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Estávamos sentados no abrigo que os caçadores de Wanderobotin tinham construído de troncos e ramos, à beira do pântano de água salgada, quando sentimos aproximar-se o camião. A princípio o som era ainda Iongínquo e não podia dizer-se de onde provinha. Depois, deixou de se ouvir e tivemos esperança de que não fosse nada, ou talvez apenas o vento. A seguir aproximou-se devagar, já inconfundível, cada vez niais nítido e, extinguindo-se numa girândola de explosões, passou perto de nós, estrada acima. O mais exuberante dos dois carre-gadores levantou-se.
— Acabou-se — disse.
Pus a mão na boca e fiz-lhe siual para que se sentasse.
—Acabou-se — outra vez, fazendo um largo gesto de braços. Nunca gostei muito dele e naquele momento ainda menos.
—Depois — disse eu baixinho. M’Cola abanou a cabeça,
Olhei para o seu crânio negro e calvo e, como voltasse um pouco a cara, vi-lhe os pelinhos de chinês ao canto da boca.
— Não presta — disse eie. — Hapana m’úziiri.
— Espera um pouco — disse-lhe eu.
Voltou então a baixar a cabeça, de forma a que não ultra-passasse os ramos secos e ali ficamos sentados na poeira do buraco até ser tão escuro que já não via a mira dianteira da minha espingarda; mas nada mais aparecen. O carregador exuberante estava impaciente e agitado. Um pouco antes de deixar de se ver, disse baixinho para M’Cola que já estava escuro de mais para caçar.
— Cala-te — disse M’Cola. — O Bwana pode caçar mesmo quenáo tu já não vôs.
O outro carregador, o educado, fez nova demonstração de boa educação escrevendo o seu nome, Abdullah, na pele preta da perna com um pauzinho aguçado. Observei-o sem surpresa e M’Cola pôs-se a olhar para a palavra sem uma sombra de expressão no rosto. Passado um bocadinho o carregador apagou-a.
Finalmente fiz uma última pontaria para o sítio onde havia alguma luz e vi que era impossível, mesmo com a maior aber-tura.
M’Cola observava-me.
— Nada a fazer — disse eu.
— Pois é — concordou ele em swahili. — Vamos para o acampamento?
— Vamos.
Levantámo-nos, saímos do abrigo e fomos através das árvores caminhando na terra arenosa, procurando caminho entre o arvoredo, debaixo dos ramos, até à estrada. O carro estava a uma milha. Ao aproximarmo-nos, Kamau, o motorista, acendeu os faróis.
O camião tinha estragado a coisa. Nessa tarde deixáramos o carro na estrada e aproximámo-nos do pântano com todo o cuidado. No dia anterior tinha caído uma chuva miúda, insuficiente para encher o pântano que era apenas uma abertura no meio das árvores com uma língua de terra embutida em fundos círculos inseridos nas margens, com depressões no sítio onde os animais tinham lambido a poeira em busca do sal, e víramos pegadas frescas, longas e em forma de coração, de quatro kudus maiores do que os da noite anterior, assim como outras, recentes, de kudus mais pequenos. Havia também um rinoceronte que, a avaliar pelas pegadas e por um montículo de excremento remexido, vinha ali todas as noites. O abrigo fora construído ao alcance do pântano e, sentado de costas, de joe-Ihos para o ar e cabeça baixa, num buraco meio entulhado de cinzas e poeira, olhando através de folhas secas e ramos delgados vi um kudu mais pequeno sair da mata para a orla do terreno livre onde ficava o pântano e aí permanecer, de pescoço retesado, cinzento e belo, os cornos em espiral contra o sol, enquan-to eu Ihe fazia pontaria e logo desistia de atirar para não afu-gentar o kudu maior que por certo viria ao escurecer. Mas ainda antes de nõs ouvirmos o camião, ouvira-o o animal, fugindo para a floresta. E tudo que até aí se tinha movido no bosque da planície ou descido das pequenas colinas pelo meio das árvores até ao pântano, se imobilizara perante aquele explosivo e estridente barulho. Mais tarde, pelo escuro, com certeza viriam; mas então seria tarde de mais.
Agora, deslizando no camião pela estrada arenosa, com os faróis encandeando os olhos das aves nocturnas que se enco-Ihiam na areia até que, tomadas de pânico com a passagem do carro, levantavam voo, passando por fogueiras acesas pelos retirantes que durante todo o dia se deslocavam para oeste por esta estrada, abandonando a região assolada pela fome, que nos ficava em frente, eu, sentado, a coronha da espingarda aos pés, o cano na curva do braço esquerdo, um frasco de whisky entre os joelhos, deitando-o num copo de alumínio e passando--o no escuro por cima do ombro para que M’Cola Ihe pusesse água do cantil, tomando esta bebida, a primeira do dia, a melhor, e contemplando no escuro a densa floresta, sentindo o vento frio da noite e aspirando o agradável aroma de África, sentia-me inteiramente feliz.
Depois à nossa frente vimos uma grande fogueira e quando passámos por ela deparei com um camião ao lado da estrada. Disse a Kamau para parar e fazer marcha atrás e quando recuá-mos até à luz da fogueira vimos um homem baixo, de pernas arqueadas, chapéu tirolês, calções de cabedal e camisa aberta, debruçado diante de um motor de automóvel e rodeado de indígenas.
— Precisa de ajuda? — perguntei-lhe.
— Nao — respondeu — a não ser que o senhor seja mecânico.
Está a embirrar comigo, o motor. Todos os motores me detestam.
— Nèo será o distribuidor? Era a impressão que dava quando passou por nós.
— Estou convencido de que é muito pior que isso. Cheira-me a coisa muito aborrecida.
— Se conseguisse cbegar ao nosso acampamento, temos lá um mecânico.
— A que distância fica?
— Duas milhas, mais ou menos.
— Tentarei isso de manhã. Agora ten h o receio de ir por aí fora com este ruído de morte no motor. Está a querer morrer porque não gosta de mim. Também eu o detesto, mas se eu morrer ele não se rala coisa nenhuma.
— Quer beber qualquer coisa? — Ofereci-lhe o cantil. — Chamo-me Hemingway.
— Kandisky — disse ele inclinando-se. — Hemingway é um nome que eu já ouvi. Onde? Onde ouvi eu isto? Ah, sim. O dichter. Conhece o poeta Hemingway?
— Onde é que o leu?
— No Querschnitt.
— Sou eu — disse muito satisfeito.
— O Querschnitt era uma revista alemã para a qual escrevera alguns poemas bastante obscenos e onde publicara uma comprida novela, alguns anos antes de conseguir vender qualquer coisa na América.
— Que curioso — disse o homem de chapéu tirolês. — Diga-me, o que pensa de Ringelnatz?
— É maravilhoso.
— Com que então gosta de Ringelnatz. Óptimo. E o que pensa de Heinrich Mann?
— Não vale nada.
— Acha?
— O que sei é que não consigo lê-lo.
— Não vale nada. Vejo que temos coisas em comuni. O que faz aqui?
— Caço.
— Espero que não ande atrás de marfim.
— Não; caço kudus.
— Porque há-de um homem caçar kudus? Você, um honiem inteligente, um poeta, a caçar kudus.
— Ainda não cacei nenhum — disse eu — mas há dez dias que andamos persistentemente em busca deles. Teríamos apanhado um esta noite se não fosse o seu camião.
— Este pobre camião. Você devia caçar durante um ano inteiro. Ao fim desse tempo já tinha morto tudo e já estava arrependido. É absurdo caçar só uma determinada espécie de animais. Porque é que faz isso?
— Porque gosto.
— Claro que é porque gosta. Diga-me o que é que pensa realmente de Rilke?
— Li apenas uma coisa dele.
— Qual?
— A Trombeta.
— Gostou?
— Gostei.
— Eu não tenho paciência para coisas dessas. Pretenciosismos. Valery, sim. Em Valery sinto qualquer coisa; apesar de haver nele também muito pretenciosismo. Bem, ao menos você não mata elefantes.
— não se me dava nada de matar um bem grande. — De que tamoho?
— Um com presas de setenta libras, ou mesmo menos.
— Vejo que há coisas sobre as quais não estamos de acordo. Mas é um prazer conhecer um dos do velho grupo do Querschnitt. Diga-me como é joyce? não tenho dinheiro para o comprar. Sinclair Lewis não vale nada. Comprei-o. Não. Não. Deixemos isso para amanhã. Não se importa que eu acampe perto de si? Está com amigos? Tem um caçador branco?
— Estou com minha muiher. Teremos muito prazer. Sim, um caçador branco.
— Porque não saiu ele consigo?
— Porque acha que para caçar kudus se deve andar sozinho.
— O melhor é não caçar. O que é ele? Inglês?
— Sim.
— Tipicamente inglês?
— Não. Muito simpático. Você há-de gostar dele.
— Tem que se ir embora. Não devo prendê-lo mais tempo. Talvez nos possamos ver amanhã. É curioso corno viemos a encontrar-nos.
— Sim — disse eu. — Amanhã vê-se o que é que tem o seu camião. Não precisa de mais nada?
— Boa noite — disse ele. — Boa viagem.
— Boa noite — disse eu.
Partimos e vi-o encaminhar-se para a fogueira dirigindo um aceno de despedida aos indígenas. Não Ihe perguntei porque é que tinha com ele uns vinte nativos do interior, nem para onde ia. Se bem me lembro, não Ihe perguntei nada. Não gosto de fazer perguntas porque no meio onde me eduquei isso não era correcto. Mas aqui havia duas semanas que não víamos um branco, desde que partíramos de Babati para o sul e afinal depara vamos com um nesta estrada onde apenas se encontram ocasionais comerciantes indianos e a permanente migração de nativos fugindo da região da fome; encontrar uma pessoa que parece uma caricatura de Benchley em fato tirolés, uma pessoa que nos conhece de nome, que nos chama poeta, que leu o Querschenitt, que é admirador de Joachini Ringelnatz e quer conversar sobre Rilk, era um acontecimento demasiadamente fantástico. E precisamente nesse momento, para rematar esta fantasia, os faróis do carro iluminaram três montículos altos e de forma cónica de qualquer coisa fumegante na estrada. Fiz sinal a Kamau para parar e, travando, estacámos mesmo em frente deles. Tinham dois a três pés de altura e quando toqiiei mini ainda estava quente.
— Tembo — disse M’Cola.
Era excremento de elefantes que há pouco tinham atravessado a estrada e ainda se via fumegar no frio da noite. Daí a pouco chegávamos ao acampamento.
Na manhã seguinte levantei-me antes de nascer o dia e diri-gi-me para outro pântano. Quando, caminhando através das árvores, nos aproximávamos dele, deparámos com um kudu que soltou um urro parecido com o ladrar de um cão mas em tom mais alto e mais muco e se escapou, a princípio sem fazer barulho e depois, quando já ia longe, fazendo estalar os ramos das árvores; e nunca mais o vimos. Este pântano tinha um acesso impraticável. Como as árvores cresciam à volta da sua área coberta, era como se os animais estivessem no abrigo e nos fôssemos obrigados a aproximarmo-nos deles a descober-to. A única maneira de conseguir isto seria ir um homem só, a rastejar, e então seria impossível poder fazer qualquer espécie de tiro perto, através do entrelaçado das árvores, até estar à distância de vinte jardas. Claro que, uma vez a coberto das árvores de protecçáo e no abrigo, a posiçao era óptima porque todos os animais que viessem ao pântano ficariam dentro da zona das vinte e cinco jardas. Mas apesar de lá termos estado até às onze horas nada aparecen. Com os pés, alisámos cuidadosamente a poeira do pantano para que se conhecessem bem quaisquer novas pegadas quando voltássemos e fizemos a pé as duas milhas até à estrada. Um kudu tinha vindo e o facto de o termos espantado aquela manhã tornava as coisas mais difíceis, agora.
Estávamos já no décimo dia da caçada aos kudus grandes e eu ainda não tinha visto um kudu adulto. Só nos restavam trés dias porque as chuvas vinham-se deslocando da Rodésia para o norte e, a menos que estivéssemos dispostos a ficar onde estávamos e a aguentar as chuvas, devíamos partir e alcançar pelo menos Handeni antes que elas chegassem. O dia 17 de Fevereiro era a data em que tínhamos assentado como limite para partirmos. Agora, todas as manhãs, passava-se cerca de uma hora até que o céu, carregado de nuvens, aclarasse, sen-tindo-se a aproximação das chuvas no seu caminho para norte com a mesma nitidez como se estivéssemos a seguí-las num mapa.
Ora é agradável caçar o que há muito tempo ardentemente se deseja ficando-se desmoralizado, frustrado e derrotado no fim de cada dia, mas sabendo que a caça existe e que, se ainda a não conseguimos, tarde ou cedo a sorte há-de mudar e então havemos de ter aquilo que ambicionamos. Mas o que não é agradável é ter um tempo limite para caçar kudus, ou talvez para nunca os caçar, nem sequer ver um. Uma caçada não pode ser assim. É exactamente o que acontece com estes rapazes que costumam-se mandar dois anos para Paris para serem bons pintores ou escritores e ao fim dos quais, se não o tiverem sido, regressam a casa para trabalharem no escritório dos pais. O verdadeiro processo de caçar é perseguir um animal enquanto ele existe, assim como a verdadeira maneira de pintar é pintar enquanto houver pintor, tintas e telas e a de escrever é escrever enquanto houver escritor, lápis e papel ou tinta, ou qualquer máquina para fazer isto, ou qualquer coisa que importe escrever, ao mesmo tempo que se tem a consciência da tolice que representa seguir um caminho que não seja este. Mas, ali, estávamos nós limitados pelo tempo, pela estaçao e pelo dinheiro. Aquilo que podia ser-nos um motivo de aprazimento diário, quer apanhássemos kudus quer não, tomava-se nesta excitante preversão da vida: a necessidade de fazer coisas em menos tempo do que o normalmente necessário para as fazer. Assim, ao voltar ao meio-dia, estando a pé desde duas horas antes do nascer do sol, e apenas com trés dias diante de mim, começava a ficar nervoso e, à mesa, debaixo do toldo da tenda, conversando, encontrei Kandisky de calções à tirolesa. Tinha-me esquecido dele.
— Bom dia, bom dia — disse ele. — Nada? Nada feito? Onde está esse kudu?
— Tossiu uma vez e escapuliu-se — disse eu. — Olé, querida.
Eia sorriu. Estava também preocupada. Ambos tinham estado à espera de um tiro desde o nascer do sol. À escuta o tempo todo, mesmo depois do nosso convidado ter chegado; à escuta enquanto escreviam cartas, à escuta enquanto liam, à escuta quando Kandisky voltou e se pôs à conversa.
— não o mataste?
— Não. Nem sequer o vi. .
Percebi que Pop também estava aborrecido e um pouco nervoso. Era evidente que se tinha falado bastante no assunto.
— Tome uma cerveja, coronel — disse-me ele.
— Espantámos um — contei eu. — Não houve possibilidade de Ihe atirar. Havia imensas pegadas, mas não apareceu mais nada. Fazia vento. Pergunte aos pretos.
— Como estava dizendo ao coronel Phillip — começou Kandisky chegando para trás o traseiro vestido de coiro e cruzando as pernas nuas, cabeludas e musculosas — o senhor não deve ficar aqui muito tempo. Não se esqueça que as chuvas estão a chegar. Há uma área a doze milhas daqui que não conseguirá passar, se chover. É impossível.
— É o que ele me tem estado a dizer — acrescentou Pop. — A propósito, eu sou um paisana. Usamos estes títulos militares como alcunhas. Não se ofenda se é coronel. — E depois para nim. — Vão para o diabo esses pântanos. Se não pensasse neles já teria conseguido o seu kudu.
— Estragam tudo — concordei. — Mas temos a certeza de, mais tarde ou mais cedo, matarmos qualquer coisa no pântano.
— Cace também nas colinas.
— Hei-de lá caçar, Pop.
— Afinal de contas o que é que significa matar um kudu? — perguntou Kandisky. — Não deve levar o caso tanto a sério. Que importância é que isso tem? Num ano podem matar-se vinte.
— O melhor é não dizer isso às autoridades venatórias — acrescentou Pop.
— O senhor não está a compreender — disse Kandisky. — O que eu quero dizer é que num ano uma pessoa pode matar isso. O que não quer dizer que mate.
— Absolutamente — disse Pop — se vivesse numa regiäo de kudus podia: são os mais comuns dos antílopes grandes nesta região de floresta. Simplesmente, quando a gente os procura eles não aparecem.
— Não mato nada, compreende? — disse-nos Kandisky. — Porque é que não se interessa mais pelos nativos?
— Interessamo-nos — assegurou minha mulher.
— Têm realmente interesse. Oiça — disse Kandisky dirigindo-se a minha mulher.
— O diabo — disse eu a Pop — é que quando estou nas colinas tenho a certeza de que esses malandros estäo em baixo, ao pé do sal. As fêmeas estão nas colinas mas não acredito que os machos estejam com elas nesse momento. Depois, à tarde, descem e as pegadas lá estão. Estiveram no maldito sal. Vêm só quando Ihes apetece.
— Talvez.
— Tenho a certeza de que há lá varios machos. É possível que venham ao sal só de dois em dois dias. Alguns estäo com certeza amedrontados porque Karl disparou sobre eles. Se ao menos o tivesse morto duma vez em lugar de o perseguir através desta maldita região. Caramba, se ao menos tivesse morto de vez um desses diabos. Hão-de vir outros. Entretanto tudo o que temos a fazer é esperá-los. Claro que não vão estar todos prevenidos. Mas ele pôs a região em pânico.
— Fica muito nervoso — disse Pop. — Mas é um bom rapaz. Deu um lindo tiro naquele leopardo, sabe? Não se pode abater melhor um animal. Mas deixemos as coisas acalmarem um pouco.
— De certo. Estou a dizer mal dele, apenas por brincadeira.
— E se ficássemos o dia inteiro no abrigo?
— O diabo do vento começa a andar à roda. Leva o nosso odor em todas as direcções. Não há necessidade de estarmos aqui a propagá-lo por toda a parte. Se o raio do vento parasse. Abdullah trouxe hoje uma lata de cinzas.
— Vi-o vir com isso.
— Não havia uma ponta de vento quando procuramos o pântano e tínhamos apenas a luz suficiente para disparar. Todo o caminho ele foi verificando a direcção do vento com as cinzas. Caminhei sozinho com Abdullah em silêncio e deixei os outros para trás. Eu levava urnas destas botas de sola de borracha silenciosas como poeira de algodão. Mas os malandros senti-ram-nos a cinquenta jardas.
— Já alguma vez viu as orelhas deles?
— Se já alguma vez vi as orelhas deles? Se pudesse ver as orelhas desses patifes o esfolador podia meter mäos ao trabalho.
— São uns malandros — disse Pop. — Detesto esta historia de pântanos. Não são tão malandros como a gente pensa. o mal é que disparamos aos que são malandros. Desde que há sa) estão habituados a ser atacados.
— Isso é o que torna a coisa engraçada — disse eu. — Gostava de fazer isto durante um mês. Gosto de caçar com o rabo assente no chão. Não transpirar. Nem nada. Estar ali sentado a apa-nhar moscas e alimentar com elas as formigas-gigantes, no mei o da poeira. Gosto disto. Mas onde está o tempo?
— É isso mesmo; o malvado tempo.
— Pois é — dizia Kandisky à minha mulher. — Isso é que devia ver. Os grandes ngomas. As grandes festas de dança dos indígenas.
— Oiça — disse eu a Pop. — O outro pântano, aquele onde estive a noite passada, é resguardado, não obstante o estar perto daquela malfadada estrada.
— Os carregadores dizem que é na realidade domínio dos kudus pequenos. E é muito longe também. Oitenta milhas ida e volta.
— Bern sei. Mas havia pegadas de quatro grandes machos. Disso é que não há dúvida. Se não fosse o camião, a noite passada. E se ficássemos lá esta noite ? Assim eu teria a noite e a madrugada para dar descanso ao pântano. Há lá também um grande rinoceronte. Grandes pegadas, pelo menos.
— Óptimo — disse Pop. — Dispare também contra o malandro do rinoceronte.
— Ele detestava matar tudo que não fossem os animais que pro-curávamos; nada de caça ocasional, nada de caca decorativa, nada de matar por matar, mas apenas matar quando se deseja mais matar do que não matar, apenas quando isso Ihe era necessário para continuar a ser o primeiro na sua categoria de caçador e vi que me oferecia o rinoceronte apenas para ser amável.
— Não quero matá-lo a não ser que seja bom — prometi.
— Mate o patife — disse Pop — fazendo-me presente dele.
— Ali, Pop. — disse eu.
— Mate-o — disse Pop.
— Dar-lhe-á prazer fazer isso sozinho. Pode vender o chifre se o não quiser. Tem ainda direito a um na sua licença.
— Pois é — disse Kandisky. — Você estabeleceu um plano de campanha? Descobriu como apanhar os pobres animais?
— Sim — disse eu. — Como está o camião?
— Está liquidado — disse o austríaco. — De certa maneira estou contente. Era um símbolo demasiado vivo. Era tudo que me fazia lembrar a minha machamba. Agora não tenho nada e é muito mais simples.
— O que é a machamba? — perguntou P. O. M., minha mulher. — Oiço falar disso há meses mas não me atrevo a perguntar o significado dessas palavras que toda a gente usa.
— Uma plantação — disse ele. — Não tenho nada, excepto este camião. Com ele transporto trabalhadores para a machamba dum indiano. É um indiano muito rico que cultiva sisal. Sou o seu gerente. Um indiano pode tirar lucro duma plantação de sisal.
— De qualquer coisa — disse Pop.
— Sim. Onde nós fallíamos, onde nós passaríamos fonie, ele ganha dinheiro. Este indiano é, no entanto, muito inteligente. E considera-me. Represento a organizaçao europeia. Acaba agora de organizar o recrutamento de indígenas. Isto leva tempo. E merece respeito. Estou separado da minha família há três meses. A organização está organizada. Poderia fazer-se perfei-tamente numa semana, mas não seria tão impressionante.
— E a sua mulher? — perguntou a minha.
— Espera-me em casa, na casa do gerente, com minha filha.
— Ela gosta muito de si? — perguntou minha mulher.
— Sem dúvida, ou já se teria ido embora há muito tempo.
— Que idade tem a filha?
— Tem agora catorze anos.
— Deve ser muito bom ter uma filha.
— Não pode calcular como é bom. É como unía segunda mulher. Minha mulher sabe tudo o que eu penso, tudo o que digo, tudo em que creio, tudo o que posso fazer e o que não posso fazer e não posso ser. Conheço também minha mulher completamente. Mas agora há na nossa vida alguém que a gente não conhece, que não nos conhece a nós, que nos ama independentemente de nos conhecer e é estranila a nós ambos: alguém muito sedutor que é nosso e não é nosso, que torna as conversas mais — como hei-de dizer? — Sim, é como — como é que isso se diz? — é o molho, de tomate Ketchup no prato diário.
— Isso é muito bom — disse eu.
— Temos livros — disse ele. — não posso comprar novos livros, agora, mas podemos sempre falar. Ideias e conversas são uma coisa interessante. Discutimos tudo. Tudo. Temos uma vida mental muito agradável. Primeiro, na machamba, tínha-mos o Querschnitt. Isto dava-nos a sensação de ser membro, de fazer parte de um grupo muito brilhante de pessoas. As pessoas com quem nos daríamos se nos déssemos com quem desejamos. Conhece toda essa gente? Deve conhecer.
— Alguns — disse eu. — Uns em Paris, outros em Berlim.
Não quis destruir-lhe as ilusões por isso não entrei em pormenores acerca desta gente brilhante.
— São extraordinários — disse, mentindo.
— Invejo-o por os conhecer — disse eie. — E, diga-me, quem é o maior escritor americano?
— O meu marido — disse minha mulher.
— Não. Não quero que fate do ponto de vista da vaidade familiar. Mas quem é, realmente? Certamente não Upton Sinclair. Nem Sinclair Lewis. Quem é o vosso Thomas Mann? Quem é o vosso Valéry?
— Não temos grandes escritores — disse eu. — Qualquer coisa acontece aos nossos bons escritores, em certa idade. Podia explicar-lhe isto, mas é muito longo e era capaz de o aborrecer.
— Explique, por favor — disse ele. — É disso que eu gosto. Esse é o mei hor lado da vida. A vida do espirito. Isso não é o mesmo que matar kudus.
— Você ainda não ouviu — disse eu.
— Ah!, mas posso imaginar. Precisa de beber mais cerveja para soltar a língua.
— Está solta — disse-lhe eu. — Está sempre solta de mais. Mas Você não bebe nada?
— Não, nunca bebo. Não é bom para o espírito. Não é necessário. Mas diga, diga, faz favor.
— Bern, — disse eu — temos tido na América escritores de talento. Poe é um escritor de talento. A sua obra revela talento, construção maravilhosa, e está morta. Temos tido escritores retóricos que tiveram a sorte de descobrir um pouco, na vida de outros homens ou viajando, como as coisas, as verdadeiras coisas, podem ser — baleias, por exemplo — e este conhecimento dá tão hem com a retórica como ameixas num pudim. Algumas vezes existe isolado, sem pudim, e é bom. É o caso de Melville. Mas as pessoas que o admiram, admiram-no pela retórica, que não é importante. Vêem o misterio onde ele não está.
— Sim — disse ele. — Claro. Mas é o espirito trabalhando, a sua capacidade para trabalhar, que faz a retórica. A retórica é a centelha azul do dínamo.
— Algumas vezes. Outras há apenas as centelhas azuis; mas quem acciona o dinamo?
— É isso, continue.
— Já me esgueci.
— Não. Continue. Não se esteja a esquivar.
— Alguma vez se levantou antes do nascer do sol?
— Todas as manhãs — disse ele. — Continue.
— Bem. Houve outros que escreveram como colonos ingleses exilados de uma Inglaterra de que nunca fizeram parte, para uma nova Inglaterra que eles construíram. Bons homens com a acanhada e seca prudência dos Unitarians; homens de letras. Quakers com o senso do humor.
— Quem foram esses?
— Emerson, Hawthorne, Whittier e Companhia. Todos os nossos primeiros clássicos que não sabiam que um novo clássico não tem nenhuma semelhança com os que o precederam. Podem inspirar-se naquilo que é melhor que eles, roubar ao que não é clássico. Todos os clássicos fazem isto. Alguns escritores nasceram unicamente para ajudar outro escritor a escrever uma única frase. Mas este não provém nem se assemelha a nenhum clássico anterior. De resto todos estes homens eram «gentlemen» ou desejavam sê-lo. Eram todos respeitáveis. Não usa-vam as palavras que as pessoas normalmente usam quando falam, as palavras que sobreviven! na linguagem. Não se descobre mesmo que te m um corpo. Tinham espírito, sim. Beios, secos, límpidos espíritos. Mas nada disto tem interesse e só o digo porque mo perguntou.
— Continue.
— Há um, na nossa época, que é suposto ser muito bom: Thoreau. Não posso dizer-lhe nada dele porque nunca o pude 1er. Mas isso não quer dizer nada porque também nunca pude 1er outros naturalistas, à excepção dos que são extremamente precisos e nada literatos. Os naturalistas deviam todos trabalhar sozinhos e ser outra pessoa a estabelecer por eles as relações das suas descobertas. Os escritores deviam escrever isolados. Só se deviam ver uns aos outros depois da obra feita, e não muito frequentemente. De outro modo tornam-se como os escritores em Nova York: vermes numa garrafa, tentando extrair o saber e o alimento do seu proprio contacto e do da garrafa. Às vezes a garrafa tem a forma da arte, outras vezes a das ciências económicas, outras a forma das ciências económico-religiosas. Mas uma vez na garrafa lá ficam. Sentem-se sós fora dela. E não querem estar sós. Têm medo de ficar sozinhos com as suas crenças e nenhuma muiher os amará o bastante para que eles possam matar a sua solidão com essa mulher, ou confundi-la com a solidão dela, ou fazer com ela qualquer coisa que torne tudo o resto sein importância.
— Mas Thoreau?
— Deve lê-lo. Talvez eu possa fazer isso mais tarde. Não há nada que eu não possa vir a fazer mais tarde.
— Tome um pouco mais de cerveja, papá.
— Pois sim.
— E quem são os bons escritores ?
— Os bons escritores são Henry James, Stephen Crane e Mark Twain. Esta não é a ordern do seu valor. Não há uma escala para os bons escritores.
— Mark Twain é um humorista. Os outros não conheço.
— Toda a moderna literatura americana vem de um livro de Mark Twain chamado Huckleberry Finn. Se o 1er deve parar onde o negro Jim é roubado aos rapazes. Aí é realmente o fim. o resto é uma fraude. Mas é o melhor livro que até à data tive-mos. Todos os escritores americanos provêm daqui. Não há nada antes. Não houve nada tão bom depois disso.
— E os outros?
— Crane escreveu duas boas novelas: The Open Boat e The Blue Hotel. A última é a melhor.
— Que é feito dele?
— Morreu. É simples. Desde o princípio que estava morrendo.
— E os outros dois?
— Viveram ambos até à velhice, mas não ganharam juízo à medida que envelheciam. Não sei o que realmente pretendiam. Como vê, nos transformamos os nossos escritores numa coisa muito estranha.
— não percebo.
— Destruímo-los de muitas maneiras. Primeiro economicamente. Ganham dinheiro. É apenas por acaso que um escritor ganha dinheiro, embora os bons livros sempre venham um dia a dar dinheiro. Então os nossos escritores, quando ganham dinheiro, elevam o seu nível de vida e estão tramados. Têm que escrever para sustentar a casa, a mulher e o resto e escrevem porcarias. Não escrevem porcarias de propósito, mas porque escrevem depressa. Porque escrevem quando não têm nada para dizer, quando não têm mais água no poço. Porque são ambiciosos. E depois, desde que se traíram uma vez, querem-se justificar e temos mais bodegas. Ou então lêm os críticos. Se acreditam nos críticos quando dizem que eles são bons, tam-bém têm que os acreditar quando dizem que eles não prestam, e perdem a confiança em si próprios. Actualmente temos dois bons escritores inibidos de escrever por esta razão. Se escreves-sem, algumas vezes seriam bons outras vezes não tão bons, e outras, maus. Mas o bom havia de salvar-se. No entanto, como leram os críticos, julgam-se na obrigação de escrever obras-primas. As obras-primas que os críticos já lhes atribuíram. Não eram obras-primas, claro. Eram apenas bons livros. Por isso agora não podem escrever nada. Os críticos tornaram-nos impotentes.
— Quem são esses escritores?
— Os seus nomes não significariam nada para si e a estas horas já podem ter escrito de novo, ter tido medo, e estarem de novo impotentes.
— Mas o que é que aconteceu afinal aos escritores americanos? Seja preciso.
— Como eu não existia nos velhos tempos, não posso falar-lhe deles, mas agora há várias razões. Numa certa idade os escritores transformam-se em conselheiros. As escritoras tornam-se Joanas d’Arc, sem luta. Transformam-se em chefes. Não interessa saber quem chefiam. Se não têm adeptos, inventam-nos. É inútil que os escolhidos como seguidores, protesten!. São acusados de deslealdade. É o diabo. Acontecem-lhes muitas coisas e esta é uma délas. Uns tentam salvar-se com o que escreveni. E um caminho fácil. Outros corrompem-se com o primeiro dinheiro, o primeiro prémio, o primeiro ataque, o prinieira descoberta de que não podem escrever, ou a de que não podem fazer outra coisa, ou têm medo e arranjam organi-zações que obriguem as pessoas a pensar neles. Ou não sabem o que querem. Henry james quería ganhar dinheiro. Nunca o conseguiu, claro.
— E você?
— Eu tenho mais interesses. Tenho uma vida fácil, mas preciso de escrever porque, se não escrevo, numa certa medida, não aprecio o resto da vida.
— E o que pretende?
— Escrever tão bem quanto possa e ir sempre aprendendo. Ao mesmo tempo tenho a minha vida de que gosto e que é uma rica vida.
— A caça ao kudu?
— Sim. A caça ao kudu e muitas outras coisas.
— Que outras coisas?
— Muitas.
— E sabe o que quer?
— Sei.
— Gosta realmente de fazer o que está fazendo agora, esta coisa estúpida de matar kudus?
— Tanto quanto gosto do Prado.
— E pode comparar-se uma coisa com a outra?
— Uma coisa é tão necessària como a outra. Mas há outras coisas.
— Naturalmente, tem de haver. Mas este género de coisas significa realmente algo para si?
— Com certeza.
— E sabe o que quer?
— Absolutamente e consigo-o sempre.
— Mas para isso é preciso dinheiro.
— Posso sempre arranjar dinheiro e de resto tenho tido muita sorte.
— Então é feliz?
— Excepto quando penso nas outras pessoas.
— Pensa então nas outras pessoas?
— Penso.
— Mas não faz nada por elas?
— Não.
— Nada?
— Talvez um pouco.
— Acha que aquilo que escreve vale a pena, como um fim em si mesmo?
— Claro que sim.
— Tem a certeza?
— Absoluta.
— Deve ser muito agradável.
— É — disse eu. — É mesmo a única coisa verdaderamente agradável nisto.
— A conversa está-se a tornar terrivelmente séria — disse minha mulher.
— É um assunto sério como o diabo.
— Está a ver? Quando ele trata de certas coisas é realmente sério — disse Kandisky. — Tinha a certeza de que havia de ser sério em alguma coisa mais do que em kudus.
— A razão por que cada um tenta agora evitar isto, negar que é importante, mostrar que é vão tentar fazê-lo, é porque é muito difícil. Muitos factores precisami de ser combinados para tornar isto possível.
— A que é que se quer referir?
— Àquilo sobre o que se pode escrever. Ao ponto até ao quai se pode levar a prosa, quando se é suficientemente sério e se tem sorte. Há uma quarta e quinta dimensões que se podem atingir.
— Acredita nisso?
— Sei-o.
— E se um escritor chega lá?
— Entáo não interessa mais nada. É mais importante do que qualquer coisa que ele possa fazer. Há a contingência de falhar, naturalmente. Mas há uma probabilidade de ter bom êxito.
— Mas isso de que fala é poesia.
— Não. É muito mais difícil do que poesia. É uma prosa que nunca foi escrita. Mas pode escrever-se sem artifícios e sem subterfúgios. Sem nada que depois se torne mau.
— E porque não foi ainda escrita?
— Por muitas razões. Em primeiro lugar é preciso talento, muito talento. Talento como o de um Kipling. Depois disciplina. A disciplina de um Flaubert. Além disso é preciso haver a concepção do que isto deve ser e uma absoluta consciência tão invariável como o metro-padrão de Paris, para evitar toda a falsidade. Depois o escritor tem de ser inteligente e desinteres-sado e, acima de tudo, precisa de sobreviven Consiga todas estas coisas numa só pessoa e submeta-a a todas as influências que pesam sobre um escritor. O mais difícil para ele, porque as vidas são tão curtas, é sobreviver e terminar a sua obra. Mas gostaria que tivéssemos um tal escritor e de 1er o que ele escre-vesse. Que acha? Falamos de outra coisa?
— É interessante o que diz. Evidentemente que não concordo com tudo.
— Naturalmente.
— Torna um gimlet? — perguntou Pop. — Não acham que um gimlet ajudaria?
— Diga-me primeiro quais são as coisas, as coisas actuáis que concretamente prejudicam um escritor ?
— Eu estava cansado da conversa, que se tinba tornado numa entrevista; por isso, como a uma entrevista, pus-lhe ponto final. A obrigação de resumir numa frase mil coisas imponderáveis, agora, antes de almoço, ia para além das minhas forças. «Política, mulheres, bebidas, dinheiro, ambições. E a falta de política, de mulheres, de bebidas, de dinheiro e de ambições», disse eu num tom profundo.
— Está a ficar agora mais acessível — disse Pop.
— Não percebo isso de beber. Sempre me pareceu um disparate. Considero-o uma fraqueza.
— É um processo de acabar o dia. E tem grandes vantagens. Nunca desejou mudar as suas ideias?
— Dê-me um — disse Pop. — M’Wendi!
— Pop nunca bebia antes do almoço, a não ser por distracção e compreendi que estava apenas a querer ajudar-me.
— Bebamos cada quai um gimlet — disse eu.
— Nunca bebo — disse Kandisky. — Vou ao camião, buscar manteiga fresca para o almoço. É fresca, de Kandoa, sem sal. Muito boa. Esta noite teremos um prato especial de sobremesa vienesa. O meu cozinheiro aprendeu a fazê-la muito bem.
— Quando ele se foi embora minha mulher disse:
— Estiveste extremamente profundo. O que era isso de mulheres?
— Que mulheres?
— Quando vocês falavam de mulheres.
— Que vão para o diabo as mulheres — disse eu. — Falávamos daquelas com quem a gente se mete quando está bêbedo.
— É então o que costumas fazer?
— Não; não me meto com ninguém quando estou bêbedo.
— Vamos, vamos — disse Pop. — Nenhum de nós está nunca bêbedo. Meu Deus, o que este homem fala.
— Ele não teve oportunidade de falar desde que B’Wana M’Kumba começou.
— Tive desinteria verbal — disse eu.
— E a respeito do camião dele? Podemos rebocá-lo, sem danificarmos o nosso?
— Julgo que sim — disse Pop. — Quando os nossos voltarem de Handeni.
— Ao almoço, debaixo do alpendre verde da barraca, à sombra de uma grande árvore, com o vento soprando, a manteiga fresca muito gabada, costeletas de gazela, puré de batata, milho verde e várias frutas para sobremesa, Kandisky explicou-nos a razão porque os índios do leste estavam a tomar conta do país.
— Durante a guerra, percebe, mandaram tropas indianas combater aqui. Para as conservar fora da Índia, porque receavam outra revolta. Prometeram ao Aga Khan que, visto terem lutado em África, os indianos poderiam, depois da guerra, instalar-se e trabalhar aqui livremente. Não puderam eximir-se a esta promessa e por isso agora os indianos expulsaram os europeus do país. Vivem de nada, porque mandam todo o dinheiro para a Índia. Quando tiverem ganho o suficiente, voltarão para a sua terra, mandando em sua substituição os parentes pobres para continuaren! a explorar o país.
— Pop não disse nada. Não quería discutir com um convidado, à mesa.
— É o Aga Khan — disse Kandisky. — Vocês são americanos. Não percebem nada destas combinações.
— Esteve com von Lettöw? — perguntou-lhe Pop
— Desde o principio — disse Kandisky. — Até ao fim.
— Era um grande soldado — disse Pop. — Tenho grande admi ração por ele.
— Você entrou na guerra?
— Entrei.
— Eu não gosto de Lettöw — disse Kandisky, — Bateu-se, é verdade. Nunca ninguém se bateu melhor. Quando queríamos quinino dava ordern para que nos apropriássemos dele. O mesmo com todas as provisões. IVlas depois não se importava mais com os seus homens. Após a guerra eu estava na Alemanha. Fui averiguar o que havia quanto a indemnização de propriedades. «Você é austríaco — disseram-me — tem que tratar as coisas por via austríaca». Então fui para a Austria. «Mas porque é que combateu? — perguntaram-me. Não nos pode tornar responsáveis por isso. Suponhamos que tinha combatido na China. Isso era consigo. Não podemos fazer nada por si».
«Mas fui corno patriota — disse eu estupidamente — combatí onde pude porque sou um austríaco com a consciência do seu dever. — Sim — disseram eles. — Isso é muito bonito. Mas não pode responsabilizar-nos pelos seus nobres sentimentos». E assim me mandaram de uns para os outros e tudo sempre na mesma. Apesar disso gosto do país. Perdi aqui tudo, mas tenho mais do que qualquer pessoa na Europa. Para mim tudo tem interesse. Os indígenas e a língua. Tenho muitos livros de notas sobre eles. E depois, realmente, sou um rei aqui. É agradável. Acordo de manhã, estendo um pé e o criado calça-me a meia. Quando estou pronto, estendo o outro pé e ele calça-me a outra meia. Dou um passo para sair do mosquiteiro e entro nos calções que estão ali prontos para mim. Não acha que é estupendo ?
— É óptimo.
— Quando aqui voltarem outra vez havemos de fazer uma expedição para estudar os indigenas. E não mataremos nada, a não ser para comer. Olhem, vou mostrar-vos uma dança e cantar uma canção.
— Dobrado, levantando e baixando os cotovelos, com os joelhos flectidos, andava à roda da mesa, cantando. Era, sem dúvi-da, bonito.
— Esta é apenas uma entre mil. Agora tenho que os deixar. Têm que se ir deitar. E eu também. Levo a manteiga para a conservar fresca.
— Contamos consigo para jantar — disse Pop.
— Agora vão dormir. Boa noite.
Depois dele se ir embora Pop disse:
— Sabe, eu não acredito nesta coisa do Aga Khan.
— Não me pareceu mal.
— Claro que ele está irritado — disse Pop. — E quem o não está? Von Lettöw era um homem terrível.
— Ele é muito inteligente — disse minha mulher. — Fala admiravelmente dos indígenas mas não gosta das mulheres americanas.
— Também eu — disse Pop. — É muito bom homem. Mas vamos dormir. Você tern que partir aí pelas très e meia.
— Diga-lhes que me chamem.
Molo levantou o fundo da barraca segurando-o às estacas, de modo que o vento corría por baixo, e eu adormecí lendo, com o vento fresco e ligeiro passando sob o pano quente.
Quando acordei eram horas de ir. Havia no céu nuvens carregadas de chuva e estava muito calor. Tinham arranjado algumas latas de frutas, uma peca de cinco libras de carne assada, pão, chá, uma chaleira, algum leite condensado e quatro garrafas de cerveja numa caixa de whisky. Havia um saco de lona com água e um pano para servir de barraca. M’Cola tirou do carro a espingarda grande.
— Não tenha pressa de voltar — disse Pop.
— Iremos ao seu encontró quando o virmos.
— Muito bem.
— Enviaremos o camião para rebocar esse desportista até Han-deni. Ele que mande os homens à frente, a pé.
— Tem a certeza de que o camião aguentará? Não faça isso pelo facto de se tratar de um amigo meu.
— Temos que o ajudar a sair disto. O camião voltata esta noite.
— Mensahib ainda dorme — disse eu. — Talvez ela possa dar um passeio e caçar algumas galinhas-da-índia.
— Estou aqui — disse eia. — Não te rales connosco. Deus queira que os apanhes.
— não nos mandem procurar pela estrada, antes de depois de amanhã — disse eu. — Se tivermos sorte, ficaremos.
— Felicidades.
— Felicidades, querida. Adeus sr. J. P.
~ CAPÍTULO SEGUNDO
Tínhamos deixado a sombra do acampamento e, ao longo do rio de areia que era a estrada, deslizávamos em direccão ao sol poente. O mato espesso da beira da estrada era denso como uma moita, com pequenas colinas que se elevavam e durante todo o percurso passámos por pessoas que se dirigiam em direcçao ao oeste. Alguns iam nus, apenas com um pano engordurado enrolado num ombro e levavam arcos e careases de flechas. Outros levavam lanças. Os mais ricos traziam guarda-sóis e iam vestidos de tecido branco drapeado e as mulheres deles iam atrás com as panelas e os potes. Trouxas e cargas de peles viam-se pela estrada fora à cabeça de outros indígenas. Todos fugiam à fome. Debaixo do sol, com os pés do lado de fora do carro para fugir ao calor do motor, chapéus derrubados para os olhos por causa do sol, contemplando a estrada e as pessoas, atentos à caça nas clareiras da floresta, caminhávamos para oeste.
A certa altura vimos três kudus-pequenos numa clareira. Cinzentos, de ventres gordos, pescoços compridos, cabeças pequenas, longas orelhas, entraram rapidamente no bosque e desapareceram. Saímos do carro para os perseguirmos mas não vimos traços de macho.
Um pouco mais adiante um bando de galinhas-da-índia de pernas ligeiras, cabeças levantadas, atravessou a estrada num andamento rápido. Quando saltei do carro e corri para elas, levantaram voo com as patas encolhidas, o corpo pesado, batendo as curtas asas, cacarejando e pousaram nas árvores que ficavam perto. Abati duas que caíram ruidosamente no chão e enquanto jaziam, batendo com as asas, Abdullah cortou-lhes a cabeça para que pudessem ser legalmente comíveis. Pô-las no carro onde M’Cola, sentado, ria; o seu riso são de homem velho, o seu riso que fazia troça de mim, o seu riso de cacadas a pássaros que datava de uma série irritante de tiros falhados que uma vez o tinham divertido. Agora, quando eu matava, era uma brincadeira como se matássemos uma hiena; a melhor das brincadeiras. Ria sempre quando via os pássaros tombar e quando eu falhava eie gritava e abanava a cabeça sem cessar.
— Pergunte-lhe de que diabo se está ele a rir? — disse a Pop uma vez.
— Do B’wana— disse M’Cola — dos passarinhos.
— Eie acha que você é engraçado — disse Pop.
— Valha-me Deus. Sou engraçado. Que vá para o diabo.
— Ele acha-o muito cómico — disse Pop. — Agora Mensallib e eu não voltaremos a rir-nos.
— Mata-os tu.
— Não, tu é que és o caçador de pássaros, reconhecido como tal — disse eia.
E, assim, cacar aves se tornou nesta brincadeira engraçada. Se eu matava, a piada estava nos pássaros e M’Cola havia de abanar a cabeça e rir e andar com as mãos à roda para demonstrar como o pássaro voltejava no ar. Se falhava o tiro, era eu o palhaço da festa e ele olhava-me e escangalhava-se a rir. Melhor que isto só as hienas.
Era muito engraçado o salto obsceno da hiena, arrastando a barriga pesada na planície, à luz do dia e que, atacada de costas, partia a galope para vir a cair e a recair sobre si mesma. Extremamente cómica era a hiena que parava fora de alcance, perto de um lago salgado, para se voltar e, ferida no peito, tombar de costas, com as quatto patas e a barriga volumosa voltadas para o ar. Nada podia ser mais engraçado do que a hiena, mal cheirosa, de boca torcida, surgindo de súbito por entre as ervas altas perto do donga, e que alvejada, tentava apanhar a própria cauda, descrevia, a galope três círculos, cada vez mais apertados, até que caía morta.
M’Cola gostava de ver uma hiena alvejada a curta distância. Havia a detonação engraçada da bala e a agitada surpresa do animal até encontrar a morte dentro de si. E era ainda mais engraçado ver caçar uma hiena a grande distância, no calor vibrante da planície, vê-la dar cambalhotas, fazer uma dança louca, com a velocidade eléctrica que traduzia a luta contra a pequena morte de metal que sentia nas entranhas. Mas a coisa mais divertida, a que fazia M’Cola, esfregar as mãos de contente e voltar-se e menear a cabeça e rir, envergonhado até da hiena, o cúmulo do hiénico humor, era a hiena, a clàssica hiena que, ferida no traseiro, descreve, enquanto corre, fantásticos círculos, mordendo-se e rasgando-se a si própria, até extrair os intestinos e ficai depois ali, sacudindo-os e comendo-os deliciada.
— Fisi — dizia M’Cola, abanando a cabeça, horrorizado por existir uma fera tão horrível.
Fisi, a hiena, hermafrodita, que devora os mortos e se devora a si mesma, que persegue as vacas paridas, que corta os tendões das pernas dos outros animais para os mancar, pronta a atacar-nos enquanto dormimos, de uivo sinistro e que ronda, mal cheirosa, asquerosa, com queixadas que rilham os ossos deixados pelo leão, a barriga a arrastar pelo chão, fugindo na planície castanha, voltando-se com a expressão alerta de um cão vadio. Uma detonação da pequena Mannlicher e eis a ronda horrível que começa. Fisi. M’Cola ria, horrorizado com eia, abanando a cabeça negra e calva; Fisi. A que se come a si própria. Fisi. Caçar hienas era um entretenimento porco e caçar pássaros é que era um entretenimento limpo. O meu whisky também era um entretenimento limpo. Havia muitas variantes deste divertimento. De alguns falaremos mais tarde. O maometanismo e todas as religiões eram um entretenimento, um entretenimento para as pessoas que as praticavano. Charo, o outro porta-espingarda, era baixo, de carácter sério e muito religioso. Durante todo o Ramadão nunca engolia a saliva atéao pôr do sol e quando este estava quase no ocaso, viao a observá-lo nervosamente. Trazia consigo uma garrafa com uma espécie de infusão e tateava-a enquanto olhava o sol. M’Cola observava-o fingindo que não via. Isto não era inteiramente cómico para ele. Era uma coisa de que não podia rir-se aberta-mente, mas à quai se sentia superior e cuja estupidez o chocava. O maometanismo estava muito em moda e todos os rapazes das melhores classes sociais eram maometanos. Era uma coisa que dava nobreza, uma coisa em que se acreditava, uma coisa elegante, mandada por Deus e pela qual se sofria um pouco todos os anos, uma coisa que dava superioridade e complicados hábitos de alimentação, uma coisa que eu entendia e M’Cola não, nem Ihe dava importância, e observava Charo a namorar o pôr do sol com aquela expressão neutra que tinha em face de todas as coisas em que não tornava parte. Charo estava a morrer de sede mas era sinceramente crente e o sol baixava muito devagar. Eu olhava-o, vermelho, através das árvores, dava uma cotovelada a Charo e ele sorria. M’Cola oferecia-me solenemente a garrafa da água. Eu dizia que não com a cabeça e Charo sorria outra vez. M’Cola fica va indiferente. Depois o sol descia e Charo erguía a garrafa, com a maça de Adão a subir e a descer rapidamente e M’Cola olhava-o e depois desviava os olhos.
No princípio, antes de nos tornarmos bons amigos, não tinha confiança nenhuma em mim. Quando aconteca alguma coisa, tornava aquele ar distante. Eu gostava então mais de Charo. Entendiamo-nos na questão da religiäo e Charo admirava a minha pontaria, apertava-me a mão e ria quando caçá-vamos alguma coisa que valesse a pena. Isto era lisongeiro e agradável. M’Cola considerou todos estes primeiros tiros como meros acasos felizes. Era suposto caçarmos, mas ainda não tínhamos abatido nada que interessasse e ele não era na realidade meu porta-espingarda. Era porta-espingarda do sr. Jackson Phillip e tinha-me sido emprestado. Eu não era nada para ele. Não gostava, nem desgostava de mim. Com Karl era apenas delicado. De quem gostava era da marnã.
Na noite em que matamos o primeiro leão, já era escuro quando avistamos o acampamento. A morte do leão foi confusa e insatisfatória. Tinha-se combinado que P. O. M. daria o primeiro tiro, mas como era o primeiro leão a que qualquer de nós atirava e era já muito tarde, realmente tarde demais para se atacar um leão, visto que, depois de atingido, teríamos que fazer tudo numa precipitação, estabeleceu-se que qualquer de nós se podia apossar dele. Este piano era bom porque era quase sol-posto e se o leão, depois de ferido, se refugiasse em qualquer lugar, seria muito tarde para se fazer fosse o que fosse, sem perigo. Lembro-me de o ter visto, amarelo e enorme, corn a cabeçorra contra uma pequena árvore, num massiço de verdura e P. O. M. ajoelhada para atirar e eu a querer dizer-lhe que se sentasse para poder dar um tiro mais certeiro. E então deu-se a breve explosão da Mannlicher e o leäo encaminhou-se para a esquerda a correr, um estranilo felino de grandes costados e patas ligeiras. Apanhei-o corn a Springfield e eie caiu e levantou-se de novo e eu atirei outra vez, depressa demais, levantando uma nuvem de poeira à sua volta. Mas eie ali estava estiraçado, sobre a barriga. E, com o sol mesmo por cima do topo das árvores e da relva muito verde, caminhamos para eie corno um bando de índios com as espingardas aperradas, sem ter a certeza se ele estava atordoado ou morto. Quando chegamos perto M’Cola deitou-Ihe uma pedra. Acertou-lhe nas costas e pela maneira como bateu viu-se que era um animal morto. Eu tinha a certeza de que P. O. M. o tinha atingido, mas havia apenas um furo de bala bem atrás, mesmo abaixo da espinha, indo sair à frente, por baixo da pele do peito. Podia apalpar-se a bala sob a pele e M’Cola fez uma incisão para a extrair. Era uma bala de calibre 22 da Springfield e tinha atravessado os pulmões e o coração.
Fiquei tão surpreendido quando ele caiu, fulminado pelo tiro, quando contávamos ter que fazer um combate heróico edramático, que me senti mais desiludido do que satisfeito. Era o nosso primeiro leão e, como éramos muito ignorantes, contávamos com um espectáculo melhor. Charo e M’Cola apertaram a mão a P. O. M. e depois Charo veio ter comigo e estendeu-me também a mão.
— Bom tiro, B’wana— disse em swahili — piga m’uzuri.
— Você atirou, Karl? — perguntei eu.
— Não. Ia para atirar quando o senhor disparou.
— E você, Pop?
— Não. o senhor teria ouvido. — Abriu a culatta e tirou dois grandes 45o n.() 2.
— Tenho a certeza de que não o atingi — disse P. O. M.
— Eu julgava que o tinhas atingido. E ainda julgo — disse eu.
— Mamã alvejou — disse M’Cola.
— Onde? — perguntou Charo.
— Alvejou — disse M’Cola. — Alvejou.
— O senhor é que o matou — disse-me Pop. — Céus, caiu como um coelho.
— Nem posso acreditar.
— Mamã piga— disse M’Cola. — piga Simba.
Quando voltámos nessa tarde e vimos a luz do acampamento no escuro, à nossa frente, M’Cola pôs-se de repente a cantar em wakamba uma torrente de palavras agudas e rápidas que terminavam pela palavra «Simba». Alguém do acampamento respondeu com uma única palavra.
— Mamã! — gritou M’Cola. Nova girândola de palavras. Depois: — Mamã! Mamã.
Surgiram do escuro todos os carregadores, o cozinheiro, o esfolador, os criados e o chefe.
— Mamã! — gritava M’Cola. — Mamã piga Simba.
Os criados vinham a dançar, juntando-se e marcando o compasso, cantaram qualquer coisa que lhes vinha do fundo do peito, que começava como uma tosse e soava como Hey la mamã! Hay la mamã! Hey la mamaã!
O esfolador, de olhos revirados, puxou P. O. M.; o gordo cozinheiro e os criados seguraram-na, e os outros precipitaramse para a frente para a levantarem!, ou pelo menos para lhe tocarem, segurando-a e cantando na obscuridade à volta da fogueira, até à nossa barraca.
— Hey la Mamã! huh! huh! huh! Hay la mamã! huh! huh! huh! — cantavam a dança do leão com uma tosse de leão, funda e asmática.
Ao chegarem à barraca, puseram-na no chão e cada qual estendeu timidamente as mãos, os criados dizendo: m’uzuri, Mensahih e M’Cola e os carregadores dizendo todos: m’uzu-ri mamã, pondo muito sentimento na entoação da palavra mamã.
Mais tarde, quando bebíamos, sentados em frente da fogueira, Pop disse:
— A senhora matou-o. M’Cola é capaz de matar quem disser o contrário.
— Sabe, já quase me sinto como se o tivesse morto — disse P. O. M. — Não creio que aguentasse se realmente o tivesse morto. Ficaria demasiadamente orgulhosa. Não é maravilhoso o triunfo?
— Querida mamã — disse Karl.
— Eu creio que tu é que o mataste — disse eu.
— Não fa lem mais nisso — disse P. O. M. — Sinto-me tão bem só com a ideia de se poder supor que o matei. Sabe, na minha terra, nunca me trouxeram aos ombros.
— Não se sabem conduzir, esses americanos — disse Pop. — Não são civilizados.
— Nós havemos de levá-la em triunfo a Key West — disse Karl. — Querida marna.
— Não falemos mais nisso — disse P. O. M. — Dá-me demasiado prazer. Não devo oferecer-lhes qualquer coisa ?
— Não estão à espera disso mas pode realmente dar-lhes qualquer coisa para celebrar o acontecimento.
— Oh! Gostava de lhes dar muito dinheiro — disse P. O. M. —Não é o triunfo simplesmente maravilhoso?
— Querida mamaã — disse eu. — Mataste-o.
— Não, não matei. Não me mintam. Deixem-me apenas gozar o meu triunfo.
No entanto M’Cola não teve confiança em mim durante muito tempo. Enquanto a licença de P. O. M. não acabou era ela a sua favorita e nós um conjunto de pessoas que interferíamos e impedíamos a mamã de caçar. Desde que a sua licença se extinguiu e ela já não caçava mais, passando à categoria de náo-combatente e nóps começamos a caçar kudus, ficando Pop no acampamento e mandando-nos só com os batedores — Karl com Charo, M’Cola e eu juntos — Pop desceu visivamente na estima de M’Cola. Isto era temporário, já se vê. Era o homem de Pop e eu creio que as suas apreciações profissionais muda-vam de dia para dia e exigiam uma série contínua de acontecimentos para adquirir um significado qualquer. Mas qualquer coisa tinha nascido entre nós.
PARTE II
CAÇA RECORDADA
~
~ CAPÍTULO TERCEIRO
Foi na época de Droopy que voltei, depois de ter estado doente em Nairobi e de termos partido numa expedição a pé para caçar rinocerontes na floresta. Droopy era um verdadeiro selvagem, com as pálpebras quase a cobrirem-lhe os olhos, bonito, com muita classe, um bom caçador e um óptimo guia. Devia ter perto de trinta e cinco anos e usava apenas um bocado de pano enrolado no ombro e um fezque um caçador Ihe tinha dado. Trazia sempre uma lança. M’Cola usava um velho dólman de caqui do exército americano, com botões e tudo, que tinha sido trazido para Droopy, mas que este perdera por estar ausente. Duas vezes Pop o trouxe para Droopy até que finalmente M’Cola disse:
— Dê-mo a mini.
Pop deu-lho e ele nunca mais deixou de o usar. Isto, um par de calções, o seu boné de lã encrespada e uma camisola de malha que vestia quando lavava a farda, foi a única roupa que vi ao velhote, até se ter apossado do meu casaco de caça. Como calçado trazia umas sandálias feitas de borracha de pneu. Tinha umas lindas pernas magras com os joelhos bem feitos, no género das de Babe Ruth e lembro-me como me surpreendeu quando, ao vê-lo pela primeira vez sem túnica, descobri que a parte superior do seu corpo era velha. Tinha aquele aspecto idoso que se vê nas fotografías de Jeffries e Sharkey exibindo, trinta anos depois, os horríveis bíceps de velho e os flácidos pei-torais.
— Que idade tem M’Cola? — perguntei a Pop.
— Deve ter mais de cinquenta — disse Pop. — Tem uma grande família na reserva dos nativos.
— Como são os filhos dele?
— Maus. Uns inúteis. Não tem mão neles. Experimentámos um como carregador. Mas não prestava.
M’Cola não tinha ciúmes de Droopy. Mas sabia que Droopy valia mais do que ele. Era melhor caçador, descobria melhor e mais rapidamente as pistas e fazia tudo com perfeição. Adinirava Droopy pelos mesmos motivos que nós e, andando com ele, apercebeu-se de que lhe estava usando a túnica e que ele próprio tinha sido um carregador antes de ser porta-espingarda e, de repente, deixou de ser um vel ho maçador e passamos a caçar juntos; caçávamos juntos, nós os dois, e Droopy dirigindo a manobra.
Aquela foi uma bela caçada. Na tarde do dia em que penetrámos na região fizemos a pé cerca de quatro milhas, desde o campo ao longo dum profundo rasto de rinocerontes que ia atra vés de colinas de vegetação e que pareciam um pomar abandonado mas onde as árvores cresciam tão regular e uniformemente como se tivesse sido delineado por um técnico.
O rasto, muito regular, tinha um pé de profundidade e aban-donámo-lo no sítio em que se perdia numa abertura das colinas semelhante a um rego de irrigaçáo e trepámos, a suar, o pequeno outeiro escarpado que nos ficava à direita para nos sentarmos lá, de costas para o cume das montanhas, a examinar a região pelo binóculo. Era uma verde e linda região com colinas abaixo da floresta que crescia densa num lado da montanha, e era cortada pelo leito de várias correntes de água que se estendiam através de densos bosques. Ramificações da floresta vinham até ao cimo de algumas verteiltes e era aí, na orla da floresta, que nós esperávamos ver surgir os rinocerontes. Se desviássemos a vista da floresta e da encosta da montanha, podíamos seguir os cursos de água e as verteiltes montanhosas até ao sítio onde o terreno era plano e a erva crescia e eresiava e ao longe, na extremidade de uma longa extensão de terreno, ficava o castanho vale do Rift e a luminosidade do lago Manyara.
Ali ficámos todos, estendidos na encosta da montanha, observando cuidadosamente a região à espera de rinocerontes. Droopy estava do outro lado, no cimo da colina, sentado sobre os calcanhares a pesquisar e M’Cola sentado por baixo de nós. Uma brisa fresca de leste fazia ondular a erva das colinas. Havia muitas nuvens brancas e as grandes árvores da floresta, na encosta da montanha, cresciam tão juntas.e eram tão frondosas que dava a impressão de se poder andar sobre as suas copas. Por trás desta montanha havia uma brecha e depois outra montanha e a última de todas, à distância, parecía uma floresta azul escura.
Até ás cinco horas não vimos nada. Depois, sem binóculo, vi qualquer coisa que se movia de uma saliência de um dos vales para um maciço de árvores.
No binóculo viu-se um rinoceronte que se destacava nitidamente, muito pequeno àquela distância, vermelho à luz do sol, movendo-se como uma aranha através da colina. Depois vieram mais três saindo da floresta, negros na sombra, e dois que se batiam, pequeníssimos no binóculo, de cabeças juntas, lutando diante de um maciço de arbustos, enquanto nós os observá-vamos e se extinguía a luz do dia. Estava escuro de mais para descer a colina, atravessar o vale e subir o estreito declive da montanha, petto deles, a tempo de os alvejar. Por isso, voltámos ao acampamento deixando a colina na escuridão, tacteando com os pés sobre o caminho fofo, caminhando ao longo da profunda pista que contornava as negras montanhas, até que vimos a luz da fogueira por entre as árvores.
Estávamos excitados, naquela noite, por termos visto três rinocerontes; muito cedo, na manhã segnante, enquanto tomávamos o pequeno almoço, antes de nos pormos em marcha, Droopy veio anunciar que tinha visto uma manada de búfalos na orla da floresta a menos de duas milhas do campo. Dirigimo-nos para lá aínda com o gosto do café e dos arenques na boca e o coração batendo de excitação, e o indígena que Droopy tinha deixado lá a vigiá-los mostrou-nos o sítio onde eles tinham atravessado uma funda ravina e entrado numa clareira da floresta. Disse-nos que havia dois grandes machos numa manada de doze ou mais. Seguimo-los, andando cuidadosamente na peugada da caça, afastando os ramos para os lados e vendo as pegadas e os montes de bosta fresca, mas embora tivéssemos penetrado na floresta até ao sítio em que era demasiadamente espessa para podermos atirar ou descrever um grande círculo, não os vimos nem os sentimos. A certa altura ouvimos os pássaros e vimo-los voar, mas foi tudo. Havia numerosas pegadas de rinocerontes, ali na floresta, e muitos montes de excrementos secos, mas não vimos nada a não ser os pombos verdes da floresta e alguns macacos e quando saímos estávamos molhados até à cintura por causa do orvalho e o sol já ia alto. O dia estava muito quente porque ainda se não tinha levantado vento e sabíamos que os rinocerontes que tinham saído já teriam voltado para o meio da floresta, para descansar ao fresco. Os outros tinham partido para o acampamento com Pop e M’Cola. Não havia carne no acampamento, e eu quería caçar à volta, com Droopy, para ver se podíamos matar uma peça de caça. Sentia-me de novo forte depois da desinteria e era um prazer passear na terra ondulada, apenas passear e poder caçar, sem saber o que poderíamos ver e com a liberdade de caçar a carne que precisávamos. Além disso gostava de Droopy e gostava de o ver andar. Caminhava com uma grande leveza e com um ligeiro bamboleio e eu gostava de o ver enquanto sentia a erva sob as solas macias dos meus sapatos e o agradável peso da espingarda segura mesmo atrás da boca, o cano apoiado no ombro e o sol suficientemente quente para nos fazer suar com a mesma facilidade com que absorvia o orvalho das ervas; com a brisa que se levantava, este campo parecia uma várzea da Nova-Inglaterra. Eu sabia que estava a ter de novo boa pontaria e queria dar um tiro para impressionar Droopy.
Do cume duma elevação, vimos a mancha amarela de dois búfalos destacar-se num lado da montanha a quase uma milha e fiz sinal a Droopy para que os seguíssemos. Começámos a descer e, numa ravina, saltaram um antílope-macho e duas fêmeas. O antílope era o único animal que podíamos apanhar cuja carne eu sabia não ser boa para comer e já tinha morto um cuja cabeça era mais bonita do que a deste. Apontei-lhe quando eie fugia, lembrando-me da inutilidade da sua carne, da cabeça que já tinha, e não atirei.
— Não atira Kuro? - perguntou Droopy em swahili. — Doumi sana. um bom macho.
Tentei explicar-lhe que tinha um melhor e que não era bom para comer.
Arreganhou os dentes.
— piga kongoni m’uzuru
piga era uma linda palavra. Soava exactamente como devia soar uma ordern de fogo ou uma voz de combate. M’uzuri que significa bom, bem, melhor, pareceu-me muito tempo o nome de um Estado e enquanto caminhava costumava construir frases em swahili em que entrava Arkansas e M’uzuri, mas agora já esta palavra me parecia natural, não precisando de ser escrita em itálico, assim como outras palavras chegaram a ser palavras naturais e próprias e como já nada havia de estranho ou chocante nas orelhas distendidas, nas cicatrizes da tribo, num homem usando lança. Os distintivos de cada tribo e as tatuagens que pareciam ornamentos bonitos, naturais, tinha pena de não os usar eu príprio. As minhas cicatrizes não tinham significado, umas regulares e alongadas, outras simples vergões inchados. Tinha uma na testa que ainda suscitava comentários, perguntando-me as pessoas se eu tinha partido a cabeça; mas Droopy tinha-as lindas ao lado dos ossos da face, outras simétricas e decorativas no peito e no ventre. Ia eu pensando que tinha uma bonita, uma espécie de árvore de Natal em relevo na parte de trás do meu pé direito, que só servia para usar meias, quando deparámos com dois gamos. Fugiram através das árvo-res e depois pararam a seis jardas. Um deles, fino e gracioso, voltou-se para trás e eu visei-o na parte superior dos quartos dianteiros. Deu um salto e fugiu rapidamente.
— piga — riu Droopy.
Ambos tínhamos ouvido o ruído da bala.
— Kufa — disse eu. — Morto.
Mas quando nos aproximamos dele, deitado de lado, o coração batia-lhe ainda com força, embora tivesse toda a aparência de estar morto. Droopy não trazia a faca de esfolar e eu tinha apenas comigo um canivete. Tacteei-lhe com os dedos o coração por trás da pata da frente e sentindo-o bater sob a pele, enterrei a lâmina; mas era muito curta e empurrou o coração de lado. Pude senti-lo quente e elástico contra os dedos, e a navalha a empurrá-lo, mas tacteei à roda e cortei a grande artéria e o sangue veio correr, quente, sobre os meus dedos. Logo que o sangrei, comecei a abri-lo com o canivete, continuando a querer impressionar Droopy e esvaziando-o, tirei-lhe o fígado, cortei a vesícula e pondo o fígado num monte de ervas coloquei os rins ao lado.
Droopy pediu-me a navalha. Agora ia eie mostrar-me qual-quer coisa. Fendeu cuidadosamente o estômago e voltou-o esvaziando no chão a erva que continha, sacudiu-o e depois pôs-lhe o fígado e os rins dentro e com a faca cortou uma tira da árvore em que jazia o antílope e coseu o estômago com o vime, por forma a fazer um saco que levava todas as outras miudezas. Depois cortou uma cana e pôs-lhe o saco na ponta enfiando-o pelos bordos e colocou o bordão ao ombro à maneira dos vagabundos que transportam os seus haveres num lenço suspenso duma cana, como nos reclames dos Blue Jay quando era criança. Era um belo truque e disse de mim para mim que havia de o mostrar um dia a John Staib, no Wyoming, e ele faria o seu sorriso de surdo (era preciso deitar-lhe pedras para o fazer parar quando ouvíamos os chocalhos dos touros), e sabia o que diria Jolin. Diria: «Ena, Arnesto isso é formidable».
Droopy estendeu-me o pau, depois tirou a sua única vestimenta e fez com ela uma bandoleira e pôs o antílope às costas. Tentei ajudá-lo e sugeri-lhe por gestos que cortasse um pau donde suspenderíamos o animal, transportando-o ambos, mas ele quis levá-lo sozinho. E partimos para o acampamento, eu com o saco de tripas ao ombro, a carabina a tiracolo e Droopy marchando, a vacilar, mas muito direito, suando em bica sob o peso do antílope. Tentei persuadi-lo que o amarrasse a uma árvore e o deixasse lá até que mandássemos os carregadores e com esta intenção pousámo-lo na cavidade de uma árvore. Mas quando Droopy percebeu que eu preferia ir-me embora e deixar lá o antílope a consentir que ele ficasse derreado, voltou a pàr o animal às costas e chegámos ao acampamento onde os nativos, à volta do lume, desataram a rir ao ver-me com um saco de tripas ao ombro.
Desta espßcie de caçadas é que eu gostava. Nada de trajectos em automóvel, região acidentada em vez de planicies e eis-me completamente feliz. Tinha estado muito doente e agora experi-mentava a sensação agradável de me sentir mais forte de dia para dia. Perdera peso, tinha um grande apetite de carne e podia comer tudo o que me apetecia sem me sentir pesado. Todos os dias eliminava pela transpiração o que tinha bebido à noite, sentado ao lado do lume, e à hora quente do dia estirava-me à sombra, com a brisa a brincar nas árvores e lia sem obrigação ou vontade de escrever, feliz por saber que às quatto horas partiríamos de novo para a caça. Nem uma carta me apetecía escrever. A única pessoa que verdaderamente estimo, além dos filhos, estava na minha companhia e não desejava partilhar esta vida com ninguém que não estivesse lá, mas somente vivê-la, sentido-me perfeitamente feliz e exausto. Sabia que estava a atirar bem e tinha esta sensação de bem-estar e confiança em mim próprio que é bem mais agradável de sentir do que de conhecer por se ouvir dizer.
Partimos pouco depois das três horas para estar na colina às quatro. Mas eram quase cinco horas quando vimos o primeiro rinoceronte atravessar a crista da colina com o passo agitado das suas perninhas curtas, quase no mesmo lugar onde tínhamos visto o rinoceronte na noite anterior. Vimos por onde ele entrava na floresta, pelo sítio onde viramos os outros dois a lutar, e tomámos então um caminho que nos levaria ao sopé da colina através da ravina do fundo e acima da vertente em escarpa onde havia uma árvore de espinhos com flores amarelas que marcava o sítio por onde tínhamos visto desaparecer o rinoceronte.
Subindo a encosta em direcção à árvore espinhosa, o vento a soprar através da colina, eu tentava andar o mais devagar possível e meti um lenço por dentro da fita do chapéu para impedir que o suor me embaciasse os óculos. Esperava ter que disparar de um momento para o outro e queria caminhar o mais devagar possível para que o coração não batesse muito. Quando se caçam animais grandes, não há nenhuma razão de falhar se se tem um fim certeiro e se sabe atirar e onde atirar, a menos que se tenha a mão insegura por causa da caminhada ou duma ascensão ou os óculos embaciados ou partidos, ou falta de papel ou pano para os limpar. Os óculos representavam o maior risco e eu trazia sempre quatro lenços que passava do bolso esquerdo para o direito quando estavam molhados.
Dirigimo-nos cheios de precauções para a árvore de flores amarelas, como se caminhássemos para um ninho de cordonizes farejado por cães, mas o rinoceronte não se via. Percorremos toda a orla da floresta que estava cheia de excrementos frescos de rinoceronte mas não se descortinava nenhum. O sol baixava e começava a estar muito escuro para atirar, mas seguimos a floresta à volta da montanha, esperando ver algum rinoceronte nas clareiras. Quando era já tão escuro que seria quase impossivel disparar, vi Droopy parar e agachar-se. Com a cabeça baixa, fez-nos sinal para que avançássemos. Ao subirmos, vimos um rinoceronte grande e outro pequeno, em pé, metido nos arbustos, em frente de nós, do lado oposto a um pequeno vale.
— Uma fêmea com a cria — disse Pop em voz baixa. — Não pode alvejá-la. Deixe-me ver-lhe o chifre.
Tirou o binóculo a M’Cola.
— Ela vê-nos? — perguntou P. O. M.
— Não.
— A que distância estão?
— A umas quinhentas jardas.
— Meu Deus, conio ela é grande — murmurei.
— É uma grande fêmea — disse Pop. — Onde andará o macho? — Estava excitado e contente à vista da caça. — Está escuro de mais para atirar, a não ser que estejamos mesmo em cima dele.
Os rinocerontes tinham voltado as costas e pastavam. Parecia nunca se mexerem lentamente. Ou andavam precipitadamente ou estavam imóveis.
— De que é que estão tão vermei hos? — perguntou P. O. M.
— De se espojarem na lama — responden Pop. — É melhor irmos embora enquanto há luz.
Era sol-posto quando saímos da floresta e olhamos para a vertente e para a colina donde tínhamos estado a observar com o binóculo. Devíamos voltar pelo mesmo caminho, dcscer, atravessar a ravina, e voltar a subir, seguindo a pista, como tínhamos feito, mas decidimos imprudentemente cortar a direito através da encosta da montanha sob a borda da floresta. E, na escuridão, seguindo esta linha ideal, deseemos por ravinas profundas que só depois de as atravessarmos vimos que eram densas florestas; escorregando, segurando-nos aos ramos, caindo, levantando-nos e voltando a cair, cada vez descendo mais, depois subindo incrivelmente, ouvindo os ruidos nocturnos e a tosse dum leopardo cacando macacos; e eu receando as serpentes apalpava as raízes e os troncos com medo de alguma escondida.
Descendo e subindo ravinas de gatas e de cócoras e saindo depois à luz da lua, seguindo o longo contraforte escarpado da montanha que subíamos passo a passo, parando a cada instante, inclinados para a frente contra a vertente e a altitude, mortos de cansaço sob o peso das carabinas, em fila indiana, através da encosta, subindo sempre, até ao cume onde era mais fácil caminhar, a paisagem brilhando à luz da lua, depois descer e continuar o caminho através das pequenas serras, cansados, mas agora à vista das fogueiras com destino ao acampamento.
Depois sentámo-nos, agasalhados por causa do fresco da noite, à volta da fogueira, com um whisky e soda, esperando que nos anunciássem que a banheira de lona tinha um quarto de altura de água quente.
— Bathi, B’wana.
— Diabos me levem se volto a caçar assim outra vez — disseeu.
— Por mim, nunca pude — disse P. O. M. - Vocês é que me obrigaram.
— Tu sabias muito melhor que qualquer de nós. — Acha que podemos voltar a cacar assim, Pop?
— Talvez — disse Pop. — Acho que é apenas uma questão de resistência física.
— É o hábito de andar de carro que nos entorpece.
— Se fizéssemos um passeio como este, todas as noites, dentro de três dias não sentiríamos nada.
— Sim, mas se fizéssemos isto todas as noites, eu ficarei cheio de medo das serpentes durante um ano.
— Habituava-se.
— Não — disse eu. — Metem-me muito medo. Lembra-se da noite em que as nossas mãos se tocaram por detrás de uma árvore?
— Muito bem — disse Pop. — O senhor deu um salto de duas jardas. Tem realmente tanto medo delas ou é apenas conversa?
— Tenho-lhes um medo de morte — disse eu. — Sempre tive.
— Que é isso, homens — disse P. O. M. — Porque é que ainda não ouvi falar da guerra esta noite?
— Estamos cansados. Você esteve na guerra, Pop?
— Eu não — disse ele. — Onde está esse rapaz com o whisky? E chamoLi na sua voz cómica de falsete: — Kayti-Katy-ay!
— Bathi — disse Molo outra vez baixo, mas insistentemente.
— Muito cansado.
— Memsahib bathi — disse Molo com esperança.
— Eu vou — disse P. O. M. - Mas vocês dois despachem-se com as bebidas. Tenho fome.
— Bathi — disse Kayti a Pop com severidade.
— Toma tu o banho — disse Pop. — Não me maces.
Kayti desapareceu com um riso largo iluminado pela chama.
— Está bem. Está bem — disse Pop. — Uma bebida? — perguntou.
— Acabámos de beber — disse eu — e agora vamos bathi.
— Bathi, B’wana M’Kumba — disse Molo.
P. O. M. veio para o lume com o seu roupão azul e botas contra os mosquitos.
— Vamos. Podem beber outro depois do banho. A água está bela, barrenta e morninha.
— Eles tiranizam-nos — disse Pop.
— Lembras-te daquela vez em que caçámos nos montes e o teu chapéu voou e quase foi cair sobre um carneiro? — pergun-tei-lhe, com o whisky a levar-me as lembranças para Wyoming.
— Vai tomar banho — disse P. O. M. — Eu vou tomar um gimlet.
De manhã estávamos prontos antes do amanhecer, tomàmos o pequeno almoço e fomos cacar para a borda da floresta e para as ravinas profundas onde Droopy tinha visto os búfalos antes do nascer do sol. Mas não esta vani lá. A caçada durou muito tempo e voltámos para o acampamento e resolvemos mandar os camiões buscar carregadores e organizar uma expedição a pé até ao sítio onde julgávamos que havia água num regato que descia da montanha, para lá do lugar onde tínhamos visto os rinocerontes na noite anterior. Acampando lá, poderíamos caçar numa nova região ao longo da floresta e estaríamos muito mais perto da montanha.
Os camiões deviam trazer Karl do seu acampamento de caça aos kudus, onde parecia aborrecer-se ou desencorajar-se ou as duas coisas e podia descer até Rift Valley no dia seguinte e matar carne fresca e tentar apanhar um orix. Se encontrásse-mos um bom rinoceronte mandá-lo-iamos chamar. Não queríamos atirar ali onde estávamos, a não ser a rinocerontes, para não os assustar e precisávamos de carne. O rinoceronte parece um animal tímido e eu sabia de Wyoming, como a caça espan-tadiça deserta inteiramente de uma pequena região depois de um ou dois tiros, quer a região seja uma área aberta, um vale ou uma série de colinas. Planeamos tudo isto, Pop consultando Droopy e mandando depois os camiões com Dan para recrutar os carregadores.
À noitinha voltaram com Karl, o material e quarenta m’bulus, belos selvagens com um chefe pomposo que usava o único par de calções do grupo. Karl tinha emagrecido, a pele amarelada, os olhos cansados e parecía um tanto desanimado. Tinha passado oito dias no seu acampamento dos kudus, nas colinas, cacando muito, não tendo consigo ninguém que falasse inglês, e não tinham visto senão duas fêmeas, deixado fugir um macho. Os guias afirmavam ter visto um outro macho, mas Karl pensou que era um kongoni e não atirou. Estava aborrecido com isto e o grupo não vinha bem disposto.
— Não lhe vi os chifres. Não acredito que fosse um macho — dizia ele.
A caça ao kudu tornou-se um assunto irritante para eie e deixámos de falar nisso.
— Há-de apanhar lá um orix e ficará mais bem disposto — disse Pop. — Isto escangalhou-lhe um pouco os nervos.
— Karl aprovou o nosso plano de avançar para uma nova região, enquanto eie iria procurar carne.
Tudo o que quiserem — dizia ele. — Absolutamente tudo o que quiserem.
— Vai poder atirar — disse Pop. — E sentir-se-á melhor depois.
— NÓs apanharemos um rinoceronte. E depois apanhará você um. Aquele que o apanhar primeiro pode descer e cacar orixes. De resto você è capaz de descobrir um, amanhã, enquanto andar à porcura de carne.
— Tudo o que quiserem — dizia Karl.
Revia com mágoa, em espírito, os oito dias inúteis durante os quais tinha escalado as colinas em pleno calor, partindo antes da madrugada, voltando à noite, caçando um animal de cujo nome em swahili não podia lembrar-se, com guias em quem não tinha confiança, voltando para comer sozinho, sem ninguém com quem falar, a mulher a nove mil milhas e a três meses dele, e como estaria o cão e como iriam os seus negócios e que fossem para o diabo e o que ia acontecer se ele falhasse o tiro quando tivesse uma oportunidade, mas não falharia porque nunca se falha quando a coisa é verdadeiramente importante, disso estava certo, era um dos pilares da sua fé, mas que acontecería se ele se enervasse e falhasse e porque não vinham cartas, porque tinha o guia dito kongoni daquela vez, porque o tinha dito, ele tinha a certeza, mas de tudo isto não dizia nada, senão: «Tudo o que quiserem», um tanto desesperadamente.
— Vamos, homem, mais ânimo — disse-lhe eu.
— Sou cauteloso. O que é que pensa?
— Beba qualquer coisa, ande.
— Não quero beber. Quero um raio de um bom kudu. Mais tarde, Pop disse:
— Acho que ele se desembaraçará bem sozinho sem ninguém a instigá-lo ou a a maçá-lo. Tudo se arranjará. Ele é um bom tipo.
Quer que as pessoas lhe digam exactamente o que há-de fazer e que ao mesmo tempo o deixem sozinho e não o inco modem — disse eu. — É o diabo para eie atirar diante de alguém. Não é um exibicionista como eu.
— Mas deu um lindo tiro naquele leopardo — disse Pop
— Dois — disse eu. — O segundo foi tão bom como o primeiro. Que raio, ele tem pontaria. Àquela distância era capaz de nos deitar abaixo os calções a nós. Mas enerva-se e eu aborreço-o tentando animá-lo.
— Oh! Vai um pouco longe de mais, às vezes — disse Pop.
— Pois sim! Mas eie conhece-me. Sabe o que penso dele. Não se importa.
— Eu continuo a pensar que se desembaraçará sozinho — disse Pop. — É apenas uma questão de confiança em si próprio. É realmente bom atirador.
— Que raio, ele tem até agora o melhor búfalo, o melhor antílope, e o melhor leão — disse ele. — Não há razão para se aborrecer.
Memsahib tem o melhor leão, meu caro. Não tenho dúvi-das sobre isso.
— Estou contente com isso. Mas ele tem um belíssimo leão e um grande leopardo. Tudo o que tem encontrado é bom. E temos muito tempo. Não há razão para se preocupar. Porque anda tão mal encarado ?
— Partiremos cedo amanhã de manhã para chegarmos antes que faça muito calor para Memsahib.
— Ela é quem está mais em forma de todos nós.
— É estupenda, é como um pequeno fox-terrier.
Saímos nessa tarde e observámos a região pelo binóculo, do alto das colinas, sem ver nada. À noite, depois do jantar, ficá-mos na tenda. P. O. M. não gostou nada de ter sido comparada a um fox-terrier. Se tinha que se parecer com um cão, e isso não Ihe agradava muito, preferia ser como um lobo da serra, um animal magro, rápido, de pernas grandes e decorativo. A sua coragem era tão expontânea, tão natura! que nunca pensava no perigo; além disso o perigo estava nas mãos de Pop e ela tinha por Pop uma completa, lúcida e confiante adoração. Pop representava-se-lhe o seu ideal de homem, corajoso, amável, alegre, nunca perdendo a calma, nunca se gabando, nunca se queixando, a não ser por brincadeira, tolerante, comprensivo, inteligente, bebendo um pouco de mais corno devem fazer todos os verdadeiros homens e, na sua opinião, encantador.
— Não achas Pop encantador?
— Não — dizia eu. — Droopy é que é encantador.
— Droopy é bonito. Mas não achas que realmente Pop é encantador?
— Oh! Não. Gosto dele como de qualquer outro homem, mas macacos me mordam se o acho encantador.
— Eu acho que ele tem uma bonita figura. Mas tu compreen-des o que sinto por eie, não compreendes?
— Naturalmente. Eu próprio gosto muito desse malandro.
— Mas não o achas bonito, realmente?
— Não.
E um pouco depois:
— Bern, quem é então bonito para ti?
— Belmonte e Pop. E tu.
— Não sejas patriota — disse eu. — Quem é uma mulher bonita?
— Garbo.
— Já não é. Agora é Josie e Margot.
— Sim, são. Eu sei que não sou.
— Tu és encantadora.
— Falemos do Sr. J. P. Não gosto que lhe chames Pop. Não é dignificante.
— Nos não fazemos cerimónias um com o outro.
— Sim, mas eu faço cerimónia com ele. Não o achas um encanto?
— Sim, e não preciso de 1er livros escritos por uma mulher a quern ajudou a arranjar editor para dizer que ele é um chato.
— Ela não passa de uma invejosa, uma maliciosa. Nunca a dévias ter ajudado. Há quem nunca te perdoe isso.
— É uma pena, com o talento que tem, deixar-se dominar pela maldade, pela tolice e pela vaidade. É realmente uma pena. Uma pena uma pessoa não a ter conhecido antes disso. Sabes uma coisa engraçada: nunca será capaz de escrever diálogos. É tremendo. Aprenden a fazê-los comigo e usou-os nesse livro. Nunca tinha escrito assim antes. Nunca pôde esquecer que aprendeu comigo e tern medo que as outras pessoas dêm porisso; eis porque me ataca. É uma história engraçada, realmente. Mas juro que era tremendamente interessante antes de ter ambições. Ter-me-ia agradado antes, asseguro-te.
— Talvez, mas não acredito – disse P. O. M. – Entendemo-nos bem, apesar de tudo, não é? Sem toda essa gente.
— Com mil diabos, é verdade. E cada ano melhor, tanto quanto posso lembrar-me.
— Mas não é o Sr. J. P. um encanto? De verdade?
— Sim. É um encanto.
— Oh! És muito gentil dizendo isso. Pobre Karl.
— Porquê?
— Sem a mulher.
— Sim — disse eu. — Pobre Karl.
~ CAPÍTULO QUARTO
De manha partimos outra vez à frente dos carregadores e subimos, deseemos, atravessámos colinas, através do vale de florestas, voltámos a subir e a atravessar uma longa planície da região com erva alta que tornava o andar difícil, a subir, a descer e a atravessar, descansando de vez em quando à sombra de uma árvore e outra vez subir, descer, atravessar, sempre pelo meio da erva alta na qual agora era preciso abrir caminho sob um sol ardente. Os cinco em fila indiana, Droopy e M’Cola cada um com uma grande espingarda, as sacas, as garrafas de água e os aparelhos fotográficos a tiracolo, todos a transpirar debaixo do sol, Pop e eu com as espingardas e Memsahib tentando caminhar como Droopy, com o chapén à banda, feliz de se ver em marcha, contente com a comodidade das suas botas, chegámos, por fim, a um maciço de árvores espinhosas, por baixo de uma ravina que descia de uma falda até à água e, encostando as carabinas às árvores, penetrámos na densa sombra deitandonos no chão. P. O. M. tirou os livros de uma das sacas e ela e Pop leram enquanto eu seguia o pequeno maciço da montanha que ia até ao riacho que saía da encosta; descobri uma pegada de leão ainda fresca e muitos túneis abertos pelos rinocerontes na erva alta que ultrapassava as nossas cabeças. Estava muito calor para voltarmos a subir a ravina arenosa e, satisfeito, encostei-me ao tronco de uma árvore e pus-me a 1er o Sebastopol de Tolstoi. É um livro de juventude e tem uma bela descrição de combate quando os franceses tomam o reduto. Pensei em Tolstoi e na grande vantagem que é para um escritor a experiência da guerra. É um dos mais importantes assuntos e certamente - um dos mais difíceis de tratar seriamente; os escritores que não passaram por ela invejam os outros, embora pretendam mostrar que isso não tem importância ou que é uma coisa anormal ou doentia, quando foi na realidade, uma coisa insubstituível que perderam. Depois Sebastopol fez-me pensar no Boulevard Sebastopol em Paris, no meu regresso de Strasburgo, em bicicleta, debaixo de chuva e nos carris escorregadios dos carros eléctricos, na sensação de deslizar no asfalto escorregadio e gordoroso, no pavimento, por entre o tráfico, debaixo de chuva, e no facto de aquela vez termos estado para ir morar nas águas-furtadas de um pavilhão em Notre Dame des Champs, num pátio com a serração (e o repentino gemer da serra, o cbeiro da serradura e o castanhciro por cima do telbado e a lanca que habitava a rés-do-chao) e as preocupaçoes de dinheiro desse ano (todas as minhas novelas devolvidas pelo correla que cbegava pela fenda da parta da serração, com cartas de recusa que nunca Ibes chamavam novelas, mas sempre ancdotas, argumentas, contos, etc. Nao as aceitavam e viviamos de aipos e bebiamos vinho de Cahors e água) e que lindas eram as fontes da Place de L’Observatoire (a água brilhante a escorrer sobre o bronze da crina dos cavalas e o bronze das patas e dos peitorais esverdeado pelo fino fluxo da água) e quando erigiram o busto de Flaubert no jardim do Luxemburgo no atalho que através dos jardins conduz à rua Soufflot (um homem em que nós acreditávamos, que amávamos sem o criticar, que ali estava em pedra, pesado, como um ídolo deva sar). Este não tinha assistido à guerra mas tinha visto a revolução e a Comuna e, uma revolução vale ainda mais se não nos tornámos fanáticos porque todos falam a mesma língua. A revolução é, como a guerra civil, a melhor guerra para um escritor, a mais completa. Stendhal assistiu a uma guerra e foi Napoleão que o ensinou a escrever. Ensinou toda a gente nesse tempo, mas nenhum outro aprendeu. Dostoievski tornouse alguém por ter sido enviado para a Sibéria. Os escritores são forjados pela injustiça tal como uma espada. Pergunto a mim mesnio se Tom Wolfe tivesse sido mandado para a Sibèria ou para Dry Tortugas, não se teria tornado um escritor, e isso não Ihe teria dado o senkido das proporçées, o choque necessário para Ihe cortar o excesso de palavriado. Talvez sim e talvez não. No fundo parece um melancólico como Camera. Tolstoi era pequeno. Joyce de estatura média e de olhos abertos. E aquela última noite, bêbedos com Joyce e a frase sem cessar que ele repetia de Edgar Quinet Fraîche et rose comme au jour de la bataille. Não me lembro exactamente. E quando o voltássemos a encontrar ele continuaria a conversa interrompida há três anos. É agradável ver um grande escritor da nossa época.
O que eu tinha a fazer era trabalhar. Não me importava especialmente com o que iria acontecer. Não tomava a minha vida a sério, a dos outros sim, mas não a minha. Todos pretendiam uma coisa que me não interessava a mim mas que teria, mesmo sem querer, se trabalhasse. Trabalhar era a única coisa que contava, a única que nos dá boa disposição e entretanto havia o raio da minha vida particular e eu havia de vivê-la onde e como me apetecesse. E o lugar onde a vivia agora agradava--me muito. O céu era mais belo que em Itália. Não, não. O céu mais lindo é o da Itália e o de Espanha e o de Michigan do Norte no Outono e, no Outono também, o do Golfo de Cuba. Havia céus mais bonitos que aquele; mas países é que não.
Tudo o que queria naquele momento era voltar para África. Ainda lá estávamos mas quando eu acordasse, durante a noite, ficaria estendido na cama, já a sentir saudades dela.
Agora, olhando pelo túnel de árvores do barranco para o céu coberto de nuvens brancas deslocando-se com o vento, gostava tanto do país que me sentia feliz como quando se acabou de estar com uma mulher que se ama verdaderamente, quando esvaziados, sentimos que qualquer coisa renasce dentro de nós e ali está; qualquer coisa que nunca se possili inteiramente e no entanto se possuiu naquele momento desejando-se sempre mais e mais, tê-la, vivê-la, possuí-la de novo eternamente, aquele eternamente que tão depressa acaba; deter o tempo, detê-lo tanto que depois se espera senti-lo mover-se, devagar a pouco e pouco no começo. Mas não se está só, porque se realmente a amamos com prazer e sem tragèdia, ela amar-nos-á para sempre; vá para onde for, ame quem amar, amar-nos-á a nós acima de tudo. E felizes aqueles que tenham amado uma mulher e um país, porque depois disto já a morte é indiferente. Agora, estando em África, eu ansiava possuí-Ia toda: a mudança das estações, a chuva sem necessidade de viajar, o desconforto indispensável para se chegar a esta realidade, o nome das suas árvores, dos seus pequenos animais e de todos os pássaros, conhecer a linguagem nativa e ter tempo para ficar ali viajando com vagar. Toda a vida gostei da natureza; a natureza é sempre melhor do que as pessoas. Das pessoas só posso gostar de poucas de cada vez.
P. O. M. dormia. Sempre foi bonita a dormir, dormindo sossegadamente, enrolada como um animal, mas sem aquele ar de morte que Karl tinha quando adormecido. Pop dormia também sossegadamente, com a alma aprisionada no corpo. O corpo já não Iba comportava. Tinha envelhecido e mudado, adelgaçando aqui, perdendo contornos, indiando ali, mas por dentro era novo e magro, alto e forte como quando perseguia leões na planície por baixo de Wami, e os papos debaixo dos seus olhos eram apenas exteriores. Assim eu via-o a dormir da maneira que P. O. M. o via sempre. M’Cola era um velho adormecido, sem história e sem mistério. Droopy não dormia; sentado nos calcanhares, esperava pelos carregadores.
Vimo-los de muito longe. Primeiro as caixas ultrapassando a erva alta, depois unía linha de cabeças atravessou uma curva e não se via senão a ponta duina lança ao sol. Depois chegaram a um cume e vi uma longa linha que avançava para nós des-viando-se demasiado para a esquerda e Droopy fez-lhes sinal para o nosso lado. Acamparam, e Pop recomendou-lhes silêncio e nós ficamos sob a barraca das refeições, confortavelmente sentados nas cadeiras. Nessa noite não cacamos nein vimos nada. Na manha seguinte não caçámos nem vimos nada e na noite seguinte a mesma coisa. Era muito interessante mas improfícuo. O vento soprava forte de leste e o terreno era cortado em pequenas filas de colinas muito próximas da floresta, de maneira que não se podia subi-las sem mandar à nossa frente, no vento, o odor humano que daria o alarme aos animais. À tarde não podíamos ver nada, nem nos sítios onde o sol batia, nem nas encostas de densa sombra nas colinas do oeste, atrás das quais o sol se punha à hora a que os rinocerontes saíam da floresta; e assim, à tarde, perdíamos todas as possibilidades na parte do oeste e naquela em que podíamos caçar não vimos nada. A carne foi-nos enviada do acampamento de Karl por carregadores que mandámos outra vez para trás. Chegaram trazendo uma quantidade de mantimentos, carne de gazela e de gnu, empoeirada e ressequida pelo sol e os carregadores contentes, agacharam-se à volta do lume, assando-a nos paus. Pop perguntava a si próprio porque teriam desaparecido os rinocerontes. Cada dia víamos menos e discutíamos sobre se seria por causa da lua cheia que eles comiam durante a noite e voltavam para a floresta antes do amanhecer, ou se sentiam o nosso cheiro ou ouviam os homens, ou se eram simplesmente tímidos e ficavam dentro da floresta ou o quê. Eu expiinha as teorias e Pop criticava-as com espírito, examinando-as umas vezes por delicadeza, outras com interesse, como a relativa à lua.
Fomos para a cama cedo e durante a noite choveu um pouco, não uma chuva autêntica mas um chuvisco das montanhas; - de manhã estávamos a pé antes do sol nascer e subimos ao cume do despenhadeiro ervoso, verdejante e escarpado que dominava o acampamento, a ravina do leito do rio e ficava oposto à encosta escarpada do riacho, - de onde podíamos ver todas as verteiltes e a orla da floresta. Ainda não tinha amanhecido quando voaram sobre nós alguns gansos e a luz era ainda muito cinzcnta para que se pudesse ver claramente a orla da floresta através do binóculo. Tínhamos batedores de atalaia nos três eûmes da montanha e esperávamos que houvesse luz suficiente para os vermos se nos fizessem sinal.
Então Pop disse:
— Olhe para esse diabo - e gritou a M’Cola para que trouxesse as espingardas. M’Cola foi aos saltos pela montanha abaixo, e através do riacho, mesmo no lado oposto ao nosso, surgiu um rinoceronte a correr, num trote ligeiro, pela parte de cima da margem. Quando o observámos apressou o passo e veio, em trote rápido, perpendicularmente à beira da estrada. Era de um vermelho sujo, o chifre muito visível e não havia nada de pesado nos seus deliberados e rápidos movimentos. Ao vê-lo, senti-me excitado. - Vai atravessar o regato - disse Pop. - Está ao alcance do tiro.
M’Cola pôs-me a Springfield nas mãos e abri-a para me certificar de que estava carregada. O rinoceronte estava agora fora da minha vista mas distinguia-se o agitar das ervas altas.
— A que distância julga que possa estar?
— A umas trezentas jardas.
— Hei-de apanhar esse malandro.
Conservei-me àlerta procurando deliberadamente acalmar--me, fazendo cessar a excitação como quem fecha uma válvula, entrando naquele estado impessoal que se atinge ao fazer a pontaria.
O animal surgiu no regato baixo e pedregoso. Naquele momento apenas pensava em que era perfeitamente possível alvejá-lo mas que para isso era necessário alcançá-lo e ultra-passá-lo; alcancei-o, ultrapasseio-o e disparei. Ouvi o ruído da bala e como o animal seguia a trote, esta pareceu explodir mais à frente. Com um resfolgar sibilante caiu prostrado, esparrinhando água e roncando. Disparei de novo, levantando uma pequena coluna de água atrás dele; e como tentasse escaparse para a relva, voltei a disparar.
- Piga - disse M’Cola. - Piga.
Droopy aprovou.
— Feriu-o? - disse Pop.
— Absolutamente - disse eu. - Julgo que já cá canta.
Droopy correu; carreguei a espingarda e corri atrás dele. Metade dos homens do acampamento estavam espalhados pelas colinas gesticulando e gritando. O rinoceronte tinha-se dirigido precisamente para baixo do lugar onde eles se encontravam e subia o vale em direcção ao sítio onde este se perdia na floresta.
Pop e P. O. M. chegaram. Pop com a sua grande carabina e M’Cola com a minha.
— Droopy vai seguir as pegadas - disse Pop. - M’Cola jura que o senhor o atingiu.
— Pigal - disse M’Cola.
— Resfolgava como uma máquina a vapor - disse P. O. M. - Não era maravilhoso a correr?
— Ia atrasado para o almoço - disse Pop. - Tem a certeza de que o feriu ? Foi um tiro bastante comprido.
— Sei que o atingi. Tenho a certeza absoluta de o ter morto.
— Se o matou não o diga a ninguém - disse Pop. - Nunca o acreditarão. Olhe! Droopy encontrou sangue.
Em cima, na erva alta, Droopy mostrava-nos alguns rebentos de erva. Depois, curvado seguili rapidamente o rasto de sangue.
— Piga - disse M’Cola. - M’uzuri!
— Nós vamos ficar em baixo para ver se eie foge - disse Pop. - Olhe para Droopy.
Droopy tinha tirado o seu fez e segurava-o na mão.
— É esta a única precaução de que ele precisa - disse Pop. - Trazemos duas espingardas de grande calibre e Droopy lança--se à busca do bicho com uma peca do vestuário a menos.
Por baixo de nós Droopy e o companheiro que com ele seguia a pista pararam. Droopy levantou a mão.
— Oiivem-no - disse Pop. - Vamos.
Dirigimo-nos para junto dele. Droopy aproximou-se de nós e falou a Pop.
— Está lá dentro - murmurou Pop. - Eles ouvem os pássaros. Um dos negros diz que sente também o «faro». Vamos andar contra o vento. Passe para a frente com Droopy. Memsahib que venha atrás de mim. Pegue na carabina grande. Muito bem.
O rinoceronte estava na erva alta, atrás de qualquer moita. Enquanto avançávamos, ouvimos um roncar surdo, quase um gemido. Droopy voltou-se para mim e sorriu. O ruído voltou a ouvir-se, terminando desta vez como que num suspiro sufocado pelo sangue. Droopy ria. «Faro», disse baixinho pondo a mão aberta encostada à face num gesto que significava adormecer. Vimos depois levantar-se um pequeno bando de carreiros de bico aguçado que passaram num voo sacudido. Nós sabíamos onde estava o animal e ao aproximarmo-nos, lentamente, abrindo passagem pelo mato alto, descobrimo-lo. Estava morto, caído sobre um dos flancos.
— É melhor atirar-Ihe mais uma vez para ter a certeza - disse Pop.
M’Cola deu-me a Springfield que trazia. Verifiquei que estava carregada. Olhei para M’Cola, furioso com ele, ajoelhei-me e disparei sobre o rinoceronte no ponto vulnerável. Não se mexeu. Droopy apertou-me a mão e M’Cola também.
— Ele trazia carregada esta maldita Springfield - disse eu a Pop. - Uma espingarda carregada atrás de mim põe-me fora dos eixos.
Isso pouco importava a M’Cola. Sentia-se extremamente feliz, acariciava o chifre do rinoceronte, media-o com os dedos estendidos, procurava o buraco, da bala.
— Está no lado sobre que caiu - disse eu.
— Devia tê-lo visto quando protegía a mamã - disse Pop. - Era por isso que tinha a espingarda carregada.
— Ele sabe manejá-la?
— Não - disse Pop - mas dispararia.
— Acertava-me nos calções - disse eu. - Grande romântico.
Quando chegou o grupo todo voltámos o rinoceronte de forma a ficar como que na posição de ajoelhado e cortámos a erva em volta para tirarmos fotografias. O buraco feito pela bala era bastante ao cimo do dorso, um pouco atrás dos pulmões.
— Foi um tiro estuporado - disse Pop. - Um tiro, estuporado. Nunca diga a ninguém como foi.
— Tem que me dar o certificado.
— Isso far-nos-ia passar os dois por mentirosos. Há animais muito esquisitos, não há?
Este ali estava com a sua comprida carcaça, pesados flancos, de aspecto pré-histórico, a pele como borracha vulcanizada e vagamente transparente, com a cicatriz de uma ferida causada por uma cornada e depois picada pelos pássaros, a cauda grossa, redonda e aguçada, carraças de mil patas formigando-lhe no corpo, as orelhas franjadas de pêlos, olhinhos de porco, com musgo na base do chifre que Ihe saía da parte da frente do focinho. M’Cola olhava para ele e meneava a cabeça. Concordei com ele. Era um animal dos diabos!
— Que tal é o chifre?
— Não é mau - disse Pop. - Mas nada de extraordinário.
— Foi um tiro formidável o que você Ihe deu, meu caro.
— A4’Cola ficou contente com eie - disse eu.
— Tu mesmo também ficaste bastante contente — disse P. O. M.
— Estou louco de satisfação - disse eu. - Mas não me deixes ir por aqui fora. Não faças caso do que eu penso sobre o assunto. Posso acordar e pensar nisto qualquer noite.
— E é também um bom batedor e um atirador danado para o voo - disse Pop. - Conte-nos o resto.
— Deixem-me em paz. Só disse isso uma vez que estava bêbe-do.
— Uma vez! - disse P. O. M. - Não nos conta ele isto todas as noites?
— Que diabo, sou um bom atirador no voo.
— Tem graça - disse Pop. - Nunca daria conta disso. E o que é que você sabe fazer mais?
— Ora vá pr’ó Diabo!
— Temos que não o deixar compenetrar-se do belo tiro que fez, quando não ficará insuportável - disse Pop a P. O. M.
— Eu e M’Cola, é que nos entendemos - disse eu.
M’Cola aproximou-se. - M’uzuri, B’wana - disse. - M’uzurisana.
— Ele pensa que você fez de propósito - disse Pop.
— Nunca Ihe diga o contràrio.
— Piga m’uzuri - disse M’Cola. - M’uzuri.
— Estou convencido de que ele reage exactamente como você - disse Pop.
— É men amigo.
— Acredito que sim, sabe? - disse Pop.
De regresso ao acampamento, atrvés do mato, fiz bruscamente um tiro de fantasia a um gamo, à distância de cerca de duzentas jardas, quebrando-lhe a coluna vertebral à altura do pescoço. M’Cola ficou muito contente e Droopy encantado.
— Temos que Ihe pôr cobro - disse Pop a P. O. M. - Sinceramente: para onde apontou você?
— Para o pescoço - menti.
Tinha apontado em cheio para o centro dos quartos dianteiros.
— Foi um lindo tiro - disse P. O. M.
A bala tinha feito um ruído, ao entrar no animal, como uma pá de baseball contra uma bola puxada e o gamo caíra sem um movimento.
— Estou a ver que é um mentiroso danado - disse Pop.
— Nós, os grandes atiradores, nunca somos apreciados. Temos que esperar até irmos embora.
— A sua ideia de ser apreciado traduz-se em que o levemos aos ombros - disse Pop. - O tiro ao rinoceronte subiu-lhe à cabeça.
— Muito bem. Daqui por diante, repare. Que diabo, tenho sempre atirado bem.
— Parece que me estou a lembrar duma certa gazela de Grant...
Pop estava a entrar comigo. Também eu me lembrava. Tinha seguido uma, muito bela, através de toda a região, depois de uma série de aproximações frustradas debaixo do calor; depois rastejara até uma termiteira para atirar a uma que não era tão bela; repousei sobre a termiteira; falhei a cinquenta jardas; vi-a de pé diante de mim, absolutamente imóvel, ventas no ar, e atin-gi-a no peito. Caiu para trás, e quando me ia a aproximar deu um salto e fugiu estrebuchando. Sentei-me e esperei que parasse. Quando o fez, visivelmente fetida, apontei para o pescoço, lenta e cuidadosamente, falhando oito vezes seguidas, teimoso, numa raiva crescente, sem nada rectificar, visando sempre o mesmo sítio e sempre da mesma maneira, por entre as risadas dos pretos que carregavam as espingardas e os do camião e na presença de P. O. M. e Pop silenciosos; e eu, ali sentado, preso dum furor frió, obstinado, insensato, antes decidido a quebrar--Ihe o pescoço do que a levantar-me, arriscando-me a lançá-la de novo na planície coberta dum vapor quente, ardendo ao sol em pleno meio-dia. Ninguém pronunciara uma só palavra. Estendi a mão a M’Cola para que me desse mais cartuchos; voltei a disparar cuidadosamente, falhei e à décima vez quebrei-lhe o estupor do pescoço. E voltei-lhe as costas sem a olhar.
— Pobre papá - disse P. O. M.
— É a luz e o vento - disse Pop. Nessa altura ainda não nos conhecíamos muito bem. - As balas caíam todas no mesmo sítio. Via-as levantar a poeira.
— Portei-me como um imbecil chapado - disse eu.
Mas, enfim, agora podia disparar.
Até então e ajudado pela sorte, a coisa tinha ido menos mal.
Ao chegarmos à vista do acampamento, começámos a gritar. Ninguém apareceu. Por firn, Karl saiu da sua tenda. Quando nos viu voltou a entrar e depois saiu outra vez.
— He! Karl - gritei-lhe.
Agitou o braço e voltou a entrar outra vez. Depois veio ao nosso encontro. Tremia de enervamento e reparei que tinha lavado sangue das mãos.
— O que é?
— Um rinoceronte - disse ele.
— Houve alguma novidade?
— Não. Matei-o.
— Bravo. Onde está?
— Lá em cima. Debaixo daquela árvore.
Dirigimo-nos para lá. Lá estava a cabeça, acabada de cortar, dum rinoceronte que era um verdadeiro rinoceronte. Em tamanho tinha o dobro do que eu tinha morto, os olhinhos fechados e, corno que uma lágrima, uma pequena gota de sangue fresco num deles. A cabeça era uma enorme massa e o chifre descrevia uma graciosa curva para trás. A pele tinha uma polegada de espessura no sítio onde se estendia em forma de capa por detrás da cabeça e no sítio onde estava cortada era branca corno uma talhada de coco acabado de abrir.
— Quanto mede o chifre? Umas trinta polegadas? - Qual quê? - disse Pop. - Nada de trinta polegadas.
— Mas é um belíssimo animal, sr. Jackson - disse Dan.
— Isso é. Belíssimo - disse Pop.
— Onde o encontrou?
— Mesmo junto do acampamento.
— Estava de pé, numas sebes. Ouvimo-lo grunhir. - Julgá-vamos que era um búfalo - disse Karl.
— É um belíssimo animal - repetiu Dan.
— Estou contentíssimo por você o ter morto - disse eu.
E ali estávamos os três, desejosos de o felicitar, resolvidos a mostrarmo-nos bons desportistas, diante deste rinoceronte cujo chifre era muito maior do que o do nosso, esta enorme maravilha de rinoceronte de lágrima no olho, este rinoceronte morto e de cabeça cortada e - em lugar disto - falávamos todos como pessoas que estivessem num barco prestes a enjoar ou que acabassem de sofrer perdas consideráveis de dinheiro. Sentiamo-nos envergonhados, sem nada podennos fazer para modificar a situação. Tinha vontade de dizer qualquer coisa amável e cordial e em lugar disso perguntei:
— Quantos tiros Ihe deu?
— Não sei. Não contámos. Cinco ou seis, parece-me.
— Julgo que cinco - disse Dan.
O pobre Karl, diante destes três sorumbáticos felicitadores, começava a sentir fugir-lhe a alegria de ter morto um rinoceronte.
— Também matamos um - disse P. O. M.
— Óptimo - disse Karl. - É maior do que este?
— Nada disso. É um pigmeu miserável.
— Que pena - disse Karl.
Exprimia com simplicidade o seu pesar sincero.
— Porque diabo havia você de estar desolado com um rinoceronte como este? Caramba, é um belíssimo animal! Vou buscar a máquina para Ihe tirar algumas fotografias.
Fui buscar a máquina. P. O. M. tomou-me o braço e caminhou junto de mim.
— Papá, por favor, procure portar-se como um ser humano - disse eia. - Pobre Karl. Está a torná-lo terrivelmente infeliz.
— Bem sei - disse eu. - Faço o possível por não me comportar desta forma.
Pop estava lá. Abanou a cabeça.
— Nunca me senti tão repugnante - disse eie. - Mas era como um pontapé no estômago. No fundo estou encantado, evidentemente.
— Também eu - disse. - Preferia que ele tivesse maior êxito do que eu. Bem sabe. Sinceramente. Mas porque é que não abateu ele simplesmente um modesto rinoceronte duas ou três polegadas maior do que o meu. Porque é que havia de acontecer ter encontrado um que faz parecer ridículo o meu? Torna-se grotesco o nosso.
— Pode lembrar-se sempre deste tiro.
— Que vá para o diabo o tiro. Foi uma sorte danada. Caramba, que lindíssimo rinoceronte.
— Vamos, acalmemo-nos e procuremos portar-nos com ele como pessoas civilizadas.
— Fomos ordinários - disse P. O. M.
— Eu sei. E estive todo o tempo a tentar ser simpático. Bem sabem que estou satisfeito com o êxito dele.
— Não há dúvida que você foi simpático. Ambos - disse Pop. - Mas você viu M’Cola? - perguntou Pop.
M’Cola olhara para o rinoceronte, meneara a cabeça e fora--se embora.
— É um lindo rinoceronte - disse P. O. M. - Devemos portarlos decentemente e fazer com que Karl esteja bem disposto.
Mas era tarde demias. Não podemos fazer com que Karlse sentisse bem disposto e durante muito tempo não nos podemos, nós também, sentir bem dispostos. Os carregadores chegaram com a carga ao acampamento e vimo-los a todos e aos da nossa equipa, dirigirem-se ao lugar onde o rinoceronte jazia à sombra. Todos nos conservávamos silenciosos. Só o esfolador estava encantado por ver no acampamento uma tão bela cabeça de rinoceronte.
— M’uzuri sana - disse para mim. E media o chifre percorrendo-o com a mão estendida. - Kubwa sana!
— N’Dio. M’uzuri sana - concordei.
— B’wana Kabor matou-o?
— Matou.
— ìM’uzuri sana
— Sim - concordei. - M’uzuri sana.
O esfolador era o único «gentleman» do grupo. Durante a expedição tínhamos procurado nunca entrarmos em competição. Karl e eu estabeleceramos deixar-nos mùtuamente a melhor oportunidade naquilo que surgisse. Tinha por ele uma grande e sincera estima e Karl, sem sombra de egoísmo, estava sempre pronto a sacrificar-se. Eu sabia que era melhor atirador que ele e que lhe levava a palma como batedor e no entanto era ele que regularmente acumulava troféus que tornavam os meus irrisórios. Fora ele quem disparara alguns dos piores tiros da caçada e eu tinha apenas disparado mal duas vezes durante a expedição - àquela gazela e a uma abetarda na planície - e no entanto ele levava-me a palma em tiros que se podiam mostrar. Durante algum tempo o caso serviu-nos de brincadeira e eu sabia que tudo se comporia. Mas o facto é que não se compôs. Na caça ao rinoceronte eu chegara primeiro à região. Mandávamo-lo procurar carne enquanto penetrávamos num novo sector. Não o tratámos mal mas também não o tratámos muito bem e, no entanto, conseguia vencer-me. E não só ven-cer-me, o que não me incomodava, mas fazer com que o meu rinoceronte parecesse tão pequeno que já não o podia conservar na mesma pequena cidade onde vivíamos. Tinha-o reduzi-do a nada. Podia recordar o tiro que o abateu e esse ninguém mo podia tirar, a não ser que, por ter sido de tal forma maravilhoso - e a despeito da escndalosa confianca em mim próprio - eu viesse, mais tarde ou mais cedo, a considerá-lo como uma pura obra do acaso. O facto é que o velho Karl nos tinha «levado» com o seu rinoceronte. Agora, estava na sua tenda a escrever uma carta.
Debaixo do toldo, Pop e eu discutíamos o que devíamos fazer.
— Seja como for, matou o seu rinoceronte - disse Pop. - Isso dá-nos tempo. Mas voce não pode ficar-se por este.
— Não.
— Esta região já não vale nada. Há qualquer coisa que não bate certo. Droopy diz que conhece uma boa região a três horas de camião daqui e cerca de uma hora mais, com os carregadores. Podemos partir para lá esta tarde com pouco material, mandar para trás os camiões, e Karl e Dan podem descer a M’uto Umbu a caçar o seu orix.
— Óptimo.
— Ele tem também a possibilidade de encontrar um leopardo na carcaça daquele rinoceronte esta tarde ou amanhã de manhã. Dan diz que ouviram um. Procuraremos descobrir um rinoceronte nessa região de Droopy e depois irá ter com ele para caçar kudus. Temos que reservar muito tempo para isso.
— Óptimo.
— Mas se não encontrar lá um orix, encontra outro em qualquer parte.
— Mesmo que não encontre nenhum, não faz mal. Ficará para outra vez. O que eu quero é um kudu.
— Há-de ter um. Pode ter a certeza.
— Antes queria ter um - um bom - que tudo o resto. Quero lá saber de rinocerontes; só me interessa o prazer de os caçar. Mas gostaria de encontrar um que não parecesse ridículo ao lado do rinoceronte maravilhoso dele.
— Absolutamente de acordo.
Demos parte disto a Karl que disse:
— De acordo com tudo. Com certeza. Faço votos para que mate um duas vezes maior.
Disse-o com sinceridade. Sentia-se agora mais bem disposto e nós também.
~ CAPÍTULO QUINTO
Quando ncssa tarde chegámos à região de Droopy, depois de termos caminhado debaixo do sol escaldante através de colinas de terra vermelha cobertas de arbustos acerados, pare-ceu-nos desolada. Ficava na extremidade duma zona onde todas as árvores tinham marcas de terem sido tratadas contra a mosca tsé-tsé. E, do lado oposto do acampamento, havia uma aldeia indígena suja e poeirenta. O solo era vermelho e desgastado pela erosão, dando a impressão de estar a ser levado pelo vento. Assentámos o acampamento debaixo de ventania à escassa sombra de algumas árvores secas, no flanco de uma colina dominando um regato e a aldeia de lama. Antes de anoitecer seguimos Droopy e dois guias da região e depois de ultrapassar a aldeia, fizemos uma longa escalada até ao cimo duma crista rochosa que dominava um vale fundo, quase uma garganta. Do outro lado viam-se ravinas acidentadas que desciam a pique para a garganta. Nas ravinas havia árvores copadas e desfiladeiros atapetados de erva nas cristas que os separavam; por cima, a espessa floresta de bambus da montanha. O desfiladeiro descia até ao vale do Rift dando a ilusão de estreitar na extremidade cortada pelo paredão. Para lá, por cima das cristas atapetadas de erva e das ladeiras, ficavam as colinas cobertas de densa floresta. Era uma região dos diabos para caçar.
— Se vir alguma coisa lá no fundo, tern que largar por aí abaixo até ao desfiladeiro. E depois subir uma destas ladeiras e atravessar o diabo destas ravinas. Perde a cacça de vista e mata--se a subir. É muito inclinado. É o mesmo género de ravinas de aspecto inocente em que caímos outro dia ao regressar ao acampamento.
— Isto apresenta-se mal – concordou Pop.
– Cacei veados numa região parecida. A vertente sul do Timber Creek, em Wyoming. As vertentes são todas inclinadas demais. É o diabo. São demasiadamente escarpadas. Anianhã é que vão ser elas.
P. O. M. nada disse. Pop é que nos levou ali e Pop é que de lá nos tiraria. Tudo o que a ela lhe interessava era ver se as botas lhe não magoavam os pés. Nesse momento magoavam-na um pouco e isso era a sua única preocupação.
Eu continuel a espraiar-me sobre as dificuldades do terreno e, na escuridão, regressámos ao acampamento todos sorumbáticos e cheios de má vontade contra Droopy. A fogueira, viva, ardia ao vento; sentámo-nos e pusemo-nos a olhar a lua que se erguia e a ouvir as hienas. Depois de termos bebido uns copos já não nos sentíamos tão pessimistas acerca da região.
— Droopy jura que é boa – disse Pop. – No entanto, não era aqui que devíamos vir, disse ele. Era a um outro sítio mais adiante. Mas ele afiança que este é bom.
— Adoro Droopy – disse P. O. M. – Tenho, absoluta confiança em Droopy.
Droopy aproximou-se da fogueira com dois indígenas armados de lanças.
- O que é que ele soube? – perguntei eu.
Os indígenas começaram a falar e depois Pop disse:
— Um destes desportistas afirma que foi hoje perseguido por um enorme rinoceronte. Claro que qualquer rinoceronte no momento de atacar parece sempre enorme.
— Pergunte-lhe de que tamanho era o chifre.
O indígena mostrou que o chifre era do tamanho do seu braço. Droopy sorriu.
— Diga-lhe que se vá embora – disse Pop.
— Onde é que isso tudo aconteceu?
— Oh, num sitio lá para cima – disse Pop. – Você sabe, ali em cima. Quem vai para cima. Onde estas coisas acontecen! sempre.
— Entendido. Exactamente onde pretendemos ir.
— O que é animador é o facto de Droopy não estar desanimado – disse Pop. – Parece muito confiante. Afinal de contas a ideia é dele.
— Pois é; mas nós é que temos de trepar.
— Vamos animá-lo? – disse Pop a P. O. M. – Vai comunicar--me o seu desânimo.
— Vamos gabar-lhe os seus dotes de atirador?
— A noite vai ainda pouco adiantada. Não estou desanimado. Já conhecia este género de terreno. Afinal de contas vai ser bom para nós. Vai abater-lhe um bocado da barriga, meu caro.
No dia seguirne vi que me tinha redondamente engañado sobre a região.
Tomámos o pequeno almoço ainda de noite e partimos antes do nascer do sol, trepando em fila indiana a colina que ficava por detrás da aldeia. À frente ia o guia local com uma azagaia na mão, depois Droopy com a minha espingarda mais pesada e uma garrafa de água, depois eu com a Springfield, Pop com a Mannlicher, P. O. M. feliz, como sempre, por não levar nada, M’Cola com a espingarda pesada de Pop e outra garrafa de água e finalmente dois cidadãos do sítio com lanças, sacos com agua e uma caixa com o almoço. Tínhamos resolvido descansar lá no alto durante o calor do meio-dia e não voltar antes da noite. Foi uma subida aprazível, pela frescura da manhã, bem diferente da árdua escalada do mesmo caminho na véspera, ao pôr-do-sol, quando os rochedos e a poeira reflectiain o calor do dia. O caminho era também usado regularmente pelo gado e a poeira estava reduzida a pó seco, então um pouco humedecida pelo orvalho. Havia numerosas pegadas de hiena e, quando o caminho ia dar a uma crista de rochedos cinzentos que permitía abranger com a vista os dois lados da ravina e depois se prolongava pela parte superior do desfiladeiro, vimos excrementos frescos de rinoceronte em cima de uma carnada de terra mole sob os roche-dos.
— Acabou de passar – disse Pop. – Devem deambular por aqui durante a noite.
Em baixo, no vértice do desfiladeiro, podíamos ver as copas das árvores altas e, num espaço aberto, o brillio das aguas. Do outro lado ficavam as ladeiras a pique e as ravinas que examináramos na noite anterior. Droopy e o guia local, o que tinha sido perseguido pelo rinoceronte, falavam baixinho. Depois meteram-se por um caminho muito inclinado que contornava em curvas apertadas o flanco do desfiladeiro.
Parámos. Não tinha visto que P. O. M. mancava e, de súbito, estabeleceu-se uma destas discussões a meia-voz, cheia de acrimónia familiar, em que cada um tem razáo, historiando os insuportáveis sapatos e botas do passado e, forçosamente sobre os que magoam.
Para remediar o mal cortei a biqueira dos grossos soquetes de lã que ela usava por cima das meias vulgares e depois, descalçando completamente os soquetes, as botas deixaram de magoar. A descida duma ladeira íngreme fazia com que essas botas de caça, espanholas, ficassem demasiadamente curtas na biqueira. Havia entre nós uma antiga discussão acerca do com-primento das botas e sobre saber se o sapateiro – do quai eu tomara o partido, primeiro sem disso me aperceber, como simples intérprete e finalmente adoptando patriótica e logicamente, pensava eu, a sua teoria como um todo – tinha resolvido o problema fazendo as botas mais compridas no lado do tacão. Mas o facto é que elas magoavam – lógica irrefutável – e eu não podia modificar isto declarando que o calçado de homem, quando novo, magoava sempre, durante as primeiras semanas, até se amoldar aos pés. Agora, descalçados os grossos soquetes, avançando com cautela, exprimentando a pressáo do cabedal contra os dedos dos pés, terminara a questão. P. O. M. não tinha vontade de sofrer, mas de prosseguir e de agradar ao sr. J. P. e eu tinha vergonha de me ter mostrado imbécil numa discussão acerca de botas, de pretender ter tido razão contra a dor, de pretender ter tido simplesmente razão, de alguma vez ter pretendido ter razão. Pondo ponto final no assunto, ambos sorrimos da questiúncula; adiamos que tudo estava certo -incluindo as botas, agora muito mais confortáveis sem os gros-sos soquetes; detestei todos os palermas que pretenden! ter sempre razão – especialmente um amigo ausente americano -vendo que acabava de me excluir desta categoria e nunca mais voltaria a querer ter razão; e olhando para Droopy que ia à frente, deseemos os longos desfiladeiros das ravinas até ao fundo da garganta onde as árvores eram grandes e copadas e onde o solo, que de cima parecia uma apertada garganta, era suficientemente largo para dar passagem a um ribeiro orlado de vegetação.
Estávamos agora à sombra das árvores de largos troncos lisos cercados na base por raizes que subiam em cordões arredondados ao longo do tronco, como artérias; os troncos eram daquele amarelo-verde das florestas francesas num dia de inverno, depois da chuva. Mas estas árvores tinham ramos frondosos e compridos e, por baixo deles, no leito do regato, ao sol, juncos semelhantes a papiros cresciam bastos como o trigo e com a altura de doze pés. Havia uma pista de caça através da erva ao longo do ribeiro e Droopy estava curvado a examiná-la. M’Cola acercou-se também a olhá-la; seguiram-na durante uma pequena distância, pararam para a olhar mais de perto e regressaram de novo para junto de nós.
— Nyati – disse M’Cola a meia-voz. – Búfalo.
Droopy falou baixo para Pop e depois este disse calmamente, num murmúrio rouco, velado pelo whisky:
— São búfalos que desceram para ? ribeiro. Droopy diz que há machos grandes. Ainda não voltaram.
— Vamos segui-los – disse eu. – Antes quero apanhar um outro búfalo do que um rinoceronte.
— Teremos outras tantas oportunidades de encontrar também rinocerontes – disse Pop.
— Esta região parece magnífica, não acham? – disse eu.
— Esplêndida – disse Pop. – Quem o havia de dizer.
— As árvores são como nos quadros de André – disse P. O. M. – É simplesmente maravilhoso. Olhem para o verde. É Masson. Porque é que um pintor não vem ver esta região?
— E as tuas botas?
— Óptimas.
Seguindo a pista do búfalo, caminhávamos lentamente e sem ruído. Não havia vento e sabíamos que quando a brisa come-çasse viria do leste, do desfiladeiro em direcção ao sítio onde nos encontrávamos. Seguimos a pista ao longo do leito do rio e à medida que avançávamos a erva ia sendo mais alta. Duas vezes tivemos que nos deitar para rastejar e o canavial era tão espesso que não se via dois pés adiante de nós. Droopy encontrou também na lama excremento de rinoceronte. Começava a imaginar o que é que aconteceria se um rinoceronte surgisse de repente neste túnel e o que faria cada um de nós. Era excitante, mas a situação não me agradava. Era quase a mesma coisa do que estar metido numa ratoeira e além disso havia que pensar em P. O. M. Depois, como o ribeiro descrevia uma curva, – saí-mos das ervas altas para a margem – senti nitidamente o cheiro da caça. Eu não fumo e, cacando alces na América, na época do cio, várias vezes os pressenti pelo cheiro, antes de os ver, e posso por este meio localizar onde um veiho macho se acoita na floresta. O alce tem um forte cheiro almiscarado. É um odor forte mas agradável e eu conheço-o bem, mas este não.
— Cheira-me a eles – disse baixo para Pop.
Este acreditou.
— O que é?
— Não sei, mas o cheiro é muito forte. Não lhe cheira ?
— Não.
— Pergunte a Droopy.
Droopy abanou a cabeça e sorriu.
— Eles tomam rapé – disse Pop. – Não sei se têm bom olfacto.
Entrámos num outro leito de canas mais altas que as nossas cabeças, pousando cada pé silenciosamente antes de levantar o outro, caminhando tão lentamente como num sonho ou numa fita ao retardador. Distinguía nitidamente o cheiro de qualquer coisa, durante todo o tempo, umas vezes mais forte do que outras. Não estava a gostar nada daquilo. Agora estávamos perto da margem e, diante de nós, a pista da caca ia diretta a um lamaçal com canas mais altas do que todas as que tínhamos encontrado.
— Estão-me a cheirar perto como o diabo! – disse eu baixinho a Pop. – Fora de piada. Palavra.
— Acredito – disse Pop. – E se subíssemos à margem para bater este talhão.
— Acho bem. – Quando subimos, disse: – Estes monstros grandes metem-me medo. Não gosto de cacar em terreno como este.
— Gostaria de caçar aqui elefantes? – disse Pop em baixa.
— Era coisa que eu não faria.
— Caçam realmente elefantes em erva como esta? – perguntou P. O. M.
— Caçam – disse Pop. – Sobe-se para os ombros de outra pes-soa para atirar.
Gente mais corajosa do que eu, pensei. Eu não o faria.
Seguimos a margem direita, coberta de ervas, assente numa espécie de prateleira, agora a descoberto, examinando uma depressão cheia de grandes canas secas. Mais longe, na margem oposta, havia árvores copadas e, por cima délas, a subida a pique do desfiladeiro. Desse sítio não se podia ver o ribeiro. Por cima de nós, à direita, ficavam as colinas com copadas árvores de fruto. Adiante, na extremidade do pântano de canas, as margens aproximavam-se e os ramos das grandes árvores quase cobriam o ribeiro. De repente Droopy apertou-me o braço e acocorámo-nos ambos. Passou-me para as mãos a carabina mais potente e agarrou na Springfield. Estendeu o braço e numa curva do rio vi a cabeça dum rinoceronte com um chifre enorme que me pareceu maravilhoso. Abanava a cabeça e pude ver-lhe os olhos de porco, o erguer das orelhas. Desarmei o aparelho de segurança e fiz sinal a Droopy para se baixar. Ouvi então M’Cola dizer: «Toto! Toto!», e agarrou-me o braço. Droopy dizia baixinho: «Manamonki! Manamouki! Manamouki!£, muito depressa; ele e M’Cola estavam cheios de medo que eu disparasse. Era uma fêmea com um filho, e quando ia baixar a carabina o animal soltou uni ronco, esmigalhou as canas e desapareceu. Não cheguei a ver o filho. Vimos as canas agita-rem-se por onde passavam e depois tudo regressou à quietude.
— Mas que pena – disse Pop. – Tinha um belo chifre.
— Estive mesmo para disparar – disse eu. – Não sabia que era uma fêmea.
— M’Cola viu o filho.
M’Cola falava baixo a Pop e abanava a cabeça com ar de importancia.
— Ele diz que há lá um outro rinoceronte – disse Pop. -Ouviu roncar.
— Vamos subir mais; podemos vê-los se aparecerem e atirar--lhes com qualquer coisa – disse eu.
— Boa ideia – aprovou Pop. – Talvez o macho lá esteja.
Subimos um pouco mais a margem do rio de onde podíamos abranger com a vista ? lago das canas mais altas e, coni Pop de espingarda aperrada, eu com a minha pronta a disparar, M’Cola atirou uni pau para o meio do canavial onde tínhamos ouvido o urro. Ouviu-se uni grunhir sibilante e nem uni só movimento no canavial. Depois sentimos um estalar mais distante e vimos ondular ? canavial coni qualquer coisa que fugia através dele para a margem oposta, mas não podíamos ver o que era que provocava este agitar de canas. Depois vi o dorso negro, os chifres bem separados erguidos em ponta e, em seguida, a corrida rápida dum búfalo saltando para a outra margem. De pescoço tenso, a cabeça pesada dos chifres, o cachaço vasto como o de um toiro de corridas, subia rápido. Fazia a pontaria para o sítio onde o pescoço entronca nos quartos dianteiros, quando Pop me interrompeu.
— Não é muito grande – disse calmamente. – NãO o mate, a não ser que precise da carne dele.
A mim parecia-me grande e agora lá estava ele com a cabeça levantada, de lado, com o focinho voltado para nós.
— A minha licença ainda me dá direito a mais três e já nos vamos embora desta região – disse eu.
— É uma carne excelente – disse Pop. – Vá lá. Mate-o. Mas esteja a postos com o bicho, logo que dispare.
Sentei-me e sentindo pesada e estranila a mim a grande carabina, visei os quartos do búfalo, apoiei o dedo e fiz força no cão sem disparar. Em lugar do esticão suave e contínuo da Springfield, com a branda e pronta fase final, o gatilho deu a impressão, ao disparar, de um metal batendo contra outro metal. Era como se se disparasse num pesadelo. Não podia fazer fogo e corrigia o desvio, retinha a respiração e premia o gatilho. Este soltou-se com um estremeção e a enorme espingarda provocou uma tremenda explosão depois da qual vi o búfalo ainda vivo desaparecendo da nossa vista em direcção ao lado esquerdo; disparei uma segunda vez, lançando uma carga de estilhaços de rochedo e de lama sobre os seus quartos tra-seiros. Pôs-se fora do alcance do tiro antes que eu tivesse tido tempo de carregar a minha espingarda 470 de dois canos, e todos ouvimos o roncar e o barulho dum outro rinoceronte que surgira da parte mais baixa do pântano e continuando o seu caminho debaixo das árvores do nosso lado, mal deixava entrever o seu corpanzil através do canavial.
— Era o macho – disse Pop. – Vai descer o ribeiro.
— N’Dio. Doumi! Dotimi!
Droopy insistía em que era um macho.
— Feri o excomungado búfalo – disse eu. – Que as leve o diabo a estas espingardas pesadas. O coice atirou comigo.
— Tinha-o morto com a Springfield – disse Pop.
— Devia ao menos saber como é que o feri. Estou convencido de que com a 470 tê-lo-ia morto ou falhado – disse eu. – Em vez disso está ele agora ferido.
— Ele espera – disse Pop. – Vamos dar-lhe muito tempo.
— Receio que o tenha ferido no baixo ventre.
— NãO se pode saber. Correndo tão depressa como corria, talvez morra a umas cem jardas.
— Que vá para o diabo a 470 – disse eu. – NãO posso disparar com ela. O gatilho parece uma chave de abrir latas de sar-dinha na ultima volta.
— Venha – disse Pop. – Sabe Deus quantos rinocerontes estão espalhados à nossa volta.
— E o búfalo?
— Temos imenso tempo para ele, daqui a pouco. É preciso deixá-lo arrefecer. Deixá-lo extinguir-se.
— Imagine que estávamos lá dentro com esta bicharada a sair de um lado e de outro.
— Pois – disse Pop.
Tudo isto era dito em voz baixa. Olhei para P. O. M. Estava com o ar duma pessoa que se diverte com um bom número musical.
— Viste onde o feri?
— Não sei – disse ela baixo. – Achas que há outros lá dentro?
— Milhares – disse eu. – O que é que vamos fazer, Pop?
— O macho deve estar mesmo do outro lado da curva – disse Pop. – Vamos.
Seguimos pela margem acima, com os nervos tensos e ao aproximarmo-nos da parte mais estreita do pântano sentimos a fuga de qualquer coisa pesada através das canas altas. A minha carabina estava pronta a entrar em acção para o que aparecesse. Mas só houve a agitação do canavial. M’Cola, com a mão, fez-me sinal de que não disparasse.
— Excomungado animal – disse Pop. – Deviam ser dois. Onde está o raio do macho?
— Como é que diabo vocês os reconhecem?
— Pelo tamanho.
Estávamos agora de pé a olhar para o leito do ribeiro à sombra das árvores frondosas, a jusante do ribeiro, quando M’Cola apontou a colina à nossa direita.
— «Faro» – disse baixo, dando-me o binóculo.
No flanco da colina, grande, negro, olhando de frente para nós, as orelhas em movimento e a cabeça erguida, sorvendo o vento, estava outro rinoceronte. Visto através das lentes parecia enorme. Pop estava a observá-lo com o binóculo.
— Não é melhor do que o que vimos – disse em voz baixa.
— Posso alvejá-lo mesmo no ponto vulnerável – disse eu.
— Só tem direito a mais um – disse Pop – Tem que ser um bom.
Passei o binóculo a P. O. M.
— Vejo-o perfeitamente sem binóculo – disse ela. – É enorme.
— Pode atacar-nos – disse Pop. – Sendo assim tem que disparar.
Depois, enquanto olhávamos, um outro rinoceronte surgiu detrás de uma grande árvore ramalhuda. Era bastante mais pequeno.
— Cos diabos, é pequeno – disse Pop. – Aquela era a mãe. Ainda bem que não fez fogo, senão ela era bem capaz de atacar.
— É a mesma fêmea? – perguntei eu em voz baixa.
— Não. A outra tinha um chifre formidável.
Estávamos todos tomados de uma hilaridade nervosa, como um rir de bêbedos, pela profusão súbita, pela absurda abundância de caça. É um sentimento que pode nascer de qualquer espécie de caça ou de pesca que normalmente é rara é que, de repente, aparece ridiculamente, inacredita vel mente abundante.
— Olhe para ela. Ela sabe que há qualquer coisa que não está certo. Mas não nos vê nem nos cheira.
— Ela ouviu os tiros.
— Sabe que estamos aqui. Mas não compreende.
O rinoceronte era enorme, ridículo, uma bela estampa; fiz--lhe pontaria para o peito.
— Era um lindo tiro.
— Perfeito – disse Pop.
— O que vamos fazer? – disse P. O. M. Ela tinha o sentido prático.
— Vamos dar a volta – disse Pop.
— Se continuarmos abaixados, não me parece que o nosso odor chegue lá acima quando passarmos por ela.
— Sabe-se lá – disse Pop. – Não temos vontade nenhuma que ela ataque.
Não atacou, e baixando finalmente a cabeça começou a subir a colina, seguida do filho quase adulto.
— Agora – disse Pop – Droopy que vá à frente ver se encon-tra o rasto do macho. Podemos sentar-nos.
Sentámo-nos à sombra e Droopy seguiu uma das margens do ribeiro e o guia local a outra. Voltaram dizendo que o macho tinha seguido rio abaixo.
— Algum de vocês viu conio era o chifre? – perguntei eu.
Droopy disse que era bom.
M’Cola subiu um pouco a colina. Agachou-se e fez-nos sinal para avançar.
— Nyati – disse ele com a mão levantada à altura da cara.
— Onde? – perguntou-lhe Pop.
Estendeu a mão, agachado, e, enquanto corríamos para junto dele, estendeu-me o binóculo. Os búfalos estavam muito longe, na crista de uma das vertentes escarpadas do desfiladeiro, a uma grande distância do ribeiro. Podíamos ver seis, depois oito búfalos, negros, cachaço hercúleo, hastes brilhan-tes, de pé, no cimo da crista. Alguns deles retouçavam a erva; outros, de cabeça levantada, estavam alerta.
— Aquele é macho – disse Pop olhando pelo binóculo.
— Qual?
— O segundo a contar da direita.
— A mim parecem-me todos machos.
— Estão a uma grande distância. Aquele é um belo macho. Agora temos que atravessar o ribeiro e tentar chegar acima de onde eles estão.
— Ficarão lá?
— Não. Com certeza vão descer o leito do rio, quando o calor começar a apertar.
— Vamos.
Atravessámos o ribeiro sobre um tronco, depois sobre outro e do lado de lá, a meia altura da colina, havia pegadas fundas de animais que subiam ao longo do rio, debaixo dos ramos frondosos das árvores. Avançávamos rapidamente, mas cami-nhávamos com prudência e, por baixo de nós, o leito do rio estava escondido pela folhagem cerrada. A manhá ainda não ia muito adiantada, mas já a brisa se levantava fazendo mexer as folhas por cima das nossas cabeças. Atravessámos uma ravina que descia até ao ribeiro, entrámos na mata espessa para não sermos vistos, agachando-nos ao passarmos por detrás das árvores em terreno descoberto; depois, utilizando a saliên-cia da ravina para nos escondermos, trepámos de maneira a atingir o flanco da colina por cima dos búfalos, para cairmos sobre eles. Parámos no abrigo da crista; eu transpirava abundantemente e puz um lenço no interior do meu Stetson e mandámos Droopy para a frente, em reconhecimento. Voltou a dizer que se tinham ido embora. Lá de cima nada podíamos ver; cortámos pela ravina e pelo flanco da colina, pensando que talvez os pudéssemos interceptar enquanto se dirigiam para o ribeiro. A colina seguinte tinha sido queimada e, na base, havia uma zona de arbustos ardidos. Nas cinzas existiam pegadas de búfalos que haviam descido e penetrado na floresta densa, junto ao ribeiro. Aqui, como o mato era alto e havia muitos cipós, não as poderíamos seguir. NãO havia pegadas no sentido descendente do ribeiro e no entanto sabíamos que os animais tinham ido para baixo, para o sítio do leito do rio em que o nosso olhar tinha mergulhado quando estávamos a seguir a pista. Pop disse que, ali, nada podíamos fazer. O mato era tão denso que se nos aparecessem de um momento para o outro nos arriscávamos a não poder disparar um único tiro. Talvez não pudéssemos distinguir uns dos outros, dizia ele. O mais que poderíamos ver seria uma mancha negra em movimento. Um macho velho deve ser cinzento, mas um bom guia de manada pode ser tão preto como uma fêmea. Fazer uma espera nestas condições não serviría para nada.
Eram agora dez horas e fazia muito calor fora da sombra; o sol abrasava e a brisa, enquanto caminhávamos, levantava as cinzas do solo calcinado. Toda a caça devia estar agora abrigada. Decidimos procurar um lugar à sombra para descansarmos, lermos um pouco e almoçarmos, passando assim a parte quente do dia.
Ultrapassando a região queimada, chegamos junto do ribeiro e ali parãmos, alagados em suor, à sombra de algumas árvores bastante grandes. Tirámos das mochilas os casacos de coiro e os impermeáveis, estendêmo-los na relva, perto das árvores, para nos podermos encostar aos troncos. P. O. M. tirou os livros e M’Cola acendeu uma fogueirasita e aqueceu água para o chá.
A brisa começava a soprar e nós ouvíamo-la nos altos ramos. À sombra estava fresco, mas bastava a gente mexer-se um pouco ao sol ou a sombra fugir enquanto líamos, para se sentir o calor escaldante. Droopy tinha ido ao ribeiro lá em baixo, para ver o que havia e, enquanto estávamos ali estendidos a ler, eu pude aspirar o calor daquele dia, do orvalho secando, da ardência das folhas, da incidência do sol sobre o ribeiro.
P. O. M. estava a ler o Spanish Gold de George A. Birmingham e disse que não era bom. Eu continuava com o livro de Sebastopol, de Tolstoi e nesse volume estava a ler o conto chamado «O Cossaco», que era muito bom. Há nele calor de verão, mosquitos, a impressão da floresta nas diferentes estaçôes do ano, o rio que os tártaros atravessaram a cavalo e sentia-me a viver outra vez naquela Rússia.
Ia também pensando como era real esta Rússia do tempo da nossa Guerra Civil, tão real como qualquer outro lugar, como Michigan ou a pradaria norte da cidade e os bosques à volta da coutada de Evans. Como, através de Turgenieff eu soube que lá tinha vivido, como tinha feito parte da família Buddenbrooks, como tinha entrado e saído pela janela do Le Rouge et Le Noir e na manhã em que tínhamos chegado às portas de Paris e visto Salcede despedaçado pelos cavalos na Place de Grèves. Vi tudo isto. E a mim não me liquidaram na tortura, dessa vez, porque tinha sido amável para o carrasco quando mataram Coconas e a mim. E lembro a véspera de S. Bartolomen e como caçámos huguenotes nessa noite e quando me apanharam em casa dela dessa vez e não sentindo outra verdade a não ser a descoberta da porta do Louvre estar fechada, nem olhando para o seu corpo na água onde caiu do mastro. E a Itália, sempre, melhor que qualquer livro, estendida nas florestas de castanheiros e na queda da neblina por detrás da Duomo, indo através da cidade ao Ospedale Maggiore, os pregos das minhas botas no empedrado e, na Primavera, repentinos chuveiros nas montanhas e o cheiro do regimento parecido a uma moeda de cobre na nossa boca. Sob o calor o comboio parava em Dezenzano e havia o Lago de Garda e as tropas eram as de Legião Checa, e depois chovia, e depois era escuro, e depois passava ali conduzindo um camião, e na próxima vez vinha-se de qualquer outro lado, e, na seguinte, caminhava-se para lá na escuridão vindo de Sermione. Porque estivemos lá nos livros e fora deles, e onde quer que se vá, se se vale alguma coisa, pode-se ir como nos aconteceu a nós. Um país, por fim, desgasta-se e a poeira voa para longe, as pessoas morrem e nenhuma foi de uma importância eterna, excepto aquelas que se dedicaram às artes e essas, agora, não querem continuar o seu trabalho porque é muito solitário, muito difícil de fazer e não se usa. Um milénio faz da economia um absurdo e um trabalho de arte perdura sempre, mas é muito difícil de fazer e agora não está na moda. As pessoas não querem fazê-lo mais porque estarão fora de moda e os piolhos que vegetam na literatura não o glorificarão. E também isto é muito difícil de fazer. E então? Então eu continuarei a ler acerca do fio que os tártaros atravessaram quando cavalgavam, e o velho e o caçador bêbedo, e a rapariga, e como as coisas se passavam ali nas diferentes estações.
Pop estava a ler Richard Carvell. Tínhamos comprado em Nairobi tudo quanto havia para comprar e estávamos no fim dos nossos livros.
— Já tinha lido isto – disse Pop. – Mas é um belo conto.
— Pouco me lembro. Mas sei que era bom...
— É um conto muito bom mas gostaria de o não ter lido já.
— Isso é aborrecido – disse P. O. M. – Não seria capaz de o ler.
— Quer este?
— Não esteja a presumir? – disse ela. – Não; vou acabar este.
— Vá lá, pegue.
— Não aceito.
— Cerveja, M’Cola – disse eu.
— N’Dio – disse ele com convicção.
E, da caixa de cervejas que um dos nativos tinha trazido à cabeça, tirou, ainda com o invólucro de palha, uma garrafa de cerveja alemã, uma das sessenta e quatro que Dan comprara na loja alemã. Os gargalos estavam envolvidos em papel de prata e os rótulos pretos e amarelos tinham um cavaleiro revestido de armadura. Ainda conservavam a frescura da noite e depois de aberta foi deitada para três copos, espumante, encorpada.
— Não – disse Pop. – Muito mau para o fígado.
— Vá lá.
— Bem.
Todos bebemos e quando M’Cola abriu a segunda garrafa Pop recusou com firmeza.
— Beba, ande. Isto é alguma coisa para si. Eu vou dormir um bocado.
— Pobre marnã.
— Só um pouco.
— Tudo para mim – disse eu.
M’Cola sorria e meneava a cabeça diante da bebida. Eu estava deitado, encostado à árvore, a olhar para ? vento e a beber lentamente a cerveja pela garrafa. Dai a pouco Pop e P. O. M. ambos tinham adormecido e eu deixava o livro de Sebastopol e lia de novo os Cossacos. Achava-a uma historia magnífica.
Quando acordaram almoçamos lombo frio, pão, mostarda, ameixas de lata e bebemos a terceira garrafa de cerveja. Depois fomos ler outra vez e de novo dormir. Acordei com sede e, quando estava a desatarrachar a rolha de uma garrafa de água, ouvi barulho e o roncar de um rinoceronte nos arbustos do leito do ribeiro. Pop acordou e ouviu também; pegámos nas espingardas sem trocarmos palavra e dirigimo-nos para o sítio de onde tinha vindo o ruído. M’Cola descobriu as pegadas. O rinoceronte subira o ribeiro, farejando-nos com toda a certeza ao aproximar-se uma trintas jardas de nós, e tinha-se ido embota. Não podíamos seguir as pegadas do lado de que soprava o vento e, por isso, afastámo-nos do ribeiro e voltámos ao sitio onde a erva tinha sido queimada para nos colocarmos por cima dele; depois avançámos com todo o cuidado, contra o vento, ao longo do ribeiro, através de denso matagal, mas não o encontrámos. Por fim, Droopy descobriu o lugar onde tinha subido do outro lado do ribeiro e penetrado na colina. A avaliar pelas pegadas, não parecia ser um animal muito grande.
Estávamos muito longe do acampamento, pelo menos a quatto horas de caminho a andar como andáramos à ida, e à volta haveria mais caminho a subir, sem esquecer, é evidente, a grande subida para sair do desfiladeiro; estávamos a contas com um búfalo ferido, e, quando saímos de novo da zona quei-mada, achamos que o melhor era ir buscar P. O. M. e regres-sarmos. Ainda havia calor mas o sol estava já declinando e durante uma grande parte do regresso iríamos seguindo a pista de caca cheia de sombra da margem alta por cima do ribeiro. Quando encontrãmos P. O. M. ela mostrou-se indignada por nos termos ido embora deixando-a só, mas era apenas para nos arreliar.
Partimos, com Droopy e o seu lanceiro à frente, caminhan-do pelo carreiro com sombra interrompida aqui e ali por um raio de sol que penetrava pela folhagem. Em lugar do aroma da frescura matinal da floresta, havia um horrível mau cheiro, como o da porcaria de gato.
— Porque é que cheira tão mal? – perguntei eu a Droopy.
— São os macacos – disse ele.
Um bando inteiro de macacos tinha acabado de passar antes de nós e deixara tudo coberto de excrementos. Chegámos ao local de onde os rinocerontes e o búfalo tinham saído do cana-vial e localizei o ponto onde me pareceu ter encontrado o búfalo quando o alvejei. M’Cola e Droopy procuravam o rasto como cães de caca e julgo que estariam a uns cinquenta metros pelo menos mais alto que a margem, quando Droopy agitou uma folha.
— Encontrou sangue – disse Pop.
Subimos até junto dele. Havia uma grande quantidade de sangue, já enegrecido, sobre a erva; a pista era agora fácil de seguir. Droopy e M’Cola foram cada um por seu lado deixan-do o rasto no meio, apontando com solenidade todas as manchas de sangue com um caule de erva. Sempre pensei que seria melhor um deles seguir cuidadosamente o rasto enquanto o outro iria à frente procurando, mas faziam sempre assim, cabeça baixa apontando com um caule de erva cada mancha seca e, por vezes, quando voltavam a encontrar o rasto depois de o terem perdido, baixavam-se para apanhar uma erva ou uma folha com a mancha negra. Eu seguia-os com a Springfield; atrás de mim vinha Pop e depois P. O. M.. Droopy levava a minha carabina mais potente e Pop levava a dele. M’Cola levava ao ombro a Mannlicher de P. O. M.. Nenhum de nós dizia palavra e via-se que todos considerávamos o momento como coisa muito séria. No mato mais alto encontrámos sangue a uma altura bastante considerável de um e de outro lado da pista que o búfalo tinha seguido. Isto significava que o bicho tinha sido trespassado pelo tiro. Naquele momento já se não podia dizer que cor tinha o sangue mas, por momentos, tive esperança de que o animal tivesse sido atingido nos pulmöes. Mas, mais adiante, nos rochedos, encontrámos excrementos com sangue misturado e depois, durante algum tempo, deixara fezes manchadas de sangue em toda a parte onde subira. Parecia-me agora que o tiro tinha sido no ventre ou no estomago. Por isso cada vez me sentia mais envergonhado.
— Se ele aparecer não se preocupe com Droopy ou com os outros – disse Pop em voz baixa. – Eles sairão do caminho. Atire-lhe.
— Mesmo ao focinho – disse eu.
— Não se meta em fantasias – disse Pop.
O rasto continuava em linha recta, depois voltava para trás, por duas vezes, e durante uma certa distância mostrava-se incerto e vago no meio dos rochedos. Ao seguir, dirigia-se para o ribeiro, atravessava um veio de água subindo depois pela mesma margem através das árvores. Os três, farejando, várias vezes o perdemos completamente; um de nós voltava a encon-trá-Io, aproximava-se e dizia em voz baixa: Damu; e de novo continuávamos.
— Parece-me que o vamos encontrar morto – disse eu a Pop em voz baixa.
Esta digressão ao acaso mostráva-mo, lento e gravemente ferido, a preparar-se para se deitar.
— Espero que sim – disse Pop.
Mas o rasto continuava, agora num sítio de pouca erva, por isso mais demorado e difícil de seguir. Depois deixou de haver rasto visivel para mim: somente uma linha provável que o animal poderia ter seguido, confirmada por uma mancha prêta e brilhante de sangue seco em cima de uma pedra. Várias vezes a perdemos completamente e, os três farejando, havia um que a encontrava, apontava-a, dizendo em voz baixa: Damn, e de novo continuávamos. Finalmente o rasto descia um declive exposto aos últimos raios radioso do sol, descia até ao leito do rio onde havia um longo e largo talhão dos maiores bambús secos que até então tínhamos visto. Mais altos e mais grossos do que os do pantano de onde aquela manhã o búfalo tinha saído.e no qual havia vários rastos de caça que se perdiam no interior do canavial.
— Não é suficientemente seguro para levar Memsahib -disse Pop.
— Ela que fique aqui com M’Cola – disse eu.
— Não é bom para a nossa Memsahib – repetiu Pop. – Não sei porque é que a deixámos vir.
— Ela pode esperar aqui. Droopy quer continuar.
— Tem razão. Vamos ver o que há.
— Fica aqui com M’Cola – disse eu, para trás, em voz baixa. Seguimos Droopy na erva alta e densa que subia a cinco pés acima das nossas cabeças, seguindo cuidadosamente a pista, dobrados para a frente, procurando respirar sem ruído. Eu pensava no búfalo, como o tínhamos visto quando matámos três, como o velho macho tinha saído dos arbustos, cambaleante, e via os chifres, o guia que vinha de longe com o focinho levantado, olhos pequeninos, de pescoço cinzento, gordo e musculoso, pêlo ralo, pele escamosa, bruto de força e de raiva; admirei--o e respeitei-o, mas ele era lento e durante o tempo em que fizemos fogo, eu sabia que era assunto arrumado, que acabaríamos por o apanhar. Assim era diferente, não era tiro rápido, não poderia disparar se ele se mostrasse a descoberto, cambaleante; se o viesse agora, tinha que estar calmo interiormente e apontar ao focinho quando arremetesse de cabeça levantada. Teria que baixar a cabeça para marrar, como qualquer toiro, e então pondo a descoberto o sítio onde os indígenas punham os dedos eu meter-lhe-ia aí uma bala e depois deveria dar um passo ao lado na erva e a partir desse momento o bicho per-tenceria a Pop, a não ser que pudesse continuar com a espingarda quando saltasse. Estava certo de poder abatê-lo e saltar se ele baixasse a cabeça. Tive a certeza de que poderia fazer assim e de que o tiro o abateria, mas quanto tempo ia isso demorar? E esta é que era a dificuldade. Quanto tempo? Agora, avançando com a certeza de que ele lá estava, sentia a embriaguez – a melhor embriaguez de todas – a da acção que se prepara, de uma acção em que nós próprios vamos intervir, de uma acção na quai se pode matar e sair salvo, fazendo qualquer coisa que ignoramos e de que não temos medo, sem ninguém a quem darmos contas, sem nenhuma responsabilidade excepto a de realizar qualquer coisa que temos como possível; assim, avançando lentamente com os olhos fixos nas costas de Droopy, sempre a lembrar-me de que não podia transpirar para não embaciar os óculos, ouvi um ruído atrás de nós e voltei a cabeça. Era P. O. M. acompanhada por M’Cola que caminha-va atrás de nós.
— Por amor de Deus – disse Pop. – Estava furioso.
Obrigámo-la a sair do mato e a subir à margem, convencen-do-a a que devia esperar ali. Ainda não tinha compreendido que devia ficar atrás. Tinha-me ouvido dizer qualquer coisa em voz baixa mas pensara que era para seguir atrás de M’Cola.
— Que susto apanhei – disse eu a Pop.
— E como um cãozinho – disse ele. – Isto não está muito seguro.
Espreitávamos por cima da erva.
— Droopy ainda quer avançar mais – disse eu. – Eu vou até onde ele quiser. Quando ele disser não, paramos. o que é certo é que feri o estupor no ventre.
— No entanto não deve fazer tolices.
— Se lhe puder atirar, mato esse excomungado. Se aparecer, tenho que lhe atirar.
O susto que P. O.M. nos tinha pregado puzera-me ruidoso.
— Vamos – disse Pop.
Seguimos Droopy e a coisa tornava-se cada vez mais peri-gosa e eu já não sabia o que é que Pop estava a fazer mas a meio do caminho, aproximadamente, peguei na carabina grande, levantei a mola de segurança, puz o dedo no gatilho e achei-me nervoso quando Droopy parou, abanou a cabeça e disse em voz baixa: Hapana. A espessura era tão grande que não se via à distancia de um pé à frente de nós e só havia curvas e cotovelos. A coisa estava realmente feia e o sol, agora, apenas batia no flanco da colina. Ambos estávamos contentes porque tinha sido Droopy a dar o sinal de parar e eu sentia-me também aliviado. O caminho que ele nos fez seguir mostrou-me o ridículo da maneira como tinha imaginado poder alvejá-lo e vi que a única coisa com que podíamos contar era com Pop que o liquidaria com a sua carabina cinquenta e quatto, número dois, possivelmente depois de eu ter falhado com a minha miserável setenta e quatto.
Naquele momento já não confiava em nada, senão no ruído que ela fazia.
Quando recomeçamos, ouvimos na colina os carregadores gritarem; corremos com grande barulho, através da erva, para ver se conseguíamos atingir um ponto suficientemente alto para fazermos fogo. Agitavam os braços e gritavam que o bufalo tinha saído do canavial e passado petto deles; depois M’Cola e Droopy estenderam o braço, Pop agarrou-me pela manga procurando encaminhar-me para o sítio onde os pudesse ver e, ao sol, lá no alto da colina, projectados contra os rochedos, vi dois búfalos. Ambos brilhavam, negros, ao sol; um era muito maior do que o outro, e lembro-me de ter pensado que era o nosso macho que tinha encontrado uma fêmea que seguira. Droopy entregou-me a Springfield, meti o braço na bandoleira e fiz pontaria ao búfalo, agora inteiramente visível na abertura. Senti-me gelar interiormente, conservei o ponto de mira na extremidade dos quartos dianteiros e, quando me preparava para disparar, ele começou a correr e eu premi o gatilho. Vi-o baixar a cabeça e saltar como um cavalo selvagem e, deitando fora o cartucho, puxando a culatta atrás e disparando outra vez, enquanto ele desaparecia da -nossa vista, tive a certeza de que já era meu. Droopy e eu começamos a correr e enquanto corríamos ouvi um rugido surdo. Parei e gritei a Pop:
— Ouve-o? Logo lhe disse que não me escapava.
— Acertou-lhe – disse Pop. – Claro.
— Cos diabos, matei-o. Não o ouviu rugir?
— Não.
— Oiça! – pusemo-nos à escuta e de novo, nitidamente, um rugido longo, queixoso, sem engano possível, se fez ouvir.
— Cos diabos – disse Pop. – Era um barulho extremamente triste.
M’Cola agarrou-me a mão e Droopy deu-me uma palma-dinha nas costas e começãmos todos a rir de contentes, transpirando, numa corrida desordenada escalando através das árvores e dos rochedos a toda a velocidade, o cimo da colina. o meu coração batia; tive que parar para tornar fôlego, enxu-gar o suor e desembaciar os óculos.
— Kufa! – disse M’Cola, dando à palavra morte toda a sua força explosiva. – N’Dio! Kufal
— Kufa! – disse Droopy, areganhando os denies.
— Kufa! – repetiu M’Cola apertando-me de novo a mão antes de recomeçarmos a subida.
Depois, diante de nós, vimo-lo caído de costas, pescoço retesado ao máximo, com todo o peso sobre os chifres, contra uma árvore. M’Cola meteu os dedos pelo orifício feito pela bala a meio dos quartos dianteiros, abanando a cabeça, feliz.
Pop e P. O. M. chegaram seguidos pelos carregadores.
— Caramba! É um animal melhor do que pensávamos – disse eu.
— Não é o mesmo animal. É um macho autêntico. Deve ser o que acompanhava o nosso primeiro búfalo.
— Pensei que fosse uma fêmea. Estávamos tão longe que não pude ver.
— Devíamos estar a umas quatrocentas jardas. Sim senhor, voce sabe servir-se dessa escopeta.
— Quando o vi meter a cabeça entre as patas e escoucear, vi logo que me estava nas unhas. Incidía sobre ele uma luz mara-vilhosa.
— Eu sabia que o tinha fetido e sabia que não era o mesmo animal. Por isso pensava que estávamos a contas com dois búfalos feridos. Não tinha ouvido o primeiro rugido.
— Era maravilhoso ouvi-lo rugir – disse P. O. M. – Um som tão triste! Era como ouvir uma trombeta de caça no bosque.
— A mim pareceu-me muito alegre – disse Pop. – Caramba! Depois disto, merecemos beber qualquer coisa. Foi um realíssimo tiro. Porque é que nunca nos tinha dito que sabia atirar?
— Vá para o diabo.
— Sabia que ele é também um óptimo batedor e atirador aos pássaros? – perguntou ele a P. O. M.
— Não é um belo búfalo? – perguntou P. O. M.
— Soberbo. Não é velho mas tem uma bela cabeça.
Quisemos tirar fotografias mas tinhamos só um «caixote» e o obturador emperrou; travou-se discussão acerca disto e entretanto a luz desapareceu; eu estava agora nervoso, irritá -vel, solene, convencido de que tinha razão no caso do obturador e inclinado a sentir-me lesado pelo facto de não podennos tirar fotografias. Não se pode viver num plano de exaltação como aquele por que eu tinha passado no canavial e, depois de ter matado, mesmo tratando-se de um búfalo, sentimo-nos um pouco emocionados. O sentimento de matar não é dos que se podem partilhar; bebi um pouco de água e disse o P. O. M. que estava arrependido de me ter mostrado tão grosseiro na discussão das máquinas fotográficas. Ela respondeu que isso não tinha importância e de novo nos sentimos todos satisfeitos contemplando o búfalo, enquanto M’Cola lhe fazia incisöes para cortar a pele da cabeça, e nós dois, de pé, junto um do outro, muito amigos, compreendendo tudo, máquina fotográfica e o resto. Bebi um whisky que não me soube a nada nein me deü nenhum prazer.
— Vou beber outro – disse eu.
E este segundo caiu-me Optimamente.
Íamos caminhando em direcção ao acampamento, tendo como guia o homem da lança-perseguido-pelo-rinoceronte; Droopy foi esfolar a cabeça do animal e os outros fora m esconder a carne no meio das árvores para que as hienas não a comes-sem. Estavam com medo de andar durante a noite e eu disse a Droopy que podia ficar com a minha espingarda grande. Ele disse que sabia manejá-la; então tirei-lhe os cartuchos, baixei o aparelho de segurança, entreguei-lha e disse que disparasse. Pôs a espingarda à cara, fechou o olho que não devia, puxou o gati-lho com força e voltou a puxar. Expliquei-lhe então para que servia o aparelho de segurança, obriguei-o a baixá-lo e subi-lo e a disparar a espingarda uma porção de vezes. M’Cola mostrava ares de superioridade quando Droopy tentava disparar com a segurança a funcionar, e Droopy parecia tornar-se mais pequeno. Deixei-lhe a arma e dois cartuchos, enquanto os outros estavam ocupados em retalhar a carne. Ao lusco-fusco, atrás do homem da lança, começãmos a seguir o rasto sem sangue dum búfalo pequeno, até ao cimo da colina, no caminho para o acampamento. Trepámos ao topo dos vales, atravessámos gargantas, subimos e deseemos ravinas e finalmente che-gámos ao cume principal, já noite e com frio, ainda sem lua, mortos de cansaço. Nesta altura M’Cola, no escuro, carregado com a espingarda pesada, uma grande quantidade de garrafas de água, binóculos e um saco com livros, desatou num discurso que parecia feito de pragas para o guia que caminhava na frente.
— O que é que ele diz? – perguntei a Pop.
— Está-lhe a dizer para não exibir a lança. Que vai aqui um velho.
— Quem é o velho: você ou ele?
— Os dois.
Vimos a lua erguer-se tingida de vermelho por cima das colinas castanhas e deseemos atravessando as luzes trémulas da aldeia com as casas de lama encostadas umas às outras, com o seu cheiro a cabras e ovelhas, atravessámos depois o ribeiro, subimos em seguida a encosta nua onde defronte da nossa barraca ardia uma fogueira. Era uma noite fri a e muito ventosa.
Na manhá seguirne começãmos a caçada por descobrir uma pista de rinoceronte que seguimos em toda a extensão duma região alta cheia de árvores frutíferas, antes de descernios para um vale que, em degraus, conduzia a um defiladeiro. Estava um dia quentíssimo e no dia anterior as botas apertadas tinham fetido os pés de P. O. M. Ela não se queixava mas eu via que a magoavam. Estávamos todos mortos de cansaço.
— Que vão para o diabo – disse eu a Pop. – Já não me interessa matar senão um que seja grande. Para toparmos com um assim talvez seja preciso procurar durante uma semana. Por agora fiquemos com o que temos e vamos ter com Karl. Não podemos cacar orixes, conseguir as peles de zebra e andar a cacar kudus.
Estávamos sentados debaixo duma árvore no cimo duma colina de onde se via toda a região e o desfiladeiro que inflec-tia em direcção ao vale do Rift e ao Lago Manyara.
— Devia ser muito interessante ir caçar pelo vale abaixo até ao lago, levando à frente os carregadores a iluminar o caminho – disse Pop.
— Seria estupendo. Podíamos mandar os camiões esperar-nos em – como é o nome desse lugar?
— Maji-Moto.
— E porque é que não fazemos isso? – perguntou P. O. M.
— Vamos perguntar a Droopy como é o vale.
Droopy não sabia mas o homem da lança disse que o terreno era muito acidentado, de muito mau piso no local em que a corrente atravessava os rochedos. Chegámos à conclusão de que não poderíamos passar com a carga. Desistimos.
— No entanto é uma exploração que se devia fazer – disse Pop. – Os carregadores não ficam tão caros como a gasolina.
— Não podemos fazer explorações deste género quando vol-tarmos? – perguntou P. O. M.
— Podemos – disse Pop. – Mas por um rinocetonte grande sobe-se até Monte Kénia. Lá há-de encontrar um que valha a pena. Para kudus é aqui. Tinha de subir até ao Kalal para ver um, no Kénia. E se os víssemos tínhamos tempo para descer até à região de Handeni para cacar antílopes negros.
— Vamos andando – disse eu, sem me mexer.
Já há bastante tempo que todos nós nos sentíamos satisfei-tos com o facto de Karl ter morto o rinoceronte. Estávamos contentes e os nossos sentimentos enquadravam-se agora numa perspectiva normal. Talvez que nesse momento ele já tivesse morto um orix. Esperava que sim. Era um bom tipo, e eu estava satisfeito por ele ter abatido mais esta peça de caca.
— Como se sente, querida mamã?
— Estou bem. Se formos, fico tao contente como a descansar os meus pés. Adoro essa especie de caça.
— Vamos embora; comemos, levantamos o acampamento e vamos para baixo esta noite.
Nessa mesma noite regressámos ao nosso antigo acampamento de M’utu-Umbo, debaixo das grandes árvores, perto da esttada. Era o nosso primeiro acampamento em África e as suas árvores estavam tão grandes, tao copadas e tão verdes, o ribeiro límpido e ligeiro e o acampamento tão bem conservado como quando ali tínhamos estado pela primeira vez. A única diferença é que agora as noites eram mais quentes, a estrada de acesso estava afogada em poeira, e nós já conheciamos razoa-velmente a região.
~ CAPÍTULO SEXTO
Tínhamos descido até ao vale de Rift por uma estrada de areia vermelha que atravessava um planalto elevado, subia e descia colinas cobertas de árvores de fruto, contornava uma floresta até ao cimo da parede da falèsia donde se podia ver a planície, a densa floresta que se estendia por baixo do paredão, e o longo e brilhante lago Manyara, com as margens secas e coloridas de cor-de-rosa, numa das extremidades, por meio milhão de pequenas pintas que eram os flamingos. A partir daqui a estrada descia bruscamente ao longo do paredão, penetrava na floresta, depois nas planicies do vale, através de terrenos de milho verde, de bananeiras e de árvores cujo nome eu ignorava, passava diante do estabelecimento comercial dum indiano, à frente de uma porçâo de cabanas, atravessava duas pontes debaixo das quais corriam rápidos regatos de águas claras, cortava a floresta que agora se abria em clareiras e, depois de uma curva poeirenta, perdia-se numa pista cavada de fundos sulcos cobertos de poeira que, através de arbustos, ia ter ao acampamento de M’utu-Umbu.
Naquela noite, depois de jantar, ouvimos os flamingos a lutarem na escuridão. Era um barulho semelhante ao das asas dos patos quando levantam voo de madrugada, mas mais lento, com um ritmo regular e multiplicado por mil. Pop e eu sentía-mo-nos um pouco embriagados e P. O. M. muito fatigada. Karl estava de novo melancólico. Tínhamos-lhe estragado o prazer da vitória sobre o rinoceronte, mas agora já tudo tinha passado e ele cismava na possibilidade de uma derrota no que res-peitava aos orixs. Além disso tinham também encontrado, não um leopardo mas um leäo magnífico, um leão enorme de juba preta que não estavam dispostos a abandonar, e a carcaça do rinoceronte do dia seguinte de manhã e que não tinham podido abater porque estava numa espßcie de reserva florestal.
– Isso é uma maçada – dizia eu procurando solidarizar-me com ele mas sentindo-me ainda demasiadamente de bom humor para compartilhar a melancolía alheia.
Pop e eu, mortos de cansaço, ficamos sentados a conversar, bebendo whisky com soda.
No dia seguinte fomos à caca dos órixes, na poeira seca do vale de Rift e, finalmente, descobrimos um bando deles na extremidade das colinas arborizadas, por cima de uma aldeia Masai. Parecia um bando de burros indígenas, excepto nos belos chifres voltados para trás. Todos os chifres me pareciam bons. Examinando-os de perto, havia dois ou três visivamente mais bonitos do que os outros e, sentado no chão, escolhi aqueles que me pareciam melhores, antes que debandassem. Ouvi a baia penetrar, vi o animal destacar-se dos outros, andar à roda em círculos cada vez mais rápidos e tive a certeza de que aquele já me não escapava. Nem voltei a disparar.
Era este também o que Karl tinha escolhido. Eu não sabia, mas disparara, deliberadamente egoísta, para garantir o melhor, pelo menos desta vez. No entanto, ele abateu outro também muito bom, depois do que debandaram levantando uma nuvem de poeira cinzenta que o vento dispersoti. Tirando o milagre que eram os chifres, a caça aos orixes não tinha mais interesse do que se fossem burros e, quando chegou o camião, depois de M'Cola e Droopy terem esfolado as cabeças e aproveitado a carne, regressámos ao acampamento com a cara cinzenta da poeira levantada pelo vento e uma miragem de calor alastrando pelo vale.
Passámos dois dias no acampamento. Tínhamos que arran-jar peles de zebra que prometeramos a amigos da América e o esfolador precisava de tempo para as preparar convenientemente. Caçar zebras não tinha interesse; a planície estava triste, agora que a erva tinha secado, quente e poeirenta para lá das colinas e a recordaçâo que delà conservo é a de ter ficado sentado contra uma termiteira e, ao longe, uma manada de zebras galopando na nuvem cinzenta de calor, levantando enorme poeira e, na planície amarela, pássaros voltejando por cima de uma mancha branca aqui, de uma outra mais longe, duma terceira noutro sítio e eu olhando para trás vi o penacho de poeira do camião chegando com os esfoladores e os homens que vinham cortar a carne para a aldeia. Debaixo do calor, fiz alguns tiros infelizes a uma gazela de Grant que os esfoladores voluntários me tinham pedido para abater, para Ihe aproveitatem a carne; alvejei-a em corrida e feri-a depois de ter falhado très ou quatto tiros, seguindo-a depois, planície fora, até quase ao meio-dia, sempte debaixo de grande calor, até que por fim a pude alvejar e abater.
Nessa tarde seguimos pela estrada que atravessava a aldeia, passando além da curva onde ficava o estabelecimento do indiano que nos dirigiu um sorriso untuoso que exprimía insucesso no negócio, fraternidade humana e esperança de venda. Metemos o camião pela esquerda por um caminho que conduzia ao interior da floresta, pista estreita, ladeada de arbustos, atravessando um regato que corría sob uma ponte mal assente em troncos e em pranchas, e continuamos até ao sitio em que a flotesta se tornava menos densa, penetrando depois numa savana recamada de erva que se estendia diante de nós até à margem seca do lago, franjada de bambus e animada pelo brillio da água e pela mancha cor-de-rosa dos flamingos. Havia naquele sítio algumas cabanas de pescadores construídas de bambus à sombra das últimas árvores e, diante de nós, o vento curvava as ervas da savana, vendo-se no fundo seco do lago, dum branco acinzentado, uma enorme quantidade de animaizinhos assusta-dos com o camião que saltava ao passar pela superfície desnivelada. Eram gamos que pareciam estranhos e desajeitados à disténcia, mas elegantes e graciosos quando vistos de petto. Conduzimos o carro ao longo da erva espessa e curta sobre o fundo do lago e, em toda a parte, à direita e à esquerda, nos sítios onde os regatos corriam para o lago, formando uma vasa coberta de canais, voavam patos e viam-se grandes bandos deles pairar à volta de montinhos de erva que se erguiam acima do pãntano. O fundo seco era duro e firme e continuámos no carro até que começou a ficar húmido e morno e então saímos. Karl levando consigo Charo, e eu M'Cola para transportarem os cartuchos e a caça, decidimos ir cada um do seu lado do pãntano para, disparando, procurarmos conservar os pássa-ros no ar, enquanto Pop e P. O. M. iriam rentes às canas altas na margem esquerda do lago onde novo regato formava outro volumoso lago, no qual julgávamos que deveria haver patos.
Vimos os do outro grupo caminhar a descoberto – uma grande e maciça silhueta coberta com um casaco de veludo e outra, muito pequeña, de calções, casaco de cáqui cinzento, botas e um largo chapéu – e desapareceram agachados atrás de canas secas, antes de nós partirmos. Mas enquanto avançávamos para atingir a extremidade do ribeiro, logo vimos que o plano não era eficiente. Mesmo que procurássemos com o maior cuidado o terreno mais duro, enterrávamo-nos até aos joelhos na lama fria e, como isso se tornava menos sujo e havia mais montículos de terra cercados de água, cheguei por vezes a estar com água até ao peito. Os patos e os gansos voavam fora do alcance de tiro e depois da prinieira revoada dirigiram-se para o sítio onde Pop e P. O. M. se tinham escondido no canavial, ouvi a dupla detonação, rápida e aguda, do calibre 28 de P. O. M. e os patos, voando em círculo, fugiram para o lago; os outros bandos desorganizaram-se e os gamos fugiram todos em direcçáo do lago. Um bando de íbis escuros que, com os bicos caídos assmelhavam-se a maçaricos reais, passou por cima do pãntano do lado do ribeiro onde estava Karl, descrevendo largos círculos por cima de nós, antes de voltaren! ao canavial. Em todo o pãntano havia narcejas e galinholas prêtas e brancas e, finalmente, como os patos estavam fora do nosso alcance, decidi-me a atirar às narcejas com grande desgosto de M'Cola. Seguimos o pãntano, atravessámos outro ribeiro com água até aos ombros, segurando a espingarda e o casaco de caça com balas na cartucheira por cima da cabeça, tentando dirigir-me ao sítio onde estavam P. O. M. e Pop e encontrei um ribeiro fundo onde voavam cercetas, das quais matei três. Como era quase noite fui ter com Pop e P. O. M. à outra margem deste ribeiro na borda do leito seco do lago. Parecia demasiadamente fundo para ser passado a vau e o leito era mole, mas encontrei pegadas muito recentes de hipopótamo que iam até ao ribeiro e, seguindo-as, com fundo bastante duro debaixo dos pés, pude atravessar com água pelo peito. Quando saí da água, a escorrer, um bando de cercetas aproximou-se, rápido; já lusco-fusco agachei-me e disparei ao mesmo tempo que Pop; os dois matámos très que caíram como setas, obliquamente, no meio das ervas altas. Procurámo-las com cuidado e encontrámo-las todas. A veloci-dade com que voavam atirara-as para muito mais longe do que pensávamos e, já quase noite fechada, regressámos ao carro pisando a lama cinzenta e seca do fundo do lago, eu encharcado e com as botas cheias de agua, P. O. M. encantada com os patos, os primeiros desde Serengetti, ambos recordando como eram deliciosos; diante de nós estava o carro que parecía muito pequeño e, mais longe, uma extenção de lama cozida ao sol e depois a savana ervosa e a floresta.
No dia seguinte voltámos da caca às zebras, cinzentos e cobertos de uma crosta formada pelo suor e pela poeira que o carro levantava e o vento atirava para cima de nós quando atravessávamos a planície, de regresso ao acampamento. P. O. M. e Pop não tinham ido, visto que não lhes interessava aque-la espécie de caça e não tinham necessidade de comer toda aquela poeira; Karl e eu, debaixo de sol ardente e envolvidos pela imensa poeira, tivemos uma destas discussöes que come-çam assim:
– Que é que aconteceu?
– Estavam muito longe.
– Há bocado não estavam.
– Estavam muito longe, digo-lho eu.
– Se não Ihe atira diga-lhe adeus.
– Atire você.
– Já tenho o suficiente. Só queremos doze peles. Continue você.
Depois, um de nós irritado, dispara depressa demais para mostrar os resultados de o terem aconselhado a disparar precipitadamente, sai de trás da term i tei ra, volta-se com enfado e dirige-se para junto do companheiro que diz ironicamente:
– Que é que aconteceu?
– Estavam formidavelmente longe, estou-lhe a dizer – afir-mou desesperado.
E o irónico, complacente:
– Ora olhe.
As zebras, que tinham fúgido a galope com a aproximação do camião deslocaram-se em círculo e estavam agora de flanco, em boa posiçao para atirar.
O outro olha, nada diz, já demasiadamente irritado para poder disparar. E depois:
– Vá, dispare.
O irónico, agora ainda mais convencido, recusa.
– Vá – diz.
– Já tenho o suficiente – diz o outro.
Sabe que está irritado de mais para disparar e sente que foi disfrutado. Sabe que há sempre qualquer coisa que Ihe prega a partida, que há sempre a necessidade de fazer as coisas de uma maneira diferente do normal, ou obedecendo a instruções deficientes por falta de pormenores, ou sendo obrigado a fazê-las diante de gente ou à pressa.
– Temos onze – diz agora, desolado, o irónico. Este sabe que não devia irritar o outro, que o devia deixar em paz, que apenas o enerva mais, instigando-o a atirar, que mais uma vez se mostrou um palerma a pretender fazet espírito. – Em qualquer altura matamos outra. Venha lá, vamos embota.
– Não, vamos apanhá-la. Atire-lhe.
– Não, vamos embora.
Já no carro, deslizando na poeira, desaparece o sentimento de amargura e fica só outra vez o da escassez de tempo.
– Em que é que está agora a pensar? – pergunta um. – No malandrò que eu sou?
– A pensar na tarde de hoje – diz o outro com um sorriso a abrir-lhe sulcos na crosta de poeira que Ihe cobre a cara.
– Também eu.
A tarde chegou finalmente e partimos.
Desta vez usávamos botas de Iona até ao tornozelo, leves para se poderem tirar quando nos enterrávamos, cacamos saltando de montículo em montículo, abrindo caminho através do pãntano, chapinhando nos riachos e os patos voando para o lago como da última vez; mas fizemos um grande desvio para a di rei ta, chegando ao pròprio lago cujo fundo estava duro e firme e, andando com água pelo joelho, passámos por grandes bandos de pássaros e depois hou ve um tiro e eu e M'Cola, aga-chamo-nos, de cabeça baixa e depois o espaço ficou cheio de patos e matamos dois e mais outros dois e depois mais um, muito alto, por cima de nós, depois fallíamos um em baixo à nossa direita, depois voltaram grasnando, passando tão depressa que não se podiam alvejar e disparar, e ferimos de raspão alguns nas asas, para termos feridos que servissem de engodo, e depois não se fizeram mais tiros com intetesse porque agora se sabia que podíamos ter tantos quantos pudéssemos comer ou levar. Visei o que estava mais alto por cima da minha cabeça e inclinando-me quase completamente para trás – o coup à roi – fiz cair um grande pato negro petto de M'Cola que ria, e mais quatto feridos a quererem fugir e achei melhor matá-los e leválos. Tínhamos que nos nieter na água até ao joelho para alcançarmos o último ferido e escorreguei caíndo de borco e achei-me sentado, satisfeito de estar completamente molhado, a água fresca molhando-me as costas, encharcado de água enlameada, limpando os óculos e depois despejando a água da espingarda, pensando se conseguiría tirar os cartuchos antes de se molharem, e M'Cola gozando o meu trambulhão. Este com o casaco de caça agora cheio de patos, agachou-se e um bando de gansos passou ao alcance da espingarda enquanto eu tentava meter no carregador um cartucho molhado. Acabei por conseguir e disparei, mas era longe demais ou eu estava atrás, e ao som do tiro vi unía nuvem de flamingos levantar-se ao sol, tornando róseo todo o horizonte do lago. Depois passaram. Mas depois disto, de cada vez que eu disparava, voltava-me e olhava para o sol na água e via este rápido voo de fantástica nuvem, seguin-do-se o baixar vagaroso.
– Cola – disse eu e apon tei.
– N'dio – disse eie, olhando-os. – M'uzuri! – e dei-lhe mais cartuchos.
Todos fizemos bons tiros, mas no lago foi ainda melhor e depois nos très dias seguintes de viagem comemos cercetas trias, os melhores bocados de pato, finos, gordos e tenros, frios com pickles Pan Yan, com vinho tinto que compráramos em Babati, sentados na beira da estrada, esperando a chegada dos camions, ou sentados no fresco vestíbulo do hotelzinho de Babati.
Depois, à noite, bastante tarde, quando os camiões finalmente chegaram, estávamos na casa do amigo ausente dum amigo, Iá no alto das colinas, com os casacos vestidos por causa do frió da noite, tendo esperado tanto tempo pela chegada do camião avariado que acabámos todos por beber demais e arranjar uma fome indiscritível. P. O. M. dançando com o gerente da machamba de café e com Karl ao som de um gra-mofone, eu encharcado de emetina e massacrado por uma hor-rível dor de cabeça afogada com éxito em whisky e soda, e Pop no vestíbulo; escurecia e o vento soprava tempestuosamente e depois vieram as cercetas para a mesa a fumegar acompanhadas de legumes frescos. As galinhas-da-índia sáo uma coisa óptima e eu tinha uma na lancheira, na caixa do carro, para comer nessa noite mas estas cetcetas ainda eram melhores.
De Babati seguimos ao longo das colinas até à extremidade de uma planície com uma longa clareira para lá de uma pequena aldeia onde existia uma missáo, no sopé de uma montanha. Aí montamos o acampamento para caçar kudus que julgávamos encontrarem-se nas colinas arborizadas e na floresta dos terrenos planos que se estendiam até a orla da planície.
~ CAPÍTULO SÉTIMO
Era um lugar quente para acampar, sob as árvores que tinham sido tratadas pata as secar, a fim de desaparecerem as moscas tsé-tsé, e era difícil caçar nas montanhas que eram escarpadas, cobertas de arbustos e desniveladas, com uma subida difícil antes de se lá chegar, mas boas para a caça nas florestas planas, onde podíamos passear como num parque de veados. Mas havia moscas tsé-tsé por toda a patte redemoínhando à nossa volta, mordendo-nos com força no pescoço, através da camisa, nos braços e por trás das orelhas. Eu trazia um ramo de folhas e sacudia-as do cachaço enquanto andá-vamos e caçamos cinco dias desde o amanhecer até à noite, voltando para o acampamento depois de escurecer, mortos de fadiga mas satisfeitos com a frescura e a escuridáo que impediam as tsé-tsé de morder. Cacávamos por turnos nas montanhas e nos planaltos e Karl tornou-se cada vez mais melancólico, embota tivesse morto um belo antílope ruço. Tinha-se desenvolvido nele um complicado complexo por causa dos kudus e, como sempre que estava contrariado, era culpa de qualquer pessoa: dos guias, da escolha do batedor, das montanhas; tudo era contra ele. As colinas eram-lhe hostis e não tinha confiança nos terrenos planos. Todos os dias eu esperava que ele caçasse qualquer coisa e a atmosfera melhorasse, mas cada dia as suas apreensões acerca dos kudus complica-vam a caçada. Nunca tinha sido um escalador e sofría verdaderamente nas montanhas. Tentei ficar eu com a maior parte das batidas nas colinas para o aliviar, mas pude ver que, agora que estava fatigado, imaginava que era exactamente nas colinas que estavam os kudus e que perdia a sua oportunidade.
Em cinco días vi uma dúzia ou mais de fêmeas e um macho novo com um bando de fêmeas. Estas eram grandes, cinzentas, com os flancos às riscas, uma cabeça ridiculamente pequena, grandes orelhas e um andar ligeiro, precipitado, que punha em evidência o enorme ventre quando, em pãnico, fugiam pelo meio das árvores. O macho novo tinha o começo de uma espiral nos chifres mas estes eram curtos e ainda informes e quando passou por nós na borda de uma clareira, ao crepúsculo – o terceiro numa fila de seis fêmeas – não se parecía mais com um verdadeiro macho do que um veado novo se parece com um veado velho de pescoço forte, de grenha escura, de belos chifres, de pélo fulvo, forte como um toiro.
Urna outra vez, voltando ao acampamento quando o sol descia sobre um vale a pique, os guias indicaram-nos dois animais cinzentos raiados de branco que caminhavam contra o sol no topo da colina e disseram-nos que eram kudus machos. Não podíamos ver-lhes os chifres e quando chegámos ao cimo da montanha o sol tinha desaparecido e não conseguimos encontrar os traços deles sobre o solo rochoso. Mas pelo que tínhamos visto, pareciam mais altos de pernas do que as fêmeas que encontráramos e deviam portanto ser machos. Batemos os cuines ató ao escurecer mas não voltámos a vê-Ios nem Karl os encontrón quando, no dia seguirne, o mandamos lá.
Encontrámos muitos gamos e a certo altura, caçando ainda ao longo dos cuines, à beira de um precipício, deparamos com um gamo que nos tinha ouvido mas – não sentindo o nosso cheiro, – ficámos ali absolutamente imóveis. M'Cola dando-me a mão, olhando-o, apenas a doze pés de distãncia, erecto, belo, escuro, pescoço alto, uma faixa escura no pescoço, os chifres altos, todo tremente à medida que as narinas se dilatavam fare-jando. M'Cola, sorria permindo-me o pulso com os dedos e observámos o grande gamo tremendo diante deste perigo que não podia situar. Depois houve a forte e longínqua detonação de uma arma indígena de pólvora prêta e o gamo salton e quase passou por cima de nós, precipitando-se para os eûmes.
Outro dia em que P. O. M. ia connosco depois de caçarmos num terreno plano e arborizado e chegarmos à extremidade de uma planície onde havia apenas massiços de arbustos e sanse-vieras, ouvimos uma tosse profunda. Olhei para M'Cola.
– Simba – disse ele e não parecia contente.
– Wapi? – disse eu baixinho. – Onde?
Ele apon toil.
Disse baixo a P. O. M. – É um leão. Provavelmente aquele que ouvimos de manhãzinha. Vai para debaixo daquelas árvores.
Tínhamos ouvido rugir um leáo antes do nascer do dia, quando nos estávamos a levantar.
– Costaría mais de ficar ao pé de ti.
– Isso seria pouco amável para Pop – disse eu. – Espera lá a trás.
– Está bem. Mas vais prometer ter cuidado.
– Só atirarei de pé e não dispararei sem ter a certeza de o poder alvejar.
– Está bem.
– Vamos – disse eu para M'Cola.
Tinha um ar preocupado e a coisa nào Ihe estava a agradar nada.
– Wap i Simba? – disse eu em voz baixa.
– Ali – disse ele, sem ánimo, apontando para as ilhotas isoladas cobertas de arbustos verdes e acerados.
Fiz sinal a um dos guias para ir para trás com P. O. M. e vimos ambos recuarem urnas centenas de jardas até à orla da floresta.
– Vamos – disse.
M'Cola abanou a cabeça sem sorrir mas seguiu-me. Avançávamos muito devagar examinando a sanseviera e procurando ver através déla. Não podíamos ver nada. Depois ouvimos de novo a tosse, um pouco à frente e à direita.
– Não! – disse M'Cola em voz baixa. – Hapana, B'Wana!
– Vamos – disse eu.
Apontei com o indicador para o meu pescoço e baixei o polegar. «Kufa», disse baixinho, para Ihe dar a entender que ia apontar ao pescoço do bicho e que o matava ¡mediatamente. M'Cola, de expressão grave na cara cheia de suor, abanou a cabeça. «Hipana», disse baixo.
Diante de nós havia uma termiteira. Escalámos a argila cheia de sulcos e do alto contemplámos tudo à volta. Naquela extensão de verdura náo era possível distinguir coisa alguma. julgara que do alto poderíamos ver o leão; depois deseemos e continuamos durante umas duzentas jardas através dos cactos. Ainda uma vez mais o ouvimos tossir à nossa frente e uma vez mais, um pouco mais adiante, ouvimos rugir. Era forte e impressionante. Depois de deixar a termiteira o meu entusiasmo tinha abrandado. Até esta decepçao, eu pensava que poderia disparar de perto e facilmente e sabia que se pudesse matar um leão, sozinho, sem Pop, isso me daria uma grande alegria. Estava absolutamente resolvido a não disparar se não tivesse a certeza de o matar; já tinha morto très e já sabia o que isso era, mas este estava a pôr-me mais nervoso do que qualquer outro desta caçada. Eu sabia que era perfeitamente leal, em relação a Pop, ser eu a atirar, uma vez que tudo indicava que o poderia fazer com éxito, mas as coisas estavam agora a tomar um mau caminho. Ele continuava a distanciar-se à medida que nos apro-ximávamos, mas lentamente. Via-se que não estava com vonta-de de andar; tendo comido provavelmente quando de manhã o ouvíramos rugir, estava agora com vontade de descançar. M'Cola estava aborrecido. Em que medida isso era devido a sentir-se responsável por mim diante de Pop ou ao seu pròprio estado de espirito diante do perigo, não o pude saber. Mas estava muito aflito. Finalmente pousou-me a mão no ombro, quase que encostou a cara contra a minha e abanou trés vezes a cabeça com força.
– Hapana! Hapana! Hapana! B'wana! – protestou ele, tristemente e suplicante.
No fundo, eu não tinha nenhuma razão para o trazer para aqui onde não podia decidir do momento em que tinha que disparar e, pessoalmente, estava aliviado de poder voltar.
– Muito bem – disse eu.
Fizemos meia-volta e regressámos pelo mesmo caminho por onde tinhamos ido, atravessando depois a pradaria em direcção às árvores onde P. O. M. tinha ficado à espeta.
– Viste-o?
– Não – respondí. – Ouvímo-lo très ou quatto vezes.
– Não tiveste medo?
– Quase – disse eu – até ao fini. Mas gostava mais de o ter morto do que sei lá o qué.
– Estou contentissima pot teres voltado – disse eia.
Tirei do bolso o dicionário e fiz uma frase em swahili de criada. «Gostar» era a palavra que eu procurava.
– M'Cola gosta de Simba?
M'Cola já sorria, agora, e o sorriso fazia-lhe mexer os pelili hos de chinés aos cantos da boca.
– Hapana – disse eie, agitando a mão diante da cara. – Hapana!
Hapana é uma negativa.
– Matar um kudu? – sugerí eu.
– Bom – disse M'Cola com convieçao, em swahili. – Melhor, maior. Tendalla, sim. Tcndalla.
Mas não vimos um único kudu macho nas proximidades deste acampamento e partimos dois dias depois pata a região de Babati, e depois deseemos a Kondoa e cortámos através do campo na direcção de Handeni e da costa.
Eu nunca tinha gostado deste acampamento, nein dos guias, nem da região. Esta apresentava-se demasiado «bem-ordenada» com um ar um pouco artificial. Sabíamos que havia lá kudus e que o príncipe de Gales tinha motto o seu kudu neste campo, mas mais três expedições tinham lá estado durante esta temporada e os indígenas também caçavam a pretexto de defender as suas colheitas dos macacos; mas quando encontrávamos um indígena com o seu arcabuz cintado de cobre quase nos parecia impossível que perseguissem macacos a dez milhas de distãncia das machambas e kudus nas montanhas; fui de opinião que devíamos abandonar o acampamento e tentar uma nova região, para os lados de Handeni, onde nenhum de nós tinha ainda estado.
– Vamos – disse Pop.
Esta nova região apresentava-se como um verdadeiro paraíso. Os kudus mostravam-se a descoberto, o caçador esperava sentado pelo maior e de hastes mais belas e atirava-lhe. Além disso havia também antílopes pretos e resolvemos que o primeiro que matasse um kudu, se iria embora para o sitio onde havia antílopes pretos. Comecei a sentir-me muitíssimo bem disposto e Karl estava bastante contente com a ideia deste paraíso onde a caça era tão pouco perigosa que era uma ver-gonha abatê-la.
Partimos, pouco depois do nascer do sol, à frente dos carre-gadores que tinham que levantar o acampamento e seguir em dois camióes. Parámos em Babati, no hotelzinho por cima do lago, comprámos mais alguns pickles Pan-Yan e bebemos cerveja fresca. Depois continuámos para o sul pela estrada do Cabo ao Cairo, aqui de nítido traçado, lisa e bem laucada ao longo de montanhas cobertas de vegetação, dominando a longa extensão amatela das planícies de Masai Steppes, através de uma região agrícola onde velhas de seios flácidos e velhos de barriga metida para dentro e costas abauladas cavavam os campos. Depois de percorrermos milhas e milhas de estrada poeirenta, entrámos num vale de barro seco, de terra corroída pela erosão que vinha em nuvens para os nossos olhos e na linda guarnição militar modelo, dos alemães, de Kandoa-Irangi, toda caiada e cheia de sombra.
Pusemos M'Cola na encruzilhada para fazer parar os camiöes quando chegassem, deixámos o carro à sombra, e visitamos o cemitério militar. Quisemos avistar-nos com os oficiais mas estavam a almoçar; nào os quisemos incomodar. Por isso, depois da visita ao cemitério militar, que era um lugar ágradável, limpo e bem cuidado e táo bom como qualquer outro para se estar morto, bebemos cerveja debaixo de uma árvore numa penumbra táo fresca como um líquido, depois da brandirà res-plandecente de um sol de que se sentía o peso no pescoço e nos ombros, pusemos o carro em marcha e voltámos à encruzilhada para nos juntarmos aos camiöes e partir para leste, pata a nova região.
~ CAPÍTULO OITAVO
Era uma regiäo nova para nós mas tinha um aspecto de coisa antiga. A estrada era uma pista assente em lages sólidas, aberta por caravanas e gado, ao longo de uma extensáo impraticável semeada de rochedos entre uma dupla fila de árvores que penetrava nas colinas. A regiäo era täo parecida com Aragäo que só me convenci que näo estávamos em Espanha quando, em lugar de muías carregando sacos, vimos uma dúzia de indígenas de cabeça descoberta e pernas nuas vestidos de panos brancos apanhados nos ombros, como uma toga; mas logo que os deixámos para trás, as grandes árvores ao longo da pista por cima dos rochedos eram Espanha, e eu tinha já per-corrido esta mesma estrada para seguir de perto um cavalo observando as horríveis moscas a cncarniçarem-se em volta do sen cachaço. Eram as mesmas moscas de camelos que aqui encontrávamos nos leões. Em Espanha, se uma delas se metia na nossa camisa era preciso despi-Ia para a matar. Entrava pelo colarinho, descia para as costas, circulava à volta dos braços, ia para o umbigo e para a cintura e, se não se apanhava, des-locar-se-ia com tal inteligência e velocidade ao mesmo tempo que se tornava chata e escorregadia e não havia outro remédio para a matar senão despirmo-nos completamente.
O dia em que observei as moscas encarniçadas na cauda do cavalo, que também me morderam, é a ocasião de que me lem-bro com mais horror, a não ser uma outra vez, no hospital, em que me vi com o braço direito partido entre o cotovelo e o ombro, as costas da mão ao longo das costas, com as extremidades dos ossos a cortarem-me os bíceps até que finalmente apodreceram, incharam e rebentaram desfazendo-se em puz. Sozinho com a dor durante a noite, nas cinco semanas em que não dormi. E pensei subitamente no que um veado deve sentir se Ihe quebramos os membros e foge. Nessa noite deitei-me e senti tudo isso, desde o choque da bala até ao fim de tudo e, embora delirando um pouco, pensava que o que estava sofren-do era um castigo para todos os caçadores. Depois de curado, assentei em que, se era um castigo, eu já o tinha sofrido e pelo menos sabia o que estava a fazer. Näo fazia nada que não me tivessem fei to a mim. Tinham-me alvejado, tinham-me ferido e eu escapara-me. Esperava sempre ser morto por uma coisa ou por outra e, sinceramente, já nada isso me importava. Visto que ainda gostava de caçar decidi que so caçaría enquanto pudesse matar com limpeza e que logo que perdesse esta habilidade pararia.
Se enquanto jovens servimos o nosso tempo dedicando-nos à causa da sociedade, da democracia ou a outra recusando todos os demais compromissos, tornamo-nos responsáveis só para com nós próprios, trocando a agradável e reconfortante atmosfera da camaradagem por qualquer coisa que nunca se pode sentir senáo em nós mesmos. Essa qualquer coisa não a posso ainda definir complétamete mas é o sentimento que existe quando se escreve bem e com verdade sobre alguma coisa e sabendo objectivamente que escrevemos daquela maneira, mas aqueles que säo pagos para nos 1er e para se pronunciaran não gostam do assunto e dizem por isso que é uma impostura – embora saibamos que a coisa vale, indubitavelmente; ou se nos dedicamos a alguma coisa que a maior parte das pessoas não considera uma ocupação séria e não obstante sabemos, sem sombra de dúvida, que ela é e sempre tem sido tão importante como qualquer das outras coisas em voga; ou quando, no meio do mar, estamos sozinhos com ele e sabemos que esta Corrente do Golfo com quem estamos a viver, aprendendo a conhecê-lo e a amá-lo, corre e correu antes do aparecimento do homem e que banhou as margens desta longa, bela e infeliz ilha, mesmo antes de Colombo a ter avistado e que as coisas que aprendemos sobre a Corrente do Golfo e as que estão dentro dele são permanentes e valiosas porque esta corrente sempre correrá como tem corrido depois dos indianos, depois dos espanhóis, depois dos ingleses, depois dos americanos e depois dos cubanos. E quando todos os sistemas de governo, de riqueza, de pobreza, de martirio, de sacrifício, de venalidade e de crueldade tiverem desaparecido como uma velha barcaça de lixo de cores bri-lhantes listada de branco, mal cheirosa e que inclinada despeja a carga na água azul, tornando-a de um verde pálido à profun-didade de quatto ou cinco bracas no momento em que a carga se espalba à sua superfície, indo a parte pesada ao fundo e ficando ao de cimo os restos flutuantes, palmas, rolhas, garrafas, lâmpadas usadas, à mistura com um ocasional preservativo, um espartilho flutuante, as folhas rasgadas de uni caderno escolar, um cão já inchado, o rato ocasional, o gato vadio; tudo isto sob a vigilância dos barcos de recolha do lixo que apanham a colheita com longos gadanchos, täo deligentes, inteligentes e exactos como historiadores; têm vistas largas; a corrente, sem fluxo visível, leva cinco cargas destas por dia, quando as coisas correm bem em Havana e, dez milhas ao longo da costa, é täo limpa e azul e pouco turva como era antes do rebocador ter arrastado a barcaça do lixo; e as palmas das nossas vitórias, as lámpadas das nossas descobertas e os preservativos vazios dos nossos grandes amores flutuam sem significado sobre uma única coisa dura vel – a corrente.
Assim, no lugar da frente, pensando no mar e no campo, depressa saímos de Aragäo para a margem de um rio de areia de meia milha de largura, areia dourada marginada por verdes árvores e cortada por ilhas arborizadas. Neste rio a água está por baixo da areia e os animais vêm pela noite, escavam a areia com os cascos pontiagudos, a água brota e eles bebem. Atraves-sámos este rio e começava a entardecer quando encontrámos na estrada muita gente que deixava a região onde havia fome. Aos lados havia agora pequeñas árvores e arbustos cerrados e depois começámos a subir e chegámos a umas montanhas azuis, velhas, gastas, cobertas de árvores semeihantes a faias com grupos de cabanas de onde saía fumo, e gado que recolhia, e rebanhos de carneiros e cabras, e campos de milho, e eu disse a P. O. M.:
– Parece a Galiza.
– Exactamente – disse eia. – Já estivemos hoje em très provincias de Espanha.
– É realmente assim? – perguntou Pop.
– Não há a menor diferença – disse eu. – Apenas nos edificios. É como Navarra e a regiäo de Droopy. O calcáno brotando da mesma maneira, a mesma disposição da terra, as árvores ao longo dos cursos de água e perto das fontes.
– É fantástico como se pode amar um país – disse Pop
– Vocês estáo muito profundos – disse P. O. M.
– Mas onde vamos acampar?
– Aqui – disse Pop. – É tão bom como qualquer outro lugar. Procuraremos água.
Acampámos debaixo dumas árvores perto de três nascentes onde as mulheres nativas vinham buscar água e depois de tirar-mos sortes para o terreno Karl e eu fomos caçar já noitinha, à volta de duas colinas do outro lado da estrada por cima da aldeia dos nativos.
– É uma regiäo de kudus – disse Pop. – Pode topar-se com um em qualquer sítio.
Mas não vimos nada, a não ser algum gado masai no bosque e voltámos para o acampamento, já noite, satisfeitos com o passeio, depois de um dia de carro, e encontramos o acampamento montado, Pop e P. O. M. em pijama perto da foguei-ra e Karl sem ter voltado.
Voltou furioso por quaquer razäo, talvez por não haver kudus, pálido, mal encarado e não fatando com ninguém.
Mais tarde, à fogueira, perguntou-me onde tínhamos ido e eu disse-lhe que foramos caçar à volta das colinas até que o nosso guia os ouviu; depois tínhamos subido a montanha, des-cido e, através dos campos, voltáramos para o acampamento.
– O que é que você quer dizer com «ouviu-nos»?
– Ele disse que o ouviu. E M'Cola também.
– Estava convencido de que tínhamos tirado o terreno à sorte.
– Tirámos – disse eu. – Mas não sabíamos que estávamos a entrar na sua parte senão quando o ouvimos.
– Você ouviu-nos?
– Ouvi qualquer coisa – disse eu. – E quando pus a mão no ouvido para escutar, o guia disse qualquer coisa a M'Cola e M'Cola disse: «B'wana». Eu perguntei: «Que B'wana?», e eie disse: «B'wana Kabor». É você. Assim que percebemos que tínhamos entrado no seu limite, subimos e voltámos para o acampamento.
Não disse nada, mas parecía irritado.
– Não se zangue – disse eu.
– Não estou zangado. Estou cansado – disse ele.
Acreditei porque ninguém era mais amável, mais comprensivo, menos egoísta do que Karl, mas os kudus tornaram-se numa obcessão para ele, deixando de ser ele pròprio, ou de se parecer consigo mesmo.
– Era bem bom que ele apanhasse um, o mais depressa possivel – disse P. O. M. quando ele se foi embora para ir tomar banho.
– Entrou no campo dele? – perguntou-me Pop.
– Não, que diabo! – disse eu.
– Eie vai matar um no sítio para onde vamos – disse Pop. – Pode até matar um de cinquenta polegadas.
– Tanto melhor – disse eu. – Mas, valha-me Deus, também quero apanhar um.
– Apanhará, meu velho – disse Pop. – Estou certo que sim.
– Que diabo! Ainda temos dez dias.
– Também apaninaremos antílopes pretos, vai ver. Alguma vez havemos de ter sorte.
– Quanto tempo é que precisoti de estar numa regiäo boa, para os caçar?
– Três semanas e vim-me embota sem ter visto nenhum. E vi caçadores matá-los no primeiro meio-dia. E caçar da mesma maneira que vocês caçam gamos na América.
– Adoro essa caça – disse eu. – Mas não gosto que esse tipo me vença. Pop, ele tem o melhor búfalo, o melhor rinoceronte, o melhor antílope.
– Você bateu-o no orix – disse Pop.
– O que é que vale um orix?
– Fará imensa vista quando o levar para a América.
– Estou a brincar.
– Você bate-o na impala, no antílope. Você tem um antílope de primeira ordern. O seu leopardo é täo bom como o dele. Mas ele bate-o em tudo que requeira sorte. Tem uma sorte dañada e é um bom moço. Anda um bocado fora de si.
– Você sabe como eu gosto dele. Estimo-o tanto como a qualquer outro. Mas gostava que se divertisse. Não é agradável caçar assim, com ele sempre aborrecido.
– Você vai ver. Na próxima vez ele apanha um kudu e fica radiante.
– Não passo dum impertinente – disse eu. – Mas porque é que não vamos beber qualquer coisa?
– Óptimo – disse eu.
Karl apareceu, calmo, amável, pacífico e compreensivo.
– Vai ser agradável chegar à nova região – disse ele.
– Vai ser formidável – respondi eu.
– Diga-me como é, sr. Phillips – perguntou ele a Pop.
– Näo sei – disse Pop. – Mas dizem que é um sítio muito agradável para caçar. Dizem que os kudus se mostram a desco-berto. O velho holandés afirma que os de lá têm hastes notá-veis.
– Faço votos para que apanhe um com pontas de sessenta polegadas, meu velho – disse-me Karl.
– Você vai abater um de sessenta.
– Não – disse Karl. – Não brinque comigo. Qualquer kudu me serve.
– É muito provável que mate um enorme – disse Pop.
– Não brinque comigo – disse Karl. – Eu bem sei a sorte que tenho tido. Ficaria satisfeito com um kudu qualquer. Um macho, seja ele como for.
Mostrava-se muito compreensivo, via-se que adivinhava o que pensávamos, que nos perdoava e nos compreendia.
– Velho Karl – disse eu, aquecido pelo whisky, compreensivo e sentimental.
– Temos passado um tempo muito aborrecido, não temos? – disse Karl. – Onde está a nossa querida marná?
– Estou aqui – disse P. O. M. que estava debaixo duma sombra. – Eu pertenço ao género de pessoas calmas.
– Era o diabo se o não fosse – disse Pop. – Você sabe fazer parar o velhote quando eie se prepara para começar.
– É isso que faz da mulher a favorita universal – disse para mim P. O. M.
– Diga-me outra amabilidade, sr. J.
– Deus do céu, voce é corajosa como um pequeno «fox-terrier».
Via-se que Pop e eu tínhamos estado a beber.
– Isso é encantador. – P. O. M. estava sentada ao fundo na sua cadeira, com as mãos à volta das botas à prova de mosquitos. Olhei para ela, vendo agora à luz da fogueira o seu roupão azul acolchoado e a luz sobre os seus cabelos negros. – Adorava que chegássemos à fase do fox-terrier. Nessa altura a guerra não estava longe. Algum dos dois cavalheiros esteve por acaso na guerra?
– Então não havíamos de estar – disse Pop. – Dois dos mais bravos malandros que cobre a roda do sol e o seu marido uma magnífica espingarda e um excelente batedor.
– Agora, que está bêbedo, diz a verdade – disse eu.
– Vamos comer – disse P. O. M. – Estou realmente com uma fome terrível.
De madrugada partimos de carro pela estrada que passava pela aldeia e, atravessando uma extensão de mato cerrado, chegámos ao fim de uma planície, ainda cheia da névoa da madrugada, de onde se podiam ver, a uma grande distância, antílopes a pastar, cinzentos e enormes, à luz da manhã. Parámos o carro, apeámo-nos e, sentados, vimos com o binóculo que havia uma manada de búfalos espalhados e, entre os antílopes, um único antílope macho, semelhante a um corpulento burro de Masai, cor de ameixa, com maravilhosos chifres compridos, pretos, direitos, recurvados para trás, que se exibiam de cada vez que, suspendendo o pasto, levantava a cabeça.
– Quer atirar-lhe? – perguntei eu a Karl.
– Não. Atire-lhe você.
Eu sabia que ele detestava caçar escondido e disparar diante dos outros e por isso disse-lhe:
– Muito bem.
Eu também tinha vontade de disparar, egoistamente, e Karl não era egoísta. Tínhamos grande necessidade de carne.
Eu caminhava ao longo da estrada, não olhando na direcção da caça, procurando mostrar-me desinteressado, com a espingarda em bandoleira no ombro esquerdo, fingindo dis-tanciar-me dos animais. Estes pareciam não reparar em mim, mas pastavam distanciando-se regularmente. Sabia que se me aproximasse deles fugiriam imediatamente do meu alcance. Por isso quando, com o rabo do olho, vi que o antílope bai-xava a cabeça para pastar e que era possivel alvejá-lo tirei a espingarda do ombro e corno se pusesse a olhar e a afastar-se, visei a parte dianteira das costas e disparei. Não se ouviu o barulho do tiro, mas o barulho da baia fez-se ouvir com o antílope a correr para o lado direito, transformando-se toda a planicie numa tela de fundo onde os animais se moviam em contra-luz: o galope de cavalinho-de-baloiço do pernalta e grotesco búfalo, o trote pesado que se transformava em galope do antílope e a corrida dum orix que eu ainda não tinha visto e fugia ao lado dum outro búfalo. Esta súbita vida e este pânico serviam de pano de fundo ao animai que eu visava e que agora trotava, de chifres no ar, já quase fora do meu alcance. Conservei-me de pé para Ihe atirar em corrida e com o animal completamente visível, em miniatura, na mira da minha espingarda, apontei à parte superior dos quartos dianteiros, um pouco à frente, disparei e ele caiu, esperneando, antes que o som da bala batendo no osso chegasse até mim. Um tiro mais comprido e ainda mais feliz que o primeiro quebrou-lhe uma pata traseira.
Corri para eie mas logo em seguida moderei o passo cuidadosamente para que não me derrubasse se ainda pudesse saltar e correr; mas tinha caído de vez. Tinha caído por terra tão repentinamente e a baia tinha feito um tal ruído ao entrar-lhe no corpo que julguei que o tinha atingido nos chifres, mas quando me aproximei dele vi que tinha sido morto ao primeiro tiro na parte central dos quartos dianteiros e que tinha sido o tiro da pata que o tinha feito cair. Todos acorre-ram e Charo sangrou-o para Ihe tornar a carne ritualmente comestível.
– Onde é que apontou da segunda vez? – perguntou Karl.
– Para parte nenhuma. Um pouco acima e bastante para a frente.
– Foi um lindo tiro – disse Dan.
– Esta noite – disse Pop – vai-nos dizer que Ihe partiti a perna de propósito. Este é um dos tiros favoritos dele, sabe? Nunca o ouviu a explicá-lo?
Enquanto M'Cola esfolava a cabeça e Charo retalhava a carne, um indígena masai alto e magro, com uma lança na mäo chegou-se ao pé de nós, deu os bons-dias e conservou-se de pé, numa perna só, a ver esfolar o animal. Dirigiu-se-me num discurso bastante comprido e chamei Pop. O masai repetiu-o a Pop.
– Ele quer saber se se vai cacar outra coisa – disse Pop. – Gostaria de ter algumas peles, mas não Ihe interessam as peles de orix. Segundo ele não valem nada. Quería saber se você gostaria de matar um par de búfalos ou um antílope. Estäo inte-ressados nestas peles.
– Diga-lhe que quando voltarmos.
Pop transmitiu-lhe o recado com solenidade. O masai aper-tou-me a mão.
– Diga-lhe que me encontrará sempre no Harry's New-York Bar – disse eu.
O masai disse ainda qualquer coisa mais e coçou uma perna contra a outra.
– Ele pergunta porque é que disparou duas vezes – interro-gou Pop.
– Diga-lhe que de manhâ, na nossa tribo, disparamos sempre duas vezes. Á tarde disparamos urna. Á noite não disparamos nenhuma porque somos nós que estamos já quase meio-mortos. Díga-lhe que me pode encontrar sempre no New Stauley ou no Torr's.
– Ele pergunta o que é que faz dos chifres.
– Diga-lhe que, na nossa tribo, os damos aos amigos mais ricos. Diga-lhe que é muito interessante e que, às vezes, os membros da tribo são perseguidos através de grandes distâncias com pistolas vazias. Diga-lhe que pode encontrar o meu nome no anuário.
Pop voltou a dizer qualquer coisa mais ao masai, voltámos de novo a apertar as mäos e despedimo-nos nas melhores rela-ções. Inspeccionando a planície, através da bruma, vimos alguns outros masais caminhando ao longo da estrada; tinham a pele terrosa, dobravam os joelhos ao andar e as suas lanças brilhavam à luz da manhä.
Regressados ao carro, com a cabeça do orix embrulhada numa serapilheira, a carne acondicionada no interior dos guarda-lamas, o sangue quase a secar e a carne a cobrir-se de poeira, a estrada agora de areia vermelha, chegámos às colinas e atravessámos a pequeña aldeia de Kibaya onde havia uma casa de repouso caiada de branco, uma loja e muita terra cultivada. Fora aqui que Dan se sentara uma vez numa meda de feno à espera que um kudu viesse pastar a um campo de milho e um leäo o tinha surpreendido e estiverà prestes a matá-lo. Isto inspirou-nos um forte sentimento histórico pela aldeia de Kibaya e corno estava fresco e o sol ainda não tinha secado o orvalho da erva, sugerí que bebessemos uma garrafa daquela cerveja alemä com o gargalo envolvido em papel de prata, de tótulo amatelo e preto com um cavaleiro vestido de armadura, para que nos lembrássemos melhor do lugar e ficássemos com mais veneração por ele. Feito isto, cheios de admiração histórica por Kibaya, soubemos que para diante a estrada era praticável e, deixando recado para que os camiões nos seguissem em direeção a leste, dirigimo-nos para a costa e para a região dos kudus.
Durante muito tempo, enquanto o sol subia e o calor do dia aumentava, atravessámos o que Pop tinha descrito quando Ihe perguntara corno era a região para o sul, corno um milhäo de milhas de África cem por cento, mato denso à beira da estrada, formado de arbustos espessos, impenetráveis, de aspecto acerado.
– Lá por dentto há elefantes enormes – disse Pop. – Mas é impossível caçá-Ios. É por isso que eles são enormes. Simples, não é?
Depois dum longo percurso nesta regiäo dum milhão de milhas, a paisagem começou a espraiar-se em pradarias secas, arenosas, contornadas de arbustos que se transformavam numa típica região desértica, com tufos de vegetação nos sítios onde havia água que Pop disse lembrar-lhe a província norte da fron-teira do Kénia. Estávamos à cata de getenucos, esse antílope de pescoço comprido cujo porte de cabeça faz lembra r um manto de igreja e de kudus pequenos que sabíamos existirem neste deserto, mas como o sol estava alto não podemos ver nada. Por fim a estrada começou gradualmente a subir outra vez para as colinas baixas, azuis, arborizadas, com milhas de arbustos dispersos, um pouco mais espessos do que arbustos frutíferos, à frente, entre duas altas, grandes colinas cobertas de árvores, suficientemente grandes para serem consideradas montanhas. Situavam-se de ambos os lados da estrada e quando o carro atingia o sítio onde a estrada se tornava mais estreita, vimos uma manada de centenas de cabeças de gado conduzida para o litoral por negociantes de gado da Somália, caminhando à frente o negociante mais importante, alto, bem parecido, de turbante branco, fato de verão, levando um guarda-chuva como símbolo de autoridade. Conseguimos fazer passar o carro pelo meio da manada e depois, contornando agradáveis maci-ços desembocámos em terreno descoberto entre duas montanhas e caminhando mais uma meia milha chegámos a uma aldeia de lama e de colmo numa clareira, assente num planal-to pouco elevado, entre duas montanhas. Vistas de trás as montanhas, com as suas verteiltes cobertas de arvoredo, eram realmente belas com rochedos a aparecer aqui e além e largas clareiras e prados por cima da floresta.
– É este o lugar?
– É – disse Dan. – Vamos procurar o sitio do acampamento. Um negro muito velho, cansado e mitrado, com pêlos bran-cos na barba, um lavrador vestido com um fato imundo que em tempos tinha sido branco, apanhado nos ombros à maneira de toga romana, saiu de trás duma das cabanas feitas de vime e de lama e guiou-nos pelo lado detrás da estrada, à esquerda, até um lugar bastante bom para acampar. Era um velho de aspecto desalentado e depois de Pop e Dan terem falado com ele, foi-se embora, parecendo ainda mais desanimado que há pouco, para trazer algum guias cujos nomes Dan trazia escritos num bocado de papel, recomendados por um caçador holandés que ali tinha estado há um ano e era grande amigo de Dan.
Tirámos os assentos ao carro para os usarmos como bancos e mesas e estendendo os nossos casacos para nos sentarmos, almoçámos à sombra densa de uma grande árvore, bebemos cerveja, dormimos ou lemos enquanto esperávamos que che-gassem os camiões. Antes destes chegarem, o velho voltou com um indígena de Wanderobos, o mais esquelético, mais mitrado, mais esfomeado, mais desgraçado de todos, que se conservou de pé sobre uma perna, coçando o pescoço e trazia um arco, um carcaz de setas e uma lança. Quando Ihe perguntámos se ele era o guia cujo nome nós tínhamos, o velho confessou que não eta e foi-se embota mais desanimado do que nunca, buscar os guias oficiáis.
Quando voltámos a acordar estava lá o velho com dois guias oficiáis completamente vestidos de caqui e dois outros, absolutamente nus, da aldeia. Houve um comprido palavreado e o chefe dos dois guias de calção de caqui exibiu as suas cre-denciais – A todos que este documento virem – declarando que o seu possuidor conhecia bem a região, era pessoa séria e um competente batedor. Este documento era assinado por um senhor fulano de tal, caçador profissional. O guia de fato de caqui designava este caçador profissional pelo nome de B'fuana Simba, nome que nos deixou furiosos.
– Se calhar um gajo que matou um leão uma vez – disse Pop.
– Diga-lhe que eu sou o B'wana Fisi, o estrangulador de hienas – disse eu a Dan. – B'wana Fisi estrangula-as com as mãos nuas.
Dan estava a dizer-Ihe outra coisa qualquer.
– Pergunte-lhes se eles querem conhecer B'vana Hop-Toad, o inventor dos sapos saltadores e a Mamã Tziggi que é proprietária de todos estes gafanhotos.
Dan ignorou este recado. Parecia que estavam a discutir a questão do dinheiro. Depois de terem chegado a acordo sobre o salário, Pop disse-lhes que se qualquer de nós matasse um kudu, o guia receberia quinze xelins.
– Uma libra, era o que queria dizer – disse o chefe.
– Parece que sabem o que querem – disse Pop. – Devo dizer que não me interessa muito este desportista, não obstante o que dele diz B'wana Simba.
A propósito devo dizer que descolorimos mais tarde que B'wana Simba era um excelente caçador com uma óptima repu-taçâo ao longo de toda a costa.
– Vamos pò-los em dois lotes e você tira a sorte – sugeriu Pop – um nu e um de calções em cada lote. Quanto a mim, como guia, escolho o selvagem nu.
Depois de termos assente que os dois guias munidos de certificados e de calções escolhessem cada qual um companheiro sem roupa, descobrimos que isso não dava resultado. O Voz-Grossa, que tinha sido o gènio da finança e que agora era o do teatro, estava a fazer uma reprodução, gesto por gesto, da Maneira-Como-B'wana Simba-Tinha-Morto-o-seu-último-Kudu e interrompeu pelo tempo suficiente para declarar que só caçava com Abdullah. Abdullah, o baixinho, de nariz grosso, bem educado, era o Seu Batedor. Que sempre caçavam juntos. Que ele próprio não era batedor. Recomeçou a pantomina de B'wana Simba e de uma outra personagem que ele chamava B'wana Doktor e de animais de chifres.
– Vamos fazer um lote com os dois selvagens e outro com estes dois estudantes de Oxford – disse Pop.
– Detesto esse palerma palavroso – disse eu.
– Talvez seja maravilhoso – disse Pop com ar de dúvida. – De qualquer maneira você é um bom batedor. O velho diz que os outros dois são bons.
– Obrigado. Vá para o diabo. Quer segurar nas palhas? Pop, meteu dois caules de erva no punho.
– A mais comprida é do David Garrick e do seu compincha – explicou eie. – A mais curta é dos dois desportistas nus.
– Quer tirar primeiro?
– Tire você – disse Karl.
Saiu-me David Garrick e Abdullah.
– A mini calhou-me o comediante.
– Pode ser que seja muito bom – disse Karl.
– Quer trocar?
– Não. Pode ser uma maravilha.
– Agora vamos tirar à sorte o terreno. Aquele a quem calhar a palha mais comprida escolhe primeiro – explicou Pop.
– Vá, tire. – Karl tirou a palha curta.
– Onde estão os vencidos? – perguntei eu a Pop.
Seguiu-se uma longa conversa na quai o nosso David simu-lou a caça a uma meia dúzia de kudus em diferentes tipos de embuscada, de surpresa, em campo aberto e no mato.
Finalmente Pop disse:
– Parece que há uma espécie de pântano salgado onde eles vêem lamber o sal e onde podem ser mortos aos milhares. Por isso algumas vezes basta a gente passeat-se à volta da colina para abater a descoberto os pobres animais. Se você se sente em belíssima forma, sobe, à procura deles, e, de cima dos rochedos escarpados, não tem mais que atirar-lhes quando vierem pastar.
– Eu tomo conta do pântano.
– Não se esqueça de só disparar para o maior – disse Pop.
– Quando partimos? – perguntou Karl.
– O pântano é suposto ser o número da manhã – informou Pop. – Mas o velho Hern talvez pudesse dar uma espreitadela esta noite. Há cerca de cinco milhas de esttada antes de se começar a andar. Ele pode ir primeiro de carro. Você pode tentar as colinas quando o sol começar a declinar.
– O que é que se vai fazer com Memsahib – perguntei eu. – Levo-a comigo?
– Não me parece aconselhável – disse Pop com gravidade.
– Para caçar kudus quanto menos gente melhor.
M'Cola, o Empresario Teatral, Abdullah e eu regressámos ao fim da tarde, já com a frescura da noite, e estávamos excita-díssimos quando nos sentamos ao lume. A poeira do pântano estava revolvida e tinha pegadas fundas e ainda frescas de kudus e de alguns machos grandes. O abrigo era um esconde-rijo maravilhoso e eu estava tão seguro e tão confiante de atirar a um kudu no dia seguinte de manhã como estaia de atirar a um pato, de um bom abrigo, com uma grande quantidade de «chamaris», tempo fresco e a certeza da passagem.
– É impermeável ao ar. Á prova de imbecis. Até é uma ver-gonha. Como se chama, Booth, Barret, McCullough – sabe a quem me refiro.
– Charles Laughton – disse Pop tirando uma fumaça do seu cachimbo.
– Isso mesmo. Fred Astaire. O pé mais ligeiro da sociedade e do universo. É um ás. Encontrou o abrigo e tudo. Sabia onde ficava o pântano. Para saber a direcção do vento basta-lhes espalhar um pouco de poeira. É uma maravilha. B'wana Simba põe-os finos, meu velho. Pop, estão-nos no papo, esses kudus. É só uma questão de não estragar a carne e de escolher os exemplares mais fortes. Mato-lhe dois amanhã, no pântano. Cidadãos, sinto-me com uma optima disposiçâo.
– O que é que, você bebeu?
– Nada, palavra. Chame o Garrick. Diga-lhe que o levo para o cinema. Tenho um papel para ele. Uma rábula que estive a inventar quando voltava para o acampamneto. Talvez não dé resultado mas a intriga agrada-me. Otelo ou o Mouro de Veneza. Costa? Encerra uma ideia estupenda. Veja, o tipo que nós chamamos Otelo apaixona-se pela rapariga que não conhe-ce nada do mundo e que nós chamamos Desdémona. Que tal? Há anos que andam a trás de mim para que escreva isto, mas o problema da cor fazia-me hesitar. Ele que apareça primeiro e que ganhe reputaçâo, disse-lhes eu. Harry Wills que vá para o diabo. Paulino bateu-o. Sharkey bateu-o. Dempsey bateu Sharkey. Carnera pô-lo fora de combate. O que é que tem, se ninguém viu? Onde diabo estamos nós, Pop? Harry Greb morreu, sabe?
– Estamos mesmo a entrar na cidade – disse Pop. – As pessoas estavam a atirar-nos coisas e não sabíamos porqué.
– Recordo-me – disse P. O. M. – Porque é que não fez com que ele metesse a cor, sr. J. P.?
– Eu estava terrivelmente cançado – disse Pop.
– Não obstante tem um ar muito distinto – disse P. O. M.
– O que é que vamos fazer a este gabarola?
– Damos-lhe um copo e vamos ver se ele se acalma.
– Agora estou calmo – disse eu. – Mas, caramba, para amanhá sinto-me em magnífica forma.
E neste preciso momento quem havia de chegar ao acampamento senão o velho Karl com os seus dois selvagens nus e o seu pequenitote e fiel carregador maometano, Charo. À luz da fogueira, a face do velho Karl estava de um branco acinzenta-do e amarelado. Este tirou a sua Stetson.
– Então, apanhou algum? – perguntou ele.
– Não. Mas há-os. O que é que você fez?
– Andei por uma estrada levada dos diabos. Como é que esperam encontrar kudus numa estrada onde só há gado, cabanas e gente?
Não tinha o aspecto habitual e imaginei que estivesse doente. Mas o ter entrado com uma cara de cadáver quando estávamos a fazer palhaçadas, levou-me a ser maldoso, dizendo:
– Tirámos à sorte, sabe?
– Claro – disse ele com azedume. – Caçámos ao longo de uma estrada. O que é que esperava ver? Acha que é esta a maneira de caçar kudus?
– Mas há-de matar um amanhã no pântano – disse-lhe ama-velmente P. O. M.
Esvaziei o meu copo de whisky e soda e ouvi a minha própria voz a dizer com toda a cotdealidade:
– Pode ter a certeza que de manhã mata um no pântano.
– É você que caça de manhã – disse Karl.
– Não. É você. A mim calhou-me esta noite. Mudámos.
Ficou combinado. Não é verdade, Pop?
– Absolutamente – confirmou este.
Nenhum de nós olhava os outros.
– Vai um whisky e soda, Karl? – disse P. O. M.
– Óptimo – disse Karl.
A refeiçáo foi calma. Na cama, sob a tenda, disse-me:
– Que diabo te deu, para Ihe dizeres que o pântano era para ele, amanhã de manhã?
– Não sei. Parece-me que não era isso que eu queria dizer. Enganei-me. Não falemos mais nisso.
– Fui eu que ganhei ao tirar a sorte. Não se deve ir contra a sorte. É a única maneira de equilibrar as oportunidades.
– Não se fala mais no assunto.
– Estou convencido de que ele não está em forma neste momento, de posse de todas as suas qualidades.
A porcaria da caça transtornou-o e no estado em que está é capaz de pintar o diabo lá no pántano.
– Acaba com isso, por favor.
– Acabo.
– Bem.
– Bem, ao menos puzemo-lo bem disposto.
– Não me interessa nada. Acaba com isso, por favor.
– Acabo.
– Bem.
– Boa noite – disse eia.
– Que vá tudo para o diabo – disse. – Boa noite.
– Boa noite.
~ CAPÍTULO NONO
De manhã Karl e a sua comitiva partiram para o pântano e Garrick, Abdullah, M'Cola e eu atravessámos a estrada obliquando por detrás da aldeia ao longo de um ribeiro seco e, através da bruma, começámos a ascenção das montanhas. Caminhávamos no leito seco de um curso de água cheio de pedras e seixos, cobertos de trepadeiras e arbustos, de maneira que ao subir tínhamos que ir curvados por baixo de um túnel escarpado, de trepadeiras e folhagem. Eu transpirava tanto que tinha a camisa e a roupa debaixo encharcadas e corno ao che-gármos à encosta da montanha ficássemos de pé a contemplar as nuvens que por baixo de nós acolchoavam todo o vale, a brisa da manhã começou a arrefecer-me e tive que pór o imper-meável enquanto, com o binóculo, inspecionávamos a região. Estava a transpirar de mais para me poder sentar e fiz sinal a Garrick para continuar a andar. Contornámos um dos lados da montanha, descrevendo um círculo num plano mais alto e, saindo do sol que estava secando a minha camisa molhada, atravessámos o cume de uma série de vales cobertos de erva e parámos para observar tudo cuidadosamente com o binóculo. Por firn, chegámos a uma espácie de anfiteatro, um vale em forma de tijela com erva muito verde, um pequeño regato no meio e árvores na extremidade mais afastada. Sentámo-nos à sombra, encostados aos rochedos, ao abrigo da brisa, a olhar pelo binóculo, enquanto o sol subia iluminando as encostas fronteiras e vimos dois kudus fêmeas e uma cria que saíam do bosque para pastar; comiam à pressa, levantavam a cabeça, olhavam para a frente durante certo tempo, denunciando o sentimento de alerta próprio de todos os animais que pastam na floresta. Os animais, numa planície, têm um alcance visual tão grande que Ihes permite terem confiança e pastaran de uma maneira muito di ferente da dos animais na floresta. Podíamos distinguir as riscas brancas, verdeáis, nos flancos cinzentos e era agradável observá-los e encontrarmo-nos nas montanhas tão de manhã cedo. Depois, enquanto olhávamos, ouvimos um estrondo como o de um desabamento de terras. A princípio jul-guei que era qualquer rochedo que desabava, mas M'Cola disse baixinho:
– B'wana Kibor! Piga!
Ficámos à espera de outro tiro mas não o ouvimos e eu tive a certeza de que Karl tinha morto o seu kudu. As fêmeas que tínhamos visto ouviram o tiro puzeram-se um momento à escuta e continuaram a pastar. E, sempre pastando, acabaram por entrar na floresta. Recordo o velho ditado de um indiano no acampamento: «Um tiro, carne. Dois tiros, talvez. Três tiros, um monte de trampa». Tirei o dicionário do bolso para o tra-duzir a M'Cola e corno quer que saísse o que traduzi, parece têlo divertido porque riu a abanou a cabeça. Ficámos a inspeccionar o vale através do binóculo até que o sol chegou junto de nós e depois fomos caçar do outro lado da montanha e, num outro belo vale, vimos o lugar onde o outro B'wana – o seu nome ainda se parecía com B'wana Doktor – tinha morto um belo kudu macho, mas um indígena masai avançou para o centro do vale, assestei-lhe o binóculo e, quando simulei atirar-lhe, Garrick assumiti uma atitude dramática insistindo que era um homem, um homem, um homem!
– Não atirar homem? – perguntei-lhe eu.
– Não! Não! Não! – disse ele, pondo as mãos na cabeça.
Baixei com grande relutâneia a espingarda piscando o olho a M'Cola que arreganhava os dentes e, debaixo de grande calor, atravessámos um prado onde a erva nos chegava aos joe-Ihos e onde pululavam compridos gafanhotos cor-de-rosa com asas de gase que se espalhavam em nuvens à nossa volta, num barulho de máquina de ceifar. Depois de subirmos pequenas colinas e de termos descido uma ladeira muito inclinada voltá-mos para o acampamento e encontramos o céu do vale coberto de gafanhotos voadores e Karl já de volta com o seu kudu.
Quando passei diante da tenda do esfolador, este mostroume a cabeça que, sem corpo e sem pescoço, com uma capa de pele pendente, molhada e pesada no sitio onde a base do crânio tinha sido separada da coluna vertebral, se apresentava como a de um kudu muito estranilo e desgraçado. Apenas o pêlo que ia dos olhos até às narinas, que era de um cinzento suave e delicadamente pintalgado de branco e as lindas e graciosas orelhas, eram belos. Os olhos estavam já cheios de poeira e com moscas à volta; os chifres eram pesados, grosseiros e em lugar de abrirem numa espiral alta, encurvavam-se bruscamente numa volta fechada. Era uma cabeça estranila, pesada e feia.
Pop estava sentado debaixo da tenda onde comíamos, a fumar e a 1er.
– Onde está Karl? – perguntei eu.
– Julgo que está na tenda dele. O que é que fez?
– Andei à volta na montanha. Vi duas fêmeas.
– Estou satisfeítissimo por você o ter morto – disse eu a Karl à entrada da sua barraca. Como foi?
– Estávamos no abrigo e eles fizeram-me sinal para baixar a cabeça e quando olhei estava mesmo ao nosso lado. Parecia enorme.
– Nós ouvimos o seu tiro. Onde o feriu?
– Primeiro na pata, parece-me. Depois seguimo-lo e finalmente acertei-lhe duas vezes, abatendo-o.
– Só ouvimos um tiro.
– Foram très ou quatto – disse Karl.
– Com certeza a montanha abafou o som, visto que você foi por outro lado, perseguindo-o. Tem uma belíssima armaçâo.
– Obrigado – disse Karl.
– Faço votos para que mate um muito melhor. Eles disseram que havia outro mas eu não o vi.
Voltei para a tenda comum onde estavam Pop e P. O. M. que nâo pareciam muito interessados no kudu.
– O que é que vocês têm? – perguntei eu.
– Viste a cabeça? – perguntou P. O. M.
– Claro.
– É horrível – disse eia.
– É um kudu. Ainda tem direito a mais um.
Charo e os batedores disseram que ainda havia outro coni este. Um macho grande com uma lindissima cabeça.
– Óptimo. Matá-lo-ei.
– Se voltar a aparecer.
– Seria bom que eie matasse um – disse P. O. M.
– Aposto que vai matar o maior que já se viu.
– Vou mandá-lo com Dan para a região dos antílopes negros – disse Pop. – Assim é que se combinou. O primeiro a matar um kudu é o primeiro a ir tentar a sua sorte com aos antílopes negros.
– Está bem.
– Portanto, logo que mate o seu kudu também iremos para lá.
– Óptimo.
PARTE III
CAÇA E DERROTA
~
~ CAPÍTULO DÉCIMO
Tudo isto parecia ter ocorrido um ano atrás. Agora, nesta tarde, no carro, a caminho do pântano, a vinte e oito milhas de distância, com o sol a dar-nos na cara, apenas tendo morto uma galinha-da-índia e tendo, nos últimos cinco dias, falhado no pântano onde Karl matara o seu kudu, tendo falhado nos montes, nos grandes e nos pequenos, tendo falhado nos terrenos planos e perdido a oportunidade do tiro da noite anterior no pântano por causa do camião do austríaco, eu sabia que tínhamos só mais dois dias para caçar antes de nos irmos embora. M’Cola sabia isto também e estávamos caçando juntos agora, sem mais sentimentos de superioridade de parte a parte, apenas com o sentimento da escassez do tempo e da pena de não conhecermos a região e aborrecidos por termos aqueles palermas como guias.
Kamau, o condutor, era um kikuyu, um homem pacato de uns trinta e cinco anos que, com um velho casaco de fazenda castanha que algum atirador tinha abandonado, calças muito remendadas nos joelhos e rasgadas outra vez, uma camisa esfarrapada, conseguia dar sempre a impressão de grande elegância. Kamau era muito modesto, sossegado, e um excelente condutor e agora, quando voltávamos da região frondosa para a aberta e extensa, de aspecto desolado, desértico, olhei para ele, cuja elegância, conseguida com um casaco velho e um alfinente de segurança, cuja modéstia, boa disposição e perícia eu agora admirava tanto e lembrei-me como ele estivera prestes a morrer com febres quando saímos pela primeira vez e que se ele tivesse morrido isso não teria significado para mim, a não ser que teríamos um condutor a menos; enquanto que agora quando e onde quer que ele morresse eu sentiria muito. Depois, abandonando o enternecedor sentimento da distante e improvável morte de Kamau, pensei no prazer que teria de matar David Garrick pelas costas, apenas para ver a sua expressão, enquanto eie dramatizava a busca na partida de caça e, precisamente nesse momento, espantámos outro bando de galinhas--da-ãndia. M’Cola passou-me a espingarda e eu abanei a cabeça. Ele gesticulou com violência e disse: - Bem. Muito bem. E eu disse a Kamau para continuar. Isto fez confusão a Garrick que começava uma lenga-Ienga. Não precisávamos nós de galinhas? E eram galinbas-da-índia. E das melhores. Eu tinha visto pelo conta-milhas que estávamos apenas a cerca de três milhas do pântano e não tinha vontade de fazer fugir dali um kudu com um tiro, assustá-lo como o kudu pequeno que tínhamos visto sair do pântano quando ouvira o som do camião enquanto estávamos no abrigo.
Deixámos o camião debaixo de umas pequenas árvores a cerca de duas milhas do pântano e caminhámos pela estrada arenosa em direcção ao primeiro pântano que ficava a descoberto, à esquerda da pista. Tínhamos percorrido quase uma milha em absoluto silêncio e em fila indiana, Abdullah, o condutor bem-educado à frente, depois eu, M’Cola, e Garrick, quando vimos que a estrada estava molhada à nossa frente. Lá onde a areia formava uma carnada fina sobre a argila, havia uma nascente de água e verificámos que uma chuvada tinha ensopado tudo à volta. Eu não compreendia o que isto significava mas Garrick abriu os braços, olhou para o céu e mostrouos dentes enraivecido.
— Não é bom - confidenciou M’Cola.
Garrick começou a falar em voz baixa.
— Cale-se, seu palerma - disse eu, tapando a boca com a mão.
Ele continuou a falar num torn de voz acima do normal e eu procurei «cale-se» no dicionário enquanto ele apontava o céu e a estrada molhada. Não pude encontrar «cale-se» e então pus as costas da minha mão contra a boca dele com firmeza e ele fechou-a, surpreendido.
— Cola - disse eu.
— Sim - disse M’Cola.
— O que é que acontecen?
— Pântano não bom.
— Ah!
Era então isso. Eu pensava na chuva apenas como numa coisa que tornva a procura das pegadas mais fácil.
— Quando, a chuva? - pergunte.
— A noite passada - disse M’Cola
Garrick começou a falar e eu pus as costas da minha mão contra a sua boca.
— Cola.
— Sim.
— Outro pântano - e apontei na direcção do grande lago salgado, nas matas, o quai sabia ser bastante mais alto porque tínhamos subido um pouco através do matagal para o aleançar. - Outro pântano bom?
— Talvez.
M’Cola disse qualquer coisa em voz baixa a Garrick que parecen profundamente chocado, mas conservou a boca fechada e continuámos pela estrada, caminhando à volta dos sítios molhados onde a funda depressão do pântano estava alagada de água até meio. Aqui Garrick começou a sussurrar um discurso, mas M’Cola fê-lo calar de novo.
— Vamos - disse eu.
— E, com M’Cola à frente, começamos a fazer a ascensão do húmido, arenoso curso de água, habitualmente seco, que conduz pelo meio das árvores ao pântano superior.
M’Cola estacon, debruçou-se para ver a areia molhada e murmurou para mim:
— Homem.
Lá estava uma marca de pés.
— Shenzi - disse ele, o que significava um seivagem.
Seguimos o rasto do homem que se movera devagar por entre as árvores e aproximando-nos do pântano com precaução entramos no abrigo.
M’Cola meneou a cabeça.
— Não presta - disse. - Vamos.
Seguimos para o pântano. Ali tudo estava claramente traça-do. Havia pegadas de três grandes kudus machos na margem húmida por trás do pântano onde eles tinham vindo lamber o sal. Depois, subitamente, apareciam pegadas fundas como que abertas à faca no sítio onde tinham dado um salto quando a flecha se disparara e os traços de ângulos agudos dos seus cascos ao alcançarem a margem e depois, muito espaçadas, as pegadas dirigindo-se para o bosque.
Seguimo-las, todos três, mas não havia pegadas humanas junto às deles. O homem da flecha tinha-as perdido.
M’Cola disse Silenzi!, pondo grande ádio na palavra. Retomámos o rasto do Shenzi e vimos por onde ele tinha retomado a estrada. Instalámo-nos no abrigo e ali esperámos até que anoiteceu e uma chuva miúda principiou a cair. Nada veio ao pântano. Debaixo de chuva voltámos para o camião. Um selvagem tinha disparado contra o nosso kudu, espantando-os do sal. O pântano estava agora liquidado para nós.
Kamau tinha arranjado uma barraca com um grande pano de lona, pendurando o meu mosquiteiro no interior e montado a cama de campanha. MCola trouxe a comida para a barraca.
Garrick e Abdullah acenderam o lume e com Kamau e M’Cola fizeram a comida. Foram dormir para o camião. Caía uma chuva fina e eu despi-me, meti-me nas botas anti-mosqui-tos e no grosso pijama, sentei-me na cama de lona, comi um peito de galinha-da-índia assada e bebi alguns púcaros de whisky com água.
M’Cola, veio, grave, solícito e muito comprometido à barraca e tirou as minhas roupas do sátio onde eu as tinha dobrado, dobrou-as de novo em monte, muito mal, e pô-las debaixo dos cobertores. Trouxe três latas pata saber se eu as queria abertas.
— Não.
— Chai? - perguntou.
— Vá pr’ó diabo com isso.
— Não chai?
— Prefiro whisky.
— Sim - disse ele com convicção. - Sim.
— Chai de manhã. Antes do sol.
— Sim, B’wana M’Kumba.
— Você dorme aqui. Resguardado da chuva.
Apontei para a Iona onde a chuva fazia o mais belo som que nós, os que vivemos muito fora de casa, já tínhamos ouvido. Era um lindo som, mesmo que a chuva nos viesse a pregar a partida.
— Sim.
— Vá, come.
— Sim. Não chai?
— O chai que vá para o diabo.
— Whisky ? - perguntou esperançoso
— Whisky acabou-se.
— Whisky - disse ele confiante.
— Está bem - disse eu. - Vá, come.
E enchendo o púcaro metade com água e metade com whisky, entrei no mosquiteiro, tirei o meu fato, dobrei-o numa pilha e, deitado de lado, bebi o whisky devagar, apoiado num cotovelo; depois deixei cair o púcaro no chão, procurei a Springfield debaixo da cama, pus a lanterna ao meu lado, na cama, debaixo do cobertor, e adormeci esentando a chuva. Acordei ao ouvir M’Cola entrar, fazer a sua cama e deitar-se; acordei de novo de noite e senti-o a dormir ao meu lado; mas de manhã já estava levantado e fez o chá antes de eu acordar.
— Chai - disse, puxando-me o cobertor.
— Maldito chai - disse eu sentando-me, ainda a dormir.
Estava uma manhã cinzenta e húmida. A chuva tinha parado mas a bruma pairava em baixo e encontrámos o pântano inundado e nem uma pegada à volta. Então caçámos por entre o mato molhado, esperando encontrar alguma pegada na terra húmida e seguir o rasto de um kudu até que o pudéssemos ver. Não havia pegadas. Atravessámos a estrada e seguimos a orla do mato, à volta de uma espécie de matagal com largas clareiras. Eu esperava que encontrássemos um rinoceronte mas, embora tivéssemos visto muitos excrementos frescos, não havia pegadas depois da chuva. A certa altura ouvimos boeiros e, erguendo os olhos, vimo-los em voo sacudido sobre nós, dirigindo-se para o norte, por cima do espesso mato. Fizemos um largo círculo por ali mas não encontrámos nada, a não ser pegadas frescas de uma hiena e de um kudu fêmea. Numa árvore M’Cola mostrou-me o crânio de um kudu pequeno com um lindo, longo chifre em espiral. Encontramos o outro chifre caído na erva e eu encaixei-o outra vez na sua base òssea.
Shenzi, disse M’Cola imitando um homem a disparar o arco. O crânio estava limpo mas o interior dos chifres tinha resíduos húmidos de um cheiro insuportável, e sem mostrar que tinha notado o mau cheiro estendi-os a Garrick que, prontamente, sem um gesto, os deu a Abdullah. Abdullah franziu a ponta do seu chato nariz e sacudiu a cabeça. Cheiravam, de facto, horrivelmente.
M’Cola e eu sorrimos e Garrick tomou um ar respeitável.
Decidi que talvez fosse uma boa ideia ir pela estrada no carro, procurando kudus e bater todas as clareiras. Voltámos para o carro e fizemos isto, inspeccionando várias clareiras sem resultado. Agora o sol ia alto e a estrada começava a encher-se de viajantes vestidos de branco ou nus e resolvemos voltar para o acampamento. No caminho parámos e inspeccionámos o outro pântano. Estava lá uma impala parecendo vermelha no sítio onde o sol, por entre as árvores, incidia sobre a sua pele cinzenta e havia muitas pegadas de kudus. Apagámo-las e seguimos para o acampamento onde encontrámos um ceu cheio de gafanhotos que se dirigiam para o oeste, e o céu quando se olhava para cima parecia uma nuvem vibrante de voo fugitivo, tremendo como um velho filme, mas cor-de-rosa em vez de cinzenta. P. O. M. e Pop vieram ao nosso encontro e ficaram desapuntados. Não tinha chuvido no acampamento e estavam certos de que traríamos qualquer coisa quando chegássemos.
— O meu amigo literato já partiu?
— Sim - disse Pop. - Partiti para Handeni.
— Falou-me muito das mulheres americanas - disse P. O. M. - Pobre papá. Estava certa de que trarias hoje um kudu. Maldita chuva.
— Como são as mulheres americanas?
— Ele acha que são terríveis.
— Que rapaz tão correcto - disse Pop. - Diga-me o que aconteceu hoje.
Sentámo-nos à sombra da barraca onde tomávamos as refeições e contei-lhes.
— Um wanderobo - disse Pop. - São horríveis atiradores. Pouca sorte.
— Eu pensava que se tratasse de uni daqueles desportistas viajantes que se vêem pelas estradas com o seu arco a tiracolo. Viu o pântano junto da estrada e deve ter seguido a pista até ao outro.
— Talvez não. Eles trazem aqueles arcos e flechas como protecção. Não são caçadores.
— Enfim, seja como for, tramou-nos.
— Pouca sorte. Isto e a chuva. Eu tinha posto vigias aqui nas colinas, mas não viram nada.
— Bem, nada está perdido até amanhã à noite.
— Quando temos de partir?
— Depois de amanhã.
— Aquele maldito selvagem.
— Suponho que Karl esteja já arrasando os antílopes negros.
— Não havemos de poder entrar no acampamento por causa dos chifres. Não teve notícias?
— Não.
— Vou deixar de fumar durante seis meses para que consigas matar um - disse P. O. M. - Já comecei.
Almoçámos e depois entrei na barraca e deitei-me e li. Sabia que ainda tínhamos uma probabilidade amanhã no pântano e que não devia preocupar-me com isso. Mas o facto é que estava preocupado e não podia dormir; acordei meio tonto, saí e sentei-me numa cadeira de lona, sob o toldo da barraca das refeiçoes a ler a vida de Carlos II da autoria de não sei quem e olhando de vez em quando os gafanhotos. Eram um espectáculo excitante e era-me difícil aceitá-los como uma coisa comum.
Finalmente adormeci na cadeira com os pés em cima de uma caixa de mantimentos e quando acordei deparei com Garrick, esse malandro, ostentando uma larga e pesada cabeleira preta e branca de penas de avestruz.
— Vá-se embora - disse-lhe em inglês.
Ele deixou-se ficar, sorrindo envaidecido; depois voltou-se para que eu pudesse ver a cabeleira de lado.
Vi Pop a sair da sua barraca com o cachimbo na boca.
— Olhe para isto - disse-lhe eu.
Ele olhou e disse: Valha-me Deus.
E voltoli para a barraca.
— Vamos - disse eu. - Fazemos de conta que não o vimos.
Pop apareceu, por firn, com um livro e ignoramos completamente a cabeleira de Garrick, sentando-nos a conversar enquanto eie se exibia.
— Este palerma também bebeu - disse eu.
— Provavelmente.
— Sinto-lhe o cheiro.
Pop, sem o olhar, dirigili algumas palavras a Garrick em voz muito baixa.
— O que é que Ihe disse?
— Para se ir embora, vestir-se decentemente e aprontar-se para partir.
Garrick desapareceu com as plumas a ondular ao vento.
— Não era momento oportuno para as suas ridículas penas de avestruz - disse Pop.
— Há-de haver quem goste delas.
— Claro. Até as fotografam.
— Espantoso - disse eu.
— Horrível - concordou Pop.
— No último dia, se não caçarmos nada, Vou dar um tiro no traseiro do Garrick. Não me virá disso mal nenhum.
— Pode trazer muitas maçadas. Se mata um, tem que matar também o outro.
— Só o Garrick.
— Então é melhor não disparar. Lembre-se que é a mim que arranja sarilhos.
— Estou a brincar, Pop.
Garrick voltata já sem cabeleira e acompanhado de Abdullah e Pop falou com eles.
— Querem caçar em volta da colina por um novo processo.
— Óptimo. Quando?
— Agora, em qualquer altura. Parece que vai ehover. Devem ir.
Mandei Molo buscar as minhas botas e a gabardina e M’Cola trouxe a Springfield e fomos para o carro.
Tinha estado um dia muito enevoado embora o sol apare-cesse entre as nuvens por um momento ao princípio da tarde e à noitinha.
As chuvas encaminhavam-se para o nosso lado. Agora começava a chover e os gafanhotos já não voavam.
— Estou tonto de sono - disse a Pop. - Von beber qualquer coisa.
Estávamos de pé debaixo da árvore grande, petto da fogueira, com a chuva tamborilando nas folhas. M’Cola trouxe o frasco de whisky e entregou-mo com ar solene.
— Vai um?
— Não vejo mal nisso.
Bebemos ambos e Pop disse:
— Que vão para o diabo.
— Que vão para o diabo.
— Talvez encontrem algumas pegadas.
— Havemos de as procurar por toda a parte.
No carro voltámos à direita da estrada, atravessámos a aldeia de lama e deixámos a estrada à esquerda, tomando uma pista de argila vermelha e dura que contornava a colina e era toda marginada de árvores de ambos os lados. Chovia bastante agora e seguíamos devagar. Parecia haver areia suficiente no barro para evitar que o carro derrapasse. De repente, do lugar de trás Abdullah - muito excitado - disse a Kamau para parar. Parámos numa travagem rápida, saímos todos e voltámos atrás. Havia uma pegada de kudu, recentemente impressa no chão húmido. Não devia ter sido feita há mais de cinco minutos porque o seu recorte era ainda nítido e o pó levantado pelo centro do casco ainda não estava humedecido pela chuva.
— Diabos - disse Garrick deitando a cabeça para trás e alargando muito os braços para dar a ideia de chifres voltados para trás por cima do cachaço. - Kubwa Sana! Abdullah concordou que era um macho; um enorme macho.
— Vamos - disse eu.
Era uma pista fácil de seguir e sabíamos que estávamos perto dele. Com chuva ou neve é muito mais fácil chegar perto dos animais e eu estava certo de que íamos poder alcançá-lo. Seguimos as pegadas pelo meio de espessos matagais e depois numa clareira. Parei para limpar a chuva dos óculos e soprei pela abertura do visor traseiro da Springfield. Chovia agora intensamente e puxei o chapéu para os olhos para conservar os óculos limpos. Ladeámos as bordas da clareira e então, um pouco adiante, ouviu-se um ruído e vi um animal cinzento ás riscas brancas atravessando o matagal. Levantei a carabina e M’Cola agarrou-me no braço. - Manamouki! - segredou. Era um kudu fêmea. Mas quando subimos ao sítio onde ela tinha saltado não havia mais pegadas. As mesmas pegadas que tínhamos seguido conduziam, logicamente e sem risco de dúvida, desde a estrada à fêmea.
— Doumi Kubwa Sana! - disse eu, cheio de sarcasmo e pena, para Garrick e fiz um gesto de chifres gigantes voltados para trás na direcção das suas orelhas.
— Manamouki Kubwa Sana! - disse ele pacientemente, muito aborrecido. - Que grande fêmea.
— Aldrabão de penas de avestruz - disse-lhe eu em inglês. - Manamouki! Manamouki!
— Manamouki - disse M’Cola meneando a cabeça.
Tïrei o dicionário, não pude encontrar as palavras, mas fiz saber a M’Cola, por meio de sinais, que devíamos voltar atrás e descrever um longo círculo até à estrada para ver se podíamos encontrar outras pegadas. Voltámos, sob a chuva que nos encharcava até aos ossos, sem que encontrássemos nada, descolorimos o carro e como a chuva abrandava e a estrada se apresentava ainda praticável, decidimos continuar até ao cair da noite. Rolos de nuvens pendiam sob a encosta da colina depois da chuva e as árvores pingavam, mas não vimos mais nada. Nem nas clareiras, nem nos prados onde os arbustos rareavam, nem nas verdes encostas. Por fim escureceu e voltámos para o acampamento. A Springfield estava toda molhada quando saímos do carro e eu disse a M’Cola para a limpar com cuidado e oleá-la bem. Ele disse-me que sim e eu entrei na barraca onde ardia uma lanterna, tirei a roupa, tomei banho na banheira de lona e saí para o lume sentindo-me bem e repou-sado dentro do pijama, do roupão e das botas anti-mosquitos.
P. O. M. e Pop estavam sentados nas cadeiras petto do lume e P. O. M. levantou-se para me arranjar um whisky com soda.
— M’Cola contou-me - disse Pop da sua cadeira petto do lume.
— Uma enorme fêmea - disse-lhe eu. - Estive quase a disparar-lhe uma bala. O que é que propõe para amanhã de manilã?
— O pântano, parece-me. Temos vigias nas duas encostas da montanha. Lembra-se daquele velho da aldeia? Meteu-se a uma caçada infrutífera atrás deles lá para cima, por trás das montanhas. Eie e o Wanderobo. Anda por lá há três dias.
— Não há razão para não matarmos um no pântano onde Karl matou o seu. Todos os dias são bons.
— Decerto.
— Entretanto é o último desgraçado dia que temos e o pântano pode estar submerso. Desde que esteja molhado não há sal. Só lama.
— É isso mesmo.
— Gostava de ver um.
— Quando isso Ihe acontecer não se apresse e vise-o bem. Não se apresse e mate-o.
— Isso não me dá cuidados.
— Falemos de outra coisa - disse P. O. M. - Isto põe-me muito nervosa.
— Gostaria de ter cá o velho tirolês - disse Pop. - Era um conversador. Fazia aqui o velho falar, também. Repita-nos esse discurso sobre os escritores modernos.
— Vá para o diabo.
— Porque não temos nós um pouco de vida intelectual? - perguntou P. O. M. - Porque é que vocês, os homens, não discutem sequer as questões internacionais? Porque vivo eu na ignorância de tudo o que se passa?
— O mundo está num estado deplorável - pontificou Pop.
— Horrível.
— Que se passa na América?
— Diabos me levem se sei! Uma espécie de espectáculo da Y. M. C. A. Uns paletinas dispendendo dinheiro que alguém tem que pagar. Na nossa terra toda a gente deixou de trabalhar para se inscrever no desemprego. Os pescadores tomaram-se carpinteiros. O contrário da Bíblia.
— Como vão as coisas na Turquia?
— Mal. Os fez desapareceram. Uma data de gente foi enforcada. E Ismet continua a existir.
— Esteve ultimamente em França?
— Não gostei de lá estar. Triste como uma tumba. Corran ali mal as coisas nestes últimos tempos.
— Santo Deus - disse Pop. - Assim deve ter sido, a acreditar no que dizem os jornais.
— Quando fazem revoltas fazem mesmo revoltas. Que diabo, têm uma tradição.
— Você esteve em Espanha durante a revoluçãao?
— Estive lá depois. Esperávamos duas revoluções que não se deram. Depois perdemos outra.
— E a de Cuba, viu?
— Desde o princípio.
— Como foi essa?
— Linda. Depois miserável. Não pode calcular como foi miserável.
— Calem-se com isso - disse P. O. M. - Sei essas coisas. Estive agachada debaixo do tampo de uma mesa de mármore enquanto eles faziam tiroteio em Havana. Vieram em carros atirando sobre toda a gente que viam. Eu levei o copo comigo e senti-me muito envaidecida de não o ter entornado. Nem me ter esquecido dele. Os pequenos disseram-me: «Mãe, podemos sair à tarde para ver o tiroteio?» Estavam tão excitados com a revolução que tivemos que deixar de falar nisso. Bumby ficou tão impressionado com o sangue do sr. M. que tinha sonhos horríveis.
— Fantástico - disse Pop.
— Não se metam comigo. Não quero nein ouvir falar em revoluções. Tudo o que se vê e se ouve são revoluções. Estou farta.
— Aqui o velho deve gostar.
— Estou farto delas.
— Sabe, eu nunca vi nenhuma - disse Pop.
— São bonitas, realmente. Por um momento. Depois tornam--se más.
— São muito excitantes - disse P. O. M. - Concordo. Mas estou farta delas. De verdade, não me interessam nada.
— Eu tenho-as estudado um pouco.
— E a que conclusões chegou? - perguntou Pop.
— Foram todas muito diferentes, mas há qualquer coisa de comum. Vou tentar escrever um estudo sobre elas.
— Isso deve ser muito interessante.
— Se a gente tem dados suficientes. Precisamos de ter assistido a uma porção de acontecimientos. É muito difícil tirar a verdade de qualquer coisa que nós próprios não tenhamos visto, porque aqueles que perdem ficam com uma ideia errada do que aconteceu e os vencedores, esses, mentem sempre tanto! E depois apenas se podem seguir inteiramente os factos nos lugares onde se conhece a língua. Isto evidentemente que nos limita. Por isso é que eu nunca irei à Rússia. Quando não se pode entender, não vale a pena. Tudo o que se apanha são gestos e paisagem. Em qualquer país uma pessoa que conheça uma língua estrangeira é propensa a mentir-nos. É sempre o povo quem nos fornece os dados exactos e se a gente não pode falar com o povo, oLivir por nós próprios, não se obtém nada de valor a não ser informações jornalísticas.
— É então por isso que você se mete a aprender swahili?
— Faço por isso.
— Assim mesmo não pode compreender o que eles dizem porque falam uma linguagem lá deles.
— Mas se chegar a escrever alguma coisa sobre isto, será apenas descrição de paisagem enquanto não conhecer um pouco mais. A nossa primeira impressão de um país é muito valiosa. Provavelmente mais valiosa para nós próprios do que para os outros e esse é que é o mal. Mas deve sempre escrever-se para tentar fixá-la. Pouco importa o que faremos depois com isso.
— A maior parte dos livros de caça são tremendamente maçadores.
— São horríveis.
— O único de que até aqui gostei foi do de Streeter. Como é que ele Ihe chamou? África Desnaturada. Faz-nos sentir o que isto é. E isso é que importa.
— Eu costo dos de Charlie Curtis. É honesto e faz uma boa descrição.
— Este Streeter é cheio de humor. Lembra-se quando ele mata o búfalo?
— É muito engraçado.
— Nunca li no entanto nada que me fizesse sentir aquilo que realmente se sente quando se está no país. Todos falam apenas dessa desorganizada Nairobi ou dizem disparates sobre animais que mataram, sempre com chifres meia polegada maiores do que os dos outros. Ou pieguices a respeito do perigo.
— Eu gostaria de tentar escrever qualquer coisa a respeito do país e dos animais e como isto é para aqueles que não conhecem nada a seu respeito.
— Experimente. Não tem nada a perder. Sabe que eu escrevi um diário sobre aquela viagem ao Alaska.
— Costava de 1er isso - disse P. O. M. - Não sabia que era escritor, sr. J. P.
— Nada de extraordinario - disse Pop. - Mas se o quer ler posso mandá-lo vir. Sabe, é apenas o que fazíamos cada dia, a impressão que o Alaska faz num inglês de África. Aborrecer-se--ia com ele.
— Não, sendo escrito por si - disse P. O. M.
— A menina a dizer amabilidades - disse Pop.
— Eu não. Você.
— Coisas dele já eu li - disse eia. - Agora gostava de ler as do sr. J. P.
— É o velho realmente um escritor? - perguntou Pop. - Nunca vi nada que prove isso. Tem a certeza de que ele a não sustenta com os sens proventos de guia e de atirador?
— Oh, sim. Ele escreve. Quando a coisa vai bem é muito fácil viver com ele. Mas antes de começar tem medo. Precisa de se irritar antes de principiar a escrever. Quando diz que nunca mais escreverá nada, já sei que está prestes a começar a escrever.
— Devia arrancar-lhe mais conversas literárias - disse Pop. - O tirolês é que era um ás para isso. Conte-nos uma história literária.
— Bem, a última noite que estivemos em Paris fui, na véspera da partida, caçar para casa de Ben Gallagher, na Sologne. Ele tinha uma fermée. Sabe. Põem uma barreira baixa enquanto eles saiem para comer. Atirámos aos coelhos de manhã e, à tarde, fizemos várias batidas e matámos faizões e eu matei um cabrito montés.
— Isso não é literário.
— Espere. Na última noite Joyce e a mulher vierani jaiitar. Comemos um faisão e um lombo e costelas de cabrito; Joyce e eu embebedamo-nos porque íamos para África no dia seguinte. Meu Deus, que noite.
— Isso não é história literária nenhuma - disse Pop.
— Quem é Joyce?
— Um tipo estupendo - disse eu. - Escreveu Ulisses.
— Homero é que escreveu Ulisses - disse Pop.
— Quem escreveu Ésquilo?
— Homero - disse Pop. - Não esteja a querer apanhar-me. Sabe mais histárias literárias?
— Alguma vez ouviu falar de Pound?
— Não - disse Pop. - Nunca.
— Sei algumas boas a respeito de Pound.
— Suponho que você e ele comeram juntos qualquer carne de animais extravagantes e depois se embebedaram.
— Muirás vezes - disse eu.
— A vida literária deve ser extraordinariamente interessante. Acha que eu daria um bom escritor?
— Bastante bom.
— Vamos mandar passear tudo isto - disse Pop a P. O. M. - e fazermo-nos ambos escritores. Conta-nos outra história.
— Já ouviu falar de George Moore?
— O tipo que escreveu: “Antes de partir, George Moore, bebo uma última vez à tua saúde?”
— Esse mesmo.
— Que é feito dele?
— Morreu.
— Isso é um diabo de uma história triste. Pode contar outra melhor.
— Vi-o uma vez numa livraria.
— Isso já é melhor. Vê como ele lhes pode dar vida?
— Eu fiz-lhe em tempos uma visita em Dublin - disse P. O. M. - com Clara Dunn.
— E que se passou?
— Não estava em casa.
— Men Deus. Eu bem digo que a vida literária é qualquer coisa - disse Pop. - Não há nada melhor.
— Detesto Clara Dunn - disse eu.
— Também eu - disse Pop. - O que é que ela escreve?
— Cartas - disse eu. - Conhece Dos Passos?
— Nunca ouvi falar dele.
— Ele e eu costumávamos beber kirsch quente no inverno.
— E depois o que aconteceu?
— As pessoas acabaram por protestar.
— O único escritor que até hoje conheci foi Stewart Edward White - disse Pop. - Admirava muito a sua maneira de escrever. Muito bom, sabe. Depois conheci-o. E não gostei dele.
— Está a fazer progressos, vê? Não é difícil uma história literária.
— Porque é que não gostou dele? - perguntou P. O. M.
— Sou obrigado a dizer? A história não está completa? Mas é como aqui o velho as conta.
— Ande lá, diga.
— Tinha muita pose de pessoa experimentada. Os olhos habituadas às grandes distâncias e este género de coisas. Já matou muitos leões. Não ereio que tenha matado tantos. Que os tenha feito galopar, acredito. Não podia ter morto tantos. Leões ferozes, não se deixam matar. Matam. Mas escreveu estupendas coisas no The Saturday Evening Post sobre (como é o nome desse tipo?) Andy Burnett. Oh! estupendas coisas. Mas detestei-o. Vi-o em Nairobi com os seus olhos habituados aos grandes espaços. Usava os fa tos mais vel hos na cidade. Um grande atirador, toda a gente o diz.
— Seu literato malandro - disse eu. - Que diz disto como anedota literária?
— Ele é estupendo - disse P. O. M. - Nunca mais vamos comer?
— Meu Deus, julgava que já tínhamos comido - disse Pop. - Quando se começa com estas histórias nunca mais se acaba.
Depois do jantar sentámo-nos um bocado ao lume e depois fomos para a cama. Pop parecia estar a ruminar em qualquer coisa e antes de eu entrar na barraca disse-me. - Depois de ter esperado tanto tempo, quando for altura de atirar, tenha calma. Você é demasiado rápido. Por isso, lembre-se, não se precipite. Tenha calma.
— Está bem.
— Farei com que o chainem de manhã bem cedo.
— Pois sim. Estou cheio de sono.
— Boa noite, sr. J. P. - despediu-se P. O. M. da barraca.
— Boa noite - disse Pop.
Encaminhou-se para a sua barraca andando com cómico aprumo, movendo-se na noite tão cautelosamente como se fosse uma gattaia aberta.
~ CAPÍTOLO DÉCIMO PRIMEIRO
Molo acordou-me de manhã puxando-me o cobertor, e estava-me a vestir, já vestido, lavando o sono dos olhos, antes de ter realmente acordado. Era ainda muito escuro e via as costas de Pop fazendo sombra contra a fogueira. Saí levando na mão a chávena do chá com leite quente da manhã, esperando que arrefecesse para o poder beber.
— Bom dia - disse.
— Bom dia - respondeu ele num murmúrio rouco.
— Dormiu?
— Muito bem. Sente-se em forma?
— Mal acordado, é tudo.
Bebi o chá e deitei as folhas para o lume.
— Pode saber da sua sorte por intermédio delas - disse Pop.
— Não vale a pena.
Tomámos o pequeno almoço na escuridão, com a lanterna acesa: pêssegos frios em xarope, fricassé quente com molho castanho picante, dois ovos estrelados e óptimo café quente. À terceira chávena Pop olhando, enquanto fumava o seu cachimbo, disse:
— Muito cedo para eu poder comer assim.
— Faz-lhe mal?
— Um pouco.
— A mim, como vou fazer exercício - disse eu - não me farà mal.
— Lindas histórias - disse Pop. - Mensahib há-de julgar-nos idiotas.
— Vou ver se me lembro de mais alguma.
— Não há nada melhor do que beber. Não percebo como é que Ihe pode fazer mal.
— Você não se sente mal?
— Nem por isso.
— Toma um pouco de Enos?
— É este maldito viajar de automóvel.
— Bem, é hoje o dia.
— Lembre-se que é preciso ter calma.
— Não está preocupado com isso, pois não?
— Só um poucochinho.
— Não esteja. Isto a mim não me incomoda nada. Sério.
— Bom, é melhor irmos andando.
— Primeiro tenho que ir ali a um sítio.
Sentado em frente do pano circular da latrina, olhei, como todas as manhãs, para a espessa mancha de estrelas a que os românticos astrónomos chamaram Cruzeiro do Sul. Todas as manhãs, neste momento, eu obsetvava o Cruzeiro do Sul em solene cerimonial.
Pop estava no carro. M’Cola entregou-me a Sprinfield e entrei para a frente. O trágico e o seu guia iam atrás. M’Cola saltou para o lado deles.
— Felicidades - disse Pop.
Alguém vinha do lado das barracas. Era P. O. M. com o seu vestido azul e as botas contra os mosquitos.
— Oh! Felicidades - disse. - Oxalá tenham sorte.
Disse-lhe adeus e começámos a andar, com os faróis iluminando o caminho até à estrada.
Não havia nada no pântano quando lá chegámos, depois de deixarmos o carro a cerca de três milhas, caminhando pé ante pé. Não apareceu nada toda a manhã. Sentámo-nos com as cabeças encostadas à vedação, cada qual observando numa direcção diferente através das aberturas dos juncos e eu a todo o momento esperava o milagre de ver um kudu macho caminhando, majestoso e belo, através da abertura cinzenta e suja, por entre as árvores, onde o pântano estava remexido, calcado, cheio de cavidades. Havia muitas pistas até lá, ao longo das árvores e em qualquer delas podia aparecer silenciosamente um búfalo. Mas não veio nada. Quando o sol nasceu e nos aquecemos, depois do frio brumoso da manhã, sentei-me mais comodamente, enterrando-me na poeira e encostando-me à parede do buraco, repousando sobre os rins e sobre os ombros, mas sempre em posição de ver pelas fendas do esconderijo. Pondo a Springfield nos joelhos verifiquei que havia ferrugem no cano. Virei-a com cuidado e examinei a abertura. Estava cheia de ferrugem recente.
«O malandro não a limpou ontem depois da chuva», pensei, e, muito irritado, tirei os cartuchos e soltei o gatilho. M’Cola observava-me de cabeça baixa. Os outros dois estavam olhan-do pela vedação. Levantei a espingarda com a mão, para ele ver através da culatta e depois coloquei de novo os cartuchos empurrando-os para a frente com cuidado, baixando o cão com o dedo no gatilho, por forma a que ficasse pronto a saltar de preferência a conservá-lo em segurança.
M’Cola tinha visto o cano enferrujado. O seu rosto não se alterou e eu não disse nada, mas estava cheio de raiva e houve acusação, testemunho e condenação, sem se ter pronunciado uma palavra. E ali ficámos sentados, ele com a cabeça baixa, mostrando apenas a calva, eu estendido de costas, olhando através da vedação, e deixámos de ser companheiros e bons amigos; no pântano não apareceu nada.
Às dez horas a brisa, que vinha de leste, começou a andar à volta e vimos que não havia já nada a esperar. O nosso cheiro dispersava-se em todas as direcções à volta do abrigo e assustaria tanto os animais como se andássemos com uma lanterna procurando na escuridão. Saímos do abrigo e fomos procurar pegadas na poeira do pântano. A chuva tinha-a humedecido, mas não estava alagada e vimos várias pegadas de kudu, provavelmente feitas durante a noite e uma de um grande macho, comprida, estreita, em forma de coração; claramente, fundamente cortada.
Seguimos a pista pela terra humedecida e avermelhada durante duas horas, pelo meio de um matagal espesso que parecia uma floresta da América. Por fim tivemos que abandonar a empresa porque a vegetação não nos permitia avançar. Todo este tempo eu estava aborrecido por causa da espingarda enferrujada e ao mesmo tempo contente e cheio de entusiasmo na esperança de deparar com um macho e dar-lhe um tiro, no matagal. iVlas não o encontrámos e agora, no ardente calor do meio-dia, fizemos três largos círculos à volta das colinas e finalmente viemos ter a um prado cheio de gado masai, pequeno e corcovado e, deixando a sombra para trás, voltámos a descoberto sob o sol da manhã, para o carro.
Kamau, sentado no carro, tinha visto passar um kudu a cem jardas. Tinha-se dirigido para o pantano, cerca das nove horas, quando o vento começara a mudar e, evidentemente, sentindo o nosso cheiro, voltata para as montanhas. Fatigado, suando e sentindo-me agota mais desanimado do que furioso, subi para o lado de Kamau e tomámos a direcção do acampamento. Já só tínhamos mais uma noite e não havia razão para esperar melhor sorte do que a que tivéramos até aí. Ao voltarmos para o acampamento a sombra das árvores frondosas refrescava como um lago, e eu tirei a carga da Springfield e entreguei a arma, descarregada, a M’Cola sem o olhar ou falar para ele. A bala dei-tei-a pela abertura da barraca, para cima da minha cama.
Pop e P. O. M. estavam sentados dentro da barraca das refeições.
— Não tiveram sorte? - perguntou Pop.
— Nem um bocadinho. Um macho passou pelo carro em direcção ao pântano. Deve ter-se assustado. Procurámos por toda a parte.
— Não viram nada? - perguntou P. O. M. - A certa altura pareceu-nos que vos ouvimos disparar.
— Isso era o Garrick a disparar asneiras. Os vigias não viram nada?
— Nada. Estivemos de atalaia às duas colinas.
— Há notícias de Karl?
— Nem uma palavra.
— Gostava de ter visto um - disse eu. - Estava cansado e depressa fiquei cheio de azedume. Diabos os levem. Porque raio explorou ele este infernal pântano na primeira manhã e alvejou nas tripas aquele miserável animal e o perseguiu por toda a negregada região, fazendo-o desaparecer para o inferno?
— Malandros - disse P. O. M., acompanhando-me no meu desarrasoamento. - Velhacos.
— És uma boa rapariga - disse eu. - Já estou bem. Ou estarei dentro de pouco tempo.
— Foi horrível - disse eia. - Pobre papá.
— Tome qualquer coisa - disse Pop. - É disso que você precisa.
— Cacei com denodo, Pop. Juro por Deus que o fiz. Cacei com prazer e até hoje não me preocupei. Estava tão seguro. Aquelas malditas pegadas todo o tempo - e se eu nunca vir um kudu? Sei lá se alguma vez poderemos aqui voltar outra vez?
— Voltatá - disse Pop. - Não precisa de se preocupar com isso. Ande. Beba.
— Não passo de um miserável piegas mas juro que até hoje não me tinham feito perder a calma.
— Pieguice - disse Pop. - O melhor é deitar isso fora.
— E se fossemos almoçar? - perguntou P. O. M. - Não estão cheios de fome?
— Que vá para o diabo o almoço. A verdade, Pop, é que nós nunca os vimos no pântano à noite e nunca vimos um macho nas montanhas. Só tinha esta noite. E é noite deitada ao mar. Três vezes os tive por um fio e Karl, o Austríaco e Wanderobo venceram-nos.
— Não estamos vencidos - disse Pop. - Beba outro copo.
Almoçámos um bom almoço, e tínhamos justamente acabado quando Kati veio dizer que estava ali alguém que queria ver Pop. Podíanlos ver-lhe a sombra no toldo da barraca, e depois veio de volta para a parte da frente. Era o velho do primeiro dia, o velho fazendeiro, mas agora estava equipado como um caçador e trazia um longo arco e um carcaz de flechas selado.
Parecia mais velho, mais abatido e cansado do que nunca e o seu traje era óbviamente um disfarce. Com ele estava o esquelético, sujo Wanderobo de orelhas radiadas e retorcidas que ficou de pé sobre uma perna coçando a barriga da perna com os dedos dos pés. Tinha a cabeça de banda e um rosto mesquinho, tolo e depravado.
O velho falava animadamente com Pop, que o olhava nos olhos e falava devagar, sem gestos.
— O que é que esse anda a fazer? Pôs-se ueste preparo para arranjar algum dinheiro como vigia? - perguntei eu.
— Espere - disse Pop.
— Olha para este par - disse eu. - Este tinhoso do Wanderobo e aquele miserável velho mentiroso. O que é que ele está a dizer, Pop ?
— Ainda não acabou - disse Pop.
Por fim o velho terminou e ali ficou de pé, encostado ao seu arco. Ambos pareciam muito cansados mas lembro-me que Ihes achei o aspecto de um par de repugnantes aldrabões.
— Ele diz - comcçou Pop - que encontraran! uma região onde há kudus. Que ele esteve lá três dias. Que sabem onde está um grande kudu macho e que deixou agora lá um homem a guardá-lo.
— Acredita nisso?
Sentia o vinho e a fadiga a abandonarem-me e a excitação a vir.
— Sabe-se lá - disse Pop.
— A que distância fica essa região?
— A um dia de caminho. Suponho que sejam três ou quatto horas de catto, se o catto ali poder ir.
— Ele acha que o carro pode ir até lá?
— Ainda ninguém ali foi de carro, mas ele julga que se pode ir.
— Quando deixaram eles o homem de guarda ao kudu?
— Esta manhã.
— Onde está o antílope?
— Lá, nas montanhas.
— E como se chega lá?
— Não sei nada, a não ser que se atravessa o prado, se contorna a montanha e depois se vai para o sul. Diz que nunca ninguém ali caçou. Ele caçava lá quando era novo.
— Acredita ?
— É claro que os nativos mentem como o diabo, mas ele conta a história muito direita.
— Vamos.
— O melhor é ir já. Vá o mais longe que possa no carro e depois use-o como base e parta dali para caçar. Memsahib e eu levantaremos o acampamento amanhã de manhã, levaremos as coisas e iremos ter com Dan e com o sr. T. Desde que o equipamiento passe esta grande planície de algodáo, já não faz mal que a chuva nos apanhe. Você virá juntar-se a nós. Se ficar retido podemos sempre mandar-lhe o carro por Kandoa, prevendo o pior, e os camióes a Tanga e às imediações.
— Não quer vir?
— Não. Vai melhor sozinho numa empresa como esta. Quanto mais gente, menos caça verá. Para caçar kudus deve-se estar só. Eu transportara o equipamento e olharei pela nossa Memsahib.
— Está bem - disse eu. - E não devo levar Garrick ou Abdullah?
— Deus nos livre. Leve M’Cola Kamau, e esses dois. Direi a Molo que emale as suas coisas. Não deve ir carregado.
— Deus me valha, Pop. Acha que isto é verdade?
— Talvez - disse Pop. - Temos que tentar.
— Como é que se diz antílope?
— Taraballa.
— Valhalla, hei-de lembrar-me. As fêmeas também têm chifres ?
— Claro, mas não é possivel enganar-se. O macho é preto e elas castanhas. Não há erro possível.
— M’Cola já alguma vez viu algum?
— Creio que não. Você tem quatro na sua licença. Se poder apanhar mais um, não hesite.
— São difíceis de matar?
— Bastante. Não são como kudus. Se abater algum tenha cuidado na maneira como se aproxima dele.
— E quanto ao tempo?
— Tem que se ir embora. Esteja de volta amanhã à noite se puder. Resolva por si. Creio que é o momento decisivo. Terá o seu kudu.
— Sabe a que é que isto se assemelha? - disse eu. - A quando éramos rapazes e ouvíamos falar do rio onde ainda ninguém tinha pescado, nos prados de mirtilo, para lá de Sturgeon e de Pigeon.
— O que é que acontecen no rio?
— Oiça. Foi muito difícil chegarmos lá, mas na noite em que chegámos, mesmo ao escurecer, e o vimos, havia um fundo lago e uma língua, direita, comprida de água fria que não se Ihe podia meter as mãos e eu deitei para lá uma ponta de cigarro e uma grande truta apanhou-a e outras vieram e começaram a puxá-la para cá e para lá, até que se desfez em bocadinhos.
— Uma grande truta?
— Das maiores.
— Valha-nos Deus - disse Pop. - E o que fizeram depois ?
— Armei a minha cana, lancei-a, e era escuro, e havia um gavião a voar em volta, e estava frio como o demónio e depoistrês peixes morderam a isca a segunda vez que tocou na água.
— Apanhou-as?
— As três.
— Grande mentiroso.
— Juro por Deus.
— Acredito. Diga-me o resto quando voltar. Eram trutas grandes?
— Da maior espécie.
— Valha-nos Deus - disse Pop. - Você vai matar um kudu. Ponha-se a andar.
Na barraca encontrei P. O. M. e contei-lhe.
— Sério ?
— Sim.
— Despacha-te - disse eia. - Não fales. Prepara as coisas.
Fui buscar a capa de chuva, um par de botas suplementares, meias, roupão de banho, frasco do quinino, cidra, livro de notas, lápis, as máquinas fotográficas, a caixa dos remédios, faca, fósforos, camisas e camisolas extra, um livro, duas velas, dinheiro, cantil...
— Que mais ?
— Tens sabonete? Leva um pente e uma toalha. E lenços ?
— Está bem.
Molo empacotou tudo num saco de lona e eu fui buscar o meu binóculo de campo. M’Cola levou o binóculo grande de Pop, um cantil com água e Kati mandou um caixote com alimentos.
— Leve bastante cerveja - disse Pop. - Pode deixá-la no carro. Estamos com pouco whisky, mas ainda há uma garrafa.
— E você com que ficará?
— Não faz mal. Há mais no outro acampamento. Mandamos duas garrafas pelo sr. K.
— Só precisarei do cantil - disse eu. - Vamos dividir a garrafa.
— Leve então bastante cerveja. Leve a que quisen
— O que é que faz esse animal? - disse eu, designando Garrick que ia a entrar para o carro.
— Ele diz que você e M’Cola não serão capazes de se entender com os nativos de lá. Que precisam de um intérprete.
— Ele é enervante.
— Realmente vai precisar de alguém que interprete o que eles disserem em swahili.
— Está bem. Mas diga-lhe que não vai comandar a marcha e que conserve o estafermo da boca fechada.
— Iremos consigo até ao cimo da colina - disse Pop. E começámos a marcha com Wanderobo pendurado ao lado do carro. - Apaninaremos o velho na aldeia.
Toda a gente no acampamento saiu para nos ver partir.
— Levamos sal que chegue?
— Sim.
Na aldeia, esperámos perto do carro, na estrada, que o velhote e Garrick viessem das suas cabanas. Era o começo da tarde, o céu estava cheio de nuvens e eu olhava para P. O. M., muito apetitosa, fresca e composta, com o seu caqui, as suas botas, o capacete de lado e para Pop, grande, forte, dentro do seu casaco sem mangas, de bombazina, usado e quase branco à força de lavagens e de sol.
— Porte-se com juízo.
— Não te aflijas. Quem me dera ir.
— É empresa para um homem só - disse Pop.
— É preciso começar depressa, fazer a coisa e acabar quanto antes. Já tem uma boa carga.
O velho apareceu e foi para a parte de trás do carro com M’Cola que trazia o meu velho casaco de caqui, sem mangas, para a caça às codornizes.
— M’Cola traz o casaco do velho - disse Pop.
— Ele gosta de trazer coisas nas bolsas de caça - disse eu.
M’Cola percebeu que estávamos a falar dele. Eu já me tinha esquecido da espingarda por limpar. Nessa altura lembrei-me e disse a Pop:
— Pergunte-lhe onde foi buscar o casaco novo.
M’Cola sorriu e disse qualquer coisa.
— Diz que é dele.
Sorri-me para ele e ele abanou a velha cabeça careca e ficou assente que eu não tinha dito nada sobre a espingarda.
— Onde está o diabo do Garrick? - perguntei eu.
Por fim veio esse, com o seu cobertor e o velhote atrás. Wanderobo sentou-se comigo na frente, ao lado de Kamau.
— Tens um amigo bem simpático - disse P. O. M. - Porta-te também com juízo, tu.
Dei-lhe um beijo de despedida e dissemos qualquer coisa em voz baixa.
— Arrulhos de pombinhos - disse Pop. - Que vergonha.
— Adens, meu malandro.
— Adeus, toureiro danado.
— Adeus, querida.
— Adeus e felicidades.
— Tem bastante gasolina e deixaremos alguma aqui - disse Pop.
Disse adeus e deseemos a colina, atravessámos a aldeia, até um caminho estreito que conduzia à planície seca estendendo--se entre as duas grandes colinas azuis.
Olhei para trás enquanto descíamos a encosta e vi as duas figuras, a alta e forte e a pequena e destacada, ambas com os capacetes, delineadas na estrada, a voltarem para o acampamento e então olhei para a frente, para a seca e árida planicie.
PARTE IV
CAÇA E FELICIDADE
~
~ CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
A estrada era apenas uma pista e a planície tinha um aspecto desanimador. Ao passarmos vimos algumas esbeltas gazelas de Grant que pareciam brancas contra o amarelo queimado da relva e o cinzento das árvores. O meu entusiasmo esvaiu-se petante a extensão desta planície, característica de região pobre em caça e tudo começou a parecer-me impossível, romântico e falso. Wanderobo exalava um cheiro forte e eu observava a maneira como os lóbulos das suas orelhas eram dilatados e depois dobradas sobre si mesmas e o seu estranino rosto pouco negroide e de labios finos. Quando me viu a examinar-lhe a cara, sorriu contente e coçou o peito. Voltei-me para ver a parte de trás do carro. M’Cola dormía. Garrick estava sentado, muito direito, exagerando a sua vigilia e o velho tentava ver a estrada.
Agora não havia estrada – um simples caminho de cabras – mas estávamos a chegar à orla da planície. Depois a planície ficou para trás e à nossa frente havia grandes árvores e entramos na mais linda região que vi em África. A erva era verde e igual, curta como um prado regado que estivesse a começar a crescer, as árvores eram grandes, com ramos altos e velhas, sem vegeta-ção por baixo, mas unicamente o verde regular da erva, como num parque de veados, e dirigimo-nos para a sombra manchada de sol, seguindo um caminho vago indicado por Wanderobo. Eu não podia acreditar que tivéssemos de repente vindo para uma região tão maravilhosa. Era um lugar donde se saía como de um sonho, feliz por se ter sonhado e com medo que pudesse desaparecer. Estendi a mão e toquei na orelha de Wanderobo. Ele deu um salto e Kamau fez um gesto de mofa. M’Cola, do lugar de trás, deu-me uma cotovelada chamando-me a atenção e adiante, de pé, num espaço descoberto entre as árvores, com a cabeça levantada, fixando-nos, com os pêlos do dorso eriça-dos, os chifres brancos compridos, grossos e recurvos, os olhos brilhantes, estava um grande javali, fixando-nos, a menos de vinte jardas. Fiz sinal a Kamau para parar e ficamos ali a olhar para ele e ele para nós. Levantei a carabina e visei-lhe o peito. Continnou a olhar sem se mexer. Então fiz sinal a Kamau, para ligar o contacto e continuamos descrevendo uma curva à es-querda e deixámos o javali que não se mexeu nein deu sinal de se amedrontar ao ver-nos.
Percebi que Kamau estava muito excitado e quando me vol-tei M’Cola abana va a cabeça para cima e para baixo em sinal de aprovaçcão. Nenhum de nós jamais tinha visto um javali que não fugisse de cauda levantada. Aquela era uma região virgem, um bolso onde ainda ninguém metera a mão, nos milhões de milhas da fantástica África. Estava disposto a parar e a acampar em qualquer parte.
Esta era a mais linda região que eu tinha visto, mas continuamos o nosso caminho, através das grandes árvores, deslizando sobre o solo suave. E então, à frente é à diteita, vimos a alta paliçada de uma aldeia masai.
Era uma grande aldeia e delã saíram, correndo, homens escuros de pernas altas e movimientos ligeiros que pareciam todos da niesma idade e traziam o cabelo entrançado num pesado rabicho que Ihes batia nos ombros, quando corriam. Aproximaram-se do carro e rodearam-no, rindo, sorrindo e falando. Eram todos altos, com belos dentes brancos, e os cabe-Ios pintados de castanho-avetmelhado e atranjados em franja encaracolada sobre a testa. Traziam lanças e eram belos e extremamente alegres, não tacitumos e insolentes como os masai do Norte, e queriam saber o que vinhamos fazer. Wanderobo com certeza Ibes disse que vinhamos caçar kudus e estávamos com pressa. Tinham bloqueado o carro e não podíamos andar. Um disse qualquer coisa e très ou quatto repetitam e Kamau explicou-me que tinham visto dois kudus machos, seguindo o caminho nessa tarde.
— NãO pode ser verdade – disse comigo. – NãO pode ser.
Disse a Kamau para continuar e, devagar, movemos o carro no meio deles que riam e tentavam fazê-lo parar, com risco de lhe ficarem debaixo. Eram os mais altos, bem constituídos e belos homens que eu tinha visto e o primeiro povo verdaderamente feliz e alegre que vira em África. Finalmente, quando começámos a andar, puseram-se a correr ao lado do carro, rindo e gritando e mostrando com que facilidade podiam correr e depois, como o caminho fosse melhor, no suave vale de um riacho, aqui lo tornou-se uma competição e, um após outro, fora m abandonando a corrida, agitando os braços e sorrindo quando nos deixavam, até que só restavam dois corredores ao nosso lado, os melhores do grupo, que seguiam facilmente o andamento do carro, avançando com as pernas altas, ligeiras, tranquilamente e com orgulho. Corriam com o passo de um corredor profissionai, levando ao mesmo tempo as suas lanças. Então tivemos que voltar à direita saindo da verdejante suavi-dade do vale, para subirmos a uma pradaria ondulada e como abrandássemos, metendo a primeira, toda a «troupe» vokou, rindo e tentando não mostrar cansaço. Passámos por uma pequena moita donde saiu um coelhito ziguezagueando como lotico e os masai lançaram-se atrás dele com denodo. Apanharam-no e o corredor mais alto trouxe-o ao carro e entregou-mo. Peguei-lhe e podia sentir-lhe o bater do coração através do seu corpo suave, quente, fulvo, e como o acariciasse, o masai tocou-me no braço. Pegando-lhe pelas orelhas, devol-vi-lho. Não, não, era metí. Era um presente. Entreguei-o a M’Cola. Cola não romou aqtiilo a sério e deu-o de novo a um dos masai. Começámos a andar e eles de novo correndo ao nosso lado. Baixando-se puseram o coelho no chão eriam cor-rendo livremente. M’Cola abanou a cabeça. Estávamos todos muito impressionados com estes masai.
— Bons masai – disse M’Cola, muito emocionado. – Masai muito gado. Masai não matar para comer. Masai matar homens.
Wanderobo coçava o peito.
— Wanderobo-masai – disse muito orgulhoso, reivindicando o parentesco.
As suas orelhas eram enroladas como as deles. Vê-los correr, tão belos e contentes, fez-nos a nós felizes. Eu nunca tinha visto uma amizade tão espontanea e desinteressada, nein gente tão bem parecida.
— Bons masai – repetia M’Cola, movendo enfaticamente a cabeça. – Bons, bons masai.
Só Garrick parecia ser de outra opinião. Apesar do seu fato de caqui e da sua carta de B’wana Simba, creio que os masai despertavam nele qualquer dor antiga. Eram nossos amigos, mas não dele. Mas nossos eram com certeza. Tiveram aquela atitude que torna os homens irmãos. Esta comunhão tácita, mas instantânea e total, far-nos-iam sentir masai fosse qual fosse a parte do mundo donde viéssemos. Aquela atitude que apenas se consegue encontrar nos melhores ingleses, nos melho-res húngaros e nos melhores espanhóis; a coisa que era a mais clara prova de nobreza, quando a nobreza existia. É uma atitude de ignorância e as pessoas que a observam não sobrevivem, mas poucas coisas mais agradáveis nos podem acontecer do que encontrá-la.
E agora não restavam outra vez senáo dois correndo e a marcha era difícil e o carro passava-lhes a dianteira. Continu-avam correndo bem, ligeiros e desconttaidos mas o carro era um cruel concorrente. Então eu disse a Kamau para andar mais depressa para acabar com aquilo, porque um brusco aumento de velocidade não representava a mesma humilhação que um andamento regular. Eles correram, fora m vencidos, riram e depois nós voltámo-nos, dizendo adeus, e eles ficaram encostados às lanças acenando. Continuámos a set grandes amigos, mas estávamos de novo sozinhos e não havia caminhos, mas apenas a direcção natural a seguir ao tongo dos grupos de árvores e do verde vale.
Um pouco depois as árvores tornaram-se mais cerradas e deixámos atrás de nós a idílica região, procurando caminho por uma pista vaga, através de espessa vegetação. De vez em quando dávamos com uma passagem obstruída e tínhamos que descer para desviar um tronco da passagem ou cortar uma árvore que bloqueava o carro. Outras vezes era preciso fazer marcha atrás no matagal e procurar um caminho para o circundar, voltando ao mesmo caminho, abrindo passagem com as longas facas chamadas pangas. Wanderobo era um mau lenhador e Garrick pouco melhor. M’Cola fazia com perícia tudo o que exigisse o uso duma faca e usava a panga fazendo um golpe rápido mas forte e certeiro. Eu usava-a mal. Emprega-se demasiadamente a força de pulso para que se possa aprender depressa; o pulso cansa-se e a lâmina parece ter um peso que realmente não tem. Gostaria de ter um daqueles machados de duas láminas, do Michigan, afiados como uma navalha de barba, para cortar os liâmes em vez de acutilar assim as árvores.
Abrindo passagem quando parávamos, evitando todos os obstáculos que podíamos, Kamau conduzindo com inteligência e um verdadeiro conhecimento da região, saímos do torso difícil e entrámos numa outra região de largas pradarias a descoberto e vimos uma cadeia de colinas à nossa direita. Mas aqui tinha havido recentes chuvas e era preciso ter cuidado nas partes baixas onde os pneus se enterravam, deslizando e patinando na lama escorregadia. Cortávamos arbustos e duas vezes nos servimos da pá, tendo aprendido a desconfiar de todas as depres-sões e, atingindo a parte alta da pradaria, entrámos outra vez no bosque. Quando saímos, depois de ter descrito vários grandes círculos na floresta para encontrar caminho onde passasse o carro, fomos dar à margem de um rio onde havia uma espécie de ponte de ramos de árvores atravessando o leito, construída como uma represa e evidentemente destinada a conter a água. Do outro lado encontrava-se um campo de cereais rodeado de espi-nheiros, uma escarpa abrupta plantada de milho e curráis de aspecto abandonado ou recintos cercados de sebes com cons-truções de barro e de ramos e à direita cabanas de colmo em forma de cone que apareciam por cima de vedações de espi-nheiro. Todos saímos porque o rio era um problema e, por outro lado, o único caminho pelo qual podíamos escalar a escarpa passava através dos campos de milho cheios de troncos.
O velho disse que a chuva tinha viudo nesse dia. Não havia agua na represa quando eles tinham passado nessa manhã. Eu sentia-me deprimido. Aqui estávamos nós, depois de termos atravessado uma linda região de florestas virgens, onde tinham sido vistos kudus ao longo do caminho, para acabarmos imo-bilizados sobre a margem de uma pequena corrente num campo de milho de qualquer pessoa. Não vinha a contar com campos de milho e exasperavam-me. Pensava que precisaríamos de autorização para atravessar o milho, desde que pudéssemos atravessar a corrente e subir a margem e tirei os sapatos, entrando na água para lhe medir a fundura. Os ramos e o tojo, no fundo, estavam bem unidos e firmes e eu tinha a certeza de podermos atravessar se fôssemos quanto antes. M’Cola e Kamau concordaram e subimos a margem para experimentar. A lama da margem era mole, mas havia terra seca por baixo, e eu acliava que podíamos abrir caminho com a pá, se fosse pos-sível atravessar os troncos. Mas tínhamos que aliviar a carga antes de tentarmos isto.
Avançando para nós, vinham, da direcção das cabanas, dois homens e um rapaz. Eu disse Jambo, quando eles chegaram. Eles responderam Jambo, e depois o velho e Wanderobo fala-ram com eles. M’Cola abanou a cabeça para mim. Não perce-bia uma palavra. Eu julgava que pedissem licença para atra-vessarmos o campo de milho. Quando o velho acabou de falar os dois homens aproximaram-se e apertamos as máos.
Não se pareciam com nenhum dos negros que eu até aí tinha visto. Os seus rostos eram de um cinzento acastanhado, o mais velho parecendo ter uns cinquenta anos, de lábios finos, um nariz quase grego, as maçãs do rosto muito altas e grandes, olhos inteligentes. Tinha muita pose e dignidade e parecia muito inteligente. O homem mais novo tinha traços análogos e tomei-o por um irmáo. Parecia ter uns trinta e cinco. O rapaz era bonito como uma menina e parecia envergonhado e pouco esperto. Quando chegou, pela cara, julguei-o uma rapariga, visto que todos trajavam uma espécie de toga romana de pano não branqueado, caída dos ombros, não revelando a linha dos corpos.
Falavam com o velho que, agora, ao lado deles, parecia ter uma espécie de semelhança enrugada e degenerada com o proprietário da machamba, de traços clássicos; tal qual como Wanderobo-Masai era uma caricatura enrugada dos belos masai que tínhamos encontrado na floresta.
Deseemos depois todos até ao rio e Kamau e eu atámos cor-das à volta dos pneus para fazer de correntes, enquanto o mais velho dos romanos e os outros desocuparan! o carro e levaram as coisas mais pesadas pela margem escarpada. Depois atravessámos num ápice, esparrinhando água e empurrando com toda a força e chegámos a meio do caminho sem nos atolarmos. Cortando e escavando, alcançámos por fim o cimo da margem mas à frente era o campo de milho e eu não conseguia com-preender onde poderíamos ir, a partir dali.
— Onde é que vamos? – perguntei ao romano mais velho.
Não compreenderam a tradução que Garrick fez e o velho teve que esclarecer.
O romano apontou para a sebe de espinheiros à esquerda, na orla da floresta.
— Não podemos chegar ali de carro.
— Campi – disse M’Cola, querendo significar que íamos acampar ali.
— Raio de lugar – disse eu.
— Campi – disse M’Cola com firmeza e todos assentiram.
— Campi! Campi! – disse o velho.
— Acampamos aqui – anunciou Garrick pomposamente.
— Vá para o diabo – disse-lhe eu, de bom humor.
Caminhei para o lugar do acampamento com o romano que ia falando sem cessar numa linguagem de que eu não entendia uma palavra. M’Cola vinha comigo e os outros carregavam o carro e seguiam nele. Eu lembrava-me de ter lido que não se deve acampar em habitações abandonadas pelos indígenas por causa das carraças e outros perigos e dispunha-me a opor-me ao estabelecimento deste acampamento. Entramos por uma brecha da vedação e no meio, havia uma construção de grandes e pequenos troncos, fixada ao chão e atravessada por ramos. parecia uma grande capoeira. o romano pôs aquilo e o terreno em volta à nossa disposição com um largo gesto e continuou a falar.
— Insectos – disse eu a M’Cola em swahili, falando em torn de forte desaprovação.
— Não – disse ele, afastando a ideia. – Não insectos.
— Insectos perigosos. Muitos insectos. Doenças.
— Não insectos – afirmou ele.
Não sabia dizer outra coisa senão «não insectos» e, enquanto o romano falava sem parar, suponho que tentando resolver favoravelmente o assunto, o carro chegou, parando debaixo de uma enorme árvore cerca de cinquenta jardas da vedação e começáram todos a transportar os objectos necessários para se acampar. A minha barraca de Iona foi atirada para um sítio entre uma árvore e um lado da capoeira, e eu sentei-me num bidão de gasolina para discutir a questão da caça com o romano, o velho, e Garrick, enquanto Kamau e M’Cola armavam o acampamento e Wanderobo-Masai estava de pé, sobre uma perna, de boca aberta.
— Onde estão os kudus?
— Lá em baixo – e indicou com o braço.
— Grandes?
Grande gesto de braços para mostrar o tamanho dos chifres e uma torrente de palavras do romano.
Eu, servindo-me activamente do dicionário:
— Onde estava aquele que eles ficaram a guardar?
Não deu grande resultado esta tentativa e apenas obtive um discurso do romano que interpretei como querendo dizer que os vigiavam a todos. Estava-se no fim da tarde e o céu tinha-se coberto de nuvens. Eu estava molhado até à cintura e tinha as meias cheias de lama. E transpirava do esforço de puxar o carro e cortar ramos.
— Quando é que comecámos? perguntei.
— Amanhã – respondeu Garrick sem se dar ao trabalho de transmitir a pergunta ao romano.
— Não – disse eu. – Esta noite.
— Amanhã – disse Garrick – Tarde, agora. Uma hora de luz. E indicou-me uma hora no meu relógio.
Procurei no dicionário.
— Caçar esta noite. Última hora, melhor hora.
Garrick fez compreender que os kudus estavam muito longe. Que era impossível ir, caçar e voltar, tudo isto exprimido por meio de gestos.
— Caçar amanhã.
— Seu palerma – disse eu em inglês.
Todo este tempo o romano e o velho tinham estado de pé sem dizer nada. Eu tiritava. Fazia frio, com o sol encoberto pelas nuvens, não obstante o ar pesado depois das chuvas.
— Velho – disse eu.
— Sim, senhor – disse o velho. Procurando no dicionário com cuidado, disse-lhe: – Caçar kudu hoje à noite. Última hora melhor hora. Kudus perto?
— Talvez.
— Caçar agora?
Falaram uns com os outros.
— Caçar amanhã – sentenciou Garrick.
— Cala-te, palhaço – disse eu. – Velhote: pequena caçada agora?
— Sim – disseram o velho e o romano, aprovando com a cabeça. Só um bocadinho.
— Bom – disse eu e fui buscar uma camisa, uma camisola interior e um par de meias.
— Caçar agora – disse a M’Cola.
— Bom – disse ele. – M’uzuri.
Com a sensação de frescura que me dava a camisa seca, as meias lavadas e as botas mudadas, sentei-me no bidão de gasolina e bebi um whisky com água enquanto esperava que o romano voltasse. Tinha a certeza de que iria atirar sobre um kudu e queria ficar um pouco tocado para não estar nervoso. E também para não apanhar uma constipação. E porque deseja-va o whisky por si mesmo, porque lhe adorava o gosto e porque me sentía tão feliz quanto podia sê-lo, ele me tornaria ainda mais feliz.
Vi chegar o romano e puxei o fecho das botas, verifiquei os cartuchos no carregador da Springfield, levantei o protector do visor e assoprei pela abertura de trás. Depois bebi o que restava no púcaro que estava no chão, ao lado do bidão, e levantei-me verificando se tinha um par de lenços nos bolsos da camisa.
M’Cola chegou, trazendo a sua faca e o binóculo de Pop.
— Você fica aqui – disse eu a Garrick. Não se incomodou com isso. Achava que era patetice sairmos tão tarde e estava contente por nos poder provar que fazíamos mal. Wanderobo quería ir.
— Já chegam – disse eu, e com um gesto mandei para trás o velho e saímos do recinto do acampamento, com o romano à frente levando uma lança, depois eu, depois M’Cola com os binóculos e a Mannlicher cheia de cartuchos, e por fim Wanderobo com outra lança.
Passava das cinco quando atravessámos o campo de milho e deseemos até ao rio, passando-o no sítio onde estreitava, na relva alta, cem jardas acima da barragem, e depois, marchando lenta e cautelosamente, subimos a margem ervosa do outro lado, encharcando-nos até à cinta quando nos baixávamos, passando através das ervas e dos fetos molhados. Ainda não tínhamos andado dez minutos e deslocávamo-nos com precau-ção, margem acima, quando, sem prevenir, o romano me pegou no braço deitando-me ao chão e agachando-se ele; enquanto caía, levantei o cão para carregar a carabina. Retendo a respi-ração, ele estendeu a mão, indicando e, do outro lado do rio, sobre a margem, na orla da floresta, estava um grande animal cinzento com o dorso às riscas brancas e enormes chifres que se enrolavam para trás, que permanecía de pé, de costas para nós e cabeça levantada, parecendo escutar. Levantei a espingarda mas havia um arbusto naquela direcção e eu não podia disparar sem me levantar.
— Piga – segredou M’Cola.
Movimentei o dedo e comecei a rastejar para a frente, para ultrapassar o arbusto, cheio de receio que o animal saltasse enquanto eu tentava fazer um tiro certeiro, mas lembrando-me do «tenha calma», de Pop. Quando tive campo livre, ajoelhei--me sobre uma perna, vi-o através da mira, maravilhando-me com o seu tamanho e depois, lembrando-me que aquilo não tinha importância, que era um tiro como qualquer outro, visei o alvo exactamente onde devia ser, mesmo por baixo da parte dianteira das espáduas, e disparei. Com o barulho o animal sal-tou e fugiu para o matagal; mas eu sabia que o tinha atingido. Disparei para a mancha cinzenta que fugia por entre as árvores em quanto M’Cola gritava: «Piga! Piga!» significando :«Está ferido! Está ferido!» O romano baúa-me nas costas e aepois, enrolando a toga à volta do pescoço, pôs-se a correr todo nu, e agora corríamos os quatro a toda a velocidade, como galgos, atravessando a corrente a chapinhar, subindo a margem com o romano à frente, precipitando-se nu através dos arbustos, depois baixando-se, apanhando uma folha com sangue e dando-me uma palmada nas costas, e M’Cola, dizendo: «Damu! Damu!», sangue, sangue; depois as pegadas profundas à direi-ta, eu carregando de novo a espingarda, todos seguindo a pista, correndo fumosamente, e era quase noite no bosque, o romano perdeu por um instante a pista das pegadas, dirigindo-se para a direita, depois descobriu de novo sangue, e deitou-me outra vez abaixo com um safanão no braço e nenhum de nós respirava quando o vimos de pé, numa clareira a cem jardas, parecendo--me muito ferido e olhando para trás, as largas orelhas levantadas, gtande, cinzento, de dorso listado, os comos uma maravilha quando olhava a direito para o nosso lado, por cima do flanco. Eu pensava que precisava de estar absolutamente seguro desta vez, porque começava a escurecer e sustive a respiração e ati-rei-lhe um pouco atrás dos quartos dianteiros. Ouvimos a deto-nação da bala e vimo-lo cair pesadamente com o tiro. M’Cola gritava: «Piga! Piga! Piga!», correndo desenfreadamente, e todos correndo de novo, como galgos, quase caímos sobre qualquer coisa. Era um enorme, magnífico kudu macho, bem morto, caído de lado, os chifres em escura espiral, largamente abertos e inacreditável, visto que jazia a cinco jardas do sítio onde tínhamos estado quando eu atirara, um instante antes. Olhei-o, grande, de longas pernas, de um cinzento uniforme com as riscas brancas e os enormes chifres enrolados, majestosos, castanhos como o interior de uma noz, de pontas de mar-fim, orelhas grossas, e o grande, belo cachaço, de crina espessa, a lista branca entre os olhos e o branco do focinho e inclinei-me para ele e apalpei-o para acreditar nisto. Jazia do lado em que a bala o tinha atingido e não se via nenhum orificio e o seu cheiro era bom e agradável como a respiração dos animais e o odor do tomilho depois da chuva.
Então o romano pôs os braços à volta do meu pescoço e M’Cola gritava mima estranila voz cantada e Wanderobo-Masai continuou a bater-me nos ombros e a saltar de um lado para o outro e depois, uns após outros, apertaram todos as mãos de uma maneira bizarra que eu não conhecia e que consistía em pega rem no nosso dedo polegar e colocarem-no no seu pulso, segurando-o, movendo-o, levantando-o e prendendo-o outra vez, olhando para nós nos olhos, ferozmente.
Todos olhávamos o kudu e M’Cola ajoelhou e seguiu-lhe a curva dos chifres com os dedos e mediu-lhe a extensão com os braços, continuando a cantar, «Oo-oo-eee-eee», dando pequenos gritos agudos de êxtase e acariciando o focinho e a crina do kudu.
Dei uma pancadinha nas costas do romano e recomeçámos a cerimónia do polegar; e também já eu the prendía o dele. Abracei Wanderobo-Masai e ele, depois de um apertar de pole-gares intenso e sentido, bateu no peito e disse cheio de orgulho:
— Wanderobo-Masai maravilhoso guia.
— Wanderobo-Masai maravilhoso masai – disse eu.
M’Cola continuava a abanar a cabeça olhando o kudu e emitindo os seus pequenos estranhos gritos. Depois disse: «Dolimi, Dotimi, Dolimi! B’wana Kabor Kidogo, Kidogo». Quería dizer que este era o rei dos machos. Que Karl conseguirã um pequeno, um insignificante.
Todos sabíamos que tínhamos morto o outro kudu que eu confundirá com este, enquanto o primeiro morrera ao primeiro tiro, o qual já não parecia ter importância ao lado do mila-gre deste maior. Mas eu quería ver o outro.
— Venham, kudu – disse eu.
— Está morto – disse M’Cola – Kufa.
— Venham.
— Este melhor.
— Venham.
— Medir – insistía M’Cola.
Apliquei a fita métrica de aço sobre um dos chifres, com M’Cola segurando-a na ponta. Tinha bem mais de cinquenta polegadas. M’Cola olhava-me com ansiedade.
— Grande! Grande! – disse eu. – Duas vezes maior do que o de B’wana Kabor.
— Ece-ece – cantava ele.
— Vamos – disse eu. o romano já ia a caminho.
Dirigimo-nos para onde tínhamos visto o animal quando eu dei o tiro e havia sinais de sangue à altura do peito nas folhas dos arbustos. A cem jardas encontrámo-lo absolutamente morto. NãO era tão grande como o primeiro. Os chifres eram do mesmo tamanho, mas mais estreitos e o animal era igualmente belo, e estava caído de lado, tendo quebrado os ramos no sítio onde caíta.
Apertámos outra vez todos as mãos, usando o polegar, o que evidentemente significava extrema comoção.
— Este askari – explicou M’Cola. – Este macho era o polócia ou guarda-costas do maior. Estava evidentemente no bosque quando vimos o primeiro kudu, tinha fugido com ele, e olhara para trás para ver porque é que o outro o não seguía.
Eu queria tirar fotografias e disse a M’Cola para voltar ao acampamento com o romano e trazerem as duas máquinas, a Graflex e a máquina de cinema, assim como a lampada de magnèsio. Sabia que estávamos do mesmo lado do tío e abaixo do acampamento e esperava que o romano pudesse arranjar um caminho mais curto e estar de volta antes que o sol se pusesse.
Eles fora m e, com o findar do dia, o sol apareceu brilhante por cima das nuvens e Wanderobo-Masai e eu olhávamos o kudu, medíamos-lhe os chifres, respirávamos o seu odor, mais agradável ainda que o de um antílope, acaticiavamos-lhe o nariz, o pescoço, as espáduas, encantados com as gtandes orelhas, a macieza e a limpeza da sua pele, admirando os cascos que eram longos, estreitos e elásticos de modo a darem a impressáo de andar na ponta dos pés. Procurámos-lhe sob os quartos dianteiros o buraco da bala e depois apertei de novo a máo a Wanderobo-Masai enquanto ele se gabava e eu lhe dizia que era amigo dele e lhe dava o meu melhor canivete de quatto laminas.
— Vamos ver o primeiro, Wanderobo-Masai – disse eu em inglês.
Wanderobo-Masai assentiti com a cabeça, comprendendo perfeitamente e voltámos ao locai onde jazia o grande kudu, à borda da pequena clareira. Andámos à volta dele a examiná-lo e então Wanderobo-Masai, passando a mão por baixo enquanto eu lhe levantava as espáduas, encontroti a cavidade da baia e meteti-Ihe dentro o dedo. Depois tocou na testa com o dedo ensanguentado e fez o discurso sobre «Wanderobo-Masai, estupendo guia!»
— Wanderobo-Masai rei dos guias – disse eu. – Wanderobo-Masai meu companheiro.
Eu estava encharcado de suor e pus o impermeável que M’Cola tinha trazido e deixado ali e levantei a gola no pescoço. Estava agora olhando o sol e preocupado que desapareces-se antes que eles voltassem com as máquinas. Em breve os ouvimos caminhar por entre os arbustos e eu gritei-lhes para que soubessem onde estávamos. M’Cola respondeti e nós continuámos a chamar-nos uns aos outros, eles fatando e abrindo caminho por entre os arbustos, enquanto eu gritava e olhava o sol quase a pór-se. Finalmente vi-os e gritei a M’Cola, «Corra, corre», e apontei para o sol, mas ele já não podiam correr mais. Tinham feito uma ascençáo rápida na montanha através de uma espessa plantação. E quando recebi a máquina abri as lentes ao máximo e foquei o animal quando o sol já só iltiminava o cunie das árvores. Tirei tima meia dúzia de fotografias e usei a máquina de cinema enquanto eles arrastavam o kudu para onde parecia haver um pouco mais de luz, depois o sol baixou e, sem possibilidade de tirar mais nenhuma fotografia, pus a máquina na caixa e sentei-me, feliz, na irresponsabilidade da vitória; apenas saindo dela para indicar a M'Cola onde devia fazer uma incisão para obter uma pele bastante grande depois de lhe tirar a cabeça. M'Cola usava maravilhosamente a navalha e eu gostava de o vet esfolar. Mas nessa noite, depois de lhe ter mostrado onde devia fazer os primeiros cortes, no fundo das pernas, entre o peito e a barriga e por cima dos quartos dianteiros, não o observava porque queria lembrar-me do kudu tal como o vira pela primeira vez e por isso, à luz do crepúsculo, fui até ao outro kudu e esperei lá até que eles vie-ram com a lanterna e então, lembrando-me que tinha esfolado ou visto esfolar muitos animais mortos por mim e que, no entanto, me lembrava de cada um exactamente como tinha sido em cada momento, e que uma lembrança não desttói outra e que a ideia de não olhar era apenas preguiça, o de põr os pratos de molho até à manhã seguinte. Peguei na lanterna para iluminar M'Cola enquanto esfolava o segundo kudu e, embota fatigado, gostei de ver o seu manejar de faca, como sempre, rápido, limpo, delicado, até que, a pele inteira e solta, ele cottoti a ligaçáo do cráneo com a espinha dorsal e depois, torcendo os chifres, arrancón a cebeça, com pele e tudo, sepa-rando-a do pescoço, aquela a cair pesada e húmida à luz da lanterna eléctrica que brilhava sobre as suas máos ensan-guentadas e sobre o caqui sujo da sua túnica. Deixámos Wanderobo-Masai, Garrick, o romano e o irmão com a lanterna para esfolarem o animal e arranjarem a carne e, M'Cola com uma cabeça, o velho com a outra e eu com a lanterna eléctrica e as duas espingardas, voltámos já noite cerrada para o acampamento.
No escuto o velho caiu estendendo-se ao comprido e M'Cola riu-se; depois a capa desenrolou-se-lhe e enrodilhou-se-Ihe na cara e ele quase sufocava e rimos ambos. O velho riu também. Depois foi M'Cola que se estendeu na negrura da noite e rimo-nos, o velho e eu. Um pouco adiante, ao passar pela cobertura de uma espécie de armadilha de caça, cai eu de borco e enquanto me levantava, M'Cola sufocava de riso e o velho cacarejava.
— Que diabo de graça é que isto tem? Uma comédia de Chaplin? – perguntei-lhes em inglês. Continuaram a rir, disfarçada-mente. Chegámos finalmente à vedaçao, depois de uma marcha tormentosa através do mato espesso e vimos as fogueiras do acampamento e M'Cola divertiu-se muito quando o velho caiu ao atravessar a vedaçao de espinheiros e se levantou praguejan-do e parecendo mal poder erguer a cabeça quando voltei para ele a lanterna eléctrica a fim de lhe mostrar a abertura.
Fomos para junto do fogo e pude ver a cara do velho a sangrar quando pôs a cabeça do kudu encostada à cabana de ramos e lama. M'Cola pousou a cabeça que trazia, apontou para a cara do velho e riti, fazendo um gesto de comiseração. Olhei para o velho. Estava completamente em baixo, com a cara muito arranhada, coberta de lama e sangrando, mas dava pequenos guinchos de alegría.
– B'wanacaiu – disse M'Cola imitando-me a cair de borco.
Riram os dois.
Fiz mençáo de lhe dar um soco e disse:
– Sberizi!
Ele imitou-me de novo a cair e depois veio Kamau apertar-me a mão amigável e respetosamente, dizendo:
– Óptimo, B'wana! Muito bom, B'vana! – e depois dirigin-do-se para as cabeças dos animais, ajoelhou, com os olhos bri-Ihantes, acariciando os comos, apalpando as orelhas e repetin-do a meia voz o mesmo som cantado de M'Cola – Ooo-ooo! Eee-eee!
Entrei na escuridão da barraca – tínhamos deixado a lanterna com os homens que traziam a carne – ti rei a roupa molhada, lavei-me e, procurando no escuro, encontrei no saco de lona um pijama e um roupão de banho. Voltei para a fogueira já vestido e com botas anti-mosquitos. Trouxe as roupas molhadas e as botas para perto da fogueira e Kamau estendeu-as no pau e pôs as botas em outro pau, de canos para baixo e suficientemente longe para que o lume as não ressequisse.
À luz da fogueira, sentei-me num bidão de gasolina com as costas apoiadas numa árvore e Kamau trouxe o frasco do whisky e deitou-me um pouco no púcaro e eu juntei-lhe agua do cantil e fiquei a beber e a olhar para o lume, sem pensar, numa completa felicidade, sentindo o whisky a aquecer-me e a endireitar-me por dentro como se alisa o lençol enrugado numa cama, enquanto Kamau trouxe latas de provisões para ver o que é que eu quería comer ao jantar. Havia três latas de carne picada, três latas de salmão, e três de salada de frutas, assim como alguns bolos de chocolate e uma lata de pudim de amei-xas. Mandei tudo isto embota, ficando a pensar o que Kati imaginaria set esta carne picada Tínhamos procurado aquele pudim de ameixas durante dois meses.
— Carne? – perguntei.
Kamau trouxe um grande e grosso pedaço de lombo tento de gazela de Grant, uma daquelas que Pop tinha matado na planície enquanto nós caçávamos no pántano mais distante, e pão.
— Cerveja?
Trouxe uma das garrafas grandes de cerveja alema e abriu-a.
Não era cómodo estar sentado no bidão de gazolina e estendi no chão a minha gabardina, em frente da fogueira, no sítio onde o solo tinha enxugado com o calor do lume, e estiquei as petnas, encostando-me à caixa de madeira. o velho assava carne num pau. Tratava-se de uma peça escolhida que trouxera consigo, enrolada na toga. Dentro em pouco todos começaram a aparecer trazendo carne e as peles, e eu estava estendido a bebet cerveja e a olhar o lume e eles todos à volta fatando e assando carne nos espetos. Começava a fazer frio, a noite estava limpa e havia o cheiro da carne grelhada, o cheiro do fumo da fogueira, o cheiro das minhas botas que fumega-vam e, quando ele se aproximava, o cheiro do bom velho Wanderobo-Masai. Mas ainda podia lembrar-me do cheiro do kudu, caído na floresta.
Cada homem tinha a sua carne ou a sua porçao de peças de carne em paus estendidos por cima do lume e voltavam-nos e vigiavam-nos, enquanto falavam animadamente. Dois outros que eu nunca vira, tinham vindo das cabanas e o rapaz que aparecerá à tarde estava com eles. Eu estava comendo um bocado de fígado grelhado que tirara de um dos espetos de Wanderobo-Masai e, pensando onde estariam os rins. O fígado era delicioso.
Estava a ver se Valeria a pena levantar-me e ir buscar o dicionário para perguntar pelos rins, quando M'Cola disse:
–Cerveja?
– Pois sim.
Trouxe a garrafa, abriu-a e eu meti-a à boca e bebi metade para empurrar o fígado.
— É um diabo de uma vida – disse eu em inglês.
Ele riu-se e disse:
– Mais cerveja? – em swahili.
Falar-lhe eu inglês era uma brincadeira que já tinha entrado nos hábitos.
– Olhem: – disse eu, inclinando a garrafa e esvaziando-a.
Um velho truque que tinha aprendido em Espanha e que consistía em beber vinho de odres, sem engulir. Isto impressionou extraordinariamente o romano. Aproximou-se, agachou-se ao lado da gabardina e começou a falar. Falou durante muito tempo.
— Absolutamente – disse-lhe eu em inglês.
— Mais cerveja? – perguntou M'Cola.
— Queres ver o velhote bêbado, não é?
— N'Dio – disse ele. – Sim – fingindo que percebera o inglês.
— Olha para isto, romano. Comecei a fazer descer a cerveja, vi o romano seguindo o movimento com o sua própria garganta, comecei a engasgar-me, recompus-me a custo e baixei a garrafa.
— Acabou-se. Não se pode fazer isto mais de duas vezes numa noite. Faz tonturas.
— O romano continuava fatando na sua linguagem. Ouvi-o dizer Simba duas vezes.
— Simba aqui?
— NãO – disse ele. – Lá.
E apontou para o escuro e não pude entender-lhe a conversa. Mas parecia bonita.
— Eu fatto Simba – disse-lhe. – Verdadeiro inferno Simba. Per-guntar M'Cola.
Senti que me estava dando a mania da basófia mas Pop e P. O. M. não estavam ali para ouvir. Não é tão agradável fanfarronar quando ninguém nos entende, mas era melhor que nada. Também tinha a basófia do bebedor de cerveja.
— Engraçado -disse eu ao romano. Ele continuava dizendo a sua história. Havia um pouco de cerveja no fundo da garrafa.
— Velhote – disse eu. – Mzee.
— Sim, B'wana – disse o velhote.
— Um pouco de cerveja para ti. És velho de mais para que isto te faça mal.
Tinha-lhe visto os olhos enquanto me via beber e sabia que era um dos meus. Pegou na garrafa, esgotou-a até à última gota e acocorou-se ao lado dos seus espetos segurando a garrafa com amor.
— Mais cerveja? – perguntou M'Cola.
— Sim – disse eu. – E os meus cartuchos.
O romano continuava a falar sem cessar. Podia contar uma história ainda maior do que a de Carlos em Cuba.
— Isso é extremamente interessante – disse-lhe eu. – Tu és também um rico companheiro. Somos ambos formidáveis. Ouve. – M'Cola tinha trazido cerveja e o meu casaco de caqui com os cartuchos nas cartucheiras. Bebi um pouco de cerveja, reparei na atenção do velho e tirei seis cartuchos. – Sofro de basofiomania – disse-lhe. – Tens que a aturar, olha! – Toquei, um a um, todos os cartuchos. – Simba, Simba, Faro, Nyati, Tendalla, Tendalla. Que dizes a isto? Não és obrigado a acreditar. Olha M'Cola! – e designei outra vez o nome dos seis cartuchos. – Leão, leão, rinoceronte, búfalo, kudu, kudu.
— Ayee! – disse o romano excitado.
— N'Dio – disse M'Cola solenemente. – Sim, é verdade.
— Ayee! – disse o romano e agarrou-me no dedo polegar.
— Verdade incontestável – disse eu. Parece mentira, não parece?
— N'Dio – disse M'Cola, contando-os ele próprio. – Simba, Simba, Faro, Nyati, Tendalla, Tendalla!
— Podes contar aos outros – disse eu em inglês. – É uma grandessíssima loa. Já me chega por hoje.
O romano continuava falando comigo e eu ouvia com atenção e comia outro bocado de fígado grelhado. M'Cola ocupavase agora das cabeças, esfolando um crânio e mostrando a Kamau. como esfolar a parte mais simples de outro. Era um trabalho complicado para os dois: cortavam com cuidado à volta dos olhos, do focinho e das cartilagens das orelhas, e em seguida descarnavam a cabeça para que não apodrecesse, fazendo tudo à luz da fogueira com o maior cuidado e delicadeza. Não me lembro de ter ido para a cama ou mesmo se fomos para a cama.
Lembro-me de ter pegado no dicionário e de ter pedido a M'Cola para perguntar ao rapaz se ele tinha uma irmã e de M'Cola dizendo-me: «– Não, não», com firmeza e solenidade.
— Nada de mal, percebes. Apenas curiosidade.
M'Cola continuava firme.
— NãO – disse, e meneou a cabeça. – Hapana – no mesmo torn que tinha empregado da vez em que tínhamos perseguido o leão na sanseviera.
Isto eliminava as possibilidades de vida social; procurei os rins e o irmão do romano deu-me alguns do seu quinhão e coloquei um pedaço no meio de dois bocados de fígado, pondo-me a grelhá-los num espeto.
— Faz um óptimo pequeno almoço – disse eu alto. – Muito melhor do que carne picada.
Depois tivemos uma longa conversa a respeito de antílopes pretos. O romano não Ihes chama va Tarahalla e este nome não significava nada para ele. Havia uma confusão com búfalos porque o romano dizia: nyati, mas quería dizer que os antílopes eram pretos como búfalos. Então fizemos desenhos na cinza da fogueira e ele quería realmente referir-se a antílopes pretos. Os chifres recurvavam-se como cimitarras, muito para trás da cernelha.
— Machos? – disse eu.
— Machos e fêmeas.
Com o velho e Garrick interpretando, pensei que queriam dizer que havia duas manadas.
— Amanhã.
— Sim – disse o romano. – Amanhã.
— Cola – disse eu. – Hoje, kudu. Amanhá antílope, búfalo, Simba!
— Eu e Wanderobo – Masai búfalo – disse eu.
— Sim – disse Wanderobo-Masai muito excitado. – Sim.
— Há enormes elefantes perto daqui – disse Garrick.
— Amanhá elefantes – disse eu para arreliar M'Cola.
– Hapana elefantes! Sabia que eu estava a brincar mas não quería sequer ouvir isto.
— Elefantes – disse eu. – Búfalo, Simba, leopardo.
Wanderobo-Masai movía a cabeça excitado.
— Rinoceronte – acrescentou.
— Hapana! – disse M'Cola meneando a cabeça. Começava a softer.
— Nestas montanhas muitos búfalos – disse o velho, interpretando as palavras do romano, agora muito excitado, de pé, apontando um ponto para lá das cabanas.
— Hapana! Hapana! Hapana! – disse M'Cola definitiva e finalmente. – Mais cerveja? – e pousou a faca.
— Bem – disse eu. – Estava a brincar contigo.
M'Cola estava acocorado muito perto de mim e dava explicações. Ouvi o nome por que designavam Pop e julguei compreender que Pop nâo gostaria, que Pop não aceitaría.
— Estava apenas a brincar contigo – disse eu em inglês. Depois em swahili: – Amanhã antílope preto?
— Sim – disse ele, com convicção. – Sim.
Depois disto o romano e eu tivemos uma longa convetsa na quai eu falava espanhol e ele falava o que quer que era e julgo que planeamos toda a campanha do dia segui o te.
~ CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
Não me lembro de me ter deitado nem levantado, mas apenas de estar à fogueira na penumbra, antes de amanhecer, com um púcaro de chá quente na mão e o meu pequeno almoço no espeto, não parecendo já tão apetitoso todo coberto de cinzas. O romano estava de pé fazendo um discurso com gestos em direcção ao sítio onde a luz começava a aparecer e lembro-me de ter pensado se o malandro teria estado a falar toda a noite.
A pele das cabeças estava estendida e bem salgada e os crâmos com os chifres estavam encostados à casa feita de troncos e ramos. M’Cola dobrava a pele das cabeças. Kamau trouxe-me as latas e eu disse-lhe para abrir uma de frutas. Estava fria da aragem da noite e salada de frutas e o sumo frio corriam-me suavemente pela garganta. Bebi outra chávena de chá, entrei na barraca, vesti-me, calcei as botas secas e ficámos prontos para partir. O romano tinha dito que estaríamos de volta antes do almoço.
Levámos o irmão do romano, como guia. Tanto quanto entendi, o romano iria espiar uma das manadas de antílopes e nós iríamos localizar a outra. Saímos com o irmão à frente, tra-jando toga e levando uma lança, depois eu com a Springfield à tiracolo e o pequeno binóculo Zeiss no bolso, depois M’Cola com o binóculo de Pop à tiracolo de um lado e do outro o cantil da água, faca de esfolar, pedra de amolar, caixas suplementares de cartuchos e «tablettes» de chocolate nos bolsos e a espingarda grande ao ombro, depois o velho com a Graflex, Garrick com a máquina de cinema, e Wanderobo-Masai com uma lança e um arco e flechas.
Dissemos adeus ao romano e atravessámos a sebe exactamente quando o sol aparecía entre as gargantas das montanhas e brilhava sobre as searas, as cabanas e as colinas azuis. o dia prometia ser claro e belo.
O irmão conduziu-nos ao longo duma vegetação espessa que nos molhou todos; depois, ao longo das clareiras da floresta, depois a pique, pela montanha acima, até que chegámos ao cimo da encosta que se elevava por trás das extremidades do terreno onde tínhamos acampado. Depois encontrámo-nos num bom e suave caminho que conduzia às montanhas, a cujos cimos o sol ainda não tinha chegado. Eu saboreava o amanhecer, ainda um pouco adormecido, andando mecânicamente e começando a pensar que éramos em numero demasiado para poder caçar sem ruídos, ainda que cada quai parecesse caminhar bastante em silêncio, quando vimos duas pessoas caminhando na nossa direeção.
Era um homem alto, de boa figura, com feições como as do romano, mas menos nobres, vestindo toga e trazendo um arco e um carcás de flechas, e, por trás dele, a mulher, muito bonita, muito modesta, muito esposa, vestindo um fato de pele cas-tanha curtida e trazendo ao pescoço um ornamento de fios de cobre concêntricos e muitas pulseiras de cobre nos braços e nos tornozelos. Parámos, dissemos «Jambo», e o irmão falou ao homem que parecia da mesma tribo e que tinha o ar de um homem de negócios dirigindo-se ao seu escritório, na cidade, e enquanto eles falavam fazendo perguntas e dando respostas rápidas, eu contemplava a esposa tao fresca e modesta que estava um pouco de perfil de maneira que lhe via os lindos seios em forma de pera e as longas pernas escuras e bem proporcionadas e estudava-lhe com prazer o agradável perfil, quando o marido lhe falou de repente e com brusquidão e depois como quem explica e dá tranquilamente uma ordem, ela contornou o grupo, de olhos baixos, e retomou o caminho pelo qual nós vieramos, sozinha, enquanto ficámos a olhá-la. O marido, segundo parecia, iria acompanhar-nos. Tinha visto o antílope negro e, ligeiramente desconfiado, visivamente contrariado de deixar esta esposa das esposas agora fora de vista e que nós tínhamos seguido com os olhos, conduziu-nos para a direita por outro caminho bom e de muita passagem através dum bosque que parecia o outono na América e onde podia acontecer um faisão levantar voo e precipitar-se na outra montanha ou obliquar para o vale.
E, realmente, à nossa passagem levantaram-se perdizes e, vendo-as voar, pensei que todos os países do mundo são um só país e todos os caçadores os mesmos homens. Depois vimos uma pegada fresca de kudu ao lado do caminho e em seguida, enquanto continuávamos pelo meio do bosque, agora pouco frondoso, com os primeiros raios de sol coando-se pelo topo das árvores, deparamos com as sempre miraculosas pegadas de elefantes, cada qual fazendo um círculo tão grande como o que a gente faz com os braços pondo as mãos juntas, e entrando pela terra molhada à fundura de um pé, no sítio onde tinha passado um macho, depois da chuva. Seguindo a maneira como as pegadas desciam pela agradável floresta dizia comigo mesmo que nós tínhamos tido também mamutes há muitos anos e que quando andavam pelas montanhas do sul de Illinois, deixavam estas mesmas pegadas. A única coisa é que a América era um país mais velho onde a caça grossa já desaparecerá.
Continuámos ao longo da vertente desta colina sobre um planalto agradável um pouco acidentado e depois chegámos à extremidade da colina, ao sítio onde havia um vale e longa e aberta campina com árvores a toda a volta e um círculo de montanhas ao cimo onde outro vale começava para a esquerda. Parámos na orla do bosque que se encontrava em frente da montanha, donde se via o vale ervoso que se transformava depois numa espécie de bacia escarpada, coberta de erva na extremidade mais alta onde se apoiava contra as colinas. À nossa esquerda encontravam-se abruptas e frondosas montanhas arredondadas com os cumes de rocha calcária que iam desde onde estávamos até ao cimo do vale, onde formavam urna parte da outra cadeia de colinas que a fechavam. Por baixo de nós, à direita, a paisagem era selvagem e cortada de colinas e de prados e depois um despenhadeiro arborizado que ia até às colinas azuis que tínhamos visto a oeste, para lá das cabanas onde habitavam o romano e a família. Parecia-me que o acampamento devia ficar abaixo de nós e a cerca de cinco milhas a noroeste para lá da floresta.
O marido estava de pé, fatando com o irmão, gesticulando e indicando que tinha visto os antílopes pretos pastando do outro lado do vale ervoso e que para comer deviam ter subido ou descido o vale.
Ficámos à sombra das árvores e mandamos Wanderobo-Masai abaixo, ao vale, procurar pegadas. Voltou dizendo que não havia pegadas pelo vale abaixo de nós ou a oeste e assim ficámos sabendo que eles tinham ido pastar pelo vale acima.
Agora o problema era utilizar o terreno por forma a descobri-los e chegar-lhes ao alcance sem sermos vistos. O sol subia ao cimo das montanhas que formavam o vale e incidia sobre nós enquanto, em baixo, tudo estava em frondosa sombra. Disse aos outros para se deixarem ficar onde estavam, no vale, à excepção de M’Cola e do marido que viriam comigo, e continuaríamos no bosque subindo do nosso lado do vale até chegarmos acima e examinarmos os recantos das curvas na extremidade superior, procurando daí com o binóculo localizar os antílopes.
Perguntarão como podia tudo isto ser discutido, decidido e compreendido com o obstáculo das línguas, e dir-vos-ei que foi tão livremente discutido e claramente compreendido como se fossemos uma patrulha de cavalaria falando todos a mesma língua. Éramos todos caçadores, excepto, talvez, Garrick e tudo se podia fazer, compreender e resolver usando apenas o dedo indicador para indicar e uma mão para prevenir. Deixámo-los e subimos com muita precauçãao, bem metidos no bosque para atingir o cimo. Depois, quando estávamos já bem distantes e bastante em cima, trepámos até um sítio rochoso e, atrás das rochas, tapei as lentes do binóculo com o chapéu para que não reflectissem o sol, M’Cola abanando a cabeça e arreganhando os dentes ao ver a utilidade deste gesto, e focámos o lado oposto da planície, à volta da orla do bosque e acima, nos lugares esconsos do vale; e aí estavam eles. M’Cola viu-os um pouco antes de mim e puxou-me a manga do casaco.
— N’Dio — disse eu.
Depois susti ve a respiração para os observar. Pareciam muito pretos, fortes, de grossos cachaços. Todos tinham chifres recurvados para trás. Estavam a uma grande distância, alguns deitados no chão e um de pé. Viamos sete.
— Onde está o macho? — perguntei eu.
M’Cola fez um gesto com a mão esquerda e contou quatro dedos. Era um dos antílopes estendidos, na erva alta e parecia um animal bastante maior e de chifres de muito maior envergadura. Mas estávamos a olhar contra o sol da manhã e era difícil ver bem. Por trás deles subia a colina, uma espécie de ravina que bloqueava o extremo do vale.
Agora sabíamos o que tínhamos a fazer. Voltar para trás, atravessar o prado bem em baixo para passarmos fora da vista deles, entrar no bosque pela parte mais longínqua e, caminhando por ele, chegarmos até ao local acima daquele onde estavam os antílopes. Primeiro tínhamos que nos certificar de que não havia mais nenhum no bosque ou no prado que devíamos atravessar antes de nos aproximarmos.
Molhei o dedo e ergui-o no ar. Pelo lado que arrefecera mais, parecía que a brisa subia do vale. M’Cola pegou numas folhas secas, amachucou-as e deitou-as ao ar. Caíram um pouco na nossa direcção. O vento era favorável e agora era preciso examinar com os binóculos a orla do bosque. Arriscávamo-nos a fazer levantar qualquer animal, afugentando os antílopes pretos, mas era preciso correr este risco para nos aproximarmos deles.
— Hapana — disse finalmente M’Cola.
Eu também não tinha visto nada e os olhos doíam-me de ter estado a olhar através de lentes fortes. Podíamos tentar a sorte no bosque. Arriscávamo-nos a espantar qualquer cabeça de caça e a afugentar os antílopes negros, mas era preciso correr este risco para os poder contornar e atingir um lugar mais alto do que aquele onde eles estavam.
Deseemos para trás e dissemos aos outros o que iamos fazer. Do sítio onde eles estavam podíamos atravessar o vale sem ser-mos vistos da extremidade mais longínqua e, baixando-nos — eu tirando o chapéu — partimos por entre a erva alta do prado e attavessamos a funda corrente de água que lhe corria pelo meio e o seu pequeno rochoso banco de areia, subimos sobre a margem recamada de erva, do outro lado, parando numa reentrância do vale ao abrigo do bosque. Depois marchamos através do bosque, curvados, em fila indiana, tentando chegar acima do local onde estavam os antílopes.
Avancávamos em silêncio mas não tão depressa quanto podíamos. Eu tinha já feito muitas vezes esta espécie de caça, tentando aptoximar-me de animais que desapareciam da vista enquanto se contornava a montanha, para poder esperar que estes antílopes ficassem onde estavam e, visto que uma vez no bosque não os poderíamos ver, achava que o importante era chegar ao locai acima deles, tão depressa quanto pudessemos, sem que eu ficasse trémulo e sem fôlego, para poder disparar.
O cantil da água de M’Cola fez barulho tocando nos cartuchos que trazia nas cartucheiras e eu parei e fi-lo dar o cantil a Wanderobo-Masai. Na minha opinião éramos em número demasiado para caçar, mas eles moviam-se todos tão silenciosamente como serpentes e, fosse como fosse, eu ia cheio de confiança. Estava convencido de que os antílopes não podiam ver-nos nem sentir o nosso cheiro na floresta.
Por fim tive a cetteza de estarmos por cima deles. Deviam estar à nossa frente, para lá da clareira da floresta, onde o sol brilhava, por baixo de nós e sob a orla da colina.
Certifiquei-me de que a abertura do visor estava limpa, lim-pei os óculos e enxuguei o suor da testa, tendo o cuidado de pôr o lenço usado no bolso esquerdo para evitar molhar os óculos voltando a limpá-los com ele. M’Cola, eu e o marido, começámos a abrir caminho para a orla da floresta, subindo finalmente até quase ao cimo da cordilheira. Havia ainda algumas árvores entre nós e o prado aberto em baixo e estávamos atrás de um pequeño arbusto e de uma árvore seca, quando, levantando a cabeça, os vimos numa clareira dos arbustos, a cerca de trezentas jardas, parecendo, à sombra, enormes e muito escuros. Separáva-nos deles um bosque de árvores dispersas, cheio de luz, e a ravina. Enquanto olhávamos, levantaram-se dois e fica-ram parados, parecendo olhar para nós. Era possivel dar um tiro, mas estávamos demasiadamente distantes para se ter a certeza de ser bem sucedido e, enquanto os olhava, estendido no chão, senti alguém tocar-me no braço e Garrick, que tinha avançado de gatas, disse-me num murmúrio rouco:
— Piga! Piga! Wwana! Doumi! Doumi! Que atirasse, que era um macho. Olhei para trás e todo o grupo estava deitado de barriga no chão ou de gatas ou de joelhos e Wanderobo-Masai tremia como se fosse um cão de caça. Fiquei furioso e disse-lhes que se estendessem.
Era então um macho! Um macho muito maior do que aquele que M’Cola e eu tínhamos visto deitado. Os dois animais olharam-nos e eu baixei a cabeça pensando que podiam estar a ver o sol refectia-se nos meus óculos. Quando olhei de novo, com toda a cautela, resguardei os olhos com a mão. Os dois antílopes tinham deixado de nos olhar e estavam comendo. Mas um voltoli a erguer a cabeça, nervoso, e vi o negro e maciço antílope, de chifres recurvados para trás, semelhando uma cimitarra, fitando-nos.
Nunca tinha visto um antílope negro. Não sabia nada a seu respeito: nem tinha o olhar penetrante como o do carneiro que nos vé a qualquer distância que o possamos ver a ele, ou como o do veado que não nos pode ver a duzentas jardas a não ser que a gente se mova. Não conhecia também as suas dimensões, mas calculava que a distância a que estava devia ser de umas trezentas jardas. Sabia que podia atingir um, se atirasse sentado ou deitado, mas não podia dizer onde o atingitia.
E Garrick de novo: — Figa B’wana Figa!
Voltei-me para eie fazendo menção de Ihe dar um murro na boca. Ter-me-ia dado grande consolação fazé-lo. Não estava realmente nervoso por ver os antílopes, mas Garrick é que me punha assim.
— Longe — disse baixinho a M’Cola que se tinha attastado e estava estendido ao meu lado.
— Sim.
— Dispatar?
— Não. Binóculo.
Olhámos ambos usando o binóculo com precaução. Eu só via quatto. Primeiro eram sete. Se era um macho o que Garrick indicara, então eram todos machos. Na penumbra pareciam todos da mesma cor. Os chifres pareciam-me todos grandes. Dos carneiros monteses sabia eu que os machos se agrupavam em bandos até quase ao fim do inverno e só então iam com as ovelhas; que no fim do verão se encontravam veados machos também em bandos, antes da época do ciò e que depois se reu-niam todos outra vez. Tínhamos visto já qualquer coisa como umas vinte impalas-fêmea, juntas na Serenca. Pois bem. Estes também podiam ser todos machos, mas eu quería um bom, o melhor, e tentava lembrar-me se teria lido alguma coisa a respeito deles, mas tudo o que pude recordar foi uma estúpida história de um homem vendo o mesmo antílope todas as manhãs no mesmo sítio, sem nunca se poder aproximar dele. Tudo o que pude lembrar foi o lindo par de chifres que tínhamos visto no departamento de caça, em Arusha. E aqui tinha agora os antílopes negros e precisava de Ihes atirar sem errar e conseguir alvejar o melhor. Nunca me ocorreu que Garrick nunca tivesse visto um antílope negro e que não soubesse mais a seu respeito que M’Cola ou eu.
— Muito longe — disse para M’Cola.
— Sim.
— Vamos — disse, fazendo sinal aos outros para se deitarem no chão. E começámos a trepar para atingir o cimo da colina.
Por fim estendemo-nos atrás de uma árvore e olhei à volta. Agora podíamos ver-lhes claramente os chifres com o binóculo e víamos tambêm os outros tres. Um, estendido no chão, era sem dúvida o maior e as hastes, de perfil, como eu as via, pare-ciam recurvar-se muito mais alto e mais para trás. Estava-os examinando demasiadamente excitado para me sentir feliz, quando ouvi M’Cola murmurar: — B’wana.
Baixei o binóculo e, olhando, vi Garrick que, fora da pro-tecção do abrigo, gatinhava apoiado nas mãos e nos joelhos, vindo juntar-se a nós. Estendi braço com a palma da mão vol-tada para eie, fazendo-lhe sinal para que parasse, mas não me prestou atenção e continuou a avançar tão em evidência como um homem que caminhasse de gatas pela rua de uma cidade. Vi um antílope olhando para o nosso lado, para ele, melhor dizendo. Depois levantaram-se mais três. Então o maior ficou de pé, de frente, com a cabeça voltada para nós, enquanto Garrick se aproximava dizendo em voz baixa: — Piga, B’wana! Piga! Doumi! Doumi! Kubwa Sana.
Não havia agora outra alternativa. Eles estavam nitidamente alerta; estendi-me de barriga para baixo, meti os bracos pela bandoleita, apoiei os cotovelos, finquei a ponta do pé direito no chão e atirei a meio dos quartos do macho. Mas, pelo rugido vi logo que o tiro fora mau. Tinha-lhe passado por cima. Saltaram todos e ficaram a olhar, sem saber de onde viera o barulho. Voltei a atirar sobre o macho, fazendo saltar a poeira por cima dele, e fugiram. Eu estava de pé e atingi-o enquanto fugia, fazendo-o tombar. Depois levantou-se, atirei-lhe outra vez e, atingido, juntou-se ao bando. Os outros passaram à sua frente e eu atirei de trás. Voltei a feri-lo e começou a andar com lentidão; sabia que o tinha atingido mortalmente. M’Cola esta-va-me dando cartuchos e eu enchi de munições o carregador da malvada Springfield, olhando o antílope a atravessar o curso de água, fazendo grande rumor. Tínhamo-lo, apanhado, sem dúvi-da. Pude ver que ia muito ferido. Os outros, em fila, avançavam para o bosque. Ao sol pareciam muito mais claros e até o que eu atingirá parecia menos escuro. Eram de cor castanha-escura e o que eu tinha ferido quase preto. Mas não era preto e eu sentia que qualquer coisa não estava certa. Meti o último cartucho e, estava Garrick tentando pegar-me na mão para me felicitar, quando, por baixo de nós, através do espaço descoberto onde a ravina, que não podíamos ver dali, abria sobre a entrada do vale, os antílopes começaram a passar, correndo em pânico.
«Meu Deus», pensei eu. Todos pareciam o que eu tinha atingido e tinha tentado escolher um bem grande. Pareciam todos iguais, dando encontröes uns aos outros enquanto corriam. E então apareceu o macho. Mesmo à sombra, era de um negro escuro e brilhante como quando estava ao sol; os chifres eleva-vam-se-lhe muito alto enrolando depois para trás, enormes e pretos, em duas grandes curvas que quase Ihe tocavam o meio das costas. Era realmente um macho. Santo Deus, que macho!
— Doumi — disse-me M’Cola ao ouvido. — Doumi!
Atirei e caiu quando se ouviu a detonação. Vi-o levantar-se enquanto os outros passavam, dispersando-se e voltando a agrupar-se. Tinha falhado. Vi-o ir quase a direito pelo vale acima, pelo meio da erva alta e alvejei-o outra vez, mas desa-pareceu. Os antílopes subiam agora a encosta no extremo do vale, à nossa direita e atravessavam o vale pelo bosque, dispersos e avançando depressa. Agora que tinha visto um macho, sabia que os outtos eram todos fêmeas, incluindo o primeiro que eu alvejara. o macho não se via, mas eu estava certo de que o encontraríamos no sítio onde o tinha visto desaparecer por entte a erva alta.
Os outros estavam de pé e eu recusei os apertos de mão e o toque do polegar e partimos a toda a pressa através das árvores, por cima da orla da ravina até ao prado. Os meus olhos, o meu espírito e tudo dentro de mini estava cheio da negrura daqueles antílopes e do movimento dos seus chifres e agradeci a Deus ter carregado a carabina antes de ele aparecer. Mas tinham sido todos titos nervosos e não me orgulhava deles. Tinha-me excitado e visado todo o animal em vez de procurar o ponto óptimo e estava envergonhado; mas os companheiros estavam loucos de entusiasmo. Eu queria continuar a andar mas não podia conter-lhes a excitação; pareciam uma matilha de cães, enquanto corríamos. Quando atravessámos o prado no sítio onde tínhamos visto pela primeira vez os sete e passámos o local onde o macho desaparecera, a erva tornou-se de repente tão alta que ultrapassava as nossas cabeças e tivemos que abrandar a marcha. Havia dois barrancos ocultos e secos, de dez ou doze pés de altura que iam até à corrente de água e aquilo que parecia uma depressão de erva macia, era um barranco irregular e traiçoeiro cheio de erva que nos ia até à cintura e às vezes até à cabeça. Encontrámos sangue que seguia para a esquerda, atravessava o riacho e subia a colina à esquerda desde a abertuta do vale. Pensei que fosse do primeiro animal, mas o percurso parecia maior do que aquele que ele poderia ter feito quando o tínhamos visto do alto, saíndo do bosque. Olhei em volta à procura do macho grande, mas não podia distinguir as suas pegadas das dos outros e, na erva alta e com este terreno irregular, era-difícil descobrir ao certo para onde ele tinha ido.
Andavam todos à procura de sinais de sangue, mas era como obrigar cães mal amestrados a apanhar o pássaro morto quando estão cegos por se lançar no encalce do resto do bando.
— Doumi! Doumi! — disse eu. — Kubwa Sana! o macho, o macho grande.
— Sim — todos concordaran!. — Aqui! Aqui!
E indicavam os sinais de sangue que atravessavam a corrente de água.
Finalmente segui aquele caminho, pensando que devíamos apanhar um de cada vez dado que este estava muito fetido e que o outro podia esperar. Depois, também, podia eu ter-me enganado e ser este o macho grande que talvez tivesse voltado na erva alta e atravessado aqui, enquanto nós desceramos. Já me tinha enganado antes, pensei.
Seguimos rapidamente pela encosta acima, por entre o bosque, onde havia sangue espalhado por toda a parte, voltamos à direita, subindo a encosta escarpada e, à entrada do vale de grandes rochedos, saltou um antílope. Começou a correr e a saltar sobre as rochas. Vi logo que não estava fetido e sabia, pela cor acastanhada, que, apesar dos chifres escuros, retorcidos para trás, era uma fêmea. Vi isto justamente a tempo de não atirar. la premir o gatilho quando baixei a carabina.
— Manamouki — disse eu. — É uma fêmea.
M’Cola e os dois guias romanos concordaran!. Eu quase disparara. Tínhamos andado talvez mais urnas cinco jardas quando saltou outro antílope. Mas este balançava desesperadamente a cabeça e não podia saltar as rochas. Estava muito fetido e eu não me precipitei, disparando com cuidado e atingindo-o no pescoço.
Aproximamo-nos dele, estendido nos rochedos; era um grande animal castanho escuro, quase preto, de chifres negros elegantemente enrolados para trás, com uma mancha branca no focinho e por cima de um olho e a barriga branca; mas não era macho.
M’Cola, ainda duvidando, certificou-se apalpando-lhe as tetas curtas e pouco desenvolvidas e disse:
— Manamouki — abanando a cabeça tristemente.
Era o primeiro animai grande, aquele que Garrick tinha indicado.
Macho além — disse eu, apontando.
— Sim — respondeu M’Cola.
Pensei que Ihe podíamos dar tempo para se cansar, se esti-vesse apenas fetido, e descernios depois a procurá-lo. Assim, deixei M’Cola fazer os cortes para tirar a pele do crânio e dei-xaríamos depois o velho a esfolar a cabeça enquanto íamos abaixo, à procura do macho.
Bebi água do cantil. Tinha sede depois da subida a correr e o sol, agora alto, estava ficando quente. Depois, deseemos pelo lado do vale oposto àquele por onde tínhamos subido atrás da fêmea ferida e, na parte de baixo, na erva alta, descrivendo círculos, procuramos a pista do macho. Não o pudemos encontrar.
Os antílopes tinham corrido em grupos e todos os sinais individuais eram confusos ou apagados. Encontrámos sangue nos caules das ervas, no sítio onde eu primeiro o ferira, depois perdemos o rasto e voltámos a encontrá-lo no lugar onde as outras marcas de sangue se perdiam. Em seguida as pegadas perdiam-se todas, dirigindo-se em forma de leque, pelo vale e pelas montanhas acima, e não podíamos de novo distinguí-las. Por fim encontrei sangue riuns pedúnculos de erva a cerca de cinquenta jardas, no vale, e colhi-os, erguendo-os à luz. Cometi um erro. Devia era ter levado ali os outros para lhes mostrar. Porque já todos, excepto M’Cola, tinham perdido a esperança no macho.
Não estava ali. Tinha desaparecido. Tinha-se eclipsado. Se calhar nunca tinha existido. Quem podia afirmar que fosse um verdadeiro macho? Se eu não tivesse colhido aquela relva coberta de sangue, poderia tê-los retido. Plantada na terra e coberta de sangue, era uma prova. Colhida, deixava de ter significado, a não ser para mim e para M’Cola. Mas não pude encontrar outro sangue e eles procuravam agora sem confiança. A única possibilidade era esquadrinhar cada pé quadrado de erva alta e cada pé de ravina. O calor era agora muito forte e eles estavam todos fazendo um simulacro de busca.
Gavvick apvoximou-se.
— Só fêmeas — disse. — Não macho. Apenas fêmeas maiores. O senhor matou fêmea grande. Encontrámo-la. Fêmeas pequenas fugiram.
— Seu cretino — disse eu. E depois, fazendo uso dos dedos. Oiça: — Sete fêmeas. Depois quinze fêmeas e um macho. Macho ferido. Aqui.
— Tudo fêmeas — disse Garrick.
— Uma fêmea grande ferida. Um macho ferido.
Eu afirmava com tanta convicção que eles concordaram e por um instante procuraram com interesse mas eu bem via que tinham perdido a confianca na existência do macho.
«Se eu tivesse um bom cão — pensava eu. — Apenas um bom cão».
Garrick veio de novo.
— Todos fêmeas — disse. — Grandes fêmeas.
— Tu é que és uma fêmea — disse eu. — Uma grande fêmea.
Isto provocou uma gargalhada a Wanderobo-Masai que começava a parecer a encarnação da miséria humana. O irmão semi-acreditava no macho. O marido, por essa altura, já não acreditava em nenhum de nós. Creio que nem acreditava no kudu da noite anterior. Depois da maneira corno eu atirara nessa tarde, não podia censurá-lo.
M’Cola aproximou-se. — Hapana — disse lugubremente, depois: — B’wana, atirou a esse macho?
— Sim — disse eu. Por um instante comecei a duvidar se havia sequer um macho. Depois vi de novo a sua forte negrura, o cachaço alto e os chifres erguidos antes de recurvarem para trás, vi-o correr com a manada, os outros a darem-lhe pelas espáduas, preto como o diabo. E enquanto eu o via, M’Cola viu-o de novo também através da enevoada incredulidade selvagem para tudo o que não lhes é dado ver no momento.
— Sim — concordou M’Cola. — Eu vi-o. o senhor atirou-lhe. Disse-lhe outra vez:
— Sete fêmeas. Alvejei maior. Quinze fêmeas, um macho. Feri macho.
Todos acreditavam agora nisto por um momento e começaram a procurar em volta, mas a fé depressa morreu com o calor do sol e a alta erva agitada pelo vento.
— Tudo fêmeas — pontificou Garrick. Wanderobo-Masai meneou a cabeça, de boca aberta. Senti a sua resignada falta de fé invadir-me também. Era incomparavelmente mais simples desistir, com este calor, neste barranco descoberto e sob o sol na colina escarpada. Disse a M’Cola que procuraríamos nos dois lados do vale. Que acabasse de esfolar a cabeça e então iríamos, sozinhos, procurar o macho. Vocês não podem caçá-lo com essa descrença. Eu não tinha podido treiná-los, não tinha tido força para os disciplinar. Se não houvesse lei, teria matado Garrick, e os outros haviam de caçar ou de se pôr a andar. Mas creio que haviam de caçar. Garrick não tinha simpatía. Era um peçonhento.
M’Cola e eu voltámos ao vale, percorremo-lo como cães de caça, andámos de roda e seguimos pista após pista. Eu tinha calor e muita sede. O sol estava agora realmente duro.
— Hapana — disse M’Cola. - Não podemos encontrá-lo. Onde quer que esteja, perdemo-lo.
«Se calhar era uma fêmea. Talvez fosse tudo fantasia», pensava eu deixando a descrença apoderar-se de mim como um conforto. Iríamos examinar o flanco da colina, à direita, e depois inspeccionaríamos tudo e levaríamos a cabeça da fêmea ao acampamento e veríamos o que é que o romano teria encontrado. Eu morria de sede e esvasiei o cantil. Teríamos agua no acampamento.
Começámos a subir a montanha e descobri um antílope no meio dos arbustos. Quase Ihe atirava antes de ver que era uma fêmea. Isto mostra como eles se podem esconder, pensei. É preciso que vamos buscar os homens e procuremos de novo por toda a parte; nessa altura o velho pôs-se a gritar como um selvagem.
— Doumi! Doumi! — em voz alta e chorosa.
— Onde? — gritei eu, atravessando a correr a colina até ao sítio onde eie estava.
— Ali! Ali! — gritava eie, apontando para o bosque do outro lado do extremo do vale. — Ali! Ali! Ali vai eie! Ali!
Corríamos como loucos, mas o macho desaparecía no bosque, pela encosta. o velho dizia que era enorme, preto, com grandes chifres e tinha passado a dez jardas dele, ferido em dois sitios: no baixo ventre e em cima, no trazeiro. Muito ferido mas caminhando depressa, cruzara o vale e fora montanha acima, pelo meio das rochas.
Atingi-o no baixo ventre, pensava eu. Depois, quando eie fugia, é que o feri no trazeiro. Caiu ferido e perderamo-lo. Depois, quando passámos, ele saltara.
— Venham — disse eu.
Estavam agora todos excitados e prontos a partir. O velho tagarelava sobre o macho enquanto esfolava a cabeça e pô-la depois sobre a sua, quando começáamos a subir e a atravessar as rochas, inspeccionando a encosta da colina. Lá, onde o velho tinha apontado, estava uma enorme pegada de antílope, as marcas do casco bem delineadas, subindo no bosque. E havia sangue, muito sangue.
Seguimo-lo rapidamente, esperando fazê-lo saltar e poder atirar porque era fácil caminhar à sombra das árvores com tanto sangue como guia. Ia subindo, contornando a colina e andava depressa. O sangue continuava a ser brilhante e fresco mas nao encontrávamos o animal. Eu não procurava as pegadas, mas olhava em frente, pensando poder vê-lo se eie olhasse para trás ou tombasse ou atravessasse a colina através do bosque e M’Cola, e Garrick seguiam a pista, ajudados pelos outros, excepto o velho que marchava vacilando, com a cabeça e a pele da cabeça do antílope sobre a sua própria cabeça cinzenta. M’Cola tinha pendurado nele o cantil vazio e Garrick entregara-lhe a máquina de cinema. Era-lhe difícil caminhar.
A certa altura chegámos a um sítio onde o macho tinha repousado e seguimos-lhe as pegadas. Havia uma pequena poça de sangue na rocha em que ele tinha parado, por trás de uns arbustos, e eu amaldiçoei o vento que enviava o nosso cheiro à nossa frente. Corría agora uma forte brisa e estava convencido de que não tínhamos nenhuma probabilidade de o sur-preender, porque o nosso odor faria desaparecer da nossa frente qualquer animal enquanto pudesse mover-se. Pensei em experimentar fazer com M’Cola um desvio para Ihe barrar o caminho, deixando os outros seguir a pista, mas íamos depressa, o sangue era ainda claro sobre as pedras, as folhas caídas e as ervas e as colinas eram demasiado escarpadas para poderem ser circundadas. Não percebia como podíamos perdê-lo.
Depois a pista conduzia a uma região rochosa, cortada de ravinas, onde a procura se tornava lenta e a marcha difícil. Aqui, pensava eu, fa-lo-emos saltar num barranco, mas as manchas de sangue que já não eram täo frescas, contornavam as rochas, passavam sobre as pedras, subiam sempre mais alto, e deixaram-nos no rebordo de uma crista rochosa. A partir de lá, teria que se descer de novo. Mais acima a encosta era demasiado escarpada para que ele tivesse podido passar para o cume da colina. Não havia outro caminho a escolher senáo a descida. Mas corno tinha ele saido e por quai ravina? Mandei os homens examinar três descidas possíveis e subi à escarpa tentando descortiná-lo.
Não conseguiram encontrar nenhum sinal e depois Wanderobo-Masai gritou debaixo e à direita, que tinha encontrado sangue e, descendo, vimo-lo sobre uma rocha e depois seguimos as manchas espaçadas que secavam e deseemos a pique até ao prado, em baixo. Encorajava-me saber que ele tinha começado a descer a colina e, com a erva espessa do prado a dar-nos pelos joelhos, era fácil seguir-lhe a pista, porque a erva dava-lhe pelo ventre e, se bem que não pudéssemos ver claramente o caminho que seguira sem nos dobrarmos a afastar a erva, os sinais de sangue eram visíveis sobre os caules. Mas o sangue era agora seco e de um vermelho escuro e eu sabia que ele tinha ganho muito tempo em relação a nós, enquanto marchara na montanha, pelos rochedos.
Finalmente as pegadas atravessavam a parte seca do leito do riacho, no sítio donde tínhamos visto pela primeira vez o prado nessa manhã, e continuava na encosta pouco arborizada do outro lado. Não havia nuvens e eu agora sentía o sol, não apenas como calor, mas como um peso mortal sobre a cabeça e tinha muita sede. Estava muito calor, mas não era o calor que me atormentava. Era o peso do sol.
Garrick deixara de procurar seriamente a pista e limitavase a uma contribuição teatral para descobrir sangue quando M’Cola e eu parávamos. Eu próprio já não podia fazer um traballio de rotina e descansava para depois fazer pesquisas por acessos súbitos de irritação. Wanderobo-Masai era tão inútil como um gaio e eu disse a M’Cola que Ihe entregasse a espingarda grande para transportar e podermos assim tirar dele algum proveito. O irmão do romano não era, evidentemente, um caçador, e o marido tinha-se desinteressado. Também não parecia caçador. Enquanto procurávamos a pista, lentamente, com o solo agora endurecido pelo calor do sol, o sangue apenas em manchas negras e salpicos na erva baixa, Garrick e Wanderobo-Masai abandonaram, um após o outro, o traballio, e sentaram-se à sombra das árvores dispersas.
O sol era tremendo e, como era preciso avançai de cabeça baixa e dobrada, eu ia com horríveis dores de cabeça, apesar de levar um lenço por cima da nuca.
M’Cola seguía o rasto lenta e regularmente, completamente absorvido pelo problema. o suor fazia-lhe brilhar a cabeça des-coberta e calva e quando Ihe corría até aos olhos arrancava umas hastes de erva, apertava-a nas mãos e limpava com o feixe o suor da testa e da cabeça negra e calva.
Avançávamos devagar. Eu tinha sempre jurado a Pop que podia levar a melhor a M’Cola, mas agora dava-me conta de que ultimamente tinha feito uma espécie de exibição à Garrick, descobrindo a pista quando estava perdida e fazendo uma busca incessante e profiada com este calor e um sol abrasador, tão forte que se sentia na cabeça ardendo como fogo, enquanto se marchava nas ervas curtas sobre um terreno duro, onde cada mancha de sangue era um calhau seco e negro sobre um caule de erva difícil de descobrir; cada mancha era agora distante da anterior umas vinte jardas e era preciso ficar um a marcar a última enquanto os outros procuravam a seguinte, seguindo depois um de cada lado do caminho; indicávamos as manchas com um gal ho de erva para evitar de falar, até que perdíamos a pista e punhamos os olhos na última enquanto os outros se lançavam em todas as direcções, para encontrar de novo uma indicação, fazer um sinal com a mão levantada - eu com a boca tão seca que não podia falar - e uma onda de calor a vir do chão quando me endireitava para aliviar a dor do pescoço, olhando em frente. Então compreendi que M’Cola era incontestavelmente mais forte corno homem e melhor guia. Havia de dizê-lo a Pop, pensei.
Nesta altura M’Cola disse uma piada. Eu tinha a boca tão seca que mal podia falar.
— B’wana — disse M’Cola, olhando-me quando eu me endireitava a esticar o pescoço para trás para fazer passar uma cãibra.
— Que é?
— Whisky? — e ofereceu-me o cantil.
— Grande malandro — disse eu, em inglês, enquanto eie mene-ava a cabeça.
— Hapana whisky.
— Grande selvagem — disse-lhe eu em swahili.
Recomeçamos à procura do rasto, M’Cola abanando a cabeça muito bem disposto. Um pouco mais longe a erva começou a ser mais alta e a marcha mais difícil. Atravessámos toda esta região meio-descoberta que tínhamos visto da encosta da montanha nessa manhã e, tendo descido uma escarpa, voltámos a encontrar manchas na erva alta. Nesta erva mais alta verifiquei que, semi cerrando os olhos, podia ver as pegadas do antílope no sitio onde eie tinha entrado na erva e comecei a seguir esta pista, depressa, sem me importar com a do sangue, com gàudio de M’Cola. Mas depois voltámos a encontrar terreno de erva curta e rocha e a pesquisa tornou-se ainda mais difícil.
Ele já não sangrava muito; o sol e o calor deviam ter-lhe secado as feridas e apenas encontrávamos um ou outro pingo estrelado de sangue no chão rochoso.
Garrick aproximou-se, fez uma ou duas descobertas importantes de sangue e depois sentou-se sob uma árvore. Debaixo de outra via-se o pobre velho Wanderobo-Masai exercendo pela primeira e ultima vez o papel de porta-espingarda. Sob uma terceira estava o velho com a cabeça do antílope ao lado como um símbolo de missa negra, com o equipamiento a pender-lhe dos ombros; M’Cola e eu continuámos à procura da pista, lenta e penosamente, ao longo da grande encosta rochosa, num outro bosque de árvores dissiminadas e num grande campo com um montão de rochas no extremo. No meio deste campo perdemos completamente o rasto, andámos às voltas no mesmo sítio durante quase duas horas até que encontrássemos de novo sangue.
O velho é que o encontrou atrás dos rochedos, à direita, a cerca de uma milha. Tinha ido para ali por sua iniciativa, achando que era um caminho provável para o antílope. O velho era um caçador.
Depois seguimos lentamente esta pista durante uma milha, num terreno pedregoso. O chão era muito mau e não voltámos a ver sangue. Era impossível continuar. Então procurámo-lo seguindo apenas hipóteses sobre o caminho que poderia ter tomado, mas a região era muito grande e não tivemos sorte.
— Não presta — disse M’Cola.
Endireitei-me e fui para a sombra de uma grande árvore. Era fresca como água e a brisa refrescava-me a pele através da camisa molhada. Pensava no macho e desejava ardentemente nunca o ter ferido. Porque o tinha atingido e depois perderao. Estava convencido de que ele continuara a avançar e tinha saído da região. Não mostrara nunca tendência para voltar atrás. Nessa noite era capaz de morrei e as hienas comiam-no, ou, ainda pior, apanhá-lo-iam antes de morrer, cortando-lhe os tendões das pernas e arrancando-lhe as tripas, ainda vivo. A primeira que passasse por esta pista, segui-la-ia até encontrar o antílope. Depois chamaría as outras. Sentia-me um imbecil por o ter ferido sem o matar. Era-me indiferente matar fosse o que fosse, qualquer espécie de animal, desde que o matasse definitivamente, porque todos tinham que morrer e a minha intervenção acidental, matando-o, era instantánea e não me fazia remorsos. Comíamos a carne e guardávamos a pele e os chifres. Mas sentia-me tremendamente infeliz por causa deste antílope. Além disso, queria-o. Queria-o desesperadamente, desejava-o mais do que aquilo que presumía. Enfim, tínhamos esgotado com ele todas as possibilidades. Tínhamos tido uma oportunidade no começo, quando ele estava deitado, mas eu falhara o tiro. Tínhamos perdido isto. Mas a minha oportunidade, a única que um caçador pode desejar, fora quando eu, ao disparar, visara todo o animal em vez de disparar um tiro certeiro. Fora apenas culpa minha. Tinha sido um parvo atingindo-o no baixo-ventre. Tudo viera do excesso de confiança na minha capacidade, omitindo um dos factores indispensá-veis para ser bem sucedido. Enfim, tínhamo-lo perdido. Duvidava que houvesse no mundo um cão capaz de o descolorir ali, naquele calor. Mas ainda era a única probabilidade. Peguei no dicionário e perguntei ao velho se havia cães na aldeia do romano.
— Não — disse o velho. — Hapana.
Fizemos um largo desvio circular e eu mandei o marido e o irmão fazerem outro. Não encontramos nada; nem sinais, nem pegadas, nem sangue e então disse a M’Cola que iríamos para o acampamento. o irmão do romano e o marido foram pelo vale acima buscar a carne do antílope que tínhamos matado. Estávamos vencidos.
M’Cola e eu à frente e os outros atrás caminhámos debaixo do calor na região descampada, deseemos para atravessar o riacho seco, depois voltámos a subir para a sombra benfazeja do caminho através do bosque. Enquanto marchávamos ora ao sol ora à sombra sobre o chão da floresta suave e fofo que atravessámos para encurtar a distância até ao caminho, vimos, a menos de cem jardas, uma manada de antílopes de pé, no bosque, olhando-nos. Eu carreguei a espingarda e procurei o melhor par de chifres.
— Doumi — murmurou, Garrick — Doumi kubwasana!
Olhei para onde ele indicava. Era um grande antílope castanho-escuro com manchas brancas no focinho, barriga branca, forte e com um belo par de chifres torcidos. Estava de pé, voltado de lado para nós, com a cabeça virada, olhando. Examinei cuidadosamente toda a manada. Eram tudo fêmeas, sem dúvi-da a manada da quai eu ferira e que deixara fugir o macho e que tinham passado pela parte de cima da colina, agrupandole aqui.
— Vamos para o acampamento — disse eu a M’Cola.
Quando começámos a andar os animais saltaram e passaram por nós correndo, atravessando o caminho em frente. A cada belo par de chifres de fêmea Garrick dizia: — Macho Bwana. Grande, grande macho. Dispare, B’wana.Dispare, oh!, dispare!
— Tudo fêmeas — disse eu a M’Cola depois de elas passarem, correndo em louco pânico através do bosque salpicado de sol.
— Sim — concordou ele.
— Velhote — disse eu.
O velho aproximou-se.
— Deixa o guia levar isso.
O velho largou a cabeça do antílope.
— Não — disse Garrick.
— Sim — disse eu. — Com mil diabos, sim.
Continuámos a caminhar ao longo das matas até ao acampamento. Eu sentia-me melhor, muito melhor. Durante todo o dia não tinha pensado nem uma só vez no kudu. Agora íamos para lá, para o sítio onde ele nos esperava.
O regresso ao acampamento parecia muito mais longo do que a viuda, embota, no geral, o regresso por um novo caminho o faça parecer mais curto. Eu estava morto de cansaço, tinha a cabeça a ferver e tanta sede como nunca tivera na minha vida. Mas, de repente, atravessando a floresta, sentimos muito mais fresco. Uma nuvem passava pelo sol.
Saímos do bosque e deseemos até à planície, com a vedação já à vista. O sol estava agora por trás de um rolo de nuvens e em poucos minutos o céu ficou completamente coberto e as nuvens escuras ameaçavam chuva. Pensei que aquele teria provavelmente sido o último dia quente e limpo; o calor excepcional de antes das chuvas. Primeiro pensei: se tivesse ao menos chovido de modo a que o solo conservasse as pegadas, teríamos podido agarrar aquele macho para sempre; depois, olhando as pesadas, enoveladas nuvens que tão repentinamente tinham coberto o céu, pensei que se nos queríamos juntar aos outros e fazer o carro passar aquelas dez milhas de estrada de pó preto no caminho para Handeni, era melhor partir quanto antes. Apontei para o céu.
— Mau — concordou M’Cola.
— Vamos para o acampamento de B’wana M’Kubwa ?
— Melhor. — Depois, aceitando a decisão com entusiasmo. — N’Dio. N’Dio.
— Vamos — disse eu.
Chegados à vedação e à cabana, levantamos o acampamento à pressa. Estava lá um mensageiro do nosso último acampamento que trazia um bilhete escrito antes de P. O. M. e Pop terem saído, e o meu mosquiteiro. o bilhete não dizia nada de especial, apenas felicidades e que iam partir. Bebi água de um dos nossos sacos de lona e sentei-me num bidão de gasolina e olhei para o céu. Não podia conscienciosamente arriscar-me a ficar. Se chovesse, podíamos nem chegar até à estrada. Se chovesse muito na estrada não chegaríamos à costa nessa estação. Tanto o austríaco como Pop tinham dito isso. Era preciso partir.
Estava decidido, de modo que era inútil pensar no grande desejo que eu tinha de ficar. A fadiga do dia ajudava a tornar a decisão fácil. Esta va-se a meter tudo no carro e eles apanhavam toda a carne que ainda havia nos espetos, à volta das cinzas da fogueira.
— Não quer comer, B’wana? — perguntou-me Kamau.
— Não — disse eu. E, em inglês: — Cansado demais.
— Coma. Tem fome.
— Depois, no carro.
M’Cola passou com um fardo, com o seu grande carão de novo completamente inexpressivo. Só se tornava vivo na caça ou quando se diziam piadas. Encontrei um púcaro de lata petto do lume e chamei-o pata que me trouxesse whisky. E o rosto sem expressão franziu-se nos olhos e na boca, para sortir, ao tirar o frasco do bolso.
— Melhor com água — disse ele.
— Meu chinês negro!
Trabalhavam todos apressadamente e as mulheres do romano aproximaram-se e ficaram de lado a ver carregar o carro. Havia duas bonitas, elegantes e tímidas, mas mostrando interesse. O romano ainda não tinha voltado. Eu gostava muito do romano e tinha grande consideração por eie.
Bebi um pouco de whisky com água e olhei os dois pares de chifres de kudu encostados à parede da cabana género capoeira de galinha. Dos crânios brancos, bem limpos, saíam chifres que se erguiam em lenta espiral e se prolongavam, descreyendo uma curva, depois outra, em seguida se enrolavam delicadamente até às pontas lisas, semelhantes a marfim. Encostados ao lado da cabana, via-se que um par era maior e mais estreito. O outro era quase tão alto, mas mais largo e mais ramificado. Eram castanhos escuros e admiráveis. Fui lá e encostei a Springfield à cabana, no meio deles. As pontas ultrapassavam a boca da carabina. Quando Kamau voltava, depois de ter levado uma carga ao carro, mandei-o buscar a máquina fotográfica e depois disse-lhe que se colocasse entre os chifres enquanto eu tirava uma fotografia. Depois levantou-os e, com um em cada mão, transportou-os para o carro.
Garrick falava alto e numa voz esganiçada com as mulheres do romano. Tanto quanto eu podia perceber, estava-lhes oferecendo os bidões de gasolina em troca de um bocado de qualquer coisa.
— Anda cá - chamei eu.
Ele veio, muito senhor de si.
— Ouve - disse-lhe em inglês. - Se a expedição acaba sem eu te chegar, será uma verdadeira admiração. E se te chego a pôr as mãos, parto-te essas ventas. É só isto.
Não percebeu as palavras mas pela entoação ficou mais informado do que se eu tivesse procurado no dicionário palavras para lhas dizer. Levantei-me e fiz sinal às mulheres de que podiam levar os bidões e os caixotes. Diabos me levem se deixava Garrick fazer trafulhices, sem interferir.
— Vai para o carro - disse-lhe. - Não - acrescentei quando vi que começava a transportar um dos bidões de gasolina - para o carro.
Dirigiu-se então para o automóvel.
Tínhamos tudo pronto e estávamos aptos a partir. Os chifres em espirai ultrapassavam a parte de trás do carro, atados aos fardos. Deixei dinheiro para o romano e uma das peles de kudu ao criado. Depois entrámos para o carro. Sentei-me no lugar da frente com Wanderobo-Masai. Atrás iam M’Cola, Garrick e o mensagciro que era um homem da aldeia do velho, petto da estrada. O velho ia acocorando no cimo dos fardos, atrás, petto do tejadilho.
Dissemos adeus e começámos a andar, passando nas casas de outros parentes do romano, o mais velho e o mais feio dos quais assava bocados de carne em frente de um lume de madeiros, ao lado do caminho que vinha do rio através do campo de milho. A travessia fez-se sem dificuldade porque as águas estavam baixas e as margens tinham secado. Olhei pata trás, para o campo, para as cabanas do romano, para o local onde tínhamos acampado, para as montanhas azuis escuras, sob as pesadas nuvens e senti remorsos de não ter visto o romano e explicado porque nos íamos assim embora.
Depois atravessámos florestas, seguindo o nosso caminho e tentando ir depressa para sair dali antes que anoitecesse. Tivemos complicações duas vezes, em sítios encharcados, e Garrick parecia possuído de uma violenta histeria, dando ordens a todo o mundo, quando cortávamos ramos e cavávamos com a pá, de tal forma que até cheguei a resolver bater-lhe. Pedia pancada da mesma maneira que uma criança que se quer fazer notada pede um açoite. Kamau e M’Cola faziam troça dele, la agora representando o papel de chefe vitorioso que volta da cxpedição. Eu achava que era realmente uma pena que ele não tivesse consigo as suas penas de avestruz.
Uma vez em que estávamos atolados, cavando com a pá e ele inclinado dando conselhos e ordens num frenesim, dei-lhe involuntariamente com a pá na barriga fazendo-o cair para trás. Não olhei para ele e M’Cola, Kamau e eu não podíamos olhar uns para os outros com vontade de rir.
— Estou magoado - disse ele, surpreendido, levantando-se.
— Ninguém se aproxime de um homem com uma pá na mão - disse eu em inglês. - É muito perigoso.
— Estou magoado - repetiu Garrick, agarrando a barriga.
— Dá uma massagein - disse-lhe eu e esfreguei a barriga para lhe mostrar como era.
Voltámos para o carro outra vez e eu começava a ter pena do pobre diabo, inútil e cretino e disse a M’Cola que tomaria uma garrafa de cerveja. Ele tirou uma dos fardos de trás. Atravessávamos agora a região que parecia um parque de veados. Abriu-se a garrafa e bebia-a lentamente. Olhei para trás e vi que Garrick já estava bom, falando muito outra vez. Esfregava a barriga e parecia estar explicando que era um homem forte e aquilo não fora nada. Enquanto bebia a cerveja eu sentia o velho a observar-me do tejadilho.
— Velhote - disse-lhe.
— Sim, B’wana.
— Um presente.
E dei-lhe a garrafa com o que sobrara. Não era muito; apenas espuma e um pouco de cerveja.
— Cerveja? - perguntou M’Cola.
— Sim - disse eu.
Pensava na cerveja e em imaginação revia aquele ano, na Primavera, quando caminhávamos na estrada de montanha de Bans de Alliez e o concurso de bebedores de cerveja onde não tinhamos conseguido ganhar o prémio e a volta de noite pela montanha, com o luar sobre campos de narcisos que cresciam no prado e como íamos bêbedos e falávamos da maneira como se poderia descrever aquela luz pálida, e a cerveja castanha nas mesas de madeira sob as glicínias, em Aigle, quando chegára-mos, depois de termos atravessado o vale do Reno, depois de termos pescado em Stockalper com os castanheiros-da-índia em flor, eu e Chink discutindo de novo a maneira de escrever e se lhes podíamos chamar candelabros de cera. Meu Deus, que discussão literária tínhamos tido; éramos letrados como o diabo a seguir à guerra, e depois houve a óptima cerveja no Lipp’s à meia-noite, depois de Mascart-Ledoux no Circo de Paris ou Roiitis-Ledoiix, ou depois de qualquer outro combate de onde safamos sem voz mas ainda demasiado excitados para voltar para casa; mas cerveja significava sobretudo aqueles anos, logo após a guerra, com Chink nas montanhas. Bandeira para os fuzileiros, rochedos para os alpinistas, para os poetas ingleses, cerveja, cerveja forte para mim. Assim falava então Chink, citando Robert Graves. Cansávamo-nos de uns países e íamos para outros, mas a cerveja era sempre a mesma maravi-Iha. O velho também sabia isto. Tinha-o eu lido nos sens olhos da primeira vez em que me vira beber.
— Cerveja - disse M’Cola.
Entregou-ma já aberta e eu contemplando esta região se-melhante a um parque, com o motor quente sob os pés, Wanderobo-Masai mais forte do que nunca, ao meu lado, Kamau olhando as marcas dos pneus na erva verde, e eu com as botas pendurando ao lado do carro para arrefecer os pés, bebía cerveja e desejava ter comigo o velho Chink. Capitão Eric Edward Dorman-Smith, M. C. do quinto regimento de fuzileiros de Sua Majestade. Agora, se ali estivesse, podíamos discutir como descrever esta região que parecía um parque de veados e se chegava chamar-se-lhe parque de veados. Pop e Chink pareciam-se muito. Pop era mais velho e mais tolerante para a sua idade mas o mesmo género de companheiros. Eu aprendía com Pop enquanto que Chink e eu tínhamos descoberto juntos uma grande parte do mundo e depois os nossos caminhos tinham-se distanciado muito.
Mas o maldito antílope preto! Devia-o ter matado; dera o tiro a correr. Para conseguir atingi-lo, devia tê-lo visado todo. Sim, imbécil, mas a fêmea que falhaste duas vezes, estendida de flanco? Também foi um tiro a correr? Não. Se tivesse ido para a cama ontem à noite não me teria acontecido isto. E se tivesse limpo o cano para tirar o óleo, ela não teria falhado da primeira vez. E então não teria baixado a arma e disparado o segundo tiro. Era apenas culpa minha, se eu ainda servia para alguma coisa. Julgava poder manejar uma carabina de precisão melhor do que realmente podia e tinha perdido muito queren-do defender o meu ponto de vista, mas sabia, fria e objectiva-meute, que podia ser tão bom caçador como os melhores. Que raio, podia. E então? Então tinha atingido um antílope nas tripas e deixara-o fugir. Era realmente tão bom atirador como supunha? Decerto. Então porque falhara naquela fêmea? Que diabo, toda a gente pode não estar às vezes em forma. Tu não tens direito a não estar em forma. Quem és tu? A minha consciência? Ouve, estou de bem com a minha consciência. Sei muito bem o que valho e aquilo de que sou capaz. Se não fosse obrigado a abandonar tudo e a ir-me embora, teria tido um antílope preto. Sabes que o romano é um caçador. Havia outra manada. Porque havia eu de ser obrigado a fazer tudo numa noite? É isto maneira de caçar? Não, com mil diabos. Havia de arranjar dinheiro de qualquer maneira e quando voltássemos outra vez, viríamos à aldeia do velho em camiões, depois partiríamos com carregadores de modo a não termos que nos preocupar com o maldito carro, mandaríamos os carregadores para trás e acamparíamos no bosque por cima do rio, acima da casa do romano e exploraríamos a região, lentamente, vivendo ali e caçando todos os dias, suspendendo algumas vezes a caça para escrever durante uma semana, ou escrevendo metade do dia, ou dia sim dia não, e acabando por conhecer a região como eu conhecia aquela à volta do lago onde tinha sido criado. Veria os búfalos pastar no sítio onde viviam e, quando os elefantes atravessássem a colina, contemplá-los-ia e vê-los-ia quebrar os ramos sem ser obrigado a disparar, estender-me-ia nas folhas caídas e veria os kudus a pastar e não os alvejaria a menos que visse uma cabeça ainda mais bonita do que a que ia ali atrás, e em vez de seguir aquele búfalo macho, com o raio das tripas feridas, ficaria estendido todo o dia atrás dum rochedo a olhá-los pela encosta, vendo-os tanto tempo que acabassem por me pertencer para sempre. Sim, se Garrick não trouxesse outra vez o seu B’Watta Simba e exterminasse a caça. Mas se o fizesse, eu ficaria do lado de lá das colinas e haveria sempre uma região onde um homem pudesse viver e caçar se tivesse tempo de viver e caçar. Eles só iam onde um carro os pudesse levar. Mas devia haver por toda a parte recantos como este, que ninguém conhecia, diante dos quais os carros passavam apenas ao longo da estrada. Caçavam todos nos mesmos sítios.
— Cerveja? - perguntou M’Cola.
— Sim - disse eu.
Claro que não se podia ali fazer vida. Toda a gente dizia isso. Os gafanhotos vinham e comiam-nos a colheita, a moníão não chegava, as chuvas não caíam e tudo secava e morria. Havia carraças e moscas que matavam o gado, e os mosquitos davam-nos febre e podia-se contrair desinteria. Os animais morreriam e o café seria vendido a baixo preço. Só um indiano faria dinheiro com o sisal e, na costa, cada plantação de côco representava um homem arruinado por esta ideia ou ganhando dinheiro com a copra. Um caçador branco trabalhava trés meses por ano e bebia durante doze e o Governo estava arruinando o país em benefício dos hindus e dos indígenas. Isto era o que nos diziam. Decerto. Mas eu não queria ganhar dinheiro. Tudo o que queria era viver ali e ter tempo para caçar. Já tinha tido uma das doenças e tinha necessidade de lavar um bocado de trés polegadas do intestino grosso com água e sabão e de o colocar de novo no seu lugar uma porção de vezes por dia. Mas há medicamentos que curam isto e valia a pena ter sofrido em troca do que tinha visto e dos sítios onde tinha estado. De resto, tinha arranjado aquilo na porcaria daquele barco em que viera de Marselha. P. O. M. não estivera doente uma única vez, nem Karl. Adorava o país e sentia-me em casa, e quando um homem se sente em casa fora do sítio onde nasceu, é para lá que deve ir. E depois, na época do meu avó, o Michigan não era um estado devastado pela malária? Chamavam-lhe febre e sezão. E em Tortugas, onde passei meses, uma centena de homens morren uma vez de febre amarela. As ilhas e continentes novos tentam, como assobios de serpentes, assustar-nos com doenças. As serpentes também podem ser venenosas. Matam-se. E, que diabo, o que eu tinha tido há um mês ter-me-ia matado nos velhos tempos, antes de se terem inventado os medicamentos de agota. Talvez tivesse morrido ou talvez tivesse conseguido escapar.
É mais fácil passar bem de saúde num bom país, tomando simples precauções, do que pretender que um país que já deu tudo que tinha a dar, ainda é bom.
Um continente envelhece depressa logo que o ocupamos. Os nativos vivem de harmonia com ele. Mas os estrangeiros destroem-no. Cortam árvores, canalizam a água por forma a que a sua distribuição é alterada e, em pouco tempo o solo, uma vez a terra revolteada, acama-se e depois eomeça a enfraquecer, como enfraqueceu em todos os países velhos e como a vi começar a enfraquecer no Canadá. A terra cansa-se de ser explorada. Um país esgota-se depressa, a menos que a gente Ihe vá meten-do dentro todos os nossos detritos e os dos animais. Quando o homem deixa de se servir dos animais e emprega a máquina, a terra triunfa sobre ele rapidamente. A máquina não pode reproduzir, nem fertilizar o solo e come aquilo que o homem não pode produzir. Os países nasceram para ser tal como os encontramos. Somos os intrusos e depois de morrermos, podemos tê-lo arruinado, mas ele continuará a existir eternamente e não sabemos como serão as mudanças futuras. Por mim, suponho que todos acabarão, como a Mongólia.
Voltarei a África, mas não para ganhar a vida. Isso posso fazê-lo com dois lápis e umas centenas de folhas de papel barato. Mas voltarei onde me apraz viver; realmente viver. Não apenas deixar correr a vida. Os nossos antepassados foram para a América porque era o lugar indicado para então se ir. Foi um bom país e nós fizemos dele uma salgalhada medonha e agora irei para qualquer outro sítio, porque, posso sempre ir para onde me apeteça e sempre tenho ido. Posso sempre voltar. Deixemos os outros vir para a América, os que não sabem que vêm demasiado tarde. Os nossos antepassados viram-na no seu explendor e lutaram por ela quando valia a pena. Agora quero ir para outro sítio. Sempre o fizemos nos velhos tempos e ainda há bons lugares para onde ir.
Sei se uni país é bom logo que o vejo. Aqui há caça, muitas aves e gosto dos nativos. Aqui posso caçar e pescar. Isto, escrever, ler e ver quadros é tudo o que me interessa fazer. Posso recordar todos os quadros. Há outras coisas que gosto de ver, mas estas são as que gosto de fazer. Isto e esqui. Mas as minhas pernas agora são fracas e não vale a pena dar tantas voltas para chegar à neve. Actualmente vê-se gente demais a fazer esqui.
Nesse momento, depois do carro ter contornado um monte e atravessado um campo verde, avistámos a aldeia masai.
Quando os masais nos viram, começaram a correr e nós parámos, rodeados por eles, justamente por baixo da paliçada. Eram os jovens guerreiros que tinham corrido connosco e depois vieram as suas mulheres e filhos ver-nos. As crianças eram todas ainda pequenas e os homens e mulheres pareciam todos da mesma idade. Não havia velhos. Pareciam todos grandes amigos nossos e demos uma festa, com muito sucesso, com refrescos e o nosso pão que comeram por entre gargalhadas, primeiro os homens, depois as mulheres. Então mandei M’Cola abrir duas latas de carne picada e de pudim de ameixa e dividi-as em porções que distribuí por eles. Tinha lido e ouvido dizer que os masais se alimentavam apenas do sangue dos animais, misturado com leite, tirando o sangue por um buraco feito na veia do pescoço com uma flecha atirada de muito petto. Estes masais, no entanto, comeram pão, carne fria picada e pudim de ameixa, com grande satisfação e muitos risos e comentários jocosos. Um deles, grande e belo, obstinava-se em me perguntar qualquer coisa que eu não percebia e outtos cinco ou seis se Ihe juntaram. O que quer que fosse era uma coisa que muito desejavam. Finalmente o mais alto fez uma careta esquisita e emitiu um guincho como o de um porco na agonia. Por fim, percebi; estáva-me a perguntar se tínhamos uma coisa daquelas, e permi a buzina. As crianças fugiram aos gritos, os guerreiros riam a bom rir e depois como Kamau, a pedido geral, tocava e voltava a tocar a busina, reparei na expressão de louco contentamento e de êxtase no rosto das mulheres e compreendi que com esta busina ele podia conseguir qualquer das mulheres da tribo.
Finalmente era preciso partir e, depois de distribuir as garrafas de cerveja vazias, as etiquetas e as tampas das garrafas, atiradas ao chão por M’Cola, partimos tocando a busina e deixando as mulheres em êxtase, as crianças em pànico e os guerreiros bem dispostos. Os guerreiros seguiram-nos uma porção de tempo, mas tínhamos pressa, e o caminho era bom pelo meio da região que parecia um parque. Em breve dissemos adeus aos últimos, de pé, muito direitos e altos, nos seus trajos de pele castanha, a massa dos cabelos pendente em rabicho, de cavalo, os rostos coloridos de um castanho avermelhado, apoiados nas lanças, olhando-nos a sorrir.
O sol estava quase a pôt-se e, como eu não conhecia o caminho, mandei sentar o mensageiro à frente com Wanderobo--Masai para ajudarem Kamau a guiar-se e sentei-me atrás com M’Cola e Garrick. Tínhamos saído da região-parque e entrámos na planície seca com escassos arbustos antes do pôr do sol. Bebi outra garrafa de cerveja alemã e, olhando a região, vi de repente que todas as árvores estavam cheias de cegonhas brancas. Não sabia se estavam em migração ou se seguiam os gafa-nhotos, mas ao crepúsculo eram lindas de ver e, muito enternecido com elas, dei ao velho dois bons dedos de cerveja que restavam no fundo da garrafa.
A garrafa seguinte bebi-a toda antes que me lembrasse do velho. (Ainda havia cegonhas nas árvores e vimos algumas gazelas de Grant, pastando à direita. Um chacal que parecia uma raposa cinzenta atravessou a esttada, correndo). Então disse a M’Cola para abrir outra garrafa e estávamos na planície e subimos a longa encosta em direeção à estrada e à aldeia com as duas montanhas agora à vista e era quase noite e fazia frio, quando estendi a garrafa ao velho que Ihe pegou, acocorado sob o tejadilho, acariciando-a ternamente.
Na aldeia parámos na esttada, sob a escuridão e eu paguei ao mensageiro a soma que estava indicada na mensagem que ele me tinha levado. Dei ao velho a quantia que Pop me tinha dito pata Ihe pagar e uma gtatificação. Depois houve uma grande disputa entre eles todos. Garrick devia ir ao acampamento principal receber o seu dinheiro. Abdullah insistia em ir também. Não tinha confiança em Garrick. Wanderobo-Masai pedia encarecidamente para vir. Pensava que os outros o enganariam na sua parte e eu também tinha absoluta certeza disso. Tinhamos ali deixado gasolina para o caso de nos faltar e agora teríamos que a levar de qualquer maneira. Estávamos muito carregados e não sabia como estaria a estrada. Mas achei que podíamos levar Abdullah e Garrick e encaixar Wanderobo-Masai. Não se punha a questão de levar o velho. Tinha sido pago e não discutira a quantia, mas não saía do carro. Acocora va-se em cima dos fardos e agarrava-se às cordas, dizendo «eu vou com o B’wana».
M’Cola e Kamau foram obrigados a desprender-lhe as mãos e a pô-lo para fora, enquanto gritava: «Quero ir com o B’Wana».
Enquanto descarregavam na escuridão, agarrou-se-me ao braço, fatando calmamente numa linguagem que eu não com-preendia.
— Tens o teu dinheiro - disse eu.
— Sim, B’Wana - disse eie.
Não se tratava disso. Estava de acordo quanto ao dinheito. Depois, quando subimos para o carro, eie afastou-se e pôs-se a subir atrás, para cima das bagagens. Garrick e Abdullah fize-ram-no descer.
— Não podes vir. Não há lugar.
Começou a falar-me de novo, baixinho, pedindo e suplicando.
— Não, não há lugar.
Lembrei-me de que tinha um pequeño canivete e tirei-o do bolso, metendo-lho na mão. Voltou a pôr-mo na mão.
— Não - disse - não.
Depois acalmou e ficou de pé na estrada. Mas quando partimos começou a correr atrás do carro e na escuridão ouvia-o gritar: «B’Wana! Quero ir com o B’Wana»!
Avançávamos pela estrada, que os faróis faziam parecer uma avenida, depois dos sítios por onde tinhamos passado. Fizemos cinquenta e cinco milhas nesta estrada, na escuridão da noite, sem acidentes. Conservei-me acordado até passarmos a parte má, uma longa planície de pó negro, de profundos sulcos, onde os faróis marcavam o caminho através das moitas e depois, quando a estrada estava melhor, adormeci, acordando de tempos a tempos, para ver os faróis brilharem sobre uma fila de grandes árvores, ou uma ribanceira escalvada, ou, quando subiamos em primeira, uma encosta íngreme com a luz oblíqua à nossa frente.
Por firn, quando o conta milhas marcava cinquenta, parámos e acordámos um indígena na sua cabana e M’Cola per-guntou-lhe onde ficava o acampamento. Voltei a dormir e depois acordei quando deixámos a estrada e tomámos um caminho pelo meio de árvores, com a fogueira do acampamento à nossa frente. E então, quando chegámos ao sítio onde os faróis iluminavam sobre as barracas verdes, gritei e todos começámos a gritar e a tocar a busina e eu disparei um tiro e a descarga cortou a escuridão, fazendo um grande ruído. Depois parámos e vi Pop sair da sua barraca, maciço e pesado dentro do roupão e depois pôs os braços à minha volta e disse: - Seu grande toureiro, hem! - e eu bati-lhe nas costas.
E disse-lhe: - Vá vê-los, Pop.
Depois apertei contra mim, com força, P. O. M. que sentia muito pequena no tecido fofo do roupão e dissemos coisas um ao outro.
Depois apareceu Karl e eu disse: - Eh, Karl!
— Estou contentíssimo - disse eie. - São maravilhosos.
M’Cola tinha titado os chifres e segurava-os com Kamau de maneira a que todos os pudessem ver à luz da fogueira.
— Que aponhou você? - perguntei a Karl.
— Um desses, também. Como é que Ihe chamam? Tendalla.
— Fantástico - disse eu.
Sabia que trazia uma cabeça como não podia haver melhor e esperava que a dele fosse igualmente bela.
— Que tamanho?
— Oh! Cinquenta e sete - disse Karl.
— Vamos vê-Io - disse eu com um nó na garganta.
— Está daquele lado - disse Pop.
E dirigimo-nos para lá. Era o par de chifres de kudu maior, mais largo, mais pesado, mais recurvado, mais incrível deste mundo. De repente, envenenado pela inveja, desejei nunca mais ver os meus, nunca mais, nunca mais.
— São maravilhosos - disse, com as palavras a saírem-me da boca tão alegres como um rosnar. Fiz um esforço. - São estupendos. Como o conseguiu?
— Havia três - disse Karl. - Todos tão grandes como este. Eu não sabia quai era o maior. Tivemos um traballio danado. Disparei quatro ou cinco vezes.
— É uma maravilha - disse eu. Consegui dissimular um pouco mais mas não enganava ninguém.
— Estou muito contente por você ter conseguido o seu - disse Karl. - São admiráveis. Há-de contar-me tudo isso amanhã de manhã. Sei que está cansado esta noite. Boa noite.
Foi-se embota, delicado como sempre, para que pudéssemos falar daquilo, se quiséssemos.
— Venha beber qualquer coisa - disse eu.
— Não, obrigado. Acho que é melhor ir-me deitar. Dói-me um pouco a cabeça.
— Boa noite, Karl.
— Boa noite. Boa noite, querida mamã.
— Boa noite - dissemos nós todos.
Pusemo-nos a conversar perto da fogueira, tornando whisky com soda e eu contei-lhes tudo.
— Talvez eles encontrem o macho - disse Pop. - Oferece-remos uma recompensa pelos chifres. Mandá-los-ão ao departamento de caça. Que tamanho tem o maior?
— Cinquenta e dois.
— Para cima da curva?
— Sim, talvez mais.
— O tamanho não significa nada - disse Pop. - São kudus estupendos os seus.
— Decerto. Mas porque havia ele de me vencer tão literalmente ?
— Teve sorte - disse Pop. - Santo Deus, que kudu! Só tinha visto em toda a minha vida abater uma cabeça com mais de cinquenta. Foi em Kalal.
— Nós já sabíamos que ele o tinha caçado quando deixámos o outro acampamento. Veio o camião e contaram-nos - disse P. O. M. - Levei todo o tempo a rezar por ti. Petgunta ao sr. J. P.
— Não pode fazer ideia da nossa alegria ao vermos chegar este carro à luz da fogueira com os chifres pendurados - disse Pop. - Grande malandro.
— Foi óptimo - disse P. O. M. - Vamos vê-los outra vez.
— Você pode sempre relembrar como os matou. Isso é que é importante - disse Pop. - São kudus estupendos.
Mas eu estava azedo e azedo fiquei toda a noite. De manhã, no entanto, isto tinha passado. Passado completamente e nunca mais voltou.
Pop e eu levantámo-nos e fomos ver as cabeças antes do pequeno almoço. Estava frio e uma manhã fechada e cinzenta. Ia chover.
— São três kudus maravilhosos - disse ele.
— Não ficam mal ao lado do grande, agora de manhã - disse eu.
E, coisa curiosa, era verdade.
Eu já me tinha habituado à ideia do grande e gostava de o ver e de saber que Karl o conseguira. Quando se punham uns ao lado dos outros ficavam bem. Realmente ficavam. Eram todos grandes.
— Estou contente por você se sentir melhor - disse Pop. - Eu próprio me sinto melhor.
— Estou realmente satisfeito por ele o ter apanhado - disse eu sinceramente. - Os meus bastam-me.
— Temos emoções primitivas - disse ele. - É impossível não se ter espírito de competição. No entanto isso estraga tudo.
— Acabou-se, quanto a mim - disse eu. - Estou agora bem. Mas ontem tinha tido um dia duro, sabe.
— Claro que sei - disse Pop.
— Pop, o que é que eles querem dizer quando nos apertam as mãos e nos pegam no polegar, puxando-o?
— É mais ou menos a cerimónia dos irmãos de sangue, mas menos formal. Quem lhe fez isso?
— Todos, excepto Kamau.
— Você saiu-me um companheirão danado - disse Pop. -Diga-me uma coisa, já se sente um bom batedor e um bom atirador aos pássaros?
— Vá para o diabo.
— M’Cola também fez a cerimónia consigo?
— Fez.
— Bem, bem - disse Pop. - Vamos procurar a nossa Mensahib e tomar o pequeno almoço. Não me apetece muito.
— Apetece-me a mim - disse eu. - Não como nada desde anteontem.
— Mas bebeu cerveja, não beben?
— Ah, sim.
— A cerveja é um alimento - disse Pop.
— Fomos buscar Mensahib e o amigo Karl e tivemos um pequeno almoço alegre.
Um mês depois P. O. M., Karl e a mulher dele, que tinham vindo juntar-se a nós em Haifa, estavam sentados ao sol, encostados a um paredão em frente ao mat da Galileia, corriendo um almoço, bebendo uma garrafa de vinho e vendo os mergulhões no lago. As montanhas faziam sombra na água de aspecto calmo, liso e estagnado. Havia muitos mergulhões fazendo na água, ao mergulhar, círculos que se iam alargando, e eu contava-os e perguntava a mim mesmo porque razão a Bíblia se não referia a eles. Acabei por concluir que a gente desse tempo não era naturalista.
— Não vou andar nisto - disse Karl, olhando o melancólico Iago. - Já lá andei.
— Sabem - disse P. O. M. - não consigo lembrar-me. Não consigo recordar a cara do sr. J. P. E era encantador. Penso e volto a pensar nele mas não consigo vê-lo. É fantástico. Não é como se vê nas fotografias. Dentro de pouco tempo não posso recordá-lo de maneira nenhuma. Se já não consigo vê-lo!
— Deve lembrar-se dele - disse-lhe Karl.
— Eu lembro-me - disse eu. - Hei-de escrever um dia uma novela em que ele figurará.
Ernest Hemingway
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