Biblio VT
Para esquecer um amor impossível, Susana fez as malas e foi para a Espanha, trabalhar como governanta de uma família tradicional. Lá, o destino pregou-lhe uma peça, fazendo com que essa família fosse justamente a de Fernando Cuevas, o fascinante e sensual aristocrata que ela amava. Agora, vivendo na mesma casa que ele, mas sabendo que era casado, Susana se desesperava. Queria negar aquela febre de amor que percorria suas veias, quando Fernando a beijava. No entanto, era difícil fazer isso numa terra de paixões ardentes e homens de sangue quente. A maior tortura era ouvir Fernando sussurrar no seu ouvido que a amava, que não podia viver sem ela. Mas, e a outra mulher da vida dele?
Fernando tinha trabalhado muito nos últimos dias e preferia ter ficado no hotel descansando em vez de ir àquela festa. Mas os Castana eram amigos de sua família e não seria gentil recusar o convite de Lucie. Agora, depois de circular entre os pequenos grupos de convidados, fazendo gracejos e conversando amenidades, ele esperava com ansiedade a primeira chance de se retirar. Sentia-se cansado e mal humorado e os flertes de Lucie começavam a aborrecê-lo. Aquele não era o comportamento adequado para uma mulher casada e com um filho, alvo fácil de comentários desagradáveis. Aparentemente, porém, Lucie se colocava acima da moral rígida de sua Espanha natal. Como o marido estava ausente por alguns dias, numa viagem de negócios, entregava-se à sociedade algo permissiva de Londres.
Passeou impacientemente o olhar pela sala. Entre os convidados havia espanhóis, ingleses e americanos. As garrafas de vinho espalhavam-se pela mesa comprida, em meio a doces e salgadinhos de todos os tipos. Uma música popular, em volume baixo, tornava o ambiente descontraído. Mas a verdade é que Fernando, aborrecido até a alma, trocaria com satisfação aquele convívio alegre pela solidão do seu escritório.
— Fernando…
Lucie lhe estendeu um drinque que, polidamente, ele recusou. Quando reunia todas as forças para desculpar-se e anunciar que estava de saída, foi interrompido por um menino que entrou correndo na sala à procura de um rosto familiar. Afobado, aproximou-se de Lucie e agarrou-se à sua saia, o rosto molhado de lágrimas. Os olhares curiosos pousaram sobre o garoto de pijama, com os pés descalços.
Fernando olhou para trás e viu uma moça parada à porta. Encolhendo os ombros e soltando um suspiro, ela caminhou em direção ao menino e a Lucie. Enquanto atravessava a sala, deixou transparecer certo embaraço. Sem dúvida estava consciente de que destoava dos outros no seu roupão de náilon azul. A presença inesperada daquela mulher despertou o interesse de Fernando, que observava atentamente seus olhos negros e os cabelos loiros e brilhantes.
— Isso são modos, meu filho? — Lucie falou em inglês, para que todos a compreendessem. —Señorita King — continuou, voltando-se para a mulher que tinha acabado de entrar —, Eduardo devia estar no quarto dele!
— Desculpe, señora — a jovem respondeu, tomando a mão do menino, — Ele sentia-se indisposto e insistiu em vê-la. Disse que não descesse, que não a importunasse, mas ele fugiu de mim.
— Como assim, fugiu de você? Pois então não consegue controlar um menino?
— Eu o estava levando para o banho. Quando me distraí um pouco, saiu correndo. Tentei segurá-lo mas...
— Não é preciso me dar tantos detalhes — Lucie retrucou, fazendo um gesto com as mãos. — Você sabe perfeitamente que quando o pai não está ele fica um tanto... irrequieto.
— Acho que hoje à tarde ele comeu doce demais, señora…
— Basta señorita. Não quero mais falar sobre isso...
— Lucie, acalme-se! — Fernando interveio. — Não aconteceu nada de grave. — Olhou para a moça e viu no rosto dela uma expressão de alívio. — Para que culpar a señorita King? Eduardo é criança, impulsivo, e é natural que queira sua companhia.
— Sim, Fernando, você tem razão — Lucie concordou, depois de fitá-lo alguns instantes. Voltou-se para o filho e continuou: — Agora acompanhe a señorita King, Eduardo. Amanhã cedo nós conversaremos seriamente sobre o que acaba de fazer...
— Mamãe, deixa eu ficar — o menino implorou, olhando para ela e para Fernando. — Não me mande de volta para o quarto!
Fernando agachou-se ao lado de Eduardo, mostrando um sorriso confortador.
— Eduardo, a mamãe está ocupada agora, compreende? Ela precisa conversar com os convidados. Mas amanhã será todinha sua…
— Amanhã ela vai estar cansada. E papai não vai voltar...
— Eu tenho uma ideia — Fernando continuou, perturbado pela observação —, amanhã não vou estar ocupado e nem cansado. Que tal se eu viesse buscá-lo para um passeio? Podemos ir ao parque ou ao zoológico...
O rostinho de Eduardo se iluminou.
— Ainda não fui ao zoológico.
— Pois então vai conhecê-lo! Passo por aqui às dez horas, está bom? — Ergueu o olhar para a moça. — É um bom horário?
— Acho que sim — ela respondeu, buscando confirmação no olhar de Lucie.
— Fernando, você é muito gentil... Eduardo sente falta da atenção de um homem... — Lucie sorriu, como se dissesse: eu também sinto. Mas ele preferiu ignorá-la.
— Muito bem... Então, boa noite, Eduardo!
— Adiós, señor.
Sorridente e tranquilo, Eduardo subiu em companhia da moça, enquanto Fernando perguntava-se por que tinha intercedido por ela...
Na manhã seguinte, lamentou ter convidado Eduardo para passear, pois temia que Lucie imaginasse que não passava de um pretexto para vê-la. Tomou um banho de chuveiro, vestiu-se e, enquanto saboreava o café da manhã na suíte do Hotel Savoy, pensou em telefonar e cancelar o passeio. Mas mudou de ideia por causa do pequeno Eduardo, que provavelmente o estaria aguardando com ansiedade. Poucos minutos depois, desceu e tomou um táxi para Lorrimer Terrace.
Ao chegar, uma criada o recebeu. A casa estava silenciosa e o único sinal da festa da noite anterior era o leve aroma de perfume misturado ao cheiro de fumo. Sentado na sala ampla, ainda indeciso, esperou com impaciência.
A criada reapareceu segundos mais tarde.
— Eduardo descerá num instante, senhor. A señora Castana o convida para almoçar com ela, quando voltarem.
Enquanto esperava pela resposta, a moça observou-lhe a boca, dizendo para si mesma que ali estava um homem atraente, bastante diferente do patrão, o señor Castana. Era alto, mais alto que o normal dos espanhóis, mas não tanto, a ponto de ser desajeitado; os cabelos eram negros e brilhantes, e as roupas elegantes caíam muito bem, acentuando as pernas fortes e o peito largo e musculoso.
— Depois que eu sair, por favor informe à señora Castana que não poderei aceitar o convite. Eu e Eduardo talvez almocemos fora...
A criada arregalou os olhos, espantada, e Fernando imaginou que tinha sido indelicado. Mas, de outro modo, como evitar dificuldades posteriores? Enquanto Carlos continuasse fora, a negócios, Lucie constituía uma ameaça.
Ao ouvir ruído de passos, Fernando voltou-se. Eduardo acabava de descer acompanhado da moça que tinha conhecido na festa e a quem chamavam de señorita King. Inclinou a cabeça num cumprimento.
— Bom dia, Eduardo. Bom dia, srta. King.
— Está pronto, senõr? — perguntou Eduardo, inquieto.
— Vejo que você está. — Sorriu Fernando.
— Fazia horas que eu estava esperando.
Fernando voltou-se para olhar a jovem, encantadora apesar de usar saia creme e blusa branca, o cinto largo e preto dando à roupa um aspecto de uniforme. O corpo dela era esguio, mas não magro, e sob o tecido da blusa ressaltavam os seios arredondados. Num instante, desviou o olhar, ciente de que algo nele começava a despertar. Ora, ora, Fernando, disse para si mesmo, o que significa esse moça para você? Não vê que o olhar dela o desaprova inteiramente?
— Bom — começou, fingindo disposição. — Vamos indo, então? Enquanto a criada se retirava, foram para o saguão. A jovem ajeitou a gola da camisa de Eduardo e pôs-se de lado. Nisso, soou uma voz vinda do alto, uma voz que Fernando pôde reconhecer imediatamente.
— Fernando! Ainda está aqui! Que bom encontrá-lo...
Lucie estava parada no alto da escada, o corpo envolto num roupão de tecido delicado. A srta. King sentiu-se embaraçada e fez menção de se retirar. Mas Fernando, percebendo a intenção dela, olhou-a com firmeza e murmurou num tom de voz sugestivo:
— Vá buscar o casaco, srta. King. Não virá conosco? — A jovem criada fitou-o como se o considerasse louco.
— Se me esperar, também vou com vocês — adiantou-se Lucie. — Quer dizer... se não se importa...
Fernando enfiou as mãos nos bolsos.
— Tem certeza de que gosta desse tipo de passeio? — perguntou secamente. — A srta. King irá nos acompanhar, como sabe...
— A señorita King?
— Não é mesmo, senhorita? — Fernando lançou o olhar para ela, percebendo sua expressão inútil de indignação. Propositadamente, desafiava-a a não dizer a verdade. E, para o seu alívio, ela baixou a cabeça num sinal de confirmação.
— Sim, señor; claro que sim.
Lucie esboçou um sinal de irritação, mas procurou se conter.
— Nesse caso — respondeu, suspirando fundo —, ficarei aqui esperando impacientemente por vocês… Transmitiram-lhe meu convite para almoçar comigo, Fernando?
— Sim, mas não posso aceitá-lo, infelizmente.
— E, por que não?
— Não é possível, Lucie. O zoológico é grande, há muitos animais que o Eduardo há de querer ver... Não voltaremos antes das... quatro horas.
— Quatro horas?! — exclamou Lucie, furiosa, segurando a barra do roupão, aparentemente despreocupada com o fato de o tecido ser transparente. — Bom, então jantará conosco, não?
Fernando hesitou, certo de que continuar recusando seria prolongar aquela conversa aborrecida.
— Talvez, Lucie, talvez — disse afinal, encolhendo os ombros. — Agora nós vamos indo, que o táxi está lá fora…
— Até o jantar, Fernando.
— Até mais tarde, Lucie — retrucou, com um sorriso irónico.
A srta. King vestiu um casaco caqui, para combinar com a saia, e o acompanhou até o carro. Mal entraram, ela se voltou para ele, com a voz firme:
— Eu ficaria agradecida se nunca mais me colocasse numa situação tão difícil quanto aquela! O señor tinha convidado apenas Eduardo!
Fernando se acomodou no banco para vê-la melhor. Mal-humorada, como agora, ela lhe parecia ainda mais feminina, e nem mesmo a roupa formal que usava conseguia disfarçar esse fato. Como ficaria ela em roupas mais descontraídas? Perguntava-se quantos anos ela teria…
— Está bom… inicialmente, convidei apenas Eduardo. Só que me ocorreu que você talvez gostasse de vir junto…
— Não me venha com desculpas!
— Não acha que está sendo injusta comigo?
— Señor, não sou cega nem estúpida.
— Isso nunca me passou pela cabeça.
— Convidou-me por outra razão... E, a propósito, peço-lhe que não volte a me usar outra vez só para sair de suas enrascadas!
— Que conversa é essa? — Pela primeira vez Fernando sentiu vontade de bater numa mulher. Encarou-a sem esconder a raiva. Ninguém, até aquele momento, tinha ousado lhe falar naquele tom! No fundo, zangava-se não porque ela acabava de dizer uma verdade; e sim, porque sentia-se envolvido por ela. — Sabe que eu poderia mandar você descer do carro agora mesmo? Sabe que poderia levá-la de volta para sua patroa e conseguir que ela a despedisse?
— O señor é quem sabe. — ela respondeu, dando de ombros.
— Não tem medo?
— Bom — hesitou. — Perder o emprego por incompetência é uma coisa, mas não é este o caso, é?
Fernando mordeu o lábio, surpreso com ela. Aos poucos compreendeu que fora injusto e achou bom se explicar melhor.
— Não vejo razão para justificar meus atos, mas admito que você estava certa ao afirmar que eu a usava para sair de uma enrascada. Mais exatamente, para evitar uma pessoa... — Interrompeu-se quando a viu dar uma risada. — Não está me levando à sério!
— Estou sim... Além disso, só me interessa o que você faz no que diz respeito a mim.
— Sei disso... Olhe, se não quiser nos acompanhar, peço ao motorista que a leve de volta...
— Não estou dizendo que não quero ir com vocês — disse cautelosamente. — Apenas não quero ser envolvida em... planos.
— Meus planos?
— Se prefere assim…
— Dou-lhe minha palavra. Lucie... quer dizer, sua patroa e eu somos amigos, só isso.
— Se o señor está dizendo... — ela retrucou, baixando o olhar. Fernando controlou-se para não pegá-la pelos ombros e sacudi-la.
Ela estava provocando-o deliberadamente? Não podia responder com certeza. Sequer compreendia por que enredava-se em explicações.
— Muito bem, srta. King — recomeçou, ajeitando-se no banco. — Sugiro que esqueçamos o equívoco inicial e tentemos aproveitar o dia. A propósito, ainda não nos apresentamos. Fernando Cuevas, à sua disposição.
Ela permaneceu em silêncio e relutante por alguns segundos.
— Meu nome é Susana, señor; Susana King.
— Susana — repetiu com ar meditativo. Um bonito nome. Um nome bastante feminino, condizente com ela.
Eduardo, que até então olhava interessado através da janela, voltou-se tomado de excitação.
— Señorita, señorita. Aquela ali não é a Catedral de São Paulo? Uma vez a señorita prometeu me levar lá. Vai me levar, não vai?
Susana inclinou-se para a frente e sorriu.
— Não, não, Eduardo. Aquela é uma igreja comum. A Catedral de São Paulo é muito, muito maior!
— Eu poderia acompanhá-los, se me permitissem — sugeriu Fernando. — Que tal amanhã?
Surpreendeu-se consigo mesmo, como se tivesse falado sem pensar. Ainda naquela manhã tinha estado indeciso quanto ao passeio marcado, e agora parecia estar sugerindo outra visita à casa dos Castana.
Susana olhou intrigada, como que imaginando o motivo daquele novo convite.
— Obrigada, señor, mas amanhã o pequeno Eduardo precisa estudar.
A alegria de Eduardo deu lugar a uma curiosa expressão de mau humor.
— É a senhorita quem lhe dá aulas?
— Eu mesma.
— Não compreendo… ainda ontem tomei-a por uma ama-seca.
— Não — disse ela, num suspiro. — A señora Castana quer ela mesma cuidar do menino. Quando não pode, ajudo-a…
A afirmação soou estranha aos ouvidos de Fernando, porque, afinal, os Castana estavam em boa situação financeira e poderiam dispor de uma governanta e de uma ama-seca ao mesmo tempo. Era bem provável que, contando com a eficiência da srta. King, preferissem poupar um segundo salário.
O carro rodava agora ao lado dos gramados de Regent's Park. Fernando pediu ao motorista que parasse, porque dali em diante continuariam a pé. Susana e Eduardo desceram, enquanto Fernando pagava a corrida e, pouco depois, o carro afastou-se.
Era uma manhã deliciosa de Abril. A primavera espalhava pelo parque milhares de tulipas e narcisos. Velhos, mães e crianças com seus cachorros e brinquedos desfrutavam da tranquilidade do lugar.
Tomaram o caminho que conduzia ao zoológico, andando em silêncio. Apenas Eduardo, de vez em quando, exclamava alguma coisa, quando um cachorro passava correndo por ele ou uma criança lhe chamava a atenção.
— Não acha cruel prender animais selvagens em jaulas? — observou Fernando, quebrando o silêncio.
— A maior parte deles nasceu no zoológico — respondeu Susana. — Eles se sentiriam tão deslocados e perdidos num deserto remoto ou na selva quanto nós mesmos.
— Como pode saber como eu me comportaria numa situação dessas? — ele perguntou, sorrindo. — Dependeria, em grande parte, da minha companheira.
Ela corou, numa demonstração de como era fácil para ele embaraçá-la. Fernando sentiu uma ponta de curiosidade em saber sobre o passado dela, se tinha uma casa onde podia levar uma vida só dela, se os pais ainda viviam... Mas censurou-se. Não viu sentido naquele interesse, porque, provavelmente, não voltariam a se encontrar. Deixaria Londres no fim de semana seguinte e retornaria à Espanha, ao encontro da própria família.
Depois daquele breve diálogo, Susana procurou concentrar a atenção em Eduardo, mostrando as diferentes espécies de animais, explicando os diversos hábitos de alimentação. Fernando seguia-os respondendo às eventuais perguntas que o menino lhe fazia.
Era uma hora da tarde quando Susana dirigiu-se a ele com certa apreensão.
— Señor, seria bom que Eduardo comesse ou tomasse alguma coisa. Que tal irmos a uma lanchonete?
— Sugiro que procuremos um restaurante, señorita. Eduardo já viu quase tudo, não? Poderíamos aproveitar a tarde...
— Quê? — interveio Eduardo, os olhinhos bem abertos e atentos. — Que le parece señorita? Estou com muita fome!
— Não sei o que dizer, señor.
— Então deixe por minha conta — disse Fernando, pegando no braço de Susana. — Se Eduardo e eu estivéssemos sozinhos, a escolha do restaurante seria minha. Mas sua companhia simplesmente torna a situação muito mais atraente...
Susana, novamente embaraçada, afastou a mão de Fernando.
— Confio em você…
Foram a um restaurante espanhol nas proximidades da Oxford Street, um lugar ao qual Fernando ia toda vez que visitava Londres.
Terminado o almoço, Eduardo foi ver de perto o enorme aquário repleto de peixes tropicais junto à parede próxima da entrada.
— Importa-se que eu acenda um charuto? — perguntou Fernando. Susana fez que não com a cabeça. Percebendo seu nervosismo, Fernando procurou colocá-la à vontade, conversando sobre a Espanha, sobre a crescente indústria do vinho, da qual sua família participava há gerações.
— Sei pouco, ou quase nada, sobre vinho — Susana observou, segurando a xícara de café fumegante. — Aqui em Londres não se costuma tomá-lo nas refeições.
— Onde nasceu, srta. King?
— Em Yorkshire, no norte da Inglaterra. Assim que me formei, vim para o sul em busca de trabalho.
— Seus pais ainda vivem em Yorkshire? — Ele soltou uma forte baforada e a fumaça pairou acima deles.
— Não... meus pais morreram. Na verdade, não conheci meus pais. Até aos dezesseis anos de idade fiquei num orfanato…
— Você fala com certa amargura!
— Oh, não, não! — ela retrucou, balançando a cabeça. — Lá todos foram muito bons comigo. Simplesmente não acho justo que uma mulher tenha filhos e depois os abandone. Se eu tivesse um bebé, sem dúvida cuidaria dele... Mas onde está Eduardo?
— Divertindo-se com os peixes do aquário. — Ele tranquilizou-a, impaciente com a interrupção. — Mas continue.
— Não tenho mais nada para dizer.
— Trabalha para os Castana desde que chegou em Londres?
— Não. Estou aqui há quatro anos. Trabalhei para uma família de americanos que se mudou para os Estados Unidos. Não quis acompanhá-los e, então, seis meses atrás, conheci os Castana.
— Compreendo — comentou Fernando, lembrando-se de que Lucie não costumava manter por muito tempo seus empregados. — Pretende casar? Ter filhos?...
— Não por conveniência, se é o que está querendo sugerir... — replicou, enrubescendo. Depois de olhá-lo fixamente por alguns instantes, voltou a falar: — Acho que é hora de irmos andando.
Fernando lamentou a insinuação. Havia muitas coisas que gostaria de dizer e saber sobre ela, o que, para ele, era absolutamente inédito. As mulheres sempre lhe pareciam criaturas transparentes, cujo único objetivo era conquistar e aprisionar o homem. O casamento, por sua vez, era uma conveniência para ambos, e qualquer coisa que fosse, além disso, não passava de mera necessidade sexual. No fundo, Susana era a única mulher com quem se sentia particularmente à vontade, a única que lhe despertava um outro tipo de interesse. Desgostava-lhe até mesmo o fato de ter que dividir a atenção dela com o menino.
À saída do restaurante, Eduardo despejou um punhado de sugestões para passarem o resto da tarde, mas Susana se mostrou intransigente.
— São quase três horas. Já abusamos muito da disponibilidade do señor Fernando.
Num gesto característico, Fernando enfiou as mãos nos bolsos, firme no propósito de dissuadi-la. Mas o bom senso lhe alertou que estava indo longe demais.
— Eduardo, a srta. King tem razão. Além do mais, você deve estar doidinho para chegar em casa e contar à mamãe tudo o que viu.
— Mas você falou que a gente ia passear num outro lugar. — lembrou Eduardo, com olhos acusadores.
— Fica para um outro dia, está bom? Quer dizer, se a srta. King permitir que você perca suas aulas.. .
— Obrigada, señor Fernando, por nos acompanhar e pelo almoço delicioso.
— No tanto. Não foi nada… Bom, vou acompanhá-los até a casa.
— Não, não é necessário. Quer dizer… naturalmente, se quiser poderá nos acompanhar...
— Pelo menos até a porta — ele brincou, satisfeito ao perceber que mais uma vez a desconcertava.
Quando o carro parou diante da casa e Eduardo desceu correndo à frente, sem se conter de alegria, Fernando deteve Susana segurando-lhe o braço.
— Senõrita, um momento...
— Sim, senõr?
Fernando ouviu a voz calma e indiferente de Susana enquanto percebia que agora quem se embaraçava era ele.
— Eu... eu gostaria que jantasse comigo amanhã à noite, srta. King...
O olhar dela pousou sobre a mão morena que descansava sobre a luva parda.
— Sinto muito, señor, mas não posso aceitar...
— Por Dios, por que não?
— Não gosto muito da ideia e, de qualquer modo, não tenho muito tempo livre à noite.
— Por que está se desculpando? Não confia em mim? Posso garantir que minhas intenções são as melhores! Simplesmente gosto de conversar com você.
— Señor, preciso ir — ela disse, procurando Eduardo com os olhos. — Não seria conveniente que a mãe do menino me visse conversando aqui fora.
— A mim não importa... Por favor, jantará comigo amanhã? — Ela lhe lançou um olhar todo cheio de ansiedade.
— Não sei...
— Às oito — insistiu ele. — Eu estarei esperando-a no terraço.
— Mas señor...
Lucie apareceu à porta, com ar de impaciência. Fernando retirou a mão de Susana, tomado de surpresa.
— Eis sua patroa. Vamos descer e cumprimentá-la?
Susana saiu do carro trémula e pisou em falso, perdendo o equilíbrio. Lucie, porém, comportava-se como se não a notasse, o olhar fixo na figura de Fernando.
— Chegou cedo! — ela exclamou dispensando Susana com um gesto de cabeça quase imperceptível. — Entre e tome um chá comigo.
— Obrigado, Lucie, mas preciso ir — argumentou Fernando. — Tenho um compromisso com importadores às cinco horas.
— Pela manhã você não me disse nada a respeito... Cancelei meus compromissos de hoje só para recebê-lo...
— Sinto muito. — Sorriu, desculpando-se.
Lucie permaneceu em silêncio, mordendo levemente o lábio inferior.
— Adios — Fernando se despediu secamente e entrou no táxi.
Através da janela lançou-lhe um breve olhar, o suficiente para ver que no rosto dela estampava-se a frustração e a irritação. Ajeitou-se no banco e desejou que Lucie não descarregasse sua ira sobre a frágil Susana King.
Susana preparava o chá de Eduardo no quarto dele, quando Lucie Castana entrou à sua procura, nervosa e mal-humorada.
— Señorita, que significa passar fora o dia inteiro sem sequer pedir-me permissão?
Os olhinhos de Eduardo se ergueram, surpresos.
— Don Fernando chamou Susana para sair conosco. . .
— Não estou falando com você, Eduardo! — replicou com firmeza. — Estou lhe pedindo uma explicação, señorita.
— Não vi nenhum problema em acompanhar o pequeno Eduardo e... e Don Fernando, señora. Quando o menino está fora nada tenho para fazer aqui.
— Não lhe ocorreu que eu poderia ver algum problema? Tem razão quando diz que foi contratada para cuidar de Eduardo, mas no mínimo espero consideração de você. Não quero que acompanhe Eduardo a todo momento só porque não tem o que fazer!
— Não é exatamente assim, señora…
— Não seja insolente! Quando falo uma coisa é porque é! Surpreendeu-me que você estivesse tão ansiosa por um companheiro... Por outro lado, sei que sente a falta de Carlos...
— Como ousa dizer uma coisa dessas? Queira ser mais clara, señora?
Lucie se desconcertou, arrependida de ter dado asas ao ciúme e à frustração. Em apenas dezoito meses, desde que viera para Londres, contratara cinco governantas para Eduardo, e todas, com exceção de Susana, deixaram o emprego em três meses. Apenas Susana suportava os pesados deveres sem fazer a menor queixa, e Lucie tinha consciência de que Carlos ficaria furioso ao constatar que também ela havia partido.
— Desculpe-me, señorita — Lucie falou finalmente, soltando um suspiro profundo. — Naturalmente não estou sugerindo nada. Estou com uma forte dor de cabeça, e, além disso, esperava tomar chá na companhia de Don Fernando. Infelizmente ele tinha um compromisso e eu me deixei levar pelo desapontamento. Sem dúvida, estou sendo injusta...
— Se tiver alguma queixa para fazer a respeito do meu trabalho e do meu comportamento, faça-a, por favor.
— Não, não — apressou-se Lucie, balançando a cabeça. — Já lhe pedi desculpas. — Voltou-se e observou Eduardo. — Ele me contou que o passeio foi maravilhoso.
Susana, ao ver a expressão preocupada de Eduardo, sentiu a urgência de dizer a Lucie Castana o que realmente estava pensando sobre ela. Mas conteve-se, para o bem de Eduardo e de si própria.
— Sim, señora, foi um dia extremamente delicioso... — Lucie examinou-a demoradamente e depois foi até a porta.
— Esqueçamos esse mal entendido, está bem?
Ficou parada, como se não conseguisse sair antes de ouvir uma resposta afirmativa.
— Está bem, señora — Susana concordou, sem entusiasmo e com um gesto de ombros que significava indiferença.
Contente, Lucie sorriu levemente e saiu.
Como de hábito, Eduardo foi para a cama às sete em ponto. Dessa hora em diante, Susana tinha todo o tempo à sua disposição, a não ser nas raras ocasiões em que os Castana recebiam amigos ou davam festas, quando então ficava no quarto para o caso de Eduardo precisar dela.
Mesmo assim saía pouco, ora para assistir a uma peça ou a um filme, ora para um concerto. Tinha poucos amigos, todos do tempo em que estudava, um ou dois deles já casados, e embora a apresentassem a rapazes que lhe despertavam interesse não namorava. "Não tenho pressa para casar", costumava dizer a si mesma, recordando-se do pai, que havia abandonado sua mãe tão logo a engravidou. Pelo menos era assim que explicava a impossibilidade de ter sido criada pela própria mãe.
Naquela noite, trocou a roupa de costume pela calça de brim e uma blusa de lã grossa e sentou-se para retomar o romance que vinha lendo há algum tempo. Os acontecimentos do dia, porém, impediam-na de concentrar-se na leitura. Não, não, pensou decidida, não poderia aceitar o convite de Fernando Cuevas. Sabia que se envolver com pessoas ou amigos da família era arrumar problemas. Com a família Taylor não tinha sido diferente.
Apesar da decisão, era incapaz de afastá-lo da mente. Como esquecer o homem mais atraente que tinha conhecido até então? Como não ceder ao magnetismo perturbador, aos olhos negros e profundos, ao rosto magro, aos cabelos pretos e brilhantes? Quantos anos teria de? Trinta e cinco, quarenta anos? Não aparentava muita idade, mas o olhar revelava intensa experiência da vida, intensa demais talvez... E, por que a insistência em jantar com ela? Não acreditava que fosse por gostar de conversar, e muito menos por sentir-se atraído... Bem que poderia ser uma experiência fascinante, concluiu, mas temia ter que pagar um alto preço por ela.
No dia seguinte, ainda mais preocupada com a perspectiva do jantar com Fernando Cuevas, ocorreu a Susana pedir o telefone dele a Lucie e ligar para desculpar-se. Por outro lado, ponderou, seria melhor manter a discrição, para não criar uma situação embaraçosa que apenas aumentaria a tensão entre elas.
De tardezinha, já apreensiva, imaginou que a solução seria não ir encontrá-lo, como combinaram. Mas e se ele entrasse? Que poderia fazer? Oh, Deus!, exclamou, como Lucie Castana ficaria irritada!
Às sete horas colocou Eduardo na cama e foi para seu quarto. O sr. Castana chegaria de viagem no dia seguinte, e Lucie tinha lhe dito que se recolheria mais cedo. Nada a impediria de sair, encontrar Fernando e explicar-lhe tudo, voltando sem despertar nenhuma suspeita.
Tranquila com a nova decisão, arrumou-se discretamente. Quando faltavam cinco para as oito, jogou uma malha de lã sobre os ombros e saiu, em direção ao terraço. Atravessou o pequeno parque sentindo a aragem fresca da noite e ouvindo o último canto dos pássaros. Quando chegou, tudo estava vazio. Não vendo Fernando Cuevas, o coração começou a bater mais forte. Ora, Susana, disse para si mesma, que importância tem ele não vir? Tanto melhor, consolou-se impacientemente. No mínimo, poupava-lhe explicações desnecessárias.
Indo até o fim da rua, olhou de um extremo ao outro e não viu ninguém parecido com aquele espanhol esguio e moreno. Suspirou e consultou o relógio. Oito horas em ponto. Impaciente e intrigada, puxou a malha num gesto delicado. Sim, esperaria apenas mais alguns minutos.
— Boa noite, srta. King!
As palavras soaram próximas dos seus ouvidos e ela se voltou surpresa. Fernando estava tão perto, que pôde sentir o suave perfume de lavanda pós-barba. Ambos se olharam em silêncio, como que encantados, sorridentes.
— Fica bem quando se veste com informalidade — observou ele. — Eu já a estava imaginando com uma roupa bastante sofisticada...
— Vim encontrá-lo para... para dizer que não vou sair.
— Como assim?
— Señor, não posso jantar… Ia lhe dizer ontem à tarde, antes de sermos interrompidos pela señora Castana.
— Mas você veio, está pronta. Qual é o problema?
— Não, não estou pronta!
— Está perfeita! Por que veio me encontrar, então?
— Temi que me procurasse na casa — respondeu, encolhendo os ombros… — Não quero criar problemas.
— Para a sra. Castana?
— Não importa… — Afastou-se um pouco dele. — Posso estar sendo desagradável, mas não costumo sair com amigos dos meus patrões.
Fernando tocou-lhe o braço, como que não desejando que se afastasse dele.
— Eles a proíbem? Por acaso consideram isso uma imoralidade?
— Não é bom misturar trabalho com lazer. — Lançou um olhar para a mão que lhe apertava o braço. — Estou sendo clara, não?
Ele sorriu de uma maneira que a abalava até dentro do coração.
— Por favor... Não desaponte um homem solitário! Acredite, não vou comprometê-la de maneira alguma. Venha... hoje eu estou de carro. Aluguei-o especialmente para este nosso primeiro encontro... sabe, não gosto que os motoristas de táxi fiquem ouvindo as nossas conversas.
Num segundo, ela começou a duvidar da decisão, a cabeça girando, o coração pulsando forte. Lentamente, deixava-se aproximar dele e, de repente, percebeu que ele a levava em direção ao Ford Granada amarelo-ouro, estacionado do outro lado da rua.
— Gostou? — perguntou ele, abrindo-lhe a porta. — Não acha atraente o veículo que escolhi para nós?
— Para onde está me levando? — Ela o fitou profundamente, espantada consigo mesma.
— Entre e descubra por si própria — desafiou-a.
Depois de hesitar por frações de segundo, ela entrou e Fernando fechou a porta. Deu a volta pela frente e sentou-se ao lado dela com um sorriso franco nos lábios. Com uma inevitável sensação de auto traição, Susana constatou que, pela primeira vez, consentia que um homem a guiasse livremente.
Fernando manteve-se calado, enquanto conduzia o carro por ruas movimentadas. Susana, também calada, perguntava-se, curiosa, para onde estavam indo. Quando saíram do centro, percorrendo agora ruas mais tranquilas de subúrbio, ele pareceu despertar.
— Que idade tem, srta. King? — perguntou, ajeitando-se no banco.
— Você é bastante indiscreto, não?
— Hum, acho que sim. Vai me dizer?
Um calor intenso tomou conta do rosto dela, ao perceber que ele a observava com o canto dos olhos.
— Vinte e quatro anos. E você?
— Tenho bem mais que isso, senhorita. — Sorriu.
— Isso não responde à pergunta!
— Adivinhe…
— Não sei... talvez trinta e cinco, ou trinta e seis...
— Bondade sua! — Fernando fez uma careta. — Quarenta, srta. King. Idade suficiente para ser seu pai.
— Por que quis saber minha idade? — perguntou, baixando a cabeça.
— Eu tinha quase certeza de que você era bem mais jovem... — Apoiou o cotovelo na janela. -— Não fosse esse coque ridículo que costuma usar, diria que tinha vinte, no máximo.
— Coque ridículo?! — exclamou, levando a mão a cabeça. — Não vejo nada de ridículo!
— Parece uma adolescente querendo ser mulher- — brincou ironicamente. — Preferia que soltasse os cabelos.
— Não deveria fazer comentários desse tipo sobre a minha aparência, señor.
— Concordo, mas simplesmente estou respondendo à pergunta que a senhorita me fez. A propósito, considerando a minha idade, gostaria de poder chama-la de Susana. Pode ser?
Ela apertou as mãos com nervosismo.
— Permite-me escolher a resposta?
— Desculpe, não queria ser grosseiro.
— Não está sendo grosseiro. Se quiser, chame-me de Susana. . .
— Bom — continuou ele, alisando o volante com os dedos —, que tal mudarmos de assunto? Gosta de comer marisco?
— Marisco?
— Sim... Ou lagosta, camarão; frutos do mar?
— Oh, sim… gosto, sim.
— Ótimo. O restaurante para onde vamos serve a melhor lagosta que já comi em toda a minha vida. Ela é preparada com creme de leite e vinho branco. Derrete na boca. Quer experimentar?
Susana concordou com um sorriso, mas no fundo não sentia vontade de comer coisa nenhuma. A presença de Fernando a inquietava, embora não visse por quê.
Para surpresa dela, chegaram a um clube de golfe que dava para o rio Tamisa, perto de Kingston. Era quarta-feira e, naquela noite, não faziam exigência de formalidades. Mas para decepção de Susana, alguns fregueses vestiam-se a rigor, e principalmente a elegância de algumas mulheres fazia com que sua calça de veludo surrada e o suéter de lã creme lhe parecessem horríveis.
Sentaram-se e Fernando, apanhando o cardápio, examinou a lista de vinhos. No decorrer do jantar, ela foi sentindo-se mais a vontade, pois constatou que a presença deles quase não tinha sido notada.
Enquanto comiam e bebiam, falou com espontaneidade sobre o trabalho, contando alguns fatos divertidos que colecionou durante os anos. Fernando, bom interlocutor, ouvia-a recostado, examinando-a atentamente. Quando tomavam o café, ela percebeu que até aquele momento sabia pouca coisa a respeito dele, a não ser que era amigo da família Castana. Ele usava três anéis: dois de prata e um de ouro, nenhum deles na mão esquerda. Mas aquilo não era prova de que não era casado, refletiu, e, por mais que quisesse, não conseguia levar a conversa para a esfera da vida pessoal dele.
Saíram do restaurante por volta das dez horas e caminharam calmamente até o carro, que estava estacionado debaixo de um chorão, cujos ramos mergulhavam nas águas do rio.
— Está com frio? — perguntou ele, vendo-a estremecer repentinamente. Em seguida, abriu a porta do carro. — Entre, não é bom apanhar um resfriado.
Ela obedeceu e o acompanhou com o olhar até ele dar a volta e entrar.
— Está mais confortável aqui dentro?
— Sim...
Fernando sorriu, deu marcha à ré e saiu do estacionamento.
Pouco mais tarde, chegaram a Lorrimer Terrace e o carro parou a poucos metros da porta da casa dos Castana.
Susana olhou apreensiva para as janelas, perguntando-se se não tinham notado sua ausência. Não, não era possível, assim como não era possível que Lucie Castana a estivesse esperando voltar.
— Obrigada, señor, foi uma noite deliciosa.
— Eu também lhe agradeço... Boa noite, Susana.
— Boa noite...
Com um vago sentimento de relutância, ela desceu e Fernando esticou o braço para fechar a porta, dando-lhe um simples aceno antes de arrancar. Susana entrou com uma clara sensação de vazio. Mas que esperava, afinal? Devia estar aliviada por ele não tê-la convidado para sair de novo! Mas não estava… Ao contrário, sentia-se emocionalmente excitada e, por causa disso, irritada consigo mesma.
No dia seguinte, a vida seguiu de maneira habitual. Susana deu aulas a Eduardo pela manhã e, pela tarde, caminharam juntos, correndo de vez em quando para descarregar energias contidas e finalmente relaxarem.
Ela encontrava dificuldade em se acalmar, os olhos procurando entre os carros que passavam o Granada dourado e entre os homens morenos, aquele que acabava de lhe tocar o coração. Mas Susana dizia a si mesma por que Fernando Cuevas quereria vê-la mais uma vez? Ele precisava ter se despedido de uma maneira tão seca e fria? Apesar disso, como evitar ser dominada pela ansiedade?
Decepcionada como uma adolescente ingénua que espera o príncipe encantado que não vem, voltou desanimada com Eduardo para tomarem o chá da tarde. O sr. Castana tinha chegado de viagem enquanto estavam fora, e quando Eduardo viu o pai esperando-o no saguão gritou de alegria e correu para abraçá-lo. Susana cumprimentou o patrão discretamente e retirou-se, pedindo à criada que lhe levasse o chá no quarto.
Na manhã seguinte, Carlos Castana mandou chamar Susana, que, deixando Eduardo sozinho com os exercícios de inglês, desceu até o escritório.
Carlos Castana era um homem de estatura média e robusto, com um bigode fino que lhe tornava o rosto ainda mais delgado. O tipo do homem latino simpático, de quem Susana gostava principalmente pela personalidade ao mesmo tempo delicada e firme.
— Sente-se, por favor — pediu a ela, com cortesia.
Susana sentou-se e aguardou, impaciente, que ele começasse a falar. Naturalmente, pensou, queria ouvir alguma coisa sobre o comportamento do pequeno Eduardo, o que, em geral, ele obtinha indo procurá-la pessoalmente na sala de estudos do garoto.
Carlos Castana sentou-se na escrivaninha e a fitou.
— Em primeiro lugar, srta. King, quero informar que estamos plenamente satisfeitos com o desenvolvimento de Eduardo.
— Obrigada, señor. — Susana cruzou os braços.
— Sou eu quem deve agradecer. A senhorita ultrapassou as nossas expectativas… Como sabe, no passado minha esposa encontrou dificuldade em manter empregados aqui em casa, e, para nossa alegria, a senhorita se adaptou perfeitamente aos nossos costumes.
— Obrigada, señor.
— Como também sabe, estive ausente alguns dias, tratando de negócios... Minha companhia planeja expandir-se, e os diretores promoveram um encontro para elaborar esse plano…
Susana ficou intrigada, não compreendendo por que ele lhe explicava coisas que não lhe diziam respeito. A não ser que aquela fosse a maneira, um tanto indecisa, de lhe chamar a atenção para alguma falta que tinha cometido inadvertidamente.
Ele pegou um charuto, acendeu-o, soltou uma longa baforada e prosseguiu:
— Como estava dizendo, a companhia pretende se expandir, e, para isso, quer abrir uma filial em Nova York. Pois bem, fui convidado a me transferir para lá, para dirigir a empresa.
Agora ela pode compreender. Transferindo-se para lá, a família certamente o acompanharia, o que a incluía como governanta de Eduardo.
— Sim, señor…
— Aceitei o convite, entende? E espero que também aceite o meu convite para ir conosco.
— Sim…
— Aceita? — Ele se levantou, apoiou as mãos na mesa e inclinou-se.
— Não sei, señor... Preciso pensar.
— Claro. Eu a estou informando com antecedência porque, conforme me disse na nossa primeira entrevista, a senhorita já havia passado por uma situação semelhante com uma outra família... Espero que tenha mudado de ideia durante esse tempo. . .
— Não sei... Se fosse Franca, ou Espanha! Nova York é tão distante…
— Mas a senhorita não tem parentes aqui em Londres. Pelo menos foi o que me disse…
— Mas tenho amigos e...
— Fará novas amizades! É uma mulher jovem, srta. King! Desculpe, mas ninguém a pode ignorar… Sabe, percebo como os homens a olham. Não lhe faltarão companhias...
— Bem — comecou ela, corada —, de qualquer modo, obrigada... Realmente preciso pensar no seu convite..,
— Sem dúvida, sem dúvida. Longe de mim coagi-la. Mesmo porque não nos mudaremos já. Espero, porém, que decida o mais rápido possível. Quero uma governanta inglesa para Eduardo, e se não vier conosco…
— Compreendo, señor... — Levantou-se em seguida. — E obrigada por confiar em mim.
Carlos Castana abriu-lhe a porta e, depois que esta se fechou, Susana ficou alguns minutos parada no saguão, refletindo sobre o que tinha ouvido. Quando a criada desceu, ainda estava ali.
— Oh, srta. King... Estava procurando-a. Chegou uma carta.
— Para mim? Onde está?
— Aqui comigo. — Tirou o envelope do bolso do avental. — Entregue em mãos. Sabe de quem é?
Susana pegou a carta das mãos da criada e a segurou com dedos trémulos. Seus olhos fixaram-se na letra. Só podia ser dele!
Ciente de que a criada a observava, curiosa, esperando que abrisse o envelope, caminhou para a escada e subiu rapidamente.
— Obrigada — disse apressada, e desapareceu, certa de que aquele gesto seria motivo para comentários e suposições na cozinha.
Foi ver se Eduardo ainda estava ocupado com as lições e depois fechou-se no quarto. Abriu o envelope com cuidado e tirou a folha de papel transparente. Um olhar rápido na assinatura confirmou-lhe a suspeita: era dele!
"Querida Susana", começou a ler. "Como não é do seu desejo que eu vá ate aí, e como não posso telefonar sem revelar minha identidade, sou forçado a escrever-lhe como única maneira viável de comunicar-me com você. Queria muito vê-la novamente. Devo voltar a Espanha no próximo domingo e por isso gostaria de jantar com você hoje à noite, ou então, amanhã. Talvez já tenha algum compromisso, não sei, mas o fato é que preciso muito vê-la antes de partir. Espero sua resposta. Você me localizará pelo endereço do hotel impresso no alto desta folha. O seu Fernando Cuevas."
Ela leu a carta duas vezes, sentada na beirada da cadeira de braços, sentindo uma excitação absolutamente incontrolável. Exultava apenas com a ideia de vê-lo de novo.
Guardou a carta no envelope e escondeu numa das repartições da bolsa. Em seguida voltou a sala. Na primeira oportunidade pediria permissão a Carlos Castana para sair à noite. Agora que ele estava em casa, ninguém iria se importar com sua ausência. Depois, aproveitando o passeio da tarde, telefonaria para o hotel de Fernando.
Para seu alívio, Lucie Castana apareceu na sala de estudos quinze minutos mais tarde, com o propósito de inspecionar os esforços de Eduardo.
— Señorita — Lucie disse para Susana —, hoje à noite jantaremos fora. Uma pequena comemoração, entende? Meu marido lhe falou da excelente proposta que recebeu para ir aos Estados Unidos, não? — falava com entusiasmo, sem notar a consternação de Susana. — Ah, como será maravilhoso! Já imaginou que pessoas interessantes conheceremos? Haverá tantas coisas para fazer, tantos lugares para visitar! Sabe, eu já estava ficando enfastiada com esta cidade! Não vejo a hora de partirmos! Carlos me disse que moraremos em Long Island, assim Eduardo aprenderá a nadar e conhecerá outros meninos com quem poderá brincar...
Interrompeu-se abruptamente ao perceber a expressão de tristeza de Susana.
— O que tem, senõrita? Não gostou do fato de o meu marido ganhar a promoção? Por quê essa cara?
— Não há nada de errado, señora — respondeu, tentando se recompor. — Então irão comemorar a promoção hoje à noite?
— Foi o que eu disse! Não temos o direito de comemorar? Ou se opõe à ideia de ter que ficar em casa esta noite?
— Não, señora, claro que não... — Sua única chance seria na noite seguinte. E essa chance ela não poderia perder.
— Se assumiu compromisso para hoje, señorita, cancele-o ou transfira-o para amanhã!
— Pois não, señora — concordou, fazendo um gesto de cabeça. Lucie olhou-a pela última vez, voltou-se e saiu. Naquele momento, a Susana importava apenas que, na noite seguinte, jantaria com Fernando Cuevas.
Susana não conseguiu falar com Fernando: quando ligou para o hotel naquela tarde, a recepcionista informou-lhe educadamente que ele estava fora, mas, caso quisesse, poderia anotar o recado. Susana acatou a sugestão, uma vez que não estava certa de que poderia voltar a telefonar.
Na manhã de sábado deu aulas ao pequeno Eduardo e, à tarde, depois que ele saiu com os pais, encontrou um pouco de tempo para lavar os cabelos. Naquela noite, ela os deixaria soltos.
Depois que o garoto foi para a cama, a noite, decidiu trocar-se, embora não tivesse combinado nada com Fernando. Sairia e iria até o final da rua, onde o tinha encontrado pela primeira vez. Permaneceu de pé no meio do quarto, perguntando-se que roupa seria adequada para vestir. Levada por um instinto feminino, pôs um vestido longo amarelo-âmbar, com um decote que lhe ressaltava os seios e mangas largas. Com uma leve maquilagem, sentia-se atraente e à vontade. Para se proteger da aragem fria da noite, jogou nas costas um casaquinho de veludo e pouco antes das oito horas, saiu apressada.
Como da outra vez, não havia sinal do seu acompanhante. Cruzando os braços, puxou o casaquinho sobre o peito e suspirou, desejando ardentemente que Fernando tivesse recebido o recado.
Onde estaria ele? Já passava das oito horas... Não seria melhor procurar um telefone público e ligar para o hotel? Talvez não tivesse recebido o recado ou então decidira partir para a Espanha antes do dia planejado!
Arrepiou-se ao concluir o pensamento. Meu Deus, pensou, estou deixando as coisas escaparem das minhas mãos!
Vinte minutos mais tarde, todas as suas esperanças estavam perdidas. Ele não viria ao seu encontro e faltava-lhe coragem para telefonar! Deu meia-volta e, cabisbaixa, começou a subir a rua arborizada com passos lentos, desolada. Queria apenas entrar na casa sem ser notada pelos Castana. Horrorizava-a a ideia de ter que explicar por que a noite terminava antes mesmo de começar...
Mal tinha dado os primeiros passos, ouviu a voz que gritava:
— Susana! Susana! Por Dios, temia não encontrá-la!
Ela se voltou e viu Fernando descer do Granada dourado e correr para ela. Ficou parada, incapaz de demonstrar alegria pela aparição repentina, em estado de choque por uma emoção que ameaçava arrastá-la para o desconhecido.
— Desculpe-me, desculpe-me. — Sorriu ele. — É que o trânsito de Londres es el diablo. Fiquei preso num engarrafamento por uns quarenta minutos e... — Interrompeu-se bruscamente, percebendo-a imóvel. — O que está acontecendo, Susana? — Ergueu o queixo dela com os dedos e olhou-a detidamente. — Dios! Está chateada comigo! Sou um idiota, não sou? Mas sabia que eu viria, não sabia?
Ela desviou o rosto para livrar-se da mão dele e deu de ombros.
— Como é que eu podia saber?
— Claro que sabia! Não a convidei, então? — Aproximou-se dela e pegou-a nos ombros, sacudindo-a suavemente. — Não imagina como me sentia, sentado dentro do carro, sem a menor possibilidade de avisá-la!
O corpo dele estava próximo, muito próximo do dela, o hálito quente tocando-lhe a pele. Susana, ainda de braços cruzados, limitava-se a fitá-lo, os olhos tristes e apagados, revelando uma súbita fraqueza.
— Sagrada Maria, Susana! Pare de me olhar desse jeito! Não me obrigue a tomar uma atitude que desagradaria a nós dois!
Susana corou e fez um gesto de quem ia se afastar. Com um sorriso, ele a pegou pelo braço e levou-a até o carro. Uma vez acomodados, ela mergulhou num profundo silêncio e ficou olhando para fora. Lentamente, o carro deixou o lugar.
Pouco mais tarde, procurando manter o controle, Fernando tentou conversar com ela.
— Sugiro que jantemos no hotel em que estou hospedado. Parece-me um pouco tarde para nos afastarmos muito do centro, não acha?
Ela não respondeu e ele entendeu o silêncio como uma resposta afirmativa. O carro desceu a Shaftsbury Avenue em direção ao Strand. Susana nunca poderia imaginar que um dia entraria no Hotel Savoy e congratulou-se por estar usando um vestido longo.
Ao chegarem ao hotel, Fernando deixou-a sozinha no saguão por uns instantes para ir conversar com um homem que, pelo aspecto, parecia ser o gerente. Voltou em seguida e a guiou para o elevador.
— Jantaremos na minha suite, que acha? Tem alguma objeção? — Os olhos dela se arregalaram. Não sabia o que dizer.
— Há... há algum problema em jantarmos no restaurante? — perguntou finalmente.
— Não, se prefere.
Susana apertou os lábios, indecisa. Era evidente que não preferia o restaurante, mas perguntava-se como ele se comportaria com ela, sozinhos na suite...
— Se acha prudente não ser visto comigo.. .
Sem dizer uma palavra, ele deu meia-volta e dirigiu-se à recepção, onde conversou novamente com o homem.
As horas que se seguiram, no interior do restaurante, foram as piores já vividas por Susana. Nem mesmo a excelente qualidade da comida lhe despertou o apetite. Ela sentiu-se aliviada quando ele sugeriu que se levantassem e saíssem dali.
De volta ao saguão, ela o olhou com nervosismo.
— Se não quiser me levar para casa, señor, eu o compreenderei.
— Perdoe-me, Susana. Eu me comportei como um grosso durante o jantar inteiro.
— A culpa foi minha, Fernando.
— Não. Foi toda minha. Você estava certa em querer recusar meu convite. Mais uma vez: perdoe-me. — Silenciou alguns segundos e tornou a falar: — Vamos, vou levá-la para casa. Preciso levantar cedo amanhã.
Sem esboçar nenhum gesto, Susana olhou ao redor.
— Este hotel é bastante agradável. Nunca estive aqui antes. Eles recebem muitos hóspedes?
— Como você está vendo, tem muitos hóspedes.
— Você disse que está numa suite. Como é ela?
— Bem, uma suite consiste de muitos aposentos ou poucos...
— E a sua, tem muitos?
— Que interesse tem isso? — perguntou, ajeitando o nó da gravata. — É uma suite pequena: uma sala, dois quartos e um banheiro. Esta satisfeita com a informação?
— Posso conhecê-la? — Ela baixou os olhos.
— Não acho que seja uma boa idéia...
— Por que está irritado?
— Vamos embora, Susana — Fernando respondeu, pegando-a no braço. — Vou levá-la para casa.
Ela não ofereceu resistência e, enquanto caminhavam, condenava-se por ter sido tão tola.
O carro rodava ao longo do Embankment. Susana olhava na margem oposta do rio, as luzes do Festival Hall. Estremeceu ao ouvir o apito surdo de um navio que partia as águas em dois. Um apito tão triste quanto a sua alma, refletiu. Desde que tinham saído do hotel, Fernando permanecia calado. Ela estava quase certa de que, a partir daquela noite, ele jamais tentaria vê-la de novo.
Em pouco tempo, chegaram a Lorrimer Terrace. Susana não via a hora de o carro parar para poder descer. A infelicidade era uma presença física e não compreendia por que aquele homem, que conhecia à menos de uma semana, tinha se tornado tão importante. Ela mesma não era importante para ele, naturalmente. Talvez a julgasse atraente fisicamente, como sugeria o convite para jantar na suite.. . Mas tratava-se de uma atração passageira, uma atração que se desfez em pouco mais de uma hora em sua companhia.
Assim que o carro estacionou levou a mão à maçaneta, mas deteve-se quando ele lhe falou:
— Susana, espere um instante, por favor.
Recostando-se, ela cruzou de novo os braços. Ele desligou o motor e ficou em silêncio por alguns momentos. Então, reacomodando-se, pousou o braço sobre o encosto do banco em que ela estava sentada.
— Não posso deixá-la ir desse jeito... sei que fui grosseiro com você esta noite. Eu não deveria tê-la convidado para sair. A culpa é toda minha.
— Ora, está... está tudo bem… Eu é que não deveria ter aceitado o convite.
— Oh, Susana, não sei o que dizer ou o que fazer. O pior de tudo é que amanhã vou embora de Londres.
— Por favor… — Conteve-se para não chorar, para não deixar crescer dentro de si a estranha sensação de humilhação. — Obrigada, foi uma noite agradável e… oh!
Quando os dedos dele lhe tocaram a nuca, sob os cabelos, ela sentiu dificuldade em respirar. Fernando desceu os dedos pelo pescoço e puxou a gola do casaco para trás, sugerindo que ela o tirasse dos ombros. Depois, tentou aproximar-se, esbarrando, contrariado, no câmbio.
Ela permaneceu imóvel, sem olhá-lo e sem fazer qualquer esforço para encorajá-lo ou desencorajá-lo. No fundo, sequer acreditava que aquilo estava acontecendo. Mesmo quando sentiu no braço o calor do peito dele através da camisa, disse a si mesma que aquilo não podia ser verdade! Ao mesmo tempo sentia a pressão da perna dele contra a sua e o fraco aroma da loção pós-barba. Sim, tudo aquilo era perfeitamente real, tão real que o odor do corpo másculo era forte o suficiente para inebriá-la, fazê-la estremecer... Por isso precisava se manter atenta. Necessariamente, ele não deveria ter por ela o mesmo desejo que ameaçava dominá-la.
— Susana — sussurrou ele em seu ouvido —, olhe para mim, sim? Por favor, olhe para mim!
Ela olhou. Ele estava muito próximo. E não era produto de sua imaginação… Olhava-a com olhos famintos, os lábios trémulos, os dedos acariciando-lhe o queixo e depois os lábios, abrindo-os com delicadeza. Aproximou-se lentamente e a beijou, explorando-lhe a boca calmamente, para enfim entregar-se a uma volúpia que não podia ser controlada. Ele a desejava, sim!
— Susana de mi alma — exclamou, abandonando os lábios dela para beijar suavemente o colo junto aos seios. — Desculpe-me mas não consigo me controlar…
Ela tomou-lhe a cabeça entre as mãos e puxou-a, convidando-o a novos beijos, entregando-se com abandono inocente. Apenas quando ele se moveu, ultrapassando o câmbio, percebeu que, com aquele comportamento, estava pedindo-lhe que fizesse amor com ela.
Com os dedos trémulos, recolheu o casaquinho, abriu a porta e saiu, batendo-a atrás de si. Correu através do pátio, subiu os degraus da escadaria e entrou na casa dos Castana. Da sala de estar chegou-lhe um som de música, mas não havia ninguém. Sem esperar mais, subiu para o quarto, sentindo-se segura e aliviada apenas quando encostou-se na porta fechada. O casaquinho escorregou-lhe da mão e caiu no assoalho e, não podendo mais permanecer de pé, ela atirou-se na cama para chorar incontrolavelmente...
Na manhã de domingo, doía-lhe a cabeça de tanto chorar; seus olhos estavam vermelhos e inchados. Antes de descer, fez uma maquilagem forte que, para sua tristeza, não impediu Lucie Castana de comentar sua aparência.
— Deitou tão tarde assim ontem à noite, señorita! — interrogou, observando as olheiras de Susana. — Meu marido ouviu-a chegar logo depois das dez horas.
— Eu não dormi muito bem, señora. Acho que apanhei um resfriado.
— Nesse caso, espero que não transmita seus germes ao Eduardo ou a qualquer um de nós. Se se sentir indisposta, deve ficar no quarto.
— Sim, señora — ela disse, resignada. No fundo, no fundo, era exatamente o que queria.
— Eu e meu marido vamos sair com Eduardo para visitar alguns amigos.
— Pois não, señora.
— Sairemos dentro de uma ou duas horas. Se se sentir melhor, quando voltarmos, gostaria que pusesse Eduardo para dormir, como de costume.
— Pois não, señora.
Depois que os Castana saíram, a casa mergulhou na calma, pois os empregados tinham sido dispensados: a srta. Travers, a cozinheira, saiu logo após os patrões, provavelmente para visitar a irmã em Ealing; Eleanor, a criada, foi embora um pouco mais tarde, mas como Susana mal a conhecia, não fazia a menor ideia de onde poderia ter ido.
Por volta das onze horas desceu para a cozinha para fazer café. Sozinha, impacientava-se e a cada ruído de motor de avião que ouvia pensava em Fernando, que naquela manhã estaria a caminho de Madrid. Em que região da Espanha teria nascido? Gostaria de saber como vivia e o que fazia! Mas isso era uma coisa que nunca mais saberia.
Esforçou-se para pensar em outras coisas como a mudança dos Castana para Nova York. Que faria ela: aceitaria o convite para acompanhá-los ou procuraria outra família, em Londres mesmo? Uma outra colocação significaria uma nova rotina, fazer novos amigos, conquistar a confiança de novas crianças e de novos patrões. O que seria melhor para ela? Seguir o conselho de uma velha amiga de se estabelecer e casar?
Pensando na amiga, Susana caminhou para o saguão, onde estava o telefone. Ela e Margaret French tinham sido colegas de escola e Margaret, mal chegando em Londres, tinha se fixado num emprego e casado. Agora era mãe de um menino de dois anos de idade. Decidiu telefonar-lhe e avisá-la que pretendia almoçar com eles. Não os via há quase um mês e tinha certeza de que a receberiam com alegria.
Antes que pudesse erguer o fone do gancho, o telefone tocou. Atendeu um tanto perturbada e imediatamente a voz do outro lado da linha falou:
— Susana! É você?
Suas pernas tremeram e procurou encostar-se na borda da mesinha.
— Fernando! Onde está você?
— Oh, como é bom ouvir sua voz de novo!
— Fernando... quer dizer, señor Cuevas, de onde esta falando?
— Prefiro que me chame de Fernando — reprovou-a gentilmente. Alegrava-a o fato de ele não poder testemunhar seu embaraço.
— Mas como é que você pode me telefonar? Não devia estar dentro de um avião neste exato momento?
A resposta veio depois de um breve silêncio, durante o qual ela pensou que ele fosse desligar.
— Meu avião saiu há uma hora atrás...
— O quê?
— Isso mesmo que ouviu. Agora o que interessa é que estamos conversando. Onde estão seus patrões?
— Vão passar o dia fora. Voltarão apenas à noite...
— É mesmo? Então você está livre até lá?
— Imagino que sim…
— Você me parece cautelosa... Não quer me ver de novo depois de ontem a noite, não é mesmo?
— Ora, Fernando! Claro que quero vê-lo! Que quer que eu faça? Ele hesitou alguns segundos.
— Estou telefonando do Hotel Savoy. Vou apanhar um táxi e dentro de uns quinze minutos estarei ai.
— Está certo.
Antes de colocar o fone no gancho ficou parada, o olhar fixo no assoalho, como que encantada. Depois, plenamente desperta e excitada, correu pela escada acima até o quarto. Diante do espelho do banheiro, examinou a maquilagem carregada e, desgostosa, lavou o rosto, limpando-o completamente. Voltou a olhar-se e constatou que não estava satisfeita ainda com o aspecto. Que pensaria ele ao vê-la com a pele cansada? Estava um trapo!
No quarto, tirou a malha e a blusa e vestiu um suéter creme; passou a escova nos cabelos embaraçados com ansiedade, como se com isso pudesse afastar um pouco a frustração.
Quando passava uma sombra azul, soou a campainha da porta. Olhou o relógio e constatou que havia transcorrido dez minutos após o telefonema. Não poderia ser Fernando! Ou poderia?
De qualquer modo, estava quase pronta para recebê-lo, embora não tivesse passado rouge e parecesse um tanto pálida. Suspirou: não importava quem tocasse à campainha, não era para ela.
A campainha soou novamente, com insistência, como se alguém a apertasse continuamente, de propósito. Era preciso atender. Olhou-se pela última vez com um ar conformado e desceu para o saguão.
A visita, ao que parecia, irritava-se com a demora.
Destrancou a porta pesada e entreabriu-a com cautela.
— Fernando! — exclamou. — Como chegou tão depressa?
Ele entrou sem dizer uma palavra sequer, o olhar luminoso expressando ansiedade. Fechou a porta e a fitou demoradamente. Susana, incomodada com aquele olhar, perguntou-se o que ele estaria pensando dela.
— Desculpe… achei que fosse outra pessoa..
E então viu-se nos braços dele, as mãos contra o peito forte e pulsante, os lábios colados, pela primeira vez experimentando uma emoção tão boa. À medida que as mãos dele desciam para seus quadris, puxando-a contra ele, sentiu a irresistível vibração da masculinidade.
Finalmente, ele a afastou, as mãos prendendo-lhe os ombros.
— Susana! Sejamos sensatos… Quero amá-la, muito, mas não no saguão da casa dos Castana!
— Oh, claro — respondeu, voltando a si e levando as mãos a cabeça — Devo estar parecendo uma megera, não? Nem tive tempo de me pentear!
Fernando tirou um charuto e o acendeu com dedos trémulos.
— Não tenha pressa — observou. — E você não se parece com uma megera coisa nenhuma. Está muy deseable, muito desejável! Mas não dormiu bem esta noite, não é?
— É, não muito bem. ..
— Eu também não — acrescentou, tomando-lhe as mãos.
— Desculpe… vou subir um instante para terminar a maquilagem...
— Não! — ele exclamou, apertando-lhe as mãos. — Esqueça a aparência. No importa! Só importa você!
— Eu?
— Sim! Você! Susana, não sei como, mas preciso explicar por que não viajei esta manhã…
— Não, não precisa, não...
— Não sei o que pensa de mim, mas não sou o tipo de sujeito que gosta de se envolver em casos passageiros… Sabe, nunca me senti atraído por isso…
— Por favor...
— Deixe-me continuar. Quero explicar o porquê do meu comportamento de ontem à noite e de hoje pela manhã…
— Por favor, Fernando, esqueça. . .
— Não posso esquecer! No meu país, Susana, um homem não desonra uma mulher jovem e solteira sem o sentimento de auto-recriminação...
Susana não sabia o que pensar. Não compreendia o que ele estava querendo dizer-lhe, mas de alguma maneira intuía que toda a alegria de alguns minutos atrás seria destruída rapidamente.
— Fernando, aqui na Inglaterra as coisas são diferentes. Nós aqui beijamos uns aos outros sem fazer desse gesto uma questão moral.
— Fique quieta! Como pode comparar a intensidade do nosso relacionamento com um simples "beijo"? Algum homem a teve nos braços como eu? Algum homem já a beijou como eu?
— Não foi o que eu quis dizer!
— Então o que é que está dizendo?
Susana recuou, desvencilhando-se das mãos dele.
— Não gostaria que se desculpasse por algo de que participei…
— Uma desculpa? É assim que você está vendo as coisas? — Ela se afastou, indo em direção à escada.
— Voltarei em um minuto...
Ele a seguiu, detendo-a e puxando-a contra si. Ela relutou alguns segundos, mas quando sentiu os lábios dele no pescoço rendeu-se ao desejo, um desejo mais forte do que o amor-próprio.
— Susana — ele murmurou —, não vim me desculpar, e sim porque tinha que vir, para vê-la mais uma vez, entende? Amada... Não quero magoá-la. Você entrou em mim pela pele, entende? Estou apaixonado por você!
Susana não acreditava no que ouvia. Mesmo sentindo a presença daquele corpo junto do seu, ávido, não conseguia aceitar aquela declaração.
— Fernando... — Ele a impediu de continuar, abraçando-a e beijando-a impetuosamente.
— Não acredita? Acha que estou brincando?
— Não acho que esteja brincando — ela respondeu, alisando a lapela do paletó dele. — E não é que não acredite, também. Estou surpresa!
Relutante, ele se afastou dela.
— Sei que está nua por debaixo do suéter, mas sinto a irresistível tentação de ver se é verdade. Por favor, ajude-me a manter o controle!
Ela enrubesceu e ele sorriu ao sentir-lhe as mãos acariciando os cabelos, abotoando seu paletó...
— Suba e vista um casaco — ele pediu, empurrando-a gentilmente. — Vamos almoçar e depois você me mostrará os lugares mais acolhedores da cidade. Os lugares mais agradáveis e tranquilos para ficarmos sozinhos, está bom?
Os dois almoçaram num pequeno restaurante de cozinha grega no bairro de Soho. Conversaram animadamente sobre assuntos impessoais e apenas ao final da refeição, quando seus olhos se encontraram de modo afetuoso, a comunicação entre eles tornou-se íntima e perturbadora.
Ao saírem do restaurante resolveram caminhar um pouco. Como Fernando havia dispensado o carro de aluguel, deslocavam-se de um lugar a outro de táxi. Mas Susana gostava de andar, de sentir a pressão da mão de Fernando na sua, de observar a brisa agitando os cabelos dele. A luz brilhante do dia era como que uma exteriorização de sua alma. Sentia-se feliz como nunca. Até aquele momento, tinham evitado falar sobre a partida dele para a Espanha, embora ela soubesse que, sem dúvida, ele havia ficado por causa dela.
No meio da tarde, sentaram-se debaixo de uma das árvores de Kensington Gardens, um recanto perfeito para casais apaixonados. Fernando deitou-se, apoiando-se nos cotovelos, e Susana encolheu as pernas e passou os braços em torno dos joelhos. O dia caminhava rapidamente para o encontro da noite, dando uma sensação de final que começava a deixá-la irrequieta.
Fernando estendeu um braço e tocou-lhe o ombro, puxando-a para deitar-se a seu lado.
— Em que está pensando? — perguntou, examinando a expressão preocupada no rosto dela. — Não gostou do modo com que passámos o dia?
Susana procurou relaxar o corpo, deitada sobre a relva aquecida pelo sol.
— O dia foi maravilhoso, Fernando. . . Mas já está acabando.
— Compreendo. Não quer que ele acabe? Pois eu também não. — Consultou o relógio. — Ainda temos muitas horas pela frente. . .
— Não. Preciso voltar antes das sete. A señora Castana quer que eu ponha o pequeno Eduardo para dormir.
— Será que ela não pode fazer isso pelo menos uma vez na vida?
— Ela pediu e eu concordei. É meu trabalho, afinal de contas,
— E amanhã, naturalmente, você deve trabalhar. . .
— Amanhã? — Susana não escondeu a perplexidade.
— Si, mañana.
— Mas... mas você não vai, quer dizer, não tem que voltar para a Espanha?
Fernando estreitou os olhos.
— Prefere que eu volte para a Espanha amanhã, Susana?
— Oh, não, não! — Aproximou-se, acariciando-lhe o nariz com a ponta do dedo. — Prefiro que fique aqui para sempre!
Ele segurou-lhe a mão e beijou a palma e os dedos com uma ternura inconfundível.
— Amanhã ainda continuo em Londres… Vou telegrafar avisando que houve um imprevisto e que vou me atrasar…
— Oh, Fernando!
Os lábios dela se abriram para receber os dele. Ele a abraçou, a pressão dos corpos fazendo-a ceder, aconchegando-se num convite à posse…
— O que é que vocês estão fazendo?
A voz infantil e estridente soou nas costas de Fernando, obrigando-o a afastar-se de Susana. A menina os olhava com curiosidade.
— Costuma conversar com estranhos, pequeña! — perguntou ele sem esconder a irritação. — Onde está sua mãe?
— Linda! Linda! — chamou a voz de uma mulher, como que respondendo à pergunta. — Onde está você? Venha já para cá!
Linda sorriu para Fernando e saiu correndo por entre as árvores. Fernando, sem olhar para Susana, levantou-se, retirando a grama grudada na calça.
— Talvez seja melhor tomarmos um chá, que tal? Depois a levarei para casa.
Ela também se levantou, repetindo o gesto de limpar a roupa. Por que ele teria mudado tanto? Perguntou-se. Impossível que a curiosidade de uma criança o deixasse tão mal-humorado.
Tomaram chá e comeram bolo de trigo num café em Knightsbridge e mais tarde um táxi os levou a Lorrimer Terrace. Falaram pouco depois do incidente com a menina no parque e mais uma vez Susana pressentiu o clima de alguma coisa que se acabava… O que, afinal, estava errado? Por que ele parecia tão aborrecido?
O táxi parou à entrada da casa. Susana desceu tão depressa que ele mal pôde lhe falar. Pediu ao motorista para aguardar e a alcançou no meio da escada.
— Nós nos veremos amanhã?
— Você... você quer? — arriscou, confusa,
— Tem dúvida?
— Não sei o que dizer. — Ela balançou a cabeça. — Pensei que tivesse mudado de idéia.
Fernando suspirou, pondo os dedos sobre os lábios dela.
— Sinto muito. Não mudei de ideia, não... — Lançou um olhar impaciente para o táxi que o esperava. — Amanhã a noite, que tal?
— Está bem — ela concordou.
— No mesmo lugar. — Sorriu. — Prometo não me atrasar. Te adoro, mi alma. Hasta mañana.
Beijou-lhe a mão e afastou-se. O carro se pôs em marcha e ela sentiu-se novamente sozinha.
Ela viu Fernando todas as noites da semana seguinte. Felizmente, os Castana estavam tão envolvidos com suas próprias coisas que mal prestaram atenção ao que ela fazia, o que a livrava de ter que dar explicações. Extremamente excitada, vivia os dias antecipando cada noite, sempre temendo que, de repente, numa manhã qualquer, Fernando decidisse retornar a Espanha.
O fato de que só raramente ficavam sozinhos se devia às precauções dele, pensou Susana. Ele sabia, melhor do que ela, que o relacionamento facilmente caminharia para uma intimidade que ele evitava, por respeitá-la verdadeiramente. Os leves beijos de despedida já tinham sido substituídos por beijos apaixonados que denunciavam o desejo de fazer amor. À noite, ela mal podia pegar no sono, sentindo nas entranhas do seu corpo a fome de amor que apenas ele poderia saciar.
Mas na noite de sexta-feira, sentados num agradável e enfumaçado pub de Chelsea, a certa altura ele a olhou bem nos olhos e disse:
— Que me diz de passarmos um fim de semana no campo?
— Um fim de semana no campo? Por quê?
Ele inclinou-se para ela, falando com voz suave:
— Um amigo meu, ou melhor, um colega de trabalho, tem uma casa num lugar chamado Wendcombe. Conhece?
— Wendcombe? — Procurou ignorar o tremor que começava a tomar-lhe o corpo tossiu. — Vagamente. É uma vila, não? Em Buckinghamshire?
— Si, acho que é a mesma, se me lembro bem. Bien, não gostaria de passar um fim de semana nessa casa?
— Não sei bem o que você quer dizer com isso — retrucou, as faces ardendo.
— Não sabe? Pois eu acho que sim. . .
— Você quer dizer que passaremos sozinhos esse fim de semana?
— Minha proposta a assusta?
Ela respirou com dificuldade. Não achava assustadora, não. Mas provocativa e perigosa. . .
Desviou o olhar do dele e fitou o copo. Que lhe responderia? Como lhe contaria que nunca tinha feito nada semelhante antes? Talvez ele nem suspeitasse disso... Estaria encorajando-o a fazer propostas como aquela? Eis que pela primeira vez na vida se envolvia intensamente com um homem! Não estaria ele se apoiando no equívoco de que todas as mulheres inglesas eram adeptas do sexo pelo sexo?
Finalmente voltou a fitá-lo. O olhar dele estava fixo no copo que segurava entre as mãos. Em que estaria pensando? Que resposta estaria esperando?
Suspirou fundo, pensando que, durante toda aquela semana, tinha sabido muito pouco a respeito dele. Sabia que a família dele possuía vinhedos perto de Cadiz, na Espanha, e que estava em Londres para tratar da exportação de seus produtos. E isso era tudo. O que dizer da vida pessoal? Talvez ele lhe tivesse contado apenas o necessário. De uma coisa tinha certeza: sentia amor por ela. Havia amor em cada toque, em cada beijo, em cada olhar; um amor que lhe garantiria uma completa satisfação quando um dia se entregasse sem receio. Mas o que significava aquela proposta naquele momento do relacionamento?
— Não posso, Fernando — respondeu finalmente, sentindo-se desconfortável na cadeira.
Fernando a ouviu e, no silêncio que se seguiu, não esboçou nenhum gesto. O olhar continuou neutro, como se de repente todas as sensações tivessem cessado. Então, recostou-se e os lábios se entreabriram, tensos.
— Muito bem… Quer tomar outro drinque?
— Fernando! Procure compreender... não conseguiria. . .
— Não há nada para explicar, Susana — interrompeu. — Eu compreendo. — Tomou o último gole de uísque e olhou pensativamente o fundo do copo. — Desculpe-me. Preciso de uma outra dose.
Enquanto ele atravessava o salão em direção ao bar, ela o observou. Andava com elegância e firmeza, atraindo a atenção de algumas mulheres. Hesitava em considerar por uma segunda vez o convite… imaginava-o nu, esguio e bronzeado, os cabelos desmanchados depois de um momento indizível de amor.
Que mulher teria resistido ao convite de Fernando Cuevas? No entanto, ela, que o amava, recusara...
Quando ele voltou, Susana sentiu as palmas das mãos molhadas de suor. Que indisposição ameaçava derrubar-lhe o ânimo? Oh, como era covarde. Tinha medo, medo da felicidade! Medo de sofrer as mesmas consequências sofridas pela mãe abandonada! Se ele a amava, como havia jurado, não a abandonaria nunca! E, se recusasse o convite, ele desapareceria?
Fernando acomodou-se e ergueu o copo de uísque numa saudação silenciosa. Depois, colocou-o sobre a mesa, acendeu um charuto e soltou uma baforada.
— Quero lhe dizer uma coisa, Susana... No começo da semana que vem devo voltar a Espanha.
Ela emudeceu. Sabia que aquilo um dia aconteceria, mas não sabia que este dia estava tão próximo!
— Sim...? Sentirei sua falta.. .
— Também sentirei sua falta… Não imagina quanto!
— Precisa ir mesmo?
— Não há outro jeito! Graças a você, jamais me esquecerei dessa estada em Londres.
— Não tem mais nada a dizer? — perguntou, engolindo em seco.
— Que mais quer que eu diga? — retrucou, olhando-a de soslaio.
— Vou vê-lo de novo?
— Talvez... — respondeu, olhando a brasa do charuto, — Quando voltar a Londres. Isto e, se você estiver vivendo com os Castana.
— Os Castana estão mudando de Londres para Nova York! Pediram-me para acompanhá-los.
— Você aceitou? — Franziu o cenho, num sinal de preocupação.
— Não sei ainda... Disse-lhes que ia pensar…
As mãos dele prenderam as dela e repentinamente as pernas se tocaram.
— Susana! — exclamou, num murmúrio. — Por favor, vamos a Wendcombe. Quero demais ficar com você. Só nós dois! Quero lhe mostrar o quanto a amo! — Seus lábios acariciaram a orelha dela. — Você quer também! Sabe que quer!
— Fernando...
Olharam-se com ardor.
— Tenho certeza de que os Castana lhe permitiriam sair amanhã depois da hora do almoço...
— Eles... eles talvez…
— Tem medo de mim? — interrompeu, acariciando-lhe o rosto.— E porquê? Não vou magoá-la. Pelo contrário, quero adorá-la, com o corpo e com a alma…
Susana inclinou-se, encostando a cabeça no peito dele. — Isso é totalmente novo para mim, Fernando — confessou quase sussurrando. — Terá que ser paciente comigo...
— Oh, amada, serei o amante mais paciente do mundo — ele sussurrou também, olhando apaixonadamente os lábios entreabertos.— Mas é melhor sairmos já, antes que lhe mostre aqui mesmo o quanto a desejo.
Os Castana concordaram em que Susana se ausentasse desde a tarde de sábado até à noite de domingo. Ela odiava mentir, mas foi obrigada a dizer que passaria o fim-de-semana com uma amiga, e que esta havia sugerido que dormisse em sua casa.
Na manhã de sábado, tudo transcorreu normalmente: antes de dar aula ao garoto tinha tratado de preparar a bagagem. Depois do almoço, seguindo as instruções de Fernando, tomou um táxi e rumou para o Hotel Savoy, onde o encontrou no saguão.
— Já estou pronto. Minha mala está no carro. — Carro? Você tem carro?
— Como poderia leva-la para um lugar distante sem nenhum meio de transporte próprio? — Abriu um largo sorriso. — Vamos, estamos perdendo tempo. Eu a quero inteirinha para mim!
Ele tinha alugado um Mercedes cinza e Susana sentou-se no banco da frente com certa precaução.
— Não gostou do carro? — adiantou-se ele. — Tenho um desse lá em casa, . .
— Gosto, mas é muito sofisticado — confessou, passeando os olhos pelo interior. — Gosto mais do Granada.
— Eu também — ele concordou, dando de ombros. Em seguida entrou e ligou o motor. Em breve o carro deixava o estacionamento.
Quando atingiram a zona rural de Buckinghamshire, o nervosismo de Susana tinha desaparecido. Wendcombe era uma graciosa aldeia com uma praça quadrada verdejante, em cujo lago patos nadavam indiferentes aos observadores. Via-se uma pequena igreja de pedras, uma loja, um correio e uma escola. Afora isso, as edificações alternavam-se em casas de pedra altas e casinhas caiadas de branco. A luz do sol que declinava acentuava as cores vivas das flores e uma brisa tranquila soprava, harmonizando-se com a calma dos habitantes.
— Mas que beleza! — Susana exclamou, entusiasmada. — Esteve aqui alguma vez?
— Uma só — respondeu ele, sorridente, dirigindo atentamente pela rua estreita —, a convite de Robert e sua mulher. Sabe, eles vêm para cá apenas nos fins de semana... não em todos, bem entendido...
Ela enrubesceu e recostou-se, repentinamente apreensiva por lembrar-se dos motivos que a tinham levado até ali.
— Tranquilize-se — disse ele, notando a mudança de humor dela. — Você veio para sentir-se bem. Ninguém vai forçá-la a nada que não queira…
Glicínia, nome de flor dado à casa de campo, ficava no final da aldeia, em meio a um pequeno jardim cercado, repleto de flores. Fernando estacionou o carro numa estreita passagem ao lado, entre a parede lateral da casa e a vegetação, tirou as malas e guardou as chaves no bolso. Abriu a porta e afastou-se para dar passagem a Susana.
Entraram imediatamente na sala de estar e ela avistou, mais adiante, uma pequena sala de jantar. O piso estava coberto de tapetes coloridos, combinando com as paredes pintadas de creme e a mobília de couro. Na lareira, havia lenha para o fogo, sugerindo o frio intenso da região, mas naqueles poucos minutos Susana percebera o calor fornecido por um sistema central de aquecimento instalado da maneira mais improvisada possível.
Ela entrou com certa curiosidade, examinando a casa com interesse, enquanto Fernando fechava a porta e colocava a bagagem aos pés de uma escada de madeira.
— Bien. Gostou?
— É simplesmente lindo! Nunca imaginei que uma casinha tão modesta pudesse ser tão confortável! A gente vê que eles conservaram a casa no que ela tinha de mais original.
— Tem razão. É uma casinha aconchegante — ele comentou, cruzando os braços.
— Onde fica a cozinha? Tem fome? Não quer um chá, um café?
— A cozinha fica ali — respondeu, indicando com o braço direito. — E é claro que aceito um café. A caseira dos Cunningham, a señora Minto, virá nos preparar o jantar.
Susana esboçou uma expressão de desapontamento.
— Oh, virá?
— Por quê essa carinha? Prefere você mesma cozinhar?
— Bom... quero dizer, ela não vai estranhar, não?
— Estranhar o quê?
— Que nós fiquemos sozinhos aqui!
— Talvez — respondeu com ar de quem se divertia. — Mas como todas as boas caseiras, ela guardará os pensamentos para si mesma.
A cozinha, ao contrário dos outros aposentos, tinha sido reformada e equipada com uma pia de escoamento duplo e prateleiras, em cuja parte inferior estavam uma lavadeira, uma secadeira, um refrigerador e um lavador de pratos.
Fernando abriu um armário e apontou para o café, o açúcar e as xícaras de porcelana, mostrando-lhe ainda os alimentos guardados na geladeira. Depois se retirou para o andar de cima.
Susana não conseguia conter a alegria. Que importância tinha o que pensassem? Eram dois seres adultos, livres para viver suas vidas como bem quisessem.
Preparou a bandeja com o bule de café e as xícaras e a depositou sobre a mesinha diante da lareira. Num impulso, subiu à procura de Fernando. A escada dava para um corredor em que se viam quatro portas, uma delas entreaberta, deixando entrever o quarto fronteiriço.
Ficou parada na frente da porta e então viu as duas malas aos pés de uma enorme cama de colunas. Notou uma porta aberta que, provavelmente, era a do banheiro contíguo. Decidiu entrar mas nisso Fernando saiu do banheiro, a jaqueta atirada casualmente sobre os ombros. Estava sem gravata e com os dois primeiros botões da camisa desabotoados. O olhar de Susana parou nos pelos castanhos que emergiam e subiam até ao pescoço. Estremecendo, constatou que experimentava o primeiro instante de intimidade entre eles.
Quando a viu, Fernando jogou a jaqueta sobre uma cadeira de braços situada num canto e aproximou-se dela. Pressentindo o pânico de Susana, deteve-se antes de alcançá-la.
— O café está pronto — disse ela, temendo um gesto afetuoso. — Só queria saber onde você estava…
— Quer ver o resto da casa? — perguntou, girando em torno de si e erguendo os braços.
— Imagino que este é o quarto principal. . .
— Correto... Há um banheiro ali, como pode ver, com chuveiro e tudo o mais. . .
— É muito bonito, confortável. . .
Ela afastou-se e ele saiu em direção ao corredor e abriu uma outra porta.
— Este é o segundo quarto — observou, com a voz fria.
— Aquelas cortinas azuis são muito elegantes… — disse ela, sentindo-se idiota.
— As outras portas não devem ter interesse para você. Uma dá para o banheiro, que pode ser alcançado pelo quarto principal, a outra dá para uma espécie de despensa.
— Sei... — Susana forçou um sorriso. — Bom, vamos descer para tomar café?
— Susana — começou ele, bastante impaciente —, o que foi que eu disse? O que foi que fiz? Você se comporta como se estivesse com medo de mim, como se eu fosse agredi-la! Garanto-lhe, não pretendo forçá-la a nada, absolutamente!
— Sinto muito.. .
Ele murmurou algo incompreensível e em seguida desceu a escada à frente dela. Quando ela desceu, viu-o sentado num sofá forrado de couro, servindo as duas xícaras com um ar sério e concentrado. Sentou-se no meio do sofá de propósito, pensou ela, só para obrigá-la a pedir licença para sentar-se.
Ela instalou-se no braço de uma cadeira e observou-o tomar o café sem o menor prazer. Inclinou-se e apanhou sua xícara. Aspirou o aroma e olhou-o com tristeza, constatando que ele a ignorava, limitando-se a repor a xícara no pires. Depois, recostou-se e estendeu os braços ao longo do encosto.
Susana terminou o café e, quando apanhou a bandeja para levá-la para a cozinha, deteve-se ao ouvir a voz inflexível.
— Deixe-a aí. ..
— Vou lavá-las agora... não disse que alguem virá preparar o jantar?
— Eu disse para deixar aí — insistiu, o olhar frio e distante. Ela o encarou, perturbada.
— Não sou uma criada, sabia? — E fez um gesto de quem sairia carregando a bandeja.
Fernando pôs-se de pé e por um momento travou-se uma batalha silenciosa de vontades. Susana desviou o olhar e rumou para a cozinha. Ele não a impediu, como ela temia.
Uma vez na cozinha, Susana sentiu a coragem abandoná-la e, quando colocou a bandeja sobre a mesa, estava sem forças para nada. Oh, Deus!, exclamou para si mesma, não queria discutir ou brigar com ele. Queria amá-lo!
Demorou-se o quanto pôde para lavar as poucas louças e depois voltou para a sala. Fernando esticara-se no sofá e lia o jornal, indiferente à presença dela. Que poderia fazer? Lançou um olhar para a roupa que estava usando e pensou em tomar um banho e se trocar.
Num movimento impulsivo, subiu para o quarto. Tirou uma toalha da mala e foi para o banheiro, aliviada pelo fato de que, para sentir-se segura, poderia trancar as duas portas.
A água quente jorrou do chuveiro e, antes de entrar no box, protegeu os cabelos com uma touca que se achava ali para esse propósito. Ao se enxugar, lembrou-se de ter deixado o vestido no quarto. Assim, embrulhou-se na toalha, apanhou a calça e o suéter e encaminhou-se para a porta. Teve que deter-se: Fernando estava sentado ao lado da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto enterrado nas mãos. Aquela posição transmitiu-lhe desespero e seu coração se desfez. Evidentemente, ele não a tinha ouvido abrir a porta do banheiro, embora pressentisse não estar sozinho. Então ele deixou cair uma das mãos e voltou-se para ela. Em seguida levantou-se e foi a janela, distanciando-se o quanto pôde.
Finalmente, Susana entrou no quarto, colocou as roupas sobre o encosto da cadeira e abriu a mala. Mas seus olhos não se desviaram de Fernando, que estava de costas, as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Daria tudo para saber o que passava pela cabeça dele, enquanto olhava fixamente para o jardim abaixo da janela.
Deu de ombros, apanhou o vestido e voltou ao banheiro, trancando a porta por dentro. O vestido era longo e negro, com barra branca, o que lhe acentuava a palidez da pele e o brilho dos cabelos. Foi de novo para o quarto e penteou os cabelos rapidamente. Antes de colocar a escova sobre a mesa, olhou-o de novo.
— Gosta do meu vestido? — Fernando voltou-se, o rosto endurecido.
— É muito bonito. Você é muito bonita. Mas, naturalmente, sabe disso melhor do que eu...
— Perdoe-me, Fernando — ela pediu, deixando transparecer certa angústia. — Sou uma boba. — Não! O bobo sou eu! Errei em trazê-la para cá!
— Por quê? — Os lábios tremeram. — Não... não me quer?
— Não a quero?!!
Caminhou a passos largos, com determinação, e a tomou nos braços, apertando-a, como que não querendo deixar nenhuma dúvida de que a desejava.
— Por Dios, Susana! — exclamou, a boca tocando-lhe o pescoço. — Eu a amo, eu a amo, eu a amo! Nunca amei outra mulher dessa maneira.. .
Susana envolveu-o com os braços, acariciando-o, os lábios buscando-lhe o pescoço.
— Oh, Fernando!
— Não quero magoá-la!
— Não está me magoando... apenas agora há pouco, lá embaixo, eu quis morrer de raiva!
As mãos dele deslizaram pelas costas macias de Susana, os dedos explorando os frágeis contornos dos ombros.
— Não quis magoá-la — insistiu. — Mas você me feriu, e eu não quis ficar quieto. Você me pareceu tão assustada! Não tenha medo de mim. Preciso tanto de você… Quero apenas amá-la...
Beijaram-se. Ela entregou-se, abandonou-se completamente, demonstrando que não o temia, que, ao contrário, desejava-o ardentemente…
De repente, ouviu-se um ruído na sala de estar. Era a porta que se fechava. Relutante, Fernando afastou-se dela.
— Deve ser a señora Minto — observou em voz baixa. — Por favor, Susana, não me olhe assim! Tenho fraquezas como qualquer outro homem!
— Sei disso — ela respondeu com ternura.
— Pois desça e apresente-se à señora Minto — aconselhou. — Agora quem vai tomar banho sou eu!
A sra. Minto não era a mulher austera que Susana tinha imaginado, mas deixou transparecer que não aprovava a decisão dos Cunningham de emprestar a casa a um casal solteiro.
Susana foi encontrá-la na cozinha, no exato momento em que tirava o casaco para pôr um avental.
— Como vai, senhorita? — disse ela, sorrindo. — Sou Alice Minto. Esperavam pela minha vinda, não?
— Olá, como vai? Sou Susana King. Foi muita gentileza sua vir preparar o jantar para nós em pleno sábado.
A sra. Minto amarrou o avental com destreza. — É o meu serviço, senhorita. Quando o sr. e a sra. Cunningham estão aqui, trabalho inclusive nos domingos.
— Oh! A senhora dispõe de tudo o que precisa?
— Sim, senhorita. Já liguei o forno para preparar um belo assado. Penso em lhes fazer um pudim típico de Yorkshire. Gosta de batata assada?
— Hum! Adoro!
A sra. Minto começou a tirar as verduras de dentro da cesta que tinha trazido.
— Foi o marido da senhora que as plantou? — perguntou Susana, vendo as verduras frescas.
— Não, senhorita. Meu marido morreu há três anos. Se ele ainda estivesse vivo eu não estaria trabalhando aqui. Ele não deixaria, não.
Susana ficou desconcertada e baixou os olhos. Tinha ouvido dizer que as pessoas do interior costumavam ser francas, mas não imaginava quanto!
— Sabe, eu acho que sou antiga — disse a sra. Minto, lavando as batatas. — A maioria dos casais de hoje não dá importância ao casamento.
— Sim, mas nem tudo é tão simples assim.
— Esses não têm a menor consciência do que é colocar um filho no mundo.
— Bom — disse Susana, virando-se para sair —, se não precisa de mim, vou deixá-la trabalhando tranquilamente...
— Não se impressione com a minha maneira de falar. Sabe, eu não tenho nada contra aquele homem, don Fernando... Gosto dele, porque é um perfeito cavalheiro. Quando esteve aqui, no ano passado, ele costumava abrir as portas para mim, e dizia obrigado para tudo. — Balançou a cabeça, lembrando-se. — Como poderia esquecer um homem tão gentil? E olhe que esteve aqui apenas uma vez!
— Fico contente com isso, sra. Minto — murmurou, um tanto secamente.
— Sei que sou uma velha intrometida, senhorita. É o que falavam de mim... ou falam. Minha filha tem a mesma opinião.
— Com licença — desculpou-se Susana, fazendo um gesto de cabeça, e saiu.
Parou em frente à janela da sala de estar que dava para o jardim. Que alívio ficar longe da língua ferina da sra. Minto, pensou, ao mesmo tempo sentia-se preocupada com o que os habitantes da aldeia estariam pensando dos hóspedes dos Cunningham. Seria hábito dos proprietários emprestar a casa a pessoas amigas?
Tinha lhe soado estranho ouvir a sra. Minto chamar Fernando de don, no entanto devia ser assim que o tratavam na Espanha. Sabia pouco a respeito dele, e com certeza ele só lhe diria alguma coisa mais quando achasse conveniente. No fundo, no fundo, o importante era estar com ele.
Passou os braços em torno do corpo e estremeceu ao antecipar os acontecimentos da noite que se aproximava. Imaginar o clímax do amor que ele começava a demonstrar antes da chegada da caseira significava aumentar o desejo por ele, significava querer abrir os braços e mostrar para todo mundo o quanto se sentia feliz! Ao mesmo tempo que pensava girou em torno de si, para, num instante de surpresa, deter-se: Fernando descia os degraus da escada, observando-a. Os cabelos estavam molhados e vestia uma camisa de seda branca de mangas compridas e calça creme ajustada nas pernas, destacando a potência dos músculos das coxas.
Ele se parece mais com um pirata do que com um homem de negócios, Susana pensou.
— Quero tomar um drinque! E você, Susana?
Ela andou devagar na direção dele e pararam junto a uma cómoda.
— Não sei — respondeu, encolhendo os ombros. — Um xerez, talvez?
— Xerez! — exclamou, fitando-a de tal modo que ela deu um passo atrás.
— Que há de errado?
— Nada, nada. Xerez, que seja!
Susana sentou-se no sofá, intrigada com a mudança de atitude dele. De repente, notou como era sensível o comportamento dele. Sem dúvida, estava cansado, um pouco tenso, mas.. . mas ela também estava!
Ele se juntou a Susana, levando os dois copos, um de xerez outro de conhaque. O fato de sentar-se longe deixou-a ainda mais intrigada, mas preferiu não comentar e limitou-se a beber.
— A sra. Minto está preparando uma comida inglesa tradicional: assado e pudim de Yorkshire. Espero que goste.
Fernando deitou a cabeça no encosto.
— Não estou com fome — confessou. — Mas gostaria de comer tortillas.
— Tortillas! Um tipo de panqueca?
— Não... digamos que seja uma versão espanhola de omelete de vocês, mas muito mais picante. Nunca experimentou?
— Nunca estive na Espanha!
— Os Castana não comem comida espanhola?
— De vez em quando a sra. Travers, a cozinheira, faz para agradá-los, mas em geral faço minhas refeições com os empregados.
— Compreendo...
— Você... você não fala muito sobre a Espanha, não é? — arriscou.
— Tem interesse pelo meu país?
— Claro que tenho.
— O que quer saber?
Ela suspirou, estranhando o tom de voz frio e impessoal com que ele tinha falado.
— Fale-me sobre Cadiz, o lugar em que mora. Parece-me que há lá muita influência mourisca, não?
— Os mouros influenciaram toda a Espanha. A influência em Andaluzia é das mais fortes. Não acha irónico que uma civilização como aquela tenha ruído a partir do seu interior?
— Que quer dizer?
Ele inclinou-se para olhá-la melhor.
— O soberano mouro se apaixonou por uma moça cristã, mas ele já era casado. Tentou substituir a esposa, mas ela era ciumenta: fugiu do palácio com o filho e reuniu um exército para vencer o marido. Venceu e fez do filho o rei. O conflito enfraqueceu as forças mouriscas e tiveram que ceder à investida dos cristãos.
— Que história intrigante — ela murmurou, fascinada. Fernando estudou-lhe a expressão por alguns segundos e depois recostou-se.
— Não é mesmo? Um dia você visitará Granada, Alhambra, e verá com os próprios olhos o que o soberano perdeu... por amor!
— Granada! — pronunciou a palavra devagar. — Um nome muito bonito, não é? Cadiz, Sevilha, Málaga! Sente saudade desses lugares?
— Sim, um pouco. — Fernando levantou-se rapidamente, lançando um olhar para ela. Caminhou até à janela e ficou olhando para fora, a expressão grave.
Susana terminou de beber o xerez e colocou o copo sobre a mesinha. Não conseguia compreender o estado de espírito de Fernando, o temperamento instável, oscilando entre a alegria e a tristeza.
— Ouvi dizer que Andaluzia é um dos lugares mais lindos da Espanha.
Ele voltou-se, encostando-se contra a janela.
— Mas como todas as coisas lindas, existe o lado feio e negro. Existe a crueldade ao lado da beleza...
— Só espero que não exista mais crueldade lá do que em outras partes... Este mundo é muito imperfeito!
— Concordo — disse ele, andando pela sala. — Mas duvido que seria tão tolerante em relação à corrida.
— A tourada?
— Si. Talvez seja o exemplo mais perfeito para descrever a natureza da nossa crueldade.
— Quase não sei nada sobre a tourada.
— Naturalmente... Sin duda, se visse um animal daqueles perdendo sangue na arena num agradável domingo de sol, ficaria completamente revoltada!
— Por que me diz essas coisas? O que está querendo dizer? Quer que julgue os seus compatriotas por se deliciarem com um espetáculo sangrento? Quer que eu me sinta enojada? Desgostosa? Quer que eu despreze os espanhóis por causa de uma minoria?. . .
— Não são a minoria. A corrida está no nosso sangue. É um modo de vida!
— Está bem! Está bem! — Levantou-se, hesitando, apertando as mãos nervosamente. — Não quero mais falar sobre esse assunto. Não sei o que está pretendendo... talvez destruir o que existe entre nós. Mas se é o que deseja, não precisa ir tão longe...
Ele murmurou alguma coisa em espanhol e apertou os braços dela com força, pressionando-a depois contra o peito.
— Idiota! — sussurrou junto à boca de Susana. — Mi guapa idiota! Ignora o que sinto, o quanto me desprezo por desejá-la desse modo intenso a ponto de ir tão longe! Susana mia, eu não a mereço!
— Não diga isso! Concordei em vir, não?
— E quando os Castana forem para Nova York? — perguntou, apertando-a contra si com mais força. — Irá com eles?
— Quer que eu vá? — Encostou o rosto no peito dele.
— Quero que fique em Londres. Sou egoísta… não tolero a ideia de voltar a Londres e não encontrá-la.. .
— Oh, Fernando — suspirou. — Não quero ir a Nova York. Não consigo imaginar milhares de quilómetros nos separando.
— Susana! — Ele falou com emoção incontrolável, antes de beijá-la sofregamente.
Nesse instante, a sra. Minto entrou na sala.
— Com licença. .. Posso pôr a mesa, senhor?
Fernando fechou os olhos por alguns segundos antes de afastar-se de Susana e voltar-se para a sra. Minto, que sorria.
— Oh, señora Minto. Como tem passado?
— Muito bem, don Fernando. Posso arrumar a mesa?
— Naturalmente — respondeu, inclinando-se levemente para ela e em seguida acendendo um charuto.
Susana admirava-o pela segurança, que fazia com que mantivesse o controle na mais embaraçosa das situações.
A sra. Minto se retirou para a sala de jantar, onde começou a arrumar a mesa. Fernando olhou para Susana e depois saiu, para conversar com a caseira, perguntando-lhe sobre a filha casada. Ela sentiu-se muito lisonjeada com a lembrança.
A comida estava excelente, embora ambos estivessem sem apetite. Quando a sra. Minto foi retirar os pratos, olhou-os com censura, pois parecia que não tinham tocado em nada. Quando serviu o café, o relógio marcava nove horas passadas.
Fernando ligou a têve, colocada numa das prateleiras da estante, ao lado da lareira, e Susana procurou concentrar a atenção no filme de suspense que estava passando. Pouco mais tarde, a caseira entrou na sala colocando o casaco.
— Já estou indo, senhor — disse ela. — Vocês precisam de mais alguma coisa?
Fernando levantou-se.
— Não, senhora, obrigado. — Sorriu. — O jantar estava delicioso. Não sei como lhe agradecer.
— Ora, não há o que agradecer, don Fernando — respondeu, embaraçando-se quando ele lhe estendeu uma nota. — De qualquer modo, eu é que agradeço. Espero que o senhor e. . . a senhorita estejam contentes. Quer que eu venha amanhã cedo para preparar o café?
— Não será necessário, obrigado, señora. Lembranças à sua filha, sim?
— Serão dadas. — Cumprimentou-os com um gesto de cabeça e foi para a porta. — Boa noite,
— Boa noite. — Fernando inclinou o corpo novamente em sinal de respeito, ao mesmo tempo em que expressava uma alegria por vê-la saindo, foi à porta, trancou-a e voltou para o sofá.
— Pues! Não gosta dela?
— Nem gosto nem desgosto — Susana respondeu sinceramente. — Nós discordamos de algumas coisas.. .
— Oh, sim? De quê? Não, deixa eu adivinhar... ela não aprova o nosso relacionamento, não é isso? Ya me lo figuro.
— Mas ela o tem em alto apreço — disse, dando de ombros.
— Para ela existe apenas o negro e o branco... Não existem matizes entre eles.
— Pois eu acho que ela o admira muito e o acha bonito.
— Sou muito velho! — ele exclamou, fechando os olhos.
— Você não é velho, não, senhor!
— Comparado a você? Oh, sim, sou velho, Susana. Você é dezesseis anos mais nova que eu!
— Não fale bobagens — ela disse, mordendo o lábio. — A idade não tem a menor importância.
— Para uma jovem como você, concordo. Mas cada ano que passa significa uma maior experiência de vida. Sinto-me muito experiente a seu lado, pequeña.
Susana saiu da cadeira de braços e sentou-se ao lado dele, bem próxima, acariciando-lhe o peito, sentindo o bater do coração. Quando seus dedos tocaram na medalha presa na corrente pendurada no pescoço, inclinou-se para vê-la de perto. Era uma espécie de disco com que se costumava comemorar um dos inúmeros santos da religião cató1ica, e no verso havia uma pequena inscrição: "Pilar, 1932".
— O que quer dizer isso? — perguntou, olhando-o no rosto. Fernando olhou para a medalha na mão dela.
— Pertenceu a minha mãe. Foi um presente de casamento dado por papai. Quando ela morreu, herdei-a.
— Faz tempo que ela morreu?
— Muito tempo... eu tinha dez anos de idade.
Ela examinou-lhe as feições, sem conseguir imaginá-lo jovem; encostou o rosto no ombro dele, em sinal de afeto.
— Sentiu falta dela?
— Faz muitos anos. Já não me lembro de qualquer sofrimento... Uma tia, irmã do meu pai, veio morar conosco e substituiu mamãe satisfatoriamente.
— Não acha isso... calculado?
— É o que parece — suspirou, — Mas no meu país não há lugar para a autopiedade. Minha mãe estava morta, um fato que tínhamos que aceitar. Papai tomou todas as providências para que a vida em casa mudasse o mínimo possível.
Susana balançou a cabeça, inconformada.
— E foi tão simples assim substituir sua mãe? — Ele a enlaçou e encostou a boca nos cabelos dela.
— Não, não, claro que não — admitiu, emocionado. — Papai lhe diria o quanto a morte dela interferiu em mim de modo negativo. Eu e titia não nos dávamos muito bem. Lembro-me de umas brigas…
— Isso já me soa mais humano...
— Si, eu era muito humano... Quando tinha sua idade, papai ficava desesperado por nunca conseguir que... — Interrompeu-se bruscamente para deixar escapar um suspiro. — Mas chega de saudades... Que lhe interessa meu passado?
— Interessa-me, sim — ela respondeu, sentando-se. — Quero ouvir tudo sobre você.
— Estou cansado.. . não está?
— Um pouquinho...
— Sugiro então que vamos para a cama, si? — Beijou-a levemente nos lábios. — Pode ir subindo que vou terminar o charuto. Subo em cinco minutos.
Susana concordou com um gesto. Tinha chegado o momento e não havia como evitá-lo. Subiu os degraus automaticamente, sem olhar para trás. Lavou o rosto, escovou os dentes, despiu-se e pôs a camisola branca que tinha comprado muitos meses atrás e nunca tinha usado. Depois deitou-se na cama, cobrindo-se com lençóis de seda, e apagou a luz.
Imersa na penumbra, escutou os passos de Fernando na escada, depois o som da água jorrando na pia do banheiro. Encolheu o corpo, incapaz de relaxar. Estava assustada! Mas o que poderia fazer?
A luz do banheiro se apagou e a porta do quarto se abriu. Com muito custo conseguiu ver o vulto dele movendo-se em direção à cama. Mas não se deitou imediatamente. Sentou-se ao lado dela, em silêncio.
— Por que apagou a luz? — ele perguntou, finalmente.
— Não... não sei... — respondeu, batendo os dentes. — Pensei que preferisse...
— O que foi? Sua voz é de quem está apavorada. Sou tão monstruoso assim?
— Você,... não é... monstruoso. . .
— Isso já é um alívio — comentou com ironia. Com suavidade, deslizou os dedos pelo rosto dela, explorando o pescoço, as orelhas, com a intenção de deixá-la à vontade. Puxou a coberta até à cintura de Susana e, mesmo na penumbra, pôde ver a luminosidade do tecido branco da camisola. — Quê? Está usando camisola?
Ela não falou, limitando-se a abanar a cabeça e a esticar os braços rijos para tocar-lhe a pele quente. Ele hesitou e tomou-lhe as mãos.
— Susana, você me disse uma coisa... algo como nunca ter feito nada semelhante antes… Madre de Dios, falava sério?
Ela abanou a cabeça de novo, pressionando os dentes que não paravam de bater.
— Cristo!
Com um gesto violento, largou as mãos dela e pôs-se de pé, andando até os pés da cama. Abriu a mala, retirou um roupão branco e cobriu a nudez do corpo. Depois, acendeu a luz, desfazendo qualquer possibilidade de aproximação entre eles.
— Por que não foi clara?
— Por favor, Fernando... que foi que eu fiz? — Ela estava quase chorando. — Não me deseja mais?
— Você fala como uma idiota! — exclamou rudemente, andando de um lado para o outro. — Por que não me contou esta noite?
— Mas eu lhe contei ontem — defendeu-se, sentando na cama.
— Muitas mulheres dizem isso, mas querem apenas enganar. Simplesmente querem que os homens acreditem ser a primeira noite delas…
— Mas você está acreditando em mim!
— Claro que estou — disse, virando o rosto para não encará-la. — Como sou tolo!
Susana fitou-o, saltou da cama e foi até ele.
— Fernando, não fique zangado comigo! Eu não saberia o que fazer!
— Basta! Volte para a cama! Vou dormir no outro quarto. Não precisa ter medo de mim!
— Fernando!
Ele não a ouviu, saindo do quarto furioso e batendo a porta.
Susana chorou durante um longo tempo, o rosto enterrado nos lençóis para que ele não a ouvisse. Mas devia ter pegado no sono, porque, num sonho horrível, Fernando transformou-se no monstro de um filme, um maníaco matador de uma dúzia de mulheres. Encurralada na casa de campo, perseguida por ele, escondia-se em todos os lugares imagináveis, mas era sempre descoberta e sempre precisava fugir. Numa das vezes, quando ela pensou que ele ia matá-la, deu-lhe as costas e se foi, deixando-a sozinha, chorando, chorando sem parar…
— Susana! Susana mia! Acorde, Susana! Acorde! Ninguém vai machucá-la!
Ela abriu os olhos e encontrou o olhar de Fernando. Ele estava debruçado sobre ela, sentado na cama.
— Fernando? — perguntou, soluçando, tomando consciência do suor que escorria de suas faces. — Que horas são?
— Um pouco mais de uma hora — disse olhando o relógio de pulso. — Você estava sonhando… chorava muito...
— Oh, foi horrível! — exclamou, lembrando-se do sonho. — Acho que foi por causa do filme que estava passando na televisão. ..
— Sei, sei.. . — ele murmurou, levantando-se.
— Aonde vai?
— Agora você está bem. Vou voltar para o meu quarto...
— Não! Por favor, não!
— Devo ir! — insistiu, a voz inflexível.
Ela começou a chorar novamente, de uma maneira desesperada que parecia sacudir-lhe a alma. Fernando fitou-a por um longo tempo.
— Está bem, eu fico. Mas é só isso, entendeu?
Ela ergueu o rosto molhado e o encarou, balançando levemente a cabeça. Ele apagou a luz, deu a volta na cama e deitou-se ao lado dela. Não tirou o roupão e nem entrou debaixo das cobertas. Não era difícil para ela compreender por quê...
Na manhã seguinte, um pouco antes de clarear, entreabriu os olhos e percebeu que estava muito próxima de Fernando, o braço envolvendo os quadris dele...
Acordou apreensiva, embora não compreendesse por quê. Havia sol e as cortinas amarelas das janelas enchiam o quarto com uma luz dourada. Abriu os olhos, sonolenta, e não reconheceu imediatamente o ambiente. Ao se lembrar, de repente, dos acontecimentos deprimentes da noite anterior, sentou-se rígida na cama. Olhou para o lado e não viu Fernando. A única indicação de que tinha dormido ali era o travesseiro amassado.
Alarmada, levantou-se bruscamente. Vestiu-se com rapidez e correu até à porta, porém voltou-se ao perceber que a mala de Fernando não estava ao lado dela.
Abriu a porta e saiu para o corredor. Em meio ao silêncio da casa, abriu a porta do segundo quarto, os dedos trémulos, e não sentiu nenhuma surpresa ao constatar que estava vazio. Desceu em seguida e também não notou nenhum sinal da presença dele.
Aproximou-se da mesa de café e viu um bilhete, que pegou para ler, embora quase adivinhasse o que dizia.
"Mi amada,
Não posso refazer o passado. Apenas espero que não pense mal de mim no futuro. Não lamento o tempo que passamos juntos. É uma lembrança que guardarei para sempre com ternura. Você é uma mulher linda, Susana, e um dia conhecerá um jovem que mereça seu amor. Então esquecerá que eu existi. Por favor, acredite-me: amo-a. É porque a amo que não posso criar um relacionamento entre nós, já ameaçado desde o início. Tenho idade demais para estar com você. Conheço muito da vida para saber que tenho razão. Contratei um táxi que a apanhará às onze horas em ponto e a levará de volta a Londres. Quanto a mim, a esta hora eu já terei partido.
Perdoe-me, Fernando".
Susana releu o bilhete e deixou-se cair no sofá, olhando sem ver para a boca da lareira vazia. Ele se foi, ele se foi, repetiu para si mesma, e àquela hora talvez já estivesse num avião. A decisão de partir teria sido planejada ou um ato de momento, provocado pela confusão da noite anterior? Ele não tinha marcado nenhum novo encontro, nem mesmo na próxima viagem a Londres. No entanto, sabia que ela não acompanharia os Castana. Como a encontraria numa cidade tão grande, caso quisesse revê-la?...
Depois de permanecer um longo tempo sentada, imersa em pensamentos e indagações, arrastou-se até à cozinha e fez um café. Era necessário tomar alguma atitude para sair daquela depressão, daquela apatia. Tinha que lavar-se, vestir-se, arrumar as coisas na mala e estar pronta à hora marcada para a chegada do táxi.
Às onze horas, sem encontrar a chave para trancar a casa, saiu, bateu a porta, e entrou no carro sem olhar para trás. Esforçou-se para trocar algumas palavras com o motorista durante o percurso, pois ele insistia em fazer comentários sobre o clima, a estação do ano, o time de futebol e toda a sorte de coisas que a aborreciam.
Chegou em Londres no meio da tarde e quando tirou o dinheiro para pagar a corrida, já na porta da casa dos Castana, o motorista explicou-lhe que tinha recebido antecipadamente.
Entrou na casa com a sensação de que estava morta e mal soube esconder o desânimo quando a sra. Travers apareceu, vinda da cozinha.
— Voltou cedo, senhorita! — exclamou a mulher. — Pensei que chegaria à noite.
— Tive que mudar os planos — explicou secamente. — O señor e a señora Castana estão em casa?
— Saíram. Uma velha amiga deles, a señora Alvarez, chegou ontem à tarde e acredito que tenham ido a algum restaurante.
— Oh, sim — observou, aliviada.
— Aconteceu alguma coisa de errado, senhorita? Parece-me indisposta. Não tem fome? — Fez uma pausa e aguardou a resposta que não veio. — Bem, estou indo visitar minha irmã, mas se quiser comer alguma coisa. . .
— Não, não, obrigada. Não se preocupe. Não quero estragar sua tarde. Pode ir. É possível que eu saia novamente. . .
Teve a ideia de repente: visitaria seus amigos Margaret, Peter e Toni. Seria confortador estar na companhia de quem se preocupava com ela. ..
— Quer dizer que... dormiu com ele? Oh, Susana! — Margaret French olhava a amiga com perplexidade. — Que diabo fez você aceitar um convite desses?
As duas conversavam na cozinha da enorme casa de Kennington, enquanto Peter brincava com Toni na sala de estar. Susana tinha acabado de comer um mexido de ovos e agora tomavam café,.
— Mas já lhe contei que não aconteceu nada.
— Sim, mas e se esse tal de Fernando não fosse um cavalheiro, como você pensava?
— Compreendo o seu ponto de vista...
— Naturalmente! Pois você conhecia o homem há apenas duas semanas!
— Amanhã ele iria para a Espanha. Era o último fim de semana em Londres.
— E daí?
— Daí que o amo, Margaret!
— Ama um estranho! Sequer tem o endereço dele!
— Mas poderia obtê-lo.
— Com os Castana? Acha que eles o dariam?
— Não sei — disse, dando de ombros. — Oh, Margaret, será que você nunca teve um sentimento maluco como esse?
— Não estamos falando sobre mim — cortou Margaret. — Susana, não se esqueça do que aconteceu a sua mãe...
— Como poderia esquecer?
Margaret balançou a cabeça e levantou-se para levar as xícaras até à pia.
— Você precisa de um homem que fique com você. Um namoro estável. Alguém que tire essas ideias da sua cabecinha! Se se casasse, não teria tempo para sonhar acordada!
— Não sonho acordada!
— Você não é mais criança e deve saber que alguns homens, quando estão fora de casa, ficam acesos para um romance passageiro. . .
— Fernando não é desse tipo!
— Como pode ter certeza? Não sabe nada sobre ele! Ele até pode ser casado. . .
Susana estremeceu.
— Não, é solteiro!
— Ele lhe contou?
— Não.
— Ele não lhe diria que era casado.
— Oh, Margaret... — lamentou, passando as mãos pelos cabelos.
— Estou tentando ser prática. Se ele realmente a ama, como disse, por que foi embora? Por que não combinou um novo encontro?
— Ele se considera velho demais para mim.
— É mesmo? E desde quando a idade é empecilho para o amor?
— Não se fala assim, Margaret.
— Honestamente, Susana, você acredita que é a idade que o impede?
— Não sei. Ele vem de uma família espanhola bastante tradicional. Talvez se oponham a que se envolva com uma inglesa.
— Está vendo? Agora os pais dele é que são os vilões! Susana, ele não é criança! É um homem de quarenta anos! Não acha possível que esteja casado?
— Pare, Margaret! Pare! — ela implorou tampando os ouvidos com as mãos. — Ele me ama! Sei que me ama!
Margaret se condoeu e a abraçou.
— Talvez a tenha amado naquele momento... Por que ele a recusou quando você se oferecia?
— É o que me pergunto o tempo todo.
Margaret suspirou profundamente e sentou-se do outro lado da mesa.
— Muito bem. Suponhamos que ele a ama. O que é que você vai fazer? Seguir a família Castana?
— Não posso ir com eles!
— Compreendo. .. Mas então vai precisar de um outro emprego.
— Vou. ..
— Então, por que não procura uma escola e deixa de trabalhar para as famílias?
— Uma escola onde possa conhecer jovens simpáticos e bonitos? — sugeriu Susana, como que lendo o pensamento de Margaret.
— Que seja! Qual é o problema? Não vai ficar solteira a vida inteira!
Susana sorriu levemente, enxugando as lágrimas.
— Solteira? Que expressão mais antiga! Hoje em dia as moças são independentes...
— Pois bem, quer ficar sózinha a vida inteira? Não quer uma família? Um lar?
— Quero. . . mas não vou casar para fugir, como uma saída fácil entre as mais difíceis! Quero casar com quem eu ame!
— Fernando.
— Sim, Fernando.
— Logo, vai procurar outra família. . .
— Acho que sim. Não estou preocupada com isso agora.
— Nem teve tempo para isso! — Margaret observou com ironia.
— Não — Susana respondeu secamente. — Mas eu tenho a obrigação de informar o sr. Castana de que não vou acompanhá-los. Afinal, ele precisa arranjar uma substituta, já que quer uma governanta inglesa para Eduardo.
— Bom, pode ficar morando aqui conosco, se não conseguir uma família antes de os Castana mudarem. Espaço não falta, e teríamos o maior prazer em recebê-la. Ora, você sabe disso...
— Sim, obrigada.
Susana lamentou quando chegou a hora de voltar. Por algum tempo, conhecera a tranquilidade e a amizade de um verdadeiro lar, e inquietava-se com a idéia de isolar-se no quarto da casa dos Castana. Enquanto Peter a levava a Lorrimer Terrace, imaginou que havia muito para pensar sobre o casamento. . .
Na manhã seguinte, conheceu a hóspede dos Castana, pois Lucie levou a señora Mónica d'Alvarez à sala de estudos, onde ensinava a Eduardo. Para sua surpresa, constatou que se tratava de uma americana que, conforme disse, vivia na Espanha há muitos anos. Embora aparentasse uns cinquenta anos, Mónica vestia-se jovialmente, Ainda assim… não era atraente, com uma falta de senso de humor que competia com o de Lucie.
Mónica mostrou-se realmente interessada no que Eduardo estava aprendendo, perguntando a Susana coisas sensatas e pertinentes e elogiando o menino por ler tão bem em inglês.
— É sempre melhor ter-se uma governanta inglesa — observou Lucie, indiretamente felicitando a eficiência de Susana. — Carlos jamais pensaria em contratar outra.
— Está pensando em ir para Nova York? — perguntou Mónica, levantando as sobrancelhas. — Vai gostar muito de lá! Lá os homens não são cegos como os de onde venho.
— Oh, Mónica, os espanhóis não são cegos — retrucou Lucie. — Simplesmente respeitam as convenções. . .
Susana esboçou um sorriso ao ouvir a frase.
— É mesmo? — disse Mónica. — Dê o nome que quiser, minha querida, mas continuo achando que, nos Estados Unidos, não é preciso levar o cavalo até à água e ensinar-lhe a beber!
Susana achou que aquele era o momento propício para informar Lucie de que não iria para Nova York com eles.
— O quê? — Lucie abriu os olhos, horrorizada com o que acabava de ouvir. — Por que não?
— Será melhor para mim procurar um novo emprego, señora.
— Meu marido já sabe disso?
— Não, señora. Ia dizer hoje, mas agora, como a senhora tocou no assunto...
— Entendo — Lucie disse, esfregando as mãos com impaciência. — Já pensou que teremos de arranjar outra governanta imediatamente e que, tão logo o consigamos, a senhorita será dispensada?
— Sim, señora. — Olhou triste para Eduardo.
Mónica d'Alvarez mostrou-se interessada na decisão de Susana.
— Pretende uma colocação na Inglaterra ou em qualquer outro país do continente?
— Dependerá do que estiver à mão, señora.
— Claro, claro. Pois eu gostaria de contratá-la.
Susana não sabia quem estava mais chocada, ela própria ou Lucie Castana.
— Você o quê?! — exclamou Lucie. — Para que contrataria os serviços de uma governanta? Maria tem catorze anos! E está indo para um internato, não está?
Mónica tirou um cigarro americano do maço e o acendeu.
— Maria vai para o internato, mas eu mesma não gosto da idéia. Ora, ela é ao mesmo tempo americana e espanhola. Fala inglês como eu falo. Por que não ter aulas de inglês em vez de espanhol?
— O internato é excelente. Eu estudei lá!
— Não precisa comprar briga: nada tenho contra o internato. Estou apenas dizendo que Maria merece ter uma escolha. ..
— Mónica, seu marido não vai concordar com a ideia!
— Talvez não. — Mónica encolheu os ombros. — Mas talvez eu não peça a opinião dele. — Voltou-se para Susana. — E então, minha querida? Que me diz? Você é quem decide.
Susana tinha acompanhado a conversa com uma profunda sensação de tristeza. Mónica d'Alvarez era casada com um espanhol, dizia uma voz dentro dela; vivia na Espanha e, provavelmente, nas proximidades do lugar em que os Castana tinham vivido. Fernando era amigo dos Castana. Ele devia ser daquela região também…
— Não sei… — começou ela, confusa e recusando-se a considerar o significado daquela proposta.
— Você encontrará uma vida completamente diferente — afirmou Lucie, com frieza. — Pode não se adaptar, señorita.
— Lucie, não ponha minhocas na cabeça dela! — protestou Mónica impaciente. — Só porque vai perdê-la não quer dizer que não possamos ganhá-la!
— Vive na Espanha, señora? — Susana perguntou a Mónica.
— Sim, num lugarzinho chamado Alvaridad. Na verdade, é mais conhecido pelos vinhedos dos Alvarez, famosos no mundo inteiro. Susana sentiu os lábios secarem.
— Fica... na parte sul da Espanha, señora?
— Exatamente! Andaluzia! Pertinho de Cadiz e não muito longe de Sevilha.
Uma espécie de pânico ameaçou invadir a alma de Susana. Ela nem poderá conhecer os vinhedos da família Cuevas! Mas seria aconselhável ir a Espanha sabendo que possivelmente encontraria Fernando? Afinal, ele não lhe pediu que o fizesse. . . e sequer desejava vê-la mais uma vez. No entanto, tinha declarado que a amava. . .
— Mas é intrigante — observou, não querendo se comprometer.
— Intrigante? — repetiu Mónica.
— Talvez a srta. King tema não ter nada para fazer nos momentos de folga — Lucie sugeriu com desdém.
— Bom, de fato não há muitas diversões — confessou Mónica. — Dependerá exclusivamente da senhorita. O clima é muito bom e a costa não fica distante. ..
— A srta. King sentirá falta dos amigos que tem aqui — acrescentou Lucie.
— O que me diz, srta. King? — Mónica perguntou, ignorando Lucie.
— Não a apresse — Lucie insistiu, deixando claro que não aprovava aquele convite. — Nem todo mundo é obrigado a tomar uma decisão de uma hora para outra.
— Não há muito. que decidir. — Mónica deu uma tragada e expeliu a fumaça. — Basta querer ou não querer.
— Sua filha tem catorze anos, señora?
— Perfeitamente.
— Filha única?
— Sim — respondeu num gesto de resignação — Não terá problemas com ela. As meninas espanholas são criadas para serem obedientes, até demais para o meu gosto. Por isso gostaria que a senhorita fosse professora dela. Quero que ela compreenda que tem uma cabeça para pensar por si mesma.
— Não se esqueça, Mónica — observou Lucie —, de que moças de boa família costumam ser educadas. Talvez não saiba disso...
— Oh, é mesmo? O que eu sei é que você está tentando fazer a srta. King recusar meu convite!
— Mas ela sequer tomou uma decisão!
— Por você, ela nunca tomará!
— Maria se dará melhor no internato — Lucie insistiu.
— E o que será dela, no futuro? Noivado, casamento. . . e tudo o mais. Oh, não, não, não quero isso para Maria. Detestaria que ficasse igual a mim. Ou igual a você! Frustradas e enfastiadas da vida. Casadas com homens que nem se lembram de que existimos! Ora, Lucie, seja honesta! No fundo, sabe que tenho razão. Você não ama Carlos. Nunca o amou. Não se sentiria atraída por Fernando se realmente amasse Carlos!
Fernando! O nome ecoou nos ouvidos de Susana como um estampido. Seria o mesmo Fernando? Mas é claro, pensou ela, bastava ver a reação de Lucie diante dele! Então Mónica também o conhecia!
— Mónica, por favor! — pediu Lucie.
Mónica suspirou e balançou a cabeça, sabendo que tinha ido longe demais.
— Está bem, eu calo minha boca! Mas você sabe que falei a verdade. — Voltou-se mais uma vez para Susana: — Então, minha querida? Quanto tempo precisa para pensar?
Susana estava no maior conflito. Talvez Mónica acabasse esquecendo aquela conversa logo depois que saísse da sala. Era sua vontade ir para a Espanha? Estaria preparada para um encontro casual com Fernando?
Bateram à porta e a criada entrou.
— Desculpe-me señora Castana, há um cavalheiro procurando pela señora d'Alvarez.
— Ele deu o nome? — perguntou Mónica, voltando-se para a criada.
— Sim, madame. Um certo sr. Rosenberg. . .
— Max! É Max! — Mónica exclamou, radiante. — Lucie, ouviu bem? Max está aqui! Oh, nem posso acreditar!
Enquanto ela saía correndo pela porta, Susana sentiu um alívio. Sem dúvida, tinha todos os motivos para esquecer aquela proposta.
— Um instante — Mónica disse, voltando afobada. — Volto mais tarde para saber de você o que decidiu, minha querida. Se o problema é dinheiro, pago-lhe o dobro do salário atual, seja lá quanto for. E pago-lhe um mês adiantado, como voto de confiança!
Susana fechou as mãos e deu um passo à frente.
— Não, não precisa voltar mais tarde — disse, enquanto Mónica ficava imóvel, aguardando que ela completasse a frase. — Quer dizer, para ouvir minha decisão. Eu... aceito ser governanta de Maria, se realmente me quer.
Susana chegou em Madrid com o sol a pino, brilhando com tal intensidade e tornando a atmosfera tão quente e abafada que até mesmo os funcionários do aeroporto trabalhavam preguiçosamente. Quando toda a Espanha mergulhava na sonolência da siesta, voou dali para Sevilha. Depois dos imponentes Pirineus, ainda cobertos pela neve do inverno, avistou a pista do aeroporto, amolecida pelo calor. Ao descer do avião, sofreu o impacto do ar quente e seus olhos arderam com os reflexos dos vidros do aeroporto. Mas enquanto passava pela alfândega de Sevilha, pôde sentir a refrescante aragem da tardezinha.
Com as duas malas nas mãos, respirando com alívio, entrou no saguão e olhou ao redor. Era inacreditável que há apenas algumas horas estava na casa de Margaret, em Kennington. Finalmente os últimos dois meses de espera chegavam ao fim, e a luta com a sua própria consciência parecia terminar também.
Lucie tinha feito o possível e o impossível para lhe dificultar as coisas, desistindo de importuná-la somente quando Carlos conseguiu contratar uma nova governanta. Mónica d'Alvarez já tinha voltado para a Espanha, deixando preparada a viagem. Simpatizava com Mónica, embora não apreciasse de todo seu modo de falar.
Lucie considerava Mónica uma mulher famosa por desprezar as convenções mais caras à sociedade, comprometendo-se com dezenas de casos amorosos, dos quais Max Rosenberg era um. Tinha se valido disso para garantir que Susana não se daria bem com ela.
Felizmente, Susana procurara ignorar todos os comentários, que, na verdade, expressavam simplesmente o despeito de Lucie.
A ela não interessavam os casos da Señora Alvarez e não pretendia se envolver com problemas que não lhe diziam respeito.
Quanto a Margaret, fez de tudo para dissuadi-la da ideia de se mudar para a Espanha. Mas era tarde demais para voltar atrás. Talvez a decisão fosse impensada e perigosa, de consequências desastrosas, no entanto queria saber por que Fernando a tinha abandonado tão abruptamente. Suspeitava que, por algum motivo, era conveniente para ele separar a vida de Londres e a da Espanha. Restava-lhe saber o motivo verdadeiro...
O saguão aos poucos foi se esvaziando e Susana continuou aguardando que alguém a procurasse, conforme o combinado.
— Señorita King? — Ecoou uma voz estranha.
Ela se virou para ver quem a chamava e deparou com um homem de estatura média, tipicamente espanhol e vestindo uniforme de chofer.
— Sim? Sou Susana King. O senhor, quem é?
— Pedro Morales, señorita. El chofer de don Fernando Ramirez Esteban Cuevas d'Alvarez, a su disposition.
Desconcertada, Susana apertou as alças das malas. Distinguia dois nomes naquela enxurrada de palavras em espanhol: Fernando Cuevas! Que significava aquilo? Seriam nomes comuns na Espanha? Ou aquele chofer trabalhava para Fernando?
— Como vai? — disse finalmente, cumprimentando-o. — O senhor fala inglês?
— Muito mal, señorita — respondeu, abaixando-se para pegar as malas. — Acompanhe-me, por favor.
Lá fora o sol caía implacavelmente sobre tudo e todos e Susana respirava com dificuldade, enquanto caminhava para o estacionamento onde estava parada uma limusine. Enquanto ele guardava as malas, ela viu um brasão na porta: era da família Alvarez, representada por uma águia e uma romã. Afinal, que queria dizer aquilo? Fernando seria parente da família? Sentiu-se confusa e vagamente apreensiva.
Como ela não falava bem o espanhol, conversaram muito pouco durante o percurso até à propriedade dos Alvarez. Gostaria de perguntar ao chofer algumas coisas sobre a família, mas talvez fosse melhor continuar sem informações detalhadas. Era apenas uma governanta, uma contratada como Pedro Morales, e duvidava que ele tivesse condições de falar sobre seus patrões.
Decepcionada, percebeu que se afastavam de Sevilha, tomando a estrada principal que levava para a região sul. Começava a anoitecer e seus olhos distinguiam apenas sombras projetadas contra uma estreita faixa iluminada no céu.
A certa altura o carro tomou uma estrada estreita e tortuosa. Não tinha certeza, mas pareceu avistar vinhedos alinhados pela estrada, o ar impregnado pelo aroma de limoeiros de um pomar cercado por um muro de pedras. Adivinhou casas mergulhadas na penumbra talvez no estilo mourisco, e, curiosa, desejou que ainda fosse dia. Havia muito por ali que valeria a pena ver.
Passaram por um portal encimado por águias de pedra em posição de ataque. Abandonaram a estrada e enveredaram por uma alameda íngreme, cercada por árvores altas. Chegámos a propriedade dos Alvarez, ela pensou. Tensa, inclinou-se para a frente e falou com o chofer.
— Estamos chegando?
Pedro Morales virou o rosto para o lado.
— Si, señorita. — Moveu o braço de um lado para o outro. — Tudo isso é de don Fernando. . .
— Obrigada. — Encostando-se no banco, olhou pelas janelas com apreensão. Don Fernando! Quem era don Fernando? Patrão daquele chofer, naturalmente, mas o que mais? O que teria ele a ver com Mónica d'Alvarez?
O carro rodava com lentidão e o coração de Susana batia mais pesadamente. O carro parou e ela viu um enorme portão de ferro fechado. Pedro buzinou e em seguida um homem apareceu para abrir e lhes dar passagem.
Um instante mais tarde, pararam junto a uma escada de pedras que dava para um pátio iluminado por um lampião. Mais adiante, via-se a casa imponente. O arco da entrada levava ao pátio interno iluminado por lampiões mouriscos pendurados num longo balcão que envolvia o pátio. Ao centro, as águas de uma fonte subiam e desciam, prateadas pela luz dos holofotes.
Pedro Morales saiu do carro e ajudou-a a descer. Os olhos de Susana passearam por palmeiras, flores e heras que subiam pelos pilares. A construção tinha dois andares, e as venezianas das janelas, algumas abertas, moviam-se com o vento leve que soprava, dando a impressão de que mariposas poderiam entrar pelas vidraças em direção à luz interior.
Susana parou nos degraus de pedra e esperou que Pedro tirasse as malas do carro. Talvez Lucie Castana tivesse razão: ali levaria uma vida completamente diferente.
Antes que Pedro fechasse o porta-malas, um vulto negro saiu do pátio interior para ir ao encontro deles. Susana não pôde vê-lo direito, pois, sem sair à luz, ele parou nas sombras, certamente observando-a detidamente.
Ela virou-se para Pedro, apressando-o com olhares aflitos. O motorista pegou as malas e ela respirou com alívio. Mas ao voltar-se, percebeu que o vulto tinha desaparecido tão silenciosamente quanto chegara. Fechou os olhos, incrédula. Teria sido uma visão?
— Vamos?
O chofer sorria para ela, encorajando-a a subir os degraus de pedra e atravessar o piso em mosaico do pátio. Ela não pôde deixar de sentir um arrepio ao passar pelo local onde aquele misterioso vulto tinha estado.
De repente, surgiu uma mulher vestida de preto com avental branco, os cabelos grisalhos, a pele muito branca e olhos luminosos e inquiridores. Cumprimentou Susana apenas com um olhar e depois falou rapidamente com Pedro num espanhol incompreensível para ela. Pedro respondeu com a mesma rapidez e, em seguida, pediu a Susana para continuarem a caminhar.
— Señora Gomez, señorita.
Susana forçou um sorriso que a mulher ignorou.
— É a señorita King, não? Sou a encarregada da casa de don Fernando. Acompanhe-me, quero lhe mostrar seu quarto.
Susana lançou um olhar indefeso para Pedro e sorriu, recebendo de volta um sorriso de cumplicidade. Sentindo-se melhor, seguiu a señora Gomez com passos inseguros, embora Pedro viesse logo atrás com as malas.
Atravessaram uma imensa porta de madeira grossa e entraram num amplo saguão de piso de mármore amarelo e branco. O edifício tinha sido erguido em torno do pátio que, ao que parecia, era o ponto central. A mulher continuou ao longo de um corredor à direita de uma escada, repleto de portas, muitas delas fechadas.
No final do corredor, havia outra escada, estreita e espiralada, que subiram imediatamente.
— Esta é a escada que leva ao seu quarto, señorita — ela observou. — Naturalmente, quando estiver com a señorita Maria poderá utilizar a outra.
— Sim. señora — concordou, aliviada por chegar ao piso superior. Para sua surpresa, achavam-se no balcão do extremo do pátio e, quando ia espiar pela sacada, ouviu a señora Gomez escancarar a porta do quarto.
— Este é o seu quarto, señorita. O banheiro fica ali.
Susana entrou, enquanto ela acendia a luz. Emocionada, verificou que era absolutamente diferente das acomodações na casa dos Castana, as paredes eram pintadas de verde-claro, a cama tinha cabeceira de ferro adornado, havia cortinas de seda, móveis escuros.
— É belíssimo! — exclamou, deslumbrada.
— Alegra-me que esteja satisfeita, señorita — observou a señora Gomez, sem esconder o contentamento. — Se quiser lavar-se antes de ver a señora — continuou ela —, eu a deixarei sozinha. Mandarei alguém para levá-la aos aposentos da señora quando estiver pronta.
Susana sentiu uma nova onda de estranhamento. Señora? Quem era ela? Mónica d'Alvarez? Sem dúvida, não podia ser outra pessoa!
— Eu… gostaria de trocar de roupa.
— Como quiser, señorita — respondeu a mulher, indo para a porta.
— Enquanto estiver aqui, suas refeições serão servidas no quarto. O jantar desta noite será servido às nove em ponto. Se desejar um café, pedirei que o tragam.
— Se não for muito incómodo.
— Muito bem. Se me permite.. .
Depois que a señora Gomez e Pedro se retiraram, ela explorou o seu novo aposento. O banheiro anexo era tão impressionante quanto o quarto, com uma banheira capaz de acomodar uma dúzia de pessoas, óleos e loções alinhadas numa prateleira espelhada.
Desnudou-se e tomou um rápido banho de chuveiro. Quando estava terminando de fechar o zíper do vestido, bateram à porta. Uma criada entrou depois de se anunciar, trazendo uma bandeja com café.
— Buenas noches, señorita — disse ela, sorrindo. — A señora Gomez disse que queria tomar um café.
— Obrigada. Coloque-o sobre a mesinha, por favor. Quem é você?
— Maria, señorita — ela respondeu, encarando Susana. — A señora Gomez pediu-me para aguardá-la e levá-la até à señora Alvarez.
Susana foi até à mesinha e serviu-se de um pouco do café aromático e fumegante. Bebeu um gole e, quando ergueu os olhos, viu que Maria dirigia-se para a porta.
— Onde está indo?
— Esperarei aqui fora, señorita,
— Não. . . quer dizer, não é necessário, Maria. Não demoro nem um minutinho.
Pegou a escova e começou a desembaraçar os cabelos. Por dentro, sentiu uma pontada de curiosidade sobre a família para quem ia trabalhar, e Maria parecia ser a pessoa ideal para lhe dar algumas informações.
— Trabalha para os Alvarez há muito tempo, Maria?
A moça encolheu os ombros.
— Desde quando estava na escola, señorita.
— Oh, sim?
Guardou a escova e apanhou o batom incolor. Maria não deveria ter mais que dezoito ou dezenove anos.
— Então deve conhecer a família muito bem, não? — arriscou.
— Si, señorita.
— Gosta de trabalhar para o sr. e a sra. Alvarez?
— Si, señorita.
A julgar pelas respostas, Maria estava evitando falar sobre a família e, assim. o melhor seria não ir além. Em pouco tempo saberia tudo: seriam don Fernando e Fernando Cuevas a mesma pessoa? Ora, com certeza na Espanha haveria muitos don Fernando!
Terminado o café, Maria pegou a bandeja e desceram pela escada espiralada até o corredor do andar inferior. Atravessaram o saguão da entrada e tomaram o corredor do lado oposto, parando pouco depois em frente a uma porta. Maria bateu suavemente e de dentro ecoou uma voz feminina.
— Entre!
Não era a voz de Mónica d'Alvarez, pensou Susana, atônita. Mas não teve tempo para nada, porque Maria abriu a porta e pediu que a seguisse.
— Señorita King, señora — anunciou a criada, fazendo-a entrar e fechando a porta atrás dela.
A mulher que estava no sofá, decididamente, não era Mónica d'Alvarez. Era muito mais velha, talvez com setenta anos, e de aspecto inteiramente latino.
— Ah, señorita King! — observou a mulher, levantando-se com dignidade. — Aproxime-se e sente-se, por favor. Espero que tenha feito uma boa viagem.
Relutando, Susana se aproximou, lançando um olhar atônito para a mulher, com a ridícula sensação de que estava na casa errada, de que aquela señora não era da família Alvarez, de que alguém tinha cometido um terrível engano!
A mulher tomou-lhe a mão, agitando-a continuamente, e depois indicou-lhe uma cadeira colocada em frente ao sofá. Sentaram-se e Susana foi obrigada a se deixar examinar durante alguns segundos.
— Então... — começou a mulher, num suspiro —, você ensinará a Maria?
— Sim, señora.
— Com certeza a senhorita está sabendo de que nós não aprovamos....
Susana arregalou os olhos, perplexa.
— Nós?
— Naturalmente, señorita. Eu e meu sobrinho. — Susana ficou em silêncio, sem compreender nada. — O pai da menina, señorita — explicou a mulher.
— Oh, sim, compreendo... — Finalmente, pensou, alguma coisa começava a fazer sentido.
— A esposa do meu sobrinho é muito impulsiva, señorita. — A velha forçou um sorriso, sem no entanto deixar de demonstrar hostilidade. — Ela não aceita que Maria, como herdeira do meu sobrinho, deve substitui-lo na direção da companhia. Lamentavelmente, não temos um herdeiro masculino na família, mas. . .
— Talvez o fato de a señora Alvarez ser americana. . ,
— Maria não é americana, señorita — interrompeu a mulher.
— Sei disso, señora.
— Talvez esteja se perguntando por que lhe conto tudo isso... É porque quero que saiba desde já que o acordo feito entre a señorita e a señora Alvarez, no que diz respeito a mim e a meu sobrinho, não deverá durar muito tempo. Está me entendendo?
— A señora está... me dispensando, em outras palavras.
— Don Fernando, e não eu, pedira à señorita que vá embora. .. Eu simplesmente estou me incumbindo de preveni-la. A señorita não ficará nesta casa mais que uns poucos dias.
Susana levantou-se, repentinamente irritada.
— É tudo, señora?
— É tudo, señorita.
A mulher mantinha-se calma e segura, enquanto Susana sentia-se embaraçada, o rosto em brasa. Sem dúvida, Mónica d'Alvarez tinha sido precipitada, contratando-a sem considerar a situação tensa que reinava na família. Mas onde estaria ela?
— Pode se retirar, señorita. Antes de conhecer Maria, meu sobrinho gostará de entrevista-la pessoalmente. Provavelmente, logo depois do jantar! Nós a avisaremos.
Susana não respondeu. Nada tinha para dizer. A señora Alvarez, se era aquele o seu nome, falava de tal maneira que dificilmente poderia ser contestada.
Aproximou-se da porta e estendeu a mão para a maçaneta. Nisso a porta se escancarou, quase chocando-se contra ela.
Repentinamente, um homem alto, esguio e moreno entrou, um homem cuja imagem já estava impressa em sua memória. Vestido todo de preto, sua identidade não deixava de se revelar.
Enquanto Susana ficou ali de pé, absolutamente petrificada, ele a ignorou, encarando a velha senhora que levantou-se para recebê-lo. Percebeu então que, da parte dele, não havia surpresa em vê-la ai: Fernando sabia de sua chegada, pois era ele quem estivera escondido nas sombras, enquanto Pedro retirava a bagagem do porta-malas do carro. . .
Não, aquele quarto não era lindo. Odiava-o, odiava tudo que estava dentro dele; odiava aquela casa ostensivamente rica e acima de tudo, odiava Fernando d'Alvarez!
Impaciente, perambulava pelo aposento, incapaz de sentar-se, deitar-se, incapaz até mesmo de pensar, de comer a deliciosa comida levada por Maria uma hora atrás. Sentia-se vazia, um vazio da alma, mas não de corpo. ..
Como tinha sido tola! Devia ter adivinhado que havia coincidências demais para serem apenas coincidências! Fernando era marido de Mónica.. . e pai de Maria!
Susana soluçou, apesar das tentativas de controlar-se. Lembrou-se de como Fernando a olhou quando se viram pela primeira vez fora de Londres, apresentados pela tia. Seu olhar era frio e selvagem, muito diferente do olhar terno que conhecera!
Exausta, tensa como nunca, deixou-se cair na cadeira e enterrou o rosto nas mãos. Ironicamente, agradecia aquela velha senhora por não desejá-la como governanta; agradecia a ele também, que partilhava da mesma opinião. Como poderia viver ali, vendo-o diariamente, vendo-o no rosto da propria Mónica, da própria filha Maria?
Não era possível permanecer sentada e encontrar a tranquilidade. No entanto, precisava pensar, pensar! E por onde andava Mónica? Quando apareceria para poder lhe falar?
Sobressaltou-se quando bateram a porta. Era apenas Maria, e abriu a porta imediatamente.
— Olá, Maria, pode levar a bandeja.
— Não, señorita. — A criada fez um gesto negativo com a cabeça. — Vim avisá-la de que don Fernando deseja vê-la. Por favor, venha comigo.
— Don Fernando deseja ver-me? — perguntou, incrédula. .
— Si, señorita. Se é que terminou sua refeição. . .
— Estava sem apetite — ela se desculpou.
— Podemos ir, então?
— Claro...
Não tinha outra saída, disse para si mesma. Fizeram o mesmo caminho da outra vez e Maria indicou-lhe uma porta quase ao fim do corredor.
— Ali é o escritório de don Fernando, señorita — explicou e retirou-se.
Sozinha, apreensiva, bateu e aguardou que ele a mandasse entrar. Quando ouviu a voz dele, abriu a porta lentamente.
Fernando estava parado em frente à janela, de costas para ela, e parecia tentar ignorar-lhe a presença. Quando ouviu fechar a porta, disse:
— Sente-se, señorita.
Ela continuou de pé junto à porta, desejando desaparecer dali de uma vez por todas, quando, subitamente, percebeu que havia outra pessoa na sala. Girou a cabeça para o lado e viu uma menina sentada numa cadeira num canto, quase mergulhada na penumbra. Pálida, de cabelos negros que lhe tocavam os ombros, vestida um pouco fora da moda, só podia tratar-se de Maria. Com certeza estava ali para testemunhar uma conversa cuja conclusão decidiria o seu destino.
Finalmente, Fernando voltou-se e encarou-a com certa inquietação.
— Por favor, señorita, sente-se.
Por favor! Na última vez em que se viram, ele tinha usado a mesma expressão para pedir-lhe que o olhasse, que se vissem novamente, que o perdoasse, que fosse com ele para Wendcombe...
Susana procurou uma cadeira e sentou-se, olhando-o também com todo o orgulho e distância de que era capaz. Muito bem, ele era casado, e esse fato explicava as reações dele aos seus comentários inocentes. Mas jamais poderia culpá-lo por deslealdade. De qualquer modo, ela sabia que alguma coisa o impedia de amá-la como desejava. Não a surpreendia o fato de ele ter lhe dito que não queria magoá-la, que não queria desonrar sua inocência! Ele sabia que não tinha o direito de provocar suas emoções mais puras. Mas e aquela expressão dura e impiedosa? Estaria furioso por ela ter descoberto tudo aquilo que ele havia procurado ocultar durante todo o tempo?
— Bem — começou ele, indo ate o centro da sala e parando em frente a escrivaninha. — Minha tia já lhe disse que. . . minha esposa a contratou sem o nosso consentimento, señorita. . .
Susana endireitou o corpo, enrijecendo, como se assim pudesse defender-se das palavras dele. Tudo indicava que aquela conversa seria tão desagradável quanto a anterior, com a tia. Olhou para as mãos, que pressionava uma contra a outra, lembrando-se de uma informação revelada por ele mesmo. Quando da morte da mãe dele, a irmã do pai a substituiu, tomando conta da casa. . . a senhora que a tinha entrevistado só podia ser essa tia, sobre a qual Fernando tinha falado com emoção. Agora, por conveniência talvez, ambos aliavam-se contra a esposa. ..
— Señorita?
Despertando de seus pensamentos, ela percebeu que Fernando aguardava uma resposta.
— Sim?.. . Oh, sim, ela me disse. . .
— Maria estuda no Convento de l'Asuncion. Não posso imaginar por que minha esposa a contratou como governanta e instrutora.
— Sua esposa achou mais conveniente que sua filha aprendesse alguma coisa sobre o mundo de um outro ponto de vista, señor.
— Oh, sim? — Seus olhos desviaram-se do rosto de Susana e pousaram sobre a menina.
Susana também olhou para Maria. Na Inglaterra, uma menina da idade dela já teria alguma opinião formada sobre aquele assunto. Mas Maria continuava sentada, impassível, esperando que alguém tomasse as decisões por ela. Mónica d'Alvarez talvez estivesse com a razão, nesse sentido.
— Acho que sua esposa julga o ensino na Espanha um tanto.. . restrito.
Fernando fechou a mão e bateu-a com violência sobre o tampo da mesa. Seus olhos soltavam chispas, como um selvagem.
— Conheço todas as opiniões da minha esposa a respeito das coisas da Espanha!
— Pois não, señor — respondeu, intimidada.
— Posto isso — continuou ele, tentando controlar-se —, qual é a sua opinião?
Susana respirou fundo, pensando que não deveria ter opiniões quanto aquilo. Seu desejo era abandonar aquela casa o mais depressa possível. Entretanto, olhando para Maria novamente, compreendeu que tinha de ser sincera.
— Eu. . . concordo com sua esposa, señor.
— Concorda?
— Sim. .. E penso também que. . . que Maria deveria ter o direito de falar alguma coisa. Não acha, señor?
— Maria é feliz no convento, señorita.
— Tem certeza?
— Por que duvida?
— Por que o senhor não duvida? Perguntou para ela? — Fernando, sem responder, tirou um charuto do estojo de marfim sobre a escrivaninha, apertou-o entre os dentes e o acendeu com um isqueiro de prata.
Susana acompanhou-o com o olhar, pensando que em lugar de se envolver ainda mais com a situação deveria ter ido embora de uma vez por todas. Discutindo com ele, embora o que estivesse em jogo fosse o futuro de Maria, comprometia-se com uma questão que não lhe dizia respeito. Lamentava que Mónica d'Alvarez não estivesse ali para testemunhar a inutilidade de seus esforços em querer alterar o destino medíocre de Maria.
Fernando deu uma longa tragada e fez um sinal para Maria vir até ele. Obediente, a menina saiu da cadeira e ficou ao lado dele.
— Ahora, Maria, você ouviu o que a señorita King disse, não ouviu?
— Si, papai.
— Para ela, você não é feliz no convento. Você é feliz?
— Si, papai.
— Está dizendo a verdade, Maria?
— Si, papai.
Fernando fitou Susana e viu estampado no rosto dela uma sensação de frustração. Sabia, porém, que perguntar a Maria se era ou não feliz no convento não resolvia absolutamente nada, porque tinha sido educada para obedecê-los incondicionalmente. Mesmo que fosse feliz, como poderia decidir se estava diante da verdadeira felicidade se não lhe ofereciam a possibilidade de uma alternativa?
Afastando a cadeira, Susana levantou-se.
— Se terminou, señor, voltarei para o meu quarto e arrumarei minhas coisas. Prometo-lhe partir amanhã de manhã. . .
— Basta! Não tenha pressa, señorita! Não poderá ir embora antes que minha esposa chegue. Ela a contratou, não eu!
— Mas a señora Alvarez disse que. . .
— Não me interesso pelo que disse a señora Alvarez. Ficará aqui até Mónica voltar.
— E quando ela voltará?
— Não sei, exatamente. Um dia, dois dias, uma semana, quem pode saber quando Mónica decidirá voltar para a monotonia da minha casa?
Susana olhou para a menina e não viu nenhum sinal de emoção. As palavras do pai nada significavam para ela.
— Não posso ficar, señor...
— Não só pode, como deve, señorita!
— De que modo pretende forçar-me a ficar, señor? — desafiou-o.
— Não deve lealdade a minha esposa, señorita? Ela lhe pagou um mês de salário adiantado para garantir que não mudasse de idéia.
Susana corou.
— Pois eu. . . eu o devolverei.
Ele fez que não com a cabeça.
— Não acho aconselhável. A señorita ficará! Se está de fato preocupada com o destino de Maria, encare a situação como um grande desafio!
— O señor sabe que não posso permanecer nesta casa!
— Não sei de nada! A señorita é do tipo de mulher que desiste ao primeiro obstáculo encontrado?
Ele me provoca de propósito, Susana pensou.
— Sua filha quer que eu fique?
— Quer? — ele perguntou para a filha. — Acha que devo conseguir uma licença do convento para você ter lições com a señorita?.
Maria entreabriu a boca.
— Se é o que o senhor quer, papai. ..
Susana balançou a cabeça e fez menção de se retirar.
— Muito bem, señor. Não tenho escolha.
Fernando pressionou a brasa do charuto contra o cinzeiro.
— A señorita veio até aqui para trabalhar. Não deve abandonar suas obrigações e deveres simplesmente porque não encontra as condições ideais.
— Sua tia deixou bem claro que não me queria aqui, señor.
— Apesar disso, está decidido: ficará até à chegada de Mónica.
— Neste caso, que deverei fazer? Não posso ensinar Maria da mesma maneira que ensinam no convento. Eu estabeleceria uma outra rotina, um horário completamente diferente e incompatível com o atual. Como poderei ser bem-sucedida trabalhando limitada ao pouco tempo que ela tem?
— Isso nós veremos — ele retrucou secamente. — Amanhã cedo falaremos sobre os detalhes. Maria está cansada, assim como a señorita. . .
— Posso me retirar então, señor? — Fernando hesitou.
— Se assim deseja...
— Obrigada.. .
Susana caminhou com passos arrastados, sabendo que ele a acompanhava com os olhos. Abriu a porta e olhou para trás.
— Boa noite, señor. Boa noite, Maria.
A menina ergueu os olhos para ela e sorriu palidamente.
— Boa noite, señorita.
Susana demorou para pegar no sono, e ainda assim acordou durante a noite, assustada e suada, perturbada com sonhos demoníacos, os olhos desesperados fitando a escuridão do quarto.
Esperava que Fernando tratasse de livrar-se dela na primeira oportunidade, mas, em vez disso, forçava-a a ficar! Uma exigência completamente absurda! Por que estaria criando obstáculos para impedi-la de partir? Era evidente que não a queria ali e ela, por seu lado, não ansiava por outra coisa. Tinha sido ingénua ao imaginar que um homem como Fernando Cuevas não fosse casado, morando num país onde a família significava tanto. Mas ele havia sido sincero com Susana e não podia imaginar que não fosse um homem livre. No entanto, desde o começo tudo indicava a existência de uma esposa. Em primeiro lugar, falara pouco sobre si mesmo, nunca mencionando a casa e a família, a não ser fatos do passado distante. Nunca chegara a sugerir-lhe que escrevesse ou que o visitasse na Espanha.
Oh, por um fio não me deixei enganar completamente! exclamou para si mesma. E pensar que, enquanto estavam na casa de campo, a esposa dele conversava com os Castana há apenas algumas horas de distância!
Rolou na cama e enterrou o rosto no travesseiro. Felizmente ele não tinha abusado de sua inocência, controlado pela educação rígida e pela noção de honra que por certo herdara.
Mesmo pensando desse modo, sentiu um calor familiar percorrer-lhe o corpo e estendeu as pernas com impaciência. Como reagiria ele se decidisse recomeçar aquele tipo de relacionamento ali em sua casa? Talvez temesse exatamente isso, e para evitá-lo tinha chamado Maria para ouvir toda a conversa...
E Mónica d'AIvarez? Onde estava? Sabia que Susana chegaria naquele dia, pois escreveram-se um pouco antes. Por que teria se ausentado? Estaria na companhia de Max Rosenberg?
Ela se agitou novamente, incapaz de voltar a dormir. Queria lembrar-se do que Lucie tinha falado sobre o relacionamento entre Mónica e Rosenberg e não conseguia. Mas por que querer lembrar-se disso naquele momento? Para justificar seu próprio relacionamento com Fernando Cuevas?
Adormeceu finalmente e despertou com um raio de sol atravessando a janela e batendo sobre seu rosto. Maria tinha acabado de abrir as cortinas e as venezianas.
— Buenos dias, señorita. São mais de oito horas e a señora Gomez pediu-me para acordá-la.
Susana encolheu-se na cama, protegendo os olhos com as mãos.
— Oh, sim? Obrigada, queria mesmo me levantar cedo. . . — Verificou as horas no relógio sobre a mesa-de-cabeceira e viu a bandeja com o café. — Obrigada, Maria, pelo café.. .
— Si, señorita.
Ela sentou-se na beirada da cama e olhou novamente as horas. Oito e vinte!
— Diga-me, a que horas a señorita Maria vai para o convento?
— As aulas começam as oito em ponto, señorita, logo depois da missa.
— Oito em ponto?! E hoje ela foi para o convento?
— Não. Don Fernando disse que a señorita dará algumas aulas para ela. . .
— Oh, sim, eu acho que sim…
A criada mostrou que estava de saída.
— Outra coisa, Maria. Que devo fazer. .. depois do café? Em que sala darei aulas para a señorita?
— Talvez use a sala da niña.
— Pode me mostrar onde é? — A criada hesitou.
— Falarei com a señora Gomez. Ela sabe o que a señorita terá que fazer. Voltarei daqui a pouco, si?
— Você é muito gentil. — Sorriu.
— De nada. . .
Depois que Maria saiu, Susana começou a tomar o café da manhã. De alguma maneira, sentiu que não poderia continuar inteiramente indiferente à alegria da moça, ao sol quente que caía sobre seu corpo, ao aroma perfumado das flores que a aragem levava para dentro do quarto.
Terminado o café, mais disposta para enfrentar o dia, tomou banho e preparou-se para descer, tão logo Maria voltasse com as instruções.
Pouco depois, ela bateu a porta e entrou.
— Vou levá-la a señorita Maria. Acompanhe-me, por favor.
Para surpresa de Susana, Maria a conduziu ao aposento em que a sra. d'Alvarez a tinha entrevistado na noite anterior. Tensa, observou que a moça bateu levemente e abriu a porta em seguida. Não havia motivos para tal nervosismo, pois a velha senhora não estava. Maria a esperava sozinha.
Maria saiu e deixou-as lá, olhando-se como se se vissem pela primeira vez. Maria estava sentada numa cadeira de braços, as mãos descansando sobre as pernas.
— Bom dia, Maria — começou, examinando a expressão fechada da menina, fitando-a insistentemente.
— Buenos dias, señorita — a menina respondeu educadamente.
— Bom, sugiro que a gente comece por se conhecer melhor, concorda?
— Si, señorita.
— E sugiro também que falemos em inglês. . .
— Sim, srta. King.
— É aqui que vamos estudar, Maria? — perguntou, olhando ao redor.
— Não, srta. King.
— Onde então? Seu pai deixou alguma instrução?
— Vamos estudar no escritório do andar de cima, mas hoje papai achou que a senhorita deveria conhecer mais a casa. . .
— Compreendo. Desculpe-me tê-la feito esperar...
— Papai não determinou horários, senhorita — ela respondeu, dando de ombros.
— Sei que não, querida, mas... — interrompeu-se, julgando-se liberal demais com ela, o que, de maneira alguma, não condizia com o papel de instrutora. — Bem, por onde começaremos?
— Gostaria de ver a piscina? — Maria levantou-se.
— Piscina? Não sabia que vocês tinham uma piscina.
— Vou mostrá-la.
Foram para fora, para o dia brilhante e ensolarado: Susana agora via melhor o balcão cuja sombra se projetava sobre o pátio, sustentado por pilares unidos por arcos. Por baixo deles, havia o corredor, que percorriam lentamente.
A casa era grande, maior do que ela tinha imaginado na noite anterior.
Uma piscina enorme tomava quase todo o centro do pátio, refletindo nas águas os arcos do balcão. Embora fosse toda decorada com ladrilhos coloridos e parecesse convidativa, dava a impressão de que ninguém a utilizava.
Maria ficou observando em silêncio a expressão de perplexidade de Susana.
— Gostou? — perguntou, finalmente.
— É maravilhosa!
— É sim, é linda! — concordou a pequena com satisfação.
— Ninguém a usa?
— Não. Acho que a construíram para decoração... Sabe, os mouros nunca entravam na água, porque sempre tinham alguém que jogava água em cima deles. Tinham saunas, como os romanos. Seguiam uma rotina interessante na limpeza do corpo. Primeiro lavavam a boca, depois as mãos e depois os pés.
— Por quê?
— Porque antes de lavar o corpo limpavam a alma. A boca exprime o mal, as mãos podem realizar o mal e os pés levam o pecador aonde esta o mal.
— Fascinante! Sabe muita coisa sobre a história do seu país?
— Quem vive num palácio mourisco acaba por saber dessas histories.
— Quer dizer que este é um palácio mourisco?
— Foi... faz muitos e muitos anos. Agora é só a Casa d'Alvarez.
Maria caminhou pela borda ladrilhada da piscina, seguida por Susana. Passearam entre os ciprestes e deram com jardins planejados. Pisaram na grama fofa, olhando flores de várias espécies. Pouco depois chegaram a um grande muro que estabelecia os limites da casa com o mundo exterior. Maria sugeriu-lhe então que voltassem para tomar chocolate.
Enquanto saboreavam o líquido, o olhar de Susana notou a presença repentina da sra. Alvarez, que a fitava com hostilidade. Maria, sem perceber aquela comunicação silenciosa, cumprimentou a tia-avó, beijando-lhe a face enrugada.
— Então, señorita — disse a senhora para Susana —, convenceu meu sobrinho a continuar aqui?
Susana levantou-se.
— Ele insistiu para que eu ficasse até à volta da señora Mónica d'Alvarez.
— E por que fez essa exigência?
— Creio que será melhor perguntar-lhe, señora — replicou Susana com uma calma que a surpreendeu.
— Tia Amália — interveio a menina —, eu estava mostrando a casa à srta. King.
— Estava? E o que foi que seu pai combinou com a señorita King quanta a sua educação, querida?
— Nada, tia. . . ela vai me ensinar. . .
— E quando começarão as aulas? Se andou passeando pelos arredores, não andou estudando, não é mesmo, Maria?
Maria corou e baixou a cabeça.
— Señora — retrucou Susana —, o ensino se torna mais eficaz quando professor e alunos se conhecem como pessoas antes de darem início a qualquer atividade,
A señora Amália d'Alvarez lançou-Ihe um olhar frio e desafiador.
— E o que descobriu sobre a minha sobrinha, señorita?
— Prefiro não expor as minhas impressões, señora.
— Mas é sobre elas que estamos conversando, não?
Susana conteve a vontade de dizer a ela tudo o que estava pensando, apenas para não chocar a menina, que servia chocolate a lia.
Seguiu-se um silêncio constrangedor, enquanto bebiam. O olhar de Susana passeou pela sala e deteve-se sobre uma tapeçaria que representava duas mulheres e um homem nos jardins de uma espécie de pagode. Sob os beirais curvos do edifício, havia pequenas pontes sobre riachos e cerejeiras em flor. Tudo parecia real, ate mesmo as pequenas figuras do primeiro plano, que usavam uma vestimenta muito antiga.
Maria terminou de tomar o chocolate extremamente doce e pôs a xícara no pires.
— Gosta de arte japonesa, srta. King?
— Gosto das coisas bonitas. Maria. E nesta casa existem coisas lindíssimas. A menina se levantou da cadeira e foi até à lareira.
— Papai trouxe essa tapeçaria de Osaka há muitos anos atrás. Deve ter muito valor e é muito antiga também. Talvez tenha uns trezentos anos.
— As cores são tão ricas!
— Naturalmente foi restaurado aqui na Espanha.
— Oh, sim?
— Gostou dela?
— Muitíssimo.
— Sabe o que representa? Este aqui é o Pavilhão de Prata. Vê esta figura que está meio escondida atrás do guarda-sol? É a amante do homem. Acho que você já compreendeu: ele é casado com esta outra mulher, que o provoca com o leque.
A explicação das imagens mexeu com as emoções de Susana. Com poucas palavras, Maria tinha acabado de descrever a relação que existia entre ela, Fernando e Mónica! O tapete japonês representava, com fidelidade, o fio cruel do destino, que a tinha colocado na exata posição da primeira mulher.. .
Susana almoçou sozinha no quarto.
Depois do chocolate da manhã a sra. Amália d´Alvarez tinha pedido a Maria para ajudá-la a ir até seu quarto. Susana a esperou cerca de meia hora e, concluindo que Maria não voltaria, decidiu recolher-se.
Quando Maria apareceu para levar a bandeja, informou-lhe que Maria sempre descansava após as refeições e recomendou que fizesse o mesmo.
— Dona Amália toma o chá no pátio às quatro em ponto em companhia de Maria, señorita.
— Devo descer para me juntar a elas?
— Não sei, señorita. Creio que não.
— Nesse caso, quando verei de novo Maria?
— A señorita Maria não toma lições à tarde, señorita. . .
— Oh, não? E o que farei com o resto da minha tarde? — perguntou irritada, assustando Maria,
Passar a tarde toda encerrada no quarto seria a coisa mais aborrecida do mundo, disse para si mesma. Por outro lado, suspeitava que não lhe dariam permissão para sair sozinha para além dos muros da casa. — Não se preocupe comigo — disse a Maria, percebendo o embaraço da moça. — Não estou chateada com você. Obrigada.. .
— Si, señorita. — Hesitou diante da porta. — Aconselho-a a discutir essa questão com don Fernando.
— Talvez eu o faça — suspirou, sentindo um leve nervosismo só de pensar em ter que conversar com Fernando. — Ele esta no escritório?
— Oh, não, hoje ele não está. Foi visitar os vinhedos ou talvez esteja no escritório de Cadiz.
— Entendo! — exclamou, sentando-se pesadamente. — Está bem, então. Falarei com ele mais tarde.
— Pois não, señorita.
Tão logo Maria se retirou, Susana ficou de pé e andou pelo quarto. O ar estava abafado e, num gesto impulsivo tirou a roupa para tomar outro banho. Colocou depois um vestido simples de algodão e desceu.
A casa estava calma na hora da siesta e o ruído de suas sandalias ecoava com estardalhaço. Encontrou uma porta que dava para o pátio e andou pelo corredor externo sob o balcão, atingindo o segundo pátio.
Com o sol quase a pino, as águas da piscina pareciam refrescantes e por um instante desejou dar alguns mergulhos. Mas quando chegou na beirada e olhou para o fundo, notou que não estava suficientemente cheia e limpa.
Respirando fundo, andou devagar pela trilha que ladeava a piscina e atingiu o jardim. Tomando o caminho que conduzia ao pavilhão que tinha avistado no passeio com Maria, decidiu parar para observá-lo na sua estrutura frágil, cercado de vegetação e quase inteiramente coberto de heras. Sem conter a curiosidade, subiu os degraus da escada e entrou no seu interior.
Sentiu qualquer coisa de melancólico nas paredes abandonadas e quando um lagarto, perturbado pela sua presença, passou correndo por ela, assustou-se e rapidamente saiu para a luz do sol.
Voltou para o quarto e sentou na cama, perguntando-se se de fato deveria conversar com Fernando assim que ele chegasse. Sem dúvida ele sabia o quanto ela sentia-se inútil e perdida naquela nova vida. Mas talvez não ligasse! Afinal, a decisão havia sido dela, influenciada por Mónica. No fundo, Mónica não tinha culpa. Ela estava ali na esperança de ver Fernando, um outro Fernando. . .
Mas Susana só viu Fernando outra vez dois dias mais tarde. Esses dias tinham sido suficientes para estabelecer uma rotina. Pelas manhãs, ensinava Maria no grande estúdio próximo da escada espiralada, o qual, segundo Maria, era utilizado pela mãe quando esta se encontrava em casa. Almoçava tarde, segundo o costume espanhol, e à tarde tinha o tempo livre para fazer o que quisesse, sem no entanto interferir nos hábitos da casa.
Uma rotina razoável, pensou Susana, mas não para a pequena Maria, que passava quase o tempo todo com a señora Amália d'Alvarez, à tarde, após a refeição, e à noite, antes de se recolher para dormir. Não achava saudável que uma menina daquela idade vivesse tão apegada a uma pessoa de idade, o que explicava aquele comportamento que beirava a inércia e a apatia. Do ponto de vista de Maria, deduziu Susana, o convento criava um equilíbrio na vida dela, pois lá podia encontrar colegas da mesma idade.
Quando aceitou o emprego, porém, Susana ignorava o confinamento em que Maria vivia, e a cada dia que passava sentia-se mais e mais preocupada com ele. A menina parecia sem vida. Na verdade, precisava não de uma governanta, mas de uma companheira, alguém com quem pudesse brincar e conversar, alguém que lhe mostrasse um comportamento normal, próprio dos seus catorze anos de idade. A infância dela se escoava inadvertidamente, enquanto sentava-se obediente e quieta ao lado de uma velha senhora, compartilhando das memórias de um passado que não lhe dizia respeito e que jamais poderia voltar.
Susana gostaria imensamente de poder discutir aquele assunto com Fernando, mas dificilmente ele se encontrava em casa. Maria tinha lhe explicado que don Fernando saía de manhã bem cedo e que, desde que ela havia chegado ali, ele só voltava à hora do jantar. Sem dúvida era a maneira mais fácil de evitar encontrá-la. Sentia por Maria, também, que o via no jantar e sempre na companhia da señora Amália d'Alvarez.
No sábado daquela semana, Maria disse a Susana que não haveria aula na manhã de domingo, pois deveria ir à missa na vila com a tia-avó Amália e o pai e que, portanto, ela estava livre.
— Livre! — exclamou Susana, rindo por dentro. Como poderia sentir-se livre quando sequer tinha colocado os pés fora da casa dos Alvarez?
Mas alegrou-se por causa de Maria que, finalmente, gozaria da companhia do pai, já que não demonstrava sentir falta da mãe, ainda ausente.
Na manhã de domingo, Susana lavou o cabelo e, para secá-lo, sentou-se ao sol no balcão, enquanto a família estava fora. Depois do almoço, escolheu um livro e começou a ler. Mas estava inquieta e não conseguiu prestar atenção na leitura. Fernando continuava presente, como um fantasma. Naqueles últimos dias, a ausência dele de certa forma a tinha aliviado um pouco, mas agora, sabendo-o ali com mais frequência, tornava-se impossível relaxar. Mais cedo ou mais tarde seria obrigada a conversar com ele. . . sozinha. Também ele devia saber disso!
Por volta das três e meia, penteou-se e examinou-se no espelho.
Naquele dia não estava usando a saia e a blusa habituais, mas uma túnica de algodão creme, leve e refrescante. Fernando não prestaria atenção à sua aparência quando soubesse o que tinha para lhe dizer!
Desceu pouco depois e parou em frente à porta do escritório dele. Levantou a mão, sustentando-a no ar por alguns segundos, e bateu com certa força. Ninguém respondeu e seu coração pulsou acelerado. Naturalmente Fernando estava descansando. . . Voltou-se e nisso ouviu ruído de passos no corredor. Com o coração batendo depressa, seu olhar encontrou o olhar do homem que até aquele momento tinha ocupado seus pensamentos.
— Buenas tardes, señorita. — Ele cumprimentou-a quase sem expressão nenhuma. — Quer falar comigo?
— Sim.. . señor.
— Sinto muito, mas agora não tenho tempo para conversar. Estou de saída. Titia e Maria esperam-me no carro.. .
— Vai sair? Mas. . . É tão difícil encontrá-lo em casa!
— Não tenho nada para lhe dizer, señorita. Maria contou-me que as aulas vão indo bem.. .
— Oh, sim, vão sim. . . Ficamos juntas umas três horas por dia. Acho até um exagero!
Ele compreendeu a ironia da voz de Susana.
— Está se sentindo enfastiada?
— E se estivesse?
— Lamento não termos diversões, señorita. . .
— Lamenta? Olhe, precise conversar com o señor. Devo marcar uma hora?
— Não seja impertinentes señorita. Estou à sua disposição todas as noites.
— Está mesmo?
Susana começava a perder a calma. Estava irada e fazia questão de demonstrá-lo.
— Pensei que estivesse me evitando!
Fernando olhou discretamente para os lados, temendo a chegada de alguém.
— Pode vir ao meu escritório hoje à noite as nove e meia. Se julga um horário conveniente.. .
— Obrigada.
— Vamos ver a tourada. Não creio que goste deste tipo de espetáculo.
— Está me perguntando ou está afirmando? — desafiou-o.
— Até à noite, señorita — murmurou por entre os dentes e num tom de voz formal, afastando-se sem olhar para trás.
Então não era um espetáculo para ela? E como podia ele levar uma criança para assisti-lo?
Entrou no quarto tomada por outras ansiedades. Não era justo falar com Fernando daquela maneira, pois ele não a tinha convidado para ir a Casa d'Alvarez, onde a situação era diferente da de Londres. Ali, Fernando era um homem casado, com uma filha. Além disso, deveria ter tornado consciência disso, ela que sempre soubera preservar o orgulho próprio e nunca desejou envolver-se.
Serviram-lhe o jantar no quarto às oito e meia e por volta das nove e meia começou a se tornar uma pilha de nervos. Tinha que acontecer, disse para si. Estava ali por causa daquilo, e não era mais possível voltar atrás.
Trocou-se, pondo um vestido longo e solto amarrado apenas na cintura, o que lhe destacava os quadris torneados. Verificou a maquilagem leve, escovou os cabelos e desceu a escada devagar até chegar ao corredor.
Fernando respondeu imediatamente à primeira batida, abrindo ele mesmo a porta e afastando-se para que ela pudesse entrar. Fechou a porta e fitou Susana, que parou no centro do escritório. Em seguida ele caminhou em direção à escrivaninha e sentou-se atrás dela, erguendo entre eles uma barreira, como a sugerir que estavam ali para tratar de um assunto meramente professional.
— Por que não se senta, señorita? — sugeriu, apontando uma cadeira em frente.
Susana hesitou, como que decifrando as palavras pronunciadas por ele, e finalmente sentou, deixando as mãos sobre as pernas. Fernando, inclinando-se, tirou um charuto do estojo. O olhar dela se fixou sobre a mão morena que levava o charuto à boca. Viu-lhe então a camisa entreaberta, o tecido tenso denunciando a rigidez dos músculos do peito e dos ombros.
Ele acendeu o charuto com um prazer evidente e recostou-se na cadeira forrada com couro escuro.
— Muito bem. . . por que queria me ver?
Susana baixou o olhar e estreitou as mãos nervosamente. Ali estavam as cartas de um jogo iniciado por ela mesma!
— Queria lhe falar a respeito da pequena Maria, señor. . .
— Sim?. ..
— Sim... — repetiu, procurando mostrar a mesma frieza que ele. — Não acho satisfatória a maneira com que estou educando Maria. . .
— Não? — Tragou o charuto e soltou uma baforada. — Por que não? A meu ver está se saindo bem. . .
— Como pode dizer isso?
— Estou a par de tudo, señorita. Minha tia me mantém informado de seus progressos. . .
— Acredito que ela o informe. No entanto, discordo.
— Discorda de quê? Das informações ou dos seus progressos? Susana perturbou-se com o tom fulminante.
— Não. . . quer dizer, discordo que esse horário esteja funcionando, señor. . .
— Entendo.. . E naturalmente tem sugestões a fazer.
— Sem dúvida.
— Pois então vá em frente.
— Em primeiro lugar, Maria passa muito tempo na companhia da señora Alvarez, sua tia. . .
— E o que isso tem a ver com os horários de estudo de Maria, señorita?
— O señor se recusa a me compreender. . .
— Recuso-me?
— Sabe que sim!
Susana tremia e arfava, encontrando dificuldade para se controlar. Não seria bem-sucedida se não mantivesse a calma e não o impedisse de desconcertá-la.
— Maria e eu nos vemos apenas pela manhã, señor. Ao meio-dia tomamos chocolate com sua tia e depois.. . não tenho o que fazer!
Fernando apoiou os cotovelos sobre a mesa e observou-a detidamente.
— Por acaso não está confundindo o seu aborrecimento com a qualidade da educação de Maria?
— Não! Não estou, não! Uma governanta não se limita a dar aulas! Maria e eu deveríamos estar juntas em outros momentos. Poderíamos sair, passear, ir ao litoral. . . nadar! Jogar ténis! Conhecer outras pessoas!
— Maria é igual às outras meninas da idade dela e da mesma classe social. . .
— Na Espanha, quer dizer.
— Naturalmente, señorita.
— Bem. . . — suspirou — pois acho que não é natural! Viu as roupas que ela usa? Notou quanto tempo ela se senta ao lado da señora Alvarez ouvindo-a lembrar o passado? Isso não é saudável!
— A señorita está se esquecendo de si mesma!
Fernando estava irritado, o que para ela não fazia a menor diferença. Como ele podia se comportar como um cego? Maria definhava naquela atmosfera pesada e sem vida! Em pouco tempo se transformaria numa cópia da tia-avó.
— Caso puxe pela memória, señor, lembrando-se de sua própria infância, não será impossível compreender que Maria precisa de mais liberdade! — exclamou com uma segurança repentina. — O señor mesmo. ..
— Basta! — Ele levantou-se, apoiando os punhos fechados na mesa. — Estamos conversando somente sobre Maria, señorita. Que quer que eu faça? Que lhe dê permissão para sair correndo com ela por aí, como se fosse uma inválida em processo de recuperação?
Susana arregalou os olhos, estremecendo ao ouvir aquelas palavras cruéis.
— Por dios, Susana — Fernando murmurou. — Não era o que eu queria dizer!
Ela levantou-se e colocou-se atrás da cadeira, apoiando-se no encosto enquanto o encarava.
— Não temos mais nada para conversar, señor — afirmou, chocada. — O seu conceito sobre mim é bem claro. Não espere mais nenhuma reivindicação em benefício de Maria. Compreendo porque ela mesma não tem a coragem de lhe pedir absolutamente nada!
— Susana! Susana, você não está compreendendo. . .
— Não, não estou. Não posso compreender o modo com que fala, as coisas que fala, seu jeito de sentir... Mesmo assim teima em me manter presa aqui até à volta de sua esposa! O que significa essa atitude? Uma espécie de justiça perversa?
Olhou-o com amargura durante longo tempo e finalmente ele não conseguiu mais fitá-la.
— Não devia ter vindo, Susana — Fernando murmurou, apagando o charuto.
— Sei muito bem disso...
— Por que veio, então? — Olhou-a angustiado. revelando francamente o que lhe passava na alma.
— Perguntei-me isso diversas vezes — respondeu, encolhendo os ombros, impotente.
— Dios, você sabia que voltaríamos a nos encontrar! Acha isso bom? Não podia ter aceitado minha partida e entender que tudo entre nós estava inevitavelmente acabado?
— Se eu soubesse que era casado com Mónica não teria vindo, Fernando — observou — Como poderia ter relacionado Fernando Cuevas com don Fernando d'AIvarez?
— Como assim? — Fernando parecia não compreender as palavras.
— Ora, Fernando. . . simplesmente eu não sabia que você era casado, seja lá com quem fosse! Se soubesse, jamais teria aceitado seu convite para passarmos aquele fim de semana juntos... — Interrompeu-se, levando as mãos à garganta. — Oh, meu Deus! Que espécie de mulher pensa que sou?
Correu para a porta e parou ao chamado dele.
— Devo acreditar que de fato não sabia?
— Pouco me importa se acredita ou não, ou se deve acreditar, señor — disse, trémula. — Agora que sei o que pensa de mim, o resto não tem a menor importância!
— Susana! Você trabalhava com os Castana. Lucie nunca lhe falou sobre mim?
— Por que ela o faria? Você nunca foi assunto de conversa entre eu e a señora Castana. Sinto muito desapontá-lo.
— Cale-se! — ele exigiu saindo detrás da escrivaninha, gesticulando nervosamente. — De alguma maneira deveria saber. . .
— Por quê? Como? Você não me disse nada. Mal falou sobre você! Para mim era solteiro. . . Não percebe o quanto está errado?
Fernando balançou a cabeça de um lado para o outro, incrédulo.
— Mas e a carta? A carta que eu deixei?
— Que tem ela? Por ela, como uma tola, imaginei que você me abandonava simplesmente por ser mais velho do que eu. . . De qualquer modo, o que entendi dela foi além do que eu queria! — Estendeu a mão para a maçaneta. — Posso sair?
Fernando aproximou-se. De repente, com os músculos do rosto endurecidos, deteve-se alguns momentos, fitou-a em silêncio e depois, respirando fundo, prosseguiu:
— Para mim é. . . difícil acreditar na sua explicação. . . Mesmo assim. . . devo reconsiderar tudo. A própria situação o exige. — Passou as mãos pela cabeça num gesto de impotência. — Você queria ir embora, não é isso? Vou providenciar sua partida imediatamente.
— Está me mandando embora?
— Não era o que queria?
— Sim.. . não. .. quero dizer.. . Não posso partir agora. Pelo menos por Maria preciso ficar mais alguns dias. . .
— Não vejo por quê! Você mesma me disse que as condições não são satisfatórias!
— Não são, mas poderiam ser. Não compreende? Fernando, não sou um fantoche que pode ser manipulado a vontade. Vim aqui para desempenhar minha função e gostaria de ter uma chance. Dê-me uma chance! Depois, o que Maria pensaria se eu fosse embora de repente?
— Maria aceitará o que eu lhe disser.
— Claro que aceitará. Maria fará exatamente o que você mandar! Pobre criatura!
— Não se exceda, Susana! — alertou ele.
— Se ama sua filha, deve saber que ela é infeliz!
— Como pode afirmar? Ela confessou?
— Não. Maria é reprimida demais para dizer uma coisa dessas. Por que lhe dá tão pouca atenção? Por que a deixa aos cuidados de uma velha que. . .
— Estou lhe prevenindo, Susana — ele cortou. — Não se exceda! Nada do que acontece nesta casa lhe diz respeito!
— Sinto discordar, Fernando. Logo que cheguei, é verdade, nada me dizia respeito. Mas você me forçou a ficar, a educar Maria, e agora tudo me diz respeito. Agora eu estou conhecendo Maria, gostando dela. Agora compreendo claramente o mal que esta casa lhe faz!
— Chega, chega!
— Tem mais! Obrigou-me a permanecer aqui, criando essa situação desagradável. É seu dever enfrentar as consequências! De que tem medo? De que Maria decepcione a família d'Alvarez? Ou de que ela não saia à sua imagem e semelhança?
Fernando avançou, o rosto visivelmente irritado.
— Não ouse levantar a cabecinha e me dizer mais nada. Que direito tem de fazer julgamentos sobre coisas que ignora completamente? — Ele baixou o olhar, ruminando uma raiva que a qualquer momento explodiria. — Esta conversa não está nos levando a parte alguma, señorita. Por favor, vá para o seu quarto e arrume as malas. Amanhã cedo Morales a levará para Sevilha. Não encontrará a menor dificuldade em pegar um avião para a Inglaterra. Providenciarei que a reembolsem pelos prejuízos que teve!
— Não!!! — ela exclamou. desesperada. — Não voltarei para a Inglaterra! Aceito que tudo terminou entre nós, mas deixe-me ajudar sua filha! Dê-me a chance de lhe mostrar o quanto Maria poderá ser feliz!
— É impossível! — ele retrucou com aspereza.
— Por quê? Por quê? — Teve vontade de sacudi-lo com todas as forças do seu ser. — Se Mónica estivesse aqui, ela concordaria comigo!
— Sem dúvida, señorita. Mas, por que não pergunta a ela por que dedica tão pouco tempo à filha? Se está tão interessada na educação de Maria, a ponto de contratar os seus serviços, por que ela desaparece durante semanas inteiras sem dizer uma palavra sequer?
— Isso não me diz respeito. ..
— Concordo com você. Nada do que acontece lhe diz respeito. Portanto, saia!
— O que dirá a sua esposa quando voltar? Que não gostou dos meus serviços? Ou que, como nos conhecíamos de Londres, eu estava me tornando um problema para você?
A expressão de Fernando tornou-se ainda mais sombria.
— Mas o que está insinuando? Que contará a Mónica o que há entre nós se eu não lhe conceder o que me pede?
Susana engoliu em seco, indignada. Encarou-o durante alguns segundos agoniantes e percebeu que aquele pensamento não era verdadeiro. Simplesmente se defendia dela, simplesmente desejava vencer agredindo-a como podia.
— Chama a isso de negociação barata? Você seria capaz disso!
Susana deu de ombros.
— Dê-me mais duas semanas com Maria. Duas semanas de liberdade absoluta. Não para aulas, que continuarão normalmente. Mas para sairmos desta casa de vez em quando!
— E se Mónica voltar?
Susana não respondeu. Mónica poderia ser um obstáculo e por alguma razão gostaria que ela não voltasse.
Mas Fernando continuava olhando-a impacientemente à espera de uma resposta. Se ela demonstrasse o quanto estava perturbada com aquela pergunta, poria tudo a perder.
— Dirá a ela que estou trabalhando por um período experimental.
— Você não ignora que eu poderia reproduzir essa nossa conversa diante da polícia, não é? O que você me propõe é chantagem!
— Não dramatize as coisas, Fernando. Afinal, que é que estou lhe pedindo? Duas semanas de uma vida inteira!
Com um pouco de arrependimento, Susana notou que Fernando parecia vencido. Desejou aproximar-se para confortá-lo, para lhe dizer que ainda o amava.
Não podia fazê-lo, porém, porque não acreditava mais nas palavras afetuosas ditas por ele em Londres. Ele, que quase a tinha arruinado. Mas Maria, filha dele, justificava sua presença ali, justificava toda aquela angústia e ansiedade.
— Muito bem, señorita — ele disse finalmente, tirando outro charuto. — Fique.
— E quanto ao que combinamos em relação aos horários?
— Morales receberá permissão para levá-las aonde quiserem ir... Mas sairão de carro apenas na companhia dele. Caso desobedeçam, Morales receberá instruções para me relatar tudo.
Susana suspirou aliviada. Tinha vencido, tinha vencido! No entanto, era uma vitória absolutamente vazia!
Na manhã seguinte, quando Susana disse que sairiam à tarde, logo depois da siesta, Maria arregalou os olhinhos negros.
— Onde vamos, srta. King? Às quatro horas em ponto tenho que tomar chá com a tia Amália.
— Sei disso, meu bem. — Susana sorriu. — Mas seu pai deu permissão para sairmos de carro com Morales. Gosta da idéia?
— Claro que sim — a menina respondeu, deslumbrada. — Adoraria andar de carro. Tia Amália é que pode não gostar.
— Tia Amália! Vamos apenas nós duas. Tia Amália vai ficar.
— Vamos sair eu e você, srta. King? — Maria ficou ainda mais surpresa.
— Bom, se você não incluir Morales, só nós duas.
— Mas já pensou no que a tia Amália vai dizer? Ela já sabe?
— Ainda não. Podemos ir até Cadiz. Não conheço a cidade. Sabe, morro de vontade de conhecer alguma coisa fora daqui… Bem que você poderia me mostrar.
Maria ainda se mostrava hesitante.
— Meu pai vai deixar?
— Por que não?
— É que sempre saio com a tia Amália — justificou, encolhendo os ombros.
— Mas isso era antes de eu vir para cá. Posso substituir sua tia...
— Bom, se papai concorda — ela retrucou, ainda em dúvida.
— Ele concorda, sim. Veja esse nosso passeio como uma. . . uma grande aventura. Uma coisa excitante e agradável. Não é para levar muito a sério.
Maria sorriu, meio tímida.
— Vou tentar, srta. King. Mas ainda sou de opinião de que a tia Amália não vai achar tão interessante assim.
Com efeito, a señora Amália d'Alvarez não aprovou a ideia.
— Mas o que é que Fernando está pensando? — perguntou furiosa, encarando Susana com o costumeiro olhar distante e altivo. — Maria sempre me faz companhia nesse horário, não é mesmo, Maria? Será que é mais importante sair com a señorita King do que ficar com a tia Amália?
Maria não se sentiu bem com aquela pergunta.
— Foi idéia de papai, titia — enfatizou. — Mas amanhã eu vou tomar chá com a señora, como sempre. . .
Susana sorriu consigo mesma, satisfeita. Se Maria gostasse do passeio daquela tarde, no dia seguinte o relacionamento entre elas poderia ser melhor. Pela expressão da señora Alvarez, era evidente que ela sabia a quem culpar pelo entusiasmo da menina e pela perspectiva de mudança dos hábitos da casa. Com certeza procuraria dissuadir Fernando.
Apesar de tudo, quando subiu no carro com Maria, Susana sentia-se extremamente feliz, Apenas uma coisa a incomodava: Maria usava um vestido verde-escuro de jersei, que lhe dava um ar excessivamente sombrio.
Uma vez acomodadas, Susana sorriu para Pedro Morales, que como resposta, fez soar a buzina e deu a partida, passando pelos altos portões de ferro.
O sol estava implacável, mas o movimento do carro criava uma brisa que circulava no seu interior, tornando o calor mais suportável. Quando Maria soltasse os cabelos, pensou, e colocasse uma roupa mais leve e descontraída, finalmente poderia mostrar a garota bonita e atraente que realmente era.
Cadiz situava-se numa península, separada da cidade de San Fernando por um estreito. Antes de atingirem a península, rodaram pelo litoral, admirando o mar incrivelmente azul fundindo-se com o céu limpo no horizonte. Pelo caminho, encontraram aldeias que permaneciam inalteradas por muitos séculos, e aqui e ali aspiraram o aroma de flores e da vegetação viçosa que crescia por toda parte.
Cadiz apresentava um aspecto africano, como que lembrando sua história de violências. Predominavam edifícios caiados, alguns com cúpulas que brilhavam ao sol. Igrejas erguiam-se sobre extensas áreas verdes e palmeiras cresciam ao longo do litoral até o porto. Havia parques onde se podia sentar e contemplar o golfo de Cadiz e as feiras coloridas, onde os vendedores anunciavam seus produtos com voz estridente.
Pedro entrou pela cidade indicando as ruínas das torres que, nos dias dourados, serviram para defesa do lugar. Até mesmo Maria excitou-se ao ver os navios ancorados. Susana avistou uma ruína que fora construída entre os séculos XVII e XVIII, de um templo cristão num meio puramente muçulmano. Maria, que a tinha visitado varias vezes com o pai, contou um pouco de sua história.
Eram quase sete horas quando voltaram a Casa d'Alvarez, o que não despertava em Maria a menor apreensão. Durante o dia, tinha se tornado falante, demonstrando uma inteligência e uma cultura que Susana ignorava. Na verdade, aquela era a primeira oportunidade para exibir o que tinha aprendido. Susana deixou-a inteiramente à vontade para falar, apenas de vez em quando emitindo alguma opinião. Percebia claramente que o problema de Maria estava na falta de comunicação com a señora Alvarez e com Fernando, o que certamente desapareceria se houvesse maior colaboração entre os membros da família. Ansiava pelo momento de mostrar a Fernando aquele outro lado da filha.
Na manhã seguinte, a señora Alvarez recebeu Maria com reservas, mergulhando num silêncio que significava a recusa em permitir-lhes uma nova saída à tarde. Ela deveria ter falado com Fernando, pensou Susana, mas não parecia disposta a ceder às transformações. A velha señora contentava-se em olhar para Susana com rancor.
Não levando em conta dona Amália, ambas saíram e Maria começou a revelar sinais de um novo comportamento. Foram a Algeciras e Jerez, visitaram as vinhas e num outro dia partiram imediatamente após o café da manhã rumo a Sevilha, para visitarem a catedral. Não importava a Susana que os passeios fossem encarados por Maria como uma oportunidade de lhe mostrar as belezas daquela parte do mundo. Importava-lhe arrancá-la da apatia, transformá-la numa menina esperta e vivaz.
Susana chegou mesmo a levá-la ao seu quarto, numa tarde, e mostrou-lhes os vestidos, sugerindo-lhe que os experimentasse. Embora Maria fosse muito jovem, era alta e desenvolvida, de maneira que algumas roupas, com alguns acertos, lhe caberiam maravilhosamente. Mas a intenção de Susana era mostrar a ela o quanto ficaria atraente usando roupas mais alegres e informais.
— Papai não deixaria eu usar roupas desse tipo — a garota lamentou. — E tia Amália jamais concordaria. . .
Susana estudou-a demoradamente.
— Se encurtássemos essa calça — murmurou, como se falasse consigo mesma —, você poderia usá-la. Sabe, não gosto muito da cor verde. Tenho também uma porção de suéteres como esse. Se quiser, pode ficar com eles.
— Está falando sério?
— Claro que estou. Gostou deles?
— Você sabe que eu gostei. — Ela olhou-se no espelho, encantada. — Mas o que vou dizer ao papai?
— Diga para ele se preocupar com as coisas dele!
A voz soou alta e forte atrás delas. Ambas voltaram-se, espantadas.
— Mamãe! — Maria exclamou, horrorizada.
— Señora Alvarez! Quando chegou?
Mónica encolheu os ombros e entrou, andando preguiçosamente.
— Meia hora atrás, creio eu — respondeu, lançando um olhar para as roupas espalhadas. — Oh, até parece um desfile de modas! Que esta acontecendo por aqui?
Maria hesitou, olhando fixamente para Susana.
— Maria estava experimentando algumas roupas minhas. Queria mostrar a ela que roupas informais dão à gente uma sensação de liberdade.
Mónica olhou para as próprias roupas que estava usando e fez um gesto com a cabeça.
— Há anos venho tentando dizer isso a ela!
— Sim, mas talvez ela precisasse experimentar por si mesma para se convencer.
— Talvez — murmurou, tirando um cigarro do maço e acendendo-o. — Estou contente por vê-la fazendo progressos, srta. King. Desculpe por não estar aqui na sua chegada, mas.. . acho que nem foi preciso. A senhorita começou a trabalhar da melhor maneira possível.
Susana queria que Maria dissesse alguma coisa por si mesma, mas ela permanecia petrificada, completamente embaraçada com a presença da mãe. Agora era possível ver que Maria não tinha nada em comum com Mónica. Esta, insensível, jamais seria capaz de compreender a complexidade da personalidade da filha: a menina, por sua vez, só podia sofrer com isso.
— Maria e eu passamos um bom tempo juntas, não é, Maria?
A menina fez que sim com a cabeça e Susana continuou:
— Imagino que a senhora conversou com seu marido.. .
— Oh, sim! — Mónica respondeu, olhando displicente para o assoalho. — Falei com ele e soube que foi duro com você. Eu sabia que ia ser assim.
"E foi por isso que a senhora não apareceu", Susana disse para si mesma, começando a compreender o caráter de Mónica. Mónica fitou a filha como que pela primeira vez.
— Com essas roupas você até parece minha filha — disse ironicamente.
— Posso saber o que está acontecendo por aqui?
Fernando estava parado no limiar da porta, vestindo a roupa negra que quase sempre usava e segurando na mão um chicote.
Maria pareceu afundar num medo que ameaçava tragá-la, e Susana sentiu vontade de expulsar os pais dela dali.
— Maria estava experimentando algumas roupas da srta. King — explicou Mónica, com um ar de satisfação. — Não a acha atraente?
— Señorita! — Fernando exclamou, ignorando a esposa. — Que significa isso?
— Isso o quê, señor? Sua esposa já explicou. ..
Fernando lançou um olhar furioso para as outras roupas sobre a cama e o chão.
— A señorita costuma jogar suas coisas pelo quarto?
Susana evitou o olhar faiscante de Fernando.
— Não, naturalmente.
— É de se concluir, então, que Maria experimentou tudo isso?
— Algumas delas. . .
Fernando açoitou a bota com o chicote.
— E como justifica esse comportamento irresponsável?
— Ora, Fernando, não seja aborrecido. Para que esse interrogatório? Que mal há em tudo isso? Todas as garotas se vestem!
— Concordo, senhora. — Susana olhou para Maria. E depois, nós estávamos nos divertindo, não é mesmo?
— É sim, papai... — Maria afinal quebrou o silêncio. — A gente estava só se divertindo. — Deu um passo adiante. — Não acha essas roupas bonitas, papai? Meu vestido é tão. . . antiquado! A srta. King acha ele fora de moda.
— Nota dez, srta. King! — Mónica comentou, deliciando-se com a cena.
— Maria, a srta. King não está aqui para ensinar-lhe como se vestir — observou Fernando, sem se comover com a filha. — Nem mesmo posso aprovar isso de vestir roupas alheias, seja por brincadeira ou por outra coisa qualquer. — Encarou Susana duramente. — No futuro, señorita, peço-lhe que restrinja sua competência como educadora à sala de aulas!
— Meu Deus, Fernando! — interveio Mónica. — Não seja desmancha-prazeres! Maria tem o direito de escolher o que quiser. Há muito tempo deveria ter sido assim!
— Mónica — advertiu Fernando —, isso compete só a mim decidir! E não chamaria a atenção de Maria se não houvesse necessidade!
— Você está atormentando a menina! — retrucou Mónica.
— Maria era muito feliz antes de você se intrometer em coisas que não lhe diziam respeito. Não é porque de vez em quando resolve desempenhar o papel de mãe que deve se sentir no direito de reivindicar coisas para ela! Limite-se às coisas que sabe fazer!
— Seu.. . seu estúpido! Um dia desses. . . um dia desses eu. . .
— Você irá embora? Sei perfeitamente disso! Mas até que este dia chegue, deixe as questões referentes a Maria exclusivamente para mim!
Aquilo era terrível! Susana queria que o chão se abrisse e a tragasse! Não era agradável estar ali ouvindo Mónica e Fernando comprovarem o fracasso do casamento! Mas Fernando, sensato como sempre, resolveu pôr termo à discussão. Ele tinha plena consciência dos efeitos nocivos que aquela situação teria sobre a personalidade frágil e delicada de Maria.
Dando um novo golpe de chicote contra as botas. Ele ordenou:
— Maria, ponha suas roupas. Estou indo para o cortijo e pensei que você gostaria de ir comigo.
— Oh, sim, papai — Maria respondeu, atordoada.
A menina foi para o banheiro de Susana e trocou-se rapidamente.
— Estou pronta, papai.
Fernando lançou um olhar fulminante para as duas mulheres e depois, com um gesto quase imperceptível, pediu a Maria que saísse antes dele.
Quando elas ficaram sozinhas, Susana não sabia o que dizer e começou a recolher as roupas, dobrando-as e empilhando-as.
— E então? — começou Mónica. — Não vai dizer nada?
— Não, senhora. Não tenho nada a ver com isso.
— Não me responda assim! A senhorita tem opiniões formadas, como todo mundo. O que achou do meu encantador marido? Acha-o diferente de quando o conheceu em Londres?
O rosto de Susana pareceu incendiar-se.
— Que está dizendo?
— Perguntei se o achou diferente de quando ele esteve em Londres.
— Como sabe que conheci seu marido em Londres?
Mónica apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Lucie me contou. . .
— Lucie? Oh! — Suas pernas tremeram. — A señora Castana? — murmurou, aliviada.
— Claro, Lucie me contou isso para impedir-me de contratá-la.. .
Susana deu-lhe as costas para que não notasse o tremor das mãos.
— E o que foi que a señora Castana disse?
— Oh, que Fernando saiu com você e Eduardo numa tarde. Foram visitar o zoológico, não é isso?
— Isso mesmo — respondeu casualmente, guardando as roupas.
— Bem, e o que achou dele?
— De quem?
— De Fernando, naturalmente.
— Oh! Eu o achei simpático — disse, dando de ombros.
— Simpático? Eu jamais usaria essa palavra para descrever meu marido! Mas não tem importância. . . Você deve ter percebido que a malícia de Lucie se deve ao fato de ter sentido uma certa.. . queda por ele, não?
— É mesmo?
— Sim — Mónica respondeu, olhando para a brasa do cigarro.
— Ele esteve para casar-se com ela mas eu apareci no meio do caminho... — Mónica levantou-se. — Muito bem. .. vou deixá-la em paz. Espero que compreenda a complexidade do nosso relacionamento. Ficaria chocada se soubesse de toda a história! — Deu um sorriso malicioso. — Não me olhe com essa carinha assustada. Eu e você faremos de Maria uma verdadeira mulher, vai ver.
Mónica saiu e Susana fechou a porta, encostando-se nela.
— Que dia! — exclamou. Exausta, atirou-se sobre a cama com a sensação de que iria desmaiar.
Deitou-se de bruços. Como ficaria a situação a partir daquele momento, com a presença de Mónica? Não gostaria de parecer cúmplice dela aos olhos de Fernando. E Max Rosenberg? Qual era o papel dele? Teria contribuído para a deterioração do casamento? Há quantos anos Mónica o conhecia? Há quanto tempo ela se comportava tão desrespeitosamente com o marido e a filha?
Se aquele casamento era indesejável, porque não se separavam, afinal? Maria só teria a ganhar com essa decisão! Mas, aparentemente, tinha uma resposta para aquela pergunta. Fernando era católico. O divórcio, para ele, era inadmissível!
Sentiu uma pontada no coração ao concluir o pensamento. Não havia escapatória para Fernando. Se a religião não exercesse tal influência sobre ele, como seria o relacionamento seu com ele? Ou se enganava quanto aos sentimentos de Fernando para com ela?
Havia muitas coisas para compreender! Nunca tinha imaginado que Mónica fosse do tipo de mulher capaz de atraí-lo! Ela era tão rude, tão grosseira, tão diferente dele! Era atraente, não podia negar, mas tinha pelo menos dez anos mais que ele e, quando se casaram, deveria estar por volta dos trinta.
Arrastou-se pela cama e pôs-se de pé, terminando de guardar as roupas. Não via sentido em procurar respostas para questões que não lhe diziam respeito. O melhor talvez fosse partir o mais depressa possível. Com Mónica ali, certamente surgiriam novos problemas e não se sentia forte o bastante para enfrentá-los.
Quando, na manhã seguinte, dava aulas a Maria, Mónica entrou na sala.
— Ontem a senhorita não jantou conosco — observou.
— Peço-lhe que me desculpe, señora.
— Eu disse que a senhorita não jantou conosco ontem a noite. . .
— Não, señora — respondeu, colocando a caneta sobre a mesa.
— Por que não? Por que voltei?
— É que costumo tomar as refeições no quarto.
— No seu quarto? Está me dizendo que durante todos esses dias tem tomado suas refeições no quarto, sozinha?
— Sim, señora.
— Meu Deus! — Mónica exclamou, jogando a cabeça para trás. — Foram ordens do meu marido, aposto!
— Não sei, señora. A señora Gomez disse que. . .
— Oh, a señora Gomez — ela repetiu. — Recebe ordens de dona Amalia, naturalmente.
— Mas não tem importância, señora. . .
— Pois acho que sim.. . Uma governanta deve ser tratada como membro da família.
— Não penso assim, señora. . .
— No futuro, srta. King, tomará as refeições junto com a família, estamos entendidas?
— É uma ordem, señora?
— É o meu desejo, srta. King. Susana baixou a cabeça, suspirando.
— Pois não.
— Ótimo!
Depois que Mónica saiu, Susana não conseguiu mais se concentrar e Maria, percebendo seu embaraço, mostrou-se solidária.
— Srta. King, mamãe discorda de tudo o que papai diz. Com a minha educação é a mesma coisa. Se fosse papai que tivesse pedido uma governanta, mamãe ia bater o pé afirmando que o convento era infinitamente melhor.
— E você aceita isso, Maria?
A garota suspirou.
— Mamãe quase nunca está. . .
— Conversa com seu pai sobre sua mãe?
— Não, papai não permitiria, mas eu sei que as coisas não são fáceis para ele.
Susana ficou perplexa diante das opiniões de Maria e preferiu interromper a conversa. Muita coisa ainda mudaria naquela casa, pensou. Maria, na verdade, não estava sofrendo como no início tinha dado a perceber. Pelo contrário, talvez fosse mais feliz do que todos os adultos juntos!
Ao meio-dia tomaram chocolate com Amália d'Alvarez, como de hábito.
— Imagino que a señorita nos deixará em breve, não? — perguntou a velha senhora repentinamente.
— Imagino que sim, señora — Susana respondeu fria e calmamente, sem dar atenção real ao assunto.
— Quando? Amanhã? Depois de amanhã?
— Talvez na semana que vem, señora.
— Semana que vem?! — exclamou dona Amália, pressionando uma mão contra a outra. — Mas meu sobrinho lhe disse para ficar até à volta de Mónica!
Susana tomou um gole do chocolate quente.
— Acontece que don Fernando concordou com um período experimental, señora — afirmou, num tom provocativo.
— Período experimental? Não me consultaram a respeito disso!
Maria sentou-se ao lado da velha senhora, no sofá.
— A srta. King vai passar a jantar conosco também, tia Amália.
— Por ordem de quem, Maria? Sua ou de Mónica?
— Não é minha vontade juntar-se à família, señora.
— Mamãe disse que na Inglaterra uma governanta faz parte da família. Nós podemos fazer isso também!
Dona Amália levou os dedos ao colar de pérolas, girando-as impacientemente.
— Maria, estamos na Espanha, não na Inglaterra. Não desejamos adotar costumes ingleses.
— A mamãe é inglesa, tia Amália.
— Não, niña, sua mãe é americana! Não se esqueça nunca disso!
À hora do almoço a situação foi igualmente tensa, quando Mónica d'Alvarez entrou na pequena sala de jantar próxima do saguão.
Susana ficou angustiada ao observar os atritos entre Mónica e a señora Alvarez, que turvaram a atmosfera sensivelmente. Fernando, como de costume, não estava em casa. O momento da siesta veio como um alívio para Susana, que assim pôde recolher-se ao quarto.
Mais tarde, ela e Maria saíram com Pedro para um passeio de automóvel. Por sugestão de Maria, tomaram a estrada que levava às colinas e Susana viu o cortijo para onde Fernando tinha levado a filha um dia antes.
— Os cortijos são uma espécie de quinta — explicou Maria. — Muitas famílias vivem em comunidade, colaborando entre si em tudo.
— Seu pai é dono dessas terras? — Susana perguntou, sem conter a curiosidade.
— Pertenceram a ele há muito tempo. Papai diz que um homem só devia ser dono de si mesmo.
— Ele tem razão, Maria.
— Quase sempre papai tem razão, srta. King.
Susana pensou muito antes de escolher a roupa que vestiria para o jantar, uma situação que, para ela, era realmente especial. Acabou optando por um vestido negro de jérsei, bastante informal e simples, mas ao mesmo tempo elegante.
Quando se aprontou, perguntou-se se estava realmente atraente. Quando descesse, caso Fernando estivesse em casa, queria que a notasse de uma maneira diferente, queria que visse nela a mesma mulher que conhecera em Londres.
Alguns momentos mais tarde, Maria entrou e, vendo-a toda arrumada, não escondeu certa admiração.
— Vim lhe mostrar como chegar ao salon, srta. King. Venha comigo.
Susana sorriu.
— Obrigada, querida. Eu nem saberia como chegar lá.
— Também não é tão difícil assim. Esta noite vamos jantar no salon, que é a sala de jantar principal. É mais impressionante e bonita do que aquela da hora do almoço!
Maria olhou para o vestidinho de algodão que usava e suspirou.
— Presente da minha mãe no ano passado. De Londres... — confidenciou. — Papai não gosta muito dele, mas eu pensei que você ia gostar.
— Você fica muito bonita dentro dele! Parece uma mocinha!
— Você também está linda! — exclamou Maria, à medida que caminhavam pelo corredor do andar de baixo. — Aliás, não me leve a mal, mas está sempre linda! Sabe, gostaria que mamãe fosse assim como você. Quem sabe papai se apaixonava por ela e a gente ia ser muito mais feliz!
— Por que está dizendo isso?
— Porque é verdade. Papai gosta muito de você. E eu também gosto.
— Maria, pare de imaginar coisa! Seu pai quer que eu vá embora.
— Isso porque ele quer que eu frequente o convento. Não é nada pessoal.. .
— Como sabe?
— É verdade. Ontem à tarde, quando ele me levou para ver Juan, Carlos e Ana, era para você ir junto.
— Era mesmo?
— Era. . . Por isso ele foi procurar a gente no seu quarto. Mas ai mamãe estava lá, eu estava usando as suas roupas e papai ficou furioso, furioso mesmo.
— Mas não precisava ficar.
— É que papai me compra as roupas que a tia Amália escolhe. Magoei ele quando disse que eram fora de moda.
Susana ficou calada, pensando em como aquilo era sensato. Mas tudo o que Fernando dizia parecia sensato. Até mesmo a sugestão de passarem um fim de semana juntos. ..
Maria a introduziu no salon, onde Fernando e señora Amália a aguardavam. Mónica não estava presente, mas Fernando tinha uma expressão dura, agravada pelas roupas escuras que usava. Aos olhos de Susana, parecia extremamente atraente, e seus sentidos se acenderam à medida que os olhos dele se detiveram sobre cada parte de seu corpo.
A señora olhou desgostosa para o vestido claro de Maria.
— Por que não está usando o vestido marrom de linho que Sophia fez para você?
Antes que Maria pudesse responder, Fernando dirigiu-se a tia.
— Tia Amália, deixe-a em paz. Esse vestido é presente de Mónica. Cai-lhe muito bem.
Até mesmo Maria se surpreendeu ao ouvi-lo dizer aquilo e daquela maneira, fazendo com que a velha senhora silenciasse e baixasse o olhar. Finalmente a anciã levantou-se para sentar-se no sofá colocado a um canto. Fernando pôs toda a atenção sobre Susana.
— Aceita uma bebida, señorita? — perguntou, sem demonstrar nem ressentimento nem prazer pela presença dela. — Que prefere?
Susana desviou o olhar para uma cómoda repleta de garrafas, taças e copos.
— Xerez, talvez — aventurou-se.
Ele inclinou a cabeça e foi pegar a bebida para ela. Observando-o, Susana lembrou-se da casa de campo.
Fernando voltou pouco depois e estendeu-lhe o copo.
— Obrigada. — Ela segurou a bebida, cuidando para que seus dedos não se tocassem.
Fernando fitou-a longamente e, respirando com ansiedade, afastou-se. Era difícil para Susana comportar-se como se nada tivesse mudado. O coração palpitava, batendo tão forte que lhe dava a impressão de ser ouvido por todos que estavam ali. Suas pernas tremiam a ponto dela achar que desmaiaria. Tomou apressadamente um gole da bebida, procurando acalmar-se, e deparou com o olhar frio e calculista de Amália d'Alvarez.
A velha senhora examinava-a insistentemente, sem esconder isso. Com certeza tinha captado aquele momento de fraqueza de Fernando! Ou seria tudo fruto da imaginação de Susana? Pela primeira vez, ele lhe dava motivos para concluir que os sentimentos revelados em Londres eram reais. E mais: que ainda existiam com a mesma força!
A aparência graciosa de Maria distraiu Susana, que aproveitou para fugir do olhar repressor da señora Amália.
Nisso Mónica entrou na sala, exuberante num vestido de chiffon amarelo-laranja com plumas em torno do pescoço. Fumava um dos seus cigarros americanos, sem os quais raramente era vista.
— Fernando, por favor, sirva-me um conhaque, sim?
Fernando fez um gesto de consentimento com a cabeça, e Mónica lançou um olhar para Susana e dona Amália. Quando viu Maria, seus olhos se abriram e os lábios esboçaram um sorriso de satisfação.
— Querida! Como você está linda! É esse o vestido que lhe dei?
— Sim, mamãe.
Mónica aproximou-se dela e deu uma volta em torno, tocando-lhe a trança.
— Não fosse a trança, querida, parecia uma autêntica americana! Não acha, srta. King?
— É aconselhável usar essa trança no calor, señora.
Mónica sorriu, depois de refletir um segundo.
— Talvez. . . Mas pelo menos uma vez seria bom soltar esse cabelo,
Voltou-se e viu que Fernando lhe estendia o copo de conhaque. Tomou metade de um só gole e passou o dorso da mão pela boca. Ele permaneceu impassível.
— Quer um drinque, titia? — perguntou, afinal.
— Não, obrigada — e a senhora respondeu, secamente. Fernando limitou-se a sentar-se próximo de Maria.
— Não é uma delícia? — Mónica perguntou quase que para si mesma, terminando de beber o conhaque. — Todos estão se divertindo!
Passou o copo para Fernando, que o encheu pela segunda vez e o devolveu a ela.
— Não preciso aconselhá-la a beber pouco antes do jantar. . . Não quer adoecer, quer?
— Sou forte, Fernando. Sei tomar conta de mim sozinha. Não preciso que ninguém se preocupe comigo. Ninguém! — Ergueu o copo e bebeu, sem deixar de fitá-lo. — Está vendo? É tarde demais para que você tente mudar as coisas!
Susana virou-se para a janela e olhou para o pátio.
— Senhorita — Mónica chamou-a —, como fazia para se divertir em Londres? Devia ter muitos namorados por lá, não?
— Mónica, a vida pessoal da señorita King não lhe diz respeito — Fernando interveio, antes que Susana respondesse.
— Não ligue para o meu marido. senhorita. — Mónica desprezou a observação dele com um gesto de mão. — Ele pode não estar interessado em saber, mas eu estou. Gostaria de saber como as mocinhas de hoje sobrevivem. . .
— Eu não chamaria a mim mesma de "mocinha" . — Susana replicou.
— Por que não? Não costumava passear?
— Sim, mas não muito. .. Está falando com a pessoa errada. Eu era uma pessoa maçante, senhora.
— Eu não diria isso — Mónica comentou, examinando-a de cima abaixo.
— Mónica, para quê insistir nessa conversa ridícula? Esta embaraçando a srta. King, será que não percebe?
— Mas eu não perguntei detalhes da intimidade dela! Eu a embaracei, querida?
— Eu.. . acho que não.
— Está vendo? As inglesas são diferentes das espanholas. Não temem abandonar suas famílias, morar sozinhas e levar adiante uma carreira profissional! Elas curtem a independência! Como quero que Maria faça!
— Não inclua Maria nessa conversa!
— Você gostaria de estudar numa Universidade da Inglaterra, não gostaria Maria? — Mónica perguntou, tocando afetuosamente o ombro da filha. — Não gosta de ouvir as histórias da tia Amália de quando ela era criança, não é mesmo?
— Basta, Mónica! Se não quer parar, sugiro que jante no seu quarto!
— Com quem pensa que está falando? — Os olhos de Mónica se arregalaram, num acesso de fúria. — Seus camponeses o tratam como Deus, Fernando, mas não espere isso de mim!
— No haga un escandalo, Mónica! — ele insistiu, mas ela o ignorou.
— Fale em inglês, querido. Não quer que a srta. King estenda as doçuras que está me dizendo?
Nesse momento, Maria entrou para anunciar que o jantar estava servido.
Sob a tensa atmosfera da sala, Susana mal tocou no prato. Sentiu um profundo alívio quando chegou a hora da sobremesa.
O café foi servido no salon e ela procurou bebê-lo com rapidez para em seguida pedir licença e se retirar. Mónica levantou as sobrancelhas.
— Por quê a pressa, srta. King? Eu adoraria dar continuidade à nossa conversa sobre Londres. Conheço a cidade muito bem e tenho certeza de que não faltariam aspectos para abordarmos.
— É que. . . estou cansada — Susana mentiu, balançando a cabeça numa desculpa.
— Pois creio que está amedrontada, srta. King. Teme que eu e meu marido a embaracemos de novo. . .
— Por Deus, Mónica, não pode deixar a señorita King em paz? — intercedeu Fernando. —- Deixe-a retirar-se, se ela quiser!
— Realmente sinto-me cansada — Susana repetiu perturbada.
— Meu marido não percebe que estou enfastiada das conversas com ele e sua tia! Você é a minha única salvação, querida!
Susana mordeu o lábio.
— Desculpe-me — insistiu.
— De que adianta trazer para cá uma pessoa nova e diferente se ela se recusa a ser sociável? Oh, acho que estou farta desta casa!
Susana foi para a porta.
— Pode ir! — Mónica disse, observando-a com malícia. — Feche seus ouvidos às nossas tempestades verbais! Recuse os fatos como todos desta sala!
Fernando, que estava de pé em frente à lareira, de mãos nos bolsos, aproximou-se de Mónica.
— Mónica, Susana disse, mais de uma vez, que estava cansada! Não se convenceu disso?
— Oh, você a chama de Susana, hein? É este o nome dela? E desde quando a chama pelo nome, querido?
Aquilo bastou para Susana. Reuniu suas forças e andou rapidamente pelo corredor em direção à escadaria que levava ao seu quarto. Só quando se fechou no aposento sentiu a náusea que a dominava. Correu para o banheiro, as mãos no estômago, a cabeça girando, indisposta e com ânsia de vómito.
Fraca ao extremo, transpirou abundantemente, a pele gelada. Arrancou as roupas, tomou um banho frio, colocou um penhoar de seda e escovou os dentes. Voltou ao quarto, apagou as luzes e estendeu-se na cama.
O quarto mergulhou nas trevas e ela teve a sensação de mergulhar no inferno! Por que Fernando tinha se casado com uma mulher como Mónica? Ele a teria amado durante todos aqueles anos? Apesar de toda a infidelidade, só o amor justificava estarem juntos. Ainda era difícil acreditar!
Não, não importavam as razões que o tinham levado a viver com Mónica. O casamento era um fato consumado, um fato que deveria aceitar para sempre. Iria embora da Casa d'Alvarez! Maria voltaria para o convento e em breve a esqueceria!
A exaustão fez com que adormecesse, mas acordou sobressaltada. Abriu os olhos e sentou-se na cama, com a impressão de que tinha ouvido um ruído. Nisso, viu um vulto mexendo-se junto do guarda-roupa. Pensou em gritar, mas antes que o fizesse, o vulto foi atingido por um raio de luar.
— Fernando! — ela exclamou, atônita. — Que está fazendo aqui?
Fernando foi até à cama dela, com a camisa entreaberta e um pouco fora das calças, as mangas arregaçadas, os cabelos desgrenhados. A expressão dele, de profunda angústia, preocupou-a.
— Desculpe-me acordá-la, Susana. .. não era minha intenção.
— Mas o que veio fazer no meu quarto, Fernando? — perguntou, respirando com dificuldade.
— Não sei — ele respondeu, negando com a cabeça. — Foi o que me perguntei depois que entrei.
— Como assim?
Ele estava parado ao lado da cama, olhando-a estranhamente.
— Eu poderia dar muitas explicações, mas todas elas seriam desculpas. Vim porque. .. queria vê-la. Senti necessidade de vê-la! Se não ia ficar louco! Completamente louco!
Susana ficou boquiaberta.
— Oh, Fernando — sussurrou. — Que aconteceu com você?
Ele sentou-se na cama e procurou-lhe as mãos, prendendo-as contra as dele.
— Mónica e eu tivemos mais uma daquelas pequenas batalhas, pequena. Só que desta vez você estava envolvida. . .
— Mas que tenho eu?
Fernando respirou fundo, inclinou a cabeça e beijou a mão dela.
— Eu a proibi de dizer coisas a seu respeito. Você não faz parte da minha vida sórdida. Não posso admitir que ela procure difamá-la! — Apertou as mãos dela. — Como me arrependo de ter casado!
Susana sentiu um arrepio de frio percorrer seu corpo.
— Você a amou, Fernando. ..
— Antes a tivesse amado. . . Mónica casou comigo para que ambos nos culpássemos por tudo. . . para que espiássemos nossos pecados.
— Não estou entendendo.
Ele a encarou um momento e baixou o olhar de novo para as mãos delicadas e trémulas de Susana.
— Não poderia entender. . . Apenas eu e Mónica conhecemos o conteúdo dessa longa história. . Eu devia ter lhe contado. Tive um irmão.
— Um irmão?
— Si. Ele se chamava Miguel e era um ano mais velho do que eu. Não se parecia comigo, compreende? Ele era muito. . . obediente. Sempre fazia o que papai mandava. Eu. . . eu não, eu preferia a liberdade.
Susana fez um sinal com a cabeça, dizendo que o ouvia e compreendia.
— Bom, Miguel vivia com papai e tia Amália em casa. Sentia-se bem. Ele era o filho mais velho. Para mim, um dia ele tomaria as rédeas da companhia. . . eu não era uma pessoa importante na família, Deixaram-me estudar na Inglaterra, viajar, escolher a carreira que mais me agradava. A Companhia d'Alvarez prosperava. Papai era um homem muito rico.
— Mas então houve mudanças, não é?
— Sim. Provavelmente você deve saber que as uvas cultivadas para a produção do vinho precisam de um clima quente e seco. Elas precisam ser colhidas no momento exato, quando não são nem muito doces nem muito amargas. O sol produz açucar na uva, e uma colheita doce não resulta em bom vinho. Bom, isso é o que se deve aprender. Uma lição que passa de pai para filho. Aliás o clima é a coisa mais perigosa, já que não podemos ter controle sobre ele. Há dezesseis anos atrás, houve uma estação úmida, excessivamente úmida, e as uvas foram arruinadas. A colheita foi destruída. Todos perderam dinheiro, mas não estávamos ainda diante do grande desastre. Todos argumentaram que no ano seguinte teriam a melhor colheita de todos os tempos. Mas não foi o que aconteceu. Pelo menos, não para as vinhas de don Esteban d'Alvarez. Uma doença virulenta atacou as raízes das videiras. Não pudemos fazer nada, a não ser destruí-las. Precisávamos de novas videiras, mas já não tínhamos dinheiro para isso.
Susana tocou a cabeça dele, alisando-lhe os cabelos. Era como se ela sonhasse com aqueles momentos. Fernando não podia estar ali, a seu lado, relatando a situação que tinha antecedido o casamento com Mónica!
— Miguel conhecia uma família de norte-americanos em Jerez. O nome dela era Turner e Mónica era prima deles, na época estava viajando pela Europa. Bom, ela tornou-se amiga de Miguel. Quando ficou claro que as vinhas dos Alvarez deveriam ser vendidas, papai se desesperou. Pediu a Miguel para tomar providências no sentido de recuperarmos nossa fortuna. Sabíamos que Mónica era rica. . . Papai sugeriu então que. . . aquela era a única maneira de vermos as vinhas restabelecidas. . .
— E Miguel casou com Mónica?. . .
— Não. Miguel foi assassinado uma semana antes do casamento. Susana levou a mão a boca, horrorizada. Começava a compreender.
Miguel morto, apenas Fernando poderia salvar a fortuna da família...
— Você casou no lugar dele?. . .
— Mónica, naturalmente, não viu a menor diferença. Pelo menos naquele momento. Como lhe disse, eu estava fora da Espanha, e Mónica e eu não nos conhecíamos, o que aconteceu quando voltei para os funerais de Miguel. Digamos que ela se sentiu fisicamente atraída por mim. Agora você pode ver claramente o dilema que tinha diante de mim. Antes papai nunca havia me pedido absolutamente nada. Eu simplesmente não podia decepcioná-lo. . .
— Não. . .
— E, claro, o casamento não deu certo. Tentamos, sim, mas foi inútil. Não fomos feitos um para o outro, nada temos em comum, mas Mónica ainda insiste em manter as aparências.
— Isso é tudo?
— Não — ele disse com a voz rouca. — Antes de conhecer você, eu não dava importância ao curso do nosso casamento. Em Londres. . . Sabe, não devíamos ter-nos conhecido. . .
— Contou a Mónica a nosso respeito?
— Não. Eu jamais poderia mostrar a ela que era tão inescrupuloso quanto ela! Oh, Susana, por que veio até aqui? Quando pensei que tinha vindo para me atormentar, precisei fingir que a odiava. Mas quando disse-me a verdade, fiquei desesperado e preferi que fosse embora. Eu tinha medo de que essas coisas acontecessem. . .
Ele a olhou angustiado, procurando no rosto dela algum sinal de sofrimento. Com um gesto brusco, misto de desespero e de desejo, acariciou-lhe o pescoço e deslizou a mão pelos ombros, tocando a alça do penhoar dela. Puxou-a contra si e a beijou entre os seios.
Seu toque era gentil, caloroso, destruindo nela qualquer possibilidade de defesa. Deitaram-se vagarosamente, quase inconscientes, beijando-se com ardor, com violenta paixão. Na penumbra repleta de mistério, o peso do corpo dele sobre o dela formava um escudo contra o mundo lá fora.
— Susana, Susana! — ele sussurrou. — Perdoe-me, mas a amo loucamente!. ..
Ela o envolveu com os braços, duvidando que estivessem ali. Os acontecimentos do dia a tinham enfraquecido, não podia oferecer-lhe resistência. Naqueles poucos minutos de intimidade, desapareceram todas as prevenções contra o homem que a tinha magoado tão profundamente.
De repente, porém, a luz do quarto se acendeu. Fernando se recompôs e deu com Mónica, que entrou calmamente, como uma serpente que se insinua para atacar o inimigo.
— Meu Deus! — ela exclamou, incrédula, olhando-os alternadamente, — Amália tinha razão. Então é assim, é? Meu Deus! Compreendo agora por que tanto defendeu nossa governanta. Seu hipócrita!
— Mónica — Susana começou, desesperada.
Fernando saiu da cama e fez sinal para ela se calar. Abotoou a camisa devagar, aparentemente indiferente à fúria estampada no rosto da esposa.
— Antes que comece com sua enxurrada de acusações, Mónica, sugiro que continuemos a batalha num outro campo. . .
— Não vejo por que! Quer poupar sua amante dos detalhes mais nojentos?
— Susana não é minha amante!
— Não?
— Não seja desagradável, Mónica!
— Desagradável? Eu? Acabo de entrar e encontro meu marido com outra mulher e você me chama de desagradável?!
— Cale-se! — ele gritou. — Quem a mandou aqui? Oh, sim, Amália... Só podia ser Amália!
— Ela é uma velhota mais esperta do que você pensa! Há quanto tempo estão juntos?
— Não se trata disso! O que acabou de presenciar é apenas o resultado de uma situação criada por você mesma!
— Não acha um tanto prematura sua acusação?
— Susana e eu nos conhecemos há apenas três meses.
— Quer dizer que havia um fundo de verdade nas insinuações de Lucie?
— Ignoro as insinuações dela.
— Segundo ela, você demonstrou grande interesse pela moça.
— Ela também lhe contou que me recebeu certa manhã usando um penhoar transparente, com o claro propósito de me atrair?
Mónica atirou a ponta de cigarro no chão e pisou nela com firmeza.
— Muito bem, não precisa discorrer sobre os deslizes de Lucie Castana. — Encarou Susana com malícia. — Sempre a achei uma mulher fria. . . e agora vejo como sabe dissimular.
— Sugiro que saiamos daqui — Fernando disse. — Susana precisa descansar, Mónica. Todos nos estamos cansados.
Mónica deu de ombros.
— Diga-me uma coisa: o que existe precisamente entre ela e. . .você?
— Acha importante saber isso?
— Acho! E Susana também deve achar. . .
— Está bem, Mónica — ele respondeu, fechando as mãos. — Amo Susana. Basta?
— E ela o ama?
— Sim — Susana respondeu, inesperadamente. — Sim, eu o amo. Mas não sabia que ele era casado até pôr os pés nesta casa.
— Não? — Mónica comentou com ironia.
— Não, señora. Como poderia saber?
— Claro, se meu querido esposo não lhe contou. . .
— Sim, ele não me contou.
— Isso é próprio dele! E agora, Fernando, que pensa fazer? Casar com a moça?
Fernando avançou um passo e parou em frente de Mónica.
— Saia daqui!
— Por que não casa com ela? Assim todos poderíamos viver felizes!
Fernando apertou-lhe o braço, machucando-a.
— Há um limite, Mónica!
— Não seja tolo, Fernando! — exclamou, afastando-o e dirigindo-se para a porta. — Eu vou embora. Não precisa quebrar meu braço. .. Não precisa nem vir comigo. Sou mulher de mentalidade aberta!
Mónica saiu deixando a porta escancarada.
— Que é que eu digo para você? — ele perguntou, voltando-se para Susana. — Desculpar-me seria fingir que não voltaria a fazer a mesma coisa. Mas eu estou aborrecido com esta cena.
— Fernando...
— Por favor, não fale nada. Preciso ir. É provável que Amália esteja me esperando aos pés da escada.
— Não deve ir, Fernando. . .
— Devo sim, Susana, devo. — Foi até à porta e parou. — Boa noite, amada. Tente dormir. Amanhã cedo as coisas não parecerão tão negras!
Susana pegou no sono ao amanhecer, ainda assim por um curto período. Antes de Maria lhe trazer o café, tomou banho e se arrumou. A criada se mostrou surpresa por vê-la de pé tão cedo e, pelo comportamento dela, certamente ignorava os acontecimentos da noite anterior.
Sozinha, serviu-se de café e com a xícara na mão deu voltas pelo quarto, perdida em pensamentos. Inutilmente procurava soluções para os problemas que lhe haviam roubado o sono da noite, e finalmente decidiu ir embora dali. Era evidente que seria tolice permanecer.
Amava Fernando, sim, mas não podia passar o resto da vida à sombra dele, sabendo que Mónica tinha o direito de exigir dele o que quisesse. Que vida inútil era aquela, conturbada, prejudicial à menina Maria, cada dia trazendo uma nova experiência desagradável!
Entrou na sala de estudos às nove em ponto para informar Maria de sua partida, mas a menina não estava lá. Esperou cerca de vinte minutos e então desceu para a saleta em que ela costumava tomar chocolate com tia Amália. Maria também não estava lá, apenas dona Amália, com o mesmo olhar distante.
— Oh, señorita King — observou com satisfação. — Eu a esperava.
Está procurando Maria?
— Sim, ela não apareceu para as aulas.
— Maria não estudará mais com a señorita — disse, pondo de lado o bordado. — Voltará para o convento.
— Voltará para o convento? Quando?
— Não importa, senõrita. A decisão é do meu sobrinho.
— Compreendo.
— A senorita sabe porquê, não?
Susana corou.
— Como saberia, senõra?
— Naturalmente não poderá continuar aqui, depois dos... acontecimentos ...
Susana suspirou fundo, pensando em como era desconcertante saber que questões tão pessoais pudessem se tornar tão públicas naquela casa!
— Exatamente por isso, senõra, queria ver Maria. .. quero dizer a ela que estou de partida.
— Com certeza o pai dela já se encarregou disso, señorita — disse, francamente satisfeita com sua vitória.
— Oh, sim, naturalmente. Don Fernando está no escritório, senõra?
— Meu sobrinho saiu, señorita. Voltará à noite. . .
— E a señora Mónica d'Alvarez?
— Não tenho idéia, señorita. — Por que deseja ver meu sobrinho ou Mónica?
— Devo dar satisfação aos meus patrões. . .
— Só isso? Ora, minha cara, posso transmitir-lhes suas desculpas, se é que são necessárias…
Susana lançou um olhar desalentador para a señora Amália. Não confiava nela, decididamente. Insistiria para ver Fernando antes de ir embora.
— Na verdade, señora, acho que. . .
Interrompeu-se ao sentir uma presença repentina. Voltou-se e deu com Mónica parada à porta.
— Ora, ora, — ela observou com ironia. — Que é que estão conversando? Onde está Maria? Ela hoje não vai estudar?
Dona Amália lançou um olhar fulminante para Mónica.
— A señorita King e eu conversávamos sobre um assunto particular, Mónica. Gostaria que nos deixasse sozinhas.
Mónica ignorou o comentário da anciã.
— Onde está Maria, srta. Susana?
— Soube que Maria está de volta ao convento, señora.
— Quem disse? — ela perguntou, levando um cigarro à boca.
— Por favor, Mónica! — dona Amália exclamou, levantando-se do sofá.
— Quero saber quero deu ordens para Maria voltar ao convento. Fernando, por acaso?
— Claro que é a vontade de Fernando — adiantou-se dona Amália.
— A señorita King está de partida por decisão dela, não minha.
— Está indo embora? Mas não pode ir embora!
Susana inquietou-se, mas procurou dissimilar.
— Preciso ir, senhora.
— Não pode, está me ouvindo? — Mónica repetiu, acendendo o cigarro,
— Mónica, não aborreça a señorita. Ela não tem o que fazer aqui!
— Não concordo, dona Amália. A srta. King ama meu marido. Sabia disso?
— Não acho digno falarmos sobre essa questão, Mónica.
— E se lhe disser que seu sobrinho também a ama?
— Mónica! — Dona Amália empalideceu.
— Pois é a pura verdade! — Mónica sentou-se numa cadeira de braços, cruzando as pernas numa calma aparente. — Oh, meu Deus! Exatamente quando achava que eu e Fernando tínhamos uma chance, acontece-me uma dessas — levantou os olhos para o céu. — Não existe mais justiça?
— Mónica, deixe-nos sozinhas. O que você está insinuando é absolutamente impossível. Por favor, saia!
— Bem que gostaria, não? Adora esconder os fatos a todo custo! Oh, não, não. É inadmissível que o nome da família d'Alvarez esteja maculado!
— Mónica, por favor! — insistiu a señora Amália.
— Por favor? Oh, Amália, você está me pedindo por favor? Está se esquecendo de que este tipo de pedido não faz mais sentido desde que a señora descobriu que Max e eu. ..
— Oh, Dios mio! — grunhiu a velha senhora, empalidecendo novamente.
Susana correu para ela e a ajudou a deitar-se no sofá.
— Quer um copo d'água, senõra?
Dona Amália abanou-se com o lenço.
— Um pouco de Vichy.. .
Mónica levantou-se.
— Não notou que ela está representando, só para esconder um segredo de família?
— Não estou interessada em segredos de família, senhora, e nem acho que deviam ser revelados.
Mónica fez um muxoxo.
— Realmente? E se eu lhe contasse que não existe nenhum obstáculo que impeça Fernando de casar com a senhorita?
Quando os patinhos da lagoa chamaram a atenção de Toni, Susana parou de empurrar o carrinho de bebé. "Quaque-Quaque!", fez ele, e ela riu, ajoelhando-se ao lado e apontando com o dedo os cisnes que, mais adiante, nadavam com os companheiros.
Depois sentou-se na grama fresca, cruzou as pernas e apoiou o rosto tristonho nas mãos. Ainda não estava certa de que tinha sido uma boa coisa aceitar o emprego na escola de Kennington.
Estava em Londres havia dois meses já, e dois meses tinham se passado desde a revelação surpreendente de Mónica. Na Espanha, passara dias e noites terríveis, mas aos poucos, porém, foi reconhecendo que não era justo colocar a culpa sobre Fernando. A vaga na escola que, coincidentemente era a mesma em que Peter, marido de Margaret, trabalhava, apareceu de uma maneira inesperada, e estimulada por eles acabou por aceitá-la.
O casal de amigos gostava muitíssimo dela, sempre cercando-a de carinhos e atenções. Não lhe faziam muitas perguntas, não lhe exigiam nada, e aos poucos ela mesma foi lhes contando a sua história. Margaret, que no início antipatizava com Fernando, foi a primeira a reconhecer as justificativas para as decisões dele, e através dela é que Susana começou a compreender e viver a verdade.
Mas naquela manhã, ainda na Espanha, quando Mónica revelou todos os fatos relacionados ao casamento com Fernando, Susana experimentou a mais avassaladora das humilhações. A situação em si não apresentava nada de incomum. Mónica tinha sido casada antes e, quando se uniu a Fernando, acreditava que o primeiro marido estivesse morto. Este, no entanto, reapareceu três anos mais tarde.
Lembrando de tudo, Susana via mais claramente o dilema que Fernando teve que enfrentar. Casado com uma ... mulher que não amava, com a oportunidade de ser um homem livre de novo, ainda assim se manteve fiel.
Mónica havia explicado que, ainda jovem, tinha casado com um judeu de Nova York. Logo depois do casamento, o marido, preocupado com a família na Polónia, em plena Segunda Guerra Mundial, partiu para a terra natal contra a vontade dela. Durante vinte anos Mónica ficou sem receber noticias dele, tomando-o como morto, possivelmente vítima dos campos de concentração. De fato, ele tinha sido preso, mas conseguiu escapar, anos depois, e voltou aos Estados Unidos. Mas só foi encontrá-la na Espanha, casada com outro homem. O primeiro marido de Mónica, naturalmente, era Max Rosenberg.
Toni começou a ficar inquieto, interrompendo as lembranças de Susana, que levantou e continuou a passear com ele pelo parque. Era uma bela tarde de verão, e em breve o Outono chegaria, as árvores ficariam nuas e os passeios terminariam. Ela se limitaria a dar aulas para classes cheias.
Quando voltou para casa, Margaret foi encontrá-la no hall um tanto apreensiva.
— Susana! — exclamou. — Ainda bem que está de volta.
Susana olhou ao redor e não notou nada fora do normal.
— O que aconteceu? — perguntou, tirando Toni do carrinho.
— Você tem uma visita! — a amiga sussurrou. — E acho que é Fernando.
— O quê? — ela balbuciou, atônita. — Está falando sério?
— Tenho certeza de que é ele. O sobrenome é d'Alvarez. É um homem e tanto, hein? Não me admira que tenha ficado doidinha por ele! — Interrompeu-se ao ver Susana empalidecer. — Desculpe. Eu só queria deixá-la à vontade. Ele está na sala de estar, andando sem parar de um lado para o outro.
Susana encostou-se no batente da porta.
— Mas o que ele quer de mim?
— Ver você! — exclamou uma voz vinda da porta da sala de estar. — Se a sra. French não se opõe, gostaria de conversar com você aqui mesmo.
— Oh, sim, sim. Por favor — Margaret murmurou, perturbada. — Vou estar na cozinha dando mamadeira para o Toni. Se precisar de mim. . . — Ela pegou o garoto no colo e saiu.
Susana tirou o suéter que estava usando e foi com Fernando para a sala. Nervosa, recusou a sugestão dele de sentar-se.
— Por que veio, Fernando? — começou, indo direto ao assunto. — Se está pensando em começar de onde parou. . .
Fernando fez uma expressão desgostosa, o rosto cansado e angustiado.
— Você tem todo o direito de falar desse jeito, Susana, mas não é por isso que estou aqui.
— Não temos o que conversar. Para mim, tudo acabou.
— Susana, por favor, ouça-me! Você fugiu de mim, lembra-se? Sequer esperou para se despedir. . . para ouvir o que eu tinha a dizer. Levei quase dois meses para encontrá-la e agora você me rejeita. . .
— O que tem para dizer? Sua esposa deixou tudo muito claro.
— Sei disso. Mas depois do que houve entre nós, pensei que. . .
— O que houve entre nós, Fernando? Mentiras, mentiras e mais mentiras!
— É o que pensa?
— É o que sei, o que senti!
— Susana, não podia falar a respeito de Mónica! Durante anos vivemos com esse pacto. . . durante anos eu a proibi de revelar a verdade a quem quer que fosse. Como eu poderia ser o primeiro a romper nosso acordo? Por causa de Maria fui obrigado a silenciar!
— E, por que veio, então?
— Você não vai voltar para a Espanha?
— Voltar para a Espanha? — Ela o fitou, perplexa. — Acha que tenho coragem de voltar para a Espanha? Não tenho a menor intenção de viver na Casa d'Alvarez como sua amante!
Ele aproximou-se e segurou-a nos ombros.
— Não permito que fique insinuando coisas! Nunca lhe sugeri isso!
— Então por que me procura agora? Fernando, faz dois meses que cheguei!
— Os meses mais longos de toda a minha vida. . .
— Não entendo, Fernando. . .
— Ouça o que tenho para explicar — ele insistiu, apertando-a e encarando-a. — Mónica se foi. Consenti que ela voltasse para o marido.
— O quê? Mas como? Quero dizer. . .
— Amália faleceu, Susana, um dia depois que você foi embora.
— Oh! Sinto muito. , .
— Amália não era uma pessoa agradável, mas tinha sacrificado grande parte da vida dela pelo irmão e pela família.
— Não sabia que ela estava doente. . .
— Ela nunca foi uma pessoa forte. Por isso passava tanto tempo sentada, bordando e conversando. . . por isso ela apreciava a companhia de uma pessoa jovem.
— Maria?
— Sim, Maria.
— Não está sugerindo que minhas saídas com Maria. . .
— Não, não, isso não a aborrecia a ponto de adoecê-la. Era ciumenta, sem dúvida, mas só isso. Imagino que o comportamento de Mónica tenha colaborado para isso. . . Quem sabe? Talvez tenha sido simplesmente uma questão de tempo e de destino. . .
— O comportamento de Mónica? Só porque ela me contou. ..
— Não, não. Aos olhos de Amália, sua partida era suficiente para contornar tudo. Foi Maria. . .
— Maria? Mónica disse a verdade a Maria?
— Sim. . . um dia depois que você partiu. Fui visitar as vinhas, perturbado com a sua ausência, sem saber o que fazer. Quando voltei, ouvi os gritos de Mónica. Maria ainda procurou acalmar Amália, mas foi inútil.
Susana arregalou os olhos, incapaz de dizer qualquer coisa.
— A culpa foi minha! Se eu não tivesse ido a Espanha. . .
— Não seja tola! O convite partiu de Mónica e você, ignorava que estava indo para a minha casa. Tudo começou aqui em Londres, Susana. De qualquer modo, foi a melhor coisa que podia ter acontecido.
— O que quer dizer?
— Maria já sabia.
Susana arregalou os olhos, incapaz de dizer qualquer coisa.
— Ao que parece, ela ouviu uma conversa de Mónica com Max pelo telefone. Maria é uma menina inteligente. Compreendeu logo que, se a mãe era casada com Max, eu não poderia ser o marido dela.
— Oh, Fernando!
Ele sorriu com amargura.
— Não fique triste. Agora que Maria sabe da verdade, não há o que temer.
— Mas Mónica...
— Mónica saiu de casa depois da morte de Amália. Envergonhada, creio eu. Mas tenho certeza de que será feliz na companhia de Max.
— E por que você andou à minha procura? — perguntou, a voz insegura.
Ele a puxou contra si.
— Que pergunta boba, amada! Sabe muito bem por quê. Quero que case comigo o mais rápido possível.
— Eu. .. Eu. . . — ela murmurou atônita.
Beijaram-se, os corpos colados como se jamais pudessem ser separados.
— Susana mia! — Fernando sussurrou junto ao ouvido dela, o corpo trémulo assaltado por uma emoção incontrolável. — Diga que me perdoa pelo que a fiz sofrer. Diga que me ama, que aceita casar comigo!
— Eu o amo, Fernando! Sim, eu o amo! Caso com você quando quiser.
Beijaram-se novamente, com um ardor ainda maior. Mas finalmente ele recuou, procurou um charuto e o acendeu.
— Como me encontrou? — Susana quis saber.
Ele a envolveu com o braço e os dois sentaram-se no sofá.
— Não sei, parece quase impossível. . .
— Entrou em contato com os Castana?
— Sim, mas eles não tinham seu endereço. Fiquei desesperado. ..
— Mas e depois?
Fernando soltou uma baforada.
— Bom, fiz de tudo. Percorri todas as agendas de emprego de Londres e nada. Foi então que me lembrei de que você tinha estado num orfanato em Yorkshire. Eles não conseguiram localizá-la, a princípio, mas então alguém se lembrou de que você tinha uma amiga professora chamada French.. . e então vim parar aqui!
— Oh, Fernando! Já imaginou se eu nunca lhe tivesse falado sobre minha infância?
— Eu teria enlouquecido! Não acha que deveríamos chamar a sua amiga e lhe dar a notícia?
— Mas é claro! — Susana saltou do sofá, sem conter a alegria. Mas seus olhos de repente entristeceram. — Mas, e Maria?
— Que tem ela?
— Ela poderá se opor.
— Não acredito. Ela adora você! Além disso, precisa de uma confidente.
— Mas não de uma madrasta!
— Você será mãe dela! — Fernando disse, com firmeza. — Quanta a Mónica, quando Maria tiver mais idade compreenderá melhor o que significava para ela. Maria é minha filha. Eu a adotei quando a verdade sobre Max Rosenberg veio à luz. A partir de agora, ela também será sua filha.
Susana estava indecisa em sair da sala.
— Eu.. . tenho um emprego! — exclamou. — Começo numa escola na segunda-feira que vem!
— E dai?
— Bom, imagino que posso dispensá-lo — ela concluiu, finalmente acreditando que poderia iniciar uma nova vida.
— Acho bom. — Fernando sorriu.
Anne Mather
O melhor da literatura para todos os gostos e idades