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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS REGRAS DO AMOR / Day Leclaire
AS REGRAS DO AMOR / Day Leclaire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS REGRAS DO AMOR

 

REGRA 100: Todas as regras foram feitas para serem quebradas. Regra 21: Não existe amor a primeira vista...

Julian Lord, lindo e esperto, levava a vida comandado por suas proprias regras. Infelizmente, com a morte de sua tia Maudie, surgiram problemas em Willow´s End que não eram nem um pouco racionais. Ela escondera o testamento como se fosse um jogo, a fim de unir duas pessoas que mais amava...

Regra 68: Todas as relações devem ser baseadas em interesses comuns.

Lisa não era lógica, e sim a rainha da desorganização. Mas havia algo nela que despertou um Julian um desejo intenso de beijá-la. Talvez fosse somente uma quimica... ou talvez fosse o caso de dar lugar a regra 100...

 

 

                   Regra número 7

“Seu local de trabalho deve ser como sua mente: coordenado, adaptável, organizado e sério.”

Precisamente às 7:55 da manhã, Julian Lord parou à beira da calçada, na esquina das ruas West Chicago e North Dearborn.

Um minuto mais tarde, Julian se viu caído de costas, olhando o céu cinzento de Chicago. Ele demorou precisamente trinta e três segundos pan se recuperar do susto e ficar em pé outra vez. Outros dezessete segundos foram gastos enquanto procurava seus óculos com armação de tartaruga, que teve uma das lentes quebrada. Ainda levou mais onze segundos para recuperar a pasta preta de couro italiano.

Naquele momento, o táxi que o atropelara já estava longe.

Quando Julian chegou ao vigésimo primeiro andar do edificio McMillan, eram 8:01 horas, estava um minuto atrasado e totalmente enfurecido.

— Sr. Lord! — disse a sra. Pringle, assustada, quando ele entrou na sala. — O que aconteceu?

— Os motoristas de táxi de Chicago são verdadeiros demônios que estão sempre tentando mandar o resto da humanidade para o inferno. Só fui salvo por ter reflexos rápidos e por um forte instinto de autopreservação. — Ele ajeitou a gravata e deu um leve sorriso. — E um alívio descobrir que não perdi minha agilidade durante a estada na Califórnia.

Um brilho divertido iluminou o olhar da sra. Pringle.

— Concordo inteiramente. Devo supor que a viagem foi bem-sucedida?

— Muito bem! — Julian olhou a pilha de correspondência sobre sua escrivaninha. — Vamos começar o trabalho?

— Seu joelho! mencionou a sra. Pringle, olhando a calça rasgada. — Está sangrando. Posso...

— Obrigado, não é necessário. Cuido disso assim que terminarmos de despachar. O que é mais urgente?

— Tudo, me parece... — ela respondeu com um suspiro, estendendo-lhe um maço de cartas. — Estas aqui exigem uma resposta imediata. As outras podem esperar.

Eficiente, a secretária segurou o bloco de anotações, pronta para registrar as instruções do chefe, que começou a folhear os papéis.

— Marque uma reunião com o pessoal da Telemat na segunda semana de setembro e com a FMT na semana seguinte. — Ele leu a terceira folha e, amassando-a, jogou fora, encestando-a no lixo com precisão. — Estamos perdendo tempo, tentando lidar com aquele homem. Quanto a esta... responda ao sr. McMill que estamos interessados. Marque uma reunião para ele com o Brad.

— Sim, senhor. E estas três últimas?

Julian deu uma olhada rápida.

— Sim para a primeira. Não para as outras duas. Alguém telefonou?

— Os recados estão na pasta azul, com exceção deste. Sua irmã de criação telefonou depois das cinco da tarde, ontem.

Ele franziu a testa.

— Ela mencionou qual era o assunto?

— Não exatamente. Quando lhe disse que o senhor estava voando de volta e só chegaria hoje, ela pareceu... um pouco perdida.

— Conhecendo bem Lisa, não duvido nem um pouco. Telefonarei para ela assim que tiver tempo. — Ele deu um sorriso indulgente. — E só isso, sra. Pringle?

— Sim, senhor.

— Então, por favor, anote. Em primeiro lugar... quero ver Brad Anderson, agora. Seria melhor se tivesse sido há três minutos. Em segundo, vou precisar da senhora para terminarmos os outros assuntos, daqui a meia hora. Em terceiro, quero um terno escuro para esta tarde. Pode ser de Canali ou Geoffrey Beene. Ambos têm minhas medidas.

Julian segurou os óculos quebrados, com uma expressão de desagrado.

— Em quarto e último lugar... entre em contato com meu oftalmologista e mande fazer um novo par de óculos. Quero uma armação preta, funcional e leve, o mais rápido possível. Creio que no momento é só. Alguma dúvida?

A sra. Pringle terminou as anotações e olhou para Julian.

— Nenhuma, sr. Lord. Vou tomar as providências imediatamente.

— Excelente. — Julian lançou-lhe um olhar de aprovação.

— Não sei o que eu faria sem a senhora.

— Nem eu — ela concordou.

Julian sorriu.

— Sua modéstia lhe dá todo crédito, sra. Pringle.

Antes que a porta se fechasse atrás de si, Julian já fizera um balanço das atividades do dia. Mudanças seriam necessárias na Executive Time Management. Seriam alterações drásticas, que afetariam sua rotina e a da companhia, mas ele gostava de um bom desafio.

Ao caminhar para sua escrivaninha uma pontada na perna esquerda lembrou-lhe o acidente. Julian foi ao toalete e pegou a caixa de primeiros socorros. Com a tesoura, abriu mais o rasgo da calça e, em poucos minutos, o ferimento estava lavado e o curativo feito.

— Minha esposa não faria melhor — uma voz comentou da porta.

Julian sorriu para o sócio.

— Então, livre-se dela. Faz tempo que acredito que esposas são uma comodidade pesada demais. A função delas na sociedade é puramente ornamental e sem praticidade alguma.

— Não sei se concordo com você, amigo. — Brad Anderson entrou no escritório. — Posso pensar em mais um ou dois usos para elas.

Julian deu uma risada. Era uma brincadeira antiga entre eles, que se iniciara na juventude e continuara através dos anos de faculdade.

 

— A função principal do casamento é legalizar a propagação da raça humana. Desde que já estamos bem desenvolvidos... — Julian se calou e terminou de arrumar o toalete impecável.

— E a outra flmção delas... — Brad sorriu, maliciosamente.

— Apesar da propaganda atual, “aquele” passatempo delicioso não requer casamento.

— Pobre Julian, você está um lixo. Trintão, rico, solteiro e infeliz.

— Sou tudo isso?

— E sim — Brad confirmou. — Mas logo você vai descobrir a saída. Qualquer dia desses, uma bela jovem vai fisgá-lo, para fazer de você o que bem entender.

Julian resmungou.

— De jeito nenhum. Este erro foi você quem cometeu, meu amigo, não eu. Deveria haver uma lei contra casamentos entre namorados do colégio.

— Assim fala o homem que teve tantas namoradas e por isso não conseguiu escolher nenhuma.

— Pode ser. Eu lhes dei um carinhoso beijo de despedida e as mandei passear... uma ação que recomendo como o auge da perfeição. — Julian sentou-se e mudou de assunto.

— Agora, Brad, conte-me as novidades da semana passada. Como estão Grieg e Sampson? Acha que já são capazes de assumir uma classe sozinhos?

— Eles estão prontíssimos! Os dois são ótimos. Podem começar amanhã mesmo. Tenho palestras agendadas para mantê-los ocupados, no mínimo, durante os próximos dezoito meses.

Julian sorriu satisfeito.

— Que ótimo!

— Muito bem, não consigo mais conter a curiosidade, Julian. O que aconteceu na Califórnia?

— Nada muito especial. — Julian se encostou na cadeira com um sorriso malicioso. — Apenas conseguimos um contrato com a terceira maior empresa de computadores do país. Querem combinar nossas aulas sobre administração do tempo útil com um programa de computador especial. Você sabe o conceito: divulgação nacional em uma enorme campanha publicitária, mostrando nossas aulas e o programa exclusivo deles. Só há um senão.

Brad sentou-se na cadeira na frente da escrivaninha, com uma expressão desolada.

— Eu sabia que era muito bom para ser verdade. Tinha de haver algum problema.

Julian inclinou-e para a frente.

— Espere só até ouvir isso. Para completar o pacote que oferecemos, eles querem um livro. Disseram que certamente será um best seiler. Pode acreditar? Como já discutimos o assunto muitas vezes, o trabalho preliminar está praticamente feito. Alguns meses de esforço concentrado e o livro estará pronto!

Com um grito de alegria, Brad se levantou.

— Sim! Nada vai nos deter agora!

— E hora de sermos práticos, Brad. Sem dúvida, esta é uma oportunidade fantástica, mas precisamos agir imediatamente! Significa mudanças e muito trabalho pesado nos próximos meses. Brad arregaçou as mangas da camisa.

— Estou pronto, pode atacar.

— A primeira mudança é que você vai assumir meu lugar e a operação aqui. Utilize Grieg e Sampson para o trabalho de campo e fique no escritório.

— Vamos precisar contratar mais gente — Brad falou.

— Então, pode providenciar. Depois coordene tudo sob minha supervisão, porque não quero erros. Enquanto isso, vou ficar em Willow’s End. Preciso de um lugar calmo e tranqüilo para escrever o livro.

— A casa de tia Maudie é calma e tranqüila? Está brincando. Como espera conseguir trabalhar em Willow’s End?

— A confusão da casa de Maudie não me incomoda, Brad.

— Julian, não foi isso que me disse há dois meses. Você me fez prometer que o impediria na próxima vez que mencionasse outra visita.

— Sempre digo isso. Mas, desta vez, vou lidar de modo diferente. Afinal, gerenciamento e organização são minhas áreas de especialidade.

— Já foram! Você sabe muito bem que nada e ninguém consegue organizar Maudie.

— Antes que Julian pudesse argumentar, Brad continuou: — Então diga-me o quarto e último ponto, como é seu hábito!

Julian relaxou na cadeira de couro e sorriu.

— Quarto e último... saia agora e compre o champanhe mais caro que encontrar para brindarmos!

— Sr. Lord? — A sra. Pringle entrou na sala com uma expressão alarmada. — Acabou de chegar um telegrama para o senhor. Está carimbado “urgente”!

Julian pulou da cadeira e tirou o telegrama das mãos da secretária. Depois de ler, ele deu um suspiro profundo e empalideceu.

— Oh, meu Deus! Sra. Pringle, telefone para Willow’s End e tente falar com Lisa. Por favor, depressa!

— Julian, o que aconteceu? — Brad perguntou.

— E tia Maudie. Lisa escreveu que ela se foi.

— Foi? Ela morreu? Oh, não, Julian, sinto muito.

Sem saber o que dizer, Julian sentou-se, sentindo que a melhor parte de sua vida acabara.

— Por que a demora, sra. Pringle? Preciso falar com Lisa!

— Estou tentando, sr. Lord, mas ninguém responde. Vou continuar ligando.

— Por favor. — Julian olhou o telegrama mais uma vez. — Não é possível. Eu perderia qualquer pessoa, mas não Maudie.

— Foi ela quem criou você, não? — Brad tentou consolar o amigo. — Você tinha.., seis anos quando sua mãe morreu?

Demorou um longo minuto até Julian responder.

— E... só seis anos. Meu pai não podia ser incomodado por um garoto pequeno. Suas escavações arqueológicas tinham prioridade. Mas Maudie encontrou tempo para mim. Ela sempre dava um jeito de se ocupar comigo, e então fui morar com ela.

— O que diz o telegrama?

— Não muito. Pelo menos, não que eu consiga entender. Há algo aqui sobre um evento hoje às três horas da tarde. Se for verdade.., se Maudie... Preciso sair daqui, preciso ir para Willow’s End!

— Julian pegou uma caneta e começou a escrever. — Brad, quero que providencie estes detalhes para mim.

 

— Tudo bem, Julian. Faço o que você precisar.

Na hora de arrancar a folha, Julian o fez com tanta força que rasgou-a ao meio. Engolindo um palavrão, ele chamou a secretária pelo interfone.

— Que droga, sra. Pringle! Por que tanta demora? Quero respostas e preciso delas agora!

 

                   Regra número 2

“Tempo é dinheiro. Assim, cada segundo passa a ter valor.”

Lisa Marcus sentou-se sobre a manta azul estendida à sombra do velho carvalho, no meio do parque Milier. Ignorou a multidão presente à celebração de Maudie, preocupada com os papéis em seu colo.

Uma onda de desânimo a envolveu. Jamais conseguiria ler todas as notas de Maudie em tempo. E era muito importante que cumprisse bem a primeira tarefa.

Maudie fizera três pedidos antes de morrer, O primeiro era o mais emocional. O segundo se referia ao término dos reparos de Willow’s End e daria mais trabalho. Quanto ao terceiro... ajudar dois adolescentes a ficar longe de encrencas durante o verão seria um grande desafio. No momento, seu problema era se concentrar no primeiro dos três.

Ela remexeu diversos pedaços de papel, cada um significando uma ‘página” do que Maudie considerava um diário. Certa vez ela descrevera as notas como lembranças especiais, fragmentos de situações vividas. Lisa gostaria de ter pelo menos metade daqueles acontecimentos maravilhosos em sua própria vida.

Era surpreendente como cada pedaço de papel, cada lembrança colecionada por Maudie Hannigan estabelecia uma conexão de sua vida com a dos outros habitantes de Willow, formando uma enorme colcha de retalhos.

 

Como agradecer a uma pessoa por uma lembrança? Aquele Cora o primeiro pedido da tia-avó adotiva, ao perceber a iminência da morte. Lisa deveria usar as notas que Maudie colecionara durante anos, para agradecer a todas as pessoas especiais que haviam, de alguma forma, participado de sua vida.

Era o que Lisa faria de qualquer maneira. Ela selecionou um papel ao acaso e sorriu. Pelo menos tentaria fazer, se conseguisse decifrar a letra de Maudie.

Uma sombra ofuscou a luminosidade do sol da tarde. Lisa não se surpreendeu ao ver sua amiga Valerie. Outros poderiam hesitar em se aproximar dela naquele momento, mas a simpática morena não pensou duas vezes.

— Nem precisa falar — Lisa suspirou. — Estou atrasada, não é?

— Só um pouco — Valerie concordou, gentil, embalando o filho de seis meses no colo.

— Estou com medo de perguntar o quanto estou atrasada. Meu relógio quebrou há meses.

Valerie sentou-se ao lado da amiga e colocou o bebê no chão. Ele logo engatinhou para o colo de Lisa.

— Não precisa ter pressa, são apenas três e vinte. As pessoas compreenderão. Além disso, todos estão aproveitando o calor do sol.

Lisa olhou os papéis espalhados e segurou o bebê, para que não os rasgasse.

— Eu deveria ter organizado esta papelada ontem à noite, mas...

— Ficou ajudando a pobre sra. Banks com seu marido doente, em vez de se ajudar. — Valerie tocou o braço da amiga. — Lisa, você está bem?

— Claro! — Então, sacudiu a cabeça, desorientada. — Não, acho que não estou. — Lágrimas despencaram dos olhos verdes, e ela não conteve o pranto. — Sinto tanta falta dela, Valerie.

— Nós todos sentimos, querida. Todos que estão aqui sentem o mesmo. Mas eles vieram por você, tanto quanto por Maudie.

Lisa tentou controlar a emoção. Valerie estava certa. As pessoas de Willow lhe dariam toda a ajuda de que precisasse.

 

Esse era um dos motivos por que considerava especial aquela cidade, para a qual se mudara havia onze anos, quando sua mãe, Helene, se casara com o sobrinho de Maudie, Jonathan Lord.

Ficara fascinada pela cidade e pela casa de Maudie, Willow’s End, que estava com a família Hannigan desde a fundação do então pequeno vilarejo. Durante alguns anos, fora o paraíso e seu porto seguro pela primeira vez na vida.

Infelizmente, o casamento de Jonathan e Helene não dera certo. Ao contrário de Lisa, Helene detestara a quietude do campo e a intimidade com os vizinhos. Cansada de tudo, pediu o divórcio depois de três anos.

Quando soube que a mãe se mudaria, Lisa se revoltou pela primeira vez em seus dezesseis anos. Graças à insistência de Maudie e à atitude pouco maternal de Helene, ela conseguiu ficar na cidade, e nunca se arrependeu da decisão tomada.

O calor e a generosidade que encontrara em Wilow ligaram-na definitivamente ao lugar. Se tivesse sorte, nunca partiria dali. Seu problema era enfrentar o adeus fmal a Maudie.

Valerie percebeu sua aflição.

— Vamos lá, Lisa. Você sabe muito bem que ninguém vai criticar se suas palavras de despedida não forem perfeitas.

Lisa sorriu apontando as notas.

— Estou aliviada, porque, na verdade, não tenho um discurso preparado. Só as notas de Maudie.

— Melhor ainda. Você lerá as palavras sábias e riremos todos juntos. E assim que ela gostaria que fosse.

— Acho que tem razão, Valerie.

Lisa levantou-se com as notas na mão e sacudiu as folhas da saia vermelha, comprida até os pés. Olhou em voita, para a multidão que a esperava, e caminhou para o pequeno pódio. Ajeitou os papéis e encarou os cidadãos que estavam ali para prestar a última homenagem à pessoa mais querida de Willow. Eles se espalhavam pelo gramado, sentados em mantas ou cadeiras. Alguns guarda-sóis coloridos enfeitavam o verde, protegendo as pessoas do sol quente de junho. Todos usavam roupas coloridas e brilhantes como Maudie pedira.

 

Lisa pigarreou, forçando-se a aparentar uma calma que não sentia.

— Agradeço a vinda de todos. Sei que Maudie está honrada com a presença dos amigos para celebrar sua vida.., neste lugar especial — Lisa indicou o parque circundante —, um de seus recantos favoritos. Aproveito a oportunidade para relembrar momentos especiais que ela partilhou com vocês.

Houve um murmúrio de vozes e uma onda de calor e amizade a envolveu. Lisa pegou um dos papéis, leu o que estava escrito e quase caiu na risada.

— Jesse Jacobs... — ela procurou no meio da multidão até encontrar a cabeleira prateada do fazendeiro. — Parece que temos de agradecer-lhe por haver acrescentado. um membro à casa, justamente o de pior reputação.

Jesse sacudiu a cabeça.

— Aquele animal que dei a Maudie era para ser meu agradecimento por ela ter cuidado de minha esposa durante a pneumonia que teve há seis anos.

— Agradecimento ou punição? — uma voz gritou.

Lisa riu junto com os outros.

— Boa pergunta, Nelson. Principalmente depois de ter costurado Brutus quando ele atravessou a porta de vidro.

— Obviamente, nosso querido veterinário agiu sem saber que tipo de cachorro ele era — disse o prefeito Fishbecker, de sua cadeira na frente do pódio.

— Se Brutus ouvir você chamá-lo de cachorro — Nelson respondeu —, vai ser preciso mais que alguns pontos para salvar seu traseiro.

Fico eternamente grato por ele não estar aquil Você o prendeu, não foi, Lisa?

Ela concordou com um aceno, sem esconder o divertimento, ainda que sentindo culpa por excluir Brutus do acontecimento. Mas, novamente, seguira as instruções de Maudie.

— Pelo menos, temos um local para chamar de lar — Lisa leu outro pedaço de papel. — Se o senhor não tivesse aumentado o prazo para pagamento da multa, Willow’s End teria ido a leilão.

O gordo prefeito pareceu embaraçado.

— Eram os impostos que Maudie sempre esquecia de pagar. Não que ela tenha se lembrado depois daquilo. Mas quem fazia a melhor torta de chocolate da cidade?

Pela reação das pessoas em volta, tinha-se a impressão de que cada um deles experimentara e sedeliciara com as tortas de Maudie. Lisa percebeu mais uma vez como ela fora amada pela comunidade.

A cada papel que lia, a dor de Lisa aumentava. Se pelo menos a mãe ou Julian estivessem presentes. Será que ele não recebera seu telegrama? Certificara-se de mandar para o endereço correto. Ele não deixaria de comparecer por causa de desavenças passadas.

— Ei, Lisa — chamou o pequeno Simon, de seis anos.

— Eu estou ai também?

Lisa procurou entre as notas.

— Claro que está. E algo sobre uma truta pescada com um alfinete de segurança como anzol?

Simon sorriu, orgulhoso.

— Foi o primeiro peixe que pesquei, e tia Maudie o fritou para mim.

— Eu me lembro. Ela disse que nunca comeu uma truta tão gostosa. — Lisa pegou outro pedaço de papel. — Por falar em truta, além de agradecer a Simon queremos agradecer também aos irmãos Burn, por manter a população de nossos cardumes sob controle.

Lisa olhou para as três pequenas cabeças ruivas. Ao observar as expressões idênticas de horror, ela colocou a mão na frente da boca.

— Oh, desculpem-me! Acho que era um segredo, não?

— Tem razão — o mais velho falou. — Agora não é mais. Não com o papai bem na nossa frente.

— E agora que conheço seu segredo, considere-se acabado, garoto — o pai brincou.

Lisa leu outro papel.

— Josiah Hankun... não entendo bem o que está escrito aqui. Acho que é de quando eu ainda não morava em Willow. Maudie diz: “obrigada pelas maçãs”.

O barulho das risadas foi ensurdecedor. Todos se voltaram para o homem idoso que tentou se esconder atrás dos óculos. Quando o barulho diminuiu, Josiah criou coragem para falar.

— Fico contente em saber que ela gostava das minhas maçãs. Aquele bandido do Julian levava um monte para casa.

— Julian? — Lisa perguntou curiosa.

— Aquele malandro era o único a me vencer em meu próprio jogo. Ele já era um planejador, desde pequeno. Mas se Maudie não disse nada a respeito, é melhor que Julian mesmo lhe conte a história.

Se pelo menos pudesse falar com Julian! Onde ele estaria?

“Estou aqui.”

Foi como se ele tivesse falado em voz alta. Lisa percebeu um movimento no canto dos olhos e o enxergou. Instintivamente, soube que Julian se mantivera fora do grupo, imóvel em seu terno preto, e também reparou que, por trás dos óculos escuros, os olhos dele estavam focalizados nela. Julian viera!

Lisa não se conteve e sorriu. Não estava mais sozinha. Não se importava com o modo como haviam se despedido na última vez. Nem que ele não a desculpasse por ter arruinado seu relacionamento com Gwen. Também não importava o terno preto que ele vestia. Ju]ian viera!

A hora seguinte foi consumida pela leitura das notas. Algumas provocaram boas gargalhadas, outras um silêncio profundo e umas trouxeram lágrimas. Quando terminou de ler a última, todos ficaram imóveis e em silêncio por um longo tempo. Depois, as cestas de piquenique foram abertas e a conversação começou, até que a atmosfera estivesse cheia de alegria, como Maudie desejava.

Com paciência, Lisa recebeu a multidão que foi cumprimentá-la, compartilhando casos e lembranças de Maudie, até poder se aproximar de Julian. Lisa sentira tanta culpa por causa do rompimento de Julian e Gwen que desaparecia cada vez que ele ia visitar Maudie.

A alegria inicial, que sentira ao vê-lo, foi substituida por uma sensação de vulnerabilidade. Procurou na expressão dele um sinal de que ainda não fora perdoada, mas ele não demonstrava nada.

Seus traços haviam ficado mais definidos no ano que passara. O rosto estava mais bonito, e a boca sorridente, que Lisa achava tão atraente, agora aparentava frieza. Até a linha das sobrancelhas sob os óculos espelhavam um homem sob controle, O corte perfeito do cabelo e o terno de caimento impecável demonstravam sobriedade.

Lisa conteve a apreensão, desejando ser confortada como sempre o fora durante anos. Aquele homem não era um estranho, era seu irmão, sempre presente quando necessitava dele. Só precisava se aproximar para as coisas voltarem a ser como sempre haviam sido. Mas Lisa hesitou.

Aparentemente, Julian percebeu a hesitação. Sem uma palavra, ele abraçou-a, segurando-a com força junto ao peito, aninhando-lhe a cabeça em seu ombro. Durante longos minutos, ela se deixou tomar pelo alívio de ter com quem repartir a dor.

— Você está bem, Lisa?

— Estou. Sim, estou bem, obrigada.

— Tem certeza? — Quando ela concordou, Julian perguntou: — Será que pode me explicar o que está acontecendo por aqui? O que significa essa encenação?

— Não recebeu meu telegrama? Expliquei tudo nele. Esta é uma celebração para Maudie. Estou feliz por ter chegado em tempo.

— Só porque você atrasou quarenta e cinco minutos para começar. Fui até a igreja, que estava vazia. Na verdade, a cidade está deserta.

Ela sorriu com naturalidade.

— E lógico, Julian. Todos estão aqui.

— E o que você está fazendo aqui? — Julian tirou os óculos e seu poderoso olhar castanho-escuro a intimidou. — Por que está fazendo o fimeral aqui no parque e não na igreja?

— Porque Maudie determinou que fosse assim. Ela queria uma celebração, não um funeral — Lisa falou como se aquela explicação fosse suficiente.

— Não é possível. Só você e Maudie pensariam em uma celebração!

A reação de Julian não era inesperada, mas ele não estava bravo nem feliz com o que vira.

 

— Julian, esse era o desejo de Maudie. Ela deixou instruções específicas.

— No testamento?

— Não. Pelo menos acho que não. Se bem que é possível que ela tenha acrescentado isso sem que... Bem, não sei se está no testamento. Depois do ataque cardíaco, Maudie fez o pedido, um pouco antes de morrer.

Lisa percebeu diferentes emoções no rosto de Julian. Reconheceu dor, pena e talvez arrependimento. Tantas vezes ele a confortara, e agora que precisava ser consolado Lisa não sabia como agir.

— Julian?

— Desculpe, Lisa. Não queria ser grosseiro com você. Só descobri sobre Maudie hoje de manhã, quando seu telegrama chegou. Fiquei enlouquecido sem saber o que acontecera e sem conseguir falar com você. Telefonei para casa e ninguém atendia.

— Oh, querido... Valerie insistiu que eu ficasse com ela os dois últimos dias. Tentei ligar para você no começo da semana, mas eu não sabia que havia se mudado. Demorei para descobrir seu novo endereço.

— Esqueceu outra vez o nome da minha empresa, não foi?

— Puxa, Julian, sinto muito.

Ele abraçou-a novamente, mantendo-a junto ao corpo.

— Esqueça. Estou aqui e é isto o que importa. Ainda não acredito que ela morreu. Conte-me o que aconteceu.

— Foi o coração. Ela foi levada ao hospital, mas não havia nada mais a ser feito. Você teria ficado orgulhoso. Maudie fez uma lista de coisas para eu resolver depois de... — a voz dela falhou. — Ela sabia, Julian. Ela sabia que ia morrer.

— Pensei que tivesse sido um ataque fulminante. Não imaginei... Lamento não ter estado aqui. Eu teria vindo se soubesse.

— Eu sei. — Lisa soltou-se dos braços dele e enxugou as lágrimas. — Quando descobri que havia se mudado e que não tinha recebido meu primeiro telegrama, era tarde demais. Ela já havia partido.

— Ah, o telegrama. — Julian enfiou a mão no bolso e tirou uma folha dobrada. — Você deve entender estas palavras que desafiam a compreensão de qualquer um. — Ele estendeu-lhe a folha. — Como foi você que ditou, talvez possa me explicar.

Lisa pegou a folha de papel.

— Está claro, Julian. “Onde está você? T.M. se foi. Celebraremos sexta, 3 horas, parque. Preto não.” — Ela franziu a testa. — O que você não entendeu?

— Vamos por partes — disse ele rindo e pegando o telegrama de volta. — “Onde está você?” Isso me parece bem claro. Mesmo sem querer acreditar, decifrei o significado de “T.M. se foi”. Supondo que minha adivinhação sobre Maudie estivesse correta, “Celebraremos sexta, 3 horas” pareceu uma brincadeira de mau gosto. Agora, quanto a “parque” e “preto não”, realmente fiquei por fora.

Aborrecida, Lisa admitiu que Julian tinha razão quanto ao telegrama. Ao ditá-lo, achara que fazia um sentido perfeito. Talvez a confusão se criasse na hora de ler. Então percebeu que ele esperava uma resposta, e esperar não era uma das qualidades favoritas de Julian. Lisa sorriu.

— Acho que está um pouco confuso, mesmo. Sabe, “parque” significava...

— Já descobri o que era. E quanto a “preto não”?

— Hum... era para não usar roupa preta, porque Maudie desejava que todos se vestissem com cores alegres. Ela não queria que pranteássemos sua morte, e sim que celebrássemos sua vida. Quis que nos reuníssemos aqui para lembrar os momentos felizes.

— E o que nós temos de fazer, Lisa?

— Bem, devemos participar do piquenique. Você está com fome? — Ao perceber a hesitação de Julian, Lisa continuou:

— E o que devemos fazer. Sei que, com certeza, sou a última pessoa com quem você gostaria de...

— Por que diz isso?

Lisa abaixou a cabeça para responder.

— Sei que ainda está aborrecido por causa de Gwen, mas...

— Gwen? Por que acha que eu ainda estaria aborrecido?

— Porque ela...

— Deu um mergulho forçado no lago?

— E. — A voz de Lisa não passava de um murmúrio.

 

Mais foi uma vez atacada pelo remorso ao lembrar a visão da elegante e impecavelmente vestida namorada de Julian sendo retirada do lago, descomposta como uma boneca de pano e descontrolada de ódio.

— Foi por isso que passou o último ano me evitando? Por causa do que aconteceu com ela?

Lisa concordou e começou a chorar.

— Você ficou tão bravo. Não o culpo. Se não fosse por mim, hoje vocês estariam casados.

Julian deu uma risada.

— Deus me livre! — Julian tocou-lhe o ombro, num gesto de consolo. — Desculpe, Lisa, mas não percebi que você ainda estava preocupada com o que aconteceu. Nunca a culpei pelo acidente.

Lisa deu um sorriso sem graça. Julian não sabia toda a história, do contrário não seria tão compreensivo. Ela quis explicar melhor.

— Julian...

Ele a interrompeu na hora.

— Escute, Lisa, não vim aqui para incomodá-la, ainda mais hoje. Eu adoraria participar do piquenique com você, estou morrendo de fome.

Lisa decidiu esperar outra oportunidade para a confissão. Sentira muita falta do irmão de criação no ano que passara. Não arriscaria perdê-lo agora com revelações desagradáveis.

Eles sentaram sob uma árvore frondosa e ela abriu a cesta de piquenique. Julian tirou o paletó e pareceu deliciado.

— Há séculos não faço um piquenique.

— Você anda muito ocupado.

— Demais. A diferença entre Chicago e Willow é gritante. Lembra como nos divertíamos?

— Como naquele dia em que fomos surpreendidos por uma tempestade. Pensei que Maudie fosse nos esfolar vivos!

— Foi no seu aniversário de dezesseis anos — Julian lembrou. — Helene estava fora. Você estava triste e imaginei que um piquenique seria bom para alegrá-la. Só consegui enfurecer Maudie.

Eles continuaram a conversar, relembrando a juventude na cidade. Lisa o convidou para ficar o tempo que desejasse e disse que logo teriam de voltar para casa e alimentar Brutus.

Sabe, Julian, Brutus queria vir, mas Mauclie não permitiu.

— Está louca? Como ela poderia evitar?

— Quando ela me passou as instruções para a celebração. Mas eu ainda acho que ele poderia ter participado. As pessoas já não estão mais muito bravas com o pobrezinho.

— Lisa, estou quase com medo de perguntar o motivo.

— Acontece que, no ano passado, durante o piquenique no dia do fundador da cidade, Brutus tomou gosto pelo malte alemão. Ele bebeu os restos de cerveja de todos os copos e ficou embriagado. Não imagina o que ele aprontou — Lisa disse em voz baixa. — A estação local de televisão gravou tudo. Mas as crianças o adoram. São os adultos que sentem-se incomodados com ele por perto.

— Posso imaginar o estrago que um são-bernardo de cem quilos fez. — Ele riu.

— Sabe, Julian, Brutus vai ficar ofendido se você rir na frente dele.

— Lisa, ele é apenas um cachorro. Pode ser que você se divirta fingindo que não é, mas eu acho uma besteira.

— Não estou fingindo. Brutus entende tudo o que eu falo!

— Assim como as orquídeas. Lembro muito bem quando você conversava com suas flores.

Lisa ergueu o queixo para enfrentá-lo.

— Minha conversa ajudava o desenvolvimento delas. Você também deve lembrar que minhas flores sempre foram as maiores da cidade. E sei muito bem a diferença entre flores e cães.

— Fico aliviado ao ouvir isso.

— Pode não acreditar, Julian Lord, mas os fatos não mudam. Brutus entende as pessoas, depois não diga que não avisei.

— Eu nem ousaria — ele respondeu, com um sorriso cínico.

Lisa olhou-o, exasperada.

— Se não concordamos em disputas simples como Brutus, como vamos lidar com as mais importantes, como Willow’s End?

— Desde quando vamos disputar Willow’s End?

— Eu não lhe falei? Ou você ganha a custódia de Brutus e da casa ou eu fico com ela.

 

— Herança. A palavra é herança, não custódia. Como você sabe quem vai ficar com a casa?

— Maudie falou, isto é, deu a entender. — Lisa franziu o nariz para Julian. — Sem ofensas, espero que seja eu. Willow’s End não vai servir para você em Chicago.

— Tem razão. Como sou um homem razoável, se eu herdar, dou o cachorro para você. Quanto à casa... — Julian pensou por um minuto. — Morando em Chicago, não poderei cuidar dela. Se eu a herdar, considere-a sua pelo tempo que desejar.

— Verdade? Nem sei como agradecer! — Lisa abraçou-o com força. — Você é o homem mais generoso que conheço. Assim que encontrarmos o testamento de Maudie tudo será resolvido.

Julian soltou-se do abraço e encarou Lisa.

— Encontrar o testamento? O que isso significa? Ele está perdido?

— Não exatamente perdido. E que...

— O que é isso? Nem uma hora juntos ejá estão brigando?

— A voz suave de Valerie os interrompeu, e ela sorriu para ambos. — Desculpem, estou atrapalhando?

 

                   Regra número 4

“Planejamento é a chave que abre todas as portas.”

— Sim!

— Não!

Lisa franziu a testa para Julian, antes de cumprimentar a amiga.

— Sua noção de tempo é perfeita, Valerie — ela disse alegre.

— A noção de tempo dela não é perfeita! Ela nos interrompeu. Quero saber o que você quis dizer com perdido.

Valerie arregalou os olhos.

— Meus Deus! E melhor eu ir embora.

— Também acho — Julian concordou.

— Não seja tola! Ele está brincando com você, Valerie.

— Não estou!

Valerie deu uma gargalhada.

— E bom descobrir que as coisas nunca mudam. Boa tarde para você também, Julian. Que terno você arrumou, hein? Um pouco... preto demais, concorda?

— Que bom que você notou. — Julian olhou o pequeno Danny no colo da mãe. — Creio que decidiu ficar com o monstrinho, afinal. Não conseguiu dá-lo para ninguém... Que pena.

— Cretino! — Valerie gritou, apertando a criança nos braços. — Fique longe dele! — Ela se virou para Lisa. — Por favor, olhe Danny por uns cinco minutos. Preciso resolver um assunto e é impossível com o garoto pendurado no colo.

 

— Lógico! — Lisa pegou o garoto nos braços. Ele ergueu ii mãozinha e enfiou o dedo no nariz dela.

— Que coisa nojenta. Não pode controlar seu filho, Val?

— Julian perguntou irritado.

— Ele é apenas um bebê, e Lisa não se importa. Será que não se pode mais querer cumprimentá-lo? Vocês estavam brigando como se fossem irmãos de verdade. Ah, Lisa, a sra. Ashmore quer saber se você faria biscoitos para a quermesse. E o prefeito precisa de mais um voluntário no comitê para recuperar o sino da torre da igreja. Eu disse que você aceitaria as duas incumbências, fiz bem?

Lisa concordou, já acostumada com a personalidade da amiga.

— Tudo bem, não se preocupe.

Ela colocou o pequeno Danny na manta e deu-lhe um pedaço de biscoito.

— Vejo você mais tarde. — Valerie acenou e foi embora. Julian encarou Lisa com expressão pensativa.

— Por que todo esse trabalho? Está pagando promessa ou é alguma penitência?

— Como assim, Julian?

Todas essas incumbências, mais o bebê de Valerie, especialmente... se considerarmos as circunstâncias.

— Val me ajudou muito na semana que passou. além disso, gosto de ajudar a comunidade.

— Salvar o sino da torre vale a pena? — Julian perguntou, irritado,

— E lógico! Assim como cuidar de Danny desde que ele nasceu.

— Então é melhor tirar o besouro da boca do menino.

Lisa tentou sem sucesso abrir-lhe a boca. O inseto foi engolido.

— Ele deve ter pensado que era uma uva passa.

— Com certeza uma uva passa com pernas. Não venha me dizer que é tudo proteína.

— Pois você tirou as palavras de minha boca, Julian. Por falar nisso, Josiah Hankum disse para você me contar a história das maçãs.

Por um minuto Julian ficou calado.

— Está bem, mas vou comer antes.

 

Com esforço, Lisa afastou os olhos da bela figura. Afinal de contas, Julian era como se fosse um irmão, e irmãos não deveriam sentir atração um pelo outro. Ele tirou o paletó e enrolou as mangas da camisa, expondo a pele dourada do antebraço.

— Bem, quando eu estava com uns dez anos, escutei tia Maudie dizer que as maçãs de Josiah Hankum eram as melhores do país para fazer torta.

— Então você roubou algumas?

— Errado — Julian resmungou. — Professores sabem melhor que ninguém que não se deve interromper alguém que está falando. Agora ouça e aprenda. Eu poderia simplesmente roubar as maçãs, mas você sabe que Maudie jamais aprovaria e me obrigaria a devolvê-las.

— Aposto que inventou um artifício para pegar as frutas!

— O velho Hankum detestava intrusos em sua propriedade e também detestava garotos. — Julian franziu a testa, encarando o pequeno Danny. — Estou começando a entender o motivo.

— Julian!

Enfim, além de detestar crianças intrusas, Hankum tinha um modo eficiente de nos desencorajar.

— O que era?

— Não consegue adivinhar?

Lisa começou a rir.

— Ele atirava maçãs em vocês!

— Exatamente. Sempre que tia Maudie precisava fazer uma torta, eu ia até a fazenda e provocava o velho Josiah até ele atirar as maçãs.

— Ele nunca acertava o alvo?

Julian se encostou no tronco da árvore e deu um sorriso malandro para Lisa.

— Nunca. — Ele olhou desgostoso para o bebê. — Lisa, o menino está comendo grama. Será que é tão dificil controlar uma criança? Não é à toa que Val desapareceu correndo.

Lisa tirou um guardanapo limpo da cesta e passou na boca e nas mãos de Danny. Depois, ofereceu limonada a Julian.

— Não tem nada mais substancioso na cesta? Ainda estou com fome.

— Só salada e queijo tofu.

— Eu desisto. Por que não vamos para casa, Lisa? Quero acabar nossa conversa sobre Willow’s End. Lembra sobre o que conversávamos antes que esse pequeno dínamo caísse em nosso colo? Você estava contando que o testamento está desaparecido.

— Não é bem assim. Quando tempo você pode ficar? Pode ser que demore um pouco.

— Tenho bastante tempo. Eu ia me convidar para passar o verão aqui, pois devo escrever um livro sobre gerenciamento de tempo, quando soube de Maudie.

— Que bom! Assim teremos tempo suficiente para resolver nosso pequeno problema.

— Pequeno problema? Isso é o que eu mais adoro em você, Lisa! Seu otimismo diante de qualquer catástrofe. — Julian sorriu da expressão de Lisa. — Acho que o melhor é falar com o advogado de Maudie.

— Se você acha que vale a pena... embora eu não saiba como ele poderá nos dizer onde ela o escondeu.

Depois de um longo silêncio, Julian falou com cuidado.

— Maudie escondeu o testamento? Antes você falou que estava desaparecido, não escondido!

Lisa franziu a testa e encarou-o.

— Não se preocupe. Não há tanta urgência. Já lhe contei mais ou menos qual é o teor. Só precisamos ver o aspecto legal.

Julian respirou fundo para se controlar.

— Não é simples como você faz crer, Lisa. O juiz não vai aceitar sua palavra sem uma prova documental. O advogado dela não tem uma cópia do testamento?

— Acho que não.

— Por quê?

Lisa hesitou antes de tirar um envelope perfumado do bolso da saia. Julian tirou-o das mãos dela, estudando os dois nomes a quem estava endereçado.

— O que é isto?

— E uma carta de Maudie para nós. Achei no escritório. Aí ela fala que existe um testamento e que ela o escondeu.

— Eu não acredito! Maudie mencionou onde pode estar?

Lisa olhou-o com reprovação.

 

— É claro que sim.

— Puxa, que alívio. Onde está?

— Ela disse que colocou em algum lugar na casa.

Julian passou as mãos nos cabelos escuros, sentindo os mÚSCUlOS do rosto retesados.

— Lisa, a casa tem três andares, mais o sótão. Sem mencionar o porão e os depósitos. Não dá para ser mais específica?

— Não. Isso atrapalharia o objetivo do exercício.

Mais uma vez, Julian respirou fundo antes de falar.

— Está bem, vou perguntar. Sei que vou me arrepender, mas quero saber. Que exercício, Lisa?

— Se você lesse a carta entenderia.

— Muito bem. — Sem mais uma palavra, Julian tirou a única folha de dentro do envelope. — Ela diz que eu trabalho demais. O que quis dizer com isso? Eu não trabalho demais!

— Trabalha, sim. Ela acha que se você passar um tempo procurando,o testamento vai se distrair como se estivesse em férias. E uma maneira de se livrar de todas as regras, regulamentos e... programações.

— E o que ela achava de todos os seus compromissos?

— Ela não mencionou. Julian, a nota é bem específica:

se quisermos saber quem herda a casa, temos de descobrir o testamento. Para achar o testamento, teremos de procurar. As razões para ela tê-lo escondido podem ser um pouco vagas, mas pense em como a caça ao tesouro vai ser divertida. Vai ajudá-lo a relaxar.

— Eu estou relaxado!

— E claro que sim. Por isso seus músculos estão tensos, isso é relaxante!

— Está bem, a culpa é minha, mas eu gosto de tensão!

— Não acredito, Julian. — Lisa tirou o pote de patê da mão do pequeno Danny, ele já se divertira o suficiente. — Tem certeza de que não quer comer mais nada?

— Não, Lisa! Eu quero resolver esse assunto do testamento!

— Não precisa gritar — ela disse com voz calma e controlada. — Faz mal para sua saúde ficar vermelho assim. Quanto ao testamento, não há nada para ser resolvido enquanto não o encontrarmos.

 

Julian rangeu os dentes, sem conseguir controlar a irritação. Lisa encarou-o, curiosa.

— Você está esquisito. Não quer mesmo comer mais alguma coisa? Isso vai ajudá-lo. — Ela remexeu na cesta de piquenique e tirou um pequeno prato. — Tenho um pouco de sushi.

O sol estava se pondo quando Julian e Lisa chegaram a Willow’s End. Julian colocou a cesta de piquenique no chão e, com a mão na maçaneta, virou-se para Lisa, que estava parada na calçada.

— Não vai entrar?

— Já estou indo. Só queria dar uma olhada na casa.

— Alguma coisa mudou? — Ele voltou até a calçada e ficou ao lado de Lisa.

— Não. Ainda é o mesmo velho lugar especial.

— Mas precisa de alguns reparos e de umas duas mãos de tinta. — Julian falou, observando a fachada.

— Não seja pragmático. E uma casa maravilhosa, encantadora, terrível...

— E trancada — Julian sorriu para Lisa com a mão estendida. — Passe-me a chave, por favor.

Lisa hesitou e ele insistiu.

— As chaves. Vamos, acorde, Lisa. Foi um longo dia e quero descansar um pouco.

— Hum, acho que temos um problema. Não tenho a chave.

— Quem está com ela, Lisa? Tia Maudie?

— Não. Na verdade.., não está com ninguém.

— Quer dizer que trancou a casa sem ter a chave?

— Julian, você sabe que nunca trancamos a porta aqui na cidade, pelo menos até hoje. Se um dia existiu uma chave, hoje não existe mais.

Julian fechou os olhos tentando compreender a situação.

— Por que então fechou a casa desta vez?

— Por causa de Brutus. Ele não podia escapar.

— Lisa. Preste atenção: Brutus é um cachorro sem cérebro. Ele não tem sentimentos humanos. Também não tem ‘habilidades humanas. Ele não pode abrir portas!

— Ele pode, sim!

Julian respirou fundo antes de continuar.

 

— Tudo bem. Vamos acreditar que ele abra portas. Por que você não o amarrou na corrente?

Com um gemido, Lisa o enfrentou.

— Amarrar Brutus? Prendê-lo em uma corrente? Não vê que é crueldade? Ele nunca me perdoaria, nunca.

— Acho que ele não vai desculpá-la por abandoná-lo trancado na casa, para morrer de fome. Ou isso não lhe ocorreu?

Lisa ignorou o sarcasmo e tentou manter a dignidade.

— Para seu conhecimento, deixei uma janela aberta. Só precisamos entrar na casa e destrancar a porta por dentro. E muito simples.

— Eu não acredito. Você trancou a porta porque o cachorro poderia abri-la, mas deixou a janela aberta porque ele não pula por ela?

— Bem, ele pula, mas não faria isso.

— E será que posso saber o motivo especial?

Lisa respondeu com voz doce.

— Quero que saiba uma coisa, querido irmão. Eu o odeio. Não estou zangada com você, mas descobri que o odeio.

— Obrigado. Voltando ao assunto, você ainda não explicou sobre a janela.

— Desde que Brutus se cortou ao atravessar aquela porta de vidro, ficou traumatizado e tem horror de qualquer vidro, incluindo janelas. Vou dizer mais, Julian. Lamento muito que Gwen tenha caído no lago. O ano passado inteiro senti complexo de culpa. Foi bobagem. Vocês dois se mereciam. Ela era perfeita para você.

Julian deu um sorriso.

— Obrigado mais uma vez. Apesar do que imaginou, nunca a culpei pelo acidente.

— Vocês dois se mereciam — Lisa continuou, irritada com a interrupção. — Só não sei por que Brutus nunca compreendeu isso. Por alguma razão, ele pensava que vocês dois...

— Lisa! Quero ver a janela agora!

— E a dos fundos. Puxa, qual é o problema?

— Nenhum, se pararmos agora com esta conversa!

Julian deu a volta na casa, ainda resmungando. Lisa percebeu que não deveria ter mencionado Gwen. O assunto ainda era tabu, e ela não o culpava. Talvez, se tivesse se esforçado um pouco, poderia ter achado algo de bom na moça. Julian encontrara.

Ele parou de repente, e Lisa quase o derrubou. Julian olhava a pequena janela na altura de sua cabeça.

— E esta a janela pela qual devo entrar?

— Não, Julian, eu devo entrar. Esqueceu que Brutus está do outro lado? Aposto que ele escutou tudo o que você disse lá na frente. Mesmo que não tenha ouvido, tia Maudie lhe contou o que aconteceu na sua última visita. Garanto que Brutus ainda não o perdoou.

— Do que está falando?

— Do réveilion passado, quando soltou rojões. Você sabe que Brutus odeia barulho. Ele ficou muito aborrecido.

— Ele ficou aborrecido? Tia Maudie contou o que ele fez com minha cama, Lisa?

— Ele estava dormindo nela quando o barulho começou. Foi um acidente!

— Foi de propósito, você sabe tão bem quanto eu!

— Ah, é? Como um cachorro sem cérebro, sem sentimentos e habilidades humanas, poderia fazer aquilo de propósito?

Julian contou mentalmente até dez, antes de falar.

— Como entraremos na casa, Lisa?

— Você me ergue até a janela e eu entro.

— Com essa roupa? Aposto que não consegue entrar sem rasgar um pedaço.

— Julian, não faço mais apostas há muito tempo.

Ele sorriu divertido.

— Querida irmã, nossa última aposta foi há um ano, e você perdeu, como sempre. Aposto um dólar como você não consegue.

— Sabe que esse seu defeito de caráter me impressiona? Apostas não são racionais como você. Mas se apostar cinco dólares eu aceito.

— Negócio fechado!

O sol estava desaparecendo no horizonte. O ar parecia carregado do som de milhares de diferentes insetos. Uma brisa morna soprava, fazendo voar alguns fios dos cabelos castanhos de Lisa. Na escuridão, ela apenas vislumbrou o sorriso de Julian.

 

— Deixe-me abrir a janela toda, então carrego você.

Ele se inclinou na direção dela e Lisa sentiu o perfume seco e másculo. Incapaz de se mover, ela o fitou fascinada. Julian parecia tão diferente. A camisa dele roçou sua pele, e Lisa sentiu um reação estranha quando as mãos fortes seguraram sua cintura.

— Apóie-se nos meus ombros. — Ele sugeriu, aparentemente sem ser afetado pela proximidade dos corpos, como ela o fora. — Se você perder o equilíbrio, eu a seguro.

Lisa obedeceu as instruções, sentindo-se queimar por dentro com o contato. Estava confusa. Durante onze anos, Julian fora apenas seu irmão, nada mais.

— Pronta?

Ela concordou, e Julian apertou as mãos na sua cintura, erguendo-a para que alcançasse o batente da janela. Lisa podia sentir o peito dele contra suas pernas. Os braços de Julian escorregaram da cintura para o quadril, e ela tremeu.

— Ei, Lisa, a vista aí do alto deve estar ótima, mas é melhor se apressar.

As palavras dele foram como um balde de água fria. Lisa se esgueirou para dentro do quarto, e sua saia enganchou em uma farpa da madeira. O som do tecido rasgado ressoou na noite.

— Eu não falei? — Julian gritou. — Está me devendo cinco dólares.

Lisa sentiu vontade de fechar a janela e deixá-lo para fora. Ela desceu para o térreo e chamou Brutus. O cão apareceu no hall, e Lisa se abaixou para abraçá-lo.

— Olá, meu bem. Você ficou muito triste aqui, sozinho?

Brutus se aconchegou, lambendo-lhe as mãos e sacudindo a cauda com força. Por um longo tempo, os dois ficaram sentados no chão, Lisa contando ao cachorro todos os detalhes do funeral. Subitamente, ao ouvir fortes batidas na porta, ela se lembrou de Julian e levantou depressa. Brutus latiu em protesto.

— Não diga isso, ele também tem motivos para estar chateado com você, Brutus. Já vou! — ela gritou e correu para abrir a porta.

Julian estava parado, com um brilho de fúria nos olhos escuros.

 

— Por que demorou tanto? Não me diga, já sei. Foi aquele cachorro estúpido. Vocês ficaram conversando e me esqueceu aqui fora.

— Desculpe.

— Saia da frente, Lisa. Primeiro, mantenha o cão distante do meu caminho, ou não me responsabilizo pelo que possa acontecer. Segundo, quando o entregador de pizza chegar, mande-o direto para meu quarto! Terceiro...

— Julian... — Lisa se calou ao observar a expressão dele e saiu da frente.

Quando entrou no hall, ele não conseguiu acreditar. As paredes estavam cheias de buracos. O que sobrara estava todo pichado. Uma fina camada de pó cobria a casa toda. Horrorizado, ele se virou para Lisa.

— Agora entendo por que demorou. Já chamou a polícia? Os vândalos ainda podem estar por aqui!

— Julian, eu sei que está uma bagunça. Assim que recuperarmos as paredes, colocaremos um novo papel e...

— Não tem graça.

— Não é para ter. Você ainda não viu o escritório. Como acha que encontrei as notas de Maudie? Assim que recuperarmos as paredes, a casa vai ficar linda outra vez.

— Isso foi deliberado? Como pôde? A casa que eu amo, onde cresci, que está com minha família há cem anos! Você fez isso de propósito?

Lisa tentou não parecer insultada.

— Bem, Maudie disse que...

— Saia da frente. Como eu dizia antes de ver esta catástrofe... terceiro, não me obrigue a dizer o quarto e último.

 

                  Regra número 11

“Listas são ferramentas que usamos para atingir nosso objetivo.”

Muito tarde, naquela noite, Lisa parou na frente da casa. Ela voltava de uma visita clandestina ao cemitério. A casa brilhava ao luar, convidativa. Finalmente se convencera de que, mesmo sem Maudie, a casa permanecia igual, enviando-lhe a mesma mensagem que recebera quando chegara havia onze anos: “Entre, você vai ser amada aqui. Vou protegê-la”.

A seu lado, Brutus rosnou.

— Está bem, você pode entrar, mas fique quieto para não acordar Julian.

O cachorro latiu, concordando.

— Por favor, Brutus, baixo.

Lisa hesitou na entrada da casa, tentando escutar algum sinal de que Julian pudesse estar acordado. Ela respirou fundo e abriu a porta com cuidado. Deu um passo à frente e olhou em volta.

— Tudo bem, Brutus, o caminho está livre, pode entrar — ela sussurrou.

A obediência imediata foi tão inesperada quanto malvinda. Sem esperar que Lisa lhe desse passagem, o cão arremeteu para a frente com velocidade, derrubando-a no chão.

Uma luz foi acesa.

Lisa ergueu a cabeça e viu dez dedos a pouca distância de seu nariz. Seu olhar foi subindo, acompanhando os pés, as pernas longas e bronzeadas, o peito nu, o pescoço perfeito e finalmente o rosto, que parecia particularmente divertido.

— Droga.

— Que pena. Desta vez, pensei mesmo que fosse um ladrão, Lisa, por isso vim prevenido. — Ele estendeu a mão para que ela visse o taco de beisebol.

Ao ver o bastão, Brutus disparou para fora da sala. Ele deslizou na poeira do chão, derrapou e foi parar de focinho na parede do hall. Finalmente conseguiu escapar da sala.

— Traidor! — Lisa gritou para o cão. Ela sentou-se e olhou para Julian. — Por mais que eu o adore, Brutus é um grande covarde. Você tirou vantagem disso. Aliás, foi o que sempre fez.

— Eu? Pobre de mim. Desci pensando que ia encontrar um ladrão e encontro minha querida irmã chegando sorrateira depois de uma noite ilícita.

— Não sou sua irmã. Quando minha mãe se separou do seu pai, nós também nos “divorciamos”. E eu não tive uma noite ilícita.

Julian sorriu, franzindo os olhos.

— Onde esteve até agora?

Ela continuou sentada no chão e abraçou os joelhos num gesto de defesa.

— Eu... eu levei Brutus ao cemitério.

— Lisa, já é madrugada. O que foi fazer lá a esta hora?

— Sei que é tarde, mas não poderia ir em outra hora. Sabe, animais não podem entrar no cemitério. Eles não compreendem que Brutus não é um simples animal. Foi o único modo que achei para ele visitar Maudie.

Julian sacudiu a cabeça em descrédito.

— Quer dizer que invadiu o cemitério para que aquele tapete de pulgas pudesse visitar Maudie?

— Sim... não. Sabe o que é? As senhoras da igreja mandaram erigir um marco em memória de Maudie, e Brutus queria ver como ficou.

— Brutus pediu que você o levasse? Esse animal está ficando cada dia mais inteligente.

Lisa escondeu o rosto no joelho, lutando para evitar as lágrimas. Os últimos dias haviam sido cansativos. Tentara, da melhor maneira possível, fazer todas as vontades de Maudie. Agora estava exausta.

Julian ajoelhou-se ao lado dela e abraçou-a.

— Desculpe, querida, não quis fazer você chorar.

— Não estou chorando.

— Vamos lá, conte tudo o que a incomoda ao seu irmão mais velho.

— Será que não consegue lembrar que não é mais meu irmão?

Julian fez um carinho nos cabelos de Lisa.

— Tudo bem. Vou ser o que você decidir. Irmão, pai, tio. Que tal primo? — Ele a carregou no colo e foi na direção da escada. — Mesmo como primos podemos voltar aos velhos tempos. Vamos sentar aqui e você poderá me contar todos os seus problemas. Vamos conversar. — Um soluço escapou da garganta de Lisa, e Julian acrescentou: — Ou chorar.

A compaixão demonstrada por ele foi fatal. Lisa mergulhou o rosto no ombro nu e chorou. Toda tensão acumulada nos últimos dias veio à tona.

— Desculpe — ela falou, passando a mão no ombro molhado. — Não quis molhar você.

— Não tem problema. Prefiro que chore por Maudie do que por Tommy Lee Taylor.

— Você ainda lembra? Eu estava com dezessete anos e fiquei desesperada porque Tommy convidou Cíntia para ir com ele ao baile de formatura. Você me encontrou chorando na beira do lago. Por causa daquilo, perdeu o exame de matemática financeira e quase ficou de dependência.

— Foi minha única nota baixa, e me orgulho dela. Além disso, levei a moça mais bonita da cidade a seu baile de formatura e salvei as trutas do lago de um banho salgado.

Lisa não evitou um soluço.

— Você é mesmo um cavaleiro, vestido com uma armadura brilhante, não é?

— Sou mesmo, Lisa.

Ela olhou de soslaio para Julian. Os óculos dele estavam no alto da cabeça, meio enterrados nos cabelos quase negros. Sem eles, Julian parecia menos o homem de negócios e mais o jovem que destruíra os corações de todas as garotas de South Willow High.

 

— Desculpe, Lisa. Sei que passou por momentos dificeis. Eu não estava presente quando precisou de mim e não fiz nada para ajudar desde que cheguei.

— Não se desculpe. Você não deveria saber... eu tentei. Pelo menos o primeiro pedido de Maudie pôde ser realizado.

— Do que está falando, Lisa?

— E verdade. Acho que não mencionei os pedidos.

Lisa procurou uma posição mais confortável para sentar e encarou Julian.

— Você gostaria de saber sobre eles agora?

Julian concordou, resignado.

— Antes de Maudie falecer, ela pediu que eu usasse suas anotações e reminiscências para a celebração. Foi o pedido mais fácil de ser realizado.

Julian ergueu uma sobrancelha.

Fácil? Duvido. Ficar em pé no pódio falando de Maudie para uma multidão como você fez deve ter sido muito difícil.

— Não tão dificil como o próximo pedido — ela murmurou, baixando a cabeça.

— Deixe-me adivinhar — Julian falou com ironia. — Tem relação com o conserto da casa, estou certo?

— Certíssimo. Quando Maudie começou os reparos, escreveu tudo o que deveria ser feito. Ela deixou dúzias de anotações. No hospital, pediu-me para terminar o projeto. Eu não podia recusar.

— E claro que não. Só não sei como vai conseguir terminar isto.

Lisa ofereceu-lhe um sorriso amigo.

— Eu sei como. Só me falta um pouco de prática.

— Pelo menos para realizar esse pedido você pode contar com minha ajuda, Lisa. O que aconteceu com meu pai e sua mãe para não terem vindo ao funeral? Qual foi a desculpa de meu pai desta vez?

Lisa hesitou. Apesar de querer contar sobre o terceiro pedido, achou melhor esperar até o dia seguinte. Julian não parecia disposto a escutar sobre delinqüentes juvenis. Decidiu responder sua pergunta.

— Seu pai está fazendo uma escavação em algum local remoto da América do Sul e não pôde vir.

 

Julian não escondeu sua decepção.

— Grande novidade. Ele sempre está em alguma escavação longe daqui. E sua mãe, continua em Los Angeles?

— Não, está em Nova York.

— E não pôde vir? Simplesmente deixou que você tomasse conta de tudo sozinha?

— Ela mandou flores.

Apesar de conhecerem bem seus pais, e de saberem que nunca mudariam, Lisa percebeu que Julian estava penalizado, pois seu senso de dever era grande. Adivinhou que ele se culpava por ter falhado quando sua presença foi mais necessária.

Lisa colocou a mão no braço dele, sentindo a tensão dos músculos.

— Acredita que mamãe mandou uma cesta cheia de lírios? Você sabe como Maudie detestava lírios, isto é, com sua maneira peculiar de detestar algumas coisas.

— O que você fez com as flores de Helene?

— Estão servindo de adubo para o jardim.

Julian riu e se encostou no degrau.

— Acho que Maudie concordou com seu gesto. Ela sempre teve um grande senso de humor. Lembro uma vez... — As palavras falharam, e Julian sacudiu a cabeça, incapaz de continuar a história. — Meu Deus, como sinto a falta dela.

Lisa o abraçou, sentindo as batidas do coração contra seu corpo.

— Eu também, Julian. Não acredito que ela se foi.

Ele apertou o abraço, e Lisa reclinou a cabeça em seu ombro.

Lisa não soube precisar quanto tempo ficaram imóveis, em silêncio. Nem soube em que momento seus sentimentos de consolo foram substituídos por uma nova sensação. Em um momento estava nos braços do irmão; no outro, ele se transformara em um homem que não reconhecia. Um homem que a estreitava contra seu peito nu, no mais doce dos abraços.

— Julian...

Ela sentiu os lábios dele roçarem sua testa, o queixo acariciando-lhe a pele. A respiração era quente contra seus cabelos, e Lisa começou a tremer. Confusa, percebeu que a angústia por Maudie e a necessidade de consolo haviam se confundido com outro sentimento. Ela gemeu, incapaz de compreender a própria reação.

— Está tudo bem, Lisa. Eu sinto o mesmo que você — ele murmurou.

Os lábios dele estavam junto de sua orelha, e Lisa não parava de tremer.

— Sente mesmo? — ela sussurrou surpresa.

— Vai passar, eu prometo. Temos de dar tempo ao tempo.

— Ele acariciou-lhe a nuca.

Uma sensação de alívio passou por ela. O que sentia era normal.

— Como você sabe? Como pode ter certeza de que vai passar?

— Porque senti a mesma coisa quando minha, mãe morreu. Demorou, mas consegui superar a angústia. E só tentar lembrar os bons momentos. A verdade é que o tempo cura qualquer ferida.

— Oh, não! — Lisa gritou, desesperada para se afastar dele. Se Julian suspeitasse de seus sentimentos... Só podia estar enlouquecendo! Com certeza ele daria uma gargalhada. E era exatamente o que ela faria, quando acordasse descansada no dia seguinte.

Julian segurou as mãos dela nas suas, impedindo-a de se afastar

— Escute, pode não me considerar mais seu irmão, mas meus ombros continuam amigos. Pode usá-los sempre que quiser, está bem?

Lisa concordou com um aceno. Julian se aproximou e beijou-lhe a testa. Com um gesto gentil, afastou uma mecha de cabelos de seu rosto.

— Tente descansar um pouco, Lisa. Amanhã tudo parecerá melhor.

Ele se levantou e subiu a escada para o quarto.

Lisa imaginou como seria o dia seguinte.

 

Um beijo canino, molhado, acordou Lisa no dia seguinte.

— Ainda não, Brutus, estou muito cansada — ela falou sonolenta.

Brutus ergueu a pata, colocando-a sobre o quadril de Lisa.

— Não me amole — Lisa protestou, sem querer acordar e sem saber o motivo. Estava cansada, mas isso não explicava sua relutância em despertar. De repente, lembranças incômodas apareceram. Julian!...

Brutus subiu na cama, encarando-a.

— Ah! Quer saber o que aconteceu depois que desertou ontem à noite? Eu me transformei em uma tola, foi isso o que aconteceu. Julian me abraçou e então eu senti uma sensação diferente e estranha, e ele...

O cão rosnou, virando a cabeça na direção da porta.

— Não é nada disso, seu tolo. — Lisa o abraçou, acariciando a enorme cabeça. — Julian é um perfeito cavalheiro. Ele tentou me consolar e eu reagi de um modo diferente.

Brutus latiu, aparentemente concordando.

— Preciso de um tempo. Estou confusa por causa da morte de Maudie. Quando as coisas acalmarem, meus sentimentos por meu irmão também acalmarão.

Lisa empurrou o animal para fora da cama.

— Que barulho desagradável! E eu disse isso mesmo: “irmão”! Levantando-se depressa, Lisa se vestiu e prendeu os cabelos com uma fita vermelha em homenagem a Maudie. Não sabia como enfrentar Julian. Era muita humilhação. Com certeza, ele percebera seu estado na noite anterior e fingira não notar para evitar um embaraço maior.

— A partir de hoje, Julian será apenas um irmão para mim — ela falou para Brutus. — Nada mais de sensações esquisitas. Vou olhar para ele como se fosse... um bolo de chocolate. Pode ser saboroso, mas não é preciso comer.

Lisa hesitou, percebendo que a analogia fora péssima. Ela jamais resistia a um bolo de chocolate.

— Você sabe o que estou tentando dizer, Brutus. Então, não dê mais nenhum palpite. Ele tem o livro para escrever e nós temos os pedidos de Maudie para realizar.

Abrindo a gaveta da cômoda, Lisa pegou vários papéis com anotações.

— Muito bem. Vamos ver qual será nosso trabalho hoje.

Brutus ficou ao lado da cama, enquanto Lisa espalhava as anotações sobre o colchão. Ele pegou um pedaço de papel com a boca e colocou no colo dela.

 

— O que temos aqui? Hum, a sala de jantar. Você tem certeza? E um trabalho demorado. Acho melhor terminarmos o escritório para Julian poder trabalhar em paz.

Como Brutus latiu discordando, Lisa decidiu fazer a vontade do animal.

Uma porta bateu no andar de baixo. Brutus ergueu as orelhas em alerta e disparou para fora do quarto. Lisa desceu correndo atrás.

Assim que começou a descer, viu não o “irmão” da noite anterior, mas um estranho elegante e sofisticado, vestindo um terno marrom. Ele estava parado com os braços cruzados, olhando inquisitivamente para algo fora do campo de visão de Lisa.

Confusa, ela percebeu que as sensações da noite anterior estavam de volta com intensidade ainda maior. Naquele momento, ele se virou e percebeu sua presença.

— Ah, você está aqui. Bom, parece que uma parte de sua tarefa acabou de chegar.

Lisa chegou embaixo e viu dois adolescentes de dezesseis anos dos quais deveria se encarregar, de acordo com o terceiro pedido de Maudie. A aparência deles não inspirava a menor confiança.

Donna, com os cabelos loiros permeados por mechas em vários tons de rosa, olhava para Julian como se estivesse perdida no deserto e o encontrasse com um cantil cheio. Seu namorado, Cory, só olhava, batendo com as luvas de motociclista contra o jeans.

A cena não era a mais apropriada para um início do dia. Lisa relanceou o olhar para Julian e decidiu explicar tudo mais tarde.

— Você vai sair? — ela perguntou com um sorriso. — Quero conversar um pouco com você, antes que o faça. E sobre seus funcionários...

— Hoje em dia não é fácil encontrar bons ajudantes.

— Eu reparei. Por isso acho que estes dois...

— Tive sorte. Ainda bem que eles estavam disponíveis

— Lisa sorriu, sem graça. — Na verdade, eram os únicos disponíveis.

Julian hesitou um instante, antes de concordar.

 

— Bem, se é para terminar os reparos, tudo bem.

Ele olhou para dentro do escritório e, pela primeira vez, Lisa viu o ambiente sob a ótica dele, o que não era nada animador.

O papel havia sido arrancado das paredes e estava caído no chão. O teto mostrava sinais de infiltração, e o lustre pendia torto.

— Lisa, o advogado de Maudie concordou em me ver hoje. Apesar do que me disse, espero que ele tenha uma cópia do testamento.

— E bem razoável — ela concordou.

— Nesse meio tempo, eu gostaria que você tentasse encontrar o testamento aqui dentro.

— Tudo bem, nós vamos procurar.

— Eu lhe disse que ajudaria a recuperar a casa, mas o trabalho será muito maior do que imaginei. Tem certeza de que vai dar conta de tudo?

— E claro que sim, Julian!

— Eu não estou certo. Esse trabalho, além de tempo, vai demandar muito dinheiro. Já pensou nisso?

Lisa mordeu os lábios, desejando que ele não mencionasse aquele assunto: dinheiro. Ultimamente as finanças haviam diminuf do muito.

— Julian...

— Escute, Lisa. Vamos tocando a reforma e ver o que acontece, está bem? Eu gostaria de ver o projeto que você e Maudie fizeram.

— Projeto?

— Sim.

Com medo da reação dele ao conhecer a verdade sobre os jovens, Lisa tentou disfarçar.

— Por que não discutimos o projeto mais tarde?

— Tem razão, está na hora da reunião com o advogado. Conversaremos à tarde.

— Sim, à tarde — ela repetiu, aliviada por ter algumas horas para imaginar algo que fosse condizente com a idéia que Julian tinha sobre um projeto.

Ele abraçou-a com carinho.

 

— Não se preocupe, nós vamos conseguir. — Ele deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Lisa fingiu não escutar o suspiro de Donna. Teve mais dificuldade para ignorar a expressão extasiada da garota. Felizmente, Cory não pareceu dar importância à reação da namorada.

— Ei, bobinha! — Ele segurou Donna pelo quadril. — Acorde. Afinal, que tanto você viu no coroa?

— Ele não é um coroa! — Donna. gritou, virando-se para Lisa. — Ele não é muito mais velho que você, não é?

Lisa sorriu satisfeita.

— E, sim. Ele é seis anos mais velho que eu. Fez trinta anos há um mês.

— Puxa, não parece — Donna falou. — Talvez ele seja do tipo que não aparenta a idade.

— E verdade — Cory continuou. — Dei uma olhada nele e pensei... esse cara nunça vai aparentar a idade que tem porque sempre pareceu velho. Caia na real, Donna!

— Vamos lá — Lisa interrompeu, antes que Donna pudesse argumentar. — Vamos dar prosseguimento ao trabalho.

Cory jogou a jaqueta sobre o ombro.

— Será que você fez mais daquelas bolachas de chocolate deliciosas?

— Estão na cozinha — Lisa respondeu, achando graça na expressão esperançosa do rapaz.

A caminho da sala de jantar, Lisa sentiu-se um pouco culpada porque não iria seguir as instruções de Julian. Ele insistira em recolocar as coisas nos devidos lugares. Era o que ela faria, assim que decidisse que estava na hora certa.

— Brutus escolheu a sala de jantar para hoje. Isso significa derrubar mais uma parede.

— Grande! — Cory exclamou. — Destruição em massa, minha parte favorita.

Lisa franziu a testa.

— Não se emocione muito. Já fez um estrago grande pichando aquelas paredes. Quero que se lembrem de que o único motivo de não estarem no reformatório se deve ao fato de Maudie ter concordado em assumir a responsabilidade por seu comportamento. Ou trabalham aqui ou passam o verão trancados. Se tiverem sorte, o juiz permitirá que eu assuma o compromisso de Maudie, isto é, se eu concordar. Por isso, façam o que eu quero.

Cory deu-lhe um sorriso deliciado.

— Se você quer derrubar paredes, estou pronto!

 

Horas mais tarde, Lisa estava na cozinha colocando limonada em três copos altos quando Donna entrou.

— Ei, Lisa, terminamos a sala. Quer ver?

— E claro. Pegue seu copo.

— Obrigada. — Donna virou o copo de uma só vez. — Fomos supercuidadosos desta vez. Até limpamos tudo depois de terminar.

Ela abriu a porta da sala de jantar com uma mesura.

Lisa olhou em volta, impressionada.

— Está uma beleza — ela disse, entregando um copo a Cory.

O trabalho dos dois fora perfeito. Haviam retirado toda a forração de madeira escura que recobria as paredes. Depois, arrancaram as estantes que faziam a divisão com outros ambientes da casa. Finalmente, tiraram toda a decoração do teto. O entulho estava colocado em várias caixas, e as janelas estavam abertas para permitir a saída da poeira.

Cory sorriu satisfeito.

— Está tudo pronto. Só falta levar o lixo para fora. Decidimos deixar para você. Também não pode esperar que a gente faça tudo!

Lisa deu uma gargalhada.

— Será que seu irmão vai gostar do nosso serviço? — Donna perguntou, ansiosa.

Lisa tentou disfarçar o divertimento. Relutava em destruir as ilusões de sua jovem ajudante. Já teria trabalho suficiente para explicar o estado da sala a Julian. Querer que ele gostasse era demais.

— Aposto que ele vai adorar, Donna.

Lisa deu mais uma olhada na sala. Era admirável como paredes faziam uma enorme diferença. Sem elas o espaço ficara enorme. Apenas os canos permaneciam, dando uma aparência irreal ao ambiente. Mais tarde, a parte elétrica também teria de ser renovada...

 

— Cory, será que seu irmão vai poder ajudar com a fiação amanhã?

— Ele não vê a hora, Lisa. — Cory pegou os martelos e as outras ferramentas do chão e guardou-os dentro de uma caixa. — Ele disse que será uma boa prática para quando ele for um eletricista de verdade. O que nós vamos fazer amanhã? Ou Brutus ainda não decidiu?

— Amanhã eu conto. Quem sabe? Talvez a gente arranque o chão, em vez das paredes!

Lisa retirou a última anotação de Maudie do bolso e estudou-a. Eles a haviam encontrado na sala de jantar.

Os reparos não seriam problema. Não, uma vez que Julian lesse a anotação e percebesse que aquela era a maneira lógica para encontrar o testamento. Julian adorava lógica. Julian compreendia lógica. Ele vivia, respirava e comia lógica!

 

                   Regra número 6

“Aprenda a lidar com as perdas, ou logo se encontrará à beira do abismo.”

No fim daquela tarde, Lisa assava os bolos que prometera a Suzanne Ashmore, para conseguir fundos para a escola, quando o prefeito Fishbecker ligou.

— Sim, senhor prefeito. Eu também concordo que a estátua de seu avô está muito encardida. E preciso tomar alguma providência.

Valerie apareceu ao lado dela e sussurrou:

— Lisa, você prometeu me ajudar. Diga ao prefeito que um balde com água e sabão e uma escova dura resolvem o problema.

— Uma doação de cem dólares? — Lisa hesitou, lembrando o quanto as finanças haviam diminuído. — Acho que não vai ser possível, senhor. Como? O senhor quer que eu faça uma campanha e peça donativos? Tudo bem. Não há de quê.

Lisa desligou o telefone e olhou desanimada para Valerie. A amiga sacudiu a cabeça.

— Ninguém, em sã consciência, vai dar dinheiro para a limpeza da velha estátua. Mas vamos voltar ao nosso assunto. Você pode ou não ficar com Danny amanhã, Lisa?

Posso sim, vou acrescentar isso à minha lista.

— Só espero que você não faça com meu filho o que está fazendo com os biscoitos — Valerie cheirou o ar. — Acho que tem alguma coisa queimando — ela disse, saindo rápido para ir embora.

 

Lisa estava ouvindo o barulho do carro de Julian quando um relógio perdido em algum lugar da casa bateu quatro horas. Ela terminava a cobertura de um bolo de chocolate.

— Julian chegou, Brutus.

O são-bernardo rosnou e escapou da cozinha.

— Você está sendo ridículo. — Ela lambeu a espátula coberta de glacê. — Se Maudie o visse agir assim ficaria envergonhada. Julian estava brincando a respeito do taco de beisebol.

Lisa olhou para os quatro bolos e passou o braço na testa para enxugar o suor. Conseguira queimar os dois primeiros e fizera quatro, quando Suzanne lhe pedira três.

O quarto bolo só seria problema se não se controlasse na hora de comer. Nunca sentira uma vontade como aquela.

A porta da frente foi aberta. Lisa escutou os passos de Julian no hall de entrada e depois subindo a escada. Minutos depois ela engolia a segunda garfada de bolo, e Julian voltou para baixo.

Brutus colocou o focinho dentro da cozinha e esperou com Lisa a reação dele, ao ver a sala de jantar.

A única coisa que ouviam era os barulhos de passos na sala vazia.

— Viu, seu bobo — Lisa sorriu para o cão. — Aposto que ele adorou o trabalho feito.

De repente ouviram um berro.

— Lisa!

O susto de Brutus foi tão grande que ele entrou pela cozinha, deslizou no piso e derrubou duas cadeiras.

Finalmente, Julian entrou na cozinha. Os olhos escuros brilhavam de raiva, e o rosto estava vermelho.

— O que você aprontou na sala de jantar? Não! Não precisa dizer o quê. Diga-me apenas por quê? Não! Também não precisa explicar. Apesar de minhas instruções, aposto que vai dizer que era mais um dos pedidos de Maudie!

Lisa abriu a boca para responder, mas desistiu.

— Que droga, Lisa! Você tem idéia do tempo e do dinheiro que serão necessários para colocar a casa em ordem outra vez? Não é possível! — O olhar dele pousou na lista que ela fizera, examinando-a com cuidado. — Não acredito. Você tem mesmo de fazer tudo isso? — Ele a olhou incrédulo.

— Acho que compreendo. Você não sabe o que está fazendo. Tudo o que as pessoas pedem, você faz!

Mesmo irritado, Lisa o achou irresistível.

— Lisa, você ouviu o que eu disse?

— Não. Aqueles bolos estão convidativos. Quer um pedaço?

Julian olhou para ela em silêncio, então sacudiu a cabeça, totalmente desorientado. Sem uma palavra, ele colocou a lista na mesa novamente, ergueu as cadeiras que Brutus derrubara e saiu pela porta dos fundos.

Lisa ficou aborrecida por ter ferido os sentimentos de Julian. Ele se sentira insultado. Confusa com seus sentimentos, saiu pela mesma porta.

Julian andava pela margem do lago, com as mãos nos bolsos. Curioso, Brutus andava atrás dele, mantendo uma distância segura.

Ela sorriu. Resolveu explicar a ele todos os planos de Maudie. Lisa tirou os sapatos e enrolou a barra da calça.

— Julian, espere. — Ele também estava descalço, mas não parou. — Julian, eu lamento. Não quis irritá-lo.

— Não estou irritado — ele respondeu, continuando a andar na direção do pequeno bosque que cercava o lago.

— Que tal.. desapontado, chateado, frustrado? — Quando ele parou, Lisa percebeu que encontrara a palavra apropriada.

— Isso mesmo, frustrado. Lamento ter frustrado seus planos. Lisa o encarou, tentando ler o significado da expressão no rosto. Há poucos anos, teria sido uma tarefa simples. No momento, era quase impossível.

— Precisamos conversar — ele falou de modo brusco. — Essa loucura não pode continuar. Vamos sentar agora e tomar algumas decisões. Do jeito que as coisas estão caminhando, não vejo como vai conseguir ficar em Wiliow’s End, não importa quem herde a casa.

— Não! O que está querendo dizer? Quer vender a casa? Não pode estar falando sério.

— Pois estou! Agora sente-se.

 

O calor era insuportável, a umidade excessiva. Em silêncio, eles caminharam até a sombra de um grande pinheiro. Lisa sentou no chão e começou a rasgar as folhas caídas. Julian acomodou-se a seu lado.

— Compreendo seu desejo de honrar os pedidos de Maudie — ele escolheu as palavras com cuidado. — Também sei o quanto Willow’s End representa para você. Acontece que temos de ser práticos.

Com se percebesse o quanto a magoara, Julian se aproximou, abraçando-a. Para ele, era um gesto de conforto e simpatia. Em Lisa, o abraço provocou uma reação tempestuosa. Ela não respondeu, e Julian continuou.

— Pensei que você e Maudie tivessem um projeto para a reforma. — Ele a olhou com ironia. — Admito que foi tolice de minha parte.

— Não é verdade — ela finalmente recuperou a voz e tentou controlar as emoções. — Eu lhe disse que Maudie deixou-me notas, dizendo o que deve ser feito.

— Eu entendo, mas você está pulando de uma tarefa para outra de modo desordenado. Como se sorteasse a tarefa de cada dia. — Julian percebeu o olhar surpreso de Lisa e deu uma gargalhada de incredulidade. — Não é possível! Você não pode estar fazendo isso!

Lisa achou melhor não mencionar a participação de Brutus.

— Não achei que uma ordem fosse importante, uma vez que tudo vai ser mudado.

— Por que tudo vai ser mudado, Lisa?

— Por causa da fiação elétrica que tem de ser inteiramente trocada.

— E depois será o telhado com vazamento, as novas paredes, os reparos externos e internos... Lisa, quanto dinheiro tem em sua conta?

— Hum... cinqüenta e seis dólares e oito centavos.

A raiva pareceu abandonar Julian, sendo substituida por compaixão.

— Sabe quanto vai custar para deixar a casa em ordem?

Quando ele mencionou a enorme cifra, Lisa arregalou os olhos.

— Mas Maudie disse que podia pagar.

 

— É possível. Ela recebia uma pensão que talvez fosse suficiente. No momento, quem herdar a casa vai herdar também as despesas. Com certeza, você não poderá pagar.

— Não — ela admitiu. — Mas talvez ainda exista um saldo na conta de Maudie.

— Ou talvez não. Prefiro ser cauteloso. — Julian acariciou-lhe o rosto. — Não é apenas o dinheiro, ou a falta dele, querida. Você não pode lidar com tudo o que lhe pedem. As pessoas abusam de sua generosidade.

Lisa ergueu o queixo para enfrentá-lo.

— Posso muito bem lidar com tudo.

Pode mesmo? Você tem pouco dinheiro na conta, uma lista interminável de tarefas. Os reparos da casa são monumentais. Não percebe que não tem opções? Não existe outra escolha possível a não ser vender.

Lisa sacudiu a cabeça.

— Não, Julian. Não posso vender a casa. Eu amo este lugar.

— Eu também. Mas é apenas um local ffsico. Como é mesmo aquele ditado? “Lar é onde o coração está.”

— Willow’s End não é apenas uma casa — ela falou com os olhos marejados. — E a nossa casa! Por favor, não jogue-a fora.

Julian abraçou-a com força.

— Não estou jogando. Mas pense um pouco. Logo voltarei a Chicago. Como vai lidar sozinha com este problema? Ficarei preocupado!

— Prometo que resolvo tudo antes da sua volta. Dê-me uma chance de provar que sou capaz.

— Tudo bem, Lisa. Eu o farei, apesar de acreditar que a venda é nossa única opção. Nesse meio tempo, precisamos entrar em acordo a respeito de algumas coisas.

Lisa sabia que no fundo o coração dele superava a racionalidade. Ele também não queria se desfazer da casa.

— Pode dizer suas condições.

— Primeiro, vamos sentar e organizar um esquema apropriado para a reforma.

— Concordo.

— Segundo, sua prioridade será encontrar o testamento. Terceiro, nada mais de compromissos com outras pessoas até resolver essas tarefas.

 

— Também concordo. Qual é o quarto e último?

— Quarto e Ültimo, você não vai mais mover uma mosca do lugar sem a minha aprovação.

— Fechado! — Lisa fez uma reverência. — Obrigada, Julian. Você não pode imaginar o que seria de mim se perdesse a casa. Você sabe o quanto ela me é cara.

Julian tirou os óculos e segurou o rosto de Lisa com as duas mãos. Ela começou a tremer. Tinha plena consciência de sua reação. Se ele lhe desse um beijo fraternal, corresponderia como mulher e ele perceberia seus sentimentos, o que destruiria a relação entre os dois. Erguendo-se de um salto, correu para o lago.

— Lisa? O que houve? — De repente, um brilho diferente passou por seu olhar e uma espécie de sorriso formou-se no canto dos lábios, como se ele tivesse descoberto o segredo.

— Lisa...

— Puxa, está muito quente. — Ela fingiu indiferença.

— Vamos nadar?

As palavras provocaram uma reação imediata em Brutus. Ele veio correndo e pulou no peito de Lisa. Ela balançou os braços tentando se equilibrar e Julian correu para segurá-la. Foi tarde demais. Ela caiu de costas no lago. Julian, ainda segurando seus braços, caiu junto.

Brutus sentou na margem, parecendo muito feliz.

Lisa voltou à tona, tossindo. Com a ajuda de Julian, subiu na margem e encarou Brutus.

— Por que fez isso? — ela gritou, pensando num modo de ofendê-lo. — Seu... seu cão estúpido!

O pobre animal correu de um lado para o outro da margem, ofendido, latindo sem parar.

Um pensamento ocorreu a Lisa. Ao empurrá-la no lago, Brutus estava ajudando. Foi a distração perfeita para evitar perguntas embaraçosas. Então, olhou para Julian. Ele não parecia um homem feliz.

— Julian, seus óculos?

— Em algum lugar embaixo da árvore.

— Sua carteira?

— No armário do quarto.

— Que bom. E por acaso seu relógio é à prova d’água?

— É o que diz o certificado de garantia — ele falou, examinando o caro relógio em seu pulso. — Logo saberemos.

Lisa suspirou aliviada.

— Então não há problema.

— Como? — ele perguntou irritado. — Ficou louca? O cachorro nos atirou no lago, deliberadamente! — Julian parou de falar, mais uma vez consciente de ter descoberto um segredo. — E veja sua expressão, Lisa Marcus!

— Que expressão? — ela fingiu inocência.

— Você sabe muito bem do que estou falando. — Julian estreitou os olhos. — Mudei minha opinião sobre o animal. Ele é esperto. O danado é capaz de premeditar uma ação. Quando puser minhas mãos nele, ele vai se arrepender.

Brutus não esperou mais. Com um ganido, saiu em disparada.

— Você o assustou Lisa reprovou. — Não sei por que continua tão bravo. A água está uma delícia. Por que não vamos nadar?

Julian colocou as mãos na cintura e encarou-a. Lisa fechou os olhos com o rosto erguido para o sol. Era mais seguro não olhar, ela pensou.

— Você é doida. Quero dizer, eu já suspeitava de uma ligeira insanidade. Mas esta sugestão prova que está ficando cada dia pior.

— Não sei por quê. O calor está infernal. Nossas roupas já estão molhadas. Qual é o problema?

— Esqueça, Lisa.

Ela baixou os olhos, escondendo o brilho tímido que sabia estar lá. Apenas uma coisa faria Julian mudar de idéia.

— Aposto uma fatia de bolo de chocolate como ganho de você na natação.

Julian era incapaz de resistir a uma aposta. Fora uma das primeiras coisas que aprendera sobre ele quando chegara para viver em Wlllow’s End. Também era a única coisa irracional na personalidade dele.

Por um momento, achou que Julian não fosse aceitar. Então, a irritação desapareceu e ele mergulhou no lago. Lisa pulou atrás dele, sentindo o peso das roupas, sem conseguir nadar com velocidade. Chegou exausta e sem fôlego à outra margem.

 

Julian estava em pé, divertindo-se com a dificuldade dela para sair da água. Logo depois, com pena, estendeu a mão para ajudá-la.

— Era uma corrida de verdade? — ele brincou.

Lisa precisou de um longo minuto para recuperar o fôlego.

— Você jamais resistiu a uma aposta, não é, Julian?

— Quer dizer, você jamais resistiu. Aos treze anos você era tão tímida e arredia que achei que nossas apostas fossem a único modo de poder me aproximar.

Lisa o encarou, assustada.

— Quer dizer que na verdade não gosta? Apostava por minha causa?

Julian sentou com as longas pernas estendidas.

— Apostas não são lógicas nem práticas e representam uma total perda de tempo. — Ele deu um sorriso carinhoso.

— Só gosto de apostar com belas moças que sempre perdem para mim e fazem o melhor bolo de chocolate do mundo. Aí, é irresistível.

Sentindo o rosto enrubescer, Lisa sorriu em agradecimento. Ele só fizera aquilo para ajudá-la a se adaptar.

— Você é um homem maravilhoso, Julian Lord.

Consciente de estar entrando em território perigoso, Lisa mudou de assunto.

— Sabe que com estas roupas pesadas nunca vamos conseguir nadar de volta? Teremos de viver deste lado da margem pelo resto de nossas vidas, comendo peixe cru.

— Peixe cru? Nem pensar. Espero que os irmãos Burn venham me resgatar.

— Esqueceu que contei o segredo deles na celebração? Agora o pai vai proibi-los de vir para cá.

Um sorriso charmoso passou pelos lábios dele.

— Bem, querida. Se o problema são as roupas, podemos tirá-las e nadar de volta. Pior será se formos vistos por alguém... O que acha? Pode sobreviver, sendo o assunto da cidade?

Com um rápido movimento, Julian tirou a camisa. Lisa o fitou, boquiaberta. Ele tocou o rosto rubro com a ponta dos dedos.

— Relaxe. Eu estava brincando.

Lisa não sabia se estava aliviada ou decepcionada. Julian se deitou de costas e ela não pôde evitar um olhar. Ele era um belo e perigoso homem. Ela afastou a camisa do corpo, para a água escorrer. Infelizmente não podia tirá-la, como Julian fizera. A calça jeans molhada parecia um ferro a vapor sob o sol escaldante.

— Pode tirar, eu não ligo — Julian falou sem abrir os olhos.

— Você sabe que não posso. Alguém pode ver.

Na verdade, Julian veria. Um tremor percorreu seu corpo ante tal idéia.

— Ninguém vai ver. Aliás, molhada como está, sua camisa não protege nada. — Ele abriu os olhos e virou-se para olhar para Lisa. O olhar guloso percorreu-lhe o corpo com volúpia, e o sorriso aumentou.

Lisa olhou para baixo e percebeu que ele não estava brincando. Cruzou os braços na frente dos seios.

— Pare de olhar para mim!

— Quase esqueci que você é minha irmã.

— Não sou sua irmã — ela murmurou.

— Nesse caso... — Julian rolou sobre o próprio corpo, pegando-a de surpresa.

— Não! — Com um grito, ela se afastou, quase caindo na água.

Julian abraçou-a e falou junto a seu ouvido:

— Calma. Eu estava brincando. O que acha que eu ia fazer?

— Me beijar — ela respondeu.

Ele não riu. Ao contrário, segurou o rosto dela com carinho.

— Por isso ficou em pânico? Por quê? Eu já a beijei antes.

Como se desejasse lembrá-la, os lábios de Julian tocaram o rosto dela como uma pluma. Lisa suspirou. Um beijo não seria tão mau assim. Ela desejava o beijo. E se acontecesse, seria uma ótima maneira de tirar Julian de seus pensamentos.

Ela relaxou com o abraço e Julian acariciou-a. Os braços dele em torno de seu corpo transmitiam uma sensação de proteção muito grande.

O rosto dele encontrou o dela, provocando um arrepio pela barba um pouco crescida. Julian aproximou-se mais, e seu corpo estava pressionando a camisa ensopada da irmã adotiva.

Lisa sentiu os dedos dele acariciando sua nuca e por uma momento prendeu a respiração. Então, ela levantou o rosto.

Suas bocas estavam muito próximas. Julian hesitou um pouco, pois talvez não tivesse percebido o que Lisa oferecia. Será que ele ainda a via como uma irmã?, pensou ela.

Judian respirou vagarosamente e murmurou entre os dentes.

— Por que não?

Então beijou-a.

Aquele homem poderia dar aulas, pensou Lisa. Parou de pensar e só sentiu. As mãos dele passeavam por suas costas. Ele ajeitou-a da melhor maneira possível, e seus seios roçavam no peito dele. Lisa queria mais, estava pronta a aceitar tudo o que lhe fosse oferecido.

Julian era muito experiente e sabia exatamente como dar prazer a uma mulher. Lisa soube, naquele momento, que não seria capaz de esquecer e nem de olhá-lo com os mesmos olhos novamente.

Ela abriu os olhos e viu a expressão de paixão na face de Julian. Ele também percebera a ligação que tinham...

Julian passou os dedos pelo arco da sobrancella dela. Nunca vi seus olhos tão verdes. São lindos. E incrível como alguns anos podem provocar mudanças consideráveis em uma pessoa. — Ele tirou uma mecha de cabelo molhado de cima da testa. — Mas acho que agora é hora de conversar, não é?

Lisa fez que sim com a cabeça. Sim, eles precisavam conversar. Aquele beijo mudara muitas coisas.

— Então vamos falar sério sobre Maudie e seu testamento. Temos menos de dois meses para resolver tudo. Por isso, não nos sobra muito tempo para brincadeiras e diversão.

 

                   Regra número 12

“Emoções e caldeirões ferventes são iguais. Os dois precisam ser contidos para não transbordar e nenhum tem lugar quando se trata de negócios.”

Lisa arregalou os olhos, incrédula. Jogos e diversão? Fora isso que o beijo significara para ele? Será que Julian não sentira o mesmo prazer nem a intensa atração e emoção com a proximidade de seus corpos?

Aparentemente não! Lisa olhou para o chão, como se fugisse dos próprios sentimentos e envergonhada pelo que sentira.

Ela o interpretara mal. Confundira carinho e amizade com muito mais. E o pior é que tinha praticamente implorado pelo beijo. Mas mal-entendidos aconteciam, e não havia motivo para tanto desespero!

— Você está certo. Devemos nos ater a Maudie e ao testamento. — Ela respirou fundo. — O advogado ajudou em alguma coisa?

— Nem um pouco — ele respondeu, um tanto hesitante.

— Peters não faz idéia de onde Maudie possa tê-lo escondido.

— Foi o que eu lhe falei, não deveria estar tão surpreso.

—. Não se trata de surpresa, eu estou um pouco desapontado, pois esperava que ele pudesse dar alguma pista, por menor que fosse.

— Não há com o que se preocupar. — Lisa colocou a cabeça nos joelhos e suspirou, prevendo o trabalho que teriam. — Na sua última anotação, Maudie deixou bem claro que escondera o testamento num lugar apropriado. Então, temos de começar a procurá-lo.

— Quer dizer que achou outra anotação de Maudie e não me contou?

— Tanta coisa aconteceu que acabei me esquecendo. Mas está aqui no meu bolso.

Lisa deitou-se na grama e colocou a mão no bolso do jeans ensopado, tirando um pedaço de papel cor-de-rosa, também ensopado.

— Isso é ótimo — disse Julian, sarcástico. — Aposto que você ainda não leu o bilhete e agora nós dois não vamos saber o que estava escrito nele.

— Eu li, sim, mas você não vai ficar bravo?

Ele sacudiu a cabeça impacientemente, e Lisa continuou.

— Maudie disse que deixou outro bilhete, revelando o local do testamento, mas teremos de achá-lo.

— Primeiro, tínhamos de achar o testamento, agora um bilhete? O que será que estava passando pela cabeça de Maudie? — Julian olhou para Lisa. — Ela explicou por que está fazendo isso, excetuando-se o fato de eu precisar de férias?

— Acho que ela pode ter sugerido alguma outra coisa...

— Lisa evitava o olhar de Julian.

— O que, precisamente, ela sugeriu, Lisa?

— Ela disse que sabia que havíamos perdido e desejava que nos aproximássemos novamente.

Lisa esperou por uma explosão, que não veio.

— Essa é a coisa mais sensata que Maudie agora. Acho que devemos pensar no assunto.

Ele vestiu a camisa e passou as mãos pelos cabelos, a fim de ajeitar os fios rebeldes. Lisa não gostou do que viu, pois o ‘seu” Julian estava desaparecendo e em seu iiga entava novamente o lógico e racional sr. Lord. A última coisa que faltava para voltar ao normal eram aqueles óculos de executivo.

— Onde você achou esses bilhetes?

— Por toda parte — ela disse, mas Julian lançou-lhe um olhar incrédulo què a fez continuar. — Os bilhetes sobre o testamento estavam no escritório e na sala de jantar. Mas aqueles sobre a reforma estavam espalhados. Eu achei um na gaveta, outro embaixo do tapete, outro dentro da geladeira... Eu os juntei com os do testamento e os coloquei em meu quarto.

— Se não acharmos esse testamento, você não herda Willow’s End, eu não herdo Willow’s End. De acordo com Peters, meu pai herdará toda a propriedade de Maudie, inclusive um são-bernardo maluco.

— Mas... — aquilo não podia ser verdade, pensou Lisa.

— Nada de mas. Estou com medo, pois se Maudie foi a última pessoa a estar com o testamento e ele não puder ser achado em um período racional, o juiz pode pensar que ela o revogou. — Julian esperou até ela entender. — Então, minha querida, se não quer ver seu lar vendido para ajudar as expedições de Jonathan à América do Sul, é bom me ajudar a procurar esse testamento.

Lisa olhou para Julian, assustada. Aquele era seu lar, ela não podia perder o único lugar no mundo em que se sentia bem!

— Não! Nós temos de fazer algo, eles não podem...

— Nós acharemos o testamento, Lisa, não entre em pânico

— ele confortou-a com voz doce. — Tudo o que temos a fazer é descobrir como a mente de Maudie funcionava.

Aquilo era demais. De que forma iria saber como funcionava a cabeça de Maudie? Pela primeira vez, ela entendeu a posição de Julian. Era para ficar possesso, mesmo, com essa brincadeira da tia.

— Vamos conseguir, Lisa. Se trabalharmos juntos, estou certo que arrumaremos essa bagunça.

— Está certo, trabalharemos juntos — ela concordou.

— Agora, preste atenção. Quando aquelas crianças chegarem aqui, você vai sugerir a elas uma caça ao tesouro. Sem uma razão específica, mas diga para procurarem pelos bilhetes de Maudie.

— Está bem. Se assim deseja...

— E o que eu decidi ser melhor. Com meu livro para escrever, eu não tenho muito tempo para brincadeiras, principalmente uma em que temos de descobrir se um testamento existe ou não.

O sol estava forte, e um pássaro sobrevoou as árvores em busca de sombra. Lisa olhou para as águas claras do lago. Beijá-la fora uma perda de tempo para Julian. Será que sentar-se no deque, tomar sol e conversar também representaria uma perda de tempo? Provavelmente.

Lisa odiava as mudanças de Julian nos últimos dois anos. Ele costumava ser brincalhão, criativo, alegre. Nunca havia considerado suas horas de diversão ao lado dela como uma perda de tempo.

Agora não tinha mais tempo para nada, muito menos para distrações, e Lisa era uma distração.

— Preciso preparar o jantar, acho que vou nadar de volta, se não se incomodar.

— Você está certa. Por mais gostoso que tenha sido...

— E hora de voltar ao trabalho — ela terminou a frase, lutando para não mostrar a dor que sentia.

Julian segurou-a pelos ombros e fitou-a.

— Eu ia dizer que, por mais gostoso que tenha sido, eu não quero que fique resfriada. O sol já está encoberto pelas árvores, e a brisa está um pouco fria.

-Ah...

— O que há, Lisa? Você está estranha já faz algum tempo.

— Não é nada — ela disse, desejando que Julian não a tocasse.

Mas as mãos dele pousaram na pele macia em cima do ombro.

— Foi o beijo, não? — Ele olhou para cima, pensativo. — Esqueça o que aconteceu, está bem? Eu odiaria que nossa amizade se arruinasse por um incidente tão tolo como esse. O mal-entendido sobre Gwen já foi ruim o bastante.

Incidente tolo. Julian não sabia o quanto a machucava falando daquela maneira. Lisa levantou o queixo e sorriu para ele.

— Você tem razão. E bobagem deixar que um beijo sem importância estrague as coisas.

— Boa menina. Agora tire sua calça.

— O quê?

— Você me ouviu, tire a calça.

— Por quê? — ela perguntou, ressabiada.

— Eu quero que tire, para nadar até a beira do lago. Na vinda você quase se afogou. E muito mais fácil nadar sem esse peso todo puxando-a para baixo.

— Esqueça! Prefiro arriscar.

— Não — respondeu Julian, cruzando os braços na frente do peito. — Não estou olhando. Não vou espiar nem um pouquinho, prometo. Vamos, tire a calça e deixe no deque. Eu a levo comigo, depois poderá vesti-la atrás dos arbustos.

Lisa suspirou e obedeceu, mas sentia-se desconfortável só de calcinha e camiseta. Ela notou que Julian não movera um músculo para olhá-la. Enfim, mergulhou na água e saiu nadando.

Apesar de estar vestido de calça e carregando outra, Julian conseguiu ultrapassá-la e chegou primeiro.

Lisa lembrou que sua camiseta era branca e continuou na água.

Pode devolver minha calça agora, Julian?

Ele hesitou por um momento, mas jogou a roupa para Lisa vestir.

— E uma pena... quando sei que minha, ahn, prima tem as pernas mais bonitas de Willow — disse ele, virando-se para Lisa poder se vestir.

Lisa apertou a calça contra o corpo.

— Não sou sua prima! Nem sua irmã! — gritou ela. — Acho que não sou nada de você.

Na manhã seguinte, bem cedo, Lisa entrou na cozinha, determinada a adiantar o trabalho da reforma. Ao olhar para o chão, suspirou de desgosto. Havia muita poeira, e ela varrera muito bem no dia anterior!

Com a reforma em andamento na casa, era dificil mantê-la limpa! Desanimada, apanhou a vassoura e recomeçou a varrer o chão. Depois, pegou um balde com água e sabão para lavá-lo.

Quando estava no meio do trabalho, o telefone tocou.

— Alô, Lisa? Aqui é Suzanne Ashmore, da escola. Estou ligando a respeito dos bolos que prometeu fazer para ajudar. Estão prontos?

 

Lisa sentiu-se culpada por ter comido um pedaço daquele bolo extra. Mas, pelo menos, estava tudo pronto.

— E claro que sim, Suzanne. Quando deseja pegá-los?

— Aí é que está o problema. Estou totalmente ocupada hoje e queria saber se tem um tempo para deixá-los aqui...

Lisa pensou por um momento se estaria traindo Julian, pois prometera não aceitar mais nada para fazer. Mas aquela era uma boa causa e não havia problema.

— Não se preocupe, eu levo. A que horas você quer?

— Ao meio-dia. Está bom para você?

Lisa olhou para o chão ensaboado e para a longa lista de tarefas em cima da mesa, mas concordou.

— Nesse caso, será que poderia pegar as tortas da sra. Hankum e os docinhos de Lu Ridgeway? E bem o seu caminho.

— Sem problemas.

A porta da cozinha abriu e Valerie entrou carregando Danny. Lisa acenou e o garotinho foi colocado em seu colo. Valerie fez alguns gestos incompreensíveis e desapareceu. Pouco depois, ela voltou carregando uma cadeira de bebê. Suzanne ainda estava na linha.

— Ainda há mais um detalhe.

— Sim? O que é?

Valerie tirou a criança do colo de Lisa e colocou-a na cadeira. Deu-lhe alguns biscoitos e a mamadeira, beijou-lhe a testa e acenou para Lisa, sumindo novamente.

Danny viu sua mãe ir embora e, no instante em que percebeu que ela não voltaria mais, abriu a boca e começou a berrar.

— Lisa? Ainda está na linha?

— Estou. — Lisa colocou um dedo no outro ouvido, na tentativa de escutar melhor.

— E sobre os exames para novos alunos. Como nossa professora de jardim da infância é nova, você foi escolhida para aplicar os testes. E aquele teste para determinar se elas vão para o jardim ou o pré, sabe? Não é excitante?

— Excitante...

Lisa repetiu, nem um pouco entusiasmada. Sobre o que ela estava falando? Ela não se recordava de nenhum teste.

Com urna das mãos, alcançou um biscoito e ofereceu-o para Danny. Valerie teria um ataque se visse, mas, naquele momento, estava mais preocupada em não acordar Julian, ou ele teria um ataque de raiva!

Os olhinhos de Danny brilharam, e ele parou de chorar imediatamente.

— Há apenas um pequeno problema — disse Suzanne, um pouco hesitante.

— Um pequeno problema? Qual é? — Lisa perguntou, enquanto olhava para Danny, que se preparava para arremessar seu biscoito mastigado no piso cheio de sabão.

— A sra. Martin, instrutora dos testes, está passando férias na Europa. Normalmente, ela testaria as crianças novas para seu departamento, mas... ela não poderá, pois está passeando pelo continente. — Suzanne riu. — Então pensamos em você, Lisa. Será que pode substitui-la?

Isso violava seriamente a terceira regra de Julian. Mas ela não tinha muita escolha, se ainda quisesse o emprego no próximo ano.

— Acho que posso.

Ela respondeu e ao mesmo tempo olhou para Danny, que, depois de ver seu biscoito ser arremessado com perfeição, jogava os restos dos biscoitos e a mamadeira. Esta última acertou a parede, o bico saiu e o leite espalhou-se pela cozinha toda.

— Otimo! — Suzanne exclamou. — Logo informaremos as datas. Tenho de correr, não esqueça de trazer os bolos.

O telefone ficou mudo. Mas a voz de Julian atrás dela a assustou.

— Sobre o que era essa conversa? — ele perguntou, observando-a recolher pedaços de biscoito pelo chão.

— Nada de importante. A escola precisa de ajuda extra para aplicar os testes nos alunos novos.

Julian segurou-a pelos ombros e colocou-a em pé.

— Esqueça o chão, eu posso fazer isso. Agora sente-se e explique sobre esse teste.

Julian pegou um pedaço de papel absorvente e limpou os restos de comida do chão, sob o olhar surpreso de Lisa.

 

— Julian, deixe que eu faça isso... — disse ela, após constatar que a sujeira só aumentara mais.

— Não, não, eu posso cuidar disto — respondeu ele, decidido. — Então seus chefes na escola decidiram que você aplicará os testes? E naturalmente você disse sim. Pensei que tivéssemos um trato. Não gastar mais tempo nem dinheiro com outras coisas que não sejam sobre o testamento.

Lembra-se?

— Eu me lembro, mas isso é diferente. E o meu trabalho.

— Tudo bem, acho que posso aceitar isso. — Ele olhou para o chão. — Pronto, agora está melhor. Mas e o Danny? Eu não o notei na sua lista.

— E porque está na geladeira. Quero dizer, o pedido de Valerie está na geladeira. Por que ficou tão preocupado em saber como passo meu tempo?

— Você é uma pessoa generosa, Lisa. Eu acho que, às vezes, pessoas tiram vantagem de sua generosidade. A maneira de conseguir fazer o que precisa é não aceitando mais nenhum favor. Você prometeu dar prioridade ao testamento de Maudie.

— Não se preocupe, as crianças me ajudarão com isso. Elas devem estar chegando.

Ela pegou outro pedaço de papel e passou no chão que Julian “limpara”. Ele passou por trás dela e tirou o papel de suas mãos.

— Lisa, se você não corresse o risco de perder esta casa, eu não estaria nem ligando para o testamento. Na verdade, me preocuparia mais com você trabalhando tanto assim. Eu sei que uma parte disso é para esquecer a morte de Maudie, mas precisa parar um pouco.

Lisa pegou novamente o papel e voltou a limpar o chão.

— Eu penso que trabalhar é a melhor maneira de esquecer? Ouvi você no computador até bem tarde, ontem. Qual a diferença?

— A diferença é que eu só trabalho no que posso. E apenas uma coisa que estou fazendo.

A porta se abriu e Donna e Cory entraram.

— Olá, sr. Lord... Julian disse Donna.

Seus cabelos brilhavam, de tão verdes que estavam. Julian cumprimentou-a também, com os olhos arregalados, e virou-se para Lisa.

— Se precisar de mim, estarei no escritório improvisado. Não pense que nossa conversa terminou, ela só foi adiada.

— Ele sorriu. — Espero que tenha um dia.., produtivo.

— Para você também, Julian. — Querendo ou não, a discussão estava encerrada. Lisa virou-se para Cory. — Seu irmão venl7

— Vem, sim. Ele não vê a hora de começar a trabalhar. E nós? O que vamos fazer hoje? Derrubar umas paredes?

— Que tal uma caça ao tesouro? — Lisa riu das expressões de surpresa e explicou o plano de Julian para eles. — Eu não faço a menor idéia de onde mandá-los procurar. Pode estar em qualquer lugar. Tudo o que peço é que tentem não fazer barulho, por causa de Julian.

Os dois safram em disparada, e Lisa pegou Danny no colo.

— Bem, o que me diz, jovenzinho? Vamos esquecer o chão cuidar de nossa vida? Suzanne disse ao meio-dia, e do modo que estamos indo, ainda estaremos aqui bem depois dessa hora.

A campainha tocou e Lisa riu.

— Viu o que quis dizer?

Era Ted, irmão de Cory. Ele não parecia ser muito mais velho do que Cory e Donna, mas sua aparência era duas vezes pior. As roupas estavam rasgadas de propósito, e ele amarrara o cabelo longo com um cadarço de tênis. Por um dos rasgos da camiseta, Lisa podia ver uma caveira com ossos cruzados, tatuada no braço dele.

Ted entrou e olhou maravilhado para a casa de Maudie.

— Que lugar! — Ele continuou andando pela casa. — Não vejo a hora de começar a quebrar umas paredes!

— Ouça, Ted, o sr. Lord quer checar comigo antes de fazer qualquer coisa na casa. Acho que ele está preocupado com a lei, as plantas etc...

— Diga ao sr. Lord que sei o que fazer. Espere até ele ver a conta’

— Conta? — Isso significava dinheiro, algo que estava faltando naqueles tempos. — Cory disse que faríamos um acordo depois...

— Tudo bem, você me dá vários papéis verdes e eu conserto sua fiação — ele disse, rindo.

Danny começou a chorar, assustado com a risada de Ted.

— Olhe, preciso começar a estudar isso aqui. Não se importa se eu andar por aí, não é?

— Bem, eu...

— Otimo. Eu não sabia que ainda existiam lugares assim de pé. Achei que todos haviam sido queimados.

Lisa pensou se deveria falar com Julian, pois ele fora bem específico a respeito da casa, mas por outro lado ela não queria interrompê-lo, e Ted só iria olhar, não trabalhar. Convencendo-se de que era verdade, ela caminhou para a cozinha.

— Vamos levar esses bolos para Suzanne, Danny. Lidaremos com Ted depois.

Lisa voltou para casa no meio da tarde. Ela não pensara que demoraria tanto, mas ao chegar à casa da sra. Hankum descobrira que deveria pegar mais tortas em outros lugares. Depois de atravessar Willow de ponta a ponta, ainda deixou Danny na casa de Valerie.

Quando ela entrou na sala, ouviu vozes excitadas vindas da biblioteca. Donna gritou:

— Venha rápido, achamos algo!

Cory e Donna olhavam juntos um pequeno envelope, e até Brutus estava interessado. O chão estava coberto de livros.

— Mas o quê...

— Nós tiramos tudo das estantes — disse Cory, como se não fosse óbvio. — E olhe o que achamos!

— Isso é maravilhoso, Cory, certamente é outro bilhete de Maudie.

Ela pegou o envelope e viu que seu nome e o de Julian estavam escritos.

— Talvez devêssemos esperar pelo sr. Lord, já que está endereçado a ele também — disse Lisa. Mas os meninos reclamaram e ela voltou atrás. — Tudo bem, vamos ver se é importante, eu não quero incomodá-lo com um alarme falso.

Nervosa, Lisa rasgou o envelope e tirou um pequeno papel cor-de-rosa de dentro. O delicado perfume de Maudie se espalhou pelo ar. Lisa respirou fundo para afastar a tristeza e leu o bilhete.

 

       “Queridos Lisa e Julian,

Desculpem-me, este bilhete não é sobre o testamento. Mas não desistam! Se estão lendo isto, significa que eu parti, então plantem uma flor em minha memória. E quando ela florescer, lembrem-se de que os amo.

                         Tia Maudie”

 

Ao terminar de ler a mensagem, Lisa chorou como uma criança. Donna correu para a porta, e Brutus a seguiu.

Ela sentou-se numa poltrona e cobriu o rosto com as mãos. Como Maudie pôde pensar que precisariam plantar uma flor para recordar dela com amor? Ela pensava na tia o tempo todo e sempre a amaria.

Julian entrou na biblioteca, apressado. Ele olhou para a comitiva e para bagunça.

— Fora, todo mundo para fora!

Ele sentou-se ao lado de Lisa e enxugou as lágrimas de seu rosto.

— O que foi, querida? O que aconteceu? — perguntou ele, num tom tão doce que Lisa poderia derreter.

Sem dizer uma palavra, ela entregou-lhe o bilhete de Maudie. Julian enlaçou-a com um dos braços antes de ler.

— Que coisa... — Ele beijou a testa de Lisa. — Não chore, querida, nós estamos juntos nisso. Que tal plantar rosas? Maudie adorava rosas.

Lisa concordou, enxugando os olhos.

— Rosas amarelas e cor-de-rosa. E também aquelas grandes e vermelhas com perfume forte. Ela era louca por esse tipo. Vamos encher o jardim com rosas e pensaremos nela o tempo todo. Vamos...

Um barulho estranho a distraiu.

— O que foi isso? — exclamou Julian, assustado.

Então as luzes piscaram e se apagaram. Ele abraçou-a.

— Filho da mãe...

— Ted! — Ela suspirou. — Eu deveria saber...

Um instante depois todas as lâmpadas brilharam com tal intensidade que Lisa pensou que fossem explodir.

— Percebe que isso não está acontecendo? Estou imaginando, só pode ser.

— Temo que não... — disse Lisa.

E o barulho voltou e tudo se apagou novamente.

— Alguém acabou de matar o meu computador. Fritou os miolos de seu disco rígido, pode apostar. Saiba que pessoas são enforcadas por bem menos do que isso!

 

                   Regra número 10

Erros acontecem. Geralmente com aqueles que não têm um plano.”

Julian sentou-se diante da escrivaninha e olhou incrédulo para seu computador. Ele já o tinha levado até a China e nada acontecera. Por que agora?, pensou ele, enquanto discava o número de Brad no telefone.

O que há de errado, amigo? Você parece frustrado — disse o sócio.

— Eu estou frustrado! Acabei de verificar meus arquivos e perdi tudo quando aquele... aquele menino louco resolveu bancar Benjamin Franklin com a fiação da casa. Meu computador está completamente vazio. Mais de uma semana de trabalho...

— Não acredito que não levou o filtro de linha. Você não é assim. Talvez eu devesse assumir o projeto. Sempre gostei de Willow’s End.

— Esqueça. Você seria atropelado por Brutus nos primeiros cinco minutos. Nos seus piores dias, ele o expulsaria daqui com uma das patas amarrada nas costas.

— Uma das patas... O que está acontecendo com você, Julian? Fala como se o cachorro fosse uma pessoa de verdade. Se lhe causa tantos problemas, livre-se dele.

— Livrar-me dele? Está louco? — disse Julian, mas logo se perguntou por que estava defendendo o cão. Provavelmente, ficara muito tempo ao lado de Lisa.

— Não estou sugerindo nada drástico. Apenas ache um novo lar para ele, talvez no Alasca.

Horrorizado, Julian imaginou a expressão de Lisa ao descobrir que seu adorado cachorro fora mandado para o Alasca. Nem em um milhão de anos faria uma barbaridade dessas com ela. Só de pensar em alguém magoando-a, ficava fora de si.

— Vá procurar sua turma, Brad. — respondeu ele, sem titubear.

— Está bem, foi só uma sugestão. Mas preciso lhe dizer, Julian, que estou preocupado com você. Primeiro, não leva o filtro para o computador, depois fala do cachorro como se ele fosse uma pessoa. Me parece que está perdendo...

— Perdendo o quê?

— Você não está em boa forma. Perdendo seu pulso, amigo. Julian Lord, o homem que faz os empregados correrem de medo, o mestre das regras e regulamentos, senhor do próprio sistema, não consegue lidar com uma simples garota, um eletricista louco e um cão que pensa.

Julian fechou o punho e desejou bater no amigo através da linha telefônica.

Brad riu e continuou.

— Pelo que me diz, há grandes chances de herdar a propriedade de Maudie. Eu adoro Willow’s End, o lago, a paz, o silêncio e a casa enorme. Por que não vende para mim e pronto, acabam-se seus problemas.

— Você precisa de Willow’s End tanto quanto de uma lobotomia. Mas, pensando bem...

— Está certo, Julian, mas prometa que se for vender eu serei o primeiro da fila.

— Claro, Brad, tudo o que quiser. Quer a lua de brinde? Agora vamos ao que interessa. Preciso de alguns programas para tentar recuperar os arquivos.

— Tudo bem, agora você parece o velho...

A voz de Brad sumiu. Julian bateu o telefone na base vária vezes, mas não adiantou. O telefone estava mudo. Morto. Não poderia ser! Após a catástrofe do dia anterior, será que aquele maluco teria coragem de voltar? Julian saiu da sala, determinado a matar o primeiro que aparecesse em sua frente.

 

Lisa tentou esconder seu pânico com uma expressão de calma.

— Não pode colar?

— E uma piada, certo? -

— Não, não é uma piada. E muito sério. — Ela se continha para não gritar. — Você entende de eletricidade: se cortou, costure, amarre, mas conserte rápido.

— Eu conheço eletricidade. Mas isso não é eletricidade, é telefone. Não sou nenhum Alexander Graham Beli. Tente ligar para a companhia telefônica, está bem?

— Eu não posso ligar para a companhia telefônica! Esqueceu-se que você cortou a linha?

— Oh, é mesmo. — Ted riu. — Ligar para a telefônica... Eu admito que pisei na bola. Essa foi ótima...

Ted parou de falar e sua face ficou branca. Ele engoliu em seco ao ver Julian vindo na direção de Lisa.

Antes de se virar, ela já pressentia quem se aproximava.

— Otimo — ela disse com um sorriso amarelo. — E bom pensar em algo rápido, Ted. Esse homem transmite emanações que me lembram de morte... ou coisa pior.

Ted começou a andar para trás, em direção à porta.

— Eu vou indo embora. Boa sorte com o telefone e com a eletricidade.

Sem esperar por uma resposta, ele saiu correndo.

— Ei, espere aí — Lisa gritou. — Não pode ir. E o meu telefone? Ted!

— Eu o mato — disse Julian, lívido de raiva. — Não, primeiro eu mato você, por deixá-lo mexer aqui, e depois o estrangulo. De qualquer maneira, acabo com os dois.

— Ele... eu... nós...

Lisa nunca vira Julian tão furioso. Ela fitou seus olhos, não mais castanhos, mas sim negros de tanto ódio.

— Como pôde? — ele perguntou. — Como pôde deixar isso acontecer depois de tudo o que passamos ontem por causa da energia?

— Ted queria me ajudar. Ele ficou triste pelo que aconteceu com seu computador e perguntou se poderia tentar consertar. O que eu poderia fazer?

— O que poderia fazer? Tentar dizer não. Tente dizer não! Três letras, vamos, “não”. Repita!

— Julian...

— Nada de Julian. A palavra que deve repetir é não.

— Você não entende.

— Não consegue dizer, não é? — Ele passou a mão pelos cabelos. — E por isso que passa a vida inteira fazendo tudo pelos outros, assumindo responsabilidades que não são suas. A cidade inteira sabe disso. A boazinha Lisa, sempre pronta a ajudar.

Lisa sentiu-se ofendida com as duras palavras de Julian. Ela só queria ser gentil. Mas ele achava que era um defeito. Respirando fundo, encarou-o.

— Eu tento ajudar as pessoas, Julian. E o que gosto de fazer. Se está errado, então me desculpe, apesar de achar que não deveria me desculpar por isso.

— Talvez eu tenha sido um pouco duro. Não há problema algum em ajudar os outros. Mas você vai muito longe. E tem de admitir que não está obtendo bons resultados.

— Está se referindo a Ted.

— Estou falando de Ted, da reforma, de Danny, e dos outros projetos em que se engajou, Lisa. Nós começamos essa discussão outro dia e nunca terminamos. Talvez seja a hora.

— Talvez não seja. Nunca vamos concordar sobre esse ponto. E importante para mim ajudar as pessoas. Não consigo me imaginar recusando pedidos de ajuda. Então, nem tente me convencer.

— Concordo. Isso me prova que a única coisa que podemos fazer é vender esta casa. Não posso forçá-la a desistir de Willow’s End, mas, como também a herdarei, não há o que fazer senão vendê-la.

— Não pode fazer isso! Não pode vender a casa e viver com esse ato na consciência.

— Não? Vamos esperar para ver. Não me resta outra escolha. A responsabilidade por esta casa foi jogada em meus ombros. Nós tentamos fazer as coisas ao seu modo. Não deram certo, agora é do meu jeito que faremos.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que, até descobrirmos quem é o feliz proprietário da casa, eu estou assumindo o controle e a posse dela. — Julian ajeitou os óculos, antes de continuar. — Meu computador quebrou e a loja não tem idéia de quando poderá arrumá-lo. Se eu conseguir dar um jeito nessa bagunça e em você, vou poder começar a trabalhar no meu livro assim que o computador chegar.

— Se você procurasse pelo testamento, as crianças e eu talvez pudéssemos... — Lisa tentou dizer.

— Esqueça. Na verdade, esta reforma veio em boa hora, pois a melhor maneira de conseguirmos achar o testamento é tornando esta casa “habitável”. — Ele sorriu sem humor.

— Esteja pronta com sua equipe logo cedo. E quando digo cedo, falo de oito da manhã, e não dez. Aí então direi quais serão suas tarefas.

— Oh, Julian, não vai começar com primeiro, segundo.., não é?

— Se assim eu conseguir arrumar as coisas por aqui, é exatamente o que farei.

— Tentamos por duas semanas, Lisa — disse Cory. — O problema é que...

— Ele tem só trinta anos, mesmo? — interrompeu Donna.

— Eu não acredito — resmungou Cory. — Veja o que ele fez com meu pobre irmão. Ted entrou para a Marinha somente para não ter que se encontrar com o sr. Lord novamente.

— Não exagere — disse Donna, irritada.

— Quem está exagerando? Minha mãe não se contém de tanta felicidade. E a primeira vez em cinco anos que todas as luzes da casa funcionam direito por mais de um dia. Ela quer agradecer a seu amigo velho e lhe fazer uma torta.

— Amigo velho? Espero que não esteja se referindo ao sr. Lord — declarou Lisa.

— Esqueça a torta, Cory, e esqueça seu irmão imbecil também. Ninguém se importa com isso. Nós temos de nos importar apenas com a lista de afazeres — disse Donna, decidida. — Precisamos resolver o que vamos fazer.

— Trabalharão, é isso o que vão fazer.

— Acho que não. — Cory sentou-se no chão da cozinha e olhou para Lisa. — Considere isso um motim. Como costumava acontecer nos navios antigos...

— Motim? Agora não é hora para aulas de história — disse Lisa, enquanto assistia Donna se juntar a Cory.

Ela tinha de encontrar uma maneira de fazê-los mudar de idéia. Se não os dissuadisse, os dois voltariam para o reformatório, e o juiz não seria nem um pouco doce com eles. Precisava evitar o pior. Não podia falhar com o terceiro pedido de Maudie, aquele que não revelara para Julian. E não poderia falhar consigo mesma.

— Eu sei que não estão acostumados com isso — começou ela —, e sei também que as mudanças foram um pouco drásticas, mas queria que dessem mais uma chance a Julian. Dêem mais um dia. Vocês sobreviveram a duas semanas. Um dia não é nada.

Acho que você não entendeu — disse Cory. — Estamos falando de ajustes sérios aqui. Está pedindo demais, não acha?

Lisa pensou rápido, e sabia que se odiaria mais tarde pelo que estava prestes a fazer.

— Está bem. Cinco dólares por dia. Para cada um. E pegar ou largar.

— Dez e fazemos negócio.

Vinte dólares. Seria um rombo no planejamento do mês, mas valia a pena.

— Certo, mas têm de cumprir tudo o que ele mandou perfeitamente. E... Cory, chega de motins. Mais um problema como o do telefone mudo e o acordo está quebrado.

— Concordamos — disseram os dois em uníssono.

Lisa passou o resto do dia culpando-se por fazer chantagem com as crianças e por saber que não era necessário ter feito aquilo.

Quando Julian desceu as escadas, estava claro que ele mudara. No lugar do executivo detalhista, surgira um líder nato e alegre. Cory e Donna imediatamente correram para realizar mais uma de suas tarefas.

Por um tempo, Lisa tentou ajudar, mas eles não necessitavam dela. Seu círculo estava completo e não havia mais lugar. Para ser franca, não gostava daquela sensação de ser deixada de lado. Não apreciava nem um pouco!

Brutus entrou na sala, juntou-se a ela no chão e lambeu-lhe a face em sinal de amizade. Lisa suspirou e abraçou o cachorro, desejando que ele tivesse mesmo algum conhaque no seu barrilzinho preso à coleira.

— Está bem, vocês dois, é só isso por hoje — gritou Julian, no final da tarde. — Vocês trabalharam duro nas últimas semanas, e eu gostei muito. Mais algumas e nossas paredes terão voltado ao normal.

— E uma pena que não tenhamos achado o testamento

— lamentou Cory. — Todos os bilhetes que encontramos diziam a mesma coisa. “Não está aqui.”

— Tudo bem, depois que a fiação estiver arrumada e as paredes prontas e pintadas, teremos mais tempo para procurá-lo. Por enquanto, eu agradeço o que vocês fizeram até agora — continuou Julian. — Providenciei para que tomem sorvete à vontade no Parlor. Só fiquem atentos para não comer demais. E voltem para nadar no lago mais tarde!

Lisa enfiou a cara no pêlo do cachorro, sem acreditar no que ouvia. Julian também dava propina a eles.

— Fantástico! — exclamou Cory. — Vinte dólares de Lisa para acabar o motim e depois sorvete grátis do sr. Lord. Isso é o que eu chamo de um dia sensacional!

Depois que eles saíram, um silêncio perturbador pairou no ar.

— Comprou-os, Lisa? — Julian encarou-a. — Estou surpreso com você — ele continuou, agora apreciando a pintura do teto.

— E que nome você dá a sorvetes de graça? Um tapinha na cabeça, em forma de agradecimento?

— De certa maneira, é exatamente isso. Eles deram tudo de si nas últimas semanas e achei justo agradá-los um pouco.

— Julian sentou no degrau da escada que estava no meio da sala. — Mas, propina? Você errou, doçura.

Julian estava certo, Lisa pensou. Mas o que poderia fazer? Estava desesperada. Ela aproximou-se de Brutus, tomando coragem para se desculpar.

— Eu sou humana — cochichou na orelha do cão. — Julian também se tornaria humano se alguém o derrubasse do alto daquela escada e o trouxesse de volta à terra para se juntar a nós, meros mortais.

Com um latido feliz, o cachorro correu em direção à escada.

— Não, espere! Eu não quis dizer isso! — ela gritou.

Com o grito de Lisa, Brutus fez um esforço para parar, suas patas deslizavam, o rabo contorcia-se e, em uma fração de segundo, o enorme cão já havia derrubado Julian e a escada.

Lisa tapou os olhos e depois, com o silêncio que se seguiu, tomou coragem para espiar entre os dedos. Julian estava deitado no chão, e Brutus ao seu lado.

Ele levantou a cabeça, olhou firmemente para o cachorro e deitou-se de novo, fechando os olhos.

Lisa correu até ele.

— Julian! Julian! Está bem? — Ela olhou para a face pálida e segurou a respiração. — Oh, não. Nãõ esteja machucado, por favor. Me desculpe. Eu não queria ter dito aquilo, não era para Brutus realmente fazer nada...

Um pensamento terrível invadiu-a. E se Julian tivesse quebrado algum osso? Ou entrado em coma quando bateu a cabeça no chão?

— Oh, meu Deus, eu não sei o que fazer!

Brutus tentou ajudá-la, lambendo o rosto de Julian.

— Pare com isso! Não acha que já fez o bastante, para ainda me lamber todo?

— Julian?

— Quem mais poderia ser? — ele respondeu e fechou os olhos novaménte.

— Você está bem? Não está se mexendo.

— Francamente, não sou um completo idiota. Basta um movimento meu e essa bola de pêlos me come vivo.

— Quem? Brutus? Por que ele o comeria vivo?

— Por que esse maldito cão faz tudo o que faz? Porque ele é louco. — Julian cruzou os braços em cima do peito.

— Não vou arriscar. Daqui eu não saio.

— Ele só o derrubou da escada porque eu mandei — Lisa explicou. — Ele não comerá você, a não ser que eu mande. E não vou fazer isso, prometo.

— Ah, sinto-me muito melhor agora... Mandar seu cachorro fazer coisas absurdas é um hábito seu? — perguntou ele, sarcástico.

— Sim, acho que é — ela confessou, envergonhada. — Por que eu não consigo manter a boca fechada? Por que não me calo, em vez de dizer a primeira coisa que vem à minha cabeça? — Ela olhou para Brutus. — E você também! Por que entende tudo ao pé da letra? Eu disse alguém. Conhece essa palavra? Alguém poderia derrubá-lo da escada. Não você. Alguém deveria empurrar Gwen no lago. Entendeu? Alguém não siguifica você!

Brutus respondeu com um latido magoado.

— Gwen? — disse Julian. — Céus! Vou me arriscar a dar um palpite completamente absurdo...

Brutus balançou a cabeça e, como se quisesse fazer as pazes, subiu no colo de Julian.

— Pare com isso ou me matará mesmo! — berrou ele, empurrando o animal. — Agora saia de cima de mim, Brutus. Sente-se, não estou bravo com você. — Então ele olhou para Lisa. — Já com você, a história é diferente.

— Posso explicar.

— Aposto que sim. Comece com Gwen e continue.

— Gwen... claro... — Ela estalou os dedos da mão, descontrolada. — Sabe, estávamos no lago e Gwen disse algumas coisas que eu... não gostei. Como resultado, perdi a esportiva e resmunguei que alguém — ela olhou para Brutus — poderia empurrá-la para dentro do lago.

— E?...

— E alguém empurrou-a. Depois ela me acusou de ter sido a culpada.

— Eu sei.

— A culpa foi minha. Não a empurrei no lago com minhas mãos, mas fui a responsável.

Julian sentou-se e gemeu com as mãos nas costas.

— Não precisa dizer mais nada. Entendi a situação.

Os olhos dele não demonstravam mais raiva, e sim surpresa.

— Eu sempre soube que fora Brutus que a empurrara no lago. A janela do meu quarto se abre para aquela direção. Eu vi tudo de longe, só não percebi que foi sob sua ordem. E até hoje eu não teria acreditado, mesmo que tivesse me contado.

 

— Porque não admitia que Brutus entende tudo, como se fosse gente — disse ela, com um sorriso nos lábios. — Acho que agora acredita, não?

— Vamos dizer que minha mente está se abrindo a essa nova possibilidade. — Ele passou a mão pelos longos cabelos de Lisa. — Você se culpou pelo meu rompimento com Gwen. Não foi o que aconteceu, olhos verdes? Entretanto, a nossa relação acabou no momento em que ela mentiu sobre você.

— Oh! — Lisa suspirou. — Como eu gostaria de ter sabido disso.

— Por que não tenta me perguntar da próxima vez? E eu gostaria de saber o que Gwen disse de tão grave para você querer que ela caísse no lago?

A pergunta pegou Lisa de surpresa. Mas ela não iria responder de maneira alguma. Nem sob tortura ela diria uma só palavra! Fora muito humilhante. O melhor a fazer seria fugir. Ela começou a levantar, mas Julian segurou-a pela cintura, puxando-a para perto de si.

— Não vai a lugar algum enquanto não disser. Pode começar.

— Não!

— Você me deve uma, Lisa. Vamos, diga.

— Ela foi rude. E se existe uma coisa que eu não suporto é uma pessoa grosseira.

— Está tentando me enrolar, Lisa. Vamos, conte o verdadeiro motivo.

Lisa virou o rosto, olhando para todos os lados, menos para Julian. Por que Brutus não a ajudava? Por que ele ficava sentado com aquela cara de quem está rindo à toa?

Não podia contar a verdade a ele. Julian iria entender errado, ou melhor iria entender certo! Pensaria que ela...

— Lisa!

— Gwen disse que eu estava apaixonada por você — ela respondeu bruscamente, como sempre fazia quando se sentia acuada. — Falou que eu estava tentando conquistá-lo e se não parasse ela.., ela...

— Ela faria o quê?

— Disse que contaria a você e a Maudie. — Lisa balançou a cabeça. — Também afirmou que eu só poderia sentir afeição, pois éramos irmãos.

 

Julian não disse nada. Lisa podia ver que a revelação o abalara. Os olhos dele começaram a brilhar, e ela esperava uma reação bastante desagradável. Talvez risse dela ou sentisse pena, mas, para sua surpresa, um sorriso apareceu nos lábios másculos.

Julian tinha um olhar de desejo, o que fez com que a respiração de Lisa se tornasse irregular.

— Você não sentia afeição de irmã por mim, não é? — ele perguntou com uma voz rouca.

Julian não esperava por uma resposta, o que era bom, porque Lisa não teria nenhuma para dar. Julian subiu as mãos pelos braços dela em movimento suaves que a provocaram.

— E se eu dissesse que não estou interessado em uma afeição fraternal? — ele murmurou. — E se eu dissesse que o que sinto por você não chega nem perto de uma relação entre irmãos, nem mesmo de primos de segundo grau?

Lisa estremeceu, lutando para pensar racionalmente. E claro que ele não a via como uma parente. Eles não eram parentes! Tinham estado ligados, muito rapidamente, pelo acidente de um casamento entre seus respectivos pai e mãe.

As mãos dele alcançaram-lhe os ombros e começaram a descer. Lisa tinha de se manter consciente. Não podia baixar a guarda nem por um momento. Se perdesse o controle...

— Fale comigo, Lisa, não seja tímida.

A maneira como Julian dizia seu nome provocava-lhe sensações inebriantes, despertando seu corpo.

— E se eu dissesse que me sinto atraído por você? O que me responderia?

Lisa balançou a cabeça novamente. Não era verdade, não poderia ser, apesar do tom de paixão nos lábios dele.

Julian só precisava tocá-la para que perdesse a noção de tudo o mais. Lisa queria acreditar nele, mas não faria papel de boba mais uma vez. Agora ele teria de dizer o que sentia e em palavras muito claras.

— Você diz “e se”, Julian. Está tecendo fantasias, sem base na realidade, certo? Não nego que seja gostoso sonhar, mas não são reais.

Julian retirou os óculos. Sua expressão estava séria. Ele segurou o rosto dela com as duas mãos.

— A atração entre nós é uma realidade, Lisa. Não se trata absolutamente de uma fantasia. O que estou sentindo nesse instante é tão real quanto eu e você. Pode negar?

— Não.

Julian sussurrou o nome dela e então não havia mais lugar para palavras, somente para sensações. Ele tomou-a nos braços, mas a não beijou imediatamente, apenas roçou seus lábios sobre os dela, provocando-a.

Quando Lisa pensou que não agüentaria mais, Julian beijou-a com sofreguidão. Ela passou os braços em volta de seu pescoço e abriu a boca a fim de partilhar aquele sentimento de intensa volúpia.

Naquele instante Lisa percebeu que o amava. Por mais de um ano tentara esconder a verdade de si mesma, mas não era mais possível.

Ainda acariciando as costas dela, Julian afastou-se um pouco. Eu não havia planejado isso — ele murmurou.

— Tudo o que faz tem de ser planejado? — Lisa perguntou, enquanto beijava o pescoço dele.

— Não, nosso primeiro beijo no deque não foi nem um pouco planejado, não é? Aconteceu tão espontaneamente quanto este.

— Talvez, mas aquele beijo não contou. Não foi real, pois você ainda era meu irmão.

Julian riu.

— Você tem umas coisinhas a aprender sobre beijos entre irmãos, doçura. — Ele acariciou-lhe os cabelos, puxando-a de encontro a si. — Mas não aprenderá comigo.

— Não?

— Não. E já que o primeiro não contou, lhe darei outro beijo para substituí-lo.

— Outro beijo para substituir o quê? — Cory perguntou ao entrar pela porta. — O que está acontecendo? O que perdemos?

Rindo, Cory virou-se para o hall, chamando a namorada.

— Você está perdendo uma tremenda situação por aqui, Donna. Os dois estão falando de beijos e esse tipo de coisa.

— Estarei falando de morte e esse tipo de coisa se não tirar sua cara intrometida desta sala imediatamente — disse Julian, com autoridade firme.

— Ei, não se importe comigo. Eu só queria dizer a Lisa que nós votamos e somos unânimes.

— Votaram? Em quê? — ela perguntou, ainda um tanto atordoada.

— Sobre trabalhar para o sr. Lord e você nos pagar. Resolvemos esquecer sobre o motim. Hoje achamos o trabalho ótimo por aqui, e não seria correto cobrar. Estaremos no lago se precisarem. — Cory sorriu. — Acho que já podem voltar a fazer o que estavam fazendo. Eu certamente voltaria!

O garoto saiu correndo da sala e os dois ficaram a sós novamente. Julian colocou os óculos.

— Você não tem que dar dinheiro a eles. Eu sei que estavam se rebelando pelas regras que impus, mas temos de chegar a um acordo sobre isso.

— Acha mesmo? Desculpe, Julian, mas me pareceu a única maneira de fazê-los trabalhar.

— Subornando-os? Como professora, devia conhecer algum truque melhor.

— Talvez eu pudesse ter agido de maneira diferente, mas não sabia como, pelo menos naquele momento. Eles estavam bravos, quase desistindo e eu não queria que isso acontecesse. Então...

— Então, subornou-os. Eu não deveria ter de explicar o defeito de sua atitude, mas vou fazê-lo. Primeiro, propina nunca funciona. Só ensina a pessoa a ficar mais gananciosa.

— O sorvete não foi propina?

— Claro que não. Mostrar sua apreciação por um trabalho bem feito não é a mesma coisa do que comprar as pessoas.

— Está bem, tem razão — Lisa concordou.

— Otimo. Segundo, se eles estivessem trabalhando para qualquer outra pessoa e tentassem isso, seriam despedidos na hora. O que deveria ter feito é o seguinte... — Ele enumerou os pontos com os dedos. — Anotar, em uma lista, as suas reclamações e exigências. Depois, me entregar essa lista e ensiná-los a ceder em alguns pontos, se eu não cumprisse tudo o que eles pediam.

Era tão simples! Lisa não acreditava que não conseguira pensar nisso desde o começo.

 

— Devo reverenciá-lo agora ou há um terceiro ponto?

— Guarde a reverência, pode ser útil no futuro. Por enquanto... há um terceiro ponto. Eu tenho uma regra que uso no trabalho e a considero a número um: nunca fique tão dependente de qualquer coisa a ponto de fazer de tudo para permanecer com ela. — Ele sorriu. — Essa regra também vale para pessoas. E se Cory e Donna tivessem ficado entediados com o projeto? Como iria agir, Lisa?

— Não sei — ela confessou.

Na verdade, Lisa não gostara daquela regra número um. A determinação dele de nunca depender de nada se relacionava também aos sentimentos? Seria um aviso?

— Se eles ficassem entediados, encontraria outros para substituí-los — explicou ele. — E essa a saída lógica.

Encontrar outros? Então, ele achava que tudo e todos eram substituíveis?

— Não, eu não encontraria outros, porque Cory e Donna têm de trabalhar para mim. E isso ou... — Novamente as palavras saíam muito rápido de sua boca, mas chegara a hora de contar a verdade. — Há um detalhe que não mencionei.

— Apenas um detalhe? — ele perguntou, sarcástico.

— Só um. — Lisa torcia as mãos, nervosa. — Refere-se ao o terceiro pedido de Maudie.

— O terceiro pedido de Maudie? — Julian exclamou, incrédulo.

— Exatamente. — Ela sorriu. — Refere-se ao fato de Cory e Donna estarem em liberdade condicional. E apenas esse detalhe...

 

                   Regra número 41

“Hábitos são como pulgas em um cachorro. Você pode coçar à vontade, mas o alívio só vem mesmo com o remédio.”

Explique e rápido! — ordenou Julian.

— Cory e Donna tiveram alguns problemas com a lei. Maudie soube e resolveu assumir a responsabilidade da condicional deles. O juiz sentenciou-os a trabalhar para a comunidade.

— Você sabe muito bem por que não mencionou esse detalhe! A verdade é que tomou todo o cuidado para escondê-lo de mim, pois não ignorava que eu seria completamente contra, — Julian estava quase gritando, e seu rosto parecia um tomate, de tão vermelho.

— Eu não tive escolha! Não podia dizer não a Maudie, ela estava morrendo...

— Entendo sua dedicação a Maudie, mas, por Deus, Lisa!

— ele explodiu. — Quanto tempo irá durar essa condicional? E qual é a razão dela?

— E só durante o verão.

— E o crime?

— Destruição de propriedade — Lisa respondeu, receosa.

— Destruição de propriedade!

Ela pensou que Julian fosse estourar, de tanta raiva.

— Está ajudando esses dois marginais deixando a casa de Maudie na mão deles, depois do que fizeram? Só eu estou doido ou alguma coisa está muito errada aqui?

— Você não vai compreender e aceitar bem o fato, não é?

— Acertou. — Ele riu, enfurecido. — O que há com você? Onde está seu senso de responsabilidade?

— Onde ele deveria estar — explodiu Lisa. — Ajudando os necessitados...

— E arrebanhar todos os problemas do mundo, sem saber se poderá cuidar deles. Não digo que generosidade seja algo negativo, mas você vai longe demais com tudo. Aliás, é uma perita em ir longe demais.

— Se isso é para ser um insulto, terá de tentar com mais empenho. Eujá lhe havia falado sobre os pedidos de Maudie, só esqueci de mencionar o terceiro...

— Que memória conveniente você tem... — ele passou a mão no cabelo. — Como acha que devo agir, Luisa? Ficar parado enquanto você se destrói? Não posso fazer isso. Se continuar assim, vai se dar mal. Mas posso prevenir danos mais graves à sua pessoa... vendendo a casa.

— Gostaria que parasse de me ameaçar com a venda da casa. Ela não tem nada a ver com a minha vontade de ajudar as pessoas.

— Então por que faz isso de maneira tão radical? — ele perguntou.

— O quê?

Não se trata de fazer, mas sim por que tem de fazer! Sabe por que gosta tanto de ajudar s pessoas? Porque adora sentir que todos precisam de você. Aposto que temos de agradecer a Helene por essa atitude sua.

— Minha mãe não tem nada a ver com isso!

— Acertei em cheio, não foi? — Julian aproximou-se de Lisa, que recuava, fugindo da verdade. — Pense sobre o assunto, minha querida. Uma mãe que a abandona, que vive descontente, mudando constantemente de moradia e de marido, sempre em busca da vida perfeita e do amor ideal, sem nunca procurar onde a perfeição emocional está de verdade.., junto da filha.

— Não. — Lisa balançou a cabeça. — Você está errado.

 

Julian aproximou-se e prendeu-a de encontro à parede, para que Lisa não pudesse fugir.

— Uma filha que aprende apenas a dar, na vã esperança de tentar receber um amor que é seu de direito. Pense nisso, Lisa.

— Não, obrigada. Meu relacionamento com minha mãe não tem nada a ver com o assunto. Eu nunca ofereceria propina às crianças se não fossem suas regras e listas.

— Ah, eu mudei de assunto? — Julian colocou a mão na parede ao lado da cabeça dela. — Bela tentativa, mas não dará certo.

— A minha ajuda às pessoas não é tão ruim quanto suas metas estúpidas. Você não move um dedo sem ter planejado. Daqui a pouco estará me colocando em sua agenda. “Das oito e um às oito e cinco, beijar Lisa.”

— Parece-me ótimo. — Ele aproximou a cabeça, e suas bocas ficaram separadas por milímetros. — Bem, são quatro e cinqüenta e seis.

Então Julian beijou-a. Incapaz de lutar contra o desejo ou mesmo de pensar com coerência, Lisa deslizou as mãos pelo peito dele. Por muito tempo sonhara com um momento como aquele. Imaginara-se sendo abraçada e beijada por Julian, e agora sabia. Nenhum sonho chegava perto da realidade, nada se comparava à maravilha da realidade.

As mãos experientes subiram da cintura para os seios, que palpitavam sob o fino tecido do vestido e jamais haviam experimentado sensações tão intensas e perturbadoras. Ele a soltou depois de um último beijo.

— Bem, foi espontâneo o bastante para você?

— Admito que sim, mas nunca me convencerá de que pode viver sem suas listas e regras.

— Acha que não? Só há uma maneira de descobrirmos.

— Qual?

— Quer fazer uma pequena aposta?

Lisa riu e bateu palmas.

— Eu adorei! E a solução perfeita. Aposto que não passa uma semana sem o relógio, regras e a lista de afazeres.

— Espere um pouco. — Julian roçou os lábios na orelha dela. — Não quer saber o que terá de fazer em troca disso? Acho que desistirá quando souber.

— O que é? — Ela olhou-o, cheia de suspeita.

— Para ganhar a aposta, terá de passar uma semana sem aceitar fazer nenhum favor, de qualquer tipo.

— O que quer dizer com “de qualquer tipo”?

— Exatamente isso. Quando Suzie sei-lá-quem-é ligar sobre um novo projeto na escola, terá de dizer não. Quando Valerie telefonar, desesperada, para você ser a babá de Danny, terá que dizer não.

— E só isso? Vai ser fácil. — Ela sorriu satisfeita. — Vou chamar Ted e mandá-lo cortar a linha teleronica novamente.

— Só se for por cima do meu cadáver.

— Por que eu acho que acabei de ser inteligentemente manipulada?

— Porque você foi inteligentemente manipulada, querida. Fazia muito tempo que Lisa não via Julian tão descontraído e alegre. Será que ela teria provocado isso?

— Espero que perceba o quanto tem exagerado, depois de tirar uma semana de folga. Se você ganhar, eu a ajudo a realizar os dois últimos pedidos de Maudie sem reclamar.

— E mesmo? — Os olhos dela brilharam. — Mas... e se eu perder e você ganhar?

— Você fará as coisas que eu quero e como eu quero...

— Sem reclamar — ela terminou a frase e sorriu, pois sabia que ganharia, a aposta.

— Você acha que eu não sou capaz de viver sem minhas listas e regras, não é?

— Com toda certeza.

— Muito bem, veremos. — Ele tirou o relógio do pulso.

— Aqui está. Mas você precisa passar sete dias sem ajudar ninguém.

— E você sem pegar em uma lista nem estabelecer uma nova regra.

— Fechado. Que tal selarmos com um beijo?

No dia seguinte, Julian desceu para tomar café da manhã com Lisa.

 

— Surgiu uma problema — ele disse, com uma expressão sombria, enquanto se servia de uma xícara de café preto.

Então, para alegria de Lisa, ele a colocou em seu colo.

— Você não vai gostar muito.

O tom de voz de Julian anunciava que algo muito errado acontecera. Lisa ficou subitamente preocupada, ao perceber um brilho de raiva nos olhos dele.

— O que aconteceu?

— Meu pai telefonou.

Essa era uma notícia que não causaria preocupação, mas o tom de Julian continuava tenso e duro.

— O que ele queria?

Julian tomou um gole de café, antes de responder.

— Willow’s End.

— Não entendo... o que quer dizer com Willow’s End?

— Você entende, sim. Eu disse que isso poderia acontecer, não? Expliquei o motivo vital de nossa urgência em encontrar o testamento. Jonathan soube que está desaparecido. Não sei como nem onde conseguiu essa informação, mas já não importa mais. Em duas semanas, ele estará aqui para tomar a casa.

— Por quê? Para que ele a quer? — perguntou Lisa, desesperada.

— Ele pretende fazer exatamente o que eu lhe disse. Vai vender a propriedade. Sua última expedição não conseguiu o financiamento necessário e, como ele está sem fundos, precisa de dinheiro rápido.

— Não! Não é justo! — Lisa começou a chorar.

Julian olhou para ela e abraçou-a, confortando-a.

— Podemos dar a volta por cima. Esqueça o testamento, esqueça Willow’s End. — Ele acariciou o rosto molhado de lágrimas. — Eu descobri algo muito especial no meio desse caos, e ainda não tive tempo de aproveitar a descoberta.

— E realmente isso que você quer? — ela perguntou. — Desistir de tudo?

Por um momento, Lisa sentiu-se tentada a abandonar tudo e seguir Julian para qualquer lugar.

— Não. Por mais que deseje ficar a sós com você, por mais que me preocupe com o seu bem-estar, não posso esquecer minhas responsabilidades. É o desejo de Maudie que determinará quem fica com Willow’s End, não a ganância de meu pai.

— O que faremos, então?

— Vamos achar esse papel. E nossa única chance. Podemos até provar sua existência, mas nem Peters tem condições de afirmar quais são os termos verdadeiros do testamento. Segundo ele, Maudie mudou-o tantas vezes que é impossível saber.

— Então acharemos o testamento — disse Lisa, enquanto passava manteiga numa torrada. — Nós ainda não tentamos com todo o empenho. Hoje, quando os garotos chegarem, vamos promover mais uma caça ao tesouro e, desta vez, percorreremos cada centímetro de toda a propriedade.

— São muitos centímetros. — Julian riu, aliviando a tensão.

— Então é melhor comer. — Lisa colocou a torrada na boca dele. — Vamos precisar de sua força.

— Você se esqueceu de uma coisa — disse ele.

— O quê?

— Nossa aposta começou esta manhã. Não posso organizar nada.

— Ah, Julian, estamos no meio de uma batalha de vida ou morte e você continua se preocupando com essa aposta estúpida? Como pode ser tão mesquinho?

— Eu posso ser ainda mais, minha querida. — Ele mordeu o último pedaço de torrada. — Deixarei ,a organização por sua conta. Você cuidará das listas e dos esquemas, e eu...

— Você fará o quê?

— Eu? — Ele beijou-a, carinhosamente, mas com uma expressão maliciosa. — Eu obedecerei a suas ordens.

Lisa suspirou, aninhando-se nos braços de Julian. Quando ele a segurava daquela maneira e a beijava, ela quase esquecia da ameaça de perder a casa. Quase...

Lisa esperou todos se sentarem em volta da mesa para começar a explicar a lista que preparara. Se o sucesso daquele projeto não fosse tão importante, ela teria rido das caras de espanto à sua frente.

 

— Está falando sério? Agora é você quem faz as listas?

— perguntou Cory, chocado.

— Temo que sim. Estamos sem tempo, então espero que dêem o melhor de si. Se encontrarem qualquer pista, por mais insignificante que seja, tragam para nós. — Ela deu um papel para Julian. — Você cobrirá o sótão. Será uma perda de tempo, mas ternos de fazer isso.

— Não se preocupe. E melhor revistar direito cada centímetro, do chão ao teto, do que correr o risco de perder alguma parte.

— Eu sei. E que Maudie nunca ia lá. Ela odiava aquele lugar, achava sujo demais.

— Sem problemas para mim.

— Tem muitas teias.

— Posso lidar com isso.

— E aranhas.

— Lisa!

— Está bem, está bem, mas depois não diga que não avisei. — Ela sorriu e entregou outro papel a Cory. — Você cobrirá a biblioteca.

— De novo? Nós já tiramos todos os livros de lá. Tenha coração, mulher cruel.

— Eu tenho, e ele bate no ritmo desta casa. — Ela deu a lista a Donna. — Percebam que eu anotei lugares prováveis para procurar. Chequem essas áreas nos seus cômodos. E lembrem-se, Maudie tinha um estranho senso de humor, então usem a imaginação. Estarei procurando na cozinha se precisarem de algo.

— Sim, chefe — respondeu Cory, batendo continência.

— Vamos começar imediatamente.

Ele saiu puxando Donna e cochichou em seu ouvido.

— E esses dois achavam Maudie estranha? Tenho a impressão de que ainda não se olharam no espelho...

O dia pareceu interminável. Lisa olhou dentro de cada uma das panelas, das gavetas, dos potes e das caixas e não encontrou nada a não ser sujeira e um biscoito canino velho.

No final da tarde, Donna e Cozy entraram na cozinha, exaustos e com um ar de quem pede desculpas por ter falhado.

— Não encontramos nada. Talvez amanhã...

 

— É, talvez amanhã — ela concordou, desanimada.

Bem depois que eles haviam partido, Lisa continuava sentada no chão da cozinha. Em volta dela, espalhava-se uma enorme quantidade de louças e panelas. Sua vontade era de começar a chorar. Sabia que de nada adiantaria, mas a ajudaria a sentir-se muito melhor.

Ela chamou Brutus para confortá-la e o abraçou.

— Acha que Julian teve sucesso, Brutus? — ela perguntou. — Ainda temos muitos lugares para procurar, mas o tempo acabará antes que tudo seja visto. Por Deus, Maudie! Onde colocou o testamento? — ela gritou, exasperada.

— Esse é um método em que eu não havia pensado. Se ela responder, me avise — disse Julian, parado à porta da cozinha.

Lisa virou o rosto a fim de esconder o riso. Julian estava coberto de pó e sujeira, da cabeça aos pés.

— Conseguiu encontrar alguma coisa?

Julian balançou a cabeça negativamente, espalhando poeira pela cozinha. Brutus espirrou e Lisa começou a rir, quase histericamente. Talvez fosse a sua reação para aliviar a tensão, pois a situação deles estava ficando desesperadora.

— Vamos subir, conversaremos depois que eu tomar

um banho.

Os três subiram até o escritório e Julian entrou no banheiro. Era a primeira vez que Lisa punha os pés lá desde que ele chegara. Em cima da mesa havia vários papéis.

— São suas regras? — ela gritou para Julian. — Por que precisa de tantas?

— São para o meu livro. Leia-as, podem ser úteis a você.

Lisa pegou a primeira. E era justamente a regra número um: Nunca fique tão dependente de qualquer coisa a ponto de fazer de tudo a fim de não perdê-la.

Essa regra parecia ter sido feita para ela. Não que concordasse, mas Lisa não podia nem pensar em perder a casa. Sofria ao imaginar outra pessoa morando ali, mudando tudo. Jamais permitiria que violassem aquele refúgio que fora seu paraíso e seu porto seguro numa vida de incertezas e sofrimento.

 

Ela continuou lendo as regras e riu. Julian colocou a cabeça no vão da porta com o cabelo ensopado.

— Do que está rindo? Minhas regras são sérias.

— E a regra número sete.

— “Seu local de trabalho deve ser como sua mente: coordenado, adaptável, organizado e sério.”

Qual o problema?

— Eu concordo com isso. Mas é... quero dizer, não é o que diz. E...

— E o que, querida? O que há de errado?

— E caos.

Ele colocou uma toalha na cintura e entrou no escritório.

Lisa não conseguia parar de admirar o físico dele. Todos os músculos no lugar. Bronzeado e forte.

— Você acha caótico?

— O quê? — Ela o fitou, ainda incapaz de raciocinar.

— E a regra menos caótica que tenho.

— Não é caótica. Talvez não tenha percebido. As iniciais formam a palavra caos. Um acrônimo, sabe o que é, não? Quando todas as primeiras letras formam um acrônimo que diz caos.

— Nossa! — Julian exclamou ao ler a lista. — Só você para notar algo assim.

— Sim, só eu. — Ela sorriu, com falsa modéstia.

— Ah, Lisa! Você ainda me surpreende, sabia?

— Ainda bem, mas isso não é tão mau assim. E só trocar a ordem das palavras.

— Obrigado pela sugestão, vou começar a ouvi-la mais, depois de passar o dia no sótão.

— Foi muito ruim?

— Você subiu lá recentemente? Há teias gigantescas.

— Eu o avisei sobre isso.

Ela olhou o quarto e percebeu que também estava meio sujo. Tinha até algumas teias na janela. Precisava ser limpo o quanto antes.

— E as teias tinham donas. Aranhas enormes, peludas. Lisa continuava olhando para o quarto. Precisamente para a cômoda.

 

— Julian, o que o vaso de rosas da tia Maudie está fazendo ali?

O quê?

— O vaso de rosas. — Lisa apontou para a cômoda. — Ela sempre o deixava na biblioteca. O que está fazendo ali?

Brutus latiu e correu em direção a Lisa, mordendo um pedaço da camiseta dela. Ele a puxou em direção à porta.

Lisa o empurrou.

— Pare, Brutus. Não quero sair, quero ver o vaso. — O cão soltou a camiseta e balançou a cabeça. — Está lá, não é? Algo sobre o testamento? — O cão balançou a cabeça novamente. — Eu não acredito!

Lisa foi em direção à cômoda, e Brutus latiu. Quando percebeu que não podia mais impedi-la, saiu correndo do quarto.

— Acha que está aí? — Julian perguntou. — Por quê?

— Porque esse vaso não costuma ficar aqui. O lugar dele é na biblioteca. Maudie sempre o deixava lá, e sempre cheio de flores. De rosas. Por isso que ele tem esse nome. Lembra do outro bilhete? Aquele que encontramos na biblioteca. Aquele que pedia que plantássemos flores em sua memória, lembra-se?

Julian sorriu e pegou o vaso. Havia um envelope cor-de- rosa e perfumado dentro dele. Exatamente igual aos outros.

— Muito inteligente, Lisa, muito inteligente.

Lisa tirou o papel de dentro do envelope e leu em voz alta.

 

                     “Queridos Lisa e Julian,

Muito bem, meus amores, acharam o último bilhete. Agora devem encontrar o testamento. Não que eu vá facilitar sua busca. Eu sempre disse que não vale a pena ganhar uma coisa sem esforço...”

 

— Quando ela disse isso? Eu nunca a ouvi falar algo a esse respeito — perguntou Julian, interrompendo a leitura de Lisa

— Eu acho que ouvi, mas só uma vez. Agora vamos terminar.

 

...Ganhar uma coisa sem esforço. (Se Julian, com seu amor pela literatura clássica, não entender esta pista, ficarei muito desapontada.)

 

— Do que ela está falando agora? — ele exclamou, exasperado. — Sempre odiei literatura clássica.

Está me interrompendo novamente. Por favor, quer ficar quieto para que eu possa terminar?

 

...Ficarei muito desapontada., Prontos? Aí vai a pista: ‘Você também?’ Conseguiu? E claro que sim, garoto esperto. Eu sabia que amava os clássicos.

 

— Eu odeio os clássicos. Pare de falar que os amo.

— Julian! Cale a boca, sim?

 

             Amo vocês, Maudie.”

 

— É isso? Ela só escreveu isso?

P.S. ‘Vocês dois são amigos de novo? Na verdade, espero que agora sejam muito mais que amigos. Meu plano funcionou?”

 

Julian passou a mão pelo cabelo com impaciência.

— Estamos passando por tudo isso só porque Maudie quis bancar o cupido? Acho que não podemos negar seu sucesso.

— Que amor, não é? Tem mais um P.S.”

P.S. Não deixem Jonathan colocar as mãos nesta casa. Ele irá vendê-la para pagar mais uma de suas loucas aventuras.”

— É claro que Jonathan vai vendê-la. Por Deus, Maudie, se não queria que isso acontecesse, por que escondeu o testamento?

— Francamente, Julian... você está falando como se ela pudesse escutá-lo. Não acha estranho?

— Isso vindo de uma mulher que fala com cachorros beagle e tulipas.

— São cães são-bernardo e orquídeas.

— Não importa, Lisa. Espero que concordë comigo e aceite o fato de termos de queimar este bilhete. Se meu pai o vir, vai declarar a insanidade de Maudie e então, mesmo que encontremos o testamento, não poderemos usá-lo. Ninguém, em sã consciência, poderia escrever tanta besteira sem sentido.

— Ei, é da minha tia Maudie que está falando.

— Ela era minha tia Maudie. — Julian estalou os dedos, subitamente. — Já sei, venha!

Ele saiu correndã do quarto, puxando Lisa.

— Você sabe o que quer dizer? Entendeu o enigma de Maudie?

Ela o seguiu até a biblioteca e o viu remexendo nos livros que estavam no chão.

— O que está procurando?

— Há um livro de citações por aqui, em algum lugar... Ah! Se é a citação de algum clássico, deve estar aqui. — Ele abriu o livro e procurou no índice algo que começasse com você. — Nada.

— Ela tem deve ter tirado a idéia de que gosta de literatura clássica de algum lugar. Mas de onde?

— Eu nem sequer imagino de onde Maudie tirava as loucas idéias dela. Ainda menos essa última noção idéia.

— Ela deve tê-lo visto lendo Hemingway, ou Thoreau, ou Shakespeare. Pense! Tem que fazer algo.

Brutus colocou a cabeça na porta e espiou os dois.

— Não, não pode ser — disse Julian, olhando para ele.

— O quê?

— E ridículo demais. Nem Maudie iria... Você também? Será que ela quis dizer “Até tu?”. Tu quoque, Brutus?

Tenso, Julian foi até a porta, olhando fixamente para o cachorro.

— Seu animal sarnento. Estava aí o tempo todo, não é? E Maudie... que memória ela ainda tinha! Lembrou-se de que eu fiz o papel de Júlio César no teatro da escola. “Até Brutus não se ajoelha diante de mim? Até Você? Então caia, César!” Shakespeare, ato três, cena um. Eu odiava aquela peça! — Julian avançou para o cachorro. — Venha cá, bichinho simpático. Vamos ver o que carrega nesse barrilzinho de conhaque.

Brutus começou a andar para trás e saiu correndo com Julian agarrado ao seu rabo.

— Julian, espere! Você o assustou!

Gritando, Lisa correu também, depois de ouvir barulho de pratos se quebrando na cozinha. As louças! Ela deixara no chão. Ao entrar, percebeu que tudo se reduzira a cacos. Havia uma trilha de destruição e detritos que seguia até a porta de saída, que estava aberta.

Ela saiu da casa. A noite estava muito clara, apesar de o sol já se ter posto havia algum tempo. Uma lua cheia enorme enfeitava o céu estrelado. Ela olhou para o lago, esperando ver Brutus e Julian, mas suas água estavam calmas e refletiam a lua.

Onde eles estariam? Lisa viu marcas na grama que rodeava a casa. Ela as seguiu e encontrou os dois combatentes na porta de entrada.

— Brutus! Largue Julian, imediatamente!

Suas palavras não surtiram nenhum efeito. Brutus continuava em cima de Julian. Lisa subiu os degraus da entrada.

— Julian só está querendo pegar o testamento dentro do seu barrilzinho. Está aí, não está? — Brutus latiu e ela presumiu que ele concordava. — Então, qual é o problema?

— Quer parar de discutir com esse vira-lata e me salvar?

— Estou tentando. Mas, caso não tenha percebido, ele não quer cooperar. Talvez se eu descobrisse por que ele está tão irritado...

— Não acredito nisso. Lisa, por favor, deixe essa cena para quando estiver a sós com seu animaizinho de estimação. Me tire daqui!

— Tudo bem. — Ela virou-se para Brutus. — Você pediu por isto, então não diga que não avisei. Se não sair de cima de Julian agora... daqui em diante será apenas um cachorro para mim.

Ela cruzou os braços e esperou. Não teve de esperar muito. Na verdade, foram dois segundos, e Brutus estava sentado ao lado de Julian.

— Agora nos dê o barril. — Brutus andou para trás, e Lisa suspirou.

— Qual é o problema agora? — Julian perguntou.

— Ele não entregará.

— Talvez porque não tenha mãos! Tente descobrir qual é o problema.

— Você mesmo disse que ele não tem capacidade de raciocinar. Como quer que eu resolva o assunto tão facilmente?

— Eu quero que dê um jeito de conseguir o barril. Fale com ele, pule nele, pinte-o de azul, mas consiga!

— Você se recusa a entender, não é? Mesmo conhecendo Brutus, trata-o como se fosse um cachorro.

— Ele é um cachorro!

— Se Brutus não quer entregar o testamento, deve haver uma razão muito importante. — O cachorro chegou perto de Lisa e esfregou a cabeça na perna dela, como se concordasse. — Viu?

— Por muito menos do que isso eu roçaria em você também. Pense em quanto tempo perdemos procurando esse maldito testamento. Poderíamos ter ficado nos roçando...

— Julian! — ela protestou, mas tremendo por dentro. — Não na frente de Brutus.

Encontre uma parceira para ele, então. Mas, enquanto isso, explique para esse pulguento, se tem tanta certeza de que ele pode lhe ouvir, o que acontecerá se não pegarmos o testamento.

— E isso! Brutus nunca estava por perto nas nossas conversas sobre o testamento. — Ela abaixou-se e segurou a cara do cão com as duas mãos. — Ouça-me, querido. Estou certa de que tem uma ótima razão para não entregar esse testamento. Mas se não o pegarmos, Jonathan ficará com tudo. E isso inclui você.

Brutus deu um rosnado de angústia e depois deitou-se de barriga para cima, na melhor imitação de morto que Lisa já vira.

— Eu lhe disse. Ele não sabia que seu pai herdaria tudo, por isso não nos deu o testamento antes. Nada disso teria acontecido se tivesse conversado com ele em vez de tratá-lo como se ele fosse um animal. — Lisa retirou o barril do pescoço de Brutus e entregou a Julian. — Feliz agora?

— Não, não estou feliz agora. Não me sinto nem perto de estar.

Ele segurou-a pela cintura e beijou-a com paixão. Ia soltá-la, mas mudou de idéia e abraçou-a novamente, beijando-a mais forte.

— Agora — ele afastou as mechas rebeldes do rosto delicado de Lisa —, lembre-se, doçura, não importa o que diga, não importa quem herde, as pessoas é que são importantes. Vamos entrar e ver se o esforço foi válido.

Eles subiram ao escritório, e Brutus correu na frente para esperá-los. Julian tirou alguns papéis de cima da mesa e colocou o barril no espaço livre. Por um longo tempo, os dois ficaram olhando, sem coragem de agir.

— Por que não o abre? — perguntou Lisa. — Afinal, foi você quem descobriu a última pista de Maudie.

— O que eu não teria feito se você não encontrasse o bilhete no vaso de rosas.

— Está bem. Eu abro o barril e você lê o testamento. — Ela pegou-o e procurou a abertura. — Não. Vamos fazer diferente. Você abre e eu leio.

Julian abriu e tirou um envelope no qual fora escrito: Ultimo Desejo e Testamento de Mauclie Margaret Hannigan”.

— Encontramos! — disse Lisa. — Leia você, acho que não consigo.

Brutus colocou a cabeça no colo dela, com o olhar triste.

Julian abriu o envelope, tirou os papéis de dentro e deu uma olhada rápida.

— Está datado e assinado. Parece autêntico. Precisamos que Peters leia, mas parece que está tudo certo. Tem até testemunha.

— Que alívio. Acha que devemos ler?

— E estranho, não é? Sofremos tanto para encontrá-lo e agora hesitamos em lê-lo — disse Julian.

— Porque é o final. Ela se foi e isso parece confirmar o quanto a morte é definitiva.

— Dê-me um minuto para olhar e depois eu leio para você.

Eram quatro páginas, mas Julian leu-as muito rápido. Depois, voltou para a primeira folha e leu novamente. Então, pegou o envelope e olhou dentro. Havia mais uma folha e ele a leu.

— Bem, olhos verdes... — disse ele, ajeitando os óculos.

— Parece que temos um problema.

 

                             Regra número 9

“As boas listas são criadas, não nascem prontas.”

Brutus grunhiu e Lisa ajeitou-se na cadeira. — Um problema? Com o testamento? Não... Jonathan, não é?

Julian colocou os papéis na mesa e segurou as mãos dela.

— Jonathan não receberá nada, nós herdamos Willow’s End, Lisa. Eu e você, juntos. Maudie deixou uma carta explicando e parece que ela estava determinada a bancar o cupido mesmo.

— Então qual é o problema? — ela perguntou e depois parou por um momento. — E porque ela quer que nós... Ela espera que...

Ele apertou as mãos de Lisa com carinho.

— Lisa, não posso falhar com Maudie. O que aconteceu entre nós foi algo maravilhoso no meio dessa confusão toda.

Lisa ficou extasiada com a declaração. Julian soltou a mão dela e coçou a testa.

— Não há dinheiro. E já que nós dois herdamos, nossos problemas infelizmente continuam. Na verdade, eles aumentam, pois agora temos de tomar a decisão final sobre Willow’s End.

— Nós podemos resolver tudo — ela disse, em pânico.

— Eu sei que podemos. Admito que dizer não a trabalhos voluntários e que lidar com Ted e as crianças não são meus pontos fortes. Mas não percebe? São os seus pontos fortes! Nós trabalharemos juntos e ficaremos com tudo. Brutus e Willow’s End.

— Lisa...

— Agora que é dono de Brutus também, terá de ser bom com ele. Precisará parar de inventar nomes e de ser maldoso.

— Ela abaixou-se e abraçou o cachorro. — Foi por isso que não queria que Julian encontrasse o testamento, não foi?

Mas não há o que temer. Ele o entende agora. Tudo vai ser como antes.

— Não, não vai. — Julian interrompeu.

— Eu sei que Maudie não está mais aqui. —Ela sentia-se inexplicavelmente desesperada e falava sem parar, a fim de que Julian não destruísse seu sonho. — Eu sei que seu trabalho é em Chicago, mas... Lisa não tinha mais palavras. Ficou quieta um instante, encarando-o, na expectativa. Sabia que Julian gostava dela, sabia que adorava Willow’s End, mas precisava descobrir quais eram as verdadeiras intenções dele.

— O que faremos com a casa? — ela perguntou abruptamente. Julian suspirou e deixou a mão cair no colo. Lisa soube o que ele sentia só por aquele gesto, e um arrepio de frio percorreu sua espinha.

— Você quer vender, não é? — ela sussurrou. — Ainda acha que não sou capaz de cuidar daqui.

— Lisa...

— Você não pode! Não depois de tudo o que passamos para encontrar o testamento. Não depois... — Lisa o fitou bem nos olhos. — Não depois do que aconteceu entre nós.

Julian aproximou-se e segurou os ombros dela.

— O que aconteceu entre nós não tem nada a ver com isso. Lisa levantou-se de supetão.

— Tem sim, tem tudo a ver! As melhores coisas de sua vida estão aqui nesta casa, mas você é cego demais para perceber. Pare de pensar com a cabeça por um minuto e pense com o coração.

— Eu estou pensando com o coração. Não quero vender Willow’s End. E meu lar também! Mas preciso ver o que é melhor para você.

— Willow’s End é o melhor para mim!

Esta casa está despencando à sua volta — ele disse, carinhosamente. — Você não tem dinheiro para acabar a reforma. Se não fosse tão teimosa, veria que esta casa é um problema.

— Não é um problema! E um verdadeiro lar!

— Não é só a casa, são os outros problemas. Como acha que me sinto quando vejo as pessoas tirarem vantagem de você, dando seu último centavo para limpar uma estátua ou se exaurindo de fazer tudo pelos outros. Não posso agüentar, Lisa. Nem vou ficar parado vendo tudo isso acontecer sem fazer nada. Não quando posso evitar.

— Evitar alguns probleminhas... tirando meu lar?— Brutus aproximou-se para confortá-la. — Eu sei que pode forçar a venda legalmente. Se quiser sua parte da herança, não duvido que qualquer juiz mande vender a casa e dividir e o lucro entre nós. Não é assim que funciona?

— Sim — ele admitiu.

— E você faria isso comigo?

— Lisa, eu não qiero magoá-la...

— Magoar-me! Se sentisse alguma coisa por mim, se se importasse comigo, um pouquinho só, não faria isso. Não poderia.

— Como eu gostaria de não precisar. Mas não vejo alternativa. — Ele olhou ao seu redor, sentindo um gosto amargo na boca. — As vezes acho que se importa mais com esta casa do que comigo. Quando teremos tempo para nós? Willow’s End está sempre no caminho.

Lisa sabia que Willow’s End estava entre eles, a não ser que chegassem a um acordo sobre a propriedade. As lágrimas agora desciam livremente pelo seu rosto, e Brutus roçou nas pernas dela. Ela se forçou a falar.

— Eu consigo imaginar uma maneira de resolvermos.

— E qual é?

— Você acha que não consigo cuidar das coisas por aqui, que será demais para mim. Se eu provar que posso, você desiste de vender a casa?

— Explique-se melhor.

— Mudaremos um pouco nossa aposta — ela começou.

Eu digo não para qualquer favor por uma semana, e você esquece seus relógios e listas. O vencedor determina o que acontecerá com Willow’s End.

— Você deve estar brincando.

Lisa balançou a cabeça. Nunca falara mais sério em toda sua vida. Não tinha nada a perder, mas muito a ganhar.

— Meu trabalho na escola e seu livro não contam na aposta. Se, no final de sete dias, nenhum dos dois perder, eu serei a vencedora, pois terei provado que posso cuidar de mim mesma.

O que havia começado com uma brincadeira, um pequeno jogo entre os dois, transformara-se em algo muito mais sério.

— Eu concordo — Julian respondeu, depois de pensar por um momento. — E se você perder?

— Isso não é uma possibilidade.

Os dois meninos não paravam de gritar na biblioteca.

— E mesmo? — Tommy gritou, sua face estava vermelha de raiva. — Bem, o meu tem sessenta e quatro posições diferentes. O seu brinquedo estúpido só tem trinta e oito.

— Mentiroso! Mentiroso! O meu tem dez trilhões de po

sições, e meu pai pode acabar com o seu — David completou,

mostrando a língua.

— Ah, é?

—E!

Lisa entrou correndo na sala e separou os dois.

— David, por favor! Lembre-se de que mantemos nossa língua dentro da boca. Quanto a você, Tommy, lembre-se de que usamos um tom de voz baixo quando estamos dentro de casa. Acho que ainda se recorda do jardim da infância, não é?

Ela olhou para as mães dos meninos. As duas não esta vam se importando com a bagunça nem com a gritaria. E claro que não, Lisa pensou, não era a casa delas que estava sendo destruída.

— Se puderem ter um pouco mais de paciência, acabarei logo com os testes.

— E uma pena a escola estar sendo pintada — comentou a mãe de David. — Ouvi dizer que tentaram a biblioteca

municipal, mas o ar-condicionado quebrou. Não iríamos querer que o pobre Davey sofresse com o calor; esse teste já é ruim o bastante.

— E melhor para Lisa fazer o teste na própria casa — a mãe de Tommy completou. — Foi Suzanne Ashmore quem o disse.

E porque Suzanne disse, está dito!, Lisa quase falou em voz alta, mas se conteve. Era estranho como agora ela não gostava de fazer coisas que antes lhe davam o maior prazer.

A culpa era de Julian. Se ele não tivesse plantado as sementes, ela nunca estaria tendo esses pensamentos horríveis e egoístas.

Aquela aposta ridícula estava deixando-a doente. Três dias e Julian não escorregara. Como conseguia? Lisa parara todos os relógios e escondera os calendários. Ele parecia não se importar.

Mas Lisa tinha se atrasado para todos os testes. Ela percebera que ganhar a aposta não seria tão fácil quanto imaginara. Como poderia ter pensado que seria fácil? Fácil? Lutar contra um rinoceronte era mais fácil do que dizer não aos inúmeros pedidos de ajuda que foram feitos a ela nas últimas setenta e duas horas.

Durante a manhã inteira, ela lidara sozinha com várias crianças birrentas e suas mães. Lutara contra o choro e frustração. Começava a achar que era um desastre e que não servia para nada, pois estava na metade do dia e já queria desistir de tudo.

A mãe de Tommy pigarreou e olhou para o relógio.

— Estou quase terminando com Joanie Baker — ela informou às mães. — Se puderem mantê-los quietos por mais cinco minutos...

— Olá? — Mais duas mães apareceram na porta, com meia dúzia de crianças. — E aqui o lugar do teste? Suzanne Ashmore nos mandou vir e...

Lisa fez muita força para não chorar. O doce Julian estava tomando sol no lago com Donna e Cory, e ela dentro de casa tentado cuidar daquelas pestes...

Ela colocou a mão na testa. Talvez estivesse doente. Era isso! Estava doente, por isso se comportava daquela maneira.

 

— Todos sentados! — ela ordenou. Pessoas doentes não eram alegres nem doces. — Finjam que estão na biblioteca da escola e fiquem quietos. Voltarei para testá-los quando puder.

— Bem, se ela acha que minha pequena Ashlee colaborará com essa atitude indelicada...

Lisa não ouviu o resto e bateu a porta atrás de si, com mais força do que o normal.

Um passo de cada vez, disse a si mesma, respirando fundo. Uma criança de cada vez.

E quando terminou com a última, jurou que nunca mais falaria com Suzanne Ashmore.

Depois de descansar no sofá, Lisa acordou e percebeu que estava abraçada a Julian. Sorriu satisfeita, pois seu dia começava a melhorar. Os dois corações batiam juntos, e os corpos muito próximos davam a sensação de serem um só.

— Eu queria acordar assim, sempre — ela sussurrou, com os lábios encostados no pescoço dele.

— Eu também quero acordar toda manhã com você — ele respondeu.

— Eu... nós... — ela pigarreou. — Há muitas coisas para resolver antes de pensarmos no futuro, não é?

Julian respirou fundo e Lisa sentiu os músculos dele se contraírem.

— Acho que tem razão.

Não queremos apressar nada. — Lisa o encarou. — Queremos?

—Não.

Então, por que ele a abraçava mais forte e ela aninhava-se em seus braços como se não quisessem se separar nunca mais? Lisa aproveitou aquele momento e fechou os olhos, na esperança de que durasse um pouco mais.

— Vou dizer uma coisa, mas o que sinto é bem diferente. Se não deixá-la ir logo, posso acabar agindo de maneira errada, tomando uma atitude da qual nos arrependeremos depois.

— Isso seria tão ruim?

 

— Talvez não. Mas prefiro não arriscar. — Julian roçou o queixo na cabeça dela. — Eu desejo você, Lisa. Quero roubá-la daqui. Quero levá-la para onde não existam projetos, casas para reformar nem crianças gritando. Acho que a próxima vez em que alguém lhe pedir um favor, eu vou colocá-la em meus ombros e levá-la para tão longe que nunca acharemos o caminho de volta.

— Quer dizer, abandonar Willow’s End? Eu não poderia.

Julian suspirou.

— Quando vou aprender? Este lugar vem sempre em primeiro lugar para você, não é? As vezes eu me pergunto quem você ama mais, eu ou a casa. E não ouso pedir que escolha apenas um, pois sei que perderia.

— Não, Julian. Você entendeu errado.

— Pode ser — ele respondeu calma e suavemente. — Então me explique. Por que é contra a venda da propriedade? Pense um minuto sobre isso. Sabe que a situação não voltará a ser a mesma, já que Maudie não está mais aqui. Essa casa possui ótimas lembranças, sem duvida, mas é só uma construção. Essa pode ser a sua chance para um novo começo. Por que não quer aproveitá-la?

Lisa esperava por essa pergunta, mas não era fácil respondê-la. Entretanto, devia a Julian uma resposta verdadeira.

— Eu nunca contei isso para ninguém, só para Brutus. Maudie sabia como eu me sentia sem eu precisar falar. Eu amo Willow’s End. Muito mesmo. Os anos que passei aqui foram os mais felizes de minha vida. Você tem idéia de como era a minha vida antes de mudar para cá?

— Conhecendo Helene, acho que posso imaginar.

Lisa abraçou-o e riu.

— E, acho que pode. Eu nem me lembro do meu verdadeiro pai. Ele morreu quando eu era um bebê. Até chegar aqui, o máximo de tempo que permaneci num mesmo lugar foram treze meses. Estávamos sempre nos mudando, e minha mãe trocava de marido com a mesma freqüência com que trocávamos de casa. Seu pai foi meu quarto pai.

Lisa demorou alguns segundos para continuar. Fazia tempo que não se lembrava daquela época infeliz. Ela tentara esquecer, e graças a Maudie conseguira.

— Quando nos mudamos para cá, achei que estava em algum tipo de conto de fadas. Sabia que achara meu lugar no mundo. Maudie entendeu. E quando minha mãe achou que já tinha vivido demais no campo, sua tia fez com que eu ficasse.

— Eu não me lembro de nada disso — disse Julian. — Talvez tenha sido no ano em que fui para a faculdade. Como Maudie conseguiu isso?

— Não foi dificil. A minha estada em Willow deveria ser temporária, até Helene encontrar outro lugar para morar. Mas ela percebeu que ficava muito mais livre sem uma adolescente de dezesseis anos por perto. Quando Maudie insistiu para que eu ficasse, mamãe deixou na hora. Acho que ficou até feliz.

Julian olhou-a com compaixão.

— Acho que agora entende por que não quero sair daqui. Quando se vive tanto tempo sem um lar e depois se consegue um, é dificil não fazer de tudo para ficar com ele.

— Desista da aposta, Lisa. Foi um erro. Esqueça Willow’s End e venha para Chicago comigo, venha começar uma vida nova.

Lisa colocou os dedos sobre a boca dele.

Não, Julian, isto estará sempre entre nós. Tem de ser resolvido antes de tomarmos qualquer decisão. Não mudou de idéia sobre minha capacidade de cuidar daqui, não é?

— E, não mudei.

— Eu sabia. Por isso não quero desistir da aposta. Acho que ela fez muito bem para mim, mais do que pode imaginar. Não estou provando alguma coisa só para você. Agora tenho de provar para mim também.

— Acredite ou não, eu quero que vença. Se o futuro da casa ficar em minhas mãos, não vai gostar dos resultados. Sabe disso, não sabe?

Dessa vez ela o calou com um beijo.

— Não diga mais nada, Julian. Não estrague este momento. Amanhã tudo pode acontecer, mas, por enquanto, vamos aproveitar esse tempo que temos juntos.

 

Lisa encostou a cabeça no peito dele e ouviu as batidas do coração do homem que amava. Com ele, sentia-se em casa em segurança, mais protegida até do que em Willow’s End. Se pudesse ser para sempre...

Na manhã do quarto dia da aposta, Lisa decidiu que precisava se organizar.

— A primeira coisa que faremos será inventar grandes desculpas para não ajudar as pessoas — Lisa disse a Brutus.

— Não consigo apenas dizer não a elas. Na verdade, acho que essa palavra nem consta no meu vocabulário. Bem... daremos um jeito.

Brutus latiu, aprovando.

Apesar da apreensão de Lisa, o quarto dia foi fácil, simplesmente porque ninguém telefonou nem apareceu. O quinto dia foi muito mais difícil. O telefone tocou e Lisa correu. Brutus já estava lá esperando e latiu para ela.

— Eu sei, eu sei, não vou estragar tudo, sei o que estou fazendo. — Ela tampou o nariz com os dedos e atendeu. — Desculpe, você ligou para um número que foi desligado...

— Lisa?

— Se acha que errou o número, por favor, tente novamente. — Ela desligou na cara de Valerie, para alegria de Brutus. — Viu? Mais uns dias e estaremos livres.

— De jeito nenhum.

Lisa virou-se e deu um sorriso amarelo.

— Oh, olá Julian. Faz tempo que está aí?

— Tempo suficiente para descobrir que não está sendo correta.

— Não lembro de termos conversado nada sobre ser correta. Lembro de termos conversado sobre dizer não e detalhes desse tipo, mas...

O telefone tocou novamente e os dois ficaram olhando o aparelho.

— Não vai atender? — Julian perguntou.

— Estava pensando em deixá-lo tocar.

— Estou desapontado com você, Lisa. Não está entrando no espírito da aposta. — O telefone tocou novamente. — Atenda!

— O que quer? — ela gritou no bocal.

— Lisa, é você? O que está acontecendo aí?

— Não posso.

— Não pode o quê?

— Fazer o que quer que você vá me pedir. Ligue-me semana que vem, adeus. — Ela bateu o telefone e olhou para Julian. — Satisfeito agora?

— Não exatamente, apesar de essa conversa ter sido bem interessante. Da próxima vez, tente deixar a pessoa pedir antes de recusar.

— Você faz do seu jeito e eu faço do meu!

— E eu serei vencedor antes do fim da semana.

O telefone tocou novamente e Lisa suspirou. Ela não agüentaria ser mal-educada novamente. Não era da sua natureza ser rude. Além disso, sabia que se atendesse se desculparia e prometeria favores até o Natal.

Mas seria firme e tentaria dizer não. Ela escreveu no bloco ao lado do telefone Não em letras bem grandes.

— E pare de rir, não tem graça. — Ela atendeu. — Alô?

— Alô, Lisa? Aqui é Brad Anderson, pode chamar Julian? E urgente.

— Oh, sinto muito, Brad. Se eu chamar Julian estaria fazendo um favor a você e a ele. Dois favores. E não posso fazer nenhum favor.

Antes que Julian a alcançasse, ela bateu o telefone e saiu correndo.

O sexto dia foi mais fácil, pois graças a Julian ela conseguira dizer não. Agora só tinha de aperfeiçoar a desculpa, pois não queria que a cidade inteira soubesse da aposta. Ela estava tentada a tirar o telefone do gancho, mas não o fez. Venceria essa aposta da maneira correta. Então Valerie ligou.

Ainda sou sua amiga, não sou?

— Depende. O que quer?

— E isso o que estou dizendo. O que significa “o que eu quero?”. Não posso ligar para conversar?

— Ah, você quer conversar. Otimo, eu posso conversar.

— O que há de tão errado em pedir um favor para uma amiga? Fui injusta? Apostei demais na nossa amizade? O que há?

— Favor? Por favor, não use essa palavra. Tente alguma que não use a letra F.

— Eu queria que você me emprestasse os brinquedos de praia. Aqueles que usa para brincar com as crianças no lago. Vamos sair às duas horas em ponto para visitar minha mãe e esperava que pudesse trazê-los aqui. E pedir demais?

Lisa agora lutava com a palavra com a letra N.

— Agora?

— Não, às duas horas.

Lisa parou um momento. Willow’s End valia mais do que um monte de brinquedos.

— Não posso — disse ela, sorrindo.

— Lisa, estou em desespero. Se não pode deixá-los aqui, eu passo para pegar. Tudo bem? — Valerie não esperou por uma resposta. — Obrigada! Você é a melhor amiga do mundo.

Lisa abriu a porta do armário embaixo da escada, discutindo com Brutus.

— Ouça, não é bem um favor. Eu tiro isso daqui todo verão.

Brutus deitou-se, infeliz. Ela ignorou-o e continuou a tirar caixas de dentro do armário.

— Não estou fazendo isso porque Valerie pediu, mas sim porque estava pensando em brinquedos e resolvi tirá-los daqui, como faço todo ano. Não é um favor. E não tem nada a ver com a aposta.

Brutus latiu, protestando.

— Está bem, é um tipo de favor. Mas se você não contar a ele e eu não contar, ele nunca ficará sabendo. — Ela virou-se para o armário e remexeu mais um pouco. — Ah, achei!

Antes que pudesse pegar a caixa, algo a empurrou para a frente e ela caiu dentro do armário. Lisa tentou se sentar, mas não enxergava nada. Tirou um pano de cima de sua cabeça, porém tudo continuava escuro. Tentou chegar à porta e bateu a cabeça na parede.

— Quem apagou a luz? Quando eu sair daqui você será um cachorro morto.

Ela tateou a parede e encontrou a porta e a maçaneta.

 

Tentou abrir e não conseguiu. Tentou novamente. Erutus não poderia ter trancado. Ele era esperto, mas não tão genial assim! Enfurecida, deu socos na porta.

— Você é inteligente, mas não pode ser igual a um ser humano! — gritou. — Não pode me prender aqui para sempre. Pode?

Não havia interruptor do lado de dentro do armário. Lisa tateou a porta e sentou-se no chão. Ao colocar a mão na fresta embaixo da porta sentiu pêlos.

— Você! — ela tentou abrir a porta com toda a força, mas arrastar duzentos quilos não seria fácil. — Saia daí, seu monte de pêlos.

Ela colocou o ouvido na porta e ouviu um ronco alto.

— Não acredito! Como pode dormir numa hora dessas?

Sentando-se novamente, começou a esperar. Pelo menos, assim não faria nenhum favor.

Algum tempo depois, a porta se abriu e a luz entrou. Lisa viu Julian.

— Oh, olá.

Julian ficou olhando para ela e para caixa de brinquedos ao seu lado.

— Acho que não vou perguntar. Acho que fecharei a porta e irei embora.

— Brutus me trancou aqui. — Ela estendeu as mãos. — Ajude-me a ficar de pé.

Julian levantou-a e beijou-a, docemente.

— Ele foi muito cruel...

Lisa abraçou-o e beijou-o também. Ela não se cansava daquela sensação maravilhosa de estar nos braços de Julian.

— Eu quero você — ele disse.

— Eu também quero você. — Ela acariciou o peito de Julian. — O que faremos a respeito?

— Entrar no armário e fechar a porta?

— Tentador. — Ela riu. — Mas não há espaço suficiente.

Então Lisa lembrou-se de Valerie.

— Que horas são? Já passou das duas? Oh, esqueci que não usa mais relógio. Como pude esquecer?

— Não sei. — Ele abraçou-a pela cintura. — Como pôde?

— Acho que estou meio estonteada. — Ela abaixou-se e pegou os brinquedos que haviam caído da caixa. — Eu ia tirar esses brinquedos, quando Brutus me trancou. Quer dizer, eu... sabe...

— Sei bastante coisa, minha querida. Mas acho que Brutus não a trancou aí para impedi-la de fazer alguma coisa, não é?

— Não seja ridículo, Julian, Brutus é só um cachorro. Você fala dele como se fosse humano ou coisa parecida.

— Mas você não fala isso quando o vira-lata está por perto. — Ele riu. — Eu sabia que essa aposta não seria fácil para você, e reconheço o quanto está tentando. Você vai conseguir, Lisa, sei que vai.

— Não tenho tanta certeza. — Ela torceu a boca, desgostosa.

— Encare como algo novo a aprender. A arte de dizer não.

— Mas por quê? — ela perguntou, frustrada. — Por que tenho de dizer não o tempo todo? Prefiro mil vezes dizer sim.

— Devo dar-lhe um motivo para dizer sim? — ele perguntou, roçando os lábios nos dela.

— Não. Isso não é justo, Julian. Espera que eu faça algo que vai contra a minha natureza.

— De maneira alguma. Eu espero que possa cuidar de si mesma quando necessário. Não quero que recuse todos os favores. Apenas aprenda a julgar os que deve aceitar.

— Bem, já que não posso fazer nenhum favor, acho que vou ligar para Valerie. Só para conversar. Não sobre brinquedos estúpidos, muito menos sobre apostas.

Depois de ligar para a amiga e explicar que não poderia emprestar, sem mencionar a aposta, Lisa pensou no que Julian dissera.

Aquilo ficou em sua cabeça o dia todo, enquanto Julian e as crianças reformavam a casa. Eles estavam muito unidos e se respeitavam. Lisa ficou admirando-o.

Gostava de como ele andava, de como falava, até de como dava ordens. Gostava quando ele tirava os óculos para fazer uma pergunta e arqueava as sobrancelhas quando sorria.

 

Lisa o amava. Amava sua risada e o senso de humor, apesar de este ser um tanto instável. Amava quando ele a segurava pela cintura e transmitia uma segurança forte. Amava-o pelo que estava tentando fazer, mesmo que não concordasse.

Só não gostava de suas dúvidas quanto a perder a aposta e quanto ao que ele faria se tivesse poderes sobre a casa.

De repente Willow’s End não era suficiente, ela queria Julian, não uma casa. Queria fazer parte da vida dele, viver com ele, ter filhos com ele. Infelizmente, Julian não lhe oferecera nada disso.

No sétimo dia, Lisa percebeu que ganharia a aposta. Mas ela não ficou radiante como esperava. Agora achava que não deveria ter apostado Willow’s End, mas sim o amor de Julian.

O telefone tocou e ela atendeu sem hesitação.

— Alô? Sim, prefeito, o que posso fazer pelo senhor? — Ela escutou por um minuto e depois respondeu educadamente.

— Agradeço por ter pensado em mim para esse comitê, mas sinto não poder ajudá-lo desta vez. Tente falar com Suzanne A.shmore, ela está sempre pronta a dar uma mão. Sim, talvez na próxima vez. Foi bom falar com o senhor também.

Ela desligou o telefone. Estava começando a se habituar a dizer não. O telefone tocou novamente e ela atendeu.

—Alô?

— Lisa? Sou eu. — Uma voz desesperada falou.

— Donna? O que houve?

— E Cory, aconteceu uma coisa.

— O quê? O que é? Ele está machucado?

— Não, não está. Ele está com problemas. Estou aqui na delegacia. Eles prenderam Cory. — Donna chorava ao telefone. — Por favor, você vem até aqui?

— Claro que sim. Tente ficar calma, Donna! Estou saindo de casa.

— Venha rápido, estou com medo.

— Sei que está. Fez muito bem em me ligar. Chegarei em cinco minutos.

Lisa desligou e fechou os olhos. Não questionou se deveria

ir ou não. Precisava ajudar Cory. Não tinha escolha. Algumas coisas eram mais importantes do que uma aposta ou uma casa. Cory era mais importante. Ela pegou a bolsa.

Arrependimentos viriam depois.

 

                   Regra número 100

“Regras foram feitas para serem quebradas.”

Lisa estacionou o carro na frente da delegacia e desceu correndo.

— O que aconteceu? — ela perguntou a Donna, que vinha em sua direção. — Onde está Cory?

— Está lá dentro. A polícia acha que ele está envolvido em outro caso de vandalismo. Ele não fez nada, Lisa. Ele estava na sua casa na hora, mas ninguém acredita no que diz. Se os pais dele descobrirem, Cory estará em sérios apuros. Você vai ajudar?

— Claro.

As duas correram para dentro.

— Olá, Lisa — o delegado Coilins a cumprimentou, sorrindo. — O que a faz correr tanto?

— Vim por causa de Cory Muldrew — ela explicou, apertando a mão de Donna.

Felizmente não demorou muito para resolver o caso. Todos conheciam Lisa, e Cory foi solto imediatamente.

Quinze minutos depois, Lisa estava sentada numa cadeira da cozinha com a cabeça apoiada nos braços. Perdera a aposta e sentia-se desolada. Ela perdera Willow’s End por ter sido sincera com sua consciência e ter tomado a atitude certa. Julian iria entender a necessidade de atitudes certas e consciências limpas.., claro que iria.., assim como os porcos criariam asas...

— Lisa?

Ela levantou a cabeça e viu Julian parado à porta.

— Eu a procurei agora há pouco disse ele, aproximando-se. — Pensei em nadarmos no lago, mas já não dá mais tempo. Há uma emergência com o trabalho e preciso ir até Peoria.

Lisa o fitou. Ela não conseguia parar de admirá-lo. Julian era a coisa mais importante para ela e estava tão fora de seu alcance. Quando ele voltasse de Peoria, as coisas não seriam mais as mesmas.

— Você está bem? — ele perguntou, aproximando-se mais.

— Claro.

Ela estava sempre bem quando o tinha por perto. Julian era capaz de instaurar a paz em seu coração.

— Aonde você foi?

— Saí. — Ela respirou fundo, decidindo contar tudo de uma vez. — Julian...

— Tem certeza que se sente bem? — Ele colocou a pasta no chão e passou a mão nas costas de Lisa. — Está tão quieta...

Ele a olhava com paixão e carinho. Lisa dizia a si mesma que era hora de contar, mas as palavras não saíam de sua boca.

— Oh, parabéns — ele disse. — Venha cá, tenho algo para você.

— Julian, preciso falar uma coisa... — ela levantou-se.

— Fale depois, isto é mais importante.

Ele a segurou pelos ombros e Lisa abraçou-o, apoiando a cabeça no peito amplo. Era tão bom estar protegida por

queles braços fortes que o resto parecia insignificante.

— Parabéns, olhos verdes. — Ele beijou-a. — Você conseguiu. Venceu a aposta. Para ser honesto, tinha minhas dúvidas, mas provou que podia. Eu não poderia estar mais feliz.

Lisa fechou os olhos. Era uma agonia ouvi-lo dizer aquelas palavras, sentir o toque carinhoso e não merecer. Teria de contar a verdade, mesmo que fosse para ver aquele sorriso lindo desaparecer dos lábios dele. A casa seria vendida agora. Não havia mais jeito.

 

— Julian, preciso contar uma coisa. — Ela olhou-o nos olhos. — Eu não venci a aposta. Donna me ligou meia hora atrás. Ela e Cory precisavam da minha ajuda. Não podia dizer não a eles.

— Teremos de discutir isso mais tarde. Não há tempo agora — ele disse, baixinho. — Sinto muito, se não fosse esse problema... Conversaremos assim em que eu voltar.

— Precisa mesmo ir?

— Sim, mas não se preocupe, querida. Resolveremos essa situação. — Ele beijou-a tão carinhosamente que Lisa esqueceu dos problemas que çirculavam em sua cabeça.

— Julian...

— Tenha paciência, Lisa, tudo dará certo. Acredite em mim. — Julian passou a mão nos cabelos dela e foi embora.

Acreditar nele? Ela acreditava, mas também sabia que, graças à sua falha, Julian poderia fazer o que mais queria agora. Vender a casa.

O que ela precisava agora era chorar muito ou de uma xícara de chá. Mais do que tudo, queria chorar, mas controlou-se e começou a preparar o chá. Brutus entrou na cozinha e deitou-se ao seu lado.

— Eu sei, estraguei tudo. Venha aqui me fazer um carinho, querido.

Lisa não conseguia parar de pensar na aposta que perdera. E no homem amado, que perderia também. Ajudar Cory não fora um erro. Sabia disso. Julian teria que entender que ela era assim, como Maudie sempre o fora. Uma pessoa carinhosa e aberta, pronta a ajudar pessoas que precisassem.

— Alguém quer me explicar o que está acontecendo aqui? Agora chega! — disse Valerie, ao entrar pela porta da cozinha.

Lisa olhou para a amiga e desatou a chorar.

— Eu sabia! Aqueles telefonemas estranhos, as desculpas esfarrapadas para todo mundo. Willow inteira está comentando como você mudou. Disseram que é por causa de Julian e querem mandá-lo embora da cidade. Eu disse que falaria com você antes. — Ela virou-se para Brutus. — Você, saia daqui. Essa é uma conversa de mulheres.

 

Brutus levantou-se e saiu. Valerie colocou Lisa sentada na cadeira.

— Sente-se, eu preparo o chá.

Ela colocou duas xícaras na mesa e acomodou-se na frente de Lisa.

— Vamos lá, o que está acontecendo?

Lisa contou tudo desde o começo, e quando terminou Valene tomou o chá num gole só.

— Quer minha opinião sincera?

— Será que eu agüento?

— Provavelmente não, mas direi mesmo assim. Julian está certo. As pessoas se aproveitam de você. Eu me aproveito de você. E que está sempre tão pronta a ajudar que nem pensamos em tomar outra providência.., você é a opção número um. Pense sobre isso.

— Estive pensando e sei que aprendi uma lição. Mas mesmo assim perdi Willow’s End.

— Julian disse isso?

— Ele disse que queria vender a casa.

— Queria. E um pouco diferente. Lisa, ele a adora. Acha mesmo que ele quer tirar a casa de você? Na minha opinião, ele fez de tudo para você ser a vencedora da aposta.

— Se ele quisesse que eu vencesse, por que não concordou em me deixar ficar com a casa de uma vez?

— Porque ele estaria perdendo a maior parte de seu tempo, em Chicago, pensando em que desastre você estaria aprontando por aqui. Pense, garota! Já imaginou o risco que ele correu fszendo essa aposta?

— Ele se arriscou? Eu é que perdi Willow’s End.

— Julian também perdeu. Ele nunca disse que não queria esta casa, e sim que a venderia pensando no seu bem. Ele só pensa no que melhor para você e não arriscaria estragar essa nova relação de vocês dois.

— Eu... Eu nunca tinha pensado dessa maneira — disse Lisa, atônita. — Mas o que faremos agora? Eu estraguei tudo. Quero dizer, não estraguei, tinha de ajudar Cory, mas perdi a aposta.

— Acho que tem de decidir o que é mais importante para você. Willow’s Ead ou Julian.

Julian, pensou Lisa, sem hesitar. Ela pensou também na casa, mas ele tinha razão, são as pessoas que contam e realmente são importantes. E ele era a pessoa mais importante da sua vida.

— Obrigada. — Lisa sorriu. — Você me ajudou muito.

— Ei, não me deixe sem saber a sua escolha.

— E você diz que é minha melhor amiga. Devia saber qual a minha escolha.

— Eu sei, mas quero ver a carinha linda que você faz quando diz o nome dele.

No final da tarde, a campainha tocou. Lisa pensou que poderia ser Julian e correu para abrir. Ela percebeu o erro ao colocar a mão na maçaneta. Julian não tocaria. Ele tinha a chave.

Um homem alto e bonito a cumprimentou estendendo a mão.

— Olá. Sou Brad Anderson.

— E claro — disse Lisa, apertando a mão dele. — Como vai Brad? Quer entrar?

Brutus latiu.

— Eu adoraria, mas seu cachorro não vai me morder, vai?

— Eu não tenho tanta certeza.

Brad riu, pensando que Lisa tivesse feito uma piada. Ela não teve coragem de lhe dizer que a situação era mais séria do que se podia imaginar.

— E bom vê-la novamente — ele disse sorrindo.

— E bom vê-lo também, mas infelizmente Julian não está aqui. Ele foi até Peoria resolver um assunto de trabalho.

— Eu sei, acabei de chegar de lá. Parei aqui para pegar uns papéis que devo levar a Chicago. — Brad abriu a pasta e tirou um envelope. — Julian pediu para entregar isto a você.

Lisa abriu o envelope e leu o papel que estava dentro.

 

“Lisa, dê a Brad tudo o que ele precisar. Sinto muito pela aposta, resolveremos quando eu chegar.”

Ele assinara com a inicial. Um J bem grande no final da página. Lisa sabia que perdera Willow’s End, mas isso já não tinha mais importância. Só Julian importava para ela, e agora parecia que o perdera também.

 

— Não quero apressá-la, mas preciso dos papéis. Brad interrompeu os devaneios dela. — E também queria saber se pode me mostrar a casa.

— Quer dizer... como uma visita com guia? — ele concordou com um gesto de cabeça. — Ah, deve estar querendo ver as reformas de Julian.

— Pode ser, mas estou mais interessado no potencial desta casa. Se não gostar de alguma modificação que Julian tenha feito, poderei alterar.

Lisa olhou para Brad, sem entender o que ele falava. Talvez fosse porque passara por muitas emoções naquele dia e seu cérebro ficara mais lento. Talvez...

Ela se lembrou das instruções de Julian e achou melhor obedecer.

— Por onde quer começar?

— Não se importa?

— Julian disse para eu fazer o que você quiser. Quer ver em detalhes ou superficialmente?

— Detalhes.

Lisa levou-o à sala de jantar primeiro e explicou como a reforma fora feita. Estava orgulhosa do trabalho deles.

— Ficou bom mesmo — ele disse. E apontou para a porta no outro lado da sala. — Para onde vai?

— Para a cozinha.

— Acho que terei problemas. Apesar de que, conhecendo minha mulher, sei que ela derrubará essa parede e construirá duas salas.

— Então diga para ela não fazer.

Brad começou a rir, e Lisa continuou não entendendo.

— Que bom que não perdeu o senso de humor. Vamos ver a cozinha. — Lisa e Brutus acompanharam Brad. — Marie terá um ataque quando vir isso.

Sua mulher de novo? E por que ela vai ter um ataque com a minha cozinha? Com a cozinha de Julian...

— Ela é louca por módulos e cromados. Essa madeira toda irá pelos ares.

Lisa colocou as mão na cintura. Já era o suficiente. Estava fazendo um favor ao homem e ele vinha com insultos?

— Deixe-me dizer o que sua Marie pode...

 

Brad abriu a porta de saída e olhou para fora.

— Oh, o lago! Eu adoro aquele lago. Passávamos o verão inteiro lá, lembra?

— Vividamente.

— E da casa, não é? Ou alguém mais é dono dele?

— E da casa. Agora, ouça...

— Fantástico. Vamos ver os outros cômodos.

Brutus rosnou e Lisa mandou-o ficar quieto. Eles encontraram Brad na biblioteca.

— Segura aqui para mim, por favor — Brad disse, dando a ela uma trena. — Vamos ver quanto espaço temos aqui.

— Quer me dizer...

— Puxa! Bem, não há problema, os livros sairão e a sauna de Marie ficará perfeita.

O quê? Que sauna? Ela pensou, atordoada. Continuou segurando a trena, mas não se arrependeu quando a soltou e ela bateu nos dedos de Brad.

— Escute aqui. Não vai mexer nessas estantes. São de madeira maciça e estão aí há mais de cem anos.

— Tanto tempo assim? Então é mesmo hora de sair, não é?

— Não, não é. Por que está medindo e resolvendo derrubar tudo? Não é dono daqui, sabia?

— Ainda não. Mas serei... brevemente.

— Não. Isso é impossível.

— Não sabia? Ah, por isso estava de tão bom humor.

— Julian venderá a casa para você? — perguntou Lisa, atônita.

— Ele prometeu que eu seria o primeiro da fila.

— Quando?

— No telefone. E hoje eu soube que ele tem o controle da casa, então...

Então Julian iria vender mesmo o seu lar. Parecia um pesadelo. Ele lhe pedira para ser paciente. Beijara-a e pedira confiança. E claro que não venderia a casa sem consultá-la antes. Será?

— Acho que precisa de um pouco de ar, por que não vamos lá para fora?

Ele segurou-a pelo braço e os dois saíram. Pararam na frente do canteiro de rosas que Lisa e Julian estavam fazendo para Maudie.

Lisa respirou fundo, forçando-se a enfrentar os fatos. Fora combinado que Julian venderia a casa, mas justamente para Brad Anderson? Para ele ficar dizendo o que faria com cada cômodo? Ela não queria saber se a mulher dele era louca por cozinha modulada.

Ela abaixou-se e tocou em uma rosa, lutando contra as lágrimas.

— Ei, Lisa? O que está acontecendo?

Ela virou-se e viu Cory. Não sabia se a presença dele melhorava ou piorava a situação. Na verdade, piorava, já que ela olhou-o sem esconder o desespero.

— Lisa? O que há? — Cory perguntou, preocupado. — Esse homem está lhe incomodando? Quer que eu dê um soco nele? Depois do que fez por mim hoje, faço tudo por você!

Brad aproximou-se.

— Que lindas rosas. Pena sermos alérgicos. — Ele espirrou, para provar. — Talvez Marie troque por lírios.

— Lírios! Maudie odeia lírios! — Lisa gritou, tomada de fúria.

Houve um barulho seguido de um latido, e Brad desapareceu sob um monte de pêlos.

— Socorro!

— Pegue-o, Brutus — disse Cory. — Porque se não pegá-lo, eu o farei. — Ele olhou para Lisa. — Você ainda não me contou por que estamos atrás dele.

Antes que Lisa pudesse responder, um carro chegou e Julian desceu correndo, pulou nos arbustos que se misturavam com pêlos e terno e, para surpresa de todos, saiu de lá com Brad em uma mão e Brutus na outra.

— O que diabos está acontecendo aqui?

— Ele! — Lisa apontou furiosamente para Brad. — Ele quer tirar as rosas de Maudie e plantar lírios no lugar! Se Brutus não acabar com ele, eu acabo.

Obedientemente, Brutus atacou o sócio de Julian novamente.

— Sente-se! Calaco! — Julian ordenou e Brutus obedeceu. Ele virou-se para Brad. — Você vai plantar lírios no lugar das rosas de Maudie? Está louco?

 

— Eu, louco? Eu? Esqueça! — Brad gritou. — Não compraria esta casa de jeito nenhum.

— Ah, é? E quem lhe ofereceu? — Cory perguntou.

— Cale a boca, Cory — Julian gritou e virou-se para Brad. — Ah, é? E quem lhe ofereceu?

— O quê? Estão todos loucos? Você me ofereceu. Aquele dia no telefone, lembra-se? Mas eu não quero mais saber. Pode ficar com a biblioteca, aquele teto esquisito e as madeiras de terrível mau gosto. Vou comprar um imóvel em um condomínio na cidade. Adeus.

E antes que Julian pudesse dizer alguma coisa, Brad pegou o carro e saiu em disparada.

— Tudo bem, banquei o bom moço. Protegi você, o vira- lata e um monte de flores estúpidas. Agora será que pode me dizer do que eu estava lhe protegendo? Presumo que briguei com meu sócio por um bom motivo. Pelo menos, espero que tenha sido por um motivo, mas conhecendo você, tenho minhas dúvidas.

— Como tem coragem de me perguntar isso? — perguntou Lisa, indignada.

— Ah, vou ligar para Brad, então. Leva três horas para chegar a Chicago. Duas, na velocidade em que ele saiu daqui...

— Você pode ter o direito de vender esta casa, mas eu juro que a destruo, tijolo por tijolo, se a vender para ele. Aquele louco ia colocar uma sauna na biblioteca!

— Lisa, você deveria ter confiado em mim. Mesmo se eu tivesse decidido vender a casa para Brad, o que não aconteceu, falaria com você antes.

— Mas ele disse...

— Ele disse, não eu. — Julian segurou os ombros de Lisa carinhosamente. — Uma vez eu disse a Brad que talvez vendesse a casa. Não me olhe com essa cara magoada. Foi dito num momento de raiva, não era para ser levado a sério. Nunca dei nenhum motivo para ele achar que, quando lêssemos o testamento de Maudie, eu venderia a propriedade para ele ou para outra pessoa qualquer...

— Vai ficar com a casa?

— E claro que ele vai ficar, acha que é louco ou coisa parecida? — Cory interrompeu a conversa dos dois.

 

— Obrigado, Cory — disse Julian. — Você quer alguma coisa em especial ou veio aqui só para testar minha paciência?

— Eu queria agradecer a Lisa por ter salvo minha pele. Se ela não tivesse ido até a delegacia, eu estaria em sérios apuros, provavelmente preso!

Julian olhou para Lisa.

— Foi por isso que perdeu a aposta? Estou surpreso com você. A idéia de Cory atrás das grades tem até um lado agradável... Com Willow’s End do outro lado da balança, você não teve nem um momento de hesitação?

— Nenhum — Lisa disse e aproximou-se, colocando a mão no rosto dele. — E digo mais. Pode vender a casa, dá-la para quem quiser ou até mesmo queimá-la. Não mudará o que sinto por você. Estava certo, o nosso lar é onde o coração está, e meu lar e meu coração estão aqui, em minhas mãos. Eu te amo, Julian Lord. E agora, o que tem a dizer sobre isso?

— Só posso dizer uma coisa.

— O quê? — ela sussurrou.

— Que eu a amo, que quero me casar com você. Morar aqui e criar nossos filhos nesta casa onde fomos tão felizes.

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Quer fazer isso, mesmo que eu tenha perdido a aposta?

— Não perdeu a aposta. Estou orgulhoso de você por tudo o que fez nesta semana que passou.

— Mas e tudo aquilo sobre dizer não...

— Admita, Lisa. Você tem problemas com a palavra não. Eu só quis que aprendesse a tomar mais cuidado com os favores que decide aceitar.

— Acho que percebi isso — ela disse e ficou séria. — Mas aprendi outra coisa também.

—Oquê?

— Aprendi que gosto de ajudar as pessoas. E algo que me faz bem. E você estava certo sobre minha mãe. Helene é a pessoa mais egoísta que eu conheço, e nunca quis ser igual a ela. Então, talvez eu tenha exagerado um pouco por causa disso.

— Talvez tenha exagerado muito, mas não se preocupe. Não é nem um pouco parecida com sua mãe. — Ele a beijou nos lábios:— Você é a pessoa mais doce e mais generosa que tive o privilégio de conhecer.

— Eu te amo, Julian. — Ela sorriu.

— Eu também te amo, olhos verdes. E você não foi a única que aprendeu algo aqui.

— Não? O que aprendeu?

— Que apesar da minha regra número um, há coisas que eu faria de tudo para manter.

Brutus colocou o nariz no meio dos dois.

— Mas não sei se seu cachorro faz parte delas.

— O nosso cachorro! — Ela devolveu o beijo apaixonado de Julian. — Agora é o nosso cachorro.

— Isso é o que eu chamo de um final feliz — disse Cory, rindo.

 

Julian acordou cedo. Ao seu lado, sua esposa ainda dormia. Os belos cabelos castanhos escorriam-lhe pelas costas, e os braços seguravam o travesseiro. Por um longo minuto, ele simplesmente permaneceu imóvel, admirando-a, feliz pelo amor que compartilhavam.

Se não fosse pelo amor, ele não teria certeza de que sobreviveria ao casamento. Cenas voltavam em sua cabeça. Lisa vestida de branco, acompanhada por Brutus. O cão bebendo três taças de champanhe e atropelando senhoras. Os sushis que Brad mandara para a festa...

Ele nunca se esqueceria daquele dia.

Seu estômago começou a pedir comida, e Julian desceu para a cozinha. Ele abriu a geladeira, tirou um prato de sushi que sobrara da festa e controlou uma reação de desânimo.

Desista de lutar, ele disse a si mesmo. Se é esperto, aprenderá a amar isso, assim como aprendeu a amar cachorros que pensam que são gente.

Com um suspiro, ele levou o prato para a mesa e o colocou ao lado de um papel em branco e uma caneta. Olhou para a caneta e começou a escrever.

Como manter um casamento feliz.

 

                                                                                Day Leclaire  

 

                      

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