Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
AS TRIBULAÇÕES DE UM CHINÊS NA CHINA
O riquíssimo chinês Kin-Fo encontra-se subitamente arruinado. A vida, que até então lhe parecia insípida, torna-se insuportável. Ele faz um seguro de vida em favor da noiva Lé-u e do filósofo Wang, seu mentor e amigo a quem ele pede para matá-lo no prazo de dois meses, e entregando-lhe uma carta que o inocente do assassinato. Antes do prazo, Kin-Fo recupera sua fortuna. E não há mais nenhuma razão para ele renunciar à vida. Mas Wang desaparece com a carta e ele não é homem de quebrar uma promessa! Assim Kin-Fo é condenado à morte aos seus próprios cuidados! A solução é encontrar Wang. E Kin-Fo embarca em viagens em torno da China, na esperança de evitar ser assassinado antes de o contrato expirar...
EM QUE A NATUREZA E NACIONALIDADE DOS PERSONAGENS POUCO A POUCO SE DESVELA
— Todavia, é forçoso confessar que a vida tem coisas boas! — exclamou um dos convivas, reclinado no braço da sua poltrona de espaldar de mármore, saboreando uma raiz de nenúfar polvilhada de açúcar.
— E também coisas más! — respondeu entre dois acessos de tosse um outro, a quem a aresta de uma delicada barbatana de tubarão ia quase engasgando.
— Sejamos filósofos! — interveio então um personagem mais idoso, cujo nariz suportava um vasto par de óculos de enormes vidros em armação de madeira. — De um momento para outro corremos o risco de ficar engasgados, e daí a pouco tudo passa como passam os goles suaves deste néctar. Assim é a vida!
E dizendo isso, o bem humorado epicurista enxugou um copo de excelente vinho tépido cujos finos vapores subiam lentamente de uma chaleira de metal.
— Na minha opinião — acrescentou um quarto conviva, — a existência afigura-se perfeitamente aceitável desde que nada se faça e disponhamos dos meios que nos permitam nada fazer!
— Engano! — replicou um quinto convidado. — A felicidade reside no estudo e no trabalho. Adquirir a maior soma possível de conhecimento é a melhor tentativa para ser feliz!
— Para chegar enfim à conclusão de que não se sabe nada!
— Não será esse o princípio da sabedoria?
— E qual é o fim?
— A sabedoria não tem fim! — respondeu filosòficamente o homem dos óculos. — Possuir o senso comum, eis a suprema satisfação!
Foi então que o primeiro conviva interpelou diretamente o anfitrião, que ocupava a cabeceira da mesa, ou seja o pior lugar, de acordo com as leis da cortesia. Indiferente e distraído, este ouvia em silêncio aquela dissertação inter pocula.
— Vamos a saber! Que pensa o nosso hóspede destas ociosas divagações? Que lhe parece a vida neste momento? Boa ou má?
O anfitrião, que mascava negligentemente algumas pevides de melancia, limitou-se, como única resposta, a distender desdenhosamente os lábios, como pessoa a quem nada interessasse.
— Pfff! — sibilou.
Esta é a atitude especial dos indiferentes. Diz tudo e não diz nada. Pertence a todas as línguas e devia figurar em todos os dicionários do globo. Dir-se-ia uma "careta" articulada.
Os cinco convidados do enfastiado homem deflagraram então os seus argumentos, cada qual em favor da sua tese. Queriam a opinião dele, que a princípio recusou manifestar-se, terminando por afirmar que a vida não é propriamente boa nem má. No seu entender, era apenas uma invenção insignificante e pouco divertida!
— Aí têm o nosso amigo!
— E fala assim, ele a quem sequer uma pétala de rosa perturbou jamais o bem-estar!
— Que é moço!
— Moço e cheio de saúde!
— Cheio de saúde e rico!
— Muito rico!
— Riquíssimo!
— Talvez rico demais!
Essas exclamações cruzavam-se como os petardos de um fogo de artifício, sem sequer atraírem um sorriso à impassível fisionomia do anfitrião, que se limitava a encolher ligeiramente os ombros como quem jamais se dera ao trabalho de folhear, por uma hora que fosse, o livro da própria vida, ou ao menos cortar-lhe as primeiras páginas.
Todavia, esse indiferente contava quando muito trinta e um anos, gozava de perfeita saúde, possuía uma grande fortuna, não era um espírito inculto, sua inteligência ultrapassava a média comum; dispunha, enfim, de tudo o que falta a muitos outros para ser um dos felizardos deste mundo.
E por que o não era? Por quê?
A voz grave do filósofo destacou-se então, falando como um corifeu de coro antigo:
— Amigo — disse ele, — se não te consideras feliz neste mundo, é porque até agora a tua felicidade tem sido apenas negativa. Dá-se com a felicidade o mesmo que com a saúde: para bem a apreciarmos necessitamos, uma vez ou outra, ficar privados dela. Ora, tu nunca estiveste doente... Quero dizer: nunca foste infeliz! É isso que te falta na vida. Como pode apreciar a felicidade aquele a quem jamais aflorou o sopro da desgraça?
Após essa observação cheia de sabedoria, o filósofo erguendo a taça espumante do mais fino Champanha, exclamou:
— Faço votos para que uma pouca de sombra venha toldar o sol do nosso hóspede, e algumas contrariedades lhe dificultem a vida!
E esgotou de um trago a taça cheia.
O anfitrião teve um gesto de aquiescência e recaiu na sua apatia habitual.
Onde se trocavam essas palavras? Em alguma sala de jantar européia, em Paris, em Londres, em Viena, em São Petersburgo? Discorriam estes seis comensais no salão de algum restaurante do velho ou do novo mundo? Que pessoas eram essas, desenvolvendo semelhante tema em meio a um banquete, sem terem bebido mais que o razoável?
Franceses não eram; com certeza, pois não se falara de política.
Os seis convivas achavam-se instalados numa sala de tamanho regular, luxuosamente mobiliada. Através dos caixilhos de vidros azuis ou alaranjados, coavam-se àquela hora os últimos raios do sol. Para além das janelas a brisa da tarde agitava grinaldas de flores naturais ou artificiais, e algumas lanternas multicores misturavam os seus pálidos reflexos à luz agonizante da tarde. Por sobre o vão das janelas ostentavam-se caprichosos arabescos, enriquecidos de esculturas variadas, representando belezas do céu e da terra, animais ou vegetais de uma fauna e de uma flora imaginárias.
Nas paredes da sala, forradas de seda, brilhavam largos espelhos de dupla faceta. No teto, uma punha agitando as asas de percal colorido, amenizava a temperatura ambiente.
A mesa era um vasto quadrilátero de laça preta, cuja superfície nua refletia as numerosas peças de prata e porcelana como se fosse uma lâmina do mais puro cristal. Não havia guardanapos, mas simples quadrados de papel ornados de figuras, dispostos ao lado de cada conviva em quantidade suficiente. Em redor da mesa estavam dispostas cadeiras com espaldar de mármore, bastante preferíveis, naquela latitude, aos encostos almofadados do mobiliário moderno.
O serviço era feito por graciosas jovens, cujos negros cabelos se entremeavam de lírios e crisântemos, com braceletes de ouro e de jade envolvendo-lhes ricamente os braços. Alegres e sorridentes serviam à mesa apenas com uma das mãos, enquanto com a outra agitavam elegantemente um grande leque que renovava as correntes de ar deslocadas pela punka do teto.
O banquete nada deixara a desejar, e seria impossível imaginar algo de mais delicado que aquela cozinha ao mesmo tempo douta e escrupulosa. O Bignon local, sabendo que trabalhava para entendedores, esmerara-se na confecção dos cento e cinqüenta pratos que compunham a lista do jantar.
No começo e como entradas figuravam doces, caviar, gafanhotos fritos, frutas secas e ostras de Ning-Po. Seguiram-se depois, a curtos intervalos, ovos escaldados de pata, de pomba e de pavoncino, ninhos de andorinha com ovos mexidos, guisados de ging-seng, guelras de esturjão em compota, nervos de baleia em molho açucarado, cadoses de água doce, caranguejos guisados, moelas de pardal e olhos de carneiro com um dente de alho, raviólis em leite de caroços de damasco, holotúrias à marinheira, rebentos de bambu em calda, salada de raízes com molho doce, etc. Ananases de Singapura, amendoim torrado, amêndoas salgadas, mangas saborosas, frutas do long-yen, de branca polpa, e do li-tchi de polpa amarelada, castanhas da Índia, laranjas de Cantão cristalizadas, constituíam a parte final de um banquete que já durava três horas, largamente regado a cerveja, champanha, vinho de Chao-Chigne, e de cuja sábia organização o inevitável arroz, levado à boca dos convivas com a ajuda dos pausinhos, ia ser o coroamento.
Chegou por fim a ocasião em que as gentis criadas trouxeram, não essas tigelinhas à moda européia contendo um líquido perfumado, mas guardanapos embebidos em água quente, que cada um dos convidados passa pelo rosto com a maior satisfação.
Mas isso era apenas um entreato do banquete, uma hora de folga que ia ser preenchida pela música.
Com efeito, um grupo de cantoras e músicos deu entrada na sala. As cantoras eram jovens, bonitas, de atitudes modestas e discretas. Mas que música e que métodos de cantar! Miados e cacarejos, sem medida e sem tonalidade, subindo em notas agudas até ao extremo limite de percepção dos órgãos auditivos. Os instrumentos, violinos cujas cordas se enredavam nos fios do arco, violões cobertos de pele de serpente, clarinetas esganiçadas, harmônicas parecendo pianinhos portáteis, eram dignos das canções e das cantoras, que eles acompanhavam com grande estardalhaço.
O regente da tumultuosa orquestra entregara ao entrar o programa do concerto, e a um gesto do anfitrião que lhe dera carta branca, os seus músicos romperam a tocar o Raminho de Dez Flores, peça então muito em moda e que fazia delirar a alta sociedade.
Em seguida o grupo cantante e executante, prévia e regiamente pago, retirou-se sob entusiásticos aplausos de que ia fazer ainda importante colheita nas salas vizinhas.
Os seis convivas deixaram então os seus lugares, mas só para passarem a outra mesa, o que fizeram depois de grandes vênias e cerimônias de toda a espécie.
Nesta segunda mesa cada qual encontrou uma pequena taça com tampa, adornada com o retrato de Bôdhidharama, o célebre monge budista, de pé na sua lendária jangada. Todos receberam assim uma pitada de chá que puseram de infusão, sem açúcar, na água a ferver que havia na taça, e que beberam quase imediatamente.
Que chá! Não havia receio de que a casa Gibb-Gibb & Cia., que o fornecera, o tivesse falsificado com a mistura indecorosa de folhas estrangeiras, ou que ele tivesse sofrido já uma primeira infusão e servisse apenas para proteger os tapetes da poeira das varreduras, ou que um preparador incompetente o tivesse tingido de amarelo com açafrão das Índias, ou de verde com o azul prussiano. Era o chá imperial em toda a sua pureza. Eram essas folhas preciosas semelhantes à própria flor, as folhas da primeira colheita do mês de março, que raramente se faz porque estiola a árvore, essas folhas, enfim, que apenas crianças de mãos cuidadosamente enluvadas têm o direito de colher.
Um europeu não encontraria interjeições suficientemente laudatórias para celebrar essa bebida que os seis convivas sorviam a pequenos goles e sem qualquer outra manifestação — conhecedores que eram e habituados como estavam a ela.
É que estes, devemos esclarecê-lo, já se não detinham a apreciar as delicadezas da excelente bebida. Pessoas da alta sociedade, envergando a rica han-chaol, uma leve camiseta, o ma-cual, uma breve túnica e a haol, comprida veste abotoada ao lado; tendo nos pés babuchas amarelas e meias acolchoadas, nas pernas calças de seda que um cinto de borlas sujeitava à cintura, e no peito o plastrão de seda finamente bordado, o leque à cinta, esses distintos personagens tinham nascido no mesmo país em que a árvore do chá oferece uma vez por ano a sua colheita de folhas odoríferas. Esse banquete em que figuravam ninhos de andorinhas, holotúrias, nervos de baleia, barbatanas de tubarão, tínhamos no saboreando como ele merecia pela delicadeza da sua confecção; mas o menu, que surpreenderia qualquer estrangeiro, não era coisa que os surpreendesse a eles.
O que, em todo o caso, ninguém esperava, foi a comunicação feita pelo anfitrião no momento em que iam por fim deixar a mesa. Ficaram então sabendo o motivo por que haviam sido convidados naquele dia.
As taças ainda estavam cheias. No instante de esvaziar a sua pela derradeira vez, o indiferente, recostando-se na mesa, com os olhos perdidos na distância, assim se exprimiu:
— Amigos, escutem-me mas com seriedade. A sorte está lançada. Vou introduzir na minha existência um elemento novo que talvez lhe quebre a monotonia. Farei bem? Farei mal? O futuro o dirá. Este jantar para que os convidei, é o jantar de despedida à minha vida de rapaz. Dentro de quinze dias estarei casado, e...
— E serás o mais feliz dos mortais! — exclamou o otimista. — Observa! Todos os prognósticos te são favoráveis!
Com efeito, enquanto as lanternas crepitavam lançando amortecidos clarões, as pegas chalravam por sobre os arabescos das janelas e as miúdas folhas de chá boiavam perpendicularmente nas chávenas. Tão felizes presságios não podiam iludir!
Todos se apressaram a felicitar o dono da casa, que recebeu os cumprimentos com a maior frieza. Mas como ele não nomeara a pessoa escolhida para desempenhar o papel de "elemento novo", nenhum deles teve a indiscrição de o interrogar a esse respeito.
O filósofo, contudo, abstivera-se de tomar parte no concerto geral das felicitações. Com os braços cruzados e os olhos semicerrados, um sorriso irônico nos lábios, não parecia aprovar as felicitações nem o felicitado.
Este ergueu-se então, poisou-lhe a mão no ombro, e num tom que se diria menos calmo do que era seu hábito, perguntou-lhe:
— Estarei porventura velho demais para me casar?
— Não.
— Novo demais?
— Também não.
— Achas que faço mal?
— Talvez!
— Aquela que escolhi, e que tu bem conheces, reúne todas as condições para me tornar feliz.
— Bem o sei.
— E então?
— Tu é que não possuis as condições para o ser! Aborrecer-se sozinha na vida é mau; mas aborrecer-se a dois é ainda pior!
— Não poderei então, jamais, ser feliz?
— Não, enquanto não tiveres conhecido a desventura.
— A desventura não pode alcançar-me!
— Tanto pior, porque então és incurável!
— Ah! Esses filósofos! — exclamou o mais novo dos convivas; — não lhes devemos dar ouvidos. São máquinas de teorias, fabricam-nas de todas as qualidades! Ninharias que para nada servem! Casa-te, casa-te, amigo! Eu faria a mesma coisa se não tivesse jurado não fazer coisa alguma! Casa-te, e como dizem os nossos poetas, que as duas fênix te apareçam sempre ternamente unidas! Meus amigos, bebo à felicidade do nosso anfitrião!
— E eu, — interveio o filósofo — bebo à próxima intervenção de alguma divindade protetora que, para o fazer feliz, o obrigue a passar pela prova da desgraça!
Àquele estranho brinde todos os convivas se ergueram, aproximando os punhos como fazem os jogadores de boxe no momento da luta; e depois de os terem sucessivamente baixado e erguido, com repetidas vênias se despediram uns dos outros.
Pela descrição da sala em que se realizou este banquete, pelas exóticas iguarias que o compunham, pelos trajes dos convivas, pelo modo de se exprimirem e talvez também pela singularidade das suas teorias, já o leitor adivinhou que se trata de chineses, não desses celestiais que parecem despregados de um biombo ou de algum fragmento de vaso da China, mas dos modernos habitantes do Celeste Império, já europeizados pelos estudos, pelas viagens, pela freqüente comunicação com os civilizados do Ocidente.
Com efeito, era na sala de um dos barcos-floridos do rio das Pérolas, em Cantão, que o rico Kin-Fo, acompanhado do inseparável Wang, o filósofo, acabara de convidar quatro dos melhores amigos da sua juventude, Pao-Shen, um mandarim de quarta classe de botão azul, Yin-Pang, rico negociante de sedas da rua dos Farmacêuticos, Tim, o incorrigível boêmio e Hual, o letrado. E passava-se isto no vigésimo sétimo dia da quarta lua, durante a primeira das cinco vigílias que tão poeticamente dividem as horas da noite chinesa.
ONDE KIN-FO E O FILÓSOFO WANG SÃO APRESENTADOS DE UM MODO MAIS COMPLETO
Kin-Fo oferecera esse jantar de despedida aos seus amigos de Cantão, porque nessa capital da província de Kuang-Tung passara uma parte da sua adolescência. Dos numerosos camaradas que em geral possui um moço rico e generoso, os quatro convidados do barco-florido eram os únicos que lhe restavam nessa época. Quanto aos outros, dispersos aos caprichos da sorte, em vão tentaria reuni-los.
Kin-Fo morava então em Shangai, e para iludir o seu tédio viera passeá-lo alguns dias em Cantão. Mas nessa mesma noite devia embarcar no navio que faz escala pelos pontos principais da costa e regressar tranqüilamente ao seu yamen.
Wang acompanhara King-Fo, porque jamais esse filósofo abandonava o seu discípulo, ou perdia uma oportunidade de lhe ministrar alguma lição, aliás pouco proveitosa. Máximas e sentenças eram lançadas ao vento, mas a máquina de teorias, — como dissera o boêmio Tim, — nunca se cansava de as produzir.
Kin-Fo era o tipo representativo dos chineses do norte, cuja raça tende a transformar-se e que jamais se ligou aos tártaros. Não se encontraria outro nas províncias do sul, onde as classes alta e baixa se misturaram intimamente à raça manchu, pois, tanto por seu pai como por sua mãe, cujas famílias desde a conquista se conservavam afastadas, não tinha nas veias uma única gota de sangue tártaro. Alto, bem proporcionado, mais branco do que amarelo, as sobrancelhas retas, os olhos horizontalmente rasgados e mal se elevando nas têmporas, o nariz direito, a face não achatada, seria notado mesmo entre os mais belos exemplares das populações do Ocidente.
Com efeito, Kin-Fo apenas se identificava como chinês pelo crânio escrupulosamente rapado, a testa e o pescoço sem um pêlo, e o magnífico rabicho que do alto da cabeça lhe pendia sobre as costas como uma serpente de azeviche. Extremamente cuidadoso com a sua pessoa, usava um fino bigode que se lhe arqueava sobre o lábio superior, o qual, com a mosca recortada sob o inferior, sugeria perfeitamente o caldeirão da escrita musical. As unhas cresciam-lhe mais de um centímetro além dos dedos, prova de que ele pertencia à classe de gente rica que pode viver sem fazer nada. A indolência no andar e a altivez do porte também contribuíam bastante para esse ar de perfeita distinção que irradiava.
Além disso Kin-Fo nascera em Pequim, circunstância que muito envaidece os chineses. A quem o interrogasse, poderia responder orgulhosamente: "Sou Lá-de-Cima!"
Seu pai, Tchung-Héu, morava realmente em Pequim por ocasião do seu nascimento, e já o filho contava seis anos quando ele se veio fixar definitivamente em Shangai.
Esse digno chinês, oriundo de uma excelente família do norte do império, possuía, como os seus compatriotas, notáveis aptidões para o comércio. Durante os primeiros anos da sua carreira, tudo o que produz esse rico território tão povoado — papéis de Swatow, sedas de Su-Tchéu, açúcar-cande de Formosa, chás de Hankow e de Foochow, ferro do Honan, cobre vermelho ou amarelo da província de Yunan, — tudo foi para ele matéria de especulação e negócio. A matriz da sua casa era em Shangai, mas ele tinha filiais em Nanquim, Tien-Tsin, Macau e Hong-Kong. Muito relacionado com o comércio europeu, os navios ingleses transportavam-lhe as mercadorias, e o cabo submarino dava-lhe as cotações das sedas em Lyon e do ópio em Calcutá. Não era refratário a nenhum desses novos agentes do progresso, o vapor e a eletricidade, como sucede à maioria dos chineses que vivem sob a influência dos mandarins e do governo, a quem o progresso pouco a pouco vai diminuindo o prestígio.
Enfim, Tchung-Héu orientou tão sabiamente o seu comércio, tanto no interior do império como nas suas transações com as firmas portuguesas, francesas, inglesas ou americanas de Shangai, Macau e Hong-Kong, que quando Kin-Fo veio ao mundo a sua fortuna já ultrapassava quatrocentos mil dólares.
Nos anos que se seguiram esse capital ainda se multiplicou, graças à criação de um novo tráfico que se poderia chamar a remessa de cooltes para o Novo Mundo.
Sabe-se, com efeito, que a população da China é excessiva e desproporcionada com a extensão desse vasto território, diversamente e poeticamente chamado o Celeste Império, o Império do Meio, Império ou Terra das Flores. Calculam-na pelo menos em trezentos milhões de habitantes, o que equivale a um terço da população de toda a terra. Ora, por pouco que coma o chinês pobre, sempre come, e a China, mesmo com os seus numerosos arrozais, as imensas lavouras de milho e de trigo, não consegue bastar-se a si mesma. Daí um excedente procurando escapar por todos os meios através das brechas que os canhões ingleses e franceses abriram nas muralhas materiais e morais do Celeste Império.
É para a América do Norte e especialmente para o Estado da Califórnia que transborda esse excedente, e com tamanha impetuosidade que o Congresso resolveu tomar medidas restritivas contra a invasão, tão indelicadamente chamada a peste amarela. Como alguém observou, cinqüenta milhões de chineses que emigrassem para os Estados Unidos pouco enfraqueceriam a China, constituindo por outro lado a absorção da raça anglo-saxônia em benefício da raça mongólica.
De qualquer modo, porém, o êxodo verificou-se em vasta escala. Esses cooltes, que vivem facilmente de um punhado de arroz, uma chávena de chá e uma cachimbada, alastraram de repente o Lago Salgado, a Virgínia, no Oregon, e sobretudo o Estado da Califórnia, onde provocaram uma baixa considerável nos preços da mão-de-obra.
Organizaram-se então companhias para o transporte desses emigrantes tão baratos. Havia cinco operando o engajamento em cinco províncias do Celeste Império, e uma sexta com sede em São Francisco. Aquelas expediam e esta recebia a mercadoria. Uma agência anexa, a de Ting-Tong, cuidava da reexportação.
Isto reclama um esclarecimento.
Os chineses desejam expatriar-se e tentar fortuna entre os melicanos — que é como eles designam a população dos Estados Unidos, — com a condição, porém, de que seus cadáveres serão fielmente reconduzidos à terra natal e aí sepultados. Esta é uma das principais cláusulas do contrato, condição sine qua non, a que as companhias se obrigam e que de nenhum modo poderão iludir.
Assim, a Ting-Tong, também chamada a Agência dos Mortos, dispondo de fundos particulares, encarrega-se de fretar os navios para cadáveres, que regressam abarrotados de São Francisco para Shangai, Hong-Kong ou Tien-Tsin. Comércio novo, nova fonte de lucros. O hábil e empreendedor Tchung-Héu bem o percebeu, e por ocasião da sua morte, em 1866, era diretor da Companhia de Kuang-Than, na província desse nome, e subdiretor da Caixa de Fundos dos Mortos, em São Francisco.
Nesse dia Kin-Fo, órfão de pai e mãe, herdava uma fortuna avaliada em quatro milhões de francos, em ações do Banco Central da Califórnia que ele teve o bom senso de conservar.
Na ocasião em que perdeu o pai, com dezenove anos de idade, o jovem herdeiro encontrar-se-ia sozinho se não tivesse Wang, o inseparável Wang, para lhe servir de mentor e amigo.
Quem era, porém, este Wang? Desde os dezessete anos vivia no yamen de Shangai, onde fora comensal do pai antes de o ser do filho. Mas de onde vinha ele? Que passado era o seu? A estas obscuras perguntas só Tchung-Héu e Kin-Fo poderiam responder.
E se entendessem de o fazer — coisa pouco provável, — eis o que se teria sabido:
Ninguém ignora que a China é, por excelência, o país onde as insurreições podem durar muitos anos e sublevar centenas de milhares de homens. Ora, no século dezessete a célebre dinastia dos Ming, de origem chinesa, reinava havia trezentos anos na China, quando em 1644 o chefe dessa dinastia, sentindo-se muito fraco contra os rebeldes que ameaçavam a capital, pediu socorro a um rei tártaro.
O rei não se fez rogar, correu imediatamente, repeliu os insurretos, e aproveitou-se da situação para destronar aquele em cuja ajuda viera, proclamando imperador seu próprio filho Chun-Tché.
A partir de então a autoridade tártara substituiu a autoridade chinesa, e o trono foi ocupado por imperadores manchus.
Pouco a pouco, sobretudo nas classes inferiores da população, as duas raças se confundiram, mas nas famílias ricas do norte a separação entre chineses e tártaros manteve-se mais estritamente. Essa circunstância pode ser observada especialmente nas províncias setentrionais do Império, onde se isolaram os irredutíveis, fiéis à dinastia deposta.
O pai de Kin-Fo era destes últimos, não desmentindo as tradições de sua família, que recusara pactuar com os tártaros. Uma revolta contra a dominação estrangeira, mesmo após trezentos anos de governo, encontrá-lo-ia pronto para agir.
É ocioso acrescentar que seu filho Kin-Fo partilhava absolutamente as suas opiniões políticas.
Em 1860 reinava ainda o imperador S'Hiene-Fong, que declarou guerra à Inglaterra e à França — guerra que terminou pelo tratado de Pequim de 25 de outubro do mesmo ano.
Mas antes dessa época já uma formidável revolução ameaçava a dinastia reinante. Os Tchang-Mao ou Tai-ping, os rebeldes de cabelos compridos, tinham-se apoderado de Nanquim em 1853 e de Shangai em 1855. Morto S'Hiene-Fong, seu jovem filho viu-se em grandes dificuldades para repelir os Tai-ping. Sem a ajuda do vice-rei Li, do príncipe Kong e sobretudo do coronel inglês Gordon, talvez ele não conseguisse salvar o trono.
Os Tai-ping, inimigos declarados dos tártaros, fortemente organizados para a revolução, queriam substituir a dinastia dos Tsing pela dos Wang. Tinham-se dividido em quatro grupos diferentes: o primeiro, de pendão negro, encarregado de matar; o segundo, de pendão vermelho, encarregado de incendiar; o terceiro, de pendão amarelo, encarregado de pilhar, e o quarto, de pendão branco, encarregado de abastecer os outros três.
Verificaram-se importantes operações militares no Kiang-Su. Su-Tchéu e Kia-Hing, a cinco léguas de Shangai, caíram em poder dos revoltosos, e só com grandes dificuldades foram retomadas pelas tropas imperiais. Shangai, bastante ameaçada, foi mesmo alvo de um ataque em 18 de agosto de 1860, quando os generais Grante Montauban, comandantes do exército anglo-francês, bombardeavam os fortes de Péi-Ho.
Nessa época, Tchung-Héu, pai de Kin-Fo, morava perto de Shangai, não longe da magnífica ponte que os engenheiros chineses haviam construído sobre o rio Su-Tchéu, e não se poderia dizer que ele desaprovava a rebelião dos Tai-Ping, visto que ela se dirigia principalmente contra a dinastia tártara.
Sucedeu pois que na noite de 18 de agosto, tendo os rebeldes sido repelidos para fora de Shangai, a porta da morada de Tchung-Héu se abriu de repente.
Um fugitivo que conseguira despistar os seus perseguidores veio cair aos pés de Tchung-Héu. O desgraçado não tinha qualquer arma para se defender. Se esse a quem ele vinha pedir asilo o entregasse à soldadesca imperial, estava perdido.
Mas o pai de Kin-Fo não era homem para trair um Tai-Ping que buscava refúgio em sua casa. Fechou a porta e disse:
— Não sei, nem quero saber quem és, o que fazes e de onde vens! És meu hóspede, e por esse motivo estarás seguro em minha casa.
O fugitivo quis falar para exprimir o seu reconhecimento... mas quase lhe não restavam forças.
— Como de chamas? — perguntou-lhe Tchung-Héu.
— Wang.
Era realmente Wang, salvo pela generosidade de Tchung-Héu — generosidade que lhe custaria a vida se alguém suspeitasse que ele dava asilo a um rebelde. Mas Tchung-Héu era desses homens antigos para os quais um hóspede é coisa sagrada.
Alguns anos depois a sublevação foi completamente reprimida. Em 1864 o imperador Tai-Ping, sitiado em Nanquim envenenava-se para não cair nas mãos dos Imperiais.
Desde esse dia Wang permaneceu em casa de seu benfeitor. Nunca o interrogaram a respeito do seu passado, talvez com receio de ficarem sabendo demais. Dizia-se que as atrocidades cometidas pelos revoltosos tinham sido espantosas. Sob que pendão servira Wang? O amarelo, o vermelho, o preto ou o branco? Era preferível ignorá-lo, conservar a ilusão de que ele pertencera à coluna de abastecimentos.
Wang, aliás encantado com a sua sorte, ficou sendo hóspede daquela casa acolhedora. Após a morte de Tchung-Héu, o filho estava de tal modo afeito à presença desse amável companheiro que não consentiu em separar-se dele.
Mas na verdade, ao tempo em que começa esta história, quem jamais teria reconhecido um Tai-Ping, um massacrador, um salteador ou um incendiário — conforme quisesse, — naquele filósofo de cinqüenta e cinco anos, nesse moralista de óculos, puríssimo chinês de olhos obliquados para as têmporas, o bigode tradicional? Com a sua comprida veste de cor discreta, um começo de obesidade dando-lhe certa proeminência ao ventre, usando de acordo com o decreto imperial um chapéu felpudo de abas levantadas de onde pendiam borlas de fio vermelho, tinha o ar de um correto professor de filosofia, de um desses sábios que usam correntemente os oitenta mil caracteres da escrita chinesa, de um letrado do dialeto superior, de um primeiro laureado no exame dos doutores, com direito a passar sob a grande porta de Pequim, reservada ao Filho do Céu.
É possível que, esquecendo um passado cheio de horrores o rebelde se tivesse beneficiado do contacto com o honesto Tchung-Héu, deslizando suavemente para o caminho da filosofia especulativa, e eis porque nessa tarde Kin-Fo e Wang, que jamais se separavam, encontrando-se juntos em Cantão, após o jantar de despedida, se encaminhavam ambos para o cais em busca do navio que os devia levar rapidamente a Shangai.
Kin-Fo caminhava em silêncio, parecendo um tanto preocupado. Wang, olhando à direita e à esquerda, filosofando sobre a lua e as estrelas, passava sorrindo por baixo da porta da Eterna Pureza, que lhe não parecia demasiado alta para a sua estatura, sob a porta da Eterna Alegria, cujos batentes se lhe afiguravam abertos para a sua própria existência, vendo enfim perderem-se na sombra as torres do pagode das Quinhentas Divindades.
O navio Perma lá estava, de caldeiras acesas, e Kin-Fo e Wang instalaram-se nas duas cabinas previamente reservadas. A rápida corrente do rio das Pérolas, que diariamente arrasta misturados ao lodo das margens os corpos dos supliciados, imprimiu à embarcação uma grande velocidade. O barco passou como uma flecha entre as ruínas deixadas aqui e ali pelos canhões franceses, diante do pagode de nove andares de Haf-Way, pela ponta Jardyne, perto de Whampoa, onde ancoram os navios de grande calado, entre as ilhotas e paliçadas de bambus de ambas as margens.
Os cento e cinqüenta quilômetros, isto é os trezentos e setenta e cinco lis que separam Cantão da embocadura do rio, foram percorridos durante a noite.
Ao nascer do sol, o Perma ultrapassava a Goela do Tigre e em seguida as duas barras do estuário. O Victoria-Peak da ilha de Hong-Kong, de mil oitocentos e vinte e cinco pés de altura, surgiu um momento na bruma da manhã, e após a mais feliz das travessias, Kin-Fo e o filósofo, cortando as águas amareladas do rio Azul desembarcavam em Shangai, no litoral da província de Kiang-Nan.
EM QUE O LEITOR PODERÁ, SEM FADIGA, LANÇAR UM GOLPE DE VISTA SOBRE A CIDADE DE SHANGAI
Diz um provérbio chinês:
"Quando os sabres estão enferrujados e as enxadas polidas;
"Quando as cadeias estão vazias e os celeiros cheios;
"Quando os degraus dos templos se gastam pelo pisar dos fiéis e os pátios dos tribunais se cobrem de erva;
"Quando os médicos andam a pé e os padeiros a cavalo,
"O Império é bem governado".
O provérbio é bom, e poderia aplicar-se com justeza a todas as nações do antigo e do novo mundo. Mas se alguma nação existe onde esse desideratum está ainda longe de se realizar, é precisamente o Celeste Império. Lá justamente reluzem os sabres e as enxadas enferrujam, as prisões regurgitam e os celeiros esvaziam-se. Os padeiros têm menos que fazer que os médicos, e se os pagodes atraem os fiéis, os tribunais em compensação abundam em réus e queixosos.
Aliás, um reino medindo cento e oitenta mil milhas quadradas, que de norte a sul tem mais de oitocentas léguas, e de leste a oeste mais de novecentas, que conta dezoito vastas províncias sem falar dos países tributários, a Mongólia, a Manchúria, o Tibé, o Tonquim, a Coréia, as ilhas Liu-Tchu, etc, só muito imperfeitamente pode ser administrado. Se os chineses conservam algumas dúvidas a respeito, os estrangeiros não têm sobre isso a menor ilusão. Só talvez o imperador, fechado no seu palácio cujas portas raramente transpõe, à sombra das muralhas de uma tripla cidade, só esse Filho do Céu, pai e mãe dos seus súditos, fazendo e desfazendo as leis conforme lhe apraz, tendo sobre todos o direito de vida e morte, e ao qual pertencem, por nascimento, as rendas do Império, só esse soberano perante quem as frontes se rojam na poeira — só ele pensa que tudo corre do melhor modo no melhor dos mundos. Nem valeria a pena tentar provar-lhe que ele está enganado; um Filho do Céu nunca se engana.
Teria Kin-Fo algumas razões para admitir que mais vale ser governado à européia do que à chinesa? Parece que sim, pois não residia propriamente em Shangai, mas fora da cidade, em certo ponto da concessão inglesa, que se mantém numa espécie de autonomia muito apreciada.
A cidade propriamente de Shangai está situada na margem esquerda do pequeno rio Huang-Pu que, unindo-se em ângulo reto com o Wusung, se vai lançar no Yang-The-Kiang ou rio Azul, daí se perdendo no mar Amarelo.
Tem a forma oval estendida de norte para sul, cercada de altas muralhas, cortada por cinco portas que abrem para os arrabaldes. Rede inextrincável de ruelas empedradas, em cuja limpeza se estragariam as varredoras mecânicas; lojas sombrias sem fachadas nem vitrinas, onde se movem indivíduos nus até à cintura; nenhuma carruagem, nenhum palanquim, apenas gente a cavalo; alguns templos indígenas ou capelas estrangeiras; por únicos passeios um jardim-chá e um campo de paradas bastante lamacento, aberto num aterro onde houvera antigos arrozais e sujeito a emanações paludosas; através dessas ruas, dentro dessas casas mesquinhas, uma população de duzentos mil habitantes — tal é essa cidade pouco invejável para se viver, mas que nem por isso, deixa de ter uma grande importância comercial.
Foi lá, com efeito, após o tratado de Nanquim, que os estrangeiros tiveram pela primeira vez o direito de abrir escritórios; foi, na China, a grande porta aberta ao comércio europeu; e também fora de Shangai e dos seus arrabaldes o governo concedeu, mediante uma renda anual, três porções de território aos franceses, ingleses e americanos, que são aproximadamente em número de dois mil.
Da concessão francesa pouco se tem a dizer. É a menos importante. Confina quase com a muralha norte da cidade e estende-se até à ribeira de Yang-King-Pang, que a separa da concessão inglesa. Aí se erguem as igrejas dos Lazaristas e dos Jesuítas, que também possuem, a quatro milhas de Shangai, o colégio de Tsikave, onde formam bacharéis chineses. Mas essa pequena colônia francesa não tem de modo algum a importância das vizinhas. Dentre as dez casas comerciais fundadas em 1861, apenas restam três, e o próprio Banco de Descontos preferiu mudar-se para a concessão inglesa. O território americano ocupa a parte em redor do Wusung, estando separado do inglês pelo Su-Tcheu-Creek, sobre o qual há uma ponte de madeira. Lá estão o hotel Astor e a igreja das Missões, bem como as docas instaladas para a reparação dos navios europeus.
Contudo, das três concessões, a mais florescente é sem dúvida alguma a concessão inglesa. Moradas suntuosas dando para o cais, casas com varandas e jardins, palácios dos ricaços do comércio, o Banco Oriental, o hong da célebre casa Dent com a sua razão social de Lao-Tchi-Tchang, as filiais dos Jardyne, dos Russel e de outros grandes negociantes, o clube inglês, o teatro, o jogo de pela, o parque, o campo de corridas, a biblioteca — eis o conjunto dessa esplêndida criação dos anglo-saxões, que com toda a justiça mereceu o nome de colônia modelo.
Nesse privilegiado território, sob o patrocínio de uma administração liberal, encontra-se como muito bem disse o senhor Léon Rousset, "uma cidade chinesa de tipo especial e que não tem similar em parte alguma".
Assim, pois, ao chegar àquele exíguo canto de terra, o estrangeiro que vem pelo caminho pitoresco do rio Azul, vê quatro bandeiras flutuando ao sopro da mesma brisa, a tricolor francesa e o yctcht do Reino Unido, as estrelas americanas e a cruz de Santo André, amarela sobre fundo verde, do Império das Flores.
Os arredores de Shangai, vasta planície sem uma árvore cortada de estreitos caminhos empedrados e de atalhos em ângulo reto, pontilhada de cisternas e de regatos que fornecem água a imensos arrozais, sulcada de canais onde vogam os juncos à maneira das chatas que atravessam os campos da Holanda, dir-se-iam uma espécie de imenso painel muito verde ao qual faltasse a moldura.
O Perma, ao chegar, atracara ao cais indígena, em frente ao bairro leste da cidade, onde Wang e Kin-Fo desembarcaram à tarde.
A animação no cais era enorme e o movimento do rio indescritível. Juncos às centenas, casas flutuantes, sampanas, espécie de gôndolas conduzidas à ginga, as canoas e outras embarcações de todos os tamanhos formavam como uma cidade flutuante, onde vivia uma população marítima nunca inferior a quarenta mil almas — gente mantida em situação inferior e cuja parte mais abastada não pode elevar-se até à classe dos letrados ou dos mandarins.
Os dois amigos saíram a passear pelo cais, entre a multidão heteróclita de mercadores de toda a espécie, vendedores de amendoim, de laranjas, de nozes de areca ou de pamplemussa; marinheiros de todas as nações, aguadeiros, ledores da buena-dicha, bonzos, lamas, padres católicos vestidos à chinesa com rabicho e leque, soldados indígenas, tipaos, polícias locais, e compradores, espécie de corretores dos negociantes europeus.
Kin-Fo, com o seu leque na mão percorria a turba com o olhar indiferente, completamente desinteressado do que em redor dele se passava. Nem o som metálico das piastras mexicanas, nem o dos taéis de prata, nem o das sapecas de cobre que vendedores e fregueses trocavam entre si com ruído conseguiam atraí-lo. Ele poderia comprar, pagando à vista, o bairro inteiro. Quanto a Wang, abrira o seu vasto guarda-sol amarelo, com monstros negros pintados, e sempre orientado como deve ser um chinês de raça, buscava por toda a parte alguma coisa para observar.
Ao passar diante da porta Leste, cravou os olhos, por acaso, numa dúzia de gaiolas de bambu ostentando esgazeadas cabeças de criminosos executados na véspera.
— Talvez houvesse coisa melhor a fazer do que decepar cabeças — disse ele. — Procurar torná-las mais sólidas!
Kin-Fo não ouviu decerto a reflexão de Wang, que o teria surpreendido provinda de um antigo Tai-ping.
Ambos prosseguiram pelo cais, contornando os muros da cidade chinesa. Na extremidade do arrabalde, no instante em que iam penetrar na concessão francesa, avistaram um indígena envergando uma longa túnica azul, que atraía a multidão ferindo estridentemente com um bastão um chifre de búfalo.
— Um sien-cheng — observou o filósofo.
— Que temos nós com isso? — respondeu Kin-Fo.
— Amigo — replicou Wang, — pede-lhe que te leia a sorte. É uma coisa oportuna, agora que vais casar!
Kin-Fo ia prosseguir a marcha, mas Wang deteve-o.
O sien-cheng é uma espécie de profeta popular que, por algumas sapecas, se ocupa a adivinhar o futuro. Como utensílios profissionais dispõe apenas de uma gaiola com um passarinho, presa a um dos botões da sua túnica, e um baralho de sessenta e quatro cartas com figuras de deuses, homens e animais. Os chineses de todas as categorias, geralmente supersticiosos, nunca desdenham as predições do sien-cheng — que talvez seja o único a não as tomar a sério.
A um sinal de Wang o sien-cheng estendeu no chão um tapete de algodão, pôs-lhe a gaiola em cima, puxou o seu baralho de cartas, misturou-as bem e foi-as dispondo sobre o tapete com as figuras voltadas para baixo.
Em seguida abriu a porta da gaiola, o passarinho saiu, escolheu uma das cartas e tornou a entrar, depois de ter recebido um grão de arroz como recompensa.
O sien-cheng virou a carta, que tinha uma figura de homem e uma frase escrita em kunan-runa, a língua mandarina do norte, língua oficial só usada pelas pessoas instruídas.
Então, dirigindo-se a King-Fo o leitor da buena-ãicha vaticinou-lhe o que os seus confrades de todos os países invariavelmente vaticinam sem se comprometer, isto é, que após um desgosto próximo gozaria dez mil anos de felicidade.
— Bem, que me suceda ao menos uma desgraça e ficarei satisfeito!
Em seguida atirou ao profeta um tael de prata, sobre o qual este se precipitou como um cão faminto se atira a um osso. Gorjetas daquelas não eram comuns.
Wang e o seu discípulo encaminharam-se depois para a concessão francesa, o primeiro meditando a predição que tão bem concordava com as suas teorias acerca da felicidade, o segundo inteiramente convencido de que nenhuma desgraça o poderia atingir.
Passaram diante do consulado de França, subiram até à pequena ponte lançada sobre Yang-King-Pang, atravessaram a ribeira, enviesaram através do território inglês de modo a alcançarem o cais do porto europeu.
Estava dando meio-dia. O movimento, bastante intenso durante a manhã, cessou como por encanto. O dia comercial estava por assim dizer terminado, e a calma ia suceder à agitação mesmo na cidade inglesa, que neste particular se achinesara.
Iam entrando no porto alguns navios estrangeiros, a maioria dos quais hasteando o pavilhão do Reino-Unido. Nove sobre dez, na certa, vinham carregados de ópio. Essa embrutecedora substância, esse veneno com que a Inglaterra inunda a China, representa um volume de negócios superior a duzentos e sessenta milhões de francos, dando um lucro de trezentos por cento. Debalde o governo chinês tem querido impedir a importação de ópio no Celeste Império. A guerra de 1841 e o tratado de Nanquim deram livre entrada à mercadoria inglesa e ganho de causa aos nababos do comércio. Deve-se aliás acrescentar que, se o governo de Pequim chegou até a decretar a pena de morte para todo o chinês que vendesse ópio, sempre é possível chegar a um acordo, mediante propinas, com os depositários da autoridade. Acredita-se mesmo que o mandarim governador de Shangai embolsa um milhão por ano, só com fazer vista grossa sobre as manobras dos seus administrados.
Escusado é dizer que nem Wang nem Kin-Fo se davam ao detestável vício de fumar ópio, que destrói todos os tecidos do organismo levando rapidamente à morte. E jamais uma onça de tal substância entrara na rica vivenda onde os dois amigos chegaram uma hora após o desembarque no cais de Shangai.
Wang — o que era ainda para admirar da parte de um Tai-Ping, — não pudera conter esta observação:
— Talvez houvesse coisa melhor a fazer do que importar o embrutecimento para todo um povo! O comércio é bom, mas a filosofia é melhor! Sejamos filósofos! Antes de mais nada sejamos filósofos!
EM QUE KIN-FO RECEBE, COM OITO DIAS DE ATRASO, UMA IMPORTANTE CARTA.
O yamen é um conjunto de construções variadas, paralelamente dispostas, que uma linha de quiosques e pavilhões corta em perpendicular. Geralmente o yamen serve de habitação aos mandarins da classe elevada, e pertence ao imperador; mas os ricos celestiais também podem possuir o seu yamen, e era num desses suntuosos palácios que morava o opulento Kin-Fo.
Wang e o seu discípulo detiveram-se à porta principal, aberta na vasta muralha que cercava as diversas construções do yamen, seus jardins e seus pátios.
Se, em vez da vivenda de um simples particular se tratasse da de um magistrado mandarim, haveria em destaque um grande tambor sob o alpendre recortado e pintalgado da porta, onde iriam bater noite e dia os seus administrados "para reclamar justiça. Mas em vez desse "tambor das queixas", enormes jarras de porcelana adornavam a entrada do yamen, contendo chá frio, incessantemente renovado graças aos cuidados do intendente. Estas jarras estavam à disposição dos transeuntes, generosidade que muito honrava Kin-Fo, tornando-o bem visto, como é costume dizer, "dos seus vizinhos de Este e do Oeste".
À chegada do senhor, toda a famulagem correu à porta para o receber. Criados de quarto, lacaios, porteiros, portadores de liteiras, palafreneiros, cocheiros, serventes, vigilantes noturnos, cozinheiros, toda essa multidão que compõe a criadagem chinesa se perfilou às ordens do intendente. Uma dezena de coolies, tomados ao mês para os serviços mais rudes, mantinha-se um pouco atrás.
O mordomo desejou as boas-vindas ao dono da casa, que fez apenas um leve aceno com a mão, perguntando:
— E Sun?
— Sun! — respondeu Wang sorrindo. — Se ele aqui estivesse não seria Sun!
— Onde está Sun? — insistiu Kin-Fo.
O mordomo teve de confessar que nem ele nem ninguém sabia o que fora feito de Sun.
Acontece que Sun era nada menos que o primeiro criado de quarto, especialmente destinado ao serviço de Kin-Fo, e sem o qual este de nenhum modo podia passar.
Era então um criado modelo? Absolutamente não. Seria impossível encontrar quem fizesse pior as suas obrigações. Descuidado, incoerente, desastrado nas mãos e na língua, extremamente guloso, levemente polirão — um verdadeiro chinês de biombo, — mas de uma fidelidade canina e o único homem capaz de impressionar o amo.
Kin-Fo tinha motivos para se zangar com ele vinte vezes ao dia, e se só o castigava dez era devido à sua costumeira indulgência e ao desejo de não querer irritar a bílis. Como se vê, um criado higiênico.
Aliás o excelente Sun, como sucede com a maioria dos criados chineses, e foi o primeiro a oferecer-se ao castigo toda a vez que julgava merecê-lo. E o amo não o poupava. Chovessem-lhe as bengaladas nas costas, isso pouco se lhe dava. Aquilo a que se mostrava infinitamente mais sensível era aos sucessivos cortes que Kin-Fo lhe praticava no rabicho, quando se tratava de alguma falta grave.
Ninguém ignora a importância que o chinês atribui a esse curioso apêndice. A perda do rabicho é o primeiro castigo que se aplica aos criminosos, é uma desonra para toda a vida! Por isso, o que mais temia o desgraçado Sun, era ser condenado a perder alguma parte dele. Quatro anos antes, quando entrara ao serviço de Kin-Fo, o seu rabicho — um dos mais belos do Celeste Império, — media um metro e vinte e cinco centímetros, e nesse momento já apenas lhe restavam cinqüenta e sete centímetros. Por esse andar, dentro de dois anos Sun estaria inteiramente calvo.
Entretanto, Wang e Kin-Fo respeitosamente seguidos pelo pessoal da casa, atravessaram o jardim, cujas árvores, na maioria plantadas em vasos de barro, e podadas de um modo surpreendente mas deplorável, afetavam linhas de animais fabulosos. Em seguida contornaram o lago, povoado de gouramis e de peixes vermelhos, cuja água límpida desaparecia sob as largas flores vermelho-pálidas do nelumbo, o mais belo dos nenufares, originário do Império Florido. Curvaram-se diante de um hieroglífico quadrúpede pintado em cores vivas num muro especialmente adequado, como um afresco simbólico, e chegaram por fim à porta do principal edifício do yamen.
Era uma vivenda composta de andar térreo e pavimento superior, erguida num terraço ao qual davam acesso seis degraus de mármore. Diante das portas e janelas havia gradis de bambus dispostos à maneira de guarda-ventos, destinados a tornar suportável a temperatura já excessiva, e para favorecer a ventilação interior. O teto raso contrastava com as fantasiosas cumeeiras dos outros pavilhões do yamen, cujas ameias, telhados multicores e tijolos recortados em finos arabescos, afagavam o olhar.
Lá dentro, com exceção dos quartos especialmente reservados a Wang e a Kin-Fo, tudo eram salões rodeados de gabinetes de divisões transparentes, com grinaldas de flores pintadas ou molduras com frases de sentido moral em que os chineses são férteis. Por toda a parte assentos de formas singulares, em barro ou porcelana, madeira ou mármore, sem esquecer dezenas de almofadas de atraente macieza; por toda a parte lâmpadas ou lanternas de formas variadas, de vidros de cores esbatidas, e mais enfeitadas de borlas, franjas e berloques do que uma mula espanhola; por toda a parte ainda essas pequenas mesas de chá denominadas tcha-ki, complemento indispensável do mobiliário chinês. Levar-se-iam horas, talvez não perdidas, para contar os objetos de marfim e madrepérola, os bronzes incrustados, os perfumadores, as laças filigranadas de ouro em relevo, os jades leitosos e verde-esmeralda, os vasos redondos ou prismáticos da dinastia dos Ming e dos Tsing, as porcelanas mais raras ainda da dinastia dos Yen, os esmaltes de motivos, cor-de-rosa e amarelo translúcido, cujo segredo está hoje desaparecido. Essa luxuosa morada oferecia toda a fantasia chinesa aliada ao conforto europeu.
Com efeito, Kin-Fo — como já o dissemos e seus gostos o provam, — era um homem de progresso. Nenhuma nova invenção dos ocidentais o encontrava refratária à sua aquisição. Pertencia ao número desses Filhos do Céu, ainda bastante raros, seduzidos pelas ciências físicas e químicas, e não era desses bárbaros que cortaram os primeiros fios elétricos que a casa Reynolds quis estender até Wusung, com o fim de tomar conhecimento mais rápido da chegada das malas inglesas e americanas, nem desses mandarins atrasados que, para evitar que o cabo submarino de Shangai a Hong-Kong tocasse em qualquer ponto do território, obrigaram os engenheiros a fixá-lo num barco flutuando em pleno rio.
Não! Kin-Fo fazia coro com os seus compatriotas que aplaudiam o governo por ter fundado os arsenais e estaleiros de Fu-Chao sob a direção de engenheiros franceses. Levado por um interesse meramente nacional comprara ações da companhia chinesa de navegação que faz o serviço entre Tien-Tsin e Shangai, e tinha interesses nos navios de grande velocidade que desde Singapura se adiantam três ou quatro dias à mala inglesa.
Dissemos que o progresso material penetrara em sua residência, e com efeito aparelhos telefônicos punham em comunicação os diversos pavilhões do seu yamen, campainhas elétricas ligavam os quartos que habitava, e durante a estação fria mandava acender fogo e aquecia-se sem constrangimento, mais sensato do que os seus concidadãos que tiritam diante da lareira apagada sob quatro ou cinco camadas de roupa. Dispunha de iluminação a gás como o inspetor geral das alfândegas de Pequim, ou como o riquíssimo senhor Yang, principal concessionário dos montepios do Império do Meio, e enfim, desdenhando o uso antiquado da escrita em sua correspondência íntima, o progressista Kin-Fo — como em seguida veremos, — adotara o fonógrafo, ultimamente elevado por Edison ao derradeiro grau de perfeição.
Deste modo, o discípulo do filósofo Wang tinha, tanto na parte material como na parte moral da sua vida, tudo quanto necessitava para ser feliz. E contudo não o era! Possuía Sun para lhe quebrar a apatia cotidiana, mas o próprio Sun se revelava incapaz de lhe dar a felicidade!
É verdade que, ao menos pelo momento, Sun que nunca estava onde devia estar, ainda não tinha aparecido! Devia sem dúvida considerar-se culpado de alguma falta grave, alguma grossa tolice praticada na ausência do amo; e como não receava pelas costelas, já habituadas à chibata doméstica, é de crer que temia principalmente pelo rabicho.
— Sun! — gritara Kin-Fo ao entrar no vestíbulo, para onde abriam os salões da direita e da esquerda, num tom de voz revelando mal contida impaciência.
— Sun! — repetira Wang, cujas repreensões e bons conselhos pouco efeito causavam no incorrigível criado.
— Procurem Sun e tragam-no aqui! — disse Kin-Fo ao mordomo que determinou uma busca geral do desaparecido.
Wang e Kin-Fo ficaram sozinhos.
— A sabedoria — comentou então o filósofo, — recomenda, ao viajante que regressa ao lar, um pouco de repouso.
— Pois sejamos sábios! — respondeu simplesmente o discípulo de Wang.
E tendo apertado a mão do filósofo retirou-se para os seus aposentos, enquanto Wang fazia outro tanto.
Kin-Fo, uma vez sozinho, estirou-se num desses macios divãs de fabricação européia, cujos confortáveis estofos jamais um tapeceiro chinês saberia dispor, e ali se quedou meditando. No seu enlace com a linda e gentil mulher que ia tornar-se a companheira da sua vida? Talvez; e não é coisa de admirar, pois estava nas vésperas de se ir reunir a ela. Com efeito, a graciosa criatura não morava em Shangai, vivia em Pequim, e Kin-Fo achou conveniente participar-lhe, ao mesmo tempo que o seu regresso a Shangai, a sua próxima chegada à capital do Celeste Império. Ainda que desse modo manifestasse um certo desejo, uma certa impaciência de a tornar a ver, isso não pareceria descabido. Sem dúvida experimentava por ela uma verdadeira afeição! Wang perfeitamente lho demonstrara de acordo com as mais indiscutíveis regras da lógica, e esse elemento novo introduzido em sua existência poderia talvez desvendar-lhe a incógnita... isto é, a felicidade... que... por meio da qual...
Kin-Fo divagava já de olhos fechados, e teria plàcidamente adormecido se não sentisse na mão direita uma espécie de cócega.
Instintivamente os seus dedos apertaram-se segurando um corpo cilíndrico levemente nodoso, de razoável grossura, que por certo estavam habituados a manejar.
Não podia haver engano: era a chibata que lhe estavam introduzindo na mão, ao mesmo tempo que se fizeram ouvir estas palavras, ditas num tom resignado:
— Quando meu amo quiser!
Kin-Fo endireitou-se, e num movimento natural brandiu a chibata justiceira.
Sun encontrava-se diante dele, meio dobrado, na atitude de uma paciente, apresentando as costas. Apoiando uma das mãos no tapete do quarto, estendia na outra uma carta.
— Ora até que enfim apareceste! — bradou Kin-Fo.
— Ai, ai ai! — respondeu Sun. — Eu só esperava o meu amo na terceira vigília! Quando meu amo quiser!
Kin-Fo jogou a chibata ao chão, e Sun, embora fosse amarelo conseguiu empalidecer.
— Se antes de qualquer explicação já vens aqui oferecer as costas — observou o patrão, — é porque mereces muito mais do que isso! Que aconteceu?
— Esta carta!
— Explica-te! — berrou Kin-Fo segurando a carta que lhe estendia Sun.
— Esqueci-me infelizmente de lha entregar antes da sua partida para Cantão!
— Oito dias de atraso, maroto!
— Fiz mal, meu amo.
— Vem aqui!
— Eu estou como um pobre caranguejo sem patas que não pode caminhar! Ai, ai, ai!
Este último grito era de desespero. Kin-Fo segurara Sun pelo rabicho, e com umas tesouras bem afiadas cortara-lhe a extremidade.
Devemos admitir que as patas do desventurado caranguejo funcionaram instantaneamente, pois ele abalou às pressas, não sem antes ter erguido do tapete o fragmento do seu precioso apêndice.
De cinqüenta e sete centímetros que media antes, o rabicho de Sun achava-se reduzido a cinqüenta e quatro.
Kin-Fo, readquirida a sua perfeita calma tornou a estirar-se no divã, e com todo o vagar ficou examinando a carta chegada oito dias antes. Não fora a demora na entrega, mas a negligência de Sun que o irritara. Que interesse poderia haver para ele numa carta qualquer? Apenas seria bem-vinda se lhe trouxesse uma emoção. Uma emoção! E olhava para ela, mas distraidamente.
O subscrito, em tela engomada, exibia em ambos os lados diversos selos cor de vinho e chocolate, que em retângulos por sob uma figura de homem tinham os dizeres dois e seis cents. Isto indicava que a carta provinha dos Estados Unidos da América.
— Bem! — disse Kin-Fo encolhendo os ombros; — é uma carta do meu procurador de São Francisco.
E atirou-a para um canto do divã.
Realmente, que poderia dizer-lhe o seu correspondente? Que as ações que constituíam quase toda a sua fortuna dormiam tranqüilamente na caixa-forte do Banco Central Californiano, que tinham valorizado vinte ou trinta por cento, que os dividendos a distribuir excederiam os do ano precedente, etc, etc. Alguns milhares de dólares a mais ou a menos não eram coisa que verdadeiramente o emocionasse.
Contudo, momentos depois Kin-Fo retomou a carta e rasgou-lhe maquinalmente o subscrito, mas em vez de a ler seus olhos buscaram em primeiro lugar a assinatura.
— É com efeito uma carta do meu procurador — disse ele, — e só pode tratar de negócios. Deixemos os negócios para amanhã!
E ia de novo abandonar a carta, quando de repente notou uma palavra várias vezes sublinhada na segunda página. Era a palavra passivo, para a qual o procurador de S. Francisco quisera evidentemente atrair a atenção do seu constituinte.
Kin-Fo recomeçou então a ler a carta, prosseguindo até à derradeira linha, com um sentimento de curiosidade muito para admirar da sua parte.
Franziu um instante o sobrolho, mas um leve sorriso desdenhoso lhe aflorou aos lábios quando terminou a leitura. Ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto, aproximou-se mesmo do tubo acústico que o punha em comunicação direta com Wang. Chegou a aproximar os lábios do bocal e esteve a ponto de dar o assobio de chamada, mas reconsiderando deixou cair a serpente de borracha e voltou a sentar-se no divã.
— Puf! — murmurou.
E todo o Kin-Fo estava nessa exclamação.
— E ela? — continuou em seguida. — Ela é realmente mais interessada do que eu em tudo isto!
Aproximou-se então de uma pequena mesa de laça sobre a qual poisava uma caixa oblonga, preciosamente lavrada. Ia abri-la mas deteve-se.
— Que me dizia ela em sua última carta? — murmurou. E em vez de levantar a tampa da caixa, apertou a mola que havia numa das extremidades.
Imediatamente se ouviu uma voz cheia de meiguice: "Meu irmãozinho mais velho! Já não sou para ti como a flor Mei-hua na primeira lua, como a flor do damasqueiro na segunda, como a flor do pessegueiro na terceira! Meu querido coração de pedra preciosa, desejo-te mil, dez mil dias de felicidade!..."
Era a voz de uma jovem, de que o fonógrafo repetia as doces palavras.
— Pobre irmãzinha mais nova! — disse Kin-Fo.
Em seguida, abrindo a caixa retirou do aparelho o papel sulcado de ranhuras que reproduzira todas as inflexões daquela voz distante, substituindo-o por um outro. O fonógrafo estava então aperfeiçoado a tal ponto, que bastava falar em voz alta para que a membrana fosse impressionada e o cilindro, movido por um mecanismo de relojoaria, registrasse as palavras no papel do aparelho.
Kin-Fo esteve falando aproximadamente um minuto. A sua voz, sempre calma, não revelava o estado de alegria ou tristeza em que formulava o seu pensamento.
Três ou quatro frases, quando muito, foi o que disse Kin-Fo. Depois deteve o movimento do fonógrafo o papel especial onde a agulha, acionada pela membrana, traçara as ranhuras oblíquas correspondentes às palavras pronunciadas; a seguir colocou esse papel num envelope que fechou, e no qual escreveu, da direita para a esquerda, o seguinte endereço:
Senhora LÉ-U
Avenida de Cha-Cua Pequim.
Uma campainha elétrica fez imediatamente surgir o criado encarregado da correspondência, que recebeu ordem de levar sem demora essa carta ao correio.
Uma hora depois Kin-Fo dormia tranqüilamente, apertando nos braços o seu tchêu-ju-jen, espécie de travesseiro de bambu trançado que mantém nas camas chinesas uma temperatura média, muito apreciável naquelas quentes latitudes.
EM QUE LÉ-U RECEBE UMA CARTA QUE TERIA PREFERIDO NÃO RECEBER.
— Não tens ainda nenhuma carta para mim?
— Não, minha senhora!
— Como o tempo me parece longo, velha mãe!
Era assim que pela décima vez naquele dia falava a encantadora Lé-u, no boudoir da sua casa da avenida Cha-Cua, em Pequim. A velha mãe que lhe respondia, e à qual ela dava essa designação empregada na China com os criados de idade avançada, era a rabugenta e desagradável senhorita Nan.
Lé-u casara-se aos dezoito anos com um letrado de primeiro grau, colaborador do famoso Se-Khu-Tsuane-Chu,1 sábio que tinha o dobro da sua idade e faleceu três anos após essa desproporcionada união.
A jovem viúva achara-se então sozinha no mundo sem contar ainda vinte e um anos. Kin-Fo viu-a numa viagem que por essa época fez a Pequim, e Wang, que a conhecia, chamou para a encantadora criatura a atenção do seu indiferente discípulo. Kin-Fo abandonou-se lentamente à idéia de modificar as condições da sua vida, desposando a linda viúva. Lé-u não se mostrou insensível à proposta, e foi assim que o casamento, resolvido com grande satisfação do filósofo, devia celebrar-se quando Kin-Fo, tomadas em Shangai as necessárias disposições, voltasse a Pequim.
No Celeste Império não é costume casarem-se as viúvas — e não porque elas o não desejem tanto quanto as suas colegas ocidentais, mas porque há poucos partidários desse desejo. Se Kin-Fo fazia exceção à regra, é porque Kin-Fo, como se sabe, era um original. É verdade que tornando a casar, Lé-u perderia o direito de passar sob os paé-lus, arcos comemorativos que o imperador mandava de vez em quando erguer em honra das mulheres célebres pela fidelidade ao defunto marido, tais como a viúva Sung, que jamais quis abandonar o túmulo do esposo, ou a viúva Kung-Kiang, que cortou um braço, ou ainda a viúva Yen-Tchiang que se desfigurou para provar a sua dor conjugai. Mas Lé-u entendeu que podia empregar melhor os seus vinte anos. Preferia retomar essa vida de obediência, que é o papel da mulher na família chinesa, renunciar a tudo o que se passa fora da sua casa, conformar-se com os preceitos do livro Li-nun sobre os deveres domésticos, e do livro Nei-tso-pien sobre os deveres do casamento, readquirir enfim a consideração de que goza a esposa, que nas classes elevadas não é uma escrava, como geralmente se pensa. Inteligente e instruída, Lé-u compreendia também o lugar que iria desempenhar na vida do rico entediado, e sentindo-se atraída para ele pelo desejo de lhe provar que a felicidade existe neste mundo, estava pronta para a sua nova vida.
O sábio, ao morrer, deixara a jovem viúva numa situação econômica desafogada, embora medíocre. A casa da avenida Cha-Cua era modesta e a intolerável Nan resumia toda a criadagem, mas Lé-u acostumara-se aos seus modos desagradáveis, aliás pouco comuns aos servos do Império das Flores.
O boudoir era o aposento preferido da jovem senhora. O mobiliário seria considerado muito simples, não fossem os ricos presentes que havia dois meses chegavam de Shangai. Das paredes pendiam alguns quadros, entre outros uma obra-prima do velho pintor Huan-Tse-Nen,2 que chamaria a atenção dos entendedores, além de aquarelas muito chinesas, cavalos verdes, cães cor de violeta e árvores azuis, devidos a alguns artistas modernos locais. Sobre uma mesa de laça multiplicavam-se, como grandes borboletas de asas abertas, leques vindos da famosa escola de Swatow. De um vaso de porcelana suspenso pendiam elegantes festões dessas flores artificiais, tão admiravelmente fabricadas com o miolo da "Arábia papirífera" da Ilha Formosa, rivais dos brancos nenúfares, crisântemos amarelos e lírios vermelhos do Japão, que enchem as jardineiras de madeira finamente esculpida. As esteiras de bambu trançado apenas coam para aquele ambiente uma luz muito suave, quebrando, quase se poderia dizer debulhando os raios solares. Um magnífico painel, feito de grandes penas de gavião, cujas malhas, artisticamente dispostas, figuravam uma imensa peônia, — emblema da beleza no Império dos Flores —; dois viveiros em forma de pagode, verdadeiros calidoscópios das mais brilhantes aves da índia; alguns tiemaols éolios, cujas placas de vidro vibram ao vento, mil objetos enfim que recordam uma pessoa ausente, completavam a curiosa ornamentação daquele boudoir.
— Ainda não chegou carta, Nan?
— Não, senhora; ainda não.
Era uma encantadora mulher, esta Lé-u. Linda, mesmo para olhos europeus, branca e não amarela, tinha uns meigos olhos levemente inclinados para as têmporas, cabelos negros ornados de algumas flores de pessegueiro presas por alfinetes de jade verde, dentes miúdos e brancos, sobrancelhas com uma ligeira sombra de tinta da China. Não usava nas faces camadas de mel nem de branco de Espanha, como costumam as beldades do Celeste Império, nem rodela de carmim no lábio inferior, nem traço vertical entre os dois olhos, enfim nada dessas camadas de pintura em que as damas da corte imperial gastam anualmente dez milhões de sapecas. A jovem viúva não carecia desses ingredientes artificiais. Pouco saía da sua morada de Cha-Cua, podendo portanto dispensar essa máscara que toda a mulher chinesa usa fora de casa.
As roupas de Lé-u eram as mais simples e elegantes. Um longo vestido de quatro aberturas, guarnecido de uma larga faixa bordada; por sob o vestido uma saia pregueada, um peitilho ornado de sutaches em filigrana de ouro, calças presas na cinta e ajustando-se à meia de seda nanquim, lindas chinelas enfeitadas de pérolas; e se acrescentarmos que as suas mãos eram finas, e que ela mantinha as unhas compridas e rosadas, em pequenos dedais de prata cinzelados com um gosto minucioso, nada mais faltava à jovem viúva para ser encantadora.
E os pés? Tinha-os pequenos, sim, mas porque a natureza lhos dera assim, e não em conseqüência desse hábito de deformação bárbara que tende felizmente a desaparecer. Tal costume já dura há setecentos anos, e provavelmente deve-se a alguma princesa estropiada. Em sua aplicação mais simples, operando a flexão dos quatro artelhos sob a planta do pé, e deixando o calcâneo intacto, faz da perna uma espécie de cone truncado, embaraça completamente o andar, predispõe à anemia, e nem sequer tem razão de ser, como se poderia acreditar, no ciúme do marido. Felizmente, desde a conquista tártara que vai sendo abolido. Agora já não há três chinesas sobre dez que tenham sido submetidas desde tenra idade a essa seqüência de operações dolorosas que causam a deformação do pé.
— É impossível que hoje não venha carta! — observou outra vez Lé-u. — Vai verificar, velha mãe.
— Já disse que não veio! — respondeu Nan com insolência, retirando-se do quarto a resmungar.
Lé-u resolveu então trabalhar para se distrair um pouco. Era ainda um modo de pensar em Kin-Fo, pois estava bordando para ele um par de chinelas de estofo, produção quase exclusivamente reservada à mulher nos lares chineses, seja qual for a classe a que pertençam. Mas em breve o trabalho lhe caía das mãos. Ergueu-se, tomou de uma caixa duas ou três pastilhas que lhe estalaram nos dentes, e em seguida abriu um livro, o Nushum, código de preceitos que toda a esposa virtuosa deve ler continuamente.
"Assim como a primavera é a estação favorável para o trabalho, do mesmo modo a alvorada é a ocasião mais propícia do dia.
"Erguei-vos cedo, não vos deixeis vencer pelas delícias do sono.
"Tratai da amoreira e do cânhamo. "Fiai com zelo a seda e o algodão.
"A virtude das mulheres reside na atividade e na economia. "Os vizinhos vos elogiarão..."
O livro fechou-se, a meiga Lé-u já não prestava atenção ao que lia.
— Onde estará ele? — perguntava-se. — Deve ter ido a Cantão! Será que já regressou a Shangai? Quando chegará a Pequim? O mar ter-lhe-á sido propício? Que a deusa Koanina o proteja!
Tais eram os pensamentos da inquieta senhora, cujos olhos se fixaram distraidamente numa coberta de mesa, feita com arte de pequeninos retalhos, uma espécie de mosaico de pano à moda portuguesa em que se esboçavam o pato mandarim e sua família, símbolo da fidelidade. Por fim, acercou-se de uma jardineira e colheu uma flor ao acaso.
— Ah! — exclamou ela; — não é a flor do salgueiro verde, emblema da primavera, da juventude e da alegria! É o crisântemo amarelo que simboliza o outono e a tristeza!
Quis reagir contra a ansiedade que agora a invadia toda. Ali estava o seu lut.; seus dedos fizeram-lhe vibrar as cordas, seus lábios murmuraram as primeiras palavras da canção das Mãos-unidas, mas ela não pôde prosseguir.
— Dantes, — pensava ela — não havia atraso em suas cartas! Eu lia-as cheia de emoção! Ou então, em vez das linhas que só se destinavam aos meus olhos, era a sua própria voz que eu podia ouvir! Esse aparelho que ali está falava-me como se ele estivesse junto de mim!
Lé-u olhava o fonógrafo fixado sobre uma mesinha de laça, em tudo semelhante àquele de que Kin-Fo se servia em Shangai. Ambos podiam assim ouvir-se, ou melhor, ouvir as suas vozes, malgrado a distância que os separava... Mas também hoje, como já sucedia há alguns dias, o aparelho permanecia mudo sem nada revelar dos pensamentos do ausente.
Nesse instante surgiu à velha-mãe.
— Aqui está a carta! — disse ela.
E saiu após ter entregado a Lé-u um subscrito com o carimbo de Shangai.
Nos lábios da jovem nasceu um sorriso, houve um clarão mais vivo nos seus olhos, e ela rasgou o envelope sem se demorar a observá-lo como era seu costume...
Não era propriamente uma carta que continha o subscrito, mas um desses papéis de ranhuras oblíquas que, ajustados ao aparelho fonográfico, reproduzem todas as inflexões da voz humana.
— Ah! Prefiro isto! — exclamou alegremente Lé-u. — Ao menos poderei ouvi-lo!
O papel foi colocado no cilindro do fonógrafo, que um mecanismo de relojoaria logo pôs em movimento, e Lé-u aproximando o ouvido escutou uma voz bem conhecida que dizia:
"Irmãzinha mais nova, a ruína empolgou todas as minhas riquezas como o vento de leste arrebata as folhas amarelecidas do outono! Não quero tornar-te infeliz associando-te à minha miséria! Esquece aquele que dez mil desgraças fulminaram!
O TEU desesperado Kin-Fo!
Que provação para a jovem senhora! Uma vida mais amarga do que a amarga genciana a esperava agora. Sim, o vento da prosperidade roubava-lhe as últimas esperanças com a fortuna do seu amado! O amor que Kin-Fo lhe dedicava estaria então para sempre perdido? Seu amigo só acreditava na felicidade que dá a riqueza. Ah, pobre Lé-u! Dir-se-ia agora um papagaio cujo fio se parte, e cai ao chão espedaçado!
A um chamado seu, Na entrou no quarto, encolheu os ombros e transportou a ama para o seu ano, que embora fosse uma cama-fogão, artificialmente aquecida, pareceu bem fria à desventurada Lé-u. Como as cinco vigílias dessa noite de insônia custaram a passar!
QUE TALVEZ DESPERTE NO LEITOR O DESEJO DE FAZER UMA VISITA AOS ESCRITÓRIOS DE "A CENTENÁRIA".
No dia seguinte Syin-Fo, cujo desdém pelas coisas deste mundo se não desmentira um instante, saiu sozinho de casa. Com o seu andar inalterável desceu a margem direita do Creek. Ao chegar à ponte de madeira que liga a concessão inglesa à concessão americana, atravessou o rio e encaminhou-se para um edifício de excelente aparência, que se erguia entre a igreja das Missões e o consulado dos Estados Unidos.
No frontespício dessa casa havia uma larga placa de cobre, onde se via, em letras tumulares, a seguinte inscrição:
A CENTENÁRIA
Companhia de seguros de vida
Capital realizado: 20 milhões de dólares
Agente exclusivo: William J. Bidulph
Kin-Fo empurrou a porta, protegida por um segundo batente acolchoado, e achou-se num escritório dividido em duas partes por uma simples grade a meia altura. Alguns ficheiros de cartão, livros com feixos de níquel, um cofre americano de segredo que se defendia por si mesmo, duas ou três mesas onde trabalhavam os empregados da agência, uma complicada escrivaninha reservada ao honrado William J. Bidulph — tal era a mobília dessa sala mais apropriada a uma casa da Broadway do que a um prédio erigido às margens do Wusung.
William J. Bidulph era o agente geral, na China, da companhia de seguros de vida e contra incêndio cuja sede social se encontrava em Chicago. A Centenária — um bom título para atrair clientes, — a Centenária muito conhecida nos Estados Unidos, tinha sucursais e representantes nas cinco partes do mundo. Fazia negócios vultosos e excelentes graças aos seus estatutos ousada e liberalmente constituídos, que lhe permitiam segurar todos os riscos.
Os celestiais também já começavam a acompanhar a moderna corrente de idéias que abarrota os cofres das empresas desse gênero. Grande número de casas do Império do Meio estavam garantidas contra incêndio, e as apólices de seguro em caso de morte, com as suas múltiplas combinações, abundavam em assinaturas chinesas. A placa da Centenária enfeitava já o alto das portas de Shangai, e, entre outras, as pilastras do rico yamen de Kin-Fo. Não era pois para se garantir contra um incêndio, que o discípulo de Wang pretendia visitar o honrado William J. Bidulph.
— Está o senhor Bidulph? — perguntou ele ao entrar.
William J. Bidulph lá estava "em pessoa", como um fotógrafo que opera por si mesmo, sempre à disposição do público, — um homem de cinqüenta anos, gravemente vestido de preto, casaca, gravata branca, a barba toda mas sem bigode, um perfeito americano.
— A quem tenho a honra de falar? — perguntou William J. Bidulph.
— Ao senhor Kin-Fo, de Shangai.
— O senhor Kin-Fo!... um dos clientes da Centenária, apólice número vinte e sete mil e duzentos...
— Eu mesmo.
— Terei a sorte de lhe poder prestar algum serviço?
— Desejava falar-lhe em particular — respondeu Kin-Fo.
A conversa entre essas duas pessoas poderia realizar-se com toda a facilidade, visto que William J. Bidulph falava tão bem o chinês quanto Kin-Fo se exprimia em inglês.
O importante cliente foi pois introduzido com as deferências que lhe eram devidas, num gabinete forrado de tapeçarias, com portas duplas, onde se poderia maquinar a derrubada da dinastia dos Tsing, sem temor de ser ouvido pelos mais finos tipaos do Celeste Império.
— Senhor, — começou Kin-Fo tendo-se sentado numa cadeira de balanço, diante de um aquecedor a gás — eu desejava entrar em negócios com a sua companhia, e garantir pela minha morte o pagamento de uma importância cujo montante lhe darei em seguida.
— Pois meu caro senhor — respondeu William J. Bidulph, — nada mais simples. Duas assinaturas, a sua e a minha, por baixo de uma apólice, e estará feito o seguro após algumas formalidades preliminares. Mas... queira permitir-me uma pergunta... o senhor deseja então morrer em idade bem avançada, o que de resto é bastante natural?
— Por quê? — perguntou Kin-Fo. — De um modo geral o seguro de vida indica, por parte do segurado, o receio de uma morte demasiado próxima...
— Oh, meu caro senhor! — exclamou William J. Bidulph com a maior seriedade; — esse receio nunca atinge os clientes da Centenária! Seu próprio nome o indica. Segurar-se conosco é adquirir um alvará de longa vida! Peço perdão, mas é raro que os nossos segurados não atinjam os cem anos... muito raro... raríssimo! No interesse deles deveríamos tirar-lhes a vida! Por isso fazemos esplêndidos negócios! Previno-o portanto, senhor, que segurar-se na Centenária é adquirir quase a certeza de se tornar por sua vez em centenário.
— Ah! — observou tranqüilamente Kin-Fo, cravando o seu olho frio em William J. Bidulph.
O agente geral, sério como um ministro, não tinha de nenhum modo o ar de quem estivesse gracejando.
— Seja como for — prosseguiu Kin-Fo, — desejo fazer um seguro de duzentos mil dólares.
— Digamos assegurar-se um capital de duzentos mil dólares — respondeu William J. Bidulph.
E escreveu num caderno essa quantia, cuja magnitude nem sequer o fez pestanejar.
— O senhor sabe, — acrescentou ele — que o seguro fica sem efeito, e todos os prêmios pagos, seja qual for o seu número, ficarão pertencendo à companhia, se a morte do segurado ocorrer por intervenção do beneficiário?
— Sei disso muito bem.
— E que riscos pretende o meu caro senhor assegurar?
— Todos.
— Os riscos de viagem por terra e por mar, e os ocorridos fora dos limites do Celeste Império?
— Justamente.
— Os riscos de condenação judiciária?
— Também.
— Os de duelo?
— Também.
— Os de serviço militar?
— Sem dúvida.
— Nesse caso os prêmios serão bem altos.
— Pagarei o que for.
— Perfeitamente.
— Mas — acrescentou Kin-Fo, — há um risco muito importante que o senhor ainda não mencionou.
— Qual?
— O de suicídio. Pensei que os estatutos da Centenária o autorizassem a segurar também o suicídio.
— Mas com certeza, senhor — respondeu William J. Bidulph esfregando as mãos. — Essa é mesmo uma das nossas grandes fontes de lucro! O senhor compreende que os nossos clientes são em geral pessoas apegadas à vida, e que aqueles que por um excesso de prudência desejam garantir-se contra o suicídio, nunca se matam.
— Não importa — objetou Kin-Fo. — Por motivos pessoais desejo segurar também esse risco.
— Como quiser, mas o prêmio vai ser considerável!
— Repito-lhe que pagarei o que for preciso.
— Está entendido. Digamos então — prosseguiu William J. Bidulph continuando a escrever no seu caderno, — riscos de mar, de viagem, de suicídio...
— E nessas condições — perguntou Kin-Fo, — qual será o montante do prêmio a pagar?
— Meu caro senhor — respondeu o agente geral, — os nossos prêmios foram calculados com exatidão matemática, uma exatidão que honra a companhia. Não são baseados, como sucedia outrora, nas tabelas de Duvillars... Conhece Duvillars?
— Não tenho essa honra.
— Um estatístico notável, mas já antigo... tão antigo mesmo, que já morreu. Na época em que ele elaborou as suas famosas tabelas, que servem ainda para a escala de prêmios da maior parte das companhias européias, muito atrasadas, a média de vida era inferior à de hoje, graças ao progresso geral. Nós tomamos por base uma média mais elevada, portanto mais favorável ao segurado, que paga menos dinheiro e vive mais tempo...
— Qual seria o montante do meu prêmio? — insistiu Kin-Fo querendo deter o verboso agente, que não perdia ocasião de exaltar as vantagens oferecidas pela Centenária.
— Senhor — respondeu William J. Bidulph, — poderei permitir-me a indiscrição de lhe perguntar que idade tem?
— Trinta e um anos.
— Muito bem; aos trinta e um anos, se se tratasse apenas de segurar os riscos ordinários, o senhor teria de pagar em qualquer companhia, dois e oitenta e três por cento. Mas na Centenária seriam apenas dois e setenta, o que representaria anualmente, para um capital de duzentos mil dólares, cinco mil e quatrocentos dólares.
— E nas condições que desejo?
— Segurando todos os riscos, inclusive o suicídio?
— Especialmente o suicídio.
— Meu caro senhor — respondeu num tom amável William J. Bidulph, após consultar uma tabela impressa na última página do seu caderno, — não podemos aceitar esse seguro a menos de vinte e cinco por cento.
— O que perfaz?
— Cinqüenta mil dólares.
— E como deve ser pago esse prêmio?
— De uma só vez ou em prestações mensais, à vontade do segurado.
— Quanto corresponderia aos dois primeiros meses?
— Oito mil trezentos e tanta e dois dólares que, sendo pagos hoje, 30 de abril, caro senhor, o cobririam até 30 de junho deste ano.
— Convêm-me essas condições — disse Kin-Fo — aqui está o prêmio correspondente aos dois primeiros meses.
E colocou sobre a mesa um alentado rolo de dólares-papel que tirou do bolso.
— Muito bem, senhor, perfeitamente! — tornou William J. Bidulph. — Mas antes de assinar a apólice há uma formalidade a cumprir.
— Qual?
— O senhor tem de submeter-me a uma visita do médico da companhia.
— Para que, essa visita?
— Para verificar se a sua constituição é sólida, se não padece de alguma doença orgânica capaz de lhe abreviar a vida, se oferece, enfim, garantias de uma longa existência.
— Mas para que, se eu seguro até o duelo e o suicídio — observou Kin-Fo.
— Ah! Meu caro senhor — respondeu William J. Bidulph sorrindo sempre, — uma doença qualquer não revelada que o pudesse vitimar dentro de dois meses, custar-nos-ia nada menos de duzentos mil dólares!
— Mas o meu suicídio custar-lhes-ia a mesma coisa, creio eu!
— Bem — objetou o risonho agente geral, dando amistosas pancadinhas na mão de Kin-Fo, — já tive a honra de lhe dizer que muitos dos nossos clientes se seguram contra o suicídio, mas jamais se suicidam. De resto, não nos é proibido mandá-los vigiar... Oh! O mais discretamente possível, sem dúvida! E posso acrescentar — como uma observação inteiramente pessoal, — que de todos os clientes da Centenária, são precisamente esses que durante mais tempo pagam os seus prêmios. Aqui para nós, por exemplo, por que haveria o rico senhor Kin-Fo de suicidar-se?
— E por que haveria de segurar-se contra o suicídio o rico senhor Kin-Fo?
— Oh! — exclamou William J. Bidulph; — para ter a certeza de chegar até muito velho, na sua qualidade de cliente da Centenária!
Era inútil discutir por mais tempo com o agente geral da famosa companhia. Ele tinha tanta certeza do que dizia!
— E agora — tornou ele, — a favor de quem deve ser feito esse seguro de duzentos mil dólares? Quem será o beneficiário da apólice?
— Haverá dois beneficiários — respondeu Kin-Fo.
— Em partes iguais?
— Não; em partes desiguais. Um com cinqüenta mil dólares, outra com cento e cinqüenta mil.
— Digamos então cinqüenta mil dólares para o senhor...
— Wang.
— O filósofo Wang?
— Ele próprio.
— E os cento e cinqüenta mil dólares?
— Para a senhora Lé-u, de Pequim.
— De Pequim... — repetiu William J. Bidulph acabando de escrever os nomes dos interessados.
Em seguida acrescentou:
— Qual é a idade da senhora Lé-u?
— Vinte e um anos — respondeu Kin-Fo.
— Oh! — exclamou o agente; — eis aí uma senhora que já estará bem velha quando vier a receber o capital segurado!
— Por que razão, se faz favor?
— Por que o meu excelente senhor vai viver mais de cem anos. E a do filósofo Wang?
— Cinqüenta e cinco anos.
— Então esse honrado cavalheiro pode ficar certo de que não chegará a receber nada.
— É o que havemos de ver, senhor!
— Meu caro senhor — respondeu William J. Bidulph, — se eu aos cinqüenta e cinco anos fosse herdeiro de um homem de trinta e um, que ainda por cima vai morrer centenário, não teria a ingenuidade de contar com a sua herança!
— Um seu criado, senhor — atalhou Kin-Fo dirigindo-se para a porta do gabinete.
— Eu é que permaneço às suas ordens — respondeu William J. Bidulph, inclinando-se diante do novo cliente da Centenária.
No dia seguinte, o médico da companhia fez a Kin-Fo a visita regulamentar. "Corpo de ferro, músculos de aço, pulmões como foles de órgão" dizia o relatório. Nada obstava a que a companhia admitisse como seu segurado um homem tão robustamente constituído. A apólice foi portanto assinada nessa data, por parte de Kin-Fo em favor da jovem viúva e do filósofo Wang, e do outro lado por William J. Bidulph como representante da companhia. Nem Lé-u nem Wang, a não ser por alguma circunstância imprevista, deviam jamais saber o que Kin-Fo acabava de fazer por ambos, senão no dia em que a Centenária fosse obrigada a entregar-lhes esse capital, derradeira generosidade do ex-milionário.
QUE SERIA MUITO TRISTE SE NÃO SE TRATASSE DE USOS E COSTUMES PECULIARES AO CELESTE IMPÉRIO.
Fosse qual fosse a opinião do honrado William J. Bidulph, os fundos da Centenária estavam muito seriamente ameaçados. O fato é que o plano de Kin-Fo não era daqueles que, feitas as devidas reflexões, se adiam indefinidamente. Uma vez arruinado, o discípulo de Wang resolvera formalmente acabar com uma existência que, mesmo nos tempos da riqueza, só lhe proporcionara melancolias e enfados.
A carta vinda de S. Francisco, e que Sun só lhe entregara com oito dias de atraso, comunicava-lhe a suspensão dos pagamentos por parte do Banco Central Californiano. Ora, a fortuna de Kin-Fo, como sabemos, era constituída na sua quase totalidade de ações desse conhecido Banco, até então perfeitamente sólido. Não podia haver dúvida; por inverossímil que pareça tal notícia, era infelizmente verdadeira. A suspensão de pagamentos do Banco Central Californiano acabava de ser confirmada pelos jornais chegados a Shangai. Fora decretada a falência e Kin-Fo ficava completamente arruinado.
Na verdade, além das ações desse Banco, que lhe restava? Nada, ou quase nada. A residência de Shangai, cuja venda quase impraticável, lhe não forneceria recursos suficientes. Os oito mil dólares de prêmios pagos à Centenária, algumas ações da companhia de vapores de Tien-Tsin que, vendidas nesse mesmo dia, mal lhe permitiriam atender às últimas obrigações, eis agora toda a sua fortuna.
Um ocidental, um francês, um inglês, talvez encarasse filosòficamente essa nova existência e procurasse refazer a vida pelo trabalho. Um celestial achava-se no direito de pensar e agir de modo inteiramente diverso. Como autêntico chinês e com essa típica indiferença que caracteriza a raça amarela, Kin-Fo iria, sem qualquer abalo de consciência, escolher a morte voluntária como meio de resolver as suas dificuldades.
O chinês tem apenas a coragem passiva, mas essa possui-a no mais alto grau. O seu desdém pela morte é verdadeiramente extraordinário! Quando doente, vê-a aproximar-se sem temor. Condenado, já nas mãos do carrasco, encara-a sem a mínima fraqueza. As execuções públicas tão freqüentes, a vista dos horríveis suplícios que comporta a escala penal no Celeste Império, cedo familiarizam os filhos de Céu com a idéia de abandonar sem pena as coisas deste mundo.
Assim sendo, não é de admirar que em todas as famílias essa idéia da morte esteja na ordem do dia e seja o motivo de muitas palestras. Ela está presente nos atos mais comuns da vida. O culto dos ancestrais é mantido pela gente mais humilde. Não há uma só casa rica que não possua uma espécie de Santuário doméstico, uma cabana miserável onde um canto não tenha sido reservado para as relíquias dos avós, cuja festa se celebra no segundo mês. E eis porque se encontra no mesmo estabelecimento onde se adquirem berços de recém-nascidos e enxovais para casamento, um variado estoque de caixões, que formam um artigo corrente no comércio chinês.
A compra de um caixão é uma das constantes preocupações do celestial. O mobiliário estaria incompleto se o ataúde faltasse na casa paterna. O filho considera de seu dever oferecê-lo ao pai enquanto vivo, como uma tocante prova de afeição. Esse ataúde é colocado numa sala especial; enfeitam-no, conservam-no, e freqüentemente, depois de ter recebido os seus mortais despojos, é conservado por longos anos com piedosa deferência. Enfim, o respeito pelos mortos constitui a base da religião chinesa, contribuindo para tornar mais estreitos os laços da família.
Kin-Fo, portanto, mais do que qualquer outro, graças ao seu temperamento, devia encarar com perfeita tranqüilidade a idéia de pôr fim aos seus dias. Assegurara o futuro dos dois entes que mais afeição lhe mereciam. Que mais podia agora lastimar? Nada. O suicídio nem mesmo lhe causava remorsos. O que se considera um crime nos países civilizados do Ocidente, é por assim dizer um ato legítimo na extravagante civilização da Ásia oriental.
A resolução de Kin-Fo estava por isso tomada, e nenhuma influência conseguiria demovê-lo de a pôr em prática, nem mesmo a do filósofo Wang.
Aliás, este ignorava inteiramente as intenções do discípulo. Sun, por seu lado não sabia mais do que ele, tendo apenas notado que após o seu regresso, Kin-Fo se mostrava mais tolerante com as suas tolices cotidianas.
Decididamente Sun ia mudando de opinião; seria impossível encontrar patrão melhor, e agora o seu precioso rabicho saltitava-lhe nas costas com desusada segurança.
Diz um ditado chinês:
"Para ser feliz na terra, é preciso viver em Cantão e morrer em Liao-Tchéu".
Em Cantão, realmente, se encontram todas as grandezas da vida, e é em Liao-Tchéu que se fabricam os melhores caixões.
Kin-Fo não podia deixar de fazer a sua encomenda a uma boa casa, a fim de que o seu último leito de repouso chegasse a tempo. Estar corretamente deitado para dormir o sono eterno é a constante preocupação de todo o celestial que sabe viver.
Ao mesmo tempo Kin-Fo mandou comprar um galo branco, que tem, como é sabido, a propriedade de encarnar os espíritos flutuantes e que poderiam apoderar-se, de passagem, de algum dos sete elementos que compõem a alma chinesa.
Por aqui se vê que se o discípulo de Wang mostrava indiferença pelas coisas da vida, outro tanto não sucedia com as respeitantes à morte.
Tomadas essas providências, só lhe restava redigir o programa dos seus funerais, e portanto nesse mesmo dia, uma bela folha desse papel chamado de arroz, mas a cuja confecção o arroz é totalmente estranho, recebeu as derradeiras vontades de Kin-Fo. Tendo legado à jovem viúva a sua casa de Shangai, e a Wang um retrato do imperador Tai-ping, que o filósofo via sempre com agrado, — tudo isto sem prejuízo das somas garantidas pela Centenária, — Kin-Fo traçou com mão firme a ordem e a marcha das pessoas que deviam assistir às suas exéquias.
Em primeiro lugar, à falta de parentes que não possuía, uma parte dos amigos que ainda conservava deviam figurar à testa do cortejo, todos vestidos de branco, que é a cor do luto no Celeste Império. Ao comprido das ruas, e até ao túmulo erguido há muito no cemitério de Shangai, estender-se-ia uma dupla fileira de empregados fúnebres, carregando diferentes atributos, guarda-sóis azuis, alabardas, mãos de justiça, painéis de seda, letreiros com os detalhes da cerimônia, todos envergando uma túnica preta com cinto branco, chapéu preto de penacho vermelho. A seguir ao primeiro grupo de amigos caminharia um guia vestido de escarlate dos pés à cabeça, soando o gongo e precedendo o retrato do defunto, deitado numa espécie de esquife ricamente decorado. Viria depois um segundo grupo de amigos, os que devem desmaiar a intervalos regulares sobre almofadas previamente dispostas. Por fim, um último grupo de jovens, abrigados sob um dossel azul e ouro, semearia o trajeto de pedacinhos de papel branco furados no meio como sapecas, e destinados a distrair os maus espíritos tentados a participar do cortejo.
Surgiria então o catafalco, enorme palanquim armado em seda roxa, bordado de dragões de ouro, que cinqüenta criados levariam aos ombros entre uma dupla fila de bonzos. Os sacerdotes, com os seus paramentos cor de cinza, vermelhos e amarelos, recitando as últimas preces, alternariam com o trovão dos gongos, o assobio das flautas e a ruidosa fanfarra das compridas trompas de seis pés. Atrás de tudo os carros fúnebres, cobertos de panos brancos, fechariam o suntuoso préstito cujos gastos deviam absorver os recursos finais do opulento defunto.
Aliás, este programa nada tinha de extraordinário. Numerosos enterros desta classe circulam pelas ruas de Cantão, de Shangai ou de Pequim, e os celestiais apenas vêem neles a homenagem natural prestada a quem deixou de ser.
A 20 de outubro chegou uma caixa expedida de Liao-Tchéu e endereçada a Kin-Fo na sua residência de Shangai, contendo, devidamente acondicionado, o ataúde por ele encomendado. Nem Wang, nem Sun, nem qualquer dos criados do yamen tinha motivos para se admirar. Não há, como dissemos, chinês algum que não deseje possuir enquanto vivo o leito em que dormirá por toda a eternidade.
Este caixão, uma obra-prima do fabricante de Liao-Tchéu, foi colocado na "sala dos antepassados", onde, escovado, encerado, polido, aguardaria sem dúvida por longo tempo, o dia em que o discípulo do filósofo Wang o utilizasse para si mesmo... Mas assim não devia ser. Os dias de Kin-Fo estavam contados, estava próxima a hora que devia relegá-lo para a categoria dos ascendentes da família.
Era nessa mesma noite que Kin-Fo resolvera abandonar definitivamente a vida.
Chegou durante o dia uma carta da inconsolável Lé-u.
A jovem viúva punha à disposição de Kin-Fo o pouco que possuía. Não lhe importava a fortuna, poderia muito bem passar sem ela! Amava-o! Que mais queria ele? Não poderiam ambos ser felizes gozando uma situação mais modesta?
Mas esta carta, embora revelando o mais sincero afeto, não podia alterar as resoluções de Kin-Fo.
— Só a minha morte a pode enriquecer — pensou ele.
Restava decidir onde e como teria lugar esse ato supremo. Kin-Fo experimentava uma espécie de prazer em regular esses detalhes, confiado em que no derradeiro instante uma emoção, ainda que leve, lhe fizesse palpitar o coração!
No interior do yamen erguiam-se quatro lindos quiosques, adornados com toda a fantasia que distingue o talento dos decoradores chineses. Todos tinham nomes significativos: o pavilhão da "Felicidade", onde Kin-Fo nunca entrava; o pavilhão da "Fortuna", para o qual só olhava com o mais profundo desdém; o pavilhão do "Prazer", cujas portas há muito se tinham fechado para ele, e o pavilhão da "Longa Vida" que resolvera mandar demolir!
Foi este que o seu instinto escolheu, e onde resolveu fechar-se ao cair da noite. Lá o encontrariam no dia seguinte, já feliz na morte.
Resolvido este ponto, como morreria? Rasgando o ventre como um japonês, enforcando-se com a faixa de seda como um mandarim, abrindo as veias num banho perfumado como um epicurista da antiga Roma? Não. Qualquer desses meios teria o seu quê de brutal, de descortês para com seus amigos e servidores. Um ou dois grãos de ópio misturados a um veneno sutil bastariam para o fazer transitar deste para o outro mundo sem disso ter consciência, levado talvez num desses sonhos que transformam o sono passageiro em sono eterno.
O sol principiava já a descer no horizonte. Kin-Fo tinha apenas mais algumas horas de vida, e queria tornar a ver, num último passeio, os campos de Shangai e as margens do Huang-Pu pelas quais tanta vez distraíra o seu tédio. Sozinho, sem mesmo ter avistado Wang nesse dia, deixou o yamen para lá voltar ainda uma vez e depois nunca mais sair.
O território inglês, a pequena ponte lançada sobre o Creek e a concessão francesa foram por ele atravessados nesse passo indolente que nem naquela hora suprema sentiu desejos de apressar. Pelo cais que rodeia o porto indígena contornou a muralha de Shangai até à catedral católica-romana, cuja cúpula domina o bairro meridional. Aí voltou à direita e subiu tranqüilamente o caminho que leva ao pagode de Lung-Hao.
Era a vasta campina rasa, desdobrando-se até às ensombradas alturas que limitam o vale do Min, imensas planícies pantanosas, que a indústria agrícola transformou em arrozais. De vez em quando uma rede de canais que o mar alimentava, algumas aldeias miseráveis cujas choças de caniço eram vedadas por um lodo amarelado, dois ou três campos de trigo em plano mais alto para se protegerem das águas. Ao longo dos estreitos atalhos um grande número de cães, cabritos brancos, patos e patas que fugiam correndo ou voando quando algum transeunte lhes perturbava os folguedos.
Esse campo, sabiamente cultivado e cuja aparência nada surpreenderia um nativo, chamaria contudo a atenção e até talvez provocasse a repulsa de um estrangeiro. Por toda a parte se viam caixões às centenas. Sem falar dos montículos que indicavam os mortos definitivamente enterrados, só se viam pilhas de caixas oblongas, pirâmides de ataúdes dispostos como as madeiras num pátio de serraria. A planície chinesa, nos arredores das cidades, não passa de um vasto cemitério. Os mortos atravancam o território tanto quanto os vivos. Pretende-se que é proibido enterrar caixões enquanto a mesma dinastia ocupa o trono do Filho do Céu, e essas dinastias duram séculos! Seja ou não verdadeira essa proibição, o certo é que os cadáveres, deitados nos seus caixões, uns pintados de vivas cores, outros escuros e modestos, uns novos e ovantes, outros desfazendo-se em poeira, aguardam durante anos o dia da sepultura.
Kin-Fo não se surpreendia com esse estado de coisas, caminhando aliás como quem em nada repara em torno de si. Dois estrangeiros vestidos à européia, que o vinham seguindo desde a saída do yamen, também lhe não chamaram a atenção. Não os viu, embora eles parecessem não o querer perder de vista. Conservavam-se a alguma distância, seguindo Kin-Fo quando este caminhava, detendo-se quando ele parava. Trocavam por vezes entre si certos olhares, duas ou três palavras, e com certeza andavam ali para o vigiar. De estatura mediana, trinta anos quando muito, ágeis, bem proporcionados, dir-se-iam dois cães de fila de olhar vivo e pernas leves.
Depois de andar pelo campo mais ou menos uma légua, Kin-Fo voltou às margens do Huang-Pu. Os dois podengos também retrocederam logo.
Encontrando no regresso dois ou três mendigos do mais sórdido aspecto, Kin-Fo deu-lhes esmola. Mais adiante, algumas chinesas cristãs — dessas que foram iniciadas nos trabalhos piedosos pelas irmãs de caridade francesas, — atravessaram o caminho. Andavam de cesto às costas, levando para as creches os pobres seres abandonados. Chamavam-lhes muito justamente "trapeiras de crianças", e na verdade os pequeninos infelizes outra coisa não eram que trapos largados às esquinas.
Kin-Fo esvaziou a bolsa nas mãos das caridosas irmãs, enquanto os dois estrangeiros pareciam espantados com semelhante gesto de um celestial.
Descera a noite, e Kin-Fo voltando aos muros de Shangai retomou o caminho do cais. A população flutuante ainda não dormia, por toda a parte se ouviam gritos e cantares.
Kin-Fo escutava, gostando de saber o que diziam as últimas palavras que lhe seria dado ouvir. Uma jovem tankadeira, conduzindo o seu sampan através das escuras águas do Huang-Pu, assim cantava:
Meu barco de vivas cores,
Está pintado
Com grinaldas de mil flores.
Nele vem o meu amado!
Deve chegar amanhã!
Um deus azul o vigia
Vara o jazer regressar.
Possa ele a travessia Encurtar!
— Voltará amanhã! — pensava Kin-Fo abanando a cabeça. — E eu, onde estarei eu amanhã?
A jovem tankadeira prosseguiu:
Quão longe andou, facilmente
Se imagina!
Foi à Mancharia ridente,
Foi às muralhas da China,
Correu terras, correu mares.
Como o meu coração treme
Noite em fora, quando venta!
E ele dominando ao leme
A tormenta!
Kin-Fo dessa vez ouviu sem dizer nada e a tankadeira concluiu:
Por que perseguir assim
A riqueza?
Queres morrer longe de mim?
Antes juntos na pobreza!
Já se passaram três luas...
O bonzo está-nos chamando
Para unir as nossas vidas.
E as duas fênix aguardando3
Ser unidas!
— Sim! — murmurou Kin-Fo; — a riqueza talvez não seja tudo neste mundo; mas não vale a pena viver para adquirir a certeza!
Meia hora depois Kin-Fo entrava de novo em casa, e os dois estrangeiros que o haviam seguido até lá tiveram de parar. Kin-Fo dirigiu-se tranqüilamente para o quiosque da "Longa Vida", abriu a porta, tornou a fechá-la, e encontrou-se sozinho num pequeno aposento fracamente iluminado por uma lanterna de vidros baços.
Sobre uma mesa, feita de um só bloco de jade, estava um pequeno cofre contendo alguns grãos de ópio misturados com um veneno mortal, uma "oportunidade" que o entediado rico tinha sempre ao alcance da mão.
Kin-Fo tomou dois desses grãos, introduziu-os num desses cachimbos de barro vermelho habitualmente usados pelos fumadores de ópio, e preparou-se para o acender.
— Que é isto? — exclamou ele. — Então nem sequer uma emoção no momento de adormecer para sempre?
Hesitou um instante.
— Não! — gritou ele atirando o cachimbo que se quebrou no chão. — Quero essa emoção suprema, ainda que seja só a da expectativa!... Quero-a e hei de tê-la!
E abandonando o quiosque num passo mais vivo do que costumava, saiu em direção ao quarto de Wang.
EM QUE KIN-FO FAZ A WANG UMA PROPOSTA SÉRIA QUE ESTE ACEITA COM NÃO MENOR SERIEDADE.
O filósofo não estava ainda deitado. Estendido num divã lia o último número da Gazeta de Pequim. Quando franzia o sobrolho era decerto porque o jornal fazia algum elogio à dinastia reinante dos Tsing.
Kin-Fo empurrou a porta, entrou no quarto, jogou-se numa poltrona e começou sem outro preâmbulo:
— Wang, quero pedir-te um favor.
— Dez mil favores que fossem! — respondeu o filósofo deixando cair o jornal. — Fala, meu filho; fala sem receio, e seja o que for está concedido!
— O favor que desejo — prosseguiu Kin-Fo, — é daqueles que um amigo só pode fazer uma vez. Depois dele, Wang, ficarás dispensado dos outros nove mil novecentos e noventa e nove, e acrescento que nem mesmo deves esperar um agradecimento da minha parte.
— O mais hábil explicador de coisas inexplicáveis não conseguiria entender-te. De que se trata?
— Wang — disse Kin-Fo, — estou arruinado.
— Ora, ora! — exclamou o filósofo no tom de quem recebe uma notícia boa em vez de má.
— A carta que recebi aqui à nossa chegada de Cantão — prosseguiu Kin-Fo, — comunicava-me a falência do Banco Central Californiano. Além deste yamen e de um milheiro de dólares que me permitirão viver um ou dois meses ainda, não possuo mais nada.
— De modo que — perguntou Wang fitando bem o discípulo, — já não é o rico Kin-Fo que me fala?
— É o pobre Kin-Fo, a quem aliás a pobreza não assusta.
— Muito bem respondido, meu filho — disse o filósofo erguendo-se. — Parece que não perdi o meu tempo e o meu trabalho a ensinar-te a sabedoria! Até hoje apenas tens vegetado sem gosto, sem paixões e sem lutas! Agora vais viver, o futuro mudou! Que importa! Disse Confúcio, e o Talmude depois dele, sucedem sempre menos desgraças do que se teme! Vamos enfim ganhar o nosso arroz de cada dia. O NunSchum lá o diz: "Na vida há altos e baixos! A roda da fortuna gira incessantemente e o vento da primavera é variável! Rico ou pobre, sabe cumprir o teu dever!" Vamos?
E realmente Wang, como filósofo prático, parecia pronto a deixar a suntuosa morada. Mas Kin-Fo deteve-o.
— Eu disse que a pobreza não me assusta — acrescentou ele, — mas devo esclarecer que não estou resolvido a suportá-la.
— Ah! — exclamou Wang — queres então...?
— Morrer.
— Morrer! — repetiu tranqüilamente o filósofo. — O homem que está decidido a pôr fim à vida não o diz a ninguém.
— E eu já o teria feito — continuou Kin-Fo, com uma calma que nada ficava a dever à do filósofo, — se não desejasse que a minha morte me traga ao menos uma primeira e última emoção. Ora, quando ia fumar um desses grãos de ópio que sabes, meu coração batia tão pouco que joguei fora o veneno e vim à tua procura!
— Queres então, amigo, que morramos juntos? — perguntou Wang sorrindo.
— Não — respondeu Kin-Fo — necessito que vivas!
— Para quê?
— Para me matares com as tuas próprias mãos!
Àquela proposta inesperada, Wang nem sequer estremeceu. Mas Kin-Fo, que o olhava bem de frente, viu brilhar-lhe nos olhos um clarão. Teria acordado o antigo Tai-ping? O encargo que lhe ia dar o seu discípulo não lhe provocaria alguma hesitação? Dezoito anos teriam passado sobre a sua cabeça sem lhe afogarem os sanguinários instintos da juventude? Não teria uma objeção a fazer nem mesmo ao filho daquele que o recolhera? Não, Wang, o filósofo, não trepidaria. Mas o clarão extinguiu-se quase imediatamente, e Wang recuperou a sua fisionomia ordinária de bom homem, talvez um pouco mais séria. Tornou a sentar-se e perguntou:
— É esse o favor que desejas?
— É, — respondeu Kin-Fo — e com esse favor pagarás tudo o que poderias imaginar dever a Tchung-Héu e a seu filho.
— Que devo então fazer? — perguntou simplesmente o filósofo.
— De hoje até 25 de junho, vigésimo oitavo dia da sexta lua, entendes bem, Wang, dia em que completarei os meus trinta e um anos — devo ter cessado de viver! Devo ser morto por ti, pela frente, por trás, de dia ou de noite, não importa onde nem como, de pé, sentado, deitado, dormindo, acordado, com ferro ou com veneno! É preciso que em cada um dos oitenta mil minutos de que se comporá a minha vida durante mais cinqüenta e cinco dias, eu tenha o pensamento, e, como espero, o temor de que a minha vida pode acabar de repente. Quero ter diante de mim essas oitenta mil emoções, de tal modo que quando se separarem os sete elementos da minha alma, eu possa exclamar: "Enfim, vivi!"
Kin-Fo, contra o seu costume, falara com uma certa animação. Deve notar-se também que ele fixara o limite extremo da sua existência para seis dias antes do vencimento da sua apólice de seguro. Era agir como homem prudente, pois à falta do pagamento de um novo prêmio, qualquer atraso privaria os interessados dos benefícios do seguro. O filósofo ouvira-o com gravidade, atirando furtivamente rápidos olhares ao retrato do rei Tai-ping, que adornava o seu quarto, retrato esse que deveria herdar — coisa que ainda ignorava.
— Não recuarás perante a obrigação que vais assumir de me matar? — perguntou-lhe Kin-Fo.
Com um gesto, Wang indicou-lhe estar muito longe disso; vira coisas muito piores quando se insurgira sob o pendão dos Tai-ping! Mas, como quem deseja esgotar todas as objeções antes de se comprometer, acrescentou:
— Renuncias então às probabilidades que o Verdadeiro Mestre te reservou de alcançar a extrema velhice?
— Renuncio.
— Sem arrependimento?
— Sem arrependimento! — respondeu Kin-Fo. — Chegar a velho! Parecer-me com qualquer pedaço de madeira que já se não pode esculpir! Não o desejaria sendo rico, quanto mais pobre!
— E a jovem viúva de Pequim? — lembrou Wang. — Esqueceste o provérbio: a flor com a flor, o salgueiro com o salgueiro! A união de dois corações faz cem anos de primavera!
— Contra trezentos anos de outono, de verão e de inverno! — respondeu Kin-Fo encolhendo os ombros. — Não! Lé-u, pobre, seria infeliz comigo! Ao contrário, a minha morte assegura-lhe uma fortuna.
— Cuidaste disso?
— Cuidei; e tu mesmo, Wang, tens cinqüenta mil dólares contra a minha cabeça.
— Ah! — exclamou simplesmente o filósofo. — Tens resposta para tudo.
— Para tudo, mesmo para uma objeção que ainda me não fizeste.
— Qual?
— Ora! O perigo que poderias correr, após a minha morte, de ser acusado de assassínio.
— Oh! — disse Wang, — só os tolos ou covardes se deixam apanhar! Aliás, que mérito teria eu em prestar-te este último serviço se não corresse risco nenhum?
— Não, Wang! Prefiro garantir-te a esse respeito. Ninguém pensará em incomodar-te!
E dizendo isto Kin-Fo acercou-se de uma mesa, apanhou uma folha de papel, e em caracteres claros traçou as seguintes linhas:
"Foi de livre vontade que me matei, por tédio e cansaço da vida.
KIN-FO".
Em seguida entregou o papel a Wang.
O filósofo leu-o primeiro em voz baixa, depois tornou-o a ler em voz alta. Feito isto dobrou-o cuidadosamente e meteu-o num livrinho de notas que sempre trazia consigo. Um novo clarão lhe iluminava o olhar.
— Tudo isto é sério da tua parte? — perguntou olhando fixamente o discípulo.
— Seriíssimo!
— Pois não o será menos para mim.
— Dá-me a tua palavra?
— Já a tens.
— Portanto, antes de 25 de junho, o mais tardar, terei vivido?
— Não sei se terás vivido no sentido que pensas — respondeu o filósofo com a maior gravidade, — mas não há dúvida nenhuma de que estarás morto!
— Então obrigado, e adeus, Wang!
— Adeus, Kin-Fo!
Após o que, Kin-Fo deixou tranqüilamente o quarto do filósofo.
CUJA CONCLUSÃO, POR SINGULAR QUE SEJA, TALVEZ NÃO SURPREENDA O LEITOR.
— E então, Craig-Fry? — perguntava no dia seguinte o honrado William J. Bidulph aos dois agentes especialmente encarregados de vigiar o novo cliente da Centenária.
— Então — respondeu Craig, — seguimo-lo ontem durante um longo passeio que deu pelos arredores de Shangai.
— E ele não tinha nada o ar de um homem que pensa em matar-se — acrescentou Fry.
— Caíra a noite e nós escoltamo-lo até à porta de casa...
— Onde infelizmente não pudemos entrar.
— E hoje de manhã? — perguntou William J. Bidulph.
— Soubemos que ele continua firme... — respondeu Craig.
— ...como a ponte de Palikao — acrescentou Fry.
Os agentes Craig e Fry, dois americanos puro sangue, dois primos ao serviço da Centenária, constituíam um ser em duas pessoas. Seria impossível estarem mais completamente identificados um ao outro, de tal modo que um terminava invariavelmente as frases que o outro começava, e reciprocamente. O mesmo cérebro, os mesmos pensamentos, o mesmo coração, o mesmo estômago, a mesma maneira de proceder em tudo. Quatro mãos, quatro braços, quatro pernas em dois corpos fundidos. Numa palavra, dois irmãos siameses, aos quais um audaz cirurgião tivesse cortado a sutura.
— De modo — perguntou William J. Bidulph, — que ainda não puderam entrar em casa dele!
— Ainda... — começou Craig.
— ...não — terminou Fry.
— Talvez seja difícil — tornou o agente geral, — mas é indispensável. Trata-se, para a Centenária, não apenas de ganhar um prêmio enorme, mas também de não perder duzentos mil dólares. Por conseqüência, dois meses de vigilância e talvez mais, se o nosso novo cliente renovar a sua apólice.
— Ele tem um criado... — sugeriu Craig.
— ...que talvez pudéssemos aliciar... — continuou Fry.
— ...a fim de saber o que se passa... — tornou Craig.
— ...na residência de Shangai! — terminou Fry.
— Hmmm! — rosnou William J. Bidulph. — Consigam-me esse criado. Comprem-no. Ele deve ser sensível ao toque dos taéis, e os taéis não lhes faltarão. Ainda que seja preciso esgotar as três mil fórmulas de civilidade que comporta a etiqueta chinesa esgotem-nas. E não perderão o seu tempo.
— Assim... — começou Craig.
— ...se fará — concluiu Fry.
E eis porque fortes razões Craig e Fry tentaram entrar em relações com Sun. Ora, Sun não era homem para resistir à sedutora atração dos taéis, e muito menos à delicada oferta de alguns cálices de licores americanos.
Craig e Fry não tardaram a saber por Sun tudo o que lhes oferecia interesse, e que pode resumir-se no seguinte:
Kin-Fo sofrerá alguma mudança no seu estilo de vida? Não, a não ser talvez que maltratava menos o seu fiel criado, que as tesouras dormiam com grande vantagem para o seu rabicho e que a chibata lhe freqüentava menos as costas. Kin-Fo tinha à sua disposição alguma arma perigosa? Não, pois não pertencia à respeitável categoria dos amadores desses instrumentos mortíferos. Que comia ele às refeições?
Alguns pratos preparados com grande simplicidade, que em nada lembravam a fantasiosa cozinha celestial. A que horas se levantava?
Pela quinta vigília, quando a alva, ao apelo dos gaios, começa a clarear o horizonte.
Deitava-se cedo?
Pela segunda vigília, conforme Sun se acostumara a vê-lo fazer.
Parecia triste, preocupado, aborrecido, cansado da vida?
Não era propriamente um homem alegre. Isso não! Contudo, desde alguns dias parecia ter tomado mais gosto pelas coisas deste mundo. Sim! Sun achava-o menos indiferente, como um homem que esperasse... o quê? Não o saberia dizer.
Enfim, seu amo possuía alguma substância venenosa de que pudesse fazer uso?
Já a não devia ter, porque ainda nessa manhã se lançara ao Huang-Pu, por sua ordem, uma dúzia, de pílulas que deviam ter propriedades maléficas.
Realmente, em tudo isso nada havia que pudesse alarmar o agente geral da Centenária. Não! Nunca o rico Kin-Fo, de quem aliás ninguém, excetuado Wang, conhecia a situação, parecera mais satisfeito da vida.
Em todo o caso, Craig e Fry tiveram de continuar a informar-se de tudo o que fazia o seu cliente, a segui-lo em seus passeios, pois era possível que não quisesse atentar contra a vida em sua própria casa.
Assim fizeram os dois inseparáveis e Sun também continuou a falar, com tanta maior confiança quanto só tinha a ganhar nas suas relações com tão generosas pessoas.
Seria talvez exagero dizer que o herói desta história se apegara mais à vida desde que resolvera abandoná-la. Mas, como ele havia imaginado, e pelo menos durante os primeiros dias, não lhe faltaram emoções. Ele pendurara sobre a cabeça uma espada de Dâmocles, e cedo ou tarde essa espada lhe cairia em cima. Seria hoje, amanhã, esta manhã ou esta noite? Completa incerteza a respeito, e daí ansiedades de coração que constituíam novidade para ele.
Além disso, após a conversa que haviam tido, Wang e ele encontravam-se pouco. Ou o filósofo saía de casa com mais freqüência do que antes, ou se fechava no quarto. Kin-Fo não ia lá procurá-lo — não era esse o seu papel, — e até ignorava como Wang passava o tempo. Talvez em preparar alguma cilada... Um antigo Tai-ping devia guardar em seu baú muitas maneiras de despachar um homem. Daí a curiosidade, e portanto novos elementos de interesse.
Enquanto isso, mestre e discípulo encontravam-se quase todos os dias à mesma mesa. Está claro que nenhuma alusão se fazia à comum situação futura de assassino e assassinado. Conversavam sobre as coisas mais variadas — de resto pouco. Wang, mais sério do que de costume, desviando os olhos que os vidros dos óculos mal conseguiam esconder, não podia dissimular uma constante preocupação. De tão bom humor que era, tornara-se calado e taciturno. Antes grande comedor, como todo o filósofo dotado de bom estômago, os delicados manjares não o tentavam mais e o vinho de Chao-Chigne deixava-o distraído.
Por seu lado, Kin-Fo deixava-o bem à vontade. Era o primeiro a provar todos os pratos e considerava-se na obrigação de não deixar recolher um só, sem ao menos lhe haver tocado. Daí resultava Kin-Fo comer mais do que era costume, que o seu paladar enfastiado redescobria algumas sensações, que jantava com excelente apetite e digeria esplendidamente. Sem dúvida alguma o veneno não seria a arma escolhida pelo antigo massacrador do rei dos rebeldes, mas sua vítima devia estar pronta para tudo.
Aliás, Wang dispunha de todas as facilidades para cumprir a sua missão. A porta do quarto de dormir de Kin-Fo ficava sempre aberta. O filósofo podia lá entrar de dia ou de noite, apunhalá-lo dormindo ou acordado. Kin-Fo pedia apenas uma coisa: que a sua mão fosse rápida e o atingisse no coração.
Mas Kin-Fo quedou-se apenas nas emoções, e mesmo após as primeiras noites de tal modo se acostumara a esperar o golpe fatal, que dormia o sono de um justo e acordava todas as manhãs forte e bem disposto. Aquilo não podia continuar.
Veio-lhe então a idéia de que talvez repugnasse a Wang assassiná-lo na casa em que fora tão hospitaleiramente recolhido — e resolveu deixá-lo ainda mais à vontade. Ei-lo pois correndo pelos campos, buscando os lugares isolados, demorando-se até à quarta vigília nos piores bairros de Shangai, autênticos valhacoitos onde os assassínios se verificam cotidianamente na mais perfeita segurança. Vagueava pelas ruas estreitas e sombrias, deparando com bêbados de todas as nacionalidades, sozinho durante as últimas horas da noite, quando o vendedor de biscoitos lançava o seu brado de Mantoú! mantoú!, fazendo retinir a sua campainha para avisar os fumadores retardados. Só recolhia a casa com os primeiros arvores da manhã, sempre são e salvo, bem vivo, sem mesmo ter avistado os dois inseparáveis Craig e Fry, que o seguiam obstinadamente, prontos a socorrê-lo.
Se as coisas continuassem assim, Kin-Fo terminaria por se acostumar a essa nova existência, e em breve o tédio tomaria de novo conta dele.
Quantas horas se passavam já, sem que lhe viesse a idéia de que estava condenado à morte!
Entretanto um dia, 12 de maio, o acaso proporcionou-lhe uma certa emoção. Penetrando devagar no quarto do filósofo, viu-o experimentar na polpa do dedo a ponta aguda do punhal, mergulhando-a em seguida num frasco de vidro azul de aparência suspeita.
Wang não dera pela entrada do discípulo, e segurando o punhal brandiu-o repetidamente, como para se assegurar de que tinha o pulso bem firme. Realmente a sua fisionomia não era tranqüilizadora, naquele momento o sangue parecia congestionar-lhe os olhos!
— Vai ser hoje! — disse consigo Kin-Fo.
E afastou-se discretamente, sem ter sido visto nem ouvido.
Kin-Fo conservou-se no quarto o dia inteiro... mas o filósofo não apareceu. Deitou-se, mas no dia seguinte teve de se levantar tão vivo quanto o pode ser um homem bem constituído.
Tantas emoções para nada! Aquilo ia-se tornando aborrecido.
E já tinham decorrido dez dias, embora Wang tivesse dois meses para se decidir!
— Positivamente, é um vadio! — pensou Kin-Fo. — Dei-lhe prazo demais!
E concordou que o antigo Tai-ping degenerara nas emolientes doçuras de Shangai.
A partir desse dia, contudo, Wang pareceu mais inquieto e agitado. Andava de um lado para outro no yamen, como homem que não pudesse parar. Kin-Fo observou até que o filósofo visitava reiteradamente a sala dos antepassados, onde estava o precioso ataúde vindo de Liau-Tchéu. Soube também por intermédio de Sun, e com algum interesse, que Wang mandara espanar, escovar e conservar bem limpo o referido móvel.
— Como meu amo ficará bem deitado lá dentro! — acrescentou mesmo o fiel criado. — Até dá vontade de experimentar!
Esta observação valeu a Sun um leve gesto de amizade.
Passaram os dias 13, 14 e 15 de maio, e nada de novo.
Tencionaria Wang esgotar o prazo combinado, e só pagar a sua dívida à maneira dos comerciantes, no dia do vencimento, sem qualquer antecipação? Mas então não haveria surpresa; então adeus, emoção!
Na manhã de quinze de maio, contudo, justamente por ocasião do mao-che, que é como quem diz pelas seis horas, Kin-Fo teve notícia de um fato significativo.
Kin-Fo passara mal a noite, e ao acordar estava ainda sob a impressão de um sonho deplorável. O príncipe Ien, supremo juiz do inferno chinês, condenara-o a não comparecer diante dele senão quando a duodécima centésima lua se erguesse no horizonte do Celeste Império. Ainda um século a viver, um século inteiro!
Kin-Fo estava assim de péssimo humor, convencido de que tudo conspirava contra ele.
Em tal disposição de espírito, facilmente se concebe a maneira como recebeu Sun, quando este veio, como era seu costume, ajudá-lo a vestir os trajes matinais!
— Vai para o diabo! — gritou. — Que dez mil pontapés sejam a tua soldada, animal!
— Mas, meu amo...
— Sai daqui, já disse!
— Pois não saio! — respondeu Sun; — pelo menos não saio antes de lhe dizer...
— O quê?
— Que o senhor Wang...
— Wang? Que há com Wang? — replicou vivamente Kin-Fo, segurando Sun pelo rabicho. — Que fez ele?
— Meu amo! — respondeu Sun estorcendo-se como um verme; — ele mandou-nos transportar o caixão do senhor para o pavilhão da Longa Vida, e...
— Ele fez isso? — gritou Kin-Fo com a face desanuviada. — Vai, Sun; vai, amigo. Toma! Aqui tens dez taéis para ti, e que sejam fielmente cumpridas todas as ordens de Wang!
Depois disto Sun retirou-se completamente aturdido, repetindo:
— Não há dúvida de que meu amo enlouqueceu, mas ao menos a loucura deu-lhe para ser generoso!
Agora Kin-Fo já não podia duvidar. O Tai-ping queria liquidá-lo nesse pavilhão da Longa Vida, onde ele próprio decidira morrer. Era como uma entrevista que ali lhe marcava. E não faltaria a ela! A catástrofe estava iminente.
Como o dia pareceu longo a Kin-Fo! A água das clepsidras não parecia correr com a velocidade normal! As agulhas vadeavam nos seus mostradores de mármore.
Enfim, a primeira vigília escondeu o sol no horizonte e a noite desceu pouco a pouco sobre o yamen.
Kin-Fo foi instalar-se no pavilhão, de onde não esperava mais sair vivo. Estendeu-se num macio divã que parecia feito para as longas sestas, e esperou.
Desfilaram-lhe então pela memória as recordações da sua existência inútil, o tédio, as contrariedades, tudo o que a riqueza não pudera evitar, tudo o que a pobreza agravaria ainda!
Apenas uma luz iluminava essa vida, que não tivera atrativos no período da opulência: a afeição que Kin-Fo experimentara pela jovem viúva. Esse sentimento agitava-lhe o coração, no instante em que ele ia deixar de bater. Mas, condenar a pobre Lé-u à desdita juntamente consigo, nunca!
A quarta vigília, que precede o romper da aurora, e durante a qual a vida do universo parece ficar suspensa, essa quarta vigília decorreu para Kin-Fo entre as mais vivas emoções. Aguçava o ouvido ansioso, seus olhos esquadrinhavam a sombra, tentava surpreender os menores ruídos. Mais de uma vez teve a impressão de ouvir gemer a porta, empurrada por mão prudente. Decerto Wang esperava encontrá-lo adormecido e matá-lo-ia durante o sono!
Teve então uma espécie de reação: temia e desejava ao mesmo tempo a terrível aparição do Tai-ping.
A aurora clareava as alturas do zênite com a quinta vigília. O dia despontava lentamente.
Súbito abriu-se a porta da sala.
Kin-Fo ergueu-se, tendo vivido mais nesse derradeiro segundo do que durante a sua vida inteira!...
Sun apareceu diante dele com uma carta na mão.
— Muito urgente! — disse apenas o criado.
Kin-Fo teve como um pressentimento. Recebeu a carta que trazia o carimbo de São Francisco, rasgou o subscrito, leu-a rapidamente e correu para fora do pavilhão da Longa Vida, gritando:
— Wang! Wang!
Num instante alcançou o quarto do filósofo, cuja porta abriu num ímpeto.
Wang já ali não estava. Wang não dormira em casa, e quando, aos brados de Kin-Fo, a criadagem vasculhou todo o yamen, tornou-se claro que Wang desaparecera sem deixar vestígios.
NO QUAL CRAIG E FRY SAO OFICIALMENTE APRESENTADOS AO NOVO CLIENTE DA CENTENÁRIA
— Sim, senhor Bidulph, uma simples manobra de bolsa, à americana! — disse Kin-Fo ao agente geral da companhia de seguros.
O honrado William J. Bidulph sorriu como entendedor.
— Bem feita, realmente, pois todo o mundo foi apanhado — replicou ele.
— Até o meu procurador! — continuou Kin-Fo. — Falsa interrupção de pagamentos, meu caro senhor, falsa falência, falsa notícia! Oito dias depois pagavam de guichês escancarados. Estava pronta a manobra. As ações, depreciadas de oitenta por cento, tinham sido resgatadas à mais baixa cotação pelo Banco Central, e quando foram perguntar ao diretor quanto produziria a falência, ele respondeu amavelmente: "Cento e setenta e cinco por cento!" Eis o que me escreve o meu procurador nesta carta chegada hoje de manhã, quando eu, supondo-me absolutamente arruinado...
— O senhor ia atentar contra a vida? — exclamou William J. Bidulph.
— Não — respondeu Kin-Fo, — quando eu ia provavelmente ser assassinado!
— Assassinado?!
— Com minha autorização por escrito, assassinato combinado, jurado, que lhe iria custar...
— Duzentos mil dólares — atalhou William J. Bidulph, — visto que todas as modalidades de morte estavam previstas. Ah! Quanto o lamentaríamos, caro senhor...
— Pela magnitude da soma?
— E os juros!
William J. Bidulph tomou a mão do cliente e sacudiu-a cordialmente à americana.
— Mas eu não entendo... — acrescentou ele.
— Vai já entender — respondeu Kin-Fo.
E revelou a natureza dos compromissos tomados por um homem que lhe merecia toda a confiança. Citou mesmo os termos da carta que esse homem tinha na carteira, carta que o punha a salvo de qualquer perseguição e lhe garantia toda a impunidade. Mas, coisa muito grave, a promessa feita seria cumprida, a palavra dada seria mantida — a esse respeito não havia a menor dúvida.
— Esse homem é um amigo? — perguntou o agente geral.
— Um amigo — respondeu Kin-Fo.
— E então, por amizade...?
— Por amizade, e quem sabe? Talvez também por interesse! Destinei-lhe cinqüenta mil dólares do meu seguro.
— Cinqüenta mil dólares? — exclamou William J. Bidulph. — É então o senhor Wang?
— Ele próprio!
— Um filósofo! Ele jamais consentirá...
— Esse filósofo é um antigo Tai-ping. Durante metade da sua vida cometeu mais assassínios do que seriam necessários para arruinar a Centenária, se todas as vítimas fossem seus clientes! Há dezoito anos conseguiu reprimir os seus instintos ferozes; mas hoje que se lhe oferece uma ocasião, que me julga arruinado, disposto a morrer, e por outro lado sabedor de que a minha morte lhe renderá uma pequena fortuna, não hesitará...
Mas Kin-Fo não disse nada disto. Seria comprometer Wang, que William J. Bidulph não titubearia em denunciar ao governador da província como um Tai-ping remanescente. Isso talvez o salvasse, mas era perder o filósofo.
— Bem — continuou o agente da companhia de seguros — há uma coisa muito simples a fazer!
— Qual?
— Prevenir o senhor Wang de que está tudo sem efeito e reaver essa carta comprometedora que...
— É mais fácil de dizer que de fazer — replicou Kin-Fo. — Wang está desaparecido desde ontem e ninguém sabe onde ele foi.
— Hmmm! — resmungou o agente geral, cuja perplexidade esta interjeição denotava.
Fitou atentamente o seu cliente.
— E agora, caro senhor, já não tem desejo algum de morrer? — perguntou.
— Palavra que não! — respondeu Kin-Fo. — A manobra do Banco Central Californiano quase duplicou a minha fortuna, e eu vou muito simplesmente casar-me! Mas só o farei depois de ter encontrado Wang, ou quando o prazo tiver definitivamente expirado.
— E expira...?
— Em 25 de junho deste ano. Durante este lapso de tempo a Centenária corre riscos consideráveis. É pois de seu interesse tomar as medidas adequadas.
— E descobrir o filósofo! — acrescentou o honrado William J. Bidulph.
O agente passeou alguns instante com as mãos atrás das costas e prosseguiu:
— Bem, encontraremos esse amigo tão dedicado, ainda que ele esteja escondido nas entranhas do globo. Mas até lá o senhor será defendido contra toda a tentativa de assassinato, do mesmo modo como o tem sido contra toda a tentativa de suicídio!
— Que quer dizer?
— Que desde 30 de abril último, dia em que o senhor assinou a sua apólice de seguro, dois dos meus agentes lhe seguiram os passos, observaram as suas ações, espiaram as suas atitudes!
— Não percebi...
— Oh! São pessoas discretas! Peço licença para lhos apresentar, agora que já não terão de ocultar seus movimentos a não ser do senhor Wang.
— Com prazer — respondeu Kin-Fo.
— Craig-Fry devem andar por perto, visto que o senhor está aqui!
E William J. Bidulph gritou:
— Craig! Fry!
Craig e Fry estavam realmente atrás da porta do gabinete particular. Tinham "filado" o cliente da Centenária até à sua entrada no escritório, e aguardavam-no à saída.
— Craig-Fry — disse então o agente geral, — durante toda a vigência da sua apólice de seguro, os senhores não precisarão mais defender o nosso precioso cliente contra si mesmo, mas contra um dos seus melhores amigos, o filósofo Wang, que se comprometeu a assassiná-lo!
E os dois inseparáveis foram postos ao corrente da situação. Compreenderam-na e aceitaram-na. O rico Kin-Fo pertencia-lhes e não teria servos mais fiéis.
Agora, que partido tomar?
Havia dois, como observou o agente geral: ou fechar-se cuidadosamente na casa de Shangai, de modo que Wang lá não pudesse entrar sem ser visto por Craig-Fry, ou fazer toda a diligência por saber onde se encontrava o dito Wang, e apanhar-lhe a carta que devia ser considerada nula e de nenhum efeito.
— O primeiro alvitre nada vale — respondeu Kin-Fo. — Wang poderia perfeitamente aproximar-se de mim sem ser visto, dado que a minha casa é a sua. O que precisamos é encontrá-lo, custe o que custar.
— O senhor tem razão — respondeu William J. Bidulph. — O mais seguro é encontrar o dito Wang, e havemos de encontrá-lo!
— Morto... — começou Craig.
— ...ou vivo! — terminou Fry.
— Não! Vivo! — exclamou Kin-Fo. — Não quero que por culpa minha Wang corra um só momento de perigo!
— Craig e Fry — acrescentou William J. Bidulph, — os senhores responderão pelo nosso cliente durante mais quarenta e cinco dias. Até ao próximo dia 30 de junho este senhor vale para nós duzentos mil dólares.
Dito isto, o cliente e o agente geral da Centenária despediram-se um do outro. Dez minutos depois, Kin-Fo escoltado pelos seus dois guarda-costas, que não mais o largariam, entrava no seu yamen.
Quando Sun viu Craig e Fry oficialmente instalados na casa, não deixou de lamentar o fato. Não haveria mais perguntas, não haveria mais respostas e por conseqüência não haveria mais taéis! Além disso o seu amo, de novo apegado à vida, retomou a sua severidade para com o desastrado e preguiçoso criado. Infeliz Sun! Que diria ele se soubesse o que lhe reservava o futuro!
O primeiro cuidado de Kin-Fo foi fonografar para Pequim, avenida Cha-Cua, a mudança de fortuna que o tornava ainda mais rico do que antes. A jovem senhora ouviu a voz daquele que julgava para sempre perdido repetir-lhe as suas mais delicadas ternuras. Tornaria a ver a irmãzinha mais nova. A sétima lua não desapareceria antes dele correr junto dela para não mais a deixar. Mas, tendo recusado associá-la à sua pobreza, não queria arriscar-se a deixá-la viúva.
Lé-u não percebeu bem o que significava esta última frase; sabia apenas uma coisa, que o seu noivo ia voltar e que antes de dois meses estaria ao pé de si.
Nesse dia, em todo o Celeste Império não houve mulher mais feliz que a jovem viúva.
Com efeito, dera-se uma completa revolução nas idéias de Kin-Fo, agora quatro vezes milionário, graças à feliz especulação do Banco Central Californiano. Ele queria viver, e viver bem. Vinte dias de emoções tinham-no transformado. Nem o mandarim Pao-Shen, nem o comerciante Yin-Pang, nem Tim o boêmio, nem Hual o letrado teriam reconhecido nele o entediado anfitrião que deles se despedira num dos barcos-floridos do rio das Pérolas. Wang não acreditaria nos seus próprios olhos se ali estivesse. Mas desaparecera sem deixar qualquer vestígio, não tendo voltado à casa de Shangai — o que significava grandes preocupações para Kin-Fo e transes contínuos para os seus guarda-costas.
Oito dias mais tarde, a 24 de maio, não havia ainda nenhuma notícia do filósofo, e portanto nenhuma possibilidade de sair atrás dele. Em vão Kin-Fo, Craig e Fry tinham vasculhado os territórios das concessões, os bazares, os bairros suspeitos, os arredores de Shangai. Em vão os mais hábeis tipaos da polícia haviam sido postos em campo. O filósofo continuava desaparecido.
Entretanto Craig e Fry, cada vez mais inquietos, redobravam de precauções. Nem de dia nem de noite se separavam do seu cliente, comendo à sua mesa, dormindo no seu quarto. Tentaram mesmo convencê-lo a usar uma cota de malha, para se proteger contra uma punhalada, e a não comer senão ovos à la coque, que não podiam ser envenenados.
Kin-Fo, valha a verdade, mandou-os passear. Por que não o fechar durante dois meses no cofre-forte da Centenária, a pretexto de que ele valia duzentos mil dólares?
Então, William J. Bidulph, sempre prático, propôs ao seu cliente restituir-lhe o prêmio pago e rasgar a apólice de seguro.
— Sinto muito — declarou francamente Kin-Fo, — mas o negócio está feito e o senhor terá de suportar-lhe as conseqüências.
— De acordo — replicou o agente geral certo de que nada podia fazer; — de acordo! O senhor tem razão! Ninguém o guardará,melhor do que nós!
— Nem mais barato! — terminou Kin-Fo.
NO QUAL VEMOS KIN-FO TORNAR-SE O HOMEM MAIS CÉLEBRE DO IMPÉRIO DO MEIO
Wang continuava desaparecido. Kin-Fo começava a irritar-se por se ver reduzido à inação, não podendo sequer correr atrás do filósofo. Mas como o haveria de fazer se Wang desaparecera sem deixar qualquer indício?
Esta complicação também perturbava o agente geral da Centenária. Tendo primeiramente pensado que nada daquilo era sério, que Wang não cumpriria a sua promessa, que nem mesmo na excêntrica América poderiam ter lugar semelhantes fantasias, terminou convencido de que nada era impossível no estranho país que se chama o Celeste Império. Logo abundou na opinião de Kin-Fo, isto é: que se não conseguissem achar o filósofo, o filósofo manteria a palavra dada. A sua desaparição indicava mesmo o intuito de só agir no momento em que o seu discípulo menos esperasse, à maneira do raio, e de o ferir no coração com mão rápida e segura. Em seguida, colocando a carta sobre o corpo da vítima, apresentar-se-ia tranqüilamente nos escritórios da Centenária para reclamar a sua parte no seguro.
Era pois imprescindível avisar Wang, mas avisá-lo diretamente parecia impossível.
O honrado William J. Bidulph foi assim coagido a empregar os meios indiretos por via da imprensa. Em poucos dias foram mandados anúncios para os jornais chineses e telegramas ao jornais estrangeiros dos dois mundos.
O Tching-Pao, jornal oficial de Pequim, as folhas redigidas em chinês em Shangai e Hong-Kong, os jornais mais lidos na Europa e nas duas Américas reproduziram à saciedade a seguinte nota:
"Pede-se ao senhor Wang, de Shangai, considerar sem nenhum efeito a combinação havida entre o senhor Kin-Fo e ele, em 2 de maio último, tendo agora o senhor Kin-Fo um único desejo, que é o de morrer centenário".
Este singular anúncio em breve foi seguido de outro, sem dúvida muito mais prático:
"Dois mil dólares ou mil e trezentos taéis a quem der a conhecer ao senhor William J. Bidulph, agente geral da Centenária em Shangai, a residência atual do senhor Wang, da dita cidade".
Não era natural que o filósofo tivesse ido correr mundo durante o prazo de cinqüenta e cinco dias que lhe fora dado para cumprir a sua promessa. Era mais provável que estivesse escondido nos arredores de Shangai, de modo a aproveitar todas as ocasiões; mas o honrado William J. Bidulph não se julgava capaz de tomar todas as precauções.
Passaram-se vários dias e a situação não se modificou. Sucedeu porém que o anúncio, profusamente espalhado sob a forma familiar aos americanos: WANG! WANG! WANG!!! de um lado, e KIN-FO! KIN-FO! KIN-FO!!! do outro, acabou por atrair a atenção pública e provocar a hilaridade.
Era uma risota geral até ao fundo das províncias mais retiradas do Celeste Império.
— Onde está Wang?
— Quem viu Wang?
— Onde mora Wang?
— Que faz Wang?
— Wang! Wang! Wang! — gritavam os chinesinhos das ruas.
Estas perguntas correram logo em todas as bocas.
E Kin-Fo, o digno celestial "cujo único desejo era chegar a centenário", que pretendia competir em longevidade com o célebre elefante cujo vigésimo lustro decorria então no Palácio das Cavalariças de Pequim, não tardou a ficar completamente na moda.
— Então, a idade do senhor Kin-Fo vai aumentando?
— Como vai ele?
— Digere convenientemente?
— Vê-lo-emos envergar a túnica amarela dos velhos?4 Era com estes gracejos que se abordavam os mandarins civis ou militares, os negociantes da Bolsa, os mercadores nos seus balcões, a gente do povo no meio das ruas e das praças, os barqueiros nas suas cidades flutuantes!
Os chineses são muito alegres e cáusticos, e não se pode negar que havia certo motivo para a zombaria geral. Por conseqüência piadas de toda a espécie e até caricaturas que excediam os muros da vida particular.
Kin-Fo, grandemente contrariado, teve de suportar os inconvenientes dessa curiosa celebridade. Até o meterem numa canção com a música de Mantchiang-hung, o vento que sopra nos salgueiros! Surgiu também um libreto que o punha em cena: As Cinco Vigílias do Centenário! Que título aliciante e que saída teve ele a três sapecas o número!
Se Kin-Fo se aborrecia com todo esse barulho feito em torno do seu nome, William J. Bidulph, ao contrário, exultava. Mas nem por isso Wang permanecia menos oculto a todas as vistas.
As coisas foram-se de tal modo agravando, que dentro em pouco a posição de Kin-Fo tornou-se insustentável. Se porventura saía, um cortejo de chineses de todas as idades e sexos o acompanhava pelas ruas, no cais, mesmo através das concessões estrangeiras, mesmo no campo. Se entrava, uma turba de chasqueadores da pior espécie amontoava-se à porta do yamen.
Todas as manhãs era intimado a mostrar-se na sacada do seu quarto, a fim de provar que os seus criados o não tinham prematuramente deitado no caixão do quiosque da Longa Vida. Os jornais publicavam por troça um boletim humorístico da sua saúde, seguido de comentários irônicos, como se ele pertencesse à dinastia reinante dos Tsing. Em resumo, tornara-se perfeitamente ridículo.
Sucedeu pois que um dia, a 21 de maio, o vexadíssimo Kin-Fo foi procurar o honrado William J. Bidulph e comunicou-lhe a sua intenção de partir imediatamente. Estava farto de Shangai e dos shangaienses!
— Será correr perigos ainda maiores! — observou com prudência o agente geral.
— Pouco me importa! — respondeu Kin-Fo. — Tome as suas providências.
— Mas onde vai o senhor?
— Para a frente.
— E onde tenciona parar?
— Em parte alguma.
— E quando voltará?
— Nunca.
— E se eu receber notícias de Wang?
— Wang que vá para o diabo! Estúpida idéia a minha, dar-lhe essa absurda carta!
No íntimo, Kin-Fo sentia um furioso desejo de encontrar o filósofo! Irritava-o profundamente a idéia de que a sua vida estivesse nas mãos de um outro. Era já uma obsessão. Nunca se resignaria a esperar ainda mais de um mês naquelas condições! O cordeiro ia-se enfurecendo!
— Pois bem, parta — concordou William J. Bidulph; — Craig e Fry o seguirão por toda a parte onde vá!
— Como quiser — respondeu Kin-Fo; — mas previno-o de que eles terão de correr.
— Correrão, meu caro senhor, correrão; não são homens para poupar as pernas!
Kin-Fo regressou ao yamen, e sem perda de um minuto organizou a partida.
Sun, muito contra a vontade — detestava mudanças, — tinha de acompanhar o amo; mas não arriscou a menor observação, que certamente lhe teria custado um bom pedaço do rabicho.
Quanto a Fry-Craig, como bons americanos estavam sempre prontos a partir, ainda que fosse para o fim do mundo. Fizeram apenas uma pergunta:
— Aonde vai... — começou Craig.
— ...o senhor? — terminou Fry.
— Primeiro a Nanquim, depois ao inferno!
O mesmo sorriso apareceu simultaneamente nos lábios de Craig-Fry. Estavam ambos encantados! Ao inferno! Nada podia ser-lhes mais agradável. Queriam apenas o tempo de se despedir de William J. Bidulph, e também de envergar um traje chinês que chamaria menos a atenção sobre as suas pessoas durante essa viagem através do Celeste Império.
Uma hora depois, Craig e Fry, de sacola ao ombro e revólver, à cinta, voltavam ao yamen.
À boca da noite Kin-Fo e seus companheiros atravessavam discretamente a porta da concessão americana, e embarcavam num navio a vapor que faz o serviço de Shangai a Nanquim.
Essa viagem não é mais que um passeio. Em menos de doze horas, um barco aproveitando a vazante pode subir pelo rio Azul até à antiga capital da China meridional.
Durante essa curta travessia, Craig-Fry desvelaram-se em atenções com o seu precioso Kin-Fo, não sem antes passarem revista a todos os passageiros. Conheciam o filósofo — que habitante das três concessões não conhecia essa boa e simpática figura! — e queriam a certeza de que ele os não seguira a bordo. Tomada esta precaução, não havia cuidados que não tivessem a todo o instante como cliente da Centenária: experimentando a solidez dos balaústres a que se encostava, tateando com o pé as pontes onde por vezes se detinha, levando-o para longe da casa das máquinas, cujas caldeiras lhes pareciam suspeitas, impedindo-o de se expor à brisa cortante da tarde, de se resfriar no ar úmido da noite, velando para que as vigias da sua cabina estivessem hermèticamente fechadas, brigando com Sun, o negligente criado que nunca atendia quando o seu amo o chamava, substituindo-o quando era preciso para servir o chá e os biscoitos da primeira vigília, dormindo enfim à porta do camarote de Kin-Fo, vestidos, com o colete de salvação aos ombros, prontos a socorrê-lo em caso de abalroamento ou explosão que levasse o navio às profundezas do rio.
Mas nenhum acidente se verificou que pusesse à prova a ilimitada dedicação de Fry-Craig. O navio desceu rapidamente o curso do Wusung, desembocou no Yang-The-Kiang, ou rio Azul, costeou a ilha de Tsong-Ming, deixou para trás os faróis de U-Song e de Lang-Chang, subiu com a maré através da província de Kiang-Su, e em 22 de maio desembarcou os seus passageiros sãos e salvos no cais da antiga cidade imperial. Graças aos dois guarda-costas, o rabicho de Sun não diminuíra um centímetro durante a viagem. O preguiçoso não tinha nada de que se queixar.
Não era sem motivo que Kin-Fo, ao sair de Shangai, quisera logo em seguida parar em Nanquim. Ele supunha ter algumas probabilidades de aí encontrar o filósofo.
Wang, com efeito, poderia ter sido atraído pelas recordações que o ligavam àquela infeliz cidade, centro principal da rebelião dos Tchang-Mao. Não fora ela ocupada e defendida por esse simples mestre-escola, o temível Rong-Siéu-Tsien, que se tornou imperador dos Tai-ping e desafiou por tanto tempo a autoridade manchu? Não foi nessa cidade que ele proclamou a nova era da Grande Paz.5 Não foi lá que ele se envenenou em 1864 para não se entregar vivo aos seus inimigos? Não foi do antigo palácio dos reis que fugiu seu jovem filho, cuja cabeça os imperiais sem dúvida ceifariam? Não foi em meio às ruínas da cidade em chamas que os seus ossos foram tirados do sepulcro e dados a comer aos mais vis animais? Não foi enfim, nessa província, que cem mil dos antigos companheiros de Wang foram massacrados em três dias?
Não era portanto impossível que o filósofo, tomado de uma espécie de nostalgia desde que a sua vida mudara, corresse a refugiar-se nesses lugares tão cheios de recordações pessoais! De lá, em poucas horas podia regressar a Shangai, pronto a matar...
Era este o motivo por que Kin-Fo se dirigira primeiramente a Nanquim e queria deter-se nessa primeira etapa da sua viagem. Se lá encontrasse Wang estaria o caso resolvido, e terminaria essa absurda situação. Se Wang não aparecesse, continuaria as suas peregrinações através do Celeste Império, até ao dia em que, passado o prazo, nada mais tivesse a temer do seu antigo mestre e amigo.
Kin-Fo, acompanhado de Craig e de Fry, e seguido de Sun, dirigiu-se a um hotel, situado num desses bairros menos populosos em redor dos quais se estendem, como um deserto, três quartas partes da antiga capital.
— Eu viajo com o nome de Ki-Nan — limitou-se Kin-Fo a dizer aos companheiros, — e não quero que o meu verdadeiro nome seja jamais pronunciado, sob pretexto nenhum.
— Ki... — começou Craig.
— ...Nan — terminou Fry.
— Ki-Nan — repetiu Sun.
Facilmente se compreende que Kin-Fo, que fugia aos inconvenientes da celebridade de Shangai, não desejasse encontrá-los em seu caminho. Além do mais nada dissera a Fry-Craig sobre a possível presença do filósofo em Nanquim. Esses meticulosos agentes desenvolveriam um luxo de precauções justificado pelo valor pecuniário do seu cliente, mas que lhe seria extremamente desagradável. Com efeito, se eles tivessem de viajar através de um país suspeito com um milhão nos bolsos, não se teriam mostrado mais cautelosos. Mas em suma, não era um milhão que a Centenária confiara à sua guarda?
Passaram o dia inteiro visitando os bairros, as praças e as ruas de Nanquim; da porta do oeste à porta de leste, do norte ao sul, a cidade tão decaída do seu antigo esplendor foi inteiramente percorrida. Kin-Fo andava depressa, falando pouco, observando muito.
Não avistaram nenhum rosto conhecido, nem nos canais freqüentados pelo grosso da população, nem nas vielas empedradas, sumidas entre os escombros e já invadidas pelas ervas daninhas. Nenhum estranho foi visto vagueando sob os pórticos de mármore meio derruídos, os panos das muralhas calcinadas que marcam o lugar do Palácio Imperial, teatro dessa luta feroz onde Wang decerto resistira até ao momento final. Ninguém tentou esconder-se aos olhos dos visitantes, nem em redor do yamen dos missionários católicos, que os nanquinenses quiseram chacinar em 1870, nem nas proximidades da fábrica de armas, recentemente erguida com os indestrutíveis tijolos da célebre torre de porcelana com que os Tai-ping haviam juncado o solo.
Kin-Fo, sobre quem a fadiga não parecia ter efeito, caminhava sempre, arrastando os dois acólitos que não desanimavam, deixando atrás o infortunado Sun, pouco habituado a esse gênero de exercício, saiu pela porta leste e aventurou-se pelo campo deserto.
Uma infindável avenida, orlada de imensos animais de granito, abria-se a alguma distância da muralha de circunvalação.
Kin-Fo entrou por essa avenida num passo ainda mais rápido.
Um pequeno templo fechava-lhe a extremidade, e por trás erguia-se um tumulus, alto como uma colina. Sob esse outeiro repousava Rong-U, o bonzo que fora imperador, um desses audaciosos patriotas que, cinco séculos antes tinham lutado contra o domínio estrangeiro. Não teria o filósofo vindo retemperar-se nessas gloriosas memórias, sobre o próprio túmulo onde jazia o fundador da dinastia dos Ming?
O tumulus estava deserto e o templo abandonado. Nenhum guarda além desses colossos mal delineados em mármore, fantásticos animais que povoavam sozinhos a extensa avenida.
Por cima da porta do templo, contudo, Kin-Fo avistou emocionado alguns caracteres gravados à mão. Aproximou-se e pôde ver estas três letras:
Wang! Kin-Fo! Não havia dúvida, o filósofo passara ali recentemente!
Kin-Fo, em silêncio, olhou, procurou... Ninguém.
À noite, Kin-Fo, Craig, Fry e Sun, que se vinha arrastando, regressaram ao hotel, e no dia seguinte pela manhã deixaram Nanquim.
NO QUAL KIN-FO, SEUS DOIS ACÓLITOS E SEU CRIADO, SE LANÇAM Ã AVENTURA.
Quem é o viajante que vemos correr pelas grandes rotas fluviais ou carroçáveis, pelos canais e rios do Celeste Império? Ele caminha, caminha sempre, nunca sabendo de véspera onde estará no dia seguinte. Atravessa as cidades sem as ver, detém-se nos hotéis e hospedadas apenas para dormir algumas horas, pára nas casas de pasto o tempo indispensável para engolir uma refeição sumária. O dinheiro não lhe interessa; prodigaliza-o, espalha-o a fim de apressar a sua marcha.
Contudo não é um mercador que vai tratar de negócios. Nem um mandarim a quem o ministro encarregou de alguma missão importante e premente. Também não é um artista em busca de belezas naturais. Nem um letrado, um sábio, cujas inclinações o levem à procura de antigos documentos guardados nos mosteiros budistas ou dos lamas da velha China. Nem um estudante que se dirige ao pagode dos Exames para conquistar os seus graus universitários, nem um sacerdote de Buda correndo o campo para inspecionar os pequenos altares campestres, erguidos entre as raízes do banyan sagrado, nem um peregrino que vai pagar alguma promessa a uma das cinco montanhas santas do Império do Meio.
É o falso Ki-Nan, acompanhado de Fry-Craig, sempre dispostos, seguido de Sun, cada vez mais fatigado. É Kin-Fo, nessa bizarra disposição de espírito que o leva ao mesmo tempo a fugir e a procurar o inencontrável Wang. É o cliente da Centenária que apenas busca nesse vaivém o esquecimento da sua situação, e talvez uma garantia contra os perigos invisíveis que o ameaçam. O melhor atirador tem alguma probabilidade de errar contra um alvo móvel, e Kin-Fo deseja ser esse alvo que nunca se imobiliza.
Os viajantes tinham outra vez tomado em Nanquim um desses rápidos navios americanos, vastos hotéis flutuantes que percorrem o rio Azul. Sessenta horas depois desembarcavam em Ran-Kéu, sem sequer ter admirado esse estranho rochedo, o "Pequeno Órfão", que se ergue em meio à corrente do Yang-Tse-Kiang, cujo cimo é tão audaciosamente coroado por um templo onde servem bonzos.
Em Ran-Keú, situada na confluência do rio Azul e do seu importante tributário o Ran-Kiang,6 o errante Kin-Fo mal se deteve meio dia. Também ali se encontravam em ruínas irreparáveis as recordações dos Tai-ping; mas nem nessa cidade mercantil, que não passa, a bem dizer, de um anexo da prefeitura de Ran-Yang-Fu, construído na margem direita do afluente, nem em U-Tchang-Fu, capital a província de Ru-Pé, edificada sobre a margem direita do rio, o misterioso Wang deixou vestígios da sua passagem. Sequer outras daquelas terríveis letras que Kin-Fo encontrara em Nanquim, no túmulo do bonzo coroado.
Se Craig e Fry tinham imaginado recolher daquela viagem à China alguma idéia dos costumes ou algum conhecimento das cidades, em breve se desenganaram. Nem mesmo tinham tempo para tomar notas, e as suas impressões ficariam reduzidas a alguns nomes de cidades e burgos e a algumas datas. Mas eles não eram curiosos nem palradores. Quase nunca se falavam. Para quê? O que Craig pensava também o pensava Fry, de modo que fariam apenas um monólogo. Assim, do mesmo modo que o seu cliente, não observavam essa dupla fisionomia comum à maioria das cidades chinesas, mortas no centro mas vivas nos arrabaldes. Em Ran-Kéu mal avistaram o bairro europeu, de ruas largas e retangulares, moradias elegantes, e o passeio sombreado de grandes árvores que corre ao longo da margem do rio Azul. Só tinham olhos para ver um homem, e esse homem permanecia invisível.
O navio, graças à enchente que erguera as águas do Ran-Kiang, ia poder subir esse afluente durante mais cento e trinta léguas, até Lao-Ro-Kéu.
Kin-Fo não era homem para abandonar esse gênero de locomoção, que lhe agradava. Ao contrário, tinha a intenção de seguir até ao ponto em que o Ran-Kiang deixasse de ser navegável. Daí por diante, pensaria. Quanto a Craig e Fry, outra coisa não desejavam senão que essa navegação durasse todo o tempo da viagem. A vigilância a bordo era mais fácil, os perigos menos iminentes. Mais tarde, nas estradas inseguras das províncias da China central, seria bem diferente.
A Sun também agradava aquela vida de navio. Não era preciso andar, pouco tinha que fazer, deixava o amo entregue aos cuidados de Craig-Fry, não pensava senão em dormir no seu canto, depois de ter almoçado, jantado e ceado conscienciosamente — e a cozinha não era má.
Foi até uma modificação sobrevinda na alimentação de bordo, alguns dias depois, que a quem o ignorasse poderia indicar uma mudança de latitude que acabava de se verificar na situação geográfica dos passageiros.
Com efeito, durante a refeição, o trigo substituiu bruscamente o arroz sob a forma de pães sem lêvedo, bastante agradáveis ao paladar quando eram comidos ao sair do forno.
Sun, como verdadeiro chinês do sul, lamentou a falta do seu costumeiro arroz. Ele manobrava tão habilmente os seus pauzinhos quando levava os grãos do prato até sua vasta boca e os absorvia em enormes proporções! Arroz e chá, que mais necessita um verdadeiro Filho do Céu?
O navio, subindo o curso do Ran-Kiang, acabava de entrar na região do trigo, onde o relevo das terras se acentuava melhor. No horizonte surgiram algumas montanhas coroadas de fortificações, construídas durante a antiga dinastia dos Ming. Os taludes artificiais que continham as águas do rio cederam lugar às margens baixas que alargavam o leito com sacrifício da profundidade. Avistou-se a prefeitura de Guan-Lo-Fu.
Kin-Fo nem mesmo desembarcou durante as poucas horas que o navio gasta a meter combustível diante dos armazéns da alfândega. Que iria ele fazer a uma cidade que tão pouco lhe interessava? Já que não encontrava vestígios do filósofo, tinha apenas um desejo: mergulhar cada vez mais profundamente na China central, onde, se não apanhasse Wang, Wang também o não apanharia.
A Guan-Lo-Fu seguiram-se duas cidades edificadas frente a frente, a cidade mercantil de Fan-Tcheng na margem esquerda, e a prefeitura de Siang-Yiang-Fu, na margem direita; a primeira, um burgo cheio de movimento da população e da agitação dos negócios; a segunda, residência das autoridades e mais morta que viva.
Depois de Fan-Tcheng, o Ran-Kiang subindo direito ao norte por um ângulo brusco, ainda é navegável até Lao-Ro-Keú. Mas por falta de água o navio não pôde prosseguir.
Deu-se então uma mudança completa. A partir desta última para as condições de viagem tiveram de ser modificadas. Tratava-se de abandonar os rios "esses caminhos que andam" e andar por si mesmo, ou pelo menos agüentar em vez do suave deslizar de um navio, as sacudidelas, saltos e encontrões dos lamentáveis veículos usados no Celeste Império. Desgraçado Sun! A série de balbúrdias, cansaços e reclamações ia começar de novo para ele!
Com efeito, quem acompanhasse Kin-Fo nessa inconcebível peregrinação, de província em província, de cidade em cidade, teria muito que fazer!
Às vezes viajava de carruagem, mas que carruagem! Uma caixa duramente fixada ao eixo de duas rodas por grossos pregos de ferro, arrastada por duas mulas teimosas, coberta por um simples toldo igualmente varado pelos fios de chuva e pelos raios de sol. Outras vezes viam-no estendido numa cadeira de braços, espécie de guarita suspensa entre dois compridos bambus, e sujeita a movimentos tão desencontrados e violentos que se fosse um barco se desmembraria em todo o seu arcabouço.
Craig e Fry montavam guarda às portinholas como ajudantes de campo, em dois burros ainda mais rebolantes e incômodos que a cadeira. Sun, nessas ocasiões em que a marcha era necessariamente um tanto rápida, seguia a pé, resmungando, praguejando, reconfortando-se mais de que convinha com freqüentes talagadas de aguardente de Kao-Liang. Em conseqüência também ele experimentava movimentos especiais de cambaleio, cuja causa entretanto não provinha das irregularidades do solo. Em uma palavra, o pequeno grupo não seria mais sacudido se navegasse num mar revolto.
Foi a cavalo — péssimos cavalos como se pode supor, — que Kin-Fo e os seus companheiros entraram em Si-Gnan-Fu, a antiga capital do Império do Meio, e onde residiam outrora os imperadores da dinastia dos Tang.
Mas, para alcançar a longínqua província do Chen-Si, para lhe atravessar as infindáveis planícies áridas e nuas, quantas fadigas a suportar e até perigos!
O sol de maio, numa latitude que corresponde à da Espanha meridional, projetava raios já insuportáveis, erguendo a fina poeira das estradas que jamais conheceram o conforto dos empedrados. Desses turbilhões amarelados, sujando o ar como uma fumaça maligna, saía-se imundo dos pés à cabeça. Eram as terras do loess, singular formação geológica peculiar ao norte da China "que já não é terra mas ainda não é rocha, ou, para melhor dizer, é uma pedra que ainda não teve tempo de se solidificar".7
Quanto aos perigos eram bem reais, numa região em que os homens da polícia nutrem verdadeiro pavor das facadas dos ladrões. Se nas cidades os tipaos deixam como livre os malfeitores, se nos bairros centrais os moradores quase não ousam sair à rua de noite, avalie-se o grau de segurança que oferecem as estradas! Várias vezes grupos suspeitos pararam à passagem dos viajantes, quando estes enveredavam pelos estreitos atalhos fundamente cavados entre as camadas do loess; mas a presença de Craig-Fry, os revólveres à cinta, tinham-se imposto até então aos batedores das estradas. Contudo os agentes da Centenária experimentaram em mais de uma ocasião sérios temores, não tanto por eles como pelo milhão vivo que escoltavam. Fosse Kin-Fo derrubado pelo punhal de Wang ou pela faca de um salteador, o resultado era o mesmo. A caixa da companhia é que receberia a facada.
Aliás, em tais circunstâncias, Kin-Fo não menos bem armado, também não deixaria de se defender. A vida importava-lhe mais do que nunca e, como diziam Craig e Fry "seria capaz de morrer para a conservar".
Em Si-Gnan-Fu não era provável que encontrassem algum vestígio do filósofo. Nunca um antigo Tai-ping pensaria em refugiar-se ali. É uma cidade de que os rebeldes não puderam transpor as muralhas no tempo da revolução, e sempre ocupada por uma numerosa guarnição manchu. A não ser que nutrisse um gosto muito especial pelas curiosidades arqueológicas, abundantes nessa cidade, e fosse versado nos mistérios da epigrafia, cujo museu, chamado "a floresta das tabuinhas", encerra incalculáveis riquezas, que iria Wang lá fazer?
Por isso, no dia seguinte ao da sua chegada, Kin-Fo abandonando essa cidade que é um importante centro de negócios entre a Ásia Central, o Tibé, a Mongólia e a China, retomou a estrada do norte.
Seguindo por Kao-Lin-Sien, por Sing-Tong-Sien, a estrada do vale do Uei-Ro, de águas tintas dos tons amarelados desse loess através do qual ele foi abrindo o seu leito, o pequeno grupo chegou a Rua-Tcheú, que foi palco de uma terrível insurreição muçulmana em 1860. Daí, utilizando barcos e cadeirinhas Kin-Fo e os seus companheiros atingiram, depois de grandes canseiras, a fortaleza de Tong-Kuan, situada na confluência do Uei-Ro e do Ruang-Ro.
O Ruang-Ro é o famoso rio Amarelo. Ele desce diretamente do norte para ir, através das províncias de leste, lançar-se no mar que tem o seu nome, sem ser mais amarelo do que o Mar Vermelho é vermelho, o Mar Branco, branco e o Mar Negro, negro. Oh! Rio célebre e de origem celeste, sem dúvida, visto que a sua cor é a dos imperadores Filhos do Céu, mas também "Desgraça da China", qualificação devida às suas terríveis inundações que em parte causaram a impraticabilidade atual do canal Imperial.
Em Tong-Kuan os viajantes podiam considerar-se em segurança, mesmo de noite. Não se trata mais de uma cidade mercantil, mas de uma cidade militar, habitada como domicílio fixo e não como acampamento provisório pelos tártaros man-chus que constituem a primeira categoria do exército chinês! Talvez Kin-Fo tivesse a intenção de aí repousar alguns dias.
Talvez fosse procurar num hotel confortável um bom quarto, uma boa mesa, uma boa cama — o que de nenhum modo desagradaria a Fry-Craig e muito menos a Sun!
Mas esse desastrado — e desta vez isso custou-lhe uma boa polegada de rabicho, — teve a imprudência de dar na alfândega, em vez do nome suposto, o verdadeiro nome de seu amo. Esqueceu que já não era a Kin-Fo, e sim a Ki-Nan, que tinha a honra de servir.
Que estupidez! Obrigou este último a deixar imediatamente a cidade. O nome produzira o seu efeito: o célebre Kin-Fo chegara a Tong-Kuan! Todos queriam ver o homem singular "cujo único e exclusivo desejo era chegar a centenário!"
O arrepiado viajante, seguido dos seus dois guardas e do criado, mal teve tempo de fugir através da multidão de curiosos que se reunira atrás dele. A pé, dessa vez a pé, subiu as margens do rio Amarelo, assim continuando até ao momento em que seus companheiros e ele próprio caíram de puro esgotamento num pequeno povoado, onde o seu incógnito lhe asseguraria algumas horas de tranqüilidade.
Sun, completamente desolado, não ousava mais dizer uma palavra. Por sua vez, com o ridículo rabinho de rato que lhe restava, era agora objeto dos gracejos mais desagradáveis! Os garotos corriam atrás dele e chamavam-lhe os nomes mais absurdos.
Também ele tinha pressa de chegar. Mas chegar aonde, se o seu amo — como tivera ocasião de dizer a William J. Bidulph, — tencionava e ia andando sempre para a frente?
Dessa vez, a vinte lis de Tong-Kuan, no modesto povoado onde Kin-Fo buscara refúgio, nem cavalos, nem burros, nem carruagens nem cadeiras. Nenhuma outra alternativa a não ser ficar ali ou continuar a pé pela estrada, circunstância que não contribuía para restituir o bom humor ao discípulo do filósofo Wang, que nesta ocasião mostrava pouca filosofia. Ele rompeu a acusar todo o mundo, quando só devia culpar-se a si mesmo. Ah! Que saudades do tempo em que só lhe era preciso deixar-se viver! Se para saborear a felicidade era preciso sofrer aborrecimentos, trabalhos e privações, como dizia Wang, já os conhecia agora, e bem grandes!
Depois, correndo assim, encontrara em seu caminho boa gente sem dinheiro, que todavia era feliz! Pudera observar as variadas formas de felicidade que dá o trabalho feito alegremente.
Aqui eram lavradores curvados sobre o rego do arado; ali operários que cantavam manejando as suas ferramentas. Não seria justamente a essa falta de trabalho que Kin-Fo devia a falta de aspirações, e portanto a ausência de felicidade neste mundo? Ah! A lição era perfeita, pelo menos assim o julgava!... Não, amigo Kin-Fo, não o era!
Contudo, vasculhando bem a aldeia, batendo a todas as portas, Craig e Fry acabaram por desencantar um veículo, mas apenas um! Poderia quando muito transportar uma pessoa, e, circunstância ainda mais grave, faltava o motor desse veículo.
Era um carrinho de mão, — o carrinho de Pascal — e talvez inventado antes dele por esses antigos inventores da pólvora, da escrita, da bússola e dos papagaios. Somente, na China, a roda desse aparelho, de diâmetro bastante grande, está colocada não na extremidade dos varais mas no meio deles, e gira através da própria caixa, como a roda central de certos navios a vapor. A caixa fica desse modo dividida em duas partes, conforme o eixo, numa das quais pode estender-se o viajante e sendo a outra destinada a levar as suas bagagens.
O motor desse veículo é e só pode ser um homem, que empurra o aparelho para a frente e não o arrasta. Fica assim instalado atrás do viajante, cuja vista não perturba, do mesmo modo que um cocheiro de cab inglês. Quando o vento é favorável, isto é, quando sopra de trás, o homem aproveita essa força natural que nada lhe custa; planta um mastro na frente da caixa e iça uma vela quadrada. E quando o vento é forte, em vez de empurrar o carrinho deixa-se levar por ele — às vezes mais depressa do que desejaria.
O veículo foi adquirido com todos os seus acessórios. Kin-Fo instalou-se, e como o vento era favorável a vela foi içada.
— Vamos, Sun! — disse Kin-Fo.
Sun estava-se muito simplesmente preparando para ocupar o segundo compartimento do cofre.
— Aos varais! — gritou-lhe o amo num tom que não admitia réplica.
— Meu amo... quer... que... — balbuciou o desgraçado cujas pernas se dobravam antecipadamente como as de um cavalo estafado.
— Não tens senão que te queixar de ti, da tua língua e da tua estupidez!
— Vamos, Sun! — gritaram Fry-Craig.
— Aos varais! — repetiu Kin-Fo olhando muito significativamente o que restava de rabicho ao desventurado servo. — Aos varais, animal, e não comeces a tropeçar, senão...
O médio e o indicador da mão direita de Kin-Fo dispostos à maneira de tesoura, completaram-lhe tão bem o pensamento, que Sun passou a correia pelos ombros e segurou os varais com ambas as mãos. Fry-Craig postaram-se aos dois lados do carrinho e, como a brisa favorecia, o pequeno grupo rompeu num ligeiro trote.
Renunciamos a pintar a raiva surda e impotente de Sun, reduzido à função de cavalo! E todavia, várias vezes Craig e Fry resolveram substituí-lo. Felizmente o vento do sul soprava-lhes uma ajuda constante, cabendo-lhe umas três quartas partes da tarefa. O carrinho estando bem equilibrado pela posição da roda central, o trabalho do homem dos varais é comparável ao do homem do leme a bordo de um navio, que apenas deve procurar manter-se em boa direção.
Nesta equipagem foi avistado Kin-Fo nas províncias setentrionais da China, caminhando quando sentia necessidade de desenferrujar as pernas, refestelado no carrinho quando ao contrário desejava descansar.
Desse modo, tendo evitado Huan-Fu e Cafong, subiu as margens do célebre canal Imperial, que ainda há vinte anos, antes que o rio Amarelo tivesse retomado o seu antigo leito, constituía uma excelente rota navegável desde Su-Tchéu, o país do chá, até Pequim, numa extensão de algumas centenas de léguas.
Assim atravessou Tsi-Nan, Ho-Kien, e penetrou na província de Pé-Tché-Li, onde se ergue Pequim, a quádrupla capital do Celeste Império.
Assim passou por Tien-Tsin, defendida por dois fortes e um muro de circunvalação, grande cidade de quatrocentos mil habitantes, cujo largo porto, formado pela junção do Pei-ho e do canal Imperial, recebendo algodões de Manchester, artigos de lã, cobre, ferro, fósforos alemães, madeira de sândalo, etc, e exportando jujuba, folhas de nenúfar, tabaco da Tartária, etc, movimenta em negócios cerca de setenta milhões. Mas Kin-Fo nem sequer pensou em visitar, na curiosa Tien-Tsin, o famoso pagode dos suplícios infernais; nem percorreu, no bairro de leste, as alegres ruas das Lanternas e das Roupas Velhas; nem almoçou no restaurante da "Harmonia e da Amizade", mantido pelo muçulmano Léu-Lao-Ki, cujos vinhos são celebrados, pense Maomé o que pensar; nem deixou o seu grande cartão vermelho — bem sabemos porque, — no palácio de Li-Tchong-Tang, vice-rei da província desde 1870, membro do Conselho Privado, membro do Conselho do Império, e que usa, além da túnica amarela, o título de Fi-Tzé-Chao-Pao.
Não! Kin-Fo sempre no seu carrinho, e Sun continuando a empurrá-lo, atravessaram o cais onde se acumulam montanhas de sacos de sal; passaram os bairros, as concessões inglesa e americana, o campo de corridas, as terras cobertas de sorgo, de cevada, de gergelim, de vinhas, de hortas-jardins, ricas em legumes e frutas, as planícies onde se erguem aos milhares as perdizes e codornizes, sulcadas por milhares de lebres, a que os falcões, esmerilhões e outras aves de rapina dão caça. Todos quatro seguiram a estrada macadamizada de vinte e quatro léguas que leva a Pequim, entre árvores de essências variadas e os grandes rosais do rio, chegando a Tong-Tchéu sãos e salvos, Kin-Fo valendo sempre duzentos mil dólares, Craig-Fry tão sólidos como no início da viagem, Sun esfalfado, mancando de ambas as pernas e não tendo no alto da cabeça mais de três polegadas de rabicho!
Estava-se em 19 de junho, o prazo concedido a Wang só terminava daí a sete dias!
— Onde estaria Wang?
NO QUAL SE OUVE A CÉLEBRE COPLA DAS "CINCO VIGÍLIAS DO CENTENÁRIO".
— Senhores — disse Kin-Fo aos seus guarda-costas, quando o carrinho parou nos arrabaldes de Tong-Tchéu, — nós não estamos a mais de quarenta lis8 de Pequim, e a minha intenção é demorar-me aqui até ao momento em que a convenção havida entre mim e Wang cesse legalmente de existir. Nesta cidade de quatrocentas mil almas não me será difícil permanecer ignorado, se Sun não esquecer que está ao serviço de Ki-Nan, simples negociante da província de Chen-Si.
Não! Evidentemente Sun nunca o esqueceria! Sua tolice valera-lhe fazer durante esses últimos oito dias o ofício de cavalo, e ele esperava agora que o senhor Kin-Fo...
— Ki... — começou Craig.
— Nan! — terminou Fry.
...não tornasse a desviá-lo das suas funções habituais. E mais, considerando o estado de fadiga em que se achava, pedia licença ao senhor Kin-Fo...
— Ki... — atalhou Craig.
— ...Nan! — repetiu Fry.
...licença para dormir durante quarenta e oito horas pelo menos, sem parar, ou melhor, completamente "parado".
— Durante oito dias, se quiseres! — respondeu Kin-Fo. — Pelo menos terei a certeza de que dormindo não farás asneiras!
Kin-Fo e seus companheiros ocuparam-se então em procurar um hotel conveniente, coisa que não faltava em Tong-Tchéu. Esta vasta cidade não passa, a bem dizer, de um imenso arrabalde de Pequim. A estrada empedrada que a liga à capital é em toda a sua extensão orlada de vilas, residências, vivendas agrícolas, túmulos, pequenos pagodes, sebes verdejantes, e a circulação de carruagens, cavaleiros e pedestres é incessante.
Kin-Fo conhecia a cidade e fêz-se conduzir ao Taé-Uang-Miao, "o templo dos príncipes soberanos", que é simplesmente um mosteiro budista transformado em hotel, onde os viajantes podem alojar-se com suficiente conforto.
Kin-Fo, Craig e Fry instalaram-se logo, ficando os dois agentes num aposento contíguo ao do seu precioso cliente.
Quanto a Sun, desapareceu para ir dormir no canto que lhe foi designado e nunca mais foi visto.
Uma hora depois Kin-Fo e os seus vigias deixaram os quartos, almoçaram com apetite e trocaram impressões sobre o que deviam fazer.
— Convém — responderam Craig-Fry, — ler a Gazeta Oficial, a fim de ver se encontramos alguma coisa que nos interesse.
— Os senhores têm razão — respondeu Kin-Fo. — Talvez possamos saber o que é feito de Wang.
Saíram então todos três do hotel. Por precaução os dois acólitos caminhavam aos dois lados do seu cliente, observando os transeuntes e não se deixando aproximar por ninguém. Passaram assim pelas estreitas ruas da cidade até chegarem ao cais, onde compraram um número da Gazeta Oficial que foi lido avidamente.
Nada! Nada a não ser a promessa de dois mil dólares ou mil e trezentos taéis a quem revelasse a William J. Bidulph a residência atual do senhor Wang, de Shangai.
— Quer isto dizer — observou Kin-Fo, — que ele não apareceu.
— Portanto, não leu o anúncio que lhe diz respeito — respondeu Craig.
— De modo que se mantém nos termos do convênio — acrescentou Fry.
— O senhor Kin-Fo — perguntaram Craig-Fry, — considera mais ameaçado nestes últimos dias de prazo?
— Sem dúvida alguma — respondeu Kin-Fo. — Wang ignora as mudanças que sobrevieram na minha situação, e com toda a probabilidade não quererá subtrair-se ao dever de cumprir a sua promessa. Portanto, daqui a um dia, a dois, ou a três estarei mais ameaçado do que hoje, e daqui a seis muito mais ainda!
— E expirado o prazo?
— Nada mais terei a temer.
— Muito bem, senhor — tornaram Craig-Fry; — há apenas três meios de o subtrair a todo o perigo durante estes seis dias.
— Qual é o primeiro? — perguntou Kin-Fo.
— É voltar ao hotel — disse Craig, — e fechar-se no quarto, até que o prazo termine.
— E o segundo?
— É fazer-se prender como malfeitor — respondeu Fry, — ficando assim em segurança na cadeia de Tong-Tchéu!
— E o terceiro?
— É fingir-se de morto — responderam Craig-Fry, — e não ressuscitar senão quando já não houver nenhum perigo.
— Os senhores não conhecem Wang! — exclamou Kin-Fo. — Wang acharia meios de entrar no meu hotel, na minha prisão, no meu túmulo! Se ele não me matou até agora é porque não quis, é porque lhe pareceu preferível deixar-me o prazer ou as angústias da expectativa! Quem pode saber as razões que o moveram? De qualquer modo, prefiro esperar em liberdade.
— Esperemos!... Contudo!... — arriscou Craig.
— ...Parece-me que... — acrescentou Fry.
— Senhores — atalhou Kin-Fo num tom seco, — farei o que me parecer conveniente. Afinal de contas, se eu morrer antes de vinte e cinco deste mês, quanto perderá a vossa companhia?
— Duzentos mil dólares, — responderam Craig-Fry, — duzentos mil dólares que terão de ser pagos aos seus beneficiários!
— Pois eu perderei toda a minha fortuna, e ainda por cima a vida! Sou portanto o maior interessado neste negócio!
— É verdade!
— Uma grande verdade!
— Continuem portanto a velar por mim enquanto acharem conveniente, mas eu agirei como me parecer!
Nada havia a replicar.
Craig-Fry tiveram pois de se limitar a seguir cada vez mais de perto o seu cliente, redobrando de precauções. Mas não se iludiam sobre a gravidade da situação, que cada dia mais se acentuava.
Tong-Tchéu é uma das mais antigas cidades do Celeste Império. Edificada num braço canalizado do Pei-Ho, com a vantagem de um outro canal que a liga a Pequim, nela se concentra um grande movimento comercial. Seus bairros são extremamente animados pelo burburinho da população.
Kin-Fo e seus dois companheiros ainda mais se surpreenderam com essa viva agitação quando chegaram ao cais, aonde amarram os sampans e os juncos do comércio.
Considerando bem, Craig e Fry chegaram à conclusão de que se encontravam em maior segurança entre a multidão. A morte de seu cliente devia, pelo menos na aparência, ser devida ao suicídio. A carta que encontrariam com ele não deixaria dúvida a esse respeito. Wang não tinha portanto interesse em liquidá-lo a não ser em determinadas condições, que não podiam oferecer-se em meio a ruas freqüentadas ou na praça pública de uma cidade. Conseqüentemente, os guardas de Kin-Fo não tinham a recear um ataque imediato. Aquilo que unicamente os devia preocupar era saber se o Tai-ping, por um prodígio de habilidade, não os viria seguindo desde a partida de Shangai. Por isso, ninguém passava junto deles que não fosse minuciosamente observado.
De repente ouviu-se um nome que lhes pôs as orelhas em pé.
— Kin-Fo! Kin-Fo! — gritavam os chinezinhos, saltando e batendo palmas por entre a multidão.
Teria Kin-Fo sido identificado e o seu nome produzia o costumado efeito?
O herói parou surpreendido.
Craig-Fry aprontaram-se para o proteger com seus corpos, caso fosse preciso.
Mas não era a Kin-Fo que aqueles brados se dirigiam. Ninguém parecia suspeitar que ele estivesse ali. Ele deixou-se ficar imóvel, e curioso de saber a que propósito seu nome acabava de ser pronunciado, aguardou.
Um grupo de homens, mulheres e crianças tinha-se formado em torno de um cantor ambulante, que parecia muito apreciado por esse público das tuas. Todos gritavam, batiam palmas, aplaudiam de antemão.
O cantor, quando se viu em presença de um auditório suficiente, tirou da algibeira um maço de folhetos ilustrados com figuras coloridas, e com voz sonora gritou:
— As Cinco Vigílias do Centenário!
Era a famosa cançoneta que invadira o Celeste Império!
Craig-Fry quiseram levar dali o seu cliente, mas desta vez Kin-Fo teimou em ficar. Ninguém o conhecia, nunca ouvira a cançoneta que relatava seus atos e gestos, tinha vontade de ouvi-la!
O cantor começou deste modo:
"Na primeira vigília a lua ilumina o telhado pontiagudo da casa de Shangai. Kin-Fo é moço. Tem vinte anos. Parece um salgueiro cujas primeiras folhas mostram a pequena língua verde!
"Na segunda vigília, a lua ilumina o lado leste do rico yamen. Kin-Fo tem quarenta anos. Seus dez mil negócios progridem à maravilha. Os vizinhos fazem o seu elogio".
O cantor mudava de fisionomia e parecia ir envelhecendo a cada nova estrofe. Os aplausos cresciam.
Ele continuou:
"Na terceira vigília, a lua ilumina o espaço. Kin-Fo tem sessenta anos. Após as folhas verdes do verão, os amarelos crisântemos da estação do outono!
"Na quarta vigília a lua desceu para oeste. Kin-Fo tem oitenta anos! Seu corpo está encarquilhado como um camarão em água a ferver! Vai declinando, declinando como o astro da noite!
"Na quinta vigília os gaios saúdam a aurora nascente. Kin-Fo tem cem anos. Morre tendo realizado o seu maior desejo, mas o desdenhoso príncipe Ien recusa recebê-lo. O príncipe Ien não gosta de pessoas tão idosas, que iriam tresvariar para a sua corte! O velho Kin-Fo, sem poder repousar jamais, tem de vaguear por toda a eternidade!"
A multidão aplaudia e o cantor vendia às centenas o seu liberto a três sapecas o exemplar!
— Por que não haveria Kin-Fo de comprar também um?
Tirou uns miúdos do bolso, e com a mão cheia estendeu o braço por sobre as primeiras filas da multidão.
Mas de repente a mão abriu-se-lhe, as moedas rolaram pelo chão... Diante dele estava um homem cujos olhares se encontraram com os seus.
— Ah! — exclamou Kin-Fo não podendo conter essa interjeição, ao mesmo tempo interrogativa e exclamativa.
Fry-Craig tinham-no envolvido, julgando-o reconhecido, ameaçado, apunhalado, talvez morto!
— Wang! — gritou ele.
— Wang! — repetiram Craig-Fry.
Era Wang em pessoa! Acabava de avistar o seu antigo discípulo, mas em vez de correr para ele empurrou vigorosamente as últimas filas do bando, e largou a fugir a toda a velocidade que lhe permitiam as pernas, bem longas por sinal!
Kin-Fo não hesitou. Querendo libertar-se daquela situação intolerável saiu em perseguição de Wang, escoltado por Fry-Craig, que não queriam passar-lhe adiante nem deixá-lo para trás.
Também eles haviam reconhecido o inencontrável filósofo, e compreendido, pela surpresa que este manifestara, que ele esperava tanto ver Kin-Fo quanto Kin-Fo encontrá-lo a ele.
Mas afinal, por que fugia Wang?
Não era coisa fácil de explicar, o certo é que ele fugia como se tivesse nos calcanhares toda a polícia do Celeste Império.
Foi uma correria desvairada.
— Eu já não estou arruinado, Wang! Wang! Não estou mais arruinado! — berrava Kin-Fo.
— Está rico! Está rico! — repetiam Fry-Craig.
Mas Wang ia muito distanciado para ouvir essas palavras que deviam fazê-lo parar. Atravessou assim o cais, toda a extensão do canal, penetrando a seguir no bairro do oeste.
Os três perseguidores voavam-lhe no encalço mas não ganhavam distância. Ao contrário, o fugitivo ameaçava aumentar cada vez mais a diferença.
Meia dúzia de chineses tinham-se juntado a Kin-Fo, sem contar alguns tipaos que tomavam por algum malfeitor aquele homem que tão habilmente escapulia.
Curioso espetáculo o daquele grupo arquejante, gritando, uivando, acrescido a cada passo de novos aderentes! Em redor do cantor ouvira-se perfeitamente Kin-Fo pronunciar o nome de Wang. Felizmente o filósofo não respondera com o nome do discípulo, pois nesse caso toda a cidade desandaria a correr atrás de um homem tão célebre. Mas já o nome do filósofo, subitamente revelado, bastara. Wang! Era o misterioso personagem cuja descoberta valia uma enorme recompensa! Todos os sabiam. E se Kin-Fo corria atrás dos oitocentos mil dólares da sua fortuna, Craig-Fry atrás dos duzentos mil do seguro, os outros corriam atrás dos dois mil do prêmio prometido, e devemos concordar que toda aquela gente tinha motivo para dar às pernas.
— Wang! Wang! Eu estou mais rico do que antes! — continuava Kin-Fo a gritar, tanto quanto lhe permitia a rapidez da corrida.
— Já não está arruinado! Já não está arruinado! — repetiam Craig e Fry.
— Pare! Pare! — berrava a multidão dos perseguidores aumentando como uma bola de neve em carreira.
Wang nada ouvia. Com os cotovelos colados ao peito, não queria cansar-se a responder, nem perder a sua velocidade pelo prazer de voltar a cabeça.
Passado o arrabalde, Wang lançou-se na estrada de pedra que margina o canal. Nessa estrada, àquela hora quase deserta, tinha o campo livre. A velocidade da sua fuga aumentou, mas também, naturalmente, redobrou o esforço dos que o perseguiam.
Aquela corrida louca manteve-se por cerca de vinte minutos, e nada deixava prever qual fosse o seu resultado. Entretanto, pareceu que o fugitivo começava a enfraquecer um pouco. A distância que até então o separara dos outros corredores, tendia a diminuir. Então Wang sentindo isso mudou repentinamente de direção, desaparecendo atrás da sebe verde-jante de um pequeno pagode, à direita da estrada.
— Dez mil taéis a quem o agarrar! — gritou Kin-Fo.
— Dez mil taéis! — repetiram Craig-Fry.
— Ya! ya! ya! — ganiram os mais avançados do grupo. Todos tinham voltado à direita nas pegadas do filósofo e contornavam os muros do pagode.
Wang foi de novo avistado. Seguia por um exíguo atalho transversal, ao longo de um canal de irrigação, e para despistar os seus perseguidores deu uma nova guinada que o levou outra vez à estrada. Mas logo se tornou evidente que ele estava extenuado, pois voltou a cabeça em várias ocasiões. Kin-Fo, Craig e Fry continuavam firmes. Corriam, voavam, e nenhum dos velozes aspirantes aos taéis conseguia passar-lhes à frente.
O desenlace ia-se aproximando. Era apenas uma questão de tempo, e de tempo relativamente curto — alguns minutos quando muito.
Todos, Wang, Kin-Fo e seus companheiros tinham chegado ao lugar onde a grande estrada atravessa o rio sobre a célebre ponte de Palikao.
Dezoito anos antes, em 21 de setembro de 1860, não teriam tanta liberdade de movimentos nesse ponto da província de Pé-Tché-Li. A grande estrada estava então coberta de fugitivos de outra espécie. O exército do general San-Ko-Li-Tzin, tio do imperador, repelido pelos batalhões franceses, fizera alto nessa ponte do Palikao, magnífica obra de arte com balaústres de mármore branco, orlada de uma dupla fila de leões gigantescos. Ali os tártaros da Manchúria, tão incomparavelmente bravos no seu fatalismo, foram esmagados pelas balas dos canhões europeus.
Mas a ponte, que ainda conservava as marcas dessa batalha nas estátuas mutiladas, estava agora livre.
Wang, no limite da resistência, lançou-se através da estrada. Kin-Fo e os outros, aproximaram-se num esforço supremo. Logo vinte passos, depois quinze, depois dez, apenas os separavam. Não valia a pena tentar deter Wang com palavras inúteis, que ele não podia ou não queria ouvir. Era necessário alcançá-lo, agarrá-lo, amarrá-lo se tanto fosse preciso... Depois se dariam as explicações.
Wang percebeu que ia ser apanhado, e como, por uma teimosia inexplicável parecia temer encontrar-se frente a frente com o seu antigo discípulo, decidiu-se até a arriscar a vida para lhe escapar.
Bruscamente, de um salto, pulou por cima do balaústre da ponte e jogou-se ao Pei-ho.
Kin-Fo parou um momento e gritou:
— Wang! Wang!
Em seguida tomou impulso para saltar também:
— Hei-de agarrá-lo vivo! — gritou jogando-se igualmente ao rio.
— Craig? — interrogou Fry.
— Fry? — interpelou Craig.
E ambos, pulando a balaustrada se precipitaram em socorro do ruinoso cliente da Centenária.
Alguns dos voluntários fizeram o mesmo — e foi como um cacho de clowns em exercícios no trampolim.
Mas todo aquele zelo ia ser inútil. Kin-Fo, Fry-Craig e os outros seduzidos pela recompensa, em vão esquadrinharam o Pei-ho; Wang não pôde ser encontrado. Decerto, arrastado pela corrente o desgraçado filósofo fora pelo rio abaixo. Precipitando-se no rio, Wang quisera apenas escapar aos seus perseguidores, ou por alguma razão misteriosa resolvera pôr fim aos seus dias? Ninguém o poderia dizer.
Duas horas depois, Kin-Fo, Craig e Fry, desapontados mas bem secos e refeitos, e Sun acordado no melhor do seu sono e furioso como bem se pode imaginar, tinham tomado a estrada de Pequim.
EM QUE O LEITOR PODERÁ, SEM FADIGA, PERCORRER QUATRO CIDADES NUMA SÓ.
Pé-Tché-Li, a mais setentrional das dezoito províncias da China, é dividido em nove departamentos. Um desses departamentos tem por capital Chun-Kin-Fo, o que quer dizer "cidade de primeira ordem obediente ao céu". Esta cidade é Pequim.
Figure o leitor um quebra-cabeças chinês, com a superfície de seis mil hectares, um perímetro de oito léguas, cujos fragmentos irregulares devem encher exatamente um retângulo, tal é essa misteriosa Kambalu, da qual Marco Pólo fez uma tão curiosa descrição no fim do século treze, tal é a capital do Celeste Império.
Na realidade Pequim compreende duas cidades distintas, separadas por uma vasta alameda e uma muralha fortificada; uma que é um paralelogramo retângulo, a cidade chinesa, outra um quadro quase perfeito, a cidade tártara; esta por sua vez encerra duas outras cidades: a cidade amarela, Hoang-Tching e Tsen-Kin-Tching, a cidade vermelha ou interdita. Outrora, o conjunto destas aglomerações somava mais de dois milhões de habitantes. Mas a emigração, provocada pela extrema miséria, reduziu esse número a um milhão quando muito. São tártaros e chineses, aos quais devemos acrescentar mais ou menos dez mil muçulmanos e ainda uma certa quantidade de mongóis e tibetanos que compõem a população flutuante.
A planta destas duas cidades superpostas representa com suficiente exatidão um baú, cuja tampa seria formada pela cidade chinesa e o bojo pela cidade tártara.
Seis léguas de um muro fortificado, alto e da largura de quarenta a cinqüenta pés, exteriormente revestido de tijolos, defendido de duzentos em duzentos metros por torres salientes, cercam a cidade tártara de um magnífico passeio de lajes, terminando em quatro imensos bastiões angulares cuja plataforma alberga corpos de guarda.
Como se vê o Imperador, Filho do Céu, está bem guardado!
No centro da cidade tártara, a cidade amarela, de uma superfície de seiscentos e sessenta hectares, servida por oito portas, existem uma montanha de carvão, de trezentos pés de altura, ponto culminante da capital, um soberbo canal, chamado "mar do Meio", atravessado por uma ponte de mármore, dois conventos de bonzos, um pagode dos Exames, o Pei-tha-sse mosteiro edificado numa península, que se diria suspenso sobre as águas claras do canal, o Peh-Tang, fundação dos missionários católicos, o pagode imperial, magnífico com a sua cobertura de alegres sinetas e de telhas azul-lápis, o grande templo dedicado aos ancestrais da dinastia reinante, o templo dos Espíritos, o templo do Gênio dos Ventos, o templo do Gênio do Raio, o templo do Inventor da Seda, o templo do Senhor do Céu, os cinco pavilhões dos Dragões, o mosteiro do "Repouso Eterno", etc.
No centro deste quadrilátero é que se esconde a cidade interdita, com uma superfície de oitenta hectares, cercada por uma fossa canalizada que sete pontes de mármore atravessam. Claro está que sendo manchu a dinastia reinante, a primeira destas três cidades é principalmente habitada por uma população da mesma raça. Os chineses foram relegados para fora, para a parte inferior do baú, na cidade anexa.
Penetra-se no interior dessa cidade Interdita, cercada de muros de tijolos vermelhos coroados por um capitel de telhas envernizadas de amarelo dourado, por uma porta ao sul, a "Porta da Grande Pureza", que só se abre para o imperador e as imperatrizes. Lá se erguem o templo dos Ancestrais da dinastia tártara, abrigado sob um duplo teto de telhas multi-cores; os templos Che e Tsi, consagrados aos espíritos celestes e terrestres; o palácio da "Soberana Concórdia", reservado às solenidades aparatosas e aos banquetes oficiais; o palácio da "Concórdia Média", onde se vêem os retratos dos antepassados do Filho do Céu; o palácio da "Concórdia Protetora", cuja sala central é ocupada pelo trono imperial; o pavilhão do Nei-Ko, onde se reúne o grande conselho do Império, presidido pelo príncipe Kong,9 ministro dos Negócios Estrangeiros, tio paterno do último soberano; o pavilhão das "Flores Literárias", onde o imperador vai uma vez por ano interpretar os livros sagrados; o pavilhão de Tchuane-Sin-Tien, no qual se fazem os sacrifícios em honra de Confúcio; a Biblioteca Imperial; a seção dos Historiógrafos; o Vu-Igne-Tien, onde se conservam as pranchas de cobre e de madeira destinadas à impressão de livros; as oficinas onde se confeccionam as roupas da corte; o palácio da "Pureza Celeste", ponto de deliberação dos negócios de família; o palácio do "Elemento Terrestre Superior", onde foi instalada a jovem imperatriz; o palácio da "Meditação", onde se recolhe o soberano quando fica doente; os três palácios onde são educados os filhos do imperador; o templo dos pais mortos; os quatro palácios reservados à viúva e às mulheres de Hien-Fong, falecido em 1861; o Tchu-Sieú-Kong, residência das esposas imperiais; o palácio da "Bondade Preferida", destinado às recepções oficiais das damas da corte; o palácio da "Tranqüilidade Geral", singular denominação para uma escola de filhos de oficiais superiores; o palácio da "Purificação e do Jejum"; o palácio da "Pureza de Jade", habitado pelos príncipes de sangue; o templo do "Deus protetor da cidade", de arquitetura tibetana; o armazém da coroa; a intendência da corte; o Lao-Kong-Tchu, morada dos eunucos, dos quais há pelo menos cinco mil na cidade vermelha; e enfim outros palácios que elevam a quarenta e oito o número dos que encerra a muralha imperial, sem contar o Tzen-Kuang-Ko, o pavilhão da "Luz Purpurina", situado à beira do lago da cidade amarela, onde em 19 de junho de 1873 foram admitidos à presença do imperador os cinco ministros dos Estados Unidos, da Rússia, da Holanda, da Inglaterra e da Prússia.
Que fórum antigo apresentou jamais uma tal aglomeração de edifícios tão variados de formas e tão ricos de objetos preciosos? Que cidade, que capital de estado europeu poderia oferecer-nos semelhante lista?
E a esta enumeração é necessário acrescentar ainda o Uane-Chéu-Chane, o palácio de Verão, situado a duas léguas de Pequim. Destruído em 1860, apenas se encontram em meio às ruínas, os seus jardins da "Claridade Perfeita" e da "Claridade Tranqüila", a sua colina da "Fonte de Jade" a sua montanha das "Dez Mil Longevidades!"
Em redor da cidade amarela fica a cidade tártara. Lá estão instaladas as legações francesa, inglesa e russa, o hospital das Missões de Londres, as missões católicas de leste e do norte, os antigos currais dos elefantes, que agora só contém um, zarolho e centenário. Lá se erguem a torre do Sino, de teto vermelho emoldurado de telhas verdes, o templo de Confúcio, o convento dos Mil Lamas, o templo de Faqua, o velho Observatório, com a sua grossa torre quadrada, o yamen dos Jesuítas, o yamen dos letrados onde se fazem os exames literários. Lá se erguem os arcos de triunfo do oeste e do leste. Lá correm o mar do norte e o mar dos Canaviais, cobertos de nelumbos e de nínfias azuis, e que vêm do palácio de Verão alimentar o canal da cidade amarela. Lá se vêem os palácios onde residem os príncipes de sangue, os ministros das finanças, dos ritos, da guerra, dos trabalhos públicos, das relações exteriores; lá estão o Tribunal de Contas, o Tribunal Astronômico e a Academia de Medicina. Tudo aparece misturado, em meio a ruas estreitas, cheias de poeira no verão, cobertas de água no inverno, na sua maioria compostas de casas miseráveis e baixas, entre as quais se ergue algum palácio de grande dignitário, à sombra de belas árvores. Depois, através de avenidas atravancadas circulam cães vadios, camelos mongóis carregados de carvão de pedra, palanquins de quatro e oito portadores, segundo a categoria do funcionário, liteiras, carros de mulas, carriolas, mendigos que, de acordo com o senhor Chutzé, constituem uma súcia independente de setenta mil maltrapilhos, e nessas ruas cobertas de uma "lama fétida e negra — como diz P. Arène, — ruas cortadas de charcos de água, onde a gente se enterra até ao meio da perna, não é raro que algum mendigo cego se afogue".
Em muitos pontos a cidade chinesa de Pequim, cujo nome é Vai-Tcheng, se parece com a cidade tártara, mas também em muitos outros se diferencia.
Dois templos célebres lhe ocupam a parte meridional, o templo do Céu e o da Agricultura, aos quais se devem acrescentar os templos da deusa Koanina, do gênio da Terra, da Purificação, do Dragão Negro, dos Espíritos do Céu e da Terra, os lagos dos Peixes de Ouro, o mosteiro de Fayuan-sse, os mercados, os teatros, etc.
Este paralelogramo retângulo está dividido, do norte ao sul, por uma importante artéria chamada Grande Avenida, que vai da porta de Hung-Ting ao sul, à porta de Tien, ao norte. Transversalmente é servido por uma outra artéria mais longa, que corta a primeira em ângulo direito, e vai da porta de Cha-Cua, a leste, à porta de Cuan-Tsu, a oeste. Chama-se avenida de Cha-Cua, e era a cem passos do seu ponto de interseção com a Grande Avenida que morava a futura senhora Kin-Fo.
Devemos lembrar-nos de que, alguns dias depois de ter recebido essa carta que lhe anunciava a sua ruína, a jovem viúva recebera uma segunda anulando a primeira, dizendo-lhe que a sétima lua não terminaria antes que o "seu irmãozinho mais novo" regressasse para junto dela.
Se Lé-u, a partir dessa data, 17 de maio, contara os dias e as horas, é coisa que não se discute. Mas Kin-Fo não dera mais notícias suas durante a insensata viagem de que não queria, sob pretexto nenhum, indicar o caprichoso itinerário. Lé-u escrevera para Shangai, mas as suas cartas tinham ficado sem resposta. Pode-se pois avaliar qual era a sua inquietação nesse dia 19 de junho em que nenhuma carta lhe tinha ainda chegado.
Durante esses longos dias a jovem senhora não deixara a sua casa da avenida Cha-Cua, sempre esperando, desassossegada. A desagradável Nan não contribuía para lhe amenizar a solidão. A "velha mãe" ia-se tornando mais rabugenta do que nunca, e merecia ser despedida cem vezes em cada lua.
Mas, que intermináveis e ansiosas horas ainda, antes que Kin-Fo chegasse a Pequim! Lé-u contava-as, e a conta parecia-lhe bem longa!
Se a religião de Lao-Tsé é a mais antiga da China, se a doutrina de Confúcio, promulgada pela mesma época (mais ou menos 500 anos antes de Cristo), é a seguida pelo imperador, os letrados e os altos mandarins, o budismo ou religião de Fo é a que conta maior número de fiéis — cerca de trezentos milhões, — à superfície do globo.
O budismo compreende duas seitas distintas, uma das quais tem por ministros os bonzos vestidos de cinzento e toucados de vermelho, e a outra, os lamas, vestidos e toucados ,de amarelo.
Lé-u era uma budista da primeira seita. Os bonzos viam-na freqüentemente no templo de Koan-Ti-Miao, consagrado à deusa Koanina. Lá ela orava pelo seu amigo, queimando pequenos bastões perfumados a fronte prosternada no chão do templo.
Nesse dia ela teve a idéia de ir outra vez orar à deusa Koanina, fazendo-lhe as mais ardentes preces. Um pressentimento lhe dizia que algum grave perigo ameaçava aquele que ela esperava com tão legítima impaciência.
Lé-u chamou então a "velha mãe" e ordenou-lhe que fosse buscar uma liteira à encruzilhada da Grande Avenida.
Nan encolheu os ombros, conforme seu detestável costume, e saiu para executar a ordem que recebera.
Enquanto isso, a jovem viúva, sozinha em seu boudoir, olhava tristemente o mudo aparelho que já lhe não fazia ouvir a distante voz do ausente.
— Ah! — dizia ela consigo, — ao menos é preciso que ele saiba que eu nunca deixei de pensar nele, e quero que em seu regresso a minha voz lho repita!
E Lé-u apertando a mola que punha em movimento o cilindro fonográfico, pronunciou em voz alta as frases mais doces que seu coração pôde inspirar-lhe.
Nan, entrando bruscamente, interrompeu esse terno monólogo. A liteira esperava a senhora "que poderia muito bem ficar em casa!"
Lé-u não lhe deu ouvidos e saiu imediatamente, deixando a "velha mãe" resmungar à vontade; ao instalar-se na cadeirinha deu ordem para que a conduzissem ao Koan-Ti-Miao.
O trajeto para lá chegar era simples, bastando "dobrar a avenida Cha-Cua no cruzamento, e subir a Grande Avenida até à porta de Tien.
Mas a cadeira avançava com dificuldade. Àquela hora ainda havia movimento no comércio e a aglomeração era sempre grande nesse bairro, um dos mais populosos da capital. As barracas dos vendedores ambulantes, espalhadas pela calçada davam à avenida a aparência de um recinto de feira com os seus mil ruídos e clamores. Oradores de rua, leitores públicos, adivinhos, fotógrafos, caricaturistas, com pouco respeito pela autoridade mandarim, gritavam emprestando o seu colorido à balbúrdia geral. Aqui passava um funeral de grande pompa, impedindo a circulação; ali um casamento, menos alegre talvez que o cortejo fúnebre, mas igualmente atravancador. Diante do yamen de um magistrado havia ajustamento. Um descontente vinha bater no "tambor das queixas" para reclamar a intervenção da justiça. Na pedra Léu-Ping estava ajoelhado um malfeitor que acabava de receber bastonadas, guardado por soldados da polícia com barrete manchu de borlas vermelhas, a curta lança e os dois sabres na mesma bainha. Mais além alguns chineses recalcitrantes, amarrados uns aos outros pelos rabichos, eram conduzidos ao posto policial. Um pouco adiante, um pobre diabo com a mão esquerda e o pé direito metidos nos dois buracos de uma prancha, caminhava aos solavancos como um estranho animal. Depois era um ladrão, encerrado numa caixa de madeira, com a cabeça passando pela tampa, abandonado à caridade pública; outros ladrões de canga ao pescoço, como bois curvados sob o jugo. Estes infelizes procuravam naturalmente os lugares freqüentados com a esperança de fazer melhor colheita, especulando com a caridade dos transeuntes, em detrimento dos mendigos de toda a espécie, maneias, coxos, paralíticos, filas de cegos conduzidos por um zarolho, e as mil variedades de enfermos, verdadeiros ou falsos, que pululam nas cidades do Império das Flores.
A cadeira avançava com lentidão por entre os estorvos que cresciam quanto mais ela se aproximava da alameda exterior. Por fim chegou, detendo-se no interior do bastião defendido pela porta, junto ao templo da deusa Koanina.
Lé-u desceu da cadeira, entrou no templo, começou por ajoelhar-se e em seguida prosternou-se diante da imagem da deusa. Depois encaminhou-se para um aparelho religioso que tem o nome de "moinho de orações".
Era uma espécie de dobadoira, na extremidade de cujos oito braços estão presas pequenas bandeirolas com sentenças sagradas.
Junto do aparelho um bonzo esperava gravemente os devotos e sobretudo o preço das devoções.
Lé-u entregou ao servo de Buda alguns taéis, destinados a prover as despesas do culto; depois, com a mão direita segurou a manivela da dobadoura e imprimiu-lhe um leve movimento de rotação, colocando ao mesmo tempo a mão esquerda sobre o coração. Decerto o moinho não estava girando com rapidez suficiente para que a prece fosse eficaz, porque o bonzo animou-a com um gesto:
— Mais depressa! — disse ele.
A jovem senhora deu mais velocidade ao moinho!
Durou isto cerca de um quarto de hora, findo o qual o bonzo garantiu que os votos da 'postulante seriam atendidos.
Lé-u prosternou-se outra vez diante da imagem da deusa Koanina, saiu do templo e reentrou na sua cadeira para fazer novamente o caminho de casa.
Mas quando iam entrar na Grande Avenida, os portadores tiveram de se desviar precipitadamente. Soldados afastavam com brutalidade o povo, as lojas eram intimadas a fechar e as ruas transversais eram vedadas com colgaduras azuis sob a guarda dos tipaos.
Um enorme cortejo ocupava uma parte da avenida e avançava ruidosamente.
Era o imperador Koang-Sin, cujo nome significa "Continuação da Glória", que regressava à sua boa cidade tártara, e diante do qual ia abrir-se a porta central.
Atrás das duas sentinelas da frente vinha um pelotão de batedores, seguido de um pelotão de picadores, dispostos em duas filas e trazendo um bastão a tiracolo.
Depois deles, um grupo de oficiais superiores empunhava o guarda-sol amarelo de folhos, ornado do dragão, que é o emblema do imperador como a fênix é o emblema da imperatriz.
O palanquim, cuja cortina de seda amarela estava erguida, surgiu em seguida transportado por dezesseis carregadores de túnicas vermelhas semeadas de rosáceas brancas e espécie de couraças de seda acolchoada. Príncipes de sangue e dignitários em cavalos ajaezados de seda amarela, indício de alta nobreza, escoltavam o veículo imperial.
No palanquim reclinava-se o Filho do Céu, primo do imperador Tong-Tche e sobrinho do príncipe Kong.
Depois do palanquim vinham os palafreneiros e os carregadores de reserva, e em breve todo o cortejo se sumiu através da porta de Tien, para gáudio dos transeuntes, mercadores e mendigos que puderam regressar aos seus afazeres.
A cadeira de Lé-u prosseguiu então em seu caminho, deixando-a em casa após uma ausência de duas horas.
Ah! Que surpresa a boa deusa Koanina reservara à jovem senhora!
No instante em que a cadeirinha parou, uma carruagem toda empoeirada com duas mulas aos varais encostava-se também junto à porta. Kin-Fo, seguido de Craig-Fry e de Sun descia na calçada!
— Tu! És tu! — gritou Lé-u sem poder acreditar no que via.
— Querida irmãzinha mais nova! — respondeu Kin-Fo; — não esperavas o meu regresso!...
Lé-u não respondeu. Segurou a mão do amigo e arrastou-o para o boudoir, diante do pequeno aparelho fonográfico que era o discreto confidente das suas penas.
— Não deixei um só momento de te esperar, querido coração bordado de flores de seda! — disse ela.
E desprendendo o cilindro, apertou a mola que o pôs em movimento.
— Volta, irmãozinho bem-amado! Volta para junto de mim! Que os nossos corações não fiquem mais separados como o estão as duas estrelas do Pastor e da Lira! Todos os meus pensamentos são pelo teu regresso...
O aparelho calou-se um segundo... nada mais que um segundo. Depois continuou, mas desta vez num tom esganiçado:
— Já não basta uma patroa, também é preciso haver um patrão em casa! Que o príncipe Ien os estrangule a ambos!
Esta segunda voz era fácil de reconhecer, pertencia a Nan. A desagradável "velha mãe" continuara a falar após a saída de Lé-u, enquanto o aparelho funcionando ainda, registrava, sem que ela o soubesse, as suas palavras imprudentes.
Criadas e criados, desconfiai dos fonógrafos!
Nesse mesmo dia Nan foi despedida, e para a porem na rua nem sequer se esperaram os derradeiros dias da sétima lua!
QUE COM CERTEZA RESERVA UMA SURPRESA A KIN-FO E TALVEZ AO LEITOR.
Nada se opunha mais ao casamento do rico Kin-Fo, de Shangai, com a amável Lé-u, de Pequim. Só daí a seis dias terminaria o prazo concedido a Wang para cumprir a sua promessa, mas o desventurado filósofo pagara com a vida a sua inexplicável fuga. De agora em diante nada mais havia a temer, o casamento podia celebrar-se. Foi decidido e marcado para esse vigésimo quinto dia de junho que Kin-Fo destinara para último dia da sua vida!
A jovem senhora soube então tudo o que se passara. Inteirou-se das diversas situações que atravessara aquele que, recusando em primeiro lugar associá-la à sua miséria, e uma segunda vez deixá-la viúva, lhe voltava livre enfim para a fazer feliz.
Mas Lé-u, ao saber da morte do filósofo não pôde conter algumas lágrimas. Conhecia-o, estimava-o, fora ele o primeiro confidente dos seus sentimentos por Kin-Fo.
— Pobre Wang! — disse ela. — Fará bastante falta em nosso casamento!
— Sim, pobre Wang! — respondeu Kin-Fo que também lamentava esse companheiro da juventude, esse amigo dos vinte anos. — Contudo — acrescentou, — ter-me-ia assassinado como jurara!
— Não, não! — protestou Lé-u sacudindo a linda cabeça. Para mim ele buscou a morte nas águas do Pei-ho justamente para não cumprir essa horrível promessa!
Ai! Era bem admissível essa hipótese de que Wang resolvera afogar-se para fugir à obrigação de realizar o seu mandato! Kin-Fo era da mesma opinião da jovem senhora, e sem dúvida ali estavam dois corações dos quais a imagem do filósofo jamais se apagaria.
Não é preciso dizer que em seguida à catástrofe da ponte de Palikao, os jornais chineses deixaram de reproduzir os ridículos anúncios do honrado William J. Bidulph, assim como se desvanecera com igual rapidez a incômoda celebridade de Kin-Fo.
E agora, que iriam fazer Craig-Fry? Tinham sido incumbidos de defender os interesses da Centenária até 30 de junho, isto é, durante mais dez dias, mas na verdade Kin-Fo já não necessitava dos seus serviços. Era de recear que Wang atentasse contra a sua pessoa? Não, visto que ele já não existia. Poderiam temer que o seu cliente erguesse contra si próprio a mão suicida? Também não. Kin-Fo o que queria era viver, viver bem e o máximo tempo possível.
Portanto, a contínua vigilância de Fry-Craig não tinha mais razão de ser.
Mas, afinal de contas, esses dois originais eram excelentes pessoas. Embora o seu devotamento visasse apenas o cliente da Centenária, nem por isso deixara de manifestar-se em todas as ocasiões. Kin-Fo convidou-os a assistir às festas do seu casamento, e eles aceitaram.
— Aliás — observou espirituosamente Fry a Craig, — um casamento é muitas vezes um suicídio!
— Dá-se a vida ficando-se com ela — respondeu Craig com um amável sorriso.
No dia seguinte Nan tinha sido substituída na casa da avenida Cha-Cua por um pessoal mais adequado. Uma tia da jovem senhora, Mma. Lutalu, esposa de um mandarim de quarta categoria, segunda classe e botão azul, antigo leitor imperial e membro da Academia dos Han-Lin, possuía todas as qualidades físicas e morais exigidas para preencher essas importantes funções.
Quanto a Kin-Fo, tencionava deixar Pequim depois do casamento, visto não pertencer ao número desses celestiais que gostam da vizinhança das cortes. Só se consideraria verdadeiramente feliz quando visse sua jovem esposa instada no rico yamen de Shangai.
Tivera, assim, de procurar um apartamento provisório, e descobrira o que lhe convinha em Tien-Fu-Tang, o "Templo da Felicidade Celeste", hotel e restaurante muito confortável, situado junto à alameda de Tien-Men, entre as cidades tártara e chinesa. Lá se hospedaram igualmente Craig e Fry, que, por força do hábito, não podiam resolver-se a abandonar o cliente. No que respeita a Sun, retomara o seu serviço, sempre resmungando, mas cuidando sempre de ver se não haveria por perto algum indiscreto fonógrafo. O episódio com Nan tornara-o desconfiado.
Kin-Fo tivera o prazer de encontrar em Pequim dois dos seus amigos de Cantão, o negociante Yin-Pang e o letrado Hual. Além disso conhecia alguns funcionários e comerciantes da capital, e todos se consideraram no dever do o assistir em tão excepcionais circunstâncias.
Era verdadeiramente feliz, agora, o indiferente de outrora, o impassível discípulo do filósofo Wang! Dois meses de cuidados, de inquietações, de barafundas, todo esse período acidentado da sua existência bastara para lhe fazer apreciar o que é, o que deve ser, o que pode ser a felicidade neste mundo. Sim! O sábio filósofo tinha razão! Pena era que não estivesse ali presente para constatar uma vez mais a excelência da sua doutrina!
Kin-Fo passava junto da futura esposa todo o tempo que não consagrava aos preparativos de cerimônia. Lé-u sentia-se feliz sempre que tinha o amigo junto de si. Que necessidade havia para ele de percorrer os mais suntuosos estabelecimentos da capital a fim de a cumular de presentes magníficos? Queria-o apenas a ele e não se cansava de repetir as sábias máximas da célebre Pan-Hoei-Pan:
"Se uma mulher tem um marido que lhe fala ao coração, é para toda a sua vida!
"A mulher deve ter um respeito sem limites por aquele cujo nome usa, e uma atenção contínua sobre si mesma.
"A mulher deve conservar-se em casa como uma pura sombra ou um simples eco.
"O esposo é o céu da esposa".
Enquanto isso, os preparativos dessa festa nupcial, que Kin-Fo desejava esplêndidos, avançavam.
Já os trinta pares de sapatinhos bordados que exige o enxoval de uma chinesa estavam alinhados na casa da avenida Cha-Cua. A doçaria da casa Sinuyane, bolos, frutas secas, amêndoas torradas, balas de cevada, compotas de abrunhos, laranjas, gengibre e pamplemussa, os ricos tecidos de seda, as jóias de pedras preciosas e de ouro finamente lavrado, anéis, braceletes, dedais para unhas, pregos de cabelo, etc, todas as deliciosas fantasias da ourivesaria pequinense se amontoavam no boudoir de Lé-u.
Nesse extraordinário Império do Meio, quando uma moça se casa não leva dote algum. Ela é verdadeiramente comprada pelos pais do marido ou pelo próprio marido, e à falta de irmãos ela só pode herdar uma parte da fortuna paterna quando seu pai assim expressamente o determina. Estas condições são em geral reguladas por intermediários a que chamam "mei-jin", e o casamento só se decide quando tudo está bem combinado a respeito.
A noiva é então apresentada aos pais do marido. Este não a vê, o que só se verifica quando ela chega em cadeirinha fechada à moradia conjugai. Nesse momento é entregue ao esposo a chave da casa, com a qual ele abre a porta. Se a noiva lhe agrada, ele estende-lhe a mão; se não lhe agrada fecha bruscamente a porta e tudo está desfeito desde que se concorde em deixar os bens dotais aos pais da moça.
Ora, nada disto podia acontecer no casamento de Kin-Fo. Ele conhecia a sua jovem prometida e não precisava comprá-la a ninguém — o que muito simplificava as coisas.
O dia 25 de junho chegou enfim. Estava tudo pronto.
Havia três dias, segundo o costume, que a casa de Lé-u permanecia iluminada em seu interior. Durante três noites a senhora Lutalu, que representava a família da nubente, tivera de abster-se de dormir, — um modo de patentear a sua tristeza no momento em que a noiva vai deixar a casa paterna. Se Kin-Fo ainda tivesse pais, sua própria casa igualmente se teria iluminado em sinal de luto, "porque o casamento do filho deve ser considerado como uma representação da morte do pai, a quem o filho então parece suceder", diz o Hao-Khiéu-Tchuen.
Mas se estes usos não podiam aplicar-se à união de dois esposos absolutamente livres, outros havia que não podiam ser ignorados.
Por exemplo, nenhuma das formalidades astrológicas fora esquecida. Os horóscopos, tirados com todas as regras, indicavam perfeita compatibilidade de destinos e temperamento. A época do ano e o período lunar mostravam-se favoráveis. Jamais um casamento se apresentara sob mais favoráveis auspícios.
A recepção da noiva devia ter lugar às oito horas da noite no hotel da "Felicidade Celeste", isto é, a esposa ia ser conduzida com toda a pompa ao domicílio do esposo. Na China é desnecessário comparecer diante de um magistrado civil, ou perante qualquer sacerdote, bonzo ou lama.
As sete horas, Kin-Fo, sempre acompanhado de Craig e Fry, que resplandeciam como as testemunhas de um casamento europeu, recebia os amigos à entrada do seu apartamento. Que batalha de amabilidades! Essas pessoas notáveis tinham recebido os seus convites em papel vermelho, com algumas linhas em caracteres microscópicos: "O Kin-Fo, de Shangai, cumprimenta humildemente o senhor... e roga-lhe ainda mais humildemente... assistir à humilde cerimônia"...etc, etc.
Tinham vindo todos para homenagear os mibentes, e participar do magnífico festim reservado aos homens, enquanto as senhoras se reuniam em mesa especial para elas expressamente preparada.
Lá estavam o negociante Yin-Pang e o letrado Hual. Viam-se também alguns mandarins com o seu chapéu oficial de borla vermelha, do tamanho de um ovo de pombo, que indicava pertencerem às três primeiras ordens. Outros, de categoria menor, usavam apenas o botão azul opaco ou branco fosco. A maior parte eram funcionários civis de origem chinesa, como era de esperar nos amigos de um shangaiense hostil à raça tártara. E todos ricamente vestidos, com trajes brilhantes e toucados de gala, formavam um maravilhoso cortejo. Kin-Fo, — assim o mandava a cortesia, — esperava-os à própria entrada do hotel. Ã medida que iam chegando acompanhava-os até à sala de recepção, convidando-os sempre duas vezes a passar à sua frente cada vez que os criados em grande libre escancaravam uma porta. Chamava-os pelo seu "nobre nome", informava-se da sua "nobre saúde", pedia notícias da sua "nobre família". Enfim, um meticuloso observador da civilidade pueril não descobriria em sua atitude a menor incorreção.
Craig e Fry admiravam aquelas delicadezas, sem contudo perder de vista o seu irrepreensível cliente.
Tinham tido ambos a mesma idéia. E se, embora isso fosse improvável, Wang não tivesse perecido, como se supunha, nas águas do rio? Se ele se insinuasse entre esses grupos de convidados? A vigésima quarta hora do vigésimo quinto dia de junho — o extremo limite do prazo, — ainda não tinha soado! A mão do Tai-ping não estava desarmada. Se no derradeiro momento...?
Não! Isso não era provável, mas enfim era possível. De modo que por um resto de prudência, Craig-Fry observavam com cuidado aquela gente... Mas não viram nenhuma cara suspeita.
Enquanto isso a noiva deixava a sua casa da avenida Cha-Cua, instalada num palanquim fechado.
Embora Kin-Fo não tivesse querido envergar a traje de mandarim a que todo o noivo tem direito, — em sinal de deferência pela instituição do casamento que os antigos legisladores tinham em grande conta, — Lé-u submetera-se aos regulamentos da alta sociedade e resplandecia no seu vestido vermelho, feito de um admirável tecido de seda bordada. O rosto desaparecia-lhe, por assim dizer, atrás de um véu de finas pérolas que pareciam gotejar do rico diadema cujo círculo de ouro lhe adornava a fronte; Pedrarias e flores artificiais do mais apurado gosto constelavam-lhe os cabelos e as longas trancas negras. Kin-Fo achá-la-ia mais encantadora do que nunca ao vê-la descer do palanquim aberto pela sua mão solícita.
O cortejo pôs-se em marcha, virando a esquina para entrar na Grande Avenida e seguir pela alameda de Tien-Men. Seria talvez mais aparatoso se em vez de um cortejo de núpcias se tratasse de um enterro, mas enfim merecia que os transeuntes parassem para o ver passar.
Amigas e colegas de Lé-u acompanhavam o palanquim, conduzindo em grande pompa as diferentes peças do enxoval. Cerca de vinte músicos marchavam à frente com grande ruído de instrumentos de cobre, entre os quais destacava o gongo sonoro. Em redor do palanquim agitava-se grande número de pessoas erguendo tochas e lanternas de mil cores. A futura esposa permanecia oculta aos olhos da multidão. De acordo com a etiqueta, o primeiro olhar a receber seria o do esposo.
Foi nessas circunstâncias e entre um ruidoso acompanhamento de populares, que o cortejo atingiu, pelas oito horas, o hotel da "Felicidade Celeste".
À entrada do hotel, ricamente decorada, Kin-Fo esperava a chegada do palanquim para lhe abrir a porta. Em seguida ajudaria a esposa a descer e acompanhá-la-ia ao aposento reservado onde ambos saudariam quatro vezes o céu. Depois compareceriam juntos ao banquete nupcial. A futura esposa faria quatro genuflexões diante do marido, que por sua vez lhe faria duas. Espalhariam algumas gotas de vinho à maneira de libações e ofereceriam alguns alimentos aos espíritos intermediários. Entregar-lhes-iam então dois copos cheios, que esvaziariam até à metade, e misturando o que restava num só copo beberiam um após o outro. A união estaria consagrada.
O palanquim chegou e Kin-Fo acercou-se. Um mestre de cerimônias entregou-lhe a chave. Ele recebeu-a, abriu a porta e estendeu a mão à linda Lé-u, toda emocionada. A futura esposa desceu agilmente e atravessou o grupo dos convidados, que se inclinaram respeitosamente levando as mãos à altura do peito.
No momento em que a jovem senhora ia atravessando a porta do hotel, foi dado um sinal. Enormes papagaios luminosos subiram aos ares, balançando ao sopro da brisa as suas imagens multicores de dragões, fênix e outros emblemas do casamento. Pompos eólios, tendo na cauda um pequeno aparelho sonoro voaram enchendo o espaço de uma celeste harmonia. Foguetes de mil cores partiam silvando, e da luminosa girândola desprendia-se uma chuva de ouro.
Bruscamente ouviu-se um ruído longínquo para os lados da alameda Tien-Men. Eram gritos aos quais se misturavam os sons vibrantes de um clarim. Houve um silêncio e daí a pouco o alarido recomeçou, parecendo aproximar-se. Não tardou a alcançar a rua onde o cortejo parará.
Kin-Fo prestava um ouvido atento, e os amigos indecisos esperavam que a noiva entrasse no hotel.
Mas quase imediatamente a rua foi tomada de singular agitação. Os toques de clarim redobraram nas proximidades.
— De que se trata? — perguntou Kin-Fo.
A fisionomia de Lé-u alterara-se, um secreto pressentimento lhe apressava as batidas do coração.
A multidão invadiu por fim a rua, cercando um arauto com a libre imperial cercado por diversos tipaos.
E em meio ao silêncio geral, o arauto soltou estas palavras a que respondeu um surdo murmúrio:
"Morte da Imperatriz viúva! Interdição! Interdição!"
Kin-Fo havia compreendido: era um golpe que o atingia diretamente. Não pôde conter um movimento de cólera!
Acabava de ser decretado o luto imperial pela morte da viúva do último imperador. Durante um prazo que a lei fixaria ficava proibido a quem quer que fosse rapar a cabeça, dar festas públicas e representações teatrais; os tribunais não podiam ministrar justiça, era proibido celebrar casamentos.
Lé-u, desolada mas corajosa, para não aumentar a dor do noivo disfarçou a decepção que a tomara. Segurou a mão do seu querido Kin-Fo e disse-lhe num tom de voz que mal lhe escondia o pesar:
— Esperemos!
E o palanquim tornou a levar a jovem para a sua casa da avenida Cha-Cua, suspenderam-se as manifestações de júbilo, as mesas foram desarmadas, os músicos despedidos, e os amigos do desolado Kin-Fo separaram-se depois de lhe manifestarem os seus sentimentos.
Não se devia tentar infringir aquele imperioso decreto de interdição!
Decididamente, a má sorte continuava a perseguir Kin-Fo. Mais uma ocasião se lhe oferecia para aproveitar as lições de filosofia que lhe dera o antigo mestre!
Kin-Fo ficara sozinho com Craig e Fry no deserto apartamento do hotel da "Felicidade Celeste", cujo nome lhe parecia agora um amargo sarcasmo. O prazo da interdição podia ser prolongado à vontade do Filho do Céu! E ele que tencionava regressar imediatamente a Shangai, para instalar a jovem esposa no rico yamen, tornado seu, e recomeçar uma vida nova nessas novas condições!
Decorrida uma hora surgiu um criado trazendo uma carta, entregue nesse mesmo instante por um mensageiro.
Kin-Fo ao reconhecer os caracteres do subscrito não pôde conter uma exclamação. A carta era de Wang e eis o que ela dizia:
"Amigo, não estou morto, mas quando receberes esta carta terei deixado de viver!
"Morro porque não tenho coragem para cumprir a minha promessa; mas fica tranqüilo porque eu providenciei tudo.
"Lao-Shen, um dos chefes Tai-ping, meu antigo companheiro, está de posse da tua carta. Ele terá a mão e o coração mais firmes do que eu para executar a horrível missão que me compeliste a aceitar. A ele pertencerá, pois, a parte do seguro que me reservaste, que lhe transferi e ele receberá quando tu já não existires!
"Adeus! Precedo-te na morte. Até breve, amigo, adeus!
"WANG".
NO QUAL KIN-FO, SEMPRE CELIBATARIO, RECOMEÇA A CORRER CADA VEZ MAIS.
Tal era agora a situação que se criara para Kin-Fo, mil vezes mais grave do que nunca!
Assim pois, Wang, malgrado a palavra comprometida, sentira paralisar-se-lhe a vontade ao chegar o momento de matar o antigo discípulo! Wang, portanto, nada sabia da mudança que se dera na fortuna de Kin-Fo, visto que em sua carta nada dizia a respeito! Por isso encarregara um outro de cumprir a sua promessa, e logo que outro! Um Tai-ping temível entre todos, que nenhum escrúpulo teria em cometer um simples assassinato, pelo qual nem sequer poderia ser responsabilizado! A carta de Kin-Fo assegurava-lhe a impunidade, e a delegação de Wang, um capital de cinqüenta mil dólares.
— Ah! Isto já está passando dos limites! — exclamou Kin-Fo num primeiro assomo de cólera.
Craig e Fry haviam-se inteirado da carta de Wang.
— A sua carta — perguntaram eles, — não marca o dia 25 de junho como data extrema?
— Não! — respondeu Kin-Fo. — Wang só devia datá-la no dia da minha morte. Agora, esse Lao-Shen pode agir quando lhe parecer, sem limite de tempo.
— Oh! — disseram Craig-Fry, — o interesse dele é liquidar o assunto o mais breve possível.
— Por quê?
— Para não perder a sua parte no seguro com o vencimento da apólice!
O argumento era irrespondível.
— Sem dúvida — respondeu Kin-Fo. — Mais uma razão para não perder um minuto em reaver a minha carta, ainda que tenha de pagar a esse Lao-Shen os cinqüenta mil dólares que lhe cabem!
— É justo! — disse Craig.
— É verdade! — acrescentou Fry.
— Vou, portanto, partir! Deve-se saber onde está agora esse chefe Tai-ping; talvez seja mais encontrável do que Wang!
E assim falando, Kin-Fo mal se podia conter, andava de um lado para outro. Aquela sucessão de golpes de clava que sobre ele se abatiam, punham-no em um estado de invulgar excitação.
— Vou partir! — prosseguiu ele. — Vou à procura de Lao-Shen! Os senhores poderão fazer o que entenderem.
— Senhor — responderam Craig-Fry, — os interesses da Centenária estão agora mais ameaçados do que nunca! Abandoná-lo em tais circunstâncias seria faltar ao nosso dever. Não o deixaremos.
Não havia um momento a perder. Mas antes de tudo cumpria saber ao certo quem era esse Lao-Shen, e aproximadamente onde residia. Mas a sua notoriedade era tanta que nada disso foi difícil.
Com efeito, esse antigo companheiro de Wang no movimento insurrecional dos Mang-Tchao retirara-se para o norte da China, para além da Grande Muralha, próximo ao golfo de Leao-Tong, que é apenas um anexo do golfo de Pé-Tché-Li. Se o governo imperial não tratara ainda com ele, como fizera com alguns outros chefes rebeldes que não pudera submeter, deixava-o pelo menos operar tranqüilamente nos territórios situados além das fronteiras chinesas, onde Lao-Shen, resignado a um papel mais modesto, fazia o ofício de salteador de estradas. Ah! Wang escolhera bem o homem que precisava! Este não teria escrúpulos, e uma punhalada a mais ou a menos não era coisa que lhe perturbasse a consciência!
Kin-Fo e os dois agentes obtiveram assim completas informações sobre o Tai-ping, e souberam que ele havia sido assinalado ultimamente nas proximidades de Fu-Ning, pequeno porto no gôlío de Leao-Tong. Foi para lá que resolveram partir sem mais demora.
Imediatamente Lé-u foi informada do que acabava de passar-se. Mais um agravo para as suas angústias e seus belos olhos afogaram-se em lágrimas. Quis dissuadir Kin-Fo de partir, a pretexto de que ele corria ao encontro de um perigo inevitável. Não era preferível esperar, afastar-se, deixar o Celeste Império se tanto fosse preciso, refugiar-se em alguma parte do mundo onde o feroz Lao-Shen não pudesse alcançá-lo?
Mas Kin-Fo fez compreender à jovem senhora que, viver sob essa constante ameaça, à mercê de um tal bandido para quem a sua morte valia uma fortuna, era uma perspectiva que não podia tolerar. Não! Precisava acabar com aquilo de uma vez por todas. Kin-Fo e os seus fiéis acólitos partiriam nesse mesmo dia, procurariam o Tai-Ping e resgatariam a peso de ouro a deplorável carta, regressando a Pequim antes mesmo que o decreto de interdição tivesse sido revogado.
— Querida irmãzinha — disse Kin-Fo, — ainda bem que o nosso casamento teve de ser adiado por alguns dias. Se ele se tivesse realizado, que situação agora a tua!
— Se nos tivéssemos casado eu teria o direito de te seguir, e iria contigo!
— Não! — atalhou Kin-Fo. — Preferia mil mortes a expor-te a um só perigo! Adeus, Lé-u, adeus!...
E Kin-Fo, com os olhos úmidos, desprendeu-se dos braços da jovem senhora que o queria reter.
Nesse mesmo dia Kin-Fo, Craíg e Fry, acompanhados de Sun, ao qual a má sorte não deixava um instante de repouso, deixavam Pequim a caminho de Tong-Tchéu. Foi questão de uma hora.
Eis o que fora decidido:
A viagem por terra, através de uma província insegura, oferecia dificuldades muito sérias.
Se apenas se tratasse de alcançar a Grande Muralha ao norte da capital, quaisquer que fosse os perigos acumulados nesse percurso de cento e sessenta lis,10 valeria a pena enfrentá-los. Mas não era ao norte, e sim a leste, que se achava o porto de Fu-Ning. Indo por mar, lucravam tempo e segurança. Em quatro ou cinco dias, Kin-Fo e seus companheiros podiam lá chegar, e então resolveriam.
Encontrar-se-ia, porém, um navio de partida para Fu-Ning? Era o que convinha saber, antes de mais nada, com os agentes marítimos de Tong-Tchéu.
Dessa vez o acaso favoreceu Kin-Fo, que a má sorte acabrunhava sem descanso. Na embocadura do Pei-ho esperava um cargueiro para Fu-Ning.
Tomar uma dessas rápidas embarcações que percorrem o rio, descer no seu estuário e embarcar no tal navio — era o que tinham a fazer.
Craig e Fry pediram apenas uma hora para os seus preparativos, e essa hora gastaram-na em comprar todos os aparelhos de salvamento conhecidos, desde o primitivo cinto de cortiça até às roupas insubmersíveis do capitão Boyton. Kin-Fo continuava valendo duzentos mil dólares. A sua viagem por mar não o obrigava a prêmios suplementares, visto ter assegurado todos os riscos. Podia acontecer uma catástrofe, era preciso prever tudo, e realmente tudo foi previsto.
Assim, no dia 26 de junho, ao meio-dia, Kin-Fo, Craig-Fry e Sun embarcavam no Pei-tang e desciam o curso do Pei-ho. As curvas desse rio são tão caprichosas que o seu percurso representa justamente o dobro de uma linha reta que ligasse Tong-Tchéu à sua embocadura; mas é canalizado, e portanto navegável por embarcações de importante tonelagem. O movimento marítimo também é considerável, e muito mais intenso que o da larga estrada que quase paralelamente o acompanha.
O Pei-tang descia velozmente por entre as balisas do canal, fustigando com as pás das suas rodas as águas amareladas do rio, e agitando à passagem os numerosos canais de irrigação de ambas as margens. A alta torre de um pagode além de Tong-Tchéu logo se perdeu de vista, desaparecendo no ângulo de uma curva bastante brusca.
Nessa altura o Pei-ho ainda não era largo. Deslizava aqui entre dunas arenosas, ali por entre pequenos casais agrícolas, em meio a uma paisagem bastante arborizada, cortada de vergéis e sebes vivas. Surgiram vários povoados importantes, Matao, Hé-Si-Vu, Nane-Tsaé, Yang-Tsune, onde se fazem ainda sentir as marés.
Tien-Tsin apareceu logo em seguida, onde se perdeu algum tempo pois era necessário abrir a ponte de leste, que une as duas margens do rio, e circular, não sem dificuldade, por entre centenas de navios que juncam o porto. Isso não foi conseguido sem grandes clamores, e custou a mais de uma barcaça as amarras que a retinham contra a corrente, aliás cortadas sem a menor consideração pelo prejuízo que daí podia resultar. Em conseqüência, enorme confusão e embaraço de embarcações à deriva, que daria grande trabalho aos dirigentes do porto — se os houvessem em Tien-Tsin.
Durante toda a travessia, dizer que Craig e Fry, mais rigorosos que nunca, não se afastavam um passo do seu cliente, não seria em verdade dizer tudo.
Já não se tratava do filósofo Wang, com o qual se poderia entrar em entendimento se o pudessem prevenir, mas de Lao-Shen, o Tai-ping que não conheciam — o que o tornava muito mais temível. Como iam ao encontro dele, poderiam talvez considerar-se seguros; mas quem garantiria que ele já não se tivesse posto a caminho, em busca da sua vítima? E nesse caso como evitá-lo, como precaver-se? Craig e Fry viam um assassino em cada passageiro do Pei-tang: não comiam, não dormiam, não viviam!
Se Kin-Fo, Craig e Fry estavam seriamente inquietos, Sun, por seu lado andava numa horrível ansiedade. A simples idéia de ir viajar pelo mar já lhe causava enjôos, e empalidecia à medida que o Pei-tang se aproximava do golfo de Pé-Tché-Li.
O nariz franzia-se-lhe, contraía-se-lhe a boca, e no entanto as águas calmas do rio não sacudiam ainda a embarcação.
Que sucederia depois, quando Sun tivesse de suportar as curtas vagas de um mar pouco largo, essas vagas que tornam os balanços mais vivos e freqüentes?
— Tu nunca viajaste por mar? — perguntou-lhe Craig.
— Nunca.
— Não te sentes bem? — perguntou-lhe Fry.
— Não.
— Aconselho-te a levantar a cabeça — prosseguiu Craig.
— A cabeça?
— E a não abrir a boca... — acrescentou Fry.
— A boca?
Dito isto, Sun deu a entender aos dois agentes que preferia não continuar a falar, e foi instalar-se no centro do navio, lançando ao rio, já bem largo, as olhadelas melancólicas das pessoas predestinadas ao mal um tanto ridículo do enjôo.
A paisagem tinha-se então modificado no vale que acompanhava o rio. A margem direita contrastava pela escarpa mais alta que a da esquerda, cuja praia escumava sob uma pequena ressaca. Para além estendiam-se vastas plantações de sorgo, milho, trigo e painço. Do mesmo modo que em toda a China, — mãe de família que tem tantos milhões de filhos a sustentar — não havia um pedaço de terra cultivável que estivesse abandonada. Por toda a parte canais de irrigação ou aparelhos de bambu, espécie de noras rudimentares, tirando e espalhando a água em profusão. Aqui e ali, junto às aldeias de taipa amarelada viam-se alguns grupos de árvores, entre outras, velhas macieiras que não destoariam numa planície normanda. Nas praias movimentavam-se numerosos pescadores, aos quais os corvos marinhos serviam de cães de caça, ou melhor, de cães de pesca. Esses voláteis mergulhavam a um sinal do dono, e carreavam os peixes que não podiam engolir graças a um anel que quase lhes estrangulava o pescoço. Depois eram patos, gralhas, corvos, pegas e gaviões que os apitos do vapor faziam erguer de entre as altas ervas.
Se a larga estrada, ao longo do rio, se mostrava agora deserta, o movimento marítimo do Pei-ho não diminuía. Quantos barcos de toda a espécie lhe subiam e desciam o curso! Juncos de guerra com a sua bateria barbeta, cuja coberta formava uma curva muito côncava da proa à popa, manobrados por uma dupla ordem de remos ou por pás movidas à mão; juncos da alfândega a dois mastros, com velas de chalupa e vigas transversais, ornados à proa e à ré de cabeças e caudas de fantásticas quimeras; juncos comerciais, de grande tonelagem, enormes cascos que, pejados dos mais preciosos produtos do Celeste Império não temem afrontar os tufões dos mares vizinhos; juncos de passageiros, movidos a remo ou à sirga, conforme as horas da maré, excelentes para quem tem tempo a perder; juncos de mandarins, pequenos iates de recreio, rebocados pelas suas lanchas; sampans de todas as formas, com velas de esteiras de junco, dos quais os menores, dirigidos por moças de remo em punho e criança às costas, bem merecem o nome que têm e significa: três tábuas; e enfim comboios de madeira, verdadeiras aldeias flutuantes, com cabanas, vergéis arborizados, plantação de legumes, imensas jangadas feitas de alguma floresta da Mancharia que os lenhadores derrubaram por inteiro.
Mas as povoações iam-se tornando mais raras. Apenas se contam umas vinte entre Tien-Tsin e Taku, na embocadura do rio. Nas margens, grandes turbilhões de fumaça erguiam-se de algumas fábricas de tijolos, toldando os ares juntamente com o fumo do navio. A noite descia, precedida pelo crepúsculo de junho que se prolonga naquela latitude. Daí a pouco uma série de dunas brancas, simètricamente dispostas e de um relevo uniforme, diluíram-se na penumbra. Eram montes de sal extraídos das salinas próximas. Ali se abria entre terrenos áridos o estuário do Pei-ho, paisagem triste, como diz o senhor de Beauvoir, que é tudo areia, sal, poeira e cinza.
No dia seguinte, 27 de junho, antes do nascer do sol, o Pei-tang chegava ao porto de Taku, quase à entrada do rio.
Nesse ponto, em ambas as margens erguem-se os fortes do Norte e do Sul, agora desmantelados, que foram tomados pelo exército anglo-francês em 1860. Ali se verificou o glorioso ataque do general Collineau, em 24 de agosto do mesmo ano, e as canhoneiras forçaram a entrada do rio; ali se estende uma estreita faixa de terra, quase abandonada, que tem o nome de concessão francesa; e se vê ainda o monumento fúnebre sob o qual repousam os oficiais e soldados mortos nesses combates memoráveis.
O Pei-tang não passaria a barra, todos os passageiros tiveram de desembarcar em Taku. É já uma cidade de certa importância e cujo desenvolvimento seria considerável se os mandarins algum dia permitissem a construção de uma estrada de ferro que a ligasse a Tien-Tsin.
O navio de carga que ia para Fu-Ning devia fazer-se à vela nesse mesmo dia. Kin-Fo e seus companheiros não tinham uma hora a perder. Mandaram atracar um sampan, e daí a quinze minutos estavam a bordo do Sam-Yep.
NO QUAL O VALOR MERCANTIL DE KIN-FO É MAIS UMA VEZ COMPROMETIDO.
Oito dias antes, um navio americano viera ancorar no porto de Taku. Fretado pela sexta companhia sino-californiana, carregara por conta da agência Fuk-Ting-Tong, que está instalada no cemitério de Laurel-Hill, de São Francisco.
É nesse cemitério que os celestiais mortos na América aguardam o dia do repatriamento, fiéis à sua religião que lhes determina repousarem na terra natal.
Esse navio, destinado a Cantão, trouxera, com autorização expressa da agência, um carregamento de duzentos e cinqüenta caixões, dos quais setenta e cinco deviam ser desembarcados em Taku e de lá redespachados para as províncias do norte.
O transbordo dessa parte da carga fizera-se do navio americano para o navio chinês, e nessa mesma manhã de 27 de junho este último aparelhava para o porto de Fu-Ning.
Era neste navio que Kin-Fo e seus companheiros tinham tomado passagem. Com certeza não o teriam escolhido, mas à falta de outros navios de partida para o golfo de Léao-Tong, tiveram de embarcar nele. Aliás, tratava-se de uma viagem de dois ou três dias quando muito, bastante fácil naquela época do ano.
O Sam-Yep era um junco do mar, com uma capacidade de mais ou menos trezentas toneladas.
Outros há de mil, e ainda de mais, com um calado de seis pés que lhes permite transpor a barra dos rios do Celeste Império. Muito largos em relação ao seu comprimento, com um vau igual a um quarto da quilha, andam pouco, a não ser ao cerrado da bolina, segundo parece, mas viram quase no mesmo lugar, rodando como um pião, o que lhes dá vantagens sobre navios de linhas mais finas. O safrão do seu enorme leme está cheio de buracos, sistema muito preconizado na China, mas cujo resultado parece bastante discutível. Seja como for, estas vastas embarcações afrontam vantajosamente os mares costeiros. Cita-se mesmo um desses juncos que, fretado por uma casa de Cantão, foi, sob o comando de um capitão americano, levar a São Francisco um carregamento de chá e porcelanas. Está assim provado que esses navios agüentam bem o mar, e os homens competentes estão de acordo em que os chineses são marinheiros excelentes.
O Sam-Yep, de construção moderna, quase reto da proa à popa, lembrava pelo seu gabarito a forma dos cascos europeus. Sem pregos nem cavilhas, feito de bambus unidos, calafetado de estopa e de resina de Cambodge, era de tal modo estanque que nem sequer possuía bomba de porão. Sua leveza fazia-o flutuar como um pedaço de cortiça. Uma âncora de madeira muito rija, cordagem de fibras de palmeira de notável flexibilidade, velas macias, manobráveis da coberta, fechando-se ou abrindo à maneira de leque, dois mastros dispostos como o mastro grande e o mastro de mezena de um Iugre, sem traquetes nem cutelos, tal era esse junco, bem adequado, em suma e bem apetrechado para as necessidades da pequena cabotagem. Sem dúvida ninguém, vendo o Sam-Yep, adivinharia que os seus fretadores o tinham transformado dessa vez num enorme carro fúnebre.
Com efeito as caixas de chá, os fardos de seda, os caixotes de perfumarias chinesas tinham sido substituídos pela carga que sabemos. Mas o junco nada perdera das suas vivas cores. Nas cabinas da proa e da ré drapejavam auriflamas e bodas multicoloridas. Na proa abria-se um grande olho flamejante que lhe dava a aparência de um gigantesco animal marinho. Na ponta dos mastros, a brisa fazia ondular a brilhante estamenha do pavilhão chinês. Duas caronadas erguiam por cima das trincheiras a sua goela luzidia, onde se refletiam como num espelho os raios solares, — instrumentos bem úteis nesses mares ainda infestados de piratas. Todo o conjunto era alegre, colorido, agradável à vista. Não seria porventura um repatriamento que operava o Sam-Yep, — um repatriamento de cadáveres, é verdade, mas de cadáveres contentes?
Nem Kin-Fo, nem Sun podiam experimentar a menor repugnância em viajar naquelas condições. Eram demasiado chineses para isso. Craig e Fry, que como os seus compatriotas americanos não gostam de transportar esse gênero de carga, teriam talvez preferido outro navio de comércio, mas não lhes era dado escolher.
Um capitão e seis homens compunham a tripulação do junco, suficientes para as manobras muito simples do velame. A bússola, ao que dizem, foi inventada na China; é possível, mas os navios costeiros jamais a utilizam e navegam a olho. Era o que ia fazer o capitão Yin, comandante do Sam-Yep, que de resto contava não perder de vista o litoral do golfo.
Esse capitão Yin, um homenzinho de cara risonha, vivo e loquaz, era a demonstração viva do insolúvel problema do movimento perpétuo. Não podia estar parado, gesticulando sempre. Seus braços, mãos e olhos falavam ainda mais do que a sua língua, que entretanto jamais repousava atrás dos dentes brancos. Empurrava os seus homens, interpelava-os, injuriava-os, mas enfim, marinheiro ótimo, muito prático daquelas costas, manobrava o seu junco como se o tivesse entre os dedos. O alto preço que Kin-Fo pagara por si e pelos seus companheiros, não era coisa que lhe alterasse o humor jovial.
Passageiros que acabavam de entregar cento e cinqüenta taéis para uma travessia de sessenta horas, eram uma sorte, especialmente se não se mostrassem mais exigentes, quanto a conforto e alimentação, do que os seus companheiros de viagem amontoados no porão!
Kin-Fo, Craig e Fry, tinham sido alojados, do melhor modo possível, na câmara da ré, e Sun na da proa.
Os dois agentes, sempre desconfiados, tinham começado por um exame minucioso dos tripulantes e do capitão, mas não acharam nada de suspeito na atitude dessa boa gente. Imaginar que eles estivessem de acordo com Lao-Shen era fora de toda a verossimilhança, pois só o acaso levara o seu cliente a encontrar aquele junco, e também era demais que o acaso fosse cúmplice do famosíssimo Tai-ping. A travessia, salvo os perigos do mar, devia interromper por alguns dias as suas cotidianas inquietações. De modo que deixaram Kin-Fo mais à vontade.
Este, aliás, não se aborreceu com isso. Trancou-se no seu camarote e pôs-se a "filosofar" livremente. Pobre homem que não soubera apreciar a sua felicidade, nem compreender quanto valia aquela existência livre de cuidados no yamen de Shangai, a que uma ocupação teria dado maiores encantos! Reentrasse ele na posse da sua carta e veriam como lhe aproveitara a lição, e se o louco não se tornaria sensato!
Mas ser-lhe-ia, enfim, restituída essa carta? Sim, sem nenhuma dúvida, pois estava pronto a pagar por ela o que fosse preciso. E para Lao-Shen era apenas uma questão de dinheiro. Contudo, era necessário vigiá-lo e não se deixar surpreender. Aí estava a grande dificuldade! Lao-Shen mantinha-se sem dúvida informado de tudo o que fazia Kin-Fo; Kin-Fo nada sabia do que fazia Lao-Shen. Portanto, perigo muito sério quando o cliente de Craig-Fry desembarcasse na província onde campeava o Tai-ping. Toda a questão estava nisto: antecipar-se-lhe. Evidentemente Lao-Shen preferiria receber cinqüenta mil dólares de Kin-Fo vivo, do que cinqüenta mil dólares de Kin-Fo morto. Isso lhe evitaria uma viagem a Shangai e uma visita aos escritórios da Centenária, que não deixariam de representar um certo perigo por grande que fosse a benevolência do governo a seu respeito.
Assim pensava o tão metamorfoseado Kin-Fo, e bem se pode acreditar que a gentil viúva de Pequim tinha um grande lugar nos seus projetos de futuro!
Enquanto isso, que pensava Sun?
Sun não pensava nada. Sun continuava estendido no camarote, pagando o seu tributo às divindades maléficas do golfo de Pé-Tché-Li. Só conseguia ordenar algumas idéias paia amaldiçoai o patrão, o filósofo Wang e o bandido Lao-Shen! Tinha o coração estúpido! Ai, ai, ai!, estúpidas as idéias, e os sentimentos estúpidos. Já não pensava no chá e no arroz! Ai, ai, ai! Que vento o levara ali, por engano? Errara mil, dez mil vezes ao entrar para o serviço de um homem que andava pelo mar! De bom grado daria o que lhe restava de cauda para não estar ali! Preferia rapar a cabeça, fazer-se bonzo! Um cão amarelo! Era um cão amarelo que lhe devorava o fígado e as entranhas! Ai, ai, ai!
Entretanto, sob o impulso de um lindo vento sul, o Sam-Yep percorria a três ou quatro milhas as baixas praias do litoral, que corria então de leste e oeste. Passou em frente a Peh-Tang, na embocadura do rio desse nome, não longe do ponto onde os exércitos europeus operaram o seu desembarque, e em seguida diante de Shan-Tung, de Tshiang-Ho, à entrada do Tau, e de Hhai-Vé-Tsé.
Esta parte do golfo começava a tornar-se deserta. O movimento marítimo, muito importante no estuário do Pei-ho, não irradiava a mais de vinte milhas. Alguns juncos mercantes que faziam a pequena cabotagem, uma dúzia de barcos de pesca explorando as águas piscosas da costa e as almadravas da margem, ao largo o horizonte absolutamente vazio, tal era o aspecto daquela parte do mar.
Craig e Fry observaram os barcos de pesca, mesmo aqueles cuja capacidade não ia além de cinco ou seis toneladas, estavam armados de um ou dois pequenos canhões.
Quando chamaram para isso a atenção do capitão Yin, este respondeu esfregando as mãos:
— É preciso assustar os piratas!
— Piratas, nesta parte do golfo de Pé-Tché-Li! — exclamou Craig um tanto surpreendido.
— Por que não — respondeu Yin. — Aqui e em toda a parte! Piratas é coisa que não falta nos mares da China!
E o digno capitão ria mostrando a dupla fila de dentes brilhantes.
— O senhor não parece temê-los muito — observou Fry.
— Então para que servem as minhas duas peças, duas atrevidas que falam alto quando alguém se aproxima demais?
— Estão carregadas? — perguntou Craig.
— Ordinariamente, sim.
— E agora?
— Agora, não.
— Por quê? — insistiu Fry.
— Porque eu não tenho pólvora a bordo — respondeu tranqüilamente o capitão Yin.
— Mas então de que valem as duas peças? — exclamaram Craig-Fry pouco satisfeitos com a resposta.
— De que valem? — berrou o capitão. — Ora essa! Para defender um carregamento, quando vale a pena, quando o meu junco está abarrotado até às escotilhas de chá ou de ópio! Mas agora, com essa carga!...
— E como é que os piratas vão saber se o seu junco vale ou não a pena de ser atacado? — perguntou Craig.
— Os senhores receiam muito a visita desses valentes? — tornou o capitão dando uma volta e encolhendo os ombros.
— É claro! — respondeu Fry.
— Mas os senhores não têm a bordo um simples embrulho!
— Pois sim, — acrescentou Craig — mas temos motivos particulares para não desejar a visita deles!
— Está bem; fiquem tranqüilos! — respondeu o capitão. — Os piratas, se os encontrarmos, não darão caça ao nosso junco.
— Mas por quê?
— Porque, quando nos avistarem logo conhecerão a natureza da sua carga.
E o capitão indicou uma bandeira branca que a brisa desenrolava a meio mastro do junco.
— Bandeira branca em funeral! Bandeira de luto! Esses valentes não se darão ao trabalho de pilhar um carregamento de caixões!
— Podem julgar que o senhor navega com bandeira de luto por esperteza — observou Craig, — e vir a bordo verificar...
— Se vierem nós os receberemos — respondeu o capitão Yin, — e depois de nos visitarem irão embora como vieram!
Craig-Fry não insistiram, mas só mediocremente partilharam do inalterável otimismo do capitão. A captura de um junco de trezentas toneladas, mesmo em lastro, oferecia bastante lucro aos "valentes" de que falava Yin para os levar a tentar o golpe. De qualquer modo tinham de resignar-se e fazer votos para que a travessia acabasse bem.
Aliás, o capitão nada esquecera para assegurar as oportunidades favoráveis. No momento de aparelhar, um galo fora sacrificado em honra das divindades marinhas. No mastro da mezena pendiam ainda as penas do infeliz galináceo. Algumas gotas do seu sangue espalhadas na coberta, um co-pinho de vinho jogado por cima da amurada tinham completado esse sacrifício propiciatório. Assim sacramentado, que podia temer o junco Sam-Yep sob o comando do digno capitão Yin ?
É de supor, contudo, que as caprichosas divindades não estivessem satisfeitas. Ou porque o galo fosse excessivamente magro, ou porque o vinho não proviesse dos melhores cerrados de Chao-Chigne, o fato é que uma terrível ventania desabou sobre o junco. Nada o fizera prever durante esse dia, limpo, claro, bem varrido por uma linda brisa. O mais perspicaz dos marinheiros não teria sentido que se preparava "alguma dança".
Pelas oito horas da noite, o Sam-Yep dispunha-se a dobrar o cabo que forma o litoral subindo para nordeste, e além do qual era o mar largo que muito favoreceria a sua marcha. O capitão Yin contava então, sem presumir excessivamente das suas forças, alcançar em vinte e quatro horas os ancoradouros de Fu-Ning.
Kin-Fo esperava a hora de ancorar com uma certa impaciência, e Sun com verdadeira fúria. Quanto a Craig-Fry raciocinavam deste modo: se dentro de três dias o seu cliente conseguisse reaver das mãos de Lao-Shen a carta que lhe comprometia a existência, seria justamente quando a Centenária deixaria de se incomodar com ele. Com efeito, a apólice só o cobria até 30 de junho à meia noite, desde que ele depositara apenas um prêmio correspondente a dois meses nas mãos do honrado William J. Bidulph. E então:
— All... — começou Fry.
— ...right! — acrescentou Craig.
Mais tarde, quando o junco chegava à entrada do golfo de Leao-Tong, o vento saltou bruscamente para nordeste; em seguida, passando pelo norte, duas horas depois soprava do noroeste.
Se o capitão Yin tivesse um barômetro a bordo, poderia constatar que a coluna mercurial acabava de descer quatro a cinco milímetros quase de repente. Ora, essa súbita rarefação do ar pressagiava um tufão11 pouco distante, cujo movimento já diminuía as camadas atmosféricas. Por outro lado, se o capitão Yin conhecesse as observações do inglês Paddington e do americano Maury, teria tentado mudar a sua direção e governar para nordeste, na esperança de alcançar uma área menos perigosa, fora do centro de atração da tempestade envolvente.
Mas o capitão Yin jamais usava barômetro e ignorava inteiramente a lei dos ciclones. Além disso não tinha ele sacrificado um galo, e esse sacrifício não o devia garantir contra toda a eventualidade?
Em todo o caso aquele supersticioso chinês era um bom marinheiro, e provou-o nessas circunstâncias. Por instinto, manobrou como o teria feito um capitão europeu.
Este tufão não passava de um pequeno ciclone, dotado por conseqüência de uma grande velocidade de rotação e de um movimento de translação que ultrapassava cem quilômetros à hora. Impeliu assim o Sam-Yep para leste, circunstância aliás feliz, pois que, correndo desse modo o junco afastava-se de uma costa que não oferecia nenhum abrigo, e na qual infalivelmente se perderia em pouco tempo.
Às onze horas da noite a tempestade alcançou o seu máximo de intensidade. O capitão Yin, bem auxiliado pela tripulação, manobrava como um verdadeiro homem do mar. Já não ria, mas conservava todo o seu sangue frio. Sua mão firmemente agarrada ao leme dirigia a leve embarcação que se erguia sobre as ondas como uma folha de malva.
Kin-Fo abandonara o camarote da ré. Segurando-se aos parapeitos olhava o céu com as suas nuvens difusas, despedaçadas pelo furacão e que arrastavam pelas águas os seus farrapos de vapor. Contemplava o mar, branco naquela noite negra, cujas águas o tufão, num sorvo gigantesco, erguia muito acima do nível habitual. O perigo não o surpreendia nem aterrava. Aquilo fazia parte da série de emoções que lhe reservava a má sorte, encarniçada contra ele. Uma travessia de sessenta horas, sem tempestade, em pleno verão, era coisa só para pessoas felizes, e ele já não pertencia ao número dos felizes!
Craig e Fry sentiam-se muito mais inquietos, sempre em razão do valor mercantil do seu cliente. Decerto, a vida deles valia a de Kin-Fo, e uma vez mortos com este não mais teriam de preocupar-se com os interesses da Centenária, Mas esses conscienciosos agentes esqueciam-se de si, apenas pensavam em cumprir o seu dever. Morrer, paciência! Com Kin-Fo, perfeitamente! Mas só depois da meia-noite de 30 de junho! Salvar um milhão, eis o que intentavam Fry-Craig, eis no que pensavam Craig-Fry!
Quanto a Sun, não tinha a menor dúvida de que o junco estava perdido, ou melhor, para ele, aventurar-se sobre o pérfido elemento, mesmo com o melhor tempo do mundo, era correr para morte certa. Ah! Os passageiros do porão é que não precisavam lastimar-se! Ai, ai, ai! Não sentiam balanços nem tonturas Ai, ai, ai! E o desgraçado Sun perguntava a si mesmo se no caso deles não acabaria enjoando!
Durante três horas o junco esteve em grande perigo. Um erro ao leme tê-lo-ia perdido, porque o mar rebentar-lhe-ia na coberta. Se, como um balde, não podia virar-se, podia pelo menos encher-se e afundar. Quanto a mantê-lo numa direção constante, em meio às ondas açoitadas pelo turbilhão do ciclone, nem pensar nisso! Calcular a rota percorrida e seguida, nem em sonhos!
Entretanto, um feliz acaso levou o Sam-Yep a alcançar, sem avarias graves, o centro do gigantesco disco atmosférico que cobria uma área de cem quilômetros, onde, numa extensão de duas ou três milhas havia mar calmo, vento apenas perceptível. Era como um lago tranqüilo em meio a um oceano em fúria.
Foi a salvação do junco, que o vendaval impelira para ali como um tronco de árvore. Pelas três horas da manhã a fúria do ciclone caía como por encanto, e as águas revoltas tendiam a acalmar em redor daquele pequeno lago central.
Mas quando o dia rompeu, em vão o Sam-Yep procuraria avistar terra. Costa alguma no horizonte. As águas do golfo, estendendo-se até à linha circular do horizonte, cercavam-no por todos os lados.
EM QUE CRAIG E FRY, LEVADOS PELA CURIOSIDADE, VISITAM O PORÃO DO "SAM-YEP".
— Onde estamos, capitão Yin? — perguntou Kin-Fo uma vez passado o perigo.
— Não posso sabê-lo ao certo — respondeu o capitão cuja fisionomia recuperara a jovialidade.
— No golfo do Pé-Tché-Li?
— Talvez.
— Ou no golfo de Leao-Tong?
— Também pode ser.
— Mas onde abordaremos?
— Onde o vento nos levar.
— E quando?
— Não o posso dizer.
— Um verdadeiro chinês anda sempre orientado, senhor capitão — replicou Kin-Fo de mau humor, citando um provérbio muito em moda no Império do Meio.
— Em terra, sim! — respondeu o capitão Yin. — No mar, não!
E a sua boca abriu-se até às orelhas.
— Não me parece caso para rir! — observou Kin-Fo.
— Nem para chorar — replicou o capitão.
A verdade é que, se a situação nada tinha de alarmante, era impossível ao capitão Yin dizer onde se achava o Sam-Yep. Como poderia ele determinar-lhe a direção sob a tempestade circular, sem bússola e com um vento espalhado pelos três quartos do quadrante? O junco, de velas ferradas e escapando quase inteiramente ao controle do leme, fora um brinquedo para o furacão. Não era, pois, sem motivo, que as respostas do capitão tinham sido tão vagas. O que ele poderia era tê-las dado com menos jovialidade.
Todavia, feitas bem as contas, quer tivesse sido arrastado para o golfo de Leao-Tong ou repelido para o golfo de Pé-Tché-Li, o Sam-Yep não podia hesitar em pôr a proa ao noroeste. A terra devia necessariamente encontrar-se naquela direção. Seria apenas questão de distância.
Mas não era.
Com efeito, calmaria podre em seguida ao tufão, nenhuma corrente nas camadas atmosféricas, nem um sopro de vento. Um mar sem rugas, apenas inflado pelas ondulações de um largo marulho, simples oscilar a que falta o movimento de translação. O junco erguia-se e abaixava sob o impulso de uma força regular que o não deslocava. Um vapor quente pesava sobre as águas, e o céu, tão profundamente revolto durante a noite, parecia agora impróprio para uma luta dos elementos.
Era uma dessas calmarias "brancas", cuja duração ninguém pode avaliar.
— Excelente! — disse Kin-Fo para si. — Após a tempestade que nos arrastou para o mar largo, a falta de vento que nos impede de voltar a terra!
E dirigindo-se ao capitão:
— Quanto tempo durará esta calmaria?
— Nesta época do ano, senhor, ninguém o pode prever — respondeu o capitão.
— Horas ou dias?
— Dias ou semanas! — tornou o capitão com um sorriso de perfeita resignação que ia enfurecendo o seu passageiro.
— Semanas! — berrou Kin-Fo. — E pensa o senhor que eu posso esperar semanas?
— Não haverá outro remédio, a não ser que arrastemos o nosso junco a reboque!
— Para o inferno o seu junco e todos quantos ele transporta, a começar por mim que tive a infeliz idéia de tomar passagem nele!
— Quer o senhor que eu lhe dê dois bons conselhos — perguntou o capitão Yin.
— Pode dar.
— O primeiro é ir dormir tranqüilamente, como eu vou fazer, coisa ajuizada depois de uma noite passada na coberta.
— E o segundo? — perguntou Kin-Fo a quem a calma do capitão exasperava tanto quanto a calma do mar.
— O segundo — respondeu Yin, — é imitar os meus passageiros do porão, que nunca se queixam e aceitam o tempo como ele vem.
Com essa observação filosófica, digna do próprio Wang, o capitão voltou ao seu camarote, deixando dois ou três homens da tripulação estendidos na coberta.
Durante um quarto de hora Kin-Fo passeou da proa à popa, de braços cruzados, os dedos tamborilando de impaciência. Depois, lançando um último olhar àquela sombria imensidade, cujo centro o navio ocupava, encolheu os ombros e retirou-se para o beliche, sem o mesmo ter dirigido a palavra a Fry-Craig.
Os dois agentes, contudo, ali estavam encostados à amurada, e conforme o hábito conversando sugestivamente, sem falar. Tinham ouvido as perguntas de Kin-Fo, as respostas do capitão, mas sem se intrometerem na conversa. De que lhes serviria intervir, e sobretudo porque haveriam de queixar-se desses atrasos que punham o seu cliente de tão mau humor?
Realmente, o que eles perdiam em tempo, ganhavam em segurança. Se Kin-Fo nenhum perigo corria a bordo e a mão de Lao-Shen o não podia alcançar ali, que mais poderiam desejar?
Além disso, aproximava-se o momento em que cessaria toda a responsabilidade de ambos. Mais quarenta horas, e ainda que todo o exército Tai-ping desabasse sobre o ex-cliente da Centenária, eles não mais arriscariam um cabelo para o defender. Muito práticos aqueles americanos! Devotados a Kin-Fo, enquanto ele valia duzentos mil dólares; absolutamente indiferentes ao que pudesse acontecer-lhe, quando não valesse mais uma sapeca!
Craig e Fry tendo assim raciocinado, almoçaram com o melhor apetite. As suas provisões eram de excelente qualidade. Comeram do mesmo prato e no mesmo assento, a mesma quantidade de bocados de pão e de pedaços de carne fria. Beberam o mesmo número de copos de um esplêndido vinho de Chao-Chigne à saúde do honrado William J. Bidulph. Fumaram a mesma meia dúzia de charutos, e provaram mais uma vez que se pode ser siamês de gostos e hábitos, mesmo não o sendo de nascença.
Valentes ianques, que imaginavam ter chegado ao fim das suas provações!
O dia correu sem incidentes, nem acidentes. Sempre a mesma calmaria atmosférica, o mesmo aspecto vaporoso do céu. Nada fazia prever qualquer mudança no estado meteorológico. As águas do mar tinham-se imobilizado como as de um lago.
Pelas quatro horas Sun tornou a aparecer na coberta, cambaleando, titubeando, parecendo um homem embriagado, embora em toda a sua vida nunca tivesse bebido menos do que nesses últimos dias.
Depois de ter sido roxa a princípio, em seguida azul violácia, depois azul, e por fim verde, sua face tendia agora a tornar-se amarela. Quando chegasse a terra e lhe voltasse a natural cor alaranjada, e algum ímpeto de cólera a tornasse vermelha, seu rosto teria passado sucessivamente e na ordem natural por toda a gama de cores do espetro solar.
Sun arrastou-se até aos dois agentes, de olhos semicerrados, sem ousar um golpe de vista para além da borda do Sam-Yep.
— Chegados? — perguntou ele.
— Não — respondeu Fry.
— Chegando?
— Não — respondeu Craig.
— Ai, ai, ai! — choramingou Sun.
E desesperado, não tendo forças para dizer mais nada foi estender-se ao pé do mastro grande, agitado por sobressaltos convulsivos que lhe faziam pular a trança já curta como o rabinho de um cão.
Entretanto e conforme as ordens do capitão Yin, tinham sido abertas as escotilhas da ponte a fim de arejar o porão. Boa precaução e de homem entendido. O sol depressa absorveria a umidade que duas ou três ondas, entradas durante o ciclone, tinham introduzido no interior do junco.
Craig e Fry, que passeavam na coberta, já haviam parado várias vezes diante da escotilha grande, e em breve a curiosidade os levou a visitar o fúnebre porão. Desceram então pelos pontaletes embutidos que lhe davam acesso.
O sol desenhava um grande trapézio de luz exatamente no prumo da escotilha maior, mas para a frente e para trás o porão continuava em profunda obscuridade. Todavia os olhos de Craig-Fry logo se acostumaram às trevas e ambos puderam apreciar a arrumação daquele especial carregamento do Sam-Yep.
O porão, ao contrário do que sucede na maioria dos juncos mercantes, não estava dividido por tabiques transversais. Era livre de extremo a extremo, inteiramente reservado à carga, fosse qual fosse, pois os beliches da coberta bastavam para alojar a tripulação.
De cada lado do porão, limpo como a antecâmara de um cenotáfio, amontoavam-se os setenta e cinco caixões destinados a Fu-Ning. Sòlidamente arrumados, não podiam deslocar-se com os solavancos nem comprometer de qualquer modo a segurança do junco.
Uma coxia aberta entre a dupla fila de ataúdes, permitia ir de um extremo a outro do porão, quer em plena luz com as duas escotilhas abertas, quer em relativa obscuridade.
Craig e Fry, mudos como se estivessem num mausoléu, foram entrando pela coxia.
Olhavam com certa curiosidade.
Ali se viam caixões de todas as formas e tamanhos, uns ricos e outros pobres. Daqueles emigrantes que as necessidades da vida tinham arrastado para além do Pacífico, bem poucos haviam enriquecido nos garimpos da Califórnia, nas minas da Nevada ou do Colorado! Os outros que tinham partido miseráveis, miseráveis regressavam. Mas todos voltavam ao país natal, iguais na morte. Uma dúzia de esquifes de madeira preciosa, adornados com toda a fantasia do luxo chinês, os outros simplesmente construídos de quatro tábuas, rudemente ajustadas e pintadas de amarelo, tal era a carga do navio. Rico ou pobre, cada caixão trazia um nome que Fry-Craig puderam ler ao passar: Lien-Fu de Yun-Ping-Fu, Nan-Loou de Fu-Ning, Shen-Kin de Lin-Kia, Luang de Ku-Li-Koa, etc. Não havia confusão possível. Cada morto, devidamente etiquetado seria enviado ao seu destino, e iria esperar nos vergéis, em meio aos campos, nas planícies, a hora do sepultamento definitivo.
— Bem feito! — observou Fry.
— Bem arrumado! — anuiu Craig.
Não teriam falado de outro modo dos armazéns de algum atacadista ou das docas de um consignatário de São Francisco ou Nova Iorque.
Craig e Fry, chegados à extremidade do porão, para o lado da proa, na parte mais escura, pararam e olhavam a coxia nitidamente aberta como uma alameda de cemitério.
Terminada a exploração dispunham-se a regressar à coberta quando se produziu um ligeiro ruído que lhes chamou a atenção.
— Algum rato! — disse Craig.
— Algum rato! — concordou Fry.
Má carga para esses roedores! Um carregamento de painço, arroz ou milho seria muito melhor para eles!
Mas o ruído continuava, provindo da altura de um homem, a estibordo, e portanto na camada superior dos caixões. Se não era um ranger de dentes, outra coisa não podia ser que um arranhar de garras ou de unhas.
— Frrr! Frrr! — fizeram Craig e Fry. O ruído não cessou.
Os dois agentes, aproximando-se, escutaram contendo a respiração. Não havia dúvida de que esse arranhar provinha do interior de um dos esquifes.
— Será que meteram numa destas caixas algum chinês em letargo? — perguntou Craig.
— Que estaria despertando após uma travessia de cinco semanas? — acrescentou Fry.
Os dois agentes poisaram a mão no esquife suspeito e constataram, sem engano possível, que havia algum movimento em seu interior.
— Diabo! — exclamou Craig.
— Diabo! — exclamou Fry.
Ambos tiveram naturalmente a mesma idéia de que algum perigo imediato ameaçava o seu cliente.
No mesmo instante, retirando pouco a pouco a mão, sentiram que a tampa do esquife se erguia com cautela.
Craig e Fry, como pessoas a quem nada consegue surpreender, ficaram imóveis, e como não podiam ver naquela profunda escuridão, passaram a ouvir com justa ansiedade.
— Estás aí, Couo? — disse uma voz contida por extrema prudência.
Quase ao mesmo tempo, de um dos caixões de bombordo, que se entreabriu, outra voz murmurou:
— És tu, Fa-Kien?
E trocaram-se rapidamente estas poucas palavras:
— É para esta noite?
— Para esta noite.
— Antes do erguer da lua?
— Na segunda vigília.
— E os nossos companheiros?
— Estão avisados.
— Trinta e seis horas de caixão, é demais!
— Já estou farto!
— Enfim, Lao-Shen assim o quis!
— Silêncio!
Ouvindo o nome do famoso Tai-ping, Craig-Fry por grande domínio que tivessem sobre si mesmo não puderam conter um ligeiro sobressalto.
Bruscamente as tampas desceram sobre as caixas oblongas e reinou um silêncio absoluto no porão do Sam-Yep.
Fry e Craig dobrando os joelhos tornaram ao ponto da coxia iluminado pela escotilha grande e subiram pelos entalhes do pontalete. Um momento depois achavam-se nas traseiras do camarote, onde ninguém os podia ouvir.
— Mortos que falam... — começou Craig.
— ...não estão mortos! — terminou Fry.
Aquele nome de Lao-Shen tudo esclarecera!
De modo que alguns companheiros do temível Tai-ping estavam escondidos a bordo! Podia-se duvidar da cumplicidade do capitão Yin, dos seus tripulantes, dos carregadores do porto de Taku, que tinham embarcado a sinistra carga? Não! Depois de terem sido desembarcados do navio americano que os trouxera de São Francisco, os caixões haviam ficado num pátio durante dois dias e duas noites. Dez, vinte, talvez mais desses piratas filiados ao bando de Lao-Shen, violando os caixões tinham-se substituído aos cadáveres. Mas, para tentarem esse golpe sob a inspiração do chefe, deviam estar informados de que Kin-Fo ia embarcar no Sam-Yep. Como o poderiam ter sabido?
Ponto inteiramente obscuro, e que de resto seria inoportuno querer esclarecer naquele momento.
O certo era que chineses da pior espécie se encontravam a bordo do junco desde a partida de Taku; que o nome de Lao-Shen acabava de ser pronunciado por um deles, e que a vida de Kin-Fo estava direta e pròximamente ameaçada!
Essa mesma noite, essa noite de 28 para 29 de junho ia custar duzentos mil dólares à Centenária, que cinqüenta e quatro horas mais tarde, não tendo sido renovada a apólice, nada mais teria a pagar aos beneficiários do seu ruinoso cliente!
Imaginar que eles perderam a cabeça em tão graves conjunturas, seria desconhecer Fry e Craig. Imediatamente tomaram a sua resolução: tinham de obrigar Kin-Fo a abandonar o junco antes da hora da segunda vigília, e fugir com ele.
Mas fugir como? Apoderar-se da única embarcação de bordo? Impossível. Era uma pesada piroga que exigia os esforços de toda a tripulação para ser içada da coberta e posta na água. Ora, o capitão Yin e os seus cúmplices não se prestariam a isso. Portanto, tornava-se necessário agir de outro modo, quaisquer que fossem os perigos a correr.
Eram então sete horas da tarde. O capitão, fechado no seu camarote não tornara a aparecer, esperando, sem dúvida, a hora combinada com os homens de Lao-Shen.
— Nem um instante a perder! — disseram Craig-Fry.
— Não, nem um! Os dois agentes não estariam mais ameaçados num brulote, levado para o largo, de morrão aceso.
O junco parecia então abandonado à deriva. Um único marinheiro dormia na proa.
Craig-Fry abriram a porta da câmara de ré e foram ao encontro de Kin-Fo.
Kin-Fo dormia.
Acordou com um toque de mão.
— Que querem? — perguntou ele.
Em poucas palavras ficou inteirado da situação, sem perder a coragem e o sangue frio.
— Atiremos ao mar todos esses falsos cadáveres! — exclamou ele.
Idéia arrojada mas absortamente impraticável, dada a cumplicidade do capitão e dos passageiros do porão.
— Nesse caso, que faremos? — perguntou ele.
— Vestir isto! — responderam Fry-Craig.
E assim dizendo abriram um dos pacotes trazidos de Tong-Tchéu, e apresentaram ao cliente um desses maravilhosos aparelhos náuticos inventados pelo capitão Boyton.
O pacote continha ainda outros três aparelhos com os diferentes utensílios que os completavam, tornando-os engenhos de salvamento de primeira ordem.
— Está bem — disse Kin-Fo. — Vão buscar Sun!
Instantes depois Fry trazia Sun completamente aparvalhado. Foi preciso vesti-lo. Deixou-os agir maquinalmente, só manifestando os seus pensamentos por ai! ai! ai!, que cortavam a alma!
Às oito horas, Kin-Fo e seus companheiros estavam prontos. Dir-se-iam quatro focas dos mares glaciais dispondo-se a dar um mergulho. Devemos acrescentar todavia que a foca Sun daria uma idéia pouca favorável da surpreendente agilidade desses mamíferos marinhos, tão mole e flácido se mostrava no seu equipamento insubmersível.
Já a noite vinha descendo de leste. O junco flutuava em meio a um absoluto silêncio à calma superfície das águas.
Craig e Fry abriram uma das portinholas que fechavam as janelas da câmara de ré, cujo vão dava para a parte superior do junco. Sun, erguido de qualquer maneira, foi enfiado através da portinhola e jogado ao mar. Kin-Fo seguiu-o imediatamente. Depois, Craig e Fry, recolhendo os utensílios que lhes eram necessários, precipitaram-se por sua vez.
Ninguém podia imaginar que os passageiros do Sam-Yep acabavam de deixar o navio!
QUE NÃO ACABA BEM PARA O CAPITÃO YIN, COMANDANTE DO "SAM-YEP", NEM PARA A SUA TRIPULAÇÃO.
Os aparelhos do capitão Boyton consistem unicamente — num vestuário de borracha, compreendendo calças, jaqueta e capuz, tornando-se impermeáveis pela natureza mesma do tecido empregado. Contudo, impermeáveis à água não o seriam ao frio resultante de uma imersão prolongada. Assim, tais roupas são confeccionadas em dois tecidos justapostos, entre os quais se pode insuflar uma certa quantidade de ar.
Esse ar preenche duas finalidades: primeira, manter o aparelho suspensor à superfície da água; segunda, impedir pela sua interposição todo o contacto com o meio líquido, e conseqüentemente garantir contra o resfriamento. Vestido desse modo, um homem pode ficar indefenidamente submerso.
Inútil dizer-se que a vedação das costuras desses aparelhos é perfeita. As calças, cujas extremidades acabam em grossas solas, prendem-se a um cinto metálico, suficientemente largo para permitir alguma facilidade aos movimentos do corpo. A jaqueta, ligada a esse cinto, termina numa alta e sólida gola, à qual se adapta o capuz. Este, envolvendo a cabeça adere hermèticamente à testa, às faces e ao queixo por uma atadura elástica. Do rosto apenas se vêem o nariz, os olhos e a boca.
Vários tubos de borracha estão ligados à jaqueta, servindo para a introdução do ar e permitindo regulá-lo de acordo com o grau de densidade que se deseja obter. Pode-se pois, à vontade, ficar mergulhado até ao pescoço, ou até meio corpo, ou mesmo tomar a posição horizontal. Em resumo, completa liberdade de ação e de movimentos, segurança garantida e absoluta.
Tal é o aparelho que tão grande sucesso valeu ao seu audacioso inventor, e cuja utilidade prática é manifesta num certo número de acidentes do mar. Diversos acessórios o completam: um saco impermeável contendo alguns utensílios e que se põe a tiracolo; uma sólida vara que se fixa aos pés num encaixe e leva uma pequena vela cortada à maneira de cutelo; um leve pangaio que pode servir de remo ou de leme, conforme as circunstâncias.
Kin-Fo, Craig-Fry e Sun, assim equipados, flutuavam agora à superfície das águas. Sun, empurrado por um dos agentes deixava-se levar, e com algumas remadas todos quatro lograram afastar-se do junco.
A noite, ainda muito escura, facilitava a manobra. No caso do capitão Yin ou algum dos marinheiros subirem ao convés, não poderiam avistar os fugitivos. Ninguém, aliás, iria supor que eles tivessem fugido de bordo em tais condições. Os bandidos fechados no porão só o viriam a saber no último instante.
— Na segunda vigília — dissera o falso morto do segundo caixão, isto é, pela meia-noite.
Kin-Fo e seus companheiros dispunham assim de algumas horas de prazo para fugir, e durante esse tempo contavam afastar-se uma milha para sotavento do Sam-Yep. Com efeito uma aragem começava a enrugar o espelho das águas, mas ainda tão leve que não podiam prescindir do pangaio para se afastar do junco.
Em poucos minutos Kin-Fo, Craig e Fry tinham-se familiarizado de tal modo com o aparelho que manobravam instintivamente, sem nunca hesitar, quer sobre o movimento a conseguir, quer sobre a posição a tomar no líquido elemento. O próprio Sun logo recuperara o ânimo e se achava incomparavelmente mais à vontade na água do que a bordo do junco. O enjôo desaparecera de repente. E que, entre estar sujeito aos desencontrados balanços de um navio, ou suportar os embalos da vaga quando se está mergulhado a meio corpo, há muita diferença, e Sun constatava-o com grande satisfação.
Mas se o pobre Sun já não se sentia doente, estava horrivelmente assustado. Pensava que os tubarões talvez ainda não estivessem deitados, e instintivamente encolhia as pernas como se estivesse a ponto de ser abocanhado!... Francamente, uma certa inquietação não era de todo despropositada naquelas circunstâncias!
Assim iam deslizando Kin-Fo e os seus companheiros, que a má sorte continuava a jogar nas situações mais imprevistas.
Remando, mantinham-se quase horizontalmente. Quando queriam parar, tomavam a posição vertical.
Uma hora depois de o terem deixado, o Sam-Yep ficava-lhes meia milha a barlavento. Pararam então e seguraram-se aos seus pangaios, assentes na água, e reuniram conselho tendo o cuidado de só falar em voz baixa.
— E esse bandido do capitão! — exclamou Craig para entrar no assunto.
— E esse velhaco do Lao-Shen! — replicou Fry.
— Admiram-se? — interveio Kin-Fo no tom de um homem a quem nada mais pode surpreender.
— Claro! — respondeu Craig; — não posso compreender como esses miseráveis souberam que iríamos embarcar nesse junco!
— É realmente incompreensível! — acrescentou Fry.
— Isso pouco importa! — disse Kin-Fo; — eles souberam-no, mas nós conseguimos fugir!
— Fugir! — atalhou Craig. — Não! Enquanto o Sam-Yep estiver à vista não poderemos considerar-nos fora de perigo!
— E então, que fazer? — perguntou Kin-Fo.
— Restaurar as forças — respondeu Fry, — e afastar-mo-nos o suficiente para não sermos vistos ao romper do dia!
E Fry, soprando uma certa quantidade de ar no seu aparelho, subiu até ficar com meio corpo fora da água. Puxou então o seu saco para o peito, abriu-o, extraiu dele um frasco e um copo que encheu de uma aguardente reconfortante, estendendo-o ao seu cliente.
Kin-Fo não se fez rogar e esvaziou o copo até à última gota. Craig-Fry imitaram-no e Sun também não foi esquecido.
— E então? — perguntou-lhe Craig.
— Vai indo! — respondeu Sun depois de ter bebido. — Contanto que possamos comer alguma coisa!
— Amanhã — continuou Craig, — almoçaremos ao romper do dia, e algumas xícaras de chá...
— Frio! — atalhou Sun fazendo uma careta.
— Quente! — respondeu Craig.
— O senhor pensa acender fogo?
— Acenderei fogo.
— Então por que esperar até amanhã? — perguntou Sun.
— O senhor quer que o nosso fogo nos denuncie ao capitão Yin e aos seus cúmplices?
— Não, não!
— Nesse caso, amanhã!
Na verdade aqueles valentes conversavam ali como sé estivessem em casa. Apenas o leve marulho lhes imprimia um movimento de cima para baixo, que dava um resultado singularmente cômico. Subiam e desciam cada qual por sua vez, aos caprichos da ondulação, como os martelos de um teclado postos em ação pelas mãos de um pianista.
— A brisa começa a refrescar-se — notou Kin-Fo.
— Aparelhamos — responderam Craig-Fry.
E preparavam-se para subir a vara, a fim de desfraldarem a pequena vela, quando Sun teve uma exclamação de pavor.
— Não te calarás, imbecil? — disse-lhe o patrão. — Queres que nos descubram?
— Mas eu acho que vi... — murmurou Sun.
— O quê?
— Um imenso corpanzil... aproximando-se!... Algum tubarão!
— É engano, Sun! — declarou Craig depois de observar atentamente a superfície do mar.
— Mas... parece que senti!... — continuou Sun.
— Não te calarás, poltrão? — voltou Kin-Fo, poisando a mão no ombro do seu criado. — Ainda, que sintas abocanhar uma perna, proibo-te de gritar! Senão...
— Senão — acrescentou Fry, — daremos um golpe de faca no seu aparelho, e ele irá para o fundo onde poderá gritar à vontade!
Como se vê, o desgraçado Sun ainda não chegara ao termo das suas desventuras. O medo trabalhava-o, e lindamente, mas ele já não ousava balbuciar uma palavra. Se ainda não lamentava ter deixado o junco, o enjôo e os passageiros do porão, isso não tardaria.
Como notara Kin-Fo, a brisa tendia a afirmar-se, mas não passava de um desses fogosos pés-de-vento que na maioria dos casos morrem ao nascer do sol. Contudo, deviam aproveitá-lo para se afastar tanto quanto possível do Sam-Yep. Quando os companheiros de Lao-Shen não encontrassem mais Kin-Fo no camarote evidentemente sairiam a procurá-lo, e se ele estivesse à vista, a piroga lhes facilitaria os meios de o apanharem de novo. Assim, a todo o custo, era forçoso estarem longe antes do amanhecer.
A brisa soprava de leste. Quaisquer que fossem as paragens para onde o furacão impelira o junco, algum ponto do golfo de Leao-Tong, do golfo de Pé-Tché-Li ou mesmo do Mar Amarelo, avançar para oeste era sem dúvida aproximar-se do litoral. Uma vez ali, podiam encontrar um desses barcos mercantes que procuram a embocadura do Pei-ho. Barcos de pesca freqüentam noite e dia as proximidades da costa. As probabilidades de ser recolhidos aumentavam pois em grande proporção. Se ao contrário o vento viesse do oeste, e se o Sam-Yep tivesse sido levado para o sul, além do litoral da Coréia, Kin-Fo e seus companheiros não teriam nenhuma possibilidade de salvação. Diante deles se estenderia a imensidão do mar, e no caso em que a costa do Japão os acolhesse seria já no estado de cadáveres, flutuando na sua insubmersível bainha de borracha.
Mas, como dissemos, essa brisa devia provavelmente morrer ao levantar do sol, e necessitavam aproveitar-se dela para se colocarem prudentemente fora do alcance das vistas.
Eram mais ou menos dez horas. A lua devia surgir acima do horizonte um pouco antes da meia-noite. Não havia pois um momento a perder.
— À vela! — disseram Craig-Fry.
Aparelharam imediatamente, o que aliás era facílimo. Cada sola do pé direito do salva-vidas tinha uma espécie de curto tubo destinado a servir de carlinga à vara que por sua vez servia de mastro.
Kin-Fo, Sun e os dois agentes começaram por estender-se de costas; em seguida dobrando o joelho alcançaram o pé em cuja carlinga espetaram a vara, depois de terem previamente passado na outra extremidade a driça da pequena vela. Ao retomarem a posição horizontal, a vara, fazendo um ângulo reto com a linha do corpo, ergueu-se verticalmente.
— Iça! — disseram Fry-Craig.
E cada qual, pesando com a mão direita sobre a driça levou à extremidade do mastro o ângulo superior da vela, que era cortada em triângulo.
A driça foi amarrada ao cinto metálico, a escota segura na mão, e a brisa, enfunando os quatro cutelos arrastou para o meio de uma leve revessa a pequena flotilha de escafandros.
Esses "homens-barcos" não merecem o nome de escafandros com muito mais propriedade que os trabalhadores submarinos, aos quais é ordinária e impropriamente aplicado?
Dez minutos depois cada um deles manobrava com perfeita segurança e facilidade. Vogavam juntos, sem se afastar uns dos outros. Dir-se-ia um bando de enormes gaivotas que, de asas ao cento, deslizavam brandamente à superfície das águas.
Aquela navegação era, aliás, muito favorecida pelo estado do mar. Nenhuma onda perturbava a larga e calma ondulação da superfície, nem marulhos nem ressaca.
Apenas duas ou três vezes o desastrado Sun, esquecendo as recomendações de Fry-Craig, quis voltar a cabeça e engoliu uns goles do amargo líquido. Mas pagou-o com um ou dois vômitos. Também não era isso o que o inquietava, e sim o temor de encontrar um bando de ferozes esqualos! Fizeram-lhe entanto compreender que ele corria menos risco na posição horizontal do que na posição vertical. Realmente, a disposição das goelas do tubarão obrigam-no a voltar-se para abocanhar a presa, e tal movimento não lhe é fácil quando pretende agarrar alguma coisa que flutua horizontalmente. Além disso, já se verificou que se esses peixes vorazes se lançam sobre corpos inertes, hesitam diante dos que são dotados de movimento. Sun devia portanto cuidar de mexer-se continuamente, e bem podemos imaginar como ele se mexeu.
Os escafandros navegaram assim durante mais ou menos uma hora, exatamente o que necessitavam Kin-Fo e os seus companheiros. Menos, não os teria afastado suficientemente do junco. Mais, tê-los-ia fatigado, tanto pela tensão dada à pequenina vela, como pelo marulho bastante acentuado das águas.
Craig-Fry resolveram então parar. Largaram as escotas e a flotilha deteve-se.
— Cinco minutos de descanso, senhor? — disse Craig dirigindo-se a Kin-Fo.
— De bom grado.
Todos, à exceção de Sun que quis ficar estendido por prudência e continuava a pernear, retomaram a posição vertical.
— Mais um copinho de aguardente? — perguntou Fry.
— Com prazer — respondeu Kin-Fo.
Alguns goles do licor reconfortante e pelo momento nada mais necessitavam. A fome ainda os não invadira. Tinham jantado uma hora antes de deixar o junco e podiam esperar até à manhã seguinte. Quanto a aquecer-se era inútil. O colchão de ar interposto entre os seus corpos e a água, garantia-os contra a frialdade. A temperatura normal dos seus corpos não havia decerto baixado um grau desde a partida.
E o Sam-Yep ainda estaria à vista?
Craig e Fry voltaram-se. Fry tirou do saco um binóculo de teatro e percorreu com ele, minuciosamente, o horizonte leste.
Nada! Nenhuma das sombras apenas perceptíveis que os navios desenham contra o fundo escuro do céu. De resto, noite escura, um tanto enevoada, avara de estrelas. Os planetas apenas formavam uma espécie de nebulosa no firma-mento. Mas muito provavelmente, a lua que não tardaria a mostrar o seu semicírculo, dissiparia essas brumas pouco densas e limparia largamente o espaço.
— O junco está longe! — disse Fry.
— Os bandidos ainda dormem — respondeu Craig, — e não aproveitaram a brisa!
— Quando quiserem! — disse Kin-Fo repuxando a escota e abrindo outra vez a sua vela ao vento.
Os companheiros imitaram-no e todos voltaram à antiga direção sob o impulso da aragem um pouco mais viva.
Iam para oeste, de modo que a lua erguendo-se a leste, não lhes devia bater diretamente nos olhos; mas iluminaria com seus primeiros raios o horizonte oposto, e era esse horizonte que importava observar com cautela. Podia ser que em vez de uma linha circular nitidamente traçada entre o céu e a água, apresentasse um perfil acidentado, franjado pelos raios do luar. Os escafandros não se enganariam. Seria o litoral do Celeste Império, e em qualquer ponto onde acostassem era a salvação garantida. A costa era livre, a ressaca quase nula. Nenhum perigo devia oferecer a chegada a terra, e uma vez lá decidiriam o que convinha fazer depois.
Mais ou menos às onze e três quartos vagas claridades romperam as névoas do zênite. O quarto da lua começava a ultrapassar a linha de água.
Nem Kin-Fo nem nenhum dos seus companheiros se voltaram. A brisa que ia refrescando, enquanto se dissipavam os vapores altos, arrastava-os então com certa rapidez. Mas eles sentiram que o espaço se ia pouco a pouco iluminando. Ao mesmo tempo as constelações surgiram com mais nitidez. O vento que subia ia varrendo as brumas e uma esteira acentuada fremia à cabeça dos escafandristas.
O disco da lua, tendo passado do vermelho-cobre ao branco prateado, em breve iluminou todo o céu.
Subitamente uma boa praga, bem sugestiva e bem americana escapou da boca de Craig.
— O junco! — exclamou ele. Todos pararam. —Velas abaixo! — bradou Fry.
Num instante os quatro cutelos foram amainados e as varas retiradas dos seus encaixes.
Kin-Fo e seus companheiros, voltando à posição vertical, olharam atrás de si.
O Sam-Yep lá estava, a menos de uma milha, perfilado em preto contra o horizonte claro, as velas todas desfraldadas. Era com efeito o junco! Aparelhara e aproveitara agora a brisa. O capitão Yin, já decerto se apercebera da desaparição de Kin-Fo, sem poder explicar-se como ele conseguira fugir.
Com toda a probabilidade saíra em perseguição dele, de acordo com os seus cúmplices do porão, e antes de um quarto de hora, Kin-Fo, Craig e Fry estariam novamente em poder deles!
Mas teriam sido avistados em meio ao feixe luminoso com que os banhava a lua à superfície do mar? Talvez não!
— Abaixo as cabeças! — tornou Craig que se agarrara àquela esperança.
Todos compreenderam. Os tubos dos aparelhos deixaram fugir um pouco de ar, e os quatro escafandros mergulharam de modo a que só as cabeças encapuzadas emergissem.
Restava-lhes esperar em absoluto silêncio, sem ousar um movimento.
O junco aproximava-se com rapidez. Suas altas velas faziam largas sombras nas águas.
Cinco minutos depois o Sam-Yep não estava a mais de meia milha. Acima das bordas perpassavam marinheiros. À popa o capitão governava o leme.
Estaria manobrando para alcançar os fugitivos? Pretenderia apenas manter-se na esteira do vento? Não se sabia.
De repente ouviram-se gritos, uma avalanche de homens surgiu na coberta do Sam-Yep. Os clamores aumentaram.
Com certeza havia luta entre os fingidos mortos, ocultos no porão, e a tripulação do junco.
Mas por que essa luta? Então marinheiros e piratas não estavam todos de acordo?
Kin-Fo e seus companheiros ouviam bem claramente, de um lado horríveis vocifefações e do outro gritos de dor e desespero que em poucos minutos se extinguiram.
Em seguida, um violento revolver de água indicou que alguns corpos eram jogados ao mar.
Não! O capitão Yin e os seus tripulantes não eram cúmplices dos bandidos de Lao-Shen. Os pobres homens, ao contrário, tinham sido surpreendidos e massacrados. Os bandidos, que se haviam escondido a bordo — sem dúvida com o auxílio dos carregadores de Taku, — outra coisa não pretenderiam senão apoderar-se do junco por conta do Tai-ping, e decerto ignoravam que Kin-Fo fosse passageiro do Sam-Yep!
Portanto se os vissem, se os apanhassem, nenhum deles poderia esperar misericórdia de semelhantes miseráveis.
O junco prosseguia avançando. Alcançou-os, mas por uma sorte inesperada projetou sobre eles a sombra das suas velas.
Mergulharam um instante.
Quando voltaram a emergir o junco passara sem os ver e afastava-se deixando um rápido sulco.
Um cadáver flutuava à ré, e o redemoinho das águas aproximou-o pouco a pouco dos escafandros.
Era o corpo do capitão, com um punhal cravado na ilharga. As largas pregas da sua túnica ainda o sustinham sobre a água.
Mas logo mergulhou e desapareceu nas profundezas do mar.
Assim morreu o jovial capitão Yin, comandante do Sam-Yep.
Dois minutos depois o junco desaparecia no oeste, e Kin-Fo, Fry-Craig e Sun estavam de novo sozinhos na superfície do mar.
ONDE SE VERÁ AO QUE SE EXPÕEM AS PESSOAS QUE USAM OS APARELHOS DO CAPITÃO BOYTON.
Três horas depois os primeiros alvores da manhã insinuavam-se timidamente no horizonte. Não tardou a ser dia e o mar pôde ser observado em toda a sua extensão.
O junco já não se via; tinha-se logo distanciado dos escafandros, que não podiam competir em velocidade com ele. Estes haviam seguido a mesma rota, para oeste, sob o impulso da mesma aragem, mas o Sam-Yep devia encontrar-se agora mais de três léguas a sotavento. Portanto, nada havia a temer dos que o tripulavam.
Contudo, esse perigo evitado nem por isso melhorava muito a situação.
O mar estava absolutamente deserto. Nenhum navio, nenhum barco de pesca à vista. Nenhum indício de terra ao norte ou a leste. Nada que indicasse a proximidade de um litoral qualquer. Aquelas águas eram as do golfo de Pé-Tché-Li ou as do Mar Amarelo? Completa incerteza a respeito.
Entretanto, alguma aragem corria ainda à superfície das águas. Era preciso aproveitá-la. A direção seguida pelo junco demonstrava que a terra se ergueria — mais ou menos proximamente, — para oeste, e de qualquer modo era ali que convinha procurá-la.
Ficou então decidido que os escafandros prosseguiriam à vela, mas depois de terem restaurado as forças. Os estômagos reclamavam o que lhes era devido, e dez horas de travessia em tais condições tornavam-no imperioso.
— Almocemos — disse Craig.
— Copiosamente! — acrescentou Fry.
Kin-Fo teve um sinal de aquiescência e Sun remoeu as mandíbulas de um jeito que não deixava quaisquer dúvidas. Nesse instante o comilão não pensava mais em ser devorado, ao contrário só pensava em devorar.
O saco impermeável foi então aberto e Fry tirou de dentro dele vários comestíveis de boa qualidade, pão, conservas, alguns utensílios de mesa, enfim o indispensável para satisfazer a fome e a sede. Dos cem pratos que costumam figurar num jantar chinês faltavam talvez noventa e oito, mas havia com que satisfazer os quatro convivas e o momento não comportava exigências.
Todos almoçaram com excelente apetite. O saco continha provisões para dois dias — e, ou estariam em terra antes de dois dias, ou então nunca mais lá chegariam.
— Mas temos boas razões para esperar — disse Craig.
— Que boas razões são essas? — perguntou Kin-Fo com certa ironia.
— Porque a sorte está do nosso lado — respondeu Fry.
— Ah! Então acham?
— Sem dúvida — tornou Craig. — O perigo maior era o junco e nós conseguimos escapar-lhe.
— E nunca, desde que temos a honra de estar adidos à sua pessoa — acrescentou Fry, — o senhor esteve em maior segurança do que aqui!
— Nem todos os Tai-ping do mundo... — começou Craig.
— ...poderiam alcançá-lo! — prosseguiu Fry.
— E o senhor bóia lindamente... — tornou Craig.
— ...para um homem que pesa duzentos mil dólares! — concluiu Fry.
Kin-Fo não pôde deixar de sorrir.
— Se aqui estou flutuando — observou Kin-Fo, — devo-o aos senhores! Sem a ajuda de ambos estaria agora fazendo companhia ao pobre capitão Yin!
— E nós também! — replicaram Fry-Craig.
— E também eu! — interveio Sun esforçando-se por fazer passar um enorme pedaço de pão da boca para o esôfago.
— Não importa, — insistiu Kin-Fo — sei quanto lhes devo!
— O senhor nada nos deve — respondeu Fry, — pois é um cliente da Centenária...
— Companhia de seguros de vida...
— Capital realizado: vinte milhões de dólares...
— E temos a esperança...
— De que ela nada venha a dever-lhe!
No fundo, Kin-Fo estava muito reconhecido pelo devotamento de que os dois agentes lhe tinham dado prova, fosse qual fosse a sua origem. E não lhes ocultou o que pensava a respeito.
— Tornaremos a falar disso quando Lao-Shen me devolver a carta que Wang tão lamentavelmente lhe transferiu!
Craig e Fry olharam-se e um imperceptível sorriso lhes aflorou aos lábios. Ocorrera-lhes sem dúvida o mesmo pensamento.
— Sun! — chamou Kin-Fo.
— Meu amo! — respondeu este.
— O chá?
— Ei-lo aqui! — interveio Fry.
E Fry interveio a tempo, pois Sun teria respondido que fazer chá em tais circunstâncias seria absolutamente impossível.
Mas supor que os dois agentes se embaraçassem com tão pouco, seria não os conhecer.
Fry tirou logo do saco um pequeno utensílio, que é o complemento indispensável dos aparelhos Boyton. Com efeito, ele pode servir de farol durante a noite, de lareira quando faz frio e de fogareiro quando se quer obter alguma bebida quente.
Nada mais simples. Um tubo de cinco ou seis polegadas ligado a um recipiente metálico, munido de uma torneira superior e outra inferior — tudo encaixado num bloco de cortiça, à maneira desses termômetros flutuantes que se usam nas casas de banho, — tal é o utensílio em questão.
Fry poisou-o à superfície da água, que estava perfeitamente lisa.
Com uma das mãos abriu a torneira superior e com a outra a torneira inferior, adaptada ao recipiente imerso.
Imediatamente uma bela chama surgiu na extremidade, desprendendo um calor muito apreciável.
— Aqui está o fogareiro! — disse Fry. Sun não podia acreditar no que via.
— O senhor fez fogo com água! — exclamou ele.
— Com água e fosforeto de cálcio! — respondeu Craig.
Realmente o aparelho era construído de modo a utilizar uma singular propriedade do fosforeto de cálcio, esse composto do fósforo, que em contato com a água produz hidrogênio fosforado. Ora, este gás arde espontaneamente ao ar livre, e nem o vento, nem a chuva, nem o mar podem apagá-lo. E agora empregado para iluminar as bóias de salvamento aperfeiçoadas. A bóia ao cair põe a água em contato com o fosforeto de cálcio e imediatamente jorra uma longa chama, que permite, tanto ao homem caído ao mar encontrá-la de noite, como aos marinheiros virem diretamente socorrê-lo.12 Enquanto o hidrogênio ardia na ponta do tubo, Craig segurava-lhe em cima um bule cheio de água doce, tirada de um barrilzinho guardado no saco.
Em poucos minutos o líquido entrou em estado de ebulição. Craig passou-o para uma chaleira contendo algumas pitadas de um chá excelente, e dessa vez Kin-Fo e Sun beberam-no à americana — sem que isso lhes provocasse alguma reclamação.
Essa bebida quente terminou com decência aquele almoço servido à superfície do mar, a "tantos" graus de latitude e "tantos" de longitude. Só faltavam um sextante e um cronômetro para determinar a posição, com diferença de poucos segundos. Estes instrumentos completarão um dia o saco dos aparelhos Boyton, e os náufragos não mais correrão o perigo de se perderem no mar.
Kin-Fo e seus companheiros bem descansados, bem refeitos, desdobraram então as pequenas velas e retomaram a sua navegação para oeste, agradavelmente interrompida por essa refeição matinal.
A brisa manteve-se ainda durante doze horas e os escafandros fizeram boa rota, com vento favorável. Apenas de tempos a tempos precisavam retificá-la com um leve meneio do pangaio. Na posição horizontal, molemente e docemente levados, vinha-lhes uma certa vontade de dormir. Daí a necessidade de resistir ao sono, que seria muito importuno naquela ocasião.
Craig e Fry para não sucumbir tinham acendido um charuto, e fumavam como os banhistas elegantes no recinto de uma escola de natação.
Várias vezes, aliás, os escafandros foram perturbados pelas rabanadas de algum animal marinho, que causavam os maiores terrores ao desgraçado Sun.
Felizmente eram apenas inofensivos, golfinhos, esses clowns do mar que vinham simplesmente saber que estranhos seres eram aqueles invasores do seu elemento — mamíferos também mas de nenhum modo marinhos.
Curioso espetáculo! Os golfinhos aproximavam-se em bandos, rompendo como flechas e matizando as camadas líquidas com as suas cores de esmeralda; pulavam cinco e seis pés fora das ondas, numa espécie de salto mortal que atestava a agilidade e vigor dos seus músculos. Ah! Se os escafandros pudessem fender a água com aquela rapidez, superior à dos maiores navios, não tardariam a alcançar terra. Dava vontade de se amarrar a alguns daqueles peixes e fazer-se rebocar por eles. Mas que saltos e mergulhos! Não! Mais valia pedir ao vento um impulso que, embora mais lento, era infinitamente mais prático!
Contudo, cerca do meio-dia o vento caiu de todo. Terminou em lufadas caprichosas que inflavam um momento as velas para logo as deixar cair inertes. A escota já não puxava a mão que a segurava.
Já não se ouvia mais o murmurar do sulco aos pés e à cabeceira dos escafandros.
— Uma complicação... — começou Craig.
— ...grave! — terminou Fry.
Pararam um instante. Os mastros foram retirados, dobradas as velas, e cada qual retomando a posição vertical pôs-se a observar o horizonte.
O mar continuava deserto. Nenhuma vela à vista, nenhum fumo de navio esbatendo-se no céu. Um sol ardente absorvera todas as vaporações e como rarificara as correntes atmosféricas. A temperatura da água pareceria quente mesmo a pessoas que não estivessem envolvidas numa dupla camada de borracha.
Enquanto isso, por mais seguros que Craig-Fry dissessem estar a respeito do desenlace daquela aventura, não deixavam de experimentar uma certa inquietação. A distância mais ou menos percorrida nas últimas dezesseis horas não podia ser avaliada; mas, que coisa alguma indicasse a proximidade do litoral, navio mercante, ou barco de pesca, eis o que cada vez mais se ia tornando inexplicável.
Felizmente Kin-Fo, Craig e Fry não eram pessoas para desesperar antes da hora, se tal hora devesse soar algum dia para eles. Dispunham ainda de provisões para mais uma jornada, e nada indicava que o tempo viesse a piorar.
— Ao pangaio! — disse Kin-Fo.
Foi o sinal de partida, e ora de bruços, ore de costas, os escafandros retomaram o caminho do oeste.
Iam devagar. Essa manobra do pangaio logo fatigava os braços de quem não estava acostumado. Precisavam parar freqüentemente à espera de Sun, que ficava para trás e recomeçara as suas lamúrias.
O amo interpelava-o, injuriava-o, ameaçava-o; mas Sun já não temia pelo resto do seu rabicho, protegido pelo grosso capuz de borracha, e deixava-o falar. O receio de ser abandonado bastava, de resto, para o manter a curta distância.
Pelas duas horas surgiram algumas aves. Eram gaivotas. Mas esses rápidos voláteis aventuram-se a grandes distâncias no mar, e não se podia deduzir da sua presença que a costa estivesse próxima. Todavia, aquilo foi considerado um indício favorável.
Uma hora depois os escafandros caíam num emaranhado de sargaços de que lhes custou bastante ver-se livres. Enleavam-se neles como peixes nas malhas de uma rede. Foi preciso tomar as facas e retalhar aquele matagal marinho.
Perdeu-se mais de meia hora e gastaram-se forças que poderiam ser melhor aproveitadas.
As quatro horas o pequeno grupo flutuante parou outra vez bem fatigado. Uma aragem bastante fresca acabava de erguer-se, mas soprando agora do sul, o que era uma inquietadora circunstância. Realmente os escafandros não podiam ir pelo mar a fora, como um navio que a quilha agüenta contra a deriva. Se desfraldavam as velas, corriam o risco de ser arrastados para o norte, perdendo uma parte do que haviam ganho para oeste. Além disso a ondulação das vagas tornara-se mais acentuada. Um marulho fortíssimo encapelava as ondas, dificultando extremamente a situação.
A parada foi por isso bastante longa. Empregaram-na não só em descansar, como também em recuperar as forças, atacando outra vez as provisões. O jantar foi menos alegre que o almoço. A noite não tardaria a descer, o vento refrescava... Que fazer?
Kin-Fo apoiado ao seu pangaio, de sobrolho franzido, mais irritado ainda que temeroso desse encarniçamento da má sorte, não dizia uma palavra. Sun lamuriava sem descontinuar, espirrando já como um mortal ameaçado de terrível defluxo.
Craig e Fry sentiam-se mentalmente interrogados pelos outros dois companheiros, mas não sabiam o que responder.
Enfim, um acaso dos mais felizes propiciou-lhes uma resposta.
Pouco antes das cinco horas, Craig e Fry estendendo ao mesmo tempo a mão para o sul, gritaram:
— Vela!
Com efeito, três milhas a barlavento surgia uma embarcação a todo o pano. A continuar na direção em que vinha de vento em popa, passaria talvez a pequena distância do lugar onde Kin-Fo e seus companheiros haviam parado.
Uma só coisa, pois, havia a fazer: cortar o caminho à embarcação, dirigindo-se perpendicularmente ao seu encontro.
Imediatamente manobraram nesse sentido. Voltaram-lhes as forças. Agora que tinham, por assim dizer, o salvamento ao alcance das mãos, não o deixariam escapar.
A direção do vento não lhes permitia usar as pequenas velas, mas os pangaios deviam bastar, sendo a distância a percorrer relativamente curta.
A embarcação crescia rapidamente sob a brisa refrescante. Era um barco de pesca e a sua presença indicava sem dúvida que a terra não devia estar longe, pois os pescadores chineses raramente se aventuram ao mar largo.
— Força! Força! — gritaram Craig-Fry remando com vigor.
Mas não era preciso excitar o ardor dos companheiros. Kin-Fo, bem inclinado na água, fendia-a como um esquife de regata. Quanto a Sun excedia-se verdadeiramente correndo à frente de todos, tal o seu medo de ficar para trás.
Cerca de meia milha era o que tinham de fazer para alcançar mais ou menos as águas do barco. De resto era ainda dia claro, e se os escafandros não chegassem bastante perto para se fazer ver, sem dúvida lograriam fazer-se ouvir. Mas os pescadores não largariam a fugir à vista daqueles estranhos peixes que os interpelavam? Eis uma possibilidade bastante grave.
Como quer que fosse, era necessário não perder um instante. Por isso os braços estendiam-se, os pangaios fendiam rapidamente a crista das vagas, a distância diminuía a olhos vistos, quando Sun, sempre adiante, soltou um terrível grito de pavor.
— Um tubarão! Um tubarão!
E dessa vez Sun não se enganava.
A uma distância de cerca de vinte pés viam-se imergir dois apêndices.
Eram as barbatanas de um monstro voraz, peculiar a esses mares, o tubarão-tigre, bem digno desse nome porque a natureza lhe deu a dupla ferocidade do esqualo e da fera.
— Às facas! — gritaram Fry e Craig.
Eram as únicas armas de que podiam dispor, talvez insuficientes!
Sun, como é de imaginar, parará de repente e voltava às pressas para trás.
O monstro vira os escafandros e fendia em direção a eles. Um momento o seu enorme corpo surgiu na transparência das águas, rajado e mosqueado de verde. Mediria dezesseis a dezoito pés de comprimento. Um verdadeiro monstro!
Foi sobre Kin-Fo que primeiro se precipitou, voltando-se de lado para o abocanhar.
Kin-Fo não perdeu o sangue frio. No momento em que a fera ia atingi-lo, encostou-lhe o pangaio nas costas e dando-lhe um vigoroso empurrão afastou-se vivamente.
Craig e Fry tinham-se aproximado, prontos para o ataque e para a defesa.
O tubarão mergulhou um instante e voltou à tona de goela aberta, espécie de enorme tesoura eriçada de uma quádrupla fileira de dentes.
Kin-Fo pretendeu repetir a manobra que lhe resultará tão bem, mas o seu pangaio chocou-se com a mandíbula do animal que o cortou rente.
O tubarão, meio deitado de lado, atirou-se então à sua presa.
Nesse momento jorraram golfadas de sangue e o mar tingiu-se de vermelho.
Craig e Fry tinham vibrado no animal repetidos golpes, e ainda que a sua pele fosse bem dura, as facas americanas de compridas lâminas haviam logrado penetrá-la.
A goela do monstro abriu-se então e fechou-se com pavoroso estrondo, enquanto a barbatana da sua cauda fustigava raivosamente a água. Fry recebeu uma violenta pancada desse rabo, que o apanhou de flanco e jogou a dez pés de distância.
— Fry! — gritou Craig num tom de voz dilacerado como se ele próprio tivesse recebido a pancada.
— Hurra! — respondeu Fry voltando à carga.
Não estava ferido. A sua couraça de borracha amortecera a violência da rabanada.
O monstro foi então outra vez atacado e com verdadeiro furor. Virava-se e revirava-se. Kin-Fo lograra enterrar-lhe numa das órbitas a ponta esfarpada do seu pangaio, tentando, com risco de ser cortado em dois, mantê-lo imobilizado enquanto Fry e Craig procuravam atingi-lo no coração.
E parece que os dois agentes o conseguiram, porque o monstro, tendo-se debatido uma derradeira vez, mergulhou entre uma última golfada de sangue.
— Hurra! Hurra! Hurra! — bradaram Craig-Fry em uníssono agitando as suas facas.
— Obrigado! — disse simplesmente Kin-Fo.
— Não há de quê! — respondeu Craig. — Um acepipe de duzentos mil dólares para esse peixe!
— Nunca! — acrescentou Fry.
E Sun? Onde estaria Sun? Dessa vez à frente e já muito perto do barco de pesca que não distava trezentas braças. O poltrão raspara-se à força de pangaio mas ia-se saindo mal.
Com efeito os pescadores tinham-no avistado, mas não podiam imaginar que sob aquela aparência de cachorro marinho se ocultasse uma criatura humana. Prepararam-se então para o pescar, como se se tratasse de um golfinho ou uma foca; e quando o pretenso animal ficou ao alcance, jogaram de bordo uma comprida corda, munida de um forte anzol.
O anzol alcançou Sun pelo cinto do seu vestuário, e ao deslizar abriu-o das costas até à nuca.
Sun, passando apenas a manter-se pelo ar contido no duplo envoltório das calças, precipitou-se de cabeça para baixo e pernas para o ar.
Kin-Fo, Craig e Fry que iam chegando, tiveram a precaução de interpelar os pescadores em bom chinês.
Pavor extremo daquela boa gente! Focas que falavam! Iam desfraldar as velas e fugir quanto antes...
Mas Kin-Fo tranqüilizou-os, deu-se a conhecer pelo que eram ele e seus companheiros, isto é, por homens, e chineses como eles!
Momentos depois os três mamíferos terrestres estavam a bordo.
Faltava Sun. Puxaram-no com um croque, tiraram-lhe a cabeça fora da água. Um dos pescadores segurou-o pela ponta do rabicho e levantou-o...
O rabicho de Sun ficou-lhe todo na mão e o pobre diabo deu um novo mergulho.
Os pescadores enrolaram-no então numa corda e com alguma dificuldade lograram içá-lo para bordo.
Mal chegara à coberta e devolvera a água do mar que tinha engolido, Kin-Fo aproximou-se e perguntou-lhe num tom severo:
— Quer dizer que era fingido?
— Se assim não fosse — respondeu Sun, — acha que eu, conhecendo os seus hábitos, ficaria um só dia ao seu serviço?
E disse aquilo tão cômicamente que todos desandaram a rir.
Esses pescadores eram gente de Fu-Ning. A menos de duas léguas abria-se precisamente o porto que Kin-Fo desejava alcançar.
Nessa mesma noite, às oito horas, ele desembarcava com os seus companheiros, e despindo os aparelhos do capitão Boyton todos quatro readquiriam o aspecto de criaturas humanas.
NO QUAL GRAIG E FRY VÊEM A LUA ERGUER-SE COM ENORME SATISFAÇÃO.
— E agora, ao Tai-ping!
Foram estas as primeiras palavras que Kin-Fo pronunciou na manhã seguinte, 30 de junho, após uma noite de repouso, bem merecida pelos heróis destas singulares aventuras.
Estavam enfim no teatro das façanhas de Lao-Shen. A luta ia travar-se definitivamente.
Kin-Fo sairia vencedor? Sim, com certeza, se pudesse surpreender o Tai-ping, pois pagaria pela carta o preço que Lao-Shen lhe exigisse. Não, com certeza, se se deixasse surpreender, se uma punhalada lhe varasse o peito antes de entrar em negociações com o feroz mandatário de Wang.
— Ao Tai-ping! — responderam Fry-Craig depois de se terem consultado com os olhos.
A chegada de Kin-Fo, de Fry-Craig e de Sun naquelas extraordinárias roupas, a maneira como os pescadores os tinham recolhido no mar, tudo era de molde a excitar a emoção no pequeno porto de Fu-Ning. Seria difícil escapar à curiosidade pública. De modo que tinham sido escoltados na véspera até à hospedaria, onde, graças ao dinheiro conservado no cinto de Kin-Fo e no saco de Fry-Craig, obtiveram roupas mais convenientes. Se Kin-Fo e seus companheiros estivessem menos cercados de gente quando se dirigiram à hospedaria, teriam notado um celestial que não se afastava deles uma só polegada. E a sua admiração ainda cresceria se o vissem toda a noite à espreita, à porta da hospedaria. E ficariam positivamente desconfiados quando na manhã seguinte o encontrassem no mesmo lugar.
Mas eles nada viram, de nada desconfiaram, não se admiraram mesmo quando o suspeito indivíduo lhes veio oferecer os seus serviços na qualidade de guia, quando iam saindo à rua.
Era homem de uns trinta anos, aliás de bom aspecto.
Contudo, algumas suspeitas acordaram no espírito de Craig-Fry, e por isso eles interrogaram o homem.
— Por que se oferece o senhor como guia e onde pretende guiar-nos? — perguntaram-lhe.
Nada mais natural do que esta dupla pergunta, mas também nada mais natural do que a resposta que lhes foi dada.
— Eu suponho — disse o guia, — que os senhores têm a intenção de visitar a Grande Muralha, como fazem todos os viajantes que chegam a Fu-Ning. Conheço a região e ofereço-me para os conduzir.
— Meu amigo — interveio Kin-Fo, — antes de tomar uma resolução gostaria de saber se a província é segura.
— Muito segura — respondeu o guia.
— Não se fala por aqui num certo Lao-Shen? — perguntou Kin-Fo.
— Lao-Shen, o Tai-ping?
— Esse mesmo.
— Fala-se — respondeu o guia, — mas não há nada a recear dele aquém da Grande Muralha. Ele não se aventuraria no território imperial. É do lado de lá que o seu bando percorre as províncias mongólicas.
— Sabe-se onde ele está atualmente? — insistiu Kin-Fo.
— Foi visto ultimamente nas proximidades de Tschin-Tang-Ro, a alguns lis apenas da Grande Muralha.
— E qual é a distância de Fu-Ning ao Tsching-Tang-Ro?
— Mais ou menos uns cinqüenta lis.13
— Bem, aceito os seus serviços.
— Para o levar até à Grande Muralha?
— Para me acompanhar até ao acampamento de Lao-Shen!
O guia não pôde conter um certo movimento de surpresa.
— Será bem pago! — acrescentou Kin-Fo.
O guia sacudiu a cabeça como homem a quem não agradava passar a fronteira, e em seguida declarou:
— Até à Grande Muralha, está certo! Para além, não, que é arriscar a vida.
— Diga o preço da sua! Pagarei.
— Está bem! — concordou o guia.
E voltando-se para os dois agentes, Kin-Fo acrescentou:
— Os senhores poderão acompanhar-me ou não, como quiserem!
— Para onde o senhor for... — começou Craig.
— ...nós iremos — terminou Fry.
O cliente da Centenária ainda continuava valendo para eles duzentos mil dólares!
De resto, após aquela conversa os dois agentes pareceram inteiramente satisfeitos com o guia. Mas a dar-lhe crédito, para além dessa barreira que os chineses ergueram contra as incursões das hordas mongólicas, podiam esperar-se as mais graves eventualidades.
Providenciaram-se logo os arranjos da partida. Nem se perguntou a Sun se a viagem lhe convinha ou não. Estava entendido.
Os meios de transporte, carruagens ou cadeirinhas faltavam completamente no pequeno burgo de Fu-Ning. Cavalos ou mulas também não havia. Mas havia um certo número desses camelos que servem os mercadores da Mongólia. Esses aventurosos traficantes vão em caravanas pela estrada de Pequim a Kiatcha, impelindo os seus inumeráveis rebanhos de carneiros de larga cauda, estabelecendo assim comunicação entre a Rússia Asiática e o Celeste Império. Todavia, não se arriscam através dessas longas estepes a não ser em grupos numerosos e bem armados. "São gente feroz e altiva — diz o senhor de Beauvoir, — para quem o chinês não passa de coisa desprezível".
Foram comprados cinco camelos com os seus arreios rudimentares. Carregaram-nos de provisões, adquiriram armas e partiram sob a direção do guia.
Mas esses preparativos tinham levado algum tempo, de modo que a partida só pôde efetuar-se à uma hora da tarde.
Apesar do atraso o guia pretendia chegar antes da meia--noite à Grande Muralha. Uma vez lá organizaria um acampamento, e se no dia seguinte Kin-Fo teimasse na sua imprudente resolução, passariam a fronteira.
A região, nas proximidades de Fu-Ning era acidentada. Nuvens de poeira amarela se desdobravam em espessas volutas acima das estradas que se abriam entre os campos cultivados. Conhecia-se ainda ali o fértil território do Celeste Império.
Os camelos marchavam a passo cadenciado, pouco veloz mas constante. O guia ia à frente de Kin-Fo, Sun, Craig e Fry, empoleirados entre as duas corcovas da montada. Sun aprovava bastante aquele modo de viajar, e em tais condições iria até ao fim do mundo.
Se o caminho não era fatigante o calor abrasava. Através das camadas atmosféricas mais aquecidas pela reverberação do sol, produziam-se os mais estranhos efeitos de miragem. Vastas planícies líquidas, grandes como um mar, surgiam no horizonte desvanecendo-se logo, com extrema satisfação de Sun que ainda se julgava ameaçado de alguma nova viagem marítima.
Embora essa província estivesse situada nos últimos limites da China, não devemos imaginar que ela fosse deserta. O Celeste Império, por imenso que seja, é ainda pequeno para a população que se acumula na sua superfície. De modo que os habitantes são numerosos mesmo na orla do deserto asiático.
Homens trabalhavam nos campos. Mulheres tártaras, identificáveis pelas cores rosa e azul dos seus vestuários, ocupavam-se dos serviços caseiros. Rebanhos de carneiros amarelos de longa cauda, — uma cauda que Sun observava com inveja! — pastavam aqui e ali sob o olhar da águia negra. Desgraçado do ruminante que se afastasse! São carnívoros temíveis essas aves de rapina, que fazem uma guerra implacável aos carneiros, argalis e antílopes novos, e servem até de cachorros de caça aos quirguizes das estepes da Ásia Central.
Nuvens de aves de caça erguiam-se de todos os lados. Uma espingarda não preguiçaria naquela parte do território, mas um verdadeiro caçador não veria com bons olhos as redes, laços e outras armadilhas destruidoras, dignas apenas de um caçador furtivo, que cobriam o chão entre os sulcos de trigo, de painço e de milho.
Entretanto, Kin-Fo e seus companheiros avançavam entre os turbilhões daquela poeira mongólica, sem parar nos pontos sombreados da estrada nem nas herdades solitárias da região, nem nas aldeias de quando em quando assinaladas pelas torres funerárias, erguidas à memória de alguns heróis da lenda búdica. Marchavam em fila, deixando-se levar pelos seus camelos habituados a ir assim uns atrás dos outros, e de que uma campainha vermelha, pendurada ao pescoço, marcava o passo regular.
Em tais condições era impossível conversar. O guia, pouco falador por índole, mantinha-se sempre à frente do pequeno grupo, observando o terreno num raio de que a grossa poeira diminuía consideravelmente a extensão. Nunca hesitava, aliás, sobre a direção a seguir, mesmo em certas encruzilhadas onde não havia poste indicador. Fry e Craig, que não mais desconfiavam dele, concentravam toda a sua vigilância no precioso cliente da Centenária, sentindo muito naturalmente crescer a sua inquietação à medida que se aproximavam da meta da viagem. Com efeito, a cada momento e sem mesmo o poderem evitar, podiam deparar com um homem que, num golpe bem aplicado lhes fizesse perder duzentos, mil dólares.
Quanto a Kin-Fo, encontrava-se nessa disposição de espírito em que as recordações do passado dominam as ansiedades do presente. Evocava tudo o que constituíra a sua vida nesses últimos seis meses. A persistência da má sorte não deixava de o inquietar muito seriamente. Desde o dia em que o procurador de São Francisco lhe enviara a notícia da sua pretensa ruína, não entrara num período de azar verdadeiramente extraordinário? Não se viria a estabelecer uma compensação entre a segunda e a primeira parte da sua existência, de que loucamente desdenhara as vantagens? Essa seqüência de contrariedades não terminaria com a recuperação da carta que se achava nas mãos de Lao-Shen, se conseguisse reavê-la sem violências A gentil Lé-u pela sua presença, pelos seus desvelos, pela sua ternura, pela sua tranqüila alegria não lograria conjurar os maus espíritos encarniçados contra a sua pessoa? Sim, todo esse passado lhe voltava à lembrança, o preocupava e inquietava! E Wang? Decerto não podia acusá-lo por ter querido manter um compromisso assumido; mas Wang, o filósofo, p hóspede assíduo do yamen de Shangai não mais lá estaria para lhe ensinar a sabedoria!
— O senhor vai cair! — gritou-lhe nesse momento o guia, cujo camelo acabava de esbarrar com o de Kin-Fo, arriscado a desabar em meio do seu sonho.
— Chegamos? — perguntou ele.
— São oito horas — respondeu o guia, — e sugiro uma parada para jantar.
— E depois?
— Depois, prosseguiremos.
— Será noite!
— Oh! Não tenha medo de se perder. A Grande Muralha não está a mais de vinte lis e convém dar um descanso aos animais!
— Está bem! — respondeu Kin-Fo.
Erguia-se ao lado da estrada um casebre abandonado, com um regato correndo perto num barranco sinuoso, onde os camelos puderam desalterar-se.
Durante esse tempo e enquanto a noite não se fechou completamente, Kin-Fo e seus companheiros instalaram-se no casebre, onde comeram como pessoas às quais uma longa caminhada aguçara o apetite.
A conversa, entretanto, não se animava. Uma ou duas vezes Kin-Fo aludiu a Lao-Shen, perguntando ao guia quem era esse Tai-ping e se o conhecia. Mas o guia abanou a cabeça como quem não se sente tranqüilo, e tanto quanto possível evitou responder.
— Ele vem de vez em quando a esta província? — perguntou Kin-Fo.
— Não! — respondeu o guia. — Mas Tai-pings do seu bando várias vezes atravessaram a Grande Muralha, e não era bom encontrá-los. Guarde-nos Buda dos Tai-pings!
A estas respostas, cuja importância para o seu interlocutor o guia não podia evidentemente alcançar, Craig e Fry olhavam-se franzindo o sobrolho, puxavam o relógio, consultavam-no e por fim sacudiam a cabeça.
— Por que não havemos de ficar aqui tranqüilamente até amanhã? — perguntaram eles.
— Aqui neste casebre? — exclamou o guia. — Prefiro antes o campo raso. É mais difícil ser surpreendido!
— Foi combinado alcançarmos esta noite a Grande Muralha — respondeu Kin-Fo. — Quero chegar lá e hei de chegar!
Aquilo foi dito num tom que não admitia réplica. Sun, já atormentado pelo medo, o próprio Sun não ousou protestar.
Terminada a refeição — eram cerca de nove horas, — o guia levantou-se e deu o sinal de partida.
Kin-Fo dirigiu-se à sua montada, Craig e Fry foram então ter com ele.
— O senhor — começaram eles, — está mesmo resolvido a entregar-se nas mãos de Lao-Shen?
— Absolutamente resolvido — respondeu Kin-Fo. — Quero reaver a minha carta, custe o que custar.
— Ir ao acampamento de Lao-Shen é arriscar uma parada muito grande! — continuaram eles.
— Eu não vim até aqui para recuar! — respondeu Kin-Fo.
— Os senhores não são obrigados a seguir-me.
O guia acendera uma pequena lanterna de bolso. Os dois agentes aproximaram-se e consultaram mais uma vez o relógio.
— Seria sem dúvida mais prudente esperar até amanhã — insistiram eles.
— Por quê? — replicou Kin-Fo. — Lao-Shen será tão perigoso amanhã ou depois, como hoje! A caminho!
— A caminho — repetiram Craig-Fry.
O guia ouvira este fragmento de conversa. Já várias vezes, durante a parada, quando os dois agentes tinham querido dissuadir Kin-Fo de ir mais longe, um certo descontentamento se lhe pintara no rosto. Nessa ocasião, quando os viu voltar à carga, não pôde conter um gesto de impaciência.
Isto não passara despercebido a Kin-Fo, bem decidido aliás a não recuar uma polegada. Mas enorme foi a sua surpresa quando, no momento em que o ajudava a trepar para o camelo, o guia inclinando-se para o seu ouvido lhe segredou estas palavras:
— Desconfie desses dois homens!
Kin-Fo ia pedir a explicação de tais palavras... O guia fêz-lhe sinal para se calar, comandou a partida e o pequeno grupo rompeu de novo através do campo.
Uma sombra de desconfiança penetrara no espírito do cliente de Fry-Craig. Poderiam as palavras do guia, absolutamente inesperadas e inexplicáveis, contrabalançar em seu ânimo os dois meses de devotamento que os dois agentes lhe tinham consagrado? Não, certamente! Contudo, Kin-Fo perguntava a si mesmo por que razão Fry-Craig o tinham aconselhado a adiar ou mesmo renunciar à visita ao acampamento do Tai-ping. Não era acaso para ir ao encontro de Lao-Shen que bruscamente tinham deixado Pequim? O próprio interesse dos dois agentes da Centenária não era que o seu cliente reentrasse na posse dessa absurda e comprometedora carta? Uma tal insistência era com efeito incompreensível.
Kin-Fo nada revelou dos sentimentos que o perturbavam. Retomou o seu lugar atrás do guia, seguido de Craig-Fry e caminhara assim durante duas compridas horas.
Devia ser bem perto da meia-noite quando o guia se deteve, apontando ao norte uma longa linha escura que vagamente se perfilava contra o fundo mais claro do céu. Para além dessa linha branqueavam algumas elevações, já iluminadas pelos primeiros raios da lua ainda escondida no horizonte.
— A Grande Muralha! — exclamou o guia.
— Poderemos atravessá-la ainda esta noite? — perguntou Kin-Fo.
— Poderemos, se o senhor o deseja absolutamente — respondeu o guia.
— É o que desejo!
Os camelos tinham parado.
— Vou fazer um reconhecimento — disse então o guia. — Fiquem aqui e esperem-me.
E afastou-se.
Nesse momento Craig e Fry aproximaram-se de Kin-Fo.
— Senhor! — começou Craig.
— Senhor! — prossegiu Fry. E ambos acrescentaram:
— O senhor está satisfeito com os nossos serviços, durante estes dois meses em que o honrado William J. Bidulph nos confiou a sua pessoa?
— Satisfeitíssimo!
— Consentiria o senhor em assinar-nos este papel para testemunhar que só tem a louvar-se dos nossos bons e leais serviços?
— Esse papel? — disse Kin-Fo surpreendido à vista de uma folha arrancada ao seu livro de notas, que lhe estendia Craig.
— Este certificado — acrescentou Fry, — talvez nos valha algum elogio do nosso diretor!
— E decerto também uma gratificação suplementar — continuou Craig.
— Aqui estão as minhas costas que poderão servir-lhe de escrivaninha — disse Fry curvando-se.
— E a necessária tinta para que o senhor possa dar-nos essa prova escrita da sua benevolência — tornou Craig.
Kin-Fo pôs-se a rir e assinou.
— E agora — perguntou ele, — para que toda esta cerimônia, neste lugar e a esta hora?
— Neste lugar — respondeu Fry, — porque é nossa intenção não o acompanharmos mais longe!
— A esta hora — acrescentou Craig, — porque dentro de poucos minutos será meia-noite!
— E que lhes importa a hora?
— Senhor! — tornou Craig, — o interesse que lhe atribuía a nossa companhia de seguros...
— ...terminará dentro de alguns instantes — prosseguiu Fry.
— E o senhor poderá matar-se...
— ...ou fazer-se matar...
— ...quando entender!
Kin-Fo olhava sem compreender os dois agentes que lhe falavam no tom mais cordial. Nesse momento a lua surgiu por cima do horizonte, a oriente, lançando até eles o seu primeiro raio.
— A lua! — exclamou Fry.
— E hoje, 30 de junho... — continuou Craig.
— ...ela ergue-se à meia-noite.
— E não tendo a sua apólice sido renovada...
— ...o senhor não é mais cliente da Centenária!
— Boa-noite, senhor Kin-Fo! — disse Craig.
— Senhor Kin-Fo, boa-noite! — disse Fry.
E os dois agentes, virando as cabeças das suas montadas, desapareceram logo deixando o cliente estupefato.
O passo dos camelos que conduziam aqueles dois americanos, talvez um pouco práticos demais, mal acabara de se ouvir quando um grupo de homens, conduzido pelo guia, se atirou a Kin-Fo que debalde tentou defender-se, e a Sun, que em vão tentou fugir.
Momentos depois amo e criado eram arrastados para o rés-do-chão de um dos bastiões abandonados da Grande Muralha, cuja porta foi cuidadosamente fechada sobre eles.
QUE O PRÓPRIO LEITOR PODERIA ESCREVER, TAL É O SEU FIM INESPERADO!
Grande Muralha, — um biombo chinês de quatrocentas léguas de comprimento — construída no terceiro século pelo imperador Tisi-Chi-Huang-Ti, estende-se desde o golfo de Leao-Tong, no qual mergulha os seus dois molhes, até ao Kan-Su, onde se reduz às proporções de um simples muro. É uma sucessão ininterrupta de duplas muralhas, protegidas por baluartes e torres, com cinqüenta pés de altura e vinte de largura, granito na base, tijolos no revestimento superior, que seguem ousadamente o perfil das caprichosas montanhas da fronteira russo-chinesa.
Do lado do Celeste Império a muralha está bastante maltratada. Do lado da Manchúria apresenta-se com um aspecto mais tranqüilizador, e as suas ameias fazem-lhe ainda uma orla magnífica de pedras.
Defensores naquela extensa linha de fortificações, não há; canhões, também não. O russo, o tártaro, o quirguiz do mesmo modo que o filho do Céu, podem passar livremente através das suas portas. O biombo não preserva aquela fronteira setentrional do Império, nem mesmo da fina poeira mongólica que o vento do norte impele por vezes até à sua capital.
Foi sob a poterna de um desses bastiões desertos que Kin-Fo e Sun, após uma desagradável noite passada em cima de palha, tiveram de penetrar na manhã seguinte, escoltados por uma dúzia de homens que não podiam deixar de pertencer à quadrilha de Lao-Shen.
O guia desaparecera, mas Kin-Fo já não tinha ilusões. Não fora o acaso que pusera aquele traidor no seu caminho. O ex-cliente da Centenária havia evidentemente sido esperado por esse miserável. A sua hesitação em aventurar-se para além da Grande Muralha não passava de um ardil para desviar as suspeitas. O patife pertencia sem dúvida ao Tai-ping e procedera sob suas ordens.
E não lhe restaram mais dúvidas depois de ter interrogado um dos homens que parecia dirigir a escolta.
— Estou sendo levado ao acampamento de Lao-Shen, vosso chefe? — perguntou-lhe.
— Chegaremos lá dentro de uma hora — respondeu o homem.
Enfim, a quem viera procurar o discípulo de Wang? Ao mandatário do filósofo! Pois estavam-no levando aonde queria ir! Que fosse de vontade própria ou à força, não era caso para recriminações. Essas eram boas para Sun, cujos dentes batiam e que sentia a cabeça de polirão vacilar-lhe nos ombros.
Kin-Fo, portanto, sempre fleumático, resignava-se com o sucedido e deixava-se conduzir. Ia por fim tentar o resgate da sua carta com Lao-Shen. Era o que desejava, tudo corria bem.
Transposta a Grande Muralha, o pequeno bando seguiu não pela grande estrada da Mongólia mas por abruptos atalhos que enveredavam pela parte montanhosa da província. Caminharam assim durante uma hora, tão depressa quando o permitia o declive do solo. Kin-Fo e Sun, vigiados de perto não poderiam fugir, com o que de resto nem sonhavam.
Passada hora e meia guardas e prisioneiros avistaram na curva de um contraforte um edifício meio arruinado.
Era uma antiga bonzaria erguida num dos cabeços da montanha, curioso monumento da arquitetura budista. Mas naquele lugar perdido da fronteira russo-chinesa, em tão desertas paragens, era lícito perguntar que espécie de fiéis ousariam freqüentar o templo. Era de supor que tivessem de arriscar um tanto a vida, ao aventurar-se naqueles desfiladeiros, ótimos para assaltos e ciladas.
Se o Tai-ping Lao-Shen estabelecera o seu quartel-general naquele ponto acidentado da província, escolhera, devemos concordar, um lugar digno das suas façanhas.
Ora, a uma pergunta de Kin-Fo, o chefe da escolta respondeu que Lao-Shen residia efetivamente nessa bonzaria.
— Desejo falar-lhe sem demora — disse Kin-Fo.
— Imediatamente — respondeu o chefe.
Kin-Fo e Sun, que tinham sido previamente desarmados, foram introduzidos num largo vestíbulo formando o átrio do templo. Estavam ali uns vinte homens armados, muito pitorescos nos seus trajes de salteadores de estrada, e cuja aparência feroz nada tinha de tranqüilizadora.
Kin-Fo atravessou resolutamente a dupla fileira de Tai-pings, mas Sun teve de ser empurrado à viva força pelos ombros.
O vestíbulo abria ao fundo para uma escadaria cavada na grossa muralha e cujos degraus penetravam fundamente no maciço da montanha.
Aquilo indicava a existência de uma cripta sob o edifício principal da bonzaria, e seria muito difícil, para não dizer impossível lá chegar, a quem não possuísse o segredo daquelas sinuosidades subterrâneas.
Depois de ter descido uns trinta degraus, e avançado uma centena de passos, à luz fuliginosa de tochas levadas pelos homens da sua escolta, os dois prisioneiros chegaram ao meio de uma vasta sala meio alumiada pelo mesmo sistema.
Era com efeito uma cripta. Maciços pilares, ornados dessas horrendas cabeças de monstros que constituem a fauna grotesca da mitologia chinesa, sustentavam arcos abatidos cujas nervuras se encontravam no fecho das pesadas abóbadas.
Um surdo murmúrio se fez ouvir naquela sala subterrânea à chegada dos dois prisioneiros.
A sala não estava vazia, antes a enchia uma multidão até às suas mais sombrias profundezas.
Toda a quadrilha dos Tai-pings ali estava reunida para alguma cerimônia suspeita.
Ao fundo da cripta, num largo estrado de pedra, estava de pé um homem de grande estatura. Dir-se-ia o presidente de um tribunal secreto. Três ou quatro companheiros, imóveis junto dele, parecia servirem-lhe de acessores.
O homem fez um gesto e toda a multidão se fendeu imediatamente, abrindo passagem para os dois prisioneiros.
— Lao-Shen! — disse simplesmente o chefe da escolta, apontando o indivíduo que estava de pé.
Kin-Fo deu um passo na sua direção, e sem perda de tempo, como homem que está decidido a acabar, começou:
— Lao-Shen, tens em tuas mãos uma carta que te foi enviada pelo teu antigo companheiro Wang. Tendo-se modificado as razões que a determinaram, venho pedir-te que me devolvas.
Aquelas palavras, pronunciadas num tom firme, o Tai-ping nem sequer voltou a cabeça. Dir-se-ia uma estátua de bronze.
— Que exiges em troca dessa carta? — tornou Kin-Fo. Mas debalde esperou uma resposta.
— Lao-Shen, — insistiu Kin-Fo — dar-te-ei sobre o banqueiro que te convier e na cidade que escolheres, uma ordem que será paga integralmente, sem qualquer perigo para o homem que a mandares receber!
O mesmo silêncio glacial do sombrio Tai-ping, silêncio que não parecia de bom agouro.
Kin-Fo prosseguiu, acentuando as palavras:
— De que importância queres que eu faça essa ordem? Ofereço-te cinco mil taéis.
Nenhuma resposta.
— Dez mil taéis!
Lao-Shen e seus comparsas permaneciam tão mudos como as estátuas daquela estranha bonzaria.
Uma espécie de cólera impaciente se apoderou de Kin-Fo. Suas ofertas bem mereciam uma resposta, fosse qual fosse.
— Não me ouves? — perguntou ele ao Tai-ping. Lao-Shen dignou-se baixar a cabeça dessa vez, indicando que havia compreendido perfeitamente.
— Vinte mil taéis! Trinta mil taéis! — bradou Kin-Fo.
— Ofereço-te o que te pagaria a Centenária no caso de eu morrer. O dobro! O triplo! Fala! Achas suficiente?
Kin-Fo, a quem um tal mutismo enfurecia, aproximou-se daquele grupo taciturno e tornou a perguntar, cruzando os braços:
— A que preço queres então vender-me essa carta?
— A nenhum preço — respondeu por fim o Tai-ping.
— Tu ofendeste Buda desprezando a vida que ele te concedeu, e Buda quer ser vingado. Só diante da morte conhecerás quanto valia esse favor de estar no mundo, favor que por tanto tempo desconheceste!
Dito isso, e num tom que não admitia réplica, Lao-Shen fez um gesto. Kin-Fo, agarrado antes de poder tentar defender-se, foi ligado e arrastado. Poucos minutos depois estava metido numa espécie de gaiola que podia servir de cadeirinha e hermèticamente fechada.
Sun, o desventurado Sun, apesar dos seus gritos e das suas súplicas, teve de sofrer o mesmo tratamento.
— É a morte — disse consigo Kin-Fo. — Pois seja! Aquele que desprezou a vida, merece morrer!
Contudo essa morte, que lhe parecia inevitável, estava menos próxima do que ele supunha. Mas para que horríveis suplícios o reservaria o cruel Tai-ping, não o podia imaginar.
Passaram duas horas. Kin-Fo, naquela gaiola onde o tinham encerrado, teve a impressão de ser erguido e em seguida transportado para um veículo qualquer. Os solavancos da estrada, o ruído dos cavalos, o entrechocar das armas da sua escolta não lhe deixaram dúvida alguma. Levaram-no para Longe. Mas para onde? Em vão tentaria sabê-lo.
Sete a oito horas após o rapto Kin-Fo sentiu que a cadeirinha parava, que homens erguiam a braços a caixa onde estava encerrado, e em breve um balanço mais suave sucedeu aos solavancos de um, caminho terrestre.
— Estarei em algum navio? — pensou ele.
Movimentos característicos de um deslocar de navio e um estremecimento de hélice o confirmaram na idéia em que estava.
— A morte nas vagas! — pensou. — Que seja! Poupam-me assim a torturas piores! Obrigado, Lao-Shen!
Todavia, duas vezes vinte e quatro horas decorreram ainda. Duas vezes por dia algum alimento era introduzido na gaiola através de um postigo de correr, sem que o prisioneiro pudesse ver a mão que o trazia, ou qualquer resposta fosse dada às suas perguntas.
Ah! Kin-Fo, antes de deixar essa vida que o céu lhe tornava tão bela, buscara emoções! Não quisera que o seu coração deixasse de bater, sem ter palpitado ao menos uma vez! Pois bem! Tinham sido satisfeitos os seus desejos, e mais ainda do que ousara desejar!
Contudo, embora fazendo o sacrifício da vida, Kin-Fo desejava morrer em plena luz. A idéia de que aquela gaiola seria de um momento para outro atirada às águas, era-lhe insuportável. Morrer sem ver o dia ao menos uma vez, nem a pobre Lé-u cuja saudade vivamente o penetrava, era demais.
Enfim, após um lapso de tempo que não pôde avaliar, pareceu-lhe que a viagem findara de repente. Cessaram as trepidações da hélice, o navio que transportava a sua prisão detivera-se. Kin-Fo sentiu que sua gaiola era outra vez erguida.
Dessa vez chegara com certeza o momento supremo, só restava ao condenado pedir perdão dos erros da sua vida.
Decorreram alguns minutos — anos, séculos!
Com grande surpresa Kin-Fo principiou por constatar que a caixa repousava de novo em terreno sólido.
De repente a sua prisão abriu-se, outros braços o seguraram e uma larga venda lhe foi imediatamente aplicada aos olhos; bruscamente sentiu-se puxado para fora. Fortemente agarrado, Kin-Fo teve de dar alguns passos. Em seguida os guardas compeliram-no a parar.
— Se devo enfim morrer — exclamou ele, — não vos peço que me deixeis uma vida que não soube utilizar, mas concedei-me ao menos acabar à luz do dia, como quem não teme encarar a morte!
— Assim seja! — disse uma voz grave. — Faça-se como deseja o condenado!
E subitamente foi arrancada a venda que lhe cobria os olhos.
Kin-Fo lançou em torno de si um olhar ansioso...
Seria o joguete de um sonho? Ali estava uma mesa suntuosamente posta, e sentados a ela cinco convidados sorridentes pareciam esperar para dar início ao banquete. Dois lugares desocupados pareciam aguardar dois últimos convivas.
— Vós! Vós! Meus amigos, meus queridos amigos! Sereis realmente vós? — exclamou Kin-Fo num tom impossível de traduzir.
Mas não, não se enganava! Era Wang, o filósofo! Eram Yin-Pang, Hual, Pao-Shen e Tim, os seus amigos de Cantão, esses mesmos com quem estivera dois meses antes no barco florido do rio das Pérolas, seus companheiros da juventude, testemunhas da sua despedida da vida de solteiro!
Kin-Fo não podia acreditar no que via. Estava em sua casa, na sala de jantar do seu yamen de Shangai!
— Se és tu mesmo, — gritava ele dirigindo-se a Wang se não é a tua sombra, fala-me!
— Sou eu mesmo, amigo — respondeu o filósofo. — perdoarás ao teu velho mestre a última e um tanto rude lição de filosofia que ele entendeu dar-te?
— O quê? — exclamou Kin-Fo. — Foste então tu, Wang?
— Fui eu — respondeu Wang, — eu que me encarreguei da missão de te arrancar a vida, para que mais ninguém tomasse esse encargo! Eu que soube, mesmo antes de ti, que não estavas arruinado, e que chegaria o momento em que já não quisesses morrer! Meu velho companheiro Lao-Shen, que acaba de submeter-se e será de ora avante o mais firme sustentácuio do império, quis ajudar-me a fazer-te compreender, colocando-te em presença da morte, quanto vale a vida! Se te abandonei em meio a terríveis angústias, e o que é pior, te obriguei a correr, embora o meu coração sangrasse, além do que era humano fazê-lo, foi na convicção de que estavas correndo atrás da felicidade e havias finalmente de alcançá-la no caminho!
Kin-Fo estava nos braços de Wang, que o apertava fortemente ao coração.
— Meu pobre Wang — disse Kin-Fo emocionado, — se ao menos eu tivesse corrido sozinho! Mas que mal te causei! Quanto tiveste também de correr, e que banho te forcei a tomar na ponte de Palikao!
— Ah! Com efeito — respondeu Wang rindo, — esse banho fêz-me recear bastante pelos meus cinqüenta anos e pela minha filosofia! Eu tinha muito calor e a água estava muito fria! Mas, que diabo! Sempre me desembaracei! É pelos outros que se corre e nada melhor!
— Pelos outros! — repetiu Kin-Fo num tom grave. — Sim, é pelos outros que devemos saber fazer tudo! Nisso reside o segredo da felicidade!
Sun vinha entrando agora, pálido como um homem a quem o enjôo torturara durante quarenta e oito horas mortais. Do mesmo modo que o amo, o infeliz criado tivera de refazer toda a travessia de Fu-Ning a Shangai, e em que condições! Bem se podia avaliar pela sua aparência!
Kin-Fo, tendo-se arrancado aos braços de Wang, apertava as mãos dos amigos.
— Decididamente, prefiro isto! — disse ele. — Até hoje tenho sido um louco!...
— E podes tornar-te um sábio! — respondeu o filósofo.
— Hei de tentá-lo — concordou Kin-Fo, — e começarei por pôr ordem nos meus negócios. Correu pelo mundo um pequeno papel que foi para mim causa de grandes atribulações e de que não posso portanto esquecer-me. Que é feito dessa maldita carta que te entreguei, caro Wang? Saiu realmente das tuas mãos? Não me aborreceria nada tornar a vê-la, porque, enfim, pode tornar-se a perder! Se Lao-Shen ainda a conserva, não pode atribuir mais nenhuma importância a esse pedaço de papel, e seria desagradável que ele viesse a cair em outras mãos... pouco delicadas!
Ouvindo isto, todos largaram a rir.
— Amigos, — disse Wang — Kin-Fo com as suas desventuras, aprendeu definitivamente a ser um homem de ordem! Já não é o nosso indiferente de outrora! Pensa como homem prudente!
— Nada disso me devolve a minha carta — insistiu Kin-Fo, — essa minha absurda carta! Confesso sem constrangimento que não ficarei tranqüilo enquanto a não tiver queimado, e não lhe vir as cinzas dispersas a todos os ventos!
— Seriamente, dás mesmo grande importância a essa carta? — perguntou Wang?
— Sem dúvida — respondeu Kin-Fo. — Terás a crueldade de querer conservá-la como garantia contra algum novo acesso de loucura minha?
— Não.
— E então?
— Então, meu caro discípulo, contra o teu desejo há apenas uma objeção, que desgraçadamente não depende de mim. Nem Lao-Shen, nem eu temos mais a tua carta.
— Não a têm mais?
— Não.
— Destruíram-na?
— Não, infelizmente não!
— Cometeste acaso a imprudência de a confiar ainda a outras mãos?
— É verdade!
— Mas a quem? A quem? — disse vivamente Kin-Fo, cuja paciência se esgotara. — Sim, a quem?
— A alguém que a conserva e só a ti a quer entregar.
Nesse momento a encantadora Lé-u, que estava oculta atrás de um biombo e nada perdera dessa cena, apareceu trazendo a famosa carta na ponta dos finos dedos e agitando-a em sinal de desafio.
Kin-Fo abriu-lhe os braços.
— Ainda não! Mais um pouquinho de paciência, por favor! — disse a gentil mulher, fingindo retirar-se outra vez para trás do biombo. — Antes de tudo os negócios, meu sábio marido!
E aproximando-lhe a carta dos olhos:
— Meu irmãozinho mais novo reconhece a sua obra?
— Se reconheço! — exclamou Kin-Fo. — Quem, a não ser eu, poderia escrever uma carta tão estúpida?
— Muito bem! Então, primeiro que tudo — prosseguiu Lé-u, — e tal como há pouco testemunhou o mais legítimo desejo, rasgue, queime, destrua esta carta imprudente! Que nada mais reste do Kin-Fo que a escreveu!
— Seja, — disse Kin-Fo aproximando de uma chama o ligeiro papel, — mas agora, meu coraçãozinho querido, permite ao teu esposo beijar ternamente a sua mulher e suplicar-lhe que presida este bem-aventurado banquete. Sinto-me com disposição de lhe fazer grandes honras!
— E nós também — exclamaram os cinco convivas. — Não há senão a alegria para abrir o apetite!
Alguns dias depois, tendo sido levantada a interdição imperial, foi realizado o casamento.
Os dois esposos amavam-se! Amar-se-iam sempre! Mil e dez mil felicidades os esperavam na vida!
É preciso ir à China para ver isto!
1 Esta obra, começada em 1773, deve compreender cento e sessenta mil volumes, mas só estão ainda publicados setenta e oito mil setecentos e trinta e oito.
2 A fama dos grandes mestres transmitiu-se até nós por meio de tradições que, nem por serem anedóticas, merecem menos atenção. Conta-se, por exemplo, que no século terceiro o pintor Tsao-Puh-Ying tendo acabado um leque para o Imperador, divertiu-se a pintar-lhe em cima algumas moscas, e teve a satisfação de ver Sua Majestade tirar o lenço para as enxotar. Não menos célebre era Huan-Tse-Nen, que floresceu no ano mil. Encarregado das pinturas murais de uma das salas do palácio, decorou-as com muitos faisões. Chegaram então uns enviados estrangeiros com falcões de presente para o Imperador; introduzidos na sala, logo que as aves de rapina avistaram os faisões pintados na parede. Atiraram-se a eles com mais dano das suas cabeças do que satisfação dos seus instintos vorazes.
3 As duas fênix constituem o emblema do casamento no Celeste Império.
4 Todo o chinês que alcança oitenta anos tem o direito de usar uma túnica amarela. O amarelo é a cor da família imperial, o que constitui uma homenagem prestada à velhice.
5 Significado da palavra Tai-ping.
6 Na China meridional, os rios e ribeiras são indicados pela terminação "Kiang"; na China setentrional, pela terminação "Ro".
7 Leon Rousset.
8 Quatro léguas.
9 O senhor T. Choutzé, na sua viagem intitulada "Pequim e o norte da China" refere o seguinte fato a propósito do príncipe Kong, detalhe que é bom recordar: Era em 1870, durante a sangrenta guerra que devastava a França; o príncipe Kong estava visitando, não sei a que propósito, todos os representantes diplomáticos estrangeiros, e foi pela legação da França, a primeira que se achava em seu caminho, que começou esse giro. Acabava de ser conhecida a derrota de Sedan, e o senhor conde de Rochechouart, então encarregado dos negócios de França, teve oportunidade de a comunicar ao príncipe.
Este mandou chamar um dos oficiais do seu séquito:
— Enviai uma carta à legação da Prússia, dizendo que eu não posso passar por lá senão amanhã.
Em seguida, voltando-se para o conde de Rochechouart, acrescentou:
— No mesmo dia em que apresento condolências ao representante da França, não posso decentemente ir levar felicitações ao representante da Alemanha!
O príncipe Kong seria príncipe em toda a parte.
10 Quarenta léguas.
11 As tempestades girantes chamam-se "tornados" na costa O. da África, e "tufão" nos mares da China. Seu nome científico é "ciclones".
12 O sr. Seyferth e o sr. Silas, arquivistas da embaixada de França em Viena, são os inventores desta bóia de salvamento, usada em todos os navios de guerra.
13 Mais ou menos doze léguas.
Júlio Verne
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