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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS RELIQUIAS OCULTAS DE GADYEN / Emilly Amite
AS RELIQUIAS OCULTAS DE GADYEN / Emilly Amite

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Detéria estava a menos de um palmo, rondando-me, olhando como se eu fosse um objeto exposto que ele desejava e não podia tocar. Porém, estava enganada.
? Eu sei o que estão fazendo aqui, princesa de Vegahn, tenho mais olhos nos mundos do círculo que caçadores nas três academias venox juntas! ? parei de tentar lutar, meu coração disparado quase parou ? e quanto ao que busca, já lhe adianto... recuperar o livro de Iloh, Adraph como o chamam... não vai lhe trazer de volta o que quer. ? Ele suspirou, passando os dedos por minha bochecha, meu interior estremeceu ? o livro só serve para destruir coisas... coisas ruins criadas por pessoas ruins. Ele não é realmente feito de luz, não vai trazer aqueles dois pirralhos teimosos de volta!
A risada de Detéria fez meu sangue ferver, e mesmo com toda força que fazia para me soltar, nada aconteceu. O vampiro ergueu a mão, escovando meu pescoço com o polegar. A Ira e o nojo fizeram meu corpo tremer, o que deixou o vampiro surpreso por um segundo, pois meus dedos apertaram mais a arma em meu punho, e mesmo que muito pouco, me afastei de seu toque.
No entanto, no momento seguinte, a pressão triplicou e por pouco não perdi o ar também.
? Fantástica! Você não é nada do que eu esperava! ? Ele riu, batendo palmas, voltando a caminhar ao meu redor ? desista dessa bobagem de buscar por mortos, Kiara, eu posso ajudar você a conseguir um futuro brilhante! Você é o tipo de pessoa que adoraria ter em meu pequeno grupo pessoal... você e o seu amiguinho esquentadinho. ? Ele exibiu os dentes outra vez, num sorriso quase diabólico.
? Eu nunca... ? minha voz havia retornado, coisa dele, pela expressão curiosa em seu rosto, ele queria uma resposta ? nós nunca nos uniríamos a você!
Detéria estalou a língua, cessando seu andar em volta de mim para me encarar de frente. Se não fosse a pressão que me impedia de acessar meus poderes...
? Cada detalhe dourado nessa sala é feito de aço solar, menina, estou prevenido contra o seu tipo de magia, fogo branco ou fogo do céu, como costumavam chamar antes dos humanos aprenderem a acender o próprio fogo. ? Ele olhou para as garras longas que agora brotavam nas mãos elegantes e tornou a me encarar ? sobre a proposta...
? Eu já disse que recuso! ? consegui pôr para fora, sentindo uma dor intensa em meus pulmões, como se ao cuspir as palavras, não conseguisse puxar o ar de volta.
? Não foi um pedido, princesa.
O vampiro segurou meu queixo firmemente entre as mãos e a dormência desapareceu por um instante, mas não antes dele enfiar a língua em minha boca e algo quente com o gosto de verão e cardamomo queimar minha garganta e subir, espalhando-se por trás de meus olhos, nublando meus sentidos.
? Você vai estar comigo, querendo ou não.

 


 


Capítulo 1


Kiara:


Depois da escuridão nos engolir, atravessamos por um mar negro de sombras, fumaça e estrelas. Hestia e Senrys estavam longe de mim, flutuando para outro lado, nervosismo me tomou, precisava alcançá-los, pois se perder entre as brechas dos mundos seria letal. Eu só os queria seguros dentro do vale da lua!

Ao pensar nisso, eles desapareceram numa brecha de luz, onde pude ver o grande salão e as casas do vale atrás deles. Em choque, os observei até que só restava escuridão ao meu redor. Fiquei ali... flutuando no nada por vários momentos, ou talvez horas... até um rasgo naquela mansidão escura aparecer.

Meu corpo caiu num chão duro e pedregoso, em um lugar frio, porém sem gelo. Estava numa caverna iluminada por uma lua num céu com bordas dançantes como de uma ilusão, um gramado se estendia pela outra margem do lago sob aquele céu e poucas plantas me rodeavam. A passagem das estrelas sob a montanha da morada da lua.

Levantei-me com cuidado, evitando me movimentar bruscamente por causa da rachadura em minha barriga e dos ferimentos da luta com o demônio. O congelamento ao redor de meu umbigo não estava nada bem, mas os outros ferimentos... eles haviam desaparecido quando os lacres foram rompidos. Agora tinha o acréscimo daquela escuridão... o poder das sombras que irromperam de mim, uma cortina negra que pude conjurar e que num piscar de olhos, devorou a vida das plantas que estavam ao meu redor à beira do lago. Um silêncio sobrenatural tomou conta do lugar, como se o poder que tinha despertado fosse capaz de devorar a vida de qualquer coisa. Ergui a palma da mão e dela gavinhas de escuridão se espalharam, deixando o lugar num breu de dar medo. Em seguida, pequenas luzes saíram das pontas de meus dedos e as estrelas brilharam voando para todos os lados, estrelas que eu havia criado.

Podia abrir brechas entre os mundos, isso eu sempre soube. Podia conjurar a noite, a escuridão e os raios... mas que podia devorar a vida.... A Herança de luz e sombras, a mistura do poder Yezélami que meu pai tinha, com a magia negra de minha mãe... isso... isso teria que me ajudar a matar um demônio de fogo com chamas negras!

Mas não tinha tanto tempo para pensar naquilo, me lembrei de Senrys e Hestia feridos antes de os arrastar para o Vale com aquele poder, antes de eu mesma chegar ali sem nem pensar naquele lugar, mas percebi que instantes antes, havia desejado um lugar seguro para que pudesse pensar. Aquilo era o passo na escuridão... magia Tenebris... desejar e ir até onde queria estar. Era como andar num túnel de seda negra, muito mais rápido que o teleporte ou abrir um portal.

Havia me esquecido que com minha magia completa, era muito mais fácil fazê-lo. Agradeceria a Owyn na próxima vez que o visse, por me tirar os selos e me ensinar aquilo. Foi o que salvou minha vida e de meus amigos agora.

Um passo para frente no escuro, foi o que precisei para estar dentro do Vale, nem sequer as barreiras dos bruxos impediram que eu entrasse ali por aquela brecha.

Estava diante do grande salão, Maddox saía de lá com semblante sério e ficou surpreso ao me ver, mas disparei para dentro do salão ignorando o antigo líder dos bruxos quando esse gritou meu nome. Só sentia aquele fio azul que se estendia além de mim se esticando como se estivesse prestes a partir. Virei à esquerda ao atravessar a porta do salão, correndo direto para a sala de cura sentindo o cheiro de sangue e algo que fazia meu nariz queimar. Invadi a sala como um raio partindo os céus e travei com o que vi ali.

Ellyn e Eghan seguravam Senrys em cima de uma maca, ele estava em sua forma humana e estava tremendo muito, o corpo manchado de sangue escuro, o ombro destruído certamente da queda do céu, o peito chamuscado e o rosto inchado no lado esquerdo, tanto que seu olho não abria. Dei um passo para perto, estendendo a mão para tocá-lo mas Amanda chiou.

? Ele está muito mal, não se aproxime, por favor. ? Ela o estava curando com magia, sabia que estava fazendo o melhor que podia, mas não era suficiente. Me aproximei mesmo assim e segurei a mão de Senrys, ele roçou os dedos em minha palma, então fechou a mão com força ao redor da minha e se acalmou um pouco.

? Ele vai ficar bem? ? sussurrei, Eghan estava tenso demais, olhando para o rosto de Senrys e eu reconheci aquele olhar, um igual que tinha no rosto quando tentava curar um aluno Salamandra não estava reagindo ao fogo, Eghan o olhava contando os minutos para que a morte o levasse. ? Eghan! ? Implorei. O bruxo me desviou os olhos cor de mel para mim, não havia nada além de pena.

? Um coração parou, alguns órgãos foram gravemente feridos, está com hemorragia interna e perdeu muito sangue. Kiara... ? Fechei os olhos sentindo como se alguém fechasse uma mão ao redor de meu coração e tentasse esmagá-lo. ? Precisa se despedir enquanto ele ainda está consciente. ? Aquelas palavras desceram como brasas por minha garganta e eu apertei ainda mais a mão de Senrys.

? Não vou deixar que morra. ? sussurrei puxando uma das adaga de minha mãe do cinto em minha perna. Eghan franziu o cenho ao me ver cortar a mão e cobrir a lâmina com o meu sangue. Ellyn e Amanda se entreolharam, mas Eghan... seu rosto ficou lívido e ele segurou meu punho.

? Não pode transformá-lo! Não há garantias que seu veneno funcione com um dragão Kiara!

? Não tem outra opção! ? retruquei.

? Não vai fazer isso! Se não funcionar você só vai acelerar a morte dele! Vai conseguir conviver com a culpa de ter o feito morrer mais rápido? ? O sangue gotejou no chão e Senrys gemeu. Soltei o punho do aperto de Eghan e rosnei para ele, de verdade.

? Eu não vou conseguir viver com a culpa de que podia ter tentado, podia tê-lo salvado e não fiz nada! Fiquei apenas o vendo morrer! Se não conseguir transformá-lo, pelo menos evitei que ele continuasse sofrendo!

? Se der certo, ele vai ficar preso para sempre na forma de um sereiano transformado em malvarmo, jamais voltará a ser um dragão, jamais sentirá o céu novamente... vai condená-lo a ter que se alimentar de sangue e ser um...

? Um monstro? ? Engasguei com o nó em minha garganta e sorri com amargura. Eghan se afastou um passo, talvez envergonhado pelo que ia dizer e Amanda interrompeu a cura. Ellyn também se afastou, cobrindo a boca nervosa.

Dei um passo vacilante para perto de Senrys e toquei seu rosto com tanto cuidado... mesmo assim ele se encolheu. Aquilo quase me destruiu.

? Senrys... ? Chamei, ele virou um pouco em minha direção, mas não abriu o olho. ? Me desculpe por isso... só não quero perder você também. ? Toquei seu peito, sentindo o coração que ainda lutava batendo ali, então peguei a adaga suja de sangue, fechei os olhos e a atravessei em seu coração. O grito agonizante que ele deu me fez chorar ainda mais. Puxei a adaga de seu peito e coloquei a mão cortada sobre o ferimento. Senrys estremeceu e seu coração acelerou, em seguida ele parou de se mover e começou a respirar rapidamente.

Fiquei em choque, parada observando-o, analisando os ferimentos para saber se começariam a se curar. Me atentei a cada batida em seu coração, ao cheiro da dor que ameaçava destruir minha alma. Depois de alguns minutos, Senrys ficou completamente imóvel e silencioso, seu peito mal se mexia e eu tive que manter a mão sobre ele para sentir seu coração lutar.

Ellyn e Amanda saíram da sala, deixando-me só com Eghan e Senrys, ouvi quando murmuraram com o bruxo que qualquer coisa deveria chamá-las. Eghan colocou uma cadeira ao lado da cama para mim, mas não me dei o trabalho de agradecer ou me importar com sua presença. Apoiei o queixo na borda da cama e fiquei ali, pedindo para qualquer deus que pudesse ser piedoso entre aqueles tantos que ouvíamos falar, mas que jamais mostraram qualquer clemência. Talvez devesse apenas pedir a Yinemí em meu sangue que não me abandonasse, que salvasse meu amigo.

Depois da primeira hora, Senrys alternava entre picos em que seu coração dava impressão que ia explodir e outros em que quase não tinha pulsação. Eghan entrou e saiu da sala duas vezes, na última voltou com uma caneca cheia de chocolate quente e colocou perto de onde eu estava.

? Seu sangue está fraco porque você está à beira do congelamento. Se estivesse alimentada, talvez a transformação já tivesse ocorrido.

? A transformação pode levar horas. ? retruquei.

? Mas não muda o fato que está fraca e quase virando uma pedra de gelo. Tem que se alimentar, logo. ? Eghan não estava mentindo, minha barriga já estava completamente tomada por gelo e respirar estava ficando difícil. Tomei o chocolate que ele havia trazido numa única golada, o calor da bebida diminuiu um pouco a dor do congelamento.

? Não queria dizer que você era um monstro. ? Eghan se aproximou e verificou o pulso do Dragão.

? Hmm.

? Sinto muito. Pelo que lhe disse, pelo que aconteceu...

? Hestia?

? Está bem, em casa junto com meu pai, Tainar e Corvo estão curando sua asa... vai voltar a voar.

? Ótimo. ? Ignorei Eghan novamente e deitei a cabeça ao lado de Senrys. Eghan me observou por uns instantes, não sabia como, mas mesmo com ele atrás de mim, podia vê-lo me olhando. Eghan chiou e se esquivou, noite escura começava a tomar conta da sala, e do vale lá fora. Mal passava das duas da tarde.

? Não sei como está fazendo isso, mas tente parar, por favor. ? E tão depressa como surgiu a noite desapareceu. Eghan então deixou a sala assustado e eu fiquei ali acariciando a mão fria de meu dragão, torcendo para que Senrys mudasse logo. Não aceitava menos que isso.

? Amo você, sabia? ? Cochichei apenas para ele ? A melhor coisa que aconteceu depois de tudo aquilo, foi docinho ter o entregado a mim para que o criasse. Não posso dizer que é como um filho pra mim, sabe? Você é muito velho pra eu te chamar assim, mas é meu irmãozinho menor de uma mãe desnaturada que tive que tomar conta! ? tentei sorrir, ainda apertando suas mãos.

Docinho queria substituir o carinho do irmão que eu era obrigada a manter afastado, e agora... Senrys estava prestes a me deixar também. Ele era mais que um amigo, nunca saiu de meu lado. E se eu não conseguisse ajudá-lo... jamais conseguiria cumprir a promessa a Fares.


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Três horas se passaram do mesmo modo. Senrys entre a vida e a morte e eu em orações silenciosas, até que um som diferente chamou minha atenção. Uma batida como gelo se chocando com gelo. Duas. Três. Prendi o ar e olhei para Senrys. A ferida do ombro havia desaparecido, as do rosto também. Seus cabelos antes azulados, estavam ficando pálidos desde a raiz para as pontas, a pele azulada também começou a mudar de cor, ficar num tom branco, destacando ainda mais as marcas safira que não desapareceram de seu corpo, garras de vitrino surgiram onde haviam unhas longas e seu coração voltou a bater normalmente, mas com um som diferente agora.

Um coração de gelo.

? Sen... ? sorri apertando-lhe a mão. Ele abriu os olhos, a cor estava errada, não manteve o azul pálido, estavam vermelhos como sangue e raivosos também. Senrys ergueu o corpo rápido demais e levou a mão a garganta. Por um momento, ele não parecia me reconhecer, mas logo em seguida saiu da cama e me puxou para os braços, esmagando-me num abraço e escondendo o rosto em meu pescoço. Me senti aliviada, até sentir o hálito frio percorrer minha pele e suas presas cravarem em mim com tanta força que meu corpo amoleceu. Tentei empurrá-lo, me soltar, mas ele não percebia ainda o risco, que eu não tinha calor suficiente para dividir, ou não se importava pelo que eu havia feito com ele.

Ondas de dor se espalharam por meu corpo, fazendo com que eu não conseguisse mais evitar gritar, mas ele estava abafando o som com seu corpo. O frio começou a se espalhar, a ponto de sentir minhas costas racharem e soltar lascas de gelo.

? Senrys... por favor...

? SOLTE ELA AGORA! ? Eghan gritou ao entrar na sala, lançando uma onda de magia negra em Senrys, só assim ele me soltou, deixando-me cair no chão.

? O que... o que fizeram comigo! ? Senrys gritou limpando o meu sangue da boca.

? Desculpe...

? Não consigo mudar! ? Ele estava apavorado, olhando as garras e a cor da pele. ? Kiara! O que fez comigo?

Abri a boca para lhe responder, mas uma onda de choque passou pelo meu corpo e o frio parou, deixando só uma sensação de tranquilidade, de que estava tudo bem. Não estava mais conseguindo mover o corpo e mesmo com o poder que havia despertado, não podia me impedir de morrer ou mudar quem eu era.

? Ela está morrendo! ? Eghan tentou se aproximar, mas quando pisou no gelo, o calçado que vestia esfarelou e ele teve que pular para longe para não perder o pé. ? Alguém! Chame ajuda! Gwen! ? O bruxo berrou, empurrando Senrys assustado contra a parede, afastando-se do meu gelo.

Fechei os olhos e aproveitei aqueles instantes de calma antes do que sabia que viria a seguir...

Porém alguém entrou na sala, com pele brilhante marrom dourada e cabelos de fogo. Ele me tirou do chão e um portal dourado e laranja se abriu atrás de nós, mostrando do outro lado a fortaleza de Lastar. Estava sendo levada para lá, mas mesmo assim olhei por cima do ombro de Hasan e vi Bianca e Mavis levarem Senrys para fora da sala de cura. Ele me olhava por cima do ombro, mas eu não conseguia entender aquele olhar, não sabia se era raiva, ou mágoa... meu braço pesava como chumbo quando tentei levantar a mão e impedir que ele fosse levado, que eu fosse embora também. Lágrimas frias escorriam por meu rosto e chiavam ao pingar no fogo incandescente daquele portal. Um gemido baixo escapou de meus lábios, queria dizer que sentia muito, mas não conseguia.

? Ele precisa de cuidados especiais, jamais haviam transformado um dragão em malvarmo e ele ainda é jovem, precisa de treinamento para controlar os impulsos ou vai ferir as pessoas. Tenho certeza de que Connal e as bruxas vão cuidar dele, talvez fazer com que ele consiga sua transformação de volta. ? A voz de Hasan estava distorcida, longe de mim, mas sentia o calor intenso ao meu redor, o adocicado aroma de cardamomo e almíscar de sua pele.

Quando ele pisou na neve de Lastar, a terra tremeu e o gelo estalou, como se estivesse respondendo aos gritos do frio de meu sangue.

? Meu pai me contou sobre um comentário seu sobre eles... Lembra o que disse, sobre Áries e ele serem a perdição um do outro? ? Hasan sussurrou, sentando-se no chão congelado de pernas cruzadas, aninhando-me em seus braços. O calor que passava dele para mim fazia aquelas rachaduras em meu corpo doerem menos. Sem esperar uma resposta que não viria, pois não conseguia me mover para assentir ou falar, Hasan continuou ? Salamandras, além dos Solaris, são os únicos que conseguem se aproximar de malvarmos durante o congelamento e evitar que ele aconteça.

Ele me encarou por um breve momento, antes de voltar os olhos para a ferida da mordida de Senrys em meu pescoço. Hasan soltou um rosnado de irritação e seu calor se intensificou. Então mordeu o próprio pulso, fazendo pequenos furos ali, quando o sangue escuro verteu, ele o trouxe em direção aos meus lábios. Se não estivesse prestes a me desmanchar, eu teria um ataque com o gesto. ? Por favor, Kiara... você não tem muito tempo! ? A urgência em sua voz era tão verdadeira que estava refletida em seus olhos agora dourados. Suas marcas estavam acesas, e ele usava magia como se de alguma maneira pudesse me curar com ela. Hasan aproximou mais o pulso pingando sangue de minha boca, o cheiro dele fez meu corpo estremecer e sequer tentei resistir aquilo, aquele chamado urgente em minha alma. Fechei os lábios ao redor das pequenas feridas e apreciei o momento mais incrível da minha vida, seria perfeito se eu não estivesse prestes a virar uma estátua congelada.

Hasan me alimentou, até que cada uma das rachaduras em meu corpo desaparecesse, até que aquele gelo ao nosso redor fosse apenas do lugar e não meu. Meu coração estava prestes a sair pela boca quando tirei meus lábios de seu pulso e passei a língua ali, fazendo o sangue coagular e fechando os pequenos furos de suas presas. Hasan suspirou profundamente e baixou a mão para minha cintura, mas não me encarou.

Ainda estava nos braços dele. Tinha certeza que em alguns instantes aquilo acabaria, e que ele voltaria a ser uma pedra de gelo comigo... afinal, estava apenas devolvendo um favor... um favor a uma mulher que manteve seu filho vivo. Não sabia se ele cumpriria o que pedi antes da prova V9.

Porém Hasan não me soltou. Os olhos agora negros e brilhantes se voltaram para o meu pescoço, para o ponto ainda dolorido, mas curado, onde Senrys me mordera. Hasan devagar tocou o ponto com o polegar, acariciando de leve minha pele. Fechei os olhos apreciando a sensação, meu coração estava disparado contra as costelas e eu me continha para não começar a tremer. Hasan retirou a mão, ele se moveu inquieto, certamente prestes a me tirar de seu colo... pelo menos tinha durado mais do que eu podia sonhar. E estava feliz com aquele pingo de alegria em meio ao deserto congelado que eu começava a me tornar por dentro. Hasan estava com os olhos fechados quando abri os meus, minha garganta apertou, sabia que quando ele os abrisse, nada daquele calor estaria lá.

Abri a boca para agradecer antes que ele me afastasse, mas antes que eu dissesse qualquer coisa, Hasan segurou meu queixo e me beijou. Não deixei que a surpresa me travasse, deixei que ele deslizasse a língua para dentro de minha boca enrolando a minha língua com a sua, deixando que eu provasse o sabor adocicado e picante de seus lábios. Seus dedos se fecharam em meu rosto com tamanho cuidado que meu peito doeu. Aquilo não era real! Eu tinha morrido, só podia ser isso!

Hasan se afastou após quebrar aquele beijo que quase arrancou minha lucidez e fechou os olhos. Certo. Essa era a hora de eu ser colocada para fora do colo e ele dizer que aquilo estava errado.

? Bom, aparentemente estão todos bem! ? Áries riu atrás de mim, fazendo minha pele se arrepiar. ? Adoro flagrar essas coisas! Posso usar em chantagens futuras!

? Mãe... ? Hasan me ajudou a ficar de pé. Eu devia estar sonhando, morta, qualquer coisa do tipo, pois ele em nenhum momento tentou me afastar, apenas manteve o braço ao redor de minha cintura.

Estava certo, é claro! Se ele me soltasse eu cairia pelo choque.

? Vamos para dentro. ? Áries ordenou, dando-nos as costas e seguindo para as portas espessas de gelo da fortaleza.

Hasan manteve o braço ao meu redor conforme seguimos os poucos metros pela estrada até entrarmos no castelo branco de Lastar e descer as escadas em espiral. Do lado de fora, só víamos o que um dia foram as torres, pois o castelo havia a muito sido enterrado pelo gelo e serviu de prisão para um mago muito antes de minha mãe nascer.

O salamandra me dava olhares avaliativos enquanto caminhávamos atrás da figura diminuta de Áries... era difícil acreditar que ela era sua mãe, mas não podia dizer muito sobre a estatura da malvarmo baixinha, pois tínhamos a mesma altura, mal passávamos do peito de Hasan.

Meu rosto começou a queimar de repente e meu coração acelerou... Não tinha certeza se era o momento para surtar por estar ali com ele... E essa possibilidade caiu em mim como uma pedra afundando num lago escuro. Ele só havia feito aquilo por eu ter quase morrido? Como um bálsamo para acalentar um coração que quase congelara.

? Por aqui ? Áries abriu uma porta que dava para uma sala não muito grande, onde uma lareira acesa perto dos sofás me fez voltar ao que havia acontecido minutos atrás, travei no meio da sala e me virei, sem saber ao certo o que pensar ou como reagir. Informação de mais, perguntas de mais ao mesmo tempo...

? Calma... se acalme, Kiara! ? Hasan disse baixo, os olhos dourados do salamandra estavam nas sombras pontilhadas de luz que se espalhavam sob meus pés, deixando o chão da sala como um céu.

? Hestia! Ela...

? Está bem, está segura no Vale da Lua. ? Hasan segurou meus braços que tremiam ? Senrys está sendo cuidado pelos dragões. Você está pior do que eles, acredite em mim.

? Agora... nos conte o que aconteceu? ? Áries sentou-se no sofá mais próximo ao fogo e deu tapinhas ao seu lado para que eu me sentasse também. ? Filho, pegue um chocolate quente para mim, por favor?

Era estranho ver aquilo, aquele olhar cheio de ternura no rosto de Áries. Ela era uma criatura raivosa e que parecia querer morder todos, o tempo todo, não estava acostumada a vê-la sendo gentil. Mas era seu filho e... também, qualquer um queria ser gentil com Hasan.

Ele saiu da sala no instante seguinte e eu me sentei, não me sentia desconfortável perto do fogo por ter acabado de me alimentar... Pelos deuses! Ele tinha me alimentado.

? Se você tivesse sangue vermelho, seu rosto estaria incandescente. ? Áries deu um risinho. A malvarmo puxou um cobertor felpudo, mas pequeno e se enrolou com ele. De novo, aquilo era inusitado.

? Por que não foi à prova? ? desviei de sua observação sobre o acúmulo de sangue em meu rosto.

? Estou grávida, descobri semana passada, devo estar com uns três meses... então não era seguro para mim. ? Direta, sem enrolar, e meu queixo caiu, a encarei sem acreditar naquilo. Uma cria de Malvarmo e Salamandra era raríssima quando a fêmea era Malvarmo. ? Torço para que seja uma menina dessa vez. Pena que vou ter que esperar dois anos para descobrir!

? Dois anos? ? franzi o cenho, o rosto de Áries ficou pálido e ela escondeu um meio sorriso e moveu as mãos como se dispensasse a pergunta.

? Ignore isso. ? Ela respirou fundo e esticou as costas contra o bolinho de almofadas atrás de si. ? Quais são suas intenções com meu filho?

De novo, devia estar de boca aberta.

? Eu...

? Sirius me contou o que você disse na cabana, aí agora eu peguei no flagra e você estava com cara de quem acabou de achar o pote de ouro do fim do arco-íris, se negar eu vou retalhar você em tiras e dar para minha mantícora de estimação! ? Ela rosnou. Ali estava a Áries que eu conhecia.

? Admitir vai fazer você me matar? ? a pergunta foi sincera. Áries gargalhou e meneou a cabeça negativamente, olhando para a porta, vigiando para que Hasan não ouvisse aquilo.

? Porque eu te mataria? Que mãe não deseja alguém que ame o filho e lhe dê alguma felicidade? ? Ela estalou a língua ? pare de fazer essa cara de espanto! Eu não sou um monstro!

? Desculpe!

Hasan entrou na sala com uma pequena bandeja nas mãos, ofereceu uma caneca com chocolate quente e um pedaço de bolo para a mãe, e estendeu uma xícara grande de capuccino com chantily para mim. Aceitei tentando manter as mãos firmes e murmurei um agradecimento.

Eu ia mesmo chorar e acordar.

? Pode falar o que aconteceu agora? ? Ele perguntou, sentando-se a menos de um palmo de mim.

Um frio escorregou por minha coluna e eu o encarei por alguns instantes. Áries me observava quieta agora, o que só aumentou aquela sensação estranha de que algo não estava bem.

? Eu... ? fechei os olhos apertados ? O demônio de fogo... ele apareceu, nos atacou enquanto estávamos no ar. Senrys foi derrubado, ele tentou amortecer a nossa queda... ? Minha cabeça começou a doer. Parecia que eu estava vendo a cena de fora, por olhos embaçados. ? Ele estava morrendo... o demônio atacou e eu quebrei os selos e usei magia tenebris para escapar.

Áries xingou um palavrão imundo e recebeu um olhar feio de Hasan.

? Passo no vazio? ? Áries perguntou de olhos arregalados. Assenti devagar, bebericando meu café ? Como fez isso?

? O rei de Quinto Céu me ensinou... ele tirou os lacres e me ensinou algumas coisas de magia quando estive lá.

? Interessante, mas não é relevante agora! ? Hasan se aproximou um pouco ? O demônio que está falando é a mesma criatura que supostamente atacou o castelo?

? Foi a mesma criatura! ? rosnei ? Mas... como aquilo nos achou? ? por um instante, de olhos fechados, senti o calor sufocante daquelas chamas negras... só então me dei conta que ainda estava suja do sangue de Senrys e estremeci, apertando os braços contra o corpo.

Hasan estendeu a mão, relutante e afagou minhas costas.

? Vou...

? KIARA!

Ele não concluiu a frase, pois Fares escancarou as portas e entrou correndo na sala, atirando-se em cima de mim, apertando-me com tanta força que perdi o ar. Por sorte Hasan tirou a xícara de minha mão antes de Fares aterrissar.

? Kiara... Kiara você está bem! ? Ele choramingou, cravando os dedos em minhas costas, os cachos de seus cabelos fizeram cócegas em meu rosto e algumas lágrimas quentes pingaram em mim. ? Eu pensei que você... achei que ficaria sem você também!

Sirius estava ali também, ele se aproximou de Áries e lhe acariciou o ombro, mas o olhar era preocupado.

? Foi o demônio azul... não foi? ? Fares perguntou, se acalmando um pouco, ele sentou no espaço que Hasan havia se afastado para lhe dar lugar.

? Sim.

? Sabe nos dizer onde aconteceu o ataque? Precisamos ir até lá verificar, Kiara. ? Sirius questionou, palavras cuidadosas enquanto observava as reações de meu irmão. Um nó se formou em minha garganta. Ele estava com aquele olhar perdido de novo.

? Uns dez quilômetros de Hima a leste, estava bem perto da barreira de Vale do sol.

Sirius assentiu e lançou um olhar para Hasan antes de se inclinar e beijar o rosto de Áries.

? Encontro você lá. ? Hasan avisou, Sirius quase imediatamente desapareceu numa coluna de luz, deixando-nos num silêncio perturbador.

? Se lembra de mais algo que ajude? ? Hasan perguntou, levantando-se do sofá, os olhos verdes de Fares se fixaram nos meus, meu irmão, enrolando os dedos na túnica azul do uniforme da guarda de Vegahn que ainda vestia, cutucou-me com o cotovelo.

? Fale pra ele do homem que controla a besta de fogo! ? Fares pediu baixo, quase num sussurro.

? Que homem? ? perguntei, confusa. A expressão torturada e o arquejo de Fares foram como um punho se fechando em meu coração.

? O homem que estala os dedos pra besta! Ele assovia... canta e o demônio ataca! Você o encontrou, não é? Ele anda com aquela besta! Foi ele que gritou com nossa mãe no salão antes de Docinho voar! Ele disse que ia... ? Fares gemeu, colocando as mãos na cabeça ? Ele gritou com ela, falou do fogo roubado, que o papai queria o fogo roubado para que eles dois pegassem os mundos para eles!

Encarei Áries e Hasan. Ambos com expressões carregadas de pena.

? Eu não o vi, Fares! Mas acredito em você! ? O confortei, apertando suas mãos trêmulas. Ele voltou aqueles olhos como esmeraldas, cheios de lágrimas para mim.

? Tem que acreditar! Os pedaços... eu a via colocando os pedaços de papel! Eu ví! Ela os colocou, o primeiro na chave... e os outros onze em frascos de vitrino e os levou embora... ? Ele balbuciou, contando nos dedos ? Sim, onze, onze fragmentos... mas o da chave era o mais importante!

? Fares... acalme...

? ESTOU CALMO! ? Fares gritou com Hasan, os dedos em meu braço se apertaram com mais força, ele suspirou e disse mais suavemente ? estou calmo! Estou bem, não sou louco! Eu tenho que repetir... a ordem sempre, ou esqueço quando a noite cai! EU não lembro! ? Ele se encolheu, colocando as mãos na cabeça.

Afaguei seus braços, desejando levá-lo de volta a Retiro das Folhas, o vendo calmo, com uma xícara de chá nas mãos e um sorriso suave. Será que estavam certos? Por fim ele estaria apenas louco e tudo aquilo seria uma busca em vão?

Não queria acreditar naquilo.

? Preciso ir até Vegahn encontrar meu pai. ? Hasan tocou em meu ombro, mas ele observava Fares com cautela. Talvez com receio de deixa-lo perto da mãe grávida, medo de que ele surtasse.

?Vegahn! ? Fares repetiu ? Casa... a chave, ela jogou a chave no gelo! Ela quebrou o chão e atirou a chave com o destruidor de mentes! A chave com o fragmento e a chave da caixa! ? Fares se levantou e começou a dar voltas na sala, Hasan fez menção de se aproximar dele...

Mas destruidor de mentes, era o nome do machado.

Quase parei de respirar.

Levei a mão ao colar escondido sob minha roupa e o puxei, exibindo-o à luz da lareira. Como se o objeto tivesse voz, Fares virou os olhos para ele e soluçou, veio em minha direção e sem dizer uma única palavra, sentou-se outra vez, segurando o medalhão nas mãos.

Áries que até agora se mantivera quieta observando, inclinou-se na poltrona para observar a repentina mudança de meu irmão. Até mesmo seu olhar havia mudado, ele estava sério, lúcido.

? Isso é a chave? ? Ela perguntou, meu irmão assentiu, girando a peça nas mãos com cuidado.

? É transparente, Fares, não há nada dentro. ? falei baixinho, com medo de que ele gritasse outra vez.

? Um truque de superfícies espelhadas ? disse ele simplesmente olhando atentamente a carreira de flores negras no medalhão de vitrino. Fares mordeu um dedo, perfurando a pele com um canino, espalhou o sangue rubro na ponta dos outros dedos, e então, sem que entendêssemos o porquê, tocou em cinco flores diferentes. Agora estávamos todos inclinados sobre ele, observando ansiosos.

A princípio, nada aconteceu.

Mas um segundo depois, um click metálico e uma linha apareceu circulando o medalhão. Fares, sorrindo girou as duas metades em sentidos opostos e o abriu, tirando de dentro um quadradinho de papel amarelado dobrado.

? Pelos deuses... ? Hasan murmurou, desabando sobre o sofá.

Meu irmão abriu a pequena carta e a ergueu em minha direção. Não sabia se conseguiria lê-la, mal sabia se não acordaria a qualquer momento, pronta para a aula de segunda.

Obriguei meus dedos trêmulos a se fecharem ao redor do papel, ele tinha sensação viva e estranha... parecia morno, mas não tinha nada a ver com o toque anterior de Fares. Abri receosa, para encontrar a caligrafia bonita de meu pai com os seguintes dizeres:


“Sentimos muito por tudo isso, nós sabíamos o quão caro poderia ser, mas ao invés de torcermos que nada de mal acontecesse, nós deixamos um escudo... e talvez uma arma, caso assim o queiram. Apenas tenham cuidado, pois nem tudo que vem da luz é bom, assim como nem toda a escuridão é ruim.


No lugar onde se descobre quais serão reis, as esferas se acendem ao interagir com a própria descendência, sob o descanso de um símbolo monarca, o início da busca espera.


? Uma charada... ? sussurrei após ler alto ? No lugar onde se descobre quais serão reis... o início da busca?

? O templo de Vilehas, talvez. Onde as esferas Reagis dos reis de Vegahn são guardadas. ? Hasan ponderou. O encarei espantada.

? Está fácil assim?

? Pra alguém com a minha idade e que conhece todas as tradições de coroação dos reis dos Doze... um pouco. ? Ele deu um sorriso torto que esquentou meu coração mais um pouquinho. Inteligente, lindo e quente...

? Não babe no meu sofá! ? Áries disse em tom de brincadeira, fazendo meu rosto queimar novamente. Mas o que me deixou mais aliviada... era a lucidez no rosto de Fares. Dobrei o bilhete outra vez, o colocando dentro do pingente.

? O que fazer agora? ? Fares questionou.

? Preciso ir encontrar com meu pai, vamos avaliar a área onde o ataque ocorreu. ? Hasan nos deu as costas com um movimento sutil dos dedos, um portal se abriu diante dele.

? Vou junto, assim posso ir direto à Vilehas investigar isso aqui ? bati com uma unha sobre o colar.

? Não! ? Hasan me impediu de passar no portal quando me aproximei. ? Você deveria ficar com seu irmão aqui... só mais um pouco, até que saibamos se está tudo bem por lá. Ok?

Estreitei os olhos e o encarei feio.

? Você não manda em mim. ? murmurei.

? Não foi uma ordem, foi uma sugestão. E não creio que queira ir até lá, assumindo um risco desnecessário e deixar seu irmão nervoso novamente, não é? ? mordi o lábio com força, usar Fares como pretexto para me obrigar a ficar era um golpe baixo.

O brilho um tanto maldoso no olhar de Hasan disse muito sobre ele saber daquela fraqueza. Olhei para Fares sentado perto de Áries, ele realmente estava nos observando tenso, preferia evitar que ele tivesse outro ataque de nervos... então sentei-me ao seu lado e observei Hasan desaparecer através do portal dourado como labaredas de fogo de ouro. Áries soltou um assovio baixo e suspirou, esticando-se e largando sua colcha felpudinha no sofá, a malvarmo levantou-se e estendeu as mãos.

? Consegue nos levar até Retiro das Folhas? ? Ela pediu ? Fares vai estar mais confortável lá do que aqui e...

? Você quer estar mais perto dos dois e não consegue usar magia estando grávida, e quer me usar para pegar carona. ? completei. Áries exibiu as presas num sorriso travesso, mas ao mesmo tempo de quem foi pega no flagra.

? Consegue usar magia? ? Fares arregalou os olhos para mim, quando tomei seu braço e o dela. Assenti devagar, esperando que meu irmão se chateasse por aquilo, mas ele apenas sorriu quando a fenda na escuridão se abriu para nós.

Três passos entre aqueles corredores de sombras e o rasgo foi reaberto, num instante, os imensos portões trabalhados em entalhes com formato de diversas flores e plantas de Retiro das Folhas apareceu diante de nós.

Fares observou com fascínio as marcas de Gadyen acesas em meu braço, subindo em espiral até meu ombro, terminando com uma pequena flor negra em minha nuca. As marcas que Susano e Nikella criaram para nomear os novos guardiões.

? Posso te ensinar depois, não que eu saiba muito... mas... o passo no vazio pelo menos ? cochichei só para ele enquanto caminhávamos alguns passos atrás de Áries, ela andava pela principal via de Retiro das Folhas em direção ao castelo como se fosse a dona do local. Não era pra menos, era neta de Caalin Arbarus, o mais poderoso rei de Vegahn, antes de meus pais. As pessoas quando a viam, se afastavam um passo e colocavam-se de joelhos. Mesmo décadas depois, e ainda sussurravam sobre o “sol de gelo” quando ela chegava em qualquer lugar. Eles a respeitavam acima até mesmo do rei.

? Eu sei usar magia. ? Fares soltou de repente, o encarei surpresa.

? Quem?

? Neruo me treina... em magia. ? o rosto de Fares ficou vermelho e ele se encolheu um pouco ? Só não posso usar como você.

? Em minha defesa, eu quebrei os selos pra salvar Hestia e Senrys. Você sabe muito bem que não tenho permissão. ? resmunguei.

Hestia! Queria saber como ela estava, precisava vê-la e pedir desculpas por aquela situação.

Mas me lembrar de que em breve os selos seriam refeitos, e eu provavelmente ganharia guardas até quando fosse ao banheiro... minha palma coçou de vontade de ir até Vilehas enquanto podia, sem ser controlada.

? Vai... enquanto ela está distraída demais com a atenção de Zion... mas por favor, Kiara! Tome cuidado! ? Fares murmurou, Áries entrou no castelo acompanhada da chefe da guarda, nos deu um olhar por cima do ombro e vendo que ainda estávamos atrás dela, mesmo que alguns passos, seguiu em frente. ? Eles queriam que nós encontrássemos isso. Eu... não posso ir com você, mas vou te esperar aqui quando achar!

Fares piscou para mim e sorriu, então seguiu para dentro do castelo. Eu, abri imediatamente outro caminho estreito atrás de mim para que não chamasse tanta atenção, sem pensar duas vezes, me atirei no vazio.


Capítulo 2

 

Passava das três da tarde quando pisei em Vilehas.

Uma cadeia de montanhas congeladas circulando um castelo de pedras Alphos com dez torres escondidas sob tanta neve que mais pareciam montinhos ao redor da construção. Os sóis mal aqueciam aquele lugar, seus raios passando por entre as brechas das montanhas de forma tão minguada que mal iluminava o lugar.

? Vai desgrudar de mim agora? ? sussurrei, minha respiração se condensou diante de meu rosto, mostrando o quão bem alimentada estava, meu rosto aqueceu. Não esqueceria tão cedo daquilo, talvez nunca.

O gosto de Hasan.

? Como me percebeu? ? Lohan tomou forma, soltando-se de minha sombra para assumir forma corpórea ao meu lado.

? Porque você não tem vergonha na cara! ? rosnei, encarando-o feio. ? estava sentindo você...

O tenebris mordeu os lábios e sorriu.

? Achei que estava sendo sorrateiro, desculpe.

? Quando foi que se agarrou a mim? ?questionei, descendo uma pequena colina com neve endurecida. O templo estava logo abaixo, no centro da cadeia de montanhas.

? Pouco depois do mestre te buscar no vale. ? Ele pigarreou um pouco sem graça ? fiquei de encontrar vocês em Hima, mas cheguei tarde. Vi apenas vestígios de uma fenda se fechando e segui o rastro até lá.

?Então ouviu tudo. ? não foi uma pergunta.

? E vi também. ? Lohan me olhou de lado, com o cenho franzido e fazendo um bico ? Ele não merecia aquele beijo. Não depois da prova.

? Ele estava me testando!

? Não precisava de toda aquela ignorância.

? Eu teria me sentido indigna se tivesse passado por que eles deixaram! ? resmunguei. Lohan bufou irritado.

? O que acha que vamos achar aí? ? ele desviou o assunto, mas se aproximou mais de mim, passando um braço ao redor do meu.

? O início da busca... ? murmurei ? tenho a impressão de que não é um unicórnio do trovão.

Lohan revirou os olhos e beliscou minha cintura.

Estava agradecida por ele ir comigo e por estar a par daquela conversa na sala de Áries, caso eu não conseguisse entrar, era só pedir a ele para se infiltrar lá dentro.

? Seu irmão é mais... feminino que você! ? pisquei incrédula para aquelas palavras que vieram depois de um longo momento em silêncio cujo único som era de nossas botas esmagando a neve endurecida, a surpresa me fez distrair da trilha a ponto de escorregar no gelo e quase cair.

? Está tentando me matar? ? Lohan riu.

? Me incomodou essa quietude toda.

Ao chegarmos diante das portas de vitrino azulado do templo, foi que me dei conta de quão grande era o lugar. As portas eram trabalhadas em vitrino e letras de prata, algo escrito no antigo idioma do gelo, uma oração talvez, algo que eu não conseguia ler mesmo com minha magia correndo solta.

Não haviam guardas ali, não precisava. Ninguém invadia Vilehas pois ali nada valia a pena ser roubado. Era o que diziam as histórias... e eu duvidava de todas elas, apesar de que aquela altura, tudo que poderia ter de valor além das peças sagradas já devia ter sido levado.

Envolvi os puxadores gelados de prata pura com as mãos e empurrei as portas, ambas se abriram sem nenhum som, deixando um ar morno e estagnado, perfumado com aroma de cravo e anis encher nossos pulmões. Ao passarmos pelas portas, tive a sensação de passar por uma teia de aranha e meus olhos arderam, Lohan chiou atrás de mim.

? Não sou muito fã de lugares sagrados. ? ele cochichou, enquanto observávamos cada detalhe que as chamas verdes tremeluzindo em candelabros presos a cada coluna do imenso saguão de gelo nos deixava ver. Vinte e quatro colunas de gelo guiavam quem quer que entrasse ali até um grande altar no fim do salão. A pedra cerimonial em frente a quatro portas de vitrino estava lascada e manchada. Não precisava ser muito esperto para perceber que não ofertavam frutas e plantas ali. Nossa fonte de calor era sangue...

Pelo arquejo do tenebris, ele teve a mesma ideia que a minha.

? Estou torcendo para que algumas tradições tenham sido abandonadas. ? disse com a voz levemente distorcida... mais sombria

? não acredito que...

? O templo de Vilehas não é um lugar comum para qualquer um sair entrando! ? uma voz trovejou atrás de nós. Para meu crédito, não pulei sobre Lohan com o susto. O sacerdote que surgiu de uma das portas por trás das pilastras, que certamente levava a uma das câmaras subterrâneas observava Lohan, que só naquele momento tinha percebido estar envolto em fumaça e sombras, com os olhos totalmente negros observando o sacerdote.

? Não quisemos desrespeitar o local sagrado, sacerdote. ? falei mantendo a voz firme. O malvarmo esguio de olhos negros e cabelos e barba trançados me encarou. Surpresa preencheu aquele olhar e ele se curvou, fazendo uma mesura.

? Peço perdão, sua alteza... não a reconheci imediatamente. ? Ele se aproximou, o manto azul e prateado farfalhou quando ele ficou a um passo de mim e pegou minha mão direita, a levando em seguida aos lábios frios. Um tremor passou por meu corpo e encarei Lohan, para saber se ele tinha percebido o mesmo, mas o tenebris me encarava com o cenho franzido. Antes que eu perguntasse o que havia de errado com ele, o sacerdote chamou minha atenção;

? Peço perdão por encontrar o templo vazio, alteza, está na hora das orações do sol-pôr.

? Eu entendo...

? Claris, alteza. ? ele sorriu, mantendo os olhos baixos.

? Claris. ? repeti ? não sei se é possível... mas gostaria de ver a sala onde as reagis são mantidas.

O sacerdote abriu um sorriso e assentiu, estendendo a mão para que o acompanhássemos. Lohan veio atrás de mim, avaliando-me com cuidado, como se eu pudesse saltar sobre ele e morde-lo.

? Desde a criação de Vegahn, quando o primeiro rei de nossa raça subiu ao trono, foi decidido que sua descendência cujo sangue fizesse a esfera brilhar em rubro, deveria herdar o trono do mundo de gelo... ? Eu já conhecia a história, mas achei que soaria grosseira se cortasse sua explicação.

O sacerdote nos guiou por uma porta atrás do altar, a porta mais larga, cujo trabalho em prata no vitrino era uma espada atravessando uma das quatro montanhas feitas com flocos de neve. A montanha com a espada representava Blizzion, onde o poder era mantido, de onde Vegahn era controlado. As outras três representavam os outros continentes.

Paramos quando Claris ergueu uma tocha até um pequeno trilho metálico ao lado da porta um pouco acima de sua cabeça, o fogo se espalhou por todo o cômodo circulando aqueles trilhos metálicos até que toda a sala estivesse brilhando com fogo verde.

Haviam apenas vinte esferas em uma espécie de estante escavada no gelo. Todas elas estavam dispostas sobre pequenas caixas de pedra branca e almofadinhas aveludadas de um azul tão profundo que quase parecia ser preto. Me aproximei para observá-las melhor, dentro das esferas existiam pequenas mechas de cabelo trançado e nomes feitos de ouro.

Agora precisava saber sob qual delas estava o objetivo mencionado no bilhete. Se bem que... uma delas em particular tinha uma pulsação. Algo intenso que latejava em meu sangue como se me chamasse na direção dela. Lohan estava em silencio, parado a alguns passos de mim no canto da sala.

? Essa talvez lhe interesse mais! ? o sacerdote falou alegremente, andando até o meio da estante e tocando uma das esferas.

Franzi o cenho ao me aproximar e ler o nome nela, talvez... talvez meu pai tenha dito ao sacerdote que se um dia fossemos ali, ele deveria nos mostrar aquela esfera.

Caalin Arbarus.

O reagis do antigo rei do gelo, o ex marido de minha mãe. A esfera com o nome dela ainda estava ao lado da dele, repousando sobre sua almofadinha. Ao reparar na caixinha de pedra cuja a reagis com o nome de minha mãe estava, notei que a pedra era lisa, já a do lado com o nome do rei, a pedra tinha fendas, ranhuras entalhadas com o padrão das flores no colar.

Sem enrolar, puxei o pingente de dentro da blusa que eu nem me dei o trabalho de trocar, ainda manchada com o sangue de Senrys e Hestia, e o girei na mão até estar na posição das ranhuras da caixa. Ao encaixá-lo, pude ouvir um click metálico e a esfera sobre a caixa tremeu, deixando uma fenda na pedra mais aberta do que estava um segundo antes. Uma tampa.

? Tem algo aqui dentro. ? murmurei com a voz trêmula, Lohan que continuava quieto atrás de mim avaliando o sacerdote, me encarou e assentiu para que eu fosse em frente. Só aquilo já deveria servir para provar a sanidade de Fares. Ergui as mãos para tirar a esfera azulada de cima da almofadinha e da caixa, mas quando toquei o vitrino frio da reagis... o metal ficou morno e foi tingido de vermelho, como se o sangue dentro dele tivesse enfim despertado.

A esfera caiu de minhas mãos e dei um passo para trás, olhando assustada o vermelho rodopiar dentro dela, até que o sacerdote se abaixou para pegá-la e o vermelho tornou-se gelo azulado novamente.

? Porque a reagis do rei do gelo... se manifestou? ? quis saber, sentindo minha garganta se apertar com o pânico que tomou conta de mim.

? Oras, alteza! Você é filha do rei do gelo! A rainha por direito de Vegahn! ? o sorriso do sacerdote foi tenso, contido. Meus olhos, porém, não saíam da esfera em suas mãos. ? Minha senhora... não sabia?

? Poderia nos dar um momento? ? Lohan pediu a Claris quando viu que eu não conseguia responder, o sacerdote parecia inclinado a recusar o pedido, mas o rosnado do tenebris o fez sair da sala quase aos pulos.

? Kiara? ? Lohan pousou as mãos em meus ombros.

? Isso... é possível? ? minha voz não passou de um sussurro.

? Eu não sei. Mas sei que seu irmão conseguiu abrir o pingente e lhe entregou o bilhete. Parou pra pensar no motivo do sangue dele abrir o pingente e não o seu?

Lohan passou por mim e abriu a caixa, de dentro tirou uma carta selada e uma chave antiga, ele avaliou os objetos antes de os colocar em minha mão.

Meus olhos, porém, não saíram da reagis. Aquilo tinha que ser um engano. Me aproximei das outras esferas, tocando-as uma por uma, esperando que fizessem qualquer coisa... mas nenhuma delas além das de minha mãe e do rei Caalin reagiram a mim.

? Eu não entendo! Ele morreu na guerra! Susano... Susano é meu pai!

“? Zion disse que Ira só gosta de ficar comigo aqui no castelo. Ele fica o tempo todo me cheirando e se esfregando em mim... as vezes ele chora. ? murmurei coçando a cabeça do glácio. ? Ouvi ela dizendo esses dias que ele sente o cheiro do rei em mim... mas por que se você está sempre perto? Ela também disse que eu tenho seus olhos... mas eu já olhei no espelho! Não são parecidos nada! ? resmunguei, virando-me para olhar o papai.

? Eles não estão mentindo, Kiara! ? papai sorriu ? Mas às vezes as pessoas só falam demais!”


A lembrança fez um tremor passar por meu corpo. A verdade estava lá o tempo todo?

? Vamos voltar. ? murmurei, pegando o braço de Lohan, apertando aquela carta na mão e atravessando o véu outra vez.


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A fenda nos deixou diretamente na sacada do quarto de meu irmão, mas dessa vez, Lohan mudou de forma, transformando-se num imenso corvo negro e alçou voo ao redor das torres do castelo. Não prestei atenção, mas pude ouvir a voz do tenebris soar em minha mente, dizendo que estaria ali perto caso eu precisasse. Meu interior mais inquieto que as águas quebrando no penhasco abaixo do castelo, ficou silencioso quando Fares abriu as portas da sacada e com olhar culpado, encarou a carta e a chave em minhas mãos.

? Você sabia? ? questionei, sem nenhuma gentileza na voz, sem me importar em ser agradável. Fares se encolheu um pouco, eu nem precisava mais de uma confirmação sua, a culpa em seus olhos era suficiente. Mesmo assim, ele se afastou para o lado, dando passagem para que eu entrasse no quarto. Não me importava com o vento gelado fazendo meus cabelos chicotearem contra o rosto ou com o ardor que a maresia provocava em minha garganta.

Eram sensações agradáveis até.

Anestesiavam aquela dor em meu peito.

? Eu queria ter contado há muito tempo. ? Fares vendo que eu não entraria no quarto, se adiantou até mim e fechou os braços ao meu redor, o gelo em minha alma amoleceu e escorreu por meus olhos mesmo que eu não quisesse. ? Me desculpe, Kiara! Papai te deixou uma carta... contando tudo para o caso de você descobrir.

Fares me levou para dentro do quarto e me sentou na cama, o seu aroma impregnado no ambiente agora só despertava em mim uma parte estranha... uma que estava lá, dizendo que eu não a percebi antes pois não queria. Nossos cheiros nem eram parecidos. Fares me observava com expectativa, mas ao perceber que não ia dizer nada, ele se levantou.

? Papai me fez jurar que jamais a abriria antes de você... ? seu rosto corou, ele foi até a mesa no canto do quarto, abriu um grosso livro e com cuidado tirou uma carta de dentro de um compartimento na capa. ? Eu tentei te contar antes, queria te dizer de verdade! Não achava certo que eles escondessem isso de você... mas eu tive medo de sua reação, medo de que eles te prendessem aqui também e então...

? Você não teria alguém de confiança do lado de fora, alguém que acreditasse na sua sanidade e os buscaria caso você pedisse? ? Ironizei mesmo sem querer ? Eu não entendo! ? meu irmão fez uma careta de remorso e encolheu os ombros, estendendo a carta para mim. Não queria abri-la, tinha medo do que poderia ler ali.

? Fares! Caalin morreu na guerra! Nós... nós nascemos no mesmo dia! ? Choraminguei. Meu irmão apenas pegou a carta de meus dedos frouxos e a abriu, então a entregou a mim:


“Kiara, minha princesa,


Eu esperava que pudéssemos ter essa conversa quando você ficasse mais velha e percebesse o quão diferente e especial você realmente é. Não foi sua mãe que optou por esconder a verdade de você, fui eu mesmo que decidi isso, pois se a vida fosse justa, você teria meu sangue, mas quero que saiba que não o ter não muda o fato de que você é e sempre será minha filha, minha amada princesinha.


As próximas palavras da carta me fizeram recomeçar a chorar.


A essa altura, imagino que saiba que Caalin Arbarus, o rei do mundo de gelo é biologicamente falando, seu pai. E de novo, gostaria de deixar claro que isso não muda o quanto a amo. Imagino que esteja curiosa para saber como é possível, certo? Você nasceu junto com Fares... mas, também não é verdade. Você veio ao mundo no dia vinte e três de novembro, cerca de quatro meses depois da guerra dos Doze, nasceu linda e forte apesar de tudo que sua mãe sofreu antes.

Mas... naquele momento, Nike não conseguia sequer olhar para você, pois Caalin havia acabado de perder a vida, e ela tinha medo de não conseguir te manter segura enquanto tentávamos estabelecer a paz. Tinha medo constante de que algum inimigo surgisse e a tomasse dela como fizeram com ele.

Nike então optou por colocá-la em hibernação, para acordá-la quando as coisas estivessem mais calmas.

Por favor, não pense nem por um momento que você não era amada... sua mãe te amava, muito, mas Nike sempre foi difícil com sentimentos, ela nunca se abria para ninguém e quando o fez para Caalin, ele não teve o cuidado para que ela se mantivesse fora de sua casca de proteção.

Algum tempo depois, quando estávamos com tudo mais controlado, quando soubemos que teríamos outro filho, eu preparei tudo para que você fosse despertada e trazida para casa. Com cuidado, conseguimos que você se passasse por gêmea de Fares, apesar do sangue vermelho correndo nas veias de seu irmão, nós ainda os mantínhamos em segredo, as poucas pessoas de nossa confiança sabiam de quem você era filha e os outros que mantínhamos afastados, não tinham motivos para desconfiar, uma vez que sua mãe enfeitiçou seus olhos, dando-lhes a cor vermelha dos híbridos.

Kiara, sei que não devia exigir isso, pois todos mentimos para você, mesmo que por amor e para mantê-la segura, mas gostaria de pedir que não se chateie com os outros por não terem contado nada, eu pedi para que não o fizessem, assim... você continuaria sendo exclusivamente minha filha.

Volto a dizer, num mundo perfeito, você seria minha filha de sangue... mas nas possibilidades que o destino nos deu, você se tornou minha filha de coração e alma. Sinto muito por não estar aí para lhe dar um abraço agora e dizer o quanto a amo.

Espero que possa nos perdoar um dia.

Te amo, princesa.


Susano G.”


Minhas lágrimas continuaram pingando sobre o papel amarelado enquanto meus ombros e braços tremiam. Queria evitar chorar alto, mas aquilo...

? Isso não muda nada, Kiara. ? Fares sussurrou, apertando minha mão.

Mas mudava. Se não mudasse, ele teria destruído aquela carta, teria me impedido de ir a Vilehas e esconderiam aquilo de mim pro resto da vida. Apertei a outra carta com a chave em meu bolso e respirei fundo, tentando engolir aquele choro que ainda queria escapar.

? Preciso de um tempo ? murmurei, levantando-me da cama e dando alguns passos vacilantes em direção a sacada. ? Quando estiver mais... calma, eu volto para conversarmos sobre o que encontrei em Vilehas.

Fares assentiu, ele fez menção de se aproximar, mas deixou os braços caírem ao me ver recuar um passo.

? Não é com você, é só... eu volto depois ? afirmei. Subi no parapeito da sacada e observei o corvo gigante soltando fiapos de fumaça que passou batendo as asas como se me chamasse.

“Ouvi vocês... quer ir para onde?” Lohan perguntou.

“Agora não!”

Sem esperar que ele me entendesse, dei um passo no vazio e desapareci.


Hasan:


Nada... nem mesmo um rastro de magia além daquela poça de sangue quase vinho do dragão. Passamos pela área pela quarta vez, lançando feitiços de detecção no ar, mas o que quer que fosse a criatura, ela havia desaparecido sem deixar nada de sua existência.

Não haviam pegadas na neve, nada como se uma besta gigante de fogo azul tivesse passado por ali. Quem olhasse sem saber o que houve, pensaria que algo muito grande despencou do céu, uma vez que um rastro no chão se estendia por quase cem metros até uma barreira de gelo. Se não acreditasse nela... podia pensar apenas que o dragão despencou dos céus. Porém os selos rompidos... ela não precisaria de todos eles para atravessar um dragão e uma bruxa.

? Acha que pode ser mentira? ? perguntei a Sirius quando ele se aproximou, derretendo o rastro do dragão no gelo e sumindo com a mancha de sangue.

Meu pai me encarou com os olhos dourados mais sérios do que já tinha visto antes, quando parou de usar magia, o dourado deu lugar ao branco comum e ele suspirou pesadamente, cruzando os braços sobre o peito.

? Kiara é encrenqueira, teimosa, irritável... mas não é mentirosa. Ela não teria mentido sobre isso. ? Ele bufou.

? Precisamos esperar a bruxa acordar e ver do que ela se lembra... perguntar ao dragão também é uma boa ideia. ? comentei ? Fares cismou que havia um homem, mas Kiara só falou do demônio azul.

Sirius franziu o cenho, sua expressão continuou dura ao olhar para oeste. Ele soltou um suspiro pesado e pressionou as têmporas com as pontas dos dedos, coisa que só fazia quando minha mãe aprontava.

? Sua mãe está aqui. Ela certamente fez Kiara os atravessar de volta. ? um arrepio subiu por minha espinha ? Precisamos mantê-la o máximo de tempo possível na ACV, as barreiras que eles deixaram lá... é o lugar mais seguro de Vegahn.

? Eu sei.

Eles certamente estavam em Retiro das folhas.

? Vou falar com Lórien, leve sua mãe para casa.

? E quanto ao templo de Vilehas? Kiara vai querer ir até lá investigar o bilhete que Fares encontrou no pingente. ? o lembrei.

? Evite que ela pegue a reagis. Falar que ela não pode ir até o templo é como sacudir um pedaço de carne na frente de um cachorro faminto e dizer a ele para não pegar. ? ri da comparação.

? Nos vemos na ACV. ? disse como uma despedida, em seguida, teleportei direto para Retiro das Folhas.

O castelo de pedras coberto por hera e rodeado por uma densa floresta multicolorida era um dos lugares mais bonitos do mundo de gelo, mas não era pela beleza que aquele lugar servira de abrigo para Fares. As mulheres que mantinham as barreiras vivas que circulavam o lugar, juntas eram tão poderosas quanto um mago guardião. Thay e Ysis, duas feiticeiras cuja magia era dar vida a qualquer coisa que pintassem. Ao redor de Retiro das Folhas, uma barreira colorida como uma bolha de sabão contra o sol evitava que qualquer criatura com magia considerada perigosa pudesse entrar.

Zion estava falante quando a encontrei próxima aos portões do castelo, ela parecia ansiosa, falando sobre o bebê de minha mãe, tanto que tive que respondê-la antes que começasse uma nova torrente de empolgações.

? Acho que vai ser uma menina. ? comentei ? minha mãe sempre quis uma menina depois de mim.

? E você? ? A pergunta me fez parar no meio do corredor para encará-la ? não gostaria de ter mais um filho? ? A forma com que a observei em silêncio deve tê-la deixado sem graça, pois o rosto de Zion ficou levemente azulado, contrastado com os cabelos alourados.

Serena perdeu duas meninas antes de Neruo, aquilo não era nenhum segredo... afinal, ela era amaldiçoada.

? Talvez. ? Não queria ser grosseiro com ela. Zion deu um sorrisinho e mordeu os lábios em seguida. Ela havia adotado juntamente com Oriel a bebê de um dos guardas do castelo de gelo que morreu durante a destruição quatorze anos antes. A menina chamada Lunn agora treinava na ACV no V2.

? Sua mãe está no quarto de Fares. ? Ela parou em frente à porta dele e saiu com a expressão pensativa, tamborilando os dedos sobre a arma em sua cintura.

Dei duas batidas na porta antes de entrar. Fares e minha mãe estavam na sacada sentados à mesa, apreciando o pôr dos sóis sobre o mar enquanto tomavam chá. Ela sorriu quando entrei, mas Fares baixou os olhos, para seu pedaço de bolo e me ignorou. Assim como a irmã, ele tinha aquele bloqueio que me impedia de ver seus pensamentos, mas não precisava ouvir a mente das pessoas para perceber pela forma que ele enrolava os dedos nos cachos de seus cabelos e pelo rosto corado, ele havia aprontado alguma.

Áries sorriu para mim e bateu a mão na cadeira ao lado dela.

? Venha tomar um chá! Encontraram algo?

? Nada a não ser o rastro de um dragão caído. ? murmurei me aproximando deles, Fares se empertigou e voltou os olhos verdes irritados para mim.

? Ela não mentiu.

? Sei disso, o ataque ao castelo também não tinha rastros da criatura que vocês dizem ter visto, mas achar rastros de uma criatura mágica com poder para fazer aquilo, tem a mesma dificuldade de achar uma agulha num palheiro.

? Precisamos encontrar um jeito de provar a existência daquilo para vocês! ? Fares resmungou, desviando de meu olhar para encarar o mar revolto lá embaixo.

Ele era difícil...

Não pela loucura. Talvez até antes disso, quando vivia com os pais, Fares sempre fora... difícil de ser acessado, igual a Nikella.

? Kiara não veio com vocês? ? perguntei. Áries largou a caneca na mesa e olhou para Fares com os olhos semicerrados.

? A última vez que a vi, vocês estavam atrás de mim na entrada do castelo! Onde ela está, Fares? ? Minha mãe rosnou e o rosto do garoto ficou vermelho, exatamente como uma criança pega ao fazer uma travessura.

? Ela desapareceu! ? A voz de noite sombria quase gritou para nós. Sombra e fumaça perfumada se manifestaram diante de nós, era o tenebris. Ele nos encarou assustado, respirando rápido e com os olhos assustados.

? O que quer dizer com desapareceu? ? perguntei calmamente.

? Eu tinha escutado a conversa dela com o irmão depois que voltamos do templo... sobre o pai dela. ? Lohan olhou para Fares, que agora tinha perdido completamente a cor, Áries xingou e se levantou da mesa irritada, fazendo um gesto para que o tenebris continuasse a falar ? No fim da conversa, Kiara parecia muito abalada com a descoberta do pai biológico. Eu perguntei se ela queria ir para algum lugar, conversar... mas ela se negou e desapareceu no vazio, quando eu fui tentar seguir o rastro, bati numa parede, como se tivesse ficado preso do lado de cá.

? Ela disse algo suspeito? ? Áries quis saber.

? Disse que precisava de um tempo sozinha. ? Fares murmurou envergonhado. ? É minha culpa... eu disse que ela deveria ir lá, queria que ela soubesse a verdade.

? Você não fez nada de errado, Fares! Então não há problema, ela deve estar num lugar seguro, não se preocupe, deixe ela sozinha um pouco! ? mamãe rosnou, olhando feio para o tenebris ao mesmo tempo que me observava pelos cantos dos olhos.

? Sem ser desrespeitoso, mestre, deixá-la sozinha agora não é uma boa ideia! ? Lohan grunhiu ? me digam onde ela possa estar que eu vou ver!

Ele tremia. Descobrir sobre Caalin não era nenhuma revelação que podia causar algum dano real a ela, mas a angústia no olhar do tenebris quando ninguém disse sobre onde ela poderia estar... isso me fez arrastar aquele fio para fora de sua mente e observar o motivo daquele nervosismo todo por não a encontrar.

Uma imagem da garota encolhida no chão da biblioteca no interior da árvore de fogo, durante a missão de levar as meninas para suas casas, ela estava vestindo a aparência humana e com as garras enterradas no braço cortado em tiras... sangue começando a empoçar no chão.

Merda.

Devia ter percebido que ela descontava as frustrações em si.

? Imagino onde ela possa estar. Mãe, vá para casa! Lohan pode te levar até lá! ? Lohan ergueu as sobrancelhas para mim, mas não se atreveu a rebater, então o ignorei. Dando às costas a eles abri um portal, torcia para não estar errado sobre o palpite de onde ela estaria.


Kiara:


Depois de tomar um banho, me livrar do sangue seco de Hestia e Senrys em minha pele e jogar meu uniforme manchado no lixo, segui em passos vacilantes até o quarto... que era de meu pai e eu nem imaginava. No armário em frente a cama, peguei um vestido preto de um tecido liso na altura dos joelhos que certamente devia ser de minha mãe e o vesti. Olhei para a cama, o dossel em forma de pedrinhas, a porta de correr de vidro que levava à uma pequena varanda nos fundos, onde podia ver uma trilha em meio as árvores de folhas vermelhas e logo atrás, a cachoeira musical com cristais de vitrino sob seu véu.

Meu coração se apertou.

Um pai que nunca cheguei a ver... e gostaria muito de perguntar no que ele estava pensando quando fez esse lugar.

Ao passar pelo corredor, encarei meu reflexo no espelho no fim dele, aqueles olhos azuis tão brilhantes... pareciam errados em meu rosto. Me acostumei com o vermelho vivo e agora encarava o turquesa, uma herança de meu pai que Nikella tentou esconder, não de mim, mas de suas vistas.

Agora fazia sentido seu amor maior por Fares. Cansei de ouvir histórias de Zion sobre Caalin e ela, a forma com que ele se aproveitou dos momentos de fragilidade para conquistá-la, de como quando ela esperava que ele a apoiasse, ele ficou do lado da mãe. Zion disse várias vezes que ela era uma pessoa fechada e difícil, mas com ele não o era. E então recebeu o golpe de saber que ela tinha uma parte da mulher que ele sempre amou... e isso a quebrou, fez com que ela duvidasse de si.

E mesmo que eu não quisesse entender, conseguia compreender o motivo dela não me amar como amava o Fares. O filho que ela quis ter, de uma pessoa que a amava incondicionalmente, que nunca media esforços para provar o quanto amava. Eu era a criança que a lembrava do homem que a enganou.

Sai de dentro da casa de modo automático e me sentei nos degraus da varanda. Ali em silêncio, observei a majestosa chuva de folhas contra os últimos raios avermelhados dos sóis, enchendo meus pulmões com o aroma de terra pronta para adormecer naquele outono eterno. O vale protegido dentro de uma barreira espiritual... e eu só podia atravessá-la por ter o mesmo sangue de quem a criou. Por isso Ira podia entrar direto também, pois ele era o bichinho de estimação de meu verdadeiro pai...

Um soluço escapou de meus lábios e lágrimas frias que nem havia sentido escorreram por meu rosto.

Estava tão... quieta por dentro que nem mesmo o clarão de luz dourada e laranja e a aparição de Hasan ali me fez ter reação. O olhei enquanto ele se aproximava, os cabelos até a cintura nas cores das folhas em queda, tons de vermelho, laranja profundo e fios dourados em contraste com o uniforme negro da ACV que não tirara desde a hora das provas... parecia uma vida atrás, nem haviam se passado doze horas ainda.

Ele se aproximou devagar, observando-me com certa cautela no olhar, como se esperasse que eu saltasse sobre ele e o mordesse. Achei que ficaria distante, mas ele se aproximou, subiu um degrau da escada e sentou-se ao meu lado, a menos de um palmo de mim. O nó em minha garganta parecia que não me permitiria falar nada, no entanto, as palavras simplesmente escaparam de meus lábios:

? Você sabia? ? perguntei.

Hasan suspirou, seus olhos que acompanhavam a chuva de folhas e o fim da luz do entardecer voltaram-se para os meus.

? Sua mãe estava grávida de você quando um vampiro foi até Esperas para matar minha esposa por vingança a algo que a mãe dela havia feito. Ele atacou meu filho primeiro, mas Nike entrou na frente e o protegeu. ? Hasan estendeu a mão e pegou meu braço direito, passou os dedos pela pele com o cenho franzido, então voltou a falar ? Ela quase perdeu você aquele dia. Todos achavam que tinha perdido, ela sabia dos riscos, mas protegeu meu filho. Quando a guerra acabou, eu estava lá quando você nasceu, Áries queria você e arrumou uma briga com Nikella por causa da decisão de colocá-la em hibernação, ela queria criar você e as duas quase demoliram o castelo de gelo brigando.

? Pelo menos... alguém me queria. ? murmurei.

? Não pense que eles não te amavam, Kiara. ? Hasan sussurrou ? Só... achavam que não estava na hora de te colocar para enfrentar tudo aquilo.

Mentiras. Talvez ele não soubesse, pois não estava por perto para ver como eu era tratada por ela. Susano me amava, cuidava de mim como uma filha, mas ela... ela não.

? Agora está pior. ? rebati. Hasan bufou, ele soltou meu braço e com um estalo dos dedos, centenas de vagalumes dourados clarearam o breu que o vale se tornava, deixando o lugar ainda mais bonito.

? Faz alguma diferença pra você? Saber que não é filha do Susano?

A pergunta me pegou de surpresa.

? Eu sou filha dele. Não importa quem me gerou. ? retruquei apertando os braços em volta de meu tronco. ? talvez eu só esteja... magoada por perceber que todos mentiram para mim. Esconderam isso esse tempo todo... e o pior, estou bastante atrasada na ACV.

Hasan começou a rir.

? Muito atrasada! Mas não devia ligar para isso! Há um malvarmo de duzentos anos noV5.

? Então não é tão ruim, afinal agora eu tenho... ? mordi os lábios, fazendo as contas de quanto tempo se passara desde o fim da guerra, a minha real data de nascimento.

? Cinquenta e dois. ? Hasan afirmou, olhando-me pelos cantos dos olhos ? Mas se você contar apenas o tempo desde que foi despertada como sua idade, vai continuar com vinte e dois. ? Ele parecia incomodado de falar sobre aquilo.

? Estou em dúvida agora... fingir que tenho menos, você ainda vai ficar reclamando que é velho demais para mim ? mesmo naquela situação... não podia evitar de jogar a isca. Hasan franziu o cenho e meneou a cabeça.

? Tecnicamente, sua idade deveria começar a contar no momento em que você começa a viver, aprender... e vinte ou cinquenta, continua muito nova. ? revirei os olhos.

? Vou deixar como está, então. É muita dor de cabeça mudar isso, assim pelo menos eu ainda posso ficar feliz por estar adiantada na ACV.

Hasan riu.

? Você não vai desistir, não é? ? Ele me encarou, mas dessa vez... diferente das outras vezes, ele estava menos tenso perto de mim. Era um progresso.

? Depois do beijo na estrada e da Áries ter visto? Nem pensar! Se fosse para desistir, teria o feito quando estava na arena, doida pra ir até a sala de cura e dormir um mês inteiro depois de tomar um chá pra dor.

Hasan encolheu os ombros.

? Vai ter criaturas piores que eu lá fora, Kiara. E muitas delas não aparentarão serem ruins. Ainda mais você sendo locam... viu isso com aquela criatura. Nenhuma delas vai dar uma colher de chá, vão esperar você estar preparada...

? Tá dizendo que me deixou vencer? ? rosnei. Mesmo que ele estivesse o evitando, um sorriso pequeno apareceu em seus lábios.

? Nenhum aluno teria passado se nós tivéssemos dado os nossos máximos. ? Hasan argumentou.

? Diz isso para Lohan. ? Meu coração estava acelerado novamente, estava em dúvida se ele tinha dado aquela “colher de chá” para que eu pudesse entrar no V9... ou porque queria me dar uma chance. Ficava com a primeira opção.

? Admita, você não resistiu ao meu charme e me deixou vencer por isso! ? brinquei. O salamandra meneou a cabeça negativamente e desviou o olhar.

? Vou treinar você.

? O quê? ? As palavras me pegaram desprevenida. Ele voltou os olhos negros para mim e ergueu sua mão até minha testa, pressionando o polegar até que minhas marcas brilhassem. Gavinhas e flores brancas e negras apareceram, lançando uma luz fraca ao meu redor.

? Vou te treinar em magia... o máximo que puder. ? Ele repetiu devagar ? quando tivermos tempo depois das aulas, vai me encontrar no salão de treinos.

Minha surpresa deve ter parecido outra coisa, pois ele franziu o cenho numa pergunta silenciosa.

? Não vai refazer os selos? ? minha pergunta sussurrada quase foi engolida pelo som de uma nova chuva de folhas.

? Te ajudou em algo hoje, ter esse monte de selos? A criatura te achou, e você quase morreu. ? Ele bufou ? precisa de mais algum incentivo para treinar?

Um sorriso malicioso se formou em meus lábios antes que o permitisse e as palavras escapuliram.

? Posso treinar com os bruxos, com tia Karin...

? Eles não têm minha idade, nem meus conhecimentos ou mesmo minha força. E com sua magia total liberada, você certamente os colocaria em risco.

? Hmmm... incentivos nunca são demais. Posso treinar com os tenebris também.

? O que você quer? Estou te oferecendo um treinamento adequado, e você quer correr disso? ? Incredulidade tomou aqueles olhos dourados cintilantes.

? Não quero fugir... talvez eu só queira algo para aceitar treinar com você, ao invés de com os outros, afinal, eu me concentraria melhor com eles.

? Sou eu quem está oferecendo, garota! Você é quem deveria querer me dar algo por isso! ? Ele ralhou.

Meu rosto esquentou, mordi os lábios para evitar rir. Eu queria dar algo a ele! Hasan suspirou pesadamente ao entender a malícia e se levantou, ajeitando as ondas acobreadas e rebeldes dos cabelos e me dando as costas. Com um estalo dos dedos, um portal se abriu diante dele.

? Tudo bem! ? bufei irritada com a mudança de humor. ? Mas poderia ser mais interessante. Conforme avanço no treinamento mágico, eu poderia ter recompensas...

? Vou pensar sobre isso.

? Eu te venci na prova, você dando uma colher de chá ou não! Prometeu que me daria uma chance. ? o lembrei. Hasan sorriu de forma maliciosa e meneou a cabeça negativamente.

? Nossa aposta foi que se você vencesse, eu deixaria você tentar me conquistar... ? Ele murmurou, mesmo de costas, vi seu rosto ganhar mais cor. ? bem... não preciso dizer que já está valendo, depois do que aconteceu na estrada.

? Pensei que fosse tipo aquele docinho que se dá pra fazer uma criança parar de chorar depois que ela se machuca. ? mordi os lábios irritada por ter deixado transparecer aquela insegurança, de que o beijo fosse apenas um modo de evitar que eu me partisse um pouco mais. Hasan deu um breve sorriso.

? Você ainda não me conhece bem, Kiara. ? Hasan se aproximou do portal ? Segunda começamos o treinamento.

? E Lórien?

? Lórien é uma louca, não vou mais levar em consideração o que ela decide nesse assunto. E mais, você pode decidir por si mesma, não é mais uma criança que eles para possam controlar suas vontades. ? Ele me olhou por cima do ombro. ? Vai ficar bem sozinha?

Dei de ombros, já havia perdido a conta das vezes que fiquei ali sozinha, dessa vez não seria diferente. Só saberia que aquele lugar agora me pertencia de verdade. Também não me parecia uma boa ideia pedir para ele ficar... mesmo que quisesse muito, queria ficar um pouco sozinha.

? Vou sobreviver.

? Boa noite. ? Hasan fez um aceno discreto e em seguida desapareceu no portal.

Mordi os lábios, queria ficar só, mas também não queria. Com um pensamento, aquela escuridão me engoliu outra vez e logo estava dentro do Vale da Lua, correndo para a casa de Ceiran e Ellyn para me encontrar com Hestia. Precisava ter certeza de que ela estava bem.


Capítulo 3


Hasan:


? Posso dizer que eu avisei sobre a inutilidade dos selos e o treinamento mágico? ? ironizei, observando Lórien andar de um lado para o outro na sala. Ela não estava nada bem após saber do ataque por meu pai.

? Não comece, ou juro por tudo que é mais sagrado que te dou uma surra, Hasan! ? Lórien grunhiu, jogando-se contra sua cadeira e afundando nela. Fiz uma xícara de chá quente de pluméria aparecer diante dela, uma oferta de trégua, embora eu estivesse certo e ela não.

? O que eu faço agora? ? Lórien murmurou, envolvendo a xícara com os dedos trêmulos. ? Eles não estão mais seguros!

? Algo chamou a atenção da besta, e tenho uma forte suspeita do que possa ter sido. ? comentei, conjurando uma caneca de café para mim. Lórien franziu o cenho, esperando que eu dissesse ? Sielem, o machado era uma arma gêmea da foice de Nikella...

? Ela não os forjou juntos, não tem como ser isso! ? Lórien me interrompeu irritada, mas tornou a me encarar em silêncio quando não disse nada.

? Não foram feitas do mesmo metal, mas tinham a essência da mesma pessoa. Nike colocou tranças de seu próprio cabelo nas hastes das armas, isso fez com que as armas tivessem ressonância. ? argumentei, sorvendo um gole do café, acalmando os nervos com o amargo suave que me lembrava de uma casa humana e feliz, num mundo sem magia uma vida atrás. ? Kiara e Fares acham que Nikella está viva por causa da foice que não foi encontrada junto com o machado... mas e se ele foi deixado para trás como uma isca? Pois quem mais visitaria o túmulo dos reis, se não alguém que os amasse suficiente para isso? Fora que as armas precisam ser usadas ao mesmo tempo para terem a ressonância.

Lórien mantinha o olhar fixo ao longe, como se também juntasse as peças.

? As armas gêmeas... Kiara já usou o machado antes, mas... o evento da ACV... todos sabem das provas Venox.

? Quem ou o que quer que esteja com a foice, pensou na possibilidade do machado ser usado durante a prova, logo ele poderia sentir, mas não pode atravessar as barreiras da ACV, então ficou rondando por fora dela, esperando a presença do machado sair.

? As chances são muito pequenas, Hasan! ? Lórien bufou ? Quem mais saberia das armas sem que os conhecesse antes de tudo aquilo acontecer?

? As armas de Nikella eram famosas, o machado e a foice eram símbolos deles. Mas para saber que as armas se conectam...

Lórien empalideceu, percebendo onde eu queria chegar.

? Pelos deuses... eles podem mesmo estar vivos.

? Vivos, aprisionados, torturados ou foram mortos ? Me apressei em dizer, não queria dar esperança a ela. A nenhum deles.

? E na pior das hipóteses, o demônio é controlado por alguém que os conhecia. ? Lórien concluiu com um suspiro cansado.

? Peguei conversa de Kiara e Ederon sobre Adraph... ele foi roubado de Pollo antes do ataque ao castelo de gelo.

? Se Adraph foi usado para isso... se alguém ainda o está usando, a ACV é o único lugar seguro para eles dois, Hasan! ? Lórien arregalou os olhos ? Su e Nike pareciam estar adivinhando que algo assim aconteceria quando conjuraram uma barreira contra a magia do livro.

? Susano sempre foi muito inteligente e desconfiado. Ele sempre pensava à frente.

? Preciso tirar aquela garota das missões... fazer com que ela fique aqui, e o Fares...

? Não vai fazer isso. ? soltei num grunhido irritado ? restringi-la não vai ajudar em nada!

? Então o que sugere? ? Ela devolveu o tom de voz irritado ? A deixe por aí com aquele machadão chamariz de demônios e os lacres soltos? Ela vai morrer!

? Kiara não precisa de uma gaiola. ? rebati ? Ela sobreviveu duas vezes ao ataque daquilo, ela é uma caçadora, uma V9 e locam, não é uma criancinha que você manda de um lado para o outro pra despistar um perseguidor. O que a garota precisa é de mais treinamento e treinamento mágico adequado. Se já o tivesse... talvez ela teria matado aquela coisa ao invés de precisar fugir e quase morrer.

Meu estômago embrulhou ao lembrar da ferida em seu pescoço.

Não imaginava que já estivesse tão envolvido por ela a ponto de me importar tanto.

? Vai treiná-la? ? Lórien me olhou espantada, quando assenti, o espanto escorreu, mudando para algo malicioso e divertido, lembrando-me mais a Lórien peste que aprontava com Leona. ? Ela te fisgou.

? O quê? Não diga bobagens, mulher! Eu tenho uma dívida com Nikella, ela querendo ou não.

Lórien assentiu devagar, sorrindo com malícia, encarando-me com os olhos bicoloridos dentro das fendas de suas pálpebras.

? Nem você mesmo engole mais essa dívida, Hasan. ? Ela deu um risinho ? mas fico feliz que esteja disposto a ajudá-la.

Respirei fundo, tentando colocar todos os planos em ordem antes de soltá-los naquela cabeça de vento.

? Vou assumir as aulas de magia avançada em combate. ? O queixo de Lórien caiu.

? Mas...

? Isso vai me dar uma boa desculpa pra treiná-la durante as aulas, e além delas.

? Hasan, os outros alunos...

? As marcas dela podem ser alteradas, ninguém precisa ver as flores de Gadyen. Mas ela precisa aprender a lutar usando magia e não tem maneira melhor do que colocando-a contra outros usuários de magia putos com uma pirralha no meio deles.

? E o machado?

? Não acha que se dissermos a ela que ele é um chamariz de demônios, ela vai entregá-lo para deixar guardado em vez de usá-lo por aí?

? Susano aprendeu essa sinceridade grossa do tempo que ficou treinando com você! ? ela reclamou, mostrando-me a língua. ? Teremos que trazer Fares para dentro dessas barreiras também, Retiro das Folhas não é seguro como aqui. ? ponderou ? E por fim, suas aulas, quem colocaremos em seu lugar?

Evitei sorrir com a ideia que resolveria os dois problemas de uma vez.

? Vou resolver isso. ? levantei-me esticando o corpo. ? preciso ir até Retiro das Folhas, minha mãe ainda está por lá.

Antes que Lórien protestasse, atravessei outro portal para frente do castelo das folhas. Zion estava nos portões quando cheguei, ela parecia surpresa com uma segunda visita no dia e se aproximou para me acompanhar no castelo.

? Sua mãe voltou pra Lastar com o garoto tenebris agora a pouco.

? Sei disso, vim falar com o príncipe. ? a malvarmo me observou um pouco incomodada com o tom ríspido. Porém estava sem tempo para conversas, precisava resolver o assunto com Fares e voltar ao Vale do Sol para convencer Kiara a deixar o machado em um local afastado, mas seguro. Precisaríamos dele mais para frente.

? Bom... eu preciso encontrar Oriel para o jantar, com licença. ? Zion murmurou depois de subirmos as escadas ao lado do grande salão em total silêncio. Ela virou no primeiro corredor a esquerda antes que eu pudesse lhe dizer boa noite.

Sem me importar muito, continuei o trajeto até o quarto na torre onde Fares escolheu viver e bati na porta. A resposta abafada do garoto, mandando-me entrar veio em seguida. Ele estava organizando livros numa prateleira ao lado de sua escrivaninha, arrumando-os cuidadosamente no lugar.

? Sua mãe já foi. ? disse secamente, sem desviar os olhos das lombadas de couro dos livros.

? Sei disso, vim falar com você. ? falei, aproximando-me das portas abertas da sacada. Nenhuma brisa vinha lá de fora, uma barreira suave, mas firme de ar impedia a entrada do vento gelado que vinha do mar.

Fares me encarou, os olhos verdes iguais aos de Nikella se fixaram nos meus, irritados... mas completamente sãos. Ele indicou a poltrona ao lado da lareira apagada e se aproximou, sentando-se também.

? Gostaria de te propor algo. ? comecei, Fares apenas me encarou ainda com algo que o incomodava... porém não podia descobrir pois ainda me chocava contra uma barreira negra em volta de sua mente.

? Estou ouvindo ? Ele se recostou contra a poltrona, avaliando-me de um modo que começou a me incomodar.

? Se eu lhe aplicasse uma prova do V9, uma prova escrita, como acha que se sairia? ? questionei, o sorriso convencido de Fares, mesmo quase sufocado pelo olhar brilhante e esperançoso em seu rosto, me fez suspirar pesadamente percebendo mais um traço que compartilhava com Nikella. Ele era arrogante também.

? Eu me sairia melhor na prova que você. ? Ele resmungou.

? Não posso ter certeza disso... mas são quatorze anos em que você só fica aqui, estudando e estudando, não é? ? não consegui evitar a pontada maliciosa em minhas palavras. Fares franziu o cenho e assentiu.

? Provavelmente não passaria num teste físico, se é o que está insinuando. Zion muito mal me permite participar de treinos básicos. ? Seu rosto corou e ele se moveu incomodado na poltrona.

? Não é necessário para o que eu quero te propor. ? Fares ergueu as sobrancelhas.

? Pela pergunta... imaginei que quisesse me testar para entrar na ACV. ? sua voz vacilou um pouco.

Não era surpreendente. Ele estava desesperado para sair de Retiro das Folhas. Assim como sua irmã estava de sair para qualquer lugar.

? Você conhece os idiomas celestiais? ? perguntei em solaris. Fares franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente sem conseguir me entender. ? É solaris, o idioma do Primeiro e Segundo celestial.

? De onde vem os tenebris... não é?

? Preciso que saiba esses idiomas. Vou passar o conhecimento a você. ? Esperei que ele entendesse o que lhe disse. Fares trincou o maxilar e fechou os olhos, mas sentou-se na beirada da poltrona. Sem questionar... sem perguntar o porquê. Talvez fosse realmente louco.

? Sem gracinhas... se passar por minhas barreiras... ? Ele rosnou baixo, os olhos antes verdes agora estavam negros, sombrios.

Não deixei que a surpresa transparecesse.

As barreiras em volta de sua mente e de Kiara eram dele. Ele a estava protegendo. As marcas de Gadyen se acenderam em seus braços quando me aproximei, tocando minha testa na sua. Fares prendeu a respiração quando me concentrei em transmitir o que precisava.

O garoto arquejou e endureceu quando o fluxo de memória passou para ele, rápido demais talvez.

? E agora? ? perguntei no idioma celeste. Fares assentiu, o olhar como um ferrete sobre mim.

? Não faça isso outra vez! ? ralhou em ventus, fazendo uma massa de ar se espalhar pelo quarto e bagunçar os livros que tinha arrumado minutos antes.

? Acho que não vai ser preciso. ? disse, levantando-me. ? Vá a ACV amanhã à noite, Lórien irá querer falar com você também, para lhe dar mais detalhes do que faremos.

? Não pode ser direto? ? Fares semicerrou os olhos.

? Vai entrar na ACV como mestre de línguas. ? Ele arregalou os olhos, mas sorriu. ? Preciso ir, tenho que dar um jeito de convencer Kiara a deixar de usar o machado. ? mencionar sua irmã o fez franzir o cenho novamente, mais irritado que antes dessa vez.

? Qualquer coisa que você pedir, ela fará. ? disse com rispidez, deixando-me tenso.

? Eu...

? Percebi como ela te olha. ? Ele ciciou ? É do mesmo jeito que Susano olhava para Nike... como se ela fosse o centro do universo. Não deixei de perceber o comentário maldoso de Áries quando estávamos em Lastar também.

? O que te incomoda nisso? ? questionei, percebendo-o se aproximar sem ao menos mover os pés.

? Se você a magoar... se ela se machucar igual minha mãe com o pai dela... ? Fares respirou fundo, mesmo com os selos, escuridão tomou conta do quarto, espalhando-se a partir de onde ele estava. ? Vou fazer você se arrepender, Hasan.

? Me julga mal, sobrinho. ? repliquei baixo, suprimindo um rosnado de irritação pela petulância ? Você acha que o comportamento de seu pai foi aprendido com o rei de Amantia? Ewren era um sem vergonha aproveitador. Eu praticamente criei Susano. ? me levantei da poltrona, ainda sendo observado com desconfiança.

? Vou estar lá amanhã antes do toque de recolher. ? Ele disse por fim, voltando a atenção para os livros bagunçados. ? Obrigado por isso, por me deixar ficar perto dela.

Apenas lhe ofereci um aceno com a cabeça e abri um portal para o Vale do Sol.


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Ela não estava em parte alguma da casa.

Suspirei cansado. Não havia usado magia suficiente para realmente me cansar naquele dia. Mas passara a maior parte da manhã testando alunos, evitei que Kiara congelasse e se desfizesse em cacos de gelo e por fim procurei por rastros de um demônio de fogo antes de descobrir mais problemas.

Parecia que os dias agitados estavam prestes a voltar à rotina.

? Onde você foi? ? murmurei, avaliando a casa novamente. Nada se encontrava fora do lugar, o glácio que sempre ficava ao lado dela, estava na ACV com Glyph, o dragão...

O vale dos bruxos.

Outra garganta de fogo dourado e laranja se abriu em frente à casa e sem demora atravessei para lá. Ela estava preocupada com os amigos, era de se esperar que não fosse esperar ter notícias.

Dessa vez, abri o portal quase em frente aos portões para evitar perder tempo, só mantive uma barreira de proteção ao meu redor para evitar ser atacado pelas sentinelas dos bruxos. Como pensei, quando o portal se abriu do outro lado, haviam guardas armados parados bem perto, mas relaxaram ao me ver sair do túnel de fogo.

? Perto demais ? resmungou um deles, mas não me dei o trabalho de dizer que se quisesse mesmo, podia quebrar as barreiras do vale e parar lá dentro, mesmo que isso deixasse a sacerdotisa furiosa. Talvez devesse pedir a permissão dela para entrar nas barreiras do vale antes de sair dali.

Naquele lugar havia recém anoitecido, as ruas cobertas de uma fina camada de gelo estavam quase desertas, mas o grande salão tinha movimento demais. Embora tivesse certeza que Kiara gostasse de ficar no meio dos bruxos durante as refeições, imaginava que não estaria lá. A casa do outro lado da ponte, quase encostada na muralha de pedras tinha as luzes acesas.

Caminhei rapidamente até lá, dando acenos discretos aos bruxos agasalhados que passavam por mim indo em direção ao salão. O lugar era agradável, mais aconchegante que qualquer outro lugar nos mundos... talvez o pedaço em todos eles que mais se vivesse em harmonia.

Alcancei à porta da casa em pouco tempo, sabia que era a casa dos grão-bruxos pelos enfeites sobre a porta. Lá dentro, pude escutar as risadas das duas, era suficiente para saber que estava tudo bem, mas precisava alertá-la sobre o machado, e de preferência tirá-lo dali.

Dei algumas batidas na porta, a conversa parou e passos se aproximaram, a porta foi aberta e um par de olhos turquesa me encararam surpresos.

? Hasan? O que faz por aqui? ? Kiara perguntou, dando um passo para o lado, uma oferta para que eu entrasse. Na sala pequena, com a cabeça despontando atrás do encosto do sofá, Hestia me fitou com os olhos estreitos.

? Achei que ficaria em casa. ? falei, dando um passo à frente, deixando que Kiara fechasse a porta. As casas no Vale da Lua tinham um agradável padrão, eram todas pequenas, porém aconchegantes e calorosas... o tipo de lugar que me lembrava a casa no mundo humano. Um lugar que eu viveria tranquilamente se me fosse permitido.

? Estou em casa. ? Kiara deu um sorriso para a amiga no sofá, Hestia levantou sua caneca com chá em resposta e bebericou sem tirar os olhos de mim.

? Senta aqui, mestre, não mordo! Quem morde é essa aí perto de você! ? Hestia brincou, dando tapinhas no sofá, Kiara revirou os olhos e mostrou a língua para ela.

De qualquer forma precisava perguntar a Hestia sobre o ataque, então contornei a pequena mesa atrás do mesmo e sentei-me quando a bruxa encolheu as pernas para me dar espaço. Ela tinha olheiras leves, estava embrulhada em um grosso cobertor e mantinha a caneca apertada nas mãos, mas sorria.

? Então, o que o traz à morada dos bruxos? ? Hestia questionou, Kiara havia sumido pelo arco da cozinha assim que me sentei.

? Precisava falar com sua amiga, mas com você também! ? a bruxa ergueu as sobrancelhas ruivas e assentiu. ? se lembra do que viu durante o ataque mais cedo? Qual era a aparência do demônio, ou se tinha alguém lá?

A bruxa franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente.

? Desculpe, mestre. ? disse num sussurro. ? Eu vi fogo azul, apenas isso, não consigo me lembrar de mais nada... só do dragão caído ao nosso lado e de ter muito fogo nos circulando. Depois... o tempo... ficou estranho, meio devagar, aí ficou tudo escuro e quando abri os olhos de novo, já estava dentro do vale. ? Ela sorveu mais um gole do chá. Ervas para dor, pelo cheiro.

? Tudo bem. ? um suspiro cansado escapou de mim ? E suas asas?

? Vou voltar a voar! Não posso usá-las por um tempo. ? Ela puxou o cobertor, revelando as ataduras ao redor do tronco. Mas o que me chamou a atenção foram as pequenas marcas quase desaparecendo em seu pescoço. Marcas de presas... estreitas demais para ser de um macho.

Kiara apareceu um momento depois com uma xícara nas mãos, ela contornou o sofá e a estendeu para mim, a peguei de sua mão e agradeci com um meio sorriso. Ela sentou na poltrona perto da lareira e esticou as pernas, alongando-se antes de puxá-las para cima do assento e cruzá-las. Demorei a perceber que o cabelo branco estava preso numa trança frouxa caída sobre o ombro e que ela vestia uma camisola preta um tanto curta demais. Olhei novamente para Hestia, que encarava as brasas crepitantes da lareira com os olhos arregalados, o rosto vermelho, e a xícara escondendo-lhe um sorriso.

Não estava tarde suficiente para estarem vestidas pra dormir.

? Então? ? Kiara pigarreou.

? Preciso que me entregue Sielem. Quero deixá-lo em um local seguro. ? informei. Tomei um gole do chá que ela havia me servido, anis e cardamomo. Uma mistura diferente, mas calmante de certa forma. Kiara estava com as sobrancelhas levantadas, apertando o pingente com o machado entre os dedos metálicos.

? Algum motivo em especial para isso? ? Ela questionou.

? Apenas uma medida de segurança. Sielem... pode ser o motivo pelo qual você foi encontrada. As armas de sua mãe têm assinatura mágica, em outras palavras, é como se você andasse por aí com um rastreador. ? menti, não podia lhe explicar sobre Siferath agora.

Kiara assentiu devagar, porém sua expressão... era de quem tinha visto por trás da mentira.

? Certo. ? Sem discussão, sem brigas e sem protestos. A garota tirou o machado do pescoço e se inclinou para soltá-lo em minha mão. O olhar carregado fixo no meu.

? Vou guardá-lo bem, não se preocupe. ? falei.

? Confio em você. ? Kiara sorriu e Hestia teve um pequeno acesso de tosse ao meu lado.

? Ah, ia me esquecendo. Precisamos mudar suas marcas também.

? Porque?

? Só para evitar exposição, caso você use magia sem querer, não precisamos revelar quem você é apenas por ter liberto sua magia. Seus pais tinham mais inimigos do que apenas um demônio de fogo. ? disse um pouco mais asperamente do que pretendia. Kiara crispou os lábios, mas assentiu. Lhe tomei a mão que ela estendeu para mim e toquei o polegar em seu pulso, despertando a magia, fazendo aquelas marcas brancas e negras brilharem. Hestia, curiosa se apoiou em meu ombro para ver melhor.

? Vai incomodar um pouco. ? avisei.

? Não pode ser pior que os selos que seu pai colocou em mim ou que a marca dos bruxos. ? Ela riu nervosa, mas seus olhos não saíram do ponto em que eu mantinha seu pulso estreito entre os dedos.

Deixei a magia livre criar uma nova marca, algo que combinasse com ela e que não fosse conhecida também, uma marca nova, como a de Gadyen.

Uma flor diferente... rara e tão bonita quanto.

O pensamento me assustou por um instante e ao ouvir Kiara chiar e Hestia assobiar, percebi que tinha imaginado certo. Onde antes marcas de flores negras em gavinhas brancas estavam, agora pequenas flores de jade na mesma cor de seus olhos subiam circulando seu braço presas a pequenos caules num tom lavanda. Em sua testa uma única flor brilhava exibindo o caule curto e a flor fazendo uma pequena volta para cima.

? Isso era pra chamar menos atenção? ? Hestia sussurrou, Kiara imediatamente se levantou num pulo e correu escadas acima. O som de uma porta se abrindo pode ser ouvido, seguido de uma risada abafada. Ela desceu logo depois, mordendo os lábios como se prendesse um sorriso.

? Eu... obrigada. Com certeza está diferente... que flor é essa? ? Ela questionou com o sorriso crescente no rosto.

? Flor de jade azul. ? disse simplesmente, não queria estender o assunto pois corria o risco de ela perguntar o porquê daquelas flores... e eu não saberia como explicar. ? Preciso ir, tenho coisas a acertar na ACV, vocês duas... segunda de manhã, sem atrasos. ? me levantei, Kiara pegou a caneca vazia de minhas mãos e me acompanhou até a porta, não que precisasse, ela ficava a menos de dez passos do sofá.

Ela não parecia esperar algo, apenas me acompanhou e abriu a porta para mim.

? Boa noite, mestre. Obrigada pelas marcas novas. ? nada demais naquele tom de voz... parecia um pouco mais fria que antes.

? Algo errado? ? não resisti a pergunta. Kiara meneou a cabeça negativamente e mordeu os lábios, os caninos longos marcando a pele fina de sua boca, uma provocação sutil. ? Preciso ir.

? Você está com o cheiro de Fares. ? Ela sussurrou, pude perceber um traço de nervosismo naquelas palavras. ? Tudo bem com ele?

? Tive uma conversa agradável com meu sobrinho ? falei ? E a bruxa tem a marca das suas presas no pescoço. ? não consegui deixar de comentar sobre aquilo, nem sabia o porquê. Kiara sorriu.

? Como sabe que são minhas?

? Eu... ? minhas orelhas queimaram e o sorriso dela aumentou, seu rosto ficou com mais cor e ela se aproximou um pouco mais, quase encostando o corpo no meu. Seu cheiro... âmbar, anis e neve fresca subiu até mim, aguçando meus sentidos. A neve começava a cair do céu, enfeitando seu cabelo e sua pele exposta com pequenos flocos brancos e brilhantes, as marcas novas ainda brilhavam, assim como seus olhos.

Por fora ela era o retrato do inverno, mas guardando dentro de si um verão sem fim.

Acabei perdendo a conta do tempo enquanto a encarava, lá dentro, Hestia pigarreou alto e começou a pedir por comida. A malvarmo bufou e meneou a cabeça.

? Boa noite, mestre. Cuide bem do meu machado. ? dizendo isso, Kiara entrou na cabana e fechou a porta.

E eu fiquei ali mais alguns segundos percebendo as palavras de Lórien fazendo sentido.

Talvez ela tenha realmente me fisgado.


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? Onde está meu pai? ? perguntei ao entrar no quarto de minha mãe no castelo de Lastar e perceber que estava sozinha, comendo o que parecia ser uma porção de batatas fritas com bacon e queijo. ? E onde conseguiu isso?

Ela me encarou com os olhos negros culpados.

? Pedi ao tenebris que buscasse na Terra para mim. ? disse entre mordidas, estreitando os olhos em minha direção. ? É melhor tomar cuidado com ele! Lohan... ele gosta da Kiara também. ? murmurou, enfiando mais algumas batatas na boca e suspirando.

Então era por isso que eu não gostava dele.

Ignorei esses pensamentos.

? Isso não é muito saudável, mãe. ? Me aproximei para pegar o pote dela, mas ela fez biquinho e o afastou de mim. ? Quanto à Lohan, não me preocupo.

? Sei que não deveria, ninguém em juízo perfeito escolheria ele entre vocês dois! ? Ela bufou uma risada, mordiscando um pedaço de bacon ? Mas se você continuar sendo uma pedra de gelo com ela, ela pode acabar desistindo e indo procurar outro. ? Áries me encarou séria.

? Eu disse para ela desde o começo que fizesse isso. Ainda pode reconsiderar. Kiara tem mais a ganhar se o fizer. ? Mesmo... mesmo que sinceras, dessa vez aquelas palavras me incomodaram mais que um pouco.

Minha mãe colocou o pote de lado e levantou-se da cama para vir até mim e me abraçar.

? Porque insiste em afastá-la se já sabe que sente algo por ela também? Deixe seu coração se curar, Hasan! Não jogue fora a chance de ser feliz de novo! ? Ela me apertou mais ? Isso não é justo com você.

Passei os braços ao redor dela correspondendo o abraço.

? Você não disse onde ele está. ? A ignorei de propósito, estava cansado demais para ouvir um sermão.

Ela se afastou, revirando os olhos e voltando para suas batatas.

? Foi até Alamourtim com Aristes.

? Preciso ir até a ACV organizar a troca de especialidade. ? bufei, ela me deu um sorriso travesso.

? Vai mesmo lecionar magia de combate?

? Não consigo pensar numa maneira melhor de ensiná-la magia se não colocando-a contra outros mágicos.

Áries assentiu, distraindo-se com a comida.

? Mas não se esqueça do que eu falei. Derreta essa geleira em sua mente, meu filho. Você tem pouco de malvarmo para querer ser tão frio, e você sabe... ? ela me lançou um olhar carregado de tristeza ? Kiara já teve frieza demais por parte de Nikella, não faça isso também.

Me aproximei da cama e beijei sua testa, ela riu, afagando meus cabelos antes de eu me afastar para sair do quarto.

? Não vou esquecer.

Logo em seguida, atravessei de volta para Vegahn, levando aquele machado preso numa pequena pulseira de prata para um lugar que eu sabia ser seguro suficiente para guardá-lo sem que fosse encontrado por ninguém.

“Confio em você” As palavras de Kiara voltaram a minha mente enquanto girava o pequeno pingente nas mãos.

Eu não podia decepcioná-la também.


Kiara:


Ceiran e Ellyn apareceram em casa pouco depois que Hasan saiu, por sorte, havia coberto minha roupa de dormir com um roupão grosso antes deles entrarem. Hestia teve um mini ataque de riso ao me ver perder a cor quando os vi chegando pela janela. Halles veio junto apenas para ver se estava tudo bem e me lançar alguns olhares desconfiados, mesmo com minhas novas marcas escondidas e que eu estivesse fazendo cara de paisagem como se nada tivesse acontecido. Bom... nada tinha acontecido mesmo.

Me perguntava... se papai, se Susano estivesse ali, ele seria cuidadoso assim também. O bruxo de cabelos brancos e olhos vermelhos, meu tio, conversou com Hestia sobre os exercícios para as asas depois que os ferimentos terminassem de cicatrizar enquanto Ellyn as abria e trocava os curativos.

? Sinto muito por isso ? murmurei, vendo a bruxa contrair os lábios com os olhos apertados.

? Não tem porque se desculpar, Kiara, não é sua culpa! ? Ellyn terminou de prender as ataduras e se voltou para mim ? Você a trouxe para casa, impediu que fosse pior.

O sorriso de Ellyn era calmo, mas contido.

? Mesmo assim, eu...

? Eu te chamei pra ir até Hima! Se não tivesse insistido, estaríamos na ACV e não teria acontecido. ? Hestia me defendeu, senti vontade de retrucar, mas o olhar irritado dela me fez ficar em silêncio.

? Vocês deveriam descansar, dormir um pouco. ? Halles aconselhou, Ceiran apareceu logo em seguida, trazendo outra xícara de chá para Hestia e uma para mim também, só que menos quente.

? Elas já vão dormir ? Ceiran disse ? pois Connal vem amanhã falar sobre o dragão, e se não me engano, ensinar algo sobre lidar com fogo mágico. ? O bruxo arrumou os fios vermelhos que lhe caiam por sobre o ombro e acariciou a cabeça da filha, que estava encostada no ombro de Ellyn e terminava seu chá.

? Amanhã nos vemos de novo. ? Halles se inclinou sobre o encosto da poltrona em que eu estava e beijou o topo de minha cabeça, bagunçando meus cabelos em seguida.

Eu devia ir dormir na casa deles, mas não podia deixar Hestia sozinha. Sabia que ela precisaria tomar os chás para dor outra vez durante a madrugada, e precisava fazer algo para ajudar e me sentir menos... culpada. A acompanhei até seu quarto no segundo piso do chalé e me aninhei ao seu lado na cama. Hestia mal se deitou e adormeceu, puxada para o abismo do inconsciente por aquele chá que Ceiran ofereceu.

A observei dormir por algum tempo, os curtos fios ruivos espalhados ao redor do rosto que já perdia um pouco da cor pelo tempo em Vegahn. Uma amiga de verdade... que estava disposta a enfrentar um demônio ao meu lado mesmo que isso custasse sua vida.

Minha garganta se fechou.

Eu precisava dar um jeito de encontrar aquilo e acabar com ele, ou então viveríamos com medo de suas aparições... e eu seria assombrada pelo fantasma de perder mais alguém.

Queria que Lohan fizesse uma aparição repentina, entrando pela janela da bruxa e usasse aquela fumaça adocicada para me fazer dormir.

Pois eu tinha certeza que teria mais esse dia a acrescentar na lista dos pesadelos que atormentariam minhas poucas horas de sono.

Torcia para dar tudo certo com o treinamento mágico.


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O pátio congelado da ACV estava alvoroçado na segunda de manhã. Tirando o fato de todos estarem incomodados pela neve atirada em nossos rostos pelos ventos gelados do início do inverno de Vegahn, o clima que deveria estar animado por causa do final das provas e dos alunos que tinham conseguido passar de nível, estava mais para tenso e desconfiado.

Os mestres não conseguiram abafar completamente o ataque do demônio, uma vez que nas cidades de Hima e Passante, vários moradores conseguiram ver a coluna de fogo azul e relataram o acontecido aos guardas. Através dos sussurros de alunos próximos, descobri que uma equipe foi enviada até lá, um grupo com bruxos da ACV apareceu... mas não havia nada lá, nenhum rastro. Talvez desconfiados fosse a palavra errada para descrever aquilo, os alunos deviam estar curiosos e temerosos pelo reaparecimento do fenômeno que matou os soberanos dos Doze.

Não conseguia imaginar como Lórien contornaria aquilo. Mas ela sempre ? SEMPRE ? tinha um plano na manga.

De pé na minha nova fila do V9 junto à Hestia, Helleon e Lohan, eu recebia também alguns olhares desconfiados de alguns venairens. Cochichos eram ouvidos mesmo depois que Lórien apareceu no alto das escadas e pediu silêncio.

? Acho que seus olhos estão chamando atenção. ? Lohan sussurrou atrás de mim. ? Se não me engano, na última vez que te viram na luta contra Hasan, essas lindas bolinhas turquesa estavam vermelhas, princesa!

Minha pele se arrepiou. Eu havia me esquecido completamente de pedir ajuda para consertar aquilo. Bom... agora eu precisaria mesmo era de uma boa desculpa.

Pouco depois de Lórien chegar no pátio, os mestres se organizaram em frente os alunos... e franzi o cenho ao reparar que Hasan não estava lá. Ele nunca faltava. Mas Neruo, quase ao lado de Lórien me observava com um sorriso conspiratório.

? Bom dia, caçadores ? Lórien cumprimentou a todos com um sorriso curto, mas sincero. Algo divertido brilhava em seu olhar quando ela passou os olhos pelos venairens ali. ? Primeiramente, gostaria de parabenizar a todos pelas provas incríveis de sábado. Aos que conseguiram avançar, torço para que alcancem o que desejam. E aos outros, não desistam, treinem mais duro e continuem tentando, vocês vão chegar lá também!

Os venairens em fila aplaudiram, uns com mais ânimo que os outros, afinal, ninguém gostava de perder.

? Obviamente não ia os chamar nessa manhã gelada aqui para fora apenas para dar os parabéns, quero anunciar algumas mudanças no corpo docente também. ? Lórien sorriu, mas eu senti meu estomago cair, levando em consideração que Hasan não estava... ? Agora, teremos uma aula que os venairens das ACV de Ciartes e Pollo já praticam a anos.

Houve um murmúrio maior quando, para meu alívio, Hasan apareceu pelas portas duplas atrás dos outros mestres, mas trazendo uma mulher com ele.

? As aulas de combate mágico serão lecionadas pelo mestre Hasan... e nas aulas de línguas, quem irá substituí-lo será a nossa recém-chegada à Vegahn, mestra Leonne, de Pollo! ? Lórien anunciou, a mulher ao lado de Hasan deu um passo à frente e baixou o capuz do uniforme cinza do corpo docente. Hestia em minha frente abafou um gritinho com as mãos, eu, em choque só consegui ficar olhando de boca aberta, encarando aqueles olhos verdes alegres e o sorriso de Fares... ele havia mudado para uma forma feminina.

? Acho que eu quero casar com seu irmão ? Lohan cochichou, soltando uma risadinha e em seguida tossindo quando lhe acertei o cotovelo com força nas costelas.

? Não acredito que o deixaram sair de Retiro das Folhas! ? Hestia murmurou, sem desviar os olhos de Fares... Leonne, uma clara homenagem a vovó. Lórien continuava dando instruções sobre a matéria extra e sobre as aulas que seriam trocadas pra encaixar nos horários, logo, também teríamos uma hora a mais de treinos diários.

Estava atenta as palavras de Lórien, mas de olho em Hasan, ele tinha um sorriso divertido no rosto, e Fares cochichava algo com ele. Na fila ao lado, duas garotas estavam cochichando sobre a situação.

? ... olha como eles estão! Ele está sorrindo! Nunca o vi fazer isso! ? disse a mesma elfa que criticara o discurso de Lórien no primeiro dia de aulas, Mona, era o nome dela.

? Devia pedir a ela pra te ensinar o truque! ? a outra riu. Olhei para a elfa, ela estava encarando intensamente Hasan e mesmo que ele não estivesse sequer notando a presença dela... meu coração acelerou.

? Está sem lacres! Comporte-se! Sentimentos impulsionam sua magia, especialmente os ruins. ? Lohan passou um braço ao redor de meus ombros e me puxou contra si, só então percebi que minha pele estava brilhando... e que pequenos raios se espalhavam ao redor de mim, mas foram devorados pela escuridão do tenebris. Todos em volta se afastaram alguns passos, chamando atenção dos mestres para nós. Meu rosto pegou fogo ao notar que Hasan estava nos olhando.

? Vai ter que treinar isso. ? Helleon comentou escondendo um risinho divertido ? Controle, quero dizer. ? Ele estava a par de tudo que havia acontecido no sábado. Connal e ele me deram algumas dicas para evitar fogo mágico, mesmo que não fossem eficientes contra o demônio, aceitei as dicas para caso precisasse enfrentar um dragão irritadinho cuspindo fogo.

? ... por último quero as equipes dos V8 e V9 na minha sala sexta de manhã para receberem as missões. ? Lórien concluiu, dispensando-nos para as salas. Observei Fares... Leonne se adiantar até a turma do V7 que Hasan era mestre coordenador e chamar a turma para entrar. Ele estava completamente à vontade, como se tivesse feito aquilo a vida toda... afinal, estava fingindo ser uma mestra de outra academia.

Como o deixaram sair? Quem o levou pra ACV, por que ele?

O medo de que ele tivesse um surto começou a me incomodar... porém o mais interessante, o que talvez estivesse me deixando mais curiosa era: porque ele estava vestindo uma pele feminina? Talvez Hasan tivesse algo a ver com aquilo, uma vez que chegaram juntos.

Depois, teria tempo de perguntar sobre aquilo depois.

Agora precisava mesmo é falar com Lórien sobre o cachorro gigante infernal e como a ACV não havia virado um pandemônio com o ocorrido, mas só conseguiria isso no fim das aulas do dia.


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Foi quase no fim do dia que recebemos os novos horários das aulas e a localização da nova sala, onde teríamos as aulas de combate mágico. Hestia, pendurada em meu braço enquanto íamos para o refeitório, tornou a falar de meu irmão entre suspiros, ela havia feito aquilo o dia inteiro. Tinha até medo de imaginar, mas suspeitava que ela fosse entrar na aula dele na quarta de manhã e agarrá-lo. Helleon e Lohan, talvez incomodados pelas descrições pervertidas da bruxa, escaparam na frente para o refeitório, deixando-nos conversando para trás.

Minha curiosidade, porém, não tinha morrido. O que me impedia de ir até a sala de Lórien era ter visto Ericko e Nyona aparecerem pouco antes do jantar, acompanhados de Ederon e Malaika. Reis de Ciartes e Pollo, acompanhados das diretoras de suas ACV’s. Certamente Aliver estava lá também. Queria muito saber o que estava acontecendo e sabia de alguém que podia me contar.

? Hestia, porque não vai até o dormitório dos mestres e mata sua curiosidade? ? instiguei. A bruxa estacou na metade do corredor, onde já ouvíamos o murmúrio dos outros venairens e o barulho de talheres arrastando nos pratos.

? E ser pega? Ficar a noite toda de guarda nos muros? ? ela rosnou, encarando-me incrédula.

? Vou quebrar umas regrinhas também ? sorri com malícia para ela ? quem sabe não somos pegas e ficamos lá juntas? Uma noite de gelo e vento vai ajudar a apagar o fogo. ? murmurei mais para mim que para ela, mas mesmo assim, ela gargalhou e assentiu, estreitando os olhos para mim.

? Vai fazer o quê?

? Um interrogatório. ? disse, dando meia volta e retornando aos prédios das salas. Sabia que a sala que seria usada para as aulas de combate mágico era no subterrâneo da torre principal, descendo os dois lances de escadarias que ficavam dispostas atrás de portas embutidas nas paredes, sob as escadas que levavam as salas comuns. Um labirinto, aquele lugar.

Olhando para trás, vi Hestia em conflito, olhando para o prédio do dormitório dos mestres. Por fim, ela bateu os pés no chão e correu naquela direção, transformando-se numa pequena raposa luminosa.

Por cima dos muros, podia ver os últimos vestígios de claridade desaparecer de vez enquanto o céu cinzento se tornava negro.

A noite estava chegando cada dia mais rápido... estávamos próximos ao auge do inverno de Vegahn e em breve as noites ficariam quase tão longas quanto as de Pollo, deixando tudo um pouco mais difícil. A escuridão que dominava naquela época do ano era mais densa e as criaturas que já não tinham mais a influência calma do Yinemí, se tornavam mais hostis em busca por comida.

Logo, a segurança de todas as cidades teriam as guardas reforçadas para evitar os ataques de criaturas selvagens... ou de malvarmos que não conseguiam alimentar-se com frequência, uma vez que as temperaturas ainda mais baixas aumentavam a drenagem do calor que armazenávamos.

E era justamente a época que mais havia demanda de missões.

Torcia para que, com o ataque do demônio, Lórien não decidisse cortar as missões de minha equipe.

Divagando, mal percebi que já estava descendo as escadas em espiral até a sala subterrânea. Tinha a chance de Hasan não estar ali, porém nas salas haviam barreiras sutis ligadas aos mestres que lecionavam nelas, então se eu entrasse na sala, Hasan saberia que eu estaria ali. Como estava próximo ao toque de recolher, ou ele apareceria para me dar uma detenção nas muralhas... ou nem se daria ao trabalho de aparecer.

Torcia para que ele viesse.

Quase no fim das escadas, o som de vozes conversando me fez diminuir o passo e desejar poder me ocultar nas sombras... era uma voz feminina conhecida e a voz completamente indiferente de Hasan.

Desci lentamente os últimos degraus, prestando atenção nas vozes. As escadas terminaram em um curto corredor, me inclinei um pouco contra a parede para ver quem estava ali. Encostado no batente das portas duplas de braços cruzados e expressão vazia, estava Hasan encarando Mona. Para minha infelicidade, quando passamos para o V9 tivemos o desprazer de dividir várias aulas com ela e sua equipe, da qual eu não tinha nada contra, mas ela...

? Imagino que o senhor possa dar aulas particulares de línguas para mim, mestre. ? Ela inclinou a cabeça, sorrindo e enrolando as mechas do sedoso cabelo castanho escuro nos dedos. Suas roupas não condiziam com o frio intenso que fazia, ela vestia nada além de uma saia longa e blusa de manga que abraçava os seios fartos e os braços delineados, o decote então...

? Leonne é uma mestra incrível, Mona, acredito que ela fará um trabalho melhor que o meu e você irá aprender muito bem. ? Hasan respondeu calmamente, mas tão seco quanto um dia em Ciartes. A elfa fez um biquinho e se aproximou, meus dedos se fecharam em punho, mas... ele não havia dito nada além de que me deixaria tentar conquistá-lo.

? Acho que não me fiz muito clara! ? Ela deu outro passo, fazendo meu coração acelerar. Eu não devia ligar... não devia me meter.

? Eu a entendi perfeitamente, Mona. ? Hasan comentou, dando um daqueles sorrisos de gelar a alma. ? e qualquer tipo de relacionamento entre mestres e alunos é estritamente proibido, o que me levou a ignorar a malícia de suas palavras, mas caso queira insistir, serei obrigado a notificar à direção sobre seu comportamento e acredito que não queira ser banida, certo?

Ela não se afastou, apenas estalou a língua e encarou as unhas bem-feitas.

? Estou na ACV pois meus pais insistiram, uma expulsão não quer dizer nada para mim! Até porque o motivo vale a pena! ? Ela deu um sorriso tímido, do tipo que eu quis revirar os olhos e lhe chutar dali.

? Sugiro que volte para seu dormitório, passou ? ele olhou para trás, certamente observando a hora em algum relógio ? cinco minutos do toque de recolher.

? Mais um motivo pelo qual não posso sair sozinha.

Pelos deuses! Precisava perguntar a ele se eu estive sendo ridícula assim. Nem precisava perguntar para saber a resposta.

? Verdade! ? Hasan riu ? precisa de companhia para sair.

Ele era um mestre... em parte, era sua função evitar que os alunos estivessem em qualquer perigo, mas não nego que meu coração apertou um pouco.

Sorridente, Mona estendeu o braço para ele, mas Hasan apenas deu um baixo assovio que fez minha cabeça doer e Mona olhá-lo confusa ainda com o braço erguido. No minuto seguinte, Freya apareceu pela escada oposta junto à dois guardas.

? O quê? ? Mona quase gritou ao ser segurada pelos guardas com cara de poucos amigos.

? Muralhas, até o amanhecer. ? Hasan comentou com Freya ignorando os protestos da garota. Freya sorriu como se acabasse de pegar uma presa, ela observou a garota e fez um sinal com as mãos para os guardas, em seguida fez outro para Hasan e subiram as escadas, levando-a com eles. A senhora silfa e capitã da guarda da ACV era silenciosa, ela havia perdido a fala durante um contrato com uma entidade da floresta morta, nunca soubemos o que ela quis ter, mas perder a voz não a impediu de assustar os alunos sem dizer uma palavra. ? AH! ? Hasan alertou alto ? Não se esqueçam de não a deixar ir pegar roupas mais quentes, pelo visto ela gosta do frio que está fazendo. ? A crueldade daquilo me fez querer rir, porém fiquei preocupada de ir até lá e ter o mesmo destino.

Hasan entrou deixando as portas abertas. Não foi preciso reunir muita coragem para ir até lá e entrar na sala, mas estaquei ao ver o salão ali dentro.

O local era quase do tamanho do salão sob o refeitório. Haviam bonecos de treino com marcações pintadas alinhados no canto esquerdo e o piso era de uma pedra escura... obsidiana para absorver impacto de magias. Já no canto direito do salão, havia uma sala com janelas de vidro nas laterais e uma porta aberta de frente para a área de treino.

Hasan estava naquela sala, encostado na mesa com um maço de folhas na mão. Sem dúvida as fichas dos alunos com magia. Mordi os lábios, indecisa em me aproximar e incomodada pois ele sempre percebia a presença de qualquer um.

A vontade de perguntar sobre Fares venceu o medo de ir parar nas muralhas, então me aproximei. Ele nem mesmo olhou em minha direção quando me encostei na parede em sua frente. Bufei frustrada, só então Hasan me olhou... mas sem olhar, era como se não me visse.

? Vai me ignorar? ? O salamandra quase deu um pulo e franziu o cenho.

? Kiara?

? Não, o espírito que assombra a ACV! ? cruzei os braços irritada. Hasan ergueu dois dedos e os estalou, uma lufada como um brilho morno passou por mim, deixando uma estranha sensação, como se tivesse imergido de uma piscina fantasma.

Hasan ergueu as sobrancelhas e meneou a cabeça negativamente.

? Porque estava andando invisível por aqui? ? Ele me observou de cima a baixo estreitando os olhos e meu rosto aqueceu.

? Não fiz isso de propósito! ? Ele podia pensar que o estava vigiando ? Estava aprontando com Hestia... fiquei imaginando que gostaria de não ser vista.

Ele assentiu devagar, sem tirar a expressão desconfiada do rosto.

? E acidentalmente veio parar aqui embaixo e ouviu a conversa com Mona?

? Ah aquilo! Não a culpo, metade dos alunos querem uma casquinha. O pior é que devo ter sido tão ridícula quanto. ? dei de ombros e me afastei um pouco, passando os olhos sobre os documentos sobre a mesa. A salinha tinha decoração semelhante à sua antiga sala, móveis escuros de madeira, estantes com livros e um sofá de couro ao lado delas.

? Você não está acima do toque de recolher, sabia? ? Ele começou a arrumar as fichas numa pilha, separando-as pelas raças dos venairens.

? Não é como se eu tivesse vindo até aqui pra tentar te agarrar ou algo do tipo ? me defendi, tentando evitar o assovio que chamaria Freya e me daria um passe para uma noite nas muralhas ? só queria saber sobre Fares... ou melhor, Leonne! ? foi minha vez de olhá-lo desconfiada.

Hasan encolheu os ombros, mas sua atenção não saiu das fichas.

? Precisávamos trazê-lo para dentro da ACV, pois as barreiras que seus pais deixaram aqui, impedem a magia proveniente de Adraph de entrar. ? explicou, terminando de organizar as fichas ? Neruo me disse que embora ele seja bem equilibrado com magia, se recusa a treinar combate, e colocá-lo como aluno, ainda teríamos o problema das missões. Como um mestre, especialmente um mestre que não exija habilidade de combate, ele permaneceria na academia por maiores períodos de tempo.

? Mas...

? Não acredito que ele vá ter um surto ? Hasan comentou, agora encarando-me. ? Fares ficava angustiado pois não acreditávamos nele, e ele precisava que déssemos atenção para que ele deixasse a sua mensagem.

? Encontrar a chave. ? completei. Hasan assentiu. ? Mas por que Leonne? Por que uma mulher?

? Ele disse que se sentiria mais confortável assim, pois os outros o viram com Aliver, como não queria mudar de aparência, preferiu apenas mudar para a forma feminina que ganhou ao passar pelos arcos do dormitório quando esteve aqui.

? Então... a ACV tem barreiras que impede aquele demônio de entrar?

Hasan assentiu.

? Lórien vai querer tirar as nossas missões. ? Não foi uma pergunta, meu coração estava acelerado, andei pela sala e me apoiei na mesa. Não seria justo com os outros se eles fossem impedidos de fazer as missões por minha causa, aquilo era parte de nosso treinamento!

? Ela não fará tal coisa. ? O salamandra puxou os cabelos vermelhos para o lado e começou a trançá-los, os movimentos rápidos de seus dedos e dos músculos dos braços dentro daquela blusa apertada, começaram a tirar o foco de minha atenção. ? Você escolheu locam, suas missões certamente serão em outros mundos. Não houveram ataques daquilo fora de Vegahn e sem o machado não creio que ele te localizará. O máximo que ela pode fazer é impedir que vocês façam as missões simples nos arredores. ? Hasan finalizou a trança e a jogou para trás, em seguida com um aceno suave dos dedos, os papéis que ele havia separado, juntaram-se numa pilha na estante de livros, deixando a mesa desocupada.

? Eu... acho que sim. ? um meio sorriso apareceu em seu rosto e meu coração tornou a descontrolar.

? Parece um pouco nervosa. ? Ele se aproximou. Minhas costas estavam contra a madeira da mesa agora... e ele a menos de um passo.

? Nem um pouco ? mentira!

? Eu não acho que você pareceu ridícula. ? comentou, aproximando-se mais, agora a menos de um palmo de mim. Tive que levantar a cabeça para encará-lo. ? Diferente dos outros que só querem uma aventura, algo para contar vantagem... você tem um sentimento real.

Minha pele formigou com a proximidade e quase incendiou no instante em que ele apoiou as mãos na mesa, entre meus braços, quase tocando minha cintura. Com sua aproximação, as marcas que ele havia me dado, as flores de jade se acenderam em meu braço.

? Nunca foi um desejo de aventura para mim. ? minha voz saiu embargada, ele assentiu e aproximou o rosto do meu. Seu hálito quente acariciou minha boca quando continuou:

? Sei disso. Você em nenhum momento usou aquele beijo roubado ou o momento na biblioteca como um troféu. Outros teriam o feito.

? Você puxou essa autoestima de seu pai. ? falei nervosa. Hasan riu, de uma forma grave e sensual que fez os pelos de meu corpo se arrepiarem. Os olhos agora dourados não se desviavam dos meus.

? E você precisa treinar esse poder... aprender a controlá-lo sob pressão. ? Hasan olhou para baixo, onde sombras salpicadas de pontos de luz se espalhavam ao redor de minhas mãos apertadas na madeira. Ele tornou a me encarar, uma de suas mãos segurou minha cintura e a outra meu queixo, ele então roçou a boca sob minha orelha e foi traçando uma linha até tocar os lábios nos meus. Estava prestes a virar uma poça a seus pés... e não tinha a ver com derreter meu gelo. Hasan deve ter percebido isso, pois sua língua contornou meus lábios antes de mordê-los de leve.

? Oh deuses! ? sussurrei contra sua boca erguendo as mãos até seu peito.

? Hmm? ? Ele deslizou a mão de minha cintura para meu quadril e por pouco não deixei um gemido escapar. Estava quase me acostumando de que aquilo podia ser real.

? Pensei que você fosse mais... frio. ? deixei escapar.

Hasan riu outra vez, sua boca se aproximou de minha orelha e ele mordeu o lóbulo antes de dizer:

? Ah, eu tinha esquecido disso. ? tão repentinamente quanto começou, Hasan se afastou alguns passos, colocou as mãos nos bolsos da calça, um sorriso quase cruel deixava seu rosto ainda mais bonito.

? O quê? ? quase choraminguei.

? Aqui não. ? Ele sorriu, então deu aquele assovio sinistro outra vez.

? Só pode estar de brincadeira! ? rosnei.

? Entrou escondida, estava aqui me assediando, e fora do quarto depois do toque de recolher. ? Ele cruzou os braços sem deixar aquele sorriso de planejador do mau sumir.

? Hasan! ? protestei.

? Mestre para você. E não vá atirar Mona da muralha. ? Ele mordeu os lábios. ? Tem que se acostumar a controlar o ciúme, acha que eu não estava prestando atenção hoje cedo? E pensa que não ouvi você chegando antes de sua presença desaparecer?

Pisquei incrédula.

? Casos entre mestres e alunos dão problemas por muitos motivos e um deles é ciúme de outros alunos, o pensar que o relacionamento traz vantagens ao aluno. ? Hasan piscou para mim. ? Freya deve estar chegando.

Franzi o cenho.

? Eu sou boa em controlar meus sentimentos ou escondê-los, afinal, os escondo de você a um bom tempo. ? comentei ? mas como está me dizendo isso, imagino que consiga ocultar os seus muito bem, já que alunos podem se relacionar entre eles sem nenhum impedimento... e as barreiras dos dormitórios não estragam em nada qualquer tipo de diversão. ? não consegui segurar a língua a tempo.

Ele parecia chocado, mas não teve tempo de digerir minhas palavras. Freya e os guardas apareceram um momento depois, olhando de mim para o mestre, esperando que ele dissesse algo.

? Acho que é muralhas até o amanhecer, certo mestre? ? perguntei inocentemente. Ele suspirou pesadamente.

? Noite agitada, pegamos uma bruxa no dormitório dos mestres agora a pouco, no quarto da mestra novata! ? um dos guardas comentou, aproximando-se de mim.

? Boa noite, mestre. ? Freya me encarou como se eu fosse de comer, ela sorriu enquanto me levava para fora do salão. Hasan continuava quieto em sua sala e só quando já estava me aproximando das escadas congeladas do lado de fora, que percebi a maldade escondida em minhas palavras.

Ele estava prestando atenção em mim durante a apresentação de Fares, me viu ter um pequeno surto mágico mesmo que eu estivesse escondendo meus sentimentos, a magia demonstrou.... e sem dúvidas reparou no braço do tenebris ao meu redor.

Droga! Devia ter deixado minha língua presa atrás dos dentes.


Capítulo 4


Hestia, Mona e eu fomos colocadas em diferentes pontos da muralha, de forma que mal nos vimos até o início da madrugada, quando uma tempestade de neve nos obrigou a entrar nas guaritas enquanto os outros guardas bem protegidos continuavam rondando lá fora.

Fiquei espremida num banco de pedra, sendo apertada por Hestia, ela parecia querer roubar o pouco de calor que tinha em meu interior, a bruxa tremia e suspirava irritada. Pelo visto, o castigo de nos deixarem com as roupas do corpo sem direito a mantos foi para todas. Mona, no outro canto da guarita ao lado de um guarda élfico adormecido em seu horário de descanso, nos lançava olhares irritados.

? Não sei o porquê te escutei! ? Hestia balbuciou, soprando as mãos em concha. Em seu braço esquerdo, um bracelete de prata envolto em veludo lhe bloqueava a magia.

? E não valeu a pena? ? questionei. Hestia mesmo tremendo, com os lábios pálidos de frio, deu um sorriso contido.

? Talvez. ? murmurou, espremendo-me ainda mais.

? Sabe que não vai conseguir se aquecer me abraçando, não é? Minha temperatura cai com o ambiente, esqueceu? ? a lembrei, eu estava tão fria quanto a neve lá fora, um mecanismo para evitar que meu calor fosse consumido mais rápido. Hestia se afastou chorosa e encolheu o corpo, passando os braços ao redor das pernas. A neve batia nos vidros da guarita como uma chuva forte, mal podíamos enxergar um palmo à frente da janela.

Porém fumaça negra e perfumada espiralou por debaixo da porta da guarita, deixando Mona em alerta, eu relaxei feliz em sentir aquele aroma.

? Nunca vi uma bruxa Sorcys prestes a virar um boneco de neve! Isso é algo novo, sua magia não é de fogo? ? a voz do tenebris ressoou contra as paredes, vibrando as pedras. Mona arquejou ao vê-lo tomar forma e estreitou os olhos, movendo-os dele para nós. Continuei a ignorando. Faria aquilo até amanhecer se fosse necessário, eu não era uma louca ciumenta e psicótica, podia agir como se não tivesse visto nada lá embaixo.

? Fico feliz que esse frio dos infernos não tenha estragado seu humor! ? Hestia ironizou ? Minhas asas estão latejando!

Eu havia esquecido que ela ainda estava ferida, me senti culpada por tê-la provocado a ir até Fares.

? Ah! Lembrei ? Lohan tirou de um buraco no escuro, um manto espesso de pelo de Yeti e uma caneca fumegante de chá e estendeu à bruxa, que soltou um gemido agradecido, se enrolou no manto e começou a bebericar o chá de ervas.

? Veio só para trazer isso? ? questionei.

? Não exatamente ? o tenebris estalou os dedos e o ar na guarita se tornou mais quente, até mesmo aconchegante. A elfa suspirou também e fechou os olhos, mas duvidava que ela fosse agradecer a ele por não deixá-la congelar também. ? Agora sim! Só vim garantir que o castigo não fosse tão ruim, afinal, a diversão não poderia ser estragada! ? Ele piscou com malícia e desapareceu em seguida numa lufada de fumaça.

“Estava escutando!” grunhi mentalmente, sabendo que ele ouviria.

“Vou tentar parar com isso!” A voz de Lohan sumiu com uma risada divertida logo depois de um “mentira”.


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A tempestade de neve parou cerca de duas horas depois do tenebris aparecer para melhorar um pouco nosso castigo, então fomos obrigadas a voltar lá para fora e circular procurando por qualquer sinal de que algo ou alguém pudesse ter se aproveitado a tempestade para tentar entrar.

Fomos liberadas pelos guardas às quatro da manhã e caminhamos em silêncio para o dormitório. Mona não nos dirigiu uma palavra enquanto nos seguia silenciosa pelo longo corredor até o dormitório. A elfa tinha olheiras e o cabelo parecia estar semicongelado. Seus lábios estavam azuis e ela se esfregava, tentando manter o corpo aquecido. Hestia olhou para ela, mas seu humor não estava bom o suficiente para que ela fizesse alguma piadinha.

Pelo visto, expulsão valia o preço de conseguir algo a mais de Hasan..., mas uma noite lá fora no gelo deve tê-la feito repensar isso. Mona entrou numa das portas no primeiro andar do prédio, para minha surpresa, ela deu um boa noite antes de fechar a porta.

? Como boa noite, se agora temos que nos preparar pra aula? ? A bruxa choramingou, tirando neve do cabelo.

? São quatro horas. Se pularmos o café, teremos três horas de sono pela frente. ? Os olhos de Hestia brilharam, ela deve ter perdido a noção do tempo lá fora.

Hestia entrou no quarto desabando na cama, assustando Ira que estava embrulhado sobre seu travesseiro, a bruxa já caiu fechando os olhos, adormecendo quase que instantaneamente sem se dar o trabalho de se livrar das roupas úmidas. Retirei seu manto e as roupas molhadas e a cobri antes de tirar as minhas próprias, me enfiar numa camisola e desabar n cama também. Uma noite acordada no gelo não me fazia diferença...

Mas ao lembrar daquele toque... dos lábios quentes de Hasan percorrendo meu rosto, o sussurro de um beijo, meu corpo se aqueceu e sorri quase dormindo também.

Para mim, o castigo valeu o preço.


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Uma fumaça doce e perfumada espalhando-se pelo quarto foi o que me acordou de meu sono conturbado. Estava tendo um pesadelo... vendo Fares sendo atacado por aquela besta de fogo azul... e sendo destruído por ela.

Levantei ofegante, tirando os cabelos embolados do rosto. Meu estômago estava embrulhado, mas consegui conter a vontade de correr para o banheiro e virar o estômago vazio do avesso.

? Bom dia, princesa! Pesadelo? ? A versão feminina de Lohan estava sentada na beirada de minha cama sorrindo maliciosamente.

? Sempre tenho algum ? murmurei, sentando-me direito para ver o que ele segurava sobre o colo. Como mulher, Lohan se parecia com Honén, um corpo invejável que faria a maioria dos homens dentro daqueles muros se derreter, mas o sorriso convencido ainda era o de um macho sem vergonha.

O tenebris estalou a língua e estendeu um prato com ovos mexidos, bacon e torradas, acompanhado de uma xícara de café com leite fumegante.

? Por que isso? ? perguntei, dando uma garfada no bacon ? sabe que eu não preciso comer!

? Você sempre come no refeitório ? Lohan estendeu um tendão negro de fumaça até a cama de Hestia, aquilo entrou por baixo das cobertas fazendo a bruxa pular com um grito e Ira chiar, caindo de cima de suas costas e saltando em seguida para abocanhar o atacante de sua almofada viva.

Hestia olhou em volta confusa, mas seu rosto estava vermelho.

? Nem vou perguntar o que você fez com aquilo. ? tomei um gole do café.

? Pervertido! ? Hestia se levantou zonza ignorando completamente que estava nua e pegou o prato que ele estendeu para ela, uma grande porção de mingau. ? Por que o café no quarto? ? Ela quis saber também.

? Fiquei com pena do sofrimento de vocês ontem... e como faltam dez minutos para a aula e vocês não apareceram para o café, imaginei que ainda estariam dormindo! ? Hestia quase cuspiu o mingau. Ela literalmente virou o prato na boca e raspou com a colher, engolindo tudo como se sua boca fosse um buraco sem fundo. Lohan e eu olhamos boquiabertos o mingau sumir em menos de dez segundos e a bruxa se levantar num pulo e correr para o banheiro.

? Uau! Isso sim é excitante! ? Lohan zombou ? faz isso na frente da mestra Leone! ? foi minha vez de engasgar com o café e rir.

? Duvido que Fares tenha visto algo parecido! ? Lohan riu, mas Hestia berrou um “vão se ferrar” de dentro do banheiro.

Terminei meu café e consegui tomar um banho muito rápido antes de descermos rapidamente as escadas, a primeira aula do dia seria de combate mágico. Haviam alterado nossos horários... antes teríamos história dos mundos nesse período. Se tivesse lembrado que haveria treino no primeiro período, nunca que teria aceitado tomar café.

Lohan voltou a sua forma normal ao passarmos pelas portas do dormitório feminino, e para minha surpresa, Hasan havia acabado de sair do prédio principal onde o dormitório dos mestres ficava. Ele olhou diretamente para nós... e mesmo com alguns metros de neve nos separando, pude ver seu olhar fulminar o tenebris, que tinha os braços em volta de mim e de Hestia.

? Apressem o passo... se chegarem atrasados, vai ser muralha para os três essa noite. ? Hassan ralhou, adiantando-se na direção dos prédios principais, a frieza em sua voz me incomodou mais do que Mona flertando com ele... pois ainda tinha medo de voltarmos à estaca zero, ao mesmo tempo... eu precisava que ele confiasse em mim, mas minhas palavras na noite anterior e agora ver Lohan saindo do nosso dormitório...

Ah, infernos! Eu teria que falar com ele de novo.

? MERDA! ? Hestia gritou, virando no corredor principal, indo na direção contrária da qual precisávamos ir ? Tenho que pegar o chá para minhas asas com Eghan, avisem o mestre por favor! ? Ela desapareceu nas escadas num segundo sem esperar resposta.

? Droga, dormimos demais! ? reclamei, torcendo para ela chegar a tempo.

? Por que não empurrou meu braço ou não se afastou quando ele apareceu? ? Lohan questionou, encarando-me pelos cantos dos olhos. Pelo visto estava esperando Hestia se afastar para tocar no assunto.

Soltei um suspiro pesado e o encarei de volta.

? Você é meu amigo, Lohan. Não estávamos fazendo nada de errado! Não preciso agir como uma culpada! ? o tenebris meneou a cabeça. ? Mas por que você faz isso?

? Isso o quê?

? Fica o provocando.

? E como sabe que é só provocação? ? Lohan estacou no meio do pátio, a alguns passos do prédio principal. Obviamente estávamos atrasados pois não havia mais ninguém além dos guardas do lado de fora.

? Você é meu amigo... me trata com gentileza, mas nunca passou do ponto com as brincadeiras, nunca tentou me beijar nem nada do tipo, sabe que eu o amo e eu sei que você não tentaria forçar algo só para conseguir o que quer... ? os olhos do tenebris estavam completamente azuis, divertidos ? E eu sei que você gosta de Nedyle, vi como você olhava para ela quando estávamos trenando no Quinto.

Lohan arregalou os olhos.

? Nunca, jamais nem pense nisso quando estiver perto de Owyn, entendeu? ? ele sussurrou, aproximando-se um passo. ? Ela é concubina de meu tio... e só pode me corresponder se admitir ter sentimentos por mim e Owyn a liberar do Harém. Isso se ele quiser! ? As palavras dele ficaram cada vez mais baixas.

? Mas ele nem gosta delas! ? resmunguei

? Não importa, ele as trata com respeito e se ele descobrir isso... mexer com as mulheres do rei, isso pode acabar em guerra, Kiara! Seria uma desonra para ele e a punição dela seria perder a cabeça por traição!

? Ela corresponde? Vocês já... ? Lohan assentiu devagar, havia um traço de remorso em seus olhos. Nedyle, uma mestiça de solaris e tenebris e mãe do filho mais velho de Owyn! Era só um chute! Não fazia ideia de que ele realmente pudesse gostar dela.

? Por favor...

? Eu jamais diria algo que o prejudicasse. ? apertei seu braço, sentindo uma dose de pena de meu amigo. Amar alguém com coração de pedra, mas desimpedido era uma coisa, nem imaginava o quão sofrido seria estar em sua pele.

? Obrigado. ? Lohan segurou meu braço e me acompanhou pelas escadas, descendo até o salão onde tomaríamos uma bela surra mágica.

? Não respondeu minha pergunta, por que o provoca?

Estávamos quase nas portas quando ele respondeu:

? As pessoas só dão valor quando acham que vão perder. ? O tenebris me deu um sorriso antes de abrir as portas. Lá dentro, pouco menos de trinta alunos com magia esperavam o começo da aula. Hasan estava dentro da salinha menor, mexendo em algo que não podíamos ver dali.

“Quando confessei meus sentimentos... ele mandou eu procurar alguém que os pudesse corresponder.” Disse-lhe mentalmente “E se ele entender errado suas provocações e...”

“Ele não vai.” Lohan retrucou “Eu também reparei em como ele te olhou ontem... e tem mais, ninguém em juízo perfeito abriria mão de você!”

O tenebris sorriu, beliscou minha bochecha e quando Hestia entrou correndo na sala e se posicionou ao fundo perto de Helleon para não chamar atenção, Hasan saiu da sua salinha trazendo com ele um cesto cheio de esferas metálicas do tamanho de maçãs.

Lohan soltou um assobio, ele pelo visto sabia o que iríamos fazer.

? Espero que tenham descansado o suficiente ? Hasan sorriu de forma cruel, virando o cesto no chão e empurrando as esferas em nossas direções. ? Pois vou fazer vocês gastarem cada gota de magia hoje! O último que ficar de pé vence! Tentem levantar as esferas!

Me abaixei para pegar a bolinha metálica... mas ela nem se moveu do chão.

? Aço lunar. ? Lohan comentou, sem abaixar-se para tentar tirar aquilo do chão. ? Só podem ser erguidas com magia! Se tocadas, ele aumenta o peso conforme a força de quem a toca. Tem que erguê-las sem tocar.

Hasan sorriu para a explicação.

? Uma pena que não vamos ter pontos extras na primeira aula, você teria ganhado um! ? pisquei incrédula. Eu podia jurar que aquilo era ciúme.

? Então... temos que usar magia para erguê-las? ? Um mago humano no fundo da sala fez um som de escarnio com a boca e estendeu a mão sobre a esfera.

? É melhor não... ? antes que Lohan terminasse o aviso, a esfera do rapaz explodiu, lançando-o contra a parede de obsidiana ao fundo do salão, provocando murmúrios assustados entre os alunos.

? Deviam ter me deixado explicar ? Hasan resmungou, ignorando o mago caído ? precisam equilibrar a magia, pois pulsos de energia soltos sem cuidado reagem com o metal, que aquece e se torna explosivo. ? o mestre sorriu, estendendo a mão sobre o restante das esferas no cesto, fazendo-as flutuarem ao seu redor. ? Agora sim, tentem direito!

Olhei para a esfera de metal quase branco em minha frente, tão bonitinha! Como uma lua em miniatura... e um erro ao utilizar a magia, eu seria estatelada contra a pedra negra do fundo do salão. Ou pior... seria atingida pelas explosões de outros venairens.

Estávamos ferrados.


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O fim da aula foi um misto de alívio e alegria. Mais da metade das esferas assassinas foram detonadas por nós. Obviamente Lohan conseguiu fazer a dele flutuar sem nenhum problema, mas eu... se ele não tivesse lançado uma barreira ao meu redor, certamente teria perdido o outro braço, pois estava com tanto medo de errar que não soltei apenas um pulso de energia, eu literalmente fiz uma tempestade magnética cair sobre as esferas, tanto a minha quando duas que estavam mais perto.

Depois daquilo, Hasan me deu outra esfera de metal e explicou mais calmamente como deveria fazer.

No fim da aula, apenas Lohan e eu ainda as mantínhamos flutuando. Tivemos que esperar todos os outros alunos partirem para a próxima aula enquanto Hestia se recuperava para conseguir caminhar normalmente, no fim das contas, Helleon a ajudou a se levantar e caminhou com a bruxa praticamente pendurada a ele.

? Qual era a das bolinhas afinal? ? Hestia choramingou ao saímos da aula em direção a sala de venenos.

? Na verdade, as palikans são feitas de um metal muito resistente a qualquer forma de manipulação. Assim como não as conseguimos tirar do chão com as mãos, elas resistem a magia também e não só isso, absorvem magia assim como as pedras da lua. As palikans servem para saber o quanto de magia você pode usar sem se cansar. ? Lohan explicou calmamente ? elas são um medidor, para testar seu limite. Nos Primeiro, Segundo, Sétimo e Oitavo céus, eles as usam para que os Vernuns e Solaris as mantenham flutuando até que suas tormentas escapem do controle, assim se conhece a profundidade do seu poder, e só então somos treinados de acordo com nosso limite mágico.

? Então a ideia era fazer as esferas flutuarem, assim conforme a energia acabasse nós a deixaríamos cair ele conheceria o limite para nos treinar? E os que cansaram primeiro, foi porque tinham menores... estoques de magia? ? Helleon questionou, ele andava silenciosamente atrás de nós, monitorando os passos trôpegos de Hestia.

? Exato. ? o tenebris me olhou pelos cantos dos olhos ? minha mãe consegue manter uma palikan no ar usando magia de vento por uma hora e logo depois ela a deixa cair, já meu pai a mantém por cerca meia hora.

? E você não parecia cansado depois de uma hora na aula a mantendo flutuando. ? comentei.

? Sobre isso... ? o tenebris coçou o rosto ? tenho mais de tenebris do que de Vernum. Não conseguiria mantê-la no ar nem por vinte minutos.

? Não tente começar ser modesto agora, Lohan! ? brinquei, mas ele não sorriu, apenas baixou o rosto, mas tornou a me encarar.

? Estava roubando energia de você. ? disse baixo ? a aula inteira. Desculpe.

Um frio subiu por minha coluna. Mesmo quando o fim da aula soou, eu não estava como os outros, que pareciam esgotados como se tivessem corrido de Madras à Hima sem parar.

? Não pode estar falando sério.

? Li sobre a criação dos mundos. Foram usados os mesmos poderes base em todos eles, eu pensei que o mesmo tipo de luz e escuridão que os nós celestiais podemos manipular, os magos brancos e negros as tem também, mas sem limites específicos. Vocês podem expandir a magia com treinamento.

? Não entendo...

? Seu pai... ? cochichou mais baixo, não por Hestia e Helleon, eles já sabiam sobre meu pai biológico, o problema era qualquer outro aluno escutar ? ...era um mago branco, sua mãe uma maga negra... você tem as duas heranças. Nós somos parecidos só que eu tenho uma piscina de magia, já você... você tem um oceano.

Olhei para meus colegas que vinham atrás. Os dois não pareciam nem um pouco incomodados com aquilo, mas eu sim fiquei. Raiva ameaçava me corroer por dentro. Talvez eu tivesse magia suficiente para acabar com aquele demônio sozinha, sem colocar meu irmão em risco, podia ter os ajudado antes... e mesmo assim eles apenas me selaram, decidiram o que era melhor para mim, sem pensar no que me aprisionar dentro de mim mesma causaria.

? Não pense assim ? Lohan parou, deixando que os outros dois entrassem primeiro na sala ? Eles erraram, mas fizeram porque a amam! E quando se ama alguém, você deseja fazer de tudo para protegê-la. A prova está no seu pensamento de que podia ter acabado com aquele demônio e protegido seu irmão de qualquer coisa que possa vir a seguir.

? Eu sei, eu sei! ? revirei os olhos e bufei cansada. Ele estava certo de novo.

? Não vai assistir a aula? ? Lohan perguntou ao notar que eu estava escapando de fininho das vistas da mestra de venenos.

? Me lembrei de algo que preciso verificar, não tem hora melhor do que com todos os mestres ocupados! ? pisquei para ele.

? Não vá parar nas muralhas de novo. ? Lohan acenou por cima do ombro e fechou a porta da sala atrás de si. Girei sobre os calcanhares e corri de volta ao dormitório. Com a conversa sobre proteger, lembrei-me de que não tinha visto o conteúdo da carta que encontramos sob a reagis do rei de Vegahn.

Eu ainda tinha uma promessa a cumprir.


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A carta e a chave que havia encontrado sob a reagis de Caalin estava escondida sob um bloco de pedra solta em baixo de minha cama, dentro da caixa com o vestido de casamento de minha mãe, o conjunto de brinco e colar de vitrino e pérolas e o bilhete de Annie. Deixei aquelas coisas de lado e respirei fundo antes de abrir o envelope de papel azulado com uma estranha textura sedosa.

O abri com cuidado, a impressão de que algo saltaria dali e me morderia... não era de todo falsa. Olhar a caligrafia bonita de meu pai mordia a parte desprotegida de meu coração, a mesma que desejava encontrá-los logo, de preferência vivos.


“No ponto mais profundo da morada dos que juram proteger encontra-se o marco do primeiro fragmento. Sob o altar de pedra, ele espera por sua mão, e ao ofertar o preço de uma essência viva, sua luz revelará o próximo passo.”


? Ótimo, pai! Mais charadas! ? resmunguei, relendo o bilhete outra vez. ? A morada dos que juram proteger...

Eles haviam construído a ACV de Vegahn a partir das plantas da ACV de Ciartes, apenas com algumas modificações... porém, o juramento era o mesmo, proteger a todos dos monstros, independente da aparência deles.

Nada era o que aparentava, mas o bilhete era óbvio. Atrás de uma das estantes de livros da sala de Lórien, havia uma passagem secreta que levava a uma cadeia de túneis sob a academia... e também a uma câmara com uma porta estreita feita de pedra lunar e obsidiana.

Descobri aquele lugar antes mesmo de começar a treinar na ACV, pois um dia Fares e eu os seguimos até ali, usando magia para nos esconder deles e vimos quando mamãe abriu a passagem secreta atrás da estante. O máximo que cheguei perto daquela porta foi quando desci atrás dela por pura curiosidade e a vi atravessar a porta de pedra, mas antes que eu visse o que ela estava fazendo lá, fui pega justamente por Hasan, que na época, havia recém começado a lecionar em Vegahn. Demorei a descobrir que ele saíra da academia de Ciartes para se distanciar de coisas que o lembravam sua falecida esposa.

Dei uns tapinhas no rosto, voltando meu foco para a carta.

A possibilidade de que a próxima pista poderia estar naquela sala era grande, e a essa hora, Lórien estaria em aula, lecionando magia básica para os níveis mais baixos dos venairens.

Enfiei a chave no bolso da calça de uniforme e saí quase voando do quarto, teria que descer até lá vasculhar a sala antes que soasse a mudança dos períodos.

Ótimo... era hora de brincar de locam dentro da ACV.


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Como havia imaginado antes, a sala de Lórien estava deserta quando abri a fechadura usando magia e me enfiei lá dentro. Tudo estava em perfeita ordem, a mesa de vitrino com o mapa de Vegahn tinha um leve brilho azul contra os raios dos sóis que entravam pelas janelas e sobre a mesa, algumas pilhas de fichas organizadas me chamaram atenção... pois continham os símbolos das ACV’s de Pollo, os ossos cruzados sob uma adaga; O de Ciartes, duas espadas dentro de uma espiral e por último a foice dentro de um floco de neve, símbolo da academia de Vegahn.

Tinha certeza de que aquilo tinha a ver com a visita de Ederon e Ericko, mas minha curiosidade por aquilo era menor que a de encontrar a sala subterrânea. Olhei na salinha adjacente, onde uma cafeteira expressa soltava vapor, enchendo a sala com aroma de café, bom... ninguém ali escondido ali.

Com o coração acelerado e o nervoso ameaçando me fazer surtar a qualquer presença passando no corredor, puxei o sétimo livro da terceira prateleira da estante na parede do canto da sala, revelando a pequena alavanca metálica. Quando a acionei, a estante deslizou silenciosamente para o lado, mostrando o estreito arco de pedra e a escadaria escura em espiral.

Respirei fundo, dei uma última olhada para garantir que havia trancado a porta da direção e comecei minha descida.

Não precisei usar magia para acender uma luz, pois em alguns instantes minha visão se ajustou à escuridão da escada estreita e fui capaz de ver os entalhes que não havia reparado na primeira vez que desci ali. Nas paredes, feitiços de repulsão foram escritos repetidamente, formando um mantra. Podia sentir a pressão daquela magia antiga arrepiando minha pele, era como se eles estivessem vivos, estendendo dedos invisíveis de magia em minha direção, testando minhas intenções. Se prestasse atenção, quase podia escutar as palavras escritas como um sussurro... mas os ignorei e segui rapidamente até o fim.

O último degrau se estendeu até uma porta de pedra negra com uma pintura em prata ocupando quase toda a parte superior da mesma: o símbolo de uma árvore onde seus galhos e raízes formavam um círculo ao redor dela, e como marcações de um relógio, círculos menores tinham em seus interiores as iniciais dos mundos do círculo dos Doze.

A arvore de Gadyen.

Minha respiração condensou em frente ao meu rosto quando estendi a mão e tracei os contornos da pintura. Não podia demorar! Levei a mão ao bolso e puxei a pequena chave de prata, enfiando-a na fechadura e girando-a rápido então me afastei um passo.

Nada além do som metálico do trinco se abrindo.

Talvez a defesa da sala fosse apenas os feitiços... pois duvidava que alguém não autorizado conseguisse sobreviver a eles e alcançar a porta. Girei a maçaneta devagar, empurrando a porta e em seguida dando um passo para trás, só quando a porta bateu na parede ao se abrir completamente e nada saltar de lá em cima de mim, que criei coragem para entrar.

Ao pisar do outro lado da porta, luzes esverdeadas se acenderam por toda a extensão da sala. Não havia nada de surpreendente ou assustador na estrutura dela, uma grande sala quadrada com prateleiras escavadas na pedra obsidiana que revestia o lugar. Nas prateleiras, documentos, pequenos objetos que não chamavam tanta atenção... mas entre eles, numa das prateleiras mais altas, percebi meu machadão.

Não era um esconderijo ruim, mas...

Tropecei em algo duro, chutando uma elevação no chão que por pouco não arrancou meu dedinho do pé do lugar. Xinguei alto, abaixando-me para ver o motivo daquela pedra solta no meio da sala... e me dei conta que era a única pedra ali que tinha uma pequena marca pintada sobre ela. Já havia visto aquele símbolo antes no templo de Vilehas, era o mesmo desenho que estava entalhado no altar de pedra no fim do templo.

Uma coroa feita de flocos de neve.

? sob o altar ele espera por sua mão... ? a pedra tinha por volta de quarenta centímetros e como não estava fixada no chão, foi fácil erguê-la cravando as garras na fenda entre ela e o piso. A pedra era oca, e sob ela havia uma marca maior, com cinco círculos brilhantes dispostos ao redor do desenho.

? Agora o preço de uma essência viva. ? cortei as pontas dos dedos, e os coloquei nos círculos. Uma forte luz vinda de todo o chão me fez cerrar os olhos, mas o que me apavorou foi perceber que meu sangue estava sendo puxado para aqueles círculos... não meu sangue, mas o calor que eu ainda tinha.

Tentei puxar a mão, mas estava presa naquele selo.

Então era essa a armadilha?

Meu coração acelerou enquanto sentia o calor fugindo de mim ao mesmo tempo que o chão da sala se movia, como um grande jogo de dominó sendo embaralhado antes das peças serem escolhidas. Pedras começaram a se mover e levantar, formando uma longa mesa de pedra negra com frases em élfico antigo, cujas palavras não conseguia reconhecer pois minha visão começava a embaçar.

Quando o clarão desapareceu, deixando apenas os símbolos ao redor do altar brilhando, minha mão foi solta e eu cai sentada em frente aquilo com meu coração disparado. Me dei alguns segundos para que minhas pernas parassem de tremer e levantei-me apoiando na mesa.

Escavada na pedra. Havia uma espécie de bacia onde algo dançava ali dentro... como uma sombra viva, algo com a sensação de minha mãe.... uma de suas sombras. Quase pude senti-la me observando com aqueles olhos verdes irritados, como se eu estivesse fazendo uma bagunça e ela prestes a brigar.

Temerosa, observei a sombra dançar de um lado para o outro na bacia e de vez em quando, um pontinho de luz ficava visível. Oras... que mal podia haver em enfiar a mão ali, depois de ter quase todo meu calor roubado pelo altar?

Já estava ali mesmo!

Enfiei a mão sem pensar uma segunda vez e a fechei em volta de algo frio e cilíndrico... mas para meu espanto, as sombras subiram por meu braço, circularam ao redor de meu pescoço e por fim desapareceram sob meu uniforme antes de eu sentir a marca das sombras queimar em minhas costas.

Parecia um lembrete, de que tudo dentro daquela busca ia me causar algum tipo de dor.

O cilindro em minha mão não passava de um frasco contendo uma página amarelada enrolada em seu interior... e dentro da bacia, mais um bilhetinho. Sim... cada minuto daquilo me traria lembranças deles, mas também me sentia jogando com meu pai, como ele fazia quando era pequena. Jogos de descobrir pistas, de encontrar coisas, de achar as pessoas no castelo e descrever o que elas estavam fazendo apenas observando através de minhas sombras...

Esse jogo aumentaria também minha esperança de os encontrar com vida.

? E eu pensando que você não iria vir procurá-lo aqui! ? a voz de Hasan atrás de mim me fez ter um sobressalto.

? O quê? ? o encarei com o coração acelerado, ele agora observava o altar atrás de mim com o cenho franzido, então olhou o cilindro de vitrino em minha mão.

? Achei que tivesse vindo buscar o machado.

? Bom... não vim por ele. Nem fazia ideia de que estava aqui! Afinal, a ACV não seria um bom lugar para escondê-lo, pois não ajudaria a testar a teoria de que o machado está fazendo ressonância com a foice que pode ou não estar com o demônio... ele precisaria ser colocado num local onde pudesse ser sentido com facilidade. Se ele ficar aqui, já que o demônio não pode entrar nas barreiras da ACV, ele sempre estaria rodando ao redor, buscando a presença do machado. Ele a sente, mas não vê, isso o instigaria a atacar ou até mesmo infiltrar alguém para procurar aqui. ? As sobrancelhas de Hasan se ergueram, e podia jurar que uma pontada de vergonha brilhou em seus olhos.

? Como sabe da ressonância das armas? ? ele quis saber.

? Acha que meu pai não teria contado? Ele me ensinou a usar isso, para o caso de um dia eu ir parar em outro lugar e não saber voltar para casa. Sielem sempre estava comigo quando eles abriam os portais e nos mandavam para Retiro das Folhas. ? expliquei.

? Então aquele dia no vale, você sabia que eu estava mentindo?

? Não foi mentira, foi omissão. ? dei de ombros, encarando seus olhos dourados. ? Você não era obrigado a me contar, mas seria esperto não fazer isso de novo. ? comentei encarando minhas unhas.

? Bom... ? Ele pigarreou um tanto sem graça ? Não tinha pensado em pôr a ressonância a prova dessa maneira. Vou mudar o esconderijo dele. ? Hasan se adiantou até mim, estendendo a mão para o cilindro. Tentei tirá-lo de seu alcance, mas o olhar irredutível dele sobre mim me fez estender a mão novamente. Para minha surpresa, ele não quis olhar o conteúdo do cilindro, mas sim os cortes nas pontas de meus dedos.

? Está tudo bem ? me encolhi quando ele usou magia para curar aquilo, mesmo sabendo que em poucos minutos os cortes fechariam.

? Pagamento essencial, você tem que ofertar algo que é vital para sua sobrevivência. ? Hasan se aproximou mais, desceu as mãos para a bainha de minha blusa e a ergueu um pouco. Minhas pernas estavam moles outra vez!

Uma marca cristalizada se formava ao redor de meu umbigo, o altar fora erguido usando meu calor como fonte de magia.

? Espero que os próximos tenham defesas menos específicas. ? murmurei, desviando meu foco daqueles olhos dourados flamejantes para encarar o cilindro. Hasan soltou minha blusa e pegou o frasco, retirou a tampinha metálica com cuidado e puxou a folha de dentro. Ele franziu o cenho quando a desenrolou, em seguida a colocou sobre o altar.

? Um fragmento de mapa.

Lhe dei as costas para observar as linhas negras traçadas no papel, metade de um nome podia ser visto no que parecia ser uma parte de encosta.

? Legal, uma caçada ao tesouro! ? brinquei, passando os dedos sobre o papel... e assim como as sombras na bacia tinham a impressão de minha mãe, os riscos naquela folha me lembravam de Susano.

? Eu os vi entregar alguns desses frascos aos regentes de outros mundos. ? Hasan disse baixo, colocando as mãos na mesa, ele estava atrás de mim... perto demais. ? Owyn... o rei tenebris, Detéria... o rei vampiro, Pluma Prateada, o líder de uma escola de magia escondida na Terra... mas olhe ? Ele apontou um pequeno número no topo do desenho, um de doze. ? O mapa está fragmentado em doze partes.

? Então vou ter muitos lugares para passear atrás deles. ? falei, tentando não pensar naquele lugar com aquela pouca iluminação e deserto...

? Vai ser perigoso. ? Hasan comentou, levando uma mão quente a minha barriga, onde o gelo espetava minha pele. A sensação era tão agradável que fechei os olhos.

? Nada é simples ou seguro. Qualquer coisa feita de forma errada pode ser perigoso. ? minha voz ficou trêmula ? treinamos para tornar as tarefas perigosas um pouco mais seguras... ? Ele começou a circular os dedos ao redor de meu umbigo.

? Você tem que se alimentar de novo. ? Hasan sussurrou.

? Hmmm faço isso mais tarde. ? Pelo visto, minhas palavras foram entendidas de forma errada, pois ele tirou a mão e se afastou um pouco, o suficiente para que eu me virasse e pudesse encará-lo. ? O quê?

? Quem? ? Ele estreitou os olhos, pisquei tentando entender aquela repentina mudança em seu tom de voz.

? Não entendi.

? De quem vai se alimentar? ? foi minha fez de erguer as sobrancelhas surpresa. Aquilo definitivamente era ciúme. Porém a verdade também afundou em mim como uma pedra e meus ombros desceram com a culpa. Havia me esquecido que Senrys não estava mais na ACV, que agora ele precisava se adaptar a aquilo... a ter que morder os outros para lhes roubar o calor também. O salamandra deve ter percebido o rumo que meus pensamentos tomaram, pois sua postura relaxou.

? Fares está na ACV agora. Hestia também não se negaria. ? disse.

? Está querendo fugir agora? Porque não me deixa dar isso a você?

? Não, obrigada! ? sorri lentamente para a expressão confusa em seu rosto ? É proibido, alunos não podem morder os mestres dentro das dependências da ACV, apenas em casos extremos em que não haja nenhum outro aluno perto ou em que esperar mais possa ser fatal.

Por mais difícil que fosse, lhe dei as costas, peguei o fragmento de mapa, o enrolei e o coloquei de volta na bacia, a sombra que se alojou em mim desceu novamente por meu braço, cobrindo o cilindro como um gato deitado sobre algo. Iria juntar todos que conseguisse encontrar ali, levaria comigo apenas o bilhete com a dica do próximo passo.

Hasan se moveu também, pegou o machado na prateleira e parou na porta, mostrando o caminho para fora da sala. Ele não parecia irritado com a recusa, só... surpreso. Evitei sorrir.

O mestre fechou a porta atrás de mim quando saí, reativou o feitiço de proteção dali e me seguiu escadas à cima.

? Como soube que eu estava aqui? ? questionei.

? A sala de Lórien tem detecção de magia. Ela me avisou de que você estava aqui, como tenho poucos alunos com magia para ensinar e ela estava em aula... vim ver do que se tratava. ? respondeu também com um tom de voz normal. Por cima do ombro pude ver seus olhos brilhando em dourado, observando-me com curiosidade. Ao chegar na sala, Hasan empurrou a estante de volta, cobrindo a porta na parede e bufou, brincando com o pingente do machado em sua mão.

Queria aproveitar mais uns minutos de sua presença, então abri o bilhete com a próxima dica chiei ao ler:


“Desça até que seus pulmões lutem por ar. O cone sob as águas você deve encontrar. Lá embaixo, nove dragões guardam o fragmento onde sob o mar revolto se pode respirar, as tormentas não pouparão o indigno que lá ouse entrar.”

? É um bom lugar para esconder um pedaço do mapa. Também me serve como novo esconderijo para o machado. ? Hasan comentou, aproximando-se para ler o bilhete.

O encarei incrédula.

? Já matou a charada? ? questionei

? Palácio dos nove dragões, fica na cidade submersa dos sereianos, em Amantia. Nunca foi lá, não é? ? meneei a cabeça negativamente ainda de boca aberta.

? Em Amantia estive poucas vezes no castelo de cristal para ver tia Asahi, fui levar a garota que foi sequestrada pelos piratas também, e uma vez cheguei a ir em Torre das Nuvens. ? Conhecia os mapas de Amantia, mas não passou pela minha cabeça a Cidade das Tormentas.

Hasan me encarou por alguns instantes.

? Sua próxima aula é de história... e já está matando venenos mesmo, quer ir até lá? ? um largo sorriso queimou minhas bochechas, e mesmo tentando jogar o mesmo jogo que ele... não ia recusar um convite para ir até uma das cidades submersas.

Meu sorriso foi resposta suficiente, Hasan se aproximou estendendo o braço para mim, sem hesitar eu o peguei e esperei pelo portal. Dois fragmentos do mapa em um dia, talvez aquele seria o dia mais produtivo dessa busca.


Capítulo 5


Hasan:


Kiara, tinha os olhos turquesa brilhando com fascínio, parecia uma criança vendo uma fada pela primeira vez. Logo que pisamos na câmara de secagem no saguão do castelo dos nove dragões, ela soltou um gritinho ao perceber que toda a água fora escoada pelos dutos de sucção sem o uso direto de magia.

Ao passarmos da câmara para o interior do castelo, ela sorriu largamente, aproximando-se de uma das grandes janelas do corredor para tocar a água que era mantida para o lado de fora. Demétrius e Yurin mantiveram a mesma decoração desde a época que Misannin governava as tormentas, antes de sua filha perder a vida na guerra contra Fairin... e ela deixar as Tormentas para que seu neto governasse o lugar.

Kiara contornou com os dedos as decorações douradas nas paredes, seus olhos tinham quase o mesmo tom de azul das pedras do castelo submerso. Dois serviçais sereianos que vinham pelo corredor estacaram quando viram a malvarmo caminhando por ali, sorrindo como se estivesse num parquinho. Mas aquele sorriso se parecia muito com o que ela tinha de manhã no rosto, ao sair do dormitório acompanhada pela bruxa e o tenebris.

Ela dizia me amar... havia provado indiretamente isso, quando fui capaz de erguer suas espadas essenciais, espadas que também foram dadas por ele.

Porém ela podia ter sentimentos por ele também. E poderia aceitá-los caso eu recusasse os seus.

Foco.

Estava ajudando-a a encontrar um fragmento do mapa, uma caça ao tesouro deixado por Nikella e Susano. Torcia para que aquilo acabasse conosco os encontrando vivos, pois se não os encontrássemos assim... nós todos sentiríamos aquelas perdas pela segunda vez. Como se não bastasse não ter mais Leona, Ewren, Serena... a paz que eles se esforçaram para trazer há muito havia sido perdida e o custo foi alto demais para algo que logo se perdeu.

? Com quem exatamente vamos falar? ? Kiara perguntou depois de alguns momentos em silêncio, estávamos quase chegando ao escritório no terceiro andar do palácio, a essa altura o fascínio já estava diluído na curiosidade, seu foco agora era na paisagem que passava pelas janelas, as colinas de algas arroxeadas do outro lado do castelo.

? Com o atual governante das tormentas, Demétrius. ? comentei mais seco do que gostaria, Kiara não pareceu incomodada, ela assentiu devagar.

? O conheço do castelo de cristal. Já treinei com ele e com Yurin algumas vezes.

? Você passou um tempo com cada um que viveu as guerras e que conheciam seus pais... o quanto isso te incomoda? ? Ela parou entre duas janelas, surpresa com a pergunta. O brilho das águas claras ondulando contra as paredes e contra ela lhe davam um ar etéreo, seus olhos ali pareciam mais puxados para o verde.

Eu gostaria de mergulhar naquelas piscinas e me perder nelas.

? Você quer dizer... ter tido mais de uma casa? ? assenti, ela mordeu os lábios e desviou o olhar ? Não tenho o que reclamar sobre isso. Todos me trataram com carinho. Fui treinada com rigidez por cada um, mas eu...

Ela parou de falar e meneou a cabeça negativamente.

A cena de Nike a rejeitando assim que nasceu me veio à mente. A forma que ela não quis nem olhar para a filha. E no silêncio de Kiara eu entendi o que ela diria: “Eu tive mais carinho deles, do que de minha própria mãe”

A presença atrás das grandes portas douradas me fez ficar mais aliviado do que deveria. Eu não sabia como consertar o que minha pergunta causou.

? Visitas! ? Demétrius sorriu ao abrir as portas de seu escritório. O hibrido de sereiano e incubo não mudara quase nada desde a última vez que o vi a poucos anos. Os cabelos vermelhos agora na altura dos ombros o deixavam mais jovial, depois de tanto tempo de volta às águas, sua pele tinha voltado ao tom azul-acinzentado e as marcas safira brilhavam.

? Fazia um bom tempo, meu amigo. ? lhe apertei a mão, mas a atenção dele estava ao meu lado, no meio sorriso da malvarmo o observando.

? E olhe só... você esqueceu de crescer? ? Kiara estreitou os olhos para ele, mas sorriu de volta com a expressão de quem queria comprar briga.

? Tamanho não é documento. Posso te chutar daqui até Alamourtim mesmo tendo a metade do seu tamanho! ? evitei rir, mas Demétrius não se incomodou com a resposta atravessada, apenas gargalhou e a abraçou, bagunçando seus cabelos como se ela não passasse de uma criança bagunceira. Isso a fez se irritar mais.

? Yurin está no terraço tentando colocar Misa para dormir. ? Ele apontou as escadas no fim do corredor, uma dispensa educada para Kiara, por um momento achei que ela se incomodaria com aquilo, mas ela girou nos calcanhares e se afastou em passos largos.

? Não é minha curiosidade para ver o resto do castelo que está me fazendo sair, viu! ? Ela desapareceu em seguida, pulando de dois em dois os degraus da escada coral que levava ao terraço.

Demétrius então deu um passo para o lado, gesticulando para que eu entrasse na sala. Segui até a poltrona coberta por um tecido imitando escamas cor de cobre na frente da mesa feita de pedras coloridas, uma jovem sereiana apareceu em seguida para servir chá gelado e biscoitos de algas.

? Faz tempo que não sai da toca de gelo para passear. ? Demétrius comentou, sentando-se em minha frente, alcançando um dos copos de chá.

? Nem tanto tempo assim.

O sereiano no entanto sorriu, exibindo os dentes de agulhas.

? Isso tem a ver com ela? ? Ele riu ? Você estava sorrindo agora a pouco. Tem um bom tempo que não o vejo sorrir.

Não podia ter mudado tanto assim... não havia percebido que andava tão fechado a ponto de um simples sorriso fazer as pessoas notarem... notarem que eu havia mudado.

Algo havia realmente mudado dentro de mim. Algo que me fazia ver as cores e sentir os mundos de novo.

? Eu ainda não sei o que pensar quanto a isso ? suspirei, Demétrius ergueu uma sobrancelha ? as vezes eu penso que ela só está encantada, só me vê por fora.

Não era estranho me abrir com ele. Depois que Fairin foi morto, enquanto esperávamos Leona acordar de seu passeio a Mogyin, Demétrius, Ewren e eu acabamos nos vendo com frequência, nos tornando amigos.

Demétrius soltou uma gargalhada debochada, então girou uma pequena bolha sobre a mesa e a tocou diversas vezes até que a imagem refletida na superfície fosse a de Kiara... ao lado de outro sereiano. Eles estavam caminhando pelo castelo, o rapaz tentava perceptivelmente chamar sua atenção, sorrisos, toques, mas Kiara tinha a mais pura expressão de tédio gravada no rosto. O sereiano tinha cabelos negros longos e olhos vinho, ele não era diferente de Demétrius, apesar das marcas safira na pele e dentes de agulha, um par de chifres negros despontavam em sua cabeça.

? Melias. É meu meio irmão também, sabia que aquele traste do velho Izaroh ainda vive? ? Demétrius tossiu uma risada, observando a esfera. O sereiano parou Kiara no corredor pouco antes de chegarem às portas do terraço, ele barrou seu caminho espalmando a parede e se inclinou na direção dela... e ela sorriu afundando o joelho em seu estômago. Ele se curvou tentando respirar, então voltou a encará-la, exibindo os dentes de agulha num rosnado. A malvarmo deixou aquela noite circular ao seu redor, escuridão salpicada de brilho... e o sereiano caiu no chão, em seguida, ela passou por cima dele como se não passasse de uma dobra bagunçada no tapete e saiu pela porta para encontrar Yurin.

A imagem se desfez.

? E? ? mesmo que não quisesse demonstrar, aquilo me irritou. Talvez Hestia estivesse certa, talvez Kiara fosse mesmo feita de açúcar.

? Melias é como eu. Só que o lado obscuro dele é um pouco mais acentuado... e ele é muito mais bonito que qualquer um de nós. ? Ele bufou, terminando seu chá. ? Kiara foi criada no meio de nós. Ela já viu mais rostos lindos do que você possa imaginar! Acredite, para ela, sua aparência deve ser o que menos lhe chama atenção, Hasan! Ela não é uma garotinha humana vendo o mundo mágico pela primeira vez, deslumbrada pelo primeiro ser místico que lhe dá atenção.

Senti as palavras caírem em mim como uma pedra.

? Serena não...

? Não justifique. Não é necessário, mas você sabe que estou certo, todos víamos aquilo, Leona de vez em quando comentava sobre isso... e especialmente sobre o efeito que a maldição teve em você quando esteve tão perto de Serena. Já a filha de Caalin, aquela garota não é alguém que se encanta com beleza externa.

Suspirei pesadamente.

Cada argumento que tinha para afastá-la caiam por terra um por um. Talvez porque eu não queria mais afastá-la, não tinha vontade de cultivar aquelas justificativas.

? O fragmento do mapa. Ela está buscando por eles.

O ar da sala tornou-se mais pesado, Demétrius franziu o cenho, mas assentiu, ele se levantou e seguiu para o outro lado da sala, onde a grande pintura da cidade das tormentas ocupava quase toda uma parede. O sereiano puxou o quadro, revelando uma pequena janela para um imenso aquário escondido, onde só via alguns pontos de luz negra. A água se mantinha dentro daquele lugar da mesma maneira que o mar era mantido fora do castelo. Demétrius cortou a palma da mão e a tocou na água, suas marcas brilharam num tom vinho e em seguida, ele entrou na água e submergiu.

Alguns minutos se passaram antes que sua cabeça despontasse na janela, ele saiu de lá com pequeno cilindro de vitrino azulado e se aproximou, colocando-o em minhas mãos.

? Como funciona esse seu cofrinho? ? Demétrius arqueou as sobrancelhas.

? Não ajuda muito a esconder objetos mágicos, se é o que está perguntando, se você prestar atenção, vai sentir a presença da lança de Leona lá embaixo.

? Qual a possibilidade de você me deixar colocar uma arma essencial lá para testar uma coisa? ? questionei, levantando-me da cadeira para ir observar a sala submersa mais de perto. Logo notei que o castelo fora construído ao redor daquilo... era uma espécie de caverna submarina que descia num cone tão profundo que não podia enxergar o fim.

? Pode atrair a coisa que derreteu o castelo de gelo para cá? ? Demétrius franziu o cenho, quando assenti, um sorriso feral tomou conta de sua expressão ? Bom! Está tudo muito quieto por aqui!

Tirei o pingente do machado de dentro do bolso e o entreguei a Demétrius, que mergulhou novamente e sumiu na escuridão da caverna. Embora ainda pudesse sentir a presença do machado, uma forte barreira ofensiva não permitia que me aproximasse daquela janela. Bom, não havia risco de perder a arma também.

No momento em que ele recolocou o quadro no lugar, Kiara entrou na sala sorrindo, ela segurava a bebê de Yurin nos braços e a elfa vinha logo atrás dela com os olhos arregalados, talvez com medo dela deixar a menininha cair.

? Conseguiu acalmá-la? ? Demétrius se aproximou das duas para acariciar o bebê.

? Ela conseguiu. ? Yurin apontou com o queixo na direção de Kiara. ? com canto sirênio.

O rosto de Kiara ficou azulado e ela baixou os olhos.

? Como você tem canto sirênio? ? Demétrius tirou a pergunta da minha boca, mas que estava surpreso ou espantado de mais para fazê-la.

? Eu ganhei de uma sereiana. A mãe da menina que resgatamos no teste locam. ? Kiara encolheu os ombros um pouco, entregando o bebê ao sereiano ? Ela queria me pagar de alguma forma e me deu seu canto, não sabia que se eu cantasse...

? Podia enfeitiçar as pessoas? ? Demétrius riu baixo, evitando acordar a menina, ele me lançou um olhar divertido e seu sorriso aumentou ? É bom ter cuidado com isso, se tiver más intenções quando cantar, mesmo uma melodia qualquer pode se transformar numa arma.

A princesa me olhou pelos cantos dos olhos e imediatamente achou outro ponto da sala para observar, podia sentir dali o pouco de calor que ainda lhe restava preencher seu rosto.

? Ela ficou muito grata se lhe deu seu canto! ? Yurin comentou distraída com o bebê ? nem pense em cantar dentro da ACV, vai acabar chamando atenção de mais...

? Acho que passamos do horário de voltar. ? cortei Yurin antes que ela desse ideias erradas a Kiara, mas pelo sorriso malicioso, a malvarmo percebera o que ela ia dizer.

? Mas e o... ? mostrei-lhe o cilindro de vitrino e a outra carta.

? Espero que voltem mais vezes! ? Demétrius piscou e nos acompanhou em passos desapressados até a câmara de imersão. Kiara parecia curiosa para olhar a carta, mas só a entregaria assim que chegássemos na ACV.

? Não se preocupe, voltaremos em breve! ? apertei a mão do sereiano e pigarreei ? se aquilo aparecer...

? Mesmo usando fogo mágico, sua defesa e magia serão drasticamente reduzidos aqui, não se preocupe! Nós os avisaremos.

Com um aceno em agradecimento, abri um portal ali, era o único local dentro do palácio que não era protegido contra teleportes e portais, a magia que Lupine lançara para proteger o lugar continuava firme mesmo depois de todo aquele tempo.

Atravessamos rapidamente e ao chegar outra vez na sala de Lórien, Kiara estendeu a mão pedindo a carta e o cilindro. Prontamente os entreguei assim como a chave da sala de pedra sob o escritório, sabia que ela guardaria o fragmento lá.

? Como consegue teleportar de e para dentro da ACV, do castelo de Retiro das Folhas, do meu Vale do Sol, até mesmo para dentro do Vale da Lua, mas teve que voltar à entrada do palácio submerso para sair? ? Ela questionou, girando a chave nos dedos e aproximando-se da porta escondida.

? Reparou nisso? ? Ela me lançou um olhar malicioso por cima do ombro e sorriu.

? Eu reparo em tudo.

? A proteção de Nove Dragões foi feita por uma maga que já é falecida, não posso entrar ou sair diretamente sem sua permissão. Os outros lugares que você citou e alguns a mais, tive permissão dos criadores das barreiras para entrar ou sair livremente. ? Kiara mordeu os lábios e franziu o cenho.

? Mas quem fez a barreira do Vale do Sol foi meu pai, e eu só posso entrar por ter seu sangue, não é? Ele deu permissão a você?

? Ele não, você sim. ? Kiara piscou ? Não só a mim, você permite muita gente entrar lá, devia refazer as permissões da barreira.

Ela assentiu distraidamente e desceu pela escada oculta. Menos de cinco minutos depois estava de volta apenas com o bilhete e a chave nas mãos. A observei abrir o papel, os olhos se moveram pela folha em seguida ela os estreitou e um pequeno sorriso surgiu em seus lábios.

Eu queria me aproximar... e beijá-la.

? Acho que sei onde está esse: “Nem toda escuridão é ruim, assim como nem toda luz é boa. Encontre-me onde as sombras estão entre as tempestades e os sóis”

? Diga.

? Quinto Céu? ? Ela riu ? Você disse que a viu entregar um desses a Owyn... fora que estava mais fácil.

? Esse vai ficar para depois. ? faltava menos de vinte minutos para a próxima aula. ? Treinamento, vamos. Vou fingir que não vi você matar a aula de venenos e de história.

? Só acumulando advertências? ? Kiara riu, escondendo o bilhete no bolso da calça, seu humor também me divertia. Ela se virou na direção da porta, o movimento fez aquele gelo em sua barriga trincar tão alto que pude escutar do outro lado da sala.

Kiara rosnou e exibiu as presas, cravando as garras longas no batente da porta. Num instante estava do seu lado e lhe segurei os braços impedindo que saísse da sala como uma besta sedenta por sangue.

? Eu disse para se alimentar! ? ralhei. Os olhos dela estavam negros, o azul fora substituído por carvão brilhante e as novas marcas que lhe dei pulsavam em vermelho. Kiara não tentou soltar-se de meu aperto, apenas me encarou por alguns instantes até que seu coração acelerado pelo instinto feral de se alimentar se acalmasse, mas a cor tranquila não voltou ao seu olhar nem àquelas tatuagens de vidro em seu braço.

? Porque estou perdendo calor tão rápido? ? ela murmurou, baixando os olhos para as mãos com que eu a mantinha firme contra a parede até que estivesse completamente sã. Uma mordida de um malvarmo naquele estado podia ser fatal, mesmo para mim.

? Quer um motivo além de ter oferecido seu calor em pagamento para abrir o altar? ? debochei, ela revirou os olhos ? Você está sem os selos, usar magia faz com que o gelo no seu sangue se agite e o calor seja consumido mais rápido.

? Isso significa que eu posso ter uma magia ilimitada, mas vou ter sempre a limitação de minha reserva de calor e que se eu usar magia de mais eu vou congelar? ? assenti devagar.

? O lado ruim de ser malvarmo. ? piquei para ela, tentando evitar que ficasse triste. ? mas pode aumentar o limite de sua reserva... mesmo que pouco.

Ela fez um biquinho, seus olhos e marcas já estavam claros novamente.

Controlada.

? Não tem graça!

? Não é para ser engraçado, é para ter equilíbrio. ? disse ? É melhor você se alimentar logo. ? aproximei-me mais para ficar a seu alcance, mas Kiara esquivou, sem fazer movimentos bruscos e sorriu, a malícia voltou a brilhar naqueles olhos.

? Devia ter oferecido quando estávamos fora da ACV. Agora não posso mais ? ela mordeu os lábios e saiu da sala sem se despedir.

Inacreditável.


Kiara:


Invadi a sala de línguas alguns instantes depois que todos os alunos saíram e dei de cara com Fares, ou melhor, Leonne sentada sobre a mesa avaliando os testes com o cenho franzido. Sua posição era tão naturalmente feminina, que se não reconhecesse seus olhos, diria que era na verdade uma das filhas de vovó. Fares em sua forma feminina levantou os olhos ao me perceber na sala e sorriu.

? Kiara! Estava louco para falar com você! ? Ela, ele... se ergueu e veio em minha direção, mas parou a alguns passos e franziu o cenho.

? O quê? ? quis saber.

? Está congelando. ? nem quis saber como ele percebeu, mas imediatamente Fares cortou o pulso e estendeu em minha direção. ? Tem um minuto antes que os alunos do terceiro período cheguem.

Queria dizer o quanto estava admirada por ele estar ali e tão... lúcido, tão bem! Meu irmão, lecionando na ACV! Mas ele estava certo, não tinha tempo e se eu fosse pega, não teria como dar desculpas sem revelar a identidade dele. Mordi o pulso estreito e deixei que o calor me preenchesse, amolecesse o gelo que começava a tomar conta de mim. Só absorvi calor o suficiente para aguentar até o fim do dia, então curei a ferida e me afastei.

? Agora sim! ? Ele se aproximou e me deu um abraço apertado e quentinho ? Estou tão feliz de estar aqui! Agora posso ficar mais perto de você!

? Fico feliz também, especialmente por você estar mais feliz. ? Ele sorriu mais e seu rosto corou ? Não esqueci de minha promessa. Estou procurando pelas pistas, encontrei coisas relevantes... ? não podia dizer muito, não sabia quem podia estar escutando.

Os olhos dele se iluminaram.

? Obrigado, por acreditar em mim. ? Ele apertou minha mão, logo após isso, um grupo de pirralhos do V5 entrou na sala fazendo barulho.

? Preciso ir. ? murmurei, percebendo que chegaria atrasada para sobrevivência. Fares assentiu e voltou-se para os alunos com um lindo sorriso gentil.

Ele parecia tão à vontade daquele jeito, que até parecia ter nascido assim.

? Sua equipe inteira vai se ferrar se você se atrasar! ? Lohan surgiu numa bruma de fumaça negra perfumada e me arrastou para dentro da fenda, mal pisquei e já estávamos na saída sul da ACV. Helleon e Hestia me olhavam com curiosidade, certamente querendo saber onde me enfiei durante a aula de venenos.

“Mais tarde” murmurei.

Logo estávamos ouvindo os gritos da mestra quando nos mandava organizar equipes para caçar um Remorhaz.

Estávamos ferrados outra vez.


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A semana foi estranhamente tranquila até a chegada da sexta.

Ao chegarmos na sala de Lórien para receber as missões, eu já estava pressentindo algo ruim, mesmo com Hasan nos garantindo que ela não tiraria nossas missões, eu duvidava muito que Lóri não tentasse fazer o máximo possível para que fizéssemos algo seguro. Porém não acreditava que seria tão... ridículo.

? Sério, Lórien? ? a encarei por cima do papel, tentando evitar gritar com ela. Ela no entanto, mantinha um olhar divertido enquanto bebia seu chá.

? E porque não seria? ? argumentou ? Vocês já são conhecidos pelos soberanos dos Nove Céus, é claro que eles ficariam satisfeitos com rostos conhecidos na guarda do festival.

? Lórien...

? Olhe o lado bom, Kiara! ? Hestia passou os braços ao redor de meu pescoço ? fazer guarda numa festa! Vai ter comida!

Revirei os olhos.

? Jura que não está fazendo isso para evitar que alguma coisa apareça querendo me devorar? ? Lohan teve um acesso de tosse atrás de mim, até mesmo Helleon riu. Dois idiotas maliciosos.

Porém Lórien fechou a cara, ficou com semblante mais feio que tempestades de areia em Ciartes.

? Eu separo as missões por praticidade. Você e Lohan conhecem bem as cidades do Primeiro e Segundo Céus.

? E não há nenhum outro venox de lá? Já que esse nem é um serviço exclusivo de locam? ? Ela sorriu para a ironia em minhas palavras e meneou a cabeça negativamente.

? Não na minha ACV. ? Lorien recostou-se na cadeira e sorriu preguiçosamente ? Mas se quiser recusar... ? afastei o papel dos dedos que ela estendeu para pegá-lo.

? É claro que não vou recusar! ? precisava ir até o Quinto para buscar o fragmento com Owyn de qualquer forma.

? Ótimo. ? Lórien sorriu ? Equipe R-33!

Ela chamou a equipe que aguardava do lado de fora, uma dispensa nada sutil.

Já no corredor, depois de sair da sala batendo os pés para exaltar minha frustração, procurava uma boa desculpa para ela nos dar algo mais útil na próxima semana. Duvidava que um festival no Primeiro Solar precisasse de guardas além dos solaris que rondavam por lá. Aquilo tinha que ser coisa de Lórien. A única parte boa era que conseguiria um fragmento de mapa... o que eu tinha a impressão de que não seria fácil. O da ACV quase consumiu meu calor, o que Demétrius guardava só foi entregue facilmente pois ele nos conhecia.

E mesmo que Owyn me conhecesse pelo tempo em que passei vivendo no Quinto... duvidava que ele o entregaria sem testar minhas intenções antes. Papai não teria deixado o fragmento para qualquer um chegar e pedir.

? Kiara! ? Hestia estalou os dedos na frente de meu rosto ? Está tão irritada que precisa me ignorar? ? A bruxa franziu o cenho e parou em minha frente.

? Ah! Desculpe... estava pensando em algumas coisas.

? Tipo em torcer o pescoço de sua prima? ? Helleon riu.

? Não tem muito o que discutir, o lado bom é que não vamos perder o festival! ? Lohan sorriu, aproximando-se para passar um braço ao redor de meus ombros.

? Estou super ansiosa! ? Hestia começou a tagarelar com Lohan sobre como era o festival, e enquanto ele contava tudo nos mínimos detalhes, descemos as escadas e atravessamos o corredor principal em direção o refeitório para pegar o fim do jantar. Por sorte ainda teria algo para comer.

Já que era para fazer um serviço que não tinha a ver com o Locam, dessa vez não me incomodaria se Lórien mandasse um mestre conosco, especialmente se fosse Hasan.


Hasan:


O ar com cheiro de maresia e fumaça estava morno, como era de se esperar no final do inverno no Rio de Janeiro. Algumas estrelas quase sem brilho apareciam no céu começando a escurecer, dando vida a noite da cidade.

Atravessei a avenida movimentada para a praça Araribóia em frente à estação das barcas do centro de Niterói, precisava chegar ao Bay Market antes do número de meu pedido tocar no painel da pizzaria. As luzes da cidade faziam uma parte escondida no fundo de minha alma se agitar, havia perdido as contas de quantas vezes Lupine nos levou até ali para comer e assistir filmes no cinema.

Em Amantia, haviam se passado setenta anos desde que Leona voltou para buscar Serena e a mim, setenta anos... e aqui, mal haviam passado três anos e quatro meses por causa do alinhamento dos tempos promovido por Higarath, pois quando o círculo foi quebrado e refeito, O tempo voltou a passar no mundo humano como era na época da maldição de Arbarus.

Pouco tempo antes da tragédia com o castelo de gelo, Susano tentou fazer com que o tempo nos mundos se igualasse outra vez, mas a Terra tinha algo que se recusava a colaborar, logo, o máximo que conseguiu mudar foram algumas horas. Diferente de antes que meia hora na Terra teria se passado um dia inteiro em Amantia, ele conseguiu que quatro horas aqui equivalessem a um dia lá. Uma mudança aparentemente pequena, mas significativa quando viajávamos para cá. Apenas os mundos com magia livre do círculo continuavam completamente alinhados, o que fazia com que a travessia entre eles também fosse mais simples.

Saí da ACV na hora do almoço para fazer a vontade de Áries e lhe comprar uma pizza, sabia que levaria por volta de meia hora para ficar pronta, mais alguns minutos e completaria uma hora que estava na Terra. Precisava pegar a pizza e ir à um lugar seguro para abrir um portal. Lá teriam se passado seis horas. Os sons das buzinas e o murmúrio das pessoas que conversavam enquanto iam e vinham de seus trabalhos, escolas ou mesmo de seus momentos de lazer continuavam me puxando para as lembranças de uma infância alegre proporcionada pela sacerdotisa que deixou o mundo sem ver sua maldição quebrada, sem conhecer a verdadeira liberdade.

Me desvencilhei aqueles pensamentos e me apressei a entrar no pequeno shopping, ignorando olhares e comentários de algumas mulheres que passavam por mim, encarando-me e até mesmo sorrindo. Tentei ficar o mais simples possível para andar por ali. Calças jeans escuras, uma camisa cinza com alguns botões abertos, óculos escuros... mas minha altura e os cabelos longos ruivos não eram nada comuns.

“...deve ser um modelo!” uma garota de pele caramelo e olhos escuros cochichou com a amiga, ambas estavam atrás de mim na escada rolante e riam baixinho.

Enquanto caminhava entre as mesas para chegar até o balcão da pizzaria, me peguei imaginando qual seria a reação de Kiara visitando esse lugar, vestido aquela pele humana. Ainda podia ver claramente a forma que o bruxo lhe deu, colocando o sangue malvarmo para dormir. Nem mesmo com os cabelos negros e a pele rosada ela ficara comum.

? 189! ? O homem atrás do balcão chamou, peguei o papel com o número e lhe entreguei, o homem me lançou um olhar incomodado e entregou a caixa, em seguida voltou para a cozinha.

Só precisava abrir um portal agora.

Ao me virar para sair do lugar, três pares de olhos laranja me vigiavam de uma mesa. Três garotas idênticas, peles bronzeadas, olhos coloridos e cabelos dourados. Ao lado delas, uma outra jovem de cabelos cacheados e olhos castanhos que me fez travar. Ela era idêntica a Lupine.

As três cochichavam baixinho e riam olhando em minha direção.

Então uma das trigêmeas ergueu um dedo, escondido do resto das pessoas ali pelos grandes copos de plástico, e uma pequena esfera de luz branca que podia muito bem ser confundida com um flash de celular, ela então sorriu ao mostrar o copo antes vazio, agora cheio.

Bruxas, bruxas humanas.

E certamente sabiam o que eu era, para mostrar algo assim, arriscando-se daquela maneira. As pessoas na Terra não aceitavam magia nada bem, uma senhora inclusive olhava de maneira estranha as garotas na mesa, talvez tenha visto a luz e não havia um aparelho celular sobre a mesa das meninas. Me aproximei da mesa devagar, fazendo seus sorrisos desaparecerem.

? Pode apagar a foto que tirou? ? disse alto o suficiente para a senhora escutar ? Não é bom que meu agente me veja comendo essas coisas, sabe?

A menina piscou, percebendo o que eu havia feito, num instante um telefone apareceu sobre sua mesa, ela o pegou e mexeu, em seguida murmurou umas desculpas, mas piscou. As quatro usavam colares com o símbolo de um mapinguari.

Eram da escola de bruxas de Akahim.

? Não é legal tirar fotos das pessoas assim, elas podem não ser legais se perceberem. ? O aviso não passou despercebido, as outras abaixaram as cabeças e voltaram para seus lanches.

Saí do Bay Market e fui depressa direto para o estacionamento subterrâneo do Plaza shopping. Ao chegar e perceber que havia uma área vazia entre uma caminhonete e a rampa de acesso ao segundo estacionamento, causei uma falha nas câmeras de segurança e usando a pulseira metálica com as esferas de abertura, formei um portal e rapidamente o atravessei, deixando se fechar atrás de mim.

Alguém estava na fortaleza.

Senti a presença de fogo solar assim que pisei em frente a ela e não era a sensação que costumava estar por ali, embora a outra estivesse presente também. Entrei mais tranquilo, se Sirius estava ali e nada explodia em fogo ou gelo, podia supor que não havia nada de mal. Levei a pizza até a cozinha, onde Liana e Deles estavam sentados jogando cartas. Certamente minha mãe os havia dispensado do serviço hoje.

Coloquei a Pizza sobre o forno de pedras para que ficasse aquecida e fui ver quem era o visitante misterioso. Conforme me aproximava da presença, vozes numa conversa tensa chamaram minha atenção, mas não conseguia ouvir direito o que diziam, Arcádius havia protegido alguns cômodos para que não pudéssemos escutar o que era dito dentro deles. Algo em mim avisava que eu não queria saber sobre o que estavam conversando lá, mas precisava entrar.

Na sala de estar, minha mãe estava sentada no sofá maior ao lado de meu pai e a convidada, sentada na poltrona em frente a lareira sorria de forma gentil, mas ao mesmo tempo contida. Sua pele marrom destacava os cabelos cor de ouro com uma coroa que mais parecia um sol sobre eles e os olhos alaranjados... assim como o sorriso que não me era estranho.

? Hasan, receio que não tenham sido apresentados devidamente ainda. ? meu pai se levantou assim como a mulher dourada, que sorria. Minha mãe, sentada no sofá a olhava como se fosse saltar sobre ela e mordê-la.

? Alfia, rainha de Primeiro Céu. ? ela sequer estendeu a mão para mim. ? Infelizmente não posso me demorar, mas gostaria que fosse no festival em Bogkhar e me fizesse companhia para que possamos conversar melhor!

A solaris sorriu, meu pai certamente estava incomodado com algo, mas não deixou transparecer.

? Vou acompanhar uma equipe do V9 em uma missão no festival, então posso ter um tempo para conversar. ? Alfia bateu palmas, ainda com aquele sorriso levemente afetado no rosto, Sirius se ofereceu para levá-la até seus guardas que aguardavam na torre norte com um portal.

Quando saíram da sala, minha mãe soltou um rosnado incomodado e enrolou os braços em volta de mim.

? O que a rainha solaris quer comigo?

? Insistir em algo que seu pai recusou ? Ela rosnou, apertando-me mais ? Vai mesmo até lá?

? Preciso ir, Lórien os mandou fazer a guarda do festival e Kiara está recolhendo os fragmentos que Nikella e Susano deixaram. Um deles está no Quinto Céu.

? Não a deixe perceber que você a está vigiando. ? Aries sussurrou, surpreendendo-me.

? Não estou. Kiara é completamente capaz de consegui-los sozinha, ela não chegou ao V9 atoa, Lórien dificultou o crescimento dela na ACV o máximo que pode, sabe? ? minha mãe estreitou os olhos e sorriu maliciosamente.

? Então porque vai com eles? ? quis saber ? tem a ver com...

? Preciso ir, mãe. Tenho que deixar a aula de semana que vem pronta. ? murmurei, fugindo da pergunta que sabia que ela faria.

Não era por ciúme. Não estava vigiando a garota.

Embora o tenebris estivesse muito mais perto agora.

? Sua pizza está na cozinha ? lhe dei um beijo no alto da cabeça e atravessei um portal para Vegahn.


Kiara:


Sábado de manhã e lá estávamos nós diante dos portais de Lórien. Meu humor só piorou ao ver Hasan se posicionar atrás de nossa equipe. Não era tão ruim, pois algumas outras equipes em missões mais arriscadas também tinham mestres os acompanhando...

Mas nós dávamos conta de fazer a guarda de uma festa sozinhos. Não podia acreditar que mesmo com uma missão simples daquela, Lórien continuaria colocando mestres ? Hasan ? para me vigiar.

As equipes sumiam dentro dos portais enquanto nos aproximávamos, Lórien estalava os dedos, e a visão que tínhamos do outro lado mudava, mostrando os locais que as equipes precisavam estar. Nos aproximamos da porta brilhante quando ela mudou mais uma vez, exibindo um dos cenários que eu mais gostava do outro lado. Hestia ao meu lado soltou um suspiro e apertou mais os braços ao meu redor ao contemplar os três arcos de pedra luz em frente a um castelo prateado sobre as nuvens. O Oitavo Céu celestial de Bogkhar.

? Estão prontos? ?Lórien sinalizou para que entrássemos, mesmo que parecesse uma criança birrenta, evitei encará-la, pois não conseguiria fazê-lo sem lhe lançar uma careta. Sem demora, Lohan e Helleon seguiram em frente, o tenebris explicava baixo algumas coisas sobre os céus ao dragão, por exemplo, que ele não deveria assumir sua forma sem antes avisar o que era ou os tormentadores o derrubariam.

Em seguida, Hestia e eu entramos, a bruxa sorria olhando as luzes do túnel de magia ficando para trás e um céu cinzento, porém brilhando devido as luzes da trama de magia que mantinham as cidades celestes flutuando, surgiu em seu lugar.

Logo atrás vinha Hasan, caminhando com as mãos nos bolsos da túnica negra sem tirar os olhos de nós. Desde o dia em que foi ao vale e me deu as novas marcas, as flores de jade, que ele observava com atenção demais quando a bruxa estava por perto. Hestia no entanto não estava incomodada com aquele olhar analítico de quem talvez tivesse descoberto sobre as nossas brincadeiras, sua atenção estava na cidade brilhante sobre as nuvens e as pessoas que passavam por nós na larga rua de lajotas cinzentas. Poucos tormentadores ainda, a maioria eram Vernuns que se mudaram do Sétimo para lá, alguns humanos que se arriscaram a sair do chão e um ou outro tenebris que pareciam muito à vontade ali.

? Vamos direto para o sétimo? ? Lohan chamou minha atenção ao nos aproximarmos do círculo de pedras ao redor de uma superfície espelhada cujas ondulações me lembravam um lago, mas no fundo podia ver as florestas verdes lá embaixo.

? Foi Adrias quem passou a tarefa? ? quis saber, o tenebris assentiu. ? Então vamos, veremos Yoru e Doreen no festival de qualquer forma. ? murmurei um pouco mais seca do que pretendia.

Hestia e Helleon ainda pareciam encantados demais com a cidade e curiosos com o castelo prateado, mas não protestaram quando seguimos para dentro do círculo sob o olhar atento de dois tormentadores que faziam a guarda da passagem.

? Vejo vocês no festival. ? Hasan já estava no centro do círculo, ele nos deu apenas um aceno antes de desaparecer na luz branca ofuscante do portal para os céus acima. Não fazia ideia de para onde ele havia ido, mas não era de minha conta também.

Talvez... talvez ele tivesse algum assunto para resolver por ali.

? Vamos? ? Lohan beliscou minha bochecha, chamando minha atenção de volta para o grupo.

Hestia e Helleon subiram desconfiados na superfície do portal, não podia nem zombar do medo deles, pois na primeira vez que pisei em um deles para chegar ao Primeiro Céu e atravessar a barreira até a floresta azul, eu fiquei agarrada no braço de Honén, com medo de despencar pois aquilo parecia água.

? Você parece bem à vontade aqui e nunca me contou como se conheceram ? Hestia perguntou, olhando de mim para Lohan. Em seguida apertou meu braço quando os guardas fizeram um sinal com o pulso, e o portal se abriu fazendo com que aquela cosquinha tomasse conta de minha barriga, um puxão como um anzol para cima e logo estávamos voando naquele túnel de nuvens e raios. Fechei os olhos e apreciei os gritinhos e gargalhadas da bruxa, pois sabia o que ela estava vendo: a cidade do Oitavo abaixo e as tempestades que rolavam entre os céus.

? Costumava ir até o castelo de gelo com meus pais quando era menor, minha mãe era amiga de Nikella, eu acabei ficando amigo de Kiara também, pois Fares sempre se escondia em seu quarto quando tinha visitas... Kiara e eu brincávamos juntos nas sombras do castelo. ? Lohan cutucou minhas costelas, eu revirei os olhos e o afastei com uma cotovelada.

Quando a luz diminuiu, já estávamos novamente pisando em nuvens, sobre o portal do Sétimo Céu, quase na divisa de Nublis com Tempriestum, uma das cinco cidades do Sétimo. Lohan ia na frente, guiando-nos por aquela avenida principal cheia de árvores com folhas em tons de prata, ouro envelhecido e chumbo. Hestia se abaixou para tocar o chão, a rua lembrava-me vidro escovado, alguns pontos brilhavam sob nossos pés e o sol da manhã, cujos poucos raios conseguiam ultrapassar as pesadas nuvens sobre nós, banhavam a cidade em luzes multicoloridas, fazendo com que os prédios brancos refletissem em várias cores.

? Achei que nunca veria um lugar mais bonito que a cidade flutuante de Amantia. ? Hestia assoviou ? estava enganada!

? Muito enganada! ? Lohan riu, puxando o braço da bruxa que agora se inclinava na direção de um pequeno grupo de garotas Vernuns em seus uniformes cor de chumbo.

? Lohan disse como a conheceu, e sabemos que você viveu um tempo aqui em cima... mas como foi? ? Helleon questionou enquanto caminhávamos para fora da cidade.

Meu peito se apertou um pouco.

? Foi alguns meses depois de eu ser marcada pelo clã... quando não passei nos testes para entrar direto no V3. Eu tinha dez anos. ? As palavras foram diminuindo.

? Mas dez anos não é muito jovem para o V3? ? Helleon perguntou. Pressionei os lábios e o olhei por cima do ombro, ele encolheu os ombros. Hestia mal tinha dezenove e passara direto para o V8 por causa do intenso treinamento dos bruxos, não só treinamento físico.

? A mestra que fez o meu teste, Honén, percebeu que eu estava tendo dificuldade em lidar com meus instintos, e tinha problemas de concentração devido aos meus medos e por causa dos pesadelos... então ela teve a brilhante ideia de me trazer para cá. Não exatamente para os Vernuns, mas...

? Tia Honén levou Kiara até o Quinto Céu e a atirou no meio dos tenebris, deixou que ela fosse cuidada por Owyn. ? Lohan completou e me mostrou a língua quando o olhei feio.

? Então você também foi criada aqui? ? Hestia arregalou os olhos.

? Tive um pouco de educação de cada um. ? brinquei ? mas a maior parte se deve à Owyn, Hamza, Halles, Lórien e Nyumun. Passei quase quatro anos entre o Quinto Céu, a Floresta Azul e Madras, treinei com todos um pouco e em idades diferentes. ? o dragão e a bruxa estavam surpresos com aquilo.

? Adiantou? ? Hestia soltou num sussurro, talvez com medo de ofender Lohan ? ficar aqui com os tenebris, quero dizer.

? A maioria dos meus medos desapareceram. ? dei de ombros.

? Você não consegue manter os próprios medos quando se é criado por pesadelos. ? Lohan completou, passando os braços ao redor de mim num abraço tranquilizador.

? E você também fez o teste direto para o V8... ? não foi exatamente uma pergunta de Hestia, mas Lohan assentiu mesmo assim e sorriu para ela ? porquê?

? Pra ser sincero? ? Até eu queria escutar o motivo dele ter entrado para a ACV ? Estava fugindo de problemas, achei que treinar longe deles poderia me ajudar. ? Ele me encarou e piscou, sabia que ele estava falando da mãe de Awen. Meneei a cabeça e tornei a me concentrar nas nuvens cinzentas sob nossos pés.

Owyn assim como Hamza e Halles... eu os considerava quase como pais também, mas o rei do Quinto Céu me fez perder o medo de dormir... me colocando mais medo. Fazendo com que eu me acostumasse com a escuridão... pois ela habitava em mim também, então eu tinha que me adaptar a ela para que não me atingisse mais.

E mesmo assim... algumas vezes ela me vencia, derrubava a luz interior que ele me ensinou a manter sempre acesa.

? Melhor apressarmos o passo. ? Lohan beliscou minha cintura, tirando-me de meus pensamentos ? quero chegar a tempo de tomar café e ver Talua se apavorar com os modos da bruxa.

Hestia corou e mostrou os dentes para ele, Helleon engasgou tentando não rir, até o dragão havia recebido melhor educação que ela. Eu apressei o passo pois sabia que a filha de Adrias com certeza teria as melhores informações sobre quem deveríamos ficar de olho no festival.


Capitulo 6


O Primeiro Céu era mais que deslumbrante.

Não havia pisado nem perto das cidades quando subira até ali para atravessar até a Floresta Azul na época que vivi nos Céus. O palácio de Alfia era imenso, e embora tivesse apenas dois andares, a construção era fantástica e se estendia quase a perder de vista. Em parte, ele me lembrava a ACV, pois o castelo abrigava um pátio imenso em seu interior, onde centenas de mesas com comidas estavam sendo arrumadas ao redor do círculo de danças. A construção não se parecia em nada com os castelos que estava acostumada, pois embora houvessem nove torres de vigia acopladas aos muros ao redor dele, o prédio era quadrado e cheio de janelas de pedras alaranjadas dispostas nos corredores dourados que deixavam toda aquela luz quente e confortável do sol poente entrar.

? Está babando. ? Lohan comentou, cutucando-me ao atravessarmos o pátio e subir uma larga escada de pedra avermelhada, tínhamos que nos apresentar a soberana do Primeiro Céu para receber as instruções da nossa dificílima tarefa de vigiar o festival nas ruas e o jantar e baile que aconteceriam ali dentro.

? Achei que seu tipo não gostasse de calor! ? Helleon murmurou para mim ao mesmo tempo que franzia o cenho para Talua, a princesa meio vernum meio humana nos acompanhara e agora estava pendurada no pescoço de Hestia com um imenso sorriso no rosto.

? Meu tipo depende de calor tanto quanto o detesta. ? retruquei irritada. O Primeiro e Segundo Céus eram os lugares mais quentes ali, nem se comparavam a Ciartes, mesmo assim era quente o suficiente para que eu quisesse mudar para aquela forma humana outra vez, porém Eghan não havia me ensinado como fazê-lo sozinha.

Pensar nele me lembrou que eu não havia conversado com o bruxo outra vez desde a transformação de Senrys, e teria que fazer isso em breve, não queria deixar as coisas ruins mesmo que ele merecesse que eu o ignorasse, não queria perder o amigo também. Outra coisa que precisaria fazer em breve... porém relutava, era ir até a Morada da Lua e conversar com Senrys, mas estava com medo de encará-lo, pois sabia por Bianca e Mavis que ele não queria me ver.

Atravessamos um imenso corredor de pedras âmbar e cortinas púrpura até as grandes portas douradas do salão do trono, o sol entalhado no ouro cercado por nuvens e com quatro luas em prata acima dele dava um ar místico a porta. Duas damas que pareciam vigiar o local nos pararam e pediram que esperássemos um momento, pois a rainha do Primeiro estava em reunião.

? Não seria melhor o capitão da guarda nos passar as instruções para essa noite? ? Hestia questionou. Talua e Lohan que já estavam acostumados com aquilo riram discretamente e a bruxa franziu o cenho para eles, até mesmo Helleon parecia confuso.

? Não há guarda no Primeiro Céu para o palácio. Alfia não acha necessário ter soldados a seu dispor, ela os mantém na cidade e mesmo que não estejam em serviço oficialmente, recebem por isso. ? Lohan explicou aos dois depois de eu lhe cutucar as costelas usando os nós dos dedos com um pouco de força.

? É um gesto bonito, mas não muito seguro! ? Helleon comentou.

? Ela pode virar um sol incandescente, e por ser sangue da seiva da árvore dos Céus, ela tem dez vezes o poder de um solaris comum. Acredite, ela não precisa de guardas! ? Talua sorriu.

Helleon e Hestia piscaram surpresos.

? O que isso significa? Isso acontece nos outros também? ? o dragão agora avaliava Lohan com os olhos semicerrados.

? Quando os Céus foram criados, foi necessário usar a essência de cada um dos soberanos das raças celestes, e essa essência se ligou a cada Céu e o poder dos soberanos é que mantém essa arvore... viva, digamos assim ? Lohan explicou ? Apenas os soberanos e seus descendentes podem manter os Céus flutuando. Por isso sangue da seiva, por precisar manter as cidades com uma doação anual da própria magia vital, todos da família real dos Céus tem magia superior aos celestes inferiores.

? Isso significa que por você ser mestiço... ? comecei, mas Lohan meneou a cabeça negativamente.

? Por alguma ironia do destino, tenho mais de tenebris do que de vernum. Só poderia assumir o Quinto Céu.

? Tem diferença dos tenebris do Quinto para os do Sexto? ? Hestia mudou o assunto da conversa, como se tivesse lido a expressão incômoda nos olhos rajados de Lohan.

? Tenebris do Sexto não tem a transformação de pesadelos. Eles não conseguem ler seus medos e mudar de forma para te fazer ter um ataque do coração, bruxinha! ? Lohan sorriu, mostrando as presas mais longas para Hestia, ela se encolheu e sua pele empalideceu um pouco, pelo azul ter desaparecido dos olhos de Lohan, engolido pelo negro de sua magia, sabia que ele devia estar brincando com aquilo... com os medos dela, então lhe dei outro beliscão.

O clima ficou estranho o suficiente para a conversa morrer, por curiosidade fiz algo que podia ser considerado errado e concentrei meus sentidos dentro daquela sala. Queria saber o que a rainha tanto conversava na reunião a ponto de nos precisar fazer esperar ali.

A primeira coisa que percebi foi o cheiro... aquele perfume que embalava meus sonhos quando os tinha. Cardamomo e almíscar... mas ali também me lembrava brasas incandescentes. Ele estava ali. Forcei minha audição, sabia que não devia... mas não resisti!

“... Neruo é um mago humano, Alfia.”

“Então você é realmente o único a quem posso recorrer! Sirius poderia estar disposto a aceitar se não fosse por Áries.” A voz da soberana solaris estava menos tranquila que o comum.

“Sinto muito.” Hasan bufou. Não fazia ideia do que ela queria com ele, o porquê de Neruo estar naquela conversa, e por qual motivo ela só teria um salamandra a quem recorrer. Lohan tinha o cenho franzido enquanto me observava, sabia que ele estava escutando o mesmo que eu, mas não parecia tão confuso quanto eu.

“Talvez... talvez Áries esteja disposta...”

“Vou falar com ela, mas não tenha tanta esperança.” Disse Hasan.

“Edrias se foi primeiro, ela não tinha sangue real. Mas não duvido que meu tempo esteja se esgotando também, eu preciso ter certeza de que eles ficarão seguros! Algumas tradições são necessárias.”

Lohan cobriu a boca, como se tivesse entendido algo naquela frase que eu não entendi.

“Farei o que for possível, há um mago em Amantia que pode lhe devolver o que perdeu, Alfia. Vou conversar com ele também. Agora preciso ir.”

“Aguardarei sua resposta, Ish-saol”

Ish-saol.

Já havia escutado ou lido aquilo em algum lugar, mas não lembrava o que significava. Não era exatamente uma palavra... um termo solar...

As portas se abriram e Hasan surgiu. Diferente dele que não parecia surpreso com a nossa presença ali, eu estava mais que surpresa com a sua. Ele estava vestindo uma túnica vermelha com bordados de raios dourados que destacava ainda mais os fios acobreados de seus cabelos e os olhos agora brilhando em dourado, as calças negras de corte largo... mas aquelas roupas eram dos Céus.

? Já podem entrar. ? Ele se virou para nos dar passagem, mas seu olhar não desviou do meu. Por um momento, tinha certeza de ter visto aquele gelo que sempre envolvia sua alma lá, mas antes de se virar e desaparecer pelo corredor, ele tocou minha mão e o calor irradiou por meu corpo como um cumprimento. O carinho do gesto fez meu coração disparar.

Quando olhei para trás assim que as portas rangeram ao serem fechadas, ele havia desaparecido.

A sala do trono do castelo do sol era mais simples do que tinha imaginado enquanto o fantasiava esperando na frente das portas. Embora fosse um salão espaçoso, a decoração era minimalista, cortinas leves e claras num tom creme tremulavam contra a brisa suave que passava pelas janelas abertas. Um lustre de ouro pendia no centro do salão e ao seu redor luzes... na verdade pequenas chamas dançavam como se tivessem vida própria.

Nos aproximamos dos dois tronos de veludo vermelho onde em um deles, uma coroa dourada com rubis repousava, esperando talvez por uma cabeça para aquecer, e no outro Alfia debruçava-se sobre o braço acolchoado com olhar perdido no púrpura eterno das nuvens lá fora. Seu semblante era tranquilo exatamente como das outras vezes que a via no Quinto Céu em visitas curtas. Porém um olhar treinado perceberia facilmente que o assunto seja qual for que estivesse tratando com Hasan antes de nós chegarmos, a havia frustrado bastante.

? Majestade. ? Lohan fez uma breve mesura e nós o imitamos, preferia deixar que ele tratasse com ela. Alfia voltou os olhos âmbar brilhantes para nós e sorriu um pouco.

? Fico feliz que a diretora da ACV tenha nos enviado rostos conhecidos para guardar a festa! ? ela se levantou e veio nos cumprimentar um pouco mais animada dessa vez. ? Bem-vindos ao Primeiro Céu! ? sorriu, a pele marrom dourada brilhou empolgada quando seus olhos se detiveram na bruxa, só então percebemos que Hestia também tinha um suave brilho dourado ali.

? Tem magia de fogo, não é? ? A bruxa assentiu ? Ah! O Céu Solar se alegra com a presença de pessoas como você! ? A soberana acariciou a bochecha de Hestia, a bruxa por pouco não se torna uma poça incandescente no chão.

? Viemos para receber as instruções sobre o festival. ? Lohan pigarreou. Alfia bateu as palmas e movimentou os dedos para que a seguíssemos até uma mesa no canto do salão. Um mapa da cidade de Airalos, capital do Primeiro Céu.

? Aqui ? ela traçou os dedos sobre a avenida principal, que estava isolada para receber um desfile dos Nove Céus e também do reino humano de Miscra e por fim, teria uma espécie de baile e jantar no palácio do sol. Awen me levara para ver o baile quando eu tinha doze anos, ficamos escondidos no telhado do palácio para ver as hipnotizantes danças dos celestes. ? Preciso que mantenham os olhos abertos durante o desfile.

? Porque exatamente? ? quis saber. Alfia piscou para a pergunta, mas sorriu mesmo que agora fosse óbvio o motivo.

? Alguns celestes ainda não se dão bem com humanos e vice-versa, preciso que vocês fiquem de olhos bem abertos para evitar que alguém se machuque. ? Era simples: não podia colocar guardas solaris para fazer a vigia pois eles poderiam omitir problemas com humanos e os tratar mal, já humanos poderiam arrumar confusão com os celestes e colocar a culpa nos mesmos. Nós seriamos imparciais na hora de evitar problemas.

? Então somos apenas nós cinco? ? Hestia quis saber, Talua por ser mestiça dos dois povos seria quem nos orientaria lá fora, ela ficara responsável por nossa equipe. O desfile durava pelo menos uma hora e a área a ser coberta era muito grande, quase a distância de Madras até a ACV.

? Acredito que possam lidar com qualquer problema. ? Alfia mordeu os lábios cheios e seus olhos brilharam em dourado ? Dez anos atrás não tivemos tantos problemas, acredito que esse ano seja ainda melhor! ? A rainha solaris ajeitou sua coroa sobre a cabeça e nos deu outro sorriso curto. ? Assim que o desfile acabar, vocês deverão vigiar os portais, pois nem todos ficarão para o jantar e o baile. Os oficiais que guardam as passagens lhes dirão a hora que poderão vir para o castelo, aí podem ficar à vontade para se divertir um pouco por aqui.

Alfia suspirou pesadamente e indicou as portas com um movimento gracioso do pulso.

? Em uma hora os portais estarão totalmente abertos para os visitantes, creio que a princesa Talua poderá lhes dar as outras informações.

? Não terá com o que se preocupar, majestade. ? Talua mostrou os dentes, mais parecia uma careta de irritação que um sorriso, no momento seguinte, nos levou para fora, em direção as ruas de Airalos. Obviamente ela queria estar no baile desde o começo, Alfia dizer que precisaríamos vigiar as ruas até que o movimento diminuísse estragou os planos dela.

Ao passarmos novamente pelo pátio do palácio em direção à saída, vi de relance Hasan conversando com a solaris que organizava as mesas. Ele não nos viu sair, mas eu não deixei de notar o quão incomodado ele parecia naquele lugar.


Hasan:


Em cima das muralhas do palácio de Alfia, um camarote havia sido montado para que pudéssemos observar dali o desfile do festival em honra aos guardiões que a quase trinta anos haviam aparecido durante uma batalha e livrado o reino humano de Boghkar da ira do rei solaris, Sarki. Susano e Nikella foram invocados pelo tratado dos Doze assinado por todos os soberanos no dia do casamento de Nike e Caalin... mas agora nenhum deles estava ali para receber aquele agradecimento.

Sentado ao lado de Alfia sobre as muralhas, observei o vermelho do horizonte, o sol ali não desaparecia totalmente mesmo durante a noite, o que me lembrava Ciartes, de certa forma.

? Vai começar em breve! ? Alfia repousou a mão sobre meu joelho, ela estava um pouco perto demais, sentada sobre aquele trono de veludo vermelho sobre as muralhas, a rainha solaris sorria para as pessoas lá embaixo. Tanto celestes quanto humanos dividiam o espaço, aguardando ansiosos o começo das festividades.

Eu ainda não conseguira ver Kiara outra vez. Desde que eles saíram do palácio para fazer a guarda lá fora, o único que vira duas vezes foi o tenebris, Lohan constantemente mudava de forma, vagando entre as pessoas com os olhos cintilantes e ferais atentos. Tinha certeza de tê-lo visto pelo menos uma vez me encarar e mostrar os dentes.

Afastei a mão de Alfia com sutileza, mas mantendo a expressão dura o suficiente para que ela não voltasse a fazê-lo. A expressão surpresa no rosto de Kiara quando saí da sala do trono estava me atormentando... se ela tivesse escutado a conversa com a rainha solaris e agora soubesse a verdade... mas ela parecia calma demais para quem tinha escutado o pedido de Alfia. Não podia deixar de levar em consideração, que quando Mona tentou se aproveitar da situação de minha nova sala, embora o poder de Kiara tenha revelado que ela estava perto, sua expressão... sua reação ao conversar comigo depois não revelara nenhum tipo de rancor ou ciúme. Ela saberia esconder se tivesse escutado.

Tinha milhares de coisas importantes para pensar e pesar... porém a que mais estava me incomodando, era imaginar se a garota podia estar com ciúmes de Alfia por causa de uma conversa que supostamente poderia ou não ter escutado.

Se fosse Serena, teria avançado na rainha solaris sem pensar duas vezes, como fizera com Mariah anos atrás no castelo de Balfir em Amantia.

Passei os olhos outra vez pela multidão lá fora, o desfile estava prestes a começar, mas muitos vernuns e ventus tinham cabelos pálidos, então não conseguia localizá-la pelas ondas cor de lua de seus cabelos. Não podia usar magia ali, ficaria óbvio para qualquer um a minha real identidade caso o fizesse.

? Embora nós estejamos... presos a nossos reinos, não é tão ruim viver por aqui. ? Alfia sorriu, tocando sua coroa com as pontas dos dedos, ela se mantinha distraída, observando tudo com os olhos de uma criança curiosa.

Talvez o feitiço que drenava sua magia para manter os lunares adormecidos, tenha cobrado um preço muito maior que sua capacidade de gerar filhos.

Ao longe, alguém ergueu uma pequena esfera de luz branca e Alfia se levantou em seguida, erguendo apenas uma mão para silenciar a multidão:

? Hoje é um dia que todos nós que estivemos presentes no Sétimo a vinte e oito anos atrás, temos guardado nas memórias a alegria e a tristeza ao mesmo tempo. ? Ela levou a mão ao peito ? Muitos de nossos companheiros se foram, mas milhares foram poupados por um ato firme e justo daqueles que foram convocados para acabar com uma disputa de séculos em nossa história. Estamos aqui hoje para celebrar a justiça dos guardiões sobre aqueles que almejavam o poder acima do bem maior.

As palmas irromperam por toda a avenida por longos instantes, parando apenas quando a rainha tornou a sentar-se e liberou o início do festival com uma chuva de fogo dourado sobre os muros do palácio. O céu antes avermelhado se tornara negro, com nuvens carregadas despejando relâmpagos por todos os lados... porém uma canção suave e ao mesmo tempo poderosa se espalhou pelo ar. Vernuns tormentadores do Oitavo Céu abriam o desfile, trazendo com eles suas tempestades e luzes ofuscantes, a calmaria e também a tormenta de suas almas. Todos os outros Vernuns presentes ali começaram a brilhar enquanto as canções eram entoadas, e nesse momento, achei o único montinho de cabelos brancos que não estava brilhando.

No lado esquerdo da avenida e não muito longe dos muros do palácio, ela andava de olhos atentos, prestando atenção nas pessoas que se inclinavam sobre as grades de proteção para ver o desfile. Talvez ela não soubesse que se cantasse junto com eles, começaria a brilhar também. Todos os Vernuns foram criados da mesma essência de luz que ela possuía.

As sombras que os tenebris espalhavam, simulando a escuridão da chegada de Nikella e Susano ao Sétimo me chamou atenção e acabei a perdendo de vista. Não queria admitir... aceitar que a proposta de Alfia era irrecusável por quem meus pais foram. Os sóis guardiões. Em parte, eu me sentia tão responsável por tudo quanto eles, pois eu nasci e fui treinado para intervir... para impedir que Fairin continuasse a se aproveitar da maldição para ganhar poder, ajudar a acabar com Higarath, e no fim quase não fiz diferença para eles.

Agora tinha a chance de fazer algo bom, útil... mas não queria aceitar e tinha receio de fazê-lo.

Alfia sorria para o desfile, já estava quase no fim, pois os Lunares vinham por último em carros de vidro espelhado, acenando para as pessoas e trazendo uma noite estrelada como um manto cobrindo o céu sobre nós.

A rainha se levantou e estendeu o braço para mim, esperando que eu o pegasse. Não queria fazer uma desfeita, era seu convidado de honra, então segurei seu braço ao redor do meu, mas me mantive um pouco afastado enquanto descíamos novamente para o pátio. Lá fora muitas pessoas seguiam para os portais, pois seriam dadas festas menos formais nos Céus abaixo. A maioria das pessoas só vinha pelo desfile, pelo que uma das acompanhantes da rainha me dissera, depois desciam para as outras festividades.

A mesa de cabeceira próxima a entrada do salão principal do palácio já estava ocupada com os outros convidados de honra de Alfia. Ela me guiou até o centro, onde nos sentamos em duas cadeiras douradas entre o rei tenebris do Quinto Céu e seu filho mais velho, Awen, e Brine, rainha do Sexto. Os outros soberanos também se faziam presentes, Adrias do sétimo acompanhado de sua esposa humana, Yoru e Doreen com a filha do casal, cujos olhos azuis prateados monitoravam cada respiração do príncipe tenebris.

As mesas começaram a encher, e quando o movimento de pessoas entrando no palácio caiu, uma melodia baixa começou a ser tocada e o jantar se deu início. Sem prestar muita atenção no que era servido, não deixei que enchessem meu prato, de qualquer forma não estava com fome pois a cabeça cheia me impedia de sentir ânimo para qualquer coisa relacionada aquela festa.

? ... quem sabe seu convidado não fica uns dias a mais? ? minha atenção se voltou para as palavras maliciosas de Brine. A rainha do Sexto céu sorria em minha direção, os dentes longos afiados mais pareciam uma provocação que um sorriso.

? Hasan é mestre da academia venox do mundo de gelo, Brine, infelizmente sua presença não pode ser constante. ? Alfia comentou sem lhe dar muita atenção.

? ACV? ? o príncipe Awen ergueu as sobrancelhas espessas, pequenos cristais de sangue adornavam as têmporas do jovem, e também enfeitavam as pontas das longas tranças negras de seus cabelos. ? gostaria de conhecer um dia. Tenho uma grande amiga que treina lá. Ela quase consegue me vencer, acredito que o treinamento que recebam lá seja excelente.

? Você sequer se esforça quando está treinando com a princesa de gelo, meu filho. ? Owyn ralhou, tomando um longo gole de sua taça. Porque não me surpreendia descobrir quem era a amiga dele? Kiara fora criada por Owyn mesmo sob fortes protestos de Áries, que mesmo depois da morte de Nikella e Susano, não conseguira a guarda da menina.

? Lohan nos contou que ela passou no teste para o último nível dos treinamentos, vencendo um dos mestres mais fortes da academia. ? Awen me lançou um olhar por cima da taça dourada e sorriu ? Imagino que isso signifique que ela pode me vencer mesmo quando eu me esforço, meu pai.

? Kiara é uma ótima aluna. Ela se esforça muito em seu treinamento. ? disse tentando encerrar o assunto, não sabia porquê, mas a conversa sobre ela estava começando a me incomodar.

? E por falar nela, olha quem aparece! ? Owyn sorriu e os olhos negros brilharam com admiração. ? Olá meu bem! ? Kiara se aproximou da mesa acompanhada de Lohan, Hestia e Helleon do outro lado do salão já estavam sentados a uma das mesas e comiam como se não houvesse amanhã.

? Majestades, anudiijn. ? Ela se curvou para Owyn com um pequeno sorriso nos cantos dos lábios. Pisquei surpreso para a palavra que usou ao se dirigir a ele, anudiijn significava algo como “pai emprestado”, um termo deles para pai adotivo.

? Como vai minha quase nora favorita? ? Owyn sorriu e o rosto de Kiara empalideceu. Lohan apertou os lábios como se prendesse o riso e toda a conversa na mesa parecia ter silenciado, ou pelo menos, eu parei de ouvir.

? Acho que não foi boa ideia misturar vinho de purpas com o vinho solar, meu pai. ? Awen meneou a cabeça como se alertasse Owyn, mas o sorriso do rei apenas aumentou.

? Por que quase nora? ? eu não devia ter perguntado. O rosto de Kiara perdeu o restante da cor.

? Eu... ? ela começou, mas Owyn meneou as mãos a interrompendo.

? Não precisa ficar encabulada, querida. Nada acontece dentro de minha casa sem que eu fique sabendo, mesmo as coisas que acontecem entre quatro paredes. Jovens saudáveis fazem isso mesmo! ? Ele mexeu nas pontas das tranças ? Mas além disso, todos sabem que você ainda é minha escolha favorita à esposa de Awen!

Ouvi a jovem princesa Nibben engasgar do outro lado da mesa e Awen soltar um suspiro irritado ao meu lado. Meu coração acelerou e meu sangue se aqueceu, mas consegui manter-me sério, encarando o líquido púrpura em minha taça.

? Agradeço a preferência, anudiijn, mas não é o senhor que tem o poder da escolha, graças aos céus! ? naquele momento o silêncio realmente tomou conta da mesa enquanto todos olhavam espantados para Kiara. Até Lohan deu um passo mais para perto da amiga, esperando por uma reação negativa de Owyn. Porém esse apenas riu e bateu palmas, lançando a ela outro olhar ainda mais admirado que o primeiro.

? E por isso, menina, continua sendo minha favorita.

? Já fiz minha escolha, pai, e acredito que Kiara não seja muito aberta a nossas tradições. ? Awen tentou finalizar o assunto ali. Olhei de relance para Kiara, diferente do que imaginei, ela não tinha os olhos baixos ou parecia envergonhada de algo, ela apenas olhava preocupada na direção de Nibben, a tormentadora parecia prestes a explodir e seu pai alheio aquilo, continuava atento ao próprio prato.

A malvarmo ajeitou a gola de seu uniforme e seus olhos se voltaram para mim por um instante.

? Desculpe a indiscrição de Owyn, você gostaria de pedir algo, Kiara? ? Alfia estendeu a mão, dando a palavra à Kiara.

? Na verdade não, majestade, só quisemos cumprimentar os soberanos e avisar da troca da guarda. Com licença! ? Ela nos deu as costas sem um segundo olhar em minha direção. Pegou o braço estendido de Lohan e se dirigiu ao local onde seus amigos esperavam alheios ao que tinha acontecido na mesa.

Estava em dúvida se Owyn levantara a questão do envolvimento de seu filho com ela apenas para provocar Nibben pois podia não gostar dela... ou simplesmente para humilhar Kiara. Honén me dissera uma vez que o tenebris era cruel em seus testes, que ele levava as pessoas ao limite para que se tornassem fortes e invulneráveis.

Mesmo assim, aquilo não deixou de me incomodar.

Eles tinham planos para ela também.

Estava começando a detestar os tenebris.


Kiara:


? Ele não sabe brincar, não é? ? Lohan comentou, pegando o pedaço de carne assada banhada em molho agridoce de meu prato. Havia perdido completamente a vontade de beliscar aquelas delícias, meu estômago agora se retorcia de nervoso. Não conseguia acreditar que Owyn dissera aquilo na frente de todos. ? Eu disse, ele descobre tudo.

? Descobrir é uma coisa, usar isso na frente de todos.... ? meneei a cabeça irritada.

? Esqueceu que ele te obrigou a ter pesadelos vividos por meses até que você se acostumasse com eles e conseguisse dormir? ? Lohan espetou a carne com o garfo como se estivesse apunhalando alguém ? Eu acho que isso não foi nada além de outra prova. Ele certamente queria te testar... pois ele conhece seus desejos e a sua fraqueza, seus sentimentos pelo mestre jamais passariam despercebidos por ele, Kiara. Owyn não deixa passar nada. ? Seu semblante se tornou duro, Lohan olhou para a grande mesa e Owyn o encarava de volta com os olhos estreitos e um sorriso diabólico no rosto.

O sorriso de alguém que tinha sua alma nas mãos.

Duvidava que Owyn não sabia de Lohan e Nedyle... a mãe de Awen. Céus! Aquilo podia acabar muito mal!

? Não se preocupe com isso agora. ? murmurei tentando acalmar meu amigo quando sua pele se arrepiou e um rosnado de frustração o impediu de colocar a refeição na boca.

Pouco depois do jantar, a pista de dança foi liberada e a música se tornou mais alta, algumas pessoas que haviam comido menos já se arriscavam no centro do pátio sob as luzes de pequenos sóis dourados que flutuavam sobre a pista, movendo-se lentamente, refletindo nas serpentinas penduradas nas colunas ao redor do pátio. Olhei novamente na direção da mesa principal e Hasan estava encarando aquela taça outra vez, sua expressão parecia incômoda.

? Preocupada que o seu fogo no rabo o tenha espantado? ? Lohan riu, puxando meu braço para que me levantasse e me arrastou em direção a pista de dança.

? Estou num uniforme da guarda, Lohan! ? revirei os olhos ignorando sua pergunta, ele mordeu os lábios e deixou que aquela fumaça se espalhasse ao meu redor, então um vestido surgiu, sumindo com o aperto do uniforme. Camadas de chifon negro bordado pequenas pedras vermelhas se espalharam ao meu redor numa saia longa e rodada, a parte superior apertada não tinha alças ou mangas, apenas se agarrava ao meu busto com um decote reto pouco marcante. Lohan puxou o grampo de meu coque, os cabelos brancos rolaram por meus ombros e caíram ao redor de minha cintura, quando o tenebris me girou, os fios desarrumados se ajeitaram.

? É uma princesa, toda princesa precisa de um vestido bonito e de uma dança com seu príncipe no baile. ? Ele sorriu.

? Você não é meu príncipe. ? murmurei apertando sua mão com meus dedos metálicos.

? Tem razão, nem você é minha princesa, mas nossos pares estão inacessíveis hoje, e como um bom amigo, é minha obrigação tirar essa expressão tristinha de seu rosto! ? mais pessoas começaram a valsar no centro ao nosso redor, entre um giro e outro, sentia um olhar incandescente me observando e não tinha nada de agradável na sensação. ? Não respondeu à minha pergunta. ? Lohan insistiu, baixando o rosto para sussurrar em meu ouvido.

? Meu fogo no rabo, como você diz... Scath, Awen, Cedric e Hestia ? O tenebris quase tropeçou, seus olhos estavam arregalados quando ele afastou o rosto para me encarar ? Eu quis assim, foram escolhas minhas, tive vontade e fiz o que queria fazer.

? Achei que...

? Eu o amo. ? o cortei ? E talvez tenha amado desde sempre, mas não tinha esperanças, sabe? Não esperava que pudesse ser correspondida, ainda tenho um pé atrás com sua repentina mudança de atitude a meu respeito, mas... eu sempre esperei que algo ruim me acontecesse, Lohan. Porque ficaria esperando um milagre e me guardando se a vontade estava lá?

? Não está errada. ? Ele suspirou ? mas não sei se gosto desse pensamento pessimista.

? Realista. Não tem nem duas semanas que Hestia e eu quase viramos comida de demônio. ? Lohan pressionou os lábios numa linha fina e me girou outra vez, Hasan estava com os olhos fixos em nós agora.

? Se soubesse que ele corresponderia um dia... teria feito diferente?

? Não teria como saber. ? meus dedos roçaram acidentalmente o pescoço do tenebris e ele se arrepiou, mordeu os lábios e desviou o olhar.

? Acho que você é feita de açúcar. ? Ele riu.

O tenebris parou de rir e me mostrou a língua quando coloquei todo meu peso para pisar em seu pé.


?????????????????


Lohan não me deixou solta durante a maior parte do baile. Em uma determinada hora, quando estava com os pés doloridos e com dor de cabeça de tanto dançar, Talua apareceu junto com Nibben e cochicharam algo com o tenebris.

? Vamos escapar um pouco? ? Lohan mostrou os dentes, e num passo para trás conosco encostadas a ele, fomos puxadas para aquele corredor de escuridão antes de pisar num lugar que nunca tinha visto.

Estávamos numa espécie de caverna de gelo e bem alto, no que deveria ser o teto, nuvens de tempestade rolavam largando raios contínuos que mantinham o lugar claro.

? Que...

? É uma caverna um pouco abaixo do ciclo das tempestades. ? Talua mordeu os lábios e começou a caminhar na direção em que a caverna começava a afunilar. Conseguia escutar não muito longe o som de água corrente, também sentia o ar mais espeço e quente ali... vapor.

? Oh deuses. ? travei. Os três me olharam surpresos, Talua tinha um sorriso malicioso no rosto, porém Nibben me encarava de olhos estreitos e me observava de cima a baixo.

? Você é muito maliciosa, Kiara! ? Lohan começou a rir.

? Culpa sua, é um passeio para garotas! Não era para você estar aqui! ? Nibben grunhiu apontando um dedo para a entrada da caverna, despachando Lohan, o tenebris porém apenas mudou de pele, assumindo uma forma feminina que fez Talua soltar um gritinho histérico e os cabelos castanhos da garota meio humana meio vernum mudaram para prateado.

? Estou incluída no grupo agora.

? Porque raios não trouxeram a bruxa? ? Nibben resmungou.

? Achei que a ideia era só aproveitar a cachoeira termal ? Lohan sorriu maliciosamente ? se tivéssemos convidado a bruxa, a situação sairia do controle.

? Ela vai ficar magoada comigo, acho melhor eu voltar... ? murmurei, meu coração estava acelerado, descontrolado.

? A parte final do baile tem uma festa maior, da qual ela vai gostar muito, acredito que ela ficaria magoada caso você a tirasse de lá. ? Talua chiou e minha garganta se apertou.

? É... sério? ? Lohan revirou os olhos e meneou a cabeça negativamente, ele me olhava pelos cantos dos olhos e estendeu a mão para que eu não desequilibrasse, degraus escavados no gelo a um passo diante de mim, levavam a um bolsão numa cachoeira logo abaixo de nós e havia tanto vapor que era difícil enxergar qualquer coisa ali.

? No fim Alfia faz um discurso entediante e a maioria não presta atenção pois já estão bêbados e cansados demais. Mas Hestia e Helleon desapareceram logo após o jantar acabar! ? Ele riu, incentivando-me a me aproximar da piscina, meu vestido de sombras começou a se desfazer conforme entrava na água, a temperatura era alta o suficiente para me fazer recuar. O calor daquela cachoeira fez minha pele arder e meu coração acelerar, talvez não conseguisse ficar ali.

? Não é uma boa ideia para mim. ? arfei, tentando sair da água, mas Lohan não soltou minha mão, o tenebris ergueu a mão feminina que vestia ao meio de minhas costas e pressionou o polegar ali. Minha pele mudou de cor, tornando-se mais rosada, os cabelos brancos foram substituídos por aquelas ondas negras, no instante seguinte, o calor das águas diminuiu e até mesmo respirar ficou mais fácil. Talua assoviou e riu.

? Tá explicado porque todos querem tirar uma casquinha. Só imagino o que os outros estão pensando de nossa escapada no centro do salão! ? Nibben aparentemente não gostou do comentário, ela arrancou o próprio vestido com ignorância, expondo o corpo esbelto e pálido, o vapor não fazia muito para esconder as curvas suaves. Talua também entrou na água e se encostou nas pedras, arqueando o pescoço contra a parte em que a água fluía em linhas finas e caia mais suavemente.

? Não ligo para o que vão pensar, escutar Alfia contar sobre o tempo presa no Nono Céu e sobre os guardiões de novo e fazer um discurso motivacional logo depois de toda aquela comida...

? Talua as vezes eu acho que você é adotada! Como Adrias pode ter uma filha tão grossa? ? Lohan alfinetou e eu continuei olhando para as águas desabando, não queria estar no meio do fogo cruzado entre os dois vestindo uma pele quase humana. Os dois começaram a trocar farpas e a única reação que tive foi me recostar e aproveitar o momento relaxante. No dia seguinte teria que ir ao Quinto Céu, não havia me esquecido do fragmento do mapa.

Porém o que me deixava curiosa e incomodada e que ainda não tivera tempo de conversar com Lohan já que ele havia escutado parte da conversa suspeita entre Hasan e Alfia era: O que A rainha solaris queria dele, ou de Sirius que Áries não aceitaria que ela cogitara querer até mesmo o filho de Hasan? Um único pensamento continuava martelando em minha mente sobre aquilo e a resposta fazia meu estômago revirar.


?????????????????


Depois de Lohan me deixar no corredor principal do Palácio da Noite e sumir na escuridão para levar Nibben até o príncipe Awen, segui em passos lentos para meu quarto no fim do corredor do sexto andar. Algumas horas em pé vigiando e dançando no Primeiro não deviam me cansar tanto, porém aquele era o efeito que o aço solar na decoração do lugar me causou. Mesmo que tivesse ficado um pouco irritada com a fuga repentina do baile, ainda queria abraçar Lohan e Talua pelo banho naquela cachoeira no meio das tempestades, pois pouco mais de duas horas mergulhada lá com minha forma humana, fez com que quase todas as minhas preocupações fossem lavadas.

Lohan havia puxado minha bolsa através das fendas e graças a aquilo, pude colocar minhas próprias roupas. Outra coisa que nem queria pensar era aonde meu uniforme que fora substituído pelo vestido de sombras fora parar.

Deixei um suspiro cansado escapar e continuei meu caminho. As janelas abertas deixavam passar uma brisa fria, movendo as longas cortinas de cor violeta em minha direção, lá fora o céu sob nossos pés era tão tempestuoso que tinha a impressão de estarmos sobre o céu dos tormentadores, mesmo estando acima de outro reino tenebris. Olhei por uma janela sem parar meu trajeto, observando as duas luas com sorrisos minguados para mim. O Primeiro Céu era muito mais brilhante e com cores vivas e me lembravam um certo salamandra, mas em meio aquelas nuvens e escuridão... tinha uma sensação maior de tranquilidade.

Ao me aproximar de meu quarto, senti uma presença lá dentro e meu coração começou a martelar conta as costelas antecipadamente.

Ele estava lá.

Abri a porta e dei de cara com Hasan sentado na poltrona próximo a janela, usando nada além de uma calça de moletom cor de vinho e os cabelos presos num coque, ele desviou os olhos dourados do livro que folheava para me encarar. A princípio, parecia a tranquilidade em pessoa, mas eu sentia algo girando sob aquele olhar... algo que queimava mais que qualquer fogo.

? Passeio divertido? ? perguntou sem desviar os olhos de mim. Mordi os lábios ao olhar seu corpo uma segunda vez, o peito definido movendo-se de forma regular, uma das mãos segurando o livro e a outra apertada contra o braço da poltrona...

? Relaxante ? não tinha motivos para mentir ? porque está aqui... no meu quarto? Como chegou aqui? Não devia estar no Primeiro?

Os lábios de Hasan tremeram e seus olhos se estreitaram em minha direção. Me movi pelo quarto devagar, tentando parecer tranquila.

? Seu quase noivo me trouxe aqui, ele achou que seus amigos podiam tê-la trazido para cá. Ele me disse que podia ficar por aqui e que você certamente voltaria, que não dorme em outro lugar quando está por aqui, a não ser que fosse para a Floresta Azul. Aparentemente ele a conhece bem o suficiente para tentar esclarecer algumas coisas e me pedir desculpas pelo comportamento grosseiro de Owyn, mas não desmentiu o que o rei disse sobre vocês dois ? não sabia se me incomodava mais com a observação sobre Awen ou pela estranha calmaria em sua voz, quando seus olhos claramente transpareciam irritação. Ele voltou a folhear o livro e meu coração se descontrolou.

? Nunca escondi que sempre fui bastante... curiosa. Isso está te incomodando? ? questionei. Hasan não me encarou, apenas fechou os olhos apertados.

? Porque me incomodaria? Nós não temos nada. ? Meu peito se apertou, e precisei de mais força do que imaginava para não dar um passo para trás.

? E a culpa é minha por isso? ? o encarei.

? Creio que seja minha, já que não lhe dei mais do que provocações e não me fiz muito claro com minhas intenções a seu respeito. ? Ele me encarou de volta, agora não eram só seus olhos que estavam dourados, as marcas em seu corpo brilhavam também. ? Awen fez questão de me dizer que Owyn soltou aquelas verdades por pura implicância com a princesa Nibben, embora eu não tenha perguntado nada sobre. Não tenho nenhum problema com quem ou quando estiveram em sua cama, Kiara.

? Então? ? cruzei os braços um pouco relutante.

? Lohan é um ótimo aluno na ACV, é interessante... um príncipe, a amizade de vocês é muito forte, e ele está em seu presente, e não no passado. ? Hasan comentou sem desviar os olhos dos meus. ? e parece interessado em você.

Meu coração acelerou ainda mais. Tanto que tive que me encostar contra a parede atrás de minhas costas e uma súbita tonteira de emoção ameaçou me derrubar, embora Hasan tivesse demonstrado um certo ciúme antes... dessa vez ele realmente parecia irritado.

? Com ciúmes? ? perguntei baixo. Hasan nem sequer pareceu abalado... mas eu vi aquele músculo se mover quando ele tensionou o maxilar.

? De forma alguma, Kiara. ? disse com a voz suave ? muito pelo contrário, acho que formam um casal bonito. Deveriam ficar juntos.

Um banho de água fria, ótimo.

? Tem razão... ele é tudo o que disse, e ainda é um ótimo amigo, não duvido que seja um excelente amante também... ? de novo, aquele músculo em seu maxilar se contraiu, mas dessa vez eu o vi com clareza, mas evitei sorrir. ? mas ele tem um problema, para mim.

Hasan se inclinou sobre a cadeira, cruzando as pernas sobre ela.

? E que problema seria esse? ? quis saber.

? Ele não é você. ? falei ? E eu não conseguiria dar o amor que ele merece, pois você já o tem. ? descolei o corpo da parede e fui em sua direção, parando perto suficiente para que seu perfume impregnasse em meus sentidos, despertando aquele meu lado que não tinha medo de se queimar.

Hasan agora me encarava perplexo

? Ainda me pergunto... de onde esses seus sentimentos surgiram se eu nunca fui além de cordial com você antes, e frio depois que os revelou a mim. Porque não desistiu? ? me aproximei um pouco mais, ignorando aquele alerta idiota que soava em minha mente quando eu me aproximava dele... bom senso, instinto de sobrevivência que curiosamente ainda funcionava em mim. Afinal, ele era um salamandra, alguém que poderia facilmente me destruir.

? Talvez por isso mesmo... um coração frio é um lugar seguro pra um malvarmo que já se queimou demais antes. ? sentei-me no braço da poltrona, me obrigando a manter a calma mesmo estando tão perto assim, e fora de qualquer restrição que a ACV me impunha. Ali, não haveria desculpas de regras.

? Achei que não tivesse medo do fogo. ? Hasan disse baixo, inclinando a cabeça em minha direção.

? Fui criada por tenebris, aprendemos a sentar ao lado de nossos medos. E conhecer a dor que algo causa e ter medo dela são coisas diferentes. Não tenho medo do fogo.

? Seja sincera! ? Hasan segurou meu queixo entre o polegar e o indicador, tão suavemente que estremeci com o toque.

? Eu não sei explicar... ? sussurrei ? mas eu acho que sou apaixonada por você desde a primeira vez que o vi. ? Não precisei ser lembrada de que aquilo aconteceu mais de quatorze anos, quando eu não devia pensar daquela maneira de ninguém, quando ainda era uma criança num castelo de gelo. ? Você era... ainda é como um sol no meu inverno eterno.

? Isso é motivo para me... gostar de mim? ? Ele evitou a verdade que havia lhe dito.

? Talvez eu tenha me apaixonado pela profundidade do seu olhar, a falsa mansidão que seus olhos transmitem, escondendo a real tormenta lá no fundo... amei o homem que mesmo depois de tudo que perdeu, mesmo com uma parte faltando no coração, continuou sendo gentil com as pessoas. Eu me sinto inteira quando você está perto. ? peguei aquela mão que estava em meu rosto, ele não se retraiu com o toque de meus dedos metálicos frios. ? Não consigo por em palavras tudo que sinto por você, mas o meu amor é real e você sabe muito bem disso, só parece não querer aceitar.

Hasan suspirou, ele se inclinou contra meu corpo, encostando a cabeça na curva de meu ombro e me envolveu com os braços. Aquele não era o momento certo, mas meu corpo estremeceu com o toque, e tentando acalmar meus instintos, acariciei sua cabeça com as pontas dos dedos e me inclinei para beijar o topo de sua cabeça.

Porém os braços dele me soltaram e apenas suas mãos continuaram em minha cintura, lentamente ele começou a circular as pontas dos dedos sobre o tecido fino do vestido. Minha respiração falhou por um instante, de olhos fechados mantive minhas mãos em seus ombros, com medo de que se fizesse algum movimento errado, ele voltaria ao jogo que começara a jogar na ACV com as provocações e evasivas e sairia do quarto.

Hasan desceu as mãos para minhas coxas, traçando linhas até meu quadril, escorregando o vestido que já estava um pouco puxado para trás, e começou a deslizá-lo para cima. Levantei-me e num movimento suave e ele o tirou. Estava vestindo apenas um conjunto de seda por baixo, azul celeste com fitas pretas, Hasan os observou e sorriu, voltando os olhos negros para mim.

? Azul é minha cor favorita ? ele sussurrou, envolvendo minha cintura com as mãos, puxando-me para seu colo. Meu corpo estava mole, solto e meu coração batia tão violentamente que o fez sorrir mais. Não um sorriso qualquer, um sorriso predatório, que fez minhas pernas tremerem e calor preencher o meu interior.

Estava nervosa como não estive nem mesmo na minha primeira vez, o medo era de espantá-lo por qualquer coisa... mas cada pensamento desapareceu de minha cabeça quando Hasan se inclinou e passou a língua na curva de meu pescoço, descendo-a por entre meus seios, ele se afastou pouco, apenas para morder de leve meu seio por cima do sutiã.

? É o troco... ? ele sussurrou contra minha pele, o calor de seu hálito quente me arrepiou completamente ? pela aula, pela biblioteca... e por se recusar a me deixar alimentá-la aquele dia. ? ao terminar de dizer, o restante de minha roupa desapareceu e seus lábios envolveram o bico de meu seio. Um gemido baixo escapou de minha garganta e meus dedos se enrolaram em seus cabelos ruivos macios. A mão que estava em minha cintura desceu para o meio de minhas pernas, deslizando os dedos ásperos naquele ponto pulsante com uma pressão leve.

Um grunhido quase animalesco estremeceu seu peito, ao sentir minhas garras descerem de leve por suas costas, subindo pela lateral de seu pescoço e descendo pelo peito musculoso.

? Hasan ? gemi seu nome quando parou de brincar com os dedos entre minhas pernas para mergulha-los dentro de mim, dois dedos de uma vez.

? Mesmo que estivesse negando... queria fazer isso desde aquele dia em minha sala... mentira, a queria desde o dia que invadiu minha biblioteca ? disse ele, erguendo-me da poltrona, indo de encontro a parede ao lado da janela. Ele manteve-me presa contra ela usando o quadril como apoio ? mas aquele dia você nem me deixou terminar de falar... ? sussurrou, trazendo a boca de encontro a minha garganta. Ele enrolou meus cabelos com os dedos e inclinou meu pescoço. Meu coração vacilou uma batida quando roçou a língua na curva de minha garganta, em seguida os dentes. Hasan então cravou as presas em mim enviando uma onda arrebatadora de dor e prazer por meu corpo, fazendo com que eu soltasse um soluço e me agarrasse a ele pressionando mais sua ereção contra mim.

Senti o sangue fluir para aquela região, ele não estava apenas me marcando... estava se alimentando de mim.

Podia chorar com a emoção, mas o fogo que ameaçava me consumir era mais intenso que meus sentimentos ao sentir as presas deixarem meu pescoço e sua língua deslizar no local da ferida, fechando-a.

Antes que eu dissesse algo, Hasan se enterrou dentro de mim com uma vigorosa penetração, arrancando um gemido que foi abafado por sua língua de encontro a minha deslizando para perto de minha garganta, fazendo penetrar em mim o sabor de cardamomo e canela misturavam-se com o gosto metálico adocicado de meu sangue em seus lábios. As mãos quentes apertaram minhas coxas enquanto ele entrava em mim com força, fazendo com que eu perdesse a noção de meu corpo em cada investida.

Quando o beijo foi quebrado, o puxei mais com as pernas e lambi de seu queixo até sua garganta, intercalando com mordidas, marcando sua pele quase em brasa, arrastando minhas unhas contra seu corpo.

Hasan rosnou e me apertou mais, os olhos dourados me encararam por um momento antes de se fecharem e ele grunhir contra meu pescoço, penetrando-me uma última vez com força suficiente para a janela vibrar.

Meu coração estava garganta.

Ele não saiu de mim, apenas me tirou da parede e me levou para a cama do outro lado do quarto e me manteve em seu colo, sem nos separar.

O salamandra me encarou, ofegante e se inclinou para me beijar. Segurei seu rosto com as mãos e capturei sua língua com os lábios, sugando-a de leve. Ele suspirou pesadamente, então comecei a me mover sobre ele, o empurrei para trás até que ele deitasse sobre a cama e me movimentei devagar, instigando-o, despertando-o novamente.

Suas garras apertaram minha cintura e um riso rouco subiu por sua garganta.

? Eu estava certo sobre isso... ? ele murmurou, apertando os dedos com tanta força nos lençóis quando aumentei o ritmo, cavalgando-o, rebolando sobre ele e sentindo calor me preencher novamente pouco antes de meu corpo estremecer com o prazer também.

? Estava certo sobre? ? arfei, deitando-me sobre seu tronco e beijando-lhe as marcas douradas no ombro e pescoço.

? Sobre você ser um perigo ? disse baixo, sorrindo para mim, os dedos subindo e descendo em minhas costas, numa carícia que arrepiou minha pele.

Contornei um pequeno raio dourado em seu pescoço com a língua e ele se contraiu... um movimento e eu o morderia... mas ele não ofereceu, não disse que eu podia. Então apenas deitei meu rosto em seu peito e embalada pelas carícias e o confortável calor dele, adormeci.


Capítulo 7

 

A certeza que a noite passada fora um sonho desapareceu antes mesmo de eu abrir os olhos, pois estava deitada envolvida por braços quentes e meu corpo parecia à beira de se desmanchar. Hasan dormia profundamente com o corpo colado ao meu, virei-me com cuidado para olhar seu rosto, os fios vermelhos e acobreados dos cabelos espalhavam-se ao redor do rosto e sua respiração profunda aquecia minha pele.

Uma vontade louca de rir e chorar ao mesmo tempo se apossou de mim.

Aquilo não podia ser real. Estava feliz demais para ser verdade.

Ainda não era nem seis da manhã, eu não precisava dormir tanto, então mesmo querendo me aninhar de volta e embolar minhas pernas nas dele mesmo que fosse apenas para sentir seu calor e o observar dormir como uma louca apaixonada, tinha algo importante que precisava fazer. Sai da cama sem fazer barulho e comecei a me vestir.

Hasan não acordou quando sai do quarto nas pontas dos pés, segui pelo castelo caminhando em direção à sala do trono. Sombras circularam por entre meus pés enquanto andava pelos corredores escuros e silenciosos e desapareceram, os guardas do Palácio da Noite.

? Alguém se deu bem! ? o hálito morno de Awen em meu pescoço me fez ter um sobressalto, o tenebris riu tirando as grossas tranças de seu cabelo da frente do rosto.

? Não sei do que está falando. ? murmurei sentindo meu rosto esquentar, ele me acompanhou em passos moderados, minhas pernas ainda estavam meio moles, e não era exatamente culpa do susto.

? Seu sol estava aquecendo sua cama, as marcas das presas dele ainda estão em seu pescoço, princesa. ? ele riu quando cobri a marca com a mão ? sobre o que meu pai disse... eu contei a ele.

? Soube disso.

? Eu... ? Awen parecia incomodado com algo, ele coçava os pequenos jaspes sanguíneos cravados em sua pele, as marcas dos guerreiros tenebris parecia brilhar conforme passávamos pelas grandes janelas e a claridade da mistura do fim da madrugada com o início da manhã, começava a brilhar no horizonte.

? Fala logo, eu sei que você quer me pedir algo. ? resmunguei, ao vê-lo desviar o olhar, entendi qual era o problema ? Nibben surtou, não foi? Você não contou a ela?

? Porque contaria? Foi casual, não é como se eu estivesse escondendo uma primeira esposa para ela descobrir depois que é a segunda. Não esperava que meu pai dissesse algo do tipo.

? Sinceramente... depois de tantas coisas que ele fez, essa devia ser sim esperada. ? Awen bufou e assentiu com o cenho franzido.

? Pode falar com ela? ? Awen perguntou, comecei a rir. ? Não tem graça! Nibben tem o gênio do pai dela! Ela fez uma tempestade dentro do quarto.

? Você tem que deixar claro de que foi antes de se comprometer com ela, e se mesmo assim ela ficar com raiva... talvez precise repensar sua escolha. ? disse baixo. Awen me olhou através das fendas dos olhos e suspirou cansado.

? Vai até o salão tomar café ou tomou antes de sair da cama? ? O tenebris me e olhou pelos cantos dos olhos, ciente do tom azulado que enchia minhas bochechas, é claro que não ia deixar de tentar provocar... filho de peixe! Ou melhor, de pesadelo.

? Está muito bem-humorado pra quem quase levou uma mordida de uma vernum. ? Awen crispou os lábios para a provocação e desviou o olhar. Só então reparei que ele estava escondendo uma marca no braço. O parei no meio do corredor, agarrando seu pulso e o girei para cima. Awen não tentou esconder a marca profunda ali, uma mordida sem dúvidas, exalando odor de possessividade e violência.

? Awen! Ela te atacou de verdade! ? Não foi uma pergunta, mas ódio se revirou em meu estômago e com dificuldade, afastei o sentimento para evitar aquela noite que começou a vazar de mim.

? Não é nada.

? É sim! Ela não pode fazer isso! Você não pode...

? O quê? Esperava que eu a ferisse? Não sou um monstro embora me pareça com um. ? rosnou, exibindo os dentes, o branco dos seus olhos havia desaparecido. Com o coração apertado e sem pensar muito, avancei e o abracei apertado, o corpo do tenebris tremeu e mesmo parecendo que ia resistir, ele fechou os braços ao meu redor também.

? Amor não fere, Awen. ? sussurrei ? Ela não pode fazer isso com você e achar que vai ficar tudo bem!

? Eu... ? ele me afastou gentilmente, seus olhos estavam normais agora.

? Você não parece um monstro. ? falei, mas ela agora parecia um para mim. ? Vou falar com ela mais tarde. ? Meu tom de voz saiu mais duro do que pretendia, mesmo assim ele não pareceu perceber.

? Obrigado. ? Ele suspirou pesadamente e voltou a andar, acompanhando-me pelos corredores silenciosos. Ia ensinar bons modos a uma vernum, ela querendo ou não. E se não desse certo com palavras... mostraria quais presas doem mais a ela.


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Ao chegar no salão, Owyn estava ao lado de seus maridos, na cabeceira da mesa de café, Nedyle e a outra concubina, as únicas que tinham filhos do rei do Quinto Céu, se encontravam na mesa. Awen fez uma mesura ao se aproximar e tocou os ombros do pai num gesto de carinho, mesmo estando irritado com o que o rei fizera na noite anterior.

Owyn levantou os olhos negros para mim e sorriu, movendo os dedos para que me aproximasse.

? Bom dia, etahi, parece que descansou bem depois de conseguir alguém que queria. ? Calisto, seu marido favorito sentado à sua direita deu uma risadinha e Nedyle engasgou com o chá e virou os olhos dourados para mim.

? Nada passa despercebido, não é? ? sorri docemente, fazendo-o erguer uma sobrancelha.

? Nem mesmo o motivo por você estar de pé tão cedo, sendo que podia aproveitar mais algumas horas de tal companhia tão calorosa e de quebra tomar o café na cama ? Não deixei que as palavras me atingissem dessa vez ? admiro sua força de vontade, eu não sairia de lá tão cedo.

Calisto passou os dedos entre as tranças curtas e sorriu, mas aproximou-se um pouco mais do rei e suas sombras agitaram-se. Ciúme.

? Sente-se, Kiara! ? Awen puxou uma cadeira ao seu lado para mim. Não foram poucas as vezes que me sentei àquela mesa e me senti em casa, acolhida. Deslizei para a cadeira grande de madeira escura e deixei que Awen servisse um prato para mim, sob os olhos atentos de Owyn, enquanto a conversa voltava à mesa devagar.

As portas do salão se abriram, Lohan e Nibben entraram juntos, o que fez Owyn soltar um suspiro mais que insatisfeito. Ele a detestava. O que será que aconteceria se eu contasse o que a garota fazia com seu filho favorito?

Nibben olhou diretamente para mim ao lado de Awen, ela parecia prestes a pular em cima da mesa e escorregar até onde eu estava. Aquela mesma parte que antes me incentivou a lutar com Áries, desejava que ela o fizesse, mas antes de pular, seu pescoço estaria quebrado e uma guerra entre os céus começaria. Lohan, com os lábios pressionados com força e mão ao redor do braço da garota parecia ter pensado o mesmo, pois quase imperceptivelmente, o cheiro de bétula ficou mais denso na sala.

? Assim que terminar seu café, etahi, vá até o salão da noite.

? Já vai se retirar? ? Awen franziu o cenho para aquela atitude, Owyn no entanto olhou diretamente para Nibben ao dizer:

? Perdi a fome. ? E como se nunca tivesse estado ali, desapareceu numa fumaça densa de odor acre que me fez perder qualquer vontade de me alimentar também.

Nada passa despercebido dentro de minha casa. Talvez Nibben perdesse a cabeça antes que eu colocasse algum juízo nela.

Deixei a mesa no instante seguinte, Lohan me acompanhou quando me despedi dos outros e segui para a escadaria no fim do corredor principal que levava à sala do trono. Meu amigo me acompanhou em silêncio, o único sinal de nervosismo de sua parte era o braço tenso ao redor do meu.

? Logo que fui trazida pra cá... costumava ver você e Awen brigando por causa de Nibben. ? comecei, Lohan assentiu devagar ? Eu costumava pensar que era porque os dois gostavam dela e estavam meio que a disputando. ? Ele franziu o cenho. ? Nunca foi por isso, não é?

? Sempre tentei alertá-lo sobre ela ser idêntica ao pai... mas Yoru não chega a ser agressivo.

? Vou falar com ela.

? Ela vai soltar raios em você! Nibben é...

? É só meio tormentadora ? disse ? E vai ser a primeira a ser apanhada por uma tempestade de verdade e conhecer os riscos de estar exposta a uma.

? Que tempestade seria essa? ? o tenebris me olhou, segurando a maçaneta de pedra brilhante da porta do salão da noite.

? Eu.

O salão da noite brilhou quando deixei meu amigo para trás.

Pisar no chão daquele lugar ainda me causava arrepios. Não pelas intermináveis horas que passei ali, vendo todos os meus pesadelos se repetindo, vendo monstros, ouvindo sussurros, ouvindo suas vozes cantarolando canções obscuras que me faziam ficar encolhida, tentando me lembrar como respirar.

Não...

O chão do salão da noite não existia. Era como pisar no vazio, como ser lançado às estrelas e ficar perdido na escuridão entre elas, vendo ao longe pontos de luz que jamais seriam alcançados. Olhar aquelas estrelas, me fazia pensar em meus objetivos que estavam tão fora de meu alcance, que as vezes tinha vontade de desistir deles.

? Eu me lembro bem de quando pisou aqui a primeira vez. ? A voz de Owyn vinha de todos os lados, mas podia ver sua silhueta negra e esfumaçada bem a frente. Dei um passo em sua direção, o chão ao redor de meus pés vibrou, era como se não estivesse pisando em nada. ? Jamais me esquecerei do dia em que Honén entrou com você aqui e me pediu que a ajudasse, uma coisinha pequena, e mesmo com medo, tinha o olhar tão determinado quanto tem agora.

? Porque a odeia tanto? ? questionei, não queria me lembrar daquilo, de como fui largada aos pés dele naquele salão pela mestra Honén e implorei para que me ajudasse a parar de ter pesadelos, parar de ver meus pais queimando no salão.

A presença esmagadora do rei tenebris se espalhou, e as estrelas uma a uma foram se apagando, engolidas por sua essência.

? Não é obvio o bastante? ? a voz agora mais grave, veio carregada de irritação. ? Não vejo o porquê dele se unir a alguém que tenta colocá-lo numa coleira. Meu Awen nasceu pra ser um rei, um líder, não o bichinho de estimação de uma mestiça mimada e sem nenhum dom além de ser irritante e má.

? Ele a ama, mesmo assim. ? O tenebris se manifestou em minha frente, e com as mãos em garras, agarrou meus braços com força suficiente para quebra-los, caso eu fosse uma humana. Os olhos negros carregavam mais que angústia ira.

?Sim, e esse é o único motivo de eu não a ter mandado numa caixa em pedaços de volta o Sétimo.

? Eu vou dar um jeito nela ? o sorriso do tenebris fez um arrepio subir por minha coluna ? Nada de caixas e pedacinhos... mas vou dar um corretivo naquela peste. Awen é meu amigo e se ela não fizer por merecer o amor e paciência dele...

? Eu tinha uma aliança com Nikella, sabia? ? Owyn soltou meus braços e tirou uma mecha solta de meus cabelos da frente de meu rosto. Meu coração pulou uma batida.

? O quê? ? minha voz não passou de um sussurro.

? Ela me deu você em casamento ao Awen, logo após você e seu irmão terem nascido. ? meu estômago embrulhou ? Susano recusou permitir que você fosse trazida, mas por trás dele, nós já estávamos combinados. Ela não queria você com eles, te queria distante de seu irmão... tinha medo do que você poderia fazer a ele.

? Isso é um teste? ? não podia me descontrolar.

? E se não for?

Mas tinha que ser... não seria fácil conseguir os fragmentos. E Owyn seria o primeiro a realmente me pôr à prova, mesmo que... mesmo que fosse o tipo de coisa que ela faria.

? Eu quero o fragmento do mapa. ? pedi, firmando a voz o máximo que pude. Do outro lado da sala uma luz fraca azulada brilhou.

O cilindro estava lá.

? Será seu... se conseguir passar por mim para pegá-lo. ? Owyn gargalhou e se espalhou no breu, lançando a sala na mais completa escuridão. Fechar os olhos não adiantaria, ele podia projetar o que quisesse em minha mente, então o que tinha que fazer era resistir.

Claridade preencheu o lugar com luz do sol morna de fim de tarde, os raios dourados me alcançavam por entre as folhas verdes novinhas das árvores... do terraço na fortaleza de Esperas. Estava em Vintro.

? É melhor desistir disso, Kiara. ? A voz de Hasan chegou até mim mais irritada do que jamais tinha ouvido. Virei para trás afim de encará-lo. Ele estava de pé perto da porta da sacada e olhava para minhas mãos com cenho franzido. Um livro antigo muito grosso com capa de couro estava apertado contra meu peito, eu o apertava com força... com medo de soltá-lo.

Aquele era Adraph.

Mas... ainda era uma ilusão.

? Sabe que não posso. ? falei baixo, dando um passo a frente. Mesmo que não pudesse enxergar a sala por causa da ilusão, sabia que o fragmento do mapa estava a alguns metros à frente. Hasan não se moveu, mas seus olhos estavam fixos em mim.

? É perigoso, você pode acabar morta procurando por eles! ? o salamandra rosnou, pondo-se em meu caminho.

? Eu fiz uma promessa.

? E ela vale mais que sua vida?

? Mil vezes mais. ? rebati, seguindo em passos firmes até chegar perto o suficiente para sentir seu cheiro. Real demais... aquilo me parecia bem real.

? Nós sabemos que eles não estão mais aqui, Kiara! ? Hasan sussurrou, erguendo a mão, tocando minha bochecha com as pontas dos dedos quentes.

? Fares...

? Seu irmão pode estar errado.

? Não vou desistir até provar se está ou não. ? disse por fim, passando por ele, podia sentir agora o chão da sala mudando.

? Se não desistir disso... eu não vou acompanhar você. Vai estar sozinha a partir daqui e não estarei te esperando caso volte. ? As palavras mesmo vindas de uma ilusão foram como um punho se fechando em minha garganta. Mesmo assim, segui em frente sem parar.

Owyn soltou uma risadinha provocativa quando a Ilusão se desfez, sentado sobre a plataforma onde o cilindro de vitrino se encontrava, o tenebris sorria para mim.

? Seu coração ainda está no lugar certo... mas esse foi fácil, não chega a ser um pesadelo, apenas um sonho ruim. Você ainda sentia que estava na ilusão, certo?

Assenti devagar sem tirar a atenção dele, o tenebris sorriu e abriu as mãos.

? Então vamos brincar com um pouco mais de realidade.

A segunda onda veio como um choque.

O ar ficou gelado enquanto tudo ao meu redor mudava, mostrando o gelo do castelo se derretendo, neve... cheiro de neve, sangue vermelho, azulado, amarelado, fumaça e enxofre misturavam-se aos sons abafados de gritos e pedidos de ajuda. Não havia nada ali que não me lembrasse, grandes blocos de gelo ainda derretendo, uma chuva fina cortante, trazida por ventos tão gelados quanto a neve encharcada sob meus pés.

Dei um passo adiante, meus joelhos tremiam, ameaçando me derrubar a qualquer instante. Cortinas parcialmente queimadas de um azul turquesa, emboladas e caídas próximas à estilhaços de vidro revelavam onde estava pisando. Movi os olhos devagar pelo que fora a sala do trono do castelo de gelo... e dessa vez, recuei alguns passos sem conseguir respirar.

Eles estavam ali, caídos juntos sobre suas armas, sangue empoçando sob seus corpos, o azul e vermelho mesclando-se onde suas mãos ainda com dedos entrelaçados se uniam. Sem conseguir desviar o olhar, acompanhei o contorno dos corpos deles, os cabelos brancos de mamãe tingidos de vermelho, pois haviam absorvido o sangue sob o peito de meu pai, ele havia sido transpassado por sua própria lança.

Demorei mais do que devia para perceber que não tinha como mamãe estar com o rosto apoiado em seu peito, pois eles estavam distantes demais...

Ela havia sido decapitada.

Me obriguei a fechar os olhos e respirar, tentando espantar os cheiros, os sons, os sentimentos que me inundaram como um rio transbordando numa tempestade.

O ar começou a aquecer e o cheiro de fogo aumentou.

Abri os olhos e a dor e o desespero se transformaram em raiva ao vê-lo caminhando ali, arrastando as próprias correntes com um homem o seguindo. A besta de fogo azul abaixou-se e os farejou. Queria gritar que se afastasse, puxar minhas armas e arrancar-lhe a cabeça também, mas ao levar minhas mãos à cintura, percebi que não tinha minhas armas comigo.

Um homem de cabelos dourados e rosto em constante mudança surgiu do lado da besta e se abaixou, ele tocou o rosto de minha mãe e em seguida enrolou os dedos em seus cabelos, ergueu sua cabeça e gritou. O som era de raiva e angústia, mas havia um sentimento de loucura ali, algo que não sabia interpretar.

Ele moveu as mãos e pequenos pontos de luz deixaram os corpos de meus pais e foram tomados por ele.

Dei outro passo à frente. Não me importava em estar desarmada, eu o mataria com minhas garras e presas, eu arrancaria a pele de sobre seus ossos e o destruiria por aquilo.

Um homem controlava o demônio de fogo. E por algum motivo, além de poder, ele havia os matado. Pois se não fosse por poder, onde ele estaria se não tentando conquistar o vazio que eles deixaram?

Esse pensamento me trouxe de volta a realidade.

Ainda era uma ilusão.

De joelhos e a alguns passos da plataforma, observei com raiva o rosto sério de Owyn. Não havia nada divertido em sua expressão.

? Isso foi só uma ilusão? ? murmurei surpresa por conseguir falar qualquer coisa depois de ter visto aquilo.

? E como seria algo diferente? ? Owyn estendeu a mão com o cilindro, oferecendo-o a mim. ? Mas se não for... e descobrir algo como isso? Como irá reagir no fim da jornada e não encontrar o que busca como busca? ? O tenebris girou o cilindro, encarando o fragmento de mapa com os olhos vidrados.

? Não tenho como saber até chegar lá e enfrentar a verdade.

Estendi a mão, erguendo-me com dificuldade para alcançar o objeto, mas o tenebris o afastou de mim e estalou os dedos.

? Ainda não acabamos.

Não tive tempo de protestar. Outra vez a sala da noite desapareceu e fui tragada para outra ilusão... e dessa vez... dessa vez ele me faria desistir.

Pois quem estava morto diante de mim era Fares.

Não conseguia desviar o olhar do corpo diante de mim. Daqueles olhos sempre tão brilhantes agora apagados e sem vida, encarando o nada. Havia fogo ao redor dele, o mesmo cheiro de cinzas e enxofre de quando nossos pais se foram. Aproximei-me com as pernas fracas, saber que era uma ilusão não fazia minha angústia diminuir.

“É isso que vai acontecer se você continuar com isso, Kiara.” Uma voz sussurrou perto demais, não era a voz de Owyn... parecia minha própria.

“Você vai dar esperança a ele... já o tiraram de Retiro das Folhas por sua causa, agora ele está cada vez mais perto do perigo... ele pode se ferir, pode ir atrás de você! Aquele dia, ao invés de Senrys, podia ter sido ele. Vocês o convidaram, lembra? Se ele tivesse as acompanhado até Hima, era essa lembrança que você teria agora”

? Mas não aconteceu! ? gritei, meu coração se apertou e me abaixei ao lado de meu irmão. Seu cheiro era real, a sensação de sua pele.

“Ir atrás do demônio vai atraí-lo, e você acha que seu irmão não estará em perigo? É melhor mantê-lo seguro... esconder-se outra vez”

? Não, não é melhor. ? mesmo me doendo, mesmo que o pânico daquela visão ameaçasse me fazer voltar atrás... eu sabia que aquilo só aconteceria se continuássemos nos escondendo. ? Você me ensinou que a melhor defensiva é o ataque, que esperar o movimento de um inimigo pode ser a sua última e patética decisão. ? grunhi, forçando meu corpo a se levantar e dar um passo a frente, deixando a ilusão de meu irmão para trás ? Isso só vai acontecer se continuarmos escondidos. Eu não sou um rato! ? gritei, desmanchando a escuridão da ilusão, encarando os olhos negros de Owyn de frente. O tenebris tinha um sorriso no rosto e o cilindro junto a uma carta nas mãos.

? O que você é, Kiara? ? questionou o rei do Quinto Céu. Tudo que ele havia me ensinado voltou à minha mente naquele instante.

? Eu sou uma tempestade!


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Hasan:


Kiara já não estava no quarto quando acordei. Meus primeiros pensamentos sobre a noite anterior vieram com um nó no estômago e a sensação de que havia feito algo errado, movido por desejo, pelo lado primitivo que ela despertava em mim.

Sentei-me na beira da cama e respirei fundo, tentando pensar direito. O aroma dela impregnava aquele quarto, marcando o lugar como seu... assim como eu a havia marcado ao mordê-la. Pelos deuses! Ainda não sabia ao certo como reagir a ela, aos sentimentos que me oferecera sem medo.

O que realmente sentia em relação a Kiara? A incerteza de meus sentimentos podia magoá-la... mas a indecisão de me abrir e aceitar que podia estar me apaixonando por ela começava a me inquietar. Não tinha certeza se conseguiria amar alguém depois de Serena... e se não pudesse responder à profundidade de seus sentimentos, me sentiria culpado por lhe dar esperanças.

Mas precisava tentar. Precisar não era a palavra certa. Eu queria tentar. E pra isso, precisava me aproximar mais... e encerrar de vez alguns assuntos pendentes.

Me vesti rapidamente, estava prestes a sair do quarto para ir ao Primeiro conversar com Alfia outra vez quando Kiara entrou pelas portas, as fechou devagar atrás de si e se recostou nelas e escorregou pelas portas até cair sentada, então apoiou a testa nos joelhos apertados e inspirou profundamente. Instintivamente me aproximei e abaixei-me em sua frente.

? O que aconteceu? ? quis saber. Ela ergueu a mão metálica e seus dedos prendiam um cilindro de vitrino com um pequeno fragmento amarelado do mapa dentro, e uma carta amassada.

? Os outros vão ser bem piores de conseguir, não é? Owyn nem pensou em pegar leve por ter me criado. ? Ela não levantou o rosto ao falar.

? Pais não costumam facilitar a vida dos filhos, eles sabem que se não te fizerem forte, a vida não vai ensinar com gentileza. Os inimigos não vão te dar uma chance de revidar. ? estendi os braços e a puxei contra o meu peito, Kiara soltou um suspiro pesado, a tensão de antes se desfez aos poucos.

? Meu pai me disse a mesma coisa. ? Um sorriso repuxou meus lábios. ? Essa parte é estranha. ? Kiara bufou.

? Você está bem? ? Ignorei o comentário, de achar que as coisas podiam ser estranhas, já bastavam as minhas paranoias com isso.

? Vou ficar. ? murmurou ainda com o rosto escondido. Um tenebris podia fazer qualquer um vivenciar os piores pesadelos, sofrer com eles e até enlouquecer. Se ela reclamara que o tenebris não conteve a magia, nem queria imaginar o que Owyn lhe mostrara, mas tinha certeza que ela fora forte o suficiente para não enlouquecer com aquilo. Kiara se afastou alguns instantes depois e encarou a carta, os olhos azuis brilhavam como se tentasse afastar as lágrimas.

? Você sabia sobre... as alianças que eles faziam? Ou se tinham alguma? ? franzi o cenho para a pergunta, mas assenti. Susano sempre me mantinha a par de tudo que faziam, as vezes para pedir conselhos, outras só para desabafar, como da vez que vieram aos céus para destruir os solaris. ? Owyn... me disse algo sobre minha mãe ter feito uma aliança com ele, me envolvendo nela.

A irritação com aquele tenebris me fez querer apertá-la nos braços outra vez.

? Nikella e Susano eram soberanos em todos os mundos, Kiara, Todos! Eles estavam acima de todos os reis e rainhas e não negociavam alianças. Eles impunham suas leis e nada mais. O rei tenebris tentou sim, negociar uma aliança com Nikella, mas ela jamais forçaria alguém a se casar para que ela mesma obtivesse qualquer benefício com isso, até porque Nikella não precisava de nada que eles pudessem oferecer.

Kiara suspirou e assentiu, devagar a tirei do chão, mas não a afastei de meus braços até que ela mesma se afastasse. Ela me encarou os aqueles olhos turquesa tão cheios de carinho... tive certeza de que jamais me arrependeria de dar uma chance a nós.

? Preciso ir resolver um problema. Encontro vocês no Oitavo em uma hora para voltarmos a Vegahn. ? abri a porta e a olhei por cima do ombro, Kiara estava mordendo os lábios e não era de uma forma boa.

? Tenho que resolver uns também. ? Ela estalou os dedos da mão metálica e mostrou uns dentes num sorriso que me lembrou muito sua mãe.

? Evite problemas.

? Vou tentar me comportar, mestre! ? Ela piscou fazendo uma reverência quase debochada e passou por mim, desaparecendo no corredor no instante seguinte. Nem queria imaginar o que ela teria se tornado se tivesse sido criada por Áries. Desvencilhei-me de meus pensamentos e segui para o Primeiro Céu.


Kiara:


Fui até o quarto de Awen esperando falar com meu amigo, não conseguia achar Nibben no palácio para falar com ela e queria saber se a garota tinha finalmente se tocado de que não era querida ali e deveria ir embora. Não era costume dos tenebris bater antes de entrar, então sem avisar, abri as portas do quarto e dei de cara com a vernum sentada na cama de Awen. A garota virou o rosto em minha direção e franziu o cenho.

? Veio tentar tirar proveito antes de voltar para seu buraco congelado? ? Ela zombou. Minha paciência que já estava curta, começou a esconder-se atrás dos meus impulsos ferais.

? Na verdade, vim falar com você. ? fechei a porta atrás de mim e lancei um sorriso dócil a ela antes de passar o trinco na porta e dar um passo em sua direção. Ela estava apoiada no dossel de obsidiana da cama do tenebris e ergueu as sobrancelhas.

? Não sei se temos assunto a tratar. ? disse encarando as próprias unhas.

? Ah, mas nós temos sim, princesa. ? falei baixo, aproximando-me mais. ? O que você realmente sente por Awen?

A vernum ergueu os olhos escuros para mim e mostrou os dentes.

? O que você quer com ele! ? rosnou ? Awen é meu! ? bom... aquilo acabava com minhas dúvidas.

? Awen não é um objeto que você pode ter, ele é uma pessoa com sentimentos e não sei o que ele vê de amor em você, já que pelo visto você não corresponde. ? Os cabelos prateados da vernum mudaram para uma cor chumbo e pequenos raios se formaram nas pontas dos seus dedos.

? EU o amo sim! E estou farta de ouvir sobre você ser a preferida de Owyn, que você seria uma escolha melhor do que eu!! ? ela gritou, enfurecida e encerrou o espeço entre nós. A vernum era quase dois palmos mais alta que eu. ? Você está tentando convencê-lo a me deixar!

? Diga-me ? falei suavemente, sem alterar meu tom de voz ? Se ele te batesse, mas dissesse que é por amor, porque ele exigisse que você o amasse de volta a maltratando... isso seria um modo de demonstrar amor para você? Falta de confiança, jogar assuntos antigos no relacionamento de vocês, você acha que isso é amor? ? questionei. A vernum tremia mas sua expressão só parecia mais irritada.

? Não é da sua conta o que temos!

? É DA MINHA CONTA SIM SE ISSO FAZ MAL AO MEU AMIGO! ? Gritei, pegando-a pela garganta e a empurrando contra a parede. Nibben arregalou os olhos quando estiquei o braço, tirando-a do chão, seus raios vazaram para todos os lados, mas mal passavam de cosquinha contra minha pele.

? O que...

? Sua magia não me afeta, idiota! ? grunhi, apertando seu pescoço um pouco mais. Awen ficaria furioso comigo, mas bem... aquela era minha forma de conversar com ela. ? Eu fui criada dentro desse palácio com ele, Awen é meu amigo e sim nós dormimos juntos uma vez, e isso não significa que ele me ame ou que eu estou querendo roubá-lo de você, até porque na época se não me engano, vocês não tinham um relacionamento. ? Nibben esperneava com a boca aberta, tentando respirar, afrouxei o aperto, a vernum inspirou desesperadamente, apertando meu pulso metálico. ? Eu vi as marcas que deixou nele... e espero que sejam as últimas! Se você o ama de verdade, o que eu duvido, é bom que pare com essa atitude de merda e o trate com o carinho que ele merece, Awen é bom demais para sequer erguer a mão para você, pois se eu fosse ele, ah, nuvenzinha, eu teria feito você perder toda sua tormenta.

? Eu... ? ela engasgou quando a soltei, Nibben desabou no chão, segurando o pescoço e forçando o ar para dentro.

? Você vai tratá-lo direito, ou vai deixá-lo livre para outra que o ame de verdade. E se não escutar minhas... recomendações ? Ameaças ? EU vou voltar e você vai descobrir que nenhum pesadelo que os tenebris possam te dar vai ser pior do que o pesadelo que eu serei para você.

Dizendo isso, a deixei no chão, me encarando com os olhos arregalados cheios de lágrimas e saí.

? Vou contar ao meu pai sobre isso, garota! ? Nibben ciciou rouca. Virei para trás para encará-la e sorri.

? Conte, acha que tenho medo? O que acha que ele vai fazer? Venox são caçadores de monstros... nós temos poder para tirar a vida de qualquer um que julgamos ameaça a outras criaturas. Dê graças por eu dar um ultimato e não chegar arrancando sua cabeça desprezível depois do que vi no corpo e nos olhos de meu amigo. ? grunhi ? Ou talvez deva agradecer a Owyn por não querer fazer uma guerra contra o Oitavo que nem acabou de ser reconstruído e acabar com tudo lá por causa do seu comportamento, princesa. Você está nas graças do filho favorito dele, e tem o amor de Awen, por enquanto, então não o desperdice.

Nibben teve o bom senso de baixar os olhos e não me retrucar dessa vez. Deixei o quarto e encontrei Lohan no corredor de olhos arregalados.

? Já disse que você é minha pessoa favorita em todos os mundos hoje? ? Ele riu baixo e passou o braço ao redor de meus ombros.

? Vou contar essa como a primeira. ? apertei o braço ao seu redor também e saímos do palácio para encontrar os outros no Oitavo.


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Ao chegarmos no pátio de Castelo Azul, fiquei encantada em perceber que era a primeira vez que via como era a cidade principal e única atualmente do Oitavo, quando estava exposta ao sol. Tudo parecia feito de vidro fosco e pedras furta-cor que brilhavam suavemente contra os raios do sol. Lohan deu uma risadinha e cutucou meu ombro, para me lembrar que eu provavelmente estava admirando a fonte de arcos cruzados de boca aberta.

Hestia e Helleon estavam conversando animadamente com um pequeno grupo de Vernuns da guarda real que aguardavam Hasan para abrir o portal de volta à Vegahn. Os soberanos do Oitavo não estavam por ali, talvez Nibben tenha voltado correndo para casa afim de fazer fofoca. Porém o que me deixou surpresa foi ver um pequeno grupo de solaris ali, os quatro oficiais não pareciam muito confortáveis, mas não saíram de suas posições até nos ver.

Os quatro tinham peles em tons avermelhados, marrons dourados e cobre, cabelos ruivos brilhantes, apenas a mulher do grupo tinha os cachos dourados assim como seus olhos. Suas peles cintilavam como se todos tivessem um pequeno sol brilhando sob elas e quando se aproximaram, recuei um passo ao perceber que realmente queriam algo conosco.

? Kiara Gadyen, poderia nos acompanhar? ? pisquei confusa, quase ninguém sabia de meu nome real ali, mesmo assim assenti. Lohan fez menção de segui-los no momento em que se viraram para a passagem que levava aos céus acima, mas o solaris de cabelos curtos e túnica vermelha o parou. ? A rainha chamou apenas a garota malvarmo.

Lohan franziu o cenho para a mão estendida do solaris e gostou menos da expressão desdenhosa no rosto dos outros três.

? Está tudo bem, se o mestre chegar, diga que eu volto logo... e se demorar demais, diga onde fui. ? os solaris se encolheram diante do aviso em minhas palavras, mesmo assim o solaris estendeu a mão para que eu o acompanhasse. Entramos no círculo de pedras sobre aquela superfície espelhada, o solaris moveu o punho, fazendo um sinal com a mão indicando o Primeiro, logo estávamos sendo puxados para cima tão rápido que precisei fechar os olhos para não ficar tonta.

Quando o puxão parou e saímos do pequeno círculo de pedras douradas no centro do pátio do palácio de Alfia, comecei a reparar nas posturas daqueles solaris, suas cores, o modo com que se moviam, os olhares quase incandescentes e aquele estranho brilho e calor que possuíam, até mesmo os cheiros deles eram familiares. Não porque vivi um bom tempo nos céus e esporadicamente via alguns deles, mas tinha algo tão familiar na sensação de estar próxima a eles...

Estaquei no meio do corredor, quase em frente as portas da sala do trono. Meus olhos lacrimejaram e afastei com toda força a vontade de gritar de frustração, por não ter percebido antes.

“Aguardarei sua resposta, Ish-saol”

As palavras de Alfia para Hasan no dia anterior agora faziam todo sentido.

? Algo errado? ? O oficial questionou, olhando-me desconfiado com a mão pousada na espada de aço solar em sua cintura.

? Nada de errado. ? bufei, seguindo-os até passarmos pelas portas abertas.

Alfia sentada em seu trono, folheava um livro quando entrei. Os oficiais reverenciaram-na e saíram logo em seguida, fechando as portas atrás de mim. Voltei minha atenção para a rainha solaris e avaliei sua aparência também. Sua pele era de um avelã intenso, as maçãs de seu rosto brilhavam com pequenas linhas de tinta dourada e os olhos cor de sol me observavam com atenção demais. Mesmo seus traços mais finos, conseguia ver a semelhança. Estava certa em minhas suspeitas.

? Princesa Gadyen. ? Alfia cantarolou, deixando o livro sobre o trono e vindo em minha direção.

? Majestade. ? me curvei apenas um pouco, sem tirar os olhos dela. ? Em que posso lhe servir?

? Sei que está com pressa, precisa voltar para sua casa, por isso pretendo ser direta. ? Alfia pigarreou ? Gostaria de pedir sua ajuda... para convencer Hasan a se casar comigo.

Por um momento, não soube o que responder, mas queria rir do pedido. Se ela tivesse a mínima ideia do que passei para conseguir que ele me desse uma chance...

? Desculpe, não sei se entendi seu pedido, majestade.

? Eu preciso da ajuda dele. O Primeiro Céu... todos os Céus precisam de soberanos com poderes fortes o suficiente para manter as cidades flutuando. ? ela explicou, movendo as mãos para englobar a sala, a cidade ao nosso redor ? Imagino que conheça a história de como fiquei presa e que minha energia vital e minha fertilidade foram usadas para alimentar uma magia proibida... por isso meu tempo é curto. Preciso de um herdeiro ou de alguém que possa me substituir para que o Primeiro continue a existir! Não existem mais magos solaris desde que fomos banidos do reino humano! ? disse com a voz alterada. A rainha solaris parecia nervosa, diferente de sua aura sempre etérea e tranquila.

? Não entendo porque acha que eu posso ajudar com isso, majestade. ? cruzei os braços, não queria deixar transparecer meu próprio nervosismo.

? Aparentemente, ele recusa meu pedido por sua causa. ? Alfia manteve o olhar fixo no meu, e com muito, muito custo, consegui conter um sorriso.

? Eu não posso convencê-lo...

? O meu reino depende disso! Não posso contar com mais ninguém! ? Ela choramingou, caminhando até um sofá sob as janelas e atirou-se contra as almofadas vermelhas. ? O que você faria, princesa, se todo o seu reino dependesse de você para continuar existindo? ? ela abraçou uma das almofadas, tão apertado que a costura do tecido aveludado estava prestes a se romper.

? Eu encontraria outra solução além de tentar jogar minha responsabilidade sobre uma pessoa que não a quer. ? retruquei ? Se ele disse que não quer se casar, que não quer essa responsabilidade, creio que cabe a você aproveitar o tempo que tem para encontrar uma nova solução para isso, não desperdiçar energia tentando forçar uma pessoa que não tem nada a ver com o seu problema.

? Mas...

? Sempre existe outra opção. Você está atrás da mais fácil, não esperava isso de alguém como a senhora, majestade. ? Alfia crispou os lábios e baixou a cabeça, ficou em silêncio brincando com as franjas douradas da almofada, enrolando-as nas longas unhas decoradas.

? Você está certa. ? murmurou. ? Encontrarei uma solução. Mas se não conseguir...

? Creio que conseguirá. Awen me disse coisas incríveis da senhora, não duvido que arrume uma solução. ? um sorriso tímido surgiu em seus lábios e a rainha se curvou levemente.

? Agradeço por sua confiança. Significa muito vinda da filha dos que salvaram nosso mundo.

Fiz uma breve mesura antes de me virar e seguir para fora da sala.

Alívio percorreu meu corpo por ela desistir tão facilmente. Não sabia o quanto forçar responsabilidade em Hasan poderia fazê-lo ceder. A culpa por colocar meus sentimentos acima de um povo inteiro ameaçou sentar em meus ombros e me fazer companhia pelo resto do dia, mas... ele sabia e recusou o pedido dela. Centenas de solaris podiam depender daquele casamento, mesmo assim... ele recusou por minha causa.

O mínimo que eu podia fazer era ajudar a encontrar uma solução para seu problema, mas para isso, precisava de respostas...

Depois.

Tinha muito para pensar, o próximo fragmento para encontrar...

Podia colocar isso no final da minha imensa lista de tarefas.

Deuses! Eu precisava de uma semana inteira de sono!


Capítulo 8


Hasan:


Não devia estar preocupado com o sumiço de Kiara, mas quando perguntei ao tenebris onde ela havia ido, ele simplesmente disse que ela voltava logo e continuava olhando para as pedras do portal. Era para estarmos reunidos para voltar a dez minutos.

? Onde Kiara foi? ? Hestia choramingou ? quero voltar a tempo de ir em casa! ? a bruxa fez um bico e se pendurou no ombro de Lohan, o tenebris não desviou o olhar das pedras, mas agora estava com os lábios apertados.

? Não seja chata, você come aquela torta todo fim de semana, Hestia, ficar sem ela por um dia não vai te matar. ? Helleon resmungou, ele não parecia preocupado, tampouco parecia confortável em estar ali.

Estava prestes a perguntar novamente onde ela havia ido quando o portal brilhou e Kiara apareceu com uma bolsa no ombro. O vestido preto que usava era o mesmo da noite anterior.

? Esqueci o uniforme! ? Ela bufou ? Você sumiu com ele e eu tive que ir até Floresta Azul para achá-lo! ? ela reclamou apontando um dedo para Lohan. O tenebris deu de ombros.

? Mandei pro seu quarto, não disse qual deles. ? Kiara revirou os olhos e me encarou com o rosto levemente azulado, por um momento percebi que ela queria sorrir, porém mordeu os lábios e desviou o olhar. Não fazia ideia do motivo daquela reação.

? Vamos embora? ? ela se aproximou, pensei em lhe oferecer o braço... mas ainda haviam as regras da ACV. Qualquer um poderia perceber que ela estava coberta com meu cheiro.

Não precisei de mais incentivo para abrir um portal e deixarmos aquele lugar. Queria distância dos céus por um bom tempo, não sabia se Alfia aceitaria um não com facilidade, especialmente com seu reino dependendo de um sim. O túnel de luz se abriu diante de nós e deixei que eles entrassem na frente, Lohan entrou com Hestia ainda agarrada a ele e Helleon atrás dos dois sem dizer nenhuma palavra, Kiara por fim se aproximou e pegou minha mão.

? As regras...

? Não tem nada contra um mestre andando junto com uma venairen. ? ela riu ? Não esqueci das regras, mestre. Lá dentro vou te ignorar completamente.

? Não me ignorava antes, vai ser mais suspeito caso não tente nada!

Seu sorriso aumentou e ela me encarou com olhar divertido.

? Ah, alguém não quer ficar sem receber atenção. ? brincou. O brilho das luzes do portal fazia com que os pequenos pontos de luz naquele braço de vitrino brilhassem, até mesmo seus cabelos pareciam ter luz própria ali dentro. Os outros andavam alguns passos à frente conversando.

? Muitos alunos me dão atenção. ? retruquei.

? Verdade! ? ela fez um biquinho ? Vou pensar em um modo de chamar sua atenção sem gritar para todos que eu ganhei minha chance.

Kiara se afastou um pouco quando chegamos ao fim do portal, agarrou o braço de Helleon. As luzes se desfizeram e a passagem se fechou atrás de mim com um movimento de meu punho. A equipe seguiu para o prédio principal afim de reportar à Lorien, e eu segui para Lastar no segundo seguinte.

Havia uma presença diferente lá dentro. Não era Alfia dessa vez, era alguém conhecido.

Entrei na fortaleza e segui a presença até sala de estar. Perto da lareira acesa, estavam meus pais junto a Neruo e Fares em seu corpo normal, todos estavam rindo, se divertido em um jogo de cartas animado.

Áries tinha um sorriso crescente no rosto ao pegar uma nova carta no monte, ela mordeu a boca e nesse momento, meu pai jogou suas cartas na mesa. Neruo e Fares sem saber do que se tratava a expressão no rosto dela, o olharam confusos.

? Bati. ? ela gargalhou, abrindo o leque de cartas na mesa, puxando a tigela com bombons para si.

? Não acredito! ? Fares olhou as próprias cartas mais uma vez e bufou ? Você estava roubando? ? meu filho começou a rir assim como meu pai, deixando Fares ainda mais confuso.

? Ninguém ganha dela nesse jogo.

? Só eu! ? me meti na conversa, aproximando-se deles. Áries sorriu para mim e esticou as mãos para puxar meu cabelo e beijar meu rosto.

? Eu te deixo ganhar! É coisa de mãe!

? Mas eu sou seu neto! ? Neruo reclamou indignado.

? E por falar nisso, quero bisnetos! ? Neruo revirou os olhos, levantou-se do sofá e passou por mim apertando meu ombro.

? Tenho uma aula para preparar, vejo vocês mais tarde. ? Não conseguia olhar para ele sem ver os olhos de Serena e sentir um aperto no peito. Ela não teve a chance de ver nosso filho crescer, será que estaria feliz com o que ele escolheu ser?

? Vou com você! Amanhã tenho que dar uma prova para os alunos do V4! ? Fares parecia empolgado, o garoto levantou-se num pulo e pressionou o pulso, suas marcas brilharam e seu corpo encolheu, mudando de forma. Era como ver Leona ali, exatamente igual a ela. Gostaria que eles estivessem ali também.

Fares ainda ousou roubar um bombom dos espólios do jogo e fugiu em seguida acompanhado de Neruo. Áries por pouco não saltou do sofá para lhe morder a mão, por fim, ela se acomodou no colo de Sirius e começou a devorar os bombons.

? Como foi com Alfia? ? Ele questionou, franzindo o cenho para meu suspiro pesado. Sentei-me, peguei um dos chocolates, não tinha muito o que dizer.

? Ela insistiu bastante no casamento, pediu até por Neruo! Quer que alguém fique responsável pelo Primeiro e tem certeza de que tem pouco tempo de vida. ? o embrulho metálico do doce brilhava refletindo as chamas da lareira, Áries parecia furiosa, mas meu pai se estava incomodado com aquilo, não disse nada.

? Aristes pode conseguir curar a infertilidade dela. Talvez até mesmo prolongar sua vida. ? Ele ponderou.

? E mesmo assim ela precisaria de alguém que cedesse a sua vontade, e eu não quero ser esse alguém. ? reforcei. Sirius assentiu e minha mãe apertou mais forte os braços ao redor dele, seus olhos negros o fitavam cheios de preocupação.

? Nós já perdemos tanto tempo lá em cima! É injusto que ela tente lhe forçar esse fardo! ? o protesto de minha mãe saiu quase como um lamento. Conseguia me lembrar com clareza ainda daquele lugar que ambos compartilhavam quando conseguiam um descanso da proteção do círculo. Mesmo que fosse um palácio no centro das estrelas... ainda assim era uma prisão que os fizeram assistir o envelhecer e perecer daqueles que amavam.

Um castigo disfarçado de dever.

Era quase o mesmo que os reis dos Céus faziam. O banimento dos celestes do mundo humano, forçou todos os soberanos de cada raça celestial e seus descendentes a manterem com seu poder as próprias prisões, disfarçadas de cidades sobre as nuvens.

Eu não podia deixar que eles passassem por aquilo outra vez.

? Eu...

? Sempre há outra maneira, meu filho. ? Sirius levantou-se do sofá, depositou um beijo no rosto de minha mãe e tocou sua barriga com as pontas dos dedos, lhe oferecendo um sorriso tranquilizador. Áries suspirou e apertou firme sua mão antes dele desaparecer num brilho dourado.

? E...

? Kiara? ? sabia que ela perguntaria. Áries assentiu e mordeu os lábios de forma conspiratória. ? Você é curiosa demais, mãe. ? Ela começou a rir e ajeitou os fios curtos de seus cabelos para trás das orelhas.

? Não deveria ser? Quero ver você feliz! ? Ela apertou o seu rosto contra o meu. ? Você está com o cheiro dela.

Não tinha mais idade para isso, mesmo assim, senti minhas orelhas queimarem.

? Mãe! ? ralhei.

? O quê?! É verdade! ? Áries riu mais. ? Fico feliz que esteja se dando uma chance, Hasan. Mais feliz ainda por ela ser quem é. Se sobreviveu a Nikella e aquele gênio horrível dela, e ainda é uma pessoa gentil, Kiara merece mais que minha admiração.

Não fiquei surpreso com aquilo, mesmo assim, era incômodo. Ela nunca gostou de Serena, a aturava... mas não conseguia sequer manter uma conversa com ela sem mostrar os dentes ou simplesmente sair de perto, ignorando a tagarelice de Serena.

? Nikella não era tão ruim, ela só... não sabia ser...

? Amável, gentil? Não! Nikella não teve educação! ? Áries rosnou. ? Graças aos Deuses Kiara teve Susano como pai, coitada daquela criança se não o tivesse.

Mesmo não sendo seu pai biológico, Kiara tinha algo em comum com ele. Fogo Ascardian. E pensar naquilo, me fez lembrar de Awen e Lohan, e como ambos mesmo levantando suas bandeiras de amizade, pareciam encantados por ela.

? Porque parece que todos se sentem atraídos por ela? ? deixei a pergunta sair sem querer. Áries me encarou e não parecia nada surpresa com aquilo.

? É por culpa da essência de Yezélami. ? A revelação me fez encará-la surpreso ? A magia pura e calorosa da alma da luz atrai qualquer um que tenha escuridão na alma, principalmente aqueles que se alimentam de luz, que almejam ter algo bom para destruir. Eu tive que aprender a ser menos... agradável para me livrar de inconvenientes por causa dessa essência. ? disse dando um risinho.

? Isso significa que...

? Você não tem nada de ruim dentro de si, meu filho! ? Ela se inclinou e segurou meu rosto com as mãos mornas, seus olhos brilhavam como carvão em brasa. ? Ela sequer tinha sua atenção a poucos meses.

? Verdade. ? suspirei aliviado. ? Tenho uma aula para preparar também. ? dei um beijo em seu rosto e me afastei pronto para teleportar.

? Diga a Kiara que quando tiver uma pausa nas aulas, quero vê-la.

Minha mãe encolheu-se sob as cobertas no sofá maior e fez um livro da estante flutuar até suas mãos.

? Não vou esquecer.


Kiara:


Não tinha um pingo de sono.

Encarei outra vez o pedaço de papel em minha mão com a nova dica de onde estaria o próximo fragmento de mapa, não conseguia decifrar aquele por mais que tentasse, parecia que algo não batia na charada embora ela fosse simples.


“Quando o sol brilhar, tudo se tornará cinzas e o silêncio predominará. Poucos restarão para ver o dia nascer pela primeira vez. Enquanto ele não vem, a noite continua eternamente, mergulhando num mar de estrelas e escuridão, o mundo em que a moeda é o sangue.”


Não fazia sentido... e quanto mais tentava pensar nisso, mais minha cabeça doía.

Desisti de tentar decifrar aquilo sozinha. Queria mostrar o frasco com o pedaço de mapa para Fares, mas ele não estava na ACV quando cheguei, ao questionar Lórien depois de sair da salinha escondida onde guardava os outros fragmentos, ela dissera que meu irmão e Neruo foram para Lastar na noite do dia anterior e que certamente estariam de volta antes das aulas do dia seguinte. Mesmo assim, aquilo me incomodou um pouco. A ideia era mantê-lo seguro, então porque arriscar levá-lo para Amantia logo após Hasan dizer que escondeu o machado por lá?

Tinha muita coisa para pensar.

Passava das duas da manhã e a ACV mergulhada num silêncio sobrenatural me incomodava. Os outros venairens não tinham ideia do que acontecia por trás de suas missões, da real situação que nos encontrávamos. Porque o demônio só queria a minha família e até agora não tentara um ataque contra os soberanos de outros mundos?

Do que ele queria se vingar?

Minha mãe tinha facilidade para fazer inimigos, isso eu não tinha dúvidas. Mas... porque só voltar agora? Todos os acontecimentos anteriores, indicavam vilões que queriam dominar os mundos, obter mais poder... e esse agora só buscava vingança? Fares e eu não tínhamos nada a ver com os erros deles e mesmo assim pagaríamos?

Então, com um estalo na mente tão alto que não ficaria surpresa se Hestia acordasse com o som, uma ideia cruel, mas verdadeira surgiu em minha mente, algo já dito por muitas pessoas em cochichos e com atitudes depois da “morte” de ambos: Eles eram os vilões. Para muitos, meus pais eram os monstros da história e poucos pensavam nas escolhas que eles tomaram como um meio de evitar as guerras e brigas constantes. Eles escolheram certo, mas aplicaram a justiça com medo... e medo só impede que os fracos tomem iniciativa.

Levantei-me da cama devagar, evitando fazer qualquer som para acordar Hestia. Ira se remexeu inquieto ao lado de meu travesseiro, mas continuou a dormir também, resisti a tentação de coçar atrás de suas orelhas, isso o faria acordar e correr para a cama da bruxa e ela acordaria.

Joguei um sobretudo por cima da camisola, calcei um par de botas curtas forradas e saí do dormitório seguindo o corredor até a lateral do prédio principal onde ficava a sala da direção e o refeitório. Lá havia um par de portas duplas de madeira que levava a uma área inacessível para os venairens e que só um corredor os ligava direto à sala da direção, a ala com os quartos dos mestres. Não havia barreira bloqueando as portas de entrada, simplesmente porque nenhum aluno seria burro o suficiente para invadir a ala dos mestres sem ser pego.

Ao alcançar as portas de madeira cinzenta polidas, inspirei fundo apertando aquela carta em meu bolso e suspirei, deixando meu poder escorrer de mim, cobrindo-me com sombras, usando isso podia entrar e sair de lá sem disparar o sinal que faria Freya me tirar de lá direto para a muralha.

Mesmo usando apenas uma fração de poder para me cobrir e abrir as portas do prédio, tive a incômoda sensação de que minha magia estava mais forte, então devia me sentir mais fraca ao usá-la mesmo em truques mais simples como aquele. Havia me alimentado de Hestia no meio da semana anterior e quase não usara magia desde então, por isso a sensação de fraqueza não veio.

Não fazia ideia de qual era o quarto de Hasan, então, com o coração disparado e medo de ser pega por Honén, que era a única ali que conseguiria sentir minhas sombras espreitando, espalhei fiapos de escuridão como teias por todo o prédio, procurado pelo mestre com magia de fogo. Após alguns segundos que pareceram horas, as teias retesaram trazendo aquele aroma de brasas, almíscar e cardamomo.

Último andar... quase todos os quartos lá em cima estavam vazios, menos um.

Sem pensar duas vezes, ou desistiria, subi as escadas correndo nas pontas dos pés, escondendo-me com sombras, os quatro andares passaram num borrão de portas de madeira escuras e bloqueada pela torre do prédio principal, a luz parcial da lua minguante entrando pelas janelas no fim dos corredores. Ao alcançar a segunda porta do último andar, meu coração disparado não tinha nada a ver com a corrida... mas tive receio de que ele me colocasse para fora, o que era o certo a se fazer no fim das contas.

Mas eu não prometi que ia me comportar.

Ergui a mão e dei duas batidas suaves na porta.

? Espero que seja um fantasma, não uma certa aluna pedindo por um passe para as muralhas! ? ouvi sua voz abafada lá dentro.

? Boo! Vim buscar sua alma! ? sussurrei uma péssima imitação de voz fantasmagórica, mordi os lábios e sorri ao escutar uma risada contida. Um ranger seguido do som de passos e meu nervosismo aumentou. Hasan abriu apenas uma frestinha da porta, seus olhos dourados estavam apertados, mas podia sentir que ele estava evitando rir.

? Desde quando fantasmas aparecem para buscar almas? Normalmente eles aparecem apenas para assustar ou atormentar as pessoas. ? seus dedos tamborilavam no batente da porta.

? Posso te atormentar um pouco se quiser. ? Hasan bufou.

? Vá dormir, Kiara! ? Ele ralhou e ameaçou fechar a porta, a segurei e sacudi o bilhete com o enigma, minha única carta na manga.

? Então me considere um fantasma com insônia por causa de uma charada! ? tentei, Hasan ainda parecia relutante ? Me ajuda a decifrar e eu prometo que volto quietinha para o meu quarto. ? insisti.

? Eu devia era chamar Freya e te por nas muralhas, sua insônia acabaria num instante. ? cruel, mas... ele ainda estava ali discutindo aquilo ao invés de ter me denunciado para a monitora.

? Devia... mas quer mesmo fazer isso? ? arrisquei, dando um passo para perto da porta. Hasan por fim cedeu, dando-me passagem para dentro do quarto.

A primeira coisa que reparei ao entrar no cômodo sobre a mesinha de madeira vermelha, foi uma foto de uma mulher de cabelos longos castanhos, apertando um garotinho com cabelos cor de cobre e um sorriso no rosto e uma garota que reconheci de imediato, vovó Leona.

? Aquele menino é você? ? questionei, Hasan assentiu devagar, encarando a foto com um meio sorriso nos lábios ? Leona eu reconheço, mas...

? Lupine, minha mãe emprestada. ? Abri a boca espantada, nunca pensei que Áries pudesse deixar qualquer outra pessoa se aproximar de seu filho.

? Fui criado no mundo humano também, longa história. ? Ele passou por mim e foi sentar-se no sofá sob a janela com vista para o pátio com a árvore branca, um livro estava acomodado sobre o braço do mesmo, aberto na página que ele havia parado. Não tinha notado que ele estava usando apenas calças, os cabelos presos num coque precariamente preso por um palito metálico. Seu corpo parecia ainda mais bronzeado que antes de irmos aos Céus, dava para perceber a diferença em seu peito nu, emanando aquela suave luz alaranjada. Mordi os lábios, tanto por desejo quanto por frustração pela minha descoberta no palácio de Alfia, porém não sabia o que estava por trás daquele segredo e não cabia a mim questionar.

Ao subir os olhos para o seu rosto, percebi que Hasan estava me encarando com um meio sorriso e com os olhos brilhando. Com o rosto começando a arder por ter sido flagrada observando-o, mesmo que perdida em pensamentos, desviei o olhar e tentei reparar no restante do quarto: uma cama que me parecia pequena demais para acomodá-lo quase no meio do quarto, a porta que certamente levava ao banheiro no canto esquerdo do cômodo e uma escrivaninha cheia de papéis que me pareciam ser de sua matéria anterior. Decoração simples, como se não passasse muito tempo ali, mesmo que o quarto tivesse seu cheiro.

Hasan continuava me observando, o quarto de repente ficou mais quente do que estivera no momento anterior.

O encarei de volta e me aproximei devagar, como um felino pronto para dar o bote.

? Já observou tudo? ? Ele esticou as pernas, alongando-se e descansou a cabeça no encosto do sofá, sem tirar os olhos de mim.

? Podia passar a noite toda olhando mas...

? Mas?

? Eu não sou boa em admirar obras de arte, tenho o péssimo habito de tocar no que não devo. ? o sorriso que surgiu em seus lábios não era totalmente desse mundo.

? Então porque continua de pé aí só olhando? ? não estava esperando por essa, mas quem sou eu para ir contra uma direta dessas? Desamarrei meu roupão e o deixei cair no chão, não estava com nenhuma roupa por debaixo da camisola mesmo. Encerrei o espaço entre nós, apoiei minhas mãos no encosto do sofá ao lado de sua cabeça e me inclinei para frente, o calor de seu corpo era sufocante, mas de um jeito maravilhoso. Muito lentamente, toquei seus lábios cheios e macios com os meus numa provocação assim como o suave deslizar de minha língua sobre eles para em seguida capturar seu lábio inferior com os dentes. Um suspiro pesado aqueceu minha boca enquanto saboreava a sensação de seu calor aumentando. Hasan fechou os dedos em meus quadris e me puxou para seu colo ao mesmo tempo que sua língua se enrolava na minha com uma fome voraz, mas controlada.

Como amava o gosto de sua boca, o cheiro inebriante e doce de sua pele!

? Kiara... ? meu nome soou rouco em sua voz carregada de desejo e meu corpo tremeu, trilhei beijos por seu rosto, seu maxilar forte até seu pescoço, onde comecei a intercalar pequenas mordidas e lambidas e fui descendo para seu peito, escorregando de seu colo até me ajoelhar entre suas pernas, mantendo o ritmo das carícias. Sua pele estava tão quente que precisei cobrir minha boca com gelo, o que o fez soltar um gemido que só aumentou mais o meu desejo.

Com cuidado, arrastei as unhas por seu peito até o cós de sua calça e desfiz o laço que a prendia. Hasan estava ofegante, me encarando com os olhos cheios de luxúria, até mesmo as marcas douradas de pequenos raios de sol estavam acesas em seus braços. Puxei a calça para baixo até que chegassem a seus pés. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo, dentro da academia!

Encarei Hasan mais uma vez, esperando um sinal de que ele relutava, porém ele apenas respirava profundamente enquanto subia a boca por suas pernas, mordendo-as de leve, instigando com a língua fria contra sua pele ardente. Um gemido alto escapou de seus lábios quando rocei os lábios e a língua por suas coxas, perto demais de sua ereção. Fechei os dedos em volta de seu membro e comecei a movê-los devagar, provocando-o.

? Eu não deveria estar aqui, mestre. ? Sussurrei, passando a língua de leve muito perto. ? Devia voltar para o meu quarto... você devia me mandar para a muralha por estar aqui, tentando me aproveitar de você. ? outra vez, apenas pressionei a boca contra sua coxa, acariciando o membro ainda mais firme com minha mão.

? Pelos deuses! Está tentando me enlouquecer?

? Longe de minhas intenções cometer tal ato de crueldade ? sorri, acariciando a glande com o polegar, inclinando seu membro um pouco para o lado apenas para passar a língua em seu abdome outra vez. Hasan soltou outro gemido torturado enquanto beijava ao redor do ponto onde realmente queria chegar. Meus dedos continuaram subindo e descendo, alternando entre rápido e lentamente. Com minha outra mão, arranhei-lhe o peito com as unhas e cheguei perto o suficiente com meus lábios molhados, apenas roçando-os de leve no membro.

? Acho que é melhor eu voltar para o meu quarto, mestre, vou te colocar em problemas se me pegarem aqui. ? murmurei, afrouxando os dedos ao redor dele. ? Hasan rosnou baixo e me encarou com os olhos dourados faiscando.

? Quer que eu implore? ? sua voz estava embargada, o membro pulsava em minha mão, e um sorriso se formou em meus lábios.

? Um pouco de educação seria bom... ? brinquei, apertando-o novamente de leve. Hasan grunhiu e apertou as almofadas com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos. Passar a língua ao redor da glande foi minha cartada final, ele se rendeu:

? Kiara... por favor! ? gemeu.

? Será um prazer, mestre! ? O encarei maliciosamente ao lamber a extensão do membro antes de o colocar na boca, sugando-o, movimentando a língua ao redor dele. Hasan gemeu e grunhiu, suas mãos se soltaram das almofadas e enrolaram-se em meus cabelos enquanto eu o chupava e o masturbava, suas mãos acompanharam meus movimentos. O guiei até a garganta e Hasan tremeu. Antes que ele atingisse o clímax, eu o tirei da boca e diminui o ritmo dos dedos.

? Viu o que um pedido educado pode fazer por você? ? brinquei, mas antes que pudesse continuar, Hasan segurou meus pulsos e me puxou para cima, fazendo com que eu o montasse. Sentei lentamente, apreciando a sensação de cada centímetro dentro de mim, então comecei a me mover, rebolando, subindo e descendo mudando o ritmo. O senti estremecer sob mim e calor me preencheu, seu coração estava disparado e pequenas gotas de suor se formavam em sua testa e pescoço.

Sem sair dele, deslizei a língua por aquela trilha úmida em seu pescoço, minha garganta queimava e outro desejo ameaçou me consumir. Hasan ainda respirando com dificuldade, inclinou a cabeça para o lado oposto, dando-me acesso a veia pulsante ali. Perfurei sua pele e seu gosto me fez meu próprio corpo tremer e quase se desmanchar numa onda de prazer arrebatador. Após fechar as pequenas feridas com a língua, deitei a cabeça em seu ombro e inspirei profundamente, aproveitando aquele momento que mal acreditava ter realmente acontecido.

Os dedos quentes dele subiram e desceram por minhas costas em longas carícias por alguns instantes, até que eu tivesse força de vontade para deixá-lo colocar as calças outra vez.

? Fui enganado. ? Hasan suspirou, fazendo meu roupão vir até sua mão estendida.

? Hum? ? pisquei me fazendo de desentendida.

? Você disse que queria ajuda para decifrar a charada e depois voltaria quietinha para seu quarto, ao invés disso...

? Eu me aproveitei de você quando abriu a porta e me deixou entrar? Lembro-me de ter dito também que poderia de atormentar um pouquinho! ? Hasan mordeu os lábios e pegou o bilhete de dentro do bolso do roupão. ? Ruim? ? perguntei, um pouco nervosa.

? Jamais usaria qualquer palavra negativa para definir suas habilidades, Kiara. ? O rosto dele parecia um tanto corado. E com um pouco de choque, percebi que talvez ele fosse como Fares.

? Não esteve com mais ninguém desde... ? Ele estava me encarando mais sério quando negou com um movimento da cabeça, mesmo assim seu rosto continuava vermelho. ? Oh deuses! Você é uma gracinha! ? Hasan revirou os olhos e encarou o bilhete. Seus olhos passearam pelo trecho enquanto seu cenho franzia e seu cheiro mudava para algo como... raiva. Um rosnado estremeceu seu peito.

? Somnus. ? pisquei incrédula. ? O próximo fragmento está com Detéria.

Um frio desceu por minha coluna ao sentir seu braço se apertar em volta de minha cintura.

? O mundo dos vampiros, não é? Detéria é o vampiro-mor. ? Hasan assentiu relutante.

? Vou conversar sobre isso com Lórien amanhã. Aquele não é um lugar que gostaria de ir. ? disse ele num grunhido de irritação. Hasan se levantou do sofá no minuto seguinte e andou pelo quarto, sua expressão relaxada do momento anterior havia desaparecido.

? Não estou te pedindo pra ir, estou? ? não consegui segurar a réplica diante de seu tom de voz. Hasan parou no meio do quarto e me encarou de um modo que me fez desejar poder recolher as palavras. Não havia raiva em seu olhar... mas mágoa e medo. Sua pele estava arrepiada e sua respiração acelerou.

Mas qualquer que fosse a resposta que estava prestes a dar ao abrir a boca, morreu antes mesmo de ser pronunciada. Hasan olhou para um pequeno quadro que não havia percebido quando entrei, do outro lado da parede perto da cama, um retrato de Serena. Meu peito se apertou como se estivesse sufocando e engoli minha própria mágoa.

? Não me confunda com uma humana frágil, Hasan! ? rosnei sentindo lágrimas queimando, lutando para serem derramadas ? Eu não sou igual a ela! ? Ele não me encarou, não disse nada por um longo momento.

? Kiara... ? sua voz estava mais rouca e baixa do que no momento anterior.

? Tenho aula de manhã. Me ajudou com o enigma, agora como havia prometido, vou sair quietinha e voltar para meu quarto. ? não deixei que dissesse nada, abri aquela fenda na escuridão e dei um passo para trás, mergulhando no breu até bater com a perna contra algo duro e me dar conta de que já estava em meu quarto.

Atirei-me contra o colchão e suspirei pesadamente, deixando que aquele nó em minha garganta aliviasse. Aquela foto... o modo com que olhou para ela!

O mundo dos vampiros... Serena havia sido morta por um.

Devia ter tentado decifrar aquilo sozinha! Como pude não perceber de qual mundo se tratava?

Ira subiu em mim ronronando quando já estava tremendo com os olhos cheios de lágrimas. O glácio espreguiçou-se contra minha barriga e me afofou como uma almofada, então se enrolou em meu pescoço, ronronando como um gato preguiçoso. O abracei com cuidado e deixei o sono me levar.


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Durante a aula de anatomia, enquanto Moaris nos lançava olhares raivosos, explicando convenientemente sobre os vampiros, utilizando o cadáver espetado com uma estaca de prata de um deles que foi morto por uma equipe do V8, eu só pensava em qual seria a sensação de afundar os dentes da mestra com um soco.

? Ainda está de mal humor? ? Hestia sussurrou, enrolando os dedos nos cachos na ponta de minha trança. Acordei tão irritada que nem mesmo penteei os cabelos, apenas os trancei, arrancando alguns fios no processo e levado o dobro de tempo pra soltar os fios das juntas estreitas dos dedos metálicos.

? Não estou.

? Está olhando pra mestra como se ela fosse sua próxima refeição.

? Não estou, não. ? Hestia fez um bico e deu de ombros.

? Está sim. ? Lohan murmurou, inclinando-se para frente, sua cadeira estava a menos de um metro de nós. ? E pelo cheiro que você tem agora... não devia estar tão mal-humorada. ? Ele deu uma risadinha provocativa ? O mestre não soube como apagar o seu fogo todo?

Respirei fundo para não o mandar a merda.

? KIARA, LOHAN! ? Moaris berrou ? Que tal virem aqui e nos mostrarem como extrair o veneno do nosso amiguinho? ? de novo, respirei tão fundo que meus pulmões doeram, olhando feio para Lohan, desci até o centro da sala rezando para não usar o bisturi para arrancar um olho da mestra.

Porém, ao chegar perto do vampiro, a porta da sala de abriu, e para choque de todos que estavam na sala, o rei Dragão apareceu.

? Kiara Olijahd. ? a expressão tensa em seu rosto fez minhas pernas fraquejarem e minha garganta se apertar. Moaris começou a ralhar sobre as interrupções, mas não conseguia ouvi-la acima do apito em minha mente, Gwendollyn estava atrás dele com olhos baixos.

? Connal... ? não sabia ao certo se tinha dito alto, mas senti o braço de Helleon estava ao meu redor, guiando-me para fora da sala. Mal passamos da porta quando tia Gwen abriu um portal.

Estávamos despencando no ar sobre a morada da Lua. Connal e Helleon transformaram-se sob nós para nos carregar até lá, e de longe, um frio percorreu minha coluna e uma dor fantasma começou a irradiar por meu peito... tinha a sensação do congelamento, mas não estava congelando de verdade.

Eu não...

Senrys!

? Connal! ? choraminguei, apertando os longos espinhos em que me agarrava. O dragão soltou um grunhido profundo e sofrido, o que fez com que eu começasse a chorar. Eles rodearam a torre central do palácio e pousaram na arena de treinamento das bruxas.

Meu coração ameaçou parar. Senrys estava lá... em sua forma de dragão. Por um segundo, meu desespero sumiu. Talvez eles só tivessem me levado até lá para ver que meu amigo havia conseguido voltar a sua forma real.

Porém aquela dor em meu peito ficou mais intensa... então eu vi além do dragão deitado no chão, tentando se mover. Suas asas paradas, estendidas ao redor do corpo e Bianca chorando, sendo segurada distante dele por Mavis e Yaskad.

Senrys soltou um rugido alto e direcionou os olhos vermelhos para mim. Havia desespero lá. Desespero, tristeza e dor.

? O que...

? Ele tentou mudar de forma, mesmo conosco avisando que ele não poderia fazê-lo. ? Connal falou baixo. Meu corpo ficou dormente e mole. Olhei além das asas dele, o pescoço, o peito... seu corpo inteiro estava congelando. O gelo se espalhando ao seu redor, e cada movimento que ele tentava fazer, seu corpo trincava.

Aquele era o pior som que havia escutado em toda minha vida.

O som da morte.

Não me importava que ele me odiasse, não me importava que tentasse arrancar minha cabeça se me aproximasse. Apenas corri para meu amigo e me joguei do não diante dele, segurando sua cabeça.

? Senrys! Porque fez isso! ? gritei, acariciando seu focinho com as mãos. ? Você não teria calor suficiente pra voltar a essa forma! Sua fonte era incompatível com a transformação! ? minha voz saiu embolada, engasgada com o desespero.

? Kia...

? ALGUÉM FAÇA ALGUMA COSA! ? gritei ? POR FAVOR!

Mas todos se mantiveram distantes, cabeças baixas. Bianca ainda tentava se aproximar.

“Não era mais eu.” a voz de Senrys sussurrou em minha mente. Sem perceber, estava deixando aquela escuridão se enrolar ao nosso redor, havia um fio esfumaçado de magia ao redor dele. Era como estava conseguindo escutá-lo.

? Não se esforce.., eu vou dar um jeito! ? olhei em volta, tentando pensar num modo de ajuda-lo... talvez folhas de fogo...

“Não era mais eu... não quero ser nada além de mim.”

Comecei a chorar outra vez.

? Desculpe! Eu não queria te mudar!

“Amo você também, adjina.” Ele me chamou de irmã...

Com cuidado, ergui sua cabeça e a apoiei sobre meus joelhos, não conseguia enxergá-lo direito através das grossas lágrimas que se acumulavam em meus olhos escorriam por meu rosto, mas sabia que ele estava me encarando.

“Eu não quero perder você também!” Abracei seu focinho com cuidado e deitei a cabeça contra sua testa achatada.

“Eu parti aquele dia, tentando salvar você. Só você que não aceitou isso.” Sua voz ficou mais baixa mesmo em minha mente. O som de seu corpo trincando ficou mais alto e o gelo alcançou minhas pernas. Seu pescoço enrijeceu e ele soltou um lamento baixo e sofrido e eu o apertei mais, ignorando o quanto o gelo me feria, fundindo-se em minha pele. Não doía tanto quanto o aquele fio em volta de meu coração se esticando, prestes a partir.

“Eu perdoo você”

O som que seguiu aquelas últimas palavras ficaria gravado para sempre em minha alma. Era como vidro se quebrando, como o som de pedras esfarelando. O peso em meu colo diminuiu e não precisei abrir os olhos apertados para saber que apenas sua cabeça de gelo sólido ainda descansava sob meus braços.

Algo queimou em minhas costas, parecia que a marca dos bruxos estava sendo refeita, porém lá no fundo, algo se partiu com um estalo doloroso, como se meu próprio coração tivesse quebrado e eu gritei.

Gritei abraçada no que restava de meu amigo. Gritei e chorei até não ter mais voz.

Ignorei o choro da matriarca das bruxas atrás de mim, ignorei Connal quando ele tentou me tirar dali usando fogo para descongelar o chão ao meu redor... mas não consegui ignorar os gritos de Docinho quando ela apareceu com Lua.

Eu matei o filhote deles.

Não me movi mesmo assim, continuei segurando-o como quando ele era apenas um filhote bagunceiro... destruindo tudo em casa, só que não havia calor ali, nem seus choramingos mais.

Eu o havia matado. Só havia silêncio em minha mente.

Eghan estava certo... eu não estava pronta para a forma que a culpa me atingiu. Se eu nunca tivesse ido para Hima aquele dia? E se não tivesse aceitado cuidar do filhote? Ele ainda estaria lá.

? Kiara ? Docinho passou os braços trêmula ao meu redor ? não é culpa sua. ? ela fungou, sabia que estava se esforçando para dizer aquilo.

? Como pode dizer isso? ? as palavras arranharam minha garganta.

? Você tentou salvá-lo. ? Ela havia absorvido personalidade de minha mãe. Não devia me admirar por ser tão fria quanto ela. Fechei os olhos e mantive os braços ao redor dele. Não sairia dali. Connal apareceu outra vez e tirou Docinho e Lua dali, mas diante de meus rosnados, não se atreveu a tentar me fazer sair também.

Senti a aproximação de Helleon, não sabia se eram minutos ou horas depois, meu corpo era espelho de minha alma naquele momento. Estava anestesiado.

? Deixe que os outros o tirem... ? o chão tremeu ao meu redor e estacas longas de gelo se projetaram do chão num raio de dez metros ao meu redor, fazendo o bruxo dragão soltar um rosnado irritado e sair voando de perto.

Eu não queria deixá-lo.


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Não sabia quanto tempo havia se passado. Mas o céu fora manchado de vermelho e dourado e o vento sussurrava contra meus ouvidos a canção melancólica do entardecer. Meus sentidos pareciam ter sido desligados, pois não senti nem o cheiro nem a presença de alguém até ver os pés descalços ao meu lado, sua imagem refletida na poça que o gelo havia se formado.

Hasan se ajoelhou ao meu lado e estendeu as mãos, relutante, abracei aquele fragmento com o pouco de força que restava em meus braços dormentes e não deixei que tirasse o que restava de Senrys de meu colo: apenas um de seus chifres permanecera intacto, não havia se transformado em gelo, a magia do congelamento fez uma piada cruel comigo, deixando apenas aquela parte para traz, assim eu não esqueceria o que fiz.

Ele não disse nada, me pegou nos braços, aninhando-me contra o peito e nos mergulhou naquele portal de luz solar.

Não fazia ideia de onde estávamos até sentir o cheiro de plátanos e pinho através das portas abertas de uma sacada de frente para uma floresta. Vintro, talvez, ou Edro. Não que eu ligasse. O chifre do dragão continuava em meus braços dormentes e doloridos.

? Vou pegar isso, mas vou deixar às suas vistas, tudo bem? ? disse Hasan suavemente, ainda comigo em seu colo, pegou aquele chifre de minhas mãos e o colocou sobre a cômoda ao lado de uma cama grande de colcha vinho. Ele se virou devagar, movendo-se tão devagar que meus olhos podiam se manter no pedaço que me restara sobre o móvel até entrar em outro cômodo e eu o perder de vista e aquela realidade voltar como um soco em meu estômago.

Meu dragão jamais estaria me esperando em casa novamente.

Fui colocada em uma cadeira e não me movi enquanto as lágrimas voltavam e os soluços sacudiam meu corpo. Hasan se voltou para mim e me ergueu da cadeira apenas para me colocar numa banheira cheia de água quente com um cheiro metálico que queimava minha garganta.

Ele observou meu braço e só então pude ver que minha pele havia queimado e em algumas partes, se desprendera de meu corpo, parecia que alguém havia arrancado partes de mim com um formão. Com um cuidado que só aumentou a dor em meu peito, Hasan os afundou na água e aquilo queimou e ardeu mais que a marca dos bruxos. Queimava em minhas pernas, braço e barriga, onde o gelo do dragão me tocou, porém não tinha forças para reclamar ou chorar mais.

? O congelamento pela falta de calor dos malvarmos se chama gelo absoluto. Ele não faz com que o malvarmo congele, e sim o transforma num cristal de gelo perfeito. Não há reversão depois de atinge mais da metade do corpo... e tudo que está no seu raio de congelamento se desfaz... menos o malvarmo que o transformou. ? Hasan explicou baixinho ? Você podia ter morrido se aquele gelo não pertencesse a você.

Eu não me importava. Sentia seus olhos em meu rosto mesmo que não o encarasse de volta. A água continuou fazendo ruídos, até que minha pele começou a se refazer e soltar as pequenas placas que não eram gelo, eram vitrino. Sangue de Senrys.

Eu ia vomitar!

? Não é sangue dele, é seu. Os ferimentos criaram casca pois o sangue que se acumulou sob a pele queimada congelou. ? Ele estava soltando as finas placas de vitrino de mim e as colocando dentro da pia.

? A culpa foi minha. ? não passou de um sussurro, mesmo assim minha garganta queimou. Hasan não me encarou, ele terminou de retirar aquelas placas até que não restasse nenhuma marca em minha pele. Mais lúcida, reconheci o cheiro na banheira, sangue de Aswang para curar mais rápido, pois eu não conseguia me curar sozinha.

Não queria, era a resposta certa.

? A culpa não foi sua. Você fez uma escolha... uma que achou melhor para ele, você escolheu salvá-lo.

? Sabia que ele não aguentaria não ser mais um dragão. Apenas prolonguei seu sofrimento e o coloquei numa pele que estranha. ? rebati, aquilo estava doendo tanto...

? Eu escolhi deixar Serena ir falar com Marglan sozinha. ? Hasan continuou parado na borda da banheira olhando para minhas mãos.

? Você respeitou a vontade dela, é diferente.

? E se eu não tivesse respeitado? Se a impedisse de entrar lá e soltar aquele monstro a troco de uma ajuda que não veio? ? ele ficou em silêncio por um longo tempo, então voltou os olhos para mim ? Eu a deixei ir pois acreditei que não tinha outra alternativa e vou viver com os “E se” para o resto da vida, pensando no que poderia ter feito diferente.

Hasan ergueu minha mão metálica, a colocou contra sua bochecha e a manteve lá com a própria mão ao em concha ao redor dela. As lágrimas ainda acumuladas em meus olhos rolaram, marcado sua sensação morna por meu rosto.

— Eu o matei.

— Vai carregar essa culpa pelo resto da vida, Kiara. — Ele sussurrou — Em alguns dias você vai conseguir, em outros a culpa vai ser mais forte e você só vai lembrar dos “e se” e pensar em todas as possibilidades, no que você poderia ter feito para ser tudo diferente. Mas nada vai mudar, nada vai trazer ele de volta. Por mais que você imagine, vai continuar apenas em sua mente.

Apoiei a cabeça em meus joelhos e fechei os olhos, estava tão cansada...

Hasan me tirou da água após ter certeza de que eu estava externamente inteira, então sentou-se comigo na cama no meio do quarto e me manteve em seus braços quando voltei a chorar. Queria mais do que nunca que papai estivesse ali, queria seu colo, ouvi-lo dizer que ia ficar tudo bem.

Mas ele também não estava lá, pelo mesmo motivo que meu amigo. Não por minha culpa... eu tentei transformar Senrys para salvá-lo. Mas o fogo que o derrubou do céu não era meu. O demônio que nos atacou não era controlado por mim.

Ódio puro e feral fez meu corpo estremecer e sombras se espalharem, mergulhando o quarto num breu tão intenso que Hasan apertou os braços ao meu redor e sua respiração mudou.

Eu o encontraria.

Acharia os fragmentos e o que quer que meu pai tivesse deixado do outro lado que pudesse ser usado como proteção ou arma, eu o empunharia contra aquela criatura.

Por eles eu me tornaria um monstro também.


Capítulo 9


Hasan:


Um mês se passado desde a morte de Senrys. O elo de criação de um malvarmo era tão forte quanto um juramento de guardião, então perder o amigo havia sido um golpe duro demais para Kiara. Mas desde aquele dia... alguma peça que se soltara em seu interior, não voltara para o lugar certo.

Depois de algumas horas chorando, as lágrimas secaram e a escuridão que se escondia em seu interior preencheu cada canto da fortaleza de Lastar, um frio que jamais havia sentido também... e mais nenhuma lágrima caiu. Ela também parecia ter desistido de se aproximar desde então.

A garota divertida que fizera tudo para me conquistar com seus sorrisos e alegria não estava mais lá. Ela desaparecera em algum lugar dentro de si. Não brincava mais com os amigos, seu treino começava pelo menos duas horas antes dos outros, Scath e Siorin eram seus adversários e ambos estavam preocupados com a quão focada ela se mantinha. Até mesmo nas aulas de combate mágico, Kiara não poupou esforços para manipular sua magia com mais precisão, ela quase feriu Lohan quando esse tentou fazê-la sorrir.

Até mesmo as missões que Lórien oferecera a sua equipe, ela recusara.

Dois dias antes, a observei treinando com as espadas no meio da madrugada. O único que conseguia se manter próximo sem desistir de sua falta de humor e reações, era Helleon. O bruxo dragão a acompanhava nos treinos até que ela não conseguisse mais erguer os braços. Kiara não estava mais atrás apenas dos fragmentos. Ela queria a cabeça do demônio numa bandeja de prata.

Agora a malvarmo parecia muito mais com Nikella, e isso não era bom.

? Já chega por hoje. ? Encerrei o último treino mágico da semana ao ver a equipe, os amigos de Kiara se afastando dela durante o treino, eles estavam com medo de sua magia... assim como os outros venairens. Observei a garota desfazer sua trança para refazê-la, ela estava ofegante e uma pequena rachadura era visível na lateral de seu corpo.

Os venairens exaustos começaram a sair da sala, murmurando reclamações enquanto juntavam-se aos seus colegas numa marcha lenta até as escadas. Relutantes, Lohan, Hestia e Helleon a esperaram, mas eles sabiam, pelos olhares de tristeza em seus rostos, que ela os estava evitando. Quando terminou com a trança, Kiara começou a mexer em qualquer coisa, apenas para enrolar um pouco mais.

Por fim os três desistiram de esperar e saíram arrastando os pés, Lohan me lançou um olhar quase suplicante antes de cruzar as portas. Kiara sentiu quando eles saíram, e sem nem ao menos me olhar, seguiu em direção as portas.

Precisava puxá-la de volta. Ela não desistira de mim, e eu não o faria com ela também.

? Não tão rápido. ? bradei, fazendo-a parar e se voltar para mim. Seus olhos não tinham nenhum brilho. ? precisamos fazer uns testes.

? Quero ir comer. ? Sua voz soou tão fria e sem ânimo quanto qualquer conversa que ouvira nos últimos dias.

? Depois, tecnicamente, o que está sendo servido no salão não vai te trazer nenhum benefício mesmo. ? ergui as mãos e fiz as palikans voarem ao redor dela. Kiara não piscou, não se moveu. ? As destrua sem que explo...

Mal terminei de dar a ordem e um pulso elétrico deixou seu corpo. Farelo prateado choveu ao redor dela e onde as esferas estavam a pouco, nada restara. Pisquei surpreso, mas também notei que na faixa de pele descoberta de sua cintura, a pequena fissura em seu corpo expandiu.

? Posso ir agora? ? Ela chiou e me deu as costas, mas antes que chegasse até as portas, eu as fechei com um fio de poder e me aproximei, segurando sua mão antes que ignorasse as saídas bloqueadas e desse um passo na escuridão.

? Pare de afastar as pessoas! ? implorei ? volte a ser quem era! Eles sentem sua falta... todos sentem sua falta.

Kiara respirou fundo e se virou para me encarar.

? Ainda estou aqui.

? Não está! Você está mantendo seus amigos longe por medo que aconteça algo a eles também!

? E não é isso que você tem feito pelos últimos... cinquenta anos?

O deboche em sua voz claramente escondia medo, cansaço e solidão.

? Não. Eu jamais afastei as pessoas que se importavam comigo! Só mantive outros tipos de relacionamentos distantes.

Kiara deu de ombros, a expressão em seu rosto não mudou.

? Preciso ir me alimentar. ? Ela insistiu.

Não devia perder a calma, não podia perder o controle, ela estava mal e não era justo me irritar com aquilo... pois sabia melhor que ninguém o que estava sentindo, mesmo assim a segurei firme pelos ombros e a obriguei a me encarar.

? Se tornar fria e distante com seus amigos que se importam com você não vai te ajudar a matar um demônio e vingar seu amigo! A única coisa que vai conseguir com isso é ficar sozinha e não ter ajuda quando mais precisar! ? vociferei.

Ela piscou.

? Não preciso de ajuda. Posso me virar sozinha. E eles vão ficar melhor sem mim. ? aquelas palavras foram a gota para entornar o balde.

? Está sendo arrogante e egoísta os subestimando quando eles, quando nós só queremos te ajudar! A dor não é só sua, Kiara! Não precisa carregar o mundo nas costas! Está parecendo a sua mãe e isso não é um elogio! ? aquelas palavras duras surtiram efeito. Raiva e irritação brilharam em seus olhos e Kiara rosnou, as garras em seus dedos estavam ligeiramente maiores que no momento anterior.

? Eu não sou como ela!

? Pois está parecendo muito agora. ? rebati ? você não é assim! Conseguiu seguir em frente depois do que houve no castelo, aprendeu a aceitar seu braço bonitinho de vitrino, o estado de seu irmão... até mesmo conseguiu me puxar de volta e agora vai jogar a toalha? Vai se fechar para todos?

? Talvez eu já esteja cansada de me esforçar pra estar sempre parecendo bem. ? ela murmurou. A raiva foi escorrendo para aquela tristeza novamente.

? Nunca foi uma máscara, você não era assim por dentro. Uma pessoa cansada de tudo pode até estampar sorrisos que enganem, mas nunca um olhar cheio de alegria. E era esse tipo de olhar que via em você antes.

? Você não tem como saber ? Kiara retrucou e me deu as costas, forçando a maçaneta da porta.

? Não faça isso! ? pedi, segurando seus ombros outra vez ? Os outros ainda estão aqui e querem a Kiara de volta. Seus amigos sentem sua falta! Não se feche pra eles. ? a virei para mim e segurei seu queixo entre os dedos. ? Não se feche para mim também.

Devagar, com receio que me afastasse, a abracei e esperei que ela não desaparecesse. Kiara suspirou pesadamente e apoiou o rosto em meu peito, por fim ainda um pouco relutante, ela passou os braços ao meu redor e ficou ali por longos instantes até que o sinal da próxima aula soasse.

? Precisa se alimentar, está trincando. ? avisei. Kiara ignorou o aviso, se soltou dos meus braços e seguiu para a saída.

? Vou lá morder Hestia como um pedido de desculpas pelo meu comportamento de merda. ? disse enquanto saía.

? Isso lá é um pedido de desculpas aceitável?

? Pra ela, sim. Só vou torcer para ela não me agarrar quando fizer isso, sem clima, sabe? ? Aquilo me lembrou do dia em que fui ao vale buscar o machado e lhe dar as novas marcas, as roupas e as expressões das duas...

? Vocês duas... ? pigarreei sem saber como perguntar. Kiara girou nos calcanhares, me encarou com um brilho levemente animado no olhar e um pequeno sorriso crescente nos cantos dos lábios.

? Nossa amizade é bem colorida. ? minhas orelhas queimaram e a garota soltou um risinho ? Não vá ficar tentando imaginar nós duas numa cama e tocar fogo na sala durante a próxima aula. ? Mas o estrago já estava feito.

Não conseguia tirar a imagem da cabeça.

? Eu disse para não ficar tentando imaginar! Estou sentindo seu cheiro daqui, pervertido! ? Kiara gritou do outro lado do corredor.

Pelo menos havia conseguido tirar aquela expressão triste de seu rosto.


Kiara:


Hestia não tentou me agarrar no fim das aulas, pouco antes de descermos para jantar, mas foi por um tris chamado Lohan. Ela estava ofegante, com o coração acelerado e corpo quente, sentada em meu colo com as pernas em volta de minha cintura e cabeça inclinada, enquanto eu me alimentava com os lábios em seu pescoço. A bruxa soltou um gemido alto e indecente, que fez Lohan em minha cama do outro lado do cômodo fechar os olhos e respirar fundo.

A bruxa se jogou na cama e suspirou quando acabei. O tenebris em sua forma feminina, esticou-se em minha cama com Ira no colo e afagou sua cabecinha peluda, ele parecia bem à vontade no colo de Lohan. Oferecido!

? Está se sentindo melhor? ? questionou Lohan distraído, acariciando a coluna do glácio com as garras longas a mostra.

? Vou ficar. ? murmurei.

? Ele salvou minha vida, salvou a sua. Acredite, Senrys ficaria muito zangado se você não tentasse ir adiante, Kiara. ? ouvir seu nome ainda doía, ainda fazia a sensação daquele gelo terrível arder em meu corpo. Mas eu precisava tentar.

Deitei ao lado de Hestia me aninhei em seus braços, a bruxa sussurrou um “vai ficar tudo bem” e acreditei naquelas palavras. Hestia estava subindo e descendo as pontas dos dedos por minhas costas, até minha camiseta escorregar para cima e seus dedos quentes percorrerem minha coluna. A bruxa cessou o movimento e prendeu o fôlego.

? Hestia? ? a bruxa se levantou num pulo, puxando-me com ela e tirou minha blusa mesmo sob meus protestos. ? Ficou louca, mulher?

? LOHAN! ? ela berrou cobrindo a boca e o tenebris olhava para minhas costas de boca aberta.

? O que está acontecendo? ? virei o pescoço tentando ver o que deixou os dois chocados. Em meu ombro esquerdo, as pequenas palavras que formavam minha mantícora Cyfar brilhava em turquesa, assim como as marcas da flor de jade, mas o formato estava diferente. Fui até o espelho no canto do quarto e me virei para ver o que havia de errado com minha marca.

No lugar da mantícora com asas plumadas, agora um dragão de focinho achatado e longas asas palmadas, formado por centenas de pequenas palavras no idioma Cyfhan, cobria completamente minhas costas.

Senrys não fora embora completamente. Não no meu coração, nem em minha alma.

? Isso não é uma marca Cyfar. ? Hestia murmurou ? A sensação dela é diferente... Kiara eu não sei o que é isso. ? a bruxa me encarou assustada.

? Eu sei de alguém que vai saber. ? Peguei uma blusa com fecho nas costas e a vesti, também prendi os cabelos num coque e sai do quarto quase correndo. ? Vejo vocês mais tarde!

Corri pelos corredores o mais rápido que podia em direção aos portões a oeste da academia, mesmo sem permissão, os guardas dali me permitiram sair e correr para a floresta congelada que ladeava a estrada para Seneris. Quando senti que havia deixado a barreira do vale para trás, movi os dedos abrindo uma fenda e entrei, seguindo por aquele vale negro cheio de pontos de luz entre os mundos até sair em outra fenda próxima à Esperas.

Encarei a estrada deserta sem nenhuma iluminação, uma tempestade de neve castigava o lugar, deixando a visibilidade ruim o suficiente para eu ter que usar minhas habilidades ferais. Não fazia ideia em que altura da estrada havia parado, de qualquer forma. Mudar de forma podia custar encontrar caçadores elfos putos em algum momento e não acabaria nada bem para eles.

Caminhei por alguns minutos, olhando incomodada ao redor, não tinha como ter parado tão longe assim da fortaleza!

Meus sentidos estavam despertos a ponto que conseguia ouvir os sons da neve caindo no chão, o ranger das árvores distantes sendo fustigadas pelo vento. Algo como um bater de asas chamou minha atenção, meus dedos estavam a centímetros do pingente das espadas em meu pescoço. Olhei ao redor, procurando por qualquer sinal de que algo estava errado, mas não via nada além de neve caindo e árvores distantes. Ficava difícil sentir o cheiro de qualquer coisa com o vento mudando para todas as direções.

Se ao menos eu tivesse um controle maior sobre aquela gota do Yinemí... mas eu conseguia controlar gelo, porque não tentar com uma tempestade de neve?

Parei no meio do que achava ser a estrada, pois as marcas das pedras na beirada estavam cobertas de neve, e devagar fechando os olhos e me concentrando naquela pequena parte de minha alma, ergui a mão e fechei o punho no ar, imaginando a tempestade cessando. Um pulso deixou meu corpo, espalhando-se em todas as direções como ondas de uma pedra que cai num lago e quase que no mesmo instante os ventos pararam, nem mesmo a neve continuava caindo.

A surpresa por ter conseguido acabar com a tempestade me deixou tão chocada que não senti a presença até ser tarde demais. Uma mão grande cobriu minha boca enquanto outra tentava prender meus braços. Com esforço, consegui soltar meu pulso e golpeei para trás, com força, meu atacante grunhiu, mas não soltou, então a mão cobrindo meu rosto desceu para minha garganta e a apertou.

Não podia usar minha magia de sombras nem os raios ali, pois corria o risco de chamar atenção para nomes que as pessoas imaginavam não estarem mais entre os vivos. Assustada, bati o pé no chão, fazendo aquelas estacas de gelo subirem do chão ao meu redor, obrigando meu atacante a saltar para longe. Estava a um passo de mudar completamente para a forma feral, quando me virei e dei de cara com Neruo.

? Eu estava prestes a arrancar sua cabeça! ? rosnei ainda com o coração acelerado ? porque fez isso?

Neruo riu e se aproximou, com um estalo dos dedos, as estacas de gelo se tornaram vapor enquanto fogo dançava na ponta de seus dedos.

? Vi você correndo. Pelo seu comportamento dos últimos dias, esperava qualquer coisa! Então a segui. ? me encolhi e deixei que ele se aproximasse e passasse um braço ao redor de meus ombros. ? Aliás, porque saiu da ACV para abrir um portal, se você é filha de quem conjurou as barreiras? Sabe que pode teleportar ou abrir fendas lá dentro, não sabe?

? Me esqueci disso, é força do hábito ir para fora das muralhas, acho! ? resmunguei ? Estava tão mal assim? ? questionei.

Neruo fez uma careta e ajeitou os cabelos castanhos que estavam soltando de sua trança na altura dos ombros.

? Me lembro de sua mãe com uma expressão parecida quando foi aos céus acabar com uma guerra. ? franzi o cenho e desviei o olhar do seu.

? Não gosto... não gosto que nos comparem.

? Quando você não agia igual a ela, ninguém comparava. ? Ele debochou e apertou minhas bochechas. Estávamos caminhando lentamente pela estrada.

? Onde estamos afinal? ? resmunguei sem ver nada ao redor.

? É uma estrada abandonada. ? Neruo bufou ? Vovô reforçou as barreiras ao redor da fortaleza e apenas nós da família podemos teleportar para perto.

Meu rosto queimou, não entendi porque estava magoada com aquilo.

? Vovó pediu que meu pai a levasse até a fortaleza para colocar sua impressão na barreira, mas você não parecia em condições de ficar no mesmo ambiente que Áries. ? Neruo riu ? Ela ia pisar em cima da sua tristeza e certamente te daria uns tapas.

Não duvidava. Neruo tinha um olhar cheio de esperança, seu cheiro era suave, me lembrava uma mistura de campos aquecidos pelo sol e flores silvestres. Seu rosto não parecia muito com o de seu pai, também, mas o sorriso dos dois era semelhante.

? Então... porque saiu correndo como uma criminosa em rota de fuga? ? Neruo estava corado, não percebi que o estava encarando.

? Queria falar com Áries, era um pouco urgente. ? Neruo assentiu devagar e manteve o braço ao redor de meus ombros. Não entendia o motivo de mesmo sendo mais velho que eu, Neruo parecia ser muito mais jovem.

? Como você está? ? Ele parecia relutante em fazer a pergunta, mas me olhava pelos cantos dos olhos.

? Vou melhorar. ? murmurei.

? Eu queria... ? O rosto de Neruo corou e ele coçou a cabeça sem jeito ? agradecer, sabe? Por meu pai, por não desistir dele. ? pisquei surpresa.

? Não tem porque me agradecer. ? O olhar dele se tornou um tanto sombrio enquanto suas sobrancelhas se uniam num vinco em sua testa.

? Preciso sim. ? Neruo desviou o olhar ? desde... desde que ela se foi, ele era apenas uma sombra. Mesmo que me tratasse com carinho, que tenha se esforçado muito para ficar... normal em minha presença, eu percebia o quanto ele se sentia vazio. Às vezes eu pensava que ele só continuava lá por medo de magoar a nós caso se entregasse. ? um arrepio percorreu meus braços, eu sabia qual era a sensação. A vontade de desistir.

? Sinto muito.

? Ele está diferente, dá pra ver que ele está mais feliz. ? Neruo sorriu ? é estranho, não é, como o amor de alguém pode fazer as pessoas mudarem, recuperarem a vontade de viver, não só existir. Não devia ser assim, devíamos aprender a viver sozinhos também. Relacionamentos são difíceis. ? O rosto dele ficou ainda mais vermelho ao perceber que eu o estava encarando.

? Outras pessoas as vezes podem mostrar o que você sozinho não enxerga em si.

? E se você não quiser?

? Um companheiro? ? Neruo assentiu ? Você não precisa de um par romântico para isso. Amigos, família... todos podem ter amor para oferecer. Cada um tem suas necessidades sentimentais, mesmo as pessoas mais frias querem algo para preencher um vazio. ? sussurrei ? Acho que amor em todas as suas formas é o que pode completar qualquer vazio!

Ele soltou um suspiro pesado e apontou as luzes na torre logo à frente. A construção quase escondida da fortaleza brilhando a alguns metros de nós. Já estávamos dentro das barreiras.

? Você é inteligente demais para alguém que ficou engarrafada por quase trinta anos. ? Neruo se encolheu ao acertá-lo com meu cotovelo, que se chocou contra suas costelas.

? E você é muito engraçadinho! Não tinha percebido isso ? ralhei.

Entramos na fortaleza e Neruo me guiou pelos corredores-labirinto daquele lugar até uma pequena sala de jantar, onde Áries sentada à mesa, devorava o que parecia ser um Pisuri inteiro sozinha. O aroma dos temperos da carne era tentador... mas tinha algo extra ali. Ao perceber o que era o cheiro, evitei com todas as forças começar a rir.

? Pisuri com... kiwi? ? Áries virou os olhos negros em minha direção e soltou um rosnado medonho, parecia com os bruxos Mardans no salão de jantar. Ergui as mãos em rendição e sentei-me ao lado de Neruo o mais longe possível dela enquanto a draga disfarçada de mini-malvarmo comia aquilo tudo.

Depois de alguns minutos, a ave tinha desaparecido naquela boca cheia de presas e Áries se esticou toda, saiu da mesa e acomodou-se no sofá perto da lareira. Não imaginava como ela conseguia suportar sentar tão perto do fogo, seu corpo inteiro devia doer e pinicar com a proximidade das chamas. Como se lesse meus pensamentos, ela sorriu e disse baixinho:

? Quando não se trata só do nosso bem-estar, mas de quem mais amamos, qualquer dor se torna mínima para poder protege-los. Imagino que você saiba disso. ? ela apontou o queixo fino em direção ao meu braço. Naquela noite, se eu tivesse prendido a mim ao redor de Docinho, eu não teria caído na explosão... mas Fares sim.

? Neruo, meu bem, pode buscar uma xícara de chá para nós, por favor? ? ele deu um breve aceno com a cabeça e saiu rapidamente da sala, dando-me a chance de perguntar sobre a marca. Áries estava me observando com um meio sorriso malicioso nos lábios.

? Eu... ? engoli em seco sob aquele olhar e me encolhi.

? Vamos, menina! Fale! Não vou morder você, já estou cheia demais! ? relutante, assenti e lhe dei as costas, estendi as mãos para soltar os botões da blusa e a puxei para descobrir a marca.

Áries soltou um palavrão imundo que não me surpreendeu tanto quanto esperava, e moveu os dedos para que eu me aproximasse. A malvarmo passou os dedos sobre a marca e murmurou algo para si, então fechou a blusa rapidamente.

? Isso... essa marca cobriu minha marca Cyfar. ? falei baixo, sentando-me ao lado dela.

? A mantícora, não é? ? ela deu um sorriso mais tenso, mas manteve os olhos escuros nos meus ? gyian.

? O que significa?

? Absorver alma. ? Áries sussurrou a palavra. ? Sabe que malvarmos podem tomar habilidades das pessoas que matam, não sabe?

? Sei mas...

? Mas matou muitos e nunca conseguiu sequer sentir qualquer habilidade nova. ? Não foi uma pergunta, mesmo assim assenti quase sem mover a cabeça. ? Agora, sente algo? Como... talvez uma pressão sob sua pele, algo que a deixa mais instintiva e menos racional.

Arregalei os olhos. Minha pele estava arrepiada, a malvarmo manteve os olhos nos meus.

? O que é isso, afinal?

? Quando você transforma alguém... e fracassa, o poder dessa pessoa se torna seu. É assim que malvarmos conseguem poderes de outras criaturas. A transformação cria um vínculo de sangue e alma, e quando ele é desfeito, o malvarmo que ofertou o sangue para a transformação, recebe um tipo de pagamento, digamos assim, pela chance de mais tempo de vida.

Meu estômago começou a se contrair, mas engoli aquele nervoso e respirei fundo.

? Então eu... posso virar um dragão?

? Um dragão que cospe água fervente, pode respirar sob a água e outros dons também. ? Áries completou.

? Ele morreu tentando voltar a sua forma de dragão pois não tinha calor o suficiente para um corpo daquele tamanho. ? murmurei ? Não posso mudar de forma. ? era um alivio, na verdade, não sabia como reagiria se pudesse mudar, sendo foi o desejo de voltar a sua forma que matou meu amigo. O problema era o olhar irritado de Áries para mim.

? Foi criada por tenebris, bruxos, por sereianos e humanos, mas nunca passou pela cabeça daqueles idiotas que você é uma malvarmo! Nike tinha que ter me deixado criá-la! ? ela rosnou.

? Estudei sobre nós. ? me defendi.

? Isso não foi o suficiente. Não sabia como receber habilidades e não sabe como expandir o próprio centro de calor. ? ergui as sobrancelhas surpresa. Realmente não fazia ideia de que aquilo poderia ser feito.

? Eu posso?

? Mãe das águas, dai-me paciência! ? Áries ralhou, acomodando-se melhor sobre o sofá. ? Não reparou que já está maior que antes de você ser atacada pelo demônio na segunda vez? ? pisquei, sem entender ao certo, então comecei a fazer as contas. Antes de ser completamente engolida por luto e culpa pelo que aconteceu a Senrys, a última vez que havia me alimentado fora no dia que fui até o quarto de Hasan para falar sobre o fragmento. Um mês atrás.

? Não é possível! ? minha voz quase sumira.

? Ouviu as histórias de seu pai sobre a maldição de Arbarus e como as magias delas eram roubadas? ? assenti sem esconder a careta ? Hasan tem uma benção de efeito semelhante, porém o poder que ele pode conferir, não tem as mesmas restrições da maldição.

Fiquei ali, encarando-a sem saber como reagir àquilo. Ele aumentou meu poder?

? Poder de luz e escuridão... de magos brancos e negros não tem possibilidade de expansão ? me agarrei aquela verdade com todas as forças, mas um sorriso arrogante cresceu no rosto de Áries.

? Não, não tem. São magias diferentes de todas as outras elementais, mesmo assim, magos são treinados para fortalecer a própria resistência à magia, para que possam usar seus poderes sem restrições, sem que ele os desgaste. Então se seu poder não tem para onde crescer, mas você não pode usá-lo livremente pois não pode treinar para aumentar sua resistência a ele, a única coisa que sobra para a benção de Orieser fazer é aumentar sua reserva de calor.

? Acho que preciso de um curso intensivo de como ser malvarmo direito. ? meu tom era de brincadeira, mas no fundo estava mais perdida que um glácio num deserto.

Áries riu e assentiu, a essa altura, Neruo já voltava da cozinha com uma caneca grande de chá para sua avó e uma caneca de vinho quente para mim.

? Então, o que perdi? ? ele sentou-se ao lado da avó e passou os braços ao redor dela. Áries beliscou as bochechas dele e olhou para mim.

? Estávamos conversando sobre a possibilidade de você ensinar Kiara a voar. ? engasguei com o vinho.

? Estávamos? ? olhei de um para outro, ambos tinham o mesmo sorriso perverso nos rostos. ? Eu nem sei como mudar de forma! ? choraminguei.

? Não precisa, pode fazer partes aleatórias apareceram da marca, assim como uma Phoenix Allas. ? a malvarmo comentou. Neruo piscou dela para mim e assentiu, ele devia estar do lado de fora ouvindo a conversa.

? Nunca o vi com asas. ? admiti. Neruo sorriu e desviou os olhos.

? Todos nós ganhamos Phoenix Allas de Aristes. ? seu rosto corou ? eu tenho asas de blue jay. Ele se levantou e moveu os ombros um pouco tenso, com vergonha, na verdade. Então um brilho azulado apareceu atrás de si e as asas surgiram. Neruo as abriu, alongando-as, eu só observei perplexa. As asas tinham plumas azuis de um tom bonito e as mais baixas eram marcadas por listras pretas e brancas em diferentes posições formando uma espécie de padrão.

? Bem... chamativas. ? comentei ? Mas não acho que tenha necessidade disso. ? Não sabia que os olhos de Áries mudavam de cor, num instante estavam negros, no outro brilhavam num azul gélido que me fez estremecer. Sua forma física também havia mudado, seu corpo parecia maior e até os cabelos cresceram, tornando-se louros e longos. Ela exibiu os dentes numa careta de irritação:

? Abra as asas. ? Áries ordenou sem um pingo de gentileza na voz, lá estava a guardiã que fazia qualquer um tremer como bambu ao vento. ? Não ligo para o que você acha! Você não quer usar os dons que tomou sem querer de seu amigo pois se ressente por ter lhe tomado o que ele morreu por não possuir mais, tem medo de usar sua forma pois isso parece errado para você... mas ele se arriscou para protegê-la e agora você tem suas armas em seu arsenal para usar e se nega! Mas as armas de sua mãe você usa como uma memória a ela! É a mesma coisa com a forma e o poder dele, com a diferença que seu dragão te amava e queria seu bem muito mais que Nikella, garota! Agora ABRA. AS. ASAS. ? senti aquelas palavras como um tapa na cara, com garras e tudo. A pior parte, mesmo que doesse demais... é que ela tinha razão.

Neruo olhava de Áries para mim com expressão tensa. Talvez lendo minha postura e a tremedeira em meu corpo. Meu instinto dizia para atacar mesmo que fosse uma fêmea grávida, ela era mais forte, mais perigosa e nem de longe seu estado a tornava vulnerável, a parte primitiva em meu interior gritava para que eu tomasse vantagem disso.

? Você sente, não é? ? Ela rosnou pinçando as garras ? A vontade de atacar, o instinto falando mais alto que a razão. ? Áries sussurrou de uma maneira baixa e letal ? É isso que você tem que aprender, a ouvir seus instintos, pois vai chegar uma hora que pode depender apenas deles, e o instinto de um dragão é voar e tomar vantagem sobre seus inimigos. Voar poder ser a diferença na próxima vez que encontrar o demônio e tiver companhia. Hestia mesmo forte não sabia voar com peso. Você vai poder fazê-lo, mas não se ficar deixando sentimentos humanos de hesitação prevalecerem em seu coração. E você não é humana.

Áries não se importava em ferir os outros no processo de ensiná-los. Imaginava que Hasan havia herdado a paciência e gentileza de Sirius.

? Vou pedir a Helleon que me ensine. Ele é meio dragão, já o vi conjurando apenas suas asas, sei que plumadas e membranosas tem diferenças no voo. ? retruquei séria. ? Se ele não puder, peço ao meu guardião.

Áries, para o bem do que restava de minhas forças, assentiu.

? Devia também descobrir o motivo dele ser seu guardião, sendo que a ligação de guardião por sangue é estabelecida quando um ser mágico oferece seu sangue para salvar a vida de outro, lhe cedendo parte de sua vida... e malvarmos já se alimentam de sangue, mesmo que do calor obtido dele.

As pancadas não acabavam. Encarei Áries por longos segundos, reparando na mão de Neruo apertada na coxa da avó.

? Não sei se entendi.

? Vó...

? Eles escondem tudo dela. ? ela resmungou como se estivéssemos discutindo roupas que meus tios não me deixavam vestir, não algo como aquilo. ? Um laço de guardião de sangue torna quem recebeu a vida em guardião parar pagar a dívida. Tudo em nossas magias gira em torno de equilíbrio e igualdade. Um malvarmo não se torna guardião por sangue, assim com um vampiro também não.

Halles fizera um juramento?

? Isso também não me importa, para ser sincera. ? disse por fim, desistindo de tentar entender. Perguntaria a ele depois. ? É meu guardião seja por juramento ou qualquer outro tipo de proteção. Não faz diferença para mim.

Áries sorriu.

? Já está aprendendo. ? pisquei entendendo o que ela queria. Um curso intensivo de como realmente ser malvarmo. Os únicos sentimentos que mostrávamos eram aos nossos companheiros e familiares mais próximos. Qualquer outro deveria ser enterrado e não transparecer na frente dos outros, jamais.

? Obrigada por... tudo. Preciso ir, ainda terei aula amanhã ? falei, Neruo se ergueu, certamente para oferecer me levar de volta. ? Posso achar o caminho de casa sozinha.

? Seja como uma geleira, Kiara. quem te olha da superfície, só vê o que você quer mostrar..., mas quem quiser te conhecer de verdade vai precisar mergulhar em suas águas geladas para descobrir o que você realmente guarda. ? Áries disse quando lhes dei as costas.

As palavras caíram no fundo de minha alma e assentaram lá, espalhando os medos de forma que eu nunca mais pudesse tê-los juntos em um único pensamento. A sensação era boa. Dolorosa... mas uma libertação também.

E com um boa noite murmurado por entre os dentes, ainda irritada com o comportamento da malvarmo, mas com a certeza de que fazia para meu bem mesmo do jeito errado dela, saí da fortaleza sem esboçar nenhuma reação até alcançar as barreiras lá fora.

A tempestade de neve voltou com tudo.


?????????????????


Atravessei as barreiras do Vale do Sol e respirei fundo. A sensação daquele mundo em pleno outono, o cheiro de terra e a chuva de folhas vermelhas jamais me enjoaria. Segui pela trilha até a casa de madeira e franzi o cenho ao ver as luzes acesas.

Desaparecendo com minha presença, pincei as garras das mãos e inspirei fundo, tentando descobrir quem eram os invasores. As garras desapareceram no momento seguinte, pois eram Hasan, Lórien e Hestia que estavam lá.

Hestia, sentada no sofá diante da lareira, foi a primeira a me olhar quando passei pela porta, e não tinha uma expressão acolhedora. Hasan estava de pé, apoiado contra o arco da porta e Lórien sentada em meu balcão, comia um pedaço de bolo que graças aos céus, a magia de preservação da casa o manteve em perfeito estado.

? Tem uma casa dessa escondida no meio da neve e nunca me trouxe aqui? ? a bruxa fez um biquinho, apertando ira contra seu colo.

? O que estão fazendo aqui? ? quis saber, não foi minha intenção ser grosseira, mas os modos adquiridos pela exposição à Áries ainda dominavam minha mente. Hasan pelo menos não pareceu incomodado com aquilo, Hestia também apenas ignorou.

? Lórien e eu viemos discutir nossa ida a Somnus. ? Hasan comentou, com os braços cruzados sobre o peito, a bata negra com detalhes dourados que vestia também tinha o selo do sol dourado, percebi aquele detalhe como um meio de acalmar meu incômodo do encontro com Áries, agora estava incomodada com algo novo.

? E eu vim saber como resolveremos a nossa missão atrasada ? Hestia resmungou, sacudindo o pergaminho do contrato nas mãos. Nem fazia ideia que tinham aceitado algo antes que eu... eu autorizasse.

Segui em passos arrastados até o armário, passando ao lado de Lórien, peguei uma garrafa de vinho, precisaria renovar meu estoque em breve. Deslizei para o banco ao lado dela e encostei minha cabeça em seu ombro, ganhando um afago enquanto virava metade da garrafa de uma vez só, sob o olhar afiado de Hasan. Estava tão cansada...

? Do mais fácil ao mais complicado. Lórien pode nos dar uma dispensa para a aula de amanhã, só avisar Lohan e Helleon que vamos fazer a missão de uma vez. ? murmurei, Hestia franziu o cenho.

? Não é tão simples, a missão que foi lhes passado era de encontrar um garotinho desaparecido em Paliath. O menino, um malvarmo, saiu andando da própria casa e nunca mais foi visto.

? Então... deixamos Somnus para depois? ? Hestia franziu o cenho, ela não sabia o que fazíamos em relação aos fragmentos, só havia dito a eles que as vezes eu desapareceria procurando por pistas de meus pais. Lórien deu um longo olhar na direção da bruxa e negou com a cabeça.

? Só terão essa semana para fazer isso com menos dificuldades, menores probabilidades de serem pegos. ? Ela alertou, olhando de soslaio para Hasan, ele estava com o cenho franzido olhando pela porta aberta. ? Detéria faz uma festa gigantesca em seu aniversário, isso vai acontecer daqui a uma semana em Somnus... ou seja...

? Depois de amanhã para nós. ? Hasan murmurou com o maxilar trincado.

Meu estômago se contorceu inquieto, não havíamos nos preparado para aquilo. Sabia que não seria uma tarefa fácil, Owyn fizera questão de mostrar que os outros não teriam boas intenções na hora de entregar os fragmentos. Queria muito juntar todos e perguntar a meu pai o que ele tinha na cabeça na hora que pensou em deixar nossas pistas nas mãos de pessoas tão perigosas, e embora a resposta estivesse clara para mim, nos testar para saber se realmente conseguiríamos pegar aquelas peças, pois se não pudéssemos passar por aqueles desafios... como enfrentaríamos um demônio que conseguiu derrotar os mais fortes guardiões?

? Não temos nenhuma ideia do que fazer. ? disse baixo, dando outro gole no vinho.

? Você não tem pois estava... ? Lorien pigarreou e desviou o olhar ao perceber meus olhos estreitos para ela ? Não estava em condições de conversar sobre.

? Uma fonte em Somnus nos passou as plantas da fortaleza de Detéria. ? Hasan resmungou a contragosto ? Mas será mais simples entrar, pois Asahi recebeu um convite de Detéria para seu aniversário, e o convite se estende a representantes, ela não vai, então o cedeu para nós.

Ele tirou um envelope de papel aveludado cor de vinho da roupa, se aproximou do balcão e o colocou ali, sem tirar os olhos de mim. Era como se esperasse uma reação ou surto... ou que eu pedisse para não ir. Lórien encarou Hestia, que agora quase se debruçava sobre o ombro de Hasan para encarar o convite, as letras negras sobre o papel vermelho que em nada se pareciam com um convite a uma festa.

? Vou designar outra equipe locam para acompanhar vocês. ? A bruxa abriu a boca, prestes a protestar, então eu assenti rapidamente.

? É uma boa ideia. Nenhuma das duas missões pode ser adiada.

Hestia torceu os lábios num bico, mas não discutiu.

? Bom... vou voltar para a ACV e falar com os outros. ? Ela me lançou um olhar incomodado, logo em seguida saiu da casa sem esperar que disséssemos algo.

? Acho que ela ficou chateada. ? Hasan falou baixo.

? É claro que ficou, designar outra equipe para ajudar foi o mesmo que dizer que sem mim eles não conseguiriam fazer. ? ralhei olhando feio para Lórien.

? E como líder da equipe, você poderia ter dito que eles conseguiriam sem ajuda. ? Lórien sustentou meu olhar com uma expressão ainda mais irritada ? Você agiu por semanas como se não precisasse deles, agora dei a chance de se redimir e você nem percebeu! Devagar quase parando! ? ela deu um tapa em minha cabeça ? Vou dizer a eles que você insistiu para que fossem sozinhos quando ela saiu, e que não tentou discutir na frente dela para o caso de não conseguir me convencer.

? Obrigada. ? não me senti verdadeiramente aliviada, Hestia podia não acreditar. Mais tarde... eu consertaria as coisas mais tarde. Estava sendo uma péssima amiga, não lhe dei atenção por dias e agora que precisavam de mim...

Mas eu tinha coisas demais para me preocupar. Ela entenderia, Hestia não era nenhuma criança, eu só precisava sentar e conversar com ela depois. Lórien deixou a casa instantes depois, e Hasan continuou de pé ao lado do batente da porta me observando com atenção. Desviei de seu olhar e tomei o restante de meu vinho.

? Foi até Lastar? ? Ele se aproximou do balcão e suspirou, afastando a garrafa de vinho do alcance de meus dedos, mas a puxei de volta com um fio de escuridão. ? Já disse que não devia beber assim.

? Achei que fosse apenas um comentário, sabe, uma sugestão.

? E foi. ? Ele não tentou pegar a garrafa outra vez quando enchi minha taça e servi outra para ele. Hasan observou o liquido escuro girando dentro do vidro, mas não o tomou. ? Não estou aqui para te impedir de fazer nada que goste ou queira. Não tenho direito de mandar em você ou questionar suas escolhas.

? E se eu escolher chamar Hestia de volta e levar vocês dois para o meu quarto? ? Hasan me encarou surpreso, mas em seguida seu rosto corou. Ele abriu a boca, mas não parecia saber como responder aquilo.

? Não teria... ciúmes? ? Hasan parecia tão sem jeito quanto um adolescente vendo seios nus pela primeira vez.

? Ciúmes? De quê? ? Ele me encarou ainda mais confuso, tanto que não conseguir conter uma gargalhada. ? Tenho ciúme de sentimentos, teria ciúme se percebesse alguém flertando com você, teria ciúme de perceber que alguém mais quer conquistar seus sentimentos, como o que aconteceu com Mona, mas meu ciúme é problema meu, não teria porque jogar isso em cima de você como uma louca surtada, mesmo que partisse de você para outra pessoa.

Hasan desviou o olhar e suspirou, ele não parecia mais sem jeito. Algo em seu olhar... me lembrava mágoa.

? Isso tem muita lógica. ? acabei rindo outra vez.

? Sentimentos não costumam ter muita lógica.

? Mas pensar antes de reagir a algo e atingir pessoas que não tem culpa... ? Hasan meneou a cabeça negativamente ? sobre Somnus...

Ele hesitou em começar.

? Vai ser como se fosse uma missão. Nós vamos agir em equipe, é só você dizer e nós faremos. E se você não conseguir... se não conseguir ficar no mesmo lugar que eles sem querer torrar todo mundo, não me incomodo de voltarmos para cá, e arrumar outra pessoa para ir comigo. Lohan certamente passaria por eles sem problemas, está bem? ? Hasan outra vez me olhou surpreso, e mesmo franzindo o cenho, assentiu.

? A localização do fragmento vai ser dada por nossa fonte, ele não quis nos contatar por muito tempo pois temia ser observado. ? Hasan não parecia muito confiante.

? Não confia na fonte?

? Não confio em vampiro nenhum. ? Hasan retrucou e empurrou sua taça de vinho em minha direção quando notou que a minha estava vazia.

? Você não é um fã de álcool, certo? ? Hasan confirmou com uma careta.

? O gosto é ruim. ? tive que rir outra vez.

? A graça não é para estar no gosto. Pelo menos, não nesses, nos de pluméria e osmanthus sim. ? murmurei, tomando o conteúdo de sua taça.

? Não respondeu sobre Lastar.

? Estive lá, Neruo me acompanhou pois eu me perdi na estrada, não estava sabendo das novas barreiras. ? Hasan se mexeu inquieto no banco alto, mas não desviou o olhar.

? O que ela queria com você?

? Eu queria falar com ela. ? franzi o cenho ? ela queria que eu fosse até lá?

? Ela me pediu para avisar a você que queria te ver desde que voltamos dos céus ? Hasan pigarreou ? esqueci de avisar.

? Esqueceu? ? um meio sorriso zombeteiro começou a se formar em meu rosto. ? Ela queria me ensinar como ser malvarmo direito.

? Percebi, pelo modo com que você chegou aqui, quero dizer.

? Também quer que eu aprenda a voar. ? Hasan piscou confuso.

? Ela te deu Phoenix Allas? ? meneei a cabeça negativamente, então lhe dei as costas e abri a blusa. Hasan não fez nenhum som ao estender o braço sobre o balcão e tocar a nova marca.

Não exatamente nova. Eu senti quando ela foi feita... quando meu amigo se desmanchou em meus braços.

? E ela quer que eu te ensine? ? Hasan murmurou depois de alguns segundos em silêncio. Seu toque sobre a marca era cuidadoso, mas se tornou mais íntimo ao mover os dedos para meu pescoço.

? Ela insinuou que Neruo... espera! Você tem asas? ? virei rapidamente, quebrando aquele contato magnético. Hasan assentiu.

? Todos os mestres das ACV’s têm, mas eu já possuía asas desde a época em que começamos a treinar as gêmeas de Ewren e Leona. As três assim que ganharam as Phoenix Allas queriam voar o tempo todo e eles não tinham energia para segui-las por todos os lados, então... as recebemos também para ajudá-los a tomar conta delas.

? Nunca o vi com elas.

? Porque nunca precisei. ? Hasan sorriu.

? Você voaria por necessidade? ? quase gritei ? é por isso que você não gosta de beber, não sabe aproveitar as sensações mais simples de liberdade!

? É uma falsa sensação de liberdade, Kiara, uma hora, todos tem que pousar de novo. É nesse momento que a realidade te atinge e você percebe que não tem mágica de verdade. ? Hasan disse baixo ? Não preciso do álcool, tenho livros que causam a mesma sensação, mas todos acabam e deixam a mesma impressão, o vazio, e você precisa de mais para sentir aquilo de novo.

? Eu duvido que você tenha aprendido isso com Lupine. ? ralhei, saindo do banco e dando a volta no balcão para encará-lo mais de perto até que pudesse distinguir os tons de negro de seus olhos. ? Quem foi que tirou isso de você? A esperança... quem tirou sua liberdade a ponto de você não querer aproveitá-la mais?

A respiração dele mudou. E como um animal acuado, com os olhos arregalados e confusão tomando sua expressão, Hasan deu um passo para trás, afastando-se de mim e não me olhou uma segunda vez antes de desaparecer numa coluna de fogo dourado.

? Ótimo, Kiara! Assustou ele. ? resmunguei comigo. Andei pela casa organizando alguns objetos em lugares novos, tentando clarear e mente, pensando no que disse que poderia ter causado aquela reação nele até perceber o que realmente significava. Quando insinuei sobre Hestia, Hasan não ficara apenas sem graça... ele devia ter pensado que eu o estava testando, testando suas respostas. Por isso sua pergunta segura foi sobre meu ciúme.

Porque Serena era como Nibben.


Capítulo 10


Teleportei de volta para a ACV. Ainda teria a aula de sexta, mas voltei no mesmo dia para procurar por Hasan e ver se estava tudo bem depois do que havia dito a ele. Segui pelo prédio principal subindo as escadas correndo, sabia que nos fundos do escritório de Lórien, uma porta com um corredor oculto levava a área dos dormitórios dos mestres.

Porém ao passar em frente as portas brancas da sala de cura, estaquei ao ouvir um choramingo alto e os rosnados de irritação de Glyph. Meti a cabeça para dentro da sala, Eghan não estava lá, apenas a curandeira e um garoto malvarmo sentado numa das macas mais distantes de onde Glyph cuidava de um ferimento no braço de uma garotinha élfica, certamente uma venairen mais jovem que não se dera tão bem na aula de sobrevivência.

? Tudo bem por aqui? ? quis saber ? Onde está Eghan?

? Misty o levou para as montanhas com uma turma do V6 em sobrevivência de castigo. ? Glyph soltou um rosnado alto de frustração e a garotinha se encolheu, com medo de que o corte em seu braço aumentasse ao invés de se fechar.

? E Lórien deixou?

? Desde quando Lórien tem juízo! No começo do inverno... se não morrer a metade deles vai ser um milagre.

? Imagino que ela tenha os mandado com supervisão. Lórien não é tão louca assim ? defender Lórien fez a curandeira que vivia no castelo de gelo soltar um suspiro de irritação e me encarar com os olhos marrons dourados quase incandescentes.

? Não tem que dormir para a aula de amanhã? ? Ela voltou sua atenção ao corte quase fechado no braço da menina ? Você também, Eileen! ? Glyph apontou a porta para o malvarmo.

? Não estou com sono. ? O garoto resmungou. Sua voz me fez virar na direção da maca em que ele estava e observá-lo melhor. O malvarmo deitado de lado com o rosto apoiado no pulso, os olhos de um azul topázio me observavam com atenção, sua trança cinza clara estava quase solta, deixando os cabelos bagunçados na altura dos ombros caindo ao lado do rosto. Esguio, porém forte... e quando ficou de pé num salto, notei sem nenhuma surpresa que era muito mais alto que eu.

O malvarmo parou do meu lado e não parou de me encarar.

Aqueles olhos eram estranhamente familiares.

? Eileen eu não vou avisar outra vez. ? Glyph rosnou ? se o toque de recolher soar e você não estiver em seu quarto, juro que vou lhe levar até as muralhas pessoalmente.

? Mãe... relaxa! ? ele sorriu para ela sem desviar os outros dos meus.

? Mãe? ? olhei de um para outro. O malvarmo chamado Eileen quase não tinha semelhanças com Glyph.

? Sim, sim! Essa peste teimosa é minha cria. ? Abri a boca para perguntar mais, porém Glyph respirou fundo, fazendo um gesto para que a garota saísse da maca e nos encarou de modo que os pelos de meu corpo se arrepiaram.

? Vou contar até três. Se estiverem aqui quando eu terminar a contagem, vocês só vão perceber o que aconteceu quando estiverem nascendo na próxima vida! ? Glyph estalou os dedos e garras apareceram em suas pontas.

? Ela está brincando? ? cochichei.

? Um... ? pela expressão de puro pânico no rosto de Eileen, não quis esperar chegar no número dois para correr da sala de cura. Agora sabia porque Eghan não conseguia tirar um cochilo lá.

De volta no meio do corredor, tentando aceitar que tinha sido expulsa da sala pela curandeira que nem treinada em combate era, percebi que o malvarmo ainda me observava.

? Algo errado? ? questionei, ele deu um sorriso curto e meneou a cabeça negativamente.

? Você é Locam, não é? ? Ele parecia tão... à vontade. ? Soube que sua equipe capturou os piratas.

? É verdade.

? Poderia me ajudar nos treinos? ? Seu rosto assumiu um tom azulado. ? passei para o V8 por um tris. Não estou muito bem nos treinamentos de combate.

? Eu... ? não sabia se era uma boa ideia. Não conseguia interpretar aquele olhar, mas me lembrava o olhar de Ira quando via um chocalho de plumas.

? Sou um admirador de seus feitos, princesa. ? Ele fez uma curta reverência, num minuto, estávamos no meio do corredor, no outro, o apertava contra a parede, pressionando as garras contra sua garganta. O malvarmo não parecia assustado ou incomodado com aquilo, no susto, o soltei.

? Desculpe! ? obvio que ele saberia sobre minha identidade se era filho da curandeira que trabalhava no castelo de gelo. Ela estava lá quando nasci, as duas vezes.

? Eu que peço desculpas, não devia ter revelado algo assim por aqui. ? Ele esfregou o pescoço, onde as marcas de minhas garras ainda eram visíveis, me senti mal por aquilo. Ele, no entanto, começou a rir e ajeitou os cabelos bagunçados ? e eu nem consegui desviar!

? Ahh! ? me encolhi, aquilo só piorou a sensação que tive ao tentar ferí-lo.

? Comecei errado. ? Eileen sorriu ? Oi, Kiara! Gostaria de ser seu amigo.

? Já adianto que irrito meus amigos com muita frequência. ? disse apertando sua mão estendida. O malvarmo sorriu, em seguida me deu as costas e seguiu para as escadas.

? Meu primeiro conselho de amigo é que a contagem vai começar de onde parou se ela sair da sala e você ainda estiver ai! ? Eileen já estava quase saindo do corredor quando disse aquilo. Não hesitei em dar meia volta e correr para sala de Lórien antes que Glyph aparecesse outra vez.


?????????????????


Depois de quase ser pega por Freya ao invadir a ala dos dormitórios dos mestres, bufei irritada ao bater várias vezes na porta do quarto Hasan e não obter resposta. Ele podia estar lá ocultando sua presença... ou podia não estar. Enviei fiapos de magia por baixo da porta apenas para constatar que ele realmente não estava. Talvez nem tivesse voltado para a ACV. Ele podia estar em Vintro, em Lastar... em qualquer outro lugar.

Só havia um lugar dentro daquelas muralhas que ele poderia estar e que não seria incomodado por ninguém.

Desci as escadas do prédio principal sem chamar atenção, acenando de vez em quando para os poucos alunos que passaram por mim pelos corredores cujas luzes já estavam com o brilho já reduzido, o sinal do primeiro toque de recolher. O gelo azulado nas paredes pulsava quase imperceptivelmente, a luz baixa aumentava e diminuía como as batidas de um coração, o sinal de que em breve apenas as luzes de segurança estariam acesas nas alas principais e o restante da ACV seria mergulhada num breu, nessa hora, todos os alunos deveriam estar em seus quartos.

A ronda dos seguranças já havia começado quando eu alcancei a árvore branca no pátio principal. Precisei me cobrir com sombras para evitar os guardas que seguiam pelos arcos centrais em direção ao dormitório masculino, onde geralmente tinham alguns alunos tentando serem espertinhos que acabavam sendo voluntários para as rondas das muralhas contra suas vontades.

Segui em passos rápidos e silenciosos, escondida da luz suave de uma lua crescente tentando aparecer por entre as nuvens. Desci as escadas em espiral quase pulando os degraus, mas minhas sombras já estavam por todos os lugares, sentia a tensão da magia ao localizar quem eu buscava, e com alívio desci mais devagar. Não sabia o que dizer de qualquer forma.

“Ei! Sinto muito por te lembrar que sua amada esposa falecida certamente era uma pessoa ruim com você?”

Obviamente eu não sabia o que diria quando o encarasse outra vez.

Não sabia como consertar o que minhas palavras atingiram, até porque eu não sabia o que havia sido danificado ali.

Ao me aproximar das portas duplas, o som de golpes se tornou mais alto e algo entre rosnados e grunhidos podiam ser facilmente distinguidos. Hesitante e sem saber ao certo como falar com ele, abri uma das portas, ainda oculta pelas sombras e o vi.

Hasan golpeava um saco de pancadas quase de seu tamanho. Algumas mechas do rabo de cavalo apertado se colavam no suor de suas costas e peito. A única luz na sala vinha do brilho daqueles raios de sol marcado como tatuagens de vidro em seus braços e testa, calor ondulava ali dentro, deixando minha respiração mais difícil, mesmo assim me aproximei um pouco mais, deixando que meu véu de escuridão desaparecesse aos poucos.

Hasan tinha uma expressão indecifrável quando golpeava com força o couro cinzento que cedia cada vez mais a cada golpe, até que um deles ainda mais forte fez o objeto rasgar e a areia em seu interior se espalhar por toda a sala.

Ele continuou na base de luta, olhando para o montinho maior de areia a seus pés.

? Ficou com raiva de mim? ? a pergunta escapou de meus lábios.

Hasan se virou para me encarar, deixando a posição se desfazer, mas sua respiração ainda estava irregular.

? É claro que não! ? Ele esticou as mãos como se fosse me tocar, mas relutou. ? que motivo teria para me irritar com você?

? Mas está irritado com algo. ? Hasan meneou a cabeça e fechou os olhos.

? Não diria irritado. Eu dificilmente me irrito ou fico com raiva.

? Imagino que o saco de pancadas não diria isso se pudesse falar! Imagina se estivesse com raiva? ? Hasan não sorriu, seus movimentos eram tão controlados... tão contidos.

Talvez aquela gota de malvarmo o fizesse querer soltar a fera em seu interior as vezes. Ele continuou olhando o nada com os punhos cerrados. Uma lembrança de algo parecido veio do fundo de minhas memórias e de repente eu sabia o que fazer.

Tirei os sapatos e arrumei minha trança o melhor que pude, então entrei em sua frente e me posicionei. Hasan ergueu as sobrancelhas e me encarou.

? Já cansou? A idade só permite treinar até estragar os brinquedos?

Hasan bufou, mas um sorriso curto apareceu nos cantos de sua boca. Os ataques primeiro vieram lentos, lentos o bastante para que eu conseguisse desviar e revidar facilmente, logo ele aumentou a intensidade, obrigando-me a usar aqueles instintos que Áries tanto insistira que eu usasse. Depois do que pareceram horas bloqueando, chutando, socando e desviando de golpes, Hasan fez surgir uma jarra de água e nos sentamos contra a parede que separava a sala da área de treinos.

Ele serviu um copo para mim, e tomou sua parte devagar olhando para longe.

? Melhor agora? ? perguntei, tentando arrumar minha trança bagunçada, mas o que consegui foi agarrar cabelos nos nós dos dedos metálicos. Vivia esquecendo daquilo. Hasan assentiu, ele se inclinou sobre mim, soltou os cabelos antes que eu os arrebentasse puxando e sorriu para mim.

? Obrigado. ? ao agradecer, ele segurou meu queixo com a mão e me beijou.

? Vou vir ajudar mais vezes! ? Ele riu.

? Aí está! ? Hasan suspirou ? É essa pessoa que estava nos fazendo falta.

? Quer dizer que todos podem ficar azedos e eu não? ? brinquei.

? Quando um sol de um sistema se apaga, ele leva toda a vida com ele. ? Hasan sorriu outra vez e deu um beijo sob minha orelha. ? Vou te levar para seu quarto, não vai escapar da sobrevivência amanhã!

Soltei um gemido choroso.

? Matar aula amanhã não vai fazer diferença!

? Se você quer fazer a prova do uniforme negro em julho, vai fazer sim! ? Ele se levantou e estendeu a mão para que eu me levantasse também.

? E sobre Somnus? ? talvez preferisse saber de tudo em cima da hora, assim não corria risco de ficar ansiosa, mas a ansiedade me pegou antes, deixando aquela pergunta escapar.

? Vamos partir amanhã depois do almoço para lá. ? Hasan franziu o cenho. ? quando chegarmos lá e encontrarmos nosso informante, repassaremos todas as informações que conseguimos obter.

Ele segurou meu rosto antes de sairmos da sala, seus olhos estavam brilhando em dourado quando disse:

? Por favor, Kiara, aconteça o que acontecer quando pisarmos lá... não saia de perto de mim. ? ele implorou ? faremos tudo juntos, tudo bem?

Assenti.

? Obrigado... por confiar em mim. ? Hasan me acompanhou para fora da sala pelas escadas em espiral até o saguão principal onde a estátua de vitrino de minha mãe continuava encarando as portas, segurando sua foice nas mãos.

Estava tranquilo demais.

Não havia mais sinal de aparições do demônio de fogo. Como o ataque quatorze anos antes, ele aparecera e desaparecera depois de tirar uma parte de nós... mas dessa vez não havia a sensação de que havia acabado. Eu sabia que ele voltaria... pois tinha certeza de que ele não acreditava em minha morte.

Queria perguntar a Hasan sobre aquilo, porém vozes baixas me chamaram atenção e ao nos aproximarmos das portas.

Awen e Honén estavam conversando próximos as escadas que levavam ao segundo piso das salas. Eles olharam em nossa direção ao nos aproximarmos, Hasan cumprimentou Honén e Awen se adiantou até mim e me abraçou.

? Kiara, gostaria de falar com você por um momento. ? Ele não perguntou isso olhando para Hasan, graças aos céus, ou chutaria meu amigo.

? Volto num instante ? avisei tomando a mão de Awen. Ele deu um passo para trás e nos levou para o breu, no instante seguinte, estávamos sobre o telhado do prédio principal da ACV, a lua agora nos mostrava um sorriso iluminado, brilhando no céu limpo cheio de estrelas.

? Como estão as coisas por lá? Algum problema? ? quis saber, Awen cruzou os braços e se apoiou no parapeito e inclinou a cabeça para trás respirando fundo, estalando os pequenos pingentes metálicos em suas tranças.

? Soube o que você fez com Nibben. ? meu estômago pesou como chumbo.

? Awen...

? Eu sou um mestiço... tenebris e solar, um príncipe do Quinto Céu e você quis me defender de uma garota. ? O dourado em seus olhos brilhava enquanto ele me observava com cenho franzido.

? Eu... ? Ele ergueu a mão para me interromper.

? Você se importou. Sabia que eu não faria nada contra ela, que eu não teria coragem de brigar com ela pelo modo com que me tratava... e você se importou o suficiente para ir me defender! ? sussurrou aproximando-se de mim.

? Desculpe.

? Por me defender?

? Por te ofender fazendo isso.

Awen gargalhou, em seguida me apertou num abraço.

? Deveria ter me ofendido pelo quê? Nunca me passou pela cabeça que você não me achasse homem suficiente para me defender sozinho! Você apenas fez o que eu não poderia fazer por ela ser mulher!

? Eu queria encher a cara dela de tapas. ? confessei.

? Uns dias depois que vocês saíram, eu precisava vir aqui falar com Honén, ela me atacou outra vez, dizendo que eu queria vir por você. ? O olhei incrédula.

? Que filha da...

? Eu a mandei embora. Terminei tudo.

Não consegui esconder um sorriso satisfeito.

? Ela não merece você, sei que gostava muito dela... mas acho que fez bem! ? não deveria me meter, mas ele estava ali, se abrindo para mim, sabia que ele queria ouvir algo especialmente que o fizesse ter a certeza de que escolheu certo. É difícil abrir mão das pessoas que amamos, mesmo quando elas nos fazem mal.

? Fiz... uma coisa também. ? dessa vez, ele se afastou um pouco para me encarar. O brilho dourado dos olhos estava mais fraco. Ergui as sobrancelhas numa pergunta silenciosa e Awen deu um sorriso sem graça.

? Fale logo, Awen!

? Acho que Alfia pode estar grávida... de um filho meu. ? um comichão percorreu meu corpo e tudo que fiz foi ficar o encarando de boca aberta.

? O QUÊ? COMO?

? Ué, o método tradicional, sabe? Sexo. ? Ainda o encarava chocada.

? Certeza? Quero dizer... que ela possa estar... ? Awen assentiu.

? Depois de terminar com Nibben, saí do Quinto para evitar que ela ficasse indo atrás de mim tentando reatar e fui passar uns dias no Primeiro. Alfia estava sozinha... eu me ofereci para distraí-la um pouco de seus problemas. ? Ele pigarreou e desviou o olhar para longe ? Acabei a distraindo por uma semana.

? Mas ela disse que não podia ter filhos...

? Por isso não tenho certeza, mas sabe, os sintomas são iguais em todas as fêmeas, humanas ou celestiais.

? Deuses! ? comecei a rir. ? Se for verdade, Nibben vai ter um ataque.

? Problema dela. ? Awen deu de ombros. ? Meu pai que vai ter um ataque.

? Duvido que ele ache ruim, você se livrou de Nibben, era o maior problema que ele tinha. ? O sorriso de Awen não foi o que eu gostaria que ele desse, mas era o que esperava depois do que disse.

? Preciso ir, não quero atrapalhar seu sono de ovelha. ? Ele deu uma piscadinha e desapareceu antes que eu me despedisse. Com preguiça de usar magia para descer, e mais preguiça ainda de caminhar por seis lances de escada, sentei-me no parapeito e fiquei olhando para fora das muralhas, para aquele mundo branco que se estendia a perder de vista. Os ventos frios da noite acariciaram minha pele e quase podia sentir os dedos gelados de Yinemí naquele toque.

Respirei fundo e fechei os olhos.

A liberdade que tanto sonhava estava vindo aos poucos... mas agora que ela se aproximava, algo dentro de mim não queria deixar aquele lugar. Era algo instintivo, eu sabia, os malvarmos eram ligados ao mundo de gelo, mesmo assim... parecia tão errado pensar em ir embora! Talvez por isso tivessem tão poucos de nós fora de Vegahn.

Um movimento de luz dourada atrás de mim e uma súbita corrente de ar quente me fez sair de meus devaneios e olhar para trás assustada, procurando a fonte daquele calor. Meus olhos lacrimejaram ao ver aquilo.

Hasan estava de pé atrás de mim com um par de asas cujas longas plumas douradas oscilando contra o vento eram feitas de fogo. Ele as encolheu para perto do corpo, sem ao menos queimar as roupas ou algo do tipo, e se aproximou.

? Está tudo bem? ? quis saber.

? Nada de errado ? sorri, tentada a estender as mãos e tocar aquelas asas. ? Olhe só! Parece que alguém resolveu atear fogo num pavão! ? Hasan gargalhou e moveu as asas, aproximando-as de mim, eram realmente quentes... mas não feriam minha pele.

? Mato sua curiosidade e você debocha de mim?

? Não atingi minha cota de deboche diário. ? brinquei, tocando as plumas com as mãos trêmulas. Eram macias ao toque, tão bonitas!

Sem aviso, ele me pegou nos braços e pulou do telhado. Abafei uma gargalhada em seu peito enquanto os ventos fizeram os fios soltos de meus cabelos chicotearem contra meu rosto, e em poucos instantes, estávamos planando em frente à janela de meu quarto.

? Achei que fosse conseguir te assustar. ? Hasan abriu a janela e me colocou para dentro. Hestia em sua cama do outro lado do quarto, sentou-se com os cabelos desgrenhados e nos olhou confusa.

? Tem que tentar com mais afinco. ? Ele me deu um beijo sob a orelha, murmurou um boa noite e disparou para o alto, sumindo de minha visão.

? Estava voando por aí nos braços de um mestre depois do toque de recolher? ? Hestia questionou, seus olhos quase se fechando outra vez.

? Estava. ? Ela ficou me encarando por alguns instantes.

? Amanhã eu pergunto isso novamente quando acordar! ? bufou e deitou outra vez adormecendo quase que instantaneamente. Ira não estava em parte alguma do quarto, na certa encontrou outro lugar quentinho para se esconder.

Tirei minhas roupas e deitei na cama, ainda com a janela aberta me deitei e fiquei ali, olhando a noite escorregando lentamente seu manto de estrelas sobre o mundo.

O buraco em minha alma que de vez em quando eu caía... parecia cada vez mais raso.


?????????????????


Hestia, Lohan e eu estávamos sentados sobre uma das macas na sala de cura, ouvindo Glyph e Eghan discutindo aos berros sobre o retorno da turma de sobrevivência... turma que fomos arrancados de nossas camas no meio da madrugada para ir buscar.

Nós e mais uma equipe do V8.

Misty simplesmente levara uma turma inteira do V6 para a cadeia de montanhas ao extremo norte de Blizzion, uma cadeia de montanhas que acabava em imensos penhascos para o Mar da Neblina. No auge do inverno de Vegahn, vários alunos não Malvarmos começaram a ter problemas com o frio e ficaram presos entre uma passagem congelada, para melhorar, foram atacados por quatro remorhazes famintos.

Um aluno foi devorado. Um menino salamandra que se afastara do grupo na hora que os bichos começaram a atacar. Glyph xingava Eghan de todos os nomes por ele ter deixado a equipe com a mestra e vindo pedir socorro, mas se ele não tivesse o feito, o estrago poderia ter sido maior.

Apenas nossa equipe e Eileen, o filho de Glyph, que participamos do resgate continuávamos ali, pois sofremos ferimentos mais graves. Nada como a primeira vez que o remorhaz tentou me comer... mas queria apagar de minha mente os pedaços do garoto espalhados pelo chão... o sangue vermelho empoçando na neve e os gritos dos outros acuados no canto de um paredão sem saberem o que fazer.

O treinamento era uma coisa.

Mas na hora que precisávamos mesmo encarar aquele mundo hostil... parecia que tudo desaparecia da mente.

? Você deveria voltar para o seu buraco se não sabe agir como um curandeiro! ? Glyph soltou de repente no momento em que tentava remendar o braço de uma garota que chorava desesperada, parte dele havia sido arrancado. Eghan tremeu e baixou a cabeça, ele curava um rapaz cuja barriga agora exibia uma longa linha de cicatrizes no formato de uma mordida. Podia sentir a tristeza do bruxo dali.

? Glyph! Já basta. ? ordenei firmemente quando a vi abrir a boca outra vez para continuar os xingamentos, minha voz saiu alto o suficiente para até a garota parar de chorar. ? Eghan agiu de acordo com o protocolo da ACV e como um curandeiro de verdade, ele procurou ajuda!

? Garota...

? Misty está recebendo seu castigo, provavelmente será banida, trarão outro mestre de sobrevivência já que ela não cumpriu corretamente com a sua função. Não desconte sua frustração em Eghan.

Glyph me encarou com os lábios apertados e suspirou pesadamente, dispensando a menina e atendendo Hestia, a bruxa havia apenas deslocado o pé, assim como eu tinha alguns cortes e arranhões, não era nada demais comparado ao rasgo que Helleon sofrera na asa, tão feio que ele foi levado por Tainar de volta ao palácio da lua para ser curado por outros dragões.

Áries tinha razão.

Helleon sozinho matou dois dos remorhazes com presas e cauda. Se eu conseguisse assumir a forma draconiana de Senrys... mesmo as barreiras de gelo que fiz para evitar que os bichos se aproximassem dos venairens não foram suficientes para ajudar. Se aprendesse a mudar de forma, talvez conseguisse ajudar mais. Era preciso, ela tinha razão.

Mas e se eu pudesse usar meu poder real sem ter que esconder dos outros quem eu era?

Eghan se aproximou depois de um tempo, cutucou o braço de Lohan que estava ao meu redor, então começou a me curar. O tenebris estava ali apenas para nos fazer companhia. Ele se transformara numa besta colossal, uma criatura que não imaginava existir nem em meus piores pesadelos e simplesmente partiu a lacraia gigante ao meio com as várias carreiras de dentes. Hestia se mantinha alguns centímetros afastada e de vez em quando o olhava de soslaio, ele havia conseguido assustá-la.

? Eileen. ? A curandeira o chamou, o malvarmo estava na maca do canto da sala de cura e para minha surpresa, Ira estava enrolado em seu colo, ronronando alto e se esfregando nele. Quando Eileen fez menção de sair, o glácio fincou as garras em suas roupas e escalou seu pescoço, enrolando-se lá.

Eu nunca o havia visto fazer isso com ninguém além de mim.

? Parece que ele gosta muito de você. ? falei estendendo os dedos para tocar a cabecinha de Ira ao passarem perto de mim. Eghan olhava do malvarmo para mim com os olhos cerrados, mas desviou o olhar ao ver Glyph mostrando os dentes para ele.

? De vez em quando ele dorme em meu quarto. ? Eileen murmurou, chiando ao receber uma grossa camada de emplasto de ervas na ferida da presa do remorhaz em suas costas.

? Agora está explicado para onde ele some as vezes. ? murmurei um pouco desconfiada. Como ele conseguira conquistar Ira para que o glácio ficasse como um gatinho manso perto dele. Bom, ira era assim com Hestia e Lohan também, mas nunca deitara no pescoço deles.

Mas algo ainda me incomodava um pouco em Eileen. Havia o visto lutar. Hestia, ele e eu enfrentamos um dos animais que cercava o grupo.

Eileen parecia ter séculos de vida e não duas décadas apenas. Ele só foi ferido por ter se distraído quando uma das patas do animal me atirou contra uma rocha congelada. Por fim, irada e com sangue nos olhos, peguei o remorhaz por uma das patas e ele o pegou pelo outro lado e puxou também. Nós rasgamos a besta ao meio brincando de cabo de guerra.

? Pisca, garota! ? Eileen riu, o estava encarando sem querer enquanto divagava.

? Desculpe! ? desviei o olhar. Eghan terminou de me curar e por fim arrumou o pé de sua irmã e nos dispensou da sala de cura. Ele ainda me olhava com os olhos brilhando quando passei pelas portas e com os dois, seguindo para as escadas principais.

? Então... não vai rolar sobrevivência no primeiro período, não é?

? Aposto que nem vai ter aula. ? Lohan falou, concordei com ele num murmúrio, Lórien certamente nos chamaria lá fora para anunciar a saída de Misty, só não fazia ideia de quem colocariam em seu lugar.

Mal chegamos ao corredor do refeitório quando o alarme que anunciava o chamado ao pátio tocou. Três avisos sonoros altos, aquilo acordaria os outros venairens, uma vez que ainda faltava uma hora para começarem a servir o café da manhã.

? Lá vem. ? choraminguei.

Seguimos para o pátio principal quase arrastando os pés. Em frente aos prédios de treino, Lórien aguardava junto com os outros mestres e Misty estava ao seu lado, de braços cruzados para trás e rosto baixo. Nós fomos os primeiros a chegar, em seguida, a equipe de Eileen se posicionou ao nosso lado. Saindo do prédio principal, uma garota salamandra de cabelos ruivos vinha aos berros sendo contida por dois guardas malvarmos, ela gritava e chorava, olhando com ódio velado na direção de Misty.

? EU VOU MATAR VOCÊ! ? A garota berrava tentando escapar do aperto dos guardas ? VOCÊ MATOU MEU IRMÃO, DESGRAÇADA!

? Isso vai dar problema. ? Hestia sussurrou.

? Ah se vai! ? Eileen parou ao meu lado, deixando Ira pular de seu ombro para o meu.

Lórien tentava acalmar a garota, mas nada surtia efeito. Outros venairens foram chegando e a cena ficava cada vez mais complicada conforme o pátio enchia. Em um momento enquanto a garota ainda tentava se soltar para chegar até Misty, ela perdeu a paciência com os malvarmos que a seguravam e explodiu em fogo, lançando labaredas vermelhas para todos os lados. Um grito abafado se seguiu e com horror, vimos os malvarmos marcados por veias incandescentes, tentando gritar por ajuda um momento antes de petrificarem.

Xiaz e Ruthyr.

Meu estômago embrulhou. Teria vomitado se tivesse algo na barriga. A garota avançou para cima de Misty enquanto os mestres tentavam em vão socorrer os dois malvarmos.

Eram dois dos guardas que viviam no castelo de gelo, dois dos que sobreviveram aquilo e decidiram escolher ficar na ACV para que nada daquilo acontecesse novamente. Os dois eram quase como da família.

Escuridão tomou o lugar enquanto eu caminhava para frente, seguindo até a garota ainda transformada em brasas que corria tão lentamente na direção de Misty e Lórien, que tinha a impressão de não se mover, suas chamas ondulavam perto de seu corpo quase paradas. O tempo havia parado.

Eu puxei uma pequena esfera de vidro de dentro de um dos bolsos de minha calça, um pequeno frasco de vitrino moído e me aproximei, um passo era o que me separava dela.

Fares ainda em seu corpo de mulher não olhava para ela, mas para mim, assustado, olhos arregalados, mas travado no tempo também. Desviei a atenção de seu olhar e sem pensar direito no que estava fazendo quebrei a bolha diante do rosto da garota. Quando o tempo voltou ao normal, ela engoliu aquilo, suas chamas quase me queimaram, quase. Mas não antes que ela caísse de joelhos com as mãos na garganta. Seu fogo cessou e frio tomou conta do lugar. Ela arquejou e um momento depois, sangue começou a vazar de sua boca e ela desabou no chão e começou a vomitar.

Pequenos cristais de vitrino podiam ser vistos em meio ao sangue.

? Kiara! ? os mestres me olhavam apavorados, ouvi murmúrios de como havia chegado lá tão rápido sem que tivessem me visto. Os venairens que já estavam no pátio também olhavam curiosos para o corredor, tentando ver o que acontecia. Só então me dei conta do que tinha feito.

? A leve para dentro. ? Lórien ordenou, encarando-me com cenho franzido enquanto Medras se aproximava para tentar curar a garota que parecia estar sufocando.

O que foi que fiz?

Desespero me tomou quando Scath e Siorin se aproximaram de mim, Hasan parado na ponta do corredor, olhava-me chocado e algo dentro de mim parecia ser chacoalhado, como se eu tentasse despertar do que tinha realmente feito. Ela podia morrer com aquilo!

Medras estava tirando pequenos fragmentos de vitrino da boca da jovem. Por sorte... por algum milagre, ela apenas os havia engolido, mas se ela tivesse respirado aquilo?

Não.

Aquilo estava errado! Eu não faria algo assim por mais raiva que tivesse!

Em desespero, desejei com todas as forças poder ter evitado aquilo, poder voltar no tempo e impedir que ela os matasse, me impedir de a ferir daquele jeito. Mas o tempo não podia ser dobrado a minha vontade por mais que eu assim o quisesse.

Outra vez, a escuridão salpicada de pontos de luz explodiu de mim, envolvendo a ACV como um imenso casulo e meu corpo se moveu para trás. O gosto metálico de sangue se espalhou por minha garganta, mas em choque, não conseguia desviar o olhar da garota, seu sangue voltando para dentro de sua boca, ela ficando de pé, o pó que havia ingerido saindo de seus lábios e a pequena esfera de vidro voltando para minha mão.

Ela correndo para trás com seu fogo incandescente, os mestres voltando para onde estiveram antes de avançarem para os guardas, e eles a segurando enquanto sua explosão de fogo se revertia. Algo aconteceu ali, ela estava de volta sob os apertos dos malvarmos gritando.

Um estalo em meu corpo fez a escuridão voltar para mim como um elástico e tudo sumiu. Minha visão embaçou, mas ouvi novamente os gritos da garota... como se a cena tivesse voltado para trás.

Fares ainda me olhava daquele jeito. Mas ele correu para a menina e gritou para que os guardas a soltassem um instante antes de ela tentar explodir em chamas para se livrar deles, mas Fares usou uma barreira para conter seu fogo e olhou em minha direção, ele usou aquilo para evitar que os guardas fossem mortos. Porém mais ninguém parecia ter percebido nada.

Mais ninguém além de Hasan, que também me olhava chocado.

? O que foi isso? ?Lohan questionou ? como seu irmão sabia o que ela ia fazer?

Eu não consegui responder.

Desabei de joelhos no chão vomitando sangue, sentindo corpo inteiro trincar.

? Kiara! ? Eileen me aparou, uma vez que meus amigos tiveram que se afastar por causa do frio ao meu redor. Sangue ainda pingava de meu nariz e boca, mas ao tocarem no solo, eles congelavam. Hasan estava ao meu lado no segundo seguinte, alguns alunos murmurando assustados. Lohan começou a dizer que podia ter sido algo do remorhaz que os curandeiros deixaram passar. Hasan me pegou nos braços e Lórien ordenou que me levasse para a sala de cura. Hasan praticamente voou escadas acima, Glyph não estava mais na sala quando chegamos e Eghan olhou assustado, sem entender o que havia acontecido.

? O que foi que você fez? ? Hasan ciciou, estendendo o pulso cortado para mim enquanto sua outra mão me curava. Deixei que me alimentasse, Eghan não se mexeu do canto da sala, apenas nos encarava com os olhos arregalados.

Quando todas as fissuras se fecharam, quando o corte em seu pulso se curou, Hasan se sentou ao lado da maca e segurou meu rosto.

? Como fez aquilo? Porque o fez?

? Eu a quase a matei.

? Eu sei, eu vi. ? Hasan franziu o cenho e pegou a esfera de vidro em meu cinto. ? Usou vitrino moído?

? Ele... ele derrete dentro das vias aéreas e se torna agulhas quando o fogo deles desaparece. ? disse envergonhada, queria vomitar outra vez. Hasan não desviou os olhos de mim.

? Deveria perguntar o motivo de você ter criado algo assim?

Não sabia o que responder.

? Nós... descobrimos que pó de vitrino moído pode curar um malvarmo que tenha inalado pó de fogo. Não era pra ser usado como arma, é pra ser usado como uma cura de emergência. ? Eghan me defendeu, mesmo sem saber o que se passara lá embaixo. O mestre suspirou e sua respiração parecia mais calma agora. Eghan não havia mentido, mas eu nunca dissera que usaria só para curar os outros.

Porém, provavelmente nunca mais usaria aquilo contra um salamandra outra vez. Meu corpo formigou e me encolhi sobre a cama. Mesmo que ela ainda estivesse viva lá embaixo... aquilo podia muito bem ter acabado mal, não importa que tenha revertido o que fiz... ela era inocente. Se eu estivesse em seu lugar, se fosse o meu irmão, eu iria querer vingança também.

Hasan me encarou outra vez e meneou a cabeça negativamente.

? Você pode dobrar o tempo. ? murmurou baixo, segurando meu rosto entre as mãos ? Isso é incrível... mas dá pra ver que o custo é alto. Agora eu te pergunto, e se não conseguisse fazer isso? O que teria acontecido, Kiara e se ela tivesse morrido por causa disso? ? questionou estendendo a esfera e a colocando sobre a maca.

? Sinto muito! ? comecei a chorar, encolhendo-me mais sobre a maca. ? Eu não queria... eu não queria ferir ninguém!

Esperava que ele se afastasse, que não quisesse mais nem olhar para mim. Mas Hasan me envolveu num abraço quente e acariciou minhas costas em movimentos tranquilizantes.

? Você tem uma mistura única de magia, Kiara. Nunca aconteceu antes pois seu poder estava selado e a magia negra permaneceu adormecida! Você vai precisar aprender a lidar com isso, com o impulso de fazer... coisas ruins as vezes.

Voltei a chorar, não sabia se gostava ou não de ter aquele poder.

? Me desculpe! ? Ele continuou me abraçando até que eu me acalmasse.

? Está tudo bem, tudo bem! Não vai fazer algo assim outra vez, eu vou te ajudar, te ensino a controlar isso. ? Ele deu um beijo em minha testa. Os olhos de Eghan pareciam que saltariam das órbitas. Óbvio, ninguém sabia que eu estava com o mestre. ? precisamos ir para a sala de Lórien.

Hasan me ajudou a ficar de pé e devagar, seguimos pelo corredor para o escritório. Estava em conflito com o que havia feito, tentando achar uma justificativa para ter agido daquela maneira sem ao menos ter pensado bem antes. Xiaz e Ruthyr eram os guardas que costumavam cuidar de mim e de Fares quando saíamos para passear fora do castelo, ficar com raiva por eles... justificava?

Não queria uma justificativa. Queria nunca mais deixar aquele tipo de impulso me deixar ferir alguém.

Lórien só apareceu na sala quase meia hora depois. O movimento na academia parecia ter diminuído drasticamente de repente. Ela bufou pesadamente antes de desabar na cadeira diante de nós e suspirar cansada.

? O que houve com a Ember? ? Hasan questionou, olhando-me pelos cantos dos olhos. Lórien não parecia ter percebido sobre a magia, e Hasan também não parecia disposto a contar a ela.

? Está no calabouço. ? Lórien bufou ? Ela tentou matar Misty e quase feriu Fares, quero dizer, Leone também. ? me lançou um olhar preocupado antes de prosseguir ? Nyona, a diretora da ACV de Ciartes virá busca-la em alguns dias e Misty também. Ela pagará em seu mundo de origem.

Um frio desceu por minha coluna, pois sabia exatamente como seria seu julgamento. Ericko, embora fosse bondoso e justo, não tolerava erros dos treinadores, especialmente depois que Misty foi tirada de Ciartes quando cometeu um erro semelhante, mas minha mãe lhe deu uma segunda chance, contrariando a ordem de execução de sua antiga mestra.

? Declaramos um dia de luto e dispensamos todos de suas tarefas, inclusive de suas missões. ? Lórien apoiou os cotovelos na mesa e pressionou os dedos nas têmporas, seus olhos estavam vermelhos e suas marcas acesas. ? Queria que Ewren estivesse aqui, ele gostaria de o novo mestre de sobrevivência. Não faço ideia de quem colocar no lugar dela.

A observei por um momento, Lórien parecia tão desgastada, tão cansada... era como se sua energia estivesse sendo drenada. Ela não gostava de estar ali, isso era óbvio. Ela precisava sair também, aquele cargo estava a matando aos poucos, roubando seu espírito. Mas ela não sairia, não sem eles ali... não porque ela assumira o cargo quando minha mãe... se foi. Queria ter algo bom para dizer, queria poder falar que tudo ficaria bem, que eles voltariam, que eu os traria de volta e ela poderia voltar para sua casa.

A mão de Hasan envolveu a minha com tamanho cuidado que surpresa e confusão tomaram conta de mim. Meus dedos estavam tão apertados em minhas palmas que a pele havia se rompido sob a pressão de minhas garras e sangue gotejava no chão. Seus olhos dourados estavam em meu rosto, preocupados como antes... quando me tirou do pátio.

? Sei de alguém que pode substituí-la ? disse sem pensar, sabia que ele poderia recusar. Mordi a língua irritada por ter pensado naquilo, não sabia se deveria arrastá-los para cá.

? Quem? ? Lórien me encarava com brilho no olhar, esperançosa com a resolução de pelo menos um dos problemas.

? Gwyndion, o bruxo mardam. ? Lórien apoiou o queixo nas mãos e franziu o cenho, seus olhos se moviam inquietos, calculando, pesando a possibilidade... mas a possibilidade do bruxo ser pior que Misty.

? Ele é muito bom. ? Hasan comentou ? Um cretino desalmado, mas no nível de Misty, só que sem a parte de colocar pessoas em risco desnecessário.

? Pode ser temporário, até achar outra pessoa adequada. ? Me adiantei, Gwyndion assim como todos os bruxos, assim como eu, amava o vale o suficiente para não querer deixá-lo, mas... seria uma experiência nova para ele. Imaginar o sorriso de Gwyndion enquanto torturava os alunos me fez ter um espasmo. Ele faria Misty parecer uma garota mimada com gosto por poder.

? Certo... verei isso com eles. ? Lórien mordeu os lábios e seus olhos se detiveram em Hasan. ? Somnus?

? Kiara não dormiu...

? Eu estou bem! ? afirmei rapidamente. Não queria ter que enfrentar o que fiz indo falar com Fares, ele certamente estaria preocupado, mas não queria dizer a ele sobre a magia.

? Vai ser perigoso. ? Lórien alertou, puxando de sua gaveta um pequeno pingente de uma esferinha de vidro com pó de prata, tão lindo e delicado que parecia apenas uma joia, e mesmo sendo uma dose pequena, seria fatal para o poder de um vampiro.

? E fazemos algo que não é? ? tentei parecer tranquila, Hasan ainda me olhava de lado, não sabia dizer se gostava ou não daquela atenção.

? Precisa pegar algo para ir? ? me perguntou. Estava com minhas espadas, adagas, o pó de vitrino... tinha acabado de voltar das montanhas, então ainda estava com tudo comigo, só não possuía uma camada extra de sangue de remorhaz sobre mim por cuidado de Lohan. Ele havia nos limpado antes de nos guiar para a sala de cura, ou provavelmente Glyph nos faria ficar nus para evitar que sujássemos sua sala desnecessariamente.

? Por favor... não sejam pegos por Detéria! ? Lórien implorou.

? Não seremos. ? Hasan por fim se levantou e estendeu o braço para que eu o pegasse. Lórien moveu os dedos e um portal se abriu atrás de nós. A preocupação em seus olhos era tão verdadeira que me senti culpada. Será que ela ainda se preocuparia se soubesse o que fiz com a garota lá fora?

Ignorei aquilo ou seria consumida por esses pensamentos também.

Sem olhar para trás uma segunda vez, atravessamos o circulo vermelho para o breu interminável do outro lado. Eu conseguiria aquele fragmento. Os encontraria.


Capítulo 11


Hasan:


Ainda sentia a relutância de Kiara a cada passo pelo túnel do portal de Lórien. Ela não me olhava, fingia estar interessada nas estrelas que passavam por nós além dos limites do túnel, o qual não podíamos tocar sem sermos atirados para o espaço infinito e correr o risco de não conseguir acessar a magia para voltar.

Suas marcas turquesa estavam brilhando, refletidas nas bordas translúcidas e retorcidas do túnel, as raízes de Cahidén, a única ligação entre os mundos.

Não estava tudo bem. Ela havia agido instintivamente ao ver os guardas que antes cuidaram do castelo sendo petrificados pelo fogo da salamandra. Mas... ela tentara reparar seu erro, e conseguira. Só não havia concertado as coisas em sua mente.

Kiara não se perdoava por errar. Nunca.

Queria dizer que estava tudo bem, mas ela precisava aceitar o que fez e aceitar sua conquista... aceitar que fora capaz de admitir um erro e repará-lo antes que fosse tarde.

A cada passo nos aproximávamos das bordas vermelhas do fim portal, alguns passos mais próximos do mundo que eu jamais pisaria se fosse em outras circunstâncias. Mas não a deixaria enfrentar aquilo sozinha. Talvez fosse algo que eu precisasse enfrentar mais que ela. Não o medo deles... mas a raiva, a vontade de pisar do lado de lá... e transformar aquele mundo em cinzas por puro ódio.

Meus olhos captaram um movimento ao meu lado, tirando minha atenção dos pensamentos inquietantes que tomavam conta de minha mente. Kiara estendeu os dedos, como se fosse tocar em algo, talvez nas bordas do túnel, mas sua mão se retraiu antes e a garota franziu o cenho, aproximando-se mais de mim, apertando o braço ao redor do meu. Os olhos de Caalin... Eles compartilhavam aquela expressão quando estavam tristes, olhos com uma expressão profunda que provocava um desejo de querer descobrir o que havíamos feito de errado para magoar uma pessoa com tal intensidade no olhar.

Ela parou de andar.

Estávamos no limite do portal. Não podíamos cometer erros ali. Eu não podia me deixar distrair com nada, não ousaria colocá-la em risco. Era quase impossível estar no mesmo espaço que ela e não me distrair com sua presença.

? Estou com medo.

? Não a julgo mal por isso. Estou com medo também ? Não era de todo verdade. Não tinha medo deles, não tinha medo do mundo horrível no qual entraríamos... tinha medo de cometer algum erro que custaria mais que o fragmento do mapa. Tinha medo que ela não saísse dali inteira.

Na melhor das hipóteses, medo de perder a calma e transformar Somnus num sol.

Haviam pessoas inocentes vivendo ali. Não poderia esquecer disso, nem por um momento.

? Admite com tanta facilidade seus sentimentos ruins, mas não os bons? ? Kiara deu um risinho e apertou minha mão. ? Vamos, Lórien deve estar se contorcendo esperando que saiamos da ponte!

Hesitei, mas deixei que me puxasse para fora do portal.


?????????????????


O golpe de calor não deve ter sido tão pesado para Kiara quanto o ar denso carregado de fuligem e gases que invadiu nossos pulmões. Luzes neon brilhavam em todos os lugares através dos vidros imundos que nos cercavam, bombardeando claridade, informações e peso demais sobre a garota que jamais pisara em um lugar assim. Segurei sua cintura e a aproximei de mim, Kiara arquejou e me apertou, encolhendo o corpo, tentando se livrar daquilo, só que não tinha mais volta.

Ela tossiu e me encarou assustada antes de forçar os olhos a se acostumarem, a observar ao seu redor. Nem estávamos num ponto realmente movimentado. A antiga passagem ao mundo dos vampiros se abria para dentro de uma pequena loja de quinquilharias pertencente a uma bruxa que mal enxergava um palmo a frente do próprio nariz... porem seu olfato seria mortal, se ainda funcionasse depois de séculos recebendo toda a poluição daquele mundo.

? O que... ? ela tossiu outra vez e cobriu a boca, evitando vomitar. A loja de Ciphra tinha um desagradável odor rançoso de incensos vencidos, mofo e cebola velha e algo pútrido que não sabia nomear.

Atrás do balcão, a velha de pele esverdeada tentava nos ver por cima dos óculos embaçados pelo vapor do chá da caneca trêmula em seus dedos.

? Quem chegou?

? Não interessa de onde viemos. Não lhes traremos problemas se não nos ver também. ? Avisei. A velha assentiu devagar, voltando a atenção para o aparelho de TV surrado no canto do balcão.

Kiara agora observava com horror os objetos vendidos na loja. Pés ressecados de criaturas mágicas, olhos em potes sujos, sangue em pequenos frascos espalhados, tufos de cabelos e pelos... nunca havia a visto com tamanho pavor.

Brincava de cabo de guerra usando um remorhaz como corda e não aguentava cinco minutos num boticário de uma cidade grande.

Teria rido se não soubesse o que aqueles cheiros deviam estar fazendo com seus sentidos. A puxei devagar para a porta da loja, me preparando para a pior parte, os sons.

Kiara estacou quando saímos da loja, ela viu o concreto primeiro, o material escuro recobrindo as ruas, seus olhos cerrados subiram para os imensos prédios espelhados ao redor, com a maioria de suas janelas apagadas, uma vez que a maioria de seus moradores sequer ficavam em suas residências. Não havia toque de recolher, a distinção de dia e noite simplesmente não existia. Tudo funcionava o tempo todo, divididos por turnos e horários para que os sanguessugas que trabalhavam para manter o mundo funcionando tivessem noção de quando começava e finalizava seus turnos.

No céu, lua era substituída por outras duas luas ainda maiores quando uma deslizava pelo céu e finalizava seu percurso.

Kiara respirava superficialmente, tentando se acostumar aos barulhentos motores dos veículos na avenida, as vozes altas de vampiros conversando num beco, rindo, bebendo e marcando um ponto de encontro. Suas vozes me enjoavam. Ela, no entanto, se encolhia, certamente incomodada com os zunidos agudos dos painéis de neon espalhados por cada fachada de loja daquele lugar. Em pontos específicos, afastados das áreas de circulação, uma ou outra cabine de luz ultravioleta piscavam, anunciando que estavam vazias.

Não havia toque de recolher para os vampiros.

Para os humanos, porém, essa era outra história.

? Posso dizer que já odeio esse lugar? ? não consegui conter uma gargalhada.

? Ninguém em juízo perfeito que venha de outro mundo gosta desse buraco de ratos. ? Kiara estava tentando controlar a respiração, ela moveu os dedos inquieta, olhos fechados esticando as costas e murmurando algo para si, me olhou e assentiu devagar.

? Vamos ficar quanto tempo? ? quis saber. Alguns metros à frente, um prédio ostentava um grande painel luminoso com letras e números embaralhados que se organizam conforme os segundos passam.

? Viemos antes do planejado. Temos cerca de uma semana nesse... lugar. ? Kiara segurou firme para não soltar um palavrão conforme seguíamos firmemente pelas ruas iluminadas. O cheiro de óleo e combustível me incomodava. Somnus tinha crescido com as tecnologias do mundo humano, porém avançou mais..., mas esses avanços ficaram contidos nas grandes cidades e Nethur nem de longe era uma dessas.

? Vamos pegar o metrô e ir para a capital. Vai levar cerca de duas horas para chegarmos lá, mas antes... ? Guiei Kiara para uma das aberturas que levava ao subterrâneo, ela se esquivando dos degraus imundos, sujos com manchas secas de sangue, urina e coisas piores que nem queria pensar. No fim das escadas, uma porta estava a vista à esquerda num corredor estreito, bloqueado por um balde de limpeza e um esfregão que deveriam ser apenas de enfeite, pois não haviam sinais de que alguém tentara os usar para limpar qualquer coisa por ali a semanas.

Não precisei olhar em volta para sentir que a plataforma estava deserta, mesmo assim não arriscaria fazer aquilo ali. Empurrei o balde para fora do caminho e entrei na salinha com ela. Uma sala minúscula que algum dia deve ter sido uma dispensa para materiais de limpeza e agora abrigava uma cadeira velha coberta por um forro fedendo a mofo e uma TV exibindo o que parecia ser um canal de jornal local.

? O que está fazendo? ? Kiara perguntou quando soltei suas adagas dos cintos rapidamente e a puxei para mim, não que fosse preciso, seu rosto estava a centímetros do meu peito, um movimento errado e esbarraríamos nas tranqueiras mal presas nas paredes. Ergui as mãos, traçando as marcas em suas costas até achar aquele ponto em que vi na mente de Eghan no dia em que ele a tocou em Ciartes, fazendo sua forma humana aparecer.

? Deixando as coisas mais fáceis. ? pressionei os dedos naquele ponto, sentindo o calor de sua pele aumentar e o branco daquelas mechas sedosas ser substituído pelo breu dos fios negros, Kiara soltou o que pareceu ser um suspiro aliviado, provavelmente pelo fato de que sem os sentidos mais apurados, o fedor do lugar não parecia querer desmanchar o interior de seu nariz. Com um estalo dos dedos, sua roupa também mudou, rapidamente tirei um palito metálico de meu bolso e separei uma pequena porção de seus cabelos nas laterais acima das orelhas, fazendo um pequeno coque na parte de trás. Meio preso, meio solto.

? Seres mágicos exceto os vampiros não são bem-vindos em Somnus. ? expliquei, amarrando meu próprio cabelo, deixando minhas orelhas agora arredondadas aparentes, dando sumiço também em minhas marcas de mago. ? Temos um convite de Detéria para seu aniversário e lá nós não precisaremos disfarçar, mas isso não é o mesmo que um passe livre para andar nas ruas livremente.

Em nenhum momento Kiara protestou e não disse nada quando mudei minhas próprias roupas com magia, fiz uma bolsa de couro aparecer para carregar suas armas escondidas em bolsos falsos e a entreguei a ela.

Saindo da salinha pouco iluminada de volta para o corredor principal, Kiara fez um som entre um muxoxo e um risinho histérico encarando suas novas roupas. Mesmo que a tivesse visto no interior da sala sem problemas, sua aparência ainda era como um soco no estômago para mim. Os cabelos negros enrolados nas pontas caiam ao redor da cintura fina, apertada dentro de um jeans escuro puído nos joelhos, descendo apertados por suas pernas até se esconder sob as botas altas, a blusa preta de mangas longas com o ombro direito caído e uma estampa idiota de um sorriso com presas... a mão metálica escondida por uma luva de couro cheia de pequenas ponteiras de aço.

? Eu me sinto idiota. ? Ela reclamou encarando a luva por tempo suficiente para quase tirar minha atenção de seu rosto corado. Com aquela pele rosada emoldurada por cabelos negros, o turquesa de seus olhos era ainda mais chamativo.

? Isso não vai dar certo. ? tracei o contorno de sua orelha, agora ostentando cinco pequenas argolas de ouro branco.

? Você está babando? ? Ela tentou esconder um sorriso.

? Temos que sair daqui logo. Esse lugar me incomoda. E tudo pode ser vigiado. Cuidado com o que fala perto dos trilhos. ? Peguei sua mão e a guiei pela plataforma cujas luzes falhadas entre os marcos de embarque lançavam longas sombras nas linhas férreas um metro abaixo de nós. Seguimos para a próxima plataforma, onde estava próximo de outra escadaria que levava a cidade imunda acima.

Nada naquele lugar me lembrava a Terra. Era sempre tudo frio, morto... triste. Era a sensação causada pela certeza de que o sol jamais nasceria no dia seguinte. Nem mesmo Pollo com suas três horas de luz solar era tão... sem vida.

Dois humanos finalmente apareceram, suas expressões eram apáticas, olhos cansados mirando nos smartphones em seus dedos nodosos, arrastando uma tela parada para cima, verificando notícias que não fariam a mínima diferença em suas existências, mas ofereciam um certo tipo de companhia distante. Tinha sorte por Lupine regular o uso de aparelhos assim em nossa casa.

? Como vai ser? ? Kiara estava me observando preocupada, seus olhos vagavam dos humanos para mim.

? Vamos até a capital, Lethan nos disse que poderíamos encontrá-lo a qualquer momento numa boate em Munvar, tenho o endereço.

? Você está bem? ? cautelosa, traçou os dedos livres em meu pescoço, as unhas pintadas de vinho lhe davam um ar diferente... e mesmo linda, queria poder ficar perto dela como era naturalmente. Aquela fachada que ainda nem havia lhe explicado como vestir já me incomodava.

? Estou. E você?

? Não sei... é tudo tão... sujo, barulhento, fedido. ? Ela enrugou o nariz. ? como eles sequer conseguem viver aqui?

? A maioria da população daqui, assim como a da Terra não fazem ideia de que outras criaturas tenham acesso ao seu mundo, não sabem dos portais, nem nada do tipo. ? Ela arqueou as sobrancelhas e assentiu, mordendo os lábios pensativa. Kiara se aproximou um pouco mais, enrolando os braços ao redor de meu pescoço, se inclinou nas pontas dos pés para beijar meu pescoço, lançando uma corrente elétrica por meu corpo.

? Quem caça as criaturas mágicas por aqui? ? sussurrou.

Quase não consegui disfarçar um sorriso. Ela se aproveita do contato casual para fazer uma das perguntas perigosas sem que possa parecer suspeita, embora os dois homens que mal notavam nossa presença não pareciam representar qualquer tipo de ameaça.

? Te conto isso depois, nosso trem vem aí! ? O som não muito distante das rodas metálicas correndo sobre os trilhos me deixou em alerta. A vibração do solo me incomodou um pouco, me fez lembrar dos surtos de Lupine quando saíamos para a cidade, ela tinha medo por nós o tempo todo, preocupada com tudo. Não apenas com as ameaças mágicas, como Fairin, mas principalmente que o mal daquele mundo pudesse nos tirar dela.

Um vento ergueu nossos cabelos enquanto a composição passava por nós, o som ensurdecedor dos freios fez Kiara se encolher mesmo que só um pouco, então ela olhou surpresa para as portas se abrindo e as luzes brancas mornas lá dentro. As luzes no metrô eram ultravioletas, assim como luzes em vários pontos, lojas e casas para humanos, são os únicos lugares no mundo que são seguros onde vampiros não entram.

Nos sentamos num dos bancos próximos à porta, o ar gelado dentro do vagão fez Kiara suspirar aliviada e apertar o braço ao meu redor. O vagão estava quase deserto exceto pelas duas figuras que entraram conosco, sentando-se o mais distantes possível. Um deles colocou fones de ouvido e nos lançou um rápido olhar seguido de um franzir das sobrancelhas. O outro mais distante, não parecia interessado o suficiente em nossa presença para desviar a atenção de seu aparelho.

? Seres mágicos não são bem-vindos..., mas humanos são? ? Ela questionou.

? Eles são... mantidos por perto. Mesmo que tenham regras rígidas sobre os horários que os humanos possam andar por aí. Os vampiros precisam deles para existir, sabe. ? Kiara franziu o cenho em compreensão e murmurou algo para si.

? Outras criaturas mágicas também podem alimentá-los. ? Ela rebateu.

? Podem, mas também são mais fortes que humanos, podem resistir, lutar e inclusive matá-los.

? Então os humanos são mantidos como gado para que eles porque são mais fracos.

Não foi bem uma pergunta. O som das rodas em movimento a fez se distrair por um momento. Luzes passavam rapidamente no túnel, ora ou outra aumentando quando outras estações se aproximavam de nós.

? Quem caça outros como nós aqui?

? A DeRu, uma organização de humanos, é semelhante a ACV, mas é para ser secreta. ? Não tinha como não rir da ironia, os humanos dali caçavam criaturas mágicas achando que faziam isso pela própria segurança, pois consideravam vampiros menos terríveis do que os outros, talvez não percebessem que eram tratados com o mínimo de decência por que esses precisavam de seu sangue para sobreviver.

? Isso soa ridículo. ? Kiara bufou e apoiou a cabeça em meu ombro. ? Então estamos disfarçados de lanche de alguém? ? Ela mexeu na estampa de sua blusa e franziu o cenho para a mesma em minha roupa. Estava fazendo força para ignorar a carreira de presas brancas pintadas em minha camiseta negra.

? Não exatamente. Meu contato é líder de um pequeno grupo, ele mantém humanos em sua equipe, mas eles não servem a esse propósito. Os homens e mulheres que o servem costumam ter tarefas em bairros exclusivos de humanos, onde os vampiros não podem chegar por causa das luzes ultravioleta. ? Expliquei baixo, tocando-lhe a orelha com os lábios. Kiara se mantinha focada mesmo com o toque embora tenha visto seus cílios tremerem um pouco e sua respiração se alterar. ? Ele nos instruiu a usar a sua marca para evitar que outras gangues tentem se aproximar.

? E quem é esse Lethan afinal?

? O filho mais novo de Detéria. ? Kiara virou os olhos para me encarar e mordeu os lábios.

? E ele vai trair o pai para nos deixar invadir o local onde guarda o pedaço do mapa. ? assenti.

? Certo.

? Não vai discutir, perguntar mais nada? ? quis saber.

? Ele deve ter um bom motivo para fazer isso. ? Ela deu de ombros e apoiou a cabeça em meu peito, piscava cada vez mais lentamente. Ela devia estar exausta, mas se recusava a dizer isso.

A viagem seguiu por quase duas horas enquanto instruía Kiara nos costumes do lugar, não que fosse muito difícil de aprender como as coisas funcionavam em Somnus, o mundo era uma bagunça cujas regras mais rigorosas tinham a ver com a proteção dos nativos bebedores de sangue, ou seja, desde que eles não fossem prejudicados, tudo era permitido.

Estava tarde o suficiente para que poucas pessoas entrassem no vagão durante todo o percurso e felizmente chegamos em menos tempo do que previra. Se não fosse crucial permitir a Kiara se adaptar ao ambiente antes de invadirmos as propriedades de Detéria, teria vindo quase em cima da hora. Uma semana era tempo demais para permanecer ali.

Saltamos do vagão na estação central de Munvar, se o movimento em Nethur deixara Kiara incomodada, aquele lugar parecia o inferno para ela. O dobro de luzes brilhava em cada andar dos imensos arranha-céus e prédios centrais. A avenida principal ostentava um movimento de veículos em alta velocidade, digno de filmes de corridas e... vampiros. Milhares deles enchiam as largas calçadas de concreto, filas e mais filas em portas de boates cujas batidas das músicas em seus interiores faziam o chão vibrar.

Casais não se importavam com quem os estava olhando, alguns simplesmente entravam em becos e faziam shows para quem quer que estivesse disposto a assistir. Me virei para observar o rosto de Kiara, ver como ela estava lidando com aquilo, mas ela parecia alheia a tudo e todos. Seus olhos estavam atentos a movimentos suspeitos, como os dos vampiros de longos sobretudos de couro e óculos escuros com as mãos para trás, armados, vigiando as entradas dos clubes e cassinos.

? Esses são de gangues diferentes, não são? ? Ela estava reparando nas estampas de suas roupas, o lince cinzento marcando os vampiros de Elder, um dos mais “jovens” de Detéria. Ele tinha o controle de uma grande área da cidade, em sua maioria os bairros com maior número de casas “noturnas” e pubs.

? Vamos encontrar Lethan a algumas quadras daqui. ? sussurrei, notando olhares muito interessados de alguns dos vampiros numa fila para uma das maiores casas. Na porta dessa, uma vampira de cabelos vermelhos e vestido justo brilhante de cor esmeralda, distribuía pulseiras de entrada VIP.

Kiara ergueu o rosto e endureceu sua expressão, com as mãos enfiadas nos bolsos laterais das calças, ela caminhou ao meu lado como se fosse a dona do lugar, atravessamos a avenida e mesmo com o barulho infernal que ainda a incomodava, Kiara mudou completamente, sua expressão corporal era de alguém que tinha vivido a vida inteira naquele inferno. Pouco ligava para o que os outros pensassem, ela simplesmente se tornou outra pessoa enquanto seguíamos para uma rua lateral com prédios mais antigos, construídos em tijolos antigos cobertos por uma espeça camada de sujeira.

O bairro um pouco menos movimentado se devia à uma divisa de território de gangues, o chamado território neutro, que de neutro não tinha nada. Manchas de sangue e fragmentos de balas de prata estavam por todos os lados na ruela que entramos. Os vampiros ali não tinham muito o que observar já que o movimento escasso não dava entretenimento o suficiente.

Alguns dos seguranças de Lethan já estavam de olho em nós ao nos verem saindo do beco, entrando na rua principal do bairro dominado por ele. Logo avistei nosso destino, a boate com um painel de luzes neon não tão chamativo quanto os outros que vimos anteriormente, a exibição de poder ali não estava no quão chamativo era o letreiro, mas sim no título considerado ostentoso do lugar. “Presa venenosa”.

? Que nome ridículo. ? Kiara murmurou. Se não estivesse tão incomodado com o local no qual estávamos prestes a entrar, teria rido e a ajudado no deboche.

? Ao contrário do que se pensa, não são todos os vampiros conseguem transmitir suas maldições. Apenas os alpha podem fazer isso, no caso, apenas quinze vampiros em todos os mundos tem essa habilidade.

? Os filhos de Detéria. ? Assenti, apertando seu braço um pouco mais forte conforme nos aproximávamos das portas duplas adornadas por trilhas de luzes sequenciais, elas acendiam uma por uma para formar o símbolo de Lethan.

Ao nos aproximarmos das portas, o segurança de pele escura e olhos violeta barrou nossa entrada. Ao esticar o braço diante de nós, a jaqueta de couro do sujeito rangeu e o mesmo símbolo da presa se fez visível em sua camisa, mas sua expressão indiferente não se alterou. Muitos dos vampiros e humanos que aguardavam para entrar no lugar nos olhavam curiosos.

? A senha, irmãos.

? Segundo sol. ? O vampiro ficou visivelmente incomodado, ele se encolheu e sem mais perguntas empurrou a porta e fez um gesto para que entrássemos.

? Meu senhor os aguarda no camarote.

Do lado de dentro, luzes roxas piscavam no ritmo das batidas frenéticas e ensurdecedoras da música eletrônica, uma fumaça colorida com aroma adocicado circulava nossos pés e seu cheiro causava um leve torpor... algo naquela fumaça fazia meu sangue pulsar e pior, atiçava os instintos ferais tão bem escondidos sob meu disfarce humano.

Tentei me distrair da sensação que aquilo causava e observei o ambiente. Pessoas dançando com quase nenhuma roupa, corpos brilhando contorciam-se em danças insinuantes na pista de dança, nos cantos perto dos bares, vampiros e humanos em sofás de couro vermelho entretinham-se nas curvas uns dos outros...

? Hasan. ? A voz de Kiara soou alta ao meu lado, ela apontou com o queixo para um lugar acima da pista de dança, onde uma sala se projetava por quase metade da área e detrás de uma parede de vidro vermelha, um vampiro olhava diretamente para nós com um sorriso no rosto e um copo na não.

? Tem uma escada no canto. ? até mesmo minha voz parecia embargada, o gosto daquela fumaça misturada ao odor de corpos suados, perfumes e sangue me enjoava. Kiara passou o braço ao redor de minha cintura, mesmo seu toque parecia estranhamente distante.

? Tem algo errado comigo. ? Murmurei irritado, tentando alertá-la.

? É fumaça de rosa-da-lua. ? Kiara respondeu calmamente guiando-me para a escada no canto esquerdo, algumas luzes de cores diferentes indicavam a subida e saídas de emergência sob ela também, a garota riu e mordeu os lábios ? Usamos incenso dessa flor no Vale da Lua para treinar os sentidos. Gwyndion queimava ramos inteiros e nos obrigava a lutar para que nossos pulmões absorvessem o máximo possível da fumaça, até que nos tornássemos imunes a ela.

? É venenosa? ? senti vergonha por nunca ter ouvido falar daquilo.

? Ela meio que te solta... te dá uma sensação Aérea, deixa seu corpo mais leve... sabe? Tira as inibições, te dá vontade de fazer coisas que seu senso de pudor não permitiria.

? Em outras palavras, é uma droga. ? Ela assentiu ? E não te afeta. ? outro aceno da cabeça, seus olhos pareciam ter cores diferentes sob aquelas luzes, mas ao saber do que que se tratava aquele gosto adocicado no fundo de minha garganta, entendia o motivo de querer arrastá-la até uma das paredes e me perder em seu corpo.

Kiara parou ao alcançar os primeiros degraus da escada, segurou meu rosto e o soprou, as luzes eram fortes o suficiente para disfarçar suas marcas de mago acesas, mas no instante que seu cheiro criou uma bruma fresca ao meu redor, meus pensamentos clarearam imediatamente.

? Não devia se arriscar assim. ? alertei baixo, sabia que os vampiros ali poderiam facilmente nos escutar mesmo sob as batidas descompassadas da música.

? Somos uma equipe, lembra? E se você fizer algo errado por estar alto por causa disso, eu vou fritar todo mundo com raios se sair alguma coisa do controle!

Kiara me deu um sorriso preguiçoso e roçou os lábios em meu pescoço. Alguns instantes depois entramos na sala privativa de Lethan Jansen, o caçula do rei vampiro. Dois guardas ainda estavam com ele na sala e seguravam armas apertadas em seus punhos trêmulos, Lethan os acalmou com um movimento do punho ao dispensá-los. Um sorriso apareceu em seu rosto ao nos olhar de cima a baixo.

? Bem-vindos a Somnus, amigos!


Kiara:


Haviam três tipos de infernos. Percebi.

O primeiro, era o destino das almas condenadas, os lagos de fogo num lugar abaixo da Terra.

O segundo era aquele em que ficávamos presos dentro de nós mesmos com nossas lembranças e demônios interiores, para sofrer e pagar pelos nossos erros com nossos próprios julgamentos intermináveis.

O terceiro era aquele mundo!

E o vampiro diante de nós apoiado na parede de vidro vermelho tinha a expressão no olhar de quem estava pronto para ver o inferno congelar. Lethan moveu os olhos cor de vinho por nós de cima a baixo.

? Não esperava que fizesse um trabalho tão bem feito para esconder suas aparências reais. ? Ele comentou, afastando-se da parede e indicando para que sentássemos nas cadeiras diante de uma longa mesa de madeira escura polida.

? Hasan Orieser, o filho dos sóis. ? Lethan testou o título e sorriu um pouco ? Imagino que não dirá um “que bom te ver ao vivo, amigo, estava ansioso por conhecê-lo” ? continuou ele com sarcasmo na voz, servindo doses de um licor cor azul em taças minúsculas e as estendendo em nossa direção.

? Sabe bem qual é meu pensamento do seu tipo. ? Hasan não alterou a voz, encarava o vampiro com olhar irredutível. Esse apenas estalou a língua e deu um longo gole acabando com o conteúdo do copo que já estava em suas mãos, em seguida pegou uma das taças e a aproximou dos lábios. Só então ele me encarou de verdade.

? Não vai apresentar sua amiguinha? ? Ele sentou-se na borda da mesa, perto demais da cadeira em que eu me sentara e inspirou profundamente, provocando um tremor quase imperceptível em Hasan. Os olhos vermelhos do vampiro cintilaram e seu sorriso aumentou um pouco. ? Malvarmo, não é? Temos algumas coisas em comum, senhorita.

? Kiara Olijahd. ? falei estendendo minha mão para ele. O vampiro a segurou perto demais do rosto e tocou os lábios suaves nos nós de meus dedos.

? É um prazer conhecê-la! Parece mais disposta a ter uma conversa civilizada, senhorita ou... senhora?

? Queremos saber sobre nossos planos. ? Hasan disparou, cortando a tentativa de Lethan puxar assuntos banais.

? Nada de conversa fiada, direto ao ponto então. ? Lethan estalou a língua, levantou-se da mesa apenas para sentar-se confortavelmente na cadeira de couro do outro lado da mesa, abriu uma gaveta e fez algo com a mão, em seguida, o som mecânico zumbindo arrastou pesadas cortinas de um material espeço o suficiente para cobrir aquela parede de vidro sem deixar sequer um fiapo de luminosidade entrar, até mesmo o som abafado da música lá embaixo foi completamente extinguido. Hasan o observava com cautela, duvidava que a fumaça alterada lá embaixo não o tivesse deixado ainda mais desconfiado do vampiro.

Lethan encarou a porta por um momento e então puxou uma espécie de dispositivo feito de metal e vidro que muito me lembrava os monitores que Aristes tinha em sua sala e os pequenos aparelhos que os homens mexiam dentro do metrô. O vampiro bateu de leve com o dedo sobre a tela escura, essa acendeu num azul vibrante, em seguida pequenos fios de luzes flutuaram sobre o objeto, mostrando o que parecia ser um daqueles imensos prédios lá fora, só que... era uma espécie de planta projetada.

? Essas são as plantas do Palácio Imperial. ? Lethan fez um movimento com os dedos e as luzes aumentaram, cobrindo toda a mesa, a estrutura inteira daquele prédio pode ser vista. ? O orgulho de Detéria, tem salões de festa, bares, quartos, piscinas, cassinos e até mesmo um museu com toda a história de nossa raça, desde que o primeiro veio do mundo humano. Tudo que consiga imaginar, tem ali.

? Então a segurança...

? Não é tão simples, mas também não é um bicho de sete cabeças! Monitoramento por câmeras, muitos seguranças em rondas nas áreas que guardam o tesouro, reconhecimento biométrico. ? Lethan listou enquanto eu franzia o cenho, não fazia ideia do que ele estava falando, mas Hasan assentia devagar. Ele dissera que toda a tecnologia de Somnus era semelhante à da Terra, então certamente as conhecia ? Mas não é nada de grandioso, nada que não possa ser facilmente burlado com bom especialista e quem seria melhor do que o alguém que ajudou a projetar o lugar? ? Ele deu um sorriso convencido, expandindo novamente os fios brilhantes, arrastando os dedos para mostrar algo no topo do prédio, uma sala que ocupa quase toda a cobertura. ? Ninguém se atreve a tentar invadir sua fortaleza. Detéria é poderoso demais, as medidas de segurança são apenas para as raras ocasiões que ele não está lá.

? E quando ele está? ? quis saber. Lethan franziu o cenho, mordendo um dedo com as presas, ele encarava a sala sem piscar.

? Detéria tem controle sobre tudo. Sua magia vê tudo, sente tudo...

? Não podemos simplesmente chegar lá e lhe pedir o fragmento?

Lethan riu.

Gargalhou até ficar rouco, então pousou as mãos sobre a mesa e seus olhos vermelhos se fixaram nos meus.

? Minha querida... se o que o filho dos sóis me disse for verdade, se o que ele tem lá é um pedaço de um mapa, entregue em suas mãos pela própria maga negra que dominou os mundos com magia... Ah, meu bem, aquele é sem dúvidas seu maior tesouro.

? Não entendo, o que ele pode fazer com um pedaço de mapa.

? Atrair quem quer que tenha coragem de tentar roubá-lo. ? O sorriso sumiu do rosto de Lethan e ao mesmo tempo, Hasan ficou tenso em sua cadeira, os olhos escuros fixos naquela sala desenhada por fios brilhantes. ? Ouvi rumores, meus irmãos mais velhos que tem o favoritismo de nosso querido pai, eles tiveram acesso ao que vocês buscam e pelo que ouvi, a rainha das sombras o instruiu a testar quem ousasse vir buscar aquele objeto, a pessoa deveria ser forte o bastante para enfrentá-lo sem medo, ou inteligente suficiente para tomar o fragmento... ou não voltaria para casa com o prêmio.

Me derreti sobre a cadeira.

Minha mãe entregou um fragmento do mapa a um vampiro sádico, tão velho quanto os mundos... e eu ainda deveria enfrentá-lo para obter o objeto. De soslaio, vi Hasan com seus olhos fechados e os punhos apertados.

Ela não tinha poupado esforços para me testar. Talvez porque... se eu não pudesse passar por um vampiro velho decrépito, mas poderoso, não conseguiria enfrentar um demônio de fogo mágico e proteger meu irmão.

Fares...

“Nós deixamos um escudo... e talvez uma arma, caso assim o queiram!”

Um escudo e uma arma.

Valia a pena. O risco tinha que valer.

? O fragmento está em sua sala pessoal, protegido por sua própria magia, certo? ? Lethan ainda me encarava quando assentiu. ? Então como o pegaríamos sem ter que confrontar seu pai adorável?

Ele riu e moveu outra vez a planta.

Hasan continuava em silêncio, seus olhos negros acompanhavam o movimento dos dedos de Lethan e quase podia ver o quanto ele estava se esforçando para conter a raiva. Hasan definitivamente ODIAVA vampiros.

? Em alguns dias, haverá uma festa para comemorar o aniversário de Detéria. Ninguém sabe ao certo a idade, mas ele comemora sempre com uma festa enorme em sua fortaleza. Toda a elite de Somnus é convidada... e alguns dos reis de outros mundos também, em especial, os de Amantia. Embora esses raramente apareçam, ele sempre os convida.

? Porquê?

? Quer tentar entender as motivações de um velho que devia ter virado cinzas a milênios? Talvez queira vingança pela morte de Marglan! Ele era o seu predileto, seu sucessor que foi preso por uma sacerdotisa em Amantia e só foi solto para não durar mais que duas décadas livre, se não me engano, ele foi morto pelo mago negro antes da guerra dos...

? Como podemos obter o fragmento. ? Hasan rosnou, parecia estar perdendo a paciência, suas mãos tremiam. Lethan entendeu aquilo como o encurtamento de nossa conversa, o vampiro pigarreou.

? Durante a festa, Detéria diminui pela metade os seguranças do prédio, só os mantém nas alas mais importantes, sabe, para ostentar seu poder, tentar dizer a todos que ainda é forte o suficiente para manter suas defesas sozinho.

? E é?

? É claro que sim, mas durante essa festa, ele permanece o tempo inteiro com os convidados. Sua sala fica vazia por mais de três horas com poucos seguranças naquela área. Ele geralmente usa seu aniversário como um encontro anual com seus servos que vem de outros mundos.

? Então a ideia é entrar na sala enquanto ele não está olhando? Simples assim? ? questionei desconfiada.

? Não tão simples. Tem alarmes por todo prédio, pelas escadas, sensores de movimento e as câmeras que vigiam toda a área! Como eu ajudei a projetar o sistema de segurança dele, consigo desativar partes que não chamariam atenção. As câmeras... por exemplo, não podem ser desligadas sem que os alarmes soem, mas os sensores de movimento sim.

? É arriscado demais, os seguranças que monitoram as câmeras poderão ver que estaremos subindo. ? Hasan estava mais contido ao argumentar. Inquieto, ele movia um pequeno pingente de cristal azul nos dedos. Nem queria pensar no que era o objeto.

? Equipamentos eletrônicos não são imunes a magia, sabiam? Não posso oferecer um milagre! ? Lethan debochou, atirando-se novamente na cadeira. ? Acredito que possam usar magia para travar as câmeras.

? Está me dizendo que uma fortaleza como aquela não vai ter nenhum sensor que detecta magia? ? Hasan deu um sorriso nada amigável, inclinando-se mais para frente de forma ameaçadora.

? Magia é proibida aqui, qualquer criatura mágica é caçada e exterminada. Detéria não se precaveu contra o tipo de vocês, pois ele não deixa que cheguem perto o suficiente, nunca. ? Lethan sustentou o olhar de Hasan por um longo instante antes que eu fizesse a pergunta que realmente importava:

? Porque quer nos ajudar a tirar algo de seu pai? Seria um ato de traição, porque se arriscaria assim? ? Lethan me encarou por um longo instante antes de responder:

? Não posso simplesmente ser um filho rebelde que está de saco cheio de ser menosprezado por ele por ser o mais novo e querer lhe dar uma lição? ? seu sorriso foi curto, incômodo ? Se alguém lhe tomar algo debaixo de seu nariz, Detéria será exposto, os outros saberão que ele não é invulnerável! Logo descobrirão que ele pode sim ser derrotado, que ele tem falhas como qualquer um. ? Lethan inspirou profundamente, observando aquelas plantas com os olhos vidrados: ? Todo império tem uma ascensão, um declínio e finalmente sua queda. E eu quero que ele saiba que o seu império vai ruir.


Capítulo 12


Lethan nos levava num veículo longo e negro que roncava suavemente até o outro lado da cidade. Os vidros com aspecto esfumaçado faziam muito para diminuir o brilho artificial irritante daquele lugar. A cidade era barulhenta, fedorenta a dejetos e maresia e tudo ali, incluindo as pessoas, me davam dor de cabeça.

Hasan ao meu lado mantinha os braços apertados ao meu redor e não conseguia desviar os olhos do vampiro sentado do outro lado, no banco de frente para nós. Lethan tentava não parecer desconfortável sob o olhar dele, mas quando seus olhos se detinham em mim, o calor dentro do carro aumentava e o vampiro desviava o olhar.

O carro parou diante de um prédio com a fachada feita em pedras negras rajadas de dourado, onde duas portas de vidro também escuro estavam abertas e uma mulher estonteante nos aguardava com expressão tão fechada quanto tempestade de neve. Ela nos olhou de cima a baixo com os olhos cor de vinho, apertou os lábios cheios pintados de negro e soltou um suspiro pesado lançando um olhar irritado a Lethan.

? Não deveria se expor tanto assim com humanos, Leth. ? Ela ralhou, com um movimento do pulso nos permitiu segui-la pelo saguão do prédio. O lugar não tinha nada de simples, um imenso lustre de cristal e ouro pendia no meio do salão, sofás de couro escuro estavam dispostos sob janelas com aquele mesmo padrão de vidro negro e nossos passos eram abafados por um longo tapete bordado com pequenos losangos dourados e prateados, ele seguia até portas metálicas de um chumbo opaco, que se abriram com um som suave de sinos ao nos aproximarmos.

Por algum motivo, ao entrarmos naquele espaço pequeno o suficiente para dar apenas alguns passos antes de tocar nos vampiros, Hasan deixou que nossas aparências humanas desaparecessem e sua pele brilhou em dourado, fazendo a vampira chiar e colar o corpo nos espelhos que ocupavam toda a parede de trás do cômodo. Lethan soltou o que pareceu um risinho abafado e apertou um dos botões sequenciais na parede, a sala então começou a se mover. Um elevador, lembrei, havia um semelhante na torre de Aristes, mas aquele era todo de vidro translúcido.

? Se quer saber minha opinião, prefiro você assim, fica encantadora. ? disse Lethan num sussurro, inclinando-se para perto de mim.

? Não ligo para o que você prefere, não pedi sua opinião. ? A vampira atrás de nós não fez nada para esconder a gargalhada debochada, Lethan por sua vez não pareceu tão irritado, ele deu um meio sorriso sem graça e ficou em silêncio enquanto subíamos até o último andar do prédio.

Lethan nos guiou até uma cobertura, o elevador se abria para uma sala imensa, com paredes de vidro com vista para um mar escuro do outro a algumas quadras do prédio.

? A festa acontecerá em cinco dias. ? Lethan disse, caminhando descalço sobre o carpete violeta que contrastava com a mobília branca, prata e cinza dali. Não haviam divisões naquele cômodo, percebi, a minha esquerda as paredes de vidro levavam a uma sacada com piscina, diante de nós estava uma área com três grandes sofás brancos e uma mesinha de centro de vidro e em frente a eles uma tela quase do tamanho de uma parede tinha uma luzinha vermelha piscando no canto. A direita, uma cozinha aberta cheia de balcões de pedra branca em “L” e uma geladeira em aço.

Hasan ainda estudava os dois vampiros, a mulher havia ficado na porta e não se movera um centímetro desde que pisamos ali. Lethan continuou andando pelo local, falando sobre as instalações, eu mal prestava atenção, minha vontade era de voltar para casa e vir quando faltasse algumas horas para a tal festa.

? ... no fim do corredor, tem um banheiro e dois quartos, podem ficar a vontade. ? Ele pigarreou ? Sei que pode parecer meio desconfortável, mas se precisarem de mim, avisem a Meredith, ela me contactará na boate. A casa dela fica dois andares abaixo desse.

? Você mora lá? ? perguntei apenas para não deixar aquele clima pesado dominar. Lethan deu de ombros.

? Serão meus últimos dias em posse da boate. Quero aproveitar e me entreter para desligar os sistemas de Detéria o mais rápido possível quando o dia chegar. Espero que saibam como entrar e sair da sala dele rápido o suficiente também. Não quero ser pego. ? Lethan acenou com a cabeça antes de sair do apartamento.

A mulher continuava ali, nos observando.

? Precisam de alguma coisa?

? Não, obrigado. ? Hasan murmurou duramente. Foram suas primeiras palavras desde que saímos da boate. A mulher deixou o lugar batendo de leve a porta atrás de si, só depois de alguns minutos, Hasan se permitiu relaxar e sentou-se no sofá, apoiando a cabeça nas mãos exalando forte.

? Achei que não fosse aguentar aquilo. ? Ele admitiu ? Minha vontade quando ele falou de Marglan... ? sua voz saiu num grunhido baixo, irritado, mas contido. ? Eu quem deveria tê-lo matado!

Caminhei até ele e devagar me sentei ao seu lado, peguei suas mãos e as apertei com as minhas, não sabia o que fazer para afastar aquela angústia renascida em seu olhar.

? Não tenho nada para dizer que te faça sentir melhor, sabe? Mas... se você resolver transformar Detéria num espetinho, eu não vou te julgar, e se precisar fazer um relatório sobre isso, ficarei feliz em dizer que ele acidentalmente pisou numa vela gigante. ? Hasan meneou a cabeça negativamente, havia um pequeno sorriso em seu rosto.

? Vamos planejar tudo o que fazer lá. Fazer os planos e repassá-los e por fim eu vou treinar você... vamos aproveitar os dias aqui para treinar o controle da magia.

Assenti.

? Já tem um plano em mente? Temos que invadir a sala de Detéria, pegar o fragmento e a carta e sair, então...

? Vou te ensinar a projetar um Summon. ? Hasan sorriu beijando minhas mãos, fazendo calor brotar em meu corpo como uma corrente elétrica ? mas antes você vai dormir um pouco.

Tinha até me esquecido que estava morrendo de sono. Acabei me lembrando do resgate, da menina salamandra na ACV e do olhar assustado de Fares para mim, torcia que Lórien tivesse lhe dito que estava tudo bem, que lhe contasse sobre os planos de Somnus e quando voltasse para casa, Fares estaria mais calmo, embora lá não fosse passar mais de um dia.

Aquelas lembranças pesaram em meu corpo, fazendo meus sentidos ficarem pesados assim como meus olhos e naquele momento eu só queria esquecer tudo o que aconteceu nas últimas horas. Só queria tomar um banho e dormir por horas. Hasan me ajudou a achar o banheiro nada ostentoso daquele apartamento, cuja banheira me lembrava vagamente uma das piscinas dos quartos do Quinto Céu. A água morna fez o restante do serviço para me desligar de tudo e antes que percebesse, estava sendo levada para uma cama macia e aconchegante num quarto de paredes de vidro escuro, onde uma imensa lua azul iluminava o ambiente.

Por alguma razão, a cabana do Vale da Lua inundou meus últimos pensamentos, então adormeci antes mesmo de qualquer outro se formar em minha mente.


?????????????????


A passagem do tempo em Somnus era horrível e isso era a melhor coisa que tinha para dizer sobre as três luas que se revezavam no céu escuro daquele mundo tomado pela noite. A sensação de dormir e acordar no escuro me dava arrepios e não tinha nada de agradável na ausência de calor. Cinco dias ali e eu me sentia doente, enjoada pelo ar pesado, cansada pelo descontrole de dia/noite... mas nada era pior do que o pânico que começava a me tomar conforme tentava desastrosamente treinar com Hasan e destruía todos os equipamentos que Lethan trazia para que eu tentasse desativá-los.

Essa parte teria que ser na sorte.

Por acaso, tinha conseguido dominar a arte de criar um summon e pelo menos isso estava garantido.

O vampiro ficou bastante feliz em suas poucas visitas ao perceber que ainda não havíamos destruído sua casa com magia alguma, pelo que dissera, os vidros negros impediam que nos vissem lá de fora, mas não eram a prova de um malvarmo que resolvesse congelar e estilhaçar o prédio inteiro.

O sábado por uma dádiva do destino chegou rápido e Meredith apareceu pouco após o café “da tarde” com roupas que encomendou para nós, pois segundo Lethan, ele precisava incorporar dispositivos indetectáveis nas roupas para que pudesse nos monitorar lá dentro. Hasan não parecia nada feliz olhando o embrulho de cetim que assobiava conforme a vampira andava pelo aposento carregando os embrulhos e enfiou um dos braços dele antes de se virar para mim e morder os lábios.

? Você é baixinha, vou torcer para ter acertado no comprimento.

Revirei os olhos e peguei o embrulho de suas mãos lhe mostrando a língua, Hasan murmurou algo antes de ir até o quarto menor no fim do corredor e se trancar lá, pelo visto ele sabia que eu me viraria bem com Meredith, caso ela quisesse me atacar de repente. A vampira me seguiu para o outro quarto e fiquei tensa ao perceber que ela não saiu quando comecei a tirar a roupa para me arrumar.

? Não vou te morder! ? Ela riu. ? Só quero ajudar a ajustar a roupa.

? Eu não estava preocupada com isso. ? ralhei tirando a roupa de costas para ela, estendendo a mão para que me entregasse o vestido. Não podia dizer que não gostava da cor, o vermelho vibrante saltava aos olhos e com certeza chamaria atenção demais já que o objetivo era sermos discretos, a seda vermelha era suave ao toque e o leve brilho do tecido disfarçava o pequeno bordado de pedras na única alça em seu ombro esquerdo, certamente eram aquelas pedrinhas o dispositivo que Lethan mencionara.

Meredith me ajudou a entrar na peça, ela era apertada, marcava cada curva de meu corpo e as longas fendas nas laterais do vestido, chamava atenção demais.

? Não podia ser um pretinho básico? ? choraminguei ao me ver no espelho. Era realmente lindo, mas desnecessariamente chamativo.

? Acredite, é um modelo bem simples, a classe alta de Somnus costuma se vestir como para um desfile. ? Ela terminou de fechar a carreira de botões de pérolas nas costas e suspirou, escorregando as mãos por meu quadril, fazendo um arrepio percorrer minha espinha. Seus dedos então começaram a trabalhar em meu cabelo, puxões rápidos e delicados conforme trançava a lateral e a puxava para fazer um coque preso na parte solta do cabelo.

? Não ajuda muito em nossa missão. ? rebati quando consegui controlar meus batimentos.

? Exatamente, não é um traje de combate, nem uma roupa simples e confortável suficiente para uma pessoa que está lá com intenção de roubar algo. É uma roupa sofisticada que não vai te ajudar tanto a se mexer como um predador, mas é formal e festiva o bastante para não desconfiarem que você tem segundas intenções.

? Vendo por esse lado... ? Ela terminou de arrumar meu cabelo e tirou uma caixa do fundo do pacote em que o vestido veio, tirou um sapato de salto de verniz negro e brilhante, maravilhoso!

? Sabe usar saltos, não sabe?

? É claro que sim! ? Graças a tia Nyumun, eu vivia andando pela casa com sua coleção de sapatos da Terra. Calcei os sapatos e me derreti ao perceber o quanto eram macios, pelo menos se precisasse subir alguns lances de escadas correndo, meus dedinhos sobreviveriam.

? Fique de olhos bem abertos. Lethan tem uma mente diferente, ele calcula tudo, pensa em tudo, mas ele raramente leva em consideração o fator emocional das pessoas. Só posso dizer que faça o que fizer, não deixe que percebam que está nervosa. ? Meredith instruiu baixo, fechando o colar com minhas armas em meu pescoço.

? Entendi.

? Não perca seu amigo de vista também, os outros vampiros lá dentro não gostam muito da sua raça... ficar por perto de um salamandra é um bom jeito de evitar problemas. ? Assenti outra vez, não sabia o motivo de confiar tanto nela, mas a vampira me passava a sensação de ser uma pessoa boa. Ela finalizou a produção com uma linha de delineador sobre meus olhos e um batom tão vermelho quanto o vestido.

Ela girou o dedo para que eu me virasse e deu um passo para trás afim de observar melhor.

? Está perfeita. ? senti meu rosto esquentar, ela passou os dedos pelos longos fios negros de seus cabelos e sorriu exibindo os caninos longos para mim. ? uma pena já ser marcada. ? Ela fez um biquinho e indicou a porta do quarto, não fazia ideia do que o “marcada” significava, mas pelo jeito que me olhou quando passei por ela, agradeci por aquilo.

Na sala, Hasan já nos esperava arrumado de braços cruzados e expressão séria. Ele estava sempre bem arrumado, não havia um dia que pudesse dizer que Hasan não estava elegante ou bonito, mas... que raios! Nunca o havia visto todo de preto. Podia agradecer a Meredith por matar minha curiosidade quanto a isso! Cada peça do terno que vestia era de um preto profundo, o único adorno de outro tom era um grampo dourado em sua gravata de seda negra. Os cabelos vermelhos trançados para o lado me lembravam uma cascata de fogo sobre carvão e sua pele aparente parecia brilhar em dourado, como se por pouco mantivesse o controle de sua luz.

Seus olhos dourados estavam fixos em mim.

? Achei que a ideia era não chamar atenção. ? meu rosto pegou fogo.

? Não vou explicar tudo de novo! ? Meredith ralhou colocando uma bolsa em minhas mãos e nos empurrou em direção as portas do elevador e apertou o botão para descermos.

? Lethan não vai? ? perguntei ao entrarmos no carro e notar que o vampiro não estava.

? Ele vai controlar o sistema de seu escritório, Lethan não é bem-vindo no palácio Imperial. Detéria o expulsou a alguns anos. ? um frio percorreu minha espinha novamente e o olhar de Hasan para mim indicava que ele também desconfiava da mesma coisa.

? Não há garantias que ele poderá desligar o sistema então. ? falei.

? Lethan é o melhor no que faz, ele está decodificando o sistema desde que vocês chegaram. Assim que eu lhe der o aviso que estamos dentro do prédio o sistema será desativado.

? Vocês são gêmeos? ? Meredith arqueou as sobrancelhas, surpresa, meneou a cabeça negativamente.

? Eu sou dez anos mais velha. ? Um pequeno sorriso apareceu em seu rosto ? Como sabia que somos irmãos?

? Os cheiros de vocês... ? comentei um pouco sem graça, ela mordeu os lábios e assentiu devagar.

? Falta muito? ? Hasan questionou, ele mexia na pulseira com suas espadas de vitrino amarelado encarando a cidade que passava voando pelos vidros escuros do carro, eu tentava me distrair do que estava por vir, mas ele parecia... ansioso. Meredith também lia aquilo nele, a vampira, no entanto, não se incomodava. Talvez ela esperasse que ele perdesse a linha com Detéria.

Não sabia qual era a história dela com seu pai, e nas poucas horas que conversamos entre os dias que estivemos com eles, não chegara a conhecer direito suas motivações para traí-lo, mas nenhum dos dois estava disposto a perdoar o pai por sabe-se deuses lá o que ele lhes fizera.

? Estamos bem perto agora. ? A vampira perdeu completamente a suavidade da voz, sua expressão se fechou, até mesmo sua aura mudou.

O carro entrou numa quadra com uma larga calçada cheia de ladrilhos que me lembravam um jogo de xadrez preto e vermelho. Um prédio tão alto que não podia ver o topo de dentro do veículo tomou conta de minha visão. Suas paredes eram de pedra negra rajadas de dourado e a cada metro luminárias de cristal iluminavam a calçada ao seu redor. O carro foi diminuindo até entrar numa longa fila de veículos e seguir lentamente para uma área onde um tapete vermelho estendido, recebia um grande número de vampiros.

? Devo-lhes desejar boa sorte agora. ? Meredith informou, seu corpo começou a distorcer e perder a cor, como se estivesse começando a desfazer-se, a vampira foi desaparecendo.

? Não é bem-vinda também, não é? ? sabia que não precisava de uma resposta, se nos vissem junto com uma filha que Detéria não aceitava, poderíamos ter problemas.

? Esperem alguns minutos após o primeiro brinde para colocarem seus planos em ação. Irei encontrar meu irmão e acompanharei seus passos de lá. ? Ela sorriu antes de seu corpo desaparecer totalmente. Sabia que ainda estava ali, mas seu cheiro e sua forma haviam desaparecido.

Quando o carro finalmente parou com a porta alinhada com aquele tapete vermelho, senti o sangue fugir de meu rosto e fui tomada por meus instintos, queria fugir, queria correr dali, mas... tinha chegado longe demais para me acovardar agora. Um homem se apressou até o carro para abrir a porta, Hasan estava pronto para sair, mas antes disso, ele segurou meu rosto entre as mãos, deslizou o polegar por minha bochecha e me fez encará-lo:

? Não tem porque ter medo, eu não vou sair do seu lado. ? Suas palavras fizeram o gelo em meu interior se derreter, ele se inclinou para frente e me deu um beijo tão leve na testa que mal passou de um roçar dos lábios, mas foi o suficiente para mim. Eu não enfrentaria nada sozinha.

O homem abriu a porta, e relutante, se afastou um passo quando Hasan saiu e estendeu o braço para mim. Sua pele emitia uma suave luz alaranjada e dourada, ele era a personificação do sol, a luz que nunca brilhou naquele mundo de escuridão e todos pelos quais passamos, silenciaram suas conversas e se afastaram um passo para ficar longe dele.

Hasan era minha luz, mas a destruição deles.


Hasan:


Eu queria deixar aquela luz em mim se expandir.

Queria explodir e levar tudo as cinzas só por prazer, por desprezo. Mas se o fizesse, esse não seria meu verdadeiro eu. O coração em meu peito pulava descompassado a cada metro para dentro daquele lugar infestado de vampiros. As paredes de ébano adornadas em dourado eram apenas um disfarce luxuoso para um antro que abrigava um dos mais antigos demônios dos Doze Mundos.

Por instinto seguia o tapete vermelho para dentro daquele lugar. Observava os luxuosos lustres de jaspes no teto de obsidiana, nos arabescos das imensas colunas de pedra que sustentavam o salão, podia ver as pequenas câmeras escondidas, vigiando toda a movimentação no local. Vampiros em suas roupas mais sofisticadas desfilavam pelo salão, olhando diretamente para nós.

Mal sabiam que era um modo de terem a certeza de nossa presença... para que ninguém desconfiasse quando nossos Summons invadissem a sala do líder daquele lugar. Kiara manteve o braço firme ao redor do meu, ela sustentava o olhar de qualquer um que ousasse encará-la por tempo demais, e eram muitos. Podia sentir o ar vibrando ao nosso redor com o peso da atenção daquelas criaturas.

Maldita vampira com aquelas roupas!

Só de olhar de relance para Kiara senti meu pulso acelerar. Aquele vestido marcava cada traço de seu corpo até mesmo a curva graciosa dos seios e as covinhas em suas costas. Ninguém além dela vestia aquela cor, o vermelho era usado apenas por aqueles que não temiam o poder dos vampiros e Meredith sabia disso mais do que ninguém, ela certamente vestira Kiara assim como uma afronta, uma provocação a eles.

Uma melodia suave começou a ser tocada por um grupo de músicos num palco ao fundo do salão. Mesmo com o som agradável dos instrumentos preenchendo aquele espaço pesado de melodia e calor, o murmúrio dos vampiros ainda podia ser ouvido. Fofocas, palavras venenosas destiladas em forma de elogios e ameaças sutis no que pareciam ser conversas banais. Uma corte de serpentes venenosas prontas para atacar umas às outras ao menor sinal de fraqueza e nós estávamos no meio daquilo.

O único ponto de luz real naquele espaço de obscuridade era a garota de pé ao meu lado observando cada parte do lugar, avaliando cada centímetro, cada janela ou rota para o caso de precisarmos sair às pressas; No início do salão, entre duas escadarias curvas construídas acopladas as paredes de forma a abraçar as colunas do lugar, um tablado acomodava os tronos de Detéria e seus filhos mais chegados. Cinco tronos de veludo cor de vinho diante de cortinas de seda negra aguardavam os anfitriões daquela festa.

Para mim aquilo parecia um palco de onde o vampiro-mor observaria seus peões perfeitamente controlados por anos de crueldade disfarçada de controle mantido com rigor, mas que seus súditos eram obrigados a dar seus tesouros mais preciosos como prova de lealdade.

? Onde ele está? ? Kiara perguntou baixinho, erguendo-se sutilmente nas pontas dos pés para olhar.

? Um vampiro velho, cheio de pompas... vai chegar quando achar que é hora de dar um show. ? Sussurrei de forma que só ela escutasse, não queria arrumar problemas e colocar todo o plano por água abaixo.

? Você está com cara de que vai morder alguém, Hasan, relaxe.

Kiara me deu um breve sorriso e então pegou duas taças de champanhe da bandeja oferecida por um jovem humano. Ele olhava para os próprios pés ao se aproximar de nós e engoliu em seco ao ouvir Kiara se dirigir a ele agradecendo-o.

Apenas humanos serviam vampiros, percebi. Não haviam serviçais da raça deles, dos seres “superiores” naquele salão.

? Espero que nosso anfitrião apareça logo! Estou doida pra ir embora. ? Kiara resmungou estendendo uma das taças para mim.

? Sabe que eu não bebo.

? Mas eu sim e é feio eu ficar aqui com duas taças na mão. ? Ela riu, tentando parecer mais tranquila, à vontade no meio deles para não chamar tanta atenção.

E como se fosse invocado pelas palavras anteriores de Kiara, o clima ali mudou, as luzes tremeluziram e o silêncio absoluto tomou conta do lugar enquanto os vampiros se calavam e reverenciavam Detéria, o rei dos vampiros.

Ele entrou no salão acompanhado de seus quatro filhos mais velhos, Agdan, Iphya, Erard e Nithard. Os cinco adentraram o salão como se flutuassem, seus pés mal tocavam o chão enquanto caminhavam com sua graça sombria e silenciosa, se dirigiam sem se importar em reconhecer a presença daqueles outros ali.

Os cinco sentaram-se em seus tronos e Detéria acenou para todos com um sorriso viperino crescente no rosto, segurou uma taça cheia de um líquido escuro dentro que não precisava ser muito esperto para saber do que se tratava, então disse:

? Agradeço a todos os meus convidados por mais um ano vindo me prestigiar, sei que muitos tinham compromissos... inadiáveis ? um riso sem vida escapou de sua boca, a voz profunda e impiedosa ? e a grande maioria preferia estar em outro lugar agora, mas vieram mesmo assim por respeito a mim. Espero que a festa siga do agrado de todos vocês! ? Ele olhou diretamente para nós ao erguer sua taça num brinde.

Os convidados ergueram suas próprias taças, lançando palavras como “felicidades” ou “longa vida” a ele, talvez ninguém ali percebesse que pouco mais de trinta mil anos era um número grande demais e que desejar uma existência maior que essa era talvez uma maldição.

? Não gostei muito disso. ? Kiara ergueu a própria taça ao mesmo tempo que forçava um sorriso preguiçoso no rosto.

? Acho que não era pra gostar mesmo. ? ciciei encarando o vampiro mor sentado em seu trono. Ele tinha a aparência de um homem por volta dos seus cinquenta anos. Os cabelos curtos perfeitamente penteados para trás eram escuros com alguns fios grisalhos, barba feita e olhos vinho, o nariz longo e reto e lábios finos eram exatamente iguais aos de seu primogênito morto a pedido de Nikella.

? Nada discreto, não é? ? Kiara se referia ao terno refinado do vampiro, sob ele um colete de veludo negro bordado em ouro ostentava uma corrente de ouro com um relógio de mão cujo pino era um rubi de sangue do tamanho de seu polegar.

? Velhos gostam de aparecer. ? resmunguei, trocando nossas taças. Kiara virou o conteúdo num único gole. ? Isso não é fraco, sabia?

? Pra alguém acostumado a disputar vinho de pluméria com bruxos? ? Kiara deu um risinho e moveu os dedos metálicos dispensando meu comentário.

Ela então deu as costas ao tablado e se voltou para a mesa de comidas e seguiu até uma delas cujos pratos oferecidos não eram crus, pegou uma tortinha de queijo e a comeu, em seguida pegou outra taça de champanhe e a virou também.

? O que está fazendo? ? questionei baixo, olhando-a incrédulo.

? Arrumando uma desculpa. ? sussurrou e estendeu a mão para um pequeno doce que parecia ser um pudim com amoras silvestres. ? Eu nem fazia ideia que vampiros comiam comida comum.

? Não comem. ? ela ergueu as sobrancelhas ? isso é só uma demonstração de poder. Eles fazem seus servos trabalharem com fome e deixam comida a vista, assim, se alguém deslizar e comer algo ou deixar algo cair... ele vira o prato principal. São os joguinhos deles.

Com horror, Kiara virou-se para um menino humano que não devia ter mais que dezessete anos, e mantinha a ordem na mesa de bebidas. Ele era magro e sua expressão torturada estava fixa no doce nas mãos dela.

? Isso é...

? Sim.

? E não podemos fazer nada?

Neguei com um único movimento. Pensar naquilo me irritava também, eu QUERIA fazer algo para ajudar, mas não podia.

? Hasan...

? O acordo dos Doze nos colocaria em guerra se eu chegasse aqui e simplesmente mudasse suas leis porque não gosto delas. ? Kiara estava prestes a discutir, porém fechou os olhos e meneou a cabeça negativamente, pegou mais uma taça de champanhe e bebeu, mas também sujou os dedos com o recheio vermelho pegajoso do doce. Seu olhar enojado para a calda em seus dedos dizia mais do que precisava para iniciarmos o plano.

? Preciso ir ao banheiro. ? ela declarou um pouco mais alto, queria ser escutada por vampiros mais próximos, que sem um pingo de discrição, pareciam atentos à nossa conversa e sorriam exibindo os caninos para nós.

Ficando em alerta, percebi o real significado de suas palavras.

? Vai sozinha? ? sussurrei.

? Acho mais seguro apenas um de nós circulando por aí, posso muito bem dizer que estava bêbada e me perdi no caminho para o banheiro caso encontre algum problema. ? Ela apenas tocou meu braço e com um último olhar por cima do ombro, atravessou o pequeno corredor com cortinas de veludo que levava ao saguão e desapareceu de minhas vistas.

Fiz uma prece silenciosa a qualquer deus que pudesse nos ouvir naquele mundo sombrio e pedi que ela ficasse bem.


?????????????????


Kiara:


Ao deixar o banheiro deserto para trás coberta por sombras, segui para uma porta que marquei quando entrei no prédio mais cedo, a mesma estava nas plantas de Lethan que estudamos durante a semana, escadas de emergência ao lado dos elevadores. O melhor jeito de chegar à cobertura escondida por magia e sem correr o risco de esbarrar em alguém.

Cinquenta e sete lances de escada correndo.

Agradeci por ter ficado naquela cidade alguns dias para me acostumar com o ar pesado dali, ou jamais conseguiria chegar ali em cima sem que meus pulmões tentassem deixar o corpo para trás.

Abri as portas duplas de madeira no fim das escadas e dei de cara com um longo corredor com piso forrado por um carpete cinza escuro no que me deu a possibilidade de não precisar abandonar meus sapatos conforme avançava por ele em silêncio, atenta as outras entradas e as grandes janelas de vidro escuro revelando aquela cidade luminosa e barulhenta lá embaixo. Estávamos tão alto que não podia sequer ouvir os sons incômodos que quase me fizeram surtar irritada alguns dias atrás.

A lua gigante prateada estava baixando no céu, logo as outras duas luas menores ocupariam seu lugar... mundo da noite eterna. Esperava depois disso nunca mais ter que pisar ali.

Segui em silêncioaté a última porta daquele corredor forçando-me a lembrar do esquema das plantas, devia achar uma escada logo atrás delas. Essa escada levaria à cobertura, a verdadeira fortaleza do vampiro mais velho do que os mundos criados por Ayrana. Abri a porta com facilidade, enviando uma rajada de gelo pela fechadura e estilhaçando-a sem problemas agradecida por Lethan ter conseguido desligar os sensores de movimento. Respirei fundo, tomando uma dose de coragem. Hasan havia ficado no salão onde acontecia a festa, a companhia do Summon que conjurei no banheiro deveria evitar suspeitas, já que muitos estavam de olho em nós.

Com um último olhar para trás e o coração disparado, subi as escadarias escuras até um arco que levava a outro longo corredor, esse com carpete negro e paredes vermelhas aveludadas, com apenas algumas poucas velas presas em candelabros de ouro ao longo do mesmo. Nenhuma outra porta a não ser uma imensa redonda feita de um metal dourado no meio do corredor. Segui até ela com o pingente das espadas apertado em meus dedos, só precisava ser rápida! Entrar, abrir o cofre e pegar o cilindro de vitrino com o fragmento do mapa e a carta. Parecia fácil... seria se não estivéssemos numa fortaleza de vampiros, num mundo cheio deles, num prédio tão alto que mal podia ver o chão lá fora.

Porém, o que me incomodava no momento era a ausência de qualquer segurança ali. Nem mesmo haviam câmeras semelhantes às que, por sorte, bloqueei uma por uma com sombras assim que entrei nos corredores lá embaixo.

Meu estômago embrulhava, e não era pela expectativa de encontrar o quarto pedaço do mapa e logo após restarem apenas oito.

Me aproximei sorrateiramente, as portas douradas tinham uma impressão cuja sensação era tão familiar, que eu deveria conhecer... mas não me recordava no momento. Ao tocar as barras da trava, tive uma leve sensação de dormência nas mãos. Detéria era um monarca vampiro, seu poder era tão grande que certamente não precisava de guardas para manter suas posses seguras assim como Lethan dissera. Poderoso demais para intimidar as pessoas, fazê-las desistir de ir contra ele antes mesmo que tentassem.

Pensar nisso fez algo frio escorrer por minha coluna, mas eu não podia desistir ali.

Não seria covarde.

Forcei as portas para saber como abri-las e para minha surpresa e pavor, elas estavam abertas.

Ao entrar na sala que tinha a mesma decoração sinistra do corredor anterior, a sensação que escorria por minhas costas tornou-se gelo. Atrás de uma grande mesa envernizada de madeira, sobre uma poltrona de veludo vinho e de costas para uma parede inteira de vidro escuro, iluminado pela fraca luz da lua que mal passava por cortinas no mesmo tom da cadeira, Detéria me olhava com os olhos vermelhos brilhando e um sorriso no rosto.

Impossível! Ele não teria saído de lá sem que Hasan o visse e me avisasse!

? Detéria... ? sussurrei o nome, dando um passo para trás e apertando as espadas nas mãos. Porém ele não mudou.

O vampiro apenas sorriu com as longas presas a mostra, escondendo a verdadeira forma sob o rosto bonito com traços leves de idade, cabelos perfeitamente arrumados e barba feita. Ele se levantou lentamente de sua cadeira, sem tirar os olhos dos meus.

? Kiara Gadyen. ? disse o nome com certo gosto, como se duvidasse das próprias palavras ? Não esperava que uma cria do rei de gelo vingasse! Muito menos que ficasse tão... atraente.

Não permiti que suas palavras entrassem e assentassem em minha mente, sabia do encanto que ele podia causar, Meredith me avisara sobre aquilo, sobre deixá-lo falar muito e ser encantada por ele. Tentei rosnar e me afastar, mas estava travada no mesmo lugar, não conseguia me mover, sequer falar. Até mesmo minha respiração parecia estar sendo controlada por ele.

Em pânico, meu coração começou a martelar e minhas mãos tremeram com o esforço, em vão. Minha magia... por mais que Hasan tivesse começado a me ensinar como lidar com ela, ela também estava presa.

Detéria deve ter lido o pânico em meus olhos, pois cada passo para perto de mim, seu sorriso predatório aumentava um pouco.

? Não adianta tentar se soltar, minha querida. ? El e riu baixo, de uma forma que fez os cabelos de minha nuca arrepiarem ? Você é jovem... é muito forte também, se não fosse teria desmaiado assim que entrou na sala! Conseguiu se aproximar bastante antes de meus feitiços de contensão finalmente te prenderem!

Tentei forçar minha voz, falar, gritar... mas ela tinha sumido. E quem me escutaria ali?

Detéria estava a menos de um palmo, rondando-me, olhando como se eu fosse um objeto exposto que ele desejava e não podia tocar. Porém, estava enganada.

? Eu sei o que estão fazendo aqui, princesa de Vegahn, tenho mais olhos nos mundos do círculo que caçadores nas três academias venox juntas! ? parei de tentar lutar, meu coração disparado quase falhou ? e quanto ao que busca, já lhe adianto... montar esse mapa e encontrar o livro, Adraph como chamam... não vai lhe trazer de volta o que quer. ? Ele suspirou, passando os dedos por minha bochecha, meu interior estremeceu ? o livro só serve para criar coisas... coisas muito ruins, um livro escrito por alguém tão mau quanto o conteúdo daquelas páginas. Ele não é realmente feito de luz, não vai trazer aqueles dois pirralhos teimosos de volta!

A risada de Detéria fez meu sangue ferver, e mesmo com toda força que fazia para me soltar, nada aconteceu. O vampiro ergueu a mão, escovando meu pescoço com as pontas dos dedos. A Ira e o nojo fizeram meu corpo tremer, o que deixou o vampiro surpreso por um segundo, pois meus dedos apertaram mais as espadas encolhidas em meus punhos, e mesmo que muito pouco, me afastei de seu toque.

No entanto, no momento seguinte, a pressão triplicou e por pouco não perdi o ar também.

? Fantástica! Você não é nada do que eu esperava! ? Ele riu, batendo palmas, voltando a caminhar ao meu redor ? desista dessa bobagem de buscar por mortos, Kiara, eu posso ajudar você a conseguir um futuro brilhante! Você é o tipo de pessoa que adoraria ter em meu pequeno grupo pessoal... você e o seu amiguinho esquentadinho, claro! Creio que você não aceitaria nenhum acordo sem ele, não é? ? Ele exibiu os dentes outra vez num sorriso quase diabólico.

? Eu nunca... ? minha voz havia retornado, coisa dele, pela expressão curiosa em seu rosto, ele queria uma resposta ? nós nunca nos uniríamos a você!

Detéria estalou a língua, cessando seu andar em volta de mim para me encarar de frente. Se não fosse a pressão que me impedia de acessar meus poderes...

? Cada detalhe dourado nessa sala é feito de aço solar, menina, estou prevenido contra o seu tipo de magia, fogo branco ou fogo do céu, como costumavam chamar antes dos humanos aprenderem a acender o próprio fogo. ? Ele olhou para as garras longas que agora brotavam nas mãos elegantes e tornou a me encarar ? sobre a proposta...

? Eu já disse que recuso! ? consegui pôr para fora, sentindo uma dor intensa em meus pulmões, como se ao cuspir as palavras, não conseguisse puxar o ar de volta.

? Não foi um pedido, princesa.

O vampiro segurou meu queixo firmemente entre as mãos e a dormência desapareceu por um instante, mas não antes dele enfiar a língua em minha boca e algo quente com o gosto de verão e cardamomo queimar minha garganta e subir, espalhando-se por trás de meus olhos, nublando meus sentidos.

? Você vai estar comigo, querendo ou não.


Capítulo 13


Hasan:


Algo havia dado muito errado.

Não sabia porque estava com aquela sensação, mas tinha a certeza de que algo não ia bem. Detéria continuava lá, sentado em seu trono de veludo diante da multidão de vampiros da classe mais alta de Somnus e em nenhum momento mandou nos chamar. Duvidava que ele ficaria lá apenas observando, esperando que nos aproximássemos. A essa altura sua curiosidade sobre Kiara já teria sido grande o suficiente para que ele nos chamasse para conversar.

Mas isso não aconteceu. Detéria apenas olhava com ar entediado seus convidados dançando num ritmo que me enjoava, só conseguia imaginar um bando de sanguessugas se contorcendo num rio. Tudo o que queria ela explodir em fogo e consumir aquele lugar... pois foi pela ordem de Detéria que Serena foi tirada de mim.

Precisava manter a calma e me forçar a esquecer isso no momento. Estávamos ali por uma missão, e minha função era não tirar os olhos do vampiro-mor até a verdadeira Kiara voltar segura, com o fragmento do mapa. Quando encontrasse Susano e Nikella de novo, perguntaria porque raios entregaram um dos fragmentos para aquele desgraçado proteger!

Precisava confiar em Kiara, porém não me saia da cabeça que algo dera errado. O summon dela continuava ao meu lado, de pé ao lado de uma mesa com bebidas... todas misturadas com sangue, o que fez sua dúplice fazer uma careta.

? Por que essa cara feia? ? impliquei, distraindo-me, tentando manter a calma ? você bebe isso!

Ela revirou os olhos.

? Não frio! ? murmurou baixo suficiente para um casal de vampiros próximos não ouvir. ? Isso é nojento.

? Está aquecido. ? mostrei o aparelho no canto, quase completamente escondido pela toalha vermelha refinada que cobria a mesa metálica.

? Um bufê de sangue, não é muito... ? Ela se calou, os olhos turquesa do summon tornaram-se nublados e ela estremeceu, angústia tomou conta de suas feições. Chamei seu nome baixo, mas ela não respondeu. Agarrei seu braço e a levei para a saída do salão, para a antessala que estava vazia. No segundo que passamos pelas pesadas cortinas de veludo, o summon arquejou soltando um gemido sofrido e se desfez em minhas mãos, restando uma leve mecha branca de cabelo.

Fúria fez meus dedos ficarem em brasa e me movi imediatamente, abrindo a cortina para o salão. Detéria olhava em minha direção com um sorriso vitorioso no rosto, ele ergueu seu cálice e desapareceu numa lufada de fumaça negra.

Ele nunca esteve na festa!

Virei-me com o ódio latejando nas veias, transformando-me num monstro que eles não gostariam de ver, com os cabelos já em chamas e mãos em brasa, avancei para fora daquele lugar, atravessando o saguão vazio do prédio em direção as escadas.

Quatro vampiros me esperavam na entrada.

Bom, eu queimaria todos antes de chegar até ela. Um estalo de dedos, ou aumentar um pouco meu brilho...

“Não faria isso se fosse você, filho dos sóis” A voz o vampiro mor chegou suave até minha mente, provocando minha raiva.

? O que me impede? ? rosnei em resposta, encarando os vampiros sem um pingo de medo em seus olhares.

“Nada, é claro! A não ser que queira a cabeça da princesa do gelo rolando aos meus pés.”

E tão rápido quanto tinham aparecido, o calor e as chamas desapareceram. Sabia que não era um blefe, não depois de ver o summon se desmanchar com uma expressão torturada.

? O que fez com ela! ? rosnei, observando os vampiros se aproximarem com grilhões dourados, mas não deixei que se aproximassem até a voz sussurrar outra vez.

“Venha ver! Deixe que meus subordinados lhe coloquem essas jóias” com um grunhido de frustração, deixei que prendessem meus braços e me levassem para o elevador.

Cada respiração deles dentro daquele pequeno espaço metálico me dava ânsia de torrá-los até a alma, mas não podia... não a colocaria em risco. Meu coração disparado não permitia que eu pensasse direito.

Detéria, durante a guerra dos Doze, dissera que só não se juntava a Higarath por respeito ao mundo que Ayrana deu a ele. Detéria não tinha magia para se tornar um mago negro, apenas aquela acumulada e tomada durante toda a sua deplorável existência. O que ele poderia querer dela, se não podia drenar a magia de um mago?

O elevador parou e as portas douradas se abriram para uma sala escura na cobertura do prédio e a visão que tive me fez congelar. Os vampiros me empurraram, obrigando-me a dar um passo à frente apenas para ficar mais próximo dela.

Kiara estava de pé no meio da sala, os braços inertes, o vestido de seda vermelho abraçando cada curva do corpo, o rosto delicado emoldurado por aquela cascata de cabelos brancos tinha uma expressão completamente vazia, os olhos brilhantes ainda mais azuis fitavam o nada, ela parecia alheia aquela sala, o único sinal de dor eram as lágrimas que continuavam rolando pelo rosto, caindo ao chão, formando pequenos cristais de gelo ali. O batom na mesma cor do vestido, antes intacto, estava manchado também.

Assim como a boca do vampiro ao lado dela, exibindo um sorriso de alguém que acaba de se apossar de um brinquedo novo.

O fogo em meu interior se agitou, alimentado pelo ódio ao ver aquele sorriso no rosto daquele desgraçado, avancei para ele, mas antes de dar mais um passo, ele tocou uma lâmina vermelha no pescoço dela.

Aço coberto por pó de fogo.

? Kiara! ? chamei, mesmo assim ela não mostrou nenhuma reação. ? Desgraçado! O que fez com ela! ? rugi. Detéria riu mais, aproximando sua carcaça velha da garota, escorregando os dedos por seu ombro ? Não a toque!

Eu queria queimá-lo. Queria colocar aquele lugar a baixo, queria queimar aquele mundo com todas as pragas que nele habitavam.

? Faça! Queime a mim! Atire seu fogo e consuma tudo, salamandra! ? Detéria disse num baixo silvo ? faça e a veja ferver de dentro pra fora, virar uma estátua de vitrino para você admirar de longe para sempre! Seu fogo vai consumi-la igualmente, vocês não têm nenhuma ligação, nem mesmo um juramento, sua magia vai matá-la também! ? Ele sorriu vitorioso.

? O que fez com ela! ? repeti, o vampiro estalou a língua e a observou por um momento antes de sorrir com crueldade para mim.

? Eu dei apenas um sonho a ela, um doce sonho de um lindo futuro que podia ter existido... algo que tirei de você logo que chegaram aos meus domínios.

Meu sangue esfriou.

? O que...

? Ela está apenas assistindo a sua felicidade, caso a menina humana, sua Serena estivesse viva. ? Ele gargalhou ? Até eu gostei da sua fantasia! Vocês dois juntos, não é? Dando aulas para aquele bando de caçadores da Academia. A única coisa que fiz, foi colocá-la para assistir a esse doce sonho.

Encarei os olhos vazios de Kiara novamente.

Ele havia roubado um desejo meu, para implantar em sua mente.

? Por que está fazendo isso ? grunhi baixo.

Um soluço escapou dos lábios dela e mais lágrimas rolaram por seu rosto, pingando em seu vestido. Detéria não sorriu dessa vez, ele apenas fez um movimento com as mãos e a sala brilhou em cores do além-mundo, luzes do outro lado que não deveriam estar ali.

? Essas são minhas favoritas ? disse erguendo o braço dela, mostrando uma linha enrolada em seu punho... um fio cujas pontas estavam arrebentadas, que iam para lugar nenhum exatamente como minha mãe dissera ? Sabia que eles são os que sentem com mais intensidade? O prazer, a dor, o amor, a paixão... e também o ódio, o rancor, a ira! ? O vampiro enrolou o dedo naquele fio, tocá-lo fez Kiara estremecer e encolher o corpo. Rosnando, me aproximei, mas lá estava a maldita adaga de volta no pescoço dela.

Mesmo que eu usasse magia além do fogo... ele ainda era um monarca vampiro, e ela estaria morta antes que eu ousasse me mover.

? Elas são as melhores pessoas para se manipular, controlar, as quebradas, sabe? Pois basta que elas tenham algo que amem acima de tudo... e quando isso é tirado delas, elas terminam de quebrar! ? Ele apertou aquela fita em tiras entre os dedos e Kiara estremeceu outra vez. Agora com as marcas que lhe dei acesas, as pequenas flores de jade azuladas agora tornando-se cinzentas.

? Nikella era uma ameaça a você quando se tornou uma maga negra, quando domou os mundos. ? tentei manter a calma ? por que faria a filha dela se transformar? Sabe que a magia dela é mais poderosa que a dos dois juntos? Ela vai te transformar em nada, Detéria.

O vampiro estalou os dedos e as luzes do outro lado sumiram, deixando a sala apenas com a pouca claridade que vinha da lua já baixa no céu.

? Ela não vai ter controle sobre a escuridão, uma vez que sua alma não tem uma ligação viva para estabilizá-la. ? Ele voltou os olhos cor de sangue para o rosto dela, o olhar perturbador desceu por seu corpo, então ele ergueu seu rosto e lambeu uma lágrima quase congelada que descia. Meu ódio fervilhou mais uma vez. Tocá-la daquela maneira...

? Eu vou controlá-la. Apenas pelo prazer de ter alguém que possa destruir todos os caçadores, e deixar minha prole livre. ? Ele voltou a me encarar ? talvez crie uma raça nova, resistente ao sol... quem sabe... nunca houve uma cria de malvarmo e vampiro, não é?

Aquilo foi o limite.

Meu núcleo ferveu e explodiu para fora de mim, fazendo os guardas ao meu redor transformarem-se em cinzas e aquelas correntes derreterem e caírem ao chão, uma poça de metal incandescente sobre o piso queimando o carpete.

Detéria chiou, puxando a faca contra o pescoço de Kiara, apenas para se dar conta que a lâmina fora derretida e queimava a seus pés.

? Impossível! ? urrou ? Isso é aço solar!

? Aço solar só inibe os poderes das criaturas que vivem abaixo dos primeiro e segundo céus de Boghkar. Ele não afeta solares. ? Um sorriso se formou em meu rosto ao ver o olhar em pânico de Detéria ? Sirius nunca disse que era salamandra. Concluíram que ele era salamandra pela cor dos cabelos e pele. Mas meu pai é um mago solar, um príncipe do Primeiro Céu, irmão mais novo de Sarki. Por que acha que o chamam de sol guardião?

? Isso... não pode ser! ? rosnou, pegando uma lança de vitrino que estava presa em sua mesa e avançou para mim. Antes da lâmina tocar meu corpo, ela derreteu, incluindo o vitrino na ponta.

? Você se trancou numa gaiola de aço solar para evitar que o poder dos outros o afetasse, mas isso reduziu a própria magia. Não há como criar tolerância a ele. ? minhas palavras eram contidas, mas o inferno já começava a queimar ao nosso redor, a sala pegava fogo, consumindo tudo, disparando alarmes por todo o prédio abaixo de nós.

Detéria tentava escapar das chamas, usando magia para varrer o fogo para longe, porém eu o estava deixando recuar... por que eu queria que sofresse, que estivesse angustiado, queria que seus últimos momentos fossem de completa dor enquanto percebia que montara um império, uma fortaleza e acumulara poder para morrer como todos os outros, numa pilha de cinzas e nada.

Meu fogo não tocava em Kiara, a chave era o controle. Ela estava protegida por minha magia, envolta em uma leve brisa gelada, presente de ter uma gota de sangue azulado nas veias, enquanto o lugar começava a se desmanchar ao nosso redor.

Olhar para ela deu a brecha que Detéria achava que tinha. O vampiro se atirou em direção as janelas, ele iria estilhaçar o vidro e fugir na noite.

Com um sorriso cruel, direcionei o calor para aquele ponto, dourado e vermelho transformou aquele vidro numa massa incandescente que quando o vampiro a tocou, seu corpo incinerou imediatamente. Observei enquanto ele guinchava e derretia, transformando-se numa casca vazia carbonizada.

Acabou rápido, Detéria, o soberano de Somnus morto.

As chamas sumiram, o fogo cessou, mesmo deixando o local destruído, mantive a destruição apenas superficial.

Voltei-me rapidamente para Kiara e a peguei nos braços. A magia que ele havia usado para colocá-la em transe permanecera.

? Achei que o lugar ia virar uma tocha gigante. Daria pra ver das ilhas do outro lado da ponte! ? o vampiro, Lethan, entrou na sala soltando um assovio. ? Você é bom nisso. Que belo presente de aniversário!

? Ela não acorda. ? falei tocando seu rosto frio, aquele olhar vazio doía mais do que qualquer ferida que conhecesse.

? Ela está num feitiço de memória. Você é dono das memórias, pelo que ouvi, então ela não vai acordar com sua magia. ? o vampiro explicou, encarando-me com os olhos vermelhos, ele realmente estava monitorando o lugar se ouviu a conversa. Queria perguntar porque não avisou, mas aquilo exigiria um tempo que não tinha agora.

Abri um portal atrás de mim e a apertei contra o peito. Dessa vez o nervosismo que ameaçava estilhaçar minha calma era real. Precisava de alguém que soubesse como tirá-la daquilo, mas tinha uma ideia de para onde ir.

? Você o enganou, não foi? ? Lethan deu um sorriso de lado, chutando o corpo encolhido e carbonizado que fora Detéria e suspirou pesadamente ? Deixou que ele entrasse no raso de sua mente e fingiu estar nervoso, fingiu querer atacar e relutar sobre ter medo de ferir ela, quando na verdade tinha tudo controlado.

O observei com atenção e bufei.

? Depois que se perde alguém, você passa a pensar como as pessoas que lhe tiraram tudo ? murmurei, tirando uma mecha de cabelo da frente do rosto de Kiara ? Eles costumam achar que estão no controle ao ver confusão e medo nas pessoas. Detéria tinha ao seu lado o poder de ouvir os pensamentos dos outros. Só dei a ele o que ele queria ver, um alguém com medo de errar, então ele achou que me tinha nas mãos.

? Você é cruel ? O vampiro sorriu.

? Aprendi a ser. ? me aproximei daquele cofre na parede e o arranquei com uma mão, puxando de dentro um monte de porcarias que nada me valiam, até encontrar a folha do mapa embalada cuidadosamente num frasco de vitrino e a carta.

? Em algum momento ele... conseguiu te assustar?

Demorei uns segundos para responder.

? Não havia mesmo percebido que aquele no salão era um dúplice. Summons levam cinco minutos para perceber que seus originais morreram. Quando ele sumiu, achei que ela tinha...

Fechei os braços mais apertados ao redor dela e meneei a cabeça. Deixei aquele mundo sem querer saber o que aconteceria ali sem um vampiro-mor puxando as rédeas dos demais.

Que se matassem.


Kiara:


Aquilo não podia ser real!

Serena não estava viva! Ela morreu... ela levou minha gêmea junto quando partiu. A prova de que aquilo devia ser um tipo de pesadelo era que eu estava ali ainda com aquele braço de vitrino... meus pais não estavam vivos. Não tinha como ela estar ali e eles não. Mortos não voltavam dessa maneira!

? Está encarando tanto eles que a esposa do mestre vai querer vir tirar satisfação. ? Hestia comentou, enfiando uma colherada de doce na boca. Meu corpo estava tão dormente pelo choque que nem sentia a pedra fria das escadarias do pátio principal. Uma aula vaga... aproveitamos para tomar sol, era o que eu repetia sem saber o porquê, e lá estavam eles! Serena sentada no colo de Hasan, sorrindo, conversando com ele, aproveitando os raios de sol tão raros em Vegahn..., mas ela não precisava daquilo. Ela estava com o meu sol nas mãos e não sabia o quanto era sortuda por aquilo.

Não era real!

? Kiara! ? Hestia me sacudiu, fazendo-me desviar o olhar.

? Você não entende... Serena morreu antes de eu nascer um vampiro atacou ela e minha mãe! ? Hestia meneou a cabeça de olhos arregalados.

? Ficou louca? Ela foi quem curou sua mãe após o ataque do vampiro! ? Hestia chiou baixo, lançando um olhar para ver se os mestres não nos observavam.

? Isso não é real! ? choraminguei, vendo Hasan levantá-la nos braços e lhe beijar igual havia feito comigo na sala de treinamento mágico, um roçar dos lábios no rosto até lhe roubar um beijo. Serena riu e enrolou os dedos naquelas mechas ruivas, brilhando contra o sol da manhã.

Aquilo doeu como o inferno.

Meu coração se apertou tanto que senti a dor se espalhar por meu peito e trancar a garganta.

? Kiara... vá procurar Eghan! Você não está bem! ? Hestia cochichou, então seguiu pelo mesmo caminho que Serena havia ido.

Não precisava de um curandeiro, precisava acordar daquele pesadelo. Segui Hasan até a sala de línguas, ele não estava mais lecionando ali... aquilo estava errado! Eu estava desde o teste locam tentando conquistá-lo, tentando fazê-lo superar o fantasma... e agora o fantasma estava ali.

? Hasan? ? chamei antes que ele estrasse na sala. Ele se voltou para mim e deu um breve sorriso.

? Kiara! Precisa de algo? ? minha mente parecia não querer cooperar, quanto me aproximei e ergui a mão para tocar seu rosto, ele me afastou franzindo o cenho. ? O que está tentando fazer? ? o tom de voz amigável havia desaparecido.

? Hasan, nós estávamos em Somnus, não lembra? Fomos tentar pegar o quarto fragmento do mapa! Você estava no salão vigiando Detéria...

Hasan estreitou os olhos e crispou os lábios.

? Não sei do que está falando, Kiara. Acho que você não está muito bem, devia procurar a sala de cura, preciso preparar minha aula. ? Ele me deu as costas e entrou na sala, mas antes que fechasse a porta eu o segui.

? Por favor... acredite em mim! Nós estávamos lá!

Hasan se virou para me responder, mas seus olhos se detiveram num ponto atrás de mim e ele empalideceu, pelo cheiro enjoativo de flores, descobri quem era antes de olhar por cima do ombro, reconhecia aquele cheiro semelhante ao de Neruo mesmo que nunca tivesse a visto. Serena estava séria me observando, ela se aproximou e foi para o lado de Hasan, ficou nas pontas dos pés e o beijou numa demonstração nada amigável de posse.

? Kiara, não devia estar na sobrevivência agora? ? Seu tom era ríspido, venenoso quando ela me encarou com aqueles olhos amendoados brilhando. Não lhe dei atenção, apenas observei aquele sorriso contido, mas alegre no rosto de Hasan ao olhá-la.

Ele estava tão feliz...

Talvez... talvez eu estivesse sonhando até agora e tinha acabado de acordar para a realidade. Eu o amava tanto que em sonho desejava que ela não estivesse ali e por fim eu acreditava em algo que não era real.

? Kiara? ? Serena balançou as mãos em frente ao meu rosto. As lágrimas que eu tentava segurar escaparam, deixando uma trilha morna em meu rosto frio. Ela franziu o cenho, então eu imediatamente limpei o rosto tentei sorrir.

? Desculpem, mestres... eu só... queria perguntar algo sobre vovô e vovó e me emocionei um pouco ? Não sabia o que falar ou o que pensar, então inventei a primeira coisa que me veio à mente. Algo em meu peito se partiu tão dolorosamente que a dor do congelamento parecia uma carícia comparada aquilo. ? Vou me atrasar para a aula, desculpem!

Deixei a sala em passos rápidos, mas sem sentir nada, estava anestesiada. Não me importava em passar uma vida no escuro, desde que meu sol voltasse a brilhar em outra noite além da minha.

E se aquilo fosse um sonho dele, o deixaria sonhar, pois era sua felicidade que eu queria, mesmo que significasse nunca mais me aproximar.


Hasan:


O portal me levou direto para dentro do Vale da Lua, agradeceria mais tarde por Bianca me autorizar a passar pelas barreiras.

No minuto que pisei fora do túnel de magia, Kiara mudou de aparência. As marcas em seus braços estavam beirando o chumbo... embora alguns pontos turquesa brilhantes ainda aparecessem. Ela estava em algum tipo de conflito, mesmo inconsciente tentava lutar contra o lado que Detéria achava que a dominaria.

Passava das três da manhã ali. Apenas os guardas rondavam e faziam sinais, perguntando silenciosamente se estava tudo bem.

Não queria causar alarde, precisava chegar até a casa do outro lado do lago, sabia que um guardião poderia anular o efeito de um feitiço de transe. Kiara estava tremendo em meus braços e agora soluços contidos escapavam por seus lábios enquanto lágrimas grossas rolavam, pingando em meu peito.

Minha garganta se apertou.

Tudo que queria era poder saber o que ela estava vendo e... por mais que me doesse também, dizer a ela que não era real.

Antes que virasse na pequena ponte de pedras para o outro lado do vale, um movimento nas portas do salão chamou minha atenção e o lobo branco saltou em nossa direção, ele se aproximou rápido, tocou o focinho no braço de Kiara e me encarou com os olhos cheios de raiva. Certamente Gwendollyn estivera ciente daquilo. Não precisei que ele mudasse de forma e me dissesse o que fazer, o segui para dentro salão deserto, poucas luzes estavam acesas ali, mas a sala de cura estava ainda mais escura, não havia ninguém lá.

Halles mudou de forma e soltou um rosnado, ajeitando uma das macas para que eu a colocasse. Com cuidado a deitei na cama, tinha a impressão de que se fizesse qualquer movimento brusco, ela se desmancharia em meus braços. Dei passagem para o bruxo, mas contornei a cama e segurei a mão de Kiara. Não a deixaria sozinha.

? Feitiço de...

? EU sei! Posso sentir. ? O bruxo grunhiu, interrompendo-me. Ele foi até a cabeceira da cama e pressionou as mãos nas têmporas dela, Kiara estremeceu e gemeu, encolhendo o corpo. ? Preciso conduzi-la de volta para o Vale, a mente dela está... não está aqui. Vai demorar um pouco.

Os olhos do bruxo se tornaram completamente brancos, as marcas Cyfar em seu corpo brilharam e pulsaram. Ele então começou a cantar baixo, tão baixo que soava como um zumbido em minha mente, mas aquilo fez os tremores dela pararem e enfim relaxou. Apertei sua mão com cuidado, esperando que seu guardião a conduzisse de volta para casa.

Detéria havia deixado marcas de suas garras em seu pescoço. Longos vergões azulados lhe marcavam a pele sobre a clavícula... ele a tocara com aquelas mãos imundas.

Fiz um lenço aparecer em minha mão e limpei seu rosto com cuidado, tirando a mancha do batom, limpando os rastros de lágrimas... ódio e a vontade de esmagá-lo outra vez tomaram conta de mim ao me lembrar de como ele havia passado a língua em seu rosto, do modo que a olhava como se já fosse sua.

Odiava aquela essência de Yezélami que se agarrava a ela, deixando-a como um farol aceso para todos cuja escuridão interior almejasse uma luz para devorar. Me lembrava de certa forma a maldição de Arbarus. Sempre atraindo o pior tipo de aproveitadores. Sabia por minha mãe como aquilo funcionava, ela mesma se tornou agressiva e cruel aos olhos dos outros para tentar mascarar o puxão que exercia sobre as pessoas... e mesmo assim, sempre havia um que esquecia com quem estava lidando.

? Ela está voltando. ? O bruxo anunciou, suas mãos caíram como se estivesse exausto e seu brilho desapareceu. Halles lhe conferiu os batimentos e a respiração, então suspirou aliviado. ? Só dormindo agora.

? Obrigado.

? Não devia agradecer. ? Ele rosnou ? Se soubesse o quanto ela estava assustada... o que ela sentiu! ? Halles apertou os punhos e trincou. ? Você a ama?

A pergunta me pegou de surpresa.

? O quê?

? Não responda para mim! Pense bem no que sente e se não puder retribuir os sentimentos dela, se afaste de uma vez!

? Eu não entendo.

? Você sabe bem o que ela é! A pôs em risco em deixá-la seguir até lá sozinha!

? Eu confio nela, em suas habilidades. ? retruquei, começando a perder a paciência com o bruxo.

? Eu também, mas Nikella e Susano eram ainda mais treinados em magia, e olha como terminaram! E se você estivesse lá na hora? E se os outros estivessem por perto? Não é porque confiamos que temos que provar essa confiança para ela em qualquer situação! Ela quer mais que tudo que nós acreditemos na sua força, mas não dá para soltar a mão e deixá-la mergulhar em qualquer buraco só porque ela acha que consegue, droga!

O bruxo grunhiu exaltado.

? Não posso deixá-la ir também, Gwendollyn... ela não vai suportar perder mais ninguém, eu não quero a ver daquele jeito de novo, não quero ver essa menina desaparecer de nossas vidas também. ? Halles me encarou ? Ela ainda não está forte o suficiente, Kiara não é a Nikella. Pode ser mais forte fisicamente que a mãe e até parece ser tão resistente mentalmente quanto..., mas ela é muito mais sensível, diferente de Nike que sabia como proteger seu interior, mesmo que fosse se trancando dentro dela mesma e impedindo os outros de entrar.

? Sei disso. ? murmurei, acariciando aquela mão pequena apertada na minha.

? A casa de Bianca e Ellyn está vazia. É melhor lá do que aqui... a deixe dormir.

O bruxo saiu da sala, deixando-me ali com meus pensamentos.

E a única coisa que se repetia em minha mente era a imagem de Detéria puxando aquele fio destruído e dos olhos vazios de Kiara. Aquilo me partiu por dentro... quase tanto quanto perder Serena. Mas Kiara ainda estava ali e eu tinha mais uma chance.

? Droga, menina! ? suspirei ? você não tem o direito de colar os cacos só para estilhaçá-los novamente.

A tirei da cama com cuidado e segui pelo salão silencioso, atravessando o vale em passos rápidos até o pequeno chalé do outro lado do lago. A lareira acendeu-se assim que entrei e fui direto para o segundo andar, levando-a para o quarto das bruxas. Uma janela estava aberta, deixando entrar o prateado da lua cheia refletida nas águas do lago. Coloquei Kiara na cama com cuidado, sentei-me na poltrona ao lado e mantive sua mão envolvida nas minhas. Ela agora respirava mais tranquilamente, longe do pesadelo em que Detéria a colocou, porém ainda podia ver marcas invisíveis daqueles rastros de lágrimas em seu rosto.

“Faça, queime a mim! Atire seu fogo, salamandra! Faça e a veja ferver de dentro pra fora, virar uma estátua de vitrino para você admirar de longe para sempre... vocês não têm nenhuma ligação, nem mesmo um juramento, sua magia vai matá-la também!”

Aquelas palavras não saíam de minha cabeça enquanto a observava dormir.

Ele estava certo.

Halles estava certo também.

Kiara havia demonstrado seu amor... enquanto eu ainda tentava decidir se o meu por ela era real. Não achava que poderia amar alguém depois de Serena e estava errado. Apenas tentava sufocar qualquer sentimento por medo de perder tudo outra vez e se tivesse acontecido... ela partiria sem saber que eu a amava também, que fui vencido por ela, a deixei derrubar o muro ao redor de meu coração e agora Kiara o tinha nas mãos.

Tinha algo que eu podia lhe dar naquele momento, mesmo que não pudesse me ligar a ela pela alma. Ergui sua mão até meus lábios e comecei:

? Deste dia em diante, prometo estar ao seu lado quando escuridão chegar, quando a tempestade lhe cegar para o mundo ao redor, quando o mar mais profundo tentar te levar para longe, nesses momentos serei seu farol e a guiarei para um porto seguro... Quando estiver prestes a desaparecer em si, mergulharei em seu interior e te trarei de volta para a superfície de sua mente. Quando se perder no tempo, lhe mostrarei as estrelas e a noite mansa que esperam por você. Deste dia em diante prometo ser seu guardião, seu sol e seu calor e estarei ao seu lado até minha luz se apagar. ? Jurei, sentindo a marca queimar em meu pulso, em seguida, aquela corrente prateada surgiu acima da outra no pulso de Kiara também.

Nem de longe chegava perto do juramento de sangue à Leona, cujos sentimentos eu mal conseguia distinguir.

Por um momento, achei que perderia o ar completamente.

Meu peito se apertou enquanto sentia algo me puxar para ela com tanta força que me inclinei para frente, apoiando as mãos na cama. Não conseguia entender o que havia acontecido, mas a conexão foi tão... perfeita que a barreira ao redor de sua mente desaparecera para mim.

Talvez pagasse por aquela curiosidade mais tarde, mas naquele momento, queria ver o que Detéria a fez ver, e mesmo que Kiara brigasse comigo depois, não resisti a invadir sua mente para descobrir o que a fizera chorar daquela maneira. Segurei seu rosto com cuidado e toquei minha testa contra a sua.

Ao invés de ver a lembrança mais recente, fui arrastado para trás.

“... Nesse momento, a princesa acorda, assim como todos os seus habitantes. A vida tinha voltado ao castelo! Nesse mesmo dia celebrou-se o casamento entre a bela princesa Aurora e o corajoso príncipe, que viveram felizes para sempre.

Era a voz de Susano... podia ouvir a voz de meu sobrinho pelos pensamentos de Kiara, porém a voz parecia distante, como se ouvida de... de dentro da água. Ela realmente nos escutava.

? Eu preciso ir mais cedo, princesa. Sua mãe não está bem hoje. ? A voz de Susano soou baixa, cansada nas lembranças borradas da menina. Embora ela nos ouvisse, seus olhos estavam fechados para aquele mundo.

? Deveria ir logo. ? escutei minha voz ? Nike e Áries estão brigando de novo. Não posso separar sem provocar uma ou a outra. ? resmunguei. Susano bufou, o som de uma cadeira sendo arrastada, em seguida o de passos.

? Pode ficar um pouco com ela? Contar uma história? ? Ele pediu ? Faz dias que não venho por causa de... você sabe. Sinto que ela está prestando atenção, está acordada de alguma forma... não queria deixá-la sozinha de novo.

? Eu... não sou bom em contar histórias ? murmurei. Lembrava-me daquele dia, só queria voltar para Vintro e ficar em meu quarto. Não tinha vontade de nada.

? Tenho certeza que pode pensar em algo. ? O som dos passos cessou e o ruído como de ventos assobiando veio logo após, então silêncio outra vez.

? Esse seu pai... ? resmunguei perto do vidro, pois a voz estava mais alta agora, a cadeira voltou a ser arrastada para perto do cilindro, o rangido da madeira quando me sentei a incomodou um pouco, podia sentir ? Eu não sei contar histórias, Kiara, mas... quer ouvir como são os outros mundos? Um dia você vai sair daí, e vai os conhecer, mas até lá, eu te conto como são. ? comecei ? Eu vivi um bom tempo num mundo humano, onde não há magia como a nossa, mas eles fazem a própria magia de um jeito diferente, com máquinas e tecnologia. Tem um certo encanto...

A voz foi diminuindo, conforme sentia por aquela lembrança a menina congelada que antes parecia agitada se acalmar aos poucos com o som de minha voz, então a memória se desfez.

A próximas lembranças eram quase todas de minha voz, contando sobre os mundos do círculo e de Susano contando histórias... só então entendi o que estava acontecendo. Por ter feito o juramento de guardião, a ligação estava me mostrando o que ela se lembrava de mim.

As descrições e histórias dos mundos que eu contava a ela, ficaram em seu subconsciente a ponto de que em algumas partes, podia ver lampejos de cores e luz, como se ela tentasse os imaginar.

Demorou um pouco até que a primeira lembrança com imagens aparecesse, mas também conseguia sentir o mesmo que ela quando as lembranças aconteceram.

A primeira visita minha e de Áries depois do nascimento de Fares e do despertar de Kiara, ela já tinha por volta de cinco anos e estava sentada na biblioteca do escritório de Susano, tentando ler um livro que a mãe lhe dera e se encolhia contra a cadeira... com medo de que Nike brigasse caso ela não conseguisse ler. Ao nos ver entrar na sala, ela desistiu do livro e nos observou curiosa. Jamais havia visto alguém com cabelos vermelhos.

“Parece o sol!” o primeiro pensamento ao meu respeito. Ela sorriu para mim, mas eu nem olhei em sua direção, ela estava alheia à nova discussão de Áries e Nikella, minha mãe ainda insistia em levar Kiara para Amantia.

Outras visitas e Kiara sempre ficava por perto, escondida atrás dos móveis nos observando, usando suas sombras para se ocultar. Apenas Nike a sentia e mandava a menina ir fazer suas tarefas.

As memórias eram quase sempre curtas, uma ou outra mostravam a princesa perguntando sobre mim para o pai, outras vezes questionava Arcádius e Sirius quando esses passaram a ir testá-la, para saber se de fato o congelamento não afetara seu desenvolvimento. Mas o sentimento em todas era o mesmo: admiração, alegria e um calor no peito, que fazia seu coração disparar quando eu me aproximava, mesmo que nem lhe desse atenção.

Então uma lembrança... que me puxou com mais força para trás de seus olhos apareceu:

“? Mamãe? ? Kiara chamou, parada quase em frente a cama. Lembrava-me daquele dia. Susano tinha ido ao Quinto Céu, resolvendo algo com Owyn e Nikella não quis ir junto. Ela estava encolhida num canto do quarto, havia um ponto escuro na memória... uma parte que Kiara não conseguia acessar, o bloqueio que Susano colocou lá quando ela pegou o objeto que mudava de cor caso ela o tocasse. Anulei aquele bloqueio e vi que a antiga reagis de Caalin estava caída perto dela e ainda rolava devagar, como se tivesse sido atirada no chão.

? Já disse que não deve tocar naquilo! ? Nike gritou, mesmo encolhida e tremendo, sua voz ressoou no quarto ? Você é igualzinha a ele... não sabe respeitar nada!

O olhar carregado de rancor que Nike lançou por baixo da cortina de cabelos negros, atingiu a menina com tanta força que Kiara cambaleou para trás, colando as costas na parede.

? Eu queria te fazer uma surpresa!

? Mexendo no que já avisei pra não tocar? ? Nike grunhiu ? Vá para seu quarto, agora! ? Kiara começou a chorar e tentou se aproximar da mãe com os braços estendidos, como se fosse abraçá-la. Porém escuridão densa começou a se espalhar ao redor de Nikella, fazendo a criança se afastar assustada e se esconder ao lado da cômoda. A escuridão sussurrava... sussurrava palavras frias para a menina, mesmo assim Kiara não quis sair dali, mesmo quando não enxergava mais nada.

Ela não desistia.

Queria conquistar o amor da mãe... não entendia o que havia feito de errado.

Ela não saiu mesmo quando as sombras começaram a fazê-la se sentir completamente indesejada..., mas ali percebi que o problema da menina... o que vi quando Lohan estava nervoso por deixá-la sozinha, não era algo novo. Kiara ficou encolhida naquele canto, puxando as garras curtas contra a pele.

Ela se castigava por achar que era a culpada da mãe não gostar dela? Feria a si por imaginar que fazia mal a mãe. No fundo, talvez inconscientemente, ela sabia que Nike não a queria por perto e se machucava por isso. E aquilo havia evoluído para um meio de se livrar da própria dor emocional.

Áries estava certa desde o começo. Nike não tinha condições de cuidar da menina.

Sabia o que acontecia a seguir, mas olhei mesmo assim: O brilho dourado se espalhou no quarto, varrendo aquelas sombras para longe e aquecendo o corpo trêmulo da menina no cantinho. Ela levantou os olhos, a luz não parecia lhe incomodar, meus olhos por suas lembranças eram como fogo dourado.

Me aproximei dela, estendendo a mão e a abracei:

? É melhor você deixar sua mãe sozinha um pouco, princesa. Fares vai brincar com você lá fora! ? Eu sorri para ela e seu coração acelerou.

Ela só foi até a porta e ficou olhando pela fresta. Viu eu me aproximar da mãe e passar o braço ao redor de seus ombros, dando fim a toda aquela escuridão.

? Eu sei o que está sentindo, Nike... parece que nunca melhora, não é? Mas você precisa...

? Não me diga o que eu devo ou não devo fazer, Hasan! Olhe-se! Você mal consegue esconder o quão mal está também! Se não pode se consertar, como ousa querer dar conselhos de como as pessoas devem agir? ? Ela grunhiu ? Você a amava! Ela te amava de volta, VOCÊ NÃO SABE O QUE EU SINTO QUANDO OLHO PARA ELA!

Kiara não entendeu o significado daquelas palavras, mas sabia que o “ela” a quem sua mãe se referiu era ela.

? Bom, você está certa, mas eu jamais vou deixar o que me consome por dentro afastar as pessoas que me restaram! ? ralhei, pegando a foice de Nike e colocando em suas mãos. ? Vamos lá para o pátio, vou te ensinar o jeito certo de colocar isso para fora e parar de descontar nos outros!

Kiara me admirava, por não ter medo de Nikella quando todos tinham, por eu não ser afetado por aquela escuridão cruel.

Aquela lembrança aconteceu três dias antes do castelo cair.

Não queria mais ver, mesmo assim vi por cima algumas lembranças na ACV, em que ela apenas olhava de longe, enquanto aos poucos aquela admiração mudava para outros sentimentos, os quais faziam meu próprio peito doer pois ela jamais ousaria tentar se aproximar.... até ser desafiada por Hestia.

As palavras que lhe disse tentando afastá-la agora doíam tanto em mim quanto doeram nela.

Por fim... vi o sonho que Detéria lhe deu.

Um desejo que cultivei por anos, imaginando como seria se fosse real, um desejo que me afastava da realidade, mergulhando-me numa intensa tristeza por não ser real. E no sonho, Kiara estava lá, me observando de longe com Serena, em cada toque e sorriso seu peito se partiu mais, até que Serena se afastou e ela me seguiu, tentando me lembrar do que acontecera em Somnus, mas em nenhum momento, ela tentou me dizer sobre o que acontecera com Serena. Não tentou falar sobre sua morte.

E quando Serena por fim apareceu e a encarou daquele jeito que fazia quando estava prestes a ter um ataque de ciúmes, Kiara apenas meneou a cabeça negativamente e sorriu, mesmo com o rosto cheio de lágrimas.

? Desculpem, mestres! Eu só... vou me atrasar!

“Ele está feliz. E se aquilo fosse um sonho dele, o deixaria sonhar, pois era sua felicidade que eu queria, mesmo que significasse nunca mais me aproximar.

Kiara estava disposta a aceitar que um sonho era a realidade, apenas para que eu estivesse feliz.

Eu não a merecia.


Capítulo 14


Kiara:


Uma brisa fria me fez abrir os olhos assustada.

Se não fosse o cheiro tão familiar daquela casa, a vista da janela para o lago no Vale da Lua teria denunciado onde estava. Meu coração acelerou desesperadamente me encostei na cabeceira da cama, tentando respirar com calma.

Halles... Halles me fora me buscar na ACV, lembrava-me vagamente dele indo até a sala de cura me buscar e me trazendo até o vale. Somnus não aconteceu? Eu não estava atrás dos fragmentos? Fora tudo um sonho no fim das contas e a verdade é que eu estava perdida e presa em meus próprios sonhos.

Meus braços tremiam, um soluço alto escapou de minha garganta enquanto tentava afastar aquelas lembranças... aquelas fantasias de minha mente. Os momentos que conquistei com Hasan...

Eu só desejava sua felicidade.

Precisava tirar aquilo de mim.

A dor latejava de meu ombro ao pulso. Queria não fazer mais aquilo, queria não precisar arrancar a dor e o desespero de meu interior dessa maneira..., mas era o único jeito de afastá-la. O sangue que escorria para os lençóis fazia minha cabeça pulsar. Queria Hestia ali comigo, queria que minha amiga me abraçasse e dissesse que tudo ficaria bem.

Hales me trouxe até a casa de Bianca e Mavis e me deixou descansar um pouco, mas que descanso eu teria entre estar perdida entre verdade e sonho?

A porta do quarto de repente foi aberta e Hasan entrou assustado, vestindo uma roupa diferente... um terno como naquele sonho? Não... nem isso devia ser real. Encolhi mais o corpo contra a cabeceira e puxei o cobertor cobrindo meu braço ferido.

? Mestre? O que o senhor faz aqui? ? minha voz não soou nem perto de firme. Se ela soubesse que ele esteve aqui... Serena brigaria com ele. Eu não queria que ele tivesse problemas por minha causa.

Porém Hasan se aproximou da cama e sentou-se na cadeira ao lado, algo como desolação passou por seus olhos antes dele pegar meu rosto entra as mãos com tanto cuidado que meu peito se apertou mais, assustada ergui as mãos para o afastar, mas ele apenas segurou gentilmente meu braço ferido e o curou com um sopro quente antes de voltar os olhos para mim.

? Mestre...

? Kiara aquilo foi um sonho, apenas um sonho! Eu estou aqui com você! O que você viu... o que Detéria de mostrou não é real! ? Ele ergueu a mão para tocar minha bochecha.

? Não! Eu a vi... eu... o senhor estava lá! ? minha voz não passava de um soluço baixo, tentei afastá-lo de novo.

? Nós estávamos em Somnus, fomos atrás do fragmento. ? Ele tirou um pequeno cilindro de vitrino do interior de seu terno e o colocou em minhas mãos. ? Kiara, estou aqui com você. ? Hasan aninhou meu rosto em suas mãos, seu calor ficou mais intenso quando se inclinou para frente e depositou um beijo suave em minha testa.

Não consegui conter as lágrimas que escorreram por meu rosto ou os soluços que escaparam de minha garganta, passei os braços ao seu redor e o apertei, escondendo meu rosto em seu pescoço.

? Eu sinto muito! Sinto muito por tê-la perdido! Sinto que tenha vivido por tanto tempo com uma dor assim! ? Senti seu corpo tremer, Hasan me afastou um pouco para poder me encarar.

? Eu estou aqui agora, Kiara. ? Ele sussurrou ? Estou com você.

Ainda havia algo apertado em minha garganta. Eu não sabia o que dizer ou como reagir a aquilo. Continuava vestida com a roupa que Meredith me oferecera. Não foi um sonho... Hasan realmente havia me dado uma chance. Serena não estava mais lá.

? Eu falhei. ? murmurei ? Detéria me prendeu tão fácil.,,

?Detéria era um vampiro tão velho quanto os mundos, Kiara, o poder dele de manipular foi maior do que de qualquer outro ser mágico vivo. A única pessoa que talvez conseguiria contê-lo era sua mãe. ? Hasan explicou. ? Você o enfrentou?

? Eu tentei resistir a magia, mas ele... ele queria que eu. ? fechei os olhos e respirei fundo evitando estremecer, mas senti Hasan endurecer perto de mim ? O que aconteceu afinal? A sala era cheia de aço solar.

? Seu summon se desfez, percebi que tinha algo errado e fui atrás de você. ? Ele não estava me encarando.

? E Detéria?

? Você disse que não se incomodaria se eu o transformasse num espetinho. ? Hasan mordeu os lábios, encarando os vidros da janela.

? Você o matou?

? Acho que ele passou um pouco do ponto.

? Lá vou eu ter que fazer um relatório de como o velho derrubou um castiçal e virou uma tocha viva.

? Não quer saber como eu passei por tanto aço solar e ainda consegui matá-lo? ? Hasan franziu o cenho, as mãos que ainda envolviam as minhas se tornaram ligeiramente frias.

? Você é um solaris. ? Ele arqueou as sobrancelhas surpreso.

? Como...

? Desconfiei quando estávamos no Primeiro. Sua pele brilhava como a deles e eu sabia que não tinha nada a ver com magia de fogo igual a Hestia, nunca vi um salamandra nos céus, mas imaginei que eles não brilhariam daquele jeito lá, não em dourado pelo menos. Tem também sua presença e seu cheiro... mas tive certeza quando Alfia me chamou em seu palácio quando estávamos voltando para Vegahn, estar perto dos guardas solares me fez ter certeza do que você era. Alfia confirmou quando me pediu ajuda para fazer você reconsiderar sua oferta.

? Ela te pediu isso? ? Hasan estava cada vez mais chocado, meneando a cabeça negativamente.

? Não parece louco? Eu levo quase uma vida para ter uma chance e ela quer ter tudo do jeito mais fácil. ? um risinho quase histérico deixou meus lábios, ele por sua vez continuava apenas encarando as próprias mãos. ? Ela me disse que você não aceitou se casar com ela... por minha causa.

? Ela não mentiu. ? Hasan me encarou e ergueu minha mão e beijou minha palma aberta. ? Eu me apaixonei por você, por sua energia, sua mente brilhante e pela intensidade que você vive a vida. Me apaixonei por seu cuidado comigo, quando não desistiu mesmo sabendo que eu não teria um coração inteiro para te dar. Sinto muito pelas coisas cruéis que disse... e por não ter dito antes como me sentia, mas eu tinha medo de aceitar que podia estar amando você e se algo acontecesse...

Parei de sentir o mundo ao redor. Não respirava mais! Apenas o encarei de boca aberta, Hasan sorriu.

? Eu amo você, Kiara. ? Ele sussurrou ? E não queria ter mais ninguém ao meu lado agora.

Não consegui me conter, comecei a chorar outra vez, a sensação que tinha era que eu ia começar a desmanchar, meu peito podia explodir a qualquer momento, tamanha era minha felicidade ao escutar aquilo. Suas palavras varreram as sombras daquele pesadelo para longe e acenderam uma luz em minha alma, uma que eu nem sabia que estava apagada.

Hasan estalou os dedos e meu vestido de Somnus fora substituído por uma camisola confortável, ele também vestia uma calça de um tecido macio e seus cabelos estavam trançados. No momento seguinte, ele se deitou e me puxou para seus braços, enrolando-os ao meu redor e apoiou o queixo em minha cabeça.

? Se incomoda se eu dormir um pouco? Faz dias que não durmo direito, aquele lugar era horrível. ? sua mão subiu e desceu por minhas costas em carícias longas e relaxantes. Aninhei-me contra seu peito e ergui o rosto, depositando-lhe um beijo na garganta.

? Vai estar aqui quando eu acordar? ? sussurrei.

? Sempre, Kiara. ? Hasan me apertou um pouco mais, alguns instantes mais tarde e ele dormia profundamente. Um sorriso se formou em meus lábios e só então me permiti adormecer também.

 

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? Ai! Deuses eu vou ter que trocar essa cama! ? a voz de Mavis me fez ter um sobressalto pela manhã. Hasan estava enrolado em mim, suas pernas emaranhadas nas minhas, os braços ainda em volta de meu corpo e o cobertor caído ao lado da cama.

? Estávamos só dormindo! ? bufei, Hasan a olhou pelas fendas dos olhos e soltou um suspiro preguiçoso. O rosto de Mavis estava entre rosa brilhante e vermelho quando resmungou algo e nos deu as costas, deixando o quarto com um “tem café pronto”.

? Acho que perdi a hora. ? Hasan sorriu, puxando-me de volta aos seus braços. ? Que bom que não é dia de aula ? Ele enrolou os dedos em meus cabelos e arqueou meu pescoço, traçando uma linha de beijos de meu ombro a minha boca.

? Mavis vai nos colocar para correr daqui! ? murmurei.

? Eu respeitei o espaço dela! Não fizemos nada aqui. ? disse contra minha pele, seus dedos subiam e desciam lentamente por minhas costas. Pressionei minha palma em seu peito e suspirei, não estava pronta para levantar, mas tinha que colocar o fragmento junto com os outros.

? Tem razão. Já fiz coisas piores com Hestia aqui. ? As mãos pararam de se mover e o coração dele disparou sob minha palma.

? Não estava brincando quando disse aquilo? ? ergui os olhos e percebi Hasan surpreso.

? Porque estaria?

Hasan abriu a boca e a fechou novamente, de repente começou a rir e seu rosto mudou de cor, parecia mais corado e quente que antes.

? Aposto que está imaginando o que não deve. ? Ele fechou os olhos e meneou a cabeça negativamente, depositou um beijo em minha testa e se levantou.

? Acho que... eu não tenho problema com isso.

Apoiei a cabeça no pulso e olhei fascinada aquele estalo de dedos que fez surgir em si uma roupa bonita, calças cor de areia e uma camisa preta que deixou aberta.

? Como faz isso? Você materializa roupas? ? quis saber, não era algo que eu tivesse tentado fazer ainda. Hasan soltou a trança e prendeu os cabelos num coque bem feito antes de responder:

? Posso criar coisas do nada, assim como simplesmente trazer peças de meu armário. Não é difícil nem exige tanta energia ou preparo. Tente!

Mordi os lábios e sai da cama, não precisei realmente me concentrar para fazer aquilo, com um simples pensamento as roupas surgiram, peças íntimas, uma legging vinho, uma camiseta cinza de alças largas e um par de sapatilhas confortáveis.

? Viu? Simples. ? Hasan se aproximou e me abraçou outra vez. Não conseguia acreditar que aquilo era real. Meu coração batia freneticamente enquanto inalava seu perfume, feliz por aquele momento tão tranquilo em meio à tempestade da qual sabia que estávamos nos aproximando a cada fragmento encontrado. Em breve... muito em breve nós chegaríamos a uma arma e não tinha certeza do que fazer quando chegássemos lá.

Passei os braços ao seu redor e o apertei firme contra mim, queria gravar em minha alma a sensação de estar em seus braços pois lá no fundo ainda tinha medo de que aquela felicidade fosse tomada de mim.

? Pode... dizer de novo? ? sussurrei.

? Amo você, Kiara. ? Me sentia como manteiga derretida por dentro.

? Vamos, estou curiosa para saber onde o outro fragmento está.

? Fique para conversar um pouco com Mavis, eu preciso falar com Gwyndion e Ceiran. ? ergui uma sobrancelha e Hasan riu ? Ainda estamos com uma falha no corpo docente, lembra?

Estremeci, não queria lembrar de Misty, pois sabia o que aconteceria a mestra quando fosse levada à Ciartes, tampouco tinha esquecido o que acontecera com a garota salamandra. Ainda sentia seu desespero quando estourei aquela bolha de vitrino em seu rosto. O pensamento sacudiu a alegria daquela manhã de mim, mas não permiti que ele tomasse conta de minha mente, pois Hasan me olhava preocupado.

? Vamos. ? dei um beijo nas costas de sua mão e saímos de lá.


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Enquanto atravessávamos um portal de volta para Vegahn, minha curiosidade sobre o segredo de Hasan acabou vencendo meu bom senso, então resolvi perguntar sobre antes que perdesse a coragem e perguntasse direto para Sirius.

? Porque nunca disse nada... sobre ser um Solar? ? questionei. Hasan encolheu os ombros e meneou a cabeça negativamente.

? Meu pai não queria que isso se espalhasse. Ele sempre soube o que era realmente, pois Marglan o criou nas ilhas monarcas por um tempo para que ele pudesse exterminar clãs de vampiros rivais, mas quando tinha por volta de duas décadas de vida, meu pai foi levado ao templo de fogo e um mago da família Arbarus o fez aprender tudo de novo, foi lá que conheceu minha mãe, mas também foi onde descobriu quem realmente era.

Hasan pressionou os lábios com força antes de continuar:

? Sirius é irmão mais novo se Sarki, quando ele nasceu, meu tio se sentiu ameaçado, pois magos solares são raros, e ter dois filhos com dons de magia foi uma surpresa para meu avô, mas principalmente para meu tio. Os celestes não escolhem seus próximos reis ou rainhas por ordem de nascimento, mas sim por nível de magia. ? Hasan suspirou, o braço ao redor de meus ombros ficou tenso ? Sirius nasceu com poder muito maior que Sarki, e para não correr risco de perder a coroa, Sarki jogou meu pai entre as passagens dos mundos.

? Espera aí... eu soube que meu pai refez a ligação de Bogkhar com as raízes da árvore! E que a ligação daqueles mundos foi quebrada quando Antares morreu... e levou os dois mundos para outro plano com ela. Então está me dizendo que Sirius...

? Meus pais tem algo entre dez e quinze mil anos. ? estaquei no meio do caminho e pisquei incrédula.

? Mas Malira... ela disse que Sarki já era velho quando foram banidos para os céus! Oh deuses eu estou perdida! ? Hasan começou a rir.

? A passagem do tempo era diferente naquela época. Lá, tudo isso aconteceu num intervalo de menos que dois mil anos.

? Certo... então seu pai é um solaris que foi tirado de seu mundo de origem pelo irmão fominha de poder. Isso significa que Alfia é sua prima, não é? ? Hasan assentiu ? Aquele dia no Primeiro a ouvi te chamar de Ish-saol, demorei a me lembrar do que significava. Mas... é estranho.

? Você é minha tia em segundo grau, Kiara! ? Hasan franziu o cenho.

? Não estava falando do parentesco, e sim... disso tudo! ? soltei um suspiro pesado e encarei as luzes rodopiantes do portal, o brilho das barreiras que nos impediam de cair no nada entre os mundos. ? Parece que tudo fazia parte de um plano maior. Se Sirius jamais tivesse deixado o Primeiro, ele e Áries jamais se conheceriam, não teriam sido guardiões do círculo...

? Não teriam tido a mim para quebrar a maldição de Arbarus...

? Dez mil anos... e só dois filhos. ? pensei alto e imediatamente senti meu rosto queimar, não tinha segundas intenções com aquele pensamento. Hasan pelo menos não entendeu nada de errado, ele só assentiu e escondeu um meio sorriso.

? Áries sempre quis uma menina depois de mim. ? explicou ? Ela está tão feliz com a possibilidade de conseguir manter a gravidez até o final!

? Então era por isso que Alfia a estava metendo em seus planos, não é? Por causa do bebê de Áries. ? Hasan assentiu outra vez.

? Espero que a deixe em paz. ? Ele ciciou baixo, suas marcas douradas estavam acesas ? Eu faria qualquer coisa para mantê-la protegida agora, não quero nem pensar na possibilidade de Alfia a incomodar com esse assunto outra vez.

? Seria um grande problema se Alfia voltasse para incomodar Áries com isso ? Hasan olhou para mim com uma sobrancelha erguida numa pergunta silenciosa ? Áries deixaria o Primeiro sem uma rainha!

Ele riu e concordou comigo. As luzes do portal foram ficando mais brilhantes e as escadas do pátio da ACV estavam logo à frente. Afastei-me um passo dele e lhe dei um sorriso, quando ia sair pelo portal, Hasan me puxou e me beijou, começou com um suave roçar dos lábios nos meus e passou para sua língua enrolada na minha e meu corpo apertado no seu.

Sair daquele aperto e me afastar foi uma dificuldade depois. Ele se afastou apenas um pouco e sua expressão endureceu ao pisar no pátio onde um vento gelado e suave carregava alguns flocos solitários de neve ao mesmo tempo que trazia o cheiro adocicado das pequenas flores azuladas da árvore branca no centro do pátio. Havia algo diferente lá dentro. Hasan seguiu comigo pelo corredor quase deserto para dentro do prédio principal, subimos as escadarias e logo avistamos a sala aberta de Lórien.

Lá dentro sentados nos sofás e conversando estavam vários mestres das ACV’s de Ciartes e Pollo, assim como Ederon, Ericko e Lórien. Eles nos olharam curiosos quando entramos, os olhares estavam mais em mim do que no solaris brilhando atrás de mim.

? Bom dia! ? Lórien tentou esconder um sorriso ? Mestre Hasan, poderia conduzir a Venairen para a sala ao lado? Estamos encerrando nossa reunião. ? Hasan assentiu, e sem outro aviso, pegou meu braço e me guiou para a antessala que levava as escadarias para a câmara onde guardava os fragmentos.

? O que está acontecendo? ? quis saber ? Já é a segunda vez que os vejo reunidos.

? Você se inscreveu para a prova do uniforme negro? ? odiava quando me respondiam com mais perguntas, mas assenti mesmo assim e o encarei, Hasan não me olhou ao abrir a salinha e retirar o frasco de vitrino de Detéria do bolso para colocá-lo junto com os outros três fragmentos. Esperava com todas as minhas forças que os outros soberanos que guardavam os fragmentos quisessem coisas menos terríveis do que me transformar em uma escrava.

? Não vai me dizer?

? Vai descobrir em breve, sinto muito, mas isso não posso falar!

? Estou com pressentimento que é algo que vai ferrar a vida dos venairens ? Hasan sorriu e me entregou o cilindro, reparei que ele não queria tocar na bacia. ? Algum problema com a magia dela? ? ele observava a magia, o suave ronronar daquelas sombras sobre os fragmentos, não parecia ser algo ruim para mim.

? Não posso tocar naquela magia sem permissão. É um summon guardião.

? É por isso que parece um gato? ? deixei o frasco rolar para dentro da bacia sob aquelas sombras preguiçosas, o tilintar do cilindro com os outros a fez se agitar e se espalhar, em seguida à sombra enrolou-se novamente sobre eles e se aquietou.

Hasan estava a menos de um palmo de mim, sua proximidade causava arrepios em minha pele e meu coração disparava desesperado, como se quisesse sair de meu peito para abraçá-lo. O solaris tirou um pequeno papel dobrado de dentro do bolso e o colocou em minha mão:

? O próximo? ? seu sorriso se tornou divertido, mas predatório quando se inclinou para roçar os lábios em minha bochecha ? Se adivinhar esse, eu vou te dar uma recompensa.

? Com você tão perto assim, nem lembro como se lê, quem dirá fazer a cabeça trabalhar para adivinhar uma charada! ? Hasan riu baixo e grave então se afastou apenas um pouco, seus olhos continuavam me encarando.

Com os dedos trêmulos, desdobrei o papel e li as frases devagar, parecia que estava realmente tentando fazer minha mente trabalhar direito.

“Eles surgem na noite com a poeira lunar, seus uivos medonhos nos fazem recuar, não há escapatória ou onde se esconder, apenas sobreviva até o sol nascer”

? Acho que meu pai me ajudou dessa vez! ? sorri balançando o papel na mão ? Pollo.

Os olhos de Hasan brilharam com divertimento, ele se aproximou novamente e passou os braços ao meu redor tirando-me do chão, passei minhas pernas ao redor de seu quadril e senti o sorriso em seus lábios contra meu pescoço quando enrolou os dedos em meus cabelos e os afastou de meu pescoço.

Ele manteve um braço ao redor de minha cintura e traçou uma linha com a língua em meu ombro, um suave roçar das presas fez meu corpo estremecer e meus olhos ficarem pesados, nem sabia ao certo se estava respirando como devia.

? Acalme-se, eish-amir, sabe que não vou te machucar! ? A palavra em solar para meu amor fez o restante de minhas forças desaparecer, com um riso baixo e sensual, Hasan fechou as presas na curva de meu ombro com o pescoço, pressionando-me contra seu corpo forte.

? Não fique provocando aqui dentro! ? choraminguei ao senti-lo depositar um beijo de leve sobre a marca de seus dentes.

? Ah, perdão! Não consigo resistir ? Suas presas perfuraram minha pele devagar, mordi os lábios com força evitando deixar escapar um gemido. Os outros mestres não estavam tão longe que não poderiam me ouvir caso o fizesse. Mas a pressão da mordida fez estrelas piscarem ao meu redor e calor pulsava descontroladamente dentro de mim.

? Eish-amir, controle sua magia. ? Hasan sussurrou contra minha pele, passando a língua para fechar as marcas.

? Isso é cruel! ? choraminguei ao ser colocada no chão, Hasan ergueu as sobrancelhas e eu desviei de seu olhar. ? ficar me provocando aqui dentro, sabendo que não podemos fazer nada.

Mesmo que soubesse que Lórien não faria nada caso descobrisse, não era bom dar ideias erradas aos outros. Hasan mordeu os lábios evitando rir e estendeu o braço para que eu o pegasse.

? Eu gosto de provocar.

? Já percebi isso.

? Você também faz isso, não se faça de inocente. ? Ele escorregou as mãos por minhas costas conforme eu saía da sala. Hasan recolocou o feitiço na porta e quando íamos subir as escadas, uma presença me fez parar estupefata, não o tinha sentido ali até vê-lo. Eileen nos olhava com os olhos tão arregalados que podia ver o rajado em seus olhos topázio.

? O que estavam fazendo ali? ? quase podia ouvir um rosnado de irritação em sua voz. O semblante de Hasan se fechou mais que tempestade de neve de inverno e olhou para Eileen como se pudesse comê-lo.

? Eu que pergunto o que está fazendo aqui embaixo, rapaz. ? Eileen meneou a cabeça negativamente.

? Lórien pediu para avisá-los que a reunião acabou. ? Seus olhos pousaram na pequena marca em meu pescoço e seus lábios se apertaram. Quando ele voltou os olhos para o mestre imóvel como uma rocha atrás de mim, podia ver algo territorial em seu olhar, aquilo me incomodou mais do que devia.

? Algum problema, Eileen? ? ao dizer seu nome, aquela expressão desapareceu, ele parecia confuso, então sacudiu a cabeça antes de subir de volta rapidamente.

? O conhece? ? A voz de Hasan não havia suavizado.

? Ele é filho da curandeira do castelo de gelo. ? murmurei.

? Sei disso, perguntei se você o conhece realmente. ? me virei para encarar Hasan, não havia sinal de ciúmes em sua voz nem em seus olhos... mas aquilo que brilhava lá no fundo era desconcertante de certa forma. Ele estava preocupado com algo em relação ao garoto.

? Falei com ele duas vezes, ele disse que queria ser meu amigo e que gostaria de treinar comigo. ? A expressão de Hasan suavizou.

? O vejo pela ACV desde criança, é um bom aluno, mas é isolado de todos, não sei porque mas ele me lembra alguém... acho que não faria mal em tentar ser amiga dele. ? assenti devagar e me coloquei a subir as escadas, não sabia o porquê de estar com as pernas trêmulas, se fora pelo quase flagrante ou pela mordida.

? Será que ele viu? ? Hasan assentiu, meu interior se desfez. ? Acha que ele pode contar?

? Não. ? Hasan então adiantou o passo.

Ao chegarmos na sala de Lórien, minha equipe estava lá junto com outra, a equipe de Eileen. Mas se meus amigos estavam ali, porquê Lórien não enviara Hestia ou Lohan?

Eles pareciam à vontade na sala, Hestia sentada no colo de Evenna, uma humana mística da equipe de Eileen, sorria como se tivesse acabado de ganhar um prêmio. Pelo rosto corado da garota... não precisei pensar muito.

Helleon estava sentado no sofá com um gato preto de olhos rajados sobre o ombro, Lohan, e ao lado deles dois malvarmos, um rapaz e uma garota de olhos negros cochichavam um com o outro.

? Hasan e Kiara, que bom que finalmente se juntaram a nós! Estávamos esperando! ? O sorriso sem vergonha no rosto de Lórien e aquele brilho em seus olhos fez uma onda calor preencher meu rosto e pescoço, foi um esforço monumental não soltar um gemido e escorregar para a cadeira. Ao invés disso, estampei um sorriso sonso no rosto e me sentei.

? Conseguimos recuperar o objeto. ? disse simplesmente.

? Bom! Sua equipe maravilhosa junto com a de Eileen encontraram o menino desaparecido também.

? Não os vi no teste locam. ? comentei, Eileen que ainda olhava feio para Hasan, retrucou um pouco irritado.

? Não viu várias equipes, pois fomos mandados para lugares diferentes, não é porque não nos viu que não estávamos na prova.

Ah!

Já sei porque ele não tinha muitos amigos. Lhe dei um sorriso feral em resposta... Ah!! Eu o treinaria, com certeza! Eileen baixou os olhos, percebendo seu erro e murmurou desculpas, mas agora o estrago estava feito.

? Eu agradeço pelo trabalho de vocês, foi realmente incrível que conseguiram o encontrar em tão pouco tempo! ? Lórien sorriu ? Sei que perderam seu fim de semana e está perto da hora do almoço, mas vou avisar as cozinheiras para que façam as sobremesas que vocês quiserem.

Queria rir, Lórien estava tentando comprá-los com doces.

Fiquei boquiaberta ao vê-los comemorar, se levantarem das cadeiras e seguirem em direção a porta. O gato preto no ombro de Helleon fez um movimento com a patinha, pedindo que eu fosse junto. Precisava relatar o que houve em Somnus, mas sabia que Hasan faria isso.

? Mestra, volto depois, com licença. ? saí atrás deles, talvez conseguisse roubar a sobremesa de alguém enquanto pensava em como pegaria o fragmento em Pollo, talvez esse fosse mais fácil, Ederon não era um louco psicótico querendo a dominação universal.

Deixei a sala com meus amigos doida para ouvir a versão deles da caçada e contar a minha estadia no mundo dos vampiros.


Hasan:


? Eu disse, eu tenho um dom! ? Lórien gargalhava encarando a marca da corrente em meu pulso.

? Foco, Lórien! Te disse que matei Detéria, que ele queria usar a garota e você só prestou atenção na parte do juramento? ? A encarei incrédulo. A Lórien louca que fugia com uma Leona amaldiçoada ainda estava viva sob aquela aparência séria que vestia na ACV. Ela sacudiu as mãos dispensando meu comentário e sorriu.

? Em meio as coisas ruins, nós temos que dar atenção para as coisas boas que nos acontecem, Hasan! Pare de dar importância ao mal! Você o transformou em churrasco, então acabou! Agora me conte mais sobre aquelas marquinhas de presas no pescoço dela!

Lórien gargalhou, ao me ouvir bufar. Sentei, me na cadeira de couro macia e conjurei duas xícaras fumegantes de chá, talvez aquilo trouxesse a Lórien sensata de volta... embora eu gostasse mais dessa diante de mim.

? Eileen... ? comecei, havia algo no garoto que não me parecia certo. ? Porque o mandou lá?

Lórien parou de rir.

? Estava só testando uma coisa. Ele me parece tão familiar, não acha? ? Assenti devagar, também sentia uma presença conhecida nele só não sabia explicar.

? E sobre as provas? Conseguiram chegar a um acordo? ? Lórien assentiu outra vez e bebericou o chá, seus olhos vermelhos estavam perdidos encarando o nada.

? Vai ser divertido. ? comentou, dando-me um meio sorriso.

? Sua ideia de diversão me assusta, Lórien. ? Ela riu outra vez e estendeu a mão sobre a mesa para pegar a minha.

? Fico tão feliz em ver esse brilho de novo nos seus olhos. ? Ela piscou, meu rosto de repente esquentou. Não queria falar com ela sobre isso, mas parecia que não tinha para onde fugir.

? Espero que dê tudo certo... estou com receio do que possa acontecer enquanto buscamos os fragmentos.

? Já percebeu como está tudo calmo? ? Lórien voltou os olhos para a janela, a neve caia pesada agora, diferente de quando chegamos.

? É a calmaria antes da tempestade, Lórien. Conhecemos isso muito bem. ? Ela assentiu, com um olhar triste para o céu, murmurou os nomes de Leona e Ewren.

? Kiara não percebeu o laço?

? Acho que não, ela teria dito algo sobre isso.

? E não pretende contar?

? Claro que sim! Mas não agora.

Lórien assentiu, terminou seu chá e espalhou os documentos trazidos das ACV’s pela mesa. Relatórios sobre os mestres, plantas das cidades e mapas das regiões ao redor de Panmat. Um suspiro cansado deixou meus lábios e ela riu, não era assim que planejava passar meu domingo, queria um descanso, mas... ele ficaria mais para frente.

? Não se atreva a querer fugir, você prometeu me ajudar com a organização da prova!

Sem reclamar, peguei um dos relatórios e comecei.


Capítulo 15


Passamos o restante do domingo em frente a lareira da biblioteca conversando, a equipe de Eileen não ficou por muito tempo, Falias e Samin moravam em Madras, logo queriam passar o restante do domingo em casa com suas famílias, a garota humana, Evenna, foi para seu quarto estudar e Eileen ao que parecia, havia gostado muito de discutir sobre a montanha das bruxas com Helleon.

Hestia estava deitada com a cabeça em meu colo, contanto sobre a busca ao garoto e Lohan sentado ao meu lado no sofá com as pernas cruzadas sobre o assento, me servia de travesseiro gigante, com braço ao redor de minha cintura, ele escutava em silêncio a tagarelice da bruxa.

“Algo errado?” perguntei, a voz da bruxa soava animada contando sobre como Eileen e ela se enfiaram numa toca de lobos de áries para achar uma passagem sob a montanha de Amurith em Paliath.

“Acho que Hestia está com medo de mim”

“Não devia tê-la assustado com o pesadelo aquele dia nos céus” brinquei, mas a expressão de Lohan não mudou, ele realmente parecia magoado com aquilo. “Vou perguntar a ela depois”

“Porque você não tem medo também?” Ele quis saber, um sorriso sem alegria puxou meus lábios.

“Meus pesadelos são vivos, Lohan, meus medos já aconteceram! Não pode me meter medo com minha realidade se eu já a vivo.”

O braço de Lohan se apertou ao meu redor.

“Nós vamos consertar as coisas, prometo.”

“E se não fosse isso, Lohan, eu me lembro bem que foi você quem me livrou de pesadelos naquele primeiro dia no Palácio da Noite”

“É, me lembro também! Você roubou minha cama e me fez dormir como um cachorro!” o acotovelei, prendendo uma risada.

“Vai comigo até Pollo procurar pelo quinto fragmento?” Pedi, Lohan pareceu surpreso com a oferta, ele era o único que sabia exatamente o que eu buscava.

“Não vai com seu namorado?” Um sorriso malicioso puxou seus lábios, e precisei me lembrar de falar com Hestia para continuar a história, se ela soubesse que eu não estava ouvindo, me penduraria de cabeça para baixo dentro do ninho dos dragões.

“Não nasci colada com ele!” ralhei “E eu quero ir com você!”

“Vai ser um prazer te acompanhar, princesa!” Ele sorriu e beijou o alto de minha cabeça.

? ... nós quase fomos comidos! ? Hestia esbravejou enquanto Helleon e Eileen riam da expressão aturdida da bruxa.

? Era só um Nukelavee, Hestia! ? Helleon riu.

? Você fala como se fosse um bichinho que encontramos em qualquer lugar!

Lohan ainda estava um pouco nervoso. Cutuquei suas costelas com o cotovelo e apertei sua mão;

“Não é por Hestia, não é?”

“Owyn sabe” Não precisou dizer mais nada. Meu coração disparou e senti na pele a angústia no olhar de meu amigo.

“Vai dar tudo certo, Lohan! Eu vou te ajudar com isso!”

“De verdade?” Seus olhos brilharam.

“É claro! Nem que eu tenha que ir dar uns tapas em Owyn!” Sorri para ele. Lohan sorriu de volta a deitou a cabeça no encosto do sofá, aproveitei a deixa para me enfiar no assunto dos três e dizer a Eileen que ele era bem-vindo em minha casa e que nós treinaríamos nos dias que não tivéssemos missões. Eileen sorriu e agradeceu a oferta, exibindo as presas para mim.

Helleon, Hestia e Lohan ficaram sem entender do que se tratava, mas por fim, os convidei a conhecer o Vale do Sol também. Pedi a Lohan que nos levasse, passamos o restante do dia aproveitando o sol brilhando na beira do lago dourado.


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A semana estava passando voando. Não via Fares desde a aula de línguas na terça, ele aparentemente estava evitando falar comigo e o peso em minha consciência só me culpava por ter saído aquele dia sem explicar a ele o que acontecera com a aluna, a salamandra que Ericko veio buscar. Não soube também o que acontecera com Misty, mas sabia que a condenação em Ciartes não a deixaria sair impune daquilo.

A sobrevivência com Gwyndion no começo da manhã fora mil vezes mais pesada que com Misty, em menos de uma hora de aula, Hestia estava suando e eu coberta de saliva de um lobo de Antares que nos achou com cara de filhotes, não de refeição. Ele fora avisado que aqueles lobos não poderiam ser mortos nem feridos, eram os bichinhos de estimação e controladores de pragas de Vegahn, então resolveu manipulá-los para os fazer nos caçar e nós tínhamos que conseguir detê-los sem machucar os bichos. O bruxo estava exultante com o novo cargo.

Precisamos voltar para os quartos e tomar banho antes de irmos para a aula de anatomia, ou corríamos o risco de sermos usadas como cobaias de Moaris. A aula da mestra foi um novo tipo de tortura, ela não nos chamou lá dessa vez, mas fez outra aluna abrir um Aswang e extrair-lhe sangue para os curandeiros e veneno da língua, o que a levou a ter um ataque de pânico ao perceber que mesmo morto a língua dele se movia e podia envenená-la caso ela fosse ferida.

Hestia e eu deixamos a última aula de quinta direto para nosso quarto, moles, exaustas, só queríamos tirar o uniforme e cair na cama, nem ligávamos para o jantar. Por sorte, a sexta-feira estava às portas, mas não nos animava tanto, pois faltava pouco mais de um mês para a prova do uniforme negro, a qual não sabíamos nada pois todos os anos a prova mudava e agora os treinamentos começavam a ficar mais intensos por causa dela.

Ira não estava no quarto quando chegamos, certamente se acomodou no quarto de Eileen, pois o malvarmo o enchia de petiscos, pelo que me contou enquanto estávamos na cabana no domingo, não acreditei muito, o glácio não era facilmente comprado por comida.

? Tem certeza que não quer ir jantar? ? Perguntei, livrando-me das roupas e pegando uma camisola no armário. Hestia estava com olhar de fome... mas não parecia ser de comida, resolvi não arriscar tirar as peças debaixo até estar devidamente coberta. Ela fez um biquinho para mim e sentou-se em minha cama.

? Não estou com fome, só cansada! Tio Gwyn pega pesado nos treinamentos, não esperava menos dele! ? Ela deu de ombros e tirou suas botas, as jogou do outro lado do quarto e se espreguiçou em minha cama.

? Eu esperava que ele não tentasse destruir com o ânimo da gente no primeiro dia! ? choraminguei, soltando os fechos do sutiã, mas quando puxei o mesmo por baixo da alça de minha camisola, o ganchinho ficou preso na junta de meu braço. ? Tá de brincadeira! ? rosnei, puxando-o, mas ele apenas afundou mais. Rosnei irritada, se fizesse força e ele arrebentasse e entrasse na dobra, teria que ir até Jezy para remover o braço inteiro apenas para tirar o gancho.

Hestia gargalhou e passou as pernas ao redor de minha cintura e inclinou-se ao meu lado para soltar o fecho.

? Tentou evitar que eu visse o que já vi antes, recebeu um castigo! ? Ela riu-se mordendo os lábios.

A porta do quarto de repente foi aberta para nossa surpresa, Hasan em sua forma feminina apareceu. Ele abriu a boca e olhou de Hestia para mim com o rosto começando a mudar levemente de cor.

? Mestre, não sabe mais bater? E se estivéssemos sem roupa? Que falta de educação! Ou devo dizer... o senhor é muito espertinho, já esperava ver algo assim, não é? ? Hestia sorriu e eu a cutuquei com o cotovelo ainda preso pelo fecho.

? Me desculpem, eu queria apenas perguntar se viram Scath hoje.

Hasan continuou parado à porta em sua forma feminina aguardando a resposta, ele olhava de Hestia para mim, mas apesar de surpreso, não parecia incomodado com a situação em que nos encontrou, e embora não fosse nada demais além de ela estar tentando apenas me ajudar com a roupa presa, obviamente quem entrasse ali sem aviso, pensaria algo errado a respeito. A bruxa abriu um sorriso familiar, o sorriso de quem queria aprontar... e não sabia exatamente como evitar que entrássemos num problemão, pois a mesma ideia que li em seus olhos, estava ganhando espaço em minha mente também.

Nós seriamos expulsas!

? Sabem onde ele está ou não? ? Hasan pigarreou, sem olhar diretamente para nós. A camisola curta que vesti às pressas por cima da roupa íntima fazia tanto para esconder meu corpo quanto para desfazer o mal-entendido da situação.

? Não vimos Scath desde a aula de ontem, mestre, mestra ? A bruxa riu ? nossa! Mesmo sendo tão poderoso, um filho dos sóis, o feitiço de proteção do dormitório ainda o pega, não é? ? ela mordeu os lábios, conseguindo por fim retirar a pequena peça metálica que se prendera em minha ansiedade para me livras das roupas.

? O feitiço de Lórien é bem forte. ? Ele murmurou já se virando para sair do quarto, mas a porta foi puxada pela magia de Hestia. Meu coração disparou ali, ou pararíamos na muralha, ou testaria o quanto Hasan tolerava as cores de minha amizade com a bruxa sem afetar nosso relacionamento. ? Preciso encontrar Scath. ? Sua voz saiu menos controlada do que esperava e acabei deixando o sorriso de Hestia tomar meu rosto também.

? Ele saiu mais cedo com Neruo, atravessaram um portal, só não consegui ver o destino deles. ? falei baixo, puxando o sutiã por baixo da camisola e jogando a peça azul marinho para o outro lado do quarto, sobre a cama de Hestia. Hasan acompanhou o movimento da roupa e engoliu em seco.

? Obrigado. ? Ele murmurou, nos dando as costas uma segunda vez.

? Não consegue mudar de volta dentro das barreiras dela? ? Hasan soltou um suspiro pesado e sua aparência mudou quase que instantaneamente de volta para o corpo masculino. Ele olhou direto para Hestia e ergueu as sobrancelhas.

? Satisfeita? ? ralhou. ? Abra a porta, por favor.

Não acreditava que ele estava caindo no jogo dela! Ou Hasan era muito inocente, ou...

? Ainda não! ? Hestia sorriu, então segurou meu queixo com uma das mãos e me beijou.

Deuses!

A bruxa deslizou a língua para dentro de minha boca, enrolando-a na minha e desceu as mãos por cima de minha camisola, passando as unhas suavemente sobre meus seios, arrancando um gemido abafado de mim.

? Hestia! ? murmurei, fingindo tentar escapar, mas ela me puxou para o seu colo e aprofundou mais o beijo, escorregando uma das mãos para baixo de minha roupa erguida. Sem conseguir me conter, comecei a desabotoar sua blusa devagar, provocando-os um pouco também. O cheiro do desejo Hasan me atingiu no segundo seguinte, mas quando desviei o olhar para ele, percebi que ele estava com as costas coladas na porta, ofegante e sem saber o que fazer.

A blusa de Hestia e suas calças se juntaram ao restante de minhas roupas no chão ao lado da mesinha, então voltei para seu colo e enquanto seus dedos vagavam preguiçosamente por entre minhas pernas, rocei as presas e a língua de leve por seu pescoço, descendo a boca até um dos seios da bruxa, circulei o mamilo morno e suave com a ponta da língua, encarando Hasan enquanto o fazia. Fechei as presas ali, fazendo Hestia suspirar pesadamente antes de fechar os lábios ao redor da auréola e o chupar. Ela respondeu a provocação, enterrando dois dedos dentro de mim, e me movi contra eles, rebolando em seu colo. Hasan não ousou se aproximar da cama, mas... ele podia ter usado magia para sair e não o fez.

Com um movimento de meu queixo, a bruxa ficou de pé e o alcançou. Hasan se encolheu contra o toque do corpo da bruxa, mas ela ficou nas pontas dos pés e o beijou de leve, apenas tocando os lábios nos dele. Hasan me encarou quase assustado, mas o sorriso em meu rosto e fez algo se soltar dentro dele. Hestia que me encarava também, mordeu os lábios e dessa vez o beijou de verdade. Meu corpo inteiro se aqueceu, cada parte de mim reagiu ao vê-la o tocar, ao percebê-lo se soltando, erguendo as mãos para segurar a cintura bruxa e deixá-la o trazer para a cama também.

Ela o empurrou para que ele se sentasse e encostasse contra uma pequena pilha de travesseiros. Eu me aproximei, tomando seu rosto entre minhas mãos e o beijei, sentindo o gosto dos dois em seus lábios, seu adocicado com o picante de Hestia. Mantive sua boca ocupada enquanto ela o despia, a respiração de Hasan acelerou quando ela tirou suas calças e começou a beijar seu corpo, entre pequenas mordidas e lambidas por seu abdômen em direção as coxas grossas e torneadas do solar. Mesmo temeroso, como se ainda tentasse se convencer do que estava fazendo ou aceitar que eu não estava incomodada com Hestia o tocando, Hasan deslizou as mãos quentes por meus seios, acariciando minhas costas, descendo a mão até o ponto úmido entre minhas pernas, me penetrando lentamente com os dedos. Foi ficando mais difícil pensar, apenas me entreguei às sensações, ao calor que emanava de seu corpo, ao som de minhas garras arrastando suavemente em sua pele e seus suspiros cada vez mais relaxados. Seu corpo inteiro tremeu e um suspiro trêmulo aqueceu minha boca.

A bruxa estava ajoelhada entre suas pernas, o membro inteiro dentro de sua boca. Meu próprio gemido se perdeu na confusão de nossas respirações. Hestia o montou lentamente e enrolou os dedos em meus cabelos, puxando minha boca para a sua, ela se movia sobre Hasan na mesma intensidade que ele me penetrava com os dedos. O senti capturar meu seio com os lábios, e Hestia gemeu baixo, acompanhando os sons que tentava conter. Devagar, desvencilhei-me dos dois e me afastei apenas um pouco para observá-los, Hasan me encarou e deu um breve sorriso antes de enrolar os dedos nos curtos cabelos cor de cobre de Hestia e a beijar outra vez. Ela aumentou o ritmo de seu quadril e ele mordeu seus lábios, grunhindo ao descer as mãos para seu quadril e se enterrar dentro dela.

Continuei a me tocar os observando, e atingi o ápice de meu prazer os vendo chegarem ao clímax também. Meu corpo tremia, Hestia devagar saiu do colo dele e deitou sobre mim, passou a língua por meus lábios e me abraçou, enrolando as pernas nas minhas, então deitou a cabeça em meu ombro e beijou de leve meu pescoço. Hasan depois de alguns segundos respirando rápido, inclinou-se sobre a cama e me beijou. Ele murmurou algo que não consegui entender, depois desapareceu num curto círculo de luz dourada.

? O que ele te disse antes de escapar como se nós fossemos tentar comê-lo de novo? ? Hestia murmurou com os olhos pesados.

? Acho que foi um “muralhas, as duas” ? ri, me inclinando para o lado e lhe lambendo o pescoço num pedido silencioso. ? Mas eu queria mais.

Hestia gargalhou até ficar rouca, só depois deixou que eu me alimentasse.

? Fiquei com a melhor parte. ? Ela brincou, apertando os braços ao meu redor quase adormecendo.

? Acredito que quem ficou foi ele. ? Ela riu mais baixo dessa vez, o rosto quase colado no meu.

? Não imaginei que você fosse ficar tão... calma. Sabe, os instintos.

? Eu não fui criada por outros como eu, meus instintos não me dominam. ? sussurrei ? Seu prazer é meu prazer, eu quero que ele saiba que eu não o quero numa gaiola, pois tenho um jardim inteiro cultivado. ? Ela me encarava pensativa ? qual prazer é maior do que fez a pessoa que você ama livre, feliz?

Hestia fechou os olhos e assentiu, mordendo os lábios.

? Na próxima invadimos o quarto do seu irmão. ? Teria lhe acertado as costelas com o cotovelo se o sono não tivesse me puxado antes.


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Hestia estava me sacudindo de manhã, aparentemente nossa brincadeira nos deixou cansadas o suficiente para perdermos a primeira aula. Dessa vez Lohan não veio nos chamar e Ira não estava no quarto para pisotear meu rosto e alertar que era hora do seu café. Pensava seriamente em arrumar uma briga com Eileen se ele não desistisse da posse de meu glácio.

Conseguimos nos arrumar rápido o suficiente para descer e pegar o segundo período, aula de combate mágico. Meu interior começou a se derreter enquanto corríamos pelos corredores em direção ao prédio principal, torcendo para não começar a dar um chilique pelo que fizemos com Hasan na noite anterior.

? Você está com cara de quem cometeu um assassinato, Kiara! Mude essa expressão, pelos deuses! ? Hestia riu e correu os últimos degraus para a sala sob o prédio principal. A aula havia recém começando quando entramos de fininho, Hasan ainda espalhava algumas armadilhas mágicas pela sala sem olhar para a porta, porém ao tentarmos chegar à Lohan e Helleon sem sermos vistas, Hasan disse alto:

? Bom dia Hestia e Kiara! As camas não queriam soltá-las? ? Pude ver a réplica nos olhos da bruxa antes mesmo de seus lábios se moverem, tapei sua boca e lancei a ela um olhar de aviso.

? Desculpe mestre, o novo treinador de sobrevivência acabou com a gente na aula de ontem de manhã. ? Comentei aproximando-me dos outros alunos, a maioria não estava interessada em nosso atraso, estavam mais preocupados com as armadilhas mágicas sendo montadas por todos os lados na sala.

? Não é desculpa para chegarem atrasadas. Fiquem aí na frente, serão as primeiras a passar pelo exame hoje. ? Hasan sorriu, ao bater a ponta dos dedos numa das armadilhas, ela explodiu, gerando uma espécie de vácuo que puxou um dos bonecos de treino próximo a ela e metade dele foi arrancado do lugar.

? Encontrou o mestre Scath ontem? O senhor o estava procurando, não estava? ? Hestia perguntou estreitando os olhos para ele. Podia jurar que vi Hasan empalidecer, mas ele apenas mostrou as armadilhas e começou a dar instruções. Tínhamos que usar esferas de energia para atacar uns aos outros, quem conseguisse empurrar os colegas na direção das armadilhas vencia. Depois de alguns segundos em que nós encaramos uns aos outros assustados e começamos massivamente a nos recusar e dizer que poderíamos matar uns aos outros, Hasan riu e bateu palmas.

? A ideia é que vocês treinem ataque e defesa ao mesmo tempo, precisam sentir quando estiverem próximos a elas e criar uma barreira para se defenderem dela.

Relutantes, começamos a praticar o exercício, obviamente procurei Lohan como adversário, ele tinha um controle melhor da magia e poderia simplesmente explodir uma daquelas coisas sem que nos afetasse caso chegássemos perto demais.

Não estávamos nem na metade do exercício, Lohan usava seu poder de forma controlada tentando me fazer ser arrastada para trás.

“Isso é um exercício ridículo!”

“Não acho que seja um exercício, ele está fazendo de novo, avaliando nosso controle sobre o poder.” Era a única explicação para aquilo. Com cuidado, atirei outra onda de magia contra Lohan deixando-o a alguns passos da teia de luz pulsante atrás de si.

Uma vibração de magia me fez deixar a energia acumulada em minhas palmas desaparecer e olhar para o outro lado da sala no momento exato em que um mago humano foi atirado pela magia de seu parceiro para trás. Ele não conseguiu invocar seu poder rápido o suficiente para evitar acertar a armadilha, foi tudo tão repentino que o mestre sequer tentou se aproximar, num segundo a magia o atingiu no outro ele estava sendo puxado pela armadilha.

Ouvi o som de sua coluna se partindo e gritei, congelando a sala.

A magia parou de girar, os alunos que olhavam a cena chocados pararam também, Lohan mantinha a mão esticada com sombras circulando seu braço. Porém o garoto ficou lá, com o corpo inclinado para trás a pele repuxada como se estivesse prestes a se romper. O encarei pelo que pareceu uma eternidade. Forcei aquela magia a regredir o tempo outra vez, imaginando um relógio em minha frente cujo ponteiro de minutos eu podia mover para trás, um minuto era o suficiente. Eu conseguiria fazer algo por ele naquele tempo. A sala se moveu para trás, para o que havia acontecido momentos antes daquilo ocorrer. Hestia e Helleon lançando magias um no outro, porém ambos mantinham os pés presos ao chão por magia. Percebi o mesmo em outros alunos e então entendi o exercício. O teste não era idiota, Hasan estava testando nosso instinto de sobrevivência quando éramos mandados fazer algo que sabíamos que poderia nos matar.

Sentindo meu corpo ficar mais fraco, liberei o tempo outra vez. O movimento da sala voltou como um elástico lassando ao soltar aquele ponteiro imaginário. Encarei Lohan pronto para enviar uma onda magia em minha direção e antes que ele se movesse, atirei rapidamente uma barreira atrás do garoto. Minha magia criou uma parede de gelo atrás dele no instante em que foi atingido por seu colega. Ele bateu as costas no gelo e chiou, olhando o quão próximo chegou da armadilha de Hasan, seu rosto empalideceu.

O mestre olhou para mim com um sorriso despontando em seu rosto. Ele fizera aquilo de propósito para me testar? Esse exercício todo fora para mim? Hasan sequer tinha ideia que meu coração estava descontrolado?

? Vamos parar por hoje. Na próxima semana, vou testá-los em campo, aposto que o mestre bruxo vai gostar de me ajudar. ? Os lamentos e choramingos tomaram a sala enquanto as armadilhas iam se dissolvendo.

? Kiara? Está tudo bem? ? Lohan perguntou. Eu havia escorregado até o chão e estava de joelhos tentando respirar normalmente. Mesmo um minuto e a exaustão procurava uma brecha para me derrubar de vez.

? Falo com você depois. ? murmurei, minha voz não passou de um sopro. ? te encontro na sala de venenos.

Lohan me encarou tenso por um momento, mas ao ver Hasan se aproximando, ele esfregou minha cabeça e saiu da sala junto com os outros.

? Você fez de propósito? ? questionei.

? Hestia e Helleon foram alguns dos que entenderam o exercício, se manterem seguros apesar das ordens. Não disse que não poderiam usar algo para se ancorarem ? Hasan se abaixou e sentou-se em minha frente no chão. ? Mas confesso que queria testar os reflexos de sua magia temporal, só não sabia como. Desculpe, não foi minha intenção.

? Você sabia que eu o salvaria.

? Sim, sabia. ? Ele admitiu ? desculpe por isso.

Meneei a cabeça com raiva.

? Não faça isso! Não me force assim! ? ralhei baixinho. ? E se eu não conseguisse?

? Porque duvida tanto de si? ? Ele segurou meu queixo com a mão, obrigando-me a encarar aqueles olhos negros brilhantes.

? Porque Fares não foi afetado pela minha magia aquele dia no pátio? ? não duvidava de mim. Tinha medo de que meu poder falhasse por causa do tempo em que o mantive preso sob os lacres.

? Seu irmão tem o mesmo poder que você, Eish-amir. Mas fares não consegue fazê-lo voltar ainda, apenas consegue parar o tempo.

Será que era esse o motivo que o fez não querer falar sobre aquilo comigo depois? Talvez estivesse incomodado que eu conseguia dobrar o tempo para trás? Duvidava disso, Fares não era o tipo que guardava rancor por algo assim.

? E porque você não é afetado pela minha magia? ? Hasan suspirou e começou a brincar com uma esfera de luz dourada entre seus dedos. Ele parecia relutante em dizer. ? Então?

? Nasci num espaço no centro do Círculo dos Doze. O tempo lá não é sentido... não se move. Nenhum tipo de magia temporal me afeta já que eu nasci contra o tempo. ? O olhei boquiaberta.

? Isso significa que...

? Que eu nunca vou mudar. Que nunca vou envelhecer além disso. Minha idade só representa um número que não faz diferença para mim.

Ele encarou aquela bolinha de luz por um longo momento, eu não sabia o que lhe dizer.

? A vantagem... é que eu posso escolher o momento que quiser morrer, assim como vocês escolhem se desfazer em gelo quando a hora chega. ? sussurrou ? Eu posso simplesmente virar luz... e em seguida apagar.

A ideia de vê-lo deixar esse mundo dessa forma me angustiou, meu coração se apertou tão forte que precisei fechar os olhos por um instante para deixar aquilo se acalmar dentro de mim. Ele não estava dizendo que estava pronto para morrer, inferno! Se acalme coração traidor! Hasan não me encarou.

Ele deu um sorriso sem alegria e me encarou. Algo na escuridão de seu olhar fez meu coração vacilar uma batida.

? Eu ia fazer isso... quando ela se foi. ? minha garganta se fechou e um tremor passou por minha espinha ? não me desfiz pois tinha Neruo para cuidar e porque sabia que minha mãe não aguentaria isso.

Não consegui evitar as lágrimas grossas que se acumularam em meus olhos.

? Ainda bem que não o fiz. ? Ele segurou meu rosto e limpou as lágrimas com os dedos ? Seria terrível... morrer por um amor não correspondido.

Pisquei sem acreditar naquelas palavras.

? Do que está falando! Acha que ela não te amava?

? Serena... ? ele engoliu em seco ? durante todo aquele tempo, até mesmo Leona que era melhor amiga dela tentou me avisar e eu não quis dar ouvidos. Eu me apaixonei pela amiga adolescente de minha irmã. A pessoa que Serena se revelou com o passar do tempo era outra. Ela me tinha como uma posse... não me permitia sair se ela não estivesse junto, ficava com raiva quando eu conversava com outras mulheres ? Hasan riu e fechou os olhos.

? Hasan...

? O ciúme dela era sufocante. Eu não... você me perguntou aquele dia quem tinha tirado minha liberdade e eu percebi que ela realmente o fez. Cortou minhas asas, ela me prendeu numa gaiola invisível e eu perdi a vontade de fazer as coisas. Não queria mais sair, não tinha vontade de conversar... pois sabia que tudo terminaria com ela brigando comigo. Mas ela dizia que me amava. Ela estava sempre me dando carinho, quando não estava brigando... dizia coisas que sabia que eu gostaria de ouvir.

Ele suspirou pesadamente e mexeu num fio de cabelo preso em sua roupa. Sentia a sala girando ao meu redor de tão parada que eu estava.

? Eu tinha medo de deixá-la, ela dizia que morreria se eu fosse embora... e eu tinha medo que ela realmente fizesse algo estúpido assim. Ela entrou numa torre com um vampiro para ajudar as sobrinhas! Serena tinha boas intenções... mas acho que ela só não sabia o que estava fazendo conosco. ? Ele estava olhando para o teto ? Estávamos muito mal quando Neruo veio, durante a gravidez ela ficou pior, sentia-se mal com sua aparência e surtava quando eu falava com uma das guardas de Esperas... me fez substituí-las por homens. E quando ele nasceu... as coisas melhoraram. Ela finalmente começou a me tratar diferente, como no começo logo que chegamos em Amantia. Eu me deixei levar por aquela mudança, mas no fundo ela continuava igual.

Ele estava desabafando... finalmente abrira a ferida que escondia com medo de doer caso aceitasse limpá-la de sua alma.

? Ela ficou semanas sem falar comigo quando Nikella me venceu numa luta só porque sua mãe tirou a parte de cima da armadura e eu fiquei chocado demais para reagir! ? Ele riu, mas o som era tão... cansado ? Minha mãe cansou de me pedir para deixá-la, mas eu sentia que não podia por causa de Neruo. E quando aquilo aconteceu... quando ela morreu, eu pensei que era um castigo pelas vezes que desejei deixá-la.

? Não foi culpa sua! ? consegui pôr para fora. Ele assentiu e pigarreou.

? Eu acreditei que ela me amava. Mas Serena só se sentiu atraída por mim. A maldição de Arbarus fez o resto, depois... nós ficamos presos, não havia amor de verdade. Eu sempre achei que a amava..., mas percebi muito recentemente que o que ela oferecia não era amor.

? Como? ? sussurrei.

? Com você. ? Ele me encarou sério. ? Todas as suas atitudes, as pequenas e as grades... mostram o quanto se preocupou com o meu coração, o quanto queria se aproximar de mim, mas se isso não me fizesse bem, você estava disposta a se afastar. Aquele dia com Mona, eu achei que você estava tendo um surto de ciúme, mas você não deu importância de verdade, controlou seus instintos. Eu achava que era cedo para julgar se você mudaria com o tempo. Tive receio que mudasse depois.

? E agora?

O rosto dele corou.

? O que você fez ontem... Ela jamais teria permitido sequer outra mulher chegar perto de mim daquele jeito.

? Então era por isso que estava com tanto medo ontem? Achou que era algum tipo de teste? ? Ele assentiu.

? Não foi totalmente por isso. ? Ele se encolheu um pouco ? Eu não... nunca...

? Ah! Não é algo que eu tenha feito antes também. ? disse, ele soltou um suspiro aliviado e não consegui evitar rir.

? Lohan?

? Não! Ele é meu amigo! O considero como um irmão! ? ralhei lhe dando um empurrão.

Hasan sorriu e se levantou, puxando-me para cima também.

? A próxima aula já vai começar. ? Ele me puxou e me deu um beijo na testa. Queria lhe roubar um beijo, mas a diferença de altura não permitiria aquilo sem que eu precisasse pular e me pendurar em seu pescoço para isso. Ele já estava derretendo minha barreira de gelo no fundo da sala e eu saindo quando disse:

? Hasan ? ele se virou em minha direção ? obrigada por compartilhar isso comigo.

? Eu que agradeço por me ouvir e não me julgar.

Ele me deu um sorriso bonito e voltou sua atenção ao bloco de gelo na sala. Deixei o local correndo, Lohan certamente estava esperando para saber o que aconteceu e eu precisava ? MUITO ? dizer a ele sobre minhas habilidades de mover o tempo.


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Não havia missão naquele fim de semana. Lórien foi chamada à Amantia pela rainha de lá pois houvera um alerta em Edro e o mago branco solicitou que Lórien fosse até lá para lidar com o problema com ele. Ninguém nos deu mais detalhes, só soube disso pois com muito custo, consegui convencer Scath a me dizer e ele não ficou muito feliz de confessar aquilo contra sua vontade.

Os mestres estavam num tipo de reunião secreta outra vez com vários mestres das outras ACV’s, o que culminou numa restrição ao prédio principal. Não podíamos chegar nem perto das portas para o segundo andar que os guardas já se aproximavam rosnando ordens para que mantivéssemos a distância. Hestia, Eghan e Helleon foram para o vale passar o fim de semana em casa e por mais que quisesse ir com eles e aproveitar um fim de semana tranquilo com os bruxos, escolhi ficar em casa. Sem ter muito o que fazer, chamei Eileen e Lohan até o Vale do Sol para treinarmos.

Ira que estava enrolado no pescoço do malvarmo, pulou para o chão e começou a esfregar o pelo contra as folhas caídas, aproveitando também a chegada em casa. Mostrei a eles o lugar e os levei até a área aberta de treinos na beira do lago. Eileen parecia empolgado com o lugar, ele sorria olhando tudo e de certa forma, ele combinava com a paisagem.

? Quer começar o treino agora? ? Eileen perguntou.

? É você que veio treinar, menino! ? brinquei, aproximando-me da pequena estante de armas que sempre esteve ali, cobertas por telhas estreitas de vitrino amarelado. Haviam machados curtos, espadas e sabres, adagas, facas de arremesso, arco e flechas e uma lança que eu não tinha coragem de tocar. Era a arma favorita de papai. Não fazia ideia onde Enaras fora parar, mas gostaria de ter sua lança comigo.

E meu pai de sangue? Qual seria sua arma favorita? E a cor? Como seria o som de sua voz?

Tantas coisas que gostaria de perguntar se o visse!

A mais importante talvez fosse: O que você fez de errado para minha mãe te odiar tanto, a ponto de despejar aquela raiva em mim também?

? Kiara? ? Eileen sacudiu a mão na frente de meu rosto, eu ainda encarava a lança. Lohan sentado em forma de gato sobre a estante de armas me encarava silenciosamente também.

? Estava só... pensando em algumas coisas. ? sorri, pegando um par de espadas no armário.

Mal havia me posicionado quando Lohan soltou um chiado e se espalhou em sombras, um rosnado assustador foi ouvido e Eileen me puxou para longe do tenebris achando que ele poderia me fazer mal. Lohan voltou à sua forma física e seus olhos estavam vidrados, completamente negros.

? Lohan? ? dei um passo em sua direção, soltando-me do aperto de Eileen, ignorando seus avisos também. ? Lohan! O que está acontecendo? ? chamei mais alto dessa vez. Uma marca como uma diadema de raios apareceu em sua testa e as mesmas marcas apareceram ao redor de seu pescoço e também em seus braços, elas pulsavam no ritmo de um coração.

? Lohan! Está me assustando o que aconteceu? ? gritei agarrando seus ombros. O tenebris sofreu algo como um espasmo e rapidamente seus olhos voltaram ao normal. Ele arquejou e apertou minha mão com tanta força que achei que poderia quebrá-la.

? Lohan?

Seus olhos se fixaram nos meus e por um momento ele esteve perdido, sem saber onde estava e o que acontecera. Podia sentir aquela confusão em seu interior, só não sabia explicar o porquê.

? Dá pra dizer logo o que está acontecendo? Parecia que você ia ter um troço! ? Eileen resmungou, por sorte ele estava longe do alcance de meu pé, ou eu teria o chutado.

? Kiara... Kiara! Os céus! ? Lohan fechou os olhos e meneou a cabeça ? O céu... O Primeiro Céu... O Primeiro está caindo!

Torpor tomou conta de mim. Sequer expliquei a Eileen como sair do Vale, apenas agarrei a mão de meu amigo e rasguei um caminho entre os mundos pela escuridão.


Capítulo 16

 

O Primeiro Céu tremia.

Ao colocar meus pés naquele paraíso de sol poente, tive a certeza que qualquer coisa podia se desfazer a qualquer momento, não importava o quão seguro ou perfeito parecesse, a possibilidade de um mundo desmoronar literalmente ou figurativamente era grande.

Pessoas gritavam e corriam para todos os lados, os tremores sacudiam prédios e casas, as árvores douradas nas calçadas pareciam ter secado de dentro para fora como flores queimadas pelo sol. Sob nossos pés e sobre nossas cabeças, as barreiras que mais pareciam galhos de árvore translúcidos se espalhando em todas as direções, piscavam perdendo o brilho dourado. Elas eram quase invisíveis antes! Agora pulsavam num alerta silencioso: Não aguentariam manter a cidade flutuando por muito tempo.

? Se eles pararem de brilhar, o Primeiro vai cair sobre o Segundo! ? Lohan não sabia o que fazer. Agarrei seu braço e corri para os guardas que orientavam a população a seguir em direção aos portais para deixar o céu e pedi instruções do que fazer para ajudar. Havia um círculo de magos Ventus se formando ao redor da praça no centro da cidade, eles estavam tentando passar energia para a barreira de lumis. No centro da praça, o tronco de luz prateado agora visível a todos permanecia intacto, porém os “galhos de magia” que sustentavam o Primeiro estavam morrendo, se apagando aos poucos.

Uma das guardas solaris me instruiu a estender minha magia como uma teia sobre os galhos, como um feitiço de contenção. Lohan fez o mesmo. Com as mãos estendidas na direção das raízes, fios de energia deixaram nossas palmas e se espalharam, criando a rede de contenção por uma grande área do primeiro, emendando-se nas magias dos outros magos. Os ventus ao nosso redor cantavam baixinho, orações aos deuses que nunca ajudavam de verdade quando mais se precisava deles.

Alfia estava lá no centro, com as mãos abertas espalmadas contra o tronco, chorando baixo tentando fazer uma magia agora inexistente a deixar seu corpo para alimentar a vida de suas barreiras. Seu corpo não tinha mais brilho, a pele não cintilava, os olhos eram apenas âmbar. Ela havia perdido o sol sob sua pele.

Ver aquilo doeu como o inferno. Ela não merecia sofrer daquele jeito. Seu povo não merecia aquilo tampouco.

? Achei que precisassem apenas de uma doação anual! ? falei.

? Uma vez por ano, eles tocam nos centros de magia e a renovam, mas os reis tem suas energias absorvidas todos os dias, pequenas doses... mas se o poder de um rei se esgota, a teia de magia entra em colapso.

? E isso vai dar certo? ? apontei com o queixo nossas mãos estendidas. Lohan meneou a cabeça negativamente.

? Sem um solaris sangue de seiva, a contenção pode durar apenas tempo o suficiente para esvaziar a cidade... e destruí-la. Se não fizermos isso, ela vai cair sobre os outros céus ? Meu interior se revirou em pânico.

Eu queria ter pensado antes em ajudar Alfia, queria ter procurado entender mais de seu problema e oferecer ajuda e não ter empurrado aquilo para o fim de minha lista de tarefas, mas tinha tanto sobre minhas costas que eu não quis saber daquilo, a deixei sozinha com seu próprio fardo.

Os tremores da cidade não diminuíram, embora estivéssemos usando o máximo de nossa concentração, ainda não era o suficiente.

Aqueles lindos prédios espelhados refletindo o crepúsculo eterno do Primeiro Céu, balançavam perigosamente levantando poeira brilhante e espalhando uma chuva de vidro sobre os solaris que ainda escapavam de suas casas em direção aos céus sob nós.

Desespero, dor, angústia.... podia ler aqueles sentimentos nos rostos aflitos dos solaris. Porque eles não faziam nada para ajudar? Porque não tentavam juntar a própria magia para manter seus lares de pé?

“Não adianta!” A voz de Lohan soou quase chorosa em minha mente “É um fardo dos que tem pelo menos uma gota do sangue real! Se não tiver... o poder não flui. É um castigo, Kiara! Um castigo para ser pago por aqueles que ousaram se sentir superiores e tentaram subjugar os que não tinham como se defender.”

Eu queria chorar. Acreditava que o fardo que carregava era pesado... mas a sensação de ser preso por toda a vida para alimentar a magia que mantinha todo um reino existindo... e por um pecado que não era seu.

A cidade não havia esvaziado completamente quando partes dos galhos começaram a desaparecer. Em pânico, tensionei os dedos e me concentrei espalhando mais minha magia, ajudando os ventus que se olhavam assustados com a queda iminente do Primeiro. Não adiantaria voltar alguns segundos no tempo. Alfia ainda perderia seus poderes aquilo ainda aconteceria.

Fechei os olhos pedindo por um milagre, mas apenas um rosto surgiu em minha mente.

Luz dourada brilhante e morna varreu a praça onde estávamos, lançando ondas de calor por todo o lugar nos obrigando a manter os olhos fechados. Mesmo assim, aquela luz intensa com uma sensação tão familiar fez os tremores diminuírem aos poucos até que parassem por completo instantes depois. Quando o brilho diminuiu o suficiente para vermos quem estava brilhando ao lado de Alfia, meu interior gelou.

Hasan estava com um joelho no chão ao lado da rainha solaris desacordada, ele a segurava com um braço e sua outra palma tocava o tronco de magia. Luz irradiava de sua mão através dos galhos antes quase apagados, agora brilhavam outra vez, pulsando como um coração de fogo e calor. Seu poder se espalhou pelo céu e quanto mais longe ia, mais bonito o lugar se tornava. Os galhos espalhados sob nossos pés me lembravam veias de luz, como vertentes de um rio de raios de sol.

As marcas no corpo do solaris brilhavam intensamente e naquele momento, ele realmente se mostrara como era de verdade, com um sol incandescente sob a pele cor de bronze, olhos dourados e cabelos brilhantes tal qual brasas vivas.

Outro pulso de magia foi sentido, então as luzes dos galhos estabilizaram e o tronco tornou-se translúcido outra vez, escondendo também a trama de magia que mantinha o Primeiro Céu seguro outra vez. Suspirei aliviada percebendo que a destruição ali não chegou a um nível de ser irreparável, mas a sensação desapareceu ao ver a mesma marca que circulava a testa de Alfia, marcada em ambos os lados do pequeno selo do sol brilhante sobre as sobrancelhas de Hasan.

? Pode soltar agora. ? Lohan pegou minhas mãos, devorando a magia que eu ainda mantinha vazando de meu corpo para o chão. Meus olhos estavam fixos no solaris com a mão no rosto de Alfia tentando despertá-la.

Dei um passo vacilante em sua direção, não sabia que era possível que ele estabilizasse o Primeiro e depois pudesse sair dali sem ter outra pessoa que o substituísse. Lohan me olhava com um misto de pena e simpatia no rosto, aquele olhar fez meus joelhos vacilarem.

“Ele não pode” Sua voz soou gentil em meus pensamentos. Foi o mesmo que se tivesse as gritado em minha cara.

? Você voltou para me ajudar! ? Alfia abriu um sorriso ao despertar e vê-lo ali. ? Eu tentei achar outra alternativa... sinto muito! Minha magia se foi!

? Eu percebi, Iash-aila. ? Ele murmurou, levantando-a com cuidado.

? Agradeço a todos pela ajuda! ? Ela nos encarou com um sorriso crescente no rosto ? Os magos ventus vão cuidar do que foi danificado, não vão? ? questionou ela alegremente, passando os olhos pelas pessoas que a ajudaram e ainda aguardavam uma ordem ali. Eles colocaram as mãos sobre os corações, agradecendo a Hasan por ter doado energia à barreira lumis, então se afastaram em direção a cidade, avisando os guardas para que abrissem os portais novamente.

Ele estava evitando olhar para mim. Hasan não queria olhar para mim. Eu por outro lado, não conseguia desviar o olhar. Tinha a vaga sensação que estava perdendo a sensibilidade na pele, a impressão de que meus sentidos e sentimentos desligavam-se um a um e apenas minha visão continuava intacta.

Não ouvi quando Lohan disse algo ao meu lado, sua voz soava como se eu estivesse no fundo de um lago, via sua boca se movendo, mas o som não me alcançava. Não senti quando seu braço passou ao redor de minha cintura e me conduzia na direção do palácio de Alfia. Tampouco senti a distância até os portões principais.

Não consegui prestar atenção em quais cores as cortinas tinham dessa vez ou no cheiro trazido pela brisa morna que entrava pelas janelas, sequer percebi se a destruição havia chegado ali ou não.

Estávamos de pé na sala do trono, vi por trás da névoa que tentava encobrir minha visão a rainha convocar uma mulher com um uniforme da guarda, e a vi sair correndo da sala também. Alfia, sentada num sofá sob as janelas laterais do salão, bebia algo num copo de ouro que fora oferecido por Hasan. Ela sorriu para ele, tinha certeza que as palavras que deixaram os lábios pintados de dourado da rainha tinham a ver com agradecimento.

Lohan ainda tentava falar comigo quando me puxou para o lado oposto da sala. Vi Hasan e ela conversando. Ele não tinha expressão. Seu rosto era uma máscara gélida, a mesma que vestiu por tantos anos na ACV, mas ele assentia enquanto ela falava com entusiasmo, com um sorriso cada vez mais brilhante no rosto. Hasan me olhou no instante que a rainha disse algo alto o suficiente para fazer dois guardas deixarem a sala correndo.

Hasan me encarou naquele instante, embora sua expressão não tenha revelado nada, o brilho em seus olhos tinha palavras não ditas.

Lohan se colocou em minha frente quebrando o contato visual. O tenebris me encarava assustado, seus olhos procuravam algo dentro de minha mente que talvez não estivesse mais lá.

? Por favor! ? Ele sussurrou, espalhando aquela fumaça doce ao redor de meu rosto, despertando-me do torpor, acordando meus sentimentos que se desprenderam como uma avalanche. Alfia estava a alguns passos de nós, olhando por cima do ombro de meu amigo. Um tremor violento balançou meu corpo e me agarrei a Lohan, usando-o como uma ancora.

? Coitadinha! Ainda está em choque! ? Alfia se aproximou mais e pegou meu rosto nas mãos ? Imagino que isso possa ter despertado lembranças ruins, não é? Quando o castelo de gelo caiu...

? Alfia! Dê um momento a ela. ? Lohan ralhou.

? Logo haverá muito para comemorar! Não se preocupe! Essas memórias ruins serão apagadas pela festa de casamento mais bela já vista nos céus! ? Ela rodopiou de volta pela sala e sentou-se em seu trono.

? Ela disse casamento? ? não sabia se as palavras tinham realmente saído de minha boca ou eu só as havia dito em minha mente.

? Ela... eles acabaram de confirmar isso, Kiara! ? Lohan sussurrou ? Hasan ofertou seu poder para a barreira de lumis... ele se ligou aos céus! Sem ter alguém que possa substituí-lo e com a possibilidade de Alfia partir a qualquer momento... eles precisam estar casados para que ele receba a coroa.

Talvez... talvez tenha sido naquele momento em que ninguém mais podia escutar, que ouvi com clareza meu coração se quebrar.

A sala do trono começou a se encher rapidamente. Os soberanos dos outros céus apareceram um atrás do outro assim como seus conselheiros. Hamza e Luyen chegaram para perto de nós assim como Owyn e Awen. Uma olhada rápida pelo salão e vi os rostos confusos dos outros soberanos tentando entender o que estava acontecendo, encarando o solaris recém-chegado de pé ao lado do trono de Alfia com uma mão sobre a dela.

O braço de Owyn estava ao redor de meus ombros e ele me olhava de cenho franzido.

“Não mostre a ela sua dor, minha pequena” Apenas uma vez ele falara comigo com tamanha gentileza antes. No dia em que eu fui levada ao Quinto céu e chorei por horas quando ele provou meus medos. Awen também estava ali, com a mão apoiada em minhas costas.

Eles formavam um círculo ao meu redor. Talvez prestes a me conter caso eu resolvesse voar na garganta da rainha solar, ou talvez tentariam me impedir de desmontar bem ali. Aquilo não podia ser real.

Eu devia estar em outra prova com Owyn e ele tentava me arrastar para o fundo, para testar o quão baixo podiam me derrubar sem que as forças para levantar me abandonassem de vez.

Alfia começou a falar quando todos os soberanos chegaram. Contou a origem de Hasan, mostrou a eles a marca que o ligava ao primeiro e anunciou seu casamento para todos. Agora ele não tirava os olhos de mim.

Não era um pesadelo, no fim das contas. Meus pesadelos doíam por dentro, mas não me deixavam tão vazia assim.

O vi pronunciar meu nome sem deixar o som escapar.

E quando os soberanos saíram daquela sala, minutos, talvez horas depois, eu me deixei ser guiada para fora daquela sala por Lohan e Awen. Estávamos quase no pátio central no instante que Hasan apareceu, os dois tenebris se afastaram, mas ainda conseguia sentir suas presenças ali em algum lugar, não xeretando... apenas esperando para me amparar caso precisasse.

? Kiara... eu sinto muito por isso. ? Hasan pegou minhas mãos e as beijou.

? Eu entendo. ? As palavras me surpreenderam tanto que por um momento fiquei em silêncio antes de continuar ? Você não deixaria que aquelas pessoas ficassem desamparadas, não permitiria que o Primeiro caísse sobre as cabeças do Segundo. Você é gentil demais para colocar seus sentimentos acima do bem-estar dos outros.

Ele fechou os olhos e apertou minhas mãos firmemente.

? Não quero que seja assim, mas não posso pedir a meu pai que venha.

? Eu sei. ? sussurrei.

? Kiara... ? Ele segurou meu rosto entre as mãos. Podia ver a angústia tomando conta de seu olhar. ? Você não está bem!

? Não é algo novo para mim, sabe? Acho que já me acostumei a isso. ? forcei-me a sorrir, esperava que não parecesse uma careta ? Eu não tenho problema com os casamentos poligâmicos deles.

O solaris fechou os olhos outra vez e tocou a testa na minha. Por um mísero momento, aquele calor fez a pontada em meu coração ser mais suave.

? Você não merece ser a segunda na vida de ninguém, Eish-amir. Escolheu o locam para ser livre, poder conhecer os outros mundos. Eu jamais a prenderia numa gaiola como essa apenas para não te perder. ? Hasan bufou uma risada amarga ? Eu acabei de te encontrar. Mal me encontrei outra vez por sua causa e agora...

? Se quer que eu saia desse castelo com um pingo de esperança, Hasan, não conclua essa frase. ? ergui meus dedos metálicos para lhe tocar a bochecha. ? Eu vou te esperar até o último minuto de minha vida se você me disser que ainda tem chance de ser livre disso. ? Engoli em seco, minha língua parecia uma lixa dentro de minha boca. ? Não importa quanto tempo leve ou o que tenha que faze até lá. Eu posso esperar.

Hasan não disse nada.

Ele soltou as mãos de mim e se afastou um passo.

? Não mereço você. ? sussurrou.

? Eu discordo. ? fiquei nas pontas dos pés e o beijei, queria sentir seu gosto mais uma vez, não sabia quando o faria de novo e não queria pensar na possibilidade de nunca mais o fazer. ? Acabou de salvar um reino inteiro e acha que não merece amor?

Lohan e Awen apareceram novamente quando dei o terceiro passo para longe de Hasan. Se eu ficasse mais um minuto, talvez ignoraria o fato de que um céu inteiro dependia dele e o imploraria para voltar para casa comigo.

? Espero que fique bem, mestre. ? fiz uma curta reverência antes de a escuridão dos tenebris nos arrastar para dentro do Vale do Sol outra vez.


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Eileen não estava mais lá quando chegamos. Awen e Lohan trocaram palavras rápidas e o príncipe do Quinto desapareceu em seguida, deixando uma trilha perfumada de fumaça de canela para trás. Andei distraída pela casa, chutei minhas botas para o canto ao lado do sofá e atravessei o curto corredor em direção ao meu quarto. Não fiz esforço algum para me livrar das roupas ou me incomodei em soltar a trança apertada que havia feito mais cedo para treinar.

Mais cedo...

Tinha a impressão que havia se passado uma semana desde aquela manhã.

Atirei-me sobre a colcha de veludo macia e fechei os olhos apertados. Tinha me acostumado a engolir meus sentimentos, a enterrá-los tão fundo que eu mal conseguiria puxá-los para cima quando precisasse, mas dessa vez fui traída por meu coração apaixonado.

Estava chorando antes mesmo que percebesse que o tremor da cama era meu corpo sacudido pelos soluços que não conseguia engolir. Num instante estava sozinha ali, no outro Lohan me apertava nos braços acariciado minha cabeça e sussurrando palavras calmantes para mim. Apertei meus braços ao seu redor e juro que tentei fazer aquilo parar. Eu sequer conseguia dizer a ele que estava tudo bem, que ficaria tudo bem.

Tinha uma promessa a cumprir. Duas na verdade.

Mas naquele momento, eu só queria continuar enrolada no colo de meu amigo até que aquela dor não passasse de uma lembrança ruim. Não percebi em qual momento fui colocada sob minhas cobertas, nem quando a doce fumaça me embalou para um sono pesado, mas tive a certeza que ele não saiu de perto de mim quando o breu dos sonhos me reclamou.


Hasan:


O inferno devia ser assim. Ter a certeza de que havia conquistado algo e ver aquilo ser arrancado de você por suas próprias escolhas. Enquanto espalhava minha luz para preencher o fraco brilho daqueles galhos dourados, em minhas mãos estivera a escolha que uma pessoa justa e responsável faria. Alguém bom escolheria ajudar os outros ao custo de percas pessoais. Foi isso que eu escolhi fazer.

Mas aquilo... era uma espécie de castigo diferente.

Esperava tudo de Kiara enquanto Alfia anunciava feliz aquele maldito casamento... minha prisão. Aquela ligação de guardião me permitiu sentir o que ela sentiu e o efeito fora devastador. Por um milagre me mantive parado ao lado da rainha solar.

Primeiro foi uma dormência silenciosa... depois angustia, tristeza e uma dor tão intensa que aquela ligação se contraiu como se fosse arrebentar e então... nada. Um vazio interminável tomou conta daqueles olhos enquanto Alfia falava sobre o casamento e sua condição para os outros soberanos.

O príncipe Awen e Lohan ficaram ao lado dela durante aquele momento, e ao deixarem a sala com ela, ignorei Alfia falando comigo e segui atrás deles.

As palavras que Kiara me disse quando os alcancei fizeram um misto de emoções passar por mim, eu só queria abraçá-la e voltar para a ACV, mas ela disse que me esperaria... e fez com que eu a amasse ainda mais.


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Sentado num pequeno sofá no quarto que os criados de Alfia me prepararam, encarava as duas luas brilhantes que recebiam aquela luz do eterno poente do Primeiro. Precisava ir até a ACV conversar com Lórien, explicar a situação. Eles teriam que arrumar um novo mestre de combate mágico...

Eu prometi a ela que a treinaria.

A sensação que tinha era que havia abandonado tudo. Olhei para a marca prateada em meu pulso, ela agora nem brilhava mais, estávamos tão longe que a ligação de guardião adormecera. Não queria nem pensar no que Áries faria assim que soubesse, tinha medo que ela se zangasse e tentasse comer Alfia viva, ou pior, ficasse nervosa com a situação a ponto de perder o bebê. Eu teria que falar com eles em breve também.

Como se tivesse sido invocada por meus pensamentos, a rainha solaris apareceu sorridente, entrando no quarto sem ao menos bater na porta. Se não fosse a completa ausência de poder em seu corpo, diria que ela armou aquilo para que eu fosse obrigado a aceitar sua oferta. Ela andava sorrindo e feliz demais para alguém que quase acabara de perder o reino e seu povo. Por um milagre, houveram poucos ferimentos graves e nenhuma baixa.

? Hasan? ? Ela entrou e baixou os olhos para as mãos cruzadas contra o peito ? Eu gostaria de dizer que fico muito grata por ter aceitado ficar aqui.

? Não tinha outra escolha, tinha? ? retruquei mais rispidamente do que queria, embora ela não tivesse culpa de perder a magia... estava zangado com o modo que conduziu as coisas. Ela sabia sobre os sentimentos de Kiara por mim, e dos meus por ela. Alfia fizera aquilo de propósito para jogar um balde de água fria nas esperanças da garota.

Alfia crispou os lábios e me encarou com os olhos tristes.

? Quando se tornar rei... quando eu me for, poderá se casar com ela e formar uma aliança com Vegahn.

? Kiara não assumirá o trono de Vegahn, Alfia. O trono é prometido ao herdeiro de Nikella e Susano, e não a ela. E mesmo se fosse, eu jamais me casaria com alguém por conveniência como você escolheu fazer.

Parecia que eu havia lhe dado um tapa no rosto. Ela deu um passo hesitante para trás, colando o corpo na parede dourada, ornada com desenhos de flores pintados ali com uma espécie de tinta perolada e furta cor, que conforme a luz batia neles, as cores mudavam. Ela apoiou as mãos no dossel de madeira branca e suspirou, seu olhar se fixou na colcha vermelha e ela começou a falar devagar:

? Não me julgue tão mal. Não estragaria o amor de duas pessoas se o meu reino não dependesse disso. Me dói por vocês, mas são milhares de pessoas que ficariam sem lar caso eu não tomasse medidas drásticas.

? O que quer dizer com isso? ? franzi o cenho para aquelas palavras, havia algo errado em sua frase, mas se estava escondendo algo, não deixou transparecer. Alfia me olhou firmemente com os olhos âmbar brilhando.

? Não basta os problemas que tivemos com meu pai? Toda a maldade que ele fez com essa gente? Sabe quantos a mãe daquela menina matou sem lhes dar uma chance de arrependimento?

? Eles atacaram o Sétimo...

? Meu pai foi poderoso o suficiente para me colocar num feitiço de tempo e absorção de magia, Hasan, quantos daqueles que estavam lá não deviam estar sob influência dele? ? Alfia balançou a cabeça fechando os olhos ? O Primeiro ainda se recupera daquilo. Não temos mais nem um terço de nossa população, não sobrou nenhum mago solaris para que eu pudesse me casar com outro lhe concedendo realeza por título e livrar você desse destino! Caso houvesse pelo menos um, eu poderia dar meu sangue a ele ou ela e passar o trono, você sabe disso.

? Kiara não tem culpa das ações de sua mãe, assim como você não teve das de seu pai, e você não deveria amenizar a maldade de Sarki, Alfia. O que está feito está feito, não se preocupe que eu não pretendo voltar atrás com minha palavra. ? Ela deu um meio sorriso aliviado e se aproximou e apertou meu ombro, não precisei ver seus pensamentos para sentir o que ela queria. Saí do alcance de suas mãos. ? E espero que não entenda errado minhas intenções. Não estou aqui para te fazer companhia, agradeceria se não tentasse me tocar tão levianamente outra vez.

Ela piscou e afastou a mão.

? Eu...

? Imagino que tenha pessoas interessadas em aquecer sua cama, eu não sou uma delas. ? Ela baixou o rosto outra vez.

? Então será um casamento de fachada?

? E não era essa a sua ideia? Afinal, você não me queria para que eu mantivesse o seu povo seguro e seu reino de pé? ? rebati.

? Eu pensei...

? Pensou errado ? contive um rosnado ? fique com quem quiser, mas não volte a se aproximar de mim.

? Então você vai trazê-la aqui? ? Alfia sussurrou, dessa vez não consegui segurar o tom de voz afiado.

? Eu jamais faria algo assim com ela. ? Alfia assentiu.

? Desculpe-me, não era minha intenção lhe ofender, só achei que poderíamos nos tornar mais amigos.

? Poderia me dar licença? ? apontei a porta com o queixo e voltei a encarar o céu manchado em tons de violeta, azul e intensos pontos de luz. Sentia seu olhar avaliando-me, mas preferi ignorar sua presença, talvez assim ela me deixasse em paz. A porta do quarto bateu suavemente alguns instantes depois.

Qualquer coisa... eu queria qualquer coisa que me livrasse daquela situação. Só queria minha sala de aulas e minha Kiara de volta.


Capítulo 17


Kiara:


O aperto de meus dedos sobre os punhos de minhas espadas de pedra negra e vitrino me dava uma boa sensação de segurança. Mesmo presas nas fivelas em minha cintura para que ficasse mais prático sacá-las a qualquer instante, ainda sentia falta de mantê-las no pingente, mas da última vez que precisei pegá-las rapidamente, as deixei cair na neve e isso me fez abandonar de vez o uso das miniaturas.

Hestia se remexia incomodada com o paredão de gelo contra suas costas, estávamos ali a tanto tempo parados que quase me sentia parte do gelo do lugar. Inclinei um pouco a cabeça para olhar sobre a rocha que nos escondia. Bem alto sobre a montanha do outro lado do penhasco congelado, Helleon em sua forma de dragão soltou um urro colossal e bateu as patas, derrubando neve e pedras de gelo sobre o pequeno grupo de caçadores encasacados até os dedos, tentando alcançar o ninho falso sobre o qual o dragão descansava;

Amadores.

Se fossem profissionais saberiam que um dragão negro não faria um ninho exposto no gelo, no mínimo ele teria escavado aquela montanha para criar um ambiente aquecido para o ovo. O segundo ponto que aqueles encantadores não repararam: os espinhos saltados na cauda do dragão. Duvidava que não estivessem enxergando bem o suficiente para ver a diferença de um macho para uma fêmea.

Outro urro foi ouvido, esse mais longo e grave: o sinal que esperávamos. Os encantadores entraram no limite das armadilhas.

Hestia girou, saindo de trás da pedra num salto para o penhasco mortal abaixo de nós. Corri para fazer o mesmo, só que ao invés de abrir minhas asas como ela fizera, as quais ainda não havia tentado usar, apenas me atirei esperando que Lohan mudasse para a forma de um imenso corvo negro e me levasse até os caçadores;

O som metálico e agudo da armadilha se fechando causou outro pequeno deslizamento de neve, num minuto aqueles encantadores estavam presos numa jaula de aço recoberto por prata. Lohan mergulhou para baixo, o vento gelado no meu rosto em plena queda era tão agradável! Esperava ansiosa por minhas aulas de voo com Helleon e Connal.

? Pegamos eles! ? Hestia gritou, pousando sobre a grade. Helleon que descia circulando majestosamente a montanha, pousou sobre as grades soltando um rosnado irritado aos nossos prisioneiros, bufando uma lufada de fumaça e enxofre sobre eles. Desci das costas de Lohan e caminhei até a grade para observar um a um, encará-los nos olhos.

Eles tinham peles rosáceas, azuis e lilases, marcas como pequenas pétalas coladas em suas cabeças carecas variavam do violeta ao marfim, eles tinham dentes retos e curtos, olhos grandes sem pupilas e não tinham mais que um metro e meio de altura, as asas translúcidas deveriam estar enroladas sob os mantos espessos, uma vez que o gelo as faria congelar e quebrar facilmente.

Eram fadas de Mairdok ou Treezer. O grupo de encantadores nos encarava e chiavam baixo, esperando a oportunidade para se soltarem da gaiola de prata e largarem sua magia sobre nós.

? Vocês estão quebrando as leis sobre caça de criaturas mágicas em Vegahn. Receberam um aviso e não pararam, feriram vários guardas em sua fuga descuidada e continuaram as atividades ilegais ? disse calmamente puxando grilhões de prata de minha bolsa tiracolo. ? Vocês estão presos sob a guarda da Academia Venox e serão levados a ela para serem enviados de volta ao seu mundo e julgados. ? entreguei os grilhões para meus amigos, os soltaríamos um por um e os prenderíamos.

Quando Helleon abriu a gaiola apenas um pouco com a pata, um deles deu um salto, atirando algo que pareceu um pó verde sobre nós e disparou pela neve. Sem nenhuma dificuldade, consegui juntar aquele pó com um estalo dos dedos para que não nos atingisse.

Abri a boca e comecei a cantar.

Uma melodia baixa e suave, do tipo que embalava o sono de crianças a noite, mas que se desenvolveu para algo sombrio quando ele tentou lutar contra ela. A vibração de minha voz usando o canto sirênio dado a mim como recompensa, fez o encantador parar no meio da corrida e se virar em minha direção. Ele caminhou de volta e se ajoelhou na neve, estendendo as mãos para que colocássemos os grilhões.

Continuei cantando até todos estarem presos, inertes, perdidos em algum lugar em meu próprio encanto.

? Adoro quando faz isso! ? Hestia deu um risinho, prendendo os encantadores uns com os outros numa corrente guia.

? Vamos voltar? ? ofereci, abrindo o portal. Ninguém nos veria chegando mesmo!

Hestia, Helleon e Lohan me seguiram para dentro daquele túnel negro salpicado de luz, eles conversavam baixo, empolgados com a captura das fadas que conseguiram escapar de três equipes venox já formadas.

? Lórien vai surtar!

? Ela esperava que conseguíssemos, Hestia! Não teria dado a missão se duvidasse de nós! ? revirei os olhos e apertei a bruxa com um braço.

Embora tentasse com todas as forças parecer normal naquelas últimas quatro semanas desde que Hasan foi para o Primeiro e não voltou mais... eu sabia que não estava enganando ninguém com minha atuação de merda. Eu sentia falta dele. E minha tristeza era aparente mesmo quando tentava não demonstrar.

Fares também falou comigo poucas vezes desde o episódio com a garota salamandra, não conseguia entender o porquê ele fugia de mim, mas pelo visto não era algo pessoal, uma vez que estava evitando Hestia também, ela até tentou falar com ele, puxando assunto sobre a primeira semana com o novo mestre de combate mágico, mas ele escapou. Arcádius foi quem substituiu Hasan naquela matéria e pegava tão pesado quanto, só que o mago metamorfo usava tudo a seu alcance para me forçar a dobrar o tempo em curtos períodos durante as aulas, assim eu era obrigada a aprender a controlar melhor minha magia.

O resultado foi em que em três semanas, eu podia voltar até cinco minutos sem ter uma crise e começar a congelar, mesmo que precisasse me alimentar imediatamente depois. Arcádius forçou meu treinamento mágico até que eu pudesse abrir portais instantaneamente como os outros, curar usando magia e principalmente... podia usar luz e escuridão facilmente, invocar raios, sombras ou noite, transformar barras de metal em pó negro com um estalar dos dedos.

“Quando somos afastados daqueles que amamos, nossos esforços se tornam mais produtivos... pois muitas vezes a raiva é que impulsiona nossa vontade de ser melhor” Foram as palavras dele para mim naqueles primeiros dias. Ele não estava errado quanto a isso.

Agora só precisava de minhas aulas de voo. Talvez com mais aquilo para devorar meu curto tempo livre, eu conseguiria não ver o rosto de um certo mago solaris toda vez que tivesse um minuto para descansar.

? Vamos? ? Hestia me chamou, me encontrava parada à beira do rasgo do portal, olhando para o nada sem ter me dado conta que havíamos chegado. O novo ponto que eu sempre usava para abrir e fechar portais era ao lado da estufa das hortas medicinais, uma área que quase ninguém além de Glyph e Eghan se aproximavam por causa das ervas venenosas despontando pelas portas de vidro do local.

Deixei que o portal se fechasse atrás de mim e seguimos pelo pátio deserto arrastando aquelas fadas irritadas atrás de nós. Helleon vinha depois deles, garantindo que não fariam gracinhas.

A neve caia pesada naquele fim de tarde de domingo. O céu cinzento escondia qualquer traço de luz natural e todas as pequenas esferas luminosas estavam acesas pela academia. Hestia e Helleon tomaram um caminho diferente, levando os encantadores para os calabouços, nos encontraríamos na sala de Lórien, precisava ir logo e começar relatar os detalhes daqueles dois dias de caçada. Não foi difícil encontrar o rastro deles depois das coordenadas passadas pelas equipes anteriores, as quais foram passadas para trás por aquelas fadas pestilentas.

Os corredores também estavam desertos enquanto seguíamos silenciosos até a sala de Lórien para entregar nossa missão.

Me peguei imaginando se os mestres de Pollo ainda estariam na ACV. Começava a suspeitar daquele monte de reuniões e que de alguma forma elas estariam ligadas às provas do uniforme negro. Porém me aproveitei da situação para abordar Ederon sobre o fragmento, uma vez que ele parecia mais amigável, imaginei que poderia conseguir aquele com mais facilidade que os outros.

Estava redondamente enganada!

Ederon riu ao me ouvir pedir o fragmento e disse quais foram as condições que minha mãe impôs para que o entregasse a quem quer que ousasse procurar por ele. O rei dos lobisomens disse que no momento certo eu teria minha prova para encontrá-lo, mas até lá, devia esperar.

Me irritei com aquilo, mas o que poderia fazer além de lhe dar ouvidos e esperar? Só havia uma dica por fragmento, não tinha como procurar pelos outros sem achar aquele primeiro.

O som de nossos passos ecoando nos corredores fez uma estranha sensação de nervoso se espalhar por mim. Mesmo aos domingos, escutava alguns mestres conversando, ainda conseguia ouvir Lórien conversando alto em sua sala enquanto tomava seus chás... mas simplesmente não havia som algum. Reparando bem, nem mesmo os guardas estavam fazendo suas rondas quando chegamos.

? Tem algo errado acontecendo! ? ciciei adiantando-me para a sala de Lórien no meio do corredor.

A porta estava escancarada e eles não estavam lá.

Porém, sobre a mesa de vidro com o mapa de Vegahn, uma esfera de luz azulada pulsava e rodopiava deixando um fino apito incômodo escapar.

? O que é isso? ? Lohan perguntou, evitando se aproximar do objeto luminoso.

? É um raszul. Feitiço mensageiro. ? me aproximei devagar ? Lórien, Medras? ? chamei apenas para ter certeza antes de meter a mão no que não era de minha conta. Passei as mãos ao redor da esfera sem tocá-la, da direita para a esquerda e a mensagem era tocada.

“LÓRIEN” uma voz feminina exaltada gritou do outro lado “AS TORMENTAS ESTÃO SENDO ATACADAS POR UMA HORDA DE DEMÔNIOS FAGULS! MANDE OS GAROTOS PARA A CASA COM A BARREIRA ILUSÓRIA E VENHA NOS AJUDAR, POR FAVOR!”

Por trás de sua voz escutamos também o estrondo de algo assim como o som inconfundível de dragões marinhos urrando.

? Tem chance de isso ser uma piada de mal gosto? ? Lohan apertou meu braço. Meneei a cabeça negativamente, olhando assustada a esfera.

? Mande os garotos para casa com a barreira ilusória... eles evacuaram quem estava na ACV para o palácio do Retiro das Folhas. Devem haver guardas no portão principal para avisar as equipes que voltarem das missões. ? Já estava me movendo antes de terminar de falar, correndo para fora da sala, escadas abaixo indo encontrar com Hestia e Helleon.

? O que são Faguls? ? Ele quis saber.

? Os mesmos demônios de fogo menores que cercaram e atacaram meus pais. ? um rosnado escapou de meus lábios, estava mais assustada do que com raiva.

? Você vai até lá? ? assenti. Lohan manteve o ritmo ao meu lado até que encontramos os bruxos falando com os guardas do portão principal, Xiaz e Ruthyr os instruíam calmamente a seguirem para Retiro das Folhas.

? Vão para lá! ? ordenei, o medo embrulhava meu estômago, não queria que eles estivessem lá também. Hestia já estava franzindo o cenho para mim ? por favor tomem conta de Fares! Voltaremos logo!

? O que está acontecendo afinal? ? a bruxa segurou meus ombros.

? Não vamos a lugar nenhum sem você! ? Helleon completou, cruzando os braços, pronto para uma longa discussão.

? Eu preciso que vocês confiem em mim, tudo bem? ? implorei, minha voz saiu trêmula, Lohan apertou o braço ao meu redor. A bruxa apertou os lábios, sabia que estava prestes a discutir comigo, porém ela deve ter lido o pânico em meus olhos e assentiu.

? Tome conta de Fares, sabe como chegar ao Retiro das Folhas, não é? Se algo suspeito acontecer lá, mostre a Helleon como entrar no Vale do Sol e tire meu irmão de lá! ? Ela assentiu outra vez, Helleon mudou, transformando-se novamente num imenso dragão negro e abriu as asas, chamando a bruxa para subir. A neve a impediria de voar com suas próprias asas até lá.

Ela não desviou os olhos quando o dragão decolou, até que estivessem longe o suficiente para não nos enxergarem mais em meio a tempestade que caía sobre nós.

? Não vai me pedir para ficar também? ? Lohan sorriu, abrindo a fenda.

? Deveria... não é? ? passei meu braço ao redor de sua cintura e apoiei a cabeça em seu peito, observando aquele rasgo entre mundos se abrir. O passo no vazio ignorava as raízes de Cahidén, ele abria o próprio caminho entre a escuridão. ? Mas você não me ouviria e eu não conseguiria ir sem você.

Lohan me abraçou apertado.

Entramos naquele portal sem olhar para trás.

 

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Do outro lado da fenda, minhas costas queimaram ao sairmos na água em frente ao Palácio dos Nove Dragões. o caos havia tomado conta da cidade submersa, várias criaturas de fogo azul protegidas por bolhas de magia que lhes permitia queimarem mesmo sob a água, atacavam os sereianos por todas as partes, empunhando longas lanças de metal incandescente que ferviam as águas ao redor delas, porém não se apagavam.

Um imenso dragão marinho, Lua, destruía as criaturas que conseguia abocanhar, espirrando jatos de água fervente que estourava as bolhas de proteção dos faguls. Meus olhos correram por toda a área acima da cidade onde as criaturas se concentravam, tentando evitar os guardas sereianos que os mantinham longe das casas.

Alguns pontos na água estavam enevoados de sangue, os guinchos ensurdecedores dos sereianos parecia um colo de lamentos torturados, mas mesmo desesperados e em desvantagem, eles lutavam contra as criaturas. Docinho estava do outro lado, perto da entrada principal da cidade, ajudando a manter os monstros longe dos sereianos, espirrando ácido que borbulhava e consumia as proteções dos demônios também.

Procurei pelos rostos que me eram familiares, mas não conseguia distinguir ninguém no alvoroço. Lohan ao meu lado bateu com uma barbatana longa em mim, ele havia mudado para a forma de um dragão marinho, mas eu continuava como malvarmo. Só então me dei conta de que não deveria estar conseguindo respirar sob o mar, porém a água salgada entrava por minha boca e nariz e saia por pequenas fendas nas laterais de meu pescoço, ao mesmo tempo que sentia oxigênio circulando por meu corpo mesmo que não sentisse meus pulmões funcionando.

A marca de Senrys... estava inconscientemente usando suas habilidades.

Sem parar para pensar naquilo, agarrei-me aos longos espinhos escuros nas costas de Lohan e ele nadou na direção da cidade para ajudar os habitantes. Mas antes de chegarmos lá, um som como de rochas se chocando misturado a um rosnado assustador veio da direção dos campos de algas. Dei um leve puxão em Lohan para que ele subisse mais.

Então nós o vimos.

A besta de pedra e fogo flutuando sobre uma plataforma de magia, tentando chegar ao castelo diante de nós. Ele estava protegido por mais centenas de faguls furiosos que atacavam os sereianos do cerco. Demétrius estava lá ao lado de Lórien, Medras e vários mestres da ACV, todos atacando as criaturas com magia, estourando suas bolhas de proteção. Os monstros cujas bolhas eram perfuradas, chiavam com água cobrindo seus corpos, apagando o fogo e os transformando em pedras que afundavam até o solo, escondendo seus corpos entre as algas azuis.

Sem pensar duas vezes, nadamos em direção aos outros, aproximando-nos cada vez mais daquela criatura de pedra do tamanho dos dragões que protegiam a cidade, a água ao redor dele fervia, não havia bolha de proteção, mas as águas não eram suficientes para extinguir o fogo negro do corpo e da alma da criatura.

Lórien mantinha uma barreira ao redor dos que não podiam respirar sob as águas ao mesmo tempo que atirava pequenas lanças de pedra incandescente contra as proteções dos faguls. Seu corpo brilhava numa luz branca sob as águas e ela estava concentrada em manter nossa família segura.

Ninguém ousava se aproximar do demônio que avançava lentamente conforme as defesas das Tormentas recuavam. Apertei minhas espadas nas mãos, talvez se conseguisse congelar o tempo ao redor da criatura...

“temos que afastá-lo da cidade” Lohan grunhiu em minha mente.

“Vamos!” ergui as mãos, lançando estacas de gelo contra o demônio, meu ataque sequer chegou a tocá-lo, as estacas derreteram ao tocarem nas águas fervendo ao redor do demônio. Ele olhou diretamente para nós, a bocarra se abriu num urro colossal, então ele disparou.

Mais rápido do que podia imaginar por estarmos no mar, a criatura se aproximou num galope assustador sobre o nada, com suas patas de pedra e fogo. Lohan nadou para longe enquanto éramos alcançados por aquilo. Armas não adiantariam contra ele, desacelerar o tempo sem uma arma que o impedisse...

Podia sentir o calor das águas ao redor dele.

Vitrino... talvez vitrino o ferisse! Talvez por isso ele estava atrás do machado. Estávamos bem perto de uma fossa com passagem grande o suficiente para o demônio mergulhar atrás de nós, mas não era grande o suficiente para Lohan passar de volta pois ela se afunilava logo após alguns metros. A ideia surgiu em minha mente rápido demais, assustada pelo calor intenso que se aproximava, toquei a lateral do corpo de Lohan para que ele se virasse e mergulhasse na direção daquela garganta no fundo do mar. A guinada repentina fez a criatura perder o ritmo, nos dando alguns segundos de vantagem.

“Vá para a parte mais larga!” O alertei, Lohan nadou mais rápido, mergulhando naquela fenda escura. O demônio ainda não havia entrado atrás de nós. Bom!

Fiz um corte profundo no pulso, apoiei os pés nas costas de Lohan e o soltei, dando um impulso para o lado oposto, criando uma grossa lâmina de gelo enraizada nas pedras, controlando meu sangue com magia para que o cobrisse como um molde invertido e o segurei lá. No instante que o demônio mergulhou atrás de nós e seu calor nos alcançou, Lohan nadou de volta para mim, puxando-me mais para o fundo. O fogo do demônio fez o vitrino ficar incandescente e o gelo sob ele o resfriou rápido criando uma longa lâmina de vitrino azulado. A criatura não foi capaz de perceber o que estava em seu caminho até o choque de seu imenso corpo contra o metal. O som se propagou em ondas pelas águas, um apito alto me fez por um momento perder o senso de direção, mas o tenebris já havia mudado de forma e saía da fenda levando-me com ele.

O demônio se debatia ali embaixo, metade de sua cabeça fora arrancada pela lâmina, mas as pedras que mantinham o vitrino no lugar se soltaram e afundaram minha arma improvisada. Não nos afastamos demais, ficamos vigiando a criatura dali, esperava que ela se regenerasse como da outra vez, mas isso não aconteceu.

“Ele não pode se regenerar se estiver embaixo d’água!” percebi empolgada.

“Se conseguir seu machado de volta, pode picar esse monstro antes que ele saia!” Lohan me alertou.

Mas eu não sabia onde Hasan o havia escondido depois daquele dia, não perguntei se o machado fora deixado no castelo. Também não houve tempo para procurá-lo. O demônio mesmo sem quase toda a parte de cima da cabeça urrou e uma luz negra rodeada de fumaça se espalhou ao redor da criatura. Num piscar de olhos ela havia desaparecido.

“Os outros!”

Nadamos de volta ao castelo, a maioria dos faguls tinham desaparecido e os poucos que restavam, eram destruídos por explosões de luzes douradas... luzes que reconheceria em qualquer lugar.

Junto aos sereianos e os outros mestres estava Hasan, sua pele de baixo d’água também brilhava mais mesmo protegido dentro de uma daquelas bolhas de ar, as marcas douradas incandescentes podiam ser vistas mesmo de longe. Ele estava dando instruções aos outros, para destruir os faguls que petrificaram e afundaram durante a batalha, pois uma fonte de calor poderia despertá-los.

Nos aproximamos dos outros com cautela. Lórien se atirou em mim quando me viu chegar e Demétrius que estava próximo exibindo sua longa cauda cor de chumbo e os chifres negros, também se aproximou e nos disse para entrar no castelo, logo após começou a gritar ordens para os soldados que destruíam os faguls petrificados. Hasan me olhava surpreso, olhava na verdade para as fendas em meu pescoço. Ele estava prestes a dizer algo quando Demétrius nos chamou outra vez, então nadamos até uma sacada na torre leste do castelo.

O mar ficou para trás quando atravessamos as portas duplas abertas para dentro da torre, Lohan suspirou de olhos fechados, parecia aliviado por ter deixado as águas lá fora. Talvez fosse o nervosismo e o choque pelo que havíamos acabado de passar, mas eu queria rir da expressão no rosto do tenebris.

Ali dentro, sentada em um monte de almofadas enquanto os outros limpavam a bagunça, Yurin apertava Misa nos braços. Demétrius se aproximou delas e as beijou, dizendo que já estava tudo bem. A menina nos braços de Yurin dormia como se o mundo não tivesse quase acabado do lado de fora.

? Você está bem? ? Lórien perguntou para mim, erguendo meu queixo para olhar as marcas, mas elas já haviam desaparecido. ? O que fizeram com o demônio afinal?

? Kiara cortou metade da cabeça dele com uma armadilha de vitrino, ele não conseguiu se regenerar sob a água. ? Lohan explicou. Eles me olharam chocados, não acreditando que eu consegui mesmo fazer aquilo com a criatura.

? Não é para comemorar, ele desapareceu numa espécie de portal e estava bem vivo! ? ralhei, usando magia para me secar e atirando-me num pequeno sofá ao lado das portas azuis cheias de pedrinhas que levava ao interior do castelo.

? Mas pelo menos conseguiu fazer algo para o tirar daqui. ? Demétrius bufou. Hasan se mantinha um passo distante, mas seus olhos não saíam de mim.

? Estávamos certos. Foi o machado que o atraiu. ? Hasan disse por fim.

? O machado está aqui? ? engasguei ? O machado de meu pai... você o escondeu aqui? ? perguntei incrédula.

? Sim, era o lugar mais seguro...

? Você colocou uma arma que podia atrair um demônio numa casa com um bebê? ? não consegui controlar minha voz. Hasan encolheu os ombros, mas Yurin o defendeu:

? Ele estava enfraquecido por estar dentro da água, foi uma escolha lógica para testar a teoria, e nós podemos nos proteger muito bem, Kiara!

Meneei a cabeça negativamente.

? Pode me devolvê-lo? ? Pedi a Demétrius. Ele olhou para Hasan e depois para Lórien.

? Pare de olhar para eles pedindo aprovação! A arma é minha!

O sereiano me encarou por um momento, então deixou a sala de cabeça baixa. Eu os havia ofendido..., mas estava tão irritada que não conseguia evitar. Lohan passou um braço ao redor de meus ombros. O silêncio constrangedor só foi quebrado quando Medras entrou, pela sacada, dando relatórios curtos a Yurin sobre os danos lá fora. Mesmo poucas... cada morte parecia pesar sobre meus ombros e meu cansaço aumentou. Demétrius voltou uma eternidade depois trazendo o pingente de meu machado nas mãos. Ele o colocou em minha palma estendida e sorriu.

? Tente colocá-lo em um lugar que você sinta mais confiança.

? Eu... ? Não tinha falta de confiança neles, droga! Eu tinha medo de perder mais alguém! Será que era tão difícil de entender?

? Deveríamos voltar. Hestia e Helleon devem estar desesperados por notícias. ? Lohan murmurou.

? Vão na frente, preciso de uns minutos antes de abrir um portal para os outros mestres. ? Lórien apertou minhas bochechas ? Mais tarde quero falar com você.

Assenti e apertei o braço ao redor do tenebris, mantendo-me longe o suficiente de Hasan para que seu cheiro não me fizesse querer abraçá-lo e dizer que sentia falta mesmo que só de vê-lo de longe na academia. Como se lesse meus pensamentos, ele não se aproximou muito também, mas seus olhos escuros cheios de tristeza ainda me seguiam pela sala.

Lohan rasgou outra passagem para nós, com uma despedida rápida e sem muita cerimônia, partimos de Amantia.


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O sofá da sala de Lórien nunca parecera tão acolhedor antes como naquele momento. A fenda se fechou atrás de nós e eu cambaleei na direção do móvel e me atirei sobre ele, apoiando a cabeça no encosto macio, prestes a pegar no sono.

Tinha realmente pego no sono, pois ao abrir os olhos, percebi Hasan, Lohan e Lórien conversando à mesa. Um corpo quente e macio apoiava o meu contra ele e uma mão de dedos longos acariciava meu rosto devagar. Hestia. Sentei-me num sobressalto, tentando entender como conseguira dormir num momento como aquele.

? Se sentindo bem? ? Hestia perguntou. Assenti devagar. Os outros três na sala olhavam tensos para mim, me senti como um gato pego roubando comida na cozinha.

Não tínhamos paz. Não podia passar uma semana sem que algo ruim acontecesse. Precisava encontrar o quanto antes os outros fragmentos do mapa e achar a tal arma.

? Estávamos decidindo um novo lugar seguro para esconder o machado. ? Hasan comentou, ao perceber que eu não queria dizer nada. Não é que eu não quisesse comentar sobre o que acontecera.... eu só não tinha forças naquele momento.

? E se eu o destruir? Ele ficaria desorientado, sem ter ideia de onde o procurar. ? questionei apertando a arma encolhida entre os dedos. Lohan franziu o cenho para a ideia.

? Se você o destruir, corremos o risco de perder a única coisa capaz de localizar a criatura. ? Lórien contra-argumentou. Verdade... ainda tinha esse problema. O mapa levaria a uma arma, não a um localizador.

Exausta, querendo me esconder em meu quarto e morder Hestia para preencher meu calor, e querendo ficar o mais distante possível daqueles olhos negros expressivos, levantei-me do sofá e joguei o pingente do machado sobre a mesa, me encolhi com o barulho alto dele contra o vitrino.

? Façam o que quiserem com o machado. Eu preciso achar algo que possa destruir aquele monstro antes de tentar correr atrás dele. Se ficar com a arma, vou me sentir tentada a inverter a ordem do que devo fazer.

Hasan fechou os dedos ao redor da arma e suspirou.

Ao me levantar e passar perto da mesa com Hestia em meu encalço, parei ao ver um pequeno selo dourado sobre um papel aveludado cor de pêssego parcialmente a mostra, onde podia ler a metade de uma frase e dois nomes:

“Convidamos para o nosso casamento. Ass: Alfia e Hasan.”

Lórien rapidamente cobriu o convite, mas era tarde, eu já tinha lido o que precisava.

? Não é o que você está pensando... eu trouxe isso para... ? Hasan se enrolou, seu rosto empalideceu um pouco. Mas eu forcei um sorriso em meu rosto e meneei a cabeça negativamente alcançando a porta em seguida. Não queria ouvir.

? Mestra, altezas. ? Fiz uma reverência aos três e deixei a sala com Hestia quase correndo para me acompanhar. Não conseguiria nem olhar para ele agora. Não sem querer gritar e chorar.

Aquela assinatura podia representar o ponto final em minhas esperanças com ele.


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Depois de tomar um banho para tirar o sal do corpo e me atirar em minha cama, Hestia saiu de sua própria de fininho e se enrolou ao meu lado, passando uma perna ao redor de minha cintura.

? Não perca a esperança, minha amiga! Um casamento não é o fim do mundo! A bruxa solaris uma hora apaga as velinhas! ? Ela deu um beijo em meu pescoço.

? Seu trocadilho foi horrível, alguém precisa apagar a velinha, uma velhinha apagar as próprias velas! ? retruquei.

? Mas ela é a vela, e a velha ao mesmo tempo! Tem certeza que não conta? ? um riso rouco e divertido subiu aos meus lábios e a bruxa me apertou mais, descansando a cabeça em meu ombro. O sono nos reclamou rápido aquela noite.

Mas a noite não havia acabado.

Um som como um trovão me fez acordar em alerta e perceber que Hestia não estava mais no quarto. Não havia uma luz, nenhum ponto de calor! Tentei usar magia para clarear o quarto e descobrir o que estava acontecendo, mas foi em vão. Algo frio e metálico se prendeu ao meu pulso e uma mão grande cobriu meu rosto, outra mão prendeu meus braços imobilizando-me.

Uma voz grave e sensual riu perto demais de minha orelha, em seguida a voz que sequer era daquele mundo sussurrou:

? Você assinou sua vitória ou sua sentença de morte ao colocar seu nome naquela lista, garota? ? Meu coração disparou, não sabia o que estava acontecendo e por mais que chutasse e esperneasse, minha magia foi colocada para dormir pelo que quer que ele tenha prendido em meu pulso. O homem cujo rosto não conseguia enxergar então soprou algo em meu rosto e a escuridão verdadeira me engoliu outra vez.


Epílogo:

 

O aroma de maresia e o som de ondas quebrando me despertou.

Atordoada com a lembrança do que acontecera instantes antes de eu apagar, levantei-me num pulo. A areia sobre a qual despertara pinicava meu rosto e ombros. Quem quer que fosse a criatura que me jogou ali não se preocupou nem um pouco com o quão perto estava das águas, ou talvez a maré tinha subido, não sabia quanto tempo havia se passado. Levantei-me com dificuldade, atenta ao meu redor, procurando por qualquer pista de onde estava.

A praia tinha areias negras, tão escuras quando o mar a se perder de vista. Ondas grandes o bastante para arrastarem um dragão quebravam a alguns metros da areia e a espuma chegava a meus pés instantes depois, com força suficiente para me derrubar caso desse alguns passos mais à frente.

Não usava mais minha camisola, no lugar dela vestia um par de calças de cintura alta folgada nas pernas, mas com um aperto em minha perna esquerda. A peça era cheia de bolsos ocultos e feita de um tecido escuro que não reconheci. Uma camisa de mangas longas que deixava uma faixa aparente em minha cintura, botas de solado espeço o suficiente para pisar numa lâmina e não me ferir. E por fim, meu cabelo foi trançado também.

Praia negra... ondas gigantes, montanhas escuras ao redor. Minha cabeça pesou, estava claro o suficiente para enxergar até o brilho de pequenas conchas cor de opala nas areias. Olhei para o céu escuro pincelado de estrelas sobre mim e encarei perplexa as sete luas de Pollo, a maior delas, Panmat, cheia e brilhante como um sol branco no céu.

Comecei a fazer as contas e mesmo que não batessem, não choquei ao perceber o que talvez estivesse acontecendo.

Tateei minhas pernas, procurando por objetos incomuns em meus bolsos. Pó de taixe, pasta de alamarine, um cantil vazio, uma adaga curta presa no cinto em minha coxa e uma pequena bússola, além de um papel dobrado no bolso de cima.

O abri com os dedos trêmulos e coração acelerado, encarando as palavras ali antes de soltar um palavrão e uma risada amarga e enfiar o papel de volta no bolso:


“Bem-vinda à prova do uniforme negro.”


Palácio da Noite

 

Eu não queria estar ali.

A tia de Lohan, Honén, insistiu muito para que Lórien me deixasse ser levada ao Quinto Céu. Jamais havia estado nos Céus, na casa onde Hamza o pai de Lohan cresceu. A mestra me observou durante o teste de aprovação para entrar no V3 e disse que eu não estava pronta, que meus medos não me deixariam entrar.

Ela segurou minha mão enquanto caminhávamos por aquele enorme corredor escuro, onde as estrelas pareciam querer se aproximar do chão. Sombras rodeavam meus pés, fazendo cosquinhas em meus tornozelos, elas pareciam falar baixo... como as vozes que vinham à noite e falavam daquele fogo negro, que ele voltaria para me buscar.

Honén me ofereceu um sorriso calmo ao parar diante de portas grandes e negras com símbolos prateados pintados por todos os lados, sua voz gentil me instruiu a esperar um momento, mas eu tinha medo daquela porta, tinha medo do que podia estar nos esperando lá, uma vez que as sombras que murmuravam entravam por debaixo dela e nenhuma luz vinha de lá. Parecia o quarto de treino de minha mãe.

Queria voltar para Vegahn. Queria ficar junto com Fares. Quando eles me permitiriam voltar para casa com ele...? Lórien não queria me deixar ficar perto dele de novo. Ouvia sussurros de pessoas que falavam que meu irmãozinho tinha ficado louco com a queda do castelo. Fares não era louco! Fares estava com medo! Ele queria nossos pais de volta. Eu os queria de volta! Porque era tão difícil para eles entenderem aquilo?

? Preste atenção, Kiara! ? Honén se abaixou em minha frente, segurou meu rosto em suas mãos quentes e olhou dentro dos meus olhos, os seus eram negros e prateados, mas pareciam tão calmos! ? Você vai ficar aqui por um tempo, meu irmão mais velho vai te ensinar a não ter mais medo, mas você precisa pedir isso a ele, pedir que ele te ensine a não ter medo, entendeu? Isso pode demorar um pouco, mas se você se esforçar um pouco, poderá voltar para Vegahn bem rápido e conseguirá passar na prova do V3. Entendeu? ? Ela questionou.

? Entendi, mestra. ? respondi como Lórien me instruiu. Tinha que me acostumar a chamar todos eles de mestres.

A porta negra se abriu, mostrando um chão de céu! As paredes e o teto não existiam! Só enxergava estrelas e escuridão lá. Com medo, dei um passo para trás, mas Honén acenou com a cabeça para que eu entrasse. Mesmo com medo de cair no céu, dei um passo à frente e fechei os olhos. Era como pisar em cima da cama fofa de Fares.

Dei cinco passos e parei ao ver uma sombra de pé em minha frente.

Um homem igual a Honén me observava. Olhos negros, tranças longas que faziam barulho e pedrinhas vermelhas grudadas em seus braços. Ele fez uma careta ao olhar para Honén, mas ela já havia sumido.

? O que quer aqui, pequena? ? Ele perguntou, ajoelhando-se em minha frente. Não podia ter medo, se eu tivesse medo, Honén disse que ele jamais me ajudaria a espantar os pesadelos.

? Eu não quero mais ter medo de dormir. Quero perder o meu medo, quero aprender a não ter medo pra entrar na ACV. ? disse alto, mesmo com minhas mãos fechadas tremendo, o metal de meu braço estalando de tanto que o apertava.

O homem deu um sorriso curto, estendeu a mão e tocou minha bochecha.

? Meu nome é Owyn Tsaus. Eu sou o rei dos pesadelos e sabe como eu treino as pessoas? ? ele perguntou. Sacudi a cabeça negativamente ? Eu as assusto, até que elas se acostumem. Seus medos não serão mais medos... se você se acostumar com eles.

Eu o estava olhando. Logo depois não estava mais!

Estava vendo o castelo de gelo chovendo sobre as pessoas que viviam lá. As coisas que vi depois me fizeram sentar e chorar, meu corpo doía como se fosse abrir ao meio e tudo aquilo se repetiu e repetiu até que minhas lágrimas secassem, os soluços sumissem e meu peito doesse tanto que não conseguia abrir os braços e ficar de pé, pois tinha medo de desmontar e não voltar ao normal.

Owyn apareceu de novo quando aqueles pesadelos desapareceram, ele me pegou no colo, não tinha força para pedir que se afastasse, mas seu abraço foi tão doce, tão cheio de carinho que me senti nos braços de papai conforme ele me levava para longe daquela sala de pesadelo.

Um quarto grande e bonito foi aberto e ele me deixou sobre a cama bonita com colcha felpuda vermelha. Um garoto apareceu na porta do quarto e me olhava de cenho franzido.

? Era ela gritando na sala? ? Meu rosto queimou de vergonha, não sabia que estava gritando. Owyn assentiu ? É só uma criança, pai! Não a faça passar por isso! ? O garoto com as mesmas tranças, mas olhos negros pintados com linhas douradas ralhou.

? Ela veio para treinar, sendo uma criança ou não. Não vou deixar que saia daqui se não aprender a domar seus medos! ? O garoto devia ter uns dezesseis ou dezessete anos, algumas pedrinhas vermelhas eram coladas em seu rosto, ao redor de seus olhos o deixando com uma aparência assustadora, mas ele era bem bonito.

? Pai...

? Não se atreva a colocá-la para dormir! Vá para seu quarto, a primeira noite é sempre a mais difícil. ? Owyn olhou para mim. Estava tão cansada... que não conseguia me mover, tinha medo do que ele quis dizer com “primeira noite é mais difícil”, mas não tinha energia para perguntar. O rei saiu do quarto desejando-me um boa noite, então a escuridão veio com tudo quando a porta se fechou. Sombras sussurrando, podia sentir o que talvez fossem dedos tentando me alcançar sob as grossas cobertas e uivos distantes, assim como gritos e gemidos.

Eu queria gritar.

Queria implorar para alguém me tirar daquele lugar. Estava arrependida de ter tentado entrar para a ACV. Mas... em meio a aqueles sons horríveis, me lembrei de Fares agarrado a mim quando chegou no vale e viu meu braço. Me lembrei da expressão em seu rosto quando disse que não vi nenhum homem na sala controlando o monstro que atacou papai e mamãe... e de seus gritos, de seus protestos quando Gwendollyn o tirou de cima de mim. Fares me sacudia, tentando me obrigar a lembrar de algo que eu não vi. Ele chorou e gritou e seus dedos deixaram marcas de arranhões em meus braços.

Eles tinham medo de Fares me machucar?

Fares não estava louco! Eu queria encontrar aquele monstro e queria fazer com que os outros acreditassem nele.

Era por isso que eu estava ali, sob aquele cobertor pesado esperando meus pesadelos me botarem para dormir. Eu não conseguiria ajudá-los se não aprendesse a controlar aqueles medos.

? Kiara? ? uma voz baixa sussurrada falou próximo de mais de minha cama. ? Tia Honén disse que te trouxe para cá! Você está bem? Como está se sentindo? ? Olhos grandes azuis e prateados me encaravam do canto do quarto, quase escondidos numa fumaça negra e perfumada. Lohan.

Ele pulou na cama e piscou assustado, ele me sacudiu, mas eu não conseguia me mover mesmo que quisesse. Com horror, ele segurou meu rosto e beijou minha testa.

Devagar, aquela fumaça doce me fez acordar sem que eu soubesse que estava dormindo, pelo menos, meu corpo estava dormindo. Comecei a tremer e querer chorar outra vez. Lohan mesmo sendo quatro anos mais velho, brincava comigo por horas nos corredores desertos do castelo de gelo, pelos jardins congelados e até mesmo na estátua de dragão de vitrino. Ele sempre tentava copiar sua aparência e mudar para a forma do dragão, mas não conseguia voar ainda. Ele era meu amigo, meu único e melhor amigo.

? Ele te botou em paralisia do sono... ? Lohan me abraçou.

? Eu quero sair daqui! ? choraminguei ? estou com medo!

? Kiara...

? Por favor! ? implorei, apertando-o em um abraço. O tenebris me apertou um pouco mais, senti quando ele sacudiu a cabeça, aceitando meu pedido. Sem dificuldade, ele estalou os dedos e abriu uma pequena fenda no escuro, então me puxou para ela.

Estávamos sobre nuvens douradas, olhando um pôr do sol laranja e roxo no minuto seguinte, perto demais de uma grade de magia que tremia como se respirasse profundamente.

? Vem. ? Ele pegou minha mão, o branco engolido por aquele marrom escuro brilhante. Lohan contou três linhas da grade de magia, então entrou no meio de uma delas me levando junto. Era a beirada das nuvens!

Fechei os olhos e dei um passo adiante. Ao invés de cair do céu como achei que aconteceria, nós pisamos numa grama verde azulada fofinha no meio de uma imensa floresta de folhas azuis, iluminada por duas grandes luas prateadas.

Admirada, andei devagar ao lado dele de boca aberta, encarando as flores das mais diversas cores desabrocharem enquanto caminhávamos entre elas. Lohan apontou para o alto, onde pássaros e animaizinhos podiam ser encontrados em cada galho ali, mas ele queria mesmo mostrar uma casa enorme sob a copa de quatro grandes árvores de galhos retorcidos.

Ele me ajudou a subir na escada de corda e quando chegamos lá, Luyen abriu a porta prestes a dar uns gritos, mas desistiu ao me ver ali.

? Lohan! ? ela grunhiu ? Kiara foi levada ao Quinto para treinar!

? Tio Owyn estava torturando ela, mãe! ? Ele fez um bico ? Deixe que ela fique até amanhã? ? pediu.

Luyen olhou de mim para ele e franziu o cenho, por fim, me deixou entrar junto com ele. Lohan me guiou pelos lindos cômodos de madeira da cor da árvore, cheios de flores de verdade aparecendo pelas janelas, plantas e galhos retorcendo-se pelos cantos. Ele me levou até um quarto pequeno, mas aconchegante com uma cama estreita entre duas mesinhas com pequenas bolinhas de luz girando em potes de vidro. A colcha parecia ser fofa como nuvens e tinha cheiro de nuvem de chuva também. Lohan puxou a coberta e me deixou subir na cama.

? De quem é esse quarto? ? perguntei.

? É meu! ? ele riu, disfarçando algumas coisas bagunçadas, chutando-as para baixo da poltrona. ? Mas pode ficar aqui hoje, meu pai não está... então vou dormir no quarto de minha mãe.

Lohan estalou seus dedos, e a luz daqueles potes desapareceu, deixando apenas a luz da lua entrando pela janela aberta.

? Boa noite, princesa! ? Ele afagou minha cabeça e andou até a porta. O nervoso embolou meu estômago outra vez.

? Espere! ? pedi. ? Eu não... consigo dormir sozinha.

? Você levou Ira pro Vale? ? ele estreitou os olhos. Meu rosto queimou, mas eu neguei com a cabeça. ? E então?

? Lá... meu tio vira um lobo e deita no pé da cama e espera eu dormir para sair.

Lohan bufou, coçando a cabeça, olhando de vez em quando para a porta.

? Eu... Kiara, Owyn vai te fazer aprender a não ter medo! Amanhã você vai ter que dormir sozinha, com medo ou não!

? Então fica aqui comigo mais um pouquinho! Amanhã eu vou estar sozinha, não é? ? murmurei. Ele fechou os olhos e encostou a porta, então sua forma mudou, um lobo negro apareceu em seu lugar, ele subiu na cama e se deitou aos meus pés. Encostei o rosto no travesseiro e me senti tão segura ali quanto me sentia no vale ou no castelo que não existia mais.

? Deita aqui. ? bati na cama ao meu lado. O lobo se arrastou devagar até estar a alguns dedos de distância. Enrolei meus dedos no pelo macio e escuro e encostei o rosto em seu focinho morno.

? Promete que vai ser meu amigo pra sempre? ? perguntei ? não vai embora?

“Vou ser seu amigo sempre, princesa!” sua voz quase desaparecia e meus olhos pesaram. O lobo bufou e antes que eu percebesse, estávamos os dois dormindo, esperando que o dia seguinte não fosse tão ruim assim.

 

 

                                                   Emilly Amite         

 

 

 

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