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AS QUATRO ESTAÇÕES DO AMOR / Parte II
CAPÍTULO 1
Londres, 1843
Enquanto Sebastian, lorde St. Vincent, contemplava a jovem que acabara de entrar em sua residência em Londres, ocorreu-lhe que talvez tivesse raptado a herdeira errada no último fim de semana em Stony Cross Park.
Embora rapto não integrasse sua longa lista de atos desprezíveis até bem recentemente, ele deveria ter sido mais esperto. Lillian Bowman fora uma escolha insensata, embora parecesse a solução perfeita para seu dilema na época. Ela era de uma família rica, enquanto Sebastian era um aristocrata com problemas financeiros. Além disso, poderia ser uma parceira de cama divertida, com seus belos cabelos escuros e seu temperamento impetuoso. No fim das contas, ele deveria ter escolhido uma presa menos corajosa. Lillian mostrara feroz resistência ao seu plano e tinha sido salva pelo noivo, lorde Westcliff.
Já a Srta. Evangeline Jenner, a mansa criatura à sua frente, era muito diferente de Lillian.
Sebastian a observou disfarçando o desdém enquanto listava mentalmente o que sabia sobre ela.
Era a filha única de Ivo Jenner, o famoso dono de um clube de jogos londrino, com uma mulher que fugira com ele – para se arrepender logo depois. Embora a mãe da jovem tivesse uma linhagem respeitável, o pai era pouco melhor do que lixo. Evangeline poderia ser uma esposa decente se não fosse por sua timidez, que resultava em uma constrangedora gagueira.
Alguns homens já haviam confessado a Sebastian que preferiam ser torturados a tentar conversar com ela. Naturalmente ele sempre havia feito o possível para evitá-la. Isso não tinha sido difícil. A tímida Srta. Jenner costumava se esconder pelos cantos. Eles nunca haviam trocado uma palavra – algo que parecera bastante apropriado para ambos.
Mas não havia como evitá-la agora. Por algum motivo, a Srta. Jenner aparecera na casa dele sem ser convidada, em uma hora escandalosamente tardia. Para tornar a situação ainda mais comprometedora, estava desacompanhada – e passar mais de meio minuto a sós com Sebastian era o suficiente para arruinar qualquer moça. Ele era um libertino amoral – e tinha orgulho disso.
Era ótimo em sua ocupação preferida – a de sedutor degenerado – e estabelecera alguns padrões a que poucos canalhas poderiam aspirar.
Relaxando em sua cadeira, Sebastian observou com enganadora indolência Evangeline Jenner se aproximar. A biblioteca estava escura, exceto por um fogo baixo na lareira, a luz bruxuleante brincando suavemente no rosto da jovem. Ela não parecia ter mais de 20 anos, com sua pele perfeita e seus olhos inocentes que sempre despertaram o desdém de Sebastian. Ele nunca valorizara ou admirara a inocência.
Embora o cavalheirismo ditasse que Sebastian deveria se levantar, gestos de cortesia não pareciam fazer muito sentido naquela situação. Assim, ele apenas apontou negligentemente para a outra cadeira, ao lado da lareira.
– Sente-se, se quiser. No entanto, não planeje ficar por muito tempo. Eu me entedio com facilidade e sua reputação não é a de alguém que costume manter uma conversa interessante.
Evangeline não estremeceu ao ouvir aquele comentário rude. Sebastian não pôde deixar de se perguntar que tipo de criação a tornara tão imune a insultos. Qualquer outra garota teria corado ou explodido em lágrimas. Ou ela era idiota ou tinha muita coragem.
Evangeline tirou seu manto, o pôs sobre o braço da cadeira com estofamento de veludo e se sentou sem graça ou artifícios. Sebastian se lembrou de que ela era amiga não só de Lillian Bowman como também da irmã mais nova de Lillian, Daisy, e de Annabelle Hunt. O grupo de quatro jovens se encontrava sempre ao lado da pista de dança em numerosos bailes e soirées da última temporada, tomando chá de cadeira. Contudo, parecia que a má sorte delas havia mudado.
Annabelle finalmente conseguira agarrar um marido e Lillian acabara de conquistar lorde Westcliff. Entretanto, Sebastian duvidava que essa boa sorte fosse se estender àquela criatura gaga.
Embora estivesse tentado a lhe perguntar o objetivo da visita, ele temeu que isso pudesse causar uma longa rodada de gagueira que atormentaria a ambos. Forçou-se a esperar pacientemente enquanto Evangeline parecia pensar no que dizer. À medida que o silêncio se arrastava, começou a observá-la à luz da lareira. Surpreendeu-se ao achá-la atraente. Na verdade, nunca a havia olhado com tanta atenção e a impressão que lhe causara fora apenas a de uma garota ruiva desmazelada com má postura. Mas ela era encantadora.
Enquanto a observava, tomou consciência de uma leve tensão em seus músculos e dos pelos se eriçando em sua nuca. Ele continuou relaxado em sua cadeira, embora as pontas de seus dedos fizessem uma ligeira pressão no veludo macio. Achou estranho nunca ter notado a moça. Os cabelos, do vermelho mais vivo que já vira, pareciam se nutrir à luz da lareira e brilhar com calor incandescente. As sobrancelhas finas e os cílios espessos eram de um tom mais escuro, castanho-avermelhado, e sua pele branca era um pouco sardenta no nariz e nas bochechas. Sebastian achou graciosa a dispersão festiva dos pequenos pontos dourados, como se tivessem sido salpicados pelo capricho de uma fada. Evangeline tinha lábios carnudos, naturalmente rosados, e olhos azuis grandes e redondos. Olhos bonitos, mas sem emoção, como os de uma boneca de cera.
– Mi-minha amiga Srta. Bowman é agora lady Westcliff – observou Evangeline cautelosamente. – O conde e ela fo-foram para Gre-Gretna Green depois que ele... o impediu.
– “Ele me deu uma surra” seriam as palavras mais apropriadas – corrigiu Sebastian, sabendo que ela não poderia deixar de notar as marcas escuras em seu queixo, feitas pelos punhos certeiros de Westcliff. – Ele não pareceu aceitar bem o empréstimo que fiz.
– O senhor a ra-raptou – contrapôs Evangeline calmamente. – “Empréstimo” sugere que pretendia devolvê-la.
Sebastian sentiu seus lábios se curvarem. Seu primeiro sorriso verdadeiro depois de muito tempo. Aparentemente ela não era nenhuma tola.
– Então eu a raptei, se quiser ser precisa. Foi por isso que veio me visitar, Srta. Jenner? Para me fazer um relatório sobre o casal feliz? Estou cansado desse assunto. É melhor dizer algo interessante logo ou receio de que terá que ir embora.
– O senhor que-queria a Srta. Bowman pela herança dela – disse Evangeline. – Pre-precisa se casar com alguém que te-tenha dinheiro.
– É verdade – admitiu Sebastian. – Meu pai, o duque, falhou em sua única responsabilidade na vida: manter a fortuna da família intacta. Minha tarefa é passar meu tempo em pródigo ócio esperando que ele morra. Eu tenho feito o meu trabalho de maneira esplêndida, mas o duque, não. Ele foi um péssimo administrador das finanças da família. Está pobre e, pior ainda, saudável.
– Meu pai é rico – disse Evangeline sem demonstrar nenhuma emoção. – E está morrendo.
– Parabéns.
Sebastian a estudou atentamente. Ele não tinha dúvida de que Ivo Jenner possuía uma fortuna considerável devido ao clube de jogos. Era para lá que os cavalheiros de Londres iam para jogar, comer, beber e buscar prostitutas baratas. O clima era de extravagância com um grau confortável de imoralidade. Quase vinte anos atrás, o Jenner’s fora uma alternativa de segunda classe ao lendário Craven’s, o maior e mais bem-sucedido clube de jogos que a Inglaterra já conhecera.
Contudo, quando o Craven’s foi destruído por um incêndio e seu dono se recusou a reconstruí-lo, o Jenner’s herdara muitos clientes ricos e ganhara notoriedade. Não que pudesse ser comparado com o Craven’s. Um clube era, em grande parte, o reflexo do caráter e do estilo de seu dono. Ivo Jenner era destituído de ambos. Derek Craven tinha sido indiscutivelmente um empresário. Jenner era um sujeito bronco, um ex-pugilista que nunca havia se destacado em nada, mas por capricho e milagre do destino se tornara um homem de negócios bem-sucedido.
E ali estava a filha única de Jenner. Se ela estava prestes a fazer a proposta que Sebastian suspeitava que faria, ele não poderia se dar ao luxo de recusar.
– Não quero seus pa-parabéns – disse Evangeline em resposta a seu comentário anterior.
– O que quer, criança? – perguntou Sebastian. – Por favor, vá direto ao assunto. Isto está se tornando tedioso.
– Quero ficar com meu pai pelos últimos dias da vi-vida dele. A família da minha mãe não me permite vê-lo. Tenho tentado fu-fugir para o clube, mas sempre me pegam e sou punida.
Desta vez não vo-vou voltar. Eles têm planos que pre-pretendo evitar, ao custo da minha própria vida, se for preciso.
– E quais são esses planos? – perguntou Sebastian vagarosamente.
– Eles estão ten-tentando me forçar a me casar com um dos meus pri-primos, o Sr. Eustace Stubbins. Ele nã-não sente nada por mim, assim como eu não si-sinto nada por ele... mas é um fantoche no plano da fa-família.
– Que é ganhar o controle da fortuna do seu pai quando ele morrer?
– Sim. No início, considerei a ideia, por-porque achava que o Sr. Stubbins e eu poderíamos ter nossa própria ca-casa... e a vida poderia ser su-suportável se eu vivesse longe do resto da família. Mas ele não tem a intenção de se mu-mudar. Quer permanecer sob o teto da família... e não creio que eu po-possa sobreviver por muito tempo lá.
Diante do silêncio aparentemente indiferente de Sebastian, acrescentou em voz baixa:
– Acredito que eles querem me ma-matar depois que puserem as mãos no di-dinheiro do meu pai.
Sebastian não desviou seu olhar do rosto dela, embora mantivesse seu tom leviano.
– Que falta de consideração da parte deles. Por que eu deveria me importar com isso?
Evangeline não reagiu à provocação, apenas lhe lançou um olhar firme que evidenciava uma segurança que Sebastian nunca vira em uma mulher.
– Eu estou lhe propondo casamento. Quero sua proteção. Meu pai está do-doente e fraco demais para me ajudar e não que-quero ser um fardo para mi-minhas amigas. Acredito que elas se o-ofereceriam para me abrigar, mas eu sempre te-temeria que meus parentes me le-levassem de volta e me forçassem a fazer a vontade deles. Uma mulher sol-solteira tem poucos re-recursos, social ou legalmente. Isso não é ju-justo... mas não posso lutar em vão. Preciso de um ma-marido e o senhor pre-precisa de uma esposa rica. Ambos estamos i-igualmente desesperados, o que me leva a acreditar que o se-senhor aceitará minha pro-proposta. Nesse caso, gostaria de partir para Gretna Green esta noite. Agora. Estou ce-certa de que meus parentes já estão me procurando.
O silêncio se tornou pesado enquanto Sebastian a contemplava com um olhar hostil. Não confiava nela. E não tinha nenhuma vontade de repetir a fracassada experiência da semana anterior.
Ainda assim, ela tinha razão sobre uma coisa: ele estava desesperado. Como uma multidão de credores atestaria, era um homem que gostava de se vestir bem, comer bem e morar bem. A parca verba mensal que recebia do duque logo seria cortada e ele não tinha fundos suficientes para chegar ao fim do mês. Para um homem que não fazia nenhuma objeção a procurar a saída mais fácil, essa proposta era uma dádiva dos céus. Se ela realmente estivesse disposta a ir até o fim.
– A cavalo dado não se olham os dentes – disse Sebastian de forma casual. – Quão perto seu pai está de morrer? Algumas pessoas duram anos no leito de morte. Sempre achei péssimo fazer os outros esperarem.
– O senhor não te-terá que esperar muito. – Foi a resposta irritada de Evangeline. –
Disseram-me que ele talvez mo-morra em duas semanas.
– Que garantia eu tenho de que a senhorita não mudará de ideia antes de chegarmos a Gretna Green? Sabe que tipo de homem eu sou, Srta. Jenner? Preciso lembrá-la de que tentei raptar e violar uma de suas amigas na semana passada?
Evangeline sustentou o olhar dele. Ao contrário dos olhos de Sebastian, que eram azul-claros, os dela eram de um tom escuro de safira.
– O senhor tentou violar Lillian? – perguntou ela tensamente.
– Eu ameacei fazer isso.
– Teria cumprido a ameaça?
– Não sei. Nunca fiz isso antes. Mas, como a senhorita disse, estou desesperado. E já que estamos falando sobre esse assunto... Está me propondo um casamento de conveniência ou dormiremos juntos?
Evangeline ignorou a pergunta.
– O senhor teria se imposto a ela ou não?
Sebastian a olhou com visível escárnio.
– Se eu dissesse não, Srta. Jenner, como poderia saber que não estou mentindo? Mas não. Eu não a teria violado. É essa a resposta que quer? Então acredite nisso, se a faz se sentir mais segura. Agora, e quanto à minha pergunta...?
– Eu do-dormirei com o senhor uma vez – disse ela –, para tornar o casamento legal. De-depois disso, nunca mais.
– Ótimo – murmurou ele. – Raramente gosto de dormir com uma mulher mais de uma vez. É
tedioso, depois que deixa de ser uma novidade. Além do mais, nunca seria burguês a ponto de desejar minha própria esposa. Isso sugere que um homem não dispõe de meios para manter uma amante. É claro que há a questão de me dar um herdeiro... mas, desde que seja discreta, não espere que eu dê a mínima sobre quem é o pai da criança.
Ela nem mesmo pestanejou.
– Vou que-querer que uma pa-parte da herança seja reservada pa-para mim. Uma parte ge-generosa. Os rendimentos serão apenas meus e eu a gas-gastarei como bem entender, sem lhe dar sa-satisfações dos meus atos.
Sebastian compreendeu que ela não era inocente, embora a gagueira fizesse muitos presumirem o contrário. Estava acostumada a ser subestimada, ignorada, desconsiderada... e usaria isso a seu favor sempre que possível. Isso o interessou.
– Eu seria um tolo de confiar na senhorita – disse Sebastian –, já que poderia desistir de nosso acordo a qualquer momento. E a senhorita seria ainda mais tola de confiar em mim.
Porque, quando estivermos casados, posso tornar sua vida um inferno ainda maior do que sua família jamais sonhou.
– Eu pre-prefiro isso vindo de alguém que eu es-escolhi – retrucou ela com severidade. –
Melhor o se-senhor a Eustace.
Sebastian sorriu.
– Isso não diz muito a favor de Eustace.
Ela não devolveu o sorriso, só afundou um pouco na cadeira, como se uma grande tensão a tivesse deixado, e o olhou ao mesmo tempo decidida e resignada. Seus olhares se fixaram e Sebastian teve a estranha sensação de que seu corpo todo estava ciente dela.
Não era nenhuma novidade ele se excitar facilmente perto de uma mulher. Havia muito tempo percebera que era um homem mais físico do que a maioria e que algumas mulheres o incendiavam, despertavam sua sensualidade em um grau incomum. Por algum motivo, essa estranha garota gaga era uma delas. Ele desejou se deitar com Evangeline.
Imagens surgiram em sua mente: de membros, das curvas e da pele dela que ele ainda não vira, da ondulação das nádegas ao segurá-las nas mãos. Desejou o cheiro dela em suas narinas e em sua própria pele... os cabelos longos dela sobre seu pescoço e peito... Desejou fazer coisas indizíveis com a boca de Evangeline.
– Então está decidido. Aceito sua proposta. Há muito mais a discutir, é claro, mas teremos dois dias até chegarmos a Gretna Green.
Ele se levantou de sua cadeira e se esticou, mantendo o sorriso ao notar o modo como o olhar dela deslizou rapidamente sobre seu corpo.
– Mandarei prepararem a carruagem e meu criado pessoal arrumará minha bagagem.
Partiremos em uma hora. Se a senhorita decidir mudar de opinião a qualquer momento durante a viagem, eu a estrangularei.
Ela lhe deu um sorriso sarcástico.
– O se-senhor não ficaria tão nervoso se não ti-tivesse tentado o mesmo com uma vítima in-involuntária na se-semana passada.
– Entendi. Então podemos descrevê-la como uma vítima voluntária?
– Uma vítima ansiosa – respondeu Evangeline sucintamente, parecendo querer partir imediatamente.
– Meu tipo favorito – observou ele e fez uma mesura antes de sair a passos largos da biblioteca.
CAPÍTULO 2
Quando lorde St. Vincent saiu da sala, Evie deixou escapar um suspiro trêmulo e fechou os olhos. Ele não precisava se preocupar com a possibilidade de ela mudar de ideia. Agora que o acordo fora feito, estava impaciente para começar aquela jornada. O que a enchia de medo era saber que seus tios Brook e Peregrine a procuravam.
Quando fugira de casa, perto do fim do verão, fora encontrada na entrada do clube de seu pai.
Na época, tio Peregrine a tinha levado de volta e batido nela na carruagem até ela ficar com o lábio ferido, um olho roxo e as costas e os braços cobertos de hematomas. Seguiram-se duas semanas trancada em seu quarto com pouco mais que pão e água.
Ninguém – nem mesmo suas amigas Annabelle, Lillian e Daisy – sabia pelo que ela passara.
A vida na casa dos Maybricks, a família de sua mãe, era um pesadelo. Eles e os Stubbinses –
Florence, sua tia materna, e Peregrine, o marido dela – fizeram um esforço conjunto para destruir Evie. Ficaram surpresos com quão resistente ela era.
Evie não ficara menos surpresa do que eles. Nunca havia pensado que poderia suportar duras punições, indiferença e até mesmo ódio sem ceder. Talvez ela tivesse mais do pai do que qualquer um pensara. Ivo Jenner lutava boxe sem luvas e o segredo de seu sucesso dentro e fora do ringue não fora talento, mas tenacidade. Ela herdara a mesma obstinação.
Evie queria tanto ver o pai que chegava a doer. Acreditava que ele era a única pessoa no mundo que se importava com ela. O amor do pai era negligente, mas era mais do que já obtivera de qualquer outra pessoa. Entendia por que ele a abandonara com os Maybricks logo após a morte da mãe dela no parto. Um clube de jogos não era lugar para criança. Embora os Maybricks não fossem aristocratas, tinham uma boa linhagem. Mas será que o pai teria feito a mesma escolha se soubesse como ela seria tratada? Se tivesse alguma ideia de que a raiva da família pela rebeldia da filha mais nova se concentraria em uma criança indefesa? Bem, não adiantava se perguntar isso agora.
Sua mãe estava morta; seu pai, próximo do mesmo destino e havia coisas que Evie precisava lhe perguntar antes de ele morrer. Sua melhor chance de escapar das garras dos Maybricks era o detestável aristocrata com quem acabara de concordar em se casar.
Impressionou-a ter conseguido se comunicar tão bem com St. Vincent, que era bastante intimidador com sua beleza dourada, seus olhos azuis gelados como o inverno e sua boca feita para beijar e mentir. Ele parecia um anjo caído, com toda a beleza masculina perigosa que Lúcifer poderia criar. Também era egoísta e inescrupuloso, o que ficara provado com sua tentativa de raptar a noiva do melhor amigo. Entretanto, um homem assim seria um adversário à altura dos Maybricks.
St. Vincent seria um péssimo marido, é claro. Mas como Evie não tinha nenhuma ilusão sobre ele, ficaria bem. Uma vez que não se importava nem um pouco com ele, poderia se fazer de cega às suas leviandades e surda aos seus insultos.
Como seu casamento seria diferente do de suas amigas! Ao pensar nisso, sentiu uma súbita vontade de chorar. Não havia nenhuma possibilidade de Annabelle, Daisy ou Lillian –
particularmente Lillian – continuarem a ser amigas dela depois que se casasse com St. Vincent.
Piscando para afastar as lágrimas, engoliu em seco para conter a dor. Era inútil chorar. Embora aquela dificilmente fosse uma solução perfeita para seu dilema, era a melhor em que podia pensar.
Ao imaginar a fúria dos tios ao descobrirem que ela e sua fortuna estavam para sempre fora do alcance deles, Evie sentiu sua infelicidade diminuir um pouco. Valia a pena fazer qualquer coisa para não ter de viver sob o domínio dos tios pelo resto da vida. E também para não ser forçada a se casar com o fraco e covarde Eustace, que buscara refúgio na comida e na bebida a ponto de ficar quase gordo demais para passar pela porta do próprio quarto. Embora Eustace odiasse seus pais quase tanto quanto Evie, ele nunca ousaria desafiá-los.
Ironicamente, fora Eustace quem fizera Evie fugir naquela noite. Ele a tinha procurado mais cedo com um anel de noivado, uma aliança de ouro com uma pedra de jade.
– Tome – dissera, um tanto timidamente. – Minha mãe falou para eu lhe dar isto, e que você não teria permissão para fazer nenhuma refeição se não o usasse à mesa de jantar. Ela disse que o anúncio do casamento será feito na semana que vem.
Aquilo não fora inesperado. Após tentar sem sucesso durante três temporadas encontrar um marido aristocrata para Evie, a família finalmente chegara à conclusão de que eles não tirariam nenhuma vantagem social da sobrinha. Diante do fato de que ela logo herdaria sua fortuna, traçaram um plano para ficar com a herança casando-a com um de seus primos.
Ao ouvir as palavras de Eustace, Evie havia ficado atônita e sentido uma súbita fúria que deixara seu rosto muito vermelho. Eustace tinha rido disso e dito:
– Nossa, você é uma visão e tanto quando fica corada. Isso faz seus cabelos parecerem cor de laranja.
Reprimindo uma resposta cáustica, Evie tentara se acalmar e se concentrara nas palavras que se agitavam dentro dela como folhas ao vento. Ela as havia contido cuidadosamente e conseguido dizer sem gaguejar:
– Primo Eustace, se eu concordar em me casar com você... ficará do meu lado contra seus pais? Permitirá que eu veja meu pai e cuide dele?
O sorriso desaparecera do rosto de Eustace, as gordas bochechas decaindo enquanto ele encarava os sérios olhos azuis dela. Então o rapaz desviara o olhar e dissera de modo evasivo:
– Eles não seriam tão duros com você, prima, se você não fosse tão teimosa.
Perdendo a paciência, ela sentira a gagueira dominá-la.
– Vo-você fi-ficaria com minha fo-fortuna e-e não me daria nada em troca?
– Para que você precisa de uma fortuna? – perguntara ele, zombeteiro. – É uma criatura tímida que corre de um canto para o outro... Não precisa de roupas elegantes ou joias. Não é boa de conversa, é recatada demais para o sexo e não tem nenhuma habilidade. Deveria ficar grata por eu estar disposto a me casar com você, mas é estúpida demais para perceber isso!
– E-eu...
A frustração a tornara impotente. Não conseguia encontrar palavras para se defender. Mas ela tentava, encarando-o, ofegante, no esforço para falar.
– Que idiota você é – dissera Eustace impacientemente.
Em um ataque de raiva, ele atirara no chão o anel, que quicou, rolou e desapareceu sob o sofá.
– Pronto, agora está perdido. A culpa é sua por ter me irritado. É melhor encontrá-lo ou morrerá de fome. Vou contar para minha mãe que fiz a minha parte dando-o para você.
Evie havia ficado sem jantar. Em vez de procurar o anel, arrumara freneticamente uma pequena valise. Escapando pela janela do segundo andar e deslizando por um cano, disparara pelo quintal. Por um golpe de sorte, uma carruagem de aluguel parara para ela assim que saíra pelo portão.
Provavelmente tinha sido a última vez que veria Eustace, pensou Evie com sombria satisfação. Ele não costumava frequentar ambientes sociais. À medida que sua cintura aumentava, confinava-se cada vez mais na casa dos Maybricks. Independentemente do que fosse acontecer, ela nunca se arrependeria de ter escapado do destino de se tornar esposa dele. Tinha dúvidas de que algum dia ele fosse ao menos tentar dormir com ela. Não parecia possuir uma quantidade suficiente do que as pessoas finas chamavam de “espírito animal”. Reservava sua paixão exclusivamente para a comida e o vinho.
Lorde St. Vincent, por outro lado, havia seduzido e comprometido inúmeras mulheres.
Embora muitas parecessem achar isso fascinante, Evie não era uma delas. Mas não havia nenhuma dúvida em sua mente de que o casamento deles seria consumado.
Seu estômago se contraiu nervosamente com a ideia. Em seus sonhos, tinha se imaginado casando com um homem bom e sensível. Ele nunca zombaria dela por gaguejar. Seria amoroso e gentil.
Sebastian, lorde St. Vincent, era o oposto do amante de seus sonhos. Não havia nada de bom, gentil, sensível ou amoroso nele. Era um predador que gostava de brincar com sua presa antes de devorá-la. Olhando para a cadeira vazia onde ele estivera sentado, Evie pensou na aparência de St. Vincent à luz da lareira. Ele era alto e esguio, seu corpo uma estrutura perfeita para roupas elegantemente simples que só realçavam sua beleza bronzeada. Seus cabelos, do tom de ouro velho, eram fartos e levemente ondulados. Seus olhos azul-claros brilhavam como diamantes raros no colar de uma imperatriz antiga. Olhos bonitos que não demonstravam nenhuma emoção quando ele sorria. O próprio sorriso era de tirar o fôlego. A boca sensual, cínica, o brilho dos dentes brancos... Ah, St. Vincent era um homem deslumbrante. E ele sabia muito bem disso.
Estranhamente, Evie não o temia. St. Vincent era esperto demais para usar violência física quando algumas palavras bem escolhidas atingiriam seu objetivo com bem menos estardalhaço.
Ela temia muito mais a brutalidade do tio Peregrine, para não falar nas mãos odiosas da tia Florence, que gostava de dar tapas e beliscões.
Nunca mais, jurou Evie, limpando distraidamente a sujeira de seu vestido onde o cano por onde descera do quarto deixara listras pretas. Ela ficou tentada a pôr o vestido limpo que colocara na valise, deixada no hall de entrada. Mas a viagem logo deixaria qualquer coisa que usasse tão empoeirada e amassada que não fazia nenhum sentido trocar de roupa.
Um som vindo da porta chamou sua atenção. Ela ergueu os olhos e viu uma criada roliça, que lhe perguntou timidamente se queria se refrescar em um dos quartos de hóspedes. A moça parecia bastante acostumada com a presença de mulheres desacompanhadas na casa; Evie a deixou conduzi-la para um pequeno quarto no andar de cima. Como as outras partes da casa que vira até agora, o quarto era bem mobiliado e arrumado. As paredes eram revestidas de um papel claro adornado com pássaros e pagodes chineses pintados à mão. Para a satisfação de Evie, uma antecâmara contígua continha uma pia de água corrente, as torneiras elegantemente esculpidas na forma de golfinhos, além de um toalete.
Depois de fazer suas necessidades, Evie foi até a pia para lavar as mãos e o rosto, e bebeu sedentamente de uma xícara de prata. Dirigiu-se ao quarto para procurar um pente ou uma escova. Não os encontrando, passou as mãos por seus cabelos presos no alto.
Não houve nenhum som, nada para avisá-la da presença de alguém, mas Evie a sentiu. Virou-se, sobressaltada. St. Vincent estava em pé no quarto em uma posição relaxada, com a cabeça inclinada de leve enquanto a observava. Ela foi invadida por uma sensação peculiar, um leve calor, e se sentiu fraca. Estava muito cansada. Pensar em tudo o que a esperava – a viagem para a Escócia, o casamento rápido, a subsequente consumação – era exaustivo. Evie endireitou os ombros e começou a andar, mas, ao fazer isso, parou e cambaleou pesadamente.
Balançando a cabeça para clarear sua visão, lentamente se deu conta de que St. Vincent estava em pé com ela, agarrando-lhe os cotovelos. Nunca estivera tão perto dele. Seus sentidos rapidamente captaram o cheiro e a sensação dele. O toque sutil de colônia cara, a pele limpa coberta com camadas de fino linho e lã de alta qualidade. Ele irradiava saúde e virilidade.
Bastante nervosa, Evie pestanejou e olhou para o rosto de St. Vincent, muito mais acima do seu do que ela teria esperado. Surpreendeu-se ao perceber quanto ele era alto.
– Quando foi a última vez que comeu? – perguntou St. Vincent.
– Ontem de ma-manhã, eu a-acho...
Ele ergueu uma sobrancelha.
– A família a estava matando de fome! – Quando Evie assentiu, ele olhou para o alto. – A situação fica mais delicada a cada minuto. Mandarei a cozinheira preparar uma cesta de sanduíches. Pegue meu braço e eu a ajudarei a descer a escada.
– Não pre-preciso de ajuda, o-obrigada...
– Pegue meu braço – repetiu ele em uma voz agradável sublinhada por uma determinação férrea. – Não vou deixá-la cair e quebrar o pescoço antes de chegarmos à carruagem. É difícil encontrar herdeiras disponíveis. Eu levaria muito tempo para substituí-la.
Evie devia estar mais fraca do que pensava, porque ficou satisfeita com o apoio dele. Em algum momento durante a descida, St. Vincent deslizou o braço para trás de suas costas e a guiou cuidadosamente pelos degraus. Havia algumas leves manchas roxas nos nós dos dedos dele – remanescentes da briga com lorde Westcliff. Pensando em como esse mimado aristocrata se sairia em um confronto físico com seu parrudo tio Peregrine, Evie estremeceu um pouco e desejou que eles já estivessem em Gretna Green.
Sentindo o tremor, St. Vincent apertou o braço ao redor dela quando eles chegaram ao último degrau.
– Está com frio? – perguntou. – Ou nervosa?
– Que-quero sair de Londres a-a-antes que meus parentes me en-encontrem – respondeu ela.
– Há algum motivo para eles suspeitarem de que veio me procurar?
– Ah, nã-não – respondeu ela. – Ninguém jamais ia a-acreditar que eu pudesse ser tão ma-maluca.
Se ela já não estivesse um pouco zonza, o sorriso brilhante dele a teria deixado assim.
– Ainda bem que a minha vaidade é grande. Caso contrário, a senhorita a teria destruído.
– Estou certa de que já tem mu-muitas mulheres para fo-fortalecer sua vaidade. Não precisa de mais uma.
– Eu sempre preciso de mais uma, doçura. Esse é o meu problema.
St. Vincent a deixou esperando na biblioteca, onde ela se sentou diante do fogo por alguns minutos. Justamente quando ela começava a cochilar na cadeira, ele retornou para levá-la embora. Tonta, ela o acompanhou até uma reluzente carruagem laqueada de preto. St. Vincent a conduziu habilmente para dentro do veículo. O estofamento interno de veludo cor de creme era muito pouco prático, mas magnífico, iluminado pela luz suave de uma diminuta lamparina. Evie teve uma sensação desconhecida de bem-estar ao ser recostada em uma almofada franjada de seda. A família de sua mãe vivia segundo um exíguo conjunto de regras de bom gosto e desconfiava de tudo o que cheirava a excesso. Contudo, ela suspeitava de que o excesso fosse comum para St. Vincent, sobretudo quando se tratava de conforto.
Uma cesta tecida com tiras estreitas de couro fora posta no chão. Olhando dentro dela, Evie encontrou vários sanduíches feitos de fatias finas de pão de leite com recheio de carnes e queijos, tudo embrulhado em guardanapos. O cheiro de frios defumados lhe despertou uma súbita fome e ela comeu dois sanduíches rapidamente, quase engasgando de voracidade.
St. Vincent entrou na carruagem e acomodou seu corpo longo e esguio no banco oposto. Ele sorriu levemente à visão de Evie terminando de comer as últimas migalhas de seu sanduíche.
– Está se sentindo melhor?
– Si-sim, obrigada.
St. Vincent abriu a porta de um compartimento na parede interna da carruagem e pegou uma pequena taça de cristal e uma garrafa de vinho branco que tinham sido colocadas ali por um criado. Ele encheu a taça e a entregou para ela. Depois de um gole cauteloso do vinho suave e gelado, Evie bebeu com vigor. As mulheres jovens raramente podiam beber vinho puro... em geral era bastante diluído em água. Terminando a taça, ela mal teve tempo de desejar outra antes que fosse novamente cheia. A carruagem partiu com uma ligeira sacudida e Evie bateu levemente os dentes na borda da taça enquanto o veículo sacolejava pela rua. Temendo derramar o vinho no estofamento, ela tomou um grande gole e ouviu St. Vincent rir baixinho.
– Beba devagar, doçura. Temos uma longa viagem pela frente.
Recostado nas almofadas, ele parecia um preguiçoso vizir em um dos tórridos romances que Daisy Bowman adorava.
– Diga-me, o que teria feito se eu não tivesse aceitado sua proposta? Para onde teria ido?
– Acho que eu iria fi-ficar com Annabelle e o Sr. Hunt.
Correr para Lillian e lorde Westcliff não parecera uma opção, porque eles estavam em lua de mel. Teria sido inútil se aproximar dos Bowmans: embora Daisy fosse usar fortes argumentos a seu favor, os pais dela não iam querer ter nada a ver com a situação.
– Por que essa não foi sua primeira escolha?
Evie franziu a testa.
– Teria sido difícil para os Hunts im-impedirem meus tios de me le-levarem de volta. Estarei muito mais se-segura como sua es-esposa do que como hóspede de qualquer o-outra pessoa.
O vinho a deixou agradavelmente tonta e ela afundou mais em seu banco. Olhando-a, pensativo, St. Vincent se inclinou para baixo para lhe tirar os sapatos.
– Ficará mais confortável sem eles. Pelo amor de Deus, não se esquive! Não vou molestá-la na carruagem. – Desatando os cordões, ele continuou em um tom delicado: – Como se isso trouxesse grandes consequências, já que logo vamos nos casar.
St. Vincent sorriu enquanto ela afastava rapidamente seu pé com meia e ele estendia a mão para o outro. Permitindo-lhe retirar seu outro sapato, Evie se forçou a relaxar, embora o roçar dos dedos dele em seu tornozelo lhe causasse uma estranha onda de calor.
– A senhorita pode afrouxar os cordões de seu espartilho. Isso tornará sua viagem mais agradável.
– Eu não es-estou usando e-espartilho – disse Evie sem olhar para ele.
– Não está? Meu Deus! – O olhar de St. Vincent deslizou sobre ela em uma avaliação de especialista. – Que corpo bem proporcionado a senhorita tem!
– Eu nã-não gostei desse tom.
– Perdoe-me... Força do hábito. Sempre trato as damas como meretrizes e as meretrizes como damas.
– E essa a-a-abordagem é bem-sucedida? – perguntou Evie, cética.
– Ah, sim – respondeu ele com divertida arrogância, e ela não pôde evitar sorrir.
– O se-senhor é um homem te-terrível.
– É verdade. Mas pessoas terríveis acabam obtendo coisas muito melhores do que merecem.
Enquanto as boas, como a senhorita...
Ele apontou para Evie e seus arredores, como se a atual situação fosse um exemplo perfeito disso.
– Talvez eu não seja tão bo-boa quanto o senhor pe-pensa.
– Tomara que não.
St. Vincent estreitou os olhos, pensativo. Evie notou que os longos cílios dele eram mais escuros do que os cabelos. Apesar do tamanho e dos ombros largos, havia algo felino nele... Era como um tigre preguiçoso, mas potencialmente letal.
– Qual é a natureza da doença de seu pai? Ouvi apenas boatos.
– Ele tem tuberculose – murmurou Evie. – Foi diagnosticado com a do-doença há seis meses.
Não o vejo desde então. Esse é o período mais lo-longo que fiquei sem vi-visitá-lo. Os Maybricks costumavam me pe-permitir ir ao clube me encontrar com ele, porque não viam ne-nenhum mal nisso. Mas, no ano passado, tia Florence de-decidiu que minhas chances de en-encontrar um marido estavam sendo prejudicadas por mi-minha proximidade com meu pai e de-decidiu que eu de-deveria me afastar dele. Querem que eu fi-finja que ele não existe.
– Que surpreendente! – murmurou St. Vincent de modo sarcástico, cruzando as pernas. – Por que a súbita vontade de se debruçar sobre o leito de morte de seu pai? Quer garantir seu quinhão no testamento?
Ignorando a malícia nas palavras dele, Evie pensou em sua resposta e falou friamente:
– Qua-quando eu era criança, podia vê-lo com frequência. É-éramos próximos. Ele é a única pe-pessoa que já se importou co-comigo. Eu o amo. E não quero que mo-morra sozinho. Pode zo-zombar de mim, se quiser. Eu não ligo. Sua o-opinião não significa nada para mim.
– Calma, criança. – A voz de St. Vincent estava permeada de um leve divertimento. –
Percebo evidências de um mau gênio, que sem dúvida herdou do velho. Vi os olhos dele brilharem exatamente assim quando estava irritado com alguma ninharia.
– O se-senhor conhece meu pai? – perguntou Evie, surpresa.
– É claro. Todos os hedonistas que se prezam já estiveram no Jenner’s em busca de um estímulo ou outro. Seu pai é um sujeito decente, mas tem pavio curto. Não posso evitar perguntar: como em nome de Deus uma Maybrick se casou com um nativo do leste de Londres?
– Acho que, en-entre outras coisas, minha mãe deve tê-lo vi-visto como um meio de escapar de su-sua família.
– Tal mãe, tal filha – comentou St. Vincent suavemente.
– E-espero que a co-comparação pare por aí – respondeu Evie. – Porque fui co-concebida pouco depois de eles se ca-casarem e minha mãe morreu no parto.
– Eu não vou engravidá-la se a senhorita não quiser – disse ele agradavelmente. – É bastante fácil evitar a gravidez: preservativos, esponjas, duchas, para não falar nos mais engenhosos pessários de prata que se possa... – Ele parou ao ver a expressão de Evie e riu. – Meu Deus, eu a alarmei? Não me diga que suas amigas casadas nunca lhe falaram sobre essas coisas.
Evie balançou a cabeça devagar. Embora Annabelle ocasionalmente estivesse disposta a revelar alguns dos mistérios do relacionamento conjugal, certamente nunca falara em nenhum desses dispositivos para evitar a gravidez.
– Também du-duvido que elas já tenham o-ouvido falar nisso – disse Evie, e ele riu de novo.
– Estou mais do que disposto a instruí-la quando finalmente chegarmos à Escócia.
Os lábios de St. Vincent se curvaram no sorriso que um dia as irmãs Bowmans tinham achado tão encantador. Elas não deviam ter percebido o brilho astuto nos olhos dele.
– Meu amor, já pensou na possibilidade de gostar o suficiente de nossa consumação para querer isso mais de uma vez?
Como palavras sedutoras pareciam sair facilmente dos lábios dele!
– Não – disse Evie firmemente. – Nã-não vou querer.
– Hummm... – Um som quase como o ronronar de um gato saiu da garganta de St. Vincent. –
Gosto de um desafio.
– Eu po-poderia gostar de ir pa-para a cama com o senhor – disse Evie olhando-o fixamente e se recusando a desviar os olhos mesmo quando o olhar prolongado de St. Vincent a fez corar de desconforto. – Es-espero gostar. Mas isso não mudará mi-minha decisão. Porque sei como o se-senhor é e sei do que é ca-capaz.
– Doçura... – disse ele quase ternamente. – Ainda nem mesmo começou a descobrir o pior de mim.
CAPÍTULO 3
Para Evie, que se sentira desconfortável durante a viagem de vinte horas na semana anterior quando saíra da propriedade de Westcliff em Hampshire, a viagem de 48 horas para a Escócia era torturante. Teria sido muito mais fácil se o ritmo deles fosse moderado. Mas, por sua própria insistência, eles foram direto para Gretna Green, parando apenas a intervalos de três horas para trocar cocheiros e parelhas de cavalos. Evie temia que seus parentes estivessem em seu encalço e, considerando o resultado da briga de St. Vincent com lorde Westcliff, tinha pouca esperança de que ele conseguisse se sair vitorioso em um embate físico com seu tio Peregrine.
Embora a carruagem tivesse uma boa suspensão de molas, viajar naquela velocidade constante fazia o veículo sacolejar ao ponto de Evie sentir-se nauseada. Ela estava exausta e não conseguia encontrar nenhuma posição confortável para dormir. Sua cabeça batia constantemente na parede. Sempre que conseguia cochilar, acordava poucos minutos depois.
St. Vincent obviamente não se sentia tão indisposto quanto Evie, embora também estivesse com uma aparência amarrotada e cansada. Todas as tentativas de conversa haviam cessado e eles viajavam em silêncio. Surpreendentemente, St. Vincent não pronunciara nenhuma palavra de protesto sobre esse grande exercício de resistência. Evie percebeu que ele tinha a mesma urgência que ela de chegar à Escócia. Era ainda mais do interesse dele do que do dela que estivessem legalmente casados o mais rápido possível.
A carruagem prosseguiu sacolejando por trechos acidentados da estrada, às vezes quase fazendo Evie cair do banco. O padrão de cochilos intermitentes e despertares forçados persistia.
A cada vez que a porta da carruagem se abria, com St. Vincent descendo para examinar uma nova parelha de cavalos, uma lufada de ar congelante entrava no veículo. Com frio, dolorida e enrijecida, Evie se encolhia no canto.
A noite foi seguida por um dia muito frio e chuvoso que encharcou o manto de Evie quando St. Vincent a conduziu pelo pátio de uma estalagem. Ele a levou para um aposento particular, onde ela tomou uma tigela de sopa morna e usou o penico do quarto enquanto St. Vincent ia supervisionar mais uma troca de cavalos e cocheiro. Ver uma cama tão de perto a fez ansiar por dormir. Mas poderia fazer isso depois de chegar a Gretna Green e estar para sempre longe do alcance de sua família.
No total, a duração da parada foi de menos de meia hora. Voltando para a carruagem, Evie tentou tirar os sapatos molhados sem sujar de lama o estofamento de veludo. St. Vincent entrou depois dela e se inclinou para ajudar. Enquanto ele desamarrava e tirava os sapatos dos pés com câimbras de Evie, ela tirou em silêncio o chapéu ensopado de chuva dele e o jogou no banco oposto. Os cabelos de St. Vincent pareciam grossos e macios, os cachos contendo todos os tons entre âmbar e champanhe.
Movendo-se para se sentar ao lado dela, St. Vincent contemplou o rosto atormentado de Evie e estendeu a mão para tocar na curva gelada da bochecha dela.
– Qualquer outra mulher a esta altura estaria se queixando muito.
– Não po-posso me queixar – disse Evie, estremecendo violentamente. – Fui eu quem pe-diu para ir di-direto para a Escócia.
– Estamos na metade do caminho. Mais 24 horas e, amanhã à noite, estaremos casados. – Os lábios de St. Vincent esboçaram um sorriso irônico. – Sem dúvida nunca houve uma noiva mais ansiosa pelo leito conjugal.
Os lábios trêmulos de Evie se curvaram em um sorriso ao entender o significado implícito das palavras de St. Vincent: que ela estava ansiosa por dormir, não por fazer amor. Ao olhar para o rosto dele, tão perto do seu, perguntou-se distraidamente como os sinais de cansaço no rosto masculino e as olheiras podiam torná-lo tão atraente. Talvez fosse porque agora ele parecesse humano, em vez de um deus romano belo e sem coração. Grande parte da arrogância aristocrática desaparecera, sem dúvida para reaparecer mais tarde quando ele estivesse totalmente descansado. Por enquanto, estava relaxado e acessível. Parecia que um frágil vínculo fora estabelecido entre eles durante essa viagem infernal.
O momento foi interrompido por uma batida à porta da carruagem. St. Vincent a abriu e viu uma camareira desgrenhada em pé na chuva.
– Aqui está, milorde – disse ela espiando por sob o capuz de seu manto encharcado enquanto lhe entregava dois objetos. – Uma bebida quente e um tijolo, como o senhor pediu.
St. Vincent pegou uma moeda em seu colete e a entregou à mulher, que sorriu radiante antes de correr de volta para o abrigo da estalagem. Evie pestanejou, surpresa, quando St. Vincent lhe passou uma caneca cheia de um líquido fumegante.
– O que é is-isto?
– Algo para aquecer seu corpo. – Ele pegou um tijolo envolto em camadas de flanela cinza. –
E isto é para seus pés. Ponha as pernas sobre o banco.
Em outras circunstâncias Evie teria recuado àquele toque casual em suas pernas. Contudo, não se opôs quando ele arrumou suas saias e pôs o tijolo quente sob seus pés.
– Ah... – Ela estremeceu de conforto quando o calor delicioso chegou aos seus dedos gelados. – Ah, que delícia...
– As mulheres me dizem isso o tempo todo – falou ele com uma voz sorridente. – Venha, apoie-se em mim.
Evie obedeceu, deitando-se com os braços de St. Vincent levemente curvados ao seu redor. O
peito dele era sólido e muito rijo, mas acomodou sua nuca. Levando a caneca aos lábios, ela tomou um gole da bebida quente. Era algo alcoólico misturado com água, açúcar e limão. Bebeu-a devagar, seu corpo enchendo-se de calor. Ela deixou escapar um suspiro longo e satisfeito. A carruagem deu um solavanco para a frente, mas St. Vincent logo ajustou seu braço mantendo-a confortavelmente contra o peito. Evie não conseguia entender como o inferno podia ter se transformado no paraíso de maneira tão repentina.
Ela nunca havia experimentado essa proximidade física com um homem e parecia terrivelmente errado apreciá-la. Por outro lado, teria de estar insana para não fazê-lo. A natureza desperdiçara uma quantidade absurda de beleza masculina naquela criatura indigna. Melhor ainda, ele estava incrivelmente quente. Evie tentou conter o impulso de se aconchegar mais a ele.
As roupas de St. Vincent eram feitas de tecidos nobres – um casaco de lã fina, um colete de seda pesada, uma camisa de linho extramacio. Os indícios de goma das roupas e de colônia cara se misturavam com o aroma limpo e salgado da pele dele.
Temendo que pudesse querer afastá-la depois que a bebida terminasse, Evie tentou fazê-la durar o máximo possível. Para sua tristeza, finalmente tomou as últimas gotas doces no fundo da caneca. St. Vincent a tirou dela e pôs no chão. Evie ficou profundamente aliviada ao senti-lo se recostar de novo abraçando-a. Ouviu-o bocejar por cima de sua cabeça.
– Durma – murmurou ele. – Temos três horas antes da próxima troca de parelha.
Pressionando os dedos dos pés com mais força contra o tijolo quente, Evie se virou um pouco, se aconchegou mais a ele e se permitiu mergulhar nas profundezas convidativas do sono.
O resto da viagem se tornou uma grande névoa de movimentos, cansaço e despertares abruptos. À medida que a exaustão de Evie aumentava, ela se tornava cada vez mais dependente de St. Vincent. A cada nova parada ele lhe trazia uma caneca de chá ou caldo e reaquecia o tijolo na lareira disponível. Até mesmo encontrou um cobertor acolchoado em algum lugar, aconselhando-a secamente a não perguntar como o obtivera. Convencida de que a essa altura ela teria congelado sem sua ajuda, Evie logo perdeu todas as reservas em relação a se aconchegar a ele sempre que estava na carruagem.
– E-eu não estou fazendo a-avanços – disse Evie ao se aproximar do peito de St. Vincent. – O
senhor é apenas uma fo-fonte disponível de calor.
– Se a senhorita está dizendo – respondeu St. Vincent com descaso, apertando mais o cobertor ao redor de ambos. – Mas no último quarto de hora tem acariciado partes da minha anatomia em que ninguém jamais ousou tocar.
– Du-duvido muito disso. – Ela se entocou mais nas profundezas do casaco de St. Vincent e acrescentou em uma voz abafada: – O senhor pro-provavelmente foi mais to-tocado do que uma cesta de me-mercado.
– E posso ser adquirido por um preço muito razoável. – Subitamente ele estremeceu e se moveu para acomodá-la em seu colo. – Não ponha seu joelho aí, querida, ou seus planos de consumar o casamento podem correr um sério risco.
Evie cochilou até a parada seguinte e, justamente quando se viu relaxando em um sono profundo, St. Vincent a sacudiu delicadamente para que acordasse.
– Evangeline – murmurou ele, alisando seus cabelos despenteados. – Abra os olhos.
Chegamos à parada. Está na hora de entrarmos por alguns minutos.
– Eu não quero – murmurou ela, empurrando-o.
– Mas precisa – insistiu ele gentilmente. – Depois teremos um longo caminho pela frente.
Terá de usar o toalete agora porque essa será sua última oportunidade durante algum tempo.
Evie estava prestes a protestar que não tinha nenhuma necessidade de usar o toalete quando percebeu que tinha. A ideia de se levantar e sair para a chuva congelante quase a fez chorar.
Inclinando-se, pegou seus sapatos frios, úmidos e sujos e tentou amarrá-los. St. Vincent lhe afastou as mãos e os amarrou. Ele a ajudou a sair da carruagem e Evie bateu os dentes quando uma forte rajada de vento a atingiu.
Estava congelante lá fora. Depois de puxar o capuz do manto de Evie mais para cima do rosto dela, St. Vincent pôs um braço ao redor dos ombros da jovem para apoiá-la e a ajudou a atravessar o pátio da estalagem.
– Acredite em mim. É melhor passar alguns minutos aqui do que ter de parar à margem da estrada mais tarde.
– Eu conheço minhas próprias necessidades fisiológicas – disse Evie em tom irritado. – Não precisa explicá-las para mim.
– É claro. Perdoe-me se estou falando excessivamente. Estou tentando me manter acordado.
E mantê-la acordada também.
Segurando-se na cintura dele, Evie andou com dificuldade na lama gelada e se distraiu pensando no primo Eustace e em quanto estava feliz por não ter de se casar com ele. Nunca mais teria de morar sob o teto dos Maybricks. Esse pensamento lhe deu forças. Quando estivesse casada, eles não teriam mais nenhum poder sobre ela. Meu Deus, mal podia esperar por isso!
Depois de providenciar o uso temporário de um quarto, St. Vincent segurou Evie pelos ombros e a avaliou com um olhar atento.
– Parece prestes a desmaiar – disse ele com sinceridade. – Doçura, há tempo suficiente para descansar aqui por uma ou duas horas. Por que não...?
– Não – interrompeu ela firmemente. – Quero continuar.
St. Vincent a olhou com óbvia contrariedade, mas perguntou sem rancor:
– Por que é sempre tão teimosa?
Levando-a para o quarto, lembrou-a de trancar a porta quando ele saísse.
– Tente não dormir no penico – aconselhou-a de modo amável.
Quando voltaram para a carruagem, Evie seguiu o padrão agora familiar de tirar os sapatos e deixar St. Vincent pôr o tijolo quente sob seus pés. Ele a acomodou entre suas pernas abertas, pondo um de seus próprios pés com meias perto do tijolo e mantendo o outro no chão para garantir seu equilíbrio. A frequência cardíaca de Evie aumentou, suas veias estavam dilatadas com o sangue latejando quando St. Vincent pegou uma de suas mãos e começou a brincar com seus dedos frios. A mão dele estava muito quente, as pontas dos dedos eram aveludadas, as unhas curtas e lisas. A mão era forte, mas inquestionavelmente a de um homem apreciador do ócio.
St. Vincent entrelaçou levemente os dedos deles, traçou com o polegar um pequeno círculo na mão de Evie e depois deslizou os dedos para cima para nivelá-los com os dela. Embora ele fosse um homem de tez clara, sua pele era de um tom quente. Finalmente St. Vincent parou com sua brincadeira e manteve os dedos de ambos entrelaçados.
Certamente essa não podia ser ela... sozinha em uma carruagem com um perigoso libertino, correndo loucamente para Gretna Green. Olhe o que eu comecei, pensou ela, zonza. Virando a cabeça no peito de St. Vincent, pousou a bochecha no fino linho da camisa dele e perguntou:
– Como é sua família? Tem irmãos e irmãs?
Os lábios de St. Vincent brincaram por um momento entre os cachos dela.
– Não restou ninguém além de meu pai. Não tenho nenhuma lembrança da minha mãe. Ela morreu de cólera quando eu ainda era bebê. Eu tinha quatro irmãs mais velhas. Sendo o mais novo e o único menino, fui absurdamente mimado. Perdi três das minhas irmãs para a escarlatina quando ainda era criança... Lembro-me de ter sido enviado para nossa casa de campo quando elas adoeceram. Quando fui trazido de volta, as três tinham morrido. A que havia restado, minha irmã mais velha, se casou. Mas como a mãe da senhorita, morreu no parto. O bebê não sobreviveu.
Evie ficou muito quieta durante aquela narrativa sem rodeios, forçando-se a continuar relaxada junto a St. Vincent. Mas sentiu pena do garotinho que ele tinha sido. A mãe e quatro irmãs amorosas, todas desaparecendo da vida dele. Teria sido difícil para qualquer adulto assimilar essa perda, quanto mais para uma criança.
– Já se perguntou como poderia ter sido sua vida se sua mãe estivesse viva?
– Não.
– Frequentemente me pergunto que conselho ela teria me dado.
– Sua mãe acabou casada com um rufião – comentou St. Vincent com sarcasmo. – Eu não confiaria muito no conselho dela. Como eles se conheceram? Não é comum uma garota bem-criada encontrar alguém como Jenner.
– Isso é verdade. Minha mãe estava em uma carruagem com minha tia. Era um daqueles dias de inverno em que a névoa londrina é tão densa que mal se pode ver alguns metros adiante. A carruagem se desviou para evitar um carrinho de vendedor de rua e atropelou meu pai, que estava em pé na calçada próxima. Por insistência da minha mãe, o cocheiro parou para ver se estava tudo bem com ele. Só estava um pouco machucado, nada mais do que isso. E suponho... suponho que minha mãe tenha se interessado por ele, porque lhe mandou uma carta, no dia seguinte, perguntando mais uma vez sobre sua saúde. Eles começaram a se corresponder. Meu pai pedia para outra pessoa escrever as cartas, porque era analfabeto. Não sei de mais detalhes, só que eles finalmente fugiram.
Os lábios de Evie se curvaram em um sorriso de satisfação ao imaginar a fúria dos Maybricks ao descobrir que a mãe dela tinha fugido com Ivo Jenner.
– Minha mãe tinha 19 anos quando morreu. E eu tenho 23. Parece estranho ter vivido mais do que ela.
Evie se virou nos braços de Sebastian e ergueu os olhos para fitá-lo.
– Quantos anos tem, milorde? Trinta e quatro? Trinta e cinco?
– Tenho 32. Embora no momento eu me sinta com não menos que 102. – Ele a estava olhando com curiosidade. – O que houve com sua gagueira, criança? Ela desapareceu em algum lugar entre aqui e Teesdale.
– Foi? – perguntou Evie um pouco surpresa. – Eu acho... que devo me sentir confortável com o senhor. Tendo a gaguejar menos com certas pessoas.
Que estranho! Sua gagueira nunca desaparecia totalmente, a menos que estivesse falando com crianças. O peito de St. Vincent se moveu sob a orelha dela em um riso de divertimento.
– Nunca me disseram que eu era do tipo que deixa as pessoas confortáveis. Estou certo de que não gosto disso. Terei de fazer algo diabólico em breve para corrigir sua impressão.
– Sem dúvida fará. – Ela fechou os olhos e se recostou mais em St. Vincent. – Acho que estou cansada demais para gaguejar.
Ele pôs a mão na cabeça de Evie, acariciando-lhe os cabelos e as faces, as pontas de seus dedos massageando a têmpora da jovem.
– Durma – sussurrou. – Estamos quase lá. Se está indo para o inferno, meu amor, logo se sentirá mais quente.
Mas ela não se sentia. Quanto mais viajavam para o norte, mais esfriava, a ponto de Evie imaginar amargamente que parte do enxofre e da lava do inferno seria bem-vinda. A vila de Gretna Green ficava no condado de Dumfriesshire, logo ao norte da fronteira entre a Inglaterra e a Escócia. Desafiando as rígidas leis sobre o casamento na Inglaterra, centenas de casais tinham percorrido a estrada de Londres para Gretna Green, passando por Carlisle. Eles iam a pé, de carruagem ou a cavalo, buscando refúgio, um lugar onde pudessem fazer seus votos e voltar para a Inglaterra como marido e mulher.
Depois que um casal atravessava a ponte sobre o rio Sark e entrava na Escócia, podia se casar em qualquer lugar do país. Só era preciso uma declaração diante de testemunhas. Um próspero negócio de casamentos se desenvolvera em Gretna Green, com os residentes concorrendo para realizar serviços matrimoniais em casas particulares, estalagens ou até mesmo ao ar livre.
Contudo, o local mais famoso – e infame – era a ferraria, onde muitos casamentos rápidos aconteciam. Tanto que um matrimônio em qualquer lugar de Gretna Green era chamado de “casamento na bigorna”. A tradição tinha começado nos anos 1700 quando um ferreiro se estabelecera como o primeiro de uma longa linhagem de padres ferreiros.
Finalmente a carruagem de St. Vincent chegou ao seu destino, uma estalagem perto da ferraria. Parecendo suspeitar que Evie poderia desmaiar de fraqueza, Sebastian manteve a mão firme ao redor dela enquanto se postavam diante do balcão desgastado. O estalajadeiro, Sr. Findley, sorriu de satisfação ao saber que eles eram um casal em fuga e lhes assegurou com grandes piscadelas que sempre tinha um quarto pronto para essas situações.
– Sabem, o casamento só será legal depois de consumado – informou-lhes com um sotaque quase incompreensível. – Certa vez, tivemos de retirar o casal de noivos pela porta dos fundos enquanto seus perseguidores socavam a da frente. Quando eles voltaram para a estalagem e encontraram os dois amantes juntos na cama, o noivo ainda estava de botas! Mas não restou nenhuma dúvida de que o ato tinha sido consumado.
Ele deu uma gargalhada ao se lembrar daquilo.
– Quero uma banheira quente no quarto quando voltarmos da ferraria – ordenou St. Vincent, sem reagir à história do estalajadeiro.
– É claro, milorde. – O estalajadeiro recebeu ansiosamente as moedas que St. Vincent lhe entregou em troca de uma chave antiquada. – Deseja jantar no quarto também, milorde?
St. Vincent lançou um olhar indagador para Evie e ela balançou a cabeça.
– Não – respondeu. – Mas espero contar com um farto café da manhã.
– É claro, milorde. Vão se casar na ferraria, não é? Ah, ótimo! Não há ninguém melhor para realizar casamentos em Gretna Green do que Paisley MacPhee. Um homem culto, atuará como padre e lhes dará uma bela certidão.
– Obrigado.
St. Vincent manteve o braço ao redor de Evie enquanto saíam da estalagem e se dirigiam à casa do ferreiro, ao lado. Um rápido olhar para a rua revelou fileiras de pequenas casas e lojas, com lampiões sendo acesos para abrandar a crescente escuridão do início da noite. Ao se aproximarem da frente do prédio caiado de branco, ele murmurou:
– Aguente apenas um pouco mais, querida. Está quase feito.
Apoiando-se pesadamente em St. Vincent, com seu rosto meio escondido no casaco dele, Evie o esperou bater à porta, que logo foi aberta por um homem corpulento com o rosto corado e um belo bigode que se ligava às profusas suíças.
– É MacPhee? – perguntou St. Vincent.
– Sim.
Rapidamente, St. Vincent fez as apresentações e explicou o objetivo deles. O ferreiro deu um largo sorriso.
– Então querem se casar, não é? Entrem.
Ele chamou suas filhas, duas moças rechonchudas que apresentou como Florag e Gavenia, e os conduziu para a loja contígua à residência. Os MacPhees demonstraram a mesma alegria constante do estalajadeiro Findley, o que desmentiu grande parte do que Evie sempre ouvira dizer sobre a natureza séria dos escoceses.
– Aceitam minhas duas filhas como testemunhas? – perguntou MacPhee.
– Sim – disse St. Vincent, olhando ao redor da loja, que estava cheia de ferraduras, equipamentos para carruagem e implementos agrícolas. A luz do lampião produziu pequenos brilhos nos pelos dourados da metade inferior do rosto dele. – Como sem dúvida pode ver, minha... noiva... e eu estamos muito cansados. Acabamos de chegar de Londres e gostaríamos de apressar os procedimentos.
– De Londres? – perguntou o ferreiro com óbvio divertimento, sorrindo para Evie. – Por que veio para Gretna, senhorita? Seus pais não lhe deram permissão para se casar?
Evie lhe sorriu de volta, cansada.
– Temo que não se-seja assim tã-tão simples, senhor.
– Raramente é – concordou MacPhee, assentindo sabiamente com a cabeça. – Mas devo avisá-la: o casamento escocês é um vínculo irrevogável. Nunca poderá ser quebrado. Certifique-se de que seu amor é verdadeiro e depois...
Interrompendo o que prometia ser uma torrente de conselhos paternais, St. Vincent disse em uma voz áspera:
– Isso não é um casamento por amor. É um casamento de conveniência e não há calor suficiente entre nós nem para acender uma vela de aniversário. Prossiga com isso, por favor.
Nenhum de nós dorme direito há dois dias.
O silêncio caiu sobre o local, com MacPhee e suas duas filhas parecendo chocados com os comentários bruscos. Então as sobrancelhas grossas do ferreiro se abaixaram num olhar reprovador.
– Não gosto do senhor – anunciou ele.
St. Vincent o olhou com exasperação.
– Minha futura esposa também não. Mas como isso não vai impedi-la de se casar comigo, também não deveria ser um impedimento para o senhor. Prossiga.
MacPhee lançou um olhar penalizado para Evie.
– A senhorita não tem flores – exclamou ele, agora determinado a dar um clima romântico à cerimônia. – Florag, vá buscar um ramo de urzes brancas.
– Ela não precisa de flores – disparou St. Vincent, mas a garota saiu correndo mesmo assim.
– É um antigo costume escocês a noiva carregar urzes brancas – explicou MacPhee para Evie. – Quer saber por quê?
Evie assentiu e tentou conter o riso. Apesar da fadiga, ou talvez por causa dela, estava começando a sentir um prazer perverso em ver St. Vincent tentar controlar o mau humor.
Naquele momento, o homem irritado ao seu lado com a barba por fazer não se parecia nem um pouco com o aristocrata presunçoso que comparecera aos festejos na casa de lorde Westcliff.
– Muito, muito tempo atrás... – começou MacPhee, ignorando o suspiro de St. Vincent –
havia uma bela donzela chamada Malvina. Ela era noiva de Oscar, o bravo guerreiro que tinha conquistado seu coração. Oscar pediu que sua amada o esperasse enquanto ele ia buscar fortuna.
Em um dia terrível, Malvina recebeu a notícia de que seu amor havia morrido na guerra. Ele descansaria para sempre nas colinas distantes... perdido no sono eterno...
– Meu Deus, como eu o invejo! – exclamou St. Vincent amargamente, esfregando os olhos, rodeados por olheiras.
– Quando as lágrimas de tristeza molharam a relva como orvalho – continuou MacPhee –, as urzes roxas aos pés dela se tornaram brancas. E é por isso que todas as noivas escocesas carregam urzes brancas no dia de seu casamento.
– Essa é a história? – perguntou St. Vincent franzindo a testa incredulamente. – As urzes provêm das lágrimas de uma jovem pela morte do noivo?
– Sim.
– Então como, em nome de Deus, isso pode ser um símbolo de boa sorte?
MacPhee abriu a boca para responder, mas naquele momento Florag voltou para entregar a Evie um ramo de urzes brancas secas. Murmurando agradecimentos, Evie deixou o ferreiro conduzi-la até a bigorna no centro da loja.
– Tem uma aliança para a noiva? – perguntou MacPhee para St. Vincent, que balançou a cabeça, negando. – Como eu pensei... Gavenia, vá buscar a caixa de alianças. – Inclinando-se para mais perto de Evie, explicou: – Eu trabalho com metais preciosos e ferro. É um trabalho fino, todo em ouro escocês.
– Ela não precisa... – St. Vincent parou, franzindo a testa quando Evie olhou para ele. Então deu um grande suspiro. – Está bem. Escolha algo rápido.
MacPhee tirou um quadrado de lã da caixa de alianças, o abriu sobre a bigorna e pôs delicadamente uma seleção de meia dúzia de alianças sobre o tecido. Evie se inclinou para vê-las. As alianças, todas de ouro e de vários tamanhos e desenhos, eram tão bonitas e delicadas que parecia impossível terem sido criadas pelas mãos grandes e ásperas de um ferreiro.
– Esta tem nós e desenhos de cardos – disse MacPhee, erguendo uma para ela examinar. –
Esta tem um padrão de chave, e esta uma rosa de Shetland.
Evie escolheu a menor das alianças e a experimentou no dedo anelar esquerdo. Serviu perfeitamente. Aproximando-a do rosto, examinou o desenho. Era o mais simples de todos, uma aliança de ouro polido gravada com as palavras: Tha Gad Agam Ort.
– O que isso significa? – perguntou a MacPhee.
– “Meu amor é seu.”
Não houve nenhum som ou movimento de St. Vincent. Evie corou no constrangido silêncio que se seguiu e tirou a aliança, agora lamentando ter tido qualquer interesse nela. O sentimento na frase era tão inadequado nessa cerimônia rápida que enfatizava a farsa que era aquele casamento.
– Acho que eu não quero nenhuma aliança – murmurou, colocando-a gentilmente sobre o pano.
– Vamos ficar com ela – surpreendeu-a St. Vincent. Ele pegou a aliança. Quando Evie arregalou os olhos, acrescentou sucintamente. – São só palavras. Isso não significa nada.
Evie assentiu em silêncio e baixou a cabeça, ainda muito vermelha. MacPhee olhou carrancudamente para os dois e alisou a suíça no lado direito do rosto.
– Meninas – disse para suas filhas com decidida alegria –, agora cantem uma canção para nós.
– Uma canção? – protestou St. Vincent, e Evie puxou o braço dele.
– Deixe-as cantar – murmurou ela. – Quanto mais discutir, mais vai demorar.
Praguejando para si mesmo, St. Vincent observou a bigorna com os olhos estreitados, enquanto as irmãs cantavam em experiente harmonia.
Ah, meu amor é como uma rosa vermelha, vermelha
Recém-brotada em junho
Ah, meu amor é como uma melodia
Tocada com doce harmonia
Tua beleza é tão grande quanto meu amor por ti
E eu a amarei, meu amor
Até que todos os mares sequem...
O ferreiro ouviu suas filhas com muito orgulho, esperou até a última nota e depois as elogiou profusamente. Ele se virou para o casal ao lado da bigorna e disse com ares de solenidade:
– Agora devo perguntar: ambos são solteiros?
– Sim – respondeu St. Vincent sucintamente.
– Tem uma aliança para a noiva?
– O senhor acabou...
St. Vincent murmurou um impropério, mas parou quando MacPhee ergueu as sobrancelhas grossas, esperando a resposta. Claramente, se eles quisessem que a cerimônia fosse realizada, teriam de seguir a liderança do ferreiro.
– Sim. Tenho uma bem aqui.
– Então a coloque no dedo da noiva e encoste sua mão na dela.
Em pé diante de St. Vincent, Evie se sentiu estranha e zonza. No momento em que ele pôs a aliança em seu dedo, seu coração começou a bater muito rápido, produzindo correntes de algo que não era ansiedade nem medo, mas uma emoção nova que lhe aguçou os sentidos de um modo insuportável. Não havia nenhuma palavra para isso. Ela foi dominada pela tensão, sua frequência cardíaca se recusando a diminuir. A palma de sua mão se uniu à de St. Vincent, os dedos dele muito mais longos do que os dela, sua mão suave e quente.
St. Vincent inclinou a cabeça, seu rosto cobrindo o de Evie. Embora ele não demonstrasse nenhuma emoção, um indício de cor surgira no alto das maçãs do rosto e da ponte do nariz. E a respiração dele estava mais rápida do que de costume. Surpresa ao perceber que já conhecera algo tão íntimo quanto o ritmo de sua respiração, Evie desviou o olhar. Viu o ferreiro pegando uma fita branca de uma das filhas e se encolheu um pouco ao senti-lo atando-a firmemente ao redor dos pulsos unidos de ambos.
Um murmúrio sem palavras fez cócegas em seu ouvido e Evie sentiu a mão livre de St.
Vincent subir para a lateral de seu pescoço, acariciando-a como se ela fosse um animal nervoso.
Relaxou ao toque enquanto ele lhe acariciava a pele com delicada leveza.
MacPhee se ocupou de enrolar a fita ao redor dos pulsos deles.
– Agora damos o nó – disse ele, fazendo isso com um floreio. – Repita, senhorita: “Eu o recebo como meu marido.”
– Eu o recebo como meu marido – sussurrou Evie.
– Milorde? – incentivou-o o ferreiro.
St. Vincent a observou com olhos frios e brilhantes que não revelavam nada, e ainda assim Evie teve a impressão de que ele também sentia a estranha e ansiosa tensão que surgia entre eles, forte como um raio.
– Eu a recebo como minha esposa – disse ele em voz baixa.
MacPhee anunciou com satisfação:
– Diante de Deus e dessas testemunhas, eu os declaro marido e mulher. O que Deus uniu ninguém pode separar. São 82 libras, 3 coroas e 1 xelim.
St. Vincent desviou com dificuldade seu olhar de Evie e, erguendo uma sobrancelha, o dirigiu para o ferreiro.
– Cinquenta libras pela aliança – disse MacPhee em resposta à pergunta não feita.
– Cinquenta libras por uma aliança sem nenhuma pedra? – perguntou St. Vincent acidamente.
– É ouro escocês – disse MacPhee, parecendo indignado por seu preço ter sido questionado.
– Dos rios nas colinas de Lowther...
– E o resto?
– Trinta libras pela cerimônia, 1 libra pelo uso da minha loja, 1 guinéu pela certidão de casamento que ficará pronta amanhã, 1 coroa por cada testemunha. – O ferreiro se interrompeu para apontar para as filhas, que riram e fizeram mesuras. – Outra coroa pelas flores...
– Uma coroa por um punhado de ervas secas? – perguntou St. Vincent indignado.
– A canção é cortesia da casa – disse MacPhee com benevolência. – Ah, e 1 xelim pela fita...
que não devem desatar até que o casamento seja consumado. Caso contrário, a má sorte os seguirá.
St. Vincent abriu a boca para discutir, mas depois de olhar para o rosto exausto de Evie, pôs a mão em seu casaco em busca de dinheiro. Seus movimentos foram desajeitados, porque era destro e sua mão esquerda era a única livre. Pegou um maço de notas e algumas moedas e jogou sobre a bigorna.
– Aqui – disse, irritado. – Não, fique com o troco. Dê para suas filhas. – A voz dele adquiriu um tom sarcástico. – Minha gratidão pela canção.
Houve um coro de agradecimentos de MacPhee e suas filhas, que os seguiram entusiasmadamente até a porta, cantando uma estrofe extra da canção nupcial.
E eu a amarei, meu amor
Até que todos os mares sequem...
CAPÍTULO 4
Quando saíram da casa do ferreiro, a chuva havia piorado e caía torrencialmente em cascatas escuras e prateadas. Evie apressou o passo, reunindo o resto de suas forças para voltar ao abrigo da estalagem. Sentia-se como se estivesse caminhando em um sonho. Tudo parecia fora de proporção. Era difícil focar os olhos e o chão lamacento se movia sob seus pés. Para seu desgosto, St. Vincent a fez parar ao lado do prédio sob a proteção de um beiral gotejante.
– O que foi? – perguntou ela com ar de desalento.
St. Vincent levou sua mão livre aos pulsos atados deles e começou a puxar o nó da fita.
– Estou me livrando disto.
– Não. Espere.
O capuz do manto de Evie caiu para trás enquanto ela tentava impedi-lo. Sua mão cobriu a dele, interrompendo-lhe temporariamente os movimentos.
– O quê? – perguntou ele, impaciente.
Água escorreu da aba do chapéu de St. Vincent quando ele baixou a cabeça para Evie. A noite caíra e a única iluminação provinha dos lampiões na rua. Embora a luz fosse fraca, parecia captar o azul-claro dos olhos de St. Vincent, fazendo-os brilhar como se tivessem luz própria.
– Se desatar a fita, teremos má sorte.
– É supersticiosa? – perguntou St. Vincent em um tom de incredulidade.
Evie assentiu com a cabeça como que se desculpando.
Não era difícil ver que a raiva dele estava sendo contida por um fio mais frágil do que a fita que unia seus pulsos. Em pé na escuridão e no frio, com os braços presos erguidos em um ângulo estranho, Evie sentiu os dedos da mão aprisionada de St. Vincent cobrindo-lhe a mão. Essa era a única parte quente de seu corpo.
Ele falou com uma paciência tão exagerada que, se Evie estivesse em plena posse de suas capacidades mentais, teria retirado suas objeções imediatamente.
– Realmente quer entrar na estalagem assim?
Aquilo era irracional, mas Evie estava exausta demais para entender seus sentimentos. Tudo o que sabia era que já tivera má sorte suficiente na vida e não queria atrair mais.
– Estamos em Gretna Green. Ninguém achará isso estranho. Eu pensei que não se importasse com as aparências.
– Nunca me importei em parecer depravado ou desprezível. Meu limite é parecer idiota.
– Não, não – disse Evie insistentemente enquanto St. Vincent tentava mais uma vez desatar a fita.
Lutou com ele, seus dedos se entrelaçando. De repente, St. Vincent a beijou e a empurrou contra a lateral do prédio, prendendo-a com o próprio corpo. A mão livre dele lhe segurou a nuca, sob o peso dos cabelos molhados. A pressão sensual dos lábios de St. Vincent produziu em Evie uma reação de choque em todas as partes corpo. Ela não sabia como beijar nem o que fazer com a boca. Trêmula e confusa, apertou seus lábios fechados contra os dele, enquanto seu coração batia loucamente e suas pernas fraquejavam.
St. Vincent queria coisas que ela não sabia como lhe dar. Sentindo a confusão de Evie, ele se afastou e lhe possuiu a boca com beijos pequenos e persistentes, roçando o rosto gentilmente no dela. Levou os dedos à frágil estrutura do maxilar da jovem, inclinou o queixo dela e, usando o polegar, abriu-lhe os lábios. No momento em que fez isso, a beijou. Evie podia saboreá-lo, sentir uma essência sutil e sedutora que a afetava como uma droga exótica. St. Vincent pôs a língua dentro dela, explorando-a com carícias, sem que Evie oferecesse resistência.
Depois de um beijo voluptuoso, ele recuou até suas bocas mal se tocarem e suas respirações se misturarem em vapores visíveis no ar frio da noite. Deu-lhe um beijo com a boca semiaberta, e depois outro, o ar que provinha dele enchendo a boca de Evie. Beijos leves percorreram a bochecha dela até a intricada cavidade do ouvido. Evie suspirou tremulamente ao sentir a língua no frágil e pequeno lóbulo antes de St. Vincent mordiscá-lo. Ela se contorceu em resposta, a sensação descendo até seus seios e chegando às partes íntimas.
Apertando-se contra St. Vincent, buscou às cegas sua boca quente e provocadora, o toque sedoso de sua língua. Ele lhe correspondeu, seu beijo gentil, mas firme. Ela pôs os braços ao redor do pescoço de St. Vincent para não cair, enquanto ele mantinha a outra mão pressionada contra a parede, os pulsos deles batendo com força, juntos sob a fita branca. Outro beijo profundo, rude e tranquilizador ao mesmo tempo. Ele lhe devorou a boca, a saboreou e lambeu, o prazer ameaçando obscurecer a consciência de Evie. Não admirava que tantas mulheres tivessem sucumbido a este homem, jogado fora a reputação e a honra por ele. Sebastian era a personificação da sensualidade.
Quando St. Vincent afastou seu corpo do dela, Evie ficou surpresa por não ter desabado no chão. Ele ofegava tanto quanto ela – ou ainda mais, seu peito subindo e descendo ritmadamente.
Ambos ficaram em silêncio enquanto St. Vincent estendia a mão para desatar a fita, seus olhos azul-claros totalmente concentrados na tarefa. Suas mãos tremiam e ele não conseguia olhar no rosto de Evie, embora ela não soubesse se isso era para não ver a expressão dela ou para ela não ver a sua. Depois que toda a fita foi retirada, Evie se sentiu como se eles ainda estivessem unidos, com seus pulsos ainda presos.
Finalmente ousando olhar para ela, St. Vincent a desafiou em silêncio a protestar. Evie se conteve, segurou seu braço e eles percorreram a curta distância até a estalagem. A mente de Evie estava girando e ela mal ouviu as congratulações joviais do Sr. Findley quando eles entraram no pequeno edifício. Sentiu as pernas pesadas ao subir um lance da escada escura e estreita.
Finalmente estava lá, em um esforço sobre-humano para pôr um pé na frente do outro na esperança de não cair. Chegaram a uma pequena porta no corredor do andar de cima. Evie encostou seus ombros cansados na parede e observou St. Vincent tentar abrir a fechadura. A chave girou com um som áspero e ela cambaleou na direção da porta aberta.
– Espere. – St. Vincent se inclinou para pegá-la no colo.
A respiração de Evie se tornou acelerada.
– Não precisa...
– Em deferência à sua natureza supersticiosa – disse ele, segurando-a no colo facilmente, como se ela fosse uma criança. – Acho que é melhor seguirmos essa última tradição. – Virando-se de lado, cruzou a porta com ela. – Se a noiva tropeçar no portal, traz má sorte. E já vi homens depois de uma bacanal de três dias com mais firmeza nos pés do que você.
– Obrigada – murmurou Evie quando ele a pôs no chão.
– É meia coroa – respondeu St. Vincent.
O lembrete sarcástico das taxas do ferreiro trouxe um súbito sorriso ao rosto dela.
Contudo, o sorriso desapareceu quando Evie olhou ao redor do pequeno quarto. A cama larga o suficiente para dois parecia macia e limpa, a colcha gasta por inúmeras lavagens. A armação era feita de ferro e latão com remates em forma de bola. Um brilho rosado emanava de um lampião com cúpula de vidro vermelho posto à mesa de cabeceira. Enlameada, com frio e entorpecida, Evie olhou em silêncio para a velha banheira com borda de madeira que fora posta diante da pequena e tremeluzente lareira.
St. Vincent trancou a porta e se aproximou de Evie para lhe abrir o manto. Algo como pena se revelou em suas feições ao ver que ela tremia de cansaço.
– Deixe-me ajudá-la – disse em voz baixa, tirando o manto dos ombros da jovem e o pondo sobre uma cadeira perto da lareira.
Evie engoliu em seco e tentou firmar os joelhos, que pareciam prestes a se dobrar. Ela sentiu um frio terrível no estômago ao olhar para a cama.
– Vamos...? – começou a perguntar, sua voz se tornando áspera.
St. Vincent começou a abrir o corpete do vestido.
– Vamos...? – repetiu ele, e seguiu o olhar de Evie até a cama. – Meu Deus, não!
Ele passou os dedos rapidamente pelo corpete dela, abrindo a fileira de botões.
– Por mais que você seja deliciosa, meu amor, estou cansado. Nunca disse isso em minha vida inteira, mas neste momento prefiro dormir a foder.
Bastante aliviada, Evie deixou escapar um suspiro trêmulo. Foi forçada a se segurar em St.
Vincent para manter o equilíbrio enquanto ele descia o vestido por seus quadris.
– Não gosto dessa palavra – disse Evie em uma voz abafada.
– Bem, é melhor se acostumar com ela. Essa palavra é dita com frequência no clube de seu pai. Só Deus sabe como não a ouviu antes.
– Eu a ouvi – disse Evie, indignada, pisando para fora do vestido. – Só que até agora não sabia o que significava.
St. Vincent se curvou para desamarrar os sapatos dela, seus ombros largos tremendo. Um estranho som sufocado lhe escapou dos lábios. No início, Evie se perguntou se ele de repente se sentira mal, mas depois percebeu que estava rindo. Era a primeira risada genuína que ouvira de St. Vincent, e não tinha a menor ideia de o que ele estava achando tão engraçado. Em pé de camisola e roupas de baixo, cruzou os braços na frente do corpo e franziu a testa.
Ainda resfolegando em mudo divertimento, St. Vincent lhe tirou os sapatos, um de cada vez, e os atirou para o lado. Ele enrolou as meias de Evie com rapidez e eficiência.
– Tome seu banho, querida. Esta noite está segura comigo. Poderei olhar, mas não tocar. Vá em frente.
Como nunca na vida se despira na frente de um homem, Evie sentiu todo o seu corpo se ruborizando ao desatar os laços da camisola. Discretamente, St. Vincent lhe deu as costas e se dirigiu ao lavatório com um jarro de água quente que fora posto ao lado da lareira. Enquanto ele pegava utensílios de barbear no baú que trouxera, Evie tirou desajeitadamente suas roupas de baixo e entrou na banheira. A água estava maravilhosamente quente e, ao afundar nela, suas pernas frias formigaram como se tivessem sido espetadas por mil agulhas.
Um pote de sabão marrom gelatinoso com cheiro acre fora posto em um banco ao lado da banheira. Pegando um pouco com os dedos, Evie o espalhou sobre o peito e os braços. Estava com as mãos pesadas e não parecia conseguir fazer seus dedos trabalharem adequadamente.
Depois de mergulhar a cabeça na água, procurou mais sabão, quase derrubando o pote no processo. Lavou os cabelos, gemeu de desconforto quando seus olhos começaram a arder e jogou bastante água no rosto.
St. Vincent se aproximou rapidamente da banheira trazendo o jarro. Evie ouviu a voz dele:
– Incline a cabeça para trás.
Ele despejou o resto da água limpa sobre os cabelos ensaboados de Evie. Habilmente, enxugou-lhe o rosto com uma toalha limpa mas áspera e lhe disse para se levantar. Evie pegou a mão que ele lhe estendeu e obedeceu. Deveria ter ficado mortificada, em pé e nua na frente dele, mas finalmente chegara a um ponto de exaustão que não permitia pudores. Trêmula e nervosa, deixou-o ajudá-la a sair da banheira. Até mesmo lhe permitiu enxugá-la, porque não era capaz de fazer nada além de ficar em pé, apática, sem se importar ou ao menos notar se ele a estava olhando.
St. Vincent foi mais eficiente do que qualquer criada pessoal ao pôr rapidamente em Evie a camisola branca de flanela que encontrara na valise dela. Ele usou a toalha para lhe enxugar os cabelos e depois a guiou até o lavatório. Evie percebeu com indiferença que ele havia encontrado sua escova de dentes na valise e polvilhado as cerdas com pó dental. Escovando e enxaguando com movimentos enérgicos, ela cuspiu na bacia de cerâmica cor de creme. A escova de dentes escorregou de seus dedos fracos e caiu ruidosamente no chão.
– Venha, querida. Segure a minha mão.
St. Vincent a conduziu para a cama e ela se arrastou para o colchão como um animal ferido.
A cama estava seca e quente, tinha um colchão macio e o peso dos lençóis e cobertores de lã era delicioso sobre seu corpo dolorido. Enterrando a cabeça no travesseiro, Evie deixou escapar um gemido. Houve uma leve puxada em seu couro cabeludo e ela compreendeu que ele estava desembaraçando seus cabelos molhados. Aceitando passivamente os cuidados dele, deixou-o virá-la para alcançar o outro lado. Quando a tarefa foi completada, St. Vincent saiu do lado da cama para tomar banho. Evie só conseguiu ficar com as pálpebras abertas por tempo suficiente para ver o corpo esguio e dourado dele à luz do fogo. Quando St. Vincent saiu da banheira, seus olhos se fecharam...
Foi um sono sem sonhos. Não houve nada além da doce e pesada escuridão, da cama macia e da quietude de uma vila escocesa em uma noite fria de outono. Ela só se mexeu ao raiar do dia, quando ruídos vindos de fora penetraram no quarto: gritos alegres do vendedor de broas, um trapeiro, os sons de animais puxando carroças pela rua. Evie abriu os olhos e, à luz difusa que se infiltrava pelas cortinas rústicas desbotadas, viu com surpresa que havia outra pessoa na cama com ela.
St. Vincent. Seu marido. Ele estava nu da cintura para cima, deitado de barriga para baixo com os braços lisos e musculosos curvados ao redor do travesseiro sob sua cabeça. As linhas largas dos ombros e das costas eram tão perfeitas que pareciam ter sido esculpidas em âmbar báltico e recebido um acabamento brilhante. O rosto era muito mais suave em repouso do que desperto. Os olhos calculistas estavam fechados e a boca, relaxada em linhas delicadas e inocentemente sensuais.
Evie fechou os olhos e se lembrou de que agora era uma mulher casada. Logo poderia ver seu pai e ficar com ele pelo tempo que desejasse. Como era improvável que St. Vincent se importasse com o que ela fizesse ou para onde fosse, teria um pouco de liberdade. Apesar das preocupações nos recônditos de sua mente, uma sensação parecida com felicidade a invadiu. Ela suspirou e dormiu de novo.
Dessa vez, sonhou. Estava andando por um caminho banhado pelo sol e margeado de ásteres e varas-de-ouro balançando ao vento. Era um caminho em Hampshire que já percorrera muitas vezes e passava por campos úmidos repletos de rainhas-dos-prados e relva alta do fim do verão.
Andou sozinha até se aproximar do poço dos desejos onde ela e as amigas um dia atiraram alfinetes e fizeram pedidos.
Sabendo da superstição local sobre o espírito do poço que vivia em suas profundezas, Evie tinha ficado nervosa e evitado se aproximar muito da beira. Segundo a lenda, o espírito esperava para capturar uma donzela inocente e puxá-la para o fundo, onde se tornaria sua mulher.
Contudo, em seu sonho, Evie não tinha medo e até mesmo ousou tirar seus sapatos e mergulhar os dedos dos pés na água agitada. Para a sua surpresa, não estava fria, mas deliciosamente quente. Abaixando-se para a beira do poço, balançou as pernas na água e ergueu o rosto para o sol. Sentiu um toque suave nos tornozelos. Ficou imóvel, sem medo, mesmo ao notar algo se movendo abaixo da superfície da água. Outro toque... a mão. Dedos longos massageando suavemente seus pés doloridos. As grandes mãos masculinas subiram mais, acariciando-lhe as panturrilhas e os joelhos, enquanto um corpo grande e macio emergia das profundezas. O espírito assumira a forma de um homem para cortejá-la. Os braços dele a envolveram e a sensação foi estranha, mas tão boa que ela manteve os olhos fechados, temendo que ele pudesse desaparecer se tentasse vê-lo. A pele dele era quente e sedosa, os músculos das costas ondulando sob seus dedos.
O amante do seu sonho sussurrou palavras ternas enquanto a abraçava, sua boca brincando no pescoço dela. Todos os pontos onde tocava a faziam ter sensações agradáveis.
– Devo possuí-la? – sussurrou ele, afastando cuidadosamente suas roupas e deixando a pele dela exposta à luz, ao ar e à água. – Não tenha medo...
Quando ela estremeceu e o abraçou cegamente, ele lhe beijou o pescoço e os seios, passando a língua nos mamilos. Segurando seus seios, ele roçava os lábios semiabertos em um mamilo. A língua tocou repetidamente a pele sensível até Evie gemer e afundar os dedos em seus cabelos fartos. Abrindo a boca, ele beijou e puxou o mamilo delicadamente. Depois o acariciou com a língua e o puxou de novo... lambendo e sugando em ritmo suave e experiente. Evie se arqueou e gemeu, abrindo as pernas, indefesa, enquanto ele se posicionava mais firmemente entre elas... e então...
Evie abriu os olhos. Acordou atordoada, ofegando em uma mistura de confusão e desejo. O sonho terminara e ela compreendeu que não estava em Hampshire, mas no quarto da estalagem em Gretna, e que os sons da água não eram de um poço dos desejos, mas de uma chuva pesada lá fora. Não havia nenhuma luz do sol, apenas a de um fogo recém-aceso na lareira. E o corpo sobre o dela não era o de um espírito, mas de um homem vivo e quente... com a cabeça sobre sua barriga e a boca perambulando lentamente sobre sua pele. Evie se retesou e gemeu de surpresa ao perceber que estava nua... e St. Vincent estava fazendo amor com ela havia alguns minutos.
Ele a olhou. Com um leve rubor nas bochechas, seus olhos pareciam mais claros e bonitos do que de costume. O esboço de um sorriso relaxado mas perturbador surgiu em seus lábios.
– É difícil acordá-la – disse ele roucamente.
E baixou a cabeça de novo, enquanto uma das mãos lhe percorria furtivamente a coxa.
Chocada, Evie murmurou um rouco protesto e tentou sair de debaixo dele, mas Sebastian a acalmou com as mãos, acariciando-lhe as pernas e os quadris e a acomodando novamente no colchão.
– Fique deitada e quieta. Não tem de fazer nada, meu amor. Deixe-me cuidar de você. Sim.
Você pode me tocar se... Sim... – sussurrou ele ao sentir os dedos trêmulos de Evie tocando em seu cabelo brilhante, em sua nuca e na curva de seus ombros.
St. Vincent se abaixou mais, suas pernas peludas deslizando para entre as de Evie, e ela percebeu que ele estava com o rosto logo acima do triângulo de pelos ruivos. Muito constrangida, automaticamente levou uma das mãos para cobrir a parte íntima.
A boca sensual de St. Vincent desceu até o quadril de Evie e ela o sentiu sorrir ao tocar sua pele macia.
– Você não deveria fazer isso – sussurrou ele. – Quando esconde algo de mim, eu desejo mais. Temo que esteja enchendo minha cabeça das ideias mais lascivas. É melhor afastar a mão, querida, ou farei algo realmente depravado.
Quando ela afastou a mão trêmula, St. Vincent deixou um dedo perambular entre os pelos encaracolados procurando delicadamente a maciez dela.
– Isso... obedeça ao seu marido – sussurrou maliciosamente, acariciando-a mais fundo até separar os cachos. – Principalmente na cama. Como você é linda! Abra as pernas, meu amor.
Vou tocar dentro de você. Não, não tenha medo. Ajudará se eu a beijar aqui? Fique quieta para mim...
Evie gemeu quando a boca de St. Vincent procurou seus pelos ruivos brilhantes. A língua quente e muito paciente encontrou seus segredos. O dedo longo e ágil examinou a entrada do corpo de Evie, mas foi momentaneamente desalojado quando ela se sobressaltou.
Sussurrando palavras tranquilizadoras junto à pele úmida e excitada da jovem, St. Vincent deslizou o dedo para dentro dela de novo, dessa vez mais fundo.
– Minha querida inocente – murmurou com suavidade, sua língua tocando em um ponto tão sensível que ela estremeceu e gemeu. Ao mesmo tempo, o dedo a acariciou por dentro em um ritmo lânguido. Ela tentou ficar quieta, cerrando os dentes, mas pequenos sons continuaram vindo à tona. – O que você acha que aconteceria... se eu continuasse a fazer isso sem parar?
Evie ficou com a visão turva quando seus olhares se encontraram por cima de sua barriga trêmula. Ela sabia que estava com o rosto contorcido e corado... Sentia o calor queimando cada centímetro de sua pele. St. Vincent pareceu esperar por uma resposta. Ela mal conseguiu forçar as palavras a saírem de sua garganta:
– E-eu não sei – disse debilmente.
– Então vamos experimentar?
Atônita, Evie não conseguiu responder nem fazer nada além de vê-lo pressionar a boca em seus pelos ruivos. Sua cabeça caiu para trás ao sentir a língua de St. Vincent dançar habilmente em sua pele pulsando de excitação. Seu coração começou a bater violentamente. Evie sentiu uma leve ardência quando ele escorregou um segundo dedo para dentro dela, esticando-o ternamente, e depois sugou o tenso botão de seu sexo, no início lambendo-o devagar e depois aumentando o ritmo enquanto ela se contorcia.
Ele continuou, os dedos longos trabalhando em arremetidas controladas, a boca tentadora e exigente, até que o prazer a arrastou em ondas cada vez mais rápidas e ela subitamente não conseguiu se mover. Arqueada firmemente contra a boca de St. Vincent, gritou e ofegou, e gritou de novo. A língua de St. Vincent se tornou mais suave, mas continuou habilmente seu jogo, levando-a ao auge da sensação e lhe banhando o sexo com carícias quentes enquanto ela começava a se contorcer violentamente.
Um grande cansaço a dominou, acompanhado de uma euforia física que a fez se sentir bêbada. Incapaz de controlar o corpo, retorceu-se tremulamente sob St. Vincent e não demonstrou resistência quando ele a virou de barriga para baixo. Mais uma vez St. Vincent pôs a mão entre suas coxas e a penetrou com os dedos. A abertura do corpo de Evie estava dolorida e, para sua mortificação, saturada de umidade. Contudo, isso pareceu excitá-lo e ele começou a ofegar junto à nuca sensível da jovem. Mantendo os dedos dentro dela, ele a beijou e mordiscou costas abaixo.
Evie sentiu o sexo de St. Vincent roçando entre suas pernas. Estava duro, inchado e ardente.
Não se surpreendeu com aquela mudança. Annabelle lhe dissera o suficiente para que tivesse uma boa ideia do que acontecia no corpo de um homem durante o ato amoroso. Mas a amiga não comentara nada sobre as centenas de outras intimidades que tornavam a experiência não meramente física, mas algo capaz de mudar a própria alquimia da alma.
Agachado sobre ela, St. Vincent a provocou e acariciou até sentir os quadris de Evie se erguendo hesitantemente na direção de sua mão.
– Quero ficar dentro de você – sussurrou ele, beijando-lhe o pescoço. – Quero penetrar fundo em seu corpo... Serei muito gentil, amor. Deixe-me virá-la e... Meu Deus, você é tão linda...
Ele a virou de barriga para cima e se posicionou entre as coxas abertas dela, seu sussurro se tornando trêmulo e excitado.
– Toque-me, querida, ponha sua mão aqui...
Ele começou a ofegar quando os dedos de Evie se curvaram gentilmente sobre seu membro ereto. Hesitante, ela o acariciou, percebendo pela respiração acelerada de St. Vincent que isso lhe dava prazer. Ele fechou os olhos, os cílios espessos tremendo levemente e os lábios se abrindo com a força de sua respiração.
Desajeitadamente, ela agarrou o membro pesado e o guiou para entre suas coxas. A ponta escorregou na umidade de seu sexo e St. Vincent gemeu como se sentisse dor. Tentando de novo, Evie o posicionou, insegura. Uma vez no lugar, St. Vincent o acomodou firmemente na fenda vulnerável. Aquilo ardeu muito mais do que quando ele pusera os dedos nela, e Evie se contraiu.
Pegando o corpo da jovem nos braços, ele se moveu em uma forte arremetida, e mais outra, até penetrá-la totalmente. Ela se contorceu no impulso de evitar a dolorosa invasão, mas parecia que cada movimento só o levava mais para dentro.
Preenchida, Evie se forçou a ficar parada nos braços de St. Vincent. Segurou-lhe os ombros, enterrando os dedos nos rígidos músculos e tendões e o deixou acalmá-la com a boca e as mãos.
As pálpebras de St. Vincent estavam pesadas, seus olhos brilhantes, quando ele se inclinou para beijá-la. Apreciando a suavidade e o calor da língua, ela a sugou ansiosamente. Ele emitiu um som de surpresa, estremeceu e seu membro se moveu violentamente dentro dela com uma série de espasmos rítmicos. Um gemido vibrou no peito de St. Vincent quando ele ejaculou dentro dela, respirando em sibilos por entre dentes cerrados.
Evie desceu as mãos para o peito firme dele, coberto de uma penugem dourada. Com o corpo ainda unido ao dela, ele ficou parado sob os dedos exploradores da jovem. Ela correu as mãos por seu tronco esguio, examinando o firme arco das costelas e as costas lisas e sedosas. Ele arregalou seus olhos azuis e deixou a cabeça cair no travesseiro ao lado da de Evie, gemendo enquanto arremetia profundamente, acometido de novos tremores de êxtase.
Ele a beijou com uma ânsia primitiva. Evie abriu ainda mais as pernas e puxou as costas de St. Vincent, desejando mais do peso dele sobre si, tentando senti-lo mais fundo e forte apesar da dor. Apoiado nos cotovelos para não esmagá-la, ele pousou a cabeça no peito de Evie, sua respiração quente e leve lhe tocando o mamilo. A barba por fazer arranhou um pouco a pele de Evie, fazendo os mamilos se contraírem. O sexo de St. Vincent ainda estava dentro dela, embora tivesse amolecido. Ele estava em silêncio, porém acordado, os cílios macios fazendo cócegas na esposa.
Ela também não emitia nenhum som, seus braços rodeando a cabeça de St. Vincent, seus dedos brincando nos belos cabelos dele. Sentiu a cabeça mudando de posição, o calor molhado da boca procurando-lhe o mamilo. St. Vincent o beijou e passou a língua lenta e repetidamente sobre a aréola intumescida até sentir Evie se movendo impacientemente sob ele. Mantendo o mamilo macio na boca, lambeu-o firme e suavemente, enquanto o desejo incendiava os seios e a barriga de Evie, e a dor se dissolvia em uma nova onda de prazer. Ele se dedicou ao outro seio, o mordiscando e acariciando, parecendo sentir prazer com o prazer dela. Ergueu-se o suficiente para poder deslizar a mão entre seus corpos, os dedos hábeis procurando os pelos úmidos, encontrando a crista feminina palpitante e provocando-a. Evie se sentiu atingindo outro clímax, seu corpo se agarrando voluptuosamente ao membro quente que se insinuava para dentro dela.
Ofegando, St. Vincent ergueu a cabeça para olhá-la, como se ela fosse de uma espécie nunca vista.
– Meu Deus! – sussurrou com uma expressão não de satisfação, mas de algo parecido com alarme.
CAPÍTULO 5
Sebastian saiu da cama e se dirigiu ao lavatório com as pernas bambas. Sentia-se confuso, inseguro, como se tivesse sido ele a perder a virgindade. Achava que não havia mais nada de novo para experimentar, mas estava errado. Para um homem que considerava o ato sexual um exercício de técnica e coreografia, fora um choque se ver à mercê das próprias paixões.
Pretendera recuar no último momento, mas tinha sido tão dominado pelo desejo que fora incapaz de controlar seu corpo. Maldição. Isso nunca havia acontecido.
No lavatório, pegou desajeitadamente a toalha de linho branco pensando em molhá-la com água fresca. A essa altura sua respiração voltara ao normal, mas ele não estava nem um pouco calmo. Depois do que acabara de acontecer, deveria se sentir saciado durante horas. Mas não fora o suficiente. Havia tido o orgasmo mais longo e intenso de sua vida. Ainda assim a necessidade de possuí-la não desaparecera. Aquilo era uma loucura. Mas por quê? Por que com ela?
Ela tinha o tipo de forma feminina que ele sempre havia adorado, firme e voluptuosa, com coxas largas para acomodá-lo. E uma pele macia como veludo, com sardas douradas espalhadas como fogos de artifício. Os pelos pubianos, tão ruivos e cacheados quanto os cabelos... Sim, isso também era irresistível. Mas todos os atributos físicos de Evangeline Jenner não explicavam o efeito extraordinário que tinha sobre ele.
Novamente excitado, Sebastian se esfregou fortemente com a toalha fria e procurou uma nova. Levou-a para Evangeline, que estava meio curvada de lado. Para seu alívio, ao que tudo indicava não haveria lágrimas ou queixas virginais. Ela parecia contemplativa em vez de perturbada... Olhava-o fixamente, como se tentasse decifrar um enigma. Ele lhe murmurou que ficasse de barriga para cima e limpou o sangue e os fluidos entre as coxas dela.
Não foi fácil para Evangeline ficar nua diante dele... Sebastian viu o rubor cobri-la em uma rápida onda. Conhecera pouquíssimas mulheres que se enrubesciam com a nudez. Sempre escolhera as experientes, tendo pouco interesse pelas inocentes. Não por motivos morais, é claro, mas porque as virgens eram muito insípidas na cama.
Ele pôs a toalha de lado e colocou as palmas das mãos nos ombros de Evangeline, produzindo depressões profundas no colchão. Eles se estudaram com curiosidade. Sebastian percebeu que Evangeline se sentia confortável com o silêncio. Uma boa qualidade. Inclinou-se sobre ela, ainda olhando-a nos olhos, mas, ao baixar a cabeça, um ronco quebrou a calmaria. Era o estômago voluntarioso dela, protestando por estar vazio. Ficando ainda mais vermelha, se é que isso era possível, Evangeline cobriu a barriga com as mãos como se isso fosse calá-la.
Um sorriso surgiu no rosto de Sebastian, que se curvou rapidamente para lhe beijar a barriga.
– Vou pedir o café da manhã, doçura.
– Evie – murmurou ela, estendendo a mão para puxar as cobertas até o peito. – É assim que meu pai e minhas amigas me chamam.
– Estamos finalmente prontos para primeiros nomes? – Um sorriso provocador surgiu nos cantos dos lábios dele. – Nesse caso, Sebastian.
Evie estendeu a mão devagar como se ele fosse um animal selvagem capaz de fugir assustado e lhe acariciou os cachos da frente com cuidadosa leveza. Afastando uma mecha de cabelos solta, disse em uma voz baixa:
– Agora somos realmente marido e mulher.
– Sim. Deus a ajude. – Ele inclinou a cabeça, apreciando as carícias dela. – Devemos partir para Londres hoje?
Evie assentiu com a cabeça.
– Quero ver meu pai.
– É melhor escolher suas palavras com cuidado quando lhe explicar que sou seu marido –
disse Sebastian. – Caso contrário, a notícia acabará com ele.
Ela tirou a mão dos cabelos dele.
– Quero que nos apressemos. Se o tempo melhorar, talvez consigamos ir mais rápido. Quero ir direto para o clube do meu pai e...
– Chegaremos lá em breve, mas não viajaremos à mesma velocidade desenfreada em que viemos para a Escócia. Passaremos pelo menos uma noite em uma estalagem.
Quando Evie abriu a boca para protestar, ele disse de modo incontestável:
– Não fará nenhum bem para seu pai você chegar ao clube dele morta de exaustão.
Havia começado: o exercício da autoridade do marido e a obrigação da esposa de obedecer.
Estava claro que Evie ansiava por argumentar, mas em vez disso o olhou com o cenho franzido.
Suavizando a voz, ele murmurou:
– Você enfrentará momentos difíceis, Evie. Ter-me como marido será provação suficiente.
Mas cuidar de um tuberculoso no último estágio da doença... Você precisará de todas as suas forças. Não faz sentido esgotá-las antes mesmo de chegar lá.
Evie o olhou com uma renovada intensidade que o fez se sentir desconfortável. Que olhos ela tinha! Como se alguém tivesse juntado camadas de vidro azul e feito um raio de sol brilhante passar por elas.
– Está preocupado com meu bem-estar? – perguntou Evie.
Ele tornou a usar sua voz zombeteira e seu olhar frio.
– É claro, criança. É do meu interesse mantê-la viva e saudável até pôr as mãos no seu dote.
Evie logo descobriu que St. Vincent – Sebastian – ficava tão à vontade nu quanto vestido, e tentou reagir naturalmente à visão de um homem andando pelo quarto totalmente despido, mas lançou olhares discretos para ele sempre que possível. Sebastian tinha membros longos e esguios, com áreas de carne macia que deviam ter sido tonificadas por exercícios como equitação, pugilismo e esgrima. As costas e os ombros eram bem desenvolvidos, com músculos que se flexionavam sob a pele firme. Mais fascinante ainda era a visão frontal dele, que incluía um peitoral que não era liso como geralmente se via nas estátuas de mármore ou bronze, mas ligeiramente coberto de pelos. Os pelos no peito – e em outros lugares – a tinham surpreendido.
Esse era mais um dos muitos mistérios do sexo oposto que agora lhe era revelado.
Incapaz de andar nua pelo quarto, Evie se enrolou em um lençol antes de ir até sua valise.
Pegou um vestido limpo de lã pesada marrom, um novo conjunto de roupas de baixo e, o mais importante, um par de sapatos limpos. Seu outro par estava tão sujo e úmido que ela estremeceu à ideia de calçá-lo. Enquanto se vestia, sentiu o olhar de Sebastian nela e se apressou a pôr a camisola para esconder seu tronco rosado.
– Você é linda, Evie – comentou ele com suavidade.
Tendo sido criada por parentes que sempre lamentaram a cor berrante de seus cabelos e a proliferação de sardas em sua pele, Evie sorriu ceticamente.
– Tia Florence sempre me deu uma loção clareadora para fazer minhas sardas desaparecerem.
Mas não há como me livrar delas.
Ele sorriu e foi até Evie. Segurando-lhe os ombros, olhou com prazer para o corpo seminu dela.
– Não remova uma única sarda, querida. Eu encontrei algumas nos lugares mais encantadores. Já tenho minhas favoritas... Devo lhe dizer onde estão?
Perplexa e desarmada, Evie balançou a cabeça, negando, e tentou se afastar dele. Mas Sebastian não a deixou. Puxando-a para mais perto, inclinou sua cabeça dourada e lhe beijou no pescoço.
– Estraga prazeres – sussurrou. – Vou lhe dizer assim mesmo.
Ele segurou a camisola e a puxou lentamente para cima. Evie ficou sem fôlego ao sentir a carícia dos dedos de Sebastian entre suas pernas nuas.
– Há uma trilha no lado interno de sua coxa direita que leva a...
Uma batida à porta os interrompeu e Sebastian ergueu a cabeça com um grunhido de irritação.
– Café da manhã – murmurou. – Eu não lhe pediria para escolher entre o ato amoroso e uma refeição quente, porque provavelmente a resposta não me seria lisonjeira. Ponha seu vestido enquanto eu atendo a porta.
Depois de Evie obedecer desajeitada e apressadamente, ele abriu a porta para duas camareiras que traziam bandejas com pratos tampados. Assim que elas olharam para o belo hóspede de rosto angelical e cabelos cor de trigo, arfaram e deram risadinhas incontroláveis. Não ajudou muito a se recomporem o fato de ele só estar parcialmente vestido, com os pés descalços, a camisa branca com o colarinho aberto e uma gravata pendurada em volta do pescoço.
Encantadas, por duas vezes quase viraram as bandejas antes de pôr o café da manhã na mesa.
Tiveram dificuldade em conter gritinhos de satisfação ao especularem sobre o que ocorrera durante a noite na cama agora desarrumada. Irritada, Evie as enxotou do quarto e fechou a porta com firmeza.
Ela olhou para Sebastian para observar sua reação à admiração das camareiras, mas ele parecia distraído. Claramente o comportamento delas era tão comum que não fora notado. Um homem com a aparência e posição dele sempre seria perseguido por mulheres. Evie não tinha a menor dúvida de que isso seria devastador para uma esposa que o amasse. Contudo, nunca se permitiria sentir ciúme ou o medo de traição.
Sebastian foi acomodar Evie à mesa e a serviu primeiro. Havia mingau com sal e manteiga, porque os escoceses consideravam um sacrilégio adoçá-lo com melaço. Também havia fatias frias de bacon cozido, hadoque defumado, uma grande tigela de ostras defumadas e grandes fatias de pão torrado cobertas de geleia. Evie devorou sua comida avidamente, tomando chá. A refeição era simples, dificilmente comparável com os cafés da manhã ingleses espetaculares na propriedade de lorde Westcliff, em Hampshire, mas era quente e farta, e Evie estava faminta demais para encontrar defeito em alguma coisa.
Ela continuou com seu café da manhã enquanto Sebastian se barbeava e terminava de se vestir. Ele guardou o estojo de couro com utensílios de barbear no baú, fechou a tampa e disse casualmente para Evie:
– Guarde seus pertences, criança. Vou descer para ver se a carruagem está pronta.
– A certidão de casamento do Sr. MacPhee...
– Cuidarei disso também. Tranque a porta depois que eu sair.
Cerca de uma hora depois, ele voltou para buscar Evie, enquanto um rapaz musculoso carregava o baú e a valise para a carruagem. Sebastian esboçou um sorriso ao ver que Evie usara uma de suas gravatas de seda para prender os cabelos na altura da nuca. Ela havia perdido a maioria de seus grampos quando vieram da Inglaterra e não tivera a ideia de pôr alguns extras em sua valise.
– Com os cabelos assim, você parece jovem demais para se casar – murmurou ele. – O que dá um toque picante de libertinagem à situação. Gosto disso.
A essa altura acostumada com os comentários indecentes dele, Evie lhe lançou um olhar de resignada tolerância e o seguiu para fora do quarto. Eles desceram e se despediram do Sr.
Findley, o estalajadeiro. Enquanto Evie acompanhava Sebastian até a entrada, o homem disse alegremente:
– Boa viagem, Lady St. Vincent!
Surpresa ao perceber que agora era uma viscondessa, ela conseguiu gaguejar um agradecimento. Sebastian a ajudou a ir até a carruagem que os esperava enquanto os cavalos batiam com os cascos, agitados, a respiração saindo por suas narinas dilatadas formava uma fumaça branca.
– Sim, por mais que o título tenha sido manchado, agora é seu – comentou Sebastian sarcasticamente. – Ele a ajudou a subir o degrau e entrar no veículo. – Além disso, um dia ocuparemos uma posição ainda mais alta, porque sou o primeiro na linha de sucessão para o ducado... embora eu a aconselhe a não se animar muito. Os homens da minha família têm vida longa, o que significa que provavelmente só herdaremos o título quando estivermos decrépitos demais para desfrutá-lo.
– Se você... – começou Evie, parando surpresa ao ver um objeto volumoso no chão.
Era um grande recipiente de cerâmica com uma abertura tampada em uma extremidade.
Tinha uma forma arredondada e um dos lados achatado para garantir sua estabilidade no chão.
Perplexa, ela olhou para Sebastian, tocou hesitantemente a sola de seu sapato no objeto e foi recompensada com um forte sopro de calor que subiu direto para suas saias.
– Um aquecedor de pés! Onde conseguiu encontrar isso?
O calor da água fervente no recipiente de cerâmica duraria muito mais do que o do tijolo que usara antes.
– Comprei de MacPhee quando o vi na casa dele – respondeu Sebastian, parecendo se divertir com o entusiasmo dela. – Naturalmente ele ficou muito feliz com a perspectiva de me cobrar por mais alguma coisa.
Impulsivamente, Evie se ergueu um pouco de seu banco para beijar a bochecha lisa e fria de Sebastian.
– Obrigada. Foi muito gentil da sua parte.
Ele pôs as mãos na cintura de Evie, impedindo-a de se afastar. Exerceu força suficiente apenas para pô-la no colo, até seus rostos ficarem tão próximos que seus narizes quase se tocaram. A respiração de Sebastian acariciou a boca da jovem quando ele murmurou:
– Certamente eu mereço um agradecimento melhor do que esse.
– É só um aquecedor de pés – protestou ela suavemente.
Ele sorriu.
– Devo salientar, querida, que isso vai acabar esfriando... e então, mais uma vez, serei sua única fonte de calor. E não partilho o calor do meu corpo indiscriminadamente.
– Segundo o que dizem, partilha sim.
Evie estava descobrindo um prazer desconhecido na conversa. Nunca havia caçoado de um homem dessa maneira nem se divertido provocando-o e negando algo que ele queria. Viu pelo brilho nos olhos de Sebastian que ele estava se divertindo também. Parecia querer saltar sobre ela.
– Vou esperar minha vez – disse ele. – O maldito calor não vai durar para sempre.
Ele a deixou sair de seu colo e a observou arrumar as saias sobre o aquecedor de pés. Feliz, Evie se recostou enquanto a carruagem começava a se mover e sentiu a pele das coxas se arrepiar ao toque do delicioso calor que subia pelas calçolas e penetrava pelas meias.
– Milorde... Sebastian...
Os olhos dele eram claros e reflexivos como um espelho.
– Sim, querida?
– Se seu pai é um duque, por que você é um visconde? Não deveria ser um marquês, ou pelo menos um conde?
– Não necessariamente. É uma prática relativamente moderna acrescentar alguns títulos menores quando um novo é criado. Via de regra, quanto mais antigo é o ducado, menos provável que o filho mais velho seja um marquês. Meu pai decidiu ver o lado bom disso, é claro. Nunca toque nesse assunto com ele, especialmente quando estiver bêbado, porque ouvirá um discurso enfadonho sobre como a palavra “marquês” soa estranha e o título em si não é nada além de uma constrangedora posição inferior à de duque.
– Seu pai é um homem arrogante?
Sebastian esboçou um sorriso amargo.
– Eu costumava pensar que sim. Mas percebi que é mais como se ele fosse alheio ao mundo ao qual não pertence. Que eu saiba, meu pai nunca calçou as próprias meias ou pôs pó dental em sua escova de dentes. Duvido que sobrevivesse a uma vida sem privilégios. Na verdade, acho que morreria de fome em um cômodo cheio de comida se não houvesse criados para levá-la para a mesa. Ele não acha nada de mais usar um vaso valioso como alvo para a prática de tiro ou apagar o fogo de uma lareira lhe atirando um casaco de pele de raposa. Até mesmo mantém as florestas ao redor da propriedade sempre iluminadas por tochas e lampiões, para o caso de ter vontade de passear à noite.
– Não admira que esteja pobre – disse Evie, chocada com tamanho desperdício. – Espero que você não seja tão perdulário.
Ele balançou a cabeça.
– Nunca fui acusado de gastar além do razoável. Raramente jogo e não mantenho amantes.
Mesmo assim, estou com credores em meu encalço.
– Já pensou em ter uma profissão?
Ele a olhou sem entender.
– Para quê?
– Para ganhar dinheiro.
– Meu Deus, não. O trabalho seria uma distração inconveniente em minha vida pessoal. E
quase nunca tenho disposição de acordar antes do meio-dia.
– Meu pai não vai gostar de você.
– Se minha ambição na vida fosse conquistar a simpatia dos outros, ficaria muito aborrecido ao ouvir isso. Felizmente não é.
Enquanto a viagem continuava em um clima de companheirismo, Evie percebeu uma mistura contraditória de sentimentos em relação ao marido. Embora Sebastian possuísse muito charme, ela encontrava nele pouco que fosse digno de respeito. Era óbvio que tinha uma mente perspicaz, mas não a usava para nenhum objetivo bom. Além disso, saber que havia raptado Lillian e com isso traído o melhor amigo deixava claro que não era confiável. Contudo, ocasionalmente era capaz de uma gentileza que ela apreciava.
A cada parada, Sebastian supria as necessidades de Evie, e apesar de suas ameaças de deixar o aquecedor de pés esfriar, enchia-o de novo com água fervente. Quando ela ficava cansada, deixava-a cochilar em seu peito, segurando-a quando as rodas da carruagem sacolejavam por trechos acidentados da estrada. Enquanto cochilava em seus braços, ocorreu a Evie que Sebastian havia lhe dado a ilusão de algo que ela nunca tivera. Refúgio. Ele passou a mão repetidamente pelos cabelos dela na mais gentil das carícias e Evie o ouviu murmurar em sua voz de anjo caído:
– Descanse, meu amor. Estou zelando por você.
CAPÍTULO 6
Embora Sebastian estivesse ansioso por chegar a Londres, não lamentou sua decisão de viajar mais devagar na volta. Ao cair da noite, Evie estava pálida e pouco comunicativa, com as forças esgotadas depois da ansiedade dos últimos dias. Ela precisava descansar.
Quando encontrou uma estalagem adequada para passarem a noite e trocarem de cavalos, Sebastian pagou pelo melhor quarto disponível e pediu que subissem imediatamente com comida e um banho quente. Evie se lavou em uma pequena banheira portátil enquanto ele providenciava a troca de cavalos pela manhã e alojamento para o cocheiro. Voltando para o quarto, pequeno mas limpo e com cortinas azuis um pouco surradas, Sebastian descobriu que a esposa terminara seu banho e estava de roupas de dormir.
Ele foi até a mesa, ergueu o guardanapo que cobria seu prato e descobriu uma porção de frango assado, alguns tubérculos murchos e um pequeno pudim. Notando que o prato de Evie estava vazio, olhou-a com um sorriso irônico.
– Que tal?
– Melhor do que não jantar.
– Confesso que estou dando um novo valor aos talentos do meu cozinheiro em Londres. –
Ele se sentou à frágil mesa e pôs um guardanapo no colo. – Acho que você vai gostar das criações dele.
– Não espero fazer muitas refeições em sua casa – respondeu Evie cautelosamente.
Sebastian parou o garfo a meio caminho da boca.
– Vou ficar no clube do meu pai – continuou Evie. – Como já havia lhe dito, pretendo cuidar dele.
– Durante o dia, sim. Mas não dormirá lá. Voltará à noite para minha... nossa casa.
Ela o olhou sem pestanejar.
– A doença dele não desaparecerá ao cair da noite e voltará ao amanhecer. Ele precisará de cuidados constantes.
Sebastian pôs um pouco de comida na boca enquanto respondia com irritação:
– É para isso que existem os criados. Você pode contratar uma mulher para cuidar dele.
Evie balançou a cabeça com uma obstinada firmeza que o irritou ainda mais.
– Não é o mesmo que ser cuidado por um parente amoroso.
– Por que você deveria se importar com a qualidade do cuidado do seu pai? Ele fez muito pouco por você. Mal conhece o canalha...
– Não gosto dessa palavra.
– É uma pena. Porque é uma das minhas favoritas e pretendo usá-la sempre que se aplicar.
– Então é uma sorte o fato de que vamos nos ver tão pouco depois de voltarmos a Londres.
Olhar para a esposa, cujo rosto doce escondia um temperamento inesperadamente obstinado, lembrou Sebastian de que ela estava disposta a tomar medidas drásticas para conseguir o que queria. Só Deus sabia o que faria se a pressionasse demais. Forçando as mãos a relaxarem nos cabos da faca e do garfo, parou de comer. Não importava que o frango estivesse sem gosto. Se estivesse embebido no mais delicioso molho francês, ele não notaria. Sua mente astuta estava ocupada procurando estratégias para lidar com ela.
Finalmente assumiu uma expressão de gentil preocupação e murmurou:
– Meu amor, não posso permitir que você durma em um lugar repleto de ladrões, jogadores e bêbados. Certamente não percebe os perigos inerentes a essa situação.
– Vou providenciar para que receba meu dote o mais rápido possível. E então não terá de se preocupar comigo.
O autocontrole de Sebastian, sempre tão grande, se evaporou como água em uma chapa de fogão.
– Maldição, não estou preocupado com você! É só que... inferno, isso é inadmissível, Evie. A viscondessa St. Vincent não pode morar em um clube de jogos, nem que seja por alguns dias.
– Eu não sabia que você era tão convencional – disse Evie, e por algum motivo ver o rosto furioso do marido fez os cantos dos lábios dela se curvarem em um sorriso.
Por mais que o sorriso fosse sutil, Sebastian o notou e foi imediatamente da raiva para a perplexidade. De modo algum passaria por uma situação difícil por causa de uma virgem... quase virgem... de 23 anos, ingênua a ponto de acreditar que era páreo para ele.
Seu olhar gelado de desprezo deveria tê-la intimidado.
– Em sua fantasia de bancar o anjo da guarda, querida, quem a protegerá naquele lugar?
Dormir lá sozinha é um convite à violação. E de modo algum dormirei lá com você. Tenho coisas melhores a fazer do que me sentar em uma casa de jogos de segunda classe e esperar o velho Jenner bater as botas.
– Eu não pedi para me proteger – respondeu ela em um tom calmo. – Vou me sair muito bem sem você.
– É claro que sim – murmurou Sebastian com sarcasmo, subitamente perdendo o interesse pelo jantar frio à sua frente.
Atirando seu guardanapo sobre o prato, levantou-se da mesa e tirou o casaco e o colete.
Estava empoeirado e cansado da viagem, e pretendia usar a banheira. Com um pouco de sorte, a água ainda estaria quente.
Enquanto se despia e atirava cada peça de roupa sobre a cadeira, não pôde evitar de pensar em todas as mulheres que já haviam desejado se casar com ele. Bonitas e bem dotadas física e financeiramente, elas teriam feito de tudo para agradá-lo. Ele estivera ocupado demais com suas libertinagens para pensar em pedir qualquer uma delas em casamento. E agora, por uma combinação de circunstâncias e falta de oportunidade, terminara casado com uma criatura socialmente inadequada com uma linhagem ruim e um temperamento obstinado.
Notando o modo como Evie desviou seu olhar do corpo nu dele, Sebastian esboçou um sorriso de desdém. Foi até a pequena banheira, se abaixou para a água morna e se sentou com suas longas pernas pendendo nos dois lados. Lavou-se devagar, jogou bastante água no peito e nos braços ensaboados e observou a esposa estreitando os olhos. Ficou satisfeito em ver que um pouco da calma dela desaparecera enquanto ele se banhava. Estava levemente ruborizada e com um interesse exagerado no desenho da colcha.
Quando Evie seguiu com o dedo indicador um padrão de pontos, Sebastian viu o brilho da aliança de ouro escocês. Ele teve uma reação estranha à visão, uma necessidade quase incontrolável de ir até ela, empurrá-la para a cama e possuí-la sem preliminares. De dominá-la e forçá-la a admitir que lhe pertencia. A força do desejo primitivo era mais do que alarmante para um homem que sempre se considerara civilizado. Confuso e excitado, terminou de se lavar, pegou a toalha úmida que ela havia usado e se enxugou. Evie notou sua excitação – ele ouviu a respiração dela se acelerar do outro lado do quarto. Agindo naturalmente, Sebastian enrolou a toalha na cintura e prendeu a ponta para dentro enquanto se dirigia ao baú.
Pegou um pente, foi até o lavatório e o passou sem dó nos cabelos molhados. O canto do espelho acima do lavatório proporcionava uma visão parcial da cama e ele viu que Evie o observava.
Sem se virar, murmurou:
– Serei o cão do açougueiro esta noite?
– Cão do açougueiro?
– O cão que fica deitado no canto do açougue e não pode comer nenhuma carne.
– Essa comparação não é um e-elogio para nenhum de nós.
Sebastian fez uma pausa quase imperceptível no ato de pentear seus cabelos ao perceber a volta da gagueira. Ótimo, pensou friamente. Ela não estava nem de longe tão calma quanto fingia estar.
– Não vai responder à minha pergunta?
– Eu... sinto muito, mas pre-prefiro não ter relações íntimas com vo-você de novo.
Ofendido, Sebastian pousou o pente e se virou para ela. As mulheres nunca o rejeitavam. E o fato de Evie fazer isso depois dos prazeres daquela manhã era difícil de entender.
– Você me disse que não gostava de dormir com uma mulher mais de uma vez – lembrou-lhe Evie meio que se desculpando. – Alegou que isso era tedioso.
– Pareço entediado? – perguntou ele, a toalha não ajudando muito a esconder a força da ereção.
– Acho que isso depende de para qual pa-parte sua se está olhando – murmurou Evie, baixando os olhos para a colcha. – Não preciso lembrá-lo, mi-milorde, de que nó-nós fizemos um acordo.
– Você pode mudar de ideia.
– Mas não vou.
– Sua recusa cheira a hipocrisia, querida. Já a possuí uma vez. Realmente faz alguma diferença para sua virtude fazer isso de novo?
– Não estou me re-recusando em prol da virtude.
A gagueira desaparecia quando ela recuperava a calma.
– Meu motivo é totalmente diferente.
– Estou ansioso por ouvir.
– Autopreservação. – Com óbvio esforço, Evie olhou para ele. – Não faço nenhuma objeção a que você tenha amantes. Só não quero ser uma delas. O ato sexual não tem nenhum significado para você, mas para mim tem. Não tenho nenhuma vontade de ser magoada por você e acho que isso seria inevitável se eu concordasse em continuarmos a dormir juntos.
Embora Sebastian tentasse manter uma aparência calma, fervia por dentro com uma mistura de desejo e ressentimento.
– Não vou me desculpar pelo meu passado. Um homem deve ter experiência.
– E você adquiriu o suficiente para dez homens.
– Por que você deveria se importar com isso?
– Porque sua... sua história romântica, para falar educadamente, é como a de um cão que vai a todas as portas dos fundos da rua em busca de sobras de comida. E eu não serei mais uma porta. Você não consegue ser fiel a uma mulher. Já provou isso.
– O fato de eu nunca ter tentado não significa que não possa, sua cadela censuradora! Só significa que eu não quis.
A palavra “cadela” fez Evie se retesar.
– Gostaria que você não usasse uma linguagem tão baixa.
– Pareceu apropriada, dada a proliferação de analogias com cães – disparou Sebastian. – O que, a propósito, não se aplica ao meu caso, porque as mulheres me imploram por isso, não o contrário.
– Então deveria procurar uma delas.
– Ah, é o que farei – disse ele com crueldade. – Quando voltarmos a Londres, participarei de uma orgia que só terminará quando prenderem alguém. Nesse meio-tempo... realmente espera que partilhemos uma cama esta noite e amanhã tão castamente quanto duas freiras?
– Isso não seria nenhum problema para mim – disse Evie com cautela, consciente de que aquele era o maior dos insultos.
O olhar incrédulo de Sebastian poderia ter queimado os lençóis. Murmurando uma torrente de palavras que ampliou consideravelmente a lista de palavras ofensivas que Evie conhecia, ele deixou a toalha cair e foi apagar o lampião. Ciente do desconforto dela diante de sua ereção, ele a encarou com desdém.
– Não se preocupe mais com isso – disse, deitando-se na cama com Evie. – De agora em diante estou certo de que sua proximidade afetará minhas partes íntimas tanto quanto uma longa nadada em um lago siberiano.
CAPÍTULO 7
O tempo melhorou muito durante a viagem de volta para Londres e a chuva finalmente desapareceu. Contudo, a temperatura mais alta lá fora era neutralizada pela frieza entre os recém-casados. Embora Sebastian tivesse mantido o aquecedor a contragosto, não convidava mais Evie para se aninhar em seus braços ou dormir em seu peito. Ela sabia que isso era melhor. Quanto mais o conhecia, mais se convencia de que qualquer intimidade entre eles resultaria em desastre.
Sebastian era perigoso para ela de uma maneira que nem mesmo ele podia imaginar.
Tranquilizava-a saber que se separariam assim que chegassem à cidade. Ela ficaria no clube e ele iria para casa retomar suas atividades normais até receber a notícia da morte do pai dela.
Depois provavelmente desejaria vender o clube e usar o dinheiro, junto com o resto da herança, para encher os cofres vazios da família.
A ideia de vender o clube que fora o centro da vida do pai deixou Evie melancólica.
Contudo, seria o mais sensato. Poucos homens tinham a capacidade de dirigir um clube de jogos com sucesso. Seu dono tinha de possuir magnetismo para atrair pessoas e astúcia para fazê-las ficar e gastar muito dinheiro. Sem falar no tino comercial para investir bem os lucros.
Ivo Jenner possuíra moderadamente as duas primeiras qualidades, mas nem um pouco da terceira. Recentemente perdera uma fortuna, tornando-se na velhice suscetível aos tratantes que povoavam o mundo das corridas de cavalos. Felizmente o clube era uma máquina financeira tão poderosa que conseguia absorver as grandes perdas.
A afirmação grosseira de Sebastian de que a casa de Jenner era um clube de jogos de segunda classe estava correta apenas em parte. Evie sabia por conversas anteriores com o pai, que nunca se dera o trabalho de medir palavras, que embora o clube fosse bem-sucedido para os padrões de qualquer um, nunca atingira a posição à qual aspirara. Ele havia desejado que se igualasse ao Craven’s, o clube rival destruído por um incêndio tanto tempo atrás. Mas Ivo Jenner nunca havia tido o estilo e a malícia de Derek Craven. Dizia-se que Craven ganhara o dinheiro de toda uma geração de ingleses e que o clube ter desaparecido em seu auge consolidara seu status lendário na memória coletiva da sociedade britânica.
O Jenner’s não chegara nem perto de ser como o Craven’s, mas não porque seu pai não tivesse tentado. Ivo Jenner havia mudado seu clube de Covent Garden para a King Street, que antes era uma mera passagem para a elegante área residencial e comercial de St. James, mas se tornara uma rua movimentada. Depois de comprar grande parte da rua e demolir quatro prédios, Jenner havia construído um grande e bonito clube e o anunciado como a maior casa de jogos de Londres. Quando os cavalheiros queriam jogar pesado, iam ao Jenner’s.
Evie se lembrava do clube, das vezes na infância em que lhe fora permitido passar o dia com o pai. O lugar era bem equipado, embora com uma decoração um tanto exagerada. Ela havia gostado de ficar com o pai na galeria interna do segundo andar observando o que acontecia no piso principal. Sorrindo indulgentemente, Jenner levava a filha para a St. James Street, onde entravam em qualquer loja que ela quisesse. Foram à perfumaria, chapelaria e livraria, à loja que vendia gravuras e à padaria, onde o padeiro deu a Evie um pão doce recém-saído do forno – tão quente que a cobertura de glacê ainda estava um pouco derretida.
Com o passar dos anos, as idas de Evie à King Street diminuíram. Embora ela sempre tivesse culpado os Maybricks por isso, agora percebia que seu pai também fora em parte responsável.
Era muito mais fácil para Jenner amá-la quando ela era criança e podia fazê-la dar gritinhos lançando-a para o ar e a pegando em seus braços fortes. Podia despentear seus cabelos ruivos do mesmo tom dos dele e fazê-la parar de chorar ao ir embora pondo um doce ou 1 xelim na palma da mão dela. Mas quando ela se tornou uma jovem e ele não podia mais tratá-la como uma garotinha, o relacionamento deles ficou estranho e distante.
– Este clube não é um lugar para você, mocinha – dissera ele com uma mistura de afeto e rispidez. – Você tem de ficar longe de um grosseirão como eu e encontrar um cavalheiro para se casar.
– Pa-papai – implorara Evie, gaguejando desesperadamente –, nã-não me mande de volta para lá. Po-por favor, por favor me deixe ficar com o senhor.
– Minha gaguinha, você pertence aos Maybricks. E não adianta fugir e correr para cá, porque eu a mandarei de volta para eles.
As lágrimas de Evie não o abalaram. Nos anos seguintes, as visitas ao clube do pai diminuíram para uma a cada seis meses ou mais. Independentemente de que isso fosse para seu próprio bem ou não, a sensação de ser indesejada se aprofundara. Ela passara a ficar tão desconfortável perto dos homens, tão certa de que os entediaria, que era o que acabava acontecendo. Sua gagueira piorara – quanto mais tentava fazer as palavras saírem, mais incoerente se tornava, até ser mais fácil se calar e passar despercebida. Tornara-se especialista em tomar chá de cadeira. Nunca fora convidada para dançar, beijada ou mesmo cortejada. A única proposta de casamento que recebera tinha sido relutante, vinda do primo Eustace.
Maravilhada com sua mudança de sorte, olhou para o marido, que estivera pensativo e calado nas últimas horas. Ele a encarou com os olhos estreitados. Com sua expressão fria e boca cínica, parecia totalmente diferente do maroto sedutor com quem dividira a cama dois dias antes.
Evie voltou a atenção para a paisagem londrina que passava pela janela. Logo estariam no clube e veria seu pai. Fazia seis meses desde que o visitara pela última vez e tinha se preparado para encontrar um homem diferente. Todos sabiam quanto a tuberculose podia ser devastadora.
Provocava uma morte lenta do tecido pulmonar, além de febre, tosse, emagrecimento e suor abundante. A morte chegava como o fim para um terrível sofrimento e geralmente era bem recebida pela vítima e por todos que lhe queriam bem. Evie não podia imaginar seu robusto pai reduzido a esse estado. Temia tanto vê-lo quanto ansiava por cuidar dele. Contudo, guardou tudo isso para si mesma, suspeitando que Sebastian zombaria dela se lhe falasse sobre seus temores.
Seu coração se acelerou quando a carruagem passou por St. James e virou para a King Street.
A longa fachada de tijolos e mármore do Jenner’s se tornou visível em contraste com o amarelo e o vermelho do sol poente que brilhava através da sempre presente névoa que pairava sobre Londres. Olhando pela janela da carruagem, Evie deu um suspiro tenso quando o veículo passou por um dos muitos becos que levavam da rua principal para os pátios e estábulos atrás da fileira de prédios.
A carruagem parou na entrada dos fundos, o que era preferível à da frente. A casa de Jenner não era um lugar frequentado por mulheres decentes. Um homem podia levar para lá uma amante ou até mesmo uma prostituta que tivesse atraído seu interesse, mas nunca pensaria em levar uma dama respeitável. Evie percebeu que Sebastian a observava com o frio interesse de um entomologista observando uma nova espécie de escaravelho. Ele não podia ter deixado de notar a súbita palidez e o visível tremor dela, mas não lhe dirigiu nenhuma palavra ou gesto de consolo.
Sebastian saltou antes dela da carruagem, pôs as mãos ao redor de sua cintura e a ajudou a descer. O cheiro do beco dos fundos era o mesmo de quando Evie era criança – esterco, lixo, álcool e fumaça de carvão. Sem dúvida ela era a única jovem bem-criada em Londres a achar que o beco tinha um cheiro familiar. Pelo menos agradava mais às suas narinas do que o ambiente da casa dos Maybricks, que recendia a tapetes podres e colônia ruim.
Ela se contraiu ao sentir a dor em seus músculos parados por tempo de mais na carruagem e se dirigiu à porta. As que davam acesso à cozinha e a outras áreas de serviço ficavam mais longe no prédio, mas essa dava para uma escada que levava aos aposentos do pai. O cocheiro já havia chamado um criado do clube com algumas batidas decididas na porta e recuou mecanicamente.
Um jovem apareceu e Evie ficou aliviada ao reconhecê-lo. Era Joss Bullard, uma figura conhecida do clube, que trabalhara ali como cobrador de dívidas e porteiro. Era forte e atarracado e tinha cabelos escuros, a cabeça em forma de bala e o queixo largo.
Tendo uma tendência natural ao mau humor, Bullard a havia tratado com o mínimo de cortesia sempre que ela fora ao clube. Contudo, ouvira seu pai elogiá-lo por sua lealdade e o apreciava por isso.
– Sr. Bullard – disse. – Vi-vim ver meu pai. Po-por favor, deixe-me e-entrar.
O jovem robusto não se moveu.
– Ele não mandou chamá-la – retrucou rispidamente. Então olhou para Sebastian, notando suas roupas caras. – Entre pela frente, senhor, se for um sócio do clube.
– Idiota... – Evie ouviu Sebastian murmurar.
– O Sr. Egan e-está? – perguntou ela, referindo-se ao gerente do clube que trabalhava para seu pai havia dez anos.
Ela não gostava muito de Egan, que era um tipo orgulhoso e fanfarrão, mas ele não ousaria barrar sua entrada.
– Não.
– Então o Sr. Rohan – disse Evie desesperadamente. – Po-por favor, diga a e-ele que a Srta.
Jenner está aqui.
– Eu já lhe disse...
– Chame o tal Rohan – disparou Sebastian, pondo a bota contra a porta para impedir que a fechasse. – Esperaremos lá dentro. Minha esposa não ficará em pé na rua.
Parecendo surpreso com o brilho frio nos olhos do homem mais alto, o empregado murmurou sua concordância e desapareceu rapidamente.
Sebastian guiou Evie pela soleira e olhou para a escada próxima.
– Devemos subir?
Ela balançou a cabeça.
– Prefiro falar com o Sr. Rohan primeiro. Estou ce-certa de que ele poderá me dizer algo sobre o e-estado do meu pai.
Ao som da leve gagueira, Sebastian deslizou a mão por sob os cabelos de Evie e lhe apertou gentilmente a nuca. Embora seu rosto ainda estivesse frio, a mão era quente e tranquilizadora e ela se sentiu relaxar involuntariamente.
– Quem é Rohan?
– Um dos crupiês... Ele trabalha aqui desde garoto. Meu pai o treinou para ser gerente. Você se lembraria do Sr. Rohan se já o tivesse visto. É meio difícil que passe despercebido.
Sebastian ponderou sobre o comentário e murmurou:
– Ele é cigano, não é?
– Metade cigano, eu acho, pelo lado materno.
– E a outra metade?
– Ninguém sabe.
Ela o olhou com cautela e disse em voz baixa:
– Sempre me perguntei se ele poderia ser meu meio-irmão.
Um brilho de interesse surgiu nos olhos claros de Sebastian.
– Já perguntou ao seu pai?
– Sim. Ele negou.
Mas Evie nunca tinha ficado totalmente convencida. Seu pai sempre agira de um modo vagamente paternal com Cam Rohan e ela não era ingênua a ponto de acreditar que ele não tivera filhos ilegítimos. Era um homem conhecido por seus apetites físicos e nunca se preocupara com a consequência de seus atos. Desejando saber se o mesmo poderia ser dito de seu marido, ela perguntou cautelosamente:
– Sebastian, você tem...
– Não que eu saiba – disse ele, entendendo-a imediatamente. – Sempre tendi a usar preservativos, para evitar não só a concepção como também as doenças exóticas que afligem os imprudentes.
Perplexa, Evie murmurou:
– Preservativos? O que são? E o que quer dizer com doenças? Quer dizer que... aquilo... pode deixar uma pessoa doente? Mas como...
– Por Deus! – murmurou Sebastian, pondo os dedos de leve nos lábios de Evie para calar as perguntas. – Explicarei depois. Esse não é o tipo de coisa que se discuta à soleira da porta.
A vinda de Cam Rohan impediu Evie de fazer mais perguntas. Quando Cam a viu, um leve sorriso surgiu em seu rosto e ele fez uma graciosa mesura. Mesmo quando os modos e movimentos de Cam eram contidos, pareciam ter um floreio invisível, um carisma físico. Ele era de longe o melhor crupiê do clube, embora sua aparência, a de um jovem pirata, dificilmente levasse alguém a achar isso no início. Tinha cerca de 25 anos e o corpo magro de um jovem. Sua pele morena e seus cabelos muito pretos denunciavam suas origens, sem falar em seu primeiro nome, comum entre os ciganos. Evie sempre tinha gostado daquele rapaz de fala mansa cuja profunda lealdade ao pai dela fora demonstrada muitas vezes ao longo dos anos.
Cam vestia roupas pretas e sapatos brilhantes, mas, como sempre, seus cabelos precisavam de um corte, os grossos cachos caindo sobre o colarinho muito branco da camisa. Seus dedos longos e magros estavam adornados com alguns anéis de ouro. Quando ele ergueu a cabeça, Evie viu o brilho de um brinco de brilhante em uma das orelhas – um toque exótico que lhe caía bem.
Cam a olhou com seus incríveis olhos cor de avelã que frequentemente faziam as pessoas se esquecerem da mente ágil por trás deles. Às vezes seu olhar era tão penetrante que parecia que ele estava olhando através de você...
– Gadji – disse Cam brandamente, usando a amistosa palavra romani para uma mulher não cigana. Ele tinha um sotaque incomum, com nuances de classe baixa e um ritmo um pouco estrangeiro, tudo em uma mistura única. – Bem-vinda. Seu pai ficará feliz em vê-la.
– Obrigada, Cam. E-eu estava com medo de que ele já ti-tivesse...
– Não – murmurou Cam, seu sorriso diminuindo. – Ainda está vivo. Ele dorme na maior parte do tempo e não quer comer. Acho que não durará muito. Ele mandou chamá-la. Tentei avisá-la, mas...
– Os Maybricks não me deixavam vir – completou Evie em um meio sussurro, sua boca se enrijecendo de raiva.
Eles não tinham se dado o trabalho de lhe dizer que seu pai a havia chamado. E Joss Bullard acabara de mentir para ela.
– Bem, estou livre deles para se-sempre, Cam. Eu me casei. E ficarei aqui até meu pai... nã-não precisar mais de mim.
Cam desviou seu olhar para o rosto implacável de Sebastian. Reconhecendo-o, murmurou:
– Lorde St. Vincent.
Se ele tinha uma opinião sobre o casamento de Evie com esse homem, não a externou. Evie tocou na manga do casaco de Cam.
– Meu pai está acordado? – perguntou ansiosamente. – Posso vê-lo?
– É claro.
O cigano segurou de leve as duas mãos de Evie, os anéis de ouro aquecidos pelos dedos quentes dele.
– Providenciarei para que não sejam interrompidos.
– Obrigada.
De repente, Sebastian puxou, decidido, uma das mãos de Evie e a pôs em seu próprio braço.
Embora o gesto tivesse sido casual, a firme pressão de seus dedos garantiu que ela não tentaria tirá-la.
Perplexa com aquela manifestação de possessividade, Evie franziu a testa.
– Conheço Cam desde criança – disse incisivamente. – Ele sempre foi muito gentil comigo.
– Um marido sempre gosta que a esposa seja tratada com gentileza – respondeu Sebastian friamente. – Dentro de certos limites, é claro.
– É claro – disse Cam brandamente. Ele voltou sua atenção para Evie. – Devo conduzi-la, milady?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Eu sei o caminho. Por favor, vo-volte aos seus afazeres.
Cam fez outra mesura e trocou um rápido olhar com Evie, ambos reconhecendo tacitamente que encontrariam uma oportunidade para se falar depois.
– Você não gosta dele porque é cigano? – perguntou Evie ao marido enquanto eles subiam as escadas.
– É difícil eu não gostar das pessoas por coisas que elas não podem mudar – respondeu Sebastian sarcasticamente. – Geralmente me dão outros motivos que bastam para não gostar delas.
Ela tirou a mão do braço de Sebastian para erguer suas saias.
– Onde está o gerente? – continuou Sebastian, pondo a mão na região lombar de Evie enquanto eles subiam a escada. – A noite está começando. A sala de jogos e a sala de jantar abriram. Ele deveria estar trabalhando.
– Ele bebe – comentou Evie.
– Isso diz muito sobre o modo como este clube é administrado.
Sensível a qualquer insulto dirigido ao clube do pai e desconfortável com a leve pressão da mão de Sebastian em suas costas, Evie teve de morder a língua para não dar uma resposta cáustica. Como era fácil para um aristocrata mimado criticar o modo como os profissionais faziam as coisas. Se ele tivesse de tocar um lugar como esse – que Deus não permitisse isso –, teria muito mais respeito pelo que seu pai conquistara.
Eles foram para o segundo andar e seguiram pela galeria que circundava o lugar. Só era preciso olhar pela balaustrada para ver tudo que se passava no piso principal. Era a maior área do clube, totalmente dedicada aos jogos de azar. Três mesas ovais cobertas com toalhas verdes com marcas amarelas estavam cercadas de dúzias de homens. Os sons que subiam – o barulho constante dos dados, as exclamações baixas mas intensas dos lançadores e crupiês, o arrastar suave de pequenos rodos de madeira quando dinheiro era puxado da mesa para as mãos do crupiê – eram algumas das lembranças mais antigas da infância de Evie.
Ela olhou para a magnífica escrivaninha de madeira entalhada que havia no canto da sala, onde seu pai costumava se sentar, aprovando crédito, admitindo sócios temporários e elevando a banca se as apostas subissem muito. Naquele momento a escrivaninha estava ocupada por um homem com uma aparência um tanto desleixada que Evie não conhecia. Ela desviou o olhar para o canto oposto da sala, onde outro estranho atuava como supervisor geral, regulando os pagamentos, atento ao ritmo do jogo.
Sebastian parou na balaustrada e olhou para o piso principal com uma expressão estranhamente atenta. Desejando ver seu pai imediatamente, Evie lhe puxou o braço com impaciência. Mas ele não se moveu. Na verdade, mal pareceu notá-la, de tão absorto que estava nas atividades no andar de baixo.
– O que foi? – perguntou Evie. – Está vendo algo incomum? Algo errado?
Sebastian balançou levemente a cabeça e desviou sua atenção do piso principal. Olhou ao redor deles, observando os painéis desbotados nas paredes, as molduras lascadas, os carpetes puídos. O Jenner’s, antes esplendidamente decorado, com o passar dos anos perdera grande parte de seu brilho.
– Quantos sócios tem o clube? – perguntou. – Sem contar os temporários.
– Costumava ter uns dois mil – respondeu Evie. – Não sei quais são os números atuais. – Ela puxou o braço de Sebastian de novo. – Quero ver meu pai. Se tiver de ir desacompanhada...
– Você não vai a lugar nenhum desacompanhada – disse Sebastian concentrando-se nela tão imediatamente que Evie se surpreendeu. Os olhos dele eram como pedras polidas. – Poderia ser arrastada para um quarto decadente por um bêbado, ou até mesmo um empregado, e violada antes que alguém desse pela sua falta.
– Estou totalmente segura aqui – contrapôs ela com irritação. – Ainda conheço muitos dos empregados e sei andar pelo clube melhor do que você.
– Não por muito tempo – murmurou Sebastian, voltando a olhar compulsivamente para o piso principal. – Vou examinar cada centímetro deste lugar. Vou conhecer todos os seus segredos.
Surpresa com a afirmação, Evie o olhou com perplexidade. Percebeu que haviam ocorrido mudanças sutis nele no momento em que entraram no clube... e não sabia explicar aquela reação estranha. Os modos lânguidos de Sebastian tinham sido substituídos por um estado de alerta, como se ele estivesse absorvendo a energia agitada do clube.
– Você está olhando para o clube como se nunca o tivesse visto – murmurou.
Sebastian passou a mão lentamente pela balaustrada, olhou para a poeira na palma e a limpou. Sua expressão foi contemplativa em vez de crítica ao responder:
– Parece diferente agora que é meu.
– Ainda não é seu – respondeu Evie asperamente, percebendo que ele devia estar avaliando o preço do lugar para futuramente vendê-lo. Era típico de Sebastian pensar em dinheiro enquanto o pai dela estava no leito de morte. – Alguma vez você pensa em alguém além de si mesmo?
A pergunta pareceu tirar a concentração de Sebastian e o rosto dele se tornou inescrutável.
– Raramente, meu amor.
Eles trocaram olhares, o de Evie acusador, o de Sebastian obscuro, e ela entendeu que esperar qualquer decência dele era um convite a decepções recorrentes. A alma arruinada do marido não podia ser reparada por bondade e compreensão. Ele nunca se tornaria um dos libertinos regenerados dos romances.
– Creio que logo você terá tudo que quer – disse ela friamente. – Enquanto isso não acontece, vou ao quarto do meu pai.
Ela começou a andar pela galeria sem Sebastian, e com alguns passos largos ele a alcançou.
Quando chegaram aos aposentos particulares de Ivo Jenner, a cabeça de Evie latejava loucamente. Partes iguais de medo e anseio lhe causavam suor nas mãos e um frio na barriga. Ao pôr a mão na maçaneta da porta que levava aos aposentos do pai, a palma escorregou no metal sujo.
– Permita-me – disse Sebastian rapidamente, afastando a mão dela.
Ele abriu a porta, a segurou e seguiu Evie para a sala de visitas escura. A única luz vinha da porta aberta do quarto, onde um pequeno lampião emitia um brilho fraco. Evie atravessou a soleira e parou, forçando os olhos a se acostumarem com a penumbra. Mal se dando conta da presença do homem ao seu lado, aproximou-se da cama.
Seu pai estava dormindo com a boca ligeiramente aberta, a pele pálida brilhando com uma delicadeza peculiar, como se ele fosse uma figura de cera. Rugas profundas marcavam-lhe o rosto. Ele estava com metade do peso que um dia tivera, os braços surpreendentemente magros, o corpo encolhido. Evie tentou conciliar a forma fina na cama com o pai grande e robusto que conhecera. Uma ternura alimentada pelo pesar a invadiu ao ver os cabelos ruivos do pai, agora bastante grisalhos, espetados na cabeça como se fossem penas de um filhote de pássaro.
O quarto cheirava a velas queimadas, remédios e pele não lavada. A morte parecia bem próxima. Ela viu uma pilha de roupas de cama sujas no canto e lenços manchados de sangue no chão. A mesa de cabeceira estava coberta de colheres sujas e frascos de remédio de vidro colorido. Evie se abaixou para pegar alguns dos objetos no chão, mas Sebastian a segurou pelo braço.
– Você não tem de fazer isso – murmurou Sebastian. – Pode chamar uma das criadas.
– Sim – sussurrou Evie amargamente. – Dá para ver o bom trabalho que elas têm feito.
Soltando seu braço, ela pegou os lenços sujos e os jogou na pilha de roupas de cama descartadas. Sebastian se dirigiu à cabeceira da cama e olhou para o corpo debilitado de Jenner.
Pegou um dos frascos de remédio, o passou pelo nariz e murmurou:
– Morfina.
Por alguma razão, Evie se irritou ao vê-lo em pé perto de seu indefeso pai examinando o remédio.
– Está tudo sob controle – disse ela em uma voz baixa. – Gostaria que você fosse embora agora.
– O que pretende fazer?
– Arrumar o quarto e trocar as roupas de cama. E depois me sentar ao lado dele.
Sebastian estreitou os olhos azuis.
– Deixe o pobre diabo dormir. Você precisa comer e trocar suas roupas de viagem. Que bem acha que lhe fará se sentando no escuro e...? – Ele se interrompeu e murmurou uma imprecação ao ver a expressão obstinada de Evie. – Muito bem. Eu lhe darei uma hora e depois você fará uma refeição comigo.
– Pretendo ficar com meu pai – disse ela categoricamente.
– Evie.
A voz dele foi suave, mas com um tom inflexível que a pôs de sobreaviso. Aproximando-se da esposa, Sebastian virou o corpo rígido dela para ele e a sacudiu muito de leve, forçando-a a olhá-lo.
– Quando eu mandar chamá-la, você irá. Está entendendo?
Evie estremeceu de indignação. Ele deu a ordem como se fosse seu dono. Meu Deus, ela tinha passado sua vida inteira tendo de obedecer aos tios e agora teria de se submeter ao marido.
Contudo, para lhe fazer justiça, ainda faltava muito para Sebastian se igualar aos esforços combinados dos Maybricks e Stubbinses para tornar a vida dela um inferno. E Sebastian não estava sendo irracional nem cruel exigindo que fizesse uma refeição com ele. Contendo sua raiva, Evie assentiu. Ao ver as feições contraídas dela, os olhos de Sebastian adquiriram um brilho estranho, como faíscas produzidas pelo martelo de um ferreiro ao bater em uma folha de metal fundido.
– Boa garota – murmurou ele com um sorriso zombeteiro, e saiu do quarto.
CAPÍTULO 8
Por um momento, Sebastian ficou tentado a deixar Evie no clube e ir a pé para casa, que ficava perto de St. James. Era difícil resistir ao fascínio do lar tranquilo, com encanamentos modernos e uma despensa bem suprida. Queria comer à sua própria mesa e relaxar diante da lareira em um de seus roupões de seda forrados de veludo pendurados no armário do quarto. Que sua esposa teimosa fosse para o inferno! Ela podia tomar as próprias decisões e aprender a viver com as consequências disso.
Mas enquanto andava discretamente pela galeria do segundo andar, evitando ser visto pelos que estavam no movimentado piso principal, Sebastian sentiu uma incômoda curiosidade que não podia ser negada. Com as mãos enfiadas negligentemente nos bolsos de seu casaco, ele se encostou em uma coluna e observou os crupiês trabalhando e o supervisor geral tentando controlar o jogo e manter tudo em um ritmo satisfatório. O movimento em todas as três mesas de jogos de azar parecia um pouco lento. Alguém precisava animar as coisas e criar um ambiente que levaria os frequentadores a jogar mais e mais rápido.
Prostitutas desmazeladas da casa andavam preguiçosamente pelo salão, parando para interagir com os homens. Como as refeições e o café, as mulheres eram uma cortesia para os sócios. Se um homem precisava de uma prostituta para consolo ou comemoração, ela o acompanhava a um dos vários quartos no andar superior reservados para isso.
Sebastian andou pelas salas de carteado e café do andar térreo, examinando o local. Havia muitos pequenos sinais de que aquele era um negócio em decadência. Ele supôs que Jenner não indicara um substituto confiável quando adoeceu. Seu gerente, Clive Egan, era incompetente, desonesto ou ambas as coisas. Sebastian queria ver os livros contábeis, registros de receita e despesa, dados financeiros particulares dos sócios, listas de rendas provenientes de aluguéis, hipotecas, débitos, empréstimos, crédito – tudo que contribuísse para um retrato completo da saúde financeira do clube. Ou falta dela.
Ao se virar de novo para a escada, viu o cigano, Rohan, esperando em um canto escuro numa posição relaxada. Sebastian se manteve estrategicamente calado, forçando o rapaz a falar primeiro.
Rohan sustentou o olhar do visconde ao dizer com cuidadosa cortesia:
– Posso ajudá-lo, milorde?
– Pode começar me dizendo onde Egan está.
– No quarto dele, milorde.
– Em que estado?
– Indisposto.
– Ah – disse Sebastian em voz baixa. – Ele fica frequentemente indisposto, Rohan?
O cigano permaneceu em silêncio, mas seus olhos puxados revelavam curiosidade.
– Quero a chave do escritório de Egan – disse Sebastian. – Quero dar uma olhada nos livros contábeis.
– Só há uma chave, milorde – respondeu Rohan, estudando-o. – E o Sr. Egan sempre a mantém com ele.
– Então vá buscá-la para mim.
O rapaz ergueu levemente suas grossas sobrancelhas escuras.
– Quer que eu roube um homem que está bêbado?
– É muito mais fácil do que esperar até ele estar sóbrio – salientou Sebastian sarcasticamente.
– E não é roubo quando, para todos os efeitos, a chave é minha.
O rosto jovem de Rohan se endureceu.
– Minha lealdade é para com o Sr. Jenner. E a filha dele.
– A minha também. – Isso não era verdade, é claro. A maior parte da lealdade de Sebastian era reservada a si mesmo. Evie e o pai dela vinham, respectivamente, em um distante segundo e terceiro lugares na lista. – Traga-me a chave ou se prepare para seguir os passos de Egan quando ele for embora amanhã.
O ar estava carregado de desafio masculino. Mas depois de um instante Rohan lhe lançou um olhar de desagrado misturado com relutante curiosidade. Quando concordou, não foi por temerosa obediência, mas por vontade de ver o que Sebastian faria a seguir.
Quando Sebastian mandou Cam Rohan trazer Evie para o andar de baixo, ela já havia arrumado o quarto do pai e pedido a uma relutante criada para ajudá-la a trocar as roupas de cama, já que os lençóis estavam úmidos de suor noturno.
Embora Jenner tivesse se mexido e murmurado enquanto elas o rolavam cuidadosamente de um lado para outro, não saiu do estupor induzido pela morfina. Seu corpo magro surpreendeu Evie pela leveza. Ela se encheu de angústia, compaixão e instinto protetor ao puxar as cobertas limpas até o peito do pai. Umedeceu um pano e o colocou na testa dele. Jenner deixou escapar um suspiro e finalmente entreabriu os olhos em meio às rugas no rosto. Ele a olhou por um longo momento sem entender, até um sorriso esticar-lhe os lábios rachados, revelando dentes manchados pelo fumo.
– Evie – disse em uma voz baixa e rouca.
Ela se inclinou sobre o pai, as lágrimas contidas fazendo seu nariz e seus olhos arderem.
– Estou aqui, papai – sussurrou, pronunciando as palavras que ansiara por dizer durante toda a vida. – Estou aqui e nunca mais vou deixá-lo.
Ele emitiu um som de contentamento e fechou os olhos. Justamente quando Evie pensou que o pai havia adormecido, ele murmurou: – Aonde vamos hoje primeiro, querida? À padaria, eu suponho...
Percebendo que ele havia imaginado que essa era uma de suas visitas da infância de muito tempo atrás, Evie respondeu suavemente: – Ah, sim. – Ela se apressou a afastar com as costas da mão o excesso de umidade em seus olhos. – Eu quero um pão doce... e um cone de biscoitos...
Depois quero voltar para cá e jogar dados com você.
Uma risada áspera veio da garganta devastada de Jenner e ele tossiu um pouco.
– Deixe o papai dormir um pouco antes...
– Sim, durma – murmurou Evie, virando o pano sobre a testa dele. – Posso esperar, papai.
Observando-o mergulhar novamente em seu sono induzido pela morfina, Evie engoliu em seco para afastar a dor aguda em sua garganta e relaxou à cabeceira da cama. Não havia outro lugar em que quisesse estar. Permitiu-se descansar um pouco, abaixando os ombros doloridos como se fosse uma marionete cujas cordas tinham sido soltas. Era a primeira vez que se sentia necessária, que sua presença parecia importar para alguém. E embora o estado do pai a entristecesse, ficou grata por poder ficar com ele em seus últimos momentos de vida. Eles sempre seriam estranhos um para o outro, mas isso era mais do que ela já havia esperado.
Seus pensamentos foram interrompidos por uma batida à porta. Ergueu os olhos e viu Cam à soleira com os braços cruzados no peito e o corpo em uma posição enganosamente relaxada.
Evie lhe lançou a imitação cansada de um sorriso.
– Su-suponho que ele o mandou me buscar.
Obviamente não havia necessidade de definir quem “ele” era.
– Quer que coma com ele em uma das salas de jantar particulares.
Evie balançou levemente a cabeça, seu sorriso se tornando amargo.
– Ele manda, eu obedeço – murmurou em uma paródia de esposa obediente.
Ela se levantou e parou para ajeitar os cobertores sobre os ombros do pai adormecido. Cam ficou imóvel à soleira enquanto Evie se aproximava. Ele era muito mais alto do que a média dos homens, embora não tanto quanto Sebastian.
– Como terminou casada com lorde St. Vincent? Sei dos problemas financeiros dele.
Estivemos a ponto de lhe negar crédito na última vez que esteve aqui. Ele a procurou propondo um casamento de conveniência?
– Como sabe que não é um casamento por amor? – retrucou Evie.
Cam a olhou com ironia.
– St. Vincent só ama a si mesmo.
A pressão de um real sorriso curvou os lábios de Evie e ela fez um esforço para contê-lo.
– Na verdade, fui eu que o pro-procurei. Foi o único modo que encontrei de me livrar para sempre dos Maybricks. – O sorriso desapareceu quando ela pensou em seus parentes. – Eles vieram me procurar aqui depois que eu de-desapareci, Cam?
– Sim. Seus tios. Tivemos de deixá-los vasculhar todo o clube até se convencerem de que não estava escondida aqui.
– Maldição – murmurou Evie, tomando emprestada a imprecação favorita de Daisy Bowman.
– Imagino que depois tenham ido à casa dos Hunts e dos Bowmans. Minhas amigas devem estar preocupadas com meu desaparecimento.
Contudo, saber o que Evie fizera as preocuparia muito mais. Ela ajeitou distraidamente algumas mechas de cabelo soltas e abraçou o próprio corpo. Teria de avisar Annabelle e Daisy que estava bem. Como Lillian estava viajando pelo continente, não teria tido notícia de seu desaparecimento.
Amanhã, pensou. Amanhã lidaria com as repercussões de sua fuga vergonhosa. Seria ousado de sua parte enviar alguém à casa dos Maybricks para buscar o resto de suas roupas? Havia alguma chance de a deixarem ficar com elas? Provavelmente não. Mais coisas para sua crescente lista de coisas a fazer... Teria de encomendar imediatamente alguns vestidos de dia e sapatos.
– Quando me-meus parentes descobrirem que estou aqui, me levarão de volta. Podem tentar anular o casamento. Eu... – Ela parou para firmar sua voz. – Tenho muito me-medo do que poderia me acontecer se fosse forçada a ir com eles.
– St. Vincent não os impedirá? – perguntou Cam, pondo a mão no ombro dela para tranquilizá-la.
Foi um contato inócuo, apenas o leve peso da palma na curva frágil do ombro de Evie, mas a acalmou.
– Se ele estiver aqui na hora. Se estiver sóbrio. Se puder.
Ela lhe deu um sorriso triste.
– Eu estarei aqui – murmurou Cam. – Estarei sóbrio e poderei. Por que acha que St. Vincent não estará?
– É um casamento de conveniência. Acho que não vamos nos ver muito depois que ele puser as mãos no meu dote. Ele me disse que tem coisas melhores a fazer do que se sentar em uma casa de jogos de segunda classe e esperar... esperar...
Hesitando, olhou por cima do ombro para a cama do pai.
– Ele pode ter mudado de ideia sobre isso – observou Cam sarcasticamente. – Quando lhe entreguei a chave do escritório, ele pegou todos os livros contábeis e começou a examiná-los página a página. Quando terminar, terá passado o pente fino em todo o clube.
Evie arregalou os olhos à informação.
– O que ele poderia estar procurando? – perguntou, mais para si mesma do que para Cam.
Sebastian estava tendo um comportamento estranho. Não havia nenhum motivo para ele examinar as finanças do clube com tanta urgência quando eles tinham acabado de chegar de uma longa jornada. Nada mudaria de hoje para amanhã. Pensou na compulsividade no olhar do marido quando haviam observado a atividade no piso principal. “Vou examinar cada centímetro deste lugar. Vou conhecer todos os seus segredos.” Como se o clube fosse mais do que um mero edifício cheio de carpetes desbotados e mesas de jogos.
Intrigada, Evie seguiu Cam por uma série de corredores dos fundos e passagens que forneciam uma rota mais direta para as salas de jantar no andar de baixo. Como a maioria dos clubes de jogos, o de Jenner tinha sua cota de lugares secretos. Cam a levou para uma pequena sala particular, abriu a porta para Evie e fez uma mesura quando ela se virou para lhe agradecer.
Ao entrar na sala, Evie ouviu a porta se fechar discretamente. Sebastian, esparramado em uma pesada cadeira de braço, com a relaxada confiança de Lúcifer em seu trono, usava um lápis para fazer anotações na margem de um livro contábil. A mesa à sua frente estava cheia de pratos trazidos do aparador na sala de jantar principal.
Ele tirou os olhos do livro, o pôs de lado e se levantou, puxando a segunda cadeira da mesa para Evie.
– Como está seu pai?
– Ele acordou por apenas um momento. Pareceu achar que eu era uma garotinha de novo.
Vendo uma travessa com pedaços de ave assada e outra com pêssegos e uvas, estendeu a mão para se servir. A fome, combinada com o cansaço, fez suas mãos tremerem. Vendo sua dificuldade, Sebastian lhe serviu em silêncio alguns petiscos: ovos de codorna cozidos, uma colher cheia de creme de vegetais, uma fatia de queijo, frios, peixe e pão macio.
– Obrigada – disse Evie, quase cansada demais para saber o que estava comendo.
Ela levou o garfo à boca, deu uma mordida em algo e fechou os olhos enquanto mastigava e engolia. Quando os abriu, viu Sebastian. Ele parecia tão cansado quanto ela, com leves manchas sob seus olhos azuis. Estava com as maçãs do rosto tensas e a pele pálida apesar de seu bronzeado. A barba por fazer, que tendia a crescer rapidamente, produzia uma sombra dourada em seu rosto. De algum modo, sua aparência rude o tornava ainda mais bonito, proporcionando graça e textura ao que de outro modo poderia ter sido a perfeição estéril de uma estátua de mármore.
– Ainda pretende ficar aqui? – perguntou Sebastian, pegando desafiadoramente um pêssego e o descaroçando.
Ele deu uma metade dourada para Evie.
– Ah, sim.
Ela aceitou o pêssego e o mordeu, o sumo adstringente deslizando por sua língua.
– Eu temia que sim – respondeu ele secamente. – Isso é um erro. Não tem ideia de a que vai se expor... Obscenidades e comentários libidinosos, olhares lascivos, apalpadelas e beliscões... E isso apenas na minha casa. Imagine como seria aqui.
Sem saber ao certo se deveria fechar a cara ou sorrir, Evie o olhou com curiosidade.
– Eu vou me arranjar.
– Estou certo de que sim, querida.
Evie levou uma taça de vinho aos lábios e olhou para Sebastian por cima da borda.
– O que há nesse livro?
– Uma aula de lançamentos contábeis criativos. Certamente você não se surpreenderá ao saber que Egan tem feito desfalques. Desvios de dinheiro aqui e ali, quantidades pequenas o suficiente para o roubo não ser notado. Mas com o passar do tempo, a quantia se tornou considerável. Só Deus sabe há quantos anos ele faz isso. Até agora, todos os livros que examinei contêm erros deliberados.
– Como pode ter certeza de que são deliberados?
– Há um padrão. – Ele abriu um livro e o empurrou para Evie. – O clube teve um lucro aproximado de 22 mil libras na última terça-feira. Se você cruzar os números com o registro de empréstimos, depósitos bancários e gastos em dinheiro, verá as discrepâncias.
Evie seguiu o dedo que Sebastian passou pelas anotações na margem.
– Está vendo? – murmurou ele. – Esta deveria ser a quantia certa. Ele lançou os gastos muito acima do valor real. O preço dos dados de marfim, por exemplo. Apesar do fato de que os dados só são usados por uma noite, o gasto anual não deveria ser de mais de 2 mil libras, segundo Rohan. Usar dados novos todas as noites é um prática padrão em qualquer clube de jogos, para afastar qualquer suspeita de que poderiam estar viciados.
– Mas aqui diz que o gasto com dados foi de quase 3 mil libras – murmurou Evie.
– Exatamente.
Sebastian se recostou em sua cadeira e sorriu indolentemente.
– Eu enganei meu pai do mesmo modo em minha juventude depravada, quando precisava de mais dinheiro do que ele estava disposto a me dar.
– Para que você precisava de mais dinheiro? – Evie não resistiu a perguntar.
Sebastian continuou sorrindo.
– Temo que a explicação exigiria muitas palavras que a ofenderiam.
Evie espetou um ovo de codorna com o garfo e o levou à boca.
– O que será feito em relação ao Sr. Egan?
Ele deu de ombros graciosamente.
– Assim que ele estiver sóbrio o suficiente para andar, será despedido.
Evie afastou uma mecha de cabelo que caíra sobre sua bochecha.
– Não há ninguém para substituí-lo.
– Sim, há. Até encontramos um gerente adequado, eu dirigirei o clube.
O ovo de codorna pareceu entalar na garganta de Evie e ela engasgou um pouco. Pegou rapidamente seu vinho, tomou um gole e arregalou os olhos para Sebastian. Como ele podia dizer uma coisa tão absurda?
– Você não pode.
– Dificilmente eu faria isso pior do que Egan. Ele não dirige nada há meses... logo o clube estará falido.
– Você disse que detestava trabalhar!
– Sim. Mas acho que deveria tentar ao menos uma vez, para ter certeza.
Em sua ansiedade, Evie começou a gaguejar.
– Você va-vai brincar de trabalhar por a-alguns dias e depois se cansará di-disso.
– Não posso me dar ao luxo de me cansar disso, meu amor. Embora o clube ainda seja lucrativo, está perdendo valor. Seu pai tem dívidas a cobrar que devem ser liquidadas. Se as pessoas que lhe devem não tiverem dinheiro, teremos de aceitar propriedades, joias, obras de arte... o que puderem oferecer. Tenho uma boa ideia do valor das coisas. Posso negociar alguns acordos aceitáveis. E há outros problemas que ainda não mencionei... Jenner tem uma série de puros-sangues fracassados que o fizeram perder uma fortuna. E ele fez alguns investimentos insanos, 10 mil libras em uma suposta mina de ouro em Flintshire, uma fraude que até mesmo uma criança teria notado.
– Ah, meu Deus – murmurou Evie, esfregando a testa. – Ele estava doente... As pessoas se aproveitaram...
– Sim. E agora, mesmo se quiséssemos vender o clube, não poderíamos sem primeiro pô-lo em ordem. Acredite em mim, se houvesse uma alternativa, eu a encontraria. Mas este lugar é uma peneira e ninguém é capaz de tapar os buracos. Exceto eu.
– Você não sabe nada sobre tapar buracos – exclamou Evie, chocada com a arrogância dele.
Sebastian respondeu com um sorriso imperturbável, arqueando levemente uma sobrancelha.
Antes que ele pudesse abrir a boca para falar, Evie pôs as mãos sobre as orelhas.
– Ah, não comece! – Quando viu que Sebastian estava obsequiosamente mantendo silêncio, embora ainda houvesse um brilho diabólico em seus olhos, ela baixou as mãos com cautela. – Se você comandar o clube, onde dormirá?
– Aqui, é claro – respondeu ele prosaicamente.
– Eu estou no único quarto de hóspedes disponível – disse ela. – Todos os outros estão ocupados. E não vou dividir uma cama com você.
– Haverá muitos quartos amanhã. Vou me livrar das prostitutas da casa.
A situação estava mudando rápido demais para a mente atordoada de Evie conseguir acompanhar. A pretensão de autoridade de Sebastian sobre o clube e todos os seus funcionários se manifestara em uma velocidade alarmante. Evie teve a inquietante sensação de ter levado para o clube um gato manso que se transformara em um tigre selvagem. E tudo que podia fazer era observá-lo prosseguir com o massacre. Pensou desesperadamente que, se cedesse ao desejo de Sebastian por alguns dias, talvez ele se cansasse da novidade. Nesse meio-tempo, ela só poderia tentar minimizar o dano.
– Vai jogar as prostitutas da ca-casa na rua? – perguntou com uma calma forçada.
– Elas serão mandadas embora com uma generosa quantia como recompensa pelos serviços prestados ao clube.
– Pretende contratar no-novas?
Sebastian balançou a cabeça.
– Embora eu não tenha nenhuma aversão moral ao conceito de prostituição, e na verdade seja a favor dela, jamais quero me tornar conhecido como um cafetão.
– Um o quê?
– Um cafetão. Um rufião. Um alcoviteiro. Pelo amor de Deus! Enfiaram-lhe algodão nas orelhas quando você era criança? Nunca ouviu nada ou se perguntou por que mulheres malvestidas subiam e desciam a escada o tempo todo?
– Eu sempre vinha de dia – respondeu Evie com grande dignidade. – Raramente as vi trabalhando. Mais tarde, quando tinha idade suficiente para entender o que estavam fazendo, meu pai começou a restringir minhas visitas.
– Essa provavelmente foi uma das poucas coisas boas que ele fez por você. – Sebastian moveu impacientemente a mão em um sinal de que queria mudar de assunto. – Voltando ao que estávamos falando... Além de eu não querer a responsabilidade de manter prostitutas medíocres, não temos espaço para acomodá-las. Em algumas noites, quando todas as camas estão ocupadas, os sócios do clube são forçados a obter seus prazeres nos estábulos.
– São? Eles fazem isso?
– E os estábulos são desconfortáveis e cheios de correntes de ar. Acredite em mim.
– Você...?
– Contudo, há um ótimo bordel a duas ruas daqui. Espero que possamos chegar a um acordo com a dona, madame Bradshaw. Quando um dos sócios do nosso clube desejar companhia feminina, poderá ir ao bordel, obter seus serviços com um desconto e voltar para cá quando estiver satisfeito.
Ele ergueu as sobrancelhas significativamente, como se esperasse que Evie elogiasse a ideia.
– O que você acha?
– Acho que você ainda seria um cafetão – disse ela. – Só que em segredo.
– Moralidade é só para a classe média, querida. A classe baixa não pode se dar ao luxo de tê-la e a classe alta tem muito tempo livre para preencher.
Evie balançou a cabeça devagar, arregalando os olhos para ele, não se movendo nem mesmo quando Sebastian se inclinou para a frente para pôr uma uva em seus lábios entreabertos.
– Não precisa dizer nada – murmurou ele, sorrindo. – Está claro que ficou emudecida de gratidão por eu estar aqui para ficar de olho em você.
Ela franziu as sobrancelhas ruivas e Sebastian riu baixinho.
– Se o que a preocupa é eu ser dominado por um ardor masculino e violá-la em um momento de fraqueza... Bem, isso é possível... se você pedir com gentileza.
Evie mordeu a uva doce e carnuda e retirou as sementes com os dentes e a língua. Enquanto a observava lidando com a fruta, o sorriso de Sebastian diminuiu um pouco e ele se recostou.
– Por enquanto você é muito inexperiente para eu me dar esse trabalho – continuou ele friamente. – Talvez a seduza no futuro, depois que outros homens a tenham instruído.
– Duvido muito – disse ela, irritada. – Eu nunca seria burguesa a ponto de desejar meu próprio marido.
Ele deu uma risada.
– Meu Deus! Você deve estar esperando dias para dizer isso. Parabéns, criança. Não faz nem uma semana que estamos casados e você já está aprendendo a brigar.
CAPÍTULO 9
Evie nunca soube onde seu marido dormira naquela primeira noite, mas suspeitava que tivesse sido em algum lugar desconfortável. Seu próprio sono não fora nem um pouco repousante, porque a preocupação a havia acordado com a precisão de um relógio. Ela tinha ido ver o pai várias vezes, dando goles de água ou remédios quando a tosse piorava, ajeitando as cobertas quando ele sentia frio. A cada vez que acordava, Jenner olhava para a filha com renovada surpresa.
– Estou sonhando que você está aqui, menina?
E ela havia murmurado palavras ternas e acariciado seus cabelos.
Ao primeiro sinal da luz do dia, Evie se banhou e prendeu os cabelos úmidos em um coque.
Tocou a campainha para chamar uma criada, pediu ovos, um caldo, chá e todas as comidas de doente em que pôde pensar para abrir o apetite do pai. As manhãs no clube eram tranquilas e silenciosas, porque a maioria dos empregados estava dormindo depois de ter trabalhado até altas horas da madrugada. Contudo, sempre havia um pequeno número deles disponível para serviços leves. Uma cozinheira assumia quando o chef ia embora, preparando pratos simples para quem os pedia.
Um som curto e seco veio do quarto do pai. Evie correu para a cabeceira da cama e o encontrou tossindo em um lenço. Ver os aflitivos espasmos no peito dele fez seus próprios pulmões doerem. Procurando entre os frascos à mesa de cabeceira, encontrou o xarope de morfina e o despejou em uma colher. Passou um braço ao redor da cabeça e do pescoço quentes e úmidos do pai e o pôs em uma posição mais confortável. Novamente chocada com quanto estava leve, sentiu-o se retesar enquanto tentava conter outro acesso de tosse. Os tremores balançaram a colher da mão de Evie e o remédio caiu nas roupas de cama.
– Desculpe-me – murmurou ela, indo rapidamente enxugar o líquido viscoso e encher de novo a colher. – Vamos tentar de novo, papai.
Ele conseguiu tomar o remédio, seu pescoço com as veias aparentes se movendo enquanto engolia. Depois, tossindo mais algumas vezes, o pai a esperou ajeitar os travesseiros. Evie o recostou e pôs um lenço dobrado na mão dele.
Olhando para o rosto esquelético e a barba grisalha, procurou qualquer sinal do pai nesse estranho irreconhecível. Ele sempre havia sido um homem de rosto cheio, robusto e corado...
Nunca conseguira manter uma conversa sem o uso expressivo das mãos, fechando-as e dando socos no ar em gestos que pareciam típicos de ex-pugilistas. Agora ele era uma sombra empalidecida daquele homem, com a pele do rosto cinzenta e flácida em virtude da rápida perda de peso. Mas os olhos azuis eram os mesmos... redondos e escuros, da cor do mar da Irlanda.
Tranquilizada com a familiaridade daqueles olhos, Evie sorriu.
– Eu pedi o café da manhã – murmurou ela. – Espero que chegue logo.
Jenner balançou levemente a cabeça, indicando que não queria comer.
– O senhor tem que comer alguma coisa, papai.
Com a ponta de um pano absorvente, ela enxugou uma gota de sangue no canto áspero da boca do pai. Ele franziu as sobrancelhas grisalhas.
– Os Maybricks virão buscá-la, Evie?– perguntou roucamente.
Ela deu um sorriso de amarga satisfação.
– Eu os deixei para sempre. Alguns dias atrás, fugi e me ca-casei em Gretna Green. Agora eles não têm ne-nenhum poder sobre mim.
Jenner arregalou os olhos.
– Quem? – perguntou sucintamente.
– Lorde St. Vincent.
Houve uma batida à porta e a criada entrou, trazendo uma bandeja com pratos. Evie se levantou para ajudá-la, tirando alguns objetos da mesa de cabeceira. Viu o pai recuar ao cheiro da comida.
– Desculpe-me, papai. O senhor precisa tomar pelo menos um pouco de caldo.
Evie pôs um guardanapo sobre o peito dele e lhe levou uma xícara de caldo morno aos lábios.
Jenner tomou alguns goles e se recostou, observando-a enxugar-lhe a boca. Sabendo que o pai esperava que ela lhe explicasse a situação, Evie sorriu tristemente. Já tendo pensado sobre o assunto, decidira que não havia nenhuma necessidade de fingir um romance. Seu pai era um homem prático e provavelmente nunca havia esperado que a filha se casasse por amor. Na visão dele, você tinha de aceitar a vida como era, fazendo o que fosse preciso para sobreviver. Se encontrasse um pouco de prazer no caminho, deveria desfrutá-lo e não se queixar quando tivesse que pagar o preço.
– Até agora quase ninguém sabe sobre o casamento – disse Evie. – Na verdade, não foi uma união tão ruim. Nós nos damos bastante bem e eu não tenho nenhuma ilusão sobre ele.
Jenner abriu a boca quando a filha lhe deu uma colherada de ovos quentes. Refletiu sobre a informação, engoliu e se aventurou a dizer:
– O pai dele, o duque, é um idiota que não sabe fazer nada.
– Mas lorde St. Vincent é bastante inteligente.
– Um tipo frio – observou Jenner.
– Nem sempre. Isto é...
Evie subitamente parou, suas bochechas ficando vermelhas ao se lembrar de Sebastian sobre ela na cama, do corpo firme e quente, dos músculos das costas se arqueando sob seus dedos.
– Ele é um libertino – comentou Jenner sem rodeios.
– Isso não me importa – respondeu ela com igual franqueza. – Eu nunca lhe pediria fidelidade. Obtive o que queria do casamento. Quanto ao que ele quer...
– Sim, eu pagarei seu dote – disse Jenner amigavelmente. – Onde ele está agora?
Evie lhe deu outra colherada de ovos quentes.
– Sem dúvida ainda está na cama.
A camareira, que estava saindo do quarto, parou na porta.
– Perdão, mas ele não está na cama, senhorita... quero dizer, milady. Lorde St. Vincent acordou o Sr. Rohan à primeira luz do dia e o está arrastando de um lado para outro, fazendo perguntas e lhe dando listas. Deixou o Sr. Rohan de péssimo humor.
– Lorde St. Vincent tem esse efeito sobre as pessoas – disse Evie secamente.
– Listas do quê? – perguntou Jenner.
Evie não ousou admitir que Sebastian tomara a seu cargo interferir na direção do clube. Isso provavelmente aborreceria o pai. A novidade do casamento sem amor da filha era algo que ele podia tolerar, mas qualquer coisa que afetasse seu negócio seria uma fonte de grande preocupação.
– Ah – disse ela vagamente. – Acho que ele viu uma parte do carpete que devia ser substituída. E pensou em melhoras para o cardápio. Esse tipo de coisa.
– Hummm. – Jenner franziu o cenho quando ela lhe levou novamente uma xícara de caldo aos lábios. – Diga-lhe para não tocar em nada sem a permissão de Egan.
– Sim, papai.
Evie olhou furtivamente para a criada, estreitando os olhos em um aviso para que ela não desse mais informações. Entendendo a ordem silenciosa, a criada assentiu.
– Você não está com tanta dificuldade em falar quanto antes – observou Jenner. – Por quê, querida?
Evie refletiu sobre a pergunta, sabendo que sua gagueira realmente melhorara durante a última semana.
– Não sei ao certo. Acho que estar longe dos Maybricks talvez tenha me ajudado a ficar...
mais calma. Notei isso logo depois que partimos de Londres...
Ela lhe contou uma versão resumida da viagem de ida e volta de Gretna Green, provocando no pai algumas risadas que o fizeram tossir no lenço. Enquanto conversavam, Evie viu o rosto dele relaxar, revelando o efeito da morfina. Ela comeu um pedaço da torrada intocada do pai, tomou uma xícara de chá e pôs a bandeja do café da manhã perto da porta.
– Papai, antes de o senhor dormir, eu o ajudarei a se lavar e barbear.
– Não é preciso – respondeu ele com os olhos vidrados em virtude do remédio.
– Deixe-me cuidar do senhor – insistiu Evie, dirigindo-se ao lavatório, onde a criada deixara um jarro de água quente. – Acho que dormirá melhor depois.
Jenner pareceu fraco demais para discutir. Apenas suspirou, tossiu e a observou trazer uma tigela de porcelana e seus utensílios de barbear para a cabeceira da cama. Evie pôs uma toalha sobre o peito e a base do pescoço dele. Sem nunca ter barbeado um homem, pegou o pincel, o mergulhou na água e o enfiou na caneca de sabão.
– Primeiro aplique uma toalha quente, querida – murmurou Jenner. – Amolece os pelos.
Seguindo as instruções do pai, Evie o ensaboou, pegou outra toalha e a pôs gentilmente sobre o queixo e pescoço dele. Passado um minuto, usou o pincel para espalhar o sabão sobre um dos lado do queixo. Decidindo barbear uma parte do rosto de cada vez, abriu a navalha, a olhou com receio e se inclinou cuidadosamente sobre o pai. Antes de lhe tocar o rosto, uma voz sarcástica veio da porta.
– Meu Deus!
Evie olhou por cima de seu ombro e viu Sebastian.
– Não sei se devo elogiar sua coragem ou lhe perguntar se perdeu o juízo ao deixá-la se aproximar com uma navalha.
Com alguns passos lentos, ele foi até a cama e estendeu a mão.
– Dê-me isso, amor. Na próxima vez que seu pai tossir, você lhe decepará o nariz.
Sem hesitar, Evie lhe entregou a navalha. Apesar da privação de sono, hoje ele parecia muito mais revigorado. Estava impecavelmente barbeado, com os cabelos lavados e penteados em camadas brilhantes. Seu corpo magro estava vestido com roupas de excelente corte, e um casaco cor de carvão lhe realçava lindamente a pele dourada. Como na noite anterior, ele tinha uma energia vital, como se estivesse animado apenas por estar no clube. O contraste entre os dois homens, um tão velho e doente e o outro tão grande e saudável, era surpreendente. Quando Sebastian se aproximou de Jenner, Evie sentiu uma necessidade instintiva de se pôr entre eles.
Seu marido parecia um predador indo acabar com uma presa indefesa.
– Vá buscar a tira de afiar navalha, querida – disse Sebastian, seus lábios curvados em um leve sorriso.
Evie obedeceu. Quando voltou do lavatório, o marido ocupara o lugar dela à cabeceira.
– Sempre afie a navalha antes e depois do barbear – murmurou Sebastian, passando a lâmina aberta várias vezes sobre a tira de couro.
– Já parece bastante afiada – disse Evie, incerta.
– Afiar nunca é demais, doçura. Ensaboe todo o rosto dele antes de começar. O sabão amaciará os pelos.
Ele chegou para o lado enquanto Evie aplicava sabão no rosto do pai e depois a afastou para se sentar na beira do colchão. Segurando a navalha, perguntou a Jenner:
– Posso?
Para a surpresa de Evie, seu pai assentiu com a cabeça, parecendo não ter nada contra deixar Sebastian barbeá-lo. Ela foi para o outro lado da cama para ver melhor.
– Deixe a lâmina fazer o trabalho – disse Sebastian –, em vez de fazer pressão com a mão.
Barbeie na direção do crescimento dos pelos... assim. E nunca arraste a lâmina paralelamente à pele. Comece pelas laterais do rosto... depois as bochechas... os lados do pescoço... assim. –
Enquanto Sebastian falava, passava a lâmina pela barba grisalha, removendo-a com movimentos precisos. – E enxague a lâmina com frequência.
Seus dedos longos trabalharam suavemente no rosto de Jenner, variando o ângulo e esticando partes da pele. Os movimentos eram leves, hábeis e eficazes. Evie balançou a cabeça, sem conseguir acreditar que estava vendo Sebastian, lorde St. Vincent, barbear seu pai com a destreza de um experiente criado pessoal.
Após terminar o ritual masculino, Sebastian removeu o resto de sabão do rosto liso e luzidio de Jenner. Só havia um mínimo corte na beira do queixo. Pressionou-o com a toalha e murmurou:
– O sabão precisa de mais glicerina. Meu criado pessoal faz um sabão de barbear muito melhor do que este... Eu o mandarei trazer um pouco mais tarde.
– Obrigada – respondeu Evie, sentindo um calor no peito ao observá-lo.
Sebastian a olhou e viu algo em sua expressão que pareceu fasciná-lo.
– As roupas de cama precisam ser trocadas. Vou ajudar.
Evie balançou a cabeça, sem querer que Sebastian visse o corpo debilitado de seu pai. Sabia que isso faria seu pai se sentir em uma posição de muita desvantagem em relação a ele depois.
– Obrigada, mas não – disse firmemente. – Chamarei a criada.
– Muito bem. – Ele olhou de relance para Jenner. – Com sua permissão, senhor, eu o visitarei mais tarde, depois que tiver repousado.
– Sim – concordou Jenner com um olhar desfocado.
Ele fechou os olhos, deu um suspiro e se recostou.
Evie arrumou o quarto enquanto Sebastian limpava a navalha, a afiava mais uma vez e a guardava no estojo de couro. Ela acompanhou o marido até a porta.
– Já despediu o Sr. Egan?
Sebastian assentiu em silêncio, pôs uma das mãos na lateral da porta e se inclinou sobre Evie.
Embora a posição dele fosse relaxada e confortável, ela ainda teve a sensação de que estava sendo sutilmente dominada. Para a sua surpresa, não foi totalmente desagradável.
– No início ele foi hostil – respondeu Sebastian –, até eu lhe dizer que tinha examinado alguns dos livros contábeis. Depois se tornou dócil como um carneirinho, sabendo a sorte que tinha de termos decidido não processá-lo. Rohan o está ajudando a arrumar suas coisas e se assegurando de que partirá imediatamente.
– Por que não quer processá-lo?
– Isso não seria bom para a imagem da casa. Qualquer indício de problemas financeiros deixaria as pessoas preocupadas com a estabilidade do clube. É melhor absorver o prejuízo e recomeçar.
Ele olhou para as feições tensas de Evie e a surpreendeu dizendo com suavidade:
– Vire-se.
Ela arregalou os olhos.
– O quê? Po-por quê?
– Vire-se – repetiu Sebastian, esperando enquanto ela se virava devagar. O coração de Evie batia acelerado. – Segure-se, doçura.
Sebastian tocou com os dedos a parte superior de suas costas, como se estivesse procurando algo... e depois começou a massageá-las com movimentos firmes e gentis, aliviando a dor dos músculos torturados. Os dedos hábeis examinaram pontos de dor e tensão, fazendo-a arfar. A pressão se intensificou quando ele passou as palmas das mãos por suas costas, os polegares se aprofundando nos dois lados da coluna. Para surpresa de Evie, ela se viu arqueando as costas como um gato. Subindo as mãos devagar, Sebastian encontrou os músculos contraídos nos ombros e no pescoço e se concentrou neles, massageando e pressionando até Evie dar um gemido.
Uma mulher podia se tornar escrava daquelas mãos experientes. Ele a tocava com sensualidade. Evie sentiu sua respiração se tornar lenta e profunda. Suas costas relaxaram com a massagem e a sensação foi tão maravilhosa que ela temeu que ele parasse.
Quando as mãos de Sebastian finalmente se afastaram de seu corpo, Evie ficou surpresa por não desfalecer. Virou-se e olhou para o rosto do marido, esperando um sorriso zombeteiro ou comentário sarcástico. Em vez disso, viu que ele estava ruborizado e com uma expressão impassível.
– Tenho algo para lhe dizer em particular – murmurou ele.
Pegando-a pelo braço, levou-a para fora dos aposentos de Jenner e entrou no primeiro quarto disponível, o que Evie ocupara na noite anterior. Fechou a porta e se inclinou para ela. Seu rosto estava sereno.
– Rohan tinha razão. Seu pai não tem muito tempo. Será um milagre se ele durar mais um dia.
– Sim. Eu... acho que isso é óbvio para todos.
– Esta manhã falei muito com Rohan sobre o estado de seu pai e ele me mostrou um folheto que o médico deixou ao fazer o diagnóstico.
Sebastian tirou de seu casaco um pequeno pedaço de papel dobrado impresso em uma letra miúda e o entregou para ela. Evie leu o título Uma nova teoria sobre a tuberculose. Como a única luz no quarto provinha de uma pequena janela e ela estava com os olhos cansados, balançou a cabeça.
– Posso ler depois?
– Sim, mas vou lhe dizer qual é o ponto principal da teoria. Que a tuberculose é causada por organismos vivos tão minúsculos que são invisíveis a olho nu. Eles habitam os pulmões afligidos. E a doença é passada quando uma pessoa saudável inala parte do ar que o doente exala dos pulmões.
– Criaturas minúsculas nos pulmões? – perguntou Evie sem entender. – Isso é um absurdo! A tuberculose é causada por uma predisposição natural para a doença... ou quando se fica por muito tempo no frio e na umidade...
– Como nenhum de nós é médico ou cientista, seria inútil debatermos esse tema. Contudo, por questões de segurança, terei de limitar o tempo que você passa com seu pai.
O papel caiu da mão de Evie. Chocada com a afirmação, Evie sentiu seu coração em um ritmo furioso. Depois de tudo pelo que passara, Sebastian estava tentando negar-lhe os últimos dias que teria com ele? Tudo por causa de uma teoria médica não comprovada, impressa em um folheto?
– Não – disse violentamente. Sentiu um aperto na garganta e suas palavras saíram rápido demais para sua boca conseguir acompanhá-las. – A-absolutamente não. Vou ficar com ele quanto quiser. Você nã-não liga... a mínima para mim ou para ele. Só quer ser cruel para me mostrar que tem o po-poder de...
– Eu vi as roupas de cama – disse Sebastian bruscamente. – Ele está tossindo sangue, muco e Deus sabe o que mais... Quanto mais tempo você passar com ele, maiores as chances de inalar o que o está matando.
– Não acredito em sua teoria bo-boba. Eu poderia encontrar uma dú-dúzia de médicos que diriam que é ridícula...
– Não quero deixá-la correr esse risco. Maldição, quer se ver naquela cama daqui a seis meses com os pulmões apodrecendo?
– Se isso a-acontecer, não se-será da sua conta.
Enquanto eles se encaravam no silêncio raivoso que se seguiu, Evie teve a impressão de que suas palavras duras o tinham ferido mais fundo do que ela esperara.
– Tem razão – disse Sebastian rudemente. – Se quiser ficar tuberculosa, vá em frente. Mas não se espante se eu não ficar sentado à sua cabeceira retorcendo as mãos. Não farei nada para ajudá-la. Quando estiver tossindo até pôr os pulmões para fora, terei grande prazer em lhe lembrar que isso foi culpa sua por ter sido tão teimosa!
Ele concluiu seu discurso com um movimento irritado das mãos. Infelizmente, Evie fora condicionada por muitos confrontos com o tio Peregrine a associar gestos de raiva ao início de agressões físicas. Ela recuou instintivamente, erguendo os braços para proteger a cabeça. Quando a dor do golpe não veio, deixou escapar um suspiro, abaixou os braços hesitando e viu Sebastian olhando-a atônito.
Então a expressão dele se tornou sombria.
– Evie – disse, sua voz com uma ferocidade aguda que a assustou. – Pensou que eu ia...? Cristo! Alguém bateu em você no passado? Quem foi?
Subitamente, ele estendeu o braço para Evie e ela cambaleou para trás, batendo com força na parede. Sebastian ficou imóvel.
– Maldição – sussurrou. Parecendo lutar contra uma forte emoção, ele a olhou atentamente. Um longo momento depois, disse com suavidade: – Eu nunca bateria em uma mulher. Nunca a machucaria. Sabe disso, não é?
Paralisada pelos olhos claros e brilhantes que a fitavam com tanta intensidade, Evie não conseguiu se mover ou emitir um som sequer. Sobressaltou-se quando Sebastian se aproximou devagar.
– Está tudo bem – murmurou ele. – Deixe-me chegar perto de você. Está tudo bem. Calma.
Ele deslizou um dos braços ao redor dela enquanto usava a mão livre para lhe acariciar os cabelos. Evie suspirou de alívio. Puxou-a para si e lhe roçou a boca na testa.
– Quem foi?
– Me-meu tio – conseguiu dizer Evie.
A mão de Sebastian em suas costas parou quando ele a ouviu gaguejar.
– Maybrick? – perguntou pacientemente.
– Não, o o-outro.
– Stubbins.
– Sim.
Evie fechou os olhos de prazer quando Sebastian a abraçou. Aconchegada ao peito firme do marido e com a bochecha junto ao ombro dele, sentiu o cheiro da pele masculina e o toque sutil de colônia de sândalo.
– Mais de uma vez?
– Isso nã-não importa agora.
– Mais de uma vez, Evie?
Percebendo que Sebastian ia insistir até ela responder, Evie murmurou:
– Não com uma frequência te-terrível, mas... às vezes quando eu o de-desagradava, ou desagradava à tia Flo-Florence, ele perdia a cabeça. Na última ve-vez que te-tentei fugir, ele me deixou com um olho roxo e o lábio ferido.
– Deixou? – Sebastian ficou em silêncio por um longo momento e depois falou com uma suavidade assustadora. – Vou esquartejá-lo.
– Eu não quero isso – disse Evie seriamente. – Só que-quero ficar a salvo dele. De todos e-eles.
Sebastian afastou a cabeça para olhar o rosto corado da esposa.
– Você está a salvo – disse em voz baixa.
Ele acariciou a maçã do rosto dela, seguindo com o dedo as sardas douradas até a ponte do nariz. Quando ela abaixou os cílios, ele acariciou os arcos finos das sobrancelhas e pôs a palma da mão no lado de seu rosto.
– Evie, juro pela minha vida que minhas mãos nunca a farão sentir dor. Posso ser um péssimo marido sob todos os outros aspectos, mas não a machucaria dessa maneira. Você precisa acreditar nisso.
A delicada pele de Evie assimilou avidamente as sensações... O toque de Sebastian e o erotismo da respiração dele contra seus lábios. Ela temeu fechar os olhos ou fazer qualquer coisa que pudesse interromper aquele momento.
– Sim – conseguiu sussurrar. – Sim... eu...
O toque suave de um beijo explorando seus lábios... e depois outro... Dando um pequeno suspiro, Evie os abriu. O beijo foi quente, macio e apaixonado, a boca de Sebastian pressionando levemente a sua. Ele passou os dedos pelo seu rosto, ajustando carinhosamente o ângulo.
Quando Sebastian a sentiu oscilar, perdendo o equilíbrio, segurou-lhe uma das mãos e a levou até sua nuca. Ela ergueu a outra, agarrando-se a ele e correspondendo aos doces beijos.
Sebastian estava ofegante e Evie sentiu nos seios a sedutora fricção do peito dele. Subitamente os beijos se tornaram mais profundos, mais intensos, transformando a paixão em uma urgência que a fez se contorcer contra Sebastian, desesperada por mais proximidade com aquela forma masculina e viril.
Ele gemeu de desejo e afastou a boca.
– Não – sussurrou, ofegante. – Não, espere... amor... eu não queria começar isso. Eu só... maldição.
Ela agarrou o casaco de Sebastian e enterrou o rosto na gravata de seda cinza brilhante. Ele lhe segurou a parte de trás da cabeça, sustentando com o corpo o peso instável de Evie.
– Não mudei de ideia – disse ele contra os cabelos de Evie. – Se quiser cuidar de seu pai, terá de seguir minhas regras. Mantenha o quarto ventilado. Quero a porta e as janelas abertas o tempo todo. E não se sente muito perto dele. Além disso, sempre que estiver com ele, amarre um lenço sobre sua boca e seu nariz.
– O quê? – Evie se afastou dele e o olhou, incrédula. – Para aquelas criaturas minúsculas não voarem para meus pulmões? – perguntou sarcasticamente.
Ele estreitou os olhos.
– Não me teste, Evie. Estou perto de proibi-la totalmente de visitá-lo.
– Eu me sentirei ridícula usando um lenço no rosto – protestou ela. – E isso magoará meu pai.
– Não me importa. Tenha em mente que não o verá se me desobedecer.
Tomada por uma nova raiva, Evie se afastou dele.
– Você não é melhor do que os Maybricks – disse amargamente. – Eu me casei com você para ganhar minha liberdade. Em vez disso, só troquei de carcereiro.
– Nenhum de nós tem total liberdade, criança. Nem mesmo eu.
Ela fechou as mãos e o encarou.
– Pelo menos você tem o direito de decidir por si mesmo.
– E por você – zombou ele, parecendo apreciar a raiva que provocara nela. – Meu Deus, que espetáculo! Toda essa rebeldia... faz eu querer levá-la para a cama.
– Não me toque! – disparou ela. – Nunca mais!
Ele começou a rir enquanto se dirigia à porta.
CAPÍTULO 10
À noite, quando Evie voltou para o quarto do pai, soube imediatamente que a hora dele havia chegado. Estava pálido como cera e com os lábios azulados. Os pulmões torturados não eram mais capazes de inalar oxigênio suficiente. Desejou poder respirar por ele. Segurando sua mão, esfregou os dedos dele como se pudesse aquecê-los e o olhou com um sorriso forçado.
– Papai – murmurou, acariciando-lhe os cabelos desbotados. – Diga-me o que fazer. Diga-me o que quer.
Ele a olhou branda e afetuosamente enquanto seus lábios, encolhidos no rosto enrugado, se curvavam em um sorriso.
– Cam – sussurrou ele.
– Sim, mandarei chamá-lo. – Evie deixou seus dedos agitados lhe acariciarem os cabelos. –
Papai, Cam é meu irmão?
– Ah... – suspirou Jenner, franzindo os olhos. – Não, querida. Quem dera fosse. Bom rapaz...
Evie se inclinou, beijou uma das mãos enfraquecidas do pai e se afastou da cama. Dirigiu-se apressadamente à corda para tocar o sino e a puxou várias vezes. Uma criada veio com uma rapidez incomum.
– Sim, milady?
– Vá buscar o Sr. Rohan... depressa – disse Evie, com sua voz apenas um pouco trêmula.
Ela parou e pensou em mandar buscar Sebastian também, mas seu pai não chamara por ele. E a ideia da presença fria e racional do marido contrastando tanto com suas próprias emoções... não. Podia contar com ele de outros modos, mas não desse.
Apesar de seu esforço para manter o rosto calmo, ela devia ter transmitido um pouco de seu medo, porque o pai lhe segurou uma das mãos e a puxou fracamente para mais perto.
– Evie – sussurrou debilmente. – Vou me encontrar com sua mãe... Ela pediu que deixassem a porta dos fundos aberta... para eu entrar no céu.
Evie riu baixinho enquanto lágrimas quentes escorriam de seus olhos. Poucos segundos depois, Cam entrou no quarto. Ele estava com os cabelos muito pretos desgrenhados e as roupas incomumente amassadas, como se tivesse se vestido às pressas. Embora fosse calmo e controlado, seus olhos dourados tinham um brilho líquido quando contemplou Evie. Ela se levantou e se afastou da cama, precisando engolir em seco várias vezes antes de conseguir falar:
– Tem de se inclinar para ouvi-lo – disse roucamente.
Cam se inclinou para a cabeceira e segurou as mãos de Jenner, como Evie fizera.
– Pai do meu coração – disse o jovem cigano suavemente –, fique em paz com todas as almas que deixar para trás. E saiba que Deus abrirá seu caminho para a nova vida.
Enquanto Jenner lhe sussurrava, o rapaz inclinou a cabeça e esfregou as mãos do velho de modo tranquilo.
– Sim – disse Cam prontamente, embora Evie percebesse pela tensão em seus ombros largos que ele não havia gostado do que seu pai lhe pedira. – Tomarei providências para que isso seja feito.
Depois Jenner relaxou e fechou os olhos. Cam se afastou da cabeceira e puxou Evie para a frente.
– Está tudo bem – murmurou ao senti-la tremer. – Minha avó sempre me disse: “Nunca se recuse a trilhar um novo caminho. Nunca se sabe que aventuras o esperam.”
Evie tentou se confortar com essas palavras, mas seus olhos estavam marejados e sua garganta doía. Sentando-se ao lado do pai, pôs um dos braços ao redor da cabeça e uma das mãos sobre o peito dele. A respiração de Jenner se acalmou e ele emitiu um leve som, como se apreciasse o toque. Quando ela sentiu a vida do pai se esvaindo aos poucos, a mão grande de Cam deslizou para seu antebraço e o apertou de leve.
Fez-se um doloroso silêncio no quarto. Evie nunca havia se deparado com a morte, e ter de enfrentá-la agora e perder a única pessoa que a amara a fazia sentir as frias garras do medo.
Lançando um olhar lacrimejante para a porta, viu a figura alta de Sebastian em pé, seu rosto inescrutável, e subitamente percebeu que precisava dele afinal de contas. Quando o marido a fitou, algo em seu olhar ajudou a tranquilizá-la.
O mais leve dos suspiros escapou dos lábios de Jenner... e depois não houve mais nada. Ao perceber que o sofrimento finalmente terminara, Evie apertou sua bochecha contra a cabeça do pai e fechou seus olhos.
– Adeus – sussurrou, lágrimas pingando nos cabelos um dia ruivos de Jenner.
Depois de um momento, Evie sentiu as mãos hábeis de Cam erguendo-a e afastando da cama.
– Evie – murmurou o rapaz com o rosto virado para o outro lado. – Tenho de... tenho de arrumar o corpo. Fique com seu marido.
Evie assentiu com a cabeça e tentou andar, mas estava com as pernas paralisadas. Sentiu Cam afastar seu cabelo e depois roçar a boca em sua testa em um doce e casto beijo. Cegamente, ela se virou e cambaleou na direção de seu marido. Sebastian se aproximou com alguns passos largos e lhe pôs um lenço na palma da mão. Ela o pegou com gratidão. Evie enxugou os olhos e assoou o nariz enquanto Sebastian a conduzia para fora dos aposentos de Ivo Jenner. O braço forte do marido estava em suas costas, a mão em sua cintura.
– Ele estava em constante sofrimento– disse Sebastian em um tom prático. – Foi melhor assim.
– Sim – conseguiu dizer Evie. – Sim, é claro.
– Ele disse alguma coisa?
– Ele mencionou... a minha mãe. – Pensar nisso fez seus olhos arderem de novo, mas seus lábios esboçaram um sorriso torto. – Disse que ela o ajudaria a entrar no céu pela porta dos fundos.
Sebastian a guiou para o quarto. Desabando na cama, Evie levou o lenço ao nariz e se encolheu, virada de lado. Nunca havia chorado assim antes, sem soluços, com a angústia fazendo sua garganta arder e a tristeza que lhe apertava o peito se recusando a diminuir. Ela teve uma vaga consciência das cortinas se fechando e de Sebastian mandando uma criada buscar um pouco de vinho e um jarro de água fria.
Embora Sebastian permanecesse no quarto, não se aproximou, apenas andou por alguns minutos e finalmente se sentou em uma cadeira à cabeceira da cama. Era óbvio que não queria abraçar Evie enquanto ela chorava, que evitaria essa intimidade emocional. Ela podia se entregar a ele na paixão, mas não no sofrimento. Ainda assim, estava claro que não tinha nenhuma intenção de deixá-la.
Depois que a criada trouxe o vinho, apoiou Evie nos travesseiros e lhe deu uma taça cheia.
Enquanto ela bebia, pegou um pano molhado em água fria e o aplicou gentilmente em seus olhos inchados. Ele foi gentil e estranhamente cuidadoso, como se estivesse cuidando de uma criança pequena.
– Os empregados – murmurou Evie depois de algum tempo. – O clube. O funeral.
– Cuidarei de tudo – disse Sebastian calmamente. – Fecharemos o clube. Farei os preparativos para o funeral. Devo avisar suas amigas?
Evie balançou a cabeça imediatamente.
– Isso as poria em uma situação difícil. E não estou com vontade de falar com ninguém.
– Entendo.
Ele ficou com Evie até ela esvaziar a segunda taça de vinho. Percebendo que o marido estava esperando um sinal seu, pousou a taça vazia na mesa de cabeceira. Sentiu a língua embolar ao falar:
– Acho que agora vou descansar. Não precisa ficar comigo quando há tanto a ser feito.
O olhar avaliador de Sebastian a varreu e ele se levantou da cadeira.
– Chame-me quando acordar.
Deixada levemente embriagada, sonolenta e sozinha na penumbra, Evie se perguntou por que as pessoas sempre diziam que a morte de um ente querido era mais fácil quando você tinha tempo para se preparar para isso. Não parecia fácil. E essas mesmas pessoas poderiam ter acrescentado que sua dor deveria ser menor pelo fato de nunca ter realmente conhecido seu pai.
Mas isso tornava a dor maior. Ela tinha muito poucas lembranças para confortá-la... Eles haviam passado muito pouco tempo juntos. Com a tristeza, veio um lúgubre sentimento de privação... e sob isso até mesmo um toque de raiva. Era tão indigna de amor? Faltava-lhe algum dom essencial para atrair os outros?
Consciente de que seus pensamentos estavam tomando o rumo perigoso da autopiedade, fechou os olhos e deu um trêmulo suspiro.
No momento em que Cam estava saindo dos aposentos de Ivo Jenner, St. Vincent o encontrou no corredor. O homem louro franziu o cenho e disse em um frio tom de arrogância:
– Se minha esposa encontra conforto em sermões ciganos banais, não tenho nenhuma objeção a que os faça. Mas se a beijar de novo, não importa quanto o beijo seja casto, eu o transformarei em um eunuco.
O fato de St. Vincent ser capaz de ter um ataque de ciúme quando Ivo Jenner ainda não esfriara em seu leito de morte poderia ter indignado outros homens. Contudo, Cam olhou para o visconde com interesse.
Usando deliberadamente sua resposta para testar o outro homem, disse brandamente:
– Se eu já a tivesse desejado dessa forma, a esta altura a teria.
Um brilho de aviso surgiu nos olhos azuis como gelo de St. Vincent e revelou uma profundidade de sentimentos que ele não admitiria. Cam nunca tinha visto nada como o desejo silencioso do visconde pela própria esposa. Ninguém poderia deixar de observar que St. Vincent praticamente vibrava como um diapasão sempre que Evie entrava em um aposento.
– É possível querer bem a uma mulher sem querer se deitar com ela – salientou Cam. – Mas parece que você não acredita nisso. Ou está tão obcecado por ela que não consegue imaginar como outra pessoa poderia não sentir o mesmo?
– Eu não estou obcecado por ela – disparou St. Vincent.
Cam apoiou um ombro na parede e olhou nos olhos duros do homem, sua reserva incomum de paciência quase esgotada.
– É claro que está. Qualquer um pode ver isso.
St. Vincent lhe deu um olhar de aviso.
– Mais uma palavra – disse roucamente – e seguirá o mesmo caminho de Egan.
Cam ergueu as mãos em um zombeteiro gesto de autodefesa.
– Devidamente avisado. A propósito, as últimas palavras de Jenner foram sobre Bullard. Há um legado para ele no testamento. Jenner queria que fosse respeitado.
St. Vincent estreitou os olhos.
– Por que ele deixaria dinheiro para Bullard?
Cam deu de ombros.
– Eu não saberia dizer. Mas no seu lugar não contrariaria o último desejo de Jenner.
– Se eu contrariar, não há muito que ele ou alguém possa fazer a respeito.
– Então correrá o risco de o fantasma dele assombrar o clube.
– Fantasma? – St. Vincent o olhou incrédulo. – Cristo! Não está falando sério, está?
– Eu sou cigano – respondeu Cam sem rodeios. – É claro que acredito em fantasmas.
– Apenas metade cigano. O que me leva a crer que a outra parte é pelo menos um pouco sã e racional.
– A outra metade é irlandesa – disse Cam, meio que se justificando.
– Cristo! – repetiu St. Vincent enquanto se afastava a passos largos.
Com os preparativos para o funeral, os problemas financeiros do clube e o próprio edifício precisando urgentemente de reforma, Sebastian deveria estar ocupado demais para notar Evie e seu estado. Contudo, ela logo percebeu que ele exigia relatórios frequentes das criadas sobre como havia dormido, se tinha comido e suas atividades em geral. Ao saber que a esposa não havia tomado café da manhã nem almoçado, Sebastian mandou uma bandeja para cima, com um curto bilhete:
Milady,
Esta bandeja será devolvida para minha inspeção daqui a uma hora. Se não estiver vazia, irei pessoalmente alimentá-la à força.
Bon appetit,
S.
Para a satisfação de Sebastian, Evie obedeceu à ordem. Ela se perguntou com irritação se as ordens do marido eram motivadas por preocupação ou por um desejo de intimidá-la. Porém, logo depois, Sebastian fez algo muito atencioso, pagando para uma costureira o dobro do preço que ela cobrava para fazer três vestidos de luto com considerável rapidez. Infelizmente, a escolha dos tecidos foi totalmente inadequada.
No primeiro ano de luto, as mulheres eram obrigadas a usar apenas crepe, um tecido opaco, duro, áspero e feito de fios engomados. Ninguém o considerava uma escolha agradável, porque o crepe era perigosamente inflamável e tendia a enrugar e quase se desmanchar na chuva. Contudo, Sebastian encomendara um vestido de veludo preto, um de cambraia macia e um de caxemira.
– Não posso usar estes – disse Evie erguendo uma sobrancelha e passando a mão sobre os vestidos.
Ela os pôs sobre a colcha da cama, onde ficaram amontoados.
O próprio Sebastian havia trazido os vestidos para cima assim que foram entregues no clube.
Ele estava em pé no canto da cama, apoiado na pesada coluna entalhada. Exceto pela camisa branca, estava vestido de preto da cabeça aos pés. Como era de esperar, ficava extraordinariamente bonito em roupas austeras, o preto fornecendo um contraste exótico com a pele e os cabelos dourados brilhantes. Não pela primeira vez, Evie se perguntou se um homem com tal aparência poderia possuir um caráter decente – sem dúvida ele fora mimado desde a infância.
– Qual é o problema? – perguntou Sebastian olhando para os vestidos. – São pretos, não são?
– Bem, sim, mas não são feitos de crepe.
– Você quer usar crepe?
– É claro que não. Ninguém quer. Mas se as pessoas me virem usando outra coisa, haverá muito falatório.
Sebastian arqueou uma das sobrancelhas.
– Evie, você fugiu de casa para não ceder aos desejos de sua família, casou-se com um renomado libertino e está morando em um clube de jogos. Quantos falatórios mais acha que poderia causar?
Evie olhou desconfiada para o vestido que estava usando, um dos três que trouxera na noite em que fugira da casa dos Maybricks. Embora as criadas e ela tivessem feito o possível para limpá-lo, a lã marrom estava manchada e amarrotada devido à viagem. Além disso, dava-lhe coceiras. Queria usar algo novo, limpo e macio. Estendeu a mão para o vestido preto de veludo e o alisou.
– Você tem de aprender a ignorar o que as pessoas falam – murmurou Sebastian, indo até ela.
Posicionando-se atrás de Evie, tocou seus ombros de leve, fazendo-a se sobressaltar um pouco. –
Será muito mais feliz assim. Aprendi que enquanto o que falam sobre os outros frequentemente é verdade, nunca é quando se refere a nós.
Evie se retesou nervosamente ao sentir as mãos dele movendo-se ao longo da fileira de botões nas costas do vestido marrom.
– O que está fazendo?
– Ajudando você a trocar de roupa.
– Eu não quero. Agora não. Eu...
Mas ele insistiu, deslizando uma das mãos para a frente de Evie a fim de mantê-la no lugar enquanto a outra continuava a abrir o vestido. Em vez de recorrer a uma luta indigna, Evie corou e ficou parada, a pele exposta arrepiada.
– Eu go-gostaria que não me tratasse com tanta displicência!
– A palavra “displicência” sugere indiferença – respondeu ele, baixando o vestido para os quadris de Evie.
O vestido caiu no chão.
– E não há nada de indiferente em minha reação a você, amor.
– Eu poderia esperar um pouco de re-respeito – exclamou Evie, tremendo diante dele em suas roupas de baixo. – Sobretudo depois... depois...
– Você não precisa de respeito. Precisa de conforto, abraços e possivelmente um longo tempo na cama comigo. Mas como não permitirá isso, receberá uma massagem nos ombros e alguns conselhos.
Sebastian pôs suas mãos quentes nos ombros dela, nus exceto pelas alças da camisola.
Começou a massagear os músculos tensos, os polegares traçando arcos profundos na parte superior das costas. Evie deu um gemido e tentou se afastar, mas ele a fez se calar e continuou a massageá-la com infinita habilidade.
– Você não é mais a mesma pessoa de alguns dias atrás – murmurou ele. – Não é mais uma mulher solteira que tomava chá de cadeira nos bailes, uma virgem ou a criança indefesa que tinha de suportar a vida com os Maybricks. É uma viscondessa com uma fortuna considerável e um marido libertino. As regras de quem seguirá agora?
Evie balançou a cabeça, cansada e confusa. Seu controle sobre as próprias emoções parecia desaparecer tão rapidamente quanto Sebastian lhe tirava a tensão das costas. Temeu chorar se tentasse falar. Ficou em silêncio, com os olhos firmemente fechados, tentando manter sua respiração regular.
– Até agora você passou a vida tentado agradar aos outros... com muito pouco sucesso. Por que não tenta agradar a si mesma para variar? Por que não vive de acordo com suas próprias regras? O que ganhou seguindo as convenções?
Evie ponderou sobre as perguntas e suspirou de prazer quando ele encontrou um ponto particularmente dolorido.
– Eu gosto das convenções – respondeu, depois de um tempo. – Não há nada de errado em ser uma pessoa comum, há?
– Não. Mas você não é comum ou nunca teria me procurado em vez de se casar com o primo Eustace.
– Eu estava desesperada.
– Esse não foi o único motivo – murmurou ele. – Isso também lhe deu um prazer maldoso.
– Não! Não!
– Você gostou de colocar um libertino infame contra a parede em sua própria casa e apresentar uma proposta irrecusável. Não tente negar isso. A esta altura eu a conheço o suficiente.
Incrivelmente, apesar de sua dor e preocupação, Evie sentiu um sorriso surgindo em seus lábios.
– Talvez por um momento eu tenha gostado – admitiu. – E certamente gostei de pensar em quanto minha família ficaria furiosa quando soubesse disso. – O sorriso desapareceu enquanto ela acrescentava com uma carranca: – Como eu odiava morar com eles! Se ao menos meu pai tivesse ficado comigo! Ele poderia ter pagado a alguém para cuidar de mim...
– Meu Deus! – disse Sebastian, não parecendo nem um pouco solidário. – Por que ele ia querer uma criança pequena em seu mundo?
– Porque eu era sua família. Era tudo o que ele tinha!
Isso fez Sebastian balançar a cabeça decididamente.
– Os homens não pensam assim, querida. Seu pai presumiu, e com razão, que seria melhor para você viver longe dele. Sabia que só se casaria bem se fosse criada de um modo respeitável.
– Mas se ele soubesse como os Maybricks me tratariam... como me maltrataram...
Sebastian a chocou ao perguntar:
– O que a faz presumir que seu pai não teria feito o mesmo? Pelo amor de Deus! Ele era um ex-pugilista! Dificilmente seria considerado um sujeito com controle de suas próprias ações. Você poderia ter conhecido muito bem os punhos dele se o tivesse visto com mais frequência.
– Eu não acredito nisso! – exclamou Evie com irritação.
– Acalme-se – murmurou Sebastian, pegando o vestido de veludo na cama. – Como já disse, eu nunca bateria em uma mulher. Mas o mundo está cheio de homens que não têm esse tipo de escrúpulo e provavelmente seu pai era um deles. Conteste isso, se quiser, mas não seja ingênua a ponto de pôr Jenner em um pedestal, amor. Para os padrões do mundo em que vivia, de malandros, jogadores, canalhas, criminosos e embusteiros, era um homem bastante decente.
Estou certo de que Jenner consideraria isso um elogio adequado. Erga os braços.
Ele passou habilmente o vestido de veludo pela cabeça de Evie, ajeitou as saias no quadril e a ajudou a enfiar os braços nas mangas.
– Essa vida não é para você. Seu lugar é em uma propriedade no campo, sentada em uma manta espalhada em um gramado verde, comendo morangos com creme. Dando passeios de carruagem. Visitando suas amigas. Um dia provavelmente deveria ter filhos. Isso a faria ter algo com que se ocupar. E algo em comum com suas amigas, que sem dúvida já começaram a procriar.
Surpresa com a naturalidade com que Sebastian lhe dera a sugestão, Evie olhou para o belo rosto tão perto do seu. Poderia parecer que acabara de se dispor a lhe comprar um cachorrinho.
Ele realmente era tão insensível?
– Você teria algum interesse em um filho? – perguntou Evie após engolir em seco várias vezes.
– Não, querida. Não fui feito para ter uma esposa e família. Mas eu não deixaria lhe faltar nada. – Um brilho perverso surgiu nos olhos de Sebastian. – Participaria com muito entusiasmo da concepção, não da criação. – Ele foi para trás de Evie a fim de fechar o vestido. – Pense no que você quer. Há muito pouco que não possa ter... desde que ouse.
CAPÍTULO 11
Qualquer sentimento de amizade que Evie pudesse nutrir por seu marido desapareceu na manhã seguinte, quando Sebastian saiu do clube logo antes do meio-dia e foi para o bordel de madame Bradshaw. Ele tinha terminado os preparativos para o funeral de Ivo Jenner e agora estava voltando sua atenção para os negócios. O Jenner’s ficaria fechado por quinze dias, durante os quais haveria uma grande invasão de carpinteiros, pedreiros e pintores para reformar o lugar.
Sebastian também começara a fazer mudanças nos procedimentos do clube, inclusive promovendo Cam à posição de gerente. Em vista de suas origens, essa certamente era uma decisão controversa. Em geral, os ciganos eram considerados desonestos e enganadores. Para alguns, o fato de Cam ser responsável por recolher e pagar grandes somas de dinheiro e decidir se uma jogada era válida seria como pedir para uma raposa tomar conta de um galinheiro. O
poder daquela posição era tamanho que nem mesmo Sebastian poderia questionar seus julgamentos sobre os jogos. Contudo, Cam era uma figura conhecida e estimada, e Sebastian estava disposto a admitir que sua popularidade induziria os sócios a aceitá-lo na nova posição.
Além disso, nenhum dos outros trinta empregados do clube era ao menos remotamente qualificado para dirigir o local.
As prostitutas da casa foram embora e agora era fundamental fazer algo para que os sócios tivessem acesso à companhia feminina quando o clube reabrisse. Para o desgosto de Evie, Cam apoiara Sebastian em sua versão de que um acordo com madame Bradshaw seria uma ótima solução para o problema. E naturalmente Sebastian se encarregara de fazer uma proposta para a famosa cafetina. Sabendo do infame apetite sexual de seu marido, Evie estava certa de que a visita ao bordel incluiria muito mais do que uma negociação. Sebastian não havia dormido com ninguém desde que eles estiveram em Gretna Green. Sem dúvida estava ansioso por favores femininos.
Evie disse repetidamente para si mesma que não se importava com isso. Ele poderia dormir com dez mulheres... cem... mil... que ela não se importaria. Seria uma idiota caso se importasse.
Sebastian era tão capaz de ser fiel quanto um gato de rua que perambulava pelos becos acasalando com todas as fêmeas que encontrava.
Furiosa sob sua fachada estoica, Evie escovou os cabelos e os prendeu em um intricado coque trançado. Desviando o olhar do pequeno espelho acima da penteadeira, pousou a escova.
Ao ver o brilho de sua aliança, as palavras gravadas em gaélico pareceram zombar dela.
– “Meu amor é seu” – sussurrou amargamente e a tirou.
Não fazia sentido usar aquilo quando seu casamento era uma farsa. Pôs a aliança sobre a penteadeira, pensou melhor e a enfiou no bolso, decidindo pedir a Cam para guardá-la no cofre do clube. Quando estava prestes a sair do quarto, ouviu uma batida à porta. Não poderia ser Sebastian, que nunca se dava ao trabalho de bater. Abrindo-a, viu o rosto sério de Joss Bullard.
Embora os outros empregados não desgostassem de Bullard, era óbvio que a popularidade dele não chegava perto da de Cam. Infelizmente para Bullard, como Cam e ele tinham praticamente a mesma idade e com frequência eram comparados. Seria injusto comparar a maioria dos homens com o belo e moreno Cam, cujo encanto, mistério e humor mordaz o tornavam o favorito entre os empregados e clientes do clube. Para piorar as coisas, Bullard era um homem sem senso de humor, insatisfeito com seu destino na vida e invejoso de todos que acreditava possuírem mais do que ele. Sentindo que Bullard tinha dificuldade em ser gentil até mesmo com ela, Evie o tratava com precavida polidez.
Os olhos duros e frios de Bullard se fixaram nos dela.
– Há uma visita à sua espera na porta dos fundos, milady.
– Uma vi-visita?
Evie fechou o cenho, sentindo um frio na barriga ao temer que seus tios finalmente tivessem descoberto seu paradeiro. A notícia da morte de Jenner, do fechamento temporário do clube e de sua presença devia ter se espalhado rapidamente por Londres.
– Quem? Que-que nome deu?
– Sra. Hunt, milady.
Annabelle. O som do nome de sua querida amiga fez o coração de Evie bater mais forte de alívio e ansiedade, embora fosse difícil acreditar que Annabelle ousaria ir a um clube de jogos.
– Que boa notícia! – exclamou. – Por favor, faça-a subir para a sala de visitas do meu pai.
– Ela pediu que descesse para a porta dos fundos, milady.
– Ah.
Mas isso não fazia sentido. Uma moça bem-criada como Annabelle não teria permissão para esperar nos fundos do clube. Cheia de preocupação, Evie saiu a passos largos do quarto, pensando apenas em alcançar Annabelle o mais rápido possível. Com Bullard atrás dela, desceu correndo os dois longos lances de escada, segurando-se no corrimão a intervalos regulares.
Quando chegou à base da escada, sua frequência cardíaca se acelerara devido ao esforço. Abriu com certa dificuldade a pesada porta e... recuou assustada ao ver não a figura esguia de Annabelle Hunt, mas a corpulenta do tio Peregrine.
Evie ficou estarrecida. Olhou para ele chocada por apenas uma fração de segundo e depois retrocedeu, dominada pelo terror. Peregrine sempre estivera mais do que disposto a usar os punhos para forçá-la a obedecer. Não importava que ela agora fosse Lady St. Vincent, e portanto estivesse legalmente fora do alcance dele, seu tio se vingaria de qualquer maneira, a começar por uma grande surra.
Evie se virou cegamente para fugir, mas, para seu assombro, Bullard bloqueou o caminho.
– Ele me pagou um soberano para ir buscá-la – murmurou Bullard. – É o que eu ganho em um mês.
– Não – disse ela ofegante, batendo no peito dele. – Não! Eu lhe darei qualquer coisa... Não o deixe me levar.
– Jenner a fez ficar com ele esses anos todos – disse o rapaz com desprezo. – Ele não a queria aqui. Ninguém quer.
Enquanto Evie gritava em protesto, Bullard a empurrou para o tio, cujas feições largas revelavam um raivoso triunfo.
– Fiz o que me pediram – disse Bullard bruscamente para o homem logo atrás de Peregrine, que Evie reconheceu imediatamente como seu tio Brook. – Agora me paguem.
Parecendo desconfortável e vagamente envergonhado com a transação, Brook lhe entregou o soberano. Peregrine agarrou Evie com força, deixando-a indefesa como um coelho segurado pelo pescoço. Seu rosto grande e quadrado estava vermelho de raiva.
– Idiota imprestável! – gritou, sacudindo a cabeça de Evie. – Se você ainda não tivesse alguma utilidade, eu a descartaria como lixo. Por quanto tempo achava que podia se esconder de nós? Isso vai lhe custar caro, eu garanto!
– Bullard, faça-o parar, por favor – gritou Evie, debatendo-se enquanto Peregrine a arrastava na direção de uma carruagem que os esperava. – Não!
Mas Bullard não fez nada para ajudá-la. Apenas a observou da porta com olhos cheios de ódio. Evie não sabia o que tinha feito para ele desprezá-la tanto. Por que não havia ninguém para ajudá-la? Por que ninguém ouvia seus gritos? Lutando por sua vida, Evie arranhou o tio e lhe deu cotoveladas, as saias pesadas limitando seus movimentos. Foi irremediavelmente vencida.
Enfurecido com sua resistência, Peregrine rosnou:
– Quieta, seu pequeno demônio!
Pelo canto do olho, Evie viu um garoto vindo do pátio do estábulo.
– Chame Cam! – gritou Evie.
Seu grito foi abafado quando a palma da mão de Peregrine lhe cobriu a boca e o nariz. Ela mordeu a mão suja do tio, que a retirou com um urro enfurecido.
– Cam! – gritou Evie de novo antes de ser silenciada por um forte tapa no ouvido.
Peregrine a empurrou para Brook e o rosto dele se virou diante dos olhos turvados de Evie.
– Ponha-a na carruagem – ordenou Peregrine, tirando um lenço de seu casaco para estancar o sangue da mão.
Evie se contorceu nas mãos de Brook. Quando ele a empurrou com força na direção do veículo, conseguiu lhe dar um soco na garganta. O impacto o fez sufocar e soltá-la.
Peregrine agarrou Evie com suas mãos enormes e a atirou contra a lateral da carruagem. Ela bateu com a cabeça nos duros painéis laqueados. Houve uma explosão de luzes diante de seus olhos e uma dor aguda em seu crânio. Zonza, tentou debilmente lutar enquanto era jogada dentro do veículo.
Para seu espanto, o primo Eustace esperava lá dentro, pálido. Ele a segurou junto às amplas dobras de seu corpo, exibindo uma força surpreendente ao lhe rodear o pescoço com seu gordo antebraço.
– Eu a peguei – disse, ofegando com o esforço. – Maldita encrenqueira, quebrou sua promessa de se casar comigo. Mas meus pais disseram que eu é que devo ficar com sua fortuna e eles a conseguirão para mim não importa o que precise ser feito.
– Eu já estou casada! – ofegou Evie, sufocada pela montanha de carne que a cercava.
– O casamento não durará. Vamos anulá-lo. Seu plano de arruinar as coisas para mim não funcionou. – Eustace pareceu um garoto petulante ao continuar: – É melhor não me irritar, prima.
Meu pai disse que posso fazer o que quiser com você depois que nos casarmos. Gostaria de ficar trancada em um armário durante uma semana?
Evie não conseguiu inspirar ar suficiente para responder. Os braços pesados de Eustace a comprimiam contra aquele peito e barriga fofos e enormes. Lágrimas de dor e desespero surgiram nos cantos de seus olhos enquanto ela tentava freneticamente soltar seu pescoço.
Em meio ao zumbido em seus ouvidos, escutou novos sons lá fora, gritos e imprecações. De repente, a porta da carruagem foi aberta e alguém se precipitou para dentro. Ela se contorceu para ver quem era. O pouco ar que lhe restava foi exalado em um fraco suspiro quando viu o brilho familiar de cabelos dourado-escuros.
Era Sebastian, como nunca o vira antes, não mais indiferente e controlado, mas totalmente dominado por uma fúria assustadora. Seus olhos pálidos lembravam os de um réptil quando ele lançou um olhar assassino para Eustace, que começou a respirar nervosamente sob a volumosa papada.
– Entregue-a para mim – ordenou Sebastian, sua voz rouca de raiva. – Agora, seu monte de lixo, ou eu cortarei seu pescoço fora.
Parecendo perceber que Sebastian estava ansioso por cumprir a ameaça, Eustace soltou Evie.
Ela cambaleou na direção do marido enquanto tomava fôlego, desesperada. Ele a segurou gentil e firmemente.
– Calma, amor. Está segura agora.
Ela sentiu o corpo dele tremendo de raiva. Sebastian lançou um olhar assassino para Eustace, que tentava mover o corpo gelatinoso para a extremidade do banco.
– Da próxima vez que eu o vir – disse Sebastian ferozmente –, não importa em que circunstâncias, vou matá-lo. Nenhuma lei, nenhuma arma, nem mesmo o próprio Deus conseguirá me impedir. Então, se tem amor à vida, nunca mais cruze o meu caminho.
Deixando Eustace mudo e tremendo de medo, tirou Evie do veículo. Ela se agarrou a ele, ainda tentando recuperar o fôlego enquanto olhava apreensivamente ao redor. Ao que parecia, Cam fora avisado do ocorrido e estava cuidando dos tios dela. Brook estava caído enquanto Peregrine cambaleava para trás em virtude de algum tipo de golpe, seu rosto carnudo vermelho de raiva e espanto.
Evie tropeçou assim que pisou no chão, e apoiou o rosto no ombro do marido. Sebastian estava literalmente fervendo de raiva, o ar frio batendo em sua pele corada e transformando sua respiração em nuvens brancas. Ele a submeteu a uma breve mas meticulosa inspeção, passando as mãos de leve sobre ela e lhe examinando o rosto pálido. Sua voz foi surpreendentemente terna.
– Está machucada, Evie? Olhe para mim, amor. Sim. Querida, eles a feriram?
– Nã-não. – Ela o olhou, aturdida. – Meu tio Peregrine é muito fo-forte...
– Eu cuidarei dele – garantiu ele e gritou para Cam: – Rohan! Fique com Evie.
O jovem obedeceu imediatamente, aproximando-se de Evie com passos longos e ágeis. Falou com ela usando algumas palavras que pareciam estrangeiras, sua voz acalmando seu estado abalado.
Evie hesitou antes de ir com ele, lançando um olhar preocupado para Sebastian.
– Está tudo bem – disse ele sem olhar para Evie, seu olhar gelado fixo no corpulento Peregrine. – Vá.
– Que gentil da sua parte nos visitar, tio – disse Sebastian sarcasticamente. – Veio nos felicitar?
– Vim buscar minha sobrinha – rosnou Peregrine. – Ela foi prometida ao meu filho. Seu casamento ilícito não durará!
– Ela é minha! – disparou Sebastian. – Certamente você não é idiota a ponto de achar que eu a deixaria ir sem protestar.
– Farei o casamento ser anulado – assegurou-lhe Peregrine.
– Isso só seria possível se o casamento não tivesse sido consumado. E eu lhe garanto que foi.
– Temos um médico que prometeu atestar que a virgindade dela está intacta.
– Claro – disse Sebastian com assustadora calma. – Sabe que tipo de reflexo isso teria em mim? Esforcei-me muito para cultivar minha reputação. Imagine se vou permitir que seja manchada por qualquer insinuação de impotência.
Ele tirou o casaco e o jogou para Cam, que o pegou com uma das mãos. O olhar assassino do visconde em nenhum momento se desviou do rosto lívido de Peregrine.
– Já lhe ocorreu que a esta altura posso tê-la engravidado?
– Nesse caso, isso será remediado.
Sem entender totalmente o que seu tio queria dizer, Evie se encolheu nos braços protetores de Cam. Ele os apertou enquanto olhava Peregrine com uma rara raiva.
– Não se preocupe, querida – sussurrou Cam para Evie.
Sebastian ficou ainda mais vermelho ao ouvir as palavras de Peregrine, o que fez seus olhos parecerem vidro quebrado.
– Que gentileza! Eu a mataria com minhas próprias mãos antes de deixá-los tê-la de volta.
Parecendo perder qualquer vestígio de autocontrole, Peregrine se lançou para ele, rugindo:
– Eu o matarei se preciso for, seu filho da mãe!
Evie prendeu a respiração quando Sebastian se desviou de Peregrine e o esperou voltar.
– Burrice – ouviu Cam murmurar. – Deveria ter lhe dado uma rasteira.
Ele se calou quando Sebastian conseguiu evitar por pouco um soco de Peregrine e depois lhe deu um direto no queixo. Por mais que o soco tivesse sido forte, pareceu ter pouco efeito no tio corpulento de Evie. Horrorizada, ela viu os dois trocarem uma série de socos e golpes rápidos.
Embora Sebastian fosse muito mais ágil, Peregrine conseguiu atingi-lo algumas vezes, fazendo-o cambalear para trás com a força do impacto.
Os empregados começaram a sair do clube, dando gritos encorajadores para Sebastian, enquanto transeuntes na rua corriam na direção do barulho. Um grande círculo se formou ao redor dos homens que brigavam e soaram gritos e vaias.
Evie apertou levemente o braço ao redor de sua cintura.
– Cam, faça alguma coisa – implorou.
– Não posso.
– Você sabe brigar. Meu pai sempre disse...
– Não – respondeu Cam de cara fechada. – Essa briga é dele. Se eu interferir agora, parecerá que ele não é capaz de vencer seu tio sozinho.
– Mas ele não é!
Evie se encolheu quando Sebastian cambaleou para trás depois de outro golpe brutal de Peregrine.
– Você o está subestimando – disse Cam, vendo Sebastian ir novamente para a frente. – Ele... Isso! Ótimo gancho de direita. Bom jogo de pernas também. Os homens do tamanho dele não costumam se mover tão rápido. Se ele apenas... maldição, perdeu uma oportunidade...
Subitamente Cam gritou em aprovação quando Sebastian derrubou Peregrine com um gancho de esquerda no queixo.
– Há motivação! Ele tem força e precisão. Só precisa é um pouco de instrução.
Reduzido a uma figura gemendo no chão, Peregrine pareceu ter se esquecido do homem de rosto duro em pé acima dele.
Ao perceber que a briga havia terminado, os empregados do clube se aproximaram de Sebastian com gritos de aprovação e tapinhas nas costas, assegurando-lhe de que ele não era o fracote que pensavam que fosse. Sebastian ouviu o elogio dúbio com uma expressão sarcástica e logo estava supervisionando a colocação de seu incapacitado adversário na carruagem.
Com delicadeza, Cam virou Evie de frente para ele.
– Diga-me como tudo começou – pediu com urgência. – Agora, antes de seu marido vir.
Evie explicou rapidamente como Bullard a havia enganado e entregado para seus parentes em troca de um soberano. A gagueira se manifestou, mas Cam conseguiu entender a confusa explicação.
– Certo – murmurou, seu rosto cor de mel inexpressivo. – Deixe Bullard comigo. Cuide de St. Vincent. Ele vai precisar de você. Os homens sempre ficam cheios de vida depois de uma boa briga.
Evie balançou a cabeça, confusa.
– O quê? Não entendo o que quer dizer.
– Vai entender – disse ele com um súbito brilho de divertimento nos olhos.
Antes de Evie poder fazer mais perguntas, Sebastian veio. Não pareceu nem um pouco satisfeito ao vê-la nos braços de Cam.
– Quero saber o que diabo aconteceu – disse furiosamente, puxando Evie para ele com mãos possessivas. – Eu saio por duas horas em uma calma manhã de domingo e o lugar está de cabeça para baixo quando volto...
– Ela vai explicar tudo – interrompeu-o Cam, olhando para além de Sebastian, concentrado em alguém no pátio do estábulo. – Com licença, tenho de resolver um assunto...
Ele pulou uma grade e desapareceu na multidão.
CAPÍTULO 12
Cam encontrou Joss Bullard perto do pátio do estábulo e o confrontou cautelosamente. O
homem estava respirando com as narinas dilatadas. Nunca tinham sido amigos. O
relacionamento deles era mais como o de irmãos rivais que viviam sob o mesmo teto, tendo Jenner como figura paterna.
Na infância, haviam brincado e brigado juntos. Na vida adulta, trabalharam lado a lado.
Depois dos muitos pequenos atos de bondade de Jenner para com Bullard, Cam nunca esperara tal comportamento. Confuso e com raiva, balançou a cabeça devagar enquanto olhava para ele.
– Não sei por que a entregou ou o que achou que ganharia com isso...
– Eu ganhei um soberano – retrucou Bullard. – E valeu a pena para me livrar daquela gaga idiota.
– Está louco? – perguntou Cam em um acesso de raiva. – Qual é o problema com você?
Estamos falando da filha do Jenner. Não deveria ter feito isso nem que tivessem lhe dado uma fortuna!
– Ela nunca fez nada para Jenner ou o clube – interrompeu-o Bullard asperamente. – Mas veio aqui na última hora para vê-lo morrer e depois ficar com tudo. Que se dane a filha da mãe e o maldito marido!
Cam ouviu atentamente, mas não conseguiu entender o motivo da inveja de Bullard. Um cigano tinha dificuldade em entender por que bens materiais alheios podiam provocar ressentimento. Ninguém jamais pensara em desejar mais do que tinha na tribo nômade à qual pertencera até os 12 anos. Um homem só podia usar um traje ou montar um cavalo de cada vez.
– Ela era a única filha de Jenner – respondeu Cam. – O que ele lhe deu não tem nada a ver com você ou comigo. Mas não há nada pior do que quebrar a confiança de quem depende de nossa proteção. Traí-la... ajudar alguém a levá-la contra sua vontade.
– Eu faria de novo! – disse Bullard, cuspindo no chão entre eles.
Cam olhou atentamente para o outro homem, percebendo que ele não parecia nada bem.
Estava com a pele pálida e viscosa e os olhos opacos.
– Você está doente? – perguntou com suavidade. – Se estiver, diga-me. Eu intercederei junto a St. Vincent a seu favor. Talvez possa fazê-lo...
– Maldito seja! Vou me livrar de você, seu lixo cigano. Vou me livrar de todos vocês.
O ódio violento no tom de Bullard não deixava margem para dúvida. Não havia volta para ele. A única questão agora era se deveria pegá-lo pelo colarinho e arrastá-lo para o clube ou deixar que fugisse. Lembrando-se do brilho malévolo nos olhos de St. Vincent, achou que se tivesse uma chance o visconde poderia realmente matá-lo, o que causaria muitos aborrecimentos a todos, especialmente Evie. Não... melhor deixar Bullard desaparecer.
Olhando para a cara do jovem que conhecia havia tantos anos, Cam balançou a cabeça, perplexo e indignado. Seu povo chamava isso de alma perdida: a essência de um homem aprisionada em uma esfera sobrenatural sombria. Mas como aquilo tinha acontecido com Bullard? E quando?
– É melhor ficar longe do clube – murmurou Cam. – Se St. Vincent o pegar...
– St. Vincent pode apodrecer no inferno – rosnou Bullard, partindo com o punho cerrado para cima de Cam.
Com um reflexo rápido, Cam se desviou para o lado e deixou o outro homem fugir.
O relinchar nervoso de um cavalo amarrado em um poste próximo atraiu sua atenção e Cam estendeu o braço para acariciar o pescoço sedoso do baio. Os anéis de ouro em seus dedos brilharam à luz da tarde.
– Ele foi um tolo – disse Cam docemente para o cavalo, acalmando o animal com sua voz e carícia. Então suspirou ao pensar em outra coisa. – Jenner lhe deixou um legado e prometi me certificar de que o receberia. O que devo fazer?
Sebastian puxou Evie para dentro do clube. Depois do tumulto no beco, o silêncio do lugar era surpreendente. Ela tentou acompanhar os passos largos do marido e estava ofegante quando chegou à sala de leitura no piso principal. As prateleiras de mogno embutidas estavam cheias de livros com capa de couro. Nas paredes, estantes feitas com prateleiras móveis sustentadas por cavilhas continham muitos papéis e periódicos. Sebastian a fez entrar e bateu a porta atrás deles.
– Está machucada? – perguntou asperamente.
– Não. – Evie tentou conter as próximas palavras, mas elas saíram em uma explosão de ressentimento. – Por que se ausentou por tanto tempo? Eu precisei e você não estava lá!
– Você tinha trinta empregados para protegê-la. Antes de mais nada, por que desceu? Devia ter ficado no quarto até saber ao certo quem estava lá fora.
– O Sr. Bullard me disse que Annabelle Hunt estava esperando por mim. Quando vi que era meu tio, Bullard não me deixou voltar para dentro do clube. Ele me empurrou direto para os braços do meu tio.
– Meu Deus! – Sebastian arregalou os olhos. – Vou arrancar as tripas daquele miserável...
– E enquanto tudo isso estava acontecendo – continuou Evie irritada –, você estava na cama com uma prostituta!
Quando as palavras saíram de seus lábios, percebeu que esse era o xis da questão. Ainda mais do que a traição de Bullard ou a investida dos tios, o que a magoava era o fato de Sebastian tê-la traído tão cedo com outra mulher.
Sebastian a olhou atentamente.
– Eu não estava.
– Não minta – disse Evie, a raiva pairando no ar. – Sei que estava.
– Por que tem tanta certeza disso?
– Porque você ficou no bordel de madame Bradshaw por mais de duas horas!
– Estava falando sobre negócios. Falando, Evie! Se não acredita nisso, azar o seu. Porque se eu tivesse dormido com alguém, garanto-lhe que estaria mais relaxado do que estou agora.
Olhando nos olhos de Sebastian, duros como um lago congelado, Evie começou a sentir sua raiva diminuir. Não tinha outra escolha além de acreditar nele. Era óbvio que ele estava ofendido.
– Ah – murmurou.
– Ah? É tudo que tem a dizer?
– Eu não devia ter tirado conclusões precipitadas. Mas, sabendo o que sei sobre seu passado, supus...
Sua desastrada tentativa de se desculpar acabou com o pouco de controle que ainda restava em Sebastian.
– Bem, sua suposição estava errada! Se ainda não notou, ando tão ocupado em todos os minutos do dia que nem tenho tempo para fazer sexo. E se eu tivesse...
Ele parou abruptamente. Toda a semelhança com o elegante visconde que um dia ela havia observado de longe na sala de estar de lorde Westcliff desaparecera. Ele estava desgrenhado, machucado e furioso. E não respirava nada bem. Ele parou de novo, com um rubor se espalhando das bochechas para a ponte do nariz. Alarmada, tentou ir na direção da porta fechada. Antes mesmo de poder dar um passo, o corpo e as mãos do marido a imprensaram contra a parede. O
cheiro de linho impregnado de suor misturado com o de homem saudável e excitado encheu suas narinas.
Então Sebastian lhe beijou a pele fina da testa. Estava ofegante. Outro momento de quietude.
Ela sentiu o choque eletrizante da língua do marido. A respiração quente dele lhe causou arrepios em todo o corpo. Pouco a pouco, Sebastian levou a boca à sua orelha. O sussurro dele pareceu vir dos recônditos da própria mente de Evie.
– Se eu tivesse, Evie... a esta altura já teria rasgado suas roupas com as mãos e os dentes e a deixado nua. Eu a teria deitado no carpete, posto as mãos sob seus seios e os erguido para minha boca. Eu os estaria beijando, lambendo, até os mamilos parecerem pequenos frutos silvestres.
Depois os mordiscaria com muita suavidade.
Evie se sentiu desfalecendo aos poucos enquanto ele continuava a murmurar roucamente:
– Eu beijaria seu corpo até as coxas... centímetro a centímetro. Quando chegasse àqueles cachos ruivos e macios, os lamberia cada vez mais fundo até encontrar a pequena pérola de seu clitóris... onde deixaria minha língua até senti-lo pulsar. Eu o circundaria e acariciaria, lamberia até você começar a implorar. E então a sugaria. Mas não com força. Não seria tão gentil. Eu o faria tão suave e lentamente que você começaria a gritar suplicando pelo clímax. Poria minha língua dentro de você e a saborearia. Não pararia até todo o seu corpo ficar molhado e tremendo.
Quando a tivesse torturado o suficiente, abriria suas pernas e atingiria meu clímax dentro de você.
Quando Sebastian parou de falar, ela estava encostada na parede e os dois estavam paralisados, excitados e ofegantes. Finalmente, perguntou em uma voz quase inaudível:
– Você está molhada, não está?
Se fosse fisicamente possível enrubescer mais, Evie o teria feito. Envergonhada, sentiu a pele arder ao entender o que ele estava perguntando. Então assentiu abaixando levemente o queixo.
– Eu a quero mais do que já quis qualquer coisa neste mundo – disse Sebastian tremulamente. – Diga-me o que posso fazer para tê-la. O que será preciso para que me deixe dormir com você?
Evie o empurrou, sem conseguir desalojar o peso excitante do corpo dele.
– Nã-não há nada que você possa fazer. Porque o que eu ia que-querer é a única coisa que você não poderia me dar. Eu ia querer que fosse fi-fiel a mim, e você nunca poderia ser.
– Eu poderia.
Mas a resposta veio rápido demais. Cheirava a falsidade.
– Eu acho que não – sussurrou ela.
As longas mãos de Sebastian seguraram o rosto de Evie, os polegares percorrendo as curvas das bochechas. Ele falou com a boca logo acima da dela:
– Evie, não posso cumprir nosso acordo. Não posso viver com você, vê-la todos os dias sem possuí-la. Não posso...
Sentindo os pequenos tremores no corpo da esposa, baixou a cabeça e lhe beijou o pescoço.
Todos os sentidos da jovem reagiram ao calor persuasivo da boca do marido, tão erótica e macia... aos dedos exploradores que deslizavam sobre a curva de seu seio.
Ouvindo seu gemido, Sebastian lhe deu um ávido beijo. Ela virou levemente o rosto, seus lábios formigando da deliciosa fricção.
– Não, Sebastian.
Ele esfregou o rosto nos cabelos e no alto da cabeça de Evie. Devia ter achado graça em algo na situação ou em sua própria reação a ela, porque deu uma risada sarcástica.
– Você terá de pensar em um modo de resolver isso, Evie. Pense em algo rápido. – Ele se interrompeu para lhe mordiscar avidamente a orelha. – Caso contrário, vou fodê-la até que perca os sentidos.
Ela arregalou os olhos.
– Essa palavra! – começou indignada, e ele a silenciou com um forte beijo.
Recuando, Sebastian a olhou com divertida exasperação, ainda bastante corado.
– Você não gosta da palavra em si ou do sentimento que transmite?
Aliviada ao ver que ele havia recuperado pelo menos um mínimo de sanidade, Evie se contorceu e conseguiu sair de sua posição encurralada.
– Não gosto do fato de você me desejar só porque não estou disponível e, por isso, sou uma novidade...
– Esse não é o motivo – interrompeu-a Sebastian rapidamente.
Evie o olhou com ceticismo.
– Além do ma-mais, não farei parte do harém que você visita quando bem entende.
Subitamente ele se calou, desviando o olhar. Quase sufocando de impaciência, Evie esperou que admitisse que tinha razão. Esperou até o marido erguer lentamente seus olhos azuis.
– Está bem – disse Sebastian roucamente. – Concordo com seus termos. Serei... monogâmico.
Ele pareceu ter um pouco de dificuldade em pronunciar essa última palavra, como se estivesse tentando falar uma língua estrangeira.
– Não acredito em você.
– Meu Deus, Evie! Sabe quantas mulheres tentaram obter essa promessa de mim? E agora que pela primeira vez estou disposto a fazê-la, você atira isso na minha cara. Admito que tive uma história prolífica com as mulheres...
– Promíscua – corrigiu-o Evie.
Ele bufou impacientemente.
– Promíscua, depravada, como quiser chamá-la. Eu me diverti muito e não vou pedir perdão por isso. Nunca dormi com uma mulher contra a vontade dela. E nunca deixei nenhuma insatisfeita.
– Esse não é o ponto. – Evie franziu a testa. – Não o culpo por seu passado nem estou tentando puni-lo por ele. – Ignorando o bufar cético de Sebastian, continuou: – Mas isso não o torna um bom candidato à fidelidade, não é?
Ele respondeu em um tom mal-humorado:
– O que quer de mim? Que me desculpe por ser homem? Um voto de castidade até você decidir que sou digno de seus favores?
Perplexa com a pergunta, Evie o encarou.
Sempre havia sido muito fácil para Sebastian conquistar mulheres. Se o fizesse esperar, ele perderia o interesse? Ou isso lhes permitiria conhecerem um ao outro, se entenderem de um modo totalmente novo? Ela ansiou por descobrir se o marido poderia passar a valorizá-la de outros modos além do físico. Quis ter a chance de ser algo mais do que uma mera parceira de cama.
– Sebastian, você já fez algum sacrifício por uma mulher?
Ele pareceu um anjo caído ao virar o rosto para ela, apoiando seus ombros largos na parece e flexionando levemente um dos joelhos.
– Que tipo de sacrifício?
Isso a fez olhá-lo de esguelha.
– Qualquer um.
– Não.
– Quanto tempo você já ficou sem... – Ela procurou um modo aceitável de dizer aquilo. –
Sem fazer amor?
– Eu nunca uso essa expressão – disse ele. – O amor não tem nada a ver com isso.
– Quanto tempo? – insistiu Evie.
– Um mês, talvez.
Ela pensou por um instante.
– Então, se você abstiver de todas as mulheres durantes seis meses... dormiremos juntos.
– Seis meses? – Sebastian arregalou os olhos de um modo zombeteiro. – Querida, o que a faz pensar que você vale meio ano de castidade?
– Talvez eu não valha. Você é a única pessoa que pode responder a isso.
Era óbvio que Sebastian teria adorado informá-la de que não valia a pena esperar por ela.
Contudo, Evie viu o brilho inconfundível da luxúria em seus olhos. Ele a queria loucamente.
– Isso é impossível – disparou Sebastian.
– Por quê?
– Porque eu sou Sebastian, lorde St. Vincent. Não posso ser casto. Todos sabem disso.
Ele era tão arrogante e estava tão indignado que Evie subitamente teve de morder os lábios para não rir.
– Com certeza não lhe faria mal tentar.
– Ah, sim, faria! – Ele enrijeceu o maxilar enquanto tentava explicar. – Você é muito inexperiente para entender, mas alguns homens possuem um instinto sexual muito mais forte do que outros. Acontece que eu sou um deles. Não posso ficar muito tempo sem... – Ele se interrompeu impacientemente ao ver a expressão dela. – Inferno, Evie, não é saudável para um homem não se aliviar regularmente.
– Três meses. Essa é minha oferta final.
– Não!
– Então vá procurar outra mulher – disse Evie categoricamente.
– Eu quero você. Apenas você. Só Deus sabe por quê. – Sebastian estreitou os olhos para ela até fazê-los parecer fendas brilhantes. – Eu deveria forçá-la. Você não tem nenhum direito legal de se recusar a dormir comigo.
Subitamente foi como se o coração de Evie tivesse parado e ela empalideceu. Mas não voltaria atrás. Algo em seu íntimo exigia que o enfrentasse de igual para igual.
– Então vá em frente! Force-me.
Evie viu o brilho de surpresa nos olhos de Sebastian. Ele pigarreou, mas permaneceu calado.
E então... ela entendeu.
– Você não seria capaz. Nunca teria violentado Lillian. Só estava blefando. Nunca forçaria uma mulher. – Evie esboçou um sorriso. – Ela nunca esteve em risco, não é? Você não é nem de longe o vilão que finge ser.
– Sim, eu sou!
Sebastian a agarrou e beijou furiosamente, enfiando a língua dentro dela, invadindo-lhe a boca. Evie não lhe resistiu. Fechou os olhos e o deixou fazer o que queria, e logo ele estava gemendo e a beijando com uma paixão e ternura que arrancavam prazer de todo o corpo dela.
Quando ergueu a cabeça, ambos estavam tremendo.
– Evie... – disse ele roucamente. – Não me peça isso.
– Três meses de castidade. Se for bem-sucedido, irei para a cama com você quantas vezes quiser.
– Por quanto tempo?
– Por todo o nosso tempo de vida. Mas se falhar... – Evie fez uma pausa para pensar nas piores consequências possíveis. – Terá de procurar seu amigo lorde Westcliff e lhe pedir desculpas por ter raptado Lillian Bowman.
– Inferno!
– Esse é o meu preço.
– Seu preço é alto demais. Nunca pedirei desculpas.
– Então é melhor não aceitar meu desafio. Ou aceitá-lo e não falhar.
– Você não terá como saber se eu trapaceei.
– Eu saberei.
Um longo momento de silêncio se passou.
– Onde está sua aliança? – perguntou Sebastian subitamente.
No mesmo instante o sorriso de Evie desapareceu. Com vergonha de admitir que a tirara em um acesso de ressentimento, murmurou:
– Eu a tirei.
– Por que fez isso?
Ela procurou desajeitadamente em seu bolso.
– Está aqui. Eu a colocarei de volta se você quiser...
– Entregue-a para mim.
Presumindo que ele pretendia tirá-la dela para sempre, Evie fechou os dedos com força sobre a aliança. Descobriu que havia se tornado bastante ligada ao maldito anel. Contudo o orgulho a impedia de lhe pedir para deixá-la ficar com ele. Com relutância, tirou a aliança de ouro de seu bolso, passando a ponta do dedo disfarçadamente uma última vez sobre a superfície gravada.
Meu amor é seu...
Sebastian tirou a aliança dela e tentou enfiá-la no próprio dedo. Sua mão era tão maior que só coube no dedo mindinho. Segurando com firmeza o queixo de Evie, olhou-a nos olhos.
– Aceitarei sua aposta e a vencerei. Daqui a três meses colocarei isto de volta em seu dedo, a levarei para a cama e farei coisas com você que são proibidas no mundo civilizado.
A determinação de Evie não impediu que seu coração se alarmasse como o de qualquer mulher ao ouvir uma afirmação tão ameaçadora. Tampouco impediu que seus joelhos fraquejassem quando Sebastian a puxou e beijou. Ela ergueu as mãos e as desceu tremulamente para a cabeça do marido. A textura dos cabelos dele, os cachos muito densos eram irresistíveis.
Deslizou os dedos para as camadas douradas brilhantes e o puxou para mais perto, deleitando-se com a pressão urgente da boca de Sebastian.
Suas línguas se encontraram e ela sentiu um calor na barriga... não, mais fundo que isso... no centro úmido que um dia ele invadira. Chocou-a perceber quanto o queria lá de novo, dentro dela.
Evie gemeu quando ele se afastou, ambos dominados pela frustração.
– Você não disse que eu não podia beijá-la – disse Sebastian, seus olhos brilhantes como o fogo do inferno. – Eu a beijarei quando e quanto quiser e você não murmurará nenhuma palavra de protesto. Essa é a concessão que fará em troca da minha castidade. Maldita seja.
Sem lhe dar tempo para concordar ou discordar, ele a soltou e andou a passos largos para a porta.
– E agora, se me der licença, vou matar Joss Bullard.
CAPÍTULO 13
Sebastian encontrou Cam no corredor, do lado de fora da sala de leitura.
– Onde ele está? – perguntou sem preâmbulos.
Cam parou diante dele com um rosto inexpressivo e disse sucintamente:
– Foi embora.
– Por que você não o perseguiu?
Os olhos de Sebastian brilharam de fúria. Essa notícia, junto com a frustração de seu voto de castidade, foi a gota d’água. Cam, que fora exposto ao temperamento vulcânico de Ivo Jenner durante anos, não se abalou.
– A meu ver era desnecessário – disse. – Ele não voltará.
– Eu não lhe pago para agir segundo seu próprio julgamento, mas para agir segundo o meu!
Você deveria tê-lo arrastado pelo pescoço para cá e me deixado decidir o que fazer com o canalha.
Cam continuou em silêncio, lançando um rápido e sutil olhar para Evie, que ficou aliviada com a mudança no rumo dos acontecimentos. Ambos sabiam muito bem que Sebastian poderia realmente matar Bullard. A última coisa que Evie desejaria era ver seu marido acusado de assassinato.
– Quero que o encontrem – disse Sebastian veementemente, andando de um lado para outro da sala de leitura. – Quero que sejam contratados pelo menos dois homens para procurar por ele dia e noite até que seja trazido para mim. Juro que ele servirá de exemplo para todos que ao menos pensarem em levantar um dedo contra minha esposa. – Ele ergueu o braço e apontou para a porta. – Traga-me uma lista de nomes dentro de uma hora. Os melhores detetives disponíveis.
Particulares. Vá.
– Sim, milorde.
Ele saiu imediatamente da sala enquanto Sebastian o observava. Tentando acalmá-lo, Evie se aventurou a dizer:
– Não precisa descarregar sua raiva em Cam. Ele...
– Não tente desculpá-lo – retrucou Sebastian. – Ele poderia ter pegado aquele rato de esgoto se quisesse. Não tolerarei que o chame pelo primeiro nome. Ele não é seu irmão nem um amigo.
É um empregado e de agora em diante você o chamará de Sr. Rohan.
– Ele é meu amigo – respondeu Evie indignada. – Há anos!
– Mulheres casadas não têm amizades com homens jovens solteiros.
– Não ouse ofender minha honra insinuando que... que... – Evie teve dificuldade em expressar seus muitos protestos. – Não fiz nada para merecer tanta falta de co-confiança!
Achando que Sebastian poderia estar zombando dela, Evie o olhou de um jeito reprovador.
– Está falando como se eu fosse perseguida por muitos homens, quando obviamente esse não é o caso. Em Stony Cross Park os homens fa-faziam o que podiam para evitar minha companhia, e você era um deles!
A acusação, embora verdadeira, pareceu surpreender Sebastian. Seu rosto se tornou rígido enquanto a olhava em pétreo silêncio.
– Você não facilitava a aproximação de ninguém – disse após um momento. – A vaidade de um homem é mais frágil do que poderia pensar. É fácil para nós confundir timidez com frieza e silêncio com indiferença. Sabe, devia ter se esforçado um pouco. Um breve encontro entre nós e um sorriso seu seriam suficientes para eu saltar sobre você e devorá-la.
Evie arregalou os olhos, nunca tendo pensado naquilo dessa forma. Era possível que ela fosse em parte responsável por sua solteirice?
– Eu acho... – disse reflexivamente – que deveria me esforçar mais para superar minha timidez.
– Faça como quiser. Mas tenha sempre em mente que você é minha, principalmente quando estiver com Rohan ou qualquer outro homem.
Atônita, Evie o encarou.
– Você está... com ciúme?
As feições de Sebastian refletiram seu súbito embaraço.
– Sim – disse rispidamente. – Parece que sim.
E, lançando um olhar para Evie de perplexidade e irritação, saiu do aposento.
O funeral foi na manhã seguinte. Sebastian tinha feito um excelente trabalho de planejamento, de algum modo conseguindo atingir o equilíbrio perfeito entre a sóbria dignidade e a pompa teatral.
Era o tipo de cortejo que Ivo Jenner teria adorado, tão grande que ocupou toda a extensão de St. James.
Havia uma carruagem fúnebre preta e dourada e duas carruagens para os enlutados, ambas puxadas por quatro cavalos, todos com as cabeças adornadas com grandes plumas de avestruz. O
belo caixão de carvalho, enfeitado com pegadores de metal e uma placa brilhante com uma inscrição, fora forrado de chumbo e soldado a fim de evitar a intrusão de ladrões, um problema comum nos cemitérios de Londres. Antes de a tampa ser fechada sobre o corpo de seu pai, Evie viu um dos anéis de ouro de Cam no dedo dele, um presente de despedida que a comoveu.
Também a comoveu ver Sebastian penteando os cabelos ruivos desbotados de Ivo Jenner quando pensava que ninguém estava olhando.
Fazia muito frio. O vento cortante penetrava no pesado manto de lã de Evie, que estava sentada sobre um cavalo enquanto Sebastian andava ao seu lado segurando as rédeas. Doze homens atuando como pajens e os cocheiros caminhavam no fim do cortejo, sua respiração formando nuvens brancas no ar do início do inverno. Eram seguidos por uma multidão de enlutados, uma curiosa mistura de gente rica, comerciantes, vistosos aristocratas e rematados criminosos. Amigos e inimigos estavam lá. Independentemente da ocupação ou do estado de espírito, a tradição do luto tinha de ser seguida.
Esperava-se que Evie não fosse ao funeral porque a natureza feminina era considerada delicada demais para suportar essa tão dura realidade. Contudo, ela insistira em participar.
Encontrava conforto no ritual, como se a ajudasse a se despedir do pai. Sebastian estivera inclinado a se opor, até Cam intervir:
– Jenner deve ser livrado dos grilhões da dor da filha – dissera o cigano para Sebastian quando a discussão começara a se tornar acalorada. – Os ciganos acreditam que, se alguém chorar demais a morte de um ente querido, o falecido será forçado a voltar através do véu para tentar confortá-lo. Se participar do funeral a ajudará a deixá-lo ir...
Ele havia se interrompido e encolhido os ombros. Sebastian lhe lançara um olhar contundente.
– Fantasmas de novo!
Mas havia deixado aquilo para lá e cedido aos desejos de Evie.
Evie conseguiu acompanhar estoicamente todo o funeral, mesmo quando a terra começou a ser jogada sobre o caixão. Contudo não conseguiu impedir que algumas lágrimas salgadas deslizassem pelos cantos de seus olhos quando o caixão foi totalmente coberto. Cam se aproximou com um pequeno cantil de prata. Segundo a tradição cigana, despejou solenemente um pouco de conhaque na sepultura.
Furioso com o gesto, o clérigo idoso deu um passo para a frente, repreendendo-o:
– Pare com isso! Não queremos nenhuma de suas práticas pagãs! Macular um lugar sagrado com bebida barata...
– Senhor – interrompeu-o Sebastian, indo para a frente e pondo sua grande mão no ombro do clérigo. – Não acho que nosso amigo Jenner se importaria. – Ele esboçou um sorriso conspirador ao acrescentar: – É conhaque francês, e de uma excelente safra. Talvez me permita enviar algumas garrafas para a sua residência para prová-lo.
Aplacado pelo grande charme do visconde, o clérigo sorriu de volta.
– Isso é muito gentil, milorde. Obrigado.
Quando a maioria das pessoas foi embora, Evie deixou seu olhar perambular para as vitrines das lojas, as casas e a fábrica de graxa ao redor da praça. Subitamente o rosto de um homem em pé ao lado de um poste de luz no outro lado da praça chamou sua atenção. Ele usava um casaco escuro e um gorro cinza sujo. Ela só o reconheceu quando um lento sorriso surgiu em seu rosto.
Era Joss Bullard, percebeu sobressaltada, prestando suas homenagens a Ivo Jenner, ainda que apenas a distância. Contudo, ele não tinha a expressão de um homem enlutado. Parecia diabólico, o rosto contorcido com uma malícia que causou um arrepio em Evie. Sem parar de observá-la, ele passou um dedo pela garganta em um gesto inconfundível que a fez dar um passo involuntário para trás.
Notando o movimento, Sebastian se virou para ela, segurando seus ombros com as mãos calçadas com luvas pretas.
– Evie – murmurou, olhando para o rosto pálido da esposa com um toque de preocupação. – Você está bem?
Evie assentiu, voltando a olhar para o poste. Bullard se fora.
– Só estou com um pouco de frio – respondeu, batendo os dentes quando uma rajada de vento tirou o capuz de seu rosto.
Sebastian o recolocou imediatamente no lugar e puxou o manto para mais perto do pescoço dela.
– Eu a levarei de volta para o clube. Darei algumas moedas para os cocheiros e depois iremos embora.
Ele tirou de seu sobretudo uma pequena sacola de couro e foi até o grupo de homens que esperava respeitosamente perto da sepultura. Vendo o olhar ansioso de Evie, Cam se aproximou com a marca de uma lágrima seca em seu rosto magro. Ela o pegou pela manga e disse baixinho:
– Acabei de ver o Sr. Bullard. Ali, no poste de luz.
Os olhos de Cam revelaram espanto e ele assentiu com a cabeça. Eles não tiveram a oportunidade de dizer mais nada. Sebastian voltou e pôs um braço ao redor dos ombros de Evie.
– A carruagem está esperando.
– Não havia nenhuma necessidade de ter providenciado uma – protestou ela. – Eu poderia ir a pé.
– Ordenei que preparassem o aquecedor de pés – disse Sebastian, esboçando um sorriso ao ver o brilho de antecipação no rosto dela. Ele olhou para Cam. – Venha conosco.
– Obrigado – foi a resposta precavida do rapaz –, mas prefiro caminhar.
– Então eu o verei no clube.
– Sim, milorde.
Enquanto acompanhava Sebastian até a carruagem, Evie tentou não se virar para trás e olhar para Cam. Perguntou a si mesma se ele conseguiria encontrar Bullard e o que poderia acontecer se o fizesse. Ela entrou no veículo e rapidamente arrumou sua saia sobre o aquecedor de pés, estremecendo de prazer ao sentir o calor subir até seus joelhos. Sebastian se sentou ao seu lado, com um leve sorriso nos lábios.
Para Evie, a louca viagem para Gretna Green parecia ter sido há uma eternidade. Ela se aconchegou em Sebastian, satisfeita por ele não tentar afastá-la.
– Considerando-se tudo, você se saiu muito bem – disse ele enquanto a carruagem começava a se mover.
– Foi o cortejo fúnebre mais elaborado que já vi – respondeu ela. – Meu pai teria adorado.
Sebastian deixou escapar um bufo de divertimento.
– Na dúvida preferi pecar pelo excesso. Amanhã vou mandar esvaziar os aposentos do seu pai. Caso contrário, nunca me livrarei do cheiro de doença.
– Acho que essa é uma ótima ideia.
– O clube reabrirá daqui a duas semanas. Vou deixar que fique por lá durante esse meio-tempo, para se acostumar com a morte de seu pai. Mas quando as portas se abrirem de novo, quero-a confortavelmente instalada em minha casa na cidade.
– O quê? A sua casa em Mayfair?
– É bem equipada e tem um corpo completo de empregados. Se isso não a agradar, encontraremos outra coisa.
– Você está planejando... morar em Mayfair comigo?
– Não. Continuarei a morar no clube. É muito mais conveniente para a administração do negócio.
Evie tentou lidar com a indiferença do marido. Qual era o motivo dessa súbita frieza? Ela não o incomodava. Pedira-lhe muito pouco, mesmo em sua dor. Confusa e zangada, olhou para as mãos e cruzou os dedos enluvados.
– Eu quero ficar – disse em voz baixa.
Sebastian balançou a cabeça.
– Não há nenhum motivo para você continuar lá. Você não é necessária. Será melhor para todos os envolvidos morar em uma casa adequada, onde poderá receber suas amigas e não ser acordada o tempo todo à noite pelo movimento no andar de baixo.
– Eu tenho sono pesado. Isso não me incomoda. E posso receber minhas amigas no clube...
– Não abertamente.
Não fazia nenhuma diferença se ele tinha razão. Evie ficou calada, enquanto a frase “você não é necessária” ecoava desagradavelmente em sua cabeça.
– Quero que viva em um ambiente seguro e respeitável – continuou Sebastian. – O clube não é um lugar para uma dama.
– Eu não sou uma dama – retrucou Evie, tentando adotar um tom levemente sarcástico. – Sou filha de um jogador e a mulher de um patife.
– Mais um motivo para mantê-la longe da minha influência.
– Mesmo assim, não quero. Talvez possamos discutir isso na primavera, mas até lá...
– Evie – disse Sebastian em voz baixa. – Não estou dando uma escolha.
Ela se afastou dele. Um quarto inteiro cheio de aquecedores de pés não poderia ter afastado o frio em suas veias. Sua mente procurou freneticamente argumentos para dissuadi-lo, mas ele tinha razão. Não havia motivo para sua permanência no clube.
Desesperada, sentiu um aperto na garganta ao pensar que a essa altura já deveria estar acostumada com o fato de ser indesejada e a solidão. Por que em nome de Deus isso ainda doía?
Ah, como gostaria de ser como Sebastian, ter uma barreira de gelo ao redor do coração.
– E quanto ao nosso acordo? – perguntou. – Pretende ignorá-lo ou...
– Ah, não. Viverei casto como um monge até chegar a hora de receber minha recompensa.
Mas será mais fácil resistir à tentação com você fora de alcance.
– Talvez eu não resista à tentação – Evie se ouviu murmurar. – Posso encontrar um cavalheiro obsequioso para me fazer companhia. Você não se importaria, não é?
Até as palavras saírem de seus lábios, ela nunca teria se imaginado capaz de dizer uma coisa dessas. Contudo, foi dominada por uma necessidade desesperada de feri-lo, enfurecê-lo, provocar-lhe emoções. Após um curto silêncio, ouviu a resposta suave de Sebastian:
– De jeito nenhum, querida. Seria egoísmo da minha parte negar essa diversão em suas horas particulares. Faça o que quiser, desde que esteja disponível quando eu precisar.
Atrás das ruas da moda e das praças respeitáveis das áreas ricas de Londres havia um mundo oculto de becos escuros e cortiços decadentes onde as pessoas viviam em indizível miséria.
Nesses lugares, crime e prostituição eram os únicos meios de sobrevivência. O ar cheirava a lixo e esgoto e os prédios eram tão próximos uns dos outros que era preciso andar de lado para passar entre eles.
Cam se aventurou pelo labirinto de ruas com grande cuidado, atento às infinitas armadilhas e aos perigos à espera de um visitante descuidado. Passou por uma arcada de uns 40 metros de comprimento por 3 de largura e entrou em um pátio. Era margeado por altas estruturas de madeira, suas vigas superiores escondendo o céu invernal. Os prédios eram morada de ladrões ou alojamentos comuns onde sem-tetos dormiam empilhados como cadáveres em uma cova coletiva. Matéria pútrida escorria das vigas. Ratos corriam pelas paredes e desapareciam em fendas nas fundações dos prédios. O pátio estava vazio, exceto por duas garotas sentadas em uma escada na frente de uma porta e algumas crianças esqueléticas procurando ossos ou farrapos descartados. Lançando olhares desconfiados para Cam, as crianças desapareceram na outra extremidade do pátio.
Uma jovem prostituta de cabelos crespos sorriu para ele, deixando à mostra alguns dentes quebrados.
– O que um rapaz bonito como você veio fazer em Hangman’s Court?
– Estou procurando um homem, desta altura. – Cam fez um gesto com a mão indicando 1,70 metro. – Com cabelos pretos. Ele passou por aqui no último minuto?
As garotas riram.
– Venha, querido – disse uma delas. – Você não precisa de um homem quando pode se deitar com Lousing Lou. – Ela abaixou a blusa e mostrou os seios pequenos e caídos. – Deite-se comigo. Aposto que faz isso muito bem, não é?
Cam tirou uma moeda de prata do bolso, que ela acompanhou avidamente com o olhar.
– Diga-me onde ele está.
– Eu lhe direi por 6 pences – respondeu ela. – Você tem olhos bonitos. Nunca estive com um rapaz com olhos tão bonitos...
Uma risada rouca e áspera ecoou no pátio e depois veio a voz zombeteira de Joss Bullard.
– Você nunca me encontrará, seu cigano imundo!
Cam se virou, examinando os prédios onde rostos sujos de fuligem espiavam por portas, janelas e buracos nos telhados. Nenhum deles era reconhecível.
– Bullard – disse cautelosamente, virando-se devagar enquanto seu olhar varria o local. – O que quer com a filha de Jenner?
Outra risada desagradável, dessa vez parecendo vir de outra direção. Sem conseguir identificar a localização de Bullard, Cam se aventurou a ir mais para dentro do pátio.
– Quero que ela sofra.
– Por quê?
– Porque a maldita sanguessuga tirou tudo de mim. Quero que ela morra. Quero atirá-la para os ratos até que não reste nada dela além dos ossos.
– Por quê? – perguntou Cam, perplexo. – Ela me pediu para ajudá-lo, Joss, mesmo depois que você a traiu. Ela quer honrar o pedido de seu pai, deixar-lhe o suficiente para...
– Que a filha da mãe vá para o diabo que a carregue!
Cam balançou levemente a cabeça, sem conseguir entender de onde vinha tanta hostilidade nem por que Bullard tinha tanta raiva de Evie.
Ouvindo um som atrás dele, Cam se abaixou e se esquivou de uma tábua. O agressor não era Bullard, mas um homem que decidira impulsivamente tentar a sorte como ladrão de becos. Ele tinha o aspecto envelhecido de quem havia morado nas ruas desde o nascimento. Cam o despachou com alguns golpes eficientes, fazendo-o cair no chão com um gemido. Mais alguns agressores surgiram na outra extremidade do pátio, aparentemente decidindo que era melhor atacar em grupo. Percebendo que logo seria vencido, Cam se retirou para a arcada, onde a voz de Bullard o seguiu.
– Vou pegá-la!
– Você nunca tocará nela – retrucou Cam com uma raiva impotente enquanto dava uma última olhada para Hangman’s Court. – Eu o mandarei para o inferno antes que encoste um dedo nela!
– Então eu o levarei comigo – foi a reposta malévola de Bullard, e ele riu de novo enquanto Cam se afastava do pátio a passos largos.
Mais tarde naquele dia, Cam procurou Evie. Sebastian estava ocupado com um grupo de carpinteiros que consertava o intricado piso de madeira da sala de jantar principal. Encontrou-a na sala de jogos vazia, revirando distraidamente cestos de fichas de jogos e as separando em pilhas. Aproximou-se silenciosamente.
Evie se assustou um pouco ao sentir o toque leve em seu braço e sorriu aliviada ao ver o rosto de Cam. Era raro ele parecer preocupado. Um jovem com sua natureza prática não era dado a preocupações ou ansiedade. Ele aceitava todos os momentos como se apresentavam, vivendo o máximo possível no presente. Contudo, os acontecimentos do dia tinham deixado sua marca, dando-lhe um aspecto tenso que temporariamente o fazia parecer mais velho.
– Eu não consegui pegá-lo – disse Cam em voz baixa. – Bullard desapareceu em um cortiço e falou comigo das sombras. Nada do que disse fez sentido. Ele nutre um sentimento de ódio por você, gadji, embora eu não entenda por quê. Bullard nunca foi do tipo que alguém chamaria de alegre, mas isso é diferente. Uma espécie de loucura. Tenho de contar para St. Vincent.
– Ah, não – respondeu Evie imediatamente. – Isso só o deixaria preocupado e com raiva. E
ele já tem muito com que lidar.
– Mas se Bullard tentar lhe fazer mal...
– Eu estou segura aqui, não estou? Bullard não ousaria vir ao clube com o preço que meu marido está disposto a pagar pela cabeça dele.
– Há entradas secretas para o prédio.
– Pode fechá-las? Trancá-las?
Com o cenho franzido, Cam pensou nas perguntas.
– A maioria, sim. Mas isso não é uma questão de andar de um lado para outro com meu conjunto de chaves...
– Eu entendo. Faça o que puder. – Ela passou o dedo por uma pilha de fichas descartadas e acrescentou devagar: – Isso realmente não importa, porque logo irei embora. St. Vincent quer que eu parta daqui a duas semanas. Acha que eu não deveria morar no clube, agora que meu pai...
Ela caiu em um desconsolado silêncio.
– Talvez ele tenha razão – disse Cam em um tom habilmente desprovido de pena. – Este não é o lugar mais seguro para você.
– Ele não está fazendo isso por motivos de segurança. – Evie pegou uma ficha preta e a fez girar na mesa de jogo. – Está fazendo isso para mantermos distância um do outro.
O leve sorriso no rosto de Cam a fez se sentir ao mesmo tempo frustrada e animada.
– Paciência – aconselhou ele em voz baixa, e a deixou vendo a ficha girar até perder o impulso e parar.
CAPÍTULO 14
Nas duas semanas seguintes, Evie ficou feliz com a atividade constante no clube. Isso a ajudava a não se concentrar em sua dor. Quando disse a Sebastian que queria ser útil, foi prontamente enviada para o escritório, onde cartas e livros contábeis estavam em grandes pilhas desorganizadas. Também lhe foi pedido que supervisionasse os pintores, decoradores, carpinteiros e pedreiros, uma responsabilidade que a teria apavorado muito tempo atrás. No início, lutou contra a gagueira e se sentiu nervosa por ser obrigada a falar com tantos estranhos.
Contudo, quanto mais fazia isso, mais fácil se tornava. Ajudou-a o fato de todos os operários a ouvirem com uma mistura de paciência e respeito com que nunca fora tratada.
A primeira coisa que Sebastian fez após o funeral de Ivo Jenner foi ter uma reunião com o oficial de polícia a respeito do recente endurecimento das leis do jogo. Com persuasivo encanto, argumentou que o Jenner’s era um clube social, não especificamente de jogos. Portanto, não era o tipo de lugar que deveria estar sujeito a batidas policiais, porque seus membros eram, como afirmou solenemente, “homens da maior integridade”. Convencido pelo hábil raciocínio de Sebastian, o oficial prometeu que não haveria batidas policiais no clube, desde que mantivesse uma aparência de respeitabilidade.
Ao saber do sucesso de Sebastian com o oficial de polícia, Cam Rohan comentou com admiração:
– Essa foi uma jogada de mestre, milorde. Estou começando a acreditar que pode persuadir qualquer pessoa.
Sebastian sorriu e olhou para Evie, que estava sentada perto.
– Acho que Lady St. Vincent será uma prova disso.
Sebastian e Cam tinham decidido formar uma aliança com o objetivo de reerguer o clube.
Suas interações não eram exatamente amigáveis, mas também não eram hostis. Cam havia notado a capacidade de liderança do outro, fundamental nos dias que se seguiram à morte de Ivo Jenner. O visconde tinha abandonado seu ar de aristocrática indolência e assumido a direção do clube com determinação e autoridade.
Como se poderia esperar, ele era o tipo de homem de que os funcionários do clube não gostavam, e no início o consideravam apenas um tolo ou inútil. Um aristocrata comodista e mimado que não sabia o que era trabalhar. Todos presumiram, como Evie, que ele logo se cansaria das responsabilidades de dirigir o clube. Contudo, ninguém ousou desafiá-lo quando ficou claro que estava disposto a despedir quem desobedecesse às suas ordens. Não havia nenhum exemplo melhor disso do que a demissão sumária de Clive Egan.
Além do mais, a paixão sincera de Sebastian pelo clube não podia ser ignorada. Ele se interessava muito por tudo, da cozinha aos custos específicos da sala de jogos. Reconhecendo que tinha muito a aprender sobre o funcionamento dos jogos, dedicou-se a entender sua matemática. Uma noite, Evie entrou na sala de jogos e o encontrou com Cam à mesa central, que lhe explicava seu sistema de probabilidades.
– Só há 36 combinações possíveis com dois dados, pois, obviamente, cada um tem seis lados.
Quando você joga dois dados ao mesmo tempo, qualquer combinação resultante é chamada de “probabilidade acumulada” e as chances de obtê-la são de 1 em 35.
Cam parou, examinando Sebastian com um olhar.
Sebastian assentiu com a cabeça.
– Continue.
– Como todo jogador sabe, a soma de dois lados virados para cima é chamada de ponto. Um mais um é igual a dois pontos, seis mais seis é igual a doze. Mas as chances de obter qualquer número particular variam, já que só há um modo de obter dois pontos, mas seis modos de obter sete.
– Sendo sete um número natural – murmurou Sebastian, a concentração o fazendo franzir as sobrancelhas. – Como o maior número de combinações resultará em um natural, as chances de obter sete com uma jogada são de...
– Dezesseis por cento – respondeu Cam, pegando o dado. Os anéis de ouro em seus dedos morenos captaram a luz quando ele jogou os dados de marfim sobre a mesa. Os dados quicaram e pararam sobre o tecido verde. Os dois lados para cima tinham o número seis. – Porém, as chances de obter doze são de apenas 2,7%. Obviamente, quanto mais você joga, mais as chances aumentam. Quando você joga os dados 166 vezes, as chances de obter doze pelo menos uma vez são de 99%. É claro que com outros pontos as chances são diferentes. Posso lhe mostrar no papel. Assim é mais fácil entender. Você terá uma grande vantagem quando aprender a calcular as probabilidades. Poucos jogadores calculam, e isso é o que diferencia os vencedores dos perdedores. Os jogos de azar são desiguais, mesmo quando jogados com honestidade, e na maioria das vezes quem leva vantagem é a banca...
Cam parou respeitosamente quando Evie foi até a mesa. Seus olhos escuros se tornaram sorridentes.
– Boa noite, milady.
Sebastian fechou o cenho ao ver o clima de amizade entre eles.
– Boa noite – murmurou Evie, ocupando um lugar à mesa ao lado de Sebastian. Ela sorriu ao olhar para o marido. – É bom em matemática, milorde?
– Sempre pensei que fosse – respondeu Sebastian pesarosamente. – Até agora. Rohan, os outros crupiês sabem calcular probabilidades?
– O suficiente, milorde. São bem treinados. Todos sabem como tentar um jogador a fazer apostas em benefício da casa, como identificar os bons e maus jogadores...
– Treinados por quem? – perguntou Evie.
O sorriso de Cam produziu um brilho branco em seu rosto cor de mel.
– Por mim, é claro. Ninguém entende tanto de jogo quanto eu.
Sorrindo, Evie olhou para o marido.
– Tudo que lhe falta é confiança – observou laconicamente.
Contudo, Sebastian não reagiu à pilhéria. Em vez disso, disse abruptamente para Cam:
– Quero uma lista, em ordem descendente, de todos os empréstimos pendentes e suas devidas datas. O livro contábil está na prateleira de cima, no escritório. Por que não começa agora?
– Sim, milorde.
Fazendo uma pequena mesura para Evie, Cam saiu.
Com o marido na penumbra da sala de jogos, Evie sentiu uma pontada de nervosismo. Nos últimos dias as interações deles tinham sido frequentes, mas impessoais. Ela se inclinou sobre a mesa, estendeu a mão para os dados e os guardou em uma pequena caixa de couro. Quando esticou as costas de novo, sentiu a mão de Sebastian lhe acariciar a parte de trás do corpete e os pelos de sua nuca se arrepiarem.
– Está tarde – disse ele, seu tom mais suave do que o usado com Cam. – Você deveria ir para a cama. Deve estar exausta depois de tudo que fez hoje.
– Não fiz muito.
Ela encolheu os ombros e ele lhe acariciou as costas.
– Fez, sim. Tem trabalhado demais, querida. Precisa descansar.
Evie balançou a cabeça, achando difícil pensar com ele a tocando.
– Estou feliz pela chance de trabalhar um pouco. Isso me impede de ficar pensando em... em...
– Sim, eu sei. Foi por isso que permiti.
Seus longos dedos se curvaram ao redor da nuca de Evie. Ao sentir o calor da mão do marido, sua respiração se tornou entrecortada.
– Você precisa ir para a cama – continuou Sebastian, a própria respiração não muito estável enquanto a puxava para mais perto.
Ele olhou lentamente do rosto para a curva dos seios de Evie e depois para o rosto de novo.
Então deu uma risada sem graça.
– E preciso acompanhá-la. Como não posso... venha cá.
– Por quê? – perguntou Evie, enquanto ele a segurava contra a beirada da mesa e punha as pernas entre as dobras de suas saias.
– Quero torturá-la um pouco.
Evie arregalou os olhos enquanto seu coração bombeava fogo líquido em suas veias.
– Quando você... – Ela teve de pigarrear e tentar de novo. – Quando você usa a palavra “torturar”, certamente é em um sentido figurado.
Ele balançou a cabeça.
– Temo que seja em um sentido literal.
– O quê?
– Meu amor – disse Sebastian gentilmente. – Espero que não tenha achado que nos próximos três meses eu seria o único a sofrer. Ponha suas mãos em mim.
– O-onde?
– Em qualquer lugar.
Sebastian esperou até ela pôr as mãos nos ombros dele, sobre a fina lã do casaco, hesitando.
Sustentando seu olhar, disse:
– O mesmo fogo que me queima a queimará.
– Sebastian...
Ela se retesou um pouco e ele a segurou mais firme contra a mesa.
– Tenho o direito de beijá-la – lembrou-a. – Eu a beijarei quando e quanto quiser. Esse foi o nosso acordo.
Evie olhou ao redor da sala com aflição. Sebastian leu facilmente seus pensamentos.
– Não ligo a mínima se alguém nos vir. Você é minha esposa. – Ele sorriu. – Com certeza minha melhor metade.
Inclinando-se, beijou os finos cachos na testa de Evie. Ela sentiu na pele a respiração quente e suave do marido.
– Meu prêmio... meu prazer e sofrimento... meu infinito desejo. Nunca conheci ninguém como você, Evie. – Ele roçou os lábios na ponte do nariz dela e os deslizou até a ponta. – Você ousa me fazer exigências que nenhuma outra mulher pensaria em fazer. Agora sou eu a pagar o preço. Mas mais tarde você pagará o meu... repetidamente...
Ele pôs a mão na parte de trás da cabeça de Evie e beijou seus lábios trêmulos.
Era um homem que adorava beijar, quase tanto quanto adorava o ato sexual. O beijo começou com um roçar de lábios fechados e secos... a pressão aumentando até Evie abrir a boca... e então ela sentiu a sutil intrusão da língua do marido. Inclinou a cabeça para trás impotente, apoiada nas mãos dele, os súbitos batimentos do coração bombeando sangue para suas veias e a fazendo se sentir fraca e quente. Ele tirou mais dela, beijando-a em todos os ângulos possíveis, profundamente.
Sebastian passou uma das mãos de leve sobre os seios de Evie, o polegar procurando em vão o mamilo através do grosso espartilho acolchoado. Ansiando por sentir a pele nua da esposa, deslizou a boca até encontrar o pescoço de Evie. Ela firmou as pernas e agarrou os ombros de Sebastian para recuperar o equilíbrio. Com um murmúrio, ele a puxou mais fortemente contra o corpo e a beijou de novo. Evie não conseguiu mais conter os sons suplicantes em sua garganta, sua boca tentando freneticamente absorver mais do gosto dele, mais do calor e da maciez da boca masculina, mais...
O som estranho de alguém pigarreando fez Evie se sobressaltar e interromper o beijo.
Percebendo que alguém entrara na sala, Sebastian puxou a cabeça de Evie contra o peito, seu polegar lhe acariciando a bochecha corada. Ele falou com o intruso friamente, enquanto seu coração batia com força contra o rosto da esposa.
– O que é, Gully?
Jim Gully, um dos empregados da sala de jogos, respondeu ofegante:
– Desculpe-me, milorde. Problemas no andar de baixo. Os carpinteiros pegaram uma garrafa de rum em algum lugar e todos os três estão bêbados. Começaram uma briga na sala de café.
Dois já estão trocando socos enquanto o outro está quebrando os pratos no aparador.
Sebastian fechou a cara.
– Diga a Rohan para cuidar disso.
– O Sr. Rohan disse que está ocupado.
– Há uma briga de bêbados lá embaixo e ele está ocupado demais para fazer algo a respeito?
– perguntou Sebastian incrédulo.
– Sim, milorde.
– Então cuide você disso.
– Não posso, milorde. – Ele ergueu um dedo enfaixado. – Quebrei meu dedo numa briga no beco na noite passada.
– Onde está Hayes?
– Não sei, milorde.
– Está me dizendo – começou Sebastian com perigosa suavidade – que, dos trinta empregados que trabalham aqui, nenhum está disponível para impedir que três bêbados destruam a sala de café que deveriam estar reformando?
– Sim, milorde.
Na pausa irritada depois da resposta de Gully, o ruído de porcelana se estilhaçando e móveis batendo nas paredes causou uma vibração que fez os candelabros de teto tilintarem. Gritos incompreensíveis se seguiram enquanto a briga se intensificava.
– Maldição – disse Sebastian por entre dentes cerrados. – O que diabo estão fazendo com o clube?
Evie balançou a cabeça, confusa, olhando do rosto irado do marido para o cuidadosamente inexpressivo de Gully.
– Eu não entendo...
– Chame isso de um rito de passagem – disparou Sebastian, e saiu a passos largos que logo se transformaram em uma corrida.
Evie ergueu as saias e correu atrás dele. Rito de passagem? O que ele quisera dizer? E por que Cam não estava disposto a fazer nada em relação à briga? Sem conseguir acompanhar o ritmo do marido, ela ficou para trás, tomando cuidado para não tropeçar nas saias ao descer o lance de escada. O barulho aumentou quando ela se aproximou do pequeno grupo reunido na sala, tomado por gritos e exclamações. Viu Sebastian tirar o casaco e o atirar para alguém, e depois abrir caminho com os ombros até os brigões. Em um pequeno espaço aberto, três homens se esmurravam e tentavam se empurrar enquanto espectadores rugiam de animação.
Sebastian atacou estrategicamente o homem que parecia com menos firmeza nos pés, girando-o e lhe aplicando alguns golpes certeiros até o homem cambalear para trás e cair no chão atapetado. Os outros dois se precipitaram ao mesmo tempo para Sebastian, um deles tentando prender os braços do visconde enquanto o outro se preparava para lhe desferir socos.
Evie deu um grito de alarme, que de algum modo chegou aos ouvidos de Sebastian em meio ao rugido da multidão. Distraído, ele olhou na direção dela e imediatamente recebeu uma gravata de seu adversário enquanto sua cabeça era atingida por fortes socos.
– Não – exclamou Evie, começando a ir para a frente, mas foi contida por um braço duro como aço que a segurou pela cintura.
Ela ouviu uma voz familiar.
– Espere. Dê-lhe uma chance.
– Cam! – Em pânico, Evie se virou rapidamente e viu o rosto exótico e familiar com maçãs do rosto proeminentes, olhos dourados e cílios espessos. – Vão machucá-lo – disse, agarrando as lapelas do casaco dele. – Vá ajudá-lo. Cam, você tem de...
– Ele já se soltou – observou Cam brandamente, virando-a com mãos inexoráveis. – Olhe... ele não está se saindo mal.
Um dos adversários de Sebastian tentou atingi-lo, mas o visconde se desviou e reagiu com um rápido golpe.
– Cam, por que di-diabo você não está fazendo nada para ajudá-lo?
– Eu não posso.
– Sim, pode! Está acostumado a lu-lutar, muito mais do que ele...
– Ele também está – disse Cam com uma voz calma e firme. – Se eu o ajudar, ele perderá toda a autoridade. Os homens que trabalham no clube têm uma ideia de liderança que exige ação além de palavras. St. Vincent não pode lhes pedir para fazer nada que ele próprio não esteja disposto a fazer. E ele sabe disso. Caso contrário, não estaria fazendo isso agora.
Evie cobriu os olhos quando um adversário se aproximou de seu marido por trás enquanto o outro lhe desferia vários golpes.
– Só lhe serão leais se ele estiver di-disposto a usar os punhos em uma exibição desnecessária de força bruta?
– Basicamente, sim. Querem ver do que ele é capaz. Olhe – insistiu, um súbito riso fazendo sua voz tremer. – Ele vai ficar bem.
Evie não conseguia olhar. Virou-se para Cam, estremecendo e se encolhendo a cada som de punhos batendo em carne, cada gemido masculino de dor.
– Isso é i-insuportável – gemeu. – Cam, por favor...
– Ninguém o forçou a despedir Egan e comandar o clube sozinho – salientou ele inexoravelmente. – Isso é parte do trabalho, querida.
Ela o entendia. Sabia muito bem que seu próprio pai se metera em brigas durante a maior parte da vida. Mas Sebastian não nascera para isso. Ele não tinha a brutalidade essencial ou o gosto pela violência que distinguira Ivo Jenner.
Mas quando outro homem foi derrubado e Sebastian circundou cuidadosamente seu último adversário, ficou claro que, sendo ou não da sua natureza, estava disposto a fazer o que fosse preciso para provar sua coragem. O bêbado correu em sua direção e Sebastian o derrubou com uma rápida combinação de dois ganchos de esquerda e um de direita. Seu adversário caiu no chão com um gemido e os empregados comemoraram a vitória de Sebastian com vivas e aplausos. Ele os aceitou assentindo seriamente com a cabeça. Então viu Evie em pé no semicírculo do braço protetor de Cam e fechou a cara.
Espectadores entusiasmados levaram os brigões para fora. Vassouras e baldes foram trazidos para remover o entulho, enquanto alguns dos empregados lançavam olhares mais amigáveis do que de costume para Sebastian. Usando a manga da camisa para enxugar um pequeno filete de sangue no canto da boca, ele se inclinou para pegar uma cadeira virada e a pôs em seu devido lugar em um canto.
Quando a sala ficou vazia, Cam soltou Evie e se aproximou de Sebastian.
– Luta como um cavalheiro, milorde – comentou ele.
Sebastian o olhou com sarcasmo.
– Por que isso não parece um elogio?
Cam enfiou as mãos nos bolsos e o observou indulgentemente.
– Saiu-se muito bem contra dois bêbados.
– Três – grunhiu Sebastian.
– Então três. Mas da próxima vez talvez não tenha tanta sorte.
– Próxima vez? Se está pensando que vou tornar isso um hábito...
– Jenner tornou – retrucou Cam com suavidade. – Egan também. Quase todas as noites havia uma confusão no beco, no pátio do estábulo ou nas salas de carteado, depois de os clientes serem estimulados durante horas por jogos, bebida e mulheres. Todos nós nos revezamos lidando com isso. E a menos que queira apanhar toda semana, terá de aprender alguns truques para pôr fim a uma briga rapidamente. Isso lhe causará menos danos, bem como aos clientes, e manterá a polícia longe.
– Está se referindo ao tipo de tática usada em brigas em espeluncas e becos...
– Não se trata de meia hora de exercícios leves no clube de pugilismo – disse Cam acidamente.
Sebastian abriu a boca para discutir, mas algo mudou em seu rosto ao ver Evie se aproximando. Era uma reação à ansiedade que ela não conseguia esconder. Por algum motivo a preocupação da esposa diminuiu sua hostilidade, o abrandou. Olhando de um para o outro, Cam observou a sutil interação com astuto interesse.
– Você se machucou? – perguntou Evie, olhando-o atentamente.
Para seu alívio, Sebastian estava desgrenhado e irritado, mas parecia não ter sofrido nenhum grande ferimento.
Ele balançou a cabeça, ficando parado enquanto ela afastava alguns cachos cor de âmbar úmidos que lhe cobriam os olhos.
– Estou bem – murmurou Sebastian. – Em comparação com a surra que levei de Westcliff, isso não foi nada.
Cam o interrompeu firmemente.
– Outras surras o aguardam, milorde, se não aceitar algumas sugestões sobre como lutar.
Sem esperar o consentimento de Sebastian, foi até a porta e chamou:
– Dawson! Venha aqui por um minuto. Não, não para trabalhar. Precisamos que venha aplicar um golpe em St. Vincent. – Ele olhou para Sebastian e observou inocentemente: – Bem, isso o convenceu. Virá correndo para cá.
Evie conteve um súbito sorriso e se retirou para um canto, entendendo que a intenção de Cam era ajudar seu marido. Se Sebastian insistisse em lutar segundo as regras cavalheirescas, não saberia enfrentar os ataques brutais com que poderia se deparar.
Dawson, um jovem robusto, entrou na sala.
– Dawson é o melhor lutador que temos – observou Cam. – Ele lhe ensinará algumas manobras básicas para derrubar um homem rapidamente. Dawson, aplique aquele golpe cruzado em lorde St. Vincent. Mas gentilmente, não queremos que ele frature a coluna.
Parecendo mais do que feliz em aplicar o golpe em Sebastian, Dawson o alcançou com alguns passos rápidos, pôs um braço carnudo ao redor do pescoço dele, agarrou-lhe o braço solto e o pôs sobre seu ombro, fazendo-o se virar violentamente. Ele caiu de costas com um gemido de dor. Dawson estava prestes a pular sobre o abdômen de Sebastian quando Cam se apressou a intervir, agarrando o entusiasmado jovem pelo ombro.
– Bom, Dawson. Muito bom. Basta por agora. Afaste-se, por favor.
Evie observou os procedimentos com a mão fechada sobre a boca.
Cam estendeu a dele para ajudar o outro a se levantar. Recusando a oferta, Sebastian girou e se levantou, olhando-o com uma expressão tão ameaçadora que teria feito a maioria dos homens parar. Contudo, Cam falou em um tom instrutivo:
– Na verdade, é um movimento simples. Ponha seu braço ao redor do pescoço do outro homem, agarre o braço, mova seu corpo assim... e ele cairá facilmente. Dependendo da força com que o derrubar, ele não conseguirá se mover por vários segundos. Aqui, experimente comigo.
Sebastian teve o cuidado de se conter ao praticar o procedimento em Cam. Ele aprendeu rapidamente, derrubando o cigano com uma estranha mistura de eficiência e relutância.
– Não posso lutar assim – murmurou.
Cam ignorou o comentário.
– Se o segurarem pelas costas, na maioria das vezes conseguirá se soltar dando uma cabeçada para trás. Comece abaixando a cabeça e encostando o queixo no peito. Cerre os dentes, mantenha a boca fechada e jogue a cabeça para trás, rápido e com força, para o rosto do adversário. Não precisa apontar para ele. E no caso da cabeçada para a frente... Já fez isso? Não? Bem, o truque é manter os olhos em seu adversário. Aponte para uma parte macia do rosto dele, nunca para a testa ou o crânio. Use o peso do seu corpo e tente atingi-lo com a área uns 2 centímetros acima das suas sobrancelhas.
Sebastian suportou a lição com grande relutância enquanto os dois homens mais jovens demonstravam golpes no pescoço, pisadas e outras técnicas para atacar as partes vulneráveis do corpo humano. Participou quando chamado, exibindo uma aptidão física que pareceu agradar a Cam. Contudo, quando o rapaz começou a falar sobre vários métodos para dar chutes na virilha, achou que já aguentara o suficiente.
– Basta – grunhiu. – Pare, Rohan.
– Mas ainda faltam algumas coisas.
– Não importa.
Cam trocou um olhar com Evie, que deu de ombros e balançou levemente a cabeça, nenhum dos dois entendendo o motivo da irritação de Sebastian. Um momento depois, Cam dispensou Dawson com algumas palavras elogiosas.
Virando-se para Sebastian, que puxava seu casaco com uma mal contida violência, Cam perguntou calmamente:
– Qual é o problema, milorde?
Sebastian emitiu um som de desdém.
– Nunca pretendi ser um modelo de virtude. E fiz coisas no passado que meteriam medo ao diabo. Mas há certas coisas que nem mesmo eu posso me rebaixar a fazer. Homens da minha posição não dão pisadas, chutes na virilha ou cabeçadas quando lutam. Nem dão golpes no pescoço, rasteiras ou, valha-me Deus, puxam cabelos.
Embora Evie tivesse achado que seria impossível Cam manter seus olhos frios, subitamente eles se tornaram duros como pedaços de âmbar gelado.
– Qual é exatamente sua posição, se não se importa que eu pergunte? – disse o cigano em um tom levemente mordaz. – É um nobre? Não está vivendo como tal. Está dormindo em um clube de jogos, em um quarto recentemente desocupado por duas prostitutas. É um homem indolente?
Acabou de terminar a noite brigando com bêbados idiotas. Está um pouco tarde para ser distinto, não é?
– Você me culpa por ter princípios? – contra-atacou Sebastian.
– De forma nenhuma. Culpo-o por ter dois pesos e duas medidas. Os ciganos têm um ditado:
“Com um só traseiro não se pode montar em dois cavalos.” Se quiser sobreviver aqui, terá de mudar. Não poderá bancar o aristocrata ocioso que está acima desse tipo de coisa. Está tentando assumir uma posição que nem mesmo eu poderia ocupar. Terá de lidar com jogadores, bêbados, ladrões, mentirosos, chefes do crime, advogados, policiais e mais de trinta empregados que acham que vai desistir e ir embora em menos de um mês. Agora que Jenner está morto, ocupou o lugar dele como um dos figurões de Londres. Todos vão querer favores, tentar se aproveitar de sua posição ou provar que são superiores. E ninguém dirá toda a verdade. Sobre nada. Terá de aguçar seus instintos. Terá de fazer as pessoas temerem atravessar seu caminho. Caso contrário, as chances de ser bem-sucedido serão tão poucas quanto de ser...
A voz dele foi sumindo. Estava claro que Cam teria gostado de dizer mais, mas um olhar para o rosto de Sebastian pareceu indicar que outras palavras seriam inúteis. Passando a mão magra por seus cabelos pretos desgrenhados, Cam saiu a passos largos da sala.
Um longo minuto se passou antes de Evie ousar se aproximar do marido. Ele estava olhando fixamente para a parede vazia, perdido em seus pensamentos. Ela notou que, enquanto a maioria das pessoas tendia a parecer mais velha em momentos de cansaço e tensão, Sebastian parecia mais jovem.
– Por que você está fazendo isso? Não é só por dinheiro. O que espera encontrar neste lugar?
Inesperadamente, as perguntas produziram um brilho de divertimento nos olhos dele.
– Eu direi quando descobrir...
CAPÍTULO 15
Na tarde seguinte, Sebastian encontrou Evie no escritório, somando recibos e anotando números em um livro contábil.
– Você tem uma visita – disse ele sem preâmbulos. Ela o olhou por cima da pilha de papéis.
– A Sra. Hunt.
Evie o olhou atônita, seu coração dando saltos. Andara pensando se deveria escrever para Annabelle. Ansiava por ver a amiga, mas tinha dúvidas sobre a recepção que teria. Levantou-se devagar de sua cadeira.
– Tem certeza de que não é outro truque?
– Sim – disse Sebastian sarcasticamente. – Ainda ecoam em meus ouvidos críticas e acusações. A Sra. Hunt e a Srta. Bowman acreditam que você não foi raptada, violada e obrigada a se casar.
– A Srta. Bowman? – repetiu Evie, concluindo em um instante que não poderia ser Lillian.
Ela não era mais solteira e ainda estava em sua lua de mel com lorde Westcliff. – Daisy também está aqui?
– Irritada como uma vespa – confirmou Sebastian. – Você deveria lhes assegurar de que agiu por conta própria, porque acho que pretendem chamar a polícia para me prender.
A agitação fez o coracão de Evie se acelerar e ela apertou o braço do marido.
– Não posso acreditar que elas ousaram vir aqui. Estou certa de que o Sr. Hunt não sabe disso.
– Nesse ponto estamos de acordo – disse Sebastian. – Hunt não permitiria que sua esposa ficasse em um raio de 10 quilômetros de mim. E os Bowmans nunca aprovariam a ida da filha mais nova a um clube de jogos. Mas conhecendo suas amigas, não tenho nenhuma dúvida de que elas traçaram um plano elaborado para escapulir.
– Onde elas estão? Não me diga que as deixou em pé na porta dos fundos.
– Foram levadas para a sala de leitura.
Evie estava tão ansiosa por ver suas amigas que teve de se conter para não desatar em uma corrida. Dirigindo-se apressadamente à sala de leitura, seguida por Sebastian, precipitou-se pela porta e parou, insegura.
Lá estava Annabelle, com seus cabelos cor de mel presos no alto da cabeça e sua pele perfeita, como a das vendedoras de leite pintadas em latas de doces. Quando a conheceu, sua beleza a havia intimidado tanto que Evie temera falar com ela, certa de que seria rechaçada.
Contudo, acabou descobrindo que Annabelle era gentil, afetuosa e capaz de rir de si mesma.
Daisy Bowman, a irmã mais nova de Lillian, tinha uma personalidade exuberante que contrastava com sua figura pequena e frágil. Idealista e com uma tendência a fantasiar, devorava romances repletos de malandros e vilões. Entretanto, sua fachada travessa escondia uma grande inteligência que a maioria das pessoas tendia a ignorar. Ela tinha pele clara, cabelos escuros e olhos castanhos...
Ao ver Evie, suas amigas correram para ela com gritinhos impróprios de damas. Evie sorriu e deu seu próprio gritinho quando elas colidiram em um círculo de abraços apertados e beijos. As três jovens continuaram a manifestar sua alegria até alguém entrar na sala.
Era Cam, ofegante e com os olhos arregalados, como se tivesse corrido. Seu olhar alerta percorreu a sala, avaliando a situação. Aos poucos, seu corpo magro começou a relaxar.
– Maldição – murmurou. – Pensei que havia algo errado.
– Está tudo bem, Cam – disse Evie sorrindo enquanto Annabelle mantinha um braço ao redor de seus ombros. – Minhas amigas estão aqui. É só isso.
Cam olhou de relance para Sebastian e comentou acidamente:
– Os porcos no matadouro fazem menos barulho.
Houve uma tensão suspeita no maxilar de Sebastian, como se ele estivesse tentando conter o riso.
– Sra. Hunt, Srta. Bowman, este é o Sr. Rohan. Perdoem-lhe a falta de tato, porque ele é um...
– Rufião? – sugeriu Daisy inocentemente.
Dessa vez, Sebastian não conseguiu evitar um sorriso.
– Eu ia dizer “homem desacostumado com a presença de damas no clube”.
– É isso que elas são? – perguntou Cam, lançando um olhar dúbio para as visitantes e se detendo por um momento no rosto pequeno de Daisy.
Ignorando-o propositadamente, Daisy falou para Annabelle:
– Sempre ouvi dizer que os ciganos eram famosos por seu encanto. Ao que parece, é uma crença infundada.
Cam estreitou seus olhos dourados até se tornarem pequenos traços tigrinos.
– Também somos famosos por raptar donzelas gadji.
Antes que a conversa fosse adiante, Evie se apressou a interrompê-la.
– Milorde – disse para Sebastian. – Se não fizer nenhuma objeção, eu gostaria de falar em particular com minhas amigas.
– É claro – disse ele com impecável cortesia. – Quer que eu peça que tragam uma bandeja com chá, minha querida?
– Sim, obrigada.
Quando os homens foram embora e as portas se fecharam atrás deles, Daisy explodiu:
– Como pode ser cordial com St. Vincent depois do que ele fez?
– Daisy – começou Evie, desculpando-se. – La-lamento muito o que aconteceu com Lillian e eu...
– Não, não me refiro apenas a isso – interrompeu-a Daisy acaloradamente. – Quero dizer, depois do que ele fez com você! Aproveitando-se de você, forçando-a a se casar com ele e depois...
– Ele não me forçou. – Evie olhou do rosto indignado de Daisy para o preocupado de Annabelle. – É verdade, ele não fe-fez isso! Eu é que o procurei. Aqui, sentem-se e eu lhes co-contarei tudo... Como vocês duas conseguiram vir para o clube?
– O Sr. Hunt viajou a negócios – disse Annabelle com um sorriso ardiloso. – E eu disse para os Bowmans que ia levar Daisy para fazer compras comigo na St. James Street. Como pode ver, sou a acompanhante dela.
– E nós realmente fomos fazer compras – disse Daisy astutamente. – Só que fizemos um pequeno desvio para cá depois...
Nos minutos seguintes, elas conversaram, Annabelle no sofá e Daisy em uma cadeira próxima. Gaguejando um pouco, Evie contou o que acontecera depois que ela saiu da casa dos Maybricks. Para seu alívio, suas amigas não condenaram seus atos. Em vez disso, demonstraram interesse e solidariedade, embora estivesse claro que não concordavam com as escolhas que ela fizera.
– Sinto muito – disse Evie em determinado ponto, ao ver a testa lisa cor de marfim de Annabelle se franzir. – Sei que você não aprova meu casamento com lorde St. Vincent.
– Não importa se eu aprovo – disse Annabelle gentilmente. – Serei sua amiga independentemente do que você faça. Eu não me importaria se você tivesse se casado com o próprio demônio.
– Que, sem dúvida, é um parente próximo de St. Vincent – observou Daisy de cara fechada.
– Agora que já está feito, queremos saber como podemos ajudá-la – comentou Annabelle, lançando um rápido olhar de advertência para Daisy.
Evie sorriu com gratidão.
– Tudo de que eu preciso é da amizade de vocês. Temia perdê-la.
– Nunca perderá. – Annabelle olhou por cima dela e estendeu a mão para lhe acariciar os cachos ruivos. – Querida, espero que isto não pareça presunçoso, mas, como você deixou a casa de sua família às pressas, trouxe alguns vestidos para você. Sei que está de luto, por isso só trouxe nas cores marrom, preto e cinza, e também é claro, algumas camisolas, luvas, etc. Eu pedirei que as peguem na carruagem, se você concordar. Temos quase a mesma altura e acho que pequenas alterações...
– Ah, Annabelle – exclamou Evie abraçando a amiga. – Como você é gentil! Mas não quero que sa-sacrifique parte de seu enxoval por mim...
– Isso não é nenhum sacrifício – disse Annabelle, afastando-a e sorrindo. – Daqui a pouco não poderei usar mais nada disso.
Evie imediatamente se lembrou de que no mês anterior Annabelle lhe falara sobre suas suspeitas de estar grávida.
– É claro, eu... Ah, Annabelle, eu estava tão pre-preocupada com meus próprios problemas que nem mesmo pensei em perguntar como você estava se sentindo! Então é verdade? O médico confirmou?
– Sim – interrompeu-a Daisy, levantando-se e executando uma pequena dança da vitória, como se fosse impossível para ela continuar parada.
As duas pularam em uma alegria infantil, enquanto Annabelle continuava sentada e as observava, divertindo-se.
– Céus, olhem para vocês! Queria que Lillian estivesse aqui. Sem dúvida teria algum comentário a fazer sobre essa louca comemoração.
A menção do nome de Lillian foi o suficiente para diminuir a alegria de Evie. Ela se sentou de novo no sofá, olhando para Annabelle com preocupação.
– Será que Lillian vai me pe-perdoar por eu ter me casado com St. Vincent depois do que ele fez com ela?
– Claro – disse Annabelle gentilmente. – Você sabe quanto Lillian é leal... Ela lhe perdoaria tudo, exceto assassinato. Talvez até mesmo isso. Perdoar St. Vincent é algo totalmente diferente.
Daisy franziu as sobrancelhas e esticou suas saias.
– Com certeza St. Vincent fez de lorde Westcliff um inimigo. O que torna as coisas difíceis para o resto de nós.
A conversa foi interrompida quando o chá foi trazido por uma criada. Evie serviu um pouco da delicada infusão cor de âmbar para si mesma e para Annabelle. Daisy não quis tomar chá, preferindo andar pela sala e examinar as prateleiras de livros. Olhou atentamente para os títulos gravados nas lombadas.
– Há uma camada de poeira na maioria desses livros – exclamou. – Parece que não são lidos há anos!
Annabelle ergueu seu olhar do chá com um estranho sorriso.
– Aposto que poucos os leram, se é que alguém os leu, querida. É improvável que os cavalheiros que frequentam este clube escolham se ocupar com livros quando há tantas coisas mais estimulantes para fazer.
– Por que ter uma sala de leitura se ninguém lê nela? – perguntou Daisy, parecendo indignada. – Não posso imaginar nenhuma atividade mais estimulante do que ler. Porque, às vezes, quando a história é particularmente envolvente, sinto meu coração disparar!
– Há uma... – murmurou Annabelle com um sorriso travesso.
Mas Daisy, que se afastara mais examinando as fileiras de livros, não a ouviu. Olhando no rosto de Evie, Annabelle disse em voz baixa:
– Já que estamos falando nesse assunto, Evie... preocupa-me você não ter tido ninguém com quem conversar antes de sua noite de núpcias. St. Vincent foi atencioso?
Evie sentiu as bochechas arderem ao assentir rapidamente:
– Como era de esperar, ele foi muito hábil.
– Mas foi gentil?
– Sim... acho que sim.
Annabelle sorriu.
– Esse é um assunto delicado, não é? – perguntou suavemente. – Mas se você tiver alguma dúvida sobre essas coisas, espero que me pergunte. Sabe, sinto-me como se fosse sua irmã mais velha.
– Também sinto isso – respondeu Evie, estendendo o braço para apertar a mão da amiga. –
Acho que realmente há algumas coisas que eu gostaria de perguntar, mas elas são tão...
– Caramba! – exclamou Daisy do outro lado da sala.
Ambas ergueram os olhos e a viram puxando uma das estantes de mogno.
– Quando eu me apoiei nesta estante, ouvi um clique e a coisa toda começou a se abrir.
– É uma porta secreta – explicou Evie. – Há várias portas e passagens secretas no clube, para esconder coisas se houver uma batida policial ou alguém precisar sair rapidamente...
– Aonde leva?
Temendo que explicar mais encorajasse a aventureira Daisy a entrar, Evie murmurou vagamente:
– Ah, a nenhum lugar para onde você queira ir. Certamente a um depósito. É melhor fechá-la, querida.
– Hummm.
Enquanto Daisy continuava a examinar as estantes, Evie e Annabelle retomaram sua conversa em voz baixa.
– A verdade é que lo-lorde St. Vincent concordou em passar por um período de castidade, por mim. E se ele for bem-sucedido, nós re-recomeçaremos nossas relações conjugais.
– Ele o quê? – sussurrou Annabelle, arregalando seus belos olhos azuis. – Meu Deus! Não creio que as palavras “castidade” e “St. Vincent” já tenham sido mencionados na mesma frase. Como conseguiu convencê-lo?
– Ele disse... que me deseja o suficiente para tentar.
Annabelle balançou a cabeça e sorriu, perplexa.
– Isso não parece típico dele. Nem um pouco. Ele trapaceará, é claro.
– Sim, mas acho que suas intenções são sinceras.
– St. Vincent nunca é sincero – disse Annabelle ironicamente.
Evie se lembrou da urgência desesperada do abraço de Sebastian naquela mesma sala. Da respiração dele saindo sofregamente. Da ternura da boca do marido em sua pele. E da paixão na voz dele ao murmurar: eu a quero mais do que já quis qualquer coisa neste mundo.
Como poderia explicar isso para Annabelle? Como meras palavras poderiam justificar seu instinto de confiar nele? Era ridículo acreditar que ela, a estranha Evie Jennings, subitamente se tornara o maior desejo de um homem como Sebastian, que já estivera com as mulheres mais bonitas e perfeitas da Inglaterra.
Contudo, ele não era o mesmo homem que perambulara tão arrogantemente pela mansão de Westcliff, em Hampshire. Algo nele havia mudado, e ainda estava mudando. O motivo fora sua fracassada tentativa de raptar Lillian? Ou isso havia começado depois, durante a deprimente viagem para Gretna Green? Talvez tivesse algo a ver com o clube. Ele havia se comportado de um modo estranho desde o momento em que pisaram lá.
– Ah, não – disse Annabelle, aflita, olhando por cima do ombro de Evie.
– O que foi? – Evie se virou para seguir o olhar da amiga.
Não houve nenhuma necessidade de Annabelle explicar. A sala estava vazia, exceto por elas duas. Uma das estantes fora deixada desalinhada com as outras. Ao que tudo indicava, Daisy tinha seguido os impulsos de sua curiosidade insaciável e passado pela porta secreta.
– Aonde isso leva? – perguntou Annabelle com um suspiro, pondo relutantemente de lado sua xícara de chá pela metade.
– Depende do caminho que ela seguiu – respondeu Evie com o cenho franzido. – É um labirinto. Uma passagem se abre em duas direções e há escadas secretas que levam a outro andar.
Graças a Deus o clube não está aberto. Isso minimiza as encrencas em que ela poderia se meter.
– Lembre-se de que estamos falando de Daisy Bowman – retrucou Annabelle secamente. – Se existir a mínima chance de se meter em encrencas, se meterá.
Percorrendo a passagem escura, Daisy experimentou a mesma emoção que sempre sentira na infância, quando Lillian e ela brincavam de pirata na mansão na Quinta Avenida. Depois de suas lições diárias, elas corriam para o jardim, duas meninas travessas com tranças compridas e vestidos rasgados, e cavavam buracos nos canteiros de flores.
Um dia, enfiaram na cabeça que iam construir uma caverna secreta. Assim, passaram todo o verão cavando um túnel na sebe que margeava a frente e os lados da mansão. Cortaram e apararam diligentemente até criarem um longo canal atrás da sebe, do qual entravam e saíam como ratos. Tinham reuniões secretas em sua “caverna de pirata”, é claro, e mantinham uma caixa de madeira com tesouros em um buraco escondido. Quando seus atos foram descobertos pelo irado jardineiro, horrorizado com a profanação de sua sebe, Daisy e Lillian ficaram de castigo durante semanas.
Sorrindo nostalgicamente ao pensar em sua amada irmã mais velha, Daisy foi varrida por uma onda de solidão. Lillian e ela sempre tinham estado juntas, debatendo, rindo, se metendo em encrencas e salvando uma à outra sempre que possível.
Naturalmente, ela estava feliz por Lillian ter encontrado seu par perfeito no voluntarioso Westcliff, mas isso não impedia que sentisse muita falta dela. E agora que as outras, inclusive Evie, tinham encontrado um marido, eram parte do misterioso mundo das casadas, do qual ela ainda estava excluída. Teria de encontrar um marido logo. Um cavalheiro bom e sincero que partilhasse de seu amor por livros. Um homem que usasse óculos e gostasse de cães e crianças.
Daisy continuou a andar e quase caiu em um inesperado pequeno lance de escada. Um brilho fraco no degrau de baixo a fez prosseguir. Ao se aproximar da luz, viu que delineava a forma retangular de uma pequena porta. Perguntando-se o que poderia haver do outro lado, parou e ouviu batidas estranhas e repetitivas. Uma pausa, e depois mais batidas.
Foi vencida pela curiosidade e abriu a porta. A luz invadiu a passagem quando ela entrou em uma sala que continha algumas mesas, cadeiras vazias e um aparador com duas gigantescas urnas de prata. Olhando ao redor, viu a fonte das batidas. Um homem estava consertando uma moldura da parede, martelando habilmente pregos na fina tira de madeira. Assim que ele viu a porta se abrir, se levantou com agilidade, segurando o martelo como se pudesse usá-lo como arma.
Era o cigano, o rapaz com olhos de pantera faminta. Ele havia tirado seu casaco e colete... a gravata também... de modo que seu tronco só estava coberto por uma fina camisa branca frouxamente enfiada para dentro de calças justas. A visão dele provocou em Daisy a mesma reação que ela tivera no andar de cima: uma pontada no peito seguida de uma aceleração de sua frequência cardíaca. Paralisada ao se dar conta de que estava sozinha na sala com ele, Daisy o observou sem pestanejar enquanto Rohan se aproximava lentamente.
Ela nunca tinha visto um ser vivo com aquela beleza morena exótica: pele cor de mel e olhos avelã emoldurados por cílios pretos espessos, com cabelos pretos caindo sobre a testa.
– O que está fazendo aqui? – perguntou Rohan sem parar até chegar tão perto que Daisy recuou instintivamente.
Suas omoplatas encontraram a parede. Nenhum homem, na experiência limitada de Daisy, já se aproximara dela de um modo tão direto. Claramente, ele não sabia nada sobre modos refinados.
– Explorando – disse ela ofegante.
– Alguém lhe mostrou a passagem?
Daisy se sobressaltou quando Rohan pôs suas mãos na parede, uma de cada lado dela. Ele era um pouco mais alto do que o comum, mas não enorme, seu pescoço moreno ficando no nível dos olhos dela. Tentando não demonstrar nervosismo, Daisy tomou fôlego e disse:
– Não, eu a encontrei sozinha. Seu sotaque é estranho.
– O seu também. É americana?
Daisy assentiu com a cabeça, perdendo a fala ao ver o brilho de um pequeno diamante no lóbulo da orelha dele. Isso lhe provocou uma estranha sensação no estômago, quase de repulsa, mas fez sua pele ficar muito quente. Para seu desgosto, ela percebeu que estava enrubescendo.
Ele estava tão perto que Daisy sentiu o cheiro dele: sabonete misturado com o de cavalo e couro.
Era um cheiro agradável, masculino, muito diferente do de seu pai, que sempre cheirava a colônia, graxa de sapatos e papel-moeda novo.
Olhou desconfortavelmente para os longos braços dele, expostos pelas mangas da camisa enroladas... e parou à visão surpreendente de um desenho no antebraço direito. Era de um pequeno cavalo preto alado.
Notando o olhar fascinado da jovem, Rohan abaixou seu braço para que o visse melhor.
– Um símbolo irlandês – murmurou. – Um cavalo que habita os pesadelos, chamado pooka.
O som absurdo da palavra fez Daisy esboçar um sorriso.
– Isso sai com água? – perguntou.
Ele balançou a cabeça, seus cílios quase encobrindo os belos olhos.
– É como Pégaso, da mitologia grega? – perguntou Daisy se encostando o máximo que pôde na parede.
Rohan olhou para o corpo dela em uma espécie de lenta avaliação que nenhum homem fizera antes.
– Não. Ele é muito mais perigoso. Tem olhos que são como fogo amarelo, vaga pelas montanhas e fala com uma voz profunda como uma caverna. À meia-noite, pode parar na frente da sua casa e chamar seu nome se quiser levá-la para uma cavalgada. Se for com ele, voará com você através da terra e dos oceanos... e, se algum dia você voltar, sua vida nunca será a mesma.
Daisy sentiu a pele de seu corpo se arrepiar. Todos os seus sentidos lhe disseram que era melhor encerrar essa conversa perturbadora e se afastar dele o mais rápido possível.
– Que interessante – murmurou, virando-se cegamente perto dos braços de Rohan à procura da porta secreta.
Para sua consternação, ele a fechara e agora a porta estava muito bem escondida no painel de parede. Entrando em pânico, empurrou vários pontos tentando descobrir o mecanismo que a abriria.
Daisy estava com as mãos espalmadas sobre o painel quando sentiu Rohan se inclinar em sua direção por trás, com a boca perto de seu ouvido.
– Não a encontrará. Só há um ponto que a abre.
Ela sentiu a respiração quente de Rohan no pescoço, o corpo dele aquecendo-a onde a tocava.
– Por que não me mostra qual é? – sugeriu Daisy, tentando imitar a voz arrastada e sarcástica de Lillian, mas soando apenas confusa e insegura.
– O que me dará em troca?
Daisy tentou parecer indignada, mesmo com seu coração batendo violentamente como um pássaro selvagem em uma gaiola. Virou-se de frente para ele, lançando-lhe um ataque verbal que esperou que o fizesse recuar.
– Sr. Rohan, se está insinuando que eu deveria... Está sendo o homem mais descortês que já conheci.
Ele não se moveu um centímetro. Quando sorriu, seus dentes muito brancos brilharam.
– Mas eu sei onde fica a porta.
– Quer dinheiro? – perguntou ela com desprezo.
– Não.
Daisy engoliu em seco.
– Uma liberdade, então? – Vendo que ele não estava entendendo, explicou com as bochechas ficando coradas: – Tomar uma liberdade é... dar um abraço ou um beijo.
Algo perigoso brilhou nos olhos dourados de Rohan.
– Sim – murmurou ele. – Tomarei uma liberdade.
Daisy mal pôde acreditar nisso. Seu primeiro beijo. Sempre o havia imaginado como um momento romântico em um jardim inglês... Haveria luar, é claro, e um cavalheiro louro com um rosto infantil lhe recitaria um belo trecho de um poema logo antes de beijá-la. Não deveria acontecer em uma das salas do porão de um clube de jogos com um crupiê cigano. Por outro lado, ela tinha 20 anos e talvez estivesse na hora de começar a acumular um pouco de experiência.
Engolindo em seco de novo, tentou controlar o ritmo acelerado de sua respiração e olhou para a parte do pescoço e do peito de Rohan revelada pela camisa parcialmente aberta. A pele dele brilhava como cetim âmbar. Quando Rohan se aproximou, seu cheiro lhe invadiu as narinas com um luxurioso e picante traço masculino. Ele ergueu a mão gentilmente para o rosto de Daisy, roçando os nós dos dedos acidentalmente na ponta de seu pequeno seio. Aquilo tinha de ser acidental, pensou ela aturdida, seu mamilo se intumecendo sob o corpete de veludo. Os dedos longos de Rohan deslizaram para a lateral do rosto dela e o ergueram.
Olhando para as pupilas escuras e dilatadas de Daisy, ele levou os dedos aos lábios da jovem e os acariciou até ela os afastar tremulamente. Deslizou a outra mão para a nuca, no início a acariciando e depois a segurando de leve para lhe sustentar a cabeça... o que foi bom, porque toda a estabilidade do corpo de Daisy parecia ter se dissolvido. Ele a beijou de um jeito terno, explorando os lábios suave e repetidamente. Daisy sentiu um calor nas veias fluindo através dela até não conseguir mais resistir a apertar seu corpo contra o dele. Ficando nas pontas dos pés, agarrou os ombros fortes de Rohan e suspirou ao ser abraçada.
Quando Rohan finalmente ergueu a cabeça, Daisy ficou mortificada ao descobrir que estava agarrada a ele como se fosse uma vítima de afogamento. Afastou as mãos e recuou o máximo que a parede permitiu. Confusa e envergonhada de sua reação, olhou para aqueles olhos pagãos.
– Eu não senti nada – disse friamente. – Embora ache que você merece crédito por tentar.
Agora me mostre onde...
Ela se interrompeu com um gritinho de surpresa quando Rohan se aproximou de novo, percebendo tarde demais que ele havia interpretado seu comentário desdenhoso como um desafio. Desta vez a boca de Rohan foi mais exigente. Com inocente surpresa, ela sentiu o toque sedoso da língua dele, uma doce sensação que se irradiou para todo o seu corpo. Estremeceu quando ele aprofundou o beijo... como se o gosto dela fosse delicioso.
Terminando o beijo com um último e sedutor roçar de lábios, Rohan se afastou para encará-la, desafiando-a silenciosamente a negar sua atração por ele.
Daisy reuniu o pouco orgulho que lhe restava.
– Ainda nada – disse fracamente.
Ele a puxou totalmente contra seu corpo. Daisy nunca havia pensado que um beijo pudesse ser tão profundo, a boca de Rohan devorando-a lentamente enquanto as mãos dele a puxavam para cima. Ela o sentiu pondo os pés entre os seus, o peito duro contra seus seios pequenos, os beijos a provocando e acariciando até ela tremer como uma criatura selvagem presa nos braços dele. Quando o beijo terminou, estava fraca e passiva, concentrada exclusivamente nas sensações que a levavam para um fim desconhecido.
Abrindo os olhos, olhou-o envolta em uma névoa de sensualidade.
– Isso... isso foi bem melhor – conseguiu dizer com dignidade. – Estou feliz por ter lhe ensinado algo.
Então se afastou de Rohan, não sem antes vê-lo esboçar um sorriso. Ele estendeu a mão, acionou o mecanismo escondido na porta e a abriu. Para o embaraço de Daisy, Rohan entrou com ela na passagem e subiu a estreita escada, guiando-a como se pudesse enxergar no escuro, como um gato. Quando chegaram ao topo, onde o contorno da sala de leitura era visível, pararam.
Sentindo que devia dizer alguma coisa, Daisy murmurou:
– Adeus, Sr. Rohan. Provavelmente nunca nos encontraremos de novo.
Ela só podia esperar que fosse assim, porque nunca conseguiria encará-lo. Ele se inclinou por cima do ombro de Daisy e lhe sussurrou ao ouvido:
– Talvez eu apareça em sua janela uma noite dessas, para tentá-la a voar comigo através da terra e dos oceanos.
Dito isso, ele abriu a porta, empurrou Daisy gentilmente para a sala de leitura e a fechou de novo. Piscando e confusa, ela viu Annabelle e Evie.
– Eu devia saber que você não conseguiria resistir a uma porta secreta – comentou Annabelle ironicamente. – Aonde a passagem leva?
– Evie tinha razão – respondeu Daisy, ficando com as bochechas muito coradas. – A nenhum lugar aonde eu quisesse ir.
CAPÍTULO 16
As roupas que Annabelle Hunt trouxera eram mais adequadas para um meio luto do que para um luto total. Mesmo assim, Evie decidiu usá-las. Já contrariara as convenções sociais usando outros tecidos que não o crepe. Como dificilmente alguém no clube fosse ousar criticá-la, não fazia muita diferença usar preto, marrom ou cinza. Além disso, tinha certeza de que seu pai não teria se importado.
Evie leu mais uma vez o bilhete que Annabelle pusera junto com as roupas, esboçando um sorriso. Mandei fazer estes em Paris sem levar em consideração as consequências da virilidade do Sr. Hunt, escrevera Annabelle maliciosamente. Quando puder usá-los de novo, estarão fora de moda. São um presente meu para você, querida amiga.
Evie experimentou o vestido de lã cinza macia forrado de seda e descobriu que lhe caía muito bem. Contudo, seu prazer com o vestido novo foi sufocado por uma onda de melancolia ao pensar em seu pai. Andando desconsoladamente pela sala de jogos principal, viu Sebastian conversando com dois pedreiros cobertos de pó. Era muito mais alto do que eles e inclinou a cabeça enquanto respondiam. Depois disse algo que os fez rir.
Ainda havia um brilho de divertimento nos olhos de Sebastian quando se virou para Evie.
Seu olhar se suavizou e ele se afastou dos pedreiros, indo na direção dela. Evie tentou conter a ansiedade, temendo parecer tolamente apaixonada por ele. Mas, por mais que tentasse esconder seus sentimentos, eles pareceram se espalhar, como se brilhassem no ar ao seu redor. O estranho era que Sebastian parecia igualmente feliz em estar na sua presença, perdendo o ar de libertino enfastiado e lhe sorrindo com genuína ternura.
– Evie... – Sua cabeça se inclinou para o rosto da esposa. – Você está bem?
– Sim, eu... não. – Ela esfregou nervosamente suas têmporas. – Estou cansada, entediada e com fome.
A risadinha dele afastou a melancolia de Evie.
– Posso fazer algo a esse respeito.
– Não quero que interrompa seu trabalho – disse ela timidamente.
– Rohan cuidará das coisas por um momento. Venha, vamos ver se a sala de bilhar está vazia.
– Sala de bilhar? – repetiu Evie relutantemente. – Por que deveríamos ir para lá?
Ele lhe lançou um olhar provocador.
– Para jogar, é claro.
– Mas as mulheres não jogam bilhar.
– Na França jogam.
– Pelo que Annabelle diz – observou Evie –, as mulheres na França fazem muitas coisas que não fazem aqui.
– Sim. Os franceses têm ideias muito avançadas. Enquanto nós, ingleses, tendemos a ver o prazer com muita suspeita.
A sala de bilhar realmente estava vazia. Sebastian pediu que lhes trouxessem uma bandeja com uma refeição leve, sentou-se a uma pequena mesa no canto e distraiu Evie conversando enquanto ela comia. Evie não entendeu por que ele perdia tempo entretendo-a quando havia tantas responsabilidades que exigiam sua atenção. E anos vendo o olhar de tédio no rosto dos homens com quem conversara reduzira sua autoconfiança a migalhas. Contudo, Sebastian prestou atenção a tudo que ela disse, como se a achasse infinitamente interessante. Encorajou-a a dizer coisas ousadas e pareceu encantado com suas tentativas de discutir com ele.
Quando Evie terminou de comer, Sebastian a puxou para a mesa de bilhar e lhe entregou um taco com uma ponta de couro. Ignorando suas tentativas de se esquivar, começou a lhe ensinar as regras básicas do jogo.
– Não me diga que isso é escandaloso demais para você – disse ele com zombeteira severidade. – Depois de fugir comigo para Gretna Green, pode fazer qualquer coisa. E
certamente pode jogar um pouco de bilhar. Incline-se sobre a mesa.
Evie obedeceu desajeitadamente, corando ao senti-lo se inclinar sobre ela, o corpo do marido a prendendo de um modo masculino excitante enquanto ele posicionava as mãos dela no taco.
– Agora curve seu dedo indicador ao redor da ponta do taco – ouviu-o dizer. – Assim. Não com tanta força, querida... deixe sua mão relaxar. Perfeito.
Ele estava com a cabeça perto da de Evie, a pele exalando um leve cheiro de colônia de sândalo.
– Tente imaginar um caminho entre a bola branca e a colorida. Deve dar a tacada bem ali para enfiar a bola desejada na caçapa. – Ele apontou para um lugar logo acima do centro da bola branca. – É uma tacada direta, está vendo? Abaixe um pouco a cabeça. Traga o taco para trás e tente atingir a bola branca com um movimento suave.
Ao tentar fazer isso, Evie não conseguiu atingir o ponto certo da bola branca, fazendo-a girar pesadamente para o lado da mesa.
– Errou – observou Sebastian, pegando habilmente a bola e a reposicionando. – Sempre que isso acontecer, passe mais giz na ponta do taco com um olhar pensativo, fazendo parecer que a culpa é de seu equipamento e não de suas habilidades.
Evie esboçou um sorriso e se inclinou novamente sobre a mesa. Talvez aquilo fosse errado, sendo a morte de seu pai tão recente, mas pela primeira vez em muito tempo estava se divertindo.
Sebastian veio novamente por trás, pondo as mãos sobre as dela.
– Deixe-me lhe mostrar o movimento certo do taco. Mantenha-o reto... assim.
Juntos, eles se concentraram em deslizar o taco firme e corretamente pelo pequeno círculo que Evie fizera com os dedos. Ela não pôde deixar de notar a conotação sexual daquele movimento e sentiu um rubor subir de seu pescoço para o rosto.
– Você deveria se envergonhar – ouviu-o murmurar. – Nenhuma mulher jovem direita teria esses pensamentos.
Evie não conteve uma risadinha e Sebastian foi para o seu lado, observando-a com um lento sorriso.
– Tente de novo.
Evie se concentrou na bola branca, recuou o taco e a atingiu firmemente. Dessa vez a bola colorida caiu na caçapa.
– Eu consegui! – gritou ela.
Sebastian sorriu ao triunfo de Evie e começou a lhe ensinar várias tacadas, posicionando, ajustando as mãos da esposa e usando todas as desculpas possíveis para pôr os braços ao seu redor. Divertindo-se imensamente, Evie fingiu não notar as carícias audaciosas. Quando ele a fez errar uma tacada pela quarta vez, entretanto, virou-se para ele em tom acusador.
– Como alguém pode acertar quando você põe as mãos aí?
– Eu só estava tentando corrigir sua postura – disse ele, prestativo. Ao ver o olhar acusador de Evie, sorriu e se sentou de lado na mesa de bilhar. – A culpa é sua por eu ter esse comportamento. Garanto-lhe que acho péssimo meu único prazer hoje em dia ser correr atrás de você como um adolescente atrás de uma criada.
– Você corria atrás das criadas quando era adolescente?
– Meu Deus, é claro que não. Como pode perguntar uma coisa dessas?
Sebastian pareceu indignado. Justamente quando ela sentiu uma pontada de culpa e ia começar a se desculpar, ele disse presunçosamente:
– Elas é que corriam atrás de mim.
Evie ergueu um taco como se fosse golpeá-lo. Sebastian segurou seu pulso facilmente com uma das mãos e lhe tirou o taco dos dedos.
– Calma, nervosinha. Vai acabar com o pouco de sanidade que me resta. Que utilidade eu teria para você depois?
– Decorativa – respondeu Evie, rindo.
– Ah, bem. Acho que há algum valor nisso. Deus me livre de um dia eu perder minha boa aparência.
– Eu não me importaria.
– O quê?
– Se... – Evie fez uma pausa, subitamente constrangida. – Se você perdesse sua boa aparência. Se você se tornasse menos bonito. Eu não me importaria com sua aparência. Eu ainda... ia querê-lo como marido.
O sorriso de Sebastian se desvaneceu. Ele a olhou longa e atentamente, ainda lhe segurando o pulso. Algo estranho se revelou em sua expressão... uma emoção indefinível, uma mistura de paixão e vulnerabilidade. Quando respondeu, sua voz saiu tensa pelo esforço de parecer indiferente.
– Sem dúvida, você é a primeira pessoa que me diz isso. Espero que não seja tola a ponto de me dotar de características que não possuo.
– Você já é bem dotado o suficiente – respondeu Evie, antes de lhe ocorrer o duplo significado da frase. Ela ficou muito vermelha. – I-isto é... Eu não quis dizer...
Mas Sebastian estava rindo baixinho, sua estranha tensão desaparecendo, e a puxou para si.
Quando Evie lhe correspondeu ansiosamente, seu divertimento se dissolveu como açúcar em líquido quente. Beijou-a mais longa e fortemente, sua respiração lhe atingindo o rosto em rápidas ondas.
– Evie – sussurrou. – Você é tão quente, tão adorável... Ah, inferno. Faltam dois meses, treze dias e seis horas para eu poder levá-la para a cama. Diabinha. Isso vai me matar.
Um pouco arrependida do acordo que fizera com ele, Evie o apertou com mais força e procurou seus lábios. Sebastian deu um gemido gutural, a beijou e estendeu a mão para fechar a porta da sala de bilhar. Lutando com a fechadura, girou a chave e se ajoelhou diante dela. As omoplatas de Evie bateram com força na porta fechada e ela se apoiou pesadamente no painel, confusa e excitada. Sebastian lhe ergueu as saias, pondo as mãos sob as camadas de tecido e puxando a fitas das roupas de baixo.
– Sebastian, não – sussurrou Evie tremulamente, consciente de que estavam em uma das salas públicas. – Por favor, você não pode...
Sebastian ignorou os protestos, investigando debaixo das saias e puxando as calçolas até os joelhos.
– Vou ficar louco se não puder tê-la pelo menos desta maneira.
– Não – disse ela fracamente, mas Sebastian não lhe deu ouvidos.
Estava com a mão no tornozelo e a boca no joelho de Evie, mordiscando e lambendo através da meia de seda. Ela sentiu um súbito e chocante desejo, seu coração batendo violentamente com uma ânsia irresistível. Sebastian ergueu-lhe a frente das saias até a cintura e pôs as mãos de Evie sobre as camadas de tecido.
– Segure-as, por favor – murmurou ele.
Ela não deveria ter obedecido, mas suas mãos pareciam ter vontade própria, segurando a profusão de veludo junto à barriga. Sebastian puxou as calçolas dela até os tornozelos e deslizou a boca para cima, a respiração dele como nuvens de vapor contra a pele macia da perna de Evie.
Os dois dedos que lhe introduziu foram imediatamente apertados e acariciados, como se seus músculos internos quisessem atraí-lo para mais fundo. Ruborizada e com os olhos semicerrados, ela murmurou:
– Sebastian.
– Shhh...
Ele introduziu os dedos mais fundo e lambeu o sexo excitado de Evie. Provocou o pequeno pico túrgido em um ritmo que complementava a gentil investida dos dedos. Evie se arqueou contra a porta, sua garganta ardendo com o esforço de não gritar. Ele não parou nem diminuiu o ritmo, não lhe deu um segundo para tomar fôlego, somente atormentou seu sexo quente e vibrante, intensificando cada vez mais a sensação até Evie conter um grito e estremecer de êxtase. Não afastou a boca, extraindo cada último resquício de prazer até ela finalmente ficar imóvel, seu corpo exausto esvaziado de sensações.
Por fim Sebastian se levantou, encostando seu corpo excitado no dela e com a testa pressionada contra a porta atrás de Evie. Ela lhe rodeou a cintura magra com os braços, mantendo os olhos fechados e a bochecha apoiada no ombro dele.
– O acordo... – murmurou.
– Você disse que eu podia beijá-la – sussurrou Sebastian maliciosamente ao pé do ouvido. – Mas, meu amor, não especificou onde.
CAPÍTULO 17
– Mandou me chamar, milorde?
Evie foi para a frente da escrivaninha no pequeno escritório onde Sebastian continuava sentado. Um dos criados a trouxera para baixo a pedido dele, acompanhando-a através do caos relativamente controlado do clube superlotado.
Na noite de reabertura, parecia que todos que eram ou desejavam ser sócios estavam determinados a entrar. Havia uma pilha de solicitações diante de Sebastian, enquanto pelo menos doze homens esperavam impacientemente no hall de entrada para serem aprovados. O ambiente estava cheio de sons de conversas, tilintar de copos e música da orquestra que tocava na galeria do segundo andar. Para honrar a memória de Ivo Jenner, champanhe era servido incessantemente, contribuindo para o clima de descontração. O clube reabrira e tudo estava ótimo para os cavalheiros de Londres.
– Sim – disse Sebastian em resposta à pergunta de Evie. – Por que diabo você ainda está aqui? Deveria ter partido umas oito horas atrás.
Ela olhou para o rosto inexpressivo do marido sem se intimidar.
– Ainda estou arrumando minha bagagem.
– Está fazendo isso há três dias. Você não tem mais que seis vestidos. Seus poucos pertences caberiam em uma pequena valise. Está embromando, Evie.
– Que diferença isso faz para você? – disparou ela de volta. – Nos últimos dois dias me tratou como se eu não existisse. É difícil acreditar que notou minha presença.
Sebastian a fulminou com um olhar enquanto tentava controlar sua irritação. Não notá-la?
Maldição. Teria dado uma fortuna para que isso fosse verdade. Estivera torturantemente consciente de cada palavra e gesto de Evie, ansiando por vislumbrá-la. Vê-la agora, com seu belo corpo curvilíneo coberto de veludo preto era suficiente para deixá-lo louco. O preto deveria fazer uma mulher parecer simples e insípida, mas em vez disso a pele dela ficava alva, como creme fresco e seus cabelos brilhavam como fogo.
Queria levá-la para a cama, amá-la até essa paixão diabólica se consumir naquele fogo.
Sentia-se dominado por uma espécie de inquietação ardente que parecia uma doença, algo que o fazia andar de uma sala para outra e depois se esquecer do que queria. Ele nunca fora assim: distraído, impaciente, atormentado pelo desejo.
Tinha de se livrar de Evie. Ela precisava ficar protegida dos perigos e da depravação do clube, assim como dele próprio. Se pudesse mantê-la segura e vê-la de uma forma limitada... Era a única solução.
– Quero que vá – disse ele. – Está tudo pronto para você em casa. Ficará muito mais confortável lá. Eu não terei de me preocupar com o tipo de problema em que poderia se meter. –
Sebastian se levantou e se dirigiu à porta, tomando o cuidado de manter uma distância cautelosa entre eles. – Vou pedir uma carruagem. Daqui a um quarto de hora, quero que esteja nela.
– Ainda não jantei. É demais lhe pedir para fazer uma última refeição?
Embora Sebastian não estivesse olhando para ela, pôde ouvir o tom de desafio infantil em sua voz e isso lhe causou um aperto no coração.
Ele nunca lembraria se lhe permitira ficar para o jantar ou não, porque naquele momento viu Cam se aproximando do escritório... acompanhado pela figura inconfundível do conde de Westcliff.
– Maldição – murmurou.
Evie perguntou imediatamente.
– O que foi?
Sebastian manteve o rosto inexpressivo.
– É melhor você ir – disse de cara fechada. – Westcliff está aqui.
– Eu não vou a lugar nenhum – rebateu ela imediatamente. – Westcliff é cavalheiro demais para brigar na frente de uma dama.
Sebastian deu uma risada de deboche.
– Não preciso me esconder atrás de suas saias, querida. E duvido que ele esteja aqui para brigar. Acertamos as contas na noite em que raptei a Srta. Bowman.
– Então o que ele quer?
– Dar um aviso ou ver se você precisa ser resgatada. Ou ambas as coisas.
Evie continuou ao lado dele enquanto Westcliff entrava no escritório. Cam foi o primeiro a falar:
– Milorde, eu disse para o conde esperar, mas ele...
– Ninguém diz ao conde o que fazer – observou Sebastian secamente. – Está tudo bem, Cam.
Volte para as mesas de jogos ou aquilo lá vai virar um caos. E leve Lady St. Vincent com você.
– Não – disse Evie imediatamente, olhando com preocupação do rosto zombeteiro de Sebastian para o pétreo de Westcliff. – Vou ficar. – Ela se virou para lorde Westcliff e lhe ofereceu a mão. – Milorde, tenho pensado muito em Lillian... Espero que ela esteja bem.
Westcliff se inclinou sobre a mão de Evie e falou em sua voz grave:
– Muito bem. Ela deseja que venha ficar conosco, se assim o desejar.
Sebastian se encheu de uma súbita fúria, embora tivesse insistido para Evie deixar o clube havia apenas alguns minutos. O desgraçado arrogante. Se estava pensando em arrebatá-la de lá bem debaixo do seu nariz...
– Obrigada, milorde – respondeu Evie suavemente, olhando para o rosto marcante de Westcliff.
Ele tinha cabelos pretos e olhos tão escuros que era impossível distinguir as íris das pupilas.
– É muita gentileza – disse ela. – Espero visitá-los em breve, mas não preciso de sua hospitalidade.
– Muito bem. A oferta está de pé. Permita-me lhe oferecer minhas condolências por sua perda recente.
– Obrigada.
Ela sorriu para Westcliff e Sebastian sentiu uma pontada de ciúme. Como possuidor de um dos mais antigos e poderosos títulos da Inglaterra, Marcus, lorde Westcliff, possuía a aura de um homem acostumado a ter suas opiniões ouvidas e acatadas. Embora não fosse dono de uma beleza clássica, tinha uma vitalidade misteriosa e um vigor masculino que o faziam se destacar em qualquer reunião. Era um esportista e exímio cavaleiro, conhecido por superar seus próprios limites físicos. Westcliff era assim em tudo na vida, não se permitindo nada menos do que excelência em tudo que se dispunha a fazer.
Westcliff e Sebastian eram amigos desde que tinham 10 anos. Haviam passado a maioria de seus anos de formação juntos no internato. Mesmo na infância, aquela era uma amizade improvável, porque Westcliff por natureza acreditava em valores morais absolutos e não tinha nenhuma dificuldade em distinguir o certo do errado. Sebastian adorava tornar as questões mais simples exasperantemente complexas, apenas para exercitar sua própria inteligência. Westcliff sempre escolhia o caminho mais eficiente e direto, enquanto Sebastian escolhia o sinuoso e mal mapeado que levava a todos os tipos de problemas antes de finalmente conduzir ao seu destino.
Contudo, crescendo sob a influência de pais manipuladores e negligentes, os dois amigos sabiam muito um sobre o outro. Ambos tinham uma visão romântica do mundo e sabiam que podiam confiar em poucas pessoas. Agora, refletiu Sebastian tristemente, traíra a confiança de Westcliff além de qualquer esperança de reparação. Pela primeira vez na vida sentia uma nauseante pontada que só podia identificar como remorso.
Por que diabo concentrara suas atenções em Lillian Bowman? Quando havia percebido que Westcliff estava apaixonado por ela, por que não se dera o trabalho de procurar outra herdeira com quem se casar? Fora um tolo ao ignorar Evie. Pensando bem, Lillian não valera a sabotagem de uma amizade. No fundo, era forçado a admitir que a ausência de Westcliff em sua vida era como uma ferida aberta e que nunca sararia.
Sebastian esperou a porta se fechar atrás de Cam. Então pôs um braço possessivamente ao redor dos ombros estreitos de Evie e perguntou de um modo irônico:
– Como foi sua lua de mel?
Westcliff ignorou a pergunta.
– Dadas as circunstâncias – disse ele para Evie –, acho necessário perguntar: foi forçada a se casar?
– Não – respondeu Evie veementemente, chegando mais para o lado de Sebastian como se para protegê-lo. – Na verdade, milorde, isso foi ideia minha. Fui à casa de lorde St. Vincent pedir ajuda e ele me ajudou.
Sem parecer convencido, Westcliff disse bruscamente:
– Certamente havia outros modos de obtê-la.
– Nenhum que eu pudesse ver naquele momento. – Ela passou seu braço magro ao redor do tronco de Sebastian, fazendo-o prender a respiração, surpreso. – E não me arrependo da minha decisão. Faria isso de novo sem hesitar. Lorde St. Vincent tem sido muito bom comigo.
– Ela está mentindo, é claro – disse Sebastian com uma áspera risada, enquanto seu coração começava a se acelerar freneticamente.
Com o corpo macio de Evie ao seu lado, podia sentir o calor e cheiro da pele dela. Não entendia por que estava tentando defendê-lo.
– Tenho sido um canalha com ela. Felizmente para mim, Lady St. Vincent sofreu agressões de sua família por tanto tempo que não tem a menor ideia do que é ser bem tratada.
– Isso não é verdade – retrucou Evie.
Nenhum deles olhou para Sebastian, o que lhe deu a exasperante sensação de ter sido excluído da conversa.
– Como pode imaginar, passei por um período difícil. Não teria sobrevivido sem o apoio de meu marido. Ele cuidou de minha saúde e me protegeu o máximo possível. Trabalhou muito para preservar o clube do meu pai. Defendeu-me quando meus tios tentaram me levar com eles contra a minha vontade...
– Não exagere, querida – disse-lhe Sebastian com perversa satisfação. – Westcliff me conhece bem o suficiente para saber que eu nunca trabalharia ou defenderia alguém. Só me preocupo com meus próprios interesses.
Para a sua irritação, mais uma vez ninguém pareceu ouvi-lo.
– Pelo que agora conheço do meu marido, não acredito que ele teria agido como agiu se soubesse de seu amor por Lillian, milorde. Isso não é uma desculpa para o comportamento dele, mas...
– Ele não a ama – rosnou Sebastian, afastando Evie.
Subitamente pareceu que a sala estava encolhendo, as paredes se fechando até ameaçar esmagá-lo. Maldita fosse ela por se desculpar por ele! E maldita fosse por fingir que havia afeição entre eles.
– Ele não acredita no amor mais do que eu. Quantas vezes você me disse que o amor é uma ilusão dos homens que querem tornar a necessidade de casamento mais suportável?
– Eu estava errado – disse Westcliff. – Por que está tão enraivecido?
– Não estou...
Sebastian parou ao perceber que estava se explicando. Olhou para Evie e viu a surpreendente inversão de papéis. A gaga agora se encontrava firme e serena. Ele, sempre tão frio e controlado, fora reduzido a um idiota apaixonado. E tudo na frente de Westcliff, que observava o casal com grande interesse.
– O que é preciso para eu me livrar de você? – perguntou Sebastian a Evie abruptamente. –
Vá com Westcliff se não quiser ir para a casa na cidade. Não me importo, desde que saia da minha vista.
Evie arregalou os olhos e se encolheu, como se tivesse sido atingida por um dardo. Mas manteve a compostura, inspirando profundamente e deixando o ar sair em um fluxo controlado.
Ao observá-la, Sebastian esteve perto de cair de joelhos e implorar seu perdão. Em vez disso, continuou parado enquanto ela se dirigia à porta.
– Evie... – murmurou.
Ela o ignorou e saiu, aprumando os ombros ao se afastar do escritório.
Sebastian fechou as mãos e a seguiu com o olhar. Depois de vários segundos, forçou-se a encarar Westcliff. Seu velho amigo o observava não com ódio, mas com algo como relutante compaixão.
– Não era isso que eu esperava encontrar – disse Westcliff em voz baixa. – Você não é mais o mesmo, Sebastian.
Fazia anos que Westcliff não o chamava pelo primeiro nome. Os homens, até mesmo irmãos ou amigos íntimos, quase sempre se chamavam por seus sobrenomes ou títulos.
– Vá para o inferno – murmurou Sebastian. – Sem dúvida foi isso que veio me dizer esta noite. Nesse caso, está um mês atrasado.
– Essa era a minha intenção – admitiu Westcliff. – Mas agora decidi ficar e tomar uma taça de conhaque enquanto você me conta o que em nome de Deus está fazendo. Para começar, pode me explicar por que tomou para si a responsabilidade de dirigir um clube de jogos.
Com o clube lotado, aquela era a pior hora possível para se sentar e conversar, mas Sebastian não deu a mínima. Fazia uma eternidade que não conversava com alguém que o conhecia de verdade. Embora não tivesse nenhuma ilusão de que a velha amizade deles se mantivesse, a perspectiva de discutir coisas com Westcliff, até mesmo um impiedoso Westcliff, pareceu um indescritível alívio.
– Está bem – murmurou. – Sim, vamos conversar. Voltarei em um instante. Não posso deixar minha esposa passar pelo clube desacompanhada.
Ele saiu do escritório a passos largos e foi para o hall de entrada. Sem ver nenhum sinal das roupas pretas que Evie usava, deduziu que ela seguira uma rota alternativa, talvez passando pela sala central. Parou diante de uma das entradas arqueadas e olhou para o mar de gente. Os cabelos brilhantes de Evie a tornavam fácil de localizar. Dirigia-se ao canto onde Cam estava sentado.
Vários sócios do clube se afastaram para lhe abrir caminho.
No início, Sebastian a seguiu devagar, depois com crescente urgência. Ele se encontrava em um estado peculiar, tentando entender a si mesmo. Sempre havia lidado bem com as mulheres.
Então por que se tornara impossível continuar indiferente em relação a Evie? Estava separado do que mais queria, não por uma verdadeira distância, mas por um passado manchado pela libertinagem. Permitir-se um relacionamento com ela... Não, isso era impossível. Sua própria iniquidade a saturaria, como tinta derramada em pergaminho branco. Ela se tornaria pessimista, amarga, e o desprezaria quando o conhecesse melhor.
Cam, sentado em um banco alto de onde via as mesas de jogos, notou a aproximação de Evie.
Virou-se para ela e pôs um dos pés no chão. Ergueu a cabeça e deu uma rápida olhada para a sala, sempre atento ao que se passava ao redor. Avistando Sebastian, fez-lhe um pequeno sinal com a cabeça indicando que a manteria com ele até o lorde alcançá-los.
Cam examinou a sala mais uma vez, franzindo as sobrancelhas. Encolheu ligeiramente os ombros, como se sentisse um desconfortável arrepio na nuca e olhou para trás. Não vendo ninguém, começou a se acomodar novamente no banco. Contudo, era como se um instinto perturbador insistisse em fazê-lo examinar a multidão, como se seu olhar estivesse sendo atraído por um ímã. Olhou para a galeria do segundo andar e Sebastian o viu se concentrar com súbita intensidade.
Abstraindo-se da multidão, Sebastian seguiu o olhar perplexo de Cam e viu um homem moreno atarracado em pé no lado leste da galeria. Ele estava sujo e desgrenhado, com os cabelos pretos grudados em seu inconfundível crânio em forma de bala: Joss Bullard. Como ele havia entrado no clube sem ser notado? Devia ter usado alguma entrada secreta. O clube tinha mais entradas e passagens do que a toca de um coelho. E ninguém conhecia o lugar melhor do que Bullard ou Cam.
Houve uma explosão de pensamentos em Sebastian quando ele viu o cano da pistola na mão de Bullard. Mesmo naquele ângulo, o alvo era claro: Evie, que ainda estava a uns 5 metros de Cam.
Movido por puro instinto e dominado pelo pânico, Sebastian se precipitou para a frente com a velocidade de um raio. A figura de Evie lhe pareceu tão nítida e detalhada que até mesmo a fibra do veludo era visível. Todos os seus nervos e músculos se retesaram para alcançá-la, seu coração batendo com força na tentativa de bombear sangue para os membros em rápido movimento. Agarrando-a freneticamente, ele virou seu próprio corpo para protegê-la e usou o impulso da corrida para derrubar os dois no chão.
Um tiro ecoou na sala. Sebastian sentiu um impacto e uma dor ardente, como se alguém tivesse lhe dado um soco. O projétil de chumbo lhe rasgou o músculo e rompeu uma rede de artérias no caminho. A forte queda no chão o deixou momentaneamente aturdido. Ficou parcialmente em cima de Evie, tentando lhe cobrir a cabeça com os braços, enquanto ela se debatia sob ele.
– Não se mexa – disse, ofegante, segurando-a no chão, temendo que Bullard atirasse de novo.
– Espere, Evie.
Ela obedeceu enquanto o local se enchia de sons de gritos, lamentos e passos. Erguendo-se sobre o corpo de bruços de Evie, Sebastian se arriscou a olhar para a galeria do segundo andar.
Bullard se fora. Com um gemido de dor, rolou para o lado e examinou a esposa em busca de ferimentos, apavorado com a possibilidade de a bala também tê-la atingido.
– Evie, querida, você está ferida?
– Por que você me empurrou? – perguntou ela em uma voz abafada. – Não, eu não estou ferida. O que foi aquele barulho?
Ele passou a mão trêmula no rosto de Evie, afastando uma mecha de cabelo que lhe caíra sobre os olhos. Confusa, ela se contorceu para sair de debaixo do marido e se sentou. Sebastian continuou de lado, ofegando e sentindo o sangue quente escorrer por seu peito.
As pessoas estavam se amontoando para fugir do prédio, ameaçando pisotear o casal.
Subitamente um homem se agachou na direção dele depois de abrir caminho pela multidão. Ele usou seu corpo para protegê-los e impedir que fossem pisoteados. Sebastian pestanejou e percebeu que era Westcliff. Zonzo, ergueu a mão para agarrar o casaco dele.
– O alvo dele era Evie – disse Sebastian roucamente. Seus lábios tinham ficado dormentes. –
Mantenha-a segura... mantenha...
Evie estremeceu e gritou ao ver o vermelho vivo espalhando-se pela frente da camisa de Sebastian e perceber que ele fora ferido. Arrancou-lhe os botões do casaco e do colete, em seu súbito frenesi. Sem dizer uma palavra, Westcliff tirou seu próprio casaco e colete e fez com eles uma trouxa. Evie rasgou a camisa ensanguentada de Sebastian e encontrou o ferimento no lado.
Ficou muito pálida e começou a lacrimejar, mas conseguiu controlar seu medo enquanto tirava a trouxa de Westcliff e a apertava firmemente contra o ferimento para reduzir a hemorragia.
A pressão causou tanta dor que Sebastian não conseguiu evitar um gemido. Sua mão continuou suspensa, com os dedos meio curvados. O cheiro de sangue fresco saturava o ar.
Westcliff se inclinou sobre ele e examinou o ferimento de saída da bala.
– Entrou por um lado e saiu pelo outro – Sebastian o ouviu dizer para Evie. – Ao que parece, não causou danos graves a nenhum vaso.
Enquanto Westcliff mantinha a pressão sobre o ferimento, Evie acomodou a cabeça de Sebastian em seu colo sobre um monte de veludo preto macio. Ela segurou com força as mãos do marido. Isso pareceu firmá-lo, contrabalançando a dor persistente na parte inferior do tronco.
Sebastian olhou para o rosto inclinado da esposa, incapaz de interpretar sua expressão. Havia um brilho estranho e profundo nos olhos de Evie, algo como ternura ou tristeza... algo raro e infinito.
Ele não sabia o que era. Ninguém jamais o olhara daquela maneira.
Sebastian tentou dizer algo para afastar a emoção perturbadora dos olhos dela.
– É nisso que dá... tentar bancar o herói. – Foi forçado a parar quando a dor lhe tirou o fôlego. – Acho que, a partir da agora, continuarei a ser um vilão. É muito... mais seguro.
Os olhos pretos de Westcliff brilharam brevemente àquela tentativa de fazer piada.
– O tiro veio da galeria superior – informou ele.
– Um ex-empregado, Bullard, demitido recentemente.
– Tem certeza de que o alvo era Lady St. Vincent?
– Sim.
– Talvez ele achasse que esse era o melhor modo de se vingar de você.
Sebastian estava zonzo, o que tornava difícil pensar claramente.
– Não – murmurou. – Isso só poderia ser verdade se... ele pensasse que eu gosto dela. Todos sabem... que não foi um casamento por amor.
Westcliff lhe lançou um olhar estranho, mas se absteve de responder. Sebastian não tinha como saber qual era a cara dos dois naquele momento, ele agarrando a mão de Evie e a deixando sustentá-lo com a ternura de uma mãe com uma criança machucada. Tudo que sabia era que o ferimento doía insuportavelmente. Tremores incessantes o percorreram até seus dentes começarem a bater. Ele teve uma vaga consciência de Westcliff os deixando por um momento, gritando ordens e voltando com uma braçada de casacos, embora não tivesse ficado claro se seus donos os tinham doado voluntariamente ou não. Os casacos foram postos sobre ele e Westcliff continuou a fazer pressão sobre o ferimento.
Sebastian perdeu a consciência por um momento. Quando voltou a si, sentiu a mão quente de Evie acariciando seu rosto frio e suado.
– O médico está vindo – murmurou ela. – Quando a hemorragia diminuir, nós o levaremos para o andar de cima.
Ele respirou tremulamente por entre dentes cerrados.
– Onde está Rohan?
– Eu o vi perseguindo Bullard logo após o tiro – respondeu Westcliff. – Ele subiu por uma coluna até o segundo andar.
– Se ele não pegar o canalha, eu o pegarei – murmurou Sebastian. – E então...
– Shhh... – disse Evie, deslizando sua mão livre por sob o monte de casacos para lhe tocar o peito nu.
Ela pôs a palma da mão sobre o coração que batia fracamente e passou os dedos pela fina corrente de ouro ao redor do pescoço de Sebastian. Seguindo a corrente, descobriu a aliança de casamento de ouro escocês pendurada nela.
Sebastian não queria que ela descobrisse que ele usava a aliança sob as roupas. Agitado, sussurrou:
– Isso não significa nada. Só queria mantê-la segura...
– Eu entendo – murmurou Evie, pondo a palma da mão mais uma vez sobre o peito do marido. Ele a sentiu roçar os lábios em sua testa, a carícia suave da respiração. Evie sorriu. –
Sabe, você me deu a desculpa perfeita para ficar. Vou cuidar até você ficar bem o suficiente para me pôr para fora sozinho.
Sebastian não conseguiu retribuir o sorriso. Foi dominado pela ansiedade ao perceber que Evie não estaria segura ali e em nenhum outro lugar até que Bullard fosse capturado.
– Westcliff – disse roucamente Sebastian–, alguém tem de... proteger minha esposa.
– Não acontecerá nada com ela – garantiu ele.
Quando Sebastian olhou para o velho amigo, o único homem honrado que já conhecera, viu que o rosto de Westcliff estava cuidadosamente impassível. Ambos sabiam que Evie era inexperiente demais para saber. Embora a bala não tivesse atingido nenhum órgão vital, o ferimento poderia supurar. Sebastian não morreria de hemorragia, mas era provável que sucumbisse a uma febre fatal. Nesse caso, ela ficaria sozinha e indefesa em um mundo cheio de predadores. Homens como ele mesmo.
Tremendo de frio e choque, Sebastian tentou desesperadamente falar, descobrindo que precisava tomar fôlego várias vezes para pronunciar as palavras.
– Westcliff, o que eu fiz antes... sinto muito. Perdoe-me... perdoe-me... – Ele sentiu seus olhos começarem a se revirar e tentou permanecer consciente. – Mantenha Evie em segurança, por favor.
Então afundou cada vez mais no oceano da inconsciência, até ficar perdido na escuridão.
– Sebastian – sussurrou Evie, levando a mão inerte do marido à sua bochecha.
Ela lhe beijou os nós dos dedos enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto.
– Está tudo bem – tranquilizou-a Westcliff. – Ele só desmaiou. Voltará a si em um instante.
Evie soltou um arquejo antes de recuperar o controle.
– Ele se jogou na minha frente. Levou o tiro por mim.
– É o que parece.
Westcliff a observou com curiosidade, avaliando as interessantes mudanças em Sebastian e na sua improvável noiva desde a fuga deles. Quando Lillian soube do casamento de St. Vincent e Evangeline Jenner, ficara furiosa, apavorada com a possibilidade de ele ter feito algum mal à amiga.
– Aquele monstro! – gritara quando voltaram da Itália. – Fazer isso com Evie, dentre todas as pessoas... Ah, você não sabe quanto ela é frágil. Deve ter sido cruel! Ela é indefesa e tão inocente... Meu Deus, vou matá-lo.
– Sua irmã disse que Evie não parecia ter sido maltratada – salientara Westcliff racionalmente, embora também estivesse muito preocupado com a ideia de uma pessoa indefesa como Evangeline Jenner ficar à mercê de St. Vincent.
– Ela provavelmente estava com medo demais para admitir alguma coisa – dissera Lillian, seus olhos escuros inquietos enquanto andava de um lado para outro. – Provavelmente a violentou. Ameaçou-a. Talvez até mesmo tenha batido nela...
– Não, não – tranquilizara-a Westcliff, tomando nos braços o corpo rígido da esposa. –
Segundo Daisy e Annabelle, houve muitas oportunidades de ela lhes contar, caso tivesse sofrido algum abuso. Mas ela não disse nada. Se isso a tranquilizar, irei ao clube lhe oferecer refúgio.
Ela pode ficar conosco em Hampshire, se quiser.
– Por quanto tempo? – murmurara Lillian, aninhando-se mais nos braços do marido.
– Indefinidamente, é claro.
– Ah, Marcus... – Seus olhos castanhos brilharam, subitamente úmidos. – Você faria isso por mim?
– Qualquer coisa, amor – dissera ele gentilmente. – Qualquer coisa para fazê-la feliz.
E então Westcliff tinha ido ao Jenner’s naquela noite para descobrir se Evangeline estava sendo mantida lá contra a sua vontade. Ao contrário do que esperava, encontrara uma mulher que parecia ansiosa por ficar e obviamente nutria afeto por St. Vincent.
Quanto ao visconde, sempre tão indiferente, era difícil acreditar que o homem que tratava as mulheres com tanta arrogância e crueldade pudesse ser o mesmo que acabara de arriscar a própria vida. Receber um pedido de perdão de alguém que nunca expressara arrependimento de nada e depois ouvi-lo praticamente implorar pela proteção da esposa levava a uma inevitável conclusão. Contra todas as probabilidades, St. Vincent aprendera a se importar mais com outra pessoa do que com ele mesmo.
A situação era extraordinária. Era difícil entender como alguém como Evangeline Jenner podia ter produzido tamanha mudança em St. Vincent, o mais mundano dos homens. Contudo, Westcliff aprendera que os mistérios da atração nem sempre podiam ser explicados pela lógica.
Às vezes, a distância entre duas almas acabava por uni-las.
– Milady... – disse ele gentilmente.
– Evie – corrigiu-o ela, ainda segurando a mão do marido junto a seu rosto.
– Evie, por que procurou St. Vincent, dentre todos os homens, com uma proposta de casamento?
Abaixando a mão de St. Vincent devagar, Evie sorriu tristemente:
– Eu precisava de um modo de escapar da minha família, legal e permanentemente. O casamento era a única solução. E, como certamente sabe, eu não tinha nenhuma fila de pretendentes em Hampshire. Quando soube o que St. Vincent havia feito com Lillian, fiquei chocada, mas também me ocorreu que ele era o único homem que eu conhecia que parecia tão desesperado quanto eu. Desesperado o suficiente para concordar com qualquer coisa.
– Era parte de seu plano ele dirigir o clube?
– Não, isso foi uma decisão dele, que me surpreendeu muito. Na verdade, ele vem me surpreendendo desde que nos casamos.
– Como assim?
– Ele fez todo o possível para cuidar de mim, ao mesmo tempo proclamando sua indiferença.
– Ela olhou para o rosto inconsciente do marido. – Não é um homem sem coração, por mais que tente fingir o contrário.
– Não, não é – concordou Westcliff. – Embora eu tivesse minhas dúvidas até hoje à noite.
CAPÍTULO 18
Embora Cam e Westcliff tomassem o maior cuidado possível, o processo de carregar Sebastian escada acima o enfraqueceu muito. Evie os seguia logo atrás, muito aflita com a palidez do marido. Cam estava perturbado, embora mantivesse as emoções sob controle enquanto se concentrava em fazer o que era preciso.
– Eu não sei como entrou – murmurou o rapaz.
Evie percebeu que Cam se referia a Bullard.
– Conheço todas as entradas e saídas deste lugar. Pensei que houvesse cuidado de...
– A culpa não é sua, Cam – interrompeu-o Evie em voz baixa.
– Alguém deve tê-lo deixado entrar, embora eu tivesse dito aos empregados...
– A culpa não é sua – repetiu ela, e o rapaz se calou, embora estivesse claro que não concordava.
Westcliff se manteve calado exceto por algumas instruções murmuradas quando eles fizeram uma curva. Carregava a parte superior do corpo de Sebastian enquanto Cam lhe segurava as pernas. Embora Sebastian fosse um homem grande, ambos tinham bom preparo físico e o levaram até o quarto principal sem dificuldade. O quarto acabara de ser reformado, as paredes tendo sido cobertas com uma camada de tinta cor de creme. A velha cama havia sido descartada e substituída por uma nova, grande e bonita, que Sebastian mandara trazer de sua casa na cidade.
Ninguém havia pensado que aquele quarto se tornaria outra vez o de um doente, tão pouco tempo após a morte de Ivo Jenner.
Instruídas por Evie, duas camareiras corriam de um lado para outro trazendo toalhas e água e rasgando lençóis em tiras largas. O corpo mole de Sebastian foi posto na cama e Evie lhe tirou as botas enquanto Cam e Westcliff removiam as roupas manchadas de sangue. Por uma questão de pudor, o deixaram com suas roupas de baixo de linho branco.
Evie mergulhou um pano limpo na água morna e limpou o sangue do corpo do marido. Havia manchas cor de ferrugem onde ele secara, entre os pelos macios do peito. Como Sebastian parecia forte e indefeso ao mesmo tempo, com seu corpo mais magro e seus músculos desenvolvidos por atividades físicas constantes e várias brigas recentes no beco.
Westcliff pegou um pano e enxugou suavemente o ferimento para examiná-lo melhor.
– A julgar pelo tamanho do orifício, eu diria que Bullard usou uma pistola calibre 50.
– Estou com a arma – disse Cam sucintamente. – Bullard a deixou cair da galeria do segundo andar depois que atirou.
Westcliff estreitou os olhos, interessado.
– Deixe-me vê-la.
O rapaz tirou a pistola do bolso do casaco e a entregou para ele, segurando-a pelo cano. O conde a examinou com o olhar de um perito.
– Uma pistola de duelo – observou. – Cano octogonal de nove polegadas com mira... escapes de segurança, culatra e placas de fixação gravadas. É uma arma cara, e parte de um par.
Fabricante: Manton and Son of Dover Street. – Ele a olhou mais atentamente. – Há uma placa de prata gravada com o nome do dono, eu acho. Embora esteja suja demais para distinguir as letras.
Ele olhou para Cam e arqueou uma sobrancelha enquanto punha a arma no bolso.
– Com sua permissão, ficarei com ela.
Parecendo entender que sua permissão não era realmente necessária, Cam respondeu secamente:
– Sem dúvida, milorde.
A conversa foi interrompida pela chegada do Dr. Hammond, um homem bondoso e com ótima reputação, que já atendera o pai de Evie. Cam e Westcliff saíram do quarto enquanto Hammond examinava o paciente, limpava o ferimento e o cobria com uma leve atadura.
– Embora nenhum órgão importante tenha sido atingido, é um ferimento grave – disse ele, seu rosto barbudo com uma expressão séria. – A recuperação dependerá da capacidade de resistência, da qualidade dos cuidados e, como sempre, da graça divina. É quase certo que ele terá febre. Nesse caso, quase sempre sou obrigado a sangrar o paciente para drenar todo o sangue doente possível. Eu o visitarei diariamente para determinar se ou quando isso será necessário.
Nesse meio-tempo, mantenha-o limpo e descansado, dê-lhe água e caldo de carne, e este remédio para diminuir o desconforto.
Evie recebeu do Dr. Hammond um frasco de xarope opiado e murmurou agradecimentos.
Depois que o médico foi embora, cobriu Sebastian com uma colcha, vendo os efeitos do choque e da perda do sangue em seus tremores incontroláveis.
Sebastian abriu os olhos e se concentrou com dificuldade nela.
– A menos que encontre algum anjo corrupto para subornar, terei problemas se eu precisar de graça divina.
Surpresa, Evie deu uma risada.
– Não blasfeme. – Ela abriu o xarope, o despejou em uma colher e passou um dos braços por trás do pescoço de Sebastian. – Tome isto.
Ele engoliu o remédio, fez uma careta e praguejou.
Mantendo o braço atrás de Sebastian, ela estendeu a mão livre para pegar um copo d’água e o levou aos lábios do marido até os dentes dele baterem na borda.
– Beba – murmurou.
Sebastian obedeceu e se apoiou novamente nos travesseiros.
– Bullard...
– Cam não conseguiu pegá-lo – respondeu Evie segurando um pequeno pote de unguento.
Ela passou suavemente um pouco nos lábios secos de Sebastian. – Lorde Westcliff e ele estão lá embaixo, falando com o policial encarregado da investigação.
– Alguém mais se feriu? – perguntou Sebastian, tentando se sentar.
Uma pontada de dor o fez empalidecer e ele se deixou cair, sufocando um grito.
– Não se mexa ou começará a sangrar de novo – disse Evie firmemente. – Ela pôs uma das mãos no peito do marido e a passou pela corrente fina e brilhante. – Ninguém mais se feriu.
Assim que os sócios do clube foram informados de que o agressor fugiu, todos voltaram e pareceram bastante entretidos com os acontecimentos da noite.
Sebastian esboçou um sorriso.
– Mais entretenimento do que eu pretendia oferecer.
– Cam disse que isso não afetará em nada o negócio.
– Medidas de segurança – sussurrou Sebastian, exausto com o esforço de falar. – Diga a Cam...
– Sim, ele está contratando mais homens. Não pense em nada disso agora. Só pense em ficar bem.
– Evie... – Trêmulo, Sebastian procurou a mão da esposa e a levou ao seu peito nu. Sob as mãos de ambos, a aliança foi apertada contra seu coração, que batia irregularmente. – Vá com Westcliff quando tudo terminar.
“Tudo terminar”? Evie olhou para o rosto pálido do marido e percebeu que ele estava se referindo à própria morte. Ao senti-lo soltar sua mão, segurou mais firme a dele. A mão de Sebastian havia mudado. Não era mais lisa, com as unhas bem cuidadas, mas calosa e com as unhas cortadas muito curtas.
– Não – disse ela de modo suave e intenso. – Nada disso. Ficarei com você em todos os momentos. Eu o manterei comigo. Não o deixarei ir.
Subitamente Evie teve dificuldade de respirar e sentiu a pressão do pânico em seu peito.
Continuando inclinada sobre ele, virou a mão para que as palmas de ambos se unissem, seus pulsos batendo juntos: um fraco, o outro forte.
– Se depender do meu amor, eu o manterei comigo.
Sebastian acordou zonzo de dor. Não era só o ferimento que doía, mas também a cabeça, os ossos e as articulações. Estava desidratado e ardente, como se houvesse fogo sob sua pele, e ele se contorceu em uma tentativa inútil de escapar do calor. Subitamente um par de mãos gentis desceu sobre ele e um pano molhado foi passado em seu rosto. Sebastian deu um suspiro de alívio e estendeu a mão para a fonte de frescor e maciez, agarrando-a desesperadamente.
– Não. Sebastian, não. Fique deitado quieto. Deixe-me ajudá-lo.
Era a voz de Evie, sobrepondo-se àquela dor enlouquecedora. Ofegando, Sebastian se forçou a soltá-la e desabou no colchão. O pano frio foi passado sobre ele, aliviando temporariamente seu tormento. A cada passada, Sebastian se acalmava mais até conseguir ficar deitado e quieto.
– Evie – disse roucamente.
Ela parou para pôr um pouco de gelo triturado entre os lábios rachados do marido.
– Sim, querido. Estou aqui.
Sebastian ergueu os olhos. Perplexo com tanto carinho, a viu inclinar-se sobre ele. O gelo se dissolveu rapidamente em sua boca seca. Antes de ter de pedir, ela lhe deu mais. Com um pano fresco, limpou-lhe o peito, os lados do corpo e as axilas. O quarto estava escuro, exceto pela luz do dia que vinha de uma janela parcialmente coberta pela qual entrava uma brisa fria.
Notando a direção do olhar do marido, Evie murmurou:
– O médico disse que eu deveria manter a janela fechada. Mas você parece descansar mais confortavelmente quando está aberta.
Sebastian se sentiu profundamente grato enquanto Evie continuava a banhá-lo com o pano frio. A camisola branca e a pele clara a faziam parecer um espírito puro e benevolente, exercendo sua magia sobre ele na escuridão.
– Quanto tempo? – sussurrou Sebastian.
– Este é o terceiro dia. Amor, se puder se virar um pouco para o lado bom... deixe-me pôr um travesseiro aí...
Quando Sebastian ficou com as costas parcialmente expostas, Evie lhe banhou os ombros doloridos e ele gemeu. Lembrou-se vagamente de outros momentos em que ela fizera isso... das mãos leves... do rosto sereno à luz do lampião. Em algum ponto no meio do pesadelo de confusão e dor, tivera consciência de que Evie estava cuidando dele, atendendo às suas necessidades com surpreendente intimidade. Quando tivera calafrios de febre, ela o protegera com cobertores e abraçara seu corpo trêmulo. Estava sempre ali antes mesmo de precisar chamá-la, como se lesse seus pensamentos confusos. Seu maior medo sempre fora depender de alguém dessa maneira. E a cada hora ficava mais fraco, à medida que o ferimento inflamava e a febre aumentava. Sebastian sentia a morte pairando sobre ele como um espectro impaciente, pronta para levá-lo quando tivesse perdido todas as suas defesas.
Até agora ele não se dera conta da força de Evie. Mesmo quando tinha visto o cuidado e o amor que dedicara ao pai, não havia imaginado como seria contar com ela, precisar dela. Mas nada a repugnava, nada era demais para lhe pedir. Evie era seu apoio e amparo. Ao mesmo tempo, o mimava com uma afeição e uma ternura pelas quais ele tinha começado a ansiar, ainda que isso o assustasse.
Ela o envolveu com seus braços esguios e o baixou devagar para o colchão.
– Uns goles de água – disse, sustentando-lhe a cabeça. Ele tentou protestar, porque, embora estivesse com a boca seca e pegajosa, parecia que até mesmo uma ou duas gotas lhe dariam náuseas. – Por mim – insistiu ela, levando-lhe um copo aos lábios.
Sebastian a olhou de cara feia, mas obedeceu... e ficou perturbado quando o elogio dela lhe provocou um arrepio de prazer.
– Você é um anjo – murmurou Evie, sorrindo. – Muito bem. Agora descanse e eu o refrescarei um pouco mais.
Suspirando, Sebastian relaxou enquanto o pano úmido deslizava levemente por seu rosto e pescoço. Ele mergulhou em um oceano de densa e sufocante escuridão em que os sonhos não lhe deram paz. Depois do que poderiam ter sido minutos, horas ou dias, acordou se contorcendo de dor, segurando a lateral do corpo, que ardia como se uma lança envenenada tivesse se alojado nela.
A voz calma de Evie o tirou de seu frenesi.
– Sebastian, por favor... Deite-se de novo. Dr. Hammond está aqui. Deixe-o examiná-lo.
Sebastian descobriu que estava fraco demais para se mover. Parecia que pesos de chumbo tinham sido colocados em seus braços e suas pernas.
– Ajude-me – sussurrou roucamente, tentando mudar de posição.
Entendendo imediatamente, Evie se apressou a pôr um travesseiro sob a cabeça do marido.
– Boa tarde, milorde – disse uma voz de barítono.
O corpulento médico apareceu diante dele com um leve sorriso lhe separando a barba grisalha e iluminando o rosto corado.
– Eu esperava alguma melhora – disse o médico para Evie. – A febre baixou?
Ela balançou a cabeça.
– Algum sinal de apetite ou sede?
– Às vezes ele bebe um pouco de água – murmurou Evie, entrelaçando seus dedos nos de Sebastian. – Mas não consegue segurar no estômago nenhum caldo.
– Terei que dar uma olhada no ferimento.
Sebastian sentiu as roupas de cama sendo abaixadas até a altura de seus quadris e depois a atadura foi removida. Quando tentou protestar contra a indignidade de ser exposto de um modo tão insultante, Evie pôs a mão em seu peito.
– Está tudo bem – sussurrou. – Ele está tentando ajudar.
Febril demais para erguer a própria cabeça, Sebastian se concentrou no rosto de Evie enquanto ela e o médico olhavam para o ferimento. Não houve nenhuma mudança na expressão de Evie, mas ele viu pelo rápido e duplo pestanejar dela que sua condição não havia melhorado.
– Como eu temia, está inflamando – disse Hammond em voz baixa. – Está vendo esses riscos vermelhos se estendendo na direção do coração? Terei de remover um pouco do sangue doente.
Espero que isso diminua um pouco a inflamação.
– Mas ele já perdeu tanto sangue... – disse Evie, insegura.
– Não serão mais que 2 litros – respondeu Hammond de um modo firme, mas tranquilizador.
– Isso não o prejudicará, milady, apenas ajudará a reduzir a constrição dos vasos causada pelo acúmulo de venenos.
Sebastian sempre vira o procedimento de sangria com desconfiança, ainda mais sendo realizado nele. Sentiu seu pulso se acelerar até bater fraca e repetidamente em suas veias, e puxou a mão de Evie.
– Não – sussurrou, respirando rápido demais.
Sentiu-se zonzo e tentou enxergar através dos pontos brilhantes que lhe ofuscavam a visão.
Não percebeu que havia desmaiado, mas quando abriu os olhos de novo descobriu que seu braço esquerdo estava amarrado nas costas de uma cadeira ao lado da cama, em cujo assento havia uma tigela. A tigela não continha nenhum sangue ainda, mas Hammond se aproximava dele com um pequeno objeto que parecia uma caixa.
– O que é isso? – perguntou Evie.
Sebastian reuniu todas as suas forças para virar a cabeça no travesseiro e olhar para ela.
– Chama-se escarificador. É um método de sangrar muito mais eficiente do que a antiquada lanceta.
– Evie – sussurrou Sebastian.
Ela não pareceu ouvi-lo, seu olhar fixo no médico que continuava a explicar:
– A caixa contém doze lâminas ligadas a um mecanismo giratório movido por uma mola.
Acionando-se o mecanismo, as lâminas produzem uma série de cortes rasos que fazem o sangue fluir.
– Evie.
Ela olhou de relance para Sebastian. Algo na expressão do marido a fez contornar a cama e ir até ele.
– Sim – disse com as sobrancelhas franzidas de preocupação. – Meu querido, isso vai ajudá-lo...
– Não.
Isso o mataria. Já era bastante difícil lutar contra a febre e a dor. Se ficasse mais enfraquecido por uma longa sangria; não conseguiria sobreviver. Desesperado, puxou o braço estendido, mas estava bem amarrado na cadeira e nem mesmo conseguia movê-lo. Maldição. Olhou tristemente para a esposa, lutando contra uma onda de náusea.
– Não o deixe...
– Querido – sussurrou Evie, inclinando-se para lhe beijar a boca trêmula. Lágrimas não derramadas subitamente fizeram seus olhos brilharem. – Talvez essa seja sua melhor chance...
– Vou morrer. Evie... – Um medo crescente lhe obscureceu a visão, mas ele se forçou a manter os olhos abertos. O rosto de Evie se tornou um borrão. – Vou morrer.
– Lady St. Vincent – disse o Dr. Hammond firme e gentilmente –, a ansiedade de seu marido é bastante compreensível. Contudo, ele se encontra com o julgamento prejudicado pela doença.
A senhora é a única que pode tomar decisões em benefício dele. Eu não recomendaria esse procedimento se não acreditasse em sua eficácia. Deve me deixar prosseguir. Duvido que lorde St. Vincent algum dia vá se lembrar desta conversa.
Sebastian fechou os olhos e gemeu de desespero. Se ao menos Hammond fosse um maluco com uma risada maníaca, alguém de quem Evie desconfiasse instintivamente! Mas o médico era um homem respeitável, com toda a convicção de quem acreditava estar fazendo a coisa certa. Ao que parecia, um carrasco podia assumir muitos disfarces. Evie era sua única esperança, sua única defensora. Ele nunca havia pensado que chegaria a esse ponto: sua vida dependia de uma jovem ingênua que provavelmente se permitiria ser persuadida pela autoridade de Hammond. Não tinha mais ninguém a quem recorrer.
Sentiu os dedos suaves de Evie na lateral de seu rosto febril e a olhou suplicante, sem conseguir pronunciar uma só palavra. Ah, Deus, Evie, não o deixe...
– Está bem – disse ela com suavidade, olhando para Sebastian.
Ele teve a impressão de que seu coração havia parado ao achar que Evie estava falando com o médico, dando-lhe permissão para sangrá-lo. Mas ela foi até a cadeira, desamarrou habilmente seu punho e começou a lhe massagear a pele avermelhada.
Evie gaguejou um pouco ao falar:
– Dr. H-Hammond... lorde St. Vincent não que-quer o procedimento. Devo atender ao de-desejo dele.
Para sua eterna humilhação, Sebastian deu um gemido de alívio.
– Milady – retrucou Hammond com grave ansiedade. – Eu imploro para que reconsidere.
Atender ao desejo de um homem que está delirando de febre pode ser fatal para ele. Deixe-me ajudá-lo. Deve confiar em meu julgamento, porque sou infinitamente mais experiente nessas questões.
Evie se sentou cuidadosamente no lado da cama e pôs a mão de Sebastian em seu colo.
– Eu respeito seu ju-ju... – Ela parou e balançou a cabeça, impaciente com a própria gagueira.
– Meu marido tem o direito de decidir.
Sebastian curvou os dedos nas dobras das saias de Evie. A gagueira era um sinal claro de sua ansiedade, mas ela não cederia. Ficaria do seu lado. Sebastian suspirou tremulamente e relaxou, tendo a sensação de que sua alma impura havia sido entregue aos cuidados dela.
Hammond balançou a cabeça e começou a juntar seus instrumentos.
– Se não me permite usar minhas habilidades – disse ele com calma e dignidade – e se recusa a acatar minha opinião profissional, temo não poder ajudá-los. Se não for feito o tratamento correto, só posso prever um mau resultado para essa situação. Que Deus os ajude.
O médico saiu do quarto, deixando para trás um ar carregado de desaprovação. Aliviado, Sebastian abriu os dedos longos sobre a coxa de Evie.
– Já vai tarde – conseguiu murmurar quando a porta se fechou.
Ao olhar para Sebastian, Evie estava dividida entre rir e chorar.
– Mula teimosa – disse, com seus olhos úmidos. – Acabamos de dispensar um dos médicos mais renomados de Londres. Qualquer outro que encontrarmos vai querer sangrá-lo também.
Quem eu deveria chamar agora? Um bruxo? Um xamã? Uma cartomante de Covent Garden?
Usando o resto de suas forças, Sebastian levou a mão de Evie à sua boca.
– Você – sussurrou, segurando os dedos dela junto aos lábios. – Apenas você.
CAPÍTULO 19
Evie teve muitas dúvidas sobre sua decisão de não deixar o Dr. Hammond cuidar de Sebastian.
Depois da partida do médico, Sebastian piorou, o ferimento se tornando mais inchado e inflamado a cada hora e a febre continuando a subir. À meia-noite, ele não estava mais lúcido.
Seus olhos brilhavam como os de um demônio em seu rosto vermelho e ele olhava para Evie sem reconhecê-la, murmurando palavras incoerentes que ela nem sempre entendia e fazendo revelações sombrias que a enchiam de compaixão.
– Shhh – sussurrava ela às vezes. – Shhh, Sebastian. Você não está...
Mas ele persistia em uma onda de terrível desespero, sua mente atormentada se agitando cada vez mais, até Evie finalmente parar de tentar acalmá-lo e lhe segurar as mãos ouvindo pacientemente a amarga ladainha. Nunca em seus momentos conscientes ele teria permitido a alguém vislumbrar seu eu interior vulnerável. Mas talvez Evie soubesse melhor do que ninguém como era viver em desesperada solidão, ansiando por conexão e plenitude. E ela também conhecia as profundezas a que a solidão o havia levado.
Depois de algum tempo, quando a voz rouca de Sebastian se transformara em sussurros entrecortados, Evie trocou o pano frio da testa e passou unguento nos lábios rachados do marido.
Manteve a mão na lateral de seu rosto, a barba por fazer lhe arranhando os dedos. Em seu delírio, Sebastian virou a bochecha para a palma suave dela com um murmúrio sem palavras. Criatura linda, pecadora, atormentada. Alguns diriam que era errado gostar desse homem. Mas, ao olhar para aquele corpo indefeso, Evie soube que nenhum outro jamais significaria para ela o que ele tinha significado. Apesar de tudo, Sebastian estivera disposto a dar a vida por ela.
Deitando-se na cama, Evie encontrou a corrente entre os pelos encaracolados e macios do peito do marido, cobriu a aliança com a palma da mão e se permitiu dormir ao seu lado por algumas horas.
Quando o dia raiou, viu que ele estava totalmente imóvel, perdido em um estupor.
– Sebastian?
Sentiu-lhe o rosto e o pescoço. A febre tinha subido muito. Parecia impossível uma pele humana estar tão quente. Ela saiu da cama, foi aos tropeções até a corda do sino e a puxou violentamente. Com a ajuda de Cam e das criadas, cobriu a cama com um oleado e aplicou sacos de musselina cheios de gelo no corpo de Sebastian. Ele continuou imóvel e calado durante todo o processo. Por um momento, as esperanças de Evie aumentaram quando a febre pareceu baixar, mas logo voltou a subir implacavelmente.
Cam, que tinha assumido as responsabilidades de Sebastian no clube, além das suas próprias, olhou quase igualmente exausto para Evie. Ainda com as roupas da noite e uma gravata cinza pendurada ao redor do pescoço, foi até o lado da cama onde ela estava sentada.
Evie nunca tinha sentido tanto desespero. Mesmo nos piores momentos com os Maybricks sempre tivera esperança. Mas se Sebastian não sobrevivesse, nunca mais sentiria prazer com nada.
Ele tinha sido o primeiro homem a tirá-la de sua prisão de timidez. E havia cuidado dela como ninguém jamais o fizera. Pensando no tijolo quente que ele encostara em seus pés durante a viagem infernal para a Escócia, sorriu desolada. Falou com Cam sem tirar os olhos do rosto cor de cera do marido:
– Não sei o que fazer por ele – sussurrou. – Qualquer médico que eu chame vai querer sangrá-lo, e eu lhe prometi que não permitiria isso.
Estendendo sua mão magra, Cam afastou algumas mechas de cabelo sujo do rosto de Evie.
– Minha avó era curandeira – disse ele, pensativo. – Lembro que ela costumava inundar os ferimentos com água salgada e lhes aplicar uma compressa de musgo seco do pântano. E quando eu tinha febre, fazia-me mastigar tubérculos de maravilha.
– Maravilha? – repetiu Evie sem entender. – Nunca ouvi falar nisso.
Cam pôs uma mecha de cabelo atrás da orelha dela.
– É uma planta que cresce nos charcos.
Evie afastou a cabeça da mão dele, constrangida por estar com o cabelo sujo, ainda mais sabendo da grande importância que os ciganos davam ao asseio pessoal. Ao contrário da crença popular, eles tinham vários rituais relacionados à limpeza.
– Acha que poderia conseguir um pouco?
– Da planta?
– E do musgo.
– Acho que sim, se tiver tempo suficiente.
– Creio que não lhe resta muito tempo – disse Evie com uma voz entrecortada. Apavorada com a possibilidade de perder o controle de suas emoções, se aprumou na cadeira e se esquivou ao toque reconfortante de Cam. – Não, eu estou bem. Encontre o que achar que ajudará.
– Voltarei logo.
Exausta e indecisa, Evie continuou sentada à cabeceira da cama, ciente de que provavelmente devia ter satisfeito alguma de suas próprias necessidades de sono, alimento e cuidados. Mas tinha medo de deixar Sebastian sozinho até mesmo por alguns minutos. Não queria voltar e descobrir que ele havia morrido enquanto ela não estava lá.
Tentou afastar a sombra do cansaço por tempo suficiente para tomar uma decisão, mas seu cérebro parecia não funcionar. Curvada na cadeira, olhou para o marido moribundo. Ela sentia um peso tão grande na alma e no corpo que lhe impossibilitava agir ou pensar. Não estava atenta à entrada de ninguém no quarto ou a qualquer movimento além da mínima e quase imperceptível subida e descida do peito de Sebastian. Pouco a pouco, notou o homem em pé ao lado de sua cadeira, da presença dele emanando uma vitalidade e força surpreendentes no clima sonolento do quarto do doente: lorde Westcliff.
Sem dizer nenhuma palavra, Westcliff lhe estendeu a mão e a levantou, segurando-a quando ela cambaleou.
– Eu trouxe uma pessoa para vê-la – disse em voz baixa.
O olhar de Evie percorreu o quarto até ela conseguir focá-lo na outra visita.
Era Lillian Bowman – agora Lady Westcliff –, linda e radiante em um vestido cor de vinho.
Sua pele clara estava levemente bronzeada pelo sol do sul da Itália e os cabelos pretos elegantemente presos na nuca em uma rede de seda com contas brancas. Lillian era alta e esguia, o tipo de mulher que se poderia imaginar comandando o próprio navio pirata, nascida para atividades perigosas e não convencionais. Embora não tivesse a beleza romântica de Annabelle Hunt, Lillian possuía uma atratividade natural que proclamava sua origem antes mesmo de alguém ouvir seu sotaque nova-iorquino.
De seu círculo de amigas, Lillian era a menos próxima. Ela não possuía a suavidade maternal de Annabelle ou o otimismo radiante de Daisy... e sempre a intimidara com sua língua afiada e seu pavio curto. Contudo, sempre se podia contar com ela nos momentos de dificuldade. E
depois de dar uma olhada no rosto cansado de Evie, Lillian foi até ela decidida e a envolveu em seus longos braços.
– Evie – murmurou carinhosamente –, no que você se meteu?
A surpresa e o alívio de ser abraçada por uma amiga que não esperava ver dominaram Evie totalmente. Ela sentiu uma ardência nos olhos e um aperto na garganta até não conseguir mais conter o choro. Lillian a abraçou com mais força.
– Você devia ter visto a minha reação quando Annabelle e Daisy me contaram o que tinha feito – disse ela, dando firmes tapinhas nas costas da amiga. – Quase desabei no chão e xinguei St. Vincent de tudo que possa imaginar por se aproveitar de você. Fiquei tentada a vir aqui e atirar eu mesma nele. Mas parece que alguém me poupou esse trabalho.
– Eu o amo – sussurrou Evie entre soluços.
– Não é possível – disse Lillian categoricamente.
– Sim, eu o amo, e vou perdê-lo como perdi meu pai. Não vou suportar isso. Ficarei louca.
Lillian deu um suspiro e murmurou:
– Só você poderia amar um vilão desses, orgulhoso e egoísta. Ah, tenho de admitir que ele tem seus atrativos, mas seria melhor dedicar seu amor a alguém que realmente pudesse retribuí-lo.
– Lillian – protestou Evie, chorosamente.
– Ah, está bem. Acho que não é certo falar mal de um homem acamado. Por enquanto vou me calar. – Ela se afastou e olhou para o rosto molhado de Evie. – As outras queriam vir, é claro.
Mas Daisy está solteira e por isso não pode nem mesmo espirrar sem uma acompanhante e Annabelle se cansa facilmente por causa de seu estado. Mas Westcliff e eu estamos aqui e vamos resolver tudo.
– Vocês não podem – disse Evie, fungando. – O ferimento... Ele está tão doente... Acho que entrou em coma...
Pondo seu braço ao redor de Evie, Lillian se virou para o conde e perguntou em uma voz alta totalmente inadequada para o quarto de um doente.
– Ele está em coma, Westcliff?
O conde, que estava inclinado sobre o corpo de bruços de Sebastian, a olhou sarcasticamente.
– Duvido que alguém pudesse estar, com o barulho que vocês duas estão fazendo. Não, se ele estivesse em coma, não poderia ser acordado. E definitivamente se mexeu quando você gritou.
– Eu não gritei, falei alto – corrigiu-o Lillian. – Há uma diferença.
– Há? – perguntou Westcliff brandamente, baixando as cobertas até os quadris de Sebastian.
– Você levanta a voz com tanta frequência que eu não saberia dizer.
Lillian deu uma risada e soltou Evie.
– Estando casada com você, qualquer mulher... Meu Deus, isso está horrível! – A última afirmação foi feita quando Westcliff revelou o ferimento.
– Sim – concordou Westcliff, olhando para a carne purulenta e os riscos vermelhos se estendendo para fora.
Imediatamente Evie foi para a cabeceira, enxugando as lágrimas com a mão. Westcliff, competente como sempre, tirou um lenço de seu casaco e o entregou a ela, que enxugou os olhos e assoou o nariz enquanto olhava para o marido.
– Ele está inconsciente desde ontem à tarde – disse para Westcliff, trêmula. – Eu não deixei o Dr. Hammond fazer a sangria. Sebastian não quis. Mas agora gostaria de ter deixado. Isso poderia tê-lo feito melhorar. Só que eu não podia permitir que lhe fizessem nada contra sua vontade. O modo como ele me olhou...
– Duvido que isso o tivesse feito melhorar – interrompeu-a Westcliff. – Também podia tê-lo matado.
Lillian se aproximou mais, estremecendo ao olhar para o feio ferimento e depois para a palidez anormal de Sebastian.
– Então o que devemos fazer por ele?
– O Sr. Rohan sugeriu inundar o ferimento com uma solução de água salgada – disse Evie, cobrindo delicadamente o orifício causado pela bala e puxando as cobertas para o peito de Sebastian. – E ele conhece uma planta que pode ajudar a diminuir a febre. Neste momento está tentando encontrar um pouco.
– Poderíamos limpá-lo com suco de alho cru – sugeriu Lillian. – Minha avó usava isso em arranhões e cortes e cicatrizavam muito mais rápido.
– Minha velha governanta, a Sra. Faircloth, usava vinagre – murmurou Westcliff. – Ardia como o inferno, mas funcionava. Acho que podemos experimentar uma combinação dos três e acrescentar um pouco de terebentina.
Lillian o olhou desconfiada.
– Resina de pinheiro?
– Em uma forma destilada – respondeu Westcliff. – Já vi isso curar gangrena. – Virando Lillian de frente para ele, beijou sua testa. – Vou procurar os itens necessários e calcular as medidas. – Ele estava com uma expressão séria, mas os olhos amorosos fixos nos dela. – Nesse meio-tempo, deixarei a situação em suas mãos competentes.
Ternamente, Lillian passou a mão pela beira do colarinho do marido, deixando a ponta dos dedos tocar na pele bronzeada do pescoço.
– É melhor se apressar. Se St. Vincent acordar e se vir à minha mercê, provavelmente morrerá na hora.
Eles trocaram um breve sorriso e Westcliff saiu do quarto.
– Criatura arrogante – observou Lillian, continuando a sorrir enquanto o conde se afastava. –
Meu Deus, eu o adoro.
Evie cambaleou.
– Como você...?
– Nós temos muito sobre o que conversar, querida – apressou-se Lillian. – Então vamos deixar isso para depois. Você está semimorta de exaustão. E, francamente, precisa de um banho.
Vamos pedir para que lhe encham uma banheira e depois você tomará chá com torradas.
Evie balançou a cabeça e abriu a boca para protestar, mas Lillian não fez caso de suas objeções.
– Eu cuidarei de St. Vincent.
Perguntando-se como e por que sua amiga se ofereceria para cuidar de um homem que a raptara, Evie a olhou cautelosamente. Lillian não era do tipo clemente e embora Evie estivesse certa de que sua amiga nunca faria mal a um homem indefeso acamado, hesitava em deixar Sebastian aos seus cuidados.
– Não posso acreditar que você estaria disposta... Depois de tudo que ele fez...
Lillian sorriu sarcasticamente.
– Não estou fazendo isso por ele, mas por você. E por Westcliff, que por alguma razão não parece considerá-lo um caso perdido. – Diante da hesitação de Evie, revirou os olhos com impaciência. – Pelo amor de Deus, vá tomar um banho. E dê um jeito nesse cabelo. Não precisa se preocupar com St. Vincent. Serei tão gentil com ele quanto seria com meu próprio marido.
– Obrigada – sussurrou Evie, sentindo lágrimas ardendo novamente em seus olhos.
–Ah, Evie... – O rosto de Lillian se suavizou, revelando uma compaixão que Evie nunca vira nela. Abraçou Evie mais uma vez e falou por entre os cabelos emaranhados da amiga: – Ele não vai morrer. Só os bons e os santos morrem prematuramente. – Ela riu baixinho. – Canalhas como St. Vincent sobrevivem para atormentar os outros durante décadas.
Com a ajuda de uma criada, Evie se banhou e pôs um vestido diurno folgado que não exigia espartilho. Prendeu os cabelos limpos e úmidos em uma longa trança que lhe descia pelas costas e calçou chinelos tricotados. Voltando para o quarto de Sebastian, viu que Lillian o havia arrumado e abrira as cortinas. Um pano fora amarrado ao redor de sua cintura como um avental improvisado e estava respingado e manchado, assim como seu corpete.
– Eu consegui fazer com que ele tomasse um pouco de caldo – explicou Lillian. – Foi muito difícil fazê-lo engolir. Ele não estava exatamente o que se poderia chamar de consciente, mas insisti até lhe despejar mais ou menos um quarto de xícara garganta abaixo. Acho que ele cedeu na esperança de que eu fosse um pesadelo que pudesse desaparecer se me agradasse.
Evie não tinha conseguido fazer Sebastian beber nada desde a manhã anterior.
– Você é a mais maravilhosa...
– Sim, sim, eu sei. – Evie rejeitou distraidamente as palavras com um gesto, desconfortável como sempre ficava com elogios. – Acabaram de trazer sua bandeja. Está sobre a mesa ao lado da janela. Ovos quentes e torrada. Coma tudo, querida. Eu detestaria ter de usar a força com você também.
Enquanto Evie se sentava obedientemente e mordia uma fatia de torrada coberta com uma leve camada de manteiga, Lillian trocou o pano na testa de Sebastian.
– Devo admitir que é difícil desprezá-lo quando ele está tão abatido – murmurou ela. – E conta a seu favor ele estar deitado aqui ferido em vez de você. – Sentando-se na cadeira à cabeceira da cama, ela olhou para Evie com franca curiosidade. – Por que será que ele fez isso?
É totalmente egoísta. Não o tipo de homem que se sacrificaria por outra pessoa.
– Ele não é totalmente egoísta – murmurou Evie, e fez a torrada descer por sua garganta com um gole de chá quente.
– Westcliff acha que St. Vincent está apaixonado por você.
Evie engasgou um pouco e não ousou erguer os olhos de seu chá.
– Po-por que ele acha isso?
– Ele conhece St. Vincent desde criança e o entende muito bem. Acha que há uma lógica estranha no fato de ter sido você quem finalmente conquistou o coração de St. Vincent. Disse que uma garota como você seria... O que foi mesmo que ele disse? Não consigo me lembrar das palavras exatas, mas foi algo como se você fosse a fantasia mais profunda e secreta de St. Vincent.
Evie sentiu suas bochechas corando enquanto uma mistura de aflição e esperança se alojava nos confins cansados de seu peito. Tentou responder sarcasticamente.
– Eu acho que a fantasia dele é ter o maior número possível de mulheres.
Lillian sorriu.
– Querida, essa não é a fantasia de St. Vincent. É a realidade dele. E provavelmente você é a primeira garota doce e decente com que ele se relaciona.
– Ele passou muito tempo com você e Daisy em Hampshire – contrapôs Evie.
Isso pareceu divertir Lillian ainda mais.
– Eu não sou nem um pouco doce, querida. E minha irmã também não é. Não me diga que achou que éramos durante esse tempo todo.
Justamente quando Evie terminou seu prato de ovos e torrada, lorde Westcliff e Cam entraram no quarto trazendo panelas, garrafas, poções e vários itens estranhos. Uma dupla de criadas os acompanhava com jarros de metal fumegantes e pilhas de toalhas dobradas. Embora Evie quisesse ajudar, disseram-lhe para se afastar enquanto arrumavam os objetos ao lado da cama e punham toalhas nas laterais do corpo, nas pernas e nos quadris de Sebastian, deixando à mostra apenas o ferimento.
– Seria melhor se ele pudesse tomar um pouco de morfina primeiro – disse Westcliff, enrolando linho em um longo palito de madeira. – Esse procedimento lhe causará mais dor do que o próprio tiro.
– Podemos fazê-lo engolir – disse Lillian decididamente. – Evie, devo?
– Não, eu farei isso.
Evie foi para a cabeceira da cama e despejou em um copo uma dose de xarope de morfina.
Cam foi para o lado dela e lhe deu um pacote de papel dobrado cheio de algo verde-escuro.
– Maravilha – explicou. – Eu a encontrei no primeiro farmacêutico que visitei. O musgo do pântano foi um pouco mais difícil, mas consegui um pouco também.
Evie apoiou seu ombro no dele em um agradecimento silencioso.
– Quanto pó devo dar para ele?
– Para um homem do tamanho de St. Vincent, eu diria que pelo menos duas colheres de chá cheias.
Evie pôs duas colheres de chá cheias de pó no copo de remédio cor de âmbar, mexeu e o líquido ficou preto. Sem dúvida o gosto era ainda pior do que a aparência. Só esperava que Sebastian concordasse em engoli-lo e o mantivesse no estômago. Indo para o lado dele na cama, acariciou-lhe os cabelos e o rosto pálido e ardente.
– Sebastian – sussurrou. – Acorde. Você precisa tomar um pouco de remédio...
Sebastian não acordou nem mesmo quando ela pôs o braço atrás dele e tentou lhe erguer a cabeça.
– Não, não, não – ouviu a voz de Lillian dizer às suas costas. – Você está sendo delicada demais, Evie. Eu tive de sacudi-lo bastante para que acordasse o suficiente para tomar um pouco de caldo. Deixe-me lhe mostrar.
Ela se sentou na cama ao lado de Evie e sacudiu o homem semiconsciente algumas vezes até ele gemer, entreabrir os olhos e encarar as duas sem reconhecê-las.
– Sebastian – disse Evie ternamente. – Tenho um remédio para você.
Ele tentou se virar, mas o esforço o fez pressionar seu lado ferido e a dor causou uma reação violenta. Evie e Lillian se viram atiradas para fora da cama com um movimento de seu braço forte.
– Ai! – murmurou Lillian quando elas caíram juntas no chão, com Evie mal conseguindo preservar o conteúdo do copo.
Arquejando e gemendo em delírio, Sebastian se acalmou na cama, seu grande corpo acometido de tremores. Embora Evie estivesse consternada com a resistência dele, alegrou-se com o sinal da força que lhe restava, que era preferível à quietude mortal de antes.
Contudo, Lillian não parecia partilhar seus sentimentos.
– Teremos de amarrá-lo – disse bruscamente. – Nunca conseguiremos segurá-lo para tratar o ferimento.
– Eu não quero... – começou Evie, mas Cam a surpreendeu concordando.
– Lady Westcliff está certa.
Evie se levantou em silêncio. Estendeu a mão para Lillian, a ajudou a se levantar e olhou para o corpo trêmulo de Sebastian. Ele estava com os olhos fechados de novo, torcendo os dedos convulsivamente, como se quisesse agarrar algo no ar. Era incrível que um homem com tanta vitalidade pudesse ser reduzido a essa figura pálida e magra, com olheiras e lábios rachados.
Ela faria tudo que fosse preciso para ajudá-lo. Resolutamente, pegou alguns panos limpos e os entregou para Cam por cima do corpo seminu de Sebastian.
Com uma expressão séria, o rapaz se dirigiu às laterais da cama, atando habilmente os braços e uma das pernas de Sebastian à armação de ferro.
– Devo lhe dar o remédio? – perguntou, olhando para Evie.
– Eu posso fazer isso – respondeu ela, sentando-se novamente ao lado de Sebastian.
Depois de pôr um travesseiro sob a cabeça do marido e erguê-la, tampou o nariz dele. Assim que Sebastian abriu a boca para respirar, ela despejou o denso remédio na garganta. Sebastian engasgou e pareceu que ia vomitar, mas engoliu o remédio com um mínimo de alvoroço. Cam ergueu as sobrancelhas como se impressionado com a eficiência dela enquanto Sebastian praguejava e tentava inutilmente se soltar. Inclinando-se sobre ele, Evie o acariciou e acalmou, sussurrando palavras ternas enquanto sentia o bafo quente de ópio em seu rosto.
Quando ele finalmente se aquietou, Evie ergueu a cabeça e viu Lillian observando-os com estranheza. Estava com os olhos castanhos estreitados e balançou levemente a cabeça, surpresa com a situação. Como Lillian só conhecera o Sebastian libertino e arrogante, era surpreendente vê-lo nessas circunstâncias.
Nesse meio-tempo, Westcliff tinha tirado seu casaco e enrolado as mangas. Estava mexendo uma mistura que exalava um cheiro cáustico por todo o quarto. Lillian, especialmente sensível a cheiros, fez uma careta e estremeceu.
– Essa é a pior combinação de odores que já senti.
– Terebentina destilada, alho, vinagre e alguns outros ingredientes que o farmacêutico sugeriu, inclusive óleo de rosas – explicou Cam. – Ele também disse para aplicar um cataplasma de mel depois, porque isso impede que os ferimentos se tornem pútridos.
Evie arregalou os olhos quando Cam abriu uma caixa de madeira e tirou de dentro um funil de metal e um objeto cilíndrico com um cabo em uma extremidade e algo parecido com uma agulha na outra.
– O que-que é i-isso? – perguntou.
– Também do farmacêutico – respondeu Cam, erguendo o objeto e o examinando criticamente. – Uma seringa. Quando descrevemos o que estávamos planejando, ele disse que o único modo de irrigar um ferimento dessa profundidade era usar isto.
Ele arrumou uma série de instrumentos, recipientes de produtos químicos e uma pilha de panos dobrados e toalhas. Westcliff parou à cabeceira da cama e olhou para as duas mulheres.
– Isso vai ser bastante desagradável – disse. – Portanto, se alguém tiver estômago fraco...
Ele olhou longa e significativamente para Lillian, que fez uma careta.
– Você sabe muito bem que eu tenho – admitiu Lillian –, mas posso me controlar.
Um súbito sorriso surgiu no rosto impassível do conde.
– Por enquanto nós a pouparemos disso, amor. Gostaria de esperar no outro quarto?
– Vou me sentar perto lado da janela – disse Lillian, afastando-se, rápida e agradecida, da cama.
Westcliff olhou de relance para Evie em uma pergunta silenciosa.
– Onde devo ficar? – perguntou ela.
– À minha esquerda. Precisaremos de muitas toalhas e panos, por isso se estiver disposta a substituir o que estiver sujo quando necessário...
– Sim, é claro. – Ela ocupou seu lugar ao lado dele enquanto Cam ficava à direita de Westcliff. Subitamente Evie olhou para o perfil confiante e destemido do conde e achou difícil acreditar que aquele homem poderoso, que sempre achara tão intimidador, estivesse disposto a ir tão longe para ajudar um amigo que o traíra. Sentiu-se dominada pela gratidão e não pôde evitar puxar levemente a manga da camisa dele. – Milorde, antes de começarmos, devo lhe dizer...
Westcliff inclinou sua cabeça morena.
– Sim?
Como ele não era tão alto quanto Sebastian, foi relativamente fácil para Evie ficar na ponta dos pés e beijar a bochecha magra de Westcliff.
– Obrigada por ajudá-lo – disse, olhando para os olhos pretos surpresos de Westcliff. – É o homem mais honrado que já conheci.
Suas palavras fizeram surgir um rubor no rosto bronzeado de Westcliff e, pela primeira vez desde que se conheceram, o conde pareceu sem palavras. Lillian sorriu ao observá-los do outro lado do quarto.
– Os motivos dele não são totalmente heroicos – disse para Evie.– Com certeza está adorando a oportunidade de literalmente cutucar a ferida de St. Vincent.
Apesar do comentário zombeteiro, Lillian ficou mortalmente pálida e agarrou os braços da cadeira quando Westcliff pegou uma lanceta fina e brilhante e começou a abrir e drenar cuidadosamente o ferimento.
Mesmo depois de uma boa dose de morfina, a dor fez Sebastian se arquear e contorcer o rosto, murmurando protestos incoerentes. Cam ajudou a firmá-lo no colchão, impossibilitando até mesmo o mínimo movimento. Mas o mais difícil foi quando Westcliff começou a despejar água salgada no ferimento. Sebastian gritou e se debateu enquanto a seringa era inserida repetidamente até a solução salina que ensopava as toalhas sob ele ficar rosada com sangue fresco e limpo. Westcliff foi firme e preciso, trabalhando com uma rapidez e eficiência que qualquer cirurgião teria admirado.
De algum modo, Evie conseguiu controlar a própria angústia, contendo-a sob camadas de atordoamento enquanto trabalhava com a mesma impassividade de Westcliff e Cam.
Metodicamente, removia as toalhas sujas e punha novas na lateral do corpo do marido. Para seu grande alívio, Sebastian logo desmaiou, perdendo a consciência em meio ao tratamento.
Quando Westcliff achou que a carne viva estava suficientemente limpa, pegou o palito envolto em linho, o mergulhou na mistura de terebentina e ensopou o ferimento. Movendo-se para o lado, observou atentamente Cam embrulhar um pouco de musgo do pântano em um quadrado limpo de musselina, embeber a trouxa em mel e aplicá-la cuidadosamente na área.
– Pronto – disse Cam com satisfação. Ele desamarrou as mãos e o pé de Sebastian enquanto falava. – A cura começará por dentro. Continuaremos a aplicar o cataplasma por alguns dias e depois dispensaremos o musgo e deixaremos a pele cicatrizar. – Todos uniram seus esforços para enrolar uma atadura de linho na cintura magra de Sebastian e trocar os lençóis molhados para a cama ficar limpa e seca.
Quando tudo terminou, Evie sentiu o autocontrole abandonar seus membros e começou a tremer da cabeça aos pés. Viu com surpresa que até mesmo Westcliff parecia cansado, dando um longo suspiro enquanto usava um pano limpo para enxugar o suor abundante do rosto. Lillian foi imediatamente até ele e o abraçou enquanto murmurava palavras ternas ao seu ouvido.
– Acho que deveríamos trocar o cataplasma e a atadura duas vezes por dia – comentou Cam para ninguém em particular, lavando as mãos com água e sabão. – Se a febre não baixar até o cair da noite, dobraremos a dose da planta. – Chamando Evie com um gesto, lavou-lhe as mãos e os braços. – Ele ficará bem, querida. O ferimento não pareceu tão ruim quanto eu achei que estivesse.
Cansada, Evie balançou a cabeça e ficou parada passivamente enquanto ele lhe enxugava as mãos.
– Não posso me permitir esperar nada. Não posso me permitir acreditar...
Sua voz foi sumindo enquanto o chão parecia estremecer sob seus pés, e ela tentou desajeitadamente manter o equilíbrio. Cam a segurou rapidamente e a apoiou em seu peito jovem e forte.
– Descanse – disse ele, levando-a para a porta.
– Mas Sebastian... – murmurou ela.
– Cuidaremos dele enquanto isso.
Evie não tinha outra escolha, porque seu corpo privado de sono se recusava a continuar funcionando. Sua última lembrança foi de Cam deitando-a em sua própria cama, puxando as cobertas para cima e as enfiando dos lados do colchão, como se ela fosse uma criança. Assim que seu calor corporal começou a voltar entre os lençóis gelados e escorregadios, ela caiu em um sono sem sonhos.
Evie acordou com o brilho alegre de uma pequena chama. Havia uma vela na mesa de cabeceira.
Alguém estava sentado na beirada da cama... Lillian... com uma aparência amarrotada e cansada e os cabelos presos na nuca.
Evie se sentou lentamente, esfregando os olhos.
– Já está de noite? – perguntou com uma voz baixa e áspera. – Devo ter dormido a tarde toda.
Lillian sorriu zombeteiramente.
– Você dormiu um dia e meio, querida. Westcliff e eu cuidamos de St. Vincent enquanto o Sr. Rohan dirigia o clube.
Evie passou a língua por dentro da boca rançosa e se sentou mais ereta. Seu coração começou a bater forte de medo enquanto se esforçava para perguntar:
– Sebastian, ele está...?
Lillian segurou a mão seca e rachada de Evie e perguntou gentilmente:
– O que quer ouvir primeiro: a boa notícia ou a má?
Evie balançou a cabeça, sem conseguir responder. Olhou para a amiga sem pestanejar e com os lábios trêmulos.
– A boa notícia – disse Lillian – é que a febre passou e o ferimento não está mais pútrido. –
Ela sorriu e acrescentou: – A má é que talvez você tenha de aguentar seu marido pelo resto de sua vida.
Evie começou a chorar. Cobriu os olhos com sua mão livre enquanto seus ombros eram abalados por soluços e sentiu os dedos de Lillian se fecharem com mais força sobre os dela.
– Sim – disse Lillian com uma voz seca. – Eu também choraria se fosse meu marido, embora por motivos totalmente diferentes.
Isso fez Evie rir em meio aos soluços abafados.
– Ele está consciente? Está falando?
– Sim, perguntou por você várias vezes e ficou bastante aborrecido quando eu me recusei a acordá-la.
Baixando a mão, Evie olhou para a amiga através das lágrimas.
– Estou certa de que ele não quis parecer in-ingrato – apressou-se a dizer. – Depois de tudo que você fez...
– Não precisa arranjar desculpas para ele – respondeu Lillian sarcasticamente. – Eu o conheço bem, motivo pelo qual ainda não acredito que ele goste de alguém além de si mesmo... e talvez um pouco, muito pouco, de você. Mas se a faz feliz, acho que ele deve ser tolerado. – Ela franziu o nariz e pareceu procurar um cheiro ruim antes de detectá-lo nas mangas de seu vestido.
– Argh. Ainda bem que minha família é dona de uma fábrica de sabão. Porque precisarei de muito para tirar o cheiro daquele maldito cataplasma.
– Nunca poderei agradecer o suficiente por cuidar dele – disse Evie calorosamente.
Lillian se levantou da cama, se esticou e encolheu os ombros.
– Não precisa agradecer – respondeu animada. – Valeu a pena fazer isso, nem que seja só para St. Vincent ter uma dívida comigo. Ele nunca conseguirá olhar para mim sem a humilhante lembrança de que o vi nu e inconsciente no leito de doente.
– Você o viu nu? – perguntou Evie sentindo suas sobrancelhas se erguerem excessivamente.
– Ah – disse Lillian em tom alegre, dirigindo-se à porta. – Vi um pouco de vez em quando.
Era impossível não ver, considerando-se o local do ferimento. – Ela parou à porta e lançou um olhar travesso para Evie. – Sobre aquela fofoca que de vez em quando se ouve por aí... Devo admitir que não lhe faz nem um pouco de justiça.
– Que fofoca? – perguntou Evie sem entender, e Lillian saiu do quarto rindo baixinho.
CAPÍTULO 20
Antes que se passasse uma semana, Sebastian havia se tornado o pior paciente que se podia imaginar. Curava-se em um ritmo notável, mas não rápido o suficiente para sua satisfação, e frustrava a si mesmo e aos outros excedendo todos os limites possíveis. Queria usar roupas comuns, comer comida de verdade, insistia em sair da cama e percorrer os aposentos e a galeria superior, ignorando teimosamente os protestos exasperados de Evie. Mesmo sabendo que não podia forçar sua recuperação, que isso exigia tempo e paciência, não conseguia agir de outra forma.
Ele nunca havia dependido de ninguém. Agora devia a vida a Westcliff, Lillian, Cam e, acima de tudo, Evie. Ele estava mergulhado em sentimentos desconhecidos de gratidão e culpa.
Não conseguia olhar para nenhum deles nos olhos, por isso seu único recurso era se refugiar em rabugenta arrogância.
Os piores momentos eram quando estava sozinho com Evie. Sempre que ela entrava no quarto, Sebastian sentia uma conexão assustadora, uma emoção estranha, e a combatia até a batalha interna deixá-lo esgotado. Teria ajudado poder provocar uma briga com ela, qualquer coisa para estabelecer uma distância necessária. Mas isso era impossível quando Evie atendia a todas as suas exigências com paciência e infinita preocupação. Não podia acusá-la de esperar gratidão quando ela nunca insinuara que lhe era devida. Não podia acusá-la de sufocá-lo quando ela cuidava dele com gentileza, eficiência e o tato de deixá-lo sozinho quando não a chamava.
Sebastian, que nunca temera nada, estava apavorado com o poder de Evie sobre ele. Não compreendia seu desejo de tê-la ao seu lado o tempo todo. Ansiava pelo toque da esposa. Sua pele parecia absorver cada carícia de Evie como se pudesse torná-la parte de seu corpo. Isso era diferente de mero desejo sexual. Era algum tipo de vício patético para o qual não parecia haver cura.
Saber que Joss Bullard tentara matar Evie o atormentava ainda mais. Sua reação provinha de algum lugar primitivo dentro dele e não podia ser controlada pela razão. Ele queria o sangue de Bullard. Queria fazer picadinho do desgraçado. O fato de estar indefeso em seu leito enquanto Bullard andava livremente por Londres era suficiente para deixá-lo louco. Não o acalmava nem um pouco o inspetor de polícia designado para o caso ter lhe garantido que estavam fazendo tudo que podiam para encontrá-lo.
Sebastian pediu para Cam ir ao seu quarto e lhe disse para contratar mais investigadores particulares, inclusive um ex-policial, para conduzir uma busca intensiva. Não havia mais nada que pudesse fazer além de fumegar de raiva em sua inatividade forçada.
Cinco dias depois de a febre ceder, Evie pediu que levassem uma banheira para o quarto do marido. Apreciando a oportunidade de se banhar, Sebastian relaxou na água fumegante enquanto Evie o barbeava e o ajudava a lavar os cabelos. Quando estava limpo e seco, voltou para a cama recém-feita e deixou Evie enfaixar seu ferimento. O orifício causado pela bala estava fechando tão rápido que eles haviam deixado de aplicar o musgo e agora apenas o cobriam com uma leve camada de linho por questões de higiene. Ainda lhe causava pontadas frequentes e um pouco de dor, mas Sebastian sabia que dali a um ou dois dias poderia retomar a maior parte de suas atividades normais. Exceto sua favorita, em virtude de seu acordo infernal com Evie.
Como toda a frente do vestido de Evie tinha sido molhada pelo banho, ela foi trocar de roupa.
Por pura perversidade, Sebastian tocou a campainha de prata à sua cabeceira uns dois minutos depois de ela ter saído.
Evie voltou rapidamente de roupão.
– O que foi? – perguntou com óbvia preocupação. – Aconteceu alguma coisa?
– Não.
– É o ferimento? Está doendo?
– Não.
A expressão de Evie mudou, o alívio substituindo a preocupação. Aproximando-se da cama, ela tirou delicadamente o sino da mão de Sebastian e o pôs de volta na mesa de cabeceira.
– Se não tocar o sino com mais critério ele será retirado.
– Eu toquei porque precisava de você – disse Sebastian.
– Foi? – perguntou ela com muita paciência.
– As cortinas. Quero que as abra mais.
– Isso não podia esperar?
– Está escuro demais aqui. Preciso de mais luz.
Evie foi até a janela, afastou mais as cortinas de veludo e ficou à luz do sol pálido de inverno.
Com os cabelos soltos e os cachos ruivos lhe descendo até quase a cintura, parecia uma figura em um quadro de Ticiano.
– Mais alguma coisa?
– Há um pontinho de sujeira na minha água.
Descalça, Evie foi até a cama, pegou o copo de vidro semicheio e o examinou criticamente.
– Não estou vendo nada.
– Está aí – disse Sebastian. – Temos de discutir a questão ou pode ir buscar um pouco de água limpa?
Reprimindo uma resposta grosseira, Evie foi até o lavatório e encheu o copo de novo. Levou-o de volta, o pôs sobre a mesa e olhou para Sebastian.
– Só isso?
– Não. Minha atadura está apertada demais. E a ponta solta está me incomodando. Não consigo alcançá-la.
Quanto mais ele exigia, mais irritantemente paciente Evie se tornava. Inclinando-se sobre o marido, murmurou-lhe para se virar um pouco e Sebastian a sentiu afrouxando cuidadosamente a atadura e enfiando as pontas para dentro de novo. O toque dos dedos de Evie em suas costas, tão delicados, fez seu coração se acelerar. Um cacho solto deslizou sedosamente sobre seu ombro.
Deitado novamente de barriga para cima, Sebastian conteve o grande prazer que sentia com a proximidade dela.
Olhou tristemente para o rosto de Evie. A boca lindamente arqueada, a pele sedosa cor de creme e as irresistíveis sardas. Ela pôs a mão de leve sobre o peito e o coração palpitante do marido e brincou com a aliança na corrente.
– Apenas tire isso e ponha na cômoda – conseguiu dizer ele com a respiração pesada.
Evie ignorou a ordem e se sentou na beirada do colchão, inclinando-se sobre ele até as pontas de seus cabelos soltos roçarem no peito do marido. O corpo de Sebastian estava imóvel, mas ele estremeceu por dentro quando a sentiu tocar seu queixo.
– Eu o barbeei bem – observou Evie, parecendo satisfeita consigo mesma. – Posso ter deixado ficar alguns pelos, mas ao menos não cortei seu rosto em pedaços. Ajudou você ter ficado parado.
– Eu estava assustado demais para me mexer – respondeu ele e Evie riu.
Sem conseguir mais tirar os olhos dela, Sebastian contemplou seus olhos sorridentes... tão redondos e surpreendentemente azuis.
– Por que você toca o sino com tanta frequência? Sente-se sozinho? É só dizer.
– Eu nunca estou sozinho – disse ele com fria convicção.
Para seu desgosto, Evie não recuou e, embora o sorriso dela tivesse se tornado estranho, não desapareceu.
– Então devo ir? – perguntou Evie gentilmente.
Sebastian sentiu um calor interior traiçoeiro se espalhando por toda parte.
– Sim, vá – disse, fechando os olhos, assimilando avidamente o cheiro e a proximidade dela.
Contudo, Evie não foi embora e o silêncio se prolongou até parecer que os batimentos do coração de Sebastian tinham se tornado audíveis.
– Quer saber o que eu acho, Sebastian? – finalmente perguntou Evie.
Ele precisou de toda a sua força de vontade para manter a voz controlada.
– Não.
– Acho que você vai tocar o sino de novo se eu sair deste quarto. Mas não importa quantas vezes toque ou eu venha correndo, nunca conseguirá me dizer o que realmente quer.
Sebastian entreabriu os olhos. Um erro. O rosto de Evie estava muito próximo, a boca macia a apenas centímetros da dele.
– Neste momento, tudo o que quero é um pouco de paz – resmungou. – Então, se não se importa...
Os lábios de Evie tocaram os dele, quentes, doces e sedosos, e Sebastian sentiu o roçar estonteante da língua da esposa. A comporta do desejo se abriu e ele afundou em puro prazer, mais forte do que tudo o que já experimentara. Ele segurou com dedos trêmulos a cabeça de Evie e a puxou para si. Com as palmas das mãos comprimindo os cachos cor de fogo, beijou-a com uma urgência voraz.
Quando Evie se afastou, Sebastian ficou mortificado ao descobrir que ofegava como um jovem inexperiente. Ela estava com os lábios rosados e úmidos, as sardas destacando-se nas bochechas muito coradas.
– Acho que você vai perder nossa aposta – disse Evie com a voz trêmula.
A indignação o fez recuperar a sanidade.
– Acha que estou em condições de procurar outras mulheres? A menos que pretenda trazer alguém para a minha cama, não vou...
– Você não vai perder sua aposta dormindo com outra mulher.
Havia um brilho de malícia nos olhos quando estendeu a mão para a parte superior de seu roupão e começou a desabotoá-lo. Suas mãos tremiam apenas um pouco.
– Vai perdê-la comigo.
Incrédulo, Sebastian a observou tirar o roupão. Ela se despiu, ficando com as pontas dos seios intumescidas e rosadas no ar frio. Havia emagrecido, mas os seios continuavam redondos e lindos e os quadris generosos ainda realçavam as curvas da cintura. Quando ele olhou para o triângulo ruivo entre as coxas, sentiu-se dominado pelo desejo.
A voz de Sebastian pareceu trêmula até mesmo aos seus próprios ouvidos.
– Você não pode me fazer perder a aposta. Isso é trapacear.
– Eu nunca prometi não trapacear – disse Evie alegremente, estremecendo ao se deitar sob as cobertas com ele.
– Maldição. Não vou cooperar. Eu...
Sua respiração sibilou por entre os dentes quando ele sentiu o corpo macio de Evie junto ao seu, o roçar dos pelos pubianos e do quadril quando ela deslizou uma das pernas por entre as suas. Afastou a cabeça quando ela tentou beijá-lo.
– Não posso. Evie... – Sua mente procurou um modo de dissuadi-la. – Estou muito fraco.
Ardente e determinada, Evie agarrou a cabeça do marido e o fez virar o rosto para ela.
– Pobrezinho – murmurou, sorrindo. – Não se preocupe. Serei delicada.
– Evie – disse ele roucamente, excitado, furioso e suplicante. – Tenho de provar que posso ficar três meses sem... Não, não faça isso. Maldição, Evie!
Ela havia desaparecido sob as cobertas e o estava beijando desde a linha firme do peito até o abdômen, tomando o cuidado de não deslocar a atadura. Sebastian tentou se sentar, mas uma forte pontada em seu ferimento ainda não totalmente cicatrizado o fez cair para trás com um gemido de dor. E depois ele gemeu por um motivo totalmente diferente quando ela chegou ao pênis rijo e lambeu delicadamente a glande.
Era óbvio que Evie nunca tinha feito isso. Não conhecia a técnica e sabia muito pouco sobre a anatomia masculina. Mas isso não a impediu de prosseguir com um ardor inocente, dando pequenos beijos em toda a extensão sensível e se prolongando quando o ouvia gemer. Suas mãos quentes brincaram inexperientemente com os testículos enquanto ela os explorava com os lábios e a língua, seguindo por todo o caminho até a glande palpitante e depois tentando descobrir quanto dele cabia em sua boca. Sebastian agarrou os lençóis como se o estivessem torturando. O
prazer percorreu sua pele, enviando mensagens frenéticas para o cérebro e tornando impossível pensar com clareza.
Todas as lembranças de outras mulheres foram banidas para sempre da mente de Sebastian.
Só havia Evie, os cabelos ruivos cacheados lhe cobrindo a barriga e as coxas, os dedos brincalhões e a boca travessa lhe causando o maior prazer que já sentira. Quando Sebastian não conseguiu mais conter seus gemidos, Evie montou cuidadosamente nele, como uma leoa se aquecendo ao sol. Ele viu seu o rosto corado antes de ela beijá-lo profunda e provocadoramente.
Os mamilos rosados se arrastaram sobre os pelos de seu peito... ela se esfregou nele, ronronando de satisfação com o calor e a rigidez do corpo masculino.
Sebastian ficou com a respiração presa na garganta ao sentir a mão de Evie deslizar por entre os quadris deles. Estava tão excitado que ela teve de lhe afastar gentilmente o sexo para conseguir encaixá-lo entre as coxas. Os cachos ruivos lhe fizeram cócegas na pele sensível quando ela o guiou para dentro de seu corpo quente.
– Não – conseguiu dizer Sebastian, lembrando-se da aposta. – Agora não. Evie, não...
– Ah, pare de protestar. Eu não protestei nem metade disso em nossa lua de mel, e era virgem.
– Mas eu não quero... Ah, Deus. Meu Deus...
Evie introduziu o membro dele em sua vagina, tão suave, apertada e macia que Sebastian ficou sem fôlego. Ela se contorceu um pouco, com a mão ainda segurando o pênis enquanto tentava guiá-lo para mais fundo. Ver a dificuldade que ela estava tendo em acomodá-lo o excitou ainda mais, causando-lhe um calor e formigamento em todo o corpo. E depois veio o lento e milagroso deslizar da rigidez na suavidade.
Sebastian deixou a cabeça cair no travesseiro, contemplando com os olhos pesados de desejo o rosto de Evie. Ela deu um pequeno gemido de prazer, fechando firmemente os olhos enquanto se concentrava em levá-lo para mais fundo. Movia-se cuidadosamente, inexperiente demais para manter um ritmo. Ele sempre havia sido relativamente silencioso em sua paixão, mas enquanto Evie subia e descia, acelerando o prazer, ouviu-se murmurando súplicas, palavras de ternura, sensuais e de amor.
De algum modo, conseguiu fazê-la se inclinar mais sobre ele, encostar-se mais nele, ajustando o ângulo entre ambos. Evie resistiu brevemente, temendo machucá-lo, mas Sebastian lhe segurou a cabeça com as mãos.
– Sim – sussurrou tremulamente. – Faça assim, querida. Sim. Mova-se em mim... sim...
Quando Evie sentiu a diferença na posição deles, a maior fricção na ponta vibrante de seu sexo, arregalou os olhos.
– Ah – gemeu e depois suspirou profundamente. – Ah, assim...
Ela se interrompeu enquanto ele estabelecia um ritmo, aprofundando-se mais, preenchendo-a com firmes investidas. O mundo inteiro se reduziu àquele ato. Evie baixou seus longos cílios ruivos, escondendo seu olhar desfocado. Sebastian a viu corar. Ficou maravilhado, sentindo uma profunda ternura enquanto usava o corpo para lhe dar prazer.
– Beije-me – disse em um sussurro gutural, e guiou os lábios de Evie para os seus, explorando lentamente sua boca com a língua.
Evie arquejou e estremeceu de prazer com os quadris avidamente encostados nos do marido enquanto o recebia por inteiro. Seu sexo apertou firmemente o de Sebastian e ele se entregou à carne sedutora e pulsante, deixando Evie atingir o êxtase em grandes e voluptuosas ondas.
Quando ela relaxou sobre Sebastian, tentando recuperar o fôlego, ele lhe acariciou as costas úmidas, deslizando os dedos até a curva das nádegas. Para seu prazer, Evie reagiu se contorcendo e o apertando. Se ele estivesse com sua força costumeira... Ah, as coisas que faria com ela...
Em vez disso, caiu para trás exausto, com a cabeça girando.
Evie saiu desajeitadamente de cima dele e se aconchegou ao lado do marido. Usando o resto de suas forças, Sebastian lhe segurou uma mecha de cabelo e a levou ao rosto, esfregando os cachos brilhantes na bochecha.
– Você vai me matar – murmurou, e a sentiu beijando seu ombro.
– Agora que você perdeu a aposta – disse Evie roucamente –, teremos de pensar em outra penalidade, uma vez que já se desculpou com lorde Westcliff.
Embora o amigo quase tivesse engasgado ao ouvir aquelas palavras, Sebastian se forçara a pedir desculpas a Westcliff e Lillian antes de eles deixarem o clube. Depois descobrira que a única coisa pior do que pedir desculpas era ser perdoado. Mas fizera isso deliberadamente em um momento em que Evie não estava presente.
– Lillian me contou – explicou Evie. Ela ergueu a cabeça em um sorriso sonolento. – Que outra penalidade poderia ser?
– Sem dúvida você pensará em algo – disse ele sombriamente e, segundos depois de fechar os olhos, caiu em um sono profundo e reparador.
Na noite seguinte, Westcliff foi ao clube e se surpreendeu ao saber que Sebastian tinha ido à sala de jogos principal pela primeira vez desde que levara o tiro.
– Um pouco cedo, não é? – perguntou ele quando Evie se aproximou, vindo de seus aposentos particulares para a galeria do segundo andar.
Eles foram cuidadosamente observados por um empregado que Cam posicionara na galeria como uma das medidas de segurança reforçada no clube. Até Bullard ser preso, todos os hóspedes eram monitorados com discreta atenção.
– Ele está exigindo demais de si mesmo – respondeu Evie. – Não suporta a ideia de parecer inútil. E acha que nada é feito direito sem sua supervisão.
Os olhos escuros de Westcliff se tornaram sorridentes.
– O interesse de St. Vincent por este lugar parece bastante genuíno. Confesso que não esperava que ele assumisse essa responsabilidade por vontade própria. Durante anos foi um homem ocioso e sem objetivos que desperdiçava seu potencial. Mas parece que só precisava de um escape adequado para seus talentos.
Ambos apoiaram os cotovelos na balaustrada e olharam para a sala principal lotada. Evie viu o brilho de ouro velho dos cabelos de Sebastian, que estava encostado na escrivaninha do canto, conversando sorridente com vários homens ao seu redor. Sua atitude dez dias atrás de salvar a vida de Evie havia aumentado muito a admiração pública e solidariedade das pessoas, especialmente depois que um artigo no Times lhe ressaltara o heroísmo. Isso e a percepção de que ele e o poderoso Westcliff tinham feito as pazes foram suficientes para Sebastian se tornar imediatamente muito popular. Todos os dias chegavam muitos convites ao clube para lorde e Lady St. Vincent comparecerem a bailes, soirées e outros eventos sociais, dos quais eles declinavam por motivos de luto.
Também chegavam cartas muito perfumadas e escritas por mãos femininas. Evie não havia se aventurado a abrir nenhuma delas e tampouco perguntara quem as enviara. As cartas se acumularam em uma pilha no escritório, permanecendo seladas e intocadas até Evie finalmente dizer para Sebastian mais cedo, quando tomavam café da manhã juntos no quarto dele:
– Você tem uma grande pilha de correspondência não lida. Está ocupando metade do espaço no escritório. O que devemos fazer com as cartas? – Um sorriso travesso surgiu em seu rosto quando acrescentou: – Devo lê-las enquanto você descansa?
– Jogue-as fora. Melhor ainda, devolva-as lacradas.
A resposta dele havia causado um arrepio de satisfação em Evie, embora ela tentasse escondê-lo.
– Eu não me oporia a você se corresponder com outras mulheres. A maioria dos homens faz isso, sem que implique em nenhuma impropriedade...
– Não eu. – Sebastian havia olhado longa e deliberadamente nos olhos dela, como se para se certificar de que entendia totalmente. – Não mais.
Lado a lado com Westcliff, Evie observou seu marido com um prazer possessivo. Sebastian ainda estava magro demais. Embora tivesse recuperado o apetite, suas elegantes roupas de noite ainda estavam um pouco folgadas. Mas seus ombros ainda eram largos, ele estava com uma cor saudável e a perda de peso só servira para salientar a estrutura óssea espetacular de seu rosto.
Embora se movesse com óbvio cuidado, ainda possuía uma graça predatória que as mulheres admiravam e os homens tentavam imitar em vão.
– Obrigada por salvá-lo – Evie se ouviu dizendo para Westcliff, ainda olhando para o marido.
O conde a olhou de esguelha.
– Você é que o salvou, Evie, na noite em que lhe propôs casamento. O que prova que às vezes os momentos de loucura levam a resultados positivos. Se não se importa, quero descer e informar St. Vincent dos últimos acontecimentos ligados à busca pelo Sr. Bullard.
– Ele foi encontrado?
– Ainda não, mas logo será. Depois que eu limpei as placas da pistola que Bullard usou, ainda foi impossível distinguir o nome gravado na arma. Então eu a levei à Manton and Sons e lhes pedi informações sobre a licença original. Acontece que a pistola tem dez anos, o que exigiu uma longa busca em muitas caixas de registros antigos. Hoje eles me disseram com toda a certeza que a pistola havia sido fabricada para lorde Belworth, que, por acaso, voltará a Londres esta noite a fim de resolver assuntos parlamentares. Pretendo visitá-lo de manhã e lhe perguntar sobre isso. Se conseguirmos descobrir como o Sr. Bullard estava em posse da pistola de Belworth, isso poderá nos ajudar a encontrá-lo.
Evie franziu as sobrancelhas de preocupação.
– Parece impossível encontrar um homem escondido em uma cidade com mais de um milhão de habitantes.
– Quase dois milhões – corrigiu Westcliff. – Contudo, não tenho a menor dúvida de que ele será encontrado. Temos recursos e disposição para isso.
Apesar de sua preocupação, Evie não pôde evitar sorrir ao pensar que ele era muito parecido com Lillian, que nunca aceitava uma derrota. Vendo que Westcliff erguera levemente as sobrancelhas ao vê-la sorrir, explicou:
– Só estava pensando que é o marido perfeito para uma mulher decidida como Lillian.
A menção de sua adorada esposa fez os olhos do conde brilharem.
– Eu diria que ela não é mais determinada ou decidida do que você – respondeu ele com um breve sorriso. – Só que ela é mais ruidosa em relação a isso.
CAPÍTULO 21
Enquanto Westcliff ia falar com Sebastian, Evie se retirou para seu quarto para um banho relaxante, acrescentando uma boa quantidade de óleo perfumado à água. Depois de ficar um longo tempo de molho, sua pele estava úmida e com um perfume de rosas. Ela pegou um dos roupões de seda forrados de veludo do marido e enrolou as mangas várias vezes. Encolhida em uma cadeira diante da lareira, escovou os cabelos enquanto as criadas retiravam a banheira. Uma delas, uma mulher de cabelos escuros chamada Frannie, permaneceu para arrumar o quarto. Ela afastou as cobertas e passou um braseiro entre os lençóis.
– Devo preparar seu quarto, milady? – perguntou a criada cautelosamente.
Evie inclinou um pouco a cabeça enquanto pensava na resposta. As criadas sabiam que Sebastian e ela dormiam em quartos separados. Nunca haviam passado uma noite juntos. Embora ela não soubesse como tocar no assunto, não queria mais brincar com ele. A vida era incerta demais para perder tempo. Não tinha nenhuma garantia de que Sebastian lhe seria fiel. Só tinha esperança e a intuição de que o homem com quem se casara não merecia confiança, enquanto o homem que ele estava se tornando talvez sim.
– Acho que não – disse ela para criada, continuando a escovar os cabelos. – Hoje ficarei neste quarto, Frannie.
– Sim, milady. Se quiser, posso...
Frannie se interrompeu sem completar o pensamento quando ambas viram a figura alta de Sebastian entrando no quarto. Ele parou à porta e se encostou na parede, contemplando em silêncio sua esposa. Apesar do calor do fogo, Evie sentiu um arrepio percorrer seu corpo e um tremor erótico descer por suas costas.
Sebastian estava em uma posição relaxada, com o colarinho aberto e a gravata preta pendurada ao redor do pescoço. A luz da lareira dançou sobre sua forma elegante e projetou um brilho dourado em suas feições, que poderiam ter pertencido a um antigo deus pagão. Embora ainda não tivesse recuperado todo o vigor, irradiava uma perigosa potência masculina que deixou Evie com as pernas bambas. Não ajudou o fato de ele permanecer totalmente em silêncio enquanto a olhava lenta e perturbadoramente. Lembrando-se da sensação da pele sedosa do marido em seus dedos e dos músculos rijos sob as roupas elegantes, Evie corou.
Frannie se apressou a pegar o vestido descartado de Evie e sair do quarto.
Sebastian continuou a observar Evie enquanto ela colocava a escova de lado e se levantava com um murmúrio indistinto. Afastando-se da parede, foi até a esposa e lhe acariciou os antebraços por cima do grosso roupão. O coração de Evie começou a bater com força enquanto sua pele formigava sob as camadas de veludo e seda. Ela fechou os olhos quando Sebastian a puxou para mais perto e lhe beijou a sobrancelha, a testa e a bochecha. Essas carícias e a grande excitação do marido, bem como a sua própria, pareceram envolvê-los em uma névoa abrasadora.
Eles ficaram em pé juntos por um longo tempo, mal se tocando, simplesmente sentindo a proximidade um do outro.
– Evie... – O sussurro dele agitou os diminutos cachos na linha dos cabelos de Evie. – Quero fazer amor com você.
O sangue de Evie se transformou em mel fervente.
– E-eu achei que você nunca se re-referiria a isso assim.
Ele ergueu o rosto dela e o acariciou com delicadeza. Evie recebeu docilmente as carícias enquanto o cheiro de Sebastian, fresco e com um toque de cravo, a deixava zonza.
Sebastian pôs a mão sob a camisa e segurou a aliança na fina corrente. Puxou-a, partindo os elos frágeis e deixando a corrente cair no chão. A respiração de Evie se tornou acelerada quando ele pegou sua mão esquerda e deslizou a aliança de ouro para o dedo anelar. Eles ficaram com as mãos juntas, as palmas e os punhos encostados, como na cerimônia de casamento. Sebastian abaixou a testa para a dela e sussurrou:
– Quero respirar o ar de seus pulmões e deixar as minhas marcas em sua alma. Quero lhe dar mais prazer do que você pode suportar. Quero fazer amor com você, Evie, como nunca fiz com ninguém.
Agora ela temia tão violentamente o prazer que mal conseguia ficar em pé.
– Se-seu ferimento... Temos de tomar cuidado...
– Não se preocupe com isso.
Ele a beijou suave e apaixonadamente. Soltou-lhe a mão e a puxou para mais perto, até moldá-la totalmente ao seu corpo. Evie o queria com um desespero quase assustador. Tentou prender a boca de Sebastian com a sua e lhe puxou as roupas com uma urgência que o fez rir baixinho.
– Devagar, a noite só está começando... e vou fazer amor com você durante um longo tempo.
Evie, que estava com as pernas bambas, puxou mais o casaco dele.
– Não vou conseguir ficar em pé por muito tempo.
Ela viu o brilho do sorriso do marido enquanto ele tirava o casaco e dizia com uma voz rouca de paixão:
– Deite-se na cama, amor.
Evie obedeceu, reclinando-se enquanto observava Sebastian tirar a roupa e subir na cama. A visão da atadura branca sobre a musculatura firme da barriga a fez se lembrar de quanto estivera perto de perdê-lo. Ela sentiu uma forte emoção a invadir. Amava-o tanto que a perspectiva de passar a noite com ele a enchia de uma felicidade que parecia angústia. Seus corpos estavam separados apenas pelo roupão. Ela estendeu a mão para tocar nos pelos louro-escuros do peito do marido, afundando os dedos nos grossos cachos até a pele firme.
Sebastian beijou seu rosto, sua respiração atingindo a pele de Evie em ondas quentes que a fizeram tremer.
– Evie, nos últimos dias não fiz nada além de ficar nesta cama e pensar em coisas que passei a vida inteira tentando evitar. Uma vez eu disse que não fui feito para ter esposa e família. Que não teria nenhum interesse em um filho, se você... – Ele hesitou por um longo momento. – Mas a verdade é que eu quero ter um filho com você. Não sabia quanto até pensar que nunca teria essa oportunidade. – Ele esboçou um sorriso autocrítico. – Maldição, não sei como ser um marido ou pai. Mas como nas duas áreas você parece se contentar com pouco, talvez eu tenha uma chance de agradá-la.
Ele riu ao ver Evie erguer as sobrancelhas sarcasticamente e depois ficou sério.
– Há muitos modos de evitar que você engravide. Mas se e quando decidir que está pronta, quero que me diga...
Evie o interrompeu com um beijo. Nos minutos ardentes que se seguiram, nenhum dos dois conseguiu dizer mais nada. Ela se sentiu atordoada de prazer, chegando a um ponto de emoção e desejo que pareceu aguçar seus sentidos até todos os sons, toques e sabores se tornarem intensos.
Sebastian afastou o roupão do corpo pálido de Evie e lhe acariciou os seios expostos com a leveza das asas de uma borboleta. Os mamilos dela se intumesceram ansiando pelo toque do marido. Quando ele finalmente tomou um em sua boca aveludada, Evie gemeu de alívio. No início, Sebastian usou apenas a ponta da língua com uma delicadeza que a fez se arquear em uma súplica. Pouco a pouco fez mais, lambendo e sugando até ela sentir seu desejo aumentar a cada toque.
Subitamente o roupão de veludo pareceu oprimir sua pele muito sensível e Evie tentou em vão se livrar dele. Murmurando docemente, Sebastian estendeu a mão para ajudá-la, puxando as mangas e afastando o roupão das costas e da cintura de Evie. Ela deu um suspiro de alívio, se arqueou para o marido e lhe abraçou os ombros nus. Ele passou as mãos suavemente pelo seu corpo, provocando-lhe arrepios. Ela não conseguia pensar ou falar, só reagir às carícias enquanto ele colocava suas mãos e pernas em posições ainda mais reveladoras e a beijava devagar.
Dedos masculinos exploradores deslizaram por entre suas coxas para encontrar o elixir de seu sexo excitado.
– Sebastian... por favor, não posso esperar mais. Eu...
Ela se interrompeu quando o sentiu virá-la de costas para si, encaixando os quadris de ambos.
Ele a abraçou, fazendo-a se sentir segura e protegida mesmo quando lhe separou as coxas com suavidade.
Confusa ao perceber a pressão do sexo dele, Evie se deu conta de que ele a estava penetrando por trás. Sufocou um grito e virou o rosto para o braço musculoso sob seu pescoço.
– Calma – sussurrou Sebastian, afastando os cachos de cabelo do ouvido e do pescoço dela e lhe beijando a pele exposta. – Deixe-me amá-la assim, querida. Ele a acariciou com os dedos, massageando-a delicadamente até ela relaxar. Provocou-a com a glande, introduzindo e retirando seu membro quando ela pensava que a penetraria totalmente. Evie começou a se contorcer, jogando os quadris para trás. Quando Sebastian a penetrou até o fim, ela estava gemendo alto.
Como a posição não permitia muitos movimentos, ele investiu várias vezes, firme e profundamente, enquanto Evie se arqueava em frenético incentivo.
– Está muito impaciente, amor – comentou Sebastian, sorrindo. – Não se esforce. Deixe o prazer vir naturalmente. Apoie-se em mim...
Ele puxou a perna de Evie para cima de seu joelho, de modo que ela ficasse com as pernas bem abertas e os quadris parcialmente apoiados nos seus. Evie estremeceu ao senti-lo deslizar para ainda mais fundo, ao mesmo tempo acariciando-a em um contraponto rítmico para as investidas de seu pênis.
Levada à loucura, Evie contraiu todos os músculos, esperando enquanto Sebastian aumentava lentamente seu prazer. Levava-a à beira do orgasmo, recuava e depois a levava para cada vez mais perto, fazendo-a esperar e esperar até ela finalmente atingi-lo em uma série de espasmos que sacudiram a cama.
Sebastian ainda estava com o pênis ereto quando se afastou. Seus cabelos dourados estavam molhados de suor quando a deitou de costas e lhe beijou a barriga lisa. Quando flexionou os joelhos de Evie e os puxou para cima, ela balançou a cabeça em uma fraca negativa.
– Estou exausta – disse roucamente. – Eu... espere, Sebastian...
A língua do marido procurou o sexo úmido e salgado com lambidas suaves, insistindo até ela parar de protestar. As carícias a acalmaram, fazendo sua frequência cardíaca se normalizar.
Depois de longos e pacientes minutos, ele tomou na boca o clitóris excitado e começou a sugá-lo e mordiscá-lo. Evie se esquivou à delicada provocação. Sebastian a puxou mais para cima, a língua a tocando repetidamente e girando em padrões deliberados enquanto ele abraçava as coxas dela.
Parecia que o corpo de Evie não lhe pertencia mais, que existia somente para obter esse prazer torturante. Sebastian. Ela não conseguiu pronunciar o nome do marido. Ainda assim, ele pareceu ouvir sua súplica silenciosa e fez algo com a boca que lhe provocou uma série de orgasmos ardentes. Sempre que ela achava que aquilo havia terminado, era varrida por outra onda de sensações até ficar tão exausta que lhe implorou que parasse.
Sebastian se ergueu sobre ela com os olhos brilhando no rosto provocador. Ela se moveu para acolhê-lo, abrindo as pernas e deslizando os braços para as costas fortes do marido. Ele se acomodou dentro do sexo excitado, preenchendo-a totalmente. Quando lhe beijou a orelha, o coração de Evie batia tão forte que ela mal pôde ouvir os sussurros de Sebastian.
– Evie, quero algo de você. Quero que atinja o orgasmo mais uma vez.
– Não – respondeu Evie fracamente.
– Sim. Preciso estar dentro de você e sentir.
Ela virou a cabeça no travesseiro em uma lenta negativa.
– Eu não posso...
– Sim, pode. Vou ajudá-la.
Ele deslizou as mãos para o ponto em que estavam unidos. Evie gemeu, impotente, ao sentir as pontas dos dedos do marido em seu sexo, manipulando-a tão habilmente. Sentia-se exaurida.
Subitamente o sentiu deslizando para ainda mais fundo enquanto seu corpo excitado se abria para recebê-lo.
– Hummm... – gemeu Sebastian. – Sim, isso. Ah, amor, você é tão doce...
Ele se acomodou entre os joelhos dobrados e os quadris de Evie, penetrando-a com firmeza.
Ela o envolveu com seus braços e pernas, enterrou o rosto no pescoço quente dele e gritou uma última vez, sua carne pulsando e se apertando para levá-lo a um convulsivo clímax. Sebastian estremeceu em seus braços e lhe agarrou os cabelos enquanto se entregava de corpo e alma, por completo, por amor.
Quando Evie acordou sozinha na cama, a primeira coisa que viu foi pedacinhos cor-de-rosa à sua volta, espalhados nos lençóis brancos como neve, como se alguém tivesse derramado vinho tinto na cama. Piscando sonolentamente, apoiou-se em um dos cotovelos e tocou em um deles. Era uma pétala de rosa, atirada sobre o colchão. Olhando ao redor, viu que uma chuva de pétalas caíra sobre ela. Então esboçou um sorriso e se deitou de novo na cama perfumada.
A noite de estonteante sensualidade parecia ter sido parte de um longo sonho erótico. Mal podia acreditar nas coisas que havia deixado Sebastian fazer, as intimidades que nunca imaginara possíveis. E, no torpor que tinha se seguido ao ato sexual, Sebastian a aninhara no peito e eles conversaram pelo que pareceram horas. Evie até mesmo lhe contara a história da noite em que ela, Annabelle e as irmãs Bowmans viraram amigas, sentadas no baile.
– Nós fizemos uma lista de possíveis pretendentes e a anotamos em cartões de dança vazios –
contara Evie. – Lorde Westcliff estava no topo da lista, é claro. Você estava em último, porque obviamente não era do tipo para casar.
Sebastian rira roucamente, enroscando suas pernas nuas nas dela com intimidade.
– Eu estava esperando você me convidar.
– Você nunca olhou para mim – respondera Evie ironicamente.
Sebastian tinha lhe acariciado os cabelos e ficado calado por um instante.
– Fui um idiota por não notá-la. Se tivesse passado apenas cinco minutos em sua companhia, você nunca teria me escapado.
Lembrando-se das horas de abrasadora ternura, Evie pôs um vestido de lã debruado em seda e desceu para encontrar Sebastian, que provavelmente estaria no escritório do clube examinando os recibos da noite anterior. O clube estava vazio, exceto pelos empregados que o limpavam para a próxima noite e os empreiteiros instalando um carpete novo e pintando o madeiramento.
Entrando no escritório, Evie encontrou Sebastian e Cam em lados opostos da escrivaninha.
Ambos examinavam livros contábeis, registrando algumas entradas com canetas-tinteiro e fazendo anotações ao lado de longas colunas. Eles ergueram os olhos quando ela passou pela porta. Evie sustentou brevemente o olhar de Sebastian; era difícil manter a compostura perto dele depois da intimidade da noite anterior. Sebastian parou no meio de uma frase enquanto a olhava, como se tivesse se esquecido do que estava dizendo. Parecia que nenhum dos dois estava confortável com sentimentos ainda novos e fortes demais. Murmurando um bom-dia para ambos, Evie lhes disse para não se levantarem e foi se sentar ao lado de Sebastian.
– Já tomou seu café da manhã, milorde? – perguntou.
Ele balançou a cabeça, seus olhos sorridentes.
– Ainda não.
– Vou à cozinha ver o que temos.
– Espere um pouco – pediu Sebastian. – Estamos quase terminando.
Enquanto os dois homens discutiam os últimos detalhes de uma proposta de investimento na construção de um centro comercial na St. James Street, Sebastian segurou a mão de Evie sobre a escrivaninha. Distraidamente, encostou as costas dos dedos dela em seu queixo enquanto contemplava a proposta escrita. Embora Sebastian não se desse conta do que a familiaridade do gesto revelava, Evie corou ao ver Cam olhando para a cabeça inclinada de seu marido. O rapaz lhe deu um olhar de fingida censura, como o de uma ama-seca pegando duas crianças em uma brincadeira de beijar, e sorriu enquanto ela corava ainda mais.
Alheio ao que se passava, Sebastian entregou a proposta para Cam, que imediatamente ficou sério.
– Essa ideia não me agrada – comentou Sebastian. – Tenho dúvidas se haverá movimento suficiente na área para manter todo um centro comercial, principalmente com os preços dos aluguéis. Suspeito que daqui a um ano se tornará um elefante branco.
– Elefante branco? – perguntou Evie.
Uma nova voz veio da porta. Era a de lorde Westcliff.
– Um elefante branco é um animal raro – respondeu o conde, sorrindo. – Não é só caro como também difícil de manter. Historicamente, quando um rei antigo desejava arruinar alguém, ele lhe dava um elefante branco.
Entrando no escritório, Westcliff se inclinou sobre a mão de Evie para cumprimentá-la e disse para Sebastian:
– Em minha opinião, sua avaliação do centro comercial está correta. Pouco tempo atrás, me procuraram com a mesma proposta de investimento e eu a recusei pelos mesmos motivos.
– Sem dúvida ficará provado que nós dois estamos errados – disse Sebastian sarcasticamente.
Não se deveria tentar prever nada com respeito às mulheres e suas compras.
Ele se levantou para apertar a mão do conde.
– Minha esposa e eu íamos tomar café da amanhã. Espero que nos acompanhe.
– Aceito um pouco de café – disse Westcliff. – Desculpe-me ter vindo sem avisar, mas tenho algumas notícias para dar.
Sebastian, Evie e Cam olharam atentamente para o conde enquanto ele continuava:
– Esta manhã, finalmente consegui me encontrar com lorde Belworth. Ele admitiu que era o dono original da pistola usada para atirar em St. Vincent. Confidenciou-me que deu o par de pistolas de duelo para Sr. Clive Egan há uns três anos, junto com algumas joias de família e outras coisas, como suborno para ter mais tempo para acertar suas dívidas com o clube.
Evie pestanejou de surpresa à menção do antigo gerente do clube.
– Então o Sr. Egan está escondendo o Sr. Bullard?
– Possivelmente. Mas por quê? Isso significa que o Sr. Egan pode ter contratado o Sr.
Bullard para atentar contra minha vida?
– Vamos descobrir – disse Sebastian, com uma expressão decidida. – Pretendo fazer uma visita a Egan hoje.
– Eu o acompanharei – disse Westcliff calmamente. – Minhas fontes me forneceram o endereço. Na verdade, não é muito longe daqui.
Sebastian balançou a cabeça.
– Obrigado pela ajuda, mas não quero lhe causar inconvenientes envolvendo-o ainda mais nisso. Certamente sua esposa não gostaria que eu o colocasse em risco. Levarei Rohan comigo.
Evie começou a protestar, sabendo que Sebastian estaria mais seguro com Westcliff. Seu marido mal havia começado a ser recuperar do ferimento. Não seria fácil para Cam dissuadi-lo caso ele pensasse em fazer alguma besteira. Afinal de contas, era seu empregado e oito anos mais jovem do que ele. Westcliff conhecia Sebastian muito melhor e tinha um poder infinitamente maior de influenciá-lo.
Contudo, antes de Evie poder dizer uma só palavra, Westcliff retrucou:
– Rohan é realmente muito capaz – concordou o conde calmamente. – Por esse motivo, deveria se encarregar da segurança de Evie e ficar com ela.
Sebastian estreitou os olhos, preparando-se para discutir, mas as palavras não saíram de sua boca porque Evie apertou seu braço e se apoiou nele confiantemente.
– Eu prefiro assim – disse ela.
Quando Sebastian olhou para o rosto da esposa, sua expressão se suavizou, dando a ela a agradável sensação de que ele faria o que estivesse ao seu alcance para agradá-la.
– Está bem – murmurou Sebastian relutantemente. – Se a presença de Rohan a tranquiliza, que seja assim.
Parte da objeção de Sebastian a Westcliff acompanhá-lo era o constrangimento que ainda havia entre eles. Não era exatamente confortável passar tempo com um homem cuja esposa você havia raptado. A surra que ele lhe dera depois desanuviara um pouco o clima entre eles, e o subsequente pedido de desculpas de Sebastian também ajudara. Era como se o casamento de Sebastian com Evie e sua disposição de se sacrificar por ela tivessem feito o conde vê-lo com uma cautelosa aprovação que, com o passar do tempo, poderia restabelecer a velha amizade.
Contudo, o relacionamento deles assumira uma nova forma que talvez nunca fosse se igualar à anterior.
Para um homem antes dedicado a viver sem arrependimentos, Sebastian estava pensando muito em seus comportamentos passados. O que havia feito com Lillian Bowman fora um erro em muitos níveis. Como tinha sido idiota, disposto a sacrificar uma amizade por uma mulher que nunca realmente quisera. Se tivesse se dado o trabalho de considerar suas alternativas, podia ter descoberto Evie, que estava bem debaixo do seu nariz.
Para o alívio de Sebastian, a conversa com Westcliff foi amistosa enquanto a carruagem percorria o lado leste de Londres até os subúrbios onde estavam sendo construídas casas para a classe média em locais antes não urbanizados. O endereço de Clive Egan era o de um homem de grandes posses. Refletindo amargamente sobre quanto Egan desviara dos lucros do clube durante anos, Sebastian contou a Westcliff tudo que sabia sobre o antigo gerente. O assunto levou à situação financeira atual do clube e à necessária reestruturação dos investimentos. Era um prazer conversar com o amigo, um dos maiores gênios financeiros do país, capaz de proporcionar uma visão inteligente dos negócios. Nenhum deles deixou de notar que a conversa era uma ruptura drástica com o passado, quando Sebastian falava sobre escândalos e amantes, o que sempre resultava em sermões condescendentes de Westcliff.
A carruagem parou em uma nova praça residencial com pequenos pátios pavimentados atrás.
Todas as casas tinham três andares e eram muito estreitas, nenhuma tendo mais de 5 metros de largura. Uma cozinheira velha e de aparência cansada abriu a porta e se afastou resmungando enquanto eles entravam. A casa parecia impessoal, do tipo previamente mobiliada que costumava se destinar a profissionais solteiros.
Como toda a residência consistia em três cômodos e um cubículo, não foi difícil encontrar Egan. O antigo gerente do clube estava instalado em uma grande cadeira perto da lareira em uma sala que cheirava fortemente a bebida e urina. Havia uma coleção de garrafas enfileiradas nos peitoris das duas janelas e mais algumas perto da lareira. Com o olhar vidrado de um bêbado inveterado, Egan contemplou seus dois visitantes sem surpresa. Parecia exatamente igual a quando Sebastian o despedira, dois meses antes: inchado e desgrenhado, com dentes cariados, um grande nariz vermelho e uma pele rósea com veias aparentes. Levando um copo de bebida à boca, ele deu um grande gole e sorriu enquanto os observava com olhos cinza e úmidos.
– Eu soube que tentaram arrancar suas tripas – disse ele para Sebastian. – Mas como não parece um fantasma, acho que é mentira.
– É verdade – respondeu Sebastian com um olhar gelado. – O diabo não quis me levar.
A ideia de que Egan pudesse ser responsável pela tentativa de assassinato de sua esposa tornava difícil para ele não dar uma surra no canalha. Somente o fato de ele talvez dispor da informação de que eles precisavam o fez se conter.
Egan deu uma risadinha e apontou para a fileira de garrafas.
– Sirvam-se, se quiserem. Não é sempre que recebo visitantes tão ilustres.
Westcliff falou calmamente:
– Não, obrigado. Viemos perguntar sobre um visitante anterior, o Sr. Joss Bullard. Onde ele está?
Tomando outro grande gole de bebida, Egan o olhou friamente.
– Como vou saber?
Westcliff tirou de seu bolso a pistola feita sob encomenda e a exibiu na palma da mão. O
bêbado arregalou os olhos e seu rosto subitamente assumiu um tom arroxeado.
– Onde conseguiu isso? – perguntou resfolegando.
– Bullard a usou na noite em que atirou em mim – disse Sebastian, tentando se conter, quando todo o seu corpo fervia de raiva. – Embora eu duvide de que a cabeça disforme entre seus ombros contenha algo parecido com um cérebro operante, até mesmo você deve imaginar as implicações de seu envolvimento em uma tentativa de assassinato. Quer passar um longo tempo na prisão? Isso pode ser providenciado em uma questão de...
– St. Vincent – murmurou Westcliff em um discreto aviso, enquanto Egan engasgava.
– Ele deve tê-la roubado de mim! – gritou, derramando no chão a bebida do copo. – Ladrão desgraçado! Não sei como a conseguiu. Não foi culpa minha, eu juro! Não quero nada além de ser deixado em paz. Maldito!
– Quando o viu pela última vez?
– Três semanas atrás. – Acabando de tomar sua bebida, Egan pegou a garrafa no chão e sorveu dela com a avidez de uma criança bebendo de uma mamadeira. – Ele ficava aqui de vez em quando depois que foi expulso do clube. Não tinha para onde ir. Não o deixavam nem mais dormir em um abrigo depois que as pústulas começaram a aparecer.
Sebastian e Westcliff trocaram um rápido olhar.
– Pústulas? – perguntou Sebastian desconfiado, porque havia muitas doenças diferentes que as causavam. – De que tipo?
Egan o olhou com desprezo
– Sífilis. O mal francês que leva à loucura. Mesmo antes de ele ir embora do clube de Jenner, já havia sinais: fala arrastada, tremores no rosto, rachaduras nos dentes e fissuras no nariz.
Deviam estar cegos para não notarem.
– Não sou dado a examinar tão de perto meus empregados – disse Sebastian, sarcástico, enquanto sua mente se enchia de pensamentos.
A sífilis era uma doença horrível transmitida por contato sexual, levando ao que os médicos chamavam de “paresia do demente”. Resultava em loucura, às vezes paralisia parcial e uma repulsiva perda de partes do corpo, inclusive do tecido mole do nariz. Se Bullard realmente tivesse sífilis nesse estágio, não haveria mais esperança para ele. Mas por que, em sua loucura, tinha se concentrado em Evie?
– A esta altura ele provavelmente já perdeu o juízo – disse Egan amargamente, erguendo a garrafa para tomar outro gole. Ele fechou os olhos brevemente ao sentir o ardor do álcool e apoiou o queixo no peito. – O rapaz veio aqui na noite em que atirou, dizendo que o havia matado. Estava com as pernas e os braços tremendo e se queixava de barulho e dor em sua cabeça. Cheio de ideias estranhas. Fora de si. Então eu paguei a um homem para levá-lo a um hospital para doentes incuráveis, que fica na estrada que leva a Knightsbridge. Bullard está lá agora, morto ou em um estado que tornaria a morte uma bênção.
Sebastian falou com impaciência, em vez de compaixão.
– Por que ele tentou matar a minha esposa? Deus sabe que ela nunca lhe faria nenhum mal.
Egan respondeu devagar:
– O pobre diabo sempre a desprezou, desde que era criança. Depois de uma das visitas de Evangeline ao clube, quando Bullard viu como Jenner gostava dela, ficou calado e irritado durante dias. Ele zombava dela... – Egan parou, esboçando um sorriso. – Ela era uma criaturinha estranha. Sardenta, tímida e redonda como um golfinho. Eu soube que agora está muito bonita, embora não possa imaginar isso...
– Ele era filho de Jenner? – interrompeu-o Westcliff, seu rosto inexpressivo.
A súbita pergunta surpreendeu Sebastian. Ele prestou atenção enquanto Egan respondia.
– Podia ser. A mãe dele, Mary, jurava que era. – Egan pôs cuidadosamente a garrafa de lado e cruzou as mãos sobre sua grande barriga. – Ela era uma prostituta. A noite em que teve mais sorte na vida foi quando prestou seus serviços a Ivo Jenner. Ele gostou dela e pagou à madame para mantê-la para seu uso exclusivo. Um dia, Mary o procurou e disse que estava grávida.
Jenner, que era fácil de convencer, lhe concedeu o benefício da dúvida. Sustentou-a pelo resto da vida e deixou o garoto trabalhar no clube quando completou idade suficiente. Mary morreu muitos anos atrás. Logo antes disso, contou para Bullard que Jenner era seu pai. Quando o rapaz lhe perguntou sobre isso, Jenner lhe disse que, sendo verdade ou não, deveria ser mantido em segredo. Não queria reconhecer Bullard como filho. Por um lado, o rapaz nunca foi do tipo que se chamaria de adequado. Por outro, Jenner nunca ligou a mínima para ninguém além da filha.
Queria que Evie herdasse tudo quando ele morresse. Bullard a culpava, é claro. Se não fosse por ela, Jenner o teria reconhecido como filho e lhe dado mais. Provavelmente tinha razão. – Egan franziu as sobrancelhas com tristeza. – Quando ela o levou para o clube, milorde, Bullard já estava doente. Um triste fim para uma vida melancólica.
Olhando para os dois com sombria satisfação, acrescentou:
– Se quiserem se vingar de um pobre louco, podem encontrá-lo no hospital Tottenham.
Fiquem à vontade, mas, em minha singela opinião, o Criador já lhe infligiu o pior castigo que um corpo pode suportar.
CAPÍTULO 22
Durante as horas em que Sebastian esteve ausente, Evie se ocupou com pequenas tarefas no clube: separou dinheiro e recibos, respondeu a cartas e examinou a pilha de correspondências não lidas enviadas para Sebastian. Naturalmente não conseguiu resistir a abrir algumas. Eram cheias de bobagens e insinuações amorosas, e duas até mesmo sugeriam que a esta altura Sebastian já devia ter se cansado da esposa. A intenção das mulheres era tão óbvia que Evie sentiu vergonha alheia. As cartas também serviram para lembrá-la do passado promíscuo de Sebastian, quando sua principal ocupação era se envolver em conquistas e jogos amorosos.
Não era fácil confiar em um homem como ele sem se sentir uma tola. Sebastian sempre seria admirado e cobiçado por outras mulheres. Mas Evie sentia que o marido merecia a chance de provar sua sinceridade. Estava nas mãos dela lhe proporcionar um recomeço. Se fosse bem-sucedida, as recompensas seriam infinitas para ambos. Ela podia ser forte o suficiente para correr o risco de amá-lo, fazer-lhe exigências, ter expectativas que ele às vezes poderia achar difícil satisfazer. E Sebastian parecia querer ser tratado como um homem comum – ter alguém que visse além de sua bela aparência, pedir mais dele do que habilidades sexuais. Não que ela não apreciasse a aparência e as habilidades sexuais dele.
Depois de observar – com uma pontada de satisfação – as cartas serem reduzidas a cinzas na lareira, Evie se sentiu sonolenta e foi para o quarto tirar um cochilo. Apesar de seu cansaço, foi difícil relaxar porque estava preocupada com o marido. Foi perseguida por pensamentos até seu cérebro exausto pôr fim àquela inquietação inútil e ela adormecer.
Quando acordou, cerca de uma hora depois, Sebastian estava sentado na cama ao seu lado, segurando uma mecha de seus cabelos brilhantes entre os dedos polegar e indicador. Os olhos dele, da cor do céu ao amanhecer, a observavam com atenção. Evie se sentou e sorriu timidamente.
Com delicadeza, Sebastian acariciou seus cabelos desgrenhados.
– Você parece uma criança quando dorme – murmurou. – Isso me faz querer protegê-la o tempo todo.
– Você encontrou o Sr. Bullard?
– Sim e não. Primeiro me conte o que fez na minha ausência.
– Ajudei Cam a arrumar coisas no escritório. E queimei todas as cartas das mulheres apaixonadas por você. O fogo foi tão grande que me surpreendeu ninguém enviar uma brigada de incêndio.
Ele curvou os lábios em um sorriso, mas a olhou cautelosamente.
– Leu alguma delas?
Evie encolheu os ombros com indiferença.
– Algumas. Perguntaram se você já tinha se cansado de sua esposa.
– Não. – Sebastian passou a palma da mão pela coxa de Evie. – Estou cansado das inúmeras noites de fofocas repetitivas e flertes mornos. Cansado de encontros sem sentido com mulheres entediantes. Todas são iguais para mim. Nunca me importei com nenhuma delas, só com você.
– Não as culpo por o quererem – disse Evie, passando os braços ao redor do pescoço do marido. – Mas não estou disposta a dividi-lo.
– Não terá de fazer isso. – Ele pôs as mãos no rosto de Evie e lhe deu um rápido beijo.
– Fale-me sobre o Sr. Bullard – disse ela, acariciando os punhos do marido.
Evie ficou calada enquanto Sebastian descrevia o encontro com Clive Egan e as revelações sobre Joss Bullard e a mãe dele. Ela arregalou os olhos, que estavam cheios de piedade. O pobre homem não tinha culpa de sua origem nem da criação indiferente que o tornaram tão ressentido.
– Que estranho! – murmurou ela. – Eu sempre quis e até mesmo esperei que Cam fosse meu irmão, mas nunca pensei que Joss Bullard pudesse ser.
Bullard sempre havia sido muito inacessível e beligerante. Quanto disso podia ter resultado da rejeição por parte de Ivo Jenner? Sentir-se indesejado, ser obrigado a manter um segredo vergonhoso pelo homem que podia ser seu pai... Certamente tornaria qualquer um amargo.
– Nós fomos ao hospital Tottenham – continuou Sebastian –, onde nos deixaram entrar na ala de doentes incuráveis. É um lugar imundo que precisa desesperadamente de recursos. Havia mulheres e crianças que... – Ele fez uma careta ao se lembrar. – Na verdade, prefiro não descrever isso. Um administrador do Tottenham disse que Bullard tinha sido admitido no último estágio de sífilis.
– Eu quero ajudá-lo – disse Evie em tom resoluto. – No mínimo, podemos mandá-lo para um hospital melhor...
– Não, querida. – Sebastian passou os dedos pelos ossos finos da mão da esposa. – Bullard morreu dois dias atrás. Mostraram-nos o local onde ele e mais dois pacientes foram enterrados na mesma sepultura.
Evie desviou seu olhar, assimilando a informação. Surpreendeu-a sentir os olhos úmidos e a garganta apertada.
– Pobre homem – disse roucamente. – Sinto muito por ele.
– Eu não – disse Sebastian. – Se ele cresceu sem o afeto do pai, não era diferente de inúmeras pessoas que tiveram de conquistar seu espaço no mundo sozinhas. Estava em melhor situação do que Rohan, cujo sangue cigano o torna objeto de preconceito. Não chore, Evie. Bullard não valia uma única lágrima sua.
Evie deu um suspiro, trêmula.
– Desculpe-me. Não queria ser tão emotiva. É só que as últimas semanas foram muito difíceis. Ainda estou com os sentimentos à flor da pele e não consigo controlá-los como deveria.
Sebastian a puxou junto a seu corpo quente, envolvendo-a com seus músculos fortes e sussurrando por entre os cabelos dela:
– Não se desculpe por ser emotiva, amor. Você passou por um inferno. Sou um bruto sem coração, mas sei apreciar a coragem necessária para ser sincero em relação aos próprios sentimentos.
A voz de Evie foi abafada pelo ombro de Sebastian.
– Você não é um homem sem coração – sussurrou ela tremulamente. – Talvez isso seja errado da minha parte, mas, embora eu lamente de verdade a morte do Sr. Bullard, fico aliviada por ele ter partido. Por causa do que ele fez, quase perdi você.
Sebastian passou a boca pelos cachos soltos de Evie até encontrar a frágil borda da orelha.
– Você não terá tanta sorte.
– Não diga isso – disse Evie, sem achar graça da piada. Ela afastou a cabeça para olhá-lo enquanto ele continuava a abraçá-la. – Nem de brincadeira. Eu... – Sua voz tremeu enquanto se forçava a continuar. – Eu acho que não conseguiria mais viver sem você.
Sebastian pôs delicadamente sua grande mão na nuca de Evie, puxando-a para seu ombro enquanto enterrava o rosto nos cabelos dela por um instante.
– Ah, Evie... – Ela o ouviu dizer suavemente. – Afinal de contas, eu devo ter um coração, porque neste momento ele está apertado.
– Só seu coração está ficando apertado? – perguntou ela, fazendo-o rir.
– Outras coisas também – admitiu, com um brilho malicioso nos olhos. – E, como minha esposa, é seu dever aliviar todas as minhas dores.
Evie ergueu os braços e o puxou para ela.
Alheios aos assuntos pessoais dos donos ou empregados do clube de Jenner, seus clientes continuaram a lotá-lo todas as noites, especialmente depois de ficarem sabendo que não estavam admitindo mais sócios, porque o limite fora fixado em 2.500. Quem estivesse interessado em uma vaga tinha de se inscrever em uma fila de espera.
A estranha combinação de um visconde sem nenhum centavo e um clube de jogos em decadência produzira uma química surpreendente. Os empregados eram arrastados pela energia dinâmica de Sebastian ou despedidos. O clube era dirigido com uma eficiência implacável nunca vista até então. Nem mesmo Ivo Jenner em seu auge dirigira seu pequeno império com essa mão de ferro.
No passado, o ressentimento de Ivo Jenner com a aristocracia o fizera tratar muitos dos sócios com uma aduladora subserviência que os deixava vagamente desconfortáveis. Sebastian, por outro lado, era um deles. Era descontraído e, ainda assim, tão elegante que sua presença parecia encher o ambiente de animação. Sempre que estava por perto, os sócios riam, gastavam, falavam e comiam mais.
Enquanto os outros clubes serviam os indefectíveis bifes e tortas de maçã, o farto bufê do clube de Jenner era constantemente incrementado com pratos mais elaborados: salada quente de lagosta, caçarola de faisão, camarão com purê de aipo, codorna recheada com uvas e queijo de cabra servidos com molho de creme. E o favorito de Evie: bolo de amêndoas com cobertura de framboesas e uma grossa camada de merengue. A comida e o entretenimento no clube tinham melhorado tão rápido que as esposas começaram a se queixar de que os maridos estavam passando noites demais lá.
A natureza manipuladora de Sebastian encontrara um escape perfeito no clube de Jenner. Ele sabia como proporcionar um ambiente em que os homens podiam relaxar, se divertir e, nesse processo, gastar com facilidade. Os jogos eram conduzidos com rigorosa honestidade, já que teoricamente o jogo era ilegal, embora praticado abertamente em toda a cidade de Londres.
Dirigir um clube respeitável era o melhor modo de evitar ações judiciais.
Se no início Sebastian teve de suportar alguns comentários irônicos de conhecidos, eles logo mudaram de comportamento ao se verem na posição de lhe pedir aumento de crédito ou prazo para pagar dívidas. Para um homem que nunca havia tido muito dinheiro, Sebastian possuía uma surpreendente capacidade de administrá-lo. Como Cam dissera com admiração, Sebastian demonstrava a habilidade de um terrier para farejar um saldo bancário em risco ou qualquer coisa que pudesse afetar a capacidade de pagamento de um sócio.
Uma noite, quando Evie estava sentada perto da escrivaninha de Cam na sala principal, observando Sebastian presidir um jogo com apostas particularmente altas, percebeu a presença de um idoso ao seu lado. Virou-se e viu que era lorde Haldane, um cavalheiro que Sebastian lhe apresentara na semana anterior.
– Milorde – murmurou enquanto ele se inclinava sobre sua mão. – É um prazer revê-lo.
Ele tinha olhos castanhos e uma papada sob o queixo e sorriu para Evie.
– O prazer é meu, Lady St. Vincent.
Ambos voltaram seus olhos para a mesa de jogos, onde Sebastian acabara de fazer uma piada para aliviar a tensão. Ouviram-se risadas em meio à multidão e Evie se maravilhou com quanto Sebastian parecia à vontade em seu papel, como se tivesse nascido para isso. Estranhamente, parecia mais à vontade no clube do que o pai dela. Ivo Jenner, com sua natureza agitada, sempre achara difícil esconder sua preocupação quando um sócio do clube estava em uma maré de sorte extraordinária que ameaçava quebrar a banca. Sebastian, por outro lado, permanecia calmo e inabalável em todas as circunstâncias.
Lorde Haldane estava ocupado com reflexões parecidas, porque olhou para a figura distante de Sebastian e disse distraidamente:
– Nunca esperei ver outro desse tipo.
– Milorde? – disse Evie com um sorriso enquanto Sebastian notava sua presença e começava a se dirigir para ela.
Haldane pareceu perdido em uma lembrança muito antiga.
– Em todos os meus anos de vida, só vi outro homem que andava por um clube de jogos dessa maneira. Como se fosse seu território de caça e ele fosse o mais fascinante dos predadores.
– Refere-se ao meu pai? – perguntou Evie, confusa.
Haldane sorriu e balançou a cabeça.
– Por Deus, não.
– A quem...? – começou Evie, mas sua pergunta ficou no ar quando Sebastian os alcançou.
– Milady – murmurou Sebastian, pondo uma das mãos nas costas de Evie. Olhando para Haldane com um leve sorriso, continuou a falar com a esposa: – Acho que devo preveni-la, meu amor. Este cavalheiro é um lobo em pele de cordeiro.
Embora Evie achasse que o homem ficaria ofendido com aquele comentário, Haldane deu uma risada de satisfação ao ter sua vaidade adulada.
– Se eu fosse vinte anos mais jovem, seu insolente, a roubaria de você. Apesar de seu tão propagado charme, não se iguala ao meu no passado.
– A idade não o fez mudar nada – disse Sebastian com um sorriso, afastando Evie dele. –
Com licença, milorde, vou levar minha esposa para um lugar mais seguro.
– É óbvio que conquistou esse cavalheiro esquivo – disse Haldane para Evie. – Então vá e aplaque o ciúme dele.
– Eu... vou tentar – disse Evie insegura.
Por algum motivo, os dois homens riram e Sebastian manteve a mão nas costas de Evie enquanto se dirigiam à sala principal. Ele inclinou a cabeça para ela e perguntou:
– Está tudo bem, querida?
– Sim. Eu... – Ela parou, sorriu e disse de um modo pouco convincente: – Só queria vê-lo.
Parando com ela atrás de uma coluna, Sebastian baixou a cabeça para lhe roubar um beijo e a fitou com olhos brilhantes.
– Vamos jogar bilhar? – sussurrou e riu roucamente quando ela corou.
A popularidade do clube aumentou ainda mais quando os jornais começaram a recomendá-lo insistentemente:
Finalmente o Jenner’s se posiciona como um dos lugares frequentados pela elite londrina, distinguindo-se como um clube do qual todos os membros da aristocracia querem ser sócios. A cozinha satisfaz os paladares mais exigentes e a maior seleção de vinhos está à altura dos gostos mais refinados...
Em outro editorial:
Nunca é demais falar sobre a qualidade do ambiente recém-reformado, que oferece um belo cenário para uma clientela caracterizada pela superioridade intelectual. Não admira que o número de candidatos a sócios exceda em muito o número de vagas...
E ainda outro:
Muitos sugerem – e poucos discordam – que o renascimento do Jenner’s só podia ser obra de um cavalheiro dotado de extraordinário encanto e conhecedor dos mundos da moda, política, literatura e aristocracia. Trata-se, é claro, do famoso lorde St. Vincent, agora dono de um clube perfeito que promete se tornar uma instituição importante na vida de West End...
Uma noite, sentada no escritório, Evie leu os editoriais. Não esperava que o marido e o clube recebessem tanta atenção pública. Embora estivesse feliz por Sebastian tê-lo tornado um sucesso, não podia evitar se perguntar como seria quando ela finalmente tirasse o luto e ambos tivessem de participar da sociedade londrina. Não tinha a menor dúvida de que receberiam muitos convites. Tinha de superar sua falta de jeito e timidez. Precisava aprender a arte de dar respostas inteligentes... Tinha de aprender a ser charmosa e confiante...
– Por que está com o cenho franzido, querida? – Sebastian veio se sentar à escrivaninha, olhando-a com um sorriso curioso. – Leu algo desagradável?
– Pelo contrário – respondeu Evie tristemente. – Todos estão maravilhados com o clube.
– Entendo. – Ele passou o dedo indicador pelo queixo da esposa. – E isso a preocupa por quê?
Ela explicou apressadamente:
– Porque você está se to-tornando muito famoso, isto é, por algo além de correr atrás de mulheres, e portanto será muito requisitado. E um dia te-terei de tirar o luto, o que significa que iremos a bailes e soirées, e não me sinto capaz de pa-parar de me esconder nos cantos. Tenho de aprender a ser espirituosa, segura e a falar com as pessoas. Caso contrário, vo-você ficará irritado comigo ou, pior ainda, envergonhado...
– Evie. Shhh. Meu Deus...
Sebastian puxou uma cadeira próxima com o pé, a encostou na dela e se sentou pondo os joelhos de Evie entre os seus. Segurou-lhe as mãos e a olhou nos olhos, sorrindo.
– Não consegue ficar nem vinte minutos sem se preocupar, não é? Você não precisa ser nada além do que é.
Sebastian lhe beijou as mãos e, quando ergueu a cabeça, seu sorriso tinha desaparecido e ele estava com um olhar apaixonado. Passou o dedo polegar sobre a aliança, roçando-o nas palavras gravadas.
– Como eu poderia ter vergonha de você? Eu é que fui um vilão. Você nunca fez nada vergonhoso em sua vida. E no que diz respeito às afetações e habilidades sociais, espero que nunca se torne como aquelas tolas vazias que falam sem parar sem conseguir dizer nada de interessante. – Puxando-a para mais perto, esfregou o nariz no pescoço dela, no local em que o cordão de seda do vestido repousava na pele pálida. Saboreou-a levemente com a boca e depois lhe sussurrou no ponto que umedecera, fazendo-a estremecer: – Se quiser se esconder nos cantos, minha querida, eu aceito, desde que me leve com você. Na verdade, insistirei nisso. Eu a aviso de que me comporto muito mal nessas situações. Provavelmente a possuirei em gazebos, balcões, debaixo de escadas e atrás de vasos de plantas. Se você reclamar, simplesmente a lembrarei de que não deveria ter se casado com um libertino inescrupuloso.
Evie arqueou levemente o pescoço ao sentir as carícias dele.
– Não reclamarei.
Sebastian sorriu e mordiscou ternamente o pescoço dela.
– Esposa bem comportada – sussurrou. – Serei uma péssima influência para você. Por que não me dá um beijo e depois sobe para tomar seu banho? Quando terminar, estarei lá com você.
Quando Evie entrou no quarto, a banheira estava cheia até a metade. Frannie e outra criada pegaram um conjunto de jarros e se preparavam para mais uma ida para o andar de baixo.
Acalorada e sonhando acordada depois dos beijos de Sebastian, Evie começou a desabotoar as mangas do vestido.
– Eu a ajudarei quando voltar com o resto da água, milady – disse Frannie.
Evie sorriu.
– Obrigada.
Ela se dirigiu à penteadeira e pegou um frasco de perfume, um presente que Lillian recentemente lhe enviara. Com seu nariz especialmente sensível, Lillian adorava perfumes.
Pouco tempo atrás, havia experimentado fazer suas próprias combinações. Esse perfume era suntuoso e equilibrado, uma mistura de rosas e especiarias picantes fixada com âmbar. Evie despejou cuidadosamente algumas gotas douradas na água do banho e inalou com prazer o vapor com aroma de rosas.
Voltando para a penteadeira, sentou-se em uma pequena cadeira e se curvou para tirar os sapatos e as meias, pondo as mãos debaixo das saias para soltar as ligas. Com a cabeça virada para baixo, não podia ver muito, mas um súbito calafrio na nuca e passos suaves no chão acarpetado fizeram todos os pelos de seu corpo se eriçarem.
Ela viu algo deslizando rapidamente no chão. Sentando-se, seguiu a sombra até suas origens e deixou escapar um grito ao ver uma figura andrajosa vindo em sua direção. Levantou-se de um pulo da cadeira, tão rápido que a virou. Ao se virar para olhar o homem que entrara no quarto, ele disse com uma voz áspera:
– Cale a boca ou a abrirei do pescoço à vagina.
Ele segurava uma faca comprida e pontuda. Estava muito perto dela. Se quisesse, podia atingi-la com um só golpe.
Nenhum monstro imaginado pelo mundo infantil, nenhuma imagem de pesadelos podia se igualar à visão daquele homem terrivelmente corroído. Evie se moveu apenas um pouco na direção da banheira, tentando posicioná-la entre ela e o louco. Ele usava roupas que eram pouco mais que farrapos. Estava estranhamente inclinado para o lado esquerdo, como uma marionete desequilibrada. Em cada centímetro da pele exposta – mãos, pescoço, rosto – havia feridas purulentas, como se a carne estivesse se desprendendo dos ossos. Mas o mais horrível eram os restos do que um dia fora um nariz. Ele parecia uma quimera, um conjunto de carne, membros e traços desconjuntados.
Apesar da sujeira, das feridas e da chocante destruição do rosto dele, Evie o reconheceu.
Teve de se esforçar muito para manter a calma enquanto o pânico se espalhava por todas as suas veias.
– Sr. Bullard – disse em voz baixa. – No hospital disseram que tinha morrido.
Bullard inclinou estranhamente a cabeça enquanto continuava a olhá-la.
– Saí daquele maldito inferno – grunhiu. – Quebrei uma janela e fugi à noite. Estava farto daqueles demônios tentando me despejar suas malditas poções garganta abaixo.
Ele se aproximou de Evie com passos instáveis. Evie contornou lentamente a banheira, seu coração batendo forte.
– Mas eu não ia ficar naquele maldito lugar sem antes mandá-la para o inferno.
– Por quê? – perguntou Evie suavemente, tentando não olhar para a porta, onde viu um movimento pelo canto do olho.
Devia ser Frannie, pensou, aflita. A forma indistinta desapareceu e Evie rezou para a criada ter corrido para buscar ajuda. Enquanto isso, seu único recurso era manter distância de Joss Bullard.
– Você tirou tudo de mim! – rosnou ele, curvando os ombros como um animal encurralado em uma gaiola. – O maldito canalha deu tudo a você, uma gaguinha feia, quando eu era filho dele. Ele me escondeu como se eu fosse um urinol sujo. – Ele contorceu o rosto. – Eu fazia tudo que ele pedia, teria matado para agradá-lo, mas isso nunca importou. Só queria você, maldita parasita!
– Lamento muito – disse Evie, e a sincera lástima em sua voz pareceu desorientá-lo momentaneamente.
Ele fez uma pausa e a observou, a cabeça inclinada.
– Sr. Bullard... Joss... Meu pai realmente se preocupava com você. Seu último pedido foi que o ajudássemos e cuidássemos de você.
– É tarde demais para isso! – Ele arfou e levou as duas mãos à cabeça, inclusive a que segurava a faca, como se sentisse uma dor insuportável. – Maldito! Que o diabo o carregue!
Vendo uma chance de fugir, Evie correu para a porta. Bullard a pegou imediatamente, atirando-a com força contra a parede. Quando sua cabeça bateu na superfície dura, seu cérebro pareceu explodir e sua visão se tornou um borrão. Ela pestanejou e gemeu, tentando focalizar os olhos. Sentiu uma pressão desagradável no peito e um aperto na garganta. Percebeu que Bullard pusera o braço ao redor de seu pescoço, com a lâmina da faca completando o círculo. O aço afiado a comprimia a cada respiração. Bullard respirava com dificuldade, exalando um ar pútrido. Ela sentiu os tremores dele e os esforços para contê-los.
– Vamos juntos ao encontro dele – disse ele ao pé do ouvido.
– De quem? – murmurou Evie, sua visão aos poucos clareando.
– Nosso pai. Nós o veremos no inferno. – Deu uma gargalhada. – Ele deve estar jogando cartas com o diabo. – Bullard pressionou a faca no pescoço dela, parecendo gostar de vê-la se encolher. – Vou matá-la e depois me matarei. Será que Jenner gostaria de nos ver indo de braços dados para o inferno?
Enquanto Evie tentava encontrar palavras que pudessem trazê-lo temporariamente de volta à razão, uma voz calma veio da porta.
– Bullard.
Era Sebastian, parecendo surpreendentemente frio e calmo. Embora o perigo não tivesse diminuído, Evie sentiu um grande alívio com a presença do marido. Ele entrou no quarto devagar.
– Parece que os registros do Tottenham deixam a desejar – comentou, seus olhos claros e hipnotizadores fixos no rosto de Bullard.
– Achei que tivesse lhe enfiado uma bala – disse Bullard rudemente.
Sebastian deu de ombros.
– Foi só um arranhão. Como conseguiu entrar no clube? Temos homens em todas as portas.
– Pelo depósito de carvão. Há uma passagem lá que leva a Rogue’s Lane. Ninguém a conhece. Nem mesmo aquele cigano. Fique aí ou a matarei – disse ele quando o outro deu um passo para a frente.
Sebastian olhou para a faca, que agora Bullard segurava como se pretendesse cravá-la no peito de Evie.
– Está bem – disse Sebastian, recuando. – Calma. Eu farei o que pedir.
Sua voz era suave a amigável, sua expressão calma. Contudo, um suor brilhante começara a escorrer pelos lados do rosto.
– Joss, me ouça. Não tem nada a perder me deixando falar. Está entre amigos. Tudo que sua... sua irmã e eu queremos é atender ao pedido de seu pai e ajudá-lo. Diga-me o que quer.
Posso lhe conseguir morfina para aliviar a dor. Pode ficar aqui o tempo que quiser, com uma cama limpa para dormir e pessoas para cuidarem de você. Pode ter o que quiser.
– Está mentindo – disse Bullard desconfiado.
– Não estou, eu juro. Eu lhe darei o que quiser. Mas não poderei fazer nada por você se ferir Evie. – Enquanto falava, Sebastian se moveu lentamente na direção da janela, forçando Bullard a se virar. – Solte-a e...
– Pare – disse Bullard, balançando a cabeça com impaciência. Um tremor o sacudiu e ele deu um grunhido animalesco. – Maldito barulho em meus ouvidos...
– Posso ajudá-lo – disse Sebastian pacientemente. – Você precisa de remédios e repouso.
Abaixe o braço, Joss. Não há necessidade de machucar ninguém. Você está em casa. Abaixe o braço para que eu possa ajudá-lo.
Incredulamente, Evie sentiu Bullard relaxar o braço enquanto ouvia a voz tranquilizadora de Sebastian e se virava para ele.
Um barulho ensurdecedor rasgou o ar. Evie foi solta com uma força que a fez cambalear para trás. Sua mente atordoada só teve um segundo para registrar a visão de Cam à porta, baixando uma pistola fumegante. Sebastian tinha se movido deliberadamente no quarto para posicionar Bullard de modo que Cam pudesse lhe dar um tiro certeiro.
Antes de Evie poder olhar para o corpo caído no chão, foi virada e puxada para o peito de Sebastian. Toda a tensão que ele havia contido nos últimos minutos foi liberada em fortes tremores enquanto a abraçava. Sem fôlego para falar, Evie só pôde ficar nos braços do marido enquanto ele amaldiçoava e gemia junto aos seus cabelos.
Parecia que a pulsação de Evie nunca voltaria ao normal.
– Frannie o alertou?
Sebastian assentiu, deslizando dedos trêmulos para os cabelos de Evie.
– Sim, ela me disse que havia um homem em seu quarto. Não conseguiu reconhecê-lo.
Ele puxou a cabeça dela para trás e viu o pequeno corte que a faca produzira no pescoço.
Empalideceu ao perceber quão perto da artéria principal Bullard chegara. Inclinou-se para beijar a fina marca e depois arrastou a boca freneticamente pelo rosto de Evie.
– Maldição – sussurrou. – Evie, Evie. Não aguento isso.
Ela se virou nos braços do marido a fim de olhar para Cam, que acabara de pôr seu casaco sobre a cabeça e os ombros de Bullard para escondê-los.
– Cam, você não tinha de atirar nele – disse com uma voz embargada. – Ele ia me soltar.
Estava baixando o braço...
– Não dava para ter certeza – disse o rapaz em um tom monótono. – Quando vi aquilo, tive de atirar.
Ele estava com uma expressão vazia, mas seus olhos dourados brilhavam com lágrimas não derramadas. Evie percebeu que ele acabara de ser forçado a matar um homem que conhecia desde a infância.
– Cam – começou a dizer compassivamente, mas ele lhe fez um gesto para parar e balançou a cabeça.
– Foi melhor para ele – disse sem olhá-la. – Nenhuma criatura deveria ter de sofrer assim.
– Sim, mas você...
– Eu estou bem – disse Cam, enrijecendo o maxilar.
Mas ele não estava. Havia uma palidez em sua pele dourada e parecia tão abalado que Evie não conseguiu evitar a vontade de abraçá-lo, em um consolo maternal. Ele a deixou fazer isso, embora não retribuísse o abraço. Pouco a pouco, parou de tremer. Ela sentiu a leve pressão dos lábios de Cam em seus cabelos.
Ao que pareceu, isso era tudo que Sebastian estava disposto a permitir. Ele se aproximou, pegou Evie e ordenou bruscamente para Cam:
– Vá buscar o homem da funerária.
– Sim – disse o rapaz distraidamente. Ele hesitou. – Devem ter ouvido o barulho lá embaixo.
Teremos que dar algum tipo de explicação.
– Diga que alguém estava limpando uma arma e ela disparou acidentalmente – sugeriu Sebastian. – Ninguém foi ferido. Quando o homem da funerária chegar, traga-o para cima e lhe pague por seu silêncio.
– Sim, milorde. E se algum policial fizer perguntas?
– Faça-o ir ao meu escritório. Eu lidarei com ele.
Cam assentiu com a cabeça e desapareceu. Sebastian puxou Evie para fora do quarto, trancou a porta, pôs a chave no bolso e a levou para outro quarto no corredor. Ela o acompanhou, atordoada, tentando entender o que acabara de acontecer. Sebastian estava calado, seu perfil pétreo enquanto tentava manter a calma. Com grande cuidado, a fez entrar no quarto.
– Fique aqui. Enviarei uma criada para atendê-la. E uma taça de conhaque. Quero que beba tudo.
Evie o olhou ansiosamente.
– Virá me ver depois?
Ele assentiu brevemente com a cabeça.
– Primeiro tenho de cuidar de algumas coisas.
Naquela noite, porém, Sebastian não voltou para o quarto. Evie o esperou em vão, finalmente indo para a cama sozinha. Acordou várias vezes e passou a mão pelo espaço vazio ao seu lado procurando inutilmente o corpo quente do marido. Quando a manhã chegou, Evie estava preocupada e exausta, e olhou inexpressivamente para a criada que fora acender a lareira.
– Viu St. Vincent esta manhã? – perguntou roucamente.
– Sim, milady. Sr. Rohan e ele ficaram acordados quase a noite toda conversando.
– Diga que quero vê-lo.
– Sim, milady.
A criada pôs um jarro de água quente no lavatório e saiu do quarto. Evie se levantou da cama e passou as mãos pelos cabelos rebeldes. Tinha deixado a escova, o pente e os grampos no outro quarto, onde...
Ela estremeceu de repulsa e pena ao se lembrar dos acontecimentos da noite anterior. Ficou feliz por seu pai não ter vivido para ver no que se transformara o pobre Joss Bullard. Perguntou-se quais eram os verdadeiros sentimentos de seu pai por ele e se realmente acreditava que fosse filho dele.
– Papai... – murmurou, vendo os próprios olhos azuis no espelho.
Os olhos de Ivo Jenner. Seu pai havia levado muitos segredos para o túmulo e deixado inúmeras coisas sem explicação. Sempre lamentaria não tê-lo conhecido melhor. Contudo, confortou-a pensar que ele teria ficado satisfeito em saber que o clube finalmente atingira o nível ao qual sempre aspirara... e sua própria filha desencadeara os acontecimentos que resultariam na salvação do estabelecimento.
Quando voltou a pensar em Sebastian, ele entrou no quarto, ainda usando as mesmas roupas da noite anterior. Estava com os cabelos cor de âmbar dourado desgrenhados, o rosto com olheiras. Parecia cansado mas decidido, com o ar de um homem que tomara decisões desagradáveis e estava determinado a cumpri-las.
Sebastian a examinou com o olhar.
– Como você está?
Evie teria corrido para ele, mas algo na expressão do marido a fez se conter. Ela ficou em pé ao lado do lavatório, olhando-o com curiosidade.
– Cansada, mas não tanto quanto você. A criada me disse que você ficou acordado quase a noite toda. Sobre o que você e Cam conversaram?
Sebastian passou a mão pela nuca.
– Ele está tendo um pouco de dificuldade em aceitar o que aconteceu na noite passada, mas ficará bem.
Evie ficou indecisa, perguntando-se por que Sebastian estava tentando tanto parecer distante.
Contudo, quando ele olhou para seu corpo sob a camisola, não conseguiu esconder um brilho de desejo nos olhos. Isso a tranquilizou.
– Venha cá – disse Evie em uma voz baixa.
Mas ele foi até a janela, afastando-se dela. Olhou em silêncio para a rua movimentada, as carruagens e calçadas repletas de pedestres. Perplexa com aquele comportamento, Evie observou as costas esguias e os ombros firmes do marido.
Finalmente Sebastian se virou para ela, seu rosto cuidadosamente inexpressivo.
– Você não está segura aqui. Eu disse isso desde o início. E ficou provado mais de uma vez que tinha razão. Tomei uma decisão definitiva. Vou enviá-la para o campo para ficar na propriedade da família por um tempo. Meu pai quer conhecê-la. Ele será uma companhia bastante agradável e há algumas famílias locais que poderão lhe proporcionar um pouco de diversão...
– E você pretende ficar aqui? – perguntou Evie, franzindo a testa.
– Sim. Dirigirei o clube e a visitarei de vez em quando.
Sem poder acreditar que Sebastian estivesse propondo uma separação entre eles, Evie arregalou os olhos.
– Por quê? – perguntou fracamente.
Ele estava com uma expressão séria.
– Não posso mantê-la em um lugar como este, sempre me preocupando com o que poderia lhe acontecer.
– Acontecem coisas com pessoas no campo também.
– Não vou discutir com você – disse Sebastian rispidamente. – Irá para onde eu quiser e ponto final.
A antiga Evie teria se acovardado, ficado magoada e possivelmente obedecido sem mais discussões. Contudo, a nova Evie era muito mais forte, para não dizer desesperadamente apaixonada.
– Não acho que eu possa ficar longe de você – disse ela com franqueza. – Especialmente por não entender o motivo para isso.
Sebastian perdeu um pouco da compostura e um rubor subiu pelo seu pescoço. Ele passou as mãos pelos cabelos brilhantes, despenteando-os ainda mais.
– Nos últimos tempos tenho andado tão distraído que não consigo tomar nenhuma decisão.
Não consigo pensar com clareza. Sinto nós no estômago e dores constantes no peito sempre que a vejo falando com outro homem ou sorrindo para alguém. Fico louco de ciúme. Não posso viver assim. Eu... – Ele se interrompeu e a olhou incredulamente. – Maldição, Evie, por que está rindo?
– Por nada – respondeu ela, apressando-se a conter o súbito sorriso. – É só que... parece que você está tentando dizer que me ama.
Sebastian pareceu chocado.
– Não – disse veementemente, enrubescendo mais ainda. – Não é isso. Não é disso que estou falando. Só preciso encontrar um modo de... – Ele se interrompeu e inspirou profundamente quando ela se aproximou. – Evie, não. – Sentiu um arrepio quando ela ergueu as mãos para tocar seu rosto, acariciando-lhe a pele. – Não é o que você está pensando.
Evie sentiu o medo em sua voz. O medo que um garotinho devia ter sentido quando todas as mulheres que amava desapareceram de sua vida, levadas por uma febre impiedosa. Não sabendo como tranquilizá-lo ou consolá-lo por essa dor tão antiga, ficou na ponta dos pés e o beijou. Ele lhe segurou os cotovelos, como se para afastá-la, mas não pareceu conseguir fazer isso. Quando desviou o rosto, estava ofegante. Sem se dar por vencida, Evie lhe beijou a bochecha, o queixo e o pescoço. Ele praguejou baixinho.
– Maldita seja – disse desesperadamente. – Tenho de enviá-la para longe.
– Você não está tentando me proteger, mas se proteger. – Ela o estreitou nos braços. – Mas pode se forçar a assumir o risco de amar alguém, não é?
– Não – sussurrou ele.
– Sim, e deve. – Evie fechou os olhos e apertou seu rosto junto ao dele. – Porque eu o amo, Sebastian... e preciso que meu amor seja correspondido. Sem me-meias medidas.
Ela o ouviu respirar por entre os dentes. Ele pôs as mãos nos ombros de Evie e depois as retirou.
– Você terá de me deixar estabelecer meus próprios limites ou...
Evie procurou a boca do marido e o beijou devagar, deliberadamente, até Sebastian sucumbir com um gemido, abraçando-a. Ele correspondeu apaixonadamente ao beijo até incendiar-lhe todas as partes do corpo. Depois afastou a boca, ofegando selvagemente.
– Meias medidas. Meu Deus! Eu a amo tanto que isso está me consumindo. Não posso evitar.
Já não sei mais quem sou. Só sei que se eu me entregar totalmente a isso... – Ele tentou controlar sua respiração. – Você significa muito para mim.
Evie circundou o peito firme do marido com a palma da mão, em um movimento tranquilizador. Entendia o desespero dele, as emoções fortes e desconhecidas que o dominavam.
Isso a fez se lembrar de algo que Annabelle lhe confidenciara: que, no início do casamento deles, o Sr. Hunt havia ficado tão perturbado com a intensidade de seus sentimentos por ela que precisara de tempo para se adaptar.
– Sebastian, não será assim o tempo todo, sabe? Depois de algum tempo, será mais natural, mais confortável.
– Não, não será.
Sebastian parecia tão apaixonado e seguro que Evie teve de esconder o rosto no ombro dele para que não a visse sorrir.
– Eu o amo – repetiu e o sentiu tremer de desejo. – Po-pode me enviar para longe, mas não pode me impedir de voltar correndo para você. Quero passar todos os dias da minha vida com você. Quero vê-lo se barbear de manhã. Quero be-beber champanhe e dançar com você. Quero remendar suas meias. Quero dividir uma cama com você todas as noites e ter filhos seus. – Ela fez uma pausa. – Acha que eu não tenho medo também? Talvez uma manhã você acorde e diga que está cansado de mim. Talvez tudo o que aceita tão bem agora se torne irritante para você: minha gagueira, minhas sardas...
– Não seja idiota – interrompeu-a Sebastian bruscamente. – Sua gagueira nunca me irritaria.
E eu adoro suas sardas. Adoro... – Sua voz falhou e ele a apertou com força. – Inferno. Eu gostaria de ser outra pessoa.
– Por quê? – perguntou ela com uma voz abafada.
– Por quê? Porque meu passado é um lixo, Evie. Nunca poderei consertar as coisas que fiz.
Cristo, como gostaria de poder recomeçar! Eu tentaria ser um homem melhor para você. Eu...
– Você não precisa ser nada além do que é. – Erguendo a cabeça, Evie o olhou em meio às lágrimas. – Não foi isso que me disse? Se pode me amar incondicionalmente, não posso amá-lo da mesma maneira? Sei quem você é. Conhecemos um ao outro melhor do que conhecemos nós mesmos. Não ouse me enviar para longe, seu co-covarde. Quem mais adoraria minhas sardas?
Quem mais se im-importaria se meus pés estão frios? Quem mais me possuiria na sala de bilhar?
Pouco a pouco, a resistência de Sebastian foi diminuindo. Evie sentiu a mudança no corpo dele, o relaxamento, os ombros se curvando ao seu redor como se ele pudesse puxá-la para dentro de si mesmo. Murmurando o nome dela, Sebastian levou a mão de Evie ao rosto e beijou ardentemente a palma.
– Meu amor é seu – sussurrou, e então Evie soube que havia vencido.
Aquele homem imperfeito, extraordinário e apaixonado era dela e lhe confiara totalmente seu coração. E ela jamais lhe trairia a confiança.
Com grande alívio e ternura, Evie se agarrou a ele enquanto uma lágrima deslizava pelo seu rosto. Sebastian a enxugou com os dedos, olhando para Evie. E o que ela viu nos olhos brilhantes dele lhe tirou o fôlego.
– Bem – disse Sebastian tremulamente – Talvez você tenha razão sobre a sala de bilhar.
E Evie sorriu quando ele a ergueu nos braços e a carregou para a cama.
EPÍLOGO
Era quase o fim do inverno. Como o período de luto de Evie coincidira com o do parto de Annabelle, as duas passavam muito tempo juntas. Ambas estavam impedidas de comparecer a eventos sociais, como bailes ou grandes jantares, mas isso lhes convinha, porque vinha fazendo muito frio desde o Natal e a primavera parecia demorar a chegar. Em vez de passear pela cidade, elas ficavam encolhidas perto da grande lareira da luxuosa suíte do hotel dos Hunts ou se reuniam com Lillian e Daisy em uma das aconchegantes salas do Marsden Terrace, de Westcliff.
Liam, conversavam e faziam trabalhos manuais enquanto tomavam chá.
Uma tarde, Lillian estava sentada a uma escrivaninha no canto, escrevendo uma carta para uma de suas cunhadas, enquanto Daisy, com seu corpo delgado envolto em uma manta de caxemira, lia um romance reclinada em um sofá. Annabelle ocupara uma cadeira perto da lareira e estava com uma das mãos sobre sua enorme barriga enquanto Evie, em um banco na frente dela, lhe massageava os pés doloridos. Annabelle deu um suspiro e murmurou:
– Ah, como isso é bom. Ninguém me avisou que a gravidez deixava os pés tão doloridos.
Embora eu devesse ter esperado por isso, com todo o peso extra que sou obrigada a carregar.
Obrigada, Evie. Você é a melhor amiga do mundo.
Lillian disse sarcasticamente do canto:
– Ela me disse a mesma coisa na última vez em que lhe massageei os pés. Sua devoção só durará até a próxima massagem. Admita, Annabelle, que você é uma exploradora.
Annabelle sorriu.
– Espere só até você engravidar, querida. Vai implorar por massagens nos pés para quem estiver disposto a fazer.
Lillian abriu a boca para responder, mas pareceu pensar melhor e tomou um gole de vinho da taça na escrivaninha. Sem erguer os olhos de seu romance, Daisy disse:
– Ah, vá em frente e conte para elas.
Annabelle e Evie se viraram para olhar Lillian.
– Contar o quê? – perguntaram em uníssono.
Lillian respondeu com um rápido e constrangido dar de ombros e um tímido sorriso:
– Nos meados do próximo verão, Westcliff finalmente terá seu herdeiro.
– A menos que seja uma menina – acrescentou Daisy.
– Parabéns! – exclamou Evie, abandonando temporariamente Annabelle e indo dar um forte abraço em Lillian. – Essa é uma ótima notícia!
– Westcliff não cabe em si de tanta alegria, embora tente disfarçar isso – disse Lillian, retribuindo o abraço. – Estou certa de que neste momento está contando para St. Vincent e o Sr. Hunt. Ele parece acreditar que tudo é obra dele.
– Bem, a contribuição dele foi essencial, não foi? – salientou Annabelle, divertida.
– Sim – respondeu Lillian –, mas obviamente a maior parte do trabalho será meu.
Do outro lado da sala, Annabelle sorriu.
– Você o fará esplendidamente, querida. Perdoe-me por não saltitar pela sala, mas saiba que estou muito feliz. Espero que tenhamos filhos de sexos opostos, porque assim poderemos arranjar um casamento. – Seu tom se tornou lamurioso e adulador. – Evie, volte aqui. Você não pode me deixar com uma massagem em apenas um dos pés.
Balançando a cabeça e sorrindo, Evie voltou para o banco perto da lareira. Olhou de relance para Daisy, notando o olhar carinhoso e pensativo que dirigiu à irmã mais velha. Percebendo a tristeza da jovem, Evie comentou:
– No meio de toda essa conversa sobre maridos e bebês, não podemos nos esquecer de encontrar um marido para Daisy.
A jovem de cabelos escuros lhe deu um sorriso afetuoso.
– Você é um amor, Evie. E não me importo de ter de esperar a minha vez. Afinal de contas, alguém tem que ficar para titia, não é? Mas estou começando a me perguntar se algum dia encontrarei um homem adequado com quem me casar.
– É claro que encontrará – disse Annabelle sensatamente. – Não vejo nenhuma dificuldade nisso, Daisy. Todas nós aumentamos bastante nosso círculo de amizades e faremos o que for preciso para encontrar o marido perfeito para você.
– Só tenham em mente que não quero me casar com um homem como lorde Westcliff – disse Daisy. – Muito dominador. Ou lorde St. Vincent. Muito imprevisível.
– Que tal um como o Sr. Hunt? – perguntou Annabelle.
Daisy balançou firmemente a cabeça.
– Muito alto.
– Está se tornando um pouco exigente, não é? – disse Annabelle calmamente, seus olhos brilhando.
– Nem um pouco! Minhas expectativas são bastante razoáveis. Quero um homem bom, que goste de longas caminhadas e livros e seja adorado por cães, crianças...
– E todas as formas superiores de vida aquática e vegetal – disse Lillian secamente. – Diga-me, querida, onde encantaremos esse modelo de perfeição?
– Não nos bailes que frequentamos até agora – respondeu Daisy de cara fechada. – Não achava que isso fosse possível, mas a seleção deste ano está ainda pior do que a do ano passado.
Estou começando a acreditar que será impossível encontrar um homem que valha a pena nesses eventos.
– Acho que você tem razão – disse Lillian. – Há muita concorrência nessa área e as melhores presas já foram encontradas. Hora de caçar em um novo território.
– O escritório do clube tem fichas de todos os clientes – disse Evie. – Cerca de 2.500
cavalheiros de posses. É claro que muitos já estão casados, mas tenho certeza de que eu poderia encontrar nomes de possíveis candidatos.
– Lorde St. Vincent permitirá nosso acesso a informações tão particulares? – perguntou
Daisy ceticamente.
– E por acaso ele nega alguma coisa para ela? – disse Lillian em um tom zombeteiro.
Evie, que frequentemente era alvo das brincadeiras delas sobre a óbvia devoção de Sebastian, sorriu e olhou para a aliança que brilhava à luz do fogo.
– Raramente – admitiu.
Isso fez Lillian dar uma risada.
– Realmente alguém deveria dizer para St. Vincent que ele se transformou em um clichê ambulante. É a personificação de tudo o que dizem sobre libertinos regenerados.
Annabelle se recostou em sua cadeira e perguntou para Evie:
– Ele se regenerou, querida?
Pensando no marido sensual, terno e amoroso que a esperava no andar de baixo, Evie deu um grande sorriso.
– Apenas o suficiente – respondeu com suavidade, e não revelou mais nada.
.
Daisy Bowman sempre preferiu um bom livro a qualquer baile. Talvez por isso já esteja na terceira temporada de eventos sociais em Londres sem encontrar um marido. Cansado da solteirice da filha, Thomas Bowman lhe dá um ultimato: se não conseguir arranjar logo um pretendente adequado, ela será forçada a se casar com Matthew Swift, seu braço direito na empresa.
Daisy está horrorizada com a possibilidade de viver para sempre com alguém tão sério e controlador, tão parecido com seu pai. Mas não admitirá a derrota. Com a ajuda de suas amigas, está decidida a se casar com qualquer um, menos o Sr. Swift.
Ela só não contava com o charme inesperado de Matthew nem com a ardente atração que nasce entre os dois. Será que o homem ganancioso de quem se lembrava era apenas fachada e ele na verdade é tão romântico quanto os heróis dos livros que ela lê? Ou, como sua irmã Lillian suspeita, o Sr. Swift é apenas um interesseiro com algum segredo escandaloso muito bem guardado?
Fechando com chave de ouro a série As Quatro Estações do Amor, Escândalos na primavera é um presente para os leitores de Lisa Kleypas, que podem ter certeza de uma coisa: embora as estações do ano sempre terminem, a amizade desse quarteto de amigas é eterna.
PRÓLOGO
– Tomei uma decisão sobre o futuro de Daisy – anunciou Thomas Bowman para a esposa e a filha. – Embora nós, Bowmans, não gostemos de admitir uma derrota, não podemos ignorar a realidade.
– Que realidade, pai? – perguntou Daisy.
– De que você não foi feita para a aristocracia britânica. Obtive baixa taxa de retorno em meu investimento na sua busca por um marido. Sabe o que isso significa, Daisy?
– Que sou um mau investimento? – Daisy tentou adivinhar.
Ninguém diria que Daisy era uma moça de 22 anos. Pequena, esguia e com cabelos escuros, ainda tinha a agilidade e a exuberância de uma criança, enquanto outras mulheres já se tornavam ajuizadas matronas. Sentada com as pernas sobre o assento, ela parecia uma boneca de porcelana abandonada no canto do sofá. Irritava Bowman ver a filha segurando um livro no colo com um dedo marcando a página. Obviamente ela mal podia esperar que ele terminasse de falar para que pudesse retomar a leitura.
– Largue isso – ordenou ele.
– Sim, meu pai.
Disfarçadamente, Daisy abriu o livro para ver o número da página e o pôs de lado. O
pequeno gesto irritou Bowman. Livros... A mera visão de um livro passara a representar o vergonhoso fracasso da filha no mercado matrimonial.
Tragando um grande charuto, Bowman se sentou em uma cadeira estofada na suíte do hotel que eles ocupavam havia mais de dois anos. Sua esposa, Mercedes, estava empoleirada em uma cadeira de vime com espaldar alto. Bowman era um homem corpulento, tão intimidador em suas dimensões físicas quanto em seus gestos. Embora fosse careca, tinha um denso bigode, como se toda a energia necessária para que lhe crescessem cabelos tivesse sido canalizada para o lábio superior.
Na época do casamento, Mercedes era extraordinariamente magra. Com o passar dos anos, emagrecera ainda mais, como um sabão gasto que vai se reduzindo a uma fina fatia. Os cabelos pretos e lisos estavam sempre presos. As mangas de seus vestidos eram bem ajustadas aos punhos diminutos, que, de tão finos, poderiam ser partidos como ramos de vidoeiro. Mesmo quando se sentava imóvel, ela transmitia uma energia nervosa.
Bowman nunca se arrependera de ter escolhido Mercedes como esposa. Sua ambição férrea correspondia perfeitamente à dele. Ela era uma mulher rígida e astuta, sempre em busca de um lugar para os Bowmans na alta sociedade.
Fora Mercedes quem insistira em levar as filhas para a Inglaterra, já que eles não seriam aceitos na nata da sociedade nova-iorquina. “Vamos simplesmente passar por cima deles”, dissera ela com determinação.
E, por Deus, tinham sido bem-sucedidos com Lillian, sua filha mais velha. De algum modo, Lillian conquistara o maior prêmio de todos: lorde Westcliff. O conde fora uma ótima aquisição para a família. Mas agora Bowman estava impaciente para voltar à América. Se fosse para Daisy arranjar um marido com um título, a essa altura já teria conseguido. Estava na hora de minimizar os prejuízos.
Refletindo sobre os cinco filhos, Bowman se perguntou como podiam ter puxado tão pouco a ele. Mercedes e ele eram determinados, mas três de seus filhos eram muito plácidos e aceitavam as coisas do jeito que eram. Achavam que tudo cairia em suas mãos, como frutas maduras junto ao tronco de uma árvore. Lillian era a única que parecia ter herdado um pouco do espírito agressivo dos Bowmans, mas era mulher.
E havia Daisy. De todos os filhos, ela sempre tinha sido a que Thomas Bowman entendia menos. Mesmo na infância, Daisy nunca havia tirado as conclusões certas das histórias que ele lhe contava, fazendo apenas perguntas que nunca pareciam relevantes. Quando ele lhe explicara por que os investidores em busca de baixo risco e retornos moderados deveriam aplicar seu capital em títulos de dívida pública, Daisy o interrompera perguntando: “Pai, não seria maravilhoso se os beija-flores se reunissem para tomar chá e fôssemos pequenos o suficiente para sermos convidados?”
Ao longo dos anos, os esforços de Bowman para mudar Daisy encontraram uma valente resistência. A filha gostava de ser como era. Tentar mudá-la era como reunir um bando de borboletas. Simplesmente impossível.
Como Bowman andava meio louco com a natureza imprevisível da filha, não se admirava nem um pouco com a falta de homens dispostos a assumi-la por toda a vida. Que tipo de mãe ela seria, tagarelando sobre fadas descendo por arco-íris em vez de incutir regras sensatas nas cabeças dos filhos?
Mercedes entrou na conversa com uma voz consternada:
– Sr. Bowman, a temporada está longe de terminar. E Daisy fez um excelente progresso até agora. Lorde Westcliff a apresentou a vários cavalheiros promissores e todos ficaram muito interessados na perspectiva de se tornarem cunhados do conde.
– É óbvio que o interesse de cada um desses “cavalheiros promissores” é se tornar cunhado de Westcliff, em vez de marido de Daisy – disse Bowman sombriamente. – Algum desses homens pretende pedi-la em casamento?
– Ela não tem como saber... – argumentou Mercedes.
– As mulheres sempre sabem dessas coisas. Responda, Daisy, há alguma possibilidade de você se casar com um desses cavalheiros?
A jovem hesitou, seus olhos escuros revelando preocupação.
– Não, pai – admitiu francamente.
– Como pensei.
Cruzando os dedos grossos sobre a barriga, Bowman olhou autoritariamente para as duas mulheres, que estavam caladas.
– Seu fracasso se tornou inconveniente, filha. Preocupa-me o gasto desnecessário com vestidos e bugigangas... O tédio de levá-la de um baile improdutivo a outro. Mais do que isso, preocupa-me essa aventura ter me mantido na Inglaterra quando sou necessário em Nova York. Por isso, decidi escolher um marido para você.
Daisy o encarou, confusa.
– Quem tem em mente, pai?
– Matthew Swift.
Mercedes olhou para o marido como se ele tivesse enlouquecido.
– Isso não faz nenhum sentido! Esse casamento não traria nenhuma vantagem para nós. O Sr.
Swift não é um aristocrata e não possui uma riqueza significativa...
– Ele é um dos Swifts de Boston – contrapôs Bowman. – Dificilmente uma família pode torcer o nariz para isso. Tem um bom nome e uma boa linhagem. E o mais importante: Swift é dedicado a mim. É uma das pessoas com mais tino para negócios que eu já conheci. Quero-o como genro. Quero que herde minha empresa quando chegar a hora.
– Você tem três filhos legítimos que a herdarão – rebateu Mercedes, indignada.
– Nenhum deles dá a mínima para a empresa. Eles não se interessam por ela. – Pensando em Matthew Swift, que florescera sob sua tutela por quase dez anos, Bowman sentiu o orgulho florescer. O rapaz se parecia mais com ele do que seus próprios filhos. – Nenhum deles tem a ambição e frieza de Swift. Eu o tornarei o pai dos meus herdeiros.
– Ficou louco! – exclamou Mercedes, irritada.
Daisy falou em um tom calmo, totalmente oposto ao do pai:
– Devo salientar que minha cooperação é necessária, especialmente agora que estamos falando em herdeiros. E eu garanto que nenhum poder na Terra me forçará a ter filhos de um homem de quem eu não goste.
– Pensei que você desejaria ser útil para alguém – rugiu Bowman. Sempre fora da natureza dele combater a rebeldia com uma força esmagadora. – Pensei que desejaria um marido e um lar em vez de continuar vivendo como uma parasita.
Daisy se encolheu como se ele a tivesse estapeado.
– Não sou uma parasita.
– Não? Então me explique como o mundo se beneficiou com sua presença. O que você já fez para alguém?
Diante da tarefa de justificar sua existência, Daisy o olhou friamente e permaneceu em silêncio.
– Esse é meu ultimato – disse Bowman. – Encontre um marido adequado até o fim de maio ou eu a casarei com Swift.
CAPÍTULO 1
– Eu não deveria contar isso – resmungou Daisy, andando de um lado para outro na sala Marsden mais tarde naquela noite. – Em seu estado você não deveria se preocupar. Mas vou explodir se guardar isso para mim, o que provavelmente a preocuparia infinitamente mais.
Sua irmã mais velha ergueu a cabeça, que estava apoiada no ombro de lorde Westcliff.
– Conte-me – disse Lillian, tentando conter outra onda de náusea. – Só me preocupo quando as pessoas escondem coisas de mim.
Ela estava reclinada no longo sofá, enquanto Westcliff lhe dava uma colherada de sorvete de limão na boca. Lillian fechou os olhos ao engolir, seus cílios escuros contrastando com as bochechas pálidas.
– Melhor? – perguntou Westcliff gentilmente, enxugando uma gota no canto dos lábios da esposa.
Lillian assentiu com a cabeça, seu rosto assustadoramente pálido.
– Sim, acho que isso está ajudando. Argh. É melhor rezar para ser um menino, Westcliff, porque esta é sua única chance de ter um herdeiro. Nunca mais vou passar por isso...
– Abra a boca – disse ele, e lhe deu mais sorvete.
Normalmente Daisy teria ficado comovida com o vislumbre da vida íntima dos Westcliffs.
Era raro alguém ver Lillian tão vulnerável ou Marcus tão gentil e preocupado. Mas Daisy estava tão distraída com os próprios problemas que mal notou a interação deles enquanto falava impulsivamente:
– Papai me deu um ultimato. Esta noite ele...
– Espere – disse Westcliff em voz baixa, ajustando a posição da esposa.
Ao acomodá-la de lado, Lillian se apoiou mais pesadamente nele e pousou uma de suas mãos brancas e esguias sobre a barriga. Ele murmurou algo indecifrável junto aos cabelos cor de ébano desgrenhados de Lillian e ela assentiu com a cabeça dando um suspiro.
Qualquer um que testemunhasse a ternura de Westcliff com sua jovem esposa não poderia deixar de notar as mudanças no conde, que sempre fora conhecido por ser um homem frio. Ele havia se tornado muito mais acessível, sorria mais, e seus padrões de comportamento tinham se tornado bem menos rígidos. O que era bom para um homem que tinha Lillian como esposa e Daisy como cunhada.
Westcliff franziu o cenho e se concentrou em Daisy. Embora o conde não dissesse nenhuma palavra, Daisy viu nos olhos dele o desejo de proteger Lillian de tudo o que pudesse lhe tirar a paz.
Subitamente Daisy sentiu vergonha de ter procurado a irmã para contar as injustiças cometidas por seu pai. Em vez de guardar seus problemas para si, correra para a irmã mais velha como uma criança tagarela. Mas então os olhos castanhos de Lillian se abriram, afetuosos e sorridentes, e milhares de lembranças da infância pairaram no ar, como alegres vaga-lumes. A intimidade das irmãs era algo que nem o mais protetor dos maridos poderia evitar.
– Conte-me – disse Lillian, aconchegando-se ao ombro de Westcliff. – O que o ogro disse?
– Ele me casará se eu não encontrar um marido até o fim de maio. E adivinhe com quem?
– Não posso imaginar – respondeu Lillian. – Ele não aprova ninguém.
– Ah, sim, aprova! – retrucou Daisy. – Há um que ele aprova.
Até Westcliff estava começando a parecer interessado.
– É alguém que eu conheça?
– Logo conhecerá – respondeu Daisy. – Papai mandou chamá-lo. Ele chegará à propriedade de Hampshire na semana que vem para caçar cervos.
Westcliff tentou se lembrar dos nomes que Thomas Bowman lhe pedira para incluir na lista de convidados para a caçada da primavera.
– O americano? – perguntou. – Sr. Swift?
– Sim.
Confusa, Lillian olhou para a irmã. Então virou o rosto e sufocou um gritinho no ombro do marido. No início, Daisy temeu que ela estivesse chorando, mas logo ficou claro que estava rindo incontrolavelmente.
– Não, não é possível... Que absurdo! Você nunca poderia...
– Você não ia achar tão engraçado se estivesse no meu lugar – disse Daisy de cara feia.
Westcliff olhou de uma irmã para outra.
– O que o Sr. Swift tem de errado? Pelo que seu pai disse, parece um homem bastante respeitável.
– Ele tem tudo de errado – respondeu Lillian, dando mais uma risada.
– Mas seu pai gosta dele – rebateu Westcliff.
– Ah! – zombou Lillian. – O Sr. Swift adula meu pai tentando imitá-lo e fazendo tudo o que ele diz.
O conde refletiu sobre as palavras da esposa enquanto lhe levava mais sorvete de limão aos lábios. Ela gemeu de prazer ao sentir o líquido gelado descer por sua garganta.
– Seu pai está errado ao dizer que o Sr. Swift é inteligente? – perguntou Westcliff a Daisy.
– Ele é inteligente – admitiu Daisy –, mas é um sujeito complicado. O Sr. Swift faz milhares de perguntas e assimila o que é dito, mas não diz nada.
– Talvez seja tímido – observou Westcliff.
Daisy não conseguiu conter o riso.
– Eu garanto, milorde, que o Sr. Swift não é tímido. Ele é...
Ela se deteve, achando difícil pôr os pensamentos em palavras.
A grande frieza de Matthew Swift era acompanhada de um insuportável ar de superioridade.
Ninguém nunca podia lhe dizer nada, porque ele sabia absolutamente tudo. Como Daisy havia crescido em uma família repleta de personalidades intransigentes, não tinha nenhum interesse em ter mais uma pessoa rígida em sua vida.
Para ela, o fato de Swift combinar tanto com os Bowmans não o favorecia em nada.
Talvez Swift pudesse ser mais tolerável se tivesse algum charme ou atrativo. Mas ele não fora abençoado com nenhuma graça. Nenhum senso de humor, nenhuma amabilidade perceptível. Era esquisito, alto, desproporcional e tão magro que os braços e as pernas pareciam ramos de videira. Daisy se lembrou de como o casaco de Matthew dava a impressão de pender de seus ombros largos como se não houvesse nada no interior.
– Em vez de mencionar tudo de que não gosto nele – disse Daisy –, é mais fácil dizer que não há motivo pelo qual eu deveria gostar.
– Ele nem mesmo é bonito – acrescentou Lillian. – É um saco de ossos.
Ela deu um tapinha no peito musculoso de Westcliff em um silencioso elogio ao físico do marido, que se divertiu com o gesto.
– O Sr. Swift possui alguma característica boa?
As duas irmãs pensaram na pergunta.
– Ele tem dentes bonitos – disse Daisy relutantemente.
– Como você sabe? – perguntou Lillian. – Ele nunca sorri!
– Sua avaliação é severa – observou Westcliff. – Mas o Sr. Swift pode ter mudado desde que o viu pela última vez.
– Não a ponto de algum dia eu concordar em me casar com ele.
– Você não terá de se casar com Swift se não quiser – disse Lillian veementemente, mexendo-se nos braços de seu marido. – Não estou certa, Westcliff?
– Sim, querida – murmurou ele, tirando os cabelos dela do rosto.
– E você não deixará papai afastar Daisy de mim – insistiu Lillian.
– É claro que não. Sempre se pode chegar a um acordo.
Lillian relaxou junto ao marido, tendo fé absoluta nas capacidades dele.
– Pronto – murmurou ela para Daisy. – Não precisa se preocupar. Westcliff tem tudo... – Ela parou para dar um grande bocejo –... sob controle.
Vendo a irmã baixar as pálpebras, Daisy sorriu solidariamente. Notou o olhar de Westcliff por sobre a cabeça de Lillian e lhe fez um sinal avisando que ia embora. Ele respondeu inclinando a cabeça com cortesia e voltou sua atenção de imediato para o rosto sonolento de Lillian. Daisy se perguntou se algum homem a olharia daquela maneira, como se segurasse um tesouro nos braços.
Estava certa de que Westcliff tentaria ajudá-la do modo que pudesse, nem que fosse apenas por Lillian. Mas sua fé na influência do conde não podia ser infinita, já que ela conhecia bem o jeito inflexível do próprio pai. Embora ela fosse desafiá-lo de todas as formas possíveis, tinha o mau pressentimento de que a sorte não estava a seu favor.
Ela parou na porta da sala e olhou com preocupação para o casal no sofá. Lillian havia adormecido rápido, com a cabeça pousada pesadamente em Westcliff. Quando o conde viu o olhar infeliz de Daisy, ergueu uma das sobrancelhas em um questionamento mudo.
– Meu pai... – começou a explicar Daisy, e então mordeu o lábio. Aquele homem era sócio de seu pai. Não devia aborrecê-lo com queixas. Mas a expressão paciente de Westcliff a encorajou a prosseguir. – Ele me chamou de parasita – disse em voz baixa para não perturbar Lillian.
– E qual foi sua resposta a esse comentário? – perguntou Westcliff.
– Eu não consegui pensar em nada para dizer.
Os olhos cor de café de Westcliff eram insondáveis. Ele lhe fez um gesto para se aproximar do sofá. Para surpresa de Daisy, ele segurou sua mão e a apertou de forma afetuosa. O normalmente circunspecto conde nunca fizera algo assim.
– Daisy – disse Westcliff amavelmente. – A maioria das pessoas não se distingue por grandes feitos, mas por um número infinito de pequenas coisas. Sempre que você faz algo de bom ou faz alguém sorrir, isso dá sentido à sua vida. Nunca duvide de seu valor, minha cara. O mundo seria um lugar triste sem Daisy Bowman.
Poucas pessoas negariam que Stony Cross Park era um dos lugares mais bonitos da Inglaterra. A propriedade em Hampshire possuía uma infinidade de terras: de florestas quase impenetráveis a prados úmidos floridos, de pântanos à mansão de pedra cor de mel em uma colina com vista para o rio Itchen.
A vida florescia em toda parte. Brotos claros emergiam do tapete de folhas caídas aos pés de carvalhos sulcados e cedros, e campânulas se escondiam em uma parte mais escura da floresta.
Gafanhotos saltitavam por prados repletos de prímulas e cardaminas enquanto libélulas azuis pairavam sobre as intricadas pétalas brancas de meniantos. O ar, saturado do aroma de sebes e da relva verde macia, tinha o perfume da primavera.
Depois de doze horas infernais de carruagem, os Westcliffs, os Bowmans e outros convidados ficaram felizes em finalmente chegar lá.
O céu tinha uma cor diferente em Hampshire – um azul mais suave – e o ar, uma bem-vinda quietude. Não se ouviam sons de rodas e cascos em ruas pavimentadas, vendedores ou mendigos, apitos de fábricas ou a agitação constante que perturbava os ouvidos na cidade. Só havia os chilros de tordos nas sebes, o bater de pica-paus nas árvores e o ocasional mergulho no rio de martins-pescadores abrigados nos juncos.
Lillian, que antes achava o campo mortalmente tedioso, ficou radiante por estar de volta. Ela florescia no clima de Stony Cross Park e, depois de sua primeira noite na mansão, se sentia muito melhor do que semanas antes. Agora que não era mais possível esconder a gravidez com vestidos de cintura alta, ela não devia mais ser vista em público. Como estava em sua propriedade, teria uma relativa liberdade, embora fosse restringir suas interações com convidados a grupos pequenos.
Daisy, que fora instalada em seu quarto favorito na mansão, também estava feliz. O lindo e singular quarto pertencera à irmã de lorde Westcliff, Lady Aline, que agora residia na América com o marido e o filho. A característica mais encantadora do cômodo era o pequeno gabinete contíguo que fora trazido da França e havia sido remontado. Pertencera originalmente a um castelo do século XVII e tinha uma chaise-longue perfeita para cochilar ou ler.
Encolhida com um de seus livros em um canto da chaise-longue, Daisy se sentia como se estivesse escondida do resto do mundo. Ah, se ao menos pudesse ficar ali em Stony Cross e morar com sua irmã para sempre! Mas ela sabia que nunca seria feliz assim. Queria ter a própria vida, o próprio marido, os próprios filhos.
Pela primeira vez desde que se lembrava, a mãe e ela tinham se tornado aliadas, unidas em seu desejo de evitar um casamento com o odioso Matthew Swift.
– Aquele desgraçado! – exclamara Mercedes. – Não tenho nenhuma dúvida de que enfiou essa maldita ideia na cabeça de seu pai! Sempre suspeitei de que ele...
– Suspeitou de quê? – perguntara Daisy, mas sua mãe só apertara os lábios até formarem uma linha áspera.
Depois de examinar a lista de convidados, Mercedes informara Daisy de que um grande número de cavalheiros adequados se hospedaria na mansão.
– Embora nem todos sejam herdeiros diretos de títulos, são de famílias nobres – dissera Mercedes. – E nunca se sabe... Desgraças acontecem: doenças fatais ou acidentes graves. Vários membros da família poderiam morrer ao mesmo tempo e então seu marido se tornaria um nobre!
Parecendo acalentar a esperança de que uma calamidade se abatesse sobre os futuros parentes de Daisy, Mercedes analisara mais atentamente a lista.
Daisy estava impaciente pela chegada de Evie e St. Vincent. Sentia muita falta de Evie, em especial porque Annabelle estava ocupada com seu bebê e Lillian se movia devagar demais para acompanhá-la nas caminhadas que apreciava.
No terceiro dia após sua chegada a Hampshire, Daisy foi passear sozinha à tarde. Tomou um caminho que trilhara em muitas visitas anteriores. Usava um vestido de musselina azul-claro com estampa floral, botas de caminhada resistentes e um chapéu de palha atado por fitas.
Andando a passos largos por uma estrada que passava por prados repletos de celidônias amarelas e dróseras vermelhas, Daisy pensou em seu problema.
Por que era tão difícil para ela encontrar um marido?
Não era que não quisesse se apaixonar por alguém. Na verdade, essa ideia a agradava tanto que parecia terrivelmente injusto ainda não ter encontrado a pessoa certa. Ela tinha tentado, mas sempre havia algo errado.
Se um cavalheiro tinha a idade certa, era passivo ou pomposo. Se era gentil e interessante, era velho o suficiente para ser seu avô ou logo demonstrava algum problema perturbador, como cheirar mal ou cuspir em seu rosto enquanto falava.
Daisy sabia que não era nenhuma beldade. Era muito baixa, frágil e, embora já tivesse sido elogiada por seus olhos e cabelos escuros, que contrastavam com a pele clara, também ouvira muitas vezes se referirem a ela usando as palavras “miúda” e “travessa”. As jovens travessas aparentemente não atraíam tantos pretendentes quanto as mignons delicadas ou as beldades esculturais.
Também fora observado que Daisy passava tempo de mais com seus livros, o que provavelmente era verdade. Se lhe permitissem, passaria a maior parte do dia lendo e sonhando.
Qualquer nobre sensato sem dúvida concluiria que ela não seria uma esposa útil em questões de administração doméstica, inclusive naqueles deveres que exigiam total atenção a detalhes. E estaria certo.
Daisy não podia se importar menos com o conteúdo da despensa ou quanto de sabão encomendar para a lavagem diária de roupas. Interessava-se muito mais por romances, poesia e história. Tudo isso a levava a longos voos da imaginação durante os quais ela passava horas diante de uma janela sem ver o mundo real, vivendo aventuras exóticas, viajando em tapetes mágicos, navegando por oceanos distantes e procurando tesouros em ilhas tropicais.
E havia cavalheiros atraentes nos sonhos de Daisy, inspirados por histórias de grande heroísmo e objetivos nobres. Esses homens imaginários eram tão mais interessantes que os comuns. Falavam palavras bonitas, eram ótimos em lutas de espada e duelos e faziam mulheres desmaiarem com seus beijos.
É claro que Daisy não era ingênua a ponto de pensar que homens assim existissem, mas tinha de admitir que, com todas essas imagens românticas na cabeça, os homens reais pareciam terrivelmente... insípidos.
Daisy ergueu o rosto para o sol fraco que se infiltrava pela copa das árvores e cantou uma música popular:
Que venha o rico ou o humilde,
O de esperteza ou ingenuidade.
Que venha qualquer homem
Para se casar por piedade!
Logo Daisy chegou ao seu destino: um poço que ela e as amigas já tinham visitado algumas vezes. Um poço dos desejos. Diziam que ele era habitado por um espírito que realizaria seu pedido se você lhe atirasse um alfinete. O único perigo era chegar perto demais, porque o espírito do poço poderia puxá-la para dentro para viver para sempre como sua consorte.
Em ocasiões anteriores, Daisy fizera pedidos para suas amigas – e todos foram atendidos.
Agora ela era quem precisava de um pouco de magia. Pousou o chapéu no chão, aproximou-se do poço e olhou para a água lamacenta. Enfiou a mão no bolso de seu vestido de caminhada e pegou um papel com alfinetes espetados.
– Espírito do Poço, como tive tão pouca sorte em encontrar um marido, estou deixando isso a seu cargo. Sem exigências, sem condições. Meu desejo é... o homem certo para mim. Estou preparada para ser receptiva.
Ela tirou os alfinetes. O metal brilhou no ar antes de atingir a água e sumir na superfície turva.
– Eu gostaria que todos esses alfinetes fossem para o mesmo desejo – explicou Daisy para o poço.
Ela ficou em pé por um longo momento com os olhos fechados, concentrando-se. Acima do som da água ouviu o zumbido de uma libélula. Subitamente algo estalou atrás dela, como se um galho fino tivesse sido pisado. Daisy se virou e viu a silhueta de um homem indo na sua direção.
Ele estava a apenas alguns metros de distância. O choque de descobrir alguém tão perto fez seu coração bater em um ritmo desconfortável.
Ele era alto e musculoso, como o marido de sua amiga Annabelle, embora parecesse um pouco mais jovem, talvez com menos de 30 anos.
– Desculpe – disse o homem em voz baixa ao ver a expressão de Daisy. – Não queria assustá-la.
– Ah, não me assustou – mentiu Daisy alegremente, seu pulso ainda acelerado. – Só fiquei um pouco... surpresa.
Ele se aproximou devagar, com as mãos no bolso.
– Cheguei algumas horas atrás. Disseram-me que a senhorita estava passeando por aqui.
Ele parecia familiar e a encarava como se esperasse que o reconhecesse. Daisy sentiu a aflição que sempre a acometia quando se esquecia de alguém.
– É hóspede de lorde Westcliff?
Ele lhe lançou um olhar curioso e esboçou um sorriso.
– Sim, Srta. Bowman.
Ele sabia o nome dela. Daisy estava cada vez mais confusa. Não entendia como podia ter se esquecido de um homem tão atraente. Ele tinha feições fortes e marcantes, era másculo demais para ser definido como bonito e impressionante demais para ser considerado comum. E seus olhos tinham o tom de azul de manhãs gloriosas, ainda mais intenso em contraste com a pele bronzeada. Havia algo de extraordinário nele, uma espécie de força vital tão grande que quase a fez dar um passo para trás.
Quando ele inclinou a cabeça para olhá-la, um brilho cor de mogno deslizou sobre seus cabelos castanho-escuros com um corte mais rente à cabeça do que o preferido pelos europeus.
Era um estilo americano. Na verdade, ele tinha sotaque americano. E aquele cheiro de frescor e limpeza que ela detectou... Era o de um sabonete Bowman’s?
Subitamente Daisy se deu conta de quem ele era e seus joelhos quase fraquejaram.
– O senhor – sussurrou, arregalando os olhos ao contemplar o rosto de Matthew Swift, o homem com quem seu pai queria que ela se casasse.
CAPÍTULO 2
Daisy devia ter cambaleado um pouco, porque ele a segurou pelos braços.
– Sr. Swift – murmurou, tentando instintivamente recuar.
– A senhorita vai cair no poço. Venha comigo.
Ele a puxou com gentileza, mas firmemente, afastando-a da água. Irritada por ter sido conduzida como um ganso perdido, Daisy se retesou. Algumas coisas não haviam mudado.
Matthew continuava dominador.
No entanto, não conseguia parar de olhar para ele. Meu Deus, nunca em sua vida vira tamanha transformação. O “saco de ossos” tinha se transformado em um homem forte e bem-sucedido que irradiava saúde e vigor. Usava roupas elegantes que não escondiam a bela musculatura.
As mudanças não eram só físicas. A maturidade lhe dera um ar confiante, de um homem que conhecia as próprias habilidades. Daisy se lembrou de quando ele havia começado a trabalhar para seu pai... Era um oportunista, esquelético, e tinha um olhar frio. Usava roupas caras que lhe caíam mal e sapatos gastos. “A velha Boston é assim”, dissera o pai, de forma indulgente, quando os sapatos tinham causado comentários na família. “As pessoas aqui fazem um par de sapatos ou um casaco durar para sempre. A economia é uma religião, independentemente do tamanho da fortuna da família.”
Daisy se soltou de Swift.
– O senhor mudou – disse, tentando se recompor.
– A senhorita, não – respondeu ele. Ela não sabia dizer se o comentário era um elogio ou uma crítica. – O que estava fazendo no poço?
– Eu estava... Eu pensei... – Daisy tentou em vão encontrar uma explicação sensata, mas não conseguiu pensar em nada. – É um poço dos desejos.
Ele estava com uma expressão solene, mas havia um brilho suspeito em seus olhos azuis, como se secretamente achasse graça.
– Leva isso a sério?
– Todos na vila vêm aqui – respondeu Daisy irritada. – É um poço dos desejos lendário.
Ele a olhava do modo que ela sempre havia detestado, assimilando tudo, sem deixar escapar nenhum detalhe. Daisy sentiu as bochechas arderem.
– O que pediu?
– Isso é particular.
– Conhecendo-a como conheço, poderia ser qualquer coisa.
– O senhor não me conhece – retrucou Daisy.
Era enlouquecedor o fato de ela ter sido oferecida em casamento para o homem errado. Seria apenas um negócio envolvendo dinheiro e obrigações. Desapontamento e desprezo mútuo.
Matthew nunca se casaria com ela se não fosse por interesse na empresa de seu pai.
– Talvez não – admitiu Swift.
Mas as palavras soaram falsas. Ele achava que sabia exatamente quem ela era. Seus olhares se encontraram, medindo-se e desafiando-se.
– Sendo um poço lendário – continuou Swift –, eu detestaria deixar passar essa oportunidade única.
Ele procurou brevemente em seu bolso e pegou uma grande moeda de prata. Daisy não via dinheiro americano havia uma eternidade.
– É preciso atirar um alfinete – observou ela.
– Não tenho um.
– É uma moeda de 5 dólares – disse Daisy sem poder acreditar. – Não vai jogá-la fora assim, vai?
– Não vou jogá-la fora. Vou fazer um investimento. É melhor me dizer qual é o procedimento adequado. É muito dinheiro para ser desperdiçado.
– Está zombando de mim.
– Estou falando sério. Nunca fiz pedidos para um poço dos desejos. Uma ajuda seria bem-vinda.
Ele esperou a resposta de Daisy. Quando ficou evidente que não viria, um toque de humor surgiu no canto de seus lábios.
– Vou atirar a moeda mesmo assim.
Daisy amaldiçoou a si mesma. Swift estava zombando dela, mas não conseguiu resistir. Um desejo não era algo que deveria ser desperdiçado, principalmente quando feito com uma moeda de 5 dólares.
Ela se aproximou do poço e disse:
– Primeiro, segure a moeda na palma da mão até ela ficar quente.
Swift foi para o lado dela.
– E depois?
– Feche os olhos e se concentre no desejo. – Ela assumiu um tom zombeteiro. – E tem de ser um desejo pessoal. Não pode ter nada a ver com fusões ou trustes bancários.
– Eu penso em outras coisas além de negócios.
Daisy lhe lançou um olhar cético e ele a surpreendeu com um breve sorriso.
Já o vira sorrir? Talvez uma ou duas vezes. Tinha uma vaga lembrança disso, quando o rosto dele era tão magro que o sorriso mais parecia uma careta do que uma manifestação de alegria.
Mas agora o sorriso era espontâneo, o que o tornava afável e sedutor, e uma onda de calor a fez se perguntar que tipo de homem se escondia por trás daquela aparência sóbria.
Daisy ficou aliviada quando o sorriso desapareceu e ele voltou ao seu eu pétreo.
– Feche os olhos – lembrou-lhe. – Afaste tudo de sua mente, exceto o pedido.
Os olhos de Swift se fecharam, dando a Daisy a chance de examiná-lo. Suas feições eram marcantes, o nariz comprido demais, a boca obstinada, os cílios pretos e extravagantes. A boa aparência de Swift finalmente se revelara. Os ângulos austeros do rosto tinham se suavizado e a boca sugeria sensualidade.
– E agora? – murmurou ele, ainda com os olhos fechados.
Contemplando-o, Daisy ficou horrorizada com seu impulso de se aproximar e passar os dedos por aquele rosto bronzeado.
– Quando o desejo estiver fixo em sua mente, abra os olhos e atire a moeda no poço.
Os cílios dele se ergueram, revelando olhos brilhantes como fogo contido em vidro azul. Sem olhar para o poço, Swift atirou a moeda bem no centro.
Daisy percebeu que seu coração tinha começado a bater rápido. Sentira algo parecido quando lera as passagens mais assustadoras de Os apuros de Penélope. No livro, Penélope era capturada por um vilão que prometera deixá-la trancada em uma torre até a donzela lhe entregar sua virtude.
O romance era bobo, mas isso não a impedira de apreciá-lo. Daisy ficara extremamente desapontada quando Penélope foi salva da ruína iminente por Reginald, o herói insípido que não era nem de longe tão interessante quanto o vilão. É claro que a perspectiva de ser trancada em um quarto de uma torre sem nenhum livro não lhe agradava, mas os monólogos ameaçadores do vilão sobre a beleza de Penélope, seu desejo por ela e a devassidão à qual a submeteria eram muito intrigantes.
Matthew Swift era tão bonito quanto o vilão imaginado por Daisy.
– O que pediu?
Ele fez uma leve careta.
– Isso é particular.
Daisy franziu a testa ao reconhecer o eco de seu comentário anterior. Olhou para seu chapéu no chão e foi buscá-lo. Precisava fugir da presença inquietante de Swift.
– Vou voltar para a mansão – disse por cima de seu ombro. – Tenha um bom dia, Sr. Swift.
Aproveite bem o resto de seu passeio.
Para sua consternação, ele a alcançou com alguns passos largos.
– Vou acompanhá-la.
Daisy se recusou a olhá-lo.
– Melhor não.
– Por que não? Vamos na mesma direção.
– Porque prefiro caminhar em silêncio.
– Então ficarei em silêncio.
Deduzindo que era inútil se opor à persistência dele, Daisy apertou os lábios. O prado estava tão bonito quanto antes, mas o prazer dela desaparecera. Não ficou surpresa por Swift ignorar suas objeções. Sem dúvida ele via o casamento deles do mesmo modo. Não importaria o que ela quisesse ou pedisse, não levaria em conta sua vontade e insistiria em fazer o que bem entendesse.
Swift devia pensar que ela era maleável como uma criança. Com sua profunda arrogância, talvez pensasse que ela ficaria grata pelo matrimônio. Ao menos ele se daria ao trabalho de pedi-la em casamento? Muito provavelmente atiraria um anel em seu colo e lhe diria para usá-lo.
Continuando a desagradável caminhada, Daisy se esforçou para não disparar em uma corrida.
Seria inútil de qualquer maneira. Swift dava um passo para cada dois dela. O ressentimento lhe provocou um nó na garganta.
Essa caminhada simbolizava seu futuro. Só lhe restaria prosseguir penosamente sabendo que, por mais rápido que andasse, nunca poderia deixá-lo para trás.
Finalmente ela não pôde mais suportar o tenso silêncio.
– Foi o senhor quem enfiou a ideia na cabeça do meu pai?
– Qual ideia?
– Ah, não se faça de desentendido – disse ela irritada. – Sabe do que estou falando.
– Não, não sei.
Pelo visto ele insistiria naquele jogo.
– O acordo que fez com meu pai. Quer se casar comigo para herdar a empresa.
Swift parou tão subitamente que, em outras circunstâncias, isso a teria feito rir. Parecia que ele tinha batido em um muro invisível. Não havia uma expressão clara no rosto dele.
– Eu... – Sua voz estava rouca e ele teve de pigarrear antes de conseguir responder. – Eu não sei do que diabo está falando.
– Não sabe? – perguntou Daisy em voz baixa.
Então sua suposição estava errada. Seu pai ainda não havia revelado o plano dele para Swift.
Se fosse possível morrer de vergonha, Daisy teria caído dura ali mesmo. Expusera-se ao maior constrangimento de sua vida. No silêncio que se seguiu, o farfalhar de folhas e os gorjeios de pássaros pareceram se amplificar. Ela não tinha a habilidade de ler os pensamentos de Swift, mas percebeu que ele examinava possibilidades e tirava conclusões.
– Meu pai falou como se tudo estivesse combinado. Achei que já haviam discutido o assunto durante a viagem mais recente dele a Nova York.
– Ele nunca comentou nada sobre isso. Aliás, a ideia de nos casarmos nunca passou pela minha cabeça. Não tenho nenhuma ambição de herdar a empresa.
– O senhor não tem nada além de ambição.
– É verdade – disse ele, examinando-a atentamente. – Mas não preciso me casar com a senhorita para garantir meu futuro.
– Meu pai parece achar que o senhor aceitaria a oportunidade de se tornar genro dele.
– Eu aprendi muito com ele – respondeu Swift com previsível cautela.
– Estou certa de que sim. – Daisy se refugiou por trás de uma expressão de desdém. –
Imagino que tenha ensinado muitas lições que o beneficiaram no mundo dos negócios. Mas nenhuma que o beneficiará no negócio da vida.
– A senhorita desaprova a empresa de seu pai?
– Um pouco. Meu pai se dedicou de corpo e alma a ela e ignorou as pessoas que o amam.
– A empresa proporciona muitos luxos interessantes – salientou ele.
– Eu nunca quis luxo! Nunca quis nada além de uma vida tranquila.
– Para se sentar sozinha na biblioteca e ler? – sugeriu Swift com uma afabilidade um tanto exagerada. – Para passear pelo jardim? Para desfrutar da companhia de suas amigas?
– Sim!
– Livros são caros, assim como as casas bonitas com jardins. Já lhe ocorreu que alguém precisa pagar por sua vida tranquila?
Essa pergunta lembrava tanto a acusação de seu pai de que era uma parasita que Daisy se encolheu. Ao notar a reação dela, a expressão de Swift mudou. Ele começou a dizer outra coisa, mas Daisy o interrompeu bruscamente.
– Não é da sua conta como eu levo a minha vida ou quem paga por isso. Não me importo com suas opiniões e o senhor não tem nenhum direito de impô-las.
– Tenho, já que o meu futuro está sendo ligado ao seu.
– Não está!
– Hipoteticamente.
Ah, como ela detestava pessoas que complicavam tudo quando argumentavam.
– Nosso casamento nunca será nada além de hipotético – informou-lhe. – Meu pai me deu até o fim de maio para encontrar outra pessoa com quem me casar, e eu a encontrarei!
Swift a olhou com grande interesse.
– Posso adivinhar que tipo de homem está procurando. Louro, aristocrata, sensível, alegre e com muito tempo livre para atitudes cavalheirescas...
– Sim – interrompeu-o Daisy, perguntando-se como ele conseguira fazer essa descrição parecer tola.
– Foi o que imaginei. – A presunção na voz de Swift a deixou extremamente irritada. – Seus padrões são altos demais. Isso explica por que uma moça com sua aparência conseguiu passar três temporadas sem arranjar um noivo. Não deseja menos do que o homem perfeito, motivo pelo qual seu pai a está pressionando.
Daisy se distraiu por um momento com as palavras “uma moça com sua aparência”, como se ela fosse uma beldade. Concluindo que o comentário fora feito com um profundo sarcasmo, sentiu sua raiva aumentar.
– Não desejo me casar com o homem perfeito – disse ela baixinho. Ao contrário de sua irmã mais velha, que praguejava com espetacular fluência, Daisy achava difícil falar quando estava zangada. – Estou bem consciente de que isso não existe.
– Então por que ainda não encontrou alguém? Até mesmo sua irmã arranjou um marido.
– O que quer dizer com “até mesmo minha irmã”?
– Case-se com Lillian e ganhará um milhão. – A frase insultante havia causado muita diversão na alta sociedade de Manhattanville. – Por que acha que ninguém em Nova York a pediu em casamento apesar do enorme dote dela? Sua irmã é o maior pesadelo de qualquer homem.
Aquilo era demais.
– Minha irmã é um tesouro e Westcliff reconheceu isso. Poderia ter se casado com qualquer mulher, mas escolheu Lillian. Eu o desafio a repetir sua opinião sobre ela para o conde. – Daisy se virou e se afastou, furiosa, andando o mais rápido que suas pequenas pernas lhe permitiam.
Swift a alcançou facilmente, com as mãos enfiadas nos bolsos.
– O fim de maio... – ponderou, nem um pouco ofegante apesar do ritmo deles. – Daqui a menos de dois meses. Como vai encontrar um pretendente em tão pouco tempo?
– Se for preciso, ficarei em uma esquina segurando uma placa.
– Meus sinceros votos de sucesso, Srta. Bowman. Não sei se estou disposto a me apresentar como vencedor por falta de opções.
– Isso não acontecerá! Fique tranquilo, Sr. Swift. Nada no mundo me fará aceitar ser sua esposa. Lamento pela pobre mulher que se casar com o senhor. Não posso imaginar ninguém que mereceria um marido tão frio e arrogante...
– Espere. – O tom dele havia se suavizado no que poderia ser o início de uma conciliação. –
Daisy...
– Não me chame pelo meu primeiro nome!
– Tem razão. Isso foi inadequado. Imploro seu perdão. O que quero dizer, Srta. Bowman, é que não há necessidade de hostilidade. Estamos falando sobre um assunto que tem grandes consequências para nós dois. Espero que possamos ser civilizados por tempo suficiente para encontrar uma solução aceitável.
– Só há uma solução – disse Daisy sombriamente. – Diga para meu pai que se recusa a se casar comigo em qualquer circunstância. Prometa fazer isso e tentarei ser civilizada.
Swift parou no caminho, o que forçou Daisy a parar também. Virando-se para olhá-lo, ela ergueu as sobrancelhas, esperançosa. Deus sabia que essa não seria uma promessa difícil para ele, considerando suas afirmações anteriores. Mas Swift estava lhe dando um longo e insondável olhar, com as mãos ainda nos bolsos e o corpo tenso, como se esperasse por algo. Havia um brilho estranho naqueles olhos, como se fosse um tigre à espera.
Ela o encarou, tentando desesperadamente descobrir o que lhe passava pela cabeça e conseguindo perceber sinais de divertimento e desconcertante desejo. Mas desejo pelo quê?
Certamente não por ela.
– Não – disse ele em voz baixa, para si mesmo.
Daisy balançou a cabeça, perplexa. Estava com os lábios secos e teve de umedecê-los com a ponta da língua para conseguir falar. Perturbou-a o olhar dele seguir aquele pequeno movimento.
– Não, não vou me casar com você? – perguntou.
– Não, não vou prometer isso – respondeu Swift.
E, passando por ela, continuou a andar na direção da mansão.
– Ele está tentando torturá-la – afirmou Lillian com asco quando Daisy lhe contou toda a história, mais tarde naquele dia.
Elas estavam sentadas na sala particular no andar superior da mansão com suas duas amigas mais íntimas, Annabelle Hunt e Evie, Lady St. Vincent. Haviam se conhecido dois anos antes, um quarteto de jovens que, na época, por vários motivos, ainda não tinha conseguido arranjar pretendentes.
Era uma crença comum na sociedade vitoriana que as mulheres, com sua natureza volúvel e inteligência inferior, não podiam ter a mesma qualidade de amizade que os homens. Só eles podiam ser leais, realmente honestos e magnânimos.
Daisy considerava aquilo besteira. Elas eram unidas por um laço de grande afeto e confiança.
Ajudavam umas às outras e se incentivavam sem um pingo de competição ou ciúme. Daisy gostava de Annabelle e Evie quase tanto quanto de Lillian. Podia facilmente imaginá-las no futuro, falando sobre seus netos enquanto tomam chá com biscoitos, senhoras de cabelos grisalhos e línguas afiadas.
– Não acredito nem um pouco que o Sr. Swift não sabia de nada – continuou Lillian. – Ele é um mentiroso e está mancomunado com nosso pai. É claro que quer herdar a empresa.
Lillian e Evie estavam instaladas em cadeiras estofadas em brocado perto das janelas, enquanto Daisy e Annabelle se acomodavam no chão envoltas nas camadas coloridas de suas saias. Uma garotinha roliça engatinhava de um lado para outro entre elas, de vez em quando parando para examinar algo no tapete com seus pequeninos dedos.
O bebê, Isabelle, era filha de Annabelle e Simon Hunt, nascida cerca de dez meses antes.
Certamente nenhum bebê já fora tão adorado por todos na casa, até mesmo pelo pai.
Contra todas as expectativas, o másculo e viril Sr. Hunt não ficara nem um pouco desapontado por seu primogênito ser do sexo feminino. Ele amava a filha, não hesitando em segurá-la em público e em lhe murmurar palavras ternas de um modo que os pais raramente ousavam fazer. Instruíra Annabelle a lhe dar mais filhas no futuro, afirmando de maneira jocosa que sempre desejara ser amado por muitas mulheres.
Como se poderia esperar, a menina era linda. Seria uma impossibilidade física para Annabelle gerar uma criança menos que espetacular. Segurando o corpo robusto e esquivo do bebê, Daisy lhe beijou o pescoço macio antes de voltar a colocá-la no tapete.
– Vocês deviam tê-lo ouvido. Ele foi incrivelmente arrogante. Concluiu que é culpa minha ainda estar solteira. Disse que meus padrões são altos demais. Fez uma preleção sobre o custo dos meus livros e disse que alguém tem que pagar pelo meu oneroso estilo de vida.
– Que ousadia! – exclamou Lillian, ficando com o rosto vermelho de raiva.
Daisy imediatamente lamentou ter lhe contado. O médico da família dissera que Lillian não deveria se aborrecer perto do último mês de gestação. Ela havia ficado grávida e sofrido um aborto no ano anterior. A perda fora muito difícil para a irmã.
Apesar das garantias do médico de que ela não tivera culpa do aborto, Lillian ficara muito triste durante semanas. Mas com o consolo constante de Westcliff e o apoio amoroso de suas amigas, pouco a pouco voltara ao seu estado de espírito normal.
Consciente da possibilidade de outro aborto, estava muito mais cuidadosa agora.
Infelizmente não era uma daquelas mulheres que floresciam no confinamento. Estava com manchas na pele, nauseada e irritada com as restrições que seu estado impunha.
– Não vou tolerar isso! – exclamou. – Você não vai se casar com esse Matthew Swift e mandarei papai para o inferno se ele tentar enviá-la para longe da Inglaterra!
Ainda sentada no chão, Daisy acariciou o joelho de sua irmã mais velha em um gesto tranquilizador e se forçou a sorrir enquanto contemplava seu rosto perturbado.
– Tudo vai ficar bem. Pensaremos em alguma coisa.
Elas eram muito unidas havia anos. Na ausência do afeto dos pais, eram a única fonte de amor e apoio uma para a outra.
Evie, a mais calada das quatro amigas, falou com a leve gagueira que aparecia sempre que ficava nervosa ou era movida por uma forte emoção. Quando tinham se conhecido, dois anos antes, a gagueira era tão grave que tornava a conversa frustrante. Mas desde que havia deixado sua família agressiva e se casado com lorde St. Vincent, Evie ganhara muito mais autoconfiança.
– O Sr. Swift re-realmente concorda em ter uma noiva que não seja da sua escolha? – Evie afastou da testa um cacho ruivo brilhante. – Se o que ele disse for verdade, que já está com sua situação financeira ga-garantida, não tem nenhum motivo para se casar com Daisy.
– Isso não é só questão de dinheiro – respondeu Lillian, procurando uma posição mais confortável em sua cadeira. Ela estava com as mãos pousadas na ampla curva de sua barriga. –
Papai trata Swift como um filho adotivo, já que nenhum de nossos irmãos correspondeu às expectativas dele.
– Às expectativas dele? – perguntou Annabelle, intrigada.
Ela se inclinou para beijar os dedos dos pés agitados da filha, fazendo a criança rir.
– Dedicando-se à empresa – esclareceu Lillian. – Sendo eficiente, frio e inescrupuloso.
Disposto a pôr os interesses comerciais acima de tudo em sua vida. Nesse quesito, papai e o Sr. Swift falam a mesma língua. Nosso irmão Ransom tentou conquistar seu espaço, mas papai sempre o compara com o Sr. Swift.
– E o Sr. Swift sempre sai ganhando – disse Daisy. – Pobre Ransom.
– Nossos outros dois irmãos nem mesmo se deram ao trabalho de tentar – disse Lillian.
– Mas e quanto ao pai verdadeiro do Sr. Swift? – perguntou Evie. – Não faz nenhuma objeção ao filho ser tratado como filho de outro?
– Bem, essa sempre foi a parte estranha – respondeu Daisy. – O Sr. Swift vem de uma família muito conhecida na Nova Inglaterra. Eles se estabeleceram em Plymouth e alguns foram parar em Boston no início do século XIII. Os Swifts são famosos por sua linhagem distinta, mas poucos conseguiram manter seu dinheiro. Como nosso pai sempre diz, a primeira geração o ganha, a segunda o gasta e a terceira só herda o nome. É claro que, em se tratando da velha Boston, o processo demora dez gerações em vez de três, porque eles são muito mais lentos em tudo...
– Você está divagando, querida – interrompeu-a Lillian. – Volte ao assunto.
– Desculpe-me. – Daisy sorriu brevemente antes de continuar. – Bem, nós suspeitamos de que haja algum tipo de desavença entre o Sr. Swift e sua família porque quase nunca fala deles. E
raramente vai visitá-los em Massachusetts. Por isso, mesmo se o pai do Sr. Swift se opusesse a ele entrar para outra família, nunca saberíamos.
As quatro mulheres se calaram por um momento, refletindo sobre a situação.
– Encontraremos alguém para Daisy – disse Evie. – Agora que podemos procurar alguém que não seja aristocrata, será bem mais fácil. Há muitos cavalheiros de bom sangue e boa linhagem que nã-não possuem títulos.
– O Sr. Hunt tem muitos conhecidos solteiros.
– Eu agradeço – disse Daisy –, mas não gosto da ideia de me casar com um homem de negócios. Tão frios. Nunca seria feliz. – Parando, disse, desculpando-se: – Sem querer ofender o Sr. Hunt, é claro.
Annabelle riu.
– Eu não diria que todos os homens de negócios são frios. O Sr. Hunt às vezes é bastante sensível e até mesmo emotivo.
As outras a olharam ceticamente, incapazes de imaginar o grande e destemido marido de Annabelle como um homem sensível. O Sr. Hunt era inteligente e encantador, mas parecia tão insensível quanto um elefante seria ao zumbido de um mosquito.
– Nós acreditamos em você – disse Lillian. – Voltando ao assunto... Evie, pode perguntar a lorde St. Vincent se ele conhece algum cavalheiro adequado para Daisy? Ele deve ser capaz de encontrar um tipo decente. Deus sabe que ele possui informações sobre todos os homens na Inglaterra com algum dinheiro no bolso.
– Vou perguntar – respondeu Evie. – Estou certa de que poderemos encontrar alguns candidatos apresentáveis.
À frente do Jenner’s, o clube de jogos exclusivo que o pai de Evie fundara muito tempo atrás, lorde St. Vincent estava rapidamente levando o negócio a um nível de sucesso jamais alcançado.
Dirigia o clube com rigor, mantendo arquivos detalhados sobre a vida pessoal e financeira de todos os membros.
– Obrigada – respondeu Daisy com sinceridade. Seus pensamentos se fixaram no clube. – Eu gostaria de saber... você acha que lorde St. Vincent conseguiria descobrir mais sobre o passado misterioso do Sr. Rohan? Talvez ele seja descendente de um lorde irlandês ou algo desse tipo.
Um breve silêncio invadiu a sala como uma corrente de ar frio. Daisy viu a irmã e as amigas trocando olhares e subitamente ficou irritada com elas e até mais consigo própria por ter mencionado o homem que ajudava a dirigir o clube de jogos.
Rohan era um jovem de origem em parte cigana, com cabelos escuros e olhos brilhantes cor de avelã. Eles só haviam se encontrado uma vez, quando Rohan lhe roubara um beijo. Três beijos, para ser exata, e essa tinha sido a experiência mais erótica de toda sua vida. Na verdade, a única experiência erótica de toda sua vida.
Rohan a beijara como se ela fosse uma adulta em vez de a irmã mais nova de alguém, com uma sensualidade que sugeria todas as coisas proibidas a que os beijos levavam. Daisy deveria ter lhe dado um tapa. Em vez disso, sonhara com esses beijos pelo menos mil vezes.
– Acho que não, querida – comentou Evie com muita gentileza, e Daisy sorriu com uma alegria exagerada, como se estivesse brincando.
– Ah, é claro que ele não é! Mas você sabe como é minha imaginação...
– Devemos nos manter concentradas no que é importante, Daisy – disse Lillian firmemente. –
Sem fantasias ou histórias... e sem mais pensamentos em Rohan. Isso só servirá para distraí-la.
O primeiro impulso de Daisy foi dar uma resposta mordaz como sempre fazia quando Lillian era mandona. Contudo, ao olhar nos olhos da irmã, da mesma cor dos seus, viu o brilho de pânico e sentiu um amor protetor.
– Tem razão – disse, forçando-se a sorrir. – Não precisa se preocupar. Farei o que for preciso para ficar aqui com você. Até mesmo me casar com um homem que não amo.
Outro silêncio, e então Evie falou:
– Nós encontraremos um homem que você poderia amar, Daisy. E espero que a afeição mútua aumente com o tempo. – Um sorriso surgiu em seus lábios grossos. – Às vezes isso acontece.
CAPÍTULO 3
O acordo que fez com meu pai.
A voz de Daisy ecoava na mente de Matthew. Na primeira oportunidade, conversaria com Thomas Bowman e lhe perguntaria o que diabo estava acontecendo. Com o alvoroço da chegada dos hóspedes, provavelmente só poderia fazer isso à noite.
Matthew se perguntou se o velho Bowman realmente desejava esse casamento. Ao longo dos anos ele tinha pensado em Daisy Bowman, mas nunca cogitara a ideia de se casar. Essa possibilidade sempre fora tão remota que nem valia a pena considerá-la. Matthew nunca a havia beijado, nunca tinha dançado com ela e nem mesmo a acompanhado em um passeio, sabendo muito bem que os resultados seriam desastrosos.
Os segredos de seu passado o assombravam e punham em risco seu futuro. Matthew sempre havia tido consciência de que a identidade que criara para si mesmo poderia se despedaçar a qualquer momento. Só seria preciso alguém somar dois mais dois... e descobrir quem ele realmente era. Daisy merecia um marido íntegro e honesto, não um que construíra sua vida baseada em mentiras.
Mas isso não o impedia de amá-la. Sempre a amara com uma intensidade que parecia irradiar de seus poros. Ela era doce, gentil, engenhosa e absurdamente romântica. Seus olhos escuros brilhavam, cheios de sonhos. Às vezes era desajeitada, quando estava com a mente ocupada demais com seus próprios pensamentos para se concentrar no que fazia. Frequentemente se atrasava para o jantar porque ficara envolvida demais em sua leitura. Perdia dedais, chinelos e lápis. E adorava olhar para as estrelas. Uma vez vira Daisy debruçada sobre o peitoril de um balcão com o rosto pensativo erguido para o céu noturno e se enchera de desejo de ir até ela e beijá-la loucamente. Jamais esquecera essa imagem.
Matthew havia se imaginado na cama com ela mais vezes do que deveria. Se isso pudesse ter acontecido, ele teria sido muito gentil... adorado-a. Feito tudo para agradá-la. Ansiava pela intimidade dos cabelos de Daisy em suas mãos, sentir seus quadris nas palmas, a maciez dos ombros dela tocando seus lábios. O peso de Daisy adormecida em seus braços. Queria tudo isso e muito mais.
Surpreendia-o ninguém ter notado seus sentimentos. Daisy devia ter sido capaz de percebê-los sempre que olhava para ele. Felizmente, nunca percebera. Sempre o havia visto como uma engrenagem na máquina empresarial de seu pai, e Matthew ficara grato por isso.
Contudo, algo tinha mudado. Ele pensou no modo como Daisy o olhara mais cedo naquele dia, o espanto na expressão dela. Ele havia mudado tanto?
Distraidamente, Matthew enfiou as mãos nos bolsos enquanto andava pela mansão de Stony Cross. Sua preocupação com a própria aparência nunca fora além de manter os cabelos cortados e o rosto limpo. A criação severa da Nova Inglaterra extinguira qualquer brilho de vaidade, porque os habitantes de Boston a abominavam e faziam de tudo para evitar o que era novo e moderno.
Porém, nos últimos anos, Thomas Bowman tinha insistido para que Matthew fosse ao seu alfaiate na Park Avenue, a um cabeleireiro em vez de um barbeiro e fizesse as unhas, como convinha a um cavalheiro na posição dele. Também por insistência de Bowman, contratara uma cozinheira e uma governanta, o que significava que estava se alimentando melhor. Isso, junto com o desaparecimento dos últimos vestígios da adolescência, lhe dera um novo ar de maturidade. Ele se perguntou se Daisy o apreciara e imediatamente se amaldiçoou por se importar com isso.
Mas o modo como ela o fitara, como se o notasse pela primeira vez... Daisy nunca havia olhado para ele daquela maneira em nenhuma das ocasiões em que fora à casa dos Bowmans, na Quinta Avenida. Matthew se lembrou do dia em que a conheceu, em um jantar apenas para a família.
A grande sala brilhava devido à luz projetada por um lustre de cristal. As paredes eram cobertas com grosso papel de parede dourado e molduras pintadas na mesma cor. Quatro grandes espelhos, os maiores que ele já vira, ocupavam uma parede inteira.
Dois dos filhos estavam presentes, jovens robustos com o dobro do peso de Matthew.
Mercedes e Thomas sentavam-se em lados opostos da mesa. As duas filhas, Lillian e Daisy, estavam sentadas de um lado, aproximando furtivamente seus pratos e suas cadeiras.
Thomas Bowman tinha um relacionamento conflituoso com elas, em alguns momentos ignorando-as e em outros submetendo-as a duras críticas. A filha mais velha, Lillian, lhe respondia com rispidez e atrevimento.
Mas Daisy, que tinha 15 anos, olhava para o pai com um ar pensativo e até mesmo divertido.
Isso parecia irritá-lo além do que ele podia suportar. Ela havia feito Matthew ter vontade de sorrir. Com seus olhos exóticos cor de canela e suas expressões imprevisíveis, Daisy Bowman parecia saída de uma floresta encantada habitada por criaturas míticas.
Logo ficara claro que qualquer conversa de que Daisy participasse tenderia a tomar rumos inesperados e fascinantes. Secretamente, ele havia achado graça quando Bowman a repreendera na frente de todos por sua última travessura. Ao que parecia, a casa de Bowman subitamente ficara cheia de ratos porque todas as ratoeiras tinham falhado.
Uma das criadas contou que Daisy se esgueirara pela casa à noite, desarmando-as para que os ratos não fossem mortos.
– Isso é verdade, filha? – perguntara Thomas Bowman com um olhar irado.
– Talvez – admitira ela. – Mas há outra explicação.
– E qual é? – perguntara ele com raiva.
O tom dela se tornara alegre.
– Estarmos hospedando os ratos mais inteligentes de Nova York!
Daquele momento em diante, Matthew nunca recusou um convite para ir à mansão dos Bowmans, não só porque sua presença agradava ao velho como também para ter a chance de ver Daisy. Com discrição, olhava-a sempre que possível, sabendo que isso era tudo que poderia fazer. E os momentos que havia passado na companhia de Daisy, independentemente da fria cortesia dela, foram os únicos em sua vida em que chegara perto de ser feliz.
Escondendo seus pensamentos perturbadores, Matthew caminhou pela mansão. Nunca havia viajado para o exterior, mas era assim que imaginara que a Inglaterra seria, com jardins bem-cuidados, colinas verdes e a vila rústica aos pés da grande propriedade.
Era uma casa antiga com móveis envelhecidos, mas em cada canto parecia haver um vaso, uma estátua ou uma pintura de valor inestimável que constava de livros de história da arte.
Talvez a casa fosse um pouco fria no inverno, mas com as muitas lareiras, os tapetes grossos e as cortinas de veludo, dificilmente se poderia dizer que morar ali seria um sofrimento.
Quando Thomas Bowman – ou seu secretário – lhe escrevera dizendo que ele teria de supervisionar o estabelecimento de uma divisão da saboaria na Inglaterra, o primeiro impulso de Matthew fora recusar. Gostava de desafios e responsabilidades, mas estar perto de Daisy Bowman era mais do que ele podia suportar. A presença dela o espicaçava como flechas, prometendo um futuro de desejo infinito insatisfeito.
Foram as últimas linhas do secretário, sobre o bem-estar da família Bowman, que lhe chamaram atenção:
Há incertezas sobre a Srta. Bowman mais jovem conseguir encontrar um cavalheiro com quem se casar. Por isso o Sr. Bowman decidiu levá-la para Nova York se ainda não estiver noiva até o fim da primavera...
Isso havia feito Matthew enfrentar um dilema. Se Daisy voltasse para Nova York, tudo bem ele ir para a Inglaterra. Ele se garantiria aceitando o cargo em Bristol e esperando para ver se Daisy conseguiria arranjar um marido. Se ela conseguisse, encontraria um substituto para si mesmo e voltaria para Nova York.
Desde que houvesse um oceano entre eles, tudo ficaria bem.
Quando Matthew passou pelo hall de entrada principal, avistou lorde Westcliff. O conde estava na companhia de um homem com cabelos escuros que lembrava um pirata, apesar de suas roupas elegantes. Matthew supôs que fosse o Sr. Hunt, sócio e melhor amigo de Westcliff.
Apesar de todo o sucesso financeiro de Hunt, ele era filho de um açougueiro, que não tinha nenhum laço com a aristocracia.
– Sr. Swift – disse Westcliff tranquilamente quando eles se encontraram. – Parece que voltou cedo de seu passeio. Espero que tenha apreciado a vista.
– A vista é magnífica, milorde – respondeu Matthew. – Estou ansioso para dar muitos passeios assim pela propriedade. Voltei cedo porque encontrei a Srta. Bowman no caminho.
– Ah. – O rosto de Westcliff estava impassível. – Sem dúvida foi uma surpresa para a Srta. Bowman.
Mas não uma boa. Matthew sustentou o olhar do conde sem pestanejar. Uma de suas habilidades mais úteis era ser capaz de perceber as mínimas alterações na expressão facial que revelavam os pensamentos das pessoas. Mas Westcliff era um homem excepcionalmente controlado. Matthew admirava isso.
– Acho certo dizer que foi uma das muitas surpresas que a Srta. Bowman teve nos últimos tempos – respondeu Matthew.
Isso foi uma tentativa deliberada de descobrir se Westcliff sabia algo sobre o possível casamento arranjado com Daisy. O conde respondeu apenas com um ínfimo erguer de sobrancelhas, como se achasse o comentário interessante, mas não digno de resposta.
Maldição, pensou Matthew com crescente admiração.
Westcliff se virou para o homem de cabelos pretos ao seu lado.
– Hunt, eu gostaria que conhecesse Matthew Swift, o americano que mencionei antes. Swift, este é o Sr. Simon Hunt.
Eles apertaram firmemente as mãos. Hunt era cinco a dez anos mais velho que Matthew e parecia ser bom de briga. Um homem corajoso e confiante que supostamente adorava zombar da arrogância e da afetação da alta classe.
– Soube de seu sucesso com a Consolidated Locomotive – comentou Matthew a Hunt. – Há muito interesse em Nova York pela combinação da arte inglesa com os métodos de fabricação americanos.
Hunt sorriu sarcasticamente.
– Embora eu fosse gostar de levar todo o crédito, a modéstia me obriga a dizer que Westcliff teve algo a ver com isso. Ele e seu cunhado são meus sócios.
– Uma combinação muito bem-sucedida – respondeu Matthew.
Hunt se virou para Westcliff.
– Ele tem talento para a lisonja – observou. – Posso contratá-lo?
Westcliff esboçou um sorriso de divertimento.
– Acho que meu sogro não vai permitir. Ele precisa dos talentos do Sr. Swift para construir uma fábrica e abrir um escritório da empresa em Bristol.
Matthew decidiu mudar o rumo da conversa.
– Tenho lido sobre os últimos movimentos no Parlamento para a nacionalização da indústria ferroviária inglesa – disse para Westcliff. – Estou interessado em ouvir sua opinião sobre esse assunto, milorde.
– Meu Deus, não o faça começar a falar sobre isso! – disse Hunt.
O tema fez Westcliff franzir o cenho.
– O governo assumindo o controle da indústria é a última coisa de que precisamos. Deus nos livre de ainda mais interferências de políticos. O governo controlaria as ferrovias de maneira tão ineficaz quanto controla todo o resto. E o monopólio acabaria com a concorrência da indústria, resultando em aumento de impostos, para não mencionar...
– Para não mencionar – interrompeu-o Hunt astutamente – que Westcliff e eu não queremos que o governo corte nossos lucros futuros.
Matthew olhou para ele com seriedade.
– Tenho em mente o melhor interesse público.
– Nesse caso, é uma sorte que seu interesse seja o melhor para todos – comentou Hunt.
Matthew conteve um sorriso.
– Como pode ver, o Sr. Hunt não perde nenhuma oportunidade de zombar de mim – disse Westcliff para Matthew, revirando os olhos.
– Eu zombo de todo mundo – disse Hunt. – Acontece que você é o alvo mais fácil.
Westcliff se virou para Matthew e disse:
– Hunt e eu vamos fumar no terraço dos fundos. Quer se juntar a nós?
Matthew balançou a cabeça.
– Eu não fumo.
– Eu também não – disse Westcliff pesarosamente. – Sempre tive o hábito de fumar um charuto de vez em quando, mas infelizmente o cheiro de tabaco não agrada à condessa em sua condição.
Demorou um momento para Matthew se lembrar de que “a condessa” era Lillian Bowman.
Que estranho a divertida, irritável e tempestuosa Lillian ser agora Lady Westcliff!
– Nós dois conversaremos enquanto Hunt fuma um charuto – informou-lhe Westcliff. –
Venha conosco.
O “convite” não parecia admitir a possibilidade de recusa, mas Matthew tentou assim mesmo.
– Obrigado, milorde, mas há um assunto que desejo discutir com uma pessoa e...
– Suponho que essa pessoa seja o Sr. Bowman.
Inferno, pensou Matthew. Ele sabe. Mesmo que não tivesse dito, dava para perceber pelo modo como Westcliff olhava para ele. Ele sabia da intenção dos Bowmans de casá-lo com Daisy... e, como era de esperar, tinha uma opinião sobre isso.
– Discutirá o assunto comigo primeiro – continuou o conde.
Matthew olhou cautelosamente para Simon Hunt, que por sua vez lhe lançou um olhar vago.
– Estou certo de que o Sr. Hunt não deseja se entediar com assuntos pessoais alheios –
comentou Matthew.
– De modo algum – retrucou Hunt alegremente. – Adoro saber de assuntos alheios.
Principalmente os pessoais.
Os três foram para o terraço dos fundos, que dava vista para acres de jardins bem-cuidados, separados por caminhos de cascalho e sebes minuciosamente esculpidas. Um pomar de peras era visível ao longe no verde exuberante. A brisa que soprava nos jardins tinha um forte perfume floral e o som da água correndo no rio próximo era ouvido em meio ao farfalhar das árvores.
Sentado a uma mesa, Matthew se forçou a relaxar em sua cadeira. Westcliff e ele observaram Simon Hunt cortar a ponta de um charuto com um canivete. Matthew permaneceu em silêncio, esperando pacientemente Westcliff se pronunciar.
– Há quanto tempo – perguntou Westcliff abruptamente – sabe do plano de Bowman de casá-lo com Daisy?
Matthew respondeu sem hesitação:
– Há cerca de uma hora e quinze minutos.
– Não foi ideia sua?
– De forma alguma – garantiu-lhe Matthew.
O conde se recostou, cruzou as mãos sobre sua barriga lisa e o examinou estreitando os olhos.
– Mas o senhor tem muito a ganhar com esse arranjo.
– Milorde – disse Matthew prosaicamente –, se eu tenho algum talento na vida, é para ganhar dinheiro. Não preciso me casar por interesse.
– Fico feliz em ouvir isso – respondeu o conde. – Tenho mais uma pergunta a fazer, mas primeiro quero deixar a minha posição bem clara. Tenho grande apreço por minha cunhada e a considero sob minha proteção. Conhecendo bem os Bowmans, sem dúvida sabe do relacionamento estreito entre a condessa e a irmã. Minha esposa sofreria muito com a infelicidade de Daisy. Portanto, não permitirei que isso aconteça. Simples, não?
– Entendo – disse Matthew sucintamente.
Era uma grande ironia ser avisado para se afastar de Daisy quando já decidira fazer tudo ao seu alcance para não se casar com ela. Sentiu-se tentando a mandar Westcliff para o inferno. Em vez disso, ficou de boca fechada e manteve uma aparência calma.
– Daisy tem um espírito único – disse Westcliff. – Uma natureza afetuosa e romântica. Se for forçada a se casar sem amor, ficará arrasada. Ela merece um marido que a valorize por tudo o que é e a proteja das duras realidades do mundo. Um marido que lhe permita sonhar.
Era surpreendente perceber tanto sentimento em Westcliff, que era universalmente conhecido por ser um homem pragmático e equilibrado.
– O que deseja saber, milorde?
– Pode me dar sua palavra de que não se casará com minha cunhada?
Matthew sustentou o olhar frio do conde. Não era bom contrariar um homem como Westcliff, que estava acostumado a que não lhe negassem nada. Mas Matthew havia suportado durante anos as explosões e a arrogância de Thomas Bowman quando outros homens teriam fugido de medo da ira dele.
Embora Bowman pudesse ser um tirano implacável e sarcástico, não havia nada que ele respeitasse mais do que um homem disposto a enfrentá-lo. E por isso logo se tornara a função de Matthew ser o porta-voz das más notícias e das duras verdades.
Matthew fora treinado para isso, motivo pelo qual a tentativa de Westcliff de dominá-lo não teve nenhum efeito sobre ele.
– Temo que não, milorde – disse Matthew polidamente.
Simon Hunt deixou cair seu charuto.
– Não me dará sua palavra? – perguntou Westcliff.
– Não.
Matthew se curvou para pegar o charuto caído e o entregou para Hunt, que o olhava com um brilho de alerta nos olhos, como se silenciosamente tentasse impedi-lo de saltar de um penhasco.
– Por que não? – perguntou Westcliff. – Porque não quer perder sua posição com Bowman?
– Não, ele não pode se dar ao luxo de me perder agora. – Matthew esboçou um sorriso na tentativa de não fazer suas palavras parecerem arrogantes. – Sei mais sobre produção, administração e comercialização do que qualquer um na empresa. Conquistei a confiança do velho. Por isso, não serei despedido nem mesmo se me recusar a me casar com a filha dele.
– Então não terá nenhuma dificuldade em esquecer esse assunto. Quero sua palavra, Swift.
Agora.
Um homem menos firme teria ficado intimidado com o tom autoritário de Westcliff.
– Eu poderia considerar isso – retrucou Matthew friamente –, se me fornecesse o incentivo certo. Por exemplo, prometer me endossar a chefia de toda a divisão e garantir a posição por pelo menos, digamos... três anos.
Westcliff lhe lançou um olhar incrédulo.
O tenso silêncio foi quebrado quando Simon Hunt explodiu numa gargalhada.
– Meu Deus, ele tem nervos de aço! – exclamou. – Tome nota das minhas palavras, Westcliff: vou contratá-lo para trabalhar na Consolidated.
– Não sou barato – disse Matthew, o que fez Hunt rir tanto que quase deixou cair seu charuto de novo.
Até mesmo Westcliff sorriu, embora relutantemente.
– Maldição – murmurou. – Não vou lhe dar o cargo tão prontamente. Não com tanto em jogo.
Não antes de estar convencido de que é o homem certo para a posição.
– Então parece que chegamos a um impasse. – Matthew assumiu uma expressão amigável.
Os dois homens mais velhos trocaram um olhar, concordando tacitamente em discutir a situação mais tarde, longe dos ouvidos de Matthew. Isso causou uma pontada de curiosidade no americano, mas ele a ignorou, sabendo que havia coisas que não podia controlar. Pelo menos havia tornado claro que não seria intimidado.
Além disso... não podia dar sua palavra sobre esse assunto, já que Bowman ainda não o mencionara para ele.
CAPÍTULO 4
– Obviamente Daisy é a mais fraca da ninhada – disse Thomas Bowman mais tarde naquela noite, andando de um lado para outro na pequena sala de visitas particular contígua ao seu quarto.
Matthew e ele tinham combinado de se encontrar depois do jantar enquanto os outros hóspedes se reuniam no andar de baixo.
– Ela é pequena e frívola. Quando nasceu, eu disse para minha esposa: “Dê-lhe um nome forte e prático.” Jane, Constance, algo assim. Em vez disso, ela escolheu Marguerite... francês, veja bem! Em homenagem a uma prima de seu lado materno. E então piorou ainda mais quando Lillian, que só tinha 4 anos na época, soube que Marguerite era a palavra francesa para uma flor insignificante. Daí em diante Lillian passou a chamá-la de Daisy, e o nome pegou...
Enquanto Bowman continuava a andar, Matthew pensou em como era perfeito o nome da pequena flor de pétalas brancas que parecia tão delicada e ainda assim era incrivelmente forte.
Contava muito o fato de Daisy sempre ter sido teimosamente fiel à sua própria natureza em meio a uma família de personalidades dominadoras.
– Obviamente eu teria de recompensá-lo – disse Thomas Bowman. – Eu o conheço muito para saber que escolheria um tipo de mulher muito diferente, uma mais prática do que uma avoada como Daisy. Portanto...
– Isso não será necessário – interrompeu-o Matthew calmamente. – Daisy... isto é, a Srta.
Bowman, é totalmente... – Bela. Desejável. Encantadora. – Aceitável. Casar-me com uma mulher como a Srta. Bowman seria em si uma recompensa.
– Bom – grunhiu Bowman, claramente descrente. – É muito cavalheiresco da sua parte dizer isso. Ainda assim, eu lhe oferecerei uma recompensa justa na forma de um generoso dote, mais ações na empresa e assim por diante. Garanto que ficará muito satisfeito. Agora, quanto aos preparativos para o casamento...
– Eu ainda não aceitei – interrompeu-o Matthew.
Bowman parou de andar e lhe lançou um olhar indagador.
– Em primeiro lugar – continuou Matthew cuidadosamente –, é possível que a Srta. Bowman encontre um pretendente nos próximos dois meses.
– Não encontrará nenhum a sua altura – disse Bowman.
Matthew respondeu com seriedade, apesar de seu divertimento.
– Obrigado, mas não acredito que a Srta. Bowman compartilhe de sua ótima opinião a meu respeito.
O homem mais velho fez um gesto de desdém.
– Bobagem. A mente das mulheres é tão mutável quanto o clima inglês. Pode convencê-la a gostar de você. Dê-lhe um ramalhete de flores, faça-lhe alguns elogios. Melhor ainda, cite algo de um daqueles malditos livros de poesia que ela lê. É fácil seduzir uma mulher, Swift. Tudo o que você tem de fazer é...
– Sr. Bowman – interrompeu-o Matthew com um súbito alarme. Pelo amor de Deus, tudo de que ele não precisava era de explicação de técnicas de sedução por parte de seu patrão. – Creio que posso cuidar disso sozinho. Esse não é o problema.
– Então qual...? – Bowman deu-lhe um sorriso de compreensão. – Ah, entendo.
– Entende? – perguntou Matthew.
– Obviamente teme a minha reação se mais tarde decidir que minha filha não satisfaz suas necessidades. Bem, desde que aja com discrição, não direi nenhuma palavra.
Matthew suspirou e esfregou os olhos, subitamente cansado. Aquilo era um pouco demais para quem tinha acabado de desembarcar de um navio em Bristol.
– Está dizendo que fará vista grossa se eu for infiel à minha esposa.
Foi uma afirmação, não uma pergunta.
– Nós, homens, estamos sujeitos a tentações. Às vezes nos desviamos do caminho certo. É assim que o mundo funciona.
– Não para mim – retrucou Matthew. – Eu mantenho a minha palavra, tanto nos negócios quanto em minha vida pessoal. Serei fiel à minha esposa, aconteça o que acontecer.
Bowman franziu seu grosso bigode, achando graça.
– Você ainda é jovem o suficiente para se dar ao luxo de ter escrúpulos.
– Homens mais velhos não podem tê-los? – perguntou Matthew com um misto de zombaria e afeição.
– Às vezes os escrúpulos têm um preço alto demais. Um dia você descobrirá isso.
– Deus, espero que não.
Matthew afundou em uma cadeira, passando os dedos por seus fartos cabelos. Depois de um longo momento, Bowman se aventurou a dizer:
– Seria realmente tão terrível ter Daisy como esposa? Você terá de se casar algum dia. E ela lhe trará benefícios. A empresa, por exemplo. Você assumirá o controle depois da minha morte.
– O senhor sobreviverá a todos nós – murmurou Matthew.
Bowman deixou escapar um riso satisfeito.
– Quero que você fique com a empresa – insistiu. Era a primeira vez que ele falava tão francamente sobre esse assunto. – Você é mais parecido comigo do que qualquer um dos meus filhos. A empresa será muito mais bem-sucedida em suas mãos do que nas de qualquer outra pessoa. Você tem o dom de entrar em uma sala e dominar o ambiente... Não tem medo de ninguém. Todos sabem disso e o prezam por isso. Case-se com minha filha, Swift, e construa minha fábrica. Quando você voltar para casa, eu lhe darei Nova York.
– Poderia incluir Rhode Island? Não é muito grande.
Bowman ignorou a pergunta sarcástica.
– Minhas ambições para você vão além da empresa. Tenho contato com homens poderosos que já o notaram. Eu o ajudarei a conseguir tudo o que sua mente puder imaginar... e o preço é baixo. Casar com Daisy e ser pai dos meus netos. É só isso que eu peço.
– Só isso – repetiu Matthew.
Quando havia começado a trabalhar para Bowman, dez anos atrás, Matthew não imaginara que o homem se tornaria um pai para ele. Bowman era como um barril de pólvora: baixo, redondo e tão irascível que dava para prever suas explosões ao ver sua careca ficar vermelha.
Mas era hábil com os números e, quando se tratava de manipular as pessoas, incrivelmente esperto e calculista. Também era generoso com aqueles que lhe agradavam, um homem que mantinha suas promessas e cumpria suas obrigações.
Matthew aprendera muito com Thomas Bowman. Como usar o ponto fraco de um oponente em benefício próprio, quando insistir e quando recuar... e também que não havia nada de mais em canalizar sua agressividade para os negócios, desde que nunca cruzasse a linha da grosseria.
Os verdadeiros homens de negócios de Nova York, não os amadores da classe alta, não respeitavam quem não tinha certa dose de combatividade.
Ao mesmo tempo, Matthew aprendera a temperar seu vigor com diplomacia, depois de entender que vencer uma discussão não necessariamente significava impor sua vontade. O
carisma não era algo que viera fácil para ele, em virtude de sua natureza reservada. Mas se esforçara por adquiri-lo como um instrumento necessário para fazer bem o seu trabalho.
Thomas Bowman havia apoiado Matthew em todos os passos do caminho e o orientado em alguns negócios difíceis. Matthew ficara grato por isso. E não podia evitar gostar de seu irritável patrão, apesar dos defeitos dele, porque havia alguma verdade na afirmação de Bowman de que eles eram parecidos.
Um homem como Bowman ter tido uma filha como Daisy era um dos grandes mistérios da vida.
– Preciso de um pouco de tempo para pensar – disse Matthew.
– O que há para pensar? – protestou Bowman. – Ele parou ao ver a expressão de Matthew. – Está bem. Está bem. Acho que não há nenhuma necessidade de uma resposta imediata. Discutiremos isso depois.
– Você falou com o Sr. Swift? – perguntou Lillian quando Marcus entrou no quarto deles. Ela havia cochilado enquanto o esperava.
– Ah, sim – respondeu Marcus pesarosamente, enquanto tirava seu casaco de corte perfeito e o colocava sobre os braços de uma cadeira Luís XIV.
– Eu estava certa, não é? Ele é abominável. Detestável. Conte-me o que ele disse.
Marcus olhou para a esposa grávida, tão linda com os cabelos soltos e os olhos ainda pesados de sono que fez seu coração pular.
– Ainda não – murmurou, sentando-se na beira da cama. – Primeiro quero olhar um pouco para você.
Lillian sorriu e passou as mãos por seus cabelos pretos desgrenhados.
– Estou medonha.
– Não. – Ele se aproximou mais, baixando a voz. – Cada parte de você é linda. – Ele deslizou as mãos pelas curvas do corpo de Lillian. – O que posso fazer por você? – sussurrou.
Ela continuou a sorrir.
– Basta olhar para mim para ver que já fez o suficiente, milorde. – Rodeando-o com seus braços esguios, ela o deixou pousar a cabeça em seus seios. – Westcliff, eu nunca poderia ter um filho de outro homem.
– Isso é tranquilizador.
– Eu me sinto tão despreparada... e muito desconfortável. É errado dizer que não gosto de estar grávida?
– É claro que não – respondeu Marcus, sua voz abafada pelos seios dela. – Eu também não gostaria de estar.
Isso a fez sorrir. Soltando-o, ela se recostou nos travesseiros.
– Quero saber sobre o Sr. Swift. Conte-me o que você e aquele odioso espantalho ambulante conversaram.
– Eu não o descreveria mais como um espantalho. Ele mudou desde que o viu pela última vez.
– Hummm. – Lillian ficou obviamente desgostosa com a revelação. – Mas continua feio?
– Como eu raramente reparo na beleza masculina – disse Marcus secamente –, não sou um juiz competente. Mas acho que dificilmente alguém descreveria o Sr. Swift como feio.
– Está dizendo que ele é atraente?
– Acho que muitos diriam que sim.
Lillian pôs uma das mãos na frente do rosto do marido.
– Quantos dedos eu estou erguendo?
– Três – disse Marcus, rindo. – Meu amor, o que está fazendo?
– Verificando sua visão. Acho que não está muito boa. Aqui, acompanhe o movimento do meu dedo...
– Por que você não acompanha o movimento do meu? – sugeriu ele, estendendo-o para o corpete dela.
Lillian agarrou a mão do marido e encarou os olhos brilhantes dele.
– Marcus, o futuro de Daisy está em jogo.
Marcus recuou, obedientemente.
– Está bem.
– Conte-me o que ele disse – insistiu ela.
– Eu falei muito seriamente para o Sr. Swift que não permitirei que ninguém torne Daisy infeliz. E exigi que ele me desse sua palavra de que não se casaria com ela.
– Ah, graças a Deus – disse Lillian com um suspiro de alívio.
– Ele negou.
– Ele o quê? – Ela ficou boquiaberta de assombro. – Mas ninguém lhe nega nada.
– Pelo visto ninguém disse isso para o Sr. Swift.
– Marcus, você vai fazer alguma coisa, não é? Não vai deixar Daisy ser intimidada e forçada a se casar com Swift...
– Calma, amor. Eu prometo que Daisy não será forçada a se casar com ninguém. Mas... –
Marcus hesitou, perguntando-se exatamente quanto da verdade deveria dizer. – Minha opinião sobre Matthew Swift é um pouco diferente da sua.
Ela franziu o cenho.
– Minha opinião é a mais correta. Eu o conheço há mais tempo.
– Você o conheceu anos atrás – corrigiu Marcus calmamente. – As pessoas mudam, Lillian.
E acho que muito do que seu pai disse sobre Swift é verdade.
– Até tu, Marcus?
Ele riu da careta teatral de Lillian e pôs a mão sob as cobertas. Pegou um dos pés dela, o pôs em seu colo e começou a massageá-lo com movimentos firmes dos polegares. Ela suspirou e relaxou apoiada nos travesseiros.
Marcus pensou no que descobrira sobre Swift até ali. Ele era um jovem inteligente, hábil e educado. Do tipo que pensava antes de falar. Marcus sempre havia se sentido à vontade perto de homens assim.
Aparentemente Matthew Swift e Daisy Bowman eram incompatíveis. Mas Marcus não concordava com a opinião de Lillian de que Daisy deveria se casar com um homem que tivesse uma natureza igualmente romântica e sensível. Não haveria nenhum equilíbrio em uma união dessas. Afinal de contas, todo navio precisava de uma âncora.
– Devemos mandar Daisy para Londres o mais rápido possível – disse Lillian tristemente. –
É a alta temporada e ela está enfiada em Hampshire, longe de todos os bailes e soirées...
– Foi escolha dela vir para cá – lembrou-lhe Marcus, pegando o outro pé. – Daisy nunca se perdoaria se perdesse o parto.
– Ah, isso não importa. Prefiro que perca o parto e conheça homens adequados a que fique aqui comigo até o tempo dela se esgotar, que tenha de se casar com Matthew Swift, se mudar com ele para Nova York e eu nunca mais voltar a vê-la...
– Já pensei nisso – disse Marcus. – Convidei alguns homens adequados para participar da temporada de caça em Stony Cross Park.
– Convidou? – Ela ergueu a cabeça do travesseiro.
– St. Vincent e eu fizemos uma lista e discutimos em detalhes os méritos de cada candidato. Escolhemos uma dúzia. Qualquer um deles seria adequado para sua irmã.
– Ah, Marcus, você é o homem mais inteligente, mais maravilhoso...
Ele dispensou o elogio com um gesto de mão e balançou a cabeça, sorrindo ao se lembrar daquelas discussões animadas.
– Vou confessar uma coisa: St. Vincent é muito exigente. Se fosse mulher, nenhum homem seria bom o suficiente para ele.
– É por isso que as mulheres dizem: almeje muito e espere sentada.
Ele riu.
– Foi o que você fez?
– Não, milorde. Eu almejei muito e obtive muito mais do que esperava.
Ela deu uma risadinha quando Marcus se arrastou sobre seu corpo e a beijou profundamente.
O sol ainda não havia nascido quando um grupo de hóspedes interessados em pescar trutas tomou um rápido café da manhã no terraço dos fundos e saiu usando roupas de tweed, sarja e linho. Criados sonolentos os seguiram até o rio carregando varas, cestos e estojos de madeira contendo iscas e ferramentas. Os homens ficariam fora durante boa parte da manhã enquanto as mulheres dormiam.
Todas elas, exceto Daisy, que adorava pescar, mas sabia que não seria bem-vinda no grupo masculino. Embora Lillian e ela com frequência saíssem sozinhas para pescar, sua irmã certamente não estava em condições de fazer isso agora.
Daisy havia feito o possível para que Evie ou Annabelle a acompanhassem até o lago artificial que Westcliff mantinha cheio de trutas, mas nenhuma delas parecera entusiasmada com a ideia.
– Vocês vão se divertir muito – dissera Daisy. – Vou lhes ensinar a arremessar o anzol. Não digam que preferem ficar dentro de casa em uma bela manhã de primavera!
Mas Annabelle preferia. E como St. Vincent, o marido de Evie, decidira não ir pescar, Evie escolhera ficar na cama com ele.
– Você se divertiria muito mais pescando comigo – dissera Daisy.
– Não – respondera Evie, decidida –, não me divertiria.
Aborrecida e sentindo-se um pouco só, Daisy tomara café da manhã sozinha e partira para o lago, levando sua vara de madeira favorita com ponteira de osso de baleia e carretilha.
Era uma manhã gloriosa e revigorante. As sálvias que haviam sobrevivido ao inverno floresciam em espigas azuis e roxas ao longo das sebes de abrunheiro. Daisy atravessou um gramado verde na direção da área coberta de ranúnculos, milefólios e pétalas rosadas de flores-de-cuco.
Ao rodear uma amoreira, viu uma agitação na beira da água... dois meninos, com algo entre eles, algum tipo de animal ou ave... um ganso? A criatura protestava com grasnidos furiosos, batendo violentamente as asas enquanto os meninos riam.
– Ei – gritou Daisy. – O que estão fazendo?
Os meninos olharam para a intrusa, gritaram e desataram a correr para longe do lago.
Daisy apressou o passo e se aproximou do animal indignado. Era um enorme ganso-bravo, uma raça conhecida por sua plumagem cinza, o pescoço musculoso e o bico afiado cor de laranja.
– Pobrezinho – disse ao notar que a ave estava com a perna amarrada. Ao se aproximar, o ganso hostil se precipitou para a frente, a fim de atacá-la, mas foi abruptamente contido por algo que prendia sua perna. Daisy parou e pousou sua vara de pesca. – Vou tentar ajudá-lo, mas esse tipo de atitude é um pouco perturbadora. Se conseguir controlar seu mau humor... –
Aproximando-se lentamente do ganso, Daisy descobriu a fonte do problema. – Ah, querido.
Aqueles pequenos malandros... estavam fazendo-o pescar para eles, não é?
O ganso grasnou em aquiescência. Uma linha de pesca havia sido amarrada ao redor da perna da ave, levando a uma pequena colher com um furo, onde fora preso um anzol. Se não estivesse com tanta dó do ganso maltratado, Daisy teria rido. Aquilo era engenhoso. Quando o ganso era atirado na água e tinha de nadar de volta, a colher brilhava como um peixe. Se uma truta fosse atraída pela isca, ficaria presa no anzol e o ganso a puxaria. Mas o anzol havia se enganchado na sarça, aprisionando a ave.
Daisy se aproximou da sarça mantendo a voz baixa e os movimentos lentos.
– Bom garoto – disse Daisy em tom tranquilizador, pegando a linha com cuidado. – Meu Deus, como você é grande! Se tiver um pouco mais de paciência vou... Ai!
De repente o ganso se precipitou para a frente e bicou seu braço. Daisy recuou e olhou para o pequeno ferimento em sua pele, que começava a ficar arroxeada.
– Criatura ingrata! Só por isso eu deveria deixá-lo aqui.
Esfregando o ponto dolorido em seu braço, Daisy se perguntou se conseguiria usar sua vara de pesca para desenganchar a linha da sarça... mas isso ainda não resolveria o problema de tirar a colher da perna do ganso. Ela teria de voltar à mansão e buscar ajuda.
Ao se baixar para pegar seu equipamento de pesca, ouviu um som inesperado. Alguém assoviando uma melodia estranhamente familiar. Daisy ouviu com atenção, lembrando-se dela.
Era uma canção muito popular em Nova York antes de ela partir, chamada “The End of a Perfect Day”.
Alguém estava andando em sua direção vindo do rio. Um homem com roupas molhadas carregando um cesto para peixes. Usava um chapéu velho de aba curta, um casaco esportivo de tweed e calças rústicas. Era impossível não notar como as camadas de roupas molhadas lhe revelavam os contornos esguios do corpo. Os sentidos de Daisy foram despertados ao reconhecê-lo, fazendo seu pulso se acelerar.
Ao vê-la, o homem parou no meio do assovio. Tinha olhos mais azuis do que a água ou o céu, destacando-se no rosto bronzeado. Ele tirou respeitosamente o chapéu e o sol produziu reflexos cor de mogno em seus cabelos muito escuros.
– Maldição – disse Daisy para si mesma, não só porque ele era a última pessoa que queria ver naquele momento como também porque tinha de admitir que Matthew Swift era extraordinariamente bonito.
Não queria achá-lo tão atraente. Tampouco queria sentir tanta curiosidade sobre ele, o desejo de invadir sua privacidade e descobrir seus segredos, prazeres e medos. Por que nunca havia se interessado por ele? Talvez fosse imatura demais. Talvez não fosse ele que tivesse mudado, mas ela.
Swift se aproximou.
– Srta. Bowman.
– Bom dia, Sr. Swift. Por que não está pescando com os outros?
– Meu cesto está cheio. Se eu continuasse a pescar, constrangeria os outros.
– Como o senhor é modesto – disse Daisy com ironia. – Onde está sua vara de pescar?
– Deixei com Westcliff.
– Por quê?
Swift pousou seu cesto e pôs novamente seu chapéu.
– Eu a trouxe da América. É uma vara de nogueira com ponta flexível e uma carretilha Kentucky multiplicadora.
– Carretilhas multiplicadoras não funcionam – disse Daisy.
– As inglesas, não – corrigiu-a Swift. – Mas lá fizemos algumas melhorias. Assim que Westcliff percebeu do que a vara era capaz, praticamente a arrancou das minhas mãos. Está pescando com ela agora.
Sabendo que o cunhado adorava esse tipo de coisa, Daisy sorriu tristemente. Sentiu o olhar de Swift nela. Não quis retribuir aquele olhar, mas não resistiu. Era difícil conciliar suas lembranças do jovem odioso que conhecera com esse robusto espécime do sexo masculino. Ele era como uma moeda de cobre recém-cunhada, por conta de seu brilho e de sua perfeição. A luz da manhã deslizou pela pele de Swift e se refletiu nos densos cílios, revelando as pequenas rugas nos cantos externos dos olhos. Daisy desejou tocar no rosto dele, fazê-lo sorrir e sentir os lábios dele sob seus dedos.
O silêncio se prolongou, tornando-se tenso e estranho até ser quebrado pelo grasnido imperioso do ganso.
Swift olhou para a grande ave.
– Vejo que tem companhia.
Quando Daisy explicou o que os dois meninos haviam feito com o ganso, Swift sorriu.
– Garotos espertos.
Daisy não considerou o comentário compassivo.
– Quero ajudá-lo, mas ele me bicou quando tentei me aproximar.
– Os gansos-bravos não são conhecidos por serem mansos – informou-lhe Swift. – Ainda mais os machos. Provavelmente estava tentando mostrar quem manda.
– Ele deixou isso claro – observou Daisy, esfregando o braço.
Swift franziu as sobrancelhas ao ver a crescente mancha roxa no braço dela.
– Foi aí que ele a bicou? Deixe-me ver.
– Não, está tudo bem... – começou Daisy, mas ele já tinha vindo.
Segurou o pulso dela com seus dedos longos e passou suavemente o polegar da outra mão perto da mancha roxa.
– A senhorita se machuca com facilidade – murmurou com sua cabeça morena inclinada sobre o braço dela.
O coração de Daisy bateu com força antes de entrar em um ritmo muito acelerado. Ele cheirava a sol, água e relva molhada. E ao fundo havia o aroma sedutor de pele masculina quente e suada. Ela conteve o instinto de ir para os braços dele, sentir-lhe o corpo... pôr a mão de Swift em seu seio. O desejo mudo a estarreceu.
Daisy ergueu a cabeça para o rosto inclinado de Swift e o viu fitando-a com seus olhos azuis.
– Eu... O que devemos fazer?
– Sobre o ganso? – Swift encolheu seus ombros largos. – Poderíamos torcer o pescoço dele e levá-lo para casa para o jantar.
A sugestão fez Daisy e o ganso-bravo o olharem com indignação.
– Foi uma brincadeira muito sem graça, Sr. Swift.
– Eu não estava brincando.
Daisy se posicionou entre Swift e o ganso.
– Cuidarei disso do meu jeito. Pode ir agora.
– Eu não a aconselharia a torná-lo um animal de estimação. Se a senhorita ficar em Stony Cross Park por tempo o suficiente, acabará encontrando-o em seu prato.
– Não importa se isso me torna uma hipócrita, mas prefiro não comer um ganso que conheço.
Embora Swift não estivesse sorrindo, Daisy percebeu que ele havia achado graça do comentário.
– Deixando as questões filosóficas de lado – disse ele –, há a questão prática de como pretende soltar a perna do ganso. Vai levar muitas bicadas.
– Se o senhor conseguisse imobilizá-lo, eu pegaria a colher e...
– Não – disse Swift firmemente. – Nem por todo o chá da China.
– Essa expressão nunca fez sentido para mim – disse Daisy. – Em termos de produção mundial, a Índia cultiva muito mais chá do que a China.
Swift torceu os lábios enquanto pensava naquilo.
– Como a China é o principal produtor mundial de cânhamo – observou –, acho que poderíamos dizer “nem por todo o cânhamo da China”, mas isso não soa tão bem.
Independentemente da expressão que use, não vou ajudar o ganso.
Ele se baixou para pegar seu cesto.
– Por favor – disse Daisy.
Swift lhe lançou um olhar demorado e sofrido.
– Por favor – repetiu ela.
Nenhum cavalheiro poderia dizer não a uma dama. Murmurando algo indecifrável, Swift pousou o cesto. Um sorriso satisfeito se abriu no rosto de Daisy.
– Obrigada.
Contudo, o sorriso desapareceu quando ele a avisou:
– Vai ficar me devendo.
– Naturalmente – respondeu Daisy. – Eu nunca esperaria que fizesse nada de graça.
– E quando eu lhe pedir para retribuir o favor, nem pense em recusar, não importa qual seja.
– Não concordarei em me casar com o senhor só porque salvou um pobre ganso aprisionado.
– Acredite em mim – disse Swift sombriamente –, nunca pediria isso em troca da liberdade de um ganso.
Ele começou a tirar seu casaco cor de oliva, tendo dificuldade em afastar o tweed molhado de seus ombros largos.
– O que está fa-fazendo? – Daisy arregalou os olhos.
Swift retorceu os lábios em exasperação.
– Não vou deixar essa maldita ave estragar meu casaco.
– Não precisa fazer tanto estardalhaço por causa de algumas penas em seu casaco.
– Não é com as penas que estou preocupado – disse ele sucintamente.
– Ah. – Daisy tentou conter um súbito sorriso.
Ela o observou tirar o casaco e o colete. A camisa branca amassada e molhada grudava em seu peito largo, quase transparente sobre o abdome musculoso e desaparecendo sob as calças ensopadas. Um par de suspensórios brancos se estendia pelos ombros. Ele pôs suas roupas cuidadosamente sobre o cesto para evitar que ficassem enlameadas. Uma brisa brincou em seus cabelos, erguendo brevemente uma mecha na testa.
A estranheza da situação fez Daisy sentir uma vontade incontrolável de rir. Um ganso irritado, Matthew Swift ensopado.... Apressou-se a cobrir a boca com a mão, mas não conseguiu se conter.
Swift balançou a cabeça, reagindo com um sorriso. Daisy notou que os sorrisos dele nunca duravam muito, desapareciam tão rápido quanto surgiam. Aquilo era como avistar um raro fenômeno natural breve e extraordinário, como uma estrela cadente.
– Se contar a alguém sobre isso, sua diabin... vai se arrepender. – As palavras eram ameaçadoras, mas algo no tom dele... uma suavidade erótica... produziu um arrepio em Daisy.
– Não vou contar a ninguém – disse Daisy ofegante. – A situação refletiria tão mal para mim quanto para o senhor.
Swift estendeu a mão para o casaco, pegou um pequeno canivete e o entregou para Daisy. Foi sua imaginação ou os dedos dele permaneceram um segundo a mais na palma de sua mão?
– Para que é isso? – perguntou Daisy desconfortavelmente.
– Para cortar a linha na perna da ave. Tome cuidado... é muito afiado. Detestaria que acidentalmente cortasse uma artéria.
– Não se preocupe, não vou ferir o ganso.
– Eu estava me referindo a mim. Se você tornar isso difícil – disse para o ganso –, virará patê antes da hora do jantar.
A ave ergueu as asas ameaçadoramente para parecer o maior possível.
Swift pôs um dos pés sobre a linha, diminuindo o alcance do ganso. A criatura bateu as asas e grasnou, parando por um instante antes de decidir se arremessar para a frente. Swift agarrou o ganso, praguejando enquanto tentava evitar o bico. Penas flutuaram ao redor.
– Não o sufoque – gritou Daisy, vendo que Swift o tinha agarrado pelo pescoço.
O grito de Daisy foi abafado pela explosão de movimentos, grasnidos e agressividade do ganso. De algum modo ele conseguiu imobilizá-lo. Desgrenhado e coberto de penas, Matthew se virou para Daisy e disse:
– Venha até aqui e corte a linha.
Ela se apressou a obedecer, ajoelhando-se ao lado da dupla em combate. Com cuidado, pegou a pata enlameada do ganso enquanto ele grasnava e a puxava.
– Pelo amor de Deus, não seja medrosa. Apenas agarre a pata e faça o que tem de fazer.
Se não houvesse uns 15 quilos de ganso furioso entre eles, Daisy teria fuzilado Matthew com os olhos. Em vez disso, agarrou com força a pata do ganso e deslizou cuidadosamente a ponta do canivete sobre a linha. Swift tinha razão – era muito afiado e cortou rápido a linha.
– Pronto – disse ela, fechando o canivete. – Pode soltar seu amigo emplumado, Sr. Swift.
– Obrigado – respondeu ele, em tom sarcástico.
Mas quando Swift abriu os braços e soltou o ganso, o animal inesperadamente reagiu.
Decidido a se vingar por todos seus infortúnios, ele avançou e o bicou no rosto.
– Ai! – Swift caiu para trás sentado e levou a mão ao olho enquanto o ganso disparava para longe com um grasnido triunfante.
– Sr. Swift! – Daisy engatinhou e se escarranchou no colo dele, preocupada. Ela lhe puxou a mão.
– Deixe-me ver.
– Eu estou bem – disse Swift, esfregando o olho.
– Deixe-me ver – repetiu ela, segurando a cabeça de Swift.
– Vou exigir ensopado de ganso no jantar – murmurou ele, deixando-a virar o rosto dele para o lado.
– Não vai fazer uma coisa dessas. – Daisy inspecionou cuidadosamente o pequeno ferimento na extremidade da sobrancelha escura e enxugou uma gota de sangue com a manga do vestido. –
Não é de bom tom comer uma criatura que salvou. Felizmente o ganso tinha má pontaria. Acho que seu olho não ficará roxo.
Sem poder se controlar, ela deu uma risada.
– Fico feliz em ver que acha isso engraçado – murmurou Swift. – Está coberta de penas, sabia?
– O senhor também.
Os cabelos castanhos brilhantes dele estavam cheios de penugens brancas e cinza. Ela deixou escapar mais risadas, como bolhas surgindo na superfície de um lago. Começou a tirar penas dos cabelos de Swift, as grossas mechas lhe fazendo cócegas nos dedos.
Ele estendeu a mão para os cabelos de Daisy, que tinham se soltado dos grampos, e afastou com delicadeza as penas dos fios pretos reluzentes.
Durante um ou dois minutos de silêncio, eles tiraram penas um do outro. Daisy estava tão atenta ao que fazia que a princípio não se deu conta da impropriedade de sua posição. Pela primeira vez estava perto o suficiente para notar o azul matizado dos olhos de Swift, as bordas cobalto da íris. A textura da pele, sedosa e bronzeada, a sombra da barba na mandíbula.
Daisy percebeu que Swift evitava seu olhar, concentrando-se em cada diminuta penugem em seus cabelos. Subitamente se deu conta do calor transmitido por seus corpos, da solidez de Swift sob ela, da respiração incendiária dele em seu rosto. Matthew estava com as roupas úmidas, a pele ardente sob o tecido que pressionava o corpo dela.
Ambos ficaram imóveis ao mesmo tempo, flagrando-se em um meio abraço em que todas as células da pele de Daisy pareceram se encher de fogo líquido. Fascinada e desorientada, ela se permitiu relaxar, sentindo seu coração bater com força. Não havia mais penas, mas Daisy se viu entrelaçando suavemente os dedos nas ondas escuras dos cabelos de Swift.
Teria sido muito fácil para Swift rolá-la para debaixo dele, comprimindo-a com seu peso junto à terra úmida. O toque de seus joelhos despertou em Daisy um instinto primitivo de se abrir para ele.
Ouviu Swift prender a respiração. Ele lhe segurou os antebraços e, sem cerimônia, tirou-a de seu colo. Caindo na relva ao lado de Swift com um som abafado, Daisy tentou se recompor. Em silêncio, encontrou o canivete no chão e o devolveu para ele.
Depois de enfiá-lo de volta em seu bolso, Swift passou as mãos nas panturrilhas para remover as penas e a terra. Perguntando-se por que ele estava sentado ligeiramente encurvado, Daisy se levantou.
– Bem, acho que vou ter de entrar na mansão pela porta de serviço. Se minha mãe me vir assim, terá um ataque de raiva.
– Vou voltar para o rio – disse Swift com uma voz rouca. – Para ver como Westcliff está se saindo com a carretilha. E talvez pesque um pouco mais.
Daisy franziu as sobrancelhas ao perceber que ele a evitava.
– Pensei que havia mergulhado na água fria o suficiente por hoje.
– Pelo visto, não – murmurou Swift, ficando de costas para ela enquanto pegava seu colete e casaco.
CAPÍTULO 5
Perplexa e irritada, Daisy se afastou a passos largos do lago artificial.
Não contaria para ninguém o que acabara de acontecer, embora Lillian fosse se divertir bastante com a história do encontro com o ganso. Por outro lado, ela não queria revelar que vira um lado diferente de Matthew Swift e que, por um breve momento, sentira uma atração perigosa por ele. Aquilo realmente não havia significado nada.
Embora Daisy ainda fosse inocente, tinha conhecimento suficiente dos assuntos sexuais para saber que o corpo feminino podia reagir a um homem sem nenhum envolvimento do coração.
Como, certa vez, ela reagira a Cam Rohan. Desconcertava-a perceber que se sentia igualmente atraída por Matthew Swift. Dois homens muito diferentes, um romântico e outro reservado. Um jovem e belo cigano que despertara sua imaginação para possibilidades eróticas... e um homem de negócios frio, ambicioso e pragmático.
Daisy vira um desfile interminável de homens em busca de poder durante seus anos na Quinta Avenida. Eles procuravam perfeição, uma esposa que seria a melhor anfitriã, ofereceria os melhores jantares e soirées, usaria as melhores roupas e teria os melhores filhos, que brincariam em silêncio em seus quartos no andar de cima enquanto seus pais discutiam negócios no escritório no andar de baixo.
E Matthew Swift, com sua enorme ambição, o homem que o pai dela escolhera por seu talento e sua mente brilhante, seria o marido mais exigente possível. Ia querer uma esposa cuja vida girasse em torno de seus objetivos e a julgaria severamente quando ela não conseguisse agradá-lo. Não poderia haver nenhum futuro com um homem assim.
Entretanto, havia uma coisa a favor de Matthew Swift: ele ajudara o ganso.
Enquanto Daisy entrava furtivamente na mansão, se lavava e colocava um vestido limpo, suas amigas e sua irmã se reuniam para tomar chá com torradas. Estavam sentadas a uma das mesas redondas perto da janela e ergueram os olhos quando Daisy entrou.
Annabelle segurava Isabelle junto ao ombro, massageando-lhe as diminutas costas em movimentos circulares tranquilizadores. Algumas das outras mesas estavam ocupadas, em sua maior parte por mulheres, embora houvesse meia dúzia de homens presentes, inclusive lorde St.
Vincent.
– Bom dia – disse Daisy alegremente, indo até sua irmã. – Dormiu bem, querida?
– Muito bem. – Lillian estava linda, com os olhos brilhantes e os cabelos pretos presos em uma rede cor-de-rosa na nuca. – Dormi com as janelas abertas e a brisa vinda do lago estava muito refrescante. Você foi pescar esta manhã?
– Não. – Daisy tentou parecer despreocupada. – Só caminhei.
Evie se inclinou para Annabelle para pegar o bebê.
– Deixe-me segurá-la – disse.
O bebê estava mordendo seu punho sem parar e babando copiosamente. Segurando a criança irrequieta, Evie explicou para Daisy:
– Os dentes da pobrezinha estão nascendo.
– Ela ficou irritada durante toda a manhã – disse Annabelle.
Daisy viu que os olhos azuis da amiga pareciam um pouco cansados, como os de uma jovem mãe. Mas o cansaço só realçava a beleza de Annabelle, suavizando a perfeição de seus traços.
– Não é um pouco cedo para os dentes nascerem? – perguntou Daisy.
– Ela é uma Hunt – respondeu Annabelle laconicamente. – E os Hunts são incomumente precoces. Segundo meu marido, todos na família nasceram com dentes. – Preocupada, ela olhou para o bebê. – Acho melhor levá-la para o quarto.
Alguns olhares de reprovação foram lançados em sua direção. Não era a norma crianças, especialmente bebês, ficarem na companhia de adultos. A menos que fosse apenas para uma breve exibição, com a criança usando roupas brancas com babados e fitas para a aprovação geral.
– Besteira – disse Lillian, sem se dar ao trabalho de baixar a voz. – Isabelle dificilmente vai gritar ou se comportar mal. Só está um pouco agitada. Acho que todos podem ter um pouco de tolerância.
– Vamos tentar a colher de novo – murmurou Annabelle, sua voz educada com um toque de ansiedade. Ela tirou uma colher de prata de uma pequena tigela cheia de gelo triturado e disse para Daisy: – Minha mãe sugeriu lhe dar isto. Disse que sempre funcionava com meu irmão Jeremy.
Daisy se sentou ao lado de Evie, vendo o bebê morder a colher. O pequeno rosto redondo de Isabelle estava corado e algumas lágrimas tinham escorrido de seus olhos. Quando ela choramingou, as partes inflamadas de suas gengivas se tornaram visíveis.
– Ela precisa de um cochilo – disse Annabelle. – Mas a dor não a deixa dormir.
– Pobrezinha! – exclamou Daisy, compadecida.
Enquanto Evie tentava acalmar o bebê, houve uma pequena agitação do outro lado da sala. A entrada de alguém causara um murmúrio de interesse. Ao se virar, Daisy viu a figura alta e impressionante de Matthew Swift.
Então ele não tinha voltado para o rio. Devia ter esperado até ela se afastar o suficiente e poder voltar para a mansão sozinho. Como seu pai, Swift via pouco nela que fosse digno de interesse. Daisy disse a si mesma que não se importava, mas aquilo doeu.
Ele estava usando um traje cinza-escuro de corte perfeito, um colete cor de chumbo e uma gravata preta com um nó convencional. Embora estivesse na moda na Europa os homens ostentarem suíças mais longas e cabelos em ondas soltas, pelo visto essa moda ainda não havia chegado à América. Matthew Swift estava totalmente barbeado e com seus cabelos castanhos brilhantes penteados e curtos, o que lhe dava um atraente ar juvenil.
Com discrição, Daisy viu o prazer nos rostos dos cavalheiros mais velhos quando falavam com Swift e a inveja dos cavalheiros mais jovens. E o interesse das mulheres.
– Meu Deus! – murmurou Annabelle – Quem é ele?
Lillian respondeu irritadamente:
– O Sr. Swift.
Annabelle e Evie arregalaram os olhos.
– O mesmo Sr. Swift que você descreveu como um saco de o-ossos? – perguntou Evie. –
Aquele que você disse que era tão excitante quanto um prato de espi-pinafre murcho?
Lillian franziu as sobrancelhas. Desviando sua atenção de Swift, pôs um torrão de açúcar em seu chá.
– Talvez ele não seja tão horrível quanto descrevi – admitiu. – Mas não se deixem enganar pela aparência. Quando descobrirem como ele é por dentro, isso mudará a impressão de como é por fora.
– A-acho que há algumas mulheres que gostariam de conhecer qualquer parte dele –
observou Evie, fazendo Annabelle abafar o riso em sua xícara de chá.
Daisy olhou rapidamente por cima de seu ombro. Era verdade. As mulheres estavam alvoroçadas, rindo e estendendo suas mãos para que ele as beijasse.
– Todo esse alvoroço só porque ele é americano e, portanto, uma novidade – murmurou Lillian. – Se qualquer um dos meus irmãos estivesse aqui, essas mulheres se esqueceriam totalmente do Sr. Swift.
Embora Daisy quisesse concordar, estava certa de que os irmãos delas não teriam o mesmo efeito que o Sr. Swift. Apesar de serem herdeiros de uma grande fortuna, não possuíam o refinamento social de Matthew.
– Ele está olhando para cá – disse Annabelle. A ansiedade a fez se retesar um pouco. – Está de cara fechada, como todos os outros. Isabelle está muito irrequieta. Vou levá-la para fora e...
– Não vai levá-la a lugar nenhum – disse Lillian. – Esta é minha casa, você é minha amiga e quem se importar com o barulho do bebê pode ir embora imediatamente.
– Ele está vindo para cá – sussurrou Evie. – Shhh.
Daisy olhou fixamente para seu chá, seus músculos contraídos pela tensão. Swift foi até a mesa e fez uma mesura.
– Milady – disse para Lillian –, é um prazer voltar a vê-la. Gostaria de parabenizá-la por seu casamento com lorde Westcliff e... – Ele hesitou, porque embora Lillian obviamente estivesse grávida, seria indelicado se referir à sua condição –... por sua ótima aparência.
– Estou do tamanho de um celeiro – disse Lillian sem rodeios, rebatendo a tentativa de diplomacia dele.
Swift apertou a boca como se estivesse contendo um sorriso.
– De modo algum – disse brandamente, e olhou de relance para Annabelle e Evie. Todos esperavam que Lillian fizesse as apresentações.
A contragosto, ela as fez.
– Este é o Sr. Swift – murmurou, apontando na direção dele. – Sra. Simon Hunt e Lady St.
Vincent.
Swift se inclinou habilmente na direção da mão de Annabelle. Teria feito o mesmo com Evie se ela não estivesse segurando o bebê. Os gemidos e choramingos de Isabelle estavam aumentando e logo se tornariam uma choradeira se não fosse feito algo a respeito.
– Esta é minha filha, Isabelle. Os dentes dela estão nascendo – informou Annabelle, se desculpando.
Isso deve fazê-lo ir embora rapidamente, pensou Daisy. Os homens ficam apavorados com o choro de bebês.
– Ah. – Swift pôs a mão no bolso de seu paletó e procurou entre vários objetos tilintantes. O
que diabo havia ali? Ela o viu pegar seu canivete, um pedaço de linha de pesca e um lenço branco limpo.
– Sr. Swift, o que está fazendo? – perguntou Evie com um sorriso curioso.
– Improvisando algo.
Com a colher, ele pôs um pouco de gelo esmagado no centro do lenço, o dobrou bem e o amarrou com a linha de pesca. Depois de guardar o canivete no bolso, estendeu a mão para o bebê sem nenhum traço de constrangimento.
Com os olhos arregalados, Evie lhe entregou a criança. As quatro mulheres viram, pasmadas, Swift segurar tranquilamente Isabelle junto a seu ombro. Ele lhe deu o lenço cheio de gelo e Isabelle começou a mastigar desesperadamente, embora continuasse chorando.
Parecendo ignorar os olhares fascinados de todos na sala, Swift foi até a janela, murmurando palavras para o bebê. Parecia estar lhe contando algum tipo de história. Um ou dois minutos depois, a criança sossegou.
Quando Swift voltou para a mesa, Isabelle suspirava, quase dormindo, com a boca firmemente fechada sobre a bolsa de gelo improvisada.
– Ah, Sr. Swift – disse Annabelle agradecida, pegando o bebê nos braços. – Isso foi muito inteligente da sua parte! Obrigada.
– O que estava dizendo para Isabelle? – perguntou Lillian.
– Eu pensei em distraí-la por tempo o suficiente para o gelo lhe acalmar as gengivas. Então lhe dei uma explicação detalhada do acordo de Buttonwood de 1792.
Daisy falou com ele pela primeira vez:
– O que está fazendo?
Swift olhou de relance para ela, seu rosto suave e cortês, e por um segundo Daisy meio que acreditou que os acontecimentos daquela manhã haviam sido um sonho. Mas ainda sentia na pele a forte impressão do corpo de Swift.
– O acordo de Buttonwood levou à formação da Bolsa de Valores de Nova York – respondeu Swift. – Achei que isso seria bastante instrutivo, mas parece que a Srta. Isabelle perdeu o interesse quando comecei a falar sobre o compromisso de estruturação de remuneração.
– Entendo – disse Daisy. – O senhor entediou a pobrezinha até que dormisse.
– Devia ter ouvido meu relato das forças de desequilíbrio do mercado que levaram à crise de 1937 – disse Swift. – É melhor do que láudano.
Olhando nos olhos azuis de Swift, Daisy não conseguiu conter o riso. Em resposta, ele deu outro daqueles breves e deslumbrantes sorrisos. Inexplicavelmente, a expressão de Daisy se tornou amigável.
Swift manteve sua atenção em Daisy por um momento longo demais, como se estivesse fascinado com algo que viu nos olhos dela. Então repentinamente desviou seu olhar e fez outra mesura.
– Eu as deixarei desfrutarem de seu chá. Foi um prazer, senhoras. – Olhando para Annabelle, acrescentou seriamente: – Sua filha é encantadora. Por isso, perdoarei o desinteresse dela por minha preleção sobre negócios.
– Isso é muito gentil da sua parte, senhor – respondeu Annabelle com um olhar receptivo.
Swift voltou para o outro lado da sala enquanto as jovens mulheres se ocupavam mexendo colheres de açúcar em seus chás e alisando guardanapos em seus colos.
Evie foi a primeira a falar:
– Você tinha razão – disse para Lillian. – Ele é horrível.
– Sim – concordou Annabelle enfaticamente. – Quando olhamos para ele, as primeiras palavras que nos vêm à mente são “espinafre murcho”.
– Calem a boca, vocês duas – disse Lillian em resposta ao sarcasmo delas, e cravou os dentes em um pedaço de torrada.
Naquela tarde, Lillian insistiu em arrastar Daisy para o gramado do lado leste do jardim, onde a maioria dos jovens jogava bowls. Em qualquer dia, Daisy não teria se importado, mas havia chegado a uma parte instigante de um novo romance sobre uma governanta chamada Honoria que acabara de encontrar um fantasma no sótão. Quem é você? , perguntara Honoria olhando para o fantasma, que era muito parecido com seu antigo amor, lorde Clayworth. O fantasma estava prestes a responder quando Lillian arrancou o livro das mãos de Daisy e a puxou para fora da biblioteca.
– Maldição! – reclamou Daisy. – Lillian, eu havia chegado na melhor parte!
– Enquanto lê, há pelo menos meia dúzia de homens adequados jogando bowls no gramado lá fora – disse sua irmã veementemente. – E jogar com eles é muito mais produtivo do que ler sozinha.
– Eu não sei nada sobre bowls.
– Bom. Peça que lhe ensinem. Se há uma coisa que os homens adoram é dizer às mulheres o que fazer.
Elas se aproximaram do gramado, onde haviam sido postas cadeiras e mesas para os espectadores. Um grupo de jogadores estava ocupado rolando as bolas pelo gramado.
– Hummm – disse Lillian, observando o grupo. – Temos concorrência. – Daisy reconheceu as três mulheres a que sua irmã se referia: Srta. Cassandra Leighton, Lady Miranda Dowden e Elspeth Higginson. – Eu teria preferido não convidar nenhuma mulher solteira para Hampshire, mas Westcliff disse que isso seria óbvio demais. Felizmente você é mais bonita do que todas elas. Mesmo sendo baixa.
– Eu não sou baixa! – protestou Daisy.
– Pequena, então.
– Também não gosto dessa palavra. Faz com que eu pareça trivial.
– É melhor do que mirrada – disse Lillian –, que é a única outra palavra que eu conheço para descrever sua pouca altura. – Ela sorriu ao ver a cara de Daisy. – Não faça cara feia, querida.
Vou levá-la a um bufê de solteiros para que possa escolher... Ah, inferno!
– O que foi? O que foi?
– Ele está jogando.
Não houve nenhuma necessidade de perguntar quem era ele. A irritação na voz de Lillian deixou isso bem claro. Examinando o grupo, Daisy viu Matthew Swift em pé no fim da pista de grama com outros jovens, observando distâncias sendo medidas. Como os outros, usava calças claras, camisa branca e um colete sem mangas. Ele era magro, o corpo bem proporcional, e sua posição relaxada refletia confiança.
Nada escapava ao olhar de Matthew Swift. Parecia levar o jogo a sério. Era um homem que não podia fazer nada abaixo de seu melhor, mesmo em um jogo informal.
Daisy estava bastante certa de que ele competia por algo todos os dias. E isso não se encaixava em sua experiência com os jovens privilegiados da velha Boston ou Nova York, filhos mimados que sempre souberam que não precisavam trabalhar se não quisessem. Ela se perguntou se Swift algum dia já fizera algo apenas por prazer.
– Eles estão tentando decidir quem fará o lançamento – disse Lillian. – Ou seja, quem conseguiu rolar a bola para mais perto da bola branca no fim da pista.
– Como você sabe tanto sobre esse jogo? – perguntou Daisy.
Lillian sorriu ironicamente.
– Westcliff me ensinou a jogar. Ele é tão bom em bowls que geralmente fica de fora para dar chance aos outros competidores.
Elas se aproximaram do grupo de cadeiras, onde Westcliff estava sentado com Evie, lorde St.
Vincent e os Craddocks, um general de divisão aposentado e sua esposa. Daisy foi na direção de uma cadeira extra, mas Lillian a empurrou para a pista de grama.
– Vá – ordenou-lhe no mesmo tom que alguém usaria para mandar um cão buscar um graveto.
Suspirando, Daisy avançou penosamente para a pista de grama, pensando apenas em seu romance inacabado. Ela havia encontrado pelo menos três dos cavalheiros em ocasiões anteriores. Na verdade, nenhum deles era um mau candidato. Havia o Sr. Hollingberry, um homem na casa dos 30, gorducho e com bochechas redondas. E o Sr. Mardling, com um corpo atlético, fartos cabelos louros cacheados e olhos verdes.
Havia dois homens que ela nunca vira em Stony Cross, o Sr. Alan Rickett, que parecia do tipo estudioso com seus óculos e seu casaco ligeiramente amassado... e lorde Llandrindon, um homem bonito de cabelos escuros e altura mediana.
Llandrindon se aproximou de Daisy, oferecendo-se para lhe explicar as regras do jogo. Daisy tentou não olhar para o Sr. Swift, que estava cercado de outras mulheres. Elas estavam rindo e flertando, pedindo-lhe conselhos sobre como segurar a bola e quantos passos dar antes de lançá-la na pista. Swift pareceu não notar Daisy. No entanto, quando ela se virou para pegar uma bola de madeira de uma pilha no chão, sentiu um formigamento na nuca e soube que Swift estava olhando para ela.
Daisy se arrependeu de ter lhe pedido para ajudá-la com o ganso aprisionado. O episódio desencadeara algo que estava além de seu controle, uma sensação perturbadora da qual não conseguia se livrar. Pare de ser ridícula, disse para si mesma. Comece a jogar. E se forçou a ouvir atentamente os conselhos de lorde Llandrindon sobre a estratégia do jogo.
Observando a ação no gramado, Westcliff comentou em voz baixa:
– Pelo visto ela está se dando bem com Llandrindon. E ele é uma das possibilidades mais promissoras. Tem a idade certa e é bem educado.
Lillian olhou com curiosidade para o distante Llandrindon. Ele tinha até mesmo a altura certa, não sendo alto demais para Daisy, que detestava quando as pessoas eram muito mais altas que ela.
– Ele tem um nome estranho – pensou Lillian em voz alta. – De onde é?
– Thurso – respondeu lorde St. Vincent, que estava sentado do outro lado de Evie.
Havia uma desconfortável trégua entre Lillian e St. Vincent depois de muitos conflitos passados. Embora ela nunca fosse realmente gostar dele, decidira com praticidade que St.
Vincent teria de ser tolerado, já que era amigo de Westcliff há anos.
Lillian sabia que o marido terminaria a amizade com ele se ela exigisse, mas o amava demais para lhe pedir isso. E St. Vincent era bom para Marcus. Com sua inteligência ajudava a equilibrar um pouco a vida sobrecarregada dele. Marcus, um dos homens mais poderosos da Inglaterra, precisava muito de pessoas que não o levassem excessivamente a sério.
Outro ponto a favor de St. Vincent era que ele parecia ser um bom marido para Evie. Na verdade, parecia adorá-la. Nunca alguém pensaria em vê-los unidos – a tímida Evie e o libertino St. Vincent. Contudo, eles haviam desenvolvido uma ligação singular.
St. Vincent era seguro de si e sofisticado, possuía uma beleza masculina tão deslumbrante que às vezes as pessoas prendiam a respiração ao olhá-lo. Mas bastava uma palavra de Evie para o marido vir correndo. Embora seu relacionamento fosse mais discreto e menos expansivo do que o dos Hunts ou Westcliffs, havia uma intensidade apaixonada e misteriosa entre eles.
E desde que Evie fosse feliz, Lillian seria cordial com St. Vincent.
– Thurso – repetiu Lillian desconfiada, olhando de St. Vincent para seu marido.
– Isso não me parece inglês.
Os dois homens se entreolharam e Marcus respondeu calmamente:
– Na verdade, Thurso fica na Escócia.
Lillian apertou os olhos.
– Llandrindon é escocês? Mas ele não tem sotaque.
– Ele passou a maior parte de seus anos de formação em internatos e depois em Oxford –
explicou St. Vincent.
– Hummm. – Lillian tinha pouco conhecimento da geografia escocesa e nunca ouvira falar em Thurso. – Onde fica exatamente? Logo depois da fronteira?
Westcliff não conseguiu encará-la.
– Um pouco mais ao norte. Perto das ilhas Orkney.
– No lado norte do continente? – Lillian não podia acreditar em seus ouvidos. Teve de se esforçar muito para reduzir sua voz a um sussurro furioso. – Por que não poupamos tempo e banimos logo Daisy para a Sibéria? Provavelmente seria mais quente! Meu Deus, como vocês dois puderam achar Llandrindon um pretendente adequado?
– Eu tive de incluí-lo como candidato – protestou St. Vincent. – Ele possui três propriedades e excelente linhagem. Sempre que vai ao clube, meus lucros noturnos aumentam em pelo menos 5 mil libras.
– Então ele é perdulário – disse Lillian sombriamente.
– Isso o torna ainda mais adequado para Daisy – disse St. Vincent. – Algum dia ele precisará do dinheiro de sua família.
– Não importa quanto seja adequado, o objetivo é manter minha irmã neste país. Com que frequência poderei ver Daisy se ela estiver na maldita Escócia?
– A Escócia ainda é mais perto do que a América do Norte – salientou Westcliff em um tom prático.
Lillian se virou para Evie na esperança de torná-la sua aliada.
– Evie, diga alguma coisa!
– Não importa de onde lorde Llandrindon seja. – Evie estendeu a mão para soltar gentilmente uma mecha de cabelos enroscada no brinco de Lillian. – Daisy não se casará com ele.
– Por que acha isso? – perguntou Lillian.
Evie sorriu.
– Ah... é só um pressentimento.
Em seu desejo de terminar o jogo e voltar ao seu livro, Daisy se esforçara ao máximo para aprendê-lo rápido. O primeiro jogador rolou a bola branca, a menor, até o fim da pista sem que caísse na valeta. O objetivo era rolar três bolas de madeira até que parassem o mais perto possível da menor.
A única parte difícil era que as bolas de madeira eram propositalmente um pouco achatadas de um lado, de modo que nunca rolavam em linha reta. Daisy logo aprendeu a compensar essa assimetria lançando-as um pouco mais para a direita ou esquerda, conforme o necessário. Era uma pista rápida de grama curta sobre solo compactado, o que era bom porque Daisy tinha pressa em terminar e voltar a Honoria e ao fantasma.
Como havia um número igual de mulheres e homens, os jogadores foram divididos em duplas. Daisy fez par com Llandrindon, um exímio jogador.
– Saiu-se bastante bem, Srta. Bowman – exclamou ele. – Tem certeza de que nunca jogou?
– Nunca – respondeu Daisy alegremente. Pegando uma bola de madeira, ela virou o lado achatado para a direita. – Devem ser suas hábeis instruções, milorde. – Deu dois passos na direção da linha de partida, retrocedeu e soltou a bola em um hábil movimento giratório. A bola bateu em uma das bolas dos jogadores oponentes, tirando-a do caminho, e acabou a exatamente 5
centímetros da bola menor. Eles venceram a partida.
– Muito bem – disse o Sr. Rickett, parando para polir seus óculos. Ele os pôs de volta, sorriu para Daisy e acrescentou: – Move-se com muita graça, Srta. Bowman. É um prazer testemunhar sua destreza.
– Isso não tem nada a ver com destreza – respondeu Daisy, modesta. – Temo que seja sorte de principiante.
Preocupada, Lady Miranda, uma loura esguia com pele de porcelana, observava suas mãos delicadas.
– Acho que quebrei uma unha – anunciou.
– Deixe-me conduzi-la a uma cadeira – disse prontamente Rickett, como se ela tivesse quebrado um braço.
Com tristeza, Daisy concluiu que deveria ter perdido o jogo, porque assim não teria de jogar outra partida. Mas era injusto com um companheiro de equipe perder de propósito. E lorde Llandrindon parecia encantado com o sucesso deles.
– Agora – disse Llandrindon – Vamos ver quem enfrentaremos na última partida.
Eles observaram a partida entre as duas equipes restantes: Sr. Swift e Srta. Leighton contra Sr. Mardling e Srta. Higginson. O Sr. Mardling era um jogador instável, fazendo alguns lançamentos brilhantes e outros péssimos, enquanto a Srta. Higginson era muito mais constante.
Cassandra Leighton era irremediavelmente ruim e se divertia muito com isso, rindo sem parar durante o jogo inteiro. Aquele riso contínuo era muito irritante, mas não parecia incomodar Matthew Swift.
Swift era um jogador agressivo e tático, pensando cuidadosamente em cada jogada e exibindo movimentos ágeis. Daisy notou que ele não tinha nenhum escrúpulo em afastar outras bolas do caminho ou mover a bola menor em prejuízo dos oponentes.
– Um jogador formidável – comentou lorde Llandrindon para Daisy em voz baixa. – Acha que podemos vencê-lo?
De repente Daisy se esqueceu totalmente do romance que a esperava dentro da mansão. A perspectiva de jogar contra Matthew Swift a encheu de ansiedade.
– Não sei. Mas podemos tentar, não é?
Llandrindon riu, satisfeito.
– Sem dúvida.
Swift e a Srta. Leighton venceram a partida e os outros saíram do gramado com exclamações amigáveis. Os quatro jogadores restantes juntaram as bolas e voltaram à linha de partida. Cada equipe teria direito a quatro bolas no total, dois lançamentos por jogador.
Quando Daisy se virou para Matthew Swift, ele a olhou pela primeira vez desde que ela chegara ao gramado. Aquele olhar, direto e desafiador, fez o coração dela bater forte. Os cabelos desgrenhados de Swift lhe caíam sobre a testa e a pele bronzeada brilhava com um leve suor.
– Vamos tirar a sorte com uma moeda para ver quem começa – sugeriu lorde Llandrindon.
Swift assentiu com a cabeça, desviando seu olhar de Daisy.
Cassandra Leighton deu um gritinho de prazer quando Swift e ela ganharam na moeda. Ele lançou habilmente a bola branca, rolando-a para uma posição perfeita no gramado. A Srta.
Leighton pegou uma bola e a segurou junto ao peito, algo que Daisy suspeitou ser uma tentativa de atrair a atenção para seus generosos seios.
– Preciso de seus conselhos, Sr. Swift – disse ela com um olhar desamparado. – Devo lançar a bola com o lado achatado virado para a direita ou para a esquerda?
Swift se aproximou dela, reposicionando a bola em suas mãos. A Srta. Leighton irradiava prazer com a atenção recebida. Ele murmurou alguns conselhos, indicando o melhor caminho para a bola enquanto a Srta. Leighton se inclinava mais para perto. Daisy sentiu a irritação tomar conta de seu peito.
Finalmente Swift recuou. A Srta. Leighton se moveu para a frente com alguns passos graciosos, fazendo a bola voar. Entretanto, usou de pouca força e a bola rolou até parar bem no meio da pista de grama. O resto do jogo seria bem mais difícil com aquela bola no caminho a menos que alguém se dispusesse a desperdiçar um de seus lançamentos para afastá-la.
– Inferno – murmurou Daisy para si mesma.
A Srta. Leighton quase morreu de rir.
– Ai, meu Deus! Estraguei terrivelmente as coisas, não é?
– De modo algum – disse Swift calmamente. – Não tem graça se não for um desafio.
Daisy se perguntou por que ele estava sendo tão gentil com a Srta. Leighton. Nunca teria pensado que era o tipo de homem que se sentia atraído por mulheres tolas.
– Sua vez – disse lorde Llandrindon entregando uma bola para Daisy.
Ela curvou os dedos ao redor da superfície arranhada da bola de madeira e a virou até senti-la na posição correta em suas mãos. Olhando para a bola branca distante, visualizou o caminho que queria que sua bola seguisse. Três passos, um rápido balanço de braço e um impulso para a frente. A bola cruzou o gramado evitando a bola da Srta. Leighton e no último segundo girou, parando exatamente na frente da bola branca.
– Brilhante! – exclamou Llandrindon, enquanto os espectadores davam vivas e aplaudiam.
Daisy olhou de relance para Matthew Swift. Ele a observava com um leve sorriso. O tempo pareceu parar naquele instante. Nunca um homem a olhara daquela maneira.
– Fez isso de propósito? – perguntou-lhe Swift com suavidade. – Ou foi um golpe de sorte?
– De propósito – respondeu Daisy.
– Duvido.
Daisy se enfureceu.
– Por quê?
– Porque nenhum principiante poderia planejar e fazer um lançamento como esse.
– Está pondo em dúvida minha honestidade, Sr. Swift? – Sem esperar pela resposta dele, Daisy chamou a irmã, que os observava de sua cadeira. – Lillian, eu já joguei bowls?
– Não – foi a resposta enfática de Lillian.
Daisy se virou para Swift com um olhar desafiador.
– Para fazer aquela jogada – disse Swift –, teria que calcular a velocidade, o ângulo necessário para compensar a assimetria da bola e o ponto de desaceleração em que giraria. E
também levar em consideração a possibilidade de um vento contrário. Além de precisar de experiência para conseguir fazer isso.
– É assim que o senhor joga? – perguntou Daisy alegremente. – Eu só visualizo para onde quero que a bola vá e depois a lanço.
– Sorte e intuição? – Ele lhe lançou um olhar de superioridade. – Não se pode ganhar um jogo assim.
Como resposta, Daisy recuou e cruzou os braços.
– Sua vez – disse.
Swift se abaixou e pegou uma bola. Ajustou os dedos ao seu redor, andou até a linha de partida e contemplou a pista de grama. Apesar de irritada, Daisy sentiu uma pontada de prazer ao observá-lo. Quando ele adquirira aquela influência física mortificante sobre ela? A visão de Swift, o modo como ele se movia, a enchia de uma emoção constrangedora. Swift soltou a bola em um forte impulso. A bola correu obedientemente pela pista, reproduzindo com perfeição o lançamento de Daisy, embora de forma mais calculada, atingindo a bola de Daisy e a enviando para fora da pista, então ocupou seu lugar bem na frente da bola menor.
– Ele mandou a minha bola para a valeta! – protestou Daisy. – Isso é legal?
– Ah, sim – disse lorde Llandrindon. – Um pouco cruel, mas perfeitamente legal. Chamam isso de “bola morta”.
– Minha bola está morta? – perguntou Daisy indignada.
Swift retribuiu a cara feia dela com um olhar implacável.
– “Só podemos injuriar alguém se não temermos sua vingança.”
– Só mesmo o senhor para citar Maquiavel em um jogo de bowls – disse Daisy cerrando os dentes.
– Perdão – disse lorde Llandrindon polidamente –, mas acho que é a minha vez.
Vendo que nenhum deles prestava atenção, Llandrindon deu de ombros e foi para a linha de partida. Sua bola correu pelo gramado e parou logo depois da bola menor.
– Eu sempre jogo para ganhar – disse Swift para Daisy.
– Meu Deus! – disse Daisy exasperada. – O senhor soa exatamente como meu pai. Já pensou na possibilidade de algumas pessoas jogarem apenas por diversão? Como um passatempo agradável? Ou tudo tem de ser um confronto de vida ou morte?
– Não faz sentido jogar se não for para ganhar.
Percebendo que perdera totalmente a atenção de Swift, Cassandra Leighton tentou intervir.
– Acho que é a minha vez, Sr. Swift. Poderia fazer a gentileza de buscar uma bola para mim?
Swift obedeceu, mal olhando para ela. Sua atenção estava voltada para o rosto pequeno e tenso de Daisy.
– Aqui – disse ele bruscamente, pondo a bola nas mãos da Srta. Leighton.
– Talvez possa me aconselhar... – começou a Srta. Leighton, mas sua voz foi sumindo enquanto Swift e Daisy continuavam a brigar.
– Certo, Sr. Swift – disse Daisy friamente. – Se não consegue apreciar um simples jogo de bowls sem transformá-lo em uma guerra, terá uma guerra. Jogaremos por pontos. É bom que comece a temer pela vingança.
Ela não saberia dizer quem se moveu para a frente primeiro, mas subitamente eles estavam muito próximos, com a cabeça de Swift inclinada sobre a dela.
– Não pode me vencer – disse Swift em uma voz baixa. – É uma principiante e, além disso, uma mulher. Não seria justo a menos que eu ficasse em desvantagem.
– Sua companheira de equipe é a Srta. Leighton – sussurrou Daisy. – Na minha opinião, isso é desvantagem suficiente. E está insinuando que as mulheres não jogam bowls tão bem quanto os homens?
– Não. Estou afirmando.
Daisy ficou indignada, com um furioso desejo de derrubá-lo no chão.
– Guerra – repetiu, voltando a passos largos para seu lado do gramado.
Anos depois, aquela ainda seria lembrada como a partida de bowls mais feroz vista em Stony Cross. Estendeu-se para trinta pontos, depois cinquenta, e então Daisy perdeu as contas. Eles discutiram por cada centímetro de gramado e cada regra do jogo. Ponderaram sobre cada lançamento como se o destino das nações dependesse disso. E, acima de tudo, dedicaram-se a enviar as bolas um do outro para a valeta.
– Bola morta! – vociferou Daisy após fazer um lançamento perfeito que golpeou a bola de Swift para fora do gramado.
– Talvez devesse ser lembrada, Srta. Bowman – disse Swift –, de que o objetivo do jogo não é me manter fora da pista, mas posicionar sua bola o mais perto que puder da bola menor.
– Isso será impossível enquanto continuar a tirar as malditas bolas do caminho!
Daisy viu a Srta. Leighton ficar boquiaberta à sua linguagem. Essa não era realmente ela.
Daisy nunca praguejava, mas as atuais circunstâncias não lhe permitiam manter a cabeça fria.
– Vou parar de tirar suas bolas do caminho – propôs Swift –, se parar de tirar as minhas.
Daisy refletiu sobre a proposta por meio segundo. Mas infelizmente era muito, muito mais divertido enviar as bolas para a valeta.
– Nem por todo o chá da China, Sr. Swift.
– Muito bem.
Pegando uma bola surrada, Swift a lançou com tanta força que atingiu violentamente a bola de Daisy, produzindo um estalo ensurdecedor. Daisy ficou boquiaberta ao ver as metades de sua bola caindo na valeta.
– O senhor a quebrou! – exclamou, aproximando-se de Swift com os punhos fechados. – E
não estava na sua vez de jogar! Estava na vez da Srta. Leighton, seu desgraçado insensível!
– Ah, não – disse a Srta. Leighton constrangida. – Por mim tudo bem deixar o Sr. Swift jogar em meu lugar... Ele é muito melhor no jogo do que...
Ela se calou ao perceber que ninguém a estava ouvindo.
– Sua vez – disse Swift para lorde Llandrindon, que parecia perplexo com o novo nível de ferocidade do jogo.
– Ah, não, não é! – Daisy arrancou a bola das mãos de Llandrindon. – Ele é cavalheiro demais para golpear sua bola. Mas eu não sou.
– Não – concordou Swift. – A senhorita definitivamente não é mesmo um cavalheiro.
Daisy andou a passos largos até a linha de partida, recuou e fez o arremesso com toda a sua força. A bola golpeou a de Swift para a beira do gramado, de onde rolou vacilantemente até cair na valeta. Daisy lançou um olhar vingativo para Swift e ele reagiu com um zombeteiro comprimento com a cabeça.
– Posso dizer que seu desempenho é excepcional, Srta. Bowman – observou Llandrindon. –
Nunca vi uma principiante se sair tão bem. Como consegue arremessar sempre com tanta perfeição?
– “Onde há uma vontade forte, não pode haver grandes dificuldades” – respondeu ela, e viu a linha do queixo de Swift se enrijecer com um súbito sorriso quando ele reconheceu a citação de Maquiavel.
O jogo continuou. E continuou. A tarde deu lugar ao início da noite. Pouco a pouco, Daisy se deu conta de que lorde Llandrindon, a Srta. Leighton e a maioria dos espectadores haviam se retirado. Estava claro que lorde Westcliff gostaria de fazer o mesmo, mas Daisy e Swift ficavam lhe pedindo para arbitrar ou fazer medições porque só confiavam no julgamento dele.
Uma hora se passou, e mais outra. Eles estavam entretidos demais no jogo para pensar em fome, sede ou cansaço. Daisy não soube em que momento a competitividade se transformou em admiração pelas habilidades um do outro. Quando Swift a cumprimentou por um lançamento perfeito ou quando ela se viu apreciando a visão dele fazendo silenciosamente cálculos, o modo como apertava os olhos e inclinava a cabeça um pouco para o lado... ficou fascinada. Em raras ocasiões a vida real de Daisy era mais divertida do que a vida de fantasia. Mas essa era uma delas.
– Crianças. – A voz sarcástica de Westcliff fez ambos o fitarem. Ele estava se levantando de sua cadeira e esticando seus músculos dormentes. – Acho que já basta para mim. Podem continuar a jogar, mas peço permissão para me retirar.
– Mas quem será o juiz? – protestou Daisy.
– Já que ninguém marca a pontuação há pelo menos meia hora – disse o conde secamente –, não há mais necessidade de meu julgamento.
– Sim, há – argumentou Daisy, e se virou para Swift. – Qual é o placar?
– Eu não sei.
Quando os olhares deles se encontraram, Daisy mal conseguiu conter um súbito riso de embaraço. Houve um brilho de diversão nos olhos de Swift.
– Acho que a senhorita ganhou.
– Ah, não seja condescendente! O senhor ganhou. Posso aceitar uma derrota. Faz parte do jogo.
– Não estou sendo condescendente. Estivemos empatados por no mínimo... – Swift tirou um relógio do bolso de seu colete – Duas horas.
– O que significa que provavelmente manteve sua liderança anterior.
– Mas a senhorita acabou com ela na terceira rodada...
– Ah, caramba! – A voz de Lillian foi ouvida a distância. Ela parecia bastante irritada. Havia entrado na mansão para tirar um cochilo e saído para encontrá-los ainda na pista de grama. –
Vocês brigaram a tarde toda como um par de furões e agora estão brigando por educação? Se ninguém puser um fim a isso vão brigar aqui fora até meia-noite. Daisy, você está coberta de pó e seus cabelos parecem um ninho de pássaro. Entre e vá se arrumar. Agora!
– Não precisa gritar – respondeu Daisy brandamente, seguindo sua irmã para dentro da mansão. Ela lançou um olhar por cima de seu ombro para Matthew Swift... um olhar amigável que nunca lhe lançara antes, e depois apertou seu passo.
Swift começou a recolher as bolas de madeira.
– Pode deixar – disse Westcliff. Os criados vão pôr as coisas em ordem. É melhor ir se preparar para o jantar, que começará daqui a cerca de uma hora.
Obedientemente, Matthew deixou cair as bolas e foi na direção da casa com Westcliff. Ele observou o pequeno corpo silfídico de Daisy até ela desaparecer de vista.
Westcliff não pôde deixar de notar o olhar fascinado de Matthew.
– Tem um modo único de cortejar – comentou. – Eu não teria pensado que vencer Daisy em jogos de gramado despertaria o interesse dela, mas parece que isso funcionou.
Matthew olhou para o chão diante de seus pés, tentando manter seu tom calmo e despreocupado.
– Eu não estou cortejando a Srta. Bowman.
– Então parece que interpretei errado sua aparente paixão por bowls.
Matthew lhe lançou um olhar defensivo.
– Devo admitir que a acho divertida. Mas isso não significa que quero me casar com ela.
– Nesse sentido as irmãs Bowman são um pouco perigosas. Quando uma delas atrai seu interesse, não há volta. Por mais que sejam exasperantes, em algum momento o senhor desejará vê-la de novo. Como a progressão de uma doença incurável, isso se espalha de um órgão para outro. A ânsia começa. Todas as outras mulheres parecem insípidas e banais comparadas com ela. Você a deseja até achar que vai enlouquecer. Não consegue parar de pensar...
– Não sei do que está falando – interrompeu-o Matthew, empalidecendo.
Ele não estava prestes a sucumbir a uma doença incurável. Um homem tinha escolhas na vida. E não importava no que Westcliff acreditava, isso não era nada além de um desejo físico.
Um desejo profano, visceral e enlouquecedor... mas que podia ser combatido com pura força de vontade.
– Se é o que diz ... – comentou Westcliff, sem parecer convencido.
CAPÍTULO 6
Olhando para o espelho sobre a cômoda de cerejeira, Matthew deu um nó em sua gravata branca engomada. Estava com fome, mas a ideia de descer para o longo jantar formal o enchia de inquietação. Sentia-se como se estivesse andando sobre uma prancha estreita suspensa a uma grande altura. Um passo em falso e seria seu fim.
Nunca deveria ter se permitido aceitar o desafio de Daisy, nunca deveria ter jogado aquele maldito jogo durante horas.
Mas Daisy estava tão adorável que ele não conseguiu resistir àquela tentação. Ela era a mulher mais atraente e provocadora que já conhecera. Tempestade e arco-íris unidos em um pequeno pacote. Maldição, como queria dormir com Daisy! Surpreendia-o como Llandrindon ou qualquer outro homem podia agir racionalmente na presença dela.
Estava na hora de assumir o controle da situação. Faria o que fosse preciso para empurrá-la para Llandrindon. Comparado com os outros homens solteiros presentes, o lorde escocês era a melhor escolha. Llandrindon e Daisy teriam uma vida calma e organizada, e embora fosse possível que Llandrindon ocasionalmente desse uma escapada, como a maioria dos nobres fazia.
Daisy estaria ocupada demais com sua família e seus livros para perceber. Caso percebesse, aprenderia a fazer vista grossa às escapadas do marido e a se refugiar em seus devaneios.
E Llandrindon nunca apreciaria o presente inimaginável de tê-la em sua vida.
Melancólico, Matthew desceu a escada e se juntou à multidão elegante que esperava para seguir em procissão até a sala de jantar. As mulheres usavam vestidos coloridos entremeados de bordados, contas e renda. Os homens usavam trajes pretos sóbrios, sua simplicidade servindo como pano de fundo para destacar as mulheres.
– Swift – disse Thomas Bowman. – Venha cá. Quero que conte a esses cavalheiros as últimas estimativas de produção.
Na opinião de Bowman, não havia momentos errados para discutir negócios.
Obedientemente, Matthew se juntou à meia dúzia de homens e discursou sobre os números que seu patrão queria.
Uma das habilidades mais convenientes de Matthew era memorizar longas listas de números.
Na matemática, ao contrário do que aconteceria na vida, sempre havia uma solução, uma resposta definitiva. No entanto, enquanto falava, Matthew avistou Daisy e as amigas em pé com Lillian, e sua linha de raciocínio foi interrompida.
Daisy estava usando um vestido cor de jasmim ajustado na fina cintura. O corpete de cetim brilhante elevava as pequenas e bonitas formas de seus seios. Fitas de cetim amarelo artisticamente trançadas mantinham o corpete no lugar. Os cabelos pretos estavam presos no alto da cabeça com alguns cachos caindo até o pescoço e os ombros. Ela era delicada e perfeita, como um enfeite de açúcar em uma bandeja de sobremesas que ninguém nunca deveria tocar.
Matthew teve vontade de puxar o corpete para baixo até os braços de Daisy ficarem presos por aquelas fitas de cetim. Roçar os lábios na pele clara e macia dela, encontrar os mamilos e fazê-la se contorcer...
– Mas realmente acha que há espaço para expansão do mercado? – ouviu o Sr. Mardling perguntar. – Afinal de contas, estamos falando de pessoas de classes inferiores. Não importa qual seja a nacionalidade delas, é fato que não gostam de se banhar com frequência.
Matthew voltou sua atenção para o cavalheiro alto e bem-vestido, cujo cabelo louro brilhava à luz dos candelabros. Antes de responder, lembrou-se de que provavelmente não havia nenhuma malícia intencional na pergunta. Os membros das classes privilegiadas frequentemente tinham ideias erradas sobre os pobres, isso quando se davam ao trabalho de pensar neles.
– Na verdade – respondeu Matthew –, os números indicam que o mercado crescerá cerca de 10% ao ano caso seja feita uma produção em massa de sabão a um preço acessível. Pessoas de todas as classes querem estar limpas, Sr. Mardling. O problema é que sabão de boa qualidade sempre foi um artigo de luxo e, portanto, difícil de se obter.
– Produção em massa – pensou Mardling em voz alta franzindo as sobrancelhas. – Há algo desagradável nessa expressão... Parece um modo de permitir às classes inferiores imitar as superiores.
Matthew olhou de relance para o círculo de homens, notando que o alto da cabeça de Bowman estava ficando vermelho – nunca um bom sinal – e Westcliff se mantinha em silêncio, seus olhos pretos indecifráveis.
– É exatamente isso, Sr. Mardling – disse Matthew seriamente. – A produção em massa de coisas como roupas e sabão dará aos pobres uma chance de viver com os mesmos padrões de saúde e dignidade que nós.
– Mas como saberemos quem é quem? – protestou Mardling.
Matthew lhe lançou um olhar indagador.
– Acho que não estou entendendo.
Llandrindon se juntou à discussão.
– Creio que Mardling está perguntando como se poderá distinguir uma vendedora de uma mulher rica se ambas estão limpas e vestidas de modo parecido. E se um cavalheiro não puder distingui-las pela aparência, como saberá como tratá-las?
Pasmado com o esnobismo da pergunta, Matthew pensou cuidadosamente em sua resposta.
– Sempre achei que todas as mulheres deveriam ser tratadas com respeito independentemente de sua posição social.
– Bem observado – disse Westcliff bruscamente quando Llandrindon abriu a boca para argumentar.
Ninguém queria contradizer o conde, mas Mardling insistiu:
– Westcliff, não vê nenhum mal em encorajar os pobres a ir além de sua posição social? Em lhes permitir fingir que não há nenhuma diferença entre eles e nós?
– O único mal que eu vejo – disse Westcliff calmamente – é desencorajar as pessoas que querem se superar por medo de perdermos nossa suposta superioridade.
Essa afirmação fez Matthew gostar ainda mais do conde.
Preocupado com a questão da hipotética vendedora, Llandrindon disse para Mardling:
– Não tenha medo, Mardling. Independentemente de como uma mulher se vista, um cavalheiro sempre encontrará as pistas que indicam sua verdadeira posição social. Uma dama sempre tem uma voz suave e bem modulada, enquanto uma vendedora fala em um tom estridente e com um sotaque vulgar.
– É claro – disse Mardling aliviado. Ele fingiu um leve estremecimento ao acrescentar: –
Uma vendedora bem-vestida falando como os londrinos da classe baixa é como unhas bem feitas sendo passadas em ardósia.
– Sim – disse Llandrindon com uma risada. – Ou como ver uma margarida comum no meio de um buquê de rosas.
O comentário foi impensado, é claro. Houve um súbito silêncio enquanto Llandrindon se dava conta de que inadvertidamente insultara a filha de Bowman, ou melhor, o nome dela, já que Daisy significava margarida em inglês.
– Uma flor versátil, a margarida – comentou Matthew, rompendo o silêncio. – Adorável em sua simplicidade. Sempre achei que ficava bem em qualquer tipo de arranjo floral.
Todo o grupo expressou concordância imediata.
– De fato.
– Exatamente.
Lorde Westcliff lançou um olhar aprovador para Matthew.
Pouco tempo depois, por planejamento prévio ou mudança de último minuto, Matthew descobriu que se sentaria à esquerda de Westcliff à mesa de jantar principal. Era óbvia a surpresa nos rostos de muitos convidados ao constatarem que um lugar de honra fora destinado a um jovem de posição insignificante.
Escondendo sua própria surpresa, Matthew viu que Thomas Bowman lhe sorria com um orgulho paternal... e Lillian lançava disfarçadamente um olhar furioso para o marido.
Depois de um jantar tranquilo, os convidados se dispersaram em vários grupos. Alguns homens foram tomar um pouco de vinho do Porto e fumar charutos no terraço dos fundos, algumas mulheres quiseram chá e outros convidados se dirigiram à sala de jogos para jogar e conversar.
Ao caminhar para o terraço, Matthew sentiu um tapinha em seu ombro. Olhou e viu os olhos travessos de Cassandra Leighton. Ela era uma criatura alegre cuja principal habilidade parecia ser a capacidade de atrair atenção para si mesma.
– Sr. Swift – disse ela –, insisto que se junte a nós. Não permitirei que recuse. Lady Miranda e eu planejamos alguns jogos que penso que achará muito divertidos. – Ela deu uma furtiva piscadela. – Nós planejamos tudo.
– Planejaram? – perguntou Matthew.
– Ah, sim. – Ela deu uma risadinha. – Decidimos ser um pouco malvadas esta noite.
Matthew nunca havia gostado de jogos de salão, que exigiam uma frivolidade que nunca conseguira ter. Além disso, era de conhecimento geral que na atmosfera permissiva da sociedade inglesa as prendas nesses jogos frequentemente envolviam truques e comportamentos escandalosos. Matthew tinha uma aversão inata a escândalo. Se algum dia se envolvesse em um, seria por um ótimo motivo. Não como resultado de algum jogo idiota.
Contudo, antes de responder, a visão periférica de Matthew detectou algo... um brilho amarelo. Era Daisy, com a mão pousada de leve no braço de lorde Llandrindon enquanto andavam pelo corredor que levava à sala de jogos.
A parte lógica da mente de Matthew disse que se Daisy iria se envolver em comportamento escandaloso com Llandrindon isso era problema dela. Mas uma parte mais profunda e primitiva de seu cérebro reagiu com uma possessividade que fez seus pés começarem a se mover.
– Ah, que bom! – trinou Cassandra Leighton, dando-lhe o braço. – Vamos nos divertir muito.
Foi uma nova e desagradável descoberta para Matthew constatar que um impulso primitivo podia subitamente assumir o controle de sua vida. Com o cenho franzido, ele prosseguiu com a Srta. Leighton desfiando uma meada de tolices.
Um grupo de homens e mulheres jovens estava reunido na sala, rindo e conversando. O ar estava carregado de expectativa. E havia um sentimento de malícia, como se alguns dos participantes tivessem sido avisados de que estavam prestes a participar de algo impróprio.
Matthew ficou perto da porta, seu olhar voltado para Daisy. Ela estava sentada perto da lareira com Llandrindon meio inclinado sobre o braço de sua cadeira.
– O primeiro jogo – disse Miranda com um sorriso – será uma rodada de “Animais”. Ela esperou uma onda de risadinhas passar antes de prosseguir. – Para os que não conhecem as regras, são bastante simples. Cada dama escolherá um parceiro e cada cavalheiro terá de imitar um animal: um cachorro, um porco, um burro e assim por diante. As damas serão retiradas da sala e terão os olhos vendados, e quando voltarem tentarão localizar seus parceiros. Os cavalheiros as ajudarão fazendo o som correto do animal. A última dama a encontrar seu parceiro terá de cumprir uma penalidade.
Matthew gemeu por dentro. Ele odiava jogos que só serviam para fazer os participantes de bobos. Como um homem que não gostava de ser constrangido, voluntariamente ou não, esse era o tipo de situação que ele teria feito tudo para evitar.
Olhando para Daisy, viu que ela não estava rindo como as outras mulheres. Em vez disso, parecia resoluta. Essa era sua tentativa de ser uma na multidão, comportar-se como as cabeças-ocas ao seu redor. Maldição. Era isso que se esperava das jovens em busca de maridos.
– Será meu parceiro, Sr. Swift – gritou a Srta. Leighton.
– Será uma honra – respondeu Matthew cortesmente e ela desatou a rir, como se ele tivesse dito algo muito engraçado. Matthew nunca havia conhecido uma mulher que risse de maneira tão boba. Temeu que ela tivesse convulsões se não parasse.
Um chapéu cheio de tiras de papel foi passado ao redor. Matthew pegou um e leu.
– Vaca – informou à Srta. Leighton friamente, e ela deu um risinho nervoso.
Sentindo-se como um idiota, Matthew ficou de lado enquanto a Srta. Leighton e todas as outras damas saíam da sala.
Os homens se posicionaram estrategicamente, rindo ao antecipar a diversão de terem mulheres com os olhos vendados esbarrando e tocando neles.
Alguns sons foram ouvidos na sala.
– Quá-quá!
– Miau!
– Croac!
Ondas de risos se seguiram. Quando as mulheres com os olhos vendados entraram na sala, os homens irromperam em gritos animais. O lugar pareceu um jardim zoológico com animais enfurecidos. Elas tentaram encontrar seus parceiros, esbarrando em homens que zurravam, piavam e bufavam.
Matthew rezava para que Westcliff, Hunt ou – Deus o livrasse – Bowman não entrassem na sala e o visse assim. Ele nunca se recuperaria disso. Sua dignidade sofreu um golpe mortal quando ele ouviu a voz de Cassandra Leighton.
– Onde está o Sr. Vaca?
Matthew deu um suspiro.
– Muu – disse ele carrancudamente.
A risada da Srta. Leighton rasgou o ar. Alguns grunhidos e grasnidos não planejados foram emitidos enquanto ela abria caminho na multidão.
– Ah, Sr. Vaca – gritou ela. – Preciso de ajuda!
Matthew franziu o cenho.
– Muu.
– Mais uma vez – trinou ela.
Foi uma sorte para Cassandra Leighton estar com os olhos vendados e não ver o olhar assassino de Matthew.
– Muu.
Risinhos, risinhos e mais risinhos. A Srta. Leighton se aproximou com os braços estendidos e os dedos se abrindo e fechando no ar. Ela o alcançou, suas mãos tateando a cintura dele e deslizando para baixo. Matthew lhe segurou os punhos e os puxou firmemente para cima.
– Encontrei o Sr. Vaca? – perguntou ela, inclinando-se para ele.
Matthew a empurrou de volta com uma firme cotovelada.
– Sim.
– Hurra! – gritou ela, tirando sua venda.
Outros casais também haviam se reunido, os animais aquietando-se um a um quando eram encontrados. Finalmente só restou um som... uma tentativa desajeitada de imitar a vibração de um inseto. Um gafanhoto? Um grilo?
Matthew esticou o pescoço para ver quem estava emitindo o som e quem era sua desafortunada parceira. Houve uma exclamação e risos amigáveis. A multidão se dividiu para revelar Daisy Bowman tirando sua venda enquanto lorde Llandrindon encolhia os ombros.
– Isso não é o barulho que um grilo faz – protestou Daisy, rindo e enrubescendo. – Parece que está pigarreando!
– Foi o melhor que pude fazer – disse Llandrindon.
Ah, meu Deus! Matthew fechou os olhos brevemente. Era Daisy.
Cassandra Leighton pareceu satisfeita.
– Que pena! – disse.
– Sem brigas – disse Lady Miranda alegremente, pondo-se entre Daisy e Llandrindon. – Tem de pagar a prenda, minha querida!
O sorriso de Daisy se tornou hesitante.
– Qual é?
– É simples – explicou Lady Miranda. – Deve ficar encostada na parede e tirar o nome de um dos cavalheiros de um chapéu. Se ele se recusar a beijá-la, continuará junto à parede tirando nomes até que alguém aceite sua oferta.
Daisy manteve o sorriso, embora seu rosto tivesse ficado branco e com duas marcas vermelhas nas bochechas.
Maldição, pensou Matthew ferozmente.
Esse era um sério dilema. O incidente daria início a boatos que poderiam produzir um escândalo. Não podia permitir isso. Pela família e pelo bem de Daisy. E o seu próprio... mas isso era algo em que não queria pensar.
Começou a andar automaticamente para a frente, mas a Srta. Leighton agarrou seus braços.
As longas unhas afundaram na manga do paletó.
– Não interfira – advertiu-lhe. – Quem aceita o jogo deve estar disposto a pagar a prenda!
Ela estava sorrindo, mas havia uma dureza em seus olhos da qual Matthew não gostou. Ela pretendia desfrutar de cada segundo da desgraça de Daisy.
As mulheres são criaturas perigosas.
Matthew olhou ao redor e viu a ansiedade nos rostos dos homens. Nenhum deles perderia uma oportunidade de beijar Daisy Bowman. Matthew teve vontade de bater com as cabeças deles umas contra as outras e arrastar Daisy para fora da sala. Em vez disso, só pôde observar lhe levarem o chapéu e ela procurar dentro com dedos hesitantes.
Daisy tirou uma tira de papel e a leu em silêncio franzindo suas sobrancelhas escuras. Houve um burburinho na sala, pessoas prendendo a respiração na expectativa... e então Daisy disse o nome sem erguer os olhos.
– Sr. Swift.
Ela devolveu o papel ao chapéu antes de o nome ser confirmado. Matthew sentiu seu coração bater violentamente, sem saber ao certo se a situação havia melhorado ou ficava cada vez pior.
– Isso é impossível – disse a Srta. Leighton, sibilando. – Não pode ter sido o senhor.
Ele a olhou distraidamente.
– Por que não?
– Porque não pus seu nome no chapéu.
A expressão de Matthew foi indecifrável.
– Obviamente alguém pôs – disse ele, livrando seu braço das garras dela.
Quando Matthew se aproximou de Daisy, houve um silêncio nervoso na sala e depois risos sufocados. Daisy controlou sua expressão, embora estivesse muito ruborizada. Ela se forçou a dar um sorriso despreocupado. Matthew viu a pulsação violenta em seu pescoço e desejou pôr a boca naquele ponto e acariciá-lo com a língua.
Parando na frente de Daisy, sustentou o olhar dela, tentando ler seus pensamentos. Qual deles estava no controle daquela situação? Obviamente ele... mas fora Daisy quem dissera seu nome.
Ela o escolhera. Por quê?
– Eu o ouvi durante o jogo – disse Daisy, tão baixo que ninguém mais pôde distinguir as palavras. – Parecia uma vaca com problemas digestivos.
– A julgar pelos resultados, minha vaca foi melhor do que o grilo de Llandrindon – salientou Matthew.
– Ele não soou nem um pouco como um grilo. Parecia que estava limpando catarro da garganta.
Matthew sufocou uma súbita risada. Ela estava tão irritada e adorável que isso foi tudo o que pôde fazer para não puxá-la para si.
– Vamos acabar com isso, está bem? – perguntou ela.
Ele desejou que Daisy não tivesse ficado tão vermelha. Sua pele clara deixava isso ainda mais aparente, destacando as bochechas que pareciam papoulas escarlates.
O grupo prendeu a respiração quando Matthew se aproximou dela. Daisy inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, com os lábios entreabertos. Matthew pegou sua mão, a levou aos próprios lábios e deu um beijo casto nos dedos dela.
Daisy abriu os olhos, parecendo atordoada.
Mais risos do grupo e algumas manifestações de desaprovação.
Depois de trocar algumas palavras bem-humoradas com alguns dos cavalheiros, Matthew se virou para Daisy e disse em um tom agradável, mas decidido.
– Tinha dito que queria ver sua irmã, Srta. Bowman. Permite-me acompanhá-la?
– Mas não podem ir embora! – exclamou Cassandra Leighton do fundo da sala. – Acabamos de começar!
– Não, obrigada – disse Daisy para Matthew. – Estou certa de que minha irmã pode esperar um pouco mais enquanto me divirto aqui.
Matthew lhe lançou um olhar duro e penetrante. Pela súbita mudança na expressão de Daisy, ela havia entendido. Estava lhe cobrando um favor. Venha comigo agora, dizia o olhar dele. Não discuta.
Também viu que Daisy desejava muito rejeitá-lo, mas seu senso de honra não lhe permitia isso. Uma dívida era uma dívida. Daisy engoliu em seco.
– Por outro lado... – Ela quase engastou com as palavras. – Realmente prometi tomar chá com minha irmã.
Matthew lhe ofereceu o braço.
– Ao seu dispor, Srta. Bowman.
Houve alguns protestos, mas o grupo já estava ocupado organizando outro jogo quando eles passaram pela porta. Só Deus sabia que pequenos escândalos estavam sendo tramados na sala.
Desde que não estivessem envolvidos, Matthew não dava a mínima para isso.
Daisy tirou sua mão do braço dele assim que entraram no corredor. Andaram vários metros e chegaram à porta aberta da biblioteca. Vendo que estava vazia, Daisy entrou sem dizer uma só palavra.
Matthew a acompanhou e fechou a porta para manter a privacidade. Isso não era adequado, mas tampouco era discutirem no corredor.
– Por que fez isso? – perguntou Daisy virando-se para ele.
– Tirá-la da sala? – Desconcertado, Matthew adotou um tom crítico. – Não devia estar ali, e sabe disso.
Daisy estava tão furiosa que seus olhos escuros pareciam faiscar.
– E onde devia estar, Sr. Swift? Lendo sozinha na biblioteca?
– Seria preferível a causar um escândalo.
– Não, não seria. Eu estava exatamente onde devia estar, fazendo exatamente o que todos os outros estavam fazendo, e tudo estava bem até o senhor estragar minha noite!
– Eu? – Matthew não podia acreditar em seus ouvidos. – Eu estraguei sua noite?
– Sim.
– Como?
Ela o olhou acusadoramente.
– Não me beijou.
– Eu... – Apanhado desprevenido, Matthew a olhou, perplexo. – Eu a beijei, sim.
– Na mão – disse Daisy desdenhosamente. – O que não significa absolutamente nada.
Matthew não soube ao certo como passou de uma virtuosa superioridade para um ofendido protesto.
– Deveria estar agradecida.
– Pelo quê?
– Não é óbvio? Salvei sua reputação.
– Se tivesse me beijado – retorquiu Daisy –, isso teria melhorado minha reputação. Mas me rejeitou publicamente, o que significa que agora Llandrindon, Mardling e todos os outros acham que há algo de errado comigo.
– Eu não a rejeitei!
– Pois foi o que pareceu, seu canalha!
– Eu não sou um canalha. Eu seria se a tivesse beijado em público. – Matthew fez uma pausa antes de acrescentar, confusa e irritadamente: – E não há nada de errado com a senhorita. Por que diabo diz isso?
– Ninguém quer me beijar.
Era demais. Daisy Bowman estava furiosa porque ele não havia feito aquilo que desejara e sonhara fazer durante sua vida inteira. Maldição, comportara-se honradamente. Em vez de apreciá-lo por isso, ela estava zangada.
– Sou assim tão indesejável? – queixava-se Daisy. – Isso teria sido tão desagradável?
Ele a queria havia tanto tempo! Mil vezes lembrara a si mesmo de todos os motivos pelos quais nunca a teria. E tinha sido muito mais fácil saber que ela o detestava e que não havia nenhum motivo para ter esperança. Mas a possibilidade de os sentimentos de Daisy terem mudado, de ela também querê-lo, o encheu de uma emoção vertiginosa.
Mais um minuto e ele perderia o controle.
– Não sei como as mulheres fazem para atrair os homens – dizia Daisy iradamente. – E
quando finalmente tive uma chance de adquirir um pouco de experiência, o senhor... – Ela se interrompeu e franziu as sobrancelhas ao ver o rosto dele. – Por que está me olhando assim?
– Como?
– Como se estivesse sentindo dor.
Dor. Sim. O tipo de dor que um homem sentia quando desejava uma mulher havia anos, estava sozinho com ela e tinha de suportar suas queixas de que não a beijara quando tudo o que ele queria era arrancar suas roupas e possuí-la bem ali no chão. Ela queria experiência? Matthew estava pronto para lhe dar a experiência de uma vida inteira.
Tentando se controlar, concentrou-se em respirar. Respirar. Mas isso só resultou em mais excitação. Sem se dar conta do que fazia, subitamente estava com as mãos em Daisy, logo abaixo dos braços. Daisy era leve e flexível, como uma gata... Poderia erguê-la facilmente, prendê-la contra a parede e...
Daisy arregalou seus olhos escuros.
– O que está fazendo?
– Quero que me responda a uma pergunta – conseguiu dizer Matthew. – Por que meu nome estava lá?
Emoções cruzaram o rosto dela em rápida sucessão: surpresa, culpa, vergonha. Cada centímetro de pele exposta ficou cor-de-rosa.
– Não sei do que está falando. Seu nome estava no papel. Não tive escolha além de...
– Está mentindo – disse Matthew laconicamente. Seu coração parou quando ela não respondeu. Não iria negar. O rubor de Daisy se tornou quase carmesim. – Meu nome não estava naquele papel. No entanto, a senhorita o disse. Por quê?
Ambos sabiam que só poderia haver um motivo. Ele fechou os olhos brevemente. Sua pulsação estava tão acelerada que fazia o sangue arder em suas veias.
Ouviu a voz hesitante de Daisy.
– Eu só queria saber como o senhor... o senhor...
Isso foi uma tentação ainda mais brutal. Matthew tentou soltá-la, mas não conseguia tirar as mãos das curvas delicadas sob o cetim amarelo. Era muito bom segurá-la. Ele olhou para a boca delicada, a sutil mas deliciosa reentrância no centro do lábio superior de Daisy. Um beijo, pensou desesperadamente. Certamente poderia ter ao menos isso. Mas quando começasse... não sabia se conseguiria parar.
– Daisy... – Ele tentou encontrar palavras para acalmar a situação, mas foi difícil falar com coerência. – Na primeira oportunidade, vou dizer para seu pai que não posso me casar com você em nenhuma circunstância.
Daisy continuava sem olhar para ele.
– Por que não disse imediatamente?
Porque queria que ela o notasse. Porque queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que aquilo com que sempre sonhara estava ao seu alcance.
– Queria irritá-la.
– Bem, conseguiu!
– Mas nunca considerei isso seriamente. Nunca poderia me casar com você.
– Porque sou feia – disse Daisy com tristeza.
– Não. Não é isso...
– Não sou desejável.
– Daisy, pare...
– Não valho nem um só beijo.
– Está bem – disparou Matthew, finalmente perdendo o controle de sua sanidade. –
Maldição, você venceu. Vou beijá-la.
– Por quê?
– Porque, se não a beijá-la, você nunca vai parar de reclamar disso.
– Agora é tarde demais! Deveria ter me beijado na sala, mas não beijou! Não vou me conformar com um prêmio de consolação medíocre.
– Medíocre? – Isso foi um erro. Matthew pôde ver que Daisy percebeu isso no instante em que o disse.
Ela acabara de selar seu destino.
– Eu quis dizer indiferente – corrigiu-se Daisy, tentando se desvencilhar dele. – É óbvio que não quer me beijar e portanto...
– Você disse medíocre. – Ele a empurrou com força contra a parede. – O que significa que agora eu tenho algo a provar.
– Não, não tem – apressou-se a dizer Daisy. – Realmente. Não tem...
Ela deu um gritinho quando Matthew pôs uma das mãos em sua nuca, e o som foi abafado quando puxou sua cabeça para a dele.
CAPÍTULO 7
Matthew soube que aquilo era um erro no instante em que os lábios deles se encontraram.
Porque nada poderia se igualar à perfeição de Daisy em seus braços. Ele estava arruinado pelo resto de sua vida. Que Deus o ajudasse!
A boca de Daisy era suave e quente como a luz do sol, como o fogo de uma lareira. Ela ofegou quando Matthew tocou seu lábio superior com a ponta da língua. Lentamente, pôs as mãos nos ombros dele e Matthew sentiu os dedos em sua nuca, deslizando para seus cabelos para impedi-lo de se afastar. Não havia a menor chance de isso acontecer. Nada poderia fazê-lo parar.
Seus dedos tremeram quando ele segurou a linha delicada do queixo de Daisy na palma da mão e ergueu gentilmente o rosto dela. O gosto da boca de Daisy despertou nele um desejo que ameaçava se tornar incontrolável... Matthew introduziu a língua mais fundo e com mais força, até Daisy começar a respirar em longos suspiros, encaixando seu corpo no dele.
Ele a deixou sentir quanto era forte, com um braço musculoso nas costas de Daisy e os pés afastados para segurá-la entre suas poderosas coxas. Ela estava com o tronco contido em um corpete acolchoado e rendado. Ele foi quase dominado por um desejo selvagem de soltar as fitas e encontrar a carne macia por baixo.
Em vez disso, afundou os dedos nos cabelos presos de Daisy e os puxou para trás até sustentar-lhe o peso da cabeça e expor a pele branca do pescoço. Procurou a pulsação que vira antes, roçando os lábios ao longo do caminho secreto de nervos sob a pele. Quando chegou a um ponto sensível, sentiu na boca a vibração do gemido sufocado de Daisy.
Era assim que seria fazer amor com ela, pensou, deslumbrado... O leve tremor de Daisy quando a penetrasse, o delicado caos da respiração e os gemidos sufocados na garganta. A pele feminina quente cheirava a chá e talco, com um traço de sal. Ele encontrou novamente a boca e a abriu, explorando a umidade sedosa, o calor e um gosto de intimidade que o deixou louco.
Ela deveria ter lutado, mas só houve rendição e mais suavidade, fazendo-o ultrapassar todos os limites. Matthew começou a lhe possuir a boca com beijos profundos, puxando o corpo dela contra o seu. Sentiu-a abrir as pernas sob o vestido e encaixou sua coxa perfeitamente entre elas.
Daisy se contorceu com um desejo inocente, o rosto adquirindo a cor das papoulas do fim de verão. Se tivesse entendido exatamente o que ele queria, teria feito mais do que corar. Teria desmaiado ali mesmo.
Matthew afastou sua boca e pressionou o maxilar na lateral da cabeça de Daisy.
– Creio – disse roucamente – que isso põe um fim à questão de se a acho desejável ou não.
Daisy reuniu forças para se desvencilhar e se afastar dele. Ficou olhando cegamente para as lombadas de couro dos livros à sua frente, suas pequenas mãos segurando a prateleira de mogno como se ela tentasse controlar o ritmo turbulento de sua respiração.
Matthew ficou atrás dela, tentando cobrir-lhe as mãos com as suas. Os ombros estreitos de Daisy se enrijeceram contra o peito masculino enquanto ele procurava a borda macia da orelha da jovem.
– Não – disse Daisy com uma voz grave, tentando recuar.
Matthew não conseguia parar. Seguindo o movimento da cabeça de Daisy, esfregou o nariz na leve penugem da curva do pescoço dela. Soltou uma das mãos de Daisy para tocar a pele exposta pelo corpete, logo acima da elevação dos seios. A mão livre de Daisy pressionou-lhe os dedos contra o peito, como se fossem necessários os esforços combinados de ambos para conter os batimentos daquele imprudente coração.
Matthew contraiu todos os seus músculos para conter o impulso de agarrá-la e levá-la para o canapé. Queria fazer amor com Daisy, enterrar-se nela até todas as lembranças amargas se dissolverem em sua doçura. Mas aquela chance lhe fora roubada muito antes de se conhecerem.
Não tinha nada a lhe oferecer. Sua vida, seu nome, sua identidade... Tudo isso era uma ilusão. Não era o homem que Daisy pensava que ele fosse. Era só uma questão de tempo até ela descobrir.
Para seu desgosto, percebeu que lhe agarrara inconscientemente as saias como se para erguê-las. O cetim deslizava em ondas brilhantes entre seus dedos. Pensou no corpo de Daisy envolto em todas aquelas camadas e rendas e no prazer profano que seria desnudá-la. Mapear-lhe o corpo com a boca e os dedos, descobrindo cada curva e cavidade, cada lugar oculto.
Observando sua mão como se pertencesse a outra pessoa, Matthew soltou o cetim amarelo.
Virou-a de frente para si e olhou bem no fundo dos olhos castanhos de Daisy.
– Matthew – disse ela sufocadamente.
Era a primeira vez que o chamava por seu primeiro nome. Ele tentou esconder a intensidade de sua reação.
– Sim?
– O modo como se expressou antes... Não disse que não se casará comigo em nenhuma circunstância... disse que não pode se casar. Por quê?
– Como isso não vai acontecer, os motivos são irrelevantes.
Daisy fechou a cara, franzindo os lábios de um modo que o fez desejar beijá-los. Ele se moveu para o lado para deixá-la passar. Obedecendo, Daisy começou a andar.
Mas quando seu braço esbarrou no dele, Matthew a segurou pelo pulso e subitamente a tomou novamente nos braços. Não resistiu a beijá-la de novo, como se ela lhe pertencesse.
É isto que sinto por você, disse-lhe com beijos profundos e ardentes. É você quem eu quero.
Ele sentiu a tensão de Daisy, saboreou sua excitação e percebeu que poderia levá-la ao clímax ali, naquele instante, se pusesse a mão sob seu vestido e...
Não, disse ferozmente para si mesmo. Isso já tinha ido longe demais. Percebendo quanto estava perto de perder o controle, afastou sua boca com um gemido e empurrou Daisy para longe.
Imediatamente Daisy saiu correndo da biblioteca, a bainha de seu vestido amarelo roçando de leve o batente da porta antes de desaparecer como o último raio de sol no horizonte. E Matthew se perguntou como algum dia poderia voltar a interagir com ela de um modo normal.
Era uma tradição antiga a dona de uma propriedade no campo agir como uma “senhora generosa” com arrendatários e aldeões. Isso significava ajudar, aconselhar e doar itens necessários, como comida e roupas para os mais necessitados. Até então Lillian cumprira de bom grado esses deveres, mas agora seu estado tornava isso impossível.
E estava fora de questão pedir a Mercedes para substituí-la. Mercedes era rude e impaciente demais. Não gostava de ficar perto de gente doente. Deixava os idosos desconfortáveis e algo em seu tom sempre fazia os bebês chorarem.
Portanto, Daisy era a escolha lógica. Ela não tinha nada contra fazer essas visitas. Gostava de sair sozinha na carroça puxada por um pônei, entregar pacotes e potes, ler para os que não tinham boa visão e ouvir novidades dos aldeões. Melhor ainda, a natureza informal dessas saídas significa não ter de usar roupas da moda ou se preocupar com etiqueta.
Havia outro motivo pelo qual Daisy ficava feliz em ir à vila... isso a mantinha ocupada e longe da mansão, permitindo-lhe concentrar seus pensamentos em algo além de Matthew Swift.
Três dias haviam se passado desde aquele horrível jogo de salão – e de ser beijada de forma atordoante por Matthew. Agora ele estava se comportando como sempre, de modo frio e cortês.
Daisy poderia acreditar que aquilo fora um sonho, se não fosse por um detalhe: sempre que estava perto de Swift seu estômago dava cambalhotas.
Queria contar isso para alguém, mas confessar o que havia acontecido de algum modo pareceria traição. Isso também era mortificante. Nada parecia certo. Não estava dormindo bem, e por isso ficava distraída de dia.
Preocupada com a possibilidade de ficar doente, procurara a governanta. A mulher lhe dera uma colher de um repugnante óleo de rícino. Aquilo não havia ajudado nem um pouco. O pior era que não conseguia se concentrar em seus livros. Lia repetidamente as mesmas páginas, sem que conseguissem lhe despertar interesse.
Daisy não tinha a menor ideia de como voltar ao normal. Mas achou que seria bom parar de pensar em si própria e fazer algo por alguém. Assim, saiu no meio da manhã na grande carroça puxada por um pônei castanho robusto chamado Hubert. A carroça estava cheia de potes de porcelana repletos de alimentos, peças de flanela, queijos, carne de carneiro, bacon, chá e garrafas de vinho do porto.
As visitas geralmente eram muito agradáveis e os aldeões pareciam apreciar a presença alegre de Daisy. Alguns a fizeram rir enquanto descreviam furtivamente como era nos velhos tempos em que a mãe de lorde Westcliff os visitava.
A condessa era viúva e distribuía seus donativos de má vontade, esperando grandes demonstrações de gratidão. Se as mulheres não se curvassem o suficiente em suas mesuras, perguntava se estavam com problemas de rigidez nos joelhos. Também esperava ser consultada sobre os nomes que elas deveriam dar a seus filhos e as instruía sobre quais deveriam ser suas visões sobre religião e higiene. Pior ainda, levava alimentos misturados de um modo não apetitoso – carnes, vegetais e doces juntos na mesma lata.
– Que bruxa malvada ela era!– exclamou Daisy, pondo potes e peças de tecido sobre a mesa.
– Como nos contos de fadas...
E alegrou as crianças com uma recitação dramática de João e Maria que as fez rir e dar gritinhos debaixo da mesa, olhando-a encantadas. No fim do dia, Daisy havia enchido um pequeno caderno com anotações... Seria possível encontrar um especialista para examinar os olhos do velho Sr. Hearnsley e conseguir outra garrafa de tônico para os problemas digestivos do Sr. Blunt?
Prometendo que levaria todas as questões diretamente para lorde e Lady Westcliff, Daisy entrou novamente na carroça e voltou para Stony Cross Park. O sol estava quase se pondo e as longas sombras de carvalhos e castanheiros cruzavam a estrada de terra que levava para fora da vila. Essa parte da Inglaterra ainda não havia sido desmatada para alimentar as fábricas das grandes cidades. A floresta ainda era primitiva e parecia sobrenatural, riscada por pequenas trilhas quase completamente escondidas por galhos de árvores frondosas. Na sombra crescente, as árvores estavam envoltas em vapor e mistério, como sentinelas em um mundo de druidas, bruxos e unicórnios. Uma coruja planou acima da trilha, como uma mariposa no céu que escurecia.
A trilha estava silenciosa exceto pelo chacoalhar das rodas da carroça e o som dos cascos de Hubert. Daisy manteve as mãos firmes nas rédeas enquanto o pônei acelerava. Hubert parecia nervoso, movendo sua cabeça de um lado para o outro.
– Calma, garoto – tranquilizou-o Daisy, forçando-o a desacelerar enquanto o eixo da carroça batia em um solo acidentado. – Você não gosta da floresta, não é? Não precisa se preocupar.
Logo chegaremos a um campo aberto.
O pônei continuou agitado até a vegetação se tornar menos densa e as folhagens acima de suas cabeças desaparecerem. Eles entraram em um terreno seco margeado de um lado por um bosque e de outro por um prado.
– Pronto, nervosinho – disse Daisy alegremente. – Está vendo? Não há com o que se preocupar.
Mas a segurança de Daisy foi prematura. Ela ouviu alguns fortes estalos vindo da floresta, galhos e ramos sendo pisados. Hubert relinchou, virando a cabeça na direção do barulho. Um grunhido alto fez os pelos da nuca de Daisy se arrepiarem.
Meu Deus, o que era aquilo?
Com surpreendente rapidez, uma forma enorme e volumosa saiu da cobertura da floresta e se precipitou na direção da carroça.
Tudo aconteceu depressa demais para Daisy compreender. Ela segurou as rédeas com força enquanto Hubert arremetia para a frente relinchando em pânico e a carroça chacoalhava e pulava como se fosse de brinquedo.
Daisy tentou em vão se manter sentada, mas ela foi atirada para fora da carroça quando o veículo atingiu um sulco profundo. Hubert continuou sua corrida desenfreada enquanto Daisy caía sobre a terra dura com surpreendente força.
Ela sentiu o ar lhe faltar, respirando com dificuldade. Viu uma enorme criatura, um monstro, correndo em sua direção, mas o som de um tiro rasgou o ar, ressoando em seus ouvidos.
Um uivo animal de gelar os ossos... e depois nada.
Daisy tentou se sentar, mas caiu de barriga para baixo com espasmos em seus pulmões. Em um instante, o trotar de cascos fez o chão vibrar sob sua bochecha. Tomando um pouco de fôlego, ela se apoiou nos cotovelos e ergueu o queixo.
Quatro cavaleiros galopavam em sua direção, os cascos dos cavalos erguendo nuvens de pó na trilha. Um dos homens desmontou antes mesmo de seu cavalo parar e se aproximou dela a passos largos.
Daisy pestanejou de surpresa quando ele se ajoelhou e a ergueu com um só movimento. Sua cabeça pendeu para trás nos braços dele e ela se viu olhando atordoadamente para o rosto moreno de Matthew Swift.
– Daisy – disse Matthew em um tom que ela nunca ouvira dele, áspero e urgente.
Amparando-a com um dos braços, passou sua mão livre pelo corpo dela em uma rápida busca por ferimentos. – Está ferida?
Daisy tentou explicar que estava com falta de ar e ele pareceu entender seus sons incoerentes.
– Tudo bem – disse Matthew. – Não tente falar. Respire devagar. Apoie-se em mim. – Ele passou as mãos pelos cabelos de Daisy, afastando-os do rosto. Ela reagiu com pequenos tremores e ele a puxou mais para perto. – Devagar, querida. Calma. Está segura agora.
Daisy fechou os olhos para esconder seu assombro. Matthew Swift lhe murmurava palavras carinhosas e a segurava com braços fortes. Os ossos dela pareciam ter derretido como calda de açúcar.
Anos de brigas selvagens com seus irmãos tinham lhe ensinado a se recuperar rapidamente de uma queda. Em outras circunstâncias já teria se levantado e batido a poeira das roupas. Mas cada célula de seu corpo saturada de prazer tentava prolongar o máximo possível aquele momento.
Os dedos gentis de Matthew lhe acariciaram a lateral do rosto.
– Olhe para mim, querida. Diga-me onde dói.
Daisy abriu bem os olhos. O rosto dele estava logo acima do seu. Seguindo aqueles extraordinários olhos azuis, sentiu-se flutuando em camadas de cor.
– Seus dentes são bonitos – disse ela ainda atordoada. – Mas sabe, seus olhos são ainda mais bonitos.
Swift franziu as sobrancelhas, passando seu polegar pela bochecha de Daisy. Seu toque fez a pele dela ficar rosada.
– Pode me dizer seu nome?
Ela piscou.
– Esqueceu-se dele?
– Não, quero saber se você se esqueceu.
– Eu nunca seria tola a ponto de esquecer o meu próprio nome. Sou Daisy Bowman.
– Quando é seu aniversário?
Ela não pôde evitar um sorriso torto.
– Não saberia se eu dissesse o dia errado.
– Seu aniversário – insistiu ele.
– Cinco de março.
A boca de Matthew se curvou em um sorriso irônico.
– Não tente me enganar, diabinha.
– Está bem. Vinte de setembro. Como sabia o dia do meu aniversário?
– Em vez de responder, Swift ergueu os olhos e falou para seus companheiros, que tinham se reunido ao redor deles:
– Ela está com as pupilas normais. E não tem nenhum osso quebrado.
– Graças a Deus. – Era a voz de Westcliff.
Olhando por cima do ombro largo de Matthew Swift, Daisy viu seu cunhado em pé acima deles. O Sr. Mardling e lorde Llandrindon também estavam lá com expressões solidárias.
Westcliff segurava um rifle. Ele se agachou ao lado de Daisy.
– Estávamos voltando de uma tarde de caçada – disse o conde. – Por puro acaso passamos aqui quando estava sendo atacada.
– Eu poderia jurar que era um javali – disse Daisy admirada.
– Mas não poderia ser – observou lorde Llandrindon com um risinho condescendente. – Sua imaginação levou a melhor sobre a senhorita. Não há javalis na Inglaterra há séculos.
– Mas eu vi... – começou Daisy defensivamente.
– Certo – murmurou Swift, abraçando-a com mais força. – Eu também vi.
A expressão de Westcliff se tornou pesarosa.
– A Srta. Bowman não está totalmente errada – disse ele para Llandrindon. – Tivemos um problema local com alguns javalis que escaparam de uma fazenda e produziram uma ou duas gerações de porcos selvagens. Mês passado uma mulher que andava a cavalo foi atacada por um deles.
– Quer dizer que acabei de ser atacada por um porco furioso? – perguntou Daisy, tentando se sentar. Swift a amparou com o braço.
Um último raio de sol brilhou no horizonte, temporariamente cegando Daisy. Virando o rosto para o lado, ela sentiu o queixo de Swift roçar em seus cabelos.
– Furioso, não. Selvagem... e perigoso – disse Westcliff. – Porcos domésticos soltos na natureza podem facilmente se tornar grandes e agressivos. Calculo que o que acabamos de ver pesava no mínimo uns 130 quilos.
Swift ajudou Daisy a se levantar, puxando-a junto a seu corpo forte.
– Devagar – murmurou. – Está tonta? Enjoada?
Daisy se sentia muito bem. Mas era tão delicioso ficar ali com ele que disse, ainda ofegante:
– Um pouco.
Ele pôs a mão na cabeça de Daisy, apoiando-a gentilmente no ombro. A temperatura dela subiu ao sentir a proteção daquele abraço, a solidez maravilhosa do corpo dele. Tudo isso de Matthew Swift, o homem menos romântico que já havia conhecido.
Até agora aquela visita estava produzindo uma surpresa após a outra.
– Eu a levarei de volta – disse-lhe Swift perto de seu ouvido. Daisy sentiu sua pele formigar de prazer. – Acha que consegue montar na minha frente?
Ela sentiu um desavergonhado arrepio à perspectiva de cavalgarem juntos. Poderia se apoiar nos braços de Matthew enquanto ele a levava em seu cavalo e realizar uma ou duas fantasias secretas. Fingiria ser uma aventureira sendo raptada por um belo vilão...
– Creio que isso não será prudente – interrompeu lorde Llandrindon com uma risada. –
Considerando a situação entre os dois...
Daisy empalideceu, no início pensando que ele se referia àqueles tórridos momentos na biblioteca. Mas não havia como Llandrindon saber disso. Ela não havia contado a ninguém e Matthew era muito fechado em relação à sua vida pessoal. Não, Llandrindon devia estar se referindo à rivalidade deles na pista de bowls.
– Acho que seria melhor eu levar a Srta. Bowman – disse ele – Para evitar qualquer chance de violência.
Daisy olhou para o rosto sorridente do visconde e desejou que ele tivesse ficado com a boca fechada. Ia começar a protestar, mas Swift já havia respondido.
– Talvez tenha razão, milorde.
Inferno! Daisy sentiu um enorme desapontamento quando Swift a tirou da proteção de seu corpo quente. Westcliff estava olhando para o chão com uma expressão carrancuda.
– Tenho de encontrar o animal e matá-lo.
– Não por minha causa, eu espero – disse Daisy ansiosamente.
– Há sangue no chão. É mais bondoso pôr fim a ele do que deixá-lo sofrer.
O Sr. Mardling foi buscar sua própria arma, dizendo em tom entusiasmado:
– Eu o acompanharei, milorde!
Nesse meio-tempo lorde Llandrindon havia montado em seu cavalo.
– Levante-a para mim – disse ele para Swift – e eu a levarei de volta sã e salva para a mansão.
Swift inclinou o rosto de Daisy para cima e tirou um lenço branco do bolso.
– Se ainda estiver tonta quando chegarmos em casa – disse, tirando cuidadosamente as manchas de poeira do rosto dela –, mandarei chamar o médico. Entendeu?
Apesar do tom autoritário de Matthew, ele tinha uma ternura no olhar que fez Daisy querer se aninhar em seu casaco e sentir os batimentos de seu coração.
– Vai voltar também ou ficar com lorde Westcliff? – perguntou ela.
– Estarei logo atrás de você. – Pondo o lenço de volta no bolso, Swift se inclinou e a ergueu facilmente. – Segure-se em mim.
Daisy pôs os braços ao redor do pescoço dele, seu pulso vibrando ao toque da pele quente da nuca e dos cabelos frios e sedosos. Matthew a carregou como se ela não pesasse nada. O peito dele era sólido como uma rocha, a respiração, suave e regular, batia no rosto de Daisy. A pele de Matthew cheirava a sol e ar livre. Ela teve dificuldade em se conter e não esfregar o nariz no pescoço dele.
Perplexa com a força de sua atração por Matthew, Daisy permaneceu calada enquanto ele a entregava para lorde Llandrindon, que estava montado em um grande baio.
O visconde a acomodou na sua frente, a beira da sela pressionando a coxa de Daisy.
Llandrindon era um homem bonito, elegante, com cabelos escuros e feições bem proporcionadas. Mas sentir-lhe os braços ao seu redor, o peito magro, o cheiro... algo não estava certo. As mãos em sua cintura eram estranhas e intrusivas.
Daisy quase chorou de frustração ao se perguntar por que não o queria e em vez disso desejava o homem que era errado para ela.
– O que aconteceu? – perguntou Lillian quando Daisy entrou na sala Marsden. Ela estava reclinada no canapé segurando um periódico. – Parece que foi atropelada por uma carruagem.
– Na verdade, tive um encontro com um porco mal-humorado.
Lillian sorriu e pôs o periódico de lado.
– Quem era?
– Não é uma metáfora. Um porco de verdade. – Sentada em uma cadeira próxima, Daisy lhe narrou sua desventura, dando um toque cômico.
– Você está bem? – perguntou Lillian, preocupada.
– Muito bem – garantiu-lhe Daisy. – E Hubert também. Ele chegou aos estábulos ao mesmo tempo que lorde Llandrindon e eu.
– Isso foi uma sorte.
– Sim. Hubert foi esperto o bastante para encontrar o caminho para casa...
– Não, não estava me referindo ao pônei, mas a você voltar para casa com lorde Llandrindon.
Não que eu a esteja encorajando a escolhê-lo, mas por outro lado...
– Não era com ele que eu queria voltar. – Daisy olhou para sua saia empoeirada e se concentrou em tirar um pelo de cavalo da fina musselina.
– Não se pode culpá-la por isso – disse Lillian. – Llandrindon é bonito, mas um tanto inócuo.
Estou certa de que teria preferido voltar com o Sr. Mardling.
– Não – disse Daisy. – Estou muito feliz por não ter voltado com ele.
– Não. – Lillian cobriu seus ouvidos. Não diga isso. Não quero ouvir!
Daisy a olhou seriamente.
– Está sendo sincera?
Lillian fez uma careta.
– Maldição – murmurou. – Maldito. Filho da...
– Quando o bebê nascer – disse Daisy esboçando um sorriso –, você realmente deve parar de usar essa linguagem chula.
– Então vou usá-la ao máximo até ele nascer.
– Tem certeza de que é um menino?
– É melhor que seja, porque Westcliff precisa de um herdeiro e não vou passar por isso de novo. – Lillian esfregou as mãos em seus olhos cansados. – Como só restou Matthew Swift, presumo que era com ele que queria ter voltado.
– Sim. Estou me sentindo atraída por ele.
Foi um alívio dizer isso em voz alta. A garganta de Daisy, que estivera apertada, finalmente se dilatou e lhe permitiu respirar lenta e profundamente.
– Quer dizer, em um sentido físico?
– Em outros sentidos também.
Lillian apoiou uma das bochechas em sua mão fechada.
– É porque papai quer esse casamento? – perguntou. – Espera de algum modo conquistar a aprovação dele?
– Ah, não. Quando muito, a aprovação do papai é um ponto contra o Sr. Swift. Não estou nem um pouco interessada em agradá-lo. Sei muito bem que isso é impossível.
– Então não compreendo por que ia querer um homem tão obviamente errado para você.
Você não é louca, Daisy. Impulsiva, sim. Romântica, com certeza. Mas também é prática e inteligente o bastante para entender as consequências de se envolver com ele. Acho que o problema é que você está desesperada. É a única de nós que continua solteira e quando papai lhe deu aquele ultimato idiota e...
– Não estou desesperada!
– Se está pensando em se casar com Matthew Swift, eu diria que isso é um sinal de extremo desespero.
Daisy nunca havia sido acusada de ter mau gênio – essa distinção sempre fora de Lillian.
Mas a indignação lhe encheu o peito como o vapor de uma chaleira e ela teve de se controlar para não explodir.
Olhar para a barriga da irmã a ajudou a se acalmar. Lillian estava lidando com novos desconfortos e incertezas. E agora ela estava piorando o problema.
– Em momento algum eu disse que quero me casar com ele – respondeu Daisy. – Só quero descobrir mais sobre o tipo de homem que é. Não vejo mal algum nisso.
– Mas você não vai – disse Lillian com forte convicção. – Esse é o ponto. Ele não lhe mostrará quem realmente é, a enganará. Seu dom na vida é descobrir o que as pessoas querem e usá-lo em benefício próprio. Olhe como se transformou no filho que nosso pai sempre quis.
Agora vai fingir ser o tipo de homem que você sempre desejou.
– Ele não poderia saber qual é – tentou dizer Daisy, mas Lillian a interrompeu com descuidada pressa, inflamada além da capacidade de ter um diálogo racional.
– Ele não tem nenhum interesse em você, em seu coração e sua mente, na pessoa que você é... Apenas quer ter o controle da empresa e a vê como um modo de conseguir isso. É claro que está tentando conquistá-la. Swift a fará de boba até o dia seguinte ao seu casamento, quando você descobrirá que foi tudo uma ilusão. Ele é igual ao nosso pai, Daisy! Ele a esmagará ou a transformará em alguém como a mamãe. É essa a vida que você quer?
– É claro que não.
Pela primeira vez, Daisy percebeu que não poderia falar com sua irmã mais velha sobre algo importante. Havia tantas coisas que queria lhe dizer... que nem tudo que Matthew Swift tinha dito e feito poderia ter sido premeditado. Que ele poderia ter insistido em levá-la até a mansão, mas a entregara para Llandrindon sem protestar. Também queria confidenciar a Lillian que Swift a beijara... e que a sensação tinha sido gloriosa.
Mas não adiantava argumentar quando Lillian estava naquele estado de espírito. Elas não chegariam a lugar algum. O silêncio as envolveu.
– E então? – quis saber Lillian. – O que você vai fazer?
Daisy se levantou, limpou uma mancha de poeira de seus braços e disse tristemente:
– Para começar, acho que é melhor eu tomar um banho.
– Você sabe o que eu quis dizer!
– O que gostaria que eu fizesse? – perguntou Daisy com uma cortesia que fez Lillian franzir o cenho.
– Diga a Matthew Swift que ele é um sapo nojento e não há nenhuma chance de você se casar com ele!
CAPÍTULO 8
– Então ela foi embora – disse Lillian veementemente –, sem me dizer o que ia fazer ou o que realmente pensava, e o pior é que sei que há coisas que ela não me contou...
– Querida – interrompeu-a Annabelle com um tom gentil –, tem certeza de que lhe deu a oportunidade de contar tudo?
– O que quer dizer? Eu estava sentada bem na frente dela. Estava consciente e com meus dois ouvidos. De que outra oportunidade ela precisava?
Irrequieta e sem conseguir dormir, Lillian havia descoberto que Annabelle também acordara por causa do bebê. Elas tinham se visto dos balcões de seus respectivos quartos e feito gestos para se encontrarem no andar de baixo. Era meia-noite. Por sugestão de Annabelle, foram à galeria Marsden, um longo cômodo retangular com retratos de família nas paredes e inestimáveis obras de arte. De camisola, andaram pela galeria de braços dados, seu ritmo limitado pelo lento arrastar de pés de Lillian.
Ela recorrera a Annabelle com crescente frequência durante a gravidez. A amiga entendia pelo que ela estava passando, porque recentemente tivera a mesma experiência. E a presença calma da amiga sempre a tranquilizava.
– O que quero dizer – observou Annabelle – é que talvez tenha ficado tão concentrada em dizer a Daisy como você se sentia que se esqueceu de lhe perguntar como ela se sentia.
Lillian balbuciou, indignada:
– Mas ela... Eu... – Então parou e pensou naquilo. – Tem razão. Não perguntei. Estava tão chocada com a ideia de Daisy se sentir atraída por Matthew Swift que não quis discutir isso. Só lhe dizer o que fazer e encerrar o assunto.
Elas viraram no fim da galeria e passaram por uma fileira de paisagens.
– Acha que houve alguma intimidade entre eles? – perguntou Annabelle. Vendo o alarme de Lillian, esclareceu: – Como um beijo ou abraço?
– Ah, meu Deus, não sei. Daisy é muito inocente. Teria sido fácil para aquela cobra seduzi-la.
– Em minha opinião, ele realmente está encantado com ela. Que jovem não ficaria? Ela é graciosa, adorável e inteligente...
– E rica – completou Lillian sombriamente.
Annabelle sorriu.
– Dinheiro sempre é bom – admitiu ela. – Mas nesse caso acho que há mais do que isso.
– Como pode ter tanta certeza?
– Querida, é óbvio. Você viu o modo como eles olham um para o outro. Isso está... no ar.
Lillian franziu as sobrancelhas.
– Podemos parar por um momento? Estou com dor nas costas.
Annabelle concordou, ajudando-a a se sentar em um dos bancos almofadados ao longo do centro da galeria.
– Acho que o bebê não vai demorar muito para nascer – murmurou Annabelle. – Eu até arriscaria o palpite de que virá um pouco antes do previsto.
– Graças a Deus. Nunca quis tanto não estar grávida. – Lillian tentou ver as pontas de seus chinelos por cima da curva de sua barriga e depois voltou ao assunto de Daisy. – Vou ser honesta com ela sobre a minha opinião. Vejo Matthew Swift como o que é, mesmo se ela não vê.
– Acho que Daisy já conhece sua opinião – disse Annabelle laconicamente. – Mas em última análise a decisão é dela. Imagino que Daisy não tentou influenciá-la enquanto você tentava descobrir quais eram seus sentimentos por lorde Westcliff.
– Essa situação é totalmente diferente – protestou Lillian. – Matthew Swift é uma cobra!
Além disso, ele acabaria levando-a para a América e seria difícil eu voltar a vê-la.
– E você gostaria que ela ficasse debaixo das suas asas para sempre – murmurou Annabelle.
Lillian se virou para lhe lançar um olhar sinistro.
– Está insinuando que sou egoísta a ponto de impedi-la de levar sua própria vida só porque quero mantê-la perto de mim?
Sem se abalar com a ira dela, Annabelle sorriu solidariamente.
– Sempre foram vocês duas, não? Sempre foram a única fonte de amor e companheirismo uma para a outra. Mas tudo está mudando, querida. Agora você tem sua própria família, um marido e um bebê, e não deveria desejar menos do que isso para Daisy.
O nariz de Lillian começou a arder. Ela desviou seu olhar do de Annabelle e, para sua mortificação, ficou com os olhos quentes e a visão embaçada.
– Prometo que gostarei do próximo homem por quem ela se interessar. Não importa quem seja. Desde que não seja o Sr. Swift.
– Seja honesta. Você não gostará de nenhum pretendente de Daisy.
Annabelle pôs um dos braços ao redor do ombro da amiga e acrescentou afetuosamente:
– É um pouco possessiva, querida.
– E você é irritante – retrucou Lillian, apoiando sua cabeça no ombro macio de Annabelle.
Ela continuou a fungar enquanto Annabelle lhe dava um abraço forte e reconfortante que nem sua própria mãe seria capaz de lhe dar. Chorar era um alívio, mas também um pouco constrangedor. – Eu odeio ser um poço de lágrimas – murmurou Lillian.
– É por causa do seu estado – tranquilizou-a Annabelle. – Isso é perfeitamente natural.
Voltará ao normal depois que o bebê nascer.
– Vai ser um menino – disse Lillian. – E depois arranjaremos um casamento entre nossos filhos para que Isabelle possa se tornar uma viscondessa.
– Desde quando você acredita em casamentos arranjados?
– Nunca acreditei. Mas não podemos confiar aos nossos filhos uma decisão tão importante quanto com quem irão se casar.
– Tem razão. Teremos de decidir por eles.
Elas riram e Lillian sentiu seu humor melhorar um pouco.
– Tenho uma ideia – disse Annabelle. – Vamos à cozinha dar uma olhada na despensa.
Aposto que ainda sobrou um pouco de torta de groselha da sobremesa. Sem falar no pavê de morango.
Lillian ergueu a cabeça e enxugou o nariz na manga do vestido.
– Realmente acha que um prato de doces fará com que eu me sinta melhor?
Annabelle sorriu.
– Mal não vai fazer, não é?
Lillian pensou sobre aquilo.
– Verdade – disse, deixando sua amiga erguê-la do banco.
O sol da manhã entrava pelas janelas enquanto as criadas abriam as cortinas do hall de entrada principal e as prendiam com cordões de seda franjados. Daisy se dirigiu à sala do café da manhã, sabendo que havia poucas chances de algum dos convidados ter acordado. Tentara dormir o máximo possível, mas estava agitada demais. Por fim, tinha pulado da cama e se vestido.
Criados andavam de um lado para outro, ocupados, polindo metal, varrendo tapetes e carregando baldes e cestos de roupas de cama. Um pouco mais distante, vindo da cozinha, dava para ouvir o tinido de panelas de metal e pratos enquanto a refeição matutina era preparada.
A porta do escritório particular de lorde Westcliff estava aberta e Daisy espiou para dentro do cômodo forrado de madeira. Era simples e bonito, com uma fileira de janelas de vitral que projetavam um arco-íris de luz no chão atapetado. Daisy sorriu, mas parou ao ver alguém sentado à grande escrivaninha. O contorno da cabeça morena e dos ombros largos o identificava como o Sr. Hunt, que frequentemente usava o escritório de Westcliff quando estava em Stony Cross.
– Bom dia... – começou Daisy, parando quando ele se virou para olhá-la.
E sentiu uma pontada de animação ao perceber que não era o Sr. Hunt, mas Matthew Swift.
Ele se levantou de sua cadeira e Daisy disse timidamente:
– Desculpe a interrupção.
A voz dela se tornou abafada ao perceber que havia algo diferente nele. Estava usando óculos com aro de aço. Óculos naquele rosto marcante... e os cabelos um pouco desgrenhados. Tudo isso combinado com uma plenitude muscular e viril era surpreendentemente... erótico.
– Quando começou a usar óculos? – perguntou Daisy.
– Há cerca de um ano. – Ele sorriu pesarosamente e os tirou com uma das mãos. – Preciso deles para ler. Resultado de muitas noites debruçado até tarde sobre contratos e relatórios.
– Eles... combinam com você.
– É? – Continuando a sorrir, Swift balançou a cabeça como se não tivesse lhe ocorrido avaliar a própria aparência. Ele enfiou os óculos no bolso do colete. – Como se sente?
Daisy demorou um momento para perceber que ele se referia à sua queda da carroça.
– Ah, muito bem, obrigada.
Matthew a estava olhando do modo como sempre fazia, atenta e fixamente. Isso a deixava desconfortável. Mas agora o olhar não parecia crítico. Na verdade, ele a fitava como se ela fosse a única coisa no mundo que valesse a pena ver. Apreensiva, Daisy passou os dedos pela saia de seu vestido floral de musselina cor-de-rosa.
– Acordou cedo – disse Swift.
– Geralmente acordo. Não consigo imaginar por que algumas pessoas ficam na cama até tão tarde. Ninguém pode dormir tanto.
Quando Daisy terminou de falar, ocorreu-lhe que havia outra coisa que as pessoas faziam na cama além de dormir, e seu rosto se tornou escarlate. Felizmente Swift não zombou dela, embora Daisy tivesse notado um sorriso sutil espreitando os lábios dele.
– Estou me preparando para ir para Bristol em breve – comentou Matthew, apontando para a pilha de papéis atrás dele – Algumas questões precisam ser resolvidas antes de decidirmos abrir a fábrica lá.
– Lorde Westcliff concordou em encarregá-lo do projeto?
– Sim, mas parece que terei de agir de acordo com um conselho consultivo.
– Às vezes meu cunhado é um pouco controlador – admitiu Daisy. – Mas quando ele vir quanto é confiável, acho que afrouxará consideravelmente as rédeas.
Ele a olhou com curiosidade.
– Isso quase soa como um elogio.
Daisy encolheu os ombros com estudada indiferença.
– Quaisquer que sejam seus defeitos, sua confiabilidade é lendária. Sua confiabilidade e pontualidade. Meu pai sempre disse que é possível acertar um relógio por suas idas e vindas.
– Confiável. A descrição de um homem fascinante – comentou ele, com uma voz que revelava divertimento.
Antes Daisy teria concordado com aquela afirmação sarcástica. Quando alguém dizia que um homem era “confiável” ou “simpático”, isso era um vago elogio. Mas ela havia passado três temporadas observando os caprichos de cavalheiros arrojados, distraídos ou irresponsáveis. A confiabilidade era uma qualidade maravilhosa em um homem e Daisy se perguntou por que nunca a apreciara.
– Sr. Swift... – Daisy tentou sem muito êxito parecer descontraída. – Sr. Swift, tenho me perguntado...
– Sim?
Ele deu meio passo para trás enquanto Daisy se aproximava, como se fosse imperativo manter certa distância entre eles. Ela o observou atentamente.
– Como não há nenhuma possibilidade de nós dois... Bem, considerando que nosso casamento está fora de questão, quando planeja se casar?
Swift a encarou, pasmo.
– Acho que casamento não é algo para mim.
– Nunca?
– Nunca.
– Por quê? – perguntou Daisy. – Por que preza muito sua liberdade? Ou pretende viver correndo atrás de rabos de saia?
Swift riu, o som tão quente que Daisy o sentiu descendo por sua coluna.
– Não. Sempre achei uma perda de tempo correr atrás de muitas mulheres. Prefiro concentrar meus esforços na mulher certa.
– Mas como saberia que encontrou a mulher certa?
– Está perguntando com que tipo de mulher eu gostaria de me casar? – O sorriso de Swift se prolongou um pouco mais do que de costume, fazendo os pelos da nuca de Daisy se arrepiarem.
– Acho que saberei quando a encontrar.
Tentando parecer despreocupada, Daisy andou até as janelas de vitral. Ergueu uma das mãos, observando o mosaico de luz colorida em sua pele branca.
– Posso imaginar como ela seria. – Daisy se manteve de costas para ele. – Em primeiro lugar, mais alta do que eu.
– A maioria das mulheres é – salientou Swift.
– E útil e prendada – continuou Daisy. – Não uma sonhadora. Ela se concentraria em questões práticas, dirigiria perfeitamente a criadagem e nunca seria convencida pelo peixeiro a comprar bacalhau velho.
– A senhorita sabe como fazer um homem se empolgar com a ideia do matrimônio – disse Swift.
– Não terá nenhuma dificuldade em encontrá-la – continuou Daisy, parecendo mais aborrecida do que teria desejado. – Há centenas de mulheres assim em Manhattanville. Talvez milhares.
– O que a faz ter tanta certeza de que quero uma esposa convencional?
Daisy estremeceu quando o sentiu aproximar-se por trás.
– O fato de ser como o meu pai – disse ela.
– Não totalmente.
– E se por acaso se casasse com uma mulher diferente do que a que acabei de descrever, acabaria considerando-a uma... parasita.
Ela sentiu no ombro a leve pressão das mãos de Swift. Ele a virou de frente. Seus olhos azuis estavam cálidos ao procurar os dela e Daisy teve a desagradável suspeita de que ele estava lendo seus pensamentos.
– Eu nunca seria tão cruel... ou idiota. – Daisy sentiu o olhar dele na pele exposta de seu peito. Com total gentileza, ele passou os polegares pelas clavículas de Daisy até ela ficar com os braços arrepiados sob as mangas bufantes do vestido. – Tudo o que eu ia querer de uma esposa é que tivesse um pouco de afeto por mim. Que ficasse feliz em me ver no fim do dia.
A respiração de Daisy se acelerou sob o toque dos dedos dele.
– Isso não é pedir muito.
– Não?
As pontas dos dedos dele chegaram à base do pescoço de Daisy, que se ondulou quando ela engoliu em seco. Swift pestanejou e afastou rapidamente as mãos, parecendo não saber o que fazer até enfiá-las no bolso de seu paletó.
Ainda assim, não se afastou. Daisy se perguntou se ele sentia a mesma atração irresistível que ela, um desejo desconcertante que só podia ser satisfeito por mais proximidade.
Daisy pigarreou e ficou na ponta dos pés para compensar sua baixa estatura.
– Sr. Swift?
– Sim, Srta. Bowman?
– Posso pedir um favor?
Ele a olhou fixamente.
– Qual?
– No momento em que disser ao meu pai que não se casará comigo, ele ficará...
desapontado. Sabe como ele é.
– Sim, eu sei. Qualquer um que conhece Thomas Bowman sabe muito bem que para ele um desapontamento é uma grave ofensa.
– Temo que isso vá ter algumas repercussões desagradáveis para mim. Meu pai já está aborrecido o suficiente por eu não ter encontrado ninguém à altura de suas expectativas. Se achar que fiz deliberadamente algo para estragar os planos dele em relação a nós... bem, isso tornará minha situação... difícil.
– Entendo. – Swift talvez conhecesse o pai de Daisy mais do que ela própria. – Não direi nada a ele. E farei o que puder para facilitar as coisas. Partirei para Bristol daqui a dois dias, três no máximo. Llandrindon e os outros homens... nenhum deles é idiota, sabem muito bem por que foram convidados. Não teriam vindo se não estivessem interessados. Portanto não deve demorar muito para um deles lhe propor casamento.
Daisy supôs que deveria apreciar a disposição de Matthew de empurrá-la para os braços de outro homem. Em vez disso, o entusiasmo dele a fez se sentir amarga e com raiva. E quando alguém sentia raiva, tendia a revidar.
– Que bom! – disse. – Obrigada. Foi muito útil, Sr. Swift. Especialmente me fornecendo um pouco de experiência. Na próxima vez em que eu beijar um homem, como por exemplo lorde Llandrindon, saberei muito melhor o que fazer.
Daisy se encheu de uma satisfação vingativa ao vê-lo apertando os lábios.
– Não há de quê – disse ele em um grunhido.
Daisy deu seu sorriso mais radiante e saiu.
Com o passar do dia, o sol do início da manhã foi encoberto por nuvens que formaram um grande tapete cinza no céu. A chuva começou a cair ininterruptamente, enlameando estradas não pavimentadas, alagando prados e pântanos e fazendo pessoas e animais correrem para seus respectivos abrigos.
Assim era Hampshire na primavera, manhosa e inconstante, pregando peças nos desavisados.
Se alguém se aventurasse a sair de guarda-chuva em uma manhã chuvosa, o sol de Hampshire surgia como em um passe de mágica. Se alguém saísse sem ele, certamente choveria a cântaros.
Os convidados se reuniam em vários grupos... na sala de música, na sala de bilhar e na sala de jogos, para jogar, tomar chá ou assistir a apresentações de teatro amador. Muitas damas se dedicavam a seus bordados ou trabalhos em renda enquanto os cavalheiros liam, conversavam e bebiam na biblioteca. Nenhuma conversa deixava de mencionar uma questão: quando a tempestade terminaria?
Em geral Daisy adorava dias chuvosos. Ficar encolhida com um livro perto de uma lareira era o maior prazer que podia imaginar. Mas ainda estava em um estado de inquietude em que a palavra escrita perdera sua magia. Ela perambulou de uma sala para a outra, observando com certa discrição as atividades dos convidados.
Parando à porta da sala de bilhar, viu os cavalheiros andando indolentemente ao redor da mesa com bebidas e tacos nas mãos. Os estalidos das bolas de marfim forneciam um meio-tom arrítmico para o murmúrio das conversas masculinas. Sua atenção foi atraída pela visão de Matthew Swift em mangas de camisa inclinado sobre a mesa para realizar uma tacada perfeita.
Ele jogava com mãos hábeis, estreitando os olhos azuis ao se concentrar na disposição das bolas na mesa. Aqueles cachos sempre rebeldes tinham lhe caído mais uma vez sobre a testa e Daisy desejou afastá-los. Quando Swift enfiou uma bola na caçapa, houve aplausos, alguns risos baixos e algumas moedas trocando de mãos. Swift se aprumou, deu um de seus sorrisos esquivos e fez um comentário para seu oponente, lorde Westcliff.
Westcliff riu e circundou a mesa, com um cigarro não acesso entre os dentes, pensando em suas opções. O ar de satisfação masculina na sala era inconfundível.
Ao circundar a mesa, Westcliff viu Daisy espiando da porta e piscou para ela. Daisy recuou como uma tartaruga se escondendo em sua carapaça. Era ridículo de sua parte andar pela mansão tentando olhar furtivamente para Matthew Swift.
Repreendendo a si mesma, Daisy se afastou a passos largos da sala de bilhar e foi na direção do hall principal. Subiu a magnífica escada e só parou ao chegar à sala Marsden. Na companhia de Annabelle e Evie, Lillian estava encolhida no canapé, pálida, tensa e com a testa franzida.
– Vinte minutos – disse Evie, com seu olhar fixo no relógio sobre o console da lareira.
– Ainda não está vindo regularmente – observou Annabelle.
Ela escovou os fartos cabelos pretos de Lillian, trançando-os com dedos hábeis.
– O que não está vindo regularmente? E por que você está olhando para o...? – perguntou Daisy ao entrar na sala, com uma alegria forçada. Ela ficou pálida quando subitamente entendeu.
– Meu Deus! Está sentindo as dores do parto, Lillian?
Sua irmã balançou a cabeça, parecendo perplexa.
– Não exatamente. Só uma espécie de contração. Começou depois do almoço, veio de novo uma hora depois e dali a meia hora, e esta após vinte minutos.
– Westcliff sabe disso? – perguntou Daisy ofegantemente. – Quer que eu avise?
– Não – responderam as três mulheres ao mesmo tempo.
– Ainda não há nenhuma necessidade de preocupá-lo – acrescentou Lillian em um tom reticente. – Deixem Westcliff aproveitar a tarde com seus amigos. Assim que ele souber, subirá e ficará andando de um lado para outro dando ordens e ninguém terá paz. Especialmente eu.
– E quanto à mamãe? Devo ir buscá-la? – perguntou Daisy, embora já soubesse a resposta.
Mercedes não era do tipo tranquilizador. Apesar de ter tido cinco filhos, estremecia à menção de qualquer tipo de função corporal.
– Não estou com dor suficiente – disse Lillian secamente. – Não avise mamãe. Ela se sentiria obrigada a se sentar aqui comigo para manter as aparências e isso me deixaria muito nervosa.
Neste momento só preciso de vocês três.
Apesar de seu tom sarcástico, ela procurou a mão de Daisy e a segurou com força. O parto era assustador, especialmente o primeiro, e Lillian não era uma exceção à regra.
– Annabelle avisou que isso pode demorar dias – disse ela para Daisy, revirando os olhos comicamente. – O que significa que talvez eu não fique bem-humorada como sempre.
– Tudo bem, querida. Mostre-nos seu pior lado.
Sem soltar a mão de Lillian, Daisy se sentou no chão atapetado aos pés dela.
A sala estava silenciosa, exceto pelo tique-taque do relógio e o som da escova passando pelos cabelos de Lillian.
Daisy não sabia ao certo se estava dando conforto para sua irmã ou o recebendo. O momento de Lillian havia chegado e Daisy temeu por ela – que sentisse dor, por possíveis complicações e que depois disso a vida nunca mais voltasse a ser a mesma.
Ela olhou de relance para Evie, que lhe sorriu, e depois para Annabelle, cujo semblante era calmo e tranquilizador. Elas se ajudariam em todos os desafios, nos momentos de alegria e medo, pensou Daisy, subitamente se sentindo dominada por um amor por todas elas.
– Eu nunca viverei longe de vocês. Quero que sempre fiquemos juntas. Não suportaria perder nenhuma de vocês.
Ela sentiu o dedo do pé de Annabelle tocar sua perna afetuosamente.
– Daisy, nunca se pode perder uma verdadeira amiga.
CAPÍTULO 9
Ao cair da tarde, a tempestade se intensificou mais do que o comum na primavera. O vento batia nas janelas e agitava as árvores e cercas cuidadosamente podadas enquanto raios rasgavam o céu. As quatro amigas permaneceram na sala Marsden, medindo o tempo entre as contrações até virem a intervalos regulares de dez minutos. Lillian estava dominada pela ansiedade, embora tentasse esconder isso. Daisy suspeitou de que sua irmã achasse difícil se render ao inevitável processo que assumia o controle de seu corpo.
– Você não pode estar confortável no canapé – disse finalmente, erguendo Lillian. – Venha, querida. Hora de ir para a cama.
– Você acha que eu... – começou Daisy, achando que Westcliff deveria ser chamado.
– Sim, acho que sim – disse Annabelle.
Aliviada pela perspectiva de realmente ser útil em vez de ficar sentada sem fazer nada, Daisy perguntou:
– E depois? Precisamos de lençóis? Toalhas?
– Sim, sim – respondeu Annabelle por cima de seu ombro, amparando firmemente as costas de Lillian com um dos braços. – E tesouras e uma garrafa de água quente. E diga à governanta para mandar trazer um pouco de óleo de valeriana, chá de agripalma e bolsa-de-pastor.
Enquanto as amigas levavam Lillian para o quarto, Daisy correu escada abaixo. Foi até a sala de bilhar e a encontrou vazia. Depois disparou para a biblioteca e um dos salões principais.
Westcliff não parecia estar em lugar algum. Controlando sua impaciência, Daisy se forçou a passar calmamente por alguns convidados no corredor e se dirigiu ao escritório de Westcliff.
Para seu alívio, ele estava com o pai dela, o Sr. Hunt e Matthew Swift. Estavam entretidos em uma conversa animada que incluía termos como “deficiências da rede de distribuição” e “lucros por unidade de produção”.
Notando a presença dela no corredor, os homens ergueram os olhos. Westcliff, sentado à sua escrivaninha, se levantou.
– Milorde – disse Daisy –, posso lhe falar por um minuto?
Embora Daisy tivesse falado calmamente, algo em sua expressão devia tê-lo alertado, porque ele se aproximou dela.
– Sim. O que houve, Daisy?
– É sobre a minha irmã – sussurrou ela. – Parece que o trabalho de parto começou.
Ela nunca havia visto o conde tão surpreso.
– É cedo demais – disse ele.
– Pelo visto, o bebê não compartilha de sua opinião.
– Mas... não está na hora. – O conde pareceu genuinamente confuso pela criança não ter consultado o calendário antes de chegar.
– Não necessariamente – respondeu Daisy com sensatez. – É possível que o médico tenha errado a data. Afinal de contas, é só um cálculo aproximado.
Westcliff franziu o cenho.
– Eu esperava exatidão! É quase um mês antes do previsto... – Um pensamento lhe ocorreu e ele empalideceu. – O bebê é prematuro?
Embora Daisy tivesse considerado essa possibilidade, balançou a cabeça imediatamente.
– Algumas mulheres exibem mais a gravidez, outras menos. E minha irmã é muito magra.
Tenho certeza de que o bebê está bem. – Ela lhe deu um sorriso tranquilizador. – Lillian teve contrações nas últimas quatro ou cinco horas, e agora estão vindo a cada dez minutos, o que Annabelle diz...
– Ela está em trabalho de parto há horas e ninguém me avisou? – perguntou Westcliff indignado.
– Bem, tecnicamente só é trabalho de parto quando as contrações são regulares e ela disse que não queria incomodá-lo até...
Westcliff deixou escapar uma imprecação que assustou Daisy e virou um dedo autoritário, porém trêmulo, para Simon Hunt.
– Doutor! – vociferou, e saiu em disparada.
Simon Hunt não pareceu surpreso com o comportamento primitivo de Westcliff.
– Coitado – disse esboçando um sorriso e se inclinando sobre a escrivaninha para guardar uma caneta em seu estojo.
– Por que ele o chamou de “doutor”?
– Acho que ele quer que eu mande chamar o médico – respondeu Hunt. – O que pretendo fazer imediatamente.
Infelizmente, houve dificuldades em trazer o médico, um venerável ancião que morava na vila. O criado enviado para procurá-lo voltou com a triste notícia de que o velho havia se machucado no caminho.
– Como? – perguntou Westcliff, tendo saído do quarto para ouvir o relato do criado. Um pequeno grupo de pessoas, incluindo Daisy, Evie, St. Vincent, o Sr. Hunt e o Sr. Swift, esperava no corredor. Annabelle estava no quarto com Lillian.
– Milorde – disse o criado pesarosamente para Westcliff –, o médico escorregou no chão de pedra úmido e caiu antes de eu conseguir segurá-lo. Machucou a perna. Não chegou a quebrá-la, mas não poderá vir ajudar Lady Westcliff.
Um brilho de raiva surgiu nos olhos escuros do conde.
– Por que não estava segurando o braço do médico? Pelo amor de Deus, ele é um fóssil! É
óbvio que não poderia andar sozinho no chão molhado.
– Se ele é assim tão frágil – perguntou Simon Hunt sensatamente –, como essa velha relíquia poderia ser útil para Lady Westcliff?
O conde fechou a cara.
– Esse médico sabe mais sobre parto do que qualquer um daqui até Portsmouth. Ele trouxe ao mundo gerações de Marsdens.
– Do jeito que a coisa vai – disse lorde St. Vincent –, a última geração de Marsdens virá ao mundo sozinha. – Ele se virou para o criado. – A não ser que o médico tenha sugerido alguém para substituí-lo.
– Sim, milorde – disse o criado um pouco constrangido. – Ele me disse que há uma parteira na vila.
– Então vá buscá-la agora – vociferou Westcliff.
– Já tentei, milorde. Mas... ela está um pouco bêbada.
Westcliff fechou a cara outra vez.
– Traga-a assim mesmo. Neste momento não vou me preocupar com insignificâncias como uma ou duas taças de vinho.
– Milorde... na verdade, ela está mais do que um pouco bêbada.
O conde o olhou incrédulo.
– Maldição! Qual o nível da bebedeira?
– Ela acha que é a rainha. Gritou comigo por ter pisado em seu vestido.
Um breve silêncio se seguiu enquanto o grupo digeria a informação.
– Vou matar alguém – disse o conde para ninguém em particular, e então o grito de Lillian do quarto o fez empalidecer.
– Marcus!
– Estou indo – gritou Westcliff, e se virou para encarar o criado com um olhar ameaçador. –
Encontre alguém! Um médico! Uma parteira! Uma maldita curandeira! Apenas traga alguém... agora.
Enquanto Westcliff corria quarto adentro, o ar pareceu tremer e fumegar como depois da queda de um raio. Um trovão retumbou no céu lá fora, fazendo os candelabros chacoalharem e o chão vibrar.
O criado estava à beira das lágrimas.
– Dez anos servindo ao lorde e agora serei despedido...
– Volte a procurar o médico – disse Simon Hunt – e descubra se a perna dele está melhor. Se não estiver, pergunte se há algum aprendiz ou estudante de medicina que possa substituí-lo.
Nesse meio-tempo, irei a cavalo até a próxima vila procurar alguém.
Matthew Swift, até então em silêncio, perguntou em voz baixa:
– Que rumo seguirá?
– O leste – respondeu Hunt.
– Irei para o oeste.
Daisy olhou para Swift com surpresa e gratidão. A tempestade tornaria a missão perigosa, para não dizer desconfortável. O fato de Matthew estar disposto a realizá-la por Lillian, cuja aversão por ele não era nenhum segredo, o fez subir muito em seu conceito.
– Acho que só me resta o sul – disse lorde St. Vincent secamente. – Ela tinha que ter o bebê durante um dilúvio de proporções bíblicas?
– Prefere ficar aqui com Westcliff? – perguntou Simon Hunt em um tom sarcástico.
St. Vincent o olhou com contido divertimento.
– Vou pegar meu chapéu.
Duas horas depois da partida dos homens, o trabalho de parto de Lillian progredia. As dores se tornaram tão agudas que lhe tiravam o fôlego. Ela agarrou a mão do marido com uma força de esmagar ossos que ele não pareceu sentir. Westcliff foi paciente e tranquilizador, enxugando-lhe o rosto com um pano úmido e frio, dando-lhe goles de chá de agripalma e lhe massageando as pernas e costas para ajudá-la a relaxar.
Annabelle provou ser tão competente que Daisy duvidou que uma parteira pudesse ter feito melhor. Ela aplicava a garrafa de água quente nas costas e na barriga de Lillian e conversava com ela durante as contrações, lembrando-lhe de que se ela, Annabelle, conseguira sobreviver a isso, Lillian também conseguiria.
Lillian estremecia depois de cada forte contração. Annabelle lhe segurava firmemente a mão.
– Você não tem de ficar calada, querida. Grite ou xingue se isso ajudar.
Lillian balançou levemente a cabeça.
– Não tenho energia para gritar. Conservarei melhor minhas forças se ficar calada.
– Foi assim comigo também. Embora deva preveni-la de que as pessoas não sentirão muita compaixão de você se suportar isso estoicamente.
– Não quero compaixão – disse Lillian, ofegante, fechando os olhos enquanto outra contração se aproximava. – Só quero... que isto termine.
Lillian querendo ou não, era visível para Daisy que Westcliff estava repleto de compaixão pela esposa.
– Você não deveria estar aqui – disse Lillian para Westcliff quando a contração chegou ao fim. Ela agarrava sua mão como se fosse uma tábua de salvação. – Deveria estar lá embaixo andando de um lado para outro e bebendo.
– Meu Deus, mulher! – murmurou Westcliff, enxugando-lhe o rosto suado com um pano seco. – Eu fiz isso com você. Não vou deixá-la enfrentar as consequências sozinha.
Isso produziu um leve sorriso nos lábios secos de Lillian. Houve uma rápida e forte batida à porta e Daisy foi ver quem era. Abrindo-a alguns centímetros, viu Matthew Swift encharcado, enlameado e ofegante. Ela se encheu de alívio.
– Graças a Deus! – exclamou. – Ninguém voltou ainda. Encontrou alguém?
– Sim e não.
A experiência ensinara a Daisy que esse tipo de resposta raramente era seguida dos resultados desejados.
– O que isso quer dizer? – perguntou Westcliff cautelosamente.
– Ele subirá em um momento. Está se lavando. As estradas estavam enlameadas, com poças por toda parte, e trovejava como o inferno. Foi um milagre o cavalo não disparar ou quebrar uma pata.
Swift tirou seu chapéu e enxugou a testa com a manga de sua camisa, deixando um traço de sujeira em seu rosto.
– Mas o senhor encontrou um médico ou não? – insistiu Daisy, pegando uma toalha limpa em um cesto atrás da porta e a entregando para ele.
– Não. Os vizinhos disseram que o médico foi para Brighton e só volta daqui a duas semanas.
– E quanto a uma parteira?
– Ocupada – respondeu Swift. – Está ajudando duas outras mulheres na vila em trabalho de parto.
Daisy o olhou, confusa.
– Então quem trouxe?
Um homem calvo com olhos castanhos suaves apareceu ao lado de Swift. Ele estava molhado, mas limpo, pelo menos mais do que Swift, e parecia respeitável.
– Boa noite, senhorita – disse ele timidamente.
– O nome dele é Merritt – disse Swift para Daisy. – É veterinário.
– É o quê?
Embora a porta estivesse quase fechada, a conversa pôde ser ouvida pelas pessoas no quarto.
A voz aguda de Lillian foi ouvida da cama.
– Trouxe-me um médico de animais?
– Ele foi altamente recomendado – disse Swift.
Como Lillian estava coberta, Daisy abriu mais a porta, para que conseguisse ver o homem.
– Qual a sua experiência nisto? – perguntou Lillian para Merritt.
– Ontem ajudei no parto de uma fêmea de buldogue. E antes disso...
– O suficiente – apressou-se a dizer Westcliff quando Lillian apertou sua mão no início de outra contração. – Seja bem-vindo.
Daisy deixou o homem entrar e saiu com outra toalha limpa.
– Eu teria ido a outra vila – disse Swift rouca e pesarosamente. – Não sei se Merritt será útil, mas os pântanos e riachos transbordaram e as estradas estão inacessíveis. Além disso, não queria retornar sem ninguém.
Ele fechou os olhos por um momento. Pelo seu rosto cansado, Daisy podia concluir quanto a cavalgada na tempestade fora exaustiva.
Confiável, pensou Daisy. Enrolando uma ponta da toalha nos dedos, tirou a lama do rosto dele e enxugou a água da chuva retida na barba de um dia. Os pelos escuros no maxilar a fascinaram e ela teve vontade de acariciá-los com seus dedos nus.
Swift ficou parado com a cabeça inclinada para facilitar o serviço.
– Espero que os outros tenham mais sorte do que eu na busca de um médico.
– Talvez não voltem a tempo – respondeu Daisy. – As coisas progrediram rapidamente na última hora.
Ele moveu a cabeça para trás como se o toque suave em seu rosto o incomodasse.
– Não vai voltar para lá?
Daisy balançou a cabeça.
– Minha presença só atrapalharia. Lillian detesta ficar cercada de gente e Annabelle é muito mais capaz do que eu de ajudá-la. Mas vou esperar por perto no caso... no caso de Lillian chamar por mim.
Swift tirou a toalha da mão dela e a esfregou na nuca, onde a chuva havia ensopado seus grossos cabelos, tornando-os muito pretos e brilhantes.
– Voltarei logo – disse ele. Vou me lavar e vestir roupas secas.
– Meus pais e Lady St. Vincent estão esperando na sala Marsden – informou Daisy. – Pode ficar com eles. Será muito mais confortável do que esperar aqui.
Mas Swift não foi para a sala Marsden. Preferiu ir ao encontro de Daisy.
Ela estava sentada de pernas cruzadas no corredor, encostada na parede. Perdida em seus pensamentos, não notou a aproximação de Matthew. Com roupas limpas e os cabelos ainda molhados, ele ficou em pé olhando para ela.
– Posso?
Daisy não sabia ao certo o que ele estava perguntando, mas se viu assentindo com a cabeça.
Swift se sentou no chão com as pernas cruzadas em uma posição idêntica à dela. Daisy nunca havia se sentado assim com um cavalheiro e certamente não esperara fazê-lo com Matthew Swift. De uma maneira cortês, ele lhe entregou uma pequena taça cheia de um líquido denso cor de ameixa.
Recebendo-a com um pouco de surpresa, Daisy a levou ao nariz e o cheirou cautelosamente.
– Madeira – disse com um sorriso. – Obrigada. Embora seja um pouco prematuro comemorar, porque o bebê ainda não nasceu.
– Isso não é para comemorar. É para ajudá-la a relaxar.
– Como sabia qual era meu vinho favorito? – perguntou Daisy.
Ele encolheu os ombros.
– Foi um palpite.
Mas de algum modo Daisy sabia que aquilo não tinha sido sorte. Eles conversaram um pouco e depois houve um silêncio estranhamente amigável.
– Que horas são? – perguntava Daisy de vez em quando, e ele via em seu relógio de bolso.
Intrigada com o tinido dos objetos no bolso do paletó dele, Daisy pediu para ver o que havia dentro.
– Ficará desapontada – disse Swift pegando os objetos e colocando-os no colo dela para que os examinasse.
– É pior do que um furão – disse Daisy com um sorriso.
Havia um canivete e uma linha de pesca, algumas moedas, uma pena de caneta, um par de óculos, uma pequena lata de sopa da marca Bowman’s, é claro, e um envelope de papel encerado contendo pó de casca de salgueiro. Segurando o envelope com seus dedos polegar e indicador, Daisy perguntou:
– Sofre de dores de cabeça, Sr. Swift?
– Não, mas seu pai sofre sempre que recebe más notícias. E geralmente sou eu quem as dá.
Daisy riu e pegou uma diminuta caixa de prata contendo fósforos.
– Por que fósforos? Achei que não fumasse.
– Nunca se sabe quando fogo será necessário.
Daisy pegou um papel com alfinetes espetados e ergueu as sobrancelhas.
– Eu os uso para prender documentos – explicou ele. – Mas têm sido úteis em outras ocasiões.
– Há alguma emergência para a qual não esteja preparado, Sr. Swift?
– Srta. Bowman, se eu tivesse bolsos suficientes, poderia salvar o mundo.
O modo como ele disse isso, com uma espécie de ansiosa arrogância que visava diverti-la, fez ruir as defesas de Daisy. Ela riu e sentiu um ardor, mesmo sabendo que gostar dele não melhoraria nem um pouco a situação. Curvando-se, examinou um punhado de minúsculos cartões atados com um fio.
– Disseram-me para trazer negócios e cartões de visita para a Inglaterra – disse Swift. –
Embora eu não saiba bem que diferença isso faria.
– Nunca se deve entregar um cartão de visita para um inglês – advertiu-o Daisy. – Isso não é bem visto aqui. Sugere que se está tentando angariar fundos para alguma coisa.
– Geralmente estou.
Daisy sorriu. Encontrou outro objeto intrigante e o ergueu para inspecioná-lo. Um botão. Ela franziu a testa ao olhar para a frente do botão, com um moinho de vento gravado. Do outro lado havia um diminuto cacho de cabelos pretos atrás de um vidro fino fixado por um aro de cobre.
Swift empalideceu e estendeu a mão para pegá-lo, mas Daisy fechou sua mão ao redor do botão.
O pulso de Daisy começou a se acelerar.
– Já vi isto – disse. – Era parte de um conjunto. Minha mãe mandou fazer um colete para meu pai com cinco botões. Um tinha um moinho gravado, outro uma árvore, outro uma ponte...
Ela pôs um cacho de cabelos de cada um de seus filhos dentro de um botão. Lembro-me de que cortou o meu da nuca para que a falha não ficasse visível.
Ainda sem olhá-la, Swift recolheu e guardou os objetos metodicamente em seu bolso.
Enquanto o silêncio se prolongava, Daisy esperou em vão por uma explicação. Então segurou a manga do paletó de Matthew. Com o braço ainda imóvel, ele olhou para os dedos de Daisy sobre o tecido.
– Como conseguiu isso? – perguntou ela.
Swift ficou calado por tanto tempo que ela achou que não responderia. Com uma rispidez que fez o coração de Daisy dar um pulo, ele finalmente falou:
– Seu pai visitou os escritórios da empresa usando o colete. Foi muito admirado. Porém mais tarde, naquele mesmo dia, ficou de mau humor e derrubou um pouco de tinta em si mesmo. O
colete ficou arruinado. Em vez de enfrentar sua mãe com a notícia, ele o deu para mim, com botões e tudo, e me disse para jogá-lo fora.
– Mas guardou um botão. – Os pulmões de Daisy se expandiram até seu peito se enrijecer e seus batimentos cardíacos se tornarem frenéticos. – O do moinho. O meu. Guardou... guardou um cacho de meus cabelos durante todos esses anos?
Outro longo silêncio. Daisy nunca saberia se ele responderia, porque foram interrompidos pelo som da voz de Annabelle no corredor.
– Daaaisyyy!
Ainda segurando o botão, Daisy tentou ficar em pé. Swift se levantou com um movimento ágil e a ajudou, primeiro firmando-a, depois agarrando-a pelo pulso. Então estendeu sua mão livre e lhe lançou um olhar inescrutável.
Daisy percebeu que ele queria o botão de volta, e deixou escapar um riso de incredulidade.
– É meu – protestou ela.
Não porque quisesse o maldito botão, mas porque era estranho constatar que ele guardara consigo essa pequena parte dela durante anos. Daisy sentiu um pouco de medo do que isso significava.
Swift não se moveu ou falou, só esperou com paciência inabalável Daisy abrir a mão e deixar o botão cair na palma da dele. Então o enfiou no bolso de um jeito possessivo e a soltou.
Perplexa, Daisy correu para o quarto da irmã. Ao ouvir o choro de um bebê, prendeu a respiração de ansiedade e alegria. Só faltavam uns poucos metros, mas pareciam quilômetros.
Annabelle a esperava na porta, tensa e cansada, mas com um sorriso radiante. Segurava nos braços um pequeno volume envolto em lençóis e toalhas limpas. Daisy levou a mão à boca e balançou levemente a cabeça, rindo embora seus olhos ardessem em lágrimas.
– Ah, meu Deus! – disse, olhando para o rosto vermelho do bebê, os olhos escuros brilhantes e os cabelos pretos.
– Diga olá para sua sobrinha – disse Annabelle gentilmente, entregando-lhe o bebê.
Daisy o pegou com cuidado, impressionada com quanto era leve.
– Minha irmã...
– Lillian está bem – respondeu Annabelle. – Ela se saiu muito bem.
Murmurando palavras carinhosas para o bebê, Daisy entrou no quarto. Lillian estava com os olhos fechados, descansando, apoiada em uma pilha de travesseiros. Parecia muito pequena na grande cama, seus cabelos presos em duas tranças como os de uma menina. Westcliff estava ao seu lado com a expressão de um homem que acabara de lutar sozinho na batalha de Waterloo.
O veterinário estava no lavatório, ensaboando as mãos. Ela deu um sorriso amigável para ele.
– Parabéns, Sr. Merritt – disse. – Pelo visto acrescentou uma nova espécie ao seu repertório.
Lillian se mexeu ao ouvir a voz dela.
– Daisy?
Daisy se aproximou com o bebê nos braços.
– Ah, Lillian, ela é a coisinha mais linda que eu já vi.
Sua irmã sorriu sonolentamente.
– Também acho. Você poderia... – ela se interrompeu para bocejar – mostrá-la para a mamãe e o papai?
– Sim, claro. Qual será o nome do bebê?
– Merritt.
– Vai lhe dar o nome do veterinário?
– Ele provou ser muito útil – respondeu Lillian. – E Westcliff disse que eu posso.
O conde ajeitou as cobertas mais confortavelmente ao redor do corpo da esposa e lhe beijou a testa.
– Ainda não tem um herdeiro – sussurrou Lillian, seu sorriso se prolongando. – Acho que teremos de ter outro bebê.
– Não, não teremos – respondeu Westcliff. – Nunca mais vou passar por isso.
Divertida, Daisy olhou para a pequena Merritt, adormecida em seus braços.
– Eu a mostrarei para os outros – disse suavemente.
Ela saiu para o corredor e se surpreendeu ao vê-lo vazio. Matthew Swift se fora.
Na manhã seguinte, quando Daisy acordou, ficou muito aliviada quando soube que o Sr. Hunt e lorde St. Vincent tinham voltado em segurança para Stony Cross Park. St. Vincent acabou descobrindo que o caminho para o sul estava intransitável, mas o Sr. Hunt tivera mais sorte. Ele havia encontrado um médico em uma vila vizinha, mas o homem se recusara a cavalgar naquela perigosa tempestade. Aparentemente Hunt tivera de intimidá-lo o bastante para convencê-lo a ir.
Quando eles chegaram à mansão, entretanto, o médico examinou Lillian e Merritt e disse que ambas estavam em excelentes condições. Segundo sua avaliação, o bebê era pequeno mas perfeito, e tinha pulmões bem desenvolvidos.
Os convidados receberam a notícia do nascimento com alguns murmúrios pesarosos sobre o sexo do bebê. Mas ao verem o rosto de Westcliff quando ele segurou a filha recém-nascida e lhe sussurrou promessas de que lhe compraria pôneis, castelos e reinos inteiros, Daisy soube que ele não poderia estar mais feliz se Merritt fosse um menino.
Ao tomar café da manhã com Evie, Daisy experimentou emoções estranhas e confusas. Fora sua alegria pelo nascimento da sobrinha e por sua irmã estar bem, sentiu-se... nervosa. Aturdida.
Ansiosa.
Tudo por causa de Matthew Swift.
Daisy ficou grata por ainda não tê-lo visto. Depois de suas descobertas na noite passada, não sabia ao certo como reagiria a ele.
– Evie – implorou à amiga em voz baixa –, preciso falar com você. Pode passear comigo no jardim?
Agora que a tempestade terminara, uma fraca luz solar brilhava no céu cinzento.
– Claro. Embora haja muita lama lá fora.
– Andaremos pelos caminhos de cascalho. Mas precisa ser lá fora. É um assunto particular demais para ser discutido dentro de casa.
Evie arregalou os olhos e tomou seu chá tão rápido que devia ter queimado um pouco a língua.
O jardim estava revirado em virtude da tempestade, com folhas e plantas espalhadas por toda parte e galhos e ramos caídos no caminho geralmente imaculado. Mas o ar cheirava a terra e pétalas molhadas de chuva. Respirando aquele ar perfumado e revigorante, as duas amigas andaram a passos largos pelo caminho de cascalho. Amarraram seus xales ao redor de seus braços e ombros enquanto a brisa as empurrava para a frente com a impaciência de uma criança insistindo para que apressassem o passo.
Poucas vezes Daisy sentira um alívio tão grande como quando desabafou com Evie. Contou-lhe tudo que acontecera entre Matthew Swift e ela, inclusive o beijo, terminando com a descoberta do botão em seu bolso. Evie era a melhor ouvinte que Daisy já conhecera, talvez por causa de suas lutas contra a gagueira.
– Não sei o que pensar – disse Daisy tristemente. – Não sei como me sentir em relação a nada disso. Não sei por que o Sr. Swift parece diferente agora ou por que me sinto tão atraída por ele.
Era muito mais fácil odiá-lo. Mas na noite passada, quando vi aquele maldito botão...
– Nunca lhe ocorreu que ele podia sentir algo por você? – murmurou Evie.
– Não.
– Daisy, é possível que as ações do Sr. Swift tivessem sido premeditadas? Que ele a estivesse enganando e que o botão em seu bolso fosse algum tipo de tra-tramoia?
– Se você tivesse visto o rosto dele! Era óbvio que ele estava desesperado com a minha descoberta. Ah, Evie... – Pensativa, ela chutou um seixo. – Matthew Swift poderia ser tudo que eu quero em um homem?
– Mas se você se casasse com o Sr. Swift, ele a levaria de volta para Nova York – disse Evie.
– Sim, acabaria levando, e eu não posso ir. Não quero viver longe da minha irmã e de todas vocês. Adoro a Inglaterra. Sou mais eu mesma aqui do que jamais fui em Nova York.
Evie refletiu sobre o problema.
– E se o Sr. Swift considerasse a possibilidade de permanecer aqui?
– Ele não consideraria. Há muito mais oportunidades em Nova York. Caso decidisse permanecer aqui, ficaria em desvantagem por não ser um aristocrata.
– Mas se ele estivesse disposto a tentar... – insistiu Evie.
– Eu ainda não seria o tipo de esposa adequada para ele.
– Vocês dois precisam ter uma conversa direta – disse Evie decididamente. – O Sr. Swift é um homem maduro e inteligente e certamente não esperaria que você se transformasse em algo que não é.
– De qualquer forma, tudo isso é irrelevante – disse Daisy com tristeza. – Ele deixou claro que não pode se casar comigo em nenhuma circunstância. Essas foram suas palavras exatas.
– É a você que ele faz objeções ou à própria ideia de casamento?
– Eu não sei. Tudo que sei é que ele carrega no bolso um cacho de meus cabelos. Portanto, deve sentir algo por mim.
Lembrando-se do modo como os dedos de Swift tinham se fechado sobre o botão, ela sentiu um rápido e agradável arrepio descer por seu corpo.
– Evie, como saber se estamos apaixonados por alguém?
A amiga pensou na pergunta enquanto contornava uma sebe circular contendo uma explosão de prímulas multicoloridas.
– Estou certa de que eu de-deveria dizer algo inteligente e útil, mas a minha situação foi diferente da sua. St. Vincent e eu não esperávamos nos apaixonar.
– Sim, mas como você soube que estava apaixonada?
– Foi no momento em que percebi que ele estava disposto a morrer por mim. Acho que ninguém, inclusive St. Vincent, acreditava que ele fosse capaz desse sacrifício. Isso me ensinou que você pode achar que conhece muito bem uma pessoa, mas ela ainda pode su-surpreendê-la.
Tudo pareceu mudar de um momento para outro. Subitamente ele se tornou a pessoa mais importante para mim. Não, não importante... necessária. Ah, eu gostaria de ser boa com palavras...
– Eu entendo – murmurou Daisy, embora não entendesse tanto quanto se sentia melancólica.
Ela se perguntou se algum dia conseguiria amar um homem daquela maneira. Talvez tivesse dirigido suas emoções apenas à irmã e às amigas.... e não tivesse restado o suficiente para outra pessoa.
Elas chegaram a uma alta sebe de juníperos para além da qual havia um caminho de lajotas que margeava a mansão. Ao andarem para uma abertura na sebe, ouviram um par de vozes masculinas conversando. As vozes não eram altas. Na verdade, seu baixo volume revelava que algo secreto – e portanto intrigante – estava sendo discutido. Parando ao lado da sebe, Daisy fez um gesto para Evie ficar imóvel e calada.
–... não parece ser uma boa parideira – dizia um deles.
– Tímida? Pelo amor de Deus, a mulher tem coragem suficiente para escalar o Mont Blanc com um canivete e um rolo de corda. Terá filhos perfeitos e endiabrados!
Daisy e Evie se entreolharam com mútuo assombro. Elas reconheceram facilmente as duas vozes como sendo de lorde Llandrindon e Matthew Swift.
– Na verdade – disse Llandrindon –, tenho a impressão de que ela é uma garota voltada para a literatura. Um tanto metida a intelectual.
– Sim, ela adora livros. Acontece que também adora aventuras. Tem uma imaginação notável, um grande entusiasmo pela vida e uma constituição física férrea. Você não vai encontrar uma garota como ela em nenhum dos lados do Atlântico.
– Eu não tinha nenhuma intenção de procurar do seu lado – disse Llandrindon secamente. –
As garotas inglesas possuem todas as características que eu desejaria de uma esposa.
Daisy percebeu que eles estavam falando sobre ela e ficou boquiaberta. Sentiu-se dividida entre satisfeita pela descrição que Matthew fizera dela e indignada por ele tentar empurrá-la para Llandrindon, como se fosse um frasco de remédio no carrinho de um vendedor de rua.
– Eu preciso de uma mulher equilibrada – continuou Llandrindon –, caseira, sossegada...
– Sossegada? Que tal uma natural e inteligente? Que tal uma autoconfiante em vez de uma que tenta imitar um pálido ideal de mulher submissa?
– Tenho uma pergunta – disse Llandrindon.
– Se ela é tão maravilhosa, por que não se casa com ela?
Daisy prendeu a respiração, tentando ouvir a resposta de Swift. Para sua enorme frustração, a voz dele foi abafada pelos arbustos.
– Maldição – murmurou ela, e começou a segui-los.
Evie a puxou de volta para trás da sebe.
– Não – sussurrou categoricamente. – Não teste nossa sorte, Daisy. Foi um milagre eles não terem percebido nossa presença.
– Mas eu queria ouvir o resto!
– Eu também.
Elas arregalaram os olhos uma para a outra.
– Daisy – disse Evie pasma –, acho que Matthew Swift está apaixonado por você.
CAPÍTULO 10
Daisy não soube ao certo por que a ideia de Matthew Swift estar apaixonado por ela virou todo o seu mundo de cabeça para baixo. Mas virou.
– Se isso for verdade – perguntou para Evie, insegura –, por que ele está tão empenhado em me atirar nos braços de lorde Llandrindon? Seria muito fácil concordar com os planos do meu pai. Seria muito bem recompensado.
– Talvez ele queira saber se você também o ama.
– Não, a mente do Sr. Swift não funciona assim. Ele é um homem de negócios. Um predador. Se ele me desejasse, não pararia para pedir permissão, assim como um leão não perguntaria educadamente para um antílope se ele se importaria em ser seu almoço.
– Acho que vocês dois deveriam conversar – sugeriu Evie.
– Ah, o Sr. Swift só se esquivaria e diria meias verdades, como fez até agora. A menos...
– A menos que o quê?
– A menos que eu conseguisse encontrar um modo de fazê-lo baixar a guarda e ser honesto em relação aos seus sentimentos.
– Como?
– Não sei. Espere, Evie, você conhece os homens muito melhor do que eu. É casada. Vive rodeada por eles no clube. Qual é o modo mais rápido de levar um homem aos limites da sanidade e fazê-lo admitir algo que ele não quer?
Parecendo satisfeita com a imagem de si mesma como uma mulher experiente, Evie pensou na pergunta.
– Acho que deixá-lo com ciúmes. Tenho visto homens civilizados brigarem como cães pelos fa-favores de uma dama.
– Hummm. Gostaria de saber se seria possível provocar ciúmes no Sr. Swift.
– Acho que sim – disse Evie. – Afinal de contas, ele é homem.
À tarde, Daisy encurralou lorde Llandrindon quando ele estava entrando na biblioteca para recolocar um livro em uma das prateleiras inferiores.
– Boa tarde, milorde – disse alegremente, fingindo não notar o brilho de apreensão nos olhos dele.
Llandrindon forçou um sorriso simpático.
– Boa tarde, Srta. Bowman. Como estão sua irmã e o bebê?
– Muito bem, obrigada. – Daisy se aproximou e inspecionou o livro nas mãos dele. – História da cartografia militar. Bem, isso parece muito... intrigante.
– Ah, sim, é – garantiu-lhe Llandrindon. – E muito instrutivo. Embora eu tenha achado que algo foi perdido na tradução. Deve ser lido no original em alemão para que seja apreciado todo o significado da obra.
– Nunca lê romances, milorde?
Ele a encarou, horrorizado com a pergunta.
– Ah, não. Desde criança aprendi que só se deve ler livros que instruem a mente e melhoram o caráter.
Daisy ficou irritada com o tom superior dele.
– Que pena – disse por entre os dentes.
– Hummm?
– É bonito – corrigiu-se rapidamente Daisy, fingindo examinar a capa de couro gravada do volume. Ela lhe deu o que esperava ser um sorriso equilibrado. – É um ávido leitor, milorde?
– Tento nunca ser ávido em relação a nada. “Moderação em tudo” é um dos meus lemas preferidos.
– Eu não tenho nenhum lema. Se tivesse, acabaria contradizendo-o.
Llandrindon riu.
– Está admitindo que tem uma natureza inconstante?
– Prefiro considerá-la receptiva – disse Daisy. – Posso ver sabedoria em muitas crenças.
– Ah.
Daisy praticamente podia ler os pensamentos dele. Sua receptividade a colocava sob uma luz menos favorável.
– Eu gostara de saber mais sobre seus lemas, milorde. Talvez durante um passeio nos jardins?
– Eu... bem... – Era uma imperdoável ousadia uma garota convidar um homem para um passeio em vez de ele convidá-la. Contudo, a natureza cavalheiresca de Llandrindon não lhe permitiria recusar. – É claro, Srta. Bowman. Talvez amanhã...
– Agora seria bom – disse ela alegremente.
– Agora – foi a fraca resposta de Llandrindon. – Sim, ótimo.
Dando-lhe o braço antes que ele tivesse uma chance de oferecê-lo, Daisy o puxou na direção da porta.
– Vamos.
Sem ter outra escolha além de ser arrastado pela jovem decidida, Llandrindon logo se viu descendo uma das grandes escadas de pedra que levavam do terraço dos fundos para o terreno abaixo.
– Milorde – disse Daisy –, tenho algo a lhe confessar. Estou traçando um pequeno plano e esperava contar com sua ajuda.
– Um pequeno plano – respondeu ele nervosamente. – Minha ajuda. Certo. Isso é...
– Inofensivo, é claro – continuou Daisy. – Meu objetivo é atrair a atenção de um determinado cavalheiro que parece um pouco relutante em relação a me fazer a corte.
– Relutante?
A avaliação de Daisy da capacidade mental de Llandrindon caiu vários pontos quando ficou claro que tudo que ele conseguia fazer era repetir as palavras dela como um papagaio.
– Sim, relutante. Mas tenho a impressão de que por trás disso pode haver um sentimento diferente.
Llandrindon, geralmente tão elegante, tropeçou em uma parte irregular do caminho de cascalho.
– O que... o que lhe dá essa impressão, Srta. Bowman?
– Intuição feminina.
– Srta. Bowman, se eu disse ou fiz algo que lhe deu a impressão errada...
– Não me refiro ao senhor – disse Daisy sem rodeios.
– Não? Então a quem...
– Ao Sr. Swift.
A súbita alegria dele foi quase palpável.
– Sr. Swift. Sim. Sim. Srta. Bowman, ele lhe teceu elogios durante horas sem fim... não que tenha sido desagradável ouvir sobre seus encantos, é claro.
Daisy sorriu.
– Temo que o Sr. Swift continue relutante até acontecer algo que o motive a se revelar, como um faisão saindo de um campo de trigo. Mas se o senhor não se importar de dar a impressão de que realmente está interessado em mim, levando-me para um passeio de carruagem ou uma caminhada, ou me tirando uma ou duas vezes para dançar, isso poderá lhe dar a motivação necessária para se declarar.
– Será um prazer – disse Llandrindon, aparentemente achando o papel de conspirador muito mais interessante do que o de marido-alvo.
– Quero que adie sua viagem por uma semana.
Matthew, que naquele instante prendia cinco folhas de papel com um alfinete, acabou se espetando ao ouvir o pedido. Ignorando a diminuta gota de sangue no dedo, virou-se para Westcliff. O homem ficara incomunicável com sua esposa e filha recém-nascida por 36 horas.
De repente, decide aparecer na noite anterior à partida para Bristol e lhe dar uma ordem que não fazia sentido?
Matthew manteve sua voz sob rígido controle.
– Posso lhe perguntar por quê, milorde?
– Porque decidi acompanhá-lo. E meus compromissos não me permitirão partir amanhã.
Até onde Matthew sabia, os compromissos atuais do conde eram Lillian e o bebê.
– Não há nenhuma necessidade de que vá – retrucou ele, ofendido pela implicação de que não conseguiria lidar com as coisas sozinho. – Sei muito melhor do que ninguém dos vários aspectos do negócio e...
– Apesar disso, é um estrangeiro – disse Westcliff, seu rosto inescrutável. – E a menção do meu nome abrirá portas às quais não teria acesso.
– Se duvida das minhas habilidades de negociação...
– Essa não é a questão. Tenho total fé em suas habilidades, que na América seriam mais do que suficientes. Mas aqui, em um empreendimento dessa magnitude, precisará do apoio de alguém com alta posição social. Como eu.
– Não estamos na era medieval, milorde. Que o diabo me carregue se preciso participar de um circo com um nobre para tratar de um negócio.
– Também não gosto dessa ideia. Especialmente quando tenho uma filha recém-nascida e uma esposa que ainda não se recuperou do parto.
– Não posso esperar uma semana! – explodiu Matthew. – Já marquei reuniões. Combinei de me encontrar com todos, dos supervisores das docas aos donos da companhia de água local...
– Essas reuniões podem ser remarcadas.
– Haverá reclamações...
– A notícia de que eu o acompanharei na semana que vem será suficiente para abrandar essas reclamações.
Por parte de qualquer outro homem, uma afirmação dessas teria parecido arrogância. De Westcliff era a simples afirmação de um fato.
– O Sr. Bowman sabe disso? – perguntou Matthew.
– Sim. Ele concordou.
– O que devo fazer aqui durante uma semana?
O conde arqueou uma de suas sobrancelhas escuras à maneira de um homem cuja hospitalidade nunca fora questionada. Pessoas de todas as idades, nacionalidades e classes sociais imploravam por um convite para ir a Stony Cross Park. Provavelmente Matthew era o único na Inglaterra que não queria estar lá.
Ele havia passado tempo demais sem trabalhar de verdade – estava farto de diversões e conversas fúteis, belas paisagens, ar fresco do campo, paz e quietude. Droga, queria um pouco de atividade, ar urbano e barulho de tráfego nas ruas.
Acima de tudo, queria ficar longe de Daisy Bowman. Era uma tortura tê-la tão perto sem poder tocá-la. Era impossível tratá-la com cortesia quando sua cabeça estava cheia de imagens eróticas em que a segurava e a seduzia, sua boca encontrando as partes mais vulneráveis e doces do corpo dela. E isso era só o começo. Matthew queria horas, dias e semanas sozinho com Daisy... Queria todos os pensamentos, sorrisos e segredos dela. Liberdade para desnudar sua alma para ela.
Coisas que nunca poderia ter.
– Há muita diversão disponível na propriedade e em seus arredores – respondeu Westcliff. –
Se desejar um tipo particular de companhia feminina, sugiro que vá à taverna da vila.
Matthew já ouvira alguns convidados se gabarem de uma tarde passada na taverna com uma dupla de mulheres peitudas. Se ao menos ele pudesse se contentar com algo tão simples! Uma prostituta da vila em vez de uma irresistível mulher que lançara algum tipo de feitiço em sua mente e seu coração.
O amor deveria ser uma emoção vertiginosa que trazia felicidade. Como nos versos bobos dos cartões do Dia de São Valentim decorados com penas, pinturas e rendas. Mas seu amor por Daisy não era de modo algum assim. Era um sentimento torturante, febril e desolador. Era um vício que não podia ser vencido. Era puro desejo temerário.
E ele não era um homem temerário. Acabaria fazendo algo desastroso se ficasse mais tempo em Stony Cross.
– Vou para Bristol – disse desesperadamente. – Remarcarei as reuniões. Não farei nada sem sua autorização. Mas pelo menos poderei reunir informações, consultar a transportadora local, dar uma olhada nos cavalos deles...
– Swift – interrompeu-o o conde. Algo na voz calma dele, um tom de... bondade?
solidariedade?... fez Marcus se enrijecer defensivamente. – Entendo o motivo de sua urgência...
– Não, não entende.
– Entendo mais do que pode imaginar. E segundo a minha experiência, esses problemas não podem ser resolvidos fugindo. Nunca se consegue correr rápido ou para longe o suficiente.
Matthew ficou paralisado olhando para Westcliff. O conde poderia estar se referindo a Daisy ou ao seu passado manchado. Em ambos os casos, provavelmente estava certo.
Não que isso mudasse alguma coisa.
– Às vezes fugir é a única escolha – respondeu Matthew, e saiu da sala sem olhar para trás.
Matthew acabou não indo para Bristol. Sabia que lamentaria sua decisão. Só não tinha ideia de quanto. Ele se lembraria dos dias seguintes pelo resto da vida como uma semana de tortura.
Já havia passado pelo inferno antes, experimentado dor física, privação, quase inanição e um medo de gelar os ossos. Mas nenhum desses desconfortos chegara perto da agonia de ver Daisy Bowman ser cortejada por lorde Llandrindon.
As sementes que Swift havia plantado na mente de Llandrindon sobre os encantos de Daisy tinham criado raízes. Llandrindon não saía do lado dela: conversando, flertando, deixando seu olhar percorrê-la com ofensiva familiaridade. E Daisy parecia igualmente absorta, prestando atenção a cada palavra dele, parando tudo o que estava fazendo quando Llandrindon aparecia.
Na segunda, eles saíram para um piquenique particular.
Na terça, foram passear de carruagem.
Na quarta, foram colher campânulas.
Na quinta, pescaram no lago, voltando com as roupas molhadas e suas peles bronzeadas, rindo juntos de uma piada que não contaram para mais ninguém.
Na sexta, dançaram juntos em uma noite musical improvisada, parecendo tão sintonizados que um dos convidados observou que era um prazer vê-los juntos.
No sábado, Matthew acordou querendo matar alguém. Seu humor não melhorou com o comentário indigesto de Thomas Bowman depois do café da manhã.
– Ele está vencendo – resmungou Bowman, puxando Matthew para o escritório para uma conversa particular. – Aquele desgraçado escocês tem passado horas a fio com Daisy, esbanjando charme e dizendo todas as besteiras que as mulheres gostam de ouvir. Se você tivesse alguma intenção de se casar com minha filha, essa oportunidade estaria reduzida a quase zero.
Você tem feito o possível para evitá-la, anda taciturno e distante e ficou a semana inteira com uma expressão que assustaria criancinhas e animais. Sua noção de cortejar uma mulher confirma tudo que já ouvi falar sobre as pessoas de Boston!
– Talvez Llandrindon seja melhor para ela – disse Matthew impassivelmente. – Eles parecem ter desenvolvido uma afeição mútua.
– Não estamos falando de afeição, mas de casamento! – O alto da cabeça de Bowman começou a ficar vermelho. – Entende os interesses em jogo?
– Além dos financeiros?
– Que outros poderia haver?
Matthew lhe lançou um olhar sarcástico.
– O coração da sua filha. A felicidade dela. A...
– As pessoas não se casam para ser felizes, Matthew. Ou se casam e logo descobrem que o casamento é uma droga.
Apesar do mau humor, Matthew esboçou um sorriso.
– Se espera me motivar para o casamento – disse ele –, não está conseguindo.
– Isso não é motivação suficiente? – Pondo a mão no bolso de seu colete, Bowman pegou um dólar de prata e o lançou para cima com seu polegar. A moeda girou na direção de Matthew formando um arco prateado brilhante. Em um ato de reflexo, Matthew a apanhou, fechando-a na palma de sua mão. – Case-se com Daisy e terá mais do que isso. Mais do que um homem poderia gastar durante toda a vida.
Uma nova voz veio da porta e ambos olharam na direção dela.
– Que lindo!
Era Lillian, usando um vestido cor-de-rosa e um xale. Ela olhou para seu pai com algo semelhante a ódio, seus olhos escuros como obsidiana.
– Alguém em sua vida é mais do que um mero fantoche para o senhor, pai? – perguntou ela acidamente.
– Essa é uma conversa entre homens – retorquiu Bowman, corando de culpa, raiva ou uma mistura das duas. – Não é da sua conta.
– Daisy é da minha conta – disse Lillian com uma voz suave, mas fria. – Prefiro matá-los a deixar que a tornem infeliz.
Antes de seu pai poder responder, ela se virou e continuou a andar pelo corredor.
Praguejando, Bowman saiu da sala e seguiu na direção oposta.
Deixado sozinho no escritório, Matthew bateu a moeda com força na escrivaninha.
– Todo esse esforço por um homem que nem mesmo se importa – murmurou Daisy para si mesma, tendo pensamentos horríveis sobre Matthew Swift.
Llandrindon, sentado a alguns metros de distância na borda de uma fonte de jardim, esperava obedientemente ela desenhar seu retrato. Daisy nunca tivera muito talento para desenho, mas estava ficando sem ter o que fazer com Llandrindon.
– O que disse? – perguntou ele.
– Disse que seus cabelos são bonitos!
Llandrindon era um homem requintado, agradável, irrepreensível e convencional. Com tristeza, Daisy admitiu para si mesma que o esforço para deixar Matthew Swift louco de ciúmes só conseguira deixá-la louca de tédio.
Ela parou para levar as costas da mão aos lábios e conter um bocejo enquanto tentava parecer totalmente concentrada no desenho.
Essas tinham sido as piores semanas de sua vida. Dias seguidos de tédio mortal em que fingira se divertir na companhia de um homem que não poderia interessá-la menos. Não era culpa de Llandrindon, mas estava claro que eles não nunca teriam algo em comum.
Isso não parecia incomodá-lo. Ele era capaz de falar sobre praticamente nada durante horas.
Poderia ter enchido jornais inteiros com fofocas sobre pessoas que Daisy não conhecia. E fazia longos discursos sobre coisas inúteis, as cores perfeitas para a sala de caça em sua propriedade em Thurso ou os cursos que fizera depois da escola. Nunca parecia haver um sentido em nenhuma dessas histórias.
Além disso, ele não parecia interessado no que ela tinha a dizer. Não ria das histórias de suas brincadeiras da infância com Lillian. Se ela dizia algo como “olhe para aquela nuvem, é da forma exata de um galo”, ele a fitava como se estivesse louca.
Llandrindon também não gostava quando eles discutiam leis injustas. Em especial, ela questionava suas distinções entre os “pobres dignos” e os “pobres indignos”.
– Parece, milorde, que a lei visa punir aqueles que mais precisam de ajuda.
– Algumas pessoas são pobres porque suas próprias fraquezas morais as levaram a fazer escolhas erradas. Por isso, não se pode ajudá-las.
– Quer dizer, como as mulheres desonradas? Mas e se elas não tiveram nenhuma outra...?
– Não vamos discutir as mulheres desonradas – dissera ele, parecendo horrorizado.
As conversas com Llandrindon eram limitadas, na melhor das hipóteses. Especialmente porque ele achava difícil acompanhar as rápidas mudanças de assunto de Daisy. Muito depois de ela haver terminado de falar sobre algo, ele continuava a perguntar sobre isso.
– Achei que ainda estávamos falando do poodle da sua tia – dissera ele confuso naquela mesma manhã, ao que Daisy respondera impacientemente:
– Não, acabei de falar sobre isso cinco minutos atrás. Agora estava lhe falando sobre a ida à ópera.
– Mas como passamos do assunto do poodle para o da ópera?
Daisy lamentava ter envolvido Llandrindon em seu plano, principalmente porque isso se revelara ineficaz. Nem por um segundo Matthew Swift havia demonstrado ciúme. Ele mantivera sua costumeira expressão pétrea, mal a olhando durante dias.
– Por que está com o cenho franzido, querida? – perguntou Llandrindon, observando o rosto dela.
Querida? Ele nunca a havia tratado assim. Daisy o espiou por cima de seu bloco de desenho.
Ele a estava olhando de um modo que a deixou desconfortável.
– Fique quieto, por favor. Estou desenhando seu queixo.
Concentrada em seu desenho, Daisy achou que não estava de todo ruim, mas... a cabeça de Llandrindon tinha mesmo aquela forma de ovo? Os olhos dele eram tão juntos? Era estranho como uma pessoa podia parecer atraente, mas perdia seu encanto quando era examinada traço a traço. Ela concluiu que desenhar pessoas não era o seu forte. De agora em diante, se limitaria a desenhar plantas e frutas.
– Esta semana teve um efeito estranho sobre mim – pensou Llandrindon em voz alta. – Estou me sentindo... diferente. O que quero dizer é que estou me sentindo... maravilhosamente bem. –
Llandrindon a estava olhando daquele modo esquisito de novo. – Melhor do que nunca.
– Deve ser o ar do campo. – Daisy se levantou, alisou sua saia e foi até ele. – É muito revigorante.
– Não é o ar do campo que eu acho revigorante – disse Llandrindon em voz baixa. – É a senhorita.
Daisy ficou boquiaberta.
– Eu?
– Sim.
Ele se levantou e segurou os ombros dela. Surpresa, Daisy só conseguiu gaguejar:
– Eu... eu... milorde...
– Estes últimos dias em sua companhia me fizeram refletir muito.
Daisy se virou para olhar ao redor, observando as sebes bem podadas cobertas de rosas trepadeiras rosadas.
– O Sr. Swift está por perto? – sussurrou. – É por isso que está falando assim?
– Não, estou dizendo o que sinto. – Ardentemente, Llandrindon a puxou para mais perto até o bloco de desenho quase ser esmagado entre eles. – A senhorita me abriu os olhos e me fez ver tudo de um modo diferente. Quero encontrar formas nas nuvens e fazer algo sobre o qual valha a pena escrever um poema. Quero ler romances. Quero tornar a vida uma aventura...
– Que bom! – disse Daisy, contorcendo-se para se soltar dos braços fortes dele.
– Com a senhorita.
Ah, não.
– Está brincando – disse ela debilmente.
– Estou apaixonado – declarou ele.
– Não estou disponível.
– Estou decidido.
– Estou... surpresa.
– Minha pequena – exclamou ele. – É tudo que ele disse que era. Mágica. Tempestade e arco-íris. Inteligente, adorável e desejável...
– Espere. – Daisy o olhou, atônita. – Matthew... o Sr. Swift disse isso?
– Sim, sim, sim...
E antes de ela poder se mover, falar ou respirar, Llandrindon baixou a cabeça e a beijou. O
bloco de desenho caiu das mãos de Daisy. Ela permaneceu passiva, perguntando-se se sentiria alguma coisa.
Objetivamente falando, não havia nada de errado no beijo dele. Não era seco ou molhado demais, forte ou suave demais. Era... entediante.
Maldição. Daisy se afastou. Sentiu-se culpada por ter gostado tão pouco do beijo. E o fato de Llandrindon ter parecido apreciá-lo muito a fez se sentir ainda pior.
– Minha querida Srta. Bowman – murmurou ele, galante. – Não sabia que seus lábios eram tão doces.
Ele se aproximou de novo e Daisy deu um gritinho e um passo para trás.
– Milorde, controle-se!
– Não consigo.
Ele a seguiu ao redor da fonte até parecerem um par de gatos andando um atrás do outro.
Subitamente se precipitou para ela, segurando-lhe a manga do vestido. Daisy o empurrou com força e se soltou, sentindo a musselina branca macia se rasgar na costura do ombro.
Houve uma forte pancada na água e gotas a atingiram.
Daisy piscou ao ver o lugar vazio onde antes Llandrindon estivera e depois cobriu os olhos com as mãos como se isso de algum modo fosse mudar toda a situação.
– Milorde? – perguntou ela cautelosamente. – Caiu... caiu na fonte?
– Não – foi a resposta azeda dele. – A senhorita é que me empurrou para cá.
– Eu garanto que foi sem querer.
Llandrindon se levantou com os cabelos e as roupas pingando e os bolsos do casaco cheios de água. Ao menos, a queda na fonte lhe esfriara consideravelmente as paixões.
Ele a olhou em afrontado silêncio. De repente arregalou os olhos e pôs a mão em um dos bolsos cheios de água. Um pequeno sapo saltou e voltou para a fonte com um splash. Daisy tentou esconder seu divertimento, mas acabou explodindo em uma gargalhada.
– Sinto muito – disse cobrindo a boca com as mãos, incapaz de conter o riso. – Estou tão...
ah, querido... – E se curvou, chorando de tanto rir.
A tensão entre eles desapareceu quando Llandrindon esboçou um sorriso relutante. Ele saiu da fonte, todo o corpo pingando.
– Creio que, quando se beija um sapo, ele deveria se transformar em um príncipe – disse ele secamente. – Infelizmente no meu caso isso não parece ter acontecido.
Daisy sentiu uma onda de compaixão e bondade, embora ainda desse algumas risadas.
Aproximando-se com cuidado, pôs suas pequenas mãos nos dois lados do rosto molhado de Llandrindon e lhe deu um rápido e amigável beijo nos lábios.
Aquilo o fez arregalar os olhos.
– É o belo príncipe de alguém – disse Daisy, sorrindo-lhe pesarosamente. – Mas não o meu.
Quando a mulher certa o encontrar, ela terá muita sorte.
Então se curvou para pegar o bloco de desenho e voltou para a mansão.
Por um capricho do destino, o caminho que Daisy escolheu passava pela casa dos solteiros. A pequena residência ficava afastada da casa principal e perto o suficiente da ribanceira para fornecer uma vista magnífica da água. Agora que as caçadas haviam se encerrado, a casa estava vazia.
Exceto por Matthew Swift, é claro.
Perdida em seus pensamentos, Daisy seguiu pelo caminho ao lado do muro de pedra que margeava a ribanceira. Sentiu tristeza ao pensar no pai, determinado a casá-la com Matthew Swift... em Lillian, que queria que ela se casasse com qualquer um menos Swift... e na mãe, que não se contentaria com nada menos do que um nobre. Sua mãe não ficaria nada feliz quando soubesse que havia rejeitado Llandrindon.
Refletindo sobre a última semana, Daisy percebeu que sua tentativa de atrair a atenção de Matthew não fora um jogo para ela. Aquilo era muito importante. Ela nunca quisera tanto algo em sua vida quanto a chance de falar com ele franca e honestamente, sem esconder nada. Mas, em vez de trazer à tona os sentimentos dele, só conseguira descobrir os dela.
Quando estava com Matthew, sentia a promessa de algo mais maravilhoso e excitante do que tudo que lera ou sonhara.
Algo real.
Era incrível como um homem que ela sempre havia considerado frio e sem paixão se revelara tão gentil, sensual e terno. Um homem que carregara no bolso um cacho de seus cabelos. Ao perceber a aproximação de alguém, Daisy ergueu os olhos e sentiu todo o seu corpo tremer.
Matthew estava vindo a passos largos da mansão, parecendo triste e abatido.
Um homem com pressa, mas sem nenhum lugar para ir.
Ele parou assim que a viu, seu rosto sem qualquer expressão. Eles se olharam no silêncio pesado. Daisy fechou a cara. Era isso ou se atirar para ele e começar a chorar. A intensidade de seu desejo a chocou.
– Sr. Swift – disse tremulamente.
– Srta. Bowman.
Ele parecia querer estar em qualquer lugar menos ali. Daisy se contraiu de ansiedade quando ele estendeu a mão para pegar o bloco de desenho. Sem pensar, ela permitiu. Matthew apertou os olhos ao ver o bloco, aberto no desenho de Llandrindon.
– Por que o desenhou com barba? – perguntou.
– Isso não é uma barba – disse Daisy sucintamente. – É um sombreado.
– Parece que ele não se barbeia há três meses.
– Não pedi sua opinião sobre meu trabalho artístico – disparou Daisy. Ela agarrou o bloco, mas Matthew se recusou a entregá-lo. – Solte-o ou irei...
– Irá o quê? Fazer um retrato meu? – Matthew soltou o bloco tão inesperadamente que a fez cambalear alguns passos para trás. – Não. Tudo menos isso.
Daisy se precipitou para a frente e bateu com o bloco no peito dele. Odiava se sentir tão viva com ele. Odiava o modo como seus sentidos absorviam a presença de Matthew como a terra absorvia a chuva. Odiava seu rosto bonito, seu corpo viril e sua boca tentadora.
O sorriso de Matthew desapareceu quando seu olhar deslizou sobre ela e se fixou na costura rasgada no ombro.
– O que houve com seu vestido?
– Não foi nada. Tive uma espécie de... desentendimento com lorde Llandrindon.
Esse foi o modo mais inocente em que Daisy conseguiu pensar para descrever o encontro, que obviamente fora inofensivo. Ela estava certa de que não poderia haver nenhuma conotação chocante na palavra “desentendimento”.
Contudo, parecia que a definição de Swift dessa palavra era muito mais ampla do que a dela.
Subitamente sua expressão se tornou sombria e assustadora, e seus olhos azuis brilharam.
– Vou matá-lo – disse Matthew em uma voz gutural. – Ele ousou... Onde ele está?
– Não, não. Não foi assim... – Largando seu bloco de desenho, ela o abraçou usando todo o seu peso para contê-lo enquanto ele se dirigia ao jardim. Era como tentar conter um touro furioso. Nos primeiros passos, foi carregada por ele. – Espere! O que lhe dá o direito de agredi-lo?
Respirando pesadamente, Matthew parou e olhou para o rosto corado dela.
– Ele a tocou? Ele a forçou a...
– É um estraga-prazeres – gritou Daisy furiosamente. – Não me quer e não admite que ninguém mais queira. Deixe-me em paz e volte aos seus planos de construir sua maldita grande fábrica e ganhar rios de dinheiro! Espero que se torne o homem mais rico do mundo. Espero que obtenha tudo que quer e, um dia, olhe ao redor e se pergunte por que ninguém o ama e...
Ele a calou com um forte e punitivo beijo. Um arrepio a percorreu e Daisy virou o rosto, ofegante. Dessa vez os lábios de Matthew foram mais suaves, movendo-se com sensual urgência em busca do encaixe perfeito. O coração de Daisy disparou, bombeando sangue quente de paixão em suas veias dilatadas. Ela tentou agarrar os pulsos musculosos de Matthew, as pontas de seus dedos sentindo os batimentos dele, tão fortes quanto os dela.
Toda vez que Daisy achava que o beijo terminaria, Matthew a beijava com mais intensidade.
Ela reagia febrilmente, seus joelhos ficando fracos até que temeu cair no chão.
Interrompendo o contato entre os lábios deles, Daisy conseguiu dizer em um sussurro angustiado:
– Matthew, leve-me para algum lugar.
– Não.
– Sim. Eu preciso... preciso ficar a sós com você.
Ofegando, Matthew a abraçou e puxou contra seu peito rijo. Ela o sentiu pressionando fortemente os lábios contra seus cabelos.
– Não confio tanto assim em mim.
– Só quero conversar. Por favor. Não podemos ficar expostos dessa maneira. Se me deixar agora, eu morrerei.
Mesmo confuso e excitado, Matthew não pôde evitar rir daquela afirmação dramática.
– Não, não morrerá.
– Apenas para conversarmos – repetiu Daisy, agarrando-se a ele. – Eu não vou... não vou tentá-lo.
– Querida – sussurrou ele roucamente. – Você me tenta apenas estando no mesmo cômodo que eu.
Daisy sentiu um calor na garganta. Percebendo que insistir o empurraria na direção oposta, ela se calou. Apertou-se contra ele, deixando a comunicação silenciosa de seus corpos convencê-lo.
Com um gemido, Matthew segurou a mão dela e a puxou para a casa dos solteiros.
– Deus ajude a nós dois se alguém nos vir.
Daisy ficou tentada a brincar dizendo que ele seria forçado a se casar com ela, mas manteve a boca fechada e subiu depressa a escada com Matthew.
CAPÍTULO 11
Estava frio e escuro dentro da casa, adornada com painéis de pau-rosa e repleta de móveis pesados. As janelas estavam cobertas por cortinas de veludo com franja de seda. Ainda segurando a mão de Daisy, Matthew a conduziu para um cômodo nos fundos.
Quando passou pela porta, ela percebeu que era o quarto dele. Sua pele formigou de excitação sob o espartilho apertado. O quarto estava arrumado, cheirando a cera de abelha e madeira polida. A janela, coberta por uma cortina de renda cor de creme, deixava a luz do dia entrar.
Havia alguns artigos cuidadosamente arrumados sobre a cômoda: uma escova de cabelos, uma escova de dentes e latas de pó dental e sabão. No lavatório, uma navalha e um amolador.
Nada de pomadas, ceras, colônias, cremes, alfinetes de gravata ou anéis. Dificilmente ele poderia ser descrito como um dândi.
Matthew fechou a porta e se virou para ela. Ele parecia muito grande no pequeno quarto.
Daisy ficou com a boca seca ao olhar para ele. Queria estar perto de Matthew... Queria sentir a pele dele na sua.
– O que há entre você e Llandrindon? – perguntou Matthew.
– Nada. Apenas amizade. Isto é, da minha parte.
– E da parte dele?
– Eu suspeito... bem, ele pareceu indicar que não se oporia a... você sabe.
– Sim, eu sei – disse Matthew em uma voz grossa. – E embora eu não suporte o desgraçado, não posso culpá-lo. Não depois do modo como você o provocou a semana inteira.
– Se está tentando dizer que eu tenho agido como uma mulher sedutora...
– Não tente negar isso. Eu vi o modo como tem flertado com ele. O modo como se inclinava quando conversavam... Os sorrisos, os vestidos provocantes...
– Vestidos provocantes? – perguntou Daisy confusa.
– Como esse.
Daisy olhou para seu vestido branco que lhe cobria todo o peito e a maior parte dos braços.
Uma freira não poderia encontrar nenhum defeito nele. Ela o encarou sarcasticamente.
– Há dias estou tentando deixá-lo com ciúmes. Teria me poupado muito esforço se tivesse admitido isso logo.
– Estava tentando me deixar com ciúmes? – explodiu ele. – O que em nome de Deus achou que conseguiria com isso? Ou me tirar do sério é sua ideia de diversão?
Um súbito rubor cobriu o rosto de Daisy.
– Achei que talvez você sentisse algo por mim... e esperava fazê-lo admitir isso.
Matthew abriu e fechou a boca, mas pareceu não conseguir falar. Daisy se perguntou o que ele estaria sentindo. Depois de alguns instantes, ele balançou a cabeça e se encostou na cômoda, como se precisasse se apoiar.
– Está zangado? – perguntou Daisy apreensivamente.
– Dez por cento de mim está – respondeu ele com uma voz estranha e entrecortada.
– E os outros noventa por cento?
– Estão a ponto de atirá-la na cama e... – Matthew se interrompeu e engoliu em seco. –
Daisy, você é inocente demais para entender o perigo que corre. Preciso de todo o meu autocontrole para não tocá-la. Estou no meu limite. Para dirimir quaisquer dúvidas que possa ter... tenho ciúmes de qualquer homem que esteja a menos de 3 metros de você. Tenho ciúmes das roupas em sua pele e do ar que você respira. Tenho ciúmes de cada momento em que não a vejo.
Pasma, Daisy sussurrou:
– Você... você certamente não deu nenhum sinal disso.
– Ao longo dos anos colecionei mil lembranças suas, cada olhar, cada palavra que nunca me disse. Todas aquelas visitas à casa da sua família, todos aqueles jantares e feriados... Eu mal podia esperar para entrar pela porta e vê-la. – Os lábios de Matthew se curvaram em um sorriso enquanto ele se lembrava. – Você, no meio daquele bando de cabeças-duras... Adoro observar como lida com sua família. Você sempre foi tudo o que eu achava que uma mulher deveria ser. E eu a tenho desejado desde que nos conhecemos, em todos os segundos da minha vida.
Daisy se encheu de arrependimento.
– Eu nunca fui ao menos gentil com você – disse tristemente.
– Foi bom não ter sido. Se tivesse, eu provavelmente me incendiaria ali mesmo. – Matthew a deteve com um gesto quando ela se aproximou. – Não. Não. Como já lhe disse, não posso me casar com você em nenhuma circunstância. Isso não vai mudar. Mas não tem nada a ver com quanto a quero. – Seus olhos brilhavam como safira derretida quando ele os deslizou pelo corpo esguio de Daisy. – Meu Deus, como a quero!
Daisy sentiu um forte desejo de se atirar nos braços dele.
– Eu também quero você. Tanto que acho que não posso deixá-lo ir sem saber por quê.
– Se fosse possível explicar meus motivos, acredite em mim, a esta altura eu já teria explicado.
Daisy se forçou a fazer a pergunta que mais temia:
– Já é casado?
Matthew a encarou.
– Por Deus, não!
Ela ficou aliviada.
– Então para tudo tem solução, se me disser...
– Se você fosse um pouco mais experiente – disse Matthew –, não diria coisas assim. – Ele se dirigiu ao outro lado do cômodo, claramente abrindo caminho para a porta.
Então ficou em silêncio por um longo momento, como se pensando em algo sério. Daisy permaneceu imóvel e calada, sustentando seu olhar. Tudo o que podia fazer era ter paciência. Ela esperou sem dizer uma só palavra ou ao menos piscar.
Matthew desviou o olhar, assumindo uma expressão distante. Seus olhos se tornaram duros e frios como placas de cobalto polido.
– Muito tempo atrás, fiz um inimigo, embora não por culpa minha. Em virtude da influência dele, fui forçado a sair de Boston. E tenho bons motivos para acreditar que esse homem um dia voltará para me assombrar. Eu vivo com essa espada pendurada sobre a minha cabeça há anos.
Não quero você perto de mim quando ela cair.
– Mas deve haver algo que possa ser feito – disse Daisy ansiosamente, determinada a enfrentar esse inimigo desconhecido com todos os meios à sua disposição. – Se me explicar melhor, me disser o nome dele...
– Não – disse Matthew em voz baixa, mas com uma determinação que a fez se calar. – Fui o mais honesto que pude com você, Daisy. Espero que não traia a minha confiança. Agora está na hora de você ir.
– Assim? – perguntou ela em choque. – Depois de tudo o que acabou de me dizer, quer que eu vá embora?
– Sim. Tente não deixar ninguém vê-la.
– Não é justo só você falar e não me deixar...
– A vida raramente é justa. Até para uma Bowman.
Pensamentos passaram rapidamente pela mente de Daisy enquanto ela olhava para o perfil decidido de Matthew. Isso não era apenas obstinação da parte dele. Era convicção. Ele não havia deixado nenhum espaço para argumentos, nenhuma possibilidade de negociação.
– Então devo procurar Llandrindon? – perguntou ela, esperando provocá-lo.
– Sim.
Daisy franziu o cenho.
– Eu gostaria que você fosse coerente. Alguns minutos atrás, estava prestes a fazer picadinho dele.
– Se você o quer, não tenho nenhum direito de me opor.
– Se você me quer, tem todo o direito de dizer alguma coisa! – Daisy se dirigiu à porta. – Por que todos sempre falam que as mulheres são ilógicas, quando os homens são cem vezes mais?
Primeiro querem, depois não querem. Tomam decisões irracionais baseados em segredos que se recusam a revelar e ninguém deve questioná-los porque a última palavra é deles.
Ao estender o braço para a maçaneta, Daisy viu a chave na fechadura e sua mão parou no meio do caminho. Ela olhou para Matthew, firmemente plantado do outro lado do cômodo para manter uma distância segura entre eles.
Embora Daisy fosse a mais calma dos Bowmans, não era de modo algum covarde. E não aceitaria a derrota sem lutar.
– Está me obrigando a tomar medidas desesperadas.
– Não há nada que possa fazer – respondeu Matthew brandamente.
Ele não lhe deixara nenhuma escolha. Daisy girou a chave na maçaneta e a retirou com cuidado. O clique soou anormalmente alto no silêncio do quarto. Calmamente, Daisy afastou do peito o corpete de seu vestido e segurou a chave acima da estreita abertura.
Matthew arregalou os olhos ao entender o que ela ia fazer.
– Você não vai...
Enquanto começava a rodear a cômoda, Daisy soltou a chave, certificando-se de que cairia dentro do espartilho. Ela encolheu a barriga e a cintura até sentir o metal frio deslizar até seu umbigo.
– Maldição! – Matthew a alcançou com surpreendente rapidez. Estendeu a mão para tocá-la e depois recuou como se tivesse encostado em fogo. – Tire-a daí – ordenou, seu rosto cheio de indignação.
– Não posso.
– Estou falando sério, Daisy!
– Caiu fundo demais. Vou ter de tirar meu vestido.
Era óbvio que Matthew queria matá-la. Mas ela também podia sentir a força de seu desejo.
Ele ofegava e seu corpo irradiava um calor abrasador.
– Não faça isso comigo – disse Matthew em um sussurro que continha a ferocidade de um rugido.
Daisy esperou pacientemente. O próximo movimento foi dele.
Matthew lhe deu as costas, as costuras de seu casaco se esticando sobre seus músculos contraídos. Ele fechou as mãos, tentando se controlar. Quando falou, sua voz pareceu grossa como se ele tivesse acabado de acordar de um sono pesado:
– Tire seu vestido.
Tentando não irritá-lo mais do que o necessário, Daisy respondeu em um tom pesaroso:
– Não consigo fazer isso sozinha. Está abotoado atrás.
Matthew disse algo em uma voz abafada que pareceu muito grosseiro. Depois de um longo silêncio, ele se virou de frente para ela. Seus maxilares pareciam forjados em ferro.
– Posso resistir a você, Daisy. Tenho anos de prática. Vire-se.
Daisy obedeceu. Quando ela inclinou a cabeça para a frente, pôde sentir o olhar dele percorrer a interminável fileira de botões de pérola.
– Como consegue se despir? – murmurou ele. – Nunca vi tantos botões em uma roupa.
– Está na moda.
– É ridículo.
– Você pode enviar uma carta de protesto para Godey’s Lady’s Book – sugeriu ela.
Com um sorriso de desdém, Matthew começou pelo botão de cima. Tentou soltá-lo, ao mesmo tempo evitando contato com o corpo dela.
– Será mais fácil se você deslizar seus dedos para debaixo da casa – sugeriu Daisy. – E
depois soltar o botão...
– Quieta – disparou ele.
Daisy parou de falar. Matthew lutou com os botões por mais um minuto. Com um grunhido de exasperação, seguiu o conselho de Daisy, deslizando dois dedos entre o vestido e a pele.
Quando ela sentiu os nós dos dedos dele no alto de sua coluna, um calafrio de prazer desceu por suas costas.
O progresso de Matthew foi lento.
– Posso me sentar, por favor? – perguntou com suavidade. – Estou cansada de ficar em pé.
– Não há onde se sentar.
– Sim, há. – Afastando-se dele, Daisy tentou subir na cama com dossel. Infelizmente era uma Sheraton antiga alta, feita para evitar correntes de ar no inverno e permitir a colocação de outra cama por baixo. O colchão ficava na altura de seus seios. Ela tentou se erguer e pôr os quadris no colchão.
Foi vencida pela gravidade.
– Geralmente há uma escada... para camas desta altura – disse Daisy, com os pés pendurados. Ela se agarrou na colcha. Esforçando-se para pôr um dos joelhos na beira do colchão, continuou: – Meu Deus... se alguém caísse daqui à noite... o tombo seria fatal.
Ela sentiu as mãos de Matthew ao redor de sua cintura.
– A cama não é tão alta – disse ele. Ele a ergueu como se ela fosse uma criança e a pôs no colchão. – Você é que é baixa.
– Eu não sou baixa. Sou... desfavorecida verticalmente.
– Certo. Sente-se reta.
O peso de Matthew fez o colchão baixar atrás de Daisy e ele voltou a pôr as mãos nas costas do vestido. Sentindo o ligeiro tremor dos dedos de Matthew contra sua pele, Daisy reuniu coragem para comentar:
– Eu nunca tinha me sentido atraída por homens altos. Mas você me faz sentir...
– Se não ficar quieta – interrompeu-a ele sucintamente –, vou estrangulá-la.
Daisy se calou, ouvindo a respiração de Matthew se tornar mais profunda, menos controlada.
Os dedos dele se tornaram mais seguros de sua tarefa, trabalhando ao longo da fileira de pérolas até o vestido se abrir e as mangas escorregarem pelos ombros de Daisy.
– Onde está? – perguntou Matthew.
– A chave?
O tom dele foi assassino.
– Sim, Daisy. A chave.
– Eu a sinto dentro do meu espartilho. O que significa... que terei de tirá-lo também.
Não houve nenhuma reação à frase, nenhum som ou movimento. Daisy se virou para olhar para Matthew.
Ele parecia atordoado. Seus olhos estavam muito azuis em contraste com seu rosto vermelho.
Daisy percebeu que ele travava uma violenta batalha interior para não tocá-la.
Sentindo-se excitada e com vergonha, Daisy tirou os braços das mangas. Abaixou o vestido até os quadris, deixando as finas camadas brancas deslizarem e se amontoarem no chão.
Matthew olhou para o vestido como se fosse algum tipo de fauna exótica que nunca vira.
Lentamente voltou a olhar para Daisy e emitiu um incoerente protesto quando ela começou a abrir o espartilho.
Daisy se sentiu tímida e perversa se despindo na frente dele. Mas foi encorajada pelo modo como Matthew parecia incapaz de tirar os olhos de cada centímetro de pele branca revelada.
Quando o último gancho de metal foi solto, ela atirou o emaranhado de renda e fitas no chão.
Tudo o que restou sobre seus seios foi uma fina camisola amarrotada.
A chave caíra em seu colo. Fechando os dedos ao redor do objeto de metal, ela arriscou um olhar cauteloso para Matthew. Ele estava com os olhos fechados, a testa franzida de dolorosa concentração.
– Isso não vai acontecer – disse mais para si mesmo do que para ela.
Daisy se inclinou para a frente para pôr a chave no bolso do casaco dele. Segurando a bainha da camisola, tirou-a pela cabeça e sentiu seu corpo nu formigar. Estava tão nervosa que começou a bater os dentes.
– Acabei de tirar minha camisola – disse. – Não quer olhar?
– Não.
Mas seus olhos tinham se aberto e encontrado os seios pequenos com mamilos rosados, e ele suspirou por entre dentes cerrados. Ficou imóvel, olhando-a enquanto ela desfazia o nó de sua gravata e desabotoava o colete e a camisa. Daisy, ruborizada, continuou obstinadamente, ajoelhando-se para afastar o casaco dos ombros dele.
Matthew se moveu como se estivesse sonhando, tirando os braços das mangas do casaco e colete. Daisy abriu a camisa dele com desajeitada determinação, apreciando a visão do peito e do tórax. A pele de Matthew brilhava como cetim, firme sobre a ampla extensão de seus músculos.
Ela tocou no pronunciado arco das costelas, passando os dedos no abdome rijo e musculoso.
De repente Matthew segurou sua mão, indeciso sobre se a afastaria ou aproximaria mais. Ela curvou os dedos sobre os dele e olhou nos olhos azuis dilatados.
– Matthew – sussurrou. – Estou aqui. Sou sua. Quero que faça tudo o que já imaginou fazer comigo.
Ele prendeu a respiração. Seu autocontrole foi abalado e ruiu. Nada mais importava além do desejo que lhe fora negado por tanto tempo. Com um rouco gemido de rendição, ele a sentou em seu colo. O calor atravessou as camadas das roupas deles e Daisy ofegou quando a fenda suave de seu corpo se deparou com uma rigidez desconhecida.
Matthew a beijou, deslizando as mãos por seu corpo. Quando chegou à curva firme do seio, Daisy sentiu seu sangue pulsar freneticamente e seu desejo se tornar agudo. Ela tentou pôr as mãos sob a camisa dele e tirá-la.
Ele a deitou na cama e parou para tirar a camisa, revelando os contornos magníficos do peito e dos ombros. Abaixou o corpo sobre o de Daisy e ela gemeu de prazer ao sentir a pele dele nua.
O cheiro familiar e delicioso de pele masculina limpa a envolveu. Matthew tomou sua boca com beijos sensuais, acariciando ternamente seu corpo seminu. Com o polegar, descreveu lentamente um círculo sobre um mamilo, fazendo-o intumescer e ficar mais escuro até Daisy se arquear em indefesa súplica.
Entendendo o mudo pedido, ele se inclinou e tomou o mamilo na boca, sugando-o de leve e excitando-o com a língua. Daisy gemeu e tremeu em seus braços. Seus nervos enviaram mensagens eróticas pelo seu corpo enquanto Matthew beijava o outro mamilo até deixá-lo muito rosado e úmido.
– Sabe o que eu quero de você? – ouviu-o perguntar roucamente. – Sabe o que vai acontecer se não pararmos?
– Sim. Não sou tão inocente quanto você pensa – disse Daisy com seriedade. – Sei muito bem ler.
Matthew virou o rosto e ela teve a impressão de que ele estava contendo um sorriso. Então a olhou de novo com muita ternura.
– Daisy Bowman – disse tremulamente. – Eu trocaria uma eternidade no inferno por uma hora com você.
– É o tempo que isso dura? Uma hora?
– Querida, a esta altura seria um milagre se durasse um minuto – disse ele pesarosamente.
Daisy pôs os braços ao redor do pescoço dele.
– Você tem de fazer amor comigo – disse-lhe. – Se não fizer, nunca deixarei de me queixar disso.
Matthew a aconchegou contra o corpo, beijou-lhe a testa. Ficou em silêncio durante tanto tempo que Daisy temeu que fosse rejeitá-la. Mas então ele desceu a mão devagar pelo seu corpo e seu coração deu um pulo de excitação. Matthew enrolou nos dedos as fitas de suas calçolas e as puxou para afrouxá-las.
A respiração de Daisy se tornou difícil, fazendo sua barriga subir e descer. Ela se encheu de vergonha quando ele pôs a mão sob o frágil tecido. Estava tocando em seus pelos púbicos.
Brincava com os cachos suaves, a ponta do dedo anelar roçando em um lugar tão sensível que ela se sobressaltou. Olhando para seu rosto corado, Matthew se afastou.
– Daisy, meu amor – sussurrou. – Você é tão macia... tão delicada... onde devo tocá-la?
Aqui... ou aqui?
– Aí – soluçou ela quando Matthew a tocou no ponto certo. – Sim... ah, aí...
A boca de Matthew se moveu em beijos quentes do pescoço até o seio de Daisy, enquanto ele deslizava os dedos para mais fundo entre as pernas dela. Quando a massageou intimamente, Daisy se tornou consciente de uma desconcertante umidade naquele lugar secreto. Não havia esperado por isso, o que a fez se perguntar se estava tão bem informada quanto pensava.
Consternada, começou a dizer algo, mas se calou ao sentir o dedo de Matthew penetrando-a.
Aquilo era algo que também não havia esperado.
Matthew ergueu a cabeça do seio dela, seus olhos cheios de um ardor lânguido. Observou o rosto de Daisy enquanto explorava o interior do corpo dela com uma leve massagem que a levou a um nível de prazer insuportável. Ela se arqueou para cima e gemeu ansiosamente, retribuindo os beijos com incontrolável fervor.
– Gosta disso? – sussurrou ele.
– Sim, eu... – Ela tentou falar entre indefesos gemidos. – Achei... que ia doer.
– Isto não. – Matthew esboçou um sorriso. – Mas depois pode ter um motivo para se queixar.
Seu rosto brilhava de suor enquanto ele sentia a pulsação do corpo de Daisy ao redor de seu dedo explorador. – Não sei se conseguirei ser gentil. Eu a desejei por tempo de mais.
– Confio em você – sussurrou ela.
Matthew balançou a cabeça, tirando seu dedo de dentro dela.
– Você tem um péssimo julgamento. Está na cama com o último homem no mundo em que deveria confiar e prestes a cometer o maior erro de sua vida.
– Esse é seu jogo de sedução?
– Achei que deveria lhe dar um último aviso. Agora está perdida.
– Ah, bom.
Daisy se moveu para ajudá-lo enquanto ele tirava suas roupas de baixo e as meias. Ela arregalou os olhos quando Matthew começou a desabotoar as calças. Com curiosidade e timidez, estendeu a mão para ajudá-lo. Os lábios de Matthew tremeram quando ele sentiu a mão pequena e fria de Daisy deslizar para dentro de suas calças. Ela o acariciou cuidadosamente, descobrindo-lhe o comprimento e a rigidez e adorando o modo como o corpo dele tremia.
– Como devo tocá-lo? – sussurrou.
Matthew balançou a cabeça com um sorriso trêmulo.
– Daisy... é melhor não me tocar como fez agora.
– Fiz errado? – perguntou ela, preocupada.
– Não, não... – Ele a abraçou, beijando-lhe o rosto, a orelha e os cabelos. – Fez muito bem.
Deitou-a novamente sobre os travesseiros e a acariciou com delicadeza. Despiu-se e foi para cima dela. Daisy estremeceu ao sentir as deliciosas texturas daquele corpo, a pele lisa, suave e quente. Havia tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo que não conseguia assimilar tudo: a umidade, o calor da boca de Matthew, os dedos longos e sedutores, o roçar dos cabelos dele em seus seios e sua barriga.
A língua sedosa de Matthew girando em seu umbigo a deixou incendiada. Vagamente consciente da área que percorria, Daisy se retesou. Sem perceber o que provocava nela, ele continuou, descendo mais até Daisy dar um gritinho abafado e empurrar sua cabeça.
– O que foi? – perguntou Matthew apoiando-se em seus cotovelos.
Vermelha de vergonha, ela mal conseguiu explicar:
– Estava perto demais da minha... Bem, você sem querer...
A voz de Daisy foi se tornando abafada e então a compreensão foi visível nos olhos de Matthew. Ele baixou rapidamente a cabeça para esconder sua expressão e seus ombros estremeceram. Respondeu com grande cuidado, ainda sem olhar para ela:
– Não foi sem querer. Eu queria fazer isso.
Daisy ficou atônita.
– Mas ia me beijar bem em minha... – Ela se interrompeu ao ver os olhos azuis sorridentes dele.
Matthew não estava nem um pouco envergonhado – estava se divertindo.
– Você não está chocada, está? Achei que fosse bem informada.
– Bem, ninguém jamais escreveria sobre algo assim.
Ele encolheu os ombros, seus olhos brilhando.
– Você é uma autoridade literária.
– Está caçoando de mim.
– Apenas um pouco – sussurrou Matthew.
Daisy agitou as pernas tentando se soltar e ele as segurou. Ela começou a falar nervosamente até sentir a boca de Matthew chegar ao seu quadril.
– Em a-alguns romances que li há certas partes, é claro. – Daisy tomou fôlego ao sentir os dentes dele lhe mordiscando a parte interna da coxa. – Mas... acho que foram escritas de modo tão metafórico que não entendi mu-muito bem... Ah, por favor, acho que não deveria fazer isso...
– E isto?
– Definitivamente não. – Ela se contorceu, tentando escapar.
Mas Matthew havia posto as mãos atrás de seus joelhos e os afastado enquanto fazia coisas perversas com a língua. Daisy começou a tremer quando ele encontrou o ponto sensível em que tocara antes. A boca de Matthew era macia, quente e exigente, sugando-a até o prazer inundá-la daquele lugar em que a possuía. Quando ela lhe implorou para parar, ele a atormentou ainda mais, lambendo e explorando mais fundo até Daisy atingir o clímax e gritar de estonteante alívio.
Depois de um longo tempo, Matthew se moveu para cima e a abraçou. Em um ímpeto, ela o cingiu com os braços e as pernas. Ele se acomodou entre suas pernas abertas, tremendo com o esforço para ser gentil. Subitamente investiu, murmurando palavras amorosas junto ao seu pescoço e tentando acalmá-la enquanto a penetrava mais fundo.
Quando estavam totalmente unidos, Matthew ficou parado, tentando não lhe causar mais dor.
Ele estava com uma forte ereção e Daisy teve a curiosa sensação de estar sendo possuída. Sabia que preenchia a mente e o coração de Matthew enquanto ele preenchia seu corpo. Querendo lhe dar o mesmo prazer que recebera, arqueou os quadris.
– Daisy... não, espere...
Ela arqueou os quadris de novo, e de novo, tentando se aproximar mais. Matthew gemeu e começou a penetrá-la mais fundo em um ritmo sutil. Ele a beijou com paixão e estremeceu com a intensidade de seu clímax.
Depois ambos ficaram calados por alguns minutos enquanto Matthew a abraçava, com a cabeça dela contra seu ombro. Então ele se afastou cuidadosamente e, quando ela protestou, sussurrou-lhe para ficar quieta.
– Deixe-me cuidar de você.
Daisy não entendeu o que Matthew queria dizer, mas estava tão enfraquecida que permaneceu deitada com os olhos fechados enquanto ele saía da cama. Logo ele voltou com um pano úmido e limpou o suor do corpo dela e a parte dolorida entre as coxas.
Quando Matthew deitou ao seu lado, Daisy se aconchegou e suspirou de prazer enquanto ele puxava as cobertas para cobri-los. Ela encostou o ouvido em seu peito, ouvindo os fortes batimentos de seu coração.
Supôs que deveria sentir vergonha de ter se trancado no quarto de Matthew e ter pedido para que ele a seduzisse. Em vez disso, sentia-se triunfante. E estranhamente insegura, como se estivesse à beira de um novo tipo de intimidade que ia além da intimidade física.
Queria saber tudo sobre Matthew – nunca sentira tamanha curiosidade sobre alguém. Mas talvez devesse ter um pouco de paciência até ambos terem tempo de se ajustar à nova situação.
Enquanto o calor de seus corpos se misturava sob as cobertas, Daisy sentiu uma profunda necessidade de dormir. Nunca havia imaginado como era bom ficar deitada quieta nos braços de um homem sentindo seu cheiro e sua força.
– Não durma. Temos de sair daqui.
– Não estou dormindo. Só estou... – Ela parou para dar um grande bocejo –... descansando meus olhos.
– Só por um minuto.
Ele acariciou os cabelos dela e toda a extensão das costas. Foi suficiente para fazê-la mergulhar em um doce e escuro esquecimento.
Daisy acordou com o som da chuva batendo no telhado e sentindo uma brisa úmida entrando pela janela aberta. O tempo de Hampshire decidira esfriar à tarde com um inesperado aguaceiro, do tipo que não durava mais de uma hora e deixava a terra esponjosa e perfumada.
Pestanejando, Daisy registrou o ambiente desconhecido, a cama masculina... a estranheza de um corpo musculoso nu às suas costas. E a respiração de alguém em seus cabelos. Ela se retesou, surpresa, desejando saber se Matthew estava acordado. A respiração dele não havia se alterado, mas seus olhos se abriram... e ele sorriu.
Pouco a pouco, Matthew deslizou o braço sobre seu corpo. Gentilmente, puxou-a para si e ambos ficaram observando a chuva em silêncio. Daisy tentou se lembrar de se alguma vez já se sentira tão segura e satisfeita. Nunca, concluiu. Nada poderia se comparar a isso.
Sentindo-a sorrir contra seu braço, Matthew murmurou:
– Você gosta de chuva.
– Sim. – Ela explorou com os dedos a superfície peluda da perna dele, impressionada com quanto a panturrilha era longa. – Algumas coisas são melhores quando chove. Como ler. Dormir.
Ou isto.
– Ficar deitada na cama comigo? – Ele pareceu divertido.
Daisy assentiu com a cabeça.
– É como se nós dois fôssemos as únicas pessoas no mundo.
Ele passou os dedos pela clavícula e pela lateral do pescoço dela.
– Eu a machuquei, Daisy? – sussurrou.
– Bem, foi um pouco desconfortável quando você... – Ela parou e corou. – Mas eu esperava isso. Minhas amigas me disseram que melhora depois da primeira vez.
Os dedos de Matthew perambularam para a orelha e a bochecha quente de Daisy. Ele disse com uma voz sorridente:
– Farei tudo o que puder para isso.
– Está arrependido?
Ela fechou a mão enquanto esperava, tensa, pela resposta.
– Meu Deus, não! – Ele beijou a pequena mão de Daisy, a abriu e a pôs aberta sobre a lateral de seu rosto. – Isso foi o que eu mais quis em toda a minha vida. E a única coisa que sabia que nunca poderia ter. Estou surpreso. Até mesmo chocado. Mas de modo algum arrependido.
Daisy se virou e se aconchegou no corpo dele, colocando uma das coxas entre as dele.
A chuva batia com força e entrava um pouco pela janela. Considerando a ideia de sair da cama, Daisy estremeceu e sentiu Matthew cobrir seu ombro nu.
– Daisy – perguntou ele –, onde está a chave?
– Eu a pus no bolso do seu casaco – respondeu ela. – Não viu? Não? Bem, acho que naquela hora você estava distraído. – Ela passou a mão pelo peito de Matthew, acariciando-lhe o mamilo.
– Deve estar zangado comigo por ter nos trancado no quarto.
– Furioso – concordou ele. – Insisto que você faça isso todas as noites depois que nos casarmos.
– Vamos nos casar? – sussurrou Daisy, erguendo a cabeça.
O olhar de Matthew era cálido, mas não havia nenhuma satisfação em sua voz.
– Sim, vamos. Embora algum dia você vá me odiar por isso.
– Por que eu iria... ah. – Daisy se lembrou do que ele lhe dissera sobre a possibilidade de seu passado vir à tona. – Eu nunca o odiaria. Não tenho medo de seus segredos, Matthew. Eu os enfrentarei com você. Embora deva saber que é exasperante você fazer esses comentários e se recusar a explicá-los.
Matthew deu uma súbita risada.
– Esse é apenas um dos muitos motivos pelos quais você me acha exasperante.
– É verdade. – Daisy se arrastou para cima dele e esfregou o nariz em seu peito como uma gatinha curiosa. – Mas gosto mais dos homens exasperantes do que dos agradáveis.
Ele franziu suas sobrancelhas escuras.
– Como Llandrindon?
– Sim, ele é muito mais agradável do que você. – Experimentando sensações, Daisy pôs a boca no mamilo dele e o tocou com a língua. – Sente o mesmo que eu sinto quando faz isso comigo?
– Não. Embora aprecie seu esforço. – Matthew ergueu o rosto dela. – Llandrindon a beijou?
Ela assentiu com a cabeça lentamente.
– Só uma vez.
O ciúme foi perceptível na voz dele.
– Você gostou?
– Queria ter gostado. Tentei gostar. – Ela fechou os olhos e virou sua bochecha na palma da mão dele. – Mas não foi nada parecido com seus beijos.
– Daisy – sussurrou Matthew, virando-a até aconchegá-la novamente junto a ele. – Eu não queria que isso acontecesse. – Seus dedos investigaram os ângulos delicados de seu rosto, a curva sorridente de seus lábios. – Mas agora parece impossível eu ter me contido por tanto tempo.
Daisy estremeceu sob aquelas carícias.
– Matthew, o que vai acontecer agora? Falará com meu pai?
– Ainda não. Para manter pelo menos uma aparência de decoro, esperarei até voltar de Bristol. A essa altura a maioria dos hóspedes terá partido e a família terá mais privacidade para lidar com essa situação.
– Meu pai ficará muito feliz. Mas minha mãe terá um ataque de raiva. E Lillian...
– Explodirá.
Daisy suspirou.
– Meus irmãos também não gostam muito de você.
– Sério? – disse ele com fingida surpresa.
Preocupada, Daisy olhou para seu rosto sombrio.
– E se você mudar de ideia? E se voltar e me disser que estava enganado, que não quer se casar comigo e...
– Não – disse Matthew, acariciando-lhe os cabelos desgrenhados. – Não há volta. Eu tirei sua inocência. Não fugirei da minha responsabilidade.
Daisy franziu o cenho, sem gostar da escolha das palavras.
– Qual é o problema? – perguntou ele.
– O modo como você falou... como se tivesse de reparar um erro terrível. Não é a coisa mais romântica de se dizer, especialmente nas atuais circunstâncias.
– Ah. – Subitamente Matthew sorriu. – Não sou um homem romântico, querida. Você já sabia disso. – Ele baixou a cabeça, beijou o pescoço de Daisy e mordiscou sua orelha. – Mas sou responsável por você agora. – Ele desceu até o ombro. – Por sua segurança... seu bem-estar...
seu prazer... e levo minhas responsabilidades muito a sério...
Ele beijou os seios dela, sugando os mamilos para o calor de sua boca. Sua mão afastou as coxas de Daisy e brincou gentilmente entre elas.
Daisy deixou escapar um gemido de prazer e ele sorriu.
– Adoro ouvir seus gemidos – murmurou ele. – Quando a toco assim... e assim... e quando se arqueia para mim...
Com o rosto ardendo, Daisy tentou ficar quieta, mas um momento depois ele lhe arrancou outro gemido.
– Matthew...?
Ela curvou os dedos dos pés ao senti-lo deslizar para baixo, a língua fazendo cócegas em seu umbigo. A voz de Matthew foi abafada pelas cobertas sobre sua cabeça.
– O que é, tagarela?
– Você vai fazer... – Ela se interrompeu com um gritinho quando ele lhe afastou os joelhos –
... o que fez antes?
– Pelo visto, sim.
– Mas nós já...
A questão de por que ele queria fazer amor com ela duas vezes seguidas de repente foi esquecida. Daisy percebeu que ele investigava sua delicada virilha e as partes internas de suas pernas, e se sentiu fraca. Ele a mordiscou habilmente... a acariciou devagar com a língua... brincou com a abertura dolorida de seu corpo... e subiu até encontrar um lugar que a fez ofegar e gemer.
Matthew a provocou com enlouquecedora delicadeza, afastando-se devagar e depois voltando com lambidas quentes e rápidas... ela puxou a cabeça dele para entre suas coxas e a manteve ali, arqueando-se, tremendo e pulsando de prazer.
Matthew a levou a um nível impossível de arrebatamento, acima da tempestade, do próprio céu... Quando Daisy voltou a si, estava nos braços dele, o som afável da chuva primaveril acalmando os batimentos do seu coração.
CAPÍTULO 12
Como a maior parte dos convidados iria embora na manhã seguinte, o jantar daquela noite foi longo e elaborado. Duas longas mesas com cristais e porcelanas brilhavam à luz de candelabros.
Um exército de criados de libré nas cores azul, mostarda, preto e dourado se moviam habilmente ao redor dos convidados, enchendo taças de água e vinho e os servindo com silenciosa precisão.
Era um jantar magnífico. Infelizmente, Daisy nunca estivera menos interessada em comer.
Era uma pena não poder fazer justiça à refeição, com salmão escocês grelhado, costeletas assadas fumegantes, perna de veado acompanhada de salsichas e timos e caçarolas de vegetais cobertas de creme, manteiga e trufas. De sobremesa havia luxuosas travessas de frutas – framboesa, nectarina, cereja, pêssego e abacaxi –, assim como uma profusão de bolos, tortas e syllabubs.
Daisy se forçou a comer, rir e conversar do modo mais natural possível. Mas não era fácil.
Matthew estava sentado a alguns lugares de distância, do outro lado da mesa, e sempre que seus olhares se encontravam ela quase engasgava.
A conversa fluía ao seu redor e Daisy reagia distraída, enquanto sua mente permanecia focada na lembrança do que acontecera algumas horas antes. Quem a conhecia bem, como a irmã e suas amigas, notou essa mudança de comportamento. Até mesmo Westcliff lhe lançara alguns olhares curiosos.
Daisy sentiu calor na sala iluminada e abafada e ela corou. Seu corpo estava muito sensível.
As roupas de baixo a irritavam, o espartilho era insuportável e as meias lhe apertavam as coxas.
Sempre que se movia, havia lembretes da tarde com Matthew: dor entre as pernas, pontadas e contrações em lugares inesperados. Contudo, seu corpo queria mais... as mãos e a boca irrequieta de Matthew, a rigidez dentro dela...
Sentindo seu rosto queimar de novo, Daisy se dedicou a passar manteiga em um pedaço de pão. Ela olhou para Matthew, que conversava com uma dama à sua esquerda.
Sentindo o olhar furtivo de Daisy, Matthew olhou em sua direção. As profundezas de seus olhos azuis arderam de paixão e seu peito se moveu enquanto ele respirava profundamente.
Então voltou sua atenção para a dama, concentrando-se nela com um interesse lisonjeiro que a fez rir.
Daisy levou aos lábios uma taça de vinho com água e se forçou a prestar atenção em uma conversa à sua direita... algo sobre uma excursão aos distritos do lago e às Terras Altas da Escócia. Contudo, logo voltou a se concentrar em sua própria situação.
Não lamentava sua decisão, mas não era ingênua a ponto de acreditar que tudo seria fácil dali em diante. Pelo contrário. Havia a questão de onde viveriam, quando Matthew a levaria de volta para Nova York. Ela conseguiria ser feliz longe de sua irmã e de suas amigas? Seria uma esposa adequada para um homem que habitava um mundo em que ela nunca conseguira se encaixar? E que tipo de segredos Matthew escondia?
Mas Daisy se lembrou do tom suave e vibrante na voz dele quando dissera: “Você sempre foi tudo que eu achava que uma mulher deveria ser.”
Matthew era o único homem que a desejara sem querer mudar quem ela era. (Sem falar em Llandrindon, mas a paixão dele surgira um pouco rápido demais e provavelmente desapareceria com igual rapidez.)
Seu casamento com Matthew não seria diferente do de Lillian com Westcliff: duas pessoas voluntariosas com sensibilidades muito diferentes. Eles discutiriam e negociariam com frequência. Contudo, isso não enfraqueceria seu casamento. Pelo contrário, só o tornaria mais forte.
Ela pensou nos casamentos de suas amigas... Annabelle e o Sr. Hunt eram uma harmoniosa combinação de temperamentos parecidos. Evie e lorde St. Vincent, de naturezas opostas, se complementavam, assim como o dia e a noite precisavam um do outro para existir. Era impossível dizer que qualquer um desses casamentos era melhor do que o dos outros.
Talvez, apesar de tudo que ouvira sobre o ideal de um casamento perfeito, isso não existisse.
Talvez cada casamento fosse único. Esse era um pensamento confortador.
E a encheu de esperança.
Depois do jantar interminável, Daisy alegou dor de cabeça para não suportar o ritual de chá e fofocas. Na verdade, isso não era de todo mentira – a combinação de luz, barulho e tensão emocional fizera suas têmporas latejarem. Com um sorriso sofrido, ela pediu licença e se dirigiu à grande escada.
Mas ao chegar ao saguão principal, ouviu a voz da irmã.
– Daisy? Quero falar com você.
Daisy conhecia Lillian bem o suficiente para perceber o nervosismo na voz dela. Sua irmã mais velha estava receosa e preocupada e queria discutir exaustivamente todos os problemas.
Mas ela estava muito cansada para isso.
– Agora não, por favor – disse com um sorriso tranquilizador. – Pode esperar até mais tarde?
– Não.
– Estou com dor de cabeça.
– Eu também, mas vamos conversar mesmo assim.
Daisy se sentiu à beira da exasperação. Não parecia demais pedir à irmã um pouco de paz depois de todos os anos de apoio e lealdade inquestionáveis.
– Vou para a cama – disse, seu olhar firme desafiando a irmã a se opor. – Não quero explicar nada, especialmente quando é óbvio que você não tem nenhuma intenção de ouvir. Boa noite. –
Vendo o olhar chocado no rosto de Lillian, acrescentou gentilmente: – Eu amo você.
E, ficando nas pontas dos pés, beijou-lhe a bochecha e foi para a escada. Lillian resistiu a tentação de segui-la. Sentiu alguém tocando em seu cotovelo, se virou e viu Annabelle e Evie, ambas parecendo solidárias.
– Ela não quer falar comigo! – exclamou Lillian.
Evie, que costumava hesitar em tocá-la, lhe deu o braço.
– Va-vamos para a estufa – sugeriu.
A estufa era de longe o lugar preferido de Lillian. Tinha longas paredes de vidro e o chão pontuado de grades de ferro que deixavam o calor das fornalhas abaixo se espalhar pelo ambiente. Laranjeiras e limoeiros exalavam um aroma cítrico, enquanto uma estrutura interna repleta de plantas tropicais acrescentava exóticas fragrâncias ao ambiente.
Encontrando um pequeno grupo de cadeiras, as três amigas se sentaram. Os ombros de Lillian se curvaram quando ela disse mal-humorada:
– Acho que eles fizeram aquilo.
– Quem fez o quê? – perguntou Evie.
– Daisy e o Sr. Swift – murmurou Annabelle com um toque de divertimento. – Estamos pensando que eles podem ter tido... conhecimento carnal um do outro.
Evie pareceu perplexa.
– Por que estão pensando isso?
– Bem, você estava sentada à outra mesa, querida, por isso não pôde ver, mas no jantar houve... – Annabelle ergueu as sobrancelhas significativamente –... olhares.
– Ah. – Evie encolheu os ombros. – Então daria no mesmo se eu estivesse à sua mesa. –
Nunca fui muito boa em perceber olhares.
– Eram olhares óbvios – disse Lillian sombriamente. – Não podia ter sido mais claro se o Sr.
Swift tivesse subido na mesa e feito um anúncio.
– O Sr. Swift nunca seria tão vulgar – retrucou Evie. – Mesmo sendo americano.
Lillian contorceu o rosto em uma careta feroz.
– O que aconteceu com “eu nunca seria feliz casada com um frio homem de negócios”? O
que aconteceu com “quero que sempre fiquemos juntas”? Maldição, não posso acreditar que Daisy fez isso! Tudo estava indo tão bem com lorde Llandrindon! O que deu nela para dormir com Matthew Swift?
– Duvido que tenham dormido – respondeu Annabelle com um brilho nos olhos.
Lillian estreitou os dela.
– Se você tem o mau gosto de achar graça nisso, Annabelle...
– Daisy nunca se interessou por lorde Llandrindon – apressou-se a dizer Evie, tentando evitar uma briga. – Ela só o estava usando para provocar ciúmes no Sr. Swift.
– Como você sabe? – perguntaram as outras duas ao mesmo tempo.
– Bem, eu... – Evie fez um gesto de desamparo com as mãos. – Na semana passada eu ma-mais ou menos inadvertidamente su-sugeri que ela tentasse deixá-lo com ciúmes. E deu certo.
Lillian fez um esforço violento para conseguir falar.
– De todas as asneiras, idiotices e imbecilidades...
– Por quê, Evie? – perguntou Annabelle em um tom bem mais gentil.
– Daisy e eu por acaso ouvimos o Sr. Swift fa-falando com lorde Llandrindon. Ele estava tentando co-convencê-lo a cortejá-la, e ficou óbvio que ele a desejava.
– Aposto que ele planejou isso – disparou Lillian. – De algum modo ele sabia que vocês o ouviriam. Isso foi um uma trama diabólica e sinistra, e vocês participou dela!
– Acho que não – respondeu Evie, olhando para o rosto carmesim de Lillian: – Vai gritar comigo?
Lillian balançou a cabeça e segurou o rosto com as mãos.
– Eu gritaria como um demônio, se soubesse que isso ajudaria. Mas como estou bastante certa de que Daisy teve intimidade com aquela cobra, provavelmente não há mais nada que se possa fazer para salvá-la.
– Talvez ela não queira ser salva – salientou Evie.
– Porque perdeu totalmente o juízo! – grunhiu Lillian.
Annabelle assentiu com a cabeça.
– Obviamente. Daisy dormiu com um homem bonito, jovem, rico e inteligente que pelo visto está apaixonado por ela. O que em nome de Deus ela poderia estar pensando? – Ela sorriu ao ouvir a resposta profana de Lillian e pôs a mão gentilmente no ombro da amiga. – Querida, como você bem sabe, houve um tempo em que eu não me importava se me casaria com um homem que amasse ou não... Parecia suficiente tirar minha família da situação desesperada em que estávamos. Mas soube que Simon era a única escolha quando pensei em como seria dividir uma cama com meu marido. – Ela parou e súbitas lágrimas brilharam em seus olhos. A bela e controlada Annabelle raramente chorava. – Quando eu estiver doente, quando sentir medo e precisar de alguma coisa, sei que ele moverá céu e terra para fazer tudo ficar bem. Confio nele com todas as fibras do meu ser. E quando vejo nossa filha, nós dois unidos para sempre nela...
Meu Deus, como fico grata por ter me casado com Simon! Todas nós pudemos escolher nossos maridos, Lillian. Você tem de deixar Daisy fazer o mesmo.
Daisy agitou sua mão irritadamente.
– Ele não é do mesmo calibre de nenhum de nossos maridos. Nem mesmo como St. Vincent, que pode ter sido libertino e mulherengo, mas pelo menos tem coração. – Ela parou e murmurou:
– Sem querer ofender, Evie.
– Está bem – disse Evie, seus lábios tremendo como se ela estivesse tentando conter uma risada.
– A verdade – disse Lillian com preocupação – é que sou totalmente a favor de Daisy ter liberdade de escolha, desde que não faça a errada.
– Querida... – começou Annabelle em uma cuidadosa tentativa de corrigir uma falha em sua lógica, mas Evie a interrompeu.
– Eu a-acho que Daisy tem o direito de cometer um erro. Tudo que podemos fazer é ajudá-la.
– Não poderemos ajudá-la se ela estiver na maldita Nova York! – retorquiu Lillian.
Depois disso, Evie e Annabelle não discutiram mais com ela, concordando tacitamente em que havia alguns problemas que meras palavras não podiam resolver e alguns temores que não podiam ser aplacados. Elas fizeram o que as amigas fazem nessas situações: sentaram-se com Lillian em amigável silêncio e a abraçaram.
Um banho quente ajudou a acalmar o corpo e os nervos de Daisy. Sentindo-se renovada, vestiu uma camisola branca e começou a escovar seus cabelos enquanto duas criadas levavam a banheira.
As cerdas percorreram seus cabelos até a cintura, formando um brilhante rio de ébano. Ela olhou para a noite úmida de primavera pela porta aberta do balcão. O céu sem estrelas estava da cor de ameixa.
Sorrindo distraidamente, ouviu o clique da porta do quarto às suas costas. Presumindo que uma das criadas voltara para buscar uma toalha ou a saboneteira, continuou a olhar para fora.
Subitamente sentiu um toque em seu ombro seguido do calor da mão grande de alguém deslizando por seu peito. Ela se sobressaltou e foi puxada para trás contra um duro corpo masculino.
A voz grave de Matthew lhe fez cócegas no ouvido.
– No que você está pensando?
– Em você, é claro. – Daisy se apoiou nele, seus dedos subindo para lhe acariciar o antebraço peludo até a beira da manga da camisa, enrolada para cima. Então voltou a olhar para a fora. –
Este quarto pertencia a uma das irmãs do conde – observou. – Eu soube que o amante dela, um cavalariço, costumava escalar a parede até a varanda para visitá-la. Como Romeu.
– Espero que a recompensa tenha valido o risco – disse Matthew.
– Você correria esse risco por mim?
– Se fosse o único modo de estar com você. Mas não faz nenhum sentido escalar dois andares até o balcão quando há uma ótima porta disponível.
– Usar a porta não é tão romântico.
– Quebrar o pescoço também não é.
– Como você é prático! – disse Daisy com uma risada, virando-se em seus braços. As roupas de Matthew cheiravam a ar livre, com um traço acre de tabaco. Ele devia ter saído para o terraço dos fundos com alguns dos cavalheiros após o jantar. Aconchegando-se mais, Daisy sentiu o cheiro familiar de pele limpa e goma de camisa. – Adoro seu cheiro. Se eu entrasse com os olhos vendados em uma sala onde havia cem homens, poderia encontrá-lo imediatamente.
– Outro jogo de salão? – disse Matthew, e eles riram juntos. Daisy segurou a mão dele e o puxou para a cama.
– Venha se deitar comigo.
Matthew balançou a cabeça, resistindo.
– Só ficarei por alguns minutos. Westcliff e eu partiremos ao amanhecer. – Seu olhar deslizou avidamente pela camisola branca. – E se chegarmos perto dessa cama, não resistirei a fazer amor com você.
– Eu não me importaria com isso – disse Daisy timidamente.
Ele a puxou para seus braços e a abraçou.
– Não tão cedo depois da primeira vez. Você precisa descansar.
– Então por que está aqui?
Daisy sentiu a bochecha de Matthew roçar no alto de sua cabeça. Mesmo depois de tudo que acontecera, parecia impossível que Matthew Swift a estivesse abraçando com tanta ternura.
– Eu só queria lhe dar boa noite – sussurrou ele.
Daisy o olhou indagadoramente e ele lhe roubou um beijo como se não tivesse conseguido se conter.
– Não precisa se preocupar com a possibilidade de eu mudar de ideia sobre me casar com você. Na verdade, de agora em diante terá muita dificuldade em se livrar de mim.
– Sim – disse Daisy sorrindo. – Sei que você é confiável.
Forçando-se a soltá-la, Matthew foi para a porta. Abriu-a com cautela e espiou, certificando-se de que o corredor estava vazio.
– Matthew – sussurrou ela.
Ele a olhou por cima do ombro.
– O que foi?
– Volte logo para mim.
O que Matthew viu no rosto de Daisy fez seus olhos brilharem na penumbra. Ele assentiu com a cabeça e foi embora enquanto ainda conseguia ir.
CAPÍTULO 13
Matthew logo descobriu que estar em Bristol com lorde Westcliff era muito diferente de estar sozinho na cidade portuária. Planejara ficar em uma estalagem na parte central de Bristol.
Estando na companhia de Westcliff, eles se hospedaram temporariamente na casa de uma rica família que atuava na área de construção naval. Matthew concluiu que muitos convites desse tipo foram feitos por parte de prósperas famílias locais, todas ansiosas por receber o conde do melhor modo possível.
Todos eram ou queriam ser amigos de Westcliff. Para lhe fazer justiça, era mais do que o nome e o título que inspiravam tanto entusiasmo... Sua fama de político progressista, sem falar de hábil homem de negócios, o tornava alguém muito requisitado em Bristol.
A cidade, que perdia para Londres apenas em volume de comércio, passava por um expressivo período de desenvolvimento. Enquanto as áreas comerciais se expandiam e os muros da cidade antiga vinham abaixo, caminhos estreitos eram alargados e novas estradas surgiam diariamente. Além disso, uma rede ferroviária na zona portuária ligando a estação Temple Mead às docas acabara de ser concluída. Como resultado disso, não havia nenhum lugar melhor na Europa para a instalação de uma fábrica.
A contragosto, Matthew havia admitido para Westcliff que a presença dele facilitara as negociações. E reconhecera que tinha muito a aprender com o conde, que possuía um vasto conhecimento do negócio e setor.
Por exemplo, quando eles falaram sobre a produção de locomotivas, o conde não só mostrou familiaridade com os princípios de engenharia como foi capaz de nomear uma dúzia de peças usadas em suas últimas locomotivas.
Sem modéstia, Matthew nunca havia conhecido outro homem que rivalizasse com sua própria capacidade de assimilar e reter grandes quantidades de conhecimento técnico. Até Westcliff. Isso resultava em conversas interessantes, pelo menos para eles dois. Qualquer outro participante bufaria depois de cinco minutos.
De sua parte, Marcus fora passar aquela semana em Bristol com um duplo objetivo: realizar objetivos de negócios... e conhecer melhor Matthew Swift.
Não havia sido fácil para Marcus sair do lado de Lillian. Descobrira que, embora os acontecimentos do parto fossem muito banais quando envolviam outras pessoas, assumiam uma importância monumental quando se tratavam de sua esposa e filha. Tudo em sua filha era fascinante: o padrão de sono e despertar, o primeiro banho, o modo como ela mexia os dedos dos pés, vê-la ao seio de Lillian.
Embora algumas damas da classe alta amamentassem seus próprios filhos, era muito mais comum a contratação de uma ama-seca. Contudo, Lillian mudara de ideia depois que Merritt nasceu.
– Ela me quer – dissera-lhe.
Ele não ousara salientar que o bebê ainda não tinha capacidade de discutir esse assunto e poderia ficar igualmente satisfeito com uma ama-seca.
O medo de Marcus de sua mulher sucumbir à febre puerperal diminuíra dia após dia enquanto Lillian voltava ao seu velho estado saudável, esguio e vigoroso. Isso era um grande alívio. Nunca havia amado tanto alguém e não imaginara que Lillian se tornaria tão rapidamente uma condição essencial para sua felicidade. Faria tudo por ela. E diante da preocupação de Lillian com a irmã, decidira chegar a algumas conclusões definitivas sobre Matthew Swift.
Quando eles se encontraram com representantes da ferrovia Great Westner, o supervisor da doca e vários membros do conselho e administradores, Marcus ficou impressionado com o modo como Swift se soltava. Até então só o tinha visto interagir com os prósperos convidados em Stony Cross, mas logo ficou claro que ele era capaz de se relacionar facilmente com várias pessoas, de aristocratas idosos a jovens e robustos trabalhadores. Quando se tratava de negociar, Swift era agressivo sem ser descortês. Calmo, firme e sensato, também possuía um humor cáustico que usava com bons resultados.
Marcus podia ver a influência de Thomas Bowman na tenacidade e na disposição de Swift de fazer valer suas opiniões. Mas, ao contrário de Bowman, Swift tinha uma presença e confiança naturais a que as pessoas reagiam intuitivamente. Ele se sairia bem em Bristol, pensou Marcus.
Aquele era um bom lugar para um jovem ambicioso que oferecia as mesmas oportunidades de Londres, se não mais.
Quanto a se Matthew Swift seria adequado para Daisy, isso era mais incerto. Marcus era avesso a fazer julgamentos desse tipo, tendo aprendido por experiência própria que não era infalível. Sua oposição inicial ao casamento de Annabelle e Simon Hunt era um exemplo disso.
Mas um julgamento teria de ser feito. Daisy merecia um marido que fosse gentil com ela.
Após uma reunião com os representantes da ferrovia, Marcus e Swift caminharam pela Corn Street através de um mercado cheio de barracas de frutas e vegetais. Recentemente o pavimento fora erguido para proteger pedestres de lixo e espirros de lama da rua. Lojas vendiam produtos como livros, artigos de toucador e objetos de vidro feitos com arenito local.
Os dois pararam e entraram em uma taverna para uma refeição simples. O local estava cheio, de comerciantes ricos a trabalhadores do estaleiro.
Relaxando no ambiente barulhento, Marcus levou aos lábios uma caneca de cerveja escura Bristol. Estava gelada e amarga, descendo rapidamente por sua garganta e deixando um sabor residual suave.
Enquanto Marcus pensava nos vários modos de tocar no assunto de Daisy, Swift o surpreendeu com uma afirmação franca:
– Milorde, há algo sobre o qual gostaria de lhe falar.
Marcus adotou uma expressão encorajadora.
– Muito bem.
– A Srta. Bowman e eu chegamos a um... entendimento. Após considerar as vantagens lógicas dos dois lados, tomei uma decisão sensata e pragmática de que deveríamos...
– Há quanto tempo está apaixonado por ela? – interrompeu-o Marcus, divertindo-se por dentro.
Swift deixou escapar um suspiro tenso.
– Anos – admitiu. Ele passou a mão por seus cabelos curtos e grossos, despenteando-os. – Mas até recentemente eu não sabia quanto.
– Essa paixão é correspondida?
– Acho que sim... – Ele se interrompeu e tomou um grande gole de cerveja. Pareceu muito jovem e preocupado ao admitir: – Não sei. Espero que com o tempo... Ah, inferno.
– Em minha opinião, não seria difícil conquistar o afeto de Daisy – disse Marcus em um tom mais gentil do que planejara. – Pelo que tenho observado, seria uma boa união para ambos.
Swift o olhou com um sorriso autodepreciativo.
– Não acha que ela ficaria melhor com um cavalheiro que lhe recitasse poesias?
– Acho que isso seria desastroso. Daisy não precisa de um marido tão sonhador quanto ela.
Estendendo a mão para a travessa de madeira com a comida entre eles, Marcus cortou um pedaço de queijo Wensleydale claro e o pôs entre duas grossas fatias de pão. Olhou para Swift, perguntando-se por que o jovem parecia sentir tão pouco prazer com aquela situação. A maioria dos homens demonstrava muito mais entusiasmo com a perspectiva de se casar com a mulher que amava.
– Bowman ficará satisfeito – observou Marcus, observando a reação de Swift.
– Isso nunca teve a ver com agradá-lo. Qualquer implicação em contrário é uma grave subestimação de tudo que a Srta. Bowman tem a oferecer.
– Não precisa se apressar a defendê-la – respondeu Marcus. – Daisy é uma diabinha encantadora, para não dizer adorável. Se ela tivesse um pouco mais de autoconfiança, e menos sensibilidade, a esta altura teria aprendido a atrair o sexo oposto com facilidade. Mas devemos lhe dar o crédito de não tratar o amor como um jogo. Poucos homens têm a capacidade de apreciar a sinceridade em uma mulher.
– Eu tenho – disse Swift sucintamente.
– Pelo visto, sim. – Marcus sentiu uma pontada de compaixão ao pensar no dilema do jovem.
Sendo um homem sensato com uma louvável aversão ao melodrama, era muito constrangedor para Swift se ver ferido por uma das flechas do Cupido. – Embora não tenha pedido meu apoio ao casamento, pode contar com ele.
– Mesmo se Lady Westcliff se opuser?
A menção de Lillian causou uma pontada de saudade no peito de Marcus. Ele estava sentindo ainda mais falta dela do que havia esperado.
– Lady Westcliff precisará aceitar o fato de que nem sempre as coisas acontecem do jeito que ela deseja. Se ao longo do tempo provar ser um bom marido para Daisy, minha esposa mudará de opinião. Ela é uma mulher justa.
Mas Swift ainda parecia preocupado.
– Milorde...
Ele apertou com força sua caneca.
Vendo a angústia que passava pelo rosto do jovem, Marcus parou de mastigar. Seus instintos lhe disseram que algo estava muito errado. Maldição, pensou, por acaso algo que envolva os Bowmans pode ser simples?
– O que diria de um homem que constrói sua vida sobre uma mentira?
Marcus voltou a mastigar, engoliu com força e ficou pensando enquanto bebia uma grande quantidade de cerveja.
– Mas tudo nessa vida foi baseado em uma mentira? – perguntou o conde.
– Sim.
– Roubou algo que pertencia a alguém? Causou sofrimento físico ou emocional a alguém?
– Não – respondeu Swift. – Mas envolve um problema legal.
Aquilo fez Marcus se sentir um pouco melhor. Segundo sua experiência, nem mesmo o melhor dos homens podia evitar ter ocasionalmente algum tipo de problema legal. Talvez Swift tivesse se metido em algum negócio questionável ou cometido imprudências juvenis que seriam constrangedoras se trazidas à luz tantos anos depois.
Claro que Marcus levava a sério questões de honra e um problema legal passado não era algo que se quisesse ouvir de um futuro cunhado. Por outro lado, Swift parecia ser um homem bem criado e com um bom caráter. E Marcus descobrira que gostava de muitas coisas nele.
– Temo ter de retirar meu apoio ao casamento – disse Marcus com cuidado – até saber dos detalhes. Há algo mais que possa me dizer?
Swift balançou a cabeça.
– Sinto muito. Como eu gostaria de poder.
– E se eu lhe der a minha palavra de que não trairei sua confiança?
– Não – sussurrou Swift. – Mais uma vez, sinto muito.
Marcus deu um grande suspiro e se recostou em sua cadeira.
– Infelizmente não posso resolver ou ao menos atenuar um problema que nem imagino qual seja. Por outro lado, acredito que as pessoas merecem uma segunda chance. E sempre estarei disposto a julgar um homem pelo que ele se tornou em vez de por quem ele era. Tendo dito isso... quero que me dê sua palavra sobre algo.
Swift ergueu cautelosamente seus olhos azuis.
– Sim, milorde.
– De que contará tudo para Daisy antes de se casar com ela. Explicará toda a situação e a deixará decidir se quer continuar. De que não a tomará como esposa sem lhe contar toda a verdade.
Swift não pestanejou.
– Tem a minha palavra.
– Ótimo. – Marcus fez um sinal para a criada da taverna.
Depois dessa conversa, precisava de algo mais forte que cerveja.
CAPÍTULO 14
Com Westcliff e Matthew fora, a propriedade parecia anormalmente silenciosa. Para alívio de Lillian e Daisy, Westcliff providenciara para que os pais delas acompanhassem uma família vizinha em uma curta viagem para Stratford-on-Avon. Eles teriam uma semana de banquetes, peças, conferências e eventos musicais, tudo parte do festival do aniversário de 280 anos do nascimento de Shakespeare. Como Westcliff convencera os Bowmans a ir era um mistério para Daisy.
– Mamãe e papai não poderiam estar menos interessados em Shakespeare – exclamou Daisy, logo após a partida da carruagem que levava seus pais. – E não posso acreditar que papai trocou Bristol por um festival.
– Westcliff não tinha nenhuma intenção de deixar papai ir com eles – disse Lillian com um sorriso triste.
– Por que não? Afinal de contas, é o negócio do papai.
– Sim, mas em se tratando de negociações, papai é rude demais para o gosto inglês. Ele torna bastante difícil todos chegarem a um acordo. Por isso Westcliff programou a viagem para Stratford com tanto zelo. Papai não teve chance de se opor. E depois que Westcliff informou muito casualmente à nossa mãe sobre todas as famílias nobres com que ela se depararia no festival, papai não teve alternativa.
– Imagino que Westcliff e o Sr. Swift se sairão muito bem em Bristol – disse Daisy.
A expressão de Lillian imediatamente se tornou cautelosa.
– Sem dúvida.
Daisy notou que, sem suas amigas como mediadoras, Lillian e ela adotavam um modo de falar mais cuidadoso. Ela não gostava disso. Sempre tinham sido francas e abertas uma com a outra. Agora, ambas pareciam ignorar um elefante branco na sala. Na verdade, toda uma manada de elefantes.
Lillian não havia perguntado se Daisy dormira com Matthew. De fato, não parecia inclinada a falar nada sobre Matthew. Também não havia perguntado por que o relacionamento emergente com lorde Llandrindon se evaporara ou por que Daisy não parecia ter nenhum interesse em terminar sua temporada em Londres.
Daisy também não tinha vontade de tocar nesses assuntos. Apesar da confiança que Matthew lhe passara antes de partir, sentia-se desconfortável e inquieta, e a última coisa que queria era uma discussão com a irmã.
Em vez disso, elas se concentraram em Merritt, revezando-se para segurá-la, vesti-la e banhá-la como se a criança fosse uma bonequinha. Embora houvesse duas criadas disponíveis para cuidar dela, Lillian relutara em entregá-la aos seus cuidados. Gostava de estar com a filha.
Antes de Mercedes partir, prevenira-a de que o bebê ficaria acostumado demais a ficar no colo.
– Você vai estragá-la – dissera para Lillian – E então ninguém jamais conseguirá largá-la.
Lillian havia retorquido que não faltavam braços na mansão de Stony Cross e Merritt seria segurada no colo quanto quisesse.
– Quero que a infância dela seja diferente da nossa – disse Lillian para Daisy mais tarde, enquanto empurravam o carrinho de bebê no jardim. – As poucas lembranças que tenho dos nossos pais são de nossa mãe se vestindo para sair à noite ou indo para o escritório do papai para lhe contar nossa última travessura. E de ser punida.
– Você se lembra de como mamãe gritava quando patinávamos na calçada e derrubávamos os vizinhos? – perguntou Daisy com um sorriso.
Lillian riu.
– Exceto quando eram os Astors. Aí tudo bem.
– Ou quando os gêmeos fizeram uma pequena horta e colhemos todas as batatas antes da hora?
– Quando pegávamos caranguejos em Long Island...
– Jogávamos rounders...
As lembranças encheram as duas irmãs de alegria.
– Quem teria imaginado – disse Daisy com um sorriso – que você acabaria se casando com um nobre inglês e eu seria... uma solteirona.
– Não seja boba – disse Lillian brandamente. – É óbvio que não será uma solteirona.
Foi o mais perto que elas chegaram de discutir o relacionamento de Daisy com Matthew Swift. Ao pensar na incomum reserva de Lillian, Daisy percebeu que a irmã queria evitar uma briga com ela. E se para isso tivesse de incluir Matthew Swift na família, faria o possível para tolerá-lo. Sabendo quanto era difícil para a irmã guardar as opiniões para si mesma, Daisy teve vontade de abraçá-la. Em vez disso, foi assumir a direção do carrinho.
– Minha vez de empurrar.
Elas continuaram a andar.
Daisy voltou às lembranças delas.
– Você se lembra de quando viramos a canoa no lago?
– Com a governanta dentro – acrescentou Lillian, e elas sorriram uma para a outra.
Os Bowmans foram os primeiros a voltar no sábado. Como era de esperar, o festival de Shakespeare fora uma verdadeira tortura para Thomas.
– Onde está Swift? – perguntou ele no minuto em que entrou na mansão. – Onde está Westcliff? Quero um relatório das negociações.
– Eles ainda não voltaram – respondeu Lillian, indo ao encontro do pai. Ela lhe lançou um olhar levemente cáustico. – Não vai perguntar como estou, papai? Não quer saber como o bebê está?
– Posso ver com meus próprios olhos que você está bem – retorquiu Bowman. – E presumo que o bebê também esteja, caso contrário você já teria me informado. Quando Swift e Westcliff devem voltar?
Lillian olhou para o alto.
– A qualquer momento.
Mas se tornou óbvio que os viajantes tinham se atrasado, provavelmente em virtude das dificuldades de se ir para qualquer lugar na primavera. O tempo era imprevisível, as estradas precisavam de reparos, carruagens eram danificadas e cavalos estavam sujeitos a contusões ou distensões.
Ao anoitecer, ainda não havia nenhum sinal de Westcliff e Matthew. Lillian declarou que era melhor irem jantar ou o cozinheiro ficaria aflito.
Era um jantar relativamente intimo do qual participaram os Bowmans e duas famílias locais, inclusive o vigário e sua esposa. No meio da refeição, o mordomo apareceu e murmurou algo para Lillian. Ela sorriu e enrubesceu, seus olhos brilhando de excitação ao informar que Westcliff havia chegado e se juntaria a eles em breve.
Daisy manteve uma expressão calma, como se uma máscara tivesse sido posta em seu rosto.
Mas a expectativa pulsava em suas veias. Percebendo que os talheres tremiam visivelmente em suas mãos, ela os pousou e pôs as mãos no colo.
Quando os dois homens finalmente apareceram na sala de jantar, depois de se banharem e trocarem suas roupas de viagem, o coração de Daisy bateu tão forte que ela mal conseguiu respirar.
O olhar de Matthew percorreu todos e ele fez uma mesura, como Westcliff fizera. Ambos pareciam calmos e muito bem dispostos, como se tivessem se ausentado por sete minutos em vez de sete dias.
Antes de ocupar seu lugar à cabeceira da mesa, Westcliff foi até Lillian. Como o conde não era dado a demonstrações públicas, todos se surpreenderam quando ele segurou o rosto dela e a beijou na boca. Lillian corou e disse algo sobre o vigário estar ali, fazendo Westcliff rir.
Enquanto isso, Matthew se sentou no lugar vazio ao lado de Daisy.
– Srta. Bowman – disse com suavidade.
Daisy não conseguiu pronunciar uma só palavra. Ao ver os olhos sorridentes de Matthew, suas emoções pareceram aflorar. Ela teve de desviar seu olhar antes de fazer algo tolo. Mas continuou muito consciente da proximidade do corpo dele.
Westcliff e Matthew entretiveram o grupo contado como a carruagem atolara na lama.
Felizmente tinham sido ajudados por um fazendeiro, mas, no processo de desatolarem o veículo, todos ficaram cobertos de lama da cabeça aos pés. E o episódio havia deixado o boi de péssimo humor. Quando a história terminou, todos da mesa estavam rindo.
A conversa passou para o festival de Shakespeare. Thomas Bowman falou sobre a visita a Stratford-on-Avon. Matthew fez uma ou duas perguntas, parecendo interessado na conversa.
Daisy se sobressaltou ao sentir a mão de Matthew deslizar para seu colo por sob a mesa. Ele fechou os dedos gentilmente sobre os seus. Enquanto isso, Matthew participava da conversa, falando e sorrindo. Daisy estendeu sua mão livre para a taça de vinho e a levou aos lábios. Deu um gole, e depois outro, e quase engasgou quando Matthew brincou levemente com seus dedos sob a mesa. Sensações adormecidas por uma semana despertaram e a fizeram estremecer.
Ainda sem olhá-la, Matthew deslizou algo suavemente por seu dedo anelar até encaixá-lo perfeitamente na base. Sua mão foi devolvida ao colo quando um criado veio repor-lhes o vinho nas taças.
Daisy olhou para sua mão, piscando à visão da safira amarela brilhante cercada por uma pequena fileira de diamantes. Parecia uma flor de pétalas brancas. Ela fechou a mão com força e desviou seu rosto para esconder um traiçoeiro rubor de prazer.
– Gostou? – sussurrou Matthew.
– Ah, sim.
E foi só isso que conversaram durante o jantar. Tudo bem. Havia muito a ser dito, mas ali não era o lugar. Depois do jantar, Daisy se preparou para os costumeiros longos rituais de vinho do Porto e chá, mas ficou feliz quando todos, até mesmo seu pai, deram a impressão de que queriam se retirar cedo. Depois que o velho vigário e sua esposa estavam prontos para ir para casa, o grupo se dispersou sem muito alarde.
Ao sair com Daisy da sala de jantar, Matthew murmurou:
– Terei de escalar a parede externa esta noite ou você deixará sua porta destrancada?
– A porta – respondeu Daisy.
– Graças a Deus.
Cerca de uma hora depois, Matthew girou a maçaneta da porta do quarto de Daisy e entrou.
O pequeno cômodo estava iluminado por um candeeiro ao lado da cama, a chama dançando à brisa que vinha do balcão.
Daisy estava lendo, com seus cabelos presos em uma trança que se estendia por cima de seu ombro. Vestida com uma recatada camisola branca com intricados enfeites na frente, parecia tão pura e inocente que Matthew se sentiu culpado ao se aproximar com o corpo ardendo de desejo.
Mas ela ergueu os olhos escuros do livro, atraindo-o irresistivelmente para mais perto.
Ela pôs o livro de lado, a luz do candeeiro deslizando sobre seu perfil. A pele parecia fria e perfeita como marfim polido. Matthew desejou aquecê-la com as mãos. Daisy sorriu como se pudesse ler os pensamentos dele. Quando afastou as cobertas, a safira amarela brilhou em seu dedo. Por um momento, Matthew ficou surpreso com sua possessividade primitiva. Lentamente, obedeceu ao gesto de Daisy para se dirigir à cama.
Ele se sentou na beira do colchão e sua pele formigou quando Daisy se arrastou para seu colo com a delicadeza de um gato. O cheiro doce de pele feminina lhe encheu as narinas. Pondo braços esbeltos ao redor de seu pescoço, ela disse seriamente:
– Senti sua falta.
As palmas das mãos de Matthew seguiram o contorno do corpo da jovem, as curvas suaves, a cintura fina, as nádegas em forma de coração. Por mais que ele achasse a beleza física de Daisy encantadora, não o afetava tanto quanto sua natureza cálida, inteligente e vivaz.
– Também senti.
Os dedos de Daisy brincaram em seus cabelos, o toque delicado enviando ondas de prazer da base de seu cérebro à sua virilha. A voz dela se tornou provocadora.
– Você encontrou muitas mulheres em Bristol? Westcliff mencionou algo sobre um jantar, e uma soirée promovida por seu anfitrião...
– Não reparei em nenhuma mulher. – Matthew achou difícil pensar com o desejo intenso que o dominava. – Você é a única na minha vida.
Daisy encostou a ponta de seu nariz na do dele de um modo brincalhão.
– Mas no passado não foi celibatário.
– Não – admitiu Matthew, fechando os olhos ao sentir a carícia da respiração de Daisy em sua pele. – Dá um sentimento de solidão desejar que a mulher em seus braços seja outra pessoa.
Pouco antes de eu deixar Nova York, percebi que todas as mulheres com quem estive nos últimos sete anos se pareciam de algum modo com você. Uma tinha seus olhos, outra suas mãos, ou seus cabelos... Achei que passaria o resto da minha vida em busca de pequenas lembranças suas em outras mulheres. Achei...
Daisy encostou os lábios nos de Matthew, assimilando a dura confissão. Entreabriu-os e ele não precisou de outro convite para beijá-la, aprofundando a língua com suavidade até possuir-lhe totalmente a boca. As formas suaves dos seios de Daisy roçavam em seu peito a cada inalação.
Ele deitou Daisy de barriga para cima e lhe ergueu a camisola. Ela o ajudou a tirá-la. A graça desse movimento fez o corpo de Matthew se incendiar. Ela ficou deitada nua na sua frente com um crescente rubor visível à luz do candeeiro. Matthew ficou fascinado com aquela visão enquanto tirava as próprias roupas.
Deitando-se ao lado dela, ele se dedicou a provocá-la para que superasse o acanhamento.
Acariciou-lhe os ombros, o pescoço e o contorno vulnerável da clavícula. Pouco a pouco, ela enroscou seu corpo flexível no de Matthew e ele a silenciou com a boca, sussurrando-lhe que as janelas estavam abertas e deveria permanecer em silêncio.
Matthew percorreu com os lábios o caminho até os seios, tomando na boca os mamilos macios até se intumescerem. Ouvindo os sons contidos que ela emitia, sorriu e passou a língua de leve ao redor do mamilo, brincando com ele até que Daisy tampou a própria boca com a mão, ofegando.
Finalmente Daisy se afastou e sufocou um gemido atormentado nas cobertas.
– Não consigo – sussurrou, tremendo. – Não consigo ficar em silêncio.
Matthew riu baixinho e lhe beijou o meio das costas.
– Mas não vou parar – murmurou, virando-a. – E pense no problema que isso causará se formos pegos.
– Matthew, por favor...
– Shhh.
Ele deixou sua boca perambular irrestritamente pelo corpo de Daisy, beijando e mordiscando até ela se contorcer em agitada confusão. De vez em quando Daisy se virava, enterrando os dedos esguios no colchão como se fossem as garras de um gato. Ele sussurrava palavras carinhosas no ouvido de Daisy, enquanto seus dedos acariciavam-lhe o segredo entre as pernas.
Quando ela enrijeceu todos os membros e ficou com a pele brilhante de suor, Matthew finalmente se acomodou entre as coxas trêmulas de Daisy.
Ela reagiu ao ser penetrada... e gemeu enquanto Matthew procurava o ritmo certo. Ele soube que o havia encontrado quando Daisy ergueu os joelhos, abraçando-o instintivamente com as pernas.
– Sim, me prenda... – sussurrou Matthew.
Ele nunca havia experimentado o êxtase que sentia agora, arremetendo e a penetrando cada vez mais. Daisy acompanhou cada movimento, dando-lhe o que ele precisava, ambos procurando o prazer.
Daisy cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos. Matthew segurou o pulso dela, afastou-lhe a mão, e abriu a boca de Daisy com a sua, afundando a língua nela. Seus violentos tremores o levaram ao clímax, arrancando-lhe um gemido do peito.
Quando as últimas ondas de prazer passaram, Matthew foi dominado pela maior exaustão que já sentira. Ela estendeu a mão para ele, procurando o calor de seu corpo. Matthew se moveu para ajudá-la, acomodando-lhe a cabeça na dobra do braço e de algum modo conseguindo puxar sobre ambos as cobertas revoltas.
A tentação de dormir era enorme, mas Matthew não se permitiu isso. Não confiava em sua capacidade de acordar antes de a criada aparecer pela manhã. Sentia-se totalmente satisfeito e era muito difícil resistir ao corpo pequeno de Daisy aconchegado ao seu.
– Tenho de ir – sussurrou contra os cabelos dela.
– Não, fique. – Daisy virou o rosto, roçando os lábios na pele nua do peito de Matthew. –
Fique a noite toda. Fique para sempre.
Ele sorriu e lhe beijou a testa.
– Bem que eu queria, mas sua família não ficaria nada feliz se descobrisse o monstro que habita este quarto.
– Ei, eu não sou um monstro!
– Não estava falando de você.
Daisy sorriu.
– Então é melhor eu me casar com esse monstro. – Ela deslizou sua pequena mão para o corpo de Matthew, explorando-o. – Ironicamente, essa vai ser a primeira vez que farei algo para agradar meu pai.
Com um murmúrio de solidariedade, Matthew a puxou para ele. Conhecia muito bem o pai de Daisy, seu humor, seu egoísmo, seus padrões impossíveis. Ainda assim, sabia o que custara para Bowman construir uma grande fortuna do nada, os sacrifícios que tivera de fazer. Bowman havia descartado tudo que pudesse impedi-lo de atingir seus objetivos. Inclusive intimidade com sua esposa e seus filhos.
Pela primeira vez, ocorreu-lhe que os Bowmans se beneficiariam com alguém agindo como mediador, para facilitar a comunicação entre eles. Se isso estivesse ao seu alcance, encontraria um modo de fazê-lo.
– Você – sussurrou junto aos cabelos de Daisy – é a melhor coisa que seu pai já fez. Algum dia ele perceberá isso.
Matthew sentiu que ela sorria contra sua pele.
– Duvido muito. Mas foi gentil da sua parte dizer isso. Não precisa se preocupar, sabe? Eu me acostumei com o jeito dele há muito tempo.
Mais uma vez Matthew se surpreendeu com a extensão de seus sentimentos por Daisy, seu desejo ilimitado de enchê-la de felicidade.
– Eu lhe darei tudo de que precisar – sussurrou ele. – Farei tudo que quiser. É só me dizer.
Daisy se esticou confortavelmente, um agradável arrepio lhe percorrendo o corpo. Passou os dedos nos lábios de Matthew, sentindo sua maciez.
– Quero que me diga qual foi o desejo que lhe custou 5 dólares.
Ele sorriu.
– Eu desejei que você encontrasse alguém que a quisesse tanto quanto eu. Mas eu sabia que era um desejo impossível.
Quando Daisy ergueu a cabeça para olhá-lo, a luz do candeeiro incidiu sobre suas delicadas feições.
– Por que era impossível?
– Porque ninguém jamais a desejará como eu a desejo.
Daisy o abraçou com força, até seus cabelos caírem como uma cortina escura ao redor deles.
– Qual foi o seu desejo? – perguntou Matthew, passando os dedos pela cascata de cabelos brilhantes.
– Encontrar o homem certo com quem me casar. – Seu sorriso terno fez o coração dele disparar. – E você apareceu.
CAPÍTULO 15
Depois de um longo sono, Matthew se aventurou a descer. Os criados se ocupavam limpando quilômetros de pisos de madeira e ladrilho, enquanto outros arrumavam os candelabros, substituíam velas e poliam metais.
Assim que Matthew se aproximou da sala do café da manhã, uma criada se ofereceu para servi-lo no terraço dos fundos, se assim ele desejasse. Como o dia prometia ser lindo, Matthew aceitou a oferta.
Sentado a uma das mesas lá fora, observou uma pequena lebre marrom saltitando no jardim bem cuidado. Sua silenciosa contemplação foi interrompida pelo som das portas francesas se abrindo. Em vez da criada com a bandeja do café da manhã, deparou-se com a figura muito menos bem-vinda de Lillian Bowman. Suspirou para si mesmo, sabendo imediatamente que Westcliff lhe contara sobre seu envolvimento com Daisy.
Contudo, parecia que o conde exercera alguma influência tranquilizadora na esposa. Não que Lillian parecesse feliz, é claro, mas Matthew achou um bom sinal ela não estar se aproximando dele com um machado na mão.
Ainda.
Lillian lhe fez um gesto para continuar sentado, mas ele se levantou assim mesmo. Ela estava com uma expressão e uma voz controlada quando disse:
– Não precisa me olhar como se eu fosse uma praga do Egito. Sou capaz de ter uma conversa sensata.
Lillian se sentou antes de Matthew poder puxar a cadeira para ela.
Olhando-a cautelosamente, ele voltou a se sentar e esperou que ela dissesse algo. Apesar do clima carregado de tensão, quase sorriu ao refletir que frequentemente vira a mesma expressão no rosto de Thomas Bowman. Lillian era teimosa como uma mula e determinada a fazer as coisas ao seu próprio modo, mas tinha consciência de que uma discussão acalorada, não importava quanto fosse satisfatória, não levaria a nada.
– Nós dois sabemos que, embora eu não possa impedir esse casamento desastroso, posso tornar as coisas muito desagradáveis para todos. Principalmente para o senhor.
– Sim, tenho consciência disso.
A resposta de Matthew foi totalmente livre de sarcasmo. Apesar de tudo que pensava de Lillian, o amor dela por Daisy era incontestável.
– Então quero dispensar os preâmbulos e ter uma conversa de homem para homem – disse Lillian.
Matthew conteve firmemente um sorriso.
– Ótimo – respondeu com igual seriedade. – Eu também.
Ele achou que talvez pudesse gostar de Lillian. Ela era sempre franca.
– O único motivo de eu estar disposta a tolerar a ideia de tê-lo como cunhado – continuou Lillian – é que meu marido parece ter uma boa opinião a seu respeito. E estou disposta a levá-la em consideração. Embora ele não seja infalível.
– Talvez essa seja a primeira vez que ouço alguém fazer esse comentário sobre o conde.
– Sim, bem... – Lillian o surpreendeu com um leve sorriso. – Foi por isso que Westcliff se casou comigo. Minha disposição de considerá-lo um mero mortal é um alívio depois de toda a incessante adoração de que ele é alvo. – Seus olhos escuros, mais redondos e menos exóticos do que os de Daisy, se fixaram nos dele, analisando-o. – Westcliff me pediu para tentar ser imparcial. Isso não é fácil quando o futuro da minha irmã está em jogo.
– Milady – disse Matthew seriamente –, se eu puder lhe dar qualquer garantia que possa tranquilizá-la...
– Não. Espere. Primeiro deixe-me expressar minha opinião a seu respeito.
Educadamente, Matthew permaneceu em silêncio.
– O senhor sempre personificou o pior do meu pai – disse Lillian. – A frieza, a ambição, o egoísmo. Só que é pior ainda, porque consegue disfarçar isso muito melhor do que ele. O senhor é o que o meu pai teria sido se tivesse sido abençoado com uma boa aparência e um pouco de sofisticação. Ao conquistá-lo, Daisy deve de algum modo sentir que finalmente foi bem-sucedida com meu pai. – Ela franziu as sobrancelhas enquanto continuava. – Minha irmã sempre tendeu a amar criaturas que não costumam ser amadas... sem rumo, desajustadas. Não importa quantas vezes essa pessoa seja desleal ou a desaponte, ela a aceitará de volta com braços abertos. Mas o senhor não apreciará isso mais do que o meu pai. Quando a magoar, o que inevitavelmente fará, serei a primeira na fila para matá-lo. E quando eu acabar com o senhor, restará muito pouco para os outros.
– Acabou-se a imparcialidade – disse Matthew. Ele respeitava a honestidade brutal de Lillian, embora o fizesse sofrer. – Posso responder com a mesma franqueza que acabou de demonstrar?
– Espero que sim.
– Milady, não me conhece bem o suficiente para avaliar quanto posso ser ou não parecido com seu pai. Não é nenhum crime ser ambicioso, particularmente porque comecei do nada. E não sou frio, sou de Boston. O que significa que não tendo a demonstrar minhas emoções para todos.
Quanto a ser egoísta, não tem como saber quanto fiz pelos outros. Mas de modo algum recitarei uma lista das minhas boas ações passadas na esperança de conquistar sua aprovação. – Ele a olhou friamente. – Independentemente das suas opiniões, o casamento vai acontecer, porque é o que Daisy e eu queremos. Por isso, não tenho nenhum motivo para mentir. Eu poderia dizer que não dou a mínima para Daisy e ainda assim obter o que quero. Mas o fato é que a amo há muito tempo.
– O senhor ama minha irmã em segredo há anos? – perguntou Lillian com irritado ceticismo.
– Que conveniente!
– Eu não definia isso como “amor”. Tudo que sabia era que tinha uma total e persistente preferência por ela.
– Preferência? – Lillian pareceu indignada e depois o surpreendeu rindo. – Meu Deus, o senhor realmente é de Boston.
– Acredite ou não – murmurou Matthew –, eu preferiria não ter esses sentimentos por Daisy. Teria sido muito mais conveniente encontrar outra pessoa. E, com mil diabos, deveria me ser dado um pouco de crédito por estar disposto a entrar para a família Bowman.
– Touché. – Lillian continuou a sorrir, apoiando o queixo na mão enquanto olhava para ele.
Subitamente sua voz conteve um leve tom indagador que fez os pelos da nuca de Matthew se arrepiarem. – Acho peculiar um Swift de Boston dizer “comecei do nada”... Estive enganada esses anos todos achando que provém de uma família de recursos?
Maldição, ela era inteligente. Percebendo que cometera um deslize, Matthew respondeu com calma:
– O ramo principal dos Swifts é rico. Mas eu sou um dos proverbiais primos pobres. Por isso, fui obrigado a seguir uma profissão.
Ela ergueu levemente as sobrancelhas.
– Os Swifts ricos deixaram os primos mais pobres viverem na abjeta pobreza?
– Foi um pequeno exagero da minha parte – disse Matthew. – Mas estou certo de que isso não a preocupa a ponto de fazê-la esquecer o assunto principal.
– Acho que entendi o que quis dizer, Sr. Swift. – Lillian desocupou sua cadeira, obrigando-o a se levantar. – Mais uma coisa... Acredita que Daisy seria feliz se a levasse de volta para Nova York?
– Não – respondeu Matthew tranquilamente. Ele viu um brilho de surpresa nos olhos de Lillian. – É óbvio que a senhora e suas amigas são essenciais para a felicidade dela.
– Então... está disposto a residir permanentemente aqui? Mesmo se meu pai se opuser?
– Sim, se for a vontade de Daisy. – Matthew tentou controlar uma súbita irritação, com resultados limitados. – Não tenho medo do temperamento de seu pai, milady. Não sou uma marionete. O fato de trabalhar para ele não significa que abri mão do meu livre-arbítrio ou do pleno uso das minhas faculdades mentais. Posso encontrar um bom emprego na Inglaterra, ainda que não seja na empresa de seu pai.
– Sr. Swift – disse Lillian sinceramente –, não sabe como é tentador para mim acreditar no senhor.
– E isso significa...?
– Significa que tentarei ser mais gentil.
– A partir de quando? – disparou ele.
Um canto da boca de Lillian se ergueu.
– Da próxima semana, talvez.
– Estou ansioso por isso – murmurou Matthew, voltando a se sentar quando ela saiu.
Conforme o esperado, Mercedes Bowman recebeu a notícia do casamento de Daisy sem muito entusiasmo. Tendo conseguido um ótimo casamento para sua filha mais velha, ansiara por conseguir o mesmo para a segunda. Pouco lhe importava que Matthew Swift sem dúvida fosse fazer fortuna com negócios em dois continentes. Menos ainda Daisy ter encontrado um homem que parecia entender e adorar todas as suas excentricidades.
– Quem se importa com ele ser bom para ganhar dinheiro? – resmungara Mercedes para suas filhas enquanto elas estavam sentadas na sala Marsden. – Manhattanville estava repleta de homens empreendedores que tinham grandes fortunas. Não dava para encontrar um cavalheiro que proporcionasse algo mais? Eu realmente desejava, Daisy, que você tivesse conseguido atrair um homem refinado e de boa estirpe.
Lillian, que estava amamentando o bebê, respondeu em um tom sarcástico:
– Mamãe, mesmo que Daisy se casasse com o príncipe de Luxemburgo, isso ainda não mudaria o fato de que os Bowmans são plebeus e vovó, que Deus a tenha, trabalhava como lavadeira nas docas. Essa preocupação com nobreza é um pouco excessiva, não? Vamos deixar isso para lá e ficar felizes por Daisy.
A indignação inflou temporariamente as bochechas de Mercedes, fazendo seu rosto fino parece um par de foles de lareira.
– Você não gosta do Sr. Swift mais do que eu – retorquiu ela.
– Não – disse Lillian francamente. – Mas por mais que eu deteste admitir isso, somos uma minoria. Todos gostam de Swift no hemisfério norte, incluindo Westcliff e os amigos dele, minhas amigas, os criados, os vizinhos...
– Você está exagerando...
– Sem contar as crianças, os animais e a mais alta ordem das plantas – completou Lillian sarcasticamente. – Se os tubérculos pudessem falar, sem dúvida também diriam que gostam dele.
Daisy, sentada perto da janela com um livro, ergueu os olhos e deu um súbito sorriso.
– Os encantos dele não alcançam as aves – comentou ela. – Ele tem um problema com gansos. – Seu sorriso se tornou enigmático. – Obrigada por ser tão compreensiva, Lillian. Eu achava que você ia fazer uma cena por causa do casamento.
Sua irmã mais velha deixou escapar um suspiro de pesar.
– Eu aceitei o fato de que seria mais fácil empurrar uma ervilha com meu nariz daqui até Londres do que tentar impedir esse casamento. Além disso, você ficará muito mais acessível em Bristol do que se estivesse com lorde Llandrindon em Thurso.
A menção a Llandrindon quase fez Mercedes chorar.
– Verdade! Ele comentou que havia vistas belíssimas em Thurso – disse ela com lástima. – E
a história dos vikings. Eu teria gostado tanto de aprender sobre eles!
Lillian fez uma careta.
– Desde quando você se interessa por pagãos enfezados com enfeites bobos na cabeça?
Daisy voltou a erguer os olhos de seu livro.
– Estamos falando sobre a vovó de novo?
Mercedes as fuzilou com os olhos.
– Parece que não tenho outra escolha além de aceitar esse casamento. Tentarei encontrar algum pequeno consolo no fato de que poderei planejar uma cerimônia adequada desta vez.
Ela nunca havia perdoado Lillian e Marcus por terem fugido para Gretna Green, privando-a das grandes festividades que sempre sonhara planejar.
Lillian sorriu para Daisy.
– Não a invejo, querida.
– Isso não será agradável – disse Daisy para Matthew mais tarde naquele dia, quando eles estavam sentados na beira relvada de um lago que abastecia um moinho no lado oeste da vila. –
A cerimônia será planejada de modo a fazer todo mundo prestar atenção nos Bowmans.
– Apenas nos Bowmans? – perguntou ele. – Não terei um papel de destaque?
– Ah, o noivo é a parte mais insignificante da cerimônia – respondeu Daisy alegremente.
Ela quis diverti-lo, mas Matthew sorriu apenas com os lábios, não com os olhos. Ele ficou contemplando o lago com uma expressão distante. O moinho, com sua roda de 3,5 metros, há muito fora abandonado. Com sua bela cumeeira e a fachada de madeira, possuía um encanto que realçava a paisagem rústica.
Enquanto Matthew atirava um anzol com uma isca no lago com um hábil movimento do pulso, Daisy balançava os pés na água. De vez em quando, o movimento de seus dedos convidava peixes aventureiros a se aproximarem.
Ela estudou Matthew, que parecia estar refletindo sobre algo. Seu perfil era forte e marcante, com um nariz reto, lábios bem definidos e um queixo perfeito. Daisy gostou de vê-lo em desalinho, com a camisa úmida, as calças cheias de folhas secas e os cabelos revoltos caindo sobre a testa.
Havia uma dualidade fascinante nele que Daisy nunca encontrara em outro pretendente. Em alguns momentos Matthew era um homem de negócios agressivo, perspicaz e fechado que recitava fatos e números com facilidade. Em outros, era um amante gentil e compreensivo que se desfazia de seu cinismo como se fosse um casaco velho e a engajava em divertidos debates sobre qual cultura antiga tinha a melhor mitologia ou qual fora o vegetal favorito de Thomas Jefferson.
Eles costumavam conversar por horas sobre temas como história e política progressista. Para um homem de formação conservadora, ele tinha um surpreendente conhecimento das questões da reforma. Em sua incansável alcançada por dinheiro e poder, geralmente os homens empreendedores se esqueciam daqueles que tinham sido deixados na base. Daisy achava que era um bom sinal de caráter Matthew ter uma genuína preocupação com os menos afortunados.
Haviam feito planos para o futuro. Teriam de encontrar uma casa em Bristol que fosse grande o suficiente para receber pessoas. Matthew insistiu que deveria ter vista para o mar, uma biblioteca para os livros de Daisy e um muro alto para que pudessem fazer amor no jardim sem que fossem vistos.
Dona de sua própria casa... Daisy nunca tinha se visto assim. Mas a ideia de arrumar as coisas exatamente como queria, de acordo com suas próprias preferências, estava começando a parecer interessante.
Contudo, apesar de todos os pensamentos que Matthew estava disposto a partilhar com Daisy, muitos outros permaneciam inacessíveis. Às vezes falar com ele era como seguir um lindo caminho sinuoso com todos os tipos de paisagens interessantes só para dar de cara com um muro de pedra.
Quando Daisy insistia para que Matthew falasse sobre seu passado, ele só fazia referências vagas a Massachusetts e a ter crescido perto do rio Charles. Informações sobre sua família eram retidas. Até agora não tinha dito quais membros do clã Swift iriam ao casamento.
Parecia que Matthew não havia existido antes de começar a trabalhar para o pai dela, aos 20
anos. Daisy ansiava por romper a barreira de segredos. Era enlouquecedor se sentir eternamente à beira de uma ilusória descoberta. O relacionamento deles parecia a personificação de uma teoria hegeliana... sempre uma coisa no processo de se tornar outra, sem nunca ser concluída.
Voltando seus pensamentos para o presente, Daisy decidiu recuperar a atenção de Matthew.
– É claro que não precisamos ter uma cerimônia de casamento. Podemos simplesmente aderir ao clássico. Dê uma vaca para meu pai e estará tudo resolvido. Ou um ritual de atar mãos. É
claro que sempre há a antiga prática grega de cortar meus cabelos como um sacrifício dedicado a Artemis, seguido de um banho ritual em uma fonte sagrada...
Subitamente Daisy se viu deitada de barriga para cima, o céu parcialmente bloqueado pela forma escura de Matthew. Então deu uma risada, o que o fez atirar para o lado a vara de pescar e ir para cima dela, seus olhos azuis brilhando travessamente.
– Eu poderia aceitar a ideia de atar as mãos, mas prefiro não me casar com uma noiva careca.
Daisy apreciou o peso dele pressionando-a contra a grama esponjosa, o cheiro de terra e ervas ao redor.
– E quanto ao ritual do banho? – perguntou.
– Ah, isso eu posso fazer. Na verdade... – Seus dedos longos procuraram os botões da frente do vestido de Daisy. – Acho que você deveria praticar. Vou ajudá-la.
Daisy se contorceu e deu um gritinho quando ele começou a lhe abrir o vestido.
– Isto não é uma fonte sagrada, é um velho e lamacento moinho!
Mas ele insistiu e, quando puxou o vestido de Daisy até a cintura, riu de suas tentativas de escapar. Desafiando o decoro e como uma concessão ao calor fora de época, Daisy saíra sem espartilho. Ela empurrou com força o tórax musculoso de Matthew e ele rolou facilmente, levando-a junto. O mundo girou, o azul e o branco do céu se misturando. Ela se viu deitada sobre o peito masculino enquanto sua camisola era inexoravelmente puxada por cima de sua cabeça.
– Matthew... – protestou, sua voz abafada pela peça de linho.
Ele tirou a camisola e a jogou para o lado. Pôs as mãos sob os braços de Daisy e a ergueu até ela ficar pendurada indefesa como um gatinho. Sua respiração se acelerou ao olhar para os seios pálidos com mamilos rosados.
– Abaixe-me – insistiu Daisy, corando como sempre diante do olhar ávido de Matthew.
Embora tivesse se deitado com ele duas vezes, ainda era inocente demais para se sentir à vontade fazendo amor ao ar livre.
Matthew obedeceu, puxando-a mais para cima até sua boca se fechar sobre um mamilo intumescido.
– Não, não foi isso que eu... ah...
Ele sugou cada seio, usando os dentes, a língua, brincando e acariciando. Depois de parar por tempo suficiente para tirar o resto das roupas de Daisy, beijou-a profundamente. Agitada, ela puxou a camisa dele com dedos desajeitados.
Matthew abaixou a mão para ajudá-la, tirando a camisa e encostando gentilmente seu peito nu no dela. Pondo os braços ao redor do pescoço de Matthew, Daisy pressionou sua boca na dele com força, avidez e paixão.
Ela abriu os olhos, surpresa ao sentir a risada de Matthew contra seus lábios.
– Tenha um pouco de paciência, querida – sussurrou ele. – Estou tentando ir devagar.
– Por quê? – perguntou Daisy, seus lábios quentes e sensíveis. Ela passou a língua por seu lábio inferior e Matthew baixou os cílios, seguindo aquele pequeno movimento.
A voz dele se tornou rouca.
– Porque isso lhe dará mais prazer.
– Eu não preciso de mais prazer – disse Daisy. – Isso é tudo que posso suportar.
Matthew riu baixinho. Segurando-lhe o rosto com sua mão forte, puxou-a para mais perto. A ponta de sua língua encontrou a sutil junção com o lábio inferior e permaneceu ali por um momento ardente, fazendo-a arfar. Então lhe selou os lábios com um beijo sensual, sua língua explorando e acariciando.
Pouco a pouco a conduziu até o chão, apoiada na camisa largada. O fino tecido conservava o cheiro da pele dele. Daisy se deleitou com o aroma masculino familiar. Ela fechou os olhos à luz branca do sol quando o corpo de Matthew cobriu o seu. Ele havia afrouxado a calça, o tecido provocando cócegas nas pernas dela. Excitada com a sensação de estar nua encostada no corpo parcialmente despido de Matthew, afastou as pernas enquanto ele se acomodava entre elas.
– Quero ser parte de você – sussurrou Matthew. – Quero ficar para sempre com você.
– Sim, sim... – Ela tentou segurá-lo com os braços e as pernas, apertando-o fortemente com seu corpo flexível.
Matthew a penetrou devagar e, onde antes existira dor, agora só havia prazer com a deliciosa pressão íntima do corpo dele preenchendo o seu. Ela se contorcia e tentava puxá-lo para dentro, ofegante com o esforço e a excitação, e gemeu quando ele lhe segurou os quadris para forçá-la a ficar quieta.
– Calma... – A voz dele foi perversamente suave. – Tenha apenas um pouco de paciência.
Daisy precisava de tudo dele, agora.
– Por favor... – Sua boca ansiava pela pressão da dele, tornando difícil falar. – Não posso apenas ficar deitada aqui enquanto você...
– Sim, pode.
Matthew ainda permanecia dentro dela, investigando-lhe habilmente o corpo com as mãos.
Daisy se contorceu sob ele, seu desejo aumentando a cada carícia persuasiva, seus gemidos sufocados pelas brincadeiras sensuais dos lábios de Matthew. O calor aumentava a cada vez que ele mudava de posição dentro dela. Daisy se arqueava fortemente contra o peso do corpo dele.
Matthew deu uma risada abafada, assumindo o controle do ritmo enquanto a provocava com longas investidas, lhe proporcionando um prazer implacável.
– Não precisa ter pressa, Daisy. – Sua voz se tornou rouca e grossa. – Não há nenhum motivo para... Sim... Ahhh...
Sua cabeça desabou sobre o ombro de Daisy, a respiração ofegante. Os músculos de seus braços se retesaram enquanto ele afundava os dedos no chão, como se pudesse prender ambos à terra.
Daisy se sentiu como uma criatura selvagem, presa contra o gramado pelo ritmo primitivo dos quadris de Matthew. Seu corpo procurando o dele, seus sentidos concentrados no estremecimento de prazer que começou onde seus corpos se uniam e se espalhando até os dedos das mãos e dos pés.
Matthew atingiu o clímax, seu corpo tremendo no estreito círculo dos braços de Daisy.
Quando pousou a cabeça no peito dela, ofegante, ela soube que ele a amava... Pôde sentir isso em cada batimento do coração dele. Matthew havia admitido isso para Westcliff e Lillian, mas por alguma razão não dissera para ela.
Para Daisy, o amor não era uma emoção com a qual se deveria ter cautela. Queria se entregar totalmente a ele, com confiança e pura honestidade... coisas para as quais Matthew aparentemente não estava pronto.
Mas algum dia, prometeu a si mesma, não haveria nenhuma barreira entre eles. Algum dia...
CAPÍTULO 16
O festival de Primeiro de Maio de Stone Cross era comemorado há séculos, tendo começado como uma celebração pagã do fim do inverno e da fertilidade do solo. Evoluíra para um evento de três dias que incluía jogos, comida, danças e toda a folia imaginável.
A pequena nobreza local, fazendeiros e o povo da cidade se misturavam, apesar dos protestos do clero e de conservadores que diziam que o festival não era nada além de uma desculpa para fornicação e bebedeira. Contudo, como Lillian observara maliciosamente uma vez, quanto mais protestos eram feitos, mais pessoas compareciam ao festival.
A área gramada da vila estava iluminada por tochas e uma grande fogueira lançava gigantescas nuvens de fumaça para o céu nublado. O tempo estivera fechado durante todo o dia e o ar carregado de umidade prometia uma tempestade. No entanto, felizmente o aguaceiro parecia contido pelas divindades pagãs e as festividades corriam conforme o planejado.
Com Matthew ao seu lado, Daisy percorreu a fileira de barracas de madeira erguidas ao longo da High Street, repletas de tecidos, brinquedos, chapéus, joias de prata e artigos de vidro.
Ela estava determinada a ver o máximo possível em um curto tempo, porque Westcliff os aconselhara a voltar para a mansão antes da meia-noite.
– Quanto mais avançada a hora, mais os foliões tendem a perder o controle – explicara o conde. – Sob o efeito do vinho e do disfarce das máscaras, tendem a fazer coisas que nunca pensariam em fazer à luz do dia.
– Ah, como um pequeno ritual de fertilidade em alguns lugares? – zombara Daisy alegremente. – Não sou tão inocente que...
– Voltaremos cedo – dissera Matthew para o conde.
Agora, andando pela vila lotada, Daisy entendia o que Westcliff quisera dizer. Ainda era o início da noite e já parecia que o vinho que fluía copiosamente já diminuíra as inibições. As pessoas se abraçavam, discutiam, riam e brincavam. Algumas colocavam coroas de flores ao pé dos carvalhos mais antigos, despejavam vinho nas raízes ou...
– Meu Deus! – disse Daisy, sua atenção atraída por uma cena desconcertante a distância. – O
que eles estão fazendo com aquela pobre árvore?
Matthew segurou a cabeça de Daisy e virou firmemente seu rosto em outra direção.
– Não olhe.
– Isso é alguma forma de adoração da árvore ou...?
– Vamos ver os equilibristas – disse ele com um súbito entusiasmo, conduzindo-a para o outro lado do gramado.
Ele passaram por engolidores de fogo, mágicos e acrobatas, parando para comprar um odre de vinho. Daisy bebeu cuidadosamente do odre, mas uma gota escapou para o canto de seus lábios. Matthew sorriu e começou a procurar um lenço em seu bolso. Depois pareceu pensar melhor. Em vez disso, baixou a cabeça e limpou a gota de vinho com um beijo.
– Você deveria me proteger da perdição – disse ela com um sorriso. – Em vez disso, está me levando para o caminho errado.
Ele acariciou com os nós dos dedos a lateral do rosto de Daisy.
– Eu gostaria de levá-la para o caminho errado – murmurou Matthew. – Na verdade, gostaria de levá-la direto para aquele bosque e... – Ele pareceu perder o fio de seu pensamento enquanto olhava para os olhos escuros e meigos dela. – Daisy Bowman, eu desejo...
Mas ela nunca descobriria qual era o desejo de Matthew, porque foi bruscamente empurrada para ele por uma multidão que passava. Todos queriam ver uma dupla de malabaristas que atiravam pinos e argolas para o ar. Na correria, o odre foi arrancado das mãos de Daisy e pisoteado. Matthew a abraçou protetoramente.
– Eu deixei o vinho cair – disse Daisy com pesar.
– Não faz mal – disse-lhe ao pé do ouvido, seus lábios roçando a delicada borda externa. –
Poderia subir à minha cabeça. E aí você poderia se aproveitar de mim.
Daisy sorriu e se aconchegou ao corpo forte de Matthew, seus sentidos apreciando o calor tranquilizador do abraço dele.
– Minhas intenções são tão óbvias? – perguntou ela com uma voz abafada.
Ele a beijou levemente no pescoço.
– Temo que sim.
Ele a conduziu através da multidão até um espaço aberto ao lado das barracas. Então comprou para ela um cone de nozes assadas, um chocalho de prata para Merritt e uma boneca de pano para a filha de Annabelle. Enquanto percorriam a High Street na direção da carruagem que os esperava, Daisy foi parada por uma mulher que usava roupas espalhafatosas, lenços com fios metalizados e joias de ouro batido.
O rosto da mulher fez Daisy se lembrar das bonecas de maçã que Lillian e ela faziam quando eram crianças. Elas esculpiam rostos nas frutas descascadas e as deixavam secar até ficarem escuras e murchas. Os olhos eram feitos de contas pretas e os cabelos de tufos de lã cardada...
– Posso ler a sorte da dama, senhor? – perguntou a mulher para Matthew.
Ele olhou para Daisy, erguendo uma sobrancelha sarcasticamente.
Ela sorriu, sabendo muito bem que Matthew não tinha nenhuma paciência com misticismo, superstições ou tudo que tivesse a ver com o sobrenatural. Era prático demais para acreditar em coisas que não pudessem ser comprovadas.
– Só porque você não acredita em magia – disse Daisy em tom de brincadeira – não significa que não possa existir. Não quer dar uma espiada no futuro?
– Prefiro esperar que chegue – respondeu ele incisivamente.
– É só um xelim, senhor – insistiu a adivinha.
Matthew suspirou e mudou os pacotes de mão para procurar em seu bolso com a outra.
– Este xelim – disse ele para Daisy – seria mais bem gasto nas barracas, em uma fita de cabelo ou para comprar um peixe defumado.
– Vindo de alguém que atirou uma moeda de 5 dólares em um poço dos desejos...
– O pedido não teve nada a ver com isso – disse ele. – Só o fiz para chamar sua atenção.
Daisy riu.
– Seu desejo se tornou realidade, não? – Então pegou o xelim e o entregou para a adivinha. –
Qual é o seu método de adivinhação? – perguntou-lhe alegremente. – Tem uma bola de cristal?
Usa cartas de tarô ou lê mãos?
Como resposta, a mulher tirou um espelho prateado da cintura de sua saia e o entregou para Daisy.
– Olhe para seu reflexo – entoou solenemente. – É o portal para o mundo dos espíritos.
Continue a olhar. Não desvie os olhos.
Matthew suspirou e ergueu seus olhos para o céu.
Obedientemente, Daisy olhou com ansiedade para seu próprio reflexo, vendo a luz da tocha incidir sobre suas feições. – Vai olhar para o espelho também?
– Não – respondeu a adivinha. – Só preciso ver seus olhos.
Depois... silêncio. Mais adiante, pessoas cantavam músicas folclóricas e batiam tambores.
Olhando para seus próprios olhos, Daisy viu os pequenos brilhos dourados da luz refletida, como centelhas subindo de uma fogueira. Se olhasse muito fixamente e por tempo suficiente, poderia se convencer de que o espelho prateado era mesmo o portal para um mundo místico. Talvez fosse sua imaginação, mas pôde sentir a intensidade da concentração da adivinha.
Com uma brusquidão que sobressaltou Daisy, a mulher tirou o espelho de suas mãos.
– Mal sinal – disse ela sucintamente. – Não consigo ver nada. Vou devolver seu xelim.
– Não precisa – respondeu Daisy confusa. – Não é culpa sua se meu espírito está opaco.
Estudando o rosto enrugado da adivinha, Daisy notou que ela parecia francamente insatisfeita. Devia ter visto algo que a incomodou. O que provavelmente era um sinal para deixar aquilo para lá. Mas Daisy se conhecia muito bem. Se não descobrisse o que era, a curiosidade a deixaria louca.
– Não queremos o xelim de volta – disse ela. – Por favor, deve me dizer alguma coisa. Se for uma má notícia, seria melhor saber, não é?
– Nem sempre – disse a mulher sombriamente.
Daisy se aproximou dela até sentir um cheiro doce de figos e essência de ervas... Louro? Manjericão?
– Quero saber – insistiu.
A adivinha lhe lançou um longo e cauteloso olhar. Finalmente, falou com grande relutância:
– A doçura que a noite trouxe para um coração se transforma em amargura de dia. Uma promessa feita em abril... um coração partido em maio.
Um coração partido? Daisy não gostou de como isso soava.
Sentiu Matthew vir por trás dela e pôr uma das mãos em sua cintura. Embora não pudesse ver a expressão dele, sabia que era sarcástica.
– Dois xelins inspirariam algo um pouco mais otimista? – perguntou Matthew.
A advinha o ignorou. Enfiando o cabo do espelho em sua cintura, disse para Daisy:
– Faça um amuleto colocando dentes de alho dentro de um saquinho de pano. Ele deve carregá-lo para proteção.
– Contra o quê? – perguntou Daisy.
A mulher já estava se afastando a passos largos. Sua volumosa saia colorida se movia como junco no rio enquanto ela se dirigia à multidão no fim da rua em busca de mais negócios.
Daisy se virou para Matthew e olhou para seu rosto impassível.
– Contra o que você precisaria de proteção?
– A chuva.
Ele ergueu a palma da mão e Daisy viu que algumas gotas frias tinham caído em sua cabeça e em seus ombros.
– Tem razão – disse ela, matutando sobre a nefasta previsão. – Eu devia ter comprado o peixe defumado.
– Daisy... – Ele deslizou sua mão livre para a nuca dela. – Não acredita nesse monte de besteiras, não é? Aquela velha encarquilhada decorou alguns versos, e recitaria qualquer um deles por um xelim. O único motivo de ter feito um mau presságio foi eu não ter fingido acreditar em seu espelho mágico.
– Sim, mas... ela parecia genuinamente triste.
– Não havia nada de genuíno nela ou em nada do que disse. – Matthew a puxou para perto, não se importando com quem pudesse vê-los. Quando Daisy ergueu os olhos para ele, uma gota de chuva caiu em seu rosto e outra perto do canto de sua boca.
– Aquilo não era real – disse Matthew com suavidade, seus olhos com um tom de azul meia-noite. Ele a beijou com força e urgência bem ali em público, na rua, com o gosto da chuva nos lábios deles. – Isto é.
Daisy se apertou contra ele, ficando na ponta dos pés para encaixar seu corpo no de Matthew.
A profusão de pacotes ameaçava cair e ele tentou segurá-los enquanto beijava Daisy. Ela interrompeu o beijo com uma súbita risada. Um forte trovejar fez o chão vibrar sob seus pés.
Pelo canto do olho, Daisy viu pessoas se dispersando para se abrigar em lojas e barracas.
– Vamos apostar uma corrida até a carruagem – disse ela para Matthew, erguendo suas saias e desatando a correr.
CAPÍTULO 17
Enquanto a carruagem chegava ao fim da entrada de cascalho, uma chuva pesada caía e o vento batia no veículo. Pensando nos farristas na vila, Matthew riu para si mesmo. Certamente muitos ânimos amorosos estavam sendo esfriados pelo aguaceiro.
A carruagem parou, seu teto ecoando o impacto da chuva incessante. Matthew tirou seu casaco e o pôs ao redor de Daisy, puxando-o para cima até cobrir a cabeça e os ombros dela. Não era o suficiente, mas a protegeria até que chegasse à porta da frente da mansão.
– Você vai se molhar – protestou Daisy, olhando para as mangas da camisa e o colete dele.
Matthew começou a rir.
– Não sou feito de açúcar.
– Nem eu.
– Sim, você é – murmurou ele, fazendo-a corar. Ele sorriu à visão do rosto de Daisy espiando por debaixo do casaco como uma pequena coruja na floresta. – Fique com o casaco – disse. –
São apenas alguns metros até a porta.
Houve uma rápida batida e a carruagem se abriu revelando um criado que lutava corajosamente com um guarda-chuva. Uma rajada de vento virou o guarda-chuva do avesso.
Quando Matthew saltou da carruagem, ficou imediatamente ensopado. Ele bateu no ombro do criado.
– Entre! – gritou em meio à tempestade. – Eu ajudarei a Srta. Bowman.
O criado assentiu com a cabeça e se apressou a ir para a mansão.
Voltando para a carruagem, Matthew conduziu Daisy para fora e a pôs cuidadosamente no chão. Eles percorreram o caminho enlameado até a escada da frente, só parando quando passaram pela porta.
O calor e a luz do hall de entrada os envolveram. Matthew estava com a camisa molhada colada nos ombros e a ideia de se sentar diante de uma lareira lhe provocou um arrepio de prazer.
– Ah, querido – disse Daisy sorrindo e erguendo a mão para afastar os cabelos dele que pingavam na testa. – Você está ensopado.
Uma criada correu para eles com toalhas limpas. Agradecendo-lhe com um gesto de cabeça, Matthew esfregou vigorosamente os cabelos e enxugou a água do rosto. Ele inclinou a cabeça para deixar Daisy arrumar seus cabelos com os dedos o melhor que pudesse.
Percebendo a aproximação de alguém, Matthew olhou por cima de seu ombro. Era Westcliff.
Estava com uma expressão austera, mas algo em seus olhos, um ar de preocupação, causou um arrepio de medo em Matthew.
– Swift – disse o conde calmamente –, recebemos visitantes inesperados esta tarde. Eles ainda não revelaram o objetivo de sua vinda, só disseram que era algo que envolvia você.
O arrepio se intensificou até parecer que cristais de gelos tinham se formado nos músculos e ossos de Matthew.
– Quem são? – perguntou ele.
– Um tal de Sr. Wendell Waring, de Boston... e dois policiais de Bow Street.
Matthew não se moveu ou reagiu, assimilando as notícias em silêncio. Uma nauseante onda de desespero caiu sobre ele.
Meu Deus, pensou. Como Waring o encontrara ali na Inglaterra? Estava tudo terminado.
Todos aqueles anos que roubara do destino... agora seriam reivindicados. Seu coração bateu forte com uma necessidade urgente de fugir. Não havia para onde. Mesmo se houvesse, estava cansado de viver temendo esse dia.
Sentiu a pequena mão de Daisy deslizar para a sua, mas não retribuiu a pressão dos dedos dela. Olhou para o rosto de Westcliff. Fosse lá o que houvesse em seu olhar fez o conde dar um suspiro profundo.
– Maldição – murmurou Westcliff. – Isso é ruim, não é?
Matthew fez que sim com a cabeça. Ele soltou a mão de Daisy. Ela não tentou tocá-lo de novo, sua perplexidade quase palpável.
Após um longo momento de reflexão, Westcliff endireitou os ombros.
– Bem, então vamos resolver isso. Seja qual for o resultado, estarei ao seu lado como amigo.
Matthew deixou escapar uma breve e incrédula risada.
– Nem mesmo sabe do que se trata.
– Não faço promessas vãs. Venha. Eles estão no salão.
Matthew assentiu. Surpreendeu-se por estar agindo como se nada estivesse acontecendo, como se todo seu mundo não estivesse prestes a desmoronar. Era como se estivesse observando tudo de fora. O medo nunca lhe fizera isso. Mas talvez fosse porque nunca tivesse tido tanto a perder.
Viu Daisy andando à sua frente e erguendo o rosto enquanto Westcliff lhe murmurava algo.
Matthew olhou para o chão. Ver Daisy lhe provocava uma dor aguda na garganta, como se tivesse sido ferida por um punhal. Desejou que o entorpecimento voltasse, e misericordiosamente voltou.
Eles entraram no salão. Ao ver Thomas, Mercedes e Lillian, Matthew se sentiu como um réu no dia do julgamento. Seu olhar varreu a sala, e ele ouviu a voz de um homem bradando:
– É ele!
Imediatamente houve um brilho e uma explosão de dor em sua cabeça e suas pernas fraquejaram como se fossem feitas de areia. O brilho diminuiu como uma estrela implodindo e a escuridão baixou, mas sua mente confusa tentou afastá-la, lutando ferozmente para manter a consciência.
Matthew se tornou vagamente consciente de que estava no chão e sentiu a lã áspera do tapete em sua bochecha. Fora golpeado com algum objeto duro.
Sua visão apresentava pontos luminosos quando ele se sentiu sendo erguido com os braços projetados para a frente. Alguém gritava... ouviu homens vociferando, o grito agudo de uma mulher... Pestanejou, mas seus olhos continuaram a lacrimejar em virtude da dor aguda. Seus pulsos foram comprimidos em argolas de ferro. Algemas, percebeu, o peso familiar enchendo-o de pânico.
Pouco a pouco, as vozes se tornaram reconhecíveis em meio ao zumbido em seus ouvidos. A de Westcliff se enfurecendo...
– Como ousam vir à minha casa agredir um dos meus convidados? Sabem quem eu sou?
Tirem isso dele agora ou providenciarei para que todos vocês apodreçam em Newgate!
E uma nova voz...
– Não depois desses anos todos. Não correrei o risco de que ele fuja.
A voz era do Sr. Wendell Waring, o patriarca de uma próspera família da Nova Inglaterra. O
segundo homem que Matthew mais odiava no mundo, o primeiro era o filho de Waring, Harry.
Parecia estranho como um som ou cheiro podia trazer de volta o passado tão facilmente, por mais que Matthew quisesse esquecê-lo.
– Para onde espera que ele fuja? – perguntou Westcliff.
– Tenho permissão para detê-lo da forma que escolher. Não tem nenhum direito de se opor.
Era óbvio que Westcliff não estava acostumado a que lhe dissessem que não tinha nenhum direito de fazer alguma coisa, principalmente em sua própria casa. Seria mais óbvio ainda dizer que ele estava furioso.
A discussão se tornou mais violenta do que a tempestade lá fora, mas Matthew perdeu o rumo da conversa ao sentir um toque suave em seu rosto. Ele recuou e ouviu Daisy murmurar:
– Não. Fique quieto.
Ela enxugava seu rosto com um pano seco, limpando seus olhos e sua boca, afastando da testa seus cabelos úmidos. Ele estava sentado com as mãos algemadas no colo, tentando conter um uivo de dor enquanto olhava para ela. O rosto de Daisy estava pálido, mas calmo. A aflição lhe provocara manchas vermelhas nas bochechas que se destacavam na pele branca. Ela se ajoelhou no tapete ao lado da cadeira de Matthew para examinar as algemas. Estavam unidas por uma corrente de ferro ligada a outra maior que seria usada pelo policial para conduzi-lo.
Erguendo a cabeça, Matthew registrou a presença de dois policiais enormes usando o uniforme padrão de calças de verão brancas, fraque preto de gola alta e cartola rígida. Estavam sérios e em silêncio enquanto Wendell Waring, Westcliff e Thomas Bowman discutiam acaloradamente.
Daisy mexia nas algemas. O coração de Matthew se apertou ao ver que ela estava introduzindo um grampo na fechadura. As irmãs Bowmans eram famosas por essas habilidades, adquiridas em anos de tentativas fracassadas de seus pais de discipliná-las. Mas as mãos de Daisy tremiam demais para lhe permitir lidar com uma fechadura que não conhecia. E era inútil tentar libertá-lo. Deus, se ao menos ele pudesse mantê-la afastada de seu horrível passado... de si mesmo!
– Não – disse baixinho. – Não vale a pena. Daisy, por favor.
– Afaste-se do prisioneiro – pediu um dos policiais ao ver a intromissão de Daisy. –
Percebendo que ela o ignorava, ele deu um passo para a frente erguendo as mãos. – Senhorita, eu lhe disse...
– Não toque nela! – disparou Lillian com uma ferocidade que causou um silêncio temporário na sala. Até mesmo Westcliff e Waring pararam, surpresos.
Olhando para o pasmado policial, Lillian foi até Daisy e a puxou para o lado. Ela disse para os policiais com ferino desprezo:
– Antes de darem um passo em minha direção, aconselho-os a pensar no que acontecerá com suas carreiras quando souberem que trataram mal a condessa de Westcliff em sua própria casa. –
Ela tirou um grampo dos cabelos e assumiu o lugar de Daisy, ajoelhando-se diante de Matthew.
Em segundos abriu a fechadura das algemas, que caíram do pulso dele.
Antes de Matthew poder lhe agradecer, Lillian se levantou e continuou seu discurso para os policiais:
– Bela dupla que vocês são, recebendo ordens de um ianque mal-educado para abusar da hospitalidade da família que os abrigou de uma tempestade. Obviamente são estúpidos demais para saber de todo o apoio financeiro e político que meu marido tem dado para a polícia. Bastaria ele erguer um dedo para o ministro do Interior e o chefe magistrado serem substituídos em uma questão de dias. Então se eu fosse os senhores...
– Desculpe-me, mas não temos outra escolha, milady – protestou um dos robustos policiais. – Recebemos ordens de levar o Sr. Phaelan para Bow Street.
– Quem diabo é o Sr. Phaelan? – perguntou Lillian.
Parecendo chocado com a linguagem usada pela condessa, o policial respondeu:
– Aquele ali. – Ele apontou para Matthew.
Consciente de que todos os olhares estavam fixos nele, Matthew se manteve impassível.
Daisy foi a primeira da sala a se mover. Ela tirou as algemas do colo de Matthew e foi para a porta, onde um pequeno grupo de criados curiosos se reunira. Depois de uma rápida conversa em voz baixa com eles, voltou a ocupar a cadeira perto de Matthew.
– E pensar que eu achava que a tarde seria monótona – disse Lillian secamente, sentando-se em uma cadeira do outro lado de Matthew como se para ajudar a defendê-lo.
Daisy perguntou suavemente para Matthew:
– Qual é seu nome? Matthew Phaelan?
Ele não conseguiu responder, todos os músculos de seu corpo se retesando ao som daquele nome.
– Sim – disse Wendell Waring em uma voz estridente.
Era um daqueles homens desafortunados cuja voz aguda não combinava com seu grande corpo. Além disso, distinguia-se no comportamento e na aparência, com fartos cabelos grisalhos, suíças perfeitamente arrumadas e uma impenetrável barba branca. Ele cheirava a velha Boston, com seus trajes fora de moda e seu casaco de tweed caro, mas gasto, e o ar de autoconfiança que só podia provir de uma família repleta de graduados em Harvard. Seus olhos eram como pedras de quartzo não polidas: duros, claros e sem brilho.
Waring andou a passos largos até Westcliff e lhe entregou um punhado de papéis.
– Prova da minha autoridade – disse venenosamente. – Aí tem uma cópia de uma requisição diplomática de prisão provisória feita pelo secretário de Estado americano. Uma cópia de uma ordem do secretário britânico do Interior, Sir James Graham, para o chefe magistrado de Bow Street, para emitir a ordem de prisão de Matthew Phaelan, conhecido como Matthew Swift. Cópias de declarações de testemunhas que...
– Sr. Waring – interrompeu-o Westcliff com uma suavidade que de modo algum mitigou a ameaça em seu tom –, pode me trazer cópias de tudo, de ordens de prisão à Bíblia de Gutenberg.
Isso não significa que lhe entregarei este homem.
– Não tem outra escolha! Ele é um criminoso condenado que será extraditado para os Estados Unidos, independentemente das objeções de qualquer pessoa.
– Não tenho outra escolha? – Westcliff arregalou seus olhos escuros e seu rosto ficou vermelho. – Por Deus, poucas vezes minha paciência foi testada até o limite como está sendo agora. Esta propriedade onde o senhor se encontra pertence à minha família há cinco séculos e nesta terra, nesta casa, quem manda sou eu. Agora me diga, da maneira mais respeitosa possível, quais são as acusações contra este homem.
Era impressionante ver Marcus, lorde Westcliff, colérico. Matthew duvidava de que até mesmo Wendell Waring, que era amigo de presidentes e homens influentes, já tivesse encontrado alguém com mais autoridade. Os dois policiais pareciam desconfortáveis entre os dois homens.
Waring não olhou para Matthew ao responder, como se a visão dele fosse repulsiva demais para ser tolerada.
– Todos conhecem o homem sentado na nossa frente como Matthew Swift. Ele enganou e traiu todos que já teve a chance de encontrar. O mundo será muito melhor quando ele for exterminado como um verme. Nesse dia...
– Desculpe-me, senhor – interrompeu-o Daisy com uma polidez que beirava o deboche –, mas prefiro ouvir a versão objetiva dos fatos. Não tenho nenhum interesse em suas opiniões sobre o caráter do Sr. Swift.
– O nome dele é Phaelan, não Swift – retorquiu Waring. – É filho de um bêbado irlandês.
Foi levado para o orfanato de Charles River quando era bebê, depois que a mãe morreu no parto.
Tive o azar de conhecer Matthew Phaelan quando o comprei com a idade de 11 anos para ser o criado pessoal de meu filho Harry.
– O senhor o comprou? – repetiu Daisy acidamente. – Eu não sabia que órfãos podiam ser comprados e vendidos.
– Contratei, então – disse Waring, olhando para ela. – Quem é a senhorita insolente que ousa interromper os mais velhos?
Subitamente Thomas Bowman entrou na discussão, torcendo seu bigode raivosamente.
– É minha filha, e ela pode falar como quiser!
Surpresa com a defesa de seu pai, Daisy deu um sorriso breve para ele e depois voltou sua atenção para Waring.
– Por quanto tempo o Sr. Phaelan foi seu criado? – perguntou ela.
– Sete anos. Ele servia ao meu filho no internato, cumpria ordens, cuidava de seus objetos pessoais e voltava com ele nas férias.
Ele olhou de modo acusador para Matthew. Agora que sua presa estava garantida, a fúria de Waring se transformou em sombria resolução. Ele parecia um homem que carregara por muito tempo um fardo pesado demais.
– Não sabíamos que estávamos abrigando uma cobra em nosso meio. Em uma das férias de Harry, uma fortuna em joias foi roubada do cofre da família. Um dos itens era um colar de diamantes que pertencia aos Warings há séculos. Meu bisavô o havia comprado da arquiduquesa da Áustria. O roubo só podia ter sido cometido por alguém da família ou um criado de confiança que tivesse acesso à chave do cofre. Todas as evidências apontavam para uma pessoa: Matthew Phaelan.
Matthew estava sentado em silêncio. Calmo por fora, um caos por dentro. Ele se continha com grande esforço, sabendo que não ganharia nada exteriorizando-o.
– Como sabe que a fechadura não foi forçada por um ladrão? – perguntou Lillian friamente.
– O cofre tinha um dispositivo de segurança – respondeu Waring – que o bloqueava se fosse usada uma alavanca. Só abria com a chave original ou uma chave-mestra. E Phaelan sabia onde a chave estava. De tempos em tempos era encarregado de tirar dinheiro ou bens pessoais do cofre.
– Ele não é um ladrão! – Matthew ouviu Daisy dizer explodindo de raiva, defendendo-o antes que ele pudesse se defender. – Ele nunca seria capaz de roubar nada de ninguém.
– Um júri de doze homens não opinou da mesma maneira – vociferou Waring, sua raiva ressurgindo. – Phaelan foi condenado por roubo e sentenciado a quinze anos de prisão. Ele fugiu antes de ser preso, e desapareceu.
Tendo presumido que Daisy se afastaria dele, Matthew ficou atônito ao perceber que ela decidira ficar ao lado da sua cadeira, e sentiu a leve pressão da mão dela no ombro. Não deu a impressão de reagir àquele toque, mas seus sentidos absorveram avidamente o peso dos dedos de Daisy.
– Como me encontrou? – perguntou Matthew, forçando-se a olhar para Waring. O tempo havia mudado aquele homem de modos sutis. As rugas no rosto tinham se aprofundado e os ossos estavam mais proeminentes.
– Tenho homens à sua procura há anos – disse Waring com um toque melodramático que seus colegas de Boston certamente teriam achado excessivo. – Sabia que não poderia se esconder para sempre. Houve uma grande doação anônima para o orfanato de Charles River e suspeitei que estivesse por trás disso, mas foi impossível passar pela barreira do exército de advogados e dos negócios sigilosos. Então me ocorreu que você poderia tentar encontrar seu pai que o havia abandonado tanto tempo atrás. Nós o localizamos e, em troca de algumas doses de bebida, ele nos contou tudo que queríamos saber: o nome que estava usando e seu endereço em Nova York. – O desprezo de Waring encheu o ar como uma nuvem de moscas quando ele acrescentou: – Você foi vendido pelo equivalente a meio litro de uísque.
A respiração de Matthew ficou presa. Sim, tinha encontrado seu pai. E decidira, contra toda lógica e cautela, confiar nele. A necessidade de uma conexão com alguém ou algo fora irresistível. Seu pai era uma ruína humana. Infelizmente havia pouco que pudesse fazer por ele além de lhe encontrar uma moradia e custear suas despesas.
Sempre que Matthew conseguira visitá-lo em segredo, havia garrafas empilhadas por toda parte.
– Se algum dia precisar de mim – dissera ao pai, pondo uma nota dobrada em sua mão –, mande me chamar neste endereço. Não o dê para ninguém, entendeu?
O pai, infantil em sua dependência, dissera que sim, havia entendido.
Se algum dia precisar de mim... Matthew desejara que alguém precisasse dele.
Esse era o preço de seu desejo.
– Swift – perguntou Thomas Bowman –, o que Waring disse é verdade? – A voz grossa familiar tinha um tom agradável.
– Não totalmente.
Matthew se permitiu olhar com cautela para a sala. Tudo o que esperava ver naqueles rostos
– acusação, medo, raiva – não estava lá. Até mesmo Mercedes Bowman, que não era o que se podia chamar de uma mulher compassiva, o encarava com o que ele quase poderia jurar que era brandura.
De repente ele percebeu que estava em uma posição diferente da em que estivera anos atrás, quando era pobre e sem amigos. Sua única arma havia sido a verdade, o que não fora o suficiente. Agora tinha dinheiro e influência, para não dizer poderosos aliados. Acima de tudo, tinha Daisy, que ainda estava com a mão em seu ombro lhe dando força e conforto.
Ele estreitou os olhos, enfrentando o olhar acusador de Wendell Waring. Gostasse ou não, Waring teria de ouvir a verdade.
CAPÍTULO 18
– Fui criado de Harry Waring – começou Matthew bruscamente. – E dos bons, embora soubesse que ele não me considerava um ser humano. Harry via os criados como cães. Eu só existia para sua conveniência. Meu trabalho era assumir a culpa por suas más ações, receber suas punições, consertar o que ele quebrava, buscar o que ele precisava. Mesmo jovem, Harry era um inútil arrogante que acreditava poder sair impune de tudo em virtude do nome da sua família...
– Não permitirei que ele seja caluniado! – explodiu Waring.
– Já teve sua vez de falar – vociferou Thomas Bowman. – Agora quero ouvir Swift.
– O nome dele não é...
– Deixe-o falar – disse Westcliff, sua voz fria encerrando a questão.
Matthew inclinou brevemente a cabeça para o conde em sinal de agradecimento. Sua atenção foi desviada quando Daisy voltou a se sentar na cadeira próxima. Ela puxou gradualmente sua cadeira para mais perto da de Matthew.
– Fui com Harry para Boston Latin – continuou Matthew – e depois para Harvard. Dormia nos aposentos dos criados no porão. Estudava as anotações dos amigos de Harry das aulas às quais ele havia faltado e redigia seus trabalhos.
– Isso é mentira! – gritou Waring. – Você, educado por freiras idosas em um orfanato... Está louco se acha que alguém acreditaria em você.
Matthew se permitiu um sorriso zombeteiro.
– Aprendi mais com aquelas freiras idosas do que Harry aprendeu com professores particulares. Harry dizia que não precisava de instrução porque tinha um bom nome e dinheiro.
Mas eu não tinha nada disso. Minha única chance era aprender o máximo possível na esperança de algum dia ascender socialmente.
– Ascender para onde? – perguntou Waring com visível desdém. – Você era um criado, um criado irlandês, sem nenhuma chance de se tornar um cavalheiro.
Um curioso meio sorriso surgiu no rosto de Daisy.
– Mas foi exatamente o que ele fez em Nova York, Sr. Waring. Matthew conquistou uma boa posição nos negócios e na sociedade, e certamente se tornou um cavalheiro.
– Sob o disfarce de uma falsa identidade – retrucou Waring. – Não vê que o homem é uma fraude?
– Não – respondeu Daisy, olhando diretamente para Matthew, seus olhos escuros e brilhantes. – Vejo um cavalheiro.
Matthew teve vontade de beijar os pés dela. Em vez disso, desviou seu olhar e continuou:
– Eu fiz tudo que podia para manter Harry em Harvard enquanto ele parecia determinado a ser expulso. A bebida, o jogo e...
Matthew hesitou ao se lembrar de que havia damas presentes.
– Outras coisas – prosseguiu – se tornaram piores. Seus gastos mensais superavam em muito sua mesada e as dívidas de jogo assumiram proporções tão absurdas que até mesmo Harry começou a se preocupar. Ele temia as repercussões se o pai soubesse da dimensão do problema.
Como sempre, Harry procurou a saída mais fácil. O que explica as férias em casa quando o cofre foi roubado. Eu soube imediatamente que tinha sido ele.
– Mentiras venenosas – esbravejou Waring.
– Harry me acusou – disse Matthew –, em vez de admitir que havia roubado o cofre para pagar suas dívidas. Estava decidido a me sacrificar para salvar a própria pele. Naturalmente a família acreditou na palavra dele e não na minha.
– Sua culpa foi provada no tribunal – disse Waring asperamente.
– Nada foi provado.
A raiva de Matthew aumentou e ele respirou fundo, tentando se controlar. Sentiu a mão de Daisy procurando a sua e a segurou, apertando-a com uma força excessiva, mas sem conseguir diminuí-la.
– O julgamento foi uma farsa. Foi apressado para evitar que os jornais dedicassem muita atenção ao caso. Meu defensor indicado pelo tribunal literalmente dormiu durante a maior parte do julgamento. Não havia nenhuma evidência que me ligasse ao roubo. Um criado de um dos colegas de classe de Harry se apresentou dizendo que tinha ouvido Harry e dois amigos planejando me incriminar, mas ele estava com medo demais para testemunhar.
Vendo que Daisy estava ficando com os nós dos dedos brancos, Matthew se forçou a afrouxar sua mão e os acariciou com o polegar.
– Foi um golpe de sorte quando um repórter do Daily Adviser escreveu um artigo mencionando as dívidas de jogo de Harry e revelando que essas mesmas dívidas coincidentemente foram pagas logo após o roubo. Isso causou um crescente clamor público contra a óbvia farsa do julgamento.
– Ainda assim você foi condenado? – perguntou Daisy, indignada.
Matthew sorriu amargamente.
– A justiça pode ser cega, mas adora o som do dinheiro. Os Warings eram muito poderosos e eu era um criado sem um centavo.
– Como escapou? – perguntou Daisy.
A sombra do sorriso amargo permaneceu no rosto dele.
– Isso foi tão surpreendente para mim quanto para as outras pessoas. Eu tinha sido posto em uma carroça de prisioneiros que partiu para a prisão estadual antes do nascer do sol. A carroça parou em uma parte vazia da estrada. De repente a porta foi destrancada e fui puxado para fora por meia dúzia de homens. Presumi que seria linchado. Mas eles disseram que eram cidadãos solidários determinados a corrigir uma injustiça. Libertaram-me. Os guardas não opuseram nenhuma resistência e me foi dado um cavalo. Consegui chegar a Nova York, vendi o cavalo e comecei uma nova vida.
– Por que escolheu o nome Swift? – perguntou Daisy.
– Àquela altura eu já conhecia o poder de um nome respeitado. Os Swifts eram uma família grande com muitos ramos, e achei que isso me ajudaria a não chamar muita atenção.
Então Thomas Bowman falou, movido por seu orgulho ferido.
– Por que me pediu emprego? Pretendia me fazer de bobo?
Matthew olhou para ele, lembrando-se de sua primeira impressão de Thomas Bowman... um homem poderoso disposto a lhe dar uma chance, preocupado demais com seu negócio para fazer muitas perguntas. Esperto, tenaz, imperfeito, decidido... a figura masculina mais influente na vida de Matthew.
– Jamais – disse Matthew sinceramente. – Eu admirava suas conquistas. Queria aprender com o senhor. E... – Ele sentiu um nó na garganta –... passei a vê-lo com respeito e gratidão e a lhe dedicar grande afeto.
Com o rosto corado de alívio, Bowman assentiu levemente com a cabeça, seus olhos brilhando. Waring estava com a aparência de um homem acabado, sua compostura se estilhaçando como vidro barato. Ele olhou para Matthew tremendo de raiva.
– Está tentando manchar a memória do meu filho com suas mentiras – disse. – Não permitirei isso. Você achou que se fosse para um país estrangeiro ninguém iria...
– A memória dele? – Matthew ergueu os olhos devagar. – Harry está morto?
– Por sua causa! Depois do julgamento houve boatos, mentiras, dúvidas que nunca desapareceram. Os amigos de Harry o evitaram. A honra manchada arruinou a vida dele. Se tivesse admitido sua culpa, se tivesse cumprido sua pena, Harry ainda estaria comigo. Mas as horríveis suspeitas das pessoas aumentaram com o tempo e viver a essa sombra fez Harry beber e viver imprudentemente.
– Pelo visto – disse Lillian com sarcasmo –, seu filho já fazia isso antes do julgamento.
Lillian tinha um talento especial para fazer as pessoas perderem os limites. Waring não foi uma exceção.
– Ele é um criminoso condenado! – Waring avançou em sua direção. – Como ousa acreditar nele e não em mim?
Westcliff os alcançou em três passos, mas Matthew já fora para a frente de Lillian, protegendo-a da ira de Waring.
– Sr. Waring – disse Daisy em meio ao tumulto. – Por favor, controle-se. Certamente sabe que esse comportamento não ajuda em nada sua causa.
A calma e a lucidez pareceram penetrar a fúria do homem. Ele olhou para Daisy de um modo estranhamente suplicante.
– Meu filho está morto. A culpa é de Phaelan.
– Isso não o trará de volta – disse brandamente. – Não honrará sua memória.
– Isso me trará paz – gritou Waring.
A expressão de Daisy se tornou grave, seu olhar compadecido.
– Tem certeza?
Todos puderam ver que isso não importava. Waring estava além do alcance da razão.
– Esperei muitos anos e viajei milhares de quilômetros para ver este momento – disse Waring. – Isso não me será negado. Viu os documentos, Westcliff. Nem mesmo você está acima da lei. Os policiais receberam ordens para usar a força, se necessário. Você o entregará para mim agora, esta noite.
– Creio que não. – O olhar de Westcliff estava duro como uma pedra. – Seria loucura viajar em uma noite como esta. As tempestades de primavera podem ser violentas e imprevisíveis em Hampshire. Vocês passarão a noite em Stony Cross Park enquanto penso no que deve ser feito.
Os policiais pareceram um pouco aliviados com essa sugestão, porque nenhum homem sensato ia querer enfrentar aquele dilúvio.
– Dando a Phaelan a oportunidade de fugir de novo? – perguntou Waring desdenhosamente.
– Não! Você o entregará para mim e ele ficará sob minha custódia.
– Eu lhe dou minha palavra de que ele não fugirá – disse Westcliff.
– Sua palavra é inútil para mim – retorquiu Waring. – É óbvio que está do lado dele.
A palavra de um cavalheiro inglês era tudo. Duvidar dela era o maior insulto possível.
Matthew ficou surpreso por Westcliff não explodir. Suas bochechas tensas vibravam de indignação.
– Agora acabou – murmurou Lillian parecendo apavorada. Nem mesmo em suas piores brigas com o marido ousara duvidar da honra dele.
– Para levar este homem – disse Westcliff para Waring em um tom letal – terá de passar por cima do meu cadáver.
Naquele momento, Matthew percebeu que a situação fora longe demais. Viu Waring pôr a mão no bolso de seu casaco, o tecido cedendo a algo pesado, e a coronha de uma pistola. Claro.
A arma era uma garantia no caso de os policiais se revelarem ineficientes.
– Espere – gritou Matthew. Ele faria o que fosse preciso para evitar que a pistola fosse sacada. Se isso acontecesse, o confronto atingiria proporções tão perigosas que tornaria impossível para todos voltar atrás. – Irei com você.
– Não – gritou Daisy, atirando os braços ao redor do pescoço de Matthew. – Você não estará seguro com ele.
– Partiremos agora mesmo – disse Matthew para Waring, enquanto se soltava cuidadosamente dos braços de Daisy e a empurrava para trás do escudo de seu corpo.
– Não posso permitir... – começou Westcliff.
Matthew o interrompeu firmemente.
– É melhor assim.
Ele queria o enlouquecido Waring e os dois policiais longe de Stony Cross Park.
– Irei com eles e tudo será resolvido em Londres. Este não é o momento ou lugar para discutir.
O conde praguejou em voz baixa. Como um bom estrategista, sabia que estava momentaneamente em desvantagem. Essa não era uma batalha que podia ser vencida com força bruta. Exigiria dinheiro, procedimentos legais e influências políticas.
– Irei para Londres com você – disse Westcliff.
– Impossível – respondeu Waring. – Na carruagem só cabem quatro pessoas: os policiais, o prisioneiro e eu.
– Irei na minha.
– Eu o acompanharei – disse Thomas Bowman decididamente.
Westcliff empurrou Matthew para o lado, pondo a mão fraternalmente no ombro dele enquanto lhe falava em voz baixa:
– Conheço muito bem o magistrado de Bow Street. Providenciarei para que seja levado até ele assim que chegarmos a Londres, e a meu pedido você será solto imediatamente. Ficaremos em minha residência enquanto esperamos uma requisição formal do embaixador americano. Nesse meio-tempo reunirei um regimento de advogados e toda a influência política à minha disposição.
Matthew estava comovido demais para falar.
– Obrigado.
– Milorde – sussurrou Daisy –, eles conseguirão extraditar Matthew?
As feições de Westcliff se endureceram em arrogante certeza.
– Definitivamente não.
Daisy deu uma risada nervosa.
– Bem, estou disposta a aceitar sua palavra, milorde, embora o Sr. Waring não esteja.
– Quando eu acabar com Waring... – murmurou Westcliff, e balançou a cabeça. – Com licença, vou dizer aos criados para prepararem a minha carruagem.
Enquanto o conde se afastava a passos largos, Daisy olhou para o rosto de Matthew.
– Agora entendo tantas coisas! Porque não queria me contar?
– Eu... – A voz dele estava rouca. – Eu sabia que isso era errado. Sabia que a perderia quando descobrisse.
– Por que achou que eu não entenderia? – perguntou Daisy seriamente.
– Você não sabe como era antes. Ninguém acreditava em mim. Os fatos não importavam.
Tendo passado por isso, achava que ninguém jamais acreditaria na minha inocência.
– Matthew, eu sempre acreditarei em qualquer coisa que me disser.
– Por quê? – sussurrou ele.
– Porque eu amo você.
Essas palavras o devastaram.
– Você não tem de dizer isso. Não tem...
– Eu amo você – insistiu Daisy, agarrando-lhe o colete. – Eu deveria ter dito isso antes. Queria esperar até você confiar em mim o suficiente para parar de me esconder seu passado. Mas agora que sei o pior... – Ela parou e deu um sorriso zombeteiro. – Isso é o pior, não é? Há mais alguma coisa que queira confessar?
Matthew assentiu com a cabeça, aturdido.
– Não. Isso é tudo.
A expressão de Daisy se tornou tímida.
– Não vai me dizer que também me ama?
– Não tenho esse direito – disse Matthew. – Não enquanto isto não estiver resolvido. Não enquanto meu nome estiver...
– Diga-me – disse Daisy, puxando um pouco o colete.
– Eu amo você – murmurou Matthew. Deus, como era bom dizer isso para ela!
Daisy puxou o colete de novo, dessa vez em um gesto de posse, uma afirmação. Matthew resistiu, pondo as mãos nos cotovelos dela e sentindo o calor da pele dela sob o vestido úmido.
Apesar da impropriedade da situação, seu corpo pulsou de desejo. Daisy, não quero deixá-la...
– Vou para Londres também – murmurou ela.
– Não. Fique aqui com sua irmã. Não quero que participe disso.
– Agora é um pouco tarde, não é? Como sua noiva, tenho muito interesse na resolução dessa questão.
Matthew baixou a cabeça, sua boca roçando os cabelos de Daisy.
– Será muito mais difícil para mim se você estiver lá. Preciso ter certeza de que está em segurança aqui em Hampshire. – Tirando as mãos de Daisy de seu colete, ele beijou seus dedos ardentemente. – Vá ao poço por mim amanhã. Vou fazer outro pedido de 5 dólares.
Os dedos de Daisy apertaram os dele.
– É melhor fazer um de 10.
Matthew se virou ao sentir alguém vindo por trás. Eram os dois policiais, parecendo irritados.
– A norma é os infratores usarem algemas quando são transportados para Bow Street – disse um dos policiais. Ele olhou acusadoramente para Daisy. – Desculpe-me, senhorita, mas o que fez com as algemas que foram removidas do Sr. Phaelan?
Daisy o olhou inocentemente.
– Eu as entreguei para uma criada. Mas ela é muito esquecida. Provavelmente as colocou no lugar errado.
– Onde deveríamos começar a procurar? – perguntou o policial bufando de impaciência.
A expressão de Daisy não mudou quando ela respondeu:
– Sugiro que procurem meticulosamente em todos os urinóis.
CAPÍTULO 19
Em virtude de sua partida apressada, Marcus e Bowman haviam levado na bagagem poucos itens pessoais além de uma muda de roupa e os artigos de higiene pessoal mais básicos. Sentados em lados opostos da carruagem da família, falavam muito pouco. O vento e a chuva atingiam o veículo e Marcus pensou com preocupação no condutor e nos cavalos.
Era temerário viajar com aquele tempo, mas Marcus jamais deixaria Matthew Swift...
Phaelan... ser levado de Stony Cross sem nenhuma proteção. E era óbvio que o desejo de vingança de Wendell Waring atingira um nível irracional.
Daisy fora astuta em seus comentários de que fazer outra pessoa pagar pelo crime de Harry não traria seu filho de volta. Mas, para Waring, essa era a última coisa que podia fazer por ele. E
talvez estivesse convencido de que a prisão de Matthew serviria para provar a inocência de seu filho.
Harry Waring tentara sacrificar Matthew para encobrir sua própria degradação. Marcus não permitiria que Wendell Waring fosse bem-sucedido no que seu filho fracassara.
– Você suspeita dele? – perguntou Thomas Bowman subitamente.
Marcus nunca tinha visto Bowman tão perturbado. Sem dúvida aquilo era muito doloroso para ele, que amava Matthew Swift como a um filho. Possivelmente mais do que a seus próprios filhos. Não admirava que os dois tivessem formado um vínculo profundo: Swift, um jovem sem pai, e Bowman, um homem que almejava alguém a quem servir de mentor.
– Está perguntando se suspeito de Swift? Não, nem um pouco. Acho a versão dele infinitamente mais crível do que a de Waring.
– Eu também. E conheço o caráter de Swift. Posso lhe garantir que em todos os meus negócios com ele, sempre foi um homem excessivamente honesto e de princípios.
Marcus esboçou um sorriso.
– Alguém pode ser excessivamente honesto?
Bowman encolheu os ombros, torcendo seu bigode com relutante divertimento.
– Bem, a honestidade extrema às vezes pode ser uma desvantagem nos negócios.
O estrondo de um trovão pareceu próximo demais e causou um formigamento de alarme na nuca de Marcus.
– Isto é loucura – murmurou. – Logo eles terão de parar em uma taverna, se é que conseguirão atravessar a fronteira de Hampshire. Alguns dos riachos locais são mais caudalosos do que rios. O aumento do volume de água nas nascentes tornará as estradas intransitáveis.
– Deus, espero que sim – disse Thomas Bowman fervorosamente. – Nada me agradaria mais do que ver Waring e aqueles dois idiotas sendo forçados a voltar para Stony Park com Swift.
A carruagem diminuiu a velocidade e parou bruscamente.
– O que foi? – Bowman ergueu a cortina da janela para espiar, mas não conseguiu ver nada além de escuridão e água escorrendo pelo vidro. – Maldição!
Alguém bateu à porta e o rosto pálido do condutor surgiu.
– Milorde – disse ofegantemente –, houve um acidente...
Marcus saltou da carruagem, a chuva fria o atingindo com surpreendente força. Ele tirou a lanterna de seu suporte e seguiu o condutor até um riacho logo à frente.
– Meu Deus – sussurrou Marcus.
A carruagem que levava Waring e Matthew havia parado em uma ponte simples de tábuas.
Um dos lados da ponte se soltara da margem e agora se inclinava sobre o riacho. A força da correnteza destruíra parte da ponte deixando as rodas traseiras da carruagem submersas até a metade enquanto os cavalos tentavam em vão puxar o veículo. Balançando para a frente e para trás na água como um brinquedo de criança, a ponte ameaçava se soltar da outra margem.
Não havia como alcançar a carruagem presa. E seria suicídio tentar atravessar a correnteza.
– Meu Deus, não! – Marcus ouviu Thomas Bowman exclamar, horrorizado.
Eles só podiam observar impotentes enquanto o condutor da carruagem de Waring tentava salvar os cavalos, soltando as correias dos varais.
Ao mesmo tempo, a porta superior da carruagem foi aberta e um vulto começou a sair com óbvia dificuldade.
– É Swift? – perguntou Bowman, aproximando-se da margem o máximo que se atreveu. –
Swift!
Mas seu grito foi abafado pelo barulho da tempestade, pelo rugido da correnteza e pelos rangidos furiosos da ponte que se desintegrava. Tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. Os cavalos se precipitaram para a segurança da margem. O movimento na ponte, um ou dois vultos escuros e, com uma lentidão arrepiante e quase majestosa, a pesada carruagem caiu na água.
Metade afundou, a outra flutuando por alguns instante... mas depois as luzes se apagaram e o veículo tombou de lado enquanto a furiosa correnteza a arrastava.
Daisy não conseguia dormir, incapaz de deter o fluxo de seus pensamentos. Acordara várias vezes durante a noite, perguntando-se o que aconteceria com Matthew. Temia pelo bem-estar dele. A única coisa que a mantinha calma era saber que Westcliff estava com ele.
Ficou revivendo os momentos no salão em que Matthew finalmente revelara os segredos de seu passado. Como parecera vulnerável e sozinho! Que fardo pesado carregara durante todos esses anos... e que coragem e imaginação precisara ter para se reinventar!
Daisy sabia que não seria capaz de esperar em Hampshire por muito tempo. Queria desesperadamente ver Matthew, tranquilizá-lo, defendê-lo do mundo.
Mais cedo naquela tarde Mercedes havia lhe perguntado se as revelações sobre Matthew tinham afetado sua decisão de se casar com ele.
– Sim – respondera Daisy. – Estou ainda mais decidida a isso.
Lillian havia se juntado à conversa, admitindo que estava muito mais predisposta a gostar de Matthew Swift depois do que soubera sobre ele.
– Apesar de que seria bom saber qual será seu futuro nome de casada.
– Ah, que há num simples nome? – citara Daisy pegando uma folha de papel em uma mesinha de colo e a manuseando nervosamente.
– O que está fazendo? – perguntara Lillian. – Não me diga que vai escrever uma carta agora.
– Não sei o que fazer – admitira Daisy. – Acho que eu deveria avisar Annabelle e Evie.
– Elas logo ficarão sabendo por Westcliff – disse Lillian. – E não ficarão nem um pouco surpresas.
– Por que está dizendo isso?
– Com seu gosto por histórias com reviravoltas dramáticas e personagens com passados misteriosos, era de esperar que não tivesse um noivado tranquilo e comum.
– Seja como for – respondera Daisy ironicamente –, um noivado tranquilo e comum parece muito agradável neste momento.
Depois de um sono agitado, Daisy acordou com alguém entrando no quarto. No início achou que era a criada para acender a lareira, mas era cedo demais. O dia ainda nem havia raiado e a chuva se tornara apenas uma sombria garoa.
Era sua irmã.
– Bom dia – gemeu Daisy, sentando-se e se espreguiçando. – Por que acordou tão cedo?
Merritt está agitada?
– Não, ela está dormindo. – Sua voz estava rouca. Usando um pesado roupão de veludo e os cabelos em uma trança frouxa, ela foi para a cama com uma xícara de chá fumegante na mão. –
Aqui, beba isto.
Daisy franziu as sobrancelhas e obedeceu, observando Lillian se sentar na beira do colchão.
Algo havia acontecido.
– O que foi? – perguntou, sentindo um arrepio de pavor descendo por sua coluna.
Lillian apontou com a cabeça para a xícara de chá.
– Posso esperar até você estar um pouco mais desperta.
Era cedo demais para terem notícias de Londres, refletiu Daisy. Isso não podia ter nada a ver com Matthew. Talvez a mãe delas estivesse doente. Talvez algo horrível tivesse acontecido na vila.
Depois de tomar alguns goles de chá, Daisy se inclinou para pôr a xícara na mesa de cabeceira e voltou sua atenção para a irmã.
– Isto é o mais desperta que ficarei hoje. Conte-me agora.
Lillian pigarreou com força e falou com a voz firme:
– Westcliff e papai voltaram.
– O quê? – Daisy a olhou, perplexa. – Por que eles não estão em Londres com Matthew?
– Ele também não está lá.
– Então todos voltaram?
Lillian balançou a cabeça, tensa.
– Não. Sinto muito. Não estou explicando direito. Eu... serei direta. Pouco depois de Westcliff e papai deixarem Stony Cross, a carruagem deles teve de parar por causa de um acidente na ponte. Sabe como aquela velha ponte range quando você tem de atravessá-la para permanecer na estrada principal?
– A que fica sobre o pequeno riacho?
– Sim. Bem, o riacho não estava tão pequeno. Graças à tempestade, transformou-se em um rio caudaloso. Aparentemente, a ponte foi enfraquecida pela correnteza e desabou quando a carruagem do Sr. Waring tentou atravessá-la.
Daisy ficou parada, confusa. A ponte desabou? Repetiu as palavras para si mesma, mas pareciam tão impossíveis de interpretar quanto uma língua antiga esquecida.
– Alguém se salvou? – ouviu-se perguntar.
– Todos, menos Matthew – disse Lillian com uma voz trêmula. – Ele ficou preso na carruagem que foi arrastada pela correnteza.
– Matthew está bem – disse Daisy, seu coração começando a pular como um animal selvagem enjaulado. – Ele sabe nadar. Provavelmente foi parar em uma das margens rio abaixo.
Alguém tem de procurar por ele.
– Estão procurando por toda parte – disse Lillian. – Westcliff está organizando uma busca em grande escala. Passou a maior parte da noite procurando. A carruagem se partiu em pedaços ao ser arrastada. Não há nenhum sinal de Matthew. Daisy, um dos policiais admitiu para Westcliff... – Ela parou e seus olhos castanhos brilharam com lágrimas furiosas –... que Matthew estava com as mãos presas.
As pernas de Daisy se moveram sob as cobertas, seus joelhos se dobrando firmemente para cima. Seu corpo queria ocupar o menor espaço físico possível, encolhendo-se diante dessa nova revelação.
– Mas por quê? – sussurrou. – Não havia nenhum motivo para isso.
O queixo determinado de Lillian tremeu enquanto ela tentava recuperar o controle de suas emoções.
– Dada a história de Matthew, disseram que havia um risco de fuga. Mas acho que Waring insistiu nisso por maldade.
Daisy se sentiu zonza com o batimento de seu próprio pulso. Estava assustada e, ao mesmo tempo, uma parte dela se tornara distante. Por um breve momento, visualizou Matthew se debatendo na água escura com as mãos presas...
– Não – disse, apertando suas têmporas latejantes coma s mãos. Parecia que pregos haviam sido enfiados em seu crânio. Ela não conseguia respirar direito. – Ele não teve nenhuma chance, não é?
Lillian balançou a cabeça e desviou seu olhar. Lágrimas escorreram de seu rosto e caíram na colcha.
Que estranho ela não estar chorando também. Uma quente pressão aumentava atrás de seus olhos, bem no fundo de sua cabeça, fazendo seu crânio doer. Parecia que suas lágrimas estavam esperando outro pensamento ou outra palavra que a libertassem.
Daisy continuou a segurar suas têmporas latejantes, quase cega de dor de cabeça ao perguntar:
– Você está chorando por Matthew?
– Sim. – Lillian puxou um lenço da manga de seu roupão e assoou fortemente o nariz. – Mas principalmente por você. – Ela se inclinou o suficiente para pôr seus braços ao redor de Daisy, como se pudesse protegê-la de todo mal. – Eu amo você, Daisy.
– Também amo você – disse Daisy em uma voz abafada, seus olhos secos ardendo enquanto ela lutava para respirar.
A busca continuou durante o restante do dia. Para Daisy, todos os rituais comuns, as horas de dormir, trabalhar e comer, tinham perdido significado. Apenas um incidente conseguiu tirar Daisy do torpor que a oprimia: Westcliff ter se recusado a deixá-la ajudar na busca.
– Você não será útil para ninguém – dissera-lhe ele, exausto e aflito demais para ter seu tato habitual. – Está perigoso lá fora. Na melhor das hipóteses, você será uma distração. Na pior, se machucará.
Daisy sabia que ele estava certo, mas isso não conteve uma chama de indignação. Esse sentimento ameaçou fazê-la perder o controle, e por isso ela se fechou rapidamente em si mesma.
Talvez o corpo de Matthew nunca fosse encontrado. Isso era cruel demais para ela suportar.
De certo modo, um desaparecimento era pior do que a morte – como se a pessoa nunca tivesse existido, não restando nada pelo qual chorar. Ela nunca havia entendido por que alguns precisavam ver o corpo de um ente querido. Agora entendia. Esse era o único modo de acabar com aquele pesadelo e talvez encontrar alívio nas lágrimas.
– Continuo a achar que eu saberia se ele estivesse morto – disse Daisy para Lillian quando elas estavam sentadas no chão do salão, perto da lareira. Daisy estava enrolada em um velho xale que a confortava com sua maciez. Apesar do calor do fogo, das camadas de suas roupas e da caneca de chá com conhaque em suas mãos, Daisy parecia não conseguir se aquecer. – Eu o teria sentido. Mas não sinto nada. É como se tivesse sido congelada viva. Quero me esconder em algum lugar. Não quero ouvir isso. Não quero ser forte.
– Não tem de ser – disse Lillian brandamente.
– Sim, tenho. Porque a única outra opção é me deixar ser partida em um milhão de pedaços.
– Eu a manterei inteira. Com todos os pedaços no lugar.
Um débil sorriso surgiu nos lábios de Daisy enquanto ela olhava para o rosto preocupado da irmã.
– Lillian, o que eu faria sem você? – sussurrou.
– Você nunca terá de descobrir.
Apenas depois de muita insistência da mãe e da irmã, Daisy comeu um pouco no jantar. Ela bebeu uma taça cheia de vinho, esperando que a distraísse das intermináveis voltas que sua mente dava.
– Westcliff e papai deveriam voltar logo – disse Lillian tensamente. – Provavelmente não descansaram e não comeram nada.
– Vamos para o salão – sugeriu Mercedes. – Poderemos nos distrair com cartas ou talvez você possa ler em voz alta um dos livros favoritos de Daisy.
Daisy lhes deu um olhar de desculpas.
– Sinto muito, não posso. Se não se importam, prefiro ficar sozinha.
Depois de se lavar e vestir sua camisola, Daisy relanceou os olhos para a cama. Embora estivesse levemente embriagada e exausta, sua mente rejeitava a ideia de dormir.
A casa estava em silêncio quando caminhou até a sala Marsden, seus pés descalços tocando as sombras que cruzavam o chão atapetado. Um único candelabro projetava um brilho amarelo na sala, a luz captada pelos cristais bisotados que pendiam da cúpula, espalhando pontos de luz brancos nos papéis de parede florais. Uma pilha de livros e publicações fora deixada perto do canapé: periódicos, romances e um fino volume de poesia humorística que ela lera para Matthew esperando pelos sorrisos esquivos dele.
Como tudo havia mudado tão rápido? Como a vida podia escolher alguém sem a menor cerimônia e pôr essa pessoa em um caminho novo e indesejado?
Daisy se sentou no tapete e começou a examinar os volumes... livros para ser devolvidos à biblioteca, outros para ser doados aos aldeões no dia de visita. Mas talvez não fosse prudente tentar separá-los depois de ter bebido tanto vinho. Em vez de formar duas pilhas arrumadas, os materiais de leitura acabaram espalhados ao redor dela como muitos sonhos abandonados.
Daisy cruzou as pernas, se encostou no lado do sofá e pousou a cabeça na beira estofada.
Seus dedos encontraram a capa de tecido que cobria um dos livros. Ela o olhou de relance com olhos semicerrados. Um livro sempre era uma porta para outro mundo, mais interessante e fantástico do que a realidade. Mas ela finalmente descobrira que a vida podia ser ainda mais maravilhosa do que a fantasia. E que o amor podia encher o mundo real de magia. Matthew era tudo que já havia desejado. E tivera tão pouco tempo com ele!
O relógio no console da lareira tiquetaqueava com avara lentidão. Semiadormecida encostada no canapé, Daisy ouviu a porta ranger. Seu olhar preguiçoso seguiu o som.
Um homem havia entrado no salão.
Ele parou do lado da porta, contemplando a visão de Daisy no chão com os livros espalhados ao seu redor. Abruptamente, Daisy ergueu seus olhos. Ela ficou paralisada de ânsia, medo e um terrível desejo. Era Matthew, usando roupas toscas e desconhecidas, sua presença tomando conta da sala.
Temendo que a visão desaparecesse, Daisy ficou imóvel. Seus olhos ardiam e lacrimejavam, mas os manteve abertos, esperando que ele ficasse.
Matthew se aproximou dela com grande cuidado. Ficando de cócoras, a contemplou com imensurável ternura e preocupação. Uma de suas grandes mãos afastou para o lado alguns dos livros até o espaço entre os corpos deles ficar desimpedido.
– Sou eu, amor – disse suavemente. – Está tudo bem.
Daisy conseguiu sussurrar por entre seus lábios secos.
– Se você for um fantasma, espero que me assombre para sempre.
Matthew se sentou no chão e segurou as mãos frias de sua noiva.
– Um fantasma usaria a porta? – perguntou com brandura, levando os dedos de Daisy ao seu rosto arranhado e ferido.
Ao sentir a pele de Matthew nas palmas de suas mãos, Daisy foi atingida por uma dolorosa onda de consciência. Com alívio, finalmente sentiu o torpor desaparecer e suas emoções sendo liberadas, e então tentou cobrir os olhos. Seu peito parecia se desfazer em soluços incontroláveis.
Matthew afastou a mão dela e a abraçou, murmurando-lhe palavras de conforto. Como Daisy continuava a chorar, abraçou-a com mais força, parecendo entender que ela precisava da pressão firme de seu corpo.
– Por favor, seja real – sussurrou ela. – Por favor, não seja um fantasma.
– Sou real – disse Matthew roucamente. – Não chore tanto, não há... Ah, Daisy, meu amor...
Ele segurou a cabeça de Daisy e disse palavras de ternura confortadoras contra os lábios dela.
Deitou-a cuidadosamente no chão, usando o peso tranquilizador de seu corpo para subjugá-la.
Matthew segurou as mãos dela, entrelaçando os dedos de ambos. Ofegante, Daisy virou a cabeça para olhar para o pulso exposto dele, a carne com vergões vermelhos.
– Você estava com as mãos presas – disse Daisy com uma voz rouca que não parecia a dela.
– Como se soltou?
Matthew inclinou a cabeça para dar um beijo na bochecha molhada de lágrimas.
– Canivete – respondeu sucintamente.
Daisy arregalou os olhos enquanto continuava a olhar para o pulso dele.
– Você conseguiu tirar um canivete do bolso e cortar as cordas enquanto era arrastado rio abaixo em uma carruagem que afundava?
– Foi muito mais fácil do que lutar com um ganso.
Daisy deixou escapar uma risada chorosa que logo se transformou em outro soluço entrecortado. Matthew abafou o som com a boca, seus lábios acariciando os dela.
– Comecei a cortar as cordas ao primeiro sinal de problemas – continuou. – E tive alguns minutos antes de a carruagem rolar para a água.
– Por que os outros não o ajudaram? – perguntou Daisy, esfregando a manga da camisola em seu rosto molhado.
– Eles estavam ocupados salvando a própria pele. Apesar de achar que eu merecia um pouco mais de consideração do que os cavalos. Quando a carruagem começou a ser arrastada pela correnteza, minhas mãos estavam livres. Pedras e restos de madeira estavam partindo o veículo em pedaços. Pulei para a água e consegui chegar à margem, mas me machuquei um pouco no processo. Encontrei um velho que procurava seu cão. Ele me levou para sua cabana e, junto com a esposa, cuidou de mim. Perdi a consciência e acordei um dia e meio depois. Quando souberam da busca de Westcliff, contaram onde eu estava.
– Pensei que estivesse morto – disse Daisy em uma voz entrecortada. – Pensei que nunca mais o veria.
– Não, não... – Matthew acariciou os cabelos de Daisy e beijou suas bochechas, os olhos e os lábios trêmulos. – Sempre voltarei para você. Sou confiável, lembra-se?
– Sim. Exceto pelos... – Daisy teve de tomar um fôlego extra ao sentir sua boca descendo por seu pescoço –... vinte anos de sua vida antes de eu conhecê-lo, eu diria que você é tão confiável que quase é... – Sua língua mergulhara até a cavidade pulsante na base de seu pescoço... previsível.
– Provavelmente você tem algumas queixas sobre minha falsa identidade e condenação por roubo.
Os beijos exploradores dele subiram para a linha delicada do queixo de Daisy, absorvendo a lágrima errante.
– Ah, não – disse ela ofegante. – Eu o pe-perdoei mesmo antes de saber quem era.
– Querida – sussurrou Matthew, esfregando o nariz no lado do rosto dela e a acariciando com a boca e as mãos. Daisy se agarrou a ele cegamente. Matthew afastou a cabeça e a olhou de um modo indagador. – Agora que tudo foi revelado, vou ter que limpar o meu nome. Vai esperar por mim, Daisy?
– Não.
Ainda fungando, ela começou a desabotoar os botões de madeira das roupas emprestadas a Matthew.
– Não? – Ele deu um meio sorriso e a olhou zombeteiramente. – Chegou à conclusão de que eu sou um problema grande demais?
– Cheguei à conclusão de que a vida é curta demais... – grunhiu Daisy puxando-lhe o tecido áspero da camisa –... para desperdiçar um só dia dela.
As mãos de Matthew cobriram as dela, interrompendo-lhe o movimento febril.
– Não acho que sua família ficará entusiasmada com a ideia de deixá-la se casar com um fugitivo da justiça.
– Meu pai o perdoará. Além disso, você não será um fugitivo para sempre. Seu caso será anulado quando os fatos se tornarem conhecidos. – Daisy soltou suas mãos e o agarrou com força. – Leve-me para Gretna Green esta noite. Foi assim que minha irmã se casou. E Evie também. Fugir é praticamente uma tradição no nosso grupo.
– Shhh... – Matthew a abraçou, aconchegando-a a seu corpo firme. – Chega de fugir.
Finalmente vou enfrentar meu passado. Embora fosse muito mais fácil resolver meus problemas se aquele canalha do Harry Waring não tivesse morrido.
– Ainda há pessoas que realmente sabem o que aconteceu – disse Daisy ansiosamente. – Os amigos dele. O criado que você mencionou. E...
– Sim, eu sei. Não vamos falar sobre esse assunto agora. Deus sabe que teremos muito tempo para isso nos próximos dias.
– Eu quero me casar com você – insistiu Daisy. – Não mais tarde. Agora. Depois de tudo pelo que passei, achando que você se fora para sempre, nada mais importa.
Um pequeno soluço interrompeu a última palavra. Matthew acariciou os cabelos dela e limpou a lágrima com o polegar.
– Está bem. Está bem. Vou falar com seu pai. Não chore de novo. Daisy, não chore.
Mas ela não conseguiu conter as lágrimas de alívio. Quanto mais se contraía para evitá-las, pior ficava.
– Querida, o que foi? – Matthew passou as mãos pelos braços trêmulos dela.
– Estou com medo!
Ele emitiu um som baixo e involuntário e a apertou fortemente, seus lábios se movendo sobre a bochecha de Daisy com apaixonada pressão.
– De quê, meu amor?
– De que isto seja um sonho. De acordar e... descobrir que você nunca esteve aqui. Tenho medo de ficar sozinha de novo e...
– Não, eu estou aqui. Não vou embora. – Ele desceu para a garganta, afastando os lados da camisola com lenta deliberação. – Deixe-me fazê-la se sentir melhor, amor...
Suas mãos eram suaves e tranquilizadoras. Quando deslizou as palmas sobre os membros dela, seu toque enviou ondas de calor para todo o corpo de Daisy, fazendo-a gemer.
Ao ouvir aquele som, Matthew ficou com a respiração entrecortada, buscando seu autocontrole. Não encontrou nenhum. Só havia necessidade. Perdido no desejo de enchê-la de prazer, despiu-a bem ali no chão, acariciando com as palmas das mãos a pele fria até deixá-la muito corada.
Tremendo selvagemente, Daisy viu a luz da vela incidir sobre a cabeça escura de Matthew quando ele se inclinou sobre seu corpo, espalhando beijos por lentos caminhos... suas pernas, sua barriga nua, seus seios.
O frio que se dissolvia em todos os lugares em que a beijava. Ela suspirou e relaxou ao ritmo suave das mãos e da boca de Matthew. Quando Daisy tentou abrir a camisa dele, Matthew ergueu a mão para ajudá-la. O tecido de lã áspera foi afastado, revelando a pele masculina sedosa. De algum modo, Daisy se tranquilizou ao ver as marcas escuras dos machucados, porque eram prova de que não podia esta sonhando. Ela pôs sua boca aberta sobre uma delas e a tocou com a língua.
Matthew a puxou cuidadosamente para si, pondo a mão na curva da cintura e no quadril de Daisy com uma sensualidade que lhe arrepiou a pele das coxas. Ela se contorceu em uma mistura de prazer e desconforto quando a lã do tapete roçou em sua pele muito sensível, pinicando suas nádegas nuas.
Ao se dar conta do incômodo dela, Matthew riu baixinho e a puxou para seu colo. Suando e com a boca seca, Daisy pressionou os seios contra o peito dele.
– Não pare – sussurrou.
Ele segurou as nádegas de Daisy.
– Você vai ficar em carne viva no chão.
– Não importa, só quero... quero...
– Isto? – Matthew a ajeitou em seu colo até ela ficar escarranchada sobre ele, o tecido de suas calças rígido sob as coxas de Daisy.
Envergonhada e excitada, ela fechou os olhos ao senti-lo acariciar as intricadas dobras de seu corpo, espalhando umidade e sensações ardentes entre suas pernas.
Daisy sentiu os braços fracos ao colocá-los ao redor do pescoço dele. Se não fosse pelo firme apoio do braço forte de Matthew em suas costas, não teria conseguido se manter reta. Estava totalmente concentrada no lugar onde ele a tocava, no roçar do nó do dedo ao redor da diminuta ponta sedosa e molhada...
– Não pare – ouviu-se sussurrar.
Daisy abriu os olhos quando Matthew enfiou dois dedos nela, e depois três, o desejo consumindo seu interior como uma chama alimentada por mel ardente.
– Ainda está com medo de que isso seja um sonho? – sussurrou Matthew.
Ela engoliu em seco e balançou a cabeça.
– Eu... nunca tive um sonho assim.
Matthew franziu os olhos, divertido, e retirou seus dedos, deixando-a trêmula e vazia. Daisy gemeu e deixou a cabeça cair sobre o ombro dele, que a abraçou firmemente contra seu corpo nu.
Daisy se agarrou a ele, sua visão se toldando até a sala se tornar um mosaico de luz amarela e sombras pretas. Ela sentiu que estava sendo erguida, virada, seus joelhos pressionando o tapete enquanto ele a ajudava a se ajoelhar na frente do canapé. O lado de seu rosto foi pressionado contra o estofamento macio enquanto ela entreabria os lábios para conseguir respirar. Matthew a cobriu, o corpo grande e sólido dele se acomodando atrás e ao redor do seu e depois penetrando-a, o encaixe apertado, escorregadio e delicioso.
Daisy se enrijeceu de surpresa, mas Matthew pôs as mãos em seus quadris, acariciando-a e tranquilizando-a, encorajando-a a confiar nele. Ela ficou imóvel, fechando os olhos enquanto o prazer aumentava a cada lenta investida. Uma das mãos dele desceu para sua frente, as pontas dos dedos encontrando o botão arredondado de seu sexo e acariciando-o até ela atingir um clímax brilhante, sacudida por tremores de profundo alívio.
Minutos depois, Matthew pôs a camisola em Daisy e a carregou através do corredor escuro até chegarem ao quarto dela. Quando a deitou na cama, Daisy sussurrou para ele ficar.
– Não, amor. – Ele se inclinou sobre seu corpo de bruços na escuridão. – Por mais que eu queira, não podemos ir tão além do decoro.
– Eu não quero dormir sem você. – Daisy olhou para o rosto na penumbra logo acima do seu.
– Não quero acordar sem você.
– Algum dia. – Ele se inclinou para lhe dar um firme beijo na boca. – Algum dia poderei procurá-la a qualquer hora, de noite ou de dia, e ficar com você quanto você quiser. – Sua voz se tornou embargada de emoção quando acrescentou: – Pode contar com isso.
Lá embaixo, o exausto conde de Westcliff estava deitado em um sofá com a cabeça no colo da esposa. Depois de dois dias de busca incansável, Marcus estava cansado até os ossos. Contudo, sentia-se grato por aquela tragédia ter sido evitada e o noivo de Daisy ter voltado em segurança.
Marcus havia ficado um pouco surpreso com a preocupação exacerbada de sua esposa. Logo após sua chegada à mansão, Lillian tinha lhe trazido sanduíches e conhaque quente, limpado a sujeira de seu rosto com uma toalha úmida, aplicado unguento em seus aranhões, enfaixado alguns dedos cortados e até mesmo tirado suas botas enlameadas.
– Você parece pior do que o Sr. Swift – retorquira ela. – Ele ficou deitado em uma cabana durante os últimos dois dias enquanto você vasculhava as florestas na lama e na chuva.
– Ele não estava exatamente descansando – salientara Marcus. – Estava ferido.
– Isso não muda o fato de que você não teve nenhum descanso e não comeu praticamente nada enquanto procurava por ele.
Marcus havia se submetido aos cuidados da esposa, apreciando secretamente vê-la debruçada sobre ele. Quando Lillian achou que ele estava bem alimentado e devidamente enfaixado, pôs a cabeça dele em seu colo. Marcus suspirou de prazer, olhando para a as chamas na lareira.
Os dedos esguios de Lillian brincavam distraidamente em seus cabelos quando ela comentou:
– Já faz bastante tempo que o Sr. Swift foi ao encontro de Daisy. Está tudo silencioso demais.
Não vai subir para ver como eles estão?
– Nem por todo o chá da China – respondeu Marcus, repetindo uma das frases favoritas de Daisy. – Só Deus sabe o que eu poderia interromper.
– Meu Deus! – Lillian pareceu horrorizada. – Acha que eles estão...?
– Eu não ficaria surpreso. – Marcus parou deliberadamente antes de acrescentar – Lembre-se de como nós éramos.
Como ele pretendia, imediatamente o comentário a divertiu.
– Éramos? Ainda somos assim – protestou Lillian.
– Não fazemos amor desde antes de o bebê nascer. – Marcus se sentou, apreciando a visão de sua jovem esposa de cabelos escuros à luz da lareira. Ela era e sempre seria a mulher mais tentadora que já havia conhecido. A paixão reprimida tornou sua voz rouca quando perguntou: –
Quanto mais devo esperar?
Lillian pôs o cotovelo nas costas do sofá, apoiou a cabeça na mão e deu um sorriso de desculpas.
– O médico disse que pelo menos mais duas semanas. Sinto muito. – Ela riu ao ver a expressão do marido. – Vamos subir.
– Não vejo por quê, se não vamos dormir juntos – resmungou Marcus.
– Eu o ajudarei a se banhar. Até mesmo esfregarei suas costas.
Ele ficou suficientemente intrigado com o oferecimento para perguntar:
– Só as costas?
– Estou aberta a negociações – disse Lillian provocadoramente. – Como sempre.
Marcus estendeu a mão para puxá-la contra seu peito e suspirou.
– A esta altura aceitarei o que puder obter.
– Pobre homem! – Ainda sorrindo, Lillian virou seu rosto para beijá-lo. – Apenas se lembre de que vale a pena esperar por algumas coisas.
EPÍLOGO
Matthew e Daisy acabaram se casando no fim do outono. Hampshire estava coberta de folhas vermelhas, os cães de caça saíam quatro manhãs por semana e os últimos cestos de frutas tinham sido colhidos de árvores carregadas. Agora que o feno havia sido cortado e os ruidosos cordonizes tinham deixado os campos, seu clamor fora substituído pelo canto melodioso dos tordos e o tagarelar das escrevedeiras-amarelas.
Durante todo o verão e boa parte do outono, Daisy suportara muitas separações de Matthew, inclusive viagens frequentes a Londres para tratar de seus assuntos legais. Com a ajuda de Westcliff, os pedidos de extradição por parte do governo americano foram negados, o que permitiu a Matthew permanecer na Inglaterra. Depois de contratar advogados habilidosos e inteirá-los das particularidades do caso, Matthew os despachou para Boston para fazer suas apelações no tribunal.
Nesse ínterim, Matthew viajou e trabalhou incessantemente, supervisionando a construção da fábrica em Bristol, contratando operários e estabelecendo canais de distribuição em todo o país.
Para Daisy, parecia que Matthew mudara um pouco desde que os segredos de seu passado foram revelados... Ele estava mais livre agora, até mesmo mais autoconfiante e carismático.
Sendo testemunha da energia ilimitada e da crescente lista de realizações de Matthew, Simon Hunt o informara de que, se a qualquer momento se cansasse de trabalhar para Bowman, seria bem-vindo na Consolidated Locomotive. Isso levara Thomas Bowman a oferecer para Matthew uma porcentagem maior nos lucros futuros.
– Quando chegar aos 30, serei milionário – dissera Matthew para Daisy. – Se conseguir me manter fora da prisão.
Daisy havia ficado surpresa e comovida por todos em sua família, até mesmo sua mãe, terem se unido em defesa de Matthew. Se isso era pelo bem de Daisy ou de seu pai, não estava claro.
Thomas Bowman, que sempre fora severo demais com as pessoas, perdoara imediatamente Matthew por tê-lo enganado. Na verdade, mais do que nunca parecia considerá-lo um filho.
– Se Matthew Swift tivesse cometido um assassinato a sangue-frio, papai diria: “Bem, o rapaz deve ter tido um ótimo motivo para isso.” – comentara Lillian para Daisy.
Descobrindo que se manter ocupada ajudava o tempo a passar mais rápido, Daisy se encarregou de encontrar uma casa em Bristol. Decidiu-se por uma grande à beira-mar que já pertencera a um dono de estaleiro e à família dele. Acompanhada de sua mãe e da irmã, que gostavam muito mais de ir às compras do que ela, Daisy adquiriu móveis grandes e confortáveis, além de tecidos coloridos para as cortinas. E, é claro, providenciou para que houvesse mesas e prateleiras para livros no maior número de aposentos possível.
Ajudou o fato de Matthew correr para Daisy sempre que podia escapar por alguns dias.
Agora não havia restrições, segredos ou temores entre ambos.
Eles tinham longas conversas enquanto caminhavam admirando a sonolenta paisagem de verão, sentindo um prazer infinito na companhia um do outro. E nas noites em que Matthew procurava Daisy na escuridão e fazia amor com ela, enchia seus sentidos de prazer e o coração de alegria.
– Tentei muito ficar longe de você – sussurrou ele uma noite, abraçando-a enquanto o luar iluminava as cobertas desarrumadas.
– Por quê? – sussurrou Daisy de volta, arrastando-se até ficar sobre o peito musculoso dele.
Ele brincou com a escura cascata de cabelos dela.
– Porque eu não deveria procurá-la desta forma antes de nos casarmos. Há um risco...
Daisy o silenciou com um beijo, só parando quando Matthew ficou com a respiração acelerada e o peito quente. Ela ergueu a cabeça, fitou seus olhos brilhantes dele e sorriu.
– Tudo ou nada – murmurou. – É assim que eu o quero.
Finalmente chegaram noticias dos advogados de Matthew. Um grupo de três juízes de Boston havia examinado o processo, anulado a condenação e encerrado o caso. Também decidiram que o caso não poderia ser desarquivado, acabando dessa forma com as esperanças da família Waring de prolongar aquele sofrimento.
Matthew recebera a notícia com notável calma, aceitando os cumprimentos de todos e agradecendo aos Bowmans e aos Westcliffs por seu apoio. Só desabou quando estava a sós com Daisy, seu alívio grande demais para ser contido. Ela havia lhe dado todo o conforto de que ele precisava, e de um modo tão íntimo que permaneceria para sempre na lembrança apenas deles dois.
E agora era o dia de seu casamento.
A cerimônia na capela de Stony Park fora implacavelmente longa, com o vigário determinado a impressionar a multidão de convidados ricos e importantes, muitos dos quais de Londres e alguns de Nova York. O serviço religioso incluiu um sermão interminável, um número de hinos sem precedente e três leituras cansativas dos evangelhos.
Daisy esperou pacientemente em seu pesado vestido de cetim cor de champanhe, enquanto seus pés formigavam dentro dos sapatos de salto adornados com contas. Quase não conseguia ver através do véu de renda valenciana com bordado de pérolas. O casamento se tornara um exercício de resistência. Ela fez o possível para parecer solene, mas ao olhar de relance para Matthew, alto e bonito em um fraque preto e uma gravata branca engomada... sentiu seu coração saltar de felicidade.
Depois dos votos, apesar das rígidas advertências de Mercedes de que o noivo não deveria beijar a noiva porque esse costume nunca era seguido pelas pessoas da alta sociedade... Matthew puxou Daisy e lhe deu um forte beijo nos lábios à vista de todos. Houve uma ou duas exclamações de espanto e risadas amigáveis na multidão.
– Está sendo escandaloso, Sr. Swift – sussurrou.
– Ainda não viu nada – respondeu Matthew em voz baixa, sua expressão amorosa. – Estou guardando meu pior comportamento para esta noite.
Os convidados foram para a mansão. Depois de receber o que pareceu ser milhares de pessoas e sorrir até ficar com as bochechas doendo, Daisy deixou escapar um longo suspiro.
Logo seria servido um café da manhã capaz de alimentar meia Inglaterra e depois haveria os brindes e prolongadas despedidas. E tudo que ela queria era ficar a sós com seu marido.
– Ah, não se queixe. – A voz próxima e divertida de sua irmã lhe chegou aos ouvidos. – Uma de nós tinha de ter um casamento apropriado.
Daisy se virou e viu Lillian, Annabelle e Evie.
– Não ia me queixar. Só estava pensando em como teria sido mais fácil fugir para Gretna Green.
– Não seria muito original, considerando que Evie e eu já fizemos isso.
– Foi uma cerimônia linda – disse Annabelle afetuosamente.
– E longa – retrucou Daisy com pesar. – Sinto-me como se tivesse ficado em pé durante horas.
– Você ficou – disse-lhe Evie. – Venha conosco.
– Agora? – perguntou Daisy confusamente, olhando para os rostos animados de suas amigas.
– Não podemos. Estão nos esperando para o café da manhã.
– Ah, deixe que esperem – disse Lillian alegremente. Ela pegou o braço de Daisy e a puxou para fora do hall de entrada.
Enquanto as quatro jovens seguiam por um corredor que levava à sala onde costumavam tomar o café da manhã, encontraram lorde St. Vincent, que andava a passos largos na direção oposta. Lindo e elegante em suas roupas formais, ele deu a Evie um sorriso terno.
– Vocês parecem estar fugindo de algo – observou.
– Estamos – disse Evie para seu marido.
St. Vincent passou o braço ao redor da cintura dela e perguntou em um sussurro conspiratório:
– Para onde estão indo?
Evie pensou por um momento.
– Para algum lugar onde possamos passar pó no nariz de Daisy.
O visconde olhou desconfiadamente para Daisy.
– Todas vocês? Mas é um nariz tão pequeno!
– Só precisamos de alguns minutos, milorde – disse Evie. – Será que pode arranjar desculpas para nós?
St. Vincent riu baixinho.
– Tenho um estoque enorme delas, amor – garantiu ele.
Antes de soltar sua esposa, beijou-lhe a testa. Por um breve momento, tocou em sua barriga.
O gesto sutil passou despercebido por todas, mas Daisy o viu, e soube imediatamente o que significava.
Evie tinha um segredo, pensou. E sorriu.
Elas levaram Daisy para a estufa, onde a luz quente do outono entrava pelas janelas e os cheiros cítricos enchiam o ar. Lillian tirou a pesada coroa de flores de laranjeira e o véu de Daisy e os pôs em uma cadeira.
Havia uma bandeja de prata em uma mesa próxima com uma garrafa de champanhe gelado e quatro taças de cristal.
– Este é um brinde especial para você, querida – disse Lillian enquanto Annabelle despejava o líquido borbulhante nas taças.
– Ao seu final feliz. Como você teve de esperar por ele mais do que nós, eu diria que merece a garrafa inteira. – Ela sorriu. – Mas vamos dividi-la com você.
Daisy segurou sua taça de cristal.
– Deveria ser um brinde a todas nós. Afinal de contas, nossas perspectivas de casamento eram as piores possíveis três anos atrás. Nem mesmo recebíamos um convite para dançar. E
vejam como as coisas mudaram.
– Tudo o que foi preciso foi uma conduta tortuosa e alguns escândalos aqui e ali – disse Evie com um sorriso.
– E amizade – acrescentou Annabelle.
– À amizade – disse Lillian, sua voz subitamente rouca.
E as quatro taças se tocaram naquele momento perfeito.
Daisy chegou ao seu destino: um poço dos desejos. Diziam que ele era habitado por um espírito que realizaria seu pedido se você lhe atirasse um alfinete.
– Espírito do Poço, como tive tão pouca sorte em encontrar um marido, estou deixando isso a seu cargo. Sem exigências, sem condições. Meu desejo é... o homem certo para mim.
Ela atirou os alfinetes. O metal brilhou no ar antes de atingir a água e sumir na superfície turva. Subitamente algo estalou atrás dela, como se um galho fino tivesse sido pisado. Daisy se virou e viu a silhueta de um homem indo na sua direção.
Ele era alto e musculoso, talvez com menos de 30 anos.
– Desculpe. Não queria assustá-la. Cheguei algumas horas atrás. Disseram-me que estava passeando por aqui.
Ele parecia familiar e a encarava como se esperasse que o reconhecesse. Daisy sentiu a aflição que sempre a acometia quando se esquecia de alguém.
– É hóspede de lorde Westcliff?
Ele lhe lançou um olhar curioso e esboçou um sorriso.
– Sim, Srta. Bowman.
Ele sabia o nome dela. Daisy estava cada vez mais confusa. Não entendia como podia ter se esquecido de um homem tão atraente. Seus olhos tinham o tom de azul de manhãs gloriosas, ainda mais intenso em contraste com a pele bronzeada.
Subitamente Daisy se deu conta de quem ele era e seus joelhos quase fraquejaram.
– O senhor! – sussurrou, arregalando os olhos.
Era Matthew Swift, o homem com quem seu pai queria que ela se casasse.
O Natal está se aproximando e Rafe Bowman acaba de chegar a Londres para uma união arranjada com Natalie Blandford. Com sua beleza estonteante e o físico imponente, ele tem certeza de que a linda aristocrata logo cairá a seus pés.
No entanto, seus terríveis modos americanos e sua péssima reputação de farrista deixam Hannah, a prima da moça, chocada. Determinada a proteger Natalie, ela vai tornar a tarefa de cortejar a jovem muito mais difícil do que Rafe esperava.
Hannah, porém, logo começa a se importar mais do que gostaria com o rude pretendente da prima. Rafe, por sua vez, passa a apreciar um pouco demais a companhia de Hannah, uma mulher forte e pragmática com um coração doce e gentil. E quando Daisy, Lillian, Annabelle e Evie, quatro amigas inseparáveis que já conseguiram encontrar o homem de seus sonhos, decidem agir como cupidos, quem sabe o que pode acontecer?
Uma noite inesquecível é uma viagem mágica pela Londres vitoriana, com os diálogos espirituosos e personagens memoráveis que consagraram Lisa Kleypas como uma das autoras de romances de época mais aclamadas pelo público. Nesta continuação da série As Quatro Estações do Amor, os mais cínicos se tornam românticos e até os mais tímidos suspiram, arrebatados de paixão.
PRÓLOGO
Era uma vez quatro jovens que compareciam a todos os bailes, recepções e festas da temporada londrina, mas sempre ficavam deslocadas. Passavam noite após noite deixadas de lado, sentadas em cadeiras à parte. Assim, as Flores Secas, como se autodenominavam, começaram a conversar.
E perceberam que, embora estivessem disputando os mesmos cavalheiros, mais ganhariam tornando-se amigas que adversárias. E mais do que isso, elas perceberam que gostavam umas das outras. Então decidiram unir forças para arrumarem um marido, começando pela mais velha, Annabelle, e continuando até a mais nova, Daisy.
Annabelle era, sem dúvida, a mais bela das quatro, mas praticamente não tinha dinheiro algum, o que a deixava em maior desvantagem. A maioria dos rapazes solteiros de Londres desejava uma esposa de rosto bonito, mas geralmente se contentava com um belo dote.
Evie era atraente de um jeito não convencional, com seu cabelo flamejante e suas sardas abundantes. Todos sabiam que um dia herdaria uma fortuna do pai. No entanto, a péssima fama de seu progenitor – um ex-pugilista de origem simples que agora comandava uma casa de jogos
– era um obstáculo difícil de superar. Para piorar, Evie era gaga e terrivelmente tímida. Todos os homens que tentavam conversar com ela depois descreviam a tentativa como uma verdadeira tortura.
Lillian e Daisy eram irmãs, vindas de Nova York. Sua família, os Bowmans, era dona de uma fortuna incalculável, resultado de seus investimentos em uma empresa de fabricação de sabão.
Não tinham antepassados importantes, desconheciam regras de etiqueta e não possuíam padrinhos na alta sociedade. Lillian era uma amiga amorosa, mas também decidida e mandona. E Daisy era uma sonhadora que muitas vezes se frustrava por não achar a vida real tão interessante quanto a narrada nos romances que devorava.
Consolando-se e apoiando-se mutuamente a cada dificuldade, tristeza ou alegria, as Flores Secas enfrentaram os perigos da sociedade londrina. Todas se casaram – e, com isso, o indesejado apelido caiu no esquecimento.
Mas a cada temporada surgiam novas Flores Secas. (Naquela época, como agora, sempre havia garotas ignoradas por cavalheiros que deveriam se esforçar, e muito, para serem mais sensíveis.)
Então chegou o Natal em que Rafe Bowman, o irmão mais velho de Lillian e Daisy, veio para a Inglaterra. Depois disso, a vida de uma Flor Seca londrina nunca mais seria a mesma...
CAPÍTULO 1
Londres, 1845
– É oficial – disse Lillian, lady Westcliff, com satisfação, deixando de lado a carta de seu irmão. – Rafe chegará a Londres daqui a 15 dias. E o nome do barco é Furacão, o que eu acho bastante apropriado em função do seu noivado iminente.
Ela olhou para Annabelle e Evie, que estavam no chão do salão trabalhando em um enorme círculo de veludo vermelho. Haviam se reunido em Marsden Terrace, a casa londrina de Lillian, para uma tarde de chá e conversa.
No momento, Annabelle e Evie faziam uma saia de árvore, ou melhor, tentavam salvar o tecido das tentativas anteriores de Lillian. Evie estava cortando um pedaço de fita de brocado que tinha sido costurada de maneira irregular de um lado, enquanto Annabelle se ocupava cortando uma nova borda de tecido e prendendo-a.
A única ausente era a irmã mais nova de Lillian, Daisy, que tinha ido morar recentemente em Bristol com o marido. Annabelle estava ansiosa para ver Daisy e saber se estava feliz com o casamento. Ainda bem que todas estariam reunidas em breve para o Natal em Hampshire.
– Você acha que seu irmão terá alguma dificuldade em convencer lady Natalie a se casar com ele? – perguntou Annabelle, franzindo a testa ao notar uma mancha grande e escura no tecido.
– Ah, não, de jeito nenhum – disse Lillian, despreocupada. – Ele é bonito, charmoso e muito rico. A que lady Natalie poderia se opor, além do fato de ele ser americano?
– Bem, Daisy disse que ele adora uma farra. E algumas jovens podem não...
– Bobagem – interrompeu Lillian. – Rafe não é nem um pouco farrista. Ah, ele já fez algumas bobagens, mas que homem nunca aprontou nada?
Annabelle não pareceu muito convencida. Embora Daisy, a irmã mais nova de Lillian, fosse considerada sonhadora e romântica, ela também demonstrava um pragmatismo realista que tornava seus julgamentos bastante confiáveis. Se Daisy dissera que o irmão mais velho delas era um farrista, sua afirmação certamente se baseava em indícios fortes.
– Ele bebe e joga? – perguntou Annabelle a Lillian.
Ela franziu a testa com ar cauteloso.
– Às vezes.
– Ele se comporta de maneira rude ou imprópria?
– Ele é um Bowman.
– Ele corre atrás de mulheres?
– É claro.
– Ele já foi fiel a alguma mulher? Já se apaixonou?
Lillian continuou com a testa franzida.
– Não que eu saiba.
Annabelle olhou para Evie com as sobrancelhas arqueadas.
– O que você acha, Evie?
– Farrista – veio de pronto a resposta.
– Ah, tudo bem – resmungou Lillian. – Suponho que ele seja um pouco farrista. Mas isso não pode ser um impedimento para sua corte a lady Natalie. Algumas mulheres gostam de farristas.
Veja só Evie.
Evie continuou a cortar obstinadamente a fita de brocado, enquanto um sorriso curvava seus lábios.
– Eu não g-gosto de todos os farristas – gaguejou ela, com o olhar fixo no seu trabalho. – Só de um.
Evie, a mais gentil de todas e dona da voz mais suave, era a que parecia ter menos chances de conquistar o coração do notório lorde St. Vincent, o farrista-mor. Embora possuísse uma beleza rara e pouco convencional, marcada pelos seus olhos azuis arredondados e pelo seu cabelo ruivo, Evie era muito tímida. E ainda havia a gagueira. Mas ela também tinha uma reserva serena de força e um espírito valente que pareciam ter seduzido seu marido.
– E esse ex-farrista obviamente adora você mais que tudo – disse Annabelle. Ela fez uma pausa, observando Evie com muita atenção antes de perguntar de maneira delicada: – St. Vincent está feliz com o bebê, querida?
– Ah, sim, ele... – Evie parou de falar e encarou Annabelle com os olhos arregalados de surpresa. – Como você sabia?
Annabelle sorriu.
– Notei que todos os seus vestidos novos têm pregas na frente e atrás que podem ser afrouxadas à medida que sua barriga aumentar. Isso entregou logo, querida.
– Você está grávida? – perguntou Lillian, deixando escapar um grito de alegria quase infantil.
Levantou-se do sofá e sentou-se no chão ao lado de Evie, passando os longos braços em torno dela. – Isso é uma grande novidade! Como você está se sentindo? Ficou enjoada?
– Bastou ver o que você fez com a saia da árvore e meu estômago embrulhou... – disse Evie, rindo do entusiasmo da amiga.
Muitas vezes era difícil lembrar que Lillian era uma condessa. Sua natureza espontânea não tinha sido nem um pouquinho domada por sua nova proeminência social.
– Ah, você não deveria estar no chão! – exclamou Lillian. – Aqui, dê-me a tesoura e deixe que eu trabalhe nisso...
– Não! – disseram Evie e Annabelle ao mesmo tempo.
– Lillian, querida – prosseguiu Annabelle com firmeza –, não se aproxime dessa saia. O que você faz com uma linha e uma agulha devia ser considerado um ato criminoso.
– Eu tento – protestou Lillian com um sorriso torto, voltando a calçar os sapatos de salto alto.
– Começo cheia de boas intenções, mas então me canso de fazer aquele monte de pontos minúsculos e me apresso. Só que precisamos de uma saia de árvore, e uma bem grande. Ou não haverá nada para aparar os pingos de cera quando as velas da árvore estiverem acesas.
– Você se importaria em me dizer que mancha é essa aqui? – perguntou Annabelle, apontando para uma nódoa feia e escura no veludo.
Lillian, sem graça, abriu um sorriso.
– Pensei que talvez pudéssemos deixar essa parte para trás. Derramei um copo de vinho aí.
– Você estava bebendo enquanto costurava? – perguntou Annabelle, pensando que isso explicava muita coisa.
– Esperava que me ajudasse a relaxar. Costurar me deixa nervosa.
Annabelle lhe lançou um sorriso de curiosidade.
– Por quê?
– Porque me faz lembrar de todas as vezes que minha mãe ficava perto de mim enquanto eu fazia meus bordados. Sempre que eu cometia um erro, ela batia nos meus dedos com uma régua.
– Lillian abriu um sorriso sem graça, dessa vez sem nenhum sinal de alegria nos seus vívidos olhos castanhos. – Eu era uma criança terrível.
– Você era uma criança adorável, tenho certeza – disse Annabelle.
Ela nunca soubera direito como Lillian e Daisy Bowman tinham se saído tão bem, considerando a sua criação. Thomas e Mercedes Bowman de alguma forma conseguiam ser exigentes, críticos e negligentes – o que era uma façanha e tanto.
Três anos antes, os Bowmans haviam levado suas duas filhas para Londres depois de constatarem que nem mesmo sua grande fortuna era suficiente para fazer com que elas se casassem com alguém da alta sociedade de Nova York.
Em uma combinação de trabalho duro, sorte e uma frieza indispensável, Thomas Bowman havia criado uma das maiores saboarias do mundo – e sua empresa crescia com uma rapidez impressionante. Agora que o sabão estava se tornando acessível para as massas, as fábricas de Bowman em Nova York e Bristol mal conseguiam dar conta da demanda.
No entanto, era preciso mais do que dinheiro para se conseguir um lugar na sociedade de Nova York. Herdeiras de famílias não tradicionais, como Lillian e Daisy, não eram nada desejáveis para os rapazes que também buscavam se casar. Portanto, Londres, com seu grupo cada vez maior de aristocratas empobrecidos, era um terreno fértil para que novos-ricos americanos corressem atrás de casamentos.
Com Lillian, ironicamente, os Bowmans haviam atingido sua maior conquista ao casarem-na com Marcus, lorde Westcliff. Ninguém acreditaria que o poderoso e reservado conde se uniria em matrimônio a uma garota determinada como Lillian. Mas Westcliff conseguira ver por trás da aparência firme de Lillian a vulnerabilidade e o coração apaixonado que ela tentava tanto esconder.
– Eu era uma peste – disse Lillian francamente –, e Rafe também. Nossos outros irmãos, Ransom e Rhys, sempre foram um pouco mais bem-comportados, embora isso não fosse um grande mérito. E Daisy acabava se metendo nas minhas confusões, mas, na maioria das vezes, ela sonhava acordada e vivia no mundo dos livros.
– Lillian – disse Annabelle, enrolando cuidadosamente uma fita –, por que seu irmão concordou em se encontrar com lady Natalie e os Blandfords? Está mesmo pronto para se casar?
Ele precisa do dinheiro ou quer agradar seu pai?
– Não tenho certeza – respondeu Lillian. – Não acho que seja por dinheiro. Rafe fez fortuna com especulações em Wall Street, algumas ligeiramente inescrupulosas. Suspeito que ele possa enfim ter se cansado de entrar em desavença com papai. Ou talvez... – Ela hesitou, e sua expressão se tornou um pouco sombria.
– Talvez...? – indagou Evie calmamente.
– Bem, Rafe exibe uma fachada muito tranquila e despreocupada, mas nunca foi muito feliz.
Mamãe e papai foram terríveis com ele. Com todos nós, na verdade. Nunca nos deixavam brincar com quem consideravam inferior a nós. E eles consideravam todo mundo inferior a nós. Os gêmeos tinham um ao outro, e é claro que Daisy e eu estávamos sempre juntas. Mas Rafe vivia sozinho. Papai queria que ele fosse um garoto sério e por isso o mantinha isolado das outras crianças. Ele nunca podia brincar ou fazer qualquer coisa que papai considerasse frívola.
– Então ele acabou se rebelando – disse Annabelle.
Lillian deu um breve sorriso.
– Ah, sim. – Seu semblante se fechou. – Mas agora eu me pergunto... O que acontece quando um jovem está cansado de ser sério, e também cansado de se rebelar? Que opções ele tem depois disso?
– Parece que vamos descobrir.
– Quero que ele seja feliz – disse Lillian. – Que encontre alguém com quem se importe.
Evie observou-as pensativamente.
– Alguém já conheceu lady Natalie? Sabemos alguma coisa sobre seu caráter?
– Eu não a conheço – admitiu Lillian –, mas ela tem uma reputação maravilhosa. É uma menina superprotegida que foi apresentada à sociedade no ano passado e despertou muito interesse. Ouvi dizer que é adorável e extremamente bem-educada. – Então fez uma pausa e uma expressão estranha. – Rafe vai apavorá-la. Sabe lá Deus por que os Blandfords estão interessados no casamento. Deve ser porque precisam do dinheiro. Papai pagaria qualquer coisa para trazer mais sangue azul para a família.
– Gostaria que pudéssemos falar com a-alguém que a c-conheça – sussurrou Evie. – Alguém que pudesse aconselhar seu irmão, dar-lhe dicas sobre o que ela gosta, suas f-flores favoritas, esse tipo de coisa.
– Ela tem uma acompanhante – sugeriu Lillian. – Uma prima pobre chamada Hannah alguma coisa. Quem sabe poderíamos convidá-la para tomar um chá antes de Rafe conhecer lady Natalie?
– Acho que é uma ideia esplêndida! – exclamou Annabelle. – Ainda que ela fale pouco sobre lady Natalie, já poderia ser de grande ajuda para Rafe.
– Sim, você deve ir – disse, enfático, lorde Blandford.
Hannah estava diante dele na sala de visitas dos Blandfords, em Mayfair. Era uma das menores e mais antigas casas do elegante bairro residencial, em um pequeno terreno perto do Hyde Park, a oeste.
Composta de belas praças e vias bem amplas, Mayfair era o lar de muitas famílias nobres.
Mas na última década surgiram novas construções, mansões grandes demais e imponentes casas em estilo gótico que se ergueram no norte, onde os novos-ricos se instalaram.
– Faça tudo que puder para facilitar uma ligação entre minha filha e o Sr. Bowman –
prosseguiu Blandford.
Hannah olhou para ele incrédula. Lorde Blandford sempre fora um homem de discernimento e distinção. Mal podia acreditar que ele fosse querer que Natalie, sua única filha, se casasse com o filho de um rústico industrial americano. Era uma moça linda, educada e bastante madura para seus 20 anos. Poderia ter qualquer homem que escolhesse.
– Tio – disse Hannah com cuidado –, eu jamais ousaria questionar seu julgamento, mas...
– Mas você quer saber se eu perdi o juízo? – perguntou ele, que riu quando ela disse que sim.
Então ele indicou a poltrona estofada do outro lado da lareira. – Sente-se, querida.
Eles não costumavam ter oportunidade de conversar a sós. Mas lady Blandford e Natalie estavam visitando um primo que adoecera, e ficara decidido que Hannah permaneceria em Londres para preparar as roupas e os itens pessoais de Natalie para o feriado que se aproximava, em Hampshire.
Olhando fixamente para o rosto sábio e amável do homem que tinha sido tão generoso com ela, Hannah lhe perguntou:
– Posso falar francamente, tio?
Os olhos dele brilharam.
– Achei que você fosse sempre franca, Hannah.
– Sim, bem... Foi por educação que lhe mostrei o convite de lady Westcliff para o chá, mas eu não tinha a intenção de aceitá-lo.
– Por que não?
– Porque só há um motivo para elas terem me convidado: conseguir informações sobre Natalie, e também para me impressionarem com todas as supostas virtudes do Sr. Bowman. E, tio, é claro que o irmão de lady Westcliff não é nem de longe bom o suficiente para Natalie!
– Parece que ele já foi julgado e condenado – disse lorde Blandford com suavidade. – Você é sempre tão severa com os americanos, Hannah?
– Não é por ele ser americano – protestou Hannah. – Ao menos isso não é culpa dele. Mas sua cultura, seus valores, seus anseios são completamente estranhos para alguém como Natalie.
Ela nunca poderia ser feliz com ele.
– Anseios? – perguntou Blandford, erguendo as sobrancelhas.
– Sim, por dinheiro e poder. E, embora ele seja uma pessoa importante em Nova York, não tem posição aqui. Natalie não está acostumada a isso. É uma união estranha.
– Você está certa, é claro – disse Blandford, surpreendendo-a.
Ele se recostou em sua cadeira, entrelaçando os dedos magros. Blandford era um homem agradável, de rosto tranquilo. Sua cabeça era grande e bem-proporcionada – a pele careca, bem firme em volta de seu crânio, despencava em pregas mais frouxas em torno dos olhos, bochechas e papada. Seu corpo tinha uma constituição magra e ossuda, como se a natureza tivesse se esquecido de entremeá-lo com a quantidade necessária de músculos para sustentar seu esqueleto.
– É uma união estranha em alguns aspectos – continuou Blandford. – Mas pode ser a salvação de futuras gerações da família. Minha querida, você é praticamente uma filha para mim, então falarei sem rodeios. Não há nenhum filho para herdar o título depois de mim, e não vou deixar Natalie e lady Blandford sujeitas à questionável generosidade do próximo lorde Blandford. Preciso cuidar delas. Para meu profundo pesar, não terei como deixar uma renda satisfatória para as duas, já que a maior parte do dinheiro e das terras dos Blandfords é inalienável.
– Mas há ingleses ricos que adorariam se casar com Natalie. Lorde Travers, por exemplo. Ele e Natalie têm grande afinidade, e ele tem recursos abundantes a seu dispor...
– Recursos aceitáveis – corrigiu Blandford calmamente. – Não abundantes. E nada parecido com o que Bowman tem agora, isso sem mencionar sua futura herança.
Hannah estava perplexa. Ao longo de todos os anos de convivência com lorde Blandford, ele nunca externara uma preocupação sequer com a riqueza. Não era algo comum entre os homens de sua posição, que desdenhavam conversas sobre finanças por considerá-las burguesas e deselegantes. O que provocara essa preocupação com o dinheiro?
Ao perceber a expressão no rosto de Hannah, Blandford sorriu, melancólico.
– Ah, Hannah. Como posso lhe explicar isso? O mundo está mudando rápido demais para homens como eu. Há muitas maneiras novas de se fazerem as coisas. Antes que eu consiga me adaptar ao novo modo de fazer algo, tudo muda novamente. Dizem que em pouco tempo a ferrovia cobrirá cada hectare verde da Inglaterra. As massas terão sabão, comida enlatada e roupas prontas, e a distância entre nós e eles ficará bem pequena.
Hannah ouvia com atenção, ciente de que ela, sem fortuna e nascida em uma família não tradicional, estava exatamente na linha entre a classe de Blandford e “as massas”.
– E isso é uma coisa ruim, tio?
– Não de todo – respondeu Blandford, após um longo momento de hesitação. – Embora eu lamente que o sangue e a nobreza estejam passando a significar tão pouco. O futuro está diante de nós, e pertence a alpinistas sociais, como os Bowmans. E a homens como lorde Westcliff, que estão dispostos a sacrificar o que for necessário para acompanhar o ritmo de todas essas mudanças.
O conde de Westcliff era cunhado de Raphael Bowman. Vinha possivelmente da linhagem mais distinta da Inglaterra, com sangue mais azul do que o da própria rainha. E, no entanto, era conhecido como progressista, tanto política quanto financeiramente. Entre seus muitos investimentos, Westcliff fizera fortuna a partir do crescimento da indústria ferroviária, e era famoso pelo seu grande interesse em assuntos mercantis. Tudo isso enquanto a maioria dos membros da nobreza ainda estavam satisfeitos em garantir seus lucros a partir da tradição centenária de ter inquilinos em suas terras.
– Então o senhor almeja uma conexão com lorde Westcliff, assim como com os Bowmans –
disse Hannah.
– Claro. Isso garantirá à minha filha uma posição muito especial: casar-se com um americano rico e ter um cunhado como Westcliff. Como esposa de um Bowman, ela se sentará na parte menos nobre da mesa... mas será a mesa de Westcliff, e isso não é pouca coisa.
– Entendo – disse ela, pensativa.
– Mas não concorda?
Não. Hannah estava longe de se convencer de que sua amada Natalie deveria se contentar com um homem bronco e grosseirão como marido, só para ter lorde Westcliff como cunhado. No entanto, ela certamente não contestaria a decisão de lorde Blandford. Pelo menos não em voz alta.
– Acato sua sabedoria, tio. Mas espero que as vantagens, ou desvantagens, desta união se revelem rapidamente.
Ele deixou escapar uma risada silenciosa.
– Mas que diplomata você é. Sua mente é bastante astuta, minha querida. Provavelmente mais astuta que o necessário para uma jovem. Melhor ser bonita e cabeça oca, como minha filha, do que não ter grandes atrativos e ser inteligente.
Hannah não se ofendeu, embora pudesse ter questionado as duas colocações. Em primeiro lugar, sua prima era qualquer coisa menos cabeça oca. No entanto, Natalie sabia que não devia ficar exibindo sua inteligência, já que não era uma qualidade que atraísse pretendentes.
E Hannah não se considerava sem graça. Tinha cabelo castanho, olhos verdes, um belo sorriso e um rosto bem razoável. Se pudesse usar roupas e enfeites bonitos, Hannah estava certa de que muitos a achariam bem atraente. Tudo dependia dos olhos de quem via.
– Vá tomar chá em Marsden Terrace – disse lorde Blandford, sorrindo. – Plante as sementes do romance. Uma união precisa acontecer. E, como o poeta tão acertadamente disse: “É preciso que o mundo se povoe.” – Ele olhou para ela com expressão séria. – E depois que conseguirmos casar Natalie, sem dúvida você encontrará seu próprio pretendente. Tenho minhas suspeitas com relação a você e o Sr. Clark, sabe?
Hannah sentiu o rosto corar. Durante o ano anterior, ela havia assumido algumas pequenas tarefas como secretária de Samuel Clark, amigo íntimo e parente distante de lorde Blandford. E
Hannah alimentara algumas esperanças secretas em relação àquele solteiro atraente, de cabelo claro e não muito mais velho do que ela. Mas talvez suas esperanças não fossem tão secretas quanto pensara.
– Certamente não sei o que quer dizer, tio.
– Tenho certeza de que sabe, sim – disse ele, e riu. – Tudo a seu tempo, minha querida.
Primeiro vamos garantir um futuro satisfatório para Natalie. E então será a sua vez.
Hannah sorriu para ele, guardando os pensamentos para si mesma. Mas em seu íntimo ela sabia que sua definição de um “futuro satisfatório” para Natalie não era exatamente a mesma que a dele. Natalie merecia um homem que seria um marido amoroso, responsável e digno de confiança.
E Rafe Bowman teria de provar ser esse homem.
CAPÍTULO 2
– Correndo o risco de parecer arrogante, acho que não preciso de conselhos sobre como cortejar uma mulher – disse Rafe, que chegara de Londres no dia anterior.
E agora, enquanto Westcliff estava fora, visitando a fábrica de locomotivas da qual era sócio, Rafe imaginava que deveria tomar um chá com Lillian e suas amigas.
Certamente ele preferiria visitar a fábrica de locomotivas, já que era filho de um industrial e sempre se encantava por novas máquinas e aparelhos. Por outro lado, Lillian lhe pedira para ficar, e ele nunca conseguira lhe recusar nada. Adorava as irmãs, que, na sua opinião, eram as melhores coisas que seus pais haviam feito.
— A Srta. Appleton não vai lhe dar conselhos – rebateu Lillian, bagunçando o cabelo dele carinhosamente. – Nós a convidamos para o chá para que ela possa nos contar mais sobre lady Natalie. Achei que você gostaria de saber mais sobre sua futura noiva.
– Isso ainda está em aberto – disse Rafe, irônico. – Mesmo que eu queira me casar com ela, ainda caberá a lady Natalie decidir se vai me aceitar.
– E é por isso mesmo que você vai ser tão encantador que a Srta. Appleby vai voltar para casa correndo dizendo maravilhas a seu respeito para lady Natalie. – Lillian fez uma pausa e fingiu um olhar ameaçador. – Não vai?
Rafe sorriu para a irmã enquanto embalava a filha dela, Merritt, de oito meses, nas coxas. A bebê tinha cabelo escuro e olhos castanhos como os pais, além de bochechas rosadas e mãos pequenas e ávidas. Depois de arrancar um dos botões do colete de Rafe com um puxão determinado, a bebê tentou colocá-lo na boca.
– Não, querida – disse o tio, tirando o botão do punho úmido e fechado de Merritt, que começou a resmungar em protesto. – Sinto muito – acrescentou ele, comovido com a reação. –
Eu também gritaria, se alguém tirasse de mim algo tão gostoso. Mas você pode se engasgar com isso, amor, e sua mãe me deportaria para a China.
– Só se Westcliff não o alcançasse primeiro – disse Lillian, tirando a bebê aos berros das mãos dele. – Calma, querida. Mamãe não deixará o malvado tio Rafe perturbá-la mais.
Ela sorriu e enrugou o nariz de forma travessa enquanto consolava a filha.
O casamento e a maternidade haviam feito bem a Lillian, pensou Rafe. Sua irmã sempre fora uma criatura obstinada, mas agora parecia calma e feliz como ele jamais vira. Ele só podia creditar isso a Westcliff, embora fosse um mistério como um homem tão distinto e autocrático pudesse operar tal mudança em Lillian. Se tivessem que prever, muitos diriam que a dupla se mataria no primeiro mês de casamento.
Depois que a bebê se acalmara e Lillian a entregara a uma babá para que a levasse para o andar superior, Annabelle e Evie chegaram.
Rafe, então, ficou de pé, curvando-se para as damas quando as apresentações foram feitas.
A Sra. Annabelle Hunt, esposa do empresário ferroviário Simon Hunt, era conhecida por ser uma das mulheres mais bonitas da Inglaterra. Era difícil imaginar que alguém pudesse ofuscá-la.
Sua beleza era perfeita: cabelo cor de mel, olhos azuis e um rosto puro e angelical. Sua aparência era capaz de tentar qualquer homem e seu sorriso era tão encantador e expressivo que conseguia deixá-lo imediatamente à vontade.
Evie, lady St. Vincent, não era tão acessível. No entanto, Lillian já havia avisado a Rafe que, por ser tímida, muitas vezes Evie era vista como uma pessoa fechada. Ela era adorável de um jeito não convencional, a pele ligeiramente sardenta, o cabelo exuberantemente vermelho. Seus olhos azuis, apesar de cautelosos, eram amigáveis, e transpareciam uma vulnerabilidade que tocou Rafe.
– Meu caro Sr. Bowman – disse Annabelle com uma charmosa risada –, eu o teria reconhecido em qualquer lugar, mesmo sem sermos apresentados. Você e Lillian são muito parecidos. Todos os Bowmans são tão altos e têm o cabelo escuro assim?
– Todos menos Daisy – respondeu Rafe. – Receio que nós, os quatro primeiros, crescemos tanto que não sobrou nada para ela quando chegou.
– O que Daisy não tem em altura – disse Lillian –, compensa em personalidade.
Rafe riu.
– Verdade. Quero ver aquela pequena tratante e ouvir de seus próprios lábios que ela se casou com Matthew Swift por vontade própria, e não porque papai a obrigou.
– Daisy ama de v-verdade o Sr. Swift – disse Evie, séria.
Ao som do seu gaguejar, que era outra coisa sobre a qual Lillian havia lhe alertado, Rafe abriu um sorriso reconfortante.
– Fico feliz em ouvir isso – disse ele gentilmente. – Sempre achei que Swift fosse mesmo um sujeito digno.
– Nunca lhe incomodou papai passar a tratá-lo como um verdadeiro filho? – perguntou Lillian rispidamente, sentando-se e indicando que os outros fizessem o mesmo.
– Muito pelo contrário – disse Rafe. – Fico feliz com qualquer um ou qualquer coisa que tire a atenção do meu pai de cima de mim. Já sofri o suficiente com o maldito pavio curto do velho por toda a vida. Eu só aturo isso até hoje porque quero ter direito sobre parte da expansão europeia da empresa.
Annabelle parecia perplexa com a franqueza deles.
– Parece que não estamos preocupados com a discrição hoje.
Rafe sorriu.
– Duvido que haja muita coisa sobre os Bowmans que Lillian ainda não tenha lhes contado.
Então, por favor, vamos dispensar a discrição e passar aos assuntos que interessam.
– As damas de Londres são um desses assuntos? – perguntou Lillian.
– Com certeza. Fale-me sobre elas.
– São diferentes das de Nova York – advertiu Lillian. – Principalmente as mais novas.
Quando você for apresentado a uma distinta garota inglesa, ela manterá o olhar fixo no chão, e não vai tagarelar e ser efusiva como nós, americanas. As inglesas são muito mais reservadas, e nem um pouco acostumadas à companhia de homens. Portanto, nem pense em discutir negócios, assuntos políticos ou nada do tipo.
– Sobre o que eu posso falar? – perguntou Rafe, apreensivo.
– Música, arte e cavalos – disse Annabelle. – E lembre-se de que as garotas inglesas raramente dão sua opinião sobre qualquer coisa; elas preferem repetir as opiniões dos pais.
– Mas depois que se c-casam – disse Evie –, tornam-se muito mais inclinadas a revelar sua verdadeira personalidade.
Rafe lançou-lhe um olhar irônico.
– E seria muito difícil conhecer o verdadeiro eu de uma garota antes de me casar com ela?
– Quase imp-possível – disse Evie seriamente, e Rafe começou a rir até perceber que não ela estava brincando.
Agora ele começava a entender por que Lillian e suas amigas estavam tentando descobrir mais sobre lady Natalie e sua personalidade. Aparentemente, isso não partiria da própria lady Natalie.
Então, correndo o olhar pelo rosto de Lillian e pelos de Annabelle e Evie, Rafe disse lentamente:
– Agradeço sua ajuda, senhoras. Creio que preciso mais desse encontro do que pensava.
– Quem poderá ajudar mais – disse Lillian – é a Srta. Appleton. É o que esperamos. – Então abriu as cortinas de renda da janela para olhar a rua. – E, se não me engano, ela acaba de chegar.
Rafe se levantou quando a Srta. Appleton chegou ao hall de entrada. Lillian foi cumprimentá-la enquanto um criado recolhia seu casaco e o chapéu. Rafe sabia que deveria estar agradecido pela visita da velha futriqueira, mas só queria mesmo era conseguir arrancar dela, depressa, as informações que desejava para que pudessem logo dispensá-la.
Olhou sem interesse quando a Srta. Appleton entrou. Ela usava um vestido azul sem graça e bem-feito que se via nas criadas mais importantes.
Seu olhar correu até a elegância da cintura dela, as curvas suaves de seus seios, e então para o rosto. E sentiu uma pontada de surpresa ao ver que ela era jovem, e não passava da idade de Daisy. Pela expressão no rosto dela, via-se claramente que ela, como Rafe, não estava nada contente em ter ido até ali. Mas havia um toque de ternura e humor nas formas suaves da sua boca e uma força delicada no contorno do seu nariz e do seu queixo.
Sua beleza não era fria e imaculada, mas quente e ligeiramente desalinhada. O cabelo castanho, sedoso como uma fita, parecia ter sido preso às pressas. Enquanto tirava as luvas com um puxão firme na ponta de cada dedo, ela olhou para Rafe com seus olhos verdes da cor do oceano.
Aquele olhar não deixou dúvidas de que a Srta. Appleton não o apreciava, nem confiava nele.
E nem deveria, pensou Rafe achando graça. Ele não era exatamente conhecido por suas intenções honrosas em relação às mulheres.
Ela se aproximou dele de uma maneira contida que incomodou Rafe por algum motivo. Ao senti-la mais perto ele quis... bem, não sabia bem o que queria fazer, mas poderia começar pegando-a no colo e atirando-a no sofá mais próximo.
– Srta. Appleton – disse Lillian –, gostaria de lhe apresentar meu irmão, o Sr. Bowman.
– Srta. Appleton – murmurou Rafe, estendendo a mão.
A jovem hesitou, seus dedos pálidos se agitando ao lado das saias.
– Ah, Rafe – disse Lillian apressadamente –, isso não se faz aqui.
– Desculpe. – Rafe recolheu a mão, fitando aqueles olhos verdes translúcidos. – O aperto de mão é comum nos salões americanos.
A Srta. Appleton lançou-lhe um olhar especulativo.
– Em Londres, uma simples mesura é melhor – disse ela com uma voz leve e clara que o fez sentir um calor na nuca. – Embora às vezes uma senhora casada possa trocar apertos de mão, as solteiras raramente fazem isso. Aqui isso costuma ser considerado um costume da classe baixa, e algo bastante pessoal, sobretudo quando é feito sem luvas. – Ela o observou por um instante, com um leve sorriso curvando seus lábios. – No entanto, não tenho nenhuma objeção a começar a seguir o costume americano. – E estendeu a mão esguia. – Como se faz?
O calor inexplicável se estendeu da nuca de Rafe para seus ombros. Ele pegou a mão delicada dela na sua, tão maior, surpreso com a pontada em seu abdômen, uma aguda sensação de alerta.
– Um aperto firme – começou ele – geralmente é considerado...
Ele parou, incapaz de falar quando ela, de maneira cautelosa, retribuiu a pressão de seus dedos.
– Assim? – perguntou ela, olhando para seu rosto.
Suas bochechas ficaram rosadas.
– Sim.
Confuso, Rafe se perguntou o que havia de errado com ele. A pressão daquela mão pequena e confiante o afetara mais do que a mais lasciva carícia da sua última amante.
Soltando-a, ele desviou o olhar e lutou para controlar sua respiração.
Lillian e Annabelle trocaram um olhar perplexo diante do silêncio pesado que se estabeleceu.
– Bem – disse Lillian animadamente quando as bandejas de chá foram trazidas –, vamos conversar um pouco. Posso servir?
Annabelle sentou-se no sofá ao lado de Lillian. Rafe e a Srta. Appleton se acomodaram em cadeiras do outro lado da mesa baixa. Durante os minutos seguintes, os rituais do chá foram respeitados. Pratos de torrada e bolinhos foram servidos.
Rafe não conseguia parar de olhar para a Srta. Appleton, que estava sentada bem aprumada em sua cadeira, tomando o chá de maneira polida. Queria tirar os grampos do cabelo dela e passar os dedos por ele. Queria jogá-la no chão. Ela parecia tão distinta, tão certinha, sentada ali com as saias perfeitamente arrumadas.
E isso só o fazia querer ser muito, muito mau.
CAPÍTULO 3
Hannah nunca se sentira tão desconfortável em toda a sua vida. O homem sentado ao lado dela era um animal. Ele a encarava como se ela fosse alguma atração em um parque de diversões. E já confirmara muito do que ela ouvira falar sobre os americanos. Tudo nele revelava um excesso de masculinidade que ela achava bastante desagradável. O jeito desleixado e informal com que ele se sentava fazia com que ela sentisse vontade de chutá-lo.
Seu sotaque de Nova York, as vogais achatadas e as consoantes frouxas, tudo era estranho e irritante. No entanto, tinha de admitir que a voz em si, um tom grave de barítono, era hipnotizante. E seus olhos eram extraordinários, escuros como breu, mas ainda assim brilhavam com um fogo audacioso.
Ele tinha a pele bronzeada de um homem que passava muito tempo ao ar livre, e o queixo raspado mostrava o indício de uma barba espessa. Em resumo, era uma criatura excessivamente masculina. Nem um pouco adequado para Natalie sob nenhum aspecto. Ele não era apropriado para a sala de estar, nem para o salão, nem para qualquer outro ambiente civilizado.
E o Sr. Bowman dirigia-se a ela com uma franqueza que parecia nada menos que subversiva.
– Diga-me, Srta. Appleton... o que faz a acompanhante de uma dama? E você recebe salário por isso?
Ah, era terrivelmente deselegante da parte dele perguntar uma coisa dessas! Engolindo a indignação, Hannah respondeu:
– É uma posição paga. Não recebo um salário, mas sim um subsídio.
Ele inclinou a cabeça e observou-a com atenção.
– Qual é a diferença?
– Um “salário” implicaria dizer que sou uma criada.
– Entendo. E o que você faz em troca de seu subsídio?
Sua persistência era irritante.
– Ofereço companhia e conversa – disse ela –, e às vezes atuo como acompanhante para lady Natalie. Também faço pequenos serviços de costura e coisas simples que tornam a vida dela mais confortável, como levar-lhe o chá ou entregar recados.
O deboche brilhou nos olhos pagãos dele.
– Mas a senhorita não é uma criada.
Hannah lançou-lhe um olhar frio.
– Não. – E decidiu virar a mesa. – O que exatamente faz um especulador financeiro?
– Faço investimentos. Também observo pessoas que estão agindo como idiotas com relação a seus investimentos. E então as encorajo a mergulhar de cabeça, até que eu tenha lucro, enquanto elas acabam em uma pilha de escombros.
– Como o senhor dorme à noite? – perguntou ela, horrorizada.
Bowman abriu um sorriso insolente.
– Bem, obrigado.
– Eu não quis dizer...
– Sei o que quis dizer, Srta. Appleton. Durmo tranquilo sabendo que estou fazendo um favor às minhas vítimas.
– Como?
– Eu lhes ensino uma lição valiosa.
Antes que Hannah pudesse responder, Annabelle interrompeu apressadamente:
– Querido, não devemos deixar que a conversa tome o rumo dos negócios. Já escuto muito sobre isso em casa. Srta. Appleton, me falaram muito bem sobre lady Natalie. Há quanto tempo é acompanhante dela?
– Há três anos – respondeu Hannah prontamente. Ela era um pouco mais velha do que a prima, mais precisamente dois anos, e vira de perto Natalie se transformar na garota confiante e deslumbrante que era agora. – Lady Natalie é incrível. É amável e afetuosa, e tem todos os traços de personalidade que se poderia desejar. Não se pode encontrar garota mais inteligente e encantadora do que ela.
Bowman riu baixo, revelando sua incredulidade.
– Um modelo de perfeição – disse ele. – Infelizmente, já ouvi descreverem com semelhante empolgação muitas outras jovens. Mas quando as conhecemos, há sempre um defeito.
– Algumas pessoas – respondeu Hannah – insistirão em encontrar defeitos nos outros mesmo quando não houver.
– Todos têm defeitos, Srta. Appleton.
Não era possível tolerar alguém tão irritante. Ela olhou em seus olhos penetrantes e escuros e perguntou:
– Quais são os seus, Sr. Bowman?
– Ah, eu sou um canalha – disse ele alegremente. – Aproveito-me dos outros, não me importo com o decoro e tenho o infeliz hábito de dizer exatamente o que penso. Quais são os seus? – E sorriu diante do silêncio espantado dela. – Ou por acaso a senhorita é tão perfeita quanto lady Natalie?
Hannah ficou sem palavras com aquela ousadia. Nenhum homem jamais havia falado com ela daquela maneira. Outra mulher poderia ter se constrangido com o tom de deboche em sua voz. Mas algo dentro dela não a deixaria se intimidar.
– Rafe – ela ouviu Lillian dizer em tom de advertência –, tenho certeza de que nossa convidada não quer ser submetida a uma inquisição antes mesmo de chegarem os pãezinhos.
– Não, minha senhora – conseguiu dizer Hannah –, está tudo bem. – E olhou diretamente para Bowman. – Sou muito cheia de opiniões. Acredito que esse seja meu pior defeito. Muitas vezes também sou impulsiva. E sou péssima em jogar conversa fora. Tendo a me deixar levar pelo assunto, e me estendo muito. – Fez uma pausa estratégica antes de acrescentar: – Também tenho pouca paciência com pessoas insolentes.
Seguiu-se um breve e atribulado silêncio enquanto os dois se entreolhavam. Hannah não conseguia desviar o olhar dele. Sentiu as palmas das mãos ficarem úmidas e quentes, e sabia que estava vermelha.
– Muito bem – disse ele com tranquilidade. – Desculpe, Srta. Appleton. Não quis agir como um insolente.
Mas tinha agido. Ele, como um gato brincando com um rato, a testara, provocando-a deliberadamente para ver o que ela faria. Hannah sentiu um calor arrepiando sua espinha enquanto olhava fixamente nas profundezas dos olhos dele.
– Rafe – ouviu Lillian exclamar, exasperada –, se este é um exemplo de como se comporta em sociedade, ainda há muito trabalho a ser feito antes que eu permita que você conheça lady Natalie.
– Lady Natalie é muito resguardada – disse Hannah. – Temo que não vá muito longe com ela, Sr. Bowman, se não for um perfeito cavalheiro.
– Entendido. – Bowman deu a Hannah um olhar inocente. – Posso me comportar melhor do que isso.
Duvido, ela queria dizer, mas engoliu as palavras. E Bowman sorriu como se pudesse ler seus pensamentos.
A conversa voltou a girar em torno de Natalie, e Hannah respondeu a perguntas sobre suas flores preferidas, seus livros e música favoritos, as coisas de que gostava e não gostava. Chegara a passar pela mente de Hannah não ser sincera, deixando o Sr. Bowman em desvantagem com Natalie. Mas não era de sua natureza mentir, nem era muito boa nisso. E também havia o pedido de lorde Blandford. Se ele realmente acreditava que seria bom para Natalie entrar para a família Bowman, Hannah não tinha o direito de se meter no caminho. Os Blandfords tinham sido gentis com ela, e não mereciam essa desfeita.
Ela achou um tanto intrigante Bowman ter perguntado tão pouco sobre Natalie. Em vez disso, parecia satisfeito em deixar as outras mulheres interrogarem-na, enquanto ele tomava seu chá e olhava para ela, avaliando-a com toda a tranquilidade.
Das três mulheres, Hannah gostava mais de Annabelle. Ela possuía um talento especial para manter a conversa animada, e era divertida e bem-versada em muitos assuntos. Na verdade, Annabelle era um exemplo de quem Natalie poderia se tornar em alguns anos.
Se não fosse pela presença incômoda do Sr. Bowman, Hannah teria lamentado o fim da hora do chá. Mas foi com alívio que ela recebeu a notícia de que a carruagem de lorde Blandford chegara para levá-la de volta para casa. Não achava que poderia suportar muito mais o olhar fixo e perturbador de Bowman.
– Obrigada pelo maravilhoso chá – disse Hannah a Lillian, levantando-se e endireitando as saias. – Foi um prazer conhecer vocês.
Lillian sorriu com o mesmo jeito travesso que Bowman exibira antes. Com seus vívidos olhos castanhos e seu luminoso cabelo negro, sua semelhança familiar era clara. Só que Lillian era muito mais agradável.
– Foi muito gentil em nos tolerar, Srta. Appleton. Espero não termos nos comportado muito mal.
– De modo algum – respondeu Hannah. – Estou ansiosa para vê-las em Hampshire em breve.
Em alguns dias, Hannah partiria para a propriedade rural de Lillian e lorde Westcliff com Natalie e os Blandfords para uma visita prolongada durante o Natal. Ficariam lá por mais de quinze dias, tempo suficiente para o Sr. Bowman e Natalie descobrirem se combinavam. Ou não.
– Sim, será um Natal magnífico e glorioso – exclamou Lillian, com os olhos brilhando. –
Música, comida, dança e todo tipo de diversão. E lorde Westcliff prometeu que teremos uma árvore de Natal gigantesca.
Hannah sorriu, envolvida por seu entusiasmo.
– Nunca vi uma antes.
– Não? Ah, é mágico quando todas as velas estão acesas. Árvores de Natal estão bastante na moda em Nova York, onde fui criada. Começou como uma tradição alemã, que está se firmando rapidamente nos Estados Unidos, embora não seja comum na Inglaterra. Ainda.
– A família real teve árvores de Natal por algum tempo – disse Annabelle. – A rainha Charlotte sempre montou uma em Windsor. E ouvi dizer que o príncipe Albert deu continuidade à tradição, seguindo os costumes de sua herança alemã.
– Estou ansiosa para ver a árvore de Natal – disse Hannah – e para passar o feriado com todos vocês.
Ela se curvou para as mulheres e parou incerta quando levantou os olhos para Bowman. Ele era muito alto, sua presença tão forte e vigorosa que ela sentiu um choque ao notar que ele se aproximava dela. Quando olhou para o rosto bonito e arrogante de Bowman, só conseguiu pensar no quanto antipatizava com ele. E, no entanto, essa reação nunca deixara sua boca seca assim antes. A antipatia nunca fizera sua pulsação disparar, nem dera um nó na boca do seu estômago.
Hannah o cumprimentou com um aceno de cabeça.
Bowman sorriu, mostrando o contraste dos dentes, muito brancos, com seu rosto bronzeado.
– A senhorita apertou minha mão antes – lembrou ele, e estendeu o braço.
Que audácia. Ela não queria tocá-lo novamente, e ele sabia disso. O peito dela parecia muito contraído, comprimindo-se até ela ser forçada a respirar. Mas, ao mesmo tempo, sentiu um sorriso irônico e irreprimível curvar seus lábios. Ele era mesmo um canalha. E Natalie descobriria isso em breve.
– Apertei – disse Hannah, e estendeu a mão.
Um tremor percorreu seu corpo ao sentir os dedos dele se fecharem em torno dos seus. Era uma mão forte, capaz de esmagar com facilidade seus ossos delicados, mas seu toque era gentil.
E quente. Hannah encarou-o com um olhar confuso e puxou a mão, enquanto seu coração batia com força. Queria que ele parasse de olhar para ela – podia de fato sentir o olhar dele sobre sua cabeça abaixada.
– A carruagem está esperando – disse ela hesitante.
– Vou levá-la ao hall de entrada – ouviu Lillian dizer –, e vamos tocar a sineta para pedir que tragam sua capa e... – Ela parou de falar ao som de um bebê chorando. – Ah, céus.
Uma babá entrou no salão, segurando um bebê de cabelo escuro embrulhado em um cobertor rosa.
– Perdoe-me, milady, mas ela não para de chorar.
– Minha filha Merritt – explicou Lillian a Hannah. Então estendeu os braços para pegar a criança, aconchegando-a e acalmando-a. – Pobre criança, você está inquieta hoje. Srta. Appleton, se puder esperar um instante...
– Posso sair sozinha – disse Hannah, sorrindo. – Fique aqui com sua filha, senhora.
– Eu vou com você – ofereceu Bowman prontamente.
– Obrigada, Rafe – disse Lillian antes que Hannah pudesse objetar.
Sentindo o nervosismo apertar seu estômago, Hannah saiu do salão com Rafe Bowman.
Antes que ele pudesse alcançar a sineta, ela murmurou:
– Se não faz objeção, gostaria de falar com o senhor em particular por um momento.
– Claro.
Seu olhar correu pelo corpo dela com o brilho diabólico de um homem que estava muito acostumado a ter momentos particulares com mulheres que mal conhecia. Seus dedos deslizaram em torno do cotovelo dela, levando-a para a sombra sob as escadas.
– Sr. Bowman – sussurrou Hannah com grave seriedade –, não tenho nem o direito nem o desejo de corrigir seus costumes, mas... essa questão do aperto de mão...
Ele curvou a cabeça sobre a dela.
– Sim?
– Por favor, o senhor não deve estender a mão para uma pessoa mais velha, ou para um homem de maior prestígio, ou, principalmente, para uma senhora, a menos que alguma dessas pessoas lhe ofereça a mão primeiro. Simplesmente não é assim que funciona aqui. E por mais irritante e enervante que o senhor seja, ainda não desejo que seja menosprezado.
Para sua surpresa, Bowman pareceu escutá-la com atenção. Quando respondeu, seu tom parecia conter uma certa seriedade.
– Isso é gentil da sua parte, Srta. Appleton.
Ela desviou o olhar dele, seus olhos correram pelo chão, pelas paredes, pelo lado de baixo da escada. Sua respiração era curta e ansiosa.
– Não estou sendo gentil. Acabei de dizer que o senhor é irritante e enervante. Não fez esforço algum para ser educado.
– A senhorita está certa – disse ele. – Mas, acredite, sou ainda mais irritante quando tento ser educado.
Eles estavam muito próximos, a ponto de ela poder sentir os vívidos aromas de seu casaco de lã e da sua camisa de linho engomada. E, por baixo disso tudo, o cheiro de pele masculina, que revelava o frescor e o perfume de um sabão de barbear de tangerina. Bowman a observava com a mesma intensidade, bem próxima à fascinação, que mostrara na sala. Ser encarada daquela maneira a deixava nervosa.
Hannah endireitou os ombros.
– Devo ser franca, Sr. Bowman. Não acredito que o senhor e lady Natalie combinarão de nenhuma maneira. Não há um átomo de semelhança sequer entre vocês. Nenhum ponto em comum. Acho que seria um desastre. E é meu dever partilhar esta opinião com lady Natalie. Na verdade, farei o que for necessário para impedir o seu noivado. E, embora possa não acreditar nisso, é para o seu bem, assim como para o de lady Natalie.
Bowman não parecia nem um pouco preocupado com a opinião dela, ou seu aviso.
– Não há nada que eu possa fazer para mudar a sua opinião a meu respeito?
– Não, sou muito cabeça-dura.
– Então vou ter de lhe mostrar o que acontece com as mulheres que ficam no meu caminho.
Suas mãos deslizaram em volta dela tão hábeis e discretas que a pegaram completamente desprevenida. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, um braço forte a trouxera contra o calor animal de seu corpo, rígido e masculino. Com a outra mão, ele segurou a nuca de Hannah, inclinando-a para trás. E sua boca tomou a dela.
Hannah usou os braços para se desvencilhar, mas Bowman continuou e a segurou mais firmemente contra ele. Aquilo fez com que ela sentisse como ele era maior, mais forte, e quando ela arfou, tentando falar, ele se aproveitou de seus lábios entreabertos.
Hannah sentiu um forte tremor passar pelo seu corpo e estendeu a mão para afastar a cabeça dele. A boca de Bowman era experiente e inesperadamente suave, possuindo a dela com habilidade sedutora. Ela nunca tinha pensado que um beijo poderia ter gosto, um sabor íntimo.
Nunca sonhara que seu corpo fosse receber tão bem algo que sua mente rejeitava com tanta veemência.
Mas, enquanto Bowman a forçava a aceitar aquele beijo profundo e entorpecente, ela sentiu que perdia as forças, seus sentidos dominados. Seus dedos traidores enroscaram-se nos grossos cachos negros do cabelo dele, as mechas eram como seda. E, em vez de afastá-lo, ela se viu abraçando-o com força. Sua boca tremia e se abria sob a persuasão experiente dele, enquanto fogo líquido corria por suas veias.
Lentamente, Bowman afastou os lábios dos dela e guiou a cabeça de Hannah até seu peito, que subia e descia a cabeça dela com sua respiração rápida e irregular. Um sussurro travesso fez cócegas na orelha dela.
– É assim que cortejamos as garotas nos Estados Unidos. Nós as agarramos e as beijamos. E, se elas não gostarem, fazemos isso de novo, com mais força e por mais tempo, até se renderem.
Isso nos poupa horas de tiradas espirituosas.
Hannah encarou-o com severidade e viu um sorriso dançar em seus maliciosos olhos escuros.
Inspirou fundo, indignada.
– Vou contar...
– Conte a quem quiser. Eu vou negar.
Ela fechou a cara, franzindo as sobrancelhas.
– O senhor é mais do que um canalha. É um cafajeste.
– Se não gostou – murmurou ele –, não deveria ter retribuído.
– Eu não...
A boca de Bowman atacou a dela de novo. Ela deixou escapar um som sufocado, batendo no peito dele com o punho. Mas ele nem pareceu sentir o golpe e ergueu a mão, envolvendo o punho inteiro dela. Então a consumiu com um beijo profundamente voluptuoso, acariciando-a com a língua, fazendo coisas que ela nunca suspeitara que as pessoas fizessem ao beijar. Ela ficou chocada com a invasão abrasadora, e mais ainda pelo prazer que lhe dava, todos os seus sentidos prontos a receber mais. Ela queria que ele parasse, mas, mais do que isso, queria que continuasse para sempre.
Hannah sentiu a respiração dele rápida e quente contra seu rosto, o peito subindo e descendo com uma força inconstante. Ele soltou a mão de Hannah, e ela se apoiou sem forças contra ele, agarrando seus ombros em busca de equilíbrio. A pressão insistente da boca de Bowman forçou a sua cabeça para trás. Ela se rendeu com um suave gemido, precisando de algo que não sabia bem o que era, de alguma forma de acalmar o ritmo ansioso da sua pulsação. Parecia que, se conseguisse puxá-lo para mais perto, mais junto dela, poderia aliviar a agitação sensual que tomava conta de cada parte de seu ser.
Bowman, então, se afastou relutantemente, terminando o beijo com um toque provocante dos lábios, e envolveu o rosto dela em sua mão. O ar de brincadeira tinha desaparecido de seus olhos, substituído por um ardor perigoso.
– Qual é o seu primeiro nome? – Seu sussurro se espalhou como um sopro de vapor pelos lábios dela. Diante da ausência de resposta, ele aproximou a boca da dela. – Diga ou vou beijá-la de novo.
– Hannah – disse ela sem forças, sabendo que não podia suportar mais.
Ele acariciou com o polegar a superfície escarlate do rosto dela.
– A partir de agora, Hannah, não importa o que você diga ou faça, vou olhar para a sua boca e lembrar como ela é doce. – Um sorriso sarcástico curvou seus lábios enquanto ele acrescentava calmamente: – Droga.
Bowman soltou-a com cuidado, foi até a sineta e tocou, chamando uma criada. Quando trouxeram a capa e o chapéu de Hannah, ele os pegou com a empregada.
– Venha, Srta. Appleton.
Hannah não conseguia olhar para ele. Sabia que seu rosto estava terrivelmente vermelho.
Sem dúvida, ela nunca estivera tão constrangida e confusa em toda a sua vida. Ela esperou, aturdida e em silêncio, que ele habilmente colocasse a capa em volta dela e a prendesse em seu pescoço.
– Até breve, em Hampshire – ouviu-o dizer. E ele tocou seu queixo com a ponta do indicador. – Olhe para cima, querida.
Hannah obedeceu num impulso. Ele colocou o chapéu em sua cabeça, ajustando a borda com cuidado.
– Eu a assustei? – sussurrou ele.
Ela, então, fuzilou-o com o olhar, erguendo mais um pouco o queixo. Sua voz soou só um pouco trêmula.
– Lamento desapontá-lo, Sr. Bowman. Mas não me sinto amedrontada nem intimidada.
Um brilho bem-humorado piscou naqueles olhos escuros.
– Devo alertá-la, Hannah: quando nos encontrarmos em Stony Cross Park, procure evitar o visco. Pelo bem de nós dois.
Depois que a atraente Srta. Appleton partiu, Rafe permaneceu no hall de entrada e sentou-se em um pesado banco de carvalho. Animado e confuso, ele pensou sobre sua inesperada perda de controle. Só tinha a intenção de dar um beijinho de leve na jovem, o suficiente para perturbá-la e desconcertá-la. Mas o beijo tinha se transformado em algo tão intenso, tão prazeroso, que não conseguira se conter e evitar ir além do que devia.
Ele adoraria ter beijado aquela boca inocente por horas. Queria derrubar cada uma das inibições de Hannah até ela estar agarrada a ele, nua e pedindo que ele a possuísse. Ao pensar em como seria difícil seduzi-la e como seria incrivelmente divertido estar sob as saias dela, notou que seu corpo ficava incomodamente rígido. Um sorriso lento e irônico cruzou seu rosto enquanto ponderava que, se era isso o que ele poderia esperar das inglesas, iria fixar residência permanente em Londres.
Ao ouvir passos, Rafe ergueu o olhar. Lillian tinha chegado ao hall de entrada e olhava para ele com terna irritação.
– Como está a bebê? – perguntou Rafe.
– Annabelle está com ela. Por que você ainda está aqui fora?
– Eu precisava de um instante para acalmar meu... ânimo.
Lillian, então, cruzou os braços esbeltos sobre o peito e balançou a cabeça devagar. Ela era bonita de uma maneira arrojada e elegante, espirituosa e atrevida. Ela e Rafe sempre tinham se dado bem, talvez porque nenhum deles fora capaz de tolerar as exigências e regras rigorosas estabelecidas por seus pais.
– Só você – disse Lillian sem se alterar – poderia transformar uma respeitável visita à hora do chá em uma luta de boxe.
Rafe sorriu sem remorso e olhou para a porta da frente, pensativo.
– Algo nela desperta o diabo dentro de mim.
– Bem, é melhor contê-lo, querido. Porque se quiser conquistar lady Natalie, terá de mostrar ser muito mais cortês e educado do que foi hoje lá na sala de visitas. O que acha que a Srta.
Appleton vai dizer a seus empregadores sobre você?
– Que eu sou um degenerado, grosseiro e sem princípios? – Rafe deu de ombros e disse de maneira racional: – Mas eles já sabem que eu sou de Wall Street.
Os olhos castanho-claros de Lillian se estreitaram enquanto o observava, intrigada.
– Como você não me parece nem um pouco preocupado, presumo que saiba o que está fazendo. Mas me deixe lembrá-lo de que lady Natalie quer se casar com um cavalheiro.
– Pela minha experiência – disse Rafe, despreocupado –, nada faz as mulheres se queixarem mais do que conseguirem o que querem.
Lillian riu.
– Ah, esse feriado será interessante. Vai voltar para dentro?
– Em um instante. Ainda estou me acalmando.
Ela lhe lançou um olhar curioso.
– Seu ânimo demora muito para se acalmar, não é?
– Você não tem ideia – disse a ela em tom sério.
Ao voltar para a sala, Lillian parou à porta e olhou para as amigas. Annabelle estava sentada com Merritt descansando tranquilamente em seus braços, enquanto Evie se servia de mais uma xícara de chá.
– O que ele disse? – perguntou Annabelle.
Lillian revirou os olhos.
– O idiota do meu irmão não parece estar preocupado com o relatório rigoroso que a Srta.
Appleton fará sobre ele para os Blandfords e para lady Natalie. – Ela suspirou. – As coisas não foram nada bem, não é? Você já viu uma animosidade tão imediata entre duas pessoas sem nenhuma razão aparente?
– Sim – replicou Evie.
– Acredito que sim – disse Annabelle.
Lillian franziu o rosto.
– Quando? Quem? – perguntou, e ficou intrigada quando sorriram uma para a outra.
CAPÍTULO 4
Para espanto de Hannah, Natalie não só não ficou chocada com seu relato sobre a visita a Rafe Bowman, como também achou tudo aquilo muito interessante. Quando Hannah terminou de narrar o beijo sob as escadas, Natalie caiu na cama em um ataque de riso.
– Natalie – disse Hannah, franzindo a testa –, eu claramente não consegui transmitir como aquele homem era terrível. É. Ele é um bárbaro. Um bruto. Um idiota.
– Parece que sim. – Ainda gargalhando, Natalie se sentou. – Estou ansiosa para conhecê-lo.
– O quê?
– É bastante manipulador esse nosso Sr. Bowman. Ele sabia que você iria me contar o que tinha feito, e que eu ficaria intrigada. E quando eu me encontrar com ele em Hampshire, vai agir como um perfeito cavalheiro na esperança de me deixar desconcertada.
– Você não deveria ficar intrigada, deveria ficar horrorizada!
Natalie sorriu e acariciou a mão dela.
– Ah, Hannah, você não sabe como lidar com os homens. Não deve levar tudo tão a sério.
– Mas a corte é um assunto sério – protestou Hannah.
Era nessas horas que ela via a diferença entre ela e a prima mais nova. Natalie parecia ter uma compreensão mais ampla dos traquejos sociais, algo que Hannah jamais teria.
– Ah, céus, o momento em que uma garota encara a corte como um assunto sério é quando ela perde o jogo. Devemos proteger nossos corações e esconder nossos sentimentos, Hannah. É a única maneira de vencer.
– Pensei que a corte fosse um processo de abrir o coração – disse Hannah. – Não de ganhar um jogo.
– Não sei de onde tira essas ideias – disse Natalie sorrindo. – Se quiser fazer um homem se empenhar por você, nunca revele seu coração para ele. Pelo menos não no começo. Os homens só valorizam algo quando têm de se esforçar para conseguir. – E bateu o indicador no queixo. –
Humm... Terei de pensar em uma boa contraestratégia.
Hannah, então, saiu da cama e foi apanhar algumas luvas, meias e outras coisas que tinham sido deixadas por desleixo no chão. Ela nunca se importara de arrumar o que Natalie deixava espalhado. Hannah conhecera acompanhantes de outras damas que tornavam suas vidas um inferno, tratando-as com desprezo e submetendo-as a todo tipo de pequenas crueldades. Natalie, ao contrário, era amável e afetuosa, e embora pudesse ser ligeiramente egocêntrica às vezes, não era nada que o tempo e a maturidade não curassem.
Após guardar os objetos pessoais de Natalie em uma cômoda, Hannah virou-se para encará-la e notou que ainda estava pensativa.
Natalie era uma linda visão, deitada sobre os lençóis brancos amassados, o cabelo caindo em cachos dourados. Seus olhos azuis e seu brilho tinham roubado o coração de muitos cavalheiros durante sua primeira temporada. Nem mesmo o modo como rejeitava seus pretendentes fazia com que eles perdessem as esperanças. Muito depois do fim da estação, enormes arranjos de flores ainda chegavam à mansão dos Blandfords, e cartões de visita se acumulavam na bandeja de prata no salão de entrada.
Natalie, distraidamente, enrolou uma mecha de seu cabelo sedoso no dedo.
– O Sr. Bowman acha que, como já que passei uma temporada inteira sem me decidir por alguém, devo estar cansada de todos esses senhores insípidos e respeitáveis. E já que faz meses que a temporada terminou, ele também supõe que eu esteja entediada e ansiosa por um desafio. –
Ela deu uma breve risada. – E ele está certo em tudo.
– A maneira apropriada de ele chamar sua atenção não é violando sua acompanhante –
murmurou Hannah.
– Você não foi violada, foi beijada. – Os olhos de Natalie cintilaram com malícia quando ela perguntou: – Agora confesse, Hannah... ele beija bem?
Ao lembrar-se da sensação erótica e quente da boca de Bowman, Hannah sentiu que seu rosto voltava a corar.
– Eu não sei – disse ela sucintamente. – Não tenho base de comparação.
Natalie arregalou os olhos.
– Quer dizer que você nunca foi beijada antes?
Hannah balançou a cabeça.
– Mas com certeza o Sr. Clark...
– Não.
Hannah levantou os dedos até o rosto quente.
– Ele deve ter tentado – insistiu Natalie. – Você passou tanto tempo em sua companhia.
– Estive trabalhando para ele – protestou Hannah. – Ajudando com seu manuscrito e com seus documentos.
– Quer dizer que você tomava notas mesmo para ele?
Hannah lançou-lhe um olhar confuso.
– O que mais eu estaria fazendo?
– Quando você dizia que estava “anotando” coisas para ele eu sempre imaginei que você estava deixando que a beijasse.
Hannah ficou pasma.
– Quando eu dizia que estava “anotando”, queria dizer que estava anotando!
Natalie estava claramente desapontada.
– Meu Deus. Se você passou todo aquele tempo com ele, e ele nunca a beijou, eu diria que isso é prova mais do que suficiente de que a paixão que ele tem pelo trabalho ofuscará todo o resto. Até mesmo uma esposa. Precisamos encontrar outra pessoa para você.
– Não me importaria em ficar em segundo plano com relação ao trabalho do Sr. Clark – disse Hannah com ar sério. – Ele será um grande homem algum dia. E fará tanto pelos outros...
– Grandes homens não são necessariamente bons maridos. E você é muito amável e querida para ser desperdiçada com ele. – Natalie balançou a cabeça em desgosto. – Ora, qualquer um dos que dispensei na última temporada seria melhor para você do que o velho e tolo Sr. Clark.
Um pensamento preocupante ocorreu a Hannah, mas ela estava quase com medo de expressar sua suspeita.
– Natalie, você já deixou um dos seus pretendentes beijá-la?
– Não – disse Natalie de maneira tranquilizadora.
Hannah soltou um suspiro de alívio.
– Deixei quase todos eles me beijarem – continuou Natalie, animada. – Em ocasiões distintas, é claro.
Perplexa, Hannah se recostou com força contra a cômoda.
– Mas... mas eu estava tomando conta de você...
– Você é uma péssima acompanhante, Hannah. Muitas vezes fica tão absorta em uma conversa que se esquece de ficar de olho em mim. Essa é uma das razões pelas quais a adoro.
Hannah nunca havia sonhado que sua prima bonita e espirituosa teria deixado um só jovem ir tão longe. Muito menos vários deles.
– Você sabe que nunca deveria permitir tais liberdades – disse ela sem forças. – Isso despertará rumores, e você pode ser rotulada, e então...
– Ninguém vai querer noivar comigo? – Natalie sorriu ironicamente. – Na última temporada recebi quatro propostas de casamento, e se eu tivesse me dado o trabalho de encorajar mais pretendentes, poderia ter recebido mais meia dúzia. Acredite em mim, Hannah, sei como lidar com os homens. Traga minha escova de cabelo, por favor.
Hannah obedeceu, reconhecendo que havia uma boa razão para Natalie estar tão segura de si.
Ela era, ou seria, a noiva ideal para qualquer homem. Entregou a escova prateada para Natalie e observou-a passá-la por sua cascata de cachos louros.
– Natalie, por que você não aceitou nenhuma das propostas da temporada passada?
– Estou esperando alguém especial – respondeu. – Eu detestaria me conformar com um homem comum. – Natalie sorriu enquanto, atrevida, acrescentava: – Quando beijo um homem, quero ouvir os anjos cantarem.
– E quanto a lorde Travers?
De todos os cavalheiros que haviam demonstrado interesse por Natalie, Edward, lorde Travers, era aquele pelo qual Hannah tinha mais respeito. Era um cavalheiro discreto e tranquilo, que prezava o cuidado com a aparência e com o comportamento. Embora suas feições não exibissem uma beleza evidente, seus traços eram fortes e harmônicos. Ele não parecia deslumbrado com Natalie, no entanto, dedicava-lhe uma atenção respeitosa sempre que ela estava presente. E era rico e nobre, o que, com suas outras qualidades, fazia dele um excelente partido.
A menção a Travers fez Natalie ficar séria.
– Ele é o único homem que conheço que não tentaria nada comigo, mesmo se tivesse uma oportunidade perfeita. Atribuo isso à sua idade.
Hannah não pôde deixar de rir.
– Sua idade?
– Afinal, ele já tem quase 40 anos.
– Ele é maduro – admitiu Hannah. – Mas também é confiante, inteligente, e, ao que tudo indica, está em pleno vigor.
– Então por que não me beijou?
– Porque ele a respeita? – sugeriu Hannah.
– Eu preferiria ser vista com paixão do que com respeito.
– Bem – disse Hannah ironicamente –, então eu diria que o Sr. Bowman é o seu homem.
Ouvir o nome de Bowman restaurou o bom humor de Natalie.
– É provável. Agora, Hannah, diga a mamãe e papai que o Sr. Bowman se comportou primorosamente bem. Não, eles não vão acreditar nisso, ele é americano. Diga que era bastante apresentável. E não fale nada sobre o beijo sob as escadas.
CAPÍTULO 5
Hampshire
Stony Cross Park
Hannah nunca esperara ter a oportunidade de conhecer Stony Cross Park. Convites para a famosa propriedade rural de lorde Westcliff não eram fáceis de obter. Localizada no condado meridional de Hampshire, Stony Cross Park tinha a fama de ter alguns dos melhores hectares da Inglaterra. A diversidade dos campos floridos, campos úmidos e férteis, pântanos e florestas antigas faziam dali um lugar bonito e procurado para visitas. Gerações das mesmas famílias eram convidadas para os mesmos eventos e festas anuais. Ser excluído da lista de convidados resultava na indignação mais inconsolável.
– E pense só – ponderou Natalie durante a longa viagem de carruagem partindo de Londres.
– Se eu me casar com o cunhado de lorde Westcliff, poderei visitar Stony Cross Park quando quiser.
– Tudo isso ao custo de ter o Sr. Bowman como seu marido – disse Hannah secamente.
Embora não tivesse contado a lorde e lady Blandford sobre o beijo roubado, deixara claro que não acreditava que Bowman seria um companheiro adequado para Natalie. Os Blandfords, no entanto, aconselharam-na a deixar para julgar depois que todos o conhecessem melhor.
Lady Blandford, tão loura, adorável e exuberante quanto a filha, ficou sem ar quando a mansão Stony Cross assomou ao longe. A casa tinha estilo europeu, construída com pedras cor de mel, e quatro graciosas torres, tão altas que pareciam prestes a perfurar o céu daquele início de noite, colorido por um pôr do sol em tons de laranja e lavanda.
Situada em um penhasco junto ao rio Itchen, a mansão Stony Cross era fantasticamente adornada por jardins e pomares, pistas de equitação e caminhos magníficos que passavam por extensos trechos de floresta e parques naturais. Por causa da feliz localização de Hampshire, ao sul, o clima era mais ameno do que no restante da Inglaterra.
– Ah, Natalie – exclamou lady Blandford –, imagine entrar para essa família! E, como uma Bowman, você poderia ter sua própria casa de campo, uma casa em Londres e outra no continente, isso sem falar de sua própria carruagem com quatro cavalos, e os mais lindos vestidos e joias...
– Céus, os Bowmans são tão ricos assim? – perguntou Natalie com um tom de surpresa. – E
o Sr. Bowman herdará a maior parte dos negócios da família?
– Uma bela parte deles, com certeza – respondeu lorde Blandford, sorrindo diante do vívido interesse da filha. – Ele tem sua própria fortuna, e a promessa de muito mais por vir. O Sr. Bowman pai ressaltou que haverá grandes recompensas para vocês dois com o noivado.
– Seria justo – disse Natalie de maneira pragmática –, uma vez que seria uma perda de status me casar com um plebeu, quando eu poderia facilmente me unir a um nobre.
Não havia menosprezo ou arrogância em sua declaração. Era fato que algumas portas que estariam abertas para a esposa de um nobre nunca se abririam para a esposa de um industrial americano.
Quando a carruagem parou à entrada da mansão, Hannah notou que a propriedade seguia o estilo francês, com os estábulos à frente da casa, e não escondidos ao lado ou nos fundos. Os estábulos ficavam em uma construção com enormes portas em arco, formando um dos lados de um pátio de entrada coberto de pedras.
Criados os ajudaram a descer da carruagem, e cavalariços de Westcliff vieram ajudar com os animais. Mais criados aproximaram-se depressa para recolher os baús e as malas. Um mordomo idoso conduziu-os ao enorme salão de entrada, onde várias pessoas andavam de um lado para outro; arrumadeiras com cestos de roupa de cama, criados com caixotes, e outros ocupados em limpar, polir e varrer.
– Lorde e lady Blandford! – Lillian aproximou-se deles, radiante, em um vestido vermelho-escuro, usando o cabelo negro primorosamente preso em uma rede adornada por joias. Com seu sorriso luminoso e sua cordialidade descontraída, era tão envolvente que Hannah entendia por que o famoso conde de Westcliff tinha se casado com ela. Lillian se curvou para eles, e eles responderam da mesma forma.
– Bem-vindos a Stony Cross Park – disse Lillian. – Espero que a viagem tenha sido confortável. Por favor, desculpem todo esse barulho e essa agitação, estamos tentando desesperadamente nos preparar para receber todos os convidados que chegarão amanhã. Depois de se acomodarem e se recuperarem da viagem, venham ao salão principal. Meus pais estão lá e, é claro, meu irmão, e... – Ela parou ao ver Natalie. – Minha querida lady Natalie. – Sua voz se suavizou. – Estava tão ansiosa para conhecê-la. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir que seu feriado seja maravilhoso.
– Obrigada, senhora – respondeu Natalie com recato. – Não tenho dúvidas de que será esplêndido. – Ela sorriu para Lillian. – Minha acompanhante me disse que haverá uma árvore de Natal.
– Quatro metros de altura – respondeu Lillian entusiasmada. – Está sendo o diabo... quer dizer, bastante difícil decorá-la, já que os ramos superiores são impossíveis de alcançar. Mas temos escadas extensíveis e muitos criados altos, então vamos conseguir. – Ela se virou para Hannah. – Srta. Appleton. É um prazer vê-la novamente.
– Obrigada, minha...
Hannah fez uma pausa quando percebeu que Lillian estendera a mão. Perplexa, Hannah estendeu a mão para cumprimentá-la, encarando-a com um olhar confuso.
A condessa piscou para ela, e Hannah percebeu que só queria provocá-la. Então soltou uma gargalhada da piada que só as duas entenderam e retribuiu a calorosa pressão dos dedos de Lillian.
– Dada a sua notável tolerância com os Bowmans – disse Lillian –, você também devia vir ao salão.
– Sim, minha senhora.
A governanta os acompanhou até seus quartos, levando-os pelo que pareciam ser quilômetros de piso.
– Hannah, por que lady Westcliff apertou sua mão? – sussurrou Natalie. – E por que vocês duas pareceram achar tanta graça?
Natalie e Hannah iriam compartilhar um quarto, Natalie ocuparia a cama principal e Hannah dormiria em uma acolhedora antecâmara. O quarto era lindamente decorado por um papel de parede florido, móveis de mogno e uma cama com dossel de renda.
Enquanto Natalie lavava as mãos e o rosto, Hannah separou um vestido limpo para ela e abriu-o para desamassá-lo. O vestido era de um tom bonito de azul, com um decote ombro a ombro preenchido com renda e mangas longas e justas. Natalie sorria, ansiosa por conhecer os Bowmans e sentou-se diante do espelho da penteadeira enquanto Hannah escovava seu cabelo e refazia seu penteado. Depois de se certificar de que a aparência de Natalie estava perfeita, o nariz com uma suave camada de pó de arroz, os lábios cobertos com bálsamo de água de rosas, Hannah foi até sua mala e começou a vasculhá-la.
Lady Blandford apareceu na entrada, parecendo revigorada e disposta.
– Venham, garotas – disse ela serenamente. – É hora de nos juntarmos aos outros lá embaixo.
– Mais alguns minutos, mamãe – disse Natalie. – Hannah ainda não mudou de roupa nem arrumou o cabelo.
– Não devemos deixar todos esperando – insistiu lady Blandford. – Venha como está, Hannah. Ninguém vai notar.
– Sim, senhora – disse Hannah, obediente, disfarçando sua consternação. Suas roupas de viagem estavam empoeiradas, e o cabelo parecia que ia se soltar. Não queria enfrentar os Bowmans e os Westcliffs naquelas condições. – Eu preferiria ficar aqui em cima ajudando as empregadas a desfazerem as malas...
– Não – disse lady Blandford com um suspiro impaciente. – Normalmente eu concordaria, mas a condessa pediu a sua presença. Você deve vir como está, Hannah, e procurar ser discreta.
– Sim, senhora.
Hannah afastou o cabelo do rosto e correu para o lavatório. Gotas de água deixaram pequenas manchas escuras em seu vestido de viagem. Contorcendo-se por dentro, saiu do quarto atrás de Natalie e lady Blandford.
– Desculpe – sussurrou Natalie para ela, franzindo a testa. – Não devíamos ter demorado tanto tempo me arrumando.
– Imagina – murmurou Hannah, estendendo a mão para dar um tapinha em seu braço. – É
você que todos querem ver. Lady Blandford está certa... ninguém vai me notar.
A casa estava linda, toda enfeitada, as janelas envoltas em seda dourada com bolas douradas pendendo nas pontas, as portas encimadas por sempre-vivas, azevinhos e heras ornadas de laços.
As mesas estavam cobertas de velas e arranjos de flores perenes, como crisântemos, heléboros- brancos e camélias. E alguém, maliciosamente, decorara várias entradas com enfeites de visco que pendiam de ramos de sempre-vivas.
Ao notar os viscos, Hannah sentiu uma pontada de nervosismo ao pensar em Rafe Bowman.
Acalme-se, disse para si mesma com um sorriso autodepreciativo, olhando para seu vestido desalinhado. Ele com certeza não vai tentar beijá-la agora, nem mesmo debaixo de uma tonelada de visco.
Entraram no salão principal, uma sala grande confortavelmente mobiliada com uma mesa de jogos, pilhas de livros e periódicos, um piano, um aro de bordado com suporte e uma pequena escrivaninha.
A primeira pessoa que Hannah notou foi Marcus, lorde Westcliff, um homem de presença imponente e poderosa, algo incomum para alguém ainda na casa dos 30 anos. Quando ele se levantou para recebê-los, Hannah reparou que o conde tinha altura mediana, mas estava elegantemente em forma e era bastante seguro de si. Westcliff se comportava com a naturalidade de um homem que estava perfeitamente confortável com sua própria autoridade.
Enquanto Lillian fazia as apresentações, Hannah recuou para o canto da sala, observando a cena. Olhou de maneira discreta para os Bowmans quando alcançaram os Blandfords.
Thomas Bowman era robusto, baixo e corado, um grande bigode de morsa sobre a boca.
Usava na sua cabeça reluzente uma peruca que parecia prestes a saltar de seu couro cabeludo e fugir pela sala.
Sua esposa, Mercedes, por outro lado, era extremamente magra e frágil, com um olhar duro e um sorriso que fendia seu rosto como rachaduras em um lago congelado. A única coisa que os dois pareciam ter em comum era uma sensação de insatisfação com a vida e com a outra metade do casal.
Os filhos Bowmans se pareciam muito mais um com o outro do que com qualquer um dos pais, ambos altos, irreverentes e descontraídos. Parecia que haviam sido formados por alguma combinação mágica somente com os melhores traços dos pais.
Hannah observou discretamente Lillian apresentar Rafe Bowman à Natalie. Não conseguia ver a expressão de Natalie, mas tinha uma excelente visão de Bowman. Seu corpo forte vestia um paletó escuro bem ajustado, calças cinza, uma camisa muito branca e uma gravata preta com um nó impecável. Ele se curvou para Natalie e murmurou algo que provocou uma risada ofegante. Não havia como negar... com sua masculinidade natural e seus ousados olhos negros, Rafe Bowman era, como dizem por aí, um galã.
Hannah se perguntou o que ele achava de sua prima. O rosto de Bowman era indecifrável, mas estava certa de que ele não tinha como encontrar nenhum defeito em Natalie.
Enquanto todos na sala jogavam conversa fora, Hannah avançou lentamente em direção à porta. Se fosse possível, tentaria escapar da sala sem ser notada. A porta aberta parecia acenar de modo convidativo, prometendo liberdade. Ah, seria maravilhoso fugir e colocar roupas limpas, escovar o cabelo na privacidade de seu quarto. Mas quando chegou à entrada, ouviu a voz grave de Rafe Bowman.
– Srta. Appleton. Com certeza não nos privará de sua encantadora companhia.
Hannah parou abruptamente e virou-se, sendo recebida pelo olhar de todos os presentes; justo no momento em que menos queria atenção. Ela queria fuzilar Bowman com os olhos. Não, ela queria matá-lo. Em vez disso, adotou uma expressão neutra e murmurou:
– Boa tarde, Sr. Bowman.
Lillian a chamou imediatamente.
– Srta. Appleton, venha até aqui. Quero apresentá-la ao meu marido.
Então, Hannah reprimiu um suspiro pesado, afastou as mechas que caíam em seu rosto e se aproximou.
– Westcliff – disse Lillian ao marido. – Esta é a acompanhante de lady Natalie, a Srta.
Hannah Appleton.
Hannah curvou-se e olhou apreensiva para o conde. Suas feições eram graves e austeras, talvez um pouco hostis. Mas, quando o olhar dele alcançou seu rosto, viu que era uma pessoa gentil. Ele falou com uma voz rouca e aveludada que agradou seus ouvidos.
– Seja bem-vinda, Srta. Appleton.
– Obrigada, milorde – disse ela. – E muito obrigada por me deixar passar o feriado aqui.
– A condessa apreciou muito a sua companhia no chá semana passada – respondeu Westcliff, sorrindo brevemente para Lillian. – Qualquer um que a agrada também me agrada.
O sorriso o transformou, tornando seu rosto mais caloroso e receptivo.
Lillian falava com o marido com uma leveza casual, como se ele fosse um simples mortal, e não o nobre mais distinto da Inglaterra.
– Westcliff, acho que você vai gostar de conversar com a Srta. Appleton sobre o trabalho dela com o Sr. Samuel Clark. – Então olhou para Hannah enquanto acrescentava: – O conde leu alguns dos escritos dele e gostou muito.
– Ah, eu não trabalho com o Sr. Clark – disse Hannah apressadamente –, mas sim para ele, na função de secretária. – E abriu um sorriso cauteloso para o conde. – Estou um pouco surpresa que tenha lido um trabalho do Sr. Clark, milorde.
– Conheço muitos teóricos progressistas de Londres – disse Westcliff. – Em que o Sr. Clark está trabalhando agora?
– Atualmente ele está escrevendo um livro especulativo sobre que leis naturais podem governar o desenvolvimento da mente humana.
– Eu gostaria de ouvir mais sobre isso durante o jantar.
– Sim, meu senhor.
Lillian, então, apresentou Hannah a seus pais, que a cumprimentaram com acenos de cabeça.
Ficou claro, no entanto, que já haviam dispensado Hannah como uma pessoa sem importância.
– Rafe – sugeriu a condessa ao irmão –, talvez você possa levar lady Blandford e lady Natalie para um passeio pela casa antes do jantar.
– Ah, sim – disse Natalie imediatamente. – Podemos, mamãe?
– Isso me parece ótimo – confirmou lady Blandford.
Bowman sorriu para as duas.
– Seria um prazer. – Em seguida virou-se para Hannah. – Você também virá, Srta. Appleton?
– Não – disse ela rapidamente, e então, ao perceber que sua recusa tinha sido muito forte, suavizou o tom. – Conhecerei a mansão mais tarde, obrigada.
Bowman a olhou de cima a baixo, e depois concentrou-se no rosto.
– Meus serviços podem não estar disponíveis mais tarde.
Ela ficou rígida diante do deboche suave em sua voz, mas não conseguia deixar de olhar nos olhos dele. Sob a luz quente do salão, aqueles olhos brilhavam em tons de dourado e canela.
– Então, de alguma forma terei de conseguir sem a sua ajuda, Sr. Bowman – respondeu ela com sarcasmo, e ele sorriu.
– Você não me disse que o Sr. Bowman era tão bonito – comentou Natalie após o jantar.
Já era tarde, e a longa viagem saindo de Londres seguida de uma demorada refeição deixara as garotas exaustas. Haviam se retirado para o quarto enquanto os outros lá embaixo ainda tomavam chá e vinho do Porto.
Embora o cardápio tivesse sido requintado, com pratos como capão assado recheado com trufas e costela coberta de ervas, a ceia fora um tanto desconfortável para Hannah. Estava ciente de sua aparência desalinhada, mal tendo tido tempo de se lavar e colocar um vestido limpo antes de correr para o salão de jantar. Para seu desalento, lorde Westcliff insistira em fazer perguntas sobre o trabalho de Samuel Clark, o que atraíra mais atenção para ela. E, durante todo o tempo, Rafe Bowman a olhava com um interesse audacioso e perturbador, que ela só podia interpretar como deboche.
Hannah, então, forçou-se a trazer seus pensamentos de volta para o presente, observando Natalie se sentar diante da penteadeira e tirar os grampos do cabelo.
– Suponho que o Sr. Bowman possa ser considerado atraente – disse Hannah, relutante. –
Para quem gosta desse tipo de homem.
– Você quer dizer do tipo alto, de cabelo escuro e deslumbrante?
– Ele não é deslumbrante – protestou Hannah.
Natalie riu.
– O Sr. Bowman é um dos homens mais esplendidamente bem-apessoados que já conheci.
Que defeito você consegue ver nele?
– Sua postura – murmurou Hannah.
– O que tem?
– Ele se porta de maneira relaxada.
– Ele é americano. Todos são assim. O peso de suas carteiras os puxa para baixo.
Hannah não pôde conter a risada.
– Natalie, você está mais atraída pelo homem ou pelo tamanho de carteira dele?
– Ele tem muitos atrativos pessoais, com certeza. Cabelo bonito... aqueles adoráveis olhos escuros... para não falar no físico impressionante. – Natalie pegou uma escova e passou-a lentamente pelo cabelo. – Mas eu não iria querer ficar com ele se fosse pobre.
– Há alguém que você iria querer se fosse pobre? – perguntou Hannah.
– Bem, se eu tivesse de ser pobre, preferiria ser casada com um nobre. Já é muito melhor do que ser uma Maria ninguém.
– Duvido que o Sr. Bowman algum dia fique pobre – disse Hannah. – Ele parece ter se saído muito bem em seus negócios. É um homem de sucesso, embora eu tema que não seja honrado.
– Ah, ele é um patife, com certeza – concordou Natalie com uma risada leve.
Hannah, então, ficou tensa, e olhou nos olhos da prima pelo espelho.
– Por que você diz isso? Ele falou ou fez algo inapropriado?
– Não, e não espero que ele faça, com o noivado ainda na mesa. Mas ele aparenta um sarcasmo permanente... fico me perguntando se ele poderia ser sincero sobre alguma coisa.
– Talvez seja uma fachada – sugeriu Hannah sem convicção. – Talvez ele seja um homem diferente por dentro.
– A maioria das pessoas não tem fachadas – disse Natalie secamente. – Ah, todo mundo pensa que tem, mas quando você cava além da fachada, só há mais fachada.
– Algumas pessoas são sinceras.
– E essas pessoas são as mais tediosas de todas.
– Eu sou sincera – protestou Hannah.
– Sim. Você terá que trabalhar nisso, querida. Quando se é sincera, não há mistério. E, acima de tudo, os homens gostam de mistério em uma mulher.
Hannah sorriu e balançou a cabeça.
– Devidamente anotado. Vou para cama agora.
Depois de vestir uma camisola branca com babados, foi para a pequena antecâmara e subiu na cama macia e limpa. Depois de um instante, ouviu Natalie murmurar:
– Boa noite, querida.
E o lampião se apagou.
Hannah deitou-se de lado, enfiou um braço sob o travesseiro e pensou nas palavras de Natalie.
Não havia dúvida de que Natalie estava certa. Hannah não tinha nem um pingo de ar de mistério.
Também não tinha sangue nobre, nenhum dote, nenhuma grande beleza, nenhuma habilidade que pudesse distingui-la. E, além dos Blandfords, não possuía relações importantes. Mas tinha um coração caloroso, roupas decentes e era inteligente. E tinha sonhos, atingíveis, de ter um lar e uma família algum dia.
Não havia escapado a Hannah que, no mundo privilegiado de Natalie, as pessoas esperavam encontrar felicidade e amor fora do casamento. Mas seu maior desejo para Natalie era que ela arrumasse um marido com quem compartilhasse afinidades tanto no campo da razão, como no da emoção.
E, àquela altura, ainda era altamente questionável se Rafe Bowman tinha mesmo um coração.
CAPÍTULO 6
Enquando Westcliff dividia charutos com lorde Blandford, Rafe foi ter uma conversa particular com o pai. Dirigiram-se à biblioteca, uma sala grande e bonita, com pé direito duplo e estantes de mogno que abrigavam mais de dez mil volumes. Um aparador tinha sido construído em um nicho para deixá-lo nivelado com as estantes.
Rafe ficou feliz em ver que havia várias garrafas de bebida sobre o mármore do aparador.
Sentindo que precisava de algo mais forte que vinho do Porto, achou a garrafa de uísque.
– Dose dupla? – sugeriu ao pai, que assentiu e grunhiu, concordando.
Rafe sempre detestara falar com o pai. Thomas Bowman era o tipo de homem que gostava de dizer o que as outras pessoas deviam fazer e pensar, acreditando conhecê-las mais do que elas mesmas. Desde a infância Rafe tivera de suportar que lhe dissessem quais eram seus pensamentos e motivações, e então ser punido por eles. Não parecia importar se ele tinha feito algo bom ou ruim. Mas apenas sob que ângulo seu pai decidia ver suas ações.
E Thomas sempre mantivera viva a ameaça de deserdá-lo. Por fim, Rafe lhe dissera para deserdá-lo de vez, que não se importava. E saíra para fazer sua própria fortuna, começando praticamente do nada.
Agora, quando se encontrava com o pai, era sob seus próprios termos. Ah, Rafe queria ter direito à parte europeia da fábrica de Bowman, mas não ia vender sua alma por isso.
Entregou um copo de uísque ao pai e tomou um gole, deixando o sabor cremoso e doce do éster correr por sua língua.
Thomas sentou-se em uma cadeira de couro diante do fogo. Franzindo a testa, estendeu a mão para verificar a posição da peruca na cabeça. Ficara escorregando a noite toda.
– Você pode prender uma alça no queixo – sugeriu inocentemente Rafe, provocando uma careta feroz do pai.
– Sua mãe acha atraente.
– Pai, acho difícil acreditar que isso possa atrair qualquer coisa que não seja um esquilo apaixonado. Rafe arrancou a peruca e colocou-a em uma mesa próxima. – Esqueça isso e fique confortável, pelo amor de Deus.
Thomas resmungou, mas não discutiu, relaxando em sua cadeira.
Rafe, então, apoiou um braço contra o console da lareira e olhou para o pai com um sorriso discreto.
– Bem? – indagou Thomas, erguendo, ansioso, as pesadas sobrancelhas. – O que você achou de lady Natalie?
Rafe deu de ombros de um jeito indolente.
– Ela vai servir.
As sobrancelhas abaixaram.
– “Ela vai servir”? É tudo o que você tem a dizer?
– Lady Natalie não é mais nem menos do que eu esperava. – Depois de tomar outro gole de uísque, Rafe disse sem rodeios: – Creio que não me importaria de me casar com ela. Embora ela não me interesse nem um pouco.
– Uma esposa não tem de ser interessante.
Rafe se perguntou se, infelizmente, não haveria alguma sabedoria escondida naquilo. Com uma esposa como lady Natalie, não haveria surpresas. Seria um casamento calmo e sem atritos, que o permitiria ter tempo suficiente para cuidar de seu trabalho e de suas ocupações pessoais.
Tudo o que ele teria de fazer era lhe prover generosos saques bancários, e ela gerenciaria a casa e teria filhos.
Lady Natalie era bonita e agradável, com seu cabelo louro e sedoso, e incrivelmente segura de si. Se Rafe algum dia a levasse a Nova York, ela se sairia esplendidamente bem com os nova-iorquinos. Sua postura, sua criação e sua confiança fariam com que fosse muito admirada.
Uma hora em sua companhia, e sabia-se praticamente tudo o que havia para saber sobre ela.
Ao passo que Hannah Appleton era algo novo e fascinante, e ele não tinha sido capaz de tirar os olhos dela durante o jantar. Ela não tinha a beleza meticulosamente bem cuidada de Natalie.
Em vez disso, seu desabrochar era alegre e casual, como o das flores silvestres. Seu cabelo, saltando em pequenos cachos em torno de seu rosto, deixava Bowman louco com o desejo de estender a mão e brincar com as mechas soltas e luminosas. Hannah tinha uma espécie de vitalidade deliciosa com a qual ele nunca se deparara antes, e ele instintivamente queria mergulhar naquele universo, mergulhar nela.
A sensação se intensificara quando Rafe viu Hannah conversando seriamente com Westcliff.
Ela estava animada e encantadora enquanto descrevia o trabalho de Samuel Clark sobre o desenvolvimento da mente humana. Na verdade, ficara tão absorta no assunto que se esquecera de comer, e observara com tristeza sua tigela de sopa ainda cheia ser retirada por um criado.
– Você vai pedi-la em casamento, não vai? – perguntou seu pai, trazendo seus pensamentos de volta à lady Natalie.
Rafe olhou para ele de maneira inexpressiva.
– No devido tempo. Devo arrumar um anel de noivado, ou você já escolheu um?
– Na verdade, sua mãe comprou um que pensou ser apropriado...
– Ah, pelo amor de Deus. Vocês gostariam de pedi-la em casamento por mim e virem me buscar quando ela der a resposta?
– Ousaria dizer que eu faria isso com mais entusiasmo do que você – retrucou Thomas.
– Vou lhe dizer o que eu faria com entusiasmo, pai: estabelecer uma indústria de fabricação de sabão em larga escala em todo o continente. E eu não deveria ter de me casar com lady Natalie para fazer isso.
– Por que não? Por que você não deveria ter de pagar por isso? Por que não deveria tentar me agradar?
– Por que mesmo, não é? – Rafe encarou-o com severidade. – Talvez porque eu tenha batido minha cabeça especificamente contra essa parede durante anos sem nunca ter conseguido amassá-la.
A pele de Thomas, que mudava de cor com facilidade, assumiu um tom de ameixa quando seu sangue ferveu.
– Você tem sido uma provação para mim em cada fase da sua vida. As coisas sempre vieram muito facilmente para você e seus irmãos, um bando de mimados e preguiçosos que nunca quiseram fazer nada.
– Preguiçosos? – Rafe lutava para se controlar, mas aquela palavra o fez explodir como um fósforo aceso em um barril de pólvora. – Só você, pai, podia ter cinco filhos que faziam de tudo para tentar impressioná-lo, e dizer que eles não se esforçaram o suficiente. Você sabe o que acontece quando chama uma pessoa inteligente de estúpida, ou um trabalhador de preguiçoso?
Isso só faz com que ele perceba que não há nenhum maldito motivo para tentar obter sua aprovação.
– Você sempre pensou que eu lhe devia minha aprovação simplesmente por ter nascido um Bowman.
– Já não quero mais sua aprovação – disse Rafe com os dentes cerrados, vagamente surpreso ao descobrir que a velocidade com que perdia a cabeça não era muito diferente da de seu pai. –
Eu quero... – Então se controlou e tomou o resto do uísque, engolindo com força para amenizar a queimação aveludada. Quando o ardor sumiu de sua garganta, encarou o pai com um olhar firme e frio. – Eu me casarei com lady Natalie, já que não importa de qualquer forma. Iria mesmo acabar com alguém como ela. Mas você pode ficar com sua maldita aprovação. Tudo o que eu quero é uma parte da empresa.
De manhã, os convidados começaram a chegar, e era possível ouvir o ruído elegante das famílias prósperas e seus criados. Baús, malas e embrulhos eram levados para a mansão em um desfile interminável. Outras famílias ficariam em propriedades vizinhas ou na estalagem da aldeia, indo e vindo em função dos vários eventos que aconteceriam na mansão.
Quando foi despertada pelos sons agitados e abafados que vinham de fora do quarto, Hannah não conseguiu mais dormir. Então, com cuidado para não acordar Natalie, ela se levantou e cuidou de sua higiene matinal, terminando por trançar o cabelo e prendê-lo em um coque na nuca. Colocou um vestido de lã cinza-esverdeado com pregas, fechado na frente por botões pretos brilhantes. Como pretendia dar um passeio ao ar livre, calçou um par de botas de salto baixo e pegou um pesado xale xadrez.
A mansão Stony Cross era um labirinto de corredores e salas. Atentamente, Hannah abriu caminho pela casa movimentada, parando de vez em quando para pedir instruções a um dos empregados que passavam. Acabou encontrando a sala de estar matinal, que estava abafada e cheia de pessoas que não conhecia. Um grande buffet de café da manhã foi servido, com peixes, bacon frito, pães, ovo poché com aspargo, ervilhas, muffins e vários tipos de queijo. Ela se serviu de uma xícara de chá, colocou um pouco de bacon em um pão e depois passou por uma série de portas francesas que levavam a um terraço externo. O dia estava claro e seco, o ar gelado transformava a sua respiração em uma névoa branca.
Jardins e pomares se estendiam diante dela, todos delicadamente bonitos e congelados. As crianças brincavam no pátio, rindo enquanto corriam de um lado para outro. Hannah sorriu, vendo-os correr pela calçada de pedras como um bando de gansos. Eles brincavam de “sopre a pena”, o que envolveu duas equipes se revezando para tentar manter uma pena flutuando.
Hannah parou de pé ao lado, comendo seu pão e tomando o chá. As crianças ficavam cada vez mais agitadas, pulando e soprando a pena com ruidosas rajadas de ar. A pena voou para perto dela, descendo preguiçosamente.
As meninas gritaram, encorajando-a.
– Sopre, senhorita, sopre! É um jogo de meninas contra meninos!
Depois disso, não havia escolha. Hannah se esforçou para conter um sorriso, franziu os lábios e soprou com força, mandando a pena para o alto em um trêmulo redemoinho. Fazia sua parte sempre que a pena se aproximava dela, correndo alguns passos para cá e para lá, ouvindo os gritos animados de suas companheiras de equipe.
A pena passou por cima da cabeça de Hannah, e ela recuou rapidamente, o rosto virado para cima. Mas se assustou ao sentir que batia contra algo atrás dela, não uma parede de pedra, mas algo duro e flexível. As mãos de um homem se fecharam em torno de seus braços, assegurando seu equilíbrio.
De cima de sua cabeça, o homem soprou mandando a pena para bem longe no pátio.
E as crianças correram atrás dela gritando.
Hannah permaneceu imóvel, atordoada pela colisão, mas ainda mais por perceber que reconhecia o toque de Rafe Bowman. O aperto de suas mãos, seu corpo forte e musculoso junto às suas costas. O aroma fresco e marcante de seu sabão de barbear.
A boca de Hannah ficou seca – provavelmente em razão do jogo da pena –, e ela tentou umedecer a parte interna de suas bochechas com a língua.
– Que quantidade extraordinária de ar você é capaz de produzir, Sr. Bowman.
Então, sorrindo, ele a virou cuidadosamente de frente. Ele era forte e arrojado, parado com aquela postura relaxada que tanto a incomodava.
– Bom dia para você também. – Ele olhou para ela com um olhar atrevido e crítico. – Por que você não está mais na cama?
– Costumo acordar cedo. – E Hannah resolveu devolver a audaciosa pergunta. – Por que você não está?
Um brilho travesso brilhou nos olhos dele.
– Não há por que continuar na cama quando estou sozinho.
Ela olhou em volta para se certificar de que nenhuma das crianças podia ouvi-los. Os pestinhas tinham cansado de seu jogo e entravam na casa por portas que levavam ao salão principal.
– Desconfio que seja uma ocorrência rara, Sr. Bowman.
Seu tom tranquilo disfarçava toda a sinceridade.
– Sim, é rara. Na maioria das vezes, minha cama está mais ocupada do que um curral durante a tosa de primavera.
Hannah o observava claramente irritada.
– Isso mostra com que tipo de mulheres você se mistura. E também não engrandece em nada a sua imagem comportar-se de forma tão indiscriminada.
– Não me comporto de forma indiscriminada. Só sou bom em encontrar mulheres que atendam aos meus altos padrões. E sou melhor ainda em convencê-las a ir para a minha cama.
– E então você as tosa.
Um sorriso pesaroso cruzou os lábios dele.
– Se você não se importa, Srta. Appleton, quero retirar minha analogia com as ovelhas. Está ficando desagradável até para mim. Gostaria de um passeio matinal?
Ela balançou a cabeça, perplexa.
– Com você? Por quê?
– Você está usando um vestido de passeio e botas. E presumo que queira saber qual é a minha opinião sobre lady Natalie. Fora isso, costuma ser sábio manter seu inimigo por perto...
– Já sei qual é a sua opinião sobre lady Natalie.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Sabe? Agora, insisto que caminhemos juntos. Sempre fico fascinado em ouvir minhas opiniões.
Hannah o encarou com seriedade.
– Muito bem – disse ela. – Primeiro vou levar a xícara de chá lá dentro, e...
– Deixe aí.
– Em uma mesa de fora? Não, alguém terá de arrumar.
– Sim. Esse alguém é chamado criado, que, ao contrário de você, receberá um salário por isso.
– Isso não significa que eu deveria dar mais trabalho a outra pessoa.
Antes que ela pudesse alcançar a xícara, Bowman a havia pegado.
– Eu cuidarei disso.
Os olhos de Hannah se arregalaram ao vê-lo caminhar indiferentemente até o peitoril de pedra. E ela ficou sem ar quando ele segurou a xícara sobre a beirada e a deixou cair. Então ouviu o som da louça se estilhaçando lá embaixo.
– Pronto – disse ele em tom casual. – Problema resolvido.
Hannah precisou tentar três vezes antes de conseguir enfim falar.
– Por que você fez isso? Eu poderia muito bem ter levado a xícara lá dentro!
Ele parecia achar graça do seu espanto.
– Pensei que minha falta de preocupação com os bens materiais iria agradá-la.
Hannah olhava para Bowman como se tivessem aparecido chifres na cabeça dele.
– Eu não chamaria isso de falta de preocupação com bens materiais, mas sim de falta de respeito por eles. E isso é tão ruim quanto supervalorizá-los.
O sorriso de Bowman desapareceu ao compreender a extensão da ira de Hannah.
– Srta. Appleton, a mansão de Stony Cross tem pelo menos dez aparelhos diferentes de louça, cada um com xícaras de chá suficientes para ajudar a cafeinar toda Hampshire. Não faltam xícaras por aqui.
– Isso não faz diferença, você não deveria tê-la quebrado.
Bowman bufou de maneira irônica.
– Você sempre teve toda essa paixão por louças, Srta. Appleton?
Sem dúvida, ele era o homem mais insuportável que já conhecera.
– Tenho certeza de que considera um defeito eu não achar graça na destruição gratuita.
– E tenho certeza – rebateu ele suavemente – que usará isso como desculpa para não caminhar comigo.
Hannah o observou por um instante. Ela sabia que ele estava irritado com ela por dar tanta importância à perda de uma pequena peça de louça que não faria diferença alguma naquele lugar.
Mas aquilo tinha sido o gesto grosseiro de um homem rico – destruir algo deliberadamente assim, sem motivo.
Bowman estava certo... Hannah estava mesmo bastante tentada a cancelar o passeio. Por outro lado, o ar de desafio nos olhos dele realmente a tocou. Ele parecera, por um momento, um aluno obstinado que fora apanhado em uma travessura e agora aguardava castigo.
– De jeito nenhum – disse ela. – Ainda estou disposta a caminhar com você. Mas gostaria que você tentasse não destruir mais nada no caminho.
Hannah teve a satisfação de ver que o surpreendera. Algo se suavizou no rosto de Bowman, e ele olhou para ela com um interesse ardente que provocou uma misteriosa aceleração dentro dela.
– Basta de destruir coisas – prometeu.
– Está bem então.
Ela levantou o capuz de sua capa curta e seguiu para a escada que levava aos jardins.
Em poucos passos largos, Bowman a alcançara.
– Pegue meu braço – aconselhou ele. – Os degraus podem ser escorregadios.
Hannah hesitou antes de aceitar, sua mão nua deslizava sobre a manga dele, pousando suavemente nos músculos que sentia por baixo do tecido. Quando procurara não acordar Natalie mais cedo, acabara se esquecendo de pegar as luvas.
– Lady Natalie teria ficado aborrecida? – perguntou Bowman.
– Com relação à xícara quebrada? – Hannah pensou por um instante. – Creio que não, ela provavelmente teria rido, para agradá-lo.
Ele abriu um sorriso meio de lado.
– Não há nada de errado em me agradar, Srta. Appleton. Isso me deixa muito feliz e um pouco mais controlável.
– Não tenho nenhuma vontade de tentar controlá-lo, Sr. Bowman. Não estou certa de que valha o esforço.
O sorriso dele desapareceu e seu queixo se retesou, como se ela tivesse tocado num assunto delicado.
– Vamos deixar para lady Natalie, então.
Atravessaram uma abertura em uma antiga cerca de teixo e seguiram por um caminho de cascalhos. Os arbustos bem aparados e a vegetação arredondada se assemelhavam a gigantescos bolos confeitados. Sons agudos de pica-pau vinham do bosque ali perto. Um tartaranhão-azulado voava próximo ao chão, as asas tensionadas em um amplo V enquanto procurava por presas.
Embora fosse bastante agradável segurar o braço firme e forte de Bowman, Hannah, relutante, recolheu a sua mão.
– Agora – disse Bowman calmamente –, conte-me o que pensa sobre minha opinião a respeito de lady Natalie.
– Não tenho dúvidas de que gosta dela. Acho que está disposto a se casar com Natalie porque ela se ajusta às suas necessidades. É óbvio que ela ajudará a abrir caminho para você na sociedade, lhe dará filhos de cabelos claros e é polida o suficiente para fingir que não viu nada quando você a trair.
– Por que está tão certa de que vou traí-la? – perguntou Bowman, soando mais curioso que indignado.
– Tudo o que você demonstrou até agora confirma que não é capaz de ser fiel.
– Posso ser, se encontrar a mulher certa.
– Não, você não seria – disse ela com firmeza. – Ser ou não fiel não tem nada a ver com a mulher, depende inteiramente de seu caráter.
– Meu Deus, você é mesmo cheia de opiniões. Deve aterrorizar todos os homens que conhece.
– Não conheço muitos homens.
– Isso explica, então.
– Explica o quê?
– Por que você nunca foi beijada antes.
Hannah parou de repente e virou para encará-lo.
– Por que você... como você...
– Quanto mais experiência um homem tem – disse ele –, mais facilmente pode detectar a falta dela em outra pessoa.
Tinham chegado a uma pequena clareira. No centro, havia uma fonte em forma de sereia, rodeada por um círculo de bancos de pedra baixos. Hannah subiu em um dos bancos e caminhou por ele lentamente, então saltou o pequeno espaço até o banco seguinte.
Bowman a seguiu, andando ao lado dos bancos enquanto ela caminhava em círculo sobre eles.
– Então o seu Sr. Clark nunca tentou nenhum avanço para cima de você?
Hannah balançou a cabeça, esperando que ele atribuísse seu rosto mais corado à temperatura fria.
– Ele não é meu Sr. Clark. Quanto a tentar algum avanço... não tenho certeza absoluta... Uma vez, ele... – Então, ao perceber o que estava prestes a confessar, fechou a boca depressa.
– Ah, não, você não pode deixar isso assim no ar. Conte-me o que ia dizer.
Os dedos de Bowman deslizaram sob o cinto de tecido do vestido dela, e ele a puxou com firmeza, forçando-a a parar.
– Não – disse ela ofegante, franzindo a testa com a vantagem de ângulo que tinha por estar em cima do banco.
Bowman colocou as mãos na cintura de Hannah e a levou para o chão. Então a deixou ali diante dele, suas mãos segurando-a de leve pelos quadris.
– O que ele fez? Disse alguma coisa lasciva, tentou olhar dentro do seu corpete?
– Sr. Bowman – protestou ela, fechando a cara inutilmente. – Há cerca de um mês, o Sr.
Clark estava estudando um livro de frenologia, e perguntou se podia sentir meu...
Bowman tinha congelado, os olhos ardentes ligeiramente arregalados.
– Seu o quê?
– Meu crânio. – Ao notar a falta de expressão no rosto dele, Hannah começou a explicar. – A frenologia é a ciência que cuida de analisar a forma do crânio de alguém e...
– Sim, eu sei, acredita-se que cada medida e reentrância signifique alguma coisa.
– Sim. Então permiti que ele avaliasse minha cabeça e fizesse um gráfico de todas as formas que poderiam revelar meus traços de caráter.
Bowman parecia muito interessado.
– E o que Clark descobriu?
– Parece que eu tenho um grande cérebro, uma natureza afetuosa e constante, uma tendência a julgar rápido demais e a capacidade de me apegar com intensidade. Infelizmente, há também um ligeiro estreitamento na parte de trás do meu crânio que indica propensões criminais.
Ele riu alto.
– Eu devia ter imaginado, os que parecem inocentes são sempre aqueles capazes de fazer o pior. Venha, deixe-me sentir. Quero saber o formato de uma mente criminosa.
Hannah se afastou rapidamente enquanto ele tentava alcançá-la.
– Não me toque!
– Você já deixou um homem acariciar seu crânio – disse ele, seguindo-a enquanto ela recuava. – Agora não faz diferença se deixar outro fazer o mesmo.
Ela percebeu que ele estava brincando com ela. Embora fosse totalmente impróprio, ela sentiu um risinho desafiar toda a sua cautela.
– Examine sua própria cabeça – gritou ela, fugindo para o outro lado da fonte. – Tenho certeza de que há várias protuberâncias criminais aí.
– Os resultados seriam distorcidos – disse ele. – Recebi muitos tapas na cabeça durante minha infância. Meu pai dizia aos meus professores que era bom para mim.
Embora as palavras tivessem sido pronunciadas com leveza, Hannah parou e olhou para ele com um lampejo de compaixão.
– Pobre garoto.
Bowman parou em frente a ela novamente.
– De forma alguma. Eu merecia. Sou terrível desde que nasci.
– Nenhuma criança é terrível sem motivo.
– Ah, eu tinha um motivo. Como eu não tinha esperança de me tornar o modelo que meus pais esperavam, resolvi tomar o caminho oposto. Tenho certeza de que apenas a intervenção da minha mãe impediu meu pai de me amarrar a uma árvore junto à estrada com um bilhete com os dizeres: “Levem para o orfanato”.
Hannah abriu um ligeiro sorriso.
– Seu pai está satisfeito com algum dos filhos?
– Não especificamente. Mas ele parece ter grandes expectativas com relação ao meu cunhado, Matthew Swift. Mesmo antes de se casar com Daisy, Swift se tornara um filho para meu pai. Trabalhava para ele em Nova York. É mesmo um homem excepcionalmente paciente esse nosso Sr. Swift, ou não teria sobrevivido por tanto tempo.
– Seu pai tem temperamento forte?
– Meu pai é o tipo de homem que atrairia um cachorro com um osso e, quando o bicho estivesse ao alcance, bateria nele com o osso. E ficaria furioso se o cachorro não corresse depressa para ele quando voltasse a chamá-lo.
Bowman ofereceu o braço à Hannah mais uma vez, e ela o aceitou enquanto voltavam para a mansão.
– Seu pai arranjou o casamento entre sua irmã e o Sr. Swift? – perguntou ela.
– Sim. Mas de alguma forma eles parecem ter se apaixonado.
– Isso acontece às vezes – disse ela sabiamente.
– Só porque algumas pessoas, quando confrontadas com o inevitável, convencem-se de que gostam de alguma coisa apenas para tornar a situação palatável.
Hannah estalou a língua.
– Você é um cínico, Sr. Bowman.
– Um realista.
Ela lançou-lhe um olhar curioso.
– Acha que pode um dia chegar a se apaixonar por Natalie?
– Talvez eu pudesse vir a gostar dela – disse ele casualmente.
– Estou falando de amor verdadeiro, do tipo que faz você sentir impetuosidade, alegria e desespero ao mesmo tempo. Aquele amor que o inspiraria a fazer qualquer tipo de sacrifício pelo bem de outra pessoa.
Um sorriso debochado curvou os lábios dele.
– Por que eu iria querer me sentir assim com relação à minha esposa? Isso arruinaria um casamento perfeitamente bom.
Atravessaram o jardim de inverno em silêncio, enquanto Hannah se angustiava com a certeza de que ele era ainda mais perigoso, mais errado para Natalie do que ela avaliara antes. Natalie acabaria ferida e desiludida por um marido em quem nunca poderia confiar.
– Você não presta para Natalie – ouviu-se dizer, arrasada. – Quanto mais conheço você, mais tenho certeza disso. Gostaria que a deixasse em paz, que arrumasse outra filha de nobre como presa.
Bowman parou com ela ao lado da cerca viva.
– Sua infamezinha arrogante – disse ele com calma. – Não pude escolher minha presa. Estou só tentando aproveitar da melhor forma o que tenho. E se lady Natalie me aceitar, não cabe a você objetar.
– Meu afeto por ela me dá o direito de dizer alguma coisa...
– Talvez não seja afeição. Tem certeza de que não está com ciúme?
– Ciúme? De Natalie? Você é louco de pensar isso...
– Ah, eu não sei – disse ele com implacável suavidade. – É possível que você esteja cansada de ficar à sombra dela, de ver sua prima com toda aquela elegância, sendo admirada e cortejada enquanto você fica no canto da sala com as viúvas e as damas que ninguém chama para dançar.
Hannah explodiu de raiva, indignada, cerrando e erguendo um dos punhos como se quisesse acertá-lo.
Bowman segurou o pulso de Hannah facilmente, passando de leve um dedo sobre os nós dos dedos dela. A risada debochada dele escaldou seus ouvidos.
– Veja – disse ele, dobrando o polegar dela sobre os outros dedos. – Nunca tente acertar alguém com o polegar estendido... você vai quebrá-lo assim.
– Solte-me – gritou ela, puxando com força o pulso preso.
– Você não ficaria tão zangada se eu não tivesse tocado num ponto fraco seu – provocou ele.
– Pobre Hannah, sempre parada no canto, esperando a sua vez. Vou lhe contar uma coisa... você é mais do que alguém como Natalie, com sangue azul ou não. Você foi feita para algo muito melhor...
– Pare com isso!
– Uma esposa por conveniência e uma amante por prazer. Não é assim que a nobreza faz?
Hannah ficou rígida, ofegante, quando Bowman a puxou para junto de seu físico grande e forte. Ela parou de lutar, reconhecendo que tais esforços eram inúteis contra a força dele.
Desviou o rosto de Bowman e estremeceu ao sentir a boca quente dele roçar a curva de sua orelha.
– Eu deveria fazer de você minha amante – sussurrou Bowman. – Linda Hannah. Se você fosse minha, eu a deitaria em lençóis de seda e a envolveria com cordões de pérolas, e lhe daria mel em uma colher de prata. É claro que você não poderia fazer todos esses seus julgamentos de moral se fosse uma mulher sem virtude... mas você não se importaria. Porque eu lhe daria prazer, Hannah, todas as noites, a noite inteira, até você esquecer seu próprio nome... Até estar disposta a fazer coisas que a chocariam à luz do dia... Eu a corromperia da cabeça até seus inocentes dedos dos pés...
– Ah, eu o desprezo – gritou ela, retorcendo-se impotente contra ele. Começara a sentir um medo real, não só por ele segurá-la com força e dizer todas aquelas palavras, mas também pelas ondas de calor percorrendo seu corpo.
Depois disso, ela nunca poderia encará-lo de novo – o que provavelmente era o que ele pretendia. Um som de súplica escapou de sua garganta quando ela sentiu um beijo delicadamente curioso por baixo da orelha.
– Você me quer – murmurou ele. Em uma desconcertante mudança de humor, ele ficou carinhoso, deixando seus lábios vagarem lentamente pela lateral do pescoço dela. – Admita, Hannah... eu mexo com suas tendências criminosas e você com certeza desperta o pior em mim.
– Ele correu a boca pelo pescoço dela, parecendo saborear os movimentos rápidos e instáveis de sua respiração. – Beije-me – sussurrou ele. – Só uma vez, e eu a deixo ir.
– Você é um libertino desprezível e...
– Eu sei. Tenho vergonha de mim mesmo. – Mas não soava nem um pouco envergonhado. E
não afrouxou as mãos. – Um beijo, Hannah.
Ela podia sentir sua pulsação reverberando por toda parte, o ritmo sanguíneo se assentando firme em sua garganta e em todos os lugares mais profundos de seu corpo. E até mesmo em seus lábios, a superfície delicada tão sensível que o simples toque da respiração já era excruciante.
Todos os lugares contra os quais se encostavam estavam frios, assim como o espaço entre suas bocas onde a fumaça de suas exalações se misturava. Hannah olhou para o rosto coberto pelas sombras dele e pensou, zonza: Não faça isso, Hannah, não faça. Mas acabou fazendo assim mesmo, erguendo-se na ponta dos pés para levar os lábios trêmulos aos dele.
Bowman, então, a envolveu, prendendo-a com os braços e os lábios, provando avidamente o seu sabor. Ele a puxou ainda mais para perto, até um de seus pés ficar entre os dela, e os seios dela se comprimiam firmes contra seu peito. Era mais do que um beijo... era uma frase de beijos ininterruptos, as sílabas quentes e doces de lábios e língua deixando-a inebriada pelas sensações.
Ele levou uma das mãos até o rosto dela, acariciando com uma delicadeza que provocou um suave arrepio pelos ombros e costas dela. As pontas dos dedos dele exploravam a linha do queixo dela, o lóbulo de sua orelha, o rosto ruborizado.
Bowman ergueu a outra mão, envolvendo o rosto dela no gentil apoio de seus dedos, enquanto os lábios dele deslizavam pelo rosto de Hannah... um roçar suave em suas pálpebras, uma carícia no nariz, uma última mordida persistente em sua boca. Ela inspirou um pouco daquele ar frio de inverno, bem recebido em seus pulmões.
Quando finalmente olhou para ele, Hannah esperava que parecesse presunçoso ou arrogante.
Mas, para sua surpresa, o rosto dele estava tenso, e havia uma inquietação em seus olhos.
– Você quer que eu me desculpe? – perguntou ele.
Hannah afastou-se dele, esfregando os braços sensíveis sob as mangas. Sentia-se constrangida pela intensidade de seu próprio desejo de aconchegar-se contra a calorosa e convidativa rigidez dele.
– Não vejo sentido nisso – disse ela em voz baixa. – Você não estaria sendo sincero mesmo.
Então, virou de costas e voltou para a mansão a passos rápidos, rezando silenciosamente para que ele não a seguisse.
E sabendo que qualquer mulher tola o suficiente para se envolver com ele não se sairia melhor do que a xícara de chá quebrada no pátio.
CAPÍTULO 7
Quando Hannah chegou ao hall de entrada, o ar quente fez suas bochechas frias arderem. Ela seguiu para os fundos do saguão de entrada, tentando evitar a multidão de criados e convidados recém-chegados. Era um grupo próspero, ricamente vestido, as damas com suas joias brilhantes, usando capas e mantos de pele.
Natalie acordaria em breve, e ela costumava começar o dia tomando chá na cama. Com tamanha agitação, Hannah não achava que conseguiriam chamar uma criada. Pensou em ir à sala de café da manhã buscar uma xícara de chá para Natalie e levá-la até lá em cima ela mesma. E
talvez uma para lady Blandford...
– Srta. Appleton. – Uma voz vagamente familiar veio da multidão, e um cavalheiro se aproximou para cumprimentá-la.
Era Edward, lorde Travers. Hannah não esperava que ele fosse passar o feriado em Stony Cross Park. Sorriu calorosamente para ele, a pressão agitada em seu peito diminuía aos poucos.
Travers era um homem confortavelmente fechado, seguro de si mesmo e de seu lugar no mundo, educado até a raiz dos cabelos. Ele era tão conservador nos modos e na aparência que era quase surpreendente ver de perto que seu rosto ainda não tinha marcas e que não havia nenhum fio grisalho em seu cabelo castanho bem curto. Travers era um homem forte, honrado, e Hannah sempre gostara imensamente dele.
– Milorde, como é bom vê-lo aqui.
Ele sorriu.
– E encontrá-la, resplandecente, como sempre. Espero que esteja bem. E os Blandfords e lady Natalie?
– Sim, estamos todos muito bem. Não creio que lady Natalie soubesse de sua iminente chegada, ou teria mencionado isso para mim.
– Não – admitiu Travers –, eu não havia planejado vir até aqui. Meus parentes em Shropshire estavam me esperando. Mas receio que o convite de lorde Westcliff para vir a Hampshire tenha me convencido. – Então fez uma pausa com ar sério. – Fiquei sabendo sobre os planos de lorde Blandford com relação à sua filha e... o americano.
– Sim. Sr. Bowman.
– Meu desejo é ver lady Natalie bem e feliz – disse Travers em voz baixa. – Não consigo entender como Blandford poderia pensar que isso seria o melhor para ela.
Como não poderia concordar sem criticar o tio, Hannah murmurou cautelosamente:
– Também tenho minhas preocupações, meu senhor.
– Com certeza lady Natalie faz confidências a você... O que ela disse sobre o assunto? Ela gosta desse americano?
– Ela está disposta a considerar a união para agradar lorde Blandford – admitiu Hannah. – E
também... O Sr. Bowman não deixa de ter um certo apelo. – Ela parou e piscou quando viu Rafe Bowman no outro lado do hall de entrada, conversando com o pai. – Na verdade, o Sr. Bowman está de pé bem ali.
– Ele é o homem baixo e robusto? – perguntou Travers, esperançoso.
– Não, meu senhor, esse é o Sr. Bowman pai. Seu filho, o mais alto, é o cavalheiro de quem lorde Blandford deseja que lady Natalie fique noiva.
Em um relance, Travers viu tudo o que precisava saber. Rafe Bowman tinha uma aparência impressionante, sua postura desleixada não conseguia esconder o corpo esguio e em forma. Seu cabelo escuro era cheio e estava bagunçado pelo vento, sua pele exibia uma cor saudável graças ao tempo passado ao ar livre. Os olhos, escuros como carvão, corriam pela sala descontraidamente, enquanto um sorriso discreto e implacável curvava seus lábios. Ele parecia tão predatório que a lembrança de sua gentileza momentânea era ainda mais surpreendente para Hannah.
Para alguém como lorde Travers, um rival como Bowman era o pior pesadelo.
– Céus – Hannah o ouviu murmurar suavemente.
– É.
Evie entrou no salão de baile carregando um pesado cesto de duas alças.
– Aqui estão os ú-últimos – disse ela, tendo acabado de sair da cozinha, onde ela e duas criadas enchiam pequenos cones de papel com nozes e frutas secas e os fechavam com fitas vermelhas. – Espero que isso seja suficiente, considerando-se que é uma á-árvore tão g-grande. – Ela parou e encarou Annabelle com um olhar perplexo. – Onde está Lillian?
– Aqui – a voz abafada de Lillian veio da árvore. – Estou arrumando a saia da árvore. Não que isso importe, já que dificilmente alguém poderá vê-la.
Annabelle sorriu, ficando na ponta dos pés para amarrar uma pequena boneca de pano no ramo mais alto que podia alcançar. Usando um vestido branco de inverno, com seu cabelo cor de mel preso em cachos no alto da cabeça e as bochechas rosadas pelo esforço, ela parecia um anjo de Natal.
– Você acha que devíamos ter escolhido uma árvore tão alta, querida? Temo que levaremos até a noite de Reis para terminarmos de decorá-la.
– Tinha de ser alta – respondeu Lillian, saindo de baixo da árvore.
Com alguns pequenos ramos de pinheiro presos em seu cabelo escuro e pedaços de algodão prensado grudados no vestido, ela não parecia nada como uma condessa. E, pelo largo sorriso em seu rosto, podia-se ver que ela não ligava a mínima.
– O salão é tão imenso, que ficaria estranho ter uma árvore pequena.
Durante os quinze dias seguintes, vários eventos aconteceriam no salão, incluindo uma festa, algumas brincadeiras e um grande baile de véspera de Natal. Lillian estava determinada a deixar a árvore o mais esplêndida possível, tornando a atmosfera ainda mais festiva. No entanto, decorá-la estava se tornando mais difícil do que imaginara. Os criados estavam tão ocupados com o trabalho doméstico que nenhum deles podia ajudá-la em tarefas extras. E como Westcliff proibira Lillian e suas amigas de subirem em escadas ou banquinhos altos, a metade superior da árvore estava, até agora, completamente vazia.
Para piorar as coisas, a nova moda em vestidos era uma manga bem justa, com um decote de ombro o ombro, que não permitia que uma dama alcançasse qualquer coisa acima do nível do ombro. Quando Lillian saiu de baixo da árvore, todas ouviram o som de tecido se rasgando.
– Ah, maldição – exclamou Lillian, torcendo-se para ver o buraco aberto sob a manga direita.
– Esse é o terceiro vestido que rasgo esta semana.
– Não gosto deste novo estilo de manga – comentou Annabelle com pesar, flexionando os braços graciosos em sua limitada amplitude de movimento. – É muito irritante não conseguir levantar os braços direito. E é desconfortável segurar Isabella quando o tecido prende meu ombro assim.
– Vou procurar a-agulha e linha – disse Evie, indo revirar uma caixa de materiais no chão.
– Não, traga a tesoura – disse Lillian com determinação.
Evie sorriu, intrigada, e obedeceu.
– O que devo fazer com ela?
Lillian levantou o braço o máximo que pôde.
– Corte este lado para combinar com o outro.
Sem pestanejar, Evie fez, com cuidado, uma abertura sob a manga e alguns centímetros ao longo da costura, expondo uma parte da pele branca.
– Finalmente livre! – Lillian ergueu os dois braços para o teto como uma adoradora do sol, o tecido aberto nas suas axilas. – Será que eu poderia começar uma nova moda?
– Vestidos com buracos? – perguntou Annabelle. – Duvido, querida.
– É tão bom poder alcançar as coisas. – Lillian pegou a tesoura. – Você quer que eu conserte seu vestido também, Annabelle?
– Não se aproxime de mim com isso – disse Annabelle com firmeza. Ela balançou a cabeça com um sorriso, vendo Evie erguer solenemente os braços para Lillian abrir buracos sob suas mangas. Esta era uma das coisas que mais gostava em Evie, que era tímida e discreta, mas muitas vezes disposta a embarcar em planos e aventuras meio loucos. – Vocês duas perderam a cabeça? – perguntou Annabelle, rindo. – Ah, que má influência ela é para você, Evie.
– Ela é casada com St. Vincent, que é a pior influência possível – protestou Lillian. – Que grande estrago eu poderia fazer depois disso? – Após flexionar e balançar os braços, esfregou as mãos. – Agora, de volta ao trabalho. Onde está a caixa de velas? Vou prender mais deste lado.
– Vamos cantar para passar o tempo? – sugeriu Annabelle, amarrando um anjinho de algodão prensado e um lenço de renda na ponta de um galho.
As três se moviam ao redor da árvore como abelhas, cantando “Doze dias de Natal”. A música e o trabalho progrediram muito bem até chegarem à parte da letra que narra o nono dia.
– Tenho certeza de que são “nove senhoras dançando” – disse Annabelle.
– Não, não, são “nove lordes saltando” – assegurou-lhe Lillian.
– São senhoras, querida. Evie, não concorda?
Evie, sempre conciliadora, murmurou:
– Isto certamente não tem a menor importância. Vamos só escolher um e...
– Os lordes aparecem na canção no décimo dia, entre as senhoras e as servas – insistiu Lillian.
Elas começaram a discutir, enquanto Evie tentava sugerir, em vão, que esquecessem aquela canção em particular e começassem a cantar outras.
Elas estavam tão concentradas no debate, na verdade, que só perceberam que uma pessoa entrara na sala ao ouvirem uma voz feminina rindo.
– Lillian, sua tola, você sempre se confunde, são “dez lordes saltando”.
– Daisy! – gritou Lillian, e foi correndo até a irmã mais nova. Elas eram extremamente próximas, companheiras e parceiras desde a mais remota lembrança. Toda vez que alguma coisa divertida, assustadora, maravilhosa ou terrível acontecia, Daisy sempre era a primeira para quem Lillian queria contar a notícia.
Daisy adorava ler, tendo alimentado sua imaginação com tantos livros que, se fossem colocados um em seguida do outro, provavelmente atravessariam todo o território da Inglaterra.
Ela era encantadora, caprichosa, divertida, mas – e isso era a coisa estranha com relação à Daisy
– também era uma pessoa muito racional, com uma percepção quase sempre precisa das coisas.
Há menos de três meses, Daisy se casara com Matthew Swift, que era, sem dúvida, a pessoa de quem Thomas Bowman mais gostava no mundo. A princípio, Lillian fora firmemente contra a união, sabendo que tinha sido planejada pelo seu pai dominador. Ela temia que Daisy fosse forçada a um casamento sem amor com um jovem ambicioso que não a valorizasse. No entanto, acabou ficando claro que Matthew realmente amava Daisy. E isso conseguira suavizar os sentimentos de Lillian com relação a ele. Ela e Matthew tinham chegado a uma trégua, em razão do afeto que os dois tinham por Daisy.
Lillian atirou os braços em volta do corpo de Daisy, pequeno e esbelto, abraçando-a com força, e depois se afastou para vê-la. Daisy nunca estivera tão bem, o cabelo castanho-escuro preso no topo da cabeça em intrincadas tranças, seus olhos castanhos brilhando de felicidade.
– Agora o feriado pode finalmente começar – disse Lillian com satisfação, e olhou para Matthew Swift, que tinha ido ficar ao lado delas depois de cumprimentar Annabelle e Evie. –
Feliz Natal, Matthew.
– Feliz Natal, milady – respondeu ele, inclinando-se prontamente para beijar a bochecha que ela lhe oferecia.
Ele era um rapaz alto e bem-apessoado, sua herança irlandesa era evidente em sua pele clara, cabelo preto e olhos azul-celeste. Matthew tinha a natureza perfeita para lidar com os temperamentais Bowmans; era diplomático e confiável e tinha um ótimo senso de humor.
– São mesmo dez senhoras dançando? – perguntou Lillian a ele, e Swift sorriu.
– Minha senhora, nunca consegui me lembrar de nenhuma parte dessa música.
– Sabe – disse Annabelle contemplativamente –, sempre entendi por que a canção diz que os cisnes estão nadando e os gansos, chocando. Mas por que, pelo amor de Deus, os lordes estão saltando?
– Estão perseguindo as senhoras – disse Swift de maneira sensata.
– Na verdade, acredito que a música estivesse se referindo à dança Morris. Era comum que dançarinos servissem de entretenimento entre refeições durante longos banquetes medievais – informou Daisy.
– E era uma dança com sapateado? – perguntou Lillian, intrigada.
– Sim, com longas espadas, como os ritos primitivos da fertilidade.
– Uma mulher bem-versada é uma criatura perigosa – comentou Swift com um sorriso, inclinando-se para pressionar os lábios contra o cabelo escuro de Daisy.
Satisfeita pela óbvia afeição dele por sua irmã, Lillian disse sinceramente:
– Que bom que você está aqui, Matthew... Papai tem sido um absoluto tirano, e você é o único que pode acalmá-lo. Ele e Rafe estão se desentendendo, como sempre. E, pelo jeito com que se encaram, fico surpresa por não atearem fogo um ao outro com o olhar.
Swift franziu a testa.
– Vou conversar com seu pai sobre esse casamento ridículo.
– Parece que está se tornando um evento anual – disse Daisy. – Depois de juntar nós dois no ano passado, agora ele quer forçar Rafe a se casar com alguém. O que a mamãe diz sobre isso?
– Muito pouco – respondeu Lillian. – É difícil falar quando se está salivando em excesso.
Mamãe fica totalmente cega com a possibilidade de ter uma nora aristocrática para exibir.
– O que achamos de lady Natalie? – perguntou Daisy.
– Ela é uma garota muito simpática – disse Lillian. – Você vai gostar dela, Daisy. Mas eu tenho vontade de esganar o papai por fazer do casamento uma condição para Rafe ter uma participação na Bowman’s.
– Ele não deveria ter de se casar com ninguém – comentou Swift, franzindo a testa. –
Precisamos de alguém para estabelecer as novas fábricas... e eu não conheço ninguém além do seu irmão que entenda bem do negócio para cuidar disso. Eu não posso fazer isso... Bristol já ocupa todo o meu tempo.
– Sim, bem, papai colocou o casamento com lady Natalie como requisito inegociável – disse Lillian de cara fechada. – Principalmente porque não perde a chance de obrigar qualquer um de seus filhos a fazer algo que não queira, o velho introme...
– Se tem alguém que tem chance de ser ouvido por ele – interrompeu Daisy –, esse alguém é o Matthew.
– Vou procurá-lo agora – disse Matthew. – Ainda não o vi. – Então sorriu para o grupo das antigas Flores Secas e acrescentou, brincando (ainda que com um fundo de verdade): – Fico preocupado em deixar vocês quatro juntas. Não estão planejando nenhum esquema maluco, não é?
– Claro que não! – Daisy deu-lhe um pequeno empurrão em direção à entrada do salão de baile. – Prometo que ficaremos perfeitamente comportadas. Vá encontrar o papai e, se ele estiver explodindo, por favor, o acalme.
– É claro. – Mas, antes de partir, Matthew puxou a esposa de lado e sussurrou: – Por que os vestidos delas têm rasgos?
– Tenho certeza de que há uma boa explicação para isso – murmurou ela, dando um beijo rápido no queixo dele.
Voltando-se para as outras, Daisy abraçou Evie e Annabelle.
– Trouxe um monte de presentes para todos – disse ela. – Bristol é um lugar maravilhoso para fazer compras. Mas foi bastante difícil encontrar presentes para os maridos. Todos parecem ter tudo o que um homem poderia querer.
– Incluindo esposas maravilhosas – disse Annabelle, sorrindo.
– O Sr. Hunt tem um estojo de palitos de dente? – perguntou Daisy. – Comprei um de prata gravado para ele, mas, se ele já tiver, tenho outras opções.
– Acho que não tem – respondeu Annabelle. – Vou perguntar quando ele chegar.
– Ele não veio com você?
O sorriso de Annabelle pareceu sem graça.
– Não, e odeio ficar longe dele. Mas a demanda pela produção de locomotivas se tornou tão grande, que o Sr. Hunt está sempre soterrado de trabalho. Ele está entrevistando pessoas para ajudá-lo, mas, enquanto isso... – Ela suspirou e deu de ombros levemente desolada. – Espero que ele venha depois do fim de semana, se conseguir se liberar.
– E quanto a St. Vincent? – perguntou Daisy a Evie. – Ele já chegou?
Evie balançou a cabeça, a luz atravessava seu cabelo vermelho, emitindo brilhos cor de rubi.
– O pai de St. Vincent está doente, e ele achou que devia visitá-lo. Embora os médicos do duque tenham dito que não é grave, na sua idade nunca se sabe. St. Vincent planeja ficar com ele pelo menos três ou quatro dias, e depois vir direto para Hampshire.
Embora tentasse parecer tranquila, havia um tom de melancolia na sua voz. De todas as antigas Flores Secas e seus companheiros, a ligação de Evie com St. Vincent fora a menos provável, e a mais difícil de entender. Eles não eram de dar demonstrações públicas, mas davam a impressão de que em sua vida particular tinham uma intimidade além do normal.
– Ah, quem precisa de maridos? – disse Annabelle alegremente, passando um braço em volta dos ombros de Evie. – Está claro que temos mais do que o suficiente para nos manter muito ocupadas até eles chegarem.
CAPÍTULO 8
Foi uma tortura particular para Hannah ter sido chamada para ficar como acompanhante e, portanto, forçada a sentar-se ao lado de Natalie durante a soirée musical daquela noite, enquanto Rafe Bowman ocupava o assento do outro lado de Natalie. As harmonias entrelaçadas de dois sopranos, um barítono e um tenor eram acompanhadas por piano, flauta e violinos. Muitas das crianças mais velhas puderam sentar-se em fileiras no fundo da sala. Vestidas com suas melhores roupas, as crianças sentaram-se bem eretas, fazendo o possível para não se inquietarem, sussurrarem ou se mexerem.
Hannah pensou ironicamente que as crianças estavam se comportando muito mais que seus pais. Havia muitos sussurros em meio aos adultos, principalmente nos intervalos entre cada apresentação musical.
Ela observou que Rafe Bowman tratava Natalie com impecável cortesia. Eles pareciam encantados um com o outro. Discutiam as diferenças entre Nova York e Londres, descobriram que tinham gostos semelhantes para livros e música, e os dois amavam cavalgar. Bowman se comportava de maneira tão envolvente com Natalie que, se Hannah não o conhecesse, teria dito que era um perfeito cavalheiro.
Mas ela sabia que o conhecia bem.
E Hannah percebeu que era apenas uma das muitas pessoas na sala atentas às interações entre Bowman e Natalie. Havia os Blandfords, é claro, e os pais de Bowman. Até mesmo lorde Westcliff de vez em quando olhava para o casal com sutil especulação, mantendo um discreto sorriso nos lábios. Mas a pessoa que mais prestava atenção era lorde Travers, que tinha a face tensa e os olhos azuis inquietos. Hannah sentiu o coração doer um pouco ao perceber que havia ali um homem que gostava muito de Natalie e que, com uma pequena brecha, a amaria intensamente. E, no entanto, tudo indicava que ela provavelmente escolheria Bowman.
Natalie, você não é nem de longe tão sábia quanto pensa, pensou lamentando-se. Fique com o homem que faria sacrifícios por você, que a amaria por quem você é e não pelo que ganharia se casando com você.
A pior parte da noite de Hannah veio depois da apresentação, enquanto as pessoas se dispersavam e vários grupos se organizavam em diversos locais da casa. Natalie puxou Hannah num canto, os olhos azuis brilhando de animação.
– Em alguns minutos, vou escapar com o Sr. Bowman – sussurrou ela. – Vamos nos encontrar sozinhos no terraço inferior. Então fique longe de nós, e se alguém perguntar onde estou, dê-lhes alguma desculpa e...
– Não – disse Hannah suavemente, revirando os olhos. – Se for vista com ele, será um escândalo.
Natalie riu.
– O que importa? Provavelmente vou me casar com ele.
Hannah balançou a cabeça, insistindo na sua posição. Suas experiências com Bowman não tinham lhe deixado dúvidas de que ele se aproveitaria de Natalie. E seria culpa de Hannah se permitisse isso.
– Você pode encontrá-lo no terraço inferior, mas eu vou com você.
O sorriso de Natalie desapareceu.
– Agora você resolveu bancar a acompanhante atenta? Não. Estou decidida, Hannah. Sempre fui gentil com você, e você sabe que está em dívida comigo. Então dê uma volta por aí e não faça uma cena.
– Vou protegê-la dele – disse Hannah em tom severo. – Porque se o Sr. Bowman comprometer a sua reputação, você não terá mais escolha. Terá de se casar com ele.
– Bem, eu certamente não vou pensar em noivado sem descobrir se ele beija bem. – Os olhos de Natalie se estreitaram. – Não me aborreça, Hannah, deixe-nos em paz.
Mas Hanna insistiu. Por fim, ela se viu de pé, contrariada, ao lado do terraço inferior, enquanto Natalie e Rafe Bowman conversavam. Bowman parecia não se perturbar com a presença de Hannah. Mas Natalie estava furiosa e disse em voz alta, com tom ligeiramente cáustico, frases como: “Não dá para se falar nada interessante quando há uma acompanhante por perto” ou “É impossível se livrar de certas pessoas”.
Hannah, que até então jamais fora alvo daquele comportamento infantil de Natalie, se sentia perplexa e magoada. Se Hannah estava em dívida com Natalie porque a garota sempre fora gentil com ela, o contrário também era verdade: Hannah também poderia ter tornado a vida de Natalie muito menos agradável.
– Você não acha irritante, Sr. Bowman – disse Natalie de maneira enfática –, as pessoas insistem em ir aonde não são desejadas?
Hannah ficou tensa. Já bastava. Embora tivesse sido encarregada de cuidar de Natalie e acompanhá-la, não permitiria ser tratada daquele jeito.
Antes que Bowman pudesse dizer alguma coisa, Hannah falou friamente.
– Vou deixá-los em paz com a privacidade que tanto desejam, Natalie. Não tenho dúvidas de que o Sr. Bowman aproveitará ao máximo... Boa noite.
Então deixou o terraço inferior, corada de indignação e decepção. Como não poderia se juntar a nenhum dos grupos no andar de cima sem levantar perguntas sobre o paradeiro de Natalie, suas únicas opções eram ir para a cama, ou encontrar algum lugar para se sentar sozinha.
Mas não estava com sono, a raiva ainda fervia dentro dela. Talvez pudesse encontrar um livro para mantê-la ocupada.
Ela foi para a biblioteca, espreitando discretamente pela porta para ver quem estava lá dentro.
Havia um grupo de crianças, a maioria delas sentada no chão, enquanto um senhor de idade barbudo estava sentado em uma cadeira estofada. Ele segurava um pequeno livro gravado em dourado nas mãos, contraindo os olhos por trás dos óculos.
– Leia, vovô – exclamou uma criança.
– Continue! Você não pode parar assim – insistiu outra.
O velho suspirou.
– Quando começaram a usar letras tão pequenas? E por que a luz aqui é tão fraca?
Hannah sorriu solidariamente e entrou na sala.
– Posso ajudar, senhor?
– Ah, sim. – Com um olhar agradecido, ele se levantou da cadeira e estendeu o livro para ela.
Era uma obra de Charles Dickens intitulada Um conto de Natal. Publicada dois anos antes, a história da redenção tinha sido uma sensação instantânea, e dizia-se que reavivara a alegria das pessoas mais céticas com relação ao Natal e a todas as suas tradições. – Você se importaria de ler um pouco? – perguntou o senhor. – Isso cansa tanto meus olhos. E eu gostaria de me sentar ao lado do fogo e terminar minha bebida.
– Eu adoraria, senhor. – Hannah, então, pegou o livro e olhou meio de lado para as crianças.
– Posso ler?
Todos gritaram imediatamente.
– Sim!
– Não perca a página, senhorita!
– O primeiro dos três espíritos chegou – disse um dos meninos.
Hannah sentou-se na cadeira, encontrou a página correta e começou.
“É você, senhor, o espírito que me anunciaram?”, perguntou Scrooge.
“Sim.”
A voz era suave e gentil. Singularmente baixa, como se, em vez de estar tão perto dele, o espírito estivesse bem longe.
“Quem ou o que é você?”
“Sou o Fantasma dos Natais Passados.”
Hannah olhou ao redor e conteve um sorriso ao ver os rostos fascinados das crianças, e os arrepios encantados que sentiam ao ouvir sua versão de voz fantasmagórica.
Enquanto lia, a magia das palavras de Dickens operou um encanto sobre todos e aliviou a dúvida e a raiva do coração de Hannah. E ela se lembrou de algo que tinha esquecido: o Natal não era apenas um dia. Natal era um sentimento.
Com certeza não teria sido difícil beijar lady Natalie. Mas Rafe evitou tomar tal liberdade, principalmente porque ela parecia tão determinada a levá-lo a isso.
Depois que Hannah deixara o terraço inferior, Natalie parecera constrangida e na defensiva, dizendo que os homens tinham sorte de não precisar de acompanhantes em todos os lugares porque às vezes aquilo podia ser enlouquecedor. E Rafe concordara, falou que devia ser mesmo bastante inconveniente ter alguém todo o tempo ao seu lado, mas dissera que, ao mesmo tempo, a Srta. Appleton lhe parecia uma companhia tolerável.
– Ah, na maioria das vezes Hannah é um amor – disse Natalie. – Ela pode ser bastante burguesa, mas isso era de se esperar. Ela vem do lado pobre da família, e é uma de quatro irmãs solteiras, sem irmãos. Sua mãe já faleceu. Não quero parecer que estou me gabando, mas se eu não tivesse dito a meu pai que queria Hannah como acompanhante, ela teria sofrido anos de trabalho árduo cuidando das irmãs. E, como ela nunca gasta um xelim consigo mesma, pois manda seu subsídio para o pai, eu lhe dou minhas roupas antigas e compartilho quase tudo que é meu.
– Isso é muito generoso de sua parte.
– Não, de jeito nenhum – disse ela. – Eu gosto de vê-la feliz. Talvez eu tenha sido um pouco dura com ela há alguns instantes, mas ela não estava sendo razoável.
– Receio que tenha de discordar – disse Rafe. – A Srta. Appleton é uma boa juíza de caráter.
Natalie sorriu, intrigada.
– Você está dizendo que ela estava correta na avaliação que fez de você? – Ela se aproximou dele com os lábios macios e convidativos. – Que você vai se aproveitar de nossa privacidade?
– Odeio ser previsível – disse ele com pesar, divertindo-se com o biquinho dela. – Portanto...
não. Acho que devemos voltar lá para cima para não provocarmos fofocas.
– Não tenho medo de fofocas – disse ela, colocando a mão em seu braço.
– Então você claramente ainda não fez nada digno de uma fofoca.
– Talvez eu só não tenha sido apanhada – disse Natalie, fazendo-o rir.
Era fácil gostar de lady Natalie, que era esperta e bonita. E não seria difícil levá-la para a cama. Casar-se com ela dificilmente seria um preço alto a pagar para conseguir o negócio que queria com seu pai. Ah, ela era um pouco mimada e impertinente, com certeza, mas não mais do que a maioria das jovens com a sua posição. Além disso, sua beleza, suas conexões e sua linhagem nobre fariam dela uma esposa pela qual outros homens o invejariam.
Enquanto caminhava com ela em direção ao hall da entrada principal, passaram pela porta aberta da biblioteca, onde conversara recentemente com seu pai. Uma cena muito diferente se abria diante de seus olhos agora.
A luz quente da lareira projetava sombras tremulantes nos cantos das paredes, espalhando um suave brilho pela sala. Hannah Appleton estava sentada em uma cadeira grande, lendo em voz alta, cercada por um grupo de crianças que a ouvia avidamente.
Um senhor cochilava junto à lareira com o queixo apoiado no peito. Ele fungava quando, vez ou outra, um garoto travesso estendia o braço para fazer cócegas em seu rosto com uma pena.
Mas o menino logo parou, atraído pela história de Ebenezer Scrooge e a visita que recebeu de um espírito de Natal.
Rafe ainda não tinha lido aquele livro tão popular, mas reconheceu a história depois de ouvir um trecho. Um conto de Natal tinha sido tão citado e discutido que sua crescente fama o aborrecia. Ele fizera pouco do livro, achando que devia ser bobo e sentimental, nada que merecesse seu tempo.
Mas enquanto observava Hannah, seu rosto suave e animado, e ouvia as vívidas inflexões de sua voz, não podia deixar de se sentir envolvido.
Acompanhado pelo Espírito dos Natais Passados, Scrooge se via como fora quando menino, solitário e isolado durante o feriado até sua irmã mais nova ir buscá-lo.
“Sim!”, disse a criança, vibrando de alegria. “Voltaremos de vez para casa. Papai anda tão mais gentil que nosso lar parece o paraíso! Falou comigo tão carinhosamente outro dia, quando eu ia para a cama, que me atrevi a perguntar mais uma vez se você já podia voltar para casa. E
ele disse que sim, que você deveria voltar, e me mandou aqui de carruagem para buscá-lo...”
Ao perceber a presença deles à porta, Hannah ergueu os olhos brevemente. E abriu um rápido sorriso para Natalie. Mas sua expressão era mais cautelosa ao olhar para Rafe. Então, voltou sua atenção para o livro e continuou a ler.
Rafe podia notar aquela mesma atração calorosa e peculiar que sentia cada vez que se aproximava de Hannah. Ela estava adoravelmente desalinhada, sentada naquela cadeira enorme, com um pé com chinelo por baixo do corpo. Ele queria brincar com ela, beijá-la, desmanchar aquele cabelo sedoso e penteá-lo com seus dedos.
– Vamos embora – sussurrou Natalie ao seu lado.
Rafe sentiu uma ligeira irritação. Natalie queria ir a outro lugar para continuar a conversa deles do ponto em que a interromperam, e flertar, e talvez provar um pouco dos prazeres adultos que eram novos para ela, e tão incrivelmente familiares para ele.
– Vamos ouvir por um momento – murmurou ele, guiando-a para a biblioteca.
Natalie era muito esperta para mostrar sua impaciência.
– Claro – respondeu ela, e foi se acomodar graciosamente na cadeira desocupada junto à lareira. Rafe ficou de pé perto dela, apoiando um ombro no console da lareira, e concentrou-se em Hannah, que continuava a ler a história.
Scrooge seguiu a viagem pelo seu passado, incluindo o alegre baile de Fezziwig. Seguiu-se uma cena triste, na qual ele foi confrontado por uma jovem que o amava, mas agora aceitava que o desejo dele por riquezas superasse qualquer outro sentimento.
“...se você estivesse livre hoje, ontem ou amanhã, devo acreditar que escolheria uma moça sem dote?... E se você traísse o princípio que o orienta e a escolhesse, por acaso não sei que se arrependeria logo? Sei disso, por isso o libero. De todo o coração, pelo amor que senti por quem você já foi um dia...”
“Espírito!”, pediu Scrooge com a voz falhando. “Tire-me daqui.”
Rafe não gostava de sentimentalismo. Já tinha visto e vivido o suficiente do mundo para resistir à atração das histórias sentimentais. Mas, à medida que ouvia Hannah, sentia um calor inexplicável se espalhar por ele, que não tinha relação alguma com o fogo crepitante na lareira.
Hannah lia a história de Natal com um prazer e uma convicção inocentes que eram verdadeiros demais para ele resistir. Ele queria ficar sozinho com ela e ouvir sua voz baixa e encantadora por horas. Queria deitar a cabeça no seu colo até sentir a curva da coxa dela contra sua bochecha.
Enquanto Rafe a observava, sentia a aceleração da excitação, o calor crescente da ternura e uma dor provocada pelo desejo. Um pensamento terrível surgiu na sua mente, o desejo de que ela fosse filha de Blandford, e não Natalie. Santo Deus, ele teria se casado com ela na hora. Mas isso era impossível, sem falar que era injusto com Natalie. E pensar nisso o fazia sentir-se como o patife que Hannah o acusara de ser.
Quando Hannah terminou o segundo capítulo e prometeu sorridente às crianças que leria mais na noite seguinte, Rafe teve um sentimento altruísta por alguém pela primeira vez em sua vida... Desejou que Hannah algum dia encontrasse um homem que a amasse.
Depois de elogiar os cantores e músicos por sua ótima performance e levar um grupo de senhoras para tomar chá no salão, Lillian voltou à sala de visitas. Alguns dos convidados ainda estavam reunidos lá, incluindo seu marido, que estava no canto, conversando com Eleanor, lady Kittridge.
Lillian procurou ignorar a pontada fria em seu estômago e foi até Daisy, que acabara de falar com algumas das crianças.
– Olá, querida – disse Lillian, forçando um sorriso. – Gostou da música?
– Sim, muito. – Ao olhar para o rosto dela, Daisy perguntou sem rodeios: – O que aconteceu?
– Não há nenhum problema. Nenhum mesmo. Por que pergunta?
– Sempre que você sorri assim, ou está preocupada com alguma coisa, ou acabou de pisar em algo.
– Eu não pisei em nada.
Daisy olhava para ela, preocupada.
– Então o que é?
– Está vendo aquela mulher com quem Westcliff está conversando?
– A loura bonita com o corpo incrível?
– Sim – respondeu Lillian com amargura.
Daisy esperou pacientemente.
– Desconfio... – começou Lillian, e ficou surpresa ao sentir um nó na garganta e uma pressão quente se acumular por trás dos olhos. Sua desconfiança era terrível demais para ela conseguir pronunciá-la.
Seu marido estava interessado em outra mulher.
Não que fosse acontecer alguma coisa, porque Westcliff era um homem de absoluta honra.
Simplesmente não era da sua índole algum dia trair a esposa, por maior que fosse a tentação.
Lillian sabia que ele sempre seria fiel a ela, pelo menos fisicamente. Mas ela queria seu coração, por inteiro, e ver os sinais de sua atração por outra pessoa fazia com que tivesse vontade de morrer.
Todo mundo dissera desde o início que o conde de Westcliff e uma impetuosa herdeira americana eram o casal mais improvável que se podia imaginar. Mas não demorou muito para Lillian descobrir que, sob o ar reservado de Marcus, havia um homem de paixão, ternura e humor. E, de sua parte, Marcus parecia gostar do seu jeito irreverente e da natureza vibrante. Os últimos dois anos de casamento haviam sido maravilhosos, como Lillian jamais sonhara.
Mas recentemente Westcliff passara a dar notável atenção à lady Kittridge, uma jovem e bela viúva que tinha tudo em comum com ele. Ela era elegante, aristocrática, inteligente e, para completar, se tratava de uma extraordinária amazona conhecida por levar adiante a paixão de seu falecido marido pela criação de cavalos. Os animais dos estábulos de Kittridge eram os descendentes mais bonitos dos melhores cavalos árabes do mundo, com um caráter dócil e um porte espetacular. Lady Kittridge era a mulher perfeita para Westcliff.
No início, Lillian não se preocupara com as interações entre lady Kittridge e seu marido. As mulheres estavam sempre se atirando para cima de Westcliff, que era um dos homens mais poderosos da Inglaterra. Mas eles começaram a se corresponder. E logo depois ele passara a visitá-la, supostamente para aconselhá-la sobre alguns assuntos financeiros. E por fim, Lillian começara a sentir aquelas pontadas de ciúme e insegurança.
– Eu... nunca consegui me convencer de que Marcus é de fato meu – admitiu humildemente para Daisy. – Ele é a única pessoa, além de você, que já me amou de verdade... Ainda parece um milagre ele ter gostado de mim a ponto de querer se casar comigo. Mas agora eu acho... eu temo... que ele possa estar se cansando de mim.
Daisy arregalou os olhos.
– Você está dizendo que acha que ele... e lady Kittridge...
Lillian sentiu os olhos ficarem quentes e embaçados.
– Eles parecem ter muita afinidade – disse ela.
– Lillian, isso é loucura – sussurrou Daisy. – Westcliff a adora. Você é a mãe da filha dele.
– Não estou dizendo que acho que ele é infiel – sussurrou Lillian de volta. – Ele é honrado demais para isso. Mas não quero que ele deseje isso.
– A frequência de suas... bem, das atenções de marido... diminuíram?
Lillian corou um pouco enquanto pensava na pergunta.
– Não, de forma alguma.
– Bem, isso é um bom sinal. Em alguns dos romances que li, o cônjuge infiel dá menos atenção à esposa depois que começa a ter um caso.
– O que mais dizem os romances?
– Bem, às vezes um marido traidor pode usar um novo perfume, ou começar a amarrar a gravata de uma maneira diferente.
Um olhar preocupado franziu a testa de Lillian.
– Nunca noto sua gravata. Vou ter de começar a observá-lo mais de perto.
– É comum também que desenvolva um interesse desagradável pelos horários da esposa.
– Bem, isso não ajuda... Westcliff tem um interesse desagradável pelos horários de todos.
– E quanto a novos truques?
– Que tipo de truques?
Daisy manteve a voz baixa.
– No quarto.
– Ah, Deus. Isso é um sinal de infidelidade? – Lillian lançou-lhe um olhar atônito. – Como os malditos romancistas sabem dessas coisas?
– Converse com ele – insistiu Daisy, com delicadeza. – Conte a ele seus medos. Tenho certeza de que Westcliff nunca faria nada para magoá-la, querida.
– Não, nunca deliberadamente – concordou Lillian, com um frágil sorriso. Ela olhou por uma janela próxima para a noite escura e fria lá fora. – Está ficando mais frio. Espero que neve no Natal, não é mesmo?
CAPÍTULO 9
Embora Hannah e Natalie tivessem tacitamente decidido deixar sua desavença da noite anterior para trás, as coisas entre elas ainda estavam estranhas no dia seguinte. Portanto, Hannah ficou aliviada em não ser incluída quando Natalie e lady Blandford saíram com um grupo de senhoras para um divertido passeio de carruagem pelo campo. Outras mulheres haviam preferido ficar em Stony Cross Park conversando enquanto tomavam chá e faziam trabalhos manuais. Enquanto isso, vários cavalheiros passavam o dia fora em um festival de cerveja em Alton.
Deixada à vontade para cuidar de suas coisas, Hannah explorou a mansão com calma, demorando-se na galeria de arte enquanto observava dezenas de pinturas inestimáveis. Visitou também o pomar, desfrutando do ar temperado pelo aroma de frutos cítricos e de loureiros. Era um lugar maravilhosamente quente, com passagens de ar em grades de ferro que permitiam a entrada do calor vindo de fornos no andar inferior. Estava a caminho do salão de baile, quando foi abordada por um menino que ela reconheceu como uma das crianças para quem tinha lido.
O menino parecia apreensivo e inseguro, seguindo depressa pelo corredor numa linha errática. Ele segurava uma espécie de brinquedo de madeira na mão.
– Olá. Você está perdido? – perguntou Hannah, agachando-se para falar com ele mais de perto.
– Não, senhorita.
– Qual é o seu nome?
– Arthur, senhorita.
– Você não parece muito feliz, Arthur. Algum problema?
Ele assentiu.
– Eu estava brincando com algo que não deveria, e agora a coisa ficou presa e vou apanhar por isso.
– O que é? – perguntou ela, solidária. – Onde você estava brincando?
– Eu vou lhe mostrar.
Ansioso, ele agarrou sua mão e saiu puxando-a.
Hannah foi voluntariamente.
– Aonde estamos indo?
– Para a árvore de natal.
– Ah, bom, eu estava mesmo indo para lá.
Arthur a levou ao salão de baile, que, felizmente para os dois, estava vazio. A árvore de Natal era enorme, repleta de decorações e guloseimas na metade inferior, mas ainda sem enfeites na parte de cima.
– Algo ficou preso na árvore? – perguntou Hannah, perplexa.
– Sim, senhorita, bem ali.
Ele apontou para um ramo acima de suas cabeças.
– Não vejo nada... ah, santo Deus, o que é isso?
Algo escuro e peludo pendia do galho, algo parecido com um ninho. Ou um roedor morto.
– É o cabelo do Sr. Bowman.
Os olhos de Hannah se arregalaram.
– A peruca dele? Mas por quê... como...?
– Bem – explicou Arthur –, eu o vi cochilando no sofá da biblioteca, e seu cabelo estava caindo, e eu pensei que poderia ser divertido brincar com ele. Então comecei a lançá-lo com minha catapulta de brinquedo, mas acabou indo tão alto que prendeu na árvore de Natal, e não consigo alcançá-lo. Eu ia colocá-lo de volta no Sr. Bowman antes que ele acordasse, ia mesmo! –
Ele a encarou, esperançoso. – Você consegue pegar?
Àquela altura, Hannah tinha se virado, coberto o rosto com as mãos, e estava rindo demais para respirar.
– Eu não deveria rir – disse ela, ofegante. – Ah, eu não deveria...
Mas, quanto mais tentava conter o riso, mais ela ria, até que foi forçada a enxugar os olhos na manga do vestido. Quando se acalmou um pouco, olhou para Arthur, que a encarava com a cara amarrada, e isso quase a fez cair na risada de novo. Como corria o risco de levar umas palmadas, ele não achava a situação nem um pouco divertida.
– Perdoe-me – conseguiu dizer ela. – Pobre Arthur. Pobre Sr. Bowman! Sim, vou pegar, não importa o que eu tenha de fazer.
A peruca tinha de ser recuperada, não só pelo bem de Arthur, mas também para salvar o Sr.
Bowman do constrangimento.
– Já tentei a escada – disse Arthur. – Mas mesmo no alto, ainda não consigo alcançar.
Hannah olhou para a escada ali perto para avaliar a situação. Era uma escada extensível, uma estrutura em A composta de dois conjuntos de degraus com um terceiro, extensível, apoiado entre eles. Dava para deslizar a parte do meio para cima ou para baixo para ajustar a elevação. E
já tinha sido erguida até a altura máxima.
– Você não é muito alta – disse Arthur, com ar de dúvida. – Acho que também não consegue alcançar.
Hannah sorriu para ele.
– Eu posso ao menos tentar.
Juntos, eles reposicionaram a escada perto de um dos nichos com assento que havia na parede. Hannah tirou os sapatos. Tomando cuidado para não pisar na bainha de suas próprias saias, subiu corajosamente a escada calçada apenas com sua meia, hesitando por um segundo antes de continuar. Cada vez mais alto, até chegar ao topo da escada. Ela esticou o braço para pegar a peruca, mas percebeu, com desânimo, que o objeto estava aproximadamente 15
centímetros fora de seu alcance.
– Maldição – murmurou ela. – Por pouco não consigo pegar.
– Não caia, senhorita – disse Arthur. – Talvez você deva descer agora.
– Não posso desistir ainda. – Hannah olhou da escada para a base saliente no alto do nicho da parede. Ficava cerca de trinta centímetros acima do degrau superior da escada. – Se eu estivesse de pé naquela beirada, acho que poderia alcançar a peruca do Sr. Bowman – calculou.
Então com cuidado, ela se esticou e passou para a beirada, arrastando com ela a sua saia.
– Eu não desconfiava que damas da sua idade sabiam escalar – comentou Arthur, parecendo impressionado.
Hannah abriu um sorriso melancólico. Com muita atenção, ela se levantou e estendeu a mão em direção às mechas da desafortunada peruca. Mas, para sua decepção, ainda estava longe.
– Bem, Arthur, a má notícia é que ainda não posso alcançá-la. A boa é que você tem uma catapulta muito eficiente.
O garoto soltou um suspiro.
– Vou levar uma surra.
– Não necessariamente. Pensarei em alguma maneira de recuperá-la. Enquanto isso...
– Arthur! – Outro garoto apareceu na entrada do salão de baile. – Todos estão procurando por você – disse ele sem fôlego. – Seu professor falou que você está atrasado para as aulas, ele está ficando cada vez mais irritado!
– Ah, raios – murmurou Arthur. – Tenho que ir, senhorita. Você consegue descer daí?
– Sim, ficarei bem – respondeu Hannah. – Vá, Arthur, não se atrase para as aulas.
– Obrigado – gritou ele, e saiu correndo da sala.
O som da voz de seu companheiro veio lá do corredor:
– Por que ela está lá em cima...?
Hannah avançou lentamente para a escada. No entanto, antes que pudesse subir de volta, a extensão do meio desabou, um claque-claque-claque alto ecoou pelo salão de baile. Atônita, Hannah ficou olhando para a escada em forma de A, que agora estava muito, muito abaixo dela.
– Arthur? – chamou ela, mas não houve resposta.
Hannah, então, percebeu que estava em apuros.
Como sua manhã tranquila fora acabar assim, com ela presa no alto do salão de baile sem ter como descer, num dia em que a mansão estava quase vazia? Na tentativa de salvar o Sr. Bowman de um constrangimento, acabara se colocando em uma situação embaraçosa. Quem quer que a encontrasse certamente não manteria o ocorrido em segredo, e a história seria repetida infinitamente até ela ser motivo de riso de todos os que estavam reunidos ali para o feriado.
Hannah deixou escapar um suspiro.
– Olá? – chamou, esperançosa. – Alguém pode me ouvir?
Nenhuma resposta.
– Bolas – disse com veemência. Era a pior palavra que ela conhecia.
Como parecia que ela ficaria ali por um longo tempo até que alguém aparecesse para resgatá-la, pensou em se sentar na beirada. Mas era bem estreita. Se perdesse o equilíbrio, sem dúvida iria quebrar alguma coisa.
Entediada, envergonhada e ansiosa, ela esperou e esperou, e tinha certeza de que já haviam se passado pelo menos quinze minutos. De vez em quando, ela gritava por ajuda, mas a mansão estava completamente silenciosa.
E, quando já se corroía de frustração e autopiedade, alguém chegou à porta. A princípio, pensou que fosse um criado. Ele estava vestido de um jeito absurdamente informal, com calça preta e as mangas da camisa enroladas, deixando à mostra seus braços fortes. Mas, quando ele entrou na sala com seu jeito desleixado, ela logo reconheceu a maneira como se movia, e fechou os olhos, frustrada.
– Tinha que ser você – murmurou ela.
Ela ouviu seu nome ser pronunciado em tom de gozação, abriu os olhos e viu Rafe Bowman parado abaixo dela. Sua expressão era estranha, uma mistura de divertimento, confusão e algo que parecia preocupação.
– Hannah, mas que diabo você está fazendo aí em cima?
Ela estava angustiada demais para repreendê-lo por usar seu primeiro nome.
– Eu estava tentando alcançar uma coisa – disse ela brevemente. – A escada desmoronou... E
o que você está fazendo aqui?
– Fui recrutado pelas Flores Secas para ajudar a decorar a árvore. Como os criados estão todos ocupados, elas precisavam de pessoas altas que não tivessem problemas para subir escadas.
– Uma pausa irônica. – Você não parece se qualificar por nenhum destes dois critérios, querida.
– Eu subi perfeitamente bem. – Hannah estava vermelha dos pés à cabeça. – Só descer é que acabou se tornando um problema. E não me chame de querida, e... o que você quer dizer com Flores Secas?
Bowman começara a subir a escada.
– Um nome tolo que minhas irmãs e suas amigas deram ao seu pequeno grupo.
– O que você estava tentando alcançar?
– Nada importante.
Ele sorriu.
– Receio que não possa ajudá-la até que me conte.
Hannah queria muito mandá-lo embora dali, e responder que preferiria esperar dias naquela posição a ter de aceitar a ajuda dele. Mas estava se cansando de ficar de pé naquela maldita beirada.
Ao ver a indecisão dela, Bowman disse casualmente:
– Os outros vão acabar chegando. E eu devo lhe dizer que daqui tenho uma excelente visão das suas saias.
Hannah, então, respirou fundo e tentou recolher seu vestido mais para junto do corpo. A tentativa fez com que desequilibrasse um pouco.
Bowman praguejou, deixando de achar graça na mesma hora.
– Hannah, pare. Não estou olhando. Fique quieta, droga. Vou subir para ajudá-la.
– Posso fazer isso sozinha. É só colocar a escada perto de mim.
– De jeito nenhum. Não vou correr o risco de deixar você quebrar o seu pescoço.
Depois de estender a escada até a altura máxima, Bowman subiu com uma rapidez surpreendente.
– Ela pode desmontar de novo – disse Hannah, nervosa.
– Não, não vai. Há suportes de ferro dos dois lados da escada do meio. Provavelmente não estavam bem firmes antes de você subir. É preciso sempre prestar atenção para ver se os suportes estão presos no lugar antes de usar uma coisas dessas.
– Nunca mais pretendo subir em coisa alguma – disse ela com veemente sinceridade.
Bowman riu. Ele estava no alto da escada agora, uma das mãos estendida.
– Agora, devagar, pegue a minha mão e mova-se com cuidado. Você vai colocar seu pé naquele degrau e virar de frente para a parede. Vou ajudá-la.
Enquanto obedecia, ocorreu a Hannah que a logística de descer era um pouco mais difícil do que tinha sido a de subir. Sentiu-se invadida por uma onda de gratidão por Bowman, principalmente porque ele estava sendo muito mais gentil do que ela esperava.
Hannah sentiu a mão forte dele passar firme em volta da sua cintura, enquanto sua voz grave a reconfortava.
– Está tudo bem, estou com você. Agora venha na minha direção e coloque seu pé... não, aí não, mais alto... Sim. Isso mesmo.
Hannah já estava com os dois pés na escada, e ele a guiou para baixo até seus braços se fecharem dos dois lado dela, seu corpo lhe dando firmeza e calor. Ela estava de costas para Bowman, olhando através dos degraus da escada, ele, por trás, pressionava seu corpo contra o dela. Quando ele disse algo, Hannah sentiu a respiração quente em seu rosto.
– Você está a salvo. Descanse um instante. – Ele deve ter sentido o arrepio que correu pelo corpo dela. – Calma. Não vou deixar você cair.
Ela queria dizer que não tinha medo de altura. Era só a estranha sensação de estar suspensa e ainda assim segura, além do delicioso perfume dele, tão refrescante e masculino, e dos músculos que ela podia sentir através do linho fino de sua camisa. Um calor curioso surgia dentro dela, espalhando-se aos poucos.
– A escada vai nos aguentar? – perguntou ela com algum esforço.
– Sim, poderia facilmente aguentar uma meia dúzia de pessoas. – A voz dele era tranquila e reconfortante; suas palavras, uma suave carícia nos seus ouvidos. – Vamos descer um passo de cada vez.
– Sinto cheiro de menta – disse ela com curiosidade, torcendo o corpo o suficiente para olhar melhor para ele.
Um erro.
O rosto dele estava na altura do dela, aqueles olhos tão quentes e escuros, os cílios como seda preta. Um rosto tão forte, talvez um pouco angular, como o esboço de um artista que ainda não foi suavizado. Ela não podia deixar de imaginar o que havia por trás daquela fachada bruta e invulnerável, como ele seria em um momento de ternura.
– Estão fazendo bala de fita na cozinha. – O hálito dele era um sopro quente e doce de menta contra seus lábios. – Comi alguns pedaços quebrados.
– Você gosta de doces? – perguntou ela, insegura.
– Geralmente não. Mas gosto de menta.
Ele pisou em um degrau mais baixo, e ajudou-a a descer também.
– A peruca – protestou Hannah, enquanto descia com ele.
– O quê? – Rafe seguiu seu olhar, viu a peruca de seu pai pendendo de um galho, e quase engasgou. Parou, então, abaixou a cabeça no ombro de Hannah e lutou para conter uma gargalhada que ameaçava derrubá-los da escada. – Era isso que você estava tentando alcançar?
Santo Deus! – Ele a firmou com uma das mãos enquanto ela procurava onde apoiar o pé. –
Deixando de lado a questão de como isso foi parar lá, por que você estava arriscando seu lindo pescoço por um punhado de cabelo morto?
– Queria poupar seu pai do constrangimento.
– Que doce alma você tem – disse ele suavemente.
Hannah, temendo que ele estivesse zombando dela, parou e virou-se para trás. Mas ele estava sorrindo, seu olhar era carinhoso. A expressão dele causou uma série de vibrações quentes no seu estômago.
– Hannah, a única maneira de poupar meu pai do constrangimento é impedindo-o de encontrar essa maldita peruca.
– Não lhe cai muito bem – admitiu ela. – Alguém já falou para ele?
– Sim, mas ele se recusa a aceitar o fato de que há duas coisas que o dinheiro não pode comprar: felicidade e cabelo de verdade.
– É cabelo de verdade – disse ela. – Só não nasce da cabeça dele.
Bowman riu e guiou-a mais um degrau para baixo.
– Por que ele não é feliz? – Hannah se atreveu a perguntar.
Bowman pensou por tanto tempo na pergunta que eles já tinham chegado ao chão quando respondeu.
– Essa é a pergunta que não quer calar: meu pai passou a vida toda buscando o sucesso. E
agora que é mais rico do que Creso, ainda não está satisfeito. Ele possui vários cavalos, estábulos cheios de carruagens, ruas inteiras de edifícios... e mais companhia feminina do que qualquer homem deveria ter... Tudo isso me leva a crer que nada nem ninguém o saciará. E que ele nunca será feliz.
Hannah virou-se para encará-lo de frente, os pés ainda apenas com meias.
– E esse também é o seu destino, Sr. Bowman? – perguntou ela. – Nunca ser feliz?
Ele olhou para ela com uma expressão difícil de interpretar.
– Provavelmente.
– Eu sinto muito – disse ela, com gentileza.
Pela primeira vez desde que conhecera Bowman, ele parecia sem fala. Seu olhar era profundo, escuro e volátil, e ela sentiu seus dedos se fecharem contra o degrau. Hannah, então, foi tomada pela sensação que tinha sempre que estava do lado de fora, exposta ao ar frio e úmido, e entrava para tomar uma xícara de chá açucarado, nessas ocasiões em que o chá estava tão quente que quase doía bebê-lo, mas ainda assim a combinação da doçura e do calor era maravilhosa demais para resistir.
– Meu avô certa vez me disse – contou ela – que o segredo da felicidade é simplesmente parar de tentar.
Bowman continuou a olhar para ela fixamente, como se estivesse determinado a memorizar, absorver algo. Então ela sentiu uma compressão entre os dois como se o próprio ar estivesse empurrando-os para perto um do outro.
– E isso funciona com você? – perguntou ele com voz rouca. – Essa coisa de não tentar?
– Acho que sim.
– Acho que não consigo parar. – Seu tom era reflexivo. – É uma convicção americana, sabe.
A busca da felicidade. Está em nossa Declaração de Independência até.
– Então acho que você deve obedecer, embora eu ache esta lei tola.
Um sorriso rápido cruzou o rosto dele.
– Não é uma lei, é um direito.
– Bem, seja lá o que for, você não pode ir à procura da felicidade como se fosse um sapato que perdeu debaixo da cama. Você já a tem, entende? Só tem que se permitir ser feliz. – Ela fez uma pausa e franziu a testa. – Por que você está balançando a cabeça para mim assim?
– Porque conversar com você me faz lembrar dessas citações que estão sempre bordadas nas almofadas das salas.
Ele estava debochando dela de novo. Se estivesse usando um par de botas resistentes, Hannah provavelmente teria chutado as canelas dele. Depois de fechar a cara, ela foi procurar seus sapatos.
Ao perceber o que ela queria, Bowman se abaixou para pegar as sapatilhas dela. Em um movimento ágil, ele se ajoelhou no chão.
– Deixe-me ajudá-la.
Hannah estendeu o pé, e ele a calçou com cuidado. Ela sentiu o roçar dos dedos dele em seu tornozelo, o fogo suave a percorria, de nervo a nervo, até tomá-la como se seu corpo inteiro estivesse aceso. Sua boca ficou seca. Ela olhou para a amplitude dos ombros dele, a maneira como caíam as pesadas mechas de seu cabelo, o formato de sua cabeça.
Ele apoiou o pé dela no chão e estendeu a mão para pegar o outro. Hannah ficou surpresa com a suavidade de seu toque. Ela não havia pensado que um homem forte daquele jeito pudesse ser tão gentil. Ele colocou o sapato no pé dela, percebeu que a borda superior do couro tinha dobrado na parte de trás, e correu o polegar por dentro para endireitá-la.
Naquele momento, algumas pessoas entraram na sala. O som da conversa feminina parou abruptamente.
Era lady Westcliff, Hannah viu, consternada. O que deviam ter pensado da cena?
– Perdoe-nos – disse a condessa alegremente, olhando desconfiada para o irmão. – Estamos interrompendo algo?
– Não – respondeu Bowman, levantando-se. – Estávamos apenas brincando de Cinderela.
Você trouxe o restante da decoração?
– Trouxemos tudo – veio outra voz, e lorde Westcliff e o Sr. Swift entraram na sala, carregando grandes cestos.
Hannah percebeu que estava no meio de uma reunião particular. Estavam ali também a outra irmã Bowman, a Sra. Swift, lady St. Vincent e Annabelle.
– Convoquei todos para ajudar a terminar a decoração – disse Lillian com um sorriso. – É
uma pena que o Sr. Hunt ainda não tenha chegado... ele dificilmente precisaria de uma escada.
– Sou quase tão alto quanto ele – protestou Bowman.
– Sim, mas você não aceita ordens tão bem quanto ele.
– Isso depende de quem dá as ordens – rebateu.
Hannah interrompeu desconfortavelmente:
– Eu devo ir. Com licença...
Mas, na pressa de ir embora, esqueceu que a escada em forma de A estava bem atrás dela. E, quando se virou, seu pé prendeu nela.
Em um reflexo rápido como um relâmpago, Bowman agarrou-a antes que pudesse cair, e puxou-a contra seu peito. Hannah sentiu os fortes músculos dele se flexionarem sob a camisa.
– Se queria que eu a abraçasse – murmurou ele em voz baixa, provocando-a –, bastava ter pedido.
– Rafe Bowman – repreendeu-o com tom amável a Sra. Swift –, você está fazendo mulheres tropeçarem para chamar sua atenção?
– Quando meus esforços mais sutis falham, sim. – Ele soltou Hannah com cuidado. – Você não precisa sair, Srta. Appleton. Na verdade, seria muito bom contar com mais ajuda.
– Eu não deveria...
– Ah, fique! – disse Lillian entusiasmada.
Annabelle também pediu que ficasse, e teria sido grosseiro Hannah recusar.
– Obrigada, eu fico – disse ela com um sorriso tímido. – E, diferentemente do Sr. Bowman, aceito ordens muito bem.
– Perfeito – exclamou Daisy Swift, entregando à Hannah uma cesta de anjos de pano. –
Porque, à exceção de nós duas, todo mundo aqui gosta de dar ordens.
Era a melhor tarde que Rafe passava em muito tempo. Talvez a melhor de todas. Mais duas escadas foram trazidas. Os homens prendiam velas nos galhos e penduravam ornamentos onde lhes pediam, enquanto as mulheres lhes entregavam os enfeites. Trocavam insultos amistosos e gargalhavam ao compartilharem lembranças de feriados passados.
Rafe subiu na escada mais alta e conseguiu pegar a peruca pendurada antes que alguém a visse. Ele olhou para Hannah, que estava de pé lá embaixo e discretamente jogou-a para ela, que a pegou e guardou-a bem no fundo de uma cesta.
– O que era aquilo? – perguntou Lillian.
– Um ninho de pássaro – respondeu Rafe com tranquilidade, ouvindo em seguida Hannah abafar uma risada.
Westcliff serviu um excelente vinho tinto e passou as taças, insistindo para Hannah pegar uma.
– Talvez eu devesse colocar um pouco de água – disse ela ao conde.
Westcliff parecia horrorizado.
– Diluir um Cossart Gordon 1828? Um sacrilégio! – Ele sorriu para ela. – Primeiro experimente como ele é, Srta. Appleton. E diga-me se não consegue notar os sabores do bordo, frutas e fogueira. Como disse o poeta romano Horácio certa vez: “O vinho traz à luz os segredos ocultos da alma.”
Hannah sorriu para ele e tomou um gole do vinho. O sabor rico e apurado trouxe uma expressão de felicidade ao seu rosto.
– Delicioso – admitiu. – Mas é forte, e posso ter segredos na alma que devem permanecer ocultos.
– Uma taça não vai acabar com todas as suas virtudes, o que eu lamento imensamente. Vá em frente e beba um pouco – murmurou Rafe para Hannah.
Ele sorriu ao vê-la corar. Em seguida pensou que era bom mesmo que Hannah não tivesse ideia de como ele queria provar o vinho dos lábios dela. E também era uma sorte Hannah parecer não ter ideia de quanto ele a desejava.
O que o intrigava era que ela não estava recorrendo a nenhum dos truques que as mulheres normalmente usavam... nada de olhares paqueradores, nem carícias discretas ou comentários sugestivos. Ela se vestia como uma freira de férias, e até o momento não fingira estar impressionada com ele.
Então ele não tinha a menor ideia de por que ela provocava nele todo aquele desejo. E não era um desejo comum, tinha um tempero diferente. Era um calor constante e implacável, forte como a luz do sol, e que o preenchia por inteiro. Quase o deixava zonzo.
Mais parecia uma doença, chegou a pensar.
À medida que bebiam o vinho e continuavam a decorar a árvore, o salão ecoava as risadas, principalmente quando Lillian e Daisy tentavam cantar alguma canção popular de Natal.
– Se esse som fosse produzido por dois pássaros cantantes – disse Rafe a suas irmãs –, eu atiraria logo neles para dar fim ao seu sofrimento.
– Bem, você canta como um elefante ferido – replicou Daisy.
– Ela está mentindo – disse Rafe à Hannah, que estava prendendo guirlandas logo abaixo dele.
– Você não canta mal? – perguntou ela.
– Eu não canto nada.
– Por que não?
– Se alguém não faz algo bem, não deve fazer essa coisa.
– Não concordo – protestou ela. – Às vezes o esforço deve ser feito mesmo que os resultados não sejam perfeitos.
Rafe desceu da escada sorrindo para pegar mais velas e parou para olhar diretamente em seus olhos verdes.
– Você acredita mesmo nisso?
– Sim.
– Eu a desafio, então.
– Você me desafia a quê?
– Cante alguma coisa.
– Agora? – Hannah deu uma risada desconcertada. – Sozinha?
Sabendo que os outros observavam a interação deles com interesse, Rafe assentiu. Ele se perguntava se ela aceitaria o desafio de cantar diante de um grupo de pessoas que mal conhecia.
Achava que não.
Corada, Hannah protestou:
– Não posso fazer isso com você me olhando.
Rafe riu. Ele pegou o feixe de fios e velas que ela lhe estendia e obedientemente subiu na escada. Em seguida torceu um fio ao redor de uma vela e começou a prendê-lo a um ramo.
Suas mãos ficaram paralizadas quando ele ouviu uma voz doce e suave. Nada notável ou lírico. Apenas uma voz feminina agradável, encantadora, perfeita para canções de ninar ou de Natal.
Uma voz que se poderia ouvir por toda a vida.
“Feliz seja o seu Natal
Feliz seja o seu Natal
Feliz seja o seu Natal
E ano novo também
Boas novas trazemos a todos vocês
Feliz seja o seu Natal
E ano novo também.”
Rafe a ouvia, quase sem perceber as duas ou três velas se partindo em sua mão. Aquilo estava ficando ridículo, pensou ele. Se ela de alguma forma se mostrasse mais adorável, cativante ou agradável, algo iria se partir.
Provavelmente o seu coração.
Ele manteve o rosto calmo mesmo enquanto lutava com duas verdades paradoxais – ele não podia tê-la, e não podia deixar de tê-la. Concentrou-se em controlar a respiração, colocar os pensamentos em ordem, afastando aqueles sentimentos indesejados que não paravam de inundá-lo.
Ao terminar o verso, Hannah olhou para Rafe com um sorriso satisfeito, enquanto os outros a aplaudiam e elogiavam.
– Pronto, aceitei seu desafio, Sr. Bowman. Agora você me deve algo em troca.
Que sorriso Hannah tinha. Ele podia sentir faíscas de calor correndo pelo seu corpo. E
precisou de todo seu autocontrole para não olhar para ela como um tolo apaixonado.
– Quer que eu cante alguma coisa? – perguntou ele educadamente.
– Por favor, não – gritou Lillian, ao que Daisy acrescentou: – Eu imploro, não peça isso a ele!
Rafe, então, desceu e foi ficar ao lado de Hannah.
– É só dizer – continuou ele. – Sempre pago minhas dívidas.
– Faça-o posar como uma estátua grega – sugeriu Annabelle.
– Exija que ele lhe faça um l-lindo elogio – sugeriu Evie.
– Hummn... – Hannah o observava, reflexiva, e optou por uma penalidade popular em jogos de salão. – Ficarei com algo seu. Qualquer coisa que esteja carregando agora. Um lenço, ou uma moeda, talvez.
– Sua carteira – sugeriu Daisy entrando na brincadeira.
Rafe enfiou a mão no bolso da calça, onde um pequeno canivete e algumas moedas tilintaram. Lá havia também um outro objeto, uma minúscula figura de metal com menos de cinco centímetros de altura. Sem querer, ele a deixou cair na palma de Hannah.
Ela observou o objeto de perto.
Um soldado de brinquedo?
A maior parte da tinta havia descascado e apenas algumas manchas indicavam suas cores originais. O pequeno soldado de infantaria segurava uma espada. Hannah ergueu os olhos claros e verdes até os dele. De alguma forma, ela parecia entender que o pequeno soldado tinha algum significado secreto. Seus dedos se curvaram como para protegê-lo.
– É para dar sorte? – perguntou ela.
Rafe balançou levemente a cabeça, mal conseguindo respirar enquanto se sentia dividido entre uma sensação prazerosa de rendição e uma dor de arrependimento. Queria pegá-lo de volta.
E queria deixá-lo lá para sempre, seguro com ela.
– Rafe – ouviu Lillian dizer com um tom estranho na voz. – Você ainda carrega isso? Após todos esses anos?
– É só um velho hábito. Não significa nada. – Afastando-se de Hannah, Rafe disse secamente: – Chega dessa tolice, vamos terminar a maldita árvore.
Quinze minutos depois, os enfeites estavam todos no lugar, e a árvore, esplêndida e magnífica.
– Imagine quando todas as velas estiverem acesas – exclamou Annabelle, afastando-se para vê-la. – Vai ser uma visão gloriosa.
– Sim – rebateu Westcliff secamente. – Isso sem mencionar o grande risco de incêndio em Hampshire.
– Você estava absolutamente certa ao escolher uma árvore tão grande – disse Annabelle à Lillian.
– Sim, eu acho... – Lillian parou por um instante ao ver alguém entrar na sala.
Uma pessoa muito alta, com aparência de pirata, que só podia ser Simon Hunt, o marido de Annabelle. Embora Hunt tivesse começado sua carreira trabalhando no açougue do pai, acabara se tornando um dos homens mais ricos da Inglaterra, dono de fundições de locomotivas e de grande parte das ferrovias locais. Ele era o amigo mais próximo de lorde Westcliff, um homem respeitável que apreciava boas bebidas, bons cavalos e esportes que exigiam grande esforço físico. Mas não era nenhum segredo que o que a maior paixão de Simon Hunt no mundo era Annabelle.
– ...acho que – continuou Lillian enquanto Hunt se aproximava em silêncio por trás de Annabelle – a árvore é perfeita. E acho que alguém calculou bem o momento de chegar, tão tarde que não precisará decorar nem um galho sequer.
– Quem? – perguntou Annabelle, tomando um leve susto quando Simon Hunt colocou suas mãos levemente sobre os olhos dela. Sorrindo, ele se inclinou para murmurar algo particular em seu ouvido.
O rosto de Annabelle ficou corado. Ao perceber quem estava atrás dela, estendeu a mão para puxar as dele até seus lábios, e beijou suas mãos, uma de cada vez. Sem dizer nada, ela se virou em seus braços, apoiando a cabeça contra o peito dele.
Hunt a abraçou.
– Ainda estou coberto de poeira da viagem – disse ele com voz rouca. – Mas não podia esperar nem mais um segundo para ver você.
Annabelle assentiu sem falar nada, fechando os braços em torno do pescoço dele. O
momento foi tão espontaneamente terno e apaixonado que provocou um silêncio vagamente constrangedor pela sala.
Depois de beijar o topo da cabeça da esposa, Hunt ergueu os olhos com um sorriso e estendeu a mão para Westcliff.
– É bom estar aqui finalmente – disse ele. – Muita coisa para fazer em Londres... parti deixando uma montanha de tarefas inacabadas.
– Estávamos sentindo muito a sua falta – disse o conde, apertando firmemente a sua mão.
Ainda envolvendo Annabelle com um braço, Hunt cumprimentou cordialmente os outros presentes.
– St. Vincent ainda não chegou? – perguntou Hunt à Evie, e ela balançou a cabeça. – Alguma notícia sobre a saúde do duque?
– Receio q-que não.
Hunt parecia solidário.
– Tenho certeza de que St. Vincent estará aqui em breve.
– E você está entre amigos que a amam – acrescentou Lillian, passando o braço em volta dos ombros de Evie.
– E temos um v-vinho muito bom – disse Evie com um sorriso.
– Aceita uma taça, Hunt? – perguntou Westcliff, indicando a bandeja em uma mesa próxima.
– Obrigado, mas não – disse Hunt afavelmente, passando o braço de Annabelle pelo dele. –
Se nos derem licença, tenho algumas coisas para conversar com minha esposa.
E, sem esperar resposta, arrastou Annabelle do salão de baile com uma pressa que não deixava dúvidas sobre o que aconteceria em seguida.
– Sim, tenho certeza de que vão conversar muito – comentou Rafe, encolhendo-se depois que Lillian cutucou-o com força com o cotovelo.
CAPÍTULO 10
Todas as salas da mansão estavam ocupadas depois do jantar. Alguns convidados jogavam cartas, outros se reuniam ao redor do piano da sala de música e cantavam. Mas o maior grupo sem dúvida estava na sala de estar para um jogo de adivinhações. Seus gritos e risadas ecoavam pelos corredores.
Hannah assistiu às adivinhações por um tempo, apreciando o empenho das equipes que faziam mímicas de palavras ou frases, enquanto outras tentavam adivinhar. Ela notou que Rafe Bowman e Natalie estavam sentados juntos, sorrindo e trocando piadas particulares. Eram um casal que combinava extraordinariamente bem, um tão moreno, a outra tão clara, os dois jovens e atraentes. Olhar para eles deixava Hannah mal-humorada.
Sentiu-se aliviada quando o relógio do canto marcou quinze para as oito. Deixando a sala discretamente, foi para o corredor. Era um alívio tão grande sair daquele cômodo lotado, e não ter mais de sorrir quando não sentia vontade, que soltou um enorme suspiro e se recostou contra a parede de olhos fechados.
– Srta. Appleton?
Os olhos de Hannah logo se abriram. Era Lillian, lady Westcliff, que a seguira até ali.
– Está meio cheio lá dentro, não é? – perguntou a condessa com simpatia.
Hannah assentiu.
– Não gosto de reuniões muito cheias.
– Nem eu – confidenciou Lillian. – Meu maior prazer é relaxar em pequenos grupos com meus amigos, ou, melhor ainda, ficar sozinha com meu marido e minha filha. Você está indo à biblioteca ler para as crianças, não é?
– Sim, milady.
– É muito gentil da sua parte. Ouvi falar que as crianças gostaram muito da sua leitura na noite passada. Posso ir com você até a biblioteca?
– Sim, milady, eu adoraria.
Lillian a surpreendeu entrelaçando os braços com o dela, como se fossem irmãs ou amigas íntimas. E seguiram lentamente pelo corredor.
– Srta. Appleton, eu... ah, deixemos disso, odeio essas formalidades. Podemos usar o primeiro nome?
– Eu me sentiria honrada se me chamasse pelo primeiro nome, minha senhora. Mas não posso fazer o mesmo. Não seria apropriado.
Lillian lançou-lhe um olhar pesaroso.
– Tudo bem, então. Hannah. Eu queria falar com você a noite toda... há algo muito particular sobre o qual quero conversar com você, mas que não deve sair daqui. E eu provavelmente não devia dizer nada, mas preciso. Ou não conseguiria dormir esta noite.
Hannah estava atônita. Além de extremamente curiosa.
– O que, minha senhora?
– A prenda que você pediu ao meu irmão hoje...
Hannah empalideceu um pouco.
– Foi errado? Sinto muito. Eu nunca teria...
– Não, não é isso. Você não fez nada de errado. Foi o que meu irmão lhe deu que achei tão...
bem, surpreendente.
– O soldado de brinquedo? – sussurrou Hannah. – Por que isso a surpreendeu?
Ela não achara assim tão incomum. Muitos homens carregavam pequenos objetos, como mechas de cabelo de entes queridos, amuletos ou talismãs da sorte, como uma moeda ou medalha.
– Esse soldado veio de um conjunto que Rafe tinha quando era criança. Agora que conheceu meu pai, não ficará surpresa em saber que ele era muito rigoroso com os filhos. Pelo menos quando ele estava por perto, o que, graças a Deus, não era frequente. Mas meu pai sempre teve expectativas muito pouco razoáveis com relação aos meus irmãos, sobretudo quanto ao Rafe, que é o mais velho. Papai queria que ele tivesse sucesso em tudo, então o castigava severamente sempre que ele ficava em segundo lugar em qualquer coisa. Mas, ao mesmo tempo, meu pai não queria ser ofuscado, então ele aproveitava todas as oportunidades que tinha para envergonhar ou humilhar o meu irmão quando Rafe de fato era o melhor.
– Ah – disse Hannah baixinho, solidária ao menino que Rafe fora um dia. – Sua mãe não fazia nada para intervir?
Lillian deixou escapar um som de deboche.
– Ela sempre foi uma criatura tola, que se importa mais com festas e status social do que com qualquer outra coisa. Tenho certeza de que ela pensava muito mais em seus vestidos e joias do que em qualquer um dos filhos. Então, o que quer que meu pai decidisse, mamãe estava mais do que disposta a apoiar, desde que ele continuasse pagando as contas.
Depois de uma pausa, o desprezo desapareceu do tom de Lillian, sendo substituído por certa tristeza.
– Nós raramente víamos Rafe. Como meu pai queria que ele fosse um garoto sério e estudioso, nunca podia brincar com as outras crianças. Ele estava sempre com os professores, estudando ou aprendendo esportes e treinando equitação... Nunca tinha um instante sequer de liberdade. Uma das poucas formas de escape de Rafe era o seu conjunto de pequenos soldados...
montava batalhas e combates com eles e, enquanto estudava, alinhava-os em sua mesa para que lhe fizessem companhia. – Um sorriso fraco se abriu em seus lábios. – E Rafe vagava à noite. Às vezes eu o ouvia andar furtivamente pelo corredor, e sabia que estava indo lá embaixo ou lá fora, só para ter a chance de respirar um pouco.
A condessa parou quando se aproximaram da biblioteca.
– Vamos parar aqui por um momento... ainda não são oito horas, e tenho certeza de que as crianças ainda estão se reunindo.
Hannah assentiu sem dizer nada.
– Uma noite – prosseguiu Lillian –, Daisy estava doente, e eles a deixaram no quarto das crianças. Eu tive de dormir em outro quarto, pois receavam que a febre fosse sintoma de alguma doença contagiosa. Eu estava preocupada com a minha irmã, e acordei no meio da noite, chorando. Rafe me ouviu e veio perguntar o que havia acontecido. Eu lhe contei como estava preocupada com Daisy, e também assustada com um terrível pesadelo que tivera. Então Rafe foi até o quarto dele e voltou com um dos seus soldados. Um soldado de infantaria. Ele o colocou na mesa ao lado da minha cama e me disse: “Este é o mais corajoso e forte de todos os meus homens. Ele vai montar guarda aqui, vigiá-la esta noite e afastar todas as suas preocupações e pesadelos. – Um sorriso tomou espontaneamente o seu rosto com a lembrança. – E funcionou.
– Que lindo – disse Hannah suavemente. – Então esse é o significado do soldado?
– Bem, não inteiramente. Veja... – Lillian respirou fundo, como se achasse difícil continuar.
– No dia seguinte, o professor disse ao meu pai que achava que os soldados de brinquedo estavam distraindo Rafe de seus estudos. Portanto, meu pai se livrou de todos eles. Em definitivo. Rafe nunca derramou uma lágrima... mas vi algo terrível em seus olhos, como se algo tivesse sido destruído nele. Então peguei o soldado de infantaria da minha mesa de cabeceira e lhe dei. O único soldado que restou. E eu acho... – ela engoliu em seco, e lágrimas brilharam em seus olhos castanhos – acho que ele o carregou por todos esses anos como se fosse um fragmento de seu coração que queria manter seguro.
Hannah não notou suas lágrimas até sentir que deslizavam pelo seu rosto. Ela as limpou apressadamente, secando-os com a manga da sua roupa. Ela pigarreou; sua garganta doía.
Quando falou, sua voz estava rouca.
– E por que ele entregou o soldado para mim?
A condessa parecia estranhamente aliviada ao vê-la demonstrar sua emoção.
– Não sei, Hannah, cabe a você descobrir o que significa. Mas posso lhe dizer uma coisa: com certeza não foi por acaso.
Depois de se recompor, Hannah entrou na biblioteca ainda um pouco atordoada. As crianças estavam todas lá, sentadas no chão, comendo biscoitos doces e tomando leite morno. Hannah sorriu quando notou que havia mais crianças aglomeradas sob a mesa da biblioteca como se fosse um forte.
Sentou-se, então, na cadeira grande, e cerimoniosamente abriu o livro, mas, antes que pudesse ler uma palavra, um prato de biscoitos foi colocado em seu colo, uma xícara de leite lhe foi oferecida, e uma das meninas colocou uma coroa de papel prateada em sua cabeça. Depois de comer um biscoito e permitir um minuto ou dois de agitação, Hannah acalmou as crianças risonhas e começou a ler.
“Sou o Espírito do Natal Presente”, disse o Espírito. “Olhe para mim.”
Enquanto Scrooge seguia em suas viagens com o segundo Espírito, e eles visitavam a casa humilde mas feliz dos Cratchits, Hannah notou a forma esguia de Rafe Bowman entrando na sala. Ele foi para um canto em meio às sombras e se apoiou lá, observando e escutando. Hannah parou por um momento e olhou para ele. Sentiu um aperto angustiado no coração, uma onda de desejo ardente, e sentiu vergonha por estar sentada ali usando uma coroa de papel. Ela nem imaginava por que Bowman teria ido até ali sem Natalie para ouvir a continuação da história.
Tampouco sabia por que o simples fato de estar na mesma sala que ele era suficiente para seu coração começar a bater como um tear mecânico.
Certamente aqueles sentimentos estavam ligados ao fato de ela ter compreendido que ele não era o farrista mimado e insensível que ela imaginara. Ao menos não inteiramente.
E se isso fosse mesmo verdade... ela teria algum direito de se opor ao seu casamento com Natalie?
Durante os dois dias seguintes, Hannah procurou uma oportunidade de devolver o soldado de brinquedo a Rafe Bowman, mas, com a mansão tão cheia e o Natal chegando, era difícil ter privacidade. Parecia que a corte de Bowman a Natalie transcorria tranquilamente: eles dançavam juntos, caminhavam, e ele virava as páginas da partitura quando Natalie tocava piano. Hannah tentava ser discreta, mantendo distância sempre que possível, ficando quieta quando precisava acompanhá-los.
Parecia que Bowman estava fazendo um grande esforço para se conter perto de Hannah, não precisamente ignorando-a, mas não lhe dando nenhuma atenção especial. Seu interesse inicial por ela havia desaparecido, o que certamente não era uma surpresa. Bowman tinha a beleza radiante de Natalie bem diante dele, e a certeza de poder e riqueza caso se casasse com ela.
– Eu gosto dele – confessou Natalie, com os olhos azuis brilhando de excitação. – É muito inteligente e divertido, e dança divinamente. Acho que nunca conheci um homem que beijasse nem de longe tão bem.
– O Sr. Bowman beijou você? – perguntou Hannah, lutando para manter o tom tranquilo.
– Sim. – Natalie sorriu de forma travessa. – Praticamente tive de encurralá-lo no pátio externo; ele riu e me beijou sob as estrelas. Não há dúvida de que ele vai me pedir em casamento. Eu me pergunto quando e como ele vai fazer isso. Espero que seja à noite. Adoro receber pedidos de casamento ao luar.
Hannah ajudou Natalie a colocar um vestido de inverno de lã azul-clara, com saias pesadas e plissadas, e manto com capuz com pelo branco na borda combinando. Os convidados estavam saindo para um grande passeio de trenó à tarde, viajando através da neve recém-caída até uma propriedade em Winchester para jantar e patinar.
– Se o tempo continuar bom – exclamou Natalie –, vamos voltar para casa sob as estrelas... você pode imaginar algo mais romântico, Hannah? Tem certeza de que não quer vir?
– Certeza absoluta. Quero me sentar junto à lareira e ler a carta que recebi do Sr. Clark. – A carta fora entregue naquela manhã, e Hannah estava ansiosa para lê-la com alguma privacidade.
Além disso, a última coisa que queria ver era Natalie e Rafe Bowman se aconchegando juntos sob um cobertor em um longo passeio de trenó no frio.
– Queria que você fosse ao passeio de trenó – insistiu Natalie. – Não só você se divertiria, como também poderia me fazer o favor de distrair lorde Travers. Parece que toda vez que estou com o Sr. Bowman, Travers tenta se intrometer. É muito irritante.
– Pensei que você gostasse de lorde Travers.
– Gosto. Mas ele é tão fechado! Isso me deixa louca.
– Talvez se você o encurralasse, como fez com o Sr. Bowman...
– Já tentei isso, mas Travers não faz nada. Ele disse que me respeita.
Então, franzindo a testa, Natalie foi se juntar a seus pais e ao Sr. Bowman para o passeio.
Depois que os trenós partiram, com os cascos dos cavalos compactando a neve e o gelo, sinos tilintando nas rédeas, a mansão e os terrenos ficaram tranquilos. Hannah caminhou devagar pela mansão, desfrutando da serenidade dos corredores vazios. Os únicos sons vinham das distantes e abafadas conversas dos criados. Sem dúvida, eles também estavam felizes com a ausência da multidão de convidados pelo resto do dia e da noite.
Hannah chegou à biblioteca, que estava vazia e convidativa, com um ar sugestivo que exalava os aromas dos livros. O fogo na lareira projetava um brilho quente no ambiente.
Sentou-se na cadeira ao lado do fogo, tirou os sapatos e dobrou um pé por baixo de si. Então pegou a carta de Samuel Clark do bolso, rompeu o selo, e sorriu ao ver sua caligrafia familiar.
Era fácil imaginar Clark escrevendo aquela carta, o rosto tranquilo e pensativo, o cabelo claro um pouco bagunçado enquanto se curvava sobre a escrivaninha. Ele perguntava pela sua saúde e pelos Blandfords, e desejava-lhe um feliz feriado. Então passava a descrever seu mais recente interesse sobre transmissão hereditária das características adquiridas como descritas pelo biólogo francês Lamarck, e como isso se interligava com as próprias teorias de Clark de como a informação sensorial repetida pode ser armazenada no tecido cerebral, contribuindo assim para a futura adaptação das espécies. Como de costume, Hannah só tinha entendido metade... Ele teria de lhe explicar aquilo mais tarde de uma forma que ela pudesse compreender mais facilmente.
Como você vê, preciso da sua boa e sensata companhia. Se você estivesse aqui para ouvir meus pensamentos enquanto os explico, eu conseguiria estruturá-los com mais precisão. É só em momentos assim, na sua ausência, que percebo que nada está completo sem você, minha querida Srta. Appleton. Tudo parece errado.
A minha maior esperança é que, quando você voltar, possamos resolver nossas questões mais pessoais. Durante o curso do nosso trabalho, você pôde conhecer meu caráter e meu temperamento. Talvez a essa altura meus escassos encantos tenham exercido alguma impressão em você. Tenho poucos encantos, eu sei. Mas você tem tantos, minha querida, que acho que os seus compensarão a falta dos meus. Espero do fundo do coração que você possa me dar a honra de se tornar minha parceira, companheira e esposa...
Havia mais, mas Hannah dobrou a carta e ficou olhando cegamente para o fogo.
A resposta seria sim, é claro.
Era isso o que você queria, disse a si mesma. Uma oferta honrosa de um homem bom e decente. A vida seria interessante e gratificante. Sua vida seria melhor como esposa de um homem tão brilhante, tendo a oportunidade de conhecer as pessoas dos círculos cultos dos quais ele fazia parte.
Por que, então, sentia-se tão infeliz?
– Por que você está com essa cara séria?
Hannah levou um susto ao ouvir uma voz vindo da entrada da biblioteca. Seus olhos se arregalaram ao verem Rafe Bowman, ali de pé com sua postura desleixada de sempre, com uma das pernas ligeiramente dobrada ao se apoiar contra o batente da porta. Ele estava perturbadoramente pouco vestido, o colete desabotoado, a camisa sem colarinho aberta no pescoço, nenhuma gravata aparente. De alguma forma, o desalinho só o deixava mais bonito, enfatizando a vitalidade masculina que ela achava tão inquietante.
– Eu... eu... por que você está andando por aí vestido de modo inapropriado? – conseguiu perguntar Hannah.
Ele ergueu um dos ombros de um jeito preguiçoso.
– Não há ninguém aqui.
– Eu estou aqui.
– Por que você não foi ao passeio de trenó?
– Eu queria um pouco de paz e privacidade. Por que você não foi ao passeio de trenó? Natalie ficará desapontada... ela estava esperando...
– Sim, eu sei – disse Bowman sem um pingo de remorso. – Mas estou cansado de ser observado como um inseto sob uma lupa. E, ainda mais importante, eu tinha alguns assuntos de negócios para discutir com meu cunhado, que também ficou para trás.
– O Sr. Swift?
– Sim. Analisamos contratos com uma empresa britânica de produtos químicos pesados para fornecimento de ácido sulfúrico e soda cáustica, e depois passamos ao fascinante tema da produção de óleo de palma. – Ele entrou na sala com as mãos casualmente enfiadas nos bolsos. –
Concordamos que em algum momento precisaremos cultivar nossa própria fonte, estabelecendo uma plantação de palmeiras. – Ele ergueu as sobrancelhas. – Quer ir ao Congo comigo?
Ela olhou diretamente em seus olhos cintilantes.
– Eu não iria com você nem até o fim da pista de carruagem, Sr. Bowman.
Ele riu baixinho, examinando-a enquanto ela se levantava para encará-lo.
– Você não respondeu minha pergunta anterior, por que você estava com aquela cara séria?
– Ah, não é nada. – Hannah mexeu agitada no bolso de suas saias. – Sr. Bowman, eu queria lhe devolver isso. – Então tirou de lá o pequeno soldado de brinquedo e estendeu a mão. – Você deve ficar com ele. Eu acho... – Ela hesitou. – ...já passaram por muitas batalhas juntos, você e ele.
Ela não podia deixar de olhar para o pescoço dele, onde a pele parecia macia e dourada. Um pouco mais abaixo, havia uma sombra de pelos onde sua camisa se abria. Hannah sentiu uma agitação quente e desconhecida no estômago. Procurou, então, erguer o olhar, fixando-se em seus olhos escuros e vívidos.
– Se eu pegá-lo de volta – perguntou ele –, ainda lhe devo uma prenda?
Ela sentiu um sorriso querendo se abrir.
– Não tenho certeza, vou ter de pensar nisso.
Bowman estendeu o braço, mas, em vez de pegar o soldado, fechou a mão sobre a dela, prendendo o metal frio entre as palmas dos dois. Então moveu o polegar em uma carícia delicada pelas costas da mão dela. O toque fez com que ela desse um suspiro repentino. Os dedos de Bowman deslizaram para cima para se fechar em torno do pulso dela, puxando-a para junto dele.
Ele baixou o olhar para a carta ainda presa nos dedos de Hannah.
– O que é isso? – perguntou ele, calmo. – O que está preocupando você? Problemas em casa?
Hannah balançou bruscamente a cabeça e forçou um sorriso.
– Ah, nada me preocupa. Recebi uma notícia muito boa. Estou... estou feliz!
Ele lançou um olhar irônico, oblíquo.
– Entendo.
– O Sr. Clark quer se casar comigo – disparou ela.
Por alguma razão, dizer as palavras em voz alta a fez ser invadida por uma onda fria de pânico.
Ele estreitou os olhos.
– Clark pediu você em casamento por carta? Ele não poderia ter se dado ao trabalho de vir aqui pedir pessoalmente?
Embora fosse uma pergunta bastante razoável, Hannah colocou-se na defensiva.
– Acho muito romântico, é uma carta de amor.
– Posso ver?
Ela revirou os olhos.
– O que o faz pensar que eu lhe mostraria algo tão pessoal, e...
Hannah deixou escapar um gemido de angústia quando ele tomou a carta de seus dedos frágeis. Mas ela não tentou pegá-la de volta.
O rosto de Bowman permaneceu inexpressivo enquanto examinava as linhas cuidadosamente escritas.
– Isso não é uma carta de amor – murmurou ele, atirando-a desdenhosamente no chão. – É
um maldito relatório científico.
– Como ousa!
Hannah abaixou-se para pegar a carta, mas ele não a deixou. O soldado de brinquedo também caiu, quicando no tapete macio quando Bowman agarrou-a pelos cotovelos.
– Você não está de fato pensando em aceitar essa imitação fria e lamentável de pedido de casamento?
– Claro que estou. – A raiva dela explodiu sem aviso, alimentada por algum desejo profundo e traiçoeiro. – Ele é tudo que você não é: é honrado, gentil e cavalheiro...
– Ele não ama você e nunca amará.
Aquilo doeu. Na verdade, a dor cresceu continuamente até Hannah mal conseguir respirar.
Ela se contorceu, irritada, nos braços dele.
– Você acha que porque sou uma garota comum e pobre, alguém como o Sr. Clark não poderia me amar, mas está errado. Ele vê além...
– Comum? Enlouqueceu? Você é a garota mais adorável que já conheci, e, se eu fosse Clark, teria feito muito mais do que acariciar seu crânio a essa altura...
– Não deboche de mim!
– ...eu teria seduzido você dez vezes mais. – Ele deliberadamente pisou na carta. – Não minta para mim, nem para si mesma. Você não está feliz, você não o quer. Só está se acomodando com isso porque não quer correr o risco de ficar solteirona.
– Essa é uma boa acusação vinda de você, seu hipócrita!
– Não sou hipócrita, tenho sido honesto com todos, inclusive com Natalie. Não estou fingindo estar apaixonado. Não finjo querê-la da maneira como quero você.
Hannah congelou, olhando para ele espantada e em silêncio. Como ele podia admitir uma coisa dessas...
Ela percebeu que estava respirando depressa demais, e ele também. Os dedos de Hannah se curvaram sobre as mangas dele, contra seus antebraços musculosos. Ela não tinha certeza se o segurava daquele jeito para mantê-lo junto dela ou para afastá-lo.
– Diga que está apaixonada por ele – exigiu Bowman.
Hannah não podia falar.
Então ele continuou insistindo.
– Então diga que o deseja. Pelo menos isso você deve sentir por ele.
Um tremor percorreu o corpo dela, espalhando-se até a ponta dos dedos das mãos e dos pés.
Ela respirou fundo, e conseguiu responder com voz fraca.
– Eu não sei.
O rosto dele mudou, um sorriso estranho surgiu em seus lábios, o olhar quente e determinado.
– Você não sabe como dizer se deseja um homem, querida? Posso ajudá-la com isso.
– Desse tipo de ajuda – disse Hannah com aspereza –, eu não preciso.
Ela se enrijeceu quando ele a puxou mais para perto, suas mãos grandes deslizando dos cotovelos dela para se enganchar sob os braços. A pulsação dela tinha disparado, o calor tomava todo o seu corpo.
Ele se inclinou para beijá-la. Ela tentou sem firmeza se afastar, fazendo a boca de Bowman tocar seu rosto em vez dos lábios. Ele não pareceu se importar. Estava disposto a beijar qualquer parte dela que pudesse alcançar, bochechas, queixo, mandíbula, orelha. Hannah ficou imóvel, ofegante enquanto os beijos percorriam seu rosto quente. Fechou os olhos quando sentiu os lábios dele chegarem aos dela. Mais um roçar suave, e outro, e ele finalmente beijou-a com vontade.
Sentiu o gosto dela com a língua e o desejo apagou qualquer pensamento ou vislumbre de razão. Ele passou um braço em volta dela, então virou a cabeça e a beijou com mais intensidade.
Uma de suas mãos segurou o queixo de Hannah, e inclinou o rosto dela. As carícias febris de sua boca a provocaram até que ela cedeu a todo aquele calor.
O tremor piorava, o prazer insidioso desmanchando-se dentro dela como açúcar fervente. Ele tentava acalmá-la, mas as partes sensíveis do corpo de Hannah começaram a latejar por baixo das roupas, todas as rendas, as costuras e o espartilho apertando-a e grudando nela com uma firmeza enlouquecedora. Ela se remexeu um pouco, irritada com as restrições de movimento causadas pelas suas vestes. Ele pareceu entender. Seus lábios deixaram os dela, o hálito quente na curva de sua orelha enquanto os dedos se dirigiam para o corpete. Ela ouviu seu próprio gemido de alívio quando sentiu que ele desabotoava sua gola, e os murmúrios tranquilizadores de que ele cuidaria dela, que nunca a machucaria, que ela deveria relaxar e confiar nele, relaxar... tudo isso enquanto a mão dele se movia furtivamente pela frente da roupa dela, puxando-a e desatando todos aqueles tecidos.
Ele a beijou de novo, uma carícia suave e ardente que fizeram seus joelhos cederem por completo. Mas o lento colapso não parecia importar, ele a segurava com força, baixando-a até o chão acarpetado. Hannah se viu esparramada enquanto ele se ajoelhava entre as abundantes pregas do vestido dela. Suas roupas haviam caído espalhadas em uma confusão desconcertante, botões abertos e saias levantadas. Ela, zonza, fez uma tentativa de recuperar alguma coisa, cobrir alguma coisa, mas a forma como ele a beijava tornava impossível pensar. Então Bowman delicadamente a deitou por baixo dele, seu braço apoiando com firmeza o pescoço dela. Hannah relaxou indefesa enquanto aquela boca pecaminosa tomava a dela sem parar, deleitando-se com o gosto dela.
– A pele mais doce... – sussurrou ele, beijando o seu pescoço, abrindo o corpete. – Deixe-me ver você, Hannah, querida...
Ele puxou a parte de cima da roupa dela, expondo os seios pálidos, altos e firmes por conta do espartilho. Foi então que Hannah compreendeu que estava no chão com ele, e ele descobria partes dela que nenhum homem jamais vira.
– Espere... eu não deveria... você não deveria...
Mas seu protesto foi silenciado quando ele se abaixou sobre as curvas aveludadas de seu colo, com os lábios se fechando sobre um mamilo endurecido pelo frio. Ela soltou um gemido baixo enquanto a língua dele a percorria em cruas e suaves carícias.
– Rafe – gemeu ela ao dizer pela primeira vez o seu nome.
Deixando escapar uma respiração trêmula, ele envolveu em suas mãos os seios dela.
A voz dele soava grave e rouca.
– Quis fazer isso desde a primeira vez que a vi. Ficava vendo você ali, sentada, com aquela pequena xícara de chá na mão, e não parava de imaginar qual era seu gosto aqui... e aqui... – Ele sugou um seio dela de cada vez, suas mãos deslizando pelo corpo dela, que se contorcia.
– Rafe – disse ela, ofegante. – Por favor, eu não posso...
– Não tem ninguém aqui – sussurrou ele contra a sua pele arrepiada. – Ninguém vai saber.
Hannah, meu amor... deixe-me tocar você. Deixe-me mostrar como é querer alguém tanto quanto quero você...
E ele esperou sua resposta, com uma das mãos quentes cobrindo-lhe o seio. Ela parecia não conseguir ficar completamente imóvel, os joelhos flexionados, os quadris se erguendo em resposta a uma vibração profunda e involuntária. Ela estava tomada por doçura, vergonha e desejo. Nunca o teria, sabia disso. A vida dele seguia um caminho muito diferente da sua. Ele era proibido. Talvez essa fosse a razão para aquela atração totalmente imprudente.
Antes que percebesse, Hannah estendeu a mão e guiou a cabeça dele em direção à dela. Ele respondeu imediatamente, tomando sua boca em um beijo violento e arrebatador. Suas mãos deslizaram sob as roupas dela, encontrando sua pele pálida e macia, acariciando-a de maneiras que a faziam estremecer. Hannah deixou escapar um grito abafado quando o sentiu puxar as fitas da sua roupa de baixo. Bowman tocou sua barriga retesada, a ponta de um dos dedos rodeando seu umbigo. A mão dele deslizou pelas curvas suaves dela, envolveu seu sexo e delicadamente abriu suas coxas. Então ela sentiu que ele a tocava, acariciava, abria gentilmente, com um toque cuidadoso e experiente, como se estivesse desenhando em uma janela congelada. Exceto que a superfície sob a ponta dos dedos dele não era vidro gelado, mas pele quente e macia, ardendo com todas aquelas sensações.
Ela viu de relance um borrão de seu rosto moreno, a expressão cheia de desejo. Ele brincava com ela, parecendo saborear toda a sua agitação, mas estava também vermelho e febril. Ela agarrou-o, os quadris arqueados, os lábios entreabertos em um apelo sem palavras. Ele deslizou um dos dedos para dentro dela, e ela se contorceu com o choque.
Bowman recuou o toque, com a ponta úmida do dedo traçando círculos cuidadosos e persistentes ao redor do pico ansioso do sexo dela. Ele afastou ainda mais as pernas dela, e beijou os bicos dos seios. Seu sussurro ardeu contra a pele dela:
– Se eu quisesse tomá-la agora, Hannah, você deixaria, não é? Deixaria que eu entrasse em você, preenchesse você... se eu pedisse para me deixar penetrá-la e acalmá-la... o que você diria, querida? – Então começou uma massagem leve e torturante. – Diga – murmurou ele. – Diga...
– Sim. – Ela agarrou-o cegamente, com a respiração muito ofegante. – Sim.
Rafe sorriu, com o olhar ardente.
– Então eis aqui a minha prenda, querida.
Ele acariciou-a em um ritmo rápido e habilidoso, cobrindo sua boca com a dele para abafar seus gritos. Ele sabia exatamente o que estava fazendo, tinha os dedos seguros e cheios de malícia.
Parecia que ela poderia morrer com aquela liberação explosiva. Ela tentou se conter contra aquilo, mesmo quando o prazer começou a invadi-la, ganhando força até sentir-se impotente, consumida e despedaçada.
Lentamente ele a deitou, beijando e acariciando seu corpo que se contorcia. Seu dedo deslizou para dentro dela mais uma vez, desta vez escorregando facilmente na umidade. A sensação de seus músculos íntimos prendendo-o tão firmemente parecia causar dor a ele. Hannah se ergueu instintivamente para tomá-lo, e ele gemeu e retirou o dedo, deixando as partes íntimas dela, inchadas, se contorcerem no vazio.
O rosto de Rafe estava sério e coberto de suor quando tirou as mãos dela. Ele a encarava com avidez visível, estreitando os olhos, o peito arfando. As mãos dele tremiam enquanto procurava os fechos superiores do espartilho dela, os botões de seu vestido, as roupas de baixo bagunçadas.
Mas, quando um de seus dedos roçou contra a pele quente dela, ele retirou as mãos abruptamente e se levantou.
– Não posso – disse ele com voz rouca.
– Não pode o quê? – sussurrou ela.
– Não posso ajudar com suas roupas. – A respiração instável. – Se eu tocá-la de novo... não vou parar até você estar nua.
Olhando zonza para ele, Hannah compreendeu que a liberação e o alívio tinham sido unilaterais. Ele estava perigosamente excitado, no limite de seu autocontrole. Ela puxou a roupa sobre os seios nus.
Rafe balançou a cabeça, ainda olhando para ela. Sua boca era um rasgo severo.
– Se você quer que Clark faça com você as coisas que acabei de fazer – disse ele –, então vá em frente e se case com ele.
E ele a deixou na biblioteca, como se, caso ficasse ali por mais um instante, aquilo fosse resultar em um desastre para os dois.
CAPÍTULO 11
Na opinião de Evie, o passeio de trenó tinha sido agradável, mas longo demais. Estava cansada, os ouvidos ainda zumbindo de todo o barulho e dos cânticos natalinos. Evie rira e se divertira com o grupo, permanecendo ao lado de Daisy, já que seu marido ficara na mansão para discutir assuntos de negócios com Rafe Bowman.
– Ah, não me importo – disse Daisy alegremente, quando Evie perguntou se estava desapontada por Swift não acompanhá-los. – É melhor deixar Matthew se livrar de suas preocupações com os negócios primeiro, e então ele estará livre para me dar toda a sua atenção mais tarde.
– Ele t-trabalha até muito tarde? – perguntou Evie com um toque de preocupação, sabendo que a empresa de Bowman em Bristol era um enorme projeto e envolvia grandes responsabilidades.
– Às vezes ele precisa – respondeu Daisy. – Mas há outras ocasiões em que ele fica em casa e passamos o dia juntos. – Um sorriso tinha cruzado seu rosto. – Adoro estar casada com ele, Evie.
Embora ainda seja tudo tão novo... Às vezes fico surpresa ao acordar e encontrar Matthew ao meu lado. – Então se inclinou para mais perto e sussurrou: – Tenho de lhe contar um segredo, Evie: um dia me queixei de já ter lido todos os livros da casa, e de que não havia nada de novo na livraria, e Matthew me desafiou a tentar escrever um livro eu mesma. Então comecei. Já tenho cem páginas escritas.
Evie sorriu de alegria.
– Daisy – murmurou –, você vai ser uma romancista f-famosa?
Daisy deu de ombros.
– Não me importa se será publicado ou não. Estou gostando de escrevê-lo.
– É uma história respeitável ou imprópria?
Os olhos castanhos de Daisy moveram-se com malícia.
– Evie, por que você ainda pergunta? É claro que é imprópria.
Agora, de volta ao conforto de seu quarto na mansão Stony Cross, Evie se banhou em uma pequena banheira portátil junto à lareira, suspirando de alívio ao sentir a água quente contra seus membros rígidos e doloridos. Passeios de trenó, pensou ela, eram uma daquelas atividades sempre melhores na teoria. Os assentos do trenó eram duros e desconfortáveis, e seus pés tinham ficado gelados.
Ouviu uma batida na porta, e o som de alguém entrando no quarto. Como estava protegida por um biombo de tecido, Evie se inclinou para trás e espiou pelo lado da moldura de madeira.
Uma criada segurava uma lata de metal com panos presos nas alças, de onde pingava água.
– Mais água quente, milady? – perguntou ela.
– S-sim, por favor.
Com cuidado, a empregada derramou a água fumegante no canto da banheira, perto dos pés de Evie, que afundou-se ainda mais no banho.
– Ah, muito obrigada.
– Devo voltar com uma caçarola quente para esquentar a cama, milady? – A caçarola de cabo comprido era preenchida com carvão em brasa e passada entre os lençóis logo antes de as pessoas irem se deitar.
Evie assentiu.
A criada saiu e Evie ficou na banheira até o calor começar a se dissipar. Então, relutantemente saiu e se secou. A ideia de ir para a cama sozinha – de novo – a enchia de tristeza.
Ela estava tentando não se consumir de saudade de St. Vincent. Mas acordava todas as manhãs procurando por ele, com o braço esticado pelo espaço vazio ao seu lado.
St. Vincent era o oposto de tudo que Evie era... elegante, extraordinariamente articulado e tranquilo... e tão cheio de malícia que todos imaginaram que seria um marido terrível.
Ninguém além de Evie sabia quanto ele era terno e fiel na intimidade. É claro que seus amigos, como Westcliff e o Sr. Hunt tinham conhecimento de que St. Vincent se recuperara de seus antigos hábitos. E ele fazia um excelente trabalho gerenciando o clube de jogos que ela herdara do pai, reconstruindo um império que estava prestes a ruir e, ao mesmo tempo, diminuindo as responsabilidades assumidas por ele.
Mas ele ainda era um canalha, pensou ela com um sorriso secreto.
Ao sair da banheira, já seca, vestiu um roupão de veludo. Ouviu a porta se abrir novamente.
– Voltou para a-aquecer a cama? – perguntou ela.
Mas a voz que respondeu não era da criada.
– Na verdade... sim.
Evie congelou ao ouvir aquela voz grave e macia.
– Passei pela criada na escada e disse que não precisaríamos mais dela esta noite – continuou ele. – Se há uma coisa que eu faço bem – disse a ela –, é aquecer a cama da minha esposa.
A esta altura, Evie já tentava afastar o biombo, quase derrubando-o.
St. Vicent a alcançou em alguns passos graciosos, envolvendo-a em seus braços.
– Calma, amor. Não é preciso pressa. Acredite em mim, não vou a lugar algum.
Eles ficaram juntos por um longo e silencioso tempo, abraçando-se firmemente.
Por fim, St. Vincent inclinou a cabeça de Evie para trás e olhou para ela. Ele tinha pele morena e cabelo dourado, os olhos azuis brilhavam como pedras preciosas no rosto de um anjo caído. Era um homem alto e esguio, sempre elegantemente vestido e arrumado. Mas ele não vinha dormindo bem, ela notava. Havia leves sombras sob seus olhos e sinais de cansaço em seu rosto. Esses toques de vulnerabilidade humana, no entanto, só serviam para torná-lo ainda mais bonito, suavizando o que de outra forma poderia parecer um distanciamento resplandecente e divino.
– Seu p-pai – começou ela, olhando para ele, preocupada. – Ele...
St. Vincent lançou um olhar exasperado para o céu.
– Ele vai ficar bem. Os médicos não conseguem achar nada de errado com ele, além de indigestão provocada pela comida pesada e pelo vinho. Quando fui embora, ele estava olhando com malícia para as empregadas e beliscando-as, e recebendo muitos parentes solícitos que querem se aproveitar dele no Natal. – Suas mãos se moveram suavemente sobre as costas dela cobertas de veludo. Sua voz era muito suave. – Você foi uma boa menina na minha ausência?
– Sim, claro – disse ela sem fôlego.
St. Vincent lançou-lhe, então, um olhar reprovador e beijou-a com uma gentileza sedutora que fez seu coração disparar.
– Teremos de remediar isso imediatamente. Recuso-me a tolerar um comportamento adequado de minha esposa.
Ela tocou seu rosto, sorrindo quando ele a beliscou com as pontas de seus dedos ansiosos.
– Senti sua falta, Sebastian.
– Foi, amor? – Ele desabotoou o roupão dela, com os olhos claros ardendo de paixão ao ver a pele da esposa. – De que parte você sentiu mais falta?
– Da sua mente – disse ela, e sorriu diante de sua expressão.
– Eu estava esperando uma resposta muito mais depravada do que essa.
– Sua mente é depravada – disse ela.
Ele deu uma risada rouca.
– Verdade.
Ela arfou quando a mão gentil e experiente dele deslizou para dentro do seu roupão.
– Que parte de m-mim você sentiu mais falta?
– Senti sua falta da cabeça aos pés, de todas as sardas, do seu gosto... de sentir seu cabelo em minhas mãos... Evie, meu amor, você está vergonhosamente vestida demais.
E ele a pegou e a levou para a cama. O roupão de veludo foi tirado, substituído pela luz do fogo e pelas carícias de suas mãos. Ele beijou a nova e bela curva da sua barriga, fascinado pelas mudanças em seu corpo fértil. E então ele a beijou em todas as outras partes, e penetrou-a com uma habilidade lenta e provocadora. Evie se contorceu um pouco ao senti-lo, tão rígido e forte, dentro dela.
St. Vincent fez, então, uma pausa e sorriu para ela, o rosto corado de desejo.
– Minha doce esposa – sussurrou –, o que vou fazer com você? Tão pouco tempo afastados e já você já se esqueceu de como me acomodar. – Evie balançou a cabeça, esforçando-se para recebê-lo, e seu marido riu suavemente. – Deixe-me ajudá-la, amor... – E então ele acariciou o corpo dela com uma precisão perversa e delicada, até penetrá-la completamente e levá-la, suspirando e tremendo, ao mais absoluto e indefeso êxtase.
Mais tarde, quando Evie se reclinou de lado, tentando recuperar o fôlego, St. Vincent saiu da cama, voltou com uma grande maleta de couro e colocou-a na mesa ao lado.
– Trouxe as joias da família – disse ele.
– Eu sei – disse Evie, lânguida, e ele riu ao ver para onde ela olhava.
– Não, amor, as outras joias da família. São herança da futura duquesa de Kingston, mas eu disse a meu pai que as daria a você agora, já que ele, obviamente, viverá por uma eternidade.
Os olhos dela se arregalaram.
– Obrigada, Sebastian. Mas eu... eu não preciso de joias...
– Precisa. Deixe-me vê-las em você.
Pegou, então, cordões de pérolas preciosas, colares brilhantes e pulseiras e brincos de ouro; todas as joias imagináveis.
Evie começou a se contorcer e dar risadas quando, para seu embaraço, ele sentou-se ao seu lado e começou a enfeitá-la, colocando um bracelete de safira ao redor do tornozelo, enfiando um diamante em seu umbigo.
– Sebastian... – protestou ela, enquanto ele cobria seu corpo nu com ouro e pedras raras sufientes para comprar um pequeno país.
– Fique quieta. – Entre os fios de pérolas sua boca procurava, parando aqui e ali, lamber e morder suavemente a pele dela. – Estou fazendo uma decoração de Natal.
Evie sorriu e estremeceu.
– Você não deveria me decorar.
– Não desencoraje meu espírito festivo, querida. Agora deixe-me mostrar algo interessante sobre essas pérolas...
E, em pouco tempo, os protestos dela tinham dado lugar a gemidos suaves e prazerosos.
CAPÍTULO 12
– Hannah! – Natalie estava na cama, tomando o chá da manhã. Uma criada revirava as brasas e acendia a lareira, rindo como se ela e Natalie tivessem compartilhado uma piada irresistivelmente engraçada.
Hannah tinha acabado de voltar de uma longa e fria caminhada, e sorriu carinhosamente para a prima.
– Bom dia, querida, finalmente acordada?
– Sim, fiquei acordada até muito tarde na noite passada.
Um grupo de convidados mais novos, incluindo Natalie, passara a noite divertindo-se com jogos de salão. Hannah não tinha perguntado nem queria saber se Rafe – pois era assim que ela agora pensava no Sr. Bowman – tinha estado entre eles.
Nos últimos dias, desde sua impressionante interação na biblioteca, Hannah evitara Rafe o máximo possível, e tentara não falar com ele diretamente. Saíra para fazer caminhadas solitárias e pensar muito, incapaz de compreender por que Rafe tinha se envolvido em um ato tão íntimo com ela, por que ela permitira aquilo e quais eram os sentimentos que tinha por ele.
Embora soubesse pouco sobre o desejo físico, Hannah entendia que acontecia mais fortemente entre algumas pessoas do que entre outras. Não sabia dizer se Rafe tinha o mesmo desejo em relação à Natalie. E sentia-se péssima ao pensar nisso. Mas estava certa de que ele não avançara assim para cima de Natalie, pelo menos ainda não, ou Natalie teria lhe contado.
Mais que tudo, ela sabia que, em última análise, nada disso importava. Para um homem na posição de Rafe, sentimentos de desejo e ligação não mudariam o rumo que daria à sua vida.
Quando se casasse com Natalie, ele já não seria a ovelha negra dos Bowman. De uma só vez, agradaria o pai, asseguraria sua posição de direito nos negócios da família e ganharia uma grande fortuna.
Se escolhesse outra pessoa, ele perderia tudo.
Uma mulher que gostasse dele nunca lhe pediria para fazer uma escolha dessas.
Naquela tarde, quando se levantara do chão da biblioteca e arrumara cuidadosamente sua roupa, Hannah admitiu para si mesma que estava se apaixonando por ele, e, quanto mais o conhecia, mais profundos esses sentimentos se tornavam. Pegara o pequeno soldado de brinquedo e o carregava no bolso, um peso pequeno e íntimo. Era seu amuleto agora – não o ofereceria a Rafe de novo. No futuro, poderia segurá-lo na mão e lembrar-se daquele americano atrevido e canalha, e da atração que explodira em uma paixão entre eles.
Sou uma mulher com um passado agora, pensou, melancólica, achando graça.
Sobre Samuel Clark e sua proposta... Rafe tinha razão. Ela não o amava. Seria injusto com Clark casar-se com ele e compará-lo para sempre com outra pessoa. Portanto, Hannah resolveu escrever para Clark assim que possível e recusar sua oferta de casamento, por mais que ficasse tentada com a segurança que ele oferecia.
A alegre voz de Natalie a fez despertar de seus devaneios.
– Hannah! Hannah, você está ouvindo? Tenho algo delicioso para lhe contar... há alguns minutos, Polly trouxe o bilhete mais surpreendente... – Natalie balançou um pergaminho queimado e meio amassado à sua frente. – Você vai corar quando ler. Vai desmaiar.
– O que é? – perguntou Hannah, aproximando-se lentamente da cama.
Polly, a jovem criada de cabelo escuro, respondeu com timidez.
– Bem, senhorita, faz parte das minhas tarefas polir as grelhas e limpar as lareiras da pequena casa de solteiro atrás da mansão...
– É onde o Sr. Bowman está hospedado – interveio Natalie.
– ...e, depois que o Sr. Bowman saiu esta manhã, fui até a lareira e, enquanto estava varrendo as cinzas, vi um pedaço de papel escrito. Então o peguei e, quando vi que era uma carta de amor, sabia que era para lady Natalie.
– Por que você imaginou isso? – perguntou Hannah, irritada por ver a privacidade de Rafe ser invadida.
– Porque ele está me cortejando – disse Natalie, revirando os olhos –, e todos sabem disso.
Hannah dirigiu um olhar sério para a empregada, cuja excitação diminuiu diante da reprovação dela.
– Você não deve bisbilhotar as coisas dos convidados, Polly – disse ela.
– Mas estava na lareira, meio queimada – protestou a criada, corando. – Ele não a queria. E
eu vi as palavras e achei que poderia ser importante.
– Ou você pensou que era lixo, ou que era importante. Qual dos dois?
– Isso vai me trazer problemas? – sussurrou Polly, encarando Natalie com um olhar suplicante.
– Não, claro que não – disse Natalie, impaciente. – Agora, Hannah, não banque a certinha.
Você está deixando de ver o que é importante, que esta é uma carta de amor do Sr. Bowman para mim. E é uma carta bem estranha, que mostra uma mentalidade bem suja... nunca recebi nada assim antes, e é muito divertida e...
Ela parou com uma risada quando Hannah a pegou.
A carta tinha sido amassada e jogada na lareira. Queimara nas bordas, então os nomes na parte superior e inferior tinham virado fumaça. Mas havia o suficiente de texto para revelar que tinha sido de fato uma carta de amor. E, quando leu o pergaminho queimado e parcialmente destruído, Hannah foi forçada a virar de costas para esconder o tremor de sua mão.
...devo alertá-la de que esta carta não será eloquente. No entanto, será sincera, sobretudo à luz do fato de que você nunca vai lê-la. Senti estas palavras como um peso no meu peito, até me surpreender com o fato de que um coração pode continuar batendo sob tal fardo.
Eu amo você. Amo você desesperada, violenta, terna e completamente. Eu a quero de maneiras que sei que a deixariam chocada. Meu amor, você não pertence a um homem como eu. No passado, fiz coisas que você não aprovaria, e fiz isso dezenas de vezes. Tenho levado uma vida de pecado excessivo. Resultado: sou assim tão excessivo também no amor. Na verdade, ainda mais excessivo do amor.
Quero beijar cada parte macia do seu corpo, fazer você corar e desmaiar, dar-lhe prazer até você chorar, e secar cada lágrima com meus lábios. Se você soubesse como anseio por sentir seu gosto... Quero tomá-la nas minhas mãos e na minha boca e me deleitar com você.
Quero beber vinho e mel no seu corpo.
Quero você sob mim. De costas.
Sinto muito. Você merece mais respeito do que isso. Mas não consigo parar de pensar nessas coisas. Seus braços e pernas à minha volta. Sua boca, aberta para os meus beijos.
Preciso muito de você. Uma vida inteira de noites passadas entre suas pernas não seria suficiente.
Quero conversar com você todos os dias. Lembro-me de cada palavra que já me disse.
Se eu pudesse visitá-la como um estrangeiro que entra em um país desconhecido –
aprender a sua linguagem, vagar além de todas as fronteiras a cada lugar particular e secreto –, eu ficaria para sempre. Eu me tornaria um cidadão de você.
Você diria que é muito cedo para me sentir assim. E me perguntaria como posso estar tão certo. Mas algumas coisas não podem ser medidas pelo tempo. Pergunte-me daqui a uma hora. Pergunte-me daqui a um mês. Um ano, dez anos, uma vida inteira. Meu amor por você durará mais do que qualquer calendário, relógio ou cada dobrar de cada sino. Se ao menos você...
E parava aí.
Ciente do silêncio no quarto, Hannah se esforçou para acalmar a respiração.
– Tem mais? – perguntou ela em tom controlado.
– Eu sabia que você ficaria vermelha – disse Natalie triunfante.
– O resto tinha virado cinzas, senhorita – respondeu Polly, mais cautelosa.
– Você mostrou isso a mais alguém? – perguntou Hannah bruscamente, preocupada com Rafe. Aquelas palavras não foram escritas para ninguém ler. – Algum dos criados?
– Não, senhorita – disse a garota, com o lábio inferior tremendo.
– Céus, Hannah – exclamou Natalie –, não há por que ficar tão irritada. Pensei que isso a divertiria, e não a transtornaria assim.
– Não estou transtornada. – Estava devastada, excitada e angustiada. E, acima de tudo, confusa. Hannah procurou manter o rosto inexpressivo ao continuar. – Mas, por respeito ao Sr.
Bowman, não acho que isso deva ser exibido para o divertimento dos outros... Se ele for se tornar seu marido, Natalie, você deve proteger a privacidade dele.
– Eu, protegê-lo? – indagou Natalie maliciosamente. – Depois de ler isso, acho que eu é que precisarei ser protegida dele. – Ela balançou a cabeça e riu do silêncio de Hannah. – Que estraga-prazeres você é. Vá queimar o que restou da carta, se isso for melhorar seu humor.
Alguns homens, refletiu Rafe com amargura, só queriam que seus filhos seguissem a mesma vida que estavam levando.
Depois de uma longa e terrível discussão naquela manhã, ficou claro para ele que Thomas não cederia de forma alguma. Rafe deveria assumir a vida que seu pai planejara para ele e tornar-se, mais ou menos, um reflexo de Thomas Bowman. Ou então seu pai o consideraria um fracasso, tanto como filho quanto como homem.
A discussão começara quando Thomas dissera a Rafe que ele deveria pedir lady Natalie em casamento na véspera de Natal.
– Lorde Blandford e eu queremos anunciar o noivado de nossos filhos no baile da véspera de Natal.
– Que ideia esplêndida – maravilhou-se Rafe sarcasticamente. – Mas ainda não decidi se quero me casar com ela.
O rosto de Thomas Bowman imediatamente começara a ficar vermelho, como seria fácil prever.
– É hora de tomar uma decisão. Você já tem todas as informações necessárias. Passou tempo suficiente com ela para avaliar suas qualidades. Ela é filha de um nobre. Você já sabe de todas as recompensas que receberá quando se casar. Mas que diabo, por que ainda hesita?
– Não tenho nenhum sentimento por ela.
– Ainda melhor! Será um casamento estável. Está na hora de assumir seu lugar no mundo como homem, Rafe. – Thomas se esforçava para controlar seu temperamento enquanto tentava se fazer entender. – O amor passa. A beleza desvanece. A vida não é uma travessura romântica nos prados.
– Meu Deus, isso é inspirador.
– Você nunca fez nada que eu pedi. Nem sequer tentou. Eu queria um filho que me ajudasse, que entendesse a importância do que eu estava fazendo.
– Eu entendo que você quer construir um império – disse Rafe calmamente. – E tentei encontrar um lugar para mim em seus grandiosos planos. Eu poderia fazer muito pela empresa, e você sabe disso. O que não entendo é o que mais você quer que eu prove.
– Quero que você demonstre seu compromisso comigo, assim como Matthew Swift fez. Ele se casou com a mulher que escolhi.
– Ele estava apaixonado pela Daisy – retrucou Rafe.
– E você poderia estar por lady Natalie. Mas, por fim, o amor não importa. Homens como nós se casam com mulheres que vão favorecer nossas ambições, ou que pelo menos não vão prejudicá-las. Veja só que casamento longo e produtivo sua mãe e eu tivemos.
– Trinta anos – concordou Rafe. – E você e mamãe mal suportam ficar juntos no mesmo ambiente. – Rafe, então, suspirou de maneira tensa e passou a mão pelo cabelo. Olhou para o rosto redondo e obstinado do pai, com seu bigode eriçado, e se perguntou por que Thomas sempre se sentira compelido a exercer um controle implacável sobre as pessoas ao seu redor. –
Para que tudo isso, pai? Que recompensa você tem depois de todos esses anos construindo sua fortuna? Você não se sente feliz com a sua família, tem o temperamento de um texugo sendo caçado... e isso nos seus dias bons. Você não parece gostar muito de nada.
– Gosto de ser Thomas Bowman.
– Fico feliz eu ouvir isso, mas acho que eu não iria gostar de ser você.
Thomas olhou para ele por um longo tempo. Seu rosto se suavizou e, ao menos desta vez, falou em um tom quase paternal.
– Estou tentando ajudá-lo. Não pediria que você fizesse algo que acreditasse ir contra seus próprios interesses. Meu julgamento com relação a Swift e Daisy estava correto, não é?
– Por algum milagre de Deus, sim – murmurou Rafe.
– Tudo ficará melhor, mais fácil, quando você começar a fazer as escolhas certas. Você deve construir uma boa vida para si mesmo, Rafe. Assumir o seu lugar à mesa. Não há nada de errado com a filha de Blandford. Todos querem esta união. Lady Natalie deixou claro para todo mundo que está interessada. E você me levou a crer que levaria isso adiante, desde que a garota fosse aceitável!
– Você tem razão. A princípio, eu não me importava com quem me casaria, mas agora não estou disposto a escolher uma esposa com menos cuidado do que escolheria um par de sapatos.
Thomas parecia exasperado.
– O que mudou desde que você chegou à Inglaterra?
Rafe não respondeu.
– É aquela garota de cabelo castanho? – insistiu o pai. – A acompanhante de lady Natalie?
Ele olhou para o pai desconfiado.
– Por que pergunta?
– Parece que você foi mais de uma vez ouvi-la ler à noite para um grupo de crianças. E você não liga a mínima para crianças ou para histórias de Natal. – O bigode pesado se contraiu. – Ela é uma garota simples, Rafe.
– E nós não somos? Vovó era lavadeira da zona portuária, e só Deus sabe quem era seu pai.
E isso só do seu lado da...
– Passei a vida inteira tentando elevar o nível desta família! Não use essa garota como uma maneira de fugir das suas responsabilidades. Você pode ter quantas iguais a ela depois de se casar com lady Natalie. Ninguém o condenaria por isso, principalmente na Inglaterra. Seduza-a, faça dela sua amante. Eu até compro uma casa para ela, se isso lhe agradar.
– Obrigado, mas posso bancar minhas próprias amantes. – Rafe lançou ao pai um olhar de desgosto. – Você quer tanto esse casamento que está disposto a financiar a perdição de uma menina inocente?
– Todo mundo perde a inocência mais cedo ou mais tarde. – Quando Thomas viu a expressão de Rafe, seus olhos ficaram frios. – Se você frustrar as expectativas de todos e me envergonhar nessa negociação, vou cortá-lo de meu testamento. Não lhe darei mais nenhuma chance. Você será deserdado.
– Entendido – disse Rafe secamente.
CAPÍTULO 13
“...e todos falavam que ele era um homem que preservava sempre o espírito de Natal, se é que algum homem sabe como fazer isso. Que o mesmo possa ser dito de todos nós! E, como dizia o pequeno Tim, que Deus nos abençoe a todos!”
Ao erguer os olhos quando terminou de ler Um conto de Natal, Hannah viu os rostos arrebatados das crianças, seus olhos brilhavam. Houve então um breve silêncio, o prazer compartilhado de uma história maravilhosa com um toque de pesar por ter chegado ao fim. E em seguida todos foram se levantando, andando pela sala, os rostos melados de leite e migalhas de biscoito, as pequenas mãos batendo palmas com entusiasmo.
Havia dois pestinhas em seu colo, e um abraçava seu pescoço por trás da cadeira. Hannah levantou a cabeça quando Rafe Bowman se aproximou dela. Seu coração disparou, e ela sabia que sua falta de ar não tinha nada a ver com os pequenos braços apertados ao redor do seu pescoço.
Bowman observou que ela tinha as roupas desarrumadas e o penteado bagunçado.
– Muito bem – murmurou ele. – Você fez com que todos nós experimentássemos o sentimento de Natal.
– Obrigada – sussurrou ela, tentando não pensar nas mãos dele na sua pele, na sua boca...
– Preciso falar com você.
Hannah, então, tirou cuidadosamente as crianças do colo e soltou os braços que envolviam o seu pescoço. Levantando-se para falar com ele, tentou em vão endireitar o vestido e alisar as saias. Ela respirou fundo, mas sua voz saiu com uma desalentadora falta de força.
– Eu... eu não vejo como algo bom poderia vir de uma conversa nossa.
O olhar dele era quente e direto.
– Mesmo assim, vou falar com você.
As palavras da carta dele passaram pela sua mente. Quero beijar cada parte macia do seu corpo...
– Por favor, não agora – sussurrou ela, com o rosto vermelho e um nó cada vez maior na garganta.
Ao perceber os sinais de sua angústia, ele cedeu.
– Amanhã?
Preciso muito de você...
– Sim – disse ela com dificuldade.
Então, compreendendo como sua presença a afetava, Rafe acenou ligeiramente a cabeça; tinha o maxilar tenso. Havia dezenas de coisas a dizer, as palavras pairavam com impaciência nos seus lábios, mas algo – compaixão ou piedade, talvez – fez com que se controlasse.
– Amanhã – repetiu ele calmamente, e a deixou.
As babás vieram recolher as crianças, e Hannah saiu para o corredor em um torpor de infelicidade.
Ninguém jamais lhe dissera que o amor poderia fazer todas as células do corpo doerem.
Estava cada vez mais convencida de que não seria capaz de assistir ao casamento de Rafe e Natalie, que todos os acontecimentos da vida conjugal dos dois – os nascimentos dos filhos, as celebrações e os rituais – seriam demais para ela suportar. Ficaria consumida de ciúme, desespero e ressentimento até se desintegrar. O que se costumava dizer para uma mulher na sua situação era que algum dia ela conheceria outro homem e esqueceria Rafe Bowman por completo. Mas ela não queria outro homem. Não havia ninguém como ele.
Estou condenada, pensou.
Seguiu pelo corredor com a cabeça abaixada, planejando ir para o quarto, onde poderia ficar triste e chorar sem que ninguém a visse. Infelizmente, andar de cabeça baixa significava não ver exatamente aonde se estava indo. Ela quase colidiu com uma mulher que se aproximava na direção oposta, alguém que andava com passadas longas e descontraídas.
As duas pararam de repente, e a mulher estendeu a mão para ajudar Hannah a se equilibrar.
– Minha senhora – disse Hannah, arfando, ao reconhecer Lillian. – Ah... sinto muito... Peço-lhe que me perdoe...
– Não foi nada – assegurou a condessa. – Foi minha culpa, na verdade. Eu estava indo depressa falar com a governanta antes de me encontrar com minha irmã, e... – Ela parou e observou Hannah com atenção. – Você parece prestes a chorar – disse sem rodeios. – Algum problema?
– Não – respondeu Hannah, não conseguindo evitar que algumas lágrimas quentes se derramassem. Ela suspirou e curvou a cabeça de novo. – Ah, bolas. Perdoe-me, preciso ir...
– Coitadinha – disse Lillian com sincera compaixão, não parecendo nem um pouco chocada com a blasfêmia. – Venha comigo. Há uma sala no andar de cima onde podemos conversar.
– Não posso – sussurrou Hannah. – Minha senhora, perdoe-me, mas a senhora é a última pessoa a quem posso confidenciar meus problemas.
– Ah. – Os olhos da condessa, do mesmo tom aveludado de castanho do irmão, arregalaram-se ligeiramente. – É Rafe, não é?
Mais lágrimas jorraram, não importava quão firme ela fechasse os olhos.
– Você tem uma amiga com quem possa conversar? – perguntou Lillian suavemente.
– Natalie é minha melhor amiga – disse Hannah, fungando. – Ou seja, é impossível.
– Então me deixe ser sua amiga. Não tenho certeza se posso ajudar, mas pelo menos posso tentar entender.
Elas foram para uma sala acolhedora no andar de cima, uma sala particular com decoração elegante e feminina. Lillian fechou a porta, pegou um lenço para Hannah e sentou-se ao lado dela no sofá.
– Insisto que me chame de Lillian – disse ela. – E, antes que qualquer uma de nós fale algo, permita-me assegurá-la que tudo o que for dito nesta sala permanecerá em segredo. Ninguém ficará sabendo.
– Sim, minha... Lillian. – Hannah assoou o nariz e suspirou.
– Agora, o que aconteceu para fazê-la chorar?
– É o Sr. Bowman... Rafe... – Ela não conseguia colocar as palavras na ordem certa, então simplesmente deixou que fossem saindo, mesmo sabendo que Lillian nunca seria capaz de entendê-las. – Ele é tão... e eu nunca... e, quando ele me beijou, eu pensei que não, que era apenas uma paixão, mas... e então o Sr. Clark me pediu em casamento, e percebi que não podia aceitar porque... e eu sei que é cedo demais. Rápido demais. Mas a pior parte é a carta, porque nem sei para quem ele escreveu!
E ela continuou falando, tentando desesperadamente se fazer entender. De algum modo Lillian conseguiu captar aquela confusão.
Enquanto Hannah despejava toda a história, ou pelo menos uma versão autorizada dela, Lillian segurava com firmeza suas mãos. Quando Hannah parou para assoar o nariz de novo, Lillian disse:
– Vou pedir um chá. Com conhaque.
Ela puxou a sineta dos empregados e, quando uma criada chegou à porta, Lillian a abriu e falou baixinho com ela. A criada foi buscar o chá.
Assim que Lillian voltou para o sofá, a porta se abriu e Daisy Swift enfiou a cabeça para dentro. Ela pareceu um tanto surpresa ao ver Hannah sentada ali com Lillian.
– Olá. Lillian, estávamos esperando você para jogar cartas.
– Mas que diabo, esqueci.
Os olhos castanhos de Daisy estavam cheios de curiosidade e simpatia quando olharam para Hannah.
– Por que você está chorando? Há algo que eu possa fazer?
– Estamos tratando de um assunto muito confidencial e altamente sensível – disse Lillian. –
Hannah está se abrindo comigo.
– Ah, se abra comigo também! – disse Daisy com seriedade, entrando na sala. – Posso guardar um segredo. Melhor do que Lillian até, na verdade.
Sem dar à Hannah chance de resposta, Daisy fechou a porta e sentou-se ao lado da irmã.
– Você não deve contar a ninguém – disse Lillian severamente para Daisy. – Hannah está apaixonada por Rafe, e ele vai pedir lady Natalie em casamento. Só que ele está apaixonado por Hannah.
– Não tenho certeza disso – disse Hannah com voz abafada. – É só que... a carta...
– Você ainda a tem? Posso vê-la?
Hannah olhou para ela, incerta.
– É muito particular. Ele não quereria que ninguém lesse.
– Então ele deveria ter queimado o maldito papel direito – disse Lillian.
– Mostre-nos, Hannah – insistiu Daisy. – Não vai sair daqui, eu juro.
Hannah tirou o pedaço de pergaminho do bolso com cuidado e o entregou à Lillian. As irmãs inclinaram-se sobre a carta atentamente.
– Ah, meu... – ouviu Daisy murmurar.
– Ele não mede palavras, não é? – comentou Lillian secamente, erguendo as sobrancelhas.
Então olhou para Hannah. – Esta é a letra de Rafe, e não tenho dúvidas de que seja o autor. Mas ele não costuma se expressar dessa maneira.
– Tenho certeza de que ele conhece muitas frases bonitas para atrair mulheres – murmurou Hannah. – Ele é um farrista.
– Bem, sim, ele é um farrista, mas ser assim tão direto e efusivo... isso não é típico dele.
Geralmente ele é...
– Um farrista de poucas palavras – concluiu Daisy por ela.
– A questão é que ele estava claramente tocado por um sentimento muito forte – disse Lillian à Hannah. Então virou-se para a irmã mais nova. – O que você acha, Daisy?
– Bem, ler essas coisas escritas por um irmão é um pouco estranho – disse Daisy. – Vinho e mel etc. Mas, independente disso, é claro que Rafe se apaixonou pela primeira vez na vida.
– A carta pode não ter sido escrita para mim... – começou Hannah, quando a porta se abriu de novo.
Era Evie, lady St. Vincent, com o cabelo vermelho preso em um coque frouxo.
– Estava procurando vocês – disse ela.
– Nós não a vemos há dias – disse Lillian. – Onde você esteve?
Evie ficou vermelha.
– Com St. Vincent.
– O que você tem... ah, santo Deus, não importa.
Evie olhou para Hannah.
– Ah, querida, você está bem?
– Estamos conversando algo muito particular – disse Daisy. – Hannah está apaixonada por Rafe. É um segredo. Entre.
Evie entrou na sala e sentou-se em uma cadeira próxima a elas, enquanto Lillian resumia a situação.
– Posso ver a carta? – perguntou ela.
– Eu não acho... – começou Hannah, mas Daisy já lhe entregara.
– Não se preocupe – murmurou Lillian para Hannah. – Evie é melhor do que ninguém para guardar segredos.
Depois que Evie terminou de ler, erguendo os olhos azuis redondos, Hannah disse melancolicamente:
– Ele poderia não estar pensando em mim. A carta poderia muito bem ter sido escrita para Natalie. Os homens a adoram. Estão sempre pedindo Natalie em casamento, e ela os controla muito bem, e eu não sei controlá-los de forma alguma.
– N-Ninguém pode controlar os homens – disse Evie de maneira firme. – N-nem eles conseguem se controlar.
– Exato – disse Lillian. – E, além disso, qualquer mulher que acha que consegue controlar os homens não deveria ter permissão para ter homem algum.
– Annabelle consegue controlá-los – retrucou Daisy. – Embora ela, se consultada, fosse negar.
Então ouviram uma leve batida na porta.
– O chá – disse Lillian.
No entanto, não era uma criada, mas Annabelle Hunt.
– Olá – disse ela com um sorriso, enquanto seu olhar percorria o grupo. – O que estamos fazendo? – Quando olhou para Hannah, sua expressão de curiosidade transformou-se em preocupação. – Ah, você andou chorando.
– Ela está apaixonada por Rafe Bowman – disse Evie. – É um s-segredo. Entre.
– Não conte a ninguém, Annabelle – disse Lillian severamente. – Isso é confidencial.
– Ela não é muito boa com segredos – disse Daisy.
– Sou, sim – afirmou Annabelle, entrando na sala. – Pelo menos, sou boa em guardar grandes segredos. É com os pequenos que pareço ter problemas.
– Este é um grande segredo – disse Lillian a ela.
Hannah esperou, resignada, a situação ser explicada à Annabelle.
Ao receber a carta, Annabelle examinou o pergaminho queimado, e um leve sorriso lhe chegou aos lábios.
– Ah, que lindo. – Ela olhou para Hannah. – Isso não era para lady Natalie – disse ela decididamente. – Hannah, a atração de Rafe por você não passou despercebida. Na verdade, foi discretamente comentada.
– Ela quer dizer que todos estão fofocando sobre vocês – disse Daisy à Hannah.
– Acredito – continuou Annabelle – que Rafe goste de lady Natalie... com certeza há muito que se gostar nela. Mas ele ama você.
– Mas é impossível – disse Hannah com o rosto contraído de angústia.
– Impossível que ele possa amar você? – perguntou Daisy. – Ou impossível em razão do terrível acordo que papai fez em nome dele?
– Os dois – lamentou Hannah. – Primeiro, não sei se o que ele sente por mim é apenas uma paixão passageira... – Ela parou para secar os olhos que ardiam.
– “Pergunte-me daqui a uma hora” – Annabelle leu com voz suave a carta. – “Pergunte-me daqui a um mês. Um ano, dez anos, uma vida inteira....” Isso não é paixão passageira, Hannah.
– Mas mesmo que seja verdade – disse Hannah –, eu nunca o aceitaria, porque ele perderia tudo, inclusive seu relacionamento com o pai. Eu não iria querer que ele fizesse sacrifício tão grande.
– Nem nosso pai deveria pedir tanto dele – disse Lillian, sombriamente.
– Talvez eu deva dizer – comentou Daisy – que Matthew está decidido a ter uma conversa séria sobre isso com papai. Ele diz que não se deve permitir que papai cometa tais excessos.
Limites devem ser estabelecidos. Do contrário, ele vai tentar passar por cima de todo mundo. E, como Matthew tem muito poder de influência sobre o papai, é bem possível que possa convencê-lo a retirar suas exigências.
– Mas, independentemente do que aconteça – disse Annabelle à Hannah –, você não tem nada a ver com a relação entre Rafe e o pai. Sua única obrigação é abrir seu coração para o Rafe.
Por amor, e para o seu próprio bem, você deve dar a ele o direito de escolher. Ele merece saber dos seus sentimentos antes de tomar decisões importantes sobre o futuro.
Hannah sabia que Annabelle estava certa. Mas a verdade não era exatamente libertadora. E
só a fazia com que se sentisse vazia e pequena. Com a ponta do sapato, ela seguiu um padrão de medalhão florido que havia no tapete.
– Espero ter corgaem – disse ela, mais para si mesma do que para as outras.
– O amor vale o risco – disse Daisy.
– Se não contar a Rafe – acrescentou Lillian –, vai se arrepender para sempre, pois nunca saberá o que poderia ter acontecido.
– Conte a ele – disse Evie baixinho.
Hannah respirou fundo, trêmula, olhando para as quatro. Elas formavam um grupo peculiar, todas tão inteligentes e belas, mas... diferentes. Hannah tinha a sensação de que essas mulheres encorajavam as excentricidades umas das outras e apreciavam suas diferenças. Qualquer coisa poderia ser dita ou feita entre elas, e, seja lá o que fosse, elas aceitariam e perdoariam. Às vezes, em algumas raras e maravilhosas amizades, o laço do amor fraternal era muito mais forte do que qualquer laço de sangue.
Era bom estar junto delas. Sentia-se reconfortada na sua presença, sobretudo quando observava os familiares olhos escuros das irmãs Bowmans.
– Tudo bem – disse ela, com um frio na barriga. – Vou contar a ele. Amanhã.
– Amanhã à noite é o baile da véspera de Natal – disse Annabelle. – Você tem um vestido bonito para usar?
– Sim – respondeu Hannah. – Um branco. É muito simples, mas é o meu favorito.
– Tenho um colar de pérolas que poderia lhe emprestar – ofereceu Annabelle.
– Tenho luvas brancas de cetim para ela – exclamou Daisy.
Lillian sorriu.
– Hannah, vamos enfeitá-la mais do que a árvore de Natal.
A empregada trouxe o chá, e Lillian a mandou buscar xícaras extras.
– Quem quer chá com conhaque? – perguntou Lillian.
– Eu quero – disse Daisy.
– Vou tomar o m-meu sem o conhaque – murmurou Evie.
– Vou tomar o meu sem o chá – disse Annabelle.
Daisy, então, foi se sentar ao lado de Hannah, deu-lhe um lenço limpo e passou o braço ao redor de seus ombros.
– Sabe, querida – disse Daisy –, você é nossa primeira Flor Seca honorária. E nós trouxemos muito boa sorte uma à outra. Não tenho dúvidas de que isso se estenderá a você também.
Ligeiramente embriagada após um copo de conhaque puro, Lillian disse boa noite às Flores Secas, incluindo a mais nova integrante do grupo. Todas elas deixaram a sala Marsden e foram para os seus quartos. Então, caminhando lentamente em direção à suíte principal, Lillian ponderou sobre a situação do irmão e seu rosto foi tomado pela preocupação.
Lillian era uma mulher franca e direta, que preferia lidar com um problema encarando-o de frente. Entendia, no entanto, que aquele assunto devia ser tratado com discrição e sensibilidade.
O que significava que precisava manter-se fora dele. Ainda assim, ansiava que Rafe encontrasse a felicidade que merecia. E mais, queria muito sacudir seu teimoso pai e ordenar que ele parasse de manipular as vidas de todos ao seu redor.
Resolveu conversar com Westcliff, com quem sempre podia contar quando buscava consolo e bom senso. Mal podia esperar para ouvir suas opiniões sobre Rafe, Hannah e lady Natalie.
Então, calculando que ele ainda estaria lá embaixo com os convidados, dirigiu-se à grande escadaria.
Quando chegou ao topo da escada e se preparava para descer, viu seu marido parado no hall de entrada lá embaixo, conversando com alguém.
Lady Kittridge... de novo.
– Marcus – sussurrou ela, sentindo uma pontada de ciúme que logo se transformou em raiva.
Por Deus, ela não iria tolerar aquilo. Não perderia o afeto do seu marido para outra pessoa.
Não sem lutar. Cerrou os punhos. Embora cada instinto seu gritasse para ela descer em disparada e saltar entre seu marido e a loura, conseguiu se conter. Era uma condessa. Agiria dignamente e confrontaria Marcus em particular.
Primeiro, foi ao quarto de bebê dar boa-noite à pequena Merritt, que estava aconchegada em um berço enfeitado com renda, com uma babá cuidando dela. Ver sua adorável filha a acalmou um pouco. Passou a mão suavemente sobre o cabelo escuro da bebê. Sou a mãe da filha dele, pensou, desejando poder lançar as palavras como adagas na glamorosa lady Kittridge. Sou sua esposa. E ele ainda não deixou de me amar!
Em seguida, foi para o quarto principal, tomou banho, vestiu uma camisola e um roupão de veludo, e depois escovou seu longo cabelo escuro.
Seu coração começou a bater em disparada quando Marcus entrou no quarto. Ele parou ao vê-la, as longas mechas de cabelo caindo pelas suas costas, e sorriu. Ali na intimidade, seu comportamento autoritário desaparecia, e o conde todo-poderoso tornava-se um homem amoroso e perfeitamente mortal.
Ele tirou o casaco e colocou-o em uma cadeira. Em seguida, a gravata, e então foi ficar ao lado dela.
Lillian fechou os olhos quando as mãos dele tocaram sua cabeça, os dedos deslizando suavemente por seu cabelo solto, e depois massageando suas têmporas. Não conseguia parar de pensar nele, o poder contido de seu corpo, e o aroma doce e seco de ar livre que exalava. Ele a fascinava, aquele homem complexo com necessidades complexas. Criada sob a crítica irrestrita de seus pais, não era de admirar que ela ocasionalmente duvidasse ser suficiente para Marcus.
– Você está cansada? – perguntou ele com sua voz rouca e aveludada, tão distinta e agradável.
– Só um pouco.
Ela suspirou quando as mãos dele deslizaram por seus ombros, aliviando a tensão contida neles.
– Você poderia simplesmente se deitar e deixar que eu fizesse o resto – sugeriu ele, com um brilho nos olhos escuros.
– Sim, mas... tem uma coisa que preciso falar com você antes.
Maldição, havia um tremor em sua voz, apesar de estar tentando parecer calma e digna.
A expressão de Marcus mudou quando ouviu a angústia no seu tom. Levantou-a para ficar de frente para ele, e olhou para ela com preocupação imediata.
– O que é, meu amor?
Lillian respirou fundo uma vez. Outra. Seu medo, sua raiva e sua preocupação eram tão grandes que era difícil forçar as palavras a saírem.
– Eu... eu não deveria ficar no caminho de suas... atividades fora do casamento. Sei disso.
Entendo como funciona para os do seu gênero... Quero dizer, você fez isso por séculos, e imagino que era demais eu esperar que você... que eu... fosse ser suficiente. Tudo o que eu peço é que você seja discreto. Porque não é fácil vê-lo com ela... a maneira como você sorri, e... – Ela parou e cobriu o rosto com as mãos, mortificada por sentir lágrimas brotando em seus olhos.
Maldição.
– Meu gênero? – Marcus parecia perplexo. – O que eu fiz por séculos? Lillian, mas de que diabo você está falando?
Sua voz aflita passou através das mãos.
– Lady Kittridge.
Houve um breve instante de choque e silêncio.
– Você enlouqueceu? Lillian, olhe para mim. Lillian...
– Não posso olhar para você – murmurou ela.
Ele balançou-a de leve.
– Lillian... Devo entender que você acha que tenho um interesse pessoal nela?
O tom de indignação genuína em sua pergunta fez com que Lillian se sentisse um pouco melhor. Nenhum marido culpado poderia ter fingido uma reação tão perplexa. Por outro lado, nunca era uma boa ideia provocar Marcus. Ele geralmente demorava a se irritar, mas, uma vez irritado, as montanhas tremiam, os oceanos se abriam, e qualquer criatura com instinto de sobrevivência deveria correr e se esconder.
– Eu o vi conversando com ela – disse Lillian, baixando as mãos –, e sorrindo para ela, e trocando correspondências com ela. E... – Ela lançou-lhe um olhar infeliz de indignação. – Você mudou o jeito como amarra a gravata!
– Meu criado sugeriu isso – disse ele, parecendo confuso.
– E aquele novo truque na outra noite... aquela coisa nova que você fez na cama...
– Você não gostou? Maldição, Lillian, bastava você me dizer...
– Eu gostei – disse ela, enrubescendo. – Mas é um dos sinais, entende.
– Sinais de quê?
– De que você está cansado de mim – disse ela, a voz falando. – De que deseja outra pessoa.
Marcus olhou para ela e proferiu uma série de blasfêmias que chocaram Lillian, que também tinha um extenso vocabulário de xingamentos. Então pegou-a pelo braço e puxou-a para fora do quarto.
– Venha comigo.
– Agora? Assim? Marcus, não estou vestida...
– Não dou a mínima!
Finalmente o deixei louco, pensou Lillian, alarmada, enquanto ele a puxava atrás dele, descendo as escadas, atravessando o hall de entrada e passando por alguns criados atordoados.
Enfim saíram em meio à noite fria de dezembro. O que ele iria fazer? Jogá-la do penhasco?
– Marcus? – disse nervosa, apressando-se para acompanhar o ritmo de seus passos largos.
Ele não respondeu, e continuou levando-a pelo pátio em direção aos estábulos, passando pelo seu pátio central e pelo bebedouro para os cavalos, chegando ao espaço central e quente onde ficavam as fileiras de baias de cavalo muito bem equipadas. Os cavalos olharam para eles com ligeiro interesse quando Marcus puxou Lillian para o fim da primeira fileira. Havia uma baia com um grande e alegre laço vermelho preso no alto.
O estábulo continha uma égua árabe magnífica, com cerca de quatorze palmos de altura, com uma cabeça estreita e expressiva, grandes olhos brilhantes e tudo o que poderia haver de mais perfeito.
Lillian piscou, surpresa.
– Uma égua árabe branca? – indagou ela zonza, surpresa ao ver pela primeira vez uma criatura como aquela. – Ela parece saída de um conto de fadas.
– Tecnicamente ela está registrada como cinza – disse Marcus. – Mas o tom é tão claro, que parece ligeiramente prateada. Seu nome é Misty Moonlight. – Ele lançou-lhe um olhar sarcástico. – Ela é o seu presente de Natal. Você perguntou se poderíamos trabalhar suas habilidades de equitação juntos, lembra?
– Ah.
Lillian de repente ficou sem ar.
– Levei seis longos meses para consegui-la – continuou Marcus secamente. – Lady Kittridge é a melhor criadora de cavalos da Inglaterra e muito exigente com quem vende um dos seus árabes. E, como este cavalo tinha sido prometido a outra pessoa, eu tive de subornar e intimidar o outro comprador, e pagar uma maldita fortuna para lady Kittridge.
– E é por isso que você tem se comunicado com tanta frequência com lady Kittridge?
– Sim. – Ele franziu a testa para ela.
– Ah, Marcus!
Lillian foi dominada por um alívio e uma felicidade enormes.
– E, em troca do meu esforço – grunhiu ele –, sou acusado de infidelidade! Eu a amo mais do que minha própria vida. Desde que a conheci, nunca mais pensei em outra mulher. E está além das minhas capacidades compreender como você acha que eu poderia desejar outra pessoa se passamos toda santa noite juntos!
Ao perceber que ele tinha ficado mortalmente ofendido e que sua indignação aumentava a cada segundo, Lillian lhe ofereceu um sorriso apaziguador.
– Nunca pensei que você chegaria a me trair dessa maneira. Só estava com medo que você a achasse tentadora. E eu...
– A única coisa que acho tentadora é a ideia de levá-la até a selaria e bater com uma correia de sela no seu traseiro. Várias vezes. Com força.
Lillian recuou quando seu marido se aproximou dela ameaçadoramente. Sentia uma mistura de alívio e medo.
– Marcus, está tudo resolvido. Acredito em você. Não estou mais nem um pouco preocupada.
– Você deveria estar preocupada – disse ele com fria suavidade. – Porque está claro que, a menos que haja consequências para essa falta de fé em mim...
– Consequências? – gemeu ela.
– ...este problema poderá surgir de novo no futuro. Por isso vou deixar definitivamente bem claro o que eu quero, e com quem.
Então, encarando o marido com os olhos arregalados, Lillian se perguntou se ele iria bater nela, violá-la, ou as duas coisas. Ela calculou suas chances de escapar. Não eram nada boas.
Marcus, com seu corpo forte, mas ágil, estava incrivelmente em forma. Era rápido como um raio e provavelmente poderia ultrapassar uma lebre. Observando-a atenção, ele tirou o colete e jogou-o no chão coberto de feno. Em seguida, pegou uma manta de cavalo de uma pilha dobrada, e abriu-a sobre um monte de feno.
– Venha aqui – disse ele calmamente, com a expressão implacável.
Os olhos dela se arregalaram. Risadas descontroladas e meio histéricas subiam pela sua garganta. Ela tentou se manter firme.
– Marcus, há certas coisas que não devem ser feitas na frente de crianças ou cavalos.
– Não há crianças aqui. E meus cavalos não fazem fofoca.
Lillian tentou passar por ele. Marcus a pegou com facilidade, atirando-a no feno coberto pela manta. E, enquanto ela gritava e protestava, ele rasgou a camisola dela. Sua boca tomou a dela, suas mãos deslizaram pelo corpo de Lillian com uma necessidade insolente. Um grito rasgou a garganta dela quando ele se curvou em direção aos seios, mordiscando delicadamente os bicos, depois aliviando as pequenas dores com a língua. Ele fez todas as coisas que sabia que a excitariam, suas carícias suaves, mas implacáveis, até ela arfar algumas palavras de rendição.
Abrindo as calças com habilidade, ele arremeteu profundamente para dentro dela com uma força primitiva.
Lillian estremeceu de êxtase e agarrou as costas fortes e arqueadas dele. Marcus a beijou, com a boca bruta e ávida, seu corpo se movendo em um ritmo poderoso.
– Marcus – disse Lillian, sem ar –, nunca mais vou duvidar de você... ah, Deus...
Ele sorriu secretamente contra o cabelo de Lillian e puxou os quadris dela para ele.
– É melhor não – sussurrou ele. E, noite adentro, ele teve o que queria com ela.
CAPÍTULO 14
Hannah tentou em vão encontrar uma oportunidade de conversar com Rafe no dia seguinte.
Não conseguia encontrá-lo em lugar nenhum. E também não sabia onde estava Natalie e os Blandfords, ou os Bowmans. Tinha a sensação inquietante de que algo estava acontecendo.
A mansão Stony Cross fervilhava de atividade, convidados cantavam, comiam, bebiam, enquanto as crianças faziam produções com um enorme teatro de brinquedo instalado em uma das salas.
Bem mais tarde naquele dia, Hannah finalmente avistou Rafe de relance enquanto passava pelo escritório de lorde Westcliff. Alguém deixara a porta aberta, e ela pôde vê-lo lá dentro conversando com Westcliff e o Sr. Swift. Ela parou, hesitante, e Rafe olhou em sua direção. Ele se afastou imediatamente da mesa em que estava apoiado e murmurou para os outros:
– Um momento, senhores.
Rafe foi até o corredor com a expressão contida. Mas um sorriso curvou os cantos de sua boca quando olhou para ela.
– Hannah...
A suavidade da voz dele a fez sentir um arrepio nas costas.
– Você... você disse que queria falar comigo hoje.
– Sim, eu disse. Eu quero. Perdoe-me... ando ocupado com alguns assuntos. – Então estendeu a mão para tocá-la como se não pudesse se conter, encostando, de leve, na manga de seu vestido.
– Precisaremos de tempo e privacidade para o que eu quero conversar... e essas duas coisas estão bastante difíceis de conseguir hoje.
– Talvez mais tarde, hoje à noite? – sugeriu ela, hesitante.
– Sim. Eu a encontro. – Em seguida, recolhendo a mão, curvou-se um pouco, em sinal de gentileza. – Até breve.
Quando Hannah subiu as escadas para ajudar Natalie a colocar o vestido de baile e depois se arrumar, ficou intrigada ao descobrir que a prima já estava completamente vestida.
Estava magnífica em um vestido de cetim azul-claro, arrematado por um tule azul. Seus cachos dourados estavam presos no alto da cabeça.
– Hannah – exclamou Natalie, deixando o quarto em companhia de lady Blandford. – Tenho algo a lhe contar... algo muito importante...
– Você pode contar a ela mais tarde – interrompeu lady Blandford, parecendo tão distraída quanto a filha. – Lorde Blandford e lorde Westcliff estão lá embaixo, Natalie. Não podemos deixá-los esperando.
– Sim, claro. – Os olhos azuis de Natalie brilhavam de emoção. – Nós nos falaremos em breve, Hannah.
Confusa, Hannah assistiu às duas seguirem depressa pelo corredor. Com certeza estava acontecendo alguma coisa, pensou, e uma onda de preocupação provocou um suor frio sob as camadas de suas roupas.
Uma camareira a aguardava dentro do quarto.
– Srta. Appleton, lady Westcliff me mandou aqui para ajudá-la a se arrumar para o baile.
– Mandou? Isso é muito gentil. Não costumo precisar muito de ajuda, mas...
– Sou muito boa em fazer penteados – disse a criada com firmeza. – E lady Westcliff me disse para usar seus próprios grampos de pérolas em você. Agora, se puder se sentar à penteadeira, senhorita...?
Tocada pela generosidade de Lillian em enviar sua própria camareira, Hannah aceitou a ajuda. Levou uma eternidade para seu cabelo ser enrolado com pinças quentes, e preso em cachos no alto, com reluzentes pérolas brancas espalhadas pelas mechas escuras. A criada ajudou-a a colocar o vestido branco e deu-lhe um par de meias de seda bordadas de prata enviadas por Evie. Depois de prender um colar de pérolas de Annabelle Hunt no pescoço de Hannah, a criada ajudou-a a colocar um par de longas luvas de cetim branco, de Daisy Swift. As Flores Secas, pensou Hannah com um sorriso grato, eram seu próprio grupo de fadas madrinhas.
A criada arrematou com um pouco de pó no nariz e na testa de Hannah, e bálsamo de pétalas de rosa nos lábios.
Hannah estava ligeiramente espantada com seu próprio reflexo elegante, os olhos verdes e arregalados, o elaborado penteado contrastando de maneira belíssima com a simplicidade do vestido branco.
– Está muito bonita, senhorita – disse a criada. – É melhor descer logo... o baile já vai começar.
Hannah estava nervosa demais para ser tentada pelo magnífico buffet de iguarias disposto em longas mesas. Os convidados se deliciariam com os petiscos durante o baile e, mais tarde, um jantar formal seria servido. Assim que apareceu no salão de baile, juntaram-se a ela Lillian e Daisy, que elogiaram sua aparência.
– Vocês duas são muito gentis – disse Hannah com sinceridade. – E emprestar-me as pérolas e as luvas foi mais do que generoso...
– Temos nossos interesses – respondeu Daisy.
Hannah esboçou um olhar perplexo.
– Interesses muito bons – disse Lillian com um sorriso. – Queremos que seja nossa irmã.
– Já falou com Rafe? – sussurrou Daisy.
Hannah balançou a cabeça.
– Mal o vi o dia todo. Ela sumiu por um tempo, e mais tarde eu o vi no escritório de lorde Westcliff.
– Alguma coisa está acontecendo – disse Lillian. – Westcliff também ficou ocupado o dia todo. E meus pais não estão em lugar nenhum.
– Os Blandfords também – comentou Hannah apreensivamente. – O que significa tudo isso?
– Eu não sei. – Lillian abriu um sorriso tranquilizador. – Mas tenho certeza de que tudo ficará bem. – Então passou o braço pelo de Hannah. – Venha ver a árvore.
Com todas as velas acesas, a árvore de Natal era uma visão espetacular, centenas de minúsculas chamas brilhando por entre seus ramos. Todo o salão de baile estava decorado com plantas e veludo vermelho e dourado. Hannah nunca estivera em um evento tão deslumbrante.
Maravilhada, ela olhou em torno da sala, vendo casais rodopiarem pelo salão enquanto a orquestra tocava músicas natalinas em ritmo de valsa. Os candelabros derramavam sua luz cintilante na cena. Pelas janelas mais próximas, ela viu o brilho de tochas que tinham sido colocadas nos jardins, cintilando contra um céu da cor de ameixas.
E então viu Rafe do outro lado da sala. Como os outros homens presentes, ele estava vestido de preto e branco, como manda a tradição. Vê-lo assim, tão carismático e bonito, deixou-a zonza de desejo.
Seus olhares se encontraram a distância, e ele examinou-a atentamente, sem perder nenhum detalhe da sua aparência. A boca de Rafe se curvou em um sorriso lento e fácil, e os joelhos dela pareciam ter virado geleia.
– Aqui, senhorita.
Um criado chegou com uma bandeja de champanhe. Taças da clássica bebida estavam sendo distribuídas a todos os convidados. A orquestra fez uma pausa. Ouviu-se um som que ecoou como prata em cristal.
– O que houve? – perguntou Lillian, erguendo as sobrancelhas enquanto ela e Daisy tomavam um pouco de champanhe.
– Parece que alguém vai fazer um brinde – comentou Daisy.
Ao ver lorde Blandford trazer Natalie consigo do outro lado da sala, Hannah agarrou firmemente a haste de sua taça de champanhe. E sentiu todo o seu corpo se retesar com o pressentimento.
Não... Não poderia ser.
– Meus amigos – disse Blandford algumas vezes, atraindo a atenção de todos. Os convidados se silenciaram e olharam para ele, curiosos. – Como muitos de vocês sabem, lady Blandford e eu fomos abençoados com apenas uma filha, nossa amada Natalie. E agora chegou a hora de entregá-la aos cuidados de um homem a quem confiaremos sua felicidade e sua proteção, enquanto eles embarcam em uma jornada de vida juntos...
– Ah, não – Hannah ouviu Lillian sussurrar.
Hannah sentiu o frio se concentrar em seu peito até atingir seu coração. Lorde Blandford continuou a falar, mas ela não conseguiu ouvir as palavras em meio ao zumbido que tomou conta dos seus ouvidos. Sua garganta se fechou em um grito angustiado.
Ela tinha esperado tempo demais. Suas mãos começaram a tremer tanto que ela não conseguia mais segurar a taça de champanhe. Ela entregou o copo para Daisy.
– Por favor, pegue isso – disse com voz sufocada. – Eu não posso... eu tenho que... – Então se virou cheia de pânico e angústia, e correu para a saída mais próxima, uma das portas francesas que levavam para a área externa da mansão.
– Neste feriado tão feliz – continuava Blandford –, tenho a honra e o prazer de anunciar um noivado. Façamos um brinde à minha filha e ao homem a quem ela dará sua mão em casamento...
Hannah saiu pela porta e fechou-a, inspirando desesperadamente o ar frio de inverno. E então ouviu o som abafado de comemoração lá dentro.
O brinde tinha sido feito.
Rafe e Natalie estavam noivos.
Ela quase cambaleou sob o peso da própria dor. Pensamentos descontrolados corriam pela sua mente. Ela não podia encarar nada nem ninguém. Teria de ir embora naquela noite... de volta para seu pai e suas irmãs... nunca mais poderia ver Natalie, Rafe ou os Blandfords. Odiava Rafe por ter despertado seu amor por ele. Odiava a si mesma. Queria morrer.
Hannah, não seja idiota, pensou desesperadamente. Você não é a primeira mulher a sofrer por amor, nem será a última. Você vai sobreviver.
Quanto mais buscava o autocontrole, mais ele parecia lhe escapar. Tinha de encontrar um lugar onde pudesse desmoronar. Saiu para o jardim, seguindo um dos caminhos iluminados pelas tochas. Ao alcançar a pequena clareira com a fonte em forma de sereia, sentou-se em um dos duros e congelantes bancos de pedra. Quando cobriu o rosto com as mãos, as lágrimas quentes encharcaram as luvas brancas de cetim. Cada soluço rasgava seu peito como uma navalha.
E então, em meio aos suspiros dolorosos de infelicidade, ouviu alguém dizer seu nome.
Se alguém a visse assim seria uma humilhação terrível. Hannah balançou a cabeça e se encolheu angustiada, conseguindo dizer, indefesa.
– Por favor, me deixe...
Mas um homem sentou-se ao seu lado, e ela foi envolvida por braços quentes e fortes. Sua cabeça foi puxada em direção a um peito firme.
– Hannah, meu amor... não. Não chore. Era a voz grave de Rafe, seu cheiro familiar. Ela tentou afastá-lo, mas Rafe segurou-a com firmeza, a cabeça curvada sobre a dela. Murmurando palavras de ternura, ele acariciou o cabelo dela e beijou sua testa. Os lábios dele roçaram seus cílios molhados. – Venha, não há necessidade disso, querida. Fique calma, está tudo bem. Olhe para mim, Hannah.
O intenso prazer de ser abraçada por ele, confortada por ele, só a fez se sentir ainda pior.
– Você deveria voltar para lá – disse ela, deixando escapar alguns soluços. – Com Natalie.
Rafe acariciava as costas dela em círculos firmes.
– Hannah, querida. Por favor, acalme-se para podermos conversar.
– Eu não quero falar...
– Eu quero. E você vai me ouvir. Respire fundo. Boa menina. De novo. – Rafe a soltou para tirar seu casaco de noite e colocá-lo em volta do corpo trêmulo de Hannah. – Não achei que Blandford fosse fazer o anúncio tão depressa – disse ele, puxando-a para mais perto –, ou teria tentado falar com você primeiro.
– Não importa – disse ela enquanto seu desespero se transformava em raiva. – Nada importa. Nem tente...
Rafe cobriu a boca de Hannah com a mão e olhou para ela. Iluminado pelas tochas, seu rosto estava parcialmente encoberto pelas sombras, seus olhos escuros brilhavam. Sua voz era quente e rouca, e carinhosamente repreensora. – Se tivesse ficado no salão de baile por mais trinta segundos, minha amada impulsiva, você teria ouvido Blandford anunciando o noivado de Natalie com lorde Travers.
O corpo inteiro de Hannah ficou rígido. Ela não conseguia nem respirar.
– Com a exceção de uma pequena coisa que tive de fazer na vila – continuou Rafe –, passei o dia conversando com meus pais, os Blandfords, Westcliff... e, o mais importante, com Natalie. – Ele tirou a mão da boca de Hannah e revirou o bolso do casaco. Então pegou um lenço e enxugou com suavidade seu rosto úmido. – Eu disse a ela que – continuou ele –, por mais linda e atraente que a achasse, não poderia me casar com ela, porque nunca poderia gostar dela da maneira que merecia. Porque eu tinha me apaixonado, profundamente e para todo o sempre, por outra pessoa. – Ele sorriu vendo os olhos atordoados de Hannah. – Acredito que ela tenha ido direto falar com Travers depois disso, e, ao reconfortá-la e aconselhá-la, ele provavelmente confessou seus próprios sentimentos. Espero que ela não tenha decidido ficar noiva por impulso só para não ficar sem graça. Mas isso não é da minha conta.
Então, envolvendo o rosto de Hannah em suas mãos, Rafe esperou que ela dissesse alguma coisa. Ela só balançou a cabeça, aturdida demais para conseguir falar.
– Naquele dia na biblioteca – disse ele –, quando quase fiz amor com você, percebi depois que eu queria ter sido pego. Queria que tivessem nos flagrado, queria qualquer coisa que me permitisse ficar com você. E percebi então que não poderia me casar com Natalie, porque a vida é muito longa para dividi-la com a mulher errada.
Sua cabeça e seus ombros ocultaram a luz das tochas quando ele se curvou sobre Hannah, sua boca tomou a dela em um beijo lento e penetrante. Ele conseguiu fazer os lábios trêmulos dela se abrirem, explorando-a com uma ternura ardente que fez o coração dela bater com uma força dolorosa. Ela arfou quando sentiu a mão dele deslizar para dentro do casaco, acariciando a macia pele exposta pelo corpete decotado de seu vestido de baile.
– Querida Hannah – sussurrou ele –, quando vi você chorando agora, pensei: “Por favor, Deus, que seja porque ela gosta deste terrível canalha que eu sou. Que ela me ame pelo menos um pouco.”
– Eu estava chorando – ela conseguiu dizer – porque meu coração estava em prantos só de pensar que você se casaria com outra pessoa. – Ela teve de firmar o queixo contra um tremor de emoção. – Porque eu... eu queria você para mim.
O brilho da paixão nos olhos dele fez o coração dela disparar.
– Então tenho algo a lhe perguntar, meu amor, mas primeiro você precisa entender... Não vou herdar a saboaria da família. Mas isso não significa que não posso cuidar de você. Sou um homem rico por meu próprio mérito. E vou pegar tudo o que ganhei de maneira não muito justa e usar de uma boa forma. Há oportunidades em todos os lugares.
Hannah tinha dificuldades para pensar com clareza e precisava se concentrar para entender o que ele dizia, como se estivesse traduzindo uma língua estrangeira.
– Você foi deserdado? – sussurrou finalmente, preocupada.
Rafe, então, se afastou um pouco dela e assentiu. Seu rosto estava sério e decidido.
– Foi melhor assim. Algum dia no futuro, meu pai e eu talvez possamos encontrar uma maneira de nos aceitarmos. Mas, enquanto isso, não vou viver de acordo com o que nenhum homem determina.
Ela levou a mão ao rosto dele, acariciando-o suavemente.
– Não queria que você fizesse um sacrifício assim tão grande por mim.
Os olhos dele se fecharam ao toque dela.
– Não foi um sacrifício, foi a minha salvação. Meu pai vê isso como uma fraqueza, é claro, mas eu lhe disse que não sou menos homem por amar alguém assim. Na verdade, sou mais homem agora. E você não tem obrigação alguma, sabe? Não quero que você...
– Rafe – disse ela, hesitante. – Obrigação não faz parte do que sinto por você.
O olhar no rosto dele fez com que ela derretesse por dentro. Pegando uma de suas mãos, ele tirou a luva dela sem pressa, puxando suavemente nas pontas para soltá-la. Depois de tirar o cetim branco, ele beijou as costas da sua mão e colocou a palma de Hannah contra seu rosto quente e bem barbeado.
– Hannah, eu amo você quase mais do que posso suportar. Quer você me queira, quer não, eu sou seu. E não tenho certeza do que vai acontecer comigo se eu tiver de passar o resto da minha vida sem você. Por favor, case-se comigo para que eu possa parar de tentar ser feliz e passe finalmente a ser feliz. Sei que isso tudo aconteceu muito depressa, mas...
– Algumas coisas não podem ser medidas pelo tempo – disse Hannah com um sorriso trêmulo.
Rafe ficou imóvel e lançou-lhe um olhar confuso.
– Uma das empregadas encontrou uma carta de amor meio queimada na lareira do seu quarto
– explicou Hannah –, e levou para Natalie, que me mostrou. Natalie achou que fosse para ela.
Mesmo na escuridão, ela pôde ver Rafe ficar vermelho.
– Bem, mas que diabo – disse ele em tom pesaroso. Então puxou-a para perto e sussurrou contra sua orelha. – Era para você. Cada palavra era sobre você. Você deve ter percebido quando leu.
– Eu queria que fosse sobre mim – disse Hannah timidamente. – E... – seu rosto também corou – ...as coisas que você escreveu, eu queria tudo aquilo também.
Ele riu baixinho e se afastou para olhar para ela.
– Então me dê sua resposta. – E lhe deu um beijo breve e apaixonado. – Diga, ou terei de continuar beijando você até se render.
– Sim – disse ela, ofegante de alegria. – Sim, eu me caso com você. Porque eu também amo você, Rafe, eu amo...
Ele tomou a boca de Hannah com a sua e beijou-a avidamente, despenteando seu cabelo. Ela não se importou nem um pouco. Sua boca era quente, deliciosa, consumindo-a com suaves carícias sensuais, depois invadindo-a com força. Hannah correspondia apaixonadamente, tremendo em seus braços enquanto o corpo dela tentava acomodar aquele excesso de prazer que a inundava depressa demais.
Rafe correu seus lábios entreabertos lentamente pelo pescoço de Hannah, excitando terminações nervosas, deixando uma trilha de fogo em seu rastro. Sua boca escorregou até o seu colo, e, dentro do confinamento do corpete, ela sentiu os bicos de seus seios enrijecerem, sensíveis.
– Hannah – sussurrou ele, cobrindo sua pele de beijos febris –, nunca quis tanto alguém assim. Você é linda em todos os sentidos... e tudo o que descubro sobre você me faz amá-la mais... – Ele levantou a cabeça e balançou-a firmemente como para se lembrar de onde estava.
Um sorriso atrevido surgiu em seus lábios. – Meu Deus, é melhor que o noivado seja curto.
Aqui, me dê sua mão... não, a outra. – Ele procurou em um dos bolsos do casaco e pegou um pequeno aro brilhante. Um anel de prata com uma pedra vermelha. – Fui à vila hoje por isso –
disse ele, colocando o anel no quarto dedo da noiva. – Vou comprar um de diamante para você em Londres, mas precisávamos começar com alguma coisa.
– É perfeito – disse Hannah, admirando o anel com brilho nos olhos. – Essa pedra significa amor duradouro. Você sabia disso?
Ele balançou a cabeça, encarando-a como se ela fosse um milagre.
Então Hannah envolveu-o em seus braços e o beijou impulsivamente. Rafe inclinou sua cabeça, possuindo seus lábios com uma urgência erótica e suave. Ela correu as mãos pelas linhas fortes do corpo dele em uma exploração tímida, mas ardente, até senti-lo estremecer.
Arfando, ele a afastou.
– Hannah, querida, eu... cheguei ao meu limite. Temos que parar.
– Eu não quero parar.
– Eu sei, amor, mas tenho de levá-la de volta lá para dentro antes que todos deem pela nossa falta.
Tudo nela se rebelava ao pensar em voltar para o salão de baile grande e lotado. A conversa, a dança, a longa ceia formal... seria uma tortura, quando tudo que ela queria era estar com ele.
Então, ousadamente, Hannah estendeu a mão para brincar com os botões do colete dele.
– Leve-me para a casa de solteiro. Tenho certeza de que está vazia. Todos estão na mansão.
Ele lançou-lhe um olhar cheio de desejo.
– Se eu fizesse isso, querida, não haveria como você sair de lá com sua inocência intacta.
– Quero que você me possua – disse ela.
– Você quer? Por quê, amor?
– Porque quero ser sua em todos os sentidos.
– Você já é – murmurou ele.
– Não dessa forma. Não ainda. E, mesmo que você não me tenha, vou dizer a todos que foi o que fez. Então é melhor você fazer de verdade.
Rafe riu da ameaça.
– Nos Estados Unidos – disse a ela –, diríamos que você está tentando selar o negócio. –
Então, ele delicadamente pegou seu rosto entre as mãos, e acariciou as suas bochechas com os polegares. – Mas você não precisa disso, querida. Não há nada no mundo que me impeça de me casar com você. Você pode confiar em mim.
– Eu confio em você, mas...
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Mas?
A pele sob os dedos dele ficou alguns graus mais quente.
– Eu quero você. Quero estar com você. Como você escreveu na carta.
Ele, então, abriu um daqueles sorrisos lentos que provocavam arrepios quentes e frios pela espinha dela.
– Nesse caso... talvez eu não tenha muita opção.
Rafe puxou Hannah do banco e a levou para a casa de solteiro. Lutou com ele mesmo a cada passo do caminho, sabendo que a coisa certa a fazer era levá-la de volta à mansão sem demora.
E, no entanto, o desejo de ficar a sós com ela, de abraçá-la na intimidade, era simplesmente avassalador demais para resistir.
Eles entraram na casa de solteiro, com seus móveis escuros, paredes com painéis e luxuosos tapetes. Os carvões brilhavam na lareira do quarto, espalhando um brilho amarelo e laranja pelo chão.
Rafe acendeu um lampião na cabeceira, deixando a luz baixa, e virou-se para olhar para Hannah. Ela havia tirado seu casaco e estava tentando soltar as costas do vestido de baile. Ele viu a expressão no rosto dela, procurando parecer indiferente como se ir para a cama com um homem fosse algo normal, e foi invadido por uma sensação de alegria e ternura, e também pela mais profana luxúria que já tinha sentido.
Rafe estendeu o braço, fechando suas mãos sobre as dela.
– Você não tem de fazer isso – disse ele. – Vou esperar por você. Vou esperar o tempo que for necessário.
Hannah soltou as mãos e passou-as por trás do pescoço dele.
– Não consigo pensar em nada que eu queira mais – disse ela.
Ele se inclinou para beijá-la, parando apenas para murmurar:
– Ah, amor, nem eu.
Lentamente, ele removeu as camadas de seda e linho, desatou o espartilho dela e enrolou as meias de suas pernas. Quando todas as peças se foram e ela estava estendida na cama diante dele, corada, Rafe deixou o olhar vagar pelo corpo esbelto e soltou um suspiro. Ela era tão linda, tão inocente e confiante. Ele tocou um dos seios dela, moldando-o suavemente com os dedos.
Hannah ergueu o olhar até o rosto dele.
– Você está nervoso? – perguntou ela com um toque de surpresa.
Rafe assentiu, roçando o polegar sobre um mamilo cor-de-rosa e observando-o endurecer.
– Nunca foi um ato de amor para mim antes.
– E isso torna as coisas diferentes?
Um sorriso irônico tomou os lábios dele ao pensar nisso.
– Não tenho certeza, mas há uma maneira de descobrir.
Ele se despiu e se deitou ao lado dela, envolvendo-a carinhosamente em seus braços. Apesar do desejo que o agitava, ele a pressionou contra o seu corpo com uma delicadeza controlada, deixando que ela o sentisse. Só depois deslizou uma das mãos sobre o traseiro dela, acariciando-o em círculos envolventes.
Ela ficou sem ar ao sentir o corpo dele contra o dela. Uma pequena mão foi até o peito dele, explorando delicadamente.
– Rafe... como devo tocá-lo?
Ele sorriu e beijou o pescoço dela, saboreando sua suavidade e seu cheiro feminino.
– Em qualquer lugar, amor, como você quiser.
Ele ficou imóvel enquanto ela brincava com os poucos pelos no seu peito.
Olhando fixamente nos olhos de Rafe, Hannah deixou sua palma deslizar para os músculos do abdômen dele, acariciando até eles se contraírem em resposta. Ela tateou um pouco, tocando seu corpo excitado, o comprimento duro e macio pulsando de desejo masculino. Hannah fez algumas carícias hesitantes e a reação dele foi tão forte que ele arfou com a sensação que se intensificava.
– Hannah – ele conseguiu dizer, estendendo a mão para afastar a dela. – Mudança de plano.
Na próxima vez... – ele parou, lutando para manter o controle –, você pode explorar o quanto quiser, mas, por enquanto, deixe-me fazer amor com você.
– Eu fiz algo errado? Você não gostou do jeito que eu...
– Eu gostei demais. Se eu gostasse mais, tudo terminaria em menos de um minuto. – Então ele se ergueu por cima de Hannah e beijou todo o corpo dela e demorou-se em seus seios, puxando-os, provocando-os e mordendo-os suavemente. Ele se deliciou com a intensa reação dela, o rubor da excitação, a maneira instintiva como ela se movia em direção a ele para seguir a fonte do prazer.
Então, Rafe abriu as coxas dela e descansou sua mão no meio, encaixando sua palma sobre o triângulo aveludado. E ele a segurou suavemente até ela se contorcer e gemer, precisando de mais. Deslizando para baixo, Rafe beijou a barriga de Hannah, deixando sua língua traçar círculos delicados em torno do umbigo dela. Ele nunca estivera tão excitado, tão completamente absorto no prazer de outra pessoa. A intimidade era quase insuportável. Ele respirava rápida e ofegantemente quando encontrou a entrada do corpo dela e provocou-a, passando a ponta do dedo em volta.
– Hannah, querida – sussurrou ele –, relaxe para mim. – Então enfiou o dedo naquele calor luxuriante e úmido, que pressionava sua mão com força. Senti-la era algo tão delicioso, que deixou escapar um gemido. – Tenho de beijá-la aqui, tenho de sentir seu gosto. Não, não tenha medo... só me deixe... ah, Hannah, meu amor... – Ele passou sua boca direto pelas dobras, e procurou avidamente a pequena projeção dura e sedosa. Seus sentidos foram tomados por um prazer radiante, todos os seus músculos retesados de desejo. O gosto dela, salgado e feminino, era insanamente excitante. Ele passou a língua por ela, estimulando-a em círculos, deleitando-se com os gritos indefesos que ela emitia. Então deslizou o dedo mais profundamente, e de novo, mostrando-lhe o ritmo.
Ela estendeu os braços com um grito, segurando a cabeça dele. Com uma habilidade carinhosa, ele a levava ao clímax, deliciando-se com o seu calor macio e pulsante. Muito tempo depois que o corpo dela se acalmou, ele prosseguiu, passando a língua pelo seu calor rosado, levando-a a um estado entorpecido.
– Rafe – disse ela, decidida, puxando-o para cima dela.
Sorrindo, ele subiu o corpo, olhando em seus olhos verdes embriagados.
– Mais – sussurrou ela, e passou os braços pelas costas dele. – Quero mais de você.
Então, murmurando o nome de Hannah, Rafe baixou o corpo até o aconchego das suas coxas.
E foi invadido por uma onda de satisfação primitiva ao sentir aquela maciez se abrindo para ele.
Penetrou então a carne resistente, tão quente, tão molhada, e, quanto mais fundo ia, mais firmemente ela se fechava ao seu redor. Ele arremeteu bem fundo e ficou, tentando não machucá-la. Aquilo era diferente de tudo que já havia sentido antes, um prazer além da imaginação. Então tomou o rosto de Hannah em suas mãos e a beijou, enquanto seus sentidos estavam em êxtase.
– Desculpe, amor – disse ele com voz gutural. – Sinto muito por machucar você.
Hannah sorriu e o puxou para perto dela.
– Como um estrangeiro entra em um país desconhecido... – sussurrou contra a orelha dele.
Rafe soltou uma leve risada.
– Deus, você nunca vai me deixar esquecer essa carta, vai?
– Eu nem cheguei a lê-la toda – disse ela. – Partes dela foram queimadas, e agora nunca vou saber tudo o que você escreveu.
– As passagens que você perdeu provavelmente eram sobre isso – murmurou ele, enfiando delicadamente mais fundo nela. Os dois ficaram sem ar e imóveis, desfrutando aquela sensação.
Rafe sorriu. – Escrevi muito sobre isso.
– Diga o que você escreveu.
Ele sussurrou em seu ouvido palavras de amor e elogios íntimos, e todo o desejo que sentira.
E, a cada palavra, ele sentia algo se abrindo dentro dele, uma sensação de liberdade, poder e ternura. Ela se movia com ele, acolhendo-o mais fundo, e o êxtase de senti-la se juntar a ele percorreu seu corpo de forma violenta, levando-o a uma liberação transcendente e avassaladora.
De fato... O amor transformava tudo.
Rafe ficou abraçado a Hannah ainda por um longo tempo. Sua mão acariciava suavemente as costas e o quadril dela. Ele parecia não conseguir deixar de tocá-la. Hannah se aconchegou na curva de seu braço, o corpo pesado e saciado.
– Isso está mesmo acontecendo? – sussurrou ela. – Parece um sonho.
Seu peito foi tomado por uma forte emoção.
– Vai parecer bem real amanhã de manhã, quando eu levá-la de volta à mansão, uma mulher com a reputação arruinada... Se eu já não tivesse contado a Westcliff sobre minhas intenções de me casar com você, diria que ele iria me receber com um chicote.
– Você não vai me levar de volta esta noite? – perguntou ela, satisfeita com a surpresa.
– Não. Em primeiro lugar, desarrumei seu penteado. Em segundo lugar, não tenho energia para sair desta cama... E em terceiro... há uma grande possibilidade de eu não ter terminado com você ainda.
– São todas razões muito boas. – Ela se sentou e tirou os grampos de pérola que restavam no seu cabelo. Então se inclinou sobre Rafe para colocá-los na mesa de cabeceira. Pegando o tronco dela em suas mãos, ele segurou-a sobre seu corpo e beijou os seios dela. – Rafe – protestou ela.
Ele parou, olhando para o rosto corado dela e sorriu.
– Recatada? – perguntou ele suavemente, e deitou-a na curva de seu braço mais uma vez. Em seguida, beijou a sua testa. – Bem, casar-se comigo vai curá-la disso em breve.
Hannah apoiou o rosto no peito de Rafe, e ele pôde sentir o seu sorriso.
– O que foi? – perguntou ele.
– Nossa primeira noite juntos. E nossa primeira manhã será uma manhã de Natal.
Rafe acariciou o seu quadril nu.
– E eu já desembrulhei meu presente.
– É bem fácil lhe dar algo – disse ela, fazendo-o rir.
– Sempre. Porque Hannah, meu amor, o único presente que sempre vou querer... – ele fez uma pausa para beijar os seu lábios sorridentes – ...é você.
EPÍLOGO
Na manhã de Natal, Matthew Swift caminhou até a casa de solteiro, com os sapatos e a bainha do casaco cobertos de neve fresca. Ele bateu à porta e esperou pacientemente Rafe ir atender. E, com um sorriso irônico, Swift disse ao cunhado:
– Tudo o que posso dizer é que todo mundo está falando, então é melhor você se casar com ela depressa.
Rafe, evidentemente, nem discutiu.
Swift também informou que, tocado pelo espírito das festas (e da pressão combinada de toda a família), Thomas Bowman tinha reconsiderado sua decisão de deserdar Rafe, e queria fazer as pazes. Mais tarde, sobre canecas de uma bebida quente feita com frutas, vinho tinto e do Porto, os homens chegaram a um acordo possível.
Rafe não concordou em entrar na sociedade com o pai, percebendo que isso seria, sem dúvida, uma fonte de conflito futuro entre eles. Em vez disso, entrou em uma sociedade altamente lucrativa com Simon Hunt e Westcliff, e dedicou seus talentos à fabricação de motores de locomotivas. Isso tirou um peso enorme dos ombros de Hunt, o que deixou Annabelle feliz e permitiu que Rafe e Hannah ficassem na Inglaterra, para a alegria de todos.
Com o tempo, Thomas Bowman acabou esquecendo que Hannah não era a nora que originalmente desejara para Rafe, e uma sólida afeição se desenvolveu entre eles.
Natalie se casou com lorde Travers, e eles foram muito felizes juntos. Ela confidenciou a Hannah que, quando fora atrás de Travers em busca de consolo na véspera de Natal, ele finalmente a beijara, e tinha sido um beijo pelo qual valera a pena esperar.
Algum tempo depois, Daisy terminou de escrever seu romance, que foi publicado e se tornou um grande sucesso de vendas, ainda que não tenha sido aclamado pela crítica.
Evie deu à luz mais tarde naquele ano uma menina alegre e cheia de vida, de cachos avermelhados, levando St. Vincent à conclusão de que era seu destino ser amado por mulheres ruivas, o que o deixou muito feliz.
Hannah e Rafe se casaram no fim de janeiro, mas consideraram o Natal como seu verdadeiro aniversário de casamento, e comemoravam sempre nesta data. A cada véspera de Natal, Rafe escrevia uma carta de amor e a deixava no travesseiro de Hannah.
Samuel Clark contratou uma nova assistente, uma jovem competente e agradável. Ao descobrir o formato auspicioso de seu crânio, casou-se com ela sem demora.
Em 1848, uma xilogravura da rainha e do príncipe Albert ao lado de sua árvore de Natal foi publicada no The Illustrated London News, popularizando o costume até que cada salão fosse agraciado com uma árvore decorada. Depois de ver a ilustração, Lillian observou com certa satisfação que sua árvore era muito mais alta.
A peruca de Thomas Bowman nunca foi encontrada. Mas ele se contentou em receber um chapéu muito elegante de presente de Westcliff no Natal.
Lisa Kleypas
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