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As Sombras Atacam / Clark Darlton
As Sombras Atacam / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

As Sombras Atacam

 

Os invisíveis estão de tocaia nos confins da Via Láctea e uma luta encarniçada parece não ter fim.

Crest, o primeiro amigo arcônida de Perry Rhodan, profetizara que o decadente Império Arcônida seria um dia dominado pelos ousados e valentes terranos, que, de suas ruínas, construiriam o Reino Estelar da Humanidade.

O tempo exato para esta transição de poder deu-se no ano 2.016 da cronologia terrana — portanto, menos de um século e meio depois que os homens enviaram ao espaço, pela primeira vez, foguetes tripulados. O regente robotizado de Árcon não mais existia e especialistas da Terra o substituíram.

A ciclópica frota controlada pelo regente — cem mil naves robotizadas — ficou paralisada com a destruição de seu cérebro, cabendo aos cosmonautas terranos, de esmerada formação técnica, a tarefa de caçarem estes aparelhos vagando perdidos no espaço.

Há, no entanto, também outros povos da Galáxia que querem se apoderar destas naves — daí, então, a terrível luta.

O pior, porém, é o fenômeno surpreendente das sombras que atacam...

 

                                                 

 

— Posicionamento Setor K1-8-DX, senhor. Distância dois vírgula três segundos-luz. Aguardamos suas instruções.

Major Kermak, comandante do encouraçado da classe Solar Alderamin, nem virou a cabeça. Com os olhos afogueados, se concentrava na grande tela do videofone da central de comando, que mostrava no momento, com muita nitidez, um setor do espaço. Com um rápido movimento da mão esquerda, ligou o botão da ampliação. Os dois segundos-luz se “encolheram” e o objeto do rastreamento se tornou visível.

— Continuar diminuindo a velocidade e chegar mais perto — disse ele, sem arredar os olhos da tela. — Tripulação, atenção! Ocupar os postos de artilharia!

O primeiro-oficial bateu continência e deixou a sala de comando para retransmitir as ordens e supervisionar sua execução.

O Major Kermak estava vendo três naves na grande tela. Estavam certamente vagando sem rumo pelo espaço a fora, sem tripulação. Eram unidades da frota robotizada de Árcon, que, no verdadeiro sentido da palavra, deixara de existir desde que o regente robotizado se autodestruíra. Os terranos já tinham conseguido pôr a salvo cerca de noventa mil do total de cem mil naves da grande frota. Mas, na imensidão do espaço, vagavam ainda dez mil aparelhos bem armados, que, nas mãos de inimigos potenciais, representavam uma força que não se podia desprezar.

Major Kermak era um destes homens que tinham a incumbência de impedir isto. Com seu poderoso couraçado Alderamin, uma esfera de quinhentos metros de diâmetro, com uma tripulação de oitocentos homens, cabia-lhe descobrir o paradeiro das naves arcônidas perdidas no espaço e tomar posse delas, por intermédio de seus valentes auxiliares.

Não era missão nada fácil. Após a destruição do regente robotizado de Árcon, suas naves estavam espalhadas por todos os cantos da Galáxia. Obedeciam exclusivamente aos impulsos positrônicos do grande cérebro, o maior computador de todos os tempos. De um momento para o outro, perderam este contato que as guiava, estando, portanto, completamente à mercê de quem delas se apossasse e soubesse transferir sua direção robotizada para o controle manual. Não faltavam raças na Via Láctea que faziam tudo para aumentar seu poderio espacial e, naturalmente, não perderiam esta oportunidade de se apoderar de cruzadores desativados.

E era isto que Perry Rhodan queria impedir a todo custo.

Major Kermak continuava observando as três naves. Uma delas era um supercouraçado da classe Império, uma esfera descomunal de mil e quinhentos metros de diâmetro. As outras duas eram bem menores, pequenos cruzadores. Continuavam voando na sua formação primitiva, triangular. Na frente, o couraçado, e, um tanto recuados, os dois cruzadores.

Entrou novamente no posto de comando o jovem primeiro-oficial.

— A nave está pronta para o combate, senhor!

Desta vez, Kermak se virou para ele:

— Provavelmente, também à toa, como das vezes anteriores — disse num sorriso calmo. — Vamos apreender primeiro o supercouraçado. Quem é que está dirigindo o comando especial?

— Um tenente chamado Vitali, senhor. É sua terceira missão.

— Então sabe o que tem a fazer. Assim que as três naves estiverem preparadas para partir, avise-me.

— Às ordens, senhor — respondeu o primeiro-oficial fazendo continência.

Logo depois, Major Kermak voltou à tela do vídeo para observar o que ia se passar com as três naves.

Mas antes de abrirem as escotilhas da Alderamin para deixar sair o Tenente Vitali e sua gente, aconteceu algo de inesperado e imprevisto.

Todos os postos de rastreamento em atividade se manifestaram. A uma distância de mais ou menos cinco segundos-luz, materializaram-se pelo menos vinte naves, grandes e pequenas, e se aproximaram em alucinante velocidade, sobrevoando a Alderamin e envolvendo também as três naves robotizadas.

— Envoltório de proteção! — exclamou o major excitado e imediatamente apertou o botão número da garantia, excluindo assim a possibilidade de ser atingido por um eventual disparo energético.

Naturalmente, o Tenente Vitali também não podia mais deixar a Alderamin. Tinha que esperar.

Olhava a grande tela. As estranhas naves tinham o formato cilíndrico. Saltadores! Era evidente. Quem poderia ser então? Onde quer que houvesse confusão, os saltadores, ou mercadores galácticos, lá estavam. Grandes homens de negócio e descendentes dos arcônidas, eram tão espertos como os terranos. Seus técnicos conheciam bem as ligações dos robôs das naves arcônidas, não havia dúvida alguma.

Eram os parentes que chegavam para repartir entre si a herança de Árcon.

— Radiograma, senhor! — disse o telegrafista pelo intercomunicador. — Comunicado urgente!

Kermak estremeceu todo. Externamente, porém, parecia calmo.

— Leia-me, por favor.

A exigência dos saltadores era muito curta, mas clara:

 

Desapareçam, terranos, as três naves nos pertencem, nós as vimos primeiro. Vamos lhes dar dez minutos.

 

Kermak olhava para a tela, com os pensamentos muito longe. As vinte naves cilíndricas haviam, entrementes, cercado a Alderamin, mantendo dentro deste círculo também as três naves arcônidas, cobiçadas agora por dois pretendentes diferentes.

O major sabia que as vinte naves dos saltadores não representavam nenhum perigo para ele, não poderia por outro lado afastá-las dali nem dar ordem ao Tenente Vitali de ocupar as três naves arcônidas que vagavam sem rumo. Não teria sentido e seria simplesmente sacrificar o jovem oficial. Por sua vez, os saltadores também não podiam mandar ninguém para desligar os controles das três naves cobiçadas, sem correrem grande risco. Era uma situação difícil.

“O caminho razoável seria enviar um hiper-rádio pedindo unidades terranas para reforço”, pensava Kermak, angustiado, “mas até que elas chegassem, lá se iam os dez minutos.”

Provavelmente, os saltadores abririam fogo contra a Alderamin, no intuito de romper o envoltório magnético e o risco seria muito grande.

Por outro lado, seria praticamente impossível para o supercouraçado terrano dar conta de vinte adversários, pois Kermak não queria ser o primeiro a usar as armas. Não havia dúvida de que os saltadores, no momento, estavam em superioridade de força. Não lhes seria fácil deixar os terranos fora de combate, mas poderiam ter sorte e conseguir prejudicá-los.

— Temos apenas oito minutos — disse o primeiro-oficial que voltava à cabina de comando. — Tempo desgraçadamente curto.

— Mas suficiente para se tomar uma resolução — retorquiu calmamente Kermak, embora intimamente estivesse muito excitado. — Os saltadores não podem de maneira alguma se apoderar das três naves e, por sua vez, temos ordem de, na medida do possível, evitar conflitos armados com outras raças. É claro que nos defenderemos, se formos atacados, o que não é o caso ainda.

Olhou novamente para a grande tela. Embora disparassem com enorme velocidade pelo espaço a fora, as três naves robotizadas davam impressão de paradas e com elas a Alderamin e as naves cilíndricas dos saltadores. Era muito simples preparar toda a bateria pesada. De qualquer modo, três minutos do prazo dado já haviam passado.

— As três naves arcônidas voam sem o envoltório de proteção — disse o Major Kermak, sem se dirigir diretamente ao primeiro-oficial. — Com um único disparo, podemos destruí-las.

— Mas, senhor...!

— Destruir, repito. Você tem uma solução melhor, para não deixá-las cair nas mãos dos saltadores? É fácil ficar calado. Já que não podemos capturar as três naves, os saltadores muito menos podem se apoderar delas. Para a Terra, isto é muito melhor.

O primeiro-oficial encarou de perto seu comandante.

— Se eu tivesse um teleportador a bordo, dir-lhe-ia qual é a solução.

— Eu também — replicou ironicamente o comandante. E olhando para o relógio: — Temos ainda três minutos. Apresse-se, enquanto vou tentar ganhar tempo com os saltadores.

Não houve problema nenhum. Os saltadores falavam tão bem o intercosmo, como os terranos. A ligação via rádio não levou trinta segundos. Na tela do videofone da cabina de comando surgiu o rosto barbudo de um típico saltador. Devia ser um dos patriarcas, pois sua idade devia estar acima dos cem anos, pela cronologia da Terra. O gorducho barbudo tinha o rosto avermelhado e o corte de sua barba formava ângulos bem nítidos, sem dúvida o distintivo característico de sua estirpe.

— Que quer você, terrano? Ainda lhe restam dois minutos.

Kermak se controlou e disse o mais calmo possível:

— Estas três naves arcônidas nos pertencem. Temos autorização de Gonozal VIII...

— Autorização? — o saltador desandou numa estrondosa gargalhada, quase não conseguindo se dominar. — Quem é este Gonozal VIII? Ou você está falando do ex-imperador de Árcon? Se assim for, as naves pertencem tanto a você como a mim. Não têm dono e quem as achar primeiro fica com elas e nós as encontramos primeiro.

Kermak sabia que só lhe restava um minuto.

— Gonozal-Atlan foi o soberano legítimo de Árcon e Perry Rhodan é seu legítimo herdeiro. Portanto, todas as naves lhes pertencem. Se o senhor delas se apoderar, está cometendo um roubo. Quer entrar em atrito com a Terra ou não?

— Atrito? — repetiu o velho patriarca e começou a rir de novo. Parecia se divertir muito. — Afinal, o que é a Terra sem o apoio de Árcon? E... o império não existe mais.

“O barbudo aventureiro vai ficar admirado”, pensava Kermak cheio de ira, reconhecendo, porém, que lhe sobravam apenas quarenta segundos.

Sua esperança de convencer o saltador estava se diluindo. O primeiro-oficial voltou de novo à central de comando. Fez um simples sinal, o que significava que bastava Kermak apertar o botão vermelho, para ter sob pesado fogo de artilharia as três naves. Não tendo elas nenhuma proteção magnética, estariam destruídas em poucos segundos.

— Quer dizer que o senhor se arrisca a cometer um roubo e a entrar em conflito aberto com a Terra?

— Perfeitamente — confirmou o saltador, com um riso lacônico. — Que há de mais nisto?

Ainda dez segundos.

— Bem — disse o Major Kermak, rindo com muito sarcasmo. — Pensando melhor, acho que lhe podia dar um dos três aparelhos, mas devido à sua ganância não lhe vou dar nenhum cruzador. Entendeu?

— Não, não entendi nada — respondeu ele, cofiando a barba. — Os terranos gostam de falar muito enigmaticamente. Aliás, seu tempo acabou, desapareça agora, ou mando abrir fogo.

— Pode deixar, que eu faço isso para você — respondeu Kermak irritado, comprimindo na hora o botão vermelho que ativou as três bocas-de-fogo já preparadas. — Deixamos o ferro velho para vocês.

De três pontos diferentes da Alderamin partiram feixes de raios energéticos atingindo em cheio seu alvo, penetrando com facilidade na carcaça das naves robotizadas para destruir seu interior, até os reatores arcônidas. A explosão que então se ouviu atirou pelo espaço a fora os destroços das três naves.

Na realidade, foram três detonações, mas deram a impressão de uma só. Uma das naves dos saltadores que estava mais próxima do gigantesco aparelho desgovernado foi atingida pela forte explosão e atirada para as profundezas do espaço. Antes que as restantes dezenove naves dos saltadores pudessem abrir fogo contra a Alderamin, a fim de vingar a destruição de suas presumidas três presas, Major Kermak puxou para a frente a alavanca da tração. O couraçado deu um salto para o espaço, acelerando ao máximo. Em poucos segundos já estava com a velocidade da luz e passou para o semi-espaço.

As dezenove naves dos saltadores pareciam atônitas com o sucedido e, desesperadas, se esforçavam para salvar os sobreviventes da pequena nave cilíndrica que despencava nos abismos da eternidade. As três bolas incandescentes da explosão atômica, antes três orgulhosas naves arcônidas, não se viam mais. Os mercadores galácticos sabiam, porém, que era inútil tentar alcançar as naves terranas de propulsão linear.

A Alderamin voltou em vôo direto para a distante Terra, a fim de fazer um relatório ao administrador.

E, desta maneira, iniciou-se um novo período na procura das naves arcônidas desgarradas.

 

A nave César era também um supercouraçado da classe Império, igualmente equipada com tração linear e também engajada na caça às preciosas unidades robotizadas, antes controladas pelo regente.

Desde o regresso da Alderamin, já eram decorridos quatro dias. Houve alteração na tática. Numa reunião convocada por Rhodan, ficou resolvido que os mutantes deviam ser colocados em diversas naves, para que pudessem contrabalançar, com seus dons, a superioridade numérica dos saltadores, dos aras e dos acônidas. Além disso, houve consenso unânime quanto ao ponto de vista de que não deviam ceder de forma alguma, sendo preferível mesmo destruir naves robotizadas e fugir de um confronto armado. Daí para frente, teriam que ser mais cautelosos, principalmente em relação aos saltadores que, nos últimos dias, mostraram não ter nenhum escrúpulo em se tratando de discutir com os homens a herança de Árcon.

Major Sukril, comandante da César, estava presente a esta reunião. Quanto ao seu exterior, parecia um pouco com o substituto de Rhodan, Reginald Bell. Não se podia também negar que mesmo seu caráter tinha certos traços que muito se aproximavam dos de Bell. Talvez por isso, e não por mero acaso, que Gucky foi destinado para o supercouraçado do Major Sukril.

O primeiro encontro entre os dois não deixou de ter certa dramaticidade.

O rato-castor não pudera comparecer à mencionada reunião. Chegara há pouco de uma missão muito cansativa e preferiu passar as poucas horas de repouso na sua casa de fim-de-semana no lago de Goshun. Durante a conferência, Rhodan lhe comunicara pessoalmente que não precisaria propriamente estar presente, que se tratava de assuntos de rotina que só diziam respeito aos comandantes da frota.

Assim foi que Gucky chegou a bordo da César apenas no último instante, depois que Rhodan já distribuíra seus mutantes. Major Sukril, Gucky conhecia muito de nome, nunca, porém o vira pessoalmente. A César era um couraçado como os demais e, como todos eles, também recebeu a bordo um mutante, além da tripulação de vinte mil cosmonautas de excelente formação. Além disso, contava com as equipes normais encarregadas de trazer as naves capturadas para a Terra.

Junto à escotilha principal, esperava-o um jovem oficial de cabelos escuros.

— O senhor voa conosco, Tenente Guck. Tenho a honra de cumprimentá-lo e desejar boas-vindas a bordo da César.

— Dou-lhe esta honra — disse Gucky brincalhão, cumprimentando o jovem.

O rato-castor trajava seu uniforme especial, portando às costas o estojo térmico de sua alimentação especial. Como era telepata, já sabia o nome completo do oficial.

— Fui então designado para seu grupo de ação, não é?

— Perfeitamente, Tenente Guck.

O rato-castor lhe estendeu então a mão e sorriu feliz.

— Pode me chamar de você e deixar de lado minha patente militar. Somos simples colegas.

— Ah!... muito bem, Guck.

— Gucky.

— Como?

— Gucky, assim me chamam todos — olhou em volta. — Onde está o comandante? É o Major Sukril, se não me engano.

— Na central de comando. Partimos dentro de cinco minutos.

— Cheguei então em cima da hora — disse sorrindo. — Vamos então para a divertida caçada?!

— Não sei, não — disse Germa duvidoso, fazendo um gesto de desiludido. — Não estou muito certo se vai ser divertida. Os saltadores transformam nosso comando em coisa muito séria.

— Que nada! — respondeu Gucky, vendo como a pesada comporta se fechou e a escotilha bateu com um ruído surdo. — Até hoje, liquidamos os “barbudos” com facilidade. Temos que ser apenas mais rápidos que eles e mais prudentes.

Tenente Germa sorria, gostando da resposta de Gucky.

— Venha comigo, vou lhe mostrar sua cabina. Está bem ao lado da minha.

E o rato-castor foi caminhando atrás dele, se bem que gostasse muito mais de se teleportar, mas descobrira umas coisas importantes nos pensamentos do jovem oficial. Primeiro, constatou que Germa gostava muito dele. Não apenas o costumeiro respeito devido aos seus dons parafísicos, mas verdadeira simpatia e amizade, e, finalmente, Germa participara da reunião e estava, agora, pensando numa aterrissagem proposital em Marte.

Marte? A César ia parar em Marte? Germa não sabia ao certo. O único que poderia explicar o motivo da parada no pequeno planeta era o comandante. A ele é que se devia perguntar, caso não pensasse no assunto.

A cabina lhe agradou bastante, apresentando tudo que desejava para uma permanência maior no espaço. Não esqueceram nem a pequena geladeira para suas hortaliças. Na cama espaçosa, podia dormir até uma pessoa de boa estatura.

— Ótimo, gostei muito — chilreou Gucky, batendo com a mão nas costas do tenente, que era bem alto. — Vocês devem ter arranjado tudo isto bem depressa, não foi? Você mora do lado esquerdo de mim, e quem ficará do lado direito?

Germa lamentou:

— Não sei, não. Acho que está vazia.

— Eu também acho — disse, botando no chão a sacola onde trazia seus utensílios. — De qualquer modo, fui muito pessimista. Trouxe comigo meu alimento predileto e não precisava.

Pegou de novo a sacola e a esvaziou no chão. Era somente cenoura fresca e o Tenente Germa começou a rir tanto, que as lágrimas lhe corriam.

Neste momento, a César decolou e acelerou moderadamente. Quase não se notava nada, pois os campos de gravidade anulavam toda compressão, neutralizando toda manobra de alteração na rota.

— Você deve ainda se apresentar ao comandante — disse Germa um tanto preocupado. — Major Sukril dá muita importância a formalidades. Achei um milagre ter ele decolado, sem ter tomado conhecimento oficial de sua presença.

A expressão de Gucky se anuviou.

— Odeio formalidades, Germa. Geralmente tenho encrenca com gente assim. Como é ele, fora disso?

— Ótimo oficial, corajoso, um pouco exigente, mas no mais cem por cento e muito justo. Acho melhor você...

— Você... o quê? — perguntou Gucky, interessado.

— Acho melhor você não chamá-lo de “você” logo de início. Pode ser que ele se ofenda com isto, achando falta de respeito.

Gucky sorriu, deixando à mostra o dente de roedor, sinal evidente de que ia se divertir muito.

— Você o conhece melhor do que eu, não é? Por que causar aborrecimento sem necessidade? Mas, ai do bom Sukril se ele me chamar de “você”! Verá então o que vai acontecer! Está bem, vamos embora... e você, não vem comigo?

— Será que devo perder uma cena tão interessante? — disse Germa, saindo na frente. — O elevador está logo ali.

— Poderia chegar diretamente neste instante, mas não quero assustá-lo sem precisão. Além disso, um passeio depois da refeição faz muito bem.

A César era um mundo em si. Com seus mil e quinhentos metros de diâmetro, lembrava muito uma cidade submarina terrana, com ruas e edifícios ligados por elevadores e fitas rolantes. Uma pessoa estranha se perderia com toda certeza naquele labirinto das mais sofisticadas instalações, e dificilmente acharia a comporta de saída. Gucky conhecia bem o interior deste tipo de couraçado. Recordava-se ainda dos intensivos treinamentos da Frota Solar quando seus aparelhos ainda eram novidade!...

Germa parou diante da porta da cabina de comando.

— É sempre como se a gente estivesse se apresentando perante Deus... — cochichou ele e Gucky tentou disfarçar o sorriso.

— Você está exagerando, amigo. Nunca tive medo diante de um comandante. Se ele não for legal comigo, faço-o voar pelos corredores e o grudo em algum lugar do teto. Depois poderão ir apanhá-lo com escadas.

— Você com a sua telecinese... — disse Germa impressionado, apontando para a porta. — Vá na frente.

Escondeu por cautela o dente de roedor e apertou o botão da abertura automática. Abriu-se a porta, deixando livre o caminho.

Pela quantidade de instalações e painéis, o recinto parecia apenas um semicírculo. Por toda parte nas paredes, havia telas cintilantes, cercadas de todos os tipos de controles. A uma mesa, estava sentado um oficial, estudando os mapas siderais. Ao levantar os olhos, percebeu Gucky e lhe sorriu, continuando aprofundado nos seus estudos.

Em poltrona mais alta, colocada diante dos principais comandos, estava sentado um homem cujas espáduas eram tão largas que ocupavam o lugar de duas pessoas. Os cabelos curtos eram penteados à escovinha, isto é, quase verticais, levemente prateados. Estava tão abstraído no exame das telas do vídeo que não percebeu nada do ruído. Suas mãos pesadas repousavam numa espécie de mesa abaixo dos controles.

Dois outros oficiais viraram-se para trás e deram com Gucky e Germa. Um deles parecia saber o que interessava ao comandante.

— Senhor, aqui está o mutante.

Major Sukril nem virou a cabeça.

— É o tal Gucky? Assim que aparecer, deve se apresentar a mim. Estou esperando a comunicação normal.

E se aprofundou mais ainda nas suas observações, com os olhos pregados na imagem do espaço, embora soubesse muito bem que o rato-castor estava imediatamente atrás dele.

Gucky olhou suplicante para o tenente, mas Germa apenas meneou a cabeça.

“Faça o que ele está mandando”, pensou ele, sabendo que Gucky leria seus pensamentos. “Não provoque aborrecimentos desnecessários.”

Gucky desviou os olhos de Germa e ficou contemplando seu novo comandante pelas costas. Alguma coisa nesta figura lhe parecia muito familiar.

“Ah!... se os cabelos não fossem prateados, mas avermelhados”, pensou, “juraria estar diante de Bell.”

Mas Reginald Bell estaria agora ao lado de Rhodan, na Ironduke, a nave capitania. Estava também fazendo parte de um comando.

— Tenente Gucky se apresenta no momento, senhor — conseguiu ele dizer, empertigando-se todo em posição de sentido.

O homem espadaúdo da poltrona de piloto juntou as mãos antes de se virar lentamente. Continuou sentado, o movimento era só da poltrona giratória. Seu rosto avermelhado e sadio irradiava bondade misturada com uma ponta de curiosidade. Sorriu um pouco.

— Então, isto é Gucky, o mais famoso de todos os ratos-castores. Por que o senhor se apresenta somente agora, Tenente Gucky?

Gucky olhava meio desnorteado para o Major Sukril. De fato, o homem parecia muito com Bell de cabelos pintados. Não fossem os pensamentos diferentes, podia-se crer estar diante do substituto de Rhodan. Olhando, porém, melhor, viam-se as primeiras diferenças. A boca era mais estreita e tinha traços mais rígidos, as bochechas mais salientes e o queixo mais bifurcado. Nos olhos castanhos havia expressão de mais rigor, valentia e senso de eqüidade.

— Quer dizer que já é tarde para isto? — foi a réplica de Gucky.

O major não mostrou a menor reação e procurou esconder os pensamentos, o que não lhe foi possível, pois não tinha experiência nesse campo. Assim Gucky captou interessantes detalhes que, no entanto, não davam uma idéia geral. Tinha, pois, de completar seu quadro com perguntas.

— Tenente Gucky — tornou Sukril, rude. — A bordo de minha nave não tolero exceções. O senhor é membro da tripulação, com os mesmos direitos e deveres de todos. É verdade que se contam muitas piadinhas sobre o senhor, mas não vá crer por isso que terá mais privilégios que os outros. Aqui todos cumprem o seu dever e o senhor vai cumprir os seus. Entendido?

— Não — disse Gucky, cerrando os olhos e abaixando a cabeça. — Há muita gente que diz que minha cabeça deixa muito a desejar e...

— Disciplina militar nada tem a ver com inteligência — gritou o major, perdendo o controle, para logo depois se dominar. — Cada um que chega a bordo de uma nave tem que se apresentar ao comandante, entendido?

— Foi o que eu fiz, senhor! — Gucky tentava se justificar. No íntimo, a discussão começava a lhe agradar. — Tenente Germa me trouxe logo para cá.

— Ah! É? E como o senhor explica que somente agora apareceu aqui? Olhe um pouco ali para a tela do vídeo. Já estamos passando sobre a Lua.

— Que belo panorama — disse o rato-castor, com naturalidade, contemplando a região das crateras. — Isto me lembra muito Péricles.

— Lembra o quê?

— O senhor conhece Péricles, não é? Se não conhece, é pena, porque então perdeu muito. A segunda lua do quarto planeta de Clara V, um sol vermelho à esquerda de Escorpião, digo, de Câncer. Sabe onde fica Câncer?

O rosto de Sukril se alterou de um modo interessante. Foi ficando mais escuro. Ao contrário do que acontecia com Bell, não ficava vermelho, mas azul ou quase roxo.

— Você não vai querer...

— Não, de maneira alguma, senhor — cortou-lhe Gucky o pensamento. — Mas falando com toda seriedade, não podia mesmo me apresentar ao senhor mais cedo do que o fiz.

Sukril parecia mais calmo.

— E por que não?

— Porque cheguei a bordo exatamente quando o senhor estava dando a partida.

Sukril examinava Gucky com atenção.

— O último botão de sua jaqueta não está abotoado, Tenente Gucky.

O rato-castor concordou indiferente.

— Isto não tem importância. O senhor sente frio?

O Major Sukril engoliu saliva e se controlou, pensando no seu fígado.

“É preciso ficar calmo”, pensava ele. “Não posso me excitar. Querer discutir o tempo todo com o mutante é perda de tempo.”

Já perdera a esperança, mais cedo do que supunha, de se impor daquela maneira marcial, exatamente ele, o homem respeitado pela autoridade e disciplina.

— Você tem que respeitar as normas disciplinares, tenente. Na sua cabina, por mim, pode fazer o que bem entender — disse firme, porém, com respiração alterada. — O senhor sabe qual é nossa missão, e por conseguinte, também a sua?

— Caçar naves robotizadas, senhor.

— Pode se expressar desta forma.

Sukril estava um pouco mais amigável.

Inclinou-se mais para a frente e fitou os olhos de Gucky.

— O Tenente Germa já lhe mostrou suas acomodações? Tem alguma objeção a fazer?

— Nenhuma, senhor. Apenas uma pergunta: Que vamos procurar em Marte?

Num largo sorriso, Sukril se inclinou ainda mais na direção do rato-castor.

— Oh! Realizou uma pesquisa telepática? Por que então a pergunta? Mas eu vou lhe dizer. Rhodan deu Ordem de apanharmos Iltu. Ela deve daqui em diante acompanhar algumas expedições e aprender alguma coisa com o senhor.

Esquecendo sua educação militar, postou-se revoltado com as mãos na cintura. Sua expressão era de espanto e de indignação.

— Iltu? A filhota?

Sukril abanou a cabeça.

— Que tem o senhor contra Iltu? É uma rata-castora de muita beleza e muito competente, pode trabalhar telepaticamente e tem grandes dons telecinéticos. Só não está ainda perfeita em teleportação, mas haverá de melhorar.

— É muito criança ainda — insistiu Gucky.

— Mesmo assim já tem mais de cem anos, como nos confessou — disse o comandante com calma. — Se ela é tão criança ainda, gostaria de saber quantos anos um rato-castor pode viver. Qual é sua idade, Tenente Gucky?

Uma pergunta desagradável da qual Sukril, como tantos outros antes, não recebeu resposta, incluindo Rhodan e Bell.

— Iltu!

A voz de Gucky era de reprovação, mas no fundo de seus olhos se acendia um clarão de alegria de poder ver sua especial amiga, que ele salvara, há muito tempo, juntamente com outros irmãos de raça, ainda filhotinhos, ao todo vinte e sete, da destruição do planeta Vagabundo, trazendo todos eles para a Terra. Mais tarde foram transferidos para Marte, onde as condições climáticas lhes eram mais favoráveis.

— Iltu sabe que vai tomar parte em expedição?

— Foi preparada para isto e concordou — respondeu o major.

— Criatura corajosa! — Disse Gucky com orgulho, para acrescentar logo em seguida: — Mas não para esta missão, pois não tem idéia de como se faz uma boa teleportação e no tocante à telecinese, tem apenas fantasias infantis na cabeça. Terá que ser assim mesmo?

Major Sukril deu uma de homem ponderado e compreensivo:

— Não, não precisa ser assim. Se você é totalmente contra a idéia, assim foi a ordem de Rhodan, deixamos de parar em Marte e não a levamos conosco. — E, virando-se para o oficial debruçado sobre os mapas: — Capitão, elabore uma nova rota, vamos acelerar e deixar Marte de lado...

— Isto não! — chilreou o rato-castor, dirigindo-se apressado na direção do oficial de navegação. — Se você não aterrissar em Marte, vai se arrepender. — E olhando de novo para o boquiaberto Sukril: — O que você está olhando tão espantado assim? É claro que vamos levar Iltu conosco. Afinal, todo mundo tem que começar um dia.

Meio brincalhão, acenou para o comandante e deixou a sala de comando com muito garbo. Com uma correta saudação militar, o Tenente Germa também se despediu, antes que a tempestade caísse em cima dele.

Mas não houve tempestade.

Com o queixo caído, Major Sukril acompanhou com os olhos a saída de Gucky, assumindo logo depois sua postura marcial, ao fazer um sinal para o oficial de navegação:

— Mantenha a rota preestabelecida, parada em Marte.

“O primeiro round”, pensou ele, “ficou empatado.”

Não sabia como se enganava.

 

A breve parada em Marte ocorreu como estava prevista. Iltu foi trazida a bordo e conduzida a seu alojamento pelo Tenente Germa e lá recebida por Gucky. Só então foi que a César partiu tomando o rumo do respectivo setor.

Tratava-se de uma região nos confins da Galáxia, onde quase não se viam mais estrelas. Atlan a assinalara como centro de operação de uma importante unidade da frota arcônida e, de fato, as equipes de busca das naves terranas quase que diariamente davam com os cruzadores ou grandes espaçonaves do Império Arcônida. Sem os impulsos habituais do regente robotizado, vagavam sem rumo pelo espaço a fora, como fáceis presas de quem primeiro as achasse.

Major Sukril esperou até que a estrela, que marcava seu campo de ação, aparecesse na grande tela da César: um sol imenso e desconhecido, que nem sequer tinha nome, apenas um número de referência. Seria este o ponto de partida para todas as operações da César.

A velocidade da luz já fora há muito ultrapassada e, de segundo a segundo, a nave terrana aumentava a aceleração, disparando entre o Universo normal de Einstein e a quinta dimensão, rumo a seu objetivo. Já se via o gigantesco astro, embora uma parte do Universo estivesse oculta numa espécie de zona escura. Não era um vôo cego, como acontecia nas transições, mas com visão contínua.

A César foi a primeira superespaçonave a aperfeiçoar-se com o consagrado tipo de propulsão linear. A Alderamin possuía também o mesmo tipo de propulsão, não sendo, porém, tão aperfeiçoada, pois o professor Kalup adicionou à César novos fatores de segurança que não se conheciam antes. Assim, era a César a mais segura e mais rápida espaçonave da frota terrana.

Major Sukril estava consciente desta prerrogativa.

Ficou ainda uma meia hora diante da tela luminosa, controlando o vôo, a rota e a velocidade. Depois, chamou o primeiro-oficial.

— Major Brokov, assuma agora a direção. Pode me chamar, se houver necessidade. Todas as mensagens de hiper-rádio que chegarem devem ser guardadas, pois quero ouvi-las depois. Boa noite, major.

— Boa noite, senhor — disse Brokov, numa solene continência, relaxando-se em seguida, mal Sukril desaparecera atrás da porta.

Tinha cabeleira escura, era de baixa estatura, quase de largura exagerada, parecendo ser de temperamento mais alegre.

— Nosso comandante não é apenas refinado em suas maneiras, não é, Henderson?

O oficial de navegação, Capitão Henderson, pôs as mãos por sobre os mapas e sorriu.

— Acho que ele é um homem muito exigente, rígido mesmo, mas acho também que não poderíamos imaginar um comandante melhor.

— Sou da sua opinião, Henderson — disse Brokov, ao sentar-se. — Posso lhe pedir as informações de rotina?

O oficial de navegação apontou para a tela luminosa.

— Rota BM-53-XB; velocidade no momento 370.000 vezes a da luz; aceleração constante na proporção de três vezes. Objetivo final a ser alcançado em cinqüenta horas. Até o momento nenhuma ocorrência digna de menção.

— Obrigado, Henderson — Brokov virou-se da tela e olhou para o capitão. — Estamos com o mutante Gucky a bordo, não é verdade?

— Foi-nos enviado para a nave, mas chegou atrasado, no último segundo. O “velho” quase que explodiu.

— Posso bem imaginar, conheço Gucky. Já voamos uma vez juntos, em companhia de Rhodan. O rato-castor não dá muita importância à disciplina militar. Agora vai ter outros cuidados, desde que a “Guckelina” está com ele.

— Quem? Por favor?

Brokov piscou os olhos com malícia.

— A jovem rata-castora que apanhamos em Marte. Como parece, não estão satisfeitos com um só representante desta raça. Tenho receio de que o Major Sukril vai se aborrecer muito nesta viagem.

— Talvez, não. Tem muita capacidade de adaptação — assegurou Henderson, já aprofundado em sua tarefa de controlar a rota da espaçonave.

Uma conversa bem diferente se realizava neste momento na cabina de Gucky. O rato-castor estava sentado, com as pernas dobradas, na extremidade de seu sofá, apoiando as costas contra a parede. Na outra ponta do sofá, estava sentado, com bons modos, um outro animal.

Com olhos puramente humanos, não se notava nenhuma diferença entre os dois, embora Iltu não estivesse de uniforme, mas com uma simples vestimenta esverdeada, sem nenhum distintivo hierárquico. Iltu era um pouco menor e de compleição mais franzina do que Gucky, mas isto era a única coisa que os distinguia. Iltu possuía também o dente de roedor, visível quando sorria, mas não tão branco como o de Gucky. Os olhos castanhos eram iguais e igual também era a cauda de castor, aberta em leque, embora um pouco menor. Seu traje não tinha fundo especial na calça, tão-somente uma abertura.

— Vocês andam todos assim, lá em Marte? — perguntou Gucky, fungando com um certo mal-estar. — O que se faz na tal colônia?

Por uns segundos, Iltu deixou à vista o dente de roedor, um tanto amarelado.

— Você nos devia ter visitado já há mais tempo. Estão muito agradecidos. Todas as crianças querem ver seu vovô.

Gucky se assustou.

— Vovô? — repetiu. — Me chamam assim?

— Quem, então? Não há outro aqui.

Gucky se encolheu um pouco.

— E você os chama de agradecidos? Estes malandros...! Eu os salvo da morte certa, em Vagabundo, levo-os para a Terra, arranjo-lhes uma colônia em Marte, dou-lhes nova pátria... e então me chamam de vovô. Que falta de respeito!

Iltu abanou a cabeça.

— Você não repetia sempre que nós éramos crianças demais em comparação com você? Dizia sempre que era um velho em relação a nós, muito mais sábio... Daí vem seu nome de vovô.

— Se Bell ouvir isto, vai morrer de rir.

— Bell? Não é o tal homem gordo de cabelos cor de fogo?

Parece que Gucky se esqueceu do “vovô”, pois começou a sorrir.

— Sim, é ele. Mas não o chame de gordo, pois vai engolir você viva, apesar de seus lindos olhos.

Iltu chegou mais perto.

— Tenho olhos lindos? — sussurrou ansiosa.

Gucky se comprimiu mais ainda contra a parede, fazendo desaparecer seu dente de roedor.

— Sim, mas o que gostaria de saber é, como vai a colônia? Em Marte, naturalmente.

Iltu deixou cair o queixo e se entristeceu um pouco.

— O dia inteiro, instrução e esporte. Quase não temos tempo para brincar. Construíram uma cúpula energética sobre a colônia, para que ninguém nos roube. Pelo menos é o que todos dizem. Mas acho que é para que não possamos brincar bastante. Os filhotinhos usam suas faculdades para transportar pelo ar todos os objetos, inclusive os homens, deixando-os depois em outro lugar. Estas brincadeiras não podiam ser agradáveis para os oficiais e demais pessoas que estão na base de Marte. Daí, talvez, a nova cúpula de proteção magnética. Apesar disso, continuamos brincando, ao menos dentro da cúpula — deu um longo suspiro. — Quanto a mim, estou muito feliz por estar aqui e poder voar com você. São verdadeiras férias.

Gucky fez ar de sério.

— Não são férias, de espécie alguma. Você me foi confiada como aprendiz, apesar de ser ainda muito jovem, isto é, inexperiente, penso eu, para me representar um grande auxílio, mas quero tentar. Como está sua teleportação?

Encolheu-se um pouco, talvez de modéstia.

— Nada de especial — disse com naturalidade. — Quanto à telecinese, porém, excelente, e também a telepatia. Mas teleportação, estou aprendendo ainda, e vou aprender mais se me derem oportunidade.

— Vamos praticar bastante, antes de entrarmos juntos na primeira missão — prometeu Gucky, sério. — Aqui no supercouraçado há lugar bastante para isto. Mas, me deixa lhe dizer uma coisa, Iltu: Aqui no couraçado não se brinca. Pode acontecer muita coisa inconveniente. Se você mexer numa única alavanca, podemos morrer todos. Podemos nos chocar contra um sol ou cair num abismo do tempo.

— Cair onde?

Iltu esticou as orelhas, o que lhe ficou muito bem.

— É uma expressão técnica — disse Gucky se esquivando. — De qualquer maneira, telecinese pode ser usada somente quando eu mandar. Está me compreendendo?

— Sim — disse com voz um pouco afetada, começando a passear na cabina, mais para se exibir.

— Gosta do meu uniforme?

Gucky não se sentia bem. Teria caído no chão, não fosse a parede.

— Estas mulheres — disse meio excitado. — São sempre e em todas as raças a mesma coisa. Mas, uma coisa lhe quero dizer, menina, você não está aqui em férias de verão, mas numa nave de guerra. Aqui há disciplina, você vai ver logo. Não sou seu vovô, mas seu superior. Você terá que fazer somente o que eu lhe disser. Será que isto está mesmo bem entendido?

Iltu iluminou então Gucky com a luz sincera dos seus olhos de menina-moça.

— E o que que você me ordena agora? — perguntou toda dengosa.

Gucky ergueu para o ar os dois braços e soltou um assobio estridente e desesperado.

— Ordeno-lhe que desapareça imediatamente e vá para sua cabina ao lado e me deixe em paz. Quero descansar um pouco, estou cansado mesmo. Estou saturado de conversa de criança.

Iltu não deu a menor mostra de ofendida. Sorriu galante.

— Perfeitamente, vovô — disse lacônica, olhando encantada para o canto da parede.

Desapareceu, se teleportando. Apenas uma leve cintilação mostrava o lugar onde estivera.

Gucky, desconcertado, estirou-se no sofá, batendo com os punhos na parede.

— Que criatura! Que criatura atrevida!

Mas, subitamente se acalmou. Ficou quieto e se concentrou. Começou a receber os impulsos dos pensamentos de Iltu. Devia também estar deitada em sua cabina e pensando no que ouvira.

Gucky fechou os olhos e começou a sorrir.

O que Iltu estava pensando sobre ele devia ser coisa muito agradável...

 

Dois dias inteiros, Gucky treinou com Iltu, a bordo. Levava-a a um determinado local, cuja conformação exterior tinha que gravar na memória, voltava ao lugar de partida e dava-lhe a ordem de se teleportar. Nem sempre deu certo, a princípio. Ela se desmaterializava corretamente, chegando, porém, a um lugar bem diferente. Gucky tinha então que procurá-la, pois neste caso pouco adiantavam os dons telepáticos, já que Iltu não sabia onde estava.

É evidente que estes treinos acarretavam para a tripulação da César não só surpresas, como também aborrecimentos. Às vezes, também sustos, pois nem todos tinham nervos de aço para se depararem de súbito com um vulto estranho vindo do ar. E Iltu se rematerializava nas salas de máquinas, em cabinas particulares, postos de artilharia, até mesmo em banheiros.

Ao terminar o segundo dia, ele pôde constatar:

— Ótimo, menina, se você continuar assim, ficará logo uma excelente teleportadora, tem realmente qualidades para isto.

Iltu notou que Gucky estava subestimando seu valor.

— Você é malandro, hein! Nas últimas duas horas, não cometi um senão em todas as teleportações. Portanto, sou uma boa teleportadora.

— Sofrível, sofrível, apenas — emendou Gucky. — Agora, você tem que aprender como se atinge um objetivo desconhecido, por via telepática. Para lhe dar um exemplo: procure os impulsos mentais do comandante, localize-o e salte, materializando-se diante dele.

— Acho que não vou fazer isto, não. O comandante é muito rigoroso, tenho medo dele.

— Então vamos pegar outro, o Tenente Germa — olhou firme para Iltu. — Onde está Germa agora?

Iltu entendeu o que Gucky queria.

Concentrou-se e procurou disciplinar a corrente de pensamentos que lhe vinham ao cérebro. Levou quase uns dez minutos, até que seus olhos se encheram de brilho.

— Achei-o, está de folga, em sua cabina.

— Ótimo — disse Gucky, em tom de elogio. — Então, acompanhe-me que eu vou saltar.

Desapareceu, mal acabara de falar. Iltu olhou perplexa para o local vazio, esqueceu Gucky e se concentrou de novo, com todas as suas forças, nos impulsos mentais de Germa e... pulou.

Sentado na poltrona, Germa lia, daí então sua corrente clara de pensamentos, fácil de ser captada por um telepata. Corrente esta, aliás, interrompida quando o rato-castor se materializou junto de onde estava sentado, anunciando sua chegada com um silvo estridente.

Germa deu um pulo para cima, acalmando-se logo depois, pois já estava acostumado com os modos de Gucky. De qualquer maneira, ficou bem pálido, quando, um segundo depois, Iltu se materializou exatamente no seu colo, comprimindo-o, com seu peso, contra o estofado.

— Que brincadeira! — disse indignado. — Não vê que estou lendo?

— E nós estamos praticando. Ótimo salto, Iltu. Foi um serviço muito bem calculado. Você se orientou com grande exatidão, mas seria preferível aterrissar na cabeça dele. Acho que é aí que ele tem o cérebro.

Germa se levantou, depois que Iltu escorregou de seu colo.

— Mas agora chega, não é, Gucky? Deixe-me pelo menos descansar um pouco, nas curtas horas de repouso que me são dadas. Já estamos quase chegando ao campo de operação, onde não se pode mais descansar. Já estamos em estado de alarma a bordo e parece que vocês não têm outra coisa a fazer, a não ser assustar gente inocente...? É uma vergonha, Iltu, não esperava isto de você.

A jovem patrícia de Gucky abaixou os olhos contrita, deu uns passos para frente e chilreou dengosa:

— Não foi esta minha intenção, Germa. Mas temos que treinar bastante, para não fracassar na hora do barulho. Não tive intenção de saltar no seu colo, mas simplesmente na cabina. Não me leve a mal, portanto.

A cólera de Germa se dissolveu, como manteiga ao sol forte. Esticou o braço e puxou Iltu para junto de si.

— Está certo, minha filha, você não tem culpa disso — seu olhar severo atingiu Gucky. — Mas ele já é adulto, talvez até velho demais, para se permitir tais brincadeiras.

Gucky estremeceu todo.

— Não sou velho demais, não — disse irritado, desmaterializando-se no mesmo instante, visivelmente ofendido.

Germa ficou olhando para o lugar vazio.

— O que houve com ele?

Aí foi que se mostrou que Iltu não aproveitou a ocasião para denegrir seu irmão de raça ou ridicularizá-lo.

— Não sei, não — e dizendo isto, retirou suas patas das mãos do jovem oficial. — Desculpe, tenho que tratar dele. Até logo.

E Germa ficou, então, sozinho na cabina.

Retomou o livro, mas a leitura não tinha mais graça.

 

Terminara exatamente agora o tempo de repouso na grande nave; soava, então, o alarma geral.

Na central de comando, o Capitão Henderson estava diante do grande painel de navegação, recebendo os dados de posicionamento do posto de rádio. O ângulo de captação de imagem na tela principal da frente se modificou, devido ao uso da ampliação.

Surgiram, então, onze pontos de fraca cintilação e o Major Sukril, por cautela, deu o alarma, pois não podia ter certeza se se tratava das naves arcônidas desgovernadas ou das unidades dos saltadores ou de outra qualquer raça. Grupos de dez ou mais naves robotizadas não eram fato estranho. Podiam estar num vôo de comboio, quando o regente se autodestruiu, estando agora sem rumo pelo espaço, até que a própria eternidade pusesse termo ao seu vôo sem fim.

Ou eram comandos terranos de busca.

— Rota mantida e velocidade sempre igual — disse o Capitão Henderson, após dois minutos de cálculos. — Tudo indica que estamos diante de naves de Árcon. Suas ordens, senhor?

Major Sukril não arredou os olhos da tela luminosa. Pensava na amarga experiência feita pelo Major Kermak, que não queria repetir, de maneira alguma. Se aparecessem saltadores, atacá-los-ia imediatamente, mas não destruiria as naves desgovernadas.

Mas, os instrumentos de rastreamento não registravam nenhuma matéria num âmbito de oitocentos anos-luz, fora dos onze aparelhos arcônidas. O sol mais próximo estava também a uma distância de oitocentos anos-luz atrás da César. O setor BM-53-XB era, assim, a região mais vazia e solitária que se podia imaginar.

— Reduzir a velocidade, capitão, manter a rota e ordenar prontidão nos postos de artilharia. Tenente Germa, venha à central.

Germa era apenas um dos muitos oficiais da operação e foi por mera coincidência que Sukril o escolheu. Podia ter chamado o Capitão Delmarin ou o Major Borowsky ou o Tenente Steinwied. Mas o convocado fora o Tenente Germa. Foi um daqueles atos instintivos que geralmente alteram todo o curso dos acontecimentos. Talvez tivesse alguma influência o fato de o Major Sukril saber das boas relações de amizade existentes entre o Tenente Germa e os dois ratos-castores.

O major apenas meneou a cabeça quando Germa chegou. Sua concentração estava toda voltada para a tela luminosa. Alguma coisa o precavia intimamente, mas era uma precaução vaga, pouco palpável. Já agora estava evidente que eram as onze naves que flutuavam na frente, sem tripulação. Os contatos de rádio não tiveram resposta. Nada indicava que alguma delas estivesse funcionando.

— Tenente Germa está a postos, senhor.

O Major Sukril só agora despertava de suas divagações. Virou-se lentamente.

— Olhe estas naves aqui, tenente. Qual é sua opinião?

Germa chegou mais perto, até parar junto do comandante. Observava os aparelhos com muita atenção, acompanhou a estabilidade da rota e analisou sua formação.

Eram todas espaçonaves esféricas, a começar pelo tipo pequeno das de sessenta metros de diâmetro, até a nave capitania da classe Império, idêntica à César.

A velocidade relativa da esquadrilha era agora quase zero, no entanto, fazia ainda muitos milhares de quilômetros por segundo. O espaço atrás delas estava escuro. Apenas umas manchas esmaecidas indicavam que além do gigantesco abismo havia ainda outras vias lácteas. Neste vão infinito, de acordo com os conhecimentos de então, não havia nada, a não ser o terrível vazio. Nenhum sol, nenhum planeta e talvez nenhuma nave.

— Sem dúvida alguma, unidades da frota robotizada, fora de funcionamento, senhor.

Major Sukril concordou.

— É minha opinião também, tenente. Acho que podemos apanhá-las. Tem alguma dúvida?

— Não, senhor. É minha função mesmo capturar as naves e conduzi-las até a Terra. É só o senhor dar ordem e nós iniciamos a ação.

Sukril sorriu.

— Nada de precipitação, tenente. É verdade que não há unidades estranhas por estas imediações, mas a situação pode sofrer alteração. Os saltadores precisam de uma simples transição para chegarem até aqui — disse, terminando num longo suspiro. — Pegue uma nave de reconhecimento, com cinco homens, tenente. É um comando avançado. Prefira a nave capitania. A comporta central pode ser aberta por fora, caso a trava magnética esteja desligada. Penetre até a central de comando. De lá aguardo seu radiograma. Se estiver tudo em ordem, as diversas tripulações podem ser enviadas para se apoderar da esquadrilha.

O Tenente Germa ainda quis ter certeza.

— Portanto, captura normal das naves, senhor? Nenhuma instrução especial?

— Pelo menos não, até a hora de o senhor chegar a bordo da nave.

Germa estava hesitante.

— Mais alguma coisa, tenente?

— Só uma pergunta, senhor. E o teleportador Gucky, o que vai fazer?

— O rato-castor? — refletiu um pouco. — Por que vamos precisar dele, se tudo está em ordem? Somente o utilizaremos, se ocorrer algo imprevisto; será uma espécie de freio de emergência.

— Estava apenas pensando, senhor...

— Você vê algum motivo imperioso para usar o mutante já agora?

— Claro que não, senhor.

— Então, dirija-se com sua gente para o hangar e pegue uma das gazelas. Voe diretamente com ela para dentro da comporta principal da espaçonave robotizada. E, agora, tenente, muita sorte.

Germa bateu continência e saiu. Escolheu cinco homens do comando de ação e correu com eles para o hangar. Lá, a pequena tripulação do aparelho já estava à espera, numa das gazelas. O veloz disco — dezoito metros de altura e trinta de diâmetro — estava equipado com propulsão com transição, efetuando saltos de até cinco anos-luz.

Germa foi o último a entrar na escotilha e, quando estava para fechá-la, materializou-se, bem rente dele, o rato-castor. Gucky fez um sinal para ele e foi caminhando ao seu encontro.

— Quer dizer, então, que sou supérfluo — disse ele.

— Bobagem, Gucky, o comandante quer utilizá-lo somente em caso de perigo, em certo sentido, como um freio de emergência.

— Não sou, porém, nenhum freio. Aliás, ouvi toda a sua conversa. Quero saber por quê, na importante conferência, se resolveu que os mutantes deviam acompanhar as expedições. Por que trabalhei tanto em treinar Iltu? Só para ela ficar sentada a meu lado, torcendo os dedos?

— Não tenho mais tempo — disse Germa, olhando para o relógio. — A ordem de partida pode ser dada a qualquer instante.

Gucky olhou preocupado para o tenente.

— Tenha cuidado, Germa. Há alguma coisa que não está em ordem nestas naves. Eu o sinto.

O próprio Major Sukril o notara, mas era um homem que não dava importância a sentimentos vagos e incertos. Gucky, que acompanhava telepaticamente os pensamentos do comandante, percebera esta incerteza, que o levara a olhar superficialmente a esquadrilha. A ausência de um julgamento mais categórico sobre a identidade das naves não o deixou tranqüilo. É verdade que naquelas naves não havia inteligências, mas alguma coisa não estava certa.

— Haverei de chamá-lo, se acontecer alguma coisa, meu amigo.

— E eu irei — prometeu Gucky.

O rato-castor já tomara a decisão de agüentar todo este vôo sem provocar aborrecimentos disciplinares. Do contrário, já teria se teleportado para as naves robotizadas, a fim de ver o que estava se passando. Mesmo assim, achava bom ter uma conversa mais séria com o Major Sukril. Ele necessitava de poderes mais amplos.

A escotilha fechou e, segundos depois, a gazela deslizou pela comporta da decolagem, atirando-se diretamente no espaço.

Major Sukril dera a ordem de partida.

 

A central de comando da gazela estava na parte superior do disco e seu “teto” era transparente. Germa conseguia ver com facilidade os onze aparelhos desgovernados. Aproximava-se lentamente deles, sempre com a mão direita perto da alavanca da direção, sendo-lhe suficiente abaixá-la para imprimir na gazela uma velocidade descomunal. Não havia dúvida de que a suposição de que estranhos tivessem penetrado nas naves e delas se apoderado era totalmente absurda. Pois, fosse este o caso, não iriam esperar até que alguém os encontrasse. Mas seria também cabível que estes estranhos não conseguissem dominar os controles robotizados das naves. Daí, então, a razão de sua espera.

Nesta hipótese, porém, deviam estar por ali perto as naves com que chegaram, o que seria acusado imediatamente pelos rastreadores.

“Gucky me pediu muito cuidado”, pensava Germa, já com uma sensação desagradável na região do estômago. “Não falou isto apenas da boca para fora.”

A carcaça externa do supercouraçado se ampliara tanto que quase ocupava toda a tela. Germa reconheceu com facilidade os rebordos da comporta, a saliência do conjunto de tração e as cúpulas da artilharia. A tela de bordo mostrava estes detalhes com mais nitidez, mas Germa preferiu olhar diretamente o colosso que aparentemente lhes vinha ao encontro. Daquela belonave, outrora destinada a proteger os limites do Império Arcônida, emanava agora uma terrível ameaça.

— Brado!

Um dos cinco homens que estavam com Germa na central de comando, se separou dos outros e veio para frente.

— Qual é sua opinião, sargento? Onde está a comporta principal para o hangar?

À distância se notava o tipo mexicano ou espanhol de Brado. Os cabelos negros lhe pareciam colados na cabeça com brilhantina. Sem jeito, girava na mão o capacete espacial. Todos portavam uniforme leves que lhes permitiam permanência no espaço. O capacete podia ser atarraxado em pouco segundos.

— Conheço estes gigantes da classe Império, senhor — respondeu indeciso — mas têm extensão tão grande, que assim, à primeira vista, não sei.

— Comigo se passa a mesma coisa — disse Germa, olhando de repente para a minúscula roda de regulagem junto dos contornos de uma possível comporta, cujo diâmetro tinha certamente cinqüenta metros. — Lá está ela!

O problema se resolveu mais depressa do que pensava. Com muito cuidado, aproximou mais a gazela, já sem velocidade nenhuma. Estavam agora a uns vinte metros da extensa carcaça, cuja curvatura mal se percebia.

Germa virou-se para trás e olhou firme nos seus homens.

— Quem é que vai?

A resposta foi um silêncio profundo. Ninguém se apresentou por livre e espontânea vontade. Foi uma coisa tão fora do comum, que Germa, por uns segundos, não sabia o que dizer. Sentia a inquietação nos seus homens, em quem podia confiar cegamente e notava também que esta inquietação tomava conta dele próprio. Era como se estivesse sozinho na gazela.

— Sargento Gork, pegue o cadete Wilkowski e abra a escotilha. Damos-lhe fogo de cobertura, em caso de necessidade. Mas, depressa, sim.

Os dois citados acenaram com a cabeça, sem dizer uma palavra, atarraxaram o capacete e apertaram os fechos magnéticos. Ligaram o abastecimento de ar e examinaram o funcionamento do rádio.

— Sargento Gork pronto!

— Cadete Wilkowski pronto!

Germa confirmou a apresentação e lhes deu o sinal. Ficou sentado atrás dos controles e acionou o mecanismo da escotilha.

Um minuto depois, os dois homens apareciam no seu campo de visão. Estavam saltando da gazela e chegando à carcaça do supercouraçado, cuja gravitação própria exercia uma leve atração.

Era um quadro já presenciado muitas vezes por Germa. Duas naves estavam aparentemente imóveis, uma ao lado da outra, separadas por poucos metros. O salto de uma para a outra era muito curto, mas o abismo entre as duas tinha a profundidade de bilhões e bilhões de anos-luz. Não podiam cair neste abismo. De muito longe, via-se um esmaecido reflexo das vias lácteas do infinito.

O sargento Gork encontrou a roda de regulagem e começou seu trabalho. Por mais primitivo que fosse um botão de regulagem, era indispensável, mesmo para uma nave robotizada. Se o dispositivo automático falhasse, ninguém poderia entrar no aparelho, caso não houvesse uma fechadura mecânica. Para isso, havia o botão de regulagem. Haveria de abrir uma passagem muito estreita, só para uma pessoa. Lá dentro, então, poderia pôr o dispositivo a funcionar, com a energia dos acumuladores.

O alto-falante microscópico no capacete de Germa deu o ruído típico. Era a voz do Major Sukril:

— Como está a situação, tenente? Tudo em ordem?

— Mandei dois homens para a comporta. Assim que a abrirem, entrarei com a gazela.

— Nós o estamos observando. Comunique-se de dois em dois minutos.

— Entendido, senhor!

O alto-falante emudeceu. Mas outra voz se fez ouvir. Era o sargento Gork.

— A roda de regulagem está emperrada. Gira só duas vezes, depois pára. Que devo fazer?

Germa soltou qualquer palavrão, em voz baixa, respondendo depois:

— Talvez, essas duas vezes bastem... Tente mais uma vez, sargento.

— Senhor...? — disse neste momento a voz assustada do cadete Lester, que estava ao lado de Brado e de Hansen no fundo da central. — Senhor...?

Germa virou-se para ele.

— Que é? Não vê que estou ocupado aqui com...

— Senhor, aqui na nave... há uma coisa...!

Germa sentiu a pele arrepiar, pois tinha certeza de já ter experimentado o mesmo sentimento... Os três homens não estavam sozinhos na gazela! Não apenas isto. Também ele e os outros não estavam sós na central de comando!

A central não era tão grande assim e não dava possibilidade para um esconderijo. Nem mesmo Gucky conseguiria se esconder nela. Além do mais, Germa duvidava de que a presença de Gucky causasse assim uma tal irradiação de medo e de horror, como realmente reinava no ambiente agora.

Era uma irradiação mental que vinha não se sabe de onde e se concentrava nele, no comandante. Germa não era telepata, do contrário estaria mais claro a respeito. Mesmo assim, seu instinto reagiu ao desconhecido.

— Mantenham as pistolas energéticas preparadas — ordenou, pois não via outra possibilidade de tranqüilizar seus três homens.

Depois, dedicou toda sua atenção novamente aos dois homens lá fora.

Sargento Gork conseguira, entrementes, abrir a pequena escotilha.

— Vou penetrar agora, senhor.

— Wilkowski deve acompanhá-lo — falou Germa com voz firme. — Fiquem sempre juntos e dêem o alarma se virem alguém.

Gork não disse nada. Desapareceu com Wilkowski na pequena abertura.

Os segundos pareciam uma eternidade.

Germa se recordou de um empreendimento semelhante, acontecido já há muito tempo. Naquela época, encontraram uma nave acidentada a mais de quinhentos anos-luz da Terra. O tipo de construção era totalmente desconhecido e deixava supor que seus construtores pertenciam a uma raça que nunca tivera contato com os terranos. Um comando de captura se dirigiu a bordo, depois de terem aberto a fogo uma entrada na carcaça. Ele, Germa, pertencera a este comando.

Lembrava-se agora que teve, na época, uma sensação semelhante. Tinha então a impressão de ser observado por olhos invisíveis e de seus movimentos serem controlados. No entanto, a nave acidentada estava vazia. Seus construtores ou donos já a deviam ter deixado há muitos anos. Nem os arcônidas, nem os saltadores, nem os aras puderam descobrir qual era sua origem. Ainda hoje, a origem desta espaçonave constitui um mistério, dos quais o espaço está cheio.

Germa voltou ao presente, despertando do devaneio. Não podia comparar a nave à sua frente a um aparelho acidentado ou já em escombros. Além disso, sentia a presença de um estranho na central da gazela. Mas não o via.

— Senhor...! Os controles!

O Tenente Germa estremeceu. A voz do seu segundo-sargento Brado foi um grito de pânico.

A alavanca de aceleração movia-se lentamente para trás.

Germa viu atônito como a carcaça do gigantesco aparelho robotizado desapareceu nos fundos, entrando em seu lugar a César, que ocupou toda a tela luminosa. A gazela acelerou e voava, agora, em grande velocidade na direção oposta. Em poucos instantes, as duas espaçonaves haviam diminuído muito de tamanho e, dez segundos mais tarde, as naves menores não podiam mais ser vistas a olho nu.

Só então foi que Germa conseguiu sair do estado de perplexidade em que estava. Pegou de novo a alavanca de comando e a recolocou na posição em que estava antes. A gazela reduziu a velocidade e descreveu uma grande curva. A rota tomada a levaria para o ponto onde estava.

Mas a mão invisível puxou de novo a alavanca para frente, lenta, mas firmemente. Quando o tenente a pegou, para repô-la no ponto certo, estava emperrada totalmente, como se a tivessem soldado com ferro. Ninguém a conseguia mover.

O sargento Brado se lançou contra a porta, como se temesse que alguém a arrombasse para entrar no posto de comando — alguém que estava de espreita lá no corredor. Não notou a falta de lógica de seu procedimento, pois, se havia um estranho invisível a bordo da gazela, ele já se encontrava dentro do posto de comando.

Hansen e Lester, os dois cadetes, imobilizados pelo pânico, estavam colados na parede, ao lado do posto de radiotelegrafia, mais pálidos do que cera, de olhos arregalados de pavor, fixos na diabólica alavanca de comando.

Germa desistiu de mais tentativas. Estava diante de um fato, para o qual não tinha explicação. Pois, se fosse alguém invisível que manipulava a alavanca, sua mão devia ser sentida. Mas não notou nada, quando pegou juntamente com o inimigo invisível, sendo derrotado por força superior. O desconhecido, se é que existia mesmo, não era constituído de matéria...

A César não passava de um pontículo luminoso no infinito, quando o Major Sukril reagiu. Haviam passado, no máximo, quinze segundos.

— Que está havendo com você, Germa? Está ficando doido?

— Senhor, perdemos todo o controle sobre a gazela. Alguém deve ter desregulado tudo. Alguém que é invisível.

Durante cinco segundos contínuos houve silêncio. Cinco segundos, durante os quais a César e a esquadrilha das naves desgovernadas desapareceram por total da visão de Germa. A linha cintilante da Via Láctea e alguns sóis isolados era tudo que se via.

— Procure manter a nave sob seu controle, Germa, transmita constantemente sua posição. Nós o vamos apanhar. Fim.

Nenhuma confirmação, nenhum protesto, nada. Por que isto? O Tenente Germa observou a alavanca de aceleração que estava puxada no ponto máximo. A gazela disparava a toda velocidade. Caso nada se alterasse, chegaria em pouco tempo a valores relativos. O rumo já não era o mesmo. Se fosse perseguida em linha reta, chegar-se-ia a uma formação nebulosa de brilho tão fraco que não se salientava do fundo escuro do nada absoluto.

Uma via láctea? Uma nebulosa entre as Galáxias? Ou na realidade apenas uma mancha nebulosa?

A gazela disparava como louca naquela direção. Se em vez de uma possível transição, se fizessem mil, ou melhor, cem mil transições, ainda se estaria a uns milhões de anos-luz daquela mancha nebulosa.

Num assomo de ira, Germa deu um soco forte na alavanca. Sua mão foi de encontro ao metal imóvel.

— Gucky! — disse em voz alta. — Gucky, ajude-me agora.

 

O sargento Gork e o cadete Wilkowski não sabiam de nada que se passava lá fora. Penetraram na gigantesca comporta e logo acharam os controles mecânicos. Com mãos seguras, ligaram o sistema automático e ficaram esperando. Passou-se um minuto completo, tempo este em que Germa e seus três homens percorreram mais de dez mil quilômetros. Sob seus pés, iniciou-se um ronco surdo. Sentiram a vibração. No aparelho de telecomunicação ouviam-se ruídos ininteligíveis, pois os sons estavam distorcidos.

Abriu-se, então, lentamente a escotilha, deslizando para os lados. Podiam agora olhar para fora. Mas as duas gigantescas metades da escotilha pararam de repente, cessando o ronco e voltando tudo ao silêncio de antes.

O sargento Gork avançou até a extremidade do recinto e viu nitidamente a César, a alguma distância, em sua primitiva posição. A gazela, porém, desaparecera!

Lembrou-se dos sons ininteligíveis do telecomunicador e no mesmo instante ligou seu aparelho e chamou a César. Do Major Sukril soube tudo que acontecera de misterioso, sem que encontrassem uma explicação plausível.

— Fique onde está, sargento, vou lhe mandar reforço. Do Tenente Germa, cuidaremos mais tarde.

— Mas...

— Você ouviu minha ordem, não foi? Portanto, espere.

Gork cerrou os punhos de ira. Ficava aí parado, à toa, enquanto acontecia algo inexplicável com Germa. O cadete Wilkowski, a poucos passos dele, deu um grito de repente e no telecomunicador soou distorcido e aterrador:

— A escotilha!

Gork viu com os próprios olhos. As duas folhas da comporta começaram a se fechar, devagar, mas sem parar, sem o ronco de antes e sem a vibração dos motores em funcionamento. Fechavam-se totalmente, como se fossem empurradas por mãos invisíveis.

E, mais esquisito ainda: sem o funcionamento do respectivo motor!

Sem refletir, Gork deu uma corrida para o vão de uns dez metros, que ainda sobravam, e pulou no vácuo. Preferia tentar alcançar assim a César e ser pescado no espaço a ficar naquela nave assombrada. A reação do cadete Wilkowski foi diferente. Não era nenhum herói, por isso ficou. Parecia-lhe muito mais razoável do que correr o risco de morrer asfixiado entre as estrelas.

 

Alguns segundos antes, Gucky se teleportara para a cabina de comando da César. Dera instruções severas a Iltu para que continuasse em sua cabina e mantivesse contato telepático com ele. Assim, perdeu não muitos, mas preciosos segundos.

Major Sukril queria explodir de indignação ao ver o rato-castor aparecer assim tão subitamente ao lado dele, mas pensou um pouco e esqueceu as severas prescrições disciplinares. Gucky fizera o mesmo. Fosse Sukril major ou não, ele o chamou de você.

— Está aqui seu freio de emergência, meu caro. Percebi logo que alguma coisa não ia bem com as naves. Por que você não me mandou com eles?

— Calma — gritou Sukril, já agora vermelho como um camarão. Não olhou para Gucky, e conservou a mesma posição, sem se desviar da tela luminosa. — Quem é o comandante aqui, você ou eu?

Gucky quis dar uma de cavalheiro e nada respondeu.

— Posso saltar para lá?

— Que está esperando mais? Abra a comporta principal, para que uma gazela lotada possa entrar. Você conhece os controles robotizados e sabe manejá-los?

— Fiz curso para isto — chilreou Gucky indignado, desmaterializando-se, sem dizer mais nada.

Na afobação, se esquecera de vestir o traje espacial de combate arcônida. Tinha apenas seu uniforme de sempre, que lhe permitia permanência somente onde houvesse atmosfera e não tinha recurso algum contra eventuais ataques.

Rematerializou-se no compartimento da grande comporta. Uma tênue luz do teto permitiu reconhecer o cadete Wilkowski, encostado na parede, lívido e trêmulo, tendo na mão a pistola engatilhada.

— Sou eu, Gucky. Onde está Gork?

Wilkowski deixou cair a arma.

— Pulou para fora — respondeu gaguejando — antes que a comporta se fechasse.

Gucky olhou em volta, achando facilmente os controles, mas por mais que tentasse, a comporta não se movia. Era como se forças invisíveis a segurassem.

Acabou desistindo, depois de ver que a telecinese não dera resultado.

— Wilkowski, você fica aqui, ouviu? Vou tentar alguma coisa na central. Quem sabe consigo, se desativar o circuito robotizado? Assim que a comporta se abrir, o Major Sukril vai entrar em ação e enviar um comando especial. Deverá tomar posse dos onze aparelhos ao mesmo tempo. Entendeu?

O cadete fez que sim com a cabeça.

— E, que aconteceu com Germa?

— Pode deixar que eu cuido dele, assim que chegar a hora. Não está em perigo imediato. Portanto, espere aqui.

A nave estranha não era da mesma série de construção que a César. Já que não fora construída para ser dirigida por seres vivos orgânicos, não dispunha de nenhum conforto. As cabinas existentes estavam vazias. No entanto, passando para as mãos de seres inteligentes poderia ser adaptada para servir de moradia.

Gucky se teleportou diretamente para o posto de comando.

Ao se rematerializar, ficou parado de pé. Ali também ardia a iluminação de emergência, embora fosse coisa sem sentido. Lembrou-se, então, de que tal iluminação existia em todas as naves robotizadas e que se acendia automaticamente sempre que um ser vivo irradiava calor.

Os enormes painéis de controle, as longas filas de instrumentos de medição e a quantidade de fios e cabos não foram suficientes para deixar Gucky confuso. Sabia bem o que tinha a fazer, pois sua experiência nestes assuntos não era brincadeira, mormente as que fizera no Sistema Azul...

Não precisava fazer mais nada do que retirar da chave geral de ativação uma minúscula cápsula. Feito isto, a nave obedeceria aos comandos das mãos humanas.

Já dera um passo na direção dos controles, quando parou de súbito. Era, de novo, aquela sensação estúpida da iminência de um grande perigo. Seu cérebro de alta sensibilidade registrou os impulsos mentais, que não formavam um quadro coerente, nem davam sentido algum. No fundo, só transmitiam emoções, que não eram de maneira alguma alegres. Uma onda de ódio inundou Gucky e esta onda vinha do nada.

Por instantes, teve que lutar contra ameaças de pânico, acabando por vencê-las. Sacou a pistola energética da cintura e a destravou, ficando a terrível arma pronta para atirar.

Olhou com cautela para todos os lados, à procura de um adversário, possivelmente escondido por ali. Mas não viu nada, sentia apenas. De todos os lados, era acometido pelas ondas de ódio, tentando arrastá-lo para um abismo desconhecido. Sim, era isto: como um turbilhão!

O adversário estava na central de comando, no mesmo aposento que ele. Mas era invisível.

Gucky foi recuando, até se encostar nos controles. Assim podia ver todo o posto de comando. Certamente, por ali poderia haver esconderijos, se alguém se desse ao trabalho de se esgueirar pelas estreitas fendas entre os painéis de controle e instrumentos de diversos tipos.

“Mas não é nesses locais que está o inimigo”, refletia Gucky.

Além do mais, não se tratava de um inimigo, mas de vários. Todos invisíveis e na sua proximidade.

Não perdoou a si mesmo pelo fato de ter esquecido o traje arcônida de combate. Com ele, poderia se tornar invisível, bastando para isto apenas ligar o campo defletor. Também se sentiria mais à vontade, protegido por um envoltório magnético individual. Mas estas ponderações chegaram muito tarde e nem pensou em se teleportar de volta à César. Enquanto o cadete Wilkowski estivesse lá embaixo na comporta, não podia voltar à César.

Por um instante, pensou no Tenente Germa, que se precipitava, numa velocidade louca, pelo espaço a fora. Teria que ir buscá-lo, mais tarde, quando chegasse a hora.

Os fluxos de pensamentos adversos aumentavam sempre mais. Gucky, porém, não conseguia tirar da cabeça a idéia de já ter enfrentado uma vez na vida fluxos semelhantes. Tinha memória excelente, mas, desta vez, estava falhando. Por maior esforço que fizesse, não conseguia se lembrar de quando e onde.

Bem rente a ele cintilou um raio azulado e um disparo energético surgiu do nada, do invisível. Alguém atirou em Gucky e errou por poucos centímetros. A elevada ação térmica, porém, deu para lhe chamuscar o braço esquerdo. A dor foi lancinante, tão lancinante que quase perdeu os sentidos. Sem pensar mais, revidou o fogo, apontando para o local de onde partiram os raios energéticos. Agachou-se, em seguida, tentando se concentrar para uma teleportação, pois tinha que sair dali, do contrário estaria perdido.

Aos pensamentos de ódio, misturavam-se agora sentimentos de satisfação.

Ao materializar-se, Gucky caiu exatamente do lado do braço chamuscado, provocando-lhe de novo dores horríveis em todo o corpo. Viu que as coisas desapareciam na sua frente, para voltarem instantes depois. Estava num recinto completamente vazio. Os pensamentos hostis estavam já fracos aqui, talvez por ser mais longe. Conseguira fugir, mas por quanto tempo?

— “Iltu!”, pensava ele. “Você pode me ouvir?”

— Sim, Gucky! Posso ajudá-lo?

A resposta de Iltu foi clara e nítida. Devia ter mantido contato constante com ele e acompanhado bem os acontecimentos.

— “Iltu! Na minha cabina, no armário, os uniformes de combate! Vista o seu e traga o meu, mas depressa.”

Não houve confirmação. Será que Iltu teria entendido?

Levantou-se e examinou seu lado ferido. A dor não tinha cedido, mas Gucky tentou repeli-la mentalmente. Embora doesse muito, não era coisa grave: apenas uma queimadura, esperava ele.

Nos segundos de espera, lembrou-se de algo em que ainda não pensara. Foi tudo rápido, para se poder observar, mas uma coisa ele vira. Ao atirar, apontando para o inimigo invisível, devia tê-lo atingido. E sua conclusão se baseava em duas coisas. Os impulsos mentais, ódio e satisfação, irradiaram depois também muita dor e, em segundo lugar, vira também uma sombra fugitiva.

A sombra...!

Foi apenas uma coisa passageira, que logo desapareceu. Só pela fração de um segundo, o agente oculto saiu do nada e se tornou visível. Pelos contornos, devia ter algo de humanóide, mas tão transparente que Gucky viu a cintilação atrás dele.

Agentes do nada...?

E Gucky se lembrou, então, de onde os vira. Outrora, no planeta ambulante Bárcon, que disparava pelo espaço vazio de estrelas do grande abismo, para chegar de novo à Via Láctea. Foi lá que se deu o ataque destes seres. Ataque de seres sem matéria e que só se tornavam visíveis quando atingidos por fogo energético cerrado. Eram constituídos unicamente de pensamentos e talvez fossem estes pensamentos a única matéria neles existente. Seres invisíveis e incorpóreos, com forças telepáticas, mas de maneira de pensar tão estranha que seus pensamentos se tornavam incompreensíveis. Terrivelmente hostis e sem escrúpulos.

Ninguém sabia de onde vieram, nem para onde fugiram, pois até mesmo suas naves eram invisíveis. Só um instrumento especial, que registrasse irradiações energéticas, poderia torná-las visíveis — torpedos alongados, de mais de cem metros de comprimento. Partiram, mergulhando no infinito, entre as vias lácteas.

E agora estavam de volta. Gucky sabia que eram os seres mais terríveis que o homem jamais encontrara — principalmente perigosos, porque o homem não os conhecia. Era como se vivessem num outro plano de existência.

Os impulsos mentais voltaram com nova força, à procura dele. Os estranhos estavam mais perto.

De maneira alguma poderia Gucky agora se teleportar para a comporta onde Wilkowski estava esperando. Seria expor o cadete a um perigo inútil.

Onde estaria Iltu?

— Iltu!

Afinal, ela se apresentou:

— Estou quase pronta. Pense nas coisas que estão em volta de você, para que eu o encontre. Onde está você?

Gucky conseguiu a teleportação. Os impulsos hostis se reduziram um pouco. Materializou-se exatamente no lugar em que tanto pensara — na cúpula de observação da nave robotizada. Naturalmente, faltavam também aqui as instalações habituais para se poder observar bem o espaço, pois os robôs não precisavam disto. E Gucky, também não.

— Estou na cúpula de observação, Iltu. Você a conhece da César. Teleporte-se para cá, ligeiro.

Esperou, enquanto passavam os segundos.

Os misteriosos fluxos de pensamentos tornaram-se mais fracos, mas ainda o procuravam. Estava diante dos olhos deles, se é que tinham olhos. Já naquela época, no planeta Bárcon, constatara que as sombras não tinham o dom da teleportação e se moviam com muita lentidão. Assim, era sempre fácil fugir delas. Mas, seria isto a solução?

Quem eram eles, que vinham do invisível e atacavam tudo que se encontrasse entre as vias lácteas? Não se atreviam, porém, a penetrar nas galáxias. Seu campo de ação era o grande vazio de permeio. Eram praticamente inatacáveis e constituíam-se no maior perigo para os terranos.

O ar cintilou diante de Gucky e dele surgiu Iltu. Trajava o uniforme espacial de combate e trazia outro nas mãos.

— Maravilhoso, menina! — chilreou Gucky aliviado, vestindo o traje espacial de combate.

Pegou depois a pistola energética e a enfiou na cintura, já travada.

— Ligue o envoltório corporal, para que não nos possam atingir fisicamente. Ai! Como dói...

Iltu o ajudou, pois quase não podia mover o braço esquerdo. Apreensiva, apalpou o local onde devia estar a queimadura sob o tecido.

— Dói muito, Gucky?

Este fez que sim e piscou grato.

— Só quando sorrio. Psiu... estão chegando de novo.

Concentraram-se para ouvir.

— Sim, estou captando seus pensamentos, e que pensamentos, hein? É mesmo como você emitia, quando estava em contato comigo. De onde vêm? Quem são eles?

— Ninguém o sabe — sussurrou, sentindo a presença dos monstros. Acharam-nos de novo, tinham, pois dons telepáticos. — Vamos tentar vê-los, confiando em que nossos envoltórios agüentem seus disparos energéticos.

Iltu concordou corajosa. Ficou ao lado de Gucky, com as costas para a parede e sacou a sua arma. Nos olhos, de ordinário tão serenos, residia o gosto pela luta. Não haveria de ficar parada, com medo.

O raio energético azul brilhou a dois metros deles e atingiu o envoltório de proteção de Gucky. Cindiu-se ao meio e escorreu para o chão, sem causar dano.

— Fogo — disse o rato-castor, disparando.

Iltu fez o mesmo.

Os dois jatos de raios se encontraram no ponto de interseção e escorreram num empecilho invisível.

Outrora, em Bárcon, eram necessários três jatos energéticos deste tipo, para tornar visível o invisível. Aqui estava dando certo apenas com dois. Mas o resultado não foi completo o suficiente.

Os contornos fluorescentes do desconhecido davam apenas para um reconhecimento incompleto. Seu corpo devia ter resistência suficiente para refletir os raios energéticos. Em pequena quantidade quase não o afetavam, mas se tivesse que enfrentar a descarga de quatro ou cinco pistolas, certamente morreria. Esta certeza também provinha das experiências de Bárcon.

Por um segundo apenas, o invisível tomou a forma corpórea, antes de se agachar para escapar dos raios térmicos. O vulto era idêntico ao de um ser humano, embora não se visse a cabeça, ou melhor, o rosto. Dois braços, o tronco e duas pernas — era tudo. E também o bastante para provar que tinha alguma coisa de material.

Dando um salto à frente, Gucky apanhou a arma e se jogou contra os contornos da figura fluorescente. Foi de encontro ao nada. Suas mãos não acharam nenhuma resistência. Acometeram-no, então, pensamentos tão perversos, tão transbordantes de ódio e de fúria, que chegou a estremecer. Nunca sentira coisa semelhante em toda sua vida. Pulou para trás e, graças ao campo de neutralização que estava ligado, penetrou no envoltório de proteção de Iltu. Pegou-a rapidamente pela mão.

— Vou me teleportar e levo você comigo. Fique tranqüila e confie em mim.

Saltou e... aterrissou exatamente entre o fogo concentrado de seis ou sete pistolas de raios térmicos, de coloração azulada.

O envoltório de proteção, que agora era duplo, isto é, dos dois ratos-castores, resistiu à chuva de raios. Mas seus dispositivos menores chegaram a um ponto que só os poderia danificar. Gucky estava perplexo demais para poder reagir prontamente. Ergueu sua arma para revidar o ataque maciço.

Foi então que Iltu salvou a vida dos dois.

Concentrou-se, não numa resistência inútil, mas numa teleportação. Uma fração de segundo antes que seus envoltórios protetores fossem destruídos pelos raios azuis, os dois desapareceram e se rematerializaram em um dos corredores de fora.

— Por um triz — disse Gucky resfolegando e largando a mão de Iltu. — Ótimo, menina, você agiu na hora certa.

Iltu queria responder alguma coisa, mas calou. Bastava que Gucky reconhecesse seu feito, mesmo que a chamasse de “menina” Quem sabe, isto até era uma distinção?

— Tenho que desligar os controles, Iltu. Só depois disso é que a tripulação poderá entrar. Se os invisíveis forem mais rápidos que nós, vão acabar roubando as naves e nós ficaremos a ver navios. Você espera aqui ou vem comigo?

A pergunta era supérflua. Iltu o acompanhou.

Como Gucky constatou, a central de comando achava-se vazia. Os invisíveis deviam estar todos à caça deles. Não eram, aliás, tantos assim.

No recinto ao lado, estava a chave interruptora geral.

Com uma segurança, que muito o surpreendeu, Gucky encontrou a cápsula atrás da trava e a retirou. Daqui para frente, o ciclópico couraçado estaria dependendo de mãos inteligentes que o soubessem manipular. Mesmo que houvesse ainda robôs independentes a bordo, estariam, a esta hora todos desativados.

Mais um salto os levou à comporta principal, onde o cadete Wilkowski ainda estava colado à parede, esperando de arma na mão.

— Chame o Major Sukril — ordenou-lhe Gucky, desligando o envoltório individual. — Ele deverá organizar a captura do couraçado e das demais naves. Vamos tentar desviar os invisíveis. Acho que eles não são muitos.

Cadete Wilkowski transmitiu a ordem e tentou de novo abrir a comporta externa, o que conseguiu de imediato. As duas metades recuaram para os lados e a César estava agora à vista. Também lá se abriam neste momento as comportas para deixar sair as naves auxiliares, gazelas, que logo se dispersaram, na direção dos diversos aparelhos desgovernados.

Começara, então, a ação propriamente dita e não podia mais ser detida. Pelo menos, enquanto os homens portassem os trajes de combate com o envoltório individual, estariam garantidos contra os invisíveis. Além disso, poderiam se defender dos inimigos com um fogo cerrado de defesa.

Gucky não imaginava como estava subestimando o adversário.

— Iltu, você fica aqui — disse, observando como os homens do comando abriam as escotilhas e penetravam. Não perdia de vista as naves robotizadas. — Tenho que resolver ainda um assunto.

— Vou com você!

— Não, você fica aí. É perigoso demais e você não sabe ainda pular com toda segurança e a distância é muito grande.

— O que você vai fazer?

Gucky olhou demorado para ela.

— Vou procurar Germa. Ele é nosso amigo.

— Por isso é que tenho de ir com você.

— Não é apenas a questão do perigo, Iltu. Tenho que deixar alguém aqui em quem possa confiar cegamente — deu um suspiro. — Acho que posso confiar em você, não é? Alguém tem que ficar aqui para desviar os invisíveis dos homens do comando de ação. Vai ser uma missão muito dura e você terá que estar sempre fugindo. Procure apoio nos homens e tente fazer com que eles atirem em conjunto, com fogo cerrado, no inimigo, assim que o pressentirem. Somente você poderá perceber a presença de um invisível.

— Está bem, Gucky, seja como você quer. Mas eu me teleportarei se lhe acontecer alguma coisa.

— Pode deixar, que a chamarei — disse tranqüilizando-a. — Mas não se esqueça de que você agora me vai substituir. O Major Sukril conta comigo e não com você. Não deve perceber que nós trocamos os papéis. Mas não posso deixar Germa perder-se.

Ela apertou sua mão.

— Pode confiar em mim — sorriu de leve, mostrando o dente de roedor. — Até logo, vovô!

Por um instante, Gucky se extasiou com o dente, depois ameaçou-a com o punho — e desapareceu.

Iltu, porém, controlou seu medo, que sempre tentou esconder de Gucky, e ficou olhando para o couraçado que trazia a bordo centenas de homens.

Sua missão seria proteger estes homens.

 

Se a César e as onze naves robotizadas sumissem de vista, nada mudaria, pois as distâncias eram grandes demais.

Tenente Germa estava sentado na poltrona do piloto, olhando desanimado para a inútil barra de direção. Tentara muitas vezes, nos últimos vinte minutos, puxá-la para trás. Todos os demais controles estavam bloqueados. Mãos estranhas desregularam tudo, mantendo tudo emperrado. De quem seriam estas mãos?

Olhou de novo em torno, mas fora ele e os três homens, não havia mais ninguém no posto de comando. Aliás, também desaparecera aquela tremenda ameaça física, sentida por todos. Era como se os desconhecidos já tivessem conseguido o que queriam e já estivessem fora da nave.

Germa tentou mais uma vez obter ligação com a César e desta vez conseguiu. A instalação de rádio estava incólume.

— Não, nós não o esquecemos, tenente — disse Sukril um tanto irritado. — Mas, me faltou o tempo para isto. A ação começou agora e os homens estão penetrando a bordo das naves robotizadas.

— Onde está Gucky?

Sukril se absteve de uma resposta mais brusca e dura.

— Também está na ação — disse secamente. — Tenha paciência, vamos apanhá-lo na hora certa. Podemos localizá-lo a qualquer momento. Mas, antes disso, tenho de deixar tudo aqui em ordem. Estamos diante de um adversário muito especial. Invisível e possivelmente também incorpóreo.

— Invisível? — repetiu Germa, sentindo um calafrio lhe percorrer o corpo. — Como é possível uma coisa desta?

— Uma coisa invisível não é nada impossível — respondeu Sukril. — O esquisito em tudo isto é que são incorpóreos. Enviei, há pouco, um relatório a respeito para Terrânia, a fim de que Rhodan esteja a par de tudo.

Germa abaixou a cabeça.

— Está bem, obrigado. Esperamos e confiamos plenamente no senhor.

— Faça realmente isto — aconselhou ele, desligando.

Como parecia, devia estar mesmo muito ocupado no momento. Germa não levou a mal a longa espera, pois sabia que não estava em perigo iminente. Para a César, seria uma simples brincadeira de criança detectá-lo no espaço e depois apanhá-lo. Mas a gazela continuava sua disparada para o interminável espaço intergaláctico. Já atingira a velocidade da luz e com isso os limites do vôo normal no Universo de Einstein.

Brado, Hansen e Lester estavam sentados mudos em seus lugares, à esquerda e à direita de Germa. Apesar dos sustos sofridos, não perdiam o encanto e o fascínio pelo espaço vazio. A faixa esbranquiçada na Via Láctea lhes mostrava o caminho de volta para casa, mas a gazela ia em direção oposta, isto é, rumo à distante mancha nebulosa que flutuava na eternidade. Num instante de divagação, passou pela cabeça de Germa a idéia absurda de que o inimigo invisível poderia provir de lá. Mas recusou o pensamento.

Uma raça que conseguisse voar com tanta facilidade de uma via láctea para a outra, não iria se deter no espaço vazio para apanhar espaçonaves desgarradas. Uma raça assim não haveria de conquistar estrelas, mas sim a Galáxia toda.

Por que Gucky não vinha?

Seus pensamentos voltaram novamente para o rato-castor. Sabia que Gucky gostava dele, como também ele gostava demais do rato-castor, aliás de todos os animais. Mas será que Gucky era o que chamamos em geral de animal? Não era muito mais que isto? Na era cósmica, a diferente conformação física ou a cor da pele ou do pêlo não tinham a menor importância. Quando o homem se deparou com o primeiro ser vivo extraterreno, desapareceu o que até então se chamava de “limitação das raças”. A Humanidade se plasmou num bloco uno. Aprendeu-se, então, a julgar pelos critérios do caráter e da inteligência e não pela conformação corporal. Somente assim foi possível um encontro pacífico com inteligências de outros mundos e mesmo uma convivência harmoniosa.

Por sua longa atuação e por seu procedimento, Gucky contribuiu muito para este congraçamento. Perdera sua pátria e sua gente e fizera novos amigos com os homens e com a Terra. Estimava os homens, mas se sentia orgulhoso em ser um rato-castor.

— Tenente!

Era o cadete Hansen que se virará casualmente e então vasculhou a central de comando à procura do inimigo invisível. Não perdera ainda a estranha sensação de se saber permanentemente vigiado.

Esquecendo suas considerações sociológicas, Germa olhou para trás, pegando automaticamente na arma, que estava à sua frente, ao lado do painel de controle. Mas logo respirou aliviado. Acabara de pensar em Gucky, e agora ele se materializava atrás dele.

— Gucky, até que enfim!

— Rapaz, não foi tão fácil assim!

Depois de afrouxar um pouco o capacete espacial, estirou o corpo cansado. Cumprimentou sorrindo os quatro homens e certificou-se, enquanto lhe permitiam os dons telepáticos, de que o inimigo invisível não estava na central nem mesmo na nave.

— Sentia seus impulsos mentais, Germa — continuou depois de sentar-se numa poltrona. — Mas não eram suficientes. Nesta distância toda, não havia nenhuma referência. Pulei, simplesmente, e me rematerializei em pleno espaço.

Sacudiu a cabeça, ao lembrar-se dos duros momentos, e prosseguiu:

— Só lhe posso dizer que foi uma sensação terrível. Lá estava eu dependurado no nada, sem ver nem a César, nem vocês. Só havia os impulsos dos pensamentos. Os de Sukril eram meramente de natureza militar, pois estava comandando a ação. Mas os seus pensamentos, Germa, eram excelentes — seu dente de roedor faiscou rápido. — Assim foi fácil encontrá-lo. Aqui estou.

— Onde está Iltu?

— Menina corajosa! — Disse Gucky feliz, para depois acrescentar: — Se bem que um pouco jovem e inexperiente, de qualquer maneira, porém...

Germa, que não sabia nada do que acontecera, não fez nenhum comentário. Apontou para o painel de controle da gazela.

— Que podemos fazer agora? As alavancas parecem todas emperradas, ou melhor, soldadas a ferro. Não consigo nem alterar a velocidade, nem mudar de rumo. Você nos pode levar separadamente de volta para a César?

— Seria uma opção, mas não gostaria de ouvir o grito de Sukril.

E Gucky começou de novo a dar risadas e, depois, tomando um tom de caçoada:

— Este rato-castor!... Abandonou uma nave que lhe foi confiada, irresponsável!!!

Germa e seus três auxiliares sorriram. Era de fato cômico o modo como Gucky imitava a voz e o jeito do major. Só não lhe foi possível reproduzir o timbre de barítono do comandante.

— Como é que você vai fazer para soltar os comandos?

Gucky esqueceu-se do Major Sukril.

— Não tenho idéia, Germa. Tenho que olhar primeiro.

A expressão não foi feliz, pois de nada adiantava apenas ver. Só lhe restava um caminho: encontrar a causa do possível emperramento. Para isso precisaria de suas forças telecinéticas. Cauteloso, apalpou, com as ondas do cérebro, o cabo da alavanca. Penetrou tão fundo no interior do mecanismo de controle, até que encontrou uma resistência.

— Deve ser isto aqui — disse contente, procurando sentir os contornos do empecilho, que era de formato irregular.

Não havia dúvida de que era aquilo que impedia todo movimento da alavanca.

Gucky respirou profundamente e o tocou.

Uma vez conhecida a causa, seria fácil combatê-la. Tudo dependia se suas forças eram mais poderosas do que a energia que mantinha o empecilho em seu lugar.

— Colocar a alavanca no ponto morto! — ordenou Gucky.

Germa esticou a mão e a barra se moveu com facilidade. Ouviu-se até o ruído do encaixe. A velocidade da gazela não diminuiu, pois a força da inércia ficou a mesma. Na velocidade da luz, era inútil a tração normal. Mas se ela falhasse, nada se modificaria.

Depois, começou o trabalho de soltar a alavanca. Após várias tentativas, conseguiu, sem chegar, porém, a nenhuma conclusão quanto à natureza do bloco que travava o movimento. Tinha a impressão de que se tratava de uma peça fundida de metal e, logo depois, resfriada, não sabendo como poderia ter sido colocada ali dentro. Será que os invisíveis tinham o dom de penetrar na matéria compacta?

— Pode experimentar agora.

Com muito receio, Germa fez uns movimentos e quando a gazela mudou de direção e obediente reagia à pressão de seus dedos, meneou a cabeça e disse para si mesmo:

— É isto! Todos deviam ser telecinetas. Como é que fizeram isto, Gucky?

— Falando francamente, também não sei. Tenho receio de que estes invisíveis conseguem tudo. Sou um pigmeu ao lado deles.

— Você não provou o contrário agora?

— Não, Germa, levei tempo demais para neutralizar o empecilho e eles o criaram em segundos. Tenho receio de que ainda teremos muitas surpresas. São incorpóreos em nosso sentido.

— Quem sabe não possuem nenhuma matéria, nem mesmo em sua dimensão?

— Não sei não, Germa. Ao nos encontrarmos com eles pela primeira vez, há muitos anos, quebramos a cabeça, sem nenhum resultado. Pensávamos que fossem uma coisa esporádica e os esquecemos completamente. E agora...

Gucky interrompeu a frase e ficou pensativo, enquanto Germa prosseguiu:

— Major Sukril devia pedir mais cobertura a Rhodan.

— Vou também lhe recomendar isto — disse Gucky apontando para as instalações de controle. — Você não quer tentar entrar em contato com a César?

Germa deixou o aparelho de rádio esquentar e chamou a nave capitania. Levou uns dez minutos até que a César respondesse:

— Já lhe falei, Tenente Germa, que vou lhe enviar alguém...

— Já estamos a caminho da César, senhor — interrompeu Germa a voz irritada de Sukril. — Parece que os invisíveis se foram. Gostaria apenas de lhe comunicar que, Rhodan se interessaria muito pelo reaparecimento destes desconhecidos, pois já se encontrou uma vez com eles. Posso lhe sugerir que entre em contato com ele imediatamente?

— Já preparei um relatório dizendo respeito a isto.

— Desculpe, major, mas foram descritos com detalhes os fenômenos do encontro atual?

Fez-se uma pausa. Depois, Sukril continuou:

— Você pode me explicar todo o significado de seu interrogatório?

— Sim, major. Os invisíveis não representam um terrível perigo só para nós aqui, mas principalmente para toda a Via Láctea. Gucky me falou deles. É absolutamente necessário que Rhodan tome conhecimento imediato dos fatos agora e por meio dos relatórios posteriores.

— Está certo, Germa. Faça tudo para achar o caminho mais rápido para cá, enquanto isso tomarei as providências para uma ligação direta com o administrador. Está contente agora?

Germa sorriu aliviado, dando uma piscadela para Gucky.

— Obrigado, senhor. Acho que prestou um serviço inestimável a todos nós. Não se preocupe comigo que acharei o caminho para a César.

O major disse algo ininteligível e desligou. Germa também desligou seu aparelho e olhou para Gucky.

— Bom, até que o velho foi legal. Será que se deu conta do perigo?

— Parece que sim — opinou Gucky. Concentrou-se na faixa da Via Láctea e apontou a direção do vôo. — Na minha opinião, a César e a esquadrilha das onze naves robotizadas surgirão exatamente dentro de cinco minutos. Pode ligar o retardamento.

A gazela obedecia aos comandos e cinco minutos mais tarde surgiram as naves. Germa entrou pela comporta principal e pousou a gazela com muita suavidade. Feito isto, fechou-se novamente a entrada do supercouraçado.

Gucky teve um estremeção e deteve Germa que ia se levantando com seus três tripulantes, para deixar a gazela.

— Espere, Germa. Alguma coisa está errada aqui. Por que fecharam a comporta do hangar? Você acha que a ação já terminou? Além disso, sinto de novo os impulsos mentais dos invisíveis.

Olhou em volta, não vendo nada de suspeito. No hangar mesmo não se via viva alma.

— Fique na gazela, Germa. Liguem o envoltório de proteção e não o desliguem antes que eu chegue lá na parede defronte e lhes dê um sinal. Entenderam?

— Sim, mas que significa tudo isto?

— Não pergunte agora. Nada mais do que uma medida de cautela. Vou saltar agora. Ligue o envoltório protetor daqui a dez segundos. Até logo.

Desmaterializou-se diante dos olhos dos quatro homens.

Germa fez um sinal para sua gente. Não sabia o que o rato-castor tencionava, mas confiava cegamente nele. Esperou o tempo marcado e ligou a proteção magnética. A gazela estava agora sob uma campânula de proteção que a resguardava totalmente dos ataques de fora.

Só então foi que notou Germa o estranho silêncio que reinava na César. Não se via um só dos muitos homens que atendiam no hangar. Não viera ninguém para receber a gazela que estava aterrissando.

Sentou-se.

— Vamos esperar aqui — disse calmo.

E ficaram esperando.

 

Chegara a hora do batismo de fogo de Iltu.

Quando as naves aterrissaram no gigantesco hangar e os homens dos comandos especiais entraram correndo de arma em punho pelos corredores, Iltu foi “descoberta” pelo Major Borowsky, o chefe do grupamento.

— Olá, Gucky! — exclamou o major passando ao lado de Iltu.

— Eu sou Iltu — chilreou indignada, tentando em vão acompanhar os passos rápidos do homem corpulento. — Espere um pouco, tenho umas coisas importantes para lhe dizer.

Borowsky parou.

— Ah! IItu? — disse admirado. — É o outro rato-castor?

— Não, uma rata-castora — corrigiu ela, ficando bem rente a ele. — Gucky foi buscar Germa e eu o estou substituindo aqui.

— Ótimo — respondeu o major, querendo já continuar seu caminho. — Então substitua-o bem.

— Espere — repetiu Iltu irritada, se agarrando na calça do major. — O senhor quer ouvir ou não? Gucky deixou umas recomendações muito importantes para o senhor. Dizem respeito ao inimigo invisível que está aqui na nave.

Borowsky não deu a menor mostra de interesse, mas ficou parado. Seus homens passavam a seu lado e sorriam, vendo Iltu agarrada à sua calça.

— Então diga o que é.

Iltu fez um relato sucinto sobre os invisíveis e como se podia combatê-los. Recomendou a Borowsky que seus homens permanecessem sempre em grupos de, no mínimo, cinco e, sempre que pudessem, mantivessem ligado o envoltório individual de proteção. Assim que alguém, saindo do nada, abrisse fogo sobre eles, deveriam responder com fogo cerrado e contínuo, até que o inimigo se tornasse visível e morresse. Assim, voltaria ao nada e desapareceria. Major Borowsky era um homem inteligente e compreendeu do que se tratava.

— E você é capaz de perceber o pensamento deles? Sabe quando se aproximam da gente, não é?

— É claro!

— Bem, então venha comigo — resolveu ele. — Sente-se aqui no meu braço.

Iltu não pensou duas vezes. Deu um pulo e pousou no braço esquerdo do homem alto e forte. Na mão direita, o major trazia a pistola térmica. Com um movimento rápido, ligou seu envoltório de proteção individual e fez um sinal à sua gente.

Começou então o exame severo de toda a nave.

Cada grupo mandava na frente um homem com uniforme de combate. Com isto tentavam tirar os invisíveis de seus esconderijos. Assim que surgissem os raios azulados, viriam os demais e fariam uso concentrado de suas armas.

O grupo do Major Borowsky obteve seu primeiro sucesso, mas ele foi suficientemente honesto para dizer depois que o mérito não foi dele, mas sim de Iltu.

Eram sete homens. O major caminhava à frente, com o envoltório individual ligado. Iltu continuava sentada no seu braço esquerdo, auscultando os impulsos mentais dos estranhos. Os seis homens, que vinham uns passos atrás, olhavam para todos os lados, de arma destravada na mão.

Eram fracos os primeiros impulsos, mas Iltu os sentia bem. Aproximavam-se lenta mas continuamente, parecendo atraídos pelos fluxos mentais de Iltu.

Caminhavam num corredor bem largo. À esquerda e à direita, viam-se as portas de cabinas vazias. A fraca iluminação se acendia automaticamente. Não havia tapete nem revestimento de plástico naquele chão de metal.

Borowsky parou num cruzamento.

— Para onde?

— Para a direita — sussurrou Iltu, apontando para o corredor estreito. — Os impulsos provêm dali. Vamos nos encontrar com eles a qualquer momento.

— Para frente, pessoal — disse o major para os seus.

Iltu sentia os impulsos cada vez mais fortes. Tinha medo, embora não lhe pudesse acontecer nada sob a cúpula protetora individual de Borowsky. Que haveria Gucky de sentir numa situação desta? Será que ele era tão destemido assim? Ou também sentiria medo?

O corredor fazia uma curva fechada, havendo para trás uma continuação quase retangular, com portas nos quatro lados.

— Pare!

Major Borowsky parou imediatamente.

— Você está vendo alguma coisa?

— Ver, não se vê nada. Mas estou sentindo alguém. Um deles está aqui.

Seus seis companheiros também pararam e procuraram uma boa posição. A qualquer sinal de ataque, haveriam de reagir.

Borowsky não podia deixar de sentir algo desagradável. Estava acostumado a ver seus inimigos de frente. Mas aqui não havia nada para ver. Iltu, por sua vez, nem lhe podia dizer com exatidão onde estava o adversário. Sentia apenas que estava naquele recinto e nada mais.

— Seus pensamentos são de ódio, cada vez mais ódio. Vai atacar agora.

Mal dissera isto, cintilou o raio energético azul, bem na frente de Borowsky, chocando-se contra sua cúpula de proteção e escorrendo para todos os lados e se dividindo já com pouca força.

O major ergueu a arma, apontou firme e atirou. Simultaneamente irrompeu o fogo cerrado de mais de seis armas contra o inimigo. Não levou um segundo e os contornos do invisível se desenharam numa cortina de fogo. Mas os sete terranos continuaram atirando, acompanhando a queda daquela figura sob os raios incandescentes de suas armas.

Via-se bem um vulto, como de um homem. Não tinha cor, era apenas uma sombra. Aliás, dava até a impressão de que alguém tivesse recortado sua silhueta da parede. Mas esta silhueta estava diante da parede e não dentro dela. Tinha três dimensões e existia fisicamente. Era uma sombra corpórea, cercada e envolta pelos raios energéticos das pistolas.

Borowsky teve uma presença de espírito tão grande que, enquanto atirava, observava com atenção tudo que se passava.

O vulto já estava deitado no chão e a irradiação azulada já se extinguira há tempo. O agente dos invisíveis não se movia mais.

Morrera.

E morrendo, se tornou de novo invisível, sumindo aos poucos seus contornos. Iltu sentiu como seus impulsos mentais foram se apagando. Inicialmente eram ódio puro, depois fúria desenfreada. Finalmente só dor e angústia e, então, a morte.

O terrível inimigo podia ser vencido.

Mas ainda faltava muito para esta vitória e o campo de batalha tinha muitos imprevistos...

 

Através do rádio, Major Borowsky soube que nos demais dez aparelhos não havia invisíveis. As unidades foram ocupadas, como estava previsto. Mais ou menos a dois quilômetros da César, aguardavam por novas ordens do Major Sukril.

Mas este não respondeu a nenhum rádio. E a César continuava muda e imóvel no espaço. Parecia como se o major não quisesse mais se imiscuir nos acontecimentos e deixasse tudo nas mãos dos chefes de comando.

Major Borowsky acabou desistindo de fazer novas tentativas para obter ligação com Sukril. Havia coisa mais importante a fazer. Com o auxílio de Iltu, conseguiu descobrir mais três invisíveis e matá-los, após o que cessaram os impulsos. Era como se a eternidade tivesse tragado os agentes do nada.

Na central, porém, o pelotão do sargento Bering caiu vítima de uma cilada fatal.

Bering não era telepata, portanto não podia auscultar as irradiações mentais dos estranhos. Sem suspeitar de nada, entrou na espaçosa central com sua gente e a tomou. Como não notassem nada, ficaram à vontade. Um radiotelegrafista ocupou os instrumentos da cabina anexa e comunicou à César o domínio do posto de comando. Não houve resposta.

Bering distribuiu seus homens de tal forma que pudessem se defender, com facilidade, de um eventual ataque. Cometeu apenas um erro: contou com um único inimigo atacante.

Foi uma surpresa fatal, quando surgiram, de três pontos diferentes, simultaneamente, as irradiações de tom azulado.

Iltu deu um salto dos braços do Major Borowsky, ao captar os impulsos mentais dos homens em tamanho apuro. Orientou-se com extrema rapidez, exclamando:

— Grande perigo na central de comando! Eu pulo na frente. Venham comigo.

Sumiu naquele instante.

Borowsky compreendeu tudo. Precipitou-se com seus seis homens para o próximo elevador antigravitacional e dois minutos depois já estavam na central. O que viu, então, jamais sairá de sua memória.

Estirados no chão estavam três homens no uniforme verde-claro do comando da Frota Espacial Terrana. Não restava dúvida de que estavam mortos. Partindo do nada, os raios energéticos azulados percorriam o espaço à procura de novas vítimas. Sargento Bering e Iltu, ambos protegidos pelo envoltório de proteção, faziam fogo contínuo contra o inimigo invisível, mas a energia de suas armas não bastava para abater o terrível adversário. Três ou quatro homens se lançaram no chão, arrastando-se até um abrigo, de onde continuaram atirando.

— O da esquerda! — exclamou Borowsky, fazendo um sinal aos seus, para que se abrigassem antes de abrir fogo.

Bering compreendeu e escolheu também como alvo o ponto do espaço vazio de onde saíam os raios azuis. Segundos depois, o inimigo apareceu visível, caindo no chão e cessando assim sua obra destruidora.

O segundo deles também foi abatido, mas o terceiro desapareceu sem deixar vestígios. Ninguém o percebeu. E quase no mesmo momento, os demais agentes do nada desapareceram também.

Era como se tivessem obedecido a um comando mudo que os obrigou a se retirarem. Infelizmente, com cinco minutos de atraso, pois, na sala de comando da grande nave robotizada, jaziam mortos três terranos. Os inimigos mortos continuavam invisíveis e desmaterializados, não podendo assim ser contados. De qualquer modo, não havia dúvida de que suas baixas eram mais elevadas do que as dos terranos. Um triste consolo que não compensa a morte dos três intrépidos cosmonautas.

— Chamem a César! — ordenou Borowsky, quando os diversos chefes de comando lhe comunicaram a paralisação dos ataques. — Parece que a nave agora nos pertence — disse, fazendo um sinal para o radiotelegrafista que estava com tudo preparado. — Arranje-me uma ligação com o Major Sukril, mas rápido.

Inquieto, andava de um lado para outro, enquanto os seus cuidavam dos caídos em combate.

— Senhor, a César ainda não responde. Notava-se a impaciência no rosto de Borowsky.

— Com os diabos! Que quer dizer tudo isto? Será que estão dormindo? Tente mais uma vez.

Iltu se concentrou. Nos últimos dez minutos, ficara mais consciente de si mesma, sabendo que podia confiar em seus dons. Gucky fora um bom mestre.

Ela tentou entrar em contato direto com o Major Sukril, mas não o achou no emaranhado de tantos impulsos. Por um segundo, teve a impressão de encontrar vibrações de Gucky. Logo, porém, o perdeu. Era como se alguém quisesse distinguir uma determinada voz numa gritaria de futebol de milhares de pessoas.

O radiotelegrafista falou de novo:

— Nada de ligação, senhor! Simplesmente não respondem.

— Vou dar uma olhada por lá, major — interveio Iltu. — É apenas uma curta teleportação.

Borowsky olhou para ela, incerto.

— E se eles aparecerem de novo... os invisíveis?

— Estarei de volta em poucos instantes.

— Está bem, Iltu, mas não demore. Se eu, pelo menos, soubesse onde está Gucky...

Iltu não disse nada. Mas começou a se preocupar com seu companheiro. Concentrou-se e desapareceu, sem responder à pergunta do major. Ninguém podia dizer que ela era uma teleportadora fraca e incerta. Concentrara-se na cabina de comando da César e se materializou bem no meio do “alvo”.

Major Sukril estava caído em sua poltrona, diante dos controles e não se mexia. O Capitão Henderson parecia igualmente inconsciente ou morto. Sua cabeça estava apoiada na mesa dos mapas siderais, com a mão direita pendendo no ar, segurando ainda a arma engatilhada. Os outros oficiais estavam caídos no chão. A porta de entrada para a cabina de rádio estava escancarada e os telegrafistas não davam sinal de vida.

Iltu viu tudo isto em poucos segundos. De repente, deu um grito estridente de pavor, encaminhando-se para o Major Sukril, que respirava calmamente. Sua corrente de pensamentos eram imagens abstratas de um sonho confuso. De qualquer maneira, estava vivo.

Iltu não quis perder mais tempo com ponderações infrutíferas. No momento, não podia fazer nada aqui e o Major Borowsky a esperava. Tinha que ficar a par do que se passava na César.

Pulou de volta para a nave robotizada, descrevendo com poucas palavras o que vira. Major Borowsky ficou olhando para Iltu quase dez segundos, completamente perplexo, depois virou-se para o radiotelegrafista do grupo de Bering.

— Você é capaz de manipular estes aparelhos?

— Claro, senhor. São idênticos aos de nossas naves.

— Há hiper-rádio?

— Perfeitamente, senhor.

Borowsky respirou fundo, antes de dar a ordem.

— Estabeleça uma ligação de hiper-rádio com Rhodan, através de Terrânia, o mais rápido possível, não temos tempo a perder.

Apoiou as costas na parede e ficou esperando. Na sua mão ainda estava a arma engatilhada. No seu braço esquerdo, porém, estava sentada Iltu, que o avisaria, quando voltassem os invisíveis.

Mas não havia mais invisíveis, pelo menos não por ali.

 

O sargento Gork foi mesmo muito azarento. Quando ele, levado por uma onda de pânico, saltou no espaço vazio, não tinha nenhuma idéia de como chegaria até a César. Para ele, o que importava mesmo era sair daquela nave desgraçada e mal-assombrada.

Saiu virando lentamente no espaço e precisou de alguns segundos para se orientar. Naturalmente flutuava na direção oposta, rumo à César, cujas comportas estavam agora abertas.

Com alguma dificuldade, tirou a arma da cintura e a segurou na mão direita. As cambalhotas lentas que vinha dando no espaço foram perdendo o impulso.

Com mais um golpe, Gork se pôs em segurança, assim que as outras naves deixaram a comporta. O impulso que dera o levou por sobre a César e a esquadrilha das naves robotizadas, podendo então observar tudo em volta dele. No receptor do capacete não se podia entender muita coisa, era uma babel de ordens e confirmações que se confundiam, comunicados e conversas. Os comandos especiais estavam entrando a bordo das naves soltas no espaço.

Mudou diversas vezes de direção, mas quando queria imprimir uma boa velocidade em si mesmo, a pistola energética lhe escapou dos dedos. Tentou em vão pegar a arma que flutuava lenta não longe dele. Afastava-se cada vez mais. Ele mesmo parecia imóvel no espaço. Abaixo dele, a César parecia um enorme planeta e as pequenas naves robotizadas davam a impressão de serem luas.

Só depois de uns dez minutos foi que constatou que estava sendo atraído pelos campos artificiais de gravitação da César, e, quisesse ou não, estava lentamente caindo na sua direção. Mas ainda levou meia hora até que seus pés tocassem a carcaça do grande couraçado. Com muita cautela, para não ser atirado de novo no espaço, fez alguns passos na direção da próxima comporta aberta, entrando no hangar.

Estava vazio.

Não era, aliás, coisa de estranhar. Os comandos especiais haviam deixado a César e iam ocupar os aparelhos robotizados. Tudo corria, portanto, como previsto. Apenas ele, Gork, é que tinha fugido.

Pela primeira vez lhe passou pela cabeça o pensamento de que fugira apenas de um fantasma. O pensamento era de qualquer maneira um alívio, mas por outro lado era muito desagradável em suas conseqüências. Haveriam de exigir uma severa prestação de contas.

O desaparecimento do Tenente Germa e da gazela não seriam uma boa explicação? Ou então, a história com a comporta da grande nave robotizada?

Mas onde estava, pelo menos, o pessoal indispensável ao serviço do hangar?

Gork olhou em volta. Estava mesmo sozinho. Algumas das portas que davam para os corredores achavam-se abertas.

Com isso, devia ter escapado todo o ar das câmaras de compensação da pressão. Era uma coisa completamente em desacordo com as prescrições severas de bordo. Tal fato não tinha nenhuma explicação plausível.

Deu um galeio para frente e escolheu a primeira porta que encontrou. Fechou-a atrás de si e ligou a entrada de ar. Somente quando a pressão chegou ao ponto certo, foi que tirou o capacete espacial. É verdade que perdera sua única arma, mas não podia compreender para que precisaria de uma pistola dentro da César. Não tinha a menor noção dos acontecimentos.

Lá dentro, no corredor principal, deu com os primeiros tripulantes caídos sem sentidos.

Eram os homens do hangar que deviam ter sido arrancados de seu local de trabalho pelo alarma geral, pois esqueceram até de fechar as comportas. Alguns não tiveram tempo de vestir o uniforme espacial completo, antes de perderem os sentidos.

Sargento Gork aspirou com cuidado o ar ambiente, para ver se continha algo de diferente, mas parecia normal.

“Será que sofreram a influência de algum gás?”, indagou-se mentalmente.

Inclinou-se duas ou três vezes para examinar os inconscientes, depois desistiu. Eram muitos e não podia fazer nada por eles, no momento.

Chegou logo à conclusão de que ninguém a bordo poderia estar em condições normais. Todos estavam inconscientes — ou como se quisesse denominar este estado em que os homens respiravam e de olhos arregalados fitavam imóveis o vazio. Alguns já começavam a se mexer, pareciam, porém, não ouvir o que se lhes dizia.

Sargento Gork começou a se incriminar por ter fugido cedo demais da nave robotizada.

Tinha de encontrar agora o Major Sukril. Devia dirigir-se para a central de comando. Achou o caminho pelos corredores e elevadores, mas levou alguns minutos até chegar à porta do recinto “sagrado”. Sabia que era proibido penetrar neste local. Só o próprio comandante podia dar ordem para isto.

Mas, será que Sukril ainda era comandante da César?

Gork apertou o botão da fechadura.

A porta se abriu para os lados, deixando livre a entrada.

Assim que entrou, viu alguns vultos aparentemente sem vida no chão. Dois oficiais estavam sentados debruçados sobre os painéis de comando. Do outro lado, na mesa dos mapas, alguma coisa se movia. O capitão que estava sentado à mesa levantou lentamente a cabeça. Olhava para os controles com os olhos vazios e seus braços se moviam em câmara lenta. Virou-se para trás e viu Gork. As palavras lhe vieram silabadas:

— Direção BJ-97-UK... Ligar o envoltório de proteção... Dar a partida...

Gork estava apavorado. Suspeitava não estar diante de um homem normal. Aquele ali na mesa dos mapas siderais era o Capitão Henderson, ao menos parecia. Não podia, no entanto, ser ele. Já os olhos... Fitavam o infinito, diante do que Gork nada representava. Os olhos estavam vazios, sem um vislumbre de sentimento ou mesmo de vida, mais parecendo o olhar de um débil mental.

Gork percebeu a situação, tão rapidamente como na comporta da nave robotizada que se fechava. Tomou posição de sentido e bateu continência.

— Perfeitamente, senhor. Dar a partida! Devo despertar o comandante?

Não recebeu resposta, mas o Major Sukril começou a se mover. Sua mão direita apanhou a arma, que ainda estava no mesmo lugar, colocando-a no cinturão. Levantou-se. Seus olhos estavam tão vazios e mortos como os de Henderson.

Sem prestar atenção em Gork, estava preocupado somente com os controles e preparava a partida, ordenada... não sabia por quem. Com toda certeza, não pelo Capitão Henderson. O Sargento Gork começou a perceber toda a verdade e os cabelos se lhe arrepiaram na cabeça. O comandante e o oficial de navegação estavam sendo controlados por forças estranhas, sendo que, só por este motivo foi que despertaram de sua inconsciência. Os estranhos precisavam deles para tomar posse da César.

E ele, Gork? Não estava também sob esta terrível influência? Será que tinha de agradecer o fato de ser ainda senhor de si somente à sua chegada atrasada na César? Talvez, fosse ele o único homem a bordo que podia pensar normalmente.

Tinha que fazer alguma coisa. Mas, em hipótese alguma, Sukril poderia perceber algo de suas intenções. Tinha que fazer o jogo deles, para não criar suspeitas.

— Suas ordens, senhor? — perguntou em posição de sentido.

Sukril se virou lentamente para ele, fitando-o com olhos de defunto e dizendo, com voz sem nenhuma expressão e mais lento ainda:

— Tome conta dos envoltórios de proteção e ligue todos eles, assim que a César decolar.

Gork fez um movimento respeitoso com a cabeça.

— Certo, senhor. Após a decolagem ligar os envoltórios.

Dirigiu-se para os controles, a poucos metros de Sukril, que não mais se importava com ele. Sentou-se. À sua frente estavam as alavancas da cúpula energética. Se as puxasse, a César estaria imediatamente “fechada” para o mundo externo. Ninguém mais poderia regressar e os que estavam dentro dela estariam irremediavelmente perdidos, pois com tal envoltório de proteção seus seqüestradores os levariam para onde quisessem.

Portanto, não poderia ligá-los, ou, no mínimo, protelar quanto pudesse.

Sukril esperou até que Henderson lhe deu as coordenadas e as passou para o computador. Depois deu ordem para que as possantes turbinas fossem ligadas e acelerou. Nas telas luminosas, as naves robotizadas iam ficando para trás, diminuindo de tamanho, até desaparecerem por completo.

Para maior desespero, Gork notou que a César penetrava cada vez mais no espaço intergaláctico. Onde seria mesmo o Setor BJ-97-UK?

Major Sukril olhou para ele. Embora fosse a mesma a expressão dos olhos, sua postura era cada vez mais ameaçadora. Levou a mão direita lentamente para o cinturão.

Gork estremeceu. Será que os invisíveis que dominavam Sukril haviam suspeitado alguma coisa dele? Desejavam eliminá-lo? Seria melhor procurar uma posição mais segura ou devia continuar com seu jogo, para que, pelo menos, um homem normal estivesse presente na central de comando. Quem sabe, mesmo, iam deixá-lo também inconsciente, caso se traísse?

Respirou fundo e colocou as duas mãos nas alavancas.

Sukril sentou-se de novo e ficou imóvel. Não dava mais impressão de que ia puxar da arma.

Sargento Gork esperou mais uns dez segundos, mas quando a mão de Sukril começou a deslizar na direção da arma, ligou o sistema de proteção da César.

Assim, envolvido por uma campânula energética impenetrável, o gigante terrano devorava o espaço entre as galáxias, tendo deixado já muito para trás as naves arcônidas robotizadas e voando no sentido oposto da direção onde estava a Terra.

Foi de olhos arregalados que o sargento, minutos depois, contemplou na tela uma tênue mancha — uma nebulosa?! — que cada vez mais ia para o centro do retículo da mira automática.

Seria aquilo o Setor BJ-97-UK...?!

 

Gucky se teleportou para vários dos pequenos aparelhos robotizados, mas em nenhum deles encontrou vestígios dos invisíveis.

Convencido de que sua presença ali não era necessária, pulou resoluto de volta para perto de Iltu. Procurou suas irradiações mentais no espaço e acabou achando. Terminara naquele instante a luta contra os invisíveis.

— Não estão mais aqui, Gucky — disse Iltu ainda ofegante. Estava de novo no braço esquerdo de Borowsky. — Matamos alguns e expulsamos o resto.

O major contou o que se passara e não deixou de acentuar que, sem o auxílio da corajosa Iltu, o negócio não teria corrido tão bem assim. Elogiou muito a jovem patrícia de Gucky, sempre alisando seu pêlo sedoso. Ela gostava disso e se sentia muito bem nos braços de Borowsky, piscando, feliz, os olhos para Gucky.

— Tivemos três baixas — concluiu o major. — Morreram três homens. Já foram levados para dentro da comporta. Como Iltu diz, a grande nave já está livre dos invisíveis. Não sente mais nenhum impulso.

— Também eu, não — confirmou Gucky e narrou como ajudara o Tenente Germa e apanhara no espaço a gazela. — Estão agora na César — fez uma pausa, parecendo se lembrar de alguma coisa. — Aliás, lá na César, nem tudo está em ordem.

Major Borowsky concordou com um movimento de cabeça.

— Iltu encontrou a tripulação inconsciente na cabina de comando. Você esteve lá?

— Sim, mas não parei — apontou para as instalações de controle. — Podemos botar esta canoa aqui em movimento? Ligar também as telas luminosas...?

Borowsky chamou uns oficiais.

— Ocupem as estações, liguem as telas e deixem os motores esquentando. Por favor, depressa!

Levou dois minutos até que as telas se acendessem e, bem no centro da nave, começou a intensa vibração dos grandes conjuntos de propulsão, que agora obedeciam às mãos humanas e não mais aos impulsos do regente robotizado.

Da cabina de rádio gritou alguém:

— Ligação com a Ironduke, senhor. É o administrador.

Borowsky pulou tão rápido, que quase deixou Iltu cair. Esta se enlaçou no seu pescoço. Gucky caminhou mais pachorrento atrás, mas pensou melhor e voltou à central de comando.

Ficou com os olhos fixos nas telas. Não conseguia se desfazer de certo pressentimento desagradável. A César continuava na mesma mancha da nebulosa, aparentemente parada. O movimento das demais naves robotizadas arcônidas mostrava-lhe que estavam sob o controle dos comandos especiais. Portanto, já nas mãos dos terranos.

A César lhe interessava mais. Ao ver aterrissar na carcaça da gigantesca nave um vulto muito pequeno, sentiu um calafrio. Concentrou-se naquele pontinho. Era um homem no seu uniforme espacial. Concentrou-se mais ainda nos seus fracos impulsos mentais e constatou que era Gork. Portanto, já estava também em segurança. Ficou Gucky surpreso ao ver que Gork entrara num hangar onde não havia ninguém.

“Que pena”, pensou Gucky zangado. “Eu teria economizado tempo, se ele tivesse se encontrado com Germa.”

Deixou Gork de lado e procurou captar outros impulsos mentais. Mas parece que na César ninguém mais pensava, se bem que isto podia ser mero engano.

Eram impulsos demais, que recebia de todos os lados. Mais de vinte mil.

Da cabina de rádio ao lado, se ouvia a voz de Borowsky. Fez um relato da situação a Rhodan e depois ficou escutando suas instruções.

Gucky voltou a olhar para a tela e levou mesmo um susto.

A César se movia. Partira e se afastava com tremenda velocidade. Passou pela esquadrilha das naves arcônidas e se dirigia para o espaço sem estrelas. Segundos mais tarde, não passava de um pontículo luminoso na tela. Depois, sumiu.

Num curto salto de teleportação, Gucky apareceu de repente na cabina de hiper-rádio. O rosto de Rhodan na tela se virou para ele. Sem tomar em consideração a pessoa de Borowsky, interrompeu o diálogo e disse com voz estridente:

— Perry, eles seqüestraram a César. Eles, os invisíveis. Vou tentar recuperá-la. Ajude-nos.

Num movimento rápido, atarraxou o capacete, e, de repente, sem que ninguém esperasse, desapareceu.

Teleportou-se para o espaço infinito, deixando Borowsky, Rhodan e todos os presentes em estado de estupefação.

Quando se rematerializou, estava em pleno espaço.

Estava de novo pairando sozinho na eternidade, sem nenhum apoio, tentando se orientar. Só poderia fazê-lo, se recebesse impulsos mentais da César. Mas na César havia só o sargento Gork, o único que se achava apto para pensar. O Tenente Germa e seus três homens estavam sentados atrás da cúpula energética de sua gazela. Portanto, isolados.

Gucky procurava desesperado, mas não lhe foi possível localizar Gork.

Neste instante, a apenas dez metros dele, surgiu do nada um vulto, sem produzir cintilação, pois aí não havia ar.

Iltu!

— Você ficou maluca? — exclamou Gucky, aliás sem necessidade, pois Iltu entendia seus pensamentos, mesmo sem palavras.

— Segui você, pois pode precisar de minha ajuda.

Gucky estava para explodir.

— Ajuda! Como se não soubesse o que devo fazer...

Iltu abriu os braços, mas não se aproximou.

— Vamos, por que não damos um pulo até a César?

Gucky estava furioso.

— Para onde quer você pular, se você não sabe onde está o objetivo? Estou procurando há muito tempo encontrar Gork, mas o rapaz não está pensando em nada. Deve estar lá na nave. Onde ele estiver, se encontrará também a César.

Iltu, a dez metros de distância, sorriu:

— Gork está na central da César, já há algum tempo. Está falando com o Major Sukril, que não emite nenhum impulso de pensamento. Não consigo captar suas palavras.

— Você tem os pensamentos de Gork?! — estava mais do que admirado com a capacidade da jovem irmã de raça. — Espere um pouco, que chego até aí. Então você salta e me leva com você.

Gucky sabia que não dava mais tempo pra fazer a localização perfeita de Gork. Mas, se Iltu já estava em contato com ele, era mais do que suficiente para a teleportação. Gucky se esqueceu, por um momento, de sua missão, assoberbado que ficou com o desenvolvimento e os dons de Iltu.

Uma pequena transição e estava ao lado dela. Pegou em sua mão e se achegou bem a ela.

— Salta — disse, apressado.

E ela saltou.

A César estava, no momento, a mais de cem mil quilômetros, mas com o apoio de Gucky, Iltu agüentou o salto. Em fração de segundo, os dois venceram a enorme distância e se rematerializaram exatamente no local de onde partiam os impulsos mentais de Gork, na central da César.

Num relance de olho, Gucky percebeu a situação. Não era a primeira vez que os homens, dominados mentalmente, estavam servindo de joguete nas mãos de forças extraterrenas, embora variassem os métodos. Este último era certamente novo, mas o fim idêntico aos demais.

Sargento Gork estava, neste momento, ligando o envoltório de proteção de toda a nave. Fê-lo, sem reparar na presença dos dois ratos-castores. Agia em plena consciência e contra sua vontade. Estava obrigado, caso não quisesse chamar atenção e perder também sua independência mental.

Hesitou por muito tempo e por sorte pelo tempo suficiente.

Gucky não largara ainda a mão de Iltu. Teleportou-se para a comporta, onde sabia estar Germa. Iltu o acompanhou. Somente depois de chegar lá foi que a deixou.

A gazela estava no mesmo lugar e o hangar se enchera, entrementes, automaticamente de ar e em torno da pequena nave auxiliar cintilava, de modo estranho, devido à fraca iluminação, a cúpula de proteção.

Gucky ergueu os dois braços e a cúpula energética sumiu.

Segundos após, ele e Iltu estavam a bordo e foram saudados por Germa com alegria e grande alívio.

— Estava francamente com medo — confessou o leal tenente. — Que aconteceu? Onde estava o pessoal? Foi então que a César decolou. Queria deixar a gazela para me apresentar ao comandante. Mas, novamente, fui acometido por aquele medo esquisito. Era como se alguma coisa me quisesse dar um aviso.

— Que bom você dar ouvido ao seu subconsciente — disse Gucky, aliviado. — Seria um desastre se você deixasse a gazela. A César está nas mãos dos invisíveis.

Tenente Germa olhou horrorizado para Gucky.

— Que você está dizendo? Os invisíveis? Aqui na César?

— Sim, mas foram cautelosos. Não pude ainda captar seus impulsos. Quem sabe, criam uma espécie de envoltório para seus pensamentos?

— E a tripulação, também já está...

— Não, não está morta, não. Apenas inconsciente. Alguns oficiais e também o comandante estão conscientes, mas sob a influência dos invisíveis. Decolaram com a César e a seqüestraram.

— Como foi possível isto?

Germa estava visivelmente inquieto. Brado, Hansen e Lester cercavam atônitos os dois ratos-castores e em suas fisionomias se via um princípio de pânico.

— Que vamos fazer? — indagou de repente o jovem oficial.

— Não posso responder ainda a esta pergunta — disse Gucky, que acabara de tirar o capacete espacial, o mesmo fazendo Iltu. — As naves robotizadas foram ocupadas por nossas forças, tudo em ordem. Rhodan foi avisado. Virá para nos buscar. Se eu ao menos soubesse como deter a César! Em breve atingirá e ultrapassará a velocidade da luz. Se não conseguirmos chegar até os aparelhos de rádio, ninguém nos poderá localizar.

— E com os nossos aparelhos a bordo da gazela?

Gucky botou a mão no queixo.

— Ah! É verdade, não havia pensado nisto. Mas nos falta uma boa antena externa. Sem ela, não se pode localizar nada.

Também aqui, Germa soube arranjar um jeito.

— Vamos ligar nossa instalação com a carcaça externa da César, isto dá uma excelente antena. E o que fazer com o comandante Sukril? Não podemos deixá-lo simplesmente nas mãos dos invisíveis. Sabe Deus quanto tempo ele vai agüentar.

— Gucky!

Era Iltu que não estava participando da conversa, mas permaneceu o tempo todo concentrada, ouvindo alguma coisa dentro de si mesma.

— Estou captando os pensamentos de Gork. Está calculando de que maneira pode neutralizar Sukril e Henderson, sem machucá-los. Permita Deus que ele não cometa nenhum desatino.

— O rapaz não é bobo. — Disse Gucky, acrescentando ainda: — Como é que imagina fazer isto?

Seguiu o exemplo de Iltu e ficou controlando os pensamentos de Gork. Depois, falou em voz alta, para que Germa o pudesse entender:

— Pretende deixar Sukril inconsciente, Henderson também, e depois levar a César para seu ponto de partida. Acho que vai cometer um grande erro aí. Os invisíveis estão a bordo, não é? Mais uma coisa, Germa: Você tem armas? Pistolas de raios térmicos?

— Claro que sim, um armário cheio. Você não vai querer...

— O que então? Não há outro meio de liquidar os invisíveis. Iltu e eu vamos controlar sua presença, mesmo que se esforcem para se tornarem despercebidos. Mas primeiro vamos instalar a antena. Quem é que entende disso?

— Hansen é técnico neste assunto, Lester e Brado também.

Durante o trabalho dos três homens, Gucky ficou na escuta, mas, por mais que se esforçasse, não conseguiu captar nada dos invisíveis. Neste meio tempo, Iltu manteve contato, embora unilateral, com Gork, que ainda procurava desesperadamente um meio de livrar os oficiais da cabina de comando da influência dos inimigos. Como tudo indicava, o terrível adversário o julgava também sob suas influências.

— Não se consegue desligar a propulsão? — perguntou de repente Germa. — Mesmo que consigamos ligação com Rhodan, ele não vai poder nos ajudar, enquanto a César se mantiver dentro do campo de absorção kalupiano. E, quando voa se utilizando da tração linear, ela permanece de fato neste campo.

“O tal campo de absorção, puxa!”, pensou Gucky. “Se enguiçar, a César passa imediatamente para a velocidade menor do que a luz, automaticamente... Cessaria também a cúpula de proteção. Oba! Aí está uma boa solução. Apenas neutralizar o campo de absorção e... tudo em ordem. Mas não apenas desligar, isto não seria suficiente. Temos que estragar e destruir mesmo peças indispensáveis, para que não possam ser consertadas facilmente. Devemos tornar impossível qualquer possibilidade de fuga para os invisíveis. Tenho receio de que queiram se apoderar do segredo da tração linear, do contrário não teriam seqüestrado a César.”

Sargento Brado entrou na central da gazela.

— A antena está colocada, senhor — disse para Germa. — Esperamos que funcione. Instalamos também uma outra através do invólucro de proteção.

— Então, mãos à obra: hiperligação com a Ironduke! Chamada cega! Quem sabe ela nos ouve?

Gucky afastou-se de Germa e sua gente. Chamou Iltu para o lado.

— Preste atenção, Iltu. Temos que nos ocupar de Gork. O pobre sujeito está numa situação horrível. Ele ainda não sabe como seus salvadores estão bem perto dele e pode cometer uma besteira. Vamos levar os raios paralisantes e tentar, com eles, deixar Sukril e os outros oficiais fora de combate. Levamos também os raios energéticos mortíferos, para nos defendermos de um possível ataque por parte dos invisíveis.

Dispensaram a teleportação e foram a pé pelos longos corredores até a central de comando. Somente no corredor central foi que sentiram os primeiros e muito fracos impulsos dos estranhos. Eram agora contínuos e ameaçadores.

— Cuidado! — sussurrou Iltu, já de arma na mão. — Estão nos esperando.

Seus pêlos da nuca se arrepiaram, quando apontou para a frente.

— Ali estão eles. Mas por que não abrem fogo contra nós?

Gucky estava também de arma engatilhada.

— Não sei a razão. Quem sabe pretendem fazer outra coisa? Pense nos outros membros da tripulação. Talvez tencionem seqüestrar a César com a tripulação completa. Não matar ninguém.

— Por que estamos esperando? Vamos, atire. Como é que você quer impedir então que eles nos ponham sob seu controle?

Seus raios energéticos se cruzaram a cinco metros de distância. E o calor se tornou insuportável no corredor, mas uma sombra indefinida se delineou no ponto de interseção dos feixes de raios. Segundos depois, sumia totalmente.

— Duas armas apenas não bastam — disse Gucky, entristecido. — De qualquer maneira podemos afastá-los de nós. Continuemos avançando até a central. Já sabem mesmo que estamos aqui...

Quase sem nenhum ruído, a porta correu para dentro da parede. O sargento Gork ainda estava sentado diante dos controles da cúpula de proteção. Não notou nada das duas novas presenças, que penetraram naquele instante. Na sua fantasia surgiam planos aventurescos, que logo desapareciam.

O Major Sukril virou-se lentamente. Gucky se assustou ao ver seus olhos mortos e vazios. Eram olhos de defunto. Sem o menor sinal de ter ou não reconhecido, o Major Sukril ergueu a mão armada e apontou para Gucky. Seu dedo indicador envolveu o gatilho.

Gucky concentrou toda sua força telecinética. Cautelosamente, seus impulsos mentais atingiram a pistola energética. A arma ficou flutuando no ar, até que, abandonada por Gucky, caiu no chão. Capitão Henderson não estava armado.

Gork virou para trás, quando ouviu o baque da arma no chão. Perplexo, olhou para Gucky e IItu. Não estava acreditando nos seus olhos.

— Somos nós mesmos, Gork. Fique sentado e desligue o envoltório de proteção. E você, Sukril, está me ouvindo?

O comandante espichou o pescoço para Gucky, mas deu sinal de tê-lo reconhecido. Depois, sua cabeça caiu para frente, batendo com força na mesa. Ficou inconsciente. Os invisíveis o “apagaram” de novo. O mesmo aconteceu com o Capitão Henderson que também desmaiou.

— Gucky...! O envoltório de proteção! Não é possível desligá-lo.

Gucky teve um sobressalto ao ouvir isto. Mas acabou aceitando.

— É o que estava pensando. Bloqueio!

O mesmo aconteceu com a gazela. Então não há outro meio, senão o campo de absorção kalupiano, isto é, paralisar ou destruir peças vitais da tração linear. Iltu, você fica aqui perto de Gork. Se entrar alguém na central, atire. Voltarei o mais breve possível.

Não havia espaçonave que Gucky conhecia melhor do que um supercouraçado. Foi num deles que passou dias e dias em Zalit acompanhando as manobras. E foi nesta, a César, que ele com Iltu andaram pulando de um canto para o outro, em pequenas teleportações, para exercitar as faculdades dela e aperfeiçoá-las. Sabia, pois, o lugar de tudo, inclusive da casa de máquinas.

Não entendia muita coisa das complicações técnicas, mas era suficiente o que sabia. Não era a primeira vez que lhe cabia a tarefa de desativar uma parte do sistema de propulsão.

Já fazia muito tempo que a César disparava pelo espaço com velocidade muitas vezes superior à da luz, rumo a um destino desconhecido. A cada segundo, ficava mais rápida. No tempo necessário para um homem respirar, percorria muitos milhões de quilômetros, talvez mesmo anos-luz.

Enquanto Gucky, com todo cuidado, se aproximava do setor de máquinas da gigantesca nave, auscultando os fracos impulsos dos invisíveis, Iltu e o sargento Gork não ficaram de braços cruzados.

— Você acredita que eles possam pegar alguém inconsciente e fazer dele o que quiserem? — perguntou o sargento. — Não teriam eles que entrar no corpo de uma pessoa assim?

— Não é tão fácil saber isto, Gork. Mas, de uma coisa tenho certeza! — Iltu estava sempre de sobreaviso, fazendo duas coisas ao mesmo tempo: acompanhava Gucky no caminho para a casa de máquinas e espreitava os invisíveis. — Temos que descobrir um meio para despertar os inconscientes.

Gork concordou.

— Talvez um médico. A clínica de bordo. Entendo um pouco disso, pois todos nós somos obrigados a fazer um curso a respeito. Quer que eu dê uma olhada por aí?

Abanou a cabeça.

— Temos que ficar juntos, pois só uma arma não basta para nos defender dos invisíveis. Pegue-me pela mão. Sei onde é a clínica. Talvez encontremos alguma coisa.

Comunicou a Gucky seu intento e se teleportou. Só depois do terceiro salto é que se materializou na clínica. Toda a equipe médica ou de enfermaria estava sentada ou deitada — todos inconscientes. Um médico caíra defronte do armário de medicamentos. Apoiara-se nas traves do armário e estava apenas agachado. O armário escancarado exibia as muitas prateleiras de garrafas, caixas e vidros de todos os tamanhos.

Gork largou a mão de Iltu e chegou mais perto.

— Se eu, ao menos, soubesse o que se deve levar — disse pensativo, examinando cuidadoso o conteúdo das coisas. — Um remédio para a circulação, talvez?

— A mim, você não precisa perguntar — chilreou Iltu, olhando para todos os lados e procurando alguma coisa. — Não entendo nada de Medicina.

— Mas uma injeção você certamente saberá aplicar.

— Acho que sim — disse hesitante — se você me ensinar.

Não deu resposta e continuou investigando todo o armário. Finalmente pegou uma garrafa e ficou com ela mais tempo na mão. Leu atentamente as anotações do rótulo.

— Acho que aqui temos o desejado. Adrenalina, Soro KHS estimulante. Tomávamos sempre isto, quando se tinha vertigem. Vamos experimentar. Onde estão as seringas de injeção? Ah! Aqui.

Apanhou uma caixa da prateleira de baixo do armário.

— É muito fácil. Você precisa apenas manter o cone contra a veia e comprimir aqui no botão. Coloco uma dose na seringa. O medicamento, com a pressão, penetra diretamente na circulação sangüínea. Não há picada, nem nada. Uma seringa cheia dá para vinte injeções. Acha que pode fazer isto?

Iltu fez que sim com a cabeça. Gork encheu uma das pistolas transparentes de injeção por alta compressão e disse:

— Vamos fazer uma única prova. Aqui, o enfermeiro. Vai ser o primeiro. Preste atenção.

Iltu observou, atenta, como o sargento colocou a pistola e apertou o botão. Não se viu nada, apenas o líquido incolor do cilindro de vidro desceu por um tracinho.

— Se der certo, leva no máximo cinco minutos, talvez menos. Temos que esperar o efeito, antes de continuar.

Iltu aproveitou a oportunidade para entrar em contato com Gucky.

— Como estão as coisas, Gucky?

A resposta veio rápida e ríspida:

— Não me perturbe agora, Iltu. Acho que encontrei o conjunto necessário. Está bloqueado, como todos os mecanismos. O aparelho de absorção de Kalup continua trabalhando normalmente. E se eu não conseguir afastar o empecilho, continuará funcionando. O que há com vocês aí?

— Por enquanto nada.

Gucky não disse mais nada. Iltu continuou mantendo contato mais esporádico com seu irmão de raça, dedicando, porém, atenção aos impulsos mais distantes e mais fracos dos invisíveis. Não tentaram mais nenhum ataque. Quem sabe acreditavam que os três únicos seres vivos não ofereciam mais perigo?

Gork se inclinou para frente.

— Ele se mexe, veja só!

Parecia mesmo surpreso sobre o resultado de sua “invenção” médica. Sua surpresa se transformou em verdadeira alegria, quando o homem se levantou do chão e, olhando para ele, perguntou:

— Que... que foi que aconteceu? Eu me senti tão mal...

— Como se sente agora?

— Obrigado, agora estou melhor.

Sentou-se numa cadeira e olhou para a fila dos desacordados e disse:

— Meu Deus do céu! Que aconteceu por aqui?

— Eu lhe conto depois — disse Gork. — Quero saber primeiro se está tudo bem com você. Fique de pé, por favor. Você entende alguma coisa de Medicina, não é verdade? Será que você pode substituir um médico?

— Claro que sim, do contrário não estaria aqui na clínica. Por que que o senhor pergunta?

Gork mantinha ainda a pistola de injeção na mão.

— Você conhece isto? Eu lhe apliquei uma injeção com isto aqui. Estava certo?

O homem leu a inscrição no rótulo.

— Perfeitamente certo, por quê?

Gork se afastou um pouco, encheu mais duas pistolas que deu a Iltu e ao homem.

— Vamos ao trabalho. Vamos despertar todos e depois quero ver os invisíveis atacarem de novo. Vão ficar boquiabertos.

Meia hora mais tarde, todo o pessoal da clínica estava equipado com a pistola de injeção na mão e a pistola de raios energéticos na cintura. Espalharam-se pela nave, sempre em grupos para se defenderem. Mas não houve ataque. Assim, com toda calma, sem serem perturbados pelos monstros invisíveis, puderam trazer novamente à vida toda a tripulação da César.

Iltu voltou com Gork para a central e despertou o Major Sukril, Henderson e os demais oficiais. Dois minutos mais tarde, irrompeu na cabina de comando o primeiro-oficial, Major Brokov.

Como tudo prometia, a ação foi bem-sucedida e a César estava salva. Mas, como se constatou logo depois, foi tudo um engano terrível.

Quando o Major Sukril ordenou a mudança de rumo, a nave não obedeceu. Era como se todos os controles estivessem bloqueados. A César continuava avançando com toda fúria na direção da mancha parda, além do grande abismo. Um exame nos instrumentos de medição convenceu os homens de que o couraçado terrano já estava voando a mais de dez mil vezes a velocidade da luz. A cada segundo, aumentando sempre. Um ano-luz, numa simples hora. Depois, talvez... em cada minuto.

A Via Láctea, atrás deles, não se modificara ainda. Para isso, estavam ainda muito perto dela e também muito... vagarosos.

Major Sukril virou-se para trás e olhou para Iltu:

— Preste atenção, Tenente Gucky...

— Eu sou Iltu, comandante.

Sukril estava confuso, sem saber para onde olhar. Depois disse irritado:

— Como é que um homem vai diferenciar? Pois bem, onde está este Gucky, seu amigo?

— Está tentando desativar a propulsão, senhor.

Sukril mudou de cor.

— Que está fazendo? Desativar a propulsão? Este sujeito ficou doido?

Aí foi que se mostrou que Iltu já aprendera alguma coisa com seu irmão de raça. Sua autoconsciência aumentara sensivelmente e sabia que a situação aqui a bordo estaria praticamente perdida sem ela e Gucky.

— Para que o senhor saiba, Gucky não ficou doido. O senhor tem, por acaso, uma idéia melhor? De que maneira Rhodan nos poderá apanhar, se estamos abandonando a Galáxia, com velocidades cada vez mais absurdas?

O semblante de Sukril recuperou aos poucos a cor primitiva. Major Brokov estava mais para o lado, sorrindo feliz. Gostou da lição que seu supervisor levou.

— Rhodan? — perguntou Sukril perplexo.

Iltu abanou a cabeça triunfante.

— É claro, quem seria então? O senhor lhe relatou os fatos, deixando-o a par de tudo?

Sukril se virou de novo e ficou olhando para os controles e instrumentos inúteis.

— Relatei sim, mas naturalmente não conhece nossa situação de agora. Central de rádio, que há com o nosso transmissor?

— Esqueça a central de rádio, senhor! Como quer transmitir se não consegue desligar o envoltório de proteção? Além disso, o Tenente Germa está tentando entrar em contato com Rhodan ou no mínimo localizá-lo. Instalamos uma antena para fora, através da cúpula energética, para que possa transmitir sem empecilho. Se isto não funcionar então...

Sukril estava olhando para Iltu com mais simpatia.

— Não leve a mal se eu a menosprezei no começo, Iltu. Mas é verdade que, quando Gucky paralisar a propulsão, o campo de absorção e a cúpula de proteção serão desativados! Estaremos então desprotegidos?

— A ameaça inimiga não nos vem de fora, mas de dentro. Espere um pouco. Acho que Gucky já descobriu o bloco. Sim, agora não vai demorar muito.

Aguardaram ainda duas longas horas, durante as quais os comandos ambulantes para despertar os desacordados se depararam três vezes com os invisíveis, conseguindo anular dois deles. Supuseram que estavam mortos, pois, ao desaparecer, mostravam as mesmas características de sempre.

Então, de um segundo para o outro, a César entrou no Universo normal de Einstein. O tremendo choque da redução repentina da velocidade de vôo não se fez sentir porque os dispositivos de absorção ainda estavam funcionando. Mesmo assim, a nave sofreu um estremeção, como se no seu interior houvesse detonado uma grande bomba.

No mesmo instante, aparece Gucky na cabina de comando. Parecia esgotado e muito cansado e sem se importar com os presentes caminhou diretamente para a primeira poltrona vazia e pulou para descansar. Com um suspiro de satisfação, cerrou os olhos e esticou o corpo.

O Major Sukril tivera que presenciar, perplexo, algo de humanamente incrível, mas o sorriso aberto e franco do seu primeiro-oficial o lembrou das rígidas normas disciplinares, que vigoram em toda nave da Frota Solar Terrana.

— Tenente Gucky! Podemos saber onde o senhor esteve todo este tempo? Que houve com a propulsão?

Gucky nem sequer abriu os olhos.

— Pergunte a Iltu. Ela está a par de tudo. Boa noite.

Sukril era um modelo clássico de auto-domínio. Apenas suas mãos tremeram um pouco, nada mais se notou.

— Quero seu relatório, Tenente Gucky.

Este abriu, então, os olhos, fitou o comandante do outro lado. Obediente, escorregou da poltrona e foi rebolando pela central, plantou-se diante de Sukril. Procurou manter com suas pernas tortas uma posição de sentido e fez a continência de praxe.

— Propulsão posta fora de funcionamento, senhor! Cúpula de proteção e campo de absorção desativados, senhor! E se o senhor não prestar atenção agora e não me deixar descansar, o senhor e toda sua tripulação vão mergulhar de novo no sono hipnótico. Boa noite, senhor.

Falou e caminhou de volta para sua poltrona. Pulou e fechou os olhos.

Major Sukril não se mexeu. Finalmente, depois de uns dez segundos, disse para Brokov:

— Major, cuide para que Gucky não seja molestado. Fique de armas preparadas. Iltu, você nos avise se os invisíveis nos tentarem atacar de novo. Não podemos fazer outra coisa senão esperar por Rhodan ou pelas naves robotizadas. Está tudo bem com a tripulação?

— Excelente, senhor — respondeu Brokov.

Na sua poltrona, de olhos cerrados, Gucky estava vendo:

— Atenção! Eu os estou sentindo. Vêm para o ataque. Dois deles entram na central de comando. E mesmo que seja necessário destruir toda a instalação, atirem! Vamos, que estão esperando? Atirem!

 

Tenente Germa repetia atônito:

— O que você está dizendo, Brado? Nenhuma ligação?

— Sinto muito, senhor. Nenhuma. No entanto é possível que os sinais de orientação penetrem, de forma que a localização da César seja possível. Mas a antena é pequena demais para captar qualquer irradiação.

— Mas será que podemos ouvir?

— É perfeitamente possível, senhor.

— Mais não podemos exigir mesmo. Mas talvez vai dar certo, já que a César não tem mais cúpula de proteção. Continue tentando, Brado.

Entrementes, voltara o pessoal do hangar. Informaram que uma ordem do comandante, já há muitas horas, os chamara para o corredor central e lá, simplesmente, perderam os sentidos. Não havia explicação para isto.

Separaram-se de arma em punho e esperavam pelo inimigo. Mas o inimigo não veio.

Atacou a central de comando.

 

Já havia muito que Gucky saltara de sua poltrona.

— Ali, ao lado da entrada.

Sete ou oito feixes de raios energéticos se cruzaram no local mencionado. Surgiram os contornos da sombra do inimigo, caíram no chão, materializaram-se totalmente e sumiram de novo.

— Iltu, você fica aqui. Vou cuidar da defesa no resto da nave. Eles tentarão tudo para se apoderar de novo do comando central.

Antes que Sukril pudesse dar permissão para isto, desmaterializou-se. Aos poucos, o comandante foi se habituando com o fato de que Gucky agia por conta própria — e sempre corretamente.

Iltu se incumbiu da missão de prestar muita atenção à aproximação dos invisíveis. A tática de abrir fogo cerrado tinha se comprovado. Mais de sete dos monstros invisíveis foram eliminados durante as últimas horas. De qualquer maneira, não se repetiu a catástrofe, ninguém perdeu os sentidos ou caiu nas mãos dos seres misteriosos.

Na central, a grande tela do videofone estava funcionando. Era, mais ou menos, a única coisa que funcionava, pois todos os outros instrumentos estavam enguiçados e travados. A César descia em queda livre na direção da mancha parda, mas apenas com a velocidade da luz. Se fosse localizada da Via Láctea, não seria difícil apanhá-la.

— Ligar o transmissor da cabina de rádio! — ordenou Sukril. — Devemos conseguir a ligação agora.

Enquanto os radiotelegrafistas se esforçavam para chamar a pequena frota das naves robotizadas, deu-se mais um ataque dos invisíveis. Alteraram sua tática e vinham agora em grupos de quatro ou cinco. Usavam também uma arma diferente. Os raios energéticos que se abatiam contra os oficiais não eram mais azuis, mas alaranjados.

O Capitão Henderson foi o primeiro a ser atingido. Com o aviso de Iltu, procurou abrigo e deixou a arma engatilhada, mas não conseguia ver onde estava o inimigo. Os raios alaranjados o atingiram de cheio, antes que pudesse se defender. Ficou parado onde estava. Não tombou, nem foi calcinado pelas chamas. Não se movia mais. Seus olhos estavam estarrecidos, havia, porém, vida neles. Henderson não estava morto, apenas inconsciente.

O grito de espanto de Sukril lhe morreu na garganta, quando os raios misteriosos o envolveram e o imobilizaram.

Iltu deu um grito de aviso e saltou para frente. Tinha em cada mão uma pistola. Sabia exatamente onde estava o próximo invisível. As duas armas fizeram fogo ao mesmo tempo e com a máxima regulagem. Atingiu o inimigo que logo desapareceu. Continuou atirando, virou-se um pouco e encontrou o outro. Mas este terceiro foi mais rápido.

Atingiu-a.

 

Gucky, em algum lugar da César, levou um susto horrível quando estancou, subitamente, o fluxo de pensamentos de Iltu. Sabia o que havia na central de comando, mas ainda esperava que os oficiais e sua amiga dessem conta do inimigo. Agora, não ouvia mais nada de Iltu.

Sem refletir mais, teleportou-se para a central, onde deu de cara com um invisível Arrancou a arma de um oficial e abriu fogo.

Ainda enquanto estava vendo satisfeito o desaparecimento do adversário, um homem se materializou a poucos metros dele. Portava um pesado uniforme de combate, um antigo modelo SHK, e nas mãos uma pesada pistola, que deixou cair assim que viu Gucky e os oficiais.

Era Ras Tschubai, o fantástico teleportador africano.

Gucky exclamou entusiasmado:

— Ras! Você? Pensava que estivesse na Ironduke...!

— Estava mesmo — disse olhando em volta. Notou primeiro Iltu que ali estava sem movimentos, depois pousou os olhos em Sukril que não fez o menor movimento. — Que está acontecendo com vocês aqui?

Gucky reparou primeiro se a sala de comando estava livre das sombras inimigas. Parecia que os invisíveis preferiram debandar sem ter que lutar mais.

— Vocês já estão todos aí?

Ras confirmou com a cabeça.

— A Ironduke está ao lado da César. Nós os achamos pelos sinais de orientação. Eram muito fracos, mas conseguimos captar. Vim sozinho, mas a qualquer momento chega Rhodan e sua gente. Estão tentando abrir a comporta.

Gucky pulou de novo para sua poltrona.

— Graças a Deus! Chegaram na hora certa. Não sei mais como dar conta destes invisíveis.

Saltou de novo da poltrona e correu para Iltu. Com todo cuidado, pousou a mão na sua cabeça.

— Está bem quente, está viva e já começa a se mexer — respirou fundo e começou a rir em voz alta, uma risada que falava do seu alívio. — Apenas um desmaio. Olhem, Sukril também está despertando e também Henderson.

Era mesmo um quadro singular. Oficiais e Iltu pareciam despertar de um sono profundo. O cérebro de Iltu — sua memória — deixara de existir naqueles momentos em que foi atingida pelos raios paralisantes. E agora voltava ao normal. O que houve entre este lapso de tempo ficaria para sempre perdido.

Iltu deixou cair os dois braços com as pistolas. Depois do fogo cerrado, estavam sem carga. Sukril ainda procurava por um novo inimigo, mas não o encontrou.

De repente, a porta da central se abriu bruscamente.

Perry Rhodan estava entrando.

Num relance de olhos mediu o ambiente, fez um rápido cumprimento para Gucky e fitou o comandante Sukril, como a lhe fazer alguma pergunta. Alguns homens se acercaram do administrador, trazendo instrumentos esquisitos, que largavam aliviados.

— Parece que chegamos na hora certa — disse ele. — Gucky, eram mesmo os invisíveis?

O rato-castor pegara Iltu pela mão e a levara para uma poltrona. Ergueu-a com cuidado até o estofamento. Só depois é que se virou para Rhodan.

— São eles, sim, Perry. Mais uma vez, os mesmos fenômenos e sintomas.

— Quer dizer então que nos acharam novamente — constatou Perry, abatido. — Temia isto já há muito tempo — fez um aceno aos homens que estavam ao lado dos estranhos instrumentos. — Continuem o trabalho, começando aqui pela central. Temos que saber o que aconteceu.

Major Sukril recuperara entrementes sua pose marcial e fez uma solene continência.

— Senhor, se desejar um relatório...

— Obrigado, major. Já recebi as informações necessárias. Não foi sua culpa, pelo contrário, o senhor e sua gente agiram do melhor modo possível. A frota robotizada está a caminho da Terra, portanto, o objetivo de sua missão foi cabalmente atingido. O encontro com os invisíveis não estava programado.

O Capitão Henderson substituiu plenamente a ausência de seu superior. Voltara a seu lugar e tentava enquadrar a Ironduke na grande tela. Para sua estupefação, a instalação estava, de repente, funcionando. E, com muita facilidade, todos os instrumentos podiam ser regulados. O couraçado de oitocentos metros de diâmetro entrou num canto da tela. Sem interrupção, saíam da grande nave as diversas unidades, trazendo tripulação para a César.

Mas os aparelhos de rastreamento mostravam ainda algo diferente.

Não muito nítida em seus contornos, surgia no espaço uma outra nave. Os instrumentos davam uma distância de três quilômetros. Não tinha a conformação esférica, mas parecia muito um torpedo e devia ter um pouco mais de cem metros de comprimento.

— Senhor... localizada uma nave estranha. Os instrumentos não devem ainda estar funcionando completamente, pois não a vejo com nitidez.

Com dois pulos, Rhodan estava ao lado dele, olhando para a tela luminosa.

— Os instrumentos estão funcionando bem sim — disse com ironia. — Isto é uma nave dos invisíveis. Seus contornos concordam com os das naves de Bárcon.

Virou-se para Sukril:

— Major, deixe a César de prontidão. Mas bem rápido, não perca um segundo.

Sukril correu para seu lugar, ligou o intercomunicador e deu as ordens correspondentes. Nem teve tempo de ficar surpreso com o fato de que o intercomunicador estava funcionando perfeitamente.

Rhodan se dirigiu, então, a Gucky.

— Você desativou o aparelho de absorção?

— Não tive outra alternativa.

— Está certo, vamos consertá-lo. Trouxe comigo todos os técnicos necessários. Suponho que temos apenas de trocar o núcleo. Ah! É verdade, como é que se portou Iltu? Estava com muito receio de que não estivesse à altura desta difícil missão. É tão jovem ainda. Acho que deveria tê-la deixado em Marte...

— Escuta — disse Gucky tão baixo que só Rhodan pudesse ouvir. — Sem Iltu, eu não teria dado conta do recado, estou falando com toda sinceridade. E... tão jovem assim também não é... É uma “menina” fantástica...

Rhodan sorriu. Agachou-se e estava com a boca bem perto da orelha de Gucky.

— Diga-me uma coisa, você está apaixonado por ela?

Gucky recuou assustado, como se tivesse visto uma cobra venenosa.

— Apaixonado? — repetiu indignado. — Isto é o cúmulo. Jamais me prenderia a uma ratinha assim, tão boba — calou de repente, virou a cabeça para cima, olhando confiante para Rhodan. — Não é verdade, você não vai contar isto a ninguém?

Rhodan meneou a cabeça.

— Para que contar? Isto é uma coisa que se nota naturalmente. — E sorrindo, acrescentou: — Principalmente Bell.

Gucky bateu com a pata direita no chão e fez uma cara de aborrecido.

— Você o trouxe?

— No momento ele é o comandante da Ironduke, ao lado de Claudrin.

— Mais esta ainda! — resmungou o rato-castor e saiu.

A artilharia da César comunicou que já estava de prontidão.

Entrementes, Gucky e Iltu constataram que a bordo da nave tipo torpedo, dos invisíveis, não havia ninguém. E Rhodan então concluiu:

— Devem ter desistido e tentado fugir, com a nave lá fora. Temos que impedi-los. Major Sukril, mande abrir fogo. Dê os dados ao pessoal; não sei se a nave está visível nos seus instrumentos de mira automática. Rápido, major, o tempo é muito importante.

Irrompeu cerrado fogo de todos os postos de defesa da César, depois que a Ironduke saiu um pouco de lado. Somente da central de comando é que se podia controlar o ataque, pois somente no aparelho especial de rastreamento é que se viam os contornos da nave inimiga. As demais telas não mostravam nada, a não ser a mancha pardacenta da desconhecida nebulosa.

Os feixes de raios energéticos rasgavam o espaço, atingindo o alvo. Vinham de diversos pontos em fogo contínuo, salientando, para todos os olhos, os traços bem visíveis do aparelho inimigo, em terceira dimensão. Não se podia saber se os invisíveis possuíam um envoltório de proteção; se o tivessem, devia ser muito fraco.

Num mesmo ponto bateram quatro ou cinco disparos simultâneos. Era demais para uma nave quase sem barreira de proteção.

Toda esta energia ali concentrada criara um ponto fraco e penetrara na blindagem da nave dos invisíveis. Uma tremenda detonação, acompanhada de um clarão ofuscante, obrigou os terranos a fecharem os olhos. Quando os abriram, em seguida, uma nuvem incandescente de gases se espalhava pelo espaço — exatamente no lugar onde estivera a nave invisível aos olhos humanos.

Gucky, ao lado de Rhodan, disse:

— Seus impulsos mentais desapareceram. Não sinto mais nada. — E virando-se para trás: — E você, Iltu?

— Também não percebo nada. Você acha que... morreram?

— Acho que sim, se você também não sente mais nada. Ouviu, Perry? Estão liquidados! Vencemos a parada.

Rhodan olhou fascinado para a tela. Pensativo e com rugas na testa, observava a nuvem atômica que, incandescente, se estendia encobrindo a longínqua nódoa pardacenta da nebulosa. Gucky, que acompanhava seus pensamentos, disse de repente:

— Também creio que eles vêm daqueles lados, mas como é que poderemos provar isto? Mas nem por isso, a outra via láctea lá nos confins de não-sei-onde estará sujeita a outras leis da natureza. Quem sabe estes desconhecidos invisíveis vivem numa dimensão estranha para nós? Talvez na sexta ou na sétima? Não entendo nada disto.

Rhodan confirmou, pensativo.

— É isto! Alguma coisa você já entende. Pelo menos haveremos de ficar sabendo o que pretendiam fazer com a César. — Virou-se e perguntou aos homens ocupados com os instrumentos: — Como estão os cálculos?

— Quase prontos, senhor. Temos que confirmar ainda a densidade de onda da irradiação de calor, para que não surjam erros.

Major Sukril estava no meio dos homens, olhando perplexo como eles manipulavam instrumentos, escalas e telas de circuito interno. A câmara de filmagem, acoplada com a tela panorâmica, já estava preparada.

— Que é isto? — perguntou Gucky, que conversava com Ras Tschubai.

O africano respondeu com uma evasiva:

— São novidades, meu amigo. Também não sei bem. Estávamos para experimentá-la, quando chegou seu pedido de socorro. Ao que tudo indica, vamos experimentar esta invenção aqui mesmo.

Rhodan chegou para perto deles.

— Não é assim tão novo o processo de rastreamento com o infravermelho — disse sorrindo. — Existe de fato um processo novo na Terra, mas a instalação é muito grande e de difícil transporte. O que vocês estão vendo aqui, achava-se guardado num pequeno corredor da nave. Assim, quatro homens são capazes de carregar toda a instalação.

— Processo de rastreamento por infravermelho? — disse Gucky admirado, não entendendo nada do assunto. — Que é isto mesmo?

Na tela mais ampla, surgiam sombras esquematizadas e logo desapareciam. Um dos técnicos disse, pedindo desculpas:

— Por favor! Somente os homens de serviço. Temos que fazer a montagem ainda.

— Que é isto? Só homens? — perguntou Gucky, espantado.

Rhodan levou o dedo indicador aos lábios fechados e pediu silêncio no recinto. Fez um sinal ao Major Sukril e ao Capitão Henderson para que se afastassem dos controles, onde estavam sendo montados os instrumentos. Todos aguardavam, de respiração presa e com grande ansiedade, enquanto lá fora a nuvem incandescente de moléculas em dissolução ficava cada vez mais rala e ia desaparecendo.

Gucky ficou uns instantes olhando o trabalho dos técnicos com seus aparelhos esquisitos, depois pegou Iltu pela mão.

— Vamos embora. Não entendo mesmo nada disto. Além do mais, estou com fome.

Teleportaram-se para suas cabinas e esqueceram, nos próximos minutos, a aventura tão bem-sucedida. Gucky abriu sua sacola e retirou uma caixa plástica cheia de cenouras. Galante, ofereceu uma a Iltu e sentou-se ao lado dela na cama.

Iltu mastigou um pouco, sem muito prazer, dizendo:

— Não estou gostando muito não.

Gucky olhou pasmado.

— Como? Não está gostando? Será que não ouvi bem?

Iltu meneou a cabecinha e mostrou o dente de roedor:

— Não, você não tem culpa. Assim que puder, vou cultivar um campo só com couve-flor.

Gucky arregalou os olhos de admiração.

— Couve-flor?

Iltu lambeu os beiços e deu um estalo, como se estivesse saboreando algo muito especial.

— É a coisa mais gostosa que se possa imaginar. Em comparação com ela, suas tenras cenouras não valem nada.

— Que que você acabou de dizer?

Iltu repetiu com franqueza:

— Que as suas cenouras não valem nada em comparação com a couve-flor, meu velho.

— Você me chamou de velho?

— Sim, e daí?

Gucky ergueu-se da beira da cama, botou as mãos na cintura e tomou uma postura ameaçadora. Respirou profundamente e já estava para desembuchar um solene sermão, quando Iltu começou a rir, saindo à mostra seu dente rosado de roedor. Ria tanto que tinha que segurar a barriga.

— Como é que a gente pode ser tão vaidoso assim, Gucky? Eu não me ofendo quando você me chama de pequena ou jovem demais, como fez agora pouco diante de Rhodan. Pelo contrário, alegro-me com isto.

Gucky se sentiu pequeno. Olhou espantado para Iltu.

— Você ficou então ouvindo minha conversa com Rhodan? — parecia zangado. — Você fez uma ação muito indigna, feia, horrorosa e sem-vergonha.

Parou de rir de repente.

— Como foi? Você disse uma coisa tão bonita, Gucky. Já se esqueceu?

Gucky fechou os olhos, tirou da sacola uma cenoura e começou a mastigar.

— Você é ainda muito jovem.

— Mas você ainda não é velho demais. — disse com firmeza.

Gucky se sentiu menor ainda.

 

Curiosos e tensos, os oficiais que estavam na central cercavam o rastreador infravermelho. Rhodan se mantinha mais no fundo, falando de vez em quando com o Major Sukril e, no momento, ouvindo o depoimento do Tenente Germa, que esclarecia o que acontecera.

— Até que enfim, conseguimos — disse um dos técnicos, com visível satisfação. Olhou para uma escala. — Duas horas atrás, senhor.

Na tela da aparelhagem de rastreamento, apareceram figuras envoltas em sombras, movimentando-se rápidas de um lado para o outro. A câmara começou com seu zumbido característico, registrando os acontecimentos do passado. O que estes homens estavam vendo agora, já acontecera há duas horas atrás. Os invisíveis transmitiram irradiações térmicas que agora podiam ser vistas. Cada um de seus atos ou movimentos, realizados há duas horas, podiam agora ser observados e estudados. Cientistas terranos desenvolveram estes instrumentos maravilhosos, com cujo auxílio se tornava fácil o esclarecimento de um crime ou de qualquer outra circunstância.

— Eles, os invisíveis, examinaram os controles — explicou o Major Sukril, olhando boquiaberto para as impressões térmicas, bem visíveis, de inteligências já há muito desaparecidas. — Dão a impressão de silhuetas humanas. Parece que o sistema de propulsão lhes interessou muito.

— Trata-se da propulsão linear — confirmou Rhodan. — Olhem que chegaram até a filmar nossas instalações. Não se vêem as câmaras, mas os movimentos das silhuetas comprovam isto. Tenho a esperança de que as fotografias ou filmes que tiraram tenham sido destruídos com a explosão da nave. Sabemos agora o que pretendiam aqui.

Virou-se para um dos técnicos:

— É bom, professor, o senhor fazer as mesmas pesquisas na casa de máquinas. Temos que saber o que andaram fazendo por lá.

Os técnicos apanharam seus instrumentos e deixaram a central de comando. Seus filmes foram estudados mais tarde. Sabendo-se as intenções dos estranhos invisíveis, podiam-se fazer deduções acertadas do seu caráter, do seu modo de viver e talvez mesmo de sua procedência.

Mudara-se o mecanismo do campo de absorção e as manobras experimentais comprovaram que a César poderia voltar à Terra por meios próprios, onde então seria submetida a uma vistoria geral.

Rhodan se despediu do Major Sukril, desejando-lhe um vôo calmo de regresso e retornando com sua gente para a Ironduke. Levou os dois ratos-castores.

Esperaram até que a César partisse, acelerasse e se transformasse num pontinho perdido no espaço, diante da enorme faixa esbranquiçada da Via Láctea. Enfim, desapareceu.

Major Jefe Claudrin, comandante de vôo da Ironduke, deu ordem de decolagem e a nave capitania de Rhodan seguiu os rumos da César.

Um pouco mais para o lado, mas com boa visão para a tela panorâmica, estavam a uma mesa Perry e Bell. Gucky, recostado numa cômoda poltrona, repetia seu relatório com todos os detalhes. Os dois ouviam com atenção, fazendo sempre perguntas, aproveitando sempre os menores indícios sobre os invisíveis.

— Sem fazer uso da telepatia, é impossível sentir sua presença — frisava Gucky. — Mais tarde chegaram mesmo a fazer um grande esforço para ocultar seu pensamento, não o conseguindo totalmente. Se forem de fato telepatas, então a sua telepatia é muito fraca, pois um bom telepata pode isolar suas correntes mentais. Reparei ainda mais uma coisa: quando nós os atacamos mais seriamente, retiram-se logo. Não são nada valentes. Quando surgiu a Ironduke, desistiram de seu intento e deixaram simplesmente a semiconquistada César. Fugiram, se bem que para sua desgraça. E todos os controles bloqueados ficaram livres de repente. Seria possível que tivessem feito o bloqueio dos controles pela telecinese?

Rhodan meneou a cabeça negativamente.

— Não dominam a telecinese, do contrário teriam dela se utilizado para nos combater. Creio mais na sua primeira suposição. Penetram na matéria, que para eles não representa nenhum empecilho. Além disso, sabemos com certeza que podem percorrer pequenos trechos no espaço, sem necessidade de naves. Em tudo por tudo, são uma raça muito singular e perigosa. Receio que nos dará ainda muito trabalho.

— Aquela mancha lá, como uma névoa pardacenta, será sua pátria?

Rhodan e Bell olharam para a tela de trás. Pequena e quase invisível, havia lá uma mancha esmaecida da galáxia desconhecida. Parecia algo sem importância e muito, muito distante.

Surgiu então na tela a nebulosa de Andrômeda no setor BJ-97-UK, o setor que os invisíveis impuseram como rumo para o Capitão Henderson levar a César.

Se quisessem seqüestrar mesmo a César, era de supor que a levassem para sua pátria.

Até então calado na sua poltrona, disse Bell subitamente:

— Esta criaturazinha Iltu não foi um incômodo para você?

— Incômodo? Como assim?

Bell sorriu.

— Eu recordo que você uma vez a xingou muito, ao visitarmos a colônia em Marte, lembra-se? Não era este o bichinho atrevido, que se metia em tudo e fez o comandante do acampamento voar pelos ares?

— Iltu é ela e não ele, meu gorducho.

— Rato-castor é rato-castor — revidou Bell, irônico. — De qualquer maneira você estava furioso contra ela. Por este motivo foi que lhe mandamos a Iltu, sem antes o consultar. Devia ser uma surpresa para você, contra a qual não poderia mais protestar.

— Foi de fato uma surpresa!

— Ah!... É?

— Sim, uma surpresa agradável. Sem sua formidável cooperação, não teria conseguido me defender dos invisíveis. Ela é uma teleportadora de primeira classe.

— No entanto — disse Bell com um tom de galhofa — é ainda uma criança, como você dizia.

— Não é mais criança — protestou Gucky com energia, fazendo cintilar seu dente de roedor, desta vez não por motivo de alegria. — Já é um rato-castor adulto. Quem a ofender, está ofendendo a mim. Compreenda isto, ou você vai se arrepender.

Um sinal de Rhodan, acompanhado de sério piscar de olhos, fez Bell calar a boca. Não compreendia por que a situação mudara tanto. Outrora, podia captar a simpatia de Gucky falando mal de Iltu e dos demais filhotes de rato-castor lá da colônia de Marte. Com o mesmo método, estava agora estragando tudo. Era mesmo muito estranho...

— Está bem, meu amigo, acho que você está me interpretando mal, minha intenção não era esta.

— Já estava calculando mesmo — disse Gucky, já meio reconciliado. — Confesso que, naquela época, não dei o verdadeiro valor a que esta criaturinha faz jus. Ilti está muito mais desenvolvida do que imaginava e...

— Quem, por favor?

Gucky abanou, acanhado, a orelha de rato.

— Oh! Desculpe, eu a chamo assim, de vez em quando. Ilti para mim soa melhor do que Iltu.

— Ah, ah, ah!... — abriu-se Bell, num largo sorriso. — Você já arranjou um apelido carinhoso para ela... — piscou o olho para Rhodan. — Quando é que a gente pode dar os parabéns?

Excepcionalmente, Gucky fingia não compreender a insinuação de Bell.

— Parabéns pelo quê?

— Não banque o ingênuo, você sabe muito bem por quê. Você gosta muito da Ilti, não é verdade?

— Você se atreve a chamá-la de Ilti? — perguntou indignado.

— Não fuja do assunto. Você gosta ou não gosta dela?

— Pare com isto — suspirou Gucky, chocado com a terrível suspeita. —, Ela é criança demais.

Bell riu a bandeiras despregadas.

— Você muda de opinião, como eu de camisa. Agora pouco você disse que...

Parou de repente.

Bem no centro da mesa o ar cintilou e Iltu se materializou. Ficou de pé nas patas traseiras, olhou triunfante para todos os lados, até que seu olhar quedou em Gucky.

— Então? — chilreou ameaçadora. — Pelas costas, continuo sendo criança demais?

Gucky encolheu-se todo. Rhodan e Bell não se recordavam de tê-lo visto jamais tão pequeno assim.

— Nada disso... estava pensando... é verdade. — E apontando para Bell: — O gorducho só fala bobagem, Ilti... Iltu. Eu apenas a defendi, mais nada.

Iltu chegou mais perto dele.

— Eu sou criança demais, não é? E você sabe o que você é?

Gucky se voltou suplicante para Rhodan, que, no entanto, preferiu ficar de fora da discussão. Gucky estava no mato sem cachorro. Se dissesse que Iltu era criança, ela lhe daria na presença de Bell o pomposo título de “vovô”. Se, porém, confessasse que ela não era mais criança...

“As mulheres”, pensava ele furioso, “são todas iguais. Não se deve se meter com elas. Sempre se sai perdendo ou bancando o bobo...”

Mas o negócio não era assim tão sério.

— Ouça uma coisa, Ilti, será que temos de discutir isto em público, diante dos ouvidos curiosos do gorducho? Olhe só para ele, como está de ouvido aguçado. Isto não é da conta dele, o que nós dois, o que ambos... é... eu e você...

Parou por um instante, abaixando a cabeça. Estava muito tenso. Depois, reuniu as forças e disse bem alto:

— Faça o que você quiser!

Iltu pulou para Rhodan e sentou em seu colo. Com muito carinho, Rhodan olhou para ela e lhe acariciou as mãos.

— Não é verdade, Perry, quando eu crescer um pouco mais, posso me casar com Gucky?

Do outro lado, da poltrona em que Gucky estava sentado, veio um som abafado. Gucky perdera o equilíbrio e rolara de quatro no chão, debaixo da mesa. Saiu sem jeito, dizendo:

— Não! De maneira alguma — e seu corpo todo tremia. — Estou já muito... Não, nunca mais, não quero não.

— Você não está se julgando velho demais? — perguntou Rhodan, alisando o pêlo sedoso de Iltu. — Mas Gucky, tire esta idéia da cabeça, você não é velho.

— Eu não afirmei nada, no entanto... — reticenciou Gucky.

— Vovô! — sussurrou Iltu carinhosa.

Gucky estremeceu todo. Rhodan também escutou, mas Bell se abriu numa gargalhada homérica, interrompendo só para gritar bem alto:

— Vovô!... Formidável esta, vovô!

E não podia mais parar de rir.

Ao notar o que provocara com sua expressão carinhosa, Iltu saltou rápida do colo de Rhodan, correu para Gucky e lhe pegou a mão.

— Desculpe, minha expressão foi mal interpretada, não era isto que queria dizer.

Gucky lembrou-se de sua dignidade viril.

— Deixe-me em paz! — disse altivo, afastando a mão de Iltu. — Você... você criança de colo, que ainda está mamando, você... você...

Não sabia mais o que dizer.

Olhando para ele, Iltu se empertigou toda, parecendo agora mais alta que ele. Com voz estridente, desabafou:

— O quê? Você está ficando atrevido assim? Vou livrá-lo desses maus espíritos — pegou-o de novo pela mão. — Agora, imediatamente e sozinhos, você vai se espantar. Prosa fiada, este negócio de velho demais ou criança demais. E agora venha comigo.

Desmaterializaram-se.

A última coisa que Rhodan e Bell viram de Gucky foi seu olhar de censura e sua expressão de magoado.

— Você podia parar de rir, Bell. Respeite os sentimentos do nosso amigo, não vê que está apaixonado?

A risada de Bell estancou, olhando estupefato para Rhodan.

— Você está dizendo isto de brincadeira?

— Claro que não. Você nunca se apaixonou na vida?

Bell virou um pimentão, todo vermelho e sem jeito.

— Mas Iltu é ainda...

— Uma rata-castora. E daí? Para Gucky, ela é certamente a coisa mais linda e encantadora do Universo. Que haveria você de dizer quando Gucky, um dia, se tornar, não digo um avô, pois para isto falta muito tempo, mas um pai orgulhoso? Pai de três ou quatro maravilhosos filhotinhos de rato-castor? Quando me lembro disso...

— É bom não lembrar não — protestou Bell, horrorizado. — Não agüento isto não. Penso apenas na visita que fiz à colônia deles em Marte. Os sujeitinhos pousavam na minha cabeça, na minha barriga, em toda parte e me coçavam, achando muito interessante quando começava a rir devido às cócegas. Não, não, os filhotes de Gucky serão minha ruína.

— Quem sabe — perguntou o administrador pensativo, olhando a mancha pardacenta bem no centro da tela panorâmica — quem sabe, serão exatamente o contrário? Para a Terra, especialmente — continuou contemplando aquela espiral nebulosa, a mais de milhões de anos-luz de distância e talvez a pátria dos invisíveis. — Talvez, os filhos de Gucky salvarão os destinos da raça humana!...

— Você exagera — disse Bell, sem muita convicção.

Depois se levantou para sair.

— Para onde é que você vai? — perguntou Rhodan. — Temos que examinar os filmes infravermelhos.

— Vou refletir um pouco, Perry. É muito difícil escolher um bom presente, tenho que pensar muito a respeito.

— Presente? — exclamou Rhodan confuso, abanando a cabeça. — Presente para quê?

Bell, que já estava à porta, virou-se para trás:

— Presente de casamento — disse desaparecendo.

Rhodan continuou olhando para a porta fechada e começou a rir e ainda estava com expressão de sorriso no rosto, quando, dez minutos depois, Bell entrou na central de comando com um galo na testa.

— Oh! — murmurou Rhodan pesaroso. — Gucky já está valente de novo, hein?

— Não, não foi ele não. Foi Iltu!

— Um bom sinal para Gucky!

O gorducho sentou-se.

Não achou que era de fato um bom sinal.

Pelo menos, não para ele.

 

                                                                                            Clark Darlton  

 

                      

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