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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS VINHAS DA IRA - P.2 / John Steinbeck
AS VINHAS DA IRA - P.2 / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS VINHAS DA IRA

Segunda Parte

 

     A Califórnia já pertenceu ao México, e as suas terras aos mexicanos; uma horda de americanos andrajosos e febris inundou a região. E tal era a sua fome de terra que as tomaram, roubaram as terras dos Suters e dos Guerreros, roubaram e destruíram as concessões e esses homens esfomeados e raivosos brigaram uns com os outros sobre a presa e guardaram de armas na mão, as terras de que se tinham apoderado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. Isso era a apropriação e a apropriação equivalia a um título de posse.

     Os mexicanos eram moles por excesso de alimentação. Não puderam resistir porque nada se desejava no mundo como os americanos desejavam aquelas terras.

     Depois, com o tempo, os acocorados (A palavra spialter, cujo sentido literal é acocorado, designa igualmente os operários sem trabalho e os pequenos proprietários.) deixaram de ser acocorados para passarem a proprietários; os seus filhos cresceram e, por sua vez, tiveram filhos. E a fome acabou-se entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora e lacerante da propriedade, da água e de um céu azul sobre ela, da relva fresca exuberante, das raízes entumescidas. Tinham tudo isso, e com tal abundância que deixaram até de ver essa riqueza. Já se não sentiam corroídos pela ânsia de obterem um acre de terra fértil ou um arado brilhante para nela abrir sulcos, sementes ou um moinho agitando o ar com as pás. já não acordavam nas madrugadas escuras, para ouvir o primeiro chilrear dos pássaros ainda ensonados, ou o ruído do vento matinal em torno de casa enquanto aguardavam os primeiros clarões, à luz dos quais deveriam ir para os seus amados campos. Tudo isso fora esquecido, e as colheitas eram avaliadas em dólares e as terras eram-no em capital mais juros e as colheitas compradas e vendidas mesmo antes de se fazer a plantação. Nessa altura, já o malogro das colheitas, as secas e as inundações haviam deixado de significar pequenas mortes dentro da vida, mas simplesmente perda de dinheiro. E todos os seus afectos eram medidos pelo dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía, à medida que lhes aumentava o poder, até que finalmente eles deixaram de ser fazendeiros ou rendeiros, para se transformarem em homens de negócios dos produtos da terra, pequenos industriais, que tinham de vender antes de terem produzido qualquer coisa. E os fazendeiros, que não eram bons negociantes, perdiam as suas terras, em favor dos que eram bons negociantes. Não importava que fossem trabalhadores e diligentes e que amassem a terra e tudo quanto nela crescia, desde que não fossem também bons negociantes. E, com o tempo, os bons negociantes apropriaram-se de todas as terras e as fazendas foram aumentando de tamanho, ao mesmo tempo que diminuíam em quantidade.

     Já então a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto o não soubessem. Importavam escravos, embora lhes não dessem tal nome: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Vivem de arroz e de feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que haviam de fazer com bons salários. Ora vejam como eles vivem. Ora vejam o que eles comem. E, se eles se tornarem exigentes, a gente expulsa-os do país.

     E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia tão poucos fazendeiros pobres na terra, que até fazia dó. E os escravos importados passavam fome; eram maltratados, sentiam-se apavorados; alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo e outros rebelavam-se, mas eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade dos proprietários.

     As colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de cereais e os legumes destinados a alimentar o mundo alastravam por todos os lados: alface, couve-flor, alcachofra, batatas, produtos que se colhem de rastos. um homem pode permanecer de pé quando trabalha com a gadanha, com a charrua, ou com o arado, mas tem de rastejar como um percevejo por entre os renques de alface, tem de se curvar e de arrastar o saco enorme por entre os algodoeiros e tem de vergar os joelhos como um penitente ao tratar de um canteiro de couve-flor.

     E chegou a hora em que os proprietários já não trabalhavam nas suas propriedades. Trabalhavam no papel; esqueciam as terras e a satisfação de as cultivar; lembravam-se apenas delas quando lhes apreciavam os lucros e as perdas. E algumas das propriedades cresciam, a ponto de um homem já nem poder imaginar o seu tamanho. Eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que lhes proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e as tornar mais produtivas; capatazes, cuja missão consistia em fazer com que os homens que labutavam nas terras, trabalhassem até ao último resquício da sua força física. Então, esses proprietários transformavam-se em autênticos armazenistas. Pagavam aos homens e vendiam-lhes géneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E, após algum tempo, deixaram totalmente de pagar aos homens e economizaram a escrituração e os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia assim trabalhar e comer; quando terminava o trabalho, verificava simplesmente que ainda devia dinheiro ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas suas terras como havia muitos que jamais as tinham visto.

     Chegaram então as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste - vinham de Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira e pelos tractores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados; vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil desaguavam das montanhas, famintos e inquietos - inquietos como formigas, famintos de trabalho, de poder carregar, puxar, arrancar, colher, cortar, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por uma côdea de pão. As crianças têm fome... Não temos casa para viver. Inquietos como formigas, atrás de trabalho, de comida e, sobretudo, de terra.

     Não somos estrangeiros. Temos, atrás de nós, sete gerações de americanos e, antes disso, de irlandeses, escoceses, ingleses e alemães. Tivemos avós na Revolução e muitos outros parentes na Guerra Civil... de ambos os lados. Eram americanos.

     Vinham famintos e ferozes. Tinham alimentado a esperança de encontrar um lar e só encontraram ódio. Okies... os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram indolentes e que os Okies eram fortes, que eles estavam saciados e que os Okies passavam fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido os seus avós contarem como era fácil a alguém roubar terras a um homem indolente quando esse alguém era forte e se encontrava armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades odiavam-nos também porque eles não tinham dinheiro para gastar. Não há? caminho mais curto para provocar o desprezo de um comerciante, orientado precisamente para estimar o contrário. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam os Okies, porque um homem esfomeado tem de trabalhar e, quando precisa de trabalhar e não acha onde, automaticamente trabalha por um salário menor, e então todos têm de trabalhar por salários menores.

     E os espoliados, os emigrantes inundavam a Califórnia; eram duzentos e cinquenta mil ou trezentos mil. Atrás deles, novos tractores marchavam pelas terras e os arrendatários que ainda tinham ficado eram também expulsos. E novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e de expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.

     E, enquanto os californianos desejavam muitas coisas: acumular riquezas, triunfos sociais, diversões, luxo e uma boa segurança bancária, os novos bárbaros só desejavam duas coisas: terra e comida, e, para eles as duas coisas fundiam-se numa só. E, enquanto os desejos dos californianos eram nebulosos e indefinidos, os desejos dos Okies jaziam à beira dos caminhos: eram visíveis e palpáveis: bons campos em que se podia perfurar a terra e achar água, boas terras verdejantes, terras que se podiam esmigalhar entre as mãos para as experimentar, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até se lhes sentir o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e saber logo, sentir logo que as suas costas curvadas e os seus braços afadigados o fariam frutificar; produzir a couve, o milho dourado, os rabanetes e as cenouras à luz do sol.

     E o homem sem lar e esfomeado, que, com a mulher ao lado e os filhos magros no assento traseiro, viajava pelas estradas, podia olhar para os campos em pousio, capazes de produzir alimentos, mas não lucros financeiros; esse homem sabia que um campo em pousio era um pecado, um crime cometido contra os seus filhos magros. Um homem assim viaja pela estrada e sente a tentação de apoderar-se de terras assim e de as fazer produzir força para os filhos e um pouco de conforto para a mulher. A tentação domina-o sempre; está permanentemente diante dele. As terras atraíam-no e a boa água da companhia, correndo a jorros, ajudava a tentação a aguilhoá-lo. E, no sul, ele via as laranjas doiradas pendendo das árvores, as pequenas laranjas cor de ouro no verde-escuro das ramagens; e guardadas com as armas de fogo dos que patrulhavam o sítio, de maneira a evitar que alguém apanhasse alguma para um filho magro; laranjas que estavam destinadas a apodrecer ali mesmo se os preços fossem muito baixos.

     Guiava o velho carro até à cidade. Revolvia as fazendas em busca de trabalho. Aonde vamos dormir hoje?

     Bem, vão dormir mesmo em Hooverville, à beira do rio. já lá há um bando de Okies.

     Guiava o carro até Hooverville. Já não precisava de perguntar nada, porque, nos arredores de todas as cidades, havia um Hooverville.

     A cidade dos maltrapilhos estendia-se perto da água; as casas eram tendas e choças cobertas de caniço, casas de papel, um montão informe de sucata. O homem chegava lá com a família e tornava-se um cidadão de Hooverville... Esses sítios chamavam-se sempre Hooverville. O homem armava a sua tenda, o mais perto possível da água, e, quando não tinha lona para fazer uma tenda, ia ao monturo da cidade, apanhava folhas de papelão e construía uma casa de cartão ondulado. E, quando a chuva caía, a casa desmoronava-se e era impelida pela enxurrada. Estabelecia-se em Hooverville e dali saía à cata de trabalho, e o pouco dinheiro que lhe restava, gastava-o em gasolina, ao procurar trabalho. noite, os homens reuniam-se e palestravam uns com os outros. Acocorados em roda, falavam da terra que acabavam de conhecer.

   Há uma fazenda de trinta mil acres ali adiante, mais para o Oeste. Está abandonada. Meu Deus, o que eu faria com cinco acres daquilo! Dava para a gente comer o que quisesse, caramba!

     Tu já reparaste numa coisa? Nessas fazendas não há verduras, nem galinhas, nem porcos. Eles só querem uma coisa; plantar algodão ou então pêssegos, ou então alface. Às vezes, só criam galinhas. E compram as coisas que poderiam ter de graça se as plantassem ali mesmo, atrás da habitação.

     Santo Deus, o que eu não faria com um casal de porcos!

     Bem, não vale a pena falar nisso; não é teu nem nunca será.

     Mas o que é que a gente vai fazer, afinal? As crianças não podem ser criadas desta maneira.

     E nos acampamentos, a novidade corria em sussurro; em Shafter há trabalho. Então, de noite, carregavam os carros e as estradas enchiam-se: era uma corrida para o trabalho, que se assemelhava à febre com que se corre para os terrenos auríferos. As pessoas chegavam aos magotes a Shafter; eram cinco vezes mais do que as necessárias. Era a corrida do ouro, mas para o trabalho. Saíam de noite, frenéticos, em busca de trabalho. E, ao longo das estradas, estendia-se a tentação, as terras que garantiam a comida.

     Já têm dono. Não são nossas.

     Mas, quem sabe? A gente podia amanhar nem que fosse um pedacinho pequeno. Olhe aquele pedaço ali! Está abandonado; só dá mato. E quanta batata se podia colher ali, meu Deus! Dava bem para toda a família encher a barriga!

     Sim, mas isso não é nosso. Tem de ficar assim mesmo, cheio de mato.

     De vez em quando, alguém tentava; rastejava pela terra; arrancava o mato e tentava, como um ladrão, roubar à terra um pouco da sua riqueza. Hortas clandestinas, no meio do mato. ma mancheia de sementes de cenoura, uma porção de nabos e de cascas de batatas. Vinham furtivamente, de noite, cavar a terra roubada.

     Deixa o mato crescer em volta; assim ninguém te verá. Também no meio convém deixar algumas ervas ruins, das altas. Hortejo secreto, à noite, e água transportada em latas enferrujadas.

     E então, um dia chega um ajudante do sheriff.

     Eh, que anda você aqui a fazer?

     Não aço mal nenhum...

     Tenho andado com o olho em você. Você pensa que essa terra aí é sua, hein? Isso é uma infracção à lei.

     Mas a terra está abandonada. Não faço mal nenhum. Não prejudico ninguém.

     Ó seu acocorado de uma figa! Daqui a pouco armava-se em dono disto! Daqui a pouco punha-se aí soberbo como o diabo. Armava-se em senhor disto. O melhor é pôr-se a mexer daqui para fora.

     E os rebentos verdes das cenouras eram arrancados e os nabos pisados com desprezo. Então o mato tomava a crescer naquele sítio. Mas o polícia tinha razão. Bastava mais um pouco... e a terra pertenceria ao intruso. Cuidada e plantada a terra comida a primeira cenoura... um homem estaria pronto a lutar pelo solo que lhe fornecia o alimento. Convém pô-lo fora logo de princípio. Senão, acaba por pensar que aquilo é dele. Senão, é capaz de lutar até à morte pelo pedacinho de horta oculto entre as ervas daninhas.

     Tu viste a cara dele, quando a gente pisou aqueles nabos? Tinha olhos de assassino. Se a gente não corre com eles, acabam por tomar conta de tudo. Sim, senhor, tomam conta de tudo pela certa!

     São estranhos, estrangeiros.

     Sim, eles falam a mesma língua que nós, mas não é a mesma coisa. Olha como eles vivem. Tu achas que a gente era capaz de viver assim? Não, com um raio!

     E, à noite, acocoravam-se numa roda e conversavam. E um homem excitado dizia:

     - Porque é que a gente se não reúne para aí uns vinte, e não toma um pedaço de terra? Armas tem a gente. É levá-las e dizer: Tirem-nos daqui se são capazes. Por que é que não vamos a isso?

     Eles matavam-nos como se fôssemos bichos.

     Que é que tem? É melhor morrer que apodrecer aqui. Debaixo da terra, ou numa casa feita de bocados de saca? Tu queres que os teus filhos morram agora ou daqui a dois anos com o que eles chamam subnutrição? Tu sabes o que foi que a gente comeu durante a semana toda? Pão e urtigas. Tu sabes onde arranjámos a farinha para o pão? Apanhámos os restos de um transporte de farinha.

     Assim se falava nos acampamentos, e os adjuntos, homens gordos, bem nutridos, com coldres de revólveres nas ancas roliças, giravam pelos acampamentos. É para se não esquecerem. A gente tem que os ter debaixo de olho, senão... senão, Deus sabe o que são capazes de fazer! São mais perigosos que os negros do Sul. Se se ajuntarem, ninguém poderá com eles.

     Notícia: Em Laurenceville, um adjunto do sheriff procedeu à expulsão de um desses acocorados. O homem resistiu, compelindo o polícia a usar da força. Um filho dele, apenas de onze anos, deu um tiro na autoridade, matando-a. A arma usada foi um rifle, calibre 22.

    Cascavéis! Não convém dar-lhes facilidades. É atirar primeiro. Se uma criança é capaz de matar um polícia, que fará um adulto? A única coisa que se pode fazer é ser mais teso do que eles. Maltratar essa gente; meter-lhe medo.

     E se eles se não deixarem assustar? Se eles fizerem frente e se defenderem a tiro? Esses homens usam armas desde crianças. Uma arma é, por assim dizer, um prolonga-mento das suas pessoas. Que fazer se eles não se assustarem? Se, algum dia, eles formarem verdadeiros regimentos e marcharem pela terra, como fizeram os lombardos na Itália, os alemães na Gália e os turcos em Bizâncio? Também eles tinham fome de terra, também eles formavam bandos mal armados e as legiões não os conseguiram deter. Nem a morte nem o terror os detinham. Como é que se pode incutir medo num homem que não sente fome apenas no estômago, mas também no ventre torturado dos filhos? Não se pode assustar um homem nestas condições... ele já passou por todos os transes.

     Em Hooverville, os homens conversavam:

     Meu avô tomou a terra aos índios.

     Não, isto não é justo. A gente só está aqui de conversa. Fazer o que tu dizes é o mesmo que roubar. Eu não sou nenhum ladrão.

     Não? Quem foi que roubou uma garrafa de leite da porta de uma casa anteontem à noite? E quem foi que roubou aquele fio de cobre e o vendeu por um pedacinho de carne?

     Bem, mas isso foi porque as crianças passavam fome.

     Mas não deixou de ser um roubo.

     Tu sabes como surgiu a fazenda Fairfield? Vou dizer-te. As terras pertenciam ao governo e podiam ser cultivadas. Bem, um dia, o velho Fairfield foi a S. Francisco e andou pelos cafés e bares e juntou trezentos bêbedos que andavam por ali a vadiar. Pois os bêbedos ocuparam as terras. O Fairfield dava-lhes só comida e whisky para eles tomarem conta das terras e, depois de eles as experimentarem, o velho ficou com tudo sozinho. O velho costumava dizer que cada acre de terra lhe não tinha custado mais que uma garrafa de cachaça. Que é que tu achas? Isso não foi roubo, hein?

     Não foi justo, isso não foi, mas ele não foi para a cadeia por causa do que fez.

     Não, nunca foi. E também aquele gajo que pôs uma canoa no carro e fez o seu relatório como se tudo estivesse alagado pela água, porque ia de barco, esse gajo também não foi para a cadeia. E também aqueles gajos que compraram os deputados e os senadores também não foram para a cadeia.

     Por todo o Estado, por todas as Hoovervilles, impera a tagarelice.

     E depois, as batidas policiais - grupos de agentes uniformizados, invadindo os acampamentos. Saiam daqui! Ordem da Saúde Pública! O acampamento é um perigo para a saúde colectiva.

     Mas, para aonde vamos?

     Isso já não nos diz respeito. Recebemos ordem para fazermos evacuar o acampamento. Dentro de meia hora, vamos deitar fogo a tudo o que aqui estiver.

     Há tifo ali em baixo. Vocês querem provocar uma epidemia?

     Temos ordem de os fazer sair daqui. Bem, vão saindo. Daqui a meia hora, largamos fogo a tudo.

     Em meia hora, a fumarada das casas de papelão subiu das casas feitas de erva seca, rumo ao céu e a gente expulsa, nos respectivos calhambeques, inundava as estradas, à cata de outra Hooverville.

     E no Kansas, no Arkansas e no Texas e no Novo México, os tractores expulsavam os arrendatários das terras.

     Trezentos mil na Califórnia e outros mais a caminho. Na Califórnia, as estradas estão cheias de gente alucinada, que corre como formigas, à procura de algo para puxar, para arrancar para erguer, para trabalhar, enfim. Para cada carga a levantar, cinco braços se estendiam; para receber cada mancheia de comida, cinco bocas famintas se escancaravam.

     E os grandes proprietários, que têm, de perder as suas terras na primeira transformação, os grandes proprietários que estudam a História que têm olhos para ler a História, deviam conhecer este grande facto: a propriedade, quando acumulada, em muito poucas mãos, há-de vir a ser espoliada. E também este outro facto paralelo: quando uma maioria passa frio e fome, tomará à força aquilo que necessita. E também o facto gritante, que ecoa por toda a História: a repressão só conduz ao fortalecimento e união de todos os oprimidos. Os poderosos proprietários ignoram os três gritos da História. A terra acumulou-se em poucas mãos, o número dos espoliados cresceu e todos os esforços dos grandes proprietários se orientaram no sentido da repressão. Gastava-se o dinheiro em armas e gases para protecção das grandes propriedades e enviavam-se espiões com a missão de descobrir conspiratas latentes, que convinha abafar à nascença. Ignorava-se a transformação económica; não se tomavam em consideração os planos para a transformação; apenas se tomavam em conta os meios de destruir as revoltas enquanto as causas das revoltas subsistiam.

     Os tractores, que arrancam os lavradores ao seu trabalho e os tapetes rolantes que transportam as cargas, as máquinas que produzem - tudo isso foi aperfeiçoado e cada vez maior número de famílias vai rolando nas estradas, à procura das migalhas que caem das grandes propriedades, cobiçando as terras que se estendem à beira das estradas. Os grandes proprietários formavam associações de protecção e reuniam-se para estudar o meio de intimidar, de matar com gases... E sentiam-se diante de um pavor permanente... se um dia 'esses trezentos mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil, famintos e miseráveis, se algum dia eles descobrirem a sua própria força, nesse dia, a terra será deles, e nem todo o gás, e nem todas as espingardas do mundo serão capazes de os deter. E os grandes proprietários que, através das suas empresas se tomavam simultaneamente mais e menos do que seres humanos, corriam para a sua destruição e usavam todas as armas que concorriam para a sua própria destruição. Todos os pequenos meios, todas as violências, todas as excursões policiais às Hoovervilles, todos os agentes da polícia, armados em fanfarrões por entre os acampamentos de esfarrapados, adiavam um pouco a chegada do dia da destruição, mas contribuíam também para a sua chegada infalível.

     Os homens agachavam-se sobre os calcanhares, homens de faces angulosas, magros de fome e endurecidos pela resistência que a ela opunham, olhares sombrios e maxilares fortes. A terra fértil, à volta deles, ali...

     Você já ouviu falar daquela criança, ali, na quarta tenda?

     Não. Cheguei agora mesmo.

     Pois essa criança chorava e remexia-se toda a sonhar. Todos pensavam que tinha lombrigas. Então deram-lhe um purgante e ela morreu. Mas o que a criança tinha era aquilo que se chama pelagra. Apanha-se quando se não tem nada de jeito para comer.

     Coitadinha!

     Pois é, e os pais dela nem dinheiro têm para o enterro. Tem de ir para a vala comum.

     Safa, que inferno!

     E as mãos mergulhavam nos bolsos e puxavam pequenas moedas. Diante da tenda, a pilhazinha de dinheiro crescia. E a família lá a encontrou.

     A nossa gente é boa gente, a nossa gente é gente de coração. Deus queira que algum dia a gente boa não seja toda ela gente pobre. Deus queira que algum dia uma criança tenha bastante que comer.

     E as associações de proprietários sabiam que algum dia cessariam as preces.

     E então seria o fim.

    

     No topo do camião, Connie, Rosa de Sharon e o pregador sentiam os corpos rígidos e cheios de cãibras. Tinham esperado ao sol diante da casa do médico-legista de Bakersfield, enquanto o pai, a mãe e o tio John se mantinham lá dentro. Depois, trouxeram um cesto para fora e desceram o vulto alongado do camião. E esperaram ao sol, enquanto o cadáver era examinado, verificada a causa da morte e passada a certidão de óbito.

     Al e Tom vadiavam pela rua, olhando as vitrinas das lojas e as pessoas estranhas que cruzavam nos passeios.

     E, finalmente, o pai, a mãe e o tio John, saíram de novo. Vinham abatidos e silenciosos. O tio John trepou para cima da carga, e o pai e a mãe sentaram-se à frente. Tom e Al regressaram devagar, e Tom sentou-se ao volante. Ficou ali sentado, esperando em silêncio, uma ordem. O pai fixou o olhar em frente, com o chapéu escuro puxado para os olhos. A mãe esfregou as comissuras dos lábios com os dedos. O seu olhar perdia-se nos longes, esquecido e morto de cansaço.

     O pai soltou um suspiro profundo.

     - Não havia mais nada a fazer - exclamou.

     - Bem sei - disse a mãe. - Mas ela sempre desejou um enterro bonito. Sempre!

     Tom olhou-a de lado.

     - Vala comum? - perguntou ele.

     - Sim. - O pai sacudiu a cabeça vivamente, como se fizesse força para voltar à realidade. - Não tínhamos o suficiente. Não era possível!

     Dirigiu-se à mãe:

     - Tu não deves levar isso tanto a sério. Não podia ser, por mais que a gente quisesse. Não há dinheiro. Embalsamamento, caixão, pregador e o túmulo no cemitério teriam custado dez vezes mais do que aquilo que temos. A gente fez o que pôde.

     - Eu sei - disse a mãe.- Mas isto não me sai da cabeça. O que ela desejava um enterro bonito! Mas não há remédio. - Suspirou profundamente, esfregando os lábios. - Aquele homem que estava lá dentro era bem simpático. Muito autoritário, mas simpático.

     - Sim - confirmou o pai. - Não esteve com meias medidas; falou-nos de caras.

     A mãe alisou o cabelo para trás com a mão. Os músculos das faces contraíram-se-lhe.

     - Temos de continuar - disse. - A gente tem de escolher um sítio para acampar, temos de achar trabalho e temos de nos instalar. Não podemos deixar as crianças passar fome. A avó também não gostaria disso. Na casa dela sempre se fez boa ceia de velatório.

     - Aonde vamos? - inquiriu Tom.

     O pai tirou o chapéu e coçou a cabeça.

     - A um acampamento - disse. - O pouco que ainda temos não se pode gastar. Primeiro, a gente tem de arranjar trabalho. Leva-nos para o campo.

     Tom pôs o motor em movimento, e atravessaram as ruas em direcção ao campo. Perto de uma ponte, viram uma aglomeração de tendas e barracas.

     Tom alvitrou:

     - Podemos parar aqui. Veremos o que se passa e veremos onde se pode arranjar trabalho.

     Desceu por um atalho curto e íngreme, parando a um lado do acampamento.

     Não havia ordem nesse acampamento. Estavam misturadas em desordem as pequenas tendas cor de cinza, as barracas e os carros. A primeira casa era simplesmente indescritível. A parede do lado sul consistia em três chapas de folha-de-flandres onduladas e cheias de ferrugem; a do leste era um velho tapete bolorento, estendido entre duas estacas, a do norte, uma tira de papelão alcatroado e outra de lona esfarrapada, e a parede do oeste era feita de seis pedaços de linhagem. O telhado compunha-se de ramos não esquadriados, de salgueiro, sobre os quais havia hastes verdes, acumuladas em forma de pirâmide. A entrada, do lado da parede de linhagem, estava atravancada com utensílios diversos. Uma grande lata de querosene servia de fogão. Estava poisada de lado, tendo incrustado numa das extremidades um pedaço de chaminé de fogão enferrujado. Um aparelho de fazer a barrela via-se deborcado contra a parede e havia caixotes dispersos em volta, caixotes que serviam de cadeiras e de mesas. Uma conduite “Ford”, modelo T, e uma roulotte de duas rodas estacionavam ao lado da barraca. Sobre tudo aquilo pairava uma atmosfera de desordem e de desespero.

     Perto da barraca, havia uma pequena tenda de lona desbotada por força das intempéries, mas armada com ordem. Os caixotes, diante dela, estavam encostados às paredes. Um tubo de fogão apontava o alto, através da entrada da tenda, e o chão, em frente, via-se que estava varrido e regado. Num dos caixotes havia um balde cheio de roupa molhada. O acampamento oferecia naquele local um aspecto asseado e pessoal. A um lado da tenda, via-se um “Roadster”, modelo A e uma pequena roulotte de fabrico caseiro.

       Seguia-se uma enorme tenda, esfarrapada, feita em tiras e com os buracos remendados a arame. A entrada estava aberta, e, dentro, no chão, havia quatro colchões de casal. Numa corda de roupa esticada a um lado, enxugavam vestidos de algodão cor-de-rosa e vários fatos-macacos. Havia ali, ao todo, quarenta tendas e barracas, e, ao lado de cada habitação, estacionava sempre um automóvel qualquer. Mais para trás, agrupavam-se algumas crianças, a olhar o carro que acabava de chegar. Outros corriam ao seu encontro rapazinhos de fato-macaco e pés descalços, com os cabelos cinzentos de poeira,

     Tom parou o carro, olhando o pai.

     - Não é muito bonito, isto. O senhor quer ir para outro sítio?

     - Não podemos ir para qualquer outro sítio sem sabermos primeiro o que nos espera. Temos de saber o que há a respeito de trabalho - disse o pai.

     Tom abriu a porta e saiu. A família desceu do alto da carga, olhando curiosamente em volta de si. Ruthie e Winfield, de acordo com o hábito contraído na estrada, tomaram o balde e correram em direcção aos salgueiros, onde, provavelmente, haveria água. E a fileira formada pelas crianças abriu-se para os deixar passar, fechando-se de novo, em seguida.

     A entrada da primeira barraca abriu-se, dando passagem a uma mulher. De cabelos encanecidos entrançados, usava uma bata suja, toda às florinhas. O rosto era ressequido e de aparência estúpida. Sob os olhos sem expressão, cavavam-se fundos papos cinzentos e a boca era frouxa e mole.

     O pai perguntou-lhe:

     - A gente pode instalar-se aqui?

     A cabeça tornou a desaparecer na tenda. Por um instante, reinou o silêncio, depois, entreabriu-se novamente o pano de linhagem e um homem barbudo, em mangas de camisa, saiu da tenda. A mulher espreitou atrás dele mas não saiu da barraca.

     O homem barbudo disse:

     - Bom dia, minha gente. - E os seus olhos escuros e inquietos passavam de um para outro membro da família, e destes para o caminhão carregado.

     - Acabo de perguntar à sua senhora se nos podemos instalar aqui - repetiu o pai.

      O barbudo olhou o pai com gravidade, como se este tivesse dito alguma coisa muito profunda e que exigisse certa meditação.

     - Instalar-se aqui, no acampamento? - perguntou.

     - Sim. O acampamento pertence a alguém a quem devamos pedir licença?

     O barbudo piscou o olho esquerdo, examinando o pai.

     - Então querem acampar aqui?

     O pai começava a irritar-se. A mulher de cabeça encanecida espreitou de novo por entre a serapilheira.

     - Então que tenho eu estado a perguntar senão isso? - tornou o pai.

     - Bem, se querem acampar aqui, porque não acampam? Eu não tenho nada com isso.

     - Compreendeu afinal - disse Tom, a rir.

     O pai encheu-se de paciência.

     - Só quis saber se o acampamento pertencia a alguém. A gente tem de pagar alguma coisa?

     O barbudo projectou o queixo para diante.

     - Se pertence a alguém? - perguntou.

     O pai virou-lhe as costas.

     - Ora vá para o diabo que o carregue!

     A mulher encolheu de novo a cabeça.

     O barbudo avançou ameaçador.

     - Se pertence a alguém? - repetiu. - Quem é que vai pôr-nos fora daqui? Diga!

     Tom colocou-se entre ele e o pai.

     - É melhor você ir fazer uma boa soneca - disse.

     O barbudo abriu a boca, passando o dedo sujo pelas gengivas do maxilar inferior. Olhou Tom por um instante pensativamente; depois, girou nos calcanhares e entrou precipitadamente na barraca, atrás da mulher de cabelos grisalhos.

     Tom voltou-se para o pai.

     - Que raio foi isso? - perguntou.

     O pai encolheu os ombros. Deixou os olhos errarem pelo acampamento.

     À frente de uma das tendas, estacionava um velho “Buick,” com a cúpula do motor desmontada. Um rapaz esmerilava as válvulas, e, enquanto passava a fita para trás e para a frente, lançou um olhar ao caminhão dos Joads. Via-se que ria consigo mesmo. Quando o barbudo desapareceu, o rapaz deixou o trabalho e avançou vagarosamente.

     - Bom dia - disse, e os seus olhos azuis brilhavam divertidos. - Estive a ver como vocês falavam com o Presidente da Câmara.

     - Que diabo tem ele?

     O rapaz deu uma gargalhada.

     - É um maluco como você e como eu. Talvez um pouco mais do que eu. Não sei.

     O pai explicou:

     - Só lhe perguntei se podíamos acampar aqui.

     O rapaz limpou às calças as mãos cheias de óleo.

     - É natural. Vocês acabam de chegar, não é?

     - Sim - disse Tom.- Chegámos hoje de manhã.

     - Então nunca estiveram em Hooverville?

     - Onde é Hooverville?

     - É aqui.

     - É? - perguntou Tom. - Não sabia. Como acabámos de chegar...

     Winfield e Ruthie voltavam, trazendo a meias um balde cheio de água.

     - Vamos armar a tenda. Estou exausta. Pode ser que a gente possa descansar aqui algum tempo - disse a mãe.

     O pai e o tio John começaram a descarregar a lona e as camas.

     Tom acompanhou o rapaz até ao carro que este estava a consertar. A fita de polir jazia sobre o bloco do motor desmontado e uma pequena lata amarela com massa de esmeril estava entalada no tanque vazio.

     - Que diabo tem aquele gajo velho das barbas? - perguntou Tom.

     O rapaz apanhou a fita de polir e recomeçou a trabalhar, esfregando para trás e para diante, polindo as válvulas de compressão.

     - O Presidente da Câmara? Só Deus sabe. Acho que ele está com medo da polícia.

     - Medo da polícia porquê?

     - Acho que a polícia o perseguiu até o deixar maluco de todo.

     Tom perguntou:

     - Mas porque perseguem eles um tipo assim?

     O rapaz interrompeu a tarefa, olhando bem nos olhos de Tom.

     - Só Deus sabe - disse. - Você acaba de chegar. Pode ser que acabe por descobrir o motivo. Uns dizem isto; outros dizem aquilo. Mas demore-se algum tempo num acampamento e você vai ver a rapidez com que o sheriff o põe fora. - Agarrou numa válvula, untando a haste com um pouco de esmeril.

     - Mas porquê?

     - Sei lá! Alguns dizem que eles não querem que a gente vote. Mantêm-nos sempre em movimento, para que não tenhamos direito a voto. E outros dizem que fazem isto para que não recebamos o auxílio dos desempregados. E outros dizem que eles têm medo que a gente se organize se estivermos sempre no mesmo sítio... Sei que nos enxotam sempre. Espere um tempo e vai ver.

     - Mas nós não somos vagabundos - insistiu Tom. - Procuramos trabalho. E aceitamos qualquer trabalho.

     O rapaz cessou de esfregar a fita na haste da válvula. Olhou Tom com surpresa.

     - Andam à procura de trabalho, hein? - disse. - Então vocês andam à procura de trabalho? E nós todos, que é que andamos procurando por aí? Diamantes? Então por que motivo pensa você que eu ando aqui a dar cabo do canastro? Voltou a esfregar a fita para trás e para diante.

     Tom olhou em torno de si; viu as tendas imundas, os equipamentos em desordem, os carros velhos, os colchões esfarrapados, estendidos ao sol, e as latas negras sobre as pedras enegrecidas pelo fogo. Perguntou baixinho:

     - Não há trabalho?

     - Não sei. Deve haver. Mas, por agora, não há colheitas por estas bandas. As uvas e o algodão colhem-se mais tarde. Seguimos para a frente assim que eu terminar as válvulas. Eu, minha mulher e as crianças. Ouvimos dizer que lá para o norte há trabalho... Perto de Salinas.

     Tom viu o pai, o tio John e o pregador estenderem a lona sobre os paus e a mãe, de joelhos, lá dentro, sacudindo os colchões no solo. Uma roda de crianças mantinha-se silenciosamente a alguma distância, observando como se arranjava a nova família. Crianças taciturnas, descalças e de cara suja. Depois, prosseguiu:

     - Pela nossa terra passaram homens distribuindo folhetos, desses cor de laranja. Diziam que se precisava aqui de muita gente para os trabalhos da colheita.

     O rapaz riu.

     - Aqui somos para aí umas trezentas mil pessoas, e aposto que todas elas viram esses malditos folhetos.

     - Pois então? Se não precisam da gente, porque é que imprimiram essas coisas?

     - Puxe pela cabeça.

     - Era o que eu gostava de saber.

     - Olhe - disse o rapaz. - Imagine que você precisa de gente para um serviço qualquer e que só aparece um homem a querer pegar nesse serviço. Então você tem de lhe pagar o que ele exigir. Mas se, em vez de um, aparecerem cem homens... - Abandonou a ferramenta; o seu olhar fez-se duro e a sua voz mais aguda. - Suponha que há cem homens a querer esse emprego. Esses cem homens têm filhos e os filhos têm fome. Suponha que uma moeda de dez cents chega para umas papas para os miúdos. Suponha ainda que cinco cents chegam para comprar qualquer coisa aos pequenos. É são cem homens. Você oferece-lhes uma tuta-e-meia e vai ver: matam-se uns aos outros para ganhar essa ninharia. Sabe quanto me pagaram no último trabalho que tive? Quinze cents à hora. Dez horas por um dólar e meio, e a gente não pode pernoitar na fazenda. Temos ainda de gastar gasolina com o caminho. - Estava ofegante de raiva, e o ódio brilhava nos seus olhos. - Foi por isso que distribuíram esses folhetos. Eles podem imprimir folhetos como o diabo, com o dinheiro que economizam, pagando apenas quinze cents à hora de trabalho no campo.

     - Mas que canalhice! - exclamou Tom.

     O rapaz riu com aspereza.

     - Fique aqui uns tempos e, se achar a árvore das patacas, diga-me.

     - Mas trabalho há, não há? - interrogou Tom. - Meu Deus, com tanta coisa que há por aí! Pomares, uvas, e legumes; eu vi. Eles têm de precisar de gente! Vi tudo isso.

     Uma criança chorava numa tenda próxima do carro. O rapaz entrou, e a sua voz soou abafadamente através da lona. Tom pegou na fita de polir, colocou-a no encaixe da válvula e continuou o trabalho, esfregando com a mão para diante e para trás. A criança cessou de chorar. O rapaz voltou e observou:

     - Você dá para a coisa - disse. - Ainda bem! Vai-lhe fazer jeito.

     - Mas, como ia dizendo...- Tom voltou ao tema anterior. - Eu vi que por aqui se semeia e se planta muita coisa.

     O jovem acocorou-se sobre os calcanhares.

     - Eu vou explicar-lhe a coisa - disse tranquilamente.- Há aqui uma fazenda de pêssegos grande como o diabo, onde eu tenho trabalhado. Precisam apenas de nove homens durante o ano todo. - Fez uma pausa para impressionar. - Mas, durante duas semanas, necessitam de três mil homens. E quando os pêssegos estão maduros... Precisam de arranjar esses homens, senão os pêssegos apodrecem. Então, que fazem eles? Distribuem impressos por toda a parte, até no inferno, se for preciso. Precisam de três mil homens, mas aparecem seis mil. E eles arranjam os homens pelo ordenado que muito bem lhes apetece pagar. Se você não quiser aceitar o que eles pagam, que vá para o diabo; têm mil outros que esperam pelo seu trabalho. Escolhe-se, colhe-se a fruta e daí a pouco acabou-se tudo. Em toda aquela zona só há pêssegos. E todos amadurecem ao mesmo tempo. Quando você acabar a colheita, não haverá mais nada que fazer em toda a região. Então, os proprietários não querem que vocês fiquem por lá. Vocês, os três mil. O trabalho está feito. E possível que vocês queiram roubar; é possível que lhes dê para beber, é possível que façam bulha. E, além disso, vocês não produzem bom efeito; moram em barracas miseráveis, e a região é linda; vocês estragam-na com a vossa presença. Eles não os querem na região. Por isso, tratam de os enxotar para outros lados. E assim é que é a coisa.

     Tom lançou um olhar à tenda da família. Viu como sua mãe, pesada e lenta, devido ao cansaço, armava e acendia uma pequena fogueira, colocando sobre ela as panelas. Aproximara-se a roda de crianças, e os olhos calmos e esbugalhados dos pequenos observavam os movimentos das mãos da mãe. Um velho muito velho, com as costas abauladas, saindo de uma das tendas como um texugo, avançava com passos arrastados, farejando o ar. Cruzou as mãos atrás das costas, e fez companhia às crianças que olhavam para a mãe. Ruthie e Winfield estavam perto dela, encarando os estranhos com olhares hostis.

     Tom disse colérico:

     - Os pêssegos devem ser colhidos imediatamente, não é? Assim que amadurecerem?

     - É sim.

     - Bem, imagine que a gente se junta e diz: pois então que se estraguem! Era um instante enquanto os ordenados aumentavam, santo Deus!

     O rapaz ergueu os olhos de sobre as válvulas, lançando a Tom um olhar sarcástico.

     - Livra! Descobriu a novidade, hein? E você sozinho inventou tudo isso?

     - Estou cansado - disse Tom. - Guiei toda a noite. Não quero discutir agora. Mas estou com um cansaço tão levado dos diabos que nada me custa brigar. Por favor, não se ponha aí a armar em esperto. Estou a perguntar-lhe o que pensa disto.

     O jovem sorriu.

     - Não foi por mal. Não me lembrei de que você está aqui pela primeira vez. Mas é que já houve outros que pensaram nisso. E o pessoal da fazenda de pêssegos já pensou nisso também. Olhe, para a gente se organizar, é preciso um chefe, um camarada que fale pela gente. Bem, a primeira vez que esse camarada abrir a boca, agarram-no e metem-no no xadrez. E, se vem outro chefe, vai para o xadrez também.

     Tom disse:

     - Bem, mas no xadrez, ao menos, a gente tem de comer.

     - Mas os filhos não têm. E você gostaria de estar no xadrez e os seus filhos cá fora, a morrer de fome?

     - Aí é que está - disse Tom lentamente. - Aí é que está...

     - E mais uma coisa. Você já ouviu falar na lista negra?

     - O que é isso?

     - Basta você abrir o bico, dizer que nos vamos organizar, e vai ver. Tiram-lhe o retrato e mandam-no para toda a parte. E então você nunca mais consegue arranjar trabalho em parte nenhuma. E, se você tiver filhos...

     Tom tirou o boné, e pôs-se a dar-lhe voltas entre as mãos.

     - Então temos de aceitar o que nos dão, ou morreremos de fome. E, se respingamos, morremos também de fome.

     O jovem fez um vasto círculo com a mão, e esse gesto envolveu as tendas esfarrapadas e os carros enferrujados.

     Tom olhou novamente para a mãe, que estava sentada, descascando batatas. As crianças tinham-se aproximado dela ainda mais.

     - Eu não vou aguentar isto, caramba! Que diabo! Eu e a minha gente não somos ovelhas! Vou reagir, seja contra quem for - ameaçou Tom.

     - Por exemplo, contra um polícia?

     - Seja quem for.

     - Está maluco - disse o rapaz. - Deitam-lhe a mão que e um regalo! Você não tem nome nem dinheiro. Vão encontrá-lo no fosso de uma estrada, com o sangue já seco na boca e no nariz. Depois, aparece uma linha no jornal. Sabe o que diz? “Vagabundo encontrado morto.” E pronto! É. um ror de notícias assim no jornal. “Vagabundo encontrado morto.”

     - Pelo menos, hão-de encontrar mais outro morto ao pé desse vagabundo - disse Tom.

     - Está maluco! - disse o rapaz.- Que adianta isso?

     - Bem, e você, que é que faz? - Olhou-lhe a cara manchada de óleo. E um véu desceu sobre o rosto do jovem.

     - Nada. De onde vêm vocês?

     - Nós? De perto de Sallisaw, Oklahoma.

     - E acabam de chegar?

     - Sim, hoje mesmo.

     - Querem ficar aqui muito tempo?

     - Não sei. Queremos ficar onde acharmos trabalho. Porquê?

     - Por nada. - E o véu tornou a descer.

     - Temos de dormir - disse Tom. - Amanhã vamos sair, à procura de trabalho.

   - Podem experimentar.

     Tom voltou-lhe as costas e dirigiu-se à tenda dos Joads. nela.

     O rapaz pegou na lata de massa de esmeril, metendo o dedo

     - Eh! - gritou. Tom voltou-se novamente.

     - Que é que há?

     - Vou-lhe dizer uma coisa. - Sacudiu o dedo, a que se agarrara um pouco de massa. - Vou-lhe dizer uma coisa apenas. Não se metam em sarilhos. Lembra-se da cara daquele tipo com a mania da perseguição?

     - Aquele velho da primeira barraca?

     - Sim. Aquele que parecia mudo, com cara de idiota.

     - Que tem ele?

     - Bem, quando os polícias vierem - e eles andam sempre por aí - é assim que a gente deve ser. Fazer-se parvo, como se não compreendesse nada. É assim que os polícias nos querem. Não caia em bater-lhes... Isso seria um autêntico suicídio. Faça-se trouxa...

     - Devo então consentir que esses malandros desses polícias me escorracem sem eu fazer nada?

     - Isso mesmo. Escute. Esta noite vou ter consigo. Talvez eu esteja enganado. Ele há aí espiões por todos os lados... Eu estou a arriscar-me e tenho um filho... Mas, esta noite, vou ter consigo. E, se vier um polícia, você faz de Okie idiota, já sabe, hein?

     - Entendido. Só quero que a gente faça alguma coisa - disse Tom.

     - Não se apoquente. Claro que a gente faz. Mas sem barulho. Uma criança morre de fome muito depressa. Leva dois ou três dias apenas.

     Voltou para o seu trabalho, untando com a massa o encaixe da válvula, e a sua mão ia e vinha rapidamente na fita, enquanto o rosto se mostrava sombrio e fechado.

     Tom dirigiu-se vagarosamente para a tenda.

     - Fazer de idiota! Fazer de idiota! - murmurava entre dentes.

     O pai e o tio John voltavam, carregados de ramos secos de salgueiro; atiraram-nos ao lume e acocoraram-se.

     - Custou a colher isto - disse o pai. - Fartámo-nos de caminhar para arranjar esta lenha.

     Levantou os olhos para a roda de crianças pasmadas que os rodeavam.

     - Meu Deus! - exclamou. - De onde saíram vocês todos?! As crianças, envergonhadas, baixaram os olhos, fixando-os nos pés.

     - Parece-me que sentiram o cheiro da comida ao lume - esclareceu a mãe. - Ó Winfield, sai-me do caminho, anda! - E deu-lhe um empurrão. - Estou com vontade de preparar um guisadinho - disse. - Ainda não comemos nada bem cozinhado desde que saímos de casa. Pai, vai ali à venda e traz carne para guisar. Vou fazer um bom guisadinho.

     O pai levantou-se e afastou-se lentamente.

     Al abriu a tampa do motor e examinou as peças lubrificadas. Ergueu a cabeça quando Tom se aproximou dele.

     - Olá! Vens aí contente que nem um rato.

     - Nem tu imaginas! Satisfeito que nem um rato à chuva - respondeu Tom.

     - Repara no motor. Está bom, não está?

     Tom olhou.

     - Parece que sim, que está perfeito.

     - Perfeito? Formidável é que ele está. Não vazou óleo nem nada. - Desaparafusou uma vela, metendo o indicador no buraco. - Um bocado agarrado mas está seco.

     Tom prosseguiu:

     - Sim, fizeste um bom negócio, quando compraste este carro. Era o que querias ouvir, não era?

     - Bem, o facto é que toda a viagem suei, pensando que a coisa não aguentasse, e que a culpa fosse minha.

     - Não, senhor. Fizeste tudo bem. Mas é melhor verificar se tudo está em ordem, porque amanhã vamos sair à procura de trabalho.

     - Vai continuar que é uma beleza - disse Al - Não te preocupes.

     Tirou um canivete do bolso e pôs-se a raspar os resíduos das velas.

     Tom rodeou a tenda e viu Casy sentado no chão, olhando pensativo o pé descalço; sentou-se pesadamente ao lado dele.

     - Acha que ainda servem?

     - O quê? - perguntou Casy.

     - Os dedos do pé.

     - Ah! Sentei-me a pensar um pouco.

     - Você tem sempre tempo para isso - disse Tom.

     Casy, com um sorriso calmo, levantou o dedo grande do pé e baixou o segundo dedo.

     - É bastante difícil uma pessoa pensar como deve ser, sem baralhar os pensamentos.

     - Há muitos dias que você não dá um pio - disse Tom. - Tem estado todo esse tempo a pensar?

     - Sim, tenho estado a pensar.

     Tom tirou o boné sujo e todo estragado, com a pala em ângulo agudo, voltou a tira de couro e retirou de lá uma fita de papel de jornal dobrado que o forrava.

     - Suei tanto que encolheu - disse, olhando o movimento dos dedos do pé de Casy. - Você não pode deixar de pensar e ouvir-me por um momento?

     Casy virou a cabeça assente num pescoço robusto como um caule.

     - Estou sempre a ouvir. É por isso que vivo a pensar. Escuto as pessoas e procuro logo compreender o que sentem. Passo assim todo o tempo. Ouço-as e compreendo-as. As pessoas vivem a bater as asas como pássaros numa água-furtada. E quebram as asas de encontro à janela cheia de pó por onde querem escapar-se.

     Tom observou-o com os olhos arregalados; depois, desviou-os, poisando-os numa tenda cinzenta, armada à distância de vinte pés. Nas cordas da tenda viam-se calças, camisas e um vestido lavados. Disse depois, em voz baixa:

     - Era nisso que eu ia falar. Mas você já compreendeu. – Já - confirmou Casy. - Há um exército inteiro de gente como nós, um exército sem couraças. - Baixou a cabeça, passando ,lentamente a mão aberta pela testa e pelos cabelos. - Vi isto por toda a parte - disse - por toda a parte por onde passámos. A gente sente fome de carne e, quando a consegue arranjar, não dá; é muito pouca. E, quando eles sentem tanta fome que não aguentam mais, vêm pedir-me que reze por eles. E, às vezes, eu rezo. Cingiu os joelhos levantados com ambas as mãos, encolhendo as pernas. - E pensei que isso lhes poderia servir de remédio. Fazia uma oração e metia nela as? preocupações todas como moscas num mata-moscas e a oração ia voando e levava consigo as preocupações. Mas agora já não dá resultado.

     Tom respondeu:

     - Uma oração nunca deu carne a ninguém. Para isso é preciso um porco.

     - Sim - disse Casy - e o bom Deus nunca aumentou os ordenados. Esta gente aqui contenta-se com o viver decentemente e criar os filhos como deve ser. Quando estão velhos, o que querem é sentar-se à porta de casa, a olhar o pôr do Sol. E, quando são jovens, somente querem dançar, cantar e dormir com alguém. Querem comer, embriagar-se e trabalhar. Apenas isto; só querem utilizar os músculos até ficarem cansados. Céus! Que é que eu estou a dizer?!

     - Não sei - disse Tom - mas não soa mal. Você acha que pode trabalhar e deixar de pensar por algum tempo? Temos de procurar trabalho. O dinheiro já se foi quase todo. O pai pagou cinco dólares por umas tábuas pintadas que puseram na terra onde enterraram a avó. Agora não nos sobra quase nada.

     Um cão atravessado, de cor parda, passou, farejou, ao lado da tenda. Estava nervoso e pronto a esgueirar-se. Farejou o chão durante alguns instantes, até reparar nos dois homens. Erguendo os olhos, viu-os; deu um pulo para o lado, e fugiu com as orelhas derrubadas para trás e o rabo escanzelado entre as pernas. Casy seguiu-o com os olhos até ele desaparecer, escapulindo-se por detrás de uma tenda... Casy suspirou.

     - Não sirvo para nada – disse - nem para mim nem para ninguém. já pensei que devia ir-me embora sozinho. Só sirvo para comer a vossa comida e tomar espaço. E não posso dar-vos nada em troca. Talvez encontre um trabalho regular, para vos pagar alguma coisa do que gastaram comigo.

     Tom abriu a boca, avançou o maxilar inferior, e bateu nos dentes de baixo com uma haste de mostarda seca. Os olhos dele giraram pelo acampamento, por sobre as tendas cor de cinza e das barracas de erva seca, de lata e de papel.

     - Quem me dera aqui uma onça de Durham! - disse - há séculos que não tenho nada que fumar! Em MacAlester, sempre davam tabaco à gente. Quase que preferia ter ficado lá! - Bateu de novo nos derães, voltando-se subitamente para o pregador. - Você já esteve alguma vez na cadeia?

     - Não - disse Casy - nunca.

     - Não se vá já embora - disse Tom. - Não vá ainda.

     - Quanto mais cedo procurar trabalho, mais cedo o encontrarei.

     Tom examinou-o de olhos semicerrados, pondo novamente o boné.

     - Escute - disse. - Isto aqui não é a terra da promissão, como dizem os pregadores. Aqui a coisa é feia. A gente daqui tem medo das pessoas que vêm para o Oeste e, por isso, mandam os polícias para nos assustar.

     - Sim - disse Casy - eu sei. Mas porque é que perguntou se eu já estive na cadeia?

     Tom respondeu lentamente:

     - E que, na prisão, a gente acaba por adivinhar as coisas a distância. Não deixam ninguém conversar. Duas pessoas podem conversar; um grupo, não. E assim a gente acaba por adivinhar, sempre que alguma coisa anda no ar. Quando, por exemplo, um camarada tem um acesso e bate num guarda com o cabo da vassoura, a gente já sabe da coisa antes. Quando está para haver uma evasão ou um motim, ninguém precisa de nos avisar. A gente torna-se sensível, adivinha logo as coisas.

     - Sim?

     - Deixe-se estar por aqui - disse Tom. - Deixe-se ficar por aqui até amanhã. Pressinto qualquer coisa. Falei com um rapaz ali adiante. E ele pareceu-me tão misterioso e tão sabido como um coiote; quer dizer, sabido de mais. Como um coiote que só se interessa pela sua vida, e tão doce, tão inocente, que acha graça a tudo, sem fazer dano a coisa alguma. Bem, cheira-me que há qualquer coisa no ar.

     Casy encarou-o atentamente. Esteve para lhe dirigir uma pergunta, mas acabou por pregar firmemente os lábios. Tamborilou devagar com os dedos do pé, e, separando os joelhos, esticou as pernas para ver os pés.

     - Bem- disse - então não me vou embora por enquanto.

     Tom prosseguiu:

     - Quando um grupo de camaradas, gente boa e sossegada, de repente não sabe nada, é porque alguma coisa se está preparando.

     - Então fico, pronto - disse Casy.

     - E amanhã vamos à procura de trabalho.

     - Sim - volveu Casy. E mexeu os dedos dos pés para cima e para baixo, observando-os com gravidade.

     Tom apoiou-se num cotovelo e fechou os olhos. Chegaram-lhe aos ouvidos, do interior da tenda, as vozes de Rosa de Sharon, seguida das respostas de Connie.

     A lona lançava uma sombra escura. A luz, que lhe batia de ambos os lados, em forma de cunha, era uma luz crua e penetrante.

     Rosa de Sharon estava deitada num colchão, e Connie acocorado a seu lado.

     - Eu devia ajudar a mãe - disse Rosa de Sharon.- Já experimentei, mas cada vez que me levantava, punha-me a vomitar.

     Os olhos de Connie lançavam uma luz sombria.

     - Se eu soubesse que a coisa era assim, não tinha vindo. Ia mas era estudar de noite, em casa, aprender a manejar tractores, e arranjava, pela certa, um emprego de três dólares. Um tipo pode viver perfeitamente com três dólares por dia, até ao cinema pode ir todas as noites, se quiser.

     Rosa de Sharon parecia apreensiva.

     - Mas tu não disseste que querias estudar de noite, estudar rádio?

     A resposta dele tardou.

     - Não disseste? - insistiu ela.

     - Claro que quero, quando endireitar a vida. Primeiro preciso de arranjar uns cobres.

     Ela virou-se, apoiando-se no cotovelo.

     - Mas tu não vais deixar tudo isto, pois não?

     - Não, não, naturalmente que não. Mas... eu não sabia que a gente ia viver assim, num lugar destes.

     Os olhos da rapariga tornaram-se duros.

     - É o teu dever... - disse calmamente.

     - Sim, sim, está bem. Eu sei. Mas só quando endireitar a vida. Quando tiver uns cobres. Tinha sido melhor ficar em casa e estudar tractores. Aquele pessoal ganha três dólares por dia, e, às vezes, ainda tem gratificações. - Os olhos de Rosa de Sharon iam tirando conclusões. Olhando-a, ele percebeu como ela o media com os olhos, perscrutando-lhe os pensamentos. - Mas eu vou estudar - disse ele.- Assim que tirar o pé da lama.

     Ela disse impetuosamente:

     - Temos de arranjar uma casa antes de o menino nascer. Não quero dar à luz numa tenda.

     - Claro - respondeu ele. - Assim que eu endireitar a vida.

     Saiu da tenda e lançou um olhar à mãe, que estava agachada junto da fogueira. Rosa de Sharon deitou-se de costas, fixando os olhos no tecto da tenda. E, metendo o polegar na boca, para sufocar os soluços, começou a chorar em silêncio.

     A mãe estava ajoelhada junto da fogueira, quebrando tronquitos para alimentar o lume sob a panela. O fogo tão depressa subia como baixava. As crianças - quinze ao todo - mantinham-se silenciosas a observá-la e as suas narinas dilatavam-se ligeiramente quando recebiam o aroma do guisado. A luz do sol reflectia-se cintilante nos seus cabelos cobertos de poeira. As crianças mostravam-se envergonhadas mas não arredavam pé. A mãe falava em voz baixa a uma menina que se mantinha no meio do círculo cobiçoso. Equilibrava-se num pé só, acariciando a barriga da perna com o outro pé. Tinha os braços cruzados atrás das costas. Observava a mãe com os seus olhinhos fixos, cor de cinza.

     - Se a senhora quiser, posso ir buscar mais lenha - propôs ela.

     A mãe ergueu os olhos.

     - O que tu queres é que a gente te peça para jantares connosco, não é?

- Sim, senhora - disse a menina com voz firme.

A mãe pôs mais lenha no forno e as chamas começaram a crepitar.

     - Tu não almoçaste?

     - Não, senhora. Não há trabalho aqui nos arredores. O pai foi à cidade a ver se vendia umas coisas, que é para comprar gasolina e continuarmos a viagem.

     A mãe ergueu os olhos.

     - Então nenhuma delas almoçou?

     As crianças mexiam-se nervosamente, desviando os olhos da panela em que fervia o guisado. Um menino disse, gabarola:

     - Eu almocei... sim e o meu irmão também. E aqueles dois ali, também, que eu vi. A gente comeu bem. E hoje de noite vamo-nos embora para o sul.

     A mãe sorriu:

     - Então tu não tens fome, não? Ainda bem porque a comida não dá para todos.

     O pequeno estendeu os lábios, a fazer beiço:

     - Sim, a gente comeu bastante - disse. Virou as costas e correu, mergulhando numa tenda.

     A mãe seguiu-o com os olhos por tanto tempo que a pequena mais velha do grupo teve de chamar-lhe a atenção.

     - O lume está-se a apagar. Mas, se a senhora quiser, eu posso abaná-lo.

     Ruthie e Winfield estavam no meio do grupo, comportando-se com frieza e dignidade. Pareciam distantes e, ao mesmo tempo, dominadores. Ruthie lançava olhares frios e indignados à pequena. Acocorando-se, começou a preparar lenha para pôr no lume.

     A mãe ergueu a tampa da panela e mexeu o conteúdo com um pau.

     - Fico bastante contente por saber que nem todos vocês têm fome. Pelo menos, aquele menino parece que não tem.

     A rapariguita torceu o nariz.

     - Ora, aquele! Aquilo é gabarolice, e grande, Sabe o que é que ele costuma fazer quando não tem de comer? Faz assim: ontem à noite chegou-se ao pé de mim e disse-me que iam comer frango. Pois eu passei pelo sítio onde eles estavam a comer e sabe o que eu vi? Estavam a comer papa de farinha como toda a gente.

     - Imagine!

     A mãe olhou novamente para a tenda por onde o pequeno desaparecera. Depois encarou a rapariguinha:

     - Escuta: há quanto tempo estás na Califórnia? - perguntou.

     - Eu? Há uns seis meses. Durante algum tempo, a gente morou num acampamento do governo. Depois, fomos para o Norte e, quando voltámos, já o acampamento estava cheio. Sabe, esse acampamento é bem bonito!

     - É? - perguntou a mãe. Pegou nos paus e na lenha que estavam nas mãos de Ruthie e pô-los no fogo.

     Ruthie lançou um olhar de ódio à pequena.

     - Pois é. Fica perto de Weedpatch. Há retretes e casas de banho, que é um luxo! Pode-se lavar a roupa em tinas e há água à farta, água boa para beber; à noite, há gente que toca bonitas músicas e, nas noites de sábado, há um baile. A senhora com certeza que nunca viu uma coisa assim. E há um sítio para as crianças brincarem. E retretes com papel. A gente só puxa uma corrente e a água cai mesmo dentro da retrete. Não há nenhum polícia para meter o nariz nas tendas da gente a toda a hora; o homem que manda no campo é uma pessoa muito delicada, que nos visita e fala bem com a gente; não tem a mania de armar em chefe. Quem me dera que a gente fosse outra vez para lá!

     A mãe disse:

     - Nunca ouvi falar desse acampamento. Sempre te digo que ficaria encantada se me pudesse servir de uma selha.

     A pequena continuou com excitação:

     - Meu Deus, até há água quente nos canos! Quando a gente se mete debaixo de um chuveiro, sai água quente. Aposto que a senhora nunca viu um sítio assim?

     - Dizes que está cheio de gente agora? - perguntou a mãe.

     - Deve estar, sim. já da outra vez estava.

     - E deve custar um dinheirão.

     - Bem, lá isso é verdade, mas, quando a gente não tem dinheiro, pode trabalhar para pagar as despesas. Trabalha algumas horas por semana, limpa a cozinha, despeja o caixote do lixo... coisas assim... E, à noite, sempre há música, e as pessoas juntam-se todas a conversar. E há mesmo, de verdade, água quente nos canos. A senhora nunca viu uma coisa tão bonita.

     - Gostava de ir para lá.

     Ruthie aguentara o mais que podia, mas, por fim, explodiu com violência:

     - A avó morreu em cima do caminhão. - A pequena olhou-a com ar interrogativo.- Morreu, sim. E o delegado veio buscá-la. - Cerrou os lábios com firmeza e pôs-se a partir um pequeno feixe de ramos secos.

     Winfield deixou-se arrebatar pela audácia do ataque.

     - Em cima do caminhão - ecoou. - E o delegado meteu-a num grande cesto.

     - Calem a boca ou mando-os embora! - ameaçou a mãe. E deitou mais lenha no fogo.

     Mais atrás, Al, andara por ali até se aproximar do rapaz que esmerilava as válvulas.

     - Parece que isso está quase pronto - disse.

     - Faltam duas ainda.

     - Há boas pequenas aqui no acampamento?

     - Sou casado - disse o rapaz. - Não tenho tempo para as pequenas.

     - Pois eu arranjo sempre tempo para isso - respondeu Al. - Não tenho mesmo tempo para mais nada.

     - Quando você tiver fome, já muda.

     Al riu.

     - Pode ser. Mas até agora nunca mudei de opinião a esse respeito.

     - Aquele rapaz com quem estive a falar é do vosso grupo, não é?

     - É meu irmão. Chama-se Tom. É melhor não se meter com ele. Já matou um tipo...

     - Matou? Porquê?

     - Foi numa briga. O tipo avançou para ele com uma faca. E o Tom rachou-lhe a cabeça com uma pá.

     - Não me diga! E que fez a polícia?

     - Soltaram-no porque foi uma briga - disse Al.

     - Não tem cara de valentão.

     - Ele não é nenhum valentão. Mas não aguenta brincadeiras de ninguém.

     A voz de Al estava cheia de orgulho.

     - Tom não fala muito. Mas cuidado com ele!

     - Bem, eu conversei com ele. Não me pareceu assim ruim.

     - Pois claro que não é ruim. É manso como uma ovelha. Mas, quando se zanga... é preciso ter cuidado com ele. - O rapaz limava a última válvula.- Quer que o ajude a encaixar as válvulas e a pôr a cúpula?

     - Se você não tem mais que fazer, quero.

     - Devia dormir um bocado - disse Al - mas, quando vejo um motor desmontado, meu Deus! Tenho de lhe meter as unhas. Não resisto.

     - Bom, fico muito satisfeito com a sua ajuda - disse o rapaz. - Chamo-me Floyd Knowles.

     - Eu chamo-me Al Joad.

     - Muito prazer.

     - Igualmente - respondeu Al.- Você vai servir-se da mesma gaxeta?

     - Que remédio! - exclamou Floyd.

     Al tirou o canivete do bolso e pôs-se a raspar o bloco.

     - Sabe - disse - não há nada de que eu goste tanto como de um motor.

     - E então as pequenas?

     - Bem, também as não desprezo, não. O que eu não daria por desmontar um “Rolls” e tornar a montá-lo! uma vez olhei para dentro da tampa de um motor de um “Cadillac” 16 c Deus do céu! - garanto que você nunca viu uma coisa tão bonita na vida! Foi em Sallisaw, e aquele “Cadillac” estava parado à porta de um restaurante. Eu cheguei e, sem perguntar nada a ninguém, levantei a tampa do motor, Então apareceu um sujeito que vinha do restaurante e me disse: “Que diabo é que você está aí a fazer?” Eu respondi: “Estou só a ver.” “É formidável, não é?” E o sujeito pôs-se ao meu lado. Parece que ele nunca tinha visto um motor de automóvel. E ficou a olhar sem dizer nada. Parecia um rapaz rico, com chapéu de palha, camisa listrada e óculos. Não dizíamos nada. Ficámos a olhar. De repente, ele disse: “Apetecia-lhe guiar um bocado?”

     - Ena, pai! - disse Floyd.

     - Sim, senhor. Ele disse-me: “Apetecia-lhe guiar um bocado Mas eu estava de fato-macaco e sujo como o diabo! E disse: “Mas vou sujar o carro.” “Venha daí”, respondeu ele. “Vamos dar a volta às casas.” Sentei-me ao volante e dei oito voltas e ah, rapazes!...

     - Foi bem bom, hein? - disse Floyd.

     - Deus do céu! - exclamou Al. - Dava sei lá o quê para poder desmontar um “ bicho” daqueles.

     Floyd afrouxou o movimento do braço. Retirou a última válvula do encaixe e examinou-a.

     - É melhor você acostumar-se a um destes nossos calhambeques - disse. - Você nunca há-de guiar um “Cadillac.”

     Colocou a fita de polir sobre o estribo e pegou num formão para raspar a crosta do cilindro. Duas mulheres robustas, descalças e sem chapéus, passaram por ali, carregando um balde cheio de água cor de leite, que ambas seguravam. Manquejavam ao peso do balde e levavam os olhos fixos no chão. O Sol ia já a meio da sua caminhada no céu.

     - Você não me parece muito satisfeito - comentou Al.

     - Estou aqui há seis meses já - retorquiu o rapaz. - Andei por esse Estado todo, à procura de trabalho, fazendo um esforço dos diabos, para ganhar apenas o suficiente para carne e batatas que chegassem para mim, para a mulher e para as crianças. com tudo isso como um coelho, e nada: nunca pude ganhar o suficiente para comer. Não há maneira. Começo a estar farto, é o caso. E não sei o que hei-de fazer.

     - Mas não se encontra trabalho regular para um tipo aqui? - perguntou Al.

     - Isso sim! – com o formão destacou a crosta do cilindro, e passou com um pano engordurado de óleo pelo metal baço do bloco.

     Um carro de turismo enferrujado entrava no acampamento. Trazia quatro homens, homens de feições duras e morenas. O carro atravessou lentamente o acampamento. Floyd gritou atrás dele:

     - Tiveram sorte?

     O carro parou. O homem que ia ao volante disse:

     - Qual o quê? Andámos por Seca e Meca. Não se encontra trabalho nesta maldita terra. Vamo-nos embora.

     - Para onde? - perguntou Al.

     - Sei lá! Aqui já explorámos tudo. - Pôs o motor em marcha e o carro prosseguiu no seu lento percurso pelo acampamento.

     Al seguiu-o com os olhos.

     - Não seria melhor eles andarem sozinhos? Um homem sozinho encontra trabalho com mais facilidade.

     Floyd pôs o formão de lado e sorriu com azedume.

     - Você é um anjinho - disse. - Para se andar por aí é preciso muita gasolina. E a gasolina custa quinze cents o galão. Ora, se eles fossem sozinhos, tinham de ir em quatro automóveis. Assim, não. Cada um contribui com dez cents para comprar gasolina. Já vejo que você tem muito que aprender ainda.

     - Ah!

     Al enxergou Winfield atrás dele com um ar de importância.

     - Al - disse Winfield - vem, que a mãe já está a servir o guisado. Mandou dizer para vires.

     Al limpou as mãos às calças.

     - A gente hoje ainda não comeu - disse a Floyd. - Quando acabar de comer, volto para o ajudar.

     - Não é preciso. A não ser que tenha vontade disso...

     - Tenho, sim. - E acompanhou Winfield em direcção à tenda da família Joad.

     Havia muita gente aglomerada em frente da tenda. A criançada comprimia-se em volta da panela, de maneira que a mãe, no decorrer da sua tarefa, empurrava-as de quando em quando com o cotovelo. Tom e o tio John também lá se encontravam.

     A mãe disse desanimada:

     - Não sei o que hei-de fazer. Tenho de dar de comer à família. E esta criançada toda?

     As crianças mantinham-se imóveis, olhando-a; as suas feições estavam rígidas e vazias de expressão e os seus olhos passeavam mecanicamente da panela para o prato de estanho que a mãe segurava. Os seus olhos acompanhavam a concha, ao passar da panela para o prato, e, quando a mãe entregou ao tio John o prato fumegante, os olhares das crianças seguiram também esse gesto.

     O tio John mergulhou a colher no prato de guisado, e os olhos a criançada acompanharam o movimento da colher. Uma batata desapareceu na boca do tio John e os olhos das crianças poisaram no rosto dele, observando a maneira como iria reagir. Estaria boa a batata? Teria gostado?

     Nesse momento, o tio John pareceu aperceber-se pela primeira vez das crianças. Mastigou vagarosamente.

     - Anda cá, toma - disse a Tom.

     - Eu não tenho fome.

     - Mas o senhor não comeu nada hoje.

     - Eu sei, mas é que estou com dores de barriga. Não tenho vontade de comer.

     Tom disse em voz baixa:

     - É melhor levar o seu prato e ir comer para a tenda.

     - Mas não sinto fome - teimou o tio John. - E, lá da tenda, verei as crianças da mesma maneira.

     Tom voltou-se para as crianças:

     - Bom. Vão-se embora. Vamos, andem, não ouviram? - Os olhos da criançada deixaram o guisado e pousaram no rosto de Tom cheios de surpresa. - Vão indo, vá. Vocês aqui são demais. Não vêem que a comida não chega para todos?

     A mãe deitou comida em todos os pratos de estanho, muito pouco em cada um e colocou os pratos no chão.

     - Não tenho coragem de mandar essas crianças embora - disse. - Não sei o que hei-de fazer. É melhor vocês pegarem nos pratos e irem comer para dentro da tenda. O que sobrar distribui-se pelas crianças. Espera aí, leva esse prato de comida à Rosasharn! - Olhou para as crianças: - Escutem, arranjem um pedacinho de madeira liso, que eu dou a cada um de vocês um bocadinho do que restar. Mas não quero brigas.- O grupo dissolveu-se rapidamente no maior silêncio. A criançada foi a correr à procura de pauzinhos. Algumas crianças correram para as tendas, a fim de trazerem colheres. Antes que a mãe tivesse tido tempo de encher os pratos de estanho, já elas estavam de volta, silenciosas e ávidas como lobos. A mãe abanou a cabeça. - Não sei o que hei-de fazer. Não posso prejudicar a família. Primeiro, tenho de dar de comer a todos. Ruthie, Winfield, Al! - gritou ela com força. - Peguem nesses pratos e vão para dentro da tenda. Aviem-se! Olhou as crianças como que pedindo-lhes desculpa. - A comida é muito pouca - disse contristada. - Deixo a panela aqui, para vocês; é só para provarem, que a comida não dá para todos, nem vos fará grande coisa - gaguejou. - Que é que eu hei-de fazer? Não posso fazer outra coisa... Tirou a panela do fogo e colocou-a no chão. - É melhor esperarem um pouco; a comida está muito quente - disse. E refugiou-se na tenda, para não ver mais nada.

     A família estava toda sentada no solo, cada qual com o seu prato na mão. Ouviram as crianças lá fora, raspando o fundo da panela com os paus, as colheres e pedacinhos de metal enferrujado. A panela tornara-se invisível, oculta por uma muralha, viva de crianças. Não falavam, não discutiam nem brigavam, mas todas elas eram movidas por uma ferocidade muda. A mãe virou as costas, para não ver a cena.

     - Para a outra vez tem ele se evitar isto - disse. - Temos de comer sozinhos.

     Ouviu-se ainda um instante o raspar da panela; depois o cacho de crianças desmanchou-se e elas dispersaram, deixando no chão a panela limpa. A mãe olhou para os pratos vazios.

     - Nenhum de vocês ficou satisfeito com certeza - comentou.

     O pai ergueu-se e deixou a tenda sem lhe dar resposta. O pregador sorriu e deitou-se de costas com as mãos cruzadas por detrás da nuca. Al pôs-se de pé.

     - Tenho de ajudar ali um rapaz numa coisa...

     A mãe juntou os pratos e foi lavá-los lá fora.

     - Ruthie, Winfield! Vã o buscar já um balde de água. - Entregou-lhes um balde vazio e os miúdos saíram indolentemente em direcção ao rio.

     Uma mulher forte e robusta surgiu. Tinha o vestido manchado de lama e salpicado de óleo de automóvel. Mantinha a cabeça orgulhosamente erguida. Deteve-se a pequena distância, olhando para a mãe com hostilidade. Acabou por se aproximar.

     - Boa tarde - disse com frieza.

     - Boa tarde - respondeu a mãe, erguendo-se e oferecendo um caixote à visitante. - A senhora quer sentar-se?

     A mulher aproximou-se mais.

     - Não, não me quero sentar.

     A mãe encarou-a interrogativamente:

     - Quer alguma coisa de mim? A mulher pôs as mãos na cintura.

     - Quero sim, quero que se meta com os seus filhos e deixe os meus em paz.

     A mãe arregalou os olhos.

     - Mas eu não fiz nada - explicou.

     A mulher olhou-a com ar carrancudo.

     - O meu garoto chegou a casa a cheirar a guisado. Foi a senhora que lhe deu de comer. O miúdo contou-me. A senhora quer saber uma coisa? Não vale a pena andar por aí a alardear o seu guisado. Deixe-se disso. Os cuidados que tenho já me chegam.

     O miúdo chegou a casa e começou logo a perguntar: “Mãe, porque é que nunca faz um guisadinho?”- A voz da mulher tremia de raiva.

     A mãe aproximou-se:

     - É melhor a senhora sentar-se um bocadinho. Sente-se, sente-se e vamos conversar um pouco.

     - Não, não me sento coisa nenhuma. Trabalho como uma negra para dar de comer à minha família e vem a senhora estragar tudo com esse seu guisado.

     - Sente-se, mulher! - disse a mãe. - Este foi o nosso último guisado, pelo menos enquanto a gente não encontrar trabalho. Imagine que a senhora estava a cozinhar e uma porção de crianças se punha ali na sua frente, a olhar para si com cada olho que nem uma lua cheia? O que é que a senhora fazia? A gente não tinha comida nem para matar a nossa própria fome, mas, quando vi as crianças a olharem daquela maneira, não pude deixar de lhes dar também um bocadinho.

     As mãos da mulher deixaram a cintura. Por um instante, ela encarou a mãe com ar incrédulo. Depois, voltou-se e foi-se embora quase a correr; entrou numa tenda e fechou-a atrás de si. A mãe seguiu-a, com os olhos e depois, pôs-se de joelhos ao lado da pilha de pratos de estanho.

     Al chegou a correr.

     - Tom - gritou. - Mãe, o Tom está aí dentro?

     A cabeça de Tom apareceu à porta da tenda.

     - Que é que tu queres?

     - Vem comigo, Tom - disse Al, excitado.

     Tom acompanhou-o.

     - Que é que há? - perguntou Tom.

     - Espera um pouco e vais ver. - Conduziu Tom até ao carro desmontado. - Este aqui é o Floyd Knowles - disse, apresentando o rapaz.

     - Eu já o conheço. Como vai isso, Floyd?

     - Bem - respondeu Floyd. - Estou a afiná-lo.

     Tom passou o dedo pelo cilindro.

     - Então, Al, que bicho te mordeu? - perguntou.

     - Olha, Tom, o Floyd disse-me uma coisa. Conte-lhe, Floyd.

     Floyd disse:

     - Pode ser palermice isto que eu quero fazer, mas sempre lhe digo. Passou por aqui um tipo que disse que vai trabalhar lá para o Norte.

     - Para o Norte?

     - Sim, num sítio chamado Santa Clara Valley, bem ao norte, longe como o diabo.

     - Que é que ele vai fazer para lá?

     - Colher ameixas, peras e trabalhar numa fábrica de frutas em calda. Ele diz que já está a chegar a altura de as frutas amadurecerem.

     - Qual é a distância daqui até lá? - perguntou Tom.

     - Sei lá! Mas acho que deve ser a umas duzentas milhas daqui.

     - Livra! Longe como o diabo! - respondeu Tom. - Antes de a gente lá chegar, acaba-se o trabalho.

     - É possível. Mas a gente aqui o que faz? E esse tipo que foi para o Norte diz que recebeu uma carta do irmã o, dizendo que também já estava a caminho. E pediu-me para eu não contar nada a ninguém, que e para evitar que vá para lá muita gente. Vamos sair daqui de noite. E preciso que a gente ache afinal um trabalho de jeito.

     Tom olhou-o, intrigado:

     - Mas porque havemos de sair de noite? Sair às escondidas?

     - Ora, rapaz! Então você não percebe? Se toda a gente for para lá, não há trabalho para todos.

     - Mas é longe que é uma barbaridade - disse Tom.

     Floyd mostrou-se ofendido.

     - Bom, eu dei o palpite. Vocês aceitam se quiserem. Este seu irmão ajudou-me, foi por isso que os informei.

     - Mas é certo, certo que não existe trabalho nestas redondezas?

     - Olhe, eu passei três semanas para cá e para lá, feito doido e não achei nada que fazer. Se vocês também quiserem experimentar, podem, mas garanto que é gastar gasolina à toa. Para mim, é até melhor que vocês não venham. Quanto menos gente, mais probabilidades para mim.

     Tom disse:

     - Eu acho que você tem razão. O pior é que isso é muito longe. E a gente tinha tanta esperança de arranjar trabalho por aqui e de alugar uma casinha para morar!

     Floyd respondeu pacientemente:

     - Eu sei, vocês são novos aqui. Têm que aprender muita coisa ainda. Por isso, eu lhes estou a dar alguns conselhos; é para lhes evitar desgostos. Se não quiserem ouvir-me, então terão de aprender à vossa custa... Não podem estabelecer-se aqui, porque não há por cá trabalho para isso. Agora já sabem. E, quando chegar a fome, é que vocês vão ver de verdade.

     - Tinha vontade de dar uma vista de olhos por aqui primeiro - disse Tom indeciso.

      Um “Sedan” atravessou o acampamento, parando ao lado da tenda vizinha. Um homem vestido de fato-macaco e camisa azul, saltou do carro.

     Floyd gritou-lhe:

     - Então? Teve sorte?

     - Não há trabalho nenhum nesta maldita terra. Nenhum, antes da safra do algodão. - E entrou na tenda esfarrapada.

     - Está a ver? - perguntou Floyd.

     - Sim, sim, estou a ver. Mas duzentas milhas, meu Deus!

     - Bem, mas vocês não podem ficar num sítio onde não há trabalho. É melhor resolverem isso.

     - É melhor a gente ir - disse Al.

     Tom perguntou.

     - Quando é que se começa a trabalhar por aqui?

     - Bem, o algodão acho que começa daqui a um mês. Se vocês têm dinheiro, podem esperar pelo algodão.

     - A minha mãe não vai querer sair daqui. Ainda está muito cansada da viagem.

     Floyd encolheu os ombros.

     - Bem, eu não insisto. Vocês é que devem resolver. Eu só disse o que soube. - Retirou do estribo a gacheta lubrificada e apertou-a, encaixando-a cuidadosamente no cilindro. - Agora - disse para Al - se você quisesse, poderia ajudar-me.

     Tom observou como os dois colocavam cautelosamente a pesada cúpula nos parafusos da base e a largavam, equilibrando os movimentos.

     - Temos de conversar mais a respeito do caso - disse. - Não quero que mais ninguém, a não ser vocês, saiba disto. Eu nada teria dito se o Al não me tivesse ajudado.

     Tom continuou:

     - Bem, de qualquer maneira, muito obrigado pelo palpite. Vamos pensar nisso. Pode ser que a gente resolva ir.

     - Eu acho que vou - disse Al. - Mesmo que vocês não venham. Não quero criar bolor neste sítio.

     - E deixas a família? - perguntou Tom.

     - Que é que isso tem? Quando voltar, é com os bolsos cheios de notas. Porque não?

     - A mãe não vai gostar disso - replicou Tom. - E o pai também não.

     Floyd colocou as porcas, aparafusando-as com os dedos até onde podia.

     - Eu e a minha mulher chegámos aqui com a família - disse. - Lá em casa, nunca nos passaria pela ideia o separarmo-nos. Nem pensar nisso! Mas, um dia, estávamos todos no Norte havia um tempo quando eu vim para aqui e eles mudaram-se Deus sabe para onde. A gente tem perguntado por eles constantemente. - Ajustou a chave inglesa nas porcas do bloco e apertou-as de maneira uniforme: uma volta de cada vez para cada uma das porcas.

     Tom acocorou-se ao lado do carro e ficou olhando, de olhos semicerrados, o conjunto de tendas. Havia um pouco de restolho pisado entre elas.

     - Não, senhor - disse. - A mãe não, vai gostar que te vás embora.

     - Eu acho que um tipo sozinho tem muito mais possibilidade de arranjar trabalho do que acompanhado.

     - Pode ser que tenhas razão. Mas a mãe não vai achar graça nenhuma.

     Dois carros cheios de homens, cujas feições reflectiam desgosto, chegavam ao acampamento. Floyd ergueu os olhos mas não lhes perguntou se tinham tido sorte. Os rostos dos tais homens estavam cheios de poeira, tristes e carrancudos. O Sol, no ocaso, dardejava uma luz amarelada sobre Hooverville e sobre os salgueiros que se alinhavam atrás da cidade dos refugiados. Crianças deixavam as tendas para vaguear pelo campo. As mulheres saíam e faziam pequenas fogueiras. Os homens formavam grupos e, acocorados, conversavam.

     Uma limousine “Chevrolet” nova ainda, desviou-se da estrada e entrou no acampamento. Parou a meio do aglomerado de tendas. Tom perguntou:

     - Quem será? Acho que não pertencem aqui.

     Floyd respondeu:

     - Não sei. Talvez seja a polícia.

     A portinhola do carro abriu-se. Um homem saltou, postando-se ao lado do carro. O seu companheiro permaneceu sentado. Os homens acocorados examinavam agora os recém-chegados. As bocas emudeceram. E as mulheres que preparavam as fogueiras contemplavam furtivamente o automóvel que reluzia. As crianças aproximavam-se cautelosamente do carro, dando passadas vagarosas e descrevendo rodeios.

     Floyd pôs de lado a chave inglesa. Tom ergueu-se. Al limpou? as mãos às calças. E os três dirigiram-se lentamente para o automóvel. O homem que tinha saltado vestia calças de caqui e camisa de flanela. Tinha na cabeça um chapéu Stetson, de aba direita. Do bolso da camisa, saía um maço de papéis seguro ao pano por prendedores de canetas de tinta permanente e de lápis amarelos. Do bolso detrás das calças espreitava um caderno de capa metálica. Dirigia-se agora a um grupo de homens acocorados; os homens olhavam-no com desconfiança e sem pronunciarem palavra. Tom, Al e Floyd aproximaram-se como que por casualidade.

     O homem perguntou:

     - Vocês querem trabalhar? Os homens continuaram a olhá-lo, mudos e desconfiados. Outros homens de todos os pontos do acampamento vinham-se aproximando.

     Finalmente, um dos homens acocorados respondeu:

     - Claro que queremos trabalho. Onde é que o há?

     - Em Tulare Country. As frutas por lá já estão a amadurecer. Precisamos de muita gente para a safra.

     Floyd interveio na conversa:

    - O senhor é que é o patrão?

     - Não. Tenho um contrato com a fazenda.

     Havia agora um grupo compacto de homens a cercá-los.

     Um homem tirou o chapéu preto e penteou para trás, com os dedos, o cabelo negro e comprido:

     - Quanto é que o senhor paga? - perguntou.

     - Bem, ainda não posso dizer ao certo. Acho que trinta cents, mais ou menos.

     - Como é que não pode dizer ainda? O senhor tem um contrato, não tem?

     - Tenho sim - disse o homem vestido de caqui. - Mas ainda não está bem assente a questão dos salários. Pode ser que a gente venha até a pagar mais; também pode ser que tenha de pagar um pouco menos.

     Floyd avançou alguns passos. E disse com calma:

     - Pois olhe, eu aceito esse trabalho. O senhor é o empreiteiro, não é? Tem licença para contratar pessoal? Então mostre-a, e é só dar-nos ordem para se começar o serviço, e dizer onde é, quando é que começa e quanto é que vai pagar. Assine isto e pode contar com todos nós.

     O empreiteiro voltou-se para ele, com as feições carrancudas:

     - Você pretende ensinar-me como é que eu devo fazer os meus negócios?

     Floyd acrescentou:

     - O negócio é nosso também, visto que vamos trabalhar para si.

     - Bem, não é você que me vem ensinar o que devo fazer. Já lhe disse que preciso de homens.

     Floyd objectou, irritado:

     - Pois é, mas o senhor ainda não disse de quantos homens precisava, nem quanto vai pagar.

     - Que diabo! Mas se eu próprio não sei ainda!

     - Se o senhor não sabe, não tem o direito de querer contratar ninguém.

     - Faço os meus negócios como entendo. Se vocês querem ficar a coçar o rabo pelas esquinas, que lhes faça muito bom proveito! já disse que preciso de alguns homens para trabalhar em Tulare Country; preciso mesmo de bastante gente.

     Floyd voltou-se para a roda que os cercava. Os homens estavam de pé, encarando, imóveis os dois que discutiam. Floyd continuou:

     - Já duas vezes me levaram à certa desse modo. Pode ser que ele precise de uns mil homens. Mas está a fazer tudo para arranjar uns cinco mil, e então o que ele vai pagar é - o máximo - para aí quinze cents à hora. E vocês, pobres diabos, têm de aceitar tudo, porque passam fome. Se ele quiser empregar gente, que faça isso por escrito, dizendo quanto vai pagar. Peçam-lhe para mostrar a licença. Ele não tem o direito de contratar ninguém sem ter licença. para isso.

     O empreiteiro virou-se em direcção ao “Chevrolet” e deu um grito:

     - Joe!

     O companheiro deitou a cabeça de fora do carro, abriu num gesto largo a portinhola do carro e saltou. Usava calções de montar e botas de atacadores. Tinha à cintura um cinto de cartucheira de onde pendia um revólver pesado. Na camisa parda ostentava uma estrela de delegado de sheriff. Foi-se aproximando do grupo com passos pesados. Mostrava um pálido sorriso.

     - Que há?

     O revólver baloiçava-lhe na anca ao compasso do andar.

     - Já viste este tipo aqui, John?

     O delegado perguntou:

     - Qual deles?

     - Este aqui. - O empreiteiro indicou Floyd.

     - Que foi que ele fez? - O delegado olhou para Floyd sorrindo.

     - Está a fazer discursos vermelhos. A agitar o pessoal.

     - Hum, hum... - O delegado andou lentamente à volta de Floyd, examinando-lhe o perfil.

     O sangue subiu às faces de Floyd.

     - Vêem? - gritou ele. - Se este tipo fosse sério, precisava por ventura de trazer um polícia com ele?

     - Já o viste alguma vez? - insistiu o empreiteiro.

     - Hum, hum... Parece-me que o vi, sim. Foi a semana passada, quando houve aquele roubo de automóveis de saldo. Parece-me que vi por lá este tipo. Sim, senhor! Sou capaz de jurar que é o mesmo. - Subitamente, o sorriso desvaneceu-se-lhe. - Entre para o carro - disse, abrindo o estojo do revólver.

     Tom disse:

     - Vocês não podem provar nada contra ele.

     O delegado voltou-se rapidamente:

     - Se tu quiseres ir também, é só tornares a abrir o bico. Olha que foram dois os tipos que eu vi no tal roubo.

     - Eu ainda não estava neste Estado a semana passada - respondeu Tom.

     - Bem, quem sabe se andam à procura de ti noutra parte? Mete a viola no saco!

     O empreiteiro tornou a dirigir-se aos homens:

     - Vocês não devem dar atenção a estes danados destes vermelhos. São uns amotinadores. Só querem metê-los em sarilhos. Repito: tenho trabalho para todos vocês em Tulare Country.

     Os homens nada responderam.

     O delegado virou-se para eles:

     - Talvez não fosse mau vocês irem para lá - disse, e o sorriso pálido voltou a iluminar-lhe as feições. - A Higiene deu ordem para a gente limpar este acampamento. E, se se souber que há vermelhos aqui, bem... pode ser que aconteça alguma coisa desagradável. Acho melhor vocês irem todos para Tulare. Vocês por aqui não arranjam nada. Falo como amigo. Deve vir por aí uma porção de gente com picaretas para derrubar tudo isto. É melhor vocês saírem antes.

     - Já vos disse que preciso de gente. Agora, se vocês não querem trabalhar, bem, isso é lá com vocês - disse o empreiteiro.

     O delegado sorriu.

     - Nesta terra só há lugar para quem trabalha. Os vagabundos são postos fora dela.

     Floyd mantinha-se muito empertigado ao lado do delegado do sheriff, com os polegares enganchados no cinto. Tom lançou-lhe um olhar furtivo e depois fixou o chão.

     - Pois é isto - disse o empreiteiro - preciso de muita gente lá em Tulare; há trabalho para todos.

     Tom olhou lentamente as mãos de Floyd, notando como os seus tendões se crispavam nos pulsos. Ergueu também as mãos e enganchou os polegares no cinto.

     - Pois é só isto. E amanhã de manhã, não quero ver ninguém aqui.

     O empreiteiro entrou no “Chevrolet”.

     O delegado virou-se para Floyd:

     - Vamos, suba você agora! - Estendeu alarga mão, agarrando o braço esquerdo de Floyd.

     Com um movimento único, Floyd deu uma volta e a sua mão vibrou o golpe. O punho atingiu em cheio o rosto largo do delegado e, no mesmo instante, Floyd fugiu correndo, esquivando-se por detrás das tendas. O delegado cambaleou e Tom passou-lhe uma rasteira. O delegado caiu pesadamente no chão, rolando sobre si mesmo. Depois, apanhou o revólver. De instante a instante, a figura de Floyd aparecia entre os espaços das tendas. Mesmo deitado no chão, o delegado disparou a arma. Em frente de uma das tendas, uma mulher deu um grito e pôs-se a olhar para a mão, que ficara sem articulações. Os dedos pendiam, seguros pelos tendões de encontro à palma, e a carne dilacerada ficara branca e exangue. Ao longe, Floyd tornou a aparecer, procurando embrenhar-se nos salgueiros. O delegado, ainda no chão, tornou a levantar a arma, e, nesse momento, Casy saiu de repente de entre o grupo de homens. Deu um pontapé na nuca do delegado e afastou-se, ao mesmo tempo que o homem, pesadão, tombava sem sentidos.

     O motor do “Chevrolet” roncou forte e o carro saltou, atirando violentamente uma nuvem de poeira. Galgou a estrada e desapareceu. A mulher, diante da tenda, ainda contemplava a mão dilacerada. Pequenas gotas de sangue começavam a porejar do ferimento. E um riso histérico desabrochou-lhe na garganta, um riso uivado, que subia de tom a cada arfar do peito.

     O delegado estava caído de lado, com a boca aberta, em contacto com a poeira.

     Tom apanhou o revólver, retirando-lhe o tambor, que arremessou para o meio dos arbustos. Tirou para fora o projéctil que estava no cano da arma.

     - Um tipo como este não devia ter o direito de usar armas - disse. E atirou com a arma ao chão.

     Um grupo havia-se reunido em torno da mulher que tinha a mão ferida. O seu riso histérico crescia de intensidade, transformando-se em verdadeiros gritos.

     Casy aproximou-se de Tom.

     - Você tem de fugir - disse ele. - Esconda-se naquele salgueiral e espere. Ele não me viu dar-lhe o pontapé, mas viu-o a você pregar-lhe a rasteira.

     - Não quero fugir - redarguiu Tom.

     Casy aproximou a cabeça da dele e cochichou:

     - Olhe, Tom. Eles vão tirar-lhe as impressões digitais. Você quebrou a liberdade condicional. Eles mandam-no de novo para a cadeia.

     - Deus do céu! Até me esqueci disso - fez Tom, suspirando.

     - Então vá depressa - disse Casy - antes que o homem recupere os sentidos.

     - Gostava de ficar com este revólver.

     - Não, deixe-o. Quando as coisas acalmarem, volte. Eu aviso-o, dando quatro assobios fortes.

     Tom foi-se afastando vagarosamente, para não despertar suspeitas. Mas, quando já se encontrava longe do grupo, acelerou o passo, sumindo-se no salgueiral da margem do rio.

     Al pôs um pé sobre o corpo do delegado.

     - Jesus! Isso é que foi dar-lhe!

     Os homens do grupo continuavam a olhar o outro sem sentidos. Nesse instante, ouviu-se uma sereia a grande distância, em escala crescente; calou-se, silvou novamente, desta vez mais perto. Os homens ficaram logo nervosos. Agitavam os pés. E debandaram, indo cada um para a sua tenda. Apenas Al e o pregador permaneceram no local.

     Casy voltou-se para Al:

     - Vamos, foge também. Vai para a tua tenda. Tu não sabes de nada.

     - E o senhor?

     Casy sorriu.

     - Alguém tem de tomar a responsabilidade. Eu não tenho filhos. O mais que me pode acontecer é eles pregarem comigo na cadeia. Talvez lá se este a melhor do que aqui fora.

     - Mas eles não têm razão para fazer isso - afirmou Al.

     - Some-te! - replicou Casy com violência. - Não te metas nisto!

     Al resistiu:

     - Eu não recebo ordens suas.

     Casy respondeu com suavidade:

     - Olha, rapaz, se tu te metes nesta história, não és só tu quem vai sofrer; vais apoquentar a família toda. Para ti não tem importância, mas quem vai sofrer é o teu pai e a tua mãe. E também pode ser que mandem o Tom para McAlester outra vez.

     Al hesitou:

     - Está bem - disse por fim - mas não posso deixar de dizer que o senhor não passa de um louco varrido.

     - E porque não? - perguntou Casy.

     A sereia silvava constantemente e estava cada vez mais próxima. Casy pôs-se de joelhos e virou o corpo do delegado. O homem gemia e mexia as pálpebras, procurando abrir os olhos. Casy limpou a poeira que lhe cobria os lábios. Todas as famílias estavam agora dentro das respectivas tendas, com as entradas bem fechadas. O poente tingia a atmosfera de vermelho e emprestava um tom de bronze à lona das tendas.

     Pneus chiaram na estrada e um carro aberto penetrou rapidamente no acampamento. Quatro homens, armados de carabinas, saltaram para fora do carro. Casy ergueu-se e foi ao encontro deles.

     - Que diabo aconteceu aqui?

     - Nada, tive de ensinar esse tipo aí - explicou Casy.

     Um dos recém-chegados foi ao encontro do delegado, que já voltara a si e tentava com dificuldade sentar-se.

     - Como foi isso?

     - Foi simples - disse Casy. - O homem armou em valentão e eu tive de lhe dar para baixo! Então ele deu um tiro e feriu uma mulher que estava lá em baixo. E eu atirei-me de novo a ele.

     - Então que é que você fez primeiro?

     - Respondi-lhe - volveu Casy.

     - Suba para o carro.

     - Pois não - disse Casy, entrando no automóvel e sentando-se no assento traseiro.

     Dois dos homens ajudaram o delegado a pôr-se de pé.

     O homem apalpava a nuca cautelosamente. Casy continuou:

     - Ali em baixo há uma mulher que pode morrer com uma hemorragia. Apanhou um tiro na mão.

     - Bom, depois vamos ver isso. Mike, foi este o tipo que o agrediu?

     O homem, ainda entontecido, olhou, com olhos perturbados, para Casy.

     - Não, parece-me que não foi este.

     - Fui eu, sim senhor, garanto que fui eu - afirmou Casy. Desta vez, deu com o seu menino.

     Mike sacudiu vagarosamente a cabeça.

     - Não, não me parece que tenha sido você. Livra! Estou a sentir-me mal.

     Casy disse:

     - Estou pronto a ir com vocês. Não quero mais complicações.

     O que eu acho é que vocês devem ir ver essa mulher que foi ferida.

     - Onde está ela?

     - Ali, naquela tenda... ali adiante.

     O chefe dos delegados dirigiu-se para a tenda, com a carabina na mão. Gritou qualquer coisa através da lona e entrou. Um momento depois, tornou a sair e voltou para junto dos companheiros. E disse, com certo orgulho na voz:

     - Meu Deus! O que uma bala de 45 pode fazer! já puseram um torniquete à mulher. Depois a gente manda cá o médico.

     Ao lado de Casy sentaram-se dois polícias. O chefe tocou a sereia. No acampamento não havia a menor manifestação de vida. Todas as tendas se mantinham. fechadas e todos permaneciam dentro delas. O motorista pôs o motor a trabalhar; o carro começou a rodar e descreveu uma curva, deixando o acampamento. Entre os guardas, Casy sentava-se orgulhoso. Tinha a cabeça erguida e os músculos do pescoço salientes. Nos lábios, bailava-lhe um leve sorriso e no seu rosto havia uma curiosa expressão de triunfo.

     Depois da retirada dos polícias, aquela gente começou a sair das tendas. O Sol já declinara por completo e a branda luz azul da tardinha pairava sobre o acampamento. As montanhas, a leste, mostravam-se ainda aloiradas pelos últimos raios solares. As mulheres tornaram a acocorar-se junto das fogueiras, que se haviam apagado. E os homens voltaram a formar grupos e, acocorados, palestravam em voz baixa.

     Quase arrastando-se para fora das tendas dos Joads, Al dirigiu-se ao salgueiral e assobiou, chamando por Tom. A mãe saiu e começou a juntar galhos secos para fazer uma pequena fogueira.

     - Pai - disse ela - a comida não vai ser muita. Comemos tão tarde!

     O pai e o tio John ficaram-se a ver a mãe descascar as batatas, cortá-las e deitá-las cruas numa frigideira cheia de banha.

     - Para que é que esse pregador do diabo se lembrou de fazer aquilo? - perguntou o pai.

     Ruthie e Winfield aproximaram-se de gatas, para ouvir a conversa.

     O tio John traçava, com um prego comprido e enferrujado, sulcos profundos na terra.

     - Ele sabia muito a respeito de pecados. Um dia perguntei-lhe e ele explicou-me. Mas não sei se ele tem razão. Disse-me que um sujeito só peca quando pensa que está a pecar. - Os olhos do tio John mostravam cansaço e tristeza. - Eu fui toda a minha vida um homem cheio de segredos - disse - fiz coisas de que nunca falei.

     A mãe, ao pé da fogueira, virou-se para ele:

     - Não contes nada à gente, John - disse ela - conta tudo ao bom Deus. Não sobrecarregues os outros com os teus pecados. Não é bonito.

     - Mas esses pecados mortificam-me - confessou John.

     - Acredito, mas não contes nada à gente. Vai até ao rio, mete a cabeça na água e conta à água os teus pecados.

     Enquanto a mãe falava, o pai acenava lentamente com a cabeça.

     - Ela tem razão - disse. - É um alívio podermos falar quando temos de dizer alguma coisa, mas não convém fazê-lo porque apenas espalhamos os nossos pecados.

     O tio John olhava as montanhas douradas pelo sol e as montanhas reflectiam-se-lhe nos olhos.

     - Eu bem quero enterrá-los cá no fundo - disse. - Mas não consigo. E isso vive a roer-me cá por dentro.

     Por detrás dele, Rosa de Sharon surgiu cambaleante à porta da tenda.

     - Onde está o Connie? - perguntou em tom irritado. - Há que tempos que o não vejo. Onde foi ele?

     - Eu não o vi - respondeu a mãe. - Se o encontrar, digo-lhe que venha ter contigo.

   - Não me sinto bem - disse Rosa de Sharon. - O Connie não me devia deixar sozinha.

     A mãe olhou o rosto inchado da filha.

     - Estiveste a chorar, não foi?

     As lágrimas brotaram de novo nos olhos de Rosa de Sharon.

     A mãe prosseguiu com voz firme:

     - Tens de te conter. Todos nós estamos contigo. Vem daí e ajuda-me a descascar umas batatas. Preocupas-te apenas contigo.

     A rapariga quis voltar para a tenda, esforçando-se por fugir aos olhares severos da mãe, mas estes obrigaram-na a dirigir-se lentamente para junto da fogueira.

     - Ele não devia deixar-me - lastimou-se, mas as lágrimas já lhe não brotavam dos olhos.

     - O que deves é trabalhar - disse a mãe. - Estás sempre na tenda, e, por isso, só vives a pensar em ti. Eu nunca pude tomar conta de ti. Vou fazê-lo agora. Pega nessa faca e trata de descascar essas batatas.

     A rapariga obedeceu, pondo-se de joelhos.

     - Deixe-o voltar - disse furiosa - e ele vai ver!

     A mãe sorriu calmamente.

     - Ele qualquer dia é bem de te dar uma sova. E a culpa é tua. Só vives a chorar e a armar em mimalha! Eu até lhe agradecia se ele te desse uma ensinadela.

     Os olhos da rapariga luziam de indignação mas permaneceu calada.

     O tio John enterrou mais profundamente o prego ferrugento no chão, com o auxílio do dedo polegar.

     - Preciso de contar uma coisa - disse ele.

     O pai desabafou:

     - Então, conta, que diabo! Quem foi que mataste?

     O tio John enfiou o polegar na algibeira das calças, tirou de lá uma nota de banco suja e amarrotada.

     - Cinco dólares - disse, exibindo a nota.

     - Roubaste-a? - inquiriu o pai.

     - Não, é dinheiro meu. Tenho estado a guardá-lo.

     - E teu, não é assim?

     - É meu, sim, mas eu não tinha o direito de o guardar só para mim.

     - O que é que tem isso? - perguntou a mãe. - Não vejo nisso pecado nenhum: o dinheiro é teu.

     O tio John disse lentamente:

     - Não é só o facto de o ter guardado só para mim. Guardava-o para tomar uma pinga. Sabia que não tardaria a altura em que eu tinha de tomar uma pinga. Quando me começo a chatear, já sabem: tenho de apanhar uma bebedeira pela certa. Pensei que esse dia ainda vinha longe, mas agora... o pregador entregou-se à polícia para salvar o Tom.

     O pai acenava com a cabeça, pondo a mão aberta atrás das orelhas para ouvir melhor. Ruthie avançou como um cachorrinho, arrastando-se sobre os cotovelos e Winfield seguiu-a. Rosa de Sharon tirou com a ponta da faca um grande olho de batata. A noite aprofundava-se, tornando-se de um azul mais carregado.

     A mãe disse positiva:

     - Não vejo porque te havias tu de embebedar lá porque o pregador salvou o Tom.

     John respondeu tristemente:

     - Não sei bem o motivo. Mas sinto-me muito acabrunhado. Foi só avançar e dizer: “Fui eu.” E os guardas levaram-no. E agora não tenho remédio senão embebedar-me.

     O pai continuava meneando a cabeça.

     - Mas porque é que tu vens contar isso à gente? Eu, no teu caso ia beber, se não visse outro remédio.

     - Tinha chegado o momento de eu poder fazer uma coisa formidável para me livrar do grande pecado da minha alma - disse o tio John com tristeza. E deixei fugir a ocasião! Não a agarrei pelos cabelos. E pronto! Agora, foi-se! Escuta: - disse - dá-me dois dólares.

     O pai, relutante, meteu a mão no bolso e tirou uma carteira de couro.

     - Mas tu não precisas de sete dólares para te embebedares. Com certeza que não vais tomar champanhe, pois não?

     O tio John estendeu-lhe a nota.

     - Fica com isso e dá-me dois dólares. Dois dólares chegam bem para eu me embebedar. Não quero ter também o pecado de gastar muito dinheiro. Só gasto aquilo que tiver no bolso. Sempre assim fui.

     O pai pegou na nota suja e deu ao tio John dois dólares em moedas de prata.

     - Pega – disse - a gente faz sempre o que acha que deve fazer. Ninguém tem autoridade para te dar conselhos.

     O tio John pegou nas moedas.

     - Mas tu não me vais ficar com raiva, pois não? Sabes que tenho de fazer isto.

     - Não, santo nome de Cristo! - respondeu o pai. - Tu lá sabes o que fazes.

     - Era incapaz de me aguentar esta noite de outra maneira - disse ele. Dirigiu-se à mãe: - E tu? Vais querer-me mal por isso?

     A mãe levantou os olhos.

     - Não - disse ela brandamente - não, acho que tu deves ir.

     O tio John ergueu-se e foi andando com ar desamparado pela noite fora. Alcançou a estrada e atravessou-a em direcção à venda. À entrada do guarda-vento, tirou o chapéu, atirou-o ao chão e pisou-o com o calcanhar, como se se estivesse castigando a si mesmo. E o chapéu preto ali ficou abandonado, sujo e cheio de amolgões. Entrou na venda e dirigiu-se para as prateleiras onde se encontravam as garrafas de whisky, abrigadas por uma tela de arame.

   O pai, a mãe e as crianças tinham observado o tio John afastar-se. Rosa de Sharon cravou os olhos nas batatas, com ressentimento.

     - Coitado do John! - disse a mãe. - Adiantaria alguma coisa se eu... não, acho que não adiantava. Nunca vi um homem tão apoquentado.

     Ruthie voltou-se de lado na terra. Aproximou a cabeça da de Winfield e puxou-lhe a orelha, de modo a ficar-lhe à altura da boca.

     - Tenho que tomar uma pinga - cochichou.

     Winfield fungou de riso, apertando os lábios. As duas crianças afastaram-se sempre de gatas, retendo a respiração e com os rostos vermelhos do esforço de conterem o riso. Foram-se arrastando, a contornar a tenda. Ergueram-se num pulo e foram correndo, a gritar. Enfiaram-se no salgueiral, e, uma vez escondidos, estoiraram em gargalhadas irreprimíveis. Ruthie revirou os olhos e cambaleava, com os braços e as pernas frouxos, tropeçando comicamente, com a língua pendente da boca.

     - Estou bêbeda - disse.

     - Olha - gritou Winfield. - Olha para mim! Eu... eu sou o tio John. - Deixou pender os braços e pôs-se a trepar e a bufar, dando voltas e voltas até entontecer.

     - Não - disse Ruthie - não é assim. É assim, queres ver? Eu sou o tio John e estou bêbeda como o diabo.

     Al e Tom caminhavam calmamente pelo salgueiral, encontrando-se com as crianças, que cambaleavam como doidas. A escuridão agora começava a adensar-se. Tom estacou, fazendo um esforço para enxergar.

     - São a Ruthie e o Winfield, não são? Que diabo estão eles a fazer?

     Foram-se aproximando.

     - Vocês estão malucos? - perguntou Tom.

     As crianças imobilizaram-se, embaraçadas.

     - Nós... nós estávamos a brincar - respondeu Ruthie.

     - Mas que brincadeira tão parva! - disse Al.

     Ruthie retorquiu descaradamente:

     - É tão parva corno qualquer outra.

     Al continuou a andar, dizendo a Tom:

     - A Ruthie anda mesmo a pedir um pontapé no rabo. Anda mesmo a fazer por isso. Agora vinha mesmo a calhar.

     Ruthie, atrás dele, fez uma careta, escancarando a boca com o auxílio dos dedos indicadores; deitou-lhe a língua de fora; insultou-o por todos os modos ao seu alcance. Mas Al nem sequer se voltou. Ruthie voltou para junto de Winfield, para recomeçarem a brincadeira, mas a coisa já estava estragada. Ambos sentiram isso.

     - Vamos até ao rio dar um mergulho - sugeriu Winfield.

     Foram os dois andando pelo salgueiral, irritadíssimos contra o irmão.

     Al e Tom dirigiram-se lentamente para a tenda. Tom disse:

     - O Casy não devia ter feito aquilo. Eu devia ter adivinhado o que ele ia fazer. já outro dia se tinha queixado de não poder fazer nada pela gente. O Casy é um tipo muito engraçado, Al, anda sempre a cismar.

     - Pois se é pregador! - disse Al. - Os pregadores têm sempre coisas na cabeça.

     - Aonde te parece que tenha ido o Connie?

     - Deve ter ido aliviar a barriga...

     - Livra! Nesse caso foi para bem longe, pois está-se a demorar como o diabo!

     Chegaram ao aglomerado de tendas, mantendo-se colados às paredes de lona. junto à tenda de Floyd, ouviram chamar e pararam. Aproximaram-se da entrada da tenda e acocoraram-se. Floyd ergueu um pouco a lona.

     - Vocês vão-se embora daqui?

     - Não sei - disse Tom. - Você acha melhor?

     Floyd riu com azedume:

     - Não ouviu o que o polícia disse? Se a gente não abalar, deitam fogo a todo o acampamento. Se você pensa que esse delegado aguenta uma coisa daquelas sem mais nem menos e não vai tratar de se vingar, é porque não está bom da cabeça. Garanto que essa gente volta hoje mesmo à noite, para queimar tudo.

     - Então é melhor a gente tratar de fugir - concordou Tom. - Para aonde vai você?

     - Eu vou para o norte, já lhe disse. - Escute. Um tipo disse-me que havia aqui perto um acampamento do governo. Você, por acaso não sabe onde ele fica? - perguntou Al.

     - Ora! Aquilo deve estar completamente cheio.

     - Sim, mas onde é que fica?

     - E descer pela 99 umas doze a catorze milhas para o sul e depois virar a leste, em direcção a Weedpatch. Fica lá perto. Mas aquilo deve estar à cunha.

     - O sujeito disse-me que aquilo lá é bonito a valer - disse Al.

     - E com certeza. Dizem que as pessoas lá são tratadas corno gente e não como cães. E polícias é coisa que lá não há. Mas está cheio...

     - O que eu não sou capaz de compreender é porque é que aquele polícia armou em teso. Parece que queria à viva força armar uma zaragata. O que ele queria era aquilo - disse Tom.

    - Não sei corno é a coisa por aqui, mas no Norte conheci um polícia que era uma excelente criatura - afirmou Floyd. - Ele contou-me que na zona dele, os polícias têm de caçar gente para meter no xadrez. O sheriff ganha setenta. e cinco por dia por cada preso que meter na cadeia e só gasta vinte e cinco para lhe dar de comer. Não tendo presos, deixa de ganhar dinheiro. O tal polícia disse-me que passou uma semana sem prender ninguém, e então o sheriff disse-lhe que tratasse de arranjar presos ou então que entregasse o emblema. Também esse gajo que esteve aqui parecia disposto a prender gente de qualquer maneira.

     - Bom, então é melhor a gente ir-se embora daqui - disse Tom. - Até logo, Floyd!

     - Até logo, Tom! A gente ainda se encontra, Pelo menos, faço votos por isso.

     - Bem, adeus! - disse Al. Atravessaram o acampamento mergulhado nas trevas e foram andando em direcção à tenda dos Joads.

     O azeite crepitava, espirrando na frigideira cheia de batatas. A mãe mexia as rodelas grossas de batata com uma colher. O pai estava sentado ao lado dela, cingindo os joelhos. Rosa de Sharon encontrava-se no interior da tenda.

     - É o Tom! - gritou a mãe. - Graças a Deus!

     - A gente tem de se ir embora daqui - disse Tom.

     - Que é que há de novo?

     - O Floyd disse que os polícias vão queimar o acampamento hoje mesmo, de noite.

     - Mas porquê? Porquê, raios? - perguntou o pai. - A gente não fez nada!

     - Ai, nada! Quase que matámos um polícia!

     - Mas a culpa não é de todos.

     - Pelo que o polícia disse, vamos ser todos escorraçados daqui.

     Rosa de Sharon perguntou:

     - Viste o Connie?

     - Vi, sim - respondeu Al - Ia a caminho do rio para os lados do sul.

     - Ele... ia-se embora?

     - Não sei.

     A mãe dirigiu-se à rapariga:

     - Rosasharn, tu estás muito esquisita. Que foi que o Connie te disse?

     - Ele disse que era melhor ter ficado em casa, a estudar tractores.

     Todos se quedara m. caiados. Rosa de Sharon olhava para a fogueira e os seus olhos cintilavam à luz das chamas. As batatas assobiavam alto na frigideira. A rapariga fungou e limpou o nariz com as costas da mão.

     - O Connie não valia nada - disse o pai. - Já tinha notado isso. Só tinha garganta.

     Rosa de Sharon ergueu-se e meteu-se na tenda. Deitou-se em cima do colchão, virou-se sobre o ventre e enterrou a cabeça nos braços cruzados.

     - Acho que não vale a pena a gente ir buscá-lo - disse Al.

     O pai respondeu:

     - Para quê? Ele não presta para nada... Para que é que a gente precisa dele?

     A mãe olhou para a tenda, em cujo interior Rosa de Sharon estava deitada no colchão e avisou:

     - Pschiu! Não digam isso!

     - Porque não? Se ele não prestava... - insistiu o pai. - Era um desses homens que vivem a falar no que vão fazer. E nunca fazem nada. Enquanto ele estava com a gente, eu não dizia nada, mas, agora que ele se foi...

     - Chiu! - fez a mãe com brandura.

     - Chiu porquê, santo Deus?! Porque é que me hei-de calar. Ele pôs-se a mexer, ou não?

     A mãe mexeu as batatas com a colher, e o azeite fervente espirrou. Pôs mais lenha na fogueira e as labaredas vivas ergueram-se, iluminando a tenda; depois disse:

     - Mas a Rosasharn vai ter uma criança e a metade dessa criança é do Connie. Não faz bem a uma criança criar-se no meio de gente que diz que o pai não servia para nada.

     - Talvez seja melhor mentir, não? - perguntou o pai.

     - Isso também não - interrompeu a mãe. - Vamos fazer de conta que ele morreu. Tu não dirias mal dele se ele tivesse morrido, pois não?

     Tom interveio:

     - Eh lá, que é que vocês estão a dizer? A gente ainda não sabe se o Connie se foi embora. Não podemos perder tempo a conversar. Vamos tratar de comer e sair daqui para fora.

     - Vamo-nos embora? Mas chegámos agora mesmo... - A mãe olhou-o na escuridão levemente atenuada pela luz avermelhada das chamas.

     Tom explicou com paciência:

     - Vão lançar fogo ao acampamento esta noite, mãe. A senhora sabe que eu não sou daqueles que olham para essas coisas de braços cruzados, e o pai e o tio John também não. Pegávamo-nos à pancada, e eu não posso arriscar-me a ser de novo preso. Hoje ia acontecendo isso mesmo, se o pregador se não tivesse metido no caso.

     A mãe continuava a mexer as batatas que fritava no azeite quente. Por fim, decidiu-se:

     - Bom, então vamos. Vamos comer depressa e partir.- E foi distribuindo os pratos de estanho.

     - E o John? - perguntou o pai.

     - Onde está o tio John? - repetiu Tom.

     O pai e a mãe mantiveram-se calados um momento.

     - Foi apanhar uma bebedeira - disse o pai.

     - Deus do céu! - exclamou Tom. - Escolheu uma bonita hora! Aonde é que ele foi?

     - Não sei - respondeu o pai.

     Tom levantou-se.

     - Ouçam - disse. - Comam todos e vão pondo as coisas no camião. Eu vou procurar o tio John. Deve estar naquela taberna do outro lado da estrada.

     Tom saiu à pressa. Diante de quase todas as tendas e barracas ardiam pequenas fogueiras e o brilho das chamas projectava-se no rosto dos homens e das mulheres esfarrapados, e nas crianças acocoradas. Nalgumas tendas, a claridade de uma lâmpada de querosene brilhava através da lona, agigantando a sombra das pessoas na tela.

     Tom galgou o atalho poeirento e atravessou a estrada em direcção à tabernica. Parou à entrada do guarda-vento, lançando um olhar para o interior. O dono da loja, um homenzinho encanecido, de bigodes em desalinho e olhos aguados, apoiava-se ao balcão, lendo o jornal. Os seus braços magros estavam nus. Usava um comprido avental branco. Atrás dele e à sua volta havia latas de conserva armadas em montes, pirâmides e muralhas. À entrada de Tom, o homem cerrou os olhos, como se estivesse fazendo a pontaria com uma espingarda.

     - Boa noite - perguntou - perdeu alguma coisa?

     - Perdi o meu tio - disse Tom.- Ou então foi ele que se perdeu, ou coisa semelhante.

     O homem grisalho esboçou uma expressão em que havia simultaneamente surpresa e aborrecimento. Levou delicadamente um dedo à ponta do nariz e ficou-se a esfregá-lo e a coçá-lo.

     - Vocês andam sempre a perder a família - disse. - Mais de dez vezes ao dia, entra aqui um tipo a dizer: “Se o senhor vir um homem que se chama assim ou assado, e que tem uma cara assim ou assado, faça o favor de lhe dizer que a gente foi para o Norte.” E isto constantemente.

     Tom riu.

     - Muito bem, se o senhor vir um ranhoso de um rapaz chamado Connie um pouco parecido com um coiote, diga-lhe que vá para o inferno e que a gente já foi para o Sul. Mas eu não ando à procura desse tipo. Procuro um sujeito aí de uns sessenta anos, de calças pretas, já com cabelos brancos. Ele não esteve aqui a comprar whisky?

     Os olhos do dono da taberna brilharam.

     - Ah... já sei! Esteve aqui, sim, senhor. Nunca vi uma coisa assim! Antes de entrar na venda, atirou o chapéu ao chão e pisou-o à doida. Tenho aqui o chapéu. Guardei-o. - E tirou o chapéu sujo e amarrotado da parte inferior do balcão.

     Tom pegou no chapéu.

     - É o dele, é. Obrigado.

     - Ele comprou duas garrafinhas de whisky e não disse coisa nenhuma. Tirou a rolha e meteu o gargalo na boca. Mas agora a lei não permite que se beba nas vendas. Por isso, eu disse-lhe: “Olhe que é proibido beber aqui dentro. Tem de ir beber lá para fora.” Pois sim, senhor! Saiu e ia jurar que esvaziou as garrafas em quatro goladas. Só o vi atirar fora as garrafas vazias e encostar-se à porta. Os olhos dele já estavam bem carregados. Ele disse-me: “Muito obrigado.” E foi-se embora. Nunca na minha vida vi um homem beber daquela maneira.

     - Foi-se embora? E para que lado? Tenho de o encontrar.

     - Olhe, por acaso, sei para onde foi. Nunca vi um tipo beber daquela maneira e, por isso, estive sempre de olhos pregados nele. Foi para os lados do Norte. Os faróis de um carro iluminaram-no a certa altura e ele desceu para a valeta. As pernas dele parecia que já se não aguentavam lá muito bem. Não deve estar longe, não, senhor da maneira como ele ia...

     - Bem, muito obrigado. Vou ver se o encontro - disse Tom.

     - Então não quer levar o chapéu dele?

     - Quero, quero! Vai precisar dele. Bem, muito obrigado, sim?

     - Que é que ele tem? - perguntou o homem grisalho. - Pareceu-me que não estava a gostar lá muito da bebida. Palavra que não.

     - Não é nada. Ele é assim mesmo, meio esquisito. Bem, boa noite. E, se o senhor vir aquele patife do Connie, pode dizer-lhe que a gente foi para o Sul.

     - Isso é difícil. já tenho tantos recados na cabeça, que quase me não lembro de nenhum.

     - Bom, então não se rale - replicou Tom. E passou o guarda-vento, levando o chapéu preto do tio John, todo sujo e amarrotado.

     Atravessou a estrada e foi caminhando pela berma. A seus pés estendia-se Hooverville, com as pequenas fogueiras luzindo na escuridão e as lanternas brilhando através das tendas. Vinham, não se sabia de onde, os sons de uma viola em lentos acordes, lentos, sem sequência, como se alguém estivesse a praticar. Tom parou um instante a escutar; depois prosseguiu vagarosamente o seu caminho à beira da estrada, e, de vez em quando, tornava a parar, pondo-se à escuta. Andara cerca de um quarto de milha quando ouviu, por fim, aquele que procurava. De sob um talude, vinha o som de uma voz desafinada e grossa. Tom inclinou a cabeça para a frente, tentando ouvir melhor.

     E a voz monótona cantava: “Dei o meu coração a Jesus; agora Jesus leva-me consigo. Dei a minha alma a Jesus; agora Jesus é o meu lar”.- O cântico degenerou num murmúrio e extinguiu-se por completo. Tom desceu o talude a correr, em direcção aos sons. Daí a pouco parava a escutar. Os sons ouviam-se mais próximo e, no mesmo cântico lento e sem harmonia: “Oh, na noite em que Maggie morreu, ela chamou-me e deu-me as suas calças, as calças velhas, de flanela vermelha que ela sempre usara. As calças estavam puídas nos joelhos... “

     Tom avançou cautelosamente. Divisou um vulto negro sentado no chão, e, aproximando-se, sentou-se ao lado dele. O tio John ergueu a garrafa e o líquido borbulhou no gargalo.

     Tom disse com calma:

     - Eh, espere aí. E para mim, não há nada?

     O tio John virou a cabeça:

     - Quem és tu?

     - Então não querem lá ver que o senhor já se esqueceu de mim? O senhor já tomou quatro goles e eu só um.

     - Não, Tom, não brinques comigo. Eu estou aqui sozinho. Tu nunca aqui estiveste.

     - Bom, mas agora estou, garanto-lhe. O senhor não me quer dar uma pinguinha?

     O tio John tornou a erguer a cabeça e o whisky borbulhou. Abanou depois a garrafa vazia.

     - Acabou-se - disse. - Era bem bom que eu morresse agora. Ter uma morte terrível ou, pelo menos, morrer um bocadinho. Tem de ser! Sinto-me tão cansado! Muito cansado. Q2icia sabe? Se eu pudesse não acordar mais, nunca mais!- A voz dele mantinha a mesma entoação monótona. - Vou usar uma coroa, uma coroa de ouro autêntica.

     Tom prosseguiu:

     - Tio John, escute. A gente agora tem de partir. O senhor vem comigo e depois pode dormir à vontade, lá em cima do camião.

     John sacudiu a cabeça.

     - Não, vai tu sozinho. Eu não saio daqui. Não vou, tenho de ficar aqui. Não vale a pena ir. Não sou útil a ninguém. a arrastar-me com os meus pecados no meio de gente decente. Não, não vou.

     - Vamos, tio John. A gente não pode ir sem o senhor.

     - Vai tu só. Deixa-me. Eu não presto, não presto para nada, ouviste? Vivo a sujar toda a gente com os meus pecados.

     - O senhor não é mais pecador do que qualquer outro. John aproximou a cabeça da de Tom e piscou um olho com gravidade. Tom via-lhe os traços fisionómicos à luz das estrelas.

     - Ninguém sabe dos meus pecados, ninguém: só Deus. Ele é que sabe.

     Tom pôs-se de joelhos. Colocou a palma da mão na testa do tio John, que ardia e estava seca. O tio John afastou a mão do sobrinho desajeitadamente.

     - Então, vamos - suplicou Tom. - Venha, tio John.

     - Não vou, pronto, já disse. Estou cansado. Vou ficar aqui mesmo. Aqui mesmo, pois então?

     Tom encontrava-se muito próximo dele. Encostou o punho ao queixo do tio John. Traçou no ar duas pequenas voltas, calculando a distância, e afastou o braço do ombro. O golpe foi desferido com esmerada perfeição. O maxilar do tio John fechou-se com um estalido seco, e ele caiu de costas, tentando ainda erguer-se. Mas Tom já se ajoelhava sobre o corpo do tio, e, quando ele conseguiu firmar-se num dos cotovelos, vibrou-lhe novo golpe. O velho caiu e ficou imóvel.

     Tom levantou-se e, debruçando-se, ergueu o corpo frouxo e vacilante do tio John e pô-lo ao ombro. Cambaleou um pouco sob aquele peso morto. As mãos caídas do tio John batiam-lhe nas costas, enquanto subia arquejante para a estrada. Um carro passou por ele e os faróis lançaram uma luz brilhante, mostrando-o com o homem baloiçando-lhe às costas. O carro diminuiu por um instante a marcha; 'depois, retomou andamento com um rugido do motor.

     Tom ofegava ao chegar a Hooverville, depois da marcha pela estrada até ao caminhão dos Joads. John voltava a si, agitando-se fracamente. Tom depô-lo cuidadosamente no chão.

     O acampamento havia sido levantado durante a sua ausência. Al passava as trouxas para o caminhão. A lona estava pronta para ser estirada por cima da carga.

     - Que bebedeira desgraçada! - exclamou Al.

     Tom desculpou-o:

     - Coitado! Tive de lhe dar um soco e derrubá-lo, senão, não vinha comigo.

     - Não o feriste, hein? - perguntou a mãe.

     - Acho que não. Ele está a vir a si.

     O tio John jazia no chão. Parecia muito fraco e doente. Vómitos sacudiam-lhe o corpo frequentemente.

     - Guardei um prato de batatas para ti, Tom - disse a mãe.

     Tom soltou uma curta risada.

     - Palavra que não tenho vontade nenhuma de comer.

     O pai gritou:

     - Está tudo pronto. Al, amarra a lona!

     O camião estava carregado e pronto a partir. O tio John havia adormecido. Tom e Al içaram-no para cima da carga, enquanto Winfield, nas traseiras, imitava os gestos do tio John quando vomitava e Ruthie tapava a boca com a mão, para não desatar às gargalhadas.

     - Pronto! - repetiu o pai.

     Tom perguntou:

     - Onde está a Rosasharn?

     - Está aí - respondeu a mãe. - Rosasharn, vem cá. Vamo-nos embora.

     A rapariga estava sentada no chão, completamente imóvel. Tinha o queixo caído sobre o peito. Tom dirigiu-se a ela.

     - Anda - disse-lhe.

     - Não vou! - respondeu ela, sem sequer erguer a cabeça.

     - Tens de vir.

     - Quero o Connie. Só saio daqui com ele. Três carros deixavam o acampamento, subindo para a estrada: carros velhos, carregados de objectos para acampar e de gente. Arrastaram-se pelo barranco acima e afastaram-se, perfurando a escuridão com os faróis.

     - O Connie há-de encontrar-nos depois - disse Tom. - Deixei na venda um recado para ele. Mandei-lhe dizer para onde vamos. Ele há-de dar connosco depois.

     A mãe também se aproximou, ficando ao lado de Tom.

     - Anda, Rosasharn, anda, querida - disse ela com ternura.

     - Quero esperar pelo Connie.

     - Não podemos esperar por ninguém.

     A mãe inclinou-se, cingiu a filha com os braços e ajudou-a a levantar-se.

     - Ele depois vai ter com a gente - disse Tom. - Não te preocupes. Ele vai ter com a gente.

     Foram caminhando ao lado de Rosa de Sharon.

     - Pode ser que ele tenha ido comprar os livros para estudar - exclamou a rapariga. - Talvez ele quisesse fazer-nos uma surpresa.

     A mãe respondeu-lhe:

     - Sim, pode ter sido isso. Conduziram-na até ao caminhão e ajudaram-na a subir. A rapariga meteu-se debaixo da lona e desapareceu na toca de sombra.

     O homem de barbas, que morava na barraca de tecto de ervagem, aproximou-se, postando-se timidamente ao lado do camião. Parou, numa atitude de expectativa, com as mãos atrás das costas.

     - Vocês não deixam aqui nada que preste? - inquiriu finalmente.

     - Que eu saiba, não. A gente não tem nada que deixar - disse o pai.

     - Você não se vai embora também? - perguntou Tom.

     O barbudo encarou-o durante algum tempo.

     - Não - disse por fim.

     - Mas vão lançar fogo ao acampamento.

     Os olhos inquietos fixaram-se no chão.

     - Eu sei. Eles já têm feito isso muitas vezes.

     - Mas então por que diabo não se vai embora?

     Os olhos desvairados ergueram-se por um instante, para se tornarem a baixar, e a luz moribunda das chamas reflectia-se muito vermelha.

     - Sei lá! Levamos tanto tempo a arrumar as coisas!

     - Se eles queimarem tudo, vocês ficam sem nada.

     - Eu sei. Vocês não deixam nada que preste?

     - Não, a gente já fez a limpeza; levamos tudo - disse o pai.

     E o homem afastou-se com passos hesitantes.

     - Que é que ele tem? - perguntou o pai.

     - A culpa é da polícia - respondeu Tom. - Disseram-me que tem a mania da perseguição. Deve ter apanhado muita pancada na cabeça.

     Outra caravana deixava o acampamento, galgando o barranco e rodando estrada fora.

     - Vamos, pai, vamo-nos embora - disse Tom. - O senhor, eu e o Al vamos sentados na frente. A mãe pode ir em cima da carga. Não, mãe, a senhora vai no meio. - Tom meteu a mão no assento e retirou uma grande chave inglesa. - Al, tu vais sentar-te lá atrás. Toma, pega nisto. Se alguém quiser saltar para o camião, dás-lhe com isso na cabeça.

     Al pegou na chave e trepou para o carro. Sentou-se com as pernas cruzadas, segurando na mão a chave inglesa. Tom tirou de baixo do assento o macaco e colocou-o no chão, ao lado do pedal do travão.

     - Pronto! - disse. - Mãe, agora suba e sente-se aí no meio.

     - E eu não fico com coisa nenhuma? - perguntou o pai.

     - O senhor pode pegar no macaco - disse Tom. - Mas queira Deus que a gente não precise dele.

     Premiu o arranque e o calhambeque barulhento começou a trabalhar. O motor pegou, esmoreceu e tornou a pegar. Tom acendeu as luzes do camião e deixou o acampamento em primeira. As luzes embaciadas apontavam nervosamente a estrada. Subiram para a faixa de cimento e foram rodando em direcção ao sul. Tom disse:

     - Há horas em que um tipo fica completamente transtornado.

     A mãe interrompeu-o:

     - Tom, tu disseste... tu prometeste-me que não serias assim. Prometeste...

     - Eu sei, mãe, e estou a esforçar-me por cumprir. Mas esses malvados desses polícias! A senhora já viu algum sheriff que não tenha um rabo de padeiro? E mexem o rabo de propósito, como que para fazer balançar o revólver. Mãe - continuou - se fosse a lei que estivesse contra nós, vá lá. Mas não é a lei. Eles torturam-nos a alma; querem que a gente viva a bajulá-los e que nos arrastemos pelo chão como cães, com o rabo entre as pernas. Eles querem desmoralizar-nos. Santo Deus! Mãe, ainda há-de chegar o dia em que um homem só poderá ser um tipo decente quando partir os dentes a um polícia. Eles o que querem é fazer-nos perder a dignidade!

     A mãe respondeu:

     - Tu prometeste, Tom. O pobre do Floyd foi assim que começou. Eu conheci a mãe dele. E eles deram conta do rapaz...

     - Estou a esforçar-me por manter a calma, mãe. Deus sabe que assim é. Mas a senhora não quer com certeza que eu ande a rojar-me no chão como uma cadela que apanhou pancada, pois não?

     - Estou a rezar, Tom, a pedir a Deus que evites essas coisas. A nossa família está a desmantelar-se. Tens que te dominar.

     - Vou tentar, mãe. Mas é duro a gente dominar-se quando um desses rabos de padeiro nos provoca. Se fosse a lei que estivesse contra nós, era diferente. Mas lançar fogo aos acampamentos não é da lei.

     O caminhão ia avançando aos solavancos. À frente, via-se uma pequena fila de luzes vermelhas pela estrada fora.

     - Parece-me que é um desvio.

     Diminuiu a marcha e parou. Imediatamente um grupo de homens cercou o caminhão. Estava armado de picaretas e de carabinas. Os homens traziam capacetes, mas havia alguns com bonés da Legião Americana. Um dos homens encostou-se à janela, do caminhão. Exalava um bafo quente, a whisky.

     - Para onde é que vocês querem ir? - Aproximou o rosto avermelhado do de Tom.

     As faces deste crisparam-se. Baixou a mão e, às apalpadelas, segurou no macaco. A mãe travou-lhe do braço com firmeza. Tom disse:

     - Está bem, mãe... - e então a sua voz adquiriu um tom de servilidade, tornando-se chorosa: - A gente não é daqui - disse. - Disseram-nos que havia trabalho num sítio chamado Tulare:

     - Vocês vão por caminho errado, diabo! Não queremos aqui nenhum Okie dos diabos, ouviu?

     Tom sentia os ombros e os braços retesados e um arrepio sacudiu-lhe o corpo. A mãe apertou-lhe o braço com mais força.

     O caminhão estava rodeado à frente por homens armados. Alguns de entre eles, para terem uma aparência militar, usavam fardas e cingiam boldriés.

     Tom lamuriou:

     - Então por onde é que a gente deve ir, senhor?

     - Dê meia volta e siga para os lados do Norte. E não volte cá antes da safra do algodão!

     Todo o corpo de Tom estremeceu.

     - Sim, senhor - disse.

     Voltou o carro e foi andando pelo caminho que acabara de percorrer. A mãe soltou-lhe o braço, acariciando-o com brandura. E Tom procurou reter um grande soluço abafado.

     - Não te rales - disse a mãe. - Não te rales.

     Tom assoou-se para fora do carro e limpou os olhos com a manga do casaco.

     - Esses filhos da mãe!

     - Fizeste bem - disse a mãe com ternura.

     O camião penetrou numa estrada lateral, que não era cimentada e avançou por ela cerca de cem jardas. Então apagou as luzes e desligou o motor. Saiu do carro com o macaco na mão.

     - Aonde vais? - perguntou a mãe.

     - Vou dar uma vista de olhos por aqui. A gente não vai para o Norte.

     As lanternas encarnadas movimentavam-se na estrada. Tom viu-as passar pelo entroncamento da estrada lateral com a estrada principal e sumirem-se nesta. Momentos depois, chegou-lhes aos ouvidos barulho de gritos, seguido de um intenso clarão que se ateara lá para os lados de Hooverville. O clarão cresceu de intensidade, espraiou-se e ouviram-se estrondos. Tom tornou a subir para o caminhão. Deu uma volta e regressou pela estrada lateral, com as luzes do veículo apagadas. Novamente na estrada principal, tomou a direcção do Sul e acendeu os faróis.

     A mãe perguntou timidamente:

     - Aonde vamos, Tom?

     - Para o Sul - foi a resposta. - Não vou consentir que esses bandidos nos enxotem daqui sem mais nem menos. Não pode ser! Vamos contornar a cidade mas não a atravessamos.

     - Sim, mas para aonde é que a gente vai? - O pai falou pela primeira vez. - Só queria saber para aonde vamos.

     - Vamos à procura daquele acampamento do governo - disse Tom. - Um tipo informou-me de que não há lá polícias. Mãe, eu tenho de os evitar; estou com medo de acabar por dar cabo de um.

     - Calma, Tom - aconselhou a mãe num tom apaziguador. - Calma, Tommy. Tu já procedeste bem uma vez. Vê se fazes sempre assim.

     - Sim, e aos poucos vou perdendo a vergonha.

     - Calma! Tens de ter paciência. Olha, a nossa gente ainda há-de existir quando eles morrerem. Nós viveremos, Tom, havemos de existir sempre. Ninguém nos pode destruir. Nós somos o povo; vamos sempre para diante.

     - Sim, mas apanhando sempre também.

     A mãe riu

     - Sim, lá isso também é verdade. Talvez seja por isso que somos tão resistentes. Aquela gente rica nasce e vai-se, e os filhos morrem antes de tempo. Acaba-se-lhes a raça. Mas nós, Tom, nós continuamos. Não percas a calma, Tom, outros tempos hão-de vir!

     - Como é que a senhora sabe disso?

     - Sei lá! Só sei que sei.

     Iam entrando na cidade, e Tom lançou-se numa rua lateral, evitando assim a zona do centro. À luz dos candeeiros olhou o rosto da mãe - um rosto tranquilo, com uma estranha expressão nos olhos, parecidos com os olhos eternos de uma estátua. Tom estendeu a mão e tocou levemente no ombro dela num gesto irreprimível. Depois, retirou a mão.

     - Nunca na minha vida ouvi a senhora falar tanto - disse.

     - É que nunca tive tanta razão para falar - replicou a mãe. Seguindo as ruas desviadas, contornou a cidade e depois voltou para trás. Num entroncamento via-se a placa indicando a estrada 99. Continuaram rumo ao Sul.

     - Bem, de qualquer maneira, não conseguiram atirar connosco para o Norte - disse Tom. - A gente vai para onde quiser, nem que seja de rastos.

     As luzes esmaecidas incidiam sobre a larga e negra estrada que se desenrolava à sua frente.

    

     Os homem errantes, sempre em busca de alguma coisa, haviam-se tornado nómadas. As pessoas que até aí tinham vivido no seu pedaço de terra, que até então tinham vivido e morrido nos seus quarenta acres, que haviam comido deles ou neles passado fome, todas essas famílias tinham agora o Oeste inteiro, para nele vaguearem à vontade. E corriam pelo país fora, à procura de trabalho. As estradas estavam metamorfoseadas em caudais de homens e nas valas, à beira das estradas, formigavam multidões de homens. Atrás deles vinham outros a caminho. As grandes estradas formigavam de povo em marcha. No oeste central e no sudoeste vivia um povo simples e agrário, que não era influenciado pela indústria, um povo que nunca empregara máquinas nas suas propriedades, nem conhecia o poder ou o perigo das máquinas em mãos de particulares. Era um povo que ainda não sentira as contradições da indústria; um povo de sentidos ainda bastante penetrantes para perceber o ridículo da vida industrial-

     E, de repente, as máquinas expulsaram esse povo e esse povo enxameou nas estradas. A movimentação alterou-lhe a natureza; as estradas, os acampamentos, o espectro da fome e finalmente esta última alteraram-lhe a natureza. As crianças sem comida, alteraram-na; alteraram-na as viagens intermináveis. Era um povo migrante. Alterava-o a hostilidade do ambiente e essa hostilidade caldeava-o, era a hostilidade que costumava impelir pequenas cidades a formar grupos armados, como que para repelir um invasor, a formar bandos munidos de picaretas, grupos de empregados e de patrões armados de carabinas, protegendo-se contra a sua própria gente.

     Reinou o pânico no Oeste, quando se multiplicaram os homens nas estradas. Os homens receavam pelas suas propriedades. Homens que nunca tinham tido fome viam os olhos dos esfaimados. Homens que nunca na sua vida tinham sentido verdadeira necessidade de qualquer coisa viam a chama da necessidade arder nos olhos dos homens das estradas. E os homens das cidades e dos campos suburbanos que rodeavam as cidades preparavam a defesa. Tinham estabelecido que eles é que eram bons e que os outros - os invasores - eram maus, como fazem sempre os homens antes dos combates. E diziam: “São uns malditos duns Okies, uns ignorantes imundos. São uns degenerados, uns maníacos sexuais. Uns ladrões, esses Okies danados, que roubam tudo o que encontram. Não têm a consciência do direito de propriedade.” E esta última afirmação era realmente verdadeira, pois, como pode um homem que nada possui compreender as preocupações dos que possuem alguma coisa? E os que se defendiam, diziam: “São uns imundos que espalham epidemias. Não podemos consentir que os filhos deles frequentem a mesma escola que os nossos. Eles são estranhos. O que é que tu dirias se a tua irmã fosse passear com um deles?”

     A gente das cidades esforçava-se por adoptar ares de crueldade. Formava grupos e companhias e armava-os; armava-os com cassetetes, bombas de gás e carabinas. A terra é nossa - diziam. É bom a gente não perder de vista esses danados desses Okies. E as terras não pertenciam aos homens armados, mas estes pensavam que eram os donos das terras. E os empregados, que se exercitavam à noite, nada possuíam de seu e os donos de lojas insignificantes não possuíam outra coisa além de dívidas. Mas até um emprego é alguma coisa; até uma dívida é alguma coisa. O empregado pensava: “Ganho quinze dólares por semana; talvez um desses malditos Okies se contentasse com doze.” E o patrão pensava: “Não posso competir com um homem que não tem dívidas.”

     E os homens em êxodo espraiavam-se pelas estradas e havia fome e miséria nos seus olhos. Não empregavam argumentos nem possuíam um sistema certo de agir; tinham apenas o seu número e as suas necessidades. Quando aparecia trabalho para um homem, havia logo dez a disputá-lo, lutavam por ele, aceitando uma paga miserável. “Se aquele tipo trabalha por trinta cents, eu trabalho por vinte e cinco.”

     “Se ele trabalha por vinte e cinco, eu trabalho por vinte.”

     “Não, eu... eu, que tenho fome. Trabalho nem que seja por quinze.” “Trabalho mesmo só pela comida. Os meus filhos! Só queria que o senhor os visse! Estão com o corpo cheio de furúnculos, estão que nem podem andar. Dei-lhes frutas podres, apanhadas do chão; incharam terrivelmente. Eu; eu trabalho até por um pedacinho de carne.”

     E isso causava satisfação, pois, embora os salários diminuíssem, os preços dos géneros mantinham-se altos. Os grandes proprietários estavam contentes e mandavam distribuir ainda mais impressos para atrair mais gente. Os salários baixavam e os preços mantinham-se altos. Não tarda muito que não haja de novo escravos no nosso país.

     Foi então que os grandes proprietários e as companhias inventaram um novo método. Um grande proprietário comprava uma fábrica de frutos de conserva. E, quando as peras e os pêssegos amadureciam, ele descia o preço das frutas abaixo do custo da produção. Como fabricante de frutas de conserva, ele pagava a si mesmo um preço baixo pelas frutas e, mantendo alto o preço das frutas em conserva, auferia óptimos lucros. Os pequenos proprietários, que não possuíam fábricas de frutas de conserva, perdiam as suas propriedades, que eram absorvidas pelos grandes proprietários, pelos bancos e pelas companhias, às quais pertenciam essas fábricas. Com o tempo, diminuía o número das propriedades. Os pequenos proprietários não tardavam a mudar-se para as cidades por um certo tempo, onde esgotavam o crédito, os amigos, as relações. Depois, acabavam por sair também para as estradas. E as estradas formigavam de homens ávidos de trabalho, prontos a assassinar por causa do trabalho.

     As companhias e os bancos trabalhavam para a sua própria ruína, mas ignoravam-no. Os campos estavam prenhes de fruta, mas nas estradas marchavam homens que morriam de fome. Os celeiros estavam repletos, mas as crianças cresciam raquíticas e inchava-lhes o corpo com as pústulas da pelagra. As grandes companhias ignoravam quão estreita é a linha divisória entre a fome e a ira. E o dinheiro, que podia ter sido empregado na melhoria de salários, gastava-se em bombas de gás, em carabinas, em agentes e espiões, em listas negras e exércitos bélicos. Nas estradas, os homens deslocavam-se como formigas, à procura de trabalho e de comida.

     E a ira começou a fermentar.

    

     Já era tarde quando Tom Joad atravessou um atalho, à procura do acampamento de Weedpatch. Em volta, viam-se poucas luzes e apenas um clarão indicava no firmamento a direcção de Bakersfield. O caminhão rodava vagarosamente; de vez em quando, gatos bravos atravessavam o caminho. Numa encruzilhada, surgiu um pequeno aglomerado de casas de madeira pintada de branco.

     A mãe, sentada à frente, dormitava e o pai vinha há muito calado e taciturno.

     Tom cortou o silêncio:

     - Não sei onde fica esse acampamento. Talvez seja melhor esperar até de madrugada e perguntar a alguém.

     Estacionou ao pé de um marco do caminho e, no mesmo. instante, parou outro carro na encruzilhada. Tom inclinou-se para fora do veículo.

     - Olá – disse - o senhor não sabe onde fica o acampamento do governo?

     - Aí mesmo em frente.

     Tom atravessou a estrada e foi andando em frente. Passadas algumas centenas de metros, parou novamente. Uma alta cerca de arame marginava a estrada e, logo a seguir, diante de um largo portão abria-se um caminho, pelo qual Tom enveredou.

     O veículo deu um salto e depois caiu com estrondo sobre as rodas.

     - Meu Deus! - exclamou Tom. - Não vi essa corcova.

     Um guarda saiu do alpendre e veio direito ao caminhão, encostando-se a ele.

     - Para a outra vez já faz a coisa mais devagar.

     - Mas para que é isto logo à entrada?

     O guarda, riu.

     - É que há muitas crianças aqui que costumam andar para aí a brincar. Se apenas se avisam os motoristas para andarem devagar, não ligam nenhuma. Mas, se se lembrarem deste montão de terra aqui à entrada, garanto que já entram com menos pressa.

    - Ai, é? Oxalá não tenha quebrado alguma peça. Ouça: há aí lugar para nós?

     - Dá-se um jeito. Quantos são?

     Tom pôs-se a contar pelos dedos.

     - Eu, o pai, a mãe, o Al, a Rosasharn, o tio John, a Ruthie e o Winfield. Estes dois são ainda crianças.

     - Bem, parece-me que há lugar para todos. Vocês trouxeram coisas onde possam dormir?

     - Temos camas e uma barraca grande.

     O guarda subiu para o estribo do camião.

     - Vá andando até ao fim desta fila aqui e depois corte à direita. Vocês vão ficar no departamento sanitário número 4.

     - O que é isso?

     - Chuveiros, casas de banho e tanques para lavar a roupa.

     - Aqui há água corrente? - perguntou a mãe.

     - Claro que há.

     - Oh, graças a Deus! - exclamou ela.

     Tom ladeou a fila de tendas mergulhadas na obscuridade. No edifício sanitário ardia uma lamparina pequena.

     - Pode parar - disse o guarda.- E um bom sítio e acaba de ficar vago.

     Tom desligou o motor do camião.

     - Está bem aqui?

     - Está. Agora você deixe os outros tirarem as coisas do caminhão, enquanto eu faço o registo. Preciso de ir dormir. Amanhã de manhã, o comité aqui do acampamento vem fazer-lhes uma visita para vocês explicarem umas coisas.

     Tom baixou os olhos.

     - Polícia? - perguntou.

     O guarda riu.

     - Não, nada de polícia... A gente tem as nossas próprias autoridades. Aqui somos nós quem elege a nossa polícia. Bom, venha daí.

     Al saltou do caminhão e pôs-se a andar por ali.

     - Vamos ficar aqui?

     - Vamos, sim - disse Tom. - Ajuda o pai a descarregar as coisas enquanto eu vou ao escritório.

     - Mas cuidado, não façam barulho - recomendou o guarda. - Há muita gente a dormir.

     Tom seguiu-o na escuridão. Subiu os degraus do escritório e penetrou numa salita onde havia apenas uma escrevaninha velha e uma cadeira. O guarda sentou-se à escrevaninha e pegou numa ficha em branco.

     - Nome?

     - Tom Joad.

     - Ali aquele homem é seu pai?

     - É.

     - Qual é o nome dele?

     - Tom Joad, também.

     O interrogatório continuou. De onde são, há quanto tempo estão neste estado, onde trabalharam até agora, etc. O guarda ergueu os olhos:

     - Não somos metediços, mas precisamos de saber certas coisas.

   - É natural - disse Tom.

     - Bem... vocês têm dinheiro?

     - Muito pouco.

     - Então não estão sem recursos?

     - Temos muito pouco dinheiro. Porquê?

     - Olhe, aqui paga-se um dólar por semana, mas vocês podem trabalhar para pagar a dívida que contraírem. Transportar o lixo, limpar o acampamento e outras coisas semelhantes.

     - Bom, então a gente vai trabalhar.

     - Está bem. Amanhã vocês vão ver o comité, para saberem como se vive aqui no acampamento. Vão conhecer o código.

    - Escute, o que é isso de comité? - perguntou Tom.

     O guarda recostou-se na cadeira.

     - E uma coisa muito bem organizada. Aqui há cinco departamentos sanitários. Cada um elege uma pessoa para formar o departamento central. É o comité que executa as leis. O que eles determinam tem de ser cumprido.

     - Mas, e se eles não tiverem razão?

     - Bem, a gente deixa de votar nele com a mesma facilidade com que o elegeu. Mas eles têm feito coisas boas. Quer ouvir uma? Você conhece aqueles pregadores da seita dos Holy Rollers (Pequena seita religiosa norte-americana, cujo culto se caracteriza pelo exagero da excitabilidade.) que vivem a perseguir toda a gente com as suas orações e colectas, não conhece? Pois bem. Um dia, eles quiseram pregar aqui no acampamento. Havia uma porção de velhos que os queria ouvir. Então o comité teve de decidir. Fizeram uma sessão e quer ver como resolveram o caso? Disseram assim: “Qualquer pregador pode pregar neste acampamento. Mas nenhum pode fazer colectas.” Desde então, nenhum pregador tornou a aparecer por cá. E os velhos ficaram tristes com isso.

     Tom riu.

     - Você quer dizer - perguntou - que é gente daqui mesmo, como nós, quem administra o acampamento?

     - Pois claro! E corre tudo multo bem, graças a Deus.

     - E não há nenhum polícia?

     - Não. O comité central mantém a ordem e elabora o código E que deve regular a vida no acampamento. Há ainda um comité senhoras. Elas amanhã irão visitar a sua mãe. Cuidam das crianças e dos departamentos sanitários. Se a sua mãe não trabalhar, tem de cuidar dos filhos das mulheres que trabalham. E, se ela encontrar trabalho, então serão as outras quem tomará conta dos filhos dela. Fazem a costura e vem aqui uma professora ensiná-las. Uma data de coisas assim.

     - Então você diz que não há nenhum polícia no acampamento?

     - Não, senhor. Nada disso. Aqui a polícia só entra com ordem especial.

     - E se alguém se embriaga ou arma, em valentão e tenta brigar? Que é que acontece?

     O guarda furou o mata-borrão com a ponta do lápis.

     - Bem, a primeira vez é advertido pelo comité central. À segunda sofre uma advertência grave e, à terceira, é expulso do acampamento.

     - Meu Deus, quase que é inacreditável! Ainda a. noite passada, a polícia e uns tipos que usavam bonés pequenos lançaram fogo àquele acampamento à beira do rio.

     - Aqui não podem entrar - disse o guarda. - O que eles fazem às vezes é patrulhar do lado de fora do acampamento. Principalmente quando há baile.

     - Baile?! Meu Deus, será possível?

     - Sim, senhor. Os melhores bailes da região são aqui, todos os sábados.

     - Porque será que não existem mais sítios como este?

     O guarda lançou-lhe um olhar sombrio.

     - Bem, isso tem você de adivinhar. E agora é melhor ir dormir.

     - Boa noite - disse Tom. - A minha mãe vai gostar disto. Há muito tempo que ela não é tratada como deve ser.

     - Boa noite - disse o guarda. - Agora trate de dormir. O pessoal aqui do acampamento costuma acordar cedo.

     Tom atravessou a rua formada por duas filas de tendas. Os seus olhos já se tinham acostumado à luz das estrelas. Notou que as filas de tendas eram bem niveladas e que ao pé delas não havia imundície. O chão da rua tinha sido varrido e regado. O ressonar dos que dormiam vinha de dentro das tendas. O acampamento inteiro zumbia e ressonava. Tom caminhava vagarosamente. Aproximou-se do departamento sanitário nº 4 e pôs-se a olhar com curiosidade. Era uma construção baixa, tosca e sem pintura. Num telheiro aberto dos lados estavam os tanques em fileira. Tom notou o caminhão da família Joad, que estacionava próximo, e para lá se dirigiu sem fazer barulho. A tenda já havia sido armada e reinava um silêncio completo. Ao chegar mais perto, um vulto surgiu da sombra do camião e dirigiu-se ao seu encontro.

     - És tu, Tom? - perguntou a mãe em voz baixa.

     - Sou.

     - Chiu - fez ela. - Fala baixo, que estão todos a dormir. Estavam muito cansados.

     - A senhora também devia estar já a dormir - disse Tom.

     - Pois devia, mas eu queria falar contigo. Está tudo arranjado?

     - Está, sim - disse Tom.- Mas agora não lhe vou contar nada. Amanhã de manhã conto-lhe tudo. Garanto que vai gostar.

     Ela sussurrou:

     - Ouvi dizer que até têm água quente.

     - Têm, sim. Mas agora trate de dormir. já nem me lembro quando é que a senhora dormiu a última vez.

     - O que é que tu não me queres dizer? - insistiu ela.

     - Não digo. E melhor ir dormir agora. Subitamente, ela assumiu uns ares de menina curiosa. - Como poderei dormir, a pensar no que tu me não queres dizer?

     - Ora, deixe-se disso. A senhora vai dormir e amanhã veste outro vestido e então... vai ver.

     - Mas não vês que não posso dormir assim?

     - Mas a senhora deve dormir - repetiu Tom, com uma risada feliz. - Trate de dormir.

     - Boa noite - disse ela baixinho e, curvando-se, entrou na tenda às escuras.

     Tom trepou para a prancha traseira do camião e apoiou a nuca nas mãos cruzadas, encostando os antebraços às orelhas. A noite começava a tornar-se mais fria. Tom abotoou o casaco no peito e tornou a deitar-se. As estrelas luziam claras, com um brilho agudo, acima da sua cabeça.

    Fazia escuro ainda quando ele acordou. Despertara-o, um leve ruído metálico. Agitou os membros rígidos e o ar frio da madrugada causou-lhe um arrepio. O acampamento dormia ainda. Tom levantou-se e lançou um olhar através dos taipais do camião. As montanhas, a leste, surgiam, coloridas de azul-marinho. Enquanto as olhava, uma luz fraca irrompia por detrás delas e tingia-lhes os rebordos de um vermelho desbotado. Depois, subindo, a luz tornava-se mais fria, mais cinzenta e mais escura, até que, mais próximo do horizonte ocidental, se misturava com a noite pura. Em baixo, no vale, jazia a terra, que parecia coberta de um cinzento de alfazema provocado pelo crepúsculo matinal.

     Retinia ainda o ruído de ferros que se chocam. Tom olhava as tendas, cuja cor de cinza era um pouco mais clara do que a do chão. Ã boca de uma das tendas, observou o clarão alaranjado das chamas que se escapavam de um velho fogão de ferro. De um cano curto saía uma fumarada cinzenta.

     Tom saltou do caminhão. Devagar, dirigiu-se para o fogão. A trabalhar nele, viu uma rapariga com um bebé num dos braços. O bebé mamava com a cabeça metida na blusa da rapariga. Esta atiçou o lume, levantando as tampas enferrujadas, para avivar as chamas, e abriu a porta do fogão. O bebé mamava sofregamente enquanto a mãe o passava com destreza de um braço para o outro. O menino não a incomodava na sua tarefa, nem lhe alterava a graça desenvolta dos movimentos. O fogo lançava agora labaredas vermelhas pelas fendas do fogão e projectava reflexos cintilantes sobre a lona da tenda.

     Tom aproximou-se mais. Sentiu o cheiro de presunto frito e de pão torrado. A leste, a luz aumentava rapidamente de volume e extensão. Tom aproximou-se do fogão e estendeu sobre ele uma das mãos. A rapariga olhou-o e acenou, ao mesmo tempo que as suas tranças compridas se moviam levemente.

     - Bom dia! - disse ela, virando o presunto na frigideira.

     A lona da tenda abriu-se, surgindo um rapaz, seguido de um homem mais idoso. Vestiam roupas novas de brim azul e nos seus casacos lustrosos brilhavam botões de latão. Eram homens de feições duras, muito parecidos um com o outro. O mais moço tinha barba escura e hirsuta e a do mais velho era branca e igualmente hirsuta. Tinham a cabeça e o rosto húmidos. A água gotejava-lhes dos cabelos e havia gotas dela na barba de ambos. As faces reluziam. Pararam ao mesmo tempo, olhando com tranquilidade o brilho pálido da alvorada. Bocejaram simultaneamente, observando a claridade que emergia do rebordo da montanha. Depois voltaram-se e viram Tom.

     - Bom dia! - saudou o homem mais idoso, com uma expressão que não era nem amigável nem hostil.

     - Bom dia! - respondeu Tom.

     - Bom dia! - disse o rapaz.

     A água que lhes cobria o rosto secava vagarosamente. Os dois chegaram-se ao fogão e começaram a aquecer as mãos.

     A rapariga prosseguia na sua tarefa. Colocou o menino no chão e atou as compridas tranças com uma fita. E as tranças bamboleavam e bailavam sempre que ela se movia. Pôs canecas de folha-de-flandres num grande caixote e distribuiu pratos de folha, facas e garfos. Despejou numa travessa de folha o presunto, que nadava na banha borbulhante da frigideira, onde rechinava e encolhia, à medida que se ia tostando. A moça escancarou a porta do fogão ferrugento, para retirar dele uma panela cheia de empadas altas e compridas.

     Quando o aroma das empadas inundou o ar, os dois homens puseram-se a aspirá-lo profundamente. O rapaz disse em voz baixa:

     - Céééus!

     O mais velho voltou-se para Tom:

     - Já tomou o pequeno almoço?

     - Bem, ainda não. Eu estou aqui com a minha família, mas ainda estão todos a dormir. Estavam muito cansados.

     - Então faça-nos companhia. Há comida que chegue, graças a Deus.

     - Muito obrigado - agradeceu Tom. - Isso deita um cheiro formidável. Não tenho coragem de dizer que não.

     - Bom cheiro, hein? - disse o rapaz. - Já sentiu alguma vez um cheiro tão bom?

     Puseram-se em volta do caixote e acocoraram-se.

     - Trabalha por aqui? - perguntou o rapaz.

     - Não, mas vontade não me falta - disse Tom. - Chegámos ontem à noite. Ainda não tive tempo de procurar.

     - Pois a gente já trabalhou doze dias.

     A rapariga, que se atarefava junto do fogão, interveio:

     - Até roupa nova compraram.

     Os dois homens olharam as roupas muito duras e muito azuis com um sorriso acanhado. A rapariga poisou a travessa de presunto e as empadas loiras e altas com uma tigelinha contendo a gordura do presunto e um bule de café, e acocorou-se também ao lado deles. O bebé mamava ainda, com a cabeça escondida na blusa da mãe.

     Encheram todos os respectivos pratos, derramando gordura de presunto sobre as empadas e deitaram açúcar no café.

     O homem mais idoso encheu a boca, mastigou e engoliu, dando estalos com a língua.

     - Que bom, meu Deus! - disse, e tomou a encher a boca.

     O rapaz voltou a falar:

     - Já há doze dias que não nos falta comida. Estamos a trabalhar bem, recebemos o nosso dinheiro e comemos todos os dias, sem falhar uma refeição.

     Voltou a mastigar com entusiasmo quase frenético e tornou a encher o prato. Tomaram o café bem quente, derramando a borra no chão e enchendo novamente as respectivas canecas.

     A luz da madrugada ia adquirindo um brilho avermelhado. O pai e o filho pararam de comer. Tinham o rosto voltado para leste e iluminado pelo clarão avermelhado. A imagem da montanha coroada de luz reflectia-se-lhes nos olhos. Tornaram a derramar borra de café no chão e ergueram-se ao mesmo tempo.

     - Bom, a gente agora tem de ir - disse o mais velho.

     O rapaz dirigiu-se a Tom:

     - Ouça. A gente anda a colocar canos. Se você quer vir connosco, é possível que a gente lhe arranje também trabalho por lá.

     - Oh, é muita amabilidade da vossa parte! E muito obrigado pelo almoço.

     - Não tem de quê - disse o mais velho. - Vamos a ver se conseguimos alguma coisa para si, se tem empenho nisso.

     - Lá vontade de trabalhar não me falta - disse Tom. - Esperem um instantinho; vou só avisar a família. - Correu para a tenda dos Joads, e, curvando-se um pouco, olhou para dentro.

     Na obscuridade que reinava sob a lona não conseguiu enxergar senão o avultar das formas das pessoas que ainda dormiam. Mas eis que alguém se movimentava agora entre as roupas das camas. Era Ruthie, que se espreguiçava como uma serpente, com os cabelos para os olhos. Estava vestida, com a roupa amarrotada e todo torcido em volta do corpo. Arrastou-se cuidadosamente e depois levantou-se. Os seus olhos cinzentos brilhavam, claros e calmos, após uma noite de sono. Não havia malícia neles. Tom afastou-se da tenda e fez sinal para que a rapariguinha o seguisse.. Quando ele tornou a virar-se, ela olhou-o.

     - Meu Deus! Tu estás uma raparigaça! - exclamou ele.

     A pequena desviou o olhar, dominada por um repentino acanhamento.

     - Ouve - disse-lhe Tom - não acordes ninguém, mas, quando eles acordarem, diz-lhes que fui ver se arranjava trabalho para mim, ouviste? E diz à mãe que já almocei com uns vizinhos. Estás a ouvir?

     Ruthie disse que sim; virou a cabeça e os seus olhos eram uns olhos inocentes de criança.

     - Não acordes ninguém - tornou a recomendar Tom, e voltou a correr para junto dos seus novos amigos.

     Ruthie tinha-se aproximado cautelosamente do departamento sanitário e agora espreitava para dentro da construção pela porta entreaberta.

     Os dois homens aguardavam a volta de Tom. A rapariga tinha arrastado um colchão para fora da tenda e colocara sobre ele o bebé, indo lavar a louça.

     Tom disse:

     - Quis avisar a minha gente do que ia fazer. Estavam todos a dormir ainda.

     E os três homens desceram a rua formada pelas tendas.

     O acampamento começava a animar-se. Em volta das fogueiras recém-acesas trabalhavam mulheres, cortando a carne e sovando a massa do pão. Os homens atarefavam-se junto das tendas e dos automóveis. O céu, agora, estava cor-de-rosa. Diante do escritório, um velhote magro limpava cuidadosamente o chão com um ancinho. Atirava com força o seu instrumento de trabalho, de maneira que os dentes ficavam marcados na terra.

     - Você hoje levantou-se cedo, hein, velhinho? - disse o rapaz, ao passar pelo homem do ancinho.

     - Então? Tenho de ganhar o dinheiro do aluguer.

     - Qual aluguer, qual carapuça! - disse o rapaz. - Você estava bêbedo como o diabo no sábado passado. Toda a noite cantou sentado na taberna. Foi por isso que o comité lhe deu esse trabalho.

     Iam andando à beira da estrada salpicada de óleo. Um renque de nogueiras crescia à margem da estrada. Os contornos do sol surgiam no topo das montanhas.

     Tom disse:

     - É engraçado. Comi com vocês e nem lhes disse o meu nome e nem vocês me disseram ainda como se chamavam. O meu nome é Tom Joad.

     O homem mais velho olhou-o com um leve sorriso.

     - Aposto que você está aqui há muito pouco tempo.

     - Estou aqui há poucos dias.

     - Pois claro. Eu tinha a certeza disso. Aqui passa-se uma coisa muito engraçada. A gente perde o hábito de se apresentar. Há gente a mais. Bem, eu chamo-me Timothy Wallace e este é o meu filho Wilkie.

     - Muito prazer em conhecê-los - respondeu Tom. - Vocês estão aqui há muito tempo?

     - Há dez meses - disse Wilkie. - Chegámos aqui o ano passado, logo depois da cheia. Livra! A gente passou por coisas que você nem pode imaginar. já estávamos quase a morrer de fome.

     Os pés deles batiam ruidosamente na estrada. Passou um caminhão repleto de homens e cada um desses homens parecia terrivelmente absorto. Todos eles se agarravam a um ponto qualquer do veículo e olhavam sombriamente diante de si.

     - Vão para a Companhia do Gás - disse Timothy. - Estão lá muito bem empregados.

     - A gente podia ter vindo no nosso caminhão - disse Tom.

     - Para quê?

     Timothy ajoelhou-se e apanhou do chão uma noz verde. Experimentou-a com o polegar e atirou-a na direcção de um melro pousado numa cerca. O pássaro levantou voo, deixou que a noz tombasse abaixo dele e depois voltou a poisar no mesmo sítio, acamando com o bico as penas lisas e brilhantes.

     - Vocês não têm carro? - perguntou Tom.

     Os dois Wallaces permaneceram calados e Tom, olhando-os no rosto, viu que se sentiam envergonhados.

     Wilkie disse:

     - Não precisamos de carro. Daqui até ao sítio onde a gente trabalha é apenas uma milha.

     Timothy falou em voz alta, irritado:

     - Não, a gente não tem carro. Vendemos o nosso. Teve de ser. já não tínhamos que comer; não tínhamos nada. Não havia meio de arranjarmos trabalho. Por aqui passam sempre todas as semanas uns tipos que querem comprar carros. Eles vêem quando nós estamos cheios de fome e então compram os nossos carros. Quando a fome aperta muito, levam um carro quase de graça. E... bem, a gente já estava cheia de fome. Vendemos o carro por dez dólares. - E cuspiu para a estrada.

     Wilkie disse tranquilamente:

     - Estive a semana passada em Bakersfield. Vi-o no meio de uma porção de carros usados. Sabe qual era o preço por que o tinham marcado? Setenta e cinco dólares!

     - Era o único recurso que nos restava - explicou Timothy. - Ou a gente deixava que eles nos roubassem o carro, ou era a gente que tinha de lhes roubar alguma coisa. Até agora, nunca precisámos de roubar nada - caramba! - mas já estivemos bem perto disso.

     Tom interveio:

     - Sabe? Toda a gente afirmava que havia por aqui muito trabalho. Até andaram a distribuir uns impressos onde diziam que precisavam de gente e que pagavam bem.

     - Hum... - fez Timothy - nós também vimos esses impressos. Mas não há nada muito trabalho. E os salários estão sempre a baixar. Estou farto até aos olhos de dar cabo da cabeça para arranjar dinheiro para a comida.

     - Mas vocês agora têm trabalho... disse Tom.

     - Pois temos, mas não será por muito tempo. Trabalhamos para um tipo fixe. É dono de umas terrazitas e trabalha ao nosso lado. Mas a coisa-raios! - não vai durar muito.

     Tom perguntou:

     - Mas então por que diabo vocês me levam ainda a mim para lá? Indo eu, o trabalho acaba mais depressa. Vocês assim ficam prejudicados.

     Timothy sacudiu lentamente a cabeça.

     - Não sei porque é que a gente fez isso. E uma coisa que não faz sentido. A gente queria comprar um chapéu novo para cada um de nós, mas agora acho que já não pode ser. Olhe, o terreno é este aqui, à direita. O serviço é bem bom. Pagam trinta cents à hora. E o sujeito para quem a gente trabalha é um tipo muito camarada.

     Deixaram a estrada e tomaram por um caminho ensaibrado que atravessava uma pequena horta. Por detrás das árvores, ia uma casinha pintada de branco, ladeada por algumas árvores de sombra, e um barracão. Atrás deste estendia-se um parreiral e, logo a seguir um campo de algodão. Ao passarem pela casinha branca, a porta abriu-se ruidosa-mente; um homem robusto e queimado pelo sol desceu os degraus das traseiras. Trazia na cabeça um carapuço de papel, para se proteger dos raios solares. Enrolava as mangas da camisa ao atravessar o pátio. Os seus olhos ensombrados por grossas sobrancelhas, queimadas de sol franziam-se mim jeito de mau humor. O rosto era vermelho como um tomate.

     - Bom dia, sr. Thomas - disse Timothy.

     - Bom dia - respondeu o homem, num tom irritado.

     Timothy apresentou:

     - Este aqui é o Tom Joad. Talvez o senhor lhe possa dar trabalho.

     Thomas fitou Tom com olhos sombrios. Depois, soltou uma curta risada, de sobrolho ainda carregado.

     - Oh, pois não! Naturalmente, posso dar-lhe trabalho! Posso dar trabalho a toda a gente. Quem sabe se vocês ainda me trazem mais uns cem homens...

     - Desculpe. A gente pensou... - começou a defender-se Timothy.

     Thomas interrompeu-o:

     - Sim, também eu pensei. - Virou-se com rapidez e encarou os homens. - Tenho que lhes dizer uma coisa. Tenho pago trinta cents à hora, não tenho?

     - Tem si, sr. Thomas, mas...

     - Pois é. E, em troca, vocês faziam um trabalho que valia os trinta cents.

     As suas mãos, grandes e calosas, batiam uma na outra.

     - A gente tem-se esforçado...

     - Eu sei, que diabo! Mas, de hoje em diante, só posso pagar vinte e cinco cents, ouviram? Vocês aceitam ou largam, como quiserem. - O seu rosto encolerizado tornou-se ainda mais vermelho.

     Timothy respondeu:

     Mas a gente trabalha a valer. O senhor mesmo disse isso, não disse?

     - Disse, sim, senhor? Mas parece que já não sou eu que contrato os meus homens. - Engoliu a saliva. - Olhem - disse. - Eu tenho aqui uns sessenta e cinco acres de terra. Vocês já alguma vez ouviram falar da Associação dos Fazendeiros?

     - Já, sim senhor.

     - Pois bem. Eu sou sócio dessa coisa. Ontem à noite tivemos uma reunião. Vocês sabem quem realmente dirige agora a Associação dos Fazendeiros? Pois vou dizer-lhes: é o Banco do Oeste. Quase todo esse vale pertence ao banco, e o que ainda lhe não pertence está-lhe hipotecado. Bom, ontem à noite, um dos gerentes do banco veio falar comigo e disse-me assim: “Olhe, a gente soube que você paga trinta cents à hora. Acho melhor você baixar isso para vinte e cinco.” E eu respondi: “Alas porquê? Eu tenho comigo uma gente boa, muito trabalhadora. Valem bem trinta.” E ele disse: “Não se trata disso. É que toda a gente paga a vinte e cinco. Se você pagar trinta, vai arranjar encrencas aos outros. E, por falar nisso - acrescentou ele - você vai precisar para o ano que vem daquele empréstimo do costume para as futuras colheitas, não vai?” - Thomas suspendeu a fala. Arfava de indignação. - Estão a ver? Pois é isto. Passam a ganhar apenas vinte e cinco, e é se quiserem.

     - Mas a gente tem trabalhado como deve - disse Timothy atrapalhado.

     - Você ainda não compreendeu a coisa? O banco dá trabalho a dois mil homens e eu somente a três. E eu tenho a minha terra hipotecada ao banco. Se vocês vêem algum remédio para esta situação, digam. Eu não vejo. Estou completamente bloqueado.

     Timothy sacudiu a cabeça.

     - Não vejo nada.

     - Esperem um instantinho. - Thomas correu para dentro de casa. A porta fechou-se com violência atrás dele. Regressou pouco depois, trazendo um jornal na mão.- Já viram isto aqui? Vou ler-lhes: “Cidadãos, irritados com a acção dos agitadores vermelhos, lançaram fogo a um acampamento de refugiados. A noite passada, um grupo de cidadãos, enfurecidos pela agitação que se estava a desenvolver num campo de refugiados próximo, lançou fogo a todas as suas tendas e expulsou os agitadores desta região.

     Tom começou:

     - Bem, eu... - Mas calou-se.

     Thomas dobrou cuidadosamente o jornal e meteu-o no bolso. Conseguira dominar os nervos. Disse tranquilamente:

     - Esses homens foram mandados pela Associação. Denunciei-os agora. Se souberem disto, para o ano que vem tiram-me a minha fazenda.

     - Bem, palavra quê não sei o que hei-de dizer - murmurou Timothy. - Se ali havia realmente agitadores, compreende-se que o pessoal se tivesse irritado.

     - Já há tempos que ando a observar isto - disse Thomas. - Surgem sempre agitadores quando se baixam os salários. É infalível. Não se pode fazer nada. Com os diabos! Esses tipos dominam-nos por completo. Bom, vamos a ver. - Aceitamos vinte e cinco?

     Timothy pôs os olhos no chão.

     - Eu aceito - respondeu.

     - Eu também - disse, por sua vez, Wilkie.

     Tom disse, por fim:

     - Parece que vim bater a má porta. Pois olhem, eu também aceitava os vinte e cinco. Que é que se há-de fazer?

     Thomas tirou do bolso um lenço grande de cor parda e enxugou com ele a boca e o queixo.

     - Não sei por quanto tempo isto poderá ainda aguentar-se. Não consigo compreender como é que vocês conseguem alimentar as vossas famílias com tão pouco dinheiro.

     - Enquanto trabalhamos, sempre podemos. Quando não há trabalho, é que são elas! - respondeu Wilkie.

     Thomas consultou o relógio.

     - Bom - disse - vamos começar a escavar este fosso. É verdade, vou contar-lhes uma coisa. Vocês moram naquele acampamento do governo, não moram?

     - Moramos sim - respondeu Timothy um pouco admirado.

     - Há lá baile todos os sábados, não há?

     Wilkie sorriu:

     - Há, sim.

     - Bom, então é conveniente vocês terem cautela para o sábado que vem.

     Timothy retesou o corpo e aproximou-se de Thomas.

     - Que é que o senhor quer dizer com isso? Eu faço parte do comité central. Preciso de saber.

     Thomas parecia preocupado.

     - Mas não vá dizer a ninguém que fui eu que os informei, há?

     - O que há? - perguntou Timothy.

     - Bem, a associação não gosta lá muito desses acampamentos do governo, porque não pode mandar a polícia intervir. E aquele pessoal faz as suas próprias leis – dizem - e sem ordem de prisão não se pode prender ninguém ali dentro. Mas, se lá houvesse uma briga forte, com tiroteio, etc., então a polícia poderia entrar e correr com todos do acampamento para fora.

     Timothy nem parecia o mesmo; tinha os ombros bem erguidos e os olhos frios.

     - Bem, e então?

     - Não digam a ninguém o que acabo de vos contar - pediu Thomas, inquieto. - Vai haver barulho no acampamento, sábado que vem. E os polícias estão prontos a invadir o recinto.

     Tom perguntou:

     - Mas, pelo amor de Deus, porquê? Aquela gente nunca fez mal a ninguém...

     - Vou-lhes dizer porquê - começou Thomas. - Aquele pessoal do acampamento está habituado a ser tratado como gente. E, se tiver de voltar para os acampamentos dos “acocorados”, vai revoltar-se a valer. - Tornou a enxugar o rosto com o lenço. - Bem, agora vão trabalhar. Meu Deus! Falei tanto que sou capaz de perder a minha fazenda. Mas que hei-de fazer? Gosto de vocês e pronto.

     Timothy dirigiu-se a ele e estendeu-lhe a mão endurecida e magra, que Thomas apertou.

     - Ninguém saberá quem nos informou, garanto-lhe. E muito obrigado. Não vai haver briga nenhuma.

     - Bom, agora tratem de trabalhar - disse Thomas - e por vinte e cinco a hora.

    - Por vinte e cinco - respondeu Wilkie. - Sim, por ser para quem é.

     Thomas dirigiu-se a casa.

     - Eu volto já - disse. - Vocês podem começar. - A porta bateu atrás dele.

     Os três homens começaram a andar, passando o pequeno barracão caiado, e ao longo da margem de um campo. Chegaram a um fosso comprido e estreito, à beira do qual havia alguns tubos de cimento armado.

     - É aqui que a gente trabalha - informou Wilkie.

     O velho tirou duas picaretas de dentro do barracão e depois mais três pás. E disse a Tom:

     - Aqui tem a sua menina.

     Tom agarrou na picareta.

     - Santo Deus! Sinto-me bem a valer com isto na mão.

     - Espere pelas onze horas. Então é que eu quero ver se ainda se sente bem - atalhou Wilkie.

     Caminharam até à extremidade do fosso. Tom tirou o casaco e atirou-se para cima de um monte de entulho. Depois, saltou para dentro do fosso. Cuspiu nas mãos. A picareta subiu no ar e tombou pesadamente. Tom gemeu baixinho.

     A picareta tornou a subir e a cair, e, no momento em que ela penetrava no solo, desprendendo a terra, Tom tornou a gemer de satisfação.

     - Veja, pai - observou Wilkie - temos aqui um trabalhador de alto lá com ele. Até parece que está casado com aquela picaretazinha.

     Tom respondeu:

     - Levou tempo! (Hum!) Há anos que andava a suspirar por isto. (Hum!) Até que enfim! (Hum!) O chão esboroava-se-lhe debaixo dos pés. O sol brilhava. agora nas árvores frutíferas, e as folhas dos vinhedos tingiam-se de um verde dourado. Tom abriu uma faixa de uns seis pés de comprimento; saltou para o lado e enxugou a testa. Wilkie veio pôr-se detrás dele. A pá subia e descia, e a terra voava para cima e um montão que se formava à beira do fosso em crescimento.

     - Já me falaram desse comité central - declarou Tom. - Então você faz parte dele, hein?

     - Faço, sim - respondeu Timothy. - E é uma responsabilidade. Toda aquela gente... Fazemos o que podemos e todo aquele pessoal, por sua vez, faz o que pode. Só queria que esses grandes fazendeiros nos não chateassem tanto. Só queria isso.

     Tom voltou ao seu trabalho dentro do fosso e Wilkie descansou um pouco. Tom disse:

     - E a aquilo da briga no sábado (hum!) no baile, aquela briga de que ele falou? (Hum!) Para que é que eles fazem essas coisas?

     Timothy seguia no rasto de Wilkie e a sua pá aplainava o fundo do fosso, tornando-o apto a receber os tubos de cimento.

     - Acho que eles querem correr connosco - disse Timothy. - Têm medo de que a gente se organize - é o que me parece. E pode ser que tenham razão. O nosso acampamento é uma organização perfeita. Cada um toma conta de si mesmo. Temos a melhor orquestra de corda da região. Temos uma pequena conta corrente no armazém, para poder fiar aos companheiros que não têm que comer. Por cinco dólares, pode-se comprar comida suficiente e o acampamento fica sendo o fiador desses cinco dólares. A gente nunca teve encrencas com a polícia. Acho e é por isso que os grandes fazendeiros andam com medo. Não nos podem meter na cadeia; é por isso que ele andam com medo. Pode ser que pensem que, já que nos governamos tão bem, possamos também fazer outras coisas.

     Tom saltou para a beira do fosso e enxugou o suor dos olhos.

     - Vocês ouviram falar do que aquele jornal disse sobre os agitadores, lá no norte, em Bakersfield?

     - Claro que ouvimos - disse Wilkie. - Não se fala noutra coisa.

     - Pois eu estava lá nessa altura. Não havia lá agitadores, isso a que chamam vermelhos. Que diabo querem eles dizer com isso de vermelhos?

     Timothy aplainou uma pequena saliência no fundo do fosso.

     O sol punha-lhe fulgores na barba branca de pêlos eriçados.

     - Há muita gente que quer saber o mesmo. - Riu. - Um dos nossos rapazes descobriu a coisa. - Alisava a terra cuidadosamente com a pá. - Há aí um tipo que se chama Hines. É dono de uns trinta mil acres de terra, com pêssegos e uvas, e tem uma fábrica de frutas e um lagar. Bem, ele vive constantemente a gritar contra “os malvados dos vermelhos”. “Esses vermelhos dos diabos levam o país à ruína”, diz ele. “A gente tem de os enxotar daqui, a esses patifes desses vermelhos.” Bem, um outro tipo que acabava de chegar do Oeste, ouviu a coisa. Coçou a cabeça e disse: “Olhe, sr. Hines, eu estou aqui há pouco tempo. O senhor pode dizer-me quem são esses malvados desses vermelhos?” Bem, rapazes, o Hines respondeu assim: “Um vermelho é um desses filhos da mãe que exigem trinta cents à hora quando a gente só quer pagar vinte e cinco.” O rapaz ficou a pensar no caso, coçou a cabeça e disse: “Olhe, sr. Hines, eu não sou nenhum filho da mãe, mas também quero trinta cents à hora. Quem é que os não quer? Que diabo, sr. Hines, se assim é, então toda a gente é vermelha.” - Timothy meteu a pá no fundo do fosso e a terra lisa brilhou nos lugares cortados pelo instrumento.

     Tom riu.

     - Se assim é, também eu sou vermelho. - A sua picareta vibrou no ar e a terra estalou debaixo dela com um baque surdo. O suor escorria-lhe pela testa e ao longo do nariz, brilhando também no pescoço. - Caramba! - exclamou. - Que bela coisa é uma picareta! (Hum!), quando a gente se sabe servir dela! (Hum!) O que é preciso é que o homem e a picareta se entendam bem.

     Os três homens trabalhavam em fila e o fosso ia-se alongando. O Sol brilhava com intensidade sobre eles e espalhava calor, um calor que aumentava à medida que o dia avançava.

    

     Quando Tom a deixou, Ruthie ficou por alguns instantes a espreitar à entrada do departamento sanitário. Não era muito corajosa quando Winfield não estava a seu lado e a levava à gabarolice. Pôs um pé descalço no chão de cimento para em seguida o retirar. Na rua das tendas, uma mulher surgiu e começou a acender o lume num fogão de campanha feito de folha. Ruthie deu alguns passos na direcção da mulher, mas não podia deixar aquilo. Esgueirou-se por fim até à tenda dos Joads e olhou para dentro. A um dos lados, o tio John estava deitado no chão, de boca entreaberta, ressonando, com a garganta cheia de roncos e de marulhos. O pai e a mãe, tapados com o mesmo cobertor, estavam mais afastados da entrada e, portarito, da luz exterior. Al tinha-se deitado mais longe, do lado oposto ao do tio John e tinha um braço a tapar-lhe os olhos. Rosa de Sharon e Winfield estavam perto da entrada da tenda, e, ao lado de Winfield, cavava-se o vazio deixado por Ruthie. Acocorou-se, continuando a olhar o interior da tenda. O seu olhar fixou-se na cabeça cor de palha de Winfield. E, enquanto ela o observava, o pequeno abriu os olhos, cravando nela um olhar sério, Ruthie pôs um dedo nos lábios, fazendo-lhe sinal com a outra mão. Winfield lançou um olhar a Rosa de Sharon, que, a seu lado, dormia com a boca entreaberta. Cautelosamente, Winfield ergueu um pouco o cobertor. Saiu de rastos, subtilmente e aproximou-se de Ruthie.

     - Quando te levantaste? - cochichou.

     Ela fê-lo afastar-se da tenda com mil cuidados e, quando viu que estavam em segurança, declarou:

     - Não dormi toda a noite. Estive sempre a pé.

     - Isso é que não estiveste! Sempre me saíste uma mentirosa de alto lá com um charuto.

     - Ai, sim? Então, se é mentira, não te conto nada. Não te conto como mataram um homem com um punhal e como veio aqui um urso e levou uma criança.

     - Qual urso, nem qual carapuça! - disse Winfield inquieto, penteando para trás, com os dedos os cabelos e dando puxões entre pernas ao macaco que vestia, para o chegar ao seu lugar.

     - Então está bem. Não veio urso nenhum. Está bem - tornou ela, sarcástica. - E também não é verdade que existem coisas de louça branca como as que a gente viu uma vez nos catálogos.

     Winfield olhou-a com gravidade. Apontou para o departamento sanitário.

     - Ali dentro, hein?

     - Não sei. Sou uma mentirosa de alto lá com um charuto. Para que é que eu hei-de contar-te coisas?

     - Vamos lá ver - propôs Winfield.

     - Eu já lá estive - afirmou Ruthie. - Já me sentei em cima daquela louça e até mijei nela.

     - Tu não fizeste nada disso - contradisse Winfield.

     Foram até às instalações sanitárias e, dessa vez, Ruthie não sentiu medo. Corajosamente, conduziu o irmão até ao interior do departamento. As retretes seguiam-se em fila a um lado da grande sala e cada uma delas formava um compartimento isolado e tinha a sua porta. A porcelana branca rebrilhava. Na parede fronteira, corria uma fila de Iavatórios, enquanto na terceira parede havia três compartimentos com chuveiros.

     - Estás a ver? - disse Ruthie. - São as bacias que a gente viu naquele, catálogo. - Aproximaram-se os dois de uma das bacias e Ruthie, num acesso de bravata, levantou a saia e sentou-se nela. - Não te contei que já aqui estiveste.

     Como para confirmar o que dizia, ouviu-se um murmúrio de água dentro da retrete.

     Winfield ficou embaraçado. A mão dele movimentou a alavanca da água. A água precipitou-se num tumulto. Ruthie deu um salto e saiu a correr. Um pouco afastados, ela e Winfield ficaram-se a olhar o compartimento misterioso. O silvo da água correndo persistia.

     - Vês o que tu fizeste? - fez Ruthie. - Quebraste aquilo. Em bem vi.

     - Não quebrei nada. Palavra de honra que não.

     - Eu vi, sim - disse Ruthie. - Não se te pode mostrar nada bonito, que tu não tenhas logo vontade de escangalhar tudo!

     Winfield baixou a cabeça. Olhou para Ruthie, e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Tremia-lhe o queixo, e Ruthie arrependeu-se imediatamente.

     - Não faz mal - disse ela. - Eu não digo nada a ninguém. A gente diz que aquilo já estava quebrado. Não, é melhor dizermos que nem estivemos aqui.- Levou o irmão para fora do departamento.

     O Sol surgia agora no topo das montanhas e brilhava sobre os tectos de chapa ondulada dos cinco departamentos sanitários que havia no acampamento. Lançava os seus raios sobre a lona cinzenta das tendas e no chã o varrido da rua. O acampamento despertava. O lume ardia nos fogareiros de campanha feitos de latas de querosene e de chapas de ferro. O cheiro do fumo pairava no ar. Abriam-se as tendas e apareciam homens nas ruas. Em frente da tenda dos Joads, a mãe olhava a rua para cima e para baixo. Os seus olhos passeavam pela rua fora. Viu as crianças e dirigiu-se a elas.

     - Já estava preocupada - disse a mãe. - Não sabia onde é que vocês estavam.

     - Andámos a ver isto - respondeu Ruthie.

     - Onde está o Tom? Tu não o viste?

     Ruthie tomou um ar de importância.

     - Vi, sim senhora. Tom acordou-me e disse-me para lhe dizer...- Fez uma pausa, como querendo salientar a importância da futura revelação.

     - Dizer-me o quê? - perguntou a mãe.

     - Ele mandou-me dizer... - e Ruthie fez nova pausa, para que Winfield apreciasse devidamente a sua posição de importância.

     A mãe levantou a mão, ameaçando Ruthie:

     - Fala...

     - Arranjou trabalho - disse Ruthie com rapidez. - Foi trabalhar. - Olhou apreensiva a mão erguida da mãe.

     A mão baixou-se, estendendo-se depois para Ruthie. E a mãe cingiu a filha num abraço apertado e convulsivo, soltando-a daí a pouco.

     Embaraçada, Ruthie cravava os olhos no chão. E mudou de assunto.

     - Mãe, a senhora já viu? Ali há umas bacias brancas, muito bonitas.

     - Estiveste lá dentro? - perguntou a mãe.

     - Sim. Eu e o Winfield - disse, acrescentando traiçoeiramente: - Mãe, o Winfield quebrou uma daquelas bacias.

     Winfield corou e olhou para Ruthie com raiva.

     - E ela mijou na bacia - disse maldosamente.

     A mãe sentia-se apreensiva.

      - Que é que vocês andaram a fazer? Venham mostrar-me, andem! - Fê-los entrar no departamento. - Que é que vocês fizeram? - perguntou.

     Ruthie apontou com o dedo.

     - Foi ali. Fazia che... che, mãe. Mas agora já parou.

     - Mostra o que fizeste! - mandou a mãe.

     Relutante, Winfield dirigiu-se para a bacia.

     - Não puxei com força - disse. - Só agarrei naquilo e... A água tornou a cair com força na retrete.

     Winfield deu um salto para o lado.

     A mãe riu, atirando a cabeça para trás. Ruthie e Winfield observavam-na, ressentidos.

     - Mas é assim mesmo que isto funciona - explicou a mãe. - Eu já tinha visto isso. Quando se acaba, puxa-se o botão.

     Esmagava-os a vergonha de tamanha ignorância. Foram para a rua, observar a refeição de uma família numerosa.

     A mãe viu-os sair e depois olhou à sua volta. Dirigiu-se aos gabinetes dos chuveiros e examinou-os. Foi até aos lavatórios e passou os dedos pela porcelana branca e lisa. Abriu um pouco a torneira, estendendo o dedo para receber a corrente e sobressaltou-se quando a água quente lhe correu para a mão. Ficou um instante a contemplar o lavatório. Depois, colocou a válvula do lavatório, encheu metade com água quente e metade com água fria. Lavou as mãos na água morna e, a seguir, lavou o rosto. Humedecia os cabelos com os dedos quando ouviu o soar de passos no chão de cimento atrás de si. Virou-se rapidamente. Um homem de idade olhava-a com ar escandalizado.

     - Como entrou aqui? - perguntou. ele com indignação.

     A mãe engoliu em seco. Sentia a água cair-lhe em pingos grossos pelo queixo e molhar-lhe o vestido.

     - Eu não sabia - defendeu-se. - Pensei que isto era para uso de todos.

     O homem idoso encarou-a de sobrecenho carregado.

     - É para homens - disse com severidade. Foi até à porta e apontou para um letreiro em que estava escrito: HOMENS. - Aí tem a prova. Então não viu?

     - Não - disse a mãe, envergonhada. - Ainda não tinha visto. Para onde devem ir as mulheres?

     A cólera do homem dissipou-se.

     - A senhora acaba de chegar, não é? - perguntou, com mais afabilidade.

     - Cheguei a meio da noite - respondeu a mãe.

     - Então ainda não falou com o comité?

     - Que comité?

     - Ora, o comité das senhoras.

     - Não, senhor. Ainda não falei.

     Ele disse com visível orgulho:

     - O comité há-de ir visitar a senhora daqui a pouco e dar-lhe todas as explicações. A gente cuida das pessoas recém-chegadas o melhor que pode. Bem, se a senhora quiser ir ao toilette das senhoras, tem de ir pelo outro lado do edifício. Aí é que é o das senhoras.

     A mãe perguntou com, inquietação:

     - O senhor disse que o comité das senhoras me vai visitar na minha tenda?

     O homem inclinou a cabeça:

     - Vai, sim. Não deve demorar.

     - Muito obrigada - disse a mãe. E foi andando à pressa para a tenda.

     - Pai! - gritou ela, mal chegou. - John, levantem-se, andem! Vão-se lavar!

     Olhos sonolentos e estremunhados ergueram-se para ela.

     - Vamos, todos! - clamou a mãe. - Levantem-se, lavem a cara e penteiem-se!

     O tio John estava pálido e parecia doente. Tinha uma contusão vermelha no queixo.

     O pai perguntou:

     - Que houve?

     - O comité! - gritou a mãe. - Vem aí um comité de senhoras visitar a gente. Levantem-se e lavarem a cara. Enquanto a gente dormia e ressonava, o Tom saiu, arranjou serviço e até já está a trabalhar. Vamos! Tratem de se levantar!

     Deixaram a tenda, sonolentos. O tio John cambaleava um pouco e sentia o rosto dorido.

     - Vão ali àquela casa e lavem a cara - ordenou a mãe.

     - A gente vai comer e depois põe-se à espera do comité. - Dirigiu-se para, junto de um monte de lenha próximo da tenda; fez uma fogueira e foi buscar os utensílios de cozinha. - Papas de milho com molho de toucinho - monologava ela - é uma coisa que se faz depressa. A gente tem de se despachar. - E continuou monologando.

     Ruthie e Winfield olhavam-na, admirados.

     A fumarada das fogueiras pairava sobre o acampamento. Ouviam-se vozes por todos os lados.

     Rosa de Sharon, despenteada e ainda com os olhos cheios de sono, arrastou-se para tora da tenda. A mãe ergueu os olhos da farinha de milho que media às mancheias. Notou o vestido sujo e amarrotado da filha, o seu cabelo despenteado e todo emaranhado.

     - Vai-te pôr mais decente - ordenou a mãe com severidade. - Aí em frente podes lavar-te bem. Tens aí um vestido limpo, que eu lavei. E penteia-te. E tira-me essas remelas dos olhos, anda! - A mãe parecia. excitada.

     Rosa de Sharon respondeu, enfadada:

     - Não me sinto bem. Quem me dera que o Connie tivesse vindo! Não me sinto capaz de fazer nada sem o Connie.

     A mãe virou-se completamente para ela. A farinha de milho, amarela, colara-se-lhe às mãos e aos pulsos.

     - Rosasharn - disse com severidade – vê se crias um pouco de coragem. Tu já choramingaste o suficiente. Vem aí um comité de senhoras visitar-nos e a nossa família não se pode apresentar assim suja, ouviste?

     - Mas eu não me sinto bem, mãe. A mãe avançou alguns passos e estendeu as mãos sujas de farinha.

     - Vai imediatamente - ordenou. - Há ocasiões em que a gente guarda só para nós aquilo que sente, compreendes?

     - Vou vomitar - gemeu Rosa de Sharon. - Pois vomita tudo de uma vez. É natural que tenhas vontade de vomitar. Acontece isso a todas nós. Vomita de uma vez e depois trata de te arranjares. Lava os pés e calça os sapatos. - Tomou à sua tarefa. - E entrança esse cabelo! - recomendou.

     Na frigideira, a banha espirrava para o lume e, quando a mãe deitou nela uma colherada de massa, a gordura deu um forte estalo e espirrou mais fortemente sobre o ume. Numa cafeteira, ao lado, o café começou a transbordar e o seu aroma espalhou-se no ar.

     O pai voltava do departamento sanitário; a mãe examinou-o com olhos críticos. O pai perguntou:

     - Tu disseste que o Tom arranjou trabalho?

       Sim, senhor. E partiu antes de nós acordarmos. Bom, vai abrir aquele caixote e tira de lá um fato-macaco limpo e uma camisa. Olha, eu estou muito ocupada. Vê se dás um jeito às orelhas da Ruthie e do Winfield. Lá dentro há água quente. És capaz de me fazer isso, és? Esfrega bem as orelhas das crianças e o pescoço também. Esfrega, até que brilhem e fiquem vermelhos.

     - Nunca te vi assim nervosa - comentou o pai.

     A mãe gritou:

     - Já é tempo de a família voltar a andar como deve. Durante a viagem era impossível, mas agora pode muito bem ser. Deixa o teu fato sujo na tenda que eu, depois, o lavarei.

     O pai entrou na tenda e voltou logo a seguir, vestindo um fato-macaco azul, bastante desbotado, mas limpo, e uma camisa.

     E levou as crianças tristonhas e inquietas até ao departamento sanitário.

     A mãe gritou-lhe:

     - Esfrega-lhes bem as orelhas!

     O tio John deixou o departamento sanitário dos homens e olhou em volta. Depois, tornou a entrar, sentou-se numa das retretes e quedou-se a pensar, por muito tempo, encostando a cabeça dorida às mãos.

     A mãe retirou do lume a frigideira que continha as papas loirinhas e estava a deitar colheres de gordura para uma nova frigideirada, quando uma sombra se projectou sobre ela. Olhou por cima do ombro. Um homem de baixa estatura ' inteiramente vestido de branco, estava atrás dela. Era um homem de rosto magro @ vincado, queimado de sol, no qual cintilavam uns olhinhos joviais. Era delgado como um palito. Tinha a roupa muito limpa mas esfiampada nas costuras. Olhava para a mãe com um sorriso nos lábios.

     - Bom dia - disse.

   A mãe viu o fato branco e o seu rosto adquiriu uma expressão de desconfiança.

     - Bom dia - respondeu.

     - A senhora é que é a senhora Joad?

     - Sou, sim, senhor.

     - Bem, o meu nome é Jim Rawley. Sou o director do acampamento. Resolvi dar um pulo até aqui, para ver se estava tudo em ordem. A senhora não precisa de nada?

     A mãe olhava-o com desconfiança.

     - Não, senhor - disse ela.

     Rawley informou:

     - Eu já estava a dormir quando a sua família chegou, ontem à noite. Ainda bem que conseguiram uma vaga. - A voz dele era carinhosa.

     A mãe disse com simplicidade:

     - Aqui é tudo tão bonito! Principalmente os tanques de lavar a roupa.

     - Espere que as mulheres comecem a lavar. Elas vêm daqui a pouco. Garanto que a senhora nunca ouviu tanto barulho na sua vida. Parece um congresso. Sabe o que elas fizeram ontem, senhora Joad? Resolveram cantar, cantar em coro. Cantaram um hino e, enquanto cantavam, iam esfregando a roupa. Foi pena a senhora ter perdido esse espectáculo.

     A expressão de desconfiança ia desaparecendo do rosto da mãe.

     - Deve ter sido bonito - disse ela. - Então o senhor é que é o chefe disto?

     - Não - disse ele.- O pessoal faz todo o meu trabalho. Cuidam da limpeza do acampamento, mantêm a ordem, fazem tudo, enfim. Nunca vi uma gente assim. Estão a fazer roupas na sala das reuniões. E brinquedos. Nunca vi uma gente assim.

     A mãe baixou os olhos para o vestido sujo.

     - A gente ainda não pôde lavar-se convenientemente - disse. - Em viagem, a gente suja-se muito.

     - Ora, como se eu não soubesse disso! - foi a resposta dele. Pôs-se a cheirar. - Este café que cheira tão bem é o que a senhora está a fazer?

     A mãe sorriu:

     - Cheira bem, não cheira? Assim, ao ar livre, tem bom cheiro. - E acrescentou com orgulho. - Seria uma honra para nós - se o senhor quisesse almoçar connosco.

     Ele acocorou-se ao lado da fogueira. Com esse gesto, quebrou-se a resistência final da mãe.

     - Seria um grande prazer para nós - continuou ela. - Não temos coisas muito finas, mas o senhor será bem-vindo.

     O homem sorriu.

     - Já tomei o meu pequeno almoço, mas aceito uma xícara de café. Cheira tão bem!

     - Pois não. Com muito prazer.

     - Não há pressa.

     A mãe deitou o café de uma grande lata para uma caneca de folha. E disse:

     - Não temos ainda açúcar. Talvez hoje se arranje algum. Se o senhor está acostumado a tomar o café com açúcar, não vai gostar.

     - Mas eu tomo sempre o café sem açúcar - foi a resposta. - O açúcar estraga o paladar do café.

     - Bem, eu gosto do café um pouco doce - disse a mãe. Examinou-o súbita e silencio-samente, surpresa com tão rápida intimidade. Devassou-lhe o rosto e não encontrou senão traços de amabilidade. Notou-lhe as costuras do casaco branco no fio e sentiu-se tranquilizada.

     Ele sorvia o café.

     - Acho que as senhoras não tardam a vir visitá-la.

     - Mas a gente ainda não está limpa - disse a mãe.- Elas deviam vir depois de tudo estar mais arranjado.

     - Ora! Elas sabem como são essas coisas - tranquilizou-a o director. - Quando elas aqui chegaram, aconteceu-lhes o mesmo. Pois claro. Se os comités aqui do acampamento servem para alguma coisa é precisamente porque também já passaram por essas dificuldades. - Tomou o resto do café e ergueu-se. - Bem, tenho de ir andando. Se a senhora precisar de alguma coisa, é só dar um pulo até ao meu escritório. Estou sempre lá. Mas que café formidável! Muito obrigado. - Colocou a caneca em cima. do caixote, ao pé das outras, acenou com a mão e afastou-se, caminhando pela rua das tendas abaixo. A mãe ouviu-o ainda conversar com outras pessoas, à medida que ia avançando.

     A mãe, baixando a cabeça sobre o peito, lutou contra o irresistível desejo de chorar.

     O pai regressava com as crianças, que tinham ainda os olhos humedecidos por causa da dor que a esfrega das orelhas lhes havia causado. Pareciam muito submissas e brilhavam de asseio. A pele do nariz de Winfield, queimada do sol, começava a levantar.

     - Pronto - disse o pai - Tirei-lhes bem duas camadas de porcaria. Por pouco, ia também a pele. Quase que tive de lhes chegar a roupa ao pêlo para os segurar.

     A mãe examinou as crianças.

     - Estão bem bonitos - disse. - Tenho ali papas de milho com molho para vocês. Depois, vamos tirar tudo do caminho e arrumar as coisas lá dentro.

     O pai encheu os pratos de folha das crianças e o seu também.

     - Só queria saber como foi que o Tom arranjou trabalho.

     - Não sei.

     - Bem, se ele arranjou, também nós seremos capazes de o arranjar.

     Al, muito excitado, regressava à tenda.

     - Que sítio formidável! - exclamou. Serviu-se de papas e encheu a caneca de café. - Sabem o que um tipo aí adiante está a fazer? Está a construir uma roulotte. Ali perto, atrás daquela tenda. E a roulotte vai ter camas, fogão e tudo. Pode-se morar lá dentro. Meu Deus! Aquilo é que é viver bem! A gente pode, parar em qualquer sítio, que está sempre como em sua casa.

     - Eu preferia uma casinha autêntica - disse a mãe. - Assim que for possível, vamos tratar de arranjar uma casinha.

     O pai interrompeu:

     - Al, depois de termos comido, tu, eu e o tio John vamos, no caminhão, procurar trabalho.

     - Perfeitamente - respondeu Al. - Eu gostava de me empregar numa garagem, se é que por aqui precisam de empregados. E um trabalho de que eu gosto. Podia ter um Fordeco, mesmo desses pequenos e antigos. Pintava-o de amarelo e ia ver tudo por aí. Vi uma pequena bem bonita, aqui na rua. Pisquei-lhe o olho. Mas que pequena formidável, bonita como o diabo!

   O pai comentou com severidade:

     - E melhor tu tratares de trabalhar em vez de andares por aí a namoriscar.

     O tio John saía do departamento sanitário e aproximava-se lentamente. A mãe olhou-o e franziu as sobrancelhas.

     - Mas tu nem te lavaste - começou ela. Então, notou como o tio John estava abatido, fraco e cheio de tristeza. Acho melhor tu ires para a tenda e deitares-te um pouco. Parece que te sentes mal.

     Ele sacudiu a cabeça.

     - Não - respondeu. - Eu cometi um pecado, e agora tenho que receber o castigo. - Acocorou-se num desespero mudo, e encheu a xícara de café.

     A mãe retirou da frigideira as últimas papas e disse como casualmente:

     - O director do acampamento esteve aqui e tomou café comigo.

     O pai, lentamente, ergueu o olhar:

     - Sim? Que é que ele queria já?

     - Nada. Apenas passar o tempo – disse a mãe, com afectação. - Sentou-se aqui e tomou uma caneca de café. Disse que nem sempre se encontrava um café tão bem feito.

     - Mas o que é que ele queria? repetiu o pai.

     - Nada, já disse. Veio só para saber como é que a gente ia.

     - Não acredito - volveu o pai. - Se calhar, veio por aí meter o nariz, farejar coisas...

     - Nada disso - gritou a mãe, zangada. - A gente percebe logo quando alguém vem para espiar. uma coisa que eu vejo à légua.

     O pai derramou no chão a borra do café.

     - Não faças isso, ouviste? - censurou a mãe. - Isto aqui é um lugar limpo.

     - Pois é. Estou vendo que acaba por ser tão limpo que nem se pode viver aqui - disse o pai, arreliado. - Avia-te, Al. Vamos ver se a gente arranja trabalho.

     Al limpou a boca com a mão.

     - Eu estou pronto - disse.

     O pai voltou-se para o tio John:

     - Tu não vens? – perguntou.

     - Vou, sim.

     - Não estás lá com muito boa cara.

     - Não me sinto muito bem, mas quero ir com vocês.

     Al trepou para o caminhão.

     - Precisamos de gasolina - disse. Pôs o motor em movimento.

     O pai e o tio John sentaram-se a seu lado e o veículo saiu, rodando rua abaixo.

     A mãe seguiu-os com o olhar. Depois, pegou num balde e foi até aos tanques instalados ao lado do departamento sanitário. Encheu o balde de água quente e levou-o para a sua tenda. Ocupava-se da lavagem dos pratos e das canecas, quando Rosa de Sharon apareceu.

     - Pus a tua comida num prato - disse a mãe, examinando a filha com atenção. Os cabelos, penteados, escorriam e a pele rosada reluzia. Trazia um vestido azul, estampado com pequeninas flores brancas. Calçava os sapatos de salto alto que usara no dia do casamento. Corou sob o olhar investigador da mãe.

     - Tornaste banho. - observou ela.

     As palavras brotaram rápidas da boca de Rosa de Sharon:

     - Eu estava lá dentro quando entrou uma senhora e começou a tomar banho. A senhora sabe como é que se faz? A gente entra numa coisa que parece um balcão, mas lá dentro, dá-se volta a um rodinha e a água começa a cair em cima da gente. Água quente ou fria, conforme a gente quiser. Eu vi como ela fazia e depois fiz o mesmo.

     - Pois vou lá tomar banho também - exclamou a mãe. - Assim que acabar isto, vou lá. Tu explicas-me como se faz.

     - Pois sim - respondeu Rosa de Sharon. - Agora vou fazer o mesmo todos os dias. Sabe, mãe, ela viu que eu estava de barriga e sabe o que me disse? Disse-me que vem aqui, todas as semanas, uma enfermeira. E aconselhou-me a falar com essa enfermeira, que ela vai indicar-me tudo o que eu devo fazer para o bebé nascer forte. Disse que todas as senhoras daqui fazem o mesmo. E eu vou fazer o mesmo também. - As palavras brotavam-lhe precipitadamente dos lábios. - Sabe? A semana passada nasceu um bebé aqui e então fizeram uma festa no acampamento. Toda a gente deu roupinhas e presentes ao bebé... até um carrinho lhe deram, um carrinho de vime. Não era novo, mas pintaram-no de cor-de-rosa e ficou como novo. Puseram nome ao bebé e fizeram um bolo. Oh, meu Jesus! - exclamou ela, ofegante, acabando por se acalmar.

     - Graças a Deus! Agora, sim. Estamos entre gente da nossa. Bem, vou tomar um banho - disse a mãe.

     - Que bom que isto é! - exclamou a rapariga.

     A mãe enxugou os pratos de folha, colocando-os em pilha.

     - Nós somos os Joads. Nunca baixámos a cabeça diante de ninguém. O avô do nosso avô combateu na revolução. Era dono de uma fazendinha, até que ficou cheio de dívidas. Então... então veio aquela gente! E transformaram-nos... De cada vez que eles vinham era como se me chicoteassem. A mim e a todos nós. Depois, aquela polícia de Needles! Isso também me fez mal. Sentia-me miserável, cheia de vergonha. Esta gente aqui é da nossa e o director disto sentou-se aqui, tomou café comigo e disse: “Senhora Joad, isto... senhora Joad, aquilo... Como vão as coisas, senhora Joad? - Calou-se e depois soltou um suspiro.- Pois é isto, voltei a sentir-me gente. - Pôs o último prato na pilha. Entrou na tenda e revolveu o caixote, à procura dos sapatos e de um vestido limpo. Encontrou também um pequeno embrulho de papel com os brincos. E, quando passou pela filha, recomendou: - Rosasharn, quando aquelas senhoras vierem, diz-lhes que volto não tarda nada. - E sumiu-se para os lados das instalações sanitárias.

     Rosa de Sharon deixou-se cair pesadamente sobre um caixote, a contemplar os sapatos que usara no dia do seu casamento, uns sapatos de verniz preto, de lacinhos da mesma cor. Esfregou as biqueiras com os dedos e depois limpou-os ao avesso da saia. Sentiu uma pressão no ventre ao curvar-se. Endireitou-se e apalpou o ventre com dedos cautelosos. E sorria.

     Uma mulher robusta atravessava a rua, carregando um caixote, cheio de roupa suja, em direcção ao tanque. Tinha o rosto queimado do sol e os olhos eram negros e brilhantes. Trazia um grande avental de linhagem por cima do vestido de chita e calçava sapatos de homem, de cor castanha. Reparou em Rosa de Sharon, acariciando o ventre e notou o sorriso no rosto da rapariga.

     - Hein? - perguntou prazenteiramente. O que é que supõe que vai ter?

     Rosa de Sharon corou e baixou os olhos. Depois, ergueu a cabeça e viu que os olhitos negros e brilhantes da mulher a examinavam.

     - Não sei... - murmurou ela.

     A mulher colocou no chão o caixote da roupa suja.

     - Tem aí um tumor vivo - disse, cacarejando como uma galinha satisfeita. - O que é que preferia?

     - Não sei... Acho que gostaria de ter um menino... sim... um menino, com certeza.

     - Você chegou há pouco, não é verdade?

     - Foi ontem à noite, irias já muito tarde.

     - Vão ficar aqui mesmo?

     - Não sei. Se houver por aqui trabalho, a gente fica.

     Uma sombra cruzou o rosto da mulher e os seus olhitos adquiriram um brilho duro.

     - Se houver trabalho... É só o que se ouve dizer.

     - O meu irmão já arranjou. já está a trabalhar.

     - Já encontrou trabalho, hein? Bom, talvez vocês sejam criaturas com sorte. Pois tomem cuidado com a sorte. Não se pode ter confiança nela. - Foi-se aproximando. - Há apenas uma espécie de felicidade. Mais nenhuma. O que é preciso é ter juízo. Juízo é que é preciso - disse com ímpeto. - Mas, se você se der ao pecado, então, cautela com o bebé... - Acocorou-se no chão, em frente de Rosa de Sharon. - Passam-se coisas escandalosas neste acampamento - disse, sombria. - Há bailes todos os sábados e eles não dançam quadrilhas, não! Dançam agarrados, como quem se abraça. Eu já os tenho visto.

     Rosa de Sharon disse com reserva:

     - Eu gosto de dançar as quadrilhas. - E acrescentou com ar virtuoso: - Nunca dancei da outra maneira.

     A mulher queimada do sol abanou a cabeça tristemente:

     - Mas há gente que o faz. Mas Nosso Senhor não deixa passar essas coisas. Não, senhora. Não pense que sim.

     - Não, senhora - disse a rapariga com timidez.

     A mulher colocou a mão morena e rugosa sobre o joelho de Rosa de Sharon. A rapariga estremeceu àquele contacto.

     - Deixe-me avisá-la. São muito poucos os que vivem aqui no acampamento que amam Jesus de todo o coração. Aos sábados, à noite, quando a banda começa a tocar aquelas músicas de dança em vez de escolher melodias sagradas, essa gente desata a rodopiar, sim, senhor, a rodopiar... Eu bem os vejo. Mas não me chego lá nem permito que os meus o façam. É uma coisa indecente, acredite. - Fez uma pausa enfática e prosseguiu, num cochichar roufenho.- E não é só isso. Até peças representam. - Vergou o corpo para trás, inclinando a cabeça, a ver o eleito que em Rosa de Sharon produzia aquela revelação.

     - Artistas? - perguntou a rapariga, tomada de respeitoso medo.

     - Não, senhora - explodiu a mulher. - Não são actores, essas criaturas já condenadas! São gente daqui, gente da nossa. Até as crianças representam! Eu nem quis ver. Mas ouvi-os contar o que iam fazer. É o demónio que anda à solta neste acampamento.

     Rosa de Sharon escutava-a de olhos arregalados e de boca aberta.

     - Na escola, uma vez, a gente representou uma peça sobre o Menino Jesus, no Natal...

     - Bem, isso era outra coisa. Uma peça sobre o Menino Jesus é outra coisa. Mas não sei bem se mesmo isso se deve fazer. Mas o que eles fizeram aqui não foi nenhuma representação do Natal. Foi um pecado, uma loucura, uma coisa do demónio. As pessoas andavam a pavonear-se, a gabar-se, a mostrar aquilo que na realidade não são. E dançavam agarrados uns aos outros, que era uma indecência!

     Rosa de Sharon suspirou.

     - E não eram poucos - continuou a mulher morena.- Hoje em dia, podem-se contar pelos dedos são autênticos cordeiros do Senhor. Mas não pense você que eles vão escapar ao castigo, não, senhora. Deus vai apontando os pecados; vai-os somando todos. Deus está sempre a observar e eu também. Duas criaturas já pagaram os pecados que cometeram.

     - Ah, sim? - perguntou Rosa de Sharon, palpitante.

     A voz da mulher morena ia subindo de tom e de intensidade.

     - Quer saber como foi? Era uma rapariga que estava à espera de um bebé, assim como você. Também tomou parte na tal representação e começou também a dançar daquela maneira indecente.- E a sua voz tornou-se fria e sinistra: - Ela começou a emagrecer, a emagrecer... e o bebé, quando nasceu, nasceu morto.

     - Meu Deus! - exclamou Rosa de Sharon, pálida como um espectro.

     - Nasceu morto, todo ensanguentado. É claro, que, depois disso, ninguém mais lhe falou. E ela teve de se ir embora daqui. Quem peca por vontade é assim que acaba. Sim, senhora! E havia outra ainda que fazia a mesma coisa. Essa também começou a emagrecer cada vez mais. E sabe o que aconteceu? Uma noite foi-se embora. Dois dias depois, estava de volta. Disse que tinha ido visitar não sei quem... Mas, quando voltou... já vinha sem o bebé. Sabe o que é que eu penso? Acho que o director a tirou daqui para ela ir fazer um aborto. Ele não acredita no pecado. Disse-mo, a mim. Disse-me que pecado é ter fome e sentir frio. Foi ele mesmo quem disse que nisso não via Deus, e que elas estavam magras porque não tinham que comer. Mas eu respondi-lhe à letra.- A mulher ergueu-se e deu alguns passos para trás. O olhar dela fuzilava. Apontou rigidamente o indicador na direcção do rosto de Rosa de Sharon. - Eu respondi-lhe: “Saia de ao pé de mim! Eu já sabia que o demónio andava à solta neste acampamento. Agora sei quem ele é. Saia, Satanás!” E, por Deus, ele foi-se embora. E tremia... parecia um verme! Depois, pediu-me: “Por favor, não faça as pessoas infelizes.” Infelizes? “E então as almas dessa gente? O que é que aconteceu àqueles bebés que nasceram mortos e àquelas infelizes pecadoras que representavam no teatro?” Ele ficou a olhar para mim, arreganhou os dentes, o malvado, e foi-se embora. Viu que tinha encontrado uma verdadeira serva de Deus. E eu disse-lhe ainda: “Eu, aqui, ajudo Jesus a ver o que se passa. E você e esses outros pecadores não hão-de escapar ao castigo”. - Apanhou o caixote da roupa suja. - Tenha cuidado. Eu já a preveni. Cuidado com a criança que traz na barriga; afaste-se do pecado! - E foi andando, titânica, com os olhos a luzir, de virtude.

     Rosa de Sharon acompanhou-a com o olhar. Baixou a cabeça e escondeu-a entre as mãos, desatando a soluçar. Uma voz suave soou junto dela. Ergueu os olhos, envergonhada. Era o director, pequeno, com o seu fato branco.

     - Não lhe dê importância - disse ele - não se preocupe, minha filha.

     Os olhos de Rosa de Sharon estavam cegos de lágrimas.

     - Mas eu também fiz o que ela condena - choramingou. - Também já dancei assim. Não quis confessar-lho, mas já fiz o mesmo. Foi em Sallisaw. Eu e o Connie.

     - Ora. Não se preocupe com isso - disse o director.

     - Mas ela assegura que eu vou perder o meu bebé...

     - Eu sei que ela costuma dizer isso. Ando sempre com os olhos nela. É boa mulher, mas tem a mania de fazer os outros infelizes.

     Rosa de Sharon sorveu as lágrimas.

     - Ela contou que conheceu duas raparigas que perderam os seus bebés neste acampamento.

     O director acocorou-se ao lado dela.

     - Olhe - disse - eu também as conheci. O que elas tinham era muita fome e muito cansaço. Trabalhavam demais. E viajavam aos solavancos sobre os buracos das estradas. Estavam doentes. A culpa não foi delas.

     - Mas ela disse...

     - Não se incomode com o que ela disse. Ela gosta de semear o desassossego.

     - Mas ela afirmou que o senhor é o demónio.

     - Eu sei que ela diz isso. É porque eu a não deixo andar a atormentar as pessoas. - Fez-lhe uma festa no ombro. - Não se incomode. Ela não sabe o que faz. - E afastou-se com ligeireza.

     Rosa de Sharon acompanhou-o com o olhar. Os ombros estreitos do homenzinho agitavam-se ao ritmo dos seus passos. Ela estava ainda a seguir-lhe o vulto delgado quando a mãe voltou, limpa e corada, com os cabelos bem penteados e húmidos, presos atrás. Trazia um vestido de ramagens e os velhos sapatos, todos gretados. Tinha também posto os brincos nas orelhas.

     - Pronto - disse a mãe. - Fiz como tu disseste. Meti-me debaixo do chuveiro e deixei a água quente cair sobre mim. E estava lá uma senhora que me disse que a gente podia fazer isso todos os dias se quisesse. E, olha, o comité das senhoras já veio?

     - Hum... Hum... - respondeu a rapariga, fazendo um sinal negativo.

     - Estiveste aqui este tempo todo e nem ao menos arrumaste a tenda.

     Enquanto falava, a mãe pegou nos pratos de folha.

     - Temos de pôr tudo em ordem - disse. - Vamos, anda. Pega nessa saca e varre com ela o chão. - Recolheu os pratos, colocou as panelas no caixote e levou-o para a tenda. - Faz as camas bem feitas! - ordenou. - Mas que bem que me fez aquela água quente!

     Rosa de Sharon obedeceu com indiferença.

     - A senhora acha que o Connie virá esta noite?

     - Talvez sim e talvez não. Sei lá!

     - Mas ele sabe onde a gente está, não sabe?

     - Sabe, sim.

     - Mãe, parece-lhe que o poderiam matar quando deitaram fogo ao acampamento?

     - Não! - disse a mãe confiadamente. - Ele sabe mexer-se quando quer. É ligeiro que nem um coelho e sabido que nem uma raposa.

     - Quem me dera que ele viesse!

     - Ora! Virá quando vier.

     - Mãe..

     - Eu queria era que tu trabalhasses.

     - Sim, mas... Mãe, acha que é pecado a gente dançar e representar no teatro e que eu por causa disso, posso ficar sem o meu bebé?

     A mãe interrompeu a tarefa e pôs as mãos na cintura.

     - Mas que conversa vem a ser essa? Tu nunca trabalhaste no teatro...

     - Eu não. Mas aqui, no acampamento houve uma rapariga que o fez e o bebé nasceu morto e cheio de sangue, como se fosse castigo.

     A mãe tinha os olhos fitos nela.

     - Quem foi que te disse isso?

     - Foi uma mulher que passou por aqui. Depois passou aquele homem baixo, de fato branco e afirmou que não tinha sido por causa disso.

     A mãe franziu a testa.

     - Rosasharn - disse ela - vê se deixas de te preocupar sempre contigo. Assim, ralas-te e acabas por chorar. Não sei que bicho te mordeu. A nossa família nunca foi assim. Aceitava de olhos secos tudo o que lhe acontecia. Aposto que foi o Connie quem te meteu essas ideias na cabeça. Esse rapaz tem a mania das grandezas. - E prosseguiu com severidade: - Rosasharn, tu és apenas uma pessoa, e, no mundo, há muita, muita gente. Deixa-te estar no teu lugar. Conheço uma porção de gente a quem meteram na cabeça essa história dos pecados e que acabaram por pensar que não valiam um chavo aos olhos do Senhor.

     - Mas, mãe...

      - Cala a boca e agora vai trabalhar. Tu não és nem tão importante nem tão insignificante que valha a pena incomodar o bom Deus com as tuas histórias. Eu acabo por te dar uma bofetada se continuas a preocupar-te tanto com a tua pessoa. - Varreu a cinza para dentro da cova do lume e varreu as pedras em volta. Então viu o comité a aproximar-se na rua. - Vai trabalhar, anda! – disse - aí vêm as senhoras. Vai trabalhar, para eu poder orgulhar-me de ti. - Não ergueu os olhos, mas sabia que o comité estava próximo.

     Não poderia haver dúvida alguma de que era o comité: três senhoras muito limpas e com os seus melhores vestidos; uma, magra, de cabelos que pareciam fios e de óculos de aros de metal; outra, gorducha, de cabelos grisalhos e crespos com uma boca pequena, de linhas suaves e doces, e a terceira, parecida com um mastodonte, de pernas e nádegas excessivamente grossas, seios volumosos e musculosa como um cavalo de tiro. O seu andar era o de uma pessoa segura de si. O comité atravessou a rua cheio de dignidade.

     A mãe achava-se propositadamente de costas para elas, como se estivesse distraída. Elas pararam, rodaram e ficaram em fila. E a mais gorda fez-se ouvir primeiro numa voz estrondosa:

     - Bom dia, a senhora é que é a senhora Joad, não é verdade?

     A mãe voltou-se com rapidez, como se tivesse sido apanhada de surpresa.

     - O quê? Ali, sim, sou eu. Como é que a senhora sabe o meu nome?

     - Nós somos do comité - respondeu a mulher alta. - Somos o comité das senhoras do departamento sanitário nº 4. Soubemos o seu nome no escritório.

     A mãe disse, confusa:

     - Ainda não estamos muito apresentáveis. Seria um grande prazer para mim se as senhoras pudessem sentar-se um bocadinho enquanto eu lhes fazia um pouco de café.

     A gorducha do comité atalhou:

     - Mas, Jessie, apresente-nos também à senhora Joad. Jessie é a presidente - explicou.

     Jessie disse cerimoniosamente:

     - Senhora Joad; esta aqui é Annie Littlefield; esta é Ella Summers e eu chamo-me Jessie Bullitt.

     - Muito prazer em conhecê-las - respondeu a mãe. - Não querem sentar-se? Aliás ainda não há lugar para se sentarem - acrescentou - mas vou já fazer um cafèzinho.

     - Não, não - disse Annie - não se incomode connosco. Nós demos um pulo até aqui apenas para a cumprimentar e ver como vai. Queremos que a senhora se sinta aqui plenamente à vontade.

     Jessie Bullitt observou com severidade:

     - Annie, agradecia-lhe que se não esquecesse de que a presidente sou eu.

     - Pois, não. Eu sei. Mas, para a semana que vem, sou eu.

     - Pois então, espere até à semana que vem. A gente reveza-se todas as semanas - explicou.

     - Mas não tomam um cafèzinho? - perguntou a mãe embaraçada.

     - Não, muito obrigada. - Jessie voltou a exercer a sua autoridade. - Primeiro, queremos mostrar-lhe o que há no departamento sanitário, e, depois, se a senhora quiser, pode entrar para o clube das senhoras e assumir um cargo qualquer. Claro que não é obrigada a entrar para o clube.

     - Isso custa muito caro?

     - Não custa nada. Apenas é preciso trabalhar um bocadito. E, quando a senhora for mais conhecida, até pode ser eleita para o comité - interrompeu Annie. - Jessie representa no comité o acampamento inteiro. É pessoa importante no comité.

     Jessie sorriu com orgulho.

     - Fui eleita por unanimidade - disse. - Bem, senhora Joad, acho que é altura de lhe mostrarmos como são as coisas aqui no acampamento.

     A mãe interrompeu:

     - Esta é a minha filha, Rosasharn.

     - Muito prazer - disseram as senhoras do comité.

     - É melhor ela vir também connosco.

     A enorme Jessie falou novamente; tinha um ar misto de dignidade e de benevolência. O seu discurso tinha o ar de ensaiado.

     - Não pense que a gente se quer meter na sua vida, senhora Joad. Neste acampamento há uma porção de coisas que são de uso colectivo. E nós temos leis feitas por nós mesmas. Bem, vamos até ao departamento. E uma das coisas de uso colectivo. Por isso, todos nós ternos de cuidar dele. - Foram andando vagarosamente até à secção dos tanques de lavar roupa, que eram em número de vinte. Oito estavam ocupados. As mulheres debruçavam-se sobre eles, a esfregar roupa suja, e, no chão muito limpo, de cimento, havia pilhas de peças de roupa torcidas. - A senhora pode servir-se desses tanques quando quiser - disse Jessie. - A única obrigação que tem é deixá-los limpos.

     As mulheres ergueram as cabeças num movimento de curiosidade. Jessie informou em voz alta:

     - Estas são as senhoras Joad e Rosasharn. Vieram morar aqui, connosco.

     As mulheres cumprimentaram a mãe, em coro, e a mãe fez uma pequena reverência desajeitada e disse:

     - Muito prazer em conhecê-las.

     Jessie foi adiante do comité até aos toilettes e chuveiros.

     - Já aqui estive - disse a mãe.- Até tomei um banho.

     - Fez muito bem. É para isso que eles aqui estão - volveu Jessie. - E o regulamento aqui é o mesmo: deixar tudo muito limpo. Todas as semanas se organiza um comité que está encarregue de lavar e de esfregar bem o chão todos os dias. E possível que a senhora também entre nesse comité. Cada uma de nós trás o sabão.

     - Temos de comprar sabão. Estamos sem nenhum - disse a mãe.

     A voz de Jessie tornou-se quase reverente:

     - A senhora já se tinha servido de uma coisa assim? - perguntou, apontando para os usos sanitários.

     - Já, sim senhora. Ainda hoje de manhã.

     Jessie suspirou:

     - Bom, então está bem.

     Ella Summers disse:

     - A semana passada...

     Jessie interrompeu-a, com severidade:

     - Senhora Summers, eu é que conto...

     A outra cedeu:

     - Perfeitamente.

     Jessie continuou:

     - A semana passada, quando a senhora era a presidente, eu não me metia nas suas explicações.

     - Pois sim, mas conte o que aquela senhora fez - volveu Ella.

     - Bem - disse Jessie. - Não é costume deste comité meter-se em mexericos, mas eu vou contar a coisa, sem citar nomes. A semana passada chegou ao acampamento uma senhora, e veio aqui antes que o comité lhe tivesse feito uma visita. Pois bem, ela pegou nas calças do marido; pô-las de molho na bacia da retrete e disse: - Livra! Mas isto é muito baixinho. Deviam fazer isto mais alto; a gente fica com as costas doridas de tanto se curvar. Porque é que não teriam feito isto mais alto? - O comité sorriu com um sorriso de superioridade.

     Ella interrompeu de novo:

     - E a tal mulher ainda disse mais. Disse assim: “Não dá para se pôr muita roupa suja de uma vez; é muito pequena.”

     Ella teve de enfrentar o olhar severo de Jessie.

     Esta prosseguiu:

     - Também temos os nossos aborrecimentos com o papel higiénico. O regulamento diz que ninguém pode tirar o papel higiénico daqui.- Deu um estalo agudo com a língua. - Todo o acampamento contribui para a compra do papel higiénico. - Calou-se por um instante, para confessar depois:- O nº 4 está a gastar papel higiénico demais. Alguém o rouba pela certa. Até na assembleia geral das senhoras, se discutiu o assunto. “O departamento nº 4 das senhoras gasta demasiado papel higiénico.” disseram. Imagine! Na assembleia geral!

     A mãe seguiu a narrativa com a respiração em suspenso.

     - Roubam o papel? Porquê? - perguntou.

     - Bem - disse Jessie - não é a primeira vez que isso acontece. Da outra vez, eram três meninas que tiravam o papel para fazer bonecas. Apanhámo-las em flagrante. Mas agora não podemos imaginar quem seja. Mal se coloca um rolo, logo se gasta. Imagine, até na assembleia tiveram de falar no caso! Uma senhora disse que a gente devia arranjar uma campainhazinha para tocar cada vez que o rolo de papel girasse. Assim, a gente poderia fiscalizar o papel que se gastava. - Sacudiu a cabeça. - Mas, francamente, não sei o que hei-de fazer. Andei preocupada com isso toda a semana. Alguém rouba o papel higiénico do nº 4.

     Da porta veio uma voz chorosa:

     - Senhora Bullit!

     O comité voltou-se.

     - Senhora Bullit, eu ouvi o que a senhora disse. - Uma mulher muito corada e cheia de suor apareceu à porta. - Não tive coragem de ir denunciar-me à assembleia. Não tive coragem, senhora Bullitt. Iam rir-se de mim.

     - De que é que a senhora está a falar? - perguntou Jessie.

     - Pois é... nós todas... pode ser que seja a gente. Mas nós não roubámos nada, não, senhora Bullitt.

     Jessie aproximou-se dela. O suor caía em grandes bagas da testa da mulher cheia de confusão.

     - Não ternos culpa, senhora Bullitt.

     - Diga de uma vez o que tem a dizer - ordenou Jessie. - Esta secção tem passado uma vergonha por causa da falta do papel higiénico.

     - Toda a semana... Não tivemos culpa... senhora Bullitt. A senhora bem sabe que eu tenho cinco filhas.

     - Sei, e que é que elas fizeram? - perguntou Jessie com voz ameaçadora.

     - Não fizeram nada. Apenas se serviram do papel. É a verdade, verdadinha.

     - Mas não tinham esse direito. Quatro a cinco folhas é o suficiente. Que é que elas têm?

     A mulher guinchou:

     - Era diarreia, senhora Bullitt. Todas as cinco com diarreia. Nós estamos mal de dinheiro. Comeram uvas verdes. Apanharam uma diarreia terrível. Tinham de correr para aqui de dez em dez minutos. - Começou a defender as filhas: - Mas não roubavam o papel, não, senhora.

     Jessie suspirou:

     - A senhora já devia ter contado tudo isso. Devia ter dito.

     O nosso departamento passou por uma vergonha, só porque a senhora não disse nada. Diarreia, toda a gente pode ter.

     A voz humilde ganiu:

     - Que é que eu havia de fazer? Não pude impedir que comessem uvas verdes. E cada vez é pior.

     Ella Summers explodiu:

     - Mas, e o auxílio? Elas deviam receber o auxílio!

     - Senhora Summers - atalhou Jessie - aviso-a pela última vez: a presidente não é a senhora, sou eu. - Voltou-se para a mulher, toda assustada e vermelha. - A senhora não tem dinheiro, senhora Joyce?

     A mulher baixou os olhos, envergonhada.

     - Não, senhora. Mas com certeza que brevemente encontraremos trabalho.

     - Não se incomode com isso - disse Jessie.- Não é nenhum crime. A senhora vai daqui direitinha ao armazém de Weedpatch comprar artigos de mercearia. O acampamento tem lá um crédito até vinte dólares. A senhora pode fazer compras no valor de vinte dólares. Depois, quando arranjar trabalho, devolve esse dinheiro ao comité central. Mas, senhora Joyce, a senhora sabia isto; como é que teve coragem de deixar as suas filhas passarem fome?!

     - A gente nunca aceitou esmolas - disse a senhora Joyce.

      - A senhora bem sabe que isto não é uma esmola - gritou Jessie, enfurecida. - Neste acampamento não há esmolas. Nenhum de nós as aceitaria. Bem, agora, a senhora trate de ir ao armazém fazer as suas compras. Traga a nota e entregue-ma.

     A senhora Joyce replicou com timidez:

     - Mas, e se a gente nunca mais estiver em condições de pagar? Há muito tempo que a gente não tem trabalho...

     - A senhora só paga se puder. Se não puder, isso não é da minha conta nem da sua. Houve um homem que deixou este acampamento já há mais de dois meses e agora mandou-nos o dinheiro que ficou a dever. A senhora não tem o direito de deixar as suas filhinhas passarem fome neste acampamento.

     - Sim, senhora - respondeu, submetida, a senhora Joyce.

     E apressou-se a desaparecer.

     Jessie, toda encolerizada, dirigiu-se ao comité:

     - Ela não tem o direito de se fazer fina. Não tem o direito de nos fazer uma coisa destas.

     - Está aqui há muito pouco tempo. Pode ser que não soubesse - disse Annie Littlefield. - Talvez que já lhe tivesse acontecido dirigir-se a uma organização de beneficência. Não, Jessie, não me mande calar agora. Também tenho o direito de falar. - Dirigiu-se à mãe. - Quando se recorre alguma vez à caridade, abre-se dentro de nós uma ferida que não sara nunca. Aqui não há esmolas, mas, quando alguma vez se foi forçado a aceitar uma esmola, nunca mais a gente esquece. Aposto que nunca lhe aconteceu isso, Jessie.

     - Não, nunca - disse Jessie.

     - Bem, a mim já me aconteceu - continuou Annie. - Foi no Inverno passado. A gente já estava quase a morrer de fome. Eu, meu marido e as crianças. E chovia. Alguém nos aconselhou a procurar o Exército de Salvação. - O seu olhar fuzilou. - A gente estava com muita fome; foi preciso pormo-nos de rojo para termos que comer. Acabaram com toda a nossa dignidade aqueles... tenho um ódio àquela gente que nem sei! Pode ser que à senhora Joyce também tenha acontecido qualquer coisa assim. Pode ser que ela pensasse que o que se dava aqui também era uma esmola. Senhora Joad, nós não consentimos isso no nosso acampamento. Não permitimos que ninguém dê seja o que for a outra pessoa. Quem quiser, pode fazer as suas ofertas ao acampamento, que, depois, o comité encarrega-se de distribuir tudo. Não queremos aqui esmolas. - A sua voz tornou-se rouca e violenta.- Odeio aquela gente - disse. - Nunca vi o meu marido tão humilhado, mas eles... o Exército de Salvação conseguiu desmoralizá-lo.

     - Já ouvi falar nisso - murmurou brandamente. - Já, já. Bom, temos de continuar a nossa volta com a senhora Joad.

     - Aqui é tudo tão bonito! - exclamou a mãe.

     - Vamos à sala de costura - sugeriu Annie. - Há lá duas máquinas de costura. Fazem-se lá vestidos e arranjam-se os cobertores. Talvez a senhora venha a gostar de trabalhar lá.

    

     Quando o comité chegara de visita à mãe, Ruthie e Winfield puseram-se sorrateira-mente fora de alcance.

     - E se nós fôssemos ouvir o que elas dizem? - propôs Winfield. Ruthie segurou-lhe o braço.

     - Não - respondeu ela - por causa dessas filhas da mãe é que a gente teve de se lavar. Não, quero ir.

     Winfield ameaçou:

     - Tu contaste aquilo da retrete à mãe. Pois agora, vou dizer-lhe o que chamaste àquelas senhoras.

     Uma sombra de medo cobriu o rosto de Ruthie.

     - Não faças isso. Eu contei porque sabia que tu não tinhas quebrado coisa nenhuma.

     - Isso é que tu não sabias! - gritou Winfield.

     Ruthie continuou:

     - Vou dar uma volta por aí.

     Foram caminhando pela rua formada pelas tendas e espreitando para dentro de todas, com um ar atoleimado e estranho. Ao fim do departamento, abria-se uma praça, onde haviam traçado uma marcação de “croquet”. Meia dúzia de crianças brincava, com ar de seriedade, na praça. Diante de uma tenda, uma senhora de idade, sentada num banco, tomava conta delas. Ruthie e Winfield apressaram o passo.

     - A gente pode brincar também? - perguntou Ruthie.

     As crianças olharam para ela. Uma menina de tranças disse:

     - Na outra partida já podem entrar.

     - Mas eu quero entrar já! - gritou Ruthie.

     - Agora não pode. Só quando terminar a partida. Ruthie saltou para cima da marcação, com modos ameaçadores.

     - Mas eu quero brincar já, pronto!

     A menina das tranças segurava o martelo com firmeza. Ruthie saltou-lhe em cima, esbofeteou-a, empurrou-a e arrebatou-lhe o martelo das mãos.

     - Eu não disse que ia brincar? - perguntou triunfalmente.

     A senhora de idade levantou-se do banco. Ruthie encarou-a com ar sombrio. A senhora disse:

     - Deixem-na brincar corno fizeram com o Ralph a semana passada.

     Todas as crianças puseram os martelos no chão e deixaram silenciosamente o recinto. Mantiveram-se a distância, a olhar com os olhos parados, inexpressivos. Ruthie lançou-lhes um olhar. Depois, deu com o martelo numa bola e correu atrás dela.

     - Vem cá, Winfield! - gritou ela. - Arranja um martelo. Mas logo se pôs a olhar, cheia de espanto.

     Winfield tinha-se juntado às crianças que, afastadas, observavam Ruthie, e também ele a olhava com olhos igualmente inexpressivos.

     Teimosa, Ruthie deu outra pancada na bola, levantando grande nuvem de poeira. Fingiu que se divertia extraordinariamente. E as crianças continuavam a ficar de lado, a observar. Ruthie juntou duas bolas e bateu-as simultaneamente. Virou as costas aos olhos que a observavam e não tornou a voltar-se. De repente, avançou para elas com o martelo na mão.

     - Agora venham brincar! - exigiu.

     As crianças afastavam-se silenciosamente, à medida que ela se ia aproximando. Por um instante cravou os olhos nelas; depois, atirou o martelo de pau ao chão e correu para a sua tenda, a chorar. As crianças voltaram então para o campo de jogo.

     A menina das tranças disse a Winfield:

     - Tu podes entrar na partida.

     A vigilante advertiu-as:

     - Se ela quiser voltar e se portar bem, vocês deixam-na entrar no jogo. Tu também eras assim mazinha, lembras-te, Amy?

     O jogo continuou, enquanto Ruthie na tenda da família Joad, chorava, sentindo-se profundamente infeliz.

    

     O camião rodava por bonitas estradas, passando por pomares, onde os pêssegos começavam a tingir-se de cor-de-rosa, por parreiras de cachos de uvas de um verde pálido, sob renques de nogueiras, cujos ramos se debruçavam até meio da estrada. Em cada portão de pomar, Al diminuía a marcha do camião. Em cada portão, havia o seguinte aviso: “Não temos necessidade de trabalhadores. Entrada proibida”.

     Al disse:

   - Mas, olhe, pai, há-de haver trabalho quando essas frutas estiverem maduras. É um sítio bem apanhado este. Antes que a gente lhes pergunte, eles já vão avisando que não há trabalho.

     O pai retorquiu:

     - Quem sabe? Talvez fosse melhor a gente entrar num sítio qualquer e perguntar se sabem onde há trabalho. Acho que era o que a gente devia fazer.

     Um homem de fato-macaco e camisa azuis ia caminhando à beira da estrada.

     Al parou o camião junto dele.

     - Faz favor... Pode-me informar onde é que há trabalho por aqui? - perguntou.

     O homem parou e sorriu com amargura. Faltavam-lhe os dentes da frente.

     - Eu não sei - respondeu. - O senhor sabe? Andei por aqui toda a semana e não consegui arranjar coisa nenhuma.

     - O senhor mora no acampamento do governo? - perguntou Al.

     - Moro, sim.

     - Então venha daí. Suba para o camião e vamos procurar trabalho juntos.

     O homem subiu por um dos lados de veículo e saltou para dentro.

     - Tenho a impressão de que não conseguimos arranjar trabalho nenhum. Pois, se nem sabemos onde o procurar! - disse o pai.

     - A gente devia ter falado com aquela gente do acampamento - observou Al. - Tio John, o senhor está melhor?

     - Estou mal - respondeu o tio John - dói-me tudo e é bem feito. Eu devia ir-me embora para um sítio onde não fizesse recair sobre a família o peso dos meus pecados.

     O pai colocou a mão sobre o joelho do tio John.

     - Escuta, John, tu não te vais embora nem coisa nenhuma. A família tem-se ido desfazendo. O avô e a avó morreram, Noah e Connie fugiram e o pregador foi preso.

     - Tenho um palpite de que a gente ainda vai encontrar o Casy - disse o tio John.

     Os dedos de Al brincavam com a bola da ponta da alavanca de mudanças.

     - O senhor está muito mal para ter palpites - disse. - O diabo leve tudo isto. É melhor a gente voltar, falar lá no acampamento e saber onde devemos procurar trabalho. Isto assim é o mesmo que procurar agulha em palheiro. - Fez parar o veículo, debruçou-se para fora e gritou para trás: - Olhe aqui, ó! Vamos voltar para o acampamento, para sabermos onde é que há trabalho por aqui. Não vale a pena gastar gasolina à toa.

     O homem debruçou-se por cima do taipal da carrosserie.

     - Está bem - concordou. - Eu já tenho os presuntos gastos de tanto calcorrear. E ainda não comi nada hoje.

     Al deu a volta no meio da estrada, para regressar ao acampamento.

     - A mãe vai ficar danada, principalmente por o Tom ter arranjado trabalho com tanta facilidade e a gente não - disse o pai.

     - Pode ser que ele afinal não tivesse arranjado - respondeu Al. – Talvez tenha saído para procurar trabalho, como nós. Eu só queria era achar emprego numa garagem. Ia aprender depressa as coisas porque gosto deste trabalho.

     O pai resmungou qualquer coisa; depois todos se mantiveram silenciosos até chegarem, ao acampamento.

    

     Quando o comité a deixou, a mãe sentou-se num caixote, diante da tenda dos Joads, olhando para Rosa de Sharon com uma expressão acanhada.

     - Pois é isto - disse. - Sim, senhora; há muito tempo que não era assim tão bem tratada. Aquelas senhoras foram muito gentis, não achas?

     - Tenho de ir trabalhar para a enfermaria - atalhou Rosasharn - disseram elas. - É da maneira que fico a saber tudo o que diz respeito aos bebés...

     A mãe abanou a cabeça, com ar de quem se encontrava .maravilhada.

     - Que bom se a gente encontrasse trabalho e entrasse algum dinheiro! - Os seus olhos perdiam-se distantes. - Se eles trabalhassem e nós fizéssemos o mesmo aqui, com esta gente tão boa, ao pé... Logo que puder, compro um fogãozinho bonito. Não são nada caros. Depois, a gente comprava uma tenda maior, com espaço suficiente. E depois arranjávamos colchões. Esta tenda ficava só para a gente dormir. Sabes? Vamos ao baile no sábado à noite. Dizem que a gente pode levar pessoas amigas se quiser. Que pena não termos amigos para convidar, não achas? Talvez os homens tenham a quem convidar...

     Rosa de Sharon olhou rua abaixo.

     - Olhe, aquela mulher disse que eu ficava sem o meu bebé ... - começou ela.

     - Vê se acabas com isso - advertiu a mãe.

     Rosa de Sharon disse baixinho:

      - Eu estou a vê-la. Lá vem ela, suponho... Mãe, não a deixe ...

     A mãe voltou-se e encarou a figura que se aproximava.

     - Como vai? - perguntou a mulher. - Sou a senhora Sandry, Lisbeth Sandry. Já falei com a sua filha hoje de manhã.

     - Como vai? - perguntou a mãe por seu turno.

     - A senhora está de bem com Deus?

     - Muito bem - respondeu a mãe.

     - Redimida dos seus pecados?

     - Sim.

     O rosto da mãe conservava-se fechado, com ar de quem está na defensiva.

     - Muito bem. Fico muito contente por saber isso - volveu Lisbeth.- Há por aqui muitos pecadores. A senhora está numa terra horrível. Tudo por aqui é maldade. Gente má. Acções medonhas; pessoas como nós, com sangue do cordeiro, dificilmente podem suportar uma coisa assim. Estamos completamente rodeados de pecadores.

     A mãe corou ligeiramente, mas cerrou com firmeza os lábios.

     - Pois a mim parece-me que esta gente daqui é muito boa - respondeu.

     A senhora Sandry arregalou os olhos.

     - Boa?! - exclamou. - A senhora acha que uma gente que dança assim de maneira tão indecente, pode ser boa?! Pois olhe, a sua alma eterna não poderá ter sossego neste acampamento. Ontem de noite fui a Weedpatch tomar parte num culto. Sabe o que disse o pregador? Disse assim: “Reina a maldade nesse acampamento.” E mais: “O pobre ali aspira a ser rico.” E disse ainda: “Eles dançam coisas imorais, quando deviam lamentar-se dos seus pecados, gemer e chorar.” Sim, senhora, foi o que ele disse. “Cada um dos que não estão aqui presentes não passa de um pecador de alma negra”, disse ele. Fazia bem ouvi-lo falar assim. Pode crer. E a gente sabia que estava redimida, salva, porque não entrou naquelas danças.

     As faces da mãe tingiram-se de cor de púrpura. Ergueu-se inteiramente e encarou a senhora Sandry.

     - Suma-se! - gritou. - Suma-se daqui imediatamente, antes que eu me torne uma pecadora, dizendo-lhe para onde deve ir, ouviu? Vá lá para os seus choros e gemidos.

     A senhora Sandry fitou-a boquiaberta. Deu um passo para trás. E então mostrou-se enfurecida.

     - Pensei que vocês fossem cristãos!

     - E é que somos - exclamou a mãe.

     - Não, vocês não são. O que vocês são é pecadores, que hão-de arder todos no inferno. E hei-de falar de vocês na reunião, isso é que eu hei-de! Até já estou a ver a vossa alma negra a arder. Vejo até uma criança inocente a arder no ventre desta rapariga.

     Um grito agudo rompeu dos lábios de Rosa de Sharon. A mãe, baixando-se, apanhou um pau.

     - Suma-se daqui! - disse friamente - e não volte cá mais. já conheci gente da sua espécie. Vamos, vá, ponha-se a andar e depressa! - A mãe avançou em direcção à senhora Sandry.

     A mulher recuou um momento e, de repente, atirou a cabeça para trás e rompeu num choro que mais parecia um uivo. Tinha os olhos revirados. Os ombros e os braços bamboleavam, frouxos, e, do canto da boca, escorria-lhe uma saliva grossa. Uivava sem descanso; eram uivos profundos, apavorantes de animal selvagem. Homens e mulheres acorreram de outras tendas e aproximavam-se, assustados e silenciosos. Lentamente, a mulher foi vergando os joelhos. Os uivos foram degenerando num lamento borbulhante e tremido. Caiu de lado, com os braços e as pemas torcidas. Via-se-lhe o branco dos olhos.

     Um homem arriscou em voz baixa:

     - O espírito. Ela recebeu o espírito.

     A mãe não fazia o menor movimento, fixando o vulto torcido no chão.

     O director ia passando, por acaso, no local.

     - Há alguma novidade?.

     A multidão abriu alas, deixando-o passar. Ele lançou um olhar à mulher.

     - É para lamentar - disse. – Algum de vocês quer levá-la para a tenda?

     A multidão, silenciosa pôs-se a arrastar os pés. Dois homens curvaram-se, levantando depois a mulher, um agarrou-a por debaixo dos braços e outro segurou-a pelos pés. E levaram-na seguidos do povo, que os acompanhava vagarosamente.

     Rosa de Sharon arrastou-se para dentro da sua tenda; deitou-se no chão e cobriu o rosto com um cobertor.

     O director olhou para a mãe e o seu olhar desceu até ao pau que ela ainda segurava. Sorriu com um sorriso fatigado.

     - A Senhora bateu-lhe? – perguntou.

     A mãe contemplava ainda a multidão, que dispersava lentamente.

     - Não, mas era capaz disso. É a segunda vez hoje que ela deixa a minha filha quase maluca.

     - Não vale a pena bater nessa mulher – disse o director. - Ela não regula bem, é o que é; não regula bem. – E acrescentou baixinho: - Só quero que ela se vá embora daqui, ela e a família. Ela, só, provoca mais complicações do que todo o resto do acampamento.

     A mãe acalmara-se.

     - Se ela aqui voltar, ainda acabo por lhe bater. Não sei se me poderei conter. Não lhe consinto que me rale a pequena outra vez.

     - Não há perigo, Senhora Joad. A senhora não a tornará a ver - garantiu o director. - Ela só costuma maçar as pessoas recém-chegadas. Não volta aqui, não. Pensa que a senhora, é uma pecadora.

     - Bem, e é o que eu sou, na verdade - respondeu a mãe.

     - Naturalmente. Todos nós somos pecadores, mas não como ela supõe. Ela não regula bem, senhora Joad.

     A mãe olhou-o com gratidão. Depois disse:

     - Ouviste isto, Rosasharn? Ela não regula bem; é maluca!

     Mas a rapariga nem levantou a, cabeça.

     A mãe prosseguiu:

     - Eu já o vou avisando. Se ela voltar, não respondo por mim. Sou capaz de lhe bater, isso é que eu sou!

     Ele esboçou um sorriso contrafeito.

     - Compreendo muito bem o que a senhora sente. Mas veja se evita, veja se evita. - Foi-se afastando vagarosamente, em direcção à tenda para onde a senhora Sandry fora transportada.

     A mãe entrou na tenda e sentou-se ao lado de Rosa de Sharon

     - Olha - disse-lhe. A rapariga permaneceu imóvel. Suavemente, a mãe ergueu o cobertor que lhe cobria o rosto. - Aquela mulher é meio doida - acrescentou. - Não acredites nessas coisas que ela disse.

     Rosa de Sharon cochichou apavorada:

     - Quando da falou sobre essa coisa de arder... eu senti-me mesmo a, arder...

     - Nada. daquilo é verdade - insistiu a mãe.

     - Sinto-me tão cansada! - murmurou a rapariga. - Estou farta de tudo o que me tem acontecido. Quero dormir, quero dormir.

     - Então dorme. Aqui é tudo muito bom. Podes dormir à vontade.

     - Mas, e se ela voltar?

     - Ela não volta - disse a mãe. - Fico sentada ali do lado de fora e não a deixo voltar. Agora descansa porque não tarda que tenhas trabalho na creche.

     A mãe ergueu-se com esforço e sentou-se à entrada da tenda. Tinha tomado lugar num caixote e estava com os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo na concha das mãos. Via o formigar de vida do acampamento; ouvia o vozear das crianças e o martelar num aro de ferro, mas o seu olhar perdia-se ao longe.

     Ao voltar da estrada, o pai foi dar com ela nessa posição. Acocorou-se ao seu lado. Lentamente, ela virou os olhos para ele.

     - Encontraram trabalho? - perguntou.

     - Não - respondeu ele, envergonhado. - Procurámos mas nada conseguimos.

     - Onde está o Al, o John e o caminhão?

     - Pararam ali adiante, a fazer um conserto. A gente queria arranjar uma ferramentas emprestadas, mas o homem aconselhou-nos a que fizéssemos a reparação ali mesmo.

     A mãe disse tristemente:

     - Isto é tudo tão bonito! A gente aqui podia ser bem feliz!

     - Sim, se encontrasse trabalho.

     Sentindo instintivamente a tristeza que a empolgava, ele ficou-se a estudar-lhe o rosto.

     - Porque te queixas? Se aqui é tudo tão bonito, não tens razão para te lamentares.

     Ela contemplou-o por um instante e depois cerrou lentamente os olhos:

     - E engraçado, não é? Durante todo o tempo em que andávamos aos solavancos pelas estradas, não pensei em nada. E agora, que encontro aqui uma gente tão boa, qual é a primeira coisa que faço? Pensar em coisas tristes... estou a lembrar-me daquela noite em que o avó morreu e nos o enterrámos. Andava cheia de sacudidelas e de caminhadas e não pensava tanto. Mas chegámos e é pior, afinal. Lembro-me também da avó e do Noah, quando se foi embora assim, daquela. maneira! Ir-me embora, rio abaixo! Todas essas coisas faziam parte de tudo, mas agora vêm outra vez. A avó, uma indigente... enterrada como indigente! Agora é que custa. Custa muito. E o Noah, que se foi embora rio abaixo... Ele nem sabia o que iria encontrar. E nós também não; nunca mais saberemos se é vivo ou morto. Nunca mais. E o Connie que fugiu! Antes, não dava tanto valor a tudo isto. Mas agora vejo tudo isto. E eu devia sentir-me feliz por estar num sítio assim tão lindo. - O pai observava-lhe o mexer dos lábios e os olhos completamente fechados. - Agora vejo bem as montanhas agudas como dentes velhos, ali para aquelas bandas do rio por onde o Noah seguiu. Lembro-me bem do mato onde o avô foi enterrado. Lembro-me daquele cepo de lá de casa; ainda tinha uma pena grudada. estava todo cheio de sulcos, e negro de sangue de galinha.

     - Vi hoje uns patos bravos - disse o pai, assumindo o tom da mãe. - Voavam muito alto, para os lados do sul. Parecia que iam cheios de frio. E vi uns melros poisados nos fios e pombas nas cercas.- A mãe abriu os olhos e encarou-o. Ele prosseguiu: - Vi um turbilhãozinho de vento que parecia um homem a girar em volta de um campo. E os patos selvagens, que voavam cada vez mais para o sul...

     A mãe sorriu:

     - Tu lembras-te? - perguntou. - Lembras-te do que a gente costumava dizer lá em casa? “O Inverno, este ano, vai chegar cedo” dizíamos nós quando víamos os patos a voar assim. Era costume dizer-se isso e o Inverno vinha quando tinha de vir. Mas nem por isso a gente deixava de dizer: “Este ano, ele vem cedo”. Nem sei o que é que nós queríamos dizer com aquilo!

     - Eu vi os melros nos fios - tornou o pai. - Estavam uns pertinho dos outros. E os pombos... não há nada como um pombo para ficar quieto... quando está no arame das cercas. Às vezes, são dois, lado a lado... E aquele ventinho redemoinhante... da altura de um homem, a dançar pelo campo fora! Sempre gostei de ver aqueles redemoinhos do tamanho de um homem.

     - Era melhor não pensar mais na nossa casa - lembrou a mãe. - Já não é a “nossa casa”. Quem me dera poder esquecê-la! E ao Noah também.

     - Ele nunca regulou bem da cabeça... quer dizer... bem, a culpa foi minha.

     - Já te disse que não continues com isso metido na cabeça. Se não fosse isso, talvez nem tivesse vivido...

     - Mas eu devia saber...

     - Pára com isso agora - pediu a mãe. - Noah era esquisito. Quem sabe? Talvez ele tenha sido feliz, à beira do rio. Talvez seja melhor assim. A gente não se deve preocupar. Aqui tudo é muito bonito, e pode ser que vocês encontrem trabalho depressa.

     O pai apontou para o céu.

     - Olha, lá vêm mais patos selvagens. Que belo bando! Mãe, “o Inverno vai chegar cedo este ano”. A mãe deu uma risada.

     - Às vezes a gente faz coisas e não sabe porquê.

     - Lá vem o John - anunciou o pai. - Vem cá, John, senta-te aqui!

     O tio John acercou-se deles e acocorou-se em frente da mãe.

     - A ente não encontrou nada - disse. - Andámos à toa. Olha, o Al quer falar contigo. - Precisa de um pneu novo, parece. O outro tem já a borracha toda gasta, diz ele.

     - Oxalá que ele encontre um pneu barato. A gente tem já muito pouco dinheiro. Onde está o Al?

     - Está lá em baixo, na primeira esquina, à direita. Disse que o pneu é capaz de rebentar, e a câmara-de-ar também, se a gente não comprar um novo.

     O pai afastou-se vagarosamente, os seus olhos iam seguindo o V gigante que os patos formavam no céu.

     O tio John apanhou uma pedra do chão, deixou-a cair e tornou a apanhá-la. Não olhava para a mãe.

     - Não há trabalho – disse.

     - Vocês ainda não percorreram tudo - respondeu a mãe.

     - Não, mas por toda a parte há cartazes, dizendo que não precisam de trabalhadores.

     - Pois sim, mas o Tom arranjou trabalho. Ele ainda não voltou.

     O tio John insinuou:

     - Quem sabe? Talvez também se tenha ido como o Connie e o Noah.

     A mãe lançou-lhe um olhar sobressaltado, mas logo os seus olhos se adoçaram.

     - Há coisas que a gente pressente logo - disse ela.- Há coisas de que a gente tem a certeza. Tom arranjou trabalho e, à noite, estará de volta. Isso te garanto eu. - Sorriu com satisfação. - Ele é um bom rapaz, não é? - perguntou. - Uma jóia de rapaz!

     Automóveis e caminhões regressavam ao acampamento, e os homens dirigiam-se em grupos ao departamento sanitário. Cada um deles levava no braço um fato-macaco e uma camisa lavada.

     A mãe voltou à realidade:

     - John – exclamou - vê se encontras o pai. Diz-lhe para ir ao armazém. Preciso de feijão e de açúcar... e... e de um pedaço de carne para assar e cenouras... e... diz ao pai para ele comprar uma coisa boa, seja o que for, contanto que seja realmente boa... para hoje. Esta noite, temos de comer uma coisa boa.

    

     O povo em êxodo, correndo atrás do trabalho, procurando a vida encarniçadamente, esse povo também procurava o prazer; andava à cata de prazeres, fabricava prazeres e sentia fome de divertimentos. Às vezes, o seu prazer consistia em conversar; distraíam-se com ditos engraçados. E acontecia que, nos acampamentos, à beira da estrada ou nos fossos dos rios ou à sombra dos sicómoros, o narrador de histórias se revelava, e a gente reunia-se à luz mortiça das fogueiras, para ouvir os mais dotados. E o interesse com que os homens ouviam as histórias fazia com que essas histórias se tornassem grandiosas.

     Eu estive como recruta na guerra contra Jerónimo...

     E o povo escutava, e nos seus olhos fixos reflectiam-se as brasas prestes a extinguir-se.

     Aqueles índios eram finos que nem um coral... maus corno cobras e silenciosos como o diabo, quando queriam. Eram capazes de correr por cima de folhas secas sem fazer barulho. Ora experimentem fazer o mesmo, a ver se são capazes...

     E o povo escutava, pensando nos estalidos das folhas debaixo dos pés.

     Depois, houve a mudança de tempo e o céu cobriu-se de nuvens. Chegaram no momento oportuno. Vocês já ouviram dizer que o exército servisse para alguma coisa? Pode-se-lhe dar dez oportunidades, que não ganha nada com isso. Perde-as todas. Precisou sempre de juntar dez regimentos para bater cem homens de coragem. Foi sempre assim.

     E o povo escutava, e as suas feições imobilizavam-se, à força de atenção. Os narradores de histórias, concentrando a atenção geral no que diziam, falavam num ritmo entusiástico, porque sentiam que usavam de termos grandiosos porque as narrativas eram grandiosas e com elas se sentiam engrandecidos os que escutavam. Urna vez, um rapaz corajoso pôs-se no cume de uma montanha contra o Sol. Sabia que todos o viam. Abriu os braços e assim se deixou ficar, contra o Sol, nu corno a madrugada. Talvez estivesse louco. Não sei. Deixou-se ficar assim, de braços abertos.... parecia uma cruz. Quatrocentos metros. E a nossa gente... bem, ergueu a vista e esticou o dedo bem molhado, para descobrir a direcção do vento e deixou-se ficar deitada sem coragem de atirar. É possível que o índio soubesse disso; é possível que ele sentisse que a gente não era capaz de atirar. Todos ficaram deitados no chão, com as carabinas na mão, sem ao menos fazerem pontaria. E todos ficaram a olhar para o índio. Ele tinha uma fita na testa uma pena. Eu vi. E estava nu como o Sol. Durante muito tempo ficámos assim, deitados, a olhar, e ele nem se mexia. O capitão estava com uma raiva que nem vocês imaginam. - Atirem, seus idiotas, seus covardes, atirem! - berrou ele. - E nós ficámos deitados na mesma.- Vou contar até cinco e depois tomo nota dos vossos nomes - gritou o capitão. Sim, senhor. Então, a gente apontou as carabinas muito devagarinho e cada um estava à espera que o outro atirasse primeiro. Nunca na vida me senti tão triste como daquela vez. Fiz. pontaria à barriga do rapaz, que é o único sítio onde o índio é vulnerável, e... então, o índio caiu de costas e veio a rolar pela montanha abaixo. Nós, depois, fômo-lo ver. Não era tão alto como parecia, lá no cume da montanha. E estava todo ferido. Tinha o corpo todo golpeado. Tu já viste o faisão, firme, lindo, com as penas pintadinhas e que até os olhos têm cheios de cores? Pumba! Estragaste qualquer coisa que valia mais do que tu e apanhas do chão um farrapo, todo torcido e ensanguentado. E, quando começares a comê-lo, sabe-te mal, porque hás-de sentir que destruíste uma coisa que nunca mais podes conservar.

     E o povo concordava com a cabeça, e, nessas alturas, parecia que o lume se avivava e que projectava uma réstea de luz nos olhos que perscrutavam o próprio eu.

     De braços abertos, contra o Sol. E ele parecia grande... como Deus.

     Acontecia também que um homem, desviando vinte cents da comida para o prazer, fosse a um cinema em Marysville ou Tulare, em Geres ou Mountain View. E voltava, então, para o acampamento da beira-rio com o cérebro cheio de recordações. E contava o que tinha visto:

     E aquele sujeito rico fingiu que era pobre e a rapariga rica também fingiu que não tinha dinheiro. Encontraram-se os dois 4uma casa de comes e bebes.

     Porquê?

     Não sei porquê, mas foi assim.

     Para que é que fingiram que eram pobres?

     Naturalmente estavam fartos de ser ricos.

     Isso é aldrabice!

     Afinal, tu queres ouvir a história ou não queres? Continua, então. Eu quero ouvir a história, claro. Mas eu, se fosse rico... ia era comprar tantas costeletas de porco que as havia de pendurar à cintura; pendurava-as e comia-as umas a seguir das outras. Mas continua.

     Pois é, cada um deles pensava que o outro era pobre. Então são presos, vão parar à cadeia e não podem sair porque, se não, lá ia cada um deles descobrir a verdade: que o outro era rico. E o carcereiro maltratava-os porque também pensava que eles eram pobres. Só queria que tu visses a cara do carcereiro quando descobriu a verdade! Não foi nada, quase que ia perdendo os sentidos.

     Mas porque é que eles foram presos? Porquê? Porque estavam numa reunião de radicais e não eram radicais nem nada. Estavam lá por acaso. E não queriam casar um com o outro por causa do dinheiro, compreendes?

     Então esses filhos da mãe começaram a enganar-se logo de começo, hein?

     Sim, mas na fita, faziam tudo aquilo com boas intenções; eram muito amáveis para toda a gente.

    

     Uma vez eu fui ao cinema e vi uma pessoa tal qual como eu. Mas era mais do que eu... maior do que eu... e tudo lá era maior.

     Bom, eu já tenho bastantes ralações. Quero é ver-me livre delas e ver coisas diferentes. Contanto que sejam coisas em que a gente possa acreditar...

     Então eles casaram-se e descobriram toda a verdade. E também descobriram a verdade aqueles que tinham sido ruins para eles. Havia lá um tipo que estava convencido de que valia alguma coisa; percebia tudo... pois ele quase perdeu os sentidos quando viu o outro entrar todo bem vestido, de chapéu alto na cabeça. Quase desmaiou, sim, senhor. E também houve um documentário daqueles soldados alemães com passo de ganso. Era de rebentar a rir.

    

     E sempre que um qualquer arranjava algum dinheiro, tinha o recurso de se embriagar. Então, acabavam-se os maus bocados e tudo era quente, confortador. Acabava-se a solidão, pois que o cérebro se povoava de amigos e uma pessoa conseguia encontrar os seus amigos e aniquilá-los. O homem estava sentado num buraco e a terra, debaixo dele, tornava-se macia. A desgraça doía menos e o futuro deixava de constituir uma ameaça. A desgraça dois menos e o futuro deixava de constituir uma ameaça. E a fome não rondava perto; o mundo era suave e sem complicações e o homem podia chegar onde quisesse. As estrelas passavam maravilhosamente perto e o céu era um encanto! A morte era um amigo, e o sono, o irmão da morte. Voltavam os tempos antigos... uma rapariga de pés bonitos com quem se dançava na terra... um cavalo... oh, há tempo que isso aconteceu! Um cavalo e uma sela. Uma sela de couro trabalhado. Quando foi que isso aconteceu? Eu devia era arranjar uma rapariga com quem conversar. Seria tão bom! E até – quem sabe? – talvez eu pudesse dormir com ela. Mas que calor que aqui faz! As estrelas tão pertinho da gente e a tristeza e o prazer tão perto um do outro; a mesma coisa, no fundo. Só queria era estar sempre bêbedo. Quem foi que disse que isto era uma bodega? Quem é que se atreve a dizer isso? Os pregadores, mas esses também têm a sua espécie de bebedeira. As mulheres magras e estéreis, mas elas são tão infelizes que nem sabem o que isso é... Os reformadores, mas estes não conhecem a vida suficientemente de perto para poderem julgá-la. Não, senhor... As estrelas estão muito próximas, tão próximas, e eu pertenço à confraria do mundo. E tudo é sagrado, tudo, até eu mesmo.

    

     Uma gaita é fácil de se trazer. Tira-se do bolso de trás das calças e bate-se com ela na palma da mão para desalojar a poeira, o cotão do bolso e os fiapos de tabaco. Bom, agora está em condições. Pode-se fazer tudo com uma gaita; pode-se-lhe arrancar um som agudo e penetrante e acordes simples ou uma melodia de acordes rítmicos. Pode-se moldar a música com as mãos em concha, fazendo-a lamentar-se, chorar como uma gaita escocesa, torná-la volumosa, cheia como um órgão ou fina e amarga como a das flautas das montanhas. E pode-se tocar e guardar o instrumento no bolso. Tê-lo sempre no bolso, sempre acompanhando a gente. E pode-se tocar e aprender novos truques, novos métodos de se moldar o som com as mãos, modulá-lo com os lábios, sem precisar de ninguém que nos ensine essas coisas. E pode-se fazer experiências às apalpadelas... sozinho na sombra de uma tarde, ou então, depois do jantar, à entrada da tenda, enquanto as mulheres lavam a loiça. Pode-se bater com o pé no chão, vagarosamente para marcar o compasso. As sobrancelhas erguem-se e abaixam-se, acompanhando o ritmo. E, se se perde o instrumento, ou se alguém o quebra, o prejuízo não é lá muito grande. Pode-se comprar outra gaita por um quarto de dólar.

     Um viola, já tem mais valor. Tem de se aprender. Os dedos da mão esquerda têm de calejar. O polegar da mão direita também precisa de ter calosidades. Esticam-se os dedos da mão esquerda como patas de aranha, para acertar bem nas marcações das cordas.

     Este violão era de meu pai. Eu era de um tamanho de um percevejo quando ele me ensinou. E, quando eu já sabia tocar como ele, o meu pai raramente o fazia. Costumava sentar-se à soleira, escutando-me e batendo com os pés. Às vezes, eu queria meter coisas da minha lavra no meio da música e ele ficava arreliado até que eu conseguia atinar com a invenção; então ele ficava aliviado. “Toca – dizia. – Toca qualquer coisa bonita.” Pois é. Este violão é dos bons. Olha como já está todo arranhado. Foi um milhão de canções que já tocaram nele, um milhão! Foi esse milhão de canções que afinou assim a madeira. Qualquer dia, parte-se que nem uma casca de ovo. Não se pode consertar, porque perde o som. Às vezes, quando toco, de noite, oiço uma gaita na tenda do vizinho a acompanhar-me. E é tão bonito, o conjunto!

     O violino, esse, é difícil de aprender. Poucos sabem tocar violino. As cordas não estão marcadas. Não há professores.

     Eu conversei com um velho, a ver se ele me ensinava. Mas o diabo do velho não me quis ensinar certos truques. Disse que era segredo. Mas eu pus-me a observá-lo e acabei por ver como é que ele fazia.

     Um violino é agudo como a brisa. Olha, era assim... rápido, nervoso e agudo.

     Não é grande coisa este violino que eu tenho. Custou-me dois dólares. Um sujeito disse-me que há violinos com mais de quatrocentos anos de idade e que então se tornam aveludados como o whisky. E disse que custam cinquenta e sessenta mil dólares. Não sei, parece mentira. Tu guinchas um pouco, hein, velho safado? Bom, vocês querem dançar, não é? Vou pôr resina neste arco, bastante resina, para correr bem. Então é que ele vai berrar! Até é capaz de se ouvir a uma milha de distância.

     E esses três instrumentos tocam à noite: gaita, violão e violino. Tocam músicas de dança, batendo o ritmo, as cordas fortes do violão palpitando como um coração, a acompanhar os acordes agudos da gaita e o gemer do violino. As pessoas chegam-se todas. Não resistem. Tocam, agora, o “Chicken Reel”, a dança dos pintos, e os pés batem o compasso e um rapaz magro dá três passos rápidos, com os braços pendentes e frouxos. Fecha-se a roda e começa a dança e os pés batem com força, assentando os calcanhares. As mãos giram e agitam-se. Os penteados desmancham-se; a respiração torna-se ofegante. Toca a inclinarem-se para o lado!

     Veja aquele tipo do Texas, aquele das pernas compridas e bambas. Bate quatro vezes com o pé a cada compasso. Nunca vi um sujeito dançar assim. Olhe para ele, a fazer rodopiar aquela rapariga de Cherokee, aquela do rosto corado, com os dedos grandes dos pés para fora! Olhe como ela está a arfar, peito para fora e peito para dentro! Parece que está cansada, hein? Qual cansada, qual o quê! O tipo do Texas tem os cabelos caídos para os olhos e a boca escancarada. Quase que nem pode respirar. Mas continua a bater quatro vezes com os pés a cada compasso. E não larga a pequena de Cherokee.

     O violino guincha e o violão ribomba. O homem da gaita tem a cara vermelha como o diabo. O rapaz do Texas e a moça de Cherokee têm a língua de fora, como um cachorro em dia de calor e ainda continuam a saltar e a dar voltas. Os velhos estão de pé, sorriem com um leve sorriso e batem com o pé no chão, marcando o ritmo da música.

     Foi na escola, lá na minha terra. A Lua caminhava para o oeste. E nós os dois andámos os dois - ela e eu. A gente não falava, nem palavra dizia. Tínhamos a garganta seca. Havia um monte de feno ali pertinho. A gente parou e deitou-se nele.

     Olhe aquele rapaz do Texas e a rapariga. Foram para o escuro; julgam que ninguém os tinha visto mas eu vi-os. Oh, meu Deus! Se eu ainda pudesse fazer como aquele rapaz do Texas! Daqui a pouco, a Lua nasce. Vi como o pai da rapariga se levantou para reter os dois. Mas depois desistiu. Ele sabia que era inútil. Era o mesmo que querer impedir a chegada do Outono, ou não deixar a seiva ser absorvida pelas plantas. E, daqui a pouco, a Lua nasce.

     Toca mais um pouco... Toca aquela canção. “Quando eu andava pelas ruas de Laredo”.

     As fogueiras vão-se apagando. Não vale a pena atiçá-las outra vez. Para quê? A velha Lua não tarda a nascer.

    

     À margem de uma vala de irrigação, um velho pregador gesticulava, enquanto o povo soltava gritos. O pregador corria para cá e para lá, com a fúria de um tigre e fustigava o povo com as suas palavras; o povo arrastava-se pelo chão, a chorar e a uivar. Ele media aquela gente com o olhar; calculava-lhe a disposição: experimentava nela o seu poder. E, quando toda aquela gente se torcia pelo chão, ele inclinava-se e erguia-os, revelando grande força, um por um, nos braços e gritava: “Recebe-os, Jesus” e atirava com eles à água. Uma vez todos dentro da vala, com água até à cintura, a olhar o mestre com olhos assustados, ele ajoelhava-se na margem e rezava por eles. Rezava, implorando que todos eles, homens e mulheres, rastejassem pelo chã o, a chorar e a uivar. E os homens e as mulheres punham-se a escutar, com a roupa colada ao corpo e a pingar água. Voltavam depois, para o acampamento, com os sapatos a chapinhar, fazendo plac-plac, falando baixinho, como maravilhados.

     Estamos redimidos, diziam. Temos a alma branca como neve. Nunca mais podemos pecar.

     E as crianças, molhadas e assustadas, cochichavam entre si:

     Estamos redimidos. Não vamos pecar nunca mais.

     Só queria saber que pecados serão esses para os cometer.

     O povo, em êxodo, procurava, humilde, os prazeres.

    

     Sábado, pela manhã, os tanques de lavar a roupa viam-se todos ocupados. As mulheres lavavam vestidos, vestidos de algodão cor-de-rosa ou estampados de flores e penduravam-nos a secar ao sol e esticavam bem os tecidos para os amaciarem. Ao chegar a tarde todo o acampamento se mostrava azafamado e nervoso, o açodamento febril contagiou também as crianças, tornando-as ainda mais barulhentas que de costume. Pelo meio da tarde, começou o banho das crianças, e, à medida que as iam agarrando, domando e lavando, o barulho nos campos de jogos ia também gradualmente diminuindo. Antes das cinco horas, as crianças estavam todas devidamente limpas e advertidas de que não deviam sujar-se de novo. Caminhavam muito direitas pelo acampamento, nas suas roupas limpas, e tristonhas à força de preocupação.

     No grande tablado ao ar livre, afadigava-se o comité. Tinham requisitado todo O fio eléctrico existente. O ferro-velho da cidade fora vasculhado à cata de fio e todas as caixas de ferramenta da comunidade tiveram de contribuir com fita isoladora. E agora, todo esse fio unido, remendado, via-se estendido sobre aquela espécie de palco,.com gargalos de garrafa a servirem de isoladores. Pela primeira vez, nessa noite, o tablado teria iluminação. As seis, os homens regressaram do trabalho ou de procurar trabalho e seguiu-se nova onda de banhos. Lá pelas sete horas 'depois do jantar, os homens Vestiram as suas melhores roupas, fatos-macacos lavados, camisas azuis bem limpas e, às vezes, até fatos pretos,, distintos, As raparigas já estavam prontas também, nos seus vestidos estampados, limpos e bem passados a ferro e com fitas nos cabelos entrançados. As mulheres, preocupadas, inspeccionavam os membros das respectivas famílias, levantavam as mesas e lavavam a loiça. No tablado, a orquestra de instrumentos de corda começava a ensaiar, rodeada de crianças em filas duplas. Estavam todos atentos e excitados.

     Na tenda de Ezra Huston, o presidente, estavam reunidos os cinco homens que compunham o comité central. Huston, um indivíduo alto e magro, de rosto tostado e de olhos que pareciam lâminas faiscando, falava aos homens, cada um dos quais representava um departamento sanitário.

     - Que sorte a gente ter recebido a informação de que querem estragar o nosso baile! - dizia ele.

     Um homem baixinho e gorducho, representante do departamento nº 3, replicou:

     - Acho que lhes devíamos dar uma surra mestra, para aprenderem a não se meter com a gente.

     - Não, senhor - disse Huston.-- Nada disso. E justamente isso o que eles querem. Se conseguirem provocar uma briga, os polícias já poderão penetrar no acampamento. Vão alegar que a gente sozinha, não sabe manter a ordem. Já fizeram isso noutros sítios. - Dirigiu-se ao rapaz moreno e de ar melancólico do departamento nº 2: - O pessoal está lá na cerca, a vigiar quem entra?

     O rapaz melancólico acenou com a cabeça:

     - Sim, senhor. Doze rapazes. Recomendei-lhes que não batessem em ninguém. Têm ordem de os pôr fora sem mais nada.

     Huston pediu:

     - Faça-me um favor, procure o Willie Eatop. Ele é que é o presidente do comité de diversões, não é?

     - É, sim.

     - Bom, diga-lhe que quero falar com ele.

     O rapaz saiu e voltou pouco depois, na companhia ç1e um homem musculoso do Texas. Willie Eaton tinha o queixo alongado e frágil, os cabelos cor de poeira, os braços e as pernas compridos e bamboleantes. Os olhos eram daquele cinzento desbotado, vulgar na gente do “Cabo de Frigideira”. Entrou sorridente na tenda e as suas mãos giravam nervosamente em torno dos pulsos.

     Huston perguntou:

     - Você já ouviu dizer o que se prepara para logo à noite?

     Willie sorriu.

     - Já - respondeu.

     - E tomou as suas precauções?

     - Tomei, sim.

     - Conte o que fez.

     Willie Eaton sorriu satisfeito.

     - Bem, normalmente o comité de diversões é composto de cinco membros. Para esta noite, arranjei mais vinte, todos novos e fortes. Vão dançar, mas com os ouvidos e os olhos bem abertos. Ao primeiro sinal de discussão ou coisa semelhante, eles cercam de perto o tipo que se salientar. Já ensaiámos a coisa. Está tudo bem preparado. Ninguém vai notar coisa nenhuma. Eles começam a sair da pista e o gajo zaragateiro sai com eles no meio do grupo.

     - Não se esqueça de recomendar que não dêem pancada em ninguém.

     Willie riu alegremente.

     - Não há perigo. Já lhes recomendei isso.

     - E melhor recomendar de novo, para não sé esquecerem.

     - Eles sabem. Pus cinco homens no portão, para verem quem entra no acampamento. Pode ser que a gente consiga reconhecê-los antes que a briga comece.

     Huston pôs-se de pé. Os seus olhos cor de aço tinham um brilho severo.

     - Agora, ouça, Willie. Não queremos de forma alguma que, esses homens apanhem, ouviu? Lá fora, junto do portão, vai, haver polícia. Se armarem desordem, a polícia invade o acampamento.

     - Já tinha pensado nisso - acudiu Willie. - Vamos pô-los nas traseiras do acampamento, já no campo. Alguns dos rapazes estão encarregados de os fazer voltar elo mesmo caminho.

     - Muito bem. Assim deve dar certo - disse Huston, com ar preocupado. - Mas, muito cuidado, ouviu, Willie? Não quero que aconteça nada. Você é o responsável. Não batam naquela gente, seja lá como for. Nada de facas ou de paus; nada de armas.

     - Não senhor - respondeu Willie. - Ninguém os deixará marcados.

     Huston parecia ainda preocupado.

     - Quem me dera poder confiar em você, Willie! Se não puderem, evitar o bater-lhes, é dar-lhes na cabeça para não haver sangue.

     - Sim, senhor - respondeu Willie.

     - Você responsabiliza-se pelos rapazes que escolheu?

     - Responsabilizo, sim, senhor.

     - Muito bem. Se houver qualquer coisa, eu estou no canto direito, do lado de cá do estrado da dança.

     Willie fez a continência de brincadeira e afastou-se.

     Huston continuava:

     - Não sei. Deus queira que os rapazes do Willie não matem ninguém. Porque diabo pretendem esses polícias provocar desordem. no nosso acampamento? Porque nos não deixarão em paz?

     O rapaz melancólico do departamento nº 2 interveio:

     - Eu já vivi no acampamento da Companhia Sunland de Terras e de Gado. Pois lá - palavra de honra! - para cada dez homens há um polícia. E uma torneira de água para, pelo menos, duzentos homens.

     O gorducho, por sua vez, disse:

     - Por Deus, Jeremy! Não me venha agora contar essas coisas. Eu também já lá estive. Havia lá um bloco de barracas, quinze fileiras de trinta e cinco barracas, com quinze pés de profundidade. E, para toda essa gente, não há mais que dez retretes. Meu Deus! Aquilo fede à distância de uma milha! Um dos polícias de lá estávamos nós todos juntos - saiu-se com esta: “Aqueles danados daqueles acampamentos do governo! - disse ele. - Até dão água quente ao pessoal e agora os gajos só querem água quente. Dão-se retretes com autoclismo e agora estão tão acostumados àquelas que já nem podem ver outras!” E disse também: “Dão coisas assim àquela cambada daqueles Okies e o resultado é que eles já não são capazes de viver de outra maneira. Naqueles acampamentos do governo, o pessoal não fala de outra coisa que não seja de reuniões de vermelhos. O que eles querem todos é receber o dinheiro do Auxílio.”

     Huston perguntou:

     - E ninguém teve coragem de dar uma sova nesse polícia?

     - Não. Estava lá um tipo baixinho que disse assim: “Que é que você quer dizer com isso de Auxílio?” “- Quero dizer que nós, os contribuintes, estamos a pagar impostos para que vocês, seus Okies de uma figa, recebam auxílio.” “- Nós pagamos imposto sobre as vendas, imposto sobre a gasolina e sobre o tabaco que gastamos” - disse o tal homenzinho. E disse mais: “Os fazendeiros recebem quatro cents do Governo por cada libra de algodão. Isto não é auxílio?” “O caminho de ferro e as companhias de navegação recebem subvenções. Isso também não é auxílio?” “- Mas esses fazem uma porção de coisas que são indispensáveis.” - Alegou o polícia. “- Bem - replicou o tal tipo baixinho - e quem é que trabalharia nas vossas malditas colheitas se não fosse a gente?”

     - E que disse o polícia a isso?

     - Ora! Ficou danado e falou assim: “Vocês, seus vermelhos do diabo, só vivem a provocar questões.” E concluiu: “É melhor você vir daí comigo, ouviu?” Prendeu o tal tipo baixinho e deram-lhe sessenta dias por vagabundagem.

     - E como é que ele resolveria a coisa se o homem estivesse empregado? - perguntou Timothy Wallace.

     O gorducho soltou uma risada.

     - Ora! Você a armar em tanso! Você está fartinho de saber que, quando a polícia embirra com alguém, lhe chama logo vagabundo. É por isso que eles têm raiva ao nosso acampamento. Aqui, a polícia não entra. Aqui são os Estados Unidos e não a Califórnia.

     Huston suspirou:

     - Só queria que a gente pudesse continuar aqui. Mas não tarda que eu tenha de me ir embora. Gosto muito disto. Leva-se uma vida agradável. Meu Deus! Porque é que eles rios não deixam viver em paz, em vez de nos tornarem uns desgraçados e de nos meterem na cadeia? Juro que qualquer dia acabamos por lutar, se nos não deixarem em paz. - Abafou a voz.- A gente deve manter a calma - admoestou-se a si próprio. - O comité não tem o direito de perder as estribeiras.

     O gorducho do departamento nº 3 disse:

     - Todos aqueles que pensam que o comité navega num mar de rosas deviam experimentar para saberem o que isto custa. Entre as mulheres houve já um pé de vento na minha secção. Começaram a largar palavrões e acabaram a atirar lixo umas às outras. O comité das senhoras não conseguiu resolver o caso e veio ter comigo. Pediram-me para contar o sucedido na sessão do comité central. Eu disse-lhes que a elas é que competia resolver o que acontecesse entre mulheres. O nosso comité não pode entrar em batalhas de lixo.

     Huston concordou:

     - Fez muito bem.

    

     O crepúsculo, agora, adensava-se mais, e com o progresso da escuridão, o ensaio da orquestra de instrumentos de corda parecia adquirir maior ressonância. As luzes acenderam-se e dois homens inspeccionavam os remendos do fio até ao tablado. As crianças haviam formado um grupo compacto em torno dos músicos. Um rapaz de violão cantava “Down Home Blues”, tangendo suavemente as cordas, e, à segunda estrofe, acudiram três gaitas e um violino a acompanhá-lo. Uma multidão deixava as tendas em direcção ao tablado e ali se quedava numa tranquila expectativa. Os rostos atentos brilhavam à luz.

     A volta do recinto reservado havia uma alta vedação de arame, e, ao longo dela, de cinco em cinco pés, os vigilantes permaneciam sentados na relva, à espera dos acontecimentos.

     Começavam a chegar, agora, os carros dos convidados: pequenos fazendeiros e suas famílias ou emigrantes de outros acampamentos. E cada um dos convidados dizia, ao portão, o seu nome e o da pessoa que o convidara.

     A orquestra de instrumentos de corda começou a tocar uma música de dança; tocava com força; já não ensaiava. Sentados à boca das respectivas tendas, os Eleitos do Senhor observavam os acontecimentos com as feições endurecidas e cheias de desdém. Não conversavam; estavam à espera do pecado e o seu jogo fisionómico condenava terrivelmente o que ia acontecendo.

     Na tenda dos Joads, Ruthie e Winfield engoliram rapidamente o escasso jantar e foram correndo em direcção ao tablado. A mãe lê-los voltar para trás; levantou-lhes o queixo, e, segurando-o com a mão, ficou a examinar-lhes o rosto. Olhou para dentro das narinas, viu-lhes as orelhas e inspeccionou-lhes os ouvidos. Depois, mandou-os voltar ao departamento sanitário para lavarem novamente as mãos. Mas eles saíram clandestinamente pela porta do fundo da construção e dirigiram-se para o local do tablado, metendo-se no grupo das crianças que se adensava muito perto da orquestra.

     Depois do jantar, Al gastara meia hora a barbear-se com a gilete de Tom. Vestia um fato de fazenda de lã muito cintado e uma camisa às riscas. Tomara um banho, esfregando-se bem e penteara o cabelo para trás. E, quando por um instante, o lavatório ficara sem ninguém, deleitou-se a sorrir de maneira sedutora para o espelho e, virou o rosto numa tentativa de observação do seu sorriso de perfil. Ajustou as braçadeiras de borracha e vestiu o casaco justo. Limpara os sapatos com um pedaço de papel higiénico. Um banhista retardatário penetrava no recinto. Al apressara-se a sair, caminhando despreocupadamente até ao tablado de dança, de olho alerta para as raparigas. Próximo do tablado, sentada em frente de uma tenda, descobriu uma bonita rapariga loira. Foi de lado até onde ela se encontrava e abriu o casaco para mostrar a camisa.

     - Então esta noite tenciona dançar? - perguntou.

     A rapariga desviou o olhar sem responder.

     - Não se lhe pode dizer uma palavrinha? E se a gente dançasse um bocadinho? - E acrescentou com despreocupação: - Sei valsar.

     Timidamente, a rapariga levantou os olhos e disse:

     - Olha a grande coisa! Toda a gente sabe valsar.

     - Mas não como eu - respondeu Al. A música soava com mais força agora e ele começou a bater o compasso com o pé. - Então, vamos dançar... - pediu.

     Uma mulher extraordinariamente gorda deitou a cabeça de fora da tenda e lançou-lhe um olhar sombrio.

     - Ponha-se a andar! - gritou com violência. - Esta menina está comprometida. Vai casar e o noivo vem aí buscá-la.

   Com audácia, Al piscou o olho à rapariga e continuou a andar vagarosamente. Arrastava os pés ao compasso da música, sacudia os ombros e balouçava frouxamente os braços. A rapariga, interessada, seguiu-o com o olhar.

     O pai, na tenda, pôs o prato de folha em cima do caixote e ergueu-se:

     - Vamos, John - disse, e explicou à mãe: -- Vamos falar com uns camaradas a respeito de trabalho.

     E o pai e o tio John dirigiram-se à casa do director. Tom absorvia com um pedaço de côdea de pão os restos de gordura que tinha no fundo do prato; comeu o pão e, depois, entregou o prato à mãe, que o deitou num balde de água quente. Lavou-o e passou-o a Rosa de Sharon, para que ela o enxugasse.

     - Tu não vais ao baile? - perguntou a mãe.

     - Vou, sim - respondeu Tom. - Estou num comité. A gente está a preparar uma brincadeira a uns tipos daí.

     - Mas tu ainda agora chegaste e já pertences a um comité? - estranhou a mãe. - Naturalmente, é porque encontraste trabalho.

     Rosa de Sharon voltou-se, para guardar o prato no seu lugar. Tom apontou para ela.

     - Meu Deus, como ela está gorda! - troçou. Rosa de Sharon, corando, pegou noutro prato que a mãe lhe passava,

     - E natural que esteja gorda - respondeu a mãe.

     - Está até mais bonita - acrescentou Tom.

     A rapariga corou mais ainda e baixou a cabeça.

     - Deixa-te disso - pediu-lhe com voz branda.

     - E natural que esteja- retorquiu a mãe. - Uma rapariga que espera um bebé torna-se sempre mais bonita.

     - Se ela continua a engordar assim, vai precisar de um carrinho de mão para transportar a barriga.

     - Bom, vê se acabas com isso - disse Rosa de Sharon, metendo-se dentro da tenda.

     A mãe riu.

     - Tu não devias arreliá-la.

     - Ora! Ela até gosta - respondeu Tom.

     - Eu sei que ela gosta, mas, agora, também a aborrece. Está triste por causa do Connie.

     - Bem, o que eu acho é que ela deve deixar o Connie de uma vez para sempre. O rapaz parece que anda a estudar para presidente dos Estados Unidos.

     - Não a aborreças, Tom - pediu a mãe. - Ela está num momento difícil.

     Willie Eaton aproximou-se com um sorriso nos lábios.

     - Você é que é o Tom Joad?

     - Sou, sim, senhor.

     - Bem, eu sou o presidente do comité das diversões. Vamos precisar dos seus serviços. Um amigo falou-me de si.

     - Pois não! Estou pronto a ajudar - disse Tom. - Conhece a minha mãe?

     - Muito prazer - disse Willie.

     - Igualmente.

     Willie continuou:

     - Bom, primeiro você vai até ao portão e depois segue para o pé da pista de dança. Olhe bem para os tipos que entram, para ver se descobre os tais. Um outro camarada fica consigo. Depois, tratem de dançar também e de estar com o olho bem aberto.

     - Está bem. Farei o melhor possível - disse Tom.

     A mãe interveio, receosa:

     - Não vai haver briga, pois não?

     - Não, senhora - respondeu Willie. - Não vai haver briga nenhuma.

     - Nem pensar nisso - acrescentou Tom. - Bem, cá vou. Logo nos veremos no baile, mãe.

     Os dois homens afastaram-se rapidamente em direcção ao portão principal.

     A mãe empilhou num caixote os pratos lavados e enxutos.

     - Sai daí! - gritou. Não tendo recebido resposta, gritou mais alto ainda: - Rosasharn, vem cá!

     A rapariga saiu da tenda e prosseguiu na tarefa de limpar pratos.

     - O Tom estava a brincar contigo.

     - Eu sei. Não me zanguei por isso. Mas não quero que ninguém me veja nesta figura.

     - Contra isso não há remédio. Todos reparam. Mas a gente sente-se satisfeita quando vê uma rapariga que está à espera de um menino. Isso faz a gente ficar contente e divertida. Tu não vais ao baile?

     - Vontade não me falta... mas, não sei... Queria que o Connie aqui estivesse. - A voz dela subiu de tom. - Mãe, quem me dera que ele aqui estivesse! Quase que não posso suportar mais...

     A mãe olhou-a atentamente:

     - Eu sei – disse - mas olha, Rosasharn, não nos envergonhes!

     - Não tenho essa intenção, mãe.

     - Bem, não nos envergonhes. Preocupações que cheguem já nós temos, era o que faltava era ainda a vergonha...

     Os lábios da rapariga tremiam.

     - Eu... eu não vou ao baile. Não posso... Oh, mãe, ajude-me! - Sentou-se, escondendo a cabeça entre os braços.

     A mãe limpou as mãos à toalha de enxugar a louça e, acocorando-se aos pés da filha, pôs-lhe ambas as mãos sobre os cabelos.

     - Tu és uma boa rapariga - disse. - Foste sempre muito boazinha, vou olhar por ti, não te incomodes.- A sua voz tornava-se mais animada. - Sabes o que vamos fazer? Vamos ao baile; sentamo-nos num lugarzinho e ficamos a ver aquilo. Achas bem? Se alguém quiser dançar contigo, eu digo que tu estás muito fraca que não te sentes bem. Assim, podes ouvir a música e ver tudo.

     Rosa de Sharon ergueu a cabeça.

     - A mãe não me vai deixar dançar, não?

     - Não, não vou.

     - E não deixa ninguém tocar-me?

     - Não.

     A rapariga soltou um suspiro. E disse, com desespero na voz:

     - Não sei que fazer, mãe, não sei; com franqueza, não sei.

     A mãe deu-lhe umas palmadinhas nos joelhos.

     - Escuta - disse. - Olha para mim. Vou dizer-te uma coisa. Daqui a pouco tudo melhorará, vais ver. Daqui a pouco. Olha que é verdade. Bem, agora, vem comigo. Vamo-nos lavar e vestir um vestido bonitinho, hein? E vamos ao baile. - Foi conduzindo Rosa de Sharon até aos lavatórios.

     O pai e o tio John estavam acocorados no meio de um grupo de homens, na sacada do escritório.

     - Hoje, por um pouco, quase que arranjávamos trabalho - dizia o pai. - Se tivéssemos chegado uns minutos mais cedo... já tinham contratado dois tipos. Sim, senhor. Até foi engraçado. Estava lá um contra-mestre que disse assim: “Acabámos de contratar dois tipos a vinte e cinco. A gente podia dar trabalho a mais homens ainda, mas só pagando vinte cents. Podíamos dar trabalho a muita gente ainda, nesta base de vinte. Volte ao seu acampamento e avise que temos trabalho para muitos homens a vinte cents a hora.

     Os homens acocorados agitavam-se nervosamente. Um, muito alto, espadaúdo, cujo rosto estava completamente ensombrado pelo chapéu preto, deu uma pancada no joelho.

     - Eu já conheço essa manobra, com um raio! - gritou.

     - E vão arranjar homens. Não falta para aí quem tenha fome. Não se pode dar de comer a uma família quando se ganha vinte was à hora, mas não há-de faltar quem aceite assim mesmo. Muita gente há-de querer ir para lá. E eles até vão fazer leilão. Meu Deus! Daqui a pouco, até hão-de querer que a gente pague para ter o gosto de trabalhar.

     - Nós íamos aceitar os vinte cents mesmo - disse o pai. - Precisamos de trabalhar; é claro que a gente aceitava. Mas aqueles dois tipos que tinham sido contratados, antes, olharam-nos de tal maneira que a gente não teve coragem de aceitar.

     O homem do chapéu preto disse:

     - É de endoidecer quando se pensa muito nisso. Eu trabalhei para um gajo que nem pode recolher a safra. Recolher custa mais que todo o valor da safra, e ele nem sabe o que há-de fazer.

     - Olhe, parece-me... - e o pai calou-se. O círculo de homens manteve-se silencioso, disposto a ouvi-lo. - Bem, eu estive a pensar que a gente devia ter aí um acre de terra nossa. A minha mulher podia arranjar uns biscatos e criar porcos e galinhas. E nós, homens, podíamos trabalhar e voltar para casa depois. E as crianças podiam frequentar a escola. Nunca vi escolas como as daqui.

     - Os meus filhos não gostam das escolas daqui - disse o homem do chapéu preto.

     - Porquê? Elas são tão bonitas!

     - Pois é por isso mesmo. Uma criança esfarrapada, descalça, não pode ver as outras, de sapatos e meias e calças bonitas e ainda por cima a chamarem-lhe Okie. O meu filho foi para a escola. Todos os dias tinha de brigar. Isso até foi bom para ele. Fez-se teso. Todos os dias brigava. Voltava para casa, com a roupa rasgada e o nariz a escorrer sangue. E a mãe depois, ainda lhe batia. Mandei-a acabar com isso. Não havia razão para toda a gente malhar no miúdo. Deus do Céu! Mas garanto que alguns daqueles meninos bonitos passaram mal, ai passaram, passaram! Apanharam a valer, aqueles filhos da mãe, de calcinhas catitas! Não sei, não sei...

     O pai perguntou:

     - Bem, e que diabo hei-de eu fazer? A gente já está sem dinheiro. Um filho meu arranjou trabalho, mas é por pouco tempo. E o que ele ganha não dá para todos comermos. Acho que vou aceitar essa proposta de vinte cents. É o único remédio.

     O homem do chapéu preto ergueu a cabeça. A luz via-se-lhe bem a barbicha que pespontava o queixo, e o pescoço musculoso, onde os fios da barba corriam como pêlo de animal.

     - Sim, senhor - disse ele com amargura. - Faça isso, faça. Eu ainda ganho vinte e cinco. Você pega no meu trabalho por vinte e eu vou passar fome de novo e depois tenho de aceitar trabalho até por quinze. Perfeitamente, pode ir.

     - Mas que diabo hei-de eu fazer? - perguntou o pai. - Não posso morrer de fome, lá porque você ganha vinte e cinco.

     O homem do chapéu preto tornou a baixar a cabeça e o seu queixo mergulhou na sombra.

     - Não sei - disse. - Palavra que não sei o que hei-de dizer. É triste a gente ter de trabalhar doze horas por dia e ainda por cima não comer à vontade. E andar sempre a fazer contas. O meu miúdo já não come o suficiente. Não posso estar sempre a pensar no mesmo, caramba! É de dar com um homem em doido!

    

     Tom estacionava junto do portão, a observar os que chegavam para tomar parte no baile. Um projector bem colocado iluminava-lhes as feições. Willie Eaton disse:

   - Tenha os olhos bem abertos! Vou mandar o Jule Vitela para aqui. É meio índio. Um óptimo camarada. Olho alerta, hein? Veja se descobre os tipos.

     - Fixe! - respondeu Tom. Ficou a observar os que entravam; as famílias dos pequenos proprietários das redondezas; raparigas de cabelos entrançados e rapazes todos acatitados para o baile. Jule não tardou a aparecer também, colocando-se ao lado de Tom.

     - Venho ajudá-lo - disse.

     Tom observou-lhe o nariz de falcão, o rosto de maçãs salientes e o queixo pequeno e retraído.

     - Dizem que você é meio índio. Mas você parece um índio puro.

     - Não - respondeu Jule - só meio. Mas quem me dera ser puro-sangue! Assim, podia ter um pedacinho de terra no “Reservado” do governo. Os índios puro-sangue levam boa vida, alguns, pelo menos...

- Repare bem em quem entra - disse Tom.

Os convidados iam entrando pelo portão. Famílias de fazendeiros e de refugiados de acampamentos vizinhos. Crianças que procuravam libertar-se das mãos dos pais, que as retinham calmamente.

     Jule continuou a falar:

     - Engraçada, esta história do baile. A nossa gente está numa situação desgraçada, mas o facto de terem o direito de convidar os amigos para o baile dá-lhes um bocadito de ânimo e de orgulho. E as pessoas respeitam-nos por causa destes bailes. Conheço um sujeito que é dono de uma fazendinha. já lá trabalhei. Vem aqui, ao baile. Fui eu que o convidei. Ele acha que o nosso baile é o único decente de toda a região. Disse que pode-se trazer aqui a mulher e as filhas sem receio. Eia! Olhe para aquilo, ali!

     Três jovens passaram o portão; tinham aspecto de operários e vestiam fatos de fustão. Caminhavam ao lado uns dos outros.

     O guarda, ao portão, interrogara-os e eles haviam respondido e passado.

     - Vigie esses tipos! - disse Jule. Foi falar com o guarda: - Quem foi que convidou aqueles três gajos? - perguntou.

     - Um tal Jackson, do departamento nº 4.

     Jule voltou para junto de Tom.

     - Parece-me que aqueles é que são os tais.

     - Como é que sabe?

     - Sei lá! E um palpite. Parecem assustados. Vá atrás deles e diga ao Willie para os vigiar e para perguntar ao Jackson, do departamento nº 4; se foi ele quem os convidou, traga-o. Quero saber se disseram a verdade. Eu fico aqui à espera.

     Vagarosamente, Tom seguiu os três rapazes, os quais se dirigiram ao estrado da dança, pondo-se ordeiramente no extremo da multidão. Tom viu Willie perto da orquestra e fez-lhe um sinal.

     - Que é que há? - perguntou Willie.

     - Aqueles três ali, vê-os?

     - Vejo, sim.

     - Disseram que eram convidados do Jackson, do departamento nº 4,

     Willie estendeu o pescoço e, vendo Huston, chamou-o com um sinal.

     - Aqueles três gajos - disse. - Acho melhor a gente procurar o Jackson, do departamento nº 4, e perguntar-lhe se foi ele quem os convidou.

     Huston girou sobre os calcanhares e afastou-se. Instantes depois, regressava na companhia de um homem do Kansas, magro e ossudo.

     - Aqui está o Jackson - disse Huston. - Ouça, Jackson, vê aqueles três tipos, ali?

     - Vejo.

     - Foi você quem os convidou?

     - Não.

     - Então não os conhece?

     Jackson olhou-os mais detidamente.

     - Conheço, sim. Trabalhei com eles na fazenda do Gregório.

     - Então eles sabem o seu nome?

     - Naturalmente. A gente trabalhou mesmo lado a lado.

     - Bom - volveu Huston. - Convém deixá-los em paz. Se se portarem bem, podem ficar. Obrigado, senhor Jackson.- Virou-se para Tom: - Belo trabalho. Parece-me que estes são os tais.

     - Foi o Jule quem os descobriu - informou Tom.

     - Não é de admirar, caramba! - comentou Willie.- Foi o sangue de índio que os farejou. Bem, vou mostrar esses gajos à rapaziada.

     Um adolescente, de uns dezasseis anos, chegou a correr, abrindo caminho entre a multidão. Estacou, ofegante, diante de Huston.

     - Sr. Huston - disse - estive no sítio que o senhor indicou. Está lá um automóvel parado, com seis homens, no meio dos eucaliptos, e está outro carro com quatro homens no caminho do norte. Pedi-lhes lume. Eles estão armados de carabinas; vi-lhes as armas.

     Os olhos de Huston tornaram-se duros e cruéis.

     - Willie, garantes-me que está tudo em ordem?

     Willie sorriu satisfeito.

     - Garantido, senhor Huston. Não vai haver novidade.

     - Pois bem. Cuidado, não se metam com eles, hein? Lembrem-se bem disto. Se for possível consegui-lo sem armar escândalo, gostava de ver esses tipos. Eu vou para a minha tenda.

     - Vamos a ver o que se pode arranjar - disse Willie.

     O baile, propriamente, ainda não começara, quando Willie subiu ao tablado.

     - Vamos à quadrilha! - gritou.

     A orquestra não tocava ainda. Raparigas e rapazes subiram ao tablado, formando oito grupos distintos. Ficaram à espera, parados. As raparigas tinham as mãos à frente e entretinham-se a mexer os dedos. Os rapazes tamborilavam sem descanso com os pés. Em torno do tablado encontravam-se os velhos, sorrindo brandamente, enquanto seguravam as crianças, para que elas não invadissem o recinto. E, afastados, viam-se os Eleitos do Senhor, de feições endurecidas e ameaçadoras, a observar o pecado.

     A mãe e a Rosa de Sharon estavam assentadas num banco, a olhar a cena. E, cada vez que um rapaz vinha pedir a Rosa de Sharon para dançar, a mãe dizia: “Não, senhor. Desculpe, mas ela não se sente bem.” - Rosa de Sharon corava e os seus olhos brilhavam.

     O mestre-sala avançou até ao centro do tablado e ergueu as mãos:

     - Tudo pronto? Então, vamos começar!

     A orquestra começou a tocar o Chicken Reel, num tom penetrante e límpido. O violino esganiçou-se; as gaitas emitiam sons nasais e agudos e os violões tangiam as cordas graves. O mestre-sala indicou a disposição dos pares e os grupos puseram-se em movimento. Ondulavam para a frente e para trás... e “dêem as mãos e façam girar a dama.” Frenético, o mestre-sala marcava o ritmo com os pés; andava de um lado para o outro e esboçava as figuras, à medida que as ia anunciando.

      - Façam girar as damas devagar! Dêem as mãos. Vamos. A música subia e baixava de volume, e o bater rítmico dos pés no chão soava como rufar de tambores.

     - Uma volta à direita e outra volta à esquerda! Larguem as damas, e costas com costas!- O mestre-sala cantava alto e monotonamente. O penteado das raparigas, tão cuidadosamente arranjado?, ia-se desfazendo, e o suor formava pérolas na testa dos rapazes. Os dançarinos eméritos mostravam as suas habilidades. E os velhos, à beira do estrado, contagiados pelo ritmo, batiam palmas com timidez e batucavam com os pés; sorriam e, quando os olhares se encontravam, acenavam com a cabeça.

     A mãe inclinou-se para Rosa de Sharon, dizendo-lhe ao ouvido:

     - Talvez tu me não acredites, mas o teu pai, quando era rapaz, era um dos melhores dançarinos que eu vi na minha vida. - E a mãe sorria. - Isto faz-me lembrar os velhos tempos - disse.

     E, nas feições de outros espectadores, estampava-se o brilho das recordações.

     - Lá para cima, na zona de Muskogee, há vinte anos, havia um cego que tocava rabeca...

     - Uma vez, vi um tipo que batia os calcanhares quatro vezes num salto só...

     - Os suecos, lá em Dakota... sabes o que costumavam fazer? Punham pimenta no chão e a pimenta pegava-se aos vestidos das raparigas, que ficavam assanhadas como potras com cio. Ás vezes, faziam isso, aqueles malvados daqueles suecos...

     À distância, os Eleitos do Senhor, sustinham os filhos, impacientes.

     - Olhem o pecado! - diziam-lhes. - Aquela gente vai toda para o inferno, a cavalo num ferro de fogão em brasa.

     E as crianças mantinham-se caladas e nervosas.

     - Mais uma volta e depois descanso - cantou o mestre-sala. - Toquem depressa, que vamos parar não tarda nada.

     As raparigas já estavam suadas e vermelhas. Dançavam de boca aberta e tinham no rosto uma expressão grave. Os rapazes atiravam para a nuca os cabelos compridos, saltavam e sapateavam nas pontas dos pés ou batiam os calcanhares. Os grupos movimentavam-se para dentro e para fora, cruzando-se, vindo para fora, redemoinhando e a música guinchava.

     E, de repente, acabou. Os dançarinos imobilizaram-se, a arquejar de fadiga. As crianças escapuliram-se das mãos dos pais e correram para o estrado, perseguindo-se loucamente umas às outras; corriam, esgueiravam-se, roubavam bonés e puxavam mutuamente os cabelos. Os dançarinos sentaram-se, abanando-se com as mãos. Os componentes da orquestra punham-se de pé, estendiam os braços e as pernas e tornavam a sentar-se. E os guitarristas afinavam com brandura as cordas das guitarras.

     Willie tornou a gritar:

     - Escolham os seus pares pala a nova quadrilha se têm coragem!

     Os dançarinos puseram-se de pé. Outros rapazes chegavam, à procura de raparigas com quem pudessem dançar. Tom vigiava os três suspeitos. Viu-os abrir caminho através da multidão que ladeava o estrado e dirigirem-se a um dos grupos que se tinham formado para começar a dança. Fez um sinal a Willie, e este foi dizer qualquer coisa ao violinista. Este arrancou alguns guinchos do instrumento. Vinte rapazes começaram a aproximar-se com ar negligente. Os três suspeitos haviam chegado ao recinto. E um deles disse:

     - Eu é que vou dançar com esta pequena.

     Um rapaz loiro olhou-o cheio de surpresa

     - Mas ela é o meu par...

     - Olhe lá, 6 seu grande filho...

     Um assobio penetrante soou ao longe, na escuridão. Os três provocadores viram-se cercados por essa altura. E cada um deles se sentiu seguro por mãos fortes. Então, a muralha de homens começou a afastar-se lentamente do estrado.

     Willie berrou:

     - Vamos!

     A música guinchou de novo, o mestre-sala indicou os passos e os pés começaram a bater no chão.

     Um carro de turismo, vindo da estrada, aproximou-se do portão.

     O motorista gritou:

     - Abram a porta! há aí uma briga.

     O guarda permaneceu imóvel.

     - Aqui dentro não há desordem nenhuma. Não ouve a música a tocar? Quem é você?

     - Sou o delegado da polícia.

     - Tem ordem de prisão?

     - Quando se verifica desordem, não há necessidade de ordem de prisão.

     - Está bem, mas é que não há desordem nenhuma! - objectou o guarda.

     Os homens, no interior do carro, ouviam a música tocar e os gritos do mestre-sala. Lentamente, o carro de turismo foi rodando e postou-se numa encruzilhada, à espera.

     Metidos no meio da muralha de guardas especiais, os três provocadores viam a sua acção completamente neutralizada. Achavam-se agarrados pelos pulsos e tinham as bocas tapadas por mãos possantes. Quando chegou a um ponto escuro do acampamento, a muralha desfez-se.

     Tom disse:

     - Foi um serviço bem feito. - Prendia os braços de um dos provocadores por detrás.

     Willie vinha do tablado, a correr para eles.

     - Belo trabalho! - disse. - Bom. Agora basta que fiquem aqui seis homens. Ó Huston, quer ver estes gajos?

     Mas Huston já se aproximava, surgindo da escuridão.

     - São estes os tais, hein?

     - São - confirmou Jule. - Iam justamente começar, mas nem chegaram a dar o primeiro soco.

     - Quero ver a cara deles.

     Dispuseram os prisioneiros de maneira que Huston lhes pudesse ver as feições. Mas os três rapazes conservavam a cabeça baixa. Huston iluminou-lhes o rostos sombrios com uma lanterna eléctrica.

     - Porque fizeram isto? - perguntou. Não houve resposta. - Quem os mandou fazer isto?

     - Nós não fizemos nada, com os diabos! Queríamos apenas dançar.

     - Dançar o quê? Tu querias era dar uma sova naquele rapazito - disse Jule.

     Tom informou:

     - Senhor Huston, justamente no momento em que esses tipos entravam na pista, alguém deu um assobio.

     - Sim, eu sei. Os polícias chegaram logo ao portão. - Dirigiu-se novamente aos prisioneiros. - Bom, vocês não vão levar nenhuma sova. Só quero que me digam quem foi que os mandou provocar barulho no nosso baile. - Ficou à espera de uma resposta. - Vocês, afinal, são gente da nossa - disse Huston, com tristeza. - Vocês são dos nossos. Como tiveram a coragem de querer fazer uma coisa destas? A gente sabe de tudo - acrescentou.

     - Meu Deus, a gente também precisa de viver!

     - Mas quem foi que vos mandou provocar barulho? Quem lhes pagou este serviço.

     - Ninguém nos pagou nada.

     - Nem vai pagar. Não houve briga, não há dinheiro. Não é verdade?

     Um dos homens amarrados disse:

     - Pode fazer o que quiser. A gente não diz nada. Huston baixou a cabeça por um instante. Depois, falou brandamente:

     - Muito bem. Nem precisam dizer nada. Mas, pelo amor de Deus, não esfaqueiem pelas costas a vossa própria gente. Nós também queremos viver a nossa vida; ter alguns instantes de alegria e manter a ordem entre nós. Não venham estragar todo este nosso trabalho. Pensem um pouco nisto tudo. Vocês só fazem mal a você s mesmos. Muito bem, rapaziada. Peguem neles e ponham-nos lá fora, pela cerca do fundo. Mas não lhes batam. Eles não sabem o que fazem.

     O grupo começou a mover-se em direcção ao fundo do acampamento, e Huston ficou-se a olhá-lo.

     Jule disse:

     - Pelo menos, um bom pontapé hão-de levar.

     - Não, não façam isso! - gritou Willie. - Eu prometi que não lhes bateríamos.

     - Mas só um pontapé, um só! - suplicou Jule. - Para os fazer voar pela cerca.

     - Não, senhor - perseverou Willie. - Escutem, desta vez, vocês escapam. Mas ficam avisados. Se isto acontecer outra vez, vocês hão-de passar um mau bocado: rebentamos-lhes os ossos todos. Podem dizer isto lá aos vossos companheiros.

     O Huston supõe que vocês são dos nossos. Pode ser que sejam. Mas eu até fico danado só de pensar nisso.

     Chegaram à cerca. Dois dos guardas que ali se encontravam sentados ergueram-se e foram ao encontro deles.

     - Temos aqui uns amigos com vontade de se irem embora cedo - disse Willie.

     Os três rapazes galgaram a cerca e desapareceram na escuridão.

     E o grupo regressou rapidamente ao estrado da dança. A orquestra tocava “Ol'Dan Tucker”, a guinchar em tom lamentoso. Ali perto, diante do escritório, os homens ainda se conservavam acocorados a palestrar, e as notas agudas iam morrer-lhes nos ouvidos.

     O pai vaticinou:

     - Isto vai mudar brevemente. Não sei como vai ser, mas muda. Pode ser que a gente não chegue a ver isso. Mas essa mudança está para breve. Toda a gente anda inquieta. Nem a gente pode pensar, de tão nervosa que anda.

     O homem do chapéu preto tornou a erguer a cabeça e a luz projectava-se-lhe na barbicha hirsuta. Apanhou alguns seixos do chão e atirou-os como berlindes com o auxílio do polegar.

     - Não sei. Também acho que a coisa vem aí, como você diz. Um sujeito contou-me o que se passou em Akron, no estado de Ohio, nas companhias de borracha. Eles foram buscar gente à serra, para trabalhar por salários baixos. Um dia, aquele pessoal da serra entrou para a União. Pois foi o diabo. Os negociantes, os legionários, toda aquela gente berrava de raiva. “Vermelhos!” gritavam. E queriam expulsar a União de Akron. Os pregadores falavam sobre o assunto; os jornais uivavam, e as companhias distribuíam picaretas e compravam gás lacri... mejante ou lacrimogénio, sei lá! Livra, pareciam uns verdadeiros demónios, aqueles rapazes da serra! - Interrompeu-se, apanhando mais seixos para os atirar. - Sim, senhor... Foi em Março do ano passado. Num domingo, cinco mil daqueles tipos da serra começaram a atirar ao alvo nos arredores da cidade. Cinco mil homens marchavam, armados de carabinas. Atiraram ao alvo, e depois regressaram, marchando como soldados. Foi só o que fizeram mas, desde então, não, houve mais questões. Os comités de cidadãos devolveram as picaretas que tinham recebido, e os negociantes ocuparam-se com os seus negócios; ninguém apanhou pancada; não puseram ninguém em barricas de alcatrão, nem untaram quem quer que fosse com penas de galinha, nem mataram ninguém. - Houve um silêncio prolongado, e então o homem do chapéu preto continuou: - Esta gente daqui está-se a fazer ruim como o diabo. Queimaram aquele acampamento e lançaram-nos as culpas. Pensei muito a esse respeito. Toda a gente tem espingardas. Pensei que talvez a gente pudesse fundar um clube de tiro ao alvo, e fazer concursos de tiro todos os domingos.

     Os homens olharam-no e tornaram a pregar os olhos no chão. Mexiam nervosamente os pés e apoiavam-se ora numa perna ora noutra.

    

     É bela a Primavera na Califórnia. Nos vales, as flores das árvores frutíferas parecem águas perfumadas, brancas e cor-de-rosa, num mar pouco profundo. Então, as primeiras gavinhas das uvas, rebentando das vinhas nodosas, pendem, cobrindo os troncos. As colinas, cheias e verdes, arredondam-se, macias como seios. E, na planície, as hortas estendem-se em filas de muitas léguas: filas de alface de um verde pálido, de pequenas couves-flores de forma alongada e de alcachofras tingidas de um cinzento verdoengo, quase irreal.

     As folhas rebentam nas árvores, e as pétalas tombam das árvores frutíferas, atapetando a terra de branco e de cor-de-rosa. Os ovários das flores entumecem, aumentam e começam a colorir-se: cerejas e maçãs, pêssegos e peras, limões, cujo fruto encerra a flor. A Califórnia inteira apressa-se a produzir e a fruta torna-se pesada. Os ramos, pouco a pouco, dobram-se sob o próprio peso, de maneira que se torna necessário colocar escoras para que possam suportar o seu fardo.

     Por detrás dessa fecundidade, há homens de inteligência, de conhecimentos e de habilidade, homens que fazem experiências com as sementes, que vão desenvolvendo a técnica que proporciona maiores colheitas das plantas, cujas raízes têm de resistir aos milhões de inimigos terrestres: ao bolor, aos insectos, à ferrugem e às doenças das plantas. Esses homens trabalham cuidadosa e infatigavelmente para aperfeiçoarem as sementes e as raízes. E ao lado deles encontram-se os químicos, borrifando as árvores no combate contra a peste, enxofrando as uvas, para aniquilar doenças e podridões, míldio e outras enfermidades. Doutores em medicina preventiva, homens da fronteira, espreitando as moscas da fruta, o escaravelho japonês; homens que obrigam as árvores doentes a quarentena ou que as destroem pelo fogo - homens de ciência. Os homens que enxertam as árvores jovens ou as vinhas novas são os mais hábeis de todos.

     É que o seu ofício é o de um cirurgião, e tão fino e tão delicado como o deste, e esses homens têm de possuir as mãos e o coração de um cirurgião, para fenderem a casca, para colocarem os enxertos, para atarem as feridas, protegendo-as do ar. São homens notáveis.

     Ao longo das filas, caminham os camponeses; arrancam as ervas da Primavera, deitando-as na terra, a fim de a tornar fértil. Abrem o chão, para que mantenha a água perto da superfície, estriam-no por meio de pequenos fossos de irrigação, destroem as ervas daninhas que poderiam beber a água destinada às árvores.

     E, durante todo esse tempo, os frutos vão crescendo, e as flores rebentam nas vinhas, pendendo em compridas umbelas. Com o correr dos dias, o calor aumenta e as folhas tingem-se de verde-escuro. As ameixas alongam-se, como ovinhos verdes de pássaro, e os ramos curvam-se ao peso e abaixam-se sobre os suportes que os escoram. As peras, pequenas e duras, adquirem forma e nos pêssegos desponta a primeira penugem. As flores da uva perdem as suas pétalas minúsculas, e as contas pequenas e duras transformam-se em botões verdes, e os botões começam a adquirir peso. Os homens que trabalham nos campos e os proprietários dos pequenos pomares vigiam e fazem cálculos. Este ano é fecundo e abundante. E os homens sentem orgulho, pois são capazes, devido à sua perícia, de tornarem o ano fecundo e abundante. Eles têm transformado o mundo com a sua técnica extraordinária. O trigo curto e delgado tornou-se cheio e produtivo. De pequenas maçãs azedas fizeram maçãs grandes e doces, e aquela vinha velha, que crescia entre árvores, alimentando as aves com os seus frutos minúsculos, engendrou milhares de variedades; vermelhas e pretas, verdes e rosadas, purpúreas e amarelas; e cada variedade tem o seu gosto característico. Os homens que trabalham nos campos experimentais criaram frutas novas: nectarinas e quarenta espécies de ameixas e de nozes, com uma casca fina como o papel. E continuam trabalhando, escolhendo, enxertando, mudando; estão-se compelindo a si mesmos, compelindo a terra a produzir.

     As primeiras cerejas amadurecem. Um cent e meio a libra. Meu Deus! Mas a gente pode lá colhê-las por esse preço! Cerejas pretas e cerejas encarnadas, cheias e doces, e as aves comem a metade de cada cereja, e as vespas infiltram-se nos buracos feitos pelas aves. Os caroços caem no chão, secos, com pedaços pretos agarrados.

     As ameixas purpúreas tornam-se doces e macias. Santo Deus! É impossível colhê-las, secá-las e enxofrá-las. A gente não pode pagar salários, seja que salários for. E as ameixas purpúreas alcatifam o chão. Primeiro, a pele enruga um pouco e os enxames de moscas apanham o seu festim. Sobre o vale paira um cheiro de podridão. A polpa torna-se escura e a colheita murcha no chão.

     As peras fazem-se amarelas e macias. Cinco dólares a tonelada. Cinco dólares por caixas de quarenta a cinquenta libras. As árvores mondadas e cuidadas... homens especializados... e colher as frutas e pô-las em caixas, carregar os camiões, entregar as frutas na fábrica de conservas... quarenta caixas por cinco dólares. Mas não pode ser... a gente não pode! E as frutas amarelas caem no chão pesadamente, e nele rebentam. As vespas mergulham na polpa mole, e espalha-se um cheiro de fermentado e de podridão.

     Depois, vêm as uvas... Não se pode fazer bom vinho. O pessoal não pode comprar bom vinho. Arranquem os cachos das vinhas, uvas boas, uvas podres, uvas carcomidas. Espremam os talos, espremam o que está sujo e podre; tudo.

     Mas nas cubas há míldio e ácido fórmico.

     Ponham enxofre e ácido tânico.

     A fermentação não exala o aroma rico do vinho, mas odores de decadência e de drogas.

     Não faz mal. De qualquer maneira têm álcool. A gente pode embriagar-se mesmo assim.

     Os pequenos fazendeiros observam como as dívidas sobem insensivelmente, como o crescer da maré. Cuidaram das árvores, sem vender a colheita, podaram e enxertaram e não puderam colher as frutas. Os homens de ciência trabalharam e meditaram e as frutas apodrecem no chão e a mistura deteriorada nas cubas de vinho empesta o ar. E provem o vinho... nada nele existe do aroma das uvas; há somente enxofre, ácido tânico e álcool.

     Este pequeno pomar, para o ano que vem, pertencerá a uma grande companhia, pois o proprietário será sufocado pelas dívidas.

     Este parreiral passará a ser propriedade do banco. Apenas os grandes proprietários podem subsistir, visto que também possuem fábricas de conservas. Quatro peras descascadas e partidas pelo meio, cozidas e postas em latas custam sempre quinze cents. E as peras enlatadas não se estragam. Conservam-se anos.

     A podridão alastra por todo o Estado e o cheiro doce torna-se uma grande preocupação nos campos. Os homens que sabem enxertar as árvores e tornar fecundas e fortes as sementes, não encontram meios de deixarem a gente esfaimada comer os seus produtos. Homens que criaram novas frutas para o mundo, não sabem criar um sistema pelo qual as tais frutas possam ser comidas. E o malogro paira sobre o Estado como um grande desgosto.

     As operações praticadas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas, para que sejam mantidos os preços elevados. E isto o mais triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O pessoal vinha de milhas de distância para buscar as frutas, mas agora, não lhes é permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte cents a dúzia, quando bastava pular do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de mangueiras derramam querosene por cima das laranjas e enfurecem-se contra o crime, contra o crime daquela gente que veio à procura das frutas. Um milhão de criaturas com fome, de criaturas que precisam de frutas... e o querosene derramado sobre as faldas das montanhas douradas.

     O cheiro da podridão enche o país.

     Queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer; o milho dá um lume excelente. Atiram batatas aos rios, colocando guardas ao longo das margens, para evitar que o povo faminto intente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a putrescência penetrar na terra.

     Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento humano. Há nisto uma tristeza, uma tristeza que o pranto não consegue simbolizar. Há um malogro que opõe barreiras a todos os nossos êxitos; à terra fértil, às filas rectas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. Crianças atingidas de pelagra têm de morrer porque a laranja não pode deixar de proporcionar lucros. Os médicos legistas devem declarar nas certidões de óbito: “Morte por inanição”, porque a comida deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.

     O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros ruidosos apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão untadas de querosene. E ficam imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, rolando num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflecte-se o malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima.

    

     A família Joad descansava, após o jantar, no acampamento de Weedpatch, numa tarde em que franjas extensas de nuvens se deitavam sobre o sol poente que lhes tingia as fímbrias de vermelho. A mãe hesitava, antes de se entregar à tarefa de limpar os pratos.

     - A gente tem de fazer seja o que for - dizia ela, apontando para Winfield. - Olhem para ele! - E, quando todos tinham os olhos pregados no rapazinho, continuou: - Olhem como ele treme, torcendo-se todo no sono! Olhem para a cor dele! - E os restantes membros da família, envergonhados, tornavam a cravar os olhos no chão. - Massa frita - disse a mãe. - Há um mês que a gente aqui está. O Tom só trabalhou cinco dias. Todos vocês têm procurado e não encontram serviço nenhum. E têm medo de falar nisso. O dinheiro foi-se. E vocês com medo de falar nisso. Quando chega a noite, o que fazem é jantar e tratar de sair. Não têm coragem de falar no que se passa. Mas tem de ser. A Rosasharn está a acabar o seu tempo e olhem para a cor dela! Devem falar sobre a nossa situação. Não quero que nenhum de vocês saia daqui antes de resolver tudo. A gente ainda tem banha para um dia e farinha para dois. E dez batatas. Fiquem sentados e puxem pela cabeça.

     Todos estavam de cabeça baixa. O pai limpava as unhas espessas com o canivete. O tio John entretinha-se a arrancar uma lasca do caixote em que estava sentado. Tom mordia o lábio inferior e afastava-o depois dos dentes.

     Deixando os lábios em paz, Tom disse brandamente:

     - A gente tem andado sempre à procura, mãe. Andámos até gastar toda a gasolina. Batemos a todas as portas, a todas as casas de fazendas, mesmo quando já sabíamos que não valia a pena. É isto o que incomoda a gente; procurar uma coisa que já se sabe que se não arranja.

     A mãe prosseguiu com violência:

     - Vocês não têm o direito de perder a coragem. A nossa família vai-se desfazendo aos poucos. Vocês têm de ter coragem!

    O pai contemplava as unhas que acabara de limpar.

     - A gente já devia ter-se ido embora daqui. Mas a gente não quis ir. Por aqui é tudo tão bonito; as pessoas, tão boas e amigas! E o medo de ter de cair outra vez em Hooverville.

     - E que tem isso? O principal é termos que comer.

     Al interveio:

     - O tanque de gasolina está cheio. Eu não quis dizer a ninguém, mas ele ainda está cheio.

     Tom sorriu.

     - Este Al não é tão tolo como parece.

     - Bom, então puxem pela cabeça - disse a mãe. - Não posso mais ver a minha família a morrer de fome aos poucos. Ainda temos banha para um dia. É tudo, compreenderam? Dentro em pouco, a Rosasharn vai ter o bebé e tem de se alimentar muito bem. Pensem nisto.

     - Aqui há água quente e umas retretes tão bonitas... - começou o pai.

     - Pois sim, mas a gente não pode comer retretes.

     - Esteve aqui, hoje, um sujeito à procura de gente para apanhar fruta em Maryswille - disse Tom.

     - Então porque é que a gente não vai para Maryswille? - perguntou a mãe.

     - Sei lá! - respondeu Tom. - A coisa não me cheirou lá muito bem. Ele insistia demais. E não queria dizer quanto pagava. Disse que não sabia ao certo.

     - Vamos a Marysville. Não interessa quanto pagam. Vamos para lá! - aconselhou a mãe.

     - É muito longe - disse Tom. - Não temos dinheiro para a gasolina. A gente não conseguia lá chegar, mãe. A senhora disse para a gente puxar pela cabeça. É o que nós temos feito sempre.

     O tio John então falou:

     - Disse-me um sujeito que é agora a época do algodão lá para o norte, para as bandas de Tulare. Disse que não é muito longe daqui.

     - Pois bem; temos de ir e depressa. Não podemos ficar aqui, por mais bonito que isto seja.

     A mãe apanhou o balde e foi até ao departamento sanitário buscar água quente.

     - A mãe está a fazer-se tesa - afirmou Tom. - Ela tem andado muito zangada nos últimos tempos. Até parece que ferve.

     O pai respondeu, aliviado:

     - Ainda bem que foi ela quem começou a falar nisto tudo. Estive toda a noite a queimar os miolos com isto. Agora já se pode falar abertamente no assunto.

     A mãe regressava com um balde de água fumegante.

     - Então? - inquiriu. - Resolveram alguma coisa?

      - Estamos a falar nisso - respondeu Tom. - E se a gente fosse para o norte, colher algodão? Sabemos que por aqui não se arranja nada. Que tal arrumar tudo e ir para o norte? A gente chega justamente na época da safra. Até j à tenho vontade de sentir o algodão nas mãos. O tanque está cheio, não está, Al?

     - Está. Quase cheio; devem faltar umas duas polegadas.

     - Acho que dá para a viagem.

     A mãe pôs um prato em cima do balde.

     - Então? - perguntou.

     - A senhora ganhou, mãe. Acho que devemos sair daqui já. Não lhe parece, pai? - perguntou Tom.

     - Eu também acho que sim - respondeu o pai.

     A mãe lançou-lhe um rápido olhar.

     - Quando?

     - Bem, esperar muito não vale a pena. Acho melhor a gente, partir amanhã cedo.

     - É bom sairmos cedo, realmente. Já lhes disse que a comida está no fim.

     - Olhe, mãe, não pense que eu não quem ir. Há já duas, semanas que não tenho metido na barriga coisa que preste. Enchi-a, é certo, mas garanto-lhe que não tirei nenhum proveito disso.

     A mãe mergulhou o prato no balde.

     - Vamos partir amanhã de madrugada.

     O pai fungou:

     - Parece que as coisas vão mudando – disse, sarcástico. - Lembro-me do tempo em que era o homem quem dizia o que se devia fazer. Parece que é a mulher agora quem faz isso. É a altura de uma pessoa puxar por um pau.

     A mãe colocou num caixote o prato de folha, limpo e ainda gotejante de água. Sorriu, debruçada sobre a sua tarefa.

     - Vai, vai buscar um pau - disse. - No dia em que a gente tiver um buraco onde morar, pode ser que tu te possas servir desse pau sem arriscares a pele. Mas agora tu não fazes coisa nenhuma, não trabalhas e nem sequer pensas. Quando fizeres tudo isso, muito bem. Então poderás manejar o pau e a tua mulher ficará a fungar e a pôr-se de cócoras diante de ti. Mas agora, não. Agora encontras a mulher pela frente. Eu também posso puxar de um pau para te desancar.

     O pai sorriu com um sorriso contrafeito.

     - Acho que não é bonito as crianças ouvirem-te falar assim. - Antes de dizeres o que é justo, enche a barriga das crianças com presunto.

     O pai ergueu-se, todo aborrecido, e saiu. O tio John foi-se atrás dele.

     As mãos da mãe estavam mergulhadas na água e os seus olhos seguiram os dois homens que iam saindo. Voltou-se para Tom e disse com orgulho:

     - Ele é bom homem. E não se deixa abater. Isso de me dar pancada não é com ele.

     Tom deu uma risada.

     - A senhora quis levantar-lhe o ânimo, não foi?

     - Claro - concordou a mãe. - Imagina um homem que vive preocupado sempre, a moer o fígado. Não tarda que não desanime de todo e se deixe ficar sem poder reagir. Mas, se alguém conseguir fazê-lo enraivecer, a coisa muda. Entra nos eixos, garanto-te. Sabes? O pai não disse nada, mas está a rebentar de raiva. Agora, entra nos eixos, vais ver.

     Al levantou-se e disse:

     - Vou dar uma voltinha.

     - Seria melhor verificares se o camião está em condições de seguir viagem - aconselhou Tom, em ar de advertência.

     - Está. Já verifiquei.

     - Se não estiver, vais-te ver às voltas com a mãe.

     - Já disse que está.

     Al saiu, caminhando com pose ao longo da rua das tendas. Tom suspirou.

     - Estou cansado de tudo isto, mãe. A senhora tem de me espicaçar também a mim.

     - Tu tens mais energia, Tom. Não precisas disso. Eu confio em ti. Os outros... de certo modo, são para mim uns estranhos. Todos, menos tu. Tu não és dos que desistem, Tom.

     Tom não gostou da responsabilidade que lhe caía sobre os ombros.

     - Não gosto lá muito disso, mãe - confessou. - Quero ser livre como o Al, enraivecer-me como o pai ou embriagar-me como o tio John.

     A mãe sacudiu a cabeça.

     - Mas tu não podes, Tom; mesmo que queiras, não podes. Eu já tinha essa certeza ainda tu eras pequenino. Há pessoas que só se preocupam consigo e nada mais. Vê o Al... é um rapaz que só tem uma preocupação: andar atrás das raparigas. Tu nunca assim foste, Tom.

     - Fui, sim, então não fui? - perguntou Tom. - E ainda assim sou.

     - Não, tu não és. Tudo o que fazes não é só por ti. Quando te prenderam, eu já sabia que isso iria acontecer. Tu és dos eleitos.

     - Ora, mãe, deixe-se disso. Isso é fantasia sua.

     A mãe colocou as facas e os garfos nos pratos.

     - Pode ser. Pode ser que seja fantasia minha. Rosasharn: vem enxugar estes talheres e guardá-los depois!

     A rapariga ergueu-se, com um respirar de asmática; e a barriga saliente empinava-se diante dela. Dirigiu-se indolentemente para o caixote e apanhou um prato lavado.

     - Tem a pele tão esticada que nem consegue fechar os olhos.

     - Não brinques com ela - advertiu a mãe. - A Rosasharn é uma boa rapariga. É melhor tu ires dizer adeus aos teus conhecidos.

     - Está bem - respondeu Tom. - Vou aproveitar para saber a que distância fica o tal sítio.

     A mãe disse a Rosasharn:

     - Ele não diz isso para te aborrecer. Onde estão a Ruthie e o Winfield?

     - Escapuliram-se atrás do pai. Vi-os sair.

     - Está bem. Deixa-os brincar um pouco.

     Rosa de Sharon executava preguiçosamente a sua tarefa. A mãe observava-a com atenção.

     - Não te sentes bem? Estás com uma cara tão fatigada!

     - Não tomei o leite que devia tomar...

     - Eu sei. Mas não foi possível arranjar-te leite. Rosa de Sharon volveu com ar sombrio: - Se o Connie se não tivesse ido embora, a gente, agora, podia arranjar uma casinha e ele ia estudar e tudo. E eu teria o leite que quisesse e então nasceria um bebé bem bonito e gordo. Assim o bebé não vai ser forte. Eu precisava de beber leite. - Tirou qualquer coisa do bolso do avental e levou-a rapidamente à boca.

     A mãe perguntou:

     - Engoliste qualquer coisa. Que foi?

     - Nada.

     - Nada? Eu vi. Diz lá o que foi.

     - Foi um pedacinho de cal que achei ali fora.

     - Mas para que é que comes essas porcarias?

     - Sei lá! Sinto desejos...

     A mãe calou-se. Afastou os joelhos e esticou a saia entre eles.

     - Eu sei - disse finalmente. - Uma vez, quando estava assim como tu, comi um pedaço de carvão. Um bom pedaço de carvão. A avó disse-me que não fizesse semelhante coisa. Mas olha, não fales assim do teu bebé. Não tens o direito de falar assim.

     - Ora, não tenho marido, não tenho leite. Não tenho nada!

     A mãe continuou:

     - Se tu ainda fosses criança, levavas agora uma bofetada. Mesmo na cara, ouviste? - Levantou-se e entrou na tenda. Um instante depois, regressava com a mão estendida para Rosa de Sharon.

     - Toma! - disse. Trazia nas mãos dois brincos de oiro. - Isto é para ti.

     Os olhos da rapariga brilharam por um segundo; mas depois, desviou-os lentamente.

     - Não tenho as orelhas furadas.

     - Mas eu furo-tas agora.

     A mãe voltou a correr, ao interior da tenda, e não tardou a regressar com uma caixinha de papelão. Rapidamente, enfiou uma linha numa agulha, e, dobrando a linha, fez nela uma série de nós. Pegou noutra agulha e repetiu a operação. Da caixinha, retirou um pedaço de cortiça.

     - Mas isso vai doer. Isso vai doer!

     A mãe postou-se ao lado dela e encostou-lhe a cortiça ao lóbulo da orelha. Depois espetou a agulha na orelha, fazendo-a penetrar na cortiça, que, do outro lado, servia de apoio.

     A jovem contraiu-se.

     - Ui, pica! Vai-me fazer doer!

     - Não dói mais do que isto.

     - Dói, sim, eu sei que dói.

     - Pois então, vamos começar pela outra orelha, já que nesta te faz doer.

     Apoiou a cortiça e perfurou a outra orelha.

     - Vai doer!

     - Chiu! - disse a mãe. - Já está pronto.

     Rosa de Sharon olhou-a cheia de surpresa. A mãe cortou a linha para tirar as duas agulhas e fez passar um nó de cada fio através dos lóbulos.

     - Pronto - disse a mãe. - Todos os dias, a gente faz passar um nó e, daqui a umas duas semanas, já estás em condições de usar os brincos. Toma, fica com eles; agora são teus.

     Rosa de Sharon apalpou timidamente as orelhas, contemplando depois a gotinha de sangue que lhe ficara nos dedos.

     - Não doeu - confessou ela. - Só senti uma picada.

     - Já há mais tempo que devíamos ter feito isto - disse a mãe. - Olhou a filha com uma expressão triunfal. - Bom, vê se acabas de enxugar os pratos, agora, o teu menino vai ser um bebé bem bonito. Por um pouco que ias ter o menino sem as orelhas furadas. Mas agora já não há perigo.

     - Isso quer dizer alguma coisa?

     - Claro que quer dizer muita coisa.

    

    

     Al caminhava vagarosamente pela rua, dirigindo-se ao estrado da dança. Perto de uma tenda pequena, muito asseada, soltou um assobio. E continuou a caminhar, até ao fim dos terrenos. Sentou-se sobre um barranco onde crescia a erva.

     As nuvens, a ocidente, já não tinham tarjas vermelhas; agora haviam escurecido no centro. Al coçou as pernas, contemplando o céu vespertino.

     Instantes depois, uma rapariga loira aproximava-se. Era bonita e de traço finos. Sentou-se também na erva, ao lado de Al, sem dizer palavra. Al enlaçou-a pela cintura, acariciando-a com os dedos.

     - Está quieto! - disse ela. - Fazes-me cócegas.

     - Vamo-nos embora daqui amanhã.

     Ela olhou-o com surpresa.

     - Amanhã? Para onde?

     - Para o norte - respondeu ele com desembaraço.

     - Mas a gente ia casar, não ia?

     - Claro. Um dia, a gente casa-se.

     - Mas tu disseste que era daqui a pouco tempo - disse a rapariga furiosa.

     - Bem, daqui a pouco ou daqui a algum tempo é a mesma coisa.

     - Mas tu prometeste...

     Ele começou a avançar com os dedos.

     - Deixa-me! - gritou ela. - Tu disseste que casavas comigo.

     - Pois disse, sim, senhora.

     - E agora vais-te embora?

     Al perguntou-lhe:

     - Mas que tens tu? Esperas algum menino?

     - Não, não espero coisa nenhuma.

     Al pôs-se a rir.

     - Quer dizer que perdi o meu tempo.

     Ela ergueu o queixo e levantou-se num pulo.

     - Vai, vai-te embora, Al Joad! Deixa-me em paz! Não te quero ver mais!

     - Ora vem cá. Que é que tu tens?

     - Pensas que podes fazer o que te apetecer?

     - Escuta, espera aí.

     - Tu pensas que não tenho mais ninguém, que és só tu. Pois estás enganado. Há uma porção de rapazes que me querem. É só eu escolher.

     - Ouve lá. Quero conversar contigo.

     - Não oiço coisa nenhuma. Põe-te a andar.

     Al virou-se de súbito e segurou-lhe os tornozelos, fazendo-a tropeçar. Apanhou-a na queda e enlaçou-a com os braços, tapando-lhe a boca com a mão. Ela procurou mordê-lo mas ele pôs a mão em concha e manteve-a no chão com o outro braço. Instantes depois, a rapariga já se não debatia e, daí a pouco, ambos riam sobre a erva seca.

     - Olha, a gente volta não tarda - disse Al. - Nessa altura, eu hei-de ter os bolsos cheios de massa. E a gente vai até Hollywood, ver as fitas.

   A rapariga estava deitada de costas. Al debruçou-se sobre o corpo dela. E viu-lhe nos olhos os reflexos da estrela da tarde e os reflexos das nuvens negras.

     - Vamos de comboio - disse ele.

     - Quanto tempo vão ficar por lá? - inquiriu ela.

   - Naturalmente um mês - foi a resposta.

     A noite estendeu o seu manto escuro. O pai e o tio John, em companhia dos outros chefes de família estavam acocorados em frente do escritório. Examinavam a noite e o futuro. O director, de fato branco, rasgado mas limpo, apoiava os cotovelos na balaustrada da varanda. Tinha o rosto cansado, abatido.

     Huston ergueu os olhos para o director:

     - Seria melhor o senhor ir ver se dorme.

     - A ideia não é nada má. Ontem à noite nasceu uma criança no departamento nº 3. Vou-me transformando a pouco e pouco numa parteira perfeita.

     - Um homem tem de perceber dessas coisas - disse Huston. - Sobretudo um homem casado.

     - Nós vamo-nos embora - disse o pai. - Amanhã de manhã.

     - Sim? Para onde vão?

     - Lá para as bandas do norte. Vamos ver se chegamos para as primeiras colheitas do algodão. Por aqui não se arranja trabalho. E não há nada que se coma.

     - E lá? Vocês têm a certeza de que vão arranjar trabalho? - perguntou Huston.

     - Não, mas temos a certeza de que por aqui é que não se arranja.

     - Mais tarde, talvez. Nós vamos esperar - disse Huston.

     - Bem, vontade de esperar mais um pouco também não nos falta - continuou o pai. - Aqui têm sido muito bons... e há toilettes e tudo. Mas a gente precisa de comer. Temos o tanque cheio de gasolina. Podemos andar um bocado na estrada. Aqui, a gente tomava banho todos os dias. Nunca na minha vida andei tão limpo. É engraçado... dantes, eu tomava banho uma vez por semana e nunca me pareceu que cheirasse mal. Agora, se não tomo banho um dia, começo logo a ter mau cheiro. Gostava de saber se isso acontece por se tomar banho todos os dias.

     - Talvez você nunca tivesse dado pelo seu cheiro - disse o director.

     - Pode ser. Seria bom se a gente pudesse ficar...

     O director levou a palma das mãos à fronte.

     - Acho que esta noite vamos ter outro menino - disse.

     - Na nossa família, também estamos à espera de um - informou o pai. - Gostava que ele nascesse aqui. Acredite que gostava, e muito.

    

     Tom, Willie e Jule, o mestiço, estavam sentados à beira do estrado de dança, baloiçando as pernas.

     - Tenho uma onça de Durham - disse Jule. - Quer fumar?

     - Se quero! - respondeu Tom. - Há um ror de tempo que não fumo.

     Enrolou cuidadosamente o cigarro pardusco, tendo o cuidado de não desperdiçar nem um fiapo de tabaco.

     - Pois é; é pena vocês irem-se embora. A sua gente é muito simpática - disse Willie.

     Tom acendeu o cigarro.

     - Pensei muito a respeito da nossa partida. Meu Deus, como eu gostava que nos fixássemos em qualquer parte!

     Jule recebeu de novo a onça de tabaco.

     - Isto tudo não anda certo - disse. - Eu tenho uma filhinha. julguei que ela pudesse ir à escola, quando a gente chegasse aqui ao acampamento. Mas, qual! Nunca se pode parar muito tempo num sítio! Passamos a vida de um lado para o outro. - Oxalá a gente não precise de ir morar outra vez em Hooverville - disse Tom. - Ali, confesso, vivíamos sempre com medo.

     - Foram os polícias que vos puseram de lá para fora?

     - Fiquei com medo de vir a matar algum - continuou Tom. - Estivemos lá pouco tempo, mas vivíamos com o sangue a ferver. A polícia foi lá um dia e catrafilou um amigo meu só porque ele teve a coragem de manifestar a sua opinião. Caramba! Até fazia ferver o sangue!

     - Você já tomou parte nalguma greve? - perguntou Willie.

     - Não.

     - Pois eu pensei muito tempo nisso. Porque é que os policias não vêm aqui e não pintam o, diabo, como fazem noutros sítios? Você acha que é aquele tipo baixinho do escritório que os impede de vir até cá? Não, senhor.

     - Nesse caso, o que é? - inquiriu Jule.

     - Eu lhe digo, E porque todos vivem unidos aqui. A polícia não pode vir buscar uma pessoa só ao acampamento. Para isso, tinha de levar o acampamento inteiro. E eles não têm coragem para tanto. Basta a gente dar um grito e logo uns duzentos homens se põem de pé. Uma vez, um tipo contou-me que fora encarregado de organizar o pessoal, por conta da União e disse que em qualquer sítio se podia fazer o mesmo. Basta a gente ser solidário. Eles não hão-de querer meter-se com duzentos homens. Mas um só, isso catrafilam-no logo.

     - Pois sim - disse Jule. - Suponhamos que vocês organizam a União. Nessa altura, vão precisar de chefes. Se quiserem prender gente, é aos chefes que eles vão engavetar. Aonde é que a União vai parar depois?

     - Aí é que está - disse Willie. - A gente tem de resolver isso mais dia menos dia. Há um ano que ando por esta zona e os salários por cá não fazem outra coisa senão baixar. Um homem, ainda que trabalhe, não ganha o suficiente para sustentar a família. E a coisa piora de dia para dia. Não vale a pena a gente ficar por aqui sentado, a morrer de fome. Eu já riem sei o que hei-de fazer. Quem tem uma parelha de cavalos, não se importa de ter de lhes dar de comer durante o tempo em que não trabalham. Mas se se trata de homens, não se lhes dá nem um chavo. Parece-me que os cavalos valem mais do que os homens. Não compreendo nada disto.

     - Bem, eu nem quero pensar no caso, Mas tenho de pensar - disse Jule. - Tenho de pensar por causa da minha filha. Vocês sabem como ela é bonitinha. A semana passada até ganhou um prémio de beleza aqui no acampamento. Pois não sei o que vai ser dela. Está tão magrinha que nem calculam. E uma coisa que não posso suportar. Ela é tão bonitinha! Meu Deus! Ainda acabo por fazer alguma loucura.

     - Como? - perguntou Willie.- Que é que você vai fazer? Roubar, para ser preso? Ou matar e depois ser enforcado?

     - Não sei - respondeu Jule. - Fico doido quando penso nessas coisas. Fico completa-mente doido.

     - Estes bailes daqui vão-me fazer falta - disse Tom. - São os mais lindos que vi na minha vida. Bom, parece-me que vou dormir. Adeus. A gente ainda se há-de encontrar qualquer dia.

     - Decerto que se encontra - disse Jule.

     - Então, até mais ver.

     E Tom sumiu-se na escuridão.

    

     Na tenda da família Joad, envolta em trevas, Ruthie e Winfield estavam deitados nos respectivos colchões; a mãe jazia deitada ao lado deles. Ruthie sussurrou:

     - Mãe!

     - Que é? Então ainda não dormes?

     - Mãe, terão um jogo de “croquet” lá no sítio para onde a gente vai amanhã?

     - Não sei. Trata de dormir, que a gente tem de sair cedo.

     - Eu gostava de ficar aqui, mãe. Aqui temos a certeza de que há o “croquet”.

     - Chiu! Está calada!

     - Mãe, hoje o Winfield bateu num miúdo.

     - Ele não devia ter feito isso.

     - Eu sei. Foi o que eu disse, mas ele deu um soco no nariz do menino. E, Jesus, como o sangue corria. Aquilo era mesmo à bruta...

     - Não fales assim. Não é bonito.

     Winfield virou-se e disse furioso:

     - Aquele velhaco disse que a gente era Okie. Que ele não era, porque tinha vindo do Oregon, mas que nós éramos uns safados de uns Okies. Foi por isso que eu lhe bati.

     - Chiu! Mas não devias ter feito isso. Não interessa que ele nos chame nomes feios. Isso não nos pode fazer mal nenhum.

     - Pois sim, mas eu é que não consinto que ele o faça - exclamou Willie com violência.

     - Chiu! Dorme!

     - Mãe, só queria que a senhora visse como o sangue corria pela, roupa dele! - insistia Ruthie.

     A mãe tirou a mão direita de dentro do cobertor e assentou os dedos no rosto de Ruthie. Por um instante, a menina ficou imóvel, rígida, mas, logo a seguir, desatou num choro fungado e silencioso.

    

     No departamento sanitário, o pai e o tio John estavam sentados em compartimentos contíguos.

     - Toca a aproveitar, que é a última vez - disse o pai. - Isto aqui é bonito. Lembras-te como as crianças ficaram com medo quando descarregaram a água pela primeira vez?

     - Até eu mesmo não me sentia lá muito tranquilo - respondeu o tio John, puxando cuidadosamente o fato-macaco sobre os joelhos. - Estou a tornar-me ruim. Sinto o pecado a rondar à minha volta.

     - Deixa-te disso - acudiu o pai - Pecar é que não podes. Custa pelo menos dois dólares e a gente está sem cheta.

     - Eu sei. Mas tenho maus pensamentos.

     - Está bem. Podes pecar em pensamento. É coisa que não custa dinheiro.

     - Pois sim, mas nem por isso deixo de pecar - volveu o tio John.

     - Mas assim é mais barato - insistiu o pai.

     - Olha, tu queres saber? Isto de pecar é mais sério do que tu pensas.

     - Eu sei. Tu sentes sempre vontade de pecar quando as coisas vão mal.

     - É isso mesmo - confirmou o tio John. - Sempre assim fui. Não te contei nem metade das coisas que fiz na vida.

     - Nem é preciso. Podes guardá-las para ti.

     - Estas retretes tão bonitas dão-me a ideia de que estou a cometer um pecado.

     - Então vai para o mato! Bem, abotoa as calças e vamos tratar de dormir.

     O pai ajeitou nos ombros as alças do fato-macaco e apertou a fivela. Puxou a manivela da retrete e olhou, pensativo, o redemoinhar da água dentro dela.

    

     Era ainda escuro quando a mãe despertou a família toda. Do departamento sanitário, de portas entreabertas, saía o clarão pálido das lâmpadas nocturnas. Das tendas, ao longo da rua, vinham sons variados de ressonar.

     - Vamos, toca a levantar! - gritou a mãe . - São horas de a gente partir! já é quase dia.- Levantou o tubo de vidro da lâmpada de querosene, que emitiu um silvo brusco, e acendeu a torcida. - Vamos, andem todos, depressa!

     No chão, os homens começavam a mexer-se vagarosamente. Cobertas e cobertores eram atirados para trás. Olhos sonolentos fixavam a luz, vesgos e meio cegos. A mãe enfiou o vestido sobre a roupa de baixo com que dormira.

     - Não há café - disse. - Mas tenho umas empadas para vocês. Vamos comê-las na viagem. Levantem-se, andem! Precisamos de carregar o caminhão. Vamos! E não façam barulho. Não há necessidade de acordar os vizinhos.

     Decorreram alguns momentos antes que eles estivessem bem acordados.

     - Não saiam daqui! - advertiu a mãe, dirigindo-se às crianças.

     A família vestiu-se. Os homens desataram a lona da tenda e ajeitaram tudo na carrosserie do caminhão.

     - Tomem cuidado, de modo que fique tudo bem plano! - avisou a mãe.

     Estenderam os colchões por cima da carga, amarrando a lona no lugar do costume e erguendo-a sobre o pau da armação.

     - Pronto, mãe - disse Tom. - Está tudo pronto.

     A mãe segurava um prato de empadas frias.

     - Muito bem. Tomem. Uma para cada um de vocês. E é só o que temos.

     Ruthie e Winfield pegaram com avidez nas respectivas empadas e treparam para o caminhão. Cobriram-se com um cobertor e deitaram-se, adormecendo logo, ainda com as empadas frias e duras nas mãos. Tom sentou-se ao volante e calcou o arranque. O motor roncou, mas emudeceu logo a seguir.

     - Que o diabo te leve, Al! - gritou Tom. - Tu deixaste a bateria a descarregar.

     Al refilou:

     - Ora, como diabo é que tu querias que eu a não deixasse descarregar, não tendo gasolina?

     Tom deixou escapar um sorriso.

     - Bem, sei lá! Mas a culpa é tua. Agora, vê se dás aí um jeito com a manivela.

     - A culpa não é minha, já te disse.

     Tom desceu do carro e tirou a manivela da caixa por baixo do assento.

     - Então a culpa é minha, pronto! - disse.

     - Deixa ver essa manivela. - Al tomou-a das mãos de Tom. - Empurra a ignição para baixo, que é para não me levar o braço.

     - Está bem. Vai torcendo.

     Al cansou-se a dar voltas e mais voltas com a manivela. Por fim, o motor pegou e começou a roncar e a tremer, enquanto Tom, cautelosamente, ia calcando o acelerador. Aumentou a ignição e reduziu o gás.

     A mãe subiu para a frente, ao lado dele.

     - A gente acordou o acampamento todo com este barulho.

     - Ora! Eles adormecerão de novo.

     Al subiu para o assento pelo outro lado.

     - O pai e o tio John vão em cima da carga. Querem dormir mais um bocado.

     Tom pôs o camião em movimento e foi rondando em direcção ao portão principal. O guarda deixou o escritório e projectou sobre o veículo a luz da sua lanterna eléctrica.

     - Esperem um instantinho - disse.

     - Que há?

     - Vocês vão-se embora?

     - Pois vamos.

     - Então tenho de lhes dar saída no livro de registo.

     - Fixe!

     - Já sabem para onde vão?

     - Vamos a ver como são as coisas lá pelo norte.

     - Muito bem. Felicidades! - disse o guarda.

     - Igualmente. Passe bem.

     O carro foi contornando lentamente o barranco, e entrou logo na estrada, a mesma por onde tinham vindo, passando por Weedpatch, rumo ao oeste, até chegar à estrada 99. Tomou então, a direcção norte, rodando pela larga faixa de cimento até Bakersfield. O dia ia nascendo quando chegaram aos arredores da cidadezinha.

     - Para qualquer lado que se olhe, há restaurantes. Por toda a parte há cafés. Olhem, esse café aí fica aberto toda a noite. Aposto que têm mais de dez bidões de café formidável a ferver lá dentro - disse Tom.

     - Cala a boca - disse Al.

     Tom sorriu maliciosamente:

     - Bem me queria parecer que tu tinhas arranjado uma pequena logo de entrada.

     - E então?

     - É por isso que ele anda aborrecido, mãe. Não é nada agradável uma companhia assim.

     Al respondeu irritado:

     - Não te incomodes. Não tarda muito, também, que eu largue sozinho por aí fora. É mais fácil um tipo sozinho ganhar a vida do que com a família.

     - Em nove meses, também tu arranjavas família. Eu bem vi como tu te divertias lá no acampamento.

     - Estás maluco. Eu ia era trabalhar numa garage e comer em restaurantes - respondeu Al.

     - E em nove meses tinhas mulher e filho.

     - Estás a sonhar!

     - Tu és um espertalhão. Mas um dia, apanhas uma mocada na cabeça - disse Tom.

     - E quem é que ma dá?

     - Ora! Há sempre uns gajos capazes disso - esclareceu Tom.

     - Tu pensas que, lá porque te aconteceu aquilo...

     - Vejam se acabam com isso - interveio a mãe.

     - A culpa é minha - disse Tom. - Quis divertir-me à custa dele. Não te quis ofender, Al. Não sabia que gostavas assim tanto daquela pequena.

     - Qual gostar? Não gosto de pequena nenhuma.

     - Bem, então não gostas. Não quero discutir contigo.

     O caminhão ia já nos limites da cidadezinha.

     - Olhem aquelas lojas de cachorros quentes - disse Tom. - Há por aqui centenas delas.

     - Tom, eu tenho aqui um dólar; consegui poupá-lo - segredou a mãe. Tens assim tanto desejo de café que valha a pena gastá-lo?

     - Não, mãe, estava a brincar.

     - Mas, se tu tens assim tanta vontade, podes ficar com ele.

     - Não, não quero.

     - Então vê se deixas de falar tanto em café - disse Al.

     Tom demorou seu tempo a responder-lhe:

     - Parece que ando sempre a meter os pés pelas mãos - disse. Esta é a estrada por onde passámos naquela noite.

     - Espero que a gente não tenha que passar outra vez por uma coisa assim - disse a mãe. - Que noite terrível!

     - Se foi! Também não gostei muito, confesso.

     A direita do veículo em marcha, o Sol galgava o horizonte.

     O caminhão projectava uma sombra volumosa, que os acompanhava e se espraiava sobre os moirões das cercas da beira da estrada. Passaram perto de Hooverville, já reconstruída.

     - Olhem! - exclamou Tom. - Parece que veio gente nova para cá. Mas o resto não mudou nada.

     Pouco a pouco, Al foi perdendo o mau humor.

     - Disseram-me que há gente aqui a quem queimaram as coisas bem umas quinze a vinte vezes. Escondem-se nos salgueiros, e, depois de a polícia se ir embora, voltam a armar outra barraca de ervas. São como marmotas. Estão tão acostumados a isso que já nem ficam aborrecidos com essas coisas. Para eles, tudo isso é como o mau tempo.

     - A mim, aquela noite também me pareceu mau tempo - disse Tom. - Iam agora subindo a estrada principal. E os raios de sol causavam-lhes arrepios. - As manhãs já vão sendo frescas - continuou Tom. - O Inverno está à porta. Só quero que a gente consiga ganhar algum dinheiro antes de ele chegar. Viver de Inverno numa tenda não deve ser nada agradável.

     A mãe suspirou e depois ergueu a cabeça.

     - Tom - disse ela - a gente tem de arranjar uma casa no Inverno. Não podemos deixar de ter uma casa para morar. A Ruthie tem boa saúde, mas o Winfield está fraquinho. A gente tem de arranjar uma casa para morar, antes que venham as chuvas. E o povo diz que por aqui chove a cântaros.

     - Havemos de ter uma casa, sim, mãe. Fique descansada. A senhora vai ter a sua casa.

     - Basta que tenha tecto e soalho. As crianças não devem dormir na terra.

     - Vamos a ver, mãe.

     - Bem, eu não quero que vocês tenham preocupações desde já.

     - Vamos a ver, mãe.

     - Às vezes sinto-me desesperada. Às vezes, começo a perder, até, a coragem.

     - Nunca vi a senhora perder a coragem.

     - Às vezes, de noite, acontece-me.

     Um sibilar agudo, vindo da frente do caminhão, chegou-lhes aos ouvidos. Tom segurou o volante com firmeza e travou. O caminhão parou com estrépito. Tom suspirou.

     - Bem, lá se foi - disse, encostando-se ao espaldar do assento.

     Al saltou e foi examinar o pneu dianteiro da direita.

     - Um prego enorme! - gritou.

     - Tens para aí remendos de pneu?

     - Não - respondeu Al. - Acabou-se tudo. Há ali ainda umas tiras, mas a cola foi-se toda.

     Tom virou-se para a mãe com um sorriso melancólico, dizendo:

     - A senhora não devia ter confessado que ainda tinha um dólar. A gente tinha de se arranjar sem ele. - Saltou também e foi ver o pneu já completamente vazio.

     Al mostrou-lhe um prego enorme, que sobressaía do pneu esvaziado.

     - Foi este - disse.

     - É claro! Naturalmente este era o único prego da estrada, mas nós tínhamos de passar por cima dele.

     - Então a coisa é difícil? - perguntou a mãe.

     - Nem por isso, mãe, mas a gente tem de arranjar isto depressa.

     A família desceu do caminhão.

     - Pneu furado? - inquiriu o pai, Lançou um olhar ao pneu e calou-se.

     Tom ajudou a mãe a sair do assento da frente e retirou de sob a almofada uma lata de tiras de borracha para remendos. Pegou numa fita de borracha e alisou-a; depois, pegou no tubo da cola e espremeu-o.

     - Está quase seca – disse - mas pode ser que ainda dê qualquer coisa. Bem, Al, põe um calço nas rodas traseiras e vamos ver se levantamos este calhambeque.

     Tom e Al entenderam-se bem no trabalho. Calçaram com pedras as rodas traseiras, colocaram o macaco sob o eixo dianteiro e suspenderam o caminhão. Retiraram os pneus, encontraram * lugar do furo, mergulharam um pano no tanque de gasolina * lavaram bem a câmara-de-ar, em volta do ponto perfurado. Depois, e enquanto Al esticava o pneu, no lugar da perfuração, sobre os joelhos, Tom rasgou o tubo de cola e untou cuidadosamente com ele a tirazinha de borracha.

     - Agora deixa-se secar enquanto eu corto um remendo. - Cortou com todo o cuidado um pedaço de remendo azul e arredondou-o com todo o jeito. Al mantinha a câmara-de-ar distendida em cima dos joelhos e Tom pregou-lhe o remendo.

     - Pronto - disse. Agora põe-na no estribo, para eu poder dar-lhe umas pancadas com o martelo. - Bateu cuidadosamente o remendo; depois, esticou o pneu e examinou os bordos da aplicação. - Bom, acho que aguenta. Vamos metê-la no pneu e enchê-la de ar. Mãe, parece que não precisa de gastar o seu dólar.

     - A gente devia ter um pneu de reserva - opinou Al. - É preciso ter sempre um pneu de reserva, cheio e pronto a montar. Pode haver um furo de noite...

     - Com o dinheiro de um pneu de reserva, a gente ia mas era comprar café e carne - disse Tom.

     Zumbia já sobre a grande estrada o tráfego matinal e o sol começava a aquecer e a brilhar. A brisa, suave e suspirosa, soprava do sudoeste com intermitências. As montanhas de ambos os lados do imenso vale mal se distinguiam na neblina cor de leite.

     Tom estava a encher a câmara-de-ar quando um roadster, procedente do Norte, parou do outro lado da estrada. Um homem de rosto queimado do sol, de fato leve cor de cinza, saltou do carro e dirigiu-se ao camião. Estava sem chapéu. Sorria e os seus dentes muito alvos destacavam-se fortemente da cor tostada da pele. No terceiro dedo da mão esquerda usava uma aliança de oiro maciço. Do colete pendia, suspensa de uma fina corrente, uma bolinha de futebol feita de ouro.

     - Bom dia - disse o homem, amavelmente.

     Tom deixou de dar à bomba e ergueu os olhos.

     - Bom dia.

     O homem passou os dedos pelos cabelos curtos, hirsutos e grisalhos.

     - Vocês andam à procura de trabalho, hein?

     - Se andamos! Até pelos cantos o procuramos.

     - Sabem colher pêssegos?

     - Nunca trabalhámos nisso - interveio o pai.

     - Mas somos capazes de fazer seja o que for - respondeu Tom apressadamente. - Colhemos o que houver.

     Os dedos do homem brincavam com a bolinha de ouro.

     - Bem, se quiserem, há por aqui muito trabalho, a umas quarenta milhas para o norte.

     - Isso fazia-nos jeito - disse Tom. - Diga ao certo onde é e vamos já para lá.

     - Pois bem, então sigam para o norte até Pixley: são umas trinta e cinco ou trinta e seis milhas. Depois, dobrem para leste e sigam mais umas seis milhas. Aí perguntem pelo rancho Hooper. Vão encontrar bastante serviço.

     - Perfeitamente. Vamos já para lá.

     - Não sabem de mais alguém que queira trabalhar?

     - Sabemos, sim. Lá no acampamento de Weedpatch, há gente à farta, à procura de trabalho.

     - Bom, então vou dar um pulo até lá. Nós temos trabalho para muita gente. Não se esqueçam disso. Em Pixley, dobrem para leste e tomem a estrada que vai dar ao rancho Hooper.

     - Perfeitamente - disse Tom. - Muito obrigado ao senhor. A gente precisava muito de trabalhar.

     - Está bem. Então, vão o mais depressa possível. - Atravessou a estrada; entrou no roadster aberto e continuou a marcha em direcção ao sul.

     - Vinte vezes cada um - disse Tom, apoiando o peso do corpo na bomba. - Um, dois, três, quatro...

     Quando chegou aos vinte, Al pegou na bomba e depois seguiu-se o pai, que, por seu turno, cedeu o lugar ao tio John. O pneu estava finalmente cheio. Três vezes a bomba teve de percorrer a roda.

     - Bom, baixa agora o carro; quero ver como ficou - disse Tom.

     Al afrouxou o macaco e o caminhão baixou, assentando sobre as rodas.

     - Parece que está bem assim - disse. - Tem ar suficiente; um pouco a mais até, talvez.

     Atiraram as ferramentas para dentro do caminhão.

     - Bom, vamo-nos embora, andem! - mandou Tom. - Parece que a gente arranjou finalmente trabalho.

     A mãe tornou a sentar-se entre Tom e Al no assento da frente. Desta vez, foi Al quem pegou no volante.

     - Vai devagarinho; não vá rebentar com o aquecimento - recomendou Tom.

     Rodaram entre campos doirados pelo sol da manhã. A neblina erguera-se acima das colinas, que se mostravam agora límpidas e pardas, cortadas de folhas cor de púrpura carregado. Pombos bravos levantavam voo das cercas à passagem do veículo. Inconscientemente, Al acelerou a marcha.

     - Devagar! - tornou a recomendar Tom.- O pneu rebenta se tu o cansares assim. A gente tem de chegar até esse rancho de qualquer maneira. Pode ser que ainda hoje mesmo se encontre trabalho.

     A mãe exclamou, excitada:

     - Com quatro homens a trabalhar, talvez até a gente consiga comprar qualquer coisa a crédito. A primeira coisa que tenho de comprar é café, visto que te faz tanta falta. Depois, um pouco de farinha e de fermento em pó e um pouco de carne. Não vamos comprai- carne já hoje; podemos deixar isso para mais tarde. Talvez para sábado. E sabão. Preciso muito de sabão. Só gostava de saber onde é que a gente irá passar a noite. - E continuou a tagarelar. - E leite. Preciso de comprar um pouco de leite para a Rosasharn. Ela precisa bastante dele... Foi o que disse a enfermeira.

     Uma cobra serpeou pela estrada. Al deu uma guinada ao volante para a atropelar e depois tomou de novo a direita.

     - Era uma cobra rateira - disse Tom. - Não devias ter feito isso.

     - Não gosto de cobras - respondeu Al alegremente. -- Tenho raiva a tudo quanto é cobra. Até parece que me dão volta aos intestinos.

     O tráfego matinal aumentava na estrada. Representantes de casas comerciais em luxuosas limousines, com os nomes das firmas pintados nas portinholas; transportes de gasolina vermelhos e brancos, arrastando correntes a tinir ruidosamente, pesados caminhões de largas portas, pertencentes aos grandes armazéns de vendas por grosso de géneros alimentícios, na faina de entregar a mercadoria. Era fértil e rica a terra que se estendia à beira da estrada. Havia pomares com frondosas árvores carregadas de frutas e parreirais onde trepadeiras verdes atapetavam o chão entre as filas de vinha. Havia canteiros de melões e havia trigais. Casas brancas, engrinaldadas de rosas espreitavam por entre a verdura. E o sol irradiava, loiro e quente.

     No assento dianteiro do camião, a mãe, Al e Tom sentiam grande alegria.

     - Há muito tempo que não estava tão contente - disse a mãe. - Se a gente colher bastantes pêssegos, poderemos até arranjar uma casa para morar e até pagar o aluguer de muitos meses. É preciso a gente arranjar uma casa.

     - Vou economizar - disse Al. – Vou fazer economias e depois vou à cidade ver se arranjo um emprego numa garage. Em seguida, alugo um quarto e passo a comer em restaurantes. E vou ao cinema todas as noites. O cinema é barato. Vou ver fitas de cow-boys. As mãos firmaram-se-lhe mais no volante.

     O radiador começou a borbulhar e a expelir vapor.

     - Tu não o encheste todo? - perguntou Tom.

     - Enchi, sim, mas estamos com vento pelas costas. E por isso que a água está a ferver.

     - Está um lindo dia - disse Tom.- Em MacAlester, no meio do trabalho, eu pensava sempre nas coisas que iria fazer quando saísse. Pensava em sair dali e caminhar sempre a direito, sem parar em lado nenhum. Agora parece-me que isso já foi há tanto tempo! Parece que já foi há anos que eu estive preso. Havia lá um guarda - ó que tipo danado! - Dava-me cabo da vida. E eu estava disposto a fazer-lhe a cama. Acho que é por isso que fiquei com tanta raiva aos polícias. Para mim, todos os polícias me parece terem a cara dele. Estava sempre vermelha corno o diabo! Uma autêntica cara de porco. Disse que tinha um irmão no Oeste.

     O costume dele era mandar para o irmão os libertos condicionalmente, para trabalharem de graça. Quando eles se revoltavam, voltavam para a cadeia, por terem desrespeitado a liberdade condicional. Pelo menos, era o que lá se dizia...

     - Não penses mais nessas coisas - suplicou a mãe. - Agora, vamos ter boa comida. Muita farinha e toucinho.

     - Tanto faz pensar como não - respondeu Tom. - Não lucro nada em querer afastar estes pensamentos. Um dia, eles tinham de voltar. Lá em McAlester havia um gatuno. Ainda não lhes falei dele. Era parecido com o Happy Hooligan. (Os Hooligan formaram, outrora, um bando de malfeitores. Existe também uma comédia em que a família Hooligan é conhecida pelas suas ruidosas travessuras. Poderá aqui interpretar-se Happy Hooligan como o Bandido Felizardo.) Era incapaz de fazer mal a uma mosca. Estava sempre a falar em fugir. A gente chamava-lhe o Hooligan.. Tom riu, ao lembrar o caso.

     - Não penses nessas coisas - volveu a suplicar a mãe.

     - Continua - disse Al. - Conta lá isso do tal tipo.

     - Essas coisas já não têm importância, mãe - volveu Tom. - Bem, esse gatuno só pensava em fugir. Fazia projectos e projectos para se pôr ao fresco. Mas não era capaz de manter os projectos em segredo. Toda a gente tinha de saber; até os próprios guardas. Um dia experimentou fugir, mas levaram-no pela mão, de novo até à cela. Outro dia, desenhou um plano para saltar um muro. Naturalmente, mostrou o desenho a torto e a direito mas toda a gente resolveu calar a boca. Escondeu-se e aquela gente toda, nem pio! Quando o Hooligan descia calmamente pela corda, os guardas abriram o saco e levaram-no lá para dentro outra vez. A malta riu tanto que nem calculam. Mas o Hooligan ficou acabrunhado a valer com essa história e pôs-se a chorar, a chorar e tanto chorou que adoeceu. Tinha o moral completamente abatido. Acabou por abrir as veias com um alfinete e morreu porque perdeu muito sangue e tinha o moral em baixo. Era um pobre diabo, que não fazia mal a ninguém. Há gatunos bem engraçados nas cadeias!

     - Não fales mais nisso - pediu a mãe. - Conheci a mãe do Floyd Cara-Bonita. O rapaz não era mau, também. Mas fizeram o diabo com ele.

     O Sol estava quase a pino. A sombra do camião encurtava-se e sumia-se debaixo das rodas.

     - Ali em frente deve ser Pixley - disse Al. - Vi uma placa ali atrás.

     Entraram numa cidadezinha e viraram em direcção a leste, penetrando numa estrada mais estreita. Pomares guarneciam as margens da estrada, formando uma verdadeira nave.

     - Oxalá seja fácil a gente achar esse tal rancho - disse Tom.

     - Aquele homem disse que era o rancho Hooper e que qualquer pessoa podia informar onde era. Deus queira que haja um armazém perto.? Pode ser que a gente consiga comprar umas coisas fiadas, já que são quatro homens a trabalhar. Se arranjar crédito, poderei fazer um bom jantar. Estou com vontade de fazer um guisadinho saboroso - disse a mãe.

     - E café - acrescentou Tom. - Talvez arranje até uma onçazita de tabaco para mim. Há muito tempo que não fumo.

     Lá longe, a estrada via-se bloqueada por automóveis e uma fila de motocicletas brancas alinhava à margem da estrada.

     - Deve ter sido um desastre - disse Tom.

     Quando se aproximaram, um guarda da polícia estadual, de botas de cano alto e de cartucheiras, surgiu detrás do último dos muitos carros que ali estacionavam. O guarda levantou a mão e Al travou. O polícia encostou-se familiarmente à borda do camião.

     - Aonde é que vocês vão?

     - Disseram-me que havia trabalho nesta região. Que precisam de gente para apanhar pêssegos - respondeu Al.

     - Então vocês querem trabalhar?

     - Se queremos! - exclamou Tom.

     - Muito bem. Esperem um instante. - Foi até à beira da estrada e gritou: - Mais um! já são seis. Vamos deixar esta caravana passar.

     Tom gritou:

     - Eh, o que há?

     O polícia tornou atrás vagarosamente:

     - Há ali em frente um pequeno ajuntamento, mas vocês não se preocupem. Vão andando sempre em frente. Sigam a fila.

     Ouviam-se agora as explosões dos motores das motocicletas que se punham em marcha. A fila de veículos que obstruía a estrada pôs-se a rodar, seguida pelo caminhão da família Joad. Duas motocicletas iam à frente e duas outras fechavam a fila.

     Tom disse, inquieto:

       - Só queria saber o que significa tudo isto.

     - Pode ser que a estrada esteja impedida - respondeu Al.

     - Mas a gente não precisa de quatro polícias para nos acompanhar. Não, não estou a gostar disto.

     As motocicletas que iam à frente aceleraram a marcha. A fila dos carros velhos fez o mesmo. Ai apressou-se a ficar bem junto do último.

     - Todos eles têm gente da nossa. Todos eles - comentou Tom. - Não estou a gostar desta história.

     Subitamente, os polícias que iam na dianteira, saíram da estrada para meterem por um caminho de chão de cascalho. Os velhos calhambeques arfavam atrás deles. As motocicletas troavam. Tom viu uma fileira de homens parados na vala da beira-estrada; tinham as bocas abertas, como se estivessem a berrar qualquer coisa; brandiam os punhos e um sentimento de fúria estampava-se-lhes nas faces. Uma mulher gorda correu ao encontro dos carros, mas uma motocicleta ruidosa cortou-lhe o caminho. Abriu-se um portão alto, de grades. Os seis calhambeques passaram através dele e o portão fechou-se logo. As quatro motocicletas deram a volta e foram rodando, apressadas, na direcção em que tinham vindo. E, agora que os motores barulhentos, soavam mais longe, já se distinguiam claramente os gritos distantes dos homens parados na vala. Dois homens flanqueavam o caminho de cascalho. Ambos estavam armados de espingardas.

     Um dos homens gritou:

     - Vamos, andem! Porque diabo estão à espera? Os seis veículos seguiram em frente; deram meia volta e chegaram a um campo de pêssegos.

     Havia ali umas cinquenta casinhas quadradas, de telhados achatados, cada qual com uma porta e uma janela, e todas elas formando um grande quadrado. Ao fundo do acampamento erguia-se um tanque de água. Defronte via-se um pequeno armazém de mercearia. E, no extremo de cada fileira de casinhas quadradas, estavam postados dois homens armados de carabina e com reluzentes estrelas de prata nas camisas.

     Os seis veículos pararam. Dois amanuenses andavam de um lado para o outro.

     - Querem trabalhar?

     Tom respondeu:

     - É claro que queremos. Mas que é que há por aqui?

     - Você não tem nada com isso. Querem trabalhar ou não?

     - Queremos, sim.

     - Nome?

     - Joad.

     - Quantos homens?

     - Quatro.

     - Mulheres?

     - Duas.

     - Crianças?

     - Duas?

     - E todos podem trabalhar?

     - Acho que sim.

     - Muito bem. Vão ficar na casa 63. O salário é cinco cents a caixa. E nada de frutas pisadas. Muito bem, vão indo. Podem começar a trabalhar já.

     Os veículos puseram-se em movimento. Nas portas de cada uma das casinhas vermelhas e quadradas havia um número pintado.

     - Sessenta - disse Tom. - Esta é a sessenta. Deve ser por aqui. Olhem, sessenta e um, sessenta e dois... É aqui.

     Al encostou o caminhão mesmo à porta da casinha. A família apeou-se, olhando, desnorteada, em torno de si. Dois polícias aproximaram-se. Olharam fixamente o rosto de todos.

     - Nome?

     - Joad - respondeu Tom com impaciência. - Digam-me uma coisa o que é que há por aqui?

     Um dos polícias tirou do bolso uma comprida lista.

     - Bem, aqui não constam. Tu já viste esta gente alguma vez? Vê o número do caminhão. Nada? Na lista também não figuram. Acho que não há nada contra eles. - Dirigiu-se a Tom.- Ouçam bem, nós não queremos questões, ouviram? Façam o vosso trabalho e não se metam onde não são chamados, que tudo correrá bem.

     Viraram-lhes bruscamente as costas e foram-se embora. Ao fim da rua poeirenta, pararam e sentaram-se em dois caixotes de onde podiam controlar tudo.

     Tom acompanhou-os com o olhar.

     - Não há dúvida – disse - eles pretendem que a gente se sinta como em sua casa.

     A mãe abriu a porta da casinha quadrada e entrou. O soalho estava salpicado de gordura. No quarto - o único - havia somente um fogão de folha enferrujada, que assentava sobre quatro tijolos. O cano, todo ferrugento, subia, perfurando o telhado. O aposento trescalava a suor e a gordura. Rosa de Sharon postara-se ao lado da mãe.

     - A gente vai morar aqui? - perguntou.

     A mãe calou-se por instantes.

     - Naturalmente - disse por fim. - E, depois de lavado, não será muito mau. É preciso fazer uma boa limpeza.

     - Eu gostava mais da tenda - disse a rapariga.

     - Mas aqui não é terra dura; é soalho - lembrou a mãe. - E, quando chover, não entrará água. - Virou-se para a porta. - Acho que o melhor é descarregar - acrescentou.

     Sem pronunciar palavra, os homens começaram a descarregar. Uma sensação de medo caíra sobre eles. Reinava o silêncio no grande bloco de casas quadradas. Uma mulher passou na rua mas nem se dignou olhá-los. Caminhava de cabeça baixa; fiapos e tiras pendiam-lhe da barra do vestido sujo e rasgado.

     Também sobre Ruthie e Winfield caíra o desânimo. Nem pensavam em escapulir-se, para lançar uma vista de olhos ao local. Mantinham-se ao pé do caminhão, junto da família. Os seus olhos passeavam, desamparados, pela rua poeirenta. Winfield achou um pedacinho de arame de embalagem e ficou a torcê-lo para a frente e para trás até que o partiu. Da parte mais curta, fez uma espécie de manivela, que se pôs a voltear entre os dedos.

     Tom e o pai levavam os colchões para dentro da casa quando um funcionário chegou. Usava calças de caqui, camisa azul e gravata preta. Cavalgavam-lhe o nariz óculos de aro de prata e os seus olhos, muito vermelhos, por detrás das lentes grossas, pareciam fatigados. As pupilas estavam paradas, fixas como olhos de boi. Inclinou-se para a frente, a fim de olhar para Tom.

     - Quero inscrevê-los na lista - disse. - Quantos vão trabalhar?

     Tom respondeu:

     - Somos quatro homens. O serviço é muito pesado?

     - É apanhar pêssegos - disse o funcionário. - É trabalho por peça. Pagamos a cinco cents a caixa.

     - E as crianças podem ajudar?

     - Podem, desde que trabalhem com cuidado.

     A mãe chegou à porta.

     - Assim que acabar de limpar a casa, vou também ajudar. Olhe, a gente não tem nada que comer. Poderemos receber algum dinheiro por conta?

     - Já, não. Mas podem comprar fiado ali no armazém, dentro das possibilidades dos vossos ganhos.

     - Bom, então vamos a ver isso depressa - disse Tom. - Hoje quero comer carne e pão. Aonde é que a gente deve ir?

     - Eu vou para lá agora. Venham comigo.

     Tom, e o tio John seguiram o funcionário pela rua poeirenta abaixo até ao pomar, parando junto dos pessegueiros. As folhas estreitas começavam já a tingir-se de um amarelo pálido. Os pêssegos pareciam globozinhos doirados e vermelhos nos ramos. Havia pilhas de caixotes vazios entre as árvores. Os que se ocupavam da colheita corriam pressurosos para cá é para lá, enchiam de frutos os baldes de que estavam munidos e descarregavam-nos nos caixotes e levavam estes à casa de verificação. Nessa secção, onde as pilhas de caixotes aguardavam os camiões de transporte, havia funcionários a tomar nota dos nomes dos que faziam a entrega do produto das suas colheitas.

     - Mais quatro para vocês - disse o guia a outro empregado.

     - Muito bem. Vocês já colheram pêssegos alguma vez?

     - Nunca -, respondeu Tom.

     - Bom, então trabalhem com cuidado. Nada de frutas pisadas, nada de frutas caídas. Pela fruta ofendida não se paga nada. Vamos: peguem nestes baldes.

     Tom pegou mim balde de três galões e olhou para dentro.

     - Mas o fundo está furado - comentou.

     - É natural - retorquiu o funcionário míope. - E para evitar que o roubem. Muito bem, podem começar nesta fila. Andem, vamos!

     Os quatro Joads pegaram nos baldes e entraram no pomar.

     - Eles não perdem tempo - salientou Tom.

     - Meu Deus! - exclamou Al. - Que diferente que era se eu trabalhasse numa garagem!

     O pai, que os seguia docilmente, disse, virando-se para Al:

     - Bom, é preciso acabares de uma vez para sempre com essa história. Andas sempre a queixar-te, a choramingar e a suspirar. Tens de fazer o trabalho que houver. Não estás ainda tão homem que não possas apanhar uma boa sova.

     A cólera enrubesceu o rosto de Al. Por um pouco não explodiu.

     Tom aproximou-se dele.

     - Vamos, Al - disse calmamente. - Pão e carne, não te esqueças! A gente precisa de comer.

     Iam colhendo pêssegos e lançando-os nos, baldes. Tom trabalhava com rapidez. Um balde cheio, dois baldes. Despejou-os no caixote. Três baldes. O caixote estava cheio.

     - Ganhei um níquel - gritou, levantando o caixote e correndo com ele à secção de controle.- Esta aí vale cinco cents - disse ao funcionário encarregado daquele serviço.

     O homem olhou para o caixote e virou alguns pêssegos.

     - Ponha de lado. Estão estragados - disse. - Não os preveni de que tomassem cuidado? As frutas estão todas pisadas, amachucadas. Não posso registar esse caixote. Ou vocês colocam os pêssegos com cuidado nos caixotes ou trabalham de graça.

     - Mas olhe... que diabo...

     - Trabalhe com cuidado. Você foi avisado antes de começar.

     Tom desviou o olhar sombrio.

     - Fixe! - disse, por fim. - Fixe! Voltou ligeiro para junto dos outros. - Podem deitar para o lixo tudo o que colheram.- Estão como os meus pêssegos. Não se aproveitam. O homem não os aceita.

     - Mas, com todos os diabos... - começou Al.

     - A gente tem de apanhar os frutos com mais cuidado. Não se pode atirar com eles para dentro do balde. Têm de se colocar com muito cuidado.

     Começaram de novo, e, dessa vez, trataram as frutas com mais delicadeza. Os caixotes enchiam-se mais devagar.

     - Acho que a gente podia combinar uma coisa - sugeriu Tom. - Se a Ruthie, o Winfield e a Rosasharn colocassem as frutas nos caixotes, a coisa ia mais depressa. - Saiu, levando o novo caixote para a casa de verificação - E este agora? - perguntou. - Não vale os cinco cents?

     O funcionário examinou os pêssegos, retirando alguns das camadas inferiores do caixote.

     - Bom, isto já vai melhor - disse. Registou o caixote. - Sempre com muito cuidado! - recomendou.

     Tom voltou a correr.

   - Ganhei um níquel - gritou. - Agora é só fazer assim vinte vezes e estou com um dólar ganho.

     Trabalharam ininterruptamente a tarde toda. Ruthie e Winfield vieram ao encontro deles. O pai disse-lhes:

     - Vocês também podem trabalhar. Vão pondo os pêssegos no caixote, mas com muito cuidado, ouviram? Não, assim não, tem de ser um por um.

     As crianças acocoraram-se e foram retirando os pêssegos do balde sobressalente. Havia ali uma fileira de baldes, já pronta para elas. Tom transportava os caixotes cheios à casa de verificação.

     - São sete - dizia. - São oito. A gente já ganhou quarenta cents. Com quarenta cents, já se compra uma bela posta de carne.

     A tarde ia passando. Ruthie tentou escapar-se.

     - Estou muito cansada - choramingou. - Quero ir descansar.

     - Tu vais ficar onde estás - intimou o pai.

     O tio John colhia com lentidão. Não conseguia encher mais do que um balde, ao mesmo tempo que Tom enchia dois. O, seu ritmo mantinha-se inalterável.

     Lá pelo meio da tarde, a mãe chegou, cansada, a arrastar os passos.

     - Quis vir antes – disse - mas a Rosasharn teve um desmaio. Perdeu os sentidos.

     - Vocês comeram pêssegos? - perguntou ela às crianças. - Pois bem, garanto que vão apanhar diarreia.- O corpo atarracado e forte da mãe mexia-se com agilidade. Pouco depois, abandonava o seu balde, passando a colocar as frutas no avental. Quando o Sol se pôs, tinham enchido ao todo vinte caixotes.

     Tom colocou no chão o vigésimo caixote.

     - Um dólar - disse. - Até que horas se trabalha? - perguntou ao funcionário.

     - Até que escureça, contanto que consigam ver.

     - Bom, a gente agora já terá crédito? Mãe, tem de ir ao armazém comprar coisas para comermos.

     - Perfeitamente. Vou dar-lhe um vale para um dólar. - Preencheu um cartãozinho e entregou-o a Tom.

     Este levou o cartão à mãe.

     - Pronto. Isto é para a senhora- disse. - Pode comprar o que quiser, no valor de um dólar, ali no armazém.

     A mãe poisou o balde, endireitando os ombros.

     - Cansa um pouco da primeira vez, não achas?

     - É natural, mas a gente depressa se acostuma. Bom, agora o melhor é ir comprar qualquer coisa para comermos.

     A mãe perguntou:

     - O que é que tu preferias?

     - Carne - respondeu Tom. - Carne, pão e um bule cheio de café com açúcar. Mas um pedaço de carne bem grande.

     Ruthie gemeu:

     - Mãe, estamos cansados.

     - Então venham comigo. Tu também, Winfield.

     - Eles já estavam cansados quando começaram - disse o pai. - Galinha de campo não quer capoeira. Só querem andar a correr por aí. E preciso pôr-lhes a rédea curta.

     - Depois de a gente se instalar, têm de ir para a escola - disse a mãe.

     Saiu vagarosamente, e Ruthie e Winfield seguiram-na com timidez.

     - A gente tem de trabalhar todos os dias? - perguntou Winfield.

     A mãe parou, esperando que as crianças a alcançassem. Agarrou em Winfield pela mão e continuou a caminhar.

     - Não é trabalho pesado. Até vos faz bem - disse. - E, olhem, vocês agora já ajudam. Se todos trabalharem, daqui a pouco vamos morar numa casa bem bonita. Todos têm de ajudar.

     - Mas eu estou tão cansado!

     - Eu sei. Também eu estou. Todos se cansam. Mas pensem noutra coisa. Pensem como vai ser bonito quando vocês forem para a escola.

     - Eu não quero ir para a escola. A Ruthie também não quer. A gente viu as crianças que vão â escola. Não prestam. Chamaram-nos Okies. Eu não vou à escola.,

     A mãe olhou a cabeça cor de palha do menino com ar de comiseração.

     - Não me apoquentem agora, por favor - suplicou ela. - Deixem que a gente se acomode primeiro, Então, sim, podem tornar-se rabinos outra vez. Mas agora, não. já temos coisas que cheguem para nos apoquentarem.

     - Eu comi dois pêssegos - disse Ruthie.

     - Pois então vais ter dores de barriga. E a retrete fica longe daqui.

     O armazém da companhia era um barracão bastante amplo, feito de chapas de zinco ondulado. Não tinha vitrina. A mãe ergueu o guarda-vento e entrou. Um homem magro estava de pé, atrás do balcão. Era completamente calvo e tinha a cabeça de uma esquisita cor azulada. As sobrancelhas, largas e pardacentas, arqueavam-se sobre os olhos, formando um arco tão largo que lhe dava ao rosto um aspecto de surpresa e de susto permanentes. Tinha o nariz comprido, fino e recurvo, como um bico de pássaro. Pêlos castanho-claros obstruíam-lhe as narinas. Sobre as mangas da camisa azul, usava meias mangas de cetim preto. Apoiava os cotovelos no balcão quando a mãe entrou.

     - Boa tarde - disse ela.

     O homem olhou-a com interesse. Levantou as sobrancelhas e respondeu:

     - Boa tarde.

     - Tenho um vale de um dólar.

     - Pois não! Pode fazer compras no valor de um dólar - informou, soltando um riso agudo. - Sim, senhora. No valor de um dólar. Um dólar. - Fez um gesto largo, abrangendo com as mãos todas as mercadorias. - Pode escolher à vontade. - Puxou para cima, diligente, as mangas de protecção.

     - Queria comprar um pedaço de carne.

     - Pois não! Temos toda a espécie de carne - disse ele. - Carne picada, quer carne picada? Vinte cents a libra é o preço da carne picada.

     - Mas é muito caro. Da última vez que comprei, custava quinze cents a libra.

     - Bem - soltou outra risada - é caro e não é. Se a senhora for à cidade comprar carne picada, tem de gastar uns cinco litros de gasolina. Portanto, já vê: aqui não é realmente caro, porque a senhora não pode gastar um bidão de gasolina.

     A mãe disse com aspereza:

     - Mas o senhor não teve de gastar gasolina para pôr aqui as suas coisas.

     - A senhora está a partir de um ponto de vista errado. Eu não quero comprar carne; quero vendê-la. Se eu tivesse de comprar, a coisa seria diferente.

   A mãe pôs dois dedos sobre os lábios e franziu a testa pensativa.

     - Parece que está cheia de nervos e de gordura.

     - Bem, não lhe garanto que não vá minguar - disse o homem do armazém. - Nem lhe garanto que eu a fosse comer, mas isso não quer dizer nada. Há uma porção de coisas que eu não faria.

     Por um instante, a mãe ficou a olhá-lo colérica, mas logo conseguiu controlar a voz.

     - E carne mais barata, não tem?

     - Ossos para sopa - respondeu ele. - Dez cents a libra.

     - Mas são ossos apenas?

     - Sim, apenas ossos - respondeu o homem. - Fazem uma boa sopa.

     - Carne para cozido, tem?

     - Tenho sim, senhora. Claro que tenho. Vinte e cinco a libra.

     - Bem, então não dá para eu comprar carne - disse a mãe. - Mas a minha família queria carne. Querem todos comer carne, hoje.

     - É natural, todos gostam de carne; todos precisam de comer carne. Essa carne picada é bem boa. A gordura que se derrete pode fazer o molho. É bem boa. Aproveita-se tudo. E não tem osso.

     - Quanto... quanto custa o lombo?

     - Ah, a senhora agora quer coisa de luxo. Comida de dia de Natal. Comida para o dia de Acção de Graças (dia da Acção de Graças - Thanksgiving Day – é a última quinta-feira de Novembro. Nesse dia, os americanos rendem publicamente graças a Deus pelas mercês recebidas.). Trinta e cinco cents, a libra. Peru era mais barato mas não tenho peru à venda.

     A mãe suspirou.

       - Dê-me duas libras de carne picada.

     - Sim, senhora. - Empilhou a carne dessorada sobre papel vegetal. - Mais alguma coisa?

     - Sim, quero pão.

     - Pois não. Aqui, está. Um pão bem bom e grande. Custa quinze cents.

     - Mas este pão é de doze cents.

     - Claro que é. Na cidade, a senhora compra-o por doze cents. E ir lá, à cidade, e gastar cinco litros de gasolina. Que mais? Batatas?

     - Sim, batatas.

     - Cinco libras por um quarto de dólar.

     A mãe olhou-o ameaçadoramente.

     - Basta! Eu sei bem o preço da batata na cidade.

     O homenzinho comprimiu bruscamente os lábios.

     - Nesse caso, a senhora pode ir comprar à cidade. A mãe pôs-se a contemplar os nós dos dedos.

     - Oiça lá! - perguntou com suavidade. - Este armazém é seu?

     - Não, sou empregado.

     - Nesse caso, porque faz pouco da gente? Que lucra com isso? - Ela ficou a olhar as mãos enrugadas e brilhantes. O homenzinho permaneceu calado. - De quem é este armazém?

     - Da sociedade dos Ranchos Hooper.

     - Então são eles que fazem os preços?

    - São, sim, senhora.

     Ela ergueu o olhar e sorriu levemente.

     - Todos que vêm aqui devem falar como eu. Não ficam aborrecidos?

     Ele hesitou por um instante.

     - Ficam, sim, senhora.

     - É por isso que o senhor gosta de fazer pouco?

     - Que é que a senhora quer dizer com isso?

     - É por ser obrigado a fazer coisas assim mesquinhas... È vergonha que o senhor tem, não é? É por isso que disfarça, fazendo pouco, não é verdade? - A sua voz era suave. O caixeiro observava-a fascinado. Não respondeu. - Sim, senhor, é isso mesmo - concluiu a mãe. - Bem, quarenta cents de carne, quinze de pão, vinte e cinco de batatas. São oitenta cents. Tem café?

     - Tenho, sim, senhora. O mais barato é de vinte cents.

     - Perfeitamente. E lá se foi o dólar. Sete pessoas a trabalhar e só chegou para o jantar. - Contemplou a mão. - Bom, embrulhe isso - disse, com rapidez.

     - Sim, senhora aquiesceu ele. - Obrigado. - Despejou as batatas num cartucho de papel e dobrou com cuidado a parte superior.

     - Como é que o senhor arranjou um emprego assim? - perguntou.

     - A gente precisa de viver, não é verdade? - começou, ele agressivamente. - Todos têm o direito de comer.

     - Todos, quem? - perguntou a mãe.

     O homem colocou os quatro volumes em cima do balcão.

     - Carne - disse ele - batatas, pão e café. Exactamente um dólar. - A mãe entregou o vale ao caixeiro e viu o homem lançar no livro de caixa o nome e a importância do vale. - Pronto - disse ele, por fim. - Está tudo pago.

     A mãe pegou nos embrulhos.

     - Ouça uma coisa - disse ela.- A gente não tem açúcar para o café. O meu filho, o Tom queria café com açúcar. Olhe - prosseguiu - eles ainda estão a trabalhar. O senhor podia vender-me uma porçãozita de açúcar, que eu, daqui a pouco, trazia-lhe o vale.

     O homenzinho desviou o olhar, afastando-o o mais possível do rosto da mãe.

     - Não posso fazer isso - disse, em voz baixa. - O regulamento não permite. Se eu, fizesse isso, arranjava um sarilho. Acabava por ser despedido.

     - Mas os homens ainda estão lá fora, a trabalhar. Com certeza que já ganharam mais de dez cents. Arranje-me dez cents de açúcar.

     Tom quer café com açúcar. Ele pediu-me.

     - Não posso fazer isso. É contra o regulamento. Sem vale, não se pode entregar mercadoria. O director anda sempre a dizer isso. Não, não pode ser. Não posso. Prendiam-me logo. Apanham todos os que fazem isso. Sempre. Sempre. Não posso.

     - Por causa de dez cents?

     - Por causa de seja o que for. - Olhou-a, suplicante. E então a expressão de medo deixou de lhe alterar as feições. Tirou uma moeda de dez cents do bolso, registou-a na caixa e colocou-a na gaveta. - Pronto - disse, aliviado. Tirou um saquinho de papel de sob o balcão, abriu-lhe a boca e colocou nele uma porção de açúcar.

     - Perfeitamente, a senhora está servida. Agora, está tudo em ordem. Depois, a senhora traz o vale e eu tiro os dez cents.

     A mãe ficou a estudar-lhe as feições. Segurou o saquinho de açúcar sem olhar para ele e colocou-o sobre a pilha dos outros pacotes que tinha no braço.

     - Muito obrigada - disse, baixinho. Dirigiu-se para a porta e depois voltou-se subitamente. - Aprendi uma coisa - disse. - Todos os dias aprendo coisas. Se alguém se encontra em apuros e anda preocupado, na miséria, deve procurar gente da sua, gente pobre. São os únicos que sabem ajudar-se uns aos outros. - O guarda-vento bateu atrás dela.

     O homenzinho apoiou os cotovelos no balcão e seguiu a mãe com o olhar cheio de surpresa. Um gato gordo de pêlo castanho, mosqueado de amarelo, pulou para cima do balcão, arrastou-se preguiçosamente para o pé do homem. Veio roçar-se-lhe nos braços. O caixeiro levantou a mão e encostou o animal ao rosto.

     O gato ronronou alto, enquanto a ponta da cauda abanava de um lado para o outro.

    

     Tom, Al, o pai e o tio John regressaram do pomar quando já a escuridão era profunda. Os seus pés batiam pesados no caminho.

     - Quem é que ia pensar que estender as mãos para apanhar fruta fazia doer tanto as costas? - perguntou o pai.

     - Daqui a uns dias isso passa - disse Tom, com ar encorajador. - Olhe, pai, estou com vontade de ir por aí fora, depois do jantar, para ver porque é esse barulho. Quer vir comigo?

     - Não - respondeu o pai. - Eu quero trabalhar por algum tempo sem pensar em mais nada. já gastei demasiado a cabeça, caramba! Vou-me sentar um pouco e depois dormir.

     - E tu, Al?

     Al desviou o olhar.

     - Primeiro, vou dar uma olhadela aqui por isto - disse. - Bem, e o tio John já sei que também não vem. Vou ter de ir sozinho. Tenho curiosidade de saber o que se passa.

     - Era preciso que a curiosidade me espicaçasse muito para eu ir... com esses polícias todos aí fora... - volveu o pai.

     - Pode ser que, à noite, eles não estejam lá - sugeriu Tom.

     - Pode ser mas eu é que não me vou certificar. E é melhor não dizer nada à mãe para ela não ficar preocupada.

     Tom dirigiu-se a Al:

     - Então tu não sentes curiosidade?

     - Primeiro quero ver aqui o acampamento - respondeu Al.

     - Ver as pequenas, não é?

     - Isso é comigo - disse Al, com azedume.

     - Bom, eu vou seja como for - volveu Tom.

     Deixaram o pomar e entraram na rua poeirenta que dividia as filas de barracas vermelhas. A luz amarela das lâmpadas de querosene escapava-se das portas abertas, e, lá dentro, na meia escuridão, recortavam-se sombras negras de pessoas que se moviam. No fim da rua, via-se ainda um polícia sentado, com a carabina encostada ao joelho.

     Quando passaram pelo polícia, Tom parou.

     - Pode dizer-me se há por aqui algum sítio onde se possa tomar um banho?

     O guarda olhou-o no lusco-fusco. Finalmente, dignou-se falar:

     - Vê esse tanque de água aí?

     - Vejo.

     - Bem, há-de lá encontrar uma mangueira.

     - Há água quente?

     - Ouça, quem é que você pensa que é? O milionário J. P. Morgan?

     - Não - respondeu Tom. - Tenho a certeza que não sou. Bem, boa noite.

     O guarda grunhiu desdenhosamente.

     - Imaginem! Água quente. Caramba, daqui a pouco até querem banheiras! - Acompanhou os quatro Joads com um olhar sombrio.

     Outro guarda surgiu por detrás da última casa.

     - O que é que há, Mack?

     - Veja esses danados desses Okies: “Há água quente?”

     O segundo guarda colocou a carabina no chão.

     - Isso é do acampamento do governo - disse. - Aposto em como esse tipo esteve num acampamento do governo. A gente só terá sossego quando fizer uma limpeza a esses acampamentos. Qualquer dia exigem lençóis limpos, vais ver!

     Mack perguntou:

     - Que tal vai aquilo lá fora? Tiveste alguma notícia?

     - Nada, aquela gente passa o dia a berrar. Agora, quem toma conta deles é a polícia do Estado. Deixa estar que eles vão aprender a andar direitos. Disseram-me que é um tipo alto, um filho da mãe magro, quem acende a mecha. Vão agarrá-lo esta noite e acaba-se com a algazarra.

     - Mas, se aquilo terminar assim tão depressa, a gente fica sem ter mais nada que fazer - disse Mack.

      - Não te incomodes. A gente vai ter muito que fazer. Esses danados desses Okies! É preciso vigiá-los constantemente. Se a coisa acalmar, sempre se pode dar um jeito para os assanhar outra vez.

     - Acho que vai haver sarilho quando eles baixarem os salários.

     - Se vai! Olha, não te preocupes com o nosso trabalho. Enquanto o Hooper lhes apertar a tarracha, não há perigo.

     Na casa dos Joads, o fogo ardia no fogão. Os fritos de carne picada espirravam e assobiavam na banha e as batatas borbulhavam na água. A casa estava cheia de fumo e a luz amarelada da lâmpada lançava grandes sombras negras na parede. A mãe trabalhava apressadamente, debruçada sobre o fogão, enquanto Rosa de Sharon, sentada num caixote, olhava para ela, descansando o ventre pesado nos joelhos.

     - Estás melhor agora? - perguntou a mãe.

     - O cheiro da comida agonia-me. E, apesar disso, estou com fome.

     - Vai sentar-te à porta - disse a mãe. - Preciso desse caixote aí, para fazer lenha.

     Os homens chegaram.

     - Carne, santo Deus! - exclamou Tom. - E café. já sinto o cheiro. Que fome, meu Deus! Fartei-me de comer pêssegos, mas não adiantei nada. Mãe, onde é que a gente se lava?

     - Ali no tanque. Podes ir já. Mandei agora mesmo a Ruthie e o Winfield lavarem-se lá.

     Os homens saíram de novo.

     - Vamos depressa, Rosasharn - ordenou a mãe. - Senta-te na cama ou fica ali à porta, anda. Tenho de rachar esse caixote.

     A rapariga ergueu-se, apoiando-se nas mãos. Dirigiu-se pesadamente para um dos colchões e sentou-se nele. Ruthie e Winfield entraram discretamente; a julgar pelo seu silêncio e por ficarem colados à parede, queriam passar despercebidos.

     A mãe olhou-os.

     - Tenho a impressão de que vocês gostam que esteja escuro aqui dentro - disse. Agarrou Winfield e apalpou-lhe os cabelos. - Bem, molhado estás tu, mas limpo aposto que não.

     - Não havia sabão - queixou-se Winfield.

     - Sim, é verdade. Não pude comprar sabão. Mas talvez amanhã já possa.

     Voltou para junto do fogão, distribuiu os pratos de folha e começou a servir o jantar. Dois bocados de carne para cada um e uma batata, grande, cozida. E em cada prato colocou três fatias de pão. Depois de ter tirado toda a carne da frigideira, despejou em cada prato um pouco de molho. Os homens voltaram de novo, com os rostos a gotejar e os cabelos brilhantes de água.

     - Quero comer! - gritou Tom.

     Pegaram nos pratos. Comeram sem pronunciar palavra, avidamente, absorvendo com o pão o molho do fundo dos pratos. As crianças foram para um canto da casa. Puseram os pratos no chão e ajoelharam-se em frente da comida, corno se fossem animais.

     Tom engoliu o último pedaço de pão.

     - A senhora tem mais alguma coisa, mãe?

     - Não - respondeu ela. - Só isto. Vocês ganharam um dólar e o que comemos custou um dólar certinho.

     - Um dólar?

     - Eles vendem as coisas mais caras. Dizem para irmos comprar à cidade se não gostarmos.

     - Ainda não enchi a barriga - disse Tom

     - Bem, amanhã, vocês trabalham o dia todo. Amanhã à noite teremos mais fartura.

     Al limpou a boca com a manga do casaco.

     - Vou dar uma volta por ai.

     - Espera, vou contigo. - Tom foi atrás dele. Lá fora, no escuro, aproximou-se do irmão. - Então tu não queres ir comigo?

     - Não. já disse que quero dar uma volta por aqui.

     - Muito bem - disse Tom.

     Voltou-lhe as costas e foi descendo, vagarosamente, a rua. A fumarada que se escapava das casas pairava quase à altura do chão e as lâmpadas faziam projectar na rua a sombra das portas e das janelas. Sentados nos degraus das portas, havia homens varando a escuridão com os olhos. Tom distinguia o mover de cabeças na direcção dos seus passos. No fim da rua, tomou por uma vereda poeirenta através dos caminhos de restolho e os montões negros das medas de feno avultavam à luz das estrelas. A fina lâmina da Lua flutuava, baixa, rio ocidente, e a nuvem alongada da Via Láctea esboçava-se muito clara no firmamento. Os passos de Tom soavam abafadamente na poeira da vereda. Tom enfiou as mãos nos bolsos e caminhou em direcção ao portão principal. Um talude descia perto da vereda e Tom distinguia o murmúrio da água, passando por cima da erva da vala de irrigação. Subiu o talude e olhou a água negra, onde se reflectiam, deformadas, as estrelas. Diante dele, estendia-se agora a estrada - um remendo negro no meio do restolho amarelo. Os faróis de automóveis que nela deslizavam apontavam-lhe o caminho. Tom prosseguiu a sua rota. À luz das estrelas, podia divisar o portão de arame farpado.

     Um vulto surgiu à margem da estrada. Uma voz inquiriu:

     - Eh, quem está aí?

     Tom parou e ficou imóvel.

     - Quem é você?

     Um homem pôs-se de pé e aproximou-se dele. Tom distinguiu-lhe um revólver na mão. Depois, o jacto de luz de uma lanterna eléctrica caiu-lhe em cheio no rosto.

     - Aonde é que você quer ir?

     - Bem, a parte nenhuma. Ando a passear. já nem se pode passear livremente?

     - É melhor ir passear para outro lado.

     Tom perguntou:

     - Então, a gente não pode sair daqui de dentro?

     - Não, esta noite não. Bom, quer voltar a bem, ou quer que eu apite para que os outros o levem?

     - Não, que diabo, não é preciso. A mim tanto me faz. Se isso pode dar sarilho, não vale a pena. Vou-me embora, pois!

     O vulto pareceu aliviado. A luz da lanterna extinguiu-se.

     - É para seu próprio bem, ouviu? Aqueles diabos daqueles grevistas eram capazes de se meter com você.

     - Quais grevistas?

     - Aqueles danados daqueles vermelhos.

     - Eu não sei de nada. Que é isso?

     - Então não os viu quando chegou aqui?

     - Bem, eu vi uma porção de gente, mas havia tantos polícias que acabei por não perceber coisa nenhuma, Pensei que fosse um desastre na estrada.

     - Bem, é melhor ir andando.

     - Perfeitamente, cavalheiro.

     Tom voltou-se, regressando pelo caminho de onde viera. Andou tranquilamente uns cem metros, depois parou e ficou à escuta. O guincho gorjeado de um coati soou, vindo das proximidades da vala de irrigação, e, de muito longe, chegou-lhe aos ouvidos o furioso uivar de um cão preso. Tom sentou-se na margem da vereda, ficando à escuta. Ouviu o riso, agudo e suave ao mesmo tempo, de um noitibó e o deslizar subtil de um bicho qualquer, que se arrastava no meio das moitas. Inspeccionou o horizonte em ambas as direcções - duas placas escuras em que nada se mexia. Tom ergueu-se e foi andando para a direita, vagarosamente, metendo-se entre o restolho. Caminhou inclinado para a frente, quase tão baixo como os montículos de feno. Movimentava-se com lentidão e, de vez em quando, parava, a escutar. Por fim, aproximou-se de uma cerca de arame - cinco fios de arame farpado, bem esticados. Deitou-se de costas, rente à cerca, enfiou a cabeça através do fio mais baixo, ergueu o arame com as mãos e passou-se por baixo, colado ao chão, auxiliando-se com movimentos de pés.

     Ia a levantar-se quando um grupo de homens passou junto à margem da estrada. Tom esperou que eles se afastassem bastante antes de se pôr de pé, para os seguir. Procurou avistar tendas de ambos os lados da estrada. Passaram alguns automóveis. Um rio atravessava os campos, e a estrada cavalgava o rio por meio de uma pequena ponte de cimento armado. Tom debruçou-se sobre a balaustrada da ponte. Ao pé do barranco profundo, descobriu uma tenda onde ardia uma lâmpada. Observando-a por um instante, distinguiu sombras humanas que se projectavam sobre a lona, pelo lado de dentro. Tom subiu uma vedação e desceu para a ravina através de, um matagal de salgueiros anões e de mato. No fundo, à margem do riacho deparou-se-lhe com um atalhozinho. Diante da tenda via-se um homem sentado em cima de um caixote.

     - Boa noite! - disse Tom.

     - Quem é você?

     - Eu? Bem... eu ando a passear por aqui.

     - Conhece alguém neste sítio?

     - Não. Já lhe disse que ando a, passear por aqui.

     À entrada da tenda surgiu uma cabeça. uma voz soou:

     - Que é que há?

      - Casy! - bradou Tom. - Casy! Meu Deus, o que é que você faz por aqui?

     - Deus do céu, mas é o Tom Joad! Entre, Tommy, venha cá para dentro!

     - Você conhece-o? - perguntou o homem que estava sentado à porta da tenda.

     - Se o conheço! Meu Deus, conheço-o há muitos anos. Viemos juntos para o Oeste. Venha, Tom, entre para aqui, ande! - Agarrou Tom pelo cotovelo e puxou-o para dentro da tenda.

     Lá dentro havia mais três homens, e, a meio da tenda, ardia uma lâmpada. Os homens, desconfiados, ergueram os olhos. Um deles, de rosto moreno e sombrio, estendeu-lhe a mão.

     - Muito prazer - disse. - Ouvi o que o Casy disse. Então é este o amigo de que falaste?

     - É este mesmo, pois! Mas venha cá, onde está a sua família, Tommy? O que é que faz por aqui?

     - Foi o seguinte: a gente ouviu dizer que havia serviço por aqui. Quando chegámos, esperava-nos uma porção de polícias que, nos foram empurrando lá para dentro, para o rancho. Colhemos pêssegos toda a santa tarde. Vi uma porção de tipos a berrarem ria estrada. Ninguém me quis dizer quem eram e então eu vim ver pessoalmente. Mas como veio você parar aqui, Casy?

     O pregador inclinou-se um pouco para a frente e a luz amarelada da lamparina incidiu-lhe na testa alta e pálida.

     - O xadrez é um sítio engraçado - disse. - Como sabe, eu queria ir como Jesus ao deserto, para buscar uma solução. Às vezes, cheguei a estar perto dela. Mas onde a encontrei foi na cela, na cadeia. - Os seus olhos brilhavam, vivos e alegres. - Era uma cela ampla, muito velha. Estava sempre cheia. Era gente a chegar e gente a sair. Naturalmente, conversei com todos eles.

     - Naturalmente - disse Tom. - Você passa o tempo a falar. Se tivesse de subir à forca, passava todo o tempo a falar com o carrasco. Nunca vi um tipo tão falador!

     Os homens da tenda riram. Um deles, de rosto enrugado, dava palmadinhas no joelho.

     - Anda sempre a falar – disse - mas a gente gosta de o ouvir.

     - O homem foi pregador - esclareceu Tom. - Não lhes contou?

     - Contou, sim.

     Casy sorria.

     - Pois é isto - prosseguiu. - Comecei a compreender as coisas. Alguns tipos de entre os presos eram beberrões, mas muitos tinham ido para lá por terem roubado qualquer coisa. E quase sempre tinham roubado porque precisavam de uma coisa e a não podiam arranjar de outra maneira. Compreende? - perguntou.

     - Não - respondeu Tom.

     - Bem, havia lá gente às direitas, sabe? O que os estragou foi precisarem de coisas. Então comecei a compreender. É a miséria que provoca todos os males. Mas a coisa ainda me não aparecia com toda a clareza. Ora bem, um dia, deram-nos feijão azedo. um tipo começou a refilar, mas não ganhou nada com isso. Berrou que nem um cabrito. Veio um guarda, olhou para dentro e foi-se embora. Então, um outro tipo começou também a berrar. E acabámos por berrar todos. Até parecia que a cadeia ia explodir. Então passou-se uma coisa. Eles vieram a correr e deram-nos outra comida. Sim, senhor. Trocaram a comida. Compreende?

     - Não - respondeu Tom.

     Casy apoiou o queixo às mãos.

     - Talvez eu não consiga explicar-me bem - continuou. - Talvez você consiga achar a solução sozinho. Onde está o seu boné?

     - Vim sem ele.

     - Como vai a sua irmã?

     - Ora! Engordou que nem uma vaca. Aposto que aquilo é coisa de gémeos. Precisa de um carrinho de mão para transportar a barriga. Anda sempre a segurá-la com as mãos. Mas você ainda me não disse o que se passa aqui.

     O homem moreno explicou:

     - Estamos em greve.

     - Mas olhe, cinco cents a caixa não é muito dinheiro, mas dá para se ir vivendo.

     - Cinco cents? - gritou o moreno. - Cinco cents? Eles estão a pagar-vos cinco cents a vocês?

     - Então? Hoje, já a gente ganhou um dólar e meio.

     Um silêncio pesado caiu sobre a tenda. Casy cravou o olhar, através da boca da tenda, na noite escura.

     - Escute, Tom - disse, por fim - nós também viemos para aqui, com a ideia de trabalhar. Eles disseram que a gente ia ganhar cinco cents a caixa. Nós éramos muitos. Depois de chegarmos, disseram que não pagavam mais do que dois cents e meio. Ora, com esse dinheiro, nem a gente podia comer, quanto mais, tendo filhos... Bem, nessa altura dissemos que não podíamos aceitar e eles caíram em cima da gente, puseram-nos fora e chamaram polícia que nunca mais acabava. E agora pagam cinco a vocês. Quando conseguirem acabar a nossa greve, acha que ainda continuarão a pagar-vos cinco cents?

     - Não sei - respondeu Tom. - Sei que, agora, é o que pagam.

     - Olhe - disse Casy - procurámos acampar juntos, e eles caíram em cima de nós, dispersaram-nos que nem a uma vara de porcos e bateram em muitos; espancaram a nossa gente. Correram connosco, como se fôssemos porcos, e hão-de fazer-vos o mesmo. Não se pode aguentar por muito tempo uma coisa assim. Há aqui gente que não come há dois dias. Você volta ainda hoje para o acampamento do pomar?

     - Sim, quero ver se volto - respondeu Tom.

     - Então, Tom, diga a toda a gente como as coisas são, ouviu? Diga-lhes que estão matando a gente à fome, o que é o mesmo que dar punhaladas nas suas próprias costas. E eles vão começar a pagar a dois cents e meio assim que se desembaraçarem de nós. E tão certo como dois e dois serem quatro.

     - Direi tudo - garantiu Tom. - Mas não sei como o poderei dizer. Nunca vi tanto gajo armado de carabinas. São capazes de não deixarem ninguém falar. Ali, no acampamento, o pessoal é pouco amigo de arranhar. Anda tudo de cabeça baixa, e nem sequer bom dia dizem à gente.

     - Tente explicar-lhes a situação, Tom. Assim que nos afastarem daqui, vão começar a pagar-vos a dois cents e meio. Você sabe o que isso significa: uma tonelada de pêssegos colhida e carregada por um dólar.- Deixou pender a cabeça sobre o peito. - Não, não pode ser. Isso não dá nem para comer; não dá para comer nada.

     - Vou tentar explicar tudo ao pessoal de lá.

     - Como vai a sua mãe?

     - Vai muito bem, até. Ela gostou muito daquele acampamento do governo. Até havia água quente e banhos!

     - Sim, ouvi dizer isso.

     - Aquilo lá era muito bonito. Mas não havia maneira de se arranjar trabalho e por isso a gente teve de se vir embora.

     - Eu gostava muito de estar num acampamento assim - disse Casy. - Só para ver. Um sujeito contou-me que lá não havia polícia.

     - Não há, não. É a própria gente de lá que faz o policiamento.

     Casy ergueu os olhos, excitado.

     - E nunca lá há desordens? Nem brigas, nem roubos, nem bebedeiras?

     - Nada disso - esclareceu Tom.

     - E se alguém pretendesse armar zaragata? Que é que acontecia?

     - Punham-no fora do acampamento.

     - E havia muitos casos desses?

     - Qual o quê! Passei lá um mês e só se deu um caso desses.

     Os olhos de Casy continuavam a brilhar de excitação. Dirigiu-se aos outros homens.

     - Vêem? - exclamou. - Não lhes dizia? Os sarilhos causam mais sarilhos do que evitam. Ouça, Tom, veja se dá um jeito para que eles se passem para o nosso lado. Em quarenta e oito horas, a coisa fazia-se. Os pêssegos já estão maduros. Convença-os a fazerem isso.

     - Eles, se calhar, não querem - disse Tom. - Estão a ganhar cinco cents. É só o que lhes interessa.

     - Mas, assim que a greve for abafada, eles começam a ganhar metade.

     - Eles não acreditam nisso, pela certa. Ganham cinco cents; não querem saber de mais nada.

     - Bem, mas de qualquer forma, diga-lhes isto, ouviu?

     - O pai é que não vai nisso - disse Tom. - Conheço-o bem. Diz logo que não tem nada com isso.

     - E verdade - confirmou Casy, desconsolado. - Acho que você tem razão. Ele, para aprender, tem de apanhar primeiro.

     - A gente já não tinha nada que comer. Esta noite comemos carne, Não muita, mas sempre comemos carne. Você acha que o pai vai deixar de comer carne só por causa dos outros? E a Rosasharn tem de beber leite. Você julga que a mãe vai deixar o bebé de Rosasharn. morrer só porque uns tipos andam aos berros cá do lado de fora do portão?

     Casy disse tristemente:

     - O que eu queria era que eles compreendessem como é a coisa, Queria que eles vissem que este é o único meio de garantirem a carne que querem comer. Ora, diabos os levem! As vezes, sinto-me cansado de tudo isto. Cansado, que só Deus sabe! uma vez conheci um tipo. Levaram-no para a cadeia quando eu ainda lá estava. E ele tentou fundar um sindicato. Já tinha começado quando os vigilantes desfizeram tudo. Sabe o que aconteceu? Aquela mesma gente que ele pretendia ajudar, voltou a casaca. Nem o queria ver. Fugiam dele como o diabo da cruz; tinham medo de que algum os visse na companhia dele. Diziam assim: “Vá, põe-te a andar! Tu és um perigo para nós!” Sim, senhor, era o que diziam, e o pobre do homem sofria com isso! Acrescentava então: “Isto não é nada, pois na Revolução Francesa, era pior... todos os que a fizeram morreram decapitados. É sempre assim. É tão natural como a chuva. Quem faz estas coisas sabe que não está a brincar. Fá-las porque tem de as fazer. Porque as tem no sangue. Olha o George Washington, por exemplo - dizia ele. - Fez a revolução e aqueles filhos da mãe viraram-se contra ele, Com Lincoln, foi a mesma coisa. A própria gente dele o quis matar. Isso é tão natural como a chuva.”

     - Mas não tem graça nenhuma - comentou Tom.

     - Lá isso não tem, não. Aquele tipo lá da cadeia dizia assim: “De qualquer maneira, a gente faz o que pode.” E acrescentava: “A única coisa que nos deve importar é dar sempre um passo em frente, por mais pequeno que ele seja. Se depois, a coisa fizer marcha atrás, nunca recuará tanto como andou para a frente. É uma coisa que se pode provar, e é por isso que vale a pena agir, Está provado que nada é inútil, mesmo que o pareça.”

    - Conversa - disse Tom. - Conversa e mais nada. Veja o meu irmão, o Al. O que lhe interessa é andar à cata das pequenas. Não liga a mais coisa nenhuma. Em dois dias, arranja uma rapariga. Pensa nela todo o dia e toda a noite. Bem lhe importa a ele que se dêem passos para cima, para baixo ou para o lado!

     - Pois claro - respondeu. Casy. - É natural. Ele faz exactamente o que tem a fazer. Todos nós somos assim.

     O homem que estava sentado à porta abriu a tenda.

     - Diabo, não estou a gostar nada disto - disse. Casy olhou-o.

     - Que há?

     - Sei lá! Só sei que sinto uma comichão por todo o corpo. Estou nervoso que nem um gato.

     - Mas porquê?

     - Não sei. Parece-me que estou a ouvir qualquer coisa e, quando vou ver o que é, não vejo coisa nenhuma.

     - Não tem importância. São nervos - disse o moreno. Ergueu-se e saiu. Um instante depois regressava. - Está a passar uma nuvem enorme pelo céu. Parece-me que traz trovoada. É por isso que você sente essas comichões. É da electricidade.

     Tornou a sair e os outros dois ergueram-se também e deixaram a tenda.

     Casy disse mansamente:

     - Todos eles sentem comichões. Os polícias andaram aí a dizer que nos iam fazer ver o diabo. Eles pensam que o chefe sou eu, porque estou sempre a falar.

     O moreno tornou a aparecer.

     - Casy, apague essa lâmpada e venha cá para fora, Está a passar-se qualquer coisa.

     Casy baixou a torcida. A chama amarela mergulhou na lenda, crepitou um segundo e morreu. Casy saiu às apalpadelas, seguido de Tom.

     - Que é que há? - perguntou Casy baixinho.

     - Não sei. Ora ouça.

     Um coro de sapos coaxando quebrava o silêncio, unindo-se à serrazina aguda dos grilos. Mas, através dessa cortina musical, percebia-se um som de passos abalados na estrada, o ruído de torrões de terra seca, rolando pelo barranco até, ao rio e o estalar de galhos secos para os lados da água.

     - Não ouço nada de extraordinário. Vocês estão nervosos - tranquilizou-os Casy. - Todos nós andamos nervosos. Estamos incapazes de discernir... Você ouve alguma coisa, Tom?

     - Oiço, sim - respondeu Tom. - Acho que vem aí gente por todos os lados. É melhor a gente tratar de fugir daqui.

     O homem moreno cochichou:

     - Por baixo do arco da ponte... por aí. Custa-me tanto abandonar a minha tenda!

     - Vamos - disse Casy.

     Moveram-se em silêncio, caminhando ao longo da margem do rio. O arco da ponte erguia-se diante deles como a boca de uma caverna. Casy abaixou-se e penetrou na cavidade, com Tom na cola. Os seus pés resvalaram e mergulharam na água. Andaram uns vinte metros, e o seu pesado resfolegar ecoava sob o tecto abobadado. Então chegaram ao lado oposto e aí se detiveram, endireitando o busto.

     Um grito agudo soou:

     - Lá estão eles! - Os focos de duas lanternas eléctricas incidiram sobre os homens, paralisando-os, cegando-os. - Não se mexam! - As vozes vinham das trevas. - É ele! Aquele patife, à frente! É ele mesmo!

     Casy, às cegas, cravava os olhos nos focos brilhantes. Respirava com dificuldade.

     - Oiçam – disse - vocês não sabem o que estão a fazer. Estão a ajudar a matar crianças à fome.

     - Cale a boca, seu vermelho, seu filho da mãe!

     Um homenzinho rechonchudo e vigoroso surgiu na luz. Segurava um cacete novo em folha.

     Casy continuou:

     - Vocês não sabem o que estão a fazer.

     O homem pesadão brandiu o cacete. Casy, procurando esquivar-se, foi justamente apanhado no movimento. A pesada maça bateu-lhe com estrondo na têmpora, provocando um eco sinistro de ossos que se partem. Casy tombou de lado, fora do raio de luz das lanternas.

     - Meu Deus, George! Mataste o homem...

     - Inclina a luz para a cara dele - disse George. - Este filho da mãe teve o que merecia. O raio de luz da lanterna desceu, procurou e acabou por achar a cabeça esmagada de Casy. . Tom lançou um olhar ao pregador. A luz iluminava as pernas do homem pesadão e o cacete branco e novo. Tom armou um pulo silenciosamente e arrebatou-lhe a arma. O primeiro golpe foi mal calculado e alcançou o ombro do homenzinho, mas o segundo caiu-lhe em cheio na cabeça, e, quando ele tombou, mais três golpes lhe abalaram o crânio. As luzes bailavam em redor. Ouviram-se gritos, rumor de pés em correria e o estalar de ramos de arbustos. Tom quedou-se ao lado do homem que abatera, e então uma maça passou-lhe rente à cabeça, atingindo-o de raspão. Tom sentiu como que um choque eléctrico, e desatou a correr para os lados do rio, com o busto vergado. Ouviu o chapinhar de passos dos que o seguiam. De repente, voltou-se para a direita e arrastou-se pelo barranco, serpenteando por entre o restolho, embrenhando-se no mais cerrado de um maciço de arbustos venenosos. Deixou-se ficar ali deitado. Os passos soavam agora mais próximos e os fachos de luz insinuavam-se até ao rio. Tom saiu, rastejando das moitas, subindo mais para o barranco. Chegou a um pomar. Ainda lhe vinham aos ouvidos os gritos dos homens que o procuravam no fundo do barranco, ao lado do rio. Abaixou-se e largou a correr pelas terras cultivadas. Os torrões desprendiam-se e rolavam a seus pés. À frente, enxergou os arbustos que mareavam os limites do campo, arbustos que se perfilavam ao longo de uma vala de irrigação, Pulou uma cerca e penetrou, aos ziguezagues, entre vinhedos e amoreiras. Depois deitou-se e ficou imóvel, num arquejar rouco. Apalpou o rosto dormente e o nariz. Estava com o nariz esmagado e o sangue gotejava-lhe pelo queixo. Continuou imóvel, deitado sobre o ventre até que conseguiu dominar-se por completo. Começou então, a rastejar até à beira do rio. Banhou o rosto na água fria, rasgou uma tira da camisa azul, mergulhou-a na água e encostou-a ao rosto e ao nariz feridos. A água ardia-lhe no rosto, produzindo-lhe uma sensação de queimadura.

     A nuvem negra atravessava o céu - um colchão de trevas entre as estrelas. A noite recaíra no silêncio.

     Tom penetrou na água e sentiu o fundo faltar-lhe debaixo dos pés. Transpôs o rio a nado, em duas braçadas, saltando para a outra margem e alçando o corpo com dificuldade. A roupa colava-se-lhe à pele. Fez um movimento e a roupa soltou-se com um pequeno ruído. Os pés chapinhavam dentro dos sapatos. Sentou-se finalmente e tirou-os para os esvaziar. Torceu as bainhas das calças, despiu o casaco e torceu-o também.

     Ao longo da estrada, Tom via os focos de luz bailar, pesquisando nas valas. Calçou os sapatos e saiu, caminhando cautelosamente por entre as moitas. Os pés já não chapinhavam. Instintivamente, encontrou a outra extremidade do matagal, e, por fim, alcançou a vereda. Cheio de cautela, aproximou-se do bloco de casas.

     Um guarda, que julgou ter ouvido qualquer coisa de suspeito, gritou:

     - Quem está aí?

     Tom atirou-se ao chão, e o foco da lanterna eléctrica passo-lhe por cima do corpo. Arrastou-se em silêncio até à porta da família Joad. Os gonzos rangeram. A mãe perguntou, com voz calma:

     - Quem é?

     - Sou eu, Tom.

     - Vê se dormes um pouco. O Al ainda não voltou.

     - Deve ter encontrado alguma pequena.

     - Bom, dorme - disse ela baixinho. - Deita-te aí, perto da janela.

     Tom dirigiu-se ao sítio que lhe fora que lhe fora indicado e despiu a roupa molhada. Já sob o cobertor, sentiu arrepios. O rosto pisado deixava de estar dormente e toda a cabeça lhe começou a latejar.

     Uma hora depois chegou Al. Aproximou-se cautelosamente e pisou a roupa molhada de Tom.

     - Chiu! - ciciou Tom.

     Al cochichou:

     - Tu ainda estás acordado? Como foi que te molhaste?

     - Chiu! - repetiu Tom. - Amanhã te conto.

     O pai virou-se de costas e o seu ressonar encheu o quarto de roncos e de ruidosos suspiros.

     - Estás gelado - disse Al.

     - Chiu, dorme!

     O quadrilátero da janela recortava-se cinzento na escuridão do quarto.

     Tom não conseguiu dormir. Os nervos do rosto ferido voltaram à vida, a palpitar; os ossos doíam-lhe e o nariz quebrado inchara e latejava com uma dor que parecia sacudir-lhe o corpo todo. Deixou-se ficar a contemplar o pequeno quadrilátero da janela, vendo as estrelas surgir e acompanhando-as até desaparecerem. Ouvia os passos regulares dos guardas, indo e vindo com intervalos regulares.

     Por fim, os galos cantaram ao longe e, gradualmente, a janela foi-se tornando mais clara. Tom apalpou o rosto inchado com as pontas dos dedos, e, a esse movimento, Al grunhiu e murmurou qualquer coisa em sonho.

     Chegou, finalmente, a madrugada. Das casas muito unidas, filtravam-se ruídos de gente que acordava, rachar de lenha, tinir de panelas que se chocavam. No crepúsculo acinzentado, a mãe ergueu-se subitamente no leito. Tom distinguia-lhe o rosto entumecido pela acção do sono. Ela ficou a olhar a janela durante um bom bocado. Depois, afastou o cobertor e procurou o vestido. Ainda sentada, enfiou-o pela cabeça e, com os braços erguidos, deixou-o deslizar até à cintura. Pôs-se de pé e puxou o vestido até aos tornozelos. Então, descalça, foi cautelosamente até à janela e olhou para fora. Enquanto contemplava a claridade crescente, os seus dedos ligeiros desfaziam as tranças e alisavam as madeixas, tornando a entrançá-las. Por um momento, uniu as mãos e permaneceu imóvel. O seu rosto recortava-se distintamente na claridade da janela. Depois, voltou-se e caminhou cautelosamente entre os colchões e achou a lâmpada. O tubo quebra-luz guinchou. Acendeu o pavio.

     O pai virou-se, rolando e circunvagou um olhar sonolento.

     - Pai, tens algum dinheiro? - perguntou ela.

     - Hem? Tenho sim. Um vale de sessenta cents.

       - Bem, então levanta-te e vai comprar um bocado de farinha e de toucinho. Vamos, anda depressa!

     O pai bocejou.

     - O armazém já estará aberto?

     - Se não estiver, manda-o abrir. Vocês têm de comer antes de ir para o trabalho.

     O pai começou a enfiar o fato-macaco e vestiu sobre ele o casaco cor de ferrugem. Foi indolentemente até à porta, espreguiçando-se e bocejando.

     As crianças acordaram e espreitaram por debaixo dos cobertores, como ratinhos. Uma ténue claridade enchia o quarto a claridade incolor que precede o nascer do Sol. A mãe lançou um olhar aos colchões. O tio John já estava acordado. Al dormia profundamente. Os olhos da mãe procuraram Tom e fixaram-se nele por um instante. Depois, dirigiu-se ao filho. Tom tinha o rosto muito inchado, de uma cor azulada; nos lábios e no queixo criara-se uma crosta de sangue enegrecido. Os bordos da ferida que lhe dilacerava a face estavam inchados e repuxados.

     - Tom - segredou ela - que foi que te aconteceu?!

     - Chiu! - murmurou ele. - Não fale alto. Tive uma briga.

     - Tom!

     - Não tive outro remédio, mãe.

     Ela ajoelhou-se ao lado dele.

     - E agora, estás em apuros, não? Passou-se longo tempo antes que ele respondesse.

     - Sim - disse. - Em grandes apuros. Não posso ir trabalhar. Tenho de me esconder.

     As crianças, rastejando, aproximaram-se, de olhos arregalados, em que reluzia uma sôfrega curiosidade.

     - Que foi que lhe aconteceu, mãe?

     - Calem-se! - intimou a mãe. - Tratem de lavar a cara.

     - Não há sabão.

     - Então lavem-na só com água, andem!

     - Que é que o Tom tem?

     - Não lhes disse que calassem a boca? E não digam nada a ninguém.

     As crianças afastaram-se, acocorando-se junto à parede oposta, onde sabiam que poderiam passar despercebidas.

     - Mas é coisa grave? - perguntou a mãe.

     - Nariz quebrado.

     - Não, eu refiro-me ao sarilho em que te meteste.

     - Sim, muito grave.

     Al abriu os olhos e olhou para Tom.

     - Meu Deus, em que é que tu te meteste?

     - Que é que há? - perguntou o tio John.

     O pai entrou ruidosamente.

     - Já estava aberto. - Pôs no chão, ao lado do fogão, um saquinho de farinha e um pacotezito de toucinho. - Que é que há de novo? - perguntou.

     Tom alçara-se por um instante, apoiando-se num cotovelo mas tornou a deitar-se.

     - Meus Deus, como me sinto fraco? Vou contar-lhes tudo. É melhor - vocês saberem já. Mas estão ali os miúdos...

     A mãe olhou para eles. Estavam encolhidos, fazendo-se pequeninos de encontro à parede.

     - Vão-se lavar, já disse!

     - Não - atalhou Tom. - Eles devem ouvir. Senão, vão começar a tagarelar por aí.

     - Mas que diabo foi que houve? - inquiriu o pai.

     - Vou contar tudo. A noite passada, eu saí para ver porque era que aquela gente gritava tanto lá fora. Então, encontrei o Casy.

     - O pregador?

     - Sim, pai. O pregador. Era ele quem dirigia a greve. E andava gente atrás dele para o prender.

     - Quem é que o queria prender? - perguntou o pai.

     - Não sei. Sujeitos daquela mesma espécie dos que nos mandaram voltar naquela noite. Estavam armados de cacetes. - Fez uma pausa. - Mataram-no. Esmagaram-lhe a cabeça. Eu estava ao pé dele. Fiquei doido. Apanhei um cacete... - Sombrio, deixou que o seu olhar voltasse à cena da noite anterior, àquela profunda escuridão, às lanternas eléctricas, enquanto dizia: - Eu... eu agarrei num cacete e atirei-me a um daqueles gajos...

     A mãe tinha a respiração suspensa. O pai ficou imóvel, como de pedra.

     - Mataste-o? - perguntou ele baixinho.

     - Eu... não sei. Estava como louco. Dei para matar.

     - Eles viram-te? - inquiriu a mãe.

     - Não sei, não sei. Acho que sim. Alumiaram a gente com as lanternas...

     Durante alguns segundos, o olhar da mãe prendeu-se a ele, insistentemente.

     - Pai - disse ela - racha alguns desses caixotes, para fazer lenha. A gente tem de comer qualquer coisa. Vocês têm de ir trabalhar. Ruthie, Winfield, se alguém perguntar qualquer coisa... o Tom está doente, compreenderam? Se vocês falarem, ele vai para a cadeia. Compreenderam?

     - Sim, senhora.

     - Vigia as crianças, John. Não as deixes falar com ninguém.

     Ela acendia o lume, enquanto o pai rachava um caixote dos que antigamente continham os seus bens. Procurou a massa de farinha e colocou a cafeteira de café em cima do fogão. A madeira seca pegou rapidamente fogo e as chamas subiam com ruído pelo cano da chaminé.

     O pai acabou de partir os caixotes. Aproximou-se de Tom.

     - O Casy... ele sempre foi bom tipo. Como foi que ele se meteu numa alhada daquelas?

     Tom respondeu sombriamente.

     - Eles tinham vindo para aqui, para trabalharem... a cinco cents cada caixa de pêssegos.

     - É o que nós ganhamos.

     - Pois é. O que nós fizemos foi furar a greve. Eles ultimamente só pagavam dois cents e meio àquela gente.

     - Mas esse dinheiro nem dá para comer...

     - Eu sei - reconheceu Tom, abatido. - Foi por isso que eles fizeram a greve. Bem, julgo que esta noite irão acabar com ela. E a gente vai passar a ganhar dois cents e meio.

     - Mas que grandes filhos da mãe!

     - Pois é, pai, o senhor está a ver? O Casy era boa pessoa. Que diabo, não há meio de eu me esquecer de ontem à noite! Ele, caído no chão, com a cabeça esmagada, feita num bolo, cheia de sangue. Meu Deus! - Cobriu os olhos com as mãos.

     - Bem, mas que é que a gente vai fazer? - perguntou o tio John.

     Al levantou-se.

     - Eu sei o que vou fazer. Vou-me embora e já.

     - Não, Al, não podes fazer isso. A gente precisa de ti - disse Tom.- Quem tem de se ir embora, sou eu. Eu, aqui, sou um perigo. Assim que possa levantar-me, tenho de me ir embora daqui.

     A mãe estava atarefada junto do fogão. Tinha a cabeça meio virada de lado, para poder ouvir. Despejou um pouco de banha na frigideira e, quando a gordura começou a chiar, lançou-lhe dentro a massa de farinha.

     Tom continuou:

     - Tu tens de ficar, Al. Quem é que vai tomar conta do camião?

     - Pois sim, mas eu não gosto nada disto aqui.

     - É a única maneira, Al. É a tua família. Tu podes ajudá-la. Eu. agora, não posso. Sou um perigo para vocês.

     Al resmungou, furioso:

     - Só quero saber porque me não deixam trabalhar numa garagem?

     - Mais tarde talvez possas. Tom desviou o olhar e viu Rosa de Sharon deitada em cima de um colchão. Tinha os olhos desmedidamente abertos.

     - Não te preocupes - disse-lhe Tom. - Hoje, vais ter o teu leite.

     Ela pestanejou levemente, mas nada disse.

     - É preciso que a gente saiba: tu achas que mataste esse gajo, hein? - perguntou o pai.

     - Não sei. Estava muito escuro. Não vi. Alguém me deu uma pancada. Não sei. Mas espero que ele tenha morrido, aquele bandido!

     - Tom! - gritou a mãe.- Não fales assim, Tom!

     Da rua, vinha o ruído de muitos carros, deslocando-se vagarosamente. O pai foi à janela e olhou para a rua.

     - Vem aí muita gente nova - anunciou.

     - Se calhar, acabaram com a greve, como já disse - elucidou Tom. - Parece-me que hoje já vocês vão começar a trabalhar por dois cents e meio.

     - Se assim for, a gente pode trabalhar que nem um negro, que não ganha para comer.

     - Eu sei - disse Tom. - Comam pêssegos caídos no chão. Também matam a fome.

     A mãe virou a massa de farinha na frigideira e mexeu o café.

     - Ouçam - disse ela.- Hoje vou comprar farinha de milho. A gente vai comer papas. E assim que tivermos dinheiro que dê para comprar gasolina, a gente vai-se embora daqui. Isto aqui não presta. E não admito que o Tom vá sozinho. Não, senhor, nada disso!

     - A senhora não pode fazer uma coisa dessas, mãe. Eu sou um perigo para a família, já disse.

     O rosto dela assumira um ar de decisão.

     - É o que vamos fazer e pronto. Bom, venham cá e comam. Depois, vã o trabalhar. Eu também vou, assim que acabar de lavar a louça. A gente precisa de ganhar dinheiro, agora.

     Comeram as empadas tão quentes que rechinavam na boca. Engoliram o café a toda a pressa e, tornando a encher as canecas, tomaram outra dose de café.

     O tio John, debruçado sobre o prato, sacudiu a cabeça.

     - Não gosto desta história de nos irmos embora com essa pressa toda. Aposto que isto é por causa dos meus pecados.

     - Ora cala a boca! - gritou o pai. - A gente, agora, não pode perder tempo com os teus pecados. Anda depressa, a gente tem de se ir embora daqui. Os miúdos que venham ajudar. A mãe tem razão, a gente deve ir-se embora daqui.

     Quando os homens se foram, a mãe ofereceu a Tom um prato e uma caneca.

     - É melhor tu comeres qualquer coisa.

     - Não posso, mãe. Dói-me tudo. Não posso mastigar.

     - Experimenta.

     - Não, mãe, não posso.

     Ela sentou-se na borda do colchão.

     - Conta-me corno se passou tudo, Tom - disse.- Eu tenho de saber bem como foi tudo, para ver com o que conto. Que foi que o Casy fez? Porque é que o mataram?

     - Ele não fez nada. Estava quieto, de pé, com a luz das lanternas a bater-lhe na cara.

     - Mas não disse nada? Tu não te lembras se ele disse qualquer coisa?

     - Disse sim - respondeu Tom.- Disse assim: “Vocês não têm o direito de matar ninguém à fome.” Então, um tipo qualquer armou em valente e chamou-lhe vermelho e filho da mãe. O Casy apenas respondeu: “Vocês não sabem o que estão a fazer.” Nesta altura, o tal tipo deu cabo dele.

     A mãe baixou o olhar e enlaçou as mãos.

     - Foi só o que ele disse?... “Vocês não sabem o que estão a fazer”?

     - Foi.

     - Só queria que a avó pudesse ouvir isto - disse ela.

     - Mãe... eu nem sabia o que ia fazer. E como isto da respiração: respiramos sem dar por isso.

     - Está bem. Tinha sido melhor se tu não tivesses feito nada. Tinha sido melhor não teres lá ido. Mas agora, o mal está feito, tinha de ser assim. Não posso culpar-te por isso. - Foi ao fogão e mergulhou um pano na água quente, que tinha preparado para lavar os pratos e as canecas. - Pega - disse - põe isto na cara.

     Tom pôs o pano quente sobre o nariz e sobre parte do rosto e estremeceu ligeiramente sob o efeito do calor.

     - Mãe, vou-me embora hoje mesmo à noite. Não posso deixá-los correr o risco de eu ser apanhado aqui.

     A mãe respondeu irritada:

     - Tom! Há muitas coisas que não posso compreender. Mas o facto de te ires embora não adianta nada. Só é pior para nós. Ficamos todos abatidos. - E prosseguiu: - Quando a gente estava na nossa terra, era tudo tão diferente! A terra era uma espécie de fronteira para nós todos. Os velhos morriam, e nasciam as crianças e a gente era sempre uma só coisa... uma só família... uma coisa completa e bem definida. Mas agora não é assim. Eu estou que nem posso mais. Não há mais nada para unir a gente. O Al anda sempre a suspirar e a resmungar porque se quer ir embora, para ganhar sozinho a sua vida. O tio John mal se arrasta nas pernas. O pai perdeu o lugar dele; já não é o chefe. A gente vai-se desfazendo aos poucos, Tom. A família quase que já não existe. A Rosasharn... - A mãe voltou-se e o seu olhar encontrou os olhos arregalados da filha.- Ela vai ter o bebé e não será uma família. Não sei. Eu fiz tudo para que a família se não desmantelasse. E o Winfield... como vai ser se ele continuar assim? Está cada vez mais selvagem e a Ruthie também... São dois animais selvagens. Eles não podem ter fé em nada. Tom, não te vás embora, fica junto de nós; tu tens de nos ajudar.

     - Muito bem - disse Tom, abatido. - Muito bem. Eu não devia ficar, se; que não devia, mas fico.

     A mãe foi para junto da bacia de lavar os pratos. Lavou os pratos de estanho e enxugou-os.

     - Tu não dormiste, pois não?

     - Não.

     - Então trata de dormir agora. A tua roupa está molhada. Vou estendê-la por cima do fogão, para secar. - Terminou a tarefa. Agora, vou sair. Ajudar na colheita. Rosasharn, se alguém vier, o Tom está doente, compreendes? Não deixes entrar ninguém. - Rosa de Sharon acenou afirmativamente com a cabeça. - Ao meio-dia, a gente volta. - Dorme agora, Tom. Pode ser que logo à noite a gente se possa ir embora daqui. - Brandamente, dirigiu-se a ele: - Tom, tu não vais fugir, pois não?

     - Não, mãe.

     - Com certeza? Ficas mesmo?

     - Fico sim, mãe.

     - Muito bem. E, Rosasharn, lembra-te bem do que te disse. - Saiu e fechou a porta com firmeza atrás de si.

     Tom ficou deitado, imóvel e uma vaga de sono levou-o à inconsciência; largou-o e tornou a inundá-lo de novo.

     - Tom... Tom!

     - Hein? Que, é? - Ele acordou e fitou Rosa de Sharon, cujos olhos brilhavam de ressentimento. - Que é que tu queres? - perguntou à irmã.

     - Tu mataste um homem!

     - Sim, mas não fales tão alto. Queres dar o alarme a alguém?

     - Que me importa? - gritou ela. - Aquela mulher disse... ela disse-me o que o pecado fazia. Disse tudo. Como é que eu posso ter um bebé bonito agora? O Connie foi-se embora e ninguém me dá comida que preste. Nem leite me dão. - A sua voz histérica subia de tonalidade. - E agora mataste um homem. Corno é que um bebé pode nascer bem desta maneira? Eu sei... eu sei que vou ter um filho aleijado... é isto, aleijado. E eu nunca dancei como eles.

     Tom ergueu-se:

     - Chiu! - fez ele. - Vais fazer com que venha gente.

     - Não me interessa. Vou ter um filho aleijado. E eu nunca dancei essas danças indecentes.

     Tom aproximou-se dela.

     - Está sossegada.

     - Não me toques, ouviste? já não é o primeiro que tu matas. - O seu rosto tingiu-se de vermelho, num acesso de histeria. As palavras borbulhavam-lhe na garganta. - Não te quero ver mais. - Cobriu a cabeça com o cobertor.

     Tom ouviu-lhe o choro abafado. Mordeu o lábio inferior, quedando-se a contemplar o chão. Depois, foi até ao leito do pai. beira do colchão estava uma espingarda Winchester 38, pesada e comprida, de fecho automático. Tom apanhou-a e destravou a alavanca, para ver se havia alguma bala no cano. Examinou o gatilho e verificou que estava travado. Depois, voltou para o seu colchão. Pôs a espingarda no chão, ao lado, com a coronha para cima e o cano para baixo. O choro de Rosa de Sharon degenerava em gemidos. Tom tornou a deitar-se e cobriu-se com o cobertor. Cobriu também o rosto inchado, deixando um pequeno túnel para a passagem do ar necessário à respiração. Suspirou.

     - Deus, ó meu Deus!

     Lá fora, passava um combóio de carros e ouviam-se vozes:

     - Quantos homens?

     - Só nós três. Quanto é que vocês pagam?

     - Vão morar no 25. O número está na porta de casa.

     - Muito bem. Quanto é que pagam?

     - Dois cents e meio.

     - Meu Deus, mas isso não dá nem para o jantar!

     - É o que pagamos. Há aí duzentos homens, vindos do sul; vão ficar satisfeitos de poderem ganhar dois e meio.

     - Mas ouça, senhor...

     - Vamos, andem! Querem aceitar ou não? Não posso perder tempo com discussões.

     - Mas... - Oiça, quem estabelece os ordenados não sou eu. A mim, só me compete registar os vossos nomes. Se quiserem aceitar, bem; se não quiserem, podem ir-se embora.

     - Casa 25, foi o que o senhor disse?

     - Sim, casa 25.

    

     Tom dormitava no seu colchão. Um ruído abafado despertou-o. Deitou a mão à espingarda, pôs o dedo no gatilho e ergueu o cobertor que lhe tapava o rosto. Rosa de Sharon estava a seu lado.

     - Que é que tu procuras? - perguntou Tom.

     - Dorme - disse ela.- Continua a dormir. Vou pôr-me de atalaia à porta. Ninguém entra.

     Por um instante, Tom ficou a perscrutar o rosto dela.

     - Muito bem - disse, tornando a cobrir o rosto com o cobertor.

    

     Ao cair da noite, a mãe regressou. Parou no limiar da porta, bateu com os nós dos dedos e disse: - Sou eu - para que Tom não ficasse preocupado. Abriu a porta e entrou, trazendo um saquinho. Tom acordou e sentou-se no colchão. A ferida secara e estava tão tensa que a pele do rosto, que se conservara intacta, rebrilhava. Tinha o olho esquerdo repuxado e quase fechado.

     - Veio alguém enquanto eu estive fora? - perguntou a mãe.

     - Não - respondeu Tom. - Ninguém. Eles baixaram os salários, não baixaram?

     - Como é que tu sabes?

     - Ouvi gente a falar nisso aí fora.

     Rosa de Sharon lançou à mãe um olhar envergonhado.

     Tom apontou para ela com o polegar.

     - Ela fez um barulho dos diabos, mãe. Pensa que todas estas coisas são especialmente contra ela. Se sou o causador de ela estar tão nervosa, acho melhor ir-me embora.

     A mãe voltou-se para Rosa de Sharon.

     - Que foi que fizeste?

     A rapariga disse com amargura:

     - Como é que eu poderei ter um bebé bonito com todas essas complicações?

     - Chiu! Cala-te! - intimou a mãe. - Eu sei como te sentes, sei que não tens culpa, mas o melhor é calares o bico, ouviste?

     Voltou-se de novo para Tom.

     - Não leves a mal, Tom. É duro tudo isto que lhe tem acontecido. Eu sei que a gente, quando espera um filho, pensa que tudo é contra nós, qualquer coisa que alguém diga parece logo um insulto, todos nos parecem inimigos. Não leves a mal. A culpa não é dela. Ela agora tem de sentir assim.

     - Mas eu não pretendo fazer-lhe mal algum.

     - Chiu! Não fales. - Pôs o saquinho de papel em cima do fogão. - Quase não ganhámos nada - desabafou. Eu não disse que o melhor era a gente ir-se embora daqui? Tom, faz-me o favor de me, trazer um bocadito de lenha. Não, tu não podes... Ainda há um caixote. Racha-se. Eu disse aos outros para trazerem alguns ramos, quando viessem. Vou fazer umas papas para temperar com açúcar.

     Tom levantou-se e transformou em lenha o último caixote, partindo-o em pequenas ripas. Cautelosamente, a mãe acendeu o lume num canto do fogão, mantendo as chamas concentradas numa rodela apenas. Encheu de água uma panela e colocou-a, sobre as chamas. Em breve, a água da panela borbulhava em cima do lume; borbulhava e espirrava.

     - Que tal foi a colheita de hoje? - perguntou Tom.

     A mãe meteu uma caneca, no saquito de farinha de milho.

     - Não me agrada nada falar nisso. Justamente hoje, estive a pensar em como a gente vivia antigamente, brincávamos, tínhamos alegria. Não gosto disto, Tom. Hoje em dia, já ninguém brinca, ninguém diz coisas com graça. E, quando as dizem, são pilhérias amargas que nem chegam a ter graça. Um homem, hoje, disse assim: “A crise. passou. Vi um coelho e não lobriguei perto ninguém que o quisesse caçar.” E um outro respondeu: “O motivo é outro. É que hoje em dia ninguém tem coragem de matar um coelho. Hoje, agarra-se num coelho, ordenha-se, tira-se-lhe o leite todo e depois solta-se de novo. O coelho que tu viste com certeza que não tinha leite; devia estar seco.” E assim que falam. E isto não tem graça; não é engraçado, como quando o tio John converteu um índio e o levou para casa, e o índio lhe comeu uma panela inteira de feijões e depois se sumiu com a garrafa de whisky do tio John. Tom, põe um pano molhado nessa cara, ouviste?

     A escuridão aprofundara-se. A mãe acendeu a lanterna e pendurou-a num prego. Atiçou o fogo e foi lançando a farinha de milho gradualmente na água a ferver.

     - Rosasharn – disse - és capaz de continuar a mexer estas papas?

     Ouviu-se o ruído de pés correndo lá fora. A porta abriu-se com violência e bateu de encontro à parede. Ruthie precipitou-se no quarto.

     - Mãe! - gritou. - O Winfield desmaiou!

     - Onde? Diz lá onde?

     Ruthie arfava.

     - Ficou branco e, de repente, caiu no chão. Ele comeu muitos pêssegos e andou com dores de barriga todo o dia. Depois caiu, e que branco que ele estava, mãe!

     - Vem mostrar-me onde é que ele está - pediu a mãe. - Rosasharn, tem cuidado com as papas!

     Saiu com Ruthie. Subiu a rua, correndo com dificuldade atrás da menina. Três homens vinham ao seu encontro na escuridão, e o do meio trazia Winfield nos braços. A mãe correu para eles.

     - É meu filho! - gritou. - Eu pego-lhe

     - Deixe, que eu levo-o - disse um dos homens.

     - Não, não, dê-mo depressa.

     Ela pegou na criança e só quando ia a voltar para trás é que se lembrou de agradecer.

     - Muito obrigada - disse ao homem.

     - Não tem de quê. O pequeno está muito fraco. Devem ser lombrigas.

     A mãe regressou com rapidez, com Winfield a pender-lhe dos braços, o corpo abandonado, sem alento. A mãe levou-o para dentro de casa e, vergando os joelhos, deitou-o em cima do colchão.

     - Agora conta-me como foi - solicitou ela. Winfield abriu os olhos, entontecido, sacudiu a cabeça e tornou a fechar os olhos. Ruthie disse:

     - Foi assim, mãe. Ele passou todo os dia com dores de barriga. Estava sempre a ir lá fora. Comeu pêssegos que foi uma coisa por demais.

     A mãe levou a mão à testa do rapazito.

     - Não tem febre. Mas está muito fraco e muito pálido.

     Tom aproximou-se e tirou a lanterna do prego.

     - Eu sei – disse .- Ele o que tem é fome. Tem fraqueza. É melhor comprar uma porção de leite para ele beber ou então misturem-lho nas papas.

     - Winfield - disse a mãe. - Como te sentes? Diz...

     - Sinto-me tonto, mãe. Vejo tudo à roda; estou tonto.

     - Nunca vi uma diarreia assim - disse Ruthie, com ar importante.

     O pai, o tio John e Al entraram em casa. Traziam os braços, cheios de troncos e de galhos secos, que deixaram cair ao pé do fogão.

     - Então que temos agora? - perguntou o pai.

     - O Winfield. Precisa de leite.

     - Meu Deus! Só vejo gente a precisar de coisas.

     - Quanto fizemos hoje? - perguntou a mãe.

     - Um dólar e quarenta e dois e meio.

     - Bom, vai já buscar uma lata de leite para o Winfield.

     - Mas porque diabo havia ele de adoecer logo nesta altura?

     - Não sei. Só sei que adoeceu. Bom, vê se trazes o leite. - O pai saiu resmungando. - Mexeste as papas?

     - Mexi, sim.

     Rosa de Sharon mexia com mais rapidez, como para provar o que tinha afirmado.

     Al queixou-se:

     - Deus do Céu! Mãe, então a gente só tem papas para o jantar depois de trabalhar até ao escurecer?!

     - Al, tu bem sabes que a gente tem de se ir embora daqui. Precisamos do dinheiro para comprar gasolina. Sabes isso muito bem.

     - Mas, meu Deus! Gente que trabalha precisa de comer um bocado de carne, mãe!

     - Deixa lá isso agora - atalhou ela. - Antes de mais nada, a gente tem de fazer uma coisa muito mais importante. Tu bem sabes o que é.

     Tom perguntou:

     - Isso é a meu respeito, não é?

     - Depois do jantar, falaremos nisso - disse a mãe. - Al, a gente tem gasolina que chegue para nos irmos embora?

     - Uma quarta parte do tanque, mais ou menos, está cheia - replicou Al.

     - O que é que há? Contem lá - pediu Tom.

     - Depois, tem paciência. Espera. Vai mexendo as papas, anda. Bem, deixem-me arranjar o café. Vocês escolham: açúcar nas papas, ou no café. Para as duas coisas, não há que chegue.

     O pai voltava com uma lata comprida de leite condensado.

     - Onze cents - disse indignado.

     - Deixa ver. - A mãe pegou na lata e perfurou-a. Despejou o espesso jacto de leite numa caneca, que entregou a Tom. - Dá isso ao Winfield.

     Tom pôs-se de joelhos, ao lado do colchão.

     - Vá, bebe isto, rapaz!

   - Não posso. Estou muito doente. Deixa-me.

     Tom ergueu-se:

     - Ele não pode tomar o leite agora, mãe. Espera-se um bocadinho.

     A mãe pegou na caneca e colocou-a no peitoril da janela.

     - Que ninguém toque nisto, ouviram? - advertiu. - E para o Winfield.

     - A mim ninguém me dá leite - choramingou Rosa de Sharon. - E eu preciso tanto de o tomar!

     - Eu sei, mas tu ainda estás de pé, e o menino está muito doente. As papas já engrossaram?

     - Já, sim, quase que nem as posso mexer.

     - Bom, então vamos comer. Está aqui o açúcar. Há só uma colher de açúcar para cada um. Podem deitá-la nas papas ou no café, como quiserem.

     - Eu o que queria era sal e pimenta para as papas - disse Tom.

     - Podem deitar sal, se quiserem - acudiu a mãe. - A pimenta acabou-se.

     Tinham-se também acabado todos os caixotes. A família teve de se sentar em cima dos colchões para comer as papas. Serviram-se todos e tornaram a servir-se, até a panela estar quase vazia.

     - Deixem um bocadito para o Winfield - pediu a mãe.

     Winfield sentou-se e bebeu o leite e, imediatamente, se sentiu acometido de uma fome canina. Colocou a panela das papas entre as pernas, comeu tudo o que ali encontrou e ainda rapou os lados da panela. A mãe deitou o resto do leite condensado numa caneca que passou a Rosa de Sharon. A rapariga bebeu-o furtivamente, encolhida a um canto. A mãe deitou café bem quente nas canecas e entregou uma caneca a cada um dos membros da família.

     - Bom, agora contem-me o que há - pediu Tom. - Eu preciso de saber.

     O pai disse, embaraçado:

     - Eu preferia que a Ruthie e o Winfield não ouvissem isto. Não poderão sair por um bocado?

     - Não; é melhor que fiquem - disse a mãe. - Eles têm de proceder como gente crescida, apesar de o não serem ainda. Ruthie, Winfield, vocês não devem contar nada do que ouvirem aqui, porque isso pode causar-nos grandes desgostos, compreendem?

     - A gente não conta nada - disse Ruthie. - Já somos crescidos.

     - Então estejam caladinhos.

     Haviam colocado as canecas no chão. A chama curta. e bojuda da lanterna, como se fosse uma asa tosca de borboleta, projectava nas paredes uma meia luz amarelada.

     - Vá, digam lá agora - tornou a pedir Tom.

     - Pai, é melhor contares tu - disse a mãe.

     O tio John engoliu o café.

     O pai começou:

     - Bem, eles baixaram os salários, como tu tinhas dito. E chegou uma porção de gente nova para trabalhar na colheita. Eles tinham tanta fome que trabalhavam nem que fosse só para ganhar uma bucha de pão. E, quando um ia a pegar num pêssego, já outro o tinha apanhado primeiro. Quase que já acabaram com a colheita toda. Chegaram a brigar... um tipo disse que lá uma árvore era dele e outro disse a mesma coisa. Foi um caso sério. Trouxeram aquela gente de bem longe! De El Centro. Gente faminta como o diabo. Trabalham todo o dia por um pedaço de pão. Eu disse àquele homem que faz o registo do pessoal: “A gente não pode trabalhar por dois cents e meio a caixa”, e ele respondeu-me: “Perfeitamente, então larguem. Esses homens podem”. Então eu respondi: “Quando eles tiverem a barriga bem cheia, também não hão-de querer”: E ele, toca de me responder: “Ora, adeus! Esses pêssegos hão-de estar todos colhidos antes que eles tenham a barriga cheia”.

     O pai fez uma pausa.

     - Aquilo ali foi um verdadeiro inferno - disse o tio John. - E disseram-me que vem aí mais duzentos homens, esta noite.

     - Bem, e a outra história? - perguntou Tom.

     O pai permaneceu em silêncio por alguns instantes.

     - Tom - disse finalmente - parece que tu fizeste um serviço bem feito.

     - Eu já calculava que assim fosse. Não consegui ver nada mas calculava isso mesmo.

     - O pessoal não fala noutra coisa - confirmou o tio John. - Enviaram corpos de polícia e voluntários para toda a parte, e até já falam em linchar o tipo, se o encontrarem, é claro.

     Tom lançou um olhar às crianças, que estavam de olhos arregalados. Quase não pestanejavam. Era como se estivessem com medo de que alguma coisa acontecesse precisamente no segundo em que fechassem os olhos.

     - Bem, o ti o que fez esse serviço, só o fez depois de os outros terem morto o Casy.

     O pai interrompeu-o:

     - Mas eles contam as coisas de outra maneira. Dizem que ele atirou primeiro.

     Tom soltou um suspiro.

     - Ah, sim?

     - Estão a pôr todos de prevenção contra nós. Eu bem ouvi. É toda essa gente fardada, os homens da casa da guarda... o diabo a quatro... Dizem que hão-de apanhar o tipo, dê lá por onde der.

     - Eles sabem como ele é?

     - Bem... parece-me que se não lembram bem da cara dele. Mas ouvi dizer que sabem que o tipo está ferido. Acham que ele terá...

     Tom ergueu lentamente a mão e apalpou o rosto ferido.

     - Mas o que eles dizem não é verdade - gritou a mãe.

     - Calma, mãe! - aconselhou Tom. - Eles fazem o que querem. Tudo o que essa gente fardada disser contra nós tem de ser verdade.

     A mãe perscrutou as faces de Tom àquela luz débil, observando-lhe principalmente os lábios.

     - Tu prometeste-me... - começou ela.

     - Mãe... quem sabe se eu... se esse tipo não se devia ir embora? Se... se esse tipo tivesse feito alguma coisa de ruim, podia ser que pensasse isto: “Muito bem, devo morrer na forca. Cometi uma acção má e agora devo pagar.” Mas ele não fez nada de mal. Não está arrependido do que fez. É como se tivesse morto uma doninha fedorenta.

     Ruthie interrompeu-o:

     - Mãe, o Winfield e eu sabemos de tudo. Não há necessidade de ele falar assim: “aquele tipo” na nossa frente.

     Tom riu:

     - Ora esse tipo não quer ser enforcado, pois está pronto a fazer a mesma coisa em qualquer altura. E também não quer arranjar complicações à família. Mãe, tenho de me ir embora.

     A mãe tapou a boca com a mão, tossiu e pigarreou, para aclarar a voz.

     - Tu não podes ir - disse. - Onde é que tu te ias esconder? Não podes confiar em ninguém, a não ser em nós. A gente podia esconder-te e arranjar-te de comer até que tu ficasses bem da cara.

     - Mas, mãe...

     Ela pôs-se de pé.

     - Não, tu não te vais embora. Vens connosco. Al, tu levas o camião em marcha atrás, até à porta. já sei como é que hei-de fazer a coisa. A gente põe um colchão no fundo do carro e o Tom sobe depressa; então, a gente pega noutro colchão e dobra-o um bocadinho, para formar uma cova e o Tom esconde-se nela. Depois, a gente coloca qualquer coisa à frente e de volta. Ele pode respirar pelo lado, não é verdade? Pois é isto. Não me contrariem! O que nós vamos fazer é isto.

     O pai queixou-se:

     - É, estou a ver que um marido já não pode dizer nada. Ela é o quero, posso e mando disto tudo. Deixa estar, assim que estivermos instalados, tu vais ver.

     - Pois que venha esse tempo e então tu farás o que quiseres - disse a mãe. - Bom, Al, anda! já está bastante escuro.

     Al dirigiu-se ao, camião. Estudou bem o caso e recuou para junto dos degraus.

     - Vamos, depressa! - comandou a mãe. - Ponham esse colchão lá dentro.

     O pai e o tio John atiraram-no pela parte traseira do camião.

     - O outro, agora! - Alçaram o segundo colchão. - Agora, sobe, Tom, e enfia-te no meio dos colchões. Anda, depressa!

     Tom, rápido, subiu para o carro e deixou-se cair sobre o ventre. Estendeu um dos colchões e puxou o segundo sobre si. O pai ergueu-o no meio, unindo-o dos lados, de maneira que o colchão formava um arco sobre o corpo de Tom, que assim podia ver e respirar através das frestas laterais do camião. O pai e o tio John carregaram o veículo com rapidez, empilhando os cobertores por cima da gruta de Tom, colocaram os baldes dos lados e estenderam por detrás o último colchão. As panelas, as frigideiras e as roupas de reserva iam à solta, pois que os caixotes tinham sido aproveitados para fazer lenha. Estavam quase a acabar de fazer o carregamento quando lhes apareceu um guarda, de carabina enfiada no braço esquerdo.

     - Que é que estão ai a fazer? - perguntou.

     - Vamo-nos embora - respondeu o pai.

     - Porquê?

     - Bem... ofereceram-nos um emprego... um emprego bom.

     - Ah, sim? E onde?

     - Ali para baixo. Perto de Weedpatch.

     - Deixe-me dar-lhes uma olhadela. - Assestou o foco da lanterna eléctrica no rosto do pai, depois, no do tio John e no de Al. - Não vinha mais um rapaz com vocês?

     Al perguntou:

     - O senhor refere-se àquele vagabundo? Um baixinho e pálido?

     - Sim. Parece-me que era um tipo desse género.

     - A gente encontrou-o no caminho para cá. Foi-se embora hoje de manhã, quando baixaram os salários.

     - Como é que você disse que ele era?

     - Baixinho e pálido.

     - Você não reparou se ele, esta manhã, tinha a cara ferida?

     - Não, não tinha nada na cara - respondeu Al. - Ouça: ali aquela bomba de gasolina ainda está a funcionar?

     - Está; até às oito.

     - Bom, então subam! - gritou Al. - Se a gente quiser chegar a Weedpatch antes do amanhecer,. temos de andar depressa. A senhora vem à frente, mãe?

     - Não, eu gosto mais de ficar aqui atrás. Pai - disse ela - tu ficas atrás também. Deixa a Rosasharn sentar-se na frente, no meio de Al e do tio John.

     - Pai, dê-me o vale - pediu Al. - Vou comprar gasolina, e quero ver se ele me dá o troco.

     O guarda ficou a acompanhá-los com o olhar, vendo-os descer a rua e dobrar à esquerda, para o lado onde ficava a bomba de gasolina.

     - Deite dois - disse Al.

     - Então vocês não, vão para longe?

     - Não, não vamos para longe. O senhor troca este vale, não troca?

     - Bem... a verdade é que não estou autorizado a fazer isso...

     - Ouça - disse Al. - Arranjámos um bom emprego e temos de chegar lá ainda hoje. Senão, perdemos o emprego. Faça lá esse jeito.

     - Bem, mas você assina-me o vale.

     Al saiu do camião e foi até ao radiador.

     - Pois claro que assino - respondeu. - Retirou a tampa do radiador e encheu-o de água.

     - Você disse dois litros, não foi?

     - Foi, sim.

     - Para onde é que vocês vão?

     - Para o sul. Arranjámos trabalho por lá.

     - Sim? É difícil arranjar trabalho, principalmente trabalho regular.

     - Foi um amigo nosso, que no-lo arranjou - esclareceu Al. - Está à nossa espera. Bom, até, qualquer dia.

     O camião descreveu uma curva, atravessou o atalho poeirento e entrou na estrada. A luz ténue dos faróis bailou sobre a faixa e o farol do lado direito começou a tremeluzir, devido a má *ligação. A cada solavanco, as panelas e frigideiras, postas sobre o topo da carga entrechocavam-se, retinindo com estrondo.

     Rosa de Sharon gemeu baixinho.

     - Estás a sentir-te mal? - perguntou a mãe.

     - Sim, sinto-me sempre mal. O que eu queria era poder estar sentada, e sossegadinha em qualquer ponto bonito! Que bom, se a gente tivesse ficado em casa, e nunca tivesse feito esta viagem! O Connie nunca me teria abandonado. Ia estudar e arranjava um bom emprego.

     Nem Al nem o tio John lhe responderam. Sentiam-se embaraçados por causa do Connie.

     Ao portão do pomar, pintado de branco, o guarda aproximou-se do camião.

     - Vocês vão-se realmente embora?

     - Vamos - respondeu Al. - Vamos para o norte. Encontrámos trabalho.

     O guarda projectou o foco da lanterna sobre o camião e fê-lo cair em cima do toldo. Sob a intensidade do clarão, as feições da mãe e do pai surgiam como petrificadas.

     - Muito bem - disse o guarda, abrindo o portão.

     O camião virou para a esquerda e subiu a estrada 101, a grande estrada que vai de norte a sul.

     - Tu sabes para onde vamos? - perguntou o tio John.

     - Não - respondeu Al. - É sempre assim: a gente vai andando e nem sabe para onde. já estou farto disto tudo.

     - A minha hora está pr6xima - disse Rosa de Sharon, com ar mal-humorado. - É melhor a gente procurar um sítio agradável onde eu possa ficar.

     O ar da noite estava frio e denunciava as primeiras geadas. À margem da estrada, as folhas já começavam a cair das árvores frutíferas. A mãe estava sentada encostada à parede lateral do veículo, e o pai, à sua frente, do lado oposto.

     - Vais bem, Tom? - perguntou a mãe. A voz dele soou, abafada:

     - Vai-se um pouco apertado aqui. A gente já saiu do rancho?

     - Já, mas é preciso cuidado. ode ser que nos façam parar - aconselhou a mãe.

     Tom ergueu uma das pontas do colchão que o encobria. Na penumbra do carro, as panelas retiniam ruidosamente.

     - Tenho a impressão, aqui, de que estou dentro de uma ratoeira - disse Tom. - Se vier alguém, ponho depressa o colchão para baixo. - Apoiou-se no cotovelo. - Meu Deus, parece que está a arrefecer, hem?

     - Há muitas nuvens no céu - sentenciou o pai. - Dizem que o Inverno, este ano, vem cedo.

     - Os esquilos já estão a construir as suas casas, e já há grãos no chão? - perguntou Tom. - Meu Deus! Vocês estão sempre a fazer previsões acerca do tempo. Qualquer coisa vos serve para isso. Aposto que até são capazes de fazer previsões de tempo por causa de um par de cuecas usadas.

     - Não sei - disse o pai - mas parece que o Inverno vem aí. Só quem viva aqui há bastante tempo é que poderá sabê-lo ao certo.

     - Em que direcção vamos? - perguntou Tom.

     - Não sei. O Al virou à esquerda. Parece que vai pelo mesmo caminho por onde viemos.

     - Não sei o que ser é melhor - disse Tom. – Parece-me que, se formos pela estrada principal, corremos o risco de encontrar mais polícias. E, com a minha cara da maneira como está, apanham-me logo. Talvez fosse melhor irmos por estradas menos importantes...

     - Bate aí na tábua para o Al parar um instante - pediu-lhe a mãe.

     Tom bateu com o punho na tábua da cabina. O camião parou bruscamente à margem da estrada. Al saiu e encaminhou-se para as traseiras do camião. As cabeças de Ruthie e de Winfield apareceram a espreitar por debaixo do cobertor.

     - Que é que tu queres? - perguntou Al.

     - É melhor a gente assentar no que vai fazer - disse a mãe. - Talvez seja bom seguir por estradas de menos importância.

     O Tom acha que é melhor.

     - É por causa da minha cara - disse Tom. - Se me virem, descobrem logo tudo. Qualquer polícia me reconheceria.

     - Bom, então qual é o rumo que vocês querem tomar? Eu queria ir para o norte. No sul já a gente esteve.

     - Está bem - assentiu Tom. - Mas vai por estradas de menos importância.

     - E se parássemos agora um bocado e dormíssemos? Amanhã de manhã cedo, continuávamos - propôs Al.

     A mãe contrariou com vivacidade:

     - Agora não. Deixa a gente afastar-se um bocado primeiro.

     - Fixe!

     Al tornou a pegar no volante e o camião prosseguiu a marcha.

     Ruthie e Winfield tornaram a cobrir as cabeças.

     - O Winfield, vai bem? - perguntou a mãe.

     - Vai - respondeu Ruthie.- Tem estado a dormir.

     A mãe encostou-se de novo à parede lateral do carro.

     - Nem sei o que a gente sente quando nos andam a perseguir. Começo a sentir-me revoltada com estas coisas.

     - É o que acontece a toda a gente - disse o pai. - Toda a gente. Viste aquela briga hoje de manhã? Uma pessoa muda com tudo isto. Lá naquele acampamento do governo não éramos assim.

     Al descreveu uma curva para a direita e entrou num caminho coberto de cascalho, sobre o qual deslizavam as luzes amarelas. Acabara-se a fila de árvores frutíferas e, em seu lugar, viam-se pés de algodão. Percorreram vinte milhas, atravessando campos de cultura de algodão, ziguezagueando por caminhos estreitos. O caminho, agora, seguia paralelo a um riacho orlado de arbustos, atravessando-o por meio de uma pequena ponte de cimento e continuando, do outro lado, a seguir o riacho. E então as luzes fizeram aparecer à beira do riacho longas filas de vagões de carga, vermelhos, sem rodas, e um grande cartaz, colocado à beira do caminho, dizia: Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão. Al diminuiu a marcha do veículo. Tom espreitou para fora, por entre as pranchas do camião. A um quarto de milha dos vagões, Tom tornou a bater na tábua da cabina. Al parou à beira do caminho e saiu de novo.

     - Que é que queres agora?

     - Desliga o motor e vem cá - disse Tom.

     Al voltou à cabina, dirigiu o veículo até à vala, desligou o motor, apagou os faróis e subiu pela parte lateral do camião.

     - Pronto - disse.

     Tom trepou por entre as panelas e pôs-se de joelhos diante da mãe.

     - Olhem - disse. - Eles andam à procura de gente para colher o algodão. Está escrito naquele cartaz. Ora eu estive a pensar na maneira de ficar com vocês sem causar complicações. Quando a minha cara estiver boa, pode ser que tudo corra bem, mas, por enquanto, não. Vocês viram aqueles vagões ali atrás? É neles que moram os trabalhadores da safra do algodão. Pode ser que eles precisem de mais gente. Não seria má ideia ver se arranjavam trabalho e conseguiam morar num daqueles vagões. Que lhes parece?

   - E tu? - perguntou a mãe.

     - Bem, a senhora viu aquele riacho ali, todo coberto de moitas, não viu? Eu podia esconder-me no matagal, que ninguém me via. À noite, a senhora levava-me qualquer coisa de comer. Vi um cano de água ali atrás. Talvez eu possa dormir nele.

     - Meu Deus, que bom, se eu pudesse lidar de novo com o algodão! É um serviço que conheço bem! - exclamou o pai.

     - E esses vagões devem ser bons para lá viver - disse a mãe. - São bonitos e parecem secos. Tu achas que o mato ali dá para tu te esconderes, hem, Tom?

     - Dá, sim. Eu reparei bem. Hei-de arranjar um cantinho bem escondido. Assim que a cara melhorar, saio de lá .

     - Mas tu vais ficar com a cara toda marcada... - lembrou a mãe.

     - E isso que tem? Toda a gente tem cicatrizes...

     - Eu, uma vez, apanhei quatrocentas libras - disse o pai. - É verdade que foi uma colheita dura de roer. Mas, se todos nós trabalharmos, dá para se ganhar bastante dinheiro.

     - A gente podia até comprar carne - sugeriu Al. - Bom, e que é que a gente vai fazer agora?

     - Vamos voltar para o sítio dos vagões e dormir um bocado dentro do carro até de manhã - disse o pai. - Depois, talvez a gente possa começar a trabalhar. Mesmo no escuro, distingo as cabeças do algodão.

     - E o Tom? - perguntou a mãe.

     - Ora! Não pense mais em mim, mãe. Eu levo um cobertor comigo. Reparem bem no sítio. Há lá um cano de água. Se a senhora quiser, pode levar-me um bocado de pão, batatas ou papas e deixar-me o que for perto do cano. Eu, depois, procuro a comida.

     - Está bem.

     - Eu também acho que é uma boa ideia - disse o pai.

     - Pois claro que é boa - insistiu Tom. - E assim que eu melhorar da cara, saio de lá e venho trabalhar com vocês.

     - Bem, então seja - concordou a mãe. - Mas toma cuidado. Não te arrisques, ouviste? Não deixes que ninguém te veja por enquanto...

     Tom voltou de gatas até às traseiras do camião e saltou para a margem da estrada.

     - Boa noite - disse.

    A mãe viu o vulto do filho fundir-se com a noite e sumir-se entre os arbustos da margem do rio.

     - Meu Deus, oxalá que tudo corra bem! - suspirou ela.

     - Então, vamos voltar? - perguntou Al.

     - Sim - respondeu o pai.

     - Vai devagarinho - recomendou a mãe. - Quero ver bem aquele cano que ele disse. Tenho de ver bem onde fica.

     Al recuou, tornou a entrar na estradita e deu a volta. Foi rodando lentamente até à fila de vagões onde a escuridão reinava. Os faróis do carro iluminavam as pranchas que ligavam as portas dos vagões ao chão. Não havia sombra de movimento na noite. Al desligou as luzes.

     - Tu e o tio John vão lá para trás - disse ele a Rosa de Sharon. - Eu vou dormir aqui mesmo no assento.

     O tio John ajudou a rapariga, pesada, a trepar pela parte traseira do veículo. A mãe empilhou as panelas num pequeno espaço. A família anichou-se nas traseiras do camião.

     Num dos vagões, soou um choro de criança, choro convulsivo e prolongado. Um cão passou a trote, a bufar e a fungar; depois rodou vagarosamente à volta do camião dos Joads. Um marulhar de água corrente subia do leito do riacho.

    

     “Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão. Cartazes no caminho, impressos distribuídos, impressos cor de laranja... Procuram-se trabalhadores.”

     Ali, ao cimo da estrada - diz o impresso.

     As plantas verde-escuras tornaram-se fibrosas e as pesadas cápsulas sentem-se comprimidas nos respectivos invólucros. Algodão branco, que estala como o milho a assar!

     Que bom tocarmos nos flocos de algodão com as mãos, delicadamente, com a ponta dos dedos!

     Eu sei colher algodão como deve ser.

     Aqui está o homem, é este mesmo.

     Eu queria colher algodão.

     Tem saco?

     Saco, não, não tenho.

     Cada saco custa um dólar. Descontar-se-á nas primeiras cinquenta libras que você colher. Oitenta cents por cem libras à primeira passagem pelo campo e noventa à segunda. Pode arranjar um saco aí. Um dólar. Se não tem um dólar, a gente desconta-o nas primeiras cento e cinquenta que você fizer. É o costume, bem sabe.

     Claro que é o costume. Um bom saco para algodão dura a época inteira. E, quando estiver estragado, gasto, pode virar-se e utilizar-se do lado da boca. Faz-se uma costura na parte aberta e abre-se a parte fechada. E, quando as duas extremidades estiverem gastas, ainda dá um bom tecido. Serve para fazer um belo par de calças para o verão. Ou então para camisas de dormir. E, com os diabos! - um saco de algodão é coisa muito boa.

     Segure-o à cinta. Estique-o bem e arraste-o entre as duas pernas. Ao princípio, puxa-se com facilidade. E as pontas dos dedos colhem a penugem e as mãos empurram-na para dentro do saco, que está entre as pernas. As crianças andam atrás. Não há sacos para crianças... elas que se sirvam de um saco velho de serapilheira ou que ponham a coisa no saco dos pais. Agora já está um tanto pesado. Incline-se para diante e puxe-o para a frente. Eu tenho boa mão para o algodão. É pegar e colher. rode-se falar e até cantar, durante o trabalho, até o saco se tornar pesado. Os dedos trabalham com habilidade. Os dedos sabem. Os olhos vêem o trabalho e, ao mesmo tempo, não o vêem.

     E eles conversam, na marcha através das filas de algodoeiros. Lá na minha terra, havia uma mulher, não quero dizer o nome dela... bom, ela, um dia, sem mais nem mais, teve um filho preto. Ninguém, antes disso, dera pela coisa. Nunca apanharam o negro. E ela nunca mais teve coragem de aparecer. Mas, que é que eu estava a dizer? Ah, sim, ela era um alho para colher algodão.

     Agora o saco está pesado. Arraste-o para diante com toda a força. Faça força com as ancas e puxe-o para a frente como um cavalo. E as crianças colhem também para o saco do velhote. O algodão, aqui, é bom. É fino nos terrenos baixos, fino e fibroso. Nunca vi um algodão como este da Califórnia. De fibra comprida, o melhor algodão que tenho visto na minha. vida. Mas esgota a terra. muito depressa. Quando um tipo pretende comprar terra para algodão, digo-lhe sempre: “Não a compres, arrenda-a! , quando ela estiver esgotada pelo algodão, vai para outro sítio.”

     Filas de trabalhadores, movimentando-se através dos campos, de dedos hábeis. Dedos investigadores vão e vêm, e dão com os flocos. Quase nem é preciso olhar.

     Aposto que era capaz de colher algodão mesmo cego! Nas pontas dos dedos tenho um palpite para apanhar os flocos. Onde eu colho, nada fica para respigar.

     O saco, agora, está cheio. Leve-o até à balança. Discuta. O homem da balança diz que você pôs pedras lá dentro, para aumentar o peso. E ele? A balança dele está viciada. Às vezes ele tem razão; você meteu pedras no saco. Outras vezes é você que tem razão: a balança está viciada. E, por vezes, acertam ambos: há falcatrua com pedras e falcatrua na balança. De qualquer maneira, argumente sempre; lute de qualquer forma. Isso fá-lo teso. E a ele também. Olha que coisa! Lá por causa de uma pedrita... Se calhar até é uma só. Um quarto de libra? Discuta sempre.

     Volte com o saco vazio. Você tem de fazer a sua escrituração. Tome nota do peso. Tem de ser. Se eles perceberem que você toma nota do peso, não o roubam. Mas Deus o livre de não verificar o peso!

     Este trabalho é bom. As crianças correm em volta. já ouviu falar da máquina de colher algodão?

     Já, sim.

     Acha que por aqui arranjarão uma dessas máquinas?

     - Bem, é muito possível que se acabe o trabalho à mão.

     A noite chega. Todos se acham cansados. Mas isto de colher algodão é bom. A gente ganhou três dólares; eu, a mulher e as crianças.

     Os carros chegam aos campos do algodão. Armam-se os acampamentos do algodão. Os altos caminhões cobertos e os reboques- estão cheios de penugem branca. O algodão agarra-se aos arames das cercas e bolinhas de algodão rolam pelos caminhos quando o vento sopra. O algodão, limpo e alvo, vai à máquina de descaroçar. E os fardos, grandes e grumosos, vão caminho da prensa. E o algodão pega-se à roupa e à barba. Assoe o nariz; tem algodão no nariz.

     Agora, arraste-se para a frente; encha o saco antes que surja a noite. Dedos hábeis pesquisam as cápsulas. As ancas esforçam-se no arrastar dos sacos. As crianças, agora que vem a noite, sentem-se cansadas. No solo cultivado, tropeçam de encontro aos próprios pés. E o Sol vai descaindo rio horizonte.

     Quem me dera que a coisa durasse mais algum tempo! Deus sabe que não se consegue juntar grande coisa, mas, ainda assim, quem me dera que isto durasse mais algum tempo!

     Na estrada, atraídos pelos impressos, aglomeram-se os calhambeques.

     Tem saco para o algodão?

     Não.

     Então tem de pagar um dólar.

     Se fôssemos apenas cinquenta, a gente podia instalar-se por algum tempo, mas somos quinhentos... Assim, a coisa não pode durar muito. Conheço um tipo que nunca conseguiu pagar o saco que lhe deram. Cada vez que se empregava, recebia um saco novo, mas todos os campos ficavam prontos antes que ele completasse o dinheiro necessário.

     Pelo amor de Deus, faça por economizar algum dinheiro. O Inverno vem aí, não tarda nada. E, no Inverno, não há trabalho nenhum na Califórnia. Encha o saco antes da noite. Vi um tipo meter duas pedras no saco dele.

     Porque não, que diabo? É para compensar a balança viciada.

     Está aqui o meu livro: trezentas e doze libras.

     Está bem.

     Jesus, ele nem discute! A balança dele deve estar viciada. Bem, de qualquer maneira, o dia foi bom.

     Dizem que vêm aí uns mil homens para esta fazenda. Amanhã, a gente vai brigar por causa de uma fileira. Vão começar a roubar o algodão uns aos outros.

     “Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão. Quanto mais homens trabalharem, tanto mais depressa a colheita vai para a máquina.”

     E agora, a gente volta para o acampamento.

     Santo Deus! Há carne para o jantar! A gente tem dinheiro para comprar carne! Pega na mão do menino, que está a cair de cansaço. Dá um pulo ao talho e compra umas quatro libras de carne. A velha vai fazer-nos umas boas empadas, se não estiver muito cansada.

    

     Os vagões de mercadorias, em número de doze, estavam alinhados uns atrás dos outros, num terrenozito plano, à margem do regato. Eram duas fileiras de seis vagões cada uma, cujas rodas haviam sido desmontadas. Havia pranchas a servir de acesso às largas portas de correr dos vagões, que tinham sido transformados em boas moradias, impermeáveis, sem fendas, capazes de abrigar vinte e quatro famílias ao todo - uma família de cada lado de todos os vagões. Não tinham janelas, mas as largas portas permaneciam sempre abertas. Em alguns vagões, ;ia-se, lona estirada ao centro, a servir de linha divisória entre as duas famílias, enquanto noutros só a posição da porta servia de limite.

     Os Joads habitavam a metade de um dos vagões ao fim da fileira. Os moradores precedentes haviam transformado uma lata de petróleo em fogão, enxertando-lhe um tubo de chaminé e perfurando a parede, de madeira, para o encaixar. Mesmo com as largas portas completamente escancaradas, os cantos dos vagões permaneciam em eterna penumbra. A mãe esticara a lona da tenda ao centro do vagão.

     - Isto aqui é bem bom - dizia ela. - Melhor que tudo o que temos arranjado, não falando no acampamento do governo, é claro.

     Todas as noites ela desenrolava os colchões no soalho e todas as manhãs voltava a enrolá-los. E todos os dias iam para o campo colher algodão e todas as noites tinham carne para o jantar. Um sábado, foram a Tulare e compraram um fogãozito de estanho e novos fatos-macacos para Al, para o pai, para o Winfield e para o tio John, e também compraram um vestido para a mãe, e esta presenteou Rosa de Sharon com o seu melhor vestido.

     - Ela, agora, está muito gorda - disse a mãe. - Seria deitar dinheiro à rua comprar-lhe um vestido novo.

     Os Joads tinham tido sorte. Chegaram a tempo de encontrar lugar nos vagões.

     As tendas das famílias chegadas mais tarde enchiam agora a área do pequeno trato de terra plana e os que habitavam os vagões eram considerados veteranos e, num certo sentido, aristocratas.

     O riacho deslizava por ali, surgindo de um salgueiral e sumindo-se noutro. De cada vagão partia uma veredazinha formada à força de tanto se trilhar o solo, a qual conduzia, invariavelmente ao riacho. Haviam estendido cordas entre os vagões, as quais diariamente se cobriam de roupas a secar.

     À noite, a família regressava dos campos, levando o saco dobrado debaixo do braço. Ia ao armazém da encruzilhada, onde havia sempre trabalhadores da colheita do algodão, a comprar provisões.

     - Então quanto fizeram hoje?

     - Hoje a coisa foi de estalo! A gente fez três e meio. Só queria que continuasse assim. Essas crianças estão a fazer-se uns trabalhadores de alto lá com eles! A mãe fez um saquinho mais pequeno para cada uma delas, pois não podiam puxar por um saco tão grande. Dantes, elas metiam no saco da gente o algodão que colhiam. Mas, agora, fizeram-se-lhes sacos de camisas velhas. Trabalham que é uma beleza!

     A mãe achegou-se ao balcão em que se vendia a carne e, pondo o indicador nos lábios, parecia mergulhada em profundos pensamentos.

     - Eu queria umas costeletas de porco – disse. - Quanto é que custam?

     - Trinta cents a libra, senhora.

     - Bem, então dê-me três libras. E um pedaço bom para cozido. A minha filha pode cozinhar isso amanhã. E dê-me também uma garrafa de leite para a minha filha. É doida por leite. Vai ter um bebé, e a enfermeira disse para ela tomar muito leite. Bem... deixe ver... batatas, a gente tem.

     O pai acercou-se dela com uma lata de xarope na mão.

     - A gente podia levar isto também - disse ele. - E bom para fazer sonhos.

     A mãe franziu a testa.

     - Bem... Pode ser. Levamos também esta. Deixa ver... Toucinho, temos bastante.

     Ruthie aproximou-se. Segurava em cada mão uma caixa de bolachas e nos seus olhos lia-se uma interrogação ansiosa, que tanto podia transformar-se em tragédia como em júbilo, conforme o aceno negativo ou afirmativo da mãe.

     - Mãe! - Ela estendia as caixas, abanando-as para lhes aumentar a força atractiva.

     - Vai já pô-las de onde as tiraste...

     A tragédia começou a tomar forma nos olhos de Ruthie. O pai insinuou:

     - Custa só um níquel cada uma. E as crianças, hoje, trabalharam bastante...

     - Bem! - exclamou a mãe. E a excitação brilhou nos olhos de Ruthie. - Então vá lá...

     Ruthie rodou nos calcanhares, disposta a desaparecer. A meio caminho da porta, agarrou Winfield e saiu a correr, com ele, para a escuridão da noite.

     O tio John apalpava um par de luvas de tela com palmas de couro amarelo; experimentou-as, tirou-as e tornou a poisá-las. Insensivelmente, ia-se aproximando das prateleiras das bebidas, a examinar os rótulos das garrafas. A mãe observava-o.

     - Pai - disse ela, acenando com a cabeça em direcção do tio John.

     O pai, vagarosamente aproximou-se dele.

     - Estás com sede, John?

     - Não, não estou.

     - Espera que a gente acabe com este algodão. Então poderás apanhar uma boa carraspana.

     - Agora não acho graça nenhuma - disse o tio John. - O trabalho é duro, e eu durmo bem. Não sonho nem nada.

     - Bom... é que tu estava a olhar para as garrafas com uns olhos que eu pensei...

     - Qual! Nem nelas reparei. É engraçado. Estou é com vontade de comprar alguma coisa. Uma coisa que me não faça falta. Queria comprar uma dessas giletes. Ou então, um par de luvas como aquelas. São baratas.

     - Mas tu, com ]uvas, não podes apanhar o algodão... - lembrou o pai.

     - Bem sei. Mas também não preciso de uma gilete. É que a gente, vendo as coisas aí, tem vontade de comprar, precise ou não.

     - Vai-nos! - gritou a mãe. - A gente já tem tudo o que precisava.

     Trazia um saco. O tio John e o pai encarregaram-se cada um deles de um pacote. Do lado de fora, Ruthie e Winfield esperavam-nos com olhos cansados e a boca cheia de bolachas.

     - Já sei que vocês hoje não jantam - disse a mãe.

     Havia gente e gente a deslocar-se em direcção ao acampamento dos vagões, que se encontravam iluminados. O fumo escapa-se dos fogões. Os Joads subiram pela prancha e penetraram na sua metade do vagão. Rosa de Sharon estava sentada em cima de um caixote, ao lado do fogão. Acendera o lume e, com o calor, o fogão de estanho adquirira uma tonalidade cor de vinho.

     - A senhora trouxe leite para mim, mãe? - perguntou.

       - Trouxe, sim.

     - Então dê-mo. Desde o meio-dia que não tomo leite.

     - Ela pensa que o leite é um remédio.

     - Aquela senhora lá da enfermaria disse-me que fizesse assim.

     - As batatas estão prontas?

     - Estão sim. Estão todas descascadas.

     - Bom, vamos fritá-las - disse a mãe. - Comprei costeletas de porco. Corta as batatas e põe-nas na frigideira nova. E deita-lhes também uma cebola. E vocês, homens, vão lavar-se e, à volta, tragam um balde de água. Onde estão a Ruthie e o Winfield? Eles têm de se lavar também. Ganharam uma caixinha de bolachas cada um - explicou a mãe a Rosa de Sharon. - Uma caixinha inteira para cada um.

     Os homens saíram para se lavarem no regato. Rosa de Sharon cortou as batatas e despejou-as na frigideira, mexendo-as com a ponta da faca.

     Subitamente, alguém afastou a lona para um lado. Um rosto de feições acentuadas, todo salpicado de gotas de suor, apareceu do outro lado do vagão.

     - Então quanto fizeram hoje, senhora Joad?

     A mãe virou-se com rapidez.

     - Como? Ali, boa noite, senhora Wainwright. A coisa hoje rendeu. Três e meio. Ao certo, três e cinquenta e sete.

     - A gente fez quatro dólares.

     - Bom - disse a mãe. - A sua família é maior.

     - É sim, e o Jonas está a crescer. Então, pelo que vejo, hoje vão ter costeletas de porco.

     Winfield acabava de entrar.

     - Mãe! - Cala-te um bocadinho. Sim, os meus homens gostam muito de costeletas de porco.

     - Pois eu estou a fritar presunto - disse a senhora Wainwright. - A senhora não sente o cheiro?

     - Eu não posso sentir nada com este cheiro a cebola e a batatas.

     - Está qualquer coisa a queimar-se! - gritou a senhora Wainwright, e a sua cabeça sumiu-se rapidamente.

     - Mãe! - tornou Winfield.

     - Que é? As bolachas já te estão a fazer mal?

     - Mãe... a Ruthie falou...

     - Falou de quê?

     - Do Tom?

     A mãe encarou-o pasmada.

     - Falou? - Pôs-se de joelhos diante do pequeno. - Winfield, com quem falou ela?

     Winfield mostrou-se embaraçado. Tentou retratar-se.

     - Ela só disse...

     - Winfield, conta-me como foi. Conta já, anda!

     - Ela... ela não comeu as bolachas todas. Guardou algumas, e depois pôs-se a comer uma de cada vez, mastigando devagar, como ele costuma fazer. E, então, disse assim: “Tu também gostavas de não teres comido tudo, não gostavas?”

     - Winfield - suplicou a mãe - conta-me tudo de uma vez. Lançou um olhar nervoso à lona que servia de cortina. - Rosasharn, vai para o pé da senhora Wainwright e distrai-a para ela não ouvir.

     - E as batatas?

     - Deixa as batatas, que eu olho por elas. Não quero é que ela oiça através da cortina.

     A rapariga arrastou-se penosamente pelo vagão fora, em direcção à outra metade do fogão.

     - Bem, agora, Winfield, conta-me tudo - mandou a mãe.

     - Já disse. A Ruthie só comia uma bolacha de cada vez e partia-a em duas, para durarem mais tempo.

     - Sim, sim, conta depressa.

     - Nessa altura, chegaram outros miúdos. Também queriam bolachas, está visto, mas a Ruthie continuava a tasquinhar, a tasquinhar e não quis dar-lhes nem um pedacinho. Eles ficaram furiosos e um garoto tirou a caixa das mãos da Ruthie.

     - Anda, Winfield, conta já o que interessa.

       - Mas é o que eu estou a fazer, mãe - disse ele. - Então, a Ruthie ficou danada e correu com eles; brigou com um, brigou com outro, até que uma menina mais crescida deu uma bofetada na Ruthie, uma bofetada muito grande, e a Ruthie começou a chorar e disse que ia chamar o irmão mais velho para a matar. E a outra menina disse: “Ai, vais? Eu também tenho um irmão mais velho, calha bem!” - Winfield quase perdia o fôlego com a velocidade da narrativa. - Então, elas começaram a brigar e a outra menina bateu na Ruthie que se fartou, e a Ruthie não fazia outra coisa senão dizer que o seu irmão havia de matar o irmão dela. Então, a outra disse que o irmão dela é que ia matar o nosso irmão. E, então... a Ruthie disse que o irmão já tinha morto dois homens. E... e a menina grande disse assim: “Ah, sim? Sempre és uma grande mentirosa!” E a Ruthie disse: “Ai, sim? Pois fica sabendo que o meu irmão está escondido porque matou um homem.” E disse que ele ia matar também o irmão da outra. Depois, disseram nomes feios uma à outra, e a Ruthie atirou-lhe uma pedra. A outra menina correu com ela e eu vim para casa.

     - Meu Deus! - gemeu a mãe abatida. - Ó meu querido Menino Jesus deitado nas palhinhas! Que é que a gente há-de fazer agora? - Apoiou a cabeça nas mãos e esfregou os olhos. - Que é que a gente há-de fazer agora?

     Vinha do fogão um cheiro a batatas queimadas. Mecanicamente, a mãe ergueu-se e foi mexer as batatas.

     - Rosasharn! - gritou a mãe. A rapariga apareceu, afastando a cortina de lona. - Chega aqui, cuida tu do jantar. Ó Winfield, vai procurar a Ruthie e trá-la para, casa.

     - Ela vai apanhar? - perguntou Winfield, cheio de esperança.

     - Não, isso agora não adianta nada. Meu Deus! Porque foi ela dizer essas coisas? Não, bater-lhe não adianta nada. Vai depressa, Winfield e trá-la cá.

     Winfield dirigiu-se a correr para a porta, encontrando os três homens que, justamente, vinham subindo a prancha. Afastou-se para o lado, deixando-os passar.

     A mãe disse baixinho:

     - Pai, tenho que falar contigo. A Ruthie foi dizer a umas crianças que o Tom anda escondido.

     - O quê?!

     - Pois disse. Meteu-se aí numa zaragata e contou tudo.

     - Ai, a desavergonhada!

     - Não, ela não sabia o que estava a fazer. Agora, escuta, pai. Eu quero que tu fiques aqui. Vou procurar o Tom e dizer-lhe que tenha muito cuidado. Tu ficas aqui, a olhar por tudo, não vá acontecer qualquer coisa. Vou levar de comer ao Tom.

     - Está bem - concordou o pai.

     - E não digas nada à Ruthie a respeito do que ela fez. Eu, depois, falo com ela.

     Nesse instante, entrava Ruthie, seguida de Winfield. A pequena estava toda suja. Tinha a boca lambuzada e do nariz pingava-lhe ainda o sangue, que se soltara durante a luta. Tinha uma expressão, que era um misto de vergonha e de medo. Winfield seguia triunfante atrás dela. Ruthie olhou em volta de si com olhares raivosos e foi-se encostar a um canto do vagão. Lutava contra a cólera e a vergonha.

     - Eu já contei o que ela fez - disse Winfield.

     A mãe dispôs duas costeletas num prato de estanho e juntou-lhe uma porção de batatas fritas.

     - Chiu! Winfield, está calado - disse. - Não é preciso dar-lhe mais desgosto do que ela já tem.

     Ruthie saltou do canto do vagão, e, correndo, abraçou as pernas da mãe, enterrou a cabeça no seu colo, e soluços abafados sacudiram-lhe o corpo todo. A mãe acariciou-lhe suavemente os cabelos e afagou-lhe os ombros.

     - Chiu! - fez ela. - Tu não sabias o que estavas a fazer. Ruthie ergueu o rosto sujo, ensanguentado e manchado de lágrimas.

     - Eles roubaram-me as bolachas - disse, chorando - e aquela mais crescida, a filha da mãe, bateu-me. - Desatou novamente num choro desesperado.

     - Chiu! - fez a mãe - não fales assim, que é feio. Vá. Acalma-te, Ruthie. Eu tenho de sair.

     - Porque é que lhe não bate, mãe? Se ela não fosse uma ranhosa, agarrada às bolachas, aquilo não tinha acontecido. Chegue-lhe, ande.

     - Ora mete-te na tua vida - gritou a mãe, irritada. - Senão, quem apanha és tu. Não chores mais, Ruthie.

     Winfield encostou-se a um dos colchões enrolados, observando a cena cinicamente e de mau humor. Colocara-se numa boa posição defensiva, pois sabia que Ruthie o iria atacar na primeira oportunidade. Lentamente, Ruthie dirigiu-se para o lado oposto do vagão, com o coração despedaçado.

     A mãe cobriu o prato de folha com um papel de jornal.

     - Bem, deixa-me ir - disse.

     - Então tu não comes nada? - perguntou o tio John.

     - À volta. Agora não posso. Era incapaz de engolir fosse o que fosse.

     A mãe dirigiu-se para a porta que se encontrava escancarada e desceu, firmando-se bem na prancha íngreme.

     Ao lado da fileira de vagões que dava para o riacho havia grande número de tendas, armadas tão perto umas das outras que se cruzavam entre si as cordas com que as haviam amarrado e os paus de umas tocavam nas paredes de lona das outras. As luzes filtravam-se através das lonas e o fumo golfava de todas as chaminés. Homens e mulheres entretinham-se a falar à boca das tendas. Para cá e para lá, corriam as crianças, numa excitação febril. A mãe passou majestosamente pelo aglomerado de tendas. De vez em quando, alguém a cumprimentava pelo caminho.

     - Boa noite, senhora Joad.

     - Boa noite.

     - Vai levar coisas a alguém, hein?

     - Sim, vou levar um pedaço de pão a uma amiga.

     Alcançou finalmente os limites do acampamento. Parou a olhar para trás. Sobre as tendas, pairava um brilho de luzes e o mesmo acontecia com os ruídos abalados de mil e uma conversações. De quando em quando, uma voz mais aguda dominava as restantes. O cheiro do fumo enchia o ar. Alguém tocava baixinho uma gaita de beiços, repetindo incansavelmente a mesma melodia, à procura de um efeito.

     A mãe penetrou no salgueiral que orlava o riacho. Deixou a vereda, e esperou, silenciosamente, a ver se? seria seguida. Um homem vinha pelo caminho que conduzia ao acampamento, e, mesmo a andar, ia ajeitando os suspensórios e abotoando as calças. A mãe sentou-se, mantendo-se completamente imóvel, e ele passou sem a ver. Ela esperou uns cinco minutos, depois levantou-se e foi trepando silenciosamente pelo atalho que conduzia ao riacho. Movia-se com cautela, de maneira que ouvia o murmúrio da água, no intervalo do ruído que os seus pés faziam, ao pisar as folhas secas dos salgueiros. O riacho e o atalho descreviam uma curva para a esquerda, depois outra para a direita, até se aproximarem da estrada. À luz acinzentada das estrelas, a mãe distinguia a ribanceira e a cavidade redonda e negra do cano, onde costumava deixar a comida para Tom. Avançou com mil cuidados, colocou o embrulho no cano e tirou o prato vazio que lá estava. Saiu gatinhando pelo mato fora, forçando a passagem entre os arbustos. Depois, sentou-se à espera. Por entre o emaranhado da vegetação, avistava a boca negra do cano. Passou os braços em torno dos joelhos e deixou-se ficar sentada e imóvel. Um momento depois, a vida recomeçava no matagal. Os ratos do campo moviam-se cautelosamente entre a folhagem. Um zorrilho correu pesada e descuidadamente arrastando um leve cheiro; o vento pôs-se a agitar brandamente os salgueiros, como que querendo pô-los à prova, e uma chuva de folhas doiradas inundou o chão. Subitamente, uma rajada irrompeu, sacudindo fortemente as árvores e provocando uma queda rápida de folhas. A mãe sentiu-as nos cabelos e nos ombros. Uma nuvem, bojuda e negra, atravessou o céu, ocultando as estrelas. Grossas gotas de chuva caíram do alto, batendo ruidosamente nas folhas caídas. E a nuvem bojuda afastou-se, descobrindo novamente as estrelas. A mãe estremeceu.

     O vento amainou, e, de novo, reinou a paz na mata, mas, rio abaixo, o movimento das árvores continuava. De longe, do acampamento, vinha o som penetrante de um violino, ensaiando uma melodia qualquer.

     À sua esquerda, a mãe ouviu passos cautelosos sobre a folhagem. Endireitou o busto. Soltou os joelhos e estendeu a cabeça, no intuito de ouvir melhor. Os passos suspenderam-se, recomeçando daí a um bom bocado. Ouviu-se um ranger áspero de folhas secas. A mãe distinguiu então um vulto, a esgueirar-se para a clareira e a aproximar-se do cano. Por um instante, o grande buraco negro obscureceu-se, e, depois, o vulto deu um passo atrás. A mãe chamou em voz baixa:

     - Tom!

     O vulto parou, imobilizou-se de tal maneira e inclinou-se tanto para o chão que poderia passar por um tronco cortado. Ela tornou a chamar:

     - Tom! Ó Tom!

     Então o vulto agitou-se:

     - Mãe, é a senhora que está aí?

     - Sou eu, sim. Aqui mesmo. - Ergueu-se e foi ao encontro dele.

     - Não devia ter vindo aqui - censurou ele.

     - Tinha que te ver, Tom. Preciso de falar contigo.

     - É muito perto do caminho - disse Tom. - Pode passar alguém.

     - Mas o teu esconderijo não é aqui, Tom?

     - É sim... mas... mas imagine que alguém a via comigo... toda a família podia passar por um mau bocado.

     - Foi preciso que eu viesse, Tom.

     - Então venha comigo. Mas sem fazer barulho!

     Cruzou o riacho, patinhando cuidadosamente na água, com a mãe atrás. Atravessou a mata e desembocou num campo, do outro lado do matagal, ao longo das terras aradas. As hastes enegrecidas do algodão projectavam-se duramente no solo. Nalgumas havia ainda flocos de algodão. Andaram cerca de um quarto de milha ao longo da orla do campo e depois tornaram a penetrar no mato. Tom aproximou-se de um grande emaranhado de amoras silvestres, debruçou-se sobre ele e descerrou uma cortina de ervas selvagens.

     - A senhora só poderá entrar aqui de rastos - disse.

     A mãe pôs-se de rastos. Deixou de tocar com o corpo no interior escuro do matagal; depois, sentiu o cobertor de Tom. Ele ajeitou novamente a cortina de mato. A cova estava completamente às escuras.

     - Onde está, mãe?

     - Estou aqui mesmo. Fala baixo, Tom.

     - Não se preocupe. já tenho prática de viver como um coelho bravo.

     Ela ouviu-o desembrulhar o prato de estanho.

     - Costeletas de porco - disse a mãe - e batatas fritas.

     - Meu Deus! E ainda vêm quentes!

     Era-lhe impossível distingui-lo no escuro, mas ouvia o mastigar, o cortar da carne com os dentes e os ruídos que ele fazia a engolir.

     - Muito bom, este esconderijo - disse ele.

     A mãe começou a custo:

     - Tom... a Ruthie falou de ti. Ouviu-o engolir precipitadamente.

     - A Ruthie? Porquê?

     - Bem, a culpa não foi dela. Armou uma zaragata e disse que tinha um irmão que ia dar uma sova no irmão da outra pequena. Tu sabes como elas falam... E acabou por dizer que o irmão tinha matado um homem e que andava escondido.

     Tom riu por entre dentes.

     - Quando eu estava com os miúdos, costumava meter-lhes medo com o tio John, embora ele nunca lhes fizesse nada. Isso é conversa de crianças, mãe. Não tem importância.

     - Tem, sim. Os tais miúdos podem começar a falar no caso e, se os adultos ouvirem, vão também começar a dar à língua, e, daí a pouco, são muito capazes de desatarem à tua procura, só por curiosidade. Tom, tu tens de te ir embora.

       - Isso era o que eu dizia. Sempre tive medo de que alguém a visse trazer-me a comida e que a começassem a espreitar.

     - Eu sei, mas queria que tu te conservasses perto de nós. Tinha medo que te acontecesse alguma coisa. Nunca mais te vi. E agora, também não consigo ver-te. Como vai a tua cara?

     - Está quase boa.

     - Chega-te mais para aqui, Tom. Deixa-me apalpar a tua cara.- Ele aproximou-se, rastejando, para o lado da mãe. A mão estendida apalpou-lhe a cabeça no escuro e os seus dedos afloraram-lhe o nariz e a face esquerda.- Vais ficar com uma cicatriz feia, Tom. E o nariz ficou todo torto.

     - Talvez isso seja um bem para mim. Talvez que assim ninguém me reconheça. Era bem bom que eles me não tivessem tirado as impressões digitais...

     Recomeçou a comer.

     - Chiu! - fez a mãe. - Ora ouve!

     - É o vento, mãe. É só o vento e mais nada.

     Uma rajada arrepiou o riacho, fazendo gemer as árvores. Às apalpadelas, a mãe aproximou-se do sítio de onde a voz provinha.

     - Queria tocar-te mais uma vez, Tom. Está tão escuro que até tenho a impressão de que sou cega. Quero lembrar-me de ti, ainda que seja só com os dedos. Mas tu tens de fugir, Tom.

     - Pois claro. Não foi coisa que eu não achasse necessária desde o princípio.

     - A gente ganhou bastante dinheiro. Pus alguns cobres de lado. Abre a mão, Tom. Tenho aqui sete dólares.

      - Não quero aceitar dinheiro seu - disse Tom. - Cá me hei-de arranjar, seja como for.

     - Abre a mão, Tom. Seria incapaz de dormir se te soubesse sem dinheiro. Talvez tenhas de tomar uma caminheta ou qualquer coisa semelhante. O que eu queria era que te afastasses para bem longe, aí umas trezentas ou quatrocentas milhas.

     - Mas eu não quero esse dinheiro.

     - Tom - insistiu ela com severidade. - Tu tens de ficar com este dinheiro. Estás a ouvir? Tu não tens o direito de me arreliar.

     - Mas não está certo - argumentou ele.

     - Era bom que tu fosses para uma grande cidade. Para Los Angeles, por exemplo. Com certeza que lá ninguém se lembraria de te procurar.

     - Hum... Olhe cá, ó mãe. Tenho passado os dias e as noites sozinho, aqui escondido. E sabe em quem me tenho entretido a pensar? No Casy! Ele falava muito. Às vezes aborrecia-me. Mas, agora, tenho pensado e repensado no que ele dizia, e lembro-me, lembro-me bem de tudo. Ele disse uma vez que tinha ido para o mato, à procura da própria alma, e que, por fim, descobrira que não tinha uma alma que fosse só dele. Disse que tinha unicamente uma pequena parte de uma alma enorme. E ele achava que não servia de nada andar em sítios desertos, porque aí, a tal pequena alma que ele tinha não servia para nada. Só tinha utilidade quando estava junto das outras com que formava um todo. É engraçado como eu me lembro de tudo isso! E, no entanto, tinha, nessa altura, a impressão de que mal o ouvia... Mas, agora, sei que um indivíduo solitário não tem préstimo nenhum.

     - Era um bom homem, ele - comentou a mãe.

     Tom continuou:

     - Um dia ele citou-me um trecho das Escrituras, mas que nem parecia de lá. Disse-me, duas vezes e eu aprendi-o de cor.

     Dizia que era do livro de pregador.

     - E como é, Tom?

     - “Dois vale mais do que um, porque ambos terão melhor recompensa do seu trabalho. E, se um cair, o outro erguerá o companheiro, mas ai do que estiver só, pois, quando cair, não encontrará ninguém junto de si que se prontifique a levantá-lo”. E isto é só um bocado.

     - Continua - pediu a mãe. - Continua, Tom.

     - É só mais um bocadinho. “E, se dois se deitarem juntos, aquecerão, mas como se aquecerá o homem solitário? E, se um qualquer o pretender dominar, serão dois a resistir e uma corda reforçada não se quebra facilmente.”

     - E isso é das Escrituras?

     - O Casy assim disse. Chamava-lhe o Livro do Pregador.

     - Chiu!... Escuta...

     - É o vento, mãe. É o vento, que eu bem sei. E deu-me cá para pensar, mãe.. Uma grande parte dos sermões é a respeito dos pobres e da pobreza. Se a gente nada possuir, que junte as mãos e não pense em mais coisa nenhuma, que no céu nos darão sorvetes em pratos de oiro. E o tal Livro do Pregador diz que dois recebem melhor paga pelo seu trabalho.

     - Tom - perguntou a mãe - que tencionas tu fazer?

     A resposta dele demorou um bom bocado.

     - Estive a pensar em como eram as coisas naquele acampamento do governo, em como as pessoas sabiam resolver os seus assuntos. Se havia uma desordem, eles lá apaziguavam tudo. E não havia polícias a ameaçar a gente de revólver na mão, e, apesar disso, via-se por lá mais ordem e sossego do que se por lá andasse a polícia. E tenho estado a pensar por que razão é que se não dá o mesmo noutros sítios. Corram com os polícias, que não são gente da nossa. Devíamos trabalhar todos para o bem comum devíamos cultivar a nossa própria terra.

     - Tom - repetiu a mãe - que tencionas tu fazer?

     - O que fez o Casy - foi a resposta.

     - Mas eles deram cabo dele...

     - Pois deram - concordou Tom - porque ele não soube safar-se a tempo. Ele não estava a fazer nada que fosse contra a lei. Mãe, tenho pensado um bom pedaço a respeito da nossa gente, que vive como os porcos, enquanto se deixa por aí inculta uma terra excelente, enquanto há tipos que têm um milhão de acres, quando perto de cem mil fazendeiros dos bons andam a estalar de fome... E pus-me cá a matutar que se nós nos uníssemos todos e nos puséssemos a gritar como aqueles fulanos do rancho Hooper...

     - Tom, eles vão perseguir-te e encurralar-te como fizeram àquele rapazinho, ao Floyd... - disse a mãe.

     - Eles hão-de perseguir-me de qualquer maneira. Perseguem todas as criaturas como nós.

     - Mas tu não estás com ideias de matar ninguém, pois não, Tom?

     - Não. Estive simplesmente a pensar que, uma vez que já estou fora da lei, poderia... que diabo, mãe, ainda não sinto as ideias bem claras dentro de mim! Agora, não me atormente, mãe, não me atormente.

     Permaneceram sentados, sem falar, na cavidade negra formada pelas vides. Depois, a mãe continuou:

     - Mas como é que eu hei-de ter notícias tuas? Podem-te matar, que eu nem sequer o virei a saber! Podem maltratar-te. E eu sem saber de nada!

     Tom riu com certo embaraço.

     - Bem, talvez o Casy tivesse acertado quando disse que uma pessoa não tinha alma própria, mas apenas uma pequena parte de uma grande alma... e então...

    - Então o quê, Tom?

     - Nesse caso, todas essas coisas deixam de ter importância. Eu estarei em qualquer sítio, na escuridão. Estarei em toda a parte, em qualquer sítio para onde a senhora se puser a olhar. Onde quer que se lute para que a gente com fome possa comer... eu estarei presente. Onde quer que a polícia esteja a bater num tipo, eu estarei presente. Imagine se o Casy soubesse disto! Estarei onde quer que se vejam criaturas a gritar de raiva... e estarei onde as crianças sorriam porque têm fome mas saibam que a ceia não tarda. E quando a nossa gente comer aquilo que plantar e morar nas casas que construir... então também eu estarei presente. Está a ver? Olhe que já vou falando como o Casy. Isto é de pensar nele tantas vezes. Há ocasiões em que até me parece que o estou a ver.

     - Não te compreendo - disse a mãe. - Com franqueza, não compreendo.

     - Nem eu - respondeu Tom. - São coisas que eu tenho pensado. A gente pensa em muita coisa quando se não pode mexer. A senhora, agora, tem de voltar, mãe.

     - Mas então tu ficas com este dinheiro.

     Ele ficou calado uns instantes.

     - Está bem - disse por fim.

     - E olha, Tom, mais tarde... quando as coisas se acalmarem, tu voltas, ouviste? Serás capaz de nos encontrar?

     - Pois claro que sou - respondeu ele. - Mas, agora, é melhor a senhora ir andando. Por aqui, dê-me a sua mão. - Conduziu-a até à entrada da cavidade. Os dedos dela agarravam o pulso de Tom. Ele correu a cortina de videiras e seguiu-a até ao lado de fora.- Vá sempre em frente, à beira dos campos, até chegar ao pé de um sicómoro, e aí atravesse o riacho. Bom, adeus, mãe.

     - Adeus, meu filho - respondeu ela, afastando-se rapidamente.

     Os seus olhos estavam húmidos e ardiam, mas não chorava. Foi andando com passos ruidosos e descuidados sobre a folhagem seca que cobria o chão. Entretanto, a chuva começara a cair do céu turvo em gotas grossas e escassas que batiam pesadamente no tapete de folhas secas. A mãe parou e permaneceu imóvel na espessura gotejante. Virou-se, deu três passos rápidos em direcção à muralha de videiras, tornou a voltar-se e foi caminhando em direcção aos vagões. Passou ao lado do cano e galgou o caminho. A chuva parara, mas o céu conservava-se ainda nublado. Atrás de si, no caminho, ouviu passos. Voltou-se, toda nervosa. O débil pestanejar de uma lanterna eléctrica bailou no caminho. Um momento depois, um homem aproximava-se, apagando a luz cortesmente, para não ferir o rosto da mãe.

     - Boa noite - disse ele.

     - Boa noite - respondeu a mãe.

     - Parece que vamos ter chuva...

     - Oxalá que não. Paravam os trabalhos da colheita e lá ficávamos sem trabalho.

     - Para mim também era um prejuízo. A senhora mora neste acampamento?

     - Moro, sim, senhor.

     Os passos de ambos ressoavam em uníssono.

     - Eu tenho uns vinte acres de algodão. Costuma amadurecer um pouco mais tarde, mas agora está bom para colher. Resolvi dar um pulo até aqui e contratar alguns homens para a colheita.

     - Pois gente é coisa que não falta por aí. Esta safra está quase no fim.

     - Oxalá que assim seja. A minha fazenda fica a uma milha daqui por este caminho.

     - Nós somos seis - disse a mãe. - Três homens, eu, e duas crianças.

     - Vou pôr um cartaz na estrada. Pela estrada, são duas milhas.

     - Amanhã de manhã mesmo, já a gente pode ir para a sua fazenda.

     - Oxalá que não chova.

     - Oxalá - repetiu a mãe. - Vinte acres depressa se colhem.

     - Quanto mais depressa, melhor. O meu algodão está atrasado. Não pude colhê-lo mais cedo,

     - Quanto é que o senhor paga?

     - Noventa cents.

     - A gente vai, sem falta. Ouvi dizer que, para o ano, só vão pagar setenta e cinco ou mesmo sessenta, só.

     - Também ouvi dizer isso.

     - Então vai haver sarilho - disse a mãe.

     - Eu sei, mas um pequeno proprietário como eu nada pode fazer. O sindicato fixa os salários, e a gente tem de se submeter. Senão, acabam por nos tirar a fazenda. Andam constantemente em cima de nós...

     Chegaram ao acampamento.

     - Lá estaremos sem falta - disse a mãe.- Aqui já não há grande coisa para colher. - Foi até à extremidade da fila de vagões e subiu pela prancha. A luz frouxa da lanterna projectava sombras melancólicas por todo o vagão. O pai, o tio John e um outro sujeito de idade estavam acocorados de encontro à parede do vagão.

     - Olá! - disse a mãe?

     - Boa noite, senhor Wainwright.

     O homem ergueu um rosto finamente cinzelado. Sob as sobrancelhas guedelhudas, brilhavam olhos fundos nas órbitas.

     O cabelo era de um belo branco azulado. A face e o queixo revestiam-se de uma barba prateada.

     - Boa noite, minha senhora! - exclamou ele.

     - Amanhã, vamos para outra colheita - informou a mãe. - Uma milha, para os lados do norte. São vinte acres.

     - Acho que é melhor irmos no camião - disse o pai. - É a maneira de começarmos mais cedo.

     Wainwright ergueu a cabeça com vivacidade:

     - E se nós fôssemos também?

     - Acho que podem muito bem ir. Encontrei o sujeito e viemos os dois a andar por aí. Ele veio à procura de gente para a colheita.

     - O algodão aqui está a acabar. Já é difícil apanhar algum na segunda passagem. Dificilmente ganharemos algum dinheiro nela. O algodão já foi tão esquadrinhado da primeira vez!

     - Vocês podiam vir connosco no camião - disse a mãe. - Pagávamos a gasolina a meias.

     - Isso é uma gentileza da sua parte, minha senhora.

     - Assim poupamos todos.

     O pai disse então:

     - Aqui o senhor Wainwright está muito preocupado com uma coisa. Estávamos justamente a falar nisso.

     - E de que se trata?

     Wainwright pôs os olhos no chão.

     - É que a nossa Aggie – disse - está uma mulher... quase com dezasseis anos e bem desenvolvida.

     - A Aggie é uma bonita rapariga - disse a mãe.

     - Ouve o que ele tem para dizer - interrompeu o pai.

     - Bem, o caso é que ela e o vosso filho Al passeiam por aí toda a noite. E a Aggie é uma rapariga cheia de saúde, que está a pedir um marido: não vá ela dar-nos ainda algum desgosto. Nunca tivemos desgostos desses na nossa família. Mas, o que nos arrelia, a mim e à senhora Wainwright, é sermos assim tão pobres. Imagine que lhe acontece alguma coisa?

     A mãe enrolou um colchão e sentou-se em cima dele.

     - E agora, também andam a passear? - perguntou ela.

     - Andam sempre aí por fora - repetiu o senhor Wainwright. - Saem todas as noites.

     - Hum.... Bem, o Al é um excelente rapaz. Ele supõe-se o galo da capoeira, mas, no fundo, é uma jóia rara. Como filho, não pode ser melhor.

     - Oh, a gente não se queixa do Al! Até gostamos dele. Temos é medo, minha mulher e eu. É que a pequena já é uma mulher feita. E se vocês ou a gente se for embora, e depois se descobre que a Aggie está numa situação difícil... Na nossa família nunca houve nada que nos pudesse envergonhar.

     A mãe respondeu com brandura:

     - Vamos fazer o possível para evitar a vergonha.

   Ele levantou-se rapidamente:

     - Muito obrigado. A Aggie já é uma mulher feita. E não só é bonita como boazinha. Agradecer-lhe-emos de todo o coração, se a senhora conseguir evitar uma vergonha. A culpa não é da Aggie. Ela já está bastante crescida.

     - O pai vai falar com o Al - disse a mãe. - E se ele não quiser, falo eu.

     Wainwright disse:

     - Bom, então, boa noite e mais uma vez obrigado.

     Sumiu-se atrás da cortina de lona. Ouviram-no falar baixinho do outro lado do vagão, contando à mulher os resultados daquela embaixada.

     A mãe ficou à escuta por uns instantes e depois disse:

     - Venham cá todos vocês. Sentem-se aqui.

     O pai e o tio John ergueram-se com dificuldade da posição em que estavam e assentaram-se no colchão, ao lado da mãe.

     - Onde estão os miúdos?

     O pai apontou para um colchão, ao canto do vagão.

     - A Ruthie bateu no Winfield e mordeu-lhe. Obriguei os dois a deitarem-se. Suponho que estão a dormir. E a Rosasharn foi fazer companhia a uma senhora conhecida dela.

     A mãe suspirou.

     - Encontrei o Tom - disse baixinho. - Disse-lhe que se fosse embora. Que fosse para longe.

     O pai acenou vagarosamente com a cabeça. O tio John deixou pender a dele para o peito.

     - Era a única coisa que havia a fazer - disse o pai. - Parece-te que havia outro remédio, John?

     John ergueu o olhar.

     - Não me sinto capaz de pensar - respondeu. - Até me parece que nem estou acordado.

     - O Tom é bom rapaz - continuou a mãe. E depois, procurou desculpar-se. - Não levaste a mal que eu tivesse dito que ia falar com o Al, pois não?

     - Eu não - disse o pai tranquilamente. - Já não sirvo para nada. Estou sempre a pensar no que lá vai. A pensar na nossa casa, e a dizer cá para mim que nunca mais a tornarei a ver.

     - Isto aqui é mais bonito e as terras são melhores - disse a mãe.

     - Eu sei, mas nem reparo nas terras. Só vejo os salgueiros lá da nossa casa, com as folhas a caírem. Às vezes, dá-me para pensar que tenho de consertar aquele velho buraco da cerca, do lado sul. E engraçado! A mulher a dar ordens à família! A mulher a dizer que se vai fazer isto, que é preciso ir para acolá... E eu nem sequer me ralo com isso.

     - As mulheres acostumam-se mais depressa que os homens - disse a mãe, para o consolar. Uma mulher tem a vida toda nos braços; o homem tem-na na cabeça. Não te preocupes. Quem sabe?... talvez para o ano já a gente possa ter a nossa casinha.

     - Mas, por enquanto, não temos nada - replicou o pai. - E daqui até lá, nem trabalho nem colheitas... O que é que a gente há-de fazer? E como é que vamos arranjar que comer? E não se esqueçam de que a Rosasharn vai ter o menino não tarda muito. Estou tão desgostoso que me sinto incapaz de pensar. Refugio-me nos tempos antigos para não pensar no futuro. Acho que a nossa vida já deu o que tinha a dar; é coisa liquidada.

     - Nada disso - argumentou a mãe, sorrindo.- Não é não, pai. E isto é mais uma das coisas de que uma mulher tem a certeza. já reparei nisso. O homem vive como se desse saltos... nasce uma criança e morre um homem, e é como se fosse um salto; arranja uma territa; perde a territa, e é outro salto. Para a mulher tudo corre sem parar, como um rio cheio de remoinhos e de cascatas, mas correndo sem parar. É assim que a mulher encara a vida. A gente não morre, a gente continua... muda, talvez, um pouco, mas continua sempre firme.

     - Como é que sabes isso? - perguntou o tio John. - Como é que se pode evitar que as coisas parem e que as pessoas se cansem e queiram fechar os olhos?

     A mãe pôs-se a meditar. Esfregou o dorso luzidio de uma das mãos com a palma da outra, e encaixou os dedos da mão direita nos da esquerda.

     - Isso é difícil de explicar - continuou. - Parece-me que tudo que a gente faz deve ter continuação. Eu penso assim. Mesmo a fome... mesmo a doença. Alguns morrem, mas os que ficam tornam-se mais fortes. O que vocês têm de fazer é viver somente o dia de hoje, o dia a dia.

     - Se, ao menos, ela não tivesse morrido naquela altura... - murmurou o tio John.

     - Vive só o dia de hoje - aconselhou a mãe. - Não te preocupes.

     - Quem sabe? O ano que vem talvez seja um ano bom lá na nossa terra - disse o pai.

     - Chiu! Ouçam! - pediu a mãe. Ouviram-se os passos de alguém que subia a prancha e Al, afastando a cortina, surgiu à entrada.

     - Olá! - disse - pensei que já estivessem a dormir.

     - Al - começou a mãe - senta-te aqui. A gente está a conversar.

     - Fixe! Eu também tenho de contar uma coisa. Preciso de me ir embora daqui, e depressa.

     - Isso é que não pode ser. A gente precisa de ti. Porque é que tu tens de te ir embora?

     - Bem, eu e a Aggie Wainwright queremos casar, e eu vou-me empregar numa garagem. Alugamos uma casa durante uns tempos e... - Ergueu o olhar em brasa. - É o que vamos fazer e ninguém nos pode impedir disso.

     Os olhos de todos fixaram-se nele.

     - Al - falou a mãe, finalmente - estamos muito contentes por ouvir o que disseste. Contentíssimos.

     - Sim?

     - Sim. É claro que estamos. Tu estás um homem feito. Precisas de mulher. Mas não te vais já embora, Al!

     - Prometi à Aggie - disse ele.- A gente tem de se ir embora daqui. já não podemos suportar mais isto.

     - Fiquem só até à Primavera – suplicou a mãe. - Só até à Primavera. Não podem ficar até lá? E quem é que há-de guiar o camião?

     - Bem...

     A senhora Wainwright meteu a cabeça no vão da cortina.

     - Já ouviram a novidade? - perguntou.

     - Já. Agora mesmo.

     - Santo Deus! Eu só queria era que a gente tivesse um bolo, ou qualquer coisa semelhante.

     - Vou fazer café e uns sonhos também - disse a mãe. - Nós temos xarope.

     - Meu Deus! Assim, sim. Olhe, eu dou o açúcar. Vamos pôr açúcar nos sonhos.

     A mãe rachou lenha e enfiou-a no fogão. A brasa que sobrara do jantar pegou fogo imediatamente. Ruthie e Winfield deixaram o colchão, como se fossem caranguejos-ermitões a sair da casca, a princípio devagar, não fossem eles ser novamente recriminados. Como ninguém reparasse neles, tornaram-se audazes. Ruthie foi até à porta ao pé-coxinho, voltando do mesmo modo, sem se encostar à parede.

     A mãe lançava farinha numa tigela quando Rosa de Sharon subiu a prancha. Firmava-se bem, avançando cautelosamente.

     - Que é isto? - perguntou.

     - Grande novidade! - exclamou a mãe. - Temos uma festarola. O Al e a Aggie Wainwright vão casar.

     Rosa de Sharon estacou, imobilizando-se por completo. Olhou longamente para Al, que se mostrava embaraçado e confundido.

     A senhora Wainwright disse, do outro lado do vagão:

     - Estou a pôr um vestido limpo à Aggie. Vamos já.

     Rosa de Sharon voltou-se lentamente. Dirigiu-se, de novo, para a porta escancarada do vagão e arrastou-se, descendo a prancha. Ao chegar à terra firme, foi caminhando devagar em direcção à vereda que corria paralela ao riacho. Tomou pelo caminho por onde antes a mãe viera de visita a Tom, no salgueiral. O vento, agora, soprava com mais constância e os arbustos agitavam-se continuamente. Rosa de Sharon pôs-se de joelhos e penetrou de rastos no matagal. Os espinhos arranharam-lhe as faces e desgrenharam-lhe os cabelos mas ela não se importou com isso. Só parou quando se sentiu inteiramente envolvida pela moita. Então, deitou-se de costas, sentindo no ventre o peso do filho.

     A mãe remexeu-se no interior do vagão escuro, arremessou para trás o cobertor e levantou-se. A luz acinzentada das estrelas insinuava-se ligeiramente pela porta aberta do veículo. A mãe foi até à porta e pôs-se a olhar para fora. Para as bandas de leste, as estrelas iam perdendo a cor. O vento soprava brandamente nos salgueiros, e do riacho desprendia-se o brando murmúrio da água corrente. A maior parte do pessoal do acampamento dormia ainda, mas, diante de uma tenda ardia uma fogueirita, a que se aqueciam de pé várias criaturas. A mãe distinguia-as à luz vacilante das chamas, viu como tinham o rosto voltado para o lume e como esfregavam as mãos e se voltavam de costas cruzando as mãos atrás. Ficou-se a.. olhá-las durante um bom bocado, com as mãos unidas à frente. O vento desigual passou, aos repelões, e o ar fez-se frio e penetrante. A mãe esfregou as mãos a tremer. Voltou para dentro e pôs-se a procurar os fósforos, ao lado da lanterna. O tubo de vidro rangeu. Acendeu a torcida, viu a luz tornar-se azul por uns momentos, para se tornar depois amarela, num delicado anel de luz. Colocou a lanterna em cima do fogão, e pôs-se a quebrar uns ramos secos que meteu no fogão. Daí a pouco, o lume crepitava, subindo pela chaminé. Rosa de Sharon rolou pesadamente no colchão, acabando por se sentar.

     - Vou-me levantar - disse ela.

     - Porque não esperas um bocado até que o dia aqueça mais? - perguntou a mãe.

     - Não. Quero levantar-me já. A mãe encheu a cafeteira com água do balde, colocou-a no fogão, bem como à frigideira, cheia de banha, para as fritadas de milho.

     - Que bicho te mordeu? - perguntou baixinho.

     - Vou sair - disse Rosa de Sharon.

     - Para onde?

     - Vou apanhar algodão.

     - Tu não podes - atalhou a mãe. - Já estás muito pesada.

     - Não estou, não. E quero ir.

     A mãe mediu o café e deitou-o na água.

     - Rosasharn, tu ontem não quiseste estar aqui connosco a comer os sonhos. - A rapariga não respondeu. - Foi por causa do Al e da Aggie? - Desta vez, a mãe lançou-lhe um olhar interrogador.- Ora, tu não tens necessidade de ir trabalhar.

     - Mas eu quero ir.

     - Pois seja, mas vê lá, não abuses das tuas forças. Pai, levanta-te, que já são horas.

     O pai piscou os olhos e abriu a boca.

     - Não dormi como deve ser - resmungou ele. - Já deviam ser quase onze horas quando a gente se deitou.

     - Vamos, levantem-se todos e vão-se lavar.

     Os habitantes do vagão regressavam lentamente à vida, desembaraçavam-se dos cobertores e iam-se vestindo. A mãe ia cortando fatias de carne de porco salgada para dentro de outra frigideira.

     - Levantem-se e vão lavar-se - ordenou.

     Uma luz surgiu na outra extremidade do vagão. E, a seguir, ouviu-se o ruído de partir lenha, que vinha do canto dos Wainwright.

     - Senhora Joad! - gritaram de lá. - Estamo-nos a arranjar. Daqui a pouco estamos prontos.

     Al pôs-se a refilar:

     - Para que diabo é que a gente há-de levantar-se tão cedo?!

     - São só vinte acres de algodão - explicou a mãe. - A gente tem de chegar cedo, porque o algodão é pouco e apanham-no todo antes de nós chegarmos.

     A mãe fez com que eles se vestissem e comessem depressa a refeição.

     - Vá; bebam o café - disse. - Temos de abalar.

     - Mas a gente, às escuras, não pode colher algodão, mãe.

     - É preciso chegarmos lá ao amanhecer.

     - É capaz de estar tudo húmido ainda...

     - Não choveu para isso. Vá, toca a beber o café. Al, assim que estiveres pronto, põe o motor a trabalhar.

     - Já estão a aprontar-se, senhora Wainwright? - gritou a mãe.

     - Estamos a comer. É um instantinho.

     Cá fora, o acampamento enchia-se de vida. Havia fogueiras a arder em frente das tendas. O fumo espirrava das chaminés.

     Al virou a caneca, e ficou com a borra de café na boca. Desceu a prancha, cuspindo.

     - Nós já estamos prontos, senhora Wainwright - gritou a mãe. Virou-se para Rosa de Sharon, e disse-lhe: - Tu ficas.

     A rapariga contraiu os maxilares:

     - Eu também quero ir - disse. - Mãe, eu tenho de ir.

     - Mas tu não tens saco, nem podes acarretar o algodão.

     - Deito o que apanhar para o seu saco.

     - Acho melhor tu ficares aqui.

     - Mas eu quero ir.

     A mãe suspirou.

     - Vou ter-te debaixo de olho. Quem me dera que houvesse aqui um médico!

     Rosa de Sharon pôs-se a caminhar nervosamente para o camião. Envergou um casaco ligeiro, mas logo o tirou de novo.

     - Leva um cobertor - alvitrou a mãe. - Assim, se quiseres descansar, ficas quentinha. Ouviram o caminhão roncar atrás do vagão.

     - Vamos ser os primeiros a chegar, com certeza - declarou a mãe triunfantemente. - Bem, peguem nos sacos. Ruthie, não te esqueças dos saquinhos que eu fiz para vocês, ouviste?

     Os Joads e os Wainwright subiram para o camião envolto em sombra. Começava a romper o dia, um dia baço, que tardava em chegar.

     - Vira à esquerda! - disse a mãe a Al. - Deve haver um sinal na estrada, a indicar o caminho.

     Foram rodando pelo caminho mergulhado em trevas. Outros veículos seguiam-nos e, atrás deles, no acampamento, mais outros, apinhados de gente começavam a movimentar-se. E todos os veículos tomavam o mesmo caminho e dobravam à esquerda.

     Havia um pedaço de cartão atado a uma caixa de correio do lado direito da estrada. Nele se via, escrito a lápis azul: “Precisa-se de gente para a colheita do algodão”. Al manobrou de, forma a entrar no pátio do quinteiro, que já estava cheio de carros. Uma lâmpada eléctrica, a um canto de um barracão pintado de branco, iluminava o grupo de homens e de mulheres à espera, junto da balança, com os sacos enrolados debaixo dos braços. Algumas mulheres levavam os sacos pelos ombros e cruzados à frente.

     - Não chegámos tão cedo como pensávamos - comentou Al.

     Fez o camião rodar até uma cerca e aí estacionou. As famílias desceram e foram juntar-se ao grupo. Iam surgindo mais carros na estrada e mais famílias, que se iam reunir ao grupo. Debaixo da lâmpada, ao canto do barracão, o dono da fazenda ia-as inscrevendo numa lista:

     - Hawley - dizia - H-a-w-l-e-y? Quantos são?

     - Quatro. Will...

     - Will.

     - Benton.

     - Benton.

     - Amélia.

     - Amélia.

     - Claire.

     - Claire. Quem está a seguir? Carpenter? Quantos?

     - Seis.

     Escreveu os nomes de todos na lista, deixando ao lado um espaço em branco para os pesos.

     - Vocês têm sacos, todos? Eu tenho aqui alguns. Custa um dólar cada um.

     E os veículos iam chegando à fazenda. O proprietário aconchegou ao pescoço a jaqueta de couro, forrada de pele de carneiro. Lançou um olhar apreensivo às filas de veículos.

     - Os vinte acres, com esta gente toda, vão num instante - disse.

     As crianças treparam para o grande reboque, destinado ao transporte do algodão e enfiaram os dedos dos pés na rede de arame dos bordos laterais.

     - Saiam daí! - gritou o proprietário - desçam daí, andem! Vocês dão-me cabo do arame. - E as crianças desceram, silenciosas e embaraçadas. A alvorada surgia, cinzenta. - Vou fazer um desconto no peso, por causa do orvalho. Vamos a ver se acabamos com isto ao nascer do Sol - disse o dono. - Bem, podem começar, querendo. Já há claridade suficiente.

     Os trabalhadores correram ao algodoal e escolheram as respectivas fileiras. Ataram os sacos à cintura e bateram com as mãos umas nas outras para as aquecer, pois que os dedos, inteiriçados, tinham de se tornar ágeis. A alvorada tingia as montanhas a leste e as colunas dos trabalhadores puseram-se em movimento. E chegavam mais veículos, paravam no terreiro da fazenda; quando este se encheu, os carros começaram a parar à beira do caminho fronteiro de ambos os lados. O vento varria a plantação.

     - Não sei como vocês todos souberam disto - disse o proprietário. - Espalhou-se que nem um raio. Até ao meio-dia os vinte acres estão Prontos. Qual é o seu nome? Hume? Quantos são?

     As colunas dos trabalhadores moviam-se através do campo, e o vento do oeste, agudo e permanente, fustigava-lhes as vestes. Os dedos voavam para as cápsulas bojudas e para a boca dos grandes sacos que os trabalhadores iam arrastando atrás de si, e que, a pouco e pouco, se iam tornando pesados.

     O pai conversava com o homem que percorria a fileira dos algodoeiros à sua direita.

     - Lá na minha terra, um vento assim era capaz de dar chuva. Mas parece que, para chuva, é um bocado frio. Há quanto tempo está o senhor aqui?

     Enquanto falava, não tirava os olhos do trabalho. O outro também não erguia os olhos.

     - Estou aqui há quase um ano.

     - Acha que vai chover?

     - Não sei e não é para admirar. Esta gente, que tem vivido aqui toda a sua vida, também, às vezes, não sabe. Se eles tiverem medo que a chuva lhes caia em cima das colheitas, então chove com certeza. É o que diz o povo daqui.

     O pai lançou um rápido olhar às montanhas do oeste. Grandes nuvens cor de cinza singravam pelo céu, acima dos cumes, impelidas por um vento veloz.

     - Parece-me que trazem chuva - tornou o pai.

     O outro também arriscou uma olhadela.

     - Sei lá! - murmurou. E os trabalhadores de todas as fileiras olhavam para trás, a fim de verem as nuvens. E depois, tornavam a debruçar-se sobre a tarefa, e as mãos voavam para os flocos de algodão. A colheita transformou-se numa corrida, uma corrida contra a chuva e contra os outros trabalhadores, contra o tempo e o peso do algodão... era só aquele algodão que havia para colher, era só aquele dinheiro que havia a ganhar. Chegavam aos limites do algodoal e corriam à cata de novas fileiras. Agora, trabalhavam contra o vento e podiam ver as nuvens altas, cor de cinza, nadando rápidas no céu, em direcção ao sol nascente. E mais veículos chegavam ainda, estacionando à beira do caminho e novos trabalhadores se registavam. As colunas de gente moviam-se frenéticas na plantação, fazendo entrega do que haviam colhido ao chegar ao fim de cada fileira, tomando nota do peso entregue e correndo para uma nova fileira.

     Às onze horas, a colheita estava pronta. Terminara o trabalho. Os reboques de bordos de arame foram engatados aos caminhões, igualmente munidos de paredes de rede de arame, os quais rodavam, velozes, caminho fora, rumo à máquina de descaroçar.

     O algodão fazia saliências na rede de arame. Nuvenzinhas de algodão voavam pelo ar; flocos de algodão prendiam-se à verdura que orlava o caminho. Os trabalhadores, - desconsolados, regressavam ao barracão e formaram bicha para receber o dinheiro.

     - Hume, James, vinte e dois cents; Ralph, trinta cents, Joad, Thomas, noventa cents; Winfield, quinze cents. - O dinheiro via-se na mesa, em rolos de prata, níquel e cobre. E cada um dos trabalhadores consultava os seus apontamentos, antes de receber o dinheiro. - Wainwright, Agnes, trinta e quatro cents; Tobin, sessenta e três cents.

     A bicha ia-se desenrolando ao lado da mesa, lentamente. As famílias voltavam silenciosas aos respectivos veículos. E, vagarosamente, iam dispersando.

     Os Joads e os Wainwrights aguardaram, dentro do camião, que o movimento abrandasse um pouco mais. E, enquanto esperavam, começaram a cair as primeiras gotas de chuva. Al estendeu a mão, a fim de a sentir. Rosa de Sharon estava sentada ao centro e a mãe do lado de fora. Os olhos da rapariga estavam de novo sem brilho.

     - Tu não devias ter vindo - disse a mãe.- O máximo que colheste foram umas dez ou quinze libras.

     Rosa de Sharon baixou os olhos para o ventre bojudo e entumecido sem responder. De repente, estremeceu, erguendo a cabeça. A mãe observara o gesto. Desenrolou o seu saco e cobriu com ele as espáduas de Rosa de Sharon, puxando-a para si.

     Finalmente o caminho ficou desimpedido. Al pôs o motor a funcionar, e foi rodando pela estrada. Grandes mas raros pingos de chuvas caíam com força, esmagando-se no solo, e, à medida que o camião avançava, os pingos tornavam-se menores e menos espaçados. A chuva martelava a cabina tão ruidosamente que se sobrepunha aos roncos do velho motor. Na carrosserie, os Joads e os Wainwrights cobriam a cabeça e os ombros com os sacos de colher o algodão.

     Rosa de Sharon, aconchegada à mãe, tremia violentamente.

     - Mais depressa, Al - pediu a mãe. - A Rosasharn apanhou um resfriado. Tem de dar um escaldão aos pés.

     Al acelerou a marcha do camião e não tardaram a chegar ao acampamento, parando próximo dos vagões pintados de ,vermelho. A mãe, mesmo antes de terem chegado, dava as suas ordens:

     - Al - proferiu ela - tu, o John e o pai vão aos salgueiros e apanhem toda a lenha que puderem. A gente precisa de aquecer bem o fogão.

     - O pior é se o tecto tem goteiras.

     - Parece que não. Está-se bem lá dentro, mas precisamos de bastante lenha para aquecer o ambiente. Podem levar também a Ruthie e o Winfield. Eles que apanhem os galhos pequenos. Esta rapariga não está nada bem.

     A mãe desceu do camião. Rosa de Sharon fez um esforço para seguir, mas os joelhos vergaram-se-lhe e teve de se sentar pesadamente no estribo.

     A gorda senhora Wainwright notou esse gesto.

     - O que é que tem? Chegou a sua hora?

     - Não me parece - respondeu a mãe. - Apanhou um resfriado. Pode ser uma constipação. Se me quisesse ajudar, era favor.

     As duas mulheres sustiveram Rosa de Sharon. Depois de ter dado alguns passos, voltaram-lhe as forças e as pernas aguentaram-lhe outra vez o peso do corpo.

     - Já estou boa, mãe - disse. - Foi uma coisa passageira.

     As duas mulheres seguravam-na pelos cotovelos.

     - Tens de dar um escaldão aos pés - sentenciou a mãe, com ar de entendida.

     Ajudaram-na a subir pela prancha e a entrar no vagão.

     - A senhora deve dar-lhe uma massagem - disse a senhora Wainwright. - Enquanto a senhora lhe dá a massagem, eu acendo o, lume.

     Pegou nas últimas achas de lenha; pô-las no fogão e acendeu o lume. Chovia a cântaros nessa altura e a chuva caía com estrondo no tecto do vagão.

     A mãe ergueu os olhos.

     - Graças a Deus que o tecto veda bem! Numa tenda, a água entra sempre, por melhor que ela seja. Faça-me o favor, senhora Wainwright, ponha água ao lume.

     Rosa de Sharon deitara-se no colchão e ali jazia imóvel. Deixou que lhe tirassem os sapatos e lhe esfregassem os pés. A senhora Wainwright debruçou-se sobre ela.

     - Sente dores?

     - Não, mas sinto-me muito mal.

     - Tenho aqui uns comprimidos e uns sais - disse a senhora Wainwright. - Se quiserem, estão às suas ordens. Tenho muito prazer em oferecer-lhos.

     Um novo calafrio sacudiu violentamente o corpo da rapariga.

     - Tape-me, mãe, que estou com muito frio.

     A mãe foi buscar todos os cobertores e estendeu-os em cima dela. A chuva troava de encontro ao vagão.

     Os que tinham ido buscar a lenha voltavam naquele momento. Traziam nos braços grandes pilhas de galhos secos e de ramos. Vinham de chapéus e de calças a escorrer.

     - Livra! Ainda nos molhámos bem - disse o pai. - Foi só um instante, e ficámos molhados até aos ossos.

     - É melhor vocês saírem outra vez e trazerem mais lenha - disse a mãe. - Esta gasta-se num minuto. E daqui a pouco é noite.

     Ruthie e Winfield chegaram pingando e juntaram o produto do seu trabalho à pilha arrumada pelos outros. Quiseram tornar a sair, mas a mãe proibiu-os disso.

     - Vocês ficam. Vão ali para o pé do lume, para secarem a roupa, andem!

     Lá fora, a chuva prateava a tarde e o caminho cintilava sob a água. A cada hora que passava, os pés de algodão parecia enegrecerem e enrugarem-se cada vez mais. O pai, o Al e o tio John andaram para trás e para diante no matagal. Acabaram por trazer boa quantidade de lenha, Empilharam-na perto da larga porta do vagão, e só quando a pilha quase alcançava o tecto é que pararam com a tarefa e se foram secar ao fogão. Fios de água escorriam-lhes, à maneira de regato, da cabeça para os ombros, A bainha dos casacos gotejava incessantemente e a água dentro do calçado fazia um chape-chape ruidoso.

     - Chega, agora chega - disse a mãe. - Vão mudar de roupa. Fiz-vos um café muito quentinho. Vistam uns fatos-macacos secos. Não fiquem para aí parados.

     A noite chegou cedo. Nos vagões, as famílias estavam sentadas, muito unidas, escutando o tamborilar da chuva no tecto.

    

     Sobre as altas montanhas da costa e sobre os vales, as nuvens cinzentas avançavam, vindas do oceano. O vento soprava violenta e silenciosamente, vindo das altas camadas atmosféricas, fustigando os arbustos e uivando nas florestas. As nuvens chegavam, esfarrapadas, em forma de novelos, faixas ou rochedos cor de cinza. Amontoavam-se umas sobre as outras, fixando-se sobre o oeste, a pouca altura... Em dado momento, o vento parou, e as nuvens, profundas e sólidas, ficaram. A chuva começou com aguaceiros tempestuosos; teve intervalos de bátegas e, gradualmente, foi-se transformando numa cortina monótona de pequenas gotas, que caíam regularmente, uma chuva que tornava tudo cinzento. E a luz do dia tomava um aspecto crepuscular. A princípio, a terra, seca, absorvia a água, tornando-se negra. Durante dois dias, a, terra bebeu a chuva; bebeu até estar satisfeita. Depois, formaram-se lamaçais, e as depressões cobriram-se de pequenos lagos. Os lagos lodosos cresciam, e a chuva constante chicoteava a água reluzente. Por fim, também as montanhas se saciaram, e, nas encostas, corriam regatos, caindo em cachoeiras e deslizando ruidosamente pelos vales, através dos desfiladeiros. A chuva continuava sem cessar. Os riachos e os pequenos rios galgavam as margens dos leitos e roíam os salgueiros e as raízes das árvores. Faziam os salgueiros debruçarem-se profundamente sobre a corrente; arrancavam as raízes dos pés de algodão e derrubavam as árvores. A água lodosa remoinhava entre as margens e galgava-as, trepando por elas, até transbordar por fim, enchendo os campos, os pomares e os algodoais onde se erguiam ainda as hastes enegrecidas. Os campos baixos metamorfoseavam-se em lagos amplos e cinzentos, cuja superfície a chuva açoitava. Então, a água inundou as estradas e os carros avançavam devagar, cortando a água e nela deixando esteiras lodosas e borbulhantes. A terra murmurava sob o chicote da chuva e os riachos bramiam com as suas cachoeiras agitadas.

     Quando começaram as primeiras chuvas, os emigrantes comprimiam-se nas tendas, dizendo: “Isto passa depressa” e perguntando: “Quanto tempo irá isto durar?”

     E, quando os lamaçais se formaram, os homens saíram à chuva, armados de pás e construíram pequenos diques em volta das tendas. As vergastadas da chuva açoitavam a lona até a repassarem e formarem pequenos regatos no chão. Então, os pequenos diques vinham abaixo e a chuva entrava; as enxurradas molhavam os colchões e os cobertores. As famílias tinham de se conservar com as roupas molhadas. Punham caixotes no chão e colocavam tábuas em cima deles. E, dia e noite, mantinham-se sentadas nas tábuas.

     Ao lado das tendas estacionavam os calhambeques, e a água corroía os fios da ignição e os radiadores. As pequenas tendas cinzentas elevavam-se no meio de lagos. E, finalmente, todos tiveram de sair de onde estavam.

     Mas os veículos não pegavam porque havia curtos-circuitos nos fios, e, se porventura, os motores quisessem andar, um lodo profundo lhes envolvia as rodas. As pessoas chapinhavam, levando nos braços os cobertores molhados. Andavam, e a água espadanava sob os seus passos. Transportavam as crianças nos braços e o mesmo faziam aos velhos carregados de anos. Se, em qualquer ponto elevado, se erguia um barracão, era um instante enquanto se enchia de gente desesperada, a tremer de frio.

     Algumas famílias dirigiam-se às comissões de socorro, e voltavam tristemente para junto dos seus.

     Há um regulamento, sabem... a gente tem de morar aqui um ano, pelo menos, se quisermos receber o auxílio. Mas disseram que o governo vai auxiliar. Não se sabe quando, mas vai...

     E, gradualmente, surgia um terror mais profundo.

     Não vai haver trabalho nenhum durante três meses.

     As pessoas aglomeravam-se nos barracões. O terror caía sobre elas; os rostos tornavam-se cinzentos de pavor. As crianças choravam com fome, e não havia que comer.

     Então vieram as doenças - a pneumonia, o sarampo, que atacava os olhos e os mastóides.

     E a chuva caía sem cessar e a água espraiava-se pelas estradas, pois os esgotos não conseguiam absorvê-la toda.

     Então, grupos de homens molhados saíam das tendas e dos barracões, homens, cujas roupas eram farrapos encharcados e cujos sapatos se haviam transformado numa papa lodosa. Caminhavam na água, que saltava sob os seus passos e iam às cidades, às vendas das redondezas, às comissões de socorro, a implorar comida, a mendigar, humilhando-se a solicitar auxílio, mentindo e tentando roubar. E, entre os mendigos e os humilhados, uma raiva desesperada começou a tomar forma. Nas pequenas cidades, a compaixão pelos homens encharcados transformou-se em indignação, e a indignação, despertada pela gente faminta, transformou-se em medo. Então, os sheriffs reuniam turmas de polícias, emitiam pedidos urgentes de rifles, de gases lacrimogéneos e de munições. %s homens famintos enchiam as ruazitas para onde davam as traseiras dos estabelecimentos, mendigando pão, mendigando verduras podres e roubando o que podiam.

     Homens desvairados batiam às portas dos médicos, mas os médicos estavam demasiado ocupados para os atender. Os homens, abatidos, deixavam nas vendas das aldeias recados para o médico-legista, para que ele mandas 1se a carreta. O médico-legista, esse, não estava demasiado ocupado para os atender. A carreta atravessava o lodo e retirava os cadáveres.

     E a chuva martelava constantemente, e os rios galgavam os leitos, inundando a região.

     Comprimidos nos barracões, deitados no feno húmido, o medo e a fome provocavam-lhe s a ira, Os rapazes saíam, não para mendigar, mas para roubar, e os homens saíam raivosos com a ideia de roubar.

     Os sheriffs reuniam novos polícias e pediam mais rifles;? e as gentes abastadas, dentro de casas sólidas, sentiam compaixão, a princípio, depois desgosto e finalmente ódio por aquele povo em êxodo...

     No feno molhado, dentro de barracões desmantelados nasciam bebés, bebés de mães 4ue ofegavam com pneumonias. E os velhos contorciam-se aos cantos e assim morriam, sem que o médico-legista conseguisse endireitar-lhes depois os corpos. noite, os homens, furiosos, visitavam audaciosamente os galinheiros e arrebatavam os frangos cacarejantes. Quando alguém disparava, não apressavam o passo; afastavam-se sem pressas; continuavam chapinhando no lodo, e, se eram feridos, deixavam-se cair, exaustos, no lodaçal.

     A chuva parou. Mas a água demorava-se nos tampos, reflectindo o céu cinzento, e a terra toda cochichava com a água que se ia escoando. E os hortiçãs deixaram as granjas, saíram das tendas. Acocoravam-se, ficando a olhar a paisagem inundada, sem uma palavra. Mas, às vezes falavam, em voz muito baixa.

     Não há trabalho até à Primavera. Não há trabalho.

     E, sem trabalho, não há dinheiro, nem comida.

     Um tipo tem uma parelha de cavalos, com eles lavra, cultiva a terra e faz a ceifa. Nunca lhe passaria pela cabeça deixá-los morrer à fome durante h tempo, em que nada têm que fazer.

     É que eles são cavalos e nós somos homens.

     As mulheres observavam os homens, perscrutavam-nos, para ver se, agora, finalmente, eles desanimariam. As mulheres mantinham-se caladas, observando, e, onde se formava um grupo de homens, o medo desaparecia das suas faces, e a raiva tomava o lugar do medo. E as mulheres suspiravam de alívio, pois sabiam que assim tudo caminharia bem. Eles não estavam alquebrados, e não se renderiam, enquant6. o medo ainda fosse capaz de se transformar em ira.

     Minúsculos rebentos de erva brotavam à superfície da terra, e as colinas cobriram-se, em poucos dias, de um tapete verde pálido. Ia começar um novo ano.

    

     No acampamento dos vagões havia grandes lodaçais e a chuva espadanava na lama. Gradualmente, o riacho galgava as margens e espraiava-se no terreno baixo e plano em que se erguiam os vagões.

     No segundo dia de chuva, Al retirou a lona que servia de cortina a separar as duas metades dos vagões e tapou com ela a frente do camião. Depois, voltou e sentou-se no seu colchão. Agora, sem a cortina de lona, as duas famílias que habitavam o vagão, formavam uma só. Os homens sentavam-se uns ao pé dos outros. Sentiam-se deprimidos. A mãe mantinha permanentemente um lume débil no fogão, adicionando-lhe só, de quando em quando, alguns ramos, a fim de poupar a lenha. A chuva martelava o tecto quase plano do vagão.

     Ao terceiro dia, os Wainwrights tornaram-se nervosos.

     - Quem sabe? Talvez seja melhor a gente ir-se embora daqui – propõs a senhora Wainwright.

     E a mãe procurou retê-los:

     - Para onde é que vocês querem ir? Aqui, pelo menos, estamos debaixo de um tecto firme.

     - Não sei, mas tenho um palpite de que seria melhor a gente ir-se embora daqui.

     Discutiam uns com os outros, e a mãe observava Al.

     Ruthie e Winfield distraíam-se a brincar, mas em breve caíram numa inactividade desanimada, e a chuva continuava a martelar no tecto.

     No terceiro dia, o tumultuar do riacho sobrepunha-se ao tamborilar da chuva. O pai e o tio John postaram-se à porta, a olhar o riacho, que engrossava. A água aproximava-se dos dois extremos do acampamento, mas dava uma volta, de maneira que o barranco da estrada formava os limites do acampamento atrás, e o riacho estabelecia-os à frente.

     - Que é que tu achas, John? - perguntou o pai. - A mim parece-me que, se o riacho continuar a subir, acaba por inundar tudo.

     O tio John abriu a boca, esfregando a barbicha eriçada.

     - É muito capaz disso - concordou.

     Rosa de Sharon estava deitada num colchão com uma forte gripe; as faces ardiam-lhe e tinha os olhos brilhantes de febre. A mãe sentou-se ao lado dela e segurava nas mãos uma caneca de leite quente.

     - Toma - disse - bebe isto. - Deitei-lhe um pouco de gordura de presunto, para te dar forças. Bebe, anda.

     Rosa de Sharon. abanou a cabeça ao de leve.

       - Não tenho fome.

     O pai descreveu um arco com o dedo.

     - Se todos nós agarrássemos nas pás e construíssemos um pequeno dique, aposto que poderíamos afastar a água daqui. Bastava elevar deste lado e baixar daquele.

     - Sim - concordou o tio John - pode ser. Mas não sei se o pessoal quererá. Acho que preferem ir-se embora daqui.

     - Mas estes vagões estão secos - insistiu o pai. - E lugar seco como este é que a gente não encontra. Espera um instante. - Apanhou, da pilha de lenha que estava ao pé do fogão, uma vara e desceu, correndo, pela prancha. Chapinhou no lodaçal até ao riacho e cravou a estaca na margem das águas turbulentas. Um momento depois, estava de volta ao vagão. - Santo Deus! - exclamou. - Esta chuva até molha os ossos.

     Os dois homens fixaram os olhos na varita encravada à beira do riacho. Viram como a água ondulava, subindo lentamente ao redor dela pela margem acima. O pai acocorou-se no vão da porta.

     - Está a subir depressa - disse. - É bom ir falar com os outros, a ver se eles querem ajudar a construir um dique. Se não quiserem, que se vão embora.

     O pai lançou um olhar para o lado dos Wainwrights. Al estava com eles, ao lado de Aggie. O pai dirigiu-se ao recinto deles.

     - A. água está a subir - disse. - E se a gente construísse um dique? E muito fácil, se todos ajudarem.

     Wainwright respondeu:

     - A gente estava agora mesmo a falar nisso. Eu acho que nos devemos ir embora daqui.

     - Mas você conhece esta região, não conhece? Sabe que por aqui se não encontra um pedacinho de terra enxuta - disse o pai.

     - Eu sei. Mas, de qualquer maneira...

     - Pai, se eles forem, eu também vou - avisou Al.

     O pai olhou-o assustado.

     - Tu não podes ir, Al. O camião... nenhum de nós sabe guiar.

     - Que me importa? Eu e a Aggie temos de ficar juntos.

     - Esperem lá - disse o pai. - Cheguem aqui. - Wainwright e Al puseram-se de pé e aproximaram-se da porta. - Vêem? - perguntou o pai, apontando com o dedo. - Basta a gente construir um dique dali até ali.

     Olhou para a varita que tinha espetado à beira do riacho. As águas remoinhavam à volta dela, trepando pela margem.

     - Vai ser um trabalhão e é capaz de não servir de nada - opôs Wainwright.

     - O que é que tem? Não temos nada a perder. De qualquer maneira, é melhor que estar sem fazer nada. Não conseguiremos achar um sítio bom como este por aqui. Vamos falar com os outros também. Se todos trabalharem, a coisa faz-se num instante.

     - Se a Aggie se for embora, eu também vou - repetiu Al.

     - Ouve, Al - disse o pai - se o resto do pessoal não quiser ajudar a fazer o dique, a gente tem de se ir embora daqui, de qualquer maneira. Vamos falar com eles.

     Desceram pela prancha, de ombros encolhidos e dirigiram-se, debaixo de chuva, ao vagão vizinho.

     A mãe estava atarefada junto do fogão e, de vez em quando, lançava uma acha à fogueira. Ruthie aproximou-se dela.

     - Tenho fome - choramingou Ruthie.

     - Não tens nada - respondeu a mãe.- Ainda agora comeste papas.

     - Mãe, eu quero outra caixinha daquelas bolachas, Isto aqui é tão aborrecido! A gente não pode brincar nem nada.

     - Tu brincarás, descansa - disse a mãe. - Tem paciência. Depois, já poderás brincar à vontade. Qualquer dia, a gente aluga uma casinha.

     - E podemos ter um cão, não podemos?

     - Sim, podemos ter um cão e um gato também.

     - Um gato amarelo, sim?

     - Escuta, por favor, não me maces. Está caladinha - suplicou a mãe. - A Rosasharn está doente. Deixa-me em paz. Tem juízo, ao menos um bocadinho. Depois te divertirás.

     Ruthie afastou-se, resmungando.

     Do colchão em que Rosa de Sharon estava deitada, veio o som de um grito curto e agudo, bruscamente interrompido. A mãe deu uma reviravolta e correu para o colchão. Rosa de Sharon tinha a respiração suspensa; nos seus olhos pairava uma expressão de terror.

     - Que foi? - perguntou a mãe.

   A rapariga expeliu o ar e tornou a aspirar profundamente. A mãe, num movimento rápido, enfiou a mão sob o cobertor. Depois, ergueu-se.

     - Senhora Wainwright! – chamou. - Ó senhora Wainwright!

     A mulherzinha gorda veio a correr.

     - Que há?

     - Olhe!

     A mãe apontou para o rosto de Rosa de Sharon. A rapariga tinha os dentes cravados no lábios inferior e a fronte húmida de suor. O pavor renascia nos seus olhos.

     - Parece-me que é agora - disse, a mãe. - Mas é muito cedo ainda. Como é isto?

     A rapariga soltou um prolongado suspiro e pareceu aliviada. Desprendeu os dentes do lábio. Cerrou os olhos. A senhora Wainwright voltou-se para a mãe:

     - Sim – disse - é agora. A senhora acha que ainda é cedo para isso?

     - É sim. Talvez a febre adiantasse a coisa.

     - Bem, em todo o caso ela devia estar de pé: Devia andar por aí.

     - Ela não pode - disse a mãe. - Não tem forças.

     - Mas devia fazer por isso. - A senhora Wainwright mostrava-se calma e enérgica. - Já assisti a uma porção de partos. - Vamos, vamos fechar a porta o mais possível, para evitar as correntes de ar.

     As duas mulheres fecharam a pesada porta corrediça do vagão, deixando apenas aberta uma fresta de um pé de largura.

     - Vou buscar a nossa lanterna também - disse a senhora Wainwright. Tinha o rosto vermelho de excitação. - Aggie! - gritou - toma conta das crianças.

     A mãe concordou:

     - Sim, tem razão. Ruthie, Winfield! Vão para junto de Aggie. Vá, depressa!

     - Porquê? - perguntaram.

     - Porque tem de ser. A Rosasharn vai ter um bebé.

     - Eu quero ver, mãe. Deixe-me ver, por favor.

     - Ruthie! Vai, anda depressa!

     Perante o tom daquela voz, qualquer argumento seria inútil. Ruthie e Winfield foram de má vontade para o lado oposto do vagão. A mãe acendeu a lanterna. A senhora Wainwright trouxera a sua lanterna Rochester, colocando-a no soalho, e a larga chama circular iluminava perfeitamente o compartimento.

     Ruthie e Winfield ficaram atrás da pilha da lenha, a espreitar.

     - Ela vai ter um bebé, e a gente vai ver - disse Ruthie, em voz baixa. - Vê se não fazes barulho, senão, a mãe corre connosco daqui. Se ela olhar para cá, baixa a cabeça atrás da lenha, ouviste? Assim, a gente pode ver tudo.

     - Parece-me que poucas crianças terão visto - disse Winfield.

     - Nenhuma criança viu - assegurou Ruthie, cheia de orgulho.

     - Só nós é que vamos ver.

     Ao pé do colchão, à luz brilhante da lanterna, a mãe e a senhora Wainwright conferenciavam. Falavam num tom que cobria o rumor cavo da chuva. A senhora Wainwright tirou do bolso do avental uma faquita de cozinha e meteu-a debaixo do colchão.

     - Pode ser que não sirva de nada - disse, desculpando-se. - A nossa gente faz sempre assim. De qualquer maneira, mal também não faz.

     A mãe teve um gesto de aquiescência.

     - Na minha terra põem uma lâmina de arado. Qualquer coisa afiada serve para cortar as dores do parto. Oxalá não seja um parto difícil.

     - Estás melhor, agora? Rosa de Sharon fez que sim, nervosa.

     - Será agora?

     - Com certeza - disse a mãe. - Tu vais ter um bebé que vai ser uma beleza. Precisas é de ajudar um pouco a gente. Podes levantar-te e caminhar um bocadito?

     - Vou experimentar.

     - Bonita rapariga - disse a senhora Wainwright. - Bonita rapariga, isso é que ela é. Vamos ajudá-la, queridinha. Vamos caminhar ao seu lado.

     Auxiliaram-na a pôr-se de pé e cobriram-lhe os ombros com um cobertor. Depois, a mãe segurou-a por um braço e a senhora Wainwright por outro. Conduziram-na até à pilha de lenha, voltaram-se devagar e regressaram ao colchão, tornando a fazer o mesmo percurso. E a chuva martelava com força o tecto do vagão.

     Ruthie e Winfield olhavam ansiosos a cena.

     - Quando é que ela vai ter o bebé? - perguntou o rapazito.

     - Chiu! Está calado. Senão, não deixam a gente ver.

     Aggie associou-se aos dois, ocultando-se atrás da pilha de lenha. O seu rosto delgado e os seus cabelos dourados brilhavam à luz da lanterna. O nariz parecia muito comprido e afilado na sombra que a cabeça projectava na parede.

     Ruthie cochichou:

     - Tu já viste nascer algum bebé?

     - Ora, se vi! - disse Aggie.

     - Então diz lá quando é que vai ser.

     - Pode demorar muito ainda, muito mesmo.

     - Quanto?

     - Pode ser que seja só amanhã de manhã.

     - Ora bolas! - exclamou Ruthie - então não vale a pena a gente estar já a espreitar. Oh, olha para lá!

     As mulheres tinham interrompido o seu passear. Rosa de Sharon estava toda inteiriçada, gemendo com dores. Deitaram-na; enxugaram-lhe a fronte, enquanto ela gemia e cerrava os punhos. A mãe falava-lhe com brandura:

     - Então! - disse - vais ver que tudo há-de correr bem. Isso mesmo, aperta as mãos uma na outra. E morde a boca. Assim. Isso mesmo, muito bem.

     A dor passou. Deixaram-na descansar um pouco. Depois, tornaram a ajudá-la a levantar-se e as três puseram-se a passear para cá e para lá, entre os acessos periódicos de dor.

     O pai enfiou a cabeça pela fresta da porta. Tinha o chapéu a pingar.

     - Porque fecharam a porta? - perguntou. E então reparou nas mulheres, passeando de um lado para outro.

     - Chegou a hora dela - elucidou a mãe.

     - Então... então, mesmo que quiséssemos, não nos podíamos ir embora daqui?

     - Pois não.

      - Então é preciso fazer o dique?

     - É, sim.

     O pai voltou ao riacho, chapinhando no lodaçal. A vara que ele espetara na margem do rio já tinha mais três polegadas submersas. Uns vinte homens estavam parados à chuva. O pai gritou:

     - A gente tem de construir o dique. A minha filha está com as dores de parto.

     Os homens rodearam-no.

     - Um bebé?

     - Sim. A gente, agora, não pode sair daqui.

     Um homem alto disse:

     - O bebé não é nosso. Não temos nada com isso. Se a gente quiser, vai-se embora mesmo.

     - Você, se quiser, pode ir - disse o Pai. - Quem é que lhe pega? Mesmo a gente só tem oito pás.

     Dirigiu-se a toda a pressa para a parte mais baixa da margem do rio e cravou a sua pá no lodo. Ao retirá-la, produziu-se um som semelhante a um estalo de língua. O pai continuou a escavar, amontoando o lodo na parte mais baixa da margem. A seu lado, mais quatro homens começaram a trabalhar. Empilharam o lodo em formato de barranco, o mais alto possível. Os que não tinham pá, cortavam ramos de salgueiro e entrançavam-nos, fazendo com eles uma espécie de esteira que espetavam no lodo. Apoderou-se dos homens uma fúria de batalha. Quando um parava para descansar, o outro apanhava a pá. Tinham despido os casacos e tirado os chapéus. As camisas e as calças colavam-se-lhes ao corpo e os sapatos haviam-se transformado numa massa informe de lodo. Um grito agudo veio do vagão dos Joads. Os homens interromperam o trabalho, escutando, nervosos, para depois tornarem a mergulhar no trabalho. E o barranco foi crescendo, até se ligar ao barranco da estrada, que ficava na outra extremidade. Os homens estavam cansados, e as pás, agora, moviam-se mais vagarosamente. O riacho ia subindo com lentidão e já inundava o lugar onde tinham começado a amontoar a terra.

     O pai deu uma risada triunfal.

     - Se a gente não tivesse começado a trabalhar, a água já tinha subido até nós. - gritou.

     O riacho foi galgando lenta, mas firmemente, as bordas do dique e atirou-se à esteira de salgueiro.

     - Mais alto! - gritou o pai. - A gente tem de fazer isto mais alto!

     Chegou a noite e o trabalho ainda continuava. Os homens, agora, sentiam-se exaustos. Os seus rostos, de traços petrificados, pareciam mortos. Vibravam golpes automaticamente na terra, como máquinas. Ao escurecer, as mulheres puseram lanternas à entrada dos vagões e prepararam café. Umas após outras foram ao vagão dos Joads, entrando pela estreita fresta da porta.

     Os acessos de dor eram 3 agora, mais frequentes; surgiam de vinte em vinte minutos. E Rosa de Sharon perdera, por completo, o domínio sobre si. As dores fortes faziam-na gritar ferozmente. As vizinhas olhavam-na; faziam-lhe festas e voltavam aos seus vagões.

     A mãe ateou o lume. Todas as panelas, todo o vasilhame estavam cheios de água, a aquecer. De vez em quando, o pai dava uma olhadela pela fresta do vagão.

     - Vai tudo bem? - perguntava.

     - Sim, acho que sim - dizia a mãe, tranquilizando-o.

     Alguém trouxera uma lanterna eléctrica ao anoitecer. O tio John brandia a pá sem cessar, atirando camadas de lodo para cima do barranco.

     - Devagar, devagar. Assim, matas-te - disse o pai.

     - Que me importa! Não aguento aqueles gritos. E como... como naquele dia...

     - Eu sei - disse o pai - mas é melhor não te afligires.

     O tio John falou precipitadamente.

     - A minha vontade era fugir daqui. Santo Deus! Se não me distrair a trabalhar, tenho de fugir, isso é que tenho!

     O pai desviou o olhar.

    - Vamos ver a altura da água - disse.

     O homem da lanterna eléctrica projectou a luz sobre a varita marcadora de nível. A chuva dividia a luz em fios prateados.

     - Está a subir.

     - Mas, agora, sobe mais devagar - disse o pai. - Vai custar a chegar até acima.

     - Sim, mas que está a subir é uma verdade.

     As mulheres encheram as canecas de café e puseram-nas às portas dos vagões. E quanto mais a noite avançava, mais lentamente os homens trabalhavam, erguendo os pés pesados como se fossem animais de carga. Mais e mais lodo para cima do barranco. E a chuva caindo sem cessar. Quando a luz da lanterna incidia sobre os rostos dos homens, viam-se-lhes os olhos fixos e os músculos salientes.

     Por muito tempo, os gritos continuaram no vagão dos Joads. Por fim, deixaram de se ouvir.

     - Se o bebé tivesse nascido, a mãe chamava-me - disse o pai. - E continuou a trabalhar sombriamente.

     O riacho lançava-se contra o dique em turbilhão. Em dado momento, ouviu-se o som de qualquer coisa a estalar. A luz da lanterna mostrou um choupo enorme, a cair. Os homens interromperam o trabalho para olhar. Os ramos da árvore mergulharam na água e foram arrastados, enquanto o riacho continuava a escavar-lhe as raízes menores. Pouco a pouco, a corrente arrancou a árvore da terra e começou a levá-la rio abaixo. Os homens olhavam a cena boquiabertos. Lentamente, a árvore ia-se deslocando vagarosamente. Então, um dos seus ramos encontrou um obstáculo, a que se agarrou firmemente. E, devagar, as raízes giraram e emaranharam-se no dique em construção. A água investia com fúria por detrás. A árvore deslocou-se e rebentou o dique. Um fio de água insinuou-se pela brecha dentro. O pai correu para lá, a fim de a tapar com lodo. A água fazia pressão contra a árvore. E, de repente, o dique desabou. A água espraiou-se, lavando os tornozelos do homens, subindo-lhes até aos joelhos, Os homens puseram-se em fuga, abandonando o trabalho, e a corrente inundou sem custo o terreno plano por baixo dos vagões e dos automóveis.

     O tio John viu a água invadir tudo aquilo, apesar da escuridão. E, subitamente, cedeu ao peso do corpo; os joelhos vergaram-se-lhe e as vagas da corrente vieram açoitar-lhe o peito.

     O pai viu-o cair.

     - Que foi? – inquiriu, ajudando-o a pôr-se de pé. - Estás doente? Sobe para o vagão, que está alto.

     O tio John procurou reunir forças.

     - Não sei – disse, com ar de quem se desculpa. – As pernas foram-se abaixo. Não posso mais.

     O pai susteve-o, conduzindo-o ao vagão.

     Quando o dique rebentou, Al voltou-lhe as costas e afastou-se a correr. Erguia os pés com dificuldade. A água chegava-lhe já às barrigas das pernas quando alcançou o camião. Retirou a lona que cobria o radiador e saltou para a cabine. Puxou o botão de arranque. O motor rodou, mas não pegou. Tornou a accionar o arranque. A bateria ia-se abaixo e o motor, molhado, girava cada vez mais lentamente, sempre sem pegar. Cada vez esmorecia mais. Al experimentou a pré-ignição. Depois, agarrou na manivela, que estava debaixo do assento e saltou do camião. A água já ultrapassava a altura do estribo. Al correu, a ver a frente do veículo. O carter já estava debaixo de água. Ajustou com fúria a manivela e começou a manobrá-la. E a sua mão crispada fazia espadanar a água, a qual deslizava vagarosamente a cada volta que dava. Por fim, Al desistiu. O motor estava cheio de água, a bateria, encharcada. Num ponto um pouco mais alto do terreno, outros punham os motores de dois carros a funcionar. Os faróis brilhavam. Os carros arrastavam-se pelo lodaçal, e as rodas afundavam-se cada vez mais, até que, finalmente, os que guiavam desligaram os motores e quedaram-se imóveis, a olhar as luzes dos faróis. E a chuva chicoteava os veículos, transformando as faixas brancas de luz em fios prateados, quase brancos. Al deu vagarosamente a volta ao camião, meteu a mão na cabine e desligou o motor.

     Quando o pai chegou à prancha do vagão dos Joads, uma parte deste já se encontrava envolvida pelas águas. O pai cravou-a com mais força na terra enlameada.

     - És capaz de subir sozinho, John?

     - Sou, sim. Passa lá.

     O pai subiu pela prancha, cautelosamente e meteu-se pela estreita fenda da porta. A luz das lanternas enfraquecera. A mãe estava sentada no colchão, ao lado de Rosa de Sharon, abanando o rosto calmo da rapariga com um pedaço de cartão. A senhora Wainwright colocava galhos secos no fogão, e uma fumarada húmida desprendia-se das tampas, enchendo o vagão de cheiro a pano queimado. A mãe ergueu os olhos quando o pai entrou, mas logo tornou a baixá-los.

     - Como... como vai ela? - perguntou o pai.

     A mãe não tornou a levantar os olhos.

     - Acho que vai bem. Está a dormir.

     O ar era fétido e pesado, trescalando a parto. O tio John também entrou cambaleando e foi encostar-se a um lado do vagão. A senhora Wainwright deixou a sua tarefa e foi para junto do pai. Puxou-o pelo cotovelo para um canto. Pegou numa lanterna e iluminou um caixote de maçãs, onde, sobre um papel de jornal, jazia uma múmiazinha, toda enrugada e de cor azul.

     - Nem chegou a respirar - disse a senhora Wainwright com brandura. - Nasceu morto.

     O tio John voltou-se e, cansado, arrastou-se para o canto obscurecido do vagão. A chuva cantava suavemente no tecto, tão suavemente que deixava ouvir, na escuridão, o arfar de fadiga do tio John.

     O pai ergueu o olhar para a senhora Wainwright. Tirou-lhe a lanterna e pô-la no chão. Ruthie e Winfield dormiam nos seus colchões, cobrindo os olhos com os braços, para os proteger da luz.

     O pai caminhou lentamente até ao colchão de Rosa de Sharon. Tentou acocorar-se, mas as pernas, de cansadas, recusaram-se-lhe. Pôs-se de joelhos. A mãe continuava a abanar o pedaço de cartão. Olhou o pai por um instante, com os olhos esgazeados e fixos de um sonâmbulo.

     - A gente fez o que pôde - disse o pai.

     - Eu sei.

     - Trabalhámos toda a noite. Mas caiu uma árvore e arrastou o dique.

     - Eu sei.

     - Ouves a água aqui por baixo, não ouves?

     - Ouço, sim.

     - Achas que ela vai ficar boa?

     - Não sei.

     - Mas... sim... o que é que a gente podia ter feito?

     Os lábios da mãe estavam brancos, de tão comprimidos.

     - Nada. Só se podia fazer uma coisa... e essa fez-se.

     - Trabalhámos bastante, até que caiu aquela árvore... Parece que chove menos, agora.

     A mãe olhou para o tecto e depois novamente para baixo. O pai continuou, sentindo imperiosa necessidade de falar:

     - Não sei até onde é que a água irá subir; é capaz de inundar o vagão.

     - Eu sei.

     - Tu sabes tudo.

     Ela permaneceu em silêncio, e o pedaço de cartão continuava para cá e para lá .

     - Não nos esquecemos de nada? Fizemos, com certeza, tudo o que era possível? - inquiriu o pai.

     A mãe lançou-lhe um olhar estranho. Os seus lábios exangues esboçaram um sorriso de sonhadora compaixão.

     - Não te atormentes. Sossega. Tudo se há-de compor. As coisas estão a modificar-se... em toda a parte.

     - Mas se a água... se a gente tiver de sair daqui?

     - Quando for a altura de partir, partiremos. Faremos o que for necessário. Mas agora cala-te. Podes acordá-la.

     A senhora Wainwright cortou lenha e pô-la no fogão húmido, e fumegante.

     Do lado de fora, vinha uma voz furiosa:

     - Abram a porta, que quero ter uma conversa com esse filho da mãe.

     E, depois, soou a voz de Al, mesmo ao pé da porta, do lado de fora:

     - Que é que quer?

     - Quero entrar aí e dizer umas coisas a esse canalha do Joad.

     - Não, senhor, você não entra coisa nenhuma. Que foi que houve?

     - Se não fosse essa ideia parva de construir um dique, a gente, a esta hora, já podia estar longe. Agora, o nosso carro está todo estragado.

     - E o nosso? Você julga que nós já vamos pela estrada fora?

     - Não quero conversas consigo. Quero entrar.

     A voz de Al, soou, fria:

     - Para entrar, tem primeiro de jogar à pancada comigo.

     O pai ergueu-se lentamente, e foi à porta.

     - Calma, Al! Já aí vou! Vamos, vamos... - Desceu pela prancha escorregadia. A mãe ouviu-o dizer:- Há gente doente lá dentro. Vamos conversar mais para longe.

     A chuva, agora, batia mais fracamente no tecto do vagão, e um pé de vento fê-la correr em forma de rajada. A senhora Wainwright deixou o fogão, para ir ver Rosa de Sharon.

     - A madrugada não tarda aí, senhora Joad. Porque se não deita um bocadinho? Eu fico aqui sentada, a tomar conta dela.

     - Não - disse a mãe - não estou cansada.

     - Está-se mesmo a meter pelos olhos dentro que é verdade - ironizou a senhora Wainwright. - Vamos, deite-se um bocadinho.

     A mãe cortava lentamente o ar com o pedaço de cartão.

     - A senhora foi muito boa - disse. - Muito obrigada por tudo.

     A mulherzinha obesa sorriu.

     - Não tem de quê. Estamos todos no mesmo vagão. Se fosse alguém da minha família que passasse mal, a senhora também nos ia ajudar.

     - Sim - disse a mãe - era o que eu faria.

     - A senhora ou outra qualquer.

     - Ou outra qualquer, isso mesmo. Antigamente, a família estava em primeiro lugar. Agora, não é assim. Quanto mais mal estamos, mais a gente tem que fazer.

     - Foi impossível salvar a criança.

     - Eu sei - confirmou a mãe.

     Ruthie soltou um profundo suspiro e retirou o braço que lhe tapava os olhos. Por um instante, mostrou-se ofuscada pela luz da lamparina. Depois, virou a cabeça e encarou a mãe.

     - Já nasceu? - perguntou. - O bebé já veio?

     A senhora Wainwright pegou num saco e estendeu-o por cima do caixote de maçãs encostado ao canto.

     - Onde está o bebé? - tornou a perguntar Ruthie.

     A mãe passou a língua pelos lábios.

     - Não veio nenhum bebé. Nem estava para vir. A gente enganou-se.

     - Ora bolas! - disse Ruthie, bocejando. - E eu, que tanto queria um bebé!

     A senhora Wainwright sentou-se ao lado da mãe; tirou-lhe da mão o pedaço de cartão e continuou a tarefa de abanar o rosto da parturiente. A mãe cruzou as mãos sobre o colo e os seus olhos fatigados não largavam Rosa de Sharon, que dormia, esgotada.

     - Vamos - disse a senhora Wainwright - deite-se um bocadinho. A senhora pode deitar-se ao pé dela. Basta ela respirar, com um pouco de força, logo a senhora acorda.

     - Está bem; vou-me deitar.

     A mãe estendeu-se sobre o colchão, ao lado da filha, que continuava a dormir. E a senhora Wainwright sentou-se no chão, vigilante.

     O pai, Al e o tio John tinham-se sentado no vão da porta, e observavam a alvorada cor de aço. A chuva parara, mas o céu estava completamente coalhado de pesadas nuvens. A luz ia-se reflectindo na água, à medida que avançava. Os homens viam a corrente do riacho, muito veloz, arrastando ramos negros de árvores, caixotes e tábuas. A água formava remoinhos no terreno que os vagões ocupavam. Do dique, nada mais restava. No terreno plano deixava de haver corrente. As margens do riacho estavam marcadas com tiras de espuma amarela. O pai debruçou-se e colocou uma varita sobre a prancha, logo acima da superfície da enchente. Os três homens viram a água subir, levantá-la suavemente e levá-la consigo. O pai colocou outra vara uma polegada acima do nível da água, sobre a prancha e ficou em observação.

     - Acha que a água entrará no vagão? - perguntou Al.

     - Não faço ideia. Ainda vem lá água como o diabo, das montanhas. Pode ser também que venha mais chuva.

     - Estive a pensar nisto tudo. Se a água entrar, não deixa nada enxuto - disse Al.

     - Com certeza.

     - A mim parece-me que, no vagão, não subirá acima de três ou quatro polegadas. Primeiro, inundará a estrada, espalhando-se por lá.

     - Como é que tu sabes isso? - perguntou o pai.

     - Passei uma vista de olhos ali, atrás do vagão. - Fez um gesto com a mão, indicando a altura a que achava que a água iria subir. - Só sobe até aqui, mais ou menos.

     - Muito bem - disse o pai.- Mas que é que tem isso? Nessa altura, já aqui não estaremos.

     - Estaremos, sim. Não poderemos sair daqui. O camião está aqui. Só o poderei arranjar depois da cheia diminuir e vou levar bem uma semana a arranjá-lo.

     - Sim?... Mas, então, que é que tu achas que devemos fazer?

     - Acho que a gente podia arrancar as tábuas de lado do camião e fazer um andaime, uma plataforma, ou qualquer coisa assim, alta, para pormos as coisas ali e ficarmos também lá quando a água subir.

     - E, como é que se vai cozinhar e comer?

     - Bem, pelo menos, as coisas não se molham.

     A claridade aumentava a pouco e pouco. Uma claridade cinzenta, metálica. A segunda varita colocada sobre a prancha já fora arrastada pela água. O pai colocou uma terceira um pouco mais alta.

     - Está a subir bem, não há dúvida - disse. - Acho melhor a gente começar já a fazer essa tal plataforma ou coisa que o valha

     A mãe revolvia-se incessantemente no sono. Arregalou os olhos e gritou, com voz aguda, em tom de advertência:

     - Tom, ó Tom... Tom!

     A senhora Wainwright tentou acalmá-la brandamente. Os olhos da mãe tornaram a cerrar-se, mas ela ainda se revolvia incessantemente. A senhora Wainwright ergueu-se e caminhou para a porta.

     - Eia! - disse baixinho - vai demorar muito tempo até a gente poder sair daqui. - Apontou para o canto onde se encontrava o caixote de maçãs. - Isto não faz aqui nada, a não ser tristeza e desgosto. Algum de vocês não poderia levá-lo e enterrá-lo lá fora?

     Os homens permaneceram em silêncio. O pai disse, por fim:

     - A senhora tem razão. Isso só dá desgosto. Mas enterrar é contra a lei.

     - Ora, há uma porção de coisas contra a lei e que a gente tem de fazer quando não há outro remédio!,

     - Lá isso é verdade.

     - A gente tem de arrancar as tábuas do camião antes que a água suba demasiado - disse Al.

     O pai voltou-se para o tio John:

     - És capaz de o enterrar, enquanto eu e o Al vamos arranjar a madeira?

     O tio John respondeu com ar sombrio:

     - Porque hei-de ser justamente eu que tenho de fazer isso? Porque não há-de ser um de vocês? Palavra que me custa muito isso. - E, depois de curta pausa: - Está bem, vou. Claro que vou. Deixem cá ver isso. - Ergueu a voz: - Vá! Deixem cá ver isso!

     - Cuidado, não as acorde! - pediu a senhora Wainwright. Tapou o caixote pudidamente com o saco.

     - Tens aí uma pá, mesmo atrás de ti - disse o pai.

     O tio John agarrou a pá com uma das mãos. Saiu, metendo pela água, que corria vagarosa e lhe chegou quase à cintura antes que ele tocasse com o pé no fundo. Virou-se e segurou o caixote debaixo do braço.

     A luz pálida do alvorecer, o tio John contornou, chapinhando, a parte traseira do vagão e passou ao lado do carro dos Joads. Galgou? o barranco escorregadio da estrada e caminhou ao longo do terreno do acampamento, até chegar a um sítio, onde a água, agitada, corria junto da estrada bordada de salgueiros. Colocou a pá no chão, e, pondo o caixote à sua frente, atravessou a moita de salgueiros e chegou à margem do riacho caudaloso. Quedou-se algum tempo a olhar as águas redemoinhantes, que deixavam? após si flocos de espuma amarela agarrados aos troncos dos salgueiros. Apertava o caixote contra o peito. Debruçou-se e deixou-o cair no riacho, impelindo-o com a mão. E disse com violência:

     - Vai, vai, rio abaixo e conta ao mundo. Vai descendo, pára na estrada, apodrece e conta ao inundo o que aconteceu. E a única maneira que tens de contar as coisas. Nem sei se tu és menino ou menina, nem quero saber. Vai descendo até à estrada. Talvez então o mundo fique sabendo.

     Guiou o caixote com mão leve na corrente, acabando por largá-lo. Afundou-se um pouco na água; atravessou-se de lado, redemoinhou e voltou-se lentamente. O pano que o envolvia soltou-se; ficou a boiar um instante e depois desapareceu, por detrás das moitas e não tardou a desaparecer, rapidamente, arrastado pela força da corrente.

     O tio John apanhou a pá e regressou à pressa ao vagão. Chapinhando no lodaçal, dirigiu-se ao camião, junto do qual o pai e Al estavam atarefados, arrancando-lhe as compridas pranchas laterais. O pai lançou-lhe um olhar:

     - Então, já fizeste tudo?

     - Já, sim.

     - Bom, então ouve - disse o pai. - Se tu quisesses ajudar o Al um bocadinho, eu ia ao armazém comprar alguma coisa para a gente comer.

     - Compre toucinho, pai - pediu Al. - Preciso de comer um bocado de carne.

     - Vou ver - disse o pai.

     Saltou do camião e o tio John tomou o seu lugar. Quando eles metiam as tábuas no vagão, a mãe acordou e sentou-se no colchão.

     - Que é que vocês estão a fazer?

     - Estamos a fazer um estrado para proteger a gente da água.

     - Para quê? - inquiriu a mãe. - Aqui dentro está tudo bem, está tudo seco.

     - Está, mas não será por muito tempo. A água está a subir.

     A mãe ergueu-se com dificuldade e foi até à porta.

     - A gente tem de se ir embora daqui.

     - Não se pode - disse Al. - Ternos aqui todas. as nossas coisas. O camião também. Tudo o que nos pertence está aqui.

     - Onde está o pai?

     - Foi comprar de comer.

     A mãe ficou a olhar a água. A distância que a separava da porta do vagão não passava de umas seis polegadas. Voltou para o colchão e olhou para Rosa de Sharon. A rapariga estava igualmente a fitá-la.

     - Como te sentes? - perguntou a mãe.

     - Cansada, muito cansada...

     - Precisas de comer alguma coisa.

     - Não tenho fome.

     A senhora Wainwright aproximou-se da mãe.

     - Parece que ela está bem. Aguentou-se que nem uma heroína. Os olhos de Rosa de Sharon fixaram-se, interrogadores, no rosto da mãe. Esta procurou evitar a resposta. A senhora Wainwright foi para junto do fogão.

     - Mãe!

     - Que é?

     - Correu... correu tudo bem?

     A mãe desistiu da tentativa. Ajoelhou-se junto do colchão.

     - Tu terás outros filhos - disse. - Fez-se tudo o que se pôde. Rosa de Sharon fez um esforço para sentar-se.

     - Mãe.

     - Não tivemos culpa...

     A rapariga deitou-se de novo, cobrindo os olhos com os braços. Ruthie aproximou-se e pôs-se a olhar, cheia de espanto.

     - Ela está doente, mãe? Vai morrer?

     - Não, que ideia! Daqui a pouco está fina. Boa de todo.

     O pai regressava com uns poucos de embrulhos.

     - Como vai ela?

     - Bem - disse a mãe. - Daqui a pouco está fina.

     Ruthie foi contar a Winfield:

     - Ela não morre. É o que diz a mãe.

     E Winfield, palitando os dentes com uma lascazita de madeira, à maneira de um homem, disse:

     - Isso logo eu vi desde o princípio.

     - Como é que tu sabias?

     - Espera lá que já te vou dizer... - retrucou Winfield, cuspindo um pedacito de madeira.

     A mãe avivou o lume com os restos da lenha, fritou o toucinho e preparou um molho. O pai comprara um pão no armazém. A mãe franziu a testa quando viu o pão.

     - Temos dinheiro para estas despesas?

     - Não - disse o pai - mas estamos todos com fome.

     - E, por isso, compraste pão? - continuou a mãe, em tom de censura.

     - Temos uma fome dos diabos! Trabalhámos toda a santa noite.

     A mãe suspirou.

     - Bem, o que é que se há-de fazer?

     Enquanto comiam, a água subia cada vez mais. Al engoliu a comida e depois, o pai e ele puseram-se a construir o estrado. Cinco pés de largura, seis pés de comprimento e quatro de altura, acima do piso do vagão. A água já chegava ao limiar da porta. Pareceu hesitar um pouco, mas, depois, foi entrando e inundou lentamente o soalho. A chuva lá fora recomeçara. Agora chovia como anteriormente, martelando em sons cavos rio tecto.

     - Vamos levantar depressa os colchões. E os cobertores também, para se não molharem - alvitrou Al.

     Empilharam tudo no estrado e a água espraiava-se no piso do vagão. O pai, a mãe, Al e o tio John, cada um na sua extremidade, levantaram o colchão em que jazia Rosa de Sharon e colocaram-no no cimo da pilha.

     Ela protestava:

     - Mas eu posso andar. já estou boa.

     A água continuava a subir no piso do vagão, constituindo, uma fina camada. Rosa de Sharon cochichou qualquer coisa ao ouvido da mãe e esta meteu a mão debaixo do cobertor. Apalpou os seios da rapariga e fez um gesto de assentimento.

     - Na outra extremidade do vagão, os Wainwright também martelavam, construindo um estrado. A chuva aumentou de intensidade e depois cessou.

     A mãe baixou o olhar. Uma camada de cerca de meia polegada de altura cobria já o pavimento

     - Ruthie, Winfield, subam para aqui depressa! - gritou a mãe com força. - Vocês ainda apanham um resfriamento. - Auxiliou-os a subir para o estrado. Sentaram-se acanhados, ao lado de Rosa de Sharon. A mãe exclamou subitamente:

     - A gente tem de se ir embora daqui!?

     - Agora não pode ser - declarou o pai.- O Al já disse. Tudo o que possuímos está aqui. Vamos desmontar a porta do vagão e fazer outro estrado para a gente se sentar.

    

     A família comprimia-se no estrado, silenciosa e aborrecida. A água atingira seis polegadas no chão do veículo, quando a cheia se espalhou pelo talude e se espraiou do outro lado, por todo o campo de algodão. Durante aquele dia e aquela noite, os homens dormiram ensopados, ao lado uns dos outros, no vagão. E a mãe mantinha-se junto de Rosa de Sharon. De vez em quando, segredava-lhe qualquer coisa; outras vezes, quedava-se imóvel, de rosto pensativo. Guardou preciosamente o resto do pão debaixo do cobertor. A chuva, agora, caía com intermitências - pequenos aguaceiros, seguidos de períodos mais calmos. Na manhã do segundo dia, o pai foi a patinhar pelo acampamento fora e voltou com dez batatas na algibeira. A mãe observava-o sombriamente, enquanto ele rachava uma parte do interior do carro, fazia lume e deitava água numa panela. A família comeu as batatas cozidas e fumegantes com os dedos. E, quando a comida se acabou de todo, puseram-se a olhar para a água acinzentada, e só noite alta conseguiram adormecer.

     Ao chegar a madrugada, acordaram nervosos. Rosa de Sharon falava baixinho com a mãe.

     A mãe sacudiu a cabeça.

     - Sim – disse - é a altura. - E dirigiu-se à porta do vagão, onde estavam os homens. - A gente tem de se ir embora daqui! - disse com violência. - Temos de procurar um sítio mais alto. Quer vocês venham, quer não, eu levo daqui a Rosasharn e as crianças.

     - Mas é impossível - contrapôs o pai com voz débil.

     - Está bem. Faz-me então o favor de levar a Rosasharn ao colo até à estrada e depois, se quiseres, voltas. Agora não chove. Vamo-nos embora.

     - Bem, vamos então - disse o pai.

     - Mãe, eu não vou - contrariou Al.

     - Porque não?

     - Porque... porque a Aggie e eu...

     A mãe sorriu.

     - É natural - disse ela - é natural, filho. Tu ficas então. Toma conta das nossas coisas. Quando a água baixar, a gente volta. Bom, vamos depressa, antes que comece de novo a chover - disse, dirigindo-se ao pai. - Vamos, Rosasharn. Vamos para um lugar seco.

     - Eu já posso andar.

     - Na estrada, talvez já possas andar um bocadinho. Abaixa-te, pai.

     O pai entrou na água e ficou à espera. A mãe ajudou Rosasharn a descer do estrado e auxiliou-a a caminhar pelo vagão. O pai levantou-a nos braços, erguendo-a o mais alto possível, e foi andando cuidadosamente na água funda, rodeando o vagão, até à estrada. Ali, pô-la de pé e ficou a segurá-la. O tio John fez o mesmo, levando Ruthie. A mãe entrou na água e, por um instante, o vestido flutuou-lhe em torno do corpo.

     - Winfield, senta-te no meu ombro. Al... quando a água baixar, a gente volta. Al... - fez uma pausa. - Se o Tom vier, diz-lhe que a gente volta, ouviste? Diz-lhe também que tome cuidado. Winfield! Senta-te no meu ombro, anda! Assim. E não mexas com os pés.

     Foi-se arrastando pela água fora; esta subia-lhe até ao peito. No barranco da estrada, os que a aguardavam, ajudaram-na a subir e apearam Winfield do ombro materno.

     Quedaram-se na estrada, de olhos pregados na cheia, no grupo de vagões pintados de vermelho e nos camiões e carros envoltos pelas águas, que ondulavam suavemente. A chuva recomeçara a cair.

     - Bom, temos de andar para a frente - disse a mãe. - Rosasharn, achas que poderás caminhar?

     - Sinto-me meio tonta - respondeu a rapariga. - É como se me tivessem dado uma sova.

     O pai pôs-se a resmungar:

     - Bom, agora que estamos aqui, quero ver para onde vamos.

       - Não sei. Vamos, dá a mão a Rosasharn. - A mãe deu o braço direito à filha, a fim de lhe servir de apoio e o pai segurou-lhe o outro braço. - Vamos para qualquer sítio que esteja seco. Não há outro remédio. Há dois dias que vocês andam com essa roupa molhada.

     Caminhavam vagarosamente pela estrada. Ouviam o murmúrio das águas no riacho, à beira da estrada. Ruthie e Winfield andavam lado a lado, chapinhando na água da estrada. O avanço fazia-se lentamente. O céu tornou-se mais negro e a chuva mais compacta. Não havia tráfego algum na estrada.

     - A gente tem de andar depressa - disse a mãe. - Se a Rosasharn continuar assim molhada, não sei o que poderá acontecer.

     - Mas tu ainda não disseste para onde vamos com tanta pressa - lembrou o pai sarcástico.

     A estrada serpeava junto ao riacho. Os olhos da mãe perscrutavam a paisagem inundada. Ao longe, à esquerda, no flanco de uma colina de suave declive, erguia-se um celeiro enegrecido pela humidade.

     - Olhem! - disse a mãe. - Aposto que aquele celeiro está seco. Vamos para lá, até a chuva passar.

     O pai suspirou.

     - Garanto que o dono do celeiro nos vai enxotar.

     à margem da estrada, um pouco adiante, Ruthie descobriu uma mancha vermelha. Correu a ver o que era. Era um gerânio selvagem, com uma flor vermelha fustigada pela chuva. Ruthie colheu a flor. Arrancou-lhe cuidadosamente uma pétala e colocou-a no nariz. Winfield veio a correr ver o que era.

     - Dá-me uma também - pediu.

     - Não, senhor. É minha. Fui eu quem a achou.

     Colocou outra pétala na testa, um coraçãozinho, de um vermelho brilhante.

     - Anda, Ruthie, dá-me uma! Dá-me! Dá-me!

     Tentou agarrar a flor que ela segurava, mas não o conseguiu, e Ruthie deu-lhe uma bofetada. Winfield ficou uns momentos surpreendido; depois, os lábios começaram a tremer-lhe e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

     Os adultos alcançaram-nos.

     - Que foi? - perguntou a mãe. - Diz já, o que é que tu fizeste?

     - Ele quis tirar-me a minha flor.

     Winfield soluçava.

     - Eu... eu queria só uma... para colar uma folha no nariz.

     - Dá-lhe uma também, Ruthie.

     - Ele que procure outra. Esta é minha.

     - Ruthie, dá-lhe uma imediatamente.

     Ruthie percebeu a ameaça no tom da voz da mãe e mudou de táctica.

     - Pois não - disse, com perfeita amabilidade. - Espera aí, que eu vou colar-te uma no nariz.

     Os adultos prosseguiram na marcha. Winfield ergueu o nariz para receber a pétala. Ela molhou-a primeiro com a língua e pespegou-lha com brutalidade no nariz.

     - Toma, filho da mãe - disse, baixinho.

     Winfield apalpou a pétala com os dedos e premiu-a com força contra o nariz. Foram correndo atrás dos mais velhos. Ruthie sentia que aquilo já não tinha graça.

     - Pronto - disse - toma lá mais. Podes colar algumas na testa.

     Um sibilar agudo soou do lado esquerdo da estrada.

     - Depressa! - gritou a mãe.- Vem aí chuva grossa! Vamos pela cerca; é mais rápido. Tem coragem, Rosasharn!

     Quase arrastaram a rapariga pela vala da estrada e, depois, ajudaram-na a passar a cerca. E então a tempestade caiu sobre eles. Chapinhavam na lama, galgando a pequena elevação. O celeiro, enegrecido quase desaparecia sob a chuva, que caía, assobiando e espadanando impelida pelas rajadas cada vez mais fortes. Os pés de Rosa de Sharon escorregavam; agora, deixava-se arrastar pelos que a amparavam.

     - Pai, se tu pudesses levá-la ao colo...

     O pai debruçou-se sobre a filha e ergueu-a nos braços.

     - De qualquer maneira, já estamos todos ensopados. Vamos! - disse. - Ruthie, Winfield, corram à frente.

     Chegaram, ofegantes, ao celeiro repassados de chuva e entraram pela parte descoberta. Não havia porta desse lado. Algumas ferramentas agrícolas, enferrujadas, jaziam aqui e ali: um disco, de arado, uma gadanha quebrada e uma roda de ferro. A chuva martelava o tecto e formava uma compacta cortina à entrada.

     O pai sentou Rosa de Sharon, com todas as precauções, em cima de um caixote gorduroso.

     - Santo Deus! - exclamou.

     - Pode ser que haja feno aí dentro - disse a mãe. - Olha, está ali uma porta. - Deu. um empurrão â porta, que girou nos gonzos enferrujados. - Há, sim! - gritou. - Há feno! Entrem, vá!

     Lá dentro, reinava a escuridão. Apenas uma luz fraca penetrava pelas paredes de tábuas.

     - Deita-te, Rosasharn - mandou a mãe. - Deita-te aí e descansa, ouviste? Vou ver se consigo secar a tua roupa.

     Winfield exclamou:

     - Mãe! – E a chuva que fustigava o tecto do celeiro abafou a sua voz. - Mãe!

     - Que é? O que é que tu queres?

     - Olhe, ali naquele canto!

     A mãe olhou. Havia dois vultos, que se recortavam na penumbra: um homem, deitado de costas e um rapazito, sentado ao seu lado, de olhos arregalados, fixos nos recém-chegados. Enquanto a mãe o fixava, o pequeno pôs-se lentamente, de pé e acercou-se dela. Tinha uma voz rouca:

     - Este barracão é seu?

     - Não - respondeu a mãe. - A gente entrou aqui por causa da chuva. Temos uma pessoa doente. Vocês têm algum cobertor seco que nos emprestem? Ela tem de tirar o vestido molhado.

     O pequeno regressou ao seu canto; trouxe um cobertor sujo e estendeu-o à mãe.

     - Muito obrigada - disse ela. - O que é que aquele senhor tem?

     O pequeno respondeu na mesma voz rouca e monótona:

     - Primeiro, esteve doente; agora, está a morrer de fome.

     - O quê?!

     - Está a morrer de fome. Adoeceu na colheita do algodão e há seis dias que não come nada.

     A mãe foi até ao canto e debruçou-se sobre o homem, a olhá-lo. Devia ter uns cinquenta anos. Possuía um rosto barbudo e descarnado, e os olhos, muito abertos, fixavam o nada. O rapaz veio postar-se ao lado da mãe.

     - Ele é teu pai? - perguntou ela.

     - É, sim. Ele dizia que não tinha fome, ou que já tinha comido. Dava-me a comida toda. Agora, está tão fraco que nem se pode mexer.

     A chuva amainara outra vez e tamborilava brandamente no tecto do celeiro. O homem escanzelado moveu os lábios. A mãe ajoelhou-se ao lado dele e encostou o ouvido à boca do homem, cujos lábios se tornaram a mover.

     - Bem - disse a mãe. - Esteja sossegado. Tudo se arranja. É só esperar que eu tire a roupa molhada à minha filha.

     A mãe voltou para junto de Rosa de Sharon.

     - Trata de te despir, anda!

     Estendeu, o cobertor, fazendo dele uma cortina, para a esconder dos olhos dos outros. E, quando Rosasharn ficou nua, a mãe enrolou-a no cobertor.

     O pequeno estava agora de novo ao lado da mãe, explicando:

     - Eu não sabia de nada. Ele dizia sempre que já tinha comido, ou então que não tinha fome. A noite passada, quebrei a vidraça de uma janela e roubei um pão. Obriguei-o a comer, mas vomitou tudo e ficou ainda mais fraco. Devia comer sopa ou tomar leite. A senhora tem algum dinheiro para comprar leite?

     A mãe respondeu suavemente:

     - Chiu! Não te apoquentes. Tudo se há-de arranjar.

     De repente, o pequeno deu um grito:

     - Está a morrer! Está a morrer, sério! Ele vai morrer de fome. Vai, vai!

     - Chiu! - fez a mãe.

     Lançou um olhar ao pai e ao tio John, que estavam parados, diante do doente, sem saber o que haviam de fazer. Olhou para Rosa de Sharon, bem enrolada no cobertor. Os seus olhos fugiram dos da filha e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A respiração da rapariga tornara curta e agitada.

     - Sim - disse.

     A mãe sorriu.

     - Eu sabia. Eu sabia que tu eras capaz de o fazer. - Olhou para as mãos apertadas uma na outra, descansando no regaço.

     Rosa de Sharon disse baixinho:

     - Vocês são capazes de sair todos?

     A chuva batia ao de leve no telhado.

     A mãe inclinou-se para a filha e, com a palma da mão, afastou as madeixas revoltas que lhe caíam para a testa e deu-lhe um beijo na fronte. A mãe ergueu-se rapidamente:

     - Vamos, minha gente, vão para o alpendre das ferramentas - gritou ela. Vão-se embora, andem!

     Pô-los fora da porta. Por fim, levando o rapazito pela mão, saiu também, fechando a porta, que chiou atrás de si.

     Por um momento, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no celeiro ressoante de murmúrios. Depois, ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto devastado do desconhecido, de olhos arregalados e cheios de temor. Então, vagarosamente, deitou-se ao lado dele. O homem abanou debilmente a cabeça dê um lado para o outro. Rosa de Sharon afastou um dos lados do cobertor, deixando o seio a descoberto.

     - Tem de ser - disse, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si.- Ora vá! Então!

     Apoiou-lhe a cabeça com a mão, e os seus dedos afagaram-lhe suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e, deixou-os errar pelo barracão, enquanto os lábios se lhe arqueavam num misterioso sorriso.

 

                                                                                John Steinbeck  

 

                      

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