conde de Cagliostro mas era na verdade o filho de um judeu siciliano convertido que morrera quando Joseph era um menino. Em sua casa em Palermo, o jovem Joseph aprendera a ser farmacêutico. Era um menino estranho que desde cedo declarara sua crença em poderes ocultos. Criou certos truques, e era também conjurador e ventríloquo. Dotado de uma aparência impressionante, havia desenvolvido certos poderes hipnóticos. Graças a todos esses dons, era ainda muito jovem quando fez sua fortuna.
Durante os primeiros estágios de sua carreira, ele tivera diversos problemas ao ser acusado de ser ladrão e embusteiro, mas mais tarde tornou-se franco-maçom e foi recebido com honras nos vários países que visitou. Portanto, foi assim que se tornou conhecido como um homem dotado de poderes sobre-humanos, a quem muitos estavam dispostos a dar-lhe ouvidos.
Um desses muitos era o cardeal de Rohan, que ficara complemente fascinado por Cagliostro. O homem agora vivia no palácio do cardeal e era tratado com respeito por todos que serviam ali. Ali Cagliostro trabalhava em seu laboratório onde, acreditava- se, ele podia criar ouro e pedras preciosas.
Cagliostro, diziam alguns, exercia sua influência poderosa sobre o cardeal para que Rohan não pudesse ver nada errado nele.
Tenha cuidado, monseigneur - acautelavam os amigos de Rohan. - Esse homem a quem Vossa Excelência acolhe em casa fará grandes exigências.
Ele não me pede nada... absolutamente nada - declarou o
cardeal. - Ele irá me fazer o príncipe mais rico do mundo, e ele não pede nada por isso. Ele é divino. Há momentos em que penso que Cagliostro - que viveu através de muitos séculos - é o próprio Deus.
O cardeal estava realmente enfeitiçado.
E se ele podia ser enfeitiçado por um mago, pensou Jeanne, por que não poderia ser enfeitiçado por uma mulher inteligente?
Jeanne apresentou-se a Cagliostro, que ficou tão interessado na jovem que ocasionalmente caminhava com ela nos jardins do Palácio Episcopal e, numa ocasião memorável, falou sobre o cardeal.
- Monseigneur tem dois grandes desejos na vida - disse Cagliostro a Jeanne.
- E quais são, Mestre?
- Por que eu haveria de lhe dizer? - perguntou Cagliostro, voltando seu olhar brilhante para a mulher ao seu lado. - Pensando melhor, direi sim. Porque então terei o prazer de ver o que você fará com seu conhecimento. Mas eu já sei o que fará, minha criança, porque todas as coisas me são conhecidas.
Até mesmo uma mulher prática como Jeanne não podia evitar ser afetada por esse homem. Ele caminhou ao seu lado, suas narinas alargadas pela paixão que parecia tomar-lhe todo o corpo; com sua compleição olivácea e olhos negros proeminentes e penetrantes, o homem era bastante atraente; suas mãos estavam com os dedos entrelaçados às suas costas, e seu casaco de tafetá, franjado com fios de ouro, estava aberto para exibir um colete escarlate, bordado com ouro; suas calças eram vermelhas, e suas meias multicoloridas também tinham um toque de ouro. Usava muitas jóias - diamantes reluziam em seus dedos, rubis adornavam seu colete; seu relógio de bolso era cravejado com diamantes; e todas essas pedras eram enormes. Dizia-se que ele próprio as tinha feito. Alguns diziam que elas eram meras bijuterias; mas ainda assim pareciam reluzir com um brilho maior que o das outras pedras. Alguns diziam que Cagliostro punha um feitiço em todos que olhavam para suas jóias, para que eles as vissem como ele queria.
- Sim, vou contar-lhe os dois desejos mais caros ao coração do cardeal-prosseguiu Cagliostro.-Ele admira muito os outros cardeais que colaboraram para a história de seu país. Há momentos em que ele me conta os segredos de seu coração e mais tarde esquece que o fez. Ele fala muito sobre o cardeal Richelieu. Fala sobre o cardeal Mazarin; e sonha com o dia em que homens e mulheres falarão sobre o grande papel desempenhado pelo cardeal de Rohan na história de seu país.
Jeanne disse:
- Sim, Mestre. Eu sei disso.
- Sim, você sabe disso, minha criança. Você sabe até porque eu sei, porque eu quis que você soubesse. E portanto você sabe. Ele pensa constantemente na rainha. Ele acredita que se fosse amante da rainha nada ficaria entre ele e seus desejos. Ele anseia por ser amante da rainha. Ele busca frequentemente por formas de conquistar seu afeto.
Cagliostro virou seus olhos penetrantes para Jeanne e acrescentou:
- Você, minha criança, nos disse que conquistou o afeto da rainha. Você nos disse que ela a recebe e a chama de prima.
Jeanne estremeceu.
Ele sabe que minto, pensou. Ele deve saber. O Mestre sabe tudo.
Ela sentiu os dedos brancos tocarem seu ombro. Ela não baixou os olhos mas viu os diamantes faiscantes, o rubi que tinha praticamente o tamanho de um ovo.
- Como você nos disse que a rainha a recebe, talvez possa falar com ela a respeito do cardeal - prosseguiu o homem estranho.
Fazer o cardeal subir no conceito da rainha faria muito bem a
você, minha criança.
Então ele se retirou, deixando Jeanne refletindo sobre a conversa. Ela pensou nos diamantes reluzentes do feiticeiro, e foi nesse momento que concebeu a ideia.
Assim, Jeanne conversou com o cardeal sobre seus triunfos com a rainha. Rétaux, que era escrivão por ofício, tinha um dom para adaptar sua caligrafia a diversos estilos, e ele produziu uma escrita feminina fluente na qual escreveu uma carta endereçada a Meu querido primo Valois , assinou como a rainha.
O cardeal leu a carta, e enquanto a lia, Jeanne percebeu a sombra de Cagliostro passando pela janela. Jeanne estava trémula, pois temia que o cardeal reconhecesse a falsificação. Pareceu-lhe incrível que ele - um príncipe acostumado a documentos reais - não tenha reconhecido um papel falsificado pela mão desajeitada de um escrivão.
- Falei com Vossa Majestade a respeito de Vossa Excelência
- mentiu Jeanne. - Houve momentos em que a rainha sentiu ódio de Vossa Excelência pelas coisas ditas a respeito da imperatriz, mas ela me sussurrou que não é cristão preservar esses ódios para sempre.
O cardeal pareceu encantado com essa notícia. Ainda assim, Jeanne sentiu uma certa incredibilidade manifestada em suas feições, e acrescentou rapidamente:
- Creio que se eu assegurar à rainha de que Vossa Excelência está desolada com essa rusga, e que seu maior desejo é servi-la, Vossa Majestade pode dar algum sinal de seus novos sentimentos.
- Traga-me esse sinal - disse Rohan.
Alguns dias depois Jeanne retornou com uma carta que, segundo ela, fora-lhe confiada pela rainha para ser entregue ao cardeal.
Dizia a carta:
Estou deliciada por não mais precisar tratá-lo com desdém. Ainda não é possível conceder-lhe uma audiência, conforme é seu desejo, mas eu lhe darei notícias quando as circunstâncias permitirem tal evento. Nesse ínterim, peço que seja discreto...
E este documento extraordinário estava assinado Maria Antonieta da França .
O cardeal, em seu deleite, banhou com presentes Jeanne - a arguta intermediária através de quem ele conquistaria a rainha.
A forma de aproveitar ao máximo esta situação ocupava Jeanne e seu amante dia e noite. Jeanne sabia urdir planos intrincados, e acreditava tão fervorosamente em sua própria argúcia que jamais hesitava em colocar em prática os esquemas mais audaciosos.
Ela disse ao cardeal que a rainha estava com falta de dinheiro e que lhe pedira para mostrar sua estima emprestando-lhe cinquenta mil libras, que deviam ser entregues à sua querida amiga, a condessa de Lamotte-Valois. Como o cardeal demonstrou sinais de suspeita, Jeanne prontamente declarou que a rainha iria encontrá-lo durante alguns momentos nos jardins de Versalhes. O encontro deveria ser altamente secreto. Ela não podia explicar o motivo, mas ele saberia mais tarde, quando Antonieta fosse capaz de recebê-lo abertamente.
O cardeal, deleitado, pediu um empréstimo de cinquenta mil libras a um agiota e deu o dinheiro a Jeanne. Isso foi motivo de comemoração na casa da rua Neuve- Saint-Gilles, mas tanto Jeanne quanto Rétaux compreendiam que se não pudessem conseguir uma rainha para apresentar ao cardeal, esse seria o fim do golpe.
Estavam eufóricos com o sucesso. Acreditavam que poderiam fazer qualquer coisa que quisessem com o crédulo cardeal. Rétaux descobriu uma modiste que era prostituta nas horas vagas; uma mulher muito bonita e bem-educada cuja leve semelhança com a rainha era notada por muitos.
Eles a levaram até a casa na rua Neuve-Saint-Gilles e ofereceram o que lhe pareceu uma soma fabulosa se ela fizesse exatamente o que eles queriam. Eles a ensaiaram no que ela deveria dizer, vestiram-na em musselina como a vestida pela rainha para sua vida rural simples no Trianon, e numa bela noite estrelada levaram-na até o bosque de Vénus no jardim de Versalhes, onde as árvores eram tão próximas que tornavam impossível ver claramente os rostos das pessoas abrigadas por trás delas. Ali a mademoiselle d Oliva aguardou, apertando nervosamente uma rosa e a carta que ela daria ao cavalheiro alto com quem ela conversaria apenas durante alguns segundos. Com ela estava Rétaux, vestido como um servo real, e também Jeanne, que iria ajudar a prostituta caso ela precisasse de ajuda.
O homem alto e bonito chegou ao encontro. Estava envolto num grande manto e, assim que viu a pequena prostituta, ajoelhou-se e beijou a barra de seu vestido de musselina.
A mademoiselle d Oliva sussurrou:
Você espera que o passado seja esquecido.
O homem moreno se levantou e segurou a mão da jovem.
Ela ofereceu a rosa, que ele aceitou sequiosamente.
Nesse momento, Jeanne sussurrou num tom de grande alarme:
- Minha senhora, alguém está vindo. Vá embora... rápido. Vossa Majestade não pode ser descoberta.
Aliviada por ter acabado de desempenhar seu papel, mademoiselle d Oliva deu as costas para o cardeal e saiu correndo com Jeanne.
Depois desse incidente foi fácil arrancar mais somas do cardeal.
E então uma grande ideia ocorreu a Jeanne. Uma ideia que faria dela uma mulher rica.
Jeanne estava gastando a rodo o dinheiro dado pelo cardeal. Seus amigos estavam certos que ela tinha conquistado alguma posição elevada na Corte. Várias vezes por semana ela era vista seguir para Versalhes em sua carruagem. Ali ela parava e esperava junto com o povo no pátio da Galerie e, sempre que possível, estudava a rainha. Em seguida, ia para casa e descrevia aos amigos o que a rainha tinha visto, como ela parecia estar naquele dia... de fato, com a ajuda de sua memória e de sua imaginação vívida, ela conseguia conferir credibilidade à história de sua amizade com Antonieta.
E a uma das festas de Jeanne, um amigo levou Boehmer, o joalheiro da Corte. Ele foi muito respeitoso com a condessa de Lamotte-Valois, e perguntou se podia falar a sós com ela.
Madame, encontro-me em grandes dificuldades financeiras
disse ele. - Tenho um colar de diamantes que gostaria muito que fosse comprado pela rainha. Contraí uma grande dívida para mim e para o meu sócio para juntar nesse colar apenas as pedras mais perfeitas. Ademais, o trabalho artesanal aplicado nessa peça é o melhor do mundo. Mas não consigo convencer a rainha a comprar este colar, e mais ninguém no país tem condições de pagar por ele. Assim, eu e meu sócio estamos arruinados. A senhora é uma amiga querida da rainha. Se conseguir persuadi-la a comprar o colar, creia- me, cara condessa, estarei pronto a oferecer-lhe uma comissão muito grande.
Jeanne pensou no assunto. Seria uma forma agradável de ganhar dinheiro, se ela conhecesse a rainha, se ela estivesse em posição para persuadi-la.
Ela disse que faria tudo que estivesse ao seu alcance, e o joalheiro voltou para casa um tanto aliviado.
Jeanne continuou a pensar no colar, e um belo dia pediu ao joalheiro que o levasse até sua casa para que pudesse vê-lo.
Assim que pousou olhos no colar, sua mente fértil começou a trabalhar. O colar deixou-a fascinada. Mas ela não viu a beleza de suas pedras ou o bom gosto como estavam dispostas na jóia. Ela viu um milhão e seiscentas mil livres - uma fortuna.
Jeanne prestou uma visita ao cardeal.
- Excelência, trago notícias de Sua Majestade. Os belos olhos do cardeal reluziram com excitação.
- A rainha precisa da sua ajuda. Sua Majestade disse que se puder ajudá-la nesta questão, ela saberá que pode realmente acreditar na amizade de Vossa Excelência. Ela quer comprar um colar de diamantes. O rei não irá comprá-lo para ela, de modo que ela mesma precisa fazê-lo. E pretende fazê-lo em segredo.
- Farei tudo que estiver ao meu alcance... - murmurou o cardeal.
- Aqui estão as instruções da rainha. Vossa Excelência visitará o joalheiro e dirá a ele que está com a ordem da rainha para comprar o colar para ela. O preço é um milhão e seiscentas mil livres, e a rainha considera difícil conseguir esta soma tão grande de uma só vez. Assim, ela quer que Vossa Excelência ofereça o pagamento em quatro partes... sendo que a primeira será entregue em primeiro de agosto. O colar deve ser entregue a Vossa Excelência em primeiro de fevereiro. Vossa Excelência concordará em fazer esta transação para a rainha?
Não há nada na Terra que eu não faça pela rainha.
Então se Vossa Excelência colocar sua anuência por escrito, eu irei submetê-la à aprovação de sua Majestade.
O cardeal prontamente se sentou para redigir o documento.
Jeanne pegou o documento, e alguns dias depois retornou ao
cardeal.
- Sua Majestade está satisfeita com este documento e concorda em obedecer aos termos. Ela pede que Vossa Excelência o leve ao joalheiro, que irá lhe dar o colar. Então ela deseja que Vossa Excelência entregue-me o colar imediatamente.
O cardeal hesitou.
- Vossa Excelência não deseja realizar esta transação para a rainha? - perguntou Jeanne.
- Meu desejo é agradar a rainha de todas as formas possíveis. Mas esta é uma tarefa grandiosa. Ela envolve uma grande quantia em dinheiro. Sinto que o joalheiro desejará ver a assinatura de Sua Majestade no acordo.
Jeanne mal conseguiu suprimir um suspiro de alívio. A assinatura de Sua Majestade... o que poderia ser mais fácil do que isso? Ela levou o documento para casa e Rétaux assinou sob cada cláusula:
Aprovado, Maria Antonieta da França.
O processo foi tão simples que quase pareceu bom demais para ser verdade.
Rohan levou o documento ao joalheiro, e no dia seguinte o colar estava nas mãos de Jeanne.
Jeanne, seu esposo, e Rétaux estavam quase explodindo de euforia. Suas fortunas estavam feitas. Os diamantes mais magníficos do mundo estavam em suas mãos. Eles imediatamente se puseram a desmontar o colar. Eles venderam alguns diamantes em Paris, mas como eram tão magníficos, geraram alguns questionamentos. Rétaux foi hábil ao dizer à polícia que ele tinha sido incumbido de vendê-los pela dama a quem servia. Ela era a condessa de LamotteValois. O nome real amenizou as suspeitas da polícia, mas depois disso os três decidiram que era perigoso demais vender o restante das jóias em Paris. Assim, o conde de Lamotte- Valois levou-as a Londres para vendê-las lá.
Agora a condessa começou a viver de acordo com seu nome real. Ela tinha uma carruagem e quatro éguas inglesas para puxá-la. Seus servos vestiam trajes da criadagem real. Em sua berlinda, gravou o brasão real de Valois, sem esquecer os lírios da França e a inscrição Do rei, meu ancestral, derivo meu sangue, meu nome e os lírios .
Enquanto isso, o cardeal estava inquieto.
Ele não recebera qualquer mensagem da rainha dizendo ter recebido o colar e estar deliciada com ele. Ela não o usou em nenhuma das cerimónias estatais às quais o cardeal, como Grão-esmoler, comparecia. Parecia-lhe estranho o fato da rainha, que estivera tão ansiosa por possuir o colar, jamais o usasse. Quando perguntou isso a Jeanne, a resposta foi:
- A rainha disse-me que não usará o colar até que tenha pago por ele. Ela hesita permitir que o rei saiba que ela o comprou até que possa dizer que efetuou o último pagamento.
A explicação pareceu razoável, mas o cardeal continuou impaciente. Julgava que a rainha deveria demonstrar algum sinal de gratidão para com o homem que executara uma transação tão incomum em seu benefício, mas ainda assim Antonieta continuava a tratá-lo com a mesma arrogância de sempre.
Porém, mesmo a despreocupada Jeanne não podia impedir a marcha do tempo, e o primeiro de agosto estava próximo. O joalheiro exigiria pagamento nessa data, e como fora instruído a disseminar o rumor de que o colar fora vendido ao sultão de Constantinopla (Jeanne enganara-o com a mesma história que contara a Rohan, de que a rainha não queria que fosse sabido que o colar estava em seu poder até que tivesse pago pela jóia), desconfiaria ao não ser pago, e tentaria falar diretamente com a rainha.
- Devemos esperar um pouco mais - disse Jeanne ao seu cúmplice. - Direi a eles que a rainha passou a achar o preço alto demais e exigiu uma redução para, digamos, quatrocentas mil livres.
Eles não vão concordar com isso, e então lhes direi que a rainha devolverá o colar se não concordarem. Isso envolverá muitas discussões e postergará o dia do pagamento.
Rétaux estava preocupado.
Mas Você não pode adiar o dia do pagamento indefinidamente. E se eles se recusarem a fazer a redução?
Eles provavelmente vão querer negociar. Então, se for necessário, vou explicar tudo ao cardeal. Ele encontrará alguma forma de pagar aos joalheiros, porque não ousará fazer outra coisa.
- Ele irá nos denunciar.
Não irá não! Ele está envolvido demais. Denunciando-nos, ele mostrará ao mundo que é um idiota e que foi ludibriado. Não tema. Estamos a salvo.
Mas a boa sorte de Jeanne começava a deserdá-la. Quando ela visitou o palácio do cardeal, viu Cagliostro ao longe. O homem misterioso não tentou falar com ela, e Jeanne imaginou que ele estava sorrindo satisfeito, como se alguma coisa que desejasse tivesse caído em seu colo.
Então ela pensou:
- Será que ele planejou esta coisa toda? Por quê? Por que gosta de nos ver dançar ao som de sua música? Será que ele é realmente uma espécie de Deus?
Os joalheiros, desesperadamente necessitados de dinheiro, prontamente concordaram em reduzir o preço do colar, de modo que não houve nenhum atraso por conta da discussão que Jeanne esperara.
Jeanne disse ao cardeal que a rainha não conseguira o dinheiro, e queria que ele convencesse os joalheiros a permitir que houvesse um pagamento duplo em primeiro de outubro ao invés da primeira parcela ser efetuada em primeiro de agosto.
O cardeal ficou alarmado. Jeanne começou a ver grandes falhas em seu plano. Ela planejara diversas manobras, mas agora se via na possibilidade de executar apenas uma.
Ela prestou uma visita aos joalheiros.
- Monsieur Boehmer, estou preocupada - disse ela. - Tenho motivos para acreditar que a assinatura da rainha no contrato foi forjada.
Boehmer ficou pálido de terror; começou a tremer.
- O que devo fazer? - perguntou o joalheiro. - O que posso fazer?
Jeanne disse sem gaguejar:
- O senhor deve procurar o cardeal. Ele investigará a questão e, se ele descobrir que houve fraude... bem, o cardeal jamais permitirá que seja dito que ele foi vítima de uma fraude para colocálo em desgraça. Não tema, monsieur Boehmer. O cardeal pagará com o dinheiro dele.
Jeanne pensou que tinha conseguido sair graciosamente da dificuldade. Ela tinha o castelo que comprara em Bar-sur-Aube, e assim retirou-se para o campo.
Ela pretendia permanecer ali durante algum tempo, e depois talvez juntar-se ao marido em Londres, onde ele estava dispondo dos diamantes.
Mas o joalheiro não procurou o cardeal. Em vez disso, foi até madame de Campan e, através dela, alcançou a rainha.
Jeanne estava jantando em sua casa de campo quando recebeu um mensageiro.
- Madame, monsieur lê cardinal de Rohan foi preso em Versalhes hoje.
Jeanne entrou em pânico. Pela primeira vez em toda a vida, teve a impressão de que a sorte tinha se voltado contra ela.
Retirou-se apressadamente até seu quarto. Ali queimou todas as cartas que o cardeal enviara-lhe a respeito da transação.
Sentiu-se melhor depois disso.
Deitou em sua cama e tentou se recompor. Já estava fazendo planos para juntar-se ao seu esposo em Londres. Seria mais seguro ausentar-se do país durante algum tempo.
Às cinco da manhã ouviu um barulho no jardim. Levantou e se cobriu com um manto. A empregada apareceu correndo.
- Eles vieram de Paris... -balbuciou.
- Eles quem? - inquiriu Jeanne.
Mas eles já estavam na escadaria. Marcharam direto até o quarto de Jeanne.
- Jeanne de Lamotte, você está presa! - gritaram eles.
Por ordem de quem, e sob qual acusação?
por ordem do rei, e por estar envolvida no roubo de um colar de diamantes.
No teatro da rainha, aquela comédia deliciosa - O barbeiro de Sevílha - estava sendo encenada, com a rainha interpretando Rosine com grande charme. Estava linda, andando pelo palco num vestido maravilhoso confeccionado para a ocasião por madame Bertin a um custo muito alto. Vaudreuil interpretava Almaviva com grande verve; e Artois pavoneava pelo palco, um Fígaro divertido:
- Ah, quem pode dizer se o mundo não vai durar apenas mais três semanas?
A plateia deslumbrante aplaudiu, mas entre os atos eles estavam dizendo uns aos outros:
- O que significa essa história do colar? É verdade que o cardeal era amante da rainha? Deve haver um julgamento, certo? E quando houver, imaginem o que iremos ouvir!
Eles estavam certos de que aquilo que tinham ouvido era de interesse maior do que a peça que tinham ido assistir no Trianon.
Em Bellevue, onde os membros mais velhos e insatisfeitos da nobreza reuniam-se em torno de Adelaide, falava-se apenas do último escândalo.
- Nem ouso profetizar o que esta situação irá revelar! - declarou Adelaide, fitando Victoire com muita seriedade (Sophie morrera alguns anos antes).
Victoire sabia o que ela estava profetizando e que ficaria muito desapontada se isso não viesse a se realizar.
Em Luxembourg, os amigos de Provence reuniram-se ao redor dele. Eles se confessaram estarrecidos com este novo escândalo, e perguntaram uns aos outros como os filhos de uma mulher como essa poderiam ser bons reis da França. Em primeiro lugar, como podia-se ter certeza de que eles tinham algum direito a ser reis da França?
Nos cafés do Falais Royal, homens e mulheres reuniam-se em números ainda maiores do que antes. Um colar de diamantes, murmuravam. Um milhão e seiscentas mil livres gastas num ornamento enquanto muitos na França passavam fome. Seu herói, o duque cTOrléans (Chartres assumira o título depois da morte recente de seu pai), estava entre eles, os olhos reluzindo com ambição.
- Isto não pode continuar - murmurava o povo.
- Não pode continuar-ecoava Orléans.-E quando parar... o que acontecerá?
E por toda a família Rohan e suas conexões houve muitas conferências apressadas. Um membro da família estava em perigo. Eles todos precisavam ficar ao lado dele. Conectada com os Rohans estavam as casas de Guémenée, Soubine, Conde e Conti, alguns dos quais declararam que já tinham sido humilhados pela rainha.
Eles precisavam unir-se para tirar toda a culpa dos ombros de seu parente. E a melhor forma de fazer isto era colocá-la nos ombros de uma pessoa mais eminente.
Assim, à medida que o caso do colar se tornava o assunto do momento, os inimigos da rainha começaram a se reunir contra ela.
Antonieta estava deitada na cama. Grávida, esperava seu filho para dali a dois meses. Ela tinha fechado as cortinas da cama porque queria manter do lado de fora a tensão que sentia por toda parte.
Todas as pessoas no palácio, todas as pessoas em Versalhes e em Paris, aguardavam ansiosamente o veredicto do julgamento do colar.
Antonieta ouvira que durante o dia inteiro multidões aglomeravam-se nas ruas de Paris, e que cada membro da família Rohan e de famílias aparentadas tinham chegado à capital. Eles desfilavam pelas ruas vestidos em roupas de luto, com todos seus servos paramentados de modo similar. Estavam enlutados para protestar contra o julgamento de seu parente, cuja inocência defendiam. Para eles, era um absurdo que um príncipe nobre, um Rohan, fosse feito prisioneiro meramente por ter sido escolhido como um escudo para aquela austríaca lasciva e aquisitiva.
- Por que insistem tanto neste assunto? - perguntara Antonieta a seu esposo. - O colar foi roubado, as pedras foram quebradas e vendidas. Isso deveria pôr um fim na questão. Por que não a deixam repousar?
A sua honra está em jogo - disse tristemente o rei. - Precisamos defendê-la.
- Eles pensam que eu roubei o colar?
Eles pensarão qualquer coisa até que os convençamos do contrário.
Então Antonieta jogara a cabeça para trás e declarara:
Bem, se eles querem que esta situação seja feita pública, que
seja. Faremos com que o assunto seja julgado pelo parlamento. Então minha inocência completa será provada, e toda a França deverá reconhecê-la.
E assim, neste dia de maio, nove meses depois da prisão do cardeal, o caso do colar de diamantes estava sendo julgado pelo Parlemení de Paris.
Os juizes tinham entrado no grande salão do Palais de Justice. A multidão que tinha se reunido na praça aplaudiu quando eles entraram. As ruas, os barrancos dos rios, as tavernas e os cafés estavam lotados; todos com condições de vir a Paris neste dia de maio o tinham feito para ouvir em primeira mão o veredicto do caso mais notório da época.
Entre os prisioneiros estava o fabuloso conde de Cagliostro, porque a mente ágil de Jeanne vasculhara à sua volta por alguém em quem pudesse fixar a culpa. Ela lembrou de uma ocasião quando tinha caminhado nos jardins do palácio real com Cagliostro, e tinha se convencido de que o conde pusera a ideia da fraude em sua cabeça. Portanto, ela o acusou do furto, e como resultado, ele fora preso.
Agora, em aliança com os membros poderosos da família Rohan estavam os franco- maçons, uma das sociedades mais poderosas na França e no mundo. Cagliostro era Mestre de uma loja, um dos líderes do movimento, e era inconcebível que o poderoso Cagliostro fosse tratado como criminoso.
Havia dois prisioneiros menos importantes envolvidos - Rétaux, o falsificador, e Oliva, a modiste prostituta. Para a felicidade do marido de Jeanne, ele estivera em Londres na época em que as prisões foram efetuadas, e ali ele permanecia, juntamente com os diamantes.
Isso significava que os diamantes não podiam ser apresentados, e o boato que era mais aceito rezava que a rainha estava por trás da coisa toda, que o cardeal tinha destruído suas cartas para ele por uma questão de galanteria, e que a rainha mantinha os diamantes num cofre secreto.
Tremendo diante dos juizes, a pequena Oliva narrou seu encontro com o cardeal no bosque de Vénus. O cardeal contou como fora enganado, e enquanto falou manteve os olhos na figura imponente de Cagliostro, aparentemente para sugar o máximo de força desse homem, assim como fazia com seus parentes reunidos, que enlutados como estavam desde a prisão deste membro de sua família, compunham uma companhia formidável.
Os sessenta e quatro juizes e membros ãoParlement sabiam que era-lhes esperado declarar o cardeal e Cagliostro inocentes. Também estavam cientes de que lidavam com mais do que um mero caso de roubo. O veredicto que pronunciariam seria mais do que de culpado ou não culpado; seria um indiciamento da monarquia, pois Joly de Reury, em nome do rei, deixara claro que até mesmo se fosse considerado que o cardeal fora enganado, ele era culpado de presunção criminosa por imaginar que a rainha iria se encontrar com ele nos jardins de Versalhes. A não ser que se pronunciasse um veredicto de culpado, a rainha seria exposta como uma mulher de reputação duvidosa, porque um cardeal que também era um príncipe podia imaginar que ela estaria disposta a se encontrar com ele dessa forma; e nesse incidente estava baseada toda a estrutura do caso.
Os Contis, os Condes, os Soubises e os Rohans, os franco-maçons, todos os amigos das tias, e as cunhadas da rainha, todos que se congregavam no Falais Royal para falar sobre liberdade, estavam determinados numa coisa: qualquer que fosse a sentença pronunciada contra os envolvidos no caso do colar, a rainha não podia escapar ilesa.
E depois de longas discussões, foi pronunciado o veredicto pelo qual todos esperavam. As sentenças dos atores menores no drama foram pronunciadas rapidamente. Oliva foi considerada um mero peão, uma prostituta que estava acostumada a fazer o que lhe era pedido em troca de pagamento; o que ela fizera neste caso meramente seguira sua profissão. Ela era inocente e foi libertada. Rétaux foi banido da França. Foi reconhecido que Cagliostro não tinha absolutamente nenhuma relação com o caso. Suas respostas frias e quase indiferentes às suas perguntas, juntamente com a pressão exercida pelos franco-maçons, favoreceram sua absolvição.
Quanto aos outros três - seus casos precisavam de maior consideração. O conde de Lamotte, que estava ausente na Inglaterra, foi condenado a trabalhos forçados. Ele podia rir dessa sentença porque, estando longe, não podia ser forçado a nada.
Jeanne foi considerada culpada de roubo, e sua sentença foi violenta. Ela foi levada à prisão de Salpêtrière, onde seria chicoteada e marcada no ombro com a letra V, desta forma proclamando sua Voleuse ao mundo. Em seguida seria aprisionada perpetuamente.
Mas era o veredicto relativo ao cardeal o mais significativo. Ele foi declarado inocente de todas as acusações. E quando ele saiu para as ruas de Paris, aqueles que tinham se reunido durante o dia inteiro para esperar o resultado do julgamento explodiram em aplausos e gritos de alegria.
- Vive lê Cardinal!-gritaram.
E houve risos em Bellevue e no Falais Royal.
O veredicto significava que os juizes consideravam a rainha uma leviana, porque o cardeal supusera racionalmente que ela poderia deixar o palácio sob o manto da noite para encontrar um homem no Bosque de Vénus.
As multidões seguiram até a prisão de Salpêtrière para ali ver Jeanne de Lamotte ser despida e espancada. Eles a viram debaterse e gritar enquanto eram esquentados os ferros que iriam marcála. Viram-na contorcer-se com tamanha selvageria nos braços de seus algozes que ao invés de receber o V no ombro, este foi implantado em seu peito; eles a viram ser carregada desmaiada até a prisão, onde passaria o resto de seus dias vestida apenas com aniagem e tamancos, e vivendo à base de pão preto e lentilhas.
E quanto à mulher por trás de tudo isto? - perguntavam.
Ela viverá num de seus inúmeros palácios. Ela irá se cobrir com seus vestidos de seda e veludo, confeccionados por aquela arrogante madame Bertin. Ela irá se empanturrar com as melhores carnes do reino e talvez se divertir abrindo sua caixa de jóias para admirar um colar de diamantes pago com o sofrimento e a dor de seus súditos.
A rainha ficou furiosa ao ouvir as notícias.
Ela andou em círculos por seu apartamento, fumegando de raiva. A princesa de Lamballe e a madame de Campan tentaram em vão acalmá-la.
- Você deveriam lamentar junto com sua rainha, que foi insultada e sacrificada cabal e injustamente - disse Antonieta.
O rei entrou no apartamento. Estava zangado e pasmo.
- Você tem motivos para estar alterada - disse ele. - Isto é um insulto à Coroa.
- O que você fará a respeito? - inquiriu a rainha.
Luís meneou a cabeça. O veredicto fora pronunciado. Eles tinham errado ao entregar o caso ao julgamento àoParlement. O assunto gerara publicidade demais. Teria sido melhor pagar o joalheiro discretamente e não dizer nada.
- Minha honra está manchada - disse a rainha. - Fizemos tudo ao nosso alcance para deitar luz nesses recantos escuros e secretos. Mas este veredicto é iníquo.
- Os franco-maçons estão contra nós - declarou o rei. - E com eles a família Rohan.
- Você é o rei, não é? - gritou Antonieta.
O rei perguntou-se se não seria mais sensato deixar o assunto descansar; mas como precisava aplacar a fúria de sua esposa, ordenou ao cardeal que abdicasse de sua posição como Grão-esmoler, e assinasse uma lettre de cachet que iria exilá-lo à abadia de ChaiseDieu nas montanhas de Auvergne. Quanto a Cagliostro, ele o baniu do país.
Esses gestos eram típicos da timidez de Luís. Eles não foram suficientemente rígidos.
Se tivesse dissolvido o parlamento, teria demonstrado sua força e nesse momento os membros poderosos da família Rohan teriam sido contidos.
Mas sua ação morna apenas serviu para despertar a fúria do Parlamento e, ao fazer isso, criou-se uma situação perigosa. Agora havia uma rusga evidente entre o rei e o Parlamento. O povo ia à prisão de Salpêtrière assistir Jeanne de Lamotte fazer sua caminhada de exercício no pátio.
- Pobre mulher - diziam. - Ela está carregando toda a culpa do caso do colar. Isto é justiça?
Os murmúrios contra a austríaca cresceram. Os panfletos foram distribuídos em números cada vez maiores, e ficaram mais obscenos.
Desenhos eram circulados nos cafés e contrabandeados para dentro do Palácio. Eles chegavam até mesmo aos apartamentos do rei e da rainha. E em todos eles via-se a mulher referida como Madame Déficit . Os cabelos erguiam-se ridiculamente sobre a cabeça altiva, e o pescoço sempre era adornado por um magnífico colar de diamantes.
O ano que se seguiu foi marcado por uma sucessão rápida e abundante de desastres. O bebé, que nascera algumas semanas depois do dia terrível em que o veredicto do caso do colar de diamantes fora pronunciado, foi uma menina. Antonieta chamou-a Sophie Béatrix; ela carecia da força de sua irmã, madame Royale, e prometia ser tão doente quanto o pequeno Delfim.
Antonieta estava tão infeliz com esta criança que parou de pensar nas implicações do veredicto; deixou de se preocupar com o que o povo dizia a seu respeito.
As preocupações com o filho e a filha tinham deixado Antonieta consideravelmente mais sóbria. Ela não mais atuava no palco de seu teatro dourado no Trianon. Passava o dia sentada com a criança doente nos braços, fitando-a com tristeza.
E menos de vinte meses depois de seu nascimento, a pequena Sophie Béatrix morreu nos braços da mãe.
Naquele ano houve outra morte na família real. Madame Louise, a irmã carmelita, faleceu piamente naquele novembro, gritando: Ao Paraíso, depressa, a todo galope! Ela acreditava que um coche especial tinha sido mandado do céu para levá-la para lá. As madames Adelaide e Victoire ainda viviam em Bellevue, vingativas, jamais perdendo uma oportunidade de maldizer a rainha.
- Oh!, Elisabeth!-exclamou Antonieta para sua cunhada, que
ajudara a cuidar da criança doente. - Às vezes me pergunto se um dia voltarei a ser feliz.
Elisabeth chorou com ela. Antonieta começava a perceber que sua cunhada tímida era a melhor amiga que ela tinha, e uma das poucas pessoas em quem podia confiar.
A impopularidade de Antonieta crescia a cada dia. Ela estava ciente da malícia que a cercava. Certa vez alguém gritou ao vê-la passar pelo Oeil-de-Boeuf em direção ao apartamento do rei:
Uma rainha que faz seu dever deve permanecer em seu apartamento e se dedicar ao tricô!
Amadame Vigée lê Brun temia pendurar seu retrato da rainha no Salon, porque isso poderia provocar distúrbios; e Antonieta agora compreendia que era melhor que ela não aparecesse com muita frequência na Capital.
Durante os meses de tristeza, Antonieta começou a ver com clareza que a situação do país estava lastimável. Enquanto ponderava sobre esses assuntos, passou por uma mudança, de modo que agora arrependia-se de ter sido sempre uma pessoa frívola. Lembrou que era uma Habsburg, e que os Habsburgs eram regentes; ela frequentemente pensava em sua mãe, e começou a se perguntar se nos anos vindouros iria se tornar um pouco parecida com ela. O rei ela via como gentil mas muito fraco; e o que a França precisava agora era de um regente forte. Luís - o Pobre Luís -, mesmo em seus robes magníficos de Estado, não parecia muito um rei. Sua aparência contava contra ele tanto quanto sua personalidade.
Calonne estava trazendo mais desastres para o país com sua política de empréstimos; o déficit anual era agora acima de cem milhões de livres. Era impossível esconder do rei o verdadeiro estado das finanças por muito mais tempo, e quando Luís ouviu esta notícia alarmante, seu coração se encheu de horror.
Calonne, sempre otimista, sempre cheio de planos (a despeito de não haver possibilidade de colocá-los em prática, eram sempre planos com os quais ele podia aplacar o temor das pessoas), decidiu reunir ao seu redor um corpo de homens da nobreza e do clero para ajudá-lo a governar. A esses ele chamou de Notables, os Notáveis , e exprimiu que esperava grandes realizações deles. A proclamação foi recebida com escárnio pelo povo, que prontamente concedeu ao novo grupo a alcunha anglo-francesa de Not- Ables, os Não Hábeis . Eles tinham pouco poder, porque apenas os Estados Gerais podiam impor taxas, e depois de muitas discussões e nenhuma realização, Calonne implorou aos Notáveis que assumissem o seu cargo e em seguida pediu demissão.
O país estava chamando por Necker, mas o rei era contra sua reconvocação e recusava firmemente tê-lo de volta.
Antonieta, que acompanhava o conflito com compreensão crescente, achava que o arcebispo de Toulouse, Loménie de Brienne, seria um bom homem para assumir o lugar de Calonne. Ele portanto foi indicado ao Tesouro, mas o povo ficou contra ele desde o começo, meramente porque fora recomendado pela rainha.
Ele dissolveu os Notáveis, que retornaram para os seus estados e não perderam tempo em informar todos com quem entravam em contato que o tesouro estava à beira da falência.
O Parlement determinou opor-se a todos os planos apresentados por Brienne. O ministro cometeu um grande erro. Ele declarou que a rainha deveria ter uma posição nos encontros do Conselho e desta forma ajudar a governar.
O povo ficou ultrajado.
- Estamos sendo governados por madame Déficit! - gritaram.
E os rumores aumentaram; o caso do colar de diamantes voltou à baila, acrescido de novas conjecturas. Em Bellevue e no Falais Royal era dito:
- A culpa de tudo isto não é do rei. É da rainha.
De toda parte um grito se levantava pela convocação dos Estados Gerais, por uma assembleia legislativa. Brienne planejava efetuar novos empréstimos; oParlament não concordou.
O rei se levantou e declarou:
- Ordeno que vocês façam o que ouviram.
Orléans se levantou e, sabendo que tinha mais do que o apoio daqueles que se reuniam todas as noites no Falais Royal, assegurou ao rei que o que ele acabara de dizer era ilegal.
Luís zangado e estressado devido aos conflitos contínuos, perdeu sua calma habitual e gritou:
O senhor está banido, monsieur d Orléans! Partirá imediatamente para a sua propriedade em Villers-Cotterets!
Isto era um sinal. A rusga entre o rei o Parlement agora era aberta.
Mas se ele dominou o Parlement de Paris, o mesmo não aconteceu com osparlements provincianos. Eles se mantiveram firmemente ao lado ao Parlement de Paris, recusando-se a aceitar os éditos propostos por Brienne. Distúrbios explodiram por todo o país.
A exigência pelos Estados Gerais foi renovada. Desta vez era preciso haver uma promessa de que ele seria eleito e assumiria no ano seguinte.
O povo clamava pelo retorno de Necker, e também neste tocante o rei precisou ceder.
Aqueles eram dias que pareciam opressivos e carregados de augúrios.
Antonieta finalmente começara a compreender a necessidade de executar reformas. Agora que ela assumira seu posto como Privy Councillor, começava a ver - até mais claramente que o rei - o grande perigo no qual o país se encontrava.
Ela se pôs a reformar a administração de sua casa, e quando madame Bertin se apresentou, foi recebida com tristeza.
- Não mais irei chamá-la com frequência - disse Antonieta à costureira. - Tenho muitos vestidos no meu armário. Eles me serão suficiente durante algum tempo.
- Mas Vossa Majestade está brincando! - gritou a costureira--Temos a honra da França para manter. Eu trouxe comigo um veludo maravilhoso...
Não - disse a rainha. - Vá agora, minha querida Bertin. Não discutirei vestidos agora. Se eu precisar de seus serviços, mandarei chamá-la.
Fumegando de raiva, madame Bertin deixou o palácio. Ela viu seu negócio lucrativo ser-lhe tomado.
- Que nova mania é esta? - gritou ao voltar ao seu local de trabalho. - O que aquela idiota cabeça de vento vai fazer agora?
- Então ela riu. - Ela vai me chamar amanhã. Não vai conseguir resistir ao novo veludo.
E quando a rainha não chamou por ela, a raiva de madame Bertin fugiu ao controle. Cuspiu insultos contra a rainha, que tinha sido tão boa para ela; fofocou no lesHalles com as feirantes; e aviltou a rainha tão alto quanto qualquer uma delas.
Em seguida Antonieta convocou a presença do duque de Polignac e lhe disse que precisava aliviá-lo de seu posto como diretorgeral de seus cavalos. Por isto ela vinha pagando-lhe cinquenta mil livres anuais e, como fora necessário encher os estábulos com cavalos para fazer do cargo algo mais do que um cabide de emprego, isto, claro, fora um dispêndio adicional. Polignac ficou profundamente magoado. Ele declarou que a rainha iria arruiná-lo.
- Talvez seja necessário que alguns de nós fiquem arruinados, para salvar a França.
Ela convocou Vaudreuil e lhe disse que ele precisava abrir mão de seu posto de Grão-falcoeiro, que não era exatamente essencial. Vaudreuil ficou horrorizado.
- Eu irei à falência! - declarou.
- É provável - respondeu tristemente Antonieta. - Mas entre você e seu país, é melhor que você conheça a falência.
Isto era ultrajante, isto era impensável. A rainha estava deserdando seus amigos?
- Eu espero que isso seja algo que eu jamais faça - disse a ele. - Mas os tempos são perigosos. Vocês não ouviram falar dos distúrbios? Não sabem que o povo está conclamando os Estados Gerais? Precisamos cortar as despesas em toda parte... toda parte.
- A rainha enlouqueceu - disse Vaudreuil à sua amante Gabrielle.
Agora era pouco comum que Antonieta aparecesse em público. Ela sempre temia essas ocasiões.
Mas ela recebeu um convite da Ópera, onde seria realizado um espetáculo de gala. Como poderia haver um espetáculo de gala sem a presença do rei e da rainha?
Tenho medo de ir - disse a Luís. - Sempre é a mesma coisa.
É a mim que eles odeiam. A você eles aceitam e desculpam. Você é o rei e um Bourbon. Eles não podem esquecer que sou uma Habsburg e uma estrangeira.
Nossa presença é esperada - argumentou Luís.
Ela sabia que era um dever do qual não podia evadir.
Maria Antonieta e o rei foram de carruagem até a Ópera de Paris. Algumas pessoas na multidão deslumbrante aplaudiram, mas os aplausos foram para o rei, e os ouvidos de Antonieta estavam alertas para o sussurro, que poderia crescer para um grito, de alguém chamando-a madame Déficit . Ela tentava captar até os sussurros entre os brados e aplausos.
E enquanto caminhou até o camarote real, viu o que estava alfinetado lá. Era um cartaz e nele estava escrito em letras imensas:
Tremam, tiranos. Vosso reinado está perto do fim.
Um servo apressou-se em remover o cartaz, mas durante o espetáculo ele pareceu dançar diante dos olhos da rainha, e para onde quer que ela olhasse, do palco para a plateia, ela via aquelas palavras Tremam, tiranos.
E ela tremeu.
Aquela sensação terrível de um mau augúrio continuou com ela.
Em breve os membros dos Estados Gerais estariam em Versalhes; com esta nova previsão, que ocorreu a Antonieta graças à sua seriedade recém-adquirida, a rainha pediu a Luís que mantivesse a assembleia em alguma cidade provinciana, em algum lugar muito distante de Paris, onde uma revolta seria improvável de irromper. Mas Luís foi inflexível. Estava pasmo com os acontecimentos, mas continuava vendo a si mesmo como o pai de seu povo, e se não demonstrava sensibilidade à possibilidade de revoltas, também não demonstrava medo.
Os Estados Gerais certamente viriam a Versalhes e à capital.
Os membros dos Estados Gerais foram eleitos de todas as classes da sociedade- lembrou Antonieta. - É a primeira vez que nomens são eleitos das classes inferiores da sociedade para participar do governo de um país. Luís, isto é uma reviravolta completa. Os Estados Gerais vão minar o seu poder.
- Ele foi necessário - disse o rei.
E Maria Antonieta temia Os Estados Gerais.
Mas havia uma coisa que lhe causava uma tristeza ainda maior. A saúde de seu filho mais velho estava decaindo rapidamente.
O pequeno delfim era sujeito a ataques de febre; uma de suas pernas era mais curta que a outra, e sua espinha era torta; era incapaz de se manter em pé, porque sofria do mal que afligira a tantos Bourbons: raquitismo.
Todos os dias Antonieta sentava-se ao lado do filho e se perguntava se seria a última vez que faria isso.
Costumava lembrar com frequência o quanto Luís amava seus filhos, tanto quanto ela; quanto ele era bom e gentil com eles. Ela disse a madame de Campan:
- Lembra como o rei costumava passar noites inteiras ao meu lado quando um bebé adoecia?
Madame de Campan lembrava.
- O rei é um homem bom - disse Antonieta. Ela levantou uma mão de repente e disse a madame de Campan: - Vou descansar agora. Amanhã será um dia longo.
A princesa de Lamballe disse:
- Você usará seu vestido violeta, branco e prateado. É um vestido bonito, um dos melhores que já foi feito para Vossa Majestade.
Antonieta não respondeu,
- E a sua tiara de plumas de avestruz lhe cai tão bem!-prosseguiu a princesa.
Mas Antonieta ainda não estava ouvindo.
- Acenda minhas velas - disse a rainha. - Vou para a cama.
Elas acenderam quatro velas na penteadeira da rainha e enquanto despiam sua tiara ricamente adornada, uma delas apagou. Madame de Campan reacendeu a vela, mas quase imediatamente a segunda vela apagou.
- O que está errado com as velas esta noite? - perguntou a rainha.
Deve ter uma corrente de vento vindo de algum lugar respondeu madame de Campan.
Por favor, feche as janelas. Não gosto de ver velas apagando deste jeito. Isso me assusta.
As janelas foram fechadas, deixando o quarto muito silencioso. E então a terceira vela apagou.
A rainha virou-se subitamente para a princesa e a abraçou.
Meus infortúnios fizeram de mim uma mulher supersticiosa - confessou. - Tenho medo de alguma coisa... alguma coisa próxima de mim... alguma coisa maligna. Sinto que as velas estão me avisando esta noite. Creio que se a quarta vela apagar, estará profetizando algo terrivelmente ruim.
Você está nervosa porque sabe que amanhã terá um dia sofrido - disse a princesa. - Mas minha querida, tenha certeza de que tudo isto logo passará, e...
A princesa se calou. As três mulheres no quarto estavam olhando para a quarta vela, que acabara de se apagar.
- Maman, como você está bonita! - exclamou o delfim.
Ela sorriu e dançou graciosamente diante dele, em seu vestido violeta, branco e prateado.
- Ajoelhe para eu poder ver suas penas - pediu o delfim.
Ela se ajoelhou, e ele tentou esticar um bracinho fino para tocálas. Antonieta pegou o braço do filho e o beijou. Então ela o puxou para si, abraçando-o para que ele não pudesse vê-la chorar.
- Maman, eu queria ser forte - disse o menino. - Queria passear de carruagem com você hoje. Você está tão bonita... O povo vai adorar você.
Ela fez que não com a cabeça, e tentou sorrir.
- Mas eles vão - assegurou o delfim.-Você está tão bonita!
Ela começou a fazer promessas. Senhor, faça com que meu filho melhore e eu não irei me queixar do que eles fizerem comigo. Eles que me maldigam, que sussurrem infâmias, que gritem insultos. Mas permita que meu bebé cresça forte.
O delfim disse:
- Maman... não posso ver a procissão?
- Meu querido, você não está forte o bastante.
- Vai ser maravilhoso - disse ele. - Todos aqueles cavalos... e você e papá nas carruagens reais. Os cavalos adornados com plumas... as carruagens douradas e todos os postilhões em uniformes coloridos. Você vai na mesma carruagem que o papá?
- Não, ele irá na primeira carruagem com os seus tios. Eu irei segui-lo na segunda.
Os olhos opacos do menino brilharam um pouco.
- Lembro de outras cerimónias. Os cardeais em seus robes vermelhos, e os bispos em violeta. Papá estará vestido em dourado, não é? Como eu gostaria de vê-lo! Mas você, maman... você estará mais linda do que todo mundo. Eu queria participar da procissão.
- Um dia você vai.
- Um dia - repetiu.
Era assim que Antonieta costumava consolar o filho. Um dia você será forte o bastante. Ele sempre acreditava nisso, ainda que a cada dia ficasse mais fraco.
- Maman, se pelo menos eu pudesse ver você na procissão... eu ficaria tão feliz! Eu não posso? Talvez do balcão?
Antonieta beijou a testa do filho.
- Vamos providenciar alguma coisa. Você vai nos ver passar. Ele sorriu.
- Um dia vou participar da procissão, e irei junto com você na carruagem, Maman. Eu prefiro ir na sua carruagem do que em qualquer outra.
- Um dia.
E Antonieta deu ordens para que o menino fosse bem agasalhado, e que uma caminha fosse posta para ele na varanda sobre os estábulos reais. Dali ele poderia observar a procissão passar.
As carruagens saíram do castelo - o rei na primeira, com seus irmãos, a rainha na segunda, e em seguida as dos nobres de sangue real.
Foram até a igreja de Notre Dame, onde uma pequena cerimónia estava sendo realizada; e de Notre Dame eles caminharam em procissão até a igreja de St. Louis, onde a missa seria celebrada.
A procissão foi um espetáculo glamouroso, com as bandeiras rodando e os padres e outros dignitários de Versalhes liderando a procissão. Todos carregavam velas de cera - os membros do Tiers État com chapéus de três pontas, casacos pretos e gravatas de muselina branca. Entre os nobres um se destacava devido à simplicidade com que estava vestido. O duque d Orléans tinha se aliado aos plebeus recusando-se a vergar trajes condizentes com seu título. Quando ele apareceu, o povo bradou:
- Vile lê Duc d Orléans!
E esse grito foi ainda maior e mais insistente que Vive lê Roi!
Os cardeais, em seus robes escarlates, e os bispos com suas batinas violetas, pintavam o desfile com suas cores. Eles precediam a Hóstia, que era carregada sob um toldo por quatro príncipes. Imediatamente atrás vinha Luís, vestido como os nobres, vela na mão.
A rainha olhou para cima, pois podia ver à distância os estábulos e a caminha posta ali; ela sorriu e pensou ver um movimento, como se o pequeno delfim a tivesse visto e reconhecido.
Antonieta estava pensando nele, de modo que não percebeu o silêncio mortal que se fez enquanto ela passava através da multidão.
Então, subitamente, um grupo de mulheres perto dela gritou:
- Vive lê Duc d Orléans!
Ela compreendeu a mensagem que elas estavam transmitindo. Diziam-lhe o quanto a odiavam em seus trajes belos, que contrastavam imensamente com aqueles vergados pelo duque d Orléans.
E agora ela ouvia o povo gritar Vive lê Roi! Era apenas a rainha que o povo odiava.
Antonieta sabia que as pessoas que caminhavam ao seu lado observavam-na ansiosamente.
Ela ergueu o queixo ainda mais. Majestosa em seu vestido, as plumas da tiara adejando graciosamente, a rainha arrogante e bonita parecia lembrar apenas de sua realeza, não se importando com os insultos da canaille.
Antonieta ajoelhou diante da cama do filho.
As mãos febris do menino estavam protegidas entre as dela; o desejo dele era que ela não saísse do seu lado.
- Maman, não fique triste. Você sabe, um dia...
Os lábios de Antonieta disseram Um dia , mas ela não conseguiu impedir que as lágrimas continuassem caindo de seus olhos.
- Maman, você está chorando por mim. Estou tão doente assim?
- Não fale, meu querido. Poupar o fôlego vai ajudá-lo a se recuperar.
Ele fez que sim com a cabeça.
- Eu vou me recuperar, maman.
Ela levantou os olhos para os médicos. O que eles podiam fazer além de menear as cabeças? Há vários meses era óbvio para todos que o delfim não iria sobreviver.
Luís estava ao lado de Antonieta, mão sobre o ombro da esposa.
Pobre Luís! Querido Luís! Ele sofria tanto quanto ela.
O menininho estava deitado sobre seus travesseiros. Sua respiração estava entrecortada. Ele lutava desesperadamente por sua vida.
Mas o pequeno Louis Joseph estava indo.
Ajoelhada ao lado da cama, Antonieta afundou o rosto nas mãos, porque não tinha forças para olhar seu filho em seus últimos momentos.
O rei trouxe as outras crianças até ela - madame Royale, que acabara de fazer dez anos, e o pequeno Louis Charles, que já comemorara seu quarto aniversário.
- Confortem sua mãe - disse o rei.
E Antonieta, abrindo os olhos, encontrou um bálsamo reconfortante na visão daquelas crianças.
Agora o conflito estava ainda mais feroz. A nobreza e o clero tinham se juntado contra o Terceiro Estado; e o Terceiro Estado estava em conflito com os Estados Gerais.
O Terceiro Estado começou a se autodenominar Assembleia Nacional, com Jean Sylvain Bailly como seu presidente; eles decidiram redigir uma Constituição que deixaria claro quanto poder estava nas mãos do rei.
Necker urgiu o rei a concordar com certas reformas, e escreveu o discurso para Luís ler. O rei foi persuadido a alterar o discurso, e enfureceu Necker, que compreendia completamente o quanto a situação era desesperadora. Luís queria deixar claro que entendia a necessidade de abrir mão de uma certa quantidade de autoridade, mas estava determinado a manter as classes privilegiadas no controle dos assuntos do reino; e não podia concordar que os Estados Gerais deveriam ter o poder para alterar a vida social do país. O privilégio precisava ser mantido; este foi o tema do discurso do rei.
O discurso foi recebido com raiva, e quando o rei dispensou a assembleia, Mirabeau, o membro mais dinâmico do Terceiro Estado, reportou que eles tinham mantido seu cargo pelo poder do povo e que não sairiam, a não ser pela força da baioneta.
Bailly, o presidente, disse mais diplomaticamente que a assembleia, uma vez constituída, não podia ser dissolvida por ninguém.
O rei, alarmado, ordenou que mais soldados fossem levados para Paris e Versalhes. Ele agora compreendeu que a Assembleia Nacional tinha se tornado seu inimigo mais terrível. Ela estava determinada a formar um novo governo movido por ideias liberais. Ele convocou de Breteuil e dispensou Necker - o único homem em quem o povo punha fé.
Necker, cansado de lutar e vendo o desastre muito próximo, demitiu-se de Versalhes e partiu sem demora para sua terra natal, a Suíça.
O povo assistiu a chegada dos soldados com olhos melancólicos. Corria o rumor de que a intenção do rei era confinar na Bastilha os recém-eleitos representantes do povo.
Luís assegurou à Assembleia de que apenas estava tomando precauções devido a certos sinais de inquietação na capital. A comida era escassa devido à colheita ruim do ano anterior; e nesses momentos, conforme se vira no passado, era necessário tomar essas medidas. Ele não queria uma repetição da Guerre dês Farines.
Luís disse que sentia que a Assembleia estava inquieta, de modo que iria providenciar a partida de seus membros para as províncias.
Luís e a nobreza se congratularam. Eles tinham contra-atacado as noções rebeldes da plebe. Não deveria haver uma nova Constituição com uma monarquia posta a ferros. O velho regime deveria continuar.
Era doze de julho... um dia quente e abafado.
Ao receber a notícia de que Necker havia se demitido, a Assembleia Nacional soube que todas as esperanças estavam perdidas. Necker era o único homem do rei em quem haviam depositado suas esperanças.
- Necker se foi.
- Necker foi demitido.
A notícia alcançou as ruas tensas de Paris, e foi como um fósforo aceso tocando um pavio.
Durante esses dias quentes de julho, Orléans, das janelas de seu apartamento numa extremidade do quadrado que formava o Falais Royal, presenciava as cenas estarrecedoras que se desenrolavam lá embaixo. E assistindo-as, sentia o peito encher-se com satisfação e excitação crescente. Os jardins do Falais Royal estavam cheios, dia e noite. Entre as mesas nas calçadas dos cafés, prostitutas caminhavam entre os homens que argumentavam ferozmente contra a monarquia; agitadores tinham se posicionado sob as árvores para atiçar o povo. Durante toda a tarde e noite adentro, podia-se ouvir gritos contra religião, e muitos mais contra os aristocratas. Os rumores mais loucos eram fomentados no Falais Royal. E Orléans era rei de seu mundinho composto por mercadores, mendigos, vagabundos, prostitutas, certos aristocratas que acreditavam que sua segurança jazia nas mãos de Orléans, e certos políticos que acreditavam que ele era o caminho para a fama e a fortuna.
Muitos homens hábeis estavam ao seu lado. Choderlos de Laclos era um homem útil. Seu romance, Ligações perigosas, tinha despertado a ira de muitos devido às suas descrições da depravação da sociedade; ele era um general que, após deixar o exército, tornara-se secrétaire de commandements para Orléans. Ele sabia escrever panfletos que incitavam as massas à fúria – um homem muito útil. Havia Mirabeau, ele próprio um aristocrata que falira depois de muitos anos de vida dissoluta, mas um homem de poderes imensos, caso pudesse usá-los; e agora, tendo alcançado a idade madura de quarenta anos, desejava usá-los; ele ansiava por poder, e via a presente situação da França como um meio para alcançá-lo. Havia Camille Desmoulins, um jornalista de estilo virulento que era protegido de Mirabeau. Havia Danton, o agitador assalariado.
E havia Théroigne de Méricourt. Orleans às vezes considerava esta mulher tão útil quanto qualquer um de seus homens. Ele a conhecera na Inglaterra, na época em que era conhecida como Anne Terwagne. Ela era belga, e o príncipe de Gales mencionara-a a Orleans. Ela tinha se tornado uma das amantes de Orleans e ele a trouxera para a França, onde ela rapidamente montara uma casa e se tornara uma das cortesãs mais requisitadas da sociedade parisiense. Ela adotara o nome de condessa de Campinados e encontrara vários protetores ricos com os quais viajava em grande luxo por toda a Europa.
Mas Théroigne era astuta. Ela tinha ouvido rumores. Sabia que dias turbulentos se avizinhavam na França, e que muitos viam Orleans como seu líder. Se Orleans iria liderar uma nova sociedade na França, se ele iria se tornar rei da França, o que ela sabia ser sua ambição secreta, Théroigne queria estar por perto para compartilhar de seu triunfo.
Era por causa disso que Théroigne estava em Paris. Era por causa disso que ela estabelecera seu salon na rua de Bouloi, onde reunia escritores, políticos e aristocratas descontentes, e servia ideias revolucionárias com seu vinho.
Portanto, era tão aprazível para o duque d'Orléans sentar-se à janela de seu apartamento e assistir à agitação crescente.
Mirabeau fizera planos. Quando o momento fosse adequado, o povo deveria levantar-se contra o rei. O povo deveria nomear o duque d'Orléans como tenente-general do reino. E a partir daí, acreditava Orleans, seria fácil subir ao trono.
E então chegou a notícia de que Necker fora demitido.
Era o sinal, e Mirabeau estava pronto. Era verdade que quando Necker estivera no governo, Mirabeau criticara-o duramente, chamando-o de sou-snatcher genovês, de relógio atrasado; e de fato estivera recentemente preparando um discurso para ler para a Assembléia, no qual iria exigir a demissão desse homem, responsabiiizando-o pela fome resultante da colheita ruim do ano anterior.
Mas de que importava isso agora? O rei demitira Necker. O momento era adequado, a turba estava pronta; o clima estava quente, e o sangue do povo também. Necker serviria como uma desculpa perfeita.
Camille Desmoulins saltou para uma mesa diante dos cafés no Falais Royal.
- Cidadãos! - gritou.-Vocês sabem que a nação pediu que Necker fosse mantido, e mesmo assim ele foi demitido. Vocês conseguem imaginar um insulto maior? Às armas! Conclamo vocês, meus irmãos a jutar pela liberdade!
A turba se reuniu em torno dele. Alguns carregavam porretes, e outros portavam pistolas, ancinhos e até cabos de vassoura qualquer Coisa que servisse como arma.
Eles agarraram Desmoulins e o carregaram sobre seus ombros. Desfilaram, pelo Falais Royal gritando:
- As armas! Cidadãos, soltem-se dos grilhões da escravidão! Liberdade, cidadãos! Vamos lutar pela liberdade!
A desordem explodira em Paris. Grupos vagavam pelas ruas; os comerciantes montaram barricadas diante de suas lojas, pois muitos dos arruaceiros que invadiam e saqueavam os estabelecimentos não eram d,e Paris. Eles falavam com sotaques que não pertenciam à Capital e Seus arrabaldes; eram mais rudes, carecendo completamente da graça dos parisienses, que era evidente até em seus membros rnais humildes. Os parisienses eram as pessoas mais civilizadas da França; e a França era o país mais civilizado do mundo. Gostavam de sentar-se diante dos cafés para conversar; eram menos propensos a agir. Eram indolentes por natureza, preferindo as aventuras da mente à ação. Essas pessoas rudes certamente não pertenciam a Paris. Estava ficando claro para muitos dos cidadãos amantes da paz que essas hordas, que perambulavam pelas ruas da capital gritando palavras de ordem e exigindo liberdade, eram compostas por arruaceiros contratados. Isto encheu os parisienses com alarme.
Durante aqueles dois ou três dias e noites que precederam o quatorze de julho, os homens e mulheres sóbrios tentaram encontrar um bando de guardas para protegê-los dos baderneiros que corriam pelas ruas gritando:
- Dês armes et dupain!
Por trás das casas barricadas, pais mantinham-se abraçados aos filhos com os corações pesados de ansiedade, rezando para que o som dos gritos nas ruas não viesse em sua direção.
No treze de julho, as desordens aumentaram. As lojas dos armeiros tinham sido invadidas, e os homens e mulheres rudes agora estavam armados. O Hotel de Ville tinha sido arrombado e ali mais munição fora roubada.
Os cidadãos de Paris estavam seriamente alarmados. Determinados a proteger sua cidade dos assaltantes, os magistrados realizaram reuniões no Hotel de Ville; vários homens apresentaram-se para oferecer seus serviços, armas foram entregues aos protetores de Paris, e bandos foram formados para patrulhar todos os distritos.
Um ou dois dos baderneiros foram presos e enforcados; mas os líderes da turba escaparam. As ruas ficaram mais calmas à medida que o dia acabava, mas uma grande inquietude pairava no ar. Foi lembrado que os soldados, tendo sido instruídos pelo rei a não disparar contra o povo, haviam sido inúteis nos distúrbios, e sua presença na cidade causara apenas tensão e pânico.
A noite chegou e os agitadores estavam em suas mesas no Palais Royal e nas esquinas das ruas, lembrando ao povo de suas queixas.
Georges Jacques Danton era o mais arguto dos agitadores; ele sabia como atiçar a raiva dos cidadãos e ao mesmo tempo fazê-los rir.
Ele gritou:
- Devemos usar o cocar verde como nossas cores, cidadãos? Jamais! Essas são as cores do conde d'Artois, e o conde d'Artois é um daqueles malditos aristocratas que rouba o pão de nossas bocas, cidadãos, para poder pavonear em sua glória. Permitamos que nossas cores sejam as de nosso amigo monsieur d'Orléans: azul, branco e vermelho, o tricolor! Eu tenho uma lista aqui, cidadãos. Ela contém os nomes daqueles que são traidores de seu país. Artois está nessa lista. Devemos usar suas cores?
- Não! - gritou a multidão.
- Então que seja o tricolor.
- Longa vida ao tricolor!
O quatorze de julho alvoreceu, um dia de calor e emoções abrasadoras, um dia que seria lembrado para todo o sempre.
Multidões reuniram-se em torno do Falais Royal.
O plano estava pronto, mas o povo de Paris não sabia disto. As notícias corriam pela cidade.
- As tropas estão avançando a Paris. Os cidadãos serão bombardeados pelos canhões da Bastilha.
- Cidadãos, vocês ficarão em suas casas sem fazer nada? Vocês permitirão que os canhões da Bastilha assassinem suas esposas, seus filhos, e vocês próprios? Você viram o preço do pão. Viram ele subir... subir... e ousaram reclamar. Aqueles cujo interesse é ver o preço do pão subir querem assassinar aqueles que elevaram suas vozes contra a tirania. Às armas, cidadãos! Há uma maneira de derrotar nossos inimigos. À Bastilha!
O povo estava enchendo as ruas. Uma multidão estava aglomerada em torno do Hotel de Ville e da Place de Greve.
- O que significa isto? - perguntavam uns aos outros.
E os bons cidadãos misturavam-se com os agitadores assalariados.
Eles tinham visto os canhões nas ameias. Aqueles canhões podiam disparar contra as ruas circundantes com resultados devastadores.
Muitas pessoas tinham passado a grande fortaleza com suas oito rres pontiagudas e seu fosso seco; tinham passado o portão que se abria para a rua Saint-Antoine; tinham olhado para as duas pontes levadiças, uma na Pont de 1'Avancée que se abria no Cour du Gouvernment, e a outra na prisão.
Os prisioneiros da bastilha eram, em sua maioria, presos políticos, e se dizia que as condições ali dentro eram mais confortáveis que aquelas oferecidas pelo Châtelet ou pelo Salpêtrière.
- Precisamos tomar a Bastilha! - berravam os agitadores. Só assim poderemos impedir que os canhões da fortaleza sejam usados contra os cidadãos de Pairs.
- Para a Bastilha! - bradou a turba.
E naquele dia quente de quatorze de julho, o povo marchou, brandindo lanças, ancinhos, armas, qualquer coisa na qual pudessem pôr as mãos; e em todos os dias precedentes jamais houve tanta tensão, tanta excitação quanto naquele dia.
As correntes da ponte levadiça haviam sido cortadas. Os defensores da Bastilha, sob ordens do rei, não tinham disparado contra o povo... e o povo estava no comando.
Pelas ruas o povo marchava, cantando seu triunfo; à sua frente ostentavam, ficada num pau, a cabeça ensanguentada do marquês de Launay, o governador da Bastilha.
Na noite do dia quatorze, o duque de Liancourt chegou a todo galope ao palácio de Versalhes.
- Preciso ver o rei - declarou. - Sem delongas. Não temos um instante a perder.
- Sua Majestade já se retirou para dormir - foi dito ao duque.
- Então Sua Majestade deve ser acordada - foi a resposta soturna.
- Monsieur lê duc... eu disse que o rei já foi para a cama.
O duque de Liancourt empurrou para o lado todos que tentaram detê-lo. Ele marchou até a alcova do rei e puxou as cortinas.
- Majestade! - gritou. - O povo tomou a Bastilha e a cabeça de Launay, espetada numa lança, está sendo carregada pelas ruas sob os uivos ensandecidos da turba.
Luís sentou na cama e esfregou os olhos para espantar o sono.
- Parecem notícias de uma revolta.
- Não, Majestade - disse o duque. - São notícias de uma revolução.
O povo estava exigindo a reconvocação de Necker, e ao mesmo tempo declaravam que se o rei não viesse a Paris eles iriam em massa a Versalhes, destruiriam o palácio, expulsariam os cortesãos e trariam o rei para sua capital para poderem "cuidar dele".
Versalhes estava em polvorosa. Artois ouvira dizer que seu nome constava de uma lista de pessoas que seriam executadas. O rei o abraçou.
- Você precisa tomar providências imediatas para partir disse ele.
Os Polignacs e seus amigos tinham sido alvo das sátiras e do panfletos durante anos. Eles estavam bem perto do topo da lista.
- Não vou deter vocês aqui - disse Antonieta. - É perigoso demais. Vocês devem partir o quanto antes.
Ela foi até o rei e parou trémula diante dele. Estava pasma com a calma de Luís.
Será coragem, perguntou-se a rainha, ou será que o medo é uma emoção tão impossível de ser despertada nesse homem quanto o ardor?
- Irei a Paris - anunciou o rei.
Antonieta, olhando para ele, pensou em todos os anos que tinham passado juntos, toda a gentileza deste homem, todos os mimos com que ele a tratara. Ela pensou em como seus filhos o amavam, e se atirou em seus braços, implorando-lhe que não fosse a Paris.
- Você não sabe que eles disseram que se eu não for até lá eles virão até aqui?
- Não vá - pediu Antonieta. - Eles pretendem matá-lo, assim como mataram de Launay.
- Eles lembrarão que eu sou seu rei e eles são meus filhos. Antonieta balançou a cabeça; estava tão transtornada que não conseguia falar.
Ele assistiu à missa, comungou e fez suas preces. Então partiu para sua capital.
Antonieta observava Luís do balcão do apartamento do rei.
- Adeus, Luís - disse ela. - Adeus, meu pobre e querido rei e esposo.
Ela não via o rei em sua carruagem; ela meneava a mão automaticamente. Não conseguia expulsar dos pensamentos a cabeça ensanguentada do governador da Bastilha, e imaginou outra cabeça espetada numa lança e carregada por aqueles loucos ululantes... a cabeça de Luís.
A princesa de Lamballe estava a seu lado.
- Você também deveria nos deixar - disse Antonieta. Gabrielle partirá hoje. Você também, querida Marie, devia ir com os outros.
A princesa fez que não com a cabeça.
- Tenho medo-disse a rainha. - Começo a pensar que realmente jamais conheci o medo até este momento.
- O rei estará em segurança-assegurou a princesa.-O povo o ama. Eles jamais esquecerão que ele é o seu rei.
- Não sei o que será dele. É provável que eu jamais o veja de novo. Oh, Marie... eu penso em meus filhos... meus pobres filhos. Irei vê-los agora; venha comigo.
Madame de Tourzel estava com as crianças. Ela era suagouvernante agora que Gabrielle, que ocupara esse posto, estava se preparando para partir.
As crianças correram até ela, sorrindo.
Graças a Deus, elas não sabem de nada, pensou Antonieta.
Madame Royale, quieta, gentil e bonita, seria um conforto para qualquer mãe. O pequeno delfim causava-lhe alguma ansiedade. Ele era um sujeitinho encantador, forte e saudável, mas tinha uma certa tendência nervosa que chegava às raias da histeria. Acordava gritando se algum ruído o perturbava, e contava histórias grotescas sobre coisas que tinham lhe acontecido. Odiava estudar e adorava todas as brincadeiras nas quais podia imaginar ser outra pessoa. O que mais gostava era fazer de conta que era soldado. Fazia amizade com todos os guardas do palácio, e a coisa mais engraçada do mundo era ver o audacioso delfinzinho marchando atrás deles. Era muito animado e um menino extremamente afetuoso. Adorava madame Royale, e não suportava que o separassem dela. Amava profundamente o pai e nutria grande respeito por ele. À sua mãe, ele idolatrava.
E o que será destas crianças?, indagou-se Antonieta.
Enquanto percorria o berçário real naquele dia, Antonieta decidiu que precisava colocar o bem-estar daquelas crianças acima de tudo. Luís era o mais gentil dos homens, mas carecia de imaginação e pensava que todos os homens eram iguais a ele. Não acreditava em malícia, e era preciso que se perpetrasse uma crueldade diante de seus olhos para que aceitasse sua existência. Os homens e mulheres que tinham invadido a Bastilha, que tinham cortado e carregado a cabeça de Launay pingando sangue pelas ruas, eram, aos olhos do rei, crianças desencaminhadas.
- Maman, o que aconteceu? - gritou o delfim. - Por que papá foi a Paris, e por que madame de Polignac está ocupada demais para falar conosco?
- O povo chamou seu pai a Paris, meu querido - disse a rainha.
Ela encontrou os olhos adoráveis de sua filha, e sentiu uma necessidade urgente de contar a verdade a ela. Mas não! Ela não ousava perturbar a serenidade desta doce criança. Era melhor que ela permanecesse feliz por mais algum tempo.
- Talvez nós também precisemos ir a Paris em breve - disse Antonieta. - Vou empacotar roupas para nós e mandar aprontar as carruagens. Portanto, não fiquem surpresos se partirmos em breve.
- Mas em breve quando"? - perguntou madame Royale.
- Não tenho como saber. Mas estejam preparados.
- Os soldados vão conosco? - perguntou o delfim.
- Eu não sei.
- Espero que vão.
O delfim pendurou um mosquete imaginário no ombro e se pôs a marchar pelo apartamento.
Ela os deixou, pois temia, caso permanecesse ali, perder o controle e contar-lhes seus temores.
Ela havia se decidido; iria rogar à Assembleia Nacional por santuário para si e para as crianças. Ela pediria para eles ficarem com o rei.
E durante o dia inteiro rumores correram pelo palácio. A turba tomara o rei como prisioneiro? Errara o rei ao se entregar em suas mãos? Era verdade que os invasores da Bastilha já marchavam para Versalhes?
Luís seguia para Paris. Sua calma era impressionante, e as pessoas que viam sua carruagem passar poderiam ter acreditado que ele estava se dirigindo a alguma cerimónia oficial normal, e que seus guardas tinham sido substituídos por um exército de homens esfarrapados munidos de armas, lanças e machados, arrastando canhões com eles. Também havia mulheres nessa assembleia; elas dançavam, gritavam e brandiam galhos de árvores nos quais tinham amarrado laços.
Quando esta procissão estranha entrou em Paris, Bailly, o novo prefeito, estava esperando para receber o rei. Em suas mãos ele portava a almofada com as chaves tradicionais.
Ele disse em voz alta e clara para que todos pudessem ouvir distintamente:
- Entrego a Vossa Majestade as chaves da sua boa cidade de Paris. Essas foram as palavras ditas por Henrique IV Ele reconquistou o povo; agora o povo reconquistou seu rei.
Luís não demonstrou nenhum sinal de estar aborrecido com esse contraste delineado entre ele e o rei a quem a França sempre considerara seu maior soberano. Ele graciosamente aceitou as chaves e sorriu benignamente para a multidão furiosa que insistia em manter-se próxima à carruagem.
Foi na Praça Luís XV que o tiro foi disparado. Abala não acertou o rei, mas matou uma mulher. Ninguém reparou nela enquanto seu corpo caía, e no tumulto Luís não percebeu o quanto estivera perto da morte.
Eles tinham vindo ao Hotel de Ville e ali parado. O rei saltou de sua carruagem e, sob um arco de paus e espadas, adentrou o prédio. O prefeito conduziu o rei até o trono, e o povo encheu o salão atrás dele.
Luís assumiu seu lugar no trono e aquela sua calma estranha ainda estava com ele. Era como se dissesse: "Façam o que quiserem comigo. Eu não os odeio." Ele era como um pai benigno, que não se irritava com as peraltices de seus filhos porque os amava muito, e sabia que eles eram apenas crianças... suas crianças.
- Vossa Majestade aceita a indicação de Jean Sylvain Bailly como prefeito de Paris, e Marie Joseph Gilbert Motier de La Fayette como comandante da Guarda Nacional?
- Aceito - disse Luís.
Então foi-lhe dado o cocar azul, branco e vermelho, que ele aceitou placidamente, e, ainda comportando-se como um pai indulgente participando das brincadeiras infantis de seus filhos, despiu seu chapéu e afixou sobre ele o tricolor.
O povo ao seu redor, incapaz de resistir ao encanto de sua paternidade benevolente, gritou:
- Vive lê Rói!
Então o conde de Lally-Tollendal, que era membro dos Democratas Reais, um partido que desejava sinceramente que reformas fossem realizadas de forma constitucional, gritou:
- Cidadãos, vocês estão satisfeitos? Aqui está seu rei. Desfrutem de sua gloriosa presença. - Ele se virou para o rei. - Meu rei, não há um homem aqui que não esteja disposto a derramar seu sangue por Vossa Majestade. Esta geração de franceses não dará as costas a quatorze séculos de fidelidade. Reis, súditos, cidadãos, permitam-nos juntar nossos corações, nossos desejos, nossos esforços, e mostrar aos olhos do universo a visão magnífica de sua mais bela nação, livre, feliz, triunfante sob um rei justo, amado e reverenciado, que, devendo nada à força, deverá tudo às suas virtudes e ao seu amor.
Uma salva de aplausos se irrompeu. Agora havia lágrimas nos olhos do rei. Ele disse numa voz vibrante com emoção:
- Meu povo sempre pode contar com meu amor.
Os plebeus cercaram Luís, beijaram sua mão e seu casaco, e uma mulher do mercado abraçou-o carinhosamente; ela declarou que ele era o salvador de seu país; havia derramamento de sangue e assassinatos por toda parte, mas Luís, o paizinho, havia aparecido, e tudo ficaria bem agora.
O rei preparou-se para sua jornada de volta a Versalhes. Como a viagem de volta foi diferente! Em seu chapéu o rei usava o cocar tricolor.
- Longa vida ao rei! Longa vida ao paizinho! - gritava a multidão.
E aqueles que tinham gritado "Matem o rei!" agora bradavam "Honrem o rei!".
Era onze horas quando, cercado pela multidão ruidosa, a carruagem entrou no Cour Royal.
Antonieta ouviu o barulho. Desceu correndo a grande escadaria e se jogou nos braços do rei.
Ele estava de volta. Ele estava seguro. Então havia esperança.
Antonieta fitou o rosto de Luís, viu as marcas de fadiga sob seus olhos, as manchas em suas roupas, sua gravata torta... e o cocar tricolor no cabelo.
Então ela ficou assustada. Mas o rei sorriu brandamente.
- Nenhuma gota de sangue foi derramada! - exclamou triunfal. - E juro que jamais será!
No pátio, as carruagens esperavam. Aqueles que tinham sido os amigos íntimos da rainha em breve partiriam de Versalhes e seguiriam a toda velocidade até a fronteira - Artois e sua família, Conde, Conti, Esterhazy, Vaudreuil, Lauzun, o abade de Vermond, todos aqueles que tinham sido seus companheiros de vida desregrada no Trianon. Os Polignacs estavam preparados para partir. Seriam os primeiros a ir. Sabiam que se a ralé marchasse para Versalhes, as suas cabeças seriam as primeiras a serem espetadas em lanças.
Lembravam de Launay, o governador da Bastilha que perdera a cabeça. Histórias horríveis chegavam de Paris. Foulon, um ex-ministro da Economia, tinha encontrado uma morte violenta. O povo o odiava porque o culpavam pelos impostos que ele impusera, e dizia-se que ele havia feito a declaração desumana que se o povo tinha fome, devia comer feno. Eles o enforcaram num poste de iluminação e encheram sua boca com feno, antes de cortar sua cabeça e desfilar com ela pelas ruas. O mesmo destino coube ao genro de Foulon, Berthier de Sauvigny.
O povo estava determinado a causar mortes selvagens àqueles que ele odiava.
Portanto, os Polignacs precisavam partir. Antonieta estava preocupada com eles.
- Não terei paz até que eles partam - disse ela. - Não serei feliz até que Gabrielle tenha atravessado a fronteira.
Ela enviou quinhentos louis para sua amiga, junto com um bilhete terno:
"Adeus, minha mais querida amiga. Que palavra triste é o adeus, mas eu preciso dizê-la. Segue uma ajuda para a viagem. Só me restam forças para mandar-lhe meu amor. Não tentarei colocar em palavras a tristeza que sinto por ser separada de ti. Estamos cercadas por pessoas desafortunadas e furiosas. Como todos estão nos desertando, eu fico verdadeiramente feliz ao pensar que todos por quem estou caramente interessada tenham de partir. Contudo, fique certa de que a adversidade não diminuiu minha coragem e minha força. Jamais perderei essas qualidades. Meus problemas estão me ensinando prudência."
Quando Gabrielle partiu, disfarçada como serva, a rainha sentou-se sozinha em seu apartamento, e embora tenha coberto o rosto com as mãos, não chorou. Agora aquela grande tristeza, aquela imensa melancolia, pairava sobre seus ombros, e ela não chorava mais com a mesma facilidade que em seus dias felizes.
Gabrielle estava pensando na rainha enquanto a berlinda que compartilhava com seus parentes seguia rumo à fronteira suíça. Pobre Antonieta, permanecendo naquele lugar de terror. Gabrielle estremeceu. Ela gostava da rainha. Embora, sob a pressão constante de seus parentes, ela sempre tivesse se aproveitado da boa vontade da rainha, Gabrielle teria ficado satisfeita em ser simplesmente amiga de Antonieta.
- O rei e a rainha deviam ter vindo conosco - disse ela subitamente. - Eles não deviam ter ficado lá. Deviam ter escapado enquanto podiam.
Ninguém respondeu a ela. Os Polignacs não tinham tempo para pensar na rainha. Eles estavam se abeirando da fronteira suíça. Lá eles estariam a salvo. Mas até que tivessem passado por aquela fronteira, não conseguiriam pensar em nada além de sua própria segurança.
Na cidade de Sens, enquanto os cavalos estavam sendo mudados, sua carruagem foi cercada por uma turba. Gabrielle recuou para seu assento enquanto cabeças descabeladas enfiavam-se na carruagem. Ela tremeu e esperou pelo desastre.
- Vocês vieram de Paris? - perguntou um dos intrusos. Então nos digam, aqueles perversos Polignacs ainda estão na Corte?
Gabrielle tentou falar, mas ela achou que não podia fazer isso. O abade Balivière, que estava viajando com eles, disse rapidamente:
- Os Polignacs! Aquelas malditas sanguessugas! Acho que eles não estão mais na Corte. Ouvi dizer que a rainha se livrou deles.
- Que bom! - disse o homem. Ele se virou para a turba. Os Polignacs deixaram a Corte! - comemoraram.
- Vamos vasculhar cada coche até acharmos eles! - gritou alguém. - E então... vamos cortar suas cabeças!
Mas foi permitido que a berlinda seguisse em frente; e assim os Polignacs, que tanto tinham feito para aumentar a impopularidade da rainha, passaram a salvo através da fronteira, deixando Antonieta para trás, suportando os resultados de suas amizades desafortunadas.
Uma melancolia pendia sobre Versalhes. Havia silêncio na Galerie dês Glaces e no Salon de La Paix. Não houve bailes nem banquetes durante aquelas semanas terríveis de julho e agosto. Todas as manhãs, o rei, a rainha e seus filhos assistiam à missa; em seguida passavam longas horas a portas fechadas com os ministros, procurando desesperadamente por alguma saída para aquela situação alarmante.
Um a um os cortesãos estavam desertando e, enquanto suas carruagens partiam de Versalhes, notícias novas e mais assustadoras chegavam a cada dia.
Havia revolta nas cidades e vilarejos do interior, onde os camponeses estavam se rebelando contra os seigneurs. Castelos eram pilhados; carruagens atravessando o país eram tidas como suspeitas e detidas por turbas ululantes, que poderiam decidir que os ocupantes eram aristocratas em fuga; às vezes eles eram aprisionados; outras, mortos no ato. Ninguém mais pagava impostos. Nas cidades grandes, casas e lojas foram fechadas; seus ocupantes haviam deixado o país secretamente. Muitos daqueles que tinham servido os ricos estavam desempregados e passando fome nas ruas. As revoltas no campo significavam que não chegavam mais grãos a Paris. Multidões juntavam-se diariamente diante das confeitarias, exigindo pão.
Enquanto isso, os líderes da revolução jamais deixavam de trabalhar no povo, inflamando-o a uma atividade maior. Desmoulins escrevia naqueles jornais que continuavam a aparecer. Homens e mulheres perambulavam pelas ruas, brandindo o Patriote Françals e discutindo a última investida do povo contra a aristocracia.
Paris adotara um novo esporte. Encher as ruas, marchar em massa até a casa de algum infeliz sobre cujo comportamento eles haviam lido nas páginas do Patriote Français ou do Courrier de Paris et de Versailles. Eles capturavam o indivíduo em sua casa, conduziamno até a Place de Greve, vociferando insultos e ameaças, quase rasgando-o em pedaços antes de o pendurarem num poste de luz. Por último, cortavam-lhe a cabeça e desfilavam com ela pelas ruas.
Corriam rumores de que os ingleses planejavam atacar a França, agora que a revolução baixara sua guarda. Defesas foram levantadas nos portos do Canal. E quem, perguntava-se, havia escapado para a Inglaterra? Quem estava transmitindo informações a essa inimiga da França? Os aristocratas. Os emigres. Então, vamos pendurar mais alguns no poste!
Aqueles dias terríveis em Versalhes jamais seriam esquecidos. Restavam em Versalhes poucas pessoas para consolar a rainha. Havia a boa amiga de Antonieta, a princesa de Lamballe, que se recusava a deixá-la. Havia a madame de Tourzel, que se recusava a deixar as crianças.
- Qual será o fim? - perguntava-se frequentemente a rainha. Pela primeira vez em sua vida, Maria Antonieta estava preocupada com o futuro, e pela primeira vez sentia medo genuíno.
Um dia a princesa procurou-a e disse:
- Há uma pessoa aqui querendo ter com Vossa Majestade. Ele acaba de chegar a Versalhes. Ele requisitou uma audiência, e eu o trouxe porque sabia que Vossa Majestade gostaria de vê-lo o quanto antes.
A rainha levantou os olhos e fitou o pórtico da porta no qual ele estava. Ele tinha mudado. Não era mais o jovem esbelto e garboso de quando eles haviam se conhecido.
Antonieta não conseguiu conter o grito de prazer que subiu aos seus lábios enquanto ele atravessava a sala até ela. Ele segurou suas duas mãos e as cobriu com beijos.
- Axel! - disse ela. - Você não devia ter vindo. Não devia ter vindo.
No momento em que levantou a cabeça de Axel, Antonieta compreendeu a profundidade do amor que esse homem nutria por ela. A despeito do destino sinistro que pairava sobre sua cabeça, a despeito de todas as coisas que tinham acontecido e que ela temia ainda vir a acontecer, Maria Antonieta sentiu-se mais feliz do que nunca.
Ela tentou controlar suas emoções.
- Esta não é a época certa para chegar a Versalhes!-gritou. -Não sabe o que está acontecendo aqui? Todos estão nos deixando.
Eu sei - disse Axel. - E foi precisamente por causa disso que vim.
Havia uma grande paz no Trianon. Ali era possível acreditar que a crueldade e a violência estavam muito distantes; ali havia sido construída a aldeia ideal, um lugar onde ela podia usar seus vestidos de musselina e seus chapéus simples; para ali ela podia fugir durante longas horas - fugir para o esquecimento.
Com Antonieta ficavam apenas suas amigas íntimas, aquelas em quem ela podia confiar. Agora, ela pensava frequentemente, eu sei em quem posso confiar, porque já fui abandonada por todos aqueles em quem eu não podia.
Fersen ia ao Trianon. Ele visitava Antonieta todos os dias. Eles caminhavam juntos nos jardins franceses e ingleses, ao redor do lago e ao longo do córrego; sentavam-se no boudoir como duas pessoas felizes. Eles se isolavam do mundo. Era a única forma de escapar.
E cada momento de cada dia era precioso porque podia ser o seu último. Por que quem poderia garantir que não seria?
E ali, naqueles dias terríveis de agosto, a rainha parecia viver duas vidas: uma de horror e melancolia em Versalhes, uma de amor e paixão no Trianon.
Ela chorava nos braços de seu amante e implorava que ele a fizesse feliz, que ele a isolasse do mundo hediondo.
- É preciso, é preciso - dizia. - Afinal, como eu haveria de suportar a minha vida se não fosse por este amor?
Às vezes ela pensava no quanto a vida era irónica. Ela amava o homem que lhe parecia ser tudo que um homem devia ser. Ele era forte e determinado. Possuía uma dignidade discreta, que provinha de uma grande coragem.
E neste belo palácio, com sua aldeia modelo a cercá-lo, com seu ar de irrealidade completa, Antonieta conseguia isolar-se, e durante umas poucas horas esquecer de tudo, menos do amor. E assim ela encontrava a coragem para viver através daqueles dias ansiosos.
O rei sabia o que estava acontecendo.
Eles não falavam sobre o assunto, mas ele sabia. Luís fitava-a com tristeza, porque ele entendia. Ele fracassara como amante, e sabia disso. Devido à sua natureza, além daquele problema que o impedira de fazer amor durante os primeiros anos do casamento, ele sempre fora frio. Ele amava a rainha da mesma forma como amava seus filhos; era o mais gentil e tolerante dos homens.
Sua falha talvez fosse ser gentil demais, tolerante demais. Sempre era capaz de ver todos os lados de todos os problemas; portanto raramente conseguia decidir como agir eficazmente, e sua hesitação causava-lhe grandes transtornos. Ele carecia do ardor de homens como Mirabeau, Desmoulins, Marat, Robespierre.
A rainha tinha um amante, e este nobre sueco, que era um herói de corpo e alma, estava dando à rainha a coragem que ela precisava tão desesperadamente durante esses dias de terror.
Assim, o rei acalentava sua tristeza em silêncio, jamais exercendo qualquer pressão sobre Antonieta.
Quando via os panfletos cruéis dirigidos contra a rainha, quando ouvia as ameaças e os libelos, quando compreendia como ela fora escolhida para ser bode expiatório, ele dizia a si mesmo:
- Por que eu haveria de reprovar Antonieta e tornar sua vida ainda mais insuportável?
Os problemas que Luís precisou enfrentar durante aquelas semanas foram tão numerosos que ele simplesmente permitiu ao conde sueco confortar Antonieta.
No primeiro de outubro um novo regimento chegou a Versalhes e, de acordo com a antiga tradição, um banquete foi oferecido pelo regimento já posicionado no castelo.
Concordou-se que o banquete seria realizado no teatro do palácio. Esta era uma grande ocasião, como aquelas dos velhos tempos. O rei, a rainha e seus filhos aceitaram comparecer, e quando chegaram, todos os soldados no recinto se levantaram e os aplaudiram até ficaram roucos. A banda tocou algumas das canções antigas que faziam promessas fervorosas de fidelidade à coroa. Os aplausos foram extasiados, porque os soldados da Guarda queriam que seus soberanos soubessem o quanto eram leais.
Todos tinham chegado usando o cocar branco para expressar sua fidelidade à realeza.
Durante aquele dia foi possível acreditar que não tinham havido distúrbios, a queda da Bastilha, ou uma revolução.
Naquela noite e no dia seguinte a atmosfera de Versalhes parecia mais suave.
Era como se os risos dos convidados e os brados dos homens leais ainda ecoassem por suas paredes.
Nas ruas de Paris, só se falava do banquete. Multidões reuniam-se na Place de Greve e diante do Falais de Justice. Nos jardins do Falais Royal, os agitadores trabalhavam.
- Cidadãos, enquanto vocês passam fome, há fartura em Versalhes. Aqueles porcos aristocratas sentam-se à mesa que envergam com o peso de tanta comida. Vocês esperam em vão diante das padarias para receber pão. Será que vocês devem dar um passo para o lado, tocar seus chapéus e gritar: "Estou feliz com isto"? Não, cidadãos. Vocês não são feitos de gelo. Vocês são feitos de carne orgulhosa, e bom sangue vermelho corre em suas veias. Vocês já estão fartos de tanta injustiça. Vamos, cidadãos. Armem-se e vão a... Versalhes!
E assim eles marcharam através da cidade, brandindo facas e garrafas quebradas. Passaram através das ruas mais pobres gritando aos homens e mulheres: "Vamos! Juntem-se a nós. Vamos a Versalhes. Vamos pendurar madame Déficit num poste! Há uma cabeça que queremos levar de volta para Paris. O cabelo ficará um metro acima da cabeça, cidadãos, e o pescoço estará adornado com um colar de diamantes que pagará um ano de pão para todos vocês. Vamos pendurar a prostituta austríaca num poste! Vamos enforcar a puta estrangeira!"
E assim marcharam para os arrabaldes de Paris, invadindo e saqueando as lojas no caminho. À frente marchavam as "mulheres" -figuras grandes e corpulentas, todas usando lenços de cabelo para melhor disfarçar suas feições masculinas.
La Fayette, oficial comandante da Guarda Nacional, temia o povo quando o via com o humor que apresentava agora.
Ele, o herói da guerra americana, tentou negociar com os cidadãos.
- Esperem, bom povo! - gritou. - Vocês exigem justiça, e têm o direito de exigir justiça, mas esta não é a forma certa de...
A turba riu dele. Eles tinham saído de suas casas para saquear e ver sangue, e não seriam amolecidos por ninguém - mesmo que fosse herói da guerra americana e chefe da Assembleia Nacional
- que tentasse detê-los.
- À bas La Fayette! - gritaram alguns.
Mas havia muitos que não estavam preparados para ver La Fayette enforcado num poste. Eles gritaram:
- À Versailles!
- Meus amigos... - começou La Fayette. Foi interrompido por um grito:
- Que todos os bons patriotas marchem hoje para Versalhes! E para lá marchou a turba.
E atrás deles, envergonhado e humilhado, cavalgou La Fayette com vinte mil homens às suas costas.
A tarde corria agradável. As folhas estavam ficando avermelhadas e douradas.
- Como eu consigo ficar neste castelo num dia como este? disse Antonieta para a princesa. - Tenho vontade de sair. Vou caminhar até o Trianon.
- Quando vamos partir? - indagou a princesa.
- Quero ir sozinha. Vou apenas requisitar um carregador para transportar as coisas que irei precisar. Marie, eu quero ficar sozinha.
A princesa fez que sim com a cabeça. O Trianon era cheio de lembranças - lembranças de alegrias recentes que faziam sombra até mesmo aos dias de esplendor extravagante do passado.
- Talvez eu queira distrair-me desenhando, ou lendo. É um dia agradável demais para ficar entre quatro paredes.
Como o Trianon estava maravilhoso naquele dia. Antonieta lembrou do quanto tinha gostado de ver o pequeno delfim - o delfim que ela perdera - brincar ali nas campinas de sua aldeia perfeita.
Ela pensou:
Talvez Axel venha visitar-me. Marie dirá a ele onde estou. Poderemos caminhar juntos até o Templo do Cupido e convencer um ao outro de que somos as únicas pessoas no mundo.
Ela se sentou no terraço de frente para a sua casa, segurando distraída o caderno de desenhos enquanto seu olhar se perdia além da campina alinhada por árvores. O vento outonal soprava a estola que protegia seu pescoço e os cabelos que escapavam por baixo de seu chapéu branco.
E enquanto estava sentada ali, viu um pajem aparecer correndo. O rapaz estava nitidamente agitado.
Ele gritou resfolegante:
- Vossa Majestade! O monsieur conde de Saint-Priest envioulhe esta carta. Ele implora que Vossa Majestade a leia imediatamente.
Antonieta abriu a carta e leu:
"Retorne sem demora. A turba marcha para Versalhes."
- Sua carruagem a espera, minha rainha.
- Eu vou caminhar através do bosque. O jovem pajem balançou a cabeça.
- Recebi a ordem de implorar a Vossa Majestade que venha comigo até a carruagem. É provável que a turba já tenha alcançado o bosque. Vossa Majestade está em grave perigo.
Ela sorriu.
- Vamos. Iremos até a carruagem.
Maria Antonieta virou-se por um breve instante para admirar a linda aldeia que ela tinha criado. Em seguida acompanhou o pajem.
Em Versalhes, havia confusão.
Os ministros do rei o cercavam, falando sem parar, expondo planos que eram rapidamente discutidos, descartados e discutidos novamente.
- Vossa Majestade deve se posicionar à frente de seus dragões e marchar para enfrentar os rebeldes - disse um deles.
O rei odiou a ideia.
- Mas esses são meus súditos. Como posso levantar armas contra eles?
Outro ministro gritou:
- Só há uma coisa a fazer. Leve a rainha e as crianças reais para, digamos, Rambouillet. De um local seguro será possível negociar com os líderes da revolução. É inútil debater com a turba.
Cavalos e carruagens foram trazidas até o pátio, mas o rei prevaricou. Ele não conseguia se decidir, e esses minutos de hesitação permitiu que os agitadores se aproximassem de Versalhes.
E então o som de cascos a galopes soou no pátio.
Um homem apeou de seu cavalo, jogou as rédeas para um cavalariço absolutamente pasmo e adentrou o palácio a passos largos.
Ao vê-lo, Antonieta sentiu um alívio incomensurável.
Ele gritou:
- A turba marcha para Versalhes.
- Sabemos disso - foi-lhe dito.
Fersen não conseguiu conter o impulso de olhar para Antonieta, e seus temores por ela ficaram aparentes para todos. Mas ele estava determinado a permanecer perto dela. Ele iria defendê-la da turba sedenta de sangue. Com a vida, se preciso.
Agora a turba estava no Cour Royal, e os gritos violentos ecoaram pelo corredor do castelo.
Fersen insitira que a rainha deveria trancar-se com seus filhos nos apartamentos. Para a surpresa de todos, o nobre sueco assumiu o comando com uma firmeza que faltava aos ministros do rei.
Luís insistiu que ele próprio deveria falar com seu povo. O rei estava enfrentando a situação com uma calma extraordinária. Parecia ter fé completa na bondade de sua gente. Tinha certeza de que quando explicasse certos assuntos, eles iriam entendê-lo, e então tudo ficaria bem.
A turba recebeu a notícia de que o rei estava disposto a receber uma delegação das mulheres de Paris e ouvir suas queixas. Eram tão impressionantes certas qualidades do rei da França, como serenidade benevolente e crença firme de que seus súditos eram seus filhos queridos, que quase sempre os plebeus acreditavam que a estima alegada por Luís era genuína. E aqueles que tinham vindo armados com facas e garrafas quebradas concordaram em enviar a delegação. Para falar com o rei, escolheram Louise Chabry, uma vendedora de flores. Ela era jovem, inocente e bonita. Louise estava nervosa, mas incitada pela turba, não ousava fazer outra coisa senão obedecer. Assim, acompanhada por algumas das mulheres mais apresentáveis - aquelas que eram realmente mulheres e não homens vestidos com roupas femininas - foi levada até a câmara de audiências do rei.
Luís, vendo o nervosismo dessa mocinha bonita, pediu-lhe gentilmente que não sentisse medo dele.
Louise, pasma com o esplendor do ambiente e pelos modos gentis e graciosos do rei, caiu de joelhos e pediu perdão por perturbar a paz do rei.
Ela sentiu dificuldade em falar, e uma das outras pessoas, menos suscetíveis-mas apenas ligeiramente - disse ao rei que o povo de Paris passava fome, e que era por este motivo que eles tinham marchado até Versalhes.
Luís declarou que o sofrimento de seu povo era seu sofrimento, e que ele ia passar ordens de que era preciso encontrar pão e enviálo sem demora até Paris.
As delegadas, incertas sobre o que fazer agora, porque tinham esperado arrogância e encontrado civilidade encantadora, declararam-se satisfeitas e honradas. Quanto à pequena Louise, ela desmaiou aos pés do rei, tão impressionada ficou com a presença da realeza.
- Traga meus sais de cheiro! - gritou Luís a um de seus pajens. - E traga vinho. Esta moça precisa ser despertada.
Assim, as delegadas assistiram, pasmas, o rei em pessoa ajoelharse diante da pequena Louise e segurar os sais de cheiro diante de seu nariz. Então ele próprio levou a taça de vinho até os lábios da jovem.
- Vamos, minha querida, toda esta excitação foi demais para você.
E Louise, abrindo os olhos, fitou o rosto benigno de seu soberano e chorou por todas as coisas cruéis que ela falara a respeito deste homem.
As delegadas que presenciavam a cena disseram;
- Mas como pudemos odiar um homem tão bom? Ele é realmente o pai de todos nós.
A delegação retornou até a turba. O rei prometera fazer alguma coisa por Paris. O rei era gentil.
A turba murmurou, mas a noite começava a cair e chovia, de modo que decidiram encontrar abrigo em algumas das casas e lojas nas proximidades, na Place d'Armes, no quartel e no salão dos Menus Plaisirs.
Eles murmuravam uns para os outros:
- O rei enfeitiçou nossas delegadas. E agora?
Os líderes tinham selecionado deliberadamente suas delegadas por sua inocência. Não tinham querido que a delegação consistisse de homens vestidos como mulheres e sedentos por sangue, estrangeiros contratados para matar e saquear, ou gente do sul que marchara para o norte determinada a levar a revolução até Paris. A delegação não representara a turba.
Agora eles lembraram uns aos outros que tinham decidido levar o rei até Paris. E isto eles iriam fazer. Estavam determinados a ter a cabeça da rainha fincada numa vara Por que deveriam ser impedidos de fazer isso por causa da boa impressão que o rei causara numa delegação susceptível aos encantos da realeza?
Enquanto isso, no castelo, o debate prosseguia.
Fersen disse à a rainha:
- Você precisa partir imediatamente. Tenho cavalos prontos, Planejei uma rota que poderemos tomar. Você... as crianças... e algumas damas de companhia. Irei levá-los através da fronteira até um lugar seguro.
A rainha fitou Fersen e seus olhos arderam com paixão. Como não comparar este homem com o indeciso Luís? Antonieta jamais amara Fersen tanto quanto naquele momento; jamais quisera tanto fazer alguma coisa como queria agora cavalgar com ele para longe de Versalhes, para longe da França, para algum lugar pacífico onde jamais se sentiria ameaçada pela turba novamente.
Mas ela meneou a cabeça negativamente.
- Sou a rainha. E onde o rei está, a rainha deve estar com ele. Fitando profundamente os olhos um do outros, os amantes
amaram-se pelo que eles eram. Sabiam que naquela noite a morte pairava no ar; e sentiram-se felizes por ter dado um ao outro tanta alegria.
La Fayette chegou ao castelo com seus homens. O rei recebeuo com alívio, porque La Fayette era um homem que dedicava alguma lealdade ao rei, mas ainda assim era respeitado pela plebe.
La Fayette posicionou seus homens em torno do palácio e foi procurar uma cama no Hotel de Noailles.
Caía uma chuva fina e fazia muito frio. A fumaça de uma fogueira que tinha sido feita na Place d'Armes sufocou La Fayette e ele sentiu o cheiro da carne assada de um cavalo que a turba tinha matado e agora estava comendo. Ouvindo o canto dos bêbados, deduziu que aquelas hordas aterrorizantes tinham saqueado todas as lojas de vinho na estrada até Versalhes.
A turba estava inquieta. Todos sentiam frio e fome, e estavam cansados de esperar. Eram cinco da manhã quando o pandemônio irrompeu.
- O que estamos fazendo aqui? - inquiriram. -Viemos matar a austríaca e levar o rei até Paris.
- O que estamos esperando? - gritou um dos homens, levantando sua saia sobre os joelhos, expondo momentaneamente as botas enormes. - Vamos... até o castelo! Até a austríaca! Devemos permitir que aquela traidora, Maria Antonieta, continue viva?
Em massa, marcharam através da Place d'Armes, a multidão crescendo em número à medida que avançava. Chegaram ao portão do castelo, que estava protegido pela Guarda Nacional.
- Deixem-nos passar! - gritaram. - Deixem-nos passar! Um dos guardas protestou, e um machado foi erguido por um
braço musculoso.
Agora eles tinham seu mascote, seu emblema; agora estavam felizes. Tinham a cabeça de um dos guardas, que carregavam diante de si espetada numa lança. Tinham visto sangue correr, e ansiavam por ver mais. Mas desta vez sangue azul, sangue da mulher a quem tinham odiado por anos porque ela era estrangeira, porque ela era rica e bonita, e porque invejavam sua fortuna e beleza.
A turba invadiu o palácio. Escalou o escalier de marvbre, matando dois guardas suíços que barraram seu caminho, e adentrou a antesala da rainha.
Os plebeus gritavam enquanto avançavam:
- Dêem-nos Antonieta! Queremos a cabeça daquela traidora. Dêem-nos a puta austríaca, que vamos rasgá-la em pedaços. Queremos levar o rei de volta a Paris. E queremos a cabeça de Maria Antonieta!
Agora tinham mais cabeças para adornar suas lanças. Eles olhavam para elas com satisfação. Mas havia uma cabeça que eles desejavam mais do que todas, e naquela manhã de seis de outubro, a canaille - as prostitutas, os agitadores assalariados, os caçadores de poder - estavam determinados a tê-la.
Madame de Tourzel e a princesa de Lamballe estavam em pé ao lado da cama da rainha.
- Acorde, rainha, acorde! - gritaram. - A turba está diante da sua porta.
Antonieta acordou de supetão. Fazia menos de uma hora que adormecera profundamente. Olhou à sua volta como se ainda estivesse num pesadelo.
- Depressa... depressa! Não temos um momento a perder. Posso ouvi-los bater na porta.
Antonieta estava fora da cama, um xale sobre os ombros, os sapatos seguros numa mão; e com suas duas amigas ao seu lado, correu através do Oeuil-de-Boeuf e da câmara de Luís XIV até os aposentos de seu marido.
Para seu horror, descobriu que a porta dessa sala estava trancada. Bateu na porta, desesperada. A rainha sofreu uma grande agonia naqueles momentos. Agora podia ouvir os gritos alcoolizados vindo de perto dali; ouviu-os gritar seu nome.
- Morte! Morte a Antonieta! Morte à austríaca! Morte.... Morte.... Queremos sua cabeça fincada numa vara... para mostrar a Paris. Morte a Antonieta!
- Oh, Deus! - ela gritou. - Permita-me escapar deles. Não me importo de morrer, mas não desta maneira... não nas mãos sujas dessa gente. Oh, Deus, me ajude.
- Abra! Abra! - gritou Antonieta. - Pelo amor de Deus! Mas a ajuda estava demorando a chegar. O rei e seus atendentes
não tinham ouvido os barulhos na ala da rainha no palácio. Como todas as outras portas, aquela tinha sido trancada ao anoitecer, e a turba estava cada vez mais próxima.
Naquela noite, Antonieta sobreviveu graças à ganância da turba, que, mesmo ansiosa pela cabeça da rainha, não conseguiu resistir a saquear os ricos aposentos pelos quais passavam.
E finalmente um servo de passos lerdos escutou as batidas na madeira e os gritos de Antonieta, e abriu a porta cuidadosamente.
Luís, acreditando ter apaziguado a turba depois da conversa com a delegação de mulheres, estivera dormindo com o sono pesado de sempre e não ouvira nada até este momento, mas agora correu até a esposa.
A porta foi novamente fechada e aferrolhada. Luís abraçou Antonieta, e ao pátio adentraram La Fayette e seus soldados.
La Fayette - alcunhado General Morfeu por jamais estar no local onde sua presença era necessária - viu o desastre que tinha acontecido. Ao encontrar seus guardas assassinados, compreendeu que deveria ter previsto o que estava por acontecer. Enquanto forçava seu caminho através da turba ensandecida e via as ricas tapeçarias e objetos de ouro e prata que eles carregavam, deduziu que não tinha sido ele e seus soldados que haviam salvo a rainha - e talvez o rei.
Com ele vieram Orléans e Provence, e para estes dois a turba respeitosamente abriu passagem. Eles foram conduzidos até os aposentos do rei, onde a rainha estava sentada empertigada, ladeada por seus filhos.
Agora estava claro para todos - até para o rei - que não havia como dialogar com a turba.
La Fayette e Orléans - este, suspeito por muitos de possuir mais relação com os acontecimentos da noite do que desejava aparentar - estavam certos de que o rei precisava obedecer a turba, que naquele mesmo instante podia ser ouvida gritando fora do palácio:
- Lê Rói à Paris!
- Vou falar com eles - disse o rei. - Tentarei explicar-me da melhor forma que puder.
- Eles vão matar Vossa Majestade - alertou La Fayette.
- Eles não ousarão matar seu rei - disse Luís.
O rei caminhou até o balcão. Ele estava de barba feita, e aos olhos da multidão, isso pareceu um gesto de humildade. Eles gritaram:
- Vive lê Rói! Viva Luís, nosso paizinho!
Luís sorriu e então levantou uma mão. Contudo, eles eram os mestres. Eles não iam ouvir Luís. Ele não podia pensar que podia falar com eles. Eles iriam levá-lo a Paris, e ele precisava obedecer, mas por enquanto ficavam satisfeitos em gritar:
- Vive lê Rói!
Então uma voz na multidão gritou:
- Deixe a rainha aparecer!
Fersen caminhou até a rainha e aconselhou:
- Isto não seria sensato.
Antonieta olhou para ele, lembrando dos momentos ternos no Trianon, e pensou:
Talvez esta seja a última vez que o vejo. Eles decerto irão me matar quando eu aparecer. Eles têm armas, e estiveram clamando por minha morte.
Os gritos continuaram:
- Queremos Antonieta! Deixe a rainha se mostrar! La Fayette disse:
- Madame, isso é necessário, para aplacar a ira do povo. Antonieta se levantou. Ela parecia muito pálida, mas adorável
em suas roupas majestosas. Jamais ela pareceu tanto uma rainha como naquele momento.
- Não! - protestou Fersen.
Ela se virou para ele e sorriu.
Sim - disse ela. - Como monsieur de La Fayette diz, é necessário.
Antonieta caminhou até o balcão. Fersen a forçara a segurar as mãos das crianças e sair com elas; ele acreditava que fazendo isso, a rainha teria alguma esperança de estar em segurança. As pessoas lá embaixo tinham ovacionado o rei; elas certamente não poriam em risco a vida do delfim.
De queixo erguido, cheia de dignidade e coragem, Maria Antonieta caminhou até o balcão. A multidão não se manifestou, e então alguém berrou:
- Mande as crianças para dentro!
- Voltem - disse Antonieta baixinho para os filhos; e eles, aterrorizados demais para fazer qualquer outra coisa, obedeceram.
Agora ela estava parada em pé sozinha, esperando. Ela olhou para baixo, para fitar aqueles rostos feios por baixo das cabeleiras desgrenhadas e pensou:
Este é o fim da minha vida. Vim da Áustria para isto.
E entrelaçando os dedos das mãos diante dos seios, aguardou.
A multidão murmurou, pasma. Muitos jamais tinham-na visto antes. Com seu vestido adejando ao vento, Antonieta estava infinitamente graciosa; seus cabelos lisos caíam sobre os ombros, porque não tivera tempo para penteá-los. As lindas mãos brancas, cruzadas diante dos seios como se os protegessem, concedia à rainha uma aparência indefesa que se misturava estranhamente com a sua dignidade calma, a sua completa ausência de demonstrações de medo.
O burburinho durou vários segundos. Então La Fayette, odiando-se por sua negligência na noite anterior, e sobrepujado por sua admiração por aquela mulher corajosa, caminhou até o balcão. Com um gesto cortês, curvou-se diante da rainha, segurou sua mão e a beijou.
Um grito de assombro se elevou da turba. E então, a coisa mais estranha aconteceu. Alguém no meio da multidão gritou:
- Vive La Reine!
E a esse grito se juntaram em coro aqueles que, há poucos momentos atrás, tinham jurado fincar a cabeça de Maria Antonieta numa vara.
A vitória foi breve; a turba estava determinada a levar o rei a Paris. Luís apareceu no balcão e falou ao povo:
- Meus filhos, vocês querem que eu os siga a Paris, e consentirei em fazer isso, mas com o entendimento de que não serei separado de minha esposa e filhos; e peço pela segurança de meus guarda-costas.
- Vive lê Rói!-gritaram os plebeus. - Vive lesgardesdu corps! E assim começaram as horas mais humilhantes da vida de Maria Antonieta.
Antonieta embarcou na primeira carruagem com o rei e seus filhos, mais madame Elisabeth, madame de Tourzel e Provence. Atrás deles foram as carruagens contendo outros membros da corte. À frente, atrás e ao redor das carruagens, aglutinava-se a turba, olhando para o interior dos veículos, gritando insultos para a rainha, cuspindo na rainha - sempre a rainha.
Diante da procissão marchava um bando de prostitutas - lideradas por Théroigne de Méricourt - fazendo cabriolas, dançando e entoando canções obscenas sobre a rainha.
Ao lado da carruagem real eram carregadas varas; fincadas nelas, as cabeças ensanguentadas dos guardas chacinados.
- Estamos com o padeiro, a mulher do padeiro, e o filho do padeiro! - gritavam. - Vamos levá-los para Paris. Cidadãos de Paris, venham ver o padeiro, a mulher do padeiro e o filho do padeiro.
Madame Royale e o delfim mantinham-se abraçados fortemente à sua mãe, que não os largava por um segundo sequer. Antonieta mal se mexeu durante o longo percurso, sentada ereta, apenas ocasionalmente levantando uma mão para puxar a cabeça do delfim ou de madame Royale contra seu busto, para que eles não vissem coisas aterrorizantes demais para seus olhos jovens.
- Papa, quem é essa gente? - perguntou o delfim. - O que eles vão fazer conosco?
- São homens maus que atiçaram o povo contra nós - disse o rei. - Mas não devemos nutrir rancor contra o povo. Eles são como crianças, e não podemos culpá-los.
- Eles não vão matar você, vão,papá? - inquiriu o delfim.
- Não, meu filho, eles não vão me matar.
- E nem a maman - disse o delfim, e sorriu para ela.
O delfim manteve-se olhando para Antonieta, porque enquanto o fazia, não sentia medo.
Era sete da noite quando a família real chegou ao Hotel de Ville. Bailly saudou o rei.
- É um dia bom, este que trouxe Vossa Majestade a Paris disse Bailly.
- Eu vim com alegria e confiança para o povo de Paris.
- O que disse o rei? - gritou a multidão.
- Que ele veio com alegria a Paris-gritou Bailly em resposta. Antonieta disse em voz alta:
- O senhor esqueceu que o rei disse "com confiança".
- Para o Tuileries! - gritou a multidão. As carruagens seguiram em frente.
Como o velho palácio parecia desolado depois das glórias de Versalhes. Havia algumas camas e uns poucos móveis. E uma frieza úmida permeava a atmosfera.
- Este é um lugar feio - queixou-se o delfim. - Não gosto dele. Vamos para casa agora.
- Ora, meu filho, o seu grande ancestral, Luís XIV, morou aqui
- disse a rainha. - Ele gostava muito deste lugar. Portanto, você também irá gostar.
- Fale-me sobre ele - pediu o delfim.
- Em alguma outra ocasião - disse a rainha.
- Diga-me por que as pessoas gritam nas ruas.
- Porque elas adoram gritar.
- Elas nos amam - disse o delfim. - Eles amampapá porque ele é bom, e amam você porque você é boa, e minha irmã porque ela é boa, e a mim porque eu sou bom. Eles não vão nos matar, vão?
- Estamos seguros aqui - disse a mãe gentilmente. - Seguros no velho palácio de Luís XIV
Mas naquela noite o delfim acordou em sua cama improvisada, gritando que viu homens em seu quarto, homens com cabeças espetadas em lanças, e que eles estavam marchando à sua volta.
A mãe levou o menino para sua cama, e o abraçou forte. Madame Royale dormia inquieta no outro lado de Antonieta.
Apenas o rei dormia profundamente, o sono da exaustão.
E deitada naquele velho palácio, não mais esplêndido, úmido, carregado com augúrios, Antonieta sentiu-se uma prisioneira-uma prisioneira a quem o povo condenara à morte.
Durante aquele inverno terrível a família real viveu, isolada do mundo, no velho Palácio de Tuileries. Como este lugar era diferente do glorioso Versalhes, do charmoso Trianon! O apartamento de Antonieta ficava no andar térreo. Os apartamentos do rei e das crianças no primeiro andar, contando com suas próprias escadarias particulares - escuras e fedendo a umidade, como todas as passagens do palácio, que mesmo durante o dia eram iluminadas por velhas lamparinas a óleo, que faziam fumaça e espalhavam um odor nauseante.
Mas aquela calma quase sobrenatural do rei, aliada com a coragem majestosa da rainha e a inocência de seus filhos, gerava uma atmosfera de realeza mesmo nesta prisão escura. Antonieta conseguia ignorar a presença dos seus guardas. Para Luís, eles eram, como todos seus súditos, seus filhos queridos, brincando de um jogo que ele não aprovava mas que aceitava como uma travessura infantil. Quanto às crianças, madame Royale era dotada da dignidade de sua mãe, e o delfim logo era um grande amigo dos soldados.
Cada dia era idêntico ao anterior. Antonieta passava a maior parte da manhã com os filhos. Gostava de estar presente enquanto eles aprendiam suas lições. Repetidamente fazia-se necessário chamar a atenção do delfim para aquilo que o abade Davout estava tentando ensinar-lhe. Seus pensamentos vagavam e frequentemente se concentravam nos soldados que ele conseguia ver o tempo inteiro pelas janelas.
Todos os dias a família ia à missa. E eles almoçavam juntos, como qualquer família burguesa, enquanto as crianças matraqueavam e seus pais sorriam um para o outro, achando graça de suas artes. Antonieta nunca se sentiu tão íntima de sua família quanto nesses dias em Tuileries.
Depois do almoço, o rei afundava em sua cadeira e cochilava, ou ia para seu apartamento fazer isso. Antonieta retirava-se para seu apartamento, onde conversava com seus amigos. Fersen era um visitante frequente, mas ela não queria ficar com ele a sós. Seu idílio pertencia ao Trianon, e ambos sentiam no outro o desejo de retornar para lá. O Palácio de Tuileries não lhes oferecia oportunidades.
Fersen estava sempre preocupado com a segurança de Antonieta. Ele, ainda mais que Antonieta, considerava difícil esquecer aquela viagem terrível de Versalhes para Paris no dia seis de outubro, e sua mente ativa estava concentrada em apenas uma coisa: fuga.
Antonieta sabia disso; e esse era seu conforto.
A família se reunia para jantar, e a eles juntavam-se Provence e Josèphe, Adelaide e Victoire (estranhamente calada ultimamente). Eles conversavam, pasmos, sobre as coisas que estavam acontecendo em seu mundo.
A rainha frequentemente sugeria um jogo de carta ou bilharqualquer coisa para afugentar aqueles silêncios temíveis, aqueles rompantes súbitos de conversas que quase sempre terminavam em lágrimas histéricas de Adelaide e Victoire.
E então, iam cedo para a cama-o rei para seu apartamento, a rainha para o dela. Eles não compartilhavam a mesma cama desde que Fersen tornara-se amante de Antonieta,
Luís dormia profundamente, porque nenhum desastre podia furtar-lhe o sono ou o apetite. Mas Antonieta deitava-se insone em sua cama, ouvindo os passos dos guardas, temendo dormir e sonhar com aqueles gritos horríveis, temendo ver em pesadelo aqueles rostos sarcásticos perto do seu; temendo dormir e descobrir que eles tinham chegado no meio da noite, como haviam feito em Versalhes. Sempre esperando, ouvindo, pensando em quais novidades aquela noite e o dia seguinte iriam trazer.
Os parisienses estavam envergonhados da marcha de Versalhes, porque não tardaram a perceber que aquelas hordas ululantes não representavam o povo de Paris. As peixeiras e as feirantes chegaram mesmo a levar ao Palácio de Tuileries uma petição na qual expressavam firmemente que não tinham feito parte daquele ultraje, e que consideravam que a justiça devia ser feita aos responsáveis por ela.
Tinha se tornado claro para muitos daqueles que sinceramente desejavam reformas que a revolução, que eles esperavam realizar por meios pacíficos, estava nas mãos da ralé. Algumas dessas pessoas, incluindo Lally-Tollendal, deixaram o país porque não queriam estar envolvidos com massacres vergonhosos.
La Fayette, suspeitando que a marcha a Versalhes fora organizada por Orléans, declarou ser defensor ardoroso da liberdade e acreditar que caso Orléans lograsse sucesso, a França jamais conheceria a liberdade. Não havia sentido em substituir um monarca absoluto por outro.
Ele procurou Orléans e, ao modo rude de um soldado, contoulhe suas desconfianças.
- Suspeito que você está à frente de um grupo formidável cujo plano é depor o rei, talvez algo pior que isto, e proclamar você, monseigneur Orléans, regente. Temo que sua intenção é ver o mais breve possível no cadafalso a cabeça de uma pessoa com seu sobrenome.
Orléans professou surpresa absoluta.
- Não entendo o que você está dizendo.
- Você agora fará tudo que estiver ao seu alcance para me ver assassinado - retorquiu La Fayette. - Se tentar isto, esteja certo que irá me seguir uma hora depois.
- Eu lhe asseguro que você está me julgando mal. Juro por minha honra - disse o duque.
- Devo aceitar sua palavra - expressou friamente La Fayette.
- Mas tenho a prova mais cabal de sua conduta. Se você não deixar a França dentro de vinte e quatro horas, irei apresentá-lo a um tribunal. O rei desceu vários passos do trono, mas eu me posicionei no último. Ele não descerá mais, e para alcançá-lo, e ao trono, você terá de passar por cima do meu cadáver. Sei que tem motivos para odiar a rainha. Eu também tenho, mas em momentos como este precisamos esquecer todos os rancores.
- Que prova você tem sobre minha cumplicidade nos eventos de outubro? - inquiriu o duque.
- Provas amplas. Sim, e posso conseguir mais. Eu sei, monseigneur, que você teve parte na organização da turba que marchou para Versalhes, na maioria homens vestidos como mulheres, não bons parisienses, mas agitadores contratados, estrangeiros e homens rudes do sul. Você pagou agitadores. Também foi sugerido que estava entre eles para guiá-los até o apartamento da rainha.
- Isto é um absurdo.
- Então compareça ao tribunal e prove isso.
O duque deu com os ombros. Os eventos daqueles dias de outubro haviam falhado, e ele precisava reconhecer isso. O rei ainda era o rei; a rainha ainda estava viva; eles eram prisioneiros no Palácio de Tuileries, era verdade, mas Tuileries agora era a Corte; e muitos bons cidadãos haviam se revoltado contra os métodos da turba.
- Vivemos dias perigosos - disse Orléans. - Qualquer homem pode ser acusado de qualquer coisa. Deixarei o país durante algum tempo, se isso se faz necessário.
Em seguida La Fayette foi visitar o rei, que ficou muito perturbado ao ouvir que seu primo era suspeito de perfídia.
- Um membro de minha própria família-murmurou.-Isso é crível?
La Fayette garantiu:
- Pode ser provado que certos gritos foram ouvidos entre a turba de outubro. Não apenas "Viva o bom duque de Orléans", mas "Viva nosso rei Orléans". Vossa Majestade não estará a salvo enquanto Orléans estiver vivo.
- Ele é meu primo - disse Luís, arrasado.
- Ele quer ver vossa cabeça fincada numa vara, Majestade. Luís balançou a cabeça.
- Deixe que ele parta para a Inglaterra. Ele gosta dos ingleses, e vice-versa. Assim, ele estará fora do nosso caminho. E que seja dito que ele partiu em uma missão para mim. Não quero que seja sabido que suspeito que um membro de nossa família, o meu próprio primo, está por trás desses eventos terríveis.
Assim, com o exílio de Orléans - e com ele o escritor Choderlos de Laclos, cujos textos haviam alvoroçado o povo - fez-se paz na cidade. Mas uma paz tensa, gestante de perigos.
Restava um líder formidável do grupo de Orléans: Mirabeau.
Os eventos de outubro haviam surtido efeitos no honoré Gabriel Riquetti, conde de Mirabeau. Era aristocrata por nascimento, e porque - em vista de seu passado - tinha sido rejeitado pela nobreza, Mirabeau oferecera seus serviços ao Terceiro Estado. Sua grande energia - que como ele gostava de lembrar às pessoas, equivalia à de dez homens - e seus poderes como orador, escritor e diplomata, tinham estado a serviço de Orléans. Agora Orléans fora exilado, e Mirabeau acreditava que via uma forma de fundir o rei e o povo; estava determinado a usar todas suas vastas energias com este propósito. Acreditando que ele sozinho poderia salvar a França, escreveu ao rei oferecendo seus serviços:
"Eu serei o que sempre fui, o defensor do poder monárquico regulamentado pelas leis, e o paladino da liberdade garantida pela autoridade monárquica. Meu coração seguirá a estrada que a razão me indicou."
O rei não respondeu as cartas de Mirabeau. Antonieta tinhaas visto e lembrou que Mirabeau fora um daqueles homens que tinham ajudado a fomentar a revolução e causar tanta humilhação e terror à família real. Ela explicou isto ao rei e frisou que tal conduta, da parte de um homem de berço nobre, era duplamente traiçoeira.
Mirabeau aguardava as respostas de Luís. Ele agora estava obcecado com seu plano para salvar a França e estava cada vez mais convencido de que era o único homem capaz de fazer isso. Ele pensava em seu passado, em todos aqueles anos de vida desregrada que deixara para trás. Lembrava de todas as obscenidades peçonhentas que tinha escrito. Pensava nas amantes incontáveis que o tinham amado a despeito de sua aparência um tanto medonha (tinha horrendamente marcado por varíola o rosto, que era encimado por cabelos grossos e desgrenhados). Lembrava de suas extravagâncias imprudentes e suas numerosas falências. E por se arrepender de tudo isto, desejava deixar sua marca antes que a morte o levasse. Também queria satisfazer seus credores. Estava sofrendo por causa de uma vida de excessos, e apesar de sua energia abundante, sabia que não tinha mais muito tempo de vida. Estava obcecado por seu desejo de corrigir a crise que ele ajudara a deflagrar.
E então lhe ocorreu que uma única pessoa estava impedindo isso: a rainha.
Porque ela agora era a principal conselheira do rei, e Mirabeau sabia que o rei, com seus ideais elevados, não era o tipo de homem capaz das decisões necessárias.
Assim, Mirabeau pôs-se a cortejar a atenção da rainha, e as novas cartas que escreveu a Luís tinham como objetivo lisonjear Maria Antonieta.
"E de conhecimento geral que o rei conta com o apoio de apenas uma pessoa, sua esposa. A rainha apenas estará em segurança após o restabelecimento da autoridade real. Penso que ela não se importaria de continuar vivendo sem sua coroa, mas também penso que ela não conseguirá salvar sua vida se não tiver uma coroa sobre a cabeça. Ela deve demonstrar moderação e não deve acreditar que será apta, seja pela ajuda do acaso, seja por intriga, a superar esta crise extraordinária com a ajuda de homens e medidas ordinárias."
Mas suas cartas continuavam sendo ignoradas.
Mirabeau sabia que a culpada por isso era a rainha. O inverno passou, a primavera chegou. A paz continuou, mas Antonieta uma prisioneira no Palácio de Tuleries - não acreditava que a situação continuaria assim por muito tempo.
Com a chegada do verão foi decidido que a família real deveria deixar o Palácio de Tuileries, porque a vida eremítica não estava exercendo bons efeitos sobre sua saúde. O sedentarismo engordara o rei; agora ele não caçava mais, e um jogo diário de bilhar não lhe concedia o tipo de exercício ao qual estava acostumado. A rainha estava pálida, e as crianças tinham sofrido com resfriados contraídos nos corredores úmidos.
Houve apenas um pequeno protesto quando se divulgou que a família real pretendia passar o verão em St. Cloud. Os orleanistas fizeram uma tentativa de atiçar a turba, mas não conseguiram, e quando as carruagens partiram de Tuileries para St. Cloud, o povo reuniu-se em torno delas, gritando:
- Bon voyage au bon papá!
A família real encontrou alívio em St. Cloud. Fersen estava com a comitiva real. Ele passava longas horas conversando com o rei e a rainha.
- Vocês precisam escapar - argumentou. - Vocês não podem voltar para Tuileries. A uma distância segura, poderiam negociar com os revolucionários. Tenho certeza de que é insensato que se permitam permanecer prisioneiros do povo.
Luís, que não conseguia se decidir sobre a maioria das coisas, estava irredutível nesse ponto. Ele não ia fugir. Ele ia permanecer com seu povo.
A rainha fitou Fersen com tristeza.
- Onde o rei está, a rainha deve permanecer - repetiu.
Mas Fersen era infatigável. Ele perambulava pelo campo, buscando argumentações para sua opinião. Aperfeiçoou os planos para uma fuga sempre na esperança de que Luís acabasse por aceitá-los.
A cidade de Rouen, Fersen descobriu, era leal ao rei. Por que o rei não poderia ir até Rouen, estabelecer sua corte lá e, dignamente, ditar as condições para seu retorno? Luís deveria ser acompanhado por soldados leais. Fersen era pela ação, mas Luís continuava permitindo que suas chances lhe escapassem entre os dedos.
Fersen agora estava tentando convencer a rainha a receber
Mirabeau.
Ele é o homem mais inteligente na França - declarou. -
Ele pode fazer muita coisa por você. Eu lhe imploro, não continue a ignorar Mirabeau. Não transforme esse homem, que lhe oferece amizade, num inimigo.
- Você já esqueceu que ele foi um dos lideres da conspiração? Esqueceu os ultrajes de outubro?
- Jamais esquecerei daqueles dias enquanto eu viver - declarou Fersen. - Mas, minha querida, este não é o momento para recordar insultos do passado. A sua vida está em risco.
- E a sua também, enquanto você permanecer conosco-disse Antonieta baixinho. - Que necessidade você tem de permanecer aqui? Nem mesmo é francês. Pode ir para onde quiser, que ninguém irá impedi-lo. Por que você permanece aqui, arriscando diariamente a sua vida?
- Acho que você sabe - respondeu.
- Pelo amor de Deus, Axel, parta. Mande-me notícias de que está em segurança.
- Quando eu partir, levarei você comigo.
Essas palavras animaram a rainha. Axel sempre era capaz de renovar a coragem de Antonieta.
- Encontre com Mirabeau-insistiu Axel. - Peça sua ajuda. Ele trabalhará para você com todo o conhecimento dos eventos e todo o brilhantismo que já deu a outros. Permita que eu arranje uma reunião. Na minha opinião, ela deve ser realizada em segredo. Mirabeau deseja conversar com você antes de ser recebido pelo rei. Ele tem certeza de que se eu conseguir persuadi-la, você conseguirá persuadir Luís.
- Você já planejou esse encontro? - perguntou Antonieta.
- Já. Mirabeau virá secretamente aos jardins de St. Cloud, porque os inimigos da família real ainda não devem saber que Mirabeau está ao lado dela. Permita que o encontro seja no terreno do palácio, num local solitário às oito da manhã do próximo domingo, enquanto o palácio estiver adormecido.
- Você daria a vida por mim, não daria?
- Eu a amo - disse Fersen. - Neste momento há apenas uma coisa com a qual eu me importo mais do que qualquer outra no mundo... a sua segurança.
- Quando estamos juntos, sempre consigo acreditar que um dia me livrarei dos meus problemas. Você decidiu que isso vai acontecer, e você nunca falha.
Na manhã ensolarada daquele domingo de julho, Antonieta saiu para o terreno do palácio. Tudo estava calmo, e Antonieta conseguiu escapulir para o bosque sem ser vista.
Se Luís quisesse escapar de St. Cloud, nós já podíamos tê-lo feito, pensou Antonieta. Mas é claro que Luís não faria isso. Ele jamais seria capaz de fugir.
O homem estava esperando por ela. Antonieta estremeceu com horror ao ver seu rosto. As feições extremamente feias, a aparência de força bruta, fizeram Antonieta recordar os rostos que vira ao redor de sua carruagem durante o percurso de outubro.
- Majestade, finalmente tenho o prazer, e a chance, de contar-lhe tudo que posso fazer para restituir sua dignidade real-disse Mirabeau com uma mesura.
Antonieta estava evitando olhar o rosto de Mirabeau, e ele percebeu isso, porque até as mulheres que tinham acabado por amá-lo haviam ficado horrorizadas com sua aparência a princípio. Com o tempo, a rainha acostumar-se-ia à aparência de Mirabeau, e a feiúra de seu rosto acabaria por significar tão pouco para ela quanto significava para ele.
Mas se o rosto era feio, a voz era dourada. Mirabeau era um orador apaixonante. Mirabeau, que muitas vezes conduzira o Tiers État a pensar como ele, agora empregou todos seu poderes de persuasão na rainha. Ele não tentou acobertar a posição terrível na qual a família real se encontrava; discutiu possibilidades - possibilidades horrendas - com uma franqueza que fez Antonieta estremecer, principalmente por sentir que não se tratava de exagero.
Mirabeau ofereceu-se para lutar em duas frentes. Ele continuaria falando à Assembleia Nacional. Trabalharia para o rei e para a nação. E como era um homem de poderes sobre-humanos, conseguiria fundir os dois.
Quando retornou à sua carruagem, disse ao sobrinho que, disfarçado de cocheiro, tinha-o levado a St. Cloud:
- A rainha é boa e nobre. Eu posso salvá-la, e farei isso.
Assim que o verão acabou, o povo exigiu o retorno da família real ao Palácio de Tuileries. Os plebeus suspeitavam que planos para uma fuga estavam sendo tramados, e queriam manter a família real por perto.
Adelaide estava desolada, e sua irmã imitava-a nisso da mesma maneira que a imitara durante toda sua vida.
Victoire perambulava pelos corredores sombrios murmurando:
- Nós costumávamos dizer "Pobre Sophie!", e "Pobre Luís". Mas agora está claro que eles foram os afortunados. Eles foram para o Céu, e nós fomos deixados para trás.
- Nós não podemos partir daqui, Luís - disse Antonieta ao rei. - Eu entendo como você se sente a respeito disso. Mas há algum motivo para as tias permanecerem?
- Não - disse Luís depois de uma pausa. - Não creio que seja necessário que fiquem. Elas podem ir.
- Se o povo permitir - acrescentou Antonieta. Ela visitou as tias e lhes disse:
- Luís acha que vocês não devem ser forçadas a ficar aqui, caso queiram partir.
Os olhos de Adelaide se iluminaram.
- Isso é possível?
- Vocês podem tentar - disse Antonieta.
- Quando poderemos fazer isso?
- Muito em breve. O conde de Fersen providenciará tudo.
Adelaide desviou os olhos para não fitar a rainha. Estava lembrando de todo o escândalo que ajudara a circular a respeito de Antonieta e do sueco.
Victoire também estava lembrando.
- Nunca achei que ficaria tão feliz com a possibilidade de deixar a França - disse Adelaide.
- Nem eu! - exclamou Victoire. E ambas começaram a chorar. Antonieta abraçou as duas.
- Você esquece... com facilidade - disse Adelaide à rainha. Antonieta entendeu o que ela quis dizer.
- Quando há pouca alegria nas lembranças, é melhor esquecê-las.
- Você está tão mudada... - balbuciou Adelaide. - Estamos todas tão mudadas.
- A vida muda a todos nós - filosofou a rainha.
- Mas Antonieta não queria ouvir mais expressões do remorso
das tias. Já lhe bastava que elas o sentissem, e estava pronta para ser sua amiga.
Assim, quando as carruagens estacionaram no pátio, o povo se reuniu ao redor delas.
- O que é isto? - inquiriram. - Quem está partindo?
As duas velhas saíram para o pátio com alguns de seus servos. Victoire manteve-se quase colada com Adelaide enquanto as duas embarcavam nas carruagens.
- Devemos deixá-las ir? - gritou uma voz na turba.
Não houve resposta; e aproveitando esse momento de indecisão, o cocheiro chicoteou os cavalos e fez a carruagem andar. O povo começou a cercar o palácio de Tuileries.
- Este é o começo - declararam. - Vão atrás das madames. Tragam-nas de volta a Paris!
Mas as carruagens já estavam saindo da cidade, com Victoire e Adelaide segurando com força as mãos uma da outra, sem trocar sequer uma palavra.
Uma turba as deteve em Fontainebleau.
- Que carruagem é esta? O que ela contém? Emigrantes! Deixe-nos inspecioná-las.
Rostos feios espiaram as duas velhas assustadas.
- Quem são estas? - perguntou alguém. - Não são Antonieta nem sua família. Isso é evidente.
E enquanto as damas tremiam, o povo de Fontainebleau decidiu deixá-las passar, porque eram velhas e decerto nenhuma delas não poderia ser a rainha disfarçada.
Enquanto atravessavam Burgundy, elas foram novamente paradas, obrigadas a saltar e apresentadas à comuna enquanto se discutia se as madames deviam ou não receber permissão para deixar o país.
Como elas sofreram durante aquelas horas de indecisão! Elas não falaram uma com a outra, mas Adelaide via nos olhos de Victoire aquela pergunta, aquele medo:
Será que nós, com nossos atos maliciosos, cavamos a nossa própria sepultura?
Nesse momento Adelaide compreendeu que jamais conseguiria novamente dominar Victoire. Porque Victoire agora duvidava da sabedoria por trás da malícia de sua irmã. Elas agora eram apenas duas irmãs, despidas de realeza, despojadas de tudo menos do relacionamento entre elas; duas velhas assustadas.
- Deixem-nas ir-disseram os cidadãos de Burgundy.-Não podem fazer mal a ninguém.
E assim, Adelaide e Victoire partiram para Roma e de lá para Nápoles, onde a irmã da rainha a quem haviam odiado tão fervorosamente recebeu-as com afeto e com a cerimónia devida a pessoas de seu título.
Finalmente em segurança, Adelaide e Victoire permaneceram como hóspedes de Maria Carolina, rainha de Nápoles e irmã de Antonieta.
E a Maria Carolina falaram sobre a tristeza de Maria Antonieta, a coragem de Maria Antonieta, e como elas tinham bons motivos para amá-la.
Orléans aproveitou bem a sua temporada em Londres.
Aproximadamente um ano depois de seu aprisionamento, Jeanne de Lamotte havia escapado do Salpêtrière. Ela tinha bons motivos para acreditar que o duque de Orléans tinha tido algum envolvimento nessa fuga. Roupas tinham sido contrabandeadas para ela e, com a ajuda gentil de guardas e sentinelas que, assim parecia, tinham sido bem pagos para fazer vista grossa, Jeanne escapuliu de sua prisão e correu para o Sena, onde um barco a aguardava para tirá-la da cidade. Ela conseguiu alcançar a fronteira e atravessar a Holanda até Londres.
Ali ela se juntara ao seu marido. A venda dos diamantes tinham deixado os dois ricos, e quando foi descoberto que ela era aquela Jeanne de Lamotte-Valois que exercera um papel forte no caso notório, ela foi recebida em várias casas, porque tinha histórias muito divertidas para contar a respeito da rainha da França. E assim, Jeanne contou suas histórias, tornando-as mais obscenas a cada relato. E quando se sentia um pouco envergonhada de suas mentiras, precisava apenas deixar seus dedos tocarem aquele V feio em seu peito, e lembrar que nada que pudesse dizer seria ruim demais.
Agora ela foi procurada pelo duque de Orléans.
- Você gostaria de voltar à França? - perguntou o duque.
- Retornar à França! - Jeanne balançou a cabeça negativamente. - Para Salpêtrière?
- Certamente não para Salpêtrière... para uma casa só sua, onde poderá receber seus amigos.
- Isso não será seguro. Eu não quero sofrer de novo tudo que passei nas mãos daqueles velhacos injustos.
- Você estará segura.
- Mas monsieur duque, eu escapei da prisão! Fui sentenciada à prisão perpétua.
- Madame, você não ouviu que o povo derrubou a Bastilha? Não sabe o que eles estão dizendo agora sobre Antonieta? Acredite, você não correrá nenhum perigo se retornar a Paris. Eu irei lhe dar um hotel na Place Vendôme.
- Em troca do quê?
O duque segurou o queixo de Jeanne e beijou-a suavemente.
- Toda Paris estará interessada nas suas historinhas sobre Antonieta.
Jeanne sorriu.
- Não há lugar como Paris.
- Então... volte para sua casa. Há trabalho para você lá.
A rainha estava andando em círculos no seu apartamento.
- Luís, como podemos suportar esta vida? - desabafou. Tivemos algum alívio em Saint-Cloud, mas agora voltamos... voltamos para este lugar maldito. Por mais quanto tempo permaneceremos prisioneiros aqui?
Luís meneou a cabeça tristemente.
- Precisamos procurar por ajuda externa! - exclamou Antonieta. - Podemos recorrer ao meu país. Ah, se ao menos Joseph estivesse vivo!
Joseph tinha morrido recentemente, e seu irmão Leopold agora era imperador. Leopold passava por suas próprias dificuldades, e não estava disposto a aumentá-las lutando pela causa de sua irmã.
O plano de Antoniera era fazer os exércitos austríacos marcharem até as fronteiras da França, e que Luís reunisse tantos homens quanto pudesse para encontrá-los. E assim, o poder da Áustria mostraria aos franceses que esse império desaprovava a forma como a França estava tratando seus monarcas.
Mas a Áustria não ofereceu ajuda.
Orléans tinha voltado a Paris, e La Fayette estava com medo de levantar o assunto de seu exílio, porque novas manifestações estavam acontecendo agora no Palais Royal.
Além disso, aquela criminosa e ladra de jóias, madame de Lamotte, estava agora estabelecida na Place Vendôme, e de sua pena fluía um libelo atrás do outro. Havia uma nova história sobre o colar - a versão de madame Lamotte. Nenhuma história era vil demais para ser associada à rainha.
Havia um homem que estava mantendo a revolução sob controle. Mirabeau. Ele agora estava usando seus dons consideráveis ao máximo, e servindo tanto a Assembleia Nacional quanto a monarquia, mantendo com habilidade o equilíbrio entre elas, trabalhando com grandes poderes para fundir as duas.
O rei oferecera-se para dar-lhe notas promissórias no valor de um milhão de livres, a serem pagas quando Mirabeau tivesse feito o que se propusera a fazer: findar a revolução e estabelecer o rei firmemente no trono. As dívidas de Mirabeau seriam sanadas, e ele conquistaria uma posição de destaque na monarquia. Ele estava determinado a merecer o dinheiro e ao mesmo tempo colocar seu nome nos livros de História.
Ele ia conseguir. Ele sabia como conseguir. Ele acreditava piamente que o destino da França estava em suas mãos.
Mirabeau jogou o jogo com brilhantismo. Falou eloquentemente na Assembleia Nacional; estava trabalhando pela nova constituição; e ao mesmo tempo pretendia salvar o rei e a rainha. Ele era um mestres de palavras e retórica. Podia manipular a assembleia; podia persuadir o rei.
Tamanho brilhantismo evidentemente atraía inimigos. Ele era ameaçado com o grito:
- Enforquem Mirabeau!
Mas ele dava com os ombros, despreocupado. Marat acusava-o de trabalhar com o inimigo. Ele dava com os ombros para Marat.
Seu plano era deter a violência da revolução com uma violência maior, e ele disse ao rei:
- Quatro inimigos marcham contra nós: impostos, falência, exército e inverno. Poderíamos conseguir derrotar esses inimigos domando-os. A guerra civil não é certa, mas ela pode ser útil.
Ele parecia um gigante enlouquecido. Guerra civil! Lei e ordem armadas para enfrentar a turba assassina!
O rei ficou horrorizado. Mirabeau estava sugerindo que ele deveria guerrear contra seu querido povo!
- Ó, excelso mas fraco rei! - lamentou Mirabeau. - Ó, mais desafortunada das rainhas! Suas vacilações os empurraram na direção de um abismo terrível. Se recusarem o meu conselho, irão cair nesse abismo. Mas se não conseguir segurá-los, poderei dizer a mim mesmo com orgulho: eu me expus ao perigo na esperança de salválos, mas eles não queriam ser salvos.
Compreendendo o perigo que ameaçava o rei e a rainha em Paris, ele se consultou com Fersen, porque acreditava na eficácia do plano do sueco para tirá-los de Paris.
Agora não adiantaria de nada ir para Rouen. Eles precisavam ir ainda para mais perto da fronteira, onde o marquês de Bouillé estava próximo de Metz com seus soldados leais.
Fersen fez a jornada até Metz e retornou com a notícia de que o rei e a rainha deveriam deixar Paris sem demora, porque Bouillé não estava mais tão certo da lealdade de seus soldados, e temia que a insatisfação estivesse se disseminando entre eles.
Ainda assim, o rei hesitou.
- Então Vossa Majestade deve sair de seu retiro! - gritou Mirabeau. - Deve se mostrar nas ruas. O povo não o odeia. Nunca viu que, por mais que os plebeus gritem palavras ácidas contra a monarquia, quando seu rei aparece eles o chamam de seu paizinho? O povo sempre gostou de seu rei. Vossa Majestade não é o papai Luís? Mas Vossa Majestade se isola, enquanto vossos inimigos espalham histórias difamadoras.
Fersen ficou aterrorizado com a ideia da rainha aparecer nas ruas, mas Mirabeau estava impaciente.
Não era hora de hesitações. Mirabeau acreditava que ninguém além dele entendia o que estava em risco.
Ele, Mirabeau, podia salvar a França. Ele, Mirabeau, seria lembrado durante gerações por vir como o homem que evitara a destruição da monarquia. O homem que salvara o país da anarquia.
Fora Mirabeau que se pusera ao lado de Orléans e ajudara a semear a tempestade. E seria Mirabeau quem gritaria "Pare!" e deteria a onda crescente de derramamento de sangue.
Mas ele não conseguia fazer com que o rei o ajudasse. O rei não queria uma guerra civil; o rei não queria mostrar-se ao povo; o rei não queria escapar.
Assim, Mirabeau continuou a empregar seu talento para manter o equilíbrio. Ele manipulava a Assembleia enquanto trabalhava pela monarquia.
- Mirabeau está ditando os rumos da França! - disseram Marat, Danton e Robespierre.
E Orléans fez coro com eles.
E um dia, quando o criado de Mirabeau foi chamar seu amo, encontrou-o morto.
Mirabeau sofrera muitas mazelas, que haviam se devido principalmente à vida desregrada que ele levara. Teria sido a cólica que o carregara, ou aquele problema nos rins que tanto o afligia?
"Morte de causas naturais", foi o diagnóstico.
Mas muitas pessoas acreditavam que a facção de Orléans tinha decidido pôr um fim no homem que um dia havia sido seu amigo e que agora trabalhava para destruir tudo com que eles sonhavam.
Muitos nas ruas sussurraram a respeito da morte súbita de Mirabeau:
- Devem ter posto alguma coisa no seu vinho. Vivia perigosamente, esse Mirabeau. Ele achava que era o maior homem da França. E então a morte lhe visitou, silenciosa e rápida.
No Palácio de Tuileries, o medo se adensou. O rei e a rainha agora compreendiam o quanto tinham dependido de Mirabeau.
A morte de Mirabeau aumentou imensamente o perigo sofrido pela família real. No Falais Royal, homens e mulheres exigiam ação. Essa gente estava sendo instigada pelos jacobinos - membros daquele Club dês Jacobins no qual o Club Breton se tornara. O Club Breton fora o primeiro dos clubes revolucionários, e muitos de seus membros tinham sido franco-maçons ou membros de sociedades secretas. Ele abrigara principalmente partidários de Orléans, que por sua vez era muito influenciado pela franco-maçonaria. O clube mudara de nome ao estabelecer seu quartel-general em Paris na loja maçónica situada na rua Saint-Honoré, pois a sede da maçonaria ficava na rua Saint-Jacques.
O propósito dos jacobinos era pressionar o povo à revolução.
Logo depois da morte de Mirabeau, o rei e a rainha, sentindo a necessidade de uma mudança, decidiram passar a páscoa em SaintCloud. Seus planos logo foram descobertos pelos jacobinos. Uma das aias da rainha, a madame Rochereuil, tinha um amante que era membro do clube, e ele a convencera de que a melhor forma com que podia servir o país - e não ser suspeita de traição - era espionando a rainha.
E assim, amadame Rochereuil não perdeu tempo em contar ao amante sobre a intenção da família real em visitar St. Cloud.
A família real não fez segredo sobre a visita: as carruagens chegariam no pátio e o rei e a rainha embarcariam nelas; o povo testemunharia a partida, e talvez repetiria o brado do ano anterior: "Bon voyage, papá!"
Mas o fato era que os jacobinos tinham pretendido impedir a partida do rei e da rainha no verão anterior, e tinham falhado apenas por não ter contado com tempo suficiente para organizar uma manifestação.
Agora, graças à colaboração de madame Rochereuil, eles foram avisados a tempo das intenções reais; e Danton providenciou para que plebeus fossem reunidos, embebedados, recordados das falhas da família real, e incitados a manifestar-se com a mesma ferocidade de outubro.
E assim, no dia da partida, os jacobinos estavam atarefados. Laclos, disfarçado de cavalariço, incitava a multidão:
- Cidadãos, o rei está fugindo! Ele vai juntar-se a Artois e os emigres! Vai tramar contra vocês e trazer exércitos para conquistálos! Cidadãos, vocês vão permitir que o rei fuja?
As carruagens estavam esperando. O rei, a rainha e as crianças reais, mais seus atendentes e servos, saíram e ocuparam seus lugares. Mas as carruagens foram cercadas pela turba.
- Vocês não vão passar! - gritaram.
E mais uma vez Antonieta viu de perto aqueles rostos bêbados e ferozes, e mais uma vez foi forçada a ouvir obscenidades e insultos.
La Fayette e um grupo de soldados montados exigiram que a turba se afastasse para permitir a passagem das carruagens.
Mas o que La Fayette significava para a turba? Por que ela darlhe-ia ouvidos? A turba escarneceu de La Fayette e jogou lama nele. Os manifestantes tiraram os cavalos das carruagens e exigiram que o rei e a rainha retornassem com sua família para o palácio de Tuileries.
- Realmente somos prisioneiros agora! - exclamou Antonieta.
- Eles determinaram que não devemos sair de Tuileries.
Até Luís ficou deprimido; seu semblante estava franzido de preocupação.
Antonieta enlaçou seu braço no do marido.
- Luís, não podemos continuar assim. Não podemos suportar esta vida.
Luís olhou para ela e balançou a cabeça tristemente.
- Acho que talvez você esteja certa - admitiu. - Acho que talvez não há nada que possamos fazer enquanto formos mantidos como prisioneiros do povo.
Fersen requisitou uma audiência. Ele tinha vindo de SaintCloud, onde esperara encontrar a rainha, até receber a notícia de que uma turba impedira a família real de deixar o palácio de Tuileries.
- Vossa Majestade precisa compreender que esta situação não deve continuar! - argumentou Fersen.
Luís fitou o amante de sua esposa, e nesse momento teve um vislumbre de entendimento sobre os motivos que levaram Antonieta a amar este homem. Luís viu em Fersen tudo que ele próprio não era, e num momento súbito de clareza - que esvaneceu quase assim que surgiu - compreendeu que fora sua indecisão que o pusera neste impasse. Entendeu que houvera um momento na estrada perigosa pela qual trafegava em que podia ter dito parem, eu vou ficar aqui. Momentos em que podia ter tomado a ofensiva. Talvez, se tivesse sido abençoado com a ousadia deste homem ou de Mirabeau, a posição de Luís seria bem diferente daquela na qual se encontrava agora, e a França não estaria sofrendo tanto.
- Você tem razão - reconheceu Luís.
- Vossa Majestade considerará meus planos para uma fuga? O rei assentiu.
Agora Tuileries fervilhava com atividades - atividades secretas. Embora carecessem do brilhantismo de Mirabeau, tinham certeza de que conseguiriam alcançar seu objetivo.
Fersen planejava como um amante, trabalhava como um amante. Ele vivia por um único propósito - afastar Antonieta do perigo. Ele precisava de dinheiro, e precisava angariá-lo de uma maneira que não fosse notada. Assim, ele próprio proveu o dinheiro, penhorando as suas propriedades. Fersen já estava se correspondendo com vários países estrangeiros. Ele tinha o general Bouillé a seu lado, porque fora com ele que Mirabeau planejara a fuga real. Bouillé ainda estava preparado para ajudar, embora tivesse acautelado Fersen de que cada semana de atraso impunha risco, porque a cavalaria sob seu comando estava sendo doutrinada com ideais revolucionários.
Fersen sabia muito bem que se acontecesse uma única falha em seus planos, se uma das numerosas cartas que ele estava escrevendo se extraviasse, ele ouviria o grito "Enforquem Fersen!" e ele sofreria uma morte horrível. O pensamento o imbuiu com uma coragem imprudente.
Fersen estava realmente apaixonado.
Todos os dias ele passava em Tuileries e, para não atrair muita atenção, frequentemente chegava disfarçado. Todas as noites ele se juntava ao rei e à rainha, e em vozes baixas os três discutiam os planos de fuga.
Ele fitava a rainha com olhos luminosos.
- Mandei construir uma berlinda - contou Fersen. - É um veículo confortável... muito espaçoso, e as molas são boas. Eu próprio supervisionei o projeto, para garantir que Vossas Majestades viajem com o máximo de conforto.
Eles o escutaram sequiosos. Aquilo soava miraculoso.
- Forjei um passaporte em nome de madame de Korff... uma dama russa. Madame de Tourzel, que obviamente viajará com as crianças, será madame de Korff. Sua Majestade a rainha será a governanta, e Vossa Majestade, o rei, o lacaio. Haverá três criadas. Madame Elisabeth obviamente será uma delas.
- E haverá espaço para todos na berlinda?
- Haverá - garantiu Fersen. - Nunca houve uma berlinda como esta que está sendo construída para a fuga, mas será necessário que Vossa Majestade envie algumas de suas roupas e jóias antecipadamente.
- Irei mandá-las para Bruxelas - disse a rainha. -Monsieur Léonard irá guardá-las. Não precisarei dele para fazer meu cabelo enquanto estivermos viajando.
- De fato não. Você não pode esquecer de que é a governanta. A rainha sorriu. Seu ânimo já estava exaltado. Por causa do pensamento em fugir daquele funesto Palácio das Tuileries; por causa da alegria em planejar com Fersen.
- Providenciei com Bouillé e o duque de Choiseul que as tropas serão posicionadas ao longo da rota, de modo que quando estivermos fora de Paris, a maior parte do perigo terá passado.
- Isso é maravilhoso! - exclamou Antonieta. - E você... conde?
- Estarei disfarçado como seu cocheiro. Conduzirei a berlinda até a fronteira.
Observando-os, Luís pensou:
Eles amam um ao outro.
Ali estava um homem que ele poderia ter sido. E se ele tivesse sido esse homem, bonito, distinto e valoroso, Antonieta poderia têlo amado tanto quanto ela amava Fersen.
Ele não culpava Antonieta. Ele não culpava Fersen.
Mas ele corria o risco de perder o reino e a esposa, e subitamente sentiu uma emoção que lhe era incomum; mesclada com ela estava uma raiva contra o sueco. Por que esse homem deveria consertar suas vidas? Por que ele deveria assumir o comando desta aventura? Por que Antonieta devia fitá-lo com olhos tão amorosos?
Não. Ele precisava aceitar a ajuda de Fersen mas, uma vez que tivessem saído de Paris, a fuga deveria ser conquistada pelo próprio Luís. Ele era o rei; e ele deveria estar ao comando.
- Monsieurle comte, creio que você deve acompanhar-nos até Bondy - disse o rei. - Ali outro deve assumir a berlinda e você deve cavalgar por uma rota diferente até a fronteira.
Fersen ficou pasmo.
- Mas, Majestade, eu já fiz essa rota. Eu já providenciei todos os preparativos. Eu... eu... eu planejei tudo isto.
Mas o rosto de Luís estava completamente inexpressivo.
- Quero que você nos deixe em Bondy. Fersen olhou para a rainha.
- O rei está certo - disse Antonieta. - O risco que você correrá caso sejamos descobertos... será grande demais. A turba pode reduzi-lo a pedaços se descobrir quem você é e tudo que fez por nós.
- Mas eu preciso implorar que vocês me ouçam - disse Fersen.
Naquele momento Luís foi rei, e um rei não precisa justificar suas decisões.
- É a minha vontade.
Fersen fez uma mesura até o chão.
Os planos estavam prontos. Seis de junho foi fixado como o dia da fuga, e todos os detalhes foram completados. Fersen tinha providenciado tudo. O rei e a rainha deveriam sair do palácio de Tuileries separadamente. Atravessariam a praça até onde um fiacre antiquado estaria à sua espera. Quando todos estivessem reunidos, Fersen iria conduzi-los até os arrabaldes de Paris, onde a berlinda estaria estacionada. Fersen dirigiria a berlinda até Bondy, onde se separaria da família do rei. Então eles deveriam seguir a toda velocidade até Châlons-sur-Marne, porque depois que tivessem atravessado essa cidade iriam encontrar os soldados à sua espera, a meia hora de viagem depois de Pont de SommeVesle. Escoltados pelos soldados, a família real seguiria até Montmédy, que ficava apenas a dezesseis quilómetros da fronteira. Fersen estaria esperando-os impacientemente em Montmédy; depois que tivessem alcançado essa cidade eles estariam em segurança.
A parte mais difícil da operação era sair de Paris. Eles conversaram sobre isso continuamente, ensaiando o que deveriam fazer.
Obviamente, era inconcebível que a rainha deixasse suas jóias para trás. Ela visualizava sua chegada numa corte estrangeira vestida a contento. Não podia permitir que suas amigas pensassem que ela tinha chegado como uma mendiga.
Fersen previra isso, e fora por esse motivo que encomendara aquela berlinda, que era realmente a mais magnífica já feita. Nunca se havia construído uma carruagem tão grande. Fersen declarara que isso era necessário, porque ela precisaria transportar muitas pessoas.
Fersen pusera todo seu amor na construção da berlinda. Sua maior preocupação foi o conforto da rainha. A berlinda contava com um armário embutido, que seria abastecido com frango, vinho e petiscos variados para a jornada. Possuía um baú de roupas, porque a rainha sempre fora exigente com suas vestes, e até uma cómoda - tudo para o conforto dos viajantes.
Fersen, que planejara todos os detalhes com perfeição, não previu que a construção de um veículo tão magnífico não poderia ser mantida em segredo. E embora tivesse contado ao fabricante de coches que a berlinda era para uma baronesa russa, rumores não tardaram a vazar da oficina.
Provence e Josèphe deixariam Tuileries ao mesmo tempo, mas Provence estava organizando sua própria fuga, e propôs viajar por uma rota diferente até Montmédy, onde eles iriam se encontar.
Provence tinha ideias diferentes das de Fersen, e decidiu que ele e Josèphe viajariam numa carruagem velha e sem atendentes.
A rainha estava em seu apartamento, empacotando suas jóias, preparando-as para que monsieur Léonard as levasse para Bruxelas, quando se apercebeu que madame Rochereuil estava parada no vão da porta, observando-a.
Antonieta girou sobre os calcanhares, e com grande dificuldade conteve um grito.
- Sim, madame Rochereuil? - disse friamente.
- Vim perguntar se posso ajudá-la a empacotar essas coisas, madame.
Os olhos da mulher estavam fixos nas jóias espalhadas no sofá. A rainha disse:
- Não há nada que você possa fazer.
Madame Rochereuil se retirou. Antonieta, nervosa, convocou madame Elisabeth à sua presença.
- Aquela mulher está nos espionando - disse Antonieta. Aquela mulher sabe que planejamos partir.
- Não podemos nos livrar dela? - indagou Elisabeth.
- Isso atrairia suspeita para nós. Descobri que ela é amante de Gouvion, um membro do Club dos Jacobins e um revolucionário feroz. Ela observa tudo que fazemos, e reporta aos seus amigos jacobinos. Elisabeth, ela sabe!
- Ela não pode saber quando. Ninguém sabe quando...
- Mas ela irá nos espionar. Como poderemos partir conforme planejamos? Você sabe o quanto nós fomos cuidadosos... E ela irá nos observar o tempo inteiro.
E assim pareceu, porque madame Rochereuil ficava perto deles em momentos estranhos, sorrindo misteriosamente, alerta, vigilante, sabendo que fora reconhecida como espia, a espia da qual eles não ousavam livrar-se.
- Não podemos partir no dia seis - disse Antonieta a Fersen.
- Aquela maldita mulher, Rochereuil, sabe que pretendemos partir. Ela me viu empacotar minhas jóias. Eu disse que eram um presente para a minha irmã, mas pude ver em seus olhos que ela não acreditou em mim.
- Precisamos esperar mais um pouco - disse Fersen, tenso. Ficou claro que eles foram sábios em fazer isso, porque logo
depois um artigo de Marat apareceu noAmi du Peuple:
"Existe um complô para retirar o rei do país. Vocês são imbecis que não tomam providências para impedir a fuga da família real? Parisienses, seus estúpidos, estou cansado de dizer que vocês devem manter o rei e o delfim trancados a chave. Vocês devem manter presa a austríaca e o resto da família. Se eles escaparem, isso pode significar a morte de três milhões de franceses."
Marat temia que, se o rei escapasse de Paris, ele conseguiria arregimentar aliados e uma guerra civil estouraria na França.
- Ainda não podemos ir - foi decidido naqueles encontros secretos no Palácio de Tuileries. - Precisamos esperar até que as suspeitas tenham abrandado.
Fersen estava preocupado, e Bouillé e o duque de Choiseul também. Tudo tinha sido planejado nos mínimos detalhes. Mas Marat despertara as desconfianças do povo, e madame Rochereuil estava vigilante.
E assim, durante os dias de junho foi necessário forjar uma atmosfera despreocupada no Palácio de Tuileries. Nem por um único instante eles deveriam esquecer dos olhos vigilantes da madame Rochereuil.
- Nós precisamos partir no dia dezenove! - disse Fersen, desesperado. - Não podemos ousar esperar mais.
Assim, a fuga foi marcada para o dezenove. Mas na noite do dia dezoito, madame de Tourzel visitou a rainha e disse:
- Madame Rochereuil não trabalhará no dia vinte. Ela pediu para se ausentar e visitar alguém que está doente. Acredito que isso seja verdade, porque ouvi de outra fonte que Gouvion não está bem.
- Essa é uma oportunidade caída do céu! - exclamou a rainha. - Precisamos partir no dia vinte, não no dezenove.
Era tarde para fazer alterações, mas ela estava certa que seria estupidez tentar sair do palácio sobre os olhos vigilantes da espia, quando poderiam fazer isso no dia seguinte, em sua ausência. Ela convocou monsieur Léonard e mandou-o partir com as jóias. Ele iria encontrar a cavalaria na estrada; e iria contar ao seu líder que a comitiva real chegaria com vinte e quatro horas de atraso.
Léonard partiu.
O dia vinte alvoreceu. Hoje era o dia da fuga.
O dia pareceu interminável. Antonieta tinha certeza de que nunca em toda sua vida tinha vivido um dia tão longo. No final da manhã, para imenso alívio da rainha, madame Rochereuil partiu. Agora ela tinha certeza de que se os revolucionários tinham suspeitado de que eles tentariam escapar no começo do mês, eles não estavam mais desconfiados. Porque se ainda estivessem, jamais teriam permitido que madame Rochereuil abandonasse o seu posto.
Luís estava calmo como sempre. Luís era um afortunado por jamais demonstrar suas emoções.
Em vários momentos ao longo desse dia, Elisabeth e a rainha trocaram olhares ansiosos, cada uma ciente dos pensamentos da outra. O tempo parecia não passar!
Ficaram em pé diante das janelas, olhando para fora. O sol brilhava. Isso era uma boa sorte; era um daqueles adoráveis dias de verão que atraíam as pessoas das ruas para o campo.
Antonieta viu que os lábios de Elisabeth moviam-se numa oração silenciosa.
Havia uma missa para comparecer, e depois disso a família almoçaria junta. Antonieta ficou embasbacada com o fato de Luís comer com seu apetite usual. Ela se forçou a parecer normal, assim como Elisabeth. Até Provence estava mais calado que de costume. Antonieta estava feliz por não ter contado os planos às crianças.
Ela disse ao rei.
- Vai para o seu apartamento, descansar? Acho que irei para o meu. Quero trabalhar na minha tapeçaria.
Ela não estava em seu quarto há mais de cinco minutos quando um servo anunciou a chegada de Fersen. Ela o recebeu em seu apartamento com apenas Elisabeth presente.
- A mulher não está aqui? - perguntou.
- Não. Ela tirou folga.
- Queria que ela a tivesse tirado ontem.
- Não se preocupe. Você se preocupa muito - disse a rainha ternamente.
- Estou pensando nos soldados que aguardam em seu posto.
- Mas monsieur Léonard é digno de nossa confiança. Ele irá alcançá-los na hora marcada e lhes dirá que atrasaremos vinte e quatro horas.
- Eu deveria levar você durante todo o percurso. A rainha não fitou os olhos dele.
- Foi o comando do rei - disse ela.
- Já está tudo pronto? - indagou Fersen.
Ele olhou ansiosamente para o relógio dourado na parede antes de acrescentar:
- Você também tem a impressão de que o tempo parou? Antonieta fez que sim com a cabeça.
- Quando eu sair do palácio, irei vistoriar a berlinda, para certificar-me de que tudo está preparado. Vou estocar o vinho e a comida, e em seguida irei enviá-la para esperar por nós do outro lado da Barreira. Será lá que trocaremos de veículo. Não esqueçam dos seus papéis.
- Não esqueceremos - disse a rainha. - Sou a governanta de meus filhos, empregada pela baronesa de Korff... a minha querida Tourzel. O rei é o lacaio, e Elisabeth a companhia. Minhas queridas madame Neuville e madame Brunier são as servas, não é isso? E isso completa o elenco de nossa pequena peça.
- É necessário levá-las? O grupo está grande demais - disse Elisabeth.
- Preciso de minhas aias - argumentou a rainha. - Precisarei delas para ajudar-me com os cuidados estéticos.
- Elas são confiáveis - disse Fersen. - E podem sair uma hora antes de vocês, e juntar-se ao grupo depois. Ninguém impedirá a passagem delas. A dificuldade será passar com suas duas damas, o rei e as crianças sem levantar suspeitas.
- Eu sei - concordou a rainha.
- Tome cuidado.
Ele estendeu as mãos, e Elisabeth não olhou para elas enquanto juntou-as às suas.
E então Fersen se retirou.
Depois que Fersen tinha saído, a rainha e Elisabeth levaram madame Royale e o delfim para passear no parque dos prazeres de Tivoli. Quando voltaram, as crianças foram para a cama e o rei e a rainha jantaram com Elisabeth, Provence e Josèphe. Depois da refeição eles se retiraram para a espaçosa sala de desenho e, espremendo-se num canto longe das portas, discutiram os planos de último minuto.
De vez em quando eles olhavam para o relógio e comentavam sobre como o tempo parecia estar passando lentamente.
A privacidade jamais durava muito. A família real não podia despertar suspeitas permanecendo tempo demais na sala de desenho. Ele foram ao grande salão, onde os membros da Corte estavam reunidos. Alguns conversavam, outros divertiam-se com jogos de cartas. O grande teste estava começando. Ali, entre esses cortesãos, eles precisavam passar a impressão de que esta noite não seria diferente de incontáveis outras.
O rei estava muito calmo. Ele se sentou em sua cadeira, parecendo sonolento, como geralmente ficava à noite. Estava discutindo a última fase da revolução da forma como falava sobre essas coisas todas as noites.
Eram dez da noite quando a rainha se levantou e comentou que queria escrever uma carta, e que voltaria logo. Com um coração acelerado, ela atravessou os corredores sombrios até os apartamentos das crianças. Madame de Tourzel a aguardava.
- Você está pronta? - sussurrou a rainha.
- Sim,madame.
Antonieta foi até a cama da filha. Madame Royale abriu os olhos e fitou a mãe.
- Você precisa se levantar rápido - disse Antonieta. - Não faça perguntas. Vista-se imediatamente. Madame de Tourzel irá ajudá-la.
Madame Royale obedeceu instantaneamente. Antonieta parou diante da cama do delfim.
- Venha, meu querido - disse ela. - Nós vamos viajar. O delfim levantou-se rápido como um boneco de molas.
- Agora... maman? Agora? Para onde vamos? Os soldados vão conosco?
- Nós vamos a uma fortaleza onde há muitos soldados. Venha agora. Eu vou ajudar você a se vestir. Fique calado, porque é tarde e não temos um momento a perder.
- Mas estas são roupas de menina! - gritou o delfim, horrorizado. E então, acrescentou, alegremente: - É um baile à fantasia, maman?
- Eu disse para você ficar calado. É importante ficar calado.
- Você vem? - sussurrou o menino.
- Sim... mas mais tarde. Faça como estou mandando, ou você será trazido de volta e não haverá passeio. Não diga uma palavra sequer até que lhe seja dada permissão.
O delfim meneou a cabeça conspiradoramente e permitiu que lhe pusessem um vestido e uma boina de menina.
- Agora - disse a rainha.
Ela caminhou na frente, agilmente, através de salas silenciosas, e desceu uma escada particular até a saída que Fersen providenciara para não haver nenhuma sentinela.
A rainha olhou para fora. Quase imediatamente uma figura encapuzada emergiu das sombras. Era um cocheiro, e Antonieta reconheceu-o por seu jeito de andar. Ela quase chorou de alegria e gratidão. Ela devia saber que ele não iria decepcioná-la.
Não trocaram nenhuma palavra. Fersen pegou a mão do delfim. Madame de Tourzel estava segurando madame Royale com força. Fersen caminhou na frente até o local onde o fiacre estava à espera deles, e Antonieta retornou ao salão.
Às onze da noite a rainha comunicou que estava cansada e que iria se retirar.
Suas aias a despiram, e elas jamais pareceram tão lentas.
- Pray, mande as carruagens virem amanhã de manhã - disse Antonieta a uma das aias. - Se o tempo estiver tão bom quanto hoje, vou querer passear.
- Sim, Majestade. A rainha bocejou.
- Vossa Majestade está cansada?
- É o calor, e a conversa no salão pareceu mais tediosa que de costume. - Enquanto elas removiam sua tiara, Antonieta observou-as com os olhos semicerrados. Ela quis gritar para elas: Sejam rápidas. Cada momento é importante.
Finalmente elas fecharam a cortina em torno da cama, e Antonieta ouviu a porta se fechar.
Antonieta saltou da cama imediatamente e se arrumou sozinha, colocando um vestido simples de seda verde e um chapéu preto com um véu grosso descendo das abas. Seus dedos pareceram-lhe desajeitados, porque ela não estava acostumada a se vestir sozinha. Ela se perguntou como Elisabeth estava se saindo. Mas Elisabeth devia estar mais calma do que ela. E com certeza Elisabeth já estava junto ao fiacre na rua de 1'Échelle.
Ela pensou em Luís. Ele também precisava aprontar-se para sua fuga. Para Luís seria ainda mais difícil. La Fayette iria prestar sua visita noturna ao palácio de Tuileries e passaria algum tempo com o rei. Muito dependia da rapidez com que o rei conseguiria dispensar La Fayete sem suscitar suspeitas.
Mas ela devia pensar apenas em sua própria fuga, que precisaria de todo o seu cuidado.
Completamente vestida agora com o chapéu e o véu denso, Maria Antonieta estava irreconhecível. Ela puxou novamente as cortinas em torno de sua cama e caminhou na ponta dos pés até a porta particular. Dali desceu a escada exclusiva.
Enquanto chegava à porta pela qual as crianças tinham saído, ela viu a figura alta de um guarda. Ela prendeu a respiração num momento de medo, embora soubesse que iria encontrar-se com um homem para conduzi-la ao fiacre. Mas e se eles tivessem escolhido mal esse homem? E se ele, como a madame Rochereuil, fosse também um traidor?
A voz dele saiu num sussurro:
- Está tudo bem, madame. Siga-me.
Antonieta sentiu o coração mais leve. Ela podia confiar na competência com que Fersen fizera os preparativos.
Luís estava bocejando eficazmente, permitindo que La Fayette visse que ele estava cansado de sua companhia. Mas dispensar um general não era mais tão fácil quanto antes. La Fayette falava, e Luís não podia chamar atenção para o seu desejo de ir para a cama. O artigo de Marat poderia ser lembrado, e nesse caso La Fayette poderia considerar necessário duplicar a guarda.
Mas finalmente La Fayette, em consideração aos bocejos do rei, se retirou. Contudo, os problemas de Luís estavam apenas começando. Ele precisava submeter-se ao coucher, porque o protocolo da Corte não fora esquecido a ponto de decretar o fim de uma cerimónia tão tradicional. Assim, Luís foi colocado na cama e, segundo o velho costume, seu valete devia dormir na alcova real, com uma corda amarrando o punho às cortinas da cama do rei; assim, caso o rei precisasse de alguma coisa, tudo que teria a fazer seria esticar o braço até a cortina e puxá-la para acordar o homem. Como escapar do valete, que era um homem a quem não podia ser confiado um segredo, fora uma questão que ocupara durante várias noites as mentes de todos eles. Ficara combinado que o rei deveria ir para a cama, fechar as cortinas como se quisesse dormir imediatamente e, quando o valete fosse para o seu closet vestir uma camisola, Luís sairia de trás das cortinas e correria até a câmara do delfim, que era adjacente à dele. Ali pegaria as roupas que estavam prontas para ele - roupa e chapéu de lacaio e uma peruca barata. Vestido assim, desceria na ponta dos pés pela escadaria secreta até um dos quartos inferiores, onde guardas de Malden que faziam parte do plano ajudariam o rei a se vestir.
E assim, o rei da França, descalço e em sua camisola, escapou do valete. Depois, vestido naquelas roupas humildes, calmamente saiu do palácio e atravessou o pátio, passando por guardas que murmuraram um boa noite sonolento. Alcançando a rua, atravessou a Petite Place du Carrousel até a rua de 1'Echelle e o fiacre.
Foi desconcertante descobrir que a rainha, que deveria ter saído do palácio antes do rei, ainda não havia chegado.
Antonieta seguiu o guarda.
Eles tinham escapado do palácio, e o ânimo de Antonieta estava aumentando.
Nunca mais serei uma prisioneira viva daquele palácio sombrio, pensou.
O guarda caminhava um pouco à frente; ela apressou o passo para acompanhar seu ritmo. Quem teria acreditado que a fuga seria tão fácil?
Em cinco minutos estarei com meus filhos. Eles estão a salvo... com Axel.
Era estranho estar aqui fora, caminhando nas ruas de Paris. Ela percebeu o quanto conhecia pouco a cidade.
Eu jamais encontraria o fiacre sozinha, pensou.
Súbito, Antonieta viu que o guarda tinha parado, e num segundo ela compreendeu o motivo. Vindo na direção deles estava um coche diante do qual caminhavam tocheiros. O guarda fez um sinal para ela não avançar. Olhando à sua volta, Antonieta viu um beco e entrou nele. A luz das tochas reluziu na parede escura do beco. Ela abaixou a cabeça ao reconhecer o uniforme dos homens de La Fayette; o general deveria estar no coche.
O coche passou tão perto que Antonieta pôde ver o general sentado em seu interior. Por um instante, teve a impressão de que seu coração iria sufocá-la. Segurando o véu fortemente em torno da garganta, ela se virou e começou a caminhar lentamente pelo beco.
O ruído das rodas da carruagem tinha parado, e então ela escutou passos às suas costas. Não ousou virar-se. Seu coração batia enlouquecidamente.
Meu Deus, permita-me alcançar o fiacre. Permita-me alcançar minhas crianças.
- Madame...
Antonieta quase gritou de alívio, porque essa era a voz de seu guia.
- Foi por pouco - prosseguiu o guarda. - Se o general tivesse visto Vossa Majestade...
- Ele não teria me reconhecido - disse Antonieta, porque o homem estava tremendo.
- Madame, não é fácil para uma dama como a senhora disfarçar-se. - Seu semblante demonstrava preocupação. - Vamos tomar outro caminho até a rua de Echelle. Temo encontrarmos outras carruagens se tomarmos a rota que planejamos.
- Você tem razão - disse ela. - Façamos isso.
Assim, eles caminharam e, depois de dez minutos, o homem admitiu que não tinha certeza de onde estava. Ele não estava bem familiarizado com esta parte de Paris, e estas ruelas formavam um verdadeiro labirinto.
- Eles estão esperando! - exclamou Antonieta, frenética. Eles pensarão que eu não consegui escapar. Precisamos encontrálos... depressa.
Mas eles estavam perdidos no labirinto de ruas e, quando tentaram retraçar seu caminho até o ponto onde tinham encontrado a carruagem de La Fayette, não conseguiram. Durante meia hora tentaram encontrar seu caminho, e quando finalmente alcançaram a rua de Echelle, foi para descobrir que os outros estavam desesperados, tendo esperado durante quase uma hora inteira.
Antonieta assumiu seu lugar no antiquíssimo fiacre. Sentia-se emocionada demais para falar qualquer coisa; tudo que conseguiu fazer foi tomar suas crianças adormecidas nos braços e apertá-las contra si.
Fersen subiu no banco do condutor e chicoteou os cavalos. Eles tinham perdido tempo precioso, e numa empreitada como aquela, cada minuto era importante.
Por ruas estreitas seguia o fiacre, Fersen sempre procurando por qualquer sinal de que estivessem sendo seguidos. Os ocupantes do fiacre mal ousavam falar uns com os outros. Muitas possibilidades ocorreram a eles; eles iriam sentir-se profundamente aliviados depois que tivessem deixado Paris.
Finalmente chegaram à Barreira, mas a berlinda não estava no tocai que Fersen ordenara que ela os esperasse.
Ele fez os cavalos pararem e olhou em torno, consternado. O local estava absolutamente silencioso. Fersen desceu e caminhou até a porta do fiacre.
- Deve ter acontecido alguma coisa - disse Fersen. - Alguma coisa deve tê-los alarmado para que saíssem deste local. Vou descer do fiacre e sondar os arredores. A berlinda não pode estar muito longe.
Depois de meia hora Fersen encontrou a berlinda. Estava a cerca de oitocentos metros e não estivera visível porque as lâmpadas tinham sido cobertas. O condutor ficara alarmado com o enorme atraso e, ao ver homens passando a cavalo, julgara necessário sair do ponto combinado para o encontro.
Fersen conduziu o fiacre até a berlinda e a família real baldeou de um veículo para o outro.
Agora estavam prontos para prosseguir sua jornada. Contudo, o começo fora tenso, e eles tinham planejado deixar Paris à meianoite; agora eram duas da manhã.
Fersen conduziu a berlinda a toda velocidade até Bondy, onde foi necessário trocar os cavalos. Enquanto isso era feito, Fersen examinou a berlinda, certificando-se de que tudo estava em ordem. Depois caminhou até a porta da berlinda. Enquanto Fersen se despedia da família real, ele e a rainha não desviaram os olhos um do outro.
Antonieta disse em voz baixa:
- Nada disto teria acontecido sem você.
- Vocês precisam interpretar seus papéis - lembrou. - Não esqueça, Vossa Majestade, de que é a governanta.
- Se retornarmos, não esqueceremos você - disse o rei.
- Quando retornarmos - corrigiu a rainha. Fersen se afastou da berlinda e disse em voz alta:
- Adieu, madame de Korff!
A berlinda começou a andar. Fersen montou no cavalo que tinha providenciado para estar à sua espera e o conduziu para Bondy, na direção de Lê Bourget.
Antonieta pensou:
Dentro de dois dias iremos nos encontrar em Montmédy.
Porém, quando o alvorecer revelou a silhueta de Fersen afastando-se, Antonieta sentiu um pressentimento terrível. Tudo isto havia sido planejado por Fersen; sem ele, Antonieta não sentia a mesma confiança, a mesma certeza de que tudo correria bem.
Apenas dois dias, lembrou a si mesma.
Mas muita coisa poderia acontecer em dois dias.
As crianças acordaram.
- Estou com fome! - anunciou o delfim. - Já estamos chegando?
- Ainda falta muito - respondeu a rainha. - Mas agora faremos nosso piquenique.
- Um piquenique de verdade? No campo?
- Não, na carruagem. Vou ver o que temos no armário. Madame de Tourzel tinha se levantado e estava prestes a abrir a porta do armário.
- Não - disse-lhe Antonieta. - Eu farei isso. E Elisabeth irá me ajudar. Não esqueça que Elisabeth é a aia e eu sou madame de Rochet, a governanta. Madame de Korff, imploro-lhe que fique sentada e permitam que suas criadas lhe sirvam.
Madame Royale pareceu pasma, mas o delfim deu de ombros, deliciado.
- Entendam, este é um novo tipo de baile à fantasia-disse a rainha. - Você é uma menininha, meu querido, não esqueça disso. E eu sou a sua governanta. Você deve sentir um pouco de medo de mim, creio, porque sou muito severa, e quando falar comigo, não esqueça de tratar-me por madame Rochet.
- Madame Rochet, madame Rochet... - cantarolou o delfim. Elisabeth pegou os pratos de prata que Fersen guardara no
coche, porque ele julgara inconcebível que a rainha comesse em qualquer coisa que não fosse de ouro ou prata. A rainha tirou o frango enquanto o rei encontrou o vinho.
As crianças riram alegremente. Esta era realmente uma boa forma de fazer um piquenique. Eles tiraram a carne do frango e jogaram os ossos pela janela. O delfim fingiu sentir muito medo de madame Rochet e, atirando-se de coração ao jogo, insistiu que madame Royale brincasse com ele. Mas madame Royale, que tinha treze anos, não podia ser enganada tão facilmente, e a tensão que pairava no ar não lhe escapou.
Em Claye, eles pegaram as duas damas de companhia que já estavam ali há horas e ficaram deliciadas ao ver a berlinda, porque o atraso deixara-as muito ansiosas. Os cavalos foram trocados e a jornada continuou.
O rei estudou os mapas, seguindo a rota e descrevendo-a a madame Royale e ao delfim.
- Aqui, vocês vêem, deixamos Paris para trás e atravessamos Bondy e Claye. Agora chegamos a La Ferté. Em seguida iremos a Châlons-sur-Mar-ne...
Ah, depois que passarmos por lá!, pensou a rainha.
Porque depois de Châlons a maior parte do perigo teria acabado. A cavalaria, prometida pelo duque de Choiseul e por Bouillé, estaria esperando por eles depois dessa cidade. Então a jornada até Montmédy começaria, e em Montmédy Axel estaria à sua espera.
À medida que o tempo passava, o calor no interior da berlinda ficou opressivo.
O delfim começou a lamuriar.
- Oh, maman, estou com tanto calor! Quero sair agora...
- Seja paciente - aconselhou a rainha. - Não esqueça que sou a sua governanta severa, madame Rochet.
- Não, não! - disse o delfim.-Você é a minha maman, e eu estou com calor demais.
Quando o coche começou a enfrentar a subida de uma colina, madame de Tourzel sugeriu que ela e as crianças fossem andando. Seria bom para eles fazerem um pouco de exercício, e eles não iriam muito mais devagar que o coche, ao qual iriam se reunir no topo da colina.
Esta pareceu uma sugestão excelente, e a berlinda foi parada enquanto madame de Tourzel saltava com as crianças. A berlinda alcançou o topo da colina primeiro, porque o delfim quisera ficar mais um tempo nos campos, e aproximadamente meia hora foi perdida nesse porto. Mas ninguém achou que isso fosse de grande importância porque o menininho agora estava menos agitado, e depois de outra refeição ele se encostou na mãe e se pôs a dormir.
A tarde começava quando eles chegaram a Petit Chaintry-um vilarejo próximo à cidade de Chaintry - porque Fersen considerara sensato que eles trocassem de cavalos no povoado menor. O genro do mestre de posto estava passando o dia com a família da esposa em Petit Chaintry; ele era um estalajadeiro que viajava de vez em quando para Paris, onde já vira o rei.
Enquanto os cavalos eram trocados, este homem, Gabriel Vallet, contornou o veículo, mais impressionante do que qualquer outro que ele já tinha visto. Era magnífico.
Os viajantes deviam ser muito ricos, deduziu. Ele tocou a berlinda e meneou a cabeça sabiamente.
Ah, sim, uma bela peça, realizada com grande perícia.
E enquanto vislumbrava o revestimento em damasco da cabine, pensou:
São emigres. Mas quem? Gente importante, sem dúvida. Deve fazer muito calor dentro da cabine. Por que eles não saltam e respiram um pouco de ar fresco?
Ele passou diante da janela da berlinda, e engoliu em seco. Será que estava enganado? A peruca era grosseira, e o chapéu era o de um lacaio. Mas o rosto por baixo dele... aquele rosto rechonchudo com um nariz longo. Não, ele não estava enganado. Duas crianças e uma mulher vestida de governanta. Governanta! Nem mesmo durante a revolução, quando todas as classes tinham descoberto que eram iguais, uma governanta aprendera aquele ar de dignidade.
Vallet chamou seu sogro a um canto.
- Você tem visitas ilustres, papai - disse ele.
- Mesmo? - disse o velho. - E quem são?
- Apenas o rei, a rainha, o delfim, madame Royale e alguns outros.
O velho ficou pasmo de surpresa e prazer em estar servindo ao rei. Ele caminhou até a berlinda e, curvando-se até o chão, disse:
- Vossa Majestade, esta é uma grande honra, da qual me lembrarei até o dia de minha morte. Somos gente humilde, mas tudo o que temos está a serviço de Vossa Majestade.
Luís, tocado como sempre pela devoção de uma de suas crianças queridas, murmurou para a rainha, que estava parecendo aterrorizada:
- Não tema. Estamos longe de Paris, e essas pessoas queridas são nossas amigas.
Vallet apareceu e fez uma mesura, imitando seu sogro. Em seguida sua esposa apareceu com a mãe dela e suas irmãs. Estavam todos empolgados.
- Temos um ganso pronto para servir, Vossa Majestade. Se nos der a honra de comê-lo... nós iremos nos considerar seus súditos mais afortunados.
Luís decidiu que recusar a hospitalidade seria falta de educação. Assim, saltou da berlinda e foi refrescar-se na casa dessa gente - e a rainha encontrou entre os tesouros que trazia consigo presentes para dar à família. O delfim recuperou o ânimo, e madame Royale, que agora entendia que eles estavam fugindo do sinistro Palácio das Tuileries, estava igualmente alegre.
Vallet pediu um favor especial. Ele ficaria extremamente honrado se pudesse agir como postilhão na berlinda até Châlons. Ele rogou ao rei que aceitasse seu serviço.
O rei não sabia como recusar este pedido, porque aceitara a homenagem e a hospitalidade da família de Vallet. Assim, todos partiram animados de Petit Chaintry. Haviam perdido algum tempo parando ali, e não tinham conseguido compensar a perda inicial. Vallet, determinado a servir ao rei da melhor forma possível, forçou demais os cavalos, com o resultado de que um deles caiu, danificando a tração.
Isto precisou ser reparado, o que naturalmente envolveu mais atraso. Mas, finalmente, eles chegaram a Châlons.
Aqui o segredo de sua identidade precisava ser mantido, porque Châlons não era uma aldeiazinha. Estavam todos muito animados. Estavam perto de seu destino, e depois que tivessem atravessado Châlons, fariam contato com a cavalaria. Além disso, o povo desta região vinícola não estava tão interessado em política quanto os parisienses. Eles tinham visto muitos emigres escapando para a fronteira. Por que haveriam de dar atenção especial a um grupo tão pequeno?
Contudo, havia o fato de que, se eles tinham visto muitos emigres partindo, jamais tinham visto nenhum viajando com tanto estilo, e a berlinda, com seus seis cavalos e sua aparência externa magnífica, seria motivo de atenção para onde quer que fosse.
Vallet, o orgulhoso postilhão, determinado como estava a manter o segredo, traiu o fato de que ele, não obstante, tinha um segredo. O povo da vila, que gostava de ficar perto dos postos para conversar com os viajantes, ficou imensamente impressionado com a berlinda. Eles a inspecionaram, e também seus ocupantes. Duas crianças. Isso por si soja era suspeito. Quem seriam esses viajantes misteriosos? Pessoas de posto elevado. Ora, será que seriam... E por que não seriam...?
E ainda havia Vallet, pavoneando em torno da berlinda, parecendo que podia contar uma bela história se quisesse, não estivesse disposto a honrar um segredo.
Um errante sussurrou ao mestre do posto enquanto este trocava os cavalos:
- Quem você acha que eles são, hein?
- Eles não me contaram seus segredos - murmurou o mestre do posto.
- Eles têm sangue real, me parece...
- O que você está sugerindo?
- Que são Luís e Antonieta.
- Psiu! - repreendeu o mestre de posto, que não gostava de responsabilidade. - Meu trabalho é trocar cavalos, não inventar problemas.
Os cavalos foram mudados; a berlinda estava pronta para seguir viagem. Entre a multidão que se reuniu para vê-la partir, já se sussurrava:
- É o rei e sua família.
A berlinda seguiu para Châlons.
O rei sorriu e reconfortou sua família dizendo:
- Esse lugar foi um teste. Tínhamos decidido que depois de passarmos por Châlons, estaríamos em segurança.
Ele fechou os olhos. Agora estava pronto para um cochilo. E enquanto ouvia o pocotó-pocotó dos cascos dos cavalos, a rainha pensou:
Em breve, Axel... em breve.
Logo eles alcançariam Pont de Somme-Vesle, onde seriam recebidos pelo duque de Choiseul e sua cavalaria, que acompanhariam a berlinda até seu encontro com os soldados de Bouillé.
- E então tudo estará bem - disse o rei -, porque se alguém tentar nos deter, terá de enfrentar meus leais soldados.
O delfim estava apontando para os campos verdejantes.
- Papá,papá, deixa a gente sair para colher flores!
- Talvez seja melhor não fazermos isso - disse a rainha. Já estamos atrasados.
Nós deixamos o perigo para trás - assegurou Luís. - Alguns minutos ao largo da estrada não nos fará mal... e acalmaremos monsieur lê dauphin.
E assim a berlinda parou, e o delfim e madame Royale saíram correndo, gritando de alegria.
Antonieta ficou sentada na berlinda, abanando-se.
- Foi agradável estar com pessoas leais novamente - disse Antonieta.
- Aquele Vallet é um homem comovente - murmurou o rei.
- Muito comovente... em seu desejo de nos ajudar.
Ao longe, ouviram um som de cascos a galope, cada vez mais próximo. Era um cavaleiro solitário que estava reduzindo um pouco o ritmo à medida que se aproximava da berlinda.
Antonieta e o rei olharam pela janela e viram o rosto dele tenso e excitado.
- Tenham cuidado! - gritou. - Seu plano foi descoberto. Vocês serão detidos.
E então o cavaleiro sumiu.
O rei e a rainha entreolharam-se, horrorizados.
E então Antonieta gritou para madame de Tourzel:
- Traga as crianças de volta para a carruagem. Precisamos partir o quanto antes!
Eles entraram em Pont de Somme-Vesle. O lugar parecia deserto. O batedor, que tinha cavalgado à sua frente para certificar-se de que haviam cavalos descansados à sua espera, encontrou-os com uma expressão preocupada.
A cavalaria não estava lá.
Enquanto os cavalos eram trocados, um grande desânimo se abateu sobre a berlinda, e finalmente um único cavaleiro apareceu ao longe.
O rei pôs a cabeça para fora da janela e gritou para ele:
- Onde está o duque de Choiseul?
- Ele partiu, Majestade, com seus hussardos.
- Porquê?
- Devido ao fato de Vossa Majestade não ter chegado na hora combinada. Vossa Majestade deveria ter chegado há três horas, e devido à mensagem confusa de monsieur Léonard, monsieur duque de Choiseul deduziu que vocês não tinham conseguido partir na data prevista.
- Ele tinha ordens para esperar a nossa chegada! - gritou o rei.
- Sim, Majestade, mas ele temia problemas. Fizeram-lhe perguntas. Muitas pessoas passaram pela estrada e quiseram saber o que significava a presença de tropas neste distrito. A resposta de monsieur de Choiseul foi que ele estava guardando um tesouro que seria transportado pela estrada até Paris. Mas havia um rumor que Vossa Majestade e a rainha estavam vindo nesta direção com as crianças reais, e o prefeito temeu que a plebe se revoltasse contra os soldados e impedisse vossa passagem. Houve problemas entre alguns plebeus e soldados. Monsieur de Choiseul considerou que sua permanência causaria um grande dano, e assim seguiu para Clermont. Ele enviou mensagens através de Léonard para o marquês de Bouillé, explicando o que fez.
A rainha disse:
- Será necessário que prossigamos sem a escolta, e que o façamos a toda velocidade. Choiseul e os seus hussardos não conseguiram nos encontrar, mas teremos dragões de cavalaria à nossa espera em Sainte-Ménehould.
Ela se sentou de novo, determinada a não mostrar aos outros o quanto estava ficando alarmada.
Na cidade de Sainte-Ménehould, corriam rumores. Alguma coisa estava em andamento. Durante o dia inteiro a cidade estivera cheia de dragões de cavalaria, que perambulavam por ela como se esperassem por algum evento importante. Eles tinham visitado as estalagens; tinham bebido livremente e jogado com os habitantes locais. Alguma coisa estava prestes a acontecer em Sainte-Ménehould, e precisava ser mantida em segredo de seus habitantes. Isto não era direito. Mas o que eles podiam fazer quanto a isso? Podiam adivinhar! Os soldados, quando regados com bebida, encontravam dificuldade em manter silêncio. Algumas pessoas importantes estavam vindo nesta direção e era preciso escoltá-las em sua jornada. Oh, a julgar pelos preparativos, tratava-se de um grupo muito importante.
- Talvez o príncipe de Conde ou alguma outra pessoa de título semelhante? - perguntou o estalajadeiro.
- Talvez. Talvez.
Os soldados pavoneavam pelas ruas. Seu comandante, o conde de Damas, estava alarmado. Ele viu que muitos deles estavam muito íntimos de certos rapazes que ostentavam abertamente o cocar azul, branco e vermelho.
Léonard chegou à cidade com uma mensagem confusa. O pequeno cabeleireiro estava muito nervoso. Seu trabalho era criar novos estilos de penteado para as damas, não cavalgar pelo campo entregando mensagens verbais que ele não compreendia.
Qual era a mensagem exata que ele recebera de monsieur de Choiseul? Ele não conseguia lembrar direito. Mas sabia que o monsieur de Choiseul tinha achado melhor sair de Pont de Somme-Vesle porque os habitantes desse lugar estavam desconfiados dele.
Damas considerou. Ele decidiu mandar a maior parte de sua tropa para um local a oito quilómetros dali, onde eles poderiam acampar pela noite. Ele próprio permaneceria em Sainte-Ménehould, saudaria o rei quando chegasse, e lhe diria que precisara dividir seus soldados devido aos rumores crescentes.
Assim, quando a berlinda chegou a Sainte-Ménehould, foi para mais uma vez não encontrar nenhuma escolta à sua espera.
Mas Damas estava lá e foi bom vê-lo. Ele foi capaz de explicar a situação. Seus dragões de cavalaria não estavam longe dali, e depois de passar por Lês Islettes, a berlinda tomaria a estrada tranquila até Varennes, e não muito longe dessa cidade eles iriam encontrar Bouillé e seu exército.
Fora providenciado para que cavalos descansados estivessem à espera deles nas vilas pequenas onde não havia postos, mas onde também não havia gente enxerida perguntando quem eles eram.
Houve um certo atraso e algum desentendimento, mas Damas assegurou ao rei e à rainha que eles estavam praticamente na estrada para a segurança.
Entre as pessoas que observaram a bela berlinda enquanto os cavalos eram trocados e que viram a forma respeitosa com a qual o oficial dos dragões de cavalaria dirigiu-se aos ocupantes do coche, estava o filho do mestre do posto, Jean Baptiste Drouet.
Ele era um rapaz de fortes sentimentos revolucionários, e sabia que os ocupantes daquela carruagem eram emigres; mais do que isso, eram pessoas de posto elevado, afinal, quem senão os muito ricos escapariam com tanto conforto?
Ele observou a berlinda partir e, enquanto o fazia, Guillaume, um de seus amigos, chegou e disse:
- Jean Baptiste, você sabe quem essas pessoas eram?
- Alguns daqueles malditos aristocratas - disse Jean Baptiste.
- Por que devemos deixá-los passar? É nosso dever detê-los.
- Alguém que chegou de Châlons disse que eles são o rei e a rainha.
Drouet colocou a mão na cintura e disse, agressivo:
- O rei e a rainha! E nós os deixamos passar! Ele trepou no muro da casa de seu pai e gritou:
- Cidadãos! Sabem o que acaba de acontecer? O rei e a rainha passaram por aqui. Estão fugindo para a fronteira!
Uma multidão se reuniu. Eles sorriram.
- Oh, é o Jean Baptiste de novo. Como é esquentado esse rapaz. Ele devia ir a Paris e dizer a eles como comandar a revolução.
- Cidadãos! - gritou Jean Baptiste. - Vão esperar aqui e carregar o veneno da França sobre seus ombros?
- O que podemos fazer? - perguntou um vinicultor. - Correr atrás da carruagem?
- Meu Deus! - gritou Jean Baptiste. - Alguém deve fazer isso. Vamos, Guillaume. Eles estão a caminho de Varennes. Foi o que me disseram. Chegaremos lá antes da família real e levantaremos a cidade contra eles. Eles não podem passar de Varennes. Agora nós sabemos por que há tantos soldados nos arredores. Eles vão avançar contra nós... destruindo as vinhas... destruindo nossas casas. Vamos, cidadãos!
O povo de Sainte-Ménehould deu com os ombros. Guillaume estava relutante.
- Não passe ridículo! - disse a esposa de Jean Baptiste. Mas Jean Baptiste era um filho da revolução. Ele exigiu que
Guillaume fosse com ele. E como Guillaume poderia recusar um comando de um filho tão bom da revolução? Eles selaram seus cavalos.
- Eles estão com uma boa vantagem à nossa frente - disse Jean Baptiste. - Mas nós conhecemos os atalhos até Varennes!
E então a berlinda chegou a Varennes. Exaurido pelas aventuras do dia, o rei cochilava. A rainha mantinha os olhos fechados, mas não dormia; estava ansiosa demais para conseguir dormir.
Não conseguirei descansar antes que alcancemos Montmédy, disse a si mesma. Então Axel estará lá. Se Axel tivesse ficado conosco, certamente esses acidentes não teriam nos abalado.
Eram dez da noite; a escuridão caíra e nuvens obscureciam a lua.
A berlinda agora estava passando debaixo de uma igreja que tinha sido construída sobre a rua, formando um arco. O caminho, portanto, era muito estreito, e enquanto a berlinda reduzia a velocidade para passar debaixo do arco, ouviu-se um grito de "Alto!", e o veículo parou abruptamente.
A cada janela apareceu um homem armado com pistola.
- Seus passaportes? - disse Jean Baptiste Drouet. Madame de Tourzel apresentou os passaportes falsificados.
- Estou viajando para a Rússia com meus filhos e meus criados - explicou.
Jean Baptiste examinou os passaportes. Ele tremia de empolgação. Este era o maior momento na vida de um revolucionário do campo. Se a fuga do rei e da rainha fosse impedida, ele, Jean Baptiste Drouet, teria a honra de anunciar este grande evento.
Se ele não tivesse cavalgado com Guillaume para Varennes! E como ele precisara forçar Guillaume a acompanhá-lo, seu companheiro teria uma parcela de triunfo menor que a sua! Se ele não tivesse forçado os cidadãos de Varennes a soar o sino de alarme e se preparar para ajudá-lo neste assunto! Ele era um bom membro do Clube dos Jacobinos; e este era o seu grande momento.
- Temo que não posso deixá-los passar - disse ele, olhando para a mulher que se dizia madame Rochet, mas que ele sabia ser outra pessoa.
- Meu passaporte está em ordem! - protestou madame de Tourzel.
- Terei de confiscá-lo - disse Jean Baptiste. - Ele será examinado pelo solicitador de nossa cidade. E a senhora deve acompanhar-me até a casa dele. - E virando-se para o cocheiro: - Siga. Você será conduzido até a cada de monsieur Sausse.
A rainha olhou pela janela e arfou, horrorizada. Ela viu que a berlinda estava cercada por rapazes, e que muitos deles portavam o emblema da revolução.
Monsieur Sausse, prefeito, solicitante e dono de lojas em Varennes, era um homem que não gostava de arrumar problemas. Sua simpatia era pela realeza, mas, se necessário, estava preparado a guardar isso para si.
Ele sabia do tumulto na cidade. Estava ressentido com a intrusão deste jovem arruaceiro de Sainte-Ménehould. Ele examinou o passaporte.
- Este passaporte está em ordem - disse ele.
- Então deixe-nos ir-disse a rainha.-Estamos muito apressados.
Eles se viraram e começaram a caminhar até a berlinda. Mas Drouet segurou monsieur Sausse pelo braço e o balançou.
- Está maluco? Estou lhe dizendo, esse homem é o rei. Vai deixar que ele fuja? Você será um traidor da França. E você sabe o que eles fazem com traidores.
Monsieur Sausse sabia. Ele tinha visto o que acontecera com eles aqui em Varennes. Ele ouvira histórias de eventos ainda mais terríveis em Paris.
Enquanto isso, os sinos repicavam e o povo de Varennes corria para as ruas.
Monsieur Sausse não era um homem corajoso.
Ele mandou os viajantes descerem novamente da berlinda.
- Temo que não possa permitir que partam de Varennes esta noite. Tenho certeza de que vocês não desejam viajar à noite. Permitam-me oferecer-lhes a hospitalidade de minha casa.
O rei olhou para a rainha. Havia resignação na expressão do rei. Havia desespero na da rainha. Ambos sabiam que não havia alternativa senão obedecer.
E então, à casa humilde de monsieur e madame Sausse foram o rei e a rainha com seus filhos, madame Elisabeth e duas damas de companhia.
E enquanto madame Sausse, impressionada com o garbo nas maneiras de seus convidados, apressadamente punha-se a cozinhar e pegar camas emprestadas para todos eles, a notícia corria pela cidade:
- O rei e a rainha estão em Varennes.
E nesta praça, Drouet reuniu seus revolucionários. Eles chegaram com seus utensílios de fazendeiros - seus ancinhos e suas ceifas.
E Drouet falou com eles, gritou com eles, lembrando-lhes de seu dever para com a revolução.
O rei foi o único capaz de comer bem, mas as crianças, exauridas pelo dia difícil, adormeceram rápido.
Agora que os Sausses não mais tinham qualquer dúvida sobre a identidade de seus convidados, eles os tratavam com o máximo de respeito; e estava claro para os emigres que se dependesse da vontade de seus anfitriões, eles iriam ajudá-los a escapar.
Mas o que poderiam fazer? Os gritos continuavam enchendo as ruas. Drouet tinha organizado bandos, armados com ancinhos e foices, para guardar a casa e impedir que os prisioneiros escapassem.
Enquanto o rei estava comendo, uma comoção se fez ouvir no lado de fora, e dois oficiais, de Damas e Goguelat, atravessaram a duras penas a multidão que cercava a casa e exigiram ser levados ao rei.
De Damas explicou que ele tinha planejado uma forma de fugir da cidade, mas que quando explicara seu projeto aos seus homens, muitos tinham-no desertado, declarando-se partidários da Nação. Goguelat tivera a mesma experiência.
Antonieta estava desesperada. Ela não sabia como Luís era capaz de permanecer impassível daquele jeito. Ele não se importava com o fato de todos os seus planos terem ido por água abaixo? Antonieta tinha a impressão de que Luís não sentia o mesmo que ela sobre a situação. Ele resistira por muito tempo contra o plano para escapar. Ele odiava fugir de "seus filhos", como insistia em chamar essas pessoas que estavam determinadas a derrubá-lo.
Ah, Luís! Se você fosse diferente, não estaríamos agora neste beco sem saída!
A chegada de Choiseul renovou as esperanças da família real. Choiseul, com alguns de seus homens leais, lutara para atravessar a multidão, ferindo algumas pessoas no processo.
Choiseul tinha um plano.
- Vossa Majestade, sugiro que lutemos para sair da cidade. O aviso já foi emitido para Bouillé e ele não tardará a juntar-se a nós. Se pudermos lutar para sair de Varennes, pegaremos a estrada até Montmédy, e no caminho conseguiremos encontrar Bouillé e seu exército.
- Se fizermos isso, haverá derramamento de sangue - disse o rei.
- Majestade, meus soldados estão prontos para lutar.
- Meus soldados lutando contra o meu povo!
- Eles aprenderão que ainda há homens na França dispostos a lutar pelo rei.
- Não posso permitir um conflito - disse Luís, balançando negativamente a cabeça. - E se a rainha for ferida? E se o delfim for morto? Eu jamais irei me perdoar.
Choiseul abaixou a cabeça. Ele considerou o rei extremamente imbecil, porque estava jogando fora uma de suas últimas chances de alcançar a liberdade. Mas Choiseul era um soldado acostumado a acatar ordens, e as ordens do rei eram para que eles continuassem na cidade.
Luís sorriu.
- Antes que amanheça, Bouillé estará aqui. A visão de tamanha força fará o povo voltar tranquilamente para suas casas.
- É verdade, Majestade - disse Choiseul.-Tudo ficará bem se Bouillé e o exército chegarem a tempo.
Antonieta ouviu atentamente. Ela se sentiu drenada de todas suas forças. Seu coração estava batendo num ritmo alucinado. Bouillé precisava chegar a tempo. Precisava!
Eram seis e meia da manhã. A noite terrível havia acabado, e Bouillé ainda não tinha chegado. Dois cavaleiros entraram a todo galope na cidade de Varennes. Eles saltaram de seus cavalos suados e, cercados pelos homens e mulheres que tinham enchido as ruas durante a noite inteira, exigiram saber se uma berlinda equipada magnificamente passara pela cidade.
Ela tinha chegado, disse-lhes Drouet. E ainda estava aqui. E os ocupantes, que eram o rei e a rainha - suas identidades eram conhecidas graças à sua astúcia - estavam alojados na casa de monsieur Sausse, o prefeito.
- Levem-nos até lá! - disse um dos homens. - Nós somos mensageiros da Assembleia Nacional. Viemos de Paris no rastro do rei, tendo recebido instruções de fazê-lo assim que a fuga tivesse sido descoberta.
Eles foram levados até a casa de monsieur Sausse, e até a presença do rei e da rainha, que estavam com suas crianças adormecidas.
- Majestade - disse Bayon, um dos homens - viemos da Assembleia com este decreto.
O rei pegou o documento. Ele declarava que seus direitos de monarca tinham sido suspensos e que os dois homens que haviam trazido o decreto tinham sido instruídos a impedir o prosseguimento de sua jornada.
O rei virou-se para Antonieta.
- Eles estão determinados a nos levar de volta até Paris.
Luís, absolutamente indignado, atirou o papel na cama. A rainha pegou o papel, amassou-o numa bola e o jogou no chão, o rosto carregado de desprezo.
O rei disse:
- Vocês estão cientes de que Bouillé está marchando para esta cidade? Se ele chegar enquanto vocês estiverem tentando forçar o nosso retorno, haverá derramamento de sangue em Varennes.
- Majestade, recebemos nossas ordens de monsieur de La Fayette e da Assembleia Nacional.
- As ordens do seu rei não significam nada para vocês? Um dos homens - Romeuf - pareceu envergonhado. Mas o
outro falou com ousadia:
- Precisamos obedecer a Assembleia.
- Vocês não estão entendendo - argumentou Luís. - Quero apenas reunir soldados leais à minha volta, e então irei negociar e chegar a termos com os homens que estão fazendo a revolução. Esperem até a chegada de Bouillé. Ficaremos aqui por pouco tempo. Tenho certeza disso.
Romeuf, que frequentemente guardara o Palácio de Tuileries e ficara impressionado com a coragem demonstrada pela rainha, olhou ansioso para seu companheiro e disse:
- Não recebemos instruções sobre quando devemos fazer a jornada de volta. Podemos esperar por Bouillé.
A resposta de Bayon foi marchar para fora da sala. Ele parou diante da porta da casa, e a multidão reunida lá fora fez silêncio. E então Bayon gritou:
- Eles querem que esperemos aqui até que Bouillé chegue com seu exército. Bouillé é contra a revolução. Ele irá cortar vocês em pedaços. Ele trará um derramamento de sangue para Varennes. Ele tem sob seu comando soldados treinados, homens armados. E o que vocês têm além de ancinhos, foices e algumas pistolas que não serão de qualquer ajuda? Precisamos partir para Paris assim que for possível... e precisamos levar a família real conosco.
- A Paris! - gritou alguém na multidão. E os outros ecoaram o grito.
Na sala, Romeuf fitou tensamente a rainha, que mal olhara para ele desde que entrara na casa. Antonieta sabia como demonstrar seu desgosto fazendo com que aqueles que a desagradavam tivessem a sensação de não existir, no que lhe dizia respeito.
Romeuf lamentava muito ter sido escolhido para aquela tarefa.
Ele disse:
- Madame, eu tentei... eu fiz tudo que estava ao meu alcance... para retardar a nossa jornada. Quando passamos nas cidades na rota, e ouvi que uma berlinda magnífica tinha passado por ali, fiz tudo que podia para....
A rainha virou-se para ele e lhe dirigiu um sorriso encantador.
- Sinto muito por tê-lo julgado mal. Eles escravizaram vocês... exatamente como fizeram conosco.
- Há uma coisa que vocês podem fazer, madame - disse Romeuf, quase feliz agora.-Retardem a volta. Não permitam que eles os levem para Paris... Façam qualquer coisa... mas permaneçam aqui... até Bouillé chegar. A turba pode ser dispersada com alguns tiros, e seu empreendimento será bem-sucedido.
Bayon retornou à sala.
- Preciso pedir a Vossas Majestades que se preparem imediatamente para retornar a Paris.
- As crianças ainda não estão prontas - disse a rainha.-Elas não podem ficar assustadas. Ainda estão sonolentas.
- Então, madame, acorde-as e preparem-nas imediatamente. Madame de Tourzel e madame Neuville acordaram as crianças e as vestiram. O Delfim fez perguntas animadas e ficou deliciado em ver os uniformes de Bayon e Romeuf.
- Então temos soldados! - comemorou. - Vocês vão fazer um piquenique conosco?
- Sim - disse Bayon, taciturno. - Estamos indo com vocês, monsieur lê dauphin.
- Eu gosto de soldados - confidenciou o delfim. Madame Royale estava calada, compreendendo que todos eles
se encontravam em grave perigo. - Precisamos comer antes de iniciarmos a jornada-disse o rei. - Tivemos uma noite exaustiva e não estamos em condições adequadas de saúde para viajar.
Madame Sausse disse que iria preparar comida. E ela murmurou para madame de Tourzel:
- Vou me demorar tanto quanto puder. Rezo para que as tropas cheguem a tempo e salvem Suas Majestades desses revolucionários horrorosos.
- Sim, por favor, demore muito, muito tempo preparando a refeição - disse Antonieta.
Madame Sausse virou-se para ela com olhos atormentados.
Farei o que puder, madame, mas não ousarei demorar tempo demais. Se eles suspeitarem que tentamos ajudá-los, nem imagino o que será de nós. Já aconteceram coisas terríveis, senhora.
Antonieta estendeu o braço e segurou a mão de madame Sausse - tu sei que você fará o que puder
No fim das contas a refeição foi servida, mas apenas o rei e as crianças conseguiram comer. E quando terminaram, Bouillé ainda não havia chegado.
- O que podemos fazer agora? - gritou Antonieta. - Ele deve estar próximo. Oh, Deus, o que o está detendo?
Madame Neuville subitamente caiu no chão e começou a gemer e espernear.
A rainha se ajoelhou diante dela. Ela gritou para todos que observaram a cena:
- Não fiquem parados aí. Tragam um médico. Não podemos viajar com a dama neste estado.
Madame Neuville abriu um olho. A rainha curvou-se sobre ela. Você é muito boa - sussurrou. - Foi um ataque convincente.
Mas o médico foi trazido rápido demais, porque estava com a multidão diante da casa dos Sausses, e cinco minutos depois estava debrussado sobre madame
O médico deu à mulher uma poção que, segundo declarou, iria colocá-la em forma, e acrescentou que ela estava em perfeitas condições para viajar sem demora.
A turba estava desconfiada.
- Não podemos esperar mais! - gritaram. -À Paris!
Apesar de todos os esforços, Bouillé não tinha chegado, e não se podia esperar mais. A família real entrou na berlinda. O povo de Varennes marchou ao lado e atrás, na frente e à volta da berlinda. Eles iriam acompanhar o veículo durante o primeiro estágio de sua jornada até que revolucionários mais ardentes estivessem preparados para assumir seu lugar.
- A Paris! - gritava a multidão. - A Paris!
E a rainha se recostou no banco, exausta, humilhada, perguntando-se amargamente o que aconteceria agora em Montmédy.
Quase uma hora depois, Bouillé e seus homens chegaram a cavalo até os arrabaldes de Varennes.
Eles sabiam que haviam chegado tarde demais. A ponte tinha sido derrubada, impossibilitando a passagem pelo rio. Durante o percurso pela estrada, eles tinham visto plebeus armados com ancinhos e cantando músicas da revolução.
Também era tarde demais para alcançar a berlinda. O povo estava irritado. Bouillé deduziu que eles não podiam fazer nada além de retornar por onde tinham vindo. Ele não queria provocar uma guerra civil.
Indefeso, mortificado, ele se retirou da cena.
E então começou a jornada terrível até Paris, que foi muito mais lenta do que tinha sido a jornada até Varennes.
Em cada cidade pela qual passaram, multidões se reuniram. Eles fizeram daquela uma ocasião de festa. Os plebeus bêbados ficavam parados na estrada, esperando a berlinda passar. Eles a seguiram por quilómetros, olhando pelas janelas, vociferando insultos contra a família, reservando as obscenidades mais aviltantes para a rainha que, mais do que todos os outros, irritava-os devido à forma calma e arrogante com que ficava sentada ali, parecendo não vê-los.
- Abaixo Antonieta! - gritavam. - Enforquem Antonieta! E eles se aproximavam da janela da berlinda, e se penduravam
nela, brandindo facas. Ainda assim, Antonieta não olhava para eles. E sua dignidade apenas os enervava, enquanto caíam murmurando "Abaixo Antonieta".
Fazia um calor intenso; a berlinda fechada estava abafada como uma estufa; a jornada parecia interminável. Havia dois representantes da Assembleia Nacional guardando-os na carruagem; um era Pétion, o outro Barnave. Pétion, um dos jacobinos, não conseguia resistir a conversar com a família real, e dirigia a maioria de seus comentários à rainha, porque sentia que ela era mais merecedora de seu interesse que os outros. Eles discutiram o estabelecimento de uma república, e os objetivos da Assembleia.
- Madame não deve pensar que nós da Assembleia somos como essas pessoas rudes que espiam pela janela da carruagem e gritam insultos para a senhora. Temos nossos motivos para exigir uma mudança.
Ele explicou o sofrimento do povo, e a rainha ouviu atentamente.
- Ah, se ao menos tivéssemos conversado mais frequentemente! - disse a rainha. - Se tivéssemos entendido as necessidades um do outro, talvez esta coisa horrível não estivesse nos acontecendo.
Tanto Barnave como Pétion estavam mudando sua visão sobre a família real durante a viagem. Quem eram essas pessoas? Eram de carne e osso, exatamente como eles. Tanto Pétion quanto Barnave deixavam o pequeno delfim sentar sobre seus joelhos, porque a carruagem agora estava abarrotada devido aos passageiros extras, e por mais que tentassem não conseguiam deixar de se encantar com o menininho tanto quanto tinham se encantado com sua mãe.
O delfim notou os botões no uniforme de Barnave e exigiu saber o que significavam as palavras neles.
- Consegue ler? - indagou Barnave. O menininho o fez lentamente:
- Vivre libre ou mourír.
- Isso mesmo.
- E vocês vão?
- Nós vamos - disseram ambos os homens.
- O que significa... viver em liberdade...? Eu sei o que significa morrer.
A rainha tirou o delfim deles. Ela sorriu para Barnave. Esses assuntos são profundos demais para ele - diagnosticou.
E assim a jornada prosseguiu.
Esses interlúdios de conversa sã eram raros. Continuamente eles eram sujeitos às palavras indignadas da turba, que cercava a berlinda. Seus gritos ecoavam pela paisagem tranquila do campo.
- Não haverá sossego?
Antonieta baixou as cortinas para não ver aqueles rostos contorcidos.
- Levantem as cortinas! - gritavam as vozes rancorosas. Queremos ver vocês.
A rainha pareceu não ouvi-los.
- Levante as cortinas - disse Elisabeth, horrorizada.
- Precisamos preservar alguma dignidade - disse Antonieta com calma. - Precisamos de um pouco de privacidade.
Ela estava comendo calmamente enquanto falava. O rei estava comendo com a expressão impassível de sempre. Elisabeth estava aterrorizada demais para comer. A turba continuou gritando por algum tempo, e então desistiu de berrar. E quando a refeição terminou, Antonieta levantou as cortinas e jogou os ossos pela janela.
Aqueles que estavam se mantendo próximos à carruagem ficaram estarrecidos com sua calma. Eles não sabiam que, por dentro, Maria Antonieta tremia de terror.
La Fayette estava à espera da família real nas cercanias de Paris.
Dentro da cidade, o povo enchia as ruas. Anúncios tinham sido afixados nos muros desde que fora descoberto que o rei e a rainha estavam voltando.
"Quem aplaudir o rei será chicoteado. Quem insultar o rei será enforcado."
La Fayette estava ansioso por evitar problemas, e providenciara para que a berlinda fizesse um circuito que evitaria a necessidade de percorrer as ruas mais povoadas.
O silêncio era dramático. Nenhum som se elevou daquela multidão tensa enquanto a berlinda atravessou o Champs Elysées e entrou no palácio.
Nos jardins do Palácio de Tuileries eles foram de volta para sua prisão soturna.
A berlinda parou e foi imediatamente cercada pela multidão. Ainda assim, ninguém falou. Os cartazes que tinham sido colados por toda a cidade precisavam ser respeitados.
A Guarda Nacional estava posicionada para proteger os prisioneiros. O rei saltou primeiro. A rainha o seguiu, e ao fazê-lo viu na multidão um rosto que ela conhecia bem.
Era o de James Armand. Muito destacado na multidão, ele usava um penacho azul, branco e vermelho.
Enquanto isso, Provence e Josèphe, viajando com humildade e discrição, chegaram a Montmédy, e recebendo notícias da má sorte do rei, atravessaram a fronteira até a segurança.
De volta à prisão. De volta ao sinistro Palácio de Tuileries. Eles haviam tentado e haviam fracassado. E por causa desse fracasso, tinham dado mais um passo na estrada para a destruição.
Antonieta pensou em Axel. Ela sempre pensava nele. Teria escapado? Devia ter conseguido, porque senão ela já teria recebido notícias dele. Antonieta fora informada pelos guardas que haviam viajado com eles que era sabido o papel desempenhado por Axel na fuga. Havia um prémio por sua cabeça. Se ele pisasse novamente em Paris, correria um grande risco.
Será que eu o verei novamente? Qual será o fim de toda esta dor?
Antonieta não conseguiu resistir a escrever para ele:
"Permita-me assegurá-lo de que ainda estamos vivos. Eu tenho estado terrivelmente preocupada com você. Estou perturbada porque sei como deve estar sofrendo se não recebeu notícias a nosso respeito. Não volte para cá sob nenhum pretexto. Eles sabem que você auxiliou nossa fuga, e somos vigiados dia e noite. Tudo que posso fazer é dizer-lhe o quanto o amo. Não fique preocupado comigo. Desejo imensamente saber que você está bem. Escreva-me em código. Diga-me para onde devo endereçar minhas cartas, porque não posso viver sem escrever-te. Adeus, mais amado e mais amoroso dos homens."
Cartas? Que consolo pobre!
Era fevereiro no Palácio de Tuileries - oito meses cansativos depois do retorno humilhante àquilo que eles podiam chamar apenas de cativeiro.
A vida estava mais difícil de suportar do que antes da fuga. Havia guardas no palácio; eles enchiam os jardins, e estavam determinados a não permitir que o rei fugisse novamente.
E sempre a mente da rainha estava ocupada com planos para uma fuga.
- Como fui estúpida! - declarou repetidamente às amigas, a princesa de Lamballe e madame Elisabeth. - Quando eu podia ter aprendido sobre governo, estava dançando e jogando. Agora eu sou uma ignorante.
- Você está aprendendo rápido - disse Elisabeth.
- E amargamente, irmãzinha.
Era verdade. No setembro que se seguiu ao retorno, o rei tinha sido forçado a aceitar a Constituição. Isto significava não apenas que a monarquia absoluta estava terminada, como que o rei estava destituído de todo o poder. O governo seria um corpo de homens eleitos.
Luís resistira o máximo possível, mas finalmente compreendera que se aceitasse a Constituição não haveria motivos para que a revolução continuasse. E de fato, quando Luís cedeu, houve um recesso nos distúrbios.
Mas os jacobinos não ficaram satisfeitos com esta virada dos eventos. Seu maior desejo era continuar com a revolução e, sabendo que o rei não concordaria que os emigres fossem chamados de volta à França e sentenciados à morte caso não o fizessem, começaram a lutar por isto.
A lei foi promulgada em novembro, mas Luís, pensando em seus dois irmãos emigres, e sabendo que eles não iriam retornar, recusou pronunciar sentença de morte contra eles. Ele aplicou seu veto; e logo toda Paris - inflamada pelos jacobinos - estava protestando contra um rei que ousara vetar os desejos do governo. Monsieur Veto, assim chamavam o rei. E obviamente, madame Veto era apontada como culpada pela recusa do rei em submeter-se.
Enquanto isso, os emigres, incluindo Provence e Artois, falavam sobre levantar forças contra os revolucionários, e ao fazer isso enfureciam o povo da França. Antonieta se manifestou contra eles porque nem Provence nem Artois estavam em posição de ajudar e até Luís concordou que eles estariam fazendo mais mal do que bem a ele e à sua família.
A rainha agora estava desesperada. Ela estava escrevendo para Fersen e recebendo cartas dele. Ela estava estarrecida com o comportamento de seu marido, que parecia incapaz de sair da letargia. Repetidamente ela pensava no quanto suas vidas estariam diferentes se Luís possuísse um pouco de iniciativa, se ele pudesse agir, e se pudesse vencer a hesitação que sempre parecia prejudicá-lo em todas as ocasiões possíveis.
Ela escreveu para seu irmão Leopold, que havia sucedido Joseph no trono, e implorou por sua ajuda. Os países da Europa, embora não estivessem preparados para arriscar muito em benefício do rei e da rainha, queriam preservar a monarquia. Eles temiam ser contaminados pela praga revolucionária.
Leopold e Frederick da Prússia encontraram-se e emitiram um apelo a outras nações europeias para que se juntassem para salvar a monarquia francesa. Enquanto isso, Fersen estava usando todos seus poderes para persuadir o rei Gustavus a ajudar a família real.
O povo nas ruas agora estava dizendo que a rainha estava enviando mensagens secretas a príncipes estrangeiros, implorando que destruíssem os franceses. Antonieta ficou arrasada. Esta foi a primeira vez que soube que aquilo que diziam dela era verdade.
- Nada senão a força armada conseguirá colocar as coisas nos eixos! - gritou a Luís.
- Não quero derramamento de sangue - argumentou o rei.
- Tenho a impressão de que você não se importaria de ver sua coroa afundar na lama! - esbravejou Antonieta. - E se eles o condenassem à morte, tenho a impressão de que você caminharia sorrindo até o cadafalso.
- Minha vida está nas mãos deles - disse Luís. - Serei rei através do amor do meu povo ou então não serei.
Ela gritou, furiosa:
- Sim, estou vendo. Estou vendo que é a sua submissão que está causando a nossa ruína.
E então Antonieta irrompeu em lágrimas e se jogou nos braços de Luís. Ele tentou confortá-la.
- É muita coisa para você suportar - disse ele. - Você precisa descansar. Precisa deixar que as coisas sigam seu rumo.
- Luís... Luís... - disse, a voz embargada pelas lágrimas.
- Como podemos saber o que fazer? Pedi a Leopold que se pusesse como líder do exército e o liderasse através de nossas fronteiras. Disse-lhe que isso deixaria os revolucionários aterrorizados devido ao que eles fizeram conosco. E então senti medo. Se Leopold marchar, o que será de nós? Eles podem colocar nossas cabeças debaixo da faca. O que podemos fazer? O que podemos fazer?
Luís podia apenas balançar a cabeça. Que utilidade tinha Luís? Antonieta foi confabular com Esterhazy, que estava se preparando para partir para a Suécia.
- Você vai ver alguém que é amigo de nós dois! - exclamou Antonieta. - Diga-lhe que embora quilómetros nos separem, nada pode separar nossos corações. É uma tortura não receber notícias daqueles a quem amamos. Leve este anel para ele. Eu sempre o usei. Agora eu gostaria que ele o usasse e ocasionalmente pensasse em mim.
Havia uma inscrição no anel. Antonieta leu-a em voz alta:
"Covarde aquele que abandona a amada."
E logo depois que tinha enviado o anel, Antonieta se arrependeu. Será que ele veria naquilo um reproche? Será que ele viria tentar salvá-la... ele, a quem os franceses esperavam?
Ela escreveu para ele imediatamente, e despachou a carta por outro mensageiro.
"Você não deve tentar vir para cá. A sua chegada iria arruinar a minha felicidade. Desejo imensamente vê-lo, não duvide disso, mas você não deve vir aqui."
Ele escreveu para ela. Ele a agradeceu pelo presente.
"Vivo apenas para servi-te", escreveu.
Antonieta recebera essa carta há uma semana atrás, num dia frio, e desde então relera-a vezes sem conta. E a cada vez pensara nele, intercedendo por ela com Gustavus, implorando a Gustavus que agisse. Mas por que Gustavus se importaria com Luís e Maria Antonieta? Contudo, ele se importava com a preservação da monarquia. Ele tinha dito que não se importava se Luís XVI, XVII ou XVIII reinava na França. Mas não se devia permitir que a ralé roubasse o trono.
Sou uma idiota, pensou. Minha tragédia é que apenas tarde demais aprendi o que é a vida. Durante muitos anos pensei que ela consistia de danças, roupas bonitas e bailes extravagantes. E então, quando já era tarde demais, descobri que não era assim.
Ela esboçou um sorriso, pensando em sua bela casa de campo, o Trianon. Ah, Trianon, será que voltarei a ver-te novamente?
Era fácil deixar-se levar por sonhos - e muito agradável; porque apenas nos sonhos do passado Antonieta encontrava a felicidade.
De repente, um ruído soou no apartamento. Antonieta não se moveu. Sabia que alguém abria uma porta furtivamente. O ruído tinha sido da chave girando na fechadura. Ela estava sozinha em seu apartamento, que ficava no térreo. Ela não ousou mexer-se. Durante todos os dias e noites ela ficava tensa, esperando... jamais sabendo quem apareceria subitamente.
E agora... havia alguém em seu quarto.
- Antonieta.
Ela não ousou virar-se. Não ousou.
Deus, estou sonhando. Não pode ser verdade.
- Antonieta!
Ele estava vindo em sua direção. Era um sonho, claro. Ela estava delirando. Aquilo jamais poderia acontecer no mundo real.
Antonieta virou-se e viu a figura familiar: a peruca tosca que ele estava usando, a casaca que lhe cobria todo o corpo, mas que não podia ocultá-lo dela.
Ela correu até ele e se jogou em seus braços. Permitiu que seus dedos explorassem o rosto do homem, enquanto seus olhos derramavam lágrimas por suas próprias faces.
- É um sonho, eu sei que é um sonho - ofegou Antonieta. Mas, Sagrada Mãe de Deus, permita que eu continue a sonhar.
- Não é sonho - disse ele.
E ele enxugou as lágrimas nas faces de Antonieta.
- É realmente você?
- Claro que sou. Vim até você... lá da Suécia.
- Mas por que... por quê?
- Para ver-te. Para abraçar-te assim. O anel não dizia "Covarde aquele que abandona a amada"?
- Oh, dê-me o anel, dê-me o anel. Eu jamais deveria tê-lo enviado. Ele trouxe você para a França... para o perigo... para Deus sabe o quê. Axel... meu amor... você está realmente aqui. Você está neste quarto, não está? Oh, seu louco! Como pôde vir e arriscar a vida para me ver?
- De que vale a vida quando não posso te ver?
- Abrace-me forte, Axel... por algum tempo. Eu quero sonhar. Eu te chamo de louco... e você realmente é, afinal veio até aqui. Mas eu sou a maior louca do mundo, porque eu o chamei, porque eu coloquei em perigo aquele a quem amo.
- Ao menos estamos juntos.
- Você pode ser descoberto a qualquer momento. A qualquer momento guardas podem aparecer na minha janela. Eles estão por toda parte. Você não sabe que há uma recompensa pela sua cabeça? Esses monstros, essa canaille, estão ansiosos para pôr as mãos em você. Eles sabem que foi você que nos levou para Varennes. Eles sabem que se você tivesse ficado conosco... se não tivesse se separado de nós em Bondy... tudo estaria bem agora. Axel... vá embora. Vá embora rápido. Mas como você veio? Venha, vamos nos recolher para um local onde não possam nos ver. Venha para o meu quarto de vestir. Ali estaremos mais seguros. Só Lamballe, Tourzel e talvez Elisabeth podem ver você. Ninguém mais, Axel. É idiotice acreditar em qualquer...
Ela o puxou até o quarto de vestir. Ela levantou as mãos para tirar a peruca. Correu os dedos pelos cabelos grossos de seu amante.
- Que este minuto continue para sempre. É um sonho.
- Não é um sonho.
- Mas como você chegou aqui?
- Eu tinha a chave. Precisei dela quando vim pegar as crianças naquela noite. Eu a guardei. Consegui passar pelos guardas. Há muitos que se vestem como estou agora... peruca barata, casaca comprida... Ninguém me deteve.
- E se o tivessem detido? - indagou, o pensamento expulsando o ar de seus pulmões.
- Eu tinha um bom passaporte. Forjado, claro. Supostamente estou viajando para Lisboa numa missão para o meu rei. Essa é a minha história. Mas é verdade que estou numa missão, só que é esta: quero tirá-la da França e desta vez vou conseguir. Estarei com você o tempo todo. Nada no mundo fará com que eu desista de meu papel até que você esteja segura do outro lado da fronteira.
- Axel, como você é corajoso! - exclamou Antonieta.-Você é capaz de fazer coisas tão perigosas por mim!
- Eu já planejei tudo - disse ele. - Vim expor meus planos a você e ao rei.
A menção a Luís trouxe Antonieta de volta à realidade.
- Luís jamais irá.
- Precisamos persuadi-lo.
- Temo que isso seja impossível. Já tentei convencê-lo muitas vezes. Ele tem uma noção idealista de que seu lugar é com o seu povo.
- Um povo que não o quer.
- Ele não acreditará nisso.
- Precisamos persuadi-lo. Ouvi histórias terríveis. Até agora você esteve segura. Mas acha que continuará assim? A sua vida corre perigo, Antonieta. Como eu queria que você não fosse rainha! Como eu queria que você fosse apenas o meu amor. Então eu não ouviria protestos... Eu levaria você comigo... quisesse ou não.
Antonieta se recostou em Axel.
- Gosto de ouvir você dizer isso, Axel. É fantástico, mas é bonito. Como eu adoraria que me levasse contigo!
Fersen disse:
- Se o rei se recusar... Ela retrucou rapidamente:
- E as crianças?
- Você e as crianças...
Ela se deixou contemplar essa solução, porque ainda estava vivendo em seu sonho. Seu amante apareceu no meio da noite, e falou sobre tirar a ela e a seus filhos deste inferno.
Esta era uma noite mágica, uma noite na qual era possível acreditar em qualquer coisa. Foi como se ela tivesse conjurado a imagem dele em seus anseios. Numa noite como esta, qualquer coisa, por mais fantástica que fosse, poderia ser verdade.
O palácio estava silencioso. De vez em quando eles ouviam os sons de guardas marchando por perto. Mas no pequeno quarto de vestir de Antonieta, eles estavam seguros.
Ela trancou a porta, trancando-se com Axel.
E naquela noite ela ficou sozinha com seu amante, e eles se amaram frenética e desesperadamente, como se ambos temessem que jamais fossem amar ou se encontrar novamente.
No dia seguinte, ela sussurrou no ouvido de Luís:
- Fersen está aqui.
- Impossível.
- Eu também achava isso. Ele chegou disfarçado. E tem planos.
- E quais planos seriam esses?
- Você precisa vê-lo. Venha ao meu apartamento às seis da tarde. Estará escuro e haverá poucas pessoas por perto. Ele não pode ir até o seu apartamento, por causa dos guardas.
- Não há nada que Fersen não possa fazer-reconheceu Luís.
Luís foi ao apartamento. Fersen estava no quarto de vestir, e Antonieta levou o rei até lá.
Fersen beijou a mão do rei e Luís confessou-se pasmo por ele ter conseguido penetrar no palácio.
- Vim com planos, Majestade - disse Fersen.
- Será cem vezes mais difícil escapar agora - disse Luís. - E a última tentativa fracassou.
- Majestade, nós aprendemos com nossos erros. Foi errado viajarmos todos juntos. Devemos dividir nosso grupo e viajar com mais simplicidade. Agora eu vejo como foi insensata a forma como agimos, embora, se tivéssemos tido um pouco de sorte, talvez tivéssemos conseguido.
- Perdi minha chance de fugir-disse o rei.-Isso não é mais possível.
Luís não olhou para Antonieta. Ela estava em pé, pálida e tensa, braços cruzados sobre os seios.
Meu Deus, Luís será derrotado porque aceita a derrota, pensou Antonieta.
Ela amava aqueles dois homens - tanto e de forma tão diferente. Ela queria fugir com Axel e implorar a ele que a tomasse nos braços e jamais a deixasse, mas ela queria embalar a cabeça de Luís em seus braços e confortá-lo.
Fersen resistiu. Valia ao menos tentar. Enquanto o rei estivesse em Paris, enquanto ele aceitasse a nova Constituição, seria difícil para os países europeus virem a seu auxílio. Depois que saísse do país, Luís poderia renegar a Constituição; ele poderia convocar homens leais para ajudá-lo, e poderia lutar pelo trono.
Luís encarou Fersen e se apressou em dizer:
- Não posso tentar escapar, e por este motivo: dei minha palavra à Assembleia Nacional de que não o faria novamente.
- Mas esses homens são seus inimigos.
- Isso não importa. Eu lhes dei minha palavra.
Nesse momento Fersen compreendeu que estava derrotado. Luís, que jamais conseguia decidir sobre qual ação deveria tomar na maioria das circunstâncias, estava firmemente decidido quanto a esta.
Ele dera sua palavra.
O rei disse:
- Vou deixá-los agora. Tome cuidado ao deixar o palácio. Tome cuidado enquanto estiver em Paris. Você arriscou muito sua vida vindo aqui.
Fersen fez uma mesura.
- Meu prazer é servir Vossas Majestades. Luís assentiu positivamente. Mas ele entendeu. Ele se retirou, deixando os dois a sós.
Foi o último abraço. Ele a apertou contra si como se jamais fosse soltá-la.
Ela murmurou:
- Se ao menos eu pudesse morrer neste momento...
- Não fale em morte - admoestou-a.
Axel soltou Antonieta e deu-lhe as costas, apenas para tomá-la mais uma vez nos braços.
Mas ele precisava partir. Cada minuto passado no palácio era um minuto de perigo.
Antonieta era esperada no salão, e para lá deveria ir. Deveria conversar e agir como de costume, mas durante todo o tempo seus pensamentos estariam em Axel. Ela não pararia de se perguntar onde ele se encontrava, e se estava a salvo.
Antonieta admirou-se com o que acontecera com sua vida, que já fora tão alegre, na época em que sua maior preocupação era exibir o mais recente estilo de penteado inventado por monsieur Léonard.
Por que deveria haver contrastes tão violentos na vida de uma mulher?
- Você não pode permanecer mais - disse Antonieta a Axel.
- Deve ir...
- Um dia, eu voltarei.
Ela pensou no pequeno delfim, que dissera "um dia". Ela pensou nele morrendo em seus braços.
- Não diga isso. Me assusta. Não importa se voltaremos ou não a nos ver: teremos esta noite para lembrar.
- Para sempre... Ela estava alerta.
- Estou ouvindo uma sentinela. Está vindo nesta direção. Oh, vá rápido... vá agora ou será tarde demais. Ele pode olhar pela janela. Ele pode decidir revistar o apartamento. Oh, vá... meu amor... vá logo.
Axel beijou as mãos de Antonieta. Ela o empurrou. Queria ficar com ele, mas uma necessidade ainda maior exigia que ela o mandasse para longe.
Ele se foi. Maria Antonieta ficou parada na porta, observando a silhueta de Axel ser engolida pelas trevas.
Antonieta voltou ao seu quarto. Ela ouviu a sentinela marchar diante de sua janela; e cobriu o rosto com as mãos, como se para manter dentro de si suas emoções.
Meses tensos se passaram. O verão chegou. Nas ruas, uma nova publicação era vendida. Seu título era La Vie Scandaleuse de Maríe Antoinette. Madame de Lamotte fornecera grande parte do material que figurava nesta e em outras compilações.
A Assembleia apresentara uma proposta de que os padres que se recusassem a ser leais à Constituição deveriam ser expulsos da França. Luís, que era católico devoto, declarou que jamais poderia concordar com essa lei. Em todos os outros pontos ele havia cedido. Ele até declarara guerra à Áustria sob o comando da Assembleia - a Áustria, o país cujo objetivo era restaurar sua monarquia.
Era característico de Luís escolher seu momento mais fraco para se opor à Assembleia.
Monsieur e madame Veto ousaram opor-se à Assembleia, ousaram conter a maré da revolução.
Era um quente mês de junho quando as pessoas reuniram-se nas ruas. A vida no palácio de Tuileries tinha sido tranquila desde que o rei e a rainha haviam sido trazidos de volta depois de sua ridícula tentativa de fuga. Era hora de ensinar a eles uma lição, porque eles ainda não tinham descoberto que a Assembleia não iria permitir-lhes levantar suas vozes em protesto contra o povo.
- Ca ira!-era a canção que o povo cantava enquanto se reunia nas praças.
- Abaixo Madame Veto! - gritavam.
O povo marchou até o palácio de Tuileries, carregando faixas nas quais tinham pregado o símbolo de um par de bocas de calças rasgadas, o símbolo dos sans-culottes, o nome dado aos grupos revolucionários que tinham vagado pelas ruas em roupas esfarrapadas, exigindo pão e a queda da monarquia. Eles seguiram em massa até a Place du Carrousel e as ruas estreitas que a cruzavam; eles fluíam ao longo do Terrasse de Feuillants; e forçaram sua entrada ao próprio palácio.
Luís ouviu-os. Ele disse calmamente:
- Meu povo quer ver-me. Ele não pode ficar desapontado.
- Não tema, Majestade - disse um membro da Guarda Nacional. - O povo sempre amou Vossa Majestade.
Luís segurou a mão do homem e posicionou em seu coração:
- Sinta como ele bate mais rápido que de costume.
E o soldado ficou estarrecido, porque os batimentos cardíacos do rei eram muito estáveis.
Elisabeth estava com ele. Havia apenas um temor na mente de Luís.
- Não permita que eles encontrem a rainha - sussurrou. Antonieta correu até o apartamento de seu esposo, mas lhe impediram de entrar.
- Quero ficar com meu marido - disse ela.
- Não é sensato, madame. Sua presença inflamará o povo Contra ele. Espere aqui na Câmara do Conselho, enquanto o rei fala com eles.
Os filhos de Antonieta estavam com ela. Nesses momentos Antonieta temia pouco por si, porque toda sua preocupação residia na segurança das crianças.
A turba tinha invadido o apartamento do rei. Eles pararam e olharam para Luís e Elisabeth, que estavam lado a lado, aparentando calma.
Muitos deles jamais tinham visto a família real antes, e imediatamente confundiram Elisabeth com Antonieta.
- A Austríaca! - gritaram.
Um pensamento ocorreu a Elisabeth. Acreditando que eles tinham vindo matar Antonieta, ela deu um passo para a frente, gritando:
- Sim. Eu sou a austríaca. Vocês vieram matar-me. Façam depressa... e vão embora.
Um dos guardas disse:
- Ela não é a rainha. É madame Elisabeth.
Enquanto a multidão voltava sua atenção para Luís, dois guardas escoltaram Elisabeth para fora da sala.
Mais uma vez, os plebeus ficaram atónitos com a calma absoluta do rei. Se ele tivessem mostrado um sinal de medo, um sinal de rancor arrogante, a turba teria caído sobre Luís e lhe causado uma morte sangrenta. Mas a calma benigna deixou-os intrigados. Eles recuaram um pouco. Tudo que puderam fazer foi rosnar:
- Abaixo o veto!
Um ou dois dos guardas tinham se posicionado ao lado de Luís. Um deles gritou:
- Cidadãos! Reconheçam o rei. Respeitem-no. A lei exige isso. Vocês apenas lhe farão mal passando por cima de nossos cadáveres.
Um açougueiro se destacou da multidão.
- Ouça-nos, Luís Capet! - gritou. - Você é um traidor. Você nos enganou. Tome cuidado! Estamos cansados de ser usados como peões no seu jogo!
- Abaixo o veto! - gritou a multidão.
- Meu povo, não posso discutir o veto com vocês.
- Mas deve! Mas deve! - gritou a turba.
E um ou dois homens avançaram, ameaçadores. Luís não se abalou. Ele subiu num banquinho e falou:
- Meu povo, farei o que a Constituição exigir de mim, mas não discutirei o veto com vocês.
Um dos homens brandiu a lança na qual tinha espetado o chapéu vermelho frígio, que era um símbolo da liberdade. Luís, com um daqueles gestos inspirados que lhe ocorriam naturalmente em momentos de perigo, tirou o chapéu da ponta da lança e o pôs na cabeça.
Os plebeus fitaram-no atónitos.
- Longa vida ao rei! - gritou alguém.
Os rostos furiosos relaxaram. Mais uma vez Luís salvara sua vida.
A turba encontrou-a ali. Ela estava em pé, completamente ereta, por trás da mesa. Madame Royale estava a seu lado; e à mesa estava sentado o delfim. Antonieta tinha virado o rosto do menino para si, para que ele não visse a turba. Várias aias estavam com ela, incluindo a princesa de Lamballe e madame de Tourzel.
Um grupo de guardas leais posicionou-se em torno da mesa.
Um grito de deleite se elevou da turba:
- A Austríaca!
Aqui estava ela, finalmente. A mulher das cem histórias fabulosas, a mulher que levara uma vida mais escandalosa que qualquer mulher no mundo-segundo os rumores que corriam por todo país. Antonieta... VAutríchienne.
E ali estava ela, pálida, linda, olhando para eles como se não existissem, demonstrando nenhum tremor nos lábios ou nos olhos que pudesse trair o mais leve nervosismo.
Era o comportamento da família real que aturdia as multidões. A visão de Antonieta parada em pé ali, as crianças a seu lado, podia deter os revolucionários mais sanguinários. Madame Royale, tão bonita, tão encantadora, tão gentil, visivelmente adorava esta mulher de mil rumores pérfidos. O menininho - o delfim da França - estava abraçado nela, rogando-lhe proteção.
Mas eles não podiam esquecer que ela era Maria Antonieta.
Gritaram insultos e obscenidades. Vários deles seguravam forcas em miniatura, feitas de madeira, das quais pendiam bonecos de trapos. Nas bonecas estavam afixados cartões com os dizeres, em letra vermelha: "Enforquem Antonieta!"
Uma roseta tricolor foi jogada para ela. A rainha fitou-a com desprezo quando ela caiu sobre a mesa.
- Pegue-a! - gritou alguém.
- Mamãe, pegue o florão, por favor-choramingou madame Royalle.
E para acalmar sua filha, Antonieta pôs o florão em seu cabelo.
Um chapéu da liberdade para o delfim! - gritou outro.
Não - disse a rainha.
Madame, é desaconselhável recusar - murmurou um dos guardas.
Uma mulher se destacou da turba e enfiou um chapéu na cabeça do delfim.
O menino começou a chorar, porque o chapéu fedia horrivelmente, e, grande demais, tinha descido por sua cabeça até lhe cobrir o rosto.
Felizmente, um dos revolucionários, vendo que o menininho corria risco de sufocamento, removeu o chapéu.
Ruborizado e ofegante, o menininho se jogou nos braços da mãe.
Nesse ínterim, uma multidão tinha invadido o recinto, quebrando a mobília, vociferando insultos, não atacando a rainha apenas por medo das baionetas dos guardas.
Naquele dia fazia um calor intenso, e o fedor dos corpos suados nauseou Antonieta. Durante três horas ela foi observada e ameaçada; e cada momento desse período esteve carregado de perigo.
Uma mulher conseguiu abrir caminho até a mesa e, ignorando as baionetas dos soldados, começou a repetir algumas das histórias mais hediondas que ela ouvira sobre a rainha. Ela chamou o delfim e sua irmã de bastardos. A mulher sabia que estava segura porque, se os guardas tocassem nela ou em qualquer pessoa na multidão, a turba iria retalhá-los em pedaços.
Súbito, a rainha se inclinou para a frente.
- O que eu fiz a você? - perguntou suavemente. - Você já me viu antes? Eles contaram a você mentiras a meu respeito. Eu sou a esposa do seu rei, e a mãe do seu delfim. Sou tão francesa quanto você. Diga-me que mal lhe fiz.
- Você trouxe miséria para a nação - disse a mulher.
- Isso foi o que disseram a você. Eu nunca prejudiquei conscientemente a França. Eu era feliz quando o povo me amava.
A expressão feroz da mulher ruiu subitamente. Ela fitou Antonieta e se derreteu em lágrimas.
- Estão vendo? Quando me olham nos olhos, vocês vêem que as histórias que ouviram a meu respeito são falsas.
Houve um breve silêncio. Então a mulher fez uma mesura para a rainha antes de ser arrastada para trás pela multidão.
- Ela está bêbada! - gritaram. E os impropérios voltaram a soar:
- Enforquem Antonieta!
A rainha continuou em pé, imóvel. O delfim, rosto escondido do horror às suas costas, agarrou a renda do corpete de Antonieta com mãos quentes e trémulas.
Mas a turba tinha se acalmado um pouco. Os gritos estavam menos inflamados. Vê-la ali, tão altiva, tão parecida com uma rainha, tornava impossível para eles aceitarem as mentiras que tinham sido ditas a seu respeito.
E, depois de três horas desse tormento horrível, ouviu-se o grito do prefeito de Paris, que acabara de chegar com um destacamento da Guarda Nacional.
A multidão dispersou. E um silêncio profundo cobriu o saqueado Palácio de Tuileries.
Naquela noite Antonieta escreveu a Fersen:
Ainda estou viva, embora isso pareça um milagre. A provação foi terrível. Mas você não deve ficar preocupado demais comigo. Tenha fé na minha coragem de viver durante estes dias terríveis."
Os homens do sul estavam marchando para Paris. Esfarrapados, descabelados, e mais ferozes do que os homens do norte, eles eram homens da Marselha, e seu objetivo era depor o rei e pôr um fim à monarquia para sempre.
Incansáveis, impiedosos, marchavam cantando uma música que fora composta por um dos oficiais, e que eles tinham adotado como o hino da revolução.
À capital eles chegaram, recebidos pelos jacobinos, aplaudidos enquanto se congregavam na Champs Elysées.
E nos lábios de todos, o hino da revolução:
- Allons, enfantsde lapatrie, Lê jour de gloire es t arrivé, Contre nous, de la tyrannie, Lê couteau sanglant est leve..."
O terror da vida no palácio de Tuileries havia aumentado. Havia mais espiões no palácio. A cada noite, multidões reuniam-se diante do palácio e gritavam ameaças àqueles que estavam em seu interior.
Antonieta escrevia frequentemente para seu amante. Fersen estava desesperado; ele viajou da Suécia para Bruxelas, passando longas horas nas cortes, fazendo tudo que podia para urgir as monarquias da Europa a se unirem e ir ao auxílio de Luís e Antonieta. O duque de Brunswick, o comandante dos exércitos austríaco e prussiano, estava se preparando para cruzar a fronteira. Fersen, irritado com o atraso deste velho soldado que se recusava a ser apressado, estava aterrorizado com a possibilidade da rainha ser assassinada antes que a ajuda a alcançasse. Ele rogou a Brunswick que emitisse um manifesto ameaçando Paris com destruição caso a família real sofresse qualquer dano em suas mãos.
O povo congregou-se na Place du Carrousel, no Falais Royal e no Champs Elysées... de fato, em qualquer lugar onde podiam juntar-se para falar sobre o manifesto.
O calor continuou e a tensão aumentou. Elisabeth e a princesa de Lamballe ficavam com a rainha até mesmo durante a noite.
- Sinto no ar - disse a rainha. - Eles estão se reunindo contra nós agora... e desta vez serão inclementes.
Eles não dormiram naquela noite. Assustavam-se ao ouvir o repicar de sinos. Aguçavam os ouvidos, alertas para sons distantes. E durante todo o tempo aguardavam.
Eles sabiam que a guarda estava sendo corrompida; e sem a guarda eles seriam assassinados brutalmente, com os revolucionários em seu humor atual.
A manhã chegou. Insone, o cabelo despenteado, a gravata solta, Luís entrou no apartamento da rainha.
- Luís, o que acontecerá agora? - perguntou a rainha. Luís balançou a cabeça, desolado.
Até ele finalmente está abalado, pensou Antonieta. Do lado de fora, os guardas se ajuntaram.
- Luís, você deveria se mostrar - disse Antonieta. - Devia passar as tropas em revista. Devia deixar que eles vejam que você é o líder.
O rei se virou para a janela e olhou para fora. E então, como se estivesse sonambulando, deixou a rainha sem dizer uma palavra.
Alguns minutos depois ela o viu pela janela - desarrumado como estivera antes - caminhando entre as fileiras de soldados.
- Eu confio em vocês - estava dizendo. - Sei que posso depositar minha segurança em vocês...
Antonieta ouviu um dos homens rir com escárnio. Ela viu vános deles desenfileirarem para imitar o caminhar lento e um tanto indigno do rei.
O que poderiam esperar de guardas como esses?
O promotor-geral de Paris chegou apressado ao palácio de Tuileries. Ele exigiu ver o rei, e imediatamente lhe foi apontada a câmara do rei, onde Luís estava com Antonieta.
- O povo está se juntando nas ruas, para um ataque em massa ao Tuileries. É necessário que vocês partam imediatamente.
- Para onde? - indagou Antonieta.
- Vocês estão mais seguros no manège. A Assembleia está em sessão, e a turba não irá atacar vocês enquanto estiverem lá.
- Temos tropas para nos proteger - disse Antonieta.
- Temo que não, madame - disse o promotor-geral. - Toda Paris está marchando para cá, e com Paris estão os homens da Marselha. Vocês não devem hesitar. Precisam pensar nos filhos da França.
Nós iremos acompanhar você - disse Luís. Antonieta correu até seus filhos e os trouxe para o apartamento do rei.
Precisamos partir imediatamente - disse o promotor-geral.
- Osfaubourgs estão em marcha.
Antonieta segurou a mão do delfim com força e, enquanto caminhavam pelos jardins, o menininho chutava as folhas a seus pés. Ele estava rindo. Houvera alarmes demais em sua vida para que ele continuasse a levá-los a sério. Contanto que estivesse com sua mãe e as pessoas sujas não o tentassem sufocar com chapéus sujos, ele estava feliz.
- As folhas caíram mais cedo este ano - disse o rei num tom melancólico.
Já havia multidões reunidas diante do palácio. Eles viram a família real através das grades, e gritaram impropérios.
O pequeno grupo alcançou o Salão da Assembleia em segurança, e o rei gritou a todos presentes:
- Cavalheiros, vim para cá prevenir um crime. Creio que eu e minha família não poderemos estar mais seguros que com vocês.
A resposta do presidente foi que a Assembleia jurara proteger a Constituição, e que o rei podia contar com sua proteção.
Em seguida a família real foi acomodada no camarote que geralmente era ocupado pelos relatores. Era uma sala pequena e o calor ali era intenso. A família ficou sentada ali, e aqueles que tinham escapado com eles aglomeraram-se em torno do camarote.
Do lado de fora ocorriam assassinatos e derramamento de sangue como jamais houvera durante toda a revolução. Casas eram saqueadas; homens e mulheres eram arrastados para as ruas e assassinados cruelmente. Tiros eram disparados; vozes gritavam em exultação e berravam em horror. Osfaubourgs estavam em revolta. O ar estava impregnado com um cheiro de queimada.
Assassinatos, saques e vandalismo abalaram as ruas de Paris naquele dia. Era um dia para ser lembrado ao lado do dia do massacre de São Bartolomeu, duzentos anos antes.
O palácio de Tuileries foi pilhado. O apartamento da rainha, especialmente, foi profanado. Pelas ruas ecoaram aqueles gritos terríveis que exigiam enforcamentos.
E por toda Paris podia-se ouvir a canção triunfal:
"Allons, enfants de lapatrie..."
Junto com a turba que se dirigia ao Palácio de Tuileries estava um rapaz que não se juntava completamente aos outros. Seu comportamento era frio e distante.
Outro homem, velho demais para compartilhar da violência de seus amigos, aproximou-se do rapaz e se pôs a caminhar a seu lado.
- Grandes dias para a França, cidadão - disse ele.
- Grandes dias - concordou o rapaz.
- Estamos vendo o falecimento de um velho regime que durou tempo demais na França.
- Os velhos regimes precisam morrer - disse o rapaz. - É preciso que nasçam novos.
- O mundo é assim, e precisamos aceitar isso.
- Não precisamos aceitar - disse o rapaz. - Podemos fazer o nosso próprio mundo.
- Luís Capet tem poucas chances de conseguir isso.
- Luís Capet poderia ter feito isso - disse o rapaz. Ele fez uma pausa antes de acrescentar: - Que imbecis! Como puderam permitir que essa canaille entrasse? Eles deviam ter varrido quatrocentos ou quinhentos deles com canhões e o resto ainda estaria fugindo.
- Você não está na manifestação, cidadão. Não está lutando pela liberdade. Vejo que não é francês.
- Sou da Córsega - disse o rapaz.
- Ah, é por isso que você está tão frio.
- Adieu - disse o rapaz. - Preciso ir.
O velho observou o rapaz se afastar. Um jovem estranho, de feições fortes. Será que o que ele tinha dito era verdade?
Enquanto isso, Napoleão Bonaparte dava as costas para a turba e pensava no poder das armas quando usadas apropriadamente.
A família agora não tinha lar. O Palácio de Tuileries estava impróprio para habitação humana.
Para onde deveriam ir agora?
Foi decidido que seu novo lar deveria ser o Templo, aquele palácio medieval que um dia abrigara os Cavaleiros Templários.
Antonieta gritou em protesto ao ouvir isso. Ela sempre odiara aquele lugar. Mas não lhe cabia protestar. Ela devia ficar grata porque lhe fora provido um abrigo, grata porque ela e sua família estavam vivos para precisar dele.
A manifestação tinha esfriado. Carruagens foram levadas até o Salão da Assembleia. Os postilhões não mais vergavam o uniforme real, e seus chapéus estavam decorados com o tricolor.
A carruagem iniciou sua jornada lenta do Salão da Assembleia até o Templo, e durante todo o percurso foi acompanhada por plebeus gritando insultos.
E assim a família real chegou a uma nova casa - antiga e sombria, uma prisão mais assustadora do que o Palácio de Tuileries.
Aqueles que tinham sido destacados para guardar o rei e a rainha descobriram que era impossível odiá-los.
A altivez da rainha, sua determinação em não demonstrar medo, despertou seu respeito. Quanto a Luís, como eles podiam chamar de tirano este homem tão gentil?
No Templo eles o viram aceitar a vida de um homem comum. Luís jamais se queixava. Ele comia vorazmente, exercitava-se no terreno circundante, e frequentemente era visto caminhando no pátio com o delfim, segurando a mão do menino.
Vendo o rei e seu filho juntos, eles percebiam como esse homem era humano, como era indulgente, como era altruísta. Ele era capaz de se envolver completamente quando brincava com o delfim e, quando ensinava ao menino como soltar pipa, parecia que sua tarefa mais importante era a manutenção daquele brinquedo no ar. Os dois mediam a distância com seus pés no pátio, e a voz aguda do delfim podia ser ouvida frequentemente dialogando com a do pai.
Era impossível para seres humanos comuns odiarem este homem ou verem nele um tirano, exceto quando eles estavam intoxicados com vinho ou com as palavras de revolucionários violentos.
Quando a família real chegara ao Templo, certas alterações tinham sido permitidas para possibilitar seu conforto naquele lugar.
Quatro quartos foram transformados na suíte do rei e outros quatro foram remobiliados para o uso da rainha, madame Elisabeth, madame Royale, e o delfim.
Mas embora os membros da Assembleia tivessem salvado as vidas da família real, eles queriam que o rei e a rainha soubessem que a vida na corte, que eles tinham conhecido em Versalhes, havia terminado. Assim, eles removeram a princesa de Lamballe e a madame de Tourzel para outra prisão. A família precisava viver com simplicidade.
Antonieta ficou muito triste com a partida dessas duas mulheres. Marie de Lamballe era sua grande amiga há tanto tempo que lhe pareceu um sofrimento desnecessário passar sem ela agora.
- Tenho a impressão de que eles se entreolham e perguntam "O que poderia magoá-la profundamente?" - disse Antonieta ao se despedir da amiga. - E então eles fazem essa coisa. Há momentos em que fico aterrorizada... aterrorizada com o futuro.
Ela mandara enfiar um cacho de seu cabelo num anel, e pôs nele uma inscrição com os dizeres: "Madeixas entrelaçadas pelo infortúnio".
- Guarde isto, querida Marie, em minha memória - disse Antonieta.
Agora eles precisavam viver como pessoas simples e humildes, tarefa à qual o rei se adaptou com facilidade. Madame Elisabeth também. Ela sempre quisera uma vida tranquila e frequentemente pensara em ingressar num convento. E a vida no Templo, dizia à Antonieta, não era muito diferente daquela que ela teria num convento.
- Mas num convento reina a paz - disse Antonieta. - Aqui no Templo reina o terror.
Ela se dedicava aos filhos - brincava com eles, ensinava-lhes. As vezes, quando eles riam ao brincar, ela ria com eles; mas sempre estava forçando os ouvidos para captar nas ruas aqueles sons que poderiam crescer para um rugido; sempre estava esperando pelo próximo sacrifício terrível.
Jacques René Hébert, promotor público em exercício da Comuna, estava a cargo do Templo. Ele era o pior tipo de líder revolucionário, inspirado não por ideais, mas por cobiça e inveja. Criminoso inescrupuloso, ele tinha sido pobre quando a revolução começara e, como muitos, fizera dela uma forma de obter lucro e glória. Agora ele era um homem de poder. Ele estabelecera o seu próprio jornal, o Père Duchesne, e através deste envilecia a monarquia.
Assim que Hébert assumiu a administração do Templo, uma mudança sutil ocorreu no lugar. Ninguém ousava demonstrar leniência para com o rei ou a rainha por temer que aos olhos de Hébert eles fossem tidos como suspeitos de inclinações monárquicas.
Ele vigiava a rainha praticamente o tempo todo. Antonieta não dava a ninguém fora do Templo uma oportunidade de vê-la; ela jamais se aventurava ao exterior; ela não podia suportar a indignidade de ser aviltada pela ralé.
Hébert, profundamente sensual, jamais tirava os olhos da rainha. Apesar de tudo que tinha sofrido, Maria Antonieta ainda era uma mulher bonita. Ela preservava seus modos encantadores, e a brancura de seu cabelo acentuava a pele clara e lisa tanto quanto nos dias de seu dourado glorioso.
Demonstrando alguma civilidade para com Antonieta, Hébert pediu para conversar com ela.
Ele tentou explicar à rainha que a revolução era para o bem da França.
- Não creio que você e eu possamos concordar nesses assuntos - disse Antonieta, arrogante.
- Poderíamos ao menos discuti-los - sugeriu Hébert.
- Prefiro não fazê-lo - disse a rainha.
Antonieta se levantou e o deixou. Os olhos cheios de desejo de Hébert observaram a rainha se afastar.
Naquele dia, o seu jornal tinha perguntado por que era permitido ao gordo Luís e à prostituta austríaca viverem à custa do país. Não era hora para empregar a lâmina nacional?
Num dia quente de setembro o povo começou a encher as ruas.
- Vocês ouviram? Os inimigos da França estão avançando.
- Os prussianos estão atravessando a fronteira.
- Verdun caiu. Os prussianos juram que em breve estarão em Versalhes, bebendo à saúde da austríaca.
- Isso não pode acontecer.
- Enforquem Antonieta!
O povo estava ensandecido em sua sede por sangue. Os plebeus correram até suas casas para pegar armas. Eles se congregaram na Place du Carrousel e no Champs Elysées.
- Cidadãos, enforquemos todos aqueles malditos aristocratas! Foram eles que juntaram o mundo contra nós. Por que devemos esperar, cidadãos? Por que devemos esperar?
Seus gritos inumanos encheram as ruas enquanto eles marchavam juntos.
- Allons, enfants de lapatríe... - cantavam, e as palavras inspiravam-nos com um desejo de matar ainda maior.
Uma multidão tinha se reunido na prisão La Force.
- Queremos justiça! - gritaram. - Tragam os prisioneiros para fora. Deixem que sejam julgados!
Lembraram que uma determinada pessoa estava aprisionada em La Force. A princesa de Lamballe.
Eles insistiram em invadir o cárcere da princesa e arrastá-la até o tribunal, que era presidido por Hébert.
Ele olhou para a mulher. A forma como mantinha o queixo empinado fê-lo lembrar da rainha, e uma fúria selvagem o possuiu.
- Você está ciente das tramas do palácio? - perguntou.
- Eu não sei nada a respeito de tramas - respondeu a princesa.
- Jure amar a liberdade e a igualdade. Jure odiar o rei, a rainha e a realeza.
Mas ela se manteve calada e imóvel, altiva e imune às suas ameaças.
Como uma maldita aristocrata, pensou Hébert. Ele agarrou os ombros da princesa e a balançou.
- Jure... jure... se ama a sua vida!
- Farei o primeiro juramento - disse a princesa, friamente.
- Não posso fazer o segundo. Estaria mentindo se o fizesse.
Hébert olhou ao redor; uma multidão estava invadindo a corte. Ele podia colocar a princesa em segurança, sob sua guarda, ou mandá-la de volta para a prisão. A segunda alternativa seria enviá-la para a morte certa-e horrivelmente violenta -, visto que a turba que a aguardava não parecia conhecer o perdão.
A princesa de Lamballe tinha sido íntima da rainha. A rainha a beijara frequentemente.
-- Levem-na - disse ele.
Ele teve a satisfação de ouvir a turba arfar em exultação demoníaca enquanto a princesa caminhava para a rua, dois guardas a ladeá-la. Mas de que valiam dois guardas contra toda aquela gente? Ele viu uma faca ser erguida; ele viu o sangue vermelho de uma aristocrata. A princesa caiu desmaiada no chão, e num segundo tinha sido coberta pela ralé.
Do lado de fora do Templo, a turba chamava por Antonieta.
- Apareça na janela, Antonieta! Veja o que temos aqui para você! Os gritos e vitupérios ecoaram pelo Templo.
O rei olhou pela janela, e recuou horrorizado.
- Antonieta! Antonieta! Apareça na janela, Antonieta! Os gritos continuaram.
- Venha ver a sua amiguinha! Desça para beijar os lábios dela! Antonieta estava atrás de seu esposo.
- Não - rogou-lhe Luís. - Não... não! Afaste-se.
- Eu preciso ver! - gritou Antonieta. - Eu preciso ver!
Mas Luís a agarrou e a forçou a voltar para o meio do quarto.
Elisabeth estava com eles. Seus olhos horrorizados voltaram-se para a janela. A cabeça de sua querida amiga estava quase irreconhecível. Estava espetada numa lança, coberta com lama e sangue; e por trás dela, em outras lanças, estavam os restos daquele que um dia fora o belo corpo da princesa de Lamballe.
- Desça para beijar os lábios da Lamballe! - gritava a multidão. - Venha, Antonieta! Agora é a sua vez...
Antonieta não viu aquela cena hedionda, graças à intervenção de Luís que, ao menos desta vez, foi firme. Mas ela compreendeu. E caiu desmaiada no chão.
Mais tarde, naquela mesma noite, um anel foi contrabandeado até Antonieta. Alguém tinha conseguido arrancá-lo do dedo da princesa chacinada e providenciado sua devolução à rainha.
Gravadas no anel estavam as palavras "Madeixas entrelaçadas pelo infortúnio".
Não parecia importar para a rainha que a Guarda Nacional mais uma vez conseguira salvar a família real da turba.
- Meu coração está exaurido - disse Antonieta naquela noite. - Sinto que já esgotei toda a tristeza que havia nele. Sei que em breve não serei mais capaz de ter sentimentos, e que meu único desejo será pela morte.
Três semanas depois, mais gritos soaram nas ruas. Desta vez, gritos de alegria.
- A monarquia foi abolida! - gritava o povo. - O homem no Templo não é mais Luís XVI! Ele é Luís Capet!
Agora era um deleite para todos no Templo mostrar aos Capets que eles eram gente comum. O mais baixo servo podia aboletar-se numa cadeira e pôr os pés na mesa na presença da rainha. Um casal rude de nome Tison costumava aparecer, aparentemente para limpar a cela, mas sua tarefa principal era espionar a família. Qualquer pessoa que pudesse entrar em contato com eles recebia a ordem de tratá-los apenas por monsieur e madame; e tirar o chapéu ao se dirigir a eles seria considerado um insulto à nova França, onde todos os homens eram iguais.
Mas as crianças eram encantadoras, e nem mesmo os servos mais rudes conseguiam deixar de tratá-las com carinho. Isso acontecia especialmente no caso do delfim. Nem o mais soturno de seus carcereiros - nem Hébert - era imune aos charmes do delfim.
Então chegou aquele dia terrível em que Luís recebeu a ordem de se preparar para deixar a família.
- Para onde vocês vão me levar? - indagou Luís.
- Para outros aposentos.
- Neste prédio?
- Sim, neste prédio.
Essa resposta acalmou Luís. Então eles não estariam completamente separados.
Mas ele logo descobriu que seus carcereiros não tinham qualquer intenção de leniência, porque, embora fossem prendê-lo no mesmo prédio, não iriam lhe dar permissão para ver a esposa ou os filhos, nem notícias sobre sua saúde.
Antonieta perdeu o controle quando ele estava se preparando para ir.
- Não! - exclamou. - Isto é cruel demais. Durante todos os nossos infortúnios, nós permanecemos juntos.
- Tenha coragem - disse Luís.
- Não posso permitir que você vá. Não posso.
- Lembre das crianças. Deveremos nos encontrar em breve. Eles não podem nos separar por muito tempo.
Ela o beijou fervorosamente. Lembrando de toda a bondade de Luís, Antonieta sentiu-se cheia de remorso porque havia amado outro homem mais do que este gentil Luís.
- Isso é mais do que eu posso suportar! - exclamou. - Preferia que eles nos matassem para nos tirar desta nossa dor.
Mas as crianças estavam entrando, e eles deviam esconder sua dor.
- Papá!- disse o delfim. - Para onde você está indo?
- Vou ficar afastado durante algum tempo, meu filho. Mas vou voltar.
E com um beijo para cada um deles, e um cafuné na cabeça do delfim, Luís partiu.
Antonieta não recebia notícias de Luís. Ela podia apenas tentar imaginar o que estava acontecendo com ele.
- Oh, Luís... Luís... - repetia Antonieta, chorando em seus travesseiros à noite. - Onde você está? Por que eles nos torturam?
Antonieta não tinha mais permissão para ler jornais. Aquela mulher, Tison, observava cada movimento seu. Tudo que ela dizia, tudo que Elisabeth ou as crianças diziam, era distorcido... e essas falsidades eram registradas por escrito, para serem usadas contra eles.
Durante aquele dezembro do ano de 1792, Luís foi julgado por sua vida. A revolução foi vitoriosa. Os franceses tinham voltado a maré da guerra a seu favor. Seus inimigos tinham evacuado Verdun e se retirado através da fronteira.
A França iria mostrar ao mundo que não se importava com os sabres trémulos dos amigos do rei.
Luís foi acusado de traição, de agremiar forças armadas para atacar Paris.
Ele protestou, mas moderadamente.
- Sempre tive o direito de convocar tropas - explicou pacientemente. - Mas nunca tive a intenção de derramar sangue.
E quando seus juizes se referiam continuamente a ele como Luís Capet, ele os repreendia gentilmente.
- Meu nome não é Capet - disse ele. - Capet foi o sobrenome de um de meus ancestrais.
- Voto pela morte! - gritou Robespierre.
- Voto pela morte do tirano! - reiterou Danton. Houve mais um que votou pela morte: o duque de Orléans. A votação acabou, e o presidente anunciou o resultado:
- Trezentos e sessenta e cinco votaram pela morte; duzentos e oitenta e seis por detenção ou banimento; quarenta e seis por morte imediata, como uma condição inseparável de seu voto; vinte e seis por morte, expressando um desejo de que a sentença seja revisada pela Assembleia. Portanto, eu declaro, em nome da Convenção, que a punição pronunciada por eles contra Luís Capet é de morte.
Fez-se silêncio no grande salão; e o homem que pareceu menos perturbado com a sentença foi o próprio rei.
Houve um último encontro.
Ela havia deduzido, assim que lhe fora ordenado visitá-lo. Ela se jogou nos braços dele e apertou-o com força, chorando amargamente e gritando maldições contra os homens que o tinham condenado à morte.
- Acalme-se - disse Luís, cofiando o cabelo de Antonieta.
- Lembre das crianças. - E você não deve culpar esses homens. Eles acreditam ter feito seu dever. Você precisa perdoá-los, Antonieta, como eu faço.
O delfim gritou:
- Para onde você está indo,papá? Por que você disse adeus?
Luís colocou a mão do menininho no seu joelho e lhe disse gentilmente que estava partindo e que eles jamais iriam se encontrar novamente.
- Meu filho, foi decidido que devo morrer. Um dia você irá entender isso. E nunca, meu querido menino, tente vingar seu pai. Procure perdoar todos aqueles que me mandaram para a morte, porque apenas com perdão poderá haver paz em nosso país. Um dia, se for a vontade de Deus, você será rei de nosso país. Lembre, meu querido menino, que um rei é o pai de seu povo. Ele não pode ser o seu carrasco.
- Papá, eu não quero que você vá. Quero empinar pipa junto com você...
- Ah, meu filho, isso pertence ao passado. Prometa-me o que lhe pedi. Prometa-me agora, porque temos pouco tempo.
- Eu prometo - disse o delfim.
- Faça o sinal da cruz, para que seja uma promessa sagrada. O delfim fez o sinal.
- Ame muito a sua mãe. E seja um bom católico. Assim, você também poderá encontrar grande conforto na sua fé.
Madame Royale ajoelhara-se aos pés de Luís e estava chorando baixinho. Luís, ciente de que estar na companhia das crianças apenas aumentava a dor dos seus filhos, deixou-os.
Luís procurou um confessor e enquanto estavam sentados juntos, ele disse ao padre:
- Por que nós precisamos amar e ser amados?
Ele não viu a rainha novamente.
- Seria doloroso demais para ela-justificou.
O cabelo de Luís foi cortado e ele se preparou para sua jornada. Aqueles que presenciaram a partida de Luís ficaram abalados.
- Tamanha coragem diante da morte não é humano - disseram.
Luís se posicionou em pé no cadafalso. Ele próprio desabotoou sua blusa, e seus dedos não demonstraram qualquer sinal de estarem tremendo. Ele levantou a mão subitamente e disse numa voz alta e firme:
- Franceses, morro inocente. Perdoo meus inimigos, e rogo a Deus para que meu sangue não caia de volta na França.
Foi tudo.
Quando terminou seu serviço, o carrasco levantou a cabeça do rei Luís XVI, alguns gritaram:
- Longa vida à República!
Mas o brado não foi recebido calorosamente. A multidão não conseguia esquecer a calma aceitação de seu destino por parte do homem que tinha sido seu rei.
O duque de Orléans foi acometido de um remorso tão grande que nem ele considerara possível, e quando seu filhinho, o conde de Beaujolais, o recebeu de volta ao Falais Royal, ele não conseguiu fitar o menino.
- Fique longe de mim por enquanto - disse à criança atónita. - Porque não creio que eu mereça ser seu pai.
E durante o dia inteiro, a capital ficou silenciosa, como se enlutada.
A mulher a quem chamavam de Viúva Capet estava confinada em seu cárcere, e entre seus guardas alguns tinham os corações carregados com piedade.
Nas ruas, muitos ainda clamavam pelo sangue de Antonieta; mas aqueles que entravam em contato com a rainha não conseguiam fazer outra coisa senão respeitá-la. Havia alguns que eram incapazes de sentir pena. Havia Simon, o sapateiro rude que fora escolhido por Hébert porque este temia que os mais cultos sentissem compaixão pela rainha. Simon era um bruto a quem divertia cuspir no chão da prisão da rainha. Havia a madame Rison, que se perguntava uma centena de vezes por dia:
- Por que devo ser pobre enquanto ela é rica? Por que eu tive de viver na sarjeta enquanto ela vivia em meio ao luxo, no seu pecaminoso Trianon?
Mas havia mais outros.
Havia François Toulan, um dos guardas do Templo. Ele havia sido um grande entusiasta da revolução, tendo estado entre aqueles que invadiram o Tuileries e pediram o sangue do rei e da rainha. Mas quando passou a ver a rainha todos os dias, o seu comportamento mudou completamente.
- Como ela sofre! - murmurava enquanto trabalhava. O delfim se aproximou do guarda e olhou para ele.
- O que é essa medalha? - inquiriu.
E Toulan inventou alguma história, porque ficou envergonhado em dizer que a conseguira pilhando o Palácio de Tuileries, ao levar tormento para a família do menino.
Toulan desejava fazer alguma coisa para compensar por sua conduta naquele dia de junho, e assim roubou os pertences do rei, que tinham sido postos na segurança da Comuna - ali havia um cofre contendo um pouco do cabelo de madame Royale, um relógio, um selo e um anel -, e levou-os até a rainha, porque agora o acesso até ela era mais fácil, muito mais do que quando o rei estivera vivo.
- Madame, eu lhe trouxe algumas coisas - disse, hesitante.
Durante alguns segundos Antonieta não olhou, esperando escárnio. Então empurrou os objetos para as mãos da rainha, e quando viu as lágrimas começarem a se derramar pelo rosto de Antonieta, Toulan retirou-se apressado.
Mas ela agora sabia que tinha um amigo.
Toulan agora não conseguia descansar. Ele ansiava por ver a rainha livre. Tomado por uma grande ousadia, pediu uma audiência particular com um general que era oficial no Gabinete de Guerra. Sabia que o general Jarjayes era defensor secreto da monarquia, e sugeriu-lhe que, com a ajuda de um dos guardiões regulares do Templo e o dinheiro que o general Jarjayes tinha como prover, a fuga da rainha poderia ser executada.
O general estava propenso a considerar este plano e pediu a Toulan que mantivesse os olhos abertos e visse como isso poderia ser feito.
A rainha e Elisabeth estavam sentadas na salinha com barras de ferro na janela. Trabalhavam numa peça de bordado. Era bom manter as mãos ocupadas, ainda que, como Antonieta costumava dizer, isso não impedisse aos seus pensamentos tomar seu próprio rumo.
Hoje elas ouviram notícias. Notícias que deixaram a rainha muito pensativa.
Ela acabara de saber que James Armand fora morto em novembro último, lutando pelos franceses na batalha de Jemappes.
- Pobre James - disse ela. - Jamais esquecerei de quando vi seu rosto próximo ao meu... quando ele era um membro da turba... um dos nossos inimigos. Pequenino James, a quem acalentei e beijei tanto, lembra como costumava chamar a si mesmo de meu menininho?
- Ele era uma criança invejosa - avaliou Elisabeth. - Lembro de vê-lo olhando para o pequeno Luís Joseph como se possuído por um desejo de matá-lo.
- Pobre James Armand! Monsieur James, como eu costumava chamá-lo, lembra? Foi culpa minha, irmãzinha. Esqueci o pequeno James quando tive meus próprios filhos. Eu o usei como um substituto para as minhas próprias crianças. Não se pode usar pessoas desse jeito. Que pena que nós só possamos adquirir esse tipo de conhecimento quando já é tarde demais.
Foram interrompidas pela chegada do illuminateur.
- Estivemos forçando a vista, e não percebemos isso - disse Antonieta. - Vamos parar agora. Trabalhar à luz do lampião me deixa cansada.
O illuminateur foi direto até os lampiões, mas seus dois menininhos, que sempre o acompanhavam, pararam diante das damas e as fitaram.
- E como vão vocês? - perguntou a rainha.
Eles não responderam. Apenas sorriram e trocaram acenos de cabeça entre si. Antonieta perguntou-se o que eles teriam ouvido falar sobre ela.
Os meninos sempre acompanhavam o pai, e sabendo que eles viriam, Antonieta separara petiscos de suas refeições para eles. Em todo caso, ela tinha pouco apetite.
- Vieram ver o que tenho para vocês hoje? Eles sorriram e assentiram com as cabeças.
- Então vejamos...
Antonieta observou as crianças devorarem os petiscos, olhando para ela e Elisabeth enquanto o faziam, sorrindo e cutucando uma à outra.
Antonieta lembrou, com uma pontada de tristeza, daqueles dias no Trianon em que crianças reuniam-se ao seu redor e ela lhes dava bombons. Estas crianças eram maltratadas; tinham as calças manchadas com óleo de lampião, vestiam casacos esfarrapados e chapéus grandes de abas moles, e seus rostos eram sujos. Mas ela sempre gostara de crianças, e gostava de ver estas todos os dias.
Temendo parecer simpatizante da realeza, o acendedor de lampiões não falou com Antonieta.
Toulan olhou para o interior do aposento e disse:
- Ah, é o illumlnateur. E seus filhos. Então, monsieur illuminateur traz seus filhos para que aprendam sua profissão e em breve possam fazer seu trabalho.
- Eles já podem - disse o acendedor de lampiões rapidamente, esperando que Toulan pudesse encontrar postos para os meninos na prisão. - Eles são inteligentes e já têm idade bastante para trabalhar.
Madame Tison entrou; seus olhos se estreitaram quando ela viu as crianças.
- O que vocês estão comendo? - inquiriu.
- Ela deu para a gente - disse um dos meninos, apontando para a rainha.
- O que mais ela deu para vocês, hein?-perguntou madame Tison.
E em seguida, com boca premida e olhos brilhantes, pôs-se a apalpar os bolsos dos meninos. Esperava encontrar neles alguma mensagem que a rainha tivesse lhes dado. E então, desapontada, disse:
- Bem, não fiquem parados aqui com caras de bestas, como se estivessem na presença do Todo-Poderoso. Somos todos iguais agora, sabiam?
A rainha sorriu para os meninos como se a mulher não tivesse dito nada; e Toulan continuou olhando para os meninos.
No dia seguinte o acendedor de lampiões veio sozinho. A rainha ficou desapontada; gostava de ver as crianças.
Antonieta observou-o operar os lampiões, e quando olhou mais de perto para ele, viu que era um novo homem.
Aquela mulher, madame Tison, estava no quarto ao lado. O acendedor de lampiões aproximou-se da rainha e sussurrou:
- Vossa Majestade, Toulan persuadiu o illuminateur a permitir que eu viesse em seu lugar. Nós o subornamos. Eu disse a ele que estava ansioso por ver a prisão e a rainha. Ele agora está se divertindo na taverna. Eu precisava ver Vossa Majestade pessoalmente para ter certeza de que posso confiar em Toulan.
- Você é...
- Jarjayes.
- Meu querido general...
- Madame, é meu sincero desejo libertá-la deste lugar. Tenho estado em contato com o conde de Fersen. Ele não descansará até que Vossa Majestade esteja livre.
Nesse momento a rainha sentiu novamente um desejo de viver. Pensar numa possível fuga animou seu espírito e fez parecer que a vida ainda possuía algum sentido.
- Precisamos planejar nossos movimentos com o máximo de cuidado. Toulan acredita que Lepitre, o comissário da prisão, pode ajudar. Tudo depende deste homem e de sua suscetibilidade a subornos.
- Compreendo - disse a rainha. - Tome cuidado. Aquela mulher, madame Tison, me vigia continuamente.
- Faça-me perguntas sobre meus filhos e falaremos sobre isso para disfarçar.
A rainha fez as perguntas, e Jarjayes respondeu-as. E entre uma resposta e outra, sussurrava para a rainha um relato do que eles tinham planejado, mantendo os olhos na porta enquanto falava, por temer que madame Tison aparecesse.
Era possível que a rainha e madame Elisabeth pudessem sair da prisão disfarçadas como conselheiras municipais, com chapéus grandes, mantos, botas folgadas e, obviamente, o cachecol tricolor. Elas precisariam não apenas de passaportes falsos como também da cooperação de Lepitre, o único homem que poderia conduzi-las para fora da prisão.
- Minhas crianças... - murmurou a rainha.
- Eu viria disfarçado como o illuminateur, e traria roupas para o delfim e madame Royale, porque eles se parecem exatamente com os filhos desse homem. Eu iria conduzi-los para fora comigo.
- E os Tisons?
- Precisaremos encontrar alguma forma de drogá-los.
- Eles cheiram rapé - disse a rainha.
- Rapé drogado seria uma boa opção. Não posso ficar mais. Esteja preparada. Creio que será muito em breve.
Lepítre tinha sido professor antes da revolução. Era um homem adoentado, pálido, de constituição delicada desde a infância, e ansiava por sair da cidade e viver no campo; mas para fazer isso precisava de dinheiro.
Era um plano ousado, e Lepitre não era um homem ousado. Se fosse descoberto levando os dois prisioneiros mais importantes para fora da prisão, o que aconteceria com ele? Quando pensou nisso, estremeceu de pavor.
Ele não ousava fazer isso. Mas se tivesse o dinheiro, se escapasse com elas, ele poderia viver discretamente no campo para o resto de sua vida. Não era um homem violento; não era capaz de suportar violência. Ele visualizou um pequeno chalé a uma grande distância das cidades grandes, onde, por enquanto, nada assustador poderia acontecer-lhe.
Não seria difícil. Eles tinham o guarda Toulan para ajudá-los. Os Tisons podiam ser drogados facilmente. Tudo que precisavam fazer era sair da prisão caminhando com confiança-afinal, quem iria detêlos, quem iria suspeitar que os dois municipaux eram a rainha e a madame Elisabeth? Esperando diante da prisão estariam as duas carruagens, e na segunda ele seria conduzido para fora de Paris.
E pelo trabalho daquela noite ele receberia uma vida inteira de existência pacífica no campo.
- Eu farei - disse Lepitre.
A empreitada requeria uma grande quantia de dinheiro, mas Jarjayes não teve dificuldade em arrecadá-lo. Era necessário esperar algum tempo até que pudesse decidir a quem confiaria o plano.
Eles precisavam falsificar passaportes. Lepitre poderia fornecêlos, mas Lepitre estava nervoso, e demonstrando sinais de tensão. Madame Tison notou.
- E qual é o problema com você? - perguntou. - Parece ansioso esta manhã, cidadão.
- A minha perna está doendo - respondeu Lepitre, apontando para sua perna manca.
Madame Tison meneou positivamente.
- Este é um trabalho diferente do que ensinar muitas crianças, não é?
O ex-professor concordou com ela. Ele tentou falar sobre os velhos tempos, mas durante todo o tempo esteve consciente dos olhos atentos de madame Tison. Ela estava alerta. Não havia dúvida disso. Ela odiava a realeza; era uma defensora apaixonada da igualdade, e sua paixão parecia conferir-lhe um sexto sentido. Como alguém poderia ter certeza sobre do que ela suspeitava?
Finalmente conseguiu-se o dinheiro, e passaportes foram preparados. Lepitre gostou da sensação de ter dinheiro nos bolsos. Era realmente muito simples. O rapé drogado não seria difícil de ser administrado. Ele entraria no quarto de Tison e, sentado diante de uma garrafa de vinho com eles, oferecer-lhes-ia sua caixa de rapé. Ele permaneceria com o casal até que desmaiassem. Tudo estaria preparado, à espera. O general viria, disfarçado como o illuminateur, e com ele traria casacos esfarrapados, calças compridas e chapéus de aba mole. As crianças reais seriam vestidas apressadamente nessas vestes; e a carruagem estaria esperando. Nesse ínterim, Lepitre chegaria à cela da rainha com as vestes para Antonieta e madame Elisabeth. Depois que as duas estivessem disfarçadas, ele iria conduzi-las para fora da prisão. Em menos de uma hora eles estariam saindo de Paris.
Um dia antes do marcado para a fuga, Lepitre bateu na porta de madame Tison e lhe disse:
- Preciso conversar com você e seu marido amanhã à noite. Ele também estará em casa?
- Sim, se você quiser - disse madame Tison.
- Chegarei por volta do anoitecer. Providencie para que ele esteja aqui, para que eu possa falar com vocês dois.
A mulher fez que sim com a cabeça.
- Já que está aqui, cidadão, tome um cálice de vinho. Assim, ele entrou na casa. Seria útil ensaiar o que deveria acontecer no dia seguinte.
Ele iria sentar-se à mesa dela, como estava agora. Ele iria tomar um cálice de vinho, falar sobre o que tinha visto naquele dia na Place du Carrousel ou na Place de Ia Révolution; ele falaria sobre os prisioneiros.
- O seu vinho é bom, madame Tison. Ela grunhiu; era uma mulher sem modos.
- Está tudo bem com os seus prisioneiros, espero? - prosseguiu ele.
Mais uma vez ela grunhiu.
- Eles causam poucos problemas. Como poderiam? Agora nós somos os mestres, hein, cidadão?
- Agora nós somos os mestres - disse ele, com o ar de um bom patriota. - As crianças estão com eles agora?
- O menino está no pátio, brincando com aquele pedaço de pau no qual ele monta para fazer de conta que é um cavalo. Que diferença dos velhos dias, não é, cidadão? Agora um pedaço de pau, em vez de um cavalo paramentado com tecidos banhados a ouro e prata.
- Uma grande diferença. E a menina?
- É muito calada... não confio nela... não confio em gente calada demais.
Lepítre teve a impressão de que os olhos da mulher estavam penetrando nele. Sentiu dificuldade em conter um estremecimento. Ele tirou do bolso a sua caixa de rapé.
- Acho que você gosta de uma pitada de rapé, não gosta? Os olhos da mulher brilharam. Ela era voraz; jamais recusava
nada; e Tison era igualzinho. Era por causa disso que ele confiava que eles cheirariam o rapé.
Era exatamente assim que deveria acontecer na noite seguinte.
- Ora, cidadão, não consegue segurar a caixa com firmeza?
Então ela tinha notado suas mãos trémulas. Ele acreditou ver um olhar malicioso nos olhos da mulher.
Ela inalou profundamente o rapé. E então, ainda mantendo seus olhos nele, disse:
- Cidadão Lepítre, você soube como os emigres estão caindo direto em nossas mãos? Está fácil como matar moscas. Eles estão tentando de todas as formas sair do país. Isso me dá vontade de rir.
Madame Tison balançou-se em sua cadeira, achando graça, e prosseguiu:
- Tentam chegar até a fronteira... e alguns deles até conseguem. Sabe como? Passaportes falsos. Meu marido me disse que mais pessoas foram capturadas com passaportes falsos nas últimas semanas do que nos dois últimos anos.
- P-passaportes falsos? - balbuciou Lepítre.
- Ei, não precisa ficar alarmado, cidadão. Nós estamos pegando todos eles. Todos eles.
A mulher se curvou na direção dele.
- Eles me disseram que sabem reconhecer esses passaportes falsos com um só olhar. Então eles arrastam os emigres de suas carruagens bonitas... e os enforcam sem demora. Quero mais uma pitada de rapé, cidadão Lepitre. Por que... o que está errado? Pegou uma febre? Está tão trémulo!
Lepítre se levantou. Seu medo parecia formar uma névoa ao seu redor, impedindo-o de enxergar completamente. Ela sabe, pensou Lepítre. Ela me desmascarou.
- Vou para os meus aposentos, cidadã - disse ele. - Sinto-me um pouco tonto. Esta minha perna tem me incomodado muito.
- Se eu fosse você, cidadão, iria para a cama e ficaria lá por um ou dois dias.
Lepíte passou a noite andando em círculos em seu quarto. Tirou os uniformes dos conselheiros municipais do baú no qual os escondera. Sentia tanto medo que mal conseguia ficar em pé. Suor escorria por seu rosto. Deitou-se na cama, trémulo.
Eu não posso fazer, pensou.
E de manhã ele procurou Jarjayes.
- Suspeito dessa mulher, Tison - disse ele. - Não vou conseguir fazer. Não vou ousar.
E sem Lepítre, era impossível seguir com o plano.
Não há mais esperança, pensou Antonieta.
Nenhuma das coisas iniciadas havia sido concretizada.
- Estamos perdidas - disse a Elisabeth.
Havia outro plano, mas neste ela não nutria grandes expectativas. Ela sabia que havia vários partidários da realeza na prisão, e que eles tramavam constantemente uma fuga para ela. Toulan tinha sido suspeito de estar íntimo demais com a rainha, porque madame Tison reportara que ele visitava a cela da rainha frequentemente e conversava muito com ela. Portanto, Toulan foi removido. Jarjayes, em vista dos temores de Lepitre, considerara sensato deixar Paris.
A rainha tinha a impressão de que muitos membros do batalhão que haviam sido designados para guardá-la simpatizavam com a realeza. O comandante, Cortey, dissera-lhe que estava trabalhando com amigos em planos para ajudá-la a escapar. Havia o barão de Batz, o herói de muitas aventuras fantásticas, que estava tramando para salvar a rainha e proclamar o delfim Luís XVII.
Era um plano simples, como todos esses planos tinham parecido antes de serem postos em prática. A rainha, madame Elisabeth e madame Royale, vestidas em uniformes de soldados, seriam guiadas para fora da prisão com membros leais da guarda. O delfim seria escondido debaixo do manto pesado de um dos oficiais, e todos eles marchariam juntos.
O dia foi marcado e os uniformes preparados; mas eles não tinham contado com os espiões pelos quais estavam cercados.
Quando os conspiradores estavam preparados para sair da prisão, descobriram que um de seus carcereiros, o sapateiro Simon, estava lá para impedi-los.
Depois disso Antonieta desejou que eles não tivessem tentado nada. Agora ela estava sendo vigiada com rigor ainda maior. Ela e Elisabeth não tinham permissão nem para fazer seus bordados. Madame Tison declarou que, em sua opinião, aqueles bordados "significavam alguma coisa". Havia nos desenhos em tricô algum código através do qual eram transmitidos pensamentos que elas não ousavam colocar em palavras.
Madame Tison denunciou Toulan, de modo que um amigo fiel foi removido. Ela também declarou suas suspeitas de Lepítre, que foi levado dali.
Antonieta estava chegando à conclusão de que jamais conseguiria escapar. Além disso, certo dia o delfim chegou chorando de suas brincadeiras, tendo se ferido ao cair sobre o pedaço de pau que ele cavalgava como um cavalo.
Era necessário que um médico cuidasse do ferimento do menino. Enquanto o delfim estava deitado ao lado de Antonieta, chorando, a rainha esqueceu de tudo que não fosse a necessidade de mitigar a dor de seu filho.
Hébert disse a madame Tison:
- O que aflige o menino Capet?
- Oh, cidadão, ele caiu sobre um pedaço de pau. Ele se machucou. O médico cobriu o ferimento com bandagens. Ele disse que é uma ferida grave... num local delicado.
Ela riu e deu uma cotovelada amistosa nele. Somos todos iguais agora, implicou.
Hébert acreditava que era igual à rainha, mas não que madame Tison fosse igual a ele. Mas notar os modos rudes da mulher deulhe uma ideia.
Era dez horas da noite. O delfim estava adormecido, mas ainda havia resíduos de lágrimas em seu rosto, porque ele chorara um pouco durante a assepsia do ferimento.
A rainha estava sentada ao lado da cama do menino quando a porta foi aberta e seis membros do municipaux entraram no aposento.
Antonieta não olhou para eles, e quando o grupo se posicionou diante da rainha, um de seus membros flagrou a própria mão subindo ao chapéu, e precisou conter-se a tirá-lo.
- Viemos levar Louis Charles Capet à sua nova prisão.
A rainha emitiu um grito de alarme que fez madame Elisabeth e madame Royale correrem até seu lado.
- Eu lhes rogo, não o tirem de mim - disse a rainha.
- Essas são nossas ordens - disse o líder do grupo. - Ele será posto sob os cuidados de seu novo tutor, o cidadão Simon.
- Não! - gritou a rainha, pensando no sapateiro brutal. Por favor... façam qualquer coisa... qualquer coisa... mas não tirem meu filho de mim.
Madame Royale fitou os homens com olhos implorantes, mas eles não olharam para ela.
- Acorde-o - disse um dos homens, um pedreiro. - Rápido. Estamos apressados. Se não o fizer, nós o faremos.
- Ele não está passando bem. Ele se machucou recentemente. Por favor, permitam que ele fique comigo. Ele é muito novo.
Um dos homens se aproximou da cama. A rainha, com madame Elisabeth e madame Royale, barrou seu caminho. Outro membro do grupo, um escrivão, disse:
- Sentimos muito. Mas recebemos ordens e precisamos obedecê-las.
O delfim tinha acordado, assustado.
- Maman, você está aí? Tive um pesadelo...
Ele sentou na cama e viu os homens. Uma expressão de medo dominou seu rosto.
- Venha, Louis Charles Capet-disse o pedreiro.-Você vai se mudar daqui.
O menino se cobriu com os lençóis.
- Eu... vou ficar com a minha mãe.
Um dos homens agarrou o menino. A rainha correu até ele.
- Eu lhes imploro... eu lhes imploro. Lembrem que ele é meu filho. Vocês já levaram o pai dele... já assassinaram o pai dele... Isso não basta?
O delfim tentou agarrar as mãos de Antonieta, mas foi puxado com força.
- Venha, vamos embora - disse o escrivão.
A rainha correu atrás dos homens que levaram seu filho; os outros homens a contiveram e a empurraram para os braços de sua filha e cunhada.
A porta foi fechada. A rainha ficou parada como se em choque, ouvindo os gritos do delfim enquanto era levado à força.
O delfim foi mantido no Templo, em aposentos abaixo daqueles ocupados por sua mãe, madame Elisabeth e madame Royale. Ele estava tão perto, mas ainda assim tão longe, porque Antonieta jamais recebia permissão para vê-lo.
Ela exigia notícias do menino a todos com quem entrava em contato; mas eles tinham recebido ordens severas para não falar sobre o menino com a rainha.
Antonieta descobriu que em alguns dias ele era levado para um pátio que ela podia ver através de sua janela gradeada. E durante horas ela ficava em pé diante dessa janela, na esperança de capturar um vislumbre dele.
Elisabeth, e também sua filha, tentaram confortá-la. Mas durante esses dias não havia conforto que a vida pudesse oferecer a Antonieta.
Madame Tison zombava da rainha ao visitá-la em sua cela.
- Este lugar é um tantinho diferente de Versalhes, não é? É um tantinho diferente de Trianon!
Mas um dia, quando madame Tison zombou dela, alguma coisa na atitude abatida da rainha criou um nó na garganta da mulher, algo que não lhe era comum. Furiosa, madame Tison retirou-se da presença da rainha e ao colocar uma mão trémula na face, encontrou uma lágrima ali.
Ela tentou se justificar.
- É aquele menino - murmurou baixinho. - Tirá-lo dela... parece um pouco cruel. Isso foi coisa do Hébert. O que ele pensa que é? Ele se dá ares de aristocrata.
Madame Tison continuou escarnecendo da rainha, mas agora não via mais tanto sentido nos insultos que lhe dirigia. A rainha era indiferente a eles e madame Tison não mais os proferia com o mesmo entusiasmo.
Então, ela parou de escarnecer de Antonieta. E, estranhamente, descobriu novos sentimentos em si mesma. Ela acordava no meio da noite, e às vezes despertava chorando de sonhos nos quais a rainha sempre era personagem.
- Você está enlouquecendo? - perguntava-lhe o marido. Madame Tison não respondia nada; trémula, punha-se a fitar a escuridão.
O delfim estava chorando em seu novo apartamento.
Simon balançou o menino com força. O sapateiro gostou de ser violento com o garoto. Este era o menino que já estivera destinado a ser rei da França. Quem teria imaginado que ele, Simon, que conhecera a pobreza absoluta, um dia puxaria as orelhas do futuro rei da Franca?
O pensamento encheu Simon de êxtase. Isso mostrava o que a revolução podia fazer por um homem pobre. Este menino, que havia tido tudo que pudera querer - luxo, comida, roupas bonitas, gente prestando-lhe reverências aonde quer que fosse - era agora prisioneiro de Simon.
O cidadão Hébert falara honestamente com Simon.
- Queremos fazer de Louis Charles Capet um filho do povo. Ele é apenas um menino. Queremos torná-lo um verdadeiro filho da revolução. Queremos que você faça dele um homem... está me entendendo? Um homem do povo.
Simon era analfabeto. Já fora proprietário de um restaurante fuleiro na rue de Seine, que falira. Já vivera em condições de pobreza absoluta. Exercera todos os tipos de ofícios além do de sapateiro, sempre fracassando, até a chegada da revolução. Era rude e falava a linguagem dosfaubourgs. Era o tipo de pessoa que Hébert precisava para seu plano.
Agora estava debruçado sobre o delfim, balançando-o violentamente.
A criança olhou para ele, infeliz demais para se preocupar com qualquer coisa além de seu próprio sofrimento.
- Garoto, pára de chorar. Que bicho te mordeu?
- Eu quero a minha mãe! - exclamou o menino.
Simon mandou o delfim despir-se para tratar de seu ferimento.
- Como você se machucou deste jeito?
- Estava cavalgando um pedaço de pau.
- Que coisa mais maluca... cavalgar um pedaço de pau. Por que estava fazendo isso?
- Estava fingindo que ele era um cavalo. Simon soltou uma gargalhada sarcástica.
O menino sentia-se constrangido por estar exposto aos olhos desse homem rude.
- Deixa de ser bobo, garoto. Não precisa ser tímido. Somos todos iguais. Alguns de nós sabem um pouco mais que os outros, só isso. Acho que posso te ensinar uma ou duas coisas.
- Como o quê? - perguntou o garoto. Simon piscou para ele.
E então ensinou o menino a como se masturbar. Isso fazia parte dos deveres que lhe haviam sido descritos por Hébert.
- Quem te ensinou isso? - inquiriu Simon.
- Você - disse o menino.
- Isso é mentira.
- Mas você... você ensinou sim... você sabe que ensinou!
Um tapa violento empurrou o delfim para o outro lado do quarto. O menino nunca tinha sido tratado dessa forma. Fitou Simon com olhos estarrecidos.
- Agora, chega de mentiras, garoto - ralhou Simon. - Vai dizer a verdade, como um patriota.
- Eu disse a verdade.
Simon agarrou o menino pela orelha.
- Quando eu perguntar quem te ensinou isso, você dirá a verdade. Dirá: a minha mãe.
O rosto do menino ficou vermelho.
- A minha mãe.... mas... ela... ela não pode saber disto. Ela ficaria... muito zangada. Ela ficaria com vergonha. - Seus lábios tremeram. - Por favor, deixe-me voltar para a minha mãe.
Simon balançou a cabeça do menino para a frente e para trás, ainda segurando sua orelha violentamente.
- Eu lhe disse que queria a verdade? O menino fitou-o, pasmo.
- Ouça bem, a tua mãe te ensinou isso. Quando você dormia na cama com ela.
O menino estava calado. A dor em sua orelha dava-lhe vontade de gritar.
- Sim, você costumava dormir entre ela e a sua tia, e elas costumavam dizer, faça isto... e elas riam com você, enquanto você fazia.
O menino balançou a cabeça. Aquilo era um absurdo. Imagine, sua mãe fazendo esse tipo de coisa! E a sua tia, uma santa! Ele queria estar com elas; queria voltar para a sanidade.
- E vou lhe dizer mais uma coisa que a sua mãe fazia. Ela costumava abraçar você com força e...
Simon soltou a orelha do menino e encostou sua boca fedorenta nela.
As palavras sussurradas de Simon fizeram o menino sentir que adentrara algum mundo fantasticamente horrível, completamente além de sua capacidade de compreensão.
Simon terminou dizendo:
- Era isso o que acontecia, não era?
- Não, não era... - disse o delfim.
O delfim foi balançado violentamente, até seus dentes começarem a bater e a sala parecer girar ao seu redor.
- Estou dizendo que acontecia.
- Não acontecia... não acontecia... não acontecia!-choramingou o delfim.
O menino viu que o rosto sujo de Simon estava bem perto do seu.
- Vou fazer você falar a verdade. E não importa o que tiver de fazer com você para conseguir isso.
O delfim fitou Simon com olhos arregalados. Isto era como um de seus pesadelos transformado em verdade. Ele pediu clemência ao sapateiro.
Mas Simon não lhe deu ouvidos. Alguns espancamentos... alguns dias sozinho... à base de pão preto e lentilhas... e então o delfim falaria o que Simon quisesse.
Simon não ia desapontar Hébert. Eles fariam o menino admitir qualquer coisa que quisessem. Afinal de contas, ele só tinha oito anos.
Madame Tison tinha sonhos horríveis. Ela sonhava que seu quarto estava cheio com cadáveres sem cabeça que marchavam em sua direção, aproximando-se cada vez mais. Eles carregavam suas cabeças à sua frente, e os olhos em suas cabeças acusavam-na enquanto os lábios cantavam:
- Madame Tison, a sua vez vai chegar. Frequentemente ela sonhava com a rainha, a rainha com os braços estendidos, a rainha gritando por seu filho.
Quando via a rainha em pé diante da janela, torcendo por um vislumbre do delfim, ela compartilhava de sua dor.
O marido de Tison era brutal. De vez em quanto, batia nela.
- O que deu em você? - perguntou o marido. - Quer que percamos nosso trabalho? Quer que sejamos expulsos da prisão?
Quando madame Tison foi convocada para um interrogatório, seu marido a viu hesitante, e perguntou:
- O que está esperando?
- Não quero contar nada. Não quero ser espiã deles.
O marido avançou, braço direito levantado para espancar a mulher.
- Você vai! E vai contar a eles sobre esse novo guarda que vimos conversando com Elisabeth.
E então ela foi, e como se estivesse sob um feitiço, contou.
Quando voltou para a prisão, madame Tison invadiu os aposentos da rainha. Madame Royale estava sentada à mesa olhando fixamente para a frente; madame Elisabeth estava rezando; e a rainha estava à janela, na esperança de ter um vislumbre do delfim.
Madame Tison correu até Antonieta e se atirou aos seus pés. Segurando a barra do vestido da rainha, fitou Antonieta com olhos súplices.
- Madame, me perdoe! - gritou. - Estou enlouquecendo. Sou uma maldita pecadora. Eu espionei a senhora. Eles me observam o tempo inteiro, porque querem matá-la, como mataram o rei. Madame, imploro seu perdão por tudo que fiz.
A expressão da rainha suavizou-se imediatamente.
- Você não precisa ficar tão perturbada. Você fez apenas o que foi obrigada. E tem sido gentil conosco nos últimos tempos.
- Estou ficando louca... louca, madame. Esses sonhos terríveis. Não posso viver com eles. Eles me assombram... eles não vão me deixar...
Os guardas entraram. Eles a agarraram e a carregam para longe. Naquela noite, a novidade correu pelo Templo:
- Madame Tison enlouqueceu.
A rainha estava diante da janela gradeada. Ele não podia vê-la, mas ela conseguia vislumbrá-lo de vez em quando. Como ele tinha mudado! Não parecia mais seu menininho. Suas roupas estavam sujas e rasgadas. Seu cabelo estava desgrenhado.
Ele gritava enquanto corria pelo pátio. Aquele homem rude, Simon, praticava brincadeiras com ele... brincadeiras violentas.
Eles cantavam juntos. Antonieta reconheceu a canção revolucionária "Ca ira". Era estranho ouvir aquelas palavras nos lábios de um filho da casa real.
Mas ele estava bem? Estava feliz?
Se ao menos pudesse falar com ele, ouvir de sua própria boca que tudo estava bem com ele.
- Meu filho querido... - murmurou.
Então ela ouviu a voz fina de seu filho cantando no pátio:
- Állons, enfants de lapatrie...
- Eles o tomaram de mim completamente - disse Antonieta aos seus botões. - Nada mais me importa agora. Decerto já esgotei minha capacidade de sofrer.
Mas ela estava errada. Um sofrimento maior a aguardava.
Foi decidido que era hora de a rainha ir a julgamento.
Numa manhã de agosto uma carruagem chegou à porta do Templo. Resignada, Antonieta disse adeus a madame Elisabeth e a madame Royale.
Ela pareceu tonta ao sair do Templo. E enquanto passava debaixo do arco baixo da porta, esqueceu de se abaixar, e bateu a cabeça na pedra dura.
- Você se machucou - disse um dos guardas, compadecido.
- Nada pode me machucar agora - respondeu Maria Antonieta.
Ela entrou na carruagem e foi conduzida até a Conciergerie.
Havia pouco conforto na Conciergeríe.
Maria Antonieta foi conduzida a um quartinho com grades nas janelas, recentemente deixado vago por um velho general que naquele mesmo dia fora levado de carroça até uma guilhotina na Place de Ia Révolution.
Limo vazava pelas paredes da cela e era impossível manter o colchão seco.
A Conciergeríe era conhecida por toda Paris como a prisão do julgamento final. Nos últimos tempos, eram raros aqueles que a deixavam para qualquer outro destino que não fosse a última jornada até a guilhotina.
Hébert estava inflamando o povo contra a rainha. Era hora, disse ele, de ela ser julgada na gravata de Sansão. Era hora de o carrasco jogar bola com a cabeça da diaba. Ela devia ser esquartejada para pagar pelo sangue que carregava na consciência.
Mas os comandantes militares não estavam tão ansiosos pela morte de Antonieta. A guerra estava correndo menos do que satisfatória, e eles acreditavam que viva ela poderia ser usada numa barganha com a Áustria.
Fersen ficou desesperado ao ouvir sobre a remoção de Antonieta para a Conciergeríe, e na raiz de seu temor estava sua sensação de impotência.
Ele escreveu para a sua irmã:
"Desde que ouvi que a rainha está na Conciergeríe, não mais me sinto vivo, porque não é vida existir como existo, e sofrer as dores que sofro. Se eu pudesse fazer alguma coisa para libertá-la, minha agonia seria menor. É terrível o fato de que eu possa apenas implorar aos outros para agirem. Eu daria minha vida para salvar a dela. Eu me condeno por respirar este ar puro enquanto ela vive naquela prisão insalubre. Minha vida está envenenada, porque migro da dor para a ira e da ira de volta para a dor."
Mas Fersen estava impotente diante da situação. Tudo que ele podia fazer era lamentar.
As pessoas na Conciergeríe eram mais gentis com Antonieta do que aquelas no Templo. Será que isso se devia ao fato de o lugar ser conhecido como a "ante-sala da morte"?
A esposa do carcereiro, madame Richard, era uma mulher agradável. Ela estava encantada com a graça da rainha e fazia tudo que podia para prover-lhe conforto. Ela mandou seu marido pregar seu pedaço de tapete na parte do teto pela qual a água escorria até a cama. E quando o filhinho de madame Richard visitou a cela, a rainha o abraçou porque ele era louro como o delfim, e da mesma idade.
- Perdoe-me, madame, ele me lembra meu filho. Madame Richard virou as costas para que Antonieta não visse
suas lágrimas. Mais tarde, perguntou a Michonis, o comissário de polícia, que tinha sido vendedor de limonada antes da revolução e agora era inspetor de prisioneiros, se ele poderia descobrir notícias sobre os filhos da rainha e trazer para ela.
- Afinal, que mal isso causaria à República? - indagou madame Richard. - E veja que bem isso faria à pobre mãe!
E assim, Michonis, que era um homem de coração bom, trouxe pequenas informações sobre madame Elisabeth e madame Royale. Ele também disse que o delfim estava bem e não estava infeliz.
- São jovens, e portanto, resistentes - disse ele. - Eles se recuperam muito mais depressa do que nós.
E também havia Rosalie, a jovem serva, que adorava sua ama, e que aplicava à cela de Antonieta mais dedicação do que a qualquer outra. Ela trouxe uma caixa para guardar as poucas cobertas que a rainha possuía. Toda manhã ela raspava os fungos dos sapatos da rainha, porque eles se acumulavam durante a noite naquela cela úmida.
A rainha envelhecera consideravelmente. Agora seus cabelos estavam brancos. Ela tinha dores reumáticas tão fortes nas pernas que às vezes sentia dificuldade de ficar em pé. Estava sofrendo hemorragias que deixavam-na muito fraca.
Essas boas pessoas tomavam para si a tarefa de contrabandear confortos para a cela - alguns cobertores grossos para proteger Antonieta da umidade, alguns lençóis novos, um novo chapéu de luto. Quando podiam, as madames Richard e Rosalie prestavam pequenos serviços a Antonieta, como lavar e costurar suas roupas.
Certo dia, Michonis veio inspecionar a cela de Antonieta, e trouxe consigo um estranho, um homem que, ele explicou, queria ver como era o interior de uma prisão.
Antonieta olhou para esse homem e teve a impressão de reconhecê-lo. Tinha nas mãos um pequeno buquê de flores, do tipo que costumava ser carregado por visitantes a prisões e outros lugares onde o ar viciado poderia provocar doenças.
O homem jogou o buquê atrás do fogão da rainha. Depois que ele tinha saído, Antonieta pegou o buquê e encontrou um bilhete em seu interior. Neste estava escrito:
"Tentarei encontrar meios para mostrar meu zelo pelo seu serviço."
Antonieta agora lembrou quem era o homem. Era o chevalier de Rougeville, e Antonieta deduziu que fora Fersen quem o inspirara a fazer isso.
Pensar no homem a quem ela amava deu-lhe novas esperanças. Fersen! Ele parecia invencível. Nos velhos tempos ela tinha acreditado que ele iria salvá-la e levá-la à felicidade. Ela a»gora encontrou essa crença revivida.
Antonieta precisava responder o bilhete. Como? Não tinha penas, mas tinha uma tira de papel e também uma agulha, que ganhara das boas amigas que conhecera aqui na Conciergerie.
Com a agulha, perfurou uma resposta na tira de papel. E agora, como dá-la a Chevalier? Podia pedir a madame Richard ou a Rosalie que a passasse para ele, mas então lembrou o que tinha acontecido ao pobre Toulan. Não, se alguma coisa desse errado, elas seriam as primeiras a serem acusadas de ajudar sua rainha.
Antonieta não ousava envolver as pessoas que lhe eram muito íntimas, e que já eram suspeitas de serem íntimas demais.
Finalmente ela decidiu dar a carta a Gilbert, um dos gendarmes que parecia um sujeito digno de confiança.
Antonieta disse a ele que não tinha como pagar-lhe, mas o cavaleiro a quem ele entregasse o bilhete iria recompensá-lo com quatrocentos louis.
O gendarme ficou tentado - tanto por seu desejo pelo dinheiro quando por ajudar a rainha -, mas as cabeças que eram cortadas diariamente na Place de La Révolution provocavam cautela em qualquer homem.
Ele mostrou o bilhete a madame Richard, que ficou aterrorizada e pediu o conselho de Michonis.
Uma coisa era ter simpatia pela rainha; outra era operar contra a República.
Michonis tomou o papel de madame Richard e lhe disse que não falasse nada mais sobre ele.
Mas o gendarme não conseguiu esquecer o incidente. Ele o mencionou a seu oficial superior, e como resultado um inquérito foi iniciado imediatamente.
Michonis estava aterrorizado. Ele sabia que lhe seria exigido apresentar o bilhete, e ele não ousava destruí-lo. Numa tentativa corajosa para salvar a rainha, ele acrescentou mais furos de agulha nele, de modo a tirar todo seu sentido.
Ele foi levado ao tribunal e apresentou o bilhete.
A rainha, quando interrogada, decidiu poupar Michonis e madame Richard. Ela não disse a eles que Michonis tinha levado o chevalier para sua cela.
Mas depois deste incidente, a Comuna decidiu ficar mais atenta à prisioneira e levá-la a julgamento o quanto antes. Michonis foi demitido de seu posto; os Richards foram aprisionados; a rainha ganhou um novo carcereiro e foi removida para um quarto menor. Mas o novo carcereiro e sua esposa eram tão simpáticos quanto os Richards tinham sido, e trouxeram confortos para a cela de Antonieta. Trouxeram-lhe livros e, pela primeira vez em sua vida, Maria Antonieta encontrou grande prazer na leitura; através das páginas dos livros ela podia se afastar do presente insuportável e viver num mundo de sua imaginação. Ela encontrava prazer nas aventuras do capitão Cook; podia imaginar-se em viagens de exploração, e assim passava seus dias e noites.
E então, em 12 de outubro de 1793, Maria Antonieta foi convocada à Câmara do Conselho para ser julgada.
No Templo, o delfim estava sentado numa cadeira à mesa. Seus pés não alcançavam o chão.
Com ele estavam três homens: Chaumette, o syndic, e mais Hébert e Simon. Eles tinham trazido madame Royale, a irmã do delfim, para o quarto.
Madame Royale correu até o delfim e o abraçou. Enquanto retribuía o abraço, o delfim viu uma expressão de nojo no rosto da irmã, porque ele não estava limpo. Ele se sentiu incomodado com isso.
Os homens começaram a fazer perguntas a madame Royale, perguntas que diziam respeito a ela e ao seu irmão. Que brincadeiras eles tinham praticado enquanto haviam estado juntos? Em algum momento seu irmão a havia manipulado impropriamente?
Madame Royale nem mesmo sabia do que eles estavam falando. Disse-lhe que ela e seu irmão sempre tinham sido bons amigos.
Então eles começaram a fazer perguntas sobre a mãe dela. Madame Royale não entendia exatamente o que eles queriam dizer, mas à medida que ouvia os homens começou a ter uma leve noção, e lentamente seu rosto enrubesceu.
- Isso tudo é mentira - protestou madame Royale.
- O seu irmão diz que é verdade.
- Mas é mentira!-gritou madame Royale.-Tudo que vocês estão dizendo é mentira!
- Levem-na daqui - disse Hébert. - E tragam a tia.
Foi mais fácil explicar a madame Elisabeth. Ela escutou a história infame, primeiro com incredibilidade, e então com horror.
- Isto é um absurdo. É impossível.
- Temos a palavra deste menino.
- Eu não acredito nisso.
Hébert virou-se para o delfim e perguntou:
- Essas coisas aconteceram entre você e sua mãe?
- Sim - disse o delfim, desafiador. - Aconteceram sim.
- E sua tia estava presente, e viu essas coisas acontecerem?
- Sim - disse o menino.
- Você se deitava entre sua mãe e sua tia, e elas o incitavam a fazer essas coisas, e elas riam juntas?
- Sim, elas faziam isso.
Madame Elisabeth estava tão pálida que parecia a ponto de desmaiar.
Ela se virou para o menino.
- Seu... seu monstro! - gritou.
O rosto do delfim se contorceu. Ele começou a choramingar.
- Levem essa mulher daqui!-comandou rapidamente Hébert.
Ela se apresentou aos juizes. Ninguém teria reconhecido aquela mulher como a alegre e amável rainha que havia dançado no salão de bailes de Versalhes ou no gramado do Trianon. A luz do dia doía em seus olhos, de modo que ela não podia mantê-los abertos. Ela quase não conseguia caminhar. Estava pálida devido à hemorragia e suas juntas estavam rígidas devido ao reumatismo. Havia linhas de preocupação escavadas em seu rosto.
Ela se posicionou diante desses homens, sabendo que seu julgamento seria uma farsa. Eles estavam determinados a considerála culpada de todas as acusações que estavam apresentando contra ela.
- Qual é o seu nome? - indagaram.
- Maria Antonieta de Lorraine e Áustria, viúva de Luís Capet, que um dia foi rei da França.
- Sua idade?
- Tenho trinta e oito anos.
- Foi você quem ensinou a Luís Capet a arte daquela dissimulação profunda com a qual ele enganava o bom povo da França?
- É verdade que o povo foi enganado, mas não por mim ou pelo meu marido - respondeu calmamente.
- Por quem, então?
- Por aqueles que tinham um interesse em enganar o povo. Mas não era nosso interesse enganá-lo.
- Quem você sugere que enganou o povo da França?
- Como eu poderia saber? Meu interesse era esclarecer o povo, não enganá-lo. A felicidade da França é o meu maior desejo.
- Você acha que reis são necessários para a felicidade de um povo?
- Essa é uma questão que não pode ser decidida por nenhum indivíduo.
- Você lamenta que seu filho tenha perdido um trono?
- Não lamento, se sua perda foi para o bem do país.
A Corte estava cheia. Todos que tinham conseguido haviam se aglomerado no tribunal. Na galeria havia muitas mulheres; algumas delas eram feirantes, e estavam sentadas tricotando, mas faziam isso sem olhar para as mãos, pois tinham os olhos cravados na rainha. Tinham vindo, vingativas e furiosas, presenciar a mulher a quem tanto odiavam ser levada à justiça; e agora estavam olhando para essa mulher vestida de preto com um xale sobre os ombros e um chapéu de luto sobre a cabeça, e lembravam que ela era uma viúva lamentando a morte recente do marido. Agora que estavam na presença de Antonieta, não era fácil acreditar em todas aquelas histórias que tinham ouvido sobre ela.
As questões continuaram. Eles queriam saber quanto dinheiro tinha sido gasto no Trianon, quanto em jóias, quantos retratos dela haviam sido pintados.
- Onde você conseguiu o dinheiro para o Trianon? Quem pagou por todas aquelas festas e extravagâncias?
- Eu dispunha de um fundo especial para o Trianon.
- Devia ser um fundo muito grande.
- Nós ficamos cientes dos gastos aos poucos. Eu não tenho nada a esconder. Eu espero que tudo relacionado às despesas do Trianon venha a público, porque elas foram imensamente exageradas.
E então o promotor gritou:
- Não foi no Petit Trianon que você conheceu pela primeira vez uma mulher chamada Lamotte?
- Jamais conheci essa mulher.
- Mas ela foi o seu bode expiatório no caso infame e vergonhoso do colar de diamantes.
- Eu não sei como ela pode ter sido bode expiatório em qualquer coisa, considerando que jamais a conheci.
- Você insiste em negar que conhece essa mulher?
- Não estou insistindo em negar. Estou insistindo em dizer que jamais a vi, porque essa é a verdade, e eu quero continuar a dizer a verdade.
Em seguida Hébert foi convocado como testemunha.
Ele entrelaçou os dedos das mãos e virou os olhos para cima enquanto fazia a monstruosa acusação de incesto contra a rainha.
Todos no tribunal ficaram tensos, e o silêncio que se seguiu às palavras de Hébert foi dramático.
Todos os olhos estavam fixos na rainha. Ela estava empertigada em sua cadeira, mas toda a cor tinha sido sugada de seu rosto. Ela não protestou; ela não se moveu.
As mulheres na galeria tinham parado de tricotar. Elas estavam profundamente chocadas. Seus olhos inflamaram-se com fúria, e essa fúria foi dirigida para o homem que tinha falado, porque elas sabiam que ele era um mentiroso. O instinto assegurava-lhes que ele tinha mentido. Elas acusariam a prisioneira de extravagância, imprudência, orgulho... mas não disto.
Hérbert começou a ficar tenso. Ele sentiu que alguma coisa estava errada. Ele esperara que as mulheres ficassem indignadas e gritassem impropérios contra a prisioneira. Este silêncio o enervou.
Ele ficou parado por um momento, inseguro. E então prosseguiu:
- Eu... eu... não é minha crença que esta conduta criminosa tenha sido cometida visando prazeres, mas porque a prisioneira desejava enfraquecer a saúde do filho, não apenas física mas mentalmente, para desta forma dominá-lo e, caso viesse a recuperar o trono, governar através dele.
Mais uma vez houve silêncio. A rainha ainda não disse nada. Sua expressão não traía nada. Isso era bizarro. Um dos juizes disse:
- Esta questão deve ser esclarecida. A prisioneira não fez nenhum comentário sobre a acusação.
Agora Antonieta se levantou. Ela deixou os braços caírem para os flancos do corpo, e muitos viram que seus punhos estavam cerrados com força. Antonieta olhou para Hébert com tamanho desprezo que ele estremeceu e recuou.
Então ela falou, e suas palavras ecoaram pelo tribunal com um tom de inocência inconfundível, mesmo aos mais insensíveis:
- Se eu não respondi nada, foi porque a natureza recusa uma resposta a esse tipo de acusação levantada contra uma mãe. Eu apelo neste assunto a todas as mães presentes na corte.
As mulheres na galeria estavam ao lado de Antonieta. A maternidade havia sido insultada.
Todos que estavam determinados a levar a rainha ao cadafalso ficaram furiosos com Hébert.
Foi necessário encerrar as atividades por aquele dia, porque a atmosfera tensa na corte estava prestes a irromper numa revolta aberta. As feirantes tinham começado a sussurrar e a balançar suas cabeças em sinal de desaprovação.
Será possível que, caso o julgamento houvesse prosseguido, as mulheres - tendo por base o fato de que Antonieta fora tão claramente caluniada num aspecto, poderia ter sido também em outros - teriam exigido a libertação da rainha?
Maria Antonieta foi levada de volta à sua cela.
Robespierre ficou furioso com Hébert.
- Idiota! Imbecil! Levantar uma acusação como essa contra Antonieta! Só de olhar para ela se vê que a acusação é falsa. Todas aquelas mulheres... todas aquelas mães viram no rosto e sentiram na voz de Antonieta o amor que ela sente pelo filho. E elas sabem que é um amor maternal. Não basta que Antonieta seja Messalina? Ela deve ser também Agripina? Este é um triunfo público para Antonieta. Pelo amor da República, leve o julgamento a um fim amanhã, e permita que esta questão estúpida seja ignorada como se jamais tivesse sido aventada. Concentre-se em sua extravagância, no caso do colar... ah, sim... muito particularmente no caso do colar. Concentre-se em sua extravagância e em seu desejo de levar a guerra civil à França. E quando ela deixar a corte que seja como uma mulher condenada à morte.
E no dia seguinte isso foi feito.
Quando Antonieta retornou à Conciergerie, ela sabia que tinha apenas mais algumas horas de vida.
Em sua cela, Antonieta escreveu a Elisabeth:
"É para você, querida irmã, que escrevo pela última vez. Fui sentenciada à morte, mas não a uma morte vergonhosa, porque esta morte é vergonhosa apenas para criminosos, enquanto, pelo contrário, eu irei reunir-me ao seu irmão. Espero manter-me firme como ele em seus últimos momentos. Minha consciência está limpa, embora eu sinta muita dor por ser obrigada a abandonar meus filhos. Através de você, mandarei para eles minha bênção, na esperança de que algum dia, quando eles estiverem mais velhos, possam ficar mais uma vez sob sua guarda carinhosa..."
"Preciso falar com você sobre um assunto que me é extremamente doloroso. Eu sei o quanto o meu filhinho a fez sofrer. Perdoa-o, querida irmã. Lembre o quanto ele é jovem, e como é fácil para um adulto obrigar uma criança a dizer qualquer coisa, como é fácil colocar em sua boca palavras que ela não entende... Espero que um dia ele venha a compreender o valor pleno da gentileza e do afeto que você demonstrou aos meus dois filhos..."
Ela parou e enterrou o rosto nas mãos. Não podia continuar.
Mas depois de algum tempo pegou sua pena e resolutamente continuou a escrever.
Rosalie entrou na cela.
Trouxe uma tigela de sopa.
A rainha estava deitada na cama, completamente vestida.
- São sete da manhã, madame - disse a menina.-Não quer tomar um pouco de sopa?
- Não tenho fome, Rosalie.
- Madame, a senhora não comeu nada ontem. Vai estar fraca demais. Ao menos para me agradar...
A rainha sorriu.
- Você tem sido boa comigo, Rosalie.
Pegou a tigela e tentou tomar uma colher. Olhou apologeticamente para a menina, porque não conseguiria comer mais.
Rosalie deu as costas para Antonieta, porque não queria que ela a visse chorando.
Depois de algum tempo ela disse:
- Madame, há ordens para que a senhora não use preto.
- Então eles se importam com o que eu visto? - Ela riu. Eles sempre foram interessados no que eu vestia. Então este interesse continua... até o fim?
- A senhora deverá usar um vestido branco, madame.
- Eu vou me trocar. Preciso de um vestido novo.
- A hemorragia tem sido ruim, madame? A rainha fez que sim com a cabeça.
- Já lavei um vestido para a senhora.
O gendarme, posicionado na porta, entrou no quarto enquanto a rainha se agachava atrás da cama para se trocar. Ele se manteve observando-a, insolente.
- Não posso ter nem um pouco de privacidade?-perguntou Antonieta.
Rosalie gritou:
- Fique um pouco mais afastado.
- Minhas ordens são para não perder a viúva de vista - disse o homem.
Rosalie se posicionou na frente do gendarme e o fitou bem nos olhos.
Ele era um homem baixo, de modo que o rosto de Rosalie ficou nivelado com o dele. Ele estava pasmo com o desprezo com que vinha sendo tratado ali. Provavelmente a mesma coisa que Hébert sentira diante das mulheres na galeria do tribunal.
O gendarme não tentou avançar, e assim a rainha trocou de roupa, colocando o vestido branco.
Ela estava rezando quando, uma hora depois, sua cela foi invadida pelos juizes, o executor e um padre.
A sentença de Antonieta foi lida novamente. E então Henri Samson, o carrasco, cortou o cabelo de Antonieta e amarrou suas mãos atrás das costas.
- Isto é necessário? - indagou Antonieta.
- São minhas ordens - respondeu Samson.
Os sinos repicavam. O povo estava se aglomerando nas ruas. Os soldados estavam em guarda, e muitas das ruas estavam obstruídas ao tráfego.
Este era o dia pelo qual tantos esperavam. Eles iriam assistir, com toda segurança, à rainha ser conduzida até sua morte.
Era um pouco depois das onze da noite quando a carroça de execução parou diante dos portões da Condergeríe. A rainha assumiu seu lugar no veículo tosco. Havia nele apenas uma tábua nua para ela se sentar, mas ainda assim Antonieta, com seu chapéu branco com seus cabelos maltratados aparecendo por baixo, sentou-se como se aquela fosse a carruagem de vidro na qual fizera sua entrada na França.
A jornada não seria rápida. Todo o povo de Paris queria vê-la durante suas últimas horas na Terra. Na multidão, panfletos eram vendidos: La vie scandaleuse de MaríeAntoinette. A maioria das histórias contidas ali haviam sido inventadas por Jeanne de Lamotte.
Muitos tinham saído para gritar seu desprezo pela rainha. Contudo, fazer isso não era fácil, porque a mulher na carroça, sentada ereta, mãos amarradas atrás das costas, comportava-se como se ainda fosse uma rainha.
Quando a carroça passou diante da igreja de Saint-Roch, alguém berrou:
- Morte à mulher má que tentou arruinar a França! Morte à puta austríaca!
Mas ninguém repetiu o grito, e a rainha pareceu não ouvi-lo. A carroça tinha cruzado o rio e estava solavancando pela rue Saint-Honoré. Ali um homem ergueu sua espada e bradou:
- Ei-la, a infame Antonieta! Ela finalmente está acabada, meus amigos!
Mas ninguém respondeu.
Para a Place de La Révolution. Aqui a multidão estava mais densa. Dois objetos dominavam a praça soturna. Um era a estátua da deusa da liberdade, com o barrete frígio na cabeça e a espada da justiça na mão. O outro era aquele funesto instrumento de morte: a guilhotina.
Ao lado desta parou a carroça. Antonieta desceu quase bem disposta.
Galgou os degraus sem olhar para a direita ou para a esquerda. Não demonstrou sinais de medo. Como Luís fizera antes dela, Antonieta estava preparada e, aparentemente, impávida.
Durante um momento ela olhou para o Palácio de Tuileries e pensou ter visto em seu lugar o glorioso Palácio de Versalhes, e ela própria chegando aqui como uma mocinha para o marido tímido que sentia medo dela. Pensou no Trianon-seu amado Petit Trianon
- e nos dias e noites que passara ali com Axel de Fersen. Tudo isso não tinha importância agora; tudo isso era de pouca importância; porque este era o fim. O fim da tristeza; o fim da dor.
O carrasco e seus homens agarraram Antonieta e a forçaram a se ajoelhar, de modo a fazer sua garganta repousar na metade inferior do buraco circular. A tábua foi posta sobre seu pescoço, aprisionando-a.
Ela fechou os olhos.
- Adeus, meu amor - murmurou. - Tente encontrar alguma felicidade nesta vida, porque você ainda tem muito para viver, tenho certeza. Adeus, meus pequeninos, e não lamente pelo que fez, meu mais querido. Eu sei que você foi obrigado a fazer isso. E quando estiver com idade para entender, espero que esqueça...
"Adeus, vida... adeus, França... adeus..."
A grande faca desceu.
E então o carrasco levantou aquela cabeça ensanguentada, que um dia fora linda.
- Longa vida à República! - gritou.
E aqueles que tinham sido incapazes de ver a execução devido à grande quantidade de pessoas reunidas na praça souberam que o momento tinha chegado. Maria Antonieta da Áustria e Lorraine, viúva de Luís, anteriormente rei da França, estava morta.
Jean Plaidy
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