Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS POSSUÍDAS
AS POSSUÍDAS

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

AS POSSUÍDAS / Ira Levin

 

 

 

 

A biblioteca estava movimentada. A srta. Austrian disse que eles estavam lá embaixo, no porão. A porta da esquerda, prateleira de baixo. Que os deixasse em ordem. Que não fumasse. Que desligasse as luzes.

Ela desceu a escada estreita e íngreme, tocando a parede com a mão. Não havia corrimão.

A porta da esquerda. Achou o interruptor. Um ponto fluorescente; cheiro de papéis velhos; o ruído de um motor aumentando de intensidade.

O quarto era pequeno, de teto baixo. As paredes, cheias de prateleiras com revistas, circundavam uma mesa de leitura e quatro cadeiras de cozinha, de metal cromado e plástico vermelho.

Da prateleira inferior, sobressaíam grandes volumes encadernados de marrom, que davam a volta ao quarto inteiro, em posição horizontal, empilhados de seis em seis.

Ela pôs a bolsa na mesa, tirou o casaco e colocou-o numa cadeira.

Começou com os de cinco anos atrás, folheando os volumes de trás para a frente, cada um compreendendo meio ano.

"As associações Cívica e Masculina vão fundir-se — A união proposta entre a Associação Cívica de Stepford e a Associação Masculina de Stepford foi endossada por membros de ambas as organizações e terá lugar dentro de algumas semanas. Thomas C. Miller III e Dale Coba, os respectivos presidentes... "

Folheou mais para trás, passando por jogos de futebol, ligas infantis e nevascas, roubos, colisões, disputas escolares.

"O Clube Feminino suspende suas reuniões — O Clube Feminino de Stepford está suspendendo suas reuniões bissemanais devido à diminuição do número de membros, de acordo com a sra. Richard Ockrey, que assumiu a presidência do clube há somente dois meses, em consequência da renúncia da presidente anterior, sra. Alan Hollingsworth. É somente uma suspensão temporária, disse a sra. Ockrey, em sua casa da Fox Hollow Lane. Estamos planejando uma campanha em grande escala para atrair sócias, e reiniciar as atividades no começo da primavera...

Não diga, sra. Ockrey.

Folheou mais para trás, passando por anúncios de filmes antigos, comida barata, o incêndio na Igreja Metodista e a inauguração do sistema de incineração.

"A Associação Masculina compra a casa Terhune — Dale Coba, presidente da Associação Masculina de Stepford... "

Uma mudança na lei de zoneamento, um roubo na CompuTech.

Colocou o volume mais antigo sobre o anterior.

Sentada, abriu o volume pelo final.

"A Liga de Eleitoras pode acabar fechando."

Que havia de tão surpreendente nisso?

"A menos que o decréscimo no número de sócias seja revertido, a Liga de Eleitoras de Stepford pode ser forçada a fechar suas portas. Esse é o aviso da nova presidente da Liga, sra. Theodore van Sant, da Fairview Lane... "

Carol?

Para trás, para trás.

O fim da estiagem, a volta da estiagem.

"A Associação Masculina reelege Coba — Dale Coba, da Anvil Road, foi eleito por unanimidade para uma segunda gestão de dois anos como presidente da progressista..."

Para trás mais dois anos, então.

Pulou três volumes.

Um roubo, um incêndio, uma quermesse, uma avalancha de neve.

Ela segurava as páginas com uma das mãos e as virava com a outra; rápido, rápido.

"Formada a Associação Masculina — Doze homens de Stepford, que haviam reformado o bar fechado da Switzer Lane, e que se reuniam nele há cerca de um ano, formaram a Associação Masculina de Stepford, e tornar-se-ão os novos membros. Dale Coba, da Anvil Road, foi eleito presidente da associação; Duane T. Anderson, da Switzer Lane, é o vice-presidente, e Robert Summer Jr., da Gwendolyn Lane, é o secretário-tesoureiro. Segundo o sr. Coba, a associação tem finalidades 'puramente sociais: pôquer, conversa entre homens e troca de ideias sobre passatempos e atualidades'. A família Coba parece ser especialmente empreendedora. A sra. Coba estava entre as fundadoras do Clube Feminino de Stepford, se bem que recentemente se tenha desligado, assim como a sra. Anderson e a sra. Summer. Outros membros da Associação Masculina de Stepford são Claude Axhelm, Peter J. Duwicki, Frank Ferretti, Steven Margolies, Ike Mazzard, Frank Roddenberry, James J. Scofield, Herbert Sundersen e Martin I. Weiner. Homens interessados em informações mais detalhadas devem..."

Pulou mais dois volumes e passou a virar as páginas juntando um número inteiro, procurando em cada um as "Notas sobre os recém-chegados", a matéria de segunda página.

" ... o sr. Ferretti é um engenheiro que trabalha no laboratório de desenvolvimento de sistemas da Corporação CompuTech...

... o sr. Summer, que possui várias patentes de corantes e plásticos, juntou-se recentemente à Corporação AmeriChem-Willis, onde faz pesquisas em polímeros de vinil..."

"Notas sobre recém-chegados", "Notas sobre recém-chegados"; só parava quando via nomes conhecidos, pulando até o fim do artigo, dizendo para si mesma que estava certa, ela estava certa.

" ... o sr. Duwicki, conhecido pelos amigos como Wick, trabalha no departamento de microcircuitos da Corporação Instatron...

... o sr. Weiner está na divisão de som da Corporação Instatron...

... o sr. Margolies trabalha com Reed & Saunders, produtores de mecanismos de estabilização, cuja nova fábrica, na Rodovia 9, começa a funcionar na próxima semana."

Colocava os volumes nos seus lugares e retirava outros, largando-os pesadamente sobre a mesa.

" ... o sr. Roddenberry é diretor associado do laboratório de desenvolvimento de sistemas da Corporação CompuTech.

... o sr. Sundersen projeta sensores ópticos para a firma Óptica Ulitz..."

E, finalmente, encontrou.

Leu o artigo inteiro.

"Os novos vizinhos da Anvil Road são o sr. e a sra. Dale Coba e seus filhos, Dale Jr., de quatro anos, e Darren, de dois. Os Cobas vieram de Anaheim, Califórnia, onde moraram por seis anos. 'Até agora estamos gostando desta parte do país', disse a sra. Coba. 'Não sei como nos sentiremos quando o inverno chegar. Não estamos acostumados com o clima frio.'

O sr. e a sra. Coba frequentaram a UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles. (N. do T.)) e o sr. Coba fez pós-graduação no California Institute of Technology. Durante os últimos seis anos, esteve trabalhando em Audio-animatografia, na Disneylândia, ajudando a criar os bonecos móveis e falantes dos presidentes, que apareceram no número de agosto da National Geographic. Seus passatempos são caça e piano. A sra. Coba, que se formou em línguas, está fazendo, em seu tempo livre, uma tradução do romance clássico norueguês As filhas do comandante.

O trabalho do sr. Coba aqui, provavelmente, vai aparecer menos do que na Disneylândia; ele entrou para o departamento de pesquisa e desenvolvimento da firma Burnham-Massey-Microtech."

Ela deu uma risada.

Pesquisa e desenvolvimento! E, provavelmente, vai aparecer menos!

Ela riu e riu.

Não conseguia parar.

Não queria parar!

Ria, de pé, olhando para as "Notas sobre os recém-chegados", em sua coluna bem-arrumada. Provavelmente vai aparecer menos! Meu Deus do céu!

Fechou o grande volume marrom, rindo, e, pegando-o junto com o volume que estava embaixo, atirou-os para o seu lugar na prateleira.

— Sra. Eberhart? — Era a srta. Austrian, lá em cima. — São cinco para as seis; vamos fechar.

"Pare de rir, pelo amor de Deus."

— Já terminei — disse ela. — Estou só arrumando os volumes.

— Verifique se estão na ordem certa:

— Pode deixar — gritou ela.

— E apague as luzes.

Colocou todos os volumes mais ou menos em ordem.

— Ah, meu Deus do céu! — disse ela, sorrindo. — Provavelmente!

Pegou a bolsa e o casaco, apagou as luzes e subiu as escadas, rindo, em direção à srta. Austrian, que a espiava. Não era de admirar!

— A senhora achou o que procurava? — perguntou a srta. Austrian.

— Ah, sim — disse ela, controlando as risadas. — Muito obrigada. Você é uma fonte de sabedoria. Você e a sua biblioteca. Obrigada. Boa noite.

— Boa noite — disse a srta. Austrian.

Atravessou a rua até a farmácia, porque, Deus sabia, necessitava de um tranquilizante. A farmácia estava fechando também; semi-escurecida e sem ninguém além dos Cornells. Entregou a receita ao sr. Cornell. Ele a leu e disse:

— Sim, posso arranjar isso agora mesmo. —

Foi até os fundos.

Ela olhou, sorridente, para os pentes numa estante. Um vidro tilintou às suas costas, e ela se virou.

A sra. Cornell estava junto à parede, atrás do balcão lateral, fora da parte iluminada da farmácia. Limpava alguma coisa com um pano, limpava a prateleira e colocava alguma coisa de volta, fazendo o vidro tilintar. Era alta e loura, tinha pernas longas, busto cheio; tão bonita como... ah, como uma garota de Ike Mazzard. Tirou alguma coisa da prateleira e recolocou no lugar, fazendo o vidro tilintar; tirou outra coisa da prateleira e...

— Alô — disse Joanna.

A sra. Cornell virou a cabeça.

— Sra. Eberhart — disse ela, e sorriu. Como vai?

— Bem — disse Joanna. — Tudo azul. E como vai a senhora?

— Muito bem, obrigada — disse a sra. Cornell. Esfregou alguma coisa que estava segurando, limpou a prateleira e recolocou-a no lugar, fazendo o vidro tilintar; tirou outra coisa da prateleira, esfregou-a e...

— A senhora faz isso muito bem — disse Joanna.

— Estou só tirando a poeira — disse a sra. Cornell, esfregando a prateleira.

Nos fundos, alguém batia à máquina.

Joanna perguntou:

— Conhece o discurso de Gettysburg?

— Receio que não — disse a sra. Cornell, esfregando alguma coisa.

— Ora, vamos. Todo mundo o conhece. "Há oitenta e sete anos..."

— Isso eu conheço, mas não sei o resto — disse a sra. Cornell. Recolocou alguma coisa na prateleira, fazendo o vidro tilintar, pegou outra coisa da prateleira e esfregou-a...

— Ah, compreendo, não adianta — disse Joanna. — Conhece "Este porquinho foi ao mercado"?

— Claro — disse a sra. Cornell, esfregando a prateleira...

— Ponho na conta? — perguntou o sr. Cornell. Joanna virou-se. Ele estendeu um pequeno frasco de tampa branca.

— Sim — disse ela, pegando-o. — O senhor tem um pouco de água? Eu gostaria de tomar um, agora.

Ele assentiu e voltou para os fundos.

Ali em pé, com o frasco na mão, ela começou a tremer. Vidros tilintavam atrás dela. Tirou a tampa do frasco e puxou o algodão para fora. Lá dentro havia comprimidos brancos; ela virou um na palma da mão, tremendo, empurrou o algodão para dentro do frasco e pressionou a tampa. Vidros tilintavam atrás dela...

O sr. Cornell voltou com um copo de papel cheio de água.

— Obrigada — disse ela, segurando-o. Colocou o comprimido na ponta da língua, tomou um gole de água e engoliu-o.

O sr. Cornell escrevia num bloco. O alto de sua cabeça era calvo e branco, como alguma coisa que estivesse embaixo de uma pedra, viscosa, com alguns fios de cabelo castanho empastados. Ela bebeu o resto da água, largou o copo e colocou o frasco dentro da bolsa. Vidros tilintavam atrás dela...

O sr. Cornell virou o bloco em sua direção e ofereceu-lhe uma caneta, sorrindo. Ele era feio; tinha olhos pequenos e quase nenhum queixo.

Ela pegou a caneta.

— O senhor tem uma esposa adorável — disse, assinando o bloco. — Bonita, prestativa e submissa ao seu amo e senhor; o senhor é um homem de sorte. — Estendeu a caneta para ele.

Ele a pegou, com o rosto vermelho.

— Eu sei — disse ele, olhando para baixo.

— Esta cidade está cheia de homens de sorte — disse ela. — Boa noite.

Boa noite — disse ele.

— Boa noite — disse a sra. Cornell. — Volte sempre.

Saiu para a rua, enfeitada para o Natal. Passavam uns carros, com os pneus cantando.

As janelas da Associação Masculina estavam iluminadas; assim como as janelas das casas, mais acima, na colina. Luzes vermelhas, verdes e laranja piscavam em algumas delas.

Respirou profundamente o ar da noite, pisou com as botas num monte de neve e atravessou a rua.

Caminhou ao longo do presépio iluminado e parou para olhá-lo; Maria, José e o Menino Jesus, e ovelhas e bezerros em volta deles. Tudo muito real, se bem que um pouco ao estilo de Disney.

— Vocês também falam? — perguntou ela a Maria e José. Não houve resposta, eles simplesmente continuaram a sorrir.

Ela ficou ali — não tremia mais —, e então caminhou de volta à biblioteca.

Entrou no carro, deu a partida e acendeu os faróis; atravessou a rua, deu marcha à ré e passou pelo presépio, em direção à colina.

A porta abriu-se quando ela subia pelo caminho, e Walter perguntou:

— Onde é que você esteve?

Ela bateu as botas contra os degraus da porta.

— Na biblioteca.

— Por que não telefonou? Pensei que você tivesse tido um acidente, com essa neve...

— As estradas estão livres — disse ela, limpando as botas no capacho.

— Você devia ter telefonado, por Deus do céu. Já são mais de seis horas. — Ela entrou. Ele fechou a porta.

Joanna colocou a bolsa na cadeira e começou a tirar as luvas.

Como é ela? — perguntou ele.

— É muito simpática. Compreensiva.

— O que é que ela disse?

Ela colocou as luvas nos bolsos e começou a desabotoar o casaco.

— Achou que eu preciso de uma pequena terapia. Para esclarecer meus sentimentos antes que nos mudemos. Estou sendo impelida em duas direções por exigências conflitantes. — Tirou o casaco.

— Bem, isso me parece um conselho sensato — disse ele. — Para mim, pelo menos. O que é que você acha?

Ela olhou para o casaco, segurando-o pelo forro da gola, e largou-o sobre a bolsa, na cadeira. Suas mãos estavam frias; esfregou uma palma na outra, olhando para ele.

Walter a olhava com muita atenção, com a cabeça inclinada. A barba por fazer salpicava suas faces e escurecia a cova de seu queixo. Seu rosto estava mais cheio do que ela se lembrava — ele estava engordando — e sob seus maravilhosos olhos azuis já se formavam bolsas. Qual era sua idade agora? Quarenta anos no seu próximo aniversário, dia 3 de março.

— A mim — disse ela — parece um erro, um grande erro. — Baixou as mãos e alisou a saia. — Vou levar Pete e Kim para a cidade. Para a casa de Shep e...

— Para quê?

— ... Sylvia ou para um hotel. Telefonarei em um dia ou dois. Ou pedirei a alguém para telefonar. Um outro advogado.

Ele olhou para ela.

— Sobre o que você está falando?

— Eu sei.— disse ela. — Estive lendo vários números velhos do Chronicle. Sei o que Dale Coba costumava fazer, e o que está fazendo agora, ele e esses outros gênios da CompuTech e da Instatron.

Ele olhou para ela e piscou.

— Não sei do que você está falando — disse ele.

— Ah, chega. — Ela se virou e foi para a cozinha, atravessando o corredor e acendendo as luzes. A janelinha que dava para a sala de visitas estava às escuras. Ela se voltou; Walter estava na porta.

— Não tenho a menor ideia do que você está falando — disse ele.

Ela passou por ele.

— Pare de mentir — disse ela. — Você está mentindo para mim desde que tirei a minha primeira fotografia. — Virou-se e. começou a subir as escadas.

— Pete — chamou. — Kim.

— Eles não estão aqui.

Ela olhou para ele por cima do corrimão, à medida que ele se aproximava, vindo do corredor.

— Como você não aparecia — disse ele —, achei que seria melhor eles passarem a noite fora. No caso de haver algo errado.

Ela se voltou, olhando para ele.

— Onde estão eles? — perguntou.

— Com amigos. Eles estão bem.

— Que amigos?

Ele se aproximou até o início da escada.

— Eles estão bem — disse ele.

Ela o encarou, enquanto se agarrava ao corrimão.

— Nosso fim de semana a sós? — perguntou.

— Acho que você devia deitar-se um pouco — disse ele. Colocou uma mão na parede e a outra no corrimão. — Você não está sendo coerente, Joanna. Entre todas as pessoas, onde é que Diz entra nisso tudo? E o que é que você acaba de dizer sobre o fato de eu mentir para você?

— O que é que você fez? — perguntou ela. — Apressou a encomenda? Foi por isso que todos estavam tão ocupados esta semana? Brinquedos de Natal, essa é a maior! O que é que você estava fazendo? Experimentando o tamanho?

— Francamente, não sei o que você...

— O boneco — disse ela. Inclinou-se em sua direção segurando o corrimão. — O robô! Ah, muito "bem, advogado surpreendido por nova alegação. Você está se perdendo em créditos e propriedade. Devia estar num tribunal. Quanto é que custa? Você me diria? Estou morrendo de vontade de saber. Qual é o preço atual de uma esposa que-fica-dentro-da- cozinha, com peitos grandes e sem nenhuma exigência? Uma fortuna, aposto. Ou eles o fazem bem baratinho, em nome do velho espírito que reina na Associação Masculina? E o que acontece com as esposas reais? O incinerador? O lago de Stepford?

Ele olhava para ela, de pé, com as mãos na parede e no corrimão.

— Vá para cima e deite-se — disse ele.

— Vou sair — disse ela.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não. Não, enquanto estiver falando assim. Vá para cima e descanse.

Ela desceu um degrau.

— Não vou ficar aqui para ser...

— Você não vai sair — disse ele. — Agora, vá para cima e descanse. Quando você se acalmar, tentaremos conversar sensatamente.

Ela olhou para ele, de pé, lá embaixo, com as mãos na parede e no corrimão, olhou para o seu casaco na cadeira, virou-se e subiu rapidamente as escadas. Entrou no quarto e fechou a porta; virou a chave e acendeu as luzes.

Foi até o armário, abriu uma gaveta e tirou um suéter branco, grosso; sacudiu-o para que se desenrolasse e enfiou os braços nas mangas. Puxou a gola por sobre a cabeça e soltou o cabelo por cima. Ele tentou abrir a porta e depois bateu.

— Joanna?

— Suma — disse ela, ajeitando o suéter. — Estou descansando. Você me disse para descansar.

— Deixe-me entrar só um minuto.

Ela ficou olhando para a porta, sem dizer nada.

— Joanna, abra a porta.

— Mais tarde — disse ela. — Quero ficar só um momento.

Ela permaneceu imóvel, olhando para a porta.

— Está bem, mais tarde.

Ela ficou escutando — silêncio —, virou-se para a cômoda e abriu a gaveta de cima. Pegou um par de luvas brancas. Calçou-as, pegou um cachecol comprido e listrado e enrolou-o em volta do pescoço.

Foi até a porta e escutou, apagando as luzes.

Dirigiu-se à janela e levantou a persiana. A luz do lampião brilhava. A sala de estar dos Claybrooks estava iluminada, mas vazia; as janelas do segundo andar estavam às escuras.

Levantou a janela silenciosamente. As janelas contra tempestade estavam atrás.

Esquecera as malditas janelas contra tempestade.

Empurrou a parte de baixo. Estava bem apertada e não se movia. Empurrou com o lado de seu punho enluvado e de novo com ambas as mãos. A janela cedeu alguns centímetros para fora — e não se moveria além disso. Os pequenos braços de metal, dos lados, estavam abertos ao máximo. Ela teria de despregá-los da esquadria da janela.

Urna luz brilhou lá fora, na neve.

Ele estava na saleta.

Ela se endireitou e escutou; uma série de estalidos abafados vinham de trás dela, do telefone da mesa-de-cabeceira; de novo e de novo, longo, curto, longo.

Ele estava discando do telefone da saleta.

Chamando Dale Coba para contar-lhe que ela estava lá. Continue com os planos. Todos os sistemas em funcionamento.

Ela andou na ponta dos pés até a porta, escutou,

destrancou a porta e abriu-a com a mão. A arma espacial de Pete jazia na entrada de seu quarto. A voz de Walter se fazia ouvir fracamente.

Ela foi na ponta dos pés até a escada e começou a descer vagarosamente, silenciosamente, colando-se à parede, olhando para baixo, através das grades do corrimão, em direção ao canto onde ficava a saleta.

— ... não estou certo de conseguir dominá-la...

Pode estar certo de que não, conselheiro.

Entretanto, a cadeira perto da porta da frente estava vazia, seu casaco e sua bolsa (com as chaves do carro e a carteira) haviam sumido.

Mesmo assim, era melhor do que sair pela janela.

Alcançou o hall. Ele terminou de falar e ficou quieto. Procurar a bolsa?

Ele se moveu na saleta, e ela se agachou na sala de estar, permanecendo colada, de costas, contra a parede.

Seus passos vieram até o hall, aproximaram-se da porta e pararam.

Ela prendeu a respiração.

Uma série de sopros curtos se fizeram ouvir era o seu costumeiro som "agora vejamos" antes de abordar algum problema maior; instalando as janelas contra tempestade, montando um triciclo. (Matando uma esposa? Ou Coba, o caçador, desempenhava essa função?) Fechou os olhos e tentou não pensar, receando que, de alguma forma, seus pensamentos chamassem a sua atenção.

Seus passos subiram a escada, vagarosamente. Ela abriu os olhos e soltou a respiração pouco a pouco, esperando que ele subisse mais.

Atravessou a sala de estar rapidamente e sem ruído, passando em volta das cadeiras e da mesinha do abajur; destrancou a porta do pátio e abriu-a; destrancou a porta contra tempestade e empurrou-a de encontro a um monte de neve solta.

Espremeu-se para fora e correu sobre a neve, correu e correu, com o coração batendo; correu em direção aos troncos escuros das árvores, contra a neve, que apresentava marcas de trenó e pegadas de Pete e Kim; correu, correu e agarrou um tronco, deu a volta nele e foi tropeçando por entre troncos de árvores, troncos de árvores. Corria, tropeçava, tateava, mantendo-se no centro da longa fileira de árvores que separava as casas da Fairview Lane das casas da Harvest.

 

Era preciso chegar à casa de Ruthanne. Ruthanne lhe emprestaria dinheiro e um casaco, deixá-la-ia chamar um táxi de Eastbridge, ou alguém da cidade — Shep, Doris, Andreas —, alguém que tivesse um carro e que viesse apanhá-la.

Pete e Kim estariam bem; era preciso acreditar nisso. Eles estariam bem até que ela chegasse à cidade e falasse com as pessoas, com um advogado para conseguir tirá-los de Walter. Provavelmente, estariam cuidando muito bem deles, Bobbie ou Mary Ann Stavros — isto é, as coisas que tinham esses nomes.

E Ruthanne devia ser avisada. Talvez elas pudessem se encontrar, pois Ruthanne ainda dispunha de algum tempo.

Chegou ao final da fileira de árvores, certificando-se de que não vinham carros, e atravessou a Winter Hill Drive.

Arbustos cobertos de neve ladeavam o lado mais distante da rua. Foi caminhando depressa por trás deles, com os braços cruzados em torno do peito e as mãos calçadas com luvas finas, sob suas axilas.

A Gwendolyn Lane, onde Ruthanne morava, ficava em algum lugar perto da Short Ridge Hill, além da casa de Bobbie; para chegar lá, ela levaria quase uma hora. Talvez mais, devido à neve e à escuridão. E não ousava pedir carona, porque qualquer carro poderia ser o de Walter, e ela só perceberia quando fosse muito tarde.

Não apenas Walter, compreendeu ela, subitamente. Todos eles a estariam procurando, cruzando as ruas com lanternas e faróis. Como poderiam deixar que ela fugisse e contasse tudo? Qualquer homem representava uma ameaça; qualquer carro, um perigo. Teria de certificar-se de que o marido de Ruthanne não estava lá, antes de tocar a campainha; olhar pela janela.

Ah, Deus, poderia escapar? Nenhuma das outras havia conseguido. Talvez nenhuma delas tivesse tentado. Bobbie, não; Charmaine, também não. Talvez ela fosse a primeira a descobrir a tempo.. Se é que ainda havia tempo...

Deixou a Winter Hill e desceu apressadamente a Talcott Lane. Faróis brilharam, e um carro saiu de uma entrada à sua frente. Agachou-se ao lado de um carro estacionado e ficou imóvel, as luzes passaram por baixo dela e o carro continuou. Levantou-se e olhou: o carro seguia vagarosa e decididamente, um feixe de luz partia de um farolete, iluminando as fachadas das casas e os gramados cobertos de neve.

Desceu rapidamente a Talcott Lane, passando por casas silenciosas, com as janelas iluminadas por luzes de Natal e portas emolduradas com enfeites natalinos. Seus pés e suas pernas estavam frios, mas ela estava bem. No fim da Talcott ficava a Old Norwood Road, e de lá ela poderia alcançar ou a Chimney Road ou a Hunnicut.

Um cachorro latiu por perto, raivosamente; mas os latidos cessavam atrás dela à medida que se afastava rapidamente.

Um galho jazia na neve pisada, como um braço negro. Ela colocou sua bota por cima, quebrou a metade e prosseguiu, segurando o galho molhado e frio com a mão enluvada.

 

Uma lanterna brilhou na Pine Tree Lane. Ela correu entre duas casas, correu sobre a neve em direção à cúpula formada por um arbusto sob a neve; meteu-se tropegamente atrás dele, ofegante, apertando o galho na mão dolorida pelo frio.

Vigiou o fundo das casas, com suas janelas iluminadas. Do teto de uma delas elevavam-se fagulhas vermelhas, que dançavam e desapareciam por entre as estrelas.

A luz da lanterna veio oscilando entre duas casas, e ela recuou para trás do arbusto, esfregou um joelho, mantendo o outro aquecido sob a dobra do cotovelo.

Uma luz pálida varreu a neve em sua direção, e pontos luminosos deslizaram pela sua saia e pela mão enluvada.

Esperou, esperou mais um pouco e deu uma espiada. A forma escura de um homem dirigiu-se para as casas, seguindo um trecho de neve iluminada.

Esperou que o homem fosse embora, levantou-se e dirigiu-se apressadamente para a próxima rua, Hickory Lane? Switzer? Não tinha certeza de qual era, mas ambas levavam à Short Ridge Road.

Seus pés estavam dormentes, a despeito das botas forradas.

 

Uma luz brilhou fortemente, e ela se virou e correu. Uma luz à sua frente oscilou em sua direção, e ela correu para o lado, ao longo de um caminho vazio, passando ao lado de uma garagem, e desceu uma comprida rampa de neve. Escorregou e caiu, levantou-se, ainda segurando o galho — as luzes vinham balançando em sua direção —, e correu sobre a neve plana. Uma luz virou-se em sua direção. Ela voltou-se, dirigindo-se para a neve, que não apresentava nenhum esconderijo, virou-se e ficou onde estava, ofegante.

— Vão embora! — gritou para as luzes que balançavam em sua direção, duas de um lado e uma do outro. Levantou o galho. — Vão embora!

A luz diminuiu.

— Apaguem-nas. Nós não vamos machucá-la, sra. Eberhart. Não tenha medo, somos amigos de Walter. — A luz se foi; ela baixou a mão. — Amigos seus também. Sou Frank Roddenberry. A senhora me conhece. Calma, ninguém vai machucá-la.

Formas mais escuras do que a escuridão estavam diante dela.

— Fiquem longe — disse ela, levantando mais o galho.

— A senhora não precisa disso.

— Nós não vamos machucá-la.

— Então, vão embora — disse ela.

Todo mundo está procurando a senhora — disse a voz de Frank Roddenberrv. — Walter está preocupado.

— Aposto que sim — disse ela.

Eles estavam diante dela, três homens, distantes quatro ou cinco metros.

— Não devia ficar correndo por aí assim, sem casaco — disse um deles.

— Vão embora — gritou ela.

— P-Ponha isso no chão — disse Frank. — Ninguém vai machucá-la.

— Sra. Eberhart, eu estava falando com Walter há menos de cinco minutos. — O homem do meio é que falava. — Soubemos de suas ideias. Está errada, sra. Eberhart. Creia-me, simplesmente não é isso.

— Ninguém está fabricando robôs — disse Frank.

— A senhora deve imaginar que somos bem mais espertos do que realmente somos — disse o homem do meio. — Robôs que podem dirigir carros? E cozinhar? E cortar o cabelo das crianças?

— E tão reais que as crianças não perceberiam? — disse o terceiro homem. Ele era baixo e gordo.

— A senhora deve pensar que somos uma cidade cheia de gênios — disse o homem do meio. — Creia-me, não somos.

— Vocês são os homens que nos colocaram na lua — disse ela.

— Quem? Eu, não. Frank, você colocou alguém na lua? Bernie?

— Eu, não — disse Frank.

O homem baixo riu.

— Eu, não, Wynn. Não que eu saiba.

— Acho que nos confundiu com outros sujeitos — disse o homem do meio. — Leonardo da Vinci e Albert Einstein, talvez.

— Puxa vida! — disse o homem baixo. — Nós não queremos robôs como esposas. Queremos mulheres de verdade.

— Vão embora e deixem-me ir — disse ela

Eles permaneceram no mesmo lugar, mais escuros do que a escuridão.

— Joanna — disse Fran —, se estivesse certa e nós pudéssemos fabricar robôs que fossem tão fantásticos e reais, não acha que deveríamos estar ganhando algum dinheiro com isso?

— Isso mesmo — disse o homem do meio. — Nós todos poderíamos estar ricos, com esse tipo de conhecimento.

— Talvez fiquem — disse ela. — Talvez isso seja só o princípio.

— Ah, meu Deus — disse o homem. — Ela tem resposta para tudo. Ela é que devia ser o advogado, e não Walter.

Frank e o homem mais baixo riram.

— Vamos, Joanna — disse Frank. — P-Ponha essa barra de ferro no chão, ou o que quer que seja, e...

— Vão embora e deixem-me ir — disse ela.

— Não podemos fazer isso — disse o homem do meio. — Vai pegar uma pneumonia. Ou será atropelada por um carro.

— Estou indo para a casa de uma amiga — disse ela. — Estarei dentro de casa em alguns minutos. Já estaria lá, agora, se vocês não tivessem, ah, meu Deus... — Abaixou o galho e esfregou o braço; tremendo, esfregou os olhos e a testa.

— A senhora nos deixaria provar que está errada? — disse o homem do meio. — Aí, então, nós a levaremos para casa e a senhora pode pedir ajuda, se precisar.

Ela olhou para sua forma escura.

— Provar a mim? — disse ela.

— Nós a levaremos até o prédio, o prédio da Associação Masculina...

— Não!

— Espere um momento. Escute só, por favor.

Nós a levaremos até a casa, e poderá inspecioná-la de ponta a ponta. Tenho certeza de que ninguém vai se opor, nestas circunstâncias. E verá que...

— Não vou pôr os pés na...

— Verá que lá não existe nenhuma fábrica de robôs — disse ele. — Existe um bar, uma sala de jogos de cartas e algumas outras salas, isso é tudo. Há um projetor e alguns filmes proibidos; esse é o nosso grande segredo.

— E os caça-níqueis — disse o homem baixo.

— Sim, temos alguns caça-níqueis.

— Eu não pisaria lá dentro sem uma escolta armada — disse ela. — De mulheres soldados.

— Nós mandamos todo mundo sair — disse Frank. — Terá o lugar inteiro p-para si.

— Não irei — disse ela.

— Sra. Eberhart — disse o homem do meio. — Estamos tentando ser tão gentis quanto possível a respeito de tudo, mas há um limite, pois não podemos permanecer aqui conversando o tempo todo.

— Espere um minuto — disse o homem baixo. — Tive uma ideia. Suponhamos que uma dessas mulheres que a senhora imagina serem robôs, suponhamos que ela cortasse o dedo e sangrasse. Isso a convenceria de que ela é uma pessoa real? Ou a senhora diria que fabricamos robôs com sangue sob a pele?

— Por Deus, Bernie! — disse o homem do meio.

Frank disse:

— Você não pode pedir a uma p-pessoa que se corte só para...

— Por favor, vocês querem deixar que ela responda? Então, sra. Eberhart? Isso a convenceria? Se ela cortasse o dedo e sangrasse?

— Bernie...

— Deixem só que ela responda, que diabo!

Joanna continuou olhando e anuiu:

— Se ela sangrasse — disse ela —, eu acharia que ela era real.

— Nós não vamos pedir a ninguém que se corte. Nós vamos para a...

Bobbie o faria — disse ela. — Se é que ela é realmente Bobbie. Ela é minha amiga. Bobbie Markowe.

— Na Fox Hollow Lane? — perguntou o homem baixo.

— Sim — disse ela.

— Estão vendo só? — disse ele. — Fica a dois minutos daqui. Pensem só por um segundo, está bem? Nós não teremos de ir até o centro; não teremos de forçar a sra. Eberhart a ir para um lugar aonde ela não quer ir.

Ninguém o interrompeu.

— Acho que não é um-ma m-má ideia — disse Frank. — Poderíamos falar com a sra. Markowe.

— Ela não vai sangrar — disse Joanna.

— Ela vai, sim — disse o homem do meio.— E, quando ela sangrar, a senhora vai ver que estava errada e deixará que a levemos sem discussões para casa, onde está Walter?

— Se ela sangrar — disse ela. — Então, sim.

— Está bem, Frank, você vai correndo na frente, para ver se ela está lá e explicar-lhe do que se trata. Vou deixar minha lanterna aqui no chão, sra. Eberhart. Bernie e eu iremos na frente; a senhora apanha a lanterna e nos segue, tão recuada quanto queira. Porém mantenha a luz apontada para nós, para sabermos que a senhora está nos seguindo. Vou deixar meu casaco também; vista-o. Posso ouvir seus dentes batendo.

 

Ela estava errada. Sabia disso. Estava errada, molhada, com frio, cansada e com fome, e impelida para dezoito direções diferentes por exigências conflitantes. Inclusive a vontade de fazer xixi.

Se eles fossem assassinos, já a teriam matado. Um galho não os teria impedido. Três homens contra uma mulher.

Levantou o galho e olhou para eles, andando vagarosamente, com os, pés doendo. Largou o galho. Sua luva estava molhada e suja; seus dedos, congelados. Ela os flexionou e enfiou a mão sob a outra axila. Segurou a lanterna longa e pesada o mais firmemente que pôde.

Os homens caminhavam à sua frente, com passos curtos. O homem baixo vestia um casaco marrom e um boné de couro vermelho; o homem mais alto, uma camisa verde e calças bege, enfiadas em botas marrons. Tinha o cabelo castanho-avermelhado.

Seu casaco de couro estava quente nos ombros. Seu cheiro era forte e bom... de animal, de vida.

Bobbie iria sangrar. Era coincidência que Dale Coba houvesse trabalhado com robôs na Disneylândia e que Claude Axhelm pensasse que era Henry Higgins, e que Ike Mazzard tivesse desenhado seus lisonjeiros esboços. Coincidência que ela tivesse sido tragada pelo turbilhão... da loucura. Sim, da loucura. ("Não é catastrófico", dissera a dra. Fancher, sorrindo. "Estou certa de que posso ajudá-la.")

Bobbie iria sangrar, e ela iria para casa se aquecer.

Ir para casa e para Walter?

Quando é que havia começado essa sua desconfiança em relação a ele, a sensação de não haver nada entre eles? De quem era a culpa?

Seu rosto estava mais cheio; por que ela não o havia notado antes? Estivera ocupada demais tirando fotografias e trabalhando no quarto escuro?

Telefonaria para a dra. Fancher na segunda-feira, deitaria no divã de couro marrom, choraria um pouco, talvez, e tentaria ser feliz.

Os homens esperavam na esquina da Fox Hollow Lane.

Ela apressou o passo.

 

Frank esperava na porta iluminada de Bobbie. Os homens falaram com ele e viraram-se para ela, à medida que andava vagarosamente pela calçada.

Frank sorriu.

— Ela concordou — disse ele. — Se isso os faz sentir-se melhor, ela terá p-prazer em fazê-lo.

Ela deu a lanterna para o homem de camisa verde. Seu rosto era largo e curtido, e tinha uma aparência de força.

— Esperaremos aqui — disse ele, tirando o casaco dos ombros dela.

— Ela não precisa... — começou Joanna.

— Não, vá em frente — disse ele. — A senhora pode começar a imaginar coisas novamente, mais tarde.

Frank apareceu no degrau da porta.

— Ela está na cozinha — disse ele.

Joanna entrou na casa. O calor a envolveu. Uma vitrola berrava lá em cima, com um rock'in roll.

Foi caminhando ao longo do corredor, flexionando as mãos doloridas. Bobbie a esperava na cozinha, vestindo calça vermelha e um avental com uma grande margarida.

— Alô, Joanna — disse, e sorriu. Bobbie, bonita e de busto cheio. Mas não um robô.

— Alô — disse ela. Segurou a porta, encostou-se nela, apoiando ali a cabeça.

— Lamento que você esteja em tal estado — disse Bobbie.

— Também eu — disse ela.

— Não me importo de cortar o meu dedo um pouquinho, se isso vai tranquilizá-la. — Foi até a mesa. Caminhou suave, firme e graciosamente.

Abriu uma gaveta.

— Bobbie... — disse Joanna. Ela fechou os olhos e abriu-os. — Você é Bobbie de verdade? — perguntou.

— Claro que sou — disse Bobbie, com uma faca na mão. Foi até a pia. — Venha aqui. Você não pode enxergar daí.

A música tocou mais alto.

— O que é que está acontecendo lá em cima? — perguntou Joanna.

— Não sei. Dave está com os meninos lá em cima. Venha até aqui. Não pode ver daí.

A faca era grande, com uma lâmina pontuda.

— Você vai amputar a mão inteira com essa coisa — disse Joanna.

— Tomarei cuidado — disse Bobbie, sorrindo. — Vamos — chamou ela, segurando a grande faca.

Joanna levantou a cabeça e tirou a mão da porta. Entrou na cozinha — tão brilhante e imaculada, tão diferente da de Bobbie.

Parou. "A música é para o caso de eu gritar", pensou. "Ela não vai cortar o dedo; ela vai... "

— Vamos — disse Bobbie, de pé ao lado da pia, chamando-a, segurando a faca de lâmina pontuda.

"Não é catastrófico, dra. Fancher? Pensar que elas são robôs e não mulheres? Pensar que Bobbie me mataria? A senhora tem certeza de que pode ajudar-me? "

— Não precisa fazer isso — disse ela para Bobbie.

— Isso vai tranquilizá-la — disse Bobbie.

— Vou consultar um psiquiatra depois do ano-novo — disse ela. — Isso, sim, vai me dar paz de espírito. Pelo menos, espero que sim.

— Vamos — disse Bobbie. — Os homens estão esperando.

Joanna adiantou-se em direção a Bobbie, em pé ao lado da pia, com a faca na mão, tão real — pele, olhos, cabelos, mãos, busto subindo e descendo sob o avental — que não poderia ser um robô, simplesmente não poderia, e isso era tudo.

 

Os homens estavam em pé no degrau da porta, soprando o ar gelado, com as mãos enterradas nos bolsos. Frank balançava os quadris de um lado para o outro, ao ritmo da música a todo o volume.

Bernie disse:

— Por que está levando tanto tempo?

Wynn e Frank sacudiram os ombros.

A música tocava.

— Vou telefonar para Walter e dizer-lhe que a achamos — disse Wynn, e entrou na casa.

— Apanhe as chaves do carro de Dave!

disse Frank, atrás dele.


TERCEIRA PARTE


O estacionamento do mercado estava bem cheio, mas ela encontrou um bom lugar perto da entrada; e isso, mais o calor do sol e o cheiro doce do ar úmido, quando saltou do carro, fizeram com que ela se sentisse menos aborrecida pelo fato de ter de fazer compras. Um pouco menos aborrecida, de qualquer maneira.

A srta. Austrian vinha em sua direção, mancando, apoiada numa bengala, saindo do mercado com um pequeno saco de papel na mão e — ela não acreditou — um sorriso amistoso no rosto branco de Rainha de Copas. Para ela?

— Bom dia, sra. Hendry — disse a srta. Austrian.

Imagine só, toleram negros!

— Bom dia — disse ela.

— Março indo embora, tranquilo como um cordeiro, não é verdade?

— Sim — disse ela. — Parecia que ia ser um bicho-de-sete-cabeças..

A srta. Austrian parou e ficou de pé olhando para ela.

— Há meses que a senhora não aparece na biblioteca. Espero que não a tenhamos perdido para a televisão.

Ah, não! Eu, não. Tenho estado trabalhando.

— Em outro livro?

— Sim.

— Ótimo, avise-me quando for publicado; encomendaremos um volume.

— Avisarei — disse ela. — E será em breve. Está quase terminado.

— Passe bem — disse a srta. Austrian, sorrindo e indo embora, apoiada em sua bengala.

— Obrigada. A senhora também.

Bem, pelo menos uma venda.

Provavelmente, estava sendo hipersensível. Provavelmente, a srta. Austrian também era reservada com as brancas, a menos que elas já estivessem ali há alguns meses.

Passou pelas portas do mercado, que se abriam automaticamente, e encontrou um carrinho vazio. As fileiras de mercadorias apresentavam o desfile costumeiro dos sábados.

Seguiu rapidamente, tirando o que necessitava, manobrando o carrinho para cá e para lá. "Com licença, com licença, por favor." Ainda a incomodava a maneira como as outras faziam as compras, deslizando tão languidamente como se jamais transpirassem. Será que alguém poderia ser mais branco? E até a maneira como elas enchiam seus carrinhos! Ela poderia fazer compras no mercado inteiro durante o tempo em que elas percorriam uma fileira.

Joanna Eberhart vinha em sua direção, maravilhosa, em seu casaco azul-pálido, com o cinto bem apertado. Tinha um corpo perfeito, e estava ainda mais bonita do que Ruthanne se recordava. Os cabelos pretos estavam brilhantes e graciosamente penteados para trás. Veio devagar, olhando as prateleiras.

— Alô, Joanna — disse Ruthanne.

Joanna parou e fitou-a, com seus olhos castanhos, de cílios longos.

— Ruthanne — disse ela, e sorriu. — Alô, como vai? — Seus lábios arqueados estavam vermelhos; sua pele, rosa-pálida e perfeita.

— Estou bem — disse Ruthanne, sorrindo. — Não preciso perguntar como você vai; está maravilhosa.

— Obrigada — disse Joanna. — Ando me cuidando melhor, ultimamente.

E isso certamente aparece — disse Ruthanne.

Sinto muito por não ter telefonado — disse Joanna.

Ah, não faz mal. — Ruthanne colocou seu carrinho na frente do de Joanna, para que as pessoas pudessem passar.

— Eu tinha a intenção de lhe telefonar disse Joanna —, mas tive tanto que fazer na casa, sabe como é.

— Não tem importância — disse Ruthanne. — Também estive ocupada. Meu livro está quase terminado. Só mais um desenho grande e uns poucos pequenos.

— Parabéns — disse Joanna.

— Obrigada. O que é que você tem feito? Tem tirado fotografias interessantes?

— Ah, não — disse Joanna. — Não estou mais tirando muitas fotografias.

— Não está? — disse Ruthanne.

— Não. Eu não era muito talentosa, e estava desperdiçando um bocado de tempo que poderia ser usado com mais proveito.

Ruthanne olhou para ela.

— Telefonarei para você um dia desses, quando conseguir terminar algumas coisas — disse Joanna, sorrindo.

— Então, o que é que está fazendo além de trabalho doméstico? — perguntou Ruthanne.

— Nada, realmente — disse Joanna. — O trabalho doméstico é o suficiente para mim. Eu pensava que tinha outros interesses, mas agora me sinto melhor comigo mesma. Estou muito mais feliz também, assim como minha família. Isso é o que vale, não é?

— Sim, acho que sim — disse Ruthanne.

Olhou para baixo, para os carrinhos delas; o seu, todo amontoado, comparado com o de Joanna. — Talvez possamos marcar aquele almoço — disse, olhando para Joanna. — Agora que estou terminando o livro.

— Talvez — disse Joanna. — Foi um prazer vê-la.

— Para mim também — disse Ruthanne.

Joanna afastou-se, sorrindo. Parou, tirou uma caixa de uma prateleira, olhou-a e colocou-a no seu carrinho. Foi embora, ao longo da fileira do mercado.

Ruthanne ficou de pé, olhando para ela, virou-se e seguiu na outra direção.

 

Não conseguia trabalhar. Andava pelo quarto apertado; olhou através da janela para Chickie e Sara, brincando com os meninos dos Cohanes; folheou a pilha de desenhos terminados e não os achou tão divertidos ou bem-feitos como os havia imaginado.

Quando finalmente conseguiu começar a trabalhar no livro, já eram praticamente cinco horas.

Desceu até a saleta.

Royal estava sentado, lendo Homens em grupos, com os pés enfiados em meias azuis, apoiados no banquinho. Ergueu o olhar para ela.

— Terminou? — perguntou. Havia colado a armação de seus óculos com fita adesiva.

— Diabos, não! Apenas comecei.

— Como é que pode?

— Não sei. Alguma coisa está me perturbando. Escute, você me faria um favor? Agora que comecei, queria continuar.

— Jantar? — disse ele.

Ela anuiu.

— Você os levaria até aquela pizzaria? Ou ao McDonald's?

Ele apanhou o cachimbo de cima da mesa.

— Está bem — disse.

— Eu queria terminá-lo — disse ela. — Do contrário, não vou poder aproveitar o próximo fim de semana.

Ele colocou o livro aberto atravessado sobre o colo, e pegou seu equipamento para limpar o cachimbo de cima da mesa.

Ela se virou para ir embora e olhou para trás, em sua direção.

— Tem certeza de que não se importa? — perguntou.

Ele movia o limpador para a frente e para trás no cachimbo.

— Claro — disse ele. — Continue com o livro. — Levantou os olhos para ela e sorriu. — Não me importo.

 

 

 

[1] O autor refere-se a um teste utilizado em psicologia, em que várias manchas indefinidas são apresentadas às pessoas, para que indiquem o que estão vendo. (N. do T.)

[2]Trocadilho de tradução impossível. No original, "Stepford is out of step". (N. do T.)

[3] No original, "dizzy", que significa "tonto"; trocadilho com o apelido do personagem, Diz. (N. do T)

[4] Henry Higgins, personagem da peça My fair lady, que se gabava de poder classificar uma pessoa pela sua maneira de falar. (N. do T.)

[5] Iniciais de White Anglo Saxon Protestants, "brancos, anglo-saxões, protestantes", famílias tradicionais americanas. (N. do T.)

[6] Em inglês, "wasp" também quer dizer "vespa". (N. do T.)

 

 

                                                                  Ira Levin

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades