Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
AS PONTES DE MADISON COUNTY
Há canções que vêm das pradarias de flores azuis e do pó de mil caminhos. Esta é uma delas. Num final de tarde do Outono de 1989, estou sentado à minha secretária a olhar para o e cursor a piscar da tela do computador, quando toca o telefone.
Do outro lado da linha está um ex-habitante do lowa chamado Michael Johnson, que agora vive na Flórida. Um amigo do lowa mandou-lhe um dos meus livros. Michael Johnson leu-o, a sua irmã, Carolyn, também, e têm uma história na qual acham que eu posso estar interessado. Michael é circunspecto, e recusa-se a dizer o que quer que seja acerca do enredo, exceto que Carolyn e ele estão dispostos a viajar até ao lowa para discutirem o assunto comigo.
O fato de estarem dispostos a fazer tal esforço intriga-me, apesar do meu ceticismo relativamente a este tipo de propostas. Por isso aceito encontrar-me com eles em Dês Moines na semana seguinte. Num Holiday Inn perto do aeroporto, as apresentações são feitas, as distâncias vão desaparecendo gradualmente e os dois sentam-se diante de mim, enquanto lá fora anoitece e a neve cai ligeira.
Conseguem arrancar-me uma promessa: se eu decidir não escrever a história, terei de me comprometer a jamais revelar o que se passou em Madison County, lowa, em 1965, ou os acontecimentos com isso relacionados que se passaram nos vinte e quatro anos seguintes. Está bem, é razoável. Afinal de contas, a história é deles, não minha.
Por isso ouço. Ouço atentamente e vou fazendo perguntas pertinentes. E eles falam. Ininterruptamente. De vez em quando, Carolyn chora abertamente e Michael esforça-se por não o fazer. Mostram-me documentos, recortes de revistas e uma série de cadernos escritos por sua mãe, Francesca. O criado vai e vem. Pedimos mais cafés à medida que eles falam, começo a ver as imagens. Primeiro devem ter-se as imagens, depois vêm as palavras. E começo a ouvir as palavras, começo a vê-las em páginas escritas. Um pouco depois da meia-noite, aceito escrever a história - ou pelo menos tentar fazê-lo.
Tornarem esta informação pública foi uma decisão difícil para eles. As circunstâncias são delicadas, envolvem a sua mãe e, mais de perto, o seu pai. Michael e Carolyn tinham consciência de que a publicação desta história poderia ter como resultado falatório grosseiro e uma distorção pouco simpática da memória de Richard e Francesca Johnson. No entanto, num mundo onde o compromisso pessoal em todas as suas formas parece estar a desfazer-se e o amor se tornou uma questão de conveniências, ambos sentiam que valia a pena contar esta espantosa história. Acreditei então, e acredito ainda mais convictamente agora, que tinham razão em pensar assim.
Durante as minhas investigações e enquanto escrevia, pedi para me encontrar com Michael e Carolyne mais três vezes. Em cada uma delas, sem um protesto, deslocaram-se até ao lowa.
Estavam ansiosos por se certificarem de que a história era contada com rigor. Por vezes limitávamo-nos a conversar; outras vezes descíamos lentamente as estradas de Madison County enquanto eles me iam mostrando lugares que tinham tido um papel importante na sua vida.
Para além da ajuda dada por Michael e Carolyn, esta história, tal como é aqui contada, é baseada em informações retiradas dos diários escritos por Francesca Johnson; em investigações levadas a cabo no Noroeste dos Estados Unidos, especialmente Seattle e Bellirigham, Washington; nas investigações discretamente realizadas em Madison County, lowa. Baseei-me igualmente em informações extraídas das reportagens fotográficas de Robert Kincaid; na ajuda dada por editores de revistas e em pormenores fornecidos por fabricantes de rolos e material fotográfico. Finalmente, nas longas e maravilhosas conversas com várias pessoas de idade da associação recreativa de Bamesville, óbvio, que se lembravam de Kincaid desde a sua infância.
Apesar do esforço de investigação, continuam a existir lacunas. Nesses casos, acrescentei um pouco da minha própria imaginação, mas só quando pude fazer juízos sensatos, resultantes da intimidade com Francesca Johnson e Robert Kincaid, que fui ganhando ao longo da minha pesquisa. Estou confiante de que cheguei muito próximo da verdade dos fatos. Uma das grandes lacunas tem a ver com os pormenores exatos de uma viagem feita por Kincaid pelo Noroeste dos Estados Unidos. Sabíamos que ele a tinha realizado graças a uma série de fotografias posteriormente publicadas, a uma pequena alusão feita por Francesca Johnson nos seus cadernos e a notas manuscritas que ele deixou ao diretor de uma revista. Utilizando estas fontes como guia, recriei o que penso ter sido o percurso que efetuou entre Bellingham e Madison County em Agosto de 1965. Quando voltava de carro a Madison County, no final das minhas expedições, sentia que de alguma maneira me tinha transformado em Robert Kincaid.
Apesar disso, a tentativa de captar a essência de Kincaid foi o maior desafio das minhas investigações e da minha escrita. Ele é uma figura esquiva. Por vezes parece bastante vulgar. Outras vezes etéreo, talvez mesmo espectral. No seu trabalho era um profissional consumado. Mas via-se a si próprio como uma espécie de animal selvagem que se estava a tornar ultrapassado, num mundo cada vez mais organizado. Costumava falar do "impiedoso lamento" do tempo na sua mente, e Francesca Johnson caracterizava-o como alguém que vivia "em lugares estranhos e assombrados, muito anteriores à Lógica de Darwin."
Duas das questões mais curiosas ainda estão por responder. Em primeiro lugar, não fomos capazes de descobrir o paradeiro dos arquivos fotográficos de Kincaid. Dada a natureza do seu trabalho, devia ter milhares, talvez centenas de milhar de fotografias. Não foram recuperadas. A nossa melhor hipótese - e a mais coerente com a forma como ele se via a si próprio e ao seu lugar no mundo - é que ele as destruiu antes de morrer.
A segunda questão tem que ver com a sua vida entre 1975 e 1982. Existe muito pouca informação disponível. Sabemos que ganhou o indispensável para sobreviver durante alguns anos como retratista em Seattle e que continuou a fotografar a zona de Puget Sound. Para além disso, não sabemos nada. Um pormenor interessante é que todas as cartas enviadas pela Segurança Social e pela administração dos Veteranos tinham "Devolver ao Remetente" escrito na sua letra e de fato foram devolvidas. Preparar e escrever este livro alteraram a minha visão do mundo, transformaram a minha maneira de pensar e, acima de tudo, reduziram o meu nível de cinismo relativamente ao que é possível no campo das relações humanas. Tendo chegado a conhecer Francesca Johnson e Robert Kincaid como eu conheci ao longo da minha investigação, apercebo-me de que as fronteiras dessas relações podem ser mais extensas do que eu pensava.
Talvez experimentem o mesmo ao ler esta história. Não será fácil. Num mundo cada vez mais insensível, todos vivemos cobertos por carapaças contra a sensibilidade. Não sei bem onde acaba a grande paixão e começa o sentimentalismo. Mas a nossa tendência para ridicularizar aquela e para classificar como piegas sentimentos genuínos e profundos, dificulta a entrada no campo da delicadeza, tão necessário para compreender a história de Francesca Johnson e Robert Kincaid. Sei que tive de ultrapassar essa tendência inicial, antes de poder começar a escrever.
Se, contudo, abordarem o que se segue renunciando momentaneamente à incredulidade, para utilizar a expressão de Coleridge, estou certo de que sentirão o que eu senti. Nas zonas indiferentes dos vossos corações, poderão encontrar,tal como Francesca Johnson, um lugar para voltar a dançar.
Verão de 1991 - ROBERT KINCAID
Na manhã de 8 de Agosto de 1965, Robert Kincaid trancou a porta do seu pequeno apartamento de duas assoalhadas, no terceiro andar de um edifício de construção irregular em Bellingham, Washington. Desceu as escadas de madeira com uma mochila carregada de equipamento fotográfico e com uma mala, e atravessou o corredor para as traseiras, onde a seu velho carrinho Chevrolet estava estacionada num espaço reservado aos residentes do edifício.
Outra mochila, uma geleira de tamanho médio, dois tripés, vários pacotes de maços de cigarros Camel, um termo e um saco de fruta, já se encontravam no interior da caminhonete. No porta-bagagens estava o estojo de uma viola. Kincaid arrumou as mochilas no banco e pôs a geleira e os tripés no chão. Trepou para a caixa da carrinho, encafuou o estojo da viola e a mala a um canto e prendeu-os à roda sobresselente que estava deitada. Enfiou uma lona preta por debaixo do pneu gasto. Sentou-se ao volante, acendeu um Camel, e passou mentalmente em revista a sua lista: duzentos rolos de vários tipos, essencialmente Kodachrome de velocidade lenta; tripés; a geleira; três máquinas e cinco lentes; jeans e calças cáqui; camisolas; roupa de trabalho. Tudo em ordem. Se tivesse se esquecido de algo, poderia comprar no caminho.
Kincaid usava calças Lewis desbotadas, botinas Red Wing bastante usados, uma camisa cáqui e suspensórios cor-de-laranja. No cinto largo de couro, tinha um canivete suíço dentro de um estojo.
Olhou para o relógio: oito e dezessete. O carro arrancou à segunda tentativa, recuou, mudou de velocidade e desceu lentamente o beco sob um sol enevoado. Percorreu as ruas de Bellingham, ao chegar à Rua Washington dirigiu-se para sul,
percorreu durante alguns quilômetros a costa de Puget Sourid, e depois tomou a auto-estrada que serpenteava ligeiramente na direção leste antes de desembocar na Estrada Nacional 20. Virou e, de frente para o sol, começou o longo caminho que serpenteava por entre as Cascatas. Gostava daquela região e não tinha pressa; parava de vez em quando para tomar notas sobre possibilidades interessantes para futuras expedições ou para fotografar aquilo a que chamava retratos mentais". O objetivo destas fotografias era lembrá-lo de lugares que poderia querer visitar e conhecer de uma forma mais profunda.
No final da tarde, virou para norte em Spokane e apanhou a Estrada Nacional 2 que o faria percorrer metade dos Estados Unidos do Norte até Duluth, no Minnesota. Pela milésima vez na vida, pensou que gostaria de ter um cão, talvez um golden retriever, para viagens como aquela e para lhe fazer companhia em casa. Mas ausentava-se constantemente, quase sempre para o estrangeiro, e não seria justo para o animal. Apesar disso, continuava a pensar no assunto. Dentro de alguns anos estaria demasiado velho para o duro trabalho de repórter. "Nessa altura poderei arranjar um cão” -, disse para as árvores que iam passando pela janela do carro.
Naquelas viagens costumava fazer uma revisão da sua vida. O cão fazia parte dessa revisão. Robert Kincaid era o mais solitário que se podia ser - filho único, ambos os pais mortos, alguns parentes afastados que lhe tinham perdido o rasto e vice-versa, sem amigos íntimos. Sabia o nome do proprietário da mercearia da esquina, em Bellingliam, e o do dono da loja de artigos fotográficos onde comprava o seu material. Também mantinha relações formais e profissionais com alguns editores de revistas. Para além disso, não conhecia bem quase ninguém, nem ninguém o conhecia bem a ele. Os ciganos são amigos difíceis para o comum das pessoas, e ele tinha algo de cigano.
Pensou em Marian que o tinha abandonado há nove anos atrás, após cinco anos de casamento. Ele tinha agora cinqüenta e dois, o que queria dizer que ela devia ter quase quarenta. Marian sonhava vir a ser uma cantora folk. Sabia todas as canções dos Weaver e cantava-as bastante bem nos restaurantes de Seattle. Quando, nos velhos tempos, ele ficava em casa, costumava levá-la a concertos de jazz e sentava-se entre o público a ouvi-la cantar.
As suas longas ausências - por vezes de dois ou três meses - eram prejudiciais ao casamento. Ele sabia-o. Marian tinha consciência do que ele fazia quando decidiram casar-se, e ambos tinham uma vaga idéia de que, de uma maneira ou de outra, as coisas acabariam por se resolver. Mas não. Um dia em que ele voltou, depois de uma expedição fotográfica à Irlanda, ela tinha desaparecido. Deixara um bilhete: "Robert, não resultou. Deixo-te a viola. Vai dando notícias." Ele não o fez. Nem ela. Assinou os papéis do divórcio quando chegaram um ano depois e, no dia seguinte, apanhou um avião para a Austrália. Ela não pedira mais do que a sua liberdade.
Parou para passar a noite em Kalispell, Montaria. já era tarde. A estalagem parecia ser barata, e era. Levou as suas coisas para um quarto que tinha dois candeeiros, um dos quais com a lâmpada fundida. Mais tarde, na cama, enquanto lia The Green Hills of Afdca e bebia uma cerveja, sentia o cheiro das fábricas de papel de Kalispell. De manhã correu durante quarenta minutos, fez cinquenta elevações, e usou as máquinas fotográficas como pequenos pesos para completar o exercício diário.
Atravessou a parte alta de Montaria até ao Norte do Dakota e às extensas planícies que achava tão fascinantes como as montanhas ou o mar. Havia naquele lugar uma espécie de beleza austera; deteve-se várias vezes, montou o tripé e tirou várias fotografias a preto e branco, das velhas construções das quintas. Aquela paisagem apelava às suas tendências animalista. As reservas índias eram deprimentes, pelas razões que toda a gente sabe e ignora. Embora aquele tipo de aldeias não fosse em nada melhor no noroeste de Washington, ou em qualquer outro lugar onde as tivesse visto. Na manhã do dia 14 de Agosto, duas horas depois de sair de Duluth, virou para o nordeste e apanhou uma estrada secundária até Hibbing e às minas de ferro. No ar pairava um pó encarnado, e havia grandes máquinas e trens, especialmente desenhados para levar o mineral para os cargueiros de Two Harbors, em Lake Superior. Passou a tarde a visitar Hibbing e não gostou do que viu, apesar de ser a terra de Bob Zinimennan-Dylan. A única música de Dylan de que realmente gostava era “Girl from the North Country". Sabia tocá-la e cantá-la e, à medida que se afastava daquele lugar com enormes buracos no chão, ia cantando a letra para consigo. Marian ensinara-lhe algumas notas e a tocar os acordes essenciais para se poder acompanhar a si próprio. “Ela deixou-me com mais do que eu lhe deixei a ela",disse uma vez a um barqueiro bêbado numa taberna chamada McElroy's Bar, algures na bacia do Amazonas. E era verdade.
A Floresta Nacional Superior era bonita, verdadeiramente bonita. Região de viajantes. Em novo, desejara que os velhos tempos dos viajantes não terminassem para que pudesse vir a ser um deles. Atravessou pradarias, viu três alces, uma raposa encarnada e muitos veados. Ao chegar a um lago deteve-se e fotografou alguns reflexos de um ramo de árvore deformado pela água. Quando terminou, sentou-se no degrau da caminhonete a beber café, a fumar um Camel e a ouvir o vento nas videiras. "Seria bom ter alguém, uma mulher," pensou, vendo pairar o fumo do cigarro por cima do lago. “Envelhecer põe-nos neste estado de espírito." Mas as suas permanentes ausências, seriam duras de suportar para ela. Isso já ele tinha aprendido.
Quando estivera em Bellingham, namorara, ocasionalmente, a diretora criativa de uma agencia de publicidade de Seattle. Conhecera-a durante um trabalho feito em equipe. Ela tinha quarenta e dois anos, era inteligente e simpática, mas ele não a amava, nunca a amaria. No entanto, de vez em quando, ambos se sentiam um pouco sós e saíam juntos. Iam ao cinema, bebiam umas cervejas e depois, quando faziam amor, corria razoavelmente bem. Ela tinha alguma experiência - tinha sido casada duas vezes e, nos seus tempos de estudante, trabalhara como empregada em vários bares. Depois de terem feito amor, deitados lado a lado, ela dizia-lhe invariavelmente: "É o melhor, Robert, não tens rivais, ninguém sequer que se te possa comparar." Ele achava que aquilo era uma coisa agradável de se ouvir, mas não tinha grande experiência e fosse como fosse não podia saber se ela estava ou não dizendo a verdade. Mas uma vez ela dissera uma coisa que lhe ficara na cabeça: "Robert, há um ser dentro de ti que eu não consigo trazer à superfície, que não tenho força suficiente para alcançar. Por vezes sinto que já está aqui há muito tempo, mais do que uma vida, e que já esteve em lugare com que ninguém sequer sonha. Me assusta, embora seja carinhoso comigo se eu não fizesse um esforço para me controlar quando estou contigo, sinto que poderia perder o juízo e nunca mais o recuperar."
Num sentido algo ambíguo, ele compreendia o que ela estava dizendo. Mas ele também não tinha controlo sobre a situação.
Tinha aqueles pensamentos flutuantes, um melancólico sentido do trágico misturado, com um intenso poder físico e intelectual, desde que era criança a crescer numa cidadezinha do Ohaio. Enquanto os outros garotos aprendiam canções infantis, ele aprendia a melodia e a letra em inglês de uma canção de cabaré francesa. Gostava das palavras e das imagens. "Azul" era uma das suas palavras preferidas. Gostava da sensação que lhe provocava nos lábios e na língua quando a dizia. Lembrava-se de, em novo, pensar que as palavras tinham uma sensação física, não transmitiam apenas significados. Gostava de outras palavras, como "distante", "fumo", "caminho, "antigo", "passagem", "viajante", "índia" pela forma como soavam, pelo gosto que tinham e pelo que despertavam na sua mente. Nas paredes do seu quarto tinha listas de palavras de que gostava. Depois juntava as palavras em frases e também as afixava: Demasiado perto do fogo. Eu vim do Leste com um pequeno grupo de viajantes.
O murmurar constante dos que me salvavam e dos que me vendiam. Talismã, Talismã revela-me os teus segredos. Satã, Satã, leva-me de volta a casa. Nu entre baleias azuis. Ela desejou-lhe comboios fumegantes que partiam de estações de Inverno. Antes de ser homem, fui uma flecha, há muito tempo atrás.
Depois também havia os lugares de cujos nomes gostava: a Corrente Somali, as Grandes Montanhas Hatchet, o Estreito de Malaca, e muitos outros. Por vezes, as listas de palavras, frases e nomes de lugares cobriam totalmente as paredes do seu quarto. Até a sua mãe notara algo de diferente no seu comportamento. Em pequeno não proferira palavra até aos três anos, de idade em que começara a falar com frases completas; aos cinco anos já lia na perfeição. Na escola, era um aluno indiferente que frustrava os seus professores. Olhavam para o seu nível de QI e falavam-lhe em triunfar na vida, em fazer o que ele era capaz de fazer, diziam-lhe que poderia vir a ser o que quisesse. Um dos seus professores de liceu escreveu o seguinte numa avaliação: "Robert acha que os testes ao Q-i são uma maneira infeliz de julgar as capacidades das pessoas, já que não podem explicar a magia, que tem a sua importância própria, quer em si mesma quer enquanto complemento da lógica. Sugiro uma conversa com os seus pais."
A mãe teve reuniões com vários professores. Quando estes lhe falavam no comportamento algo recalcitrante à luz das suas capacidades, ela dizia: "Robert vive num mundo construído por ele. Eu sei que ele é meu filho, mas por vezes tenho a sensação de que ele veio não de mim e do meu marido, mas de algum outro lugar para onde tenta voltar. Agradeço o vosso interesse por ele, e tentarei, uma vez mais, convencê-lo a portar-se melhor na escola." Mas ele limitara-se a ler todos os livros de aventuras e de viagens que encontrara na biblioteca local. De resto, mantivera-se reservado, passando dias inteiros a passear ao longo do rio que corria junto à cidade, ignorando as festas acadêmicas, os jogos de futebol e outras coisas que o aborreciam. Pescava, nadava, passeava e deitava-se na erva a ouvir vozes ao longe, que achava que só ele podia ouvir. "Há feiticeiros por aqui," costumava dizer para consigo. "Se uma pessoa estiver suficientemente calada e atenta, consegue ouvi-los e eles estão lá." E pensava que gostaria de ter um cão para partilhar esses momentos.
O dinheiro não chegava para o liceu. Nem ele queria ir. O pai trabalhava arduamente e era bom para a mãe e para ele, mas um emprego numa fábrica de válvulas não deixava muito para outras coisas, nem para as despesas com um cão. Tinha dezoito anos quando o pai morreu, por isso, na altura em que a Grande Depressão se fez sentir mais duramente, alistou-se no exército para se poder sustentar a si próprio e a sua mãe. Esteve no exército quatro anos, mas esses quatro anos mudaram-lhe a vida. Pelos misteriosos desígnios do funcionamento da mente militar, foi escolhido para uma tarefa como ajudante de fotógrafo, apesar de não fazer idéia de como se mudava um rolo na uma máquina. Mas naquele trabalho descobriu a sua vocação. Os pormenores técnicos não constituíram dificuldade para ele. Dentro de um mês, não só fazia o trabalho de revelação por dois dos fotógrafos da equipe, como também já tinha autorização para ser o único responsável pelos projetos mais simples. Um dos fotógrafos, Jim Peterson, gostava dele e fazia horas extraordinárias a ensinar-lhe as subtilezas da fotografia.
Robert Kincaid procurou livros de fotografia e de arte na biblioteca de Fort Monmouth e estudou-os. Desde o princípio, gostou particularmente dos impressionistas franceses e da utilização da luz por Rembrandt.
Com o passar do tempo começou a compreender que era essa luz que fotografava, e não objetos. Os objetos eram apenas veículos para refletir a luz. Se a luz era boa, podia sempre arranjar-se algo para fotografar. As máquinas de 35 milímetros estavam começando a aparecer nessa altura e Robert comprou uma Leica numa loja local. Levou-a para Cape May, New Jersey, e aí passou uma semana da sua licença fotografando a vida ao longo da costa.
Noutra vez foi de caminhonte até ao Maine e pediu boleia ao longo da costa. De Stonington, apanhou a primeira lancha correio da manhã até à Ilha au Haut, onde acampou, e depois atravessou de Feny a Bay of Fundy, até à Nova Scotia. Começou a tomar nota dos seus ângulos fotográficos e dos lugares que queria visitar de novo. Quando saiu da tropa, aos vinte e dois anos, era um fotógrafo bastante bom e arranjou emprego em Nova York como ajudante de um célebre fotógrafo de moda.
As modelos eram bonitas; saiu com algumas delas e semi-apaixonou-se por uma, antes de ela ir viver para Paris e de se separarem, Ela disse-lhe: “Robert, não tenho a certeza de quem é ou do que é, mas, por favor, vem visitar-me em Paris." Ele respondeu-lhe que iria, e tencionava fazê-lo, mas nunca foi. Anos mais tarde, quando estava fazendo uma reportagem sobre as praias da Normandia, descobriu o nome dela na lista telefônica de Paris, telefonou-lhe e encontraram-se para tomar café numa esplanada. Ela estava casada com um realizador de cinema e tinha três filhos.
Robert não conseguia perceber muito bem o conceito de moda. As pessoas tiravam as roupas em perfeito estado ou adaptavam-nas à pressa, segundo instruções dos ditadores de moda europeus. Parecia-lhe estúpido, e sentia-se diminuído por ter de tirar aquelas fotografias. "Uma pessoa é o que produz," disse ao abandonar esse emprego.
A sua mãe morreu durante o segundo ano que passou em Nova Iorque. Voltou para o Ohio, enterrou-a, e sentou-se diante de um advogado a ouvir a leitura do testamento. Não ficara muita coisa. Ele não esperara que ficasse nada. Mas ficou surpreendido por descobrir que os pais tinham conseguido poupar alguma coisa, depois de pagarem a hipoteca da minúscula casa de Franidin Street, onde tinham passado toda a sua vida de casados. Robert vendeu a casa e com o dinheiro comprou um equipamento fotográfico de primeira. Enquanto pagava a máquina ao vendedor, pensou nos anos que o seu pai tinha trabalhado para ganhar aquele dinheiro e na vida cinzenta que tinha tido com a sua mãe.
Depois, começaram a aparecer trabalhos seus em pequenas revistas. Um dia telefonaram-lhe da National Geograpbic. Tinham visto, num calendário, uma foto que ele tirara em Cape May. Falou com eles, deram-lhe um pequeno trabalho, que ele executou profissionalmente, e as portas abriram-se.
A tropa chamou-o, de novo, em 1943. Foi com os marinheiros arrastar-se pelas praias do Sul do Pacífico, com máquinas fotográficas penduradas nos ombros, a baterem-lhe nas costas, a fotografar homens que saíam de veículos anfíbios. Viu o terror estampado nas suas caras, ele próprio o sentiu. Viu-os cortados em dois pelas metralhadoras, viu-os pedir ajuda a Deus e às suas mães. Passou por tudo, sobreviveu, e nunca se sentiu atraído pela suposta glória e aventura da reportagem de guerra. Quando acabou o serviço militar em 1945, telefonou para a National Geograpbíc. Estavam à sua espera a qualquer momento. Comprou uma moto em São Francisco, foi nela até Big Sur, fez amor numa praia com uma violoncelista de Carmel, e voltou para norte para explorar Washington. Quando lá chegou, gostou do que viu e decidiu ficar.
Agora, aos cinquenta e dois anos, continuava a estudar a luz.
Tinha estado na maioria dos lugares cujos nomes afixara nas paredes do seu quarto em criança, e maravilhava-se por se encontrar de fato lá quando os visitava, de se sentar no Raffles Bar, de subir o Amazonas numa barulhenta lancha ou de se balançar em cima de um camelo, ao longo do deserto de Rajastani.
A costa de Lake Superior era tão bonita como lhe tinham dito. Marcou vários lugares para referência futura, tirou algumas fotografias para poder recordar, e dirigiu-se para sul ao longo do Mississipi até ao Iowa. Nunca tinha ido ao lowa, mas sentia-se atraído pelas montanhas a nordeste do grande rio.
Deteve-se na pequena cidade de Claytón, ficou num motel de pescadores, passou duas manhãs a fotografar rebocadores e uma tarde num deles, a convite de um piloto que tinha conhecido num bar local. Virou para a Estrada Nacional 65, atravessou Des Moines cedo numa segunda-feira de manhã, no dia 16 de Agosto de 1965, virou para oeste na estrada 92 de Iowa, e dirigiu-se para Madison County e para as pontes cobertas que lá deviam estar, segundo a National Geographic. Estavam mesmo; a informação foi-lhe confirmada pelo homem da bomba de gasolina da Texaco, que lhe indicou vagamente as direções, para cada uma das sete pontes.
Encontrou facilmente as seis primeiras e foi planeando a sua estratégia para as fotografar. Mas não conseguia encontrar a sétima num lugar chamado Roseman Bridge. Estava calor, Robert estava com calor, Harry - a sua caminhonete - estava quente, e andava às voltas por estradas de cascalhos que pareciam não levar a lado nenhum, exceto à próxima estrada de cascalhos. Em lugares desconhecidos, a sua regra de ouro era, "perguntar três vezes". Tinha chegado à conclusão que três respostas, ainda que todas erradas, o conduziam gradualmente para onde pretendia. Talvez aqui duas fossem suficientes.
Aproximava-se de uma caixa de correio, que se avistava no final de um caminho com cerca de cem metros, onde estava escrito "Richard Johnson, RRI" Abrandou e entrou no caminho em busca de orientação. Quando entrou no pátio, viu uma mulher sentada no alpendre. O lugar parecia fresco, e a mulher estava bebendo algo que parecia ainda mais fresco. Levantou-se e veio ao seu encontro.
Robert desceu da caminhonete e olhou para ela, depois olhou melhor, e melhor ainda. Era linda, ou tinha sido algum dia, ou poderia vir a ser de novo. E ele sentiu imediatamente a velha falta de jeito que sempre o afetava na presença de mulheres pelas quais se sentia atraído, ainda que fosse um sentimento vago.
FRANCESCA
Era pleno Outono, altura do aniversário de Francesca, e a chuva fria batia contra a sua casa de madeira de campo, no Sul do lowa. Francesca observava a chuva e, através dela, contemplava as colinas ao longo de Miffile River, pensando em Richard. Tinha morrido num dia como aquele, há oito anos atrás, de uma doença cujo nome ela preferia não recordar. Mas naquele dia Francesca pensava nele e na sua ternura desajeitada, na sua personalidade firme, e na vida equilibrada que ele lhe proporcionara.
Os filhos tinham-lhe telefonado. Naquele ano também não podiam voltar a casa para passar o dia de aniversário com ela, embora fosse o seu sexagésimo sétimo. Ela compreendia, como sempre compreendera e sempre compreenderia. Estavam ambos em plena ascensão profissional, o trabalho não dava tréguas, um a dirigir um hospital, o outro a dar aulas. Michael iniciara o seu segundo casamento, Carolyn lutava pelo primeiro. No fundo, Francesca estava contente por nunca conseguirem visitá-la no dia do seu aniversário; tinha os seus próprios festejos reservados para esse dia.
Nessa manhã, uns amigos de Winterset tinham-na visitado com um bolo de aniversário. Francesca fizera café, enquanto falavam de netos, da cidade, do Natal e dos presentes, e dos planos para o Ano Novo. A alegria tranqüila e os altos e baixos da conversa na sala eram familiares e confortantes, e lembravam-lhe a razão que a fizera permanecer naquela casa depois da morte de Richard.
Michael instalara-se na Flórida, e Caroline em New England. Mas Francesca ficara nas montanhas do Sul do Iowa, no campo, conservara a sua velha casa por uma razão especial e estava contente por tê-lo feito.
À hora do almoço, despediu-se dos seus convidados. Desceram o caminho nos seus Ford e nos seus Buick, apanharam a estrada asfaltada do distrito e dirigiram-se para Winterset, com os limpador de pára-brisas em permanente movimento. Eram bons amigos, embora nunca viessem a compreender o que ia dentro dela. Nunca compreenderiam, mesmo que ela lhes explicasse. O seu marido tinha-lhe dito que ela encontraria bons amigos, quando a trouxera de Nápoles para aquele lugar, depois da guerra. Tinha-lhe dito: "Os habitantes do Iowa têm os seus defeitos, mas a falta de atenção não é um deles." E era verdade, é verdade.
Quando se conheceram ela tinha vinte e cinco anos, deixara a universidade havia três anos, tinha sido professora num colégio de moças, e pensava no que iria fazer da sua vida. A maioria dos jovens italianos estavam mortos ou feridos, em campos de prisioneiros ou destruídos pela guerra. A sua relação com Niccolo, um professor de arte da universidade, que pintava todo o dia e a levava a dar voltas loucas pelo submundo de Nápoles à noite, tinha durado um ano. Finalmente terminara devido à crescente desaprovação dos conservadores pais de Francesca.
Ela enfeitava-se com fitas no cabelo preto e permanecia fiel aos seus sonhos. Mas não havia belos marinheiros que desembarcassem à sua procura, não lhe chegavam vozes à janela vindas da rua. A dura realidade fê-la tomar consciência de que as suas opções eram limitadas. Richard oferecia-lhe uma alternativa razoável: um tratamento carinhoso e a doce promessa da América.
Francesca observara-o no seu uniforme de soldado, sentados os dois num café à luz do Mediterrâneo. Vira que ele a olhava de uma forma sincera, à sua maneira do Oeste, e fora para o Iowa com ele. Depois tinham vindo as crianças, os jogos de futebol de Michael nas noites frias de Outubro, e as idas com Caroline a Des Moines para escolher os seus vestidos de baile de finalistas. Trocara correspondência com a sua irmã de Nápoles várias vezes por ano e, quando os seus pais morreram, por duas vezes lá voltara. Mas Madison County era agora a sua terra, e não desejava voltar para Itália.
A chuva cessou no meio da tarde, e depois recomeçou mesmo antes do anoitecer. No crepúsculo, Francesca serviu-se de um pequeno cálice de conhaque e abriu a gaveta de baixo da escrivaninha. Era um móvel de nogueira que tinha passado de mão em mão ao longo de três gerações na família de Richard. Retirou um envelope de papel pardo e passou-o lentamente entre os dedos, como fazia todos os anos naquele dia. O carimbo do correio dizia "Seattle, WA, 12 de Setembro de 1965." Começava sempre por olhar para o carimbo. Fazia parte do ritual. Depois lia o endereço escrito sem abreviaturas: "Francesca Johnson, RR2, Winterset, Iowa." E por fim o remetente, escrito à pressa no canto superior esquerdo: "Caixa postal 642, Bellingliam, Washington." Sentou-se numa cadeira junto à janela, olhou para os endereços, e concentrou-se, pois nelas estava o movimento das mãos dele, e ela queria trazer de volta o contato dessas mãos em si, há vinte e dois anos atrás. Quando conseguiu sentir as mãos dele tocarem-lhe, abriu o envelope, tirou cuidadosamente três cartas, um curto manuscrito, duas fotografias, e um número completo da National Geographic com recortes de outros números da revista. Então, numa luz cinzenta que esmorecia, bebeu o seu conhaque com pequenos goles, olhando por cima do copo para o bilhete manuscrito, preso às páginas datilografadas. A carta estava escrita no seu papel timbrado, simples, que dizia apenas "Robert Kincaid, Escritor-Fotógrafo" no alto, em letras discretas.
10 de Setembro de 1965
Querida Francesca,
Aqui vão duas fotografias. Uma delas foi a que te tirei no campo ao pôr-do-sol. Espero que goste tanto dela como eu. A outra é de Rosernan Bridge antes de eu tirar o bilhete que você lá deixou preso. Estou aqui sentado percorrendo as zonas obscuras da minha mente em busca de cada pormenor, cada momento, do tempo que passamos juntos. E não paro de me perguntar- "O que foi que me aconteceu em Madison County, Iowa?" E esforço-me por conseguir compreender, foi por isso que escrevi o pequeno texto "A queda da Dimensão Z", que te envio, como forma de tentar pôr ordem na minha confusão.
Olho através de uma objetiva, e você está ao fundo dela.
Começo a trabalhar num artigo, e é sobre você que escrevo. Nem sequer estou certo de como voltei do Iowa para cá. De alguma forma a velha caminhonete trouxe-me de volta para casa, mas mal me consigo lembrar dos quilômetros que percorri.
Há algumas semanas atrás, sentia-me equilibrado, razoavelmente satisfeito. Talvez não profundamente feliz, talvez um pouco só, mas pelo menos satisfeito. Agora tudo isso mudou. Vejo agora claramente que tenho avançado na sua direção e tu na minha desde há bastante tempo. Embora nenhum de nós tivesse consciência do outro antes de nos termos encontrado, havia uma espécie de certeza inconsciente que murmurava alegremente por debaixo da nossa ignorância, garantindo que havíamos de nos unir. Como duas aves solitárias sobrevoando as imensas pradarias por vontade divina, todos estes anos e vidas avançamos ao encontro um do outro.
A estrada é um lugar estranho. Nela andava eu arrastando-me, quando olhei para cima e você estava ali atravessando a grama em direção à minha caminhonete num dia de Agosto. Retrospectivamente, parece inevitável – não podia ter sido de nenhuma outra forma - um caso do que eu chamo alta probabilidade do improvável.
Por isso agora debato-me com outra pessoa dentro de mim. Embora me pareça que me conheci melhor no dia em que nos separamos, quando te disse que havia uma terceira pessoa que tínhamos criado a partir de nós os dois. E agora estou condicionado por esse outro ser. Seja como for, temos de voltar a ver-nos. Não importa onde, nem quando. Telefona-me, se precisares de algo ou se desejares apenas ver-me. Estarei à sua espera, seja quando for. Diz-me, se puder vir até aqui alguma vez - não importa quando. Eu poderei tratar das passagens aéreas, se isso for problema.
Parto para o Sudeste da índia na próxima semana, mas estarei de volta no final de Outubro.
Amo-te, Robert
Francesca Johnson pousou o seu cálice de conhaque no amplo parapeito de carvalho e contemplou uma foto a preto e branco de si própria. Por vezes, custava-lhe lembrar-se do aspecto que tinha naquela altura, há vinte e dois anos atrás. Com uns Jeans desbotados justos, sandálias e uma T-shert branca, o cabelo solto ao vento matinal, encostada a um poste de uma cerca. Através da chuva, do seu lugar à janela, conseguia ver o poste onde a velha cerca ainda delimitava a pastagem. Quando alugara o terreno, depois da morte de Richard, estipulara que a pastagem deveria ser conservada tal como estava, sem alterações, embora agora se encontrasse vazia e coberta de erva.
As primeiras rugas propriamente ditas se viam no seu rosto, na fotografia. A máquina de Robert tinha-as detectado. Não obstante, estava satisfeita com o que via. O seu cabelo era preto, e o seu corpo era pleno e sensual, enchendo os jeans na medida exata. Mas era para a seu rosto que ela olhava. O rosto de uma mulher loucamente apaixonada pelo homem que a fotografava.
Também o via a ele com nitidez, no fluxo dos seus pensamentos. Todos os anos revia aquelas imagens em pensamentos, meticulosamente, lembrando-se de cada detalhe, sem esquecer nada, guardando tudo, para sempre, como um testemunho oral passado ao longo de gerações pelos membros de um clã. Ele era alto, magro e firme, e movia-se como a própria erva, sem esforço, com elegância. O seu cabelo grisalho, cor-de-prata, caía-lhe bem sobre as orelhas; tinha sempre um ar desgrenhado, como se tivesse acabado de chegar de uma longa viagem marítima através de um vento cortante e tivesse tentado penteá-lo com as mãos.
A sua cara estreita e comprida e o cabelo que lhe caía sobre a testa realçavam uns olhos azul-pálido que pareciam estar sempre à procura da próxima fotografia. Tinha sorrido para ela, dizendo-lhe como era bela e sensual àquela luz matinal, pedira-lhe para se encostar ao poste, e depois movera-se à sua volta num enorme círculo, disparando de cócoras, depois de pé, e depois deitado de costas com a máquina apontada para ela. Ela sentira-se ligeiramente embaraçada com a quantidade de rolos utilizada por Robert, mas satisfeita com a quantidade de atenção que ele lhe dispensava. Esperava que nenhum dos vizinhos andasse pelas redondezas logo de manhã cedo com os seus tratores. Embora naquela manhã, especificamente, não se tivesse preocupado muito com os vizinhos ou com o que estes pensavam.
Robert tirou fotografias, mudou de rolo, trocou de lentes, trocou de máquina, tirou mais algumas fotografias, e ia falando tranqüilamente com ela enquanto trabalhava dizendo-lhe sempre como ela lhe parecia bonita e como a amava. "Francesca, é inacreditavelmente bela." Por vezes parava e ficava olhando para ela, através dela, em volta dela, para dentro dela. Os contornos das pontas dos seios de Francesca viam-se claramente definidos contra a T-snil de algodão. Estranhamente, ela não se preocupara com isso, com o fato de não ter nada por debaixo da camiseta. Mais, estava contente com isso e sentia-se reconfortada por saber que ele podia ver-lhe o peito tão claramente através das lentes. Nunca se teria vestido assim no tempo de Richard. Ele não teria aprovado. Na verdade, antes de conhecer Robert Kincaid, nunca se teria vestido assim fosse em que altura fosse.
Robert tinha-lhe pedido que arqueasse ligeiramente as costas e nessa altura murmurou: "Sim, sim, é isso, fica assim." Tinha sido no momento em que lhe tirara a fotografia para que ela olhava agora. A luz era perfeita, dissera ele - "um brilho
enevoado", fora como lhe chamara - e o obturador não cessara de disparar enquanto ele se movia em volta dela. Robert era flexível; fora essa a palavra que lhe ocorrera ao pensar nele. Aos cinqüenta e dois anos o seu corpo era musculoso, magro, os seus músculos moviam-se com o tipo de intensidade força que só pode ter quem trabalha bastante e faz exercício regularmente.
Robert contou-lhe que tinha sido repórter de guerra no Pacífico, e Francesca imaginava-o com os marinheiros percorrendo praias cercadas de fumo, com várias máquinas ao ombro, uma apontada, e o obturador quase incendiado com a velocidade dos disparos.
Francesca olhou de novo para a fotografia, estudando-a. "Eu era bonita," pensou, sorrindo para consigo da ligeira admiração que sentia por si própria. "Nunca fui tão bonita antes ou depois. Foi ele que o fez”. E bebeu outro gole de conhaque enquanto a chuva fustigava e era arrastada pelo vento de Novembro.
Robert Kincaid era um verdadeiro mágico, que vivia metido consigo em lugares estranhos, quase ameaçadores. Francesca tinha-o pressentido imediatamente naquela segunda-feira quente e seca em Agosto de 1965, quando ele descera da caminhonete em frente à porta de sua casa. Richard tinha ido com as crianças à Feira de Illinois, exibir o novilho campeão que tinha direito a mais atenções do que ela, e ela ficara com a semana por sua conta.
Estava sentada no balanço do alpendre, bebendo chá gelado, olhando distraidamente para a espiral de pó que saía de debaixo de uma caminhonete que descia a estrada municipal. A caminhonete avançava lentamente, como se o condutor estivesse em busca de algo; deteve-se mesmo antes de chegar ao caminho que levava a casa de Francesca e depois virou na sua direção. "Meu Deus," pensou Francesca. "Quem será?"
Estava descalça, tinha uns jeans e uma camisa bordada azul-pálido, com as mangas arregaçadas e a barra de fora. Os seus longos cabelos pretos estavam presos por um travessão em casca de tartaruga que o pai lhe oferecera quando ela deixara o seu país. A caminhonete subiu o caminho e deteve-se junto ao portão da cerca de arame que rodeava a casa.
Francesca desceu os degraus do alpendre e avançou pela grama até ao portão. E da caminhonete saiu Robert Kincaid, parecendo uma visão de um livro nunca escrito chamado A História Ilustrada dos Xamãs.
A sua camisa escura estilo militar colava-lhe às costas com o suor; por debaixo dos braços viam-se grandes círculos escuros. Os três botões de cima estavam desabotoados, e ela via os fortes músculos do peito mesmo abaixo da corrente de prata em volta do seu pescoço. Por cima dos ombros tinha uns
Grandes suspensórios cor-de-laranja, do tipo utilizado por pessoas que passam muito tempo em zonas selvagens.
Robert sorriu. "Desculpe incomodá-la, mas estou à procura de uma ponte coberta, por estas bandas, e não consigo encontrá-la. Acho que de momento estou perdido." Limpou a testa com um lenço azul e sorriu de novo.
Olhou diretamente para ela, e ela sentiu um sobressalto interior. Os olhos, a voz, a cara, o cabelo cor-de-prata, a maneira desenvolta de andar, velhas sensações, sensações perturbadoras, irresistíveis. Sensações que sussurram ao ouvido no último momento antes do sono chegar, quando caíram as barreiras. Sensações que reordenam o espaço molecular entre macho e fêmea, independentemente das espécies. As gerações passam, mas as sensações sussurram apenas essa exigência única, nada mais. O poder é infinito, o desígnio supremamente elegante. As sensações são inabaláveis e os seus objetivos claros. E são simples, nós é que os tornamos complicados.
Francesca pressentia tudo isto sem saber que o pressentia, sentia-o fisicamente. E aqui começou aquilo que a mudaria para sempre.
Na estrada passou um carro, deixando um rasto de pó atrás de si, e buzinou. Francesca retribuiu o aceno ao braço moreno de Floyd Clark e voltou-se de novo para o estranho. "Está bastante próximo. A ponte fica a cerca de três quilômetros daqui." Então, após vinte anos de uma vida fechada, uma vida de comportamentos impostos e sentimentos dissimulados, exigidos por uma cultura rural, Francesca Johnson surpreendeu-se a si mesma ao dizer: terei muito prazer em lhe mostrar, se quiser."
Nunca soube muito bem porque o fez. Eram os sentimentos de uma jovem que brotavam como uma bolha na água e rebentavam, talvez, após todos aqueles anos. Ela não era tímida, mas também não era ousada. A única coisa que sabia era que Robert Kincaid a tinha atraído, depois de ter olhado para ele durante apenas alguns segundos.
Ele ficou obviamente surpreendido com a sua oferta. Mas recompôs-se imediatamente e com uma expressão grave afirmou que lhe ficaria muito grato. Dos degraus das traseiras ela tirou as botas de cowboy que usava para as lidas da quinta e dirigiu-se para a caminhonete, seguindo-o até à porta do passageiro.
"Dê-me só um minuto para arranjar lugar para você; isto está cheio de equipamento e de tralhas." Ia murmurando, principalmente para consigo mesmo, à medida que trabalhava, e Francesca percebeu que ele estava um pouco agitado e envergonhado com toda aquela situação.
Arrumou os sacos de lona e os tripés, um termo e alguns sacos de papel. No bagageiro da caminhonete, viam-se uma velha mala escura e um estojo de viola poeirentos e gastos, atados a um pneu sobresselente com um pedaço de corda de estender roupa. A porta da caminhonete fechou-se, atingindo-o no traseiro enquanto ele murmurava, arrumava e empilhava copos de papel e cascas de banana num saco de plástico que atirou para a parte de trás da caminhonete quando acabou. Finalmente tirou do banco da frente uma geleira azul e branca e também a colocou atrás. Na porta verde da caminhonete lia-se em letras encarnadas sumidas:
"Fotografias Kincaid, Bellingham, Washington".
"Pronto, acho que agora já cabe aqui dentro". Segurou na Porta, fechou-a atrás dela, depois deu a volta até ao lugar
do condutor e com uma graça e destreza peculiares sentou-se ao volante. Olhou para ela, apenas por alguns segundos, sorriu ligeiramente e perguntou:
"Qual é o caminho?"
"À direita." Francesca esboçou um gesto com a mão. Ele deu a volta à chave, e o desafinado motor arrancou. Desceram pelo caminho abaixo até à estrada, aos saltos. As longas pernas de Robert dominavam com agilidade os pedais, as suas velhas Levis tapavam as botas de couro com cadarços, que já tinham
percorrido muitos quilômetros a pé.
Inclinou-se e abriu o porta-luvas, passando,inadvertidamente, o pulso pelo joelho dela. Olhando ao mesmo tempo por cima do limpador de pára-brisas e para dentro do porta-luvas, retirou um cartão profissional e estendeu-lhe. "Robert Kincaid, Escritor-Fotógrafo." O seu endereço também estava impresso, bem como um número de telefone.
"Estou aqui fazendo um trabalho para a National Geographic," disse ele. "Conhece a revista?"
"Sim," respondeu Francesca e pensou, 'Haverá alguém que não conheça?'
"Estamos fazendo uma reportagem sobre pontes cobertas, e dizem que Madison County tem algumas interessantes, já consegui localizar seis, mas parece-me que existe pelo menos mais uma, aparentemente fica nesta direção."
"Chama-se Roseman Bridge," disse Francesca levantando a voz por cima do barulho do vento, dos pneus e do motor. A sua voz soava estranha, como se pertencesse a outra pessoa, a uma adolescente à janela em Nápoles, vendo ao longe os elétricos, ou num porto a pensar em distantes e futuros amantes. Enquanto
falava, observava a contração nos músculos do braço de Robert, quando ele mudava de velocidade, junto a Francesca estavam duas mochilas. Uma delas estava fechada, mas a cobertura da outra, dobrada para trás, deixava ver a parte superior prateada e a posterior preta de uma máquina fotográfica. Na parte posterior, tinha a etiqueta de um rolo que dizia "Kodachrome 1125.36 fotos." Por detrás dos embrulhos havia uma vestimenta de cor escura com muitos bolsos. De um deles saía uma corda fina com um êmbolo na extremidade.
Francesca tinha dois tripés entre os pés. Estavam muito riscados, mas num deles conseguia ler-se parte da velha etiqueta: "Gito." Quando Robert abriu o porta-luvas, ela reparou que estava atulhado de cadernos, mapas, canetas, caixas de filme vazias, moedas soltas, e cigarros Camel.
"Na próxima curva vire à direita", disse ela. Isto deu-lhe uma desculpa para observar o perfil de Robert Kincaid. A pele macia e queimada brilhava com a transpiração. Os seus lábios eram bonitos; por alguma razão Francesca notara-o imediatamente. E o nariz era como o dos índios que tinha visto numas férias que passara com a família no Oeste, quando os filhos eram pequenos. Robert não era pequeno, no sentido convencional. Nem era feio. Eram palavras que não se lhe aplicavam. Mas havia algo nele. Algo muito antigo, algo ligeiramente gasto pelos anos, não na sua aparência, mas nos seus olhos. No punho esquerdo tinha um relógio de aspecto complicado, com uma correia de couro castanho manchada pelo suor. No direito tinha uma pulseira de prata com arabescos. 'Estava precisando de uma boa limpeza com polidor de pratas', pensou Francesca, e depois recriminou-se por ter caído na trivialidade da vida de aldeia, contra a qual se revoltava em silêncio desde há muitos anos.
Robert Kincaid retirou um maço de Camel do bolso da camisa e ofereceu-lhe um. Ela aceitou e, pela segunda vez em cinco minutos, surpreendeu-se a si mesma. 'Que estou fazendo?', pensou. Há anos que deixara de fumar, devido à pressão constante das críticas de Richard. Robert tirou outro cigarro do maço, pô-lo entre os lábios e acendeu o dela com um Zippo de ouro sem tirar os olhos da estrada. Ela colocou as mãos em volta da chama para a proteger do vento, e tocou na mão de Robert para a manter firme apesar dos solavancos da caminhonete. Demorou apenas uns instantes para acender o cigarro, mas foi o suficiente para, na sua, sentir o calor e a suavidade dos pêlos da mão dele. Encostou-se de novo e Robert aproximou o isqueiro do seu próprio cigarro, protegendo-o do vento com habilidade e retirando apenas por um segundo as mãos do volante.
Francesca Johnson, mulher de fazendeiro, confortavelmente sentada no assento poeirento da caminhonete, fumando um cigarro apontou: "É ali, depois daquela curva." A velha ponte encarnada, descascada, ligeiramente inclinada pelos anos, atravessava um riacho.
Nessa altura Robert Kincaid sorriu. Olhou rapidamente para ela e disse: "Ótimo. Uma fotografia do pôr-do-sol." Parou a cinqüenta metros da ponte e desceu, levando consigo a mochila aberta. "Vou fazer um pequeno reconhecimento durante alguns minutos, não de importa?" Ela devolveu-lhe o sorriso e abanou a cabeça.
Ficou a observá-lo enquanto ele subia o caminho que atravessava o campo, enquanto tirava a máquina da mochila e depois punha o saco sobre o ombro esquerdo. Tinha feito aquele exato movimento milhares de vezes. Francesca sabia-o pela fluidez com que o tinha feito, à medida que avançava, a sua cabeça não parava de se mexer, olhando de um lado para o outro, depois para a ponte, depois para as árvores por detrás da ponte. Voltou-se uma vez e olhou para ela, com uma expressão grave.
Em contraste com os locais, que se alimentavam de molhos, batatas e carnes cruas, alguns deles três vezes por dia, Robert dava a impressão de não comer outra coisa senão fruta, nozes e legumes. ‘Duro, pensou Francesca, parece fisicamente duro.' Reparou em como era pequeno o seu quadril dentro dos jeans justos - via o contorno da carteira no bolso esquerdo e o do lenço no direito - e em como ele parecia mover-se no terreno sem um único movimento desnecessário. Não havia barulho. Um melro de asas encarnadas pousado no arame de uma cerca olhou para ela. Uma cotovia gritou da pastagem, junto à estrada. Nada mais se movia sob o brilho ofuscante do sol de Agosto.
Robert deteve-se mesmo antes de chegar à ponte. Ficou ali por um momento, depois agachou-se e pôs-se à procura da máquina.
Foi até ao outro lado da estrada e fez o mesmo. Depois, parou na ponte e estudou as vigas e as traves do chão, e contemplou a corrente através de um buraco que havia num dos lados.
Francesca apagou o cigarro no cinzeiro, abriu a porta e as suas botas pisaram o cascalho. Olhou em volta para se certificar de que não se aproximava o carro de nenhum vizinho, e dirigiu-se para a ponte. O sol era como um martelo no final da tarde, e parecia mais fresco no interior da ponte. Viu a silhueta de Robert do outro lado até ele desaparecer na encosta do riacho. Na ponte, começou a ouvir o arrulhar suave dos pombos nos seus ninhos, por debaixo do estrado. Passou a mão pelas tábuas; a madeira estava quente. Algumas das tábuas tinham escrito: “Jimbo-Denison, lowa." "Sherry+Dubby." "Força, Hawks!" Os pombos continuavam a arrulhar suavemente.
Por uma fenda entre duas traves laterais Francesca espreitou para o riacho em cuja direção se tinha afastado Robert Kincaid. Estava de pé sobre uma rocha no meio da corrente, olhando para a ponte, e ela teve um sobressalto ao vê-lo acenar.
Robert saltou de novo para a margem, movendo-se com desenvoltura pelo terreno íngreme. Francesca continuou olhando para a água até que sentiu as botas dele no chão da ponte. "Está-se muito bem aqui, é muito agradável," disse ele, e a
sua voz ecoou no interior da ponte coberta. Francesca assentiu. "Sim, é verdade. Nós não ligamos nenhuma a estas velhas pontes, não pensamos muito nelas."
Robert aproximou-se dela com um pequeno ramo de flores silvestres na mão.
"Obrigado pela visita guiada," disse-lhe, sorrindo suavemente.
"Um destes dias virei de madrugada tirar as minhas fotografias."
Uma vez mais, Francesca sentiu algo no seu interior. Flores. Ninguém lhe dava flores, nem sequer em ocasiões especiais.
"Não sei o teu nome," disse ele. Nessa altura ela reparou que não lhe tinha dito e sentiu-se idiota. Quando lhe disse, ele acenou e respondeu: "Pareceu-me notar uma ligeiríssima pronúncia. Italiana?"
"Sim. Vim para cá há muito tempo."
Voltaram para a caminhonete verde e percorreram de novo as estradas de cascalhos enquanto o sol se punha. Cruzaram-se com dois carros, mas não era ninguém que Francesca conhecesse.
Nos quatro minutos que demoraram a chegar à fazenda, sonhou acordada, sentindo-se livre e estranha. Queria mais de Robert Kincaid, escritor e fotógrafo. Queria saber mais e apertava as flores no colo, muito direitas, como uma colegial que volta de um passeio. Estava corada. Sentia-o. Não tinha feito nem dito nada, mas sentia-se como se o tivesse feito. O rádio da caminhonete, quase inaudível por entre o rugido da estrada e o do vento, transmitia o som de uma guitarra elétrica e depois as notícias das cinco.
A caminhonete virou para o caminho que conduzia à casa.
"Richard é teu marido?" Tinha visto a caixa do correio.
"Sim." disse Francesca, ligeiramente ofegante. Depois de começar a falar, as palavras fluíram mais espontaneamente.
"Está imenso calor. Quer um chá gelado?"
Ele olhou para ela. "Se não for incômodo, quero."
"Não é incômodo nenhum," disse ela, indicou-lhe - casualmente, assim o esperava - um lugar para estacionar a caminhonete atrás da casa. Não queria que, quando Richard voltasse, um dos vizinhos lhe dissesse, "Eh, Dick, está fazendo obras em casa? A semana passada vi uma caminhonete verde à sua porta. Sabia que Francesca estava em casa, por isso não me preocupei em ir verificar."
Subiram pelos degraus de cimento partidos até à porta do alpendre das traseiras. Robert segurou a porta para a deixar passar, levando consigo as mochilas com as máquinas fotográficas.
"Está muito calor para deixar o equipamento na caminhonete," tinha dito enquanto as retirava.
Na cozinha estava um pouco mais fresco, mas mesmo assim fazia bastante calor. Um colfie farejou as botas de Kincaid, depois saiu para o alpendre e deitou-se pesadamente, enquanto Francesca tirava cubos de gelo de tabuleiros metálicos e servia o chá de um enorme jarro. Sabia que Robert a observava sentado à mesa da cozinha, com as pernas compridas estendidas e alisando o cabelo com as mãos.
"Limão?...
“Sim, por favor."
"Açúcar?"
"Não, obrigado”.
O sumo de limão escorregou lentamente pela parede do copo e ele também reparou nisso. Robert Kincaid não deixava escapar nada. Francesca colocou um copo diante dele e o outro no outro lado da mesa de fórmica. Pôs as flores na água, num velho frasco de geléia com desenhos do Pato Donald. Encostada ao balcão, levantou uma perna e descalçou a bota. Depois apoiou-se no pé descalço e tirou a outra.
Robert bebeu alguns goles de chá e olhou para ela. Francesca tinha cerca de um metro e setenta, aparentava cerca de quarenta anos ou um pouco mais, tinha um belo rosto e um Corpo delicado e sensual. Mas onde quer que fosse, encontrava sempre mulheres bonitas. O aspecto físico era importante; no entanto, para ele, o que realmente contava era atrair e sentir-se atraído pelas sutilezas da mente e do espírito. Era por isso que achava a maioria das mulheres jovens desinteressantes, independentemente da sua beleza exterior. Não tinham vivido nem sofrido o suficiente para possuírem essas qualidades que lhe interessavam.
Mas havia algo em Francesca Johnson que realmente lhe interessava. Havia inteligência; sentia-o. E havia paixão, embora não soubesse qual a direção dessa paixão, se é que tinha alguma. Mais tarde, disse-lhe que, de alguma maneira inexplicável, vê-la tirar as botas naquele dia tinha sido um dos momentos mais sensuais de que se lembrava. Não importava porquê. Não era essa a sua abordagem da vida. "A análise destrói os conjuntos. Algumas coisas, mágicas, foram feitas para permanecerem inteiras. Se as observarmos por partes, desaparecem.." Tinham sido estas as suas palavras.
Francesca estava sentada na mesa com uma perna dobrada debaixo do corpo, e afastava madeixas de cabelo preto que lhe caíam sobre a cara, prendendo-as de novo com o travessão em casca de tartaruga. Depois, lembrando-se de algo, levantou-se e aproximou-se do aparador; tirou um cinzeiro e colocou-o na mesa ao alcance da mão de Robert. Com esta permissão tácita, ele tirou um maço de Camel e estendeu-o na sua direção. Francesca serviu-se de um cigarro e reparou que estava ligeiramente úmido da intensa transpiração dele. Repetiram os movimentos que tinham feito no carro. Ele acendeu o Zippo de ouro, ela segurou-lhe na mão para a manter firme, sentiu a sua pele com as pontas dos dedos, e encostou-se de novo. O cigarro sabia-lhe maravilhosamente e Francesca sorriu.
"Que faz, exatamente? Refiro-me à fotografia."
Robert olhou para o cigarro e respondeu calmamente: "Sou um repórter contratado - isto é, um fotógrafo - da National Geografic, em tempo parcial. Vendo idéias à revista e depois tiro as fotografias. Ou então são eles que me chamam quando querem fazer algo. Não há grandes hipóteses para a criatividade artística; é uma publicação bastante conservadora. Mas o salário é razoável. Não é extraordinário, mas decente e seguro. 0 resto do tempo escrevo e fotografo. Por conta própria e envio reportagens para outras revistas.
Quando as coisas apertam, faço trabalho de equipe, mas isso limita-me muito.
“Às vezes, escrevo poesia para mim mesmo. De vez em quando, faço umas incursões pela ficção, mas não me parece que tenha jeito para isso. Vivo no Norte de Seattle e trabalho bastante nessa zona. Gosto de fotografar os barcos de pesca, as povoações índias e as paisagens.
“O trabalho para a National Geografic muitas vezes retém-me no mesmo lugar durante alguns meses, especialmente quando se trata de uma reportagem importante, por exemplo uma parte do Amazonas ou o deserto do Norte de África. Nesses casos, normalmente vou de avião e depois alugo um carro. Mas apetecia-me visitar de carro alguns lugares e explorá-los para referências futuras. Vim ao longo de Lake Superior; voltarei por Black Hills. E você?"
Francesca não estava à espera que ele lhe perguntasse.
Gaguejou um pouco.
"Oh, meu Deus, nada de parecido com você. Eu licenciei-me em literatura comparada. Quando cheguei a Winterset em 1946, era difícil arranjar professores, e como eu era casada com um veterano, contrataram-me. De maneira que obtive um certificado de ensino e fui professora de língua inglesa durante alguns anos no liceu. Mas a idéia de eu trabalhar não agradava a Richard. Costumava dizer que nos podia sustentar e que não havia necessidade disso, especialmente tendo em conta que tínhamos dois filhos pequenos. Por isso despedi-me e tornei-me mulher de fazendeiro em tempo integral. É tudo”.
Reparou que Robert já quase não tinha chá gelado, e serviu-o de novo do jarro.
"Obrigado. Gostas de viver aqui no Iowa?"
Houve um momento de verdade. Ela sentiu-o. A resposta padrão seria: "Gosto. É bastante tranqüilo e as pessoas são simpáticas." Não respondeu imediatamente. "Dá-me outro cigarro?,, De novo o maço de Camel, de novo o isqueiro, de novo o ligeiro contato das mãos. 0 sol começava a incidir no alpendre e sobre o cão, que se levantou e desapareceu. Francesca, pela primeira vez, olhou Robert Kincaid nos olhos.
‘Eu devia dizer, “Gosto. É bastante tranqüilo e as pessoas são simpáticas." E quase tudo isso é verdade. É sossegado e as pessoas são simpáticas, num certo sentido. Todos nos ajudamos uns aos outros. Se alguém se magoa ou adoece, os vizinhos cozinham o seu milho ou a sua aveia ou fazem o que for preciso. Na cidade, podemos deixar o carro aberto e os nossos filhos podem correr sem termos de nos preocupar com eles. As pessoas daqui têm muitas qualidades, e eu respeito-as por isso. "Mas" - hesitou, deu uma passa no cigarro e olhou para Robert Kincaid, sentado em frente dela - "não é o que eu sonhava quando garota." Finalmente, a confissão. As palavras estavam ali há anos, e nunca as tinha dito. Agora dissera-as a um homem que tinha vindo de Bellingham, Washington, numa caminhonete verde.
Durante alguns momentos ele ficou calado. Depois disse: "No outro dia anotei algo no meu caderno para usar um dia mais tarde; foi uma idéia que me ocorreu enquanto guiava. Acontece-me muito. Diz assim: "Os velhos sonhos eram bons sonhos; não se tornaram realidade, mas estou contente por tê-los tido". Não tenho a certeza do que isto significa, mas servir-me-á para alguma coisa. Por isso parece-me que entendo como se sente”.
Nessa altura Francesca sorriu para ele. Pela primeira vez, sorriu com calor e intensidade E os seus instintos de jogadora apoderaram-se dela.
"Quer ficar para o jantar? A minha família está fora, por isso não tenho grande coisa em casa, mas posso inventar algo."
"A verdade é que estou farto de supermercados e de restaurantes. Por isso, se não for muito incômodo, terei o maior prazer”.
Há anos que não como. Não é por nenhuma razão em especial, simplesmente sinto-me melhor assim."
Francesca sorriu de novo.
"Aqui esse ponto de vista não seria muito popular. Richard e os seus amigos diriam que está tentando destruir os seus meios de subsistência. Eu própria não como muita carne; não sei bem por que, apenas não gosto muito. Mas de cada vez que tento fazer uma refeição sem carne para a família, há gritos de revolta. Por isso desisti de tentar. Será engraçado pensar em algo diferente para variar."
"Está bem, mas não tenha muito trabalho por minha causa”.
Olha, eu tenho filme dentro da geleira. Preciso de tirar a água do gelo derretido e arrumar um pouco as coisas. Vou demorar um pouquinho." Levantou-se e acabou de beber o chá.
Francesca viu-o sair pela porta da cozinha, atravessar o alpendre e sair para o pátio. Não deixou bater a porta de rede como todos faziam, mas fechou-a suavemente. Mesmo antes de sair, baixou-se para acariciar o coffie, que lhe agradeceu a atenção com várias lambedelas úmidas nos braços.
No andar de cima, Francesca tomou um banho rápido. Enquanto se secava, espreitou por cima da cortina que cobria a metade inferior da janela para o pátio. A mala de Robert estava aberta, e ele estava a tomar banho com a velha bomba manual. Francesca devia ter-lhe dito que ele podia tomar uma ducha em casa se quisesse. Tencionara fazê-lo, hesitara por um momento devido à familiaridade que isso implicava, e depois, na sua própria confusão, esquecera-se de dizer o que quer que fosse. Mas Robert Kincaid já tinha tomado banho em piores condições. Com baldes de água estagnada no país dos tigres, com água do seu cantil no deserto. Na fazenda de Francesca, tinha-se despido até à cintura e usava a camisa suja como um misto de esponja e toalha. "Uma toalha," recriminou-se Francesca. "Pelo menos podia ter-lhe dado uma toalha”.
A lâmina de barbear, no cimento ao lado da bomba, refletia o sol, e ela viu-o ensaboar a cara, e barbear-se. Robert era - outra vez aquela palavra, pensou Francesca - duro. Não era corpulento, tinha um pouco mais de um metro e oitenta e era mais para o magro. Mas tinha ombros largos para a estatura e a barriga era lisa como a lâmina de uma faca. Não aparentava a idade que tinha e não se parecia com os locais que comiam demasiados biscoitos ao café da manhã.
Da última vez que tinha ido às compras a Des Moines, Francesca comprara um novo perfume - Wind Song - e agora usou-o com moderação. Que deveria vestir? Achava que não deveria vestir-se demasiado bem, uma vez que ele continuava com as suas roupas de trabalho. Camisa branca de mangas compridas, enroladas até aos cotovelos, um par de jeans limpos, sandálias. Os brincos de ouro que, segundo Richard, lhe davam ar de cigana, e uma pulseira de ouro. 0 cabelo apanhado com uma fita, caído sobre as costas. Parecia-lhe que estava bem. Quando voltou para a cozinha, Robert estava sentado com as suas mochilas e a sua geleira; tinha vestido uma camisa cáqui lavada com os mesmos suspensórios cor-de-laranja de antes. Em cima da mesa estavam três máquinas fotográficas, cinco lentes e um maço de Camel por abrir. Todas as máquinas, bem como as lentes pretas, umas curtas misturadas com outras médias e uma maior, eram da marca "Nikon". O equipamento estava riscado, falhado em algumas partes. Mas Robert manuseava-o cuidadosamente, e de forma despreocupada enquanto limpava, escovava e soprava.
Olhou para ela, que estava de novo com uma expressão tímida e grave.
"Tenho cerveja na geleira. Quer uma?”.
"Sim, quero”.
Tirou duas garrafas de Budweiser. Quando levantou a tampa da geleira, Francesca viu caixas de plástico transparente com filme empilhado no interior. Havia mais quatro garrafas de cerveja para além das duas que tinha tirado. Francesca abriu uma gaveta à procura de um abre-garrafas, mas ele disse: "Eu tenho um." Tirou um canivete suíço do estojo que trazia no cinto, abriu uma da lâminas e usou-a com perícia. Deu uma das garrafas a Francesca e ergueu a sua numa espécie de brinde.
“Ás pontes cobertas ao entardecer ou, melhor ainda, em manhãs quentes, cor-de-fogo." Sorriu.
Francesca não disse nada, mas sorriu suavemente e levantou um pouco a sua garrafa, com um gesto hesitante e desajeitado. Um estranho desconhecido, as flores, o perfume, a cerveja e um brinde numa quente segunda-feira de um fim de Verão. Era mais do que conseguia agüentar.
"Uma vez, há muito tempo atrás, alguém teve sede numa tarde de Agosto. Quem quer que fosse, estudou a sua sede, improvisou uma bebida e inventou a cerveja. É daí que ela vem, e resolveu-se o problema da sede”... Robert estava ocupado com uma máquina, e parecia que estava falando com ela, enquanto apertava um parafuso na parte superior, com uma chave de parafusos de joalheiro.
"Vou um minuto ao jardim. Volto já”. Robert levantou os olhos. "Precisa de ajuda?"
Ela abanou a cabeça e passou por ele, sentindo o olhar dele nas suas pernas, perguntando-se se a seguiria com os olhos enquanto atravessava o alpendre, imaginando que o faria. Tinha razão. Ele observava-a. Abanou a cabeça e voltou a olhar para ela, observou o seu corpo, pensou na inteligência que sabia que ela possuía, interrogou-se sobre as outras coisas que pressentia nela. Sentia-se atraído, e lutava contra esse sentimento.
Agora o jardim estava à sombra. Francesca atravessou-o com uma bacia de esmalte branco rachada. Apanhou cenouras e salsa, aipo, nabos e cebolas. Quando voltou para a cozinha, Robert Kincaid estava colocando novamente o equipamento nas mochilas. Reparou que o estava fazendo com cuidado e precisão. Obviamente, havia um lugar para cada coisa, e cada coisa estava no seu lugar. Robert tinha acabado a sua cerveja e abrira mais duas, embora Francesca ainda não tivesse terminado a sua. Ela inclinou a cabeça para trás, esvaziou a garrafa e entregou-lhe.
"Posso fazer algo?" perguntou ele.
"Pode trazer a melancia do alpendre e umas batatas desse balde que está aí."
Robert movia-se com tanta facilidade que Francesca se espantou com a rapidez com que ele foi ao alpendre e voltou, com a melancia debaixo do braço e quatro batatas nas mãos.
"Chega?"
Ela acenou, pensando que ele tinha algo de fantasmagórico. Robert pousou as batatas e a melancia junto ao lava-louças onde ela estava lavando os legumes e voltou para a sua cadeira, acendendo um Camel enquanto se sentava.
"Quanto tempo ficará por aqui?" perguntou Francesca, olhando para os legumes que lavava.
"Não tenho a certeza. Não tenho muita pressa, e ainda tenho um prazo de três semanas para entregar as fotografias das pontes. Acho que ficarei até acabar o trabalho. Provavelmente será uma semana”.
"Onde estás instalado? Na cidade”?
"Sim, num pequeno lugar com cabanas. Chama-se Motor Court ou qualquer coisa no gênero. Cheguei esta manhã. Nem sequer tirei ainda as minhas coisas do carro”.
"É o único hotel que há, à exceção do de Mrs. Carlson, que aceita hóspedes. Os restaurantes seriam uma desilusão para você, principalmente tendo em conta os teus hábitos alimentares”.
"Eu sei. É uma velha história. Mas aprendi a arranjar-me. Nesta altura do ano, não é tão difícil; consigo encontrar produtos frescos nas lojas e em bancas ao longo da estrada. Pão e outras coisas, e lá me vou safando mais ou menos. Mas é bom ser convidado como hoje aqui. Agradeço muito”.
Francesca estendeu a mão por cima do balcão e ligou um pequeno rádio com apenas dois botões e com as colunas cobertas por um pano castanho. "Com as horas no bolso, e um dia radioso ... " cantou uma voz, acompanhada pelo arranhar das violas. Francesca manteve o volume no mínimo.
“Tenho jeito para cortar vegetais”, ofereceu-se ele”.
"Está bem, ali tem a tábua, e uma faca dentro da gaveta por debaixo dela. Vou fazer um guisado, por isso corta-os aos cubos”.
Robert estava a meio metro dela, olhando para baixo, cortando as cenouras e os nabos, o aipo e as cebolas. Francesca descascava batatas no lava-louças, consciente de estar muito perto de um estranho. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que descascar batatas poderia provocar aquelas pequenas sensações estranhas.
"Toca viola? Vi o estojo na sua caminhonete”.
"Um pouco. Faz-me companhia, só isso. A minha mulher era uma cantora folk, muito antes desse tipo de música se tornar popular, e foi ela que me ensinou o que sei”.
Francesca tinha ficado um pouco contraída ao ouvir a palavra mulher, não sabia bem por que. Robert tinha direito a ser casado, mas de alguma maneira não combinava com ele. Ela não queria que ele fosse casado.
"A minha mulher não agüentava as minhas viagens, quando eu passava meses fora. Não a critico. Deixou-me há nove anos. Divorciou-se de mim um ano depois. Não tivemos filhos, por isso não foi complicado. Levou uma viola e deixou-me outra”.
"Tem notícias dela?"
"Não, nunca”.
As suas palavras foram apenas estas. Francesca não insistiu. Mas sentiu-se melhor, egoisticamente, e de novo se perguntou porque havia de lhe importar que fosse de uma maneira ou de outra.
"Estive na Itália duas vezes," disse ele. "Onde é que você nasceu”?
"Em Nápoles."
"Nunca lá fui. Estive uma vez no Norte, fotografando o rio Pó, e mais uma vez, fazendo outro trabalho, na Sicília”. Francesca descascava batatas, pensando na Itália por um momento, consciente da presença de Robert Kincaid a seu lado.
As nuvens tinham-se deslocado para oeste, dividindo o sol em raios que se estendiam em várias direções. Robert olhou pela janela por cima do lava-louças e disse:
"Bela luz. Os fabricantes de calendários adoram-na. E as revistas religiosas também”.
“O teu trabalho parece interessante," disse Francesca. Sentia a necessidade de manter a conversa num tom neutro.
"De fato, é. Gosto muito do que faço. Gosto das viagens e de fazer fotografias”.
Ela reparou que ele tinha dito "fazer” fotografias.
" Você faz fotografias, não as tira?"
"Sim. Pelo menos é assim que eu vejo as coisas. É essa a diferença entre fotógrafos de domingo e os que o fazem profissionalmente. Quando terminar o trabalho com a ponte que vimos hoje, não terá o aspecto que você pensa. A terei transformado em algo meu, pela escolha da lente, ou pelo ângulo da câmara, ou pela composição geral, ou o mais provável pela combinação de tudo isto”.
"Eu não me limito a aceitar as coisas como elas se me apresentam; tento transformá-las em algo que reflete a minha consciência pessoal, o meu espírito. Tento encontrar a poesia na imagem. A revista tem o seu próprio estilo e as suas exigências, e nem sempre estou de acordo com o gosto dos editores; na verdade, a maioria das vezes não estou. E isso aborrece-os, embora sejam eles que decidem o que publicam e o que querem deixar de parte. Creio que conhecem os seus leitores, mas gostaria que de vez em quando arriscassem um pouco mais. Quando lhes digo isso, zangam-se”.
"É esse o problema de se ganhar a vida com a arte. Estamos sempre lidando com mercados, e os mercados - os de massas – são concebidos para servir um gosto médio. É aí que estão os números. Suponho que é essa a realidade. Mas, como te disse, pode tornar-se bastante limitativa. Eles deixam-me guardar as fotografias que não lhes servem, de maneira que pelo menos tenho os meus próprios arquivos privados com o material de que gosto”.
"E, de vez em quando, outra revista compra uma ou duas dessas fotografias, ou posso escrever um artigo sobre um lugar onde estive e ilustrá-lo de uma forma um pouco mais ousada do que eles gostam na National Geographic”.
"Um dia, vou escrever um artigo intitulado "As virtudes do amadorismo" para todos os que gostariam de ganhar a vida com a arte. O mercado mata mais paixão artística do que qualquer outra coisa. Para a maioria das pessoas, representa a segurança. As pessoas querem segurança, as revistas e os fabricantes dão-lhe segurança, dão-lhes homogeneidade, dão-lhes o familiar e o confortável, não as desafiam. Os lucros, as subscrições e todo esse gênero de coisas dominam a arte. Estamos todos atados à grande roda da uniformidade. Os responsáveis pelo marketing estão sempre falando dos consumidores". Quando ouço esta palavra imagino um homenzinho gordo de bermudas, com uma camisa havaiana e um chapéu de palha com abre-latas pendurados e com as mãos cheias de dólares... Francesca sorriu suavemente, pensando na segurança e no conforto.
"Mas não me queixo demasiado. Como te disse, gosto das viagens, de fazer experiências com as máquinas e de estar ao ar livre. A realidade não é exatamente o que anunciava a canção, mas a canção não é má."
Francesca supunha que, para Robert Kincaid, aquela era uma conversa banal. Para ela era a essência da literatura. As Pessoas de Madison County não falavam assim, sobre aquelas coisas. Falavam sobre o tempo, sobre os produtos agrícolas, dos recém-nascidos e dos enterros, dos programas do Governo e das equipes esportivas. Não da arte e dos sonhos. Não das realidades que silenciavam a música, e encerravam os sonhos dentro de uma caixa.
Robert acabou de cortar os vegetais.
"Posso fazer mais alguma coisa?" Ela abanou a cabeça.
"Não, está tudo sob controlo."
Ele sentou-se de novo à mesa, fumando. De vez em quando bebia um gole de cerveja. Francesca cozinhava e bebericava entre uma tarefa e outra. Sentia os efeitos do álcool, apesar de ter bebido pouco. Na véspera do Ano Novo, em Legion Hall, ela e Richard bebiam uns copos. Para além disso, nada mais, e raramente havia bebidas alcoólicas em casa, à exceção de uma garrafa de conhaque que ela um dia comprara na vaga esperança de trazer romance às suas vidas campesinas. A garrafa ainda estava por abrir.
Azeite vegetal, uma chávena e meia de vegetais. Cozinhar até dourar, juntar farinha e mexer bem, juntar um quarto de litro de água, juntar os vegetais que restam e os temperos. Cozinhar em fogo brando durante cerca de quarenta minutos. Enquanto o jantar ia cozendo, Francesca sentou-se de novo em frente dele. Na cozinha pairava uma certa intimidade, que de alguma maneira provinha do cozinhado. Preparar o jantar para um desconhecido, que tinha estado cortando nabos junto dela, apagava em parte o sentimento de estranheza. E, com a perda dessa estranheza, havia lugar para a intimidade.
Robert estendeu-lhe os cigarros, com o isqueiro em cima do maço. Ela tirou um, tentou acender o isqueiro, e sentiu-se desajeitada. Não conseguia acendê-lo. Ele sorriu um pouco, tirou-lhe cuidadosamente o isqueiro da mão e fez duas tentativas antes de conseguir acender o isqueiro. Segurou-o para que ela acendesse o cigarro. Na presença de homens, normalmente, ela sentia-se com mais graça do que eles. Mas não com Robert Kincaid.
O sol ofuscante tornara-se grande e avermelhado sobre os campos de milho. Através da janela da cozinha via-se um falcão a voar pelas primeiras sombras do anoitecer. No rádio davam as notícias das sete e um resumo da bolsa. E Francesca olhava por cima da fórmica amarela para Robert Kincaid, que tinha chegado de tão longe à sua cozinha. Um longo caminho, que não era apenas feito de quilômetros.
“Já cheira bem," disse Robert apontando para o fogão. "É um cheiro tranqüilo." Olhou para ela.
"Tranqüilo? Haverá algo que tenha um cheiro tranqüilo?" Ela estava pensando na frase, interrogando-se a si mesma. Ele tinha razão. Depois das costeletas de porco e,dos assados que cozinhava para a sua família, aquilo era um cozinhado tranqüilo. Não havia violência em nenhum ponto da cadeia alimentar, exceto, talvez, no fato de os vegetais serem arrancados. O guisado fervilhava lentamente e cheirava a tranqüilidade. A atmosfera na cozinha era tranqüila.
"Se não se importa, fala-me um pouco da sua vida na Itália."
Estava estirado na cadeira com a perna direita cruzada sobre a esquerda à altura dos tornozelos. Na sua presença, sentia-se incomodada com o silêncio. Por isso falou. Falou dos seus anos de infância, da escola particular, das freiras, dos seus pais - ela dona de casa, ele gerente bancário. Contou-lhe que quando era adolescente ia ao pontão ver barcos de todo o mundo. Falou-lhe dos soldados americanos que chegaram depois. De como conheceu Richard num café, onde estava com algumas namoradas. A guerra tinha destroçado muitas vidas, não sabiam se algum dia se viriam a casar. Não falou em Niccolo. Ele ouvia-a em silêncio, acenando de vez em quando com a cabeça, que entendia. Quando por fim ela fez uma pausa, perguntou:
"E disse que tem filhos?"
"Sim. Michael tem dezessete anos e Carolyn dezesseis. Ambos estudam na escola em Winterset. Estão num curso de formação profissional agrária; é por isso que foram à feira estatal de Illinois exibir o novilho de Carolin.
"Uma idéia a que nunca consegui habituar-me, que nunca consegui compreender, é a forma como dão tanto amor e cuidados aos animais e depois os vendem para serem abatidos. Mas não me atrevo a dizer nada. Richard e os seus amigos atirar-se-iam a mim num abrir e fechar de olhos. Creio que é uma contradição, que existe algo de frio e insensível em tudo isto...” Sentiu-se culpada ao mencionar o nome de Richard. Não tinha feito nada, absolutamente nada. No entanto, sentia-se culpada, uma culpa nascida das possibilidades provocadas pela distância. E começou a pensar no que aconteceria no fim da noite, e se teria se metido em algo que não poderia controlar.
Talvez Robert Kincaid se limitasse a ir-se embora. Parecia bastante calmo, bastante simpático, até um pouco tímido. Enquanto falavam, o anoitecer ia-se cobrindo de um tom azul com um ligeiro nevoeiro a tocar a grama da pradaria. Robert abriu mais duas cervejas enquanto o guisado de Francesca ia cozinhando, lentamente. Francesca levantou-se e deixou cair as bolas de massa em água a ferver, voltou-se e encostou-se ao lava-louças, sentindo-se atraída por Robert Kincaid, de Bellingliam, Washington. Esperava que ele não se fosse embora muito cedo.
Ele serviu-se duas vezes, com bons modos, e disse-lhe duas vezes que estava delicioso. A melancia era perfeita. A cerveja estava gelada. A noite azul. “Francesca Jonsson tinha quarenta e cinco anos e no rádio da sua cozinha, Hank Snow cantava uma canção de embalar na emissora KMA de Shenandoah, Iowa, noites antigas, música distante agora?" pensou Francesca.
Tinham acabado de comer, e estavam ali sentados. Ele tomou conta da situação.
"E se fôssemos dar um - passeio pela pradaria? Está esfriando um pouco." Quando ela disse que sim, tirou uma máquina de uma das mochilas e pô-la a tiracolo.
Kincaid abriu a porta dos fundos, segurou-a para a deixar passar, seguiu-a para a rua e depois fechou a porta suavemente. Seguiram pelo caminho sulcado, pelo pátio de cascalhos, e foram até à pradaria a este do telheiro das máquinas. 0 telheiro cheirava a gordura quente. Quando chegaram à cerca, Francesca segurou o arame farpado com uma mão e passou por cima dele, sentindo o orvalho nos pés, em volta das estreitas tiras das sandálias. Robert executou a mesma manobra, passando facilmente as botas sobre o arame.
"Chama a isto pradaria ou pastagem?", perguntou ele.
"Pastagem, acho eu. O gado mantém a erva curta. Cuidado com o esterco."
A leste, levantava-se uma lua quase cheia que se tinha tornado azulada com o sol acabado de pôr. Um carro passou na estrada a uma velocidade de foguete, e ouviu-se o som estridente de uma buzina. Era o rapaz dos Clark. Quarto na retaguarda da equipe de Winterset. O namorado de Judy Leverenson.
Fazia muito tempo que Francesca não dava um passeio assim. Após o jantar, que era sempre às cinco, vinham as notícias na televisão, e depois os programas da noite, que Richard e os filhos viam a seguir aos trabalhos de casa. Em geral, Francesca lia na cozinha - livros de história, poesia e ficção, da biblioteca de Winterset e do círculo de leitores de que era sócia, ou sentava-se no alpendre da frente quando estava bom tempo. A televisão aborrecia-a. Quando Richard chamava: “Francesca tem que ver isto!", entrava e sentava-se um momento com ele. Chamava-a sempre quando via Elvis. Também os Beatles, quando apareceram pela primeira vez no The Ed Sullivan Sbow, Richard olhava-lhes para os cabelos e sacudia a cabeça com um ar incrédulo e desaprovador.
Durante breves instantes, apareceram riscas encarnadas numa parte do céu.
"Chamo, aquilo 'o salto', disse Robert Kincaid, apontando para cima. A maioria das pessoas guarda as suas máquinas fotográficas muito cedo. Depois do pôr-do-sol, há sempre um período em que a luz e a cor do céu são esplêndidas, quando o sol acabou de se pôr, mas ainda espalha a sua luz pelo céu."
Francesca não respondeu, intrigada com aquele homem para quem a diferença entre uma pastagem e uma pradaria parecia ser importante, que se entusiasmava com a cor do céu, que escrevia um pouco de poesia, mas não muita ficção. Que tocava viola, que ganhava a vida com imagens e carregava o equipamento em mochilas. Que era como o vento. E que se movia como o vento. Que talvez viesse dele.
Robert olhou para cima, com as mãos nos bolsos das Levis, e a máquina pendurada contra a anca esquerda.
"As maçãs de prata da lua / as maçãs de ouro do sol.” A sua voz de barítono dizia as palavras como um ator profissional. Francesca olhou para ele. "W. BYeats, "The Song of Wandering Aengus.""
"Exatamente. Boa poesia a de Yeats. Realismo, economia, sensualidade, beleza, magia. Apela às minhas raízes irlandesas."
Tinha dito tudo, em apenas cinco palavras. Francesca esforçara-se por explicar Yeats aos estudantes de Winterset, mas nunca conseguira estabelecer contato com a maioria deles. Tinha escolhido Yeats, em parte pelo que Kincaid acabara de dizer, achando que todas essas qualidades atrairiam aqueles adolescentes cujos instintos pulsavam como a banda do liceu em desfile, durante os intervalos do futebol. Mas os preconceitos contra a poesia, que era vista como pouco viril, até mesmo no caso de Yeats, eram difíceis de ultrapassar. Lembrou-se de Matthew Clark olhando para o colega do lado e a pôr as mãos em concha como se estivesse a sentir os seios de uma mulher, enquanto ela lia: "As maçãs de ouro do sol." Tinham rido disfarçadamente, e as raparigas na fila de trás tinham corado. Conservariam aquelas atitudes para o resto da vida. Era isso que a tinha desencorajado. Sabê-lo, e sentir-se comprometida e só, apesar da aparente simpatia da comunidade. Os poetas não eram bem-vindos naquele lugar. Os habitantes de Madison County gostavam de dizer, para compensar o sentimento de inferioridade cultural que infligiam a si mesmos: “É um bom lugar para educar crianças." E a Francesca apetecia-lhe sempre responder: "Mas será um bom lugar para educar adultos?"
Sem darem por isso, tinham avançado lentamente pela pradaria e andado um bom pedaço; depois voltaram pelo mesmo caminho de volta para casa. A escuridão abateu-se sobre eles enquanto atravessavam a cerca, que desta vez ele segurou para que ela passasse.
Francesca lembrou-se do conhaque. "Tenho ali conhaque. Ou prefere café?"
"Há alguma possibilidade de serem ambas as coisas?" As palavras dele provinham da escuridão. Ela sabia que ele estava sorrindo.
Quando chegaram ao círculo de luz que o candeeiro do pátio projetava na grama e no cascalho, ela respondeu: "Claro", percebendo na sua própria voz um tom que a perturbou. O som das gargalhadas espontâneas nos cafés de Nápoles.
Não foi fácil encontrar duas xícaras que não estivessem lascadas. Embora ela soubesse que xícaras lascadas faziam parte da vida de Robert, desta vez queria xícaras perfeitas. Haviam dois cálices de conhaque, virados para baixo, na parte de trás do armário; nunca tinham sido usados, como o próprio conhaque. Francesca teve de se pôr na ponta dos pés para lhes chegar e percebeu que tinha as sandálias molhadas e os jeans muito apertados atrás. Ele estava sentado na mesma cadeira de antes, a observá-la.
As velhas sensações. As velhas sensações assaltavam-no de novo. Perguntou-se como seria o seu cabelo ao tato, como se ajustaria à sua mão a curva das costas dela, como seria tê-la debaixo de si. As velhas sensações contrariando tudo o que tinha aprendido, a boa educação imposta por séculos de cultura, as duras regras, do homem civilizado. Tentou pensar noutra coisa, na fotografia... na estrada ou nas pontes cobertas. Em qualquer coisa, menos no aspeto de Francesca naquele momento. Mas falhou, e voltou a pensar em como seria sentir a sua pele, o seu corpo no dela. As eternas perguntas, sempre as mesmas. As malditas sensações, lutando por vir à superfície. Afastou-as, empurrou-as para baixo, acendeu um Camel e respirou fundo.
Francesca sentia constantemente o seu olhar, embora a forma de olhar dele fosse circunspecto, nunca óbvio, nunca invasora. Sabia que ele sabia que nunca se tinha servido conhaque naqueles cálices. E com o sentido irlandês do trágico que ele tinha, Francesca também sabia que Robert sentia algo acerca desse vazio. Não era pena. Não se tratava disso. Tristeza, talvez. Quase conseguia ouvir as palavras que se formavam na mente dele:
A garrafa por abrir, os cálices vazios, ela estendeu o braço para alcançá-los, algures a norte de Míddle River, no Iowa. Eu olhei-a com olhos que tinham visto o Amazonas de um jivaro e a Rota da Seda, com o pó da caravana erguendo-se por detrás de mim, até aos espaços inexplorados do céu da Ásia. Enquanto Francesca tirava o selo do Iowa da garrafa de conhaque, 'olhou para as suas unhas e desejou que fossem mais compridas e bem cuidadas. A vida do campo não lhe permitia usar unhas compridas. Até então não se tinha importado. A garrafa de conhaque e dois copos em cima da mesa. Enquanto preparava o café, Robert abriu a garrafa e serviu a medida certa dos dois cálices. Não era a primeira vez que Robert Kincaid servia conhaque depois do jantar.
Francesca perguntou-se em quantas cozinhas, em quantos bons restaurantes, em quantas salas com luzes baixas teria ele feito aquele pequeno gesto. Quantas mãos de unhas compridas, segurando pés de cálices, teria ele visto delicadamente apontadas na sua direção, quantos pares de olhos azuis ou castanhos o tinham olhado em noites estrangeiras, enquanto veleiros ancorados balançavam perto da costa e a água batia contra os cais de velhos portos?
A luz da cozinha estava muito forte para um ambiente de café e conhaque. Francesca Johnson, a mulher de Richard Johnson, deixá-la-ia acesa. Francesca Johnson, uma mulher que passeava pelos campos depois do jantar e revivia os seus sonhos de garota, apagá-la-ia. O ideal seria a luz de uma vela, mas isso seria demais. Ele poderia ficar com uma impressão errada. Acendeu a luzinha por cima do lava-louças e apagou a do teto. Ainda não era perfeito, mas já estava melhor.
Robert ergueu o cálice e estendeu o braço na direção dela.
"Às noites antigas e à música distante." Por alguma razão, aquelas palavras fizeram-na ficar sem fôlego. Mas aproximou o cálice do dele, e embora quisesse dizer “Às noites antigas e à música distante”, limitou-se a sorrir levemente. Fumaram em silêncio enquanto bebiam o café e o conhaque. Ao longe, ouviu-se o grito de um faisão nos campos. Jack, o coffie, ladrou duas vezes no pátio. Os mosquitos batiam contra a tela da janela junto à mesa, e uma única mariposa, de vôo tortuoso mas instinto seguro, foi atraída pelas possibilidades da luz do lava-louças. Ainda estava calor, não havia brisa, e sentia-se agora uma ligeira umidade. Robert Kincaid transpirava ligeiramente, com os dois primeiros botões da camisa desabotoados. Não olhava diretamente para Francesca, mas ela sentia que estava dentro do seu campo de visão, apesar de parecer estar a olhar pela janela. Do lugar onde estava, Francesca conseguia ver-lhe o peito e pequenas gotas de suor sobre a pele. Sentia coisas agradáveis, velhos sentimentos ligados à música e à poesia. Mas achou que estava na hora de ele se ir embora.
O relógio por cima do frigorífico indicava nove e cinqüenta e dois. Na rádio, ouvia-se a voz de Faron Young a cantar uma melodia de há alguns anos atrás: " O Santuarilo de Santa Cecília”, uma mártir romana do século III d.C. – Francesca lembrava-se perfeitamente - santa patrona da música e dos cegos.
O cálice de Robert estava vazio. Quando ele deixou de olhar pela janela, Francesca agarrou na garrafa de conhaque e aproximou-a do cálice vazio. Ele abanou a cabeça.
“Tenho de ir a Roseman Bridge de madrugada. É melhor ir andando.”
Ela ficou aliviada. Mas também desiludida. Sentia-se confusa.
“Sim”, por favor vai-te embora. Bebe um pouco mais de conhaque. Fica. Vai. Faron Yoting não se importava com os seus sentimentos. Nem a mariposa por cima do lava-louças. Francesca não sabia muito bem o que pensava Robert Kincaid.
Ele levantou-se, colocou uma das mochilas sobre o ombro esquerdo e a outra em cima da geleira. Ela aproximou-se dele.
Ele estendeu-lhe a mão, e ela agarrou-a.
"Obrigado pela noite, pelo jantar e pelo passeio. Foi tudo muito bom. É uma boa pessoa, Francesca. Deixa o conhaque na parte da frente do armário; com o tempo, talvez resulte." Como Francesca imaginara, ele sabia. Mas não se ofendeu com As suas palavras. Ele falava de amor no melhor sentido da palavra. Compreendia-o pela suavidade da linguagem, pela forma como ele dizia as palavras. O que ela não sabia era que ele lhe apetecia gritar para as paredes da cozinha, gravando as palavras em baixo relevo no gesso: "Pelo amor de Deus, Richard Johnson, será mesmo tão estúpido como eu penso que é?"
Francesca seguiu-o até à caminhonete e ficou a olhá-lo enquanto ele guardava o equipamento. O collie atravessou o pátio e pôs-se a farejar em volta da caminhonete.
“Jack, vem cá," murmurou Francesca rapidamente, e o cão deitou-se junto a ela, ofegante.
"Adeus," disse Robert, detendo-se um momento junto à porta da caminhonete, para olhá-la nos olhos. Então, de um só movimento, sentou-se ao volante e fechou a porta atrás de si. Pôs o velho motor a trabalhar, carregou no acelerador e arrancou com uma barulheira infernal. Depois espreitou à janela:
"Acho que está precisando ser afinado...” disse com um sorriso.
Segurou no volante, recuou, meteu de novo a primeira, e atravessou o pátio pela zona iluminada. Mesmo antes de chegar ao caminho já sem luz, pôs a mão esquerda fora da janela para lhe acenar. Ela também acenou, embora soubesse que ele a não podia ver.
Enquanto a caminhonete se afastava pelo caminho, Francesca encaminhou-se lentamente até à zona que ficava na sombra e ficou vendo os faróis vermelhos que subiam e baixavam com os solavancos. Robert Kincaid virou à esquerda e apanhou a estrada principal para Winterset, enquanto relâmpagos de uma tempestade de Verão cruzavam o céu e Jack se arrastava para o a porta dos fundos.
Um pouco mais tarde, Francesca estava diante do espelho da cômoda, nua. Tinha ancas um pouco inchadas pela maternidade, os seios ainda belos e firmes, não muito grandes, a barriga ligeiramente arredondada. Não conseguia ver as pernas no espelho, mas sabia que ainda estavam bem conservadas. Pensou que deveria depilar-se mais vezes, mas não parecia ver muito sentido nisso.
Richard apenas se interessava por sexo de vez em quando, mais ou menos de dois em dois meses, mas tudo acabava rapidamente, era rudimentar e pouco excitante, e ele não parecia importar-se muito com perfumes, depilações e coisas do
gênero.
Era fácil cair-se num certo desleixo.
Francesca pouco mais era do que uma sócia nos seus negócios. Uma parte de si gostava dessa relação. Mas dentro dela agitava-se outra pessoa que queria banhar-se, perfumar-se... e ser levada, arrastada, despojada do seu ser por uma força que sentia, mas que nunca deixara, mesmo vagamente, vir à superfície.
Vestiu- se e sentou-se à mesa da cozinha a escrever em meia folha de papel vulgar. Jack seguiu-a até à caminhonete Ford e saltou para dentro quando ela abriu a porta. Sentou-se no banco ao seu lado e enfiou a cabeça pela janela, enquanto Francesca recuava para sair do telheiro. Olhou para ela, depois novamente pela janela, enquanto a caminhonete voltava à direita para a estrada principal.
Roseman Bridge estava às escuras. Mas Jack correu à frente, para garantir que estava tudo bem, enquanto Francesca tirava uma lanterna da caminhonete. Colou o bilhete no lado esquerdo da entrada da ponte e voltou para casa.
AS PONTES DE TERÇA-FEIRA
Robert Kincaid passou pela caixa do correio de Richard Johnson uma hora antes do amanhecer; comia, alternadamente, um chocolate e uma maçã, e segurava um pequeno copo de café apertado entre os joelhos para não se entornar. Olhou para a casa branca à pálida luz da lua e sacudiu a cabeça pensando na estupidez dos homens, de alguns homens, da maioria deles.
Pelo menos podiam beber conhaque e não bater com a porta de tela ao sair.
Francesca ouviu o motor desafinado. Estava deitada na cama, nua pela primeira vez desde há muito tempo, onde tinha dormido. Imaginava Kincaid com os cabelos desgrenhados do vento que entrava pela janela da caminhonete, com uma mão no volante e um Camel na outra.
Ficou ouvindo o ruído dos pneus, cada vez mais distante, em direção a Roseman Bridge. E as palavras do poema, de Yeats vieram-lhe à cabeça: fui ao bosque das avelãs, porque tinha a cabeça ardendo .... " A sua versão era entre a de uma professora e a de uma mulher pedindo proteção.
Robert estacionou longe da ponte para que esta não interferisse nas suas composições. Do pequeno espaço atrás do banco tirou um par de botas de borracha; depois sentou-se no degrau para tirar as de couro e calçar as outras. Com uma das mochilas às costas, o tripé pendurado no ombro esquerdo pela correia de couro e a outra mochila na mão direita, iniciou a descida pela abrupta encosta até ao riacho. Queria colocar a ponte num ângulo que desse força à composição, apanhar um pouco da corrente e ao mesmo tempo fazer desaparecer as letras pintadas na parede à entrada da ponte. Os fios de telefone ao fundo também constituíam um problema, mas podia resolver-se com um enquadramento cuidadoso.
Tirou a Nikon e aparafusou-a no pesado tripé. A máquina tinha lentes de 24 milímetros que ele substituiu pelas suas preferidas, de 105 milímetros. Agora havia uma luz cinzenta a leste, e Robert começou a fazer experiências para a sua composição. Moveu o tripé um pouco para a esquerda e apoiou-o no terreno lamacento, junto à corrente. Conservou a correia da máquina atada ao pulso esquerdo, um hábito que não dispensava quando trabalhava perto da água. Tinha visto muitas máquinas caírem na água quando os tripés não se agüentavam. Levantava-se uma cor avermelhada, o céu iluminava-se. Baixou a máquina 20 centímetros e ajustou o tripé. Ainda não estava bem. Mais alguns centímetros para a esquerda. Novo ajuste do suporte. Nivelou a máquina na base do tripé. Ajustou as lentes. Calculou a profundidade de visão e aumentou-a com uma técnica de hiper-focagem. Disparou. O sol estava 40 % acima do horizonte e a velha pintura da ponte tinha adquirido uma tonalidade avermelhada, quente, exatamente o que ele queria.
Fita métrica no bolso esquerdo da camisa. Novo ajuste das lentes. Tirou outra fotografia, mas a máquina ainda poderia tirar muitas mais. Olhou de novo pelo visor. Nivelou a máquina. Rodou o rolo e esperou que passasse um segundo. No. momento em que carregou no botão, algo lhe chamou a atenção.
Voltou a olhar pelo visor. "Que diabo será aquilo pendurado à entrada da ponte?" interrogou-se. "Um pedaço de papel. Não estava ali ontem."
Certificou-se de que o tripé estava firme e correu pela encosta acima enquanto, atrás dele, o sol se levantava com rapidez, o papel estava cuidadosamente fixado na ponte. Arrancou-o e meteu-o com o alfinete no bolso. Voltou para a encosta, desceu e colocou-se atrás da máquina. O sol tinha subido para 60 %. Estava ofegante da corrida. Tirou outra fotografia. Repetiu duas vezes a operação, para duplicados. Não havia vento, a grama estava imóvel. Disparou três vezes em dois segundos e outras três em meio segundo só por uma questão de segurança. Ajustou as lentes. Repetiu todo o processo. Levou o tripé e a máquina para o meio do riacho e montou-os com cuidado para não caírem no lodo. Repetiu toda a seqüência. Trocou de rolo. Depois de lentes. Pôs as de 24 milímetros, enfiou as de 105 num bolso. Aproximou-se da ponte, subindo de novo o riacho.
Ajustou, nivelou, verificou, disparou três vezes, e mais algumas, por uma questão de segurança. Depois pôs a máquina na vertical, reconstituiu a cena e disparou de novo. A mesma seqüência, feita de uma forma metódica. Nunca fazia um movimento desnecessário'. Todos os seus gestos eram estudados, todos tinham uma razão de ser, ultrapassava sempre os problemas, de uma maneira eficiente e profissional. Voltou à encosta, atravessou a ponte correndo, com o equipamento às costas, acompanhando o sol. Agora a fotografia mais difícil. Agarrou na segunda máquina com o rolo mais rápido, pendurou as duas máquinas ao pescoço, e trepou à árvore por detrás da ponte. Arranhou o braço no tronco, soltou um palavrão e continuou a subir. Estava bastante alto, olhando para a ponte em baixo, de um ângulo em que via a luz do sol refletida na água. Usou o medidor para não apanhar o teto da ponte e o lado sem luz. Mediu a intensidade dos reflexos na água. Preparou a máquina. Disparou nove vezes, mais algumas por segurança, e pousou a máquina no bolso do casaco pendurado no ramo de uma árvore. Trocou de máquina e de rolo. Tirou mais doze fotografias. Desceu da árvore e dirigiu-se ao riacho. Armou o tripé, pôs outro rolo na máquina, fotografou uma composição semelhante à da primeira série de fotografias, mas a partir da margem oposta. Tirou uma terceira máquina da mochila, a sua velha SP. Ia fotografar a preto e branco. A luz na ponte ia-se alterando a cada segundo que passava.
Após vinte minutos de trabalho intenso como só conhecem soldados, cirurgiões e fotógrafos, Robert Kincaid meteu as mochilas na caminhonete e voltou pela mesma estrada por onde viera. Se corresse, demoraria apenas quinze minutos até Hogback Bridge, na parte noroeste da cidade, e ainda poderia tirar algumas fotografias.
Com uma nuvem de pó atrás de si, de Camel aceso e com a caminhonete aos saltos, passou pela casa de madeira branca virada a norte, pela caixa de correio de Richard Johnson. Não havia sinais de Francesca. "Que esperava? Ela é casada, e sente-se bem. Você também. Para quê este tipo de complicações? Foi uma noite excelente, um jantar agradável, com uma bela mulher. Deixa as coisas como estão. Meu Deus, mas ela é linda, e tem um encanto especial. Qualquer coisa. Não consigo tirar os olhos dela”.
Francesca estava atarefada no celeiro quando ele passou disparado pela sua casa. O barulho do gado abafava qualquer som proveniente da estrada. E Robert Kincaid ia para Hogback Bridge, perseguindo a luz, competindo com o tempo.
As coisas correram bem na segunda ponte, que se situava num vale, ainda rodeado de neblina quando ele lá chegou. A lente de 300 milímetros dava-lhe um sol grande na parte superior esquerda do enquadramento, e a fotografia incluía o sinuoso caminho por entre as pedras e a ponte. Depois, pelo visor, viu um fazendeiro numa carroça puxada por dois cavalos com o pêlo castanho-claro no caminho branco. Um dos últimos homens à moda antiga, pensou Kincaid, com um sorriso. Sabia quando as fotografias iam ser boas, e mesmo enquanto trabalhava já conseguia ver qual seria o resultado final. Nas fotografias verticais deixou um pouco de luz para o título.
Quando desmontou o tripé, às 8.35, sentia-se feliz. O trabalho dessa manhã tinha rendido bem. Era um material bucólico, conservador, mas bonito e sólido. As fotografias do fazendeiro e dos cavalos até podiam fazer uma capa; por isso, tinha deixado um espaço na parte superior para as letras e o logotipo. Os editores gostavam desse tipo de arte cuidadosa. Era por isso que Robert Kincaid tinha sempre trabalho. Tinha utilizado os sete rolos de filme ou parte deles, descarregara as três máquinas, e meteu a mão no bolso inferior esquerdo do casaco para tirar os quatro rolos que restavam. “Merda!" Tinha picado no dedo indicador com o alfinete. Esquecera-se de que o guardara no bolso quando retirara o pedaço de papel de Roseman Bridge. De fato, até se tinha esquecido do papel. Tirou-o, abriu-o e leu: "Se quiser jantar outra vez enquanto "as mariposas continuam a voar", vem esta noite quando tiver acabado o trabalho. À hora que te convier."
Não pôde evitar sorrir um pouco, imaginando Francesca Johnson com o bilhete e o alfinete, conduzindo através da escuridão até à ponte. Em cinco minutos estava de volta à cidade.
Procurou nas listas telefônicas dos mecânicos. Havia dois assinantes com o nome "R.Johnson", mas um deles tinha uma endereço na cidade. Marcou o número rural e esperou. Francesca estava dando de comer ao cão na porta dos fundos, quando tocou o telefone na cozinha. Atendeu-o mesmo antes do segundo toque:
"Residência da família Johnson."
"Olá, fala Robert Kincaid.”
Francesca sentiu de novo um sobressalto, semelhante ao do dia anterior. Algo que começava no peito e lhe caía no estômago.
"Tenho o seu bilhete. W. B. Yeats como mensageiro e tudo. Aceito o convite, mas é possível que chegue tarde. O tempo está ótimo, por isso estou pensando em fotografar... vejamos, como se chama?... Cedar Bridge... esta noite. Pode ser que acabe só depois das nove. E então quero tomar um banho. Por isso posso não chegar antes da nove e meia, dez. Não faz mal?"
Sim, fazia. Ela não queria esperar tanto, mas limitou-se a dizer:
"Oh, claro que não. Acabe o seu trabalho, isso é que é importante. Vou fazer algo que se possa esquentar facilmente quando chegar."
Nessa altura ele acrescentou:
"Se quiser vir enquanto estou trabalhando, ótimo. Eu não me importo. Posso passar por aí a buscar-te por volta das cinco e meia."
A mente de Francesca estudou o problema. Queria ir com ele. Mas e se alguém a visse? Que poderia dizer a Richard se ele soubesse?
Cedar Bridge ficava a uns cinqüenta metros rio acima, paralela à nova estrada e à sua ponte de cimento. Não daria muito nas vistas. Ou daria? Decidiu-se em menos de dois segundos:
"Sim, gostaria de ir. Mas vou na minha caminhonete e encontro-me lá com você. A que horas?"
"Por volta das seis. Até lá, está bem? Adeus."
Robert passou o resto do dia no escritório do jornal local, revendo velhas edições. Era uma bonita cidade, com uma bonita praça diante do tribunal, onde ele se sentou num banco à sombra almoçando fruta e pão, e uma coca-cola que tinha comprado no café em frente. Tinha entrado no café e pedido a bebida um pouco depois do meio-dia. Como habitualmente nos bares do Velho Oeste selvagem ao aparecer o pistoleiro, as conversas tinham parado por um momento e todos o haviam olhado. Detestara esse momento, sentira-se alvo das atenções, mas era o procedimento habitual nas pequenas vilas. Alguém novo! Alguém diferente! Quem é ele? O que faz aqui?
"Dizem que é um fotógrafo. Viram-no junto a Hogback Bridge esta manhã com uma série de máquinas fotográficas."
"Na caminhonete dele está escrito que é de Washington, do Oeste."
"Esteve toda a manhã nos escritórios do jornal. Jim diz que anda à procura de informações sobre pontes cobertas."
"Sim, o jovem Fischer da Texaco disse que ele esteve lá ontem perguntando o caminho para todas as pontes cobertas."
"Mas para que quer ele saber dessas pontes, afinal?"
"E porque raio havia alguém de querer tirar-lhes fotografias?
Estão a cair aos pedaços, em péssimo estado."
"Lá o cabelo comprido tem ele. Parece um dos Beatles, ou dos outros, não me lembro como lhes chamam? Hippies, não é?"
Isto provocou gargalhadas no compartimento do fundo e na mesa do lado.
Kincaid comprou a coca-cola e saiu, sentindo os olhos nas suas costas enquanto se dirigia para a porta. Talvez tivesse cometido um erro ao convidar Francesca, um erro por ela, não por ele. Se alguém a visse em Cedar Bridge, a notícia chegaria ao café na manhã seguinte à hora do café da manhã, transmitida pelo jovem Fischer da Texaco que, por sua vez, a teria recebido do primeiro que por lá passasse. Talvez mesmo antes disso.
Robert tinha aprendido a não subestimar a rápida transmissão das notícias triviais nas pequenas vilas. Dois milhões de crianças podiam estar morrendo de fome no Sudão e isso não perturbava uma única consciência. Mas a mulher de Richard Johnson ser vista com um desconhecido de cabelo comprido – que notícia! Uma notícia para ser transmitida, mastigada, uma notícia que despertava uma vaga sensação carnal nas mentes dos que a ouvissem, a única do gênero que tinham tido nesse ano.
Robert acabou o seu almoço e atravessou a rua até ao telefone público no estacionamento do tribunal. Marcou o número de Francesca. Ela respondeu, ligeiramente ofegante, ao terceiro toque.
"Olá, fala Robert Kincaid de novo."
Francesca sentiu de imediato um nó no estômago, ao pensar que ele não podia ir, que lhe estava a telefonar para lhe dizer isso.
"Vou ser direto. Se sair comigo esta noite pode ser para você um problema, considerando a curiosidade dos habitantes de uma pequena cidade, não se sinta obrigada a fazê-lo. Na verdade, não me importo nem um pouco o que pensem de mim, e de qualquer forma passarei por aí mais tarde. O que quero dizer-te é que talvez tenha cometido um erro ao te convidar, por isso não se sinta de forma alguma obrigada a vir. Embora adorasse ter a sua companhia."
Ela tinha estado a pensar mais ou menos o mesmo desde a conversa que tinham tido nesse dia. Mas já tinha tomado uma decisão.
"Não, gostaria de ver-te enquanto faz o teu trabalho. Não me preocupo com o que possam dizer." Estava preocupada, mas algo se agitava dentro dela, algo relacionado com o risco. Iria a Cedar Bridge a qualquer preço.
"Ótimo. Só quis ter a certeza. Até logo."
"Até logo."
Ele era sensível, o que ela já sabia.
Às quatro horas Robert passou pelo Motel, lavou alguma roupa no lavatório, vestiu uma camisa limpa e meteu outra na caminhonete, juntamente com umas calças cáqui e umas sandálias marrons que tinha comprado na índia em 1962, quando fizera uma reportagem sobre a nova linha férrea de Darjeeling. Comprou duas caixas de Budweiser numa taberna. Pôs oito garrafas, as únicas que cabiam, em volta do filme, na geleira.
Estava de novo muito calor. Os últimos raios de sol incidiam, uma vez mais, onde antes já tinham sido absorvidos pelo cimento, os tijolos e a terra. Estava um calor de torrar nas zonas voltadas a oeste. A taberna estava escura e razoavelmente fresca. A porta de entrada estava aberta, havia grandes ventiladores no teto, e um junto à porta que girava com um barulho ensurdecedor. Mas de alguma maneira, o ruído dos ventiladores, o cheiro a cerveja e fumo entranhado, a berraria do toca discos e as caras semi-hostis que o contemplavam ao longo do balcão, faziam-na parecer mais quente do que realmente era.
Fora, na estrada, o sol quase magoava, e Robert pensou nas Cascatas, nos abetos e nas brisas do estreito de San Juan de Fuca, perto de Kydaka Point.
Mas Francesca Johnson não parecia ter calor. Estava encostada ao pára-choques da sua caminhonete Ford, que tinha estacionado atrás de umas árvores próximo da ponte. Tinha os mesmos jeans que lhe ficavam tão bem, sandálias e uma T-shirt branca de algodão que lhe realçava a beleza do corpo. Robert acenou quando encostou junto à sua caminhonete.
"Olá. Ainda bem que veio. Está um calor insuportável," disse ele.
Conversa inócua, conversa de rodeios. Outra vez aquela quietação, apenas por se encontrar na presença de uma mulher por quem sentia alguma coisa. Nunca sabia bem o que dizer, a menos que a conversa fosse séria. Embora tivesse um senso de humor bastante apurado, apesar de um pouco bizarro, tinha uma maneira de pensar essencialmente séria e levava as coisas a sério. A sua mãe sempre dissera que aos quatro anos Robert já era um adulto. O que o tinha ajudado na sua profissão. Mas a sua maneira de pensar não o ajudava grande coisa quando se encontrava na presença de mulheres como Francesca Johnson.
"Queria te ver tirar fotografias. "Disparar," como você lhe chama."
"Bem, já vai ver, e vai achar bastante chato. Pelo menos é o que a maior parte das pessoas acha. Não é como ouvir alguém a ensaiar piano, onde pode participar do que está ouvindo. Em fotografia, a produção e a realização estão separadas por um longo período de tempo. Hoje estou fazendo a produção. A realização só chega quando as fotografias aparecem publicadas em algum lugar, o que vai ver é uma série de movimentos. Mas é bem vinda. Na verdade, ainda bem que veio."
Ela agarrou-se a estas últimas quatro palavras. Não era preciso dizê-las. Ele podia ter ficado pelo "bem-vinda," mas não o fizera. Estava verdadeiramente contente por vê-la, isso era claro.
Francesca esperava que o fato de estar ali implicasse algo parecido para ele.
"Posso te ajudar em algo?" perguntou, enquanto Robert calçava as botas de borracha.
"Pode levar essa mochila azul. Eu levo a marrom e o tripé."
E foi assim que Francesca se transformou numa ajudante de fotógrafo. Robert tinha-se enganado: havia muito que ver. Ele ia de fato fazer uma demonstração das suas capacidades, embora não tivesse consciência disso. Era o que ela tinha notado no dia anterior, e parte do que a atraía nele. A sua graça, os seus olhos rápidos, o movimento dos músculos dos seus braços, e sobretudo a forma como movimentava o corpo. Os homens que conhecia pareciam desajeitados em comparação com ele. Não era que se apressasse. Na verdade, não se apressava mesmo nada. Tinha a agilidade de uma gazela, embora Francesca soubesse que a sua solidez era delicada. Talvez fosse mais parecido com um leopardo do que com uma gazela. Sim. Um leopardo, era isso que ele era. Não era uma presa. Bem pelo contrário, sentia Francesca.
"Francesca, dá-me a máquina com a correia azul, por favor."
Ela abriu a mochila, sentindo-se excessivamente cuidadosa com o dispendioso equipamento que ele manejava distraidamente, e tirou a máquina. Dizia "Nikon" na chapa cromada do visor, e tinha um "F" à esquerda e por cima do nome. Robert estava ajoelhado na parte nordeste da ponte, com o tripé,baixo. Estendeu a mão esquerda sem tirar o olho do visor, e ela deu-lhe a máquina, reparando como a sua mão se fechava em volta da lente quando sentiu o seu contato. Estava focando a objetiva na ponta do fio que ela vira entre o seu equipamento, no dia anterior. Depois carregou no disparador duas vezes seguidas. Desenroscou a máquina do tripé e substituiu-a pela que Francesca lhe tinha dado. Enquanto apertava a nova, voltou a cabeça para ela e sorriu.
"Obrigado, és uma ajudante de primeira."
Ela corou ligeiramente. Afinal, o que havia com aquele homem? Era como um ser do outro mundo que tivesse chegado na cauda de um cometa e aterrado à porta de sua casa. Porque não posso simplesmente dizer-lhe: "Bem-vindo?" pensou Francesca. Sinto-me um pouco lenta quando estou com ele, embora não seja por nada que ele faça. É de mim, não é dele. Simplesmente não estou habituada a estar com pessoas cuja mente trabalha tão rápido.
Robert atravessou o riacho e subiu pela outra margem. Ela atravessou a ponte com a mochila azul e ficou atrás dele, feliz, estranhamente feliz. Havia energia, força, na forma como ele trabalhava. Ele não se limitava a esperar pela natureza; intervinha nela com delicadeza, moldando-a à sua visão, adaptando-a ao que via na sua mente, impunha a sua vontade ao cenário, enfrentando as mudanças de luz com diferentes lentes, diferentes filmes, um filtro de vez em quando. Não se limitava a lutar com as coisas, dominava-as fazendo uso do seu talento e da sua inteligência. Os fazendeiros também dominavam a terra com produtos químicos e máquinas... Mas a forma de mudar a natureza de Robert Kincaid era elástica e quando terminava, deixava sempre as coisas no seu estado original.
Francesca reparou em como os jeans se apertavam em volta dos músculos de Robert quando ele se ajoelhava. Na camisa desbotada colada às costas, com o cabelo grisalho a cobrir lhe o pescoço. Na maneira como ele se sentava no chão para ajustar uma peça do equipamento, e pela primeira vez em tanto tempo, sentiu-se excitada só de olhar para alguém. Nessa altura, olhou para o céu do entardecer e respirou fundo, ouvindo-o maldizer em voz baixa um filtro estragado que não conseguia desenroscar da lente.
Robert voltou a atravessar o riacho até às caminhonetes, chapinhando com as botas de borracha. Francesca entrou na ponte coberta e quando saiu do outro lado, ele estava agachado, com a máquina apontada na sua direção. Disparou o obturador, e depois mais uma e outra vez, enquanto ela avançava para ele. Ela sentiu-se sorrir apenas, um pouco envergonhada.
"Não te preocupe," disse com um sorriso. "Não as usarei em parte alguma sem a sua autorização. Aqui já terminei. Acho que vou passar pelo Motel para tomar um banho rápido antes de sair."
"Bem, faz como quiser. Mas eu posso te emprestar uma toalha e pode tomar um banho ou usar a bomba ou fazer como quiser," disse Francesca em voz baixa, ligeiramente ansiosa.
"Está bem. Vai andando. Eu vou pôr o equipamento na Harry - é como se chama a minha caminhonete - e já lá vou.”
Francesca recuou com a nova Ford de Richard por entre as árvores, virou na estrada principal à direita na direção oposta da ponte e dirigiu-se a Winterset, onde virou para sudoeste na direção de sua casa. A nuvem de pó que levantou era muito espessa para ver se ele a seguia, embora por uma vez, depois de uma curva, lhe parecesse ver as luzes de Robert a cerca de um quilômetro atrás, aos saltos na caminhonete a que ele chamava Harry.
Devia ser mesmo ele, pois ouviu o motor da sua caminhonete subindo o caminho assim que chegou. A princípio Jack ladrou, mas acalmou-se imediatamente, murmurando para si próprio: "É o mesmo tipo de ontem à noite, acho que não há problema."
Kincaid deteve-se por um momento para falar com ele. Francesca saiu pela porta dos fundos.
"Quer tomar uma ducha?"
“Adoraria. Mostre-me onde é."
Levou-o banheiro do andar de cima. Tinha insistido com Richard para que a construíssem quando os filhos tinham começado a crescer. Fora uma das poucas exigências em que se mantivera firme. Gostava de longos banhos quentes ao fim do dia, e não lhe agradava a perspectiva de adolescentes a irromperem pelos seus domínios privados. Richard usava o outro banheiro, dizia que se sentia incomodado com todas as coisas femininas que Francesca pusera na dela. "Excessivo", tinha sido o seu comentário.
Só se podia chegar a esse banheiro atravessando o quarto deles. Francesca abriu a porta e tirou um jogo de toalhas e uma esponja do armário por debaixo do lavatório.
"Use o que quiser," disse, mordendo ligeiramente o lábio inferior.
"Se não se importar, empresta-me um pouco de shampoo. Deixei o meu no motel."
"Claro. Escolhe o que quiser." Pôs três frascos já usados na prateleira.
"Obrigado."
Robert colocou a sua roupa lavada sobre a cama, e Francesca reparou nas calças cáqui, na camisa branca e nas sandálias. Nenhum dos homens da região usava sandálias. Alguns da cidade começavam a usar calções no campo de golfe, mas os fazendeiros não. E sandálias...nunca.
Francesca desceu as escadas e ouviu o barulho da ducha. Agora está nu, pensou, e sentiu uma sensação no estômago.
Nesse dia, depois de ele ter telefonado, tinha percorrido os sessenta quilômetros até Des Moines para ir à loja de bebidas alcoólicas. Não tinha experiência neste domínio, por isso pediu ao empregado que lhe recomendasse um bom vinho. Ele não sabia mais do que ela, que não sabia nada. Por isso Francesca percorreu as filas das garrafas até encontrar um rótulo que dizia "Valpolicella". Lembrava-se daquela marca de há muito tempo atrás. Um vinho tinto italiano, seco. Comprou duas garrafas desse vinho e uma de conhaque, sentindo-se sensual e mundana. Depois procurou um novo vestido de Verão numa loja da baixa da cidade. Encontrou um cor-de-rosa pálido com alças estreitas. Tinha um grande decote nas costas, e também na parte da frente, que deixava ver a ponta dos seios, e apertava na cintura com um laço estreito. Comprou também sandálias brancas, caras, de salto raso com delicados motivos nas correias. À tarde, preparou pimentões recheados com uma mistura de molho de tomate, arroz integral, queijo e salsa picada. Depois, uma simples salada de espinafres, broa de milho e um soufflé de maçã para a sobremesa. Tudo, à exceção do soufflé, foi para a geladeira.
Apressou-se, para ter tempo de subir a bainha do vestido até ao joelho. O DesMoines Register publicara um artigo nesse Verão dizendo que era aquele o comprimento da moda desse ano. Francesca sempre achara que a moda, e tudo o que ela implicava, era algo bastante estranho, as pessoas comportarem-se como carneiros ao serviço dos costureiros europeus. Mas aquele comprimento ficava-lhe bem, por isso foi essa a altura que deu à bainha.
O vinho era um problema. As pessoas da região guardavam-no na geladeira, embora em Itália ninguém o fizesse. Mas estava muito calor para o deixar no balcão da cozinha. Nessa altura lembrou-se da despensa. No Verão conservava uma temperatura de cerca de quinze graus, por isso pôs a garrafa junto à parede.
A ducha fechou-se no andar de cima no mesmo momento em que tocou o telefone. Era Richard, que estava telefonando de Illinois.
"Está tudo bem?"
"Está."
O novilho de Carolyn vai ser avaliado na quarta-feira. Depois ainda queremos ver algumas coisas no dia a seguir. Estaremos em casa na sexta-feira, tarde."
"Está bem, divirtam-se e tem cuidado ao guiar”.
"Frannie, tem a certeza de que está bem? Parece um pouco estranha."
"Não, estou ótima. Estou apenas com calor. Depois do banho ficarei boa."
"Está bem. Dá lembranças minhas ao Jack."
"Sim, não me esquecerei”..., Francesca olhou para Jack, estendido no cimento do alpendre da porta dos fundos.
Robert Kincaid desceu as escadas e entrou na cozinha. Camisa branca de colarinho aberto, mangas arregaçadas acima do cotovelo, calças leves cor cáqui, sandálias marrons, pulseira de prata. Ainda tinha o cabelo úmido e cuidadosamente penteado com risca ao meio. Francesca ficou encantada com as sandálias.
"Vou levar os meus trastes para a caminhonete e trazer o equipamento para lhe dar uma pequena limpeza."
"Faça isso, eu vou tomar um banho."
"Quer uma cerveja para beber no banho?"
"Se tiver uma a mais."
Robert trouxe a geleira em primeiro lugar, tirou uma cerveja para Francesca e abriu-a, enquanto ela procurava dois copos altos para servirem de canecas. Quando ele voltou à caminhonete para ir buscar as máquinas fotográficas, ela subiu com a cerveja, reparou como ele tinha deixado a banheira limpa e depois tomou um grande banho quente. Colocou o copo no chão enquanto se ensaboava e depilava. Robert tinha estado ali apenas uns minutos antes; ela estava deitada onde a água correra sobre o corpo dele, achava isso intensamente erótico. Quase tudo o que dizia respeito a Robert Kincaid lhe parecia extremamente erótico. Uma coisa tão simples como um copo de cerveja gelada no banho parecia tão requintada. Porque não viviam ela e Richard assim? Parte do problema, pensou, devia-se à inércia de uma convivência prolongada. Todos os casamentos, todas as relações, estavam sujeitos a esse risco. O hábito gerava a previsibilidade e a previsibilidade tinha as suas vantagens; isso também ela sabia. E depois tinha a fazenda. Como uma inválida exigente, a precisar de cuidados constantes, embora a substituição da mão-de-obra humana pelas máquinas tivesse tornado o trabalho menos fatigante do que no passado. Mas ainda havia mais uma coisa. A previsibilidade era uma coisa, o medo da mudança era outra. E Richard tinha medo da mudança, de qualquer tipo de mudança, no seu casamento. No geral, não queria falar disso, e em particular não queria falar de sexo. De certa forma, o erotismo era um assunto perigoso, que não se coadunava com a sua forma de pensar. Mas ele não era o único e na verdade não tinha culpa. Qual era a barreira contra a liberdade que tinha sido erigida ali? Não apenas na fazenda, mas também na cultura rural. E talvez também na cultura urbana. Porquê as paredes e as cercas a impedirem as relações naturais e abertas entre os homens e as mulheres? Porquê a falta de intimidade, a ausência de erotismo?
As revistas femininas falavam naqueles assuntos. E as mulheres começavam a alimentar esperanças relativamente ao papel que lhes cabia na organização da vida social, bem como ao que se passava nos quartos das suas vidas. Os homens como Richard - a maioria dos homens, supunha Francesca – eram ameaçados por essas esperanças. De certa forma, as mulheres pediam aos homens que fossem poetas e, ao mesmo tempo, amantes arrebatadores e apaixonados. As mulheres não viam nenhuma contradição nisso. Os homens sim. Os vestuários, as reuniões só para homens, as salas de bilhar e todas as reuniões que excluíam as mulheres, definiam uma série de características masculinas, das quais a poesia, ou qualquer outro tipo de subtileza, eram excluídas. Portanto, se o erotismo era uma questão de subtileza, uma forma de arte por si mesma, como Francesca sabia que era, também não tinha nenhum lugar na fábrica das suas vidas. Por isso continuavam com aquela dança conveniente que os distraía e mantinha afastados, enquanto as mulheres suspiravam e se voltavam de cara para a parede nas noites de Madison County.
Havia algo na mente de Robert Kincaid, que compreendia tudo isto, implicitamente. Francesca tinha a certeza disso. Enquanto ia para o quarto, secando-se com a toalha, notou que já passava um pouco das dez. Ainda estava com calor, mas o banho refrescara-a. Tirou o vestido novo do armário. Penteou os longos cabelos pretos para trás e segurou-os com um prendedor de prata. Grandes argolas de prata, e uma pulseira de prata larga que também comprara em Des Moines nessa manhã. Outra vez o perfume Wind Song. Um pouco de baton na cara latina, de faces salientes, de um tom cor-de-rosa ainda mais pálido do que o do vestido. Estava bronzeada do trabalho ao ar livre, de calções e top, e o bronzeado realçava todo o conjunto. As suas pernas bonitas e elegantes apareciam debaixo do vestido. Voltou-se primeiro para um lado, depois para o outro, vendo-se ao espelho da cômoda. Estou o melhor que posso, pensou. E depois, satisfeita, disse quase em voz alta: ”O que não é nada mau."
Robert Kincaid ia na sua segunda cerveja e estava guardando as máquinas quando Francesca entrou na cozinha. Levantou os olhos para ela.
"Meu Deus", disse suavemente. Todos os sentimentos, todas as busca e reflexões, toda uma vida de sentir, buscar e refletir se juntaram naquele momento. E apaixonou-se por Francesca Johnson, a mulher de um fazendeiro, de Madison County, Iowa, que muito tempo antes fora de Nápoles.
"Bem" a voz tremia-lhe um pouco, estava ligeiramente rouco - "desculpa a ousadia, mas está linda. Linda de fazer perder a cabeça a qualquer homem. Estou falando a sério. Está de uma elegância suprema, Francesca, no mais puro sentido da palavra”.
Ela sentiu que a sua admiração era genuína, Desfrutou dela, deixou-se invadir e rodear por ela, entrar-lhe por todos os poros como um óleo suave das mãos de alguma divindade que a tinha abandonado anos atrás e agora regressara. E nesse mesmo momento, apaixonou-se por Robert Kincaid, fotógrafo-escritor de Bellingham, Washington, que conduzia uma velha caminhonete chamada Harry.
UM LUGAR PARA VOLTAR A DANÇAR
Nessa terça-feira de Agosto de 1965, ao cair da noite, Robert Kincaid olhou fixamente para Francesca Johnson. Ela olhou-o da mesma maneira. Com uma distância de três metros entre os dois, ficaram unidos de uma forma sólida, íntima e inseparável.
Tocou o telefone. Continuando a olhar para ele, Francesca não se moveu ao primeiro toque, nem ao segundo. No longo silêncio que se seguiu ao segundo toque, e antes do terceiro, Robert respirou fundo e olhou para os estojos das máquinas. Isto permitiu a Francesca atravessar a cozinha para se aproximar do telefone pendurado na parede mesmo por detrás da cadeira de Robert.
"Residência dos Johnson... olá, Marge. Sim, estou ótima. Quinta-feira à noite?" Francesca calculou: Robert disse que ficaria uma semana, chegou ontem, hoje ainda é terça-feira.
Não lhe foi difícil tomar a decisão de mentir. Francesca estava junto à porta do alpendre com o telefone na mão esquerda. Ele estava muito perto, de costas para ela. Francesca estendeu a mão direita e apoiou-a no seu ombro, no gesto casual que algumas mulheres têm para com os homens de quem gostam. Em apenas vinte e quatro horas, tinha começado a gostar de Robert Kincaid.
"Oh, Marge, nesse dia não posso. Vou às compras a Des Moines. Quero aproveitar para fazer uma série de coisas que tenho adiado, agora que Richard e as crianças não estão aqui." A sua mão descansava tranqüilamente no ombro de Robert. Sentia o músculo que ia do pescoço dele até ao ombro por detrás da clavícula. Estava olhando para o seu cabelo espesso e grisalho, com risco ao meio. Reparou como o cabelo lhe caía sobre o colarinho da camisa. Marge continuava a tagarelar.
"Sim, Richard telefonou há pouco.... Não, só é exibido na quarta-feira, amanhã. Richard disse que voltava sexta-feira tarde. Querem assistir a uma coisa qualquer na quinta-feira. É uma viagem grande, especialmente com a camionete do gado... não, o treino de futebol só começa na próxima semana. Hum -hum., uma semana. Pelo menos foi o que Michael disse."
Francesca adivinhava o calor do corpo de Robert por debaixo da camisa. O calor transmitia-se à sua mão, subia-lhe pelo braço, e daí irradiava por todo o seu corpo, sem esforço – na verdade sem controle - dela. Robert estava imóvel; não queria fazer qualquer ruído que pudesse despertar a curiosidade de Marge. Francesca compreendia-o.
“Ah, sim, foi um homem pedindo informações." Como imaginava, Floyd Clark tinha ido direto a casa contar à mulher sobre a caminhonete verde que vira no jardim dos Johnson quando por lá passara no dia anterior.
"Um fotógrafo? Bom, não sei. Não prestei muita atenção. E possível”... As mentiras saíam-lhe com uma facilidade crescente.
"Estava à procura de Roseman Bridge... Sério? Estava tirando fotografias das pontes velhas? Bem, parece inofensivo." "Híppie?" Francesca riu e viu que Kincaid sacudia a cabeça.
"Bem, não sei muito bem qual é o aspecto de um hippie. Este tipo era bem educado. Só ficou um ou dois minutos e depois foi-se... Não sei se há hippies na Itália, Marge. Há oito anos que não vou lá. Além disso, como te disse, não sei se reconheceria um hippie se encontrasse algum."
Marge falou do amor livre, das comunas e das drogas; tinha acabado de ler algo sobre isso.
"Marge, eu estava mesmo entrando na banheira quando você telefonou, por isso tenho de me apressar antes que a água fique fria... Está bem, eu depois telefono. Adeus."
Não lhe agradava tirar a mão do ombro de Robert, mas não tinha nenhuma boa desculpa para não o fazer. Por isso dirigiu-se ao lava-louças e ligou o rádio. Mais música country. Moveu o sintonizador até que se ouviu uma orquestra e deixou-o nesse lugar.
"Tangerina", disse ele.
“O quê?"
"A canção. Chama-se "Tangerina." É sobre uma mulher argentina."
Outra vez a conversa dos rodeios. Dizer qualquer coisa, fosse o que fosse. Lutar para ganhar tempo e um sentido para tudo aquilo, ouvindo nas profundidades da sua mente o vago estalido de uma porta que se fecha atrás de duas pessoas numa cozinha do Iowa.
Francesca sorriu suavemente para ele.
"Está com fome? O jantar está pronto quando quiser."
"Foi um dia comprido, e bom. Preferia beber outra cerveja antes de comer. Faz-me companhia?" Ir andando às voltas, procurando o centro, perdendo-o minuto a minuto. Ela respondeu que sim. Robert abriu duas cervejas e ofereceu-lhe uma.
Francesca estava satisfeita com o seu aspecto, e com a forma como se sentia. Feminina. Era assim que se sentia. Leve, quente., e feminina. Sentou-se na cadeira da cozinha, cruzou as pernas e a bainha da saia ficou bastante acima do joelho direito. Kincaid estava encostado a geladeira, com os braços cruzados sobre o peito e a garrafa de Budweiser na mão direita. Ela gostava que ele reparasse nas suas pernas, e ele fê-lo. Reparou nela em cada pormenor. Podia ter-se ido embora mais cedo, ainda podia ir-se embora. A racionalidade gritava-lhe:
"Vai-te embora, Kincaid, volta para a estrada. Fotografa as pontes e vai para a índia. Dá um salto até Banguecoque pelo caminho e procura a filha do comerciante que conhece todos os segredos do êxtase da velha tradição. Nada nu com ela ao amanhecer nas lagoas da selva e ouve-a gritar enquanto a possui ao crepúsculo. Vai embora” - a voz era agora um sussurro "esta situação está ultrapassando."
Mas o lento tango da rua tinha começado. Ouvia-se em algum lugar Robert ouvia-o, um velho acordeão. Vinha de bem longe, atrás de si ou à sua frente, não tínha a certeza. Mas aproximava-se firmemente dele. E o seu som obscurecia-lhe o raciocínio e limitava-lhe as alternativas para a unidade. Fazia-o inexoravelmente, até que não havia mais nenhum lugar para onde ir, exceto na direção de Francesca Johnson.
"Se quiser, podemos dançar. A música está bastante boa para isso," disse Robert no seu tom tímido e grave. E depois acrescentou: "Não sou grande bailarino mas, se quiser, acho que numa cozinha me sairei menos mal."
Jack arranhou a porta do alpendre; queria entrar. Que fica lá fora, ficas - Francesca corou um pouco.
"Está bem. Mas eu também não danço muito... agora. Dançava quando era nova em Itália, mas agora quase só na véspera do Ano Novo, e apenas um pouco."
Ele sorriu e pousou a cerveja no balcão. Ela levantou se, e aproximaram-se um do outro.
"É o seu baile das terças-feiras à noite, da WGN, de Chicago," disse uma voz suave de barítono. "Voltamos depois da publicidade...”
Riram-se ambos. Chamadas telefônicas e anúncios. Havia algo que continuava a impor a realidade entre eles. Sabiam-no sem necessidade de o dizerem. Mas, fosse como fosse, ele tinha estendido o braço esquerdo para lhe pegar na mão direita. Depois, encostou-se descontraidamente ao balcão, com as pernas cruzadas à altura dos tornozelos, ‘perna direita sobre a outra. Francesca estava a seu lado, contra ´ lava-louças, e olhava pela janela junto à mesa, sentindo os dedos finos de Robert em volta da sua mão. Não havia brisa, e o milho crescia.
"Oh, espera um minuto."
Tirou com relutância a sua mão da dele e abriu a porta de cima, do lado direito do armário. Tirou duas velas brancas que comprara em Des Moines nessa manhã, juntamente com um pequeno castiçal de bronze para cada uma, e pô-las em cima da mesa. Robert aproximou-se, tocou em cada uma das velas e acendeu-as enquanto ela apagava a luz do teto. Agora estava quase escuro, à exceção das pequenas chamas apontadas para cima, quase imóveis na noite sem vento. Nunca a sóbria cozinha
Tinha estado tão bonita. Recomeçou a música. Felizmente para os dois, era uma versão slow de "Autumn Leaves". Ela sentia-se desajeitada ele também. Mas segurou-lhe na mão, pôs-lhe um braço em volta da cintura, ela aproximou-se dele, e a sensação de falta de jeito desapareceu. De alguma maneira, deu lugar a uma certa descontração. Ele moveu o braço na cintura de Francesca e puxou-a mais para junto de si.
Ela sentia o cheiro dele, a limpo e perfumado; um cheiro quente. O bom cheiro fundamental de um homem civilizado, que nele parecia natural.
"Que bom perfume," disse ele, apoiando a sua própria mão e a dela no seu peito, perto do ombro.
"Obrigado.”
Dançaram, lentamente. Sem se deslocarem muito em nenhuma direção. Ela sentia as pernas dele contra as suas, e por vezes a barriga dele contra a sua.
A música terminou, mas ele continuou abraçado a ela, sussurrando a música que acabara de tocar, e assim ficaram até começar a música seguinte. Ele começou a dançar automaticamente e a dança continuou, enquanto as alfarrobeiras se queixavam da chegada de Setembro.
Francesca sentia os músculos do ombro de Robert através da fina camisa de algodão. Era real, mais real do que qualquer coisa que alguma vez tinha conhecido. Ele inclinou-se ligeiramente para encostar a cara à dela. Durante o tempo que passaram juntos, uma vez ele referiu-se a si próprio como o último dos cowboys. Estavam sentados na relva, junto à bomba, nos fundos da casa. Ela não percebeu e pediu-lhe que lhe explicasse: "há uma certa raça de homens que está ultrapassada," disse ele. "Ou quase. O mundo está ficando organizado, muito organizado para mim e para outras pessoas. Um lugar para cada coisa, e cada coisa no seu lugar. Bem, o meu equipamento fotográfico está bastante bem organizado, é verdade, mas estou falando de algo mais do que isso. Estou falando das regras, dos regulamentos, das leis e das convenções sociais. Das hierarquias do poder, das zonas de controlo, dos planos a longo prazo e dos orçamentos. Do poder corporativo. Um mundo de ternos amassados e identificações na lapela.
"Nem todos os homens são iguais. Alguns dar-se-ão muito bem no mundo que se aproxima. Outros, talvez apenas alguns, não. Isso vê-se nos computadores e nos robots e no que eles representam. No mundo de antes, havia coisas que 'podíamos fazer, que estávamos destinados a fazer, que ninguém nem nenhuma máquina podia fazer. Cozinhávamos velozmente, éramos fortes e rápidos, agressivos e duros. Davam-nos coragem. Arremessávamos lanças a grandes distâncias e combatíamos corpo a corpo.
"Um dia, os computadores e os robôs dirigirão o mundo. Os seres humanos farão funcionar as máquinas, mas para isso não e preciso coragem nem força, nem outras características assim. Na verdade, os homens estão a deixar de ser úteis. Só são precisos bancos de esperma para que a espécie se perpetue e já os há. A maioria dos homens são maus amantes, segundo dizem as mulheres, por isso não se perde muito em substituir o sexo pela ciência.”
"Estamos desistindo da liberdade, a organizarmo-nos, censurando as nossas emoções. Eficiência e eficácia e todos esses outros elementos do artifício intelectual. E com a perda da liberdade, o cowboy desaparece, juntamente com o leão da montanha e o lobo cinzento, já não resta muito lugar para os viajantes. Eu sou um dos últimos cowboys. O meu trabalho dá-me algo dessa liberdade. Tanta quanto se pode ter hoje em dia. Não estou triste por causa disso. Talvez um pouco apreensivo. Mas tem de acontecer; é a única forma de evitar a nossa própria destruição. O que me parece é que as hormônios masculinas são a derradeira causa dos problemas deste planeta. Uma coisa era dominar outra tribo ou outro guerreiro. Mas ter mísseis é completamente diferente. Também é muito diferente ter o poder de destruir a natureza como o estamos fazendo. Rachel Carson tem razão. E John Muir e Aldo Leopold também.
"A maldição dos tempos modernos é a preponderância das hormônios masculinos em lugares onde podem causar estragos a longo prazo. Mesmo que não falemos de guerras entre nações ou agressões à natureza, continua existindo essa agressividade que nos mantém afastados uns dos outros e dos problemas que precisamos de resolver. De alguma maneira, temos de sublimar essas hormônios masculinos ou, pelo menos, de controlá-los.
"Provavelmente está na hora de deixarmos de lado as coisas da infância e crescermos. Que diabo, reconheço-o. Admito-o. Limito-me a tentar tirar algumas boas fotografias e abandonar a vida antes de estar totalmente ultrapassado ou de fazer algum estrago grave."
Com o correr dos anos, Francesca pensara nas palavras de Robert. De certa forma pareciam-lhe bem, mas só aparentemente.
As atitudes dele contradiziam as suas palavras. Tinha uma certa agressividade impulsiva, mas parecia poder controlá-la, ligá-la e desligá-la quando queria. E era isso que simultaneamente a atraíra e confundira - aquela incrível intensidade, controlada, medida, aquela intensidade tensa como um arco, misturada com ternura e sem rasto de maldade.
Nessa terça-feira à noite, gradualmente e sem prévias intenções, tinham-se aproximado cada vez mais, dançando na cozinha, ele apertava-a contra o peito, e ela perguntava-se se ele sentiria os seus seios através do vestido e da camisa, estava certa que sim.
Era tão bom senti-lo. Queria que aquilo durasse para sempre.
Mais músicas antigas, mais dança, e mais vezes o seu corpo contra o dele. Voltava a ser mulher. Havia outra vez espaço para dançar. Lentamente mas sem hesitações, Francesca dirigia-se para casa, para um lugar onde nunca tinha estado.
Estava calor. A umidade ia alta e a tempestade ressoava ao longe. As mariposas colavam-se às telas, atraídas pela chama das velas.
Agora ele embrenhava-se nela. E ela nele. Ela afastou a cara, olhou-o com os seus olhos escuros e ele beijou-a. Ela retribuiu-lhe o beijo, um beijo demorado e macio, uma quantidade de beijos.
Deixaram de fingir que dançavam, e ela pôs-lhe os braços em volta do pescoço. A mão esquerda de Robert estava apoiada na cintura dela atrás das costas, e a outra acariciava-lhe o pescoço, a cara e os cabelos. Thomas Wolf falava do "fantasma do antigo desejo". O fantasma tinha despertado em Francesca Johnson. Em ambos.
Sentada junto à janela no dia em que fazia sessenta e sete anos, Francesca olhava para a chuva e recordava. Levou o conhaque para a cozinha e deteve-se por um momento, a olhar para o lugar exato onde tinham estado os dois. Os sentimentos dentro dela eram avassaladores, como sempre haviam sido. Tão fortes que, com o passar dos anos, só se tinha atrevido a recordá-los detalhadamente uma vez por ano ou a sua mente ter-se-ia desintegrado com a enorme força emocional.
Para sobreviver tinha tido que abster-se de recordar. Apesar de, nos últimos anos, os detalhes a assaltarem cada vez com maior freqüência. Já não tentava impedir que Robert voltasse a ela. As imagens eram claras e reais e estavam ali. Depois de tanto tempo. Há vinte e dois anos atrás. Mas, lentamente, voltavam a ser a sua realidade, a única em que lhe interessava viver.
Sabia que fazia sessenta e sete anos e aceitava-o, mas não podia imaginar que Robert Kincaid tivesse quase setenta e cinco. Não podia pensar nisso, não podia concebê-lo, nem sequer conceber que pudesse concebê-lo. Ele estava com ela ali, na cozinha, com a camisa branca, os longos cabelos cinzentos, as calças cáqui, as sandálias marrons, a pulseira e a corrente de prata em volta do pescoço. Estava ali abraçado a ela.
Finalmente, ela afastou-se e pegou-lhe na mão, levou-o para cima, passaram pelo quarto de Carolyn, pelo de Michael, e entraram no de Francesca. Só acendeu uma pequena luz junto à cama.
Agora, tantos anos depois, Francesca subiu lentamente as escadas levando a garrafa de conhaque e estendendo o braço direito para trás, como que para relembrar o dia em que ele a seguira pelas escadas acima e juntos tinham atravessado o corredor até ao quarto.
As imagens físicas gravadas na mente de Francesca eram tão claras que podiam ser uma das nítidas fotografias de Robert.
Lembrava-se vagamente de roupas despidas em seqüência e dos dois nus na cama. Lembrava-se de Robert apoiado por cima dela, movimentando lentamente o peito contra a sua barriga e sobre os seus seios. Tinha-o feito uma e outra vez, como cumprindo um ritual de cortejo animal descrito num velho livro de zoologia. Movimentava-se sobre o seu corpo, beijando-a alternadamente na boca, nas orelhas, passando-lhe a língua pelo pescoço, lambendo-a como um poderoso leopardo na erva alta de uma pradaria. Era um animal. Um animal soberbo, duro, macho, que não fazia nada declarado para a dominar, mas que a dominava totalmente da maneira exata como ela desejava que acontecesse naquele momento. Mas, havia algo que ia mais além do físico, embora o fato de ele poder fazer amor durante tanto tempo sem se cansar fizesse parte disso. Amá-lo era - agora, depois de pensar nos últimos vinte anos tanto nisso, quase lhe parecia uma coisa normal -espiritual. Espiritual, mas não banal. Enquanto faziam amor, ela tinha-lhe sussurrado, resumindo tudo numa única frase:
"Robert, é tão forte que eu tenho medo."
Ele era fisicamente poderoso, mas usava a sua força com cuidado. No entanto, era algo mais do que isso. O sexo era uma coisa. Desde que se tinham conhecido, ela tinha previsto - pelo menos a possibilidade - de algo prazenteiro, uma quebra da monotonia da rotina. Mas não contara com o seu estranho poder. Era quase como se tivesse tomado posse dela, em todas as suas dimensões. Era isso que a assustava. A princípio, não duvidara de que uma parte dela poderia manter-se alheada de qualquer coisa que fizesse com Robert Kincaid, a parte que pertencia à sua família e à sua vida em Madison County. Mas ele simplesmente apropriara-se de tudo. Ela devia ter percebido no momento em que o vira descer da caminhonete para lhe perguntar as direções. Nessa altura já lhe tinha parecido um xamã, e essa sua primeira impressão estava certa...
Faziam amor durante uma hora, por vezes mais, depois ele afastava-se lentamente e olhava-a, e acendia um cigarro para ele e outro para ela. Ou então simplesmente ficava deitado a seu lado, sempre com uma mão movendo-se sobre o seu corpo. Depois voltava a possuí-la, sussurrando-lhe suavemente ao ouvido enquanto a amava, beijando-a entre uma e outra frase, entre uma e outra palavra, rodeando-lhe a cintura com o braço, puxando-a para si e avançando para ela. E ela começava a perder a consciência, a respirar com mais força, a deixá-lo levá-la onde ele vivia e vivia em lugares estranhos, enfeitiçados, muito anteriores à lógica de Darwin.
Com a cara enterrada no pescoço de Robert e a pele tocando a dele, Francesca cheirava os rios e o fumo de lenha, ouvia fumegar os comboios a vapor de antigamente, saindo das estações nas noites frias, via negras silhuetas de viajantes avançando firmemente por rios gelados e pradarias estivais, fazendo o seu caminho até ao fim das coisas. O leopardo deslizava sobre ela, uma e outra vez e ainda outra, como um longo vento na pradaria, e rolando por baixo dele, Francesca deixava-se levar por esse vento como uma virgem de um templo se abandona ao fogo suave e complacente que marca a branda curva do esquecimento. E ela murmurava suavemente, sem fôlego:
"Oh, Robert... Robert... estou me perdendo."
Ela, que há anos deixara de ter orgasmos, tinha-os agora em grandes seqüências com aquele ser que era metade homem e metade outra criatura. Francesca admirava-se com ele e a sua resistência, e Robert dizia-lhe que podia atingir aquelas sensações na mente tão bem como fisicamente, e que os orgasmos
da mente tinham um caráter especial. Ela não fazia idéia do que ele queria dizer. Sabia apenas que, de certo modo, ele os tinha atado aos dois e tinha apertado tanto a corda em volta de ambos que ela teria sufocado se não tivesse sido a libertação de si mesma que sentia.
A noite avançava, e a grande dança em espiral continuava. Robert Kincaid recusava qualquer sentido do linear e refugiava-se numa parte de si mesmo que só tinha que ver com forma, som e sombra. Percorria as velhas sensações, encontrando o seu caminho à luz dos reflexos gélidos do sol, que se derretiam na erva do Verão e nas folhas encarnadas do Outono. E Robert ouvia as palavras que lhe murmurava, como se outra voz que não a sua as estivesse dizendo. Fragmentos de um Poema de Rilke: “Em volta da antiga torre... andei às voltas durante mil anos." A letra de um cântico ao sol dos índios navajos. Sussurrou-lhe as visões que ela lhe trazia – de areia a voar pelo deserto, dos pelicanos castanhos pousados no dorso dos golfinhos em direção ao norte, pela costa de África. Sons, pequenos sons ininteligíveis saíam da boca de Francesca quando ela arqueava o corpo na direção dele. Mas era uma linguagem que ele compreendia perfeitamente, e naquela mulher que estava debaixo dele, com o ventre contra o seu, a quem penetrava profundamente, terminava a longa busca de Robert Kincaid. E por fim descobria o significado de todas as pequenas pegadas em todas as praias desertas por onde alguma vez caminhara, e de todas as cargas secretas levadas por navios que jamais haviam navegado, de todos os rostos velados que o viram passar por ruas sinuosas de crepusculares cidades. E, como um grande caçador de outros tempos que tivesse viajado em terras distantes e agora visse o brilho das fogueiras da sua pátria, a sua solidão desvaneceu-se. Finalmente. Finalmente. Vinha de tão longe...de tão longe. E jazia sobre ela, perfeitamente realizado e inalteravelmente completo no seu amor por ela. Finalmente.
Ao amanhecer, ergueu-se ligeiramente e disse, olhando-a nos olhos:
"É por isso que estou neste planeta, neste momento, Francesca. Não é para viajar nem para tirar fotografias, mas para te amar. Agora sei. Tenho estado caindo da beira de um lugar muito grande, muito alto, lugares no passado, durante mais anos do que os que vivi nesta vida. Durante todos esses anos, estive caindo para você."
Quando desceram as escadas, o rádio ainda estava tocando, já tinha amanhecido, mas o sol escondia-se por detrás de uma fina camada de nuvens.
"Francesca, quero pedir-te um favor." Sorriu enquanto ela preparava o café.
"Sim?" Olhou para ele. "Oh, meu deus, amo-o tanto," pensou, sentindo-se trêmula, desejando-o ainda mais, sem descanso.
"Veste os jeans e a T-shirt que tinhas ontem à noite, e umas sandálias. Nada mais. Quero tirar-te uma fotografia exatamente como estás esta manhã. Uma fotografia só para nós os dois."
Francesca subiu as escadas, com as pernas fracas de terem envolvido o corpo de Robert toda a noite, vestiu-se e saiu com ele para a pastagem. Ali tinha sido tirada a fotografia para a qual ela olhava em cada ano que passava.
O CAMINHO E O PEREGRINO
Robert Kincaid abandonou a fotografia nos dias seguintes. E à exceção das pequenas tarefas necessárias, que reduziu ao mínimo indispensável, Francesca abandonou o trabalho da Fazenda, os dois passavam o tempo juntos, conversando ou fazendo amor. Por duas vezes que ela pediu, Robert tocou viola e cantou, com uma voz razoavelmente boa, um pouco inibida, e disse-lhe que ela era a sua primeira espectadora. Quando lhe disse, ela sorriu e beijou-o, e depois ficou mergulhada nos seus sentimentos, ouvindo as suas canções sobre baleeiros e ventos desérticos.
Francesca foi com Robert ao aeroporto de Des Moines, de onde ele enviou os seus rolos para Nova Iorque. Quando podia, mandava sempre os primeiros rolos, por forma a que os editores pudessem ver o resultado do seu trabalho e os técnicos controlassem o bom funcionamento das suas máquinas.
Depois levou-a a um restaurante requintado para almoçar e deu-lhe a mão por cima da mesa, olhando-a com intensidade. E o criado sorriu ao vê-los, esperando um dia vir a sentir o que eles estavam a sentir.
Francesca maravilhava-se com a forma como Robert Kincaid sentia que as coisas chegavam ao seu termo, e a facilidade com que o aceitava. Via, a morte próxima dos cowboys e de outros como eles, incluindo ele próprio. E começou a compreender o que ele queria dizer quando afirmava que estava no extremo de um ramo da evolução e que esse extremo era um beco sem saída.
Uma vez, enquanto falava sobre o que ele chamava "as últimas coisas", murmurou: ""Nunca mais," gritou o Senhor do Alto Deserto. "Nunca, nunca, nunca mais." Para além de si próprio, não via nada no ramo. A sua espécie estava ultrapassada.
Na quinta-feira à tarde conversavam, depois de terem feito amor. Ambos sabiam que aquela conversa tinha de acontecer. Ambos a tinham estado a evitar.
"Que vamos fazer?" perguntou Robert.
Ela ficou em silêncio, um silêncio profundo. Depois disse suavemente:
"Não sei."
"Se quiser, ficarei aqui, ou na cidade, ou onde quer que seja. Quando a sua família voltar, falarei com o teu marido e explicarei a situação. Não vai ser fácil, mas farei."
Ela abanou a cabeça.
"Richard nunca compreenderia uma coisa destas; ele não pensa nestes termos. Não compreende a magia nem a paixão nem todas as outras coisas de que falamos e que experimentamos, nunca compreenderá. Isso não faz dele um ser inferior. São coisas que estão muito longe de tudo o que alguma vez sentiu ou pensou na sua vida. Não sabe como lidar com elas."
"E então vamos deixar que tudo isto se perca?" Robert estava com uma expressão grave, não se ria.
"Também não sei. Robert, de uma certa e estranha maneira eu pertenço-te. Eu não queria que fosse assim, não precisava disso, e sei que não era essa a sua intenção, mas foi o que aconteceu, já não estou sentada ao seu lado, aqui, sobre a grama. Me tem dentro de você, como uma prisioneira voluntária.”
Ele replicou: "Não tenho a certeza de que estou dentro de mim, ou de que eu estou dentro de você, ou de que me pertença. Pelo menos não é isso que eu quero. Acho que estamos ambos dentro de outro ser que criamos e que se chama "nós."
"Na verdade, não estamos dentro desse ser. Somos esse ser. Ambos nos perdemos a nós próprios e criamos outra coisa, algo que existe apenas como uma união de nós os dois. Meu Deus, estamos apaixonados. Da maneira mais profunda que é possível conceber-se.”
"Vem viajar comigo, Francesca. Isso não é problema nenhum. Faremos amor na areia do deserto e beberemos conhaque nas varandas de Mombasa, assistindo ao içar das velas dos navios no Golfo Pérsico na primeira brisa da manhã. Te mostrarei o país dos leões e uma velha cidade francesa na baía de Benguela onde há um lindo restaurante num terraço, e comboios que sobem as montanhas e pequenas estalagens bascas no alto dos Pirenéus. Numa reserva de tigres no Sul da índia, numa ilha no meio de um enorme lago, há um lugar muito especial. Se não gosta de viajar, abrirei uma loja em qualquer lugar e
tirarei fotografias locais ou farei retratos ou o que for preciso para nos sustentar."
"Robert, ontem à noite enquanto fazíamos amor, disse uma coisa de que ainda me lembro. Eu murmurava algo sobre o teu poder - e, Meu Deus, se o tem. Você disse: "Eu sou o caminho e um peregrino e todas as velas que já alguma vez se fizeram ao mar.” Tinha razão. É isso que você sente; sente o caminho dentro de você. Não, é mais do que isso, de uma certa forma que não tenho a certeza de conseguir explicar, você é o caminho. Onde a ilusão se encontra com a realidade, é aí que você está, aí no caminho, e você é o caminho.”
"Você é as velhas mochilas e uma caminhonete chamada Harry, e os aviões que voam para a Ásia. E é isso que eu quero que você seja. Se o seu ramo da evolução está num beco sem saída, como você diz que está, então quero que chegue a essa saída o mais depressa possível. Não tenho a certeza de que possa fazê-lo comigo. Não vê que te amo tanto que não poderia pensar em limitar-te por um momento que fosse? Fazê-lo significaria matar o magnífico animal selvagem que há em você, e o poder morreria com ele."
Ele começou a falar, mas Francesca deteve-o.
"Robert, ainda não acabei. Se agarrasse em mim e me levasse para a sua caminhonete e me obrigasse a ir com você, não proferiria uma queixa. Poderia mesmo fazê-lo falando apenas comigo. Mas não me parece que o queira fazer. É muito sensível, percebe muito bem os meus sentimentos para o fazer. E eu tenho sentimentos de responsabilidade aqui, sim, de certa forma é aborrecido. A minha vida, quero dizer. Falta-lhe romance, erotismo, dançar na cozinha à luz de velas, e o maravilhoso sentimento de um homem que sabe como amar uma mulher. Acima de tudo, falta você. Mas existe este maldito sentimento de responsabilidade que eu tenho. Para com Richard e para com os meus filhos. Só o fato de eu me ir embora, de desaparecer fisicamente, seria suficientemente duro para Richard. Só isso já o poderia destruir.”
"Ainda por cima, e o que é pior ainda, teria de viver o resto da sua vida com os comentários das pessoas daqui. "Lá vai Richard Johnson. A sua mulher, a italianazinha galdéria, fugiu com um fotógrafo de cabelo comprido há uns anos atrás."
“Richard teria de sofrer isso, e as crianças ouviriam os risinhos de Winterset enquanto vivessem aqui. Também elas sofreriam. E odiar-me-iam por isso.”
"Por mais que te queira e que queira estar com você e ser parte de você, não posso furtar-me à realidade das minhas responsabilidades. Se me obrigar, física ou mentalmente a ir com você, como já te disse, não poderei lutar contra isso. Não tenho forças, por causa dos meus sentimentos por você. Apesar do que eu disse sobre não me lançar ao caminho com você, iria por causa do meu próprio desejo egoísta da sua pessoa.”
"Mas, por favor, não me obrigue. Não me faça desistir disto, das responsabilidades. Não posso fazê-lo e viver pensando nisso. Se agora me fosse embora, esses pensamentos iriam me transformar numa mulher diferente desta que chegou a amar."
Robert Kincaid estava em silêncio. Compreendia o que ela dizia sobre o caminho, as responsabilidades, e como a culpa a poderia transformar. Sabia que de certa forma ela tinha razão. Olhando pela janela, lutava consigo mesmo, lutava por compreender os sentimentos de Francesca. Ela começou a chorar. Depois, ficaram durante bastante tempo abraçados. E ele murmurou-lhe:
- "Só tenho uma coisa a dizer, apenas uma; nunca voltarei a dizê-la a ninguém, e te peço que, se lembres dela: num universo de ambigüidades, este tipo de certezas só existe uma vez, e nunca mais, não importa quantas vidas se vivam."
Nessa noite voltaram a fazer amor. Era quinta-feira e estiveram juntos até muito depois do sol nascer, acariciando-se e conversando em voz baixa. Depois Francesca dormiu um pouco, e quando acordou, o sol ia alto e já estava calor. Ouviu uma das portas de Harry ranger e pôs umas roupas às pressa. Robert tinha feito café e estava sentado na mesa da cozinha fumando, quando ela entrou. Sorriu para ela. Ela dirigiu-se a ele e enterrou a cara no seu pescoço, as mãos nos seus cabelos, enquanto ele lhe punha os braços em volta da cintura. Robert a fez sentar-se no seu colo e acariciou-a. Depois levantou-se. Tinha vestido os seus velhos Jeans, os suspensórios cor-de-laranja sobre uma camisa cáqui lavada, as botas Red Wing bem apertadas, o canivete suíço no cinto. Sobre as costas da cadeira estava o seu blusão de fotógrafo; o disparador saía de um dos bolsos. O cowboy estava pronto.
"É melhor eu ir andando."
Ela acenou, e começou a chorar. Viu as lágrimas nos olhos de Robert, mas ele não deixou de sorrir.
"Posso te escrever de vez em quando? Pelo menos quero te mandar uma ou duas fotografias?”
"Está bem," disse Francesca, limpando os olhos na toalha pendurada na porta do armário. "Hei de arranjar uma desculpa qualquer por receber correspondência de um fotógrafo hippie, desde que não seja muito freqüente."
"Tens o meu endereço e número de telefone em Washington, não tem?" Ela acenou. "Se eu não estiver lá, telefona para o escritório da National Geographic. Vou dar-te o número."
Escreveu no bloco junto ao telefone, arrancou a folha e lhe entregou.
"Também pode sempre ver o número na revista. Pede que te liguem aos escritórios da editorial. Em geral sabem sempre onde eu estou.
"Não hesite se quiser me ver, ou mesmo só falar comigo. Fala-me a cobrar no destinatário de qualquer parte do mundo assim os telefonemas não aparecerão na tua conta. E eu estarei aqui por mais alguns dias. Pensa no que te disse. Posso ficar aqui, resolver o assunto em pouco tempo, e então poderíamos partir juntos para o Noroeste."
Francesca ficou em silêncio. Sabia que era verdade, que ele podia resolver o assunto em pouco tempo. Richard era cinco anos mais novo do que ele, mas não se lhe podia comparar, nem física nem intelectualmente.
Ele vestiu o blusão. Francesca tinha a cabeça vazia, sentia-se ausente, confusa.
"Não vá embora, Robert Kincaid," ouviu gritar de lugares no seu interior;
Ele agarrou-lhe a mão e saíram pela porta dos fundos para a caminhonete. Robert abriu a porta do condutor, pôs o pé no degrau, depois desceu e abraçou-a de novo durante vários minutos. Nenhum dos dois proferiu palavra; simplesmente ficaram ali, dando e recebendo, gravando-se de modo indelével um no outro. Reafirmando a existência daquele ser especial de que Robert tinha falado.
Pela última vez, ele largou-a, entrou na caminhonete e sentou-se ao volante deixando a porta aberta. As lágrimas corriam pelo rosto de Robert. As lágrimas corriam pelo rosto de Francesca. Lentamente ele fechou a porta. Os motores rangeram. Como de costume, Harry mostrava-se relutante em arrancar, mas Francesca ouviu a bota de Robert carregando no acelerador, e a velha caminhonete acabou por ceder.
Robert pôs a marcha ré e ficou assim, com a mudança engatada. Primeiro sério e depois com um ligeiro sorriso, a apontar para o caminho.
"É o caminho, já sabe. No mês que vem estarei no Sudeste da índia. Quer que te mande um postal?"
Ela não conseguia falar, mas fez um gesto negativo com a cabeça. Para Richard, seria demasiado encontrar isso na caixa do correio. Sabia que Robert compreenderia. Ele acenou. A caminhonete recuou no pátio, rangendo no cascalho; as galinhas dispersaram-se debaixo das suas rodas. Jack perseguiu uma delas até ao celeiro das máquinas, a ladrar.
Robert Kincaid acenou a Francesca através da janela do lado direito. Ela viu o reflexo do sol na sua pulseira de prata.
Tinha os dois primeiros botões da camisa desabotoados. Robert meteu pelo caminho e desapareceu. Francesca limpava os olhos, tentando ver, o sol fazia prismas estranhos nas suas lágrimas, como tinha feito na noite em que se tinham encontrado, correu para a entrada do caminho e ficou vendo a velha caminhonete a afastar-se aos solavancos. No final do caminho, a caminhonete deteve-se, a porta abriu-se e Robert desceu os degraus. Via-a, cem metros atrás, pequena devido à distancia.
Ficou ali, junto de Harry que balouçava impacientemente com o calor, e olhou para ela. Nenhum dos dois se moveu já se tinham despedido. Ficaram apenas a olhar um para o outro – a mulher do fazendeiro do Iowa e a criatura do extremo de um ramo da evolução, um dos últimos cowboys. Ele ficou ali durante trinta segundos, sem perder nada com os seus olhos de fotógrafo, construindo uma imagem dos dois que jamais perderia.
Fechou a porta, carregou na embreagem e começou de novo a chorar quando voltou à esquerda na estrada para Winterset.
Olhou para trás mesmo antes de um arvoredo no nordeste da quinta tapando-lhe a vista, e viu-a sentada na poeira do caminho, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos. Richard e as crianças chegaram ao princípio da noite com histórias da feira e uma fita que o novilho tinha ganho, antes de ser vendido para o abate.
Carolyne pôs-se imediatamente a falar ao telefone. Era sexta-feira, e Michael levou a caminhonete para a cidade, para essas coisas que fazem os rapazes de dezessete anos as sextas-feiras à noite - principalmente passear pela praça e conversar ou meter-se com as garotas que passam de carro. Richard ligou a televisão e disse a Francesca que era muito boa a broa de milho que estava comendo com manteiga e mel.
Francesca sentou-se na rede do alpendre da frente. Richard saiu por volta das dez, quando terminou o seu programa de televisão. Espreguiçou-se e disse:
"É bom estar de volta a casa." Depois, olhou para ela e acrescentou: você está bem, Frannie? Pareces um pouco cansada ou sonhadora ou não sei o quê."
“Sim, estou ótima, Richard. Gosto que esteja de volta, bem."
"Bom, vou para a cama; foi uma longa semana, e estou estafado. Também vem, Franie?"
"Daqui a pouco. Está bem aqui fora, por isso vou ficar um pouco mais." Estava cansada, mas tinha medo que Richard pudesse querer fazer amor com ela. Nessa noite não conseguiria suportá-lo.
Ouvia-o andar às voltas no quarto, por cima da rede em que ela se balançava, com os pés descalços apoiados no chão. Dos fundos da casa, chegava-lhe o som da música de Carolyn. Evitou ir à cidade nos dias seguintes, porque sabia que Robert Kincaid estava apenas a alguns quilômetros de distância realmente não lhe parecia que conseguiria refrear-se se o visse. Podia correr para ele e dizer: "Agora! Vamo-nos agora!" Tinha corrido o risco de o ver em Cedar Bridge, agora era muito perigoso vê-lo de novo.
Na terça-feira seguinte, a despensa estava a ficar vazia e Richard precisava de uma peça para a debulhadora que estava a arranjar. As nuvens estavam baixas, a chuva não parava de cair, havia um ligeiro nevoeiro e estava frio para um dia de Agosto.
Richard comprou a peça e tomou café no bar com outros homens enquanto Francesca ia à mercearia. Sabia o tempo que ela demoraria e estava à sua espera em frente ao Super Value quando ela acabou. Desceu de um salto. Usava um boné Allis Chalmers, e ajudou-a a pôr os sacos na caminhonete Ford, no banco e junto aos seus pés. E ela pensava em tripés e mochilas.
"Tenho de voltar num instante à loja de ferramentas. Esqueci-me de uma peça de que posso precisar."
Foram para norte pela Estrada Nacional 169, que era a rua principal de Winterset. Alguns metros depois da bomba de gasolina da Texaco, ela viu Harry a sair da bomba de gasolina com os limpador de pára-brisas ligados, e dirigindo-se para a estrada em frente deles.
O destino pô-los exatamente atrás da velha caminhonete. Do seu banco alto na Ford, Francesca viu um embrulho de lona onde se destacavam os contornos de uma mala e de um estojo de viola junto à roda sobresselente. O vidro de trás estava molhado da chuva, mas via-se parte da cabeça de Robert. Ele inclinou-se para ir buscar algo ao porta-luvas; oito dias antes, ao fazer aquele mesmo movimento, tinha roçado o braço na perna dela. Na semana anterior, ela estivera em Des Moines comparando um vestido cor-de-rosa.
"Aquela caminhonete está longe da sua terra," comentou Richard.
"Vem de Washington. Parece que é uma mulher que vai guiando pelo menos tem o cabelo comprido. Pensando melhor, deve ser aquele fotógrafo de quem estavam falando no café."
Seguiram Robert Kincaid durante cerca de um quilômetro para norte, onde a estrada 169 se cruzava com a 92, orientada de leste a oeste. Era um cruzamento de quatro vias, com muito trânsito em todas as direções, complicado pela chuva e pelo nevoeiro, que se tinha tornado mais espesso.
Estiveram parados uns vinte segundos. Robert estava à frente de Francesca, apenas a uns dez metros. Ainda podia fazê-lo.
Saltar da Ford e correr para a porta direita de Harry, trepar para cima das mochilas, da geleira e dos tripés. Desde que Robert Kincaid se tinha ido embora na sexta-feira anterior, Francesca percebeu de que, apesar do muito que pensara gostar dele nessa altura, tinha subestimado seriamente os seus sentimentos. Não lhe parecia possível, mas era verdade. Começara a compreender o que ele já tinha compreendido. Mas ficou paralisada pelas suas responsabilidades, olhando para a janela de trás da caminhonete com mais intensidade do que alguma vez olhara para algo na sua vida. O pisca da esquerda da caminhonete acendeu. Num minuto ele desapareceu. Richard sintonizava o rádio da Ford.
Por algum estranho truque da sua mente, Francesca começou a ver as coisas em câmara lenta. Chegou a vez de Robert, e... lentamente... lentamente... Harry aproximou-se do cruzamento - ela conseguia visualizar as compridas pernas de Robert carregando na embreagem e no acelerador e a flexão dos músculos do seu braço direito quando mudava de velocidade - agora a caminhonete voltava à esquerda para a estrada 92 em direção a Council Bluffs, Black Hills e o noroeste... lentamente... lentamente... a velha caminhonete deu a volta... muito lentamente passou o cruzamento e voltou para oeste.
Através das lágrimas, a chuva e o nevoeiro, Francesca mal conseguia distinguir as letras vermelhas sumidas na porta: “Fotografias Kincaid - Bellingham, Washington."
Robert tinha aberto o vidro para ter melhor visibilidade ao virar. Deu a volta, e Francesca viu os seus cabelos ao vento enquanto acelerava pela estrada 92 para oeste, e fechava a janela.
"Oh, oh Meu Deus - oh Meu Deus do Céu... não!"
As palavras ressoavam dentro dela. “Eu fiz mal, Robert, fiz mal em ficar... mas não posso ir... deixa-me dizer te outra vez... porque não posso ir... diz-me outra vez porque devo ir."
E ouviu a voz dele que voltava pela estrada. "Num universo de ambigüidades, este tipo de certezas só existe uma vez, e nunca mais, não importa quantas vidas se vivam."
Richard passou o cruzamento e dirigiu-se para norte. Por um instante, Francesca olhou para as luzes vermelhas de Harry que se afastavam por entre o nevoeiro e a chuva. A velha caminhonete Chevy parecia pequena ao lado de um enorme caminhão com reboque que rugia na estrada para Winterset, espalhando uma onda de água sobre o último cowboy.
"Adeus, Robert Kincaid," murmurou Francesca, e começou a chorar, abertamente. Richard olhou para ela. "Que se passa, Frannie? Por favor me diz o que se passa com você."
"Richard, só preciso de um pouco de tempo. Daqui a uns minutos estarei boa."
Richard sintonizou a bolsa do gado do meio-dia, olhou para ela e abanou a cabeça.
CINZAS
A noitecera em Madison County. Estavam em 1987, no dia em que Francesca fazia sessenta e sete anos. Tinha-se deitado há duas horas. Via, tocava, cheirava e ouvia tudo o que se tinha passado há vinte e dois anos atrás.
Tinha recordado e voltado a recordar. A imagem daquelas luzes vermelhas dirigindo-se para oeste pela estrada perseguira-a durante mais de vinte anos. Tocou nos seios e sentiu os músculos do peito de Robert deslizarem sobre eles. Como o amava! Como o tinha amado na altura, mais do que lhe parecera possível, como o amava agora ainda mais. Teria feito o que quer que fosse por ele, menos destruir a sua família e talvez a ele também.
Desceu as escadas e sentou-se na cozinha, diante da velha mesa de fórmica amarela. Richard insistira em comprar uma nova, mas Francesca pedira para guardar a velha numa arrecadação e embrulhara-a cuidadosamente num plástico antes de a guardarem.
"Francamente, não vejo porque gosta tanto desta mesa", tinha-se queixado Richard enquanto ajudava a transportá-la. Quando ele morreu, Michael voltara a pô-la dentro de casa e nunca lhe perguntara porque a queria no lugar da nova. Limitara-se a olhar para ela com um ar inquiridor, mas Francesca nada dissera.
Agora estava sentada diante dessa mesa. Depois foi até ao armário e retirou duas velas brancas com pequenos castiçais de bronze. Acendeu as velas e ligou o rádio, movendo lentamente o sintonizador até encontrar música suave.
Ficou muito tempo junto ao lava-louças, com a cabeça ligeiramente erguida, olhando para a cara dele, e murmurou:
"Lembro-me de você, Robert Kincaid. Talvez o Grande Dono do Deserto tivesse razão. Talvez tenha sido o último, talvez todos os cowboys estejam agora próximos da sua morte."
Antes da morte de Richard, nunca tentara telefonar a Kincaid, nem escrever-lhe, embora durante anos quase o tivesse feito. Se tivesse falado com ele mais uma vez, teria ido ter com ele.
Se lhe escrevesse, sabia que ele a viria buscar. A sua relação era tão próxima como isso. Ao longo dos anos, Robert nunca voltara a telefonar-lhe ou a escrever-lhe, depois de lhe enviar um único embrulho com as fotografias e o manuscrito.
Francesca sabia que ele compreendia os seus sentimentos e as complicações que poderia provocar na sua vida.
Ela assinou o National Geographic em 1965. O artigo sobre as pontes cobertas apareceu no ano seguinte, e via-se Roseman Bridge à primeira luz quente da manhã, quando Robert encontrara o seu bilhete. A capa era a fotografia que Robert tinha tirado a uma parelha de cavalos que puxavam uma carroça na direção de Hoback Bridge. Também tinha sido ele o autor do texto do artigo.
Na contracapa da revista, mencionavam-se os autores das reportagens e os fotógrafos e de vez em quando apareciam fotografias deles. Por vezes aparecia a de Robert. Os mesmos cabelos compridos prateados, a pulseira, os jeans ou as calças cáqui, as máquinas penduradas ao ombro, as veias salientes nos braços.
No Kalahari, nas muralhas de Jaipur na índia, numa canoa na Guatemala, no Norte do Canadá. O caminho e o cowboy. Francesca recortava-as e guardava-as no envelope pardo com número da revista que tinha o artigo sobre as pontes cobertas, manuscrito, as duas fotografias e a carta dele. Guardava o envelope debaixo da sua roupa interior numa gaveta da cômoda, onde Richard nunca mexeria. E, como uma observadora distante seguindo-o através dos anos, viu Robert Kincaid envelhecer. O sorriso permanecia ali, bem como o corpo delgado e musculoso. Mas Francesca via o passar dos anos nas rugas em volta dos olhos, no ligeiro encurvar dos ombros fortes, nos contornos da cara mais suaves. Via-o. Tinha estudado aquele corpo com mais atenção do que qualquer outra coisa na sua vida, do que o seu próprio corpo. E os sinais da idade faziam com que o desejasse ainda mais se isso era possível. Suspeitava - melhor, sabia - que ele estava sozinho. E estava.
Sentada à mesa, estudava os recortes à luz das velas. Ele olhava para ela de lugares distantes. Encontrou uma fotografia especial de um número de 1967. Robert estava junto a um rio na África Oriental, de frente para a máquina e junto dela, de gatas, preparando-se para tirar uma fotografia. Quando, pela primeira vez olhara para aquele recorte, anos atrás, Francesca reparara que a corrente de prata em volta do seu pescoço tinha agora uma pequena medalha pendurada. Michael
estava longe na universidade e, quando Richard e Carolyn se deitaram, Francesca foi buscar uma poderosa lupa que Michael usava para a sua coleção de selos quando era pequeno e aproximou-a da fotografia.
"Meu Deus," disse, quase sem conseguir respirar. A medalha dizia "Francesca". Tinha sido a sua única e pequena indiscrição, que ela lhe perdoou, sorrindo. Em todas as fotografias posteriores a essa, aparecia sempre a medalha na corrente de prata.
Depois de 1975, nunca mais voltou a vê-lo na revista.. Também nunca mais voltou a aparecer a sua assinatura. Procurou em todos os números, mas não encontrou nada. Nesse ano Robert teria feito sessenta e dois anos.
Quando Richard morreu em 1979, depois do enterro, quando os seus filhos já tinham regressado às respectivas casas, Francesca pensou em telefonar a Robert Kincaid. Ele teria sessenta e seis anos, ela tinha cinqüenta e nove. Ainda havia, tempo, apesar da perda de catorze anos. Pensou incessantemente no assunto durante uma semana, e finalmente procurou o número na sua agenda e telefonou-lhe.
O seu coração quase parou quando o telefone começou a tocar. Ouviu o auscultador a ser levantado e quase desligou. Uma voz de mulher disse: "Seguros McGregor”. Francesca assustou-se, mas recuperou o suficiente para perguntar à secretária se tinha marcado o número certo. Tinha. Francesca agradeceu e desligou. Depois tentou as informações de Bellingham, Washington. Não constava da lista telefônica. Experimentou Seattle. Nada. Depois os escritórios da câmara de comércio em Bellingham e Seattle. Pediu para procurarem nas listas telefônicas de ambas as cidades. Fizeram-no, e Robert Kincaid não constava. Pode estar em qualquer outro lugar, pensou Francesca. Lembrou-se da revista; ele tinha-lhe dito para lhe telefonar para lá. A recepcionista foi simpática, mas era nova e teve de ir buscar alguém que a pudesse ajudar a responder. A chamada de Francesca foi transferida três vezes antes de conseguir falar com um editor-sócio que trabalhava na revista há vinte anos. Francesca perguntou-lhe por Robert Kincaid. Claro que o editor se lembrava dele. "Está tentando localizá-lo, heim? Era um fotógrafo dos diabos, desculpe lá o termo. Era birrento, não num sentido pejorativo, mas persistente. Gostava da arte em si mesma, e isso não funciona muito bem com os nossos leitores. Os nossos leitores querem belas fotografias, tecnicamente boas, mas nada muito ousado.”
"Nós dizíamos sempre que Kincaid era um pouco estranho, nenhum de nós o conhecia fora do trabalho. Mas era um profissional. Podíamos mandá-lo para onde quer que fosse, e ele fazia sempre o trabalho, apesar de na maioria das vezes estar em desacordo com as nossas decisões editoriais. Quanto ao seu paradeiro, tenho estado à procura nos nossos arquivos enquanto estamos falando. Deixou a revista em 1975. O endereço e o telefone que tenho são ... " Leu as mesmas informações que Francesca já tinha. Depois disso, ela desistiu das suas tentativas, principalmente por medo do que poderia descobrir. Ficou um pouco à deriva, com tempo para pensar cada vez mais em Robert Kincaid. Ainda conduzia bem, e várias vezes por ano ia a Des Moines almoçar ao restaurante onde ele a tinha levado. Numa dessas viagens, comprou um caderno com capa em couro e as páginas em branco. E nessas páginas começou a escrever em letra perfeitinha os detalhes do seu amor por ele e os seus pensamentos acerca dele. Precisou de quase três volumes desses cadernos antes de se considerar satisfeita com o seu trabalho.
Winterset melhorava. Havia uma associação artística ativa, composta principalmente por mulheres, e há alguns anos que se falava em recuperar as velhas pontes, jovens interessantes construíam casas nas colinas. As coisas tinham-se aligeirado, o cabelo comprido já não era motivo para se ser alvo das atenções, embora ainda fossem poucos os que usavam sandálias e não houvesse muitos poetas.
No entanto, à exceção de algumas amigas, Francesca afastou-se completamente da comunidade. As pessoas comentavam isso, e também o fato de ela ser freqüentemente vista junto a Roseman Bridge e por vezes a Cedar Bridge. Os velhos por vezes tornam-se estranhos, diziam, e contentavam-se com essa explicação.
No dia 2 de Fevereiro de 1982 uma caminhonete dos correios parou à porta de sua casa. Ela não tinha encomendado nada de que pudesse lembrar-se. Surpreendida, assinou o recibo e olhou para o endereço: "Francesca Johnson, RR2, Winterset, Iowa 50273." 0 remetente era uma sociedade de advogados em Seattle.
O pacote estava cuidadosamente embrulhado e tinha uma segurança extra. Francesca pô-lo em cima da mesa da cozinha e abriu-o cuidadosamente. Continha três caixas, bem envoltas em plástico grosso. Sobre uma delas havia um pequeno envelope almofadado. Sobre outra, um envelope comercial dirigido a ela, com remetente da sociedade de advogados. Retirou a fita do envelope e abriu, tremendo.
25 de janeiro de 1982
Sra. D. Francesca Johnson
Winterset, L4 50273, Cara Sra. Johnson:
Somos os representantes do patrimônio de Robert L. Kincaid, recentemente falecido.
Francesca pousou a carta na mesa. Lá fora, a neve voava sobre os campos invernais. Francesca viu-a fustigar o restolho arrancar espigas, amontoá-las a um canto da cerca de arame farpado. Leu uma vez mais as palavras.
Somos os representantes do patrimônio de Robert L. Kincaid, recentemente falecido...
"Oh, Robert... Robert... Não." Tinha dito estas palavras suavemente, e baixou a cabeça.
Uma hora depois conseguiu continuar a ler. A linguagem direta da lei, a precisão das palavras, enfureciam-na.
“Somos os representantes ... "
Simplesmente um advogado que cumpria as suas obrigações para com um cliente. Mas o poder, o leopardo que vinha montado na cauda de um cometa, o xamã que procurava Roseman Bridge num quente dia de Agosto, o homem de pé no degrau de uma caminhonete chamada Harry que se voltava para vê-la morrer por entre o pó de um caminho de uma fazenda do Iowa - onde estava ele naquelas palavras?
A carta deveria ter tido mil páginas. Deveria ter falado do fim das cadeias da evolução e da perda da liberdade, dos cowboys que lutavam com o arame farpado, como as espigas no Inverno.
O único testamento que deixou data de 8 de Julho de 1967. As suas instruções no sentido de lhe serem remetidos os objetos em anexo foram explícitas. Se não a pudéssemos localizar, os objetos deveriam ser incinerados.
Dentro da caixa assinalada com a palavra “car" encontra-se uma mensagem para si que ele deixou conosco em 1978. Selou o envelope, que assim permaneceu até hoje.
Os restos do Sr. Kincaid foram cremados. A seu pedido, não foi colocado nenhum marco funerário. Também a seu pedido, as suas cinzas foram espalhadas perto de sua casa por um sócio nosso.
Creio que a localidade se chama Roseman Bridge. Se pudermos de alguma forma ser-lhe úteis, não hesite em contatar-nos.
Com os melhores cumprimentos Allan B. Quippen, Advogado.
Francesca recuperou o fôlego, secou de novo os olhos, e começou a examinar o restante conteúdo da caixa. Sabia o que estava no pequeno envelope almofadado. Sabia-o com a certeza com que sabia que a Primavera voltaria uma vez mais nesse ano.
Abriu-o cuidadosamente e procurou lá dentro. Tirou a corrente de prata. A medalha pendurada nela estava arranhada e dizia "Francesca". Na parte de trás, gravado em letra minúsculas, lia-se: "Caso tenha encontrado, por favor envie a Francesca Johnson, RR2, Winterset, Iowa, EUA."
A pulseira de prata de Robert estava embrulhada em papel fino no fundo do envelope, juntamente com a pulseira havia uma folha de papel. Estava escrita na letra de Francesca: Se quiseres jantar outra vez enquanto as mariposas continuam a voar, vem esta noite quando tiveres acabado o trabalho.
Era o seu bilhete de Roseman Bridge. Até isso tinha guardado entre as suas recordações. Então lembrou-se de que aquele bilhete era a única coisa que ele tinha dela, a única prova de que ela existia, para além de fugidias imagens fotográficas em película que se deteriorava lentamente. O pequeno bilhete de Roseman Bridge estava manchado e dobrado, como se tivesse estado durante muito tempo dentro de uma carteira.
Francesca perguntou-se quantas vezes ele o teria lido ao longo dos anos, longe das colinas, junto de Miffile River. Imaginava-o lendo o bilhete à tênue luz de leitura de um Avião sempre em vôo para algum destino, ou à luz de uma lanterna, sentado no chão de uma cabana de bambu no país dos tigres, dobrando-o e guardando-o numa noite chuvosa de Bellingham, e olhando depois para as fotografias de uma mulher encostada a um poste de uma cerca numa manhã de Verão, ou a sair de uma ponte coberta ao entardecer.
Cada uma das três caixas continha uma máquina com uma lente. Estavam arranhadas, riscadas. Ao virar uma delas, leu "Nikon" no visor e, mesmo na parte superior esquerda da etiqueta, a letra "F". Era a máquina que ela lhe tinha estendido em Cedar Bridge.
Finalmente, abriu a carta dele. Estava escrita à mão num papel timbrado e tinha a data de 16 de Agosto de 1978.
Querida Francesca
Espero que esteja bem. Não sei quando receberá esta carta. Algum tempo depois da minha partida já tenho sessenta e cinco anos, e faz hoje treze anos que nos conhecemos, quando bati à tua porta a pedir-te indicações sobre caminhos.
Espero que este embrulho não perturbe a sua vida de forma alguma. Mas não podia suportar a idéia destas máquinas em estojos de segunda mão em alguma loja de fotografia ou nas mãos de um desconhecido. Estarão em bastante mau estado quando as receber. Mas não tenho mais ninguém a quem as deixar, e peço-te desculpa por te pôr em risco, enviando-as.
Entre 1965 e 1975 estive quase sempre a viajar. Só para afastar a tentação de te telefonar ou de ir ter contigo, uma tentação que tive praticamente em todos os momentos da minha vida. Aceitei todos os trabalhos que pude fora do país. Houve alturas, e não foram poucas, em que disse para comigo: “Que se lixe, vou a Winterset, Iowa, e levo Francesca comigo custe o que custar." Mas lembro-me das suas palavras e respeito os teus sentimentos.
Talvez tenha razão; não sei. Mas sei que descer o caminho de sua casa naquela manhã quente de sexta-feira foi a coisa mais dura que já me aconteceu ou virá a acontecer na vida. Na verdade, duvido que muitos homens tenham feito algo de tão difícil como isso.
Saí da National Geographic em 1975, e desde então tenho dedicado o resto dos meus anos de fotógrafo a coisas de que gosto, aceitando trabalho onde o consigo arranjar, sobre temas regionais que só me obrigam a estar fora alguns dias de cada vez. Tem sido duro sob o ponto de vista financeiro, mas vou me arranjando. Arranjo-me sempre.
A maior parte do meu trabalho é feito nas redondezas de Puget Sourid, o que me agrada. Parece que à medida que os homens envelhecem se vão aproximando da água.
É verdade, agora tenho um cão, um golden retriever. Chama-se Caminho, e viaja comigo a maioria das vezes com a cabeça de fora da janela à procura de boas fotografias.
Em 1972, caí de um penhasco no Parque Nacional de Acadi , no Maine, e parti o tornozelo. Com a queda, parti a corrente e o medalhão. Felizmente caíram perto e não tive dificuldade em encontrá-los. Mandei arranjar a corrente a um joalheiro. Vivo com o coração cheio de pó. É a melhor forma que arranjo de me exprimir. Tive algumas mulheres antes de você, bastantes, mas depois de você nenhuma. Não fiz nenhum juramento de celibato simplesmente não estou interessado.
Uma vez, no Canadá, vi um ganso cujo companheiro tinha sido abatido a tiro por caçadores. Sabe que eles acasalam por toda a vida. O ganso ficou a dar voltas ao lago dias e dias depois disso. A última vez que o vi, estava a nadar sozinho por entre os arrozais selvagens e continuava à procura. Suponho que a analogia é muito óbvia para gostos literários, mas é assim que me sinto. Na minha imaginação, em manhãs enevoadas ou em tardes em que o sol se põe sobre as águas a noroeste, tento pensar o que será da sua vida e o que andará fazendo enquanto penso em você.
Nada de complicado - a sair para o jardim, sentada na rede do alpendre, de pé diante do lava-louças da cozinha. Coisas assim.
Lembro-me de tudo. Do seu cheiro, do seu sabor a Verão. A sensação da sua pele contra a minha, os seus sussurros quando te amava. Uma vez Robert Penn Warren escreveu a frase: “Um mundo que parece ser abandonado por Deus." Não é má e aproxima-se bastante da forma como por vezes me sinto. Mas não posso viver sempre assim. Quando estes sentimentos se tornam muito fortes, carrego o porta-bagagens de Harry e vou passear durante uns dias com o meu cão.
Não gosto de ter pena de mim próprio. Não sou esse tipo de pessoa. E a maior parte do tempo não me sinto assim. Pelo contrário, sinto-me grato por ao menos te ter encontrado. Poderíamos ter passado um pelo outro como duas partículas de poeira cósmica.
Deus ou o Universo, ou o que se prefira para classificar os grandes sistemas de equilíbrio e ordem, não reconhece o tempo terrestre. Para o Universo, quatro dias não são diferentes de quatro bilhões de anos luz. Tento nunca me esquecer disto. Mas no fundo, sou apenas um homem. E todas as especulações filosóficas que eu possa conjurar não me impedem de te desejar todos os dias, todos os minutos, nem o impiedoso grito do tempo, do tempo que nunca pude passar contigo, dentro da minha cabeça.
Amo-te, profunda e plenamente. E amar-te-ei para sempre.
O último cowboy, Robert
O embrulho tinha chegado há cinco anos atrás. E olhar para o seu conteúdo tinha-se tornado num dos rituais do aniversário dela. Guardava as máquinas, a pulseira e a corrente com a medalha num compartimento especial do armário. Um carpinteiro local tinha construído a caixa desenhada por ela, de madeira de nogueira, com proteção contra o pó e divisões almofadadas no interior. "Bonita caixa," tinha dito o carpinteiro. Francesca limitara-se a sorrir.
A última parte do ritual era o manuscrito. Lia-o sempre à luz de velas, no final do dia. Levava-o da sala para a cozinha e colocava-o cuidadosamente sobre a fórmica amarela, junto de uma vela, acendia o seu único cigarro do ano, um Camel, bebia um golo de conhaque e começava a ler.
A QUEDA DA DIMENSÃO Z
Há ventos antigos que ainda não compreendo, embora agora me pareça que desde sempre andei e andarei na crista da sua onda.
Movo-me na Dimensão Z; o mundo passa por outro lugar, noutra dimensão das coisas, paralelo a mim. Como se, com as mãos nos bolsos e ligeiramente inclinado para a frente, o visse no interior de uma montra de um grande armazém.
Na Dimensão Z há momentos estranhos. Depois de uma longa e chuvosa curva no Novo México, a oeste de Magdalena, a estrada transforma-se num caminho e o caminho num carreiro para animais. Um movimento do meu limpador pára-brisas e o caminho transforma-se numa floresta onde nunca ninguém entrou. Outra volta do limpador pára-brisas e de novo algo mais atrás. Desta vez é uma grande superfície gelada. Avanço por entre erva curta, vestido de peles, com o cabelo desgrenhado e uma lança, magro e duro como o próprio gelo, todo músculo e implacável astúcia. Para lá do gelo, ainda mais atrás na medida das coisas, as profundas águas salgadas em que nado, com escamas e guelras. Não vejo nada para além disto, exceto que além do plâncton está o dígito zero.
Euclides não tinha sempre razão. Partia do princípio que as paralelas eram constantes até ao infinito; mas também é possível um modo de vida não euclidiano, onde as paralelas se tocam, no além longínquo. Um ponto em que tudo desaparece. A ilusão da convergência. No entanto sei que é mais do que uma ilusão. Por vezes é possível a união, a simbiose de duas realidades. Uma espécie de suave entrelaçar. Sem intersecções num mundo de precisão, sem o som da nave. Apenas ... bem... a respiração. Sim, é esse o som, talvez a sensação também. De respiração.
E movo-me lentamente por cima desta outra realidade, e junto, debaixo e em redor dela, sempre com força, sempre com poder,mas sempre entregando-me a ela. E o outro sente isto, acerca-se com o seu próprio poder, e por sua vez entrega-se a mim.
Lugares, dentro da respiração, toca a música, e nessa altura começa a curiosa dança em espiral, com um ritmo bem próprio, que derrete o homem de gelo com a lança e o cabelo desgrenhado. E lentamente - girando e rodando em adágio, sempre em adágio - o homem de gelo cai ... Da Dimensão Z ... e dentro dela.
No final do dia em que fazia sessenta e sete anos, quando a chuva parou, Francesca colocou o envelope pardo na gaveta de baixo da escrivaninha. Desde que Richard morrera, decidira guardá-lo numa caixa-forte do banco, mas todos os anos naquela época o trazia durante uns dias para casa. A tampa da caixa de nogueira fechou-se sobre as máquinas, e Francesca guardou a caixa numa prateleira do armário do seu quarto.
Nessa tarde, tinha visitado Roseman Bridge. Agora passeava no alpendre; limpou a rede com uma toalha e sentou-se. Estava frio, mas ficaria durante alguns minutos, como sempre. Depois, foi até ao portão do pátio e deteve-se. Depois, até ao início do caminho. Vinte e dois anos mais tarde, ainda o via descer da caminhonete ao anoitecer, tentando encontrar o seu caminho; via Harry aos solavancos na direção da estrada principal, depois parando, e Robert Kincaid de pé no degrau, olhando para trás, em direção ao caminho...
UMA CARTA DE FRANCESCA
Francesca Johnson morreu em janeiro de 1989. Tinha sessenta e nove anos. Nesse ano, Robert Kincaid teria feito setenta e seis. A causa da morte foi dada como "natural". "Simplesmente morreu," disse o médico a Michael e Carolyn. "Na verdade, estamos um pouco perplexos. Não encontramos uma causa específica para a sua morte. Um vizinho encontrou-a caída sobre a mesa da cozinha."
Numa carta dirigida ao seu advogado com data de 1982, Francesca pedira que os seus restos fossem cremados e as suas cinzas espalhadas em Roseman Bridge. A cremação era uma prática pouco comum em Madison County de alguma forma considerada ligeiramente radical - e o seu desejo provocou bastantes discussões no café, na bomba da Texaco, e na loja de ferramentas. O destino das suas cinzas não foi tornado público.
Depois dos serviços fúnebres, Michael e Carolyn foram lentamente até Roseman Bridge e cumpriram as instruções de Francesca. Embora ficasse nas proximidades da casa, a família Johnson nunca ligara particularmente à ponte, e Michael e Carolyn perguntavam-se repetidamente porque seria que a sua mãe, uma pessoa bastante sensata, se tinha comportado de uma forma tão enigmática, e porque não tinha pedido para ser enterrada junto ao seu marido, como era costume.
Depois disso, Michael e Carolyn iniciaram o longo processo de busca à casa e levaram consigo o conteúdo da caixa-forte do banco, depois de esta ter sido examinada pelo advogado local para fins de herança. Dividiram o conteúdo da caixa e começaram a examiná-lo. O envelope pardo estava quase no fim da pilha de Carolyn, que ficou atônita ao ver o seu conteúdo.
Leu a carta que Robert Kincaid escrevera a Francesca em 1965. Depois leu a de 1978 e por fim a de 1982, do advogado de Seattle. Finalmente deteve-se nos recortes de revistas.
"Michael."
Michael percebeu o misto de surpresa e apreensão na voz da sua irmã e levantou imediatamente o olhar. "O que é?" Carolyn tinha os olhos marejados de lágrimas e a voz tremia-lhe.
"A nossa mãe estava apaixonada por um homem chamado Robert Kincaid. Era fotógrafo. Lembra-se quando tivemos todos de ver o número da National Geographic com o artigo sobre as pontes?
Foi ele quem tirou as fotografias das pontes da região. E lembra-se de quando, nessa altura, as crianças falavam de um tipo estranho com máquinas? Era ele."
Michael estava sentado diante de Carolyn, com a gravata desapertada, e o colarinho da camisa aberto.
"Repete isso, devagar. Não posso acreditar no que ouvi."
Depois de ler as cartas, Michael procurou no armário do andar de baixo, e depois subiu ao quarto de Francesca. Nunca tinha reparado na caixa de nogueira, e abriu-a. Levou-a para a mesa da cozinha.
"Carolyn, estão aqui as máquinas dele."
Enfiado num canto da caixa estava um envelope selado com "Carolyn ou Michael" escrito na letra de Francesca, e entre as máquinas, três cadernos com capas coloridas.
"Não tenho a certeza de conseguir ler o que está escrito nesse envelope", disse Michael. "Lê-me em voz alta, se for capaz."
Carolyn abriu o envelope e leu:
7 de janeiro de 1987
Queridos Caroline e Michael,
Embora me sinta muito bem, acho que está na altura de pôr as minhas coisas em ordem (como se costuma dizer). Há uma coisa, importante, que vocês precisam de saber Por isso vos escrevo esta carta.
Depois de procurarem na caixa-forte e encontrarem o grande envelope pardo dirigido a mim com selo dos correios de 1965, certamente encontrarão esta carta. Se for possível, por favor sentem-se a lê-la na mesa da cozinha. Em breve compreenderão a razão deste pedido.
Me é difícil escrever isto aos meus próprios filhos, mas devo fazê-lo. É algo muito forte, muito belo, para morrer comigo. E se querem saber quem foi a sua mãe, com todas as partes boas e más, precisam de saber o que eu vou contar. Preparem-se.
Como já descobriram, chamava-se Robert Kincaid. A sua inicial do meio era um,L", mas nunca soube a que nome correspondia.
Era fotógrafo, e esteve aqui em 1965 a fotografar as pontes cobertas.
Lembram-se de como as pessoas daqui se entusiasmaram quando as fotografias apareceram na National Geographic? Também devem se lembrar que eu comecei a receber a revista por volta dessa altura. Agora já sabem a razão do meu súbito interesse por ela. A propósito, eu estava com ele (carregando uma das mochilas das máquinas) quando a fotografia de Cedar Bridge foi tirada.
Quero que saibam que amei o pai vocês de uma forma vergonhosa. Sabia-o na altura e sei-o agora. Ele foi bom para mim e deu-me dois filhos, vocês, a quem adoro. Nunca o esqueçam.
Mas Robert Kincaid foi algo de totalmente diferente, distinto de qualquer pessoa que eu alguma vez vi ou conheci ou sobre quem tenha lido algo em toda a minha vida, é impossível fazer com que vocês o compreendam totalmente. Em primeiro lugar, vocês não são eu. Em segundo lugar, teriam tido de estar perto dele, de o ver mexer-se, de ouvi-lo explicar que estava num ramo acabado da evolução. Talvez os cadernos e os recortes de revista os ajudem, mas também esses não são suficientes.
Num certo sentido, ele não pertencia a este mundo, é a coisa mais clara que consigo dizer sobre ele. Sempre o achei uma criatura parecida com um leopardo que viajava na cauda de um cometa. Era assim que se movia, o seu corpo era assim. De alguma maneira, misturava uma intensidade profunda com um calor e uma gentileza, e tinha um certo sentido do trágico. Sentia que estava ficando ultrapassado num mundo de computadores, de robôs e de organização generalizada. Via-se como um dos últimos cowboys, como ele dizia, e dizia de si próprio que estava ultrapassado.
A primeira vez que o vi, foi quando ele parou a perguntar o caminho para Roseman Bridge. Vocês os três estavam na Feira de Minois. Acreditem, eu não andava em busca de nenhuma aventura. Nada mais longe do meu pensamento. Mas olhei para ele apenas por alguns segundos e soube que o desejava, embora não tanto como cheguei a desejá-lo. E por favor não pensem que ele era algum casa nova que andava atrás de mulheres do campo para se aproveitar delas. Não era de todo assim. Na verdade, era um pouco tímido e tive tanto que ver com o que aconteceu como ele. Na verdade, tive mais. O bilhete guardado junto à sua pulseira é o mesmo que eu deixei em Roseman Bridge para que ele o visse na manhã que se seguisse ao nosso primeiro encontro. Para além das fotografias que ele me tirou, esse bilhete é a única prova da minha existência que ele guardou ao longo dos anos, a única prova de que eu não era apenas um sonho que ele tinha tido.
Eu sei que os filhos tendem a pensar nos seus pais como uns seres vagamente assexuados, por isso espero que o que vou dizer não os choque, e certamente espero que não destrua a recordação que vocês têm de mim.
Robert e eu passamos horas juntos na nossa velha cozinha. Conversamos e dançamos à luz de velas. E, sim, fizemos amor aí, e no quarto, e na erva da pradaria, e em qualquer outro lugar que possam imaginar. Fizemos amor de uma forma incrível, poderosa, transcendente, e durante alguns dias, quase sem cessar. Eu sempre usei a palavra “poderoso" pensando muito nele. Porque era isso que ele era quando nos conhecemos. Ele era como uma seta na sua intensidade. Eu sentia-me absolutamente indefesa quando ele fazia amor comigo. Não fraca, não era assim que me sentia. Apenas arrasada pelo seu enorme poder físico e emocional. Uma vez, quando lhe murmurei isso ao ouvido, ele limitou-se a dizer:
"eu sou o caminho e um peregrino e todas as velas que alguma vez se fizeram ao mar."
Mais tarde fui ver num dicionário. A primeira coisa em que as pessoas pensam quando ouvem a palavra “peregrino" é num falcão. Mas a palavra tem outros sentidos, e ele certamente sabia-o. Um deles é “estrangeiro, estranho". Outro é vagabundo ou de ambulante, migratório". O latim peregrinus, que é uma das raízes da palavra, significa desconhecido. Ele era tudo isso - um desconhecido, um estrangeiro no sentido mais geral da palavra, e agora que penso nisso, também tinha algo de falcão.
Compreendam, meus filhos, que estou tentando exprimir o que não se pode dizer em palavras. Só espero que um dia vocês possam viver o que eu experimentei, contudo, começo a pensar que isso não é provável. Embora me pareça que não esteja na moda dizer estas coisas nestes nossos tempos mais esclarecidos, não creio que seja possível que uma mulher possua o tipo de poder especial que tinha Robert Kincaid. Por isso Michael, com isto fica excluído. Quanto a ti, Carolyn, temo que a má notícia seja que existiu apenas um Robert Kincaid, e nada mais. Se não tivesse sido por vocês e pelo pai de vocês , teria ido para onde quer que fosse com ele, imediatamente. Ele pediu-me, implorou-me que o fizesse, mas eu não o fiz, e ele era uma pessoa muito sensível e altruísta para interferir nas nossas vidas depois disso.
O paradoxo é que se não tivesse sido por Robert Kincaid, não sei se teria podido ficar na fazenda todos estes anos. Em quatro dias, ele deu-me uma vida inteira, um universo, e deu consistência a todo o meu ser. Nunca deixei de pensar nele, nem por um momento. Mesmo quando não pensava nele conscientemente, sentia-o sempre algures, ele estava sempre presente.
Mas isso nunca tirou nada ao que sentia por vocês os dois ou pelo pai de vocês. Pensando apenas em mim própria por um momento, não tenho a certeza de ter tomado a decisão certa. Mas tendo em conta a família, tenho a certeza de que o fiz. Embora deva ser honesta e dizer-vos que, desde o início, Robert entendeu melhor do que eu o que formávamos juntos. Acho que só com o tempo comecei a compreender o seu significado, gradualmente. Se realmente o tivesse compreendido, quando ele me encarou pedindo-me que fosse com ele, provavelmente tê-lo-ia feito.
Robert acreditava que o mundo se tinha tornado demasiado racional, que teria deixado de confiar na magia como deveria.
Muitas vezes me perguntei se não terei sido muito racional ao tomar a minha decisão.
Estou certa de que vocês devem ter achado o pedido do meu enterro incompreensível, talvez tenham achado que era um capricho de uma velha tonta. Depois de lerem a carta do advogado de Seattel de 1982 e os meus diários, compreenderão porque fiz este pedido. Dei a minha vida à minha família; dei a Robert o que restou de mim.
Acho que Richard sabia que havia algo em mim que ele não podia atingir, e por vezes pergunto-me se ele não terá encontrado o envelope pardo quando eu o guardava em casa, no escritório. Mesmo antes de ele morrer, eu estava sentada diante dele num hospital em Des Moines e ele disse-me:
“Francesca, sei que você também tiveste os seus sonhos. Lamento não te ter podido realizar." Foi o momento mais comovente da nossa vida em comum.
Não quero que vocês se sintam culpados nem com pena, nem nada do gênero. Não é essa a minha intenção. Só quero que saibam quanto amei Robert Kincaid. Tive de viver com isso dia após dia, durante todos estes anos. Tal como ele. Embora nunca tenhamos voltado a falar um com o outro, permanecemos tão intimamente ligados quanto é possível a duas pessoas estarem-no. Não consigo encontrar palavras para exprimir isto adequadamente. Ele exprimiu-o melhor quando me disse que tínhamos deixado de ser dois seres distintos e que nos tínhamos tornado num terceiro ser formado por nós os dois.
Nenhum de nós existia independente desse ser. E esse ser foi deixado à deriva. Carolyn, lembra-se daquela horrível discussão que tivemos por causa do vestido cor-de-rosa pálido que eu tinha no meu armário? Tinha-o visto e queria usá-lo. Disse que não se lembrava de me ter visto com ele, por isso queria que fosse arrumado para te servir. Foi o vestido que eu usei na primeira noite em que Robert e eu fizemos amor. Nunca na minha vida estive tão bonita como nessa noite. O vestido era a minha pequena e tonta recordação daqueles dias. Foi por isso que nunca voltei a usá-lo e recusei emprestar-te.
Depois de Robert ter partido daqui em 1965, apercebi-me do pouco que sabia dele relativamente à história da sua família. Embora creia que tenha sabido quase tudo o resto acerca dele – tudo o que realmente interessava - naqueles breves dias. Era filho único, os seus pais tinham ambos morrido, e ele tinha nascido numa pequena cidade do Ohio. Não tenho sequer a certeza se freqüentou a universidade ou mesmo o liceu, mas tinha uma inteligência brilhante à sua maneira, crua, primitiva, quase mística. Oh sim, foi um fotógrafo de guerra e esteve com a marinha no Sul do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. Foi casado uma vez e divorciou-se, muito antes de me ter conhecido. Não teve filhos. A sua mulher estava ligada à música, era uma cantora folk, parece-me que foi isso que ele disse, e as longas ausências dele para as suas expedições fotográficas foram muito duras para o casamento. Ele assumia a culpa da separação.
Para além disso, Robert não tinha família, tanto quanto sei.
Estou pedindo que o tomem parte da nossa, por muito difícil que isto possa parecer à primeira vista. Pelo menos eu tinha uma família, uma família com outros. Robert estava sozinho. Não era justo, e eu sabia-o. Prefiro, pelo menos julgo-o, por causa da memória de Richard e da forma como as pessoas falam, que de alguma forma tudo isto seja mantido no seio da família Johnson. Mas deixo isso ao seus critério.
Seja como for, não me envergonho do que se passou entre mim e Robert Kincaid. Pelo contrário. Amei-o desesperadamente ao longo de todos estes anos, embora, por razões pessoais, o tenha tentado contatar apenas uma vez.
Foi depois da morte do pai de vocês. A tentativa falhou, e tive medo que lhe tivesse acontecido algo, por isso, por medo, não voltei a tentar de novo. Simplesmente não conseguia enfrentar essa realidade. Assim, podem imaginar como me senti quando chegou em 1982 o embrulho com a carta do advogado.
Como já disse, espero que me compreendam e não façam mau juízo de mim. Se me amam, devem amar o que eu fiz. Robert Kincaid ensinou-me o que é ser uma mulher de uma forma que poucas mulheres, talvez nenhuma, alguma vez experimentarão. Ele era delicado e carinhoso, e merece, certamente, o respeito de vocês e talvez o seu amor. Espero que possam dar-lhe as duas coisas. A sua maneira, através de mim, ele foi bom para vocês.
Sejam felizes, meus filhos. Mãe
Fez-se um silêncio na velha cozinha. Michael respirou profundamente e olhou pela janela. Carolyn olhou em volta, para o lava-louças, para o chão, para a mesa, para tudo. Quando falou, a sua voz era quase um suspiro.
"Oh, Michael, Michael, pensa neles durante todos estes anos, desejando-se tão desesperadamente. Ela renunciou a ele por nós e pelo pai. E Robert Kincaid manteve-se afastado por respeito aos seus sentimentos por nós. Michael, custa-me muito essa idéia. Nós encaramos os nossos casamentos de uma forma tão diferente, e fomos uma das razões porque um amor tão bonito acabou como acabou.
"Estiveram juntos quatro dias, apenas quatro. Numa vida inteira. Foi quando nós fomos àquela ridícula feira em Illinois. Olha para a fotografia da mãe. Nunca a vi assim. Está tão bonita, e não é da fotografia. É do que ele fez por ela. Olha para ela, tão selvagem e tão livre. Com os cabelos ao vento, e a expressão tão viva. Está maravilhosa."
"Meu Deus," foi a única coisa que Michael conseguiu dizer, limpando a testa com um pano de cozinha e limpando os olhos quando Carolyn não estava olhando.
Carolyn voltou a falar.
"Aparentemente, ele nunca tentou contatá-la ao longo de todos estes anos. E deve ter morrido sozinho, foi por isso que lhe enviou as máquinas.
"Lembro-me da discussão que tive com a mãe por causa do vestido cor-de-rosa. Durou vários dias. Eu barafustei e perguntei porquê. Depois recusei-me a falar com ela. A única coisa que ela disse foi: "Não, Carolyn, esse não." E Michael lembrou-se da velha mesa onde estavam sentados. Agora compreendia porque Francesca lhe pedira para trazê-la de novo para a cozinha depois da morte do seu pai.
Carolyn abriu o pequeno envelope almofadado.
"Aqui está a sua pulseira e a corrente de prata com a medalha. E aqui está o bilhete que a mãe mencionava na sua carta. O que ela lhe deixou em Roseman Bridge. Foi por isso que ele lhe enviou esta fotografia da ponte onde se vê o papel espetado na madeira.
"Michael, que vamos fazer? Pensa nisso por um momento, eu já volto."
Caroline subiu as escadas a correr e voltou passados uns minutos com o vestido cor-de-rosa cuidadosamente embrulhado num plástico. Desembrulhou-o e estendeu-o para Michael o ver.
"Imagina-a com este vestido dançando com ele aqui na cozinha. Lembra-se de todo o tempo que passamos aqui e das imagens que ela deve ter visto enquanto cozinhava e quando estávamos aqui todos juntos, falando dos nossos problemas, sobre que universidade devíamos escolher, sobre como era difícil ter êxito no casamento. Meu Deus, como somos inocentes e imaturos comparados com ela."
Michael acenou e voltou-se para o armário acima do lava-louças.
"Achas que a mãe tinha alguma coisa para beber aqui? Estou precisando urgentemente. E em resposta à sua pergunta, não sei o que vamos fazer."
Procurou no armário e encontrou uma garrafa de conhaque, quase vazia.
"Dá para dois cálices, Carolyn. Quer?"
“Quero!"
Michael tirou os dois únicos cálices de conhaque que havia no armário e colocou-os na mesa de fórmica amarela. Esvaziou a última garrafa de conhaque de Francesca dentro deles, enquanto Carolyn começava a ler em silêncio o primeiro volume dos seus diários.
"Robert Kincaid apareceu na minha vida numa segunda-feira, no dia 16 de Agosto de 1965. Estava à procura de Roseman Bridge. Era quase noite, estava calor, e vinha numa caminhonete a que chamava Harry... "
POS-SCRíPTUM: O NIGHTTIAVVK DE TACONA
À medida que escrevia a história de Robert Kincaid e Francesca Johnson, ia ficando cada vez mais intrigado com Kincaid e o pouco que sabíamos dele e da sua vida. Apenas algumas semanas antes do livro ir para a tipografia, fui a Seattle tentar obter mais informações sobre ele. Parecia-me que, visto gostar de música e ser ele próprio um artista, poderia haver alguém no mundo artístico e musical de Puget Sourid que o tivesse conhecido. O diretor artístico da Seaule Times deu-me algumas informações úteis. Embora não conhecesse Kincaid, deixou-me consultar as seções importantes do jornal publicadas entre 1975 e 1982, o período que me interessava mais.
Enquanto lia as edições de 1980, encontrei uma fotografia de um músico de jazz negro, um saxofonista chamado John "Nighthawk" Cummings. E junto à fotografia estava a assinatura de Robert Kincaid. O sindicato de músicos local deu-me o endereço de Cummings, prevenindo-me de que ele não trabalhava há já alguns anos. O endereço era de uma rua secundária perto de um bairro industrial de Tacoma, mesmo à saída da auto-estrada 25 de quem vinha de Seaffie.
Fui várias vezes a sua casa antes de o encontrar. A princípio mostrou-se cauteloso perante as minhas perguntas. Mas convenci-o de que o meu interesse por Kincaid era sério e bem intencionado, e depois disso tornou-se cordial e aberto. O que se segue é uma transcrição ligeiramente retocada da minha entrevista com Cummings, que tinha setenta anos na altura em que falei com ele. Simplesmente liguei o meu gravador e deixei-o falar sobre Robert Kincaid.
ENTREVISTA COM NIGHTHAWK CUMMINGS
Eu estava dando uns concertos no Shorty's, em Seattle, onde vivia nessa altura, e precisava de uma boa fotografia minha em preto e branco para a publicidade. O contrabaixo disse-me que conhecia um cara que vivia numa das ilhas e que trabalhava bem. Não tinha telefone, por isso enviei-lhe uma carta.
Ele veio ter comigo, era um tipo estranho de jeans, botas e suspensórios cor-de-laranja. A certa altura tirou umas máquinas velhas e estragadas que nem sequer parecia possível funcionarem e eu pensei ai, ai. Encostou-me a uma parede de cor clara com o saxofone e disse-me para tocar ininterruptamente. Eu assim fiz. Durante os primeiros três minutos, ficou ali a olhar para mim atentamente, muito atentamente, com os olhos azuis mais frios que já vi.
Passado algum tempo, começou a tirar fotografias. Nessa altura pediu-me para tocar Autumn Leaves. E eu toquei. Toquei a música pelo menos dez minutos, enquanto ele continuava a trabalhar com as máquinas, tirando fotografias umas a seguir às outras. Depois disse: "ótimo, já está. Amanhã estão prontas...
No dia seguinte trouxe-me e eu fiquei espantado, já me tinham tirado muitas fotografias, mas aquelas eram de longe as melhores. Cobrou-me cinqüenta dólares, o que me pareceu baratíssimo. Agradeceu-me, e enquanto saía perguntou-me onde é que eu costumava tocar. "No Shorty's", disse-lhe eu.
Passado algum tempo, uma noite olho para o público e vejo-o sentado numa mesa a um canto, a ouvir com bastante atenção.
Começou a vir uma vez por semana, sempre às terças-feiras, e sempre bebendo cerveja, embora não muita. Por vezes, durante os intervalos, ia conversar com ele durante alguns minutos. Era um homem pacato, não falava muito, mas era muito agradável, e perguntava-me sempre educadamente se eu não me importava de tocar “Autun-in Leaves".
Ao fim de algum tempo, começamos a conhecer-nos um pouco melhor. Eu gostava de ir até ao porto ver a água e os barcos, e ele também. Por isso chegamos a sentar-nos num banco durante tardes inteiras a conversar. Não passávamos de um par de velhos a desabafar, sentindo-se um pouco inúteis e um pouco ultrapassados.
Ele costumava levar o seu cão. Belo animal. Chamava-lhe Caminho.
Compreendia a magia. Os músicos de jazz também a compreendem, talvez tenha sido por isso que nos demos bem. Uma pessoa toca uma música que já tocou milhares de vezes, e de repente surge uma série de idéias novas do saxofone sem que nos tenham passado conscientemente pela cabeça. Ele dizia que a fotografia e a vida em geral eram bastante assim. E acrescentava: "Como também é fazer amor com uma mulher que se ama.”
Estava trbalhando em algo que consistia em converter a música em imagens visuais. Uma vez disse-me: John, lembra-se daquele ornamento que toca quase sempre no quarto compasso de "Sophisticated Lady"? Acho que no outro dia consegui fotografá-lo. A luz refletia-se na água exatamente como era preciso e uma garça azul deu umas voltas em frente ao visor ao mesmo tempo. Pode dizer-se que eu vi esse ornamento enquanto o ouvia, e tirei a fotografia."
Passava a maior parte do tempo a transformar a música em imagens. Estava obcecado com isso. Não sei do que vivia. Nunca falava muito na sua própria vida. Eu sabia que ele tinha viajado muito em expedições fotográficas, mas nada mais até ao dia em que lhe perguntei sobre a medalha de prata que ele tinha numa corrente ao pescoço. Ao aproximar-me, vi o nome "Francesca" gravado na medalha. Por isso perguntei-lhe: "Isso tem alguma história?"
Durante algum tempo ele ficou calado, a olhar para a água. Depois disse:
"Quanto tempo tem?" Bem, era segunda-feira, a minha noite de folga, por isso disse-lhe que tinha o tempo que fosse preciso.
Ele começou a falar. Foi como abrir uma torneira. Falou durante toda a tarde e uma boa parte da noite. Tive a sensação de que ele tinha guardado tudo aquilo dentro dele durante muito tempo.
Nunca mencionou o sobrenome da mulher, nunca disse onde tudo se tinha passado. Mas, não duvide, aquele Robert Kincaid era um poeta quando falava sobre ela. Ela devia ser de fato especial, uma senhora incrível. Ele começou a citar uma parte de uma coisa que tinha escrito para ela - algo sobre a Dimensão Z, tanto quanto me lembro. Lembro-me de ter pensado que aquilo parecia uma das improvisações de Omette Coleman.
E, pode crer, ele desatou a chorar enquanto falava. Chorava com grandes lágrimas como choram os velhos, como pode chorar um saxofone a tocar. Mais tarde, percebi porque me pedia sempre para tocar “Autumn Leaves" e, acredite, comecei a gostar daquele cara. Qualquer homem que consegue amar assim uma mulher, é digno de ser amado.
Por isso pus-me a pensar naquilo, na força da relação que havia entre eles os dois. Naquilo a que ele chamava as velhas sensações." E disse para comigo: "Tenho de tocar esta força, este amor, fazer com que as velhas sensações saiam do meu saxofone." Havia algo de terrivelmente lírico em tudo aquilo. Por isso escrevi esta música - demorei três meses. Queria que fosse uma coisa simples, elegante. É fácil fazer coisas complicadas. O verdadeiro desafio é a simplicidade. Trabalhei na música dias a fio, até que me começou a sair bem. Depois trabalhei-a um pouco mais e escrevi o acompanhamento para piano e contrabaixo. Finalmente, uma noite toquei-a. Ele estava ali, entre o público; era uma terça-feira à noite como de costume. Costumava ser uma noite fraca, com cerca de vinte pessoas no bar, e ninguém ligava muito ao que o grupo estava tocando.
Ele estava ali sentado, calmamente, a ouvir atentamente como sempre, e eu disse ao microfone: "Vou tocar uma música que escrevi para um amigo meu. Chama-se "Francesca."
Enquanto falava olhei para ele. Ele estava a olhar para a garrafa de cerveja, mas quando eu disse ,”Francesca”, olhou lentamente para mim, puxou para trás os cabelos grisalhos com as duas mãos, acendeu um Camel e aqueles olhos azuis fixaram-se em mim.
Fiz aquele saxofone tocar como nunca o fizera antes, fi-lo chorar por todos os quilômetros e anos que os tinham separado. Havia uma pequena figura melódica na primeira parte que parecia pronunciar o nome dela - "Fran... ces... ca." Quando acabei, ele levantou-se muito direito, sorriu e acenou com a cabeça, pagou a conta e foi-se embora. Depois disso passei a tocar sempre a música quando ele aparecia. Ele emoldurou uma fotografia de uma velha ponte coberta e me ofereceu por ter escrito a música. Está ali pendurada. Nunca me disse onde a tinha tirado, mas debaixo da sua assinatura está escrito "Roseman Bridge".
Numa terça-feira à noite, há sete, talvez oito anos, não apareceu. Também não veio na semana seguinte. Pensei que estava doente ou coisa parecida. Comecei a ficar preocupado, e fui até ao porto, à procura dele. Ninguém soube dizer-me nada. Finalmente, apanhei um barco até à ilha onde vivia. Vivia numa velha cabana - na verdade era mais uma barraca - junto à água.
Um vizinho viu-me a espreitar por ali, e perguntou-me o que estava fazendo. Quando lhe respondi, ele disse-me que Robert tinha morrido há cerca de dez dias atrás. Meu Deus, doeu-me ouvir aquilo. Ainda dói. Gostava muito daquele homem. Havia algo nele, não sei o quê. Dava-me a sensação de que sabia coisas que o resto das pessoas não sabe. Perguntei ao vizinho pelo cão. Não sabia. Disse que também não conhecia Kincaid. Por isso telefonei para o canil municipal, e lá estava o Caminho. Fui buscá-lo e ofereci-o ao meu sobrinho.
A última vez que o vi, ele e o garoto viviam uma paixão. Isso fez-me sentir bem.
Bem, é esta a história. Pouco depois de ter descoberto o que acontecera a Kincaid, o meu braço esquerdo começou a ficar dormente quando tocava mais de vinte minutos seguidos. É um problema de coluna. Por isso já não trabalho. Mas garanto-lhe que vivo obcecado com a história que me contou sobre ele e a tal mulher. Por isso, todas as terças-feiras agarro no saxofone e toco a música que escrevi para ele. Toco-a aqui, só para mim. E, por alguma razão, olho sempre para a fotografia enquanto a estou tocando. Há algo nela, não sei o que é, mas não consigo tirar os olhos dela. Fico ali, ao crepúsculo, a fazer aquele velho saxofone chorar, e toco aquela música para um homem chamado Robert Kincaid e uma mulher a quem ele chamava Francesca.
Robert James Waller
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