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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASAS DE MORTE / Michael Crichton
ASAS DE MORTE / Michael Crichton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASAS DE MORTE

 

Aquelas malditas coisas pesam duzentos e cinquenta toneladas, fazem um terço da volta ao mundo e transportam passageiros com mais conforto e segurança do que qualquer outro veículo na história da humanidade. Agora, vocês pretendem dizer-nos que são capazes de fazer melhor do que nós? Estão a dar a entender que sabem alguma coisa a respeito do assunto? Na minha opinião, estão apenas a agitar as pessoas por razões que só vocês conhecem.

 

Charley Norton, aviador lendário de 78 anos, falando aos jornalistas em 1970, depois da queda de um avião.

 

A ironia da Era da Informação está no facto de esta ter dado uma nova respeitabilidade às opiniões não informadas.

 

John Lawton, jornalista veterano de 68 anos, falando à Associação Americana de Jornalistas de Rádio em 1995.

 

           SEGUNDA-FEIRA

           A BORDO DO VOO TPA 545

           5:18

 

Emily Jansen suspirou de alívio. O longo voo estava a chegar ao fim. A luz da madrugada entrava pelas janelas do avião. No seu colo, a pequena Sarah semicerrou os olhos para a inusitada claridade enquanto sorvia o resto do biberão e o empurrava com os pequenos punhos.

 

Foi bom, não foi? perguntou Emily. Muito bem, vamos lá a levantar...

 

Ergueu a criança até ao ombro e começou a dar-lhe pancadinhas nas costas. O bebé soltou um arroto gorgolejante e o seu corpo descontraiu-se.

 

No assento ao lado, Tim Jansen bocejou e esfregou os olhos. Dormira durante toda a noite, desde a partida de Hong Kong. Emily nunca adormecia nos aviões. Sentia-se demasiado nervosa.

 

Bom disse Tim, olhando para o relógio. Já só falta mais um par de horas, querida. Viste alguns sinais de pequeno-almoço?

 

Ainda não respondeu Emily, abanando a cabeça.

 

Haviam apanhado um avião da Transpacific Airlines, um voo charter de Hong Kong. O dinheiro poupado na viagem iria ser-lhes útil quando tivessem de montar casa na Universidade do Colorado, onde Tim ia ser professor assistente. O voo fora suficientemente agradável. Encontravam-se na frente do aparelho mas as hospedeiras pareciam desorganizadas e as refeições apareciam a horas estranhas. Emily recusara o jantar porque Tim estivera a dormir no seu colo.

 

Naquele preciso momento, Emily ficou surpreendida com o comportamento casual da tripulação. Tinham mantido a porta da cabina de pilotagem aberta durante o voo. Sabia que as tripulações asiáticas o faziam com frequência, mas ainda considerava essa atitude como inapropriada. Era demasiado informal, demasiado descontraída. Os pilotos passeavam pelo interior do avião à noite, brincando com as hospedeiras. Um deles saía da cabina naquele preciso momento, encaminhando-se para a cauda do avião. É claro que, muito provavelmente, estavam apenas a desentorpecer as pernas. O facto de a tripulação ser chinesa não a incomodava. Depois de um ano passado na China, admirava a eficiência e a preocupação com os pormenores demonstrada pelos Chineses. Mesmo assim, aquele voo deixara-a nervosa.

 

Emily voltou a pousar Sarah no colo. O bebé olhou para Tim e sorriu, radiante.

 

Ah, quero apanhar isto! exclamou Tim. Remexeu no saco que metera por baixo do assento e fez aparecer a câmara de vídeo, que apontou para a filha. Agitou a mão livre para lhe chamar a atenção.

 

Sarah... Sarah... Sorri para o papá... Sorri... Sarah sorriu e fez um ruído gorgolejante.

 

Que tal te sentes, agora que estás na América, Sarah? Pronta para conheceres a terra dos teus pais?

 

Sarah emitiu outro ruído e agitou as mãozinhas no ar.

 

Se calhar, vai pensar que toda a gente, na América, tem um ar esquisito comentou Emily. A filha nascera sete meses antes, em Hunan, onde Tim estivera a estudar a medicina chinesa.

 

Emily viu a lente da câmara apontada para ela.

 

Então e tu, mamã? perguntou Tim. Estás satisfeita por voltar para casa?

 

Oh, Tim! protestou. Por favor! Depois de tantas horas de voo, devo estar com um péssimo aspecto.

 

Ora, deixa-te disso, Emily! Em que estás a pensar? Precisava de se pentear. Precisava de ir urinar.

 

Bom, sabes... respondeu. O que realmente desejo, aquilo com que sonho há meses... é com um cheeseburger.

 

Com molho picante Xu-xiang? inquiriu Tim.

 

Meu Deus, não! Um cheeseburger... explicou com cebolas, tomate, alface, picles e maionese. Ah, e com mostarda francesa!

 

Também queres um cheeseburger, Sarah? perguntou Tim, voltando a apontar a câmara para a filha.

 

Sarah agarrara os dedos dos pés com um dos seus minúsculos punhos. Puxou o pé, meteu-o na boca e olhou para Tim.

 

É saboroso? comentou Tim rindo-se. O riso fez com que a câmara lhe estremecesse nas mãos. E o teu pequeno-almoço, Sarah? Não queres esperar pela hospedeira?

 

Emily ouviu um ruído baixo e surdo, quase como uma vibração, que lhe pareceu vir da asa do avião. Virou a cabeça de repente.

 

O que foi aquilo?

 

Acalma-te, Em disse Tim, ainda a rir-se. Estamos quase em casa, querida.

 

Sarah também soltou risadinhas de delícia.

 

Porém, no preciso momento em que Tim falava, o avião pareceu estremecer e baixar o nariz. De súbito, tudo se encontrava inclinado num ângulo estranho. Emily sentiu Sarah a deslizar para a frente, no seu colo. Agarrou a filha e apertou-a contra o corpo. À seguir, o avião pareceu começar a precipitar-se em direcção ao solo, para voltar a subir, e Emily sentiu o estômago comprimido contra o assento. A filha era como um bloco de chumbo a comprimir-lhe o corpo.

 

Que diabo...? perguntou Tim.

 

De repente, Emily sentiu-se a ser erguida no assento, com o cinto de segurança a cortar-lhe as coxas. Estava muito leve e enjoada. Viu Tim a saltar do assento e a bater com a cabeça no compartimento de bagagem por cima dele, enquanto a câmara de vídeo passava a voar junto do rosto dela.

 

Da cabina de pilotagem chegavam-lhe aos ouvidos insistentes toques de alarme e uma voz metálica que dizia "Stall!, Stall!". Teve um relance dos braços cobertos de azul dos pilotos a movimentarem-se rapidamente sobre os comandos, enquanto berravam um para o outro, em chinês. Por todo o avião, as pessoas gritavam, histéricas. Ouviu-se o som de vidros partidos.

 

O avião voltou a mergulhar numa descida abrupta. Uma velha chinesa deslizou de costas pela coxia, gritando. Emily olhou para Tim mas o marido já não se encontrava no seu lugar. As máscaras amarelas do oxigénio caíam e havia uma a balouçar na sua frente, mas Emily não conseguia agarrá-la por estar a segurar no bebé.

 

Foi comprimida contra as costas do assento enquanto o aparelho descia rapidamente, muito inclinado, emitindo um zumbido incrivelmente agudo. Havia sapatos e malas a fazerem ricochete nas paredes da cabina de passageiros, tilintando e estrondando. Havia corpos contraídos nos assentos e no chão.

 

Tim desaparecera. Emily virou-se, procurando-o, e de súbito houve uma pesada mala que a atingiu na cabeça. Sentiu um safanão súbito, dor, escuridão e estrelas. Estava entontecida e fraca. Os alarmes continuavam a tocar. Os passageiros continuavam a gritar. O avião continuava a mergulhar.

 

Emily baixou a cabeça e apertou o bebé contra o peito. Pela primeira vez na sua vida, começou a rezar.

 

         CONTROLO DE APROXIMAÇÃO SOCAL

         5:43

 

Controlo de Aproximação SocaL, fala o Transpacific cinco quatro cinco. Temos uma emergência.

 

No edifício escurecido que abrigava o Controlo de Aproximação de Tráfego Aéreo do Sul da Califórnia, o controlador Dave Marshall ouviu a chamada do piloto e lançou uma olhadela ao ecrã do seu radar. O TransPacific 545 partira de Hong Kong para Denver. O voo fora-lhe entregue pela ARINC de Oakland alguns minutos antes e era perfeitamente normal. Marshall tocou no microfone junto à sua face.

 

Prossiga, cinco quatro cinco respondeu.

 

Autorização para uma aterragem prioritária de emergência em Los Angeles.

 

O piloto parecia calmo. Marshall olhou para os sempre mutáveis blocos de informação a verde que identificavam cada um dos aviões que se encontravam no ar. O TPA 545 aproximava-se da costa da Califórnia e passaria muito em breve por cima de Marina Del Rey. Estava ainda a meia hora de distância de Los Angeles.

 

Okay, cinco quatro cinco respondeu Marshall, entendido. Pede autorização para aterragem de emergência. Indique a natureza da emergência.

 

Temos uma emergência com os passageiros declarou o piloto. Precisamos de ambulâncias à nossa espera, trinta ou quarenta ambulâncias, ou talvez mais.

 

Marshall ficou siderado.

 

TPA cinco quatro cinco, confirme. Está a pedir-nos quarenta ambulâncias?

 

Afirmativo. Enfrentámos fortes turbulências durante o voo. Temos feridos entre os passageiros e os tripulantes.

 

"Por que diabo não começou por me dizer isso?", pensou Marshall. Girou a cadeira e fez sinal à sua supervisora, Jane Lê vine, que pegou num par de auscultadores, ligou-os e ficou à escuta.

 

Transpacific, recebi o seu pedido de quarenta ambulâncias.

 

Jesus! exclamou Levine, fazendo uma careta. Quarenta?] O piloto continuava calmo quando respondeu:

 

Ah, roger, controlo. Quarenta.

 

Também necessitam de pessoal médico? Qual é a natureza dos ferimentos?

 

Não tenho a certeza.

 

Levine rodou a mão no ar, como que a dizer para manter o piloto a falar.

 

Podem dar-nos uma estimativa? perguntou Marshall.

 

Lamento, não é possível uma estimativa.

 

Há alguém inconsciente?

 

1 SOCAL é uma sigla que designa Southern Califórnia, o Sul da Califórnia. (N. do T.)

 

Não, não me parece afirmou o piloto, mas temos dois mortos.

 

Santo Deus! murmurou Jane Levine. Agora é que ele o diz! Quem é este tipo?

 

Marshall carregou numa tecla do seu painel, abrindo uma janela no canto superior do ecrã, onde constava o manifesto para o voo TPA 545.

 

Comandante John Chang, piloto da Transpacific.

 

Vamos lá a ver se não temos mais surpresas continuou Levine. O avião está bem?

 

TPA cinco quatro cinco, qual é a situação do seu aparelho? inquiriu Marshall.

 

Temos danos na cabina dos passageiros retorquiu o piloto. Apenas pequenos danos.

 

E qual é a situação na cabina de pilotagem? insistiu Marshall.

 

Está operacional. FDAU nominal. Tratava-se da Flight Data Acquisition Unit, a unidade de aquisição de dados de voo que registava todas as deficiências do avião. Se dizia que o aparelho estava em bom estado, então era provável que estivesse.

 

Entendido, cinco quatro cinco. Qual é a situação da tripulação? continuou Marshall.

 

Comandante e co-piloto em boas condições.

 

Ah, cinco quatro cinco, mas disse-nos que havia feridos entre a tripulação...

 

Sim, duas hospedeiras.

 

Pode especificar a natureza dos ferimentos?

 

Lamento, mas não posso. Uma não está consciente. Quanto à outra, não sei o que tem.

 

Marshall abanava a cabeça.

 

Acabou de dizer que não havia ninguém inconsciente.

 

Este tipo não me convence declarou Levine, pegando no telefone vermelho. Coloca os bombeiros em alerta. Chama as ambulâncias. Manda equipas de ortopedia e neurologia ao encontro do avião e diz aos serviços médicos para alertarem os hospitais de Westside. Olhou para o relógio. Vou falar para o FSDO de Los Angeles. Vão ter um dia em cheio.

 

         LAX

         5:57

 

Daniel Greene era o funcionário de serviço no Gabinete Distrital de Padrões de Voo da FAA, instalado na Imperial Highway, a oitocentos metros de LAX, o aeroporto de Los Angeles. Os FSDOs ou Fizdos, tal como eram designados supervisionavam as operações de voo das transportadoras comerciais, verificando tudo, desde a manutenção dos aviões ao treino dos pilotos. Greene chegara mais cedo ao serviço para arrumar os papéis que tinha em cima da mesa. A sua secretária demitira-se na semana anterior e o director recusava-se a substituí-la, citando as ordens recebidas de Washington como desculpa para evitar atritos. Por isso, Greene fora para o trabalho a resmungar. O Congresso reduzia o orçamento da FAA, dizendo-lhe para fazer mais com menos e fingindo que o problema era uma questão de produtividade e não de quantidade de trabalho. Porém, o tráfego de passageiros aumentava quatro por cento ao ano e as frotas comerciais envelheciam. Esta combinação originava muito mais trabalho no solo. Claro que os FSDOs não eram os únicos a sentirem-se na miséria. Até a NTSB estava falida. A Comissão de Segurança só recebia um milhão de dólares por ano para acidentes com aviões, e...

 

O telefone vermelho que se encontrava sobre a mesa começou a tocar. A linha de emergência. Greene pegou-lhe. Era uma mulher do controlo aéreo.

 

Acabámos de ser informados de um incidente a bordo de um transportador estrangeiro que está a chegar neste momento disse a mulher.

 

Hum, hum... fez Greene, procurando um bloco de notas. "Incidente" era uma palavra com um significado muito preciso para a FAA, e referia-se a um problema de voo de baixo nível que os transportadores eram obrigados a comunicar. "Acidentes" envolviam mortos ou danos estruturais nos aviões e eram sempre graves, mas com os "incidentes" nunca se sabia. Continue.

 

É o Transpacific cinco quatro cinco de Hong Kong para Denver. O piloto pediu uma aterragem de emergência em Los Angeles. Diz que encontraram turbulência durante o voo.

 

O avião está em boas condições?

 

Dizem que sim respondeu Levine. Têm feridos e requisitaram quarenta ambulâncias.

 

Quarenta!

 

Também têm dois cadáveres.

 

O quê? Greene endireitou-se. Quando aterra?

 

Dentro de dezoito minutos.

 

Dezoito minutos... Jesus, porque é que só agora me informam?

 

Porque o piloto só agora nos informou. Já notifiquei os serviços médicos e coloquei os bombeiros em alerta.

 

1 FAA é uma sigla que designa a Federal Aviation Agency, organismo que supervisiona todos os aspectos que dizem respeito à aviação comercial nos EUA. (N. do T.)

 

Bombeiros? Pensei que me tinha dito que o avião estava em bom estado.

 

Nunca se sabe... retorquiu a mulher. O que o piloto diz não faz grande sentido. Pode estar em choque. Vamos entregá-lo à torre dentro de sete minutos.

 

Está bem disse Greene. Já vou a caminho.

 

Pegou no distintivo e no telefone celular e saiu. Quando passou por Karen, a recepcionista, perguntou-lhe:

 

Temos alguém no terminal internacional?

 

O Kevin está lá.

 

Contacta-o. pediu Greene. Diz-lhe para ir ter ao encontro do TPA cinco quatro cinco, vindo de Hong Kong, que aterra dentro de quinze minutos. Diz-lhe para se colocar junto à porta... e para não permitir a saída da tripulação.

 

Está bem retorquiu Karen, pegando no telefone.

 

Greene precipitou-se ao longo de Sepulveda Boulevard, a caminho do aeroporto. Um momento antes de a estrada passar por baixo da pista, olhou para cima e viu o grande corpo do avião da Transpacific, claramente identificável pela cauda amarela, a deslizar em direcção à porta de desembarque. A Transpacific era uma companhia de voos charter com base em Hong Kong. A maior parte dos problemas da FAA com as companhias estrangeiras dizia respeito aos voos charter. Muitas delas eram operadoras com baixos orçamentos que não seguiam os rigorosos padrões de segurança das companhias comerciais regulares. Porém, a Transpacific tinha uma excelente reputação.

 

Pelo menos, o "pássaro" já estava no chão, pensou Greene. Não via quaisquer danos estruturais no aparelho. O avião era um N-22, construído pela Norton Aircraft, em Burbank. Estivera em serviço durante cinco anos e tinha um invejável registo de segurança.

 

Greene carregou no acelerador e atravessou o túnel, passando por baixo do gigantesco avião.

 

Correu através do edifício do terminal internacional. Pelas janelas, viu o jacto da Transpacific já parado junto ao portão, com as ambulâncias alinhadas na pista de cimento por baixo dele. A primeira começava naquele momento a afastar-se, com a sirena a uivar.

 

Greene atingiu o portão, mostrou o distintivo e correu pela rampa. Os passageiros desembarcavam, pálidos e assustados. Muitos deles coxeavam e tinham as roupas rasgadas e ensanguentadas. De cada um dos lados da rampa, os paramédicos amontoavam-se em volta dos feridos.

 

Quando se aproximou do avião, o enjoativo odor a vomitado tornou-se cada vez mais forte. Uma hospedeira da TransPac, assustada, empurrou-o quando ia a chegar à porta, tentando impedi-lo de entrar e falando rapidamente em chinês. Greene mostrou-lhe o distintivo e disse:

 

FAA! Serviço oficial! A hospedeira recuou. Greene passou junto de uma mulher agarrada a um bebé e entrou no aparelho. Olhou para o interior e parou de repente.

 

Meu Deus! murmurou, baixinho. Que se passou com este avião?

 

         GLENDALE, CALIFÓRNIA

         6:00

 

Mãe? De quem gostas mais: do Rato Mickey ou da Minnie?

 

De pé, na cozinha do bangaló, ainda envergando os calções usados durante a sua corrida matinal de oito quilómetros, Casey Singleton terminou a sanduíche de atum e colocou-a na lancheira da filha. Singleton tinha trinta e seis anos e era uma das vice-presidentes da Norton Aircraft, em Burbank. A filha encontrava-se sentada à mesa, comendo os seus flocos.

 

Então? insistiu Allison. De quem gostas mais, do Mickey ou da Minnie? Tinha sete anos e ainda precisava das coisas muito bem classificadas.

 

Gosto dos dois respondeu Casey.

 

Eu sei, mãe... continuou Allison, exasperada, mas de qual gostas mais?

 

Da Minnie.

 

Eu também afirmou a filha, empurrando o livro de banda desenhada para o lado.

 

Casey meteu uma banana e um termo com sumo na lancheira e fechou-a.

 

Acaba de comer, Allison, temos de nos despachar.

 

O que é "quart"?

 

Um quart? É uma medida para líquidos.

 

Não, mãe... Qua-urt repetiu a filha.

 

Casey olhou e viu que a filha pegara no seu novo cartão de identificação, com a fotografia por cima do nome, C. SINGLETON, seguido por grandes letras azuis: QA/IRT.

 

O que é Qua-urt?

 

É o meu novo trabalho, na fábrica. Represento o Controlo de Qualidade na equipa de investigação de incidentes (IRT).

 

Ainda fazes aviões? Desde que a mãe se divorciara, Allison mostrava-se sempre atenta a todas as mudanças. Bastava uma pequena alteração no penteado de Casey para provocar repetidas discussões e o tema vinha constantemente à baila durante dias seguidos. Não era de surpreender que a filha tivesse reparado no novo cartão.

 

Sim, Allie, ainda faço aviões. Está tudo na mesma mas fui promovida.

 

Continuas a ser uma bum? perguntou a filha.

 

No ano anterior, Allison ficara deliciada ao saber que Casey era uma Business Unit Manager, uma BUM. "A mamã é uma bum", dizia aos pais das amigas, causando grande sensação.

 

Não, Allie. Calça os sapatos. O pai deve estar a chegar, para te levar.

 

1 Sigla que designa o cargo que a personagem ocupa: Quality Assurance Incident Review Team. (N. do T.)

2 Trocadilho intraduzível. BUM é uma palavra formada pelas iniciais de Business Unit Manager (algo como "gerente de unidade de negócios"), mas na linguagem corrente também significa "vadia". (N. do T.)

 

Ainda não, o pai chega sempre atrasado retorquiu Allison. O que quer dizer promovida?

 

Casey debruçou-se e começou a enfiar os sapatos de ginástica nos pés da filha...

 

Bom... explicou continuo a trabalhar no controlo de qualidade, mas já não verifico os aviões que estão na fábrica. Agora, verifico-os depois de saírem da fábrica.

 

Para teres a certeza de que voam?

 

Sim, querida. Verificamo-los e resolvemos os problemas que possam aparecer.

 

É melhor que voem... comentou Allison ou então caem! Começou a rir-se. Caem todos do céu, em cima das pessoas que estão nas suas casas a comer os flocos! Isso não era bom, pois não, mãe?

 

Não, não era nada bom respondeu Casey, também a rir-se. As pessoas, lá na fábrica, iam ficar muito aborrecidas. Acabou de dar os nós nos atacadores e largou os pés da filha. Onde está a tua camisola?

 

Não preciso dela.

 

Allison...

 

Mãe, nem sequer está frio!

 

Mas pode arrefecer durante a semana. Vai buscar a camisola, por favor.

 

Ouviu um carro a apitar na rua e viu o Lexus preto de Jim parado em frente da casa. Jim encontrava-se por trás do volante, a fumar um cigarro. Estava de casaco e gravata. Talvez tivesse uma entrevista para um emprego, pensou Casey.

 

Allison andava de um lado para o outro, no seu quarto, abrindo e fechando gavetas. Voltou com um ar infeliz, com a camisola pendurada num canto da mochila.

 

Porque ficas sempre tão tensa quando o pai me vem buscar? perguntou.

 

Casey abriu a porta e caminharam as duas para o carro sob o enevoado sol da manhã. Allison gritou:

 

Olá, papá! E começou a correr. Jim acenou-lhe, com um sorriso de ressaca.

 

Casey avançou até junto da janela de Jim.

 

Não fumas com a Allison no carro, está bem?

 

Bom dia para ti também disse Jim, mirando-a com uma expressão sombria. Parecia estar realmente a sofrer de uma ressaca e tinha o rosto balofo e pálido.

 

Fizemos um acordo quanto a fumares ao pé da nossa filha, Jim.

 

Vês-me a fumar?

 

Estou só a lembrar-te.

 

Já o fizeste antes, Katherine retorquiu. Por amor de Deus, já ouvi isso mais de um milhão de vezes.

 

Casey suspirou. Estava decidida a não discutir na frente da filha. A terapeuta dissera que fora por isso que Allison começara a gaguejar. Todavia, já estava melhor, mas Casey fazia sempre um esforço para não discutir com Jim, mesmo quando esse esforço não era recíproco. Jim, pelo contrário, parecia gostar de tornar os contactos entre os dois tão difíceis quanto possível.

 

Está bem disse Casey, com um sorriso. Vemo-nos no domingo.

 

O acordo fora o de que o pai ficaria com Allison uma semana por mês levando-a na segunda-feira e devolvendo-a no domingo seguinte.

 

No domingo concordou Jim, como sempre.

 

No domingo, às seis.

 

Meu Deus!

 

Estou só a confirmar, Jim.

 

Não, não estás! Tentas controlar, como sempre fizeste...

 

Jim, por favor. Não comecemos...

 

Está bem ripostou Jim, num tom seco. Casey debruçou-se para a janela.

 

Adeus, Allie.

 

Adeus, mãe respondeu Allie, mas os seus olhos já se mostravam distantes e a voz era mais fria. Transferira a sua lealdade para o pai ainda antes de ter colocado o cinto de segurança. Jim carregou no acelerador e o carro afastou-se, deixando-a parada no passeio. O carro contornou a esquina e desapareceu.

 

Casey viu, no fim da rua, a figura dobrada do seu vizinho Amos a dar o habitual passeio matinal com o seu cão, que rosnava a toda a gente. Tal como Casey, também trabalhava na fábrica. Acenou-lhe e o homem correspondeu.

 

Casey virou-se para voltar para casa. Tinha de se vestir para ir para o trabalho, mas os seus olhos repararam num carro azul estacionado do outro lado da rua. Estavam dois homens lá dentro. Um lia um jornal e o outro olhava pela janela. Parou por instantes. O seu vizinho Alvarez fora roubado recentemente. Quem seriam aqueles homens? Não tinham ar de pertencer a um bando. Deveriam ter cerca de vinte anos e o seu aspecto era alinhado e vagamente militar.

 

Casey pensava em tomar nota da matrícula quando o seu pager emitiu um guincho electrónico. Soltou-o dos calções e leu a mensagem:

 

     MJfl El/ 0100 SC PODE T

 

Casey suspirou. Três estrelas assinalavam uma mensagem urgente; John Marder, que dirigia a fábrica, convocava uma reunião da Equipa de Investigação de Incidentes para as sete da manhã, na sala de conferências. Uma hora antes da reunião habitual. Passava-se qualquer coisa. As letras finais confirmavam-no, no calão da fábrica:

 

Presença Obrigatória Ou Estás Tramada.

 

         AEROPORTO DE BURBANK

        6:32

 

O trânsito da hora de ponta arrastava-se sob a pálida luz da manhã. Casey torceu o retrovisor e inclinou-se para a frente para verificar a maquilhagem. Com os seus cabelos curtos e escuros, de pernas compridas e atléticas, era atraente, de uma maneira arrapazada. Jogava na primeira base da equipa de softball. Os homens sentiam-se bem junto dela. Tratavam-na como uma irmã mais nova, facto que lhe dava muito jeito, na fábrica.

 

De facto, Casey não tinha grandes problemas no trabalho. Crescera nos subúrbios de Detroit, como filha de um editor do News de Detroit. Os seus dois irmãos eram engenheiros na Ford. A mãe morrera quando ela era criança, pelo que fora criada numa casa de homens. Nunca fora aquilo que o pai costumava designar por uma "rapariga feminina".

 

Depois de um curso de jornalismo na Southern Illinois, Casey fora fazer companhia aos irmãos, na Ford. Contudo, concluíra que escrever comunicados para a imprensa era pouco interessante e aproveitara o programa da empresa para tirar um mestrado na Wayne State. Ao longo desse percurso, casara com Jím, um engenheiro da Ford, e tivera uma filha.

 

Porém, a chegada de Allison dera cabo do casamento: confrontado com mudanças de fraldas e horários de alimentação, Jim começara a beber e a voltar para casa muito tarde. No fim, tinham acabado por se separar. Quando Jim anunciara que se ia mudar para a costa oeste, para trabalhar na Toyota, Casey também decidira mudar-se. Queria que Allison crescesse em contacto com o pai. Estava farta das políticas da Ford e dos áridos invernos de Detroit. A Califórnia surgia-lhe como um recomeço. Imaginara-se a guiar um descapotável e a viver numa casa ensolarada, perto da praia, com palmeiras no exterior das janelas. Imaginara a filha a crescer bronzeada e saudável.

 

Em vez disso, vivia em Glendale, no interior, a hora e meia de distância da praia. Casey comprara na verdade um descapotável mas nunca lhe descia a capota. Apesar de o sector de Glendale onde vivia ser encantador, os territórios dos bandos começavam a apenas alguns quarteirões de distância. Por vezes, quando a filha dormia, ouvia o som fraco dos tiros. Casey preocupava-se com a segurança de Allison. Preocupava-se com a sua educação num sistema escolar em que se falavam cinquenta línguas. Também se preocupava com o futuro porque a economia da Califórnia continuava em depressão e os empregos eram poucos. Jim já estava sem trabalho há dois anos, depois de a Toyota o despedir por beber demasiado. Casey sobrevivera a ondas e ondas de despedimentos na Norton, onde a produção diminuíra graças à recessão global.

 

Nunca imaginara que acabaria a trabalhar numa fábrica de aviões, mas, para sua surpresa, descobrira que o seu pragmatismo simples e franco do Midwest se adaptava perfeitamente à cultura dos engenheiros que dominavam a companhia. Jim considerava-a demasiado rígida e agarrada às normas, mas a sua atenção aos pormenores fora-lhe muito útil na Norton, onde era vice-presidente do Controlo de Qualidade havia um ano.

 

Gostava do trabalho, embora a sua divisão tivesse uma missão quase impossível. A Norton Aircraft estava dividida em duas grandes facções produção e engenharia perpetuamente em guerra uma com a outra. O Controlo de Qualidade equilibrava-se, inseguro, entre as duas. Estava envolvida em todos os aspectos da produção e autorizava todos os passos da fabricação e montagem. Quando surgia um problema, esperava-se que o Controlo de Qualidade fosse até ao fundo do assunto, o que rarament os deixava nas boas graças dos mecânicos das linhas de montagem ou dos engenheiros.

 

Ao mesmo tempo, também se esperava que o Controlo de Qualidade enfrentasse os problemas de apoio aos clientes. Muitas vezes estes mostravam-se infelizes com as decisões que eles próprios haviam tomado e culpavam a Norton, dizendo que as galleys que haviam encomendado se encon travam nos locais errados, ou que havia poucas casas de banho nos aviões. Era preciso paciência e muita habilidade política para manter toda a gentt satisfeita e para conseguir que os problemas fossem resolvidos. Casey, que nascera para o apaziguamento, era muito boa nesse trabalho.

 

Para compensar o facto de se encontrarem permanentemente numa corda bamba política, eram os funcionários do Controlo de Qualidade que dirigiam a fábrica. Como vice-presidente, Casey estava envolvida em todos os aspectos do trabalho da companhia. Tinha muita liberdade e uma ampla gama de responsabilidades.

 

Sabia que o título era mais impressionante do que o trabalho. A Norton Aircraft abarrotava de vice-presidentes. Só na sua divisão existiam quatro e a concorrência entre eles era feroz. Agora, porém, John Marder promovera-a a elemento de ligação para a IRT. Tratava-se de uma posição com uma considerável visibilidade, e punha-a em linha para a chefia da divisão. Marder não fazia essas nomeações por acaso. Casey sabia que o homem tivera boas razões para lhe propor a nova posição.

 

Virou com o Mustang descapotável da Golden State Freeway para a Empire Avenue e seguiu ao longo da vedação que marcava o perímetro sul do aeroporto de Burbank. Dirigia-se para os complexos comerciais da Rockwell, da Lockheed e da Norton Aircraft. Mesmo àquela distância, já podia ver as fileiras de hangares, com o emblema alado da Norton pintado por cima das...

 

O telefone do carro tocou.

 

Casey? É a Norma. Sabes da reunião?

 

Vou a caminho respondeu. Norma era a sua secretária. Que se passa?

 

Parece que ninguém sabe respondeu Norma, mas deve ser mau. O Marder tem andado a gritar com os engenheiros e convocou toda a gente.

 

John Marder era o chefe de operações da Norton. Fora o gestor do programa do N-22, o que significava que supervisionara o fabrico desse avião. Era um homem impiedoso e ocasionalmente inconsequente, mas obtinha resultados. Para além disso, estava casado com a única filha de Charley Norton. Nos últimos anos, estivera muito envolvido nas vendas. As duas coisas, em conjunto, tornavam-no no segundo homem mais poderoso

 

1 Galley é a designação inglesa para as cozinhas a bordo de navios e aviões. O termo também é utilizado em Portugal pelo pessoal da aeronáutica. (N. do T.)

 

da empresa, logo a seguir ao presidente. Fora Marder quem promovera Casey e fora...

 

... com o teu assistente? perguntou Norma.

 

O meu quê?

 

O teu novo assistente. O que queres que faça com ele? Está à espera, no teu gabinete. Esqueceste-te?

 

Oh, é verdade! Na realidade, esquecera-se. Um qualquer sobrinho da família Norton ia abrindo caminho pelas várias divisões. Marder entregara o garoto a Casey, o que queria dizer que tinha de se ocupar dele durante as próximas seis semanas.

 

Que tal é ele, Norma?

 

Bom... já não se baba.

 

Norma...

 

É melhor do que o último.

 

A resposta não era esclarecedora. O último caíra de uma asa de avião e quase se electrocutara numa instalação de rádio.

 

Muito melhor?

 

Estou a ler o seu currículo retorquiu Norma. Tirou advocacia em Yale e esteve um ano na GM. Passou os últimos três meses no marketing e nada sabe de produção. Vais ter de lhe ensinar tudo desde o princípio.

 

Pois... queixou-se Casey, suspirando. Marder devia estar à espera que ela o levasse à reunião. Diz-lhe para esperar por mim em frente à administração dentro de dez minutos. Certifica-te de que o garoto não se perde, sim?

 

Queres que o leve lá?

 

Sim, é melhor.

 

Casey desligou e olhou para o telefone. O trânsito avançava devagar. Precisaria de dez minutos para chegar à fábrica. Impaciente, tamborilou com a ponta dos dedos em cima do painel. Qual seria o motivo daquela reunião? Devia ter-se verificado um acidente, ou a queda de um avião.

 

Ligou o rádio, para saber se haveria alguma informação nos noticiários. Apanhou uma estação em que alguém dizia: "... não é justo obrigar as crianças a usarem uniformes para irem para a escola. É elitista e discriminatório..."

 

Casey carregou num botão e mudou de posto.

 

"... tentando impor a sua moralidade pessoal a todos nós. Não creio que um feto seja um ser humano..."

 

Carregou noutro botão.

 

"... esses ataques dos media provêm todos de pessoas que não gostam da livre expressão..."

 

"Onde param os noticiários?", pensou. "Houve algum acidente com um avião?"

 

Surgiu-lhe uma imagem do pai, que aos domingos lia um montão de jornais de todo o país, depois da igreja, e resmungava sozinho. "Não é esta a história, não é esta, dizia, atirando as páginas dos jornais para o monte de papel que já rodeava a sua cadeira. Claro, o pai fora jornalista, nos anos sessenta. O mundo era diferente. Agora, acontecia tudo na televisão... e nas conversas insensatas da rádio.

 

A entrada principal da Norton estava na sua frente. Casey desligou o rádio.

 

A Norton Aircraft era um dos grandes nomes da aviação americana. A companhia fora iniciada em 1935 por Charles Norton. Durante a Segun da Guerra Mundial havia fabricado o lendário bombardeiro B-22, o caç P-27 Skycat, e o cargueiro C-12, para a força aérea. Agora, era apenas uma entre as quatro companhias que ainda construíam grandes aviões para o mercado global. As outras eram a Boeing, em Seattle, a McDonnel Douglas, em Long Beach, e o consórcio europeu Airbus, em Toulouse

 

Conduziu através do imenso parque de estacionamento até ao portão número 7, parando na barreira para que a segurança pudesse verificar í sua identificação. Como sempre, sentiu uma certa excitação ao penetrar na fábrica, com os seus três turnos de trabalho e com os rebocadores amarelos a puxar carregamentos de peças. Não era uma fábrica, mas sim uma pequena cidade, com um hospital, um jornal e uma força de polícia. Quando entrara para a companhia trabalhavam ali sessenta mil pessoas. A recessão reduzira esse número para trinta mil, mas a fábrica continuava a ser enorme, cobrindo quase quarenta e um quilómetros quadrados. Era ali que construíam o N-20, o jacto de corpo estreito com dois motores, o N-22, a versão de corpo mais largo, e o KC-22, um avião para transporte de combustível, destinado à força aérea. De onde se encontrava podia ver os principais edifícios da montagem, com quase dois quilómetros de comprimento cada um.

 

Dirigiu-se para o edifício de vidro da administração, no centro das instalações. Parou no seu lugar de estacionamento e deixou o motor a funcionar. Avistou um jovem com um ar de colegial, envergando um casaco de desporto e gravata, calças de caqui e sapatos baratos. O rapaz acenou, acanhado, quando a viu sair do carro.

 

         EDIFÍCIO 64

         6:45

 

Sou o Bob Richman anunciou, o seu novo assistente. O aperto de mão foi educado e reservado. Casey não se recordava a que lado da família Norton ele pertencia, mas reconhecia o tipo. Muito dinheiro, pais divorciados, uma passagem indiferente por boas escolas e um inabalável sentido da sua importância.

 

Casey Singleton respondeu. Vamos, estamos atrasados.

 

Atrasados? repetiu Richman, subindo para o carro. Ainda nem sequer são sete horas.

 

O primeiro turno começa às seis explicou Casey. A maior parte do pessoal da Qualidade acompanha o horário dos turnos. Não era assim, na GM?

 

Não faço ideia. Trabalhei nos serviços legais.

 

Passaste algum tempo na produção?

 

O mínimo que me foi possível.

 

Casey suspirou. Iam ser umas longas seis semanas na companhia daquele tipo, pensou.

 

E aqui, só estiveste no marketing.

 

Sim, alguns meses. Encolheu os ombros. As vendas não são o meu forte.

 

Casey seguiu para sul, na direcção do Edifício 64, a enorme estrutura onde eram montadas as fuselagens dos grandes aviões.

 

A propósito, que carro conduzes?

 

Um BMW retorquiu Richman.

 

Acho melhor que o troques por um modelo americano afirmou Casey.

 

Porquê? É feito cá.

 

É montado cá corrigiu-o Casey. Não é feito cá. O valor acrescentado fica no estrangeiro. Os mecânicos da fábrica conhecem a diferença e são todos sindicalizados. Não gostam de ver um BMW no parque de estacionamento.

 

Está a querer dizer-me que pode acontecer-lhe alguma coisa? perguntou o jovem, olhando pela janela.

 

Podes ter a certeza. Os mecânicos não brincam em serviço.

 

Vou pensar nisso respondeu Richman, suprimindo um bocejo. Jesus, é muito cedo. Para onde vamos com tanta pressa?

 

Para a IRT. A reunião foi adiantada para as sete.

 

IRT?

 

Sim, a Equipa de Investigação de Incidentes. Sempre que acontece alguma coisa a um dos nossos aviões, a IRT reúne-se para descobrir o que se passou e decidir o que fazer a esse respeito.

 

Reúnem-se muitas vezes?

 

Mais ou menos de dois em dois meses.

 

Tantas? comentou o jovem.

 

"Vais ter de o ensinar desde o princípio."

 

Na verdade disse Casey, trata-se de reuniões pouco frequentes.

 

Temos três mil aviões em serviço, em todo o mundo. Com tantos pássaros no ar... é natural que aconteçam coisas. Levamos muito a sério o nosso apoio aos clientes. Por isso, fazemos todas as manhãs uma conferên cia telefónica com os nossos representantes espalhados por todo o mundo. Informam-nos de tudo o que possa ter causado um atraso num avião, no dia anterior. São quase sempre coisas pequenas: uma porta de casa de banho encravada, uma luz da cabina de voo que não acende. A Qualidade acompanha todos esses problemas, faz uma análise e passa os resultados para o Apoio de Produtos.

 

Hum, hum... fez Richman, parecendo aborrecido.

 

Depois prosseguiu Casey, de vez em quando, surge um problema que leva a uma reunião da IRT. Tem de ser grave, algo que afecte a segurança do voo. Aparentemente, foi o que aconteceu hoje. Se o Marder convocou a reunião para as sete, podes ter a certeza de que não se tratou de um simples atraso na partida de um avião.

 

O Marder?

 

O John Marder foi o gestor do programa para o N-Vinte e Dois antes de passar a ser chefe de operações. Portanto, trata-se provavelmente de um incidente com um avião desse tipo.

 

Casey abrandou e parou à sombra do Edifício 64. O hangar cinzento pairava por cima deles, com o equivalente a oito andares de altura e quase mil e seiscentos metros de comprimento. O asfalto em frente do edifício estava salpicado por protectores descartáveis para os ouvidos, que os mecânicos utilizavam para não ensurdecerem com o barulho das pistolas de rebites.

 

Passaram pelas portas laterais e entraram num corredor interior que rodeava todo o edifício. Havia máquinas de fornecimento de alimentos amontoadas em pequenos grupos, separadas por distâncias de cerca de quatrocentos metros.

 

Temos tempo para um café? perguntou Richman.

 

O café não é permitido aqui disse Casey, abanando a cabeça.

 

Não há café? gemeu o jovem. Porquê? Por ser feito no estrangeiro?

 

O café é corrosivo... e o alumínio não gosta dele explicou Casey, conduzindo Richman para outra porta, que dava acesso à montagem.

 

Jesus! exclamou o jovem.

 

As enormes fuselagens dos jactos, parcialmente montadas, brilhavam sob as luzes de halogéneo. Havia ali quinze aviões, em várias fases de construção, dispostos em duas longas filas sob um telhado em abóbada. Mesmo na frente deles via-se um grupo de mecânicos a instalar portas de carga em secções de fuselagem. Os grandes cilindros das fuselagens estavam rodeados por andaimes e por baixo via-se uma floresta de estruturas de montagem, ferramentas enormes, pintadas num azul-brilhante. Richman colocou-se debaixo de uma delas e olhou para cima, de boca aberta. A estrutura era tão larga como uma casa e tinha seis andares de altura.

 

Espantoso disse. Apontou para cima, para uma grande superfície plana. Aquilo é uma casa?

 

É o estabilizador vertical respondeu Casey.

 

É o quê?

 

A cauda, Bob.

 

Aquilo é uma cauda. Casey acenou uma confirmação.

 

A asa está além disse, apontando para o outro lado do edifício. Tem sessenta metros de comprimento... e é quase tão comprida como um campo de futebol.

 

Soou um apito. Uma das gruas por cima da cabeça deles começou a mover-se e Richman virou a cabeça para olhar.

 

Quarenta anos?! exclamou Richman, incrédulo. Constroem-nos para durar quarenta anos?

 

É verdade confirmou Casey. Ainda temos muitos N-Cinco em serviço por todo o mundo... e deixámos de os construir em mil novecentos e quarenta e seis. Temos aviões que acumularam quatro vezes o seu tempo de vida previsto, ou seja, o equivalente a oitenta anos. Os aviões da Norton conseguem fazê-lo. Os aviões da Douglas conseguem fazê-lo. Mais nenhum avião está preparado para isso. Compreendes o que quero dizer?

 

Ena! murmurou Richman, engolindo em seco.

 

Costumamos dizer que isto aqui é a "quinta dos pássaros" prosseguiu Casey. Os aviões são tão grandes que se torna difícil ter uma noção de escala. Apontou para o aparelho à sua direita, onde pequenos grupos de pessoas trabalhavam, nas mais variadas posições, com luzes portáteis a brilhar no metal. Não parecem ser muitos operários, pois não?

 

Não, não são muitos.

 

Pois olha... há provavelmente duzentos mecânicos a trabalhar naquele avião. O suficiente para pôr em funcionamento toda uma linha de montagem de automóveis. Contudo, esta é apenas uma posição na nossa linha de montagem... num total de quinze. Há cinco mil pessoas a trabalhar neste edifício, neste preciso momento.

 

Parece vazio. O jovem sacudiu a cabeça, espantado.

 

Infelizmente declarou Casey, está quase vazio. A linha de montagem funciona apenas a sessenta por cento da sua capacidade... e três daqueles aviões têm caudas brancas.

 

Caudas brancas?

 

É a tua primeira visita à montagem?

 

Sim... Richman virava-se para aqui e para acolá, olhando para todo o lado. É assustador.

 

Sim, são grandes concordou Casey.

 

Porque é que são todos verdes?

 

Cobrimos os elementos estruturais com resina epóxida para evitar a corrosão. Os forros das fuselagens estão cobertos para não serem danificados durante a montagem. Foram altamente polidos e são muito dispendiosos. Ficam com aquela cobertura até irem para a pintura.

 

Isto não se parece nada com a GM afirmou Richman, continuando a olhar em todas as direcções.

 

É verdade. Quando comparados com estes aviões, os carros são uma anedota.

 

Richman virou-se para ela, surpreendido.

 

Uma anedota?

 

Pensa um pouco. Um Pontiac tem cinco mil componentes e pode ser montado em dois turnos. Dezasseis horas. É muito pouco. Por outro lado, estas coisas... fez um gesto para o avião que se erguia por cima deles são bichos completamente diferentes. Um avião deste tamanho tem um milhão de componentes que precisam de setenta e cinco dias para serem montados. Não há, em todo o mundo, nenhum outro produto fabricado industrialmente com a complexidade de um avião comercial... nem existe nada que se pareça. Nada é construído para durar tanto tempo. Pega num carro e obriga-o a andar todo o dia, todos os dias, e verás o que acontece. Ficará arrumado em poucos meses. Pela nossa parte, desenhamos os jactos para terem um período de vida útil, sem quaisquer problemas, de pelo menos vinte anos, e construímo-los para durarem o dobro.

 

"São aviões que estamos a montar sem terem comprador. Construímo-los a um ritmo mínimo para mantermos a linha em funcionamento e não recebemos todas as encomendas de que necessitamos. A região do Pacífico é o sector de maior crescimento, mas esse mercado não faz encomendas por causa da recessão no Japão. Os outros mantêm os aviões no ar durante mais tempo. É um negócio muito competitivo. Por aqui...

 

Começou a subir um lanço de escadas metálicas, caminhando depressa. Richman seguiu-a com os pés a ressoar no metal. Atingiram um patamar e subiram novo lanço.

 

Vou dizer-te uma coisa, para que compreendas o que se vai passar nesta reunião. Os nossos aviões são muito bem construídos. As pessoas orgulham-se daquilo que fazem... e não gostam de saber que houve algo que correu mal.

 

Atingiram um passadiço metálico muito acima do piso da montagem e encaminharam-se para uma sala envidraçada que parecia suspensa do tecto. Casey abriu uma porta.

 

Isto... é a "Sala de Guerra" disse.

 

           SALA DE GUERRA

           7:01

 

Casey olhou para a sala como se fosse novidade, como se a visse através dos olhos do novato. Era uma grande sala de conferências forrada a alcatifa cinzenta, com uma mesa redonda em formica e cadeiras metálicas tubulares. As paredes estavam cobertas por painéis de afixação, mapas e planos de engenharia. A parede numa das extremidades era em vidro e permitia ver toda a linha de montagem.

 

Estavam ali cinco homens em mangas de camisa e gravata, uma secretária com um bloco de apontamentos, e também John Marder, que envergava um fato azul. Casey ficou surpreendida. O director de operações só raramente ia às reuniões da IRT. Era um homem moreno, a meio da casa dos quarenta e com cabelos negros penteados para trás. Parecia uma cobra prestes a atacar.

 

Este é o meu novo assistente, o Bob Richman explicou Casey.

 

Bob, seja bem-vindo disse Marder, levantando-se e apertando a mão ao rapaz com um dos seus raros sorrisos. Aparentemente, com o seu apurado sentido para as questões de política da empresa, estava pronto a ser simpático para qualquer membro da família Norton, mesmo que se tratasse de um sobrinho afastado. Casey interrogou-se sobre se o jovem não seria mais importante do que ela pensava.

 

Marder apresentou Richman aos outros, instalados em volta da mesa.

 

Doug Doherty, encarregado das estruturas e mecânica... Fez um gesto para um homem de quarenta e cinco anos com excesso de peso, uma grande barriga, uma má pele e óculos espessos. Doherty vivia num estado de perpétuo pessimismo. Falava num tom monótono e lamentoso, e era certo e sabido que os seus relatórios diziam sempre que as coisas corriam mal e estavam a piorar. Naquele dia, usava uma camisa aos quadrados e uma gravata às riscas. Devia ter saído de casa sem que a mulher o visse. Doherty fez um aceno triste e pensativo para os lados de Richman.

 

Nguyen Van Trung, aviónica... Tung tinha trinta anos, era delgado e tranquilo, muito contido. Casey gostava dele. Os vietnamitas eram os melhores trabalhadores da fábrica. Os tipos da aviónica eram especialistas, autores dos programas de computador dos aviões. Representavam a nova vaga na Norton, pois eram mais jovens, tinham melhor formação e melhores maneiras.

 

Ken Burne, motores... Kenny tinha cabelos ruivos e sardas. Atirou o queixo para a frente, pronto para uma discussão. Era um homem profano e ofensivo, conhecido na fábrica pela alcunha de Queima Fácil por causa do seu temperamento explosivo.

 

Ron Smith, sistemas eléctricos... Calvo e tímido, apalpava as canetas que tinha no bolso, num gesto nervoso. Ron era extremamente competente e parecia saber de cor todos os esquemas eléctricos dos aviões. Todavia, era dolorosamente envergonhado. Vivia com a mãe inválida em Pasadena.

 

Mike Lee, que representa a transportadora... Era um homem de cinquenta anos, bem vestido, com os cabelos cinzentos muito curtos, envergando um blazer azul com uma gravata às riscas. Mike era um antigo piloto da força aérea e um general na reforma, bem como o representant da Transpacific junto da fábrica.

 

E Barbara Ross, com o seu bloco de apontamentos. A secretária da IRT devia ter quarenta anos e excesso de peso. Lançou a Casey uma olhadela de franca hostilidade. Casey ignorou-a.

 

Marder fez sinal ao jovem para que se sentasse e Casey instalou-se a seu lado.

 

Primeiro assunto começou Marder. A Casey é agora o elemento de ligação entre a Qualidade e a IRT. Tendo em conta o modo como lidou com aquela situação de DA no DFW, será a nossa porta-voz para a imprensa a partir de agora. Alguma pergunta?

 

Richman abanava a cabeça, confuso. Marder virou-se para ele e explicou:

 

A Singleton fez um bom trabalho junto dos jornalistas quando de uma descolagem abortada em Dallas-Fort Worth, no mês passado. Vai ter de lidar com as perguntas dos media. Compreendido? Bom, vamos a isto. Barbara? A secretária começou a distribuir maços de folhas de papel agrafadas.

 

Voo cinco quatro cinco da Transpacific prosseguiu Marder. Um N-Vinte e Dois com a fuselagem número dois sete um. O voo partiu do aeroporto de Kaitak em Hong Kong às vinte e duas horas de ontem. Descolagem e voo sem problemas até cerca das cinco horas desta madrugada, quando o aparelho encontrou aquilo que o piloto descreveu como sendo forte turbulência...

 

Ouviram-se resmungos na sala. "Turbulência!" Os engenheiros abanaram as cabeças.

 

... forte turbulência, que provocou graves oscilações em voo.

 

Meu Deus exclamou Burne.

 

O aparelho continuou Marder fez uma aterragem de emergência em LAX, onde as unidades médicas já o esperavam. Os relatórios preliminares indicam cinquenta e seis feridos e três mortos.

 

Oh, isso é muito mau... lamentou-se Doug Doherty, num tom monótono, pestanejando por detrás dos óculos espessos. Isso quer dizer que vamos ter a NTSB às costas.

 

Casey inclinou-se para Richman e sussurrou:

 

É habitual que a Comissão Nacional de Segurança para os Transportes se envolva sempre que há mortos.

 

Não neste caso acrescentou Marder. Trata-se de uma transportadora estrangeira e o incidente ocorreu no espaço aéreo internacional. A NTSB está cheia de trabalho por causa do aparelho que caiu na Colômbia. Pensamos que não irá intervir.

 

Turbulência resmungou Kenny Burne. Há alguma confirmação?

 

Não retorquiu Marder. O avião encontrava-se a onze mil metros de altitude quando o incidente se verificou. Nenhum outro aparelho, nessa posição e altitude, relatou quaisquer problemas com o tempo.

 

Os mapas meteorológicos por satélite? perguntou Casey.

 

1 NTSB é uma sigla que designa o National Transportation Security Board, organismo que promove a segurança dos transportes nos EUA, levando a cabo investigações e estudos a acidentes. Pode ser traduzido por Comissão Nacional de Segurança para os Transportes. (N. do T.)

 

Vêm a caminho.

 

E quanto aos passageiros? insistiu. O comandante fez algum anúncio? O aviso para a colocação dos cintos estava aceso?

 

Ainda ninguém falou com os passageiros. As primeiras informações sugerem que não houve qualquer aviso.

 

Richman tinha novamente uma expressão confusa. Casey escravinhou no seu bloco de notas e inclinou-o para que o jovem o pudesse ler: Não foi turbulência.

 

Já interrogaram o piloto? inquiriu Trung.

 

Não respondeu Marder. A tripulação apanhou um voo de ligação e saiu do país.

 

Formidável! murmurou Kenny Burne, atirando o lápis para cima da mesa. Temos um caso de atropelamento e fuga!

 

Tenham calma interveio Mike Lee, num tom frio. Em nome da transportadora, creio que temos de reconhecer que a tripulação agiu responsavelmente. Não estava sujeita a penalidades neste país, mas enfrentava possíveis problemas com as autoridades da aviação civil de Hong Kong e foram para casa para esclarecer o assunto.

 

Casey escreveu: Tripulação ausente.

 

Bom, sabemos quem era o comandante? perguntou Ron Smith timidamente.

 

Sim, sabemos afirmou Mike Lee, consultando a sua agenda, encadernada a couro. Chama-se John Chang. Quarenta e cinco anos de idade, residente em Hong Kong, seis mil horas de voo. É o principal piloto da Transpacific para o N-Vinte e Dois. É muito competente.

 

Ah, sim? perguntou Burne, inclinando-se sobre a mesa. Quando foi que fez o último exame?

 

Há três meses.

- Onde?

 

Aqui mesmo informou Mike Lee. Fê-lo nos simuladores da Norton, sob a supervisão dos vossos instrutores.

 

Burne recostou-se, fungando de desagrado.

 

Qual era a sua classificação? inquiriu Casey.

 

Das melhores disse Mike Lee. Podem verificar os vossos próprios registos.

 

Casey escreveu: Não foi erro humano (?)

 

Achas que o poderemos entrevistar, Mike? perguntou Marder, virando-se para Lee. Estará disposto a falar com o nosso representante em Kaitak?

 

Estou certo que a tripulação cooperará afirmou Lee, em especial se lhes apresentarem perguntas escritas. Creio que poderemos ter uma resposta dentro de dez dias.

 

Hum... fez Marder, incomodado. Tanto tempo...

 

Se não entrevistarmos o piloto interveio Van Trung, podemos ter um problema. O incidente aconteceu uma hora antes da aterragem. Os gravadores da cabina de pilotagem só registam os últimos vinte minutos de conversação. Neste caso, esse registo é inútil.

 

É verdade, mas ainda temos o FDR.

 

Casey escreveu: Flight Data Recorder. Registo de dados de voo.

 

Sim, temos o FDR... disse Trung. Contudo, era claro que o facto não lhe aliviava as preocupações e Casey sabia porquê. Os aparelhos não eram de confiança. Nos meios de comunicação eram referidos como misteriosas caixas negras que revelavam todos os segredos de um voo, na realidade era frequente não funcionarem.

 

Farei o que puder prometeu Mike Lee.

 

Que sabemos a respeito do avião? perguntou Casey.

 

É novo afirmou Marder. Tem três anos de serviço, quatro horas de voo e novecentos ciclos.

 

Casey escreveu, para Richman: Ciclos = aterragens e descolagens.

 

E quanto às inspecções? interveio Doherty, com o seu tom som brio. Suponho que teremos de esperar semanas pelos registos.

 

Foi verificado em Março. Obteve um C.

 

Onde?

 

LAX.

 

Então, é provável que a manutenção fosse boa.

 

Certo confirmou Marder. À primeira vista, não podemos atribuir o incidente ao tempo, a factores humanos ou à manutenção. Estamos num beco sem saída. Examinemos eventuais possibilidades de falhas. Há alguma coisa, neste avião, que possa causar um comportamento semelhante a turbulência? Estruturas?

 

Oh, claro disse Doherty, muito infeliz. Poderia ter sido causado por uma saída dos slats. Verificaremos a hidráulica de todas as superfícies de controlo.

 

Aviónica?

 

Trung escrevinhava apontamentos.

 

Neste momento, interrogo-me por que motivo o piloto automático não se sobrepôs ao piloto. Saberei mais alguma coisa quando examinarmos o FDR.

 

Sistemas eléctricos?

 

É possível que um circuito deficiente provoque a saída dos slats disse Ron Smith, abanando a cabeça. É possível...

 

Motores?

 

Sim, podem ter sido os motores declarou Burne, passando a mão pelos cabelos vermelhos. Se tivessem seleccionado os thrust reversers2 em pleno voo, o nariz do aparelho oscilaria. Todavia, se isso aconteceu, haverá danos residuais. Verificaremos as mangas.

 

Casey olhou para o bloco, onde escrevera:

 

Estrutura: accionamento de slats

 

Hidráulica: accionamento de slats

 

Aviónica: piloto automático.

 

Sistemas eléctricos: circuito deficiente

 

Motores: reversers

 

Tratava-se, basicamente, de todos os sistemas do avião.

 

Vão ter muito que fazer afirmou Marder, levantando-se e recolhendo os seus papéis. Não os prendo mais.

 

Ora... comentou Burne. Descobriremos isto em cerca de um mês. Não estou preocupado.

 

1 Dispositivos de sustentação situados na asa do avião e utilizados nas aterragens e descolagens. (N. do T.)

2 Os thrust reversers são dispositivos que invertem o impulso produzido pelos reactores (N. do T.)

 

Mas eu estou ripostou Marder, porque não temos um mês. Dispomos de uma semana.

 

Ouviram-se exclamações em volta da mesa.

 

Uma semana?! Jesus, John!

 

Sabes bem que uma investigação destas leva sempre um mês.

 

Não desta vez contrapôs Marder. Na sexta-feira passada, o nosso presidente, o Hal Edgarton, recebeu uma encomenda provisória do Governo chinês para a compra de cinquenta N-Vinte e Dois, com opção para mais trinta. A primeira entrega será dentro de dezoito meses.

 

Fez-se um silêncio de espanto.

 

Olharam uns para os outros. Havia muito que se falava numa grande venda à China. A conclusão do negócio fora declarada iminente em vários comunicados... mas ninguém, na Norton, acreditara que fosse verdade.

 

É verdade acrescentou Marder, e não preciso de vos dizer o que isso significa. Trata-se de uma encomenda de oito biliões de dólares para um dos mercados aeronáuticos com maior crescimento em todo o mundo. Serão quatro anos de produção em pleno e a empresa entrará no século vinte e um com uma sólida base financeira. Teremos fundos para o desenvolvimento tanto do N-Vinte e Dois como do N-XX, mais avançado. O Hal e eu estamos de acordo: para a empresa, esta venda significa a diferença entre a vida e a morte. Marder meteu os papéis na mala e fechou-a. Voarei para Pequim no domingo, para me juntar ao Hal e para assinarmos a carta de intenções com o ministro dos Transportes... que vai querer saber o que aconteceu com o voo cinco quatro cinco. É conveniente que lhe possa dar uma explicação, ou acabará por assinar com a Airbus. Nesse caso, estarei metido num grande sarilho, a companhia terá problemas.. e todos vocês ficarão sem emprego. O futuro da Norton Aircraft depende desta investigação. Por isso mesmo... só quero ouvir respostas. Quero-as dentro de uma semana. Vemo-nos amanhã.

 

Deu meia volta e saiu da sala.

 

         SALA DE GUERRA

        7:27

 

- É assim que pensa moralizar

 

Que besta! manifestou-se Burne. É assim que pensa moralizar as tropas? Vá-se lixar!

 

O Marder foi sempre assim disse Trung, encolhendo os ombros.

 

Que pensam disto? perguntou Smith. Podem ser notícias realmente muito boas... mas será que o Edgarton tem mesmo uma encomenda da China?

 

Aposto que tem... declarou Trung. A fábrica tem andado a equipar-se. Prepararam mais um conjunto de ferramentas para o fabrico das asas. Estão prestes a serem enviadas para Atlanta. Aposto que têm um negócio em perspectiva.

 

O que ele tem em perspectiva interveio Burne é um bom exemplo de bodes expiatórios.

 

Que queres dizer?

 

O Edgarton pode estar prestes a conseguir a encomenda de Pequim... mas oito biliões de dólares é muita massa. A Boeing, a Douglas e a Airbus também devem andar atrás da encomenda; Os Chineses podem decidir-se por qualquer um deles no último minuto. É o seu estilo. Fazem-no constantemente. Por isso, o Edgarton anda a cagar rebites, preocupando-se com a possibilidade de não conseguir fechar o negócio... e de se ver forçado a ir dizê-lo à administração. E que faz ele? Atira tudo para cima do Marder. E que faz o Marder?

 

Atira tudo para cima de nós respondeu Trung.

 

Exacto. O voo da TPA coloca-os numa posição perfeita. Se fecharem o negócio com Pequim, serão heróis. Se o acordo falhar...

 

... a culpa será nossa concluiu Trung.

 

Aí tens. Vamos ser responsabilizados pela perda de um negócio de oito biliões...

 

Nesse caso... declarou Trung é melhor darmos uma olhadela àquele avião.

 

         ADMINISTRAÇÃO

         9:12

 

Quando John Marder entrou, Harold Edgarton, o recém-nomeado presidente da Norton Aircraft, encontrava-se no seu gabinete do décimo andar, olhando pela janela virada para a fábrica. Edgarton era um homem grande, antigo jogador de futebol americano, com um sorriso fácil e olhos frios e vigilantes. Trabalhara anteriormente na Boeing e fora levado para ali três meses antes, para melhorar o marketing da Norton.

 

Edgarton virou-se e franziu a testa para Marder.

 

Um belo sarilho disse. Quantos morreram?

 

Três respondeu Marder.

 

Santo Deus! exclamou Edgarton. E tinha de acontecer precisamente agora. Informaste a equipa de investigação a respeito da possível encomenda? Disseste-lhes até que ponto o assunto é urgente?

 

Estão informados.

 

Resolves o assunto numa semana?

 

Estou eu próprio a chefiar o grupo. Faremos o trabalho.

 

E quanto à imprensa? Edgarton continuava preocupado. Não quero o gabinete de imprensa a tratar deste caso. O Benson é um bêbedo e os jornalistas odeiam-no. Os engenheiros não estão habilitados. Se nem sequer conseguem falar inglês...

 

Já tratei do assunto, Hal.

 

Sim? Não quero que sejas tu a falar com a imprensa. Seria impossível.

 

Eu sei confirmou Marder. Entreguei essa tarefa à Singleton.

 

Singleton? Aquela mulher da Qualidade? perguntou Edgarton. Vi a gravação que me enviaste, com ela a falar aos jornalistas sobre a história de Dallas. É bonita, mas é capaz de ser demasiado directa, Hal.

 

É isso o que pretendemos, não é? A boa franqueza americana, com muita sensatez. E ela aguenta-se, Hal.

 

É melhor que o faça ripostou Edgarton. Se esta história se complicar... vai ter de saber representar.

 

Podes ficar descansado disse Marder.

 

Não quero nada que possa dar cabo do negócio com a China.

 

Ninguém quer, Hal.

 

Por momentos, Edgarton olhou para Marder com um ar pensativo. Depois, afirmou:

 

É melhor que as coisas fiquem bem esclarecidas. Não quero saber com quem estás casado... Haverá muita gente a sofrer se este negócio não se concretizar. Não serei apenas eu. Rolarão muitas outras cabeças.

 

Compreendo disse Marder.

 

Escolheste essa mulher. A responsabilidade é tua. A administração sabe-o. Se as coisas não correrem bem com ela ou com a IRT... estarás metido em problemas.

 

As coisas vão correr bem afirmou Marder. Está tudo sob controlo.

 

Acho bem que esteja concluiu Edgarton, virando-se para olhar pela janela.

 

Marder saiu da sala.

 

         LAX, HANGAR DE MANUTENÇÃO 21

         9:48

 

O pequeno mini-autocarro azul atravessou a pista e avançou para a fila de hangares de manutenção do aeroporto de Los Angeles. A cauda amarela do avião da Transpacific destacava-se do hangar mais próximo, com o emblema a brilhar ao sol.

 

Os engenheiros começaram a conversar excitadamente logo que viram o aparelho. O mini-autocarro entrou no hangar, parou debaixo de uma asa e os engenheiros precipitaram-se para o exterior. Uma outra equipa estava já a trabalhar. Era composta por meia dúzia de mecânicos instalados sobre a asa, presos por arneses, que gatinhavam de um lado para o outro.

 

Vamos a isto! gritou Burne, enquanto trepava a escada que dava acesso às asas. Fez com que a frase parecesse um grito de guerra. Os outros engenheiros foram atrás dele. Doherty foi o último, subindo a escada com um ar abatido.

 

Casey saiu do mini-autocarro na companhia de Richman.

 

Vão todos direitos às asas comentou o jovem.

 

É verdade. A asa é a parte mais importante de um avião, e é também a estrutura mais complicada. Começam por a examinar e a seguir fazem uma inspecção visual do resto do exterior. Por aqui.

 

Onde vamos?

 

Lá para dentro.

 

Casey avançou para o nariz do avião e trepou a escada para a porta da cabina anterior, logo por trás da cabina de pilotagem. Quando se aproximou sentiu imediatamente o enjoativo cheiro a vomitado.

 

Jesus... murmurou Richman, por trás dela. Casey entrou.

 

Sabia que a cabina de passageiros da frente seria a que estaria menos danificada, mas mesmo assim alguns dos assentos tinham as costas partidas. Uns quantos apoios para os braços tinham sido arrancados e estavam tombados para a coxia. Por cima, havia compartimentos de bagagens estalados, com as portas abertas. As máscaras de oxigénio balouçavam, suspensas do tecto. Faltavam algumas. Via-se sangue na alcatifa e no tecto, bem como poças de vomitado nos assentos.

 

Meu Deus disse Richman, tapando o nariz. Tinha o rosto pálido. Tudo isto aconteceu por causa de turbulência?

 

Não respondeu Casey. Quase de certeza que não.

 

Então porque é que o piloto...

 

Ainda não sabemos.

 

Casey avançou para a cabina de pilotagem. A porta estava aberta e tudo parecia normal. Toda a documentação desaparecera. Havia um minúsculo sapatinho de bebé caído no chão. Ao dobrar-se para o apanhar, Casey reparou numa massa de metal preto amachucado encravada debaixo da porta da cabina. Era uma câmara de vídeo. Puxou-a e desfez-se-lhe nas mãos, transformando-se num montão de placas com circuitos, motores prateados e laçadas de fita a saírem de uma cassete partida. Entregou-a a Richman.

 

Que faço eu com isto?

 

Guarda-a.

 

Casey dirigiu-se para a traseira, sabendo que as coisas, lá atrás, deveriam ser muito piores. Já formava na mente uma ideia do que acontecera durante o voo.

 

Não há dúvidas, este avião sofreu severas oscilações. O nariz andou a saltar para cima e para baixo.

 

Como sabe? inquiriu Richman.

 

Porque é isso que põe os passageiros a vomitar. Aguentam bem os balanços laterais... mas a arfagem fá-los vomitar.

 

Por que razão terão desaparecido algumas máscaras?

 

As pessoas agarraram-se a elas, quando caíram explicou Casey. Devia ter sido isso o que acontecera. As costas dos assentos estão partidas... Sabes qual a força necessária para partir um assento de um avião? São desenhados para suportarem um impacte de dezasseis vezes a força da gravidade. As pessoas dentro desta cabina andaram aos saltos, tal como os dados dentro de um copo. A julgar pelos prejuízos, isso aconteceu durante algum tempo.

 

Quanto?

 

Dois minutos, pelo menos. Num incidente como aquele, dois minutos eram uma eternidade, pensou Casey.

 

Passando para lá da cozinha destruída a meio do avião, penetraram na cabina central. Ali, os danos eram muito maiores. Havia mais assentos partidos. Via-se uma enorme mancha de sangue espalhada pelo tecto e as coxias estavam repletas de objectos, sapatos, roupas rasgadas, brinquedos de criança.

 

Uma equipa de limpeza envergando uniformes azuis com as letras NORTON IRT reunia todos os objectos pessoais, metendo-os dentro de grandes sacos plásticos. Casey virou-se para uma mulher.

 

Encontraram algumas máquinas fotográficas?

 

Cinco ou seis, até agora disse a mulher e um par de câmaras de vídeo. Há por aqui todo o tipo de coisas. Estendeu o braço para debaixo de um assento e fez aparecer um diafragma castanho, em borracha. Eu não lhe disse?

 

Passando cuidadosamente por cima do lixo que cobria as coxias, Casey avançou ainda mais para a traseira do avião. Passou por outro separador e entrou na cabina traseira, perto da cauda.

 

Richman aspirou o ar com força.

 

Parecia que uma gigantesca mão havia esmagado o interior. Havia assentos completamente destruídos, os compartimentos para as bagagens tinham-se soltado e quase tocavam no chão, os painéis do tecto estavam rachados, deixando ver fios eléctricos e isolamentos prateados. Havia sangue por todo o lado e alguns dos assentos estavam ensopados de castanho. As casas de banho da traseira encontravam-se rebentadas, com espelhos partidos e gavetas de aço inoxidável contorcidas e abertas.

 

Casey virou a sua atenção para a esquerda da cabina, onde seis paramédicos se debatiam com uma forma pesada, envolta numa rede de nylon branco que se encontrava suspensa junto ao tecto, perto de um compartimento para bagagens. Os paramédicos mudaram de posição, o nylon deslizou e surgiu a cabeça de um homem, de rosto cinzento, boca aberta, olhos sem vida e farrapos do cabelo a oscilar.

 

Oh, meu Deus! exclamou Richman, virando-se e fugindo. Casey aproximou-se dos paramédicos. O cadáver era de um chinês de meia-idade.

 

Qual é o problema? perguntou.

 

Desculpe, minha senhora... disse um deles mas não conseguimos tirá-lo. Encontrámo-lo aqui, encaixado, e tem a perna esquerda bem presa.

 

Um dos paramédicos apontou uma lanterna para o alto. A perna esquerda do homem enfiara-se no topo do compartimento de bagagens e penetrara no isolamento prateado por cima do painel da janela. Casey ten tou recordar-se de quais eram os cabos que passavam ali, e se algum dele seria fundamental para a segurança em voo.

 

Tirem-no daí com muito cuidado pediu.

 

Da galley chegou-lhe a voz de uma das mulheres da limpeza.

 

É a coisa mais esquisita que já vi.

 

Como é que isso foi parar aí? perguntou outra voz de mulher.

 

Casey foi ver de que estavam elas a falar. Uma das mulheres da limpeza segurava num boné de piloto com uma dedada ensanguentada na parte superior.

 

Onde o encontraram? perguntou Casey, estendendo a mão para o boné.

 

Aqui mesmo disse a mulher. No exterior da cozinha. Estava muito longe da cabina, não acha?

 

Sim... Casey revirou o boné nas mãos. Tinha umas asas prateadas na frente, com o emblema amarelo da Transpacific ao centro. Era um boné de piloto, com a risca de comandante, pelo que deveria pertencer a alguém da tripulação de substituição... Isto se existisse uma segunda tripulação a bordo. Ainda não o sabia.

 

Oh, céus, isto é terrível... Casey ouviu a característica voz monótona e levantou a cabeça para ver Doug Doherty, o engenheiro de estruturas, a entrar na cabina traseira. Que foi que fizeram ao meu belo avião? gemeu. Levantou os olhos e viu Casey. Sabes o que foi isto, não sabes? Não se tratou de turbulência. Entraram em porpoising.

 

Talvez respondeu Casey. Porpoising era o termo utilizado para uma série de mergulhos e ascensões, como um golfinho aos saltos na água.

 

Podes ter a certeza resmungou Doherty, sombrio. Foi isso o que aconteceu. Perderam o controlo. É terrível...

 

Um dos paramédicos interrompeu-o.

 

Mister Doherty?

 

Oh, não me digam exclamou Doherty, olhando para o lado dos paramédicos. Foi aí que o encontraram encaixado?

 

Sim, senhor...

 

Tinha de ser mesmo junto à antepara traseira... comentou, com um ar muito infeliz. É aí que confluem todos os sistemas mais críticos... Está bem, deixem-me ver. O que é aquilo? O pé?

 

Sim, senhor. Apontaram a luz da lanterna para que pudesse ver melhor. Doherty empurrou o corpo para um lado, pondo-o a oscilar na rede.

 

Podem segurá-lo? Bom... alguém tem uma faca, ou coisa parecida? É provável que não, mas...

 

Um dos paramédicos entregou-lhe uma tesoura e Doherty começou a cortar. Bocados do isolamento prateado flutuaram para o chão. Doherty cortou, e voltou a cortar, com a mão a mover-se muito rapidamente. Por fim, parou.

 

Muito bem. Não acertou no cabo A cinquenta e nove. Também não tocou no A quarenta e sete. Está à esquerda das linhas hidráulicas e do conjunto electrónico... Não me parece que tenha prejudicado o avião...

 

Os paramédicos, segurando no corpo morto, fitavam-no.

 

Podemos cortá-lo? perguntou um deles.

 

Doherty continuava muito concentrado nos sistemas do avião.

 

Como? Ah, sim, podem cortá-lo.

 

Recuou e os paramédicos aplicaram as grandes maxilas de metal no compartimento das bagagens e no tecto, abrindo-os. Ouviu-se um grande estalo quando o plástico rebentou.

 

Não posso ver isto queixou-se Doherty, virando-se. Não suporto vê-los a destruir o meu belo avião. Encaminhou-se para a frente do aparelho, com os paramédicos a olharem-no, espantados.

 

Richman regressou, com uma expressão um pouco embaraçada, e apontou para as janelas.

 

Que estão aqueles tipos a fazer em cima da asa?

 

Casey debruçou-se para espreitar por uma janela e viu os engenheiros em cima da asa.

 

Estão a inspeccionar os slats respondeu. São as superfícies de controlo do bordo de ataque da asa.

 

Para que servem esses slats?

 

"Vais ter de lhe ensinar tudo desde o princípio."

 

Sabes alguma coisa de aerodinâmica? Não? Bom, um avião voa por causa da forma das asas. A asa parecia simples, explicou, mas era na verdade o mais complicado componente físico do avião e era o que levava mais tempo para construir. Em comparação, a fuselagem era muito simples. Não passava de uma série de tubos cilíndricos ligados uns aos outros. A cauda pouco mais era do que um plano vertical, com superfície de controlo. Todavia, a asa era uma verdadeira obra de arte. Com quase sessenta metros de comprimento, era incrivelmente resistente e podia suportar todo o peso do avião. Porém, simultaneamente, tinha um formato com uma precisão que ia até ao milésimo de centímetro.

 

Essa forma continuou Casey é crucial. É encurvada por cima e plana por baixo. Isto significa que o ar que passa por cima da asa tem de se deslocar mais depressa e que, portanto, de acordo com o princípio de Bernoulli...

 

Andei em Direito... recordou-lhe Richman.

 

O princípio de Bernoulli diz que quanto maior for a velocidade de um gás, menos será a sua pressão. Desse modo, a pressão num fluxo de ar em movimento é inferior à pressão do ar envolvente declarou Casey. Como o ar se move mais rapidamente na parte superior da asa, cria um vácuo que puxa a asa para cima. Como a asa é suficientemente forte para aguentar a fuselagem, todo o avião é puxado para o alto. É isso que lhe permite voar.

 

Estou a ver...

 

Bom. São dois os factores que determinam essa força ascensional: a velocidade com que a asa se desloca no ar e a sua curvatura. Quanto maior for a curvatura, maior será a força ascencional.

 

Muito bem...

 

Durante o voo, quando a asa se move rapidamente, talvez a Macli zero vírgula oito não precisa de muita curvatura. Na verdade, tem de ser quase plana. Porém, quando o avião se desloca mais devagar, durante as descolagens e aterragens, a asa precisa de uma curvatura maior para manter a sustentação. Por isso, nessas situações, aumentamos a curvatura, fazendo sair secções na frente e na traseira da asa, flaps no bordo de fuga e slats no bordo de ataque.

 

Quer dizer que os slats são como os flaps, mas à frente?

 

Sim, mais ou menos.

 

Nunca tinha reparado neles disse Richman, espreitando pela janela.

 

Os aviões mais pequenos não os têm explicou Casey, mas este pesa perto de trezentos mil quilogramas quando está completamente carregado. É por isso que um aparelho deste tamanho precisa de slats.

 

Enquanto observavam, o primeiro slat deslocou-se para o exterior e inclinou-se. Os homens instalados na asa observaram-no, de mãos metidas nas algibeiras.

 

Por que razão são os slats tão importantes? inquiriu Richman.

 

Porque respondeu Casey uma das possíveis causas para a turbulência em voo é a saída dos slats. Com eles saídos, o avião pode tornar-se instável.

 

E o que os levaria a sair?

 

Um erro do piloto. É a causa mais vulgar.

 

Contudo, parte-se do princípio de que este avião tinha um bom piloto.

 

É verdade, parte-se desse princípio.

 

E se não tiver sido um erro do piloto?

 

Há uma situação começou Casey, depois de hesitar denominada "saída extemporânea de slats", o que significa que se abrem sozinhos, sem aviso.

 

Isso pode acontecer? perguntou Richman, com uma careta.

 

Já tem acontecido... mas não nos parece que seja possível neste tipo de avião. Não ia explicar os pormenores àquele rapaz, pelo menos por enquanto.

 

Richman continuava com a testa franzida.

 

Se não é possível, que estão eles a verificar?

 

Porque pode ter acontecido... e porque temos a obrigação de verificar tudo. Talvez exista um problema com este avião. Talvez os cabos de comando não estejam devidamente colocados. Talvez haja uma falha nos sistemas hidráulicos. Talvez os sensores de proximidade tenham falhado Talvez a electrónica tenha falhas. Verificaremos todos os sistemas até descobrirmos o que aconteceu... e porquê. Neste momento, não temos a mínima pista.

 

Estavam quatro homens amontoados na cabina de pilotagem, debruçados sobre os comandos. Van Trung, que estava especializado naquele avião, instalara-se no assento do piloto. Kenny Burne encontrava-se no assento do co-piloto, à direita. Trung fazia funcionar as superfícies de controlo, uma após outra: flaps, slats, lene de profundidade. Cada vez que realizava um teste, os instrumentos de bordo eram verificados visualmente.

 

Casey parou no exterior da cabina, com Richman.

 

Já tens alguma coisa, Van?

 

Ainda não respondeu Trung.

 

Não encontrámos nada acrescentou Kenny Burne. Este pássaro está perfeito, não tem qualquer problema.

 

Então, nesse caso, sempre pode ter sido turbulência comentou Richman.

 

Turbulência, uma ova! ripostou Burne. Quem disse isso? O nonato?

 

Sim, fui eu esclareceu Richman.

 

Explica-lhe como são as coisas, Casey pediu Burne, olhando por cima do ombro.

 

A turbulência disse Casey para Richman é uma desculpa muito conhecida para tudo o que corre mal na cabina de voo. Por vezes há realmente turbulência e nos velhos tempos os aviões passavam maus bocados. Hoje, porém, os casos de turbulência suficientemente maus para causar feridos são muito raros.

 

Porquê?

 

Por causa dos radares, rapaz atirou-lhe Burne. Os aviões comerciais estão equipados com radares meteorológicos. Os pilotos podem reconhecer o tempo que têm pela frente e evitá-lo. As comunicações entre aviões também são muito melhores. Se um avião, duzentos quilómetros à tua frente, apanha mau tempo, és informado e mudas de rumo. Os dias de turbulência grave já acabaram há muito.

 

Richman estava aborrecido com o tom de Burne.

 

Não sei... murmurou. Já estive em aviões em que a turbulência foi violenta...

 

Já alguma vez viste alguém morrer num desses aviões?

 

Bem, não...

 

Já viste as pessoas atiradas para fora das cadeiras?

 

Não...

 

Viste algum tipo de ferimentos?

 

Não, não vi.

 

Então, aí tens concluiu Burne.

 

Mas de certeza que é possível que...

 

Possível? interrompeu-o Burne. Tal como nos tribunais, onde tudo é possível?

 

Não, mas...

 

És advogado, não és?

 

Sou, sim, mas...

 

Então, para já, vê se compreendes uma coisa. O que fazemos aqui não é advocacia. A advocacia é um monte de tretas. Isto é um avião. Uma máquina. Ou aconteceu alguma coisa a esta máquina... ou não. Não é uma questão de opiniões. Portanto, porque não te calas e nos deixas trabalhar?

 

Richman estremeceu mas não desistiu.

 

Está bem, mas se não foi turbulência, deverão existir indícios...

 

Certo. Tal como o sinal para apertar os cintos retorquiu Burne. O piloto apanha turbulência... e a primeira coisa que faz é acender o sinal e avisar os passageiros. Toda a gente aperta os cintos e ninguém se magoa. Este tipo não fez nada disso.

 

Talvez o sinal não funcione...

 

Olha para cima. O sinal soou e iluminou-se por cima da cabeça deles.

 

Então, talvez o aviso...

 

A voz de Burne, amplificada, ressoou pelo aparelho:

 

Funciona, funciona, podes ter a certeza.

 

Dan Greene, o gorducho inspector de operações da FSDO entrou a bordo, ofegante por causa das escadas.

 

Eh, rapazes, tenho autorização para levar o avião para Burbank. Calculei que o quisessem levar para a fábrica.

 

Queremos, sim disse Casey.

 

É verdade, Dan... interveio Kenny Burne. Parabéns pelo bom trabalho... ao deixares escapar a tripulação.

 

Vai-te lixar ripostou Greene. Coloquei um tipo no portão um minuto depois de o avião pousar... e a tripulação já se tinha ido embora Virou-se para Casey. Já tiraram o corpo?

 

Ainda não, Dan. Está bem preso...

 

Mandámos embora os outros mortos e enviámos os feridos graves para os hospitais de Westside. Aqui tens a lista. Entregou-lhe uma folha de papel. Ainda há uns quantos na enfermaria do aeroporto.

 

Quantos? perguntou Casey.

 

Uns seis ou sete, incluindo um par de hospedeiras.

 

Posso falar com eles?

 

Não vejo porque não retorquiu Greene.

 

Van? Quanto tempo vais demorar? inquiriu Casey.

 

Conta com uma hora, no mínimo.

 

Está bem. Vou levar o carro.

 

Sim, e leva contigo esse advogadozeco pediu Burne.

 

         LAX

         10:42

 

Já a conduzir o mini-autocarro, Richman expulsou o ar dos pulmões com toda a força.

 

Jesus! comentou. São sempre assim tão amigáveis?

 

São engenheiros respondeu Casey, encolhendo os ombros. Perguntava a si mesma: de que estaria ele à espera? Não lidara com engenheiros da GM? Emocionalmente, têm todos treze anos. Ficaram todos naquela idade em que os rapazes deixam os brinquedos porque descobrem as raparigas. São pouco sociáveis, vestem-se mal... Mas são extremamente inteligentes e bem treinados, e também muito arrogantes, à sua maneira. Quem não pertence ao grupo não entra no jogo.

 

Em especial os advogados...

 

Toda a gente. São como mestres de xadrez. Não perdem tempo com amadores... e neste momento estão sob uma grande pressão.

 

Não é engenheira?

 

Eu? Não! Para além disso, sou mulher e pertenço à Qualidade. Três boas razões para que eu também não conte. Agora, o Marder nomeou-me para elemento de ligação entre a IRT e a imprensa, o que é mais uma desvantagem. Os engenheiros odeiam a imprensa.

 

A imprensa vai meter-se nisto?

 

É provável que não disse Casey. Trata-se de uma transportadora estrangeira, os mortos eram estrangeiros e o incidente não teve lugar nos Estados Unidos. Para além disso, não têm imagens. Não vão prestar atenção ao assunto.

 

No entanto, parece grave...

 

"Grave" não é um critério retorquiu Casey. No ano passado houve vinte e cinco acidentes envolvendo consideráveis prejuízos em aviões. Vinte e três tiveram lugar no estrangeiro. De quantos te recordas?

 

Richman franziu a testa.

 

O acidente em Abu Dhabi, que matou cinquenta e seis pessoas? prosseguiu ela. O acidente na Indonésia, que matou duzentas? O de Bogotá, que matou cento e cinquenta e três? Lembras-te de algum deles?

 

Não... afirmou Richman mas não houve qualquer coisa em Atlanta?

 

É verdade, houve um caso com um DC-Nove, em Atlanta. Quantas pessoas morreram? Nenhuma. Quantas ficaram feridas? Nenhuma. Porque te lembras disso? Porque viste imagens no noticiário da noite.

 

O mini-autocarro saiu da pista, passou a vedação do aeroporto e saiu para a rua. Viraram para a Sepulveda e dirigiram-se para os contornos azuis e arredondados do Hospital Centinela.

 

De qualquer modo disse Casey, neste momento temos outras coisas com que nos preocupar. Entregou um gravador a Richman, prendeu-lhe o microfone na lapela e disse-lhe o que iam fazer.

 

        HOSPITAL CENTINELA

         12:06

 

Querem saber o que aconteceu? perguntou o homem de barbas, num tom irritado. Chamava-se Bennett, tinha quarenta anos e era distribuidor das calças de ganga Guess. Fora a Hong Kong visitar a fábrica. Fazia-o quatro vezes por ano, sempre na Transpacific. Agora, estava sentado na cama, num dos cubículos rodeados por cortinas. Tinha ligaduras na cabeça e no braço direito. O avião quase se despenhou, foi o que aconteceu!

 

Compreendo respondeu Casey, mas perguntava a mim mesma se...

 

Afinal, quem diabo são vocês? inquiriu o homem. Casey estendeu-lhe um cartão-de-visita e voltou a apresentar-se.

 

Norton Aircraft? Que têm vocês a ver com o assunto?

 

Construímos o avião, Mister Bennett.

 

Aquela merda? Vão-se lixar! Atirou o cartão na direcção de Casey. Ponham-se a andar daqui...

 

Mister Bennett...

 

Desapareçam daqui! Mexam-se!

 

Já fora do cubículo, Casey olhou para Richman.

 

Tenho muito jeito para lidar com as pessoas disse, pesarosa.

 

Casey passou ao cubículo seguinte e parou. Percebeu que do outro lado das cortinas havia alguém que falava chinês rapidamente. Primeiro uma voz de mulher e depois a de um homem. Decidiu avançar para a cama seguinte. Abriu as cortinas e viu uma mulher chinesa, adormecida, com o pescoço envolto em gesso. A enfermeira que se encontrava no quarto olhou para cima e levou um dedo aos lábios.

 

Casey passou para outro cubículo.

 

Era uma das hospedeiras de bordo, uma mulher de vinte e oito anos chamada Kay Liang. Tinha grandes esfoladelas na face e no pescoço, que estavam vermelhas e em carne viva. Encontrava-se sentada numa cadeira, ao lado da cama, folheando uma Vogue velha de seis meses. Explicou que decidira ficar no hospital para fazer companhia a Sha-Yan Hao, outra hospedeira, instalada no cubículo ao lado.

 

É minha prima disse. Receio que esteja em muito mau estado, Não me deixaram ficar no quarto, junto dela. Falava bem o inglês, com um sotaque britânico.

 

Quando Casey se apresentou, Kay Liang pareceu confusa.

 

Vem da parte do fabricante? perguntou. Mas... acabou de sair daqui um homem...

 

Que homem?

 

Um chinês. Esteve aqui há minutos...

 

Não sei nada a esse respeito, mas gostava de lhe fazer algumas perguntas.

 

Claro! Pousou a revista e cruzou as mãos sobre o colo, muito composta.

 

Há quanto tempo está na TransPacific? inquiriu Casey.

 

Três anos declarou Kay Liang. Antes disso, estive outros tantos na Cathay Pacific. Voo sempre nas linhas internacionais porque sei línguas, inglês e francês, para além do chinês.

 

Onde estava quando o incidente aconteceu?

 

Na cabina central, logo por trás da classe executiva. As hospedeiras tratavam do pequeno-almoço explicou. Eram cerca de cinco da manhã, ou talvez passassem alguns minutos.

 

Que aconteceu?

 

O avião começou a subir disse. Sei-o, porque preparava bebidas e estas começaram a deslizar no carrinho. A seguir, quase imediatamente, iniciou uma descida muito íngreme.

 

Que foi que fez?

 

Não pudera fazer nada, explicou, excepto segurar-se. A descida fora muito violenta. As bebidas e a comida tinham caído para o chão. Pensava que a descida durara uns dez segundos, mas não tinha a certeza. Depois acontecera nova subida, extremamente íngreme, e nova descida. Durante a segunda descida batera com a cabeça na antepara...

 

Perdeu a consciência?

 

Não, mas foi nessa altura que esfolei a cara. Apontou para o rosto.

 

Que se passou a seguir?

 

Não tinha a certeza, disse. Ficara confusa porque a segunda hospedeira, Miss Jiao, embatera contra ela e ambas tinham caído.

 

Ouvíamos os gritos dos passageiros afirmou, e é claro que os víamos nas coxias.

 

A seguir, o avião voltara a ficar nivelado. Conseguira levantar-se para ir ajudar os passageiros. A situação era muito má, em particular na traseira do aparelho.

 

Havia muitas pessoas magoadas, a sangrar e com dores. As hospedeiras não tinham mãos a medir. Miss Hão, a minha prima, que se encontrava na traseira, estava inconsciente, o que perturbou as outras hospedeiras. Tínhamos três passageiros mortos. A situação era aflitiva.

 

E o que foi que fez?

 

Fui buscar o estojo médico de emergência para tratar dos passageiros. A seguir dirigi-me à cabina de voo. Queria ver se a tripulação estava bem. Também queria dizer-lhes que o co-piloto ficara ferido, na galley das traseiras.

 

O co-piloto estava na traseira quando o incidente teve lugar? perguntou Casey. Kay Liang pestanejou.

 

Sim, o da tripulação de reforço.

 

Não era o da tripulação de serviço?

 

Não, era o co-piloto da tripulação de reforço.

 

Tinham duas tripulações a bordo?

 

Sim.

 

Quando foi que mudaram as tripulações?

 

Talvez três horas antes, durante a noite.

 

Como se chamava o co-piloto ferido? inquiriu Casey.

 

Bom... não tenho a certeza disse, depois de nova hesitação. Nunca tinha voado com aquela tripulação de reforço.

 

Compreendo. O que viu quando entrou na cabina?

 

O comandante Chang tinha o avião sob controlo. A tripulação estava abalada, mas não se ferira. O comandante Chang disse-me que pedira para fazer uma aterragem de emergência em Los Angeles.

 

Já antes voara com o comandante Chang?

 

Sim, e é muito bom. É um excelente comandante. Gosto muito dele.

 

Eram demasiadas manifestações de apreço, pensou Casey. A hospedeira, anteriormente calma, agora parecia inquieta. Liang fitou Casey de relance mas desviou imediatamente os olhos.

 

Pareceu-lhe ver alguns danos na cabina de pilotagem?

 

Não respondeu a hospedeira, depois de pensar um pouco, de testa franzida. Parecia perfeitamente normal sob todos os aspectos.

 

O comandante Chang disse-lhe mais alguma coisa?

 

Sim, explicou que se verificara uma saída extemporânea dos slats e que fora isso o que provocara o incidente, mas que já estava tudo sob controlo.

 

Pois era, pensou Casey. Os engenheiros não iam ficar satisfeitos com aquilo, mas o que mais preocupava Casey era a expressão técnica utilizada pela chinesa. Era improvável que uma hospedeira soubesse alguma coisa a respeito de uma "saída extemporânea dos slats". No entanto, podia estar apenas a repetir o que o comandante lhe dissera.

 

O comandante explicou por que motivo os slats saíram?

 

Não. Limitou-se a dizer que se tratara de uma saída extemporânea dos slats.

 

Estou a ver comentou Casey. Sabe onde fica o manípulo dos slats?

 

Sei, sim confirmou Kay Liang, com um aceno. Fica na consola central, entre os assentos.

 

Estava certo, pensou Casey.

 

Quando esteve na cabina, reparou na posição desse manípulo?

 

Sim. Estava para cima e trancado.

 

Mais uma vez, Casey reparou na terminologia técnica. Aquilo era o que um piloto diria. Uma hospedeira usaria os mesmos termos?

 

O comandante disse-lhe mais alguma coisa?

 

Estava preocupado com o piloto automático, que tentara tomar o controlo do avião. Disse: "Tive de lutar contra o piloto automático para conseguir o controlo."

 

Compreendo. Como se comportou o comandante, durante esse tempo?

 

Estava calmo, como sempre. É um bom piloto.

 

Os olhos da jovem estremeceram, nervosos. Contorcia as mãos sobre o colo. Casey decidiu calar-se por instantes. Deixar que fossem os interrogados a quebrar o silêncio, era um velho truque.

 

O comandante Chang provém de uma distinta família de pilotos disse Kay Liang, engolindo em seco. O pai foi piloto durante a guerra, e o filho também é piloto.

 

Estou a ver...

 

A hospedeira mergulhou novamente no silêncio. Houve uma pausa. Olhou para as mãos e só depois voltou a fitar Casey:

 

Quer saber mais alguma coisa?

 

Já no exterior do cubículo, Richman perguntou:

 

Não me disse que nunca poderia ter acontecido uma saída extemporânea dos slats.

 

Não disse que não pode acontecer, mas sim que não acreditava que fosse possível neste avião. Se aconteceu... então são mais as perguntas do que as respostas.

 

E quanto ao piloto automático...

 

Ainda é cedo para termos certezas declarou Casey, entrando no cubículo seguinte.

 

Deve ter sido por volta das seis horas afirmou Emily Jansen, abanando a cabeça. Era uma mulher delgada, de cerca de trinta anos, com uma nódoa negra numa face. Tinha um bebé a dormir no seu colo. O marido jazia na cama, por trás dela, metido num suporte metálico que ia dos ombros ao queixo. Emily explicou que o marido tinha o maxilar partido.

 

Tinha acabado de dar de comer ao bebé e conversava com o meu marido. De súbito, ouvi um barulho...

 

Que espécie de barulho?

 

Um ruído surdo, de metal a raspar. Pensei que vinha da asa. Aquilo não era nada bom, pensou Casey.

 

Por isso continuou a mulher, olhei pela janela, para a asa.

 

Viu alguma coisa invulgar?

 

Nada. Parecia tudo normal. Pensei que o som pudesse ter vindo do motor, mas também parecia normal.

 

De que lado estava o Sol a essa hora?

 

Do meu lado. Brilhava do meu lado.

 

Então, o Sol iluminava a asa? -Sim?

 

E reflectia-se na sua direcção?

 

Não me recordo... respondeu Emily Jansen, abanando a cabeça.

 

O aviso para apertarem os cintos estava ligado?

 

Não. Nunca esteve.

 

O comandante fez algum aviso?

 

Não.

 

Voltemos a esse som. Descreveu-o como sendo um ruído surdo?

 

Sim, algo desse género. Não sei se o ouvi ou se o senti. Foi uma espécie de... vibração.

 

Uma espécie de vibração.

 

Quanto tempo durou?

 

Vários segundos.

 

Cinco segundos?

 

Mais do que isso. Diria que durou dez ou doze segundos.

 

Era uma descrição clássica de uma saída extemporânea dos slats em voo, pensou Casey.

 

Muito bem, e depois?

 

O avião começou a descer... Emily fez um gesto com a mão aberta... assim.

 

Casey continuou a tomar apontamentos, mas na verdade já não a ouvia. Tentava reconstruir a sequência dos acontecimentos para que os engenheiros soubessem como proceder. Não havia dúvidas de que ambas as testemunhas contavam uma história consistente com uma saída extemporânea dos slats. Primeiro, um rumor durante doze segundos, precisamente o tempo que os slats levavam a sair. Depois, o nariz do avião virado para cima... E a seguir subidas e descidas, enquanto a tripulação tentava estabilizar o aparelho.

 

Que sarilho, pensou.

 

Como a porta da cabina estava aberta dizia Emily Jansen, consegui ouvir os alarmes. Havia sons de aviso e frases em inglês que me pareceram gravadas.

 

Lembra-se do que essas vozes diziam?

 

Pareceu-me ser qualquer coisa como: "Fall... fall..." Era o alarme de stall, pensou Casey. As vozes gravadas diziam: "Stall... Stall."

 

Maldição.

 

Deixou-se ficar mais alguns minutos com Emily Jansen e saiu do cubículo.

 

No corredor, Richman inquiriu:

 

Aquele rumor nas asas significa que os slats saíram?

 

Pode ser... Casey estava tensa e nervosa. Queria voltar para o avião e falar com os engenheiros.

 

De um dos cubículos existentes mais adiante, no corredor, emergiu uma figura encorpada, de cabelos cinzentos. Ficou surpreendida ao ver Mike Lee e sentiu uma vaga de irritação. Que diabo andava o representante da transportadora a fazer, conversando com os passageiros? Era inapropriado. Lee não deveria estar ali.

 

Recordou-se do que Kay Liang lhe dissera: "Esteve aqui um chinês."

 

Lee aproximou-se deles, abanando a cabeça:

 

Mike exclamou, estou surpreendida por te ver aqui.

 

Porquê? Devias dar-me uma medalha. Um par de passageiros estava a pensar em ir para tribunal, mas convenci-os a não o fazerem.

 

Pois é... mas falaste com os membros da tripulação antes de nós. Não é correcto.

 

Achas que os convenci a inventarem uma história? Nem penses. Foram eles que me contaram uma história. Não há grandes dúvidas sobre o que aconteceu. Lee olhou-a fixamente. Tenho muita pena, Casey, mas o voo cinco quatro cinco passou por uma situação de saída extemporânea dos slats, o que significa que vocês ainda têm problemas no N-Vinte e Dois.

 

De volta ao mini-autocarro, Richman perguntou:

 

Que queria ele dizer com aquele ainda têm problemas? Casey suspirou. Já não valia a pena ficar calada.

 

Tivemos alguns incidentes de saída extemporânea dos slats no N-Vinte e Dois.

 

O quê? Um momento! exclamou Richman. Quer dizer que isto já tinha acontecido"?

 

Não deste modo disse Casey. Nunca se tinham verificado ferimentos graves... mas é verdade, tivemos outros problemas com os slats.

 

1 "Queda... queda..." (N. do T.)

2 Em termos de aeronáutica, a palavra stall significa "perda de controlo". (N. do T.)

 

         PELO CAMINHO

         13:05

 

O primeiro episódio teve lugar há quatro anos, num voo para San Juan disse Casey, quando seguiam de volta ao aeroporto. Os slats saíram em pleno voo. Ao princípio pensámos tratar-se de uma anomalia isolada, mas num par de meses tiveram lugar mais dois incidentes do mesmo tipo. Quando investigámos, descobrimos que em todos esses casos os slats tinham saído durante períodos de actividade na cabina de voo, depois de uma mudança de tripulação, quando marcavam as coordenadas para ruma nova etapa de voo, ou coisas desse género. Por fim compreendemos que o manípulo era accionado casualmente pela tripulação. Batiam-lhe com a prancheta, prendia-se-lhes nas mangas, etc...

 

Está a brincar...

 

Não, não estou. Construímos uma fenda de encaixe para o manípulo, semelhante à da posição de "estacionamento" existente nos carros com mudanças automáticas. Apesar disso, o manípulo continuou a ser deslocado acidentalmente.

 

Richman olhava-a com a expressão céptica de um acusador público.

 

Então, sempre é verdade que o N-Vinte e Dois tem problemas.

 

Era um avião novo explicou Casey, e todos os aviões têm problemas quando são lançados no mercado. É impossível construir uma máquina com um milhão de peças que não tenha pequenas deficiências. Fazemos tudo o que podemos para as evitar. Começamos pelo desenho, que a seguir é posto à prova. A seguir construímo-los e pomo-los à prova em voo. No entanto, isso não impede que surjam problemas. A questão está em saber resolvê-los.

 

Como é que os resolvem?

 

Sempre que descobrimos um problema enviamos um boletim de serviço às operadoras, descrevendo as alterações que recomendamos. Não temos autoridade para as impor obrigatoriamente. Algumas transportadoras fazem-nas, outras não. Se o problema persiste, a FAA entra em campo e emite uma directiva para as transportadoras, ordenando-lhes que corrijam, dentro de um determinado prazo, todos os aviões que têm em serviço. Há sempre directivas dessas, para todos os tipos de aviões. Temos orgulho no facto de a Norton ter recebido menos directivas do que qualquer outro fabricante.

 

É o que diz.

 

Vai verificar. Estão todas em arquivo, em Oak City.

 

Estão onde?!

 

Todas as directivas já emitidas encontram-se arquivadas no Centro Técnico da FAA em Oklahoma City.

 

Nesse caso, receberam uma dessas directivas a respeito do N-Vinte e Dois?

 

Sim, e emitimos um boletim de serviço recomendando que as transportadoras instalassem uma cobertura metálica com dobradiças por cima do manípulo. O comandante tinha de abrir essa cobertura antes de poder accionar os slats, mas o problema ficou resolvido. Como de costume, algumas transportadoras instalaram a cobertura, mas outras não o fizeram. Por isso, a FAA emitiu uma directiva tornando a instalação obrigatória. Foi há quatro anos. A seguir verificou-se apenas um incidente, que envolveu uma transportadora indonésia que não instalara a cobertura. Neste país, a FAA pode obrigar as transportadoras a obedecerem-lhe, mas no estrangeiro é mais difícil... Casey encolheu os ombros. As transportadoras fazem o que querem.

 

E é tudo? É essa a história?

 

É tudo. A IRT investigou, as coberturas metálicas foram instaladas e nunca mais tivemos problemas de slats no N-Vinte e Dois.

 

Até hoje disse Richman.

 

É verdade. Até hoje.

 

         LAX, HANGAR DE MANUTENÇÃO

         13:22

 

Um quê"? gritou Kenny Burne na cabina de voo do 545 da TransPacific. Disseram que foi o quê? Saída extemporânea dos slats respondeu Richman.

 

Oh, vão-se lixar declarou Burne, começando a sair do assento. Desculpas de merda! Eh, advogadozeco, vem cá! Vês este assento? É o do co-piloto. Senta-te aí.

 

Richman hesitou.

 

Vamos, advogadozeco, senta-te aí!

 

Desajeitado, Richman encolheu-se para passar por entre os outros homens que se encontravam na cabina e sentou-se na cadeira da direita.

 

Muito bem disse Burne, estás confortável? Por acaso não és piloto?

 

Não declarou Richman.

 

Perfeito. Então, aqui estás tu, pronto a fazer voar este avião. Agora, se olhares para a frente apontou para o painel de controlo directamente em frente de Richman, formado por três monitores de vídeo com vinte centímetros de lado tens aí três CRTs a cores que te fornecem dados de voo, de navegação e sobre os sistemas do aparelho. Cada um daqueles pequenos semicírculos representa um sistema diferente. Quando estão verdes, isso quer dizer que todos funcionam bem. No tecto, por cima da tua cabeça, encontra-se outro painel de instrumentos. As luzes estão todas apagadas, o que significa que está tudo bem. Mantêm-se apagadas até surgir um problema. À tua esquerda está aquilo a que chamamos consola central.

 

Burne apontou para uma estrutura em forma de caixa, instalada entre os dois assentos, onde se via meia dúzia de manípulos, instalados em fendas.

 

Da esquerda para a direita, esses comandos correspondem a flapsslats, duas alavancas de potência para os motores, spoilers, travões e motores. Os slats e flaps são controlados pelo manípulo que se encontra mais perto de ti, o que tem uma pequena cobertura de metal. Estás a vê-lo?

 

Estou confirmou Richman.

 

Muito bem. Levanta a cobertura e acciona os slats.

 

Accionar os slats...

 

Sim, empurra o manípulo para baixo.

 

Richman levantou a cobertura e debateu-se com o manípulo durante alguns instantes.

 

Não, não! Segura-o com força, puxa-o para cima, para a direita e para baixo... disse Burne como se fosse a alavanca das mudanças de um carro.

 

Richman fechou os dedos em volta do manípulo e accionou-o tal como lhe tinham dito. Ouviu-se um murmúrio distante.

 

Muito bem. Agora, olha para o painel. Vês aquela luz cor de laranja que diz SLATS EXTD? Está a dizer-te que os slats estão a sair, percebes? Precisam de doze segundos para o fazerem. Agora que já saíram, a luz está branca e diz SLATS.

 

Estou a ver confirmou Richman.

 

Muito bem. Agora, recolhe os slats.

 

Richman inverteu os seus gestos anteriores, puxando o manípulo para cima, fazendo-o deslizar para a esquerda e colocando-o na posição original. A seguir, fechou a cobertura metálica.

 

O que acabaste de fazer disse Burne foi uma saída normal de slats.

 

Muito bem murmurou Richman.

 

Agora, executa uma saída extemporânea de slats.

 

Como é que isso se faz?

 

Como quiseres, meu amigo. Para começar, podes tentar bater no manípulo com a mão.

 

Richman estendeu a mão para a consola e tocou no manípulo com a mão esquerda. Contudo, a cobertura metálica protegia-o. Nada aconteceu

 

Vamos, bate-lhe com força!

 

Richman fez a mão balançar para um lado e para o outro, batendo no manípulo. Fê-lo cada vez com mais força mas nada aconteceu. A cobertura protegia o manípulo pelo que os slats continuavam recolhidos.

 

Talvez possas bater-lhe com o cotovelo insistiu Burne. Ou então, experimenta bater-lhe com esta prancheta disse, retirando a prancheta de entre os dois assentos e entregando-lha. Vamos, dá-lhe uma valente pancada. Estou à espera de ver um acidente.

 

Richman bateu no manípulo com a prancheta, que ressoou contra a cobertura metálica. A seguir, tentou bater com o rebordo da prancheta directamente no manípulo. Nada aconteceu.

 

Queres continuar a tentar? perguntou Burne. Ou começas a compreender? Não pode ser feito, advogadozeco, desde que a cobertura esteja no seu lugar.

 

Talvez a cobertura não estivesse fechada... propôs Richman

 

Eh, boa ideia! exclamou Burne. Talvez consigas abrir a cobertura por acidente. Tenta bater-lhe com a prancheta!

 

Richman atirou a prancheta contra o rebordo da cobertura. Porém, esta tinha uma superfície suavemente encurvada e a prancheta deslizou sobre ela. A cobertura continuou fechada.

 

É impossível declarou Burne, pelo menos por acidente. Tens mais alguma ideia?

 

Pode ser que a cobertura estivesse aberta.

 

Está bem. Parte-se do princípio de que ninguém voa com essa cobertura aberta, mas só o diabo sabe o que eles andaram a fazer. Vamos a isso e abre-a.

 

Richman fez rodar a cobertura na sua dobradiça. O manípulo ficou inteiramente exposto.

 

Muito bem, agora bate-lhe.

 

Richman pegou na prancheta e atirou-a contra o manípulo. Na maior parte das vezes, a cobertura, apesar de aberta, continuava a servir de protecção. A prancheta batia-lhe antes de tocar no manípulo. Por vezes, o impacte fazia com que a cobertura se fechasse por si. Richman tinha de voltar a abri-la para continuar a experimentar.

 

Talvez se usares a mão... sugeriu Burne.

 

Richman tentou accionar o manípulo batendo-lhe com a mão... que ficou vermelha muito rapidamente, sem a deslocar.

 

Está bem disse, recostando-se no assento. Compreendo o que querem dizer.

 

Não pode ser feito repetiu Burne. Uma saída extemporânea dos slats é impossível neste avião. Ponto final.

 

Do exterior da cabina, Doherty perguntou:

 

Já acabaram com as brincadeiras? Quero recuperar os registos de voo e ir para casa.

 

Quando saíram da cabina de voo, Burne tocou no ombro de Casey.

 

Posso falar contigo por instantes? perguntou.

 

Com certeza disse Casey.

 

Conduziu-a de volta ao interior do avião, para longe dos ouvidos dos outros. Inclinou-se para ela.

 

Que sabes a respeito desse miúdo? indagou.

 

É da família do Norton respondeu, encolhendo os ombros.

 

E que mais?

 

O Marder nomeou-o meu assistente.

 

Informaste-te a seu respeito?

 

Não disse Casey. Parti do princípio de que é um tipo decente, uma vez que foi o Marder quem mo enviou.

 

Pois olha, conversei com alguns amigos meus no marketing afirmou Burne, que me disseram que o tipo é um furão e que convém não lhe virarmos as costas.

 

Kenny...

 

Estou a dizer-te que há algo de estranho nesse miúdo, Casey. Tem cuidado. Investiga-o.

 

Com um zumbido metálico proveniente das chaves de parafusos eléctricas, os painéis do chão saltaram, revelando a massa de cabos e de caixas ocultas por baixo da cabina.

 

Jesus! murmurou Richman, espantado.

 

Era Ron Smith quem dirigia a operação, passando a mão pela cabeça careca, num gesto nervoso.

 

Assim está óptimo disse. Agora, tirem o painel da esquerda.

 

Quantas caixas tem este pássaro, Ron? perguntou Doherty.

 

Cento e cinquenta e duas respondeu Smith. Casey sabia que todos os outros teriam de bisbilhotar uma enorme quantidade de esquemas antes de conseguirem responder àquela pergunta. Contudo, Smith conhecia todos os esquemas de cabeça.

 

Que vamos nós tirar? inquiriu Doherty.

 

Retira o CVR, o DFDR e o QAR, se existir pediu Smith.

 

Não sabes se têm um QAR? perguntou Doherty, provocando.

 

É opcional, instalado pelos clientes. Não me parece que o tenham. No N-Vimte e Dois è quase sempre instalado na cauda, mas já fui espreitar e não o vi.

 

Richman virou-se para Casey. Estava novamente com um ar intrigado.

 

Pensei que iam procurar as caixas negras...

 

É o que estamos a fazer declarou Smith.

 

Então... há cento e cinquenta e duas caixas negras?!

 

Claro confirmou Smith. Estão espalhadas por todo o avião, mas neste momento só estamos interessados nas mais importantes, nas dez ou doze NVMs que contam.

 

NVMs repetiu Richman.

 

Isso mesmo confirmou Smith, virando-lhe as costas e debruçando-se sobre os painéis abertos.

 

Casey viu-se na necessidade de lhe dar uma explicação. A percepção do público a respeito de um avião era a de que se tratava de um grande engenho mecânico, com alavancas e botões que faziam subir e descer superfícies de controlo. No meio dessa maquinaria existiriam duas caixas negras mágicas, que registavam os acontecimentos do voo. Eram as caixas negras de que os noticiários falavam. O CVR, o gravador de voz da cabina, era essencialmente um gravador de som muito resistente, que registava a última meia hora de conversa dos pilotos numa fita magnética contínua. A seguir havia o DFDR, o registo digital de dados de voo, que armazenava informações pormenorizadas sobre o comportamento do avião para que os investigadores, depois de um acidente, pudessem descobrir o que acontecera.

 

Porém, explicou Casey, esta imagem pública era incorrecta quando se tratava de um grande avião comercial. Os jactos comerciais tinham muito poucas alavancas. Na verdade, tinham muito poucos sistemas mecânicos de qualquer tipo e era quase tudo hidráulico e eléctrico. O piloto, na cabina, não movia os ailerons ou flaps à força de músculos. Na verdade, tudo funcionava como a direcção assistida, num automóvel. Quando o piloto movia a manche e os pedais, enviava impulsos eléctricos que faziam funcionar os sistemas hidráulicos que agiam sobre as superfícies de controlo.

 

A verdade é que um avião comercial era controlado por uma rede electrónica extraordinariamente sofisticada, composta por dúzias de sistemas computorizados ligados entre si por centenas de quilómetros de fios eléctricos. Havia computadores para a gestão de voo, para a navegação, para as comunicações. Para além disso, os computadores também regulavam os motores, as superfícies de controlo e o ambiente da cabina.

 

Cada um dos grandes sistemas computorizados controlava toda uma gama de subsistemas. Assim, o sistema de navegação controlava o ILS para aterragem por instrumentos, controlava o DME, para medição de distâncias, o ATYC, para o controlo do tráfego, o TCAS, para evitar colisões, e o GPWS, para aviso de aproximação ao solo.

 

No meio de todo esse ambiente electrónico complexo, era relativamente fácil instalar um DFDR, um registo digital de dados de voo. Como todos os comandos eram já electrónicos, limitavam-se a fazê-los passar pelo DFDR, sendo armazenados num suporte magnético.

 

Um DFDR moderno regista oitenta parâmetros diferentes de voo em cada segundo de voo.

 

Em cada segundo? Então, que tamanho tem essa coisa? perguntou Richman.

 

Ali está ele disse Casey, apontando. Naquele momento, Ron fazia aparecer uma caixa às riscas pretas e cor de laranja, que tirava do meio do equipamento de rádio. Era do tamanho de uma grande caixa de sapatos. Pousou-a no chão e substituiu-a por uma caixa nova, para o voo que o avião iria fazer até Burbank.

 

Richman debruçou-se e levantou o DFDR pegando-lhe pela asa em aço inoxidável.

 

É pesado.

 

Sim, por causa da cobertura resistente aos choques disse Ron. A engenhoca que lá está dentro pesa talvez cento e oitenta gramas.

 

E as outras caixas, para que servem?

 

As outras caixas existiam, explicou Casey, para facilitar a manutenção. Como os sistemas electrónicos do avião eram muito complicados, era necessário controlar o comportamento de cada um deles no caso de se verificarem erros ou falhas durante o voo. Cada sistema verificava o seu próprio funcionamento, graças ao que era denominado por memória não volátil, ou NVM. Naquele dia iriam retirar oito sistemas NVM: o computador de gestão de voo, que armazenava dados sobre o plano de voo e sobre as instruções introduzidas pelo piloto, o controlador digital de motores, que geria o consumo de combustível e os motores, o computador digital de dados aéreos, que registava a velocidade do ar, altitude e alarmes de excesso de velocidade...

 

Pronto, está bem, já percebi... declarou Richman.

 

Nada disto seria necessário comentou Ron Smith, se tivéssemos um Q AR.

 

-Q AR?

 

É mais um sistema de manutenção disse Casey. As equipas de manutenção que vêm a bordo depois de o avião aterrar precisam de obter uma leitura rápida de tudo que aconteceu de errado durante o último voo.

 

Não interrogam os pilotos?

 

Os pilotos comunicam algumas falhas mas, num avião tão complexo como este, podem não notar muitas outras, em particular porque a construção destes aviões inclui muitos sistemas redundantes. Todos os sistemas importantes, como os hidráulicos, têm sempre um segundo sistema de apoio, e às vezes até um terceiro. Uma falha num sistema de apoio pode não ser notada, na cabina de voo. Por isso, as equipas de manutenção sobem a bordo e vão directas ao QAR, o registo de acesso rápido, que cospe cá para fora todos os dados relativos ao último voo. Ficam a saber o que se passou e tratam imediatamente de fazer as reparações.

 

E não há um registo de acesso rápido neste avião?

 

Aparentemente, não há confirmou Casey. Não é obrigatório. Ao que parece, a transportadora não o instalou neste avião.

 

Ou então, não o conseguimos encontrar disse Ron. Pode estar escondido num buraco qualquer.

 

Estava de gatas, debruçado sobre um computador portátil ligado aos painéis eléctricos. O ecrã mostrava uma listagem de dados.

 

Parecem dados do computador de controlo do voo disse Casey, A maior parte das falhas encontra-se numa única coluna, quando o incidente ocorreu.

 

Como é que interpretam isso? inquiriu Richman.

 

Esse problema não é nosso retorquiu Ron Smith. Limitamo-nos a descarregar os dados e a levá-los para a Norton. Os rapazes da Digital metem-nos nos seus enormes computadores e transformam-nos numa imagem do voo.

 

Pelo menos, temos essa esperança comentou Casey, endireitando-se. Ainda falta muito, Ron?

 

Dez minutos, no máximo.

 

Oh, claro... protestou Doherty, do interior da cabina de voo. Dez minutos, no máximo. Agora, já não interessa. Queria adiantar-me à hora de ponta, mas já não vou conseguir. O meu filho faz anos hoje e não chegarei a casa a tempo da festa. A minha mulher vai dar-me cabo do juízo.

 

Ron Smith já estava a rir-se.

 

Não te consegues lembrar de mais nada que possa correr mal, Doug?

 

Claro que sim. Montes de coisas. Salmonelas nos bolos, por exemplo... e os miúdos todos envenenados.

 

Casey espreitou pela porta. O pessoal da manutenção descera da asa do avião. Burne terminava a sua inspecção aos motores. Trung carregava o DFDR na viatura.

 

Era tempo de ir para casa.

 

Quando começou a descer as escadas reparou em três carrinhas da segurança da Norton estacionadas a um canto do hangar. Havia cerca de vinte homens da segurança em volta do avião e espalhados pelo hangar. Richman também os viu.

 

Para que é aquilo? perguntou, fazendo um gesto na direcção dos guardas.

 

Os aviões ficam sempre sob vigilância até seguirem para a fábrica disse Casey.

 

E são precisos tantos guardas?

 

Bom, pois é... respondeu Casey. É um avião importante

 

Todavia, reparou que os guardas tinham armas à cintura. Não se recordava de alguma vez ter visto guardas armados. Um hangar do aeroporto de Los Angeles já era, por si só, um lugar de alta segurança. Não havia necessidade de tantos guardas armados. Ou haveria?

 

         EDIFÍCIO 64

         16:30

 

Casey caminhava no canto nordeste do Edifício 64, para lá das estruturas em que as asas eram fabricadas. Essas estruturas eram enormes andaimes feitos de barras de aço cruzadas, pintadas de azul, que se erguiam seis metros acima do chão. Apesar de terem as dimensões de um pequeno prédio de apartamentos, estavam alinhadas com uma precisão de um milésimo de centímetro. No alto da estrutura encontravam-se oitenta pessoas a andar de um lado para o outro, montando uma asa.

 

À sua direita viu grupos de homens que embalavam ferramentas em grandes caixotes de madeira.

 

O que é aquilo? perguntou Richman.

 

Parecem ser ferramentas de rotação explicou Casey.

 

De rotação?

 

Sim, são ferramentas sobressalentes que entram em serviço na linha no caso de haver alguma coisa que corra mal com o primeiro conjunto de ferramentas. Construímo-las como preparação para a venda à China. As asas são o que leva mais tempo a construir. Por isso, a ideia é montá-las nas nossas instalações em Atlanta, para depois serem enviadas para aqui.

 

Reparou numa figura de camisa e gravata, com as mangas enroladas para cima, que se encontrava entre os homens que trabalhavam nos caixotes. Era Don Brull, o presidente do sindicato local. O homem viu Casey, chamou-a e avançou para ela. Fez um gesto fugidio com a mão e Casey percebeu o que ele queria. Virou-se para Richman:

 

Dá-me um minuto. Encontramo-nos no meu gabinete.

 

Quem é aquele?

 

Irei ter contigo ao gabinete.

 

Richman continuou parado, enquanto Brull se aproximava.

 

Talvez queira que eu fique e...

 

Bob... disse Casey põe-te a andar.

 

Relutante, Richman afastou-se, encaminhando-se para o gabinete, sem deixar de espreitar repetidamente por cima do ombro.

 

Brull apertou-lhe a mão. O presidente do sindicato era um homem solidamente construído, um ex-pugilista com o nariz partido. Falou numa voz suave.

 

Sabes, Casey, sempre gostei de ti.

 

Obrigado, Don respondeu Casey. O sentimento é mútuo.

 

Durante aqueles anos que permaneceste na montagem nunca te perdi de vista. Livrei-te de problemas...

 

Sei disso, Don. Casey ficou à espera. Brull era bem conhecido pelos seus longos rodeios.

 

Sempre pensei: a Casey não é como os outros.

 

Que se passa, Don? perguntou.

 

Temos problemas com esta venda à China afirmou Brull.

 

Que espécie de problemas?

 

Problemas com as compensações.

 

Que têm elas de especial? inquiriu Casey, encolhendo os ombros, Sabes que estas grandes vendas são sempre acompanhadas por compensações. Nos anos mais recentes, os fabricantes de aviões haviam sido forçados a fabricar parte dos aparelhos no estrangeiro, nos países que faziam as encomendas. Um país que encomendava cinquenta aviões esperava obter uma boa fatia do bolo. Era um procedimento corrente.

 

Eu sei concordou Brull, mas antigamente vocês só enviavam partes da cauda, ou do nariz, ou até dos interiores. Apenas partes.

 

É verdade.

 

Contudo, aquelas ferramentas que estamos a encaixotar são para a asa declarou. Para além disso, o pessoal dos transportes diz-nos que as ferramentas não vão ser despachadas para Atlanta... mas sim para Xangai. A empresa está a dar a asa à China.

 

Não conheço os pormenores do acordo, mas duvido que...

 

A asa, Casey insistiu o homem. É uma tecnologia básica, Nunca ninguém dá a asa como compensação. Nem a Boeing, nem ninguém. Se deres a asa aos Chineses, estás a dar-lhes tudo. Nunca mais precisarão de nós e poderão construir a próxima geração de aviões sem qualquer ajuda. Dentro de dez anos, todos nós estaremos desempregados,

 

Don interveio Casey, vou verificar esse assunto, mas não acredito que a asa faça parte do acordo de compensação.

 

E eu digo-te que faz insistiu Brull, abrindo as mãos, num gesto de convicção.

 

Don, vou investigar... mas agora estou muito ocupada com este incidente do cinco quatro cinco e...

 

Não estás a dar-me atenção, Casey. O pessoal tem um problema com a venda à China...

 

Compreendo muito bem, mas...

 

Um grande problema. Fez uma pausa e olhou-a. Compreendes o que quero dizer?

 

Compreendia. Os operários sindicalizados que ali trabalhavam tinham um controlo total sobre a produção. Podiam retardá-la, adoecer, partir ferramentas e criar centenas de outros problemas irresolúveis.

 

Falarei com o Marder afirmou. Estou certa de que não deseja problemas na linha de montagem.

 

O problema é o Marder.

 

Casey suspirou. Era uma típica má interpretação por parte do sindicato. A venda à China fora feita por Hal Edgarton e pela equipa de marketing. Marder era apenas o chefe de operações. Dirigia a fábrica. Não tinha nada a ver com as vendas.

 

Voltarei a falar contigo amanhã, Don.

 

Seria óptimo disse Brull. Estou só a informar-te, Casey. Pessoalmente. Detestava que te acontecesse alguma coisa.

 

Don, estás a ameaçar-me?

 

Não, não declarou Brull, rapidamente, com uma expressão dorida. Não me interpretes mal... mas ouvi dizer que a venda à China pode ficar arruinada se essa história do cinco quatro cinco não for resolvida rapidamente.

 

É verdade.

 

E tu falas em nome da IRT.

 

Também é verdade.

 

Por isso, estou a informar-te repetiu Brull, encolhendo os ombros. Há sentimentos muito fortes contra essa venda. Alguns daqueles tipos já estão a ferver. Se fosse a ti, tirava uma semana de férias.

 

Não posso, estou no meio de uma investigação. Brull ficou parado, a olhá-la.

 

Don, irei falar com o Marder a respeito da asa repetiu Casey, mas tenho de fazer o meu trabalho.

 

Nesse caso disse Brull, pousando-lhe a mão no braço, tem muito cuidado contigo, querida.

 

         ADMINISTRAÇÃO

         16:40

 

Não, não disse Marder, andando de um lado para o outro ao longo do seu gabinete. Isso é uma estupidez, Casey. Nem pensar em mandar a asa para Xangai. Pensam que estamos loucos? Seria o fim da empresa.

 

Mas o Brull disse...

 

O pessoal dos transportes está a lixar os membros do sindicato da aeronáutica, mais nada. Sabes bem como os boatos se espalham por toda a fábrica. Lembras-te de quando decidiram que os compósitos os deixavam estéreis? O pessoal não quis vir trabalhar durante um mês... e não era verdade. Agora, isto também não é verdade. Aquelas ferramentas vão para Atlanta declarou, e por boas razões. Vamos fabricar a asa em Atlanta para que o senador da Georgia deixe de se intrometer cada vez que vamos ao Banco Ex-Im em busca de um grande empréstimo. O fabrico da asa originará mais empregos, que beneficiarão o mais velho senador da Georgia Compreendes?

 

Então é melhor que esclareçam o pessoal disse Casey.

 

Por Cristo! exclamou Marder. Eles sabem-no. O representante do sindicato está presente em todas as reuniões de gestão. Em geral costuma ser o próprio Brull.

 

Sim, mas não esteve presente nas negociações com a China.

 

Falarei com ele afirmou Marder.

 

Gostaria de ver o acordo de compensações pediu Casey.

 

E irás vê-lo, logo que seja final.

 

Que parte do fabrico iremos dar-lhes?

 

Secções do nariz e da empenagem esclareceu Marder, tal como no acordo com a França. Não podemos oferecer-lhes mais nada por que não têm competência suficiente para o fabrico.

 

O Brull sugeriu uma interferência com a IRT, para impedir a venda à China.

 

Uma interferência? Como? perguntou Marder, de testa franzida. Ameaçaram-te?

 

Casey encolheu os ombros.

 

Que foi que ele te disse?

 

Recomendou-me uma semana de férias.

 

Oh, por amor de Deus! protestou Marder, levantando as mãos ao céu. Isto é ridículo. Falarei com ele esta noite, para esclarecer as coisas. Não te preocupes e mantém-te concentrada no teu trabalho, está bem?

 

Está bem.

 

Obrigado pela informação. Tratarei disto por ti.

 

         NORTON DIVISÃO DE QUALIDADE

         16:53

 

Casey desceu no elevador desde o nono andar até ao seu próprio gabinete, no quarto piso. Reviu mentalmente a sua conversa com Marder e concluiu que o homem não estivera a mentir. O seu exaspero fora genuíno. Era verdade o que Marder lhe dissera: havia constantemente boatos a espalharem-se por toda a fábrica. Um par de anos antes, durante toda uma semana, os tipos do sindicato tinham-na abordado constantemente, perguntando-lhe, muito solícitos: "Como te sentes?" Tinham-se passado alguns dias até Casey concluir que correra o boato de que ela sofria de um cancro.

 

Apenas um boato. Mais um boato.

 

Caminhou ao longo do corredor, passando pelas fotografias de famosos aviões Norton do passado, como celebridades a posar junto aos aparelhos. Franklin Roosevelt ao lado do 6-22 que o levara a Yalta, Errol Flynn, rodeado de raparigas sorridentes, nos trópicos, em frente de um N-5, Henry Kissinger no N-12 que o levara à China em 1972. As fotografias eram num tom sépia para transmitirem uma sensação de idade e de estabilidade da companhia.

 

Abriu a porta dos seus serviços. Tinha vidros martelados, com as letras "Divisão de Garantia de Qualidade", e entrou numa grande sala sem divisórias. As secretárias encontravam-se naquele espaço aberto enquanto os gabinetes dos executivos se alinhavam ao longo das paredes.

 

Norma tinha o seu lugar junto à porta. Era uma mulher corpulenta, com uma idade indeterminada e um cigarro pendurado na boca. Era contra os regulamentos de fumar dentro do edifício, mas Norma fazia o que lhe apetecia. Trabalhava na companhia há muito tempo e corria o boato de que fora uma das raparigas da fotografia de Errol Flynn, e que nos anos cinquenta tivera um ardente caso de amor com Charley Norton. Quer fosse ou não fosse verdade, era um facto que sabia onde se encontravam todos os esqueletos ocultos. Dentro da companhia, era tratada com uma deferência que quase atingia as raias do medo. Até Marder se mostrava cauteloso junto dela.

 

Que temos por aí, Norma? perguntou Casey.

 

O pânico do costume respondeu a mulher. Faxes aos montes.

- Entregou o maço a Casey. O nosso representante em Hong Kong telefonou três vezes, à tua procura, mas agora já foi para casa. O de Vancouver estava ao telefone há meia hora. Talvez ainda o consigas apanhar.

 

Casey acenou. Não era de admirar que os FSRs, os representantes de serviço de voo nos principais centros, quisessem entrar em contacto. Tratava-se de empregados da Norton junto das transportadoras, e estas deveriam estar preocupadas com o último incidente.

 

Ah, é verdade prosseguiu Norma. Os nossos serviços em Washington estão numa grande agitação. Ouviram dizer que a FAA vai explorar este incidente a favor da Airbus. Como se isso fosse uma surpresa!

 

O representante em Dusseldórfia quer confirmação de que se tratou de um erro do piloto. O de Milão quer informações. O de Abu Dhabi quer passar uma semana em Milão. O de Bombaim ouviu dizer que se tratou de uma falha nos motores. Corrigi essa ideia. E a tua filha mandou dizer que não precisou da camisola.

 

Óptimo.

 

Casey levou os faxes para o seu gabinete e encontrou Richman instalado na sua secretária. O rapaz olhou-a, surpreendido, e levantou-se rápida mente da cadeira.

 

Desculpe.

 

A Norma não te arranjou um gabinete? perguntou Casey.

 

Sim, já tenho um confirmou Richman, dando a volta à secretária.

 

Estava apenas a perguntar a mim mesmo o que deveria fazer com isto

 

Exibiu um saco de plástico com os restos da câmara de vídeo que haviam encontrado no avião.

 

Eu fico com ela.

 

Que irá acontecer agora? inquiriu Richman, entregando-lhe a câmara.

 

Acho que já terminámos, por hoje disse Casey, pousando os faxes na secretária. Aparece aqui amanhã, às sete.

 

O rapaz saiu e Casey sentou-se. As coisas pareciam encontrarem-se tal como as deixara. No entanto, notou que a segunda gaveta da secretária não estava completamente fechada. Richman teria andado a bisbilhotar?

 

Casey abriu a gaveta, revelando caixas com discos de computador, papel, uma tesoura, algumas canetas de ponta de feltro numa pequena bandeja. Tudo lhe parecia em ordem. Mesmo assim...

 

Ouviu Richman sair e regressou à sala, dirigindo-se à secretária de Norma.

 

Aquele miúdo disse estava sentado à minha secretária.

 

Olha que admiração comentou Norma. O patife pediu-me que lhe fosse buscar um café.

 

Surpreende-me que o marketing não o tenha ensinado retorquiu Casey. Andou por lá durante um par de meses.

 

De facto afirmou Norma, acabei de falar com a Jean, do marketing. Disse-me que raramente o viam. Andava sempre por fora.

 

Por fora? Um novato, e da família do Norton?! O marketing nunca o mandaria para a rua. Que poderia ele fazer?

 

A Jean não sabe disse Norma, abanando a cabeça. Queres que telefone aos tipos das viagens, para descobrir?

 

Sim, já agora gostaria que o fizesses.

 

De volta ao gabinete, Casey virou-se para o saco de plástico em cima da secretária, abriu-o e retirou a cassete do interior da câmara de vídeo despedaçada. A seguir marcou o número de Jim, na esperança de poder falar com Allison, mas foi atendida pelo gravador de chamadas. Desligou sem deixar um recado.

 

Folheou os faxes. O único que lhe interessava provinha do FSR ei Hong Kong. Como sempre, o homem adiantara-se.

 

         DE: RICK RAKOSKI, FSR HK

         PARA: CASEY SINGLETON, QA/IRT NORTON BBK

A TRANSPACIFIC AIRLINES COMUNICOU HOJE QUE O VOO 545, UM N-22 COM A FUSELAGEM 271, REGISTO ESTRANGEIRO 098/443/B09, EM VOO DE HK PARA DENVER EXPERIMENTOU TURBULÊNCIA DURANTE CRUISE FL370, APROXIMADAMENTE àS 0524 UTC, POSIÇÃO 39 NORTE/170 ESTE. ALGUNS PASSAGEIROS E TRIPULANTES SOFRERAM FERIMENTOS LIGEIROS. AVIÃO ATERROU DE EMERGÊNCIA EM LAX.

EM ANEXO: PLANO DE VOO, MANIFESTO DE TRIPULAÇÃO E PASSAGEIROS. É FAVOR INFORMAR RAPIDAMENTE.

 

O fax era seguido por quatro páginas com os nomes dos passageiros e da tripulação. Casey lançou uma olhadela aos nomes dos tripulantes:

 

     JOHN ZHEN CHANG, COMANDANTE 5/7/51

     LEU ZAN PING, CO-PILOTO 3/11/59

     RICHARD YONG, CO-PILOTO 9/9/61

     GERHARD REIMANN, CO-PILOTO 7/23/49

     HENRI MARCHAND, TÉCNICO DE VOO 4/25/69

     THOMAS CHANG, TÉCNICO DE VOO 6/29/70

     ROBERT SHENG, TÉCNICO DE VOO 6/13/62

     HARRIET CHANG, ASSISTENTE 5/12/77

     LINDA CHING, ASSISTENTE 5/18/76

     NANCY MORLEY, ASSISTENTE 6/4/72

     JOHN WHITE, SUPERVISOR DE CABINA 1/30/70

  1. V CHANG, COMISSÁRIO 4/1/77

     SHA YAN HÃO, ASSISTENTE 3/13/73

     YEE JIAO, ASSISTENTE 11/18/76

     HARRIET KING, ASSISTENTE 10/10/75

     B, CHOI, COMISSÁRIO 11/18/76

     YEE CHANG, COMISSÁRIO 1/8/74

 

Era uma tripulação internacional, do tipo usado frequentemente pelas companhias de voos charter. As tripulações originárias de Hong-Kong provinham muitas vezes da Royal Air Force e eram extremamente bem treinadas.

 

Contou os nomes: dezoito, no total, incluindo sete para a cabina de voo. Uma tripulação tão grande não era estritamente necessária. O N-22 fora desenhado para ser pilotado por uma equipa de apenas dois homens, um comandante e um co-piloto. Porém, todas as transportadoras asiáticas passavam por uma rápida expansão e tinham em geral grandes tripulações para que o pessoal tivesse mais horas de treino.

 

Casey continuou. O fax seguinte era do FSR de Vancouver.

 

DE: S. NIETO, FSR VANC PARA: C. SINGLETON, QA/IRT

TRIPULAÇÃO DO TPA 545 TRANSFERIDA PARA TPA 832 DE Lffl PARA VANCOUVER. CO-PILOTO LU ZAN PING EVACUADO PEla EMERGÊNCIA MÉDICA DE VANCOUVER DEVIDO A LESÕES Na CABEÇA ANTERIORMENTE NÃO IDENTIFICADAS. ESTÁ EM COMA NO HOSPITAL GERAL DE VANCOUVER. SEGUIRÃO PORMENORES. RESTANTE TRIPULAÇÃO TPA 545 EM TRÂNSITO SEGUE HOJE PARA HONG KONG.

 

Afinal, o co-piloto também tivera lesões graves. Devia encontrar-se na cauda quando o incidente tivera lugar. Era o homem cujo boné de piloto tinham encontrado.

 

Casey ditou um fax para o FSR de Vancouver, pedindo-lhe para entrevistar o primeiro oficial logo que possível. Ditou outro para o FSR a Hong-Kong, sugerindo uma entrevista com o comandante Chang logo que este regressasse.

 

Norma chamou-a pelo intercomunicador.

 

Não tive sorte com o rapaz disse.

 

Então porquê?

 

Falei com a Maria, das Viagens. As deslocações do Richman não eram tratadas por eles. Eram pagas por uma conta especial da companhia reservada para despesas fora do orçamento. No entanto, a Maria ouviu di zer que ele se fartou de gastar dinheiro.

 

Sabes quanto? perguntou Casey.

 

Ela não sabia disse Norma, com um suspiro. Contudo, amanhã irei almoçar com a Evelyn, da Contabilidade. Vai contar-me tudo

 

Está bem. Obrigado, Norma.

 

Casey voltou a prestar atenção aos faxes. Os restantes diziam respeito a outros assuntos:

 

Steve Young, do Gabinete de Certificação da FAA, queria informações sobre os testes aos retardadores de fogo nos estofos dos assentos, realizados no anterior mês de Dezembro.

 

A Mitsubishi queria informações sobre avarias nos ecrãs de cinco polegadas da primeira classe nos N-

 

Uma lista de modificações a fazer no Manual de Manutenção (MP. 06 -62-02) dos N-20.

 

Uma revisão do protótipo das unidades de Virtual Heads-Up Displays que seria entregue nos próximos dois dias.

 

Um memorando da Honeywell aconselhando a substituição de todos os componentes D2 das unidades FDAU que tivessem a numeração d a-505/9 a a-609/98.

 

Casey suspirou e atirou-se ao trabalho.

 

         GLENDALE

         19:40

 

Quando chegou a casa, estava verdadeiramente cansada. A casa parecia-lhe vazia sem a viva tagarelice de Allison. Demasiado fatigada para cozinhar, Casey foi à cozinha e comeu um iogurte. A porta do frigorífico estava coberta pelos coloridos desenhos da filha. Casey encarou a possibilidade de lhe telefonar, mas estava na hora de a filha ir para a cama e não queria interromper Jim, não fosse o caso de este já estar a deitá-la.

 

Também não queria que Jim pensasse que o tentava controlar. Essa era uma questão que provocava muitos atritos entre eles. Jim tinha a mania de que todos os telefonemas eram para saber o que estava ele a fazer.

 

Casey dirigiu-se à casa de banho e pôs o chuveiro a correr. Ouviu o telefone a tocar e voltou à cozinha para o atender. Provavelmente, era Jim. Levantou o auscultador.

 

Olá, Jim... disse.

 

Não sejas estúpida, cadela disse uma voz. Se queres sarilhos, vais arranjá-los. Estamos a vigiar-te, neste preciso momento.

 

Clique.

 

Ficou parada na cozinha, com o auscultador na mão. Casey sempre se considerara uma pessoa calma, mas tinha o coração a martelar. Obrigou-se a respirar fundo enquanto pousava o auscultador. Sabia que aquelas chamadas aconteciam de vez em quando. Já ouvira falar de outros vice-presidentes que recebiam chamadas ameaçadoras à noite. Contudo, aquilo nunca lhe acontecera e surpreendia-se com o medo que sentia. Respirou fundo mais uma vez e tentou esquecer o assunto. Pegou no iogurte, ficou a olhá-lo e acabou por o pousar. De súbito, ganhara consciência de que se encontrava numa casa, com todas as persianas abertas.

 

Deu a volta à sala, fechando as persianas. Quando chegou à janela da frente, olhou para a rua. A luz dos candeeiros da rua permitiu-lhe ver um carro azul parado a poucos metros da sua casa.

 

Estavam dois homens lá dentro.

 

Podia ver-lhes os rostos claramente, através do pára-brisas. Os homens fitaram-na enquanto Casey permaneceu à janela.

 

Merda!

 

Encaminhou-se para a porta da frente, trancou-a e colocou a corrente de segurança. Ligou o alarme contra ladrões, com os dedos a tremer, desajeitados, enquanto carregava nas teclas para marcar o código. A seguir apagou as luzes da sala, comprimiu o corpo contra a parede e espreitou pela janela.

 

Os homens continuavam no carro, conversando. Enquanto os observava, um deles apontou para a casa.

 

Voltou à cozinha, remexeu na mala, encontrou o spray atordoante e soltou-lhe a patilha de segurança. Com a outra mão, pegou no telefone e levou-o até à sala. Sempre a vigiar os homens, ligou para a Polícia.

 

Polícia de Glendale.

 

Casey indicou o seu nome e endereço.

 

Estão dois homens num carro estacionado em frente à minha casa. Já lá estavam esta manhã e acabei de receber um telefonema ameaçador.

 

Muito bem, minha senhora. Está alguém consigo, em casa?

 

Não. Estou sozinha.

 

Muito bem. Feche a porta e ligue o alarme, se o tiver. Já vai um carro a caminho.

 

Despachem-se pediu Casey.

 

Lá fora, os homens saíam do carro... e avançavam para a casa.

 

Estavam vestidos casualmente, com camisas do tipo pólo e calças, mas tinham expressões sombrias e duras. Quando se aproximaram mais, separaram-se. Um dirigiu-se para o relvado e o outro encaminhou-se para as traseiras da casa. Casey sentiu o coração a saltar-lhe no peito. Teria fechado a porta das traseiras? Sem largar o spray atordoante, voltou à cozinha e apagou a luz. Passou pelo quarto e foi direita à porta das traseiras. Esprei tando pelo vidro da porta, viu o homem parado nas traseiras. Olhava em volta, cauteloso. A seguir virou-se para a porta. Casey agachou-se e colocou a corrente de segurança.

 

Ouviu o som de passadas suaves a aproximarem-se da casa. Olhou para a parede, logo por cima da sua cabeça. Tinha ali o teclado do alarme e um grande botão vermelho com as letras EMERGÊNCIA. Se lhe batesse, o alarme começaria a berrar. O homem fugiria? Não tinha a certeza. Onde estava a maldita polícia? Há quanto tempo lhes telefonara?

 

Apercebeu-se de que já não ouvia as passadas. Com cuidado, levantou a cabeça até poder espreitar pelo canto inferior do vidro. O homem avançava para o outro lado das traseiras, afastando-se, até desaparecer na es quina. Voltava para a rua.

 

Mantendo-se dobrada, Casey correu mais uma vez para a frente da casa, para a casa de jantar. O primeiro homem já não se encontrava no relvado. Entrou em pânico. Onde se metera ele? O segundo homem apareceu no relvado, olhou para a fachada da casa e regressou ao automóvel. Só então Casey viu que o primeiro homem já lá se encontrava, sentado no banco do passageiro. O segundo abriu a porta do carro e instalou-se ao volante. Instantes depois, um carro-patrulha da Polícia, pintado a preto e branco, parou por trás do automóvel azul: os dois homens pareceram surpreendidos mas não se mexeram. O carro da Polícia ligou um projector e um dos polícias saiu, avançando cautelosamente. Falou com os dois homens durante alguns momentos. Depois, os dois homens saíram do carro e o grupo, incluindo o polícia, avançou para a porta da casa.

 

Casey ouviu a campainha da porta e foi abrir. O jovem polícia perguntou:

 

Minha senhora, chama-se Singleton?

 

Sim.

 

Trabalha para a Norton Aircraft?

 

Trabalho, sim...

 

Estes cavalheiros são da segurança da Norton. Dizem que estão a guardá-la.

 

O quê! exclamou Casey, surpreendida.

 

Quer ver as credenciais?

 

Sim, se fazem favor.

 

O polícia acendeu uma lanterna enquanto os dois homens mostravam as carteiras. Casey reconheceu as credenciais dos Serviços de Segurança da Norton.

 

Lamentamos muito, minha senhora disse um dos homens. Pensávamos que sabia da nossa presença. Ordenaram-nos que passássemos pela sua casa pelo menos de hora a hora. Está tudo bem?

 

Sim respondeu, está tudo bem.

 

Precisa de mais alguma coisa, minha senhora? inquiriu o polícia. Casey sentia-se embaraçada. Murmurou agradecimentos e voltou para dentro de casa.

 

Certifique-se de que fecha bem a porta disse-lhe o polícia, num tom bem-educado.

 

Sim, também os tenho em frente da minha casa disse Kenny Burne. A Mary apanhou um susto quando os viu. Que diabo se passa? A negociação dos contratos de trabalho é só daqui a dois anos...

 

Vou telefonar ao Marder declarou Casey.

 

Estamos todos sob protecção afirmou Marder, pelo telefone. Se o sindicato ameaça alguém da nossa equipa, destacamos os guardas. Não te preocupes com isso.

 

Falaste com o Brull? perguntou Casey.

 

Sim, falei, mas vai ser preciso esperar algum tempo até que os esclarecimentos cheguem aos ouvidos de toda a gente. Até isso acontecer, toda a gente tem guardas.

 

Bom, está bem...

 

É apenas uma precaução acrescentou Marder. Nada mais.

 

Está bem.

 

Vai dormir disse Marder, desligando.

 

         TERÇA-FEIRA

         GLENDALE

 

Acordou inquieta, ainda antes do toque do despertador. Enfiou um roupão, foi à cozinha ligar a máquina do café e espreitou pela janela da frente. O carro azul continuava parado na rua, com os homens lá dentro. Pensou em fazer a sua habitual corrida de oito quilómetros. Precisava daquele exercício para começar o dia, mas concluiu que era melhor desistir. Sabia que não deveria sentir-se intimidada... mas não valia a pena correr riscos.

 

Serviu-se de uma chávena de café e sentou-se na sala. Naquele dia, tudo lhe parecia diferente. Ontem, o seu bangaló parecera-lhe confortável. Hoje, era pequeno, sem defesa e isolado. Ainda bem que Allison fora passar aquela semana com Jim.

 

No passado, Casey já sobrevivera a outros períodos de tensão laboral. Sabia que, em geral, as ameaças eram vãs. Contudo, as cautelas eram sensatas. Uma das primeiras lições que Casey aprendera na Norton fora a de que as salas de montagem eram um mundo duro, ainda mais duro do que o das linhas de montagem da Ford. A Norton era um dos poucos sítios onde um indivíduo acabado de sair do liceu e sem qualificações profissionais conseguia ganhar oitenta mil dólares por ano, com as horas extraordinárias Os empregos daquele tipo eram escassos e tornavam-se cada vez mais raros. A competição para os conseguir e para os conservar era feroz. Se os membros do sindicato pensavam que o negócio com a China iria custar postos de trabalho, poderiam muito bem agir com violência para o impedir.

 

Deixou-se ficar sentada, com o café no colo, e compreendeu que estava com receio de ir para a fábrica. Contudo, tinha de ir, é claro. Casey pousou a chávena e dirigiu-se ao quarto, para se vestir.

 

Quando saiu e se meteu no Mustang, viu um segundo carro a parar por trás do primeiro. Guiou ao longo da rua e o primeiro carro arrancou, seguindo-a.

 

Portanto, Marder mandara-lhe dois grupos de guardas. Um para vigiar a casa e outro para a seguir.

 

As coisas deviam estar piores do que pensara.

 

Penetrou nos terrenos da fábrica com um invulgar sentimento de inquietação. O primeiro turno já se iniciara. Os parques de estacionamento estavam cheios com quilómetros e quilómetros de automóveis. O carro azul manteve-se atrás dela quando Casey parou junto dos guardas do Portão 7. O guarda fez um gesto, dizendo-lhe para avançar e permitiu que o carro azul, talvez graças a um qualquer sinal invisível, a seguisse sem ter de parar na barreira. O carro azul seguiu-a até Casey estacionar o Mustang no espaço que lhe estava reservado junto ao edifício da administração.

 

Saiu do carro. Um dos homens espreitou pela janela e disse:

 

Tenha um bom dia, minha senhora.

 

Obrigada, farei por isso respondeu.

 

O guarda acenou e o carro azul afastou-se. Casey olhou em volta, para os enormes edifícios cinzentos. O Edifício 64 ficava para sul. O 57 para leste, onde construíam os twinjets. O Edifício 121 era o da pintura da aviões. Os hangares de manutenção formavam uma fila, para oeste, agora iluminados pelo Sol que se erguia sobre as montanhas San Fernando. Era uma paisagem familiar. Passara ali cinco anos. Todavia, hoje, estava incomodamente consciente das suas vastas dimensões e do vazio que a rodeava àquela hora da manhã. Viu duas secretárias a caminhar para o edifício da administração. Mais ninguém. Sentiu-se só.

 

Encolheu os ombros, sacudindo os receios. Estava a ser tola, disse para si mesma. Tinha de ir trabalhar.

 

         NORTON AIRCRAFT

         6:34

 

Rob Wong, o jovem programador dos Sistemas de Informação Digital da Norton, desviou os olhos dos monitores de vídeo.

 

Lamento muito, Casey disse ele. Temos o registo dos dados de voo... mas há um problema.

 

- Não me digas... comentou Casey, suspirando.

 

É verdade, há um problema.

 

Não ficava surpreendida com a novidade. Os registos de dados de voo raramente funcionavam bem. Nos meios de comunicação, esses falhanços eram explicados como sendo devidos ao impacte aquando dos acidentes. Se um avião embatia no solo a novecentos quilómetros por hora, parecia razoável que um gravador pudesse não ficar em condições de funcionar.

 

Porém, no interior da indústria da aeronáutica, os pontos de vista eram diferentes. Toda a gente sabia que os gravadores de dados de voo falhavam constantemente, mesmo quando o avião não caía. O motivo estava no facto de a FAA não exigir que o dispositivo fosse verificado antes de cada voo. Na prática, a sua funcionalidade só era confirmada cerca de uma vez por ano. As consequências eram previsíveis: as chamadas caixas negras raramente funcionavam.

 

Todos se encontravam a par do problema: a FAA, a NTSB, as companhias aéreas e os fabricantes. Alguns anos antes, a Norton efectuara um estudo, que incluíra uma investigação, por amostragem, aos DFDRs em serviço. Casey pertencera à comissão que fizera esse estudo, e tinham concluído que apenas um em cada seis aparelhos funcionava correctamente.

 

A razão por que a FAA tornara obrigatória a instalação dos FDRs sem exigir que estivessem funcionais antes de cada voo era motivo para discussões nocturnas até às tantas da madrugada, em todos os bares ligados ao pessoal da aeronáutica, deste Seattle a Long Beach. A opinião mais cínica era a de que o mau funcionamento dos FDRs era conveniente para toda a gente. Numa nação repleta de advogados raivosos e com uma imprensa sensacionalista, a indústria não via grandes vantagens em dispor de um registo objectivo e de confiança de tudo o que acontecera de errado num avião.

 

Fazemos o melhor que podemos, Casey disse Rob Wong, mas o registo de voo tem anomalias.

 

Que quer isso dizer?

 

Aparentemente, o circuito número três rebentou cerca de vinte horas antes do incidente, pelo que se perderam os frames de sincronização nos dados subsequentes.

 

Os frames de sincronização?

 

Sim. Sabes, os FDRs registam todos os parâmetros em rotação, em blocos de dados denominados frames. Tens uma leitura para, digamos... a velocidade do ar, e depois tens outra semelhante quatro blocos mais tarde. Todavia, as leituras de velocidade do ar deviam ser contínuas em todos os frames. Se assim não acontece, isso quer dizer que os frames não estão sincronizados e não podemos reconstituir o voo. Vou mostrar-te...

 

Virou-se para o monitor e carregou nalgumas teclas.

 

Normalmente continuou, podemos extrair os dados e gerar uma imagem do avião num sistema com três eixos. Pronto, aqui está ele preparado para partir...

 

No ecrã surgiu a imagem estrutural de um N-22 da Norton. Enquanto Casey a observava, os espaços encheram-se, até a imagem tomar a aparência de um verdadeiro avião em voo.

 

Muito bem disse Rob, agora vamos fornecer-lhe os dados do teu registo...

 

O avião pareceu ondular. Desapareceu do ecrã, para voltar a aparecer. Desapareceu novamente e quando reapareceu tinha a asa esquerda separada da fuselagem. A asa inclinou-se noventa graus enquanto o avião rolava para a direita. A seguir, a cauda desapareceu. Todo o aparelho se apagou voltou a surgir e a apagar-se...

 

Vês, o computador tenta desenhar o avião explicou, mas encontra descontínuidades: os dados correspondentes às asas não coincidem com os da fuselagem, e estes não coincidem com os da cauda. Por isso, a imagem quebra-se.

 

Que fazemos agora? perguntou Casey.

 

Temos de sincronizar os frames, mas isso vai levar tempo.

 

Quanto tempo? O Marder não me larga...

 

Pode ser demorado, Casey. Os dados estão em mau estado. Então í o QAR?

 

Não existia.

 

Bom, se estás realmente apertada, posso levar estes dados aos tipos das simulações de voo, que dispõem de alguns programas muito sofisticados. Talvez consiga preencher os vazios mais depressa, para saberes o que se passou.

 

Rob...

 

Com este tipo de dados... não posso fazer promessas, Casey. La mento muito.

 

         EDIFÍCIO 64

         6:50

 

Casey encontrou Richman no exterior do Edifício 64. Caminharam juntos para a entrada, sob a luz do princípio da manhã. Richman bocejou.

 

Estiveste nas vendas, não foi?

 

É verdade confirmou Richman. Nunca tínhamos de nos levantar tão cedo.

 

Qual era o teu trabalho?

 

Pouca coisa respondeu. O Edgarton pôs todo o departamento a trabalhar na venda à China. Era tudo muito secreto, não admitiam estranhos. Entretiveram-me com alguns trabalhinhos legais referentes às negociações ibéricas.

 

Viajaste?

 

Apenas viagens pessoais retorquiu, com um sorriso afectado.

 

Como assim? inquiriu Casey.

 

Bom, como a secção de vendas não tinha nada para me dar, fui esquiar.

 

Parece interessante. Onde foste?

 

Também faz esqui? inquiriu Richman. Pessoalmente, penso que o melhor lugar para esquiar, para além de Gstaad, é Sun Valley. É o meu sítio favorito... quando tenho de esquiar nos Estados Unidos.

 

Casey compreendeu que o jovem não respondera à pergunta. Por essa altura já haviam passado pela porta lateral do Edifício 64. Casey notou que os trabalhadores se mostravam abertamente hostis e que a atmosfera era fria.

 

Que se passa? perguntou Richman. Estão com algum ataque de raiva?

 

O sindicato pensa que estamos a trocá-los pela China.

 

A trocá-los? Como?

 

Acham que a direcção vai entregar o fabrico das asas a Xangai. Perguntei ao Marder e ele disse-me que não.

 

Soou um apito, que ecoou por todo o edifício. Mesmo por cima deles, a gigantesca grua amarela ganhou vida, e Casey viu o primeiro grande caixote contendo as ferramentas para a asa a erguer-se metro e meio, suspenso por grossos cabos. O caixote era feito de contraplacado reforçado, tão grande como uma casa, e muito provavelmente pesava à volta de cinco toneladas. Uma dúzia de operários caminhava ao lado do caixote, como se transportassem um caixão, estabilizando a carga enquanto este avançava para uma das portas laterais, em direcção ao camião que a aguardava.

 

Se o Marder diz que não continuou Richman, então qual é o problema?

 

O pessoal não acredita.

 

Ah, sim? Porquê?

 

Casey lançou uma olhadela para a esquerda, onde outras ferramentas eram embaladas para transporte. As enormes peças azuis começavam por ser envoltas em espuma, eram amarradas internamente e só depois encaixotadas. Casey sabia que todas aquelas protecções eram essenciais, isto porque as ferramentas eram calibradas ao milésimo de centímetro, no obstante terem seis metros de comprimento. Transportá-las era, só por si uma verdadeira arte. Voltou a olhar para o caixote em movimento na grua.

 

Os homens que se encontravam por baixo dele tinham desaparecido. O caixote ainda se movia lateralmente, a dez metros do local onde se encontravam.

 

Oh, oh! fez Casey.

 

O que é? perguntou Richman. Casey já estava a empurrá-lo.

 

Foge! gritou-lhe, atirando Richman para a direita, para o abrigo de um andaime que sustentava uma fuselagem parcialmente montada.

 

Richman resistiu. Parecia não compreender que...

 

Corre! gritou Casey. Vai cair!

 

Richman correu. Por trás dela, Casey ouviu os estalos de contraplacado a ceder e uma vibração metálica quando o primeiro cabo se partiu e o gigantesco caixote começou a soltar-se dos outros cabos. Tinham acabado de chegar ao andaime da fuselagem quando novo cabo rebentou e o caixote se esmagou no chão de cimento. As lascas de contraplacado explodiram em todas as direcções, zumbindo no ar. Seguiu-se tremendo estrondo quando o caixote tombou sobre um dos lados. O som ficou a ecoar no edífício.

 

Jesus Cristo! exclamou Richman, virando-se para Casey. O que foi aquilo?

 

Aquilo... foi o que designamos por um acto de sabotagem. Viam-se homens a correr, embora não passassem de formas enevoadas

 

no meio da poeira que se levantara. Ouviam-se gritos e pedidos de ajuda. O alarme médico soou, retinindo pelo edifício. Do outro lado do mesmo, Casey avistou Doug Doherty, abanando a cabeça com tristeza.

 

Richman olhou por cima do ombro e puxou uma lasca de contraplacado com vinte centímetros que se lhe espetara nas costas do casaco.

 

Céus... murmurou. Despiu o casaco e inspeccionou o rasgão, metendo um dedo pelo buraco.

 

Foi um aviso afirmou Casey. Para além disso, deram cabo da ferramenta, que agora terá de ser desembalada e reconstruída. Serão semanas de atraso.

 

Os supervisores, com as suas camisas brancas e gravatas, corriam para os homens amontoados em volta do caixote caído.

 

Que vai acontecer agora? perguntou Richman.

 

Vão tomar nota de nomes e berrar... mas não servirá de nada Amanhã, haverá um novo incidente. Não temos maneira de o evitar.

 

Foi apenas um aviso? Richman voltou a vestir o casaco.

 

Sim, à IRT explicou Casey. Tratou-se de um sinal muito claro, Tenham cuidado com as vossas costas e cabeças. Vão cair ferramentas e verificar-se-á todo o tipo de acidentes sempre que nos virem aqui. Precisamos de ter cuidado.

 

Dois operários separaram-se do grupo em volta do caixote e começaram a avançar para Casey. Um dos homens era encorpado, usava calças de ganga e uma camisa vermelha aos quadrados. O outro era mais alto e usava um boné de basquetebol. O homem da camisa de trabalho empunhava uma barra de aço que fazia oscilar de um lado para o outro.

 

Ah, Casey...? murmurou Richman.

 

Estou a vê-los respondeu. Não iria deixar-se intimidar por um par de rufiões.

 

Os homens continuaram a avançar para ela. De súbito, apareceu na frente deles um supervisor com uma prancheta com um bloco de notas, que exigiu que mostrassem as identificações. Os homens pararam, olhando para Casey por cima da cabeça do supervisor enquanto falavam com ele.

 

Não nos darão mais problemas disse Casey. Daqui a uma hora, já cá não estarão. Regressou ao andaime e pegou na pasta. Vamos, estamos atrasados.

 

         EDIFÍCIO 64 IRT

         7:00

 

As cadeiras arrastaram-se pelo chão quando toda a gente se aproximou da mesa de formica.

 

Muito bem declarou Marder, vamos começar. O sindicato deu início a um certo número de acções destinadas a atrasar esta investigação. Não se preocupem com isso. Mantenham-se focados no problema. Primeira questão: os dados meteorológicos.

 

A secretária entregou folhas de papel a todos os que estavam presentes na sala. Era um relatório do Centro de Controlo de Tráfego Aéreo de Los Angeles, num impresso encabeçado pelas palavras "Administração Federal da Aviação/RELATÓRio SOBRE ACIDENTE COM AVIÃO".

 

Casey leu:

 

     DADOS METEOROLÓGICOS

     CONDIÇÕES NA ÁREA DO ACIDENTE

     NO MOMENTO DO ACIDENTE

 

O voo JAL054, um B747IR seguia 15 minutos à frente do TPA545 e na mesma rota, 300 metros acima. O JAL054 não apresentou qualquer relatório sobre turbulências.

 

     RELATÓRIO MOMENTOS ANTES DO ACIDENTE

 

O voo UAL829, um B747IR comunicou turbulência moderada na posição FIR 40.00 Norte/165 Este em FL350, 120 milhas a norte e 14 minutos à frente do TPA545. O UAL829 não assinalou nenhuma outra turbulência.

 

     PRIMEIRO RELATÓRIO SUBSEQUENTE AO ACIDENTE

 

O voo AAL722 assinalou turbulências ligeiras e contínuas a 39 Norte/170 Leste em FL350. O AAL722 encontrava-se na mesma rota,

600 metros mais abaixo e 29 minutos atrás do TPA545. O AAL722 não assinalou nenhuma outra turbulência.

 

Ainda estamos à espera dos dados dos satélites, mas creio que as provas falam por si. Os três aparelhos que se encontravam mais perto do da Transpacific em relação ao momento e ao local comunicaram apenas turbulências muito ligeiras. Portanto, excluo a turbulência como causa para este acidente.

 

Viram-se acenos em volta da mesa. Ninguém discordava.

 

Há mais alguma coisa a acrescentar? perguntou Marder.

 

Sim afirmou Casey. Todos os entrevistados, entre passageiros e tripulantes, concordam que o aviso para apertar os cintos nunca esteve ligado.

 

Muito bem. Então, as condições climatéricas estão eliminadas O que aconteceu ao avião não se deveu a turbulência. Registo de voo'

 

Os dados fornecidos são anómalos declarou Casey. Já estão a ser trabalhados.

 

Inspecção visual ao avião?

 

O interior ficou seriamente danificado disse Doherty, mas o exterior está em perfeitas condições.

 

Bordo de ataque?

 

Nenhum problema visível. O avião irá chegar aqui ainda hoje e investigarei as calhas e os trincos. Até agora... nada.

 

Testaram as superfícies de controlo?

 

Nenhum problema.

 

Instrumentação?

 

Impecável.

 

Quantos testes fizeram?

 

Depois de a Casey nos comunicar a história contada por uma passageira, fizemos dez testes consecutivos, tentando encontrar uma discordância. Estava tudo normal.

 

Qual história? A Casey? Conseguiste alguma coisa com as entrevistas?

 

Sim, uma passageira comunicou ter ouvido um ligeiro rumor vindo da asa, que terá durado entre dez a doze segundos...

 

Merda! exclamou Marder.

 

... logo seguido por uma subida abrupta, e por uma descida...

 

Maldição!

 

...e por violentos movimentos para cima e para baixo...

 

Estás a dizer-me que são outra vez os slats? perguntou Marder, fitando-a. Continuamos a ter um problema de slats neste avião?

 

Não sei respondeu Casey. Uma das hospedeiras de voo afirmou que o comandante lhe dissera que tinham sofrido saída extemporânea de slats, e que também tivera problemas com o piloto automático...

 

Jesus Cristo! Problemas com o piloto automático?!

 

Que se lixe o comandante exclamou Burne. Esse tipo muda de história de cinco em cinco minutos. Diz ao Controlo de Tráfego que se tratou de turbulência, diz à hospedeira que foram os slats. Neste momento... aposto que está a contar uma história inteiramente diferente à transportadora. Só temos uma certeza: não sabemos o que se passou naquela cabina.

 

Trata-se obviamente de um problema de slats afirmou Marder.

 

Não é assim tão óbvio interveio Burne. A passageira com quem a Casey falou afirmou que o som tinha vindo da asa ou dos motores, não é verdade?

 

Certo disse Casey.

 

Porém, quando olhou para a asa, não viu os slats saídos. Se isso tivesse acontecido, devia tê-los visto.

 

Também é verdade confirmou Casey.

 

Por outro lado, não podia ver os motores, por estarem escondidos pela asa. É possível que os inversores tivessem funcionado continuou Burne. À velocidade de cruzeiro, teriam provocado um rumor muito definido, seguido por uma súbita diminuição da velocidade do ar e talvez por oscilações. O piloto assustou-se, tentou compensar, fê-lo demasiado... e pronto!

 

Há alguma confirmação de que isso tenha acontecido? perguntou Marder. Mangas danificadas? Abrasões invulgares?

 

Foi uma das coisas que examinámos, ontem... disse Burne, mas não vimos nada. Faremos análises por ultra-sons e por raios X. Se houver alguma coisa, acabaremos por a descobrir.

 

Muito bem prosseguiu Marder. Portanto, estamos a lidar con os slats e inversores e precisamos de mais dados. E quanto aos NVMs, Ron? As falhas sugerem alguma coisa?

 

Viraram-se para Ron Smith. Vendo-se sob todos aqueles olhares, Róm encolheu-se, como se quisesse fazer desaparecer a cabeça entre os ombros. Pigarreou para limpar a garganta.

 

Então? insistiu Marder.

 

Bom... pois é, John... Temos uma indicação de slats nos dados retirados do FDAU.

 

Portanto, sempre é verdade que os slats saíram.

 

Bom, na realidade...

 

O avião começou aos saltos, sacudiu os passageiros e matou três É isso o que estás a dizer-me?

 

Ninguém se manifestou.

 

Jesus! exclamou Marder. Que se passa convosco, pessoal? Esse problema deveria estar resolvido há anos! Dizem-me que não está?

 

O grupo ficou em silêncio e olhou para o tampo da mesa, embaraçado e intimidado com a fúria do homem.

 

Maldição! explodiu Marder.

 

John, é melhor não nos deixarmos levar pela excitação disse Trung, o chefe da aviónica, falando num tom tranquilo. Estamos a es quecer um factor muito importante: o piloto automático.

 

Verificou-se um prolongado silêncio. Marder fitou-o, furioso.

 

Que há quanto a isso? inquiriu, ríspido.

 

Mesmo que os slats saíssem em pleno voo disse Trung, o piloto automático manteria uma estabilidade perfeita. Está programado para compensar erros desse tipo. Os slats saem, o piloto automático faz a compensação, o comandante vê o sinal de aviso e recolhe-os. Entretanto, o avião prossegue o seu voo sem problemas.

 

Talvez ficasse sem piloto automático.

 

Pode ser, mas... porquê?

 

Talvez o teu piloto automático não esteja em condições retorquiu Marder. Pode existir um erro no programa.

 

Trung exibiu uma expressão de cepticismo.

 

Já tem acontecido insistiu Marder. Houve um problema como! piloto automático num voo da US Air em Charlotte, no ano passado. O avião começou a rolar sem controlo.

 

É verdade confirmou Trung, mas isso não foi por causa de um erro no programa. Os tipos de manutenção retiraram o computador para o repararem. Quando voltaram a colocá-lo no seu lugar, não o empurraram o suficiente para que os pinos de ligação ficassem bem encaixados. As ligações eléctricas tornaram-se intermitentes, mais nada...

 

Porém, a hospedeira do voo cinco quatro cinco afirmou que o comandante teve de lutar com o piloto automático para conseguir controlar o avião.

 

Tal como seria de esperar... afirmou Trung. Logo que o avião' exceda os parâmetros de voo previstos, o piloto automático tenta tomar o comando de um modo activo. Observa um comportamento errático e parte do princípio de que não há ninguém nos comandos.

 

Há indicações nesse sentido, no registo de falhas?

 

Sim. Indicam que o piloto automático tentou intervir de três em três segundos. Pressuponho que o piloto procurou sobrepor-se, insistindo em dominar ele mesmo o avião.

 

Mas... tratava-se de um comandante com grande experiência...

 

É por isso que penso que o Kenny tem razão retorquiu Trung. Não fazemos ideia sobre o que se passou naquela cabina.

 

Viraram-se todos para Mike Lee, o representante da transportadora.

 

Então, Mike? perguntou Marder. Conseguimos uma entrevista com o comandante, ou não?

 

Sabem... suspirou Lee, filosófico. Já passei muito tempo em reuniões deste género... e a tendência é sempre a de atirar as culpas para o homem que não está presente. Faz parte da natureza humana. Já vos expliquei por que motivo a tripulação abandonou o país. Os vossos próprios registos confirmam que se trata de um piloto de grande nível. É possível que tenha cometido um erro... mas dada a história de problemas com este avião... de problemas com os slats, eu começaria por examinar o aparelho. Examinava-o muito a sério...

 

É o que faremos disse Marder. Claro que sim, mas...

 

Não haverá vantagens para ninguém... prosseguiu Lee em começarmos a assacar responsabilidades. Vocês estão preocupados com o vosso acordo com Pequim. No entanto, devo recordar-lhes que a TransPacific também é um bom cliente da vossa companhia. Já comprámos dez aviões e seguir-se-ão mais doze. Estamos a expandir as nossas rotas e a negociar um acordo com uma transportadora doméstica. Neste momento, não estamos interessados em maus comentários por parte da imprensa, comentários que também não seriam bons nem para os aviões que vos compramos, nem para os nossos pilotos. Espero ter sido claro.

 

Claro como um sino afirmou Marder. Eu próprio não o teria dito melhor. Rapazes, já têm as vossas ordens de marcha. Ao trabalho. Quero respostas.

 

         EDIFÍCIO 202

         7:59

 

O voo cinco quatro cinco? respondeu Felix Wallerstein. É muito estranho. É na verdade muito estranho. Wallerstein era um homem de Munique, elegante e de cabelos prateados. Dirigia os simuladores de voo e o programa de treino de pilotos da Norton com uma eficiência alemã.

 

Porque dizes que é estranho? perguntou Casey.

 

Porque sim! retorquiu, encolhendo os ombros. Como podia aquilo ter acontecido? Não me parece possível.

 

Caminhava através da grande sala principal do Edifício 202. Os dois simuladores de voo, um para cada modelo de avião em serviço, erguiam-se por cima deles. Pareciam-se com narizes de aviões, truncados, sustentados por uma confusão de sistemas hidráulicos.

 

Conseguiste extrair dados do registo de voo? O Rob disse-me que vocês talvez os conseguissem ler.

 

Tentei... mas sem êxito. Hesito em dizer que são inúteis, mas... E quanto ao QAR?

 

Não havia QAR, Felix.

 

Ah! fez Wallerstein, com um suspiro. Aproximavam-se dos painéis de comando, formados por toda uma série de monitores de vídeo e de teclados, instalados num dos lados do edifício. Era ali que os instrutores se sentavam enquanto os pilotos eram treinados nos simuladores. Naquele momento, estavam ambos a ser utilizados.

 

Felix disse Casey, estamos preocupados com a possibilidade de os slats terem saído durante o voo... ou talvez se verificasse uma selecção dos inversores.

 

Sim? retorquiu Felix. Então porquê?

 

Já tivemos outros problemas com os slats...

 

Pois sim, Casey, mas foram resolvidos há muito tempo. Para além disso, os slats não explicam um acidente tão grave. Um acidente em que morrem pessoas? Nunca! Não foram os slats, Casey.

 

Tens a certeza?

 

Absoluta. Olha, vou mostrar-te. Virou-se para um dos instrutores instalados no painel de comandos. Quem está a voar no N-Vintet Dois?

 

O Ingram, um comandante da Northwest.

 

É bom?

 

Médio. Tem cerca de trinta horas.

 

Casey olhou para o monitor do circuito fechado de televisão e viu um homem a meio da casa dos trinta anos sentado no lugar do piloto, no simulador.

 

Onde é que se encontra neste momento? perguntou Felix.

 

Hum, deixe-me ver... respondeu o instrutor, consultando os seus instrumentos. Vai a meio do Atlântico, a uma altitude de três-trinta, a zero ponto oito.

 

Óptimo comentou Felix. Portanto, encontra-se a trinta e três mil pés de altitude, ou nove mil e novecentos metros, e voa a oitenta por cento da velocidade do som. Já voa há algum tempo e tudo corre bem. Está descontraído e talvez um pouco preguiçoso...

 

Sim, senhor.

 

Perfeito. Faz sair os slats a Mister Ingram.

 

O instrutor estendeu a mão e carregou num botão. Felix virou-se para Casey.

 

Agora, observa com atenção.

 

No monitor, o piloto continuava com uma expressão descontraída. Porém, alguns segundos depois, inclinou-se para a frente, repentinamente alertado, fazendo uma careta para os instrumentos.

 

Felix apontou para os comandos na frente do instrutor e para os monitores.

 

É ali que podes ver o que lhe chamou a atenção. O indicador de slats acendeu-se no seu monitor de gestão de voo. Já deu por isso. Como vês, o avião sobe ligeiramente...

 

Os sistemas hidráulicos zumbiram e o grande cone do simulador inclinou-se para o alto, apenas alguns graus.

 

Mister Ingram começa por verificar o manípulo dos slats, tal como se esperava que fizesse. Descobre que está travado, o que é estranho e significa que tem uma saída extemporânea de slats...

 

O simulador continuava inclinado para o alto.

 

Por isso, Mister Ingram pensa no assunto... Tem muito tempo para decidir o que deve fazer. O avião está em piloto automático e permanece estável. Vejamos qual é a sua decisão. Ah, decide experimentar os comandos... Puxa o manípulo dos slats para baixo... e de novo para cima, para tentar apagar a luz de aviso. Não resulta. Compreende que tem um problema com os sistemas do seu avião mas mantém-se calmo. Continua a pensar... Que poderá fazer? Olha, modifica os parâmetros do piloto automático... passa para uma altitude inferior e reduz a velocidade do ar... Absolutamente correcto... O nariz do avião ainda está apontado para cima, mas as condições de altitude e velocidade são agora mais favoráveis. Decide voltar a experimentar os slats...

 

Livramo-lo deste problema? perguntou o instrutor.

 

Porque não? retorquiu Felix. A nossa demonstração já está feita...

 

O instrutor carregou num botão. O simulador endireitou-se.

 

Pronto disse Felix. Mister Ingram voltou a um voo normal. Toma nota do problema para informar o pessoal da manutenção e prossegue o percurso para Londres.

 

Sim, mas sempre com o piloto automático comentou Felix. Se o tivesse desligado?

 

Para que haveria de fazer isso? O voo é normal, o piloto automático controla o aparelho há pelo menos meia hora...

 

Sim, mas se o fizesse?

 

Felix encolheu os ombros e virou-se para o instrutor.

 

Provoca-lhe uma falha no piloto automático.

 

Sim, senhor.

 

Soou um sinal de alarme, perfeitamente audível. No monitor, viram o piloto olhar para os instrumentos e agarrar a manche. O alarme calou-se e a cabina ficou silenciosa. O piloto mantinha-se agarrado à manche.

 

Está a voar manualmente? perguntou Felix.

 

Sim, senhor respondeu o instrutor. Voa a oito mil e setecentos metros, setenta por cento da velocidade do som, sem piloto automático.

 

Muito bem, acciona os slats.

 

O instrutor voltou a carregar num botão.

 

No monitor do painel de instrumentos, o aviso de slats acendeu-se, primeiro num tom alaranjado e depois branco. Casey olhou para o monitor ao lado e viu o piloto inclinar-se para a frente. Vira o sinal de aviso na cabina.

 

Aí tens explicou Felix. O avião está novamente com o nariz para cima... mas agora terá de ser Mister Ingram a controlá-lo... Por isso puxa a manche para si, muito levemente, com toda a delicadeza... Ópti mo, já o estabilizou... Estás a ver? inquiriu, virando-se para Casey i encolhendo os ombros. É intrigante. O que aconteceu no voo da Trans Pacific nada teve a ver com os slats... nem com os motores. O piloto automático compensaria e manteria o controlo. O que se passou com este avião é um mistério... e sou eu quem to diz, Casey.

 

De volta à luz do Sol, Felix caminhou para o seu jipe, que tinha uma prancha de surf presa sobre a capota.

 

Tenho uma nova prancha Henley disse. Queres vê-la?

 

Felix retorquiu Casey, o Marder começa a ficar histérico.

 

E então? Deixa-o ficar. Ele até gosta.

 

Que achas que aconteceu ao cinco quatro cinco?

 

Bom... sejamos francos... As características de voo do N-Vintet Dois são tais que se os slats saírem em pleno voo e o comandante desligar o piloto automático, o avião torna-se muito sensível. Sabes bem disso, Casey. Fizeste um estudo a esse respeito, há três anos, depois do ajuste final nos slats.

 

É verdade confirmou Casey, recordando-se. Organizámos uma equipa especial para rever a estabilidade de voo do N-Vinte e Dois, mas concluímos que não existia nenhum problema nesse campo, Felix.

 

E concluíram bem afirmou Felix. Não há nenhum problema. Todos os aviões modernos mantêm a estabilidade em voo graças aos computadores. Um caça a jacto nem sequer poderia voar sem os computadores. Os caças são inerentemente instáveis. Os aparelhos comerciais são menos sensíveis, mas, mesmo assim, os computadores regulam o combustível, ajustam a atitude e a potência dos motores. Executam continuamente pequenos ajustes para que o avião se mantenha estável. Sim, mas também podem ser pilotados sem o piloto automático!

 

Absolutamente confirmou Felix, e treinamos os nossos pilotos para essa contingência. Quando o nariz sobe, e uma vez que o avião é muito sensível, o piloto deve fazê-lo baixar com muita suavidade. Se exagerar a correcção, o nariz desce. Nesse caso terá de o fazer subir, também com todo o cuidado. Se exagerar, o avião voltará a subir... Parece ter sido o que aconteceu com o voo da Transpacific...

 

Então, estás a dizer que foi um erro do piloto.

 

Normalmente, pensaria que sim... excepto que, neste caso, o piloto era o John Chang.

 

É um bom piloto?

 

Não declarou Felix. O John Chang é um piloto soberbo.

 

Passam por aqui muitos, e alguns deles são verdadeiramente dotados. Não se trata apenas de reflexos rápidos, conhecimentos e experiência. É mais do que isso. É uma espécie de instinto. O John Chang é um dos cinco ou seis melhores comandantes que jamais treinei para esse tipo de avião, Casey. Por isso, seja o que for que aconteceu ao voo cinco quatro cinco, não foi erro do piloto. Nunca, com o John Chang sentado na cadeira. Lamento, Casey, mas tem de ser um problema do avião. Tem de ser o avião.

 

         HANGAR 5

         9:15

 

Avançavam através do parque de estacionamento, com Casey perdida em pensamentos.

 

Então... disse Richman, de repente. A que conclusão chegamos?

 

A nenhuma.

 

Por muito que juntasse as provas de que dispunha, era sempre essa a conclusão a que chegava. Ainda não havia nada de sólido. O piloto dissera que fora turbulência, mas não fora. Uma passageira contara uma história consistente com uma saída de slats, mas esta não explicava as terríveis con sequências para os passageiros. A hospedeira dissera que o comandante lutara contra o piloto automático, mas Trung afirmava que só um piloto incompetente o faria. Felix declarara que o comandante em causa era soberbo.

 

Nada.

 

Não tinham por onde começar.

 

A seu lado, Richman continuava a andar, em silêncio. Mantivera-se ca lado durante toda a manhã. Era como se o enigma do voo 545, que tanto o interessara no dia anterior, fosse agora demasiado complexo.

 

Contudo, Casey não se sentia desencorajada. Para ela, não constituira nenhuma surpresa que as primeiras provas parecessem em discordância, is to porque era muito raro que os acidentes aéreos fossem causados por um único acontecimento ou erro. À equipa IRT esperava sempre depararem -se-lhe acontecimentos em cascata, com cada um deles a dar origem a ou tros, e estes a mais outros. No fim, a história definitiva seria muito com plexa. Um sistema falhara, o piloto reagira, o avião respondera de uma maneira inesperada... e metera-se em problemas.

 

Os acontecimentos eram sempre em cascata.

 

Uma longa cadeia de pequenos erros e infortúnios.

 

Ouviu o zumbido de um jacto. Olhou para cima e viu a grande fuselagem de um N-22 recortada contra o Sol. Quando passou por cima dela avistou a insígnia amarela da Transpacific pintada na cauda. Era o avião vindo de Los Angeles. O grande jacto pousou com suavidade, com as rodas a lançarem baforadas de fumo, e dirigiu-se para o Hangar de Manutenção.

 

O seu pager tocou e Casey retirou-o do cinto.

 

         EDIFÍCIO 64 IRT

         9:20

 

"Isto foi o que se passou há momentos no Aeroporto Internacional de Miami quando um avião da Sunstar Airlines se incendiou depois de o motor esquerdo de estibordo ter explodido sem aviso, salpicando a pista cheia de gente com uma saraivada de mortíferas peças de metal."

 

Ah, vão-se lixar gritou Kenny Burne. Quando Casey entrou na sala, depararam-se-lhe meia dúzia de engenheiros amontoados em volta do televisor, impedindo-lhe a visão.

 

"Miraculosamente, nenhum dos duzentos e setenta passageiros a bordo ficou ferido. O N-Vinte e Dois preparava-se para a descolagem quando os passageiros repararam em nuvens de fumo negro a sair do motor. Segundos depois, o avião foi abalado pela explosão do motor esquerdo de estibordo, que se desfez em pedaços e que foi rapidamente envolvido pelas chamas."

 

O ecrã não mostrava nada daquilo. Via-se apenas um N-22 a uma certa distância, com um denso fumo negro a aparecer debaixo de uma asa.

 

Motor esquerdo de estibordo... rosnou Burne. Em oposição a motor direito de estibordo, sua burra?

 

Agora, o televisor mostrava grandes planos dos passageiros que andavam de um lado para o outro no terminal. Um garoto de sete ou oito anos disse: "Toda a gente ficou excitada por causa do fumo." A imagem passou para uma rapariga adolescente que abanou a cabeça, atirando o cabelo para cima do ombro, e declarou: "Foi mesmo, mesmo assustador. Vi o fumo e foi mesmo assustador." A entrevistadora perguntou-lhe: "Quais foram os seus pensamentos quando ouviu a explosão?" "Foi mesmo assustador", disse a jovem. "Pensa que se tratou de uma bomba?" "Foi mesmo!", declarou a rapariga. "Uma bomba de terroristas."

 

Kenny Burne girou sobre os calcanhares e ergueu as mãos ao céu.

 

Vocês acreditam nesta merda? protestou. Estão a perguntar aos miúdos o que eles pensaram! Que diabo de noticiários! "Que foi que pensaste?" "Nada, engoli o chupa-chupa!" Aviões que matam... e passageiros que os adoram!

 

No ecrã, o programa de televisão mostrava uma mulher idosa que afirmava: "Sim, pensei que ia morrer. Claro que tinha de o pensar." Seguiu-se um homem de meia-idade: "A minha mulher e eu começámos a rezar. Toda a nossa família se ajoelhou na pista e agradeceu ao Senhor." "E tiveram medo?", insistiu a entrevistadora. "Pensámos que íamos morrer", disse o homem. "A cabina encheu-se de fumo... Foi um milagre termos escapado com vida."

 

Burne estava novamente aos berros.

 

Minha grande besta! Num carro, terias morrido! Num clube nocturno, terias morrido! Nunca num dos nossos aviões! Desenhámo-los para que pudesses escapar com a tua vidazinha de merda!

 

Acalma-te pediu Casey. Quero ouvir isto. Escutava atentamente, para ver até onde iria aquela história.

 

Uma bela mulher hispânica com um fato bege, de Armani, enfrentava a câmara com um microfone na mão. "Apesar dos passageiros parecerem estar agora a recuperar da provação, o seu destino foi bastante mais incerto algum tempo atrás, nesta mesma tarde, quando um N-Vinte e Dois Norton explodiu na pista, lançando grandes chamas alaranjadas para o céu..."

 

A televisão voltou a mostrar a mesma imagem, a grande distância, à um avião parado na pista com fumo a sair debaixo da asa. O fumo parecia tão perigoso como o que poderia sair de uma fogueira de acampamento meia apagada.

 

Eh, um momento! protestou Kenny. Um avião da Norton explodiu? O que explodiu foi a merda de um motor da Sunstar. Apontou para a imagem no televisor. A porcaria do rotor rebentou e os fragmentos das lâminas perfuraram a cobertura do motor... e foi precisamente o que eu lhes disse que iria acontecer!

 

Disseste-lhes? perguntou Casey.

 

Sim, claro que disse! retorquiu Kenny. Sei perfeitamente o que se está a passar. No ano passado, a Sunstar comprou seis motores AeroCivicas. Fui o consultor da Norton para esse negócio. Inspeccionei os motores e descobri-lhes uma montanha de deficiências, incluindo lâminas estaladas nos rotores. Disse à Sunstar para os rejeitar. Kenny agitava as mãos no ar. Porém, para quê perder uma pechincha? A Sunstar preferiu repará-los. Durante a desmontagem, deparou-se-nos imensa corrosão pelo que os documentos da manutenção no estrangeiro deviam ser falsos. Voltei a dizer-lhe: deitem-nos para o lixo. Não concordaram e montaram-nos nos aviões. Agora, rebentou um rotor... Olha que grande surpresa. Os fragmentos cortaram a asa e o fluido hidráulico não inflamável está a fumegar. Não há qualquer incêndio porque o fluido não arde. Achas que a culpa é nossa? Rodopiou e apontou para a televisão.

 

"... pregando um grande susto aos duzentos e setenta passageiros que se encontravam a bordo. Felizmente, não houve feridos..."

 

Claro que não! comentou Burne. Os fragmentos não penetraram na fuselagem e não feriram ninguém. Foi a asa, a nossa asa, que absorveu os impactes.

 

"... aguardamos uma oportunidade para conversar com os funcionários da companhia aérea a respeito desta assustadora tragédia. Passo-te a emissão Ed."

 

A imagem regressou ao estúdio, onde o elegante locutor respondeu

 

"Obrigado, Alicia, por esse relato em directo sobre o acontecimento da chocante explosão no aeroporto de Miami. Daremos mais pormenores à medida que forem surgindo. Agora, voltamos ao nosso programa habi tual..."

 

Casey suspirou, aliviada.

 

Nem acredito nesta merda! gritou Kenny Burne. Virou-se e saiu precipitadamente da sala, batendo com a porta.

 

Que se passa com ele? inquiriu Richman.

 

Uma vez sem exemplo... acho que tem razão respondeu Case; De facto, quando há um problema com os motores, a culpa não é da Norton...

 

Que quer dizer? Se foi ele o consultor...

 

Olha... interrompeu-o Casey. Tens de compreender uma coisa. Nós construímos aviões. Não construímos motores nem os reparamos. Não temos nada a ver com motores.

 

Nada. Então como...?

 

Os motores são fornecidos por outras companhias, como a GE, a Pratt e Whitney, a Rolls-Royce. Contudo, os jornalistas nunca compreenderam essa distinção.

 

Parece-me um preciosismo... disse Richman, com uma expressão de cepticismo.

 

Não é nada disso. Se a electricidade falhar em tua casa, chamas a companhia do gás? Se te rebentar um pneu... atiras as culpas para o fabricante do carro?

 

Claro que não... mas neste caso o avião continua a ser vosso, incluindo os motores.

 

Não ripostou Casey. Construímos o avião e instalamos a marca de motor escolhida pelo cliente... tal como tu podes escolher entre várias marcas de pneus para equipar o teu carro. Todavia, se a Michelin produzir um lote de maus pneus e estes rebentarem, a culpa não é da Ford. Se permitires que os pneus fiquem carecas e tiveres um acidente, a culpa também não é da Ford. Connosco passa-se o mesmo.

 

Richman ainda não parecia convencido.

 

Tudo o que podemos fazer prosseguiu Casey é garantir que os nossos aviões voarão em segurança com os motores que instalamos. Todavia, não podemos obrigar as companhias a fazer a devida manutenção aos motores durante todo o tempo de vida do avião. É uma tarefa que não nos compete... e a compreensão do facto é fundamental para sabermos o que realmente aconteceu. Na verdade, aquela jornalista contou a história ao contrário.

 

Ao contrário?! Porquê?

 

Naquele avião, houve um rotor que rebentou explicou Casey. As lâminas saltaram do rotor e o invólucro do motor foi insuficiente para conter os fragmentos. O motor rebentou porque a sua manutenção não foi bem feita. O incidente nunca deveria ter acontecido... mas a nossa asa absorveu os fragmentos, protegendo os passageiros no interior da cabina. Portanto, o verdadeiro significado do incidente é este: os aviões da Norton são tão bem construídos que protegeram duzentos e setenta passageiros contra o rebentamento de um mau motor. Na realidade, somos heróis... mas, amanhã, o valor das acções da Norton vai descer. Algumas pessoas irão ter medo de voar em aviões da Norton. Será a resposta apropriada ao que realmente aconteceu? Não... mas é uma reacção apropriada para aquilo que a televisão acabou de dizer. Para o pessoal que aqui trabalha... é frustrante.

 

Bom comentou Richman - pelo menos não mencionaram a Transpacific...

 

Casey acenou. Fora essa a sua principal preocupação, o que a fizera atravessar o parque de estacionamento a correr para procurar uma televisão. Pretendera saber se os jornalistas associariam o rebentamento de um rotor em Miami com o incidente ocorrido com o voo da TPA no dia anterior. Tal não se verificara... por enquanto. Acabaria por acontecer, mais cedo ou mais tarde.

 

Agora, vamos começar a receber telefonemas disse. O gato já tem o rabo de fora...

 

         HANGAR 5

         9:40

 

Havia uma dúzia de homens da segurança no exterior do Hangar 5, onde o jacto da Transpacific estava a ser inspeccionado. Era um procedimento habitual sempre que uma equipa do RAMS, o serviço de recuperação i manutenção, entrava na fábrica. As equipas RAMS percorriam o mundo solucionando problemas em aviões imobilizados, e tinham autorização da FAA para os reparar in loco. Porém, como os seus membros eram selecccionados pelas suas capacidades e não pela antiguidade, não pertencia" ao sindicato, e os conflitos eram frequentes sempre que entravam na fábrica.

 

No interior do hangar, o enorme aparelho da Transpacific destacava-se sob o clarão das luzes de halogéneo, quase escondido por trás das complicadas estruturas dos andaimes que o rodeavam. Viam-se técnicos espalhados por todo o avião. Casey avistou Kenny Burne a trabalhar nos motores, praguejando para o seu pessoal. Tinha posto à vista algumas peças dos" versores e realizavam testes de fluorescência e condutividade sobre as placas encurvadas.

 

Ron Smith e a equipa de electricistas encontravam-se sobre uma plataforma elevada, instalada por baixo do centro da fuselagem. Um pouco mais acima, Casey avistou Van Trung através da janela da cabina de voo, onde a sua equipa testava os sistemas electrónicos.

 

Doherty subira para a asa, chefiando o seu pessoal das estruturas. O grupo servira-se de um pequeno guindaste para remover um dos slats uma secção de alumínio de dois metros e meio de comprimento.

 

Começam por inspeccionar os componentes de maiores dimensões disse Casey, virando-se para Richman.

 

Chama-se a isso... destruir todas as provas declarou uma voz por trás deles.

 

Casey virou-se. Ted Rawley, um dos pilotos de teste, aproximava-se deles. Usava botas de cowboy, uma camisa do Oeste e óculos escuros. Tal como a maioria dos pilotos de teste, Teddy cultivava um ar de perigosa sedução.

 

Este é o Ted Rawley explicou Casey, o nosso principal piloto de testes. Também lhe chamam Rawley, o Destruidor.

 

Eh! protestou Teddy. Ainda não destruí nenhum... E sempre é uma alcunha melhor do que Casey e os Sete Anões...

 

É isso o que lhe chamam? inquiriu Richman, subitamente intteressado.

 

Isso mesmo. Casey e os seus anões. Rawley fez um gesto vago para designar os engenheiros. Os pequeninos. Ho, Ho! Desviou o olhar do aparelho e deu uma palmada no ombro de Casey. Então, como te correm as coisas, garota? Telefonei-te, há alguns dias...

 

Eu sei. Tenho andado atarefada.

 

Aposto que sim declarou Teddy. Estou certo de que o Marde; não deixa ninguém descansar. Os engenheiros já descobriram alguma coisa? Espera um minuto, deixa-me adivinhar: absolutamente nada, não é assim? O seu belo avião é perfeito... e portanto foi um erro do piloto.

 

Casey não fez comentários e Richman pareceu incomodado.

 

Oh... continuou Teddy. Não fiquem envergonhados. Já ouvi essa história muitas vezes. Confessem, os engenheiros pertencem todos ao clube dos difamadores de pilotos. É por isso que desenham os aviões para voarem automaticamente. Odeiam a ideia de alguém os pôr a voar. É incomodativo ter um corpo humano sentado no lugar do piloto. Portanto, sempre que acontece qualquer coisa, a culpa é obviamente do piloto. Tem de ser. Não acham que tenho razão?

 

Ora vamos, Teddy disse Casey. Conheces as estatísticas. A grande maioria dos acidentes é causada por...

 

Foi nesse momento que Doug Doherty, agachado na asa por cima deles, se inclinou para a frente e declarou, com uma expressão pesarosa:

 

Casey, tenho más notícias. Vais querer ver isto.

 

O que é?

 

Já sei o que se passou com o voo cinco quatro cinco.

 

Casey trepou para o andaime e caminhou sobre a asa. Doherty estava agachado junto ao rebordo da mesma. Os slats haviam sido retirados, pondo à vista o interior da estrutura. Colocou-se de gatas a seu lado e olhou.

 

O espaço ocupado pelos slats era assinalado por toda uma série de calhas, distanciadas cerca de noventa centímetros, onde os slats deslizavam, empurrados por êmbolos hidráulicos. Na extremidade das calhas via-se uma peça oscilante que permitia que os slats se inclinassem para baixo. Casey viu, no fundo do compartimento, os êmbolos que empurravam os slats ao longo das calhas. Naquele momento, não passavam de braços de metal a sobressair num espaço vazio. Como sempre, ficava com uma sensação de enorme complexidade sempre que via o interior das asas de um avião.

 

O que é? perguntou.

 

Olha, aqui respondeu Doug.

 

Debruçou-se sobre um dos braços de metal e apontou para uma pequena peça de metal encurvado, em forma de gancho, que se encontrava na sua extremidade. A peça era pouco maior do que o seu polegar.

 

E então?

 

Doherty estendeu a mão e empurrou a peça com a mão. Quando a largou, a peça voltou ao seu lugar.

 

Este é o trinco que fixa os slats explicou. Tem uma mola e funciona por intermédio de um solenóide. Quando os slats voltam ao seu lugar, o trinco salta para a frente e fixa-os.

 

E depois?

 

Olha bem para ele respondeu Doherty, abanando a cabeça. Está torto.

 

Casey franziu a testa. Talvez a peça estivesse torta, mas não para os seus olhos. Parecia-lhe perfeitamente direita.

 

Doug...

 

Não, repara! Colocou uma régua de metal contra a peça, mostrando-lhe que a mesma se encontrava desviada alguns milímetros para a esquerda. E não é tudo. Olha para a superfície, aqui, em cima. Está desgastada. Vês?

 

Entregou-lhe uma lente. Nove metros acima do solo, Casey inclinou-se ainda mais e espreitou a peça. Era verdade, viam-se sinais de desgaste.

 

Havia uma superfície rugosa no trinco metálico. No entanto, era de esperar um certo desgaste no sítio onde o metal do trinco prendia os slatts.

 

Doug, achas que isto é realmente significativo?

 

Oh, sem dúvida! declarou, num tom fúnebre. Temos aqui dois ou talvez três milímetros de desgaste.

 

Quantos destes trincos seguram o s/aí?

 

Apenas um.

 

E se este não estiver bom?

 

Os slats podem soltar-se em pleno voo, o que não significa que se abram completamente. Recorda que se trata de superfícies de controlo para baixas velocidades. À velocidade de cruzeiro, o seu efeito amplifica-se. Uma ligeira saída altera toda a aerodinâmica.

 

Casey voltou a franzir a testa, espreitando a pequena peça através da lente.

 

Mas porque haveria este de se soltar de repente, em pleno voo?

 

Olha para os outros trincos disse Doherty, abanando a cabeça e apontando para outro ponto da asa. Não há desgaste das superfícies.

 

Talvez os outros fossem substituídos e este não...

 

Nada disso. Penso que os outros são os originais. Este é que foi substituído. Repara no trinco seguinte. Vez a marca gravada na base?

 

Casey viu um pequeno desenho gravado, um H no interior de um triângulo, com uma sequência de números. Todos os fabricantes de com ponentes gravavam aqueles símbolos.

 

Sim, estou a ver...

 

Agora, olha para este. Vês a diferença? Aqui, o triângulo está invertido. É uma peça falsificada, Casey.

 

Para os fabricantes de aviões, as falsificações eram o maior problema que tinham de enfrentar agora que se aproximavam do século xxi. A atenção dos meios de comunicação focava-se principalmente nas falsificações de artigos de consumo, tais como relógios, discos compactos ou software para computadores, mas existia um florescente negócio em toda a espécí de artigos manufacturados, incluindo peças para automóveis e aviões. Aí o problema das falsificações ganhava características novas e assustadoras. Ao contrário do que acontecia com uma imitação de um relógio Cartier, a falsificação das peças de avião podia matar.

 

Muito bem disse Doherty, verificarei os registos de manutenção para descobrir de onde veio esta peça.

 

A FAA exigia que as transportadoras comerciais mantivessem registos extraordinariamente pormenorizados de todos os trabalhos de manutenção. Sempre que era substituída uma peça, esta era assinalada num registo de manutenção. Para além disso, os fabricantes, embora não tivessem de o fazer, mantinham um registo exaustivo de todas as peças utilizadas originalmente em cada avião, com a indicação dos respectivos fabricantes. Toda essa papelada significava que era possível localizar, até à sua origem qualquer peça entre o milhão de componentes que constituíam um avião. Se uma peça era retirada de um avião para ser posta noutro, essa mudança ficava registada. Se era retirada e reparada, também existia um registo. Cada peça de um avião tinha uma história própria. Com tempo, poderia saber com exactidão de onde viera, quem a instalara e quando.

 

Casey apontou para a peça defeituosa.

 

Já a fotografaste?

 

Claro, está perfeitamente documentada.

 

Então, retira-a pediu Casey. Vou levá-la aos Metais. A propósito, achas que esta situação poderia dar origem a um aviso de slats.

 

Doherty brindou-a com um dos seus raros sorrisos.

 

Podia, sim, e penso que foi o que aconteceu. Tens aqui uma peça não autorizada, Casey, que provocou uma falha.

 

Ao descer da asa, Richman manifestou-se, excitado.

 

Então, foi aquilo? Uma peça defeituosa? O assunto está resolvido?

 

Uma coisa de cada vez retorquiu Casey, a quem o rapaz começava a enervar. Temos de verificar.

 

Verificar? Verificar o quê? Como?

 

Primeiro que tudo, temos de saber de onde veio aquela peça explicou. Volta para o gabinete. Diz à Norma para se certificar de que o LAX nos envia os registos de manutenção. Pede-lhe para mandar um fax para o representante em Hong Kong, a pedir os registos da transportadora. Diz-lhe que a FAA os pediu mas que queremos ser os primeiros a vê-los.

 

Está bem retorquiu Richman.

 

Afastou-se em direcção à entrada do Hangar 5 e da luz do Sol. Caminhava com uma certa insolência, como se fosse uma pessoa importante, detentora de informações valiosas.

 

Contudo, Casey não estava certa de que já tivessem conseguido todas as explicações... pelo menos, por enquanto.

 

         NO EXTERIOR DO HANGAR 5

         10:00

 

Casey saiu do hangar, pestanejando sob a luz do Sol da manhã. Junto do Edifício 121, Don Brull saía do seu carro. Encaminhou-se para ele.

 

Olá, Casey disse o homem, batendo com a porta do automóvel. Perguntava a mim mesmo quando virias ter comigo.

 

Falei com o Marder disse Casey. Jurou-me que a asa não vai ser fabricada na China.

 

Telefonou-me a noite passada concordou Brull com um aceno.i com um tom de voz que não parecia muito satisfeito. Disse-me a mesma coisa.

 

O Marder insiste que se trata de um boato.

 

Mente declarou Brull. Vai fazê-lo.

 

Não acredito retorquiu Casey. Não faz sentido.

 

Olha... começou Brull. Tudo isto, para mim, não faz grande diferença. Se fecharem a fábrica daqui a dez anos, já estarei reformado. Contudo, será mais ou menos por essa altura que a tua filha entrará para a universidade. Vais ter de enfrentar aquelas elevadas propinas e estarás sem emprego. Já pensaste nisso?

 

Don insistiu Casey, foste tu mesmo quem o disse. Não faz sentido entregar o fabrico da asa. Seria uma insensatez...

 

O Marder é insensato. Fitou-a com os olhos semicerrados, por causa do sol. Sabe-lo muito bem. Sabes aquilo de que é capaz.

 

Don...

 

Espera interrompeu-a Brull. Sei do que estou a falar. As ferramentas não estão a ser enviadas para Atlanta, Casey. Vão para San Pedro, onde estão a construir contentores marítimos especiais.

 

Então, era assim que o sindicato via as coisas, pensou.

 

Don, aquelas ferramentas são enormes. Não podem ser enviadas por estrada ou por caminho de ferro. São sempre enviadas por barco. Constróem contentores para que as possam transportar pelo canal do Panamá. É a única via para chegarem a Atlanta.

 

Eu vi os conhecimentos de embarque declarou Brull, abanando a cabeça. Não dizem que as peças vão para Atlanta, mas sim para Seul na Coreia.

 

Coreia? repetiu Casey, com uma expressão de estranheza.

 

Isso mesmo.

 

Don, isso não faz nenhum sentido...

 

Faz, sim. É uma manobra de diversão afirmou Brull. Levam-nas para a Coreia... e depois fazem-nas seguir daí para a China noutro navio.

 

Tens cópias dos conhecimentos de embarque?

 

Não as tenho comigo.

 

Gostaria de as ver.

 

Está bem, posso arranjar-tas, Casey murmurou Brull com um suspiro. Estás a colocar-me numa situação muito difícil. A rapaziada não deixará que esta venda se concretize. O Marder pediu-me para me acalmar... mas que posso eu fazer? Só dirijo um pequeno grupo... e não todo o pessoal da fábrica.

 

Que queres dizer?

 

O assunto já não está nas minhas mãos. -Don...

 

Sempre gostei de ti, Casey... mas se continuares a andar por aí... não poderei ajudar-te declarou, afastando-se.

 

         NO EXTERIOR DO HANGAR 5

         10:04

 

O sol da manhã já brilhava. À sua volta, a fábrica mostrava-se alegremente atarefada, com os mecânicos pedalando nas suas bicicletas quando se dirigiam de um edifício para outro. Não havia qualquer sensação de ameaça ou de perigo. Porém, Casey sabia o que Brull quisera dizer-lhe. Agora, encontrava-se numa espécie de terra-de-ninguém. Ansiosa, puxara pelo telefone celular para ligar para Marder, mas viu a figura pesada de Jack Rogers que se dirigia para ela.

 

Jack cobria os assuntos aerospaciais para o Telegraph-Star, um jornal do condado de Orange. Ia no fim da casa dos cinquenta anos e era um bom e sólido jornalista, uma recordação de uma anterior geração de te mens da imprensa que sabiam tanto dos assuntos de que tratavam como as pessoas que entrevistavam. O homem fez-lhe um aceno casual.

 

Olá, Jack disse Casey. Que há de novo?

 

Vim procurar-te retorquiu Jack por causa do acidente que teve lugar esta manhã no Edifício Sessenta e Quatro e que envolveu as ferramentas para o fabrico das asas. Aquelas que a grua deixou cair.

 

Foi um azar.

 

Houve outro acidente esta manhã. Carregaram um daqueles caixotes gigantescos num camião, mas o condutor descreveu uma curva demasiado apertada junto do Edifício Sessenta e Quatro e o caixote caiu. Foi uma grande confusão.

 

Huum... fez Casey.

 

É óbvio que se trata de acções do sindicato afirmou Rogers. As minhas fontes dizem que o sindicato se opõe à venda à China.

 

Também já ouvi dizer o mesmo confirmou Casey.

 

A asa vai ser montada em Xangai como parte do contrato de venda

 

Ora, vamos, Jack protestou, isso é ridículo.

 

Tens a certeza?

 

Jack... retorquiu Casey, recuando um passo. Sabes que posso discutir a venda. Ninguém pode, até que a tinta fique seca.

 

Está bem. Rogers puxou pelo bloco de apontamentos. Na verdade, trata-se de um boato com um toque de loucura. Nunca nenhuma companhia cedeu a construção das asas como compensação. Seria um suicídio.

 

Exactamente confirmou Casey. No fim, a sua mente regressa sempre à mesma questão. Para que iria Edgarton dar a asa? O que leva uma qualquer companhia a fazê-lo? Era absurdo.

 

Rogers levantou os olhos do bloco de apontamentos.

 

Porque será que o sindicato pensa que as asas vão ser fabricadas no estrangeiro?

 

Terás de lhe perguntar retorquiu Casey, encolhendo os ombros. O homem tinha fontes de informação no sindicato. De certeza que incluíam o próprio Brull e talvez também outros.

 

Ouvi dizer que possuem documentos que o provam.

 

Mostraram-te esses documentos?

 

Não respondeu Rogers, abanando a cabeça.

 

Não percebo porquê... se na verdade os têm.

 

Rogers sorriu e tomou mais um apontamento. A seguir continuou.

 

Foi uma pena, aquele rebentamento de um rotor, em Miami.

 

Só sei o que vi na televisão.

 

Pensas que vai afectar a opinião do público quanto ao N-Vinte e Dois? Tinha a caneta no ar, pronto para anotar a resposta de Casey.

 

Não vejo porquê. O problema foi com um motor e não com o avião. Calculo que acabem por descobrir que rebentou um disco de um compressor.

 

Não tenho dúvidas quanto a isso concordou Rogers. Falei com o Don Peterson, da FA A. Disse-me que o incidente se deveu precisamente ao rebentamento de um disco, enfraquecido por bolsas de nitrogénio.

 

Inclusões alfa? perguntou Casey.

 

Exacto admitiu Jack. Para além disso, deveu-se também a fadiga do material.

 

Casey acenou. As peças dos motores funcionavam a temperaturas de 2500 graus Fahrenheit, muito acima da temperatura de fusão da maior parte das ligas, que se transformavam em sopa aos 2200 graus. Por isso mesmo, eram feitas com ligas de titânio e por intermédio dos processos mais avançados. Fabricar algumas dessas peças era uma verdadeira arte. As pás dos rotores eram essencialmente "cultivadas" como um único cristal de metal, o que as tornava fenomenalmente fortes. Porém, o processo de fabrico era inerentemente delicado, mesmo quando levado a cabo por mãos habilidosas. A fadiga do metal, devida ao tempo de utilização, era uma condição em que o titânio utilizado nos discos dos rotores dava origem a colónias de microestruturas, fragilizando-o e fazendo-o estalar.

 

E quanto ao voo da Transpacific? perguntou o homem. Também foi um problema de motor?

 

O incidente com a Transpacific foi ontem, Jack. Só agora começámos a investigar.

 

Estás ligada à qualidade, no IRT, não é verdade?

 

Sim, é verdade.

 

Estás satisfeita com o modo como a investigação decorre?

 

Jack, não posso fazer comentários sobre isso. É demasiado cedo.

 

Talvez... mas não é demasiado cedo para começarem as especulações retorquiu o jornalista. Sabes como são essas coisas, Casey. As pessoas falam. Mais tarde, os erros de interpretação podem ser difíceis de desmentir. Gostaria de deixar tudo bem claro. Já excluíram os motores?

 

Jack, não posso fazer comentários.

 

Então, ainda não excluíram os motores?

 

Sem comentários.

 

O homem escreveu qualquer coisa no bloco. Sem levantar os olhos, disse:

 

Suponho que também estão a investigar os slats.

 

Estamos a investigar tudo afirmou Casey.

 

Dado que o N-Vinte e Dois já tem uma história de problemas com os slats...

 

São histórias passadas declarou Casey. Resolvemos esse problema há anos. Se bem me lembro, escreveste um artigo sobre esse assunto.

 

Sim, mas agora tivemos dois incidentes em dois dias. Não te preocupa a possibilidade do público começar a pensar que o N-Vinte e Dois É um avião com problemas?

 

Casey via a direcção que o artigo do jornalista iria tomar. Não queria fazer comentários, mas o homem estava a dizer-lhe o que iria escrever se ela não falasse. Era a habitual pequena chantagem da imprensa, sem grau de gravidade.

 

Jack retorquiu, temos trezentos N-Vinte e Dois em serviço em todo o mundo. O modelo tem um excepcional registo de segurança. De facto, em cinco anos e até ao dia anterior, nunca se tinham verificado vítimas envolvendo aquele tipo de aparelho. Era motivo para o orgulho mas preferiu não o mencionar porque já estava a imaginar um título: As primeiras vítimas de um N-22 da Norton aconteceram ontem... Em vez disso, declarou: O público fica melhor servido quando recebe informações fidedignas. De momento, não tenho informações para dar. As especulações da minha parte seriam uma irresponsabilidade.

 

A resposta deu resultado. O homem guardou a caneta.

 

Está bem disse. E não tens nada para me dizer, off the recor? Não o publicarei.

 

De acordo. Casey sabia que podia confiar no homem. Se não é para publicação, posso dizer-te que o avião sofreu severas oscilações, Pensamos que andou aos saltos. Não sabemos porquê. A caixa negra não está em condições e serão precisos vários dias para reconstruir os dados. Estamos a trabalhar o mais depressa que podemos.

 

O incidente irá afectar a venda à China?

 

Espero que não.

 

O piloto era chinês, não era? Um tal Chang?

 

O piloto era de Hong Kong. Não sei qual a sua nacionalidade,

 

Isso irá dificultar as coisas se tiver sido um erro do piloto?

 

Sabes como são estas investigações, Jack. Seja qual for a causa que acabemos por descobrir... o resultado irá ser difícil para alguém. Temos de esperar para ver o que acontece.

 

Claro. A propósito, a encomenda da China já é definitiva? Tenho ouvido dizer que não.

 

Com toda a honestidade... não sei respondeu Casey, encolhendo os ombros.

 

O Marder já falou contigo a esse respeito?

 

Comigo, pessoalmente, não. Era uma resposta com as palavras cuidadosamente escolhidas. Casey esperava que o jornalista não as aprofundasse... e não o fez.

 

Muito bem, Casey disse Rogers, vou deixar esse assunto em paz, mas... tens alguma coisa para me dar? Preciso de escrever um artigo...

 

Por que não escreves sobre aquelas companhias aéreas com tarifas ao preço da chuva? perguntou Casey. Ainda ninguém se virou para aí.

 

Estás a brincar? retorquiu o jornalista. Não há ninguém que não tenha escrito sobre isso.

 

Pois é... mas ainda ninguém contou a verdadeira história ripostou Casey. Trata-se apenas de uma vigarice na bolsa...

 

Na bolsa?

 

Sim afirmou Casey. Compras alguns aviões, tão velhos e com uma tão má manutenção que nenhuma companhia respeitável os quereria, nem sequer para peças sobressalentes. Depois, subcontratas a manutenção para limitares as tuas responsabilidades. Ofereces tarifas ao preço da chuva e usas o dinheiro para adquirires novas rotas. É um esquema em pirâmide mas, no papel, parece formidável. As vendas sobem, os lucros aumentam... e a Wall Street adora-te. Poupas tanto na manutenção que os teus lucros não param de crescer. O preço das tuas acções duplica e volta a duplicar. Quando os cadáveres se começarem a empilhar, tal como muito bem sabes que irá acontecer, já fizeste uma verdadeira fortuna graças às acções e podes permitir-te contratar os melhores advogados. É o que a não regulamentação tem de genial, Jack. Quando a conta surgir... ninguém a paga.

 

Excepto os passageiros.

 

Exacto confirmou Casey. A segurança, durante os voos, foi sempre uma questão de honra. A FAA foi organizada para não perder de vista as transportadoras, mas não é uma força de polícia. Por isso, se a não regulamentação acabar por alterar as regras, devemos avisar o público... ou conceder mais verbas à FAA. Não há outra hipótese.

 

Na verdade concordou Rogers, com um aceno, o Barry Jordan, do Times de Los Angeles, disse-me que andava a trabalhar na questão da segurança. Contudo, é preciso ter muitos recursos e muito tempo para investigar... bem como advogados para estudar o artigo que escrevemos. O meu jornal não dispõe desses recursos... e preciso de qualquer coisa que possa utilizar esta noite.

 

Em privado... disse Casey tenho uma boa dica, mas não podes referir a fonte de informação...

 

Está bem aceitou Rogers.

 

O motor que explodiu era um dos seis que a Sunstar comprou à AeroCivicas explicou Casey. O Kenny Burne foi o consultor técnico. Examinou os motores ao boroscópio e descobriu-lhes muitas deficiências.

 

Que tipo de deficiências?

 

Corrosão e pás de rotores com fendas.

 

Tinham fendas de fadiga nas pás dos rotores? exclamou Rogers.

 

É verdade. O Kenny disse-lhes para rejeitarem os motores, mas a Sunstar reconstruiu-os e montou-os nos aviões. Quando aquele motor rebentou, o Kenny ficou furioso. Talvez ele te possa dar nomes, na Sunstar... mas não poderás dizer onde obtiveste a informação, Jack. Temos de continuar a fazer negócios com essa gente...

 

Compreendo... e obrigado. Porém, o meu chefe vai querer saber coisas sobre os acidentes de hoje, na fábrica. Diz-me, estás convencida de que a história da entrega das asas à China não tem fundamento?

 

Voltámos ao mesmo? perguntou Casey. -Sim.

 

Não sou a pessoa indicada para responder a isso disse Casey. Terás de ir falar com o Edgarton.

 

Telefonei-lhe, mas disseram-me que estava fora. Para onde foi? Pequim?

 

Não faço comentários.

 

E quanto ao Marder? insistiu Rogers.

 

Que queres dizer?

 

Toda a gente sabe... explicou Rogers, encolhendo os ombros que o Marder e o Edgarton se atiram à garganta um do outro. O Marder esperava ser nomeado presidente, mas a administração ultrapassou-o. Por outro lado, estabeleceu um contrato de um ano com o Edgarton... pelo que este só tem doze meses para mostrar resultados. Segundo me têm dito, o Marder anda a sabotar as iniciativas do Edgarton sempre que pode,,

 

Nada sei a esse respeito disse Casey. Claro que já ouvira boatos. Não era nenhum segredo que Marder ficara amargamente desapontado com a nomeação de Edgarton. O que poderia fazer a esse respeito era outra história. A mulher de Marder controlava onze por cento das acções da companhia. Graças às ligações de Marder, este talvez conseguisse mais cinco por cento a seu favor. Porém, dezasseis por cento não era suficiente para se impor, em particular porque Edgarton tinha um forte apoio por parte da administração.

 

Por isso, a maior parte das pessoas da fábrica pensava que, pelo menos de momento, Marder não tinha outra escolha senão acompanhar a linha seguida por Edgarton. Talvez se sentisse infeliz, mas não tinha mais opções. A companhia debatia-se com um problema de fluidez monetária e já chegara ao extremo de construir aviões sem ter compradores. No entanto, para garantir o seu futuro, mantendo-se no negócio, necessitaria de biliões de dólares para poder desenvolver a próxima geração de aviões.

 

Desse modo, a situação era clara. A companhia precisava daquela venda, e toda a gente o sabia, incluindo Marder.

 

Não ouviste dizer que o Marder anda a tramar o Edgarton? perguntou Rogers.

 

Não comento respondeu Casey. Aqui entre nós, e não é para publicares, isso não faz sentido. Toda a gente, na companhia, incluindo o próprio Marder, deseja concretizar essa venda. Neste momento, está a pressionar-nos para solucionarmos a questão do cinco quatro cinco, para que a venda avance.

 

Achas que a imagem da companhia pode ser prejudicada por rivalidades entre os seus principais dirigentes? Não faço ideia.

 

Bom, está bem concluiu o jornalista, fechando o bloco de notas, Telefona-me, se souberes alguma coisa a respeito do cinco quatro cínco, está bem? Claro, Jack.

 

Obrigado, Casey. Ao afastar-se, Casey compreendeu que ficara exausta com a entrevista. Naqueles dias, falar com um jornalista era algo de semelhante a um combate mortal. Tinha de se manter vários passos à frente, tinha de imaginar todas as deturpações das suas palavras que o jornalista poderia vir a fazer, A atmosfera era de uma inimizade impiedosa.

 

Nem sempre fora assim. Em tempos idos, quando um jornalista queria informações, limitava-se a fazer perguntas directas, respeitantes aos acom tecimentos. Procurava obter uma imagem precisa e, para o conseguir, tinha de fazer um esforço para ver as coisas à maneira dos outros, para compreender de que modo eram encaradas. No fim podia não concordar, mas, por uma questão de orgulho profissional, transmitia os pontos de vista dos outros com toda a precisão, antes de os rejeitar.

 

Agora, os jornalistas enfrentavam as histórias com um guião já definido nas suas cabeças, e viam o seu trabalho como sendo a procura de provas para a conclusão a que já tinham chegado. Não queriam informações, mas sim provas de vilania. Desse modo, eram abertamente cépticos em relação aos pontos de vista dos outros, uma vez que partiam do princípio de que estes se limitavam a ser evasivos. Agiam de acordo com a presunção de uma culpa universal, numa atmosfera de hostilidade encoberta e de suspeitas. Essa nova abordagem era intensamente pessoal. Queriam fazer tropeçar o entrevistado, apanhar-lhe o mais pequeno erro ou a mais ligeira tolice... ou apenas uma frase que pudesse ser retirada do contexto para fazer com que o entrevistado parecesse estúpido ou insensível.

 

Como o foco das perguntas era pessoal, os jornalistas estavam sempre a pedir especulações pessoais. Pensa que um acontecimento pode ser prejudicial? Acha que a companhia irá sofrer? Tais especulações haviam sido irrelevantes para a anterior geração de jornalistas, que se concentravam exclusivamente nos acontecimentos. O jornalismo moderno era intensamente subjectivo "interpretativo e alimentava-se das especulações, mas Casey considerava-o fatigante.

 

No entanto, pensou, Jack Rogers era um dos melhores. Os jornalistas da imprensa eram sempre melhores. Os piores, aqueles com quem era preciso ter cuidado, eram os da televisão. Esses, sim, eram verdadeiramente perigosos.

 

         NO EXTERIOR DO HANGAR 5

         10:15

 

Enquanto atravessava a fábrica, pescou o telefone celular no fundo da mala e ligou para Marder. A sua assistente, Eileen, disse-lhe que ele se encontrava numa reunião.

 

Acabei de falar com o Jack Rogers explicou Casey. Creio que planeia um artigo em que dirá que vamos entregar a asa à China, e que há problemas nos gabinetes da direcção.

 

Oh, oh! exclamou Eileen. Isso não é nada agradável.

 

Seria bom que o Edgarton falasse com ele, para o tranquilizar.

 

O Edgarton não fala à imprensa afirmou Eileen. O John estará de volta às seis horas. Queres falar com ele, nessa altura?

 

É capaz de ser o melhor...

 

Está bem, meto-te na lista concluiu Eileen.

 

         ENSAIOS DE RESISTÊNCIA

         10:19

 

Parecia-se com um depósito de sucata aeronáutica. A paisagem estava salpicada por velhas fuselagens, caudas e bocados de asas, pousadas sobre andaimes ferrugentos. Porém, o ar estava cheio do constante zumbido dos compressores e viam-se fortes tubos a penetrar nas peças de aviões, como se fossem tubos intravenosos ligados a um paciente. Era ali que os aparelhos eram esforçados ao máximo, e era também o domínio do infame Amos Peters.

 

Casey avistou-o à sua direita. Era uma figura curvada, em mangas de camisa e com umas calças que mais pareciam sacos, por baixo da secção traseira da larga fuselagem de um N-22 da Norton.

 

Amos chamou, acenando enquanto se aproximava. O homem virou-se e olhou-a de relance.

 

Vai-te embora respondeu.

 

Na Norton, Amos era uma verdadeira lenda. Solitário e obstinado, tinha quase setenta anos, ultrapassara há muito a idade da reforma obrigatória mas no entanto continuava a trabalhar porque era vital para a companhia. A sua especialidade era o misterioso campo da resistência aos danos, ou da fadiga dos metais... e os testes de fadiga eram agora muito mais importantes do que tinham sido dez anos antes.

 

Desde que deixara de existir regulamentação, as transportadoras forçavam os aviões a voar muito mais tempo do que alguém jamais esperara. Na frota doméstica, havia agora três mil aviões com mais de vinte anos, e esse número duplicaria dentro de cinco anos. Ninguém sabia o que iria acontecer a tais aviões à medida que fossem envelhecendo.

 

Ninguém... excepto Amos.

 

Em 1988, fora Amos o escolhido pela NTSB como consultor para o famoso acidente do Aloha 737. A Aloha era uma transportadora que operava entre as ilhas no Havai. Um dos seus aviões viajava a 7200 metros de altitude quando, de repente, cinco metros e meio da sua "pele" exterior se soltaram, desde a porta da cabina até à asa. A cabina sofrera uma descompressão e uma hospedeira fora puxada para o exterior e morrera. Apesar da explosiva descompressão, o avião conseguira aterrar em segurança em Maui, onde fora imediatamente mandado para a sucata.

 

O resto da frota da Aloha fora examinada, em busca de sinais de corrosão e fadiga. Dois outros velhos 737 haviam ido para a sucata e um terceiro passara por meses de reparações. Todos tinham extensas fendas na cobertura exterior e outros sinais de corrosão. Quando a FAA emitira uma directiva ordenando inspecções ao resto da frota dos 737, tinham-se descoberto quarenta e nove outros aviões, pertencentes a dezoito companhias diferentes, a sofrer dos mesmos males.

 

Os observadores da indústria ficaram perplexos com o acidente, porque se partia do princípio que a Boeing, a Aloha e a FAA estariam a vigiar a frota de 737 da transportadora. As fendas provocadas pela corrosão era um problema conhecido desde os tempos dos primeiros 737 produzidos, e a Boeing já avisara a Aloha, informando-a de que o clima húmido e salgado do Havai constituía um ambiente "severamente" corrosivo.

 

Mais tarde, a investigação descobrira causas múltiplas para o acidente. Concluíra-se que a Aloha, com os seus pequenos saltos entre as ilhas acumulava ciclos de aterragens e descolagens a um ritmo demasiado grande para poder ser acompanhado pelas equipas de manutenção. Essas tensões, combinadas com a corrosão provocada pelo ar marítimo, produzia uma série de pequenas fendas na "pele" dos aviões. A Aloha não dera por elas por ter falta de pessoal treinado. A FAA não dera por elas porque o seu pessoal era insuficiente e tinha uma excessiva carga de trabalho. O principal inspector de manutenção da FAA em Honolulu supervisiona" nove empresas transportadoras e sete locais de manutenção espalhados pelo Pacífico, desde a China a Singapura e até às Filipinas. Eventualmente verificara-se um voo em que as fendas se haviam ampliado e a estrutura cedera.

 

Depois do incidente, a Aloha, a Boeing e a FAA tinham formado um círculo de acusações, disparando uns contra os outros. A não detecção dos danos estruturais na frota da Aloha foi atribuída a má gestão, má manutenção, más inspecções da FAA, má engenharia. Essas acusações fizeram ricochete de um lado para o outro durante anos.

 

Porém, o incidente com o voo da Aloha também servira para obrigar a indústria a prestar atenção ao problema do envelhecimento dos aviões, e fizera com que Amos ficasse famoso dentro da Norton. Convencera a administração a comprar mais aviões velhos, transformando as asas e fuselagens em objecto de testes intensivos. Dia após dia, os seus instrumentos aplicavam repetidas pressões aos velhos aviões, simulando as tensões das aterragens e descolagens, dos ventos e das turbulências, para que Amos pudesse ver como e onde estalavam.

 

Amos disse Casey, aproximando-se, sou eu, a Casey Singleton.

 

Ah, Casey murmurou Amos, pestanejando por causa da miopia.

 

Não te reconheci. O médico deu-me novos óculos... Hum, como estás?

 

Fez um gesto a dizer-lhe para o acompanhar e dirigiu-se para um pequeno edifício a alguns metros de distância.

 

Na Norton, ninguém compreendia como era que Casey conseguia en tender-se com Amos. Contudo, eram vizinhos, o homem vivia sozinho com o seu cão, um buldogue anão, e Casey ganhara o hábito, mais ou menos uma vez por mês, de lhe preparar uma refeição. Em troca, Amos regalava-a com histórias a respeito dos acidentes de aviões em que trabalhara, desde as primeiras quedas dos Comets da BOAC nos anos cinquenta. No que tocava aos aviões, os conhecimentos de Amos eram enciclopédicos. Casey aprendera muito na sua companhia. Para ela, Amos tornara-se uma espécie de consultor.

 

Não te vi numa destas manhãs? perguntou Amos.

 

Sim, com a minha filha.

 

Foi o que pensei. Queres café? Abriu a porta de um armário i Casey sentiu o forte odor a café queimado. O café de Amos era sempre terrível.

 

É boa ideia, Amos.

 

Espero que esteja bom disse o homem, enchendo-lhe uma chave na. Peço desculpa, mas não tenho natas.

 

Serve muito bem, assim como está. Amos não tinha natas havia mais de um ano.

 

Amos serviu-se de café, enchendo uma velha caneca manchada, e fez-lhe sinal para se sentar na desconjuntada cadeira colocada na frente da sua secretária, coberta por montanhas de relatórios. Casey leu alguns títulos: Simpósio Internacional FAAINASA sobre Integridade Estrutural Avançada. Durabilidade e Tolerância de Estruturas. Técnicas de Inspecção Termográfica. Controlo da Corrosão e Tecnologia de Estruturas. Amos pôs os pés em cima da secretária e abriu uma passagem entre as pilhas de publicações para a poder ver.

 

Digo-te uma coisa, Casey. É aborrecido trabalhar apenas com estes velhos aparelhos. Anseio pelo dia em que voltarei a ter outro T Dois.

 

T Dois repetiu Casey.

 

Oh, é claro, não sabes o que é. Só cá estás há cinco anos e durante esse tempo não fabricámos um único modelo novo. Quando construímos um novo avião, o primeiro a sair da linha de montagem é o T Um. É enviado para os testes estáticos. Colocamo-lo num banco de ensaios e sacudimo-lo até se desfazer em pedaços, para sabermos onde são os seus pontos fracos. O segundo avião a sair da linha é o T Dois. É utilizado para testes de fadiga, que constituem um dos problemas mais difíceis. Ao longo do (empo, o metal perde resistência e torna-se quebradiço: por isso, agarramos no T Dois, metemo-lo numa engenhoca e aceleramos os testes de fadiga. Simulamos aterragens e descolagens dia após dia, ano após ano. De acordo com a política da Norton, o aparelho é sujeito a esforços de fadiga equivalentes ao dobro do tempo de vida previsto pelos desenhadores. Se os engenheiros desenham um avião para durar vinte anos, ou seja, cerca de cinquenta mil horas de voo e vinte mil ciclos, fazemos o dobro disso nos testes, antes de o entregarmos ao cliente. Assim, temos a certeza de que os aviões aguentam. Que tal está o café?

 

Casey tomou um pequeno gole e conteve um estremecimento. Amos punha a água a correr através das mesmas borras, durante todo o dia. Era por isso que o seu café tinha um gosto muito característico.

 

Está óptimo, Amos.

 

É só pedir. Há mais de onde esse veio. De qualquer modo, a maior parte dos construtores fazem testes correspondendo ao dobro do tempo de vida previsto para o avião. Nós fazemo-los até quatro vezes esse tempo. É por isso que costumamos dizer que as outras companhias fabricam carcaças... e nós fabricamos croissants.

 

Sim comentou Casey, mas é por isso que o John Marder está sempre a dizer que os outros ganham dinheiro e nós não.

 

O Marder! resmungou Amos. Só sabe pensar em dinheiro. Nos velhos tempos, diziam-nos: façam o melhor avião que puderem. Agora dizem: façam o melhor que puderem, dentro de um certo preço. São ordens muito diferentes, se é que me entendes. Bebericou o café. Bom, então o que é, Casey? O cinco quatro cinco?

 

Casey confirmou com um aceno.

 

Quanto a essa história, não posso ajudar-te declarou Amos.

 

Porque dizes isso?

 

O avião é novo. A fadiga não é um factor.

 

Há um problema com este trinco, Amos disse Casey, mostrando a peça, metida dentro de um saco plástico.

 

Hum... Amos revirou a peça nas mãos e segurou-a sob a luz Isto deve ser... Espera, não me digas... o trinco de bloqueio do segundo slat.

 

Tens razão.

 

Claro que tenho razão retorquiu, franzindo a testa. Esta pá não presta.

 

Sim, eu sei.

 

Então, qual é o problema?

 

O Doherty pensa que foi o que provocou a falha no avião. Será possível?

 

Bom... Amos ficou a olhar para o tecto, a pensar. Aposto cem dólares em como não foi isto que falhou.

 

Casey suspirou. Voltara à estaca zero. Não tinham pistas.

 

Ficaste desanimada? perguntou-lhe Amos.

 

Para ser franca... sim.

 

Então não estás a prestar atenção retorquiu o homem. Trata-se de uma pista muito importante.

 

Porquê? Se tu mesmo disseste que não foi a causa da falha.

 

Casey... murmurou Amos, abanando a cabeça. Usa os miolos e pensa.

 

Tentou pensar, ali sentada, cheirando aquele péssimo café. Tentou descobrir onde Amos queria chegar... mas a sua mente estava vazia. Olhou-o do outro lado da secretária.

 

Estou a deixar escapar qualquer coisa? Explica-me.

 

Os outros trincos de fixação foram substituídos?

 

Não.

 

Foi apenas este?

 

Sim.

 

Porquê apenas este, Casey?

 

Não sei.

 

Então... trata de descobrir.

 

Para quê? Para que servirá isso? Amos levantou as mãos ao céu.

 

Casey, vamos lá, pensa no assunto. Tens um problema de slats no cinco quatro cinco. É um problema na asa.

 

Certo.

 

Agora, descobriste que substituíram uma peça da asa.

 

Certo.

 

Porque a substituíram?

 

Não sei...

 

A asa terá sido danificada, no passado? Aconteceu-lhe alguma coisa que levasse à substituição desta peça? Terão sido substituídas algumas outras peças? Haverá outras partes em mau estado, na asa? Ainda há vestígios de danos na asa?

 

Nenhum... que eu conseguisse ver.

 

Esquece o que podes ver, Casey retorquiu Amos, sacudindo a cabeça de impaciência. Vai ver os registos, incluindo os da manutenção. Investiga esta peça e obtém uma história da asa... porque há mais qual quer coisa errada.

 

Penso que irás descobrir mais peças falsas. Amos levantou-se, suspirando. Nos nossos dias, há cada vez mais aviões equipados com peças falsificadas. Suponho que seria de esperar. Parece que toda a gente acredita no Pai Natal...

 

Que queres dizer?

 

Pensam que podem ter qualquer coisa em troca de nada explicou Amos. Sabes, o governo acabou com os regulamentos a que as companhias aéreas estavam sujeitas, e toda a gente aplaudiu. Conseguimos viagens mais baratas... e toda a gente aplaudiu. Porém, para isso, as transportadoras têm de cortar nos custos. A comida passa a ser péssima. Não faz mal. Há menos voos directos e mais transferências. Não faz mal. Os aviões são mais sujos porque os interiores são renovados com menos frequência. Não faz mal. Mesmo assim, as companhias têm de cortar mais custos. Por isso, utilizam os aviões durante mais tempo e compram menos aviões novos. As frotas envelhecem. Não faz mal... durante algum tempo, mas os problemas acabarão por surgir. Entretanto, prosseguem as pressões sobre os custos. Onde irão cortá-los? Na manutenção? Nas peças? Onde? Os cortes não podem continuar indefinidamente. É impossível. Claro que, agora, o Congresso ajuda as companhias reduzindo as verbas para a FAA, pelo que haverá menos inspecções. As transportadoras podem diminuir as despesas de manutenção porque não há ninguém para as vigiar. O público não se preocupa porque, durante trinta anos, este país teve o melhor registo de segurança aeronáutica de todo o mundo. A questão está em que... pagámos para o ter. Pagámos os aviões novos e mais seguros, e pagámos as inspecções, para termos a certeza de que a manutenção era bem feita. Todavia, esses tempos acabaram. Agora, toda a gente acredita que é possível ter qualquer coisa em troca de nada.

 

Então, onde vamos parar? perguntou Casey.

 

Aposto os meus cem dólares declarou Amos que voltarão a regulamentar dentro de dez anos. Verificar-se-ão acidentes... e terão de o fazer. Os defensores do mercado livre vão protestar mas, na verdade,

 

O mercado livre não nos dá segurança. Só a teremos com a regulamentação. Se queremos bons alimentos, precisamos de inspectores. Se queremos uma boa água para beber, precisamos de inspectores. Se queremos um bom mercado bolsista, precisamos de um organismo que o controle. Se queremos companhias aéreas seguras, também temos de as regulamentar. Acredita, acabarão por o fazer.

 

E no cinco quatro cinco...

 

As companhias estrangeiras estão sujeitas a regulamentações menos rigorosas afirmou Amos, encolhendo os ombros. Fazem mais ou menos o que lhes apetece. Procura os registos de manutenção... E, se desconfiares de alguma peça, olha bem para os correspondentes documentos...

 

Casey começou a levantar-se, mas Amos prosseguiu:

 

No entanto, espero... Casey virou-se para ele.

 

-Sim?

 

... que compreendas bem a situação. Para verificares essa parte, tens de começar pelos registos do avião...

 

Eu sei... que estão no Edifício Sessenta e Quatro. Se fosse a ti, não ia lá... muito menos sozinha.

 

Ora, Amos, já trabalhei na montagem. Não me acontecerá nada. Amos abanava a cabeça.

 

O voo cinco quatro cinco é uma verdadeira batata quente. Sabes como aqueles rapazes pensam. Se conseguirem estragar a investigação, acabbarão por o fazer... por todos os meios. Tem cuidado.

 

Está bem.

 

Não te esqueças, tem cuidado, muito cuidado.

 

         EDIFÍCIO 64

         11:45

 

Ao longo do centro do Edifício 64 existia toda uma série de compartimentos que abrigavam as peças que entravam na linha de montagem bem como alguns locais de trabalho. Estes encontravam-se no interior de pequenos compartimentos e continham um leitor de microfichas, um terminal de computador para as peças e um outro terminal ligado ao computador central.

 

Casey debruçava-se sobre um leitor de microfichas, percorrendo as fotocópias onde se encontravam os registos da Fuselagem 217, pois era essa a designação original da fábrica para o avião envolvido no acidente com o voo TPA 545.

 

Jerry Jenkins, o controlador do abastecimento de peças, mantinha-se a seu lado, nervoso, tamborilando com a caneta na mesa.

 

Já encontraste? perguntou. Já encontraste?

 

Jerry... disse-lhe Casey. Tem calma.

 

Estou calmo respondeu o homem, olhando para o recinto da montagem. Estava apenas a pensar que podias ter feito isto no período entre turnos.

 

Era um facto que Casey teria despertado menos atenções se ali tivesse ido nessa altura.

 

Jerry explicou, este assunto é urgente.

 

Anda toda a gente muito excitada com a venda à China afirmou Jerry, voltando a tamborilar com a caneta. Que direi eu aos rapazes?

 

Diz aos rapazes... começou Casey que, se perdermos a venda à China, esta linha de montagem será encerrada e todos nós ficaremos sem emprego.

 

Isso é verdade? inquiriu o homem, engolindo em seco. Tenho ouvido dizer...

 

Jerry, deixa-me ver os registos, está bem?

 

O registo era formado pela enorme massa de documentação, composta por um milhão de papéis, um para cada peça, que fora utilizada para a montagem do avião. Toda essa papelada, bem como outra ainda mais extensa que era exigida pela FAA para a certificação dos aviões, continha informações que eram propriedade exclusiva da Norton. A FAA não armazenava esses dados porque, se o fizesse, a concorrência podia ter acesso aos mesmos, invocando a Lei da Liberdade de Informação. Assim, a Norton guardava, num enorme edifício em Compton, um total de duas mil e quinhentas toneladas de documentos, que enchiam vinte e quatro metros de prateleiras para cada avião. Tudo isso fora passado a microfichas para poder ser consultado na linha de montagem. Porém, encontrar o documento correspondente a uma única peça era uma tarefa demorada e...

 

Já encontraste? Já encontraste? insistiu.

 

Sim declarou Casey, finalmente. Já o encontrei.

 

Olhava para a fotocópia de uma folha de papel da Hoffman Metal Works, de Montclair, Califórnia. O trinco de fixação dos slats era descrito por um código que correspondia ao dos desenhos de engenharia:

 

A/908/B-2117L (2) Ant SI Ltch. SS/HT. Indicava a data de fabrico, tinha um carimbo com a data de entrega na fábrica e uma data de instalação. Seguiam-se dois outros carimbos, um assinado pelo mecânico que instalara a peça, e outro assinado pelo inspector da Qá que aprovara o trabalho.

 

Então perguntou Jerry, era uma peça de origem, ou não:

 

Sim, era de origem. A Hoffman era a fabricante original do equipamento e fornecera a peça directamente, sem a intervenção de um distribuidor.

 

Jerry continuava a olhar para a sala de montagem. Aparentemente, ninguém lhes prestava atenção, mas Casey sabia que estavam a ser vigiados.

 

Vais-te embora agora?

 

Sim, Jerry, vou-me já embora.

 

Atravessou a sala de montagem, mantendo-se no corredor ao longo das caixas com as peças, longe das gruas que se encontravam lá em cima í olhando para os passadiços superiores, para ter a certeza de que não havia lá ninguém. Não havia. Aparentemente, iam deixá-la em paz.

 

O que descobrira até ali era perfeitamente claro: a peça que fora instalada originalmente no TPA 545 viera directamente de um fornecedor de confiança. A peça original fora boa. A que Doherty encontrara na asa não prestava.

 

Amos tivera razão.

 

No passado, acontecera qualquer coisa àquela asa. Uma coisa que dera origem a uma reparação.

 

O que fora?

 

Ainda tinha muito trabalho pela frente... e pouco tempo para o fazer

 

         NORTON DIVISÃO DE QUALIDADE

         12:30

 

Se a peça era de má qualidade, de onde viera? Precisava dos registos de manutenção, que ainda não tinham aparecido. Onde estava Richman? De regresso ao gabinete, folheou um monte de faxes. Todos os representantes da empresa espalhados pelo mundo pediam informações a respeito do N-22. O fax do representante em Madrid era típico.

 

     DE: S. RAMONES, FSR MADRID

     PARA: C. SINGLETON, QA/IRT

TENHO PERSISTENTES INFORMAÇÕES POR INTERMÉDIO DO MEU CONTACTO NA IBÉRIA, B. ALONSO, DIZENDO QUE DEVIDO AO INCIDENTE EM MIAMI A FAA IRÁ ANUNCIAR MAIS UM ADIAMENTO NA CERTIFICAÇÃO DO N-22 CITANDO "PREOCUPAÇÕES QUANTO A FIABILIDADE".

         POR FAVOR, INFORME.

 

Casey suspirou. O que o homem lhe comunicava era de esperar. A JÁ A era o organismo europeu equivalente à FAA americana. Recentemente, aos fabricantes americanos tinham-se-lhe deparado muitas dificuldades junto dessa organização. A FAA exercitava os seus novos músculos regulamentadores e incluía muitos burocratas que não faziam uma distinção clara entre vantagens comerciais negociadas e temas como a fiabilidade dos aparelhos. Havia algum tempo que a FAA fazia esforços especiais para forçar os Americanos a utilizar motores a jacto europeus. Os Americanos resistiam, pelo que era lógico que a FAA se aproveitasse do rebentamento de um rotor em Miami para fazer pressões sobre a Norton, adiando a certificação.

 

Porém, no fundo, tratava-se de um problema político que não lhe dizia respeito. Passou para o fax seguinte.

 

     DE: S. NIETO, FSR VANCOUVER

     PARA: C. SINGLETON, QA/IRT

CO-PILOTO LU ZANG PING SUBMETIDO A CIRURGIA DE URGÊNCIA àS 04:00 HORAS DE HOJE NO HOSPITAL GERAL DE VANCOUVER POR CAUSA DE HEMATOMA SUBDURAL: NÃO ESTARÁ ACESSÍVEL PARA INTERROGATÓRIO PELO MENOS 48 HORAS. SEGUIRÃO MAIS PORMENORES.

 

Casey esperara conseguir uma entrevista com o homem antes daquele período de quarenta e oito horas. Queria saber por que motivo se encontrava na traseira do avião e não na cabina... mas parecia que a resposta a essa pergunta teria de esperar até ao fim-de-semana.

 

Passou para o fax seguinte e olhou-o, espantada:

 

     DE: RICK RAKOSKI, FSR HONG KONG

     PARA: CASEY SINGLETON, QA/IRT

RECEBI PEDIDO REGISTOS DE MANUTENÇÃO PARA VOO TPA 545, FUSELAGEM 271, REGISTO ESTRANGEIRO 098/443/HB09 E TRANSMITIDO À TRANSPORTADORA.

EM RESPOSTA AO PEDIDO DA FAA A TRANSPACIFIC FORNECEU TODOS OS REGISTOS DA MANUTENÇÃO DE KAITAK, EM HONG-KONG, SINGAPURA E MELBURNE. FORAM TRANSMITIDOS PARA O SISTEMA ONLINE DA NORTON ÀS 22:10 HORA LOCAL. AINDA ESTOU A TENTAR AS ENTREVISTAS. É MUITO MAIS DIFÍCIL. SEGUIRÃO PORMENORES.

 

Era uma boa jogada da transportadora, pensou Casey. Como não qeriam autorizar as entrevistas, haviam decidido fornecer tudo o mais, numa aparente exibição de cooperação.

 

Os registos de Los Angeles estão a chegar agora declarou Norma, entrando no seu gabinete. Os de Hong Kong já cá estão.

 

Sim, já sei. Sabes o nome do ficheiro?

 

Aqui está. Norma entregou-lhe uma tira de papel e Casey martt lou algumas teclas no terminal por trás da sua secretária. Verificou-se um pequeno atraso enquanto era estabelecida a ligação ao computador principal... e o ecrã iluminou-se.

 

     REG. MANUT. N-22

     FUSELAGEM 271 098/443/HB09

   DD 5/14

     MANUT KAITAK

     MANUT SNGPOR

     MANUT MELB

     AS 6/19 MOD 8/12

     REG MANUT (A-C)

     REG MANUT (APENAS B)

     REG MANUT (A, APENAS)

 

Muito bem disse Casey, lançando-se ao trabalho.

 

Passou-se uma boa hora antes de Casey conseguir algumas respostas. Porém, no final dessa hora já tinha uma boa imagem sobre o que acontecera ao trinco dos slats do avião da Transpacific.

 

No dia 10 de Novembro do ano anterior, num voo de Bombaim para Melburne, o aparelho da Transpacific tivera um problema de comunicações por rádio. O piloto fizera uma paragem, não prevista, na ilha indonésia de Java. O rádio fora reparado sem dificuldades. Bbastara mudar um painel com um circuito fundido) e as equipas de terra javanesas haviam reabastecido o avião antes de este prosseguir o voo para Melburne.

 

Depois de o avião aterrar em Melburne, as equipas de terra australianas tinham verificado que a asa direita estava danificada.

 

Obrigada, Amos!

 

A asa fora danificada.

 

Os mecânicos de Melburne assinalaram que a estação de combustível da asa direita estava torcida, e que o trinco dos slats que lhe ficava adjacente também fora levemente danificado. Tinham chegado à conclusão de que o problema fora causado pelo pessoal de terra, em Java, durante o reabastecimento.

 

As estações de combustível do N-22 localizavam-se na parte inferior da asa, logo a seguir ao bordo de ataque. Uma equipa de terra inexperiente utilizara um equipamento inapropriado para reabastecer o N-22 e torcera a estação de combustível quando da ligação da mangueira. Isso dobrara o suporte, bem como a placa de acoplamento e o trinco adjacente.

 

Os trincos dos slats só raramente eram mudados e os serviços de manutenção de Melburne não possuíam um sobressalente. Em vez de atrasarem o avião na Austrália, fora decidido que prosseguisse para Singapura, onde efectuaria a reparação. Contudo, em Singapura, um mecânico de olhos mais atentos achara que o documento que acompanhara o trinco sobressalente tinha um aspecto suspeito. Os serviços de manutenção haviam ficado com dúvidas a respeito da genuinidade da peça.

 

Como esta, já colocada no seu lugar, funcionava normalmente, Singapura preferira não a substituir e o avião seguira para Hong Kong, para o terminal da Transpacific, onde a peça seria trocada por uma autêntica. Os serviços de manutenção de Hong Kong, conscientes de que se encontravam num dos grandes centros mundiais de falsificação, tomavam precauções especiais para garantir que as suas peças de substituição eram genuínas e encomendavam-nas directamente aos fornecedores originais, nos Estados Unidos. A peça nova fora instalada no dia 13 de Novembro do ano anterior.

 

A documentação parecia em ordem. A fotocópia surgiu no ecrã de Casey. A peça procedia da Hoffman Metal Works, em Montclair, Califórnia, o fornecedor original da Norton. No entanto, Casey sabia que o documento era falso, uma vez que a peça era falsa. Mais tarde, iria investigar o assunto para saber qual a sua verdadeira proveniência.

 

Contudo, de momento, a questão mais importante era aquela que Amos levantara: teriam sido substituídas outras peças?

 

Sentada no seu terminal de computador, Casey percorreu os registos da manutenção de Hong Kong para o dia 13 de Novembro, para investigar que mais havia sido feito ao avião naquele dia.

 

Era um trabalho lento. Tinha de analisar fotocópias de documentos, com anotações escrevinhadas pelos vários mecânicos. Todavia, acabou por descobrir uma lista dos trabalhos feitos na asa.

 

Havia três anotações.

 

CHG RT LDLT FZ-7. Mudar o fusível das lâmpadas de aterragem do lado direito.

CHG RT SLTS LK PIN. Mudar o trinco de fixação dos slats do lado direito.

CK ASS EQ PKG. Verificar o equipamento associado. Seguia-se uma anotação do mecânico: NRML, o que significava que o equipamento fora examinado e considerado normal.

 

O equipamento associado era constituído por um subgrupo de peças que deveriam ser verificadas sempre que surgia uma peça defeituosa. Por exemplo, se os vedantes da estação de combustível do lado direito estivessem gastos, era costume verificarem-se os vedantes do lado esquerdo, uma vez que faziam parte do equipamento associado.

 

A mudança do trinco dos slats desencadeara uma verificação do equipamento associado por parte da manutenção.

 

Mas... que equipamento?

 

Casey sabia que esses subgrupos de equipamento eram definidos pela Norton. Porém, não podia procurar a lista no computador do seu gabinete. Para a conseguir, teria de voltar ao terminal instalado na sala de montagem.

 

Empurrou a cadeira para trás e levantou-se.

 

         EDIFÍCIO 64

         14:40

 

O Edifício 64 estava praticamente deserto e a linha de montagem parecia abandonada no período de mudança de turnos. Havia uma hora de diferença entre o fim do primeiro e o começo do segundo, porque era esse o tempo necessário para que os parques de estacionamento se esvaziassem. O primeiro turno terminara às 14:30 e o segundo iniciava-se às 15:30.

 

Fora naquele período que Jerry Jenkins lhe dissera para examinar os registos, uma vez que ninguém estaria a ver. Casey teve de admitir que o homem tivera razão. Não havia por ali ninguém.

 

Dirigiu-se directamente ao compartimento do encarregado das peças, em busca de Jenkins, mas este não se encontrava lá. Deparou-se-lhe o dirigente da secção local da QA, instalado no seu compartimento rodeado por redes de arame e perguntou-lhe por Jerry Jenkins.

 

O Jerry? Foi para casa.

 

Porquê?

 

Disse que não estava a sentir-se bem.

 

Casey franziu a testa. Jenkins não deveria ter saído antes das dezassete horas. Encaminhou-se para o terminal do computador, para obter a informação que desejava.

 

Dedilhou o teclado e chamou a base de dados sobre os subgrupos de peças associadas. Inseriu a indicação RT SLATS LK PIN e recebeu a resposta que procurava:

 

     RT SLATS DRV TRK (22 RW

     RT SLATS LVR (22 RW

     RT SLATS HYD ACT (22 RW

   RT SLATS PSTN (22 RW

     RT SLATS FD CPLNG (22 RW

     RT PRX SNSR (22 RW

     RT PRX SNSR CPLNG (22 RW

     RT PRX SNSR PLT (22 RW

     RT PRX SNSR WC (22 RW

     2-5455 2-5769 2-7334 2-3444 2-3445 4-0212 4-0445 4-0343 4-0102

   SLS) SLS) SLS) SLS) SLC) PRC) PRC) PRC) PRW)

 

Fazia sentido. O subgrupo de peças associadas era constituído pelos outros cinco elementos dos slats: a calha, a alavanca, o actuador hidráulico, o êmbolo e o travão de actuação.

 

Para além disso, a lista dava instruções aos mecânicos para verificar o sensor de proximidade que se encontrava mais perto, bem como o seu sistema de fixação, cobertura e fios.

 

Sabia que Doherty já inspeccionara a calha. Se Amos tivesse razão, deveriam inspeccionar o sensor de proximidade com muito cuidado. Não lhe parecia que alguém o tivesse feito.

 

O sensor de proximidade estava localizado nas profundezas da asa. Era difícil de atingir e de inspeccionar.

 

Poderia ter sido a causa do problema?

 

Sim, admitiu. Era possível.

 

Desligou o terminal e começou a atravessar a sala de montagem, de volta ao seu gabinete. Precisava de telefonar a Ron Smith, para lhe dizer para inspeccionar o sensor. Avançava por baixo de aviões vazios, na direcção das portas na extremidade norte do edifício.

 

Quando se aproximou das portas, viu dois homens a entrar, recortados contra o sol do meio-dia. Mesmo assim, conseguia ver que um deles usava uma camisa vermelha, aos quadrados. O outro usava um boné de basebol.

 

Casey virou-se para o homem da QA para lhe pedir que chamasse a Segurança. Porém, o homem desaparecera e o seu compartimento de arame encontrava-se vazio. Casey olhou em volta e de súbito compreendeu que a sala estava deserta. Não se via ninguém excepto uma negra idosa no outro extremo do edifício, que varria o chão. Encontrava-se a oitocentos metros de distância.

 

Lançou uma olhadela ao relógio. As pessoas só começariam a aparecer dentro de quinze minutos.

 

Os dois homens avançavam para ela.

 

Casey virou-se e começou a afastar-se, refazendo o caminho por onde viera. Podia lidar com aquilo, pensou. Calmamente, abriu a mala e pegou no telefone celular, para ligar para a Segurança.

 

Contudo, o telefone não funcionava. Não tinha rede. Compreendeu que se encontrava no centro do edifício, que tinha o telhado forrado com uma rede de fios de cobre a fim de bloquear as transmissões de rádio exteriores sempre que os sistemas dos aviões eram testados.

 

Não poderia utilizar o telefone celular enquanto não chegasse ao outro lado do edifício.

 

A oitocentos metros de distância.

 

Caminhou mais depressa, os seus sapatos estalavam no chão de cimento. O som parecia ecoar por toda a enorme sala de montagem. Estais realmente sozinha? Claro que não. Naquele momento encontravam-se ali várias centenas de pessoas, embora não conseguisse vê-las. Estavam dentro dos aviões ou por trás dos enormes andaimes que os rodeavam. Havia centenas de pessoas à sua volta. Ia vê-las de um momento para o outro.

 

Espreitou por cima do ombro.

 

Os dois homens ganhavam terreno.

 

Apressou o passo, quase a correr, pouco firme sobre os saltos altos. De súbito, pensou: isto é ridículo. Sou uma executiva da Norton Aircraft..,! corro através da fábrica em pleno dia.

 

Diminuiu o ritmo do andamento e voltou a um passo normal.

 

Respirou fundo.

 

Olhou para trás. Os homens estavam mais perto.

 

Deveria enfrentá-los? Não, concluiu. A não ser que visse por ali outras pessoas.

 

Caminhou mais depressa.

 

Para a sua esquerda ficava uma zona de armazenamento. Normalmente, estariam ali dúzias de homens, à procura de peças ou a trabalhar em caixotes... mas a zona encontrava-se vazia.

 

Deserta.

 

Olhou por cima do ombro. Os homens encontravam-se a cinquenta metros e aproximavam-se.

 

Sabia que, se começasse a gritar, faria aparecer pelo menos uma dúzia de mecânicos. Todavia, aqueles dois rufiões afastar-se-iam, desaparecendo por trás de ferramentas e andaimes, e ela faria papel de parva. Não sobreviveria a uma coisa dessas. Passaria a ser a rapariga que ficara histérica na sala de montagem.

 

Não gritaria.

 

Nunca.

 

Onde diabo estavam os alarmes contra incêndios? Os alarmes das emergências médicas? Os alarmes para os materiais perigosos? Sabia que se encontravam espalhados por todo o edifício. Passara anos a trabalhar ali. Devia ser capaz de se recordar da sua localização. Carregaria num dos botões e diria que fora um acidente...

 

Não via qualquer botão de alarme.

 

Os homens encontravam-se a trinta metros. Se começasse a correr, apanhavam-na em segundos. No entanto, estavam a ser cautelosos. Também eles esperavam deparar-se-lhes outras pessoas de um momento para o outro.

 

Mas... Casey não via ninguém.

 

À sua direita erguia-se uma floresta de vigias azuis. Eram as grandes estruturas que mantinham as secções da fuselagem no seu lugar, enquanto eram rebitadas umas às outras. Era o seu último esconderijo.

 

Sou uma executiva da Norton Aircraft. Não posso...

 

Para o diabo com tudo isso.

 

Virou para a direita e dobrou-se para passar sob as vigas. Passou por escadas e por lâmpadas suspensas. Ouviu os homens, por trás dela, a soltarem uma exclamação de surpresa e a começarem a segui-la. No entanto, já se movia rapidamente, numa escuridão quase total.

 

Casey sabia como se deslocar ali em baixo. Avançava depressa, confiante, olhando para o alto para ver se havia alguém por cima dela. Em geral, encontravam-se vinte a trinta homens em cada uma das posições de trabalho, no alto dos andaimes, juntando as secções das fuselagens sob o clarão das luzes fluorescentes. No entanto, não via ninguém.

 

Por trás dela, ouvia os homens a resmungar e a bater nas vigas transversais, praguejando.

 

Começou a correr, desviando-se das vigas mais baixas, passando por cima de cabos e caixotes, e de súbito deparou-se-lhe uma clareira. Era a chamada posição de trabalho número catorze. Um avião, pousado sobre o trem de aterragem, erguia-se muito acima dela. Muito mais acima, em volta da cauda, encontravam-se os "jardins suspensos", a dezoito metros de altura.

 

Levantou os olhos para a fuselagem e viu a silhueta de alguém, no interior. Havia alguém numa janela.

 

Uma pessoa no interior do avião.

 

Finalmente! Trepou as escadas para o avião, com os pés a martelar nos degraus de metal. Subiu o equivalente a dois andares e parou para olhar. Lá no alto, por cima dela, nos "jardins suspensos", avistou três mecânicos encorpados, com os seus capacetes de protecção. Encontravam-se apenas a três metros do telhado, a trabalhar no rebordo superior do leme do avião. Conseguia ouvir o zumbido rápido e forte das ferramentas motorizadas.

 

Olhou para baixo e viu os dois homens que a perseguiam. Livraram-se da floresta de pilares azuis, olharam para o alto, avistaram-na e avançaram.

 

Casey continuou a subir.

 

Alcançou a porta traseira do avião e correu para o interior. A grande fuselagem, por terminar, era enorme e estava vazia. Não passava de uma sucessão de arcos com um brilho baço, semelhante à barriga de uma baleia de metal. A meio encontrava-se uma solitária mulher asiática, instalara os cobertores de isolamento, prateados, que forravam as paredes. A mulher olhou-a com uma expressão tímida.

 

Há mais alguém a trabalhar aqui? perguntou Casey.

 

Não, respondeu a mulher, abanando a cabeça. Tomou um ar assustado, como se tivesse sido apanhada a fazer algo de errado. Casey virou-se e correu de volta à porta.

 

Lá em baixo, os homens estavam apenas a um andar de distância. Casey atirou-se para as escadas, subindo para os jardins suspensos.

 

Quando começara a subir, a escada de metal tinha três metros de lar gura, mas fora estreitando e estava agora reduzida a sessenta centímetros. Para além disso, era mais íngreme, parecendo trepar no vazio rodeada por uma entontecedora confusão de cruzetas de andaimes. A toda a sua volta viam-se cabos eléctricos suspensos como lianas numa selva. Os ombros de Casey embatiam em caixas metálicas de junção à medida que subia. A escada oscilava sob os seus pés e desviava-se abruptamente para a direita em ângulos rectos, mais ou menos a cada dez degraus. Casey estava agora doze metros acima do solo e olhava para baixo, para a parte superior da fuselagem do avião, e para o alto, para o topo da cauda que se erguia por cima dela.

 

Estava muito alto. Repentinamente, sentiu-se invadida pelo pânico. Virando-se para os homens que trabalhavam na cauda, gritou:

 

Eh! Eh!

 

Os homens ignoraram-na.

 

Olhou para baixo e viu os dois homens que a perseguiam, com os corpos visíveis apenas de uma maneira intermitente por entre as barras dos andaimes.

 

Eh! Eh!

 

Os homens continuaram a ignorá-la. Continuou a subir e compreendeu por que razão não lhe respondiam. Usavam protecções de ouvidos, sob forma de tampas de plástico negro colocadas por cima das orelhas.

 

Não podiam ouvi-la.

 

Continuou a trepar.

 

Quinze metros acima do solo, a escada desviou-se abruptamente para a direita, em volta da superfície plana e negra dos lemes horizontais que só bressaíam da cauda do avião. Os lemes horizontais impediam-na de ver os homens que lá estavam em cima. Casey avançou lentamente, arrastando-se em volta dos lemes. As suas superfícies eram negras por serem fabricadas com resinas compósitas e recordou-se que não lhes devia tocar com as mãos nuas.

 

No entanto, desejava poder agarrar-se a elas. Dali para cima, as escadas não tinham sido feitas a pensar em pessoas que fugiam. Oscilavam loucamente e os seus pés escorregavam nos degraus. Agarrou-se ao corrimão com as mãos suadas quando se sentiu a deslizar, para baixo, talvez metro e meio, antes de parar.

 

Continuou a subir.

 

Já não conseguia ver o pavimento da sala. Encontrava-se oculta pelas diversas camadas de andaimes por baixo dela. Não lhe era possível verificar se o segundo turno começara ou não a trabalhar.

 

Continuou a subir.

 

Um pouco mais acima, começou a sentir o espesso ar quente aprisionado sob o telhado do Edifício 64. Recordou-se do nome que os homens davam àquela posição de trabalho: a sauna.

 

Continuando a subir, atingiu finalmente os lemes horizontais. Quando continuou a subir, as escadas descreveram novo ângulo, recuando e aproximando-se da superfície vertical da cauda, ocultando-lhe os homens que trabalhavam do outro lado. Já não queria olhar para baixo... E via os grandes barrotes de madeira do telhado, que ficavam a curta distância. Mais metro e meio... mais um desvio das escadas... contornou a cauda... e então...

 

Parou e ficou a olhar.

 

Os homens haviam desaparecido.

 

Espreitou e viu os três capacetes amarelos por baixo dela. Encontravam-se numa plataforma motorizada e desciam para o pavimento da fábrica.

 

-Eh! Eh!

 

Os homens com os capacetes não olharam para cima.

 

Casey virou a cabeça para trás e para baixo, ouvindo os ruídos metálicos dos dois homens que continuavam a subir as escadas atrás dela. Sentia a vibração das suas passadas. Sabia que estavam perto.

 

Já não tinha por onde escapar.

 

Directamente na sua frente, as escadas terminavam numa plataforma metálica, um quadrado com um metro e vinte de largura, encostado à cauda do avião. Era rodeada por um corrimão... e por baixo era o vazio.

 

Encontrava-se a dezoito metros de altura, numa plataforma minúscula, ao lado da enorme superfície da cauda do avião.

 

Os homens vinham a caminho.

 

Não tinha para onde ir.

 

Nunca devia ter começado a subir, pensou. Teria sido melhor ficar lá em baixo. Agora, não tinha escolha.

 

Casey passou uma perna por cima do corrimão da plataforma. Esticou-se na direcção do andaime e agarrou-o. O metal fora aquecido pelo ar junto ao telhado. Passou a outra perna por cima do corrimão da plataforma.

 

A seguir começou a descer pelo exterior do andaime, procurando apoios.

 

Casey compreendeu, quase imediatamente, que cometera um erro. O andaime fora construído com vigas cruzadas, em X. Quando as agarradas mãos deslizavam, e os seus dedos embatiam dolorosamente no ponto de cruzamento das vigas metálicas. Os seus pés também escorregavam sobre as superfícies inclinadas. As barras tinham rebordos aguçados e difíceis de agarrar. Depois de descer apenas por instantes, já estava sem fôlego. Prendeu-se a um cruzamento de barras com os braços e parou, para normalizar a respiração.

 

Não olhou para baixo.

 

Virando-se para a esquerda, viu os dois homens empoleirados na pequena plataforma. O homem da camisa vermelha e o homem do boné de basebol. Estavam parados, olhando-a, tentando decidir o que deveriam fazer a seguir. Casey encontrava-se cerca de metro e meio mais abaixo, suspensa no exterior dos andaimes.

 

Viu um dos homens a calçar luvas de trabalho.

 

Compreendeu que precisava de continuar a descer. Cuidadosamente desencaixou os braços e desceu. Metro e meio. Mais metro e meio. Estava ao nível dos lemes horizontais do avião, que já conseguia ver por entre vigas cruzadas.

 

Contudo, as vigas oscilavam.

 

Olhou para cima e viu o homem da camisa vermelha a descer atrás dela. Era forte e movimentava-se rapidamente. Iria alcançá-la dentro de poucos instantes.

 

O segundo homem descia as escadas, parando de vez em quando para espreitar através dos andaimes.

 

O homem da camisa vermelha encontrava-se a uns meros três metros de distância, por cima dela.

 

Casey continuou a descer.

 

Tinha os braços em fogo e a respiração era irregular e ofegante. Os andaimes encontravam-se cobertos de gordura em sítios inesperados e as suas mãos deslizavam. Sentia o homem por cima dela, sempre a descer. Olhou e viu as suas grandes botas de trabalho alaranjadas, com pesadas solas de crepe.

 

Dentro de instantes, o homem pisar-lhe-ia os dedos.

 

Quando Casey continuou a descer, houve qualquer coisa que lhe bateu no ombro esquerdo. Olhou para trás das costas e viu um cabo eléctrico suspenso do telhado. Tinha cerca de cinco centímetros de espessura e estava coberto por plástico isolador cinzento. Que peso conseguiria aguentar? Por cima dela, o homem continuava a descer.

 

Era tudo ou nada.

 

Esticou-se e deu um puxão no cabo. Parecia firme. Olhou para cima i não viu qualquer caixa de junção. Puxou o cabo para ela e rodeou-o com um braço. A seguir, rodeou-o com as pernas. Quando as botas do homem já quase a atingiam, Casey largou o andaime, ficou pendurada no cabo... e começou a deslizar.

 

Tentou descer mão a mão, mas os seus braços estavam demasiado enfraquecidos. Deslizou para o solo, com as mãos a arder.

 

Ia demasiado depressa. Não conseguia controlar a descida.

 

A dor provocada pela fricção era intensa. Desceu três metros... mais três metros. Descontrolou-se. Os seus pés embateram numa caixa de junção e parou, oscilando em pleno ar. Passou as pernas para lá da junção prendeu o cabo entre os pés e deixou que o peso do corpo a levasse.

 

Sentiu o cabo começar a soltar-se na caixa de junção.

 

Houve uma chuva de faíscas e os alarmes das emergências berraram ao longo de todo o edifício. O cabo oscilava para um lado e para o outro. Em baixo, ouviam-se gritos. Olhou e ficou chocada ao descobrir que estava apenas a cerca de dois metros e meio do solo. Havia braços estendidos para ela. As pessoas gritavam.

 

Casey largou-se e caiu.

 

Ficou surpreendida com a rapidez com que recuperou. Pôs-se de pé, enbaraçada, sacudindo as roupas.

 

Estou bem repetiu para as pessoas amontoadas à sua volta. Estou bem, a sério. Os paramédicos apareceram a correr mas Casey recusou a sua assistência com um gesto.

 

Naquele momento, os operários que se encontravam na sala de montagem já tinham reparado no seu cartão identificador, marcado com uma tora azul, e estavam confusos. Que fazia ali uma executiva, pendurada nos cabos? Mostravam-se hesitantes e recuavam, sem saberem muito bem como reagir.

 

Estou bem, está tudo bem. Continuem o que estavam a fazer...

 

Os paramédicos protestaram, mas Casey abriu caminho através da multidão, afastando-se. De repente, Kenny Burne estava a seu lado e passava-lhe um braço por cima dos ombros.

 

Que diabo se passa aqui? perguntou.

 

Nada.

 

Casey, não devias estar na sala de montagem, lembras-te?

 

Lembro-me, sim afirmou.

 

Deixou que Kenny a acompanhasse até ao exterior do edifício, para a luz do Sol. Semicerrou os olhos por causa da claridade. O enorme parque de estacionamento já se encontrava cheio com os carros do segundo turno. O sol reflectia-se em filas e filas de pára-brisas.

 

Tens de ter mais cuidado, Casey disse Kenny, enfrentando-a. Percebes o que quero dizer?

 

Claro que percebo!

 

Casey olhou para baixo, para as roupas. Viu uma grande faixa negra, de óleo, ao longo da blusa e da saia.

 

Tens alguma muda de roupas aqui na fábrica? inquiriu Burne.

 

Não. Preciso de ir a casa.

 

Será melhor que te dê uma boleia disse o homem. Casey ia começar a protestar, mas calou-se.

 

Obrigado, Kenny respondeu.

 

         ADMINISTRAÇÃO

         18:00

 

John Marder levantou os olhos por trás da secretária.

 

Ouvi dizer que houve uma confusão no Sessenta e Quatro. Que se passou?

 

Nada. Estava apenas a verificar uma coisa.

 

Não te quero sozinha na sala de montagem, Casey declarou, com um aceno, em particular depois do que aconteceu hoje de manhã com a grua. Se precisarem de lá ir, pede ao Richman ou a um dos engenheiros que te acompanhe.

 

Está bem.

 

O momento não é o mais oportuno para correres riscos.

 

Compreendo.

 

Bom... Marder agitou-se na cadeira. Que história é essa a respeito de um jornalista?

 

O Jack Rogers está a trabalhar num artigo que pode ser desagradável explicou Casey. O sindicato afirma que vamos entregar o fabrico da asa ao estrangeiro. Alguém lhes entregou documentos que, alegada mente, o comprovam... e o homem está a relacionar essa fuga de informações com... hum... fricções entre os dirigentes.

 

Fricções? perguntou Marder. Que fricções?

 

Disseram-lhe que tu e o Edgarton estão em guerra. Perguntou-me se eu pensava que os conflitos entre os gestores poderiam afectar a venda.

 

Oh, Cristo! exclamou Marder, num tom aborrecido. Isso é ridículo. Quanto a isto, apoio o Hal a cem por cento. A venda é essencial para a companhia... e não houve qualquer fuga de informações. Que lhe disseste?

 

Nada... respondeu Casey. Mas se queremos impedir que escréva o artigo, temos de lhe dar algo de melhor. Uma entrevista com o Edgarton... ou um exclusivo sobre a venda à China. É a única maneira.

 

Está bem... disse Marder. O Hal não fala com a imprensa. Posso pedir-lho, mas tenho a certeza de que não aceitará.

 

Bom, alguém terá de o fazer declarou Casey. E se fores tu?

 

Poderá ser difícil murmurou Marder. O Hal deu-me instruções para evitar os meios de comunicação até que a venda se concretize. Preciso de ter cuidado. Esse tipo é de confiança?

 

Sim, de acordo com a minha experiência.

 

Se eu lhe der qualquer coisa, pedindo para não ser citado, achas que o fará?

 

Sem dúvida. Só precisa de elementos para um artigo.

 

Então... está bem, falarei com ele. Marder escrevinhou um apontamento. Mais alguma coisa?

 

Não, é tudo respondeu Casey, virando-se para sair do gabinete.

 

A propósito, como vai o Richman?

 

Vai bem, mas tem falta de experiência.

 

Parece-me um tipo brilhante disse Marder. Aproveita-o. Dá--lhe qualquer coisa para fazer.

 

Está bem concordou Casey.

 

Foi esse o problema com as Vendas. Não lhe deram trabalho para fazer.

 

Está bem repetiu Casey.

 

Vemo-nos amanhã, na reunião da IRT concluiu Marder, levantando-se.

 

Logo que Casey abandonou o gabinete, abriu-se uma porta lateral e surgiu Richman.

 

Estúpido! disse-lhe Marder. Quase deram cabo dela esta tarde, no Edifício Sessenta e Quatro. Onde estavas?

 

Bem, estava no...

 

Vê se percebes uma coisa interrompeu-o Marder. Não quero que aconteça seja o que for à Singleton! Precisamos dela inteira. Não poderá fazer o seu trabalho a partir de uma cama de hospital.

 

Já compreendi, John...

 

Espero bem que sim... Quero que nunca a percas de vista até que toda esta história chegue ao fim.

 

         DIVISÃO DE QUALIDADE

         18:20

 

Casey regressou ao seu gabinete no quarto andar. Norma ainda se encontrava sentada à sua secretária, com um cigarro pendurado nos lábios.

 

Há mais um monte de papéis na tua secretária disse.

 

Está bem, obrigada.

 

O Richman já se foi embora continuou Norma.

 

Óptimo!

 

Parecia ansioso por sair. Sabes, falei com a Evelyn, da Contabilidade.

 

E então...?

 

As viagens que o Richman fez pelas Vendas foram debitadas como serviços aos clientes, por intermédio de um "saco azul" que utilizam para "luvas". O miúdo gastou uma verdadeira fortuna.

 

Quanto?

 

Estás preparada? Duzentos e oitenta e quatro mil dólares.

 

Ena! exclamou Casey. Em apenas três meses?!

 

É verdade.

 

Isso dá para muitas viagens a estâncias de esqui... comentou Qasey. Como é que classificavam as contas? Entretenimento... sem especificarem o cliente.

 

Quem aprovou essas despesas? A conta está ligada à produção explicou Norma, pelo que é Marder quem a controla.

 

O Marder aprovou essas despesas?

 

Aparentemente. A Evelyn prometeu confirmar. Irá dar-me mais in formações. Norma remexeu nos papéis que tinha em cima da secretária. A FAA vai atrasar-se na transcrição do CVR. Ouve-se muita coisa em chinês e os tradutores estão a discutir uns com os outros a respeito do significado das frases. A transportadora também está a fazer a sua própria tradução, por isso...

 

Ou seja, nada de novo disse Casey, suspirando. Em incidentes daquele tipo, os gravadores de voz da cabina de voo eram enviados para a FAA, que produzia uma transcrição escrita das conversas entre os pilotos isto porque as suas vozes eram propriedade da transportadora. Porém,! discussões a respeito das traduções eram vulgares sempre que os voos eram de companhias estrangeiras. Não se tratava de uma novidade.

 

A Allison telefonou?

 

Não, querida. A única chamada pessoal foi do Teddy Rawley.

 

Não é importante...

 

Se queres a minha opinião... também acho que não.

 

Já no gabinete, Casey folheou os papéis que Norma colocara na sua secretária. Referiam-se quase todos ao voo 545 da Transpacific. A primeira folha exibia um resumo dos documentos que se seguiam:

 

IMPRESSO FA A 8020-9, ACIDENTE/INCIDENTE, NOTA PRELIMINAR IMPRESSO FAA 8020-6, RELATÓRIO SOBRE ACIDENTE COM AVIÃO IMPRESSO FAA 8020-6-1, RELATÓRIO SOBRE ACIDENTE COM AVIÃO IMPRESSO FAA 7230-10 REGISTO DE POSIÇÃO

HONOLULU ARINC

Los ANGELES ARTCC

CALIFÓRNIA DO SUL ATAC REGISTO AUTOMÁTICO SIGN IN/SIGN OFF

CALIFÓRNIA DO SUL ATAC IMPRESSO FAA 7230-4, REGISTO DIÁRIO DE OPERAÇÕES

Los ANGELES ARTCC

CALIFÓRNIA DO SUL ATAC IMPRESSO FAA 7230-8, PLANO DE Voo

Los ANGELES ARTCC

CALIFÓRNIA DO SUL ATAC PLANO DE Voo, ICAO

 

Viu uma dúzia de páginas de cartas com o plano de voo, transcrições das gravações dos controlos de tráfego aéreo e relatórios meteorológicos. A seguir vinha material da Norton, incluindo um maço de folhas com dados sobre falhas constantes nos registos, dados que constituíam, até ao momento, os únicos elementos concretos com que podiam trabalhar.

 

Decidiu levar os documentos consigo. Estava fatigada. Podia estudar aqueles elementos em casa.

 

         GLENDALE

         22:45

 

Sentou-se na cama abruptamente, virou-se e pousou os pés no chão.

 

- Pois é, querida... - disse, sem olhar para ela. Observou-lhe os músculos nas costas nuas, a saliência da espinha e as fortes linhas dos ombros.

 

- Foi formidável - declarou. - Foi óptimo voltar a ver-te...

 

- Hum, hum - fez ela.

 

- mas, como sabes, amanhã é um grande dia...

 

Teria preferido que ele ficasse. Na verdade, sentia-se melhor quando o tinha ali, à noite. Todavia, sabia que ele se iria embora... como sempre.

 

- Compreendo. Não faz mal, Teddy - respondeu.

 

Aquela resposta fê-lo virar-se para a olhar, lançando-lhe o seu sorriso malandro mas encantador.

 

- És a melhor, Casey. - Debruçou-se para a beijar e foi um beijo muito prolongado. Sabia que aquilo era porque ela não iria implorar-lhe que ficasse. Devolveu-lhe o beijo, sentindo o seu leve odor a cerveja. Passou-lhe a mão em volta do pescoço e acariciou-lhe os cabelos finos.

 

O homem afastou-se quase imediatamente.

 

- Desculpa, tenho de ir.

 

- Com certeza, Teddy.

 

- A propósito, ouvi dizer que andaste a passear nos jardins suspensos! entre turnos... - Sim, é verdade. - É melhor não te meteres com as pessoas erradas... - Eu sei. - Tenho a certeza que sim - retorquiu, com um sorriso. - Beijou-o na face e dobrou-se para apanhar as meias. - De qualquer modo, é melhor ir andando... - Claro, Teddy. Queres que te faça café, antes de ires? - Hum... não, querida - respondeu, calçando as suas botas de caw boy. - Foi óptimo ver-te.

 

Não desejando ficar sozinha na cama, também se levantou. Vestiu a enorme t-shirt, acompanhou-o à porta e deu-lhe um breve beijo de despedida. Teddy tocou-lhe na ponta do nariz, sorrindo.

 

- Foi óptimo. - Boa noite, Teddy - retorquiu. Fechou a porta e ligou o alarme Regressando ao interior da casa, desligou o equipamento estereofónico e olhou para verificar se o homem ali deixara alguma coisa. Era frequent que os homens se esquecessem de coisas, para terem um motivo para voltarem. Teddy nunca o fazia. Não havia um único vestígio da sua presença exceptuando os restos da cerveja, na mesa da cozinha. Atirou a garrafa para o lixo e limpou o círculo de humidade.

 

Havia meses que dizia a si mesma que devia acabar com aquilo. Acabar o quê? O quê", perguntou-lhe uma voz, mas, por qualquer motivo nunca conseguira pronunciar as palavras. Andava tão atarefada com o trabalho e era tão difícil encontrar pessoas... Seis meses antes, na companhia de Eileen, a assistente de Marder, fora a um bar country-and-western em tudio City. O local era frequentado por jovens ligados ao cinema e por animadores da Disney. Eileen afirmara tratar-se de gente divertida. Para Casey fora um sofrimento. Não era bonita, nem jovem, e não possuía aquele encanto sem esforço exibido pelas raparigas que deslizavam pela sala com jeans e camisolas coladas ao corpo.

 

Os homens eram todos demasiado novos para ela, tinham rostos lisos e ainda mal formados. Não soubera o que lhes dizer. Sentira-se demasiado séria para um tal ambiente. Tinha um emprego, uma filha e aproximavam-se os quarenta. Nunca mais voltara a sair com Eileen.

 

Isso não queria dizer que não estivesse interessada em conhecer pessoas, mas... era muito difícil. Nunca dispunha do tempo ou da energia suficientes. No fundo, também não se preocupava.

 

Por isso, quando Teddy telefonava, dizendo que se encontrava nas redondezas, abria-lhe a porta e metia-se no duche, para se preparar.

 

As coisas eram assim havia quase um ano.

 

Fez chá e voltou para a cama. Apoiou-se na cabeceira da cama, pegou o maço de papéis e começou a rever os dados correspondentes ao voo, olheando o impresso saído do computador:

Eram nove páginas cheias de dados. Não estava muito certa a respeito do significado de algumas daquelas leituras, em particular as referentes às falhas AUX. Uma dizia provavelmente respeito à unidade geradora auxiliar, a turbina instalada na traseira da fuselagem, que funcionava a gás, que fornecia energia quando o avião estava parado no solo e que constituía a maior reserva de apoio no caso de falha eléctrica durante o voo. Mas... o que eram as outras? Leituras de linhas auxiliares? Verificações de sistemas redundantes? E o que significava AUX CÔA?

 

Teria de perguntar a Ron.

 

Passou adiante, para as listas DEU, que assinalavam as falhas em cada uma das etapas do voo. Percorreu-as rapidamente, bocejando, mas parou de repente:

Casey franziu a testa.

 

Não podia acreditar no que estava a ver.

 

Uma falha num sensor de proximidade.

 

Exactamente o que a sua investigação aos registos de manutenção dissera que devia procurar.

 

Depois de mais de duas horas de voo, fora assinalado um erro nose sor de proximidade. As asas estavam equipadas com muitos sensores! proximidade, pequenos sistemas electrónicos que assinalavam a presença de metal na sua vizinhança. Esses sensores eram necessários para confirmar se os slats e flaps se encontravam nas posições devidas, uma vez que o piloto não os podia ver a partir da cabina.

 

De acordo com aquele registo, surgira uma divergência entre os sensores da esquerda e da direita. Se o problema fosse do sistema de registo, teriam sido assinaladas falhas em ambas as asas. Todavia, a deficiência ocorrera apenas na asa direita. Casey passou à frente, para verificar se a falha voltara a aparecer. Folheou a lista rapidamente. Á primeira vista, não se via mais nada. Porém, bastava aquela falha isolada para que o sensor tivesse de ser verificado. Mais uma vez, teria de pedir a Ron...

 

Era difícil conseguir obter uma imagem do voo a partir daqueles elementos dispersos, pelo que precisava dos dados do registo de voo. De manhã, telefonaria a Rob Wong, para saber se este já conseguira qualquer coisa.

 

Entretanto...

 

Casey bocejou, acomodou-se nas almofadas e continuou a trabalhar.

 

         QUARTA-FEIRA

         GLENDALE

         6:12

 

O telefone estava a tocar. Acordou, estremunhada, e rolou para um lado, ouvindo o som de papel a amarrotar-se por baixo do seu cotovelo. Olhou e viu as folhas de dados espalhadas por toda a cama.

 

O telefone continuava a tocar e Casey agarrou no auscultador.

 

Mamã... O tom era solene, muito perto das lágrimas. -Olá, Allie.

 

Mamã, o papá quer que eu vista o vestido vermelho e eu quero levar o azul, com florinhas.

 

Qual deles usaste ontem? perguntou Casey, com um suspiro.

 

O azul... mas não está sujo, nem nada!

 

Era a luta do costume. Allison gostava de usar o vestido do dia anterior. Tratava-se do conservadorismo inato de uma garota de sete anos.

 

Querida, sabes que gosto que leves roupas limpas para a escola.

 

Mamã, o vestido está limpo... e eu odeio o vermelho.

 

No mês anterior, o vestido vermelho fora o seu favorito e Allison insistira em usá-lo todos os dias.

 

Casey sentou-se na cama, bocejou e olhou para os papéis com as suas densas colunas de dados. Ouvia a voz queixosa da filha no telefone e pensou: Será que preciso disto? Perguntou a si mesma porque seria que Jim não resolvia o assunto. Ao telefone, era tudo muito mais difícil. Jim não cumpria o seu papel e não era firme com a filha. A tendência natural das crianças para lançar um dos pais contra o outro levava a intermináveis encontros a longa distância, como aquele.

 

Problemas triviais, birras de crianças.

 

Allison declarou, interrompendo a filha. Se o teu pai te disse para usares o vestido vermelho, então é isso o que tens de fazer.

 

Mas, mamã...

 

Agora, é ele quem manda.

 

Mãe...

 

É tudo, Allison. Nada de mais discussões. Usa o vestido vermelho.

 

Oh, mãe... murmurou a filha, começando a chorar. Detesto-te! acrescentou, desligando.

 

Casey pensou em voltar a ligar mas concluiu que seria melhor não o fazer. Bocejou, levantou-se, dirigiu-se à cozinha e ligou a máquina do café. O fax zumbia no canto da sala. Casey foi ver a folha de papel que saía da máquina.

 

Era uma cópia de um comunicado de imprensa de uma firma de Washington. Apesar de ter um nome neutro, Instituto para a Investigação Aeronáutica, Casey sabia que se tratava da firma de relações públicas que representava o consórcio europeu que fabricava o Airbus. O comunicado tinha um formato semelhante aos das agências noticiosas e até tinha um título. Casey leu:

 

FAA ATRASA A CERTIFICAÇÃO DO N-22, REFERINDO AS SUAS CONTINUADAS PREOCUPAÇÕES COM A SEGURANÇA DOS VOOS

 

Casey suspirou. Ia ser um dia infernal.

 

         SALA DE REUNIÕES

         7:00

 

Casey trepou as escadas de metal para a Sala de Reuniões. Quando chegou ao passadiço, John Marder já lá se encontrava, à sua espera, andando de um lado para o outro.

 

Ah, Casey!

 

Bom dia, John.

 

Viste esta coisa da FAA? perguntou, agitando o fax.

 

Vi, sim.

 

É uma estupidez, claro, mas o Edgarton trepou pelas paredes. Está muito preocupado. Em primeiro lugar, tivemos dois incidentes em dois dias... e agora isto! Receia que a imprensa nos caia em cima e não acredita que o pessoal do Benson saiba lidar com o assunto.

 

Bill Benson era um dos mais antigos colaboradores da Norton. Estava encarregue das relações com os meios de comunicação desde os tempos em que a companhia vivera dos contratos com os militares e nunca dava informações à imprensa. Teimoso e rude, Benson nunca conseguira ajustar-se ao mundo pós-Watergate, um mundo em que os jornalistas eram celebridades que derrubavam governos. Era famoso pelos seus conflitos com os jornalistas.

 

Este fax pode gerar o interesse da imprensa, Casey, em especial entre os jornalistas que não sabem até que ponto a FAA é astuta. Como é óbvio, não vão querer falar com um tipo das relações públicas, mas sim com um executivo da empresa. Por isso, o Hal quer que sejas tu a tratar de todas as perguntas relacionadas com a FAA.

 

Eu?! exclamou Casey, pensando: porquê eu? Já tenho um emprego. O Benson não vai ficar muito satisfeito convosco...

 

O Hal falou com ele pessoalmente. Não levantará objecções.

 

Tens a certeza?

 

Para além disso continuou Marder também penso que devemos preparar um bom comunicado para a imprensa sobre o N-Vinte e Dois. Tem de ser melhor do que a habitual conversa fiada das Relações Públicas. O Hal sugeriu que compilasses uma extensa lista de argumentos capazes de refutar as afirmações da FAA. Horas de serviço, registos de segurança, dados sobre a fiabilidade... e tudo o mais.

 

Está bem... Iria ter muito mais trabalho e...

 

Disse ao Hal que andas muito atarefada e que isto irá ser um fardo adicional afirmou Marder, pelo que ele aprovou uma subida de dois escalões na tua Cl.

 

A compensação para incentivo, o sistema de bónus da empresa, constituia uma grande parte dos rendimentos dos executivos. Uma subida de dois escalões significava uma grande quantidade de dinheiro extra para Casey. Está bem repetiu.

 

A questão está prosseguiu Marder em que temos bons argumentos para responder a este fax, e o Hal quer ter a certeza de que os fazemos valer. Posso contar com a tua ajuda?

 

Sem dúvida retorquiu Casey.

 

Óptimo disse Marder, continuando a subir as escadas e entrando na sala.

 

Richman já se encontrava presente, muito elegante, envergando um casaco desportivo e uma gravata. Casey instalou-se numa das cadeiras.

 

Marder tomou o comando da reunião, excitado, brandindo o fax da FAA earengando aos engenheiros.

 

Provavelmente já repararam que a FAA está a brincar connosco. Escolheu o momento mais apropriado para pôr em risco a nossa venda à China. Contudo, se lerem bem o seu memorando, verificarão que o assunto se refere apenas à questão daquele motor, em Miami, e não tem nada a

ver com a Transpacific, pelo menos por enquanto...

 

Casey tentou prestar atenção mas estava distraída, calculando quanto iria passar a receber depois de uma subida de dois escalões. Fez um cálculo de cabeça... e concluiu que era o equivalente a um aumento de vinte porcento. Jesus, pensou. Vinte por cento! Podia enviar Allison para um colégio particular. Também podiam ir passar as férias a um sítio agradável, tal como o Havaí, ou outro do mesmo género. Instalar-se-iam num bom hotel. No ano seguinte, mudar-se-iam para uma casa maior, com um grande pátio, para que Allison pudesse brincar e... Toda a gente, em volta da mesa, estava a olhar para ela.

 

Casey repetiu Marder. O DFDR? Quando é que teremos os dados?

 

Desculpem... disse Casey. Falei com o Rob hoje de manhã. Acalibração avança muito lentamente. Talvez amanhã já se saiba mais alguma coisa.

 

Muito bem. Estruturas?

 

Doherty respondeu com o seu habitual tom monótono e infeliz:

 

John é muito difícil, realmente muito difícil. Encontrámos um mau trinco no slat número dois. É uma peça falsificada e...

 

Então temos de a verificar declarou Marder, interrompendo-o.

- Hidráulica?

 

Continuamos a investigar. Até agora, está tudo bem. Os cabos estão de acordo com as especificações.

 

Quando esperam concluir a investigação?

 

Hoje, no fim do primeiro turno.

 

Sistemas eléctricos?

 

Já verificámos os cabos principais respondeu Ron. Não há falhas. Penso que devíamos fazer um exame completo aos sistemas.

 

De acordo. Pode fazê-lo durante a noite, para pouparmos tempo?

 

Claro admitiu Ron, encolhendo os ombros, mas vai ser dispendioso.

 

Ao diabo com as despesas. Há mais alguma coisa?

 

Bom, sim, há mais uma coisa... disse Ron. A lista de falhas DEU indica que pode ter-se verificado um problema com os sensores de proximidade da asa. Se os sensores falharam, pode ter surgido uma falsa indicação de saída extemporânea de slats...

 

Fora o que Casey também descobrira na noite anterior. Tomou nota, para mais tarde interrogar Ron a esse respeito, e também sobre os dados UX constantes nos documentos.

 

Voltou a distrair-se, pensando no aumento. Agora, Allison podia ir para uma boa escola. Já a via numa pequena mesa, numa sala com poucos alunos...

 

Motores? perguntou Marder.

 

Ainda não sabemos se houve uma selecção de inversores declarou Kenny Burne. Precisamos de mais um dia.

 

Continuem, até poderem excluir essa possibilidade. Electrónica

 

Até este momento, está tudo em ordem afirmou Trung.

 

A questão do piloto automático...

 

Ainda lá não chegámos. Essa é a última coisa, na sequência da investigação. Teremos de fazer um teste de voo.

 

Muito bem prosseguiu Marder. Verifiquemos, hoje mesmo essa nova pista referente aos sensores de proximidade. Ficamos à espera do resgisto de voo e dos resultados dos testes aos motores e à electrónica, Não é assim?

 

Toda a gente acenou uma confirmação.

 

Não deixem que eu vos atrase concluiu Marder. Preciso de respostas. Mostrou o fax da FAA. Isto é apenas a ponta do icebergue, rapazes. Acho que não necessito de vos recordar o que aconteceu com o CD-Dez. Era o mais avançado avião do seu tempo, uma verdadeira maravilha de engenharia. Sofreu um par de incidentes, com algumas ima gens feias... e passou à história. Por isso... arranjem-me respostas!

 

         NORTON AIRCRAFT

         9:31

 

Quando atravessavam a fábrica em direcção ao Hangar 5, Richman disse:

 

O Marder parecia muito enervado, não é verdade? Será que acredita em tudo aquilo?

 

Referes-te ao DC-Dez? Sim. Houve um acidente que acabou com o avião.

 

Que acidente?

 

Com um voo da American Airlines de Chicago para Los Angeles respondeu Casey. Foi em Maio de 1979. Estava um dia bonito, com bom tempo. Pouco depois da descolagem, o motor da asa esquerda caiu. O avião entrou em perda e caiu perto do aeroporto, matando todos os que se encontravam a bordo. Foi muito dramático e aconteceu tudo em trinta segundos. Houve umas pessoas que gravaram o voo, pelo que as televisões tiveram imagens para mostrar nos noticiários. Os meios de comunicação enlouqueceram e afirmaram que o aparelho era um caixão voador. As agências de viagens foram inundadas com pedidos de cancelamento em voos no DC-Dez. A Douglas nunca mais conseguiu vender um desses aviões.

 

O que levou à queda do motor?

 

Má manutenção explicou Casey. A American não seguiu as recomendações da Douglas sobre como retirar os motores do avião. Esta disse-lhes para começarem por retirar o motor da asa. Porém, para poupar tempo, a American tirava todo o conjunto de uma só vez... o que representava sete toneladas de metal numa só empilhadeira. Uma das empilhadeiras ficou sem combustível durante a operação e fez estalar o suporte. Contudo, ninguém reparou... e o motor acabou por cair. Por isso, tratou-se apenas de uma má manutenção.

 

Pode ser... comentou Richman. Mas os aviões não deviam poder voar só com um motor?

 

É verdade. O DC-Dez foi construído para sobreviver a esse tipo de falhas. O DC-Dez era perfeitamente fiável. Se o piloto tivesse mantido a velocidade, tudo correria bem e teria conseguido aterrar.

 

Porque não o fez?

 

Porque, como de costume, teve lugar toda uma sequência de acontecimentos até ao desastre final disse Casey. Neste caso, a energia eléctrica que alimentava os instrumentos do comandante, na cabina, provinha do motor esquerdo. Quando este caiu, os instrumentos ficaram sem energia, incluindo os avisos de perda e o vibrador da manche. Trata-se de um sistema que faz vibrar a manche para avisar o piloto que o avião entrou em perda. O co-piloto ainda tinha energia nos seus instrumentos, masnão dispunha de um vibrador. A sua instalação é opcional para o copiloto, mas a American não a encomendara. Por outro lado, a Douglas não tinha sistemas de aviso redundantes. Por isso, quando o DC-Dez entrou em perda, o co-piloto não soube que precisava de aumentar a potência.

 

Muito bem, mas... insistiu Richman. Para começar, os instrumentos do comandante não deviam ter ficado sem energia.

 

Não, tratava-se de um sistema de segurança incluído nos desenhos originais. A Douglas desenhara e construíra o avião de modo a poder só breviver a todas essas falhas. Quando o motor esquerdo se soltou, o avião cortou deliberadamente a energia ao comandante para evitar outras falhas no sistema. Recorda-te de que todos os sistemas dos aviões são redundantes. Se um falha, o sistema de apoio entra em funcionamento. Era fácil repor a energia nos instrumentos do comandante. Bastava que o engenheiro de voo ligasse um relê ou a energia de emergência. Contudo, não o fez.

 

Porquê?

 

Ninguém sabe respondeu Casey. O co-piloto, que não dispunha das necessárias informações nos seus instrumentos, reduziu intencionalmente a velocidade, o que fez o aparelho entrar em queda e cair.

 

Caminharam em silêncio durante alguns instantes.

 

O acidente podia ter sido evitado de muitas maneiras diferentes continuou Casey. As equipas de manutenção, depois de os terem assistido de uma maneira incorrecta, deveriam ter verificado os suportes do motor em busca de danos estruturais. Não o fizeram. A Continental já provocara fendas em dois suportes ao utilizar empilhadeiras, e poderia ter informado a American, dizendo que o processo era perigoso. Não o fizeram. A Douglas comunicara à American os problemas que a Continental estava a enfrentar, mas não lhe deram ouvidos.

 

Richman abanava a cabeça.

 

Depois do acidente, a Douglas não pôde dizer que se tratara de problemas de manutenção porque a American era um cliente muito apreciado. Por isso, a Douglas não pôde explicar-se perante o público. Neste tipo de incidentes, é sempre a mesma coisa... a verdadeira história nunca vem a público, excepto quando os meios de comunicação a descobrem. Porém, tratava-se de uma história complicada, o que se torna difícil para a televisão... pelo que se limitaram a passar as imagens. As imagens mostram o motor a cair, o avião a inclinar-se para a esquerda e a precipitar-se no solo. Deixaram implícito que o avião fora mal desenhado, que a Douglas não previra a falha do pilone e que o aparelho não fora construído para lhe sobreviver. Era um ponto de vista completamente errado, mas a Douglas nunca mais vendeu um DC-Dez.

 

Bom... comentou Richman. Não me parece que se possa censurar os meios de comunicação. Não fazem as notícias, limitam-se a informar o público.

 

É aí mesmo que eu quero chegar afirmou Casey. Não informaram ninguém, limitaram-se a passar o filme. O acidente de Chicago foi uma espécie de ponto de viragem para a nossa indústria. Pela primeira vez, um avião foi destruído por uma má imprensa. O golpe final foi dado pelo relatório da NTSB, que saiu em 21 de Dezembro. Ninguém lhe prestou atenção.

 

"Por isso, agora, quando a Boeing apresenta o seu novo 777, organiza uma verdadeira campanha de imprensa a coincidir com o lançamento. Permitem que uma televisão filme os anos de desenvolvimento e no fim há um verdadeiro show televisivo. Simultaneamente, publicam um livro. Fazem tudo o que podem para criar, antecipadamente, uma boa imagem para o avião, porque o que está em jogo é muito importante.

 

Custa-me a acreditar que os meios de comunicação tenham um tão grande poder declarou Richman, caminhando ao lado de Casey.

 

O Marder tem motivos para estar preocupado retorquiu Casey, abanando a cabeça. Se alguém da imprensa descobre o que aconteceu ao voo cinco quatro cinco, então teremos dois incidentes em dois dias... e estaremos metidos em grandes sarilhos.

 

         "NEWSLINE"/NOVA IORQUE

           13:54

 

Nas instalações do programa de televisão noticioso Newsline, situada no vigésimo terceiro piso de um edifício no centro de Manhattan, Jennifer Malone encontrava-se na sala de montagem analisando a gravação de uma entrevista com Charles Manson. Deborah, a sua assistente, entrou na sala largou um fax sobre a mesa e declarou com um ar casual.

 

O Pacino pôs-se a andar.

 

O quê?! exclamou Jennifer, carregando no botão de pausa.

 

O Al Pacino foi-se embora.

 

Quando?

 

Há dez minutos. Irritou-se com o Marty e foi-se embora.

 

O quê? Passámos quatro dias a gravar nos cenários, em Tânger O seu novo filme estreia esta semana... e estava previsto dar-lhe doze minutos... Uma peça de doze minutos no Newsline, o programa noticioso mais visto da televisão, constituía o tipo de publicidade que nem sequer dinheiro conseguia comprar. Todas as estrelas de Hollywood queriam aparecer no programa. Que se passou?

 

O Martin estava a conversar com ele durante a maquilhagem e recordou que o Pacino não conseguiu um único filme de êxito nos últimos quatro anos. Acho que ficou ofendido e pôs-se a andar.

 

Em frente da câmara?

 

Não, foi antes.

 

Jesus! exclamou Jennifer. O Pacino não pode fazer uma coisa dessas. O seu contrato exige-lhe que faça publicidade. Foi tudo preparado há meses...

 

Pois foi... mas pirou-se.

 

Que disse o Marty?

 

Está furioso e diz: "Era de esperar, temos um programa noticioso que faz perguntas difíceis." Uma reacção típica do Marty.

 

Jennifer soltou uma praga e acrescentou:

 

Era precisamente o que todos nós receávamos que viesse a acontecer...

 

Marty Reardon era um entrevistador famoso por não ter papas na língua. Embora dois anos antes tivesse abandonado os noticiários para ir trabalhar no Newsline por um salário muito mais elevado ainda se con siderava a si mesmo como um jornalista duro mas justo, para quem não existiam limitações. Na prática, contudo, gostava de embaraçar os entrevistados fazendo-lhes perguntas extremamente pessoais, mesmo que não fossem pertinentes para a história. Ninguém quisera ver Marty a entrevis tar Pacino, porque o homem não gostava de celebridades e não queria participar em peças "fúteis". Contudo, Frances, a jornalista geralmente encarregue de entrevistar as celebridades estava em Tóquio para uma entrevista com a princesa.

 

O Dick já falou com o Marty? Há alguma maneira de salvar a situação? Dick Shenk era o produtor executivo do Newsline. Tivera a habilidade suficiente para, em apenas três anos, transformar um programa em que ninguém estava interessado num grande êxito, que era agora exibido no horário nobre. Era Shenk quem tomava todas as decisões importantes, e era também a única pessoa com suficiente influência para lidar com uma prima donna como Marty.

 

O Dick ainda está a almoçar com Mister Early. Os almoços de Shenk com Early, o presidente da rede, prolongavam-se sempre até meio da tarde.

 

Quer dizer que ainda não sabe?

 

Não, não sabe.

 

Formidável! murmurou Jennifer, dando uma olhadela ao relógio. Eram duas da tarde. Se Pacino desistira, tinham um buraco de doze minutos para encher e menos de setenta e duas horas para o fazerem. Que espécie de reservas temos, nos "enlatados"?

 

Nada. O programa sobre Madre Teresa está a ser remontado. O do Mickey Mantle ainda não chegou. Tudo o que temos é aquela história do garoto que jogava basebol e anda agora de cadeira de rodas.

 

O Dick nunca aceitaria isso gemeu Jennifer.

 

Eu sei confirmou Deborah. É uma porcaria.

 

Jennifer pegou no fax que a sua assistente largara sobre a mesa. Era um comunicado de imprensa de um qualquer grupo de relações públicas, igual a centenas de outros que as estações de televisão recebiam todos os dias. Tal como os restantes, fora formatado de modo a parecer-se com o comunicado de uma agência noticiosa e até tinha um título. Dizia:

 

FAA ATRASA A CERTIFICAÇÃO DO N-22, REFERINDO AS SUAS CONTINUADAS PREOCUPAÇÕES COM A SEGURANÇA DOS VOOS

 

O que é isto? perguntou, com uma careta.

 

O Hector mandou-me entregar-to.

 

Porquê?

 

Porque pensou que pode haver aí qualquer coisa.

 

Porquê? O que diabo vem a ser a FAA? Jennifer analisou o texto. Tratava-se de conversa aeronáutica, de que não entendia nada. Pensou: não há imagens.

 

Aparentemente, trata-se do mesmo tipo de avião que se incendiou em Miami.

 

Oh! O Hector quer fazer uma peça sobre a segurança aeronáutica? Boa sorte! Já toda a gente viu as imagens do avião a arder, que nem sequer eram grande coisa. Atirou o fax para um lado. Pergunta-lhe se não tem mais nada para me dar.

 

Deborah afastou-se. Sozinha, Jennifer olhou para o rosto imóvel de Charles Manson no ecrã que se encontrava na sua frente. Desligou-o e decidiu pensar durante alguns instantes.

 

Jennifer Malone tinha vinte e nove anos e era a produtora mais jovem em toda a história do Newsline. Progredira rapidamente porque era boa naquilo que fazia. Já anteriormente revelara o seu talento. Quando ainda estudava na Brown e fora trabalhadora eventual da televisão durante as férias do Verão tal como Deborah o era agora, passara muitas noites a investigar, dedilhando no terminal do Nexis, prescrutando os comunicados das agências noticiosas. Depois, com o coração na boca, fora ter com Dick Shenk para lhe propor uma história sobre um estranho vírus que apareceu em África, e sobre o corajoso médico do Centro de Controlo de Doenças que se encontrava no local. A proposta conduzira à famosa peça sobre o ébola, a grande cacha do ano para o Newsline, e a mais um Prémio Peah para Dick Shenk pendurar na sua parede.

 

A seguir, Jennifer propusera o programa sobre Darryl Strawberry,! programa sobre a mina a céu aberto em Montana, e um outro sobre jogo. Nunca uma jovem de um colégio interno vira um programa seu a ser emitido. Jennifer fizera quatro. Shenk anunciara que gostava do seu faro e propusera-lhe um emprego. O facto de ser brilhante, bela e jovem não era inconveniente. No seguinte mês de Junho, depois de concluir o curso, Jennifer começara a trabalhar para o Newsline.

 

O programa tinha quinze produtores a trabalhar. Era-lhes designado um apresentador talentoso, e cada um deles devia apresentar uma história de duas em duas semanas. Em média, eram precisas quatro semanas para a conclusão de uma história. Depois de duas semanas de investigação, os produtores iam ter com Dick, para obter uma autorização para seguir em frente. Depois, visitavam os locais, filmavam cenas e realizavam as entre vistas secundárias. A história era montada pelo produtor e narrada pelo apresentador estrela, que aparecia no local apenas por um dia, fazia a narração e as principais entrevistas, e voltava a meter-se num avião para irfa zer o mesmo serviço noutro local qualquer. Entretanto, o produtor tratava da montagem final. Algum tempo antes de o programa ir para o ar, o apresentador aparecia no estúdio, lia o guião preparado pelo produtor e fazia a narração sobre as imagens.

 

Quando a peça ia para o ar, o apresentador aparecia como sendo um verdadeiro jornalista. O Newsline protegia a reputação das suas estrelas. Porém, de facto, os verdadeiros jornalistas eram os produtores. Escolhiam as histórias, investigavam, davam-lhes forma, escreviam os guiões e montavam as imagens. O apresentador estrela limitava-se a fazer o que lhe mandavam.

 

Era um sistema que Jennifer apreciava. Dava-lhe um poder considerável e agradava-lhe trabalhar nos bastidores, sem que ninguém conhecesse o seu nome. O anonimato era-lhe útil. Por vezes, quando conduzia entrevistas, era tratada com desdém e os entrevistados falavam livremente mesmo apesar de as câmaras estarem a gravar. A certa altura, os entrevistados acabavam sempre por perguntar: "Quando é que tenho a oportunidade de conhecer o Marty Reardon?" Jennifer respondia, com solenidade, dizendo que essa decisão ainda não fora tomada, e continuava a fazer perguntas. Durante esse processo, acabava por apanhar em falso o burro que pensava que aquilo era apenas um ensaio.

 

Na verdade, era ela quem fazia as histórias, e não se importava que o crédito fosse todo para as estrelas do ecrã. "Nunca dizemos que são eles quem faz a reportagem", afirmava Shenk. "Nunca deixamos implícito que entrevistaram alguém que na verdade não entrevistaram. Neste programa,; o entrevistador não é a estrela. A estrela é a história. O entrevistador é apenas um guia, que conduz a audiência ao longo da história. É alguém em quem confiam e com quem se sentem bem ao convidá-lo a aparecer em suas casas."

 

Era verdade, pensou Jennifer. De qualquer modo, não havia tempo para fazer as coisas de outra maneira. Uma estrela dos media, tal como MattyReardon, tinha mais compromissos a cumprir do que o Presidente, e era mais famoso e mais facilmente reconhecido nas ruas. Não era de esperar que uma pessoa como Marty perdesse tempo a investigar e a tropeçar em falsas pistas para conseguir uma história.

 

Não havia tempo para isso.

 

Aquilo era a televisão. Nunca havia tempo suficiente.

 

Volta a olhar para o relógio. Dick não voltaria do almoço antes das três, ou três e meia. Marty Reardon não iria pedir desculpa a Al Pacino. Por isso, quando Dick voltasse do almoço, iria explodir, dar cabo de Reardon... e só depois se mostraria desesperado por encontrar qualquer coisa para encher aquele buraco de doze minutos.

 

Jennifer tinha uma hora para descobrir essa qualquer coisa.

 

Ligou a televisão e começou a saltar de canal para canal. Olhou novamente para o fax que tinha em cima da mesa.

 

FAA ATRASA A CERTIFICAÇÃO DO N-22, REFERINDO AS SUAS CONTINUADAS PREOCUPAÇÕES COM A SEGURANÇA DOS VOOS.

 

"Espera aí!", pensou. Continuadas preocupações com a segurança? Aquilo quereria dizer que o avião tinha problemas de segurança? Se assim era. talvez houvesse ali uma história. Não sobre a segurança aérea, assunto que já fora tratado um milhão de vezes naquelas infindáveis histórias sobre os controladores aéreos, os velhos computadores dos anos sessenta que ainda utilizavam e sobre todos os perigos do sistema. Histórias como essa só serviam para deixar as pessoas ansiosas. As audiências não vibravam porque nada podiam fazer a esse respeito. Porém, um avião específico, com um problema, era um assunto diferente... Tratava-se de um produto com pouca segurança. Não comprem esse produto. Não voem nesse avião.

 

"Pode ser muito, muito eficiente", concluiu.

 

Pegou no telefone e marcou um número.

 

           HANGAR 5

           11:15

 

Casey encontrou Ron Smith com a cabeça enfiada num compartimento de acessórios logo atrás do trem de aterragem da frente. À sua volta, a equipa de electricistas trabalhava afanosamente.

 

Ron pediu, explica-me esta lista de falhas. Levara consigo a lista de dez páginas.

 

Que queres saber?

 

Há aqui quatro leituras AUX, referentes às linhas um, dois, três e CÔA. Para que servem?

 

Isso é importante?

 

É o que estou a tentar decidir.

 

Bom... suspirou Ron. AUX refere-se ao gerador auxiliar. A turbina a gás que se encontra na cauda. AUX Dois e AUX Três são linhas redundantes, para o caso de o sistema ser melhorado e poder necessitar delas. AUX CÔA é uma linha auxiliar para adições opcionais do cliente. É nessa linha que o cliente instala equipamentos, tal como o QAR... que este aparelho não tem.

 

Todas estas linhas indicam um valor zero insistiu Casey. Isto significa que estão a ser utilizadas?

 

Não necessariamente. O valor por omissão é, zero. Para saberes se estão a ser utilizadas terás de as verificar.

 

Muito bem. Casey dobrou as folhas de papel. E quanto à falha no sensor de proximidade?

 

Estamos a verificá-lo agora. Talvez cheguemos a uma qualquer conclusão. Olha, os dados sobre as falhas são instantâneos de um determinado momento. Nunca saberemos o que se passou com este voo só com instantâneos. Precisamos dos dados do DFDR. Tens de os conseguir, Casey.

 

Tenho andado a insistir com o Rob Wong...

 

Então... insiste mais declarou Smith. O registo de voo é a chave do mistério.

 

Chegou-lhe aos ouvidos um grito de espanto, vindo das traseiras do avião.

 

Raios os partam! Não acredito no que estou a ver! Fora Kenny Burne quem soltara o grito.

 

Encontrava-se numa plataforma por trás do motor esquerdo, agitando os braços de ira. À sua volta, os outros mecânicos abanavam as cabeças.! Casey aproximou-se.

 

Encontraram alguma coisa?

 

Deixa-me fazer uma lista retorquiu Burne, apontando para o motor. Em primeiro lugar, os vedantes do sistema de arrefecimento estão colocados ao contrário. Houve um qualquer idiota de manutenção que os montou mal.

 

Afectam o voo?

 

Sim... mais tarde ou mais cedo. Mas não é tudo! Dá uma olhadela! esta cobertura interior dos inversores...

 

Casey subiu o andaime até à parte traseira do motor, onde os mecânicos espreitavam para o interior.

 

Mostrem-lhe, rapazes pediu Burne.

 

Apontaram uma lanterna para a superfície interior de uma das tampas. Casey viu uma sólida superfície de aço, encurvada com precisão e coberta por uma fina camada de fuligem do motor. Aproximaram a lanterna do símbolo da Pratt Whitney, gravado perto do rebordo do metal.

 

Estás a ver? perguntou Kenny.

 

O quê? Referes-te à marca? retorquiu Casey. O símbolo da Pratt Whitney era um círculo com uma águia no interior, e com as letras P e W.

 

Isso mesmo, a marca.

 

Que tem de especial?

 

Casey murmurou Burne, abanando a cabeça, a águia está invertida. Está virada para o lado errado.

 

Oh! Casey não notara aquele pormenor.

 

Agora, achas que a Pratt Whitney iria gravar uma águia invertida? Nem pensar. É mais uma peça falsificada.

 

Está bem... e poderia afectar o voo?

 

Era essa a questão crítica. Já tinham encontrado outras peças falsificadas naquele avião. Amos previra que existissem mais e tivera razão. Contudo, o problema estava em saber se alguma delas poderia ter afectado o comportamento do aparelho durante o acidente.

 

É possível disse Kenny, agitando-se. Porém, por amor de Deus, não posso desmontar o maldito motor! Precisaria pelo menos de duas semanas.

 

Então, como vamos saber?

 

Precisamos do registo de voo, Casey. Precisamos de ter acesso a esses dados.

 

Queres que vá ver se o Wong já conseguiu alguns progressos? perguntou Richman.

 

Não respondeu Casey. Não serviria de nada. Rob Wong podia mostrar-se temperamental. Pressioná-lo ainda mais não teria qualquer utilidade. Era perfeitamente capaz de se ir embora, para só voltar dois dias depois.

 

O telefone celular de Casey tocou. Era Norma.

 

A festa começou declarou. Recebi telefonemas do Jack Rogers, do Barry Jordan, do Times ãe LA, e de alguém chamado Winslow, que trabalha para o Post de Washington. Para além disso, recebi um pedido de material informativo sobre o N-Vinte e Dois, vindo do Newsline.

 

Newsline! O programa de televisão?

 

Esse mesmo.

 

Vão emitir uma reportagem?

 

Não me parece respondeu Norma. Penso que estão apenas à pesca...

 

Está bem disse Casey. Depois telefono-te. Sentou-se num canto do hangar e pegou no bloco de apontamentos. Começou a escrever uma lista de documentos a serem incluídos nas informações para os meios de comunicação. Um sumário dos processos de certificação da FAA para um avião de novo tipo; a confirmação da certificação, pela FAA, do N-22.

 

Norma teria de a descobrir nos arquivos de há cinco anos. O último relatório anual da FAA a respeito de segurança de voo. O relatório interno na companhia sobre a segurança de voo do N-22 desde 1991 até ao presente. A lista de alterações recomendadas, que era muito pequena. A folha de características técnicas básicas do N-22, onde se incluíam a velocidade, alcance, dimensões e peso. Não queria revelar demasiado. Aqueles documentos deviam ser suficientes para cobrir as perguntas mais básicas Richman observava-a.

 

E agora? perguntou.

 

Casey arrancou a folha do bloco e entregou-lha.

 

Dá isto à Norma. Diz-lhe para preparar uma pasta com documentos para a imprensa, e para os enviar a quem lhos pedir.

 

Está bem. Richman olhou para a lista. Não me parece que consiga ler...

 

A Norma consegue. Entrega-lhe essa lista.

 

Está bem.

 

Richman afastou-se, cantarolando alegremente. O telefone voltou a tocar. Era Jack Rogers, que a contactava directamente.

 

Continuo a ouvir dizer que as asas vão ser montadas no estrangeiro. Disseram-me que a Norton vai enviar as ferramentas para a Coreia, para depois seguirem para Xangai.

 

O Marder falou contigo?

 

Não. Os nossos telefonemas desencontraram-se.

 

Fala com ele pediu Casey, antes de escreveres seja o que for.

 

O Marder prestará declarações para serem publicadas?

 

Fala com ele.

 

Está bem disse Rogers, mas vai desmentir, não é verdade?

 

Fala com ele.

 

Olha, Casey respondeu Rogers, com um suspiro, não quero perder uma história que já tenho nas mãos... para vir a lê-la, daqui a dois dias, nas páginas do Times de Los Angeles. Dá-me uma ajuda. Há alguma verdade nessa conversa sobre as asas... ou não?

 

Não posso dizer-te nada.

 

Está bem... Contudo, vês algum inconveniente em que eu escreva que várias fontes da Norton, a alto nível, desmentem que as asas venham a ser fabricadas na China...?

 

Não vejo nenhum inconveniente. Era uma resposta cautelosa i uma pergunta também cautelosa.

 

Muito bem, Casey. Obrigado. Vou telefonar ao Marder declarou desligando.

 

         "NEWSLINE"

           14:25

 

Jennifer Malone marcou o número indicado no fax e pediu para falar com a pessoa encarregue dos contactos: Alan Price. Mr. Price ainda estava a almoçar, pelo que falou com a sua assistente, Miss Weld.

 

Segundo sei, há um atraso na certificação europeia do avião da Norton. Qual é o problema?

 

Refere-se ao N-Vinte e Dois?

 

Exactamente.

 

Bom, o assunto é contencioso, prefiro não dar informações para publicação.

 

E se não for para publicação?

 

Posso dar-lhe as linhas gerais.

 

Está bem.

 

No passado, os Europeus aceitavam as certificações da FAA para os novos aviões porque as consideravam suficientes. Contudo, ultimamente, a FAA tem posto em causa os métodos americanos de certificação. Pensam que a agência americana, a FAA, se pôs de acordo com os fabricantes americanos, pelo que pode ter começado a utilizar padrões pouco exigentes.

 

Ah, sim? "Perfeito", pensou Jennifer. Uma burocracia americana ineficiente. Dick Shenk adorava esse tipo de histórias. A FAA estava sob ataque havia anos, devia ter muitos esqueletos escondidos. Há provas?

- inquiriu.

 

Bom, os Europeus consideram todo o sistema como pouco satisfatório. Por exemplo, a FAA nem sequer arquiva os documentos de certificação. Permitem que sejam os fabricantes de aviões a fazê-lo. Acham que se trata de... demasiadas facilidades.

 

Hum... fez Jennifer, anotando: A FAA alinha com os fabricantes. Corrupção?

 

De qualquer modo, se quiser mais informações, sugiro que fale directamente para a JÁ A, ou para a Airbus. Posso dar-lhe os números...

 

Jennifer preferiu telefonar para a FAA. Ligaram-na a um tal Wilson, dos Serviços de Relações Públicas.

 

Segundo sei a FAA recusa-se a aceitar a certificação do N-Vinte e Dois da Norton.

 

Sim confirmou Wilson. Arrastam os pés já há algum tempo.

 

A FAA já certificou o N-Vinte e Dois?

 

Oh, claro. No nosso país não se pode construir um avião sem que a FAA aprove e certifique o desenho e os processos do fabrico, do princípio ao fim.

 

E os senhores têm os documentos de certificação?

 

Não. São guardados pelo fabricante. É a Norton quem os tem. "Ah, ah!", pensou. Então, sempre era verdade. A Norton guarda os documentos e não a FAA. A raposa de guarda ao galinheiro!

 

Incomoda-vos que seja a Norton a ter os documentos em seu poder?

 

Não, de modo nenhum.

 

E estão seguros de que o processo de certificação é o mais correcto?

 

Sem dúvida. Como já disse, o avião foi certificado há cinco anos.

 

Tenho ouvido dizer que os Europeus não estão satisfeitos com o processo de certificação.

 

Bom, sabe... começou Wilson, adoptando um tom diplomático.

 

A JÁ A é uma organização relativamente recente. Ao contrário da FAA, não dispõe de uma autoridade real. Por isso, penso que estão apenas a tentar decidir como devem proceder.

 

Jennifer ligou para as informações das Indústrias Airbus, em Washington, e puseram-na em contacto com um homem das Vendas, chamado Sámuelson. Com alguma relutância, confirmou que ouvira falar no atraso da certificação da FAA, mas que não conhecia os pormenores.

 

Contudo, a Norton está a enfrentar muitos problemas declarou.

 

Por exemplo, penso que a venda à China não está tão garantida como afirmam.

 

Era a primeira vez que Jennifer ouvia falar numa venda à China. Anotou: Venda à China, N-22?

 

Hum, hum... retorquiu.

 

Com toda a franqueza prosseguiu Samuelson, o Airbus A-Trezentos e Quarenta é um avião superior sob todos os aspectos. É mais recente do que o avião da Norton. Tem maior alcance. É melhor sob todos os pontos de vista. Temos tentado explicar isso aos Chineses, que começam agora a compreender a nossa perspectiva. Na minha opinião, a venda da Norton à República Popular da China não vai concretizar-se. É claro que essa decisão terá em conta as questões de segurança. Aqui entre nós, creio que os Chineses estão muito preocupados com a possibilidade de o' avião não ser seguro. Novo apontamento: Os Chineses pensam que o avião não é seguro.

 

Com quem poderei falar a esse respeito? perguntou. Bem, como sabe, os Chineses mostram-se geralmente relutantes em discutir negociações que estão em curso afirmou Samuelson. No entanto, conheço um tipo no Comércio que talvez a possa ajudar. Trabalha para o Banco Ex-Im, que concede financiamentos a longo prazo para as exportações para o estrangeiro.

 

Como é que ele se chama?

 

O homem chamava-se Robert Gordon. A telefonista do Departamento do Comércio precisou de quinze minutos para conseguir localizá-lo. Jennifer fez garatujas. Por fim, a secretária do homem declarou:

 

Lamento, mas Mister Gordon está numa reunião.

 

Estou a telefonar do Newsline disse Jennifer.

 

Oh... Houve uma pausa. Um momento, por favor. Jennifer sorriu. O truque nunca falhava.

 

Gordon apareceu na linha e Jennifer perguntou-lhe o que havia quanto' à certificação da FAA e à venda da Norton para a República Popular da China.

 

É verdade que essa venda está em perigo?

 

Todas as vendas de aviões estão em perigo até serem concluídas, Miss Malone respondeu Gordon. No entanto, segundo sei, a venda está bem encaminhada. Por outro lado, ouvi um boato a respeito de a Norton ter problemas com a certificação da FAA para a Europa.

 

E qual é a dificuldade?

 

Bom retorquiu Gordon, não sou, na verdade, um especialista aeronáutico, mas a companhia tem enfrentado muitas dificuldades...

 

A Norton tem dificuldades.

 

Houve aquele acidente ontem, em Miami prosseguiu o homem, e suponho que já terá ouvido falar no incidente em Dallas...

 

Qual incidente?

 

No ano passado, houve um motor que se incendiou na pista. Toda a gente saltou do avião. Algumas pessoas ficaram com as pernas partidas ao saltar das asas.

 

Incidente em Dallas. Motor incendiado. Pernas partidas. Imagens? Jennifer comentou:

 

Hum, hum...

 

Não sei o que se passa consigo declarou Gordon, mas eu não gosto muito de voar e... Jesus Cristo, não quero meter-me num avião de onde as pessoas têm de fugir.

 

Jennifer escreveu:

 

Pessoas a saltar! Ena!

 

Avião pouco seguro.

 

Acrescentou, um pouco mais abaixo, em grandes letras maiúsculas:

 

         ARMADILHA MORTAL

 

Telefonou para a Norton Aircraft para ouvir a sua versão da história. Ligaram-na a um tipo das relações públicas chamado Benson. Soava a um daqueles executivos de voz arrastada e sonolenta tão habituais nas grandes empresas. Jennifer decidiu-se por um ataque de surpresa.

 

Queria falar consigo a respeito do incidente de Dallas.

 

Dallas? A voz do homem pareceu surpreendida. Óptimo.

 

Sim, que teve lugar no ano passado. Um motor incendiou-se, as pessoas saltaram do avião e partiram as pernas.

 

Ah, sim. Esse incidente envolveu um Sete Três Sete respondeu Benson.

 

Incidente com 737.

 

Hum, hum... Que pode dizer-me a esse respeito?

 

Nada retorquiu o homem. Não era um dos nossos aviões.

 

Ora, vamos lá, já estou a par do incidente...

 

Era um avião da Boeing.

 

Jesus! exclamou Jennifer, com um suspiro. Não me venha com essa. Era um aborrecimento... o modo como os tipos das relações públicas se faziam de parvos. Como se uma boa jornalista de investigação não acabasse por descobrir a verdade. Parecia pensarem que, se eles não a dissessem, ninguém o faria.

 

Lamento muito, Miss Malone, mas não fabricamos esse tipo de avião.

 

Bom, se isso é verdade ripostou Jennifer, claramente sarcástica, suponho que é capaz de me dizer quem o poderá confirmar?

 

Sim, senhora respondeu Benson. Ligue o indicativo dois zero e peça para falar com a Boeing. Eles poderão ajudá-la.

 

Clique!

 

Jesus! Que estupor! Como é que aquelas companhias se atreviam a tratar uma jornalista com tão maus modos? Quando um jornalista se irrita vinga-se. Ou ainda não o sabiam?

 

Telefonou para a Boeing e pediu para falar com o Departamento de Relações Públicas. Respondeu-lhe uma gravação, com a voz de uma cabra qualquer a recitar um número de fax e a dizer que as perguntas deviam Ser enviadas por fax e que só depois seriam respondidas. Era incrível, pensou Jennifer. Uma grande empresa americana e nem sequer atendiam o telefone.

 

Irritada, desligou. Não valia a pena ficar à espera. Se o incidente de Dallas envolvera um Boeing, não havia história.

 

Não tinha por onde pegar.

 

Martelou com a ponta dos dedos na mesa, tentando decidir o que fazer.

 

Voltou a ligar para a Norton, dizendo que queria falar com alguém da gestão e não com as relações públicas. Ligaram-na ao gabinete do presi dente, mas depois transferiram a chamada para uma mulher chamada Singleton.

 

Segundo sei, tem havido um atraso na certificação europeia do N-Vinte e Dois. Qual é o problema com o avião? inquiriu Jennifer.

 

Não há nenhum problema retorquiu Singleton. O N-Vinte e Dois já voa há cinco anos, neste país.

 

Pois é, mas tenho ouvido dizer que o avião não é seguro afirmou Jennifer. Ontem, houve um motor que se incendiou em Miami...

 

Na verdade, tratou-se do rebentamento de um rotor. O caso está a ser investigado. A mulher falava calmamente, como se a explosão de um motor fosse a coisa mais natural do mundo.

 

Rebentamento de um rotor!

 

Hum, hum... fez Jennifer. Compreendo. No entanto, se é verdade que o vosso avião não tem problemas, porque é que a FAA atrasou a certificação?

 

A mulher, do outro lado da linha, fez uma pausa.

 

A esse respeito, só posso falar em linhas gerais, e o que eu disser não é para ser divulgado. Parecia incomodada, um pouco tensa. Óptimo. Estava a chegar a qualquer lado.

 

Não há qualquer problema com o avião, Miss Malone. A questão diz respeito a motores. Neste país, o avião voa com motores da Pratt I Whitney. Porém, a FAA insiste que, se quisermos vender o avião na Europa, temos de o equipar com motores IAE.

 

IAE?

 

Trata-se de um consórcio europeu, tal como a Airbus, que fabrica motores.

 

Hum, hum... murmurou Jennifer. IAE = consórcio europeu.

 

Alegadamente prosseguiu a mulher chamada Singleton. A FAA quer que equipemos o avião com motores da IAE para satisfazer as normas europeias referentes ao ruído e às emissões, que são mais apertadas do que nos Estados Unidos. Porém, nós fabricamos aviões e não motores, e pensamos que a decisão final quanto aos motores deverá ser do cliente. Instalamos o motor que o cliente pedir. Se quiserem um IAE, nós instalamo-lo. Se quiserem um Pratt Whitney, nós também o instalamos. Se quiserem um GE, pois que seja um GE. As coisas foram sempre assim, neste negócio. O cliente é quem escolhe o motor. Por isso, consideramos que a posição da FAA é uma intrusão reguladora inapropriada. Teremos um grande prazer em montar motores IAE se a Sabena ou a Lufthansa os pedirem... mas pensamos que a FAA não pode ditar os termos de entrada no mercado europeu. Por outras palavras, a questão nada tem a ver com segurança de voo.

 

Quer dizer que se trata de um conflito de regulamentos? perguntou Jennifer, franzindo a testa.

 

Exactamente. Trata-se de uma questão comercial. A FAA tenta obrigar-nos a utilizar motores europeus. Se é isso o que pretendem, devem fazer essa imposição às companhias europeias e não a nós.

 

Conflito regulador!

 

E porque não fizeram essa imposição aos Europeus?

 

Terá de perguntar à FAA. Francamente, suponho que já o tentou e que as companhias a mandaram dar uma volta. Os aviões são construídos de acordo com as especificações dos clientes. São as operadoras que definem os motores, os sistemas electrónicos e as configurações interiores. A escolha é deles.

 

Jennifer fazia garatujas. Escutava o tom de voz da mulher no outro lado da linha, tentando sentir as suas emoções. Parecia ligeiramente aborrecida, como uma professora no fim de um dia de aulas. Jennifer não detectava tensões, hesitações ou segredos ocultos.

 

"Merda", pensou. "Não há história."

 

Fez uma última tentativa: telefonou para a Comissão Nacional de Segurança nos Transportes, em Washington. Ligaram-na a um homem chamado Kenner, das Relações Públicas.

 

Estou a telefonar por causa da certificação do N-Vinte e Dois pela FAA.

 

Bom, sabe... Kenner parecia surpreendido. Não temos nada a ver com isso. O melhor será contactar alguém da FAA.

 

Pode dar-me alguns pormenores sobre o que está a passar-se?

 

Bem... a certificação pela FAA é extremamente rigorosa e tem servido de modelo para as regulamentações estrangeiras. Desde que me lembro, as agências estrangeiras de todo o mundo sempre consideraram a certificação da FAA como sendo suficiente. Agora, a FAA quebrou com essa tradição e não me parece que os seus motivos constituam um segredo. Trata-se de política, Miss Malone. A FAA quer que os Americanos usem motores europeus, pelo que ameaçam atrasar a certificação. Por outro lado, a Norton está prestes a fazer uma venda de N-Vinte e Dois à China, e a Airbus quer impedi-la, para vender os seus próprios aviões.

 

É por isso que a FAA está a levantar problemas?

 

Sim. No mínimo, conseguem levantar dúvidas.

 

Dúvidas legítimas?

 

Não, no que nos diz respeito. O N-Vinte e Dois é um bom avião, que já deu provas. A Airbus diz que tem um avião novo, mas a Norton contrapõe, afirmando que o deles já mostrou o que vale. Para além disso, é menos dispendioso.

 

Sim, mas o avião é seguro?

 

Oh, absolutamente!

 

A NTSB diz que o avião é seguro.

 

Jennifer agradeceu e desligou. Recostou-se e suspirou. Não tinha história. Nada. Ponto final.

 

Merda! exclamou.

 

Ligou o intercomunicador.

 

Deborah disse, quanto àquela história do avião...

 

Também estás a ver? retorquiu Deborah, num guincho.

 

A ver o quê?

 

A CNN! É inacreditável! Jennifer pegou no controlo remoto.

 

         RESTAURANTE EL TORITO

         12:05

 

El Torito oferecia uma comida aceitável a um preço razoável, para além de cinquenta e dois tipos de cerveja, e era o local preferido dos engenheiros. Os membros da IRT encontravam-se todos sentados à mesa central da sala principal, perto do bar. A empregada acabara de receber a encomenda e afastava-se quando Kenny Burne disse:

 

Então, ouvi dizer que o Edgarton está com alguns problemas...

 

Não os temos todos? retorquiu Doug Doherty, estendendo a mão para as batatas fritas e para o molho.

 

O Marder odeia-o.

 

E então? perguntou Ron Smith. O Marder odeia toda a gente.

 

Sim, mas a questão está em que... começou Kenny continuo a ouvir dizer que o Marder não...

 

Oh, Jesus! Olhem! gritou Doug Doherty, apontando na direcção do bar.

 

Todos se viraram para a televisão instalada por cima do bar. Não tinha som, mas a imagem era inconfundível: mostrava o interior de um N-22 da Norton, visto por uma câmara que tremia muito. Os passageiros estavam literalmente a voar, em pleno ar, ressaltando nos compartimentos das bagagens e nos painéis das paredes, e caindo sobre os assentos.

 

Santo Deus! murmurou Kenny.

 

Levantaram-se da mesa e correram para o bar, gritando:

 

O som! Aumentem o som! O televisor continuava a mostrar as imagens horríveis.

 

Quando Casey conseguiu chegar junto ao bar, já as imagens haviam terminado. A televisão mostrava agora um homem magro, de bigode, usando um fato azul cuidadosamente cortado que sugeria, de algum modo, um uniforme. Casey reconheceu Bradley King, um advogado especializado em acidentes com aviões de passageiros.

 

Era de prever comentou Burne. É o Sky King.

 

Penso que estas imagens falam por si declarava Bradley King. Foi o meu cliente, Mister Song, quem as forneceu, e retratam vivamente a terrível provação a que os passageiros estiveram sujeitos durante este voo amaldiçoado. O avião entrou num mergulho descontrolado e completamente injustificado e esteve a cento e cinquenta metros de se despenharno oceano Pacífico!

 

O quê? exclamou Burne. O avião fez o quê?!

 

Como sabem, também sou piloto e posso afirmar, com absoluta convicção, que o que aconteceu foi o resultado das já bem conhecidas falhas do jacto N-Vinte e Dois. A Norton está a par dessas falhas há anos e nada fez para as corrigir. Têm-se verificado amargas queixas por parte de pilotos, operadores e especialistas da FAA. Pessoalmente, conheço pilotos que se recusam a voar no N-Vinte e Dois por ser pouco seguro.

 

Em especial os que estão na tua lista de pagamentos comentou Burne.

 

Na televisão, King prosseguia:

 

Todavia, a Norton Aircraft nada fez de substancial para resolver esses problemas de segurança. O facto de os conhecerem e de não tomarem medidas é verdadeiramente inexplicável. Dada a sua negligência criminosa, era apenas uma questão de tempo até ocorrer uma tragédia como esta, Agora, no preciso momento em que falamos, temos três mortos, duas pessoas paralisadas e um piloto em coma. No total, cinquenta e sete passageiros necessitaram de hospitalização. É uma desgraça para a aviação.

 

Pedaço de merda! explodiu Burne. Sabe perfeitamente que não é verdade!

 

Contudo a televisão mostrava mais uma vez a gravação, agora em câmara lenta, com os corpos a rodopiar no ar, alternadamente desfocados e nítidos. Casey começou a suar ao ver as imagens. Sentia-se tonta e gelada com o peito apertado. O restaurante à sua volta tornou-se indistinto e ganhou um tom esverdeado. Sentou-se rapidamente num dos bancos do bar e respirou fundo.

 

A televisão passara a mostrar um homem barbudo, com um ar de estudioso, de pé, junto de uma das pistas do aeroporto de Los Angeles. Por trás dele, viam-se aviões a rolar no solo. Não conseguia ouvir o que o homem dizia porque todos os engenheiros à sua volta gritavam para a imagem.

 

Burro!

 

Cara de cu!

 

Aldrabão!

 

Filho de uma...

 

Fazem favor de se calar? pediu O homem barbudo, no ecrã,. Era Frederick Barker, um antigo funcionário da FAA, mas que já não trabalhava para a agência. Nos anos mais recentes, Barker testemunhara várias vezes contra a companhia, em tribunal. Os engenheiros odiavam-no.

 

Oh, sim... dizia o homem. Receio que não haja qualquer dúvida quanto a esse problema. "Qual problema?", pensou Casey, mas a imagem da televisão regressou ao estúdio da CNN em Atlanta, com a apresentadora em frente de uma fotografia do N-22. Por baixo da fotografia via-se as palavras PERIGOSO? em grandes letras vermelhas.

 

Cristo, haverá quem acredite nisto? perguntou Burne. O estupor do Sky King e o Barker. Não sabem que o Barker trabalha para o King?

 

O ecrã passara a mostrar um edifício bombardeado, algures no Médio Oriente. Casey virou-lhe as costas, desceu do banco e aspirou o ar com força.

 

Maldição, preciso de uma cerveja declarou Kenny Burne, regressando à mesa. Os outros seguiram-no, murmurando coisas a respeito de Fred Baker.

 

Casey pegou na mala, procurou o telefone celular e ligou para o seu gabinete.

 

Norma pediu, telefona para a CNN e arranja-me uma cópia da gravação que acabaram de passar sobre o N-Vinte e Dois.

 

Ia sair para... Agora! ordenou Casey. Trata disso imediatamente! '

 

         "NEWSLINE"

           15:06

 

Deborah! berrou Jennifer, olhando para a televisão. Telefona para a CNN e arranja-me uma cópia daquela gravação da Norton! Jennifer continuou a olhar, hipnotizada. Estavam outra vez a passar a gravação, agora em câmara lenta, a seis imagens por segundo. E a gravação aguentava-se! Fantástico!

 

Viu um pobre diabo aos trambolhões no ar como um mergulhador fora de controlo, com os braços e pernas a agitarem-se em todas as direcções. Foi embater contra um assento e o seu pescoço partiu-se, com o corpo a contorcer-se, antes de ressaltar e ir embater no tecto... Incrível! Um pescoço a partir-se, ali mesmo, captado pela câmara!

 

Era a melhor gravação em vídeo que jamais vira. E o som! Fabuloso! As pessoas gritavam de puro terror e eram sons impossíveis de falsificar. Algumas gritavam em chinês, o que tornava a cena muito exótica. Para alem disso, havia todos aqueles incríveis ruídos de coisas a esmagarem-se, enquanto as pessoas, os sacos e sabe-se lá que mais embatiam nas paredes e no tecto. Jesus!

 

Era uma gravação fabulosa! Incrível! Prosseguia durante quarenta e cinco segundos, uma verdadeira eternidade... e todas as imagens eram boas. O facto de, de vez em quando, ficarem desfocadas e confusas só servia para aumentar o seu impacte. Não era possível pagar a um operador de câmara para fazer aquilo!

 

Deborah! gritou. Deborah!

 

Estava tão excitada que sentia o coração a martelar. Era como se não coubesse em si! Teve uma vaga consciência do tipo que apareceu no ecrã, um qualquer advogado com cara de fuinha que fazia comentários. A gravação deveria ser dele. No entanto, Jennifer sabia que o homem a entregaria ao Newsline porque queria dar nas vistas e aparecer nos ecrãs... o que significava que tinham uma história! Fantástico! Algumas entrevistas, gravações, montagem... e pronto!

 

Deborah apareceu a correr, corada e excitada, Jennifer disse-lhe:

 

Arranja-me todas as imagens que tivermos relacionadas com a Norton Aircraft dos últimos cinco anos. Faz uma busca no Nexis a respeito do M Vinte e Dois, de um tipo chamado Bardley King e um outro chamado... -Deteve-se e voltou a olhar para o ecrã... Frederick Barker. Copia todos os dados. Agora!

 

Vinte minutos depois já fizera o esboço de uma história e informações sobre as personagens principais. Tinha em seu poder o artigo do Times de LOS Angeles sobre apresentação, certificação e voo inaugural do primeiro Norton N-22 encomendado por um cliente. Falava em sistemas electrónicos avançados, autopiloto, blá, blá, blá...

 

Tinha o artigo do New York Times sobre Bradley King, o controverso advogado, muito censurado por abordar as famílias das vítimas de acidentes aéreos ainda antes de as transportadoras lhe comunicarem oficialmente a morte dos seus familiares. Possuía um outro artigo do Times de Los Angeles sobre Bradley King, que chegara a acordo num processo relativo ao acidente de Atlanta. Tinha o Independent Press Telegram, de Long Bead que dizia que a Ordem dos Advogados do Ohio repreendera Bradley King por conduta pouco ética ao contactar os familiares das vítimas. King negara tratar-se de falta de ética. O artigo do New York Times inquiria: Tem Bradley King ido demasiado longe?

 

Outra história do Times de LA a respeito da controversa saída de Frederick Barker da FAA. Barker, um declarado crítico do sistema, dizia que abandonara a agência por causa da sua oposição ao N-22. O seu superior afirmava que Barker fora despedido por ter transmitido relatórios confidenciais aos meios de comunicação. Depois, Barker iniciara um negócio privado como "consultor de aeronáutica".

 

No Independent Press Telegram, Fred Barker lançava uma cruzada contra o N-22 da Norton, afirmando que o aparelho tinha um "historial de incidentes de segurança inaceitável". No Telegraph-Star do condado ^ Orange, Barker fazia campanha para tornar as companhias de aviação mais seguras. No mesmo periódico, Barker era a principal testemunha do processo movido por Bradley King, processo esse resolvido fora do tribunal.

 

Jennifer começava a ver a forma que a sua história iria tomar. Era óbvio que tinham de se manter longe de Bradley King, o "caçador de vítimas". Porém, Barker, um antigo funcionário da FAA, poderia ser muito útil. Muito provavelmente, também seria capaz de criticar as práticas de certificação da FAA.

 

Jennifer reparou que Jack Rogers, o jornalista do Telegraph-Star, tinha pontos de vista particularmente críticos a respeito da Norton Aircraft e assinalou vários artigos recentes assinados pelo jornalista.

 

Telegraph-Star de Orange: Edgarton sob pressão para conseguir novas vendas de modo a aliviar os problemas da empresa. Dissensões entre directores e quadros superiores. Havia dúvidas quanto às possibilidades de êxito de Edgarton.

 

Telegraph-Star de Orange: drogas e actividade de gangs nas linhas de montagem dos twinjets da Norton.

 

Telegraph-Star de Orange: boatos sobre problemas sindicais. Os trabalhadores opunham-se à venda à China, dizendo que arruinaria a empresa.

 

Jennifer sorriu.

 

As coisas começavam a tornar-se interessantes.

 

Entrou em contacto com Jack Rogers, no seu jornal.

 

Estive a ler os teus artigos sobre a Norton. São excelentes. Deram-me a entender que a empresa está a enfrentar alguns problemas.

 

Muitos problemas confirmou Rogers.

 

Estás a referir-te aos aviões?

 

Bom, sim, mas também têm problemas sindicais.

 

A que propósito?

 

Não se percebe muito bem. O pessoal anda agitado e a direcção não intervém. O sindicato está irritado com a venda à China e diz que talvez fosse melhor não a concretizar.

 

És capaz de o dizer em frente da câmara?

 

Claro. Não poderei revelar as minhas fontes, mas direi tudo o que sei.

 

"Claro que o dizes", pensou Jennifer. O sonho de todos os jornalistas da imprensa era o de conseguirem aparecer na televisão. Compreendiam que o dinheiro a sério provinha do facto de aparecerem na caixa mágica. Por muito grande que fosse o êxito que tivessem nos jornais, não eram ninguém enquanto não fossem vistos na televisão. Depois de terem o nome reconhecido nos ecrãs, podiam passar para o lucrativo circuito das conferências, levando cinco ou dez mil dólares apenas para falar às pessoas durante um almoço.

 

Provavelmente, será lá para o fim da semana... Os meus serviços voltarão a contactar contigo.

 

Basta que me digam quando retorquiu Rogers.

 

Jennifer telefonou para Fred Barker, para Los Angeles. O homem até parecia estar à espera da chamada.

 

Aquele vídeo era muito dramático disse-lhe.

 

É assustador... respondeu Barker. Sempre que os slats de um avião saem quase à velocidade do som. Foi o que se passou com o voo da Transpacific. É o nono incidente desse tipo desde que o avião entrou ao serviço.

 

O nono?!

 

Oh, sim. Não foi nenhuma novidade, Miss Malone. Pelo menos três outros casos foram atribuídos ao mau desenho da Norton, mas a companhia nada fez.

 

Tem uma lista?

 

Dê-me o número do seu fax.

 

Jennifer ficou a olhar para a lista. Era demasiado pouco pormenorizada para o seu gosto, mas não deixava de ser interessante:

 

Incidentes envolvendo a saída de slats no N-22

 

1 4 de Janeiro de 1992. Saída de slats em FL350, a uma velocidade de Mach 0,84. O manípulo foi deslocado inadvertidamente.

 

2 2 de Abril de 1992. Os slats saíram quando o avião seguia o Mach 0,81. Aparentemente, a prancheta de um bloco de notas caiu sobre o manípulo.

 

3 17 de Julho de 1992. Incidente inicialmente considerado como devido a forte turbulência. Contudo, mais tarde, concluiu-se que se devera a uma saída de slats por causa do accionamento ocasional do manípulo. Cinco passageiros feridos, três em estado grave.

 

4 20 de Dezembro de 1992. Os slats saíram em pleno voo sem o correspondente accionamento do manípulo. Dois passageiros feridos.

512 de Março de 1993. O avião quase entrou em perda a Mach

0,82. Descobriu-se que os slats saíram e que o manípulo não se encontrava travado.

 

6 4 de Abril de 1993. O co-piloto pousou o braço no manípulo e deslocou-o, provocando uma saída dos slats. Vários passageiros feridos.

 

7 4 de Julho de 1993. O piloto comunicou que o manípulo dos slats se deslocara levando à sua saída. O avião seguia a Mach 0,81.

 

8 10 de Junho de 1994. Os slats saíram com o avião em voo sem o accionamento do respectivo manípulo.

 

Jennifer voltou a pegar no telefone e ligou para Barker.

 

Está disposto a falar destes incidentes em frente da câmara? perguntou.

 

Testemunhei a esse respeito em várias ocasiões, nos tribunais afirmou Barker. Não me importo nada de falar para as câmaras. De facto, até quero ver esse avião com todos os defeitos corrigidos, antes que morra mais gente. Aparentemente, ninguém quer corrigi-los, nem a com panhia, nem a FAA. É uma desgraça!

 

Como pode ter a certeza de que, neste caso, se tratou de um inci dente com os slats?

 

Tenho uma fonte no interior da Norton replicou Barker. Um empregado descontente que está farto de tantas mentiras. Foi essa fontt que me disse terem sido os slats, e que a companhia está a abafar o caso.

 

Jennifer largou o telefone e carregou no botão do intercomunicador.

 

Deborah! gritou. Liga-me aos tipos das viagens!

 

Fechou a porta do gabinete e deixou-se ficar sentada. Sabia que tinha uma história.

 

Uma história fabulosa.

 

Agora, o que estava em causa era: qual o ângulo? Com que enquadramento?

 

Num programa como o Newsline, o enquadramento era extremament importante. Os velhos produtores do programa falavam de "contexto" e que para eles significava apresentar a história num cenário mais amplo. Pretendiam dar a entender o significado da história narrando o que acontecera antes, ou falando de coisas semelhantes, que já tivessem tido lugar. Esses tipos mais velhos pensavam que o contexto era tão importante que parecia encararem-no como uma espécie de obrigação moral ou ética.

 

Jennifer não estava de acordo. Quando se punham de parte todas as tretas hipócritas, o contexto era apenas uma invenção, uma maneira de empolar a história, e nem sequer muito útil, uma vez que envolvia uma referência ao passado.

 

Jennifer não tinha qualquer interesse pelo passado. Pertencia àquela geração que entendia que uma televisão excitante se referia ao agora. Osacontecimentos que tivessem lugar agora, um fluxo de imagens num perpétuo e infindável hoje electrónico. O contexto, pela sua própria natureza requeria algo mais do que o agora, e o seu interesse não ia para além d" se agora. Nem os interesses de mais ninguém. O passado estava morto e enterrado. Quem se importava com o que havia comido ontem? Que fez você ontem? A única coisa imediata e excitante era o agora.

 

A televisão, no seu melhor, era agora. Por isso, um bom enquadramento nada tinha a ver com o passado. Na verdade, a lista de anteriores incidentes que Fred Barker lhe forneceu constituía um problema, porque chamava a atenção para um passado distante e maçador. Tinha de arranjar maneira de a rodear. Mencioná-la-ia rapidamente e seguiria em frente.

 

O que procurava era uma maneira de dar forma à história para que se desenvolvesse agora, num padrão que o espectador pudesse seguir. Os melhores enquadramentos, os que prendiam a atenção do espectador, eram os que apresentavam a história como um conflito entre o bem e o mal. Tinha de ser uma história com moralidade, para que os espectadores a entendessem. Se a história fosse enquadrada desse modo, a aceitação era imediata, uma vez que falava a linguagem das audiências.

 

Porém, como a história também tinha de se desenrolar rapidamente, essa modalidade teria de ficar implícita numa série de sugestões que não precisavam de ser explicadas. Coisas que a audiência já sabia serem verdadeiras. Já sabiam que as grandes empresas eram corruptas, e que os seus dirigentes eram porcos sexistas e ambiciosos. Não era preciso prová-lo.

 

Bastava mencioná-lo. Já sabiam que as burocracias governamentais eram incompetentes e preguiçosas. Aí estava outra coisa que não era preciso provar. Também já sabiam que os produtos eram manufacturados com cinismo, sem qualquer preocupação pela segurança dos consumidores. Era

sobre esses elementos, com que toda a gente estava de acordo, que deveria construir a sua história com moralidade. Uma história muito rápida, a ter lugar agora.

 

Claro que o enquadramento ainda necessitava de algo mais. Primeiro que tudo, tinha de vender a ideia a Dick Shenk. Tinha de a apresentar sob um ângulo que lhe agradasse, que estivesse de acordo com a sua visão do mundo. Não seria uma tarefa fácil, uma vez que Shenk era muito mais sofisticado do que a audiência. Mais difícil de satisfazer.

 

Nos gabinetes do Newsline, Shenk era conhecido como o "crítico", por causa da maneira violenta como recusava algumas das peças que lhe eram propostas. Quando se deslocava no escritório, Shenk adoptava um ar afável, desempenhando o papel de um homem importante mas compreensivo. Tudo isso desaparecia quando lhe apresentavam uma proposta de trabalho. Nessa altura, tornava-se perigoso. Dick Shenk era um homem culto e inteligente, muito inteligente e conseguia ser encantador quando o desejava. Porém, no fundo, era mau. Tornara-se ainda pior com a idade, cultivando essa sua faceta desagradável e encarando-a como a chave para o seu êxito.

 

Agora, Jennifer tinha de lhe ir apresentar uma proposta. Sabia que Shenk iria ficar desesperado por uma história. Contudo, também iria ficar zangado com Al Pacino e com Marty, e essa sua ira poderia virar-se, com muita facilidade, contra Jennifer e a sua proposta. Para evitar esse perigo, para lhe vender a ideia, precisava de avançar com todas as cautelas. Teria de dar à sua história uma forma que, mais do que tudo, servisse de escapatória à hostilidade e ira de Dick Shenk, deixando-a para uma direcção útil. Jennifer estendeu a mão para um bloco de notas e começou a traçar as linhas mestras do que iria dizer-lhe.

 

         ADMINISTRAÇÃO

         13:04

 

Casey meteu-se no elevador da administração, logo seguida por Richman.

 

Não compreendo queixou-se o jovem. Porque estão todos tão zangados com o King?

 

Porque está a mentir retorquiu Casey. Sabe perfeitamente que o avião não esteve a cento e cinquenta metros do oceano Pacífico. Se isso tivesse acontecido, estariam todos mortos. O incidente teve lugar a onze mil metros de altitude. Quanto muito, o avião desceu mil ou mil e duzen tos metros... o que já é bastante mau.

 

E então? Limita-se a chamar a atenção, a construir o caso para o seu cliente. Sabe bem o que está a fazer.

 

Oh, sabe, sim!

 

No passado, a Norton não fez acordos com ele, fora do tribunal!

 

Por três vezes concordou Casey.

 

Se vocês têm razão, levem-no a tribunal disse Richman, encolhendo os ombros.

 

Sim, podíamos fazê-lo admitiu Casey, mas os julgamentos são dispendiosos e esse tipo de publicidade não nos é favorável. É mais barato chegar a um acordo... e adicionar essa despesa ao preço dos aviões. Assim, no fim, cada passageiro das transportadoras paga mais alguns dólares pelo seu bilhete, numa espécie de taxa oculta. É a taxa de litigação. A taxa Bradley King. É assim que as coisas funcionam no mundo real.

 

As portas abriram-se e saíram para o quarto andar. Casey apressou-se ao longo do corredor, na direcção do seu departamento.

 

Onde vai agora? perguntou Richman.

 

À procura de uma coisa importante de que me esqueci. Casey encarou-o. E tu também.

 

          "NEWSLINE"

           16:45

 

Jennifer Malone encaminhou-se para o gabinete de Dick Shenk. Pelo caminho, passou pela "Parede da Fama", coberta por uma densa colecção de fotografias, placas e prémios. As fotografias mostravam momentos íntimos, na companhia dos ricos e dos famosos: Shenk a cavalo, com Reagan; Shenk num iate com Cronkite; Shenk em Southampton, num jogo de softball com Tisch; Shenk com Clinton; Shenk com Ben Bradlee. No canto mais distante, via-se uma fotografia de um Shenk absurdamente jovem, com os cabelos até aos ombros e uma câmara Arriflex apoiada no ombro, filmando John Kennedy na Sala Oval.

 

Dick Shenk começara a sua carreira nos anos sessenta como pequeno realizador de documentários, nos tempos em que os serviços noticiosos locais perdiam prestígio a favor das grandes redes de televisão, autónomas, com grandes orçamentos e os melhores profissionais. Tinham sido os grandes dias dos White Papers da CBS, e dos Reports da NBC. Nessa época, quando Shenk era um garoto carregado com uma Arri, desempenhava o seu papel no mundo, obtendo as imagens que faziam a diferença. Com a idade e o êxito, os horizontes de Shenk haviam-se estreitado. O seu mundo limitava-se à casa dos fins-de-semana em Connecticut e à mansão em Nova Iorque. Quando ia a algum lado, deslocava-se de limusina. Porém, Shenk, aos sessenta anos, e não obstante a sua educação privilegiada, os estudos em Yale, as belas ex-mulheres, a existência confortável e o êxito mundano, não estava satisfeito com a vida. Deslocando-se de um lado para o outro na sua limusina, sentia-se pouco apreciado. Não recebia reconhecimento e respeito suficiente pelas suas realizações. O garoto inquisidor, armado com uma câmara, envelhecera e transformara-se num adulto amargo e conflituoso. Sentindo que lhe tinha sido negado o respeito que merecia, negava-o aos outros, adoptando um cinismo que abrangia tudo o que o rodeava... e era por isso que Jennifer tinha a certeza de que lhe venderia a história sobre a Norton.

 

Jennifer entrou no gabinete exterior e parou junto da secretária de Marian.

 

Vais falar com o Dick? perguntou Marian.

 

Ele está?

 

Marian confirmou com um aceno e inquiriu:

 

Queres companhia?

 

Achas que preciso? retorquiu Jennifer, levantando uma sobrancelha.

 

Bom... murmurou a mulher. Como esteve a beber...

 

Não faz mal, sei lidar com ele.

 

Dick Shenk escutou-a, de olhos fechados, de mãos juntas e dois dedos esticados, unidos pelas pontas em forma de campanário. De tempos a tempos, acenava levemente.

 

Jennifer descreveu toda a peça que lhe propunha, especificando os pontos fortes: o acidente de Miami, a questão da certificação pela FAA, o voo da Transpacific, a venda à China, provavelmente em perigo, o antigo técnico da FAA que dizia que o avião tinha uma longa história de erros de desenho nunca corrigidos, o jornalista de aviação que afirmava que a empresa era mal gerida, que tinha problemas com drogas e bandos nas salas de montagem, e também um novo e controverso presidente que precisava de aumentar as vendas. Era o retrato de uma empresa, outrora orgulhosa,' a precipitar-se no abismo.

 

O enquadramento para a peça, acrescentou, seria "A Podridão Logo Abaixo da Superfície": uma empresa mal gerida vendia um mau produto havia anos. Os que sabiam queixavam-se, mas a empresa não reagia, A FAA defendia os interesses da empresa e não actuava. Agora, a verdade vinha ao de cima. Os Europeus recusavam a certificação. Os Chineses recuavam. O avião continuava a matar passageiros, tal como os seus críticos tinham afirmado. E depois, havia aquela gravação espantosa, mostrando as agonias que os passageiros haviam suportado enquanto alguns deles morriam. O final... era óbvio para todos: o N-22 constituía uma armadilha mortal.

 

Jennifer calou-se. Houve um longo momento de silêncio. Por fim, Shenk abriu os olhos.

 

Não está mal declarou. Jennifer sorriu.

 

Qual é a reacção da empresa? inquiriu Shenk, numa voz preguiçosa.

 

O muro do silêncio. O avião é bom, os críticos mentem.

 

Tal como seria de esperar disse Shenk, abanando a cabeça. Os produtos americanos são uma porcaria. Dick conduzia um BMW e os seus gostos iam desde os relógios suíços aos vinhos franceses e aos sapatos ingleses. Tudo o que é feito neste país é lixo acrescentou. Recostou-se na cadeira, como se aquela ideia o tivesse fatigado. A sua voz voltou a ganhar um tom preguiçoso. Que podem eles oferecer-nos, como provas?

 

Pouca coisa respondeu Jennifer. Os incidentes de Miami e da Transpacific ainda estão a ser investigados.

 

Quando surgirão os relatórios finais?

 

Nunca antes de várias semanas.

 

Ah! Shenk acenou lentamente. Gosto disso. Gosto muito. É um jornalismo ao vivo... É muito melhor do que aquela porcaria do Sessenta Minutos. Na semana passada fizeram um programa sobre peças de substituição pouco seguras, utilizadas nos aviões. Aqui, estamos a falar da falta de segurança de todo um avião! Uma armadilha mortal! Perfeito! Vamos pregar um susto de morte a toda a gente!

 

Também me parece! assentiu Jennifer, já com um grande sorriso, Shenk concordara!

 

Vou adorar atirar com essa peça à cara do Hewitt acrescentou Dick. Don Hewitt, o lendário produtor do programa 60 Minutos, era Nemesis de Shenk. Alcançava constantemente melhores críticas na imprensa do que Shenk, que ficava furioso. Aqueles idiotas... murmurou. Lembras-te daquela vez em que fizeram uma peça sobre os profissionais de golfe, fora da época...?

 

Não, não me lembro disse Jennifer, abanando a cabeça.

 

Já foi há algum tempo... explicou Dick. Ficou distraído por instantes, a olhar para o vazio, e era claro que tinha bebido muito durante o almoço. Bom, deixa lá. Onde é que íamos? Ah, sim, tens o tipo da FAA, tens o jornalista e a gravação de Miami. Como a chave é aquele vídeo amador, começaremos por aí...

 

Certo concordou Jennifer, acenando.

 

Contudo, a CNN vai passá-lo dia e noite. Na semana que vem, já será uma história antiga. Temos de pôr a peça no ar neste sábado.

 

De acordo respondeu Jennifer.

 

Tens doze minutos continuou Shenk. Girou a cadeira, olhou para as tiras coloridas na parede que representavam as peças em produção e os locais onde a estrela dos ecrãs iria estar. Podes ficar com o... hum... hum... com o Marty. Na quinta-feira está em Seattle para a peça sobre o Bill Gates. Na sexta-feira mandamo-lo para Los Angeles. Podes trabalhar com ele durante seis ou sete horas...

 

Está bem.

 

Shenk voltou a girar a cadeira, vir ando-se para a secretária.

 

Trata disso!

 

Certo. Obrigado, Dick.

 

Tens a certeza de que consegues ter tudo pronto a tempo? Jennifer começou a recolher os apontamentos.

 

Confia em mim.

 

Quando já atravessava o gabinete de Marian, ouviu-o gritar:

 

Lembra-te, Jennifer, não me apareças com uma história sobre peças falsificadas! Não quero uma merda dessas!

 

         NORTON DIVISÃO DE QUALIDADE

         14:21

 

Casey entrou no gabinete do Q A na companhia de Richman. Norma voltara do almoço e acendia mais um cigarro.

 

Norma disse, viste por aqui uma cassete de vídeo? Uma daquelas mais pequenas, de oito milímetros?

 

Sim respondeu a mulher. Deixaste-a em cima da secretária, na outra noite. Remexeu numa gaveta e fez aparecer a cassete. A seguir virou-se para Richman. Tens dois telefonemas do Marder. Quer que lhe ligues imediatamente.

 

Está bem respondeu o jovem, dirigindo-se para o corredor para ir para o seu gabinete. Quando desapareceu, Norma continuou: Sabes, este tipo passa muito tempo a conversar com o Marder. Foi a Eileen quem mo disse.

 

O Marder anda a namorar os familiares do Norton?

 

Não é isso retorquiu Norma, abanando a cabeça. Por amor de Deus, o homem está casado com a filha do Charley.

 

Então, que estás tu a tentar dizer-me? perguntou Casey. Que o Richman faz relatórios ao Marder?

 

Cerca de três vezes por dia.

 

Porquê? inquiriu Casey, franzindo a testa.

 

Boa pergunta, querida. Creio que estão a usar-te.

 

Para quê?

 

Não faço ideia afirmou Norma.

 

Será por causa da venda à China?

 

Não faço ideia retorquiu Norma, encolhendo os ombros. Porém, o Marder é o maior oportunista na história desta empresa... e é muito bom a ocultar as suas manobras. Se fosse a ti, tinha muito cuidado com esse rapaz. Debruçou-se sobre a secretária e baixou a voz: Quando voltei do almoço, não havia ninguém por aqui disse. O miúdo deixa a sua mala no gabinete... e dei-lhe uma espreitadela.

 

E então...?

 

O Richman anda a copiar tudo o que encontra. Tem cópias de todos os memorandos que se encontram na tua secretária. Para além disso, até fotocopiou a tua lista de telefones.

 

Os telefones?! Para que servirá isso?

 

Nem sequer sou capaz de o imaginar declarou Norma. Mas há mais. Também encontrei o seu passaporte. Nos últimos dois meses, foi cinco vezes à Coreia.

 

Coreia? ecoou Casey.

 

Isso mesmo, querida. Foi a Seul quase todas as semanas. Foram viagens curtas, de um ou dois dias. Nunca mais do que isso.

 

Mas...

 

Espera... continuou a mulher. Os Coreanos assinalam os vistos de entrada com o número do voo. Porém, os números no passaporte do Richman não são de voos, mas sim de matrículas de aviões.

 

Fez as viagens em jactos privados?!

 

É o que parece.

 

Jactos da Norton?

 

Não. Norma abanou a cabeça. Falei com a Alice, das Viagens. Nenhum dos jactos da companhia esteve na Coreia durante o último ano. Há meses que andam a fazer viagens de ida e volta a Pequim... Mas nenhum deles foi à Coreia.

 

Casey continuava com a testa franzida.

 

Ainda não é tudo acrescentou Norma. Falei com o nosso representante em Seul. É um dos meus antigos... amigos. Lembras-te daquela ocasião em que o Marder teve uma emergência dentária, no mês passado, e tirou três dias?

 

Sim...

 

Ele e o Richman estiveram juntos em Seul. O nosso representante ouviu falar nisso depois de já terem partido, e ficou aborrecido por ter sido deixado fora da jogada. Não foi convidado para nenhuma das reuniões e tomou a coisa como uma espécie de insulto pessoal.

 

Quais reuniões? perguntou Casey.

 

Ninguém sabe. Norma olhou-a com atenção. Tem cuidado com esse rapaz, querida...

 

Estava no seu gabinete, passando em revista o último monte de faxes, quando Richman espreitou pela porta.

 

Que vamos fazer a seguir? perguntou, alegremente.

 

Apareceu uma coisa respondeu Casey. Preciso que vás ao Gabinete dos Padrões de Voo. Procura o Dan Grenne e arranja cópias do plano de voo e da lista da tripulação do TPA cinco quatro cinco.

 

Mas... já temos tudo isso.

 

Não, só temos os preliminares. O Dan já deve ter as listas completas e preciso delas a tempo para a reunião de amanhã. O gabinete é em El Segundo.

 

El Segundo? Vou precisar do resto do dia...

 

Eu sei, mas é importante. Richman hesitou e acrescentou:

 

Penso que poderia ser-lhe mais útil se ficasse aqui...

 

Vai andando. Telefona-me quando tiveres o material.

 

         VIDEO IMAGING SYSTEMS

         16:30

 

A sala das traseiras da Video Imaging Systems, em Glendale, estava atulhada com fila após fila de computadores que zumbiam. Eram as máquinas atarracadas e pintadas às riscas de cor púrpura da Silicon Graphics índigo. Scott Harmon, com uma perna metida em gesso, saltitava por cima dos cabos que serpenteavam no chão.

 

Muito bem... declarou. Devemos ter qualquer coisa dentro de um segundo.

 

Conduziu Casey para uma das salas de montagem. Tratava-se de uma divisão de dimensões médias, com um sofá confortável ao longo de uma das paredes, por baixo de cartazes do cinema. A mesa de montagem estendia-se ao longo das outras três paredes. Tinha três monitores, dois osciloscópios e vários teclados. Scott começou a martelar em teclas enquanto lhe fazia um gesto para que se sentasse a seu lado.

 

Que tipo de material é este? perguntou.

 

Um vídeo caseiro.

 

Um oito milímetros dos mais básicos? Olhava para um osciloscópio enquanto falava. É o que parece. Sistema Dolby. É uma gravação das mais vulgares...

 

Creio que sim...

 

Muito bem, de acordo com isto, temos nove minutos e quarenta segundos de gravação numa cassete de sessenta minutos...

 

O ecrã iluminou-se e Casey viu cumes de montanhas envoltos em nevoeiro. A câmara descreveu uma panorâmica para mostrar um americano no princípio da casa dos trinta, caminhando por uma estrada e levando um pequeno bebé sobre o ombro. Ao fundo, via-se uma aldeia com telhados beges. Havia bambus dos dois lados da estrada.

 

Onde será isto? perguntou Harmon.

 

Parece a China respondeu Casey, encolhendo os ombros. Podes avançar mais depressa?

 

Claro. As imagens começaram a correr rapidamente, riscadas pela estática. Casey teve um relance de uma pequena casa, com a porta da frente aberta. Uma cozinha, tachos e panelas pretos. Uma mala aberta em cima de uma cama. Uma estação de comboios e uma mulher a subir para uma carruagem. O movimentado trânsito do que parecia ser Hong Kong. Uma sala de aeroporto, à noite, o homem com o bebé em cima dos joelhos. O bebé chorava e contorcia-se. Seguia-se um portão de embarque e uma mulher que verificava os bilhetes...

 

Pára aí pediu.

 

Scott carregou em botões e a gravação passou para a velocidade normal.

 

Era isto o que querias ver?

 

Sim.

 

Observou a mulher, segurando o bebé, que caminhava na rampa para o avião. Houve um corte e a imagem passou a mostrar o bebé no colo da mulher. A câmara fez uma panorâmica e focou a mulher no momento em que esta bocejava profundamente. Encontrava-se no avião, durante o voo. A cabina era iluminada apenas pelas luzes nocturnas. As janelas que se viam ao fundo estavam negras. Ouvia-se o zumbido constante dos jactos.

 

Ora esta! comentou Casey. Reconhecia a mulher que tinha entrevistado no hospital. Como era que se chamava? Tinha o nome no seu bloco de apontamentos.

 

A seu lado, na mesa de montagem, Harmon deslocou a perna e gemeu.

 

Bem feito. É para aprenderes murmurou.

 

O quê? perguntou Casey.

 

A não usar aquele tipo de esquis com a neve tão molhada. Casey acenou, conservando os olhos no monitor. A câmara regressou

 

ao bebé adormecido e depois desfocou-se e a imagem ficou negra. Harmon comentou:

 

O tipo esqueceu-se de a desligar.

 

A imagem seguinte já mostrava a claridade do dia. O bebé estava sentado, sorridente. Surgiu uma mão no monitor, acenando, para chamar a atenção da criança. Houve uma voz de homem que disse:

 

Sarah... Sarah... Sorri para o papá... Sorri... Sarah sorriu e fez um ruído gorgolejante.

 

Bonito bebé afirmou Harmon. No monitor, a voz do homem dizia:

 

Que tal te sentes, agora que estás na América, Sarah? Pronta para conheceres a terra dos teus pais?

 

Sarah emitiu outro ruído e agitou as mãozinhas no ar, estendendo-as para a câmara.

 

A mulher disse qualquer coisa a respeito de toda a gente ter um ar esquisito e as lentes viraram-se para ela. O homem perguntou:

 

Então e tu, mamã? perguntou o homem. Estás satisfeita por voltar para casa?

 

Oh, Tim! protestou a mulher, virando a cabeça. Por favor!

 

Ora deixa-te disso, Emily! Em que estás a pensar? A mulher disse:

 

Bom, sabes... respondeu. O que realmente desejo, aquilo com que sonho há meses... é com um cheeseburger.

 

Com molho picante Xu-xiang? inquiriu Tim.

 

Meu Deus, não! Um cheeseburger... explicou. Com cebolas, tomate, alface, picles e maionese.

 

A câmara voltou a focar-se no bebé, que metia um pé na boca e chupava os dedos.

 

É saboroso? comentou Tim, rindo-se. É o teu pequeno-almoço, Sarah? Não queres esperar pela hospedeira?

 

Abruptamente, a mulher rodou a cabeça e olhou para lá da câmara.

 

O que foi aquilo? perguntou, num tom preocupado.

 

Acalma-te, Em disse Tim, ainda a rir-se.

 

Pára a gravação pediu Casey.

 

Harmon tocou numa tecla. A imagem deteve-se na expressão ansiosa da mulher.

 

Recua cinco segundos disse Casey.

 

Os números brancos do contador surgiram no fundo do monitor. A fita deslizou para trás, com novas riscas de estática.

 

Óptimo. Agora, aumenta o som.

 

O bebé chupava os dedos dos pés e o ruído era tão forte que mais parecia uma cascata. O zumbido no interior da cabina transformou-se num rugido constante.

 

É saboroso? perguntou o homem, rindo-se muito alto, com a voz distorcida. É o teu pequeno-almoço, Sarah? Não queres esperar pela hospedeira?

 

Casey tentou ouvir por entre as frases do homem. Escutava os sons da cabina, o suave nurmúrio de outras vozes, o sussurro de tecidos em movimento, o intermitente tilintar de facas e garfos na galley da frente...

 

... e também, agora, uma outra coisa.

 

Outro som?

 

A cabeça da mulher virou-se.

 

O que foi aquilo?

 

Maldição exclamou Casey. Não conseguia ter a certeza. O rugido do som ambiente da cabina abafava tudo o mais. Inclinou-se para a frente, esforçando-se por ouvir.

 

A voz do homem voltou a soar e as suas gargalhadas eram como explosões.

 

Acalma-te, Em.

 

O bebé soltou uma risadinha, transformada num som capaz de rebentar os tímpanos.

 

Casey sacudiu a cabeça, de frustração. Talvez o melhor fosse recuara fita e tentar ouvir outra vez. Perguntou:

 

Podes passar isto por um filtro de audio?

 

No monitor, o marido dizia:

 

Estamos quase em casa, querida. Oh, meu Deus murmurou Harmon, olhando para o ecrã.

 

No monitor, tudo parecia torcido em ângulos estranhos. O bebé deslizou para a frente, no colo da mãe, que o agarrou e o apertou contra o peito. A câmara tremia e oscilava. Os passageiros que se viam no fundo da imagem gritavam, agarrados aos apoios de braços, enquanto o avião iniciava uma descida violenta.

 

A câmara deu novo safanão e todos pareceram mergulhar nos assentos. A mãe do bebé encolhia-se, sob as forças da gravidade, com as bochechas a formarem bolsas e os ombros a encurvarem-se. O bebé chorava. Nesse momento, o homem gritou: "Que diabo...?", e a esposa ergueu-se no ar, presa apenas pelo cinto de segurança.

 

A câmara voou pelo ar. Houve um som abrupto, de coisas esmagadas, e a imagem começou a descrever espirais muito rápidas. Quando voltou a estabilizar-se, mostrava qualquer coisa branca, com riscos. Antes de Casey conseguir perceber o que era, a câmara voltou a deslocar-se e deu-lhe uma visão de um apoio de braço visto de baixo, do chão, com dedos a apertarem o estofo. A câmara caíra na coxia entre os assentos e ficara a gravar virada para o alto. Os gritos continuavam.

 

Meu Deus! repetiu Harmon.

 

A imagem de vídeo começou a deslizar, ganhando velocidade e passando por fileira após fileira de assentos. Casey verificou que a câmara escorregava para a traseira do avião, que devia estar novamente a subir. Antes de Casey conseguir orientar-se, a câmara ergueu-se no ar.

 

"Ausência de peso", pensou. O avião devia ter atingido o alto da subida, e agora estava novamente a descer, de repente. Houvera um momento de ausência de peso, antes de...

 

A imagem caiu, rodopiando e trambolhando rapidamente. Ouviu-se uma pancada abafada, e Casey viu a imagem desfocada de uma boca aberta e de dentes. Depois, a câmara continuou a mover-se até se deter, aparentemente pousada num assento. Um enorme sapato avançou para a lente e deu-lhe um pontapé.

 

A imagem girou rapidamente e voltou a parar. A câmara regressara à coxia, virada para a traseira do avião. A imagem firme, mas muito breve, era horrível: havia braços e pernas a agitarem-se, sobressaindo das fileiras de assentos. As pessoas gritavam, agarrando-se a tudo o que tinham à mão. A câmara começou outra vez a deslizar, agora para a frente do aparelho.

 

O avião mergulhava.

 

A câmara deslocou-se cada vez mais depressa, embateu na antepara a meio da fuselagem e ficou virada para a frente, precipitando-se em direcção a um corpo que jazia na coxia. Uma idosa mulher chinesa olhou para cima naquele momento e a câmara atingiu-a na testa. Ressaltou, ergueu-se no ar, dando cambalhotas loucas, e voltou a cair.

 

Houve um grande plano de qualquer coisa brilhante, talvez a fivela de um cinto... e a câmara voltou a escorregar, desta vez para o compartimento da frente, embatendo num sapato de mulher caído na coxia, rodopiando e acelerando.

 

Penetrou na copa da frente, onde se deteve por instantes, presa a qualquer coisa. Uma garrafa de vinho rolou pelo chão, embateu na câmara, fazendo-a rodar várias vezes. A seguir deu vários pulos, sempre a girar, saindo da copa e dirigindo-se na direcção da cabina de pilotagem.

 

A porta estava aberta. Casey teve um breve relance de céu através das janelas da cabina, viu uns ombros vestidos de azul e um boné... e a câmara precipitou-se no solo e ficou parada, fornecendo uma imagem de um cinzento uniforme. Após alguns momentos, Casey compreendeu que a câmara ficara presa por baixo da porta da cabina, onde a encontrara, e que filmava a alcatifa. Nada mais havia para ver excepto o cinzento da alcatifa, mas Casey ouvia os alarmes a tocar na cabina, os avisos electrónicos e as vozes gravadas. "Velocidade do ar... Velocidade do ar..." "Perda, perda!" Mais avisos electrónicos e vozes excitadas, a gritarem em chinês.

 

Pára a fita pediu Casey.

 

Jesus Cristo! exclamou Harmon, carregando numa tecla.

 

Casey voltou a passar a fita à velocidade normal e depois viu-a uma terceira vez em câmara lenta. Porém, mesmo em câmara lenta, a maior parte das imagens em movimento não passava de manchas indistintas. Casey queixava-se:

 

Não consigo perceber, não vejo o que está a passar-se... Harmon, agora já habituado àquela sequência de imagens, declarou:

 

Posso fazer uma análise de realce, imagem a imagem, se quiseres.

 

O que é isso?

 

Uso os computadores para analisar a gravação e para gerar e inserir novas imagens intermédias nos sítios em que os movimentos são demasiado rápidos. É uma técnica simples, mas irá abrandar...

 

Não declarou Casey. Não quero nada acrescentado pelos computadores. Que mais podes fazer?

 

Posso duplicar ou triplicar cada um dos frames. Nos segmentos mais rápidos, a gravação avançará com alguns solavancos mas, pelo menos, terás tempo para a ver. Olha, vê como é. Escolheu um segmento em que a câmara trambolhava no ar e passou-o em câmara lenta. Todas estas imagens são apenas manchas indistintas. Trata-se de um movimento da câmara e não do que ela está a filmar. Agora, repara nesta, aqui, no meio das outras. Estás a vê-la? Temos aqui uma só imagem, com alguma nitidez.

 

Mostrava uma visão da traseira do avião. Os passageiros caíam sobre os assentos, com as pernas e braços desfocados pelos movimentos demasiado rápidos.

 

É uma imagem utilizável declarou Harmon. Casey percebeu onde ele queria chegar. Apesar dos seus movimentos rápidos, a câmara conseguira obter, aqui e acolá, alguns frames utilizáveis, que o homem pretendia duplicar.

 

Está bem concordou, podes fazê-lo.

 

Também podemos fazer outra coisa. Mandamos a gravação para... Casey abanou a cabeça com decisão.

 

A gravação não deve sair deste edifício, em nenhuma circunstância.

 

Está bem.

 

Preciso que me faças duas cópias pediu. E certifica-te de que copias tudo, até ao fim da cassete.

 

         AAI/HANGAR 4

         17:25

 

A equipa de investigação continuava em volta do avião da TransPacific, no Hangar 5. Casey avançou para o hangar seguinte e entrou. Ali, trabalhando quase em silêncio naquele espaço cavernoso, encontrava-se a equipa de Análises de Artefactos do Interior, chefiada por Mary Ringer.

 

Estendidas ao longo do chão de cimento, fitas cor de laranja com quase noventa metros de comprimento desenhavam o contorno das paredes interiores do N-22 da Transpacific. Outras fitas, transversais às primeiras, assinalavam as anteparas interiores. As fileiras de lugares estavam definidas por fitas paralelas. Aqui e acolá, viam-se pequenas bandeiras brancas espetadas em blocos de madeira, que correspondiam a vários pontos críticos.

 

A um metro e oitenta do solo viam-se outras fitas, bem esticadas, demarcando o tecto e os compartimentos para as bagagens de mão. No seu conjunto, aquelas fitas davam a ideia de um contorno fantasmagórico, cor de laranja, com as dimensões da cabina dos passageiros.

 

Era dentro desse contorno que cinco mulheres, simultaneamente psicólogas e engenheiras, se deslocavam com cuidado e em silêncio. As mulheres colocavam no chão peças de roupa, sacos de mão, câmaras, brinquedos de criança e outros objectos pessoais. Nalguns casos, finas fitas azuis saíam de um objecto e seguiam até outro ponto, indicando como o objecto se deslocara durante o acidente.

 

À volta delas, no hangar, encontravam-se enormes fotografias ampliadas do interior do aparelho, que haviam sido tiradas na segunda-feira. A equipa de Análise de Artefactos do Interior trabalhava quase sem falar, usando as fotografias e os seus blocos de apontamentos como referência.

 

Aquele trabalho raramente era feito. Tratava-se de um esforço desesperado e poucas vezes fornecia informações com alguma utilidade. No caso do TPA 545, o pessoal de Mary Ringer fora chamado logo desde o primeiro momento porque o grande número de feridos trazia consigo uma ameaça de processos em tribunal. Era improvável que os passageiros soubessem, com precisão, o que se passara com eles mesmos. As suas declarações eram frequentemente desconexas. Por isso mesmo, a equipa tentava tirar algum sentido do movimento das pessoas e objectos dentro da cabina, mas era um trabalho demorado e difícil.

 

Casey avistou Mary Ringer, uma mulher de cinquenta anos, pesada, de cabelos cinzentos, que se encontrava no que correspondia à secção traseira do avião.

 

Mary perguntou, que tal estamos de câmaras?

 

Já calculava que quisesse saber. Mary consultou os seus apontamentos. Encontrámos dezanove câmaras, treze fotográficas e seis de vídeo. Entre as treze câmaras fotográficas, cinco estavam partidas, com os filmes expostos à luz. Duas outras não tinham filmes. Às restantes seis foram reveladas e três delas tinham fotografias tiradas antes do incidente. Estamos a utilizá-las para tentarmos saber qual era a distribuição dos passageiros, uma vez que a Transpacific ainda não nos mandou essa informação.

 

E as câmaras de vídeo?

 

Hum... vejamos... Consultou as notas e suspirou. Seis câmaras de vídeo, duas delas com imagens tiradas a bordo do avião, antes do incidente. Falaram-me das imagens que passaram na televisão. Não sei de onde vieram. O passageiro deve ter saído com a câmara, em Los Angeles,

 

É provável.

 

Então e a caixa negra? Preciso dos dados sobre o voo...

 

Tu... e toda a gente respondeu Casey. Estou a tratar disso. Olhou em volta do compartimento delineado pelas fitas. Viu o boné do piloto pousado no cimento, a um canto.

 

Aquele boné tinha algum nome?

 

Tinha, sim, por dentro afirmou Mary. O homem chamava-se Zen Ching, ou qualquer coisa desse género. Mandámos traduzir a etiqueta.

 

Quem a traduziu?

 

A Eileen Han, do gabinete do Marder. Sabe ler e escrever em mandarim e ajuda-nos de vez em quando. Porquê?

 

Foi só para saber. Não é importante. Casey encaminhou-se para a porta.

 

Casey insistiu Mary, precisamos daqueles registos de voo,

 

Eu sei... eu sei.

 

Casey telefonou a Norma.

 

Quem será capaz de fazer traduções de chinês? perguntou.

 

Queres dizer... para além da Eileen?

 

Sim, para além dela. Tinha o pressentimento de que deveria manter aquele assunto afastado do gabinete de Marder.

 

Deixa-me pensar... pediu Norma. Olha, que tal a Ellen Fong, da Contabilidade? Costumava trabalhar para a FAA como tradutora.

 

O marido é aquele que trabalha nas Estruturas, com o Doherty?

 

Sim, mas a Ellen é discreta.

 

Tens a certeza?

 

Sei que é declarou Norma, num tom firme.

 

         EDIFÍCIO 102/CONTABILIDADE

         17:50

 

Casey dirigiu-se ao Departamento de Contabilidade, no piso térreo do Edifício 102, onde chegou um pouco antes das dezoito horas. Encontrou Ellen Fong a preparar-se para ir para casa.

 

Ellen disse-lhe, preciso de um favor.

 

Com certeza retorquiu Ellen, uma mulher de quarenta anos, sempre bem-disposta, mãe de três filhos.

 

Não costumavas trabalhar para a FAA como tradutora?

 

Oh, isso foi há muito tempo respondeu a mulher.

 

Preciso que me traduzas uma coisa.

 

Casey, podes arranjar um tradutor muito melhor...

 

Prefiro que sejas tu a fazê-lo afirmou Casey. Isto é confidencial acrescentou, entregando-lhe a cassete de vídeo. Preciso da tradução das vozes dos últimos nove minutos.

 

Está bem...

 

E gostaria que não falasses no assunto a ninguém.

 

Incluindo o Bill? inquiriu, referindo-se ao marido. Casey acenou numa confirmação.

 

Tens problemas com isso? perguntou.

 

De modo nenhum retorquiu Ellen, olhando para a cassete que tinha na mão. Para quando?

 

Amanhã? Sexta-feira, no máximo?

 

Considera-o feito declarou Ellen Fong.

 

         LNIA

         17:55

 

Casey levou uma segunda cópia da gravação para o Laboratório Norton de Interpretação Audio, nas traseiras do Edifício 24. O LNIA era dirigido por um antigo elemento da CIA, de Omaha, um paranóico génio da electrónica chamado Jay Ziegler, que construía o seu próprio equipamento de filtragem audio e de reprodução porque, segundo afirmava, não confiava em ninguém para o fazer por ele. Depois de um acidente, o governo pegava nos aparelhos de registo das vozes das cabinas e analisava-os em Washington, a fim de evitar que se verificassem fugas para a imprensa antes de a investigação estar concluída. Porém, embora as agências governamentais tivessem pessoal experiente para a transcrição das gravações, esse pessoal já não era tão especializado na interpretação de sons no interior da cabina de pilotagem, tal como os sinais de alarme e as vozes de alerta gravadas. Esses sons pertenciam ao sistema da Norton e eram sua propriedade, pelo que a empresa montara instalações para os analisar.

 

Como sempre, a pesada porta à prova de som estava fechada. Casey esmurrou-a até se ouvir uma voz num altifalante:

 

Diz o código de acesso.

 

Sou a Casey Singleton, Jay.

 

Diz o código de acesso.

 

Jay, por amor de Deus, abre a porta!

 

Ouviu-se um estalido, seguido pelo silêncio. Casey esperou. Abriu-se uma fenda estreita na espessa porta. Casey viu Jay Ziegler, de cabelos até aos ombros e de óculos escuros. O homem disse:

 

Oh, és tu. Entra, Singleton, tens acesso livre a estas instalações.

 

Jay abriu a porta um pouco mais e Casey teve de se encolher para conseguir entrar na sala escura. Ziegler fechou imediatamente a porta e accionou três trincos, numa rápida sucessão.

 

Seria melhor telefonares primeiro, Singleton. Temos uma linha segura, com quatro níveis de codificação.

 

Desculpa, Jay, mas surgiu uma coisa...

 

A segurança é uma obrigação de toda a gente.

 

Casey entregou-lhe a cassete e o homem deu-lhe uma olhadela.

 

Isto é uma fita de uma polegada, Singleton. Não costumamos ver muitas por aqui.

 

Consegues lê-la?

 

Posso ler tudo, Singleton. Tudo o que me enviares declarou Jay, com um aceno de confirmação. Colocou a cassete num tambor horizontal e rebobinou-a. A seguir espreitou por cima do ombro. Tens autorização para ouvir o conteúdo desta gravação?

 

A cassete é minha, Jay.

 

Estava só a perguntar.

 

A fita começou a correr, os monitores da sala iluminaram-se e Casey viu, em todos eles, as linhas típicas dos osciloscópios, verdes contra um fundo negro.

 

Hum... muito bem murmurou Ziegler. Oito pistas de audio, sistema Dolby D... Tem de ser uma câmara de vídeo doméstica... No altifalante ouvia-se um som rítmico de coisas esmagadas.

 

Ziegler olhou para os monitores. Alguns deles exibiam agora dados complicados, construindo modelos tridimensionais dos sons, modelos que se pareciam com contas multicolores enfiadas num fio.

 

Passadas anunciou Ziegler. Sapatos com solas de borracha sobre relva ou terra, no campo. Não há uma assinatura urbana. Muito provavelmente, são passadas de um homem. Hum... há uma ligeira arritmia, o homem está a carregar qualquer coisa, não demasiado pesada. Caminha sempre em desequilíbrio.

 

Casey recordou-se da primeira imagem do vídeo: um homem a andar num caminho, na frente de uma aldeia chinesa, com uma criança num ombro.

 

Tens razão declarou, impressionada.

 

Ouviu-se um chilreado, de uma qualquer espécie de ave.

 

Espera, espera pediu Ziegler, carregando em botões. As máquinas repetiram o chilreado, uma e outra vez, e as contas coloridas pareceram saltitar no seu fio. Hum... não está na base de dados acabou o homem por dizer. foi gravado no estrangeiro?

 

Na China.

 

Ah, pois é, não posso descobrir tudo.

 

As passadas continuaram. Ouviu-se o som do vento. Uma voz de homem disse: "Já adormeceu..."

 

Americano, com uma altura entre um metro e setenta e três e um metro e oitenta e cinco, com trinta e poucos anos declarou Ziegler.

 

Casey acenou, novamente impressionada.

 

O homem carregou num botão e um dos monitores mostrou a imagem do vídeo, com o homem a caminhar com o bebé. A gravação parou.

 

Muito bem disse Ziegler. Que estou eu a fazer?

 

Os últimos nove minutos de gravação foram feitos a bordo do voo cinco quatro cinco. A câmara registou todo o incidente explicou Casey.

 

Ah, sim! Ziegler esfregou as mãos. Deve ser interessante.

 

Quero saber o que poderás descobrir a respeito de sons invulgares nos instantes antes do incidente. Tenho uma dúvida a respeito...

 

Não digas! protestou Jay, levantando uma das mãos. Não quero saber. Prefiro estudar isto sem ideias feitas.

 

Quando poderás dizer-me qualquer coisa?

 

Dentro de... vinte horas. O homem olhou para o relógio. Amanhã à tarde.

 

Óptimo. Outra coisa, Jay... Gostaria que mantivesse o segredo a respeito desta gravação...

 

Qual gravação? retorquiu Ziegler, com uma expressão completamente vazia.

 

         DIVISÃO DE QUALIDADE

         18:10

 

Casey estava de volta à sua secretária um pouco depois das seis da tarde. Havia mais telexes à sua espera.

 

     DE: S. NIETO, REP VANCOUVER

     PARA: C. SINGLETON, QA/IRT

PILOTO ZAN PING CONTINUA NO HOSPITAL GERAL DE VANCOUVER DEPOIS DE COMPLICAÇÕES PÓS-CIRÚRGICAS. INFORMAM QUE ESTÁ INCONSCIENTE MAS ESTÁVEL. MIKE LEE, O REPRESENTANTE DA TRANSPORTADORA, ESTEVE HOJE NO HOSPITAL. PROCURAREI VISITAR O PILOTO AMANHÃ PARA CONFIRMAR O SEU ESTADO E TENTAR ENTREVISTÁ-LO, SE POSSÍVEL

 

Norma chamou Casey, lembra-me que tenho de telefonar para Vancouver amanhã de manhã.

 

Vou tomar nota respondeu a mulher. A propósito, também recebeste isto acrescentou, entregando-lhe um fax.

 

O papel parecia ser uma folha de uma revista de uma companhia aérea. No topo, lia-se: "Empregado do mês", e seguia-se uma fotografia tão manchada que se tornava irreconhecível.

 

Por baixo, vinha um comentário: "O capitão John Zhen Chang, piloto da Transpacific Airlines, é o nosso empregado do mês. O pai do capitão foi piloto e o próprio John voa há vinte anos, treze dos quais na TransPacific. Quando não se encontra na cabina, o capitão Chang gosta de andar de bicicleta e de jogar golfe. Na foto, vemo-lo a descontrair-se na praia da ilha de Lantan com a esposa, Soon, e com os filhos, Eriça e Tom."

 

O que é isto? perguntou Casey, de testa franzida.

 

Não faço ideia respondeu Norma.

 

De onde veio? A folha de papel exibia um número de telefone mas nenhum nome.

 

Enviaram-na de uma loja de fotocópias em La Tijera explicou Norma.

 

Isso é perto do aeroporto... comentou Casey.

 

Sim. É um sítio muito movimentado e não sabem quem a enviou. Casey ficou a olhar para a fotografia.

 

É uma página de uma revista de uma transportadora? Sim, da Transpacific, mas não deste mês. O nosso pessoal retirou tudo das bolsas dos assentos... folhetos de publicidade, instruções de segurança, sacos de papel, revistas... Mas essa página não faz parte do número deste mês.

 

Será possível arranjar alguns exemplares?

 

Já estou a trabalhar nisso retorquiu Norma.

 

Gostaria de dar uma boa olhadela a esta fotografia declarou Casey.

 

Foi o que eu pensei.

 

Casey voltou a prestar atenção aos restantes papéis que tinha em cima da secretária.

 

     DE: T. Korman, APOIO PRODUTOS

     PARA: C. Singleton, QA/IRT

Completámos os parâmetros do desenho do Virtual Heads-Up Display (VHUD) do N-22, para ser utilizado pelo pessoal da manutenção, tanto doméstico como no estrangeiro. Agora, o leitor de CD-ROM prende-se ao cinto e o peso dos óculos é mais reduzido. O VHUD permite que o pessoal da manutenção consulte os manuais de manutenção 12A/102-12A/406, incluindo os diagramas e os esquemas de peças. Os primeiros exemplares serão distribuídos amanhã, para apreciação. A produção começará em 1 de Maio.

 

O VHUD fazia parte dos constantes esforços da Norton para ajudar os clientes a melhorar a manutenção dos seus aviões. Havia muito que os fabricantes dos aviões tinham reconhecido que a maioria dos problemas operacionais se devia a uma má manutenção. Em geral, um avião comercial com uma boa manutenção poderia voar durante décadas. Alguns dos velhos Norton N-5 já tinham sessenta anos e continuavam em serviço. Por outro lado, um avião com uma manutenção incorrecta podia ter problemas, ou até despenhar-se, apenas numa questão de minutos.

 

Agora que se encontravam sob a pressão financeira da desregulamentação, as companhias aéreas reduziam o pessoal, incluindo o da manutenção. Por outro lado, também encurtavam os intervalos entre os ciclos de aterragens e descolagens. Nalguns casos, o tempo que os aparelhos permaneciam no solo fora reduzido de duas horas para menos de vinte minutos. Tudo isso colocava as equipas de manutenção sob uma tremenda pressão. A Norton, tal como a Douglas e a Boeing, concluíra que era do seu interesse ajudar essas equipas de trabalho. Era por esse motivo que os VHUDs, que projectavam os manuais de reparações no interior de um conjunto de vidros, eram tão importantes para o pessoal da manutenção.

 

Casey continuou o seu trabalho.

 

A seguir, examinou o relatório semanal sobre as falhas de equipamentos, que era compilado para que a FAA pudesse acompanhar eventuais problemas com mais atenção. Nenhuma das falhas da semana anterior podia ser considerada grave. Um compressor de um motor avariara-se. O indicador EGT de um motor falhara. O indicador luminoso correspondente a um filtro de óleo dera uma indicação errada.

 

Também tinha ali mais relatórios IRT de acompanhamento de incidentes anteriores. Sempre que se verificava um incidente, os serviços de apoio a produtos efectuavam uma verificação de duas em duas semanas, durante seis meses, para se certificarem que as previsões do IRT haviam sido correctas e se o aparelho deixara de ter problemas. A seguir, emitiam um curto relatório, semelhante ao que Casey tinha na sua frente:

 

               RELATÓRIO DE INCIDENTE

     INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA APENAS PARA USO INTERNO

     RELATÓRIO N.°

     MODELO:

     OPERADORA:

     RELATADO POR:

     REFERÊNCIA:

     OCORRÊNCIA:

     IRT-8-2776

     N-20

     Jet Atlantic NFA

  1. Ramones, FSR

     IRT-8-2776 DATA DE HOJE: 08 Abril

     N-20 DATA DO INCIDENTE: 04 Março |

     Jet Atlantic NFA FUSELAGEM N.°: 1280 r

  1. Ramones, FSR LOCAL: PS Portugal
  2. a) AVN-SVC-08774/ADH

     Falha do trem de aterragem principal durante descolagem

 

         DESCRIÇÃO DA OCORRÊNCIA:

 

Foi comunicado que durante a descolagem o indicador de "Roda Bloqueada" se acendeu e que a tripulação teve de abortar a descolagem. Os pneus do trem da frente rebentaram e verificou-se um incêndio no poço do trem, que foi extinto pelos bombeiros. Os passageiros e tripulação foram evacuados pelas mangas de emergência. Não houve feridos.

 

         MEDIDAS TOMADAS:

 

Uma inspecção ao avião revelou os seguintes danos:

1) Os flaps sofreram danos significativos.

2) O motor número 1 sofreu danos significativos devidos à fuligem.

3) Uma articulação interna dos flaps sofreu pequenos danos.

4) O pneu da roda número 2 rebentou e perdeu cerca de trinta por cento. Não se verificaram danos no eixo NLG nem no pistão. Uma apreciação dos factores humanos revelou o seguinte: 1) Os procedimentos na cabina requerem um maior escrutínio por parte da transportadora.

2) Os procedimentos de manutenção no estrangeiro requerem um, maior escrutínio.

O avião está presentemente em reparação. A transportadora está a rever os procedimentos internos.

 

David Levine Integração Técnica Apoio a Produtos Norton Aircraft Company Burbank, CA Os relatórios sumários eram sempre diplomáticos. Naquele incidente, tal como Casey sabia, a manutenção em terra fora tão inepta que a roda do trem da frente bloqueara durante a descolagem, rebentando o pneu e dando origem ao que poderia ter sido um incidente muito grave. Todavia, o relatório não o dizia claramente. Era preciso ler nas entrelinhas. O problema estava na transportadora... mas esta era também o cliente e não ficava bem atirar as culpas para cima de um cliente.

 

No fim, Casey sabia-o, o voo 545 da Transpacific acabaria por ser resumido num relatório igualmente diplomático. Todavia, ainda havia muito para fazer antes disso.

 

Norma reapareceu naquele momento.

 

O escritório da Transpacific está fechado. Terei de esperar por amanhã para obter essa revista.

 

Está bem.

 

Casey?

 

O que é?

 

Vai para casa.

 

Tens toda a razão, Norma concordou Casey, com um suspiro.

 

Vê se descansas, sim?

 

         GLENDALE

         21:15

 

A filha deixara-lhe uma mensagem no gravador telefónico dizendo que ia passar a noite a casa de Amy e que o pai achara bem. Casey não ficou satisfeita com aquilo. Não gostava que a filha dormisse fora quando tinha' escola, mas nada podia fazer. Meteu-se na cama. Puxou a fotografia da filha, que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira, para mais perto, a fim de poder vê-la, e atirou-se ao trabalho. Ia observar a transcrição das gravações do voo TPA 545, verificando as coordenadas de cada etapa e comparando-as com as transcrições das comunicações por rádio com a ARINC de Honolulu e com o centro de controlo de Oakland. O telefone tocou.

 

Casey Singleton.

 

Olá, Casey. John Marder.

 

Casey sentou-se na cama. Marder nunca lhe telefonava para casa. Olhou para o relógio. Já passava das nove da noite. Marder pigarreou para limpar a garganta.

 

Acabei de falar com o Benson, das Relações Públicas. Recebeu um pedido de autorização, por parte de uma equipa de televisão, para filmagens no interior da fábrica. Recusámos.

 

Hum, hum... Era o procedimento habitual. As equipas de televisão nunca eram autorizadas a entrar.

 

A seguir, o Benson recebeu um telefonema de uma produtora, uma tal Malone, do programa Newsline. Disse que ia pedir acesso à fábrica e insistiu em que lhe déssemos autorização. É uma dama muito insistente e senhora de si. O Benson respondeu-lhe que nem sequer valia a pena discutir o assunto.

 

Hum, hum...

 

O Benson disse-lhe que lamentava muito.

 

Hum, hum... Casey estava à espera.

 

Essa tal Malone afirmou que a Newsline está a fazer uma história sobre o N-Vinte e Dois e que queria entrevistar o presidente. O Benson respondeu-lhe que o presidente se encontra no estrangeiro.

 

Hum, hum...

 

A seguir, a mulher sugeriu que reconsiderássemos o pedido, porque a história da Newsline iria focar os problemas de segurança. Lembrou que tivemos dois problemas em dois dias, com um motor e com uma saída extemporânea de slats, e que haviam morrido vários passageiros. Disse que falou com alguns dos nossos críticos... Não citou nomes, mas não são difíceis de imaginar... e que queria dar ao presidente uma oportunidade para responder.

 

Casey suspirou e Marder prosseguiu:

 

Benson respondeu que talvez conseguisse arranjar-lhe uma entrevista com o presidente, para a semana, mas a mulher respondeu que não servia, que não podia esperar. Vão passar a peça neste fim-de-semana.

 

Neste fim-de-semana?

 

É verdade confirmou Marder. A ocasião não podia ser pior.

 

É na véspera da minha partida para a China. O programa é muito popular e todo o país irá vê-lo.

 

Compreendo murmurou Casey.

 

A seguir, a tal Malone afirmou que pretendia ser justa, e que as pessoas ficariam com uma má impressão se a empresa não respondesse às alegações. Por isso, se o presidente não estava acessível, uma entrevista com outra pessoa altamente colocada também serviria.

 

Hum, hum...

 

Assim, vou receber essa fulana no meu gabinete, amanhã ao meiodia declarou Marder.

 

Com câmaras? inquiriu Casey.

 

Não, não, é uma conversa de esclarecimento, sem câmaras. No entanto, como iremos falar da investigação do IRT, acho melhor que estejas presente.

 

Sem dúvida.

 

Aparentemente, vão escrever uma história terrível a respeito do N-Vinte e Dois continuou Marder. Tudo por causa daquela maldita gravação mostrada pela CNN. Foi o que desencadeou este problema. Estamos metidos nele, Casey, e temos que lidar com o assunto o melhor que pudermos.

 

Lá estarei afirmou Casey.

 

         QUINTA-FEIRA

         AEROPORTO DE MARINA

         6:30

 

Jennifer Malone acordou com o suave mas insistente zumbido do despertador. Desligou-o, espreitou por cima do ombro bronzeado do homem que estava a seu lado e sentiu uma onda de aborrecimento. Tratava-se de um duplo de uma série de televisão, que conhecera alguns meses antes. Tinha um rosto com feições marcadas, um belo corpo musculoso e sabia como fazer as coisas. Porém, Jennifer detestava que os homens passassem a noite com ela. Sugerira-lho delicadamente, depois da segunda vez. Contudo, o homem limitara-se a virar-se para o outro lado e adormecera. Agora, ali estava ele, a ressonar.

 

Jennifer não ficava nada satisfeita quando acordava e encontrava um homem no seu quarto. Odiava os sons que faziam ao respirar, o cheiro das suas peles e os cabelos engordurados sobre as almofadas. Até os melhores que conseguia caçar, as celebridades que lhe punham o coração a saltitar à luz das velas, se pareciam, no dia seguinte, com pesadas baleias encalhadas numa praia.

 

Era como se aqueles homens não soubessem qual era o seu papel. Apareciam, conseguiam o que queriam, ele tinha o que desejava e toda a gente ficava satisfeita. Por que diabo não se iam embora?

 

Telefonara-lhe ainda no avião. Olha, vou estar aí, na cidade. Que vais tu fazer esta noite? O homem respondera, sem qualquer hesitação: vou satisfazer-te. Tinha uma certa graça, estar sentada no assento de um avião, com um qualquer contabilista a seu lado, debruçado sobre um computador portátil, enquanto a voz junto ao seu ouvido lhe dizia que a iria satisfazer naquela noite, em todas as divisões da suite.

 

O que, para seu crédito, fora o que fizera. Aquele tipo não era nada subtil mas tinha montes de energia, daquela pura energia corporal da Califórnia que não se encontrava em Nova Iorque. E não havia razões para perder tempo a conversar. Era só foder...

 

Porém, agora, com a luz do Sol a entrar pelas janelas...

 

Maldição!

 

Levantou-se da cama, sentindo o frio do ar condicionado sobre a sua pele nua, e foi ao roupeiro escolher o que vestiria naquele dia. Iria falar com tipos relativamente simples, pelo que escolheu umas calças de ganga, uma t-shirt branca de Agnes B, e um casaco azul-marinho de Jil Sander. Levou tudo para a casa de banho e pôs o duche a correr. Enquanto esperava que a água aquecesse, telefonou para o operador de câmara e disse-lhe para ter toda a equipa pronta, no átrio, dentro de uma hora. Durante o banho, passou em revista o dia que tinha pela frente. Começaria com Barker, às nove. Filmá-lo-ia brevemente sobre um qualquer fundo de aviação só para o aquecer, e depois faria o resto no escritório do homem.

 

A seguir vinha o jornalista, o tal Rogers. Não tinha tempo para o filmar na sua redacção em Orange. Fá-lo-ia em Burbank, outro aeroporto, mas com um ambiente diferente. Depois, o homem falaria sobre a Norton com os edifícios da empresa por detrás dele.

 

Mais tarde, ao meio-dia, seria a vez do tipo da Norton. Por essa altura já conheceria os argumentos dos outros dois e tentaria assustar a Norton, pelo menos o suficiente para lhe darem acesso ao presidente.

 

Depois... Ah, depois teria o "caçador de vítimas", lá para o fim da tarde, mas por pouco tempo. Na sexta-feira entrevistaria alguém da FAA, para equilibrar as coisas... e talvez uma qualquer outra pessoa da Norton Marty faria a locução no exterior, em frente da Norton. O guião ainda não estava pronto, mas tudo o que precisava era da introdução. O resto seria gravado nos estúdios, sobre as imagens. Precisava de imagens de passageiros a embarcar num avião, a caminho da morte, de aterragens e descolagens, e de alguns bons planos de aparelhos feitos em bocados depois de se despenharem no solo.

 

E pronto!

 

Aquela peça ia ser um êxito, pensou, quando já saía do duche. Só havia uma coisa que a preocupava.

 

Aquele maldito tipo na sua cama.

 

Por que diabo não ia para casa?!

 

         DIVISÃO DE QUALIDADE

         6:40

 

Quando Casey entrou nos gabinetes da QA, Norma lançou-lhe uma olhadela e apontou para o corredor. Casey fez uma careta.

 

Já aqui estava... disse Norma, agitando um polegar quando eu cheguei esta manhã. Fala ao telefone há pelo menos uma hora. De repente, o Senhor Dorminhoco não é assim tão dorminhoco.

 

Casey avançou ao longo do corredor. Quando chegou ao gabinete de Richman, ouviu-o dizer: De modo nenhum. Estamos muito confiantes quanto ao resultado. Não, não. Tenho a certeza. Não faz a menor ideia.

 

Casey meteu a cabeça no gabinete.

 

Richman estava recostado na cadeira, com os pés em cima da secretária, enquanto falava ao telefone. Pareceu sobressaltar-se e pousou uma das mãos sobre o bocal do aparelho. É só um minuto declarou.

 

Está bem. Casey regressou ao seu próprio gabinete e remexeu nos papéis. Não o queria à sua volta. Estava na hora de o mandar fazer um novo recado.

 

Bom dia disse Richman, quando entrou. Mostrava-se muito alegre e exibia um grande sorriso. Trouxe os documentos da FAA que me pediu. Deixei-os em cima da sua secretária.

 

Obrigada retorquiu. Hoje, preciso que vás ao escritório principal da Transpacific.

 

Da Transpacific? Isso não é no aeroporto?

 

Na verdade, creio que estão instalados no centro de Los Angeles. A Norma arranja-te o endereço. Necessito que me obtenhas números atrasados da revista da companhia. Quero os exemplares do último ano.

 

Hum... fez Richman. Não podes mandar um mensageiro?

 

É urgente retorquiu Casey.

 

Terei de faltar à reunião.

 

A tua presença não é necessária... e preciso dessas revistas o mais depressa possível.

 

As revistas que distribuem nos aviões? Para que as quer?

 

Bob disse Casey, limita-te a consegui-las. O jovem lançou-lhe um sorriso de esguelha.

 

Não está a querer ver-se livre de mim, pois não? perguntou ele.

 

Vai buscar as revistas, entrega-as à Norma e telefona-me.

 

         SALA DE REUNIÕES

         7:30

 

Marder estava atrasado. Entrou na sala com uma expressão irritada e preocupada, e deixou-se cair numa cadeira.

 

Muito bem declarou. Vamos a isto. Como estamos com o voo cinco quatro cinco? Registos de voo?

 

Ainda não há nada respondeu Casey.

 

Precisamos desses dados... Resolve o assunto, Casey. Estruturas?

 

Bom, é difícil, muito difícil começou Doherty, pesaroso. Ainda estou preocupado com aquele trinco falso. Acho que devíamos ser mais cautelosos...

 

Doug... interveio Marder. Já to disse. Verificaremos isso no teste de voo. E os sistemas hidráulicos?

 

Os sistemas hidráulicos estão bons.

 

Os cabos?

 

Óptimos. É claro que estamos à temperatura ambiente. Precisaremos de os arrefecer para termos a certeza.

 

Muito bem. Mais uma coisa para o teste de voo. Sistemas eléctricos?

 

Marcámos um teste para as seis da tarde, que irá durar toda a noite. Se houver problemas, de manhã já o saberemos.

 

Tens algumas suspeitas?

 

Apenas no que se refere aos sensores de proximidade da asa direita.

 

Já os experimentaste?

 

Sim, e parecem normais. Claro que para os verificarmos a sério teremos de os retirar da asa e isso significa...

 

Mais um atraso afirmou Marder. Esquece. Motores?

 

Nada. Os motores estão bons... para além do facto de alguns vedantes do sistema de arrefecimento estarem montados ao contrário. Também descobrimos uma peça falsificada nos inversores... mas não é coisa para ter provocado o incidente.

 

Muito bem, os motores estão eliminados. Electrónica?

 

Os sistemas funcionam dentro dos limites estabelecidos declarou Trung..

 

E quanto ao piloto automático aquela história do piloto ter de se' esforçar para se lhe sobrepor?

 

O piloto automático está perfeito.

 

Estou a ver. Marder olhou em volta, para todos eles. Quer dizer que ainda não temos nada, não é verdade? Setenta e duas horas de investigação... e ainda não fazemos ideia sobre o que aconteceu ao voo cinco quatro cinco? É isso o que estão a dizer-me?

 

Fez-se silêncio em volta da mesa.

 

Cristo! exclamou Marder, irritado e dando um murro na mesa. Será que vocês não compreendem? Quero esta merda resolvida!

 

         SEPULVEDA BOULEVARD

         10:10

 

Fred Barker estava a resolver todos os seus problemas.

 

Para começar, Jennifer necessitava de imagens de exterior para acompanhar a introdução que seria feita por Marty. Falámos com Frederick Barker, antigo funcionário da FAA que leva agora a cabo uma controversa cruzada pela segurança dos aviões"). Barker sugeriu um local no Sepulveda Boulevard, que tinha uma ampla vista sobre as pistas do Aeroporto Internacional de Los Angeles. Era perfeito e o homem teve o cuidado de mencionar que nenhuma equipa de televisão utilizara aquela panorâmica.

 

A seguir precisava de um ambiente de trabalho para acompanhar, mais uma vez, a voz de Marty ("Desde que abandonou a FAA, Barker trabalhou incansavelmente para chamar a atenção do público para as deficiências nos desenhos dos aviões"). Barker sugeriu um recanto do seu gabinete, colocando-se em frente de uma estante carregada com espessos documentos da FAA, e sentou-se a uma secretária coberta de folhetos com um aspecto técnico, que folheou perante a câmara.

 

Depois, precisava da entrevista básica, com o tipo de pormenores que Reardon não teria tempo para se preocupar durante a entrevista. Barker também estava pronto para isso. Sabia onde se encontravam os interruptores que desligavam o ar condicionado, o frigorífico, os telefones e todas as outras fontes de ruído que teriam de evitar durante a filmagem. Para além disso, tinha um monitor de vídeo já pronto, para passar a gravação da CNN feita a bordo do voo 545, enquanto a comentava. O monitor era um Trinitron para profissionais, colocado num canto escuro do gabinete, para que pudessem captar imagens. Para além disso, equipara-o com uma ficha em V que lhes permitira uma gravação directa, de modo a poderem sincronizar os comentários em audio. Como a gravação era em fita de uma polegada, a qualidade da imagem era excelente. Também tinha um grande modelo de um N-22, com peças móveis nas asas e cauda, para poder demonstrar o que acontecera de errado durante o voo. O modelo encontrava-se sobre um suporte, na sua secretária, para que não parecesse um adereço. Por outro lado, Barker vestira-se para o seu papel: muito informal, em mangas de camisa e gravata, com um ar de autoridade que fazia lembrar um engenheiro.

 

O homem era bom em frente da câmara. Mostrava-se descontraído, não usava calão e as suas respostas eram curtas. Parecia compreender como Jennifer iria fazer a montagem e não lhe criava problemas. Por exemplo, não estendeu a mão para o modelo de avião no meio de uma resposta. Em vez disso, deu a sua resposta e disse: "Neste momento, gostaria de me referir ao modelo." Quando Jennifer concordou, o homem repetiu a resposta anterior e pegou no modelo. Tudo o que fazia era com suavidade, sem hesitações nem acanhamento.

 

Era óbvio que Barker tinha experiência, não só de televisão como das salas dos tribunais. Para Jennifer, o único problema estava em que o homem não lhe dava emoções fortes, não chocava, não ofendia. Pelo contrário, o seu tom, maneiras e linguagem corporal sugeriam um profundo desgosto. Era uma infelicidade que aquelas situações tivessem lugar. Era uma infelicidade que ninguém tivesse tomado medidas para corrigir o problema. Era uma infelicidade que as autoridades não lhe tivessem dado ouvidos ao longo de todos aqueles anos.

 

Este problema com os slats já se repetiu por oito vezes declarou. Levantou o modelo, colocando-o perto do rosto, e virou-o para que não fizesse reflexos sob as luzes da televisão. Estes são os slats acrescentou, puxando um painel deslizante na frente da asa. Retirou a mão e perguntou: Apanharam-nos em grande plano?

 

Atrasei-me disse o operador de câmara. Podemos repetir? Claro. Vai começar em grande angular? Sim respondeu o operador de câmara.

 

Barker fez um aceno. Aguardou um instante e recomeçou:

 

Anteriormente, este problema com os slats já se repetiu por oito vezes. Levantou mais uma vez o modelo, correctamente virado, para não fazer reflexos. Estes são os slats disse, puxando o painel da asa. Voltou a fazer uma pausa.

 

Desta vez, apanhei-o declarou o operador de câmara.

 

Os slats prosseguiu Barker só são utilizados para aterragens e descolagens. Durante o voo, estão recolhidos na asa. Porém, no N-Vinte e Dois da Norton, os slats por vezes saem durante o voo. Trata-se de um erro de concepção. Mais uma pausa. Agora, vou demonstrar o que acontece, pelo que talvez queira alargar o plano para apanharem todo o' avião.

 

Estou a alargar confirmou o operador de câmara. Barker aguardou pacientemente e continuou:

 

Como consequência deste erro no desenho, o nariz do avião sobe.,, assim... ameaçando entrar em perda. Inclinou o modelo ligeiramente para cima. Neste momento, o avião é quase impossível de controlar, Se o piloto tentar endireitar o aparelho, o avião faz uma compensação exagerada e começa a mergulhar. O piloto tenta novamente uma correcção, para sair do mergulho... e o avião sobe... e depois mergulha, e volta a subir... Foi o que aconteceu ao voo cinco quatro cinco. Foi por isso que as pessoas morreram.

 

Barker fez uma pausa.

 

Acabei a demonstração com o modelo. Vou pousá-lo.

 

Está bem disse Jennifer. Estivera a observar Barker pelo monitor pousado no solo e pensava que talvez fosse complicado fazer um corte de panorâmica para o gesto de pousar o modelo. O que na verdade precisava era de uma repetição de...

 

O avião mergulha repetiu Barker. Depois sobe... e volta a mergulhar. Foi o que aconteceu com o voo cinco quatro cinco. Foi por isso que as pessoas morreram. Pousou o modelo com uma expressão pesarosa. Apesar de o ter feito com gentileza, o seu gesto parecia sugerir um avião a despenhar-se.

 

Jennifer não tinha ilusões sobre o que estava a ver. Aquilo não era uma entrevista mas sim uma representação teatral. Todavia, as abordagens profissionais já não eram raras. Eram cada vez mais as pessoas entrevistadas que parecia compreenderem ângulos de câmaras e sequências para montagem. Já vira executivos aparecerem completamente maquilados para serem entrevistados. Ao princípio, o pessoal da televisão alarmara-se com toda aquela sofisticação. Ultimamente, habituara-se. Nunca tinham tempo suficiente. Andavam sempre a correr de um lado para o outro. Um entrevistado já preparado tornava as coisas muito mais fáceis.

 

Contudo, não obstante Barker saber o que estava a fazer, não iria deixá-lo escapar-se sem uma pequena provocação. A última parte daquele dia era a cobertura das questões básicas, para o caso de Marty não ter tempo ou de se esquecer de fazer as perguntas.

 

Mister Barker? disse Jennifer.

 

Sim? respondeu o homem, virando-se para ela. Verifica o plano pediu Jennifer, dirigindo-se ao operador de câmara.

 

É amplo. Aproxima-te um pouco mais da câmara.

 

Jennifer fez deslizar a cadeira até ficar quase ao lado da lente. Barker virou-se um pouco, para acompanhar a sua nova posição.

 

Está óptimo afirmou o operador.

 

Mister Barker começou Jennifer, o senhor é um antigo funcionário da FAA...

 

Sim, trabalhei para a FAA, mas deixei a agência por discordar da sua atitude complacente para com os fabricantes de aviões. O avião da Norton é um dos resultados dessas políticas frouxas.

 

Barker estava mais uma vez a demonstrar a sua habilidade. A resposta fora uma declaração completa. Sabia que era mais provável que os seus comentários aparecessem na televisão se não fossem simples respostas a uma pergunta.

 

Há alguma controvérsia em relação à sua saída... insistiu Jennifer.

 

Estou familiarizado com as alegações a respeito dos motivos que me levaram a sair da agência declarou Barker, numa nova declaração. De facto, a minha saída constituiu um embaraço para a FAA. Critiquei o seu funcionamento e saí quando se recusaram a responder-me. Não me surpreende que ainda estejam a tentar desacreditar-me.

 

A FAA afirma que o senhor entregou documentos à imprensa e que foi por isso que o despediram.

 

Essas alegações da FAA nunca foram provadas. Nunca vi um funcionário da FAA a apresentar a mínima prova justificativa de tais críticas.

 

Trabalha para Bradley King, o advogado?

 

Fui consultado como especialista em aeronáutica num certo número de casos legais. Creio que é importante dar voz aos que têm conhecimentos sobre o assunto.

 

É pago por Bradley King?

 

Qualquer testemunha especializada é reembolsada pelo seu tempo e despesas. É um procedimento normal.

 

Não é verdade que é um empregado, a tempo inteiro, de Bradley (King? E que o seu escritório, incluindo esta sala, foi pago por King?

 

Sou financiado por uma organização sem fins lucrativos, o Instituto para a Investigação da Aviação, de Washington. O meu trabalho é a promoção da segurança na aviação civil. Faço o que posso para tornar os céus mais seguros para os viajantes.

 

Ora vamos, Mister Barker. O senhor não é um especialista de aluguer?

 

Sem dúvida que tenho opiniões firmes a respeito da segurança aérea. É natural que seja contratado por pessoas que partilham as minhas preocupações.

 

Qual é a sua opinião sobre a FAA?

 

A FAA é bem-intencionada mas tem um mandato dualista, uma vez que deve regular e promover o tráfego aéreo. A agência necessita de uma completa reforma. É demasiado condescendente para com os fabricantes.

 

Pode dar-me um exemplo? Era uma deixa. Jennifer já sabia, pelas conversas anteriores, aquilo que o homem iria responder.

 

Barker aproveitou para uma nova declaração completa:

 

Um bom exemplo desse relacionamento condescendente é o modo como a FAA trata a certificação. Os documentos necessários para certificar um avião não são guardados pela FAA mas sim pelos próprios fabricantes. Não me parece próprio... é como pôr a raposa a guardar o galinheiro.

 

Acha que a FAA está a fazer um bom trabalho?

 

Receio que esteja a fazer um muito mau trabalho. As vidas dos Americanos estão a ser desnecessariamente postas em risco. Francamente, acho que já é tempo de modificar esse estado de coisas. Caso contrário, continuarão a morrer passageiros, tal como neste avião da Norton. Fez um gesto... lento, para que a câmara o pudesse seguir, a fim de designar o modelo que tinha na secretária. Na minha opinião, o que acontece" nesse avião foi uma desgraça.

 

A entrevista terminou. Enquanto a equipa arrumava o material, Bar ker aproximou-se de Jennifer.

 

Com quem irão falar a seguir? perguntou.

 

Com o Jack Rogers.

 

É um bom homem.

 

E também com alguém da Norton. Jennifer consultou os apontamentos. Um tal John Marder.

 

Ah!

 

Que quer isso dizer?

 

Bom, o Marder é bem-falante. Vai encher-vos os ouvidos com directivas de aeronavegabilidade, à mistura com muito calão da FAA. Porém, de facto, foi o gestor do programa do N-Vinte e Dois. Supervisionou o desenvolvimento desse avião. Sabe que há um problema... porque faz parte dele.

 

          NO EXTERIOR DA NORTON

         11:10

 

Depois da facilidade de Barker, um homem cheio de experiência, o jornalista, Jack Rogers, constituiu um choque. Apareceu envergando um casaco verde-limão típico de Orange County, e a sua gravata aos quadrados era chocante quando vista no monitor. Parecia um profissional do golfe todo aperaltado para uma entrevista de emprego.

 

Jennifer começou por não fazer comentários. Agradeceu ao jornalista por ter aparecido e colocou-o em frente da vedação de arame com a Norton Aircraft a servir de fundo. Depois começou a fazer a sua lista de perguntas, i O homem dava respostas curtas, hesitantes e excitantes, ansioso por agradar.

 

Uf! Está calor comentou Jennifer. Virou-se para o operador de câmara. Que tal vai isso, George?

 

Está quase.

 

Voltou a encarar Rogers. O técnico de som desabotoou-lhe a camisa e colocou-lhe o microfone no colarinho. Enquanto os preparativos continuavam, Rogers começou a suar. Jennifer chamou a rapariga da maquilhagem para o limpar e o homem pareceu aliviado. A seguir, queixando-se do calor, Jennifer convenceu-o a despir o casaco e a colocá-lo ao ombro. Disse que lhe daria um aspecto de jornalista em acção. Rogers concordou, agradecido. Depois, sugeriu-lhe que desapertasse a gravata, o que ele fez.

 

Jennifer voltou para junto do operador.

 

E agora?

 

Sim, está melhor sem o casaco... mas aquela gravata é um pesadelo. Jennifer juntou-se a Rogers e sorriu.

 

Está tudo a correr bem afirmou. Que tal se tirasse a gravata e enrolasse as mangas para cima?

 

Oh, nunca o faço retorquiu o jornalista. Nunca enrolo as mangas.

 

As mangas enroladas davam-lhe um aspecto forte mas casual, pronto para a luta, de um jornalista sem preconceitos. É essa a ideia.

 

' Nunca arregaço as mangas.

 

Nunca? repetiu Jennifer, franzindo a testa.

 

Não, nunca.

 

Bom, estamos a falar apenas de aparências. Ficaria melhor, na câmara, mais enfático, mais convincente.

 

Lamento muito.

 

Jennifer pensou: "O que se passa? A maioria das pessoas está disposta a tudo para aparecer no Newsline. Até aceitam uma entrevista em cuecas, se lha pedirem. Já vários o tinham feito. E agora, este simplório da imprensa... Quanto é que ganhará? Trinta mil por ano?" Menos do que as despesas mensais de Jennifer...

 

Hum... não posso explicou Rogers, porque sofro de psoríase.

 

Não há problema. Maquilhagem!

 

Foi de pé, com o casaco por cima do ombro, sem gravata e com as mangas arregaçadas que Jack Rogers respondeu às perguntas. Divagava, falando trinta ou quarenta segundos de cada vez. Se Jennifer lhe fazia a mesma pergunta duas vezes, na esperança de obter uma resposta mais curta, começava a suar e dava uma resposta maior.

 

Tinham de fazer constantes interrupções para que a jovem da maquilhagem o limpasse. Jennifer necessitava de o tranquilizar continuamente, dizendo-lhe que estava a ser formidável e que o que dizia era muito interessante.

 

Na verdade era, mas o homem não sabia dar-lhe ênfase. Parecia não compreender que iria fazer uma peça que seria montada, em que uma cena média não duraria mais de três segundos antes de passar para outra qualquer. Rogers estava ansioso, tentava ajudar, mas afogava-a em pormenores que ela não podia utilizar e que não lhe interessavam.

 

Por fim, Jennifer começou a preocupar-se com a possibilidade de não poder aproveitar a entrevista e de estar a perder o seu tempo com aquele tipo. Por isso, seguiu o seu procedimento habitual em situações como aquela.

 

Está tudo perfeito afirmou, mas agora vamos chegar ao fecho da peça. Preciso de algo com... força explicou, cerrando um punho.- Vou fazer-lhe toda uma série de perguntas e vai responder-me com frases curtas e enérgicas.

 

Está bem concordou Rogers.

 

Mister Rogers, o incidente com o N-Vinte e Dois pode prejudicara venda à China?

 

Dada a frequência dos incidentes envolvendo...

 

Lamento interrompeu-o Jennifer. Preciso de uma frase curta, do género: "Sim, o N-Vinte e Dois pode estragar a venda à China."

 

Sim, é muito possível.

 

Lamento repetiu Jennifer. Jack, preciso de uma frase deste tipo: "O N-Vinte e Dois pode muito bem dar cabo da venda da Norton à China."

 

Oh, está bem... retorquiu Rogers, engolindo em seco.

 

O N-Vinte e Dois pode estragar a venda à China?

 

Sim, receio ter de dizer que poderá impedir a venda à China. "Jesus!", pensou Jennifer.

 

Jack, preciso que diga "Norton" no meio da frase. Caso contrário, não saberemos ao que está a referir-se.

 

Oh...

 

Vamos a isto.

 

Na minha opinião, o N-Vinte e Dois pode muito bem estragar a venda da Norton à China.

 

Jennifer suspirou. Era uma frase seca, sem força emocional. Era como se o homem estivesse a falar da sua conta de telefone... e já tinha muito pouco tempo.

 

Excelente afirmou. Muito bem. Continuemos. Diga-me, a Norton é uma empresa com problemas?

 

Absolutamente respondeu o jornalista, acenando e engolindo.

 

Jack... protestou Jennifer, com um suspiro.

 

Oh, desculpem... Rogers respirou fundo e depois declarou:- Penso que...

 

Só um momento. Coloque o seu peso no pé que tem à frente, de maneira a ficar inclinado para a câmara.

 

Assim? Rogers deslocou o peso do corpo e virou-se ligeiramente.

Isso mesmo, perfeito. Agora, continue.

 

De pé, em frente da vedação da Norton Aircrafts, com o casaco sobre o ombro e as mangas arregaçadas, o jornalista Jack Rogers declarou:

 

Creio não existirem dúvidas de que a Norton Aircraft é uma empresa com graves problemas. Fez uma pausa e olhou para ela.

 

Muito obrigada disse Jennifer, com um grande sorriso. Foi muitíssimo bem.

 

         ADMINISTRAÇÃO DA NORTON

         11:55

 

Casey entrou no gabinete de John Marder alguns minutos antes do meio-dia e encontrou-o a alisar a gravata e a esticar os punhos da camisa.

 

Pensei que poderíamos sentar-nos ali disse, apontando para uma mesa de café rodeada por cadeiras, num canto do seu gabinete. Estás pronta para isto?

 

Acho que sim respondeu Casey.

 

Deixa-me ser eu a responder, pelo menos no início pediu Marder. Se for preciso, recorrerei à tua ajuda.

 

Está bem.

 

A segurança disse-me que viu uma equipa de filmagens junto à vedação sul afirmou, continuando a andar de um lado para o outro. Estavam a entrevistar o Jack Rogers.

 

Hum, hum... fez Casey.

 

Cristo, esse idiota! Imagino o que teria para lhes dizer!

 

Chegou a falar com o Rogers? inquiriu Casey. O intercomunicador zumbiu e Eileen anunciou:

 

Miss Malone já aqui está, Mister Marder.

 

Mande-a entrar ordenou, encaminhando-se para a porta, para a receber.

 

Casey ficou chocada com a mulher que viu entrar. Jennifer Malone era uma garota, pouco mais velha do que Richman. Não podia ter mais de vinte e oito ou vinte e nove anos. Era loira e bonita, de modo muito rígido, à maneira de Nova Iorque. Usava um cabelo curto que lhe diminuía um pouco a sexualidade e estava vestida muito casualmente: calças de ganga, uma t-shirt branca e um casaco azul com uma gola esquisita. Seguia as tendências da moda de Hollywood.

 

Casey sentiu-se incomodada só de olhar para ela. Porém, Marder já se virara e dizia:

 

Miss Malone, gostaria de lhe apresentar a Casey Singleton, a nossa especialista da Qualidade na equipa que investiga o incidente.

 

A garota loura sorriu e Casey apertou-lhe a mão.

 

Deviam estar a brincar, pensou Jennifer Malone. Aquele homem era um capitão da indústria? Aquele tipo nervoso, com cabelos pretos penteados para trás e um fato de má qualidade? E quem era a mulher que parecia ter saído de um catálogo da Talbot? A Singleton era mais alta do que Jennifer o que a deixou ressentida e o seu aspecto geral era bom, mas muito à maneira do Midwest. Tinha um ar atlético e estava, aparentemente, em boa forma, apesar de já ter ultrapassado, havia muito, a idade em que podia aguentar-se com tão pouca maquilhagem. Para além disso, as suas feições estavam tensas. A mulher encontrava-se sob pressão.

 

Jennifer sentiu-se desapontada. Preparara-se para aquele encontro durante todo o dia, ensaiando os seus argumentos. Contudo, imaginara adversários mais intimidativos... e agora via-se de volta aos tempos do liceu, na frente do que poderia ser um ajudante do reitor e uma tímida bibliotecária. Pessoas sem importância e sem estilo.

 

E aquele gabinete! Era pequeno, com paredes cinzentas e mobílias baratas e utilitárias. Não possuía carácter. Ainda bem que não ia filmar ali, porque a sala não sairia bem nas imagens. O gabinete do presidente também teria aquele aspecto? Se assim era, teriam de gravar a entrevista noutro lado qualquer. Lá fora, ou nas linhas de montagem, uma vez que aqueles gabinetes pequenos e miseráveis não tinham ambiente para a sua peça. Os aviões eram coisas grandes e poderosas. A audiência não acreditaria que eram feitos por pessoas tão insignificantes, com gabinetes tão insípidos.

 

Marder conduziu-a para um grupo de cadeiras, num recanto. Fez um gesto grandioso, como se a levasse para um banquete. Como lhe dera a escolher onde se sentar, Jennifer instalou-se na cadeira de costas para a janela, para que o Sol não lhes batesse nos olhos.

 

Pegou nos seus apontamentos e folheou-os. Marder perguntou:

 

Quer alguma coisa para beber? Talvez café?

 

Um café seria óptimo.

 

Como o quer?

 

Simples disse Jennifer.

 

Casey observou Jennifer Malone a preparar os apontamentos.

 

Vou ser franca começou Malone, os vossos críticos forneceram-nos algum material prejudicial para o N-Vinte e Dois e para o modo como esta empresa funciona. Contudo, todas as histórias têm dois lados. Queremos ter a certeza de que incluímos as vossas respostas às críticas.

 

Marder não respondeu e limitou-se a acenar. Estava sentado com as pernas cruzadas e com um bloco de apontamentos sobre o colo.

 

Para começar declarou Jennifer, sabemos o que aconteceu ao voo da TransPacific.

 

"Ah, sim?", pensou Casey. "É curioso, porque nós não sabemos."

 

Os slats saíram em pleno voo e o avião tornou-se instável, começou a subir e a descer, e matou alguns passageiros. Toda a gente viu o filme desse trágico acidente. Também sabemos que o N-Vinte e Dois tem uma longa história de problemas com os slats, que nem a FAA nem a vossa companhia tiveram vontade de resolver apesar dos nove incidentes diferentes nos anos mais recentes.

 

Jennifer fez uma pausa e prosseguiu:

 

Sabemos que a FAA é tão indulgente na sua política regulatória que nem requer a entrega dos documentos de certificação e permite que seja a Norton a guardá-los.

 

"Jesus", pensou Casey. "Esta mulher não percebe nada de nada."

 

Permita-me que comece a responder a essa última questão disse Marder. A FAA não detém a posse física dos documentos de certificação de nenhum fabricante. Nem da Boeing, nem da Douglas, nem da Airbus, nem nossos. Francamente, preferíamos que fosse a FAA a armazená-los. Contudo, não o pode fazer porque esses documentos contêm informações que são nossa propriedade. Se estivesse na posse da FAA, os nossos concorrentes podiam ter acesso a essas informações graças à Lei da Liberdade de Informação. Alguns dos nossos concorrentes ficariam felizes. A Airbus, muito em particular, tem andado a fazer pressão por uma alteração na política da FAA, precisamente pelos motivos que já expliquei. Por isso, presumo que foi buscar essa ideia a respeito da FAA a alguém da Airbus.

 

Casey viu Malone hesitar e lançar uma olhadela aos apontamentos. Era verdade, pensou. Marder localizara a sua fonte. A Airbus alimentara-a com os seus pontos de vista, provavelmente por intermédio do seu braço publicitário, o Instituto para a Investigação da Aviação. Malone saberia que o instituto era apenas uma fachada da Airbus?

 

Contudo, não concorda... afirmou Jennifer com frieza que o facto da FAA deixar que a Norton guarde os seus próprios documentos constitui uma complacência demasiado grande?

 

Miss Malone retorquiu Marder, já lhe disse que preferíamos que fosse a FAA a armazená-los... mas não fomos nós quem escreveu a Lei da Liberdade de Informação. Não fazemos as leis. No entanto, pensamos que, se gastámos milhões de dólares a desenvolver uma tecnologia, a mesma não deve estar acessível aos nossos concorrentes, e ainda por cima livre de encargos. Segundo suponho, a Lei da Liberdade de Informação não foi decretada para permitir que os concorrentes estrangeiros pilhem a tecnologia americana.

 

Nesse caso, opõe-se à Lei da Liberdade de Informação?

 

De modo nenhum. Limito-me a dizer que nunca foi pensada para facilitar a espionagem industrial. Marder ajeitou-se, na cadeira. Mencionou o voo cinco quatro cinco...

 

Sim.

 

Primeiro que tudo, não concordamos que o incidente tenha sido causado por um mau funcionamento dos slats.

 

"Oh, oh...", pensou Casey. Marder estava a colocar-se numa posição vulnerável. O que dizia não era verdade e podia muito bem... Marder continuou:

 

Estamos neste momento a investigar o incidente, e, apesar de ser prematuro falar sobre os resultados dessa investigação, creio que foi mal informada a respeito da situação. Presumo que obteve a informação sobre os slats da boca de Fred Barker...

 

Sim, falámos com Mister Barker, entre outros...

 

E falou com a FAA a respeito de Mister Barker? ripostou Marder.

 

Sabemos que é uma personagem controversa...

 

Para não dizer outra coisa... Digamos apenas que, como advogado, adopta uma posição factualmente incorrecta.

 

Que os senhores pensam ser incorrecta.

 

Não, Miss Malone. Que é factualmente incorrecta declarou Marder com toda a firmeza. Apontou para os papéis que Jennifer espalhara sobre a mesa. Não pude deixar de reparar nessa sua lista de incidentes. Recebeu-a do Barker?

 

Sim afirmou Jennifer, depois de uma ligeira hesitação.

 

Posso vê-la?

 

Com certeza. Entregou o papel a Marder, que lhe deu uma olhadela.

 

Está factualmente incorrecta, Mister Marder?

 

Não, mas está incompleta e é enganadora. Esta lista baseia-se nos nossos próprios documentos, mas faltam-lhe elementos. Sabe alguma coisa a respeito de directivas de aeronavegabilidade, Miss Malone?

 

Directivas...?

 

Cada vez que há um incidente em voo envolvendo um dos nossos aviões começou Marder, levantando-se e dirigindo-se à secretária, revemos o incidente com todo o cuidado, para descobrirmos o que aconteceu e porquê. Se o problema estiver relacionado com o avião, emitimos um boletim de serviço. Se a FAA pensar que o nosso boletim deve ser de aplicação obrigatória, emite a chamada Directiva de Aeronavegabilidade. Depois do N-Vinte e Dois entrar ao serviço, descobrimos um problema com os slats e foi emitida uma directiva para o corrigir. As transportadoras nacionais são obrigadas, por lei, a alterar os aviões de acordo com as directivas, para evitar novos incidentes. Regressou com outra folha de papel, que entregou a Jennifer. Aqui tem a lista dos incidentes... mas agora completa.

 

         Incidentes com slats no N-22

 

1 4 de Janeiro de 1992. (OD) Saída de slats em FL350, a uma velocidade de Mach 0,84. O manípulo foi deslocado inadvertidamente. Foi emitida a DA 44-8 em resultado deste incidente.

2 2 de Abril de 1992. (OD) Os slats saíram quando o avião seguia a Mach 0,81. Aparentemente, a prancheta de um bloco de notas caiu sobre o manípulo. A DA 44-8 não fora aplicada e teria evitado esta ocorrência.

3 17 de Julho de 1992. (OD) Incidente inicialmente considerado como devido a forte turbulência. Contudo, mais tarde, concluiu-se que se devera a uma saída de slats por causa do accionamento ocasional do manípulo. A DA não fora incorporada e teria impedido esta ocorrência.

4 20 de Dezembro de 1992. (OD) Os slats saíram em pleno voo sem o correspondente accionamento do manípulo. Confirmou-se que os cabos dos slats não se encontravam nos limites de tolerância em três pontos. Foi emitida a DA 51-29 em resultado deste incidente.

5 12 de Março de 1993. (OE) O avião quase entrou em perda a Mach 0,82. Descobriu-se que os slats saíram e que o manípulo não se encontrava travado. A DA 51-29 não havia sido incorporada e teria impedido este incidente.

6 4 de Abril de 1993. (OE) O co-piloto pousou o braço no manípulo e deslocou-o, fazendo cair os slats. Vários passageiros feridos. A DA 44-8 não fora incorporada e teria impedido este incidente.

7 4 de Julho de 1993. (OE) O piloto comunicou que o manípulo dos slats se deslocara provocando uma saída dos mesmos. O avião seguia a Mach 0,81. A DA 44-8 não fora incorporada e teria impedido este incidente.

8 10 de Junho de 1994. (OE) Os slats saíram com o avião em voo sem deslocação do respectivo manípulo. Confirmou-se que os cabos estavam fora dos limites de tolerância. A DA 51-29 não fora incorporada e teria impedido este incidente.

 

Mister Barker disse Marder omitiu as frases sublinhadas no documento que lhe entregou. Depois do primeiro incidente com os slats, a FAA emitiu uma directiva para a alteração dos comandos, na cabina de voo. As transportadoras tinham um ano para a cumprir. Algumas fizeram-no imediatamente, outras não. Como pode ver, os incidentes subsequentes ocorreram todos em aviões que ainda não haviam sido modificados.

 

Bom, não todos...

 

Deixe-me terminar. Em Dezembro de mil novecentos e noventa e dois, descobrimos outro problema. Por vezes, os cabos dos slats ficavam frouxos. As equipas de manutenção não conseguiam resolver o assunto. Por isso, emitimos um segundo boletim e adicionámos um instrumento de medida da tensão para que as equipas pudessem verificar mais facilmente se os cabos se encontravam à tensão especificada. Em Dezembro, o problema ficou resolvido.

 

É claro que não, Mister Marder declarou Jennifer, apontando para a lista. Tiveram mais incidentes em noventa e três e noventa e quatro.

 

Só em companhias estrangeiras salientou Marder. Está a ver essas iniciais, OD e OE? Referem-se a "operador doméstico" e a "operador estrangeiro". Os operadores domésticos são obrigados a fazer as alterações impostas pela FAA. Os operadores estrangeiros não se encontram sob a jurisdição da FAA e nem sempre fazem as alterações. A partir de mil novecentos e noventa e dois, todos os incidentes envolveram operadores estrangeiros que não obedeceram às directivas.

 

Nesse caso insistiu Jennifer, inspeccionando a lista, permitem que as transportadoras voem em aviões pouco seguros? Ficam tranquilos e deixam que as coisas aconteçam? É o que está a dizer?

 

Marder susteve a respiração. Casey pensou que o homem ia explodir, mas não o fez.

 

Miss Malone, nós construímos aviões, não os operamos. Se a Air Indonésia ou a Pakistani Air não seguem as directivas, não podemos obrigá-los a fazê-lo.

 

Muito bem. Se tudo o que fazem é construir aviões, vamos falar no modo como os fabricam disse Jennifer. Tendo em conta esta lista... quantas modificações fizeram nos slats? Oito?

 

"Ela não compreende", pensou Casey. "Não está a ouvir. Não alcança aquilo que estamos a dizer-lhe."

 

Não. Duas correcções respondeu Marder.

 

Mas tiveram oito incidentes. Tem de concordar que...

 

Sim retorquiu Marder, irritado, mas não estamos a falar de incidentes mas sim de DAs, e houve apenas duas. Começava a ficar zangado e tinha o rosto vermelho.

 

Estou a ver. Portanto, a Norton teve dois problemas com o desenho dos slats deste avião.

 

Houve duas correcções.

 

Duas correcções do vosso desenho original, que estava errado insistiu a jornalista. E isso apenas nos slats. Ainda não falámos nos flaps, nem no leme, nos depósitos de combustível ou no resto do avião. Fizeram duas correcções apenas nesse pequeno sistema. Não testaram o avião antes de o venderem a clientes desprevenidos?

 

Claro que o testámos ripostou Marder, por entre os dentes cerrados, mas tem de compreender...

 

O que compreendo... é o facto de terem morrido pessoas por causa dos vossos erros de desenho, Mister Marder. O vosso avião é uma armadilha mortal... e parece não se preocuparem com isso.

 

Oh, por amor de Deus! exclamou Marder, atirando as mãos para o alto. Pôs-se de pé e caminhou pelo gabinete. Nem acredito no que estou a ouvir.

 

Era quase demasiado fácil, pensou Jennifer. De facto, era demasiado fácil. Desconfiava da explosão histriónica de Marder. Durante a entrevista, formara uma impressão diferente a respeito do homem. Não era o ajudante do reitor. Era demasiado inteligente para um tal papel. Apercebera-se disso observando-lhe os olhos. Os olhos da maioria das pessoas, quando eram interrogadas, tinham movimentos involuntários. Olhavam para cima, para baixo ou para o lado. Contudo, o olhar de Marder era firme e claro. Estava completamente controlado.

 

Desconfiava que o homem continuava controlado e que perdera as estribeiras deliberadamente. Porquê?

 

Na realidade, isso não lhe interessava. Desde o início que a sua meta fora descontrolar aquela gente, fora preocupá-los o suficiente para lhe darem acesso ao presidente. Jennifer queria que Marty Reardon entrevistasse o presidente.

 

Era vital para a sua história. A peça perderia todo o crédito se a Newsline fizesse graves acusações contra o N-22 e a companhia só lhe apresentasse um quadro intermédio, ou um parvo das relações públicas, para as contestar. Porém, se conseguisse pôr o presidente em frente da câmara, o nível de credibilidade seria muito mais elevado.

 

Queria o presidente.

 

As coisas estavam a correr bem.

 

Tenta explicar-lhe, Casey disse Marder.

 

Casey ficara horrorizada com a explosão de Marder. Este era famoso pelo seu temperamento, mas explodir em frente de uma jornalista constituía um grande erro táctico. Agora, ainda de rosto vermelho e a bufar por trás da secretária, Marder dizia:

 

Tenta explicar-lhe, Casey.

 

Miss Malone começou Casey, virando-se para enfrentar a mulher, creio que toda a gente, nesta empresa, está profundamente empenhada na segurança dos aviões. Esperava que aquilo explicasse a explosão de Marder. Estamos empenhados na qualidade dos produtos e o N-Vinte e Dois tem um excelente registo de segurança. Se alguma coisa corre mal com um dos nossos aviões...

 

É evidente que alguma coisa correu mal afirmou Jennifer, fitando Casey.

 

Sim concordou esta, e estamos a investigar esse incidente. Pertenço à equipa que conduz a investigação e trabalhamos de dia e de noite para tentar compreender o que se passou.

 

Refere-se a saber os motivos que levaram à saída dos slats? Se já aconteceu tantas vezes, tinham a obrigação de o conhecer.

 

Neste momento... começou Casey, mas foi interrompida por Marder.

 

Escute, não foram os malditos slats. Esse Frederick Barker é um alcoólico incorrigível e um mentiroso pago, que trabalha para um advogado ordinário. Ninguém, no seu juízo perfeito, lhe daria ouvidos.

 

Casey mordeu o lábio. Não podia contradizer Marder em frente da jornalista, mas...

 

Jennifer Malone interveio:

 

Se não foram os slats...

 

Não foram declarou Marder, com convicção. Nas próximas vinte e quatro horas publicaremos um relatório preliminar que o demonstrará conclusivamente.

 

Casey pensou: O quê! Que estava ele a dizer? Não existiam relatórios preliminares.

 

Ah, sim? murmurou Jennifer, com suavidade.

 

Sim confirmou Marder. A Casey Singleton é o nosso porta-voz para a imprensa no IRT. Entraremos em contacto consigo, Miss Malone.

 

A jornalista pareceu entender que Marder estava a pôr fim à entrevista.

 

Mas... temos de conversar sobre muito mais coisas, Mister Marder. Há o caso da explosão de um rotor em Miami, a oposição do sindicato à venda de aviões à China...

 

Ora, vamos lá... retorquiu Marder.

 

Dada a gravidade dessas acusações prosseguiu Jennifer, creio que deviam tomar em consideração a nossa oferta de dar ao vosso presidente, Mister Edgarton, uma oportunidade para responder.

 

Isso não irá acontecer declarou Marder.

 

É para vosso próprio benefício. Se tivermos de dizer que o presidente se recusou a falar connosco, irá parecer...

 

Olhe, deixemo-nos de conversa fiada. Sem a Transpacific, não há nenhuma história para contar... e amanhã emitiremos um relatório preliminar sobre o caso da Transpacific. De momento, é tudo o que temos. Muito obrigado por nos ter visitado, Miss Malone.

 

A entrevista terminara.

 

         ADMINISTRAÇÃO DA NORTON

         12:43

 

Nem posso acreditar disse Marder, depois de a jornalista se ter ido embora. Não está interessada nos factos. Não está interessada na FAA. Não está interessada em como construímos aviões. Só quer dar cabo de nós.

 

Estará a soldo da Airbus? Aí está uma coisa que eu gostaria de saber... John interveio Casey, a respeito do tal relatório preliminar...

Esquece isso atirou-lhe Marder. Tratarei do assunto. Volta ao trabalho. Falarei com o décimo andar, arranjarei alguns dados e resolverei a questão. Voltaremos a conversar mais tarde.

 

Mas, John... disseste-lhe que não tinham sido os slats...

 

O problema é meu. Volta para o trabalho.

 

Quando Casey saiu, Marder telefonou a Edgarton.

 

Parto dentro de uma hora disse o presidente. Vou a HongKong manifestar os meus respeitos às famílias dos falecidos, visitando-as pessoalmente. Falarei com a transportadora...

 

Boa ideia, Hal respondeu Marder.

 

Como vai essa história com a televisão?

 

Bom, tal como eu suspeitava respondeu Marder, o Newsline está a montar uma história extremamente crítica para o N-Vinte e Dois.

 

Podes impedi-la?

 

Sem dúvida. Não há problema.

 

Como?

 

Emitiremos um relatório preliminar informando que o incidente não foi provocado pelos slats, mas sim por uma peça falsificada, nos reversers.

 

Havia uma peça falsificada?

 

Sim, mas que não foi a causadora do incidente.

 

Está bem concordou Edgarton. Uma peça falsificada é uma boa solução, desde que o problema nada tenha a ver com a Norton.

 

Exacto retorquiu Marder.

 

E a rapariga irá dizer isso?

 

Sim afirmou Marder.

 

É melhor que o faça... porque conversar com esses espertalhões dos jornalistas pode ser complicado...

 

Reardon. O jornalista chama-se Marty Reardon.

 

Seja o que for. Tens a certeza de que ela sabe o que dizer?

 

Sim.

 

Já lhe deste instruções?

 

Claro. E voltarei a falar com ela mais tarde.

 

Está bem. Olha, manda-a falar com aquela nossa especialista em meios de comunicação.

 

Não sei, Hal. Achas que...

 

Acho, sim interrompeu-o Edgarton. E tu também. A Singleton deve estar bem preparada para a entrevista.

 

Está bem concordou Marder.

 

Recorda-te de uma coisa: se falhares, estás arrumado concluiu Edgarton, desligando.

 

         NO EXTERIOR DA ADMINISTRAÇÃO DA NORTON

         13:04

 

No exterior do edifício da administração, Jennifer Malone meteu-se no carro, mais preocupada do que queria admitir. Agora, já considerava improvável que a empresa lhe desse acesso ao presidente. Por outro lado, também se preocupava e tinha o pressentimento de que acabassem por nomear a tal Singleton como porta-voz da empresa.

 

Esse facto poderia alterar o conteúdo emocional da sua peça. A audiência desejava ver os sólidos e arrogantes capitães da indústria a serem humilhados em público. Uma mulher inteligente, franca e bonita, não produziria o mesmo efeito. Seriam suficientemente espertos para o compreenderem? Depois, era claro que Marty a atacaria, o que também não ficaria muito bem.

 

Imaginá-los aos dois, juntos, era o bastante para que Jennifer estremecesse. A Singleton era brilhante, com uma qualidade franca e encantadora. Seria como se Marty atacasse a maternidade e tudo o que era americano... e ninguém seria capaz de o deter. O homem atirar-se-ia à garganta da Singleton.

 

Porém, para além disso, Jennifer começava a preocupar-se com a possibilidade de a sua história não ter bases. Barker fora tão convincente, durante a entrevista, que a deixara entusiasmada. Porém, se aquelas DAs fossem a sério, a empresa apoiava-se sobre bases muito sólidas. Por outro lado, a reputação de Barker incomodava-a. Se a FAA tinha elementos contra ele, então a credibilidade do homem nada valia. Passariam por tolos se lhe dessem tempo de antena.

 

O jornalista, Jack Não-sei-quantos, fora um desapontamento. Não fazia boa figura na câmara e o que dissera não possuía substância. No fundo, ninguém se ralava com histórias de drogas na linha de montagem. Não | era nenhuma novidade e não provava que o avião não prestasse. Era disso que precisava. Necessitava de imagens vivas e persuasivas que demonstrassem que o avião era uma armadilha mortal.

 

Não as tinha.

 

Até àquele momento só dispunha da gravação passada pela CNN, que também não era uma novidade, bem como a explosão num rotor, em Miami, com imagens pouco interessantes, uma vez que se limitavam a mostrar fumo a sair de uma asa.

 

Que grande coisa!

 

Pior do que isso era o facto de a companhia dizer que ia emitir um comunicado preliminar. Se o fizesse e o comunicado desmentisse Barker.,.

 

O telefone celular tocou.

 

Conta-me coisas... pediu Dick Shenk. Ah, olá, Dick.

 

Então? Como é que vamos? perguntou Shenk. Estou a olhar para a planificação neste preciso momento. O Marty terminará a entrevista com o Bill Gates dentro de duas horas. Parte dela desejava dizer: "Esquece, a história não presta. Não consigo provas. Fui estúpida ao pensar que conseguiria apanhar estes tipos em apenas dois dias."

 

Jennifer? Envio-o para aí, ou não?

 

Não podia dizer que não. Não podia admitir que se enganara. Shenk matava-a se desistisse da história naquele momento, em particular por causa da maneira como fizera a proposta e do seu comportamento frio quando saíra do seu gabinete. Só havia uma resposta possível.

 

Sim, Dick, envia-o, preciso dele.

 

Terás a história pronta para sábado?

 

Sem dúvida, Dick.

 

E não é uma história sobre peças sobressalentes?

 

Não, Dick.

 

Sabes que não quero copiar as histórias do Sessenta Minutos. É melhor que não me venhas falar de peças sobressalentes.

 

Não falarei, Dick.

 

O teu tom de voz não me transmite confiança.

 

Estou confiante, Dick... mas cansada.

 

Está bem. O Marty partirá de Seatle às quatro. Estará no hotel por volta das oito. Tem o plano de filmagens preparado para quando ele chegar e envia uma cópia para minha casa, por fax. Ficarás com o Marty durante todo o dia de amanhã.

 

Está bem, Dick.

 

Atira-te a eles, querida! concluiu Dick Shenk, desligando. Jennifer fechou o telefone e suspirou.

 

Girou a chave na ignição e engrenou a marcha atrás.

 

Casey viu o carro da tal Malone a recuar, no parque de estacionamento. Conduzia um Lexus preto, igual ao de Jim. Malone não a viu, e ainda bem. Casey tinha muito em que pensar.

 

Ainda tentava imaginar o que estaria Marder a planear. Explodira em frente da jornalista, dissera-lhe que o incidente não fora causado pelos slats e que iria haver um relatório preliminar. Como pudera afirmar uma coisa daquelas? Marder tinha bazófia para dar e vender, mas desta vez podia estar a cavar o buraco em que seria enterrado. Casey não compreendia um tal comportamento, que só podia ser prejudicial para a empresa... e para ele próprio.

 

Contudo, Casey sabia muito bem que John Marder nunca se prejudicaria a si mesmo.

 

         DIVISÃO DE QUALIDADE

         14:10

 

Norma escutou Casey durante vários minutos, sem a interromper. Por fim, inquiriu:

 

E qual é a tua dúvida?

 

Creio que o Marder me vai transformar no porta-voz da empresa.

 

Assim parece respondeu Norma. Os grandes fogem sempre com o rabo à seringa. O Edgarton nunca desempenhará esse papel... e o Marder também não. Tu és a ligação entre a equipa IRT e a imprensa. Para além disso, és também uma vice-presidente da Norton Aircraft. É isso o que irá aparecer naquelas letras, na parte inferior do ecrã.

 

Casey ficou em silêncio e Norma fitou-a.

 

Qual é a tua dúvida? repetiu.

 

O Marder disse à jornalista que não se tratou de um problema de slats e que, amanhã, apresentaremos um relatório preliminar.

 

Hummm...

 

Não é verdade.

 

Hummm...

 

Porque o faz? perguntou Casey. Porque me meteu nesta armadilha?

 

Para salvar a pele retorquiu Norma. Muito provavelmente, para fugir a algum problema que ele conhece e tu não.

 

Qual problema? Norma abanou a cabeça.

 

Suponho que deve dizer respeito ao avião sugeriu ela. O Marder foi o gestor do programa do N-Vinte e Dois. Sabe mais sobre esse aparelho do que qualquer outra pessoa da companhia. Pode haver qualquer coisa que não quer que venha a público.

 

Por isso, anuncia uma descoberta falsa?

 

É o que penso.

 

E sou eu quem terá de dar a cara?

 

Assim parece.

 

Casey ficou silenciosa durante alguns momentos.

 

O que achas que devo fazer perguntou, pouco depois.

 

Tens de pensar no assunto disse Norma, com os olhos semicerrados por trás do fumo do cigarro.

 

Não tenho tempo...

 

Então começou Norma, encolhendo os ombros, descobre o que aconteceu durante aquele voo... porque é a tua pele que está em jogo, minha querida. É assim que o Marder trabalha...

 

Casey caminhava ao longo do corredor quando viu Richman

 

Oh, olá...

 

Mais tarde respondeu Casey.

 

Dirigiu-se para o seu gabinete e fechou a porta. Pegou numa fotografia da filha e ficou a olhar para ela. Na imagem, Allison acabara de emergir da piscina de um vizinho. Encontrava-se com outra rapariga da mesma idade, ambas em fato de banho, a escorrerem água. Corpos jovens e delgados, rostos com sorrisos desdentados, descuidados e inocentes.

 

Casey empurrou o retrato para um lado e virou-se para a caixa que se encontrava em cima da secretária. Abriu-a e retirou dela um leitor de CDs portátil, inteiramente negro, com uma alça em neopremo e com fios ligados a um estranho par de óculos. Eram exageradamente grandes e pareciam-se com óculos de protecção, mas não tapavam os lados da cara. Por outro lado, exibiam uma estranha camada no interior das lentes, camada essa que parecia vibrar sob a luz. Aquilo, tal como Casey sabia, tinha o nome de Heads-Up Display. A caixa também continha um cartão de Tom Korman, que dizia: "Primeiro teste para o novo VHUD. Diverte-te!"

 

Diverte-te.

 

Pôs os óculos de lado e examinou os papéis que se encontravam sobre a secretária. A transcrição das comunicações da cabina do avião já chegara, finalmente. Também ali tinha um exemplar da revista Transpacific Flightlines, com uma marca a assinalar uma página.

 

Abriu a revista e viu uma fotografia de John Chang, o "empregado do mês". A imagem não era o que imaginara quando recebera o fax. Chang era um homem em muito boa forma, na casa dos quarenta anos. A mulher encontrava-se de pé a seu lado, e era mais pesada e muito sorridente. Os filhos, agachados aos pés dos pais, já estavam crescidos. A rapariga deveria ter perto de vinte anos, e o rapaz talvez um pouco mais. O filho parecia-se com o pai, mas com uma aparência mais actual, uma vez que usava um cabelo com um corte extremamente curto e um pequeno brinco de ouro numa orelha.

 

Casey observou a legenda: "Na foto, vemo-lo a descontrair-se na praia da ilha de Lantan com a esposa, Soon, e com os filhos, Eriça e Tom."

 

Havia uma toalha azul estendida na areia, em frente da família, ao lado de um cesto de piquenique, em verga, de onde sobressaía um bocado de tecido aos quadrados azuis e brancos. Era uma cena mundana e sem nenhum interesse.

 

Por que razão lhe tinham enviado aquele fax?

 

Olhou para a data da revista. Era de Janeiro, tinha três meses.

 

Porém, alguém tivera em seu poder um exemplar da revista e enviara-lhe aquela página por fax. Quem? Um empregado da companhia aérea? Um passageiro? Quem?

 

E porquê?

 

Que queriam que visse naquela fotografia?

 

Enquanto olhava para a foto, Casey recordou-se de que a meada da sua investigação tinha muitas pontas soltas. Havia muita coisa para verificar e o melhor era começar a fazê-lo.

 

Norma tivera razão.

 

Casey não sabia o que Marder estaria a preparar, mas isso talvez não interessasse. O seu trabalho continuava a ser o mesmo que sempre fora: descobrir o que acontecera ao voo 545.

Casey saiu do gabinete.

 

Onde está o Richman? perguntou.

 

Despachei-o para as Relações Públicas, para falar com o Benson explicou Norma, com um sorriso. Foi à procura daqueles boletins que costumamos distribuir à imprensa, pois podemos vir a precisar deles.

 

O Benson é capaz de ficar chateado... comentou Casey.

 

É verdade concordou Norma, e o nosso Mister Richman talvez passe um mau bocado. Voltou a sorrir e olhou para o relógio. No entanto, tens cerca de uma hora para fazeres o que te apetecer. Aproveita-a.

 

         LNIA

         15:05

 

Ah, Singleton disse Ziegler, acenando-lhe para que se sentasse. Depois de cinco minutos a esmurrar a porta, Casey acabara por ser admitida no laboratório de audio. Creio que encontrei o que procuravas.

 

No monitor, na sua frente, estavam uma imagem parada de um bebé sorridente, sentado no colo da mãe.

 

Querias o período imediatamente antes do incidente continuou Ziegler. Esta imagem está a aproximadamente dezoito segundos do incidente. Vou começar com o som normal, para depois introduzir os filtros.

Estás pronta?

 

Sim declarou Casey.

 

Ziegler pôs a gravação em andamento. Com o volume no máximo, os ruídos emitidos pelo bebé pareciam o borbulhar de um riacho. O zumbido no interior da cabina era um rugido constante.

 

É saboroso? disse a voz do homem, para o bebé, num tom muito alto.

 

Primeiro filtro disse Ziegler, para os tons agudos. O som da gravação tornou-se mais mortiço.

 

Agora, o filtro de ambiente.

 

O rugido dos sons da cabina desapareceu e os ruídos do bebé passaram a distinguir-se muito melhor.

 

Agora, um filtro delta-V.

 

Os sons gorgolejantes do bebé perderam força. O que agora se ouvia eram pequenos sons de fundo como o tilintar de talheres e o sussurro de tecidos.

 

Na imagem, o homem disse:

 

... o teu pé... no-... moço,... rah?

 

O filtro delta-V não é nada bom para a voz humana comentou Ziegler, mas não te faz diferença, pois não?

 

Não admitiu Casey. O homem prosseguia:

 

... ao... rés espe Ia hospe... rã?

 

Quando a voz se calou, o monitor ficou novamente quase silencioso, apenas com alguns ruídos distantes.

 

É agora declarou Ziegler. Vai começar.

 

Surgiu um contador no monitor. Os números vermelhos brilharam e iniciaram uma contagem, assinalando a passagem de décimos e de centésimos de segundo.

 

No monitor, a mulher virava a cabeça de repente.

 

... que... oi a... Io?

 

Maldição... murmurou Casey, que já ouvia o som, um rumor muito baixo e constante.

 

Os filtros enfraqueceram-no explicou Ziegler. É um som na gama dos dois aos cinco hertz. Quase uma vibração.

 

Não havia dúvidas, pensou Casey. Com os filtros, conseguia ouvi-los. Ali estavam eles...

 

O homem falou, no meio de uma estrondosa gargalhada:

 

A... ma-te, Em.

 

O bebé soltou uma risadinha, aguda e incomodativa, e o marido acrescentou:

 

... tamos... se em... sã, que... da. O rumor baixo chegou ao fim.

 

No ecrã, os grandes números vermelhos detiveram-se. Indicavam

11:59:32.

 

Quase doze segundos, pensou Casey. Doze segundos eram o tempo necessário para que os slats saíssem.

 

Os slats tinham saído durante o voo 545.

 

Agora, a gravação mostrava a descida íngreme, com o bebé a deslizar do colo da mãe e esta a agarrá-lo, com um rosto de pânico. Por trás, viam-se os passageiros ansiosos. Com os filtros, os seus gritos produziam ruídos inarticulados, quase semelhantes a estática.

 

Ziegler parou a gravação.

 

Aí tens os teus dados, Singleton. A meu ver, são inequívocos.

 

Os slats saíram.

 

Assim parece. A assinatura sonora é inconfundível. Mas porquê? "O avião seguia à velocidade de cruzeiro. Porque iriam sair? Foi o piloto, ou saíram sozinhos?" Mais uma vez, Casey desejou ter os dados de voo. Todas as suas perguntas seriam respondidas em minutos se tivessem os dados do FDR, mas o trabalho avançava lentamente.

 

Ouviste o resto da gravação?

 

Bom, entre o que vem a seguir, o mais interessante são os alarmes na cabina declarou Ziegler. Posso ouvi-los a partir do momento em que a câmara ficou entalada na porta, e estabelecer uma sequência dos avisos do avião ao piloto. Contudo, precisarei de mais um dia. Então, trata disso pediu Casey. Preciso de todas as informações que possas dar-me.

 

         ADMINISTRAÇÃO DA NORTON

         17:00

 

John Marder exibia a sua disposição calma, de todas a mais perigosa.

 

Será apenas uma curta entrevista declarou. Dez ou quinze minutos, no máximo. Não terás tempo para entrares em pormenores. Porém, como chefe do IRT, encontras-te na melhor posição para explicar o empenho da empresa nas questões de segurança. Investigamos os acidentes com todo o cuidado. Damos todo o apoio aos nossos produtos. Depois poderás explicar que o nosso relatório preliminar concluiu que o acidente se deveu a uma peça falsificada, num dos reversers, colocada por um serviço de manutenção no estrangeiro, pelo que o caso nada teve a ver com os slats. Rebenta com o Barker... e com o Newsline.

 

John disse Casey, acabei de sair do laboratório de audio. Não há qualquer dúvida. Houve uma saída de slats.

 

Ora, as provas audio são apenas circunstanciais retorquiu Marder, e o Ziegler é maluco. Temos de esperar pelos dados do registo de voo para sabermos o que na realidade aconteceu. Entretanto, o IRT fez uma descoberta preliminar, que exclui os slats.

 

Como se ouvisse a sua própria voz à distância, Casey respondeu:

 

John, não me sentirei nada bem nessa posição.

 

Estamos a falar do futuro, Casey.

 

Compreendo, mas...

 

A venda à China salvará a empresa. Haverá dinheiro fresco, mais desenvolvimento, novos aviões e um futuro brilhante. É disso que estamos a falar. De milhares de empregos.

 

Eu sei, John, mas...

 

Deixa-me perguntar-te uma coisa, Casey. Pensas que há algo de errado com o N-Vinte e Dois!

 

De modo nenhum!

 

Achas que o avião é uma armadilha mortal?

 

Não.

 

E quanto à companhia? É uma boa empresa?

 

Claro que sim.

 

Marder fitou-a, abanando a cabeça. Finalmente, acabou por dizer:

 

Quero que fales com uma certa pessoa.

 

Edward Fuller era o chefe do departamento legal da Norton. Tratava-se de um homem de quarenta anos, magro e desajeitado. Pouco à vontade, sentou-se numa das cadeiras do gabinete de Marder.

 

Edward começou Marder, temos um problema. O programa Newsline vai emitir, neste fim-de-semana e em horário nobre, um programa sobre o N-Vinte e Dois que nos é pouco favorável.

 

Pouco favorável... até que ponto?

 

Vão dizer que o N-Vinte e Dois é uma armadilha mortal.

 

Oh, céus! murmurou Fuller. Isso é muito desagradável.

 

Pois é... retorquiu Marder. Chamei-te porque quero saber o que poderemos fazer a esse respeito.

 

O que poderemos fazer...? repetiu Fuller, franzindo a testa.

 

Sim. Achamos que o Newsline está a ser sensacionalista. A sua história é pouco informada e prejudicial para o nosso produto. Pensamos que estão a difamar-nos de uma maneira deliberada e imprudente.

 

Compreendo...

 

Num caso destes insistiu Marder, que podemos nós fazer? Podemos impedi-los de emitir a história?

 

Não.

 

Podemos pedir a um tribunal que os impeça?

 

Não... e seria pouco aconselhável, do ponto de vista de imagem pública.

 

Queres dizer que ficaríamos mal vistos.

 

Fazendo uma tentativa para amordaçar a imprensa, violando uma das normas da Constituição? Claro que sim! Iria sugerir que temos algo a esconder.

 

Por outras palavras concluiu Marder, eles emitem a história e nada podemos fazer para os contrariar.

 

Exacto.

 

Está bem. No entanto, penso que as informações que o Newsline vai pôr no ar são incorrectas e tendenciosas. Podemos exigir que nos cedam igual tempo de antena, para expor os nossos pontos de vista?

 

Não retorquiu Fuller. A doutrina que exigia igual tempo de antena foi deitada para o lixo pelo Reagan. Os programas de televisão noticiosos não são obrigados a apresentar todas as facetas de uma mesma questão.

 

Nesse caso, podem dizer o que lhes apetecer, por muito tendenciosa que seja a informação?

 

É verdade.

 

Não me parece justo.

 

É a lei ripostou Fuller, encolhendo os ombros.

 

Muito bem prosseguiu Marder. Este programa vai para o ar num momento muito delicado para a nossa empresa. A publicidade adversa pode custar-nos a venda à China.

 

É verdade.

 

Supõe que perdemos um negócio como resultado da emissão do programa. Se pudermos demonstrar que os pontos de vista do Newsline estavam errados... e já lho dissemos, podemos levá-los a tribunal e exigir uma indemnização?

 

De um ponto de vista prático... não. Muito provavelmente, teríamos de demonstrar que agiram com um "desrespeito irresponsável" perante factos por eles conhecidos. Historicamente tem sido um argumento muito difícil de provar.

 

Então, o Newsline não pode ser obrigado a uma indemnização'

 

Não.

 

Podem dizer o que quiserem... e o azar é nosso, se a empresa viera falir por causa disso?

 

Exactamente.

 

Há alguma limitação para aquilo que podem dizer?

 

Bom... respondeu Fuller, remexendo-se na cadeira. Se derem uma imagem falsa da companhia... poderão ser responsabilizados. Mas neste caso, houve um advogado que levantou um processo contra nós, em nome de um passageiro do voo cinco quatro cinco. Por isso, o Newsline pode afirmar que está apenas a relatar os factos, e que um advogado fez esta e aquela acusação contra nós.

 

Estou a perceber... Mas uma acção em tribunal só obtém uma publicidade muito limitada. Por seu lado, o Newsline vai faxer as suas acusações perante quarenta milhões de espectadores. Ao mesmo tempo, o simples facto de as repetirem na televisão validará as acusações. Para nós, o prejuízo tem origem na exposição pública e não nas acusações em tribunal.

 

Estou a ver onde queres chegar disse Fuller mas a lei não vê as coisas desse modo. O Newsline tem o direito de informar o público a respeito do processo em tribunal.

 

O Newsline não pode ser responsabilizado por fazer uma avaliação independente das acusações em tribunal, por muito ultrajantes que estas possam ser? Se aquele advogado dissesse, por exemplo, que damos trabalho a pedófilos, o Newsline pode tornar pública essa afirmação, sem qualquer responsabilidade?

 

Exactamente.

 

Digamos que vamos a tribunal... e que ganhamos. Nesse caso, é claro que o Newsline divulgou pontos de vista erróneos sobre o nosso produto, baseados nas alegações feitas em tribunal pelo advogado. O Newsline não é obrigado a retratar-se pelas afirmações feitas perante quarenta milhões de espectadores?

 

Não, não tem essa obrigação.

 

E porquê?

 

Porque é o Newsline que decide o que tem valor noticioso. Se decidir que o resultado do julgamento não o tem, o programa não é obrigado a transmiti-lo. A decisão é dele.

 

E, entretanto, a empresa vai à bancarrota comentou Marder. Trinta mil pessoas perdem os seus empregos, casas, planos de saúde... e começam novas carreiras a vender hamburgers. Outras cinquenta mil tambem perdem os seus postos de trabalho quando os nossos fornecedores falirem, na Jeórgia, Ohio, Texas e Connecticut. Todos esses empregados fiéis que dedicaram as suas vidas ao desenho, construção e apoio do melhor avião existente neste momento recebem um aperto de mão e um pontapé no rabo. É assim que as coisas funcionam?

 

Sim, é assim que o sistema funciona declarou Fuller, encolhendo os ombros.

 

Então... eu diria que o sistema não presta.

 

O sistema... é o sistema retorquiu Fuller.

 

Marder olhou para Casey e virou-se novamente para Fuller.

 

Ora, vamos lá, Ed disse. A situação parece-me muito desequilibrada. Construímos um produto soberbo e todas as avaliações objectivas do seu desempenho demonstram que é seguro e de confiança. Passámos anos a desenvolvê-lo e a testá-lo. Temos um registo impecável... e agora dizes que uma equipa de televisão pode aparecer por aqui por um dia ou dois, e destruir a reputação do nosso produto num programa de nível nacional. Apesar disso, não têm qualquer responsabilidade pelos seus actos e nós não podemos ressarcir-nos dos prejuízos.

 

Fuller confirmou com um aceno.

 

É uma situação muito desequilibrada. Fuller pigarreou, para limpar a garganta.

 

Bom, nem sempre foi assim. Porém, nos últimos trinta anos, desde Sullivan, em mil novecentos e sessenta e quatro, a Primeira Emenda à Constituição passou a ser invocada para os casos de difamação. Agora, a imprensa tem muito mais espaço para actuar.

 

Incluindo espaço para abusar comentou Marder.

 

As queixas sobre os abusos da imprensa são velhas declarou Fuller, com um novo encolher de ombros. Pouco depois da aprovação da Primeira Emenda, Thomas Jefferson já se queixava da imprecisão e das injustiças da imprensa...

 

Contudo, Ed interrompeu-o Marder, não estamos a falar de casos de há duzentos anos, nem de uns quantos editoriais desagradáveis nos jornais coloniais. Falamos de um programa de televisão com imagens chocantes, que atinge instantaneamente quarenta ou cinquenta milhões de pessoas... uma boa percentagem da população do país, e que assassina a nossa reputação. É injustificável. É disso que estamos a falar. Num caso desses, que conselhos nos podes dar, Ed?

 

Bom... Fuller voltou a pigarrear. Aconselho sempre os meus clientes a dizer a verdade.

 

Isso é muito bonito. É um bom conselho. Porém... o que é que podemos fazer?

 

Seria melhor respondeu o advogado que se preparassem para explicar o que aconteceu no voo cinco quatro cinco.

 

Aconteceu apenas há quatro dias. Ainda não chegámos a conclusões.

 

Será melhor que cheguem...

 

Marder virou-se para Casey logo que Fuller abandonou o gabinete. Não abriu a boca e limitou-se a olhar para ela.

 

Casey ficou imóvel durante algum tempo. Compreendia o que Marder e Fuller estavam a fazer. Fora uma representação muito eficiente. Porém, o advogado também tinha razão, pensou. Seria melhor se pudessem dizer a verdade e explicar o que se passara durante o voo. Enquanto o ouvira, começara a pensar que talvez, de algum modo, conseguisse descobrir uma maneira de dizer a verdade ou uma parte suficiente da verdade para que a coisa funcionasse. Existiam muitas pontas soltas, muitas incertezas, que talvez pudesse reunir de modo a construir uma história coerente,

 

Está bem, John, irei à entrevista.

 

Excelente! exclamou Marder, sorrindo e esfregando as mãos.- Sabia que procederias da maneira mais correcta, Casey. O Newsline marcou a entrevista para as quatro da tarde de amanhã. Entretanto, gostaria que trabalhasses um pouco com uma consultura de relações públicas, uma pessoa de fora da empresa...

 

John protestou Casey, farei isto à minha maneira.

 

É uma mulher muito simpática e...

 

Lamento muito insistiu Casey, mas não tenho tempo.

 

Pode ajudar-te, Casey, e dar-te algumas sugestões...

 

John, tenho trabalho para fazer declarou Casey, saindo do gabinete.

 

         CENTRO DE DADOS DIGITAIS

         18:15

 

Não prometera dizer o que Marder pretendia que ela dissesse. Limitara-se a afirmar que daria a entrevista. Tinha menos de vinte e quatro horas para conseguir progressos significativos na investigação. Não era assim tão tola para pensar que um tão curto espaço de tempo seria suficiente para determinar o que acontecera durante o voo. No entanto, talvez descobrisse algo que pudesse dizer à jornalista.

 

Ainda tinha muitas pistas. O possível problema com o trinco dos slats. O possível problema com o sensor de proximidade. O possível problema com o piloto que se encontrava em Vancouver. A gravação vídeo que fora entregue à Video Imaging. A tradução que Ellen Fong estava a fazer. O facto de os slats terem saído, para recolherem logo a seguir. Que queria isso dizer?

 

Havia muita coisa para investigar.

 

Sei que precisas dos dados afirmou Bob Wong, fazendo girar a cadeira. Sei-o perfeitamente, acredita. Encontrava-se na frente dos monitores repletos de dados. Que esperas que eu faça?

 

Rob respondeu Casey, os slats saíram. Preciso de saber porquê... e que mais aconteceu naquele voo. Não posso saber sem os dados do registo de voo.

 

Nesse caso retorquiu Wong, é melhor encarares alguns factos. Estamos a recalibrar cento e vinte horas de dados. As primeiras noventa e sete horas estão bem. As últimas vinte e três horas são anómalas.

 

Só estou interessada nas últimas três horas.

 

Compreendo afirmou Wong. Porém, para recalibrarmos essas três horas, precisamos de voltar para trás, até ao momento em que o circuito rebentou, e de trabalhar a partir daí. Temos de calibrar vinte e três horas de dados... e estamos a gastar cerca de dois minutos para recalibrar um único frame.

 

Que estás tu a querer dizer-me? perguntou Casey, franzindo a testa. No entanto, já fazia contas de cabeça.

 

Dois minutos por frame correspondem a sessenta e cinco semanas de trabalho.

 

Mas... isso é mais de um ano!

 

Sim, seria mais de um ano... se trabalhássemos vinte e quatro horas por dia. No mundo real, vamos precisar de três anos para conseguir os dados.

 

Rob... precisamos deles agora!

 

Não pode ser feito, Casey. Vais ter de resolver o assunto sem o FDR. Lamento muito... mas é assim.

 

Casey telefonou para a contabilidade.

 

A Ellen Fong está?

 

Hoje não veio. Disse que ia trabalhar em casa.

 

Tem o número do telefone?

 

Claro respondeu a mulher, mas não vai encontrá-la. Teve de ir a um jantar formal de uma organização de caridade, na companhia do marido.

 

Diga-lhe que telefonei pediu Casey.

 

A seguir, telefonou para a Video Imaging, em Glendale, a empresa que estava a trabalhar na gravação vídeo que lhes entregara. Pediu para falar com Scott Harmon.

 

O Scott já se foi embora. Volta amanhã, às nove.

 

Telefonou para Steve Nieto, o representante da Norton em Vancouver, e foi atendida pela secretária.

 

O Steve não está, teve de sair mais cedo. No entanto, sei que queria falar consigo. Disse-me que tinha más notícias.

 

Casey suspirou. Parecia que todos tinham más notícias para lhe dar.

 

Pode entrar em contacto com ele?

 

Não, só amanhã.

 

Diga-lhe que telefonei.

 

O telefone celular tocou.

 

Jesus, aquele Benson é um tipo desagradável declarou Richman. Que se passa com ele? Cheguei a pensar que ia bater-me.

 

Onde estás?

 

No gabinete. Quer que vá ter consigo?

 

Não respondeu Casey. Já passa das seis. Por hoje, estamos despachados.

 

Mas...

 

Até amanhã, Bob concluiu Casey, desligando.

 

A caminho do Hangar 5, viu as equipas de electricistas a preparar o TPA 545 para o teste eléctrico daquela noite. O avião fora erguido três metros no ar e repousava agora sobre estruturas metálicas azuis instaladas por baixo das asas, na proa e na traseira da fuselagem. Depois, as equipas haviam colocado uma rede de segurança preta, por baixo do avião, a cerca de seis metros de altura. Ao longo da fuselagem viam-se portas e painéis abertos por todo o lado, e os electricistas, em pé sobre a rede de segurança, uniam cabos a caixas de junção, ligando-as à consola de testes, uma enorme caixa colocada no centro do pavimento, num dos lados do avião.

 

O teste consistia no envio de impulsos eléctricos a todas as partes constituintes do sistema eléctrico do avião. Todos os componentes eram testados numa rápida sucessão, desde as luzes de leitura da cabina dos passageiros aos indicadores luminosos no painel de instrumentos, ignição dos motores e sistemas das rodas. Um teste durava duas horas... e seria repetido inúmeras vezes ao longo de toda a noite.

 

Quando passou pela consola, Casey avistou Teddy Rawley. O homem fez-lhe um aceno mas não se aproximou. Estava atarefado. Sem dúvida, já ouvira dizer que o teste de voo fora marcado para daí a três dias e queria ter a certeza de que os testes aos sistemas eléctricos eram feitos correctamente.

 

Devolveu o aceno, mas o homem já lhe virara as costas.

 

Casey encetou o caminho de regresso ao seu gabinete.

 

Lá fora, o dia escurecia e o céu ganhava um profundo tom azul. Caminhou na direcção do edifício da administração, escutando o ruído distante das descolagens no aeroporto de Burbank. A meio do caminho avistou Amos Peters, que se arrastava para o carro levando um monte de papéis debaixo do braço. O homem olhou para trás e viu-a.

 

Olá, Casey.

 

Olá, Amos.

 

Com um estrondo, Peters largou os papéis em cima do tejadilho do carro e dobrou-se para abrir a porta.

 

Ouvi dizer que andam a pressionar-te.

 

É verdade. Não ficava surpreendida por o homem o saber. Provavelmente, já toda a fábrica o sabia. Essa fora uma das primeiras coisas que aprendera na Norton. Toda a gente sabia tudo, poucos minutos depois dos acontecimentos.

 

Vais à entrevista?

 

Disse que sim.

 

E vais dizer o que querem que digas? Casey encolheu os ombros.

 

Não te armes em importante aconselhou-a Peters. Trata-se de pessoal da televisão. Na escala evolucionária... estão abaixo da escumalha. Limita-te a mentir... e que vão para o diabo.

 

Veremos.

 

Já tens idade para saber como as coisas funcionam comentou o homem, com um suspiro. Vais para casa?

 

Por enquanto ainda não.

 

Se fosse a ti, não andava pela fábrica durante a noite.

 

Então porquê?

 

As pessoas andam agitadas explicou Amos. Nos próximos dias, é melhor que vás cedo para casa. Percebes o que quero dizer?

 

Tomarei isso em conta.

 

É o melhor, Casey. A sério.

 

Amos Peters meteu-se no carro e afastou-se.

 

         DIVISÃO DE QUALIDADE

         19:20

 

Norma fora para casa. Os gabinetes da QA estavam vazios. As equipas da limpeza já estavam a trabalhar nos gabinetes das traseiras, e Casey ouvia um pequeno rádio portátil a tocar Run Baby Run.

 

Casey encaminhou-se para a máquina do café, serviu-se de uma chávena de café frio e levou-a para o seu gabinete. Acendeu as luzes e olhou para o monte de papéis à sua espera, em cima da secretária.

 

Sentou-se e tentou não se desencorajar com o modo como as coisas estavam a correr. Tinha vinte horas até à entrevista e as suas pistas eram becos sem saída.

 

Limita-te a mentir... e que vão para o diabo!

 

Suspirou. Talvez o Amos tivesse razão.

 

Olhou para os papéis e empurrou a fotografia de John Chang e da sua sorridente família para um lado. Não sabia o que fazer, excepto estudares documentos. Tinha de os verificar.

 

Depararam-se-lhe novamente os documentos de voo. Mais uma vez, teve um pressentimento. Recordava-se de ter tido uma ideia, na noite anterior, antes de Marder lhe telefonar. Que ideia fora essa?

 

Fosse o que fosse, perdera-a. Pôs o plano de voo de lado, incluindo a Declaração Geral que o acompanhava e que incluía uma lista da tripulação:

 

     John Zhen Chang, Comandante 5/7/51 M

     Leu Zang Ping, Co-piloto 3/11/59 M

     Richard Yong, Co-piloto 9/9/61 M

     Gerhard Reimann, Co-piloto 7/23/49 M

     Thomas Chang, Co-piloto 6/29/70 M

     Henri Marchand, Técnico de voo 4/25/69 M

     Robert Sheng, Técnico de voo 6/13/62 M

     Harriet Chang, Assistente 5/12/77 F

     Linda Ching, Assistente 5/18/76 F

     Nancy Morley, Assistente 7/19/75 F

     Kay Liang, Assistente 6/4/72 F

     John White, Supervisor de cabina 1/30/70 M

  1. V. Chang, Assistente 4/1/77 F

     Sha Yan Hão, Assistente 3/13/73 F

  1. Jiao, Assistente 11/18/76 F

     Harriet King, Assistente 10/10/75 F

  1. Choi, Assistente 11/18/76 F

     Yee Chang, Assistente 1/8/74 F

 

Fez uma pausa e tomou um gole de café frio. Tinha a sensação de haver algo de estranho naquela lista, mas não era capaz de dizer o que era.

 

Colocou a lista de lado.

 

A seguir vinha uma transcrição das comunicações com o Controlo de Tráfego Aéreo da Califórnia do Sul. Como de costume, fora impressa sem pontuação, e as comunicações com o 545 estavam misturadas com os contactos com vários outros aviões.

 

           três seis cinco altitude trinta e cinco mil

           de novo na frequência desculpem troca de

           rádios

           um nove oito recebido

           combustível restante quatro dois zero um

           recebido dois cinco oito cinco sem

           problemas já vos temos

           transpacific cinco quatro cinco temos uma

           emergência

           afirmativo zero zero um

           prossiga cinco quatro cinco

           autorização para uma aterragem prioritária

           de emergência em Los Angeles

           descemos para vinte e nove mil

           muito bem cinco quatro cinco entendido

           autorização para a aterragem de

           emergência

           afirmativo

           indique a natureza da emergência

           três dois um altitude trinta e dois mil

           mantendo dois seis nove

           temos uma emergência com passageiros

            precisamos de ambulâncias à nossa espera

           trinta ou quarenta ambulâncias talvez mais

           tpa cinco quatro cinco confirme está a

           pedir-nos quarenta ambulâncias

           mudando para um dois quatro ponto nove

           afirmativo enfrentámos turbulências severas

           durante o voo temos feridos entre os

           passageiros e tripulantes

           recebido um nove oito muito bom dia

           transpacific recebi o seu pedido de

           quarenta ambulâncias

           obrigado

 

Casey interrogava-se a respeito daquela troca de palavras, que sugeria um comportamento errático por parte do piloto.

 

Por exemplo, o incidente da Transpacific ocorrera pouco depois das cinco da manhã. Nessa altura, o avião ainda se encontrava em contacto com a ARINC de Honolulu. Com tantos feridos a bordo, o comandante deveria ter comunicado a emergência para Honolulu.

 

Contudo, não o fizera.

 

Porquê?

 

Em vez disso, prosseguira para Los Angeles e esperara quase até ao momento da aterragem para comunicar uma emergência a bordo.

 

Por que esperara tanto tempo?

 

Por outro lado, o que o levara a dizer que o incidente fora provocado por turbulência? Sabia que não era verdade. Fora o próprio comandante quem dissera à hospedeira que se tinha verificado uma saída de slats. Casey sabia, graças aos filtros audio de Ziegler, que os slats tinham saído. Porque fora que o piloto não a comunicara? Porque mentira ao controlo?

 

Toda a gente concordava que John Chang era um bom piloto. Então, qual a explicação para o seu comportamento? Estaria em choque? Por vezes, até os melhores pilotos se comportavam de um modo estranho em momentos de crise. Todavia, parecia haver ali um padrão. Quase um plano. Casey prosseguiu com a leitura.

 

           também necessitam de pessoal médico qual

           é a natureza dos ferimentos

           não tenho a certeza

           podem dar-nos uma estimativa

           lamento não é possível uma estimativa

           dois um nove "clear"

           há alguém inconsciente

           não me parece mas temos dois mortos

 

O comandante parecia comunicar os mortos como se fossem algo de secundário. Que se passava ali?

 

           recebido zero zero um

           tpa cinco quatro cinco qual é a situação do seu aparelho

           temos danos na cabina dos passageiros apenas pequenos danos

 

Casey pensou: Apenas pequenos danos? A cabina sofrera milhões de dólares de prejuízos. O comandante não fora lá para ver por si mesmo? Não conhecia a extensão dos danos? Por que teria dito aquilo?

 

Qual é a situação na cabina de pilotagem está operacional fdau nominal entendido cinco quatro cinco qual é a situação da tripulação comandante e co-piloto em boas condições

 

Naquele preciso momento, um dos primeiros oficiais estava coberto de sangue. Mais uma vez, o piloto não sabia? Casey lançou uma olhadela ao resto da transcrição e largou-a. Teria de a mostrar a Felix, no dia seguinte, para saber qual era a sua opinião.

 

Prosseguiu, lendo os relatórios sobre as estruturas, sobre os danos na cabina e os registos PM A sobre as peças falsificadas, nos slats e nos reversers. Lentamente, com toda a paciência, continuou a trabalhar pela noite dentro.

 

Já passava das dez da noite quando voltou a estudar o impresso com a lista de falhas do voo 545. Esperara poder passar por cima daquilo servindo-se dos dados do registo de voo. Porém, agora, via-se obrigada a estudar a lista.

 

Bocejando, cansada, olhou para as colunas de números da primeira página:

 

Não lhe apetecia rever aquilo. Ainda não jantara e sabia que precisava de comer. De qualquer modo, as suas únicas dúvidas a respeito daquela lista de falhas haviam sido as leituras AUX. Interrogara Ron, e este dissera-lhe que a primeira se referia ao gerador auxiliar, que a segunda e terceira não eram utilizadas e que a quarta, AUX CÔA, era uma linha instalada pelo cliente. Todavia, não existia nada nessas linhas, porque o zero era a leitura por omissão.

 

Portanto, não valia a pena perder mais tempo com aquela lista.

 

Estava despachada.

 

Casey levantou-se, espreguiçou-se e olhou para o relógio. Eram dez e quinze. Era melhor ir dormir. No fim de contas, no dia seguinte iria aparecer na televisão. Não queria que a mãe lhe telefonasse, mais tarde, para lhe dizer: "Querida, parecias tão cansada..."

 

Casey dobrou a lista impressa e arrumou-a.

 

Zero, pensou, era o valor por omissão. Zero também fora o resultado daquela sua noite de trabalho.

 

Um grande zero.

 

Nada.

 

Um grande zero disse, em voz alta significa que não há nada na linha.

 

Não queria pensar no significado daquela frase. O tempo fugia, o seu plano para acelerar a investigação falhara e no dia seguinte estaria em frente de uma câmara de televisão, com o famoso Marty Reardon a fazer-lhe perguntas... e não tinha boas respostas para lhe dar, excepto as que John Marder pretendia que ela desse.

 

Limita-te a mentir... e que vão para o diabo!

 

Talvez acabasse por o fazer.

 

Já tens idade para saber como as coisas funcionam.

 

Casey desligou o candeeiro da secretária e encaminhou-se para a porta.

 

Deu as boas-noites a Esther, a mulher da limpeza, e seguiu ao longo do corredor. Meteu-se no elevador e carregou no botão para o piso térreo.

 

O botão acendeu-se quando lhe tocou.

 

     "1." Ligado.

 

Bocejou quando as portas começaram a fechar-se. Estava realmente muito cansada. Era uma tolice ficar a trabalhar até tão tarde. Cometeria erros estúpidos e deixaria escapar pequenos pormenores.

 

Olhou para o botão iluminado...

 

... e a ideia explodiu-lhe na cabeça.

 

Esqueceu-se de alguma coisa? perguntou Esther quando Casey voltou a entrar no gabinete.

 

Não.

 

Remexeu nos papéis sobre a secretária, à pressa, procurando qualquer coisa. As folhas de papel voaram em todas as direcções, e Casey deixou-as flutuar até ao chão.

 

Ron dissera que o valor por omissão era zero. Portanto, quando se tinha um zero, não se sabia se uma linha estava ou não a ser usada. Todavia, se existisse um 1... isso significava... Encontrou a lista e percorreu a coluna de números com a ponta de um dedo:

 

           AUX l AUX 2 AUX 3 AUX GOA

          00000000000

           00000000000

           00000000000

           01000000000

 

Havia ali um número 1! AUX CÔA registara uma falha durante a segunda parte do voo... e isso significava que a linha estava a ser utilizada pelo avião.

 

Porém... estava a ser utilizada para quê?

 

Casey susteve a respiração.

 

Não ousava ter demasiadas esperanças.

 

Ron dissera que a AUX CÔA era a linha para Opções Adicionais do Cliente. Os clientes usavam-na para coisas como um... QAR.

 

O QAR era o Quick Acess Record, um registo de acesso rápido, outro registador de dados de voo instalado para facilitar a vida às equipas de manutenção. Registava muitos dos parâmetros de um vulgar DFDR, ou "caixa negra". Se existisse um QAR naquele avião, Casey veria todos os seus problemas resolvidos.

 

Contudo, Ron insistira na afirmação de que o avião não tinha um QAR.

 

Dissera ter ido ver à cauda do N-22, onde esse aparelho era habitualmente instalado, e não o encontrara.

 

Teria procurado noutros lados?

 

Teria realmente revistado o avião?

 

Casey sabia que um aparelho adicional como o QAR não estava sujeito às regulamentações da FAA. Podia ser colocado onde a transportadora o desejasse: no compartimento da traseira, no porão de carga, por baixo do equipamento de rádio, na cabina... Na verdade, podia estar em qualquer lado.

 

Ron tê-lo-ia procurado?

 

Decidiu ir verificar por si mesma.

 

Passou os dez minutos seguintes a folhear os espessos Manuais de Reparação do N'-22, mas sem qualquer êxito. Os manuais nem sequer mencionavam o QAR ou, pelo menos, Casey não encontrava qualquer referência a seu respeito. Contudo, os manuais que guardava no gabinete eram os seus exemplares pessoais. Casey não estava directamente envolvida na manutenção e não dispunha das últimas versões. A maioria daqueles manuais datava da sua entrada na empresa, pelo que já tinham cinco anos.

 

Foi então que reparou no Heads-Up Display pousado na sua secretária.

 

"Espera um minuto", pensou. Agarrou nos óculos e colocou-os. Ligouos ao leitor de CDs e carregou no botão...

 

Nada.

 

Remexeu no equipamento durante alguns instantes, até compreender que não havia um CD-ROM dentro da máquina. Espreitou para a caixa de cartão da embalagem, encontrou um disco prateado e introduziu-o no leitor. Voltou a carregar no botão de ligar.

 

Os óculos iluminaram-se. Estava a olhar para uma página do primeiro manual de manutenção, projectada no interior dos óculos. Não percebia bem como o sistema funcionava, uma vez que os óculos se encontravam a dois centímetros e meio dos olhos mas a página projectada parecia flutuar no espaço a sessenta centímetros de distância. Era quase transparente e podia ver através dela.

 

Korman gostava de dizer que a realidade virtual era virtualmente inútil, excepto para algumas aplicações especializadas. Uma delas era a manutenção. As pessoas atarefadas, que trabalhavam em ambientes técnicos, pessoas com as mãos ocupadas ou com os dedos cobertos de óleo, não tinham tempo nem disposição para irem à procura de dados num espesso manual. Alguém que se encontrasse a nove metros de altura, tentando reparar um motor a jacto, não podia andar de um lado para o outro carregado com dois quilos e meio de manuais. Os óculos de imagens virtuais eram perfeitos para essas situações, pelo que Korman construíra uns.

 

Casey descobriu que podia folhear os manuais carregando nos botões do leitor portátil de CDs. Havia também uma função de busca, que fazia aparecer um teclado, suspenso no espaço. Tinha de carregar repetidamente noutro botão para deslocar um cursor para a letra Q, depois para o A e finalmente para o R. Era um sistema desajeitado... mas funcionava.

 

Depois de alguns zumbidos, surgiu uma página na frente dela:

 

         N-22

         REGISTO DE ACESSO RÁPIDO (QAR)

         LOCALIZAÇÕES RECOMENDADAS

 

Carregando em mais botões, foi avançando através de uma sequência de diagramas que mostravam, em pormenor, todos os locais de um N-2 onde um QAR podia ser instalado.

 

No total, eram cerca de trinta.

 

Casey prendeu o leitor de CDs ao cinto e encaminhou-se para a porta

 

         AEROPORTO DE MARINA

 

Marty Reardon ainda se encontrava em Seatle.

 

A entrevista com Bill Gates prolongara-se e perdera o avião. Agora, só chegaria de manhã. Jennifer tinha de rever o seu plano de trabalhos.

 

Compreendeu que iria ser um dia difícil. Esperara começar às nove, agora, quanto muito, só começaria às dez horas. Sentou-se no quarto do hotel, com o computador portátil na sua frente, a pensar no assunto.

 

           9:00-10:00 Voo de Los Angeles

           10:00-10:45 Barker no gabinete

           11:00-11:30 King no aeroporto

           11:30-12:00 FAA no aeroporto

           12:15-13:45 Deslocação para Burbank

           14:00-14:30 Rogers em Burbank

           14:30-15:30 Gravação em frente da Norton

           16:00-16:30 Singleton, na Norton

           16:30-18:00 Voo para Los Angeles

 

Era demasiado apertado. Não sobrava tempo para almoçar, para atrazos no trânsito, para os habituais problemas de produção. No dia seguinte era sexta-feira, e Marty iria querer apanhar o avião das dezoito horas para Nova Iorque. Tinha uma nova namorada e gostava de passar o fim-de-semana com ela. Ficaria muito chateado se perdesse o voo.

 

Jennifer não tinha dúvidas de que ele iria perdê-lo.

 

O problema estava no facto de que, quando Marty terminasse a entrevista com a Singleton, já estariam na hora de ponta. Não chegaria a tempo ao aeroporto. Na verdade, deveria partir de Burbank por volta das duas e meia... o que significava adiantar a entrevista com a Singleton e atrasar o encontro com o advogado. Jennifer receava perder o tipo da FAA se lhe alterasse o programa no último minuto. O advogado seria mais flexível, isperaria até à meia-noite, se lho pedissem.

 

Já anteriormente falara com o advogado. Era um fanfarrão, mas muito plausível se conseguisse frases curtas, de cinco ou dez segundos. Frases curtes. Valia a pena experimentar.

 

           9:00-10:00 Voo de Los Angeles

           10:00-10:45 Barker no gabinete

           11:00-11:30 FAA no aeroporto

           11:30-12:30 Mudança para Burbank

           12:30-13:00 Rogers em Burbank

           13:00-14:00 Gravação em frente da Norton

           14:00-14:30 Singleton, na Norton

           14:30-16:00 Voo para Los Angeles

           16:00-16:30 King no aeroporto

           17:00-18:00 Montagem

 

Assim, já seria melhor. Jennifer fez uma revisão mental das possibilidades. Se o tipo da FAA fosse bom (ainda não o conhecera, só falara com ele pelo telefone), Marty podia despachá-lo rapidamente. Se a mudança para Burbank fosse demorada, podia dispensar Rogers, que nem sequer era grande coisa, e seguir directamente para o exterior da Norton. A Singleton seria rápida. Jennifer queria manter Marty em andamento, para que não atacasse demasiado aquela mulher. Sob esse aspecto, um horário apertado seria uma ajuda.

 

Regressariam a Los Angeles, acabariam a entrevista com King, Marty partiria às seis e Jennifer teria na mão as suas gravações. Iria editá-las na O O, montava a peça e partiria para Nova Iorque nessa noite. Telefonava, para que Dick fizesse os seus comentários no sábado de manhã, revia todo o material e preparava-o até ao meio-dia. Ainda sobraria muito tempo até à hora da emissão.

 

Tomou nota que devia telefonar para a Norton, para lhes dizer que precisava de entrevistar a Singleton duas horas mais cedo.

 

Para terminar, virou-se para os documentos que a Norton enviara para o seu gabinete por fax, para serem investigados por Deborah. Jennifer não se dera ao trabalho de olhar para eles, e nem sequer o faria naquele momento... se tivesse qualquer outra coisa para fazer. Como não tinha, folheou-os rapidamente. Eram o que já esperava. Documentos auto justificativos, dizendo que o N-22 era seguro, que tinha um excelente currículo..

 

Saltou de página em página e deteve-se repentinamente.

 

Ficou a olhar.

 

Devem estar a brincar murmurou, largando os documentos.

 

         HANGAR 5

         22:30

 

À noite, a fábrica da Norton parecia deserta, com o parque de estacionamento quase vazio e os edifícios mergulhados no silêncio. Contudo, continuava brilhantemente iluminada. A segurança mantinha projectores acesos durante toda a noite. Para além disso, havia câmaras de vídeo montadas em todas as esquinas. Casey ouviu os seus passos a martelar no asfalto quando atravessou o espaço entre a Administração e o Hangar 5.

 

As grandes portas do hangar estavam descidas e fechadas. Avistou Teddy Rawley, de pé no exterior, falando com um dos elementos da equipa de electricistas. Os farrapos de fumo de um cigarro subiam na direcção dos projectores. Casey encaminhou-se para a porta lateral.

 

Eh, garota, ainda aqui estás? perguntou Teddy.

 

É verdade.

 

Voltou a avançar para a porta. O electricista disse:

 

O hangar está fechado. Não se pode entrar, estamos a fazer o teste _ eléctrico.

 

Eu sei, não faz mal respondeu.

 

Desculpe, mas não pode entrar insistiu o homem. O Ron i Smith deu ordens estritas. Ninguém entra. Se tocar nalguma coisa, no avião...

 

Serei cuidadosa disse Casey. Teddy olhou para ela e aproximou-se.

 

Sei que o serás... declarou. Mas vais precisar disto. Entregou-lhe uma pesada lanterna, com quase noventa centímetros de comprimento. Está escuro lá dentro, sabes?

 

O electricista acrescentou:

 

Não pode acender as luzes e não podemos ter mudanças no fluxo ambiental de...

 

Compreendo retorquiu. Os equipamentos de teste eram muito sensíveis. A simples ligação das luzes fluorescentes do tecto podia alterar as leituras.

 

O electricista continuava inquieto.

 

Talvez seja melhor telefonar ao Ron para lhe dizer que vai entrar...

 

Telefone a quem quiser.

 

Não toque nos corrimãos, porque...

 

Não tocarei afirmou Casey. Por amor de Deus, sei o que estou a fazer! protestou, entrando no hangar.

 

Teddy tinha razão. O interior estava escuro. Sentiu, mais do que viu, o grande espaço à sua volta. Mal conseguia distinguir os contornos do avião, pairando por cima dela. Tinha todas as portas e compartimentos abertos e havia cabos pendurados por todo o lado. Por baixo da cauda, a grande caixa dos testes parecia estar pousada no meio de um lago de uma fraca luz azul. O seu monitor brilhava à medida que os sistemas do avião eram activados em sequência. Casey viu as luzes da cabina de pilotagem a acenderem-se, para logo se apagarem. A seguir foi a vez da cabina de passageiros, a da frente, ficar brilhantemente iluminada, nove metros acima dela.

 

Depois, voltou a escuridão. Após um instante, acenderam-se as luzes de posição na ponta das asas e da cauda, que enviaram clarões de luminosidade por todo o hangar. A escuridão regressou.

 

As luzes frontais, nas asas, brilharam subitamente com toda a força e o trem de aterragem começou a subir e a descer. Tudo aquilo iria acontecer cerca de uma dúzia de vezes ao longo da noite.

 

Continuava a ouvir, lá fora, na rua, a voz do electricista, que ainda falava com um tom preocupado. Teddy riu-se e o electricista disse mais qualquer coisa.

 

Casey ligou a lanterna eléctrica e avançou. A lanterna emitia um feixe de luz muito poderoso. Casey rodou-lhe o rebordo, tornando o feixe de luz mais amplo.

 

O trem de aterragem estava agora inteiramente recolhido. As portas abriram-se e o trem começou a sair, com as enormes rodas a descerem no meio de um guinchar hidráulico. Pouco depois, a luz que iluminava a insígnia acendeu-se, apontada para a cauda do avião. A seguir, apagou-se,

 

Casey dirigiu-se para o compartimento de equipamentos acessórios das traseiras. Sabia que Ron dissera que o QAR não se encontrava lá, mas sentia que tinha de confirmar. Subiu as largas escadas que tinham sido empurradas até junto do avião, tendo o cuidado de não tocar nos corrimãos. Havia cabos eléctricos presos aos mesmos e não queria perturbá-los, porque a simples presença da sua mão causaria flutuações nos campos eléctricos.

 

O compartimento de acessórios das traseiras, incluído na parte inclinada da traseira do avião, encontrava-se mesmo sobre a sua cabeça e tinha as portas abertas. Apontou a lanterna lá para dentro. A superfície superior do compartimento estava ocupada pela parte inferior do APU, o gerador de turbina que servia como fornecedor de energia auxiliar. À sua volta via-se um labirinto de tubos semicirculares e de uniões brancas. Por baixo encontrava-se uma série de medidores, todos em cima uns dos outros, encaixes para equipamentos e caixas FCS pretas, todas elas com as placas de transferência de calor. Se havia ali um QAR, passaria despercebido com toda a facilidade, porque só tinha cerca de cinquenta centímetros quadrados.

 

Fez uma pausa para colocar os óculos e ligou o leitor de CDs. O diagrama do compartimento da traseira apareceu imediatamente no espaço, na sua frente. Conseguiu olhar através dele e ver o compartimento verdadeiro. No diagrama, o bloco rectangular correspondente ao QAR tinha um contorno vermelho. No compartimento, esse espaço era ocupado por um medidor extra que indicava a pressão hidráulica de um dos sistemas de controlo do voo.

 

Ron tivera razão. O QAR não estava ali.

 

Voltou a descer as escadas, até ao pavimento, e caminhou por baixo do avião na direcção do compartimento de acessórios da frente, logo por trás do trem de aterragem do nariz do avião. Também estava aberto. De pé, no chão, apontou a lanterna para o compartimento e passou para a correspondente página do manual. Surgiu uma nova imagem em pleno ar. Mostrava o QAR localizado num rack eléctrico, do lado direito, perto dos activadores hidráulicos.

 

Não estava lá. O espaço permanecia vazio e a ficha de ligação, redonda e com os terminais metálicos a brilhar, era perfeitamente visível.

 

Tinha de se encontrar algures, no interior do avião.

 

Desviou-se para a direita, onde uma escada rolante se erguia até aos nove metros de altura, dando acesso à porta dos passageiros, logo atrás da cabina de pilotagem. Ouviu os seus pés a ressoar no metal quando entrou no avião.

 

A escuridão era intensa. Ligou a lanterna, e o feixe de luz percorreu a cabina. Esta parecia-lhe agora em muito pior estado do que antes. Em muitos sítios, a luz da lanterna reflectia-se no prateado baço do forro isolador. A equipa de electricistas havia retirado os painéis interiores em volta das janelas para ter acesso às caixas de junção existentes ao longo das paredes. Casey reparou que ainda pairava ali um leve cheiro a vomitado, que alguém tentara disfarçar com o odor adocicado de um spray com perfume de flores.

 

Por trás dela, a cabina de pilotagem iluminou-se subitamente: as luzes superiores acenderam-se, revelando os dois assentos. A seguir, foi a vez da fileira de monitores e das luzes intermitentes dos painéis superiores. A impressora FDAL da consola pedestal zumbiu, imprimiu um par de linhas de um qualquer teste e calou-se. As luzes apagaram-se e a escuridão voltou.

 

A iluminação da galley que se encontrava na sua frente ligou-se. Os indicadores dos aquecedores e dos fornos de microndas brilharam e ouviram-se os avisos sonoros dos temporizadores e do alarme indicador de excesso de calor. Sem aviso, tudo se desligou.

 

Estava de novo envolta em escuridão.

 

Casey continuava parada logo no interior da porta, remexendo no leitor de CDs pendurado no cinto, quando pensou ouvir pessoas. Imobilizou-se, à escuta.

 

Era difícil ter a certeza. Sempre que algum dos sistemas eléctricos se ligava ouvia-se toda uma sucessão de suaves zumbidos e de estalidos de relês e solenóides provenientes do equipamento à sua volta. Mesmo assim, escutou com atenção.

 

Sim, agora tinha a certeza.

 

Passos.

 

Alguém caminhava no hangar, lentamente mas com firmeza.

 

Assustada, inclinou-se, espreitou pela porta e gritou:

 

Teddy? És tu?

 

Ficou à escuta.

 

Os passos já não se ouviam.

 

Silêncio.

 

O estalido dos relês.

 

"Que se lixe", concluiu. Estava ali em cima, sozinha no interior daquele avião meio destruído, e o facto afectava-lhe os nervos. Estava cansada e começava a imaginar coisas.

 

Deu a volta à galley à sua esquerda, onde o manual dizia que havia um compartimento eléctrico adicional, perto do chão. A tampa do painel já fora removida. Espreitou através do diagrama transparente. O espaço estava quase todo ocupado por caixas eléctricas secundárias...

 

Nenhum QAR.

 

Seguiu ao longo da cabina de passageiros, na direcção da antepara central. Havia ali um pequeno compartimento de armazenagem, incorporado na antepara, logo por baixo da prateleira para as revistas. Era um sítio estúpido para instalar um QAR, pensou, e não ficou surpreendida quando não o encontrou.

 

Tinha investigado quatro possíveis localizações. Faltavam vinte e seis.

 

Caminhou na direcção da cauda, para o compartimento de armazenagem interior, na traseira. Tratava-se de um local mais provável. Havia ali um painel quadrado, logo à esquerda da porta traseira, nos flancos do avião. O painel não tinha parafusos. Estava equipado com uma dobradiça, para ser fácil de abrir pelas equipas de manutenção mais apressadas.

 

Casey aproximou-se da porta do avião, que estava aberta. Sentiu uma brisa fresca. Lá fora, a escuridão era total e nem sequer conseguia ver o chão, doze metros mais abaixo. O painel ficava ao lado da porta e já se encontrava aberto. Espreitou, vendo-o através do diagrama. Se o QAR ali se encontrasse, estaria colocado no canto inferior direito, perto dos disjuntores das luzes da cabina e do intercomunicador da tripulação.

 

Não estava.

 

As luzes das pontas das asas acenderam-se, lançando repetidos clarões. Provocaram sombras duras no interior, através da porta aberta e da fileira de janelas até voltarem a apagar-se.

 

Clique!

 

Casey imobilizou-se.

 

O som chegara-lhe da zona da cabina de pilotagem. Fora um ruído metálico, como o de um pé a embater numa ferramenta.

 

Voltou a escutar. Ouviu um sussurro suave e qualquer coisa a estalar.

 

Estava alguém no interior da cabina.

 

Retirou os óculos, deixando-os pendurados no pescoço. Em silêncio, deslizou para a direita, agachando-se por trás de uma fileira de assentos, na traseira do avião.

 

Ouviu passos a aproximarem-se. Seguiu-se um complicado conjunto de sons e um murmúrio. Seria mais do que um?

 

Susteve a respiração.

 

As luzes da cabina acenderam-se, primeiro à frente, depois a meio e finalmente na traseira. Contudo, como quase todo o tecto estava arrancado, produziram sombras estranhas e apagaram-se.

 

Casey agarrou na lanterna com força. O seu peso era reconfortante. Deslocou a cabeça para a direita, para poder espreitar por entre os assentos. Voltou a ouvir os passos mas não viu ninguém.

 

Então, de repente, as luzes de aterragem acenderam-se e o seu clarão reflectido entrou pelas janelas e provocou uma fila de brilhantes ovais no tecto do avião. Casey viu uma sombra que avançava e bloqueava as luzes desses ovais, uma após outra.

 

Havia alguém a caminhar pela coxia entre os assentos.

 

A situação não era das melhores, pensou.

 

Que podia fazer? Tinha a lanterna na mão, mas não se iludia quanto à sua habilidade para se defender. Tinha o telefone celular e o pager...

 

Baixou a mão rapidamente e desligou o pager.

 

O homem já se encontrava perto. Casey esticou-se para a frente, com o pescoço a doer, e viu-o. Estava quase na traseira do avião, olhando para todos os lados. Não conseguia distinguir o rosto, mas o reflexo das luzes de aterragem permitia-lhe ver uma camisa aos quadrados vermelhos.

 

As luzes de aterragem apagaram-se.

 

Casey susteve a respiração.

 

Ouviu o fraco estalido de um relê, vindo de algures, no compartimento da frente. Sabia que era um som de origem eléctrica mas, aparentemente, o homem da camisa vermelha não o sabia. Grunhiu baixinho, como se tivesse ficado surpreendido, e avançou mais rapidamente.

 

Casey aguardou.

 

Passado um instante, julgou ouvir os passos do homem a descer a escada metálica. Não tinha a certeza, mas pensava que sim.

 

O avião permanecia silencioso à sua volta.

 

Cautelosamente, saiu do seu esconderijo por trás dos assentos. Estava na hora de sair dali, pensou. Avançou para a porta aberta, à escuta. Não havia dúvidas, os passos desciam as escadas e o seu som diminuía. As luzes no nariz do avião acenderam-se e Casey viu uma longa sombra em movimento. Um homem.

 

A afastar-se.

 

Uma voz dentro dela dizia: "Põe-te a andar daqui", mas Casey lembrou-se dos óculos pendurados em volta do pescoço e hesitou. Tinha de dar ao homem o tempo suficiente para que saísse do hangar. Não queria descer e ele deparar-se-lhe lá em baixo. Por isso, decidiu ir espreitar o próximo compartimento. Colocou os óculos e ligou o aparelho. A página seguinte surgiu na sua frente.

 

O compartimento ficava ali próximo e localizava-se logo no exterior da porta traseira, onde Casey se encontrava. Inclinou-se para o exterior, segurando-se com a mão direita, e descobriu que não tinha qualquer dificuldade em espreitar para o compartimento, já aberto. Havia ali três filas verticais de circuitos eléctricos que muito provavelmente controlavam as duas portas da traseira. Lá em baixo, no fundo...

 

Sim, era o QAR, o registo de acesso rápido.

 

Era verde, com uma faixa branca em volta do topo, com letras impressas a stencil: MAINT QAR 041/6 MAINT. Uma caixa metálica com cerca de cinquenta centímetros quadrados, com uma tomada virada para o exterior. Casey estendeu a mão, agarrou a caixa e puxou-a com suavidade. Ouviu-se um estalido metálico e a caixa soltou-se. Tinha-a na mão.

 

Muito bem!

 

Recuou um passo para o interior do avião, com a caixa segura nas duas mãos. Estava tão excitada que tremia. Aquilo iria alterar tudo!

 

Estava tão excitada... que foi apenas demasiado tarde que ouviu passos precipitados por trás dela. Sentiu mãos fortes a empurrá-la, soltou um som de surpresa... e precipitou-se no espaço, pela porta.

 

Estava a cair...

 

... para um solo que se encontrava a nove metros de distância.

 

De repente, demasiado cedo, sentiu uma dor aguda na face e o seu corpo aterrou. Contudo, havia ali algo de errado. Sentia estranhos pontos de pressão por todo o corpo. Já não caía... subia, para logo voltar a cair.

 

Era como se se encontrasse sobre uma gigantesca cama elástica. Era a rede.

 

Casey caíra sobre a rede de segurança.

 

Não conseguia vê-la, na escuridão, mas sabia que havia uma rede negra suspensa por baixo do avião. Rolou sobre si mesma, deitou-se de costas e viu uma silhueta na porta. A figura deu meia volta e correu através do avião. Casey tentou pôr-se de pé mas o equilíbrio, em cima da rede, era difícil. A rede ondulava lentamente.

 

Avançou na direcção da vasta superfície baça da asa. Lá mais à frente, ouvia passos a martelar precipitadamente nas escadas. O homem vinha aí.

 

Tinha de fugir.

 

Precisava de sair daquela rede antes que ele a apanhasse. Aproximou-se ainda mais da asa e ouviu tossir. O som viera do outro lado da asa, à sua esquerda.

 

Havia ali mais alguém.

 

Lá em baixo, no solo.

 

À espera.

 

Casey fez uma pausa, sentindo as ondulações suaves da rede sob os pés. Dentro de instantes, outras luzes se acenderiam... e poderia vero homem.

 

De súbito, as luzes de posição por cima da cauda piscaram rapidamente. Eram tão brilhantes que iluminaram todo o hangar.

 

Agora, já podia ver quem tossira.

 

Fora Richman.

 

Vestia um impermeável azul-escuro e umas calças escuras. Encontrava-se perto da asa, tenso e alerta. Olhava cautelosamente para a esquerda e para a direita, observando o pavimento.

 

Abruptamente, as luzes apagaram-se, mergulhando o hangar na escuridão. Casey deslocou-se para a frente, ouvindo a rede a estalar sob os pés. Richman também a ouviria? Seria capaz de perceber onde ela se encontrava?

 

Atingiu a asa, que se estendia na escuridão.

 

Agarrou-a com uma das mãos e foi avançando. Mais tarde ou mais cedo, a rede terminaria. Sentiu um pé a embater numa corda grossa. Debruçou-se e apalpou nós.

 

Casey deitou-se sobre a rede, agarrou-se ao rebordo da mesma e rolou sobre um flanco, deixando-se cair. Por instantes, ficou pendurada apenas por um braço, com a rede a ceder um pouco sob o seu peso. Estava rodeada pela escuridão. Não sabia a que distância se encontrava do solo. Um metro e oitenta? Três metros?

 

Passos em corrida.

 

Largou a rede e caiu.

 

Atingiu o solo de pé mas os seus joelhos dobraram-se e sentiu uma dor violenta numa rótula quando esta embateu no chão de cimento. Ouviu Richman tossir pela segunda vez. Estava muito perto, à sua esquerda. Levantou-se e começou a correr na direcção da saída. As luzes de aterragem acenderam-se novamente, cruas e intensas. Sob o seu clarão, viu que Richman levantava as mãos para proteger os olhos.

 

Sabia que ele ficaria encandeado durante alguns segundos. Não muitos... mas talvez fossem os suficientes.

 

Onde estava o outro?

 

Casey continuou a correr.

 

Embateu nas paredes do hangar, provocando um som metálico abafado. Por trás dela, houve alguém que gritou: "Eh!" Casey deslocou-se ao longo da parede, apalpando-a, e ouviu passos em corrida.

 

Onde? Onde?

 

Os passos continuavam, por trás dela.

 

A sua mão tocou em madeira, vigas verticais, mais madeira e uma barra metálica. Era a porta. Empurrou-a.

 

Ar fresco.

 

Estava no exterior.

 

Olá, garota disse Teddy, virando-se. Como vai isso?

 

Caiu de joelhos, ofegando por ar. Teddy e o electricista precipitaram-se para ela.

 

Que se passa? Que te aconteceu?

 

Pararam junto de Casey, tocando-lhe, solícitos, enquanto ela tentava regularizar a respiração. Conseguiu murmurar:

 

Chamem a segurança.

 

O quê?

 

Chamem a segurança! Está alguém lá dentro!

 

O electricista correu para o telefone mas Teddy ficou junto dela. Foi só então que Casey se recordou do QAR e passou por um momento de pânico. Onde estaria ele? Levantou-se, dizendo:

 

Oh, não... Deixei-o cair.

 

Deixaste cair o quê?

 

A caixa... Virou-se e olhou para o hangar. Teria de lá voltar, para...

 

Referes-te à caixa que tens na mão? perguntou Teddy. Casey olhou para a mão esquerda.

 

O QAR encontrava-se ali, apertado com tanta força que os seus dedos estavam brancos.

 

         GLENDALE

         23:30

 

Ora, vamos lá disse Teddy, com o braço a rodeá-la e a conduzi-la para o quarto. Já está tudo bem, boneca.

 

Teddy, não sei porque...

 

Tratamos disso amanhã, querida... respondeu o homem, tranquilizando-a.

 

Que estava ele a fazer?...

 

Amanhã repetiu Teddy.

 

Que estava ele...

 

Não conseguia terminar as frases. Sentou-se na cama. Repentinamente, sentia toda a sua exaustão e deixava-se dominar por ela.

 

Vou dormir no sofá disse Teddy. Não quero que fiques sozinha, esta noite. Olhou-a e afagou-lhe o queixo. Não tens de te preocupar, boneca.

 

Dobrou-se e tirou-lhe o QAR da mão. Casey largou-o, de má vontade.

 

Vou deixá-lo aqui afirmou Teddy, colocando o aparelho em cima da mesa-de-cabeceira. Falava com ela como se Casey fosse uma criança.

 

Teddy, é importante...

 

Eu sei. Ainda aqui estará quando acordares. Está bem?

 

Sim...

 

Chama-me, se precisares de alguma coisa. Teddy saiu e fechou a porta.

 

Casey olhou para a almofada. Tinha de se despir e de se preparar para dormir. Doía-lhe a cara. Precisava de ver o que lhe acontecera. Tinha de olhar para a cara.

 

Pegou no QAR e meteu-o debaixo da almofada. Olhou-a, pousou a cabeça e fechou os olhos.

 

"É só por um momento", pensou.

 

         SEXTA-FEIRA

         GLENDALE

           6:30

 

Havia qualquer coisa errada.

 

Casey sentou-se de repente. Sentiu dores por todo o corpo e ofegou. Tinha uma sensação de queimadura na face. Tocou-lhe e estremeceu.

 

A luz do Sol entrava pela janela e iluminava os pés da cama. Olhou para os dois arcos de gordura que marcavam a coberta. Ainda estava calçada e continuava vestida.

 

Jazia por cima da coberta da cama, completamente vestida.

 

Gemendo, torceu o corpo e pousou os pés no chão. Tudo lhe doía. Olhou para a mesa-de-cabeceira. O relógio dizia que eram seis e meia da manhã.

 

Meteu a mão debaixo da almofada e fez aparecer a caixa metálica verde, com uma faixa branca.

 

O QAR.

 

Cheirou-lhe a café.

 

A porta abriu-se e Teddy entrou, vestido com as suas cuecas boxer e transportando uma caneca.

 

Como te sentes?

 

Dói-me tudo.

 

Foi o que pensei. Estendeu-lhe a caneca. És capaz de a segurar?

 

Grata, Casey acenou e aceitou a caneca. Os ombros doeram-lhe quando a levou aos lábios. O café estava quente e forte.

 

A cara não está má... comentou Teddy, olhando-a com um ar crítico. É quase tudo de lado. Deves ter batido na rede com a face.

 

De súbito, Casey recordou-se: a entrevista.

 

Oh, Jesus! exclamou, levantando-se da cama e voltando a gemer.

 

Precisas de três aspirinas e de um bom banho muito quente.

 

Não tenho tempo.

 

Arranja-o. Tão quente quanto consigas aguentar.

 

Dirigiu-se para a casa de banho e abriu o chuveiro. Virou-se para o espelho. Tinha a cara coberta de riscos de sujidade e uma nódoa negra que começava por trás da orelha e corria até à parte traseira do pescoço. O cabelo tapá-la-ia, pensou. Não iria ficar à vista.

 

Tomou outro gole de café, despiu-se e meteu-se no duche. Tinha nódoas negras num cotovelo, na anca e nos joelhos. Não se recordava de como as fizera. A água quente sabia-lhe muito bem.

 

Quando saiu do chuveiro, o telefone estava a tocar. Casey abriu a porta da casa de banho.

 

Não atendas pediu.

 

Tens a certeza?

 

Não há tempo declarou. Hoje não. Dirigiu-se para o quarto para se vestir.

 

Dispunha apenas de dez horas até à entrevista com Marty Reardon. Entretanto, só estava interessada numa única coisa: resolver a questão do TPA545.

 

         NORTON/DOS

         7:40

 

Rob Wong pousou o QAR em cima da mesa, ligou-lhe um cabo e carregou numa tecla. Viu-se uma pequena luz vermelha a acender-se no QAR.

 

Tem energia disse Wong. Recostou-se na cadeira e olhou para Casey. Estás pronta para experimentar?

 

Estou pronta respondeu.

 

Faz figas prosseguiu Wong, carregando em nova tecla. A luz vermelha do QAR começou a cintilar rapidamente.

 

Aquilo é... começou Casey, inquieta.

 

Está tudo bem. Está a descarregar os dados.

 

Alguns segundos depois, a luz vermelha tornou-se novamente fixa.

 

E agora?

 

Está feito afirmou Wong. Vamos ver os dados. O monitor começou a mostrar colunas de números. Wong inclinou-se para a frente, observando-os atentamente. Hum... parece que está tudo bem, Casey. Este pode ser o teu dia de sorte. Dedilhou rapidamente as teclas durante alguns segundos e voltou a recostar-se.

 

Ora vamos lá ver...

 

O monitor mostrou a estrutura de um avião. Os espaços vazios foram rapidamente preenchidos e a imagem tornou-se sólida e tridimensional. O fundo transformou-se num céu azul. Tinham ali um avião prateado, visto horizontalmente, de perfil, com o trem de aterragem descido.

 

Wong martelou nas teclas, deslocando o avião, para que o vissem pela cauda. Acrescentou à imagem um campo verde, até ao horizonte, e uma pista cinzenta. A imagem era esquemática mas eficiente. O avião começou a mover-se ao longo da pista. Mudou de atitude, com o nariz a levantar-se e o trem de aterragem a recolher-se no interior das asas.

 

Acabaste de levantar voo declarou Wong, sorrindo.

 

O avião continuava a subir. Wong tocou numa tecla e abriu-se um rectângulo no lado direito do monitor. Apareceu uma série de números, que se modificavam rapidamente.

 

Não é um DFDR... mas é suficientemente bom disse Wong. Estão aqui todos os dados principais. Altitude, velocidade, rumo, combustível, dados sobre as superfícies de controlo, tais como slats, flaps, ailerons, leme... Tem tudo o que precisas, Casey, e os dados são estáveis.

 

O avião ainda subia. Wong carregou numa tecla e surgiram nuvens brancas. O aparelho continuou, atravessando as nuvens.

 

Suponho que não queres ver isto em tempo real. Sabes quando teve lugar o incidente?

 

Sim confirmou Wong. Cerca das nove horas e quarenta minutos.

 

Tempo de voo?

 

Exacto.

 

Vamos a isso...

 

No monitor, o avião estava nivelado e os números no rectângulo, à direita do monitor, mantinham-se estáveis. Então, de súbito, começou a brilhar uma luz vermelha entre os números.

 

O que é aquilo? perguntou Casey.

 

Uma indicação de discordância... nos slats.

 

Casey olhou para o avião que se via no ecrã. Nada se alterara.

 

Estão a sair?

 

Não retorquiu Wong. É apenas uma indicação de que algo não está conforme...

 

Casey continuou a observar o avião, que se mantinha nivelado. Passaram-se cinco segundos... e os slats saíram da asa.

 

Estão a sair... declarou Wong, olhando para os números. A seguir, acrescentou: Estão inteiramente saídos.

 

Portanto raciocinou Casey, começou por haver um sinal de aviso e só depois é que saíram?

 

Exacto.

 

Foi uma saída extemporânea?

 

Não. Comandada. Agora, o nariz do avião sobe... oh, oh... está a exceder os limites... e surge o aviso de "perda"...

 

No monitor, o avião iniciava uma descida acentuada. As nuvens brancas passavam por ele, cada vez mais depressa. Começaram a soar alarmes e a verem-se luzes a brilhar no ecrã.

 

O que é isso? inquiriu Casey.

 

Está a exceder todos os parâmetros. Jesus, olha para ele! O avião saía do mergulho e voltava a subir acentuadamente.

 

Sobe a dezasseis... dezoito... vinte e um graus... murmurou Wong, abanando a cabeça. Vinte e um graus!

 

Nos voos comerciais, o ângulo padrão para as subidas era de três a cinco graus. Dez graus já era muito, e só eram atingidos nas descolagens. Para os passageiros, uma subida de vinte e um graus parecer-lhes-ia vertical.

 

Mais alarmes.

 

Excede todos os limites explicou Wong, numa voz já sem expressão. O avião não foi feito para aguentar este tipo de esforços. Fizeram uma inspecção às estruturas?

 

Enquanto olhavam, o aparelho voltou a mergulhar.

 

Não acredito! disse Wong. O piloto automático deveria impedir...

 

Está em manual.

 

Mesmo assim. Aquelas oscilações loucas deveriam provocar a intervenção do piloto automático. Wong apontou para a janela com dados, num dos lados do ecrã. Ah, aqui está... O piloto automático tenta tomar o comando... e o piloto força-o a voltar ao manual. É uma loucura!

 

Outra subida. Outro mergulho.

 

No total, viram o avião descrever seis ciclos de subidas e descidas, até ao instante em que, abruptamente, regressou ao voo normal.

 

Que aconteceu? perguntou Casey.

 

O piloto automático tomou conta do voo... finalmente. Rob Wong soltou um longo suspiro. Bom, diria que já sabes o que se passou com este avião, Casey... mas maldito seja eu se compreendo porquê.

 

         SALA DE REUNIÕES

         9:00

 

Havia uma equipa de limpezas a trabalhar na sala de reuniões. O pessoal lavava as grandes janelas viradas para a fábrica e limpava as cadeiras e a mesa de formica. No canto mais distante, uma mulher aspirava a alcatifa.

 

Doherty e Ron Smith estavam parados junto à porta, observando um impresso de computador.

 

Que se passa? perguntou Casey.

 

Hoje não há reunião da IRT disse Doherty. O Marder cancelou-a.

 

Porque foi que ninguém me avisou... começou Casey, mas depois recordou-se que desligara o pager na noite anterior. Levou a mão ao cinto e voltou a ligá-lo.

 

O teste eléctrico da noite passada deu resultados quase perfeitos declarou Ron. Tal como sempre dissemos, trata-se de um excelente avião. Só tivemos duas falhas repetidas. Obtivemos uma falha consistente no AUX CÔA a partir do quinto ciclo, por volta das dez e meia. Não sei como pode ter acontecido... Ficou a olhá-la, à espera. Devia ter ouvido dizer que Casey estivera no hangar por volta dessa hora.

 

Não ia dar-lhe explicações... pelo menos por enquanto.

 

E quanto ao sensor de proximidade? retorquiu Casey.

 

Essa foi a outra falha explicou Smith. Durante os vinte e dois ciclos da noite passada, o sensor de proximidade da asa falhou seis vezes. Não há dúvidas de que está avariado.

 

Se o sensor de proximidade está avariado...

 

Acender-se-ia um sinal de slats na cabina. Casey deu meia volta e começou a afastar-se.

 

Eh! exclamou Doherty. Onde vais?

 

Tenho de deitar uma olhadela a um vídeo.

 

Casey, sabes que diabo se está a passar?

 

Serás o primeiro a saber retorquiu Casey, afastando-se.

 

Apesar de, no dia anterior, a investigação lhe ter parecido um beco sem saída, Casey pressentia que tudo iria resolver-se. O QAR fora a chave. Finalmente, já podia reconstruir a sequência dos acontecimentos durante o voo TPA545. A partir daí, as peças do puzzle encaixavam-se rapidamente umas nas outras.

 

Encaminhou-se para o carro e chamou Norma pelo telefone celular.

 

Norma, preciso de uma lista dos voos da Transpacific.

 

Já tenho uma, aqui mesmo declarou Norma. Veio com a documentação da FAA. O que queres saber?

 

Os voos para Honolulu.

 

Vou ver. Houve uma pausa. Não fazem voos para Honolulu... disse Norma. Só voam até...

 

Pronto, deixa... interrompeu-a Casey. Era o que eu precisava de saber. Fora a resposta que esperara.

 

Escuta prosseguiu Norma, o Marder já te telefonou três vezes. Queixa-se de que não respondes ao pager.

 

Diz-lhe que não consegues contactar-me.

 

Para além disso, o Richman tem tentado...

 

Não consegues contactar-me repetiu, desligando e apressando-se na direcção do carro.

 

Já a conduzir, telefonou para Ellen Fong, da contabilidade. A secretária disse-lhe que Ellen estava novamente a trabalhar em casa. Casey pediu-lhe o número e fez a ligação.

 

Ellen, fala a Casey Singleton.

 

Ah, sim, Casey. A voz era fria. Cuidadosa.

 

Fizeste a tradução?

 

Sim. Uma resposta sem entoação.

 

Terminaste-a?

 

Sim, terminei-a.

 

Podes mandar-ma por fax? perguntou Casey.

 

Não me parece que o deva fazer respondeu Elen, depois de uma pausa.

 

Está bem...

 

Sabes porquê? inquiriu Ellen Fong.

 

Creio que sim.

 

Levá-la-ei ao teu gabinete. Pode ser às duas?

 

Seria óptimo confirmou Casey.

 

As peças encaixavam-se muito rapidamente.

 

Casey estava quase certa de ser capaz de explicar o que acontecera ao voo TPA545. Já se sentia capaz de descrever toda a cadeia de acontecimentos. Com um pouco de sorte, o vídeo que se encontrava na Vídeo Imaging iria dar-lhe a confirmação final.

 

Só lhe restava resolver uma questão.

 

Que iria fazer com aquele conhecimento?

 

               SEPULVEDA BOULEVARD

               10:45

 

Fred Barker suava. O ar condicionado do seu gabinete fora desligado e agora, sob o insistente interrogatório de Marty Reardon, o suor escorria-lhe pelas faces, brilhava-lhe na barba e molhava-lhe a camisa.

 

Mister Barker disse Marty, inclinando-se para a frente. Marty tinha quarenta e cinco anos e era bem encarado, embora tivesse lábios finos e olhos penetrantes. Exibia a expressão de um acusador público relutante, um homem amadurecido que já tivesse visto tudo. Falava lentamente, por vezes em curtos fragmentos, o que lhe dava uma aparência de ser um homem muito razoável, capaz de dar todas as oportunidades possíveis às testemunhas. O seu tom favorito era o do desapontamento, com as sobrancelhas escuras sempre erguidas, como quem diz: "Como é que isso é possível?"

 

Mister Barker repetiu Marty, o senhor descreveu os "problemas" com o Norton N-Vinte e Dois. Porém, a empresa diz que foram emitidas directivas que corrigiram esses problemas. Será que a empresa tem razão?

 

Não. Sob o interrogatório cerrado de Marty, Barker abandonara as frases completas. Agora, falava o menos possível.

 

As directivas não deram resultado?

 

Bom, acabou de se verificar um novo incidente envolvendo os slats, não é verdade?

 

A Norton afirma que não foram os slats.

 

Creio que irão concluir que foram.

 

Nesse caso, a Norton Aircraft está a mentir?

 

Estão a fazer o que sempre fazem. Aparecem com uma qualquer explicação complicada que esconde o verdadeiro problema.

 

Uma explicação complicada... repetiu Marty. Não é verdade que os aviões são complicados?

 

Não, neste caso. O acidente foi o resultado da incapacidade para solucionar uma falha de concepção que já existe há muito tempo.

 

Está seguro a esse respeito.

 

Sim.

 

Como é que pode ter a certeza? O senhor é engenheiro?

 

Não.

 

Tem algum curso relacionado com a aeronáutica?

 

Não.

 

Que curso tirou, na universidade?

 

Oh, isso já foi há muito tempo...

 

Não terá sido música, Mister Barker? Não é bacharel em música?

 

Bom, sim, mas...

 

Jennifer observava o ataque de Marty com sentimentos mistos. Era sempre divertido ver um entrevistado a contorcer-se, e as audiências gostavam de ver os chamados especialistas a serem reduzidos às suas dimensões reais. Contudo, o ataque de Marty poderia dar cabo de toda a peça. Se Marty destruísse a credibilidade de Barker...

 

É claro que, pensou, podia rodear o assunto. Não precisava de utilizar aquela entrevista.

 

Um bacharel em música repetiu Marty, num tom muito razoável. Mister Barker, pensa que isso o qualifica para ser juiz de aviões?

 

Não por si só, mas...

 

Tem outros estudos?

 

Não.

 

Tem qualquer outra espécie de treino científico ou de engenharia?

 

Bom, trabalhei para a FAA... respondeu Barker, puxando pelo colarinho.

 

A FAA deu-lhe algum treino científico ou de engenharia? Ensinaram-lhe, por exemplo... dinâmica de fluidos?

 

Não.

 

Aerodinâmica?

 

Bem, tenho muita experiência...

 

Não duvido... mas terá algum treino formal em aerodinâmica, cálculo, metalurgia, análise estrutural... ou em qualquer dos outros campos envolvidos no fabrico de um avião?

 

Formalmente... não.

 

E informalmente?

 

Oh, sem dúvida, tenho a experiência de toda uma vida.

 

Perfeito. Isso é óptimo. Reparei nos livros que se encontram por trás de si e em cima da sua secretária. Reardon inclinou-se para a frente e tocou num dos livros que se encontravam abertos. Este aqui por exemplo. Chama-se Métodos Avançados de Integridade Estrutural para a Durabilidade de Estruturas Aeronáuticas e Tolerância aos Danos. É um assunto muito hermético. Compreende este livro?

 

Sim, na sua maior parte.

 

Por exemplo... Marty apontou para a página aberta e virou-a para a poder ler. Aqui, na página oitocentos e sete, diz: "Leevers e Radon introduziram uma biaxialidade do parâmetro B que relaciona a magnitude da tensão T tal como na equação cinco." Está a ver?

 

Sim retorquiu Barker, engolindo em seco.

 

O que é a "biaxialidade do parâmetro B"?

 

Hum, bom, é difícil de explicar em poucas palavras...

 

Quem são Leevers e Radon? insistiu Marty, mudando de tema.

 

Dois investigadores nesse campo.

 

O senhor conhece-os?

 

Não pessoalmente.

 

Mas está familiarizado com o seu trabalho...

 

Conheço-os de nome.

 

Sabe alguma coisa a respeito deles?

 

Não. Pessoalmente, não.

 

E são investigadores importantes neste campo?

 

Já disse que não sei. Barker voltou a puxar pelo colarinho.

 

Jennifer compreendeu que tinha de acabar com aquilo. Marty era como um cão raivoso, num ataque de rotina, rosnando ante o cheiro do medo. Jennifer não poderia usar nenhum daquele material. O facto mais significativo era o de que Barker estava envolvido numa cruzada havia anos, era conhecido e estava empenhado na luta. De qualquer modo, Jennifer já tinha a sua explicação a respeito dos slats, gravada no dia anterior, bem como algumas respostas mais suaves a perguntas que ela própria fizera. Deu uma pancadinha no ombro de Marty.

 

Estamos com pouco tempo disse.

 

Marty reagiu imediatamente, sinal de que estava aborrecido. Levantou-se.

 

Desculpe, Mister Barker disse Marty, mas temos de terminar. Agradecemos-lhe o tempo que nos dispensou. Foi muito útil.

 

Barker parecia em choque e balbuciou qualquer coisa. A rapariga da maquilhagem aproximou-se dele:

 

Vou ajudá-lo a tirar a maquilhagem...

 

Marty Reardon virou-se para Jennifer e perguntou, num tom baixo:

 

Que raio de porcaria estás a fazer?

 

Marty retorquiu Jennifer, falando no mesmo tom, a gravação da CNN é dinamite. Â história é dinamite. O público já tem medo de entrar num avião... e vamos atiçar ainda mais a controvérsia. Estamos a realizar um serviço público.

 

Mas não com este palhaço afirmou Reardon. Não passa de um fantoche de um advogado... e só serve para ajudar a resolver casos fora dos tribunais. Nem sequer sabe de que está a falar.

 

Marty, quer gostes do tipo, quer não, este avião tem uma longa história de problemas técnicos e a gravação é fabulosa...

 

Pois é, mas já toda a gente a viu retorquiu Reardon. E onde é que está a historial Será melhor que me mostres qualquer coisa, Jennifer.

 

Assim farei. Marty.

 

Acho bem que sim...

 

O resto da frase ficou por dizer, mas tinha mais ou menos este significado: telefonarei ao Dick Shenk para acabar com isto."

 

             PANORÂMICA DO AEROPORTO

             11:15

 

Para que as imagens fossem diferentes, filmaram o tipo da FAA na rua, tendo o aeroporto como fundo. O homem era magricela e usava óculos. Pestanejava rapidamente, por causa do sol. Tinha um aspecto fraco e mortiço. Era de tal modo uma não entidade que Jennifer nem conseguia recordar-se do nome dele. Por isso mesmo, estava certa de que tudo correria bem.

 

Infelizmente, o homem foi devastador para a reputação de Barker.

 

A FAA lida com uma grande quantidade de informações sensíveis. Algumas são patenteadas. Outras são técnicas. Outras, ainda, são sensíveis para a indústria em geral ou para as empresas. Como a honestidade de todas as partes envolvidas é crítica para as nossas actividades, temos regras muito estritas no que se refere à disseminação dessas informações. Mister Barker violou essas regras. Parece ter um grande desejo de se ver nas televisões e de ler o seu nome nos jornais.

 

Ele diz que não é verdade replicou Marty. Afirma que a FAA não cumpria as suas obrigações e que se viu na obrigação de falar.

 

Com advogados?

 

Advogados? repetiu Marty.

 

É verdade declarou o tipo da FAA. A maior parte das suas fugas de informação foi para advogados que tinham levantado processos contra transportadoras. Passou-lhes informações confidenciais, quase sempre incompletas, a respeito de investigações em curso, o que é ilegal.

 

Processaram-no?

 

Não pudemos fazê-lo. Não temos autoridade para isso. No entanto, ficou claro que estava a ser pago por advogados, por baixo da mesa, para lhes passar as informações. Entregámos o caso ao Departamento da Justiça, que o investigou. Ficámos muito desapontados. Pensávamos que o homem deveria ir para a cadeia... na companhia dos advogados.

 

E porque foi que isso não aconteceu?

 

Terá de perguntar à Justiça. Contudo, o Departamento da Justiça é constituído por advogados... que não gostam de mandar outros colegas para a prisão. É uma espécie de cortesia profissional. O Barker safou-se porque trabalhava para advogados. Tudo o que ele diz tem como finalidade o apoio ou a incitação a mais um frívolo processo em tribunal. Não se interessa, minimamente, pela segurança dos transportes aéreos. Se assim fosse, ainda estaria a trabalhar connosco, tentando servir o público, em vez de tentar ganhar muito dinheiro.

 

Como sabe insistiu Marty, a FAA está actualmente a ser atacada...

 

Jennifer concluiu que era melhor acabar com aquilo. Não valia a pena continuar. Já se decidira a não aproveitar a maior parte da entrevista. Usaria apenas aquela parte em que o tipo da FAA afirmava que Barker desejava publicidade. Era o comentário menos prejudicial e fornecia um certo equilíbrio à peça.

 

Tudo porque precisava de Barker.

 

Marty, desculpa, mas ainda temos de atravessar a cidade. Marty acenou uma confirmação, agradeceu imediatamente ao tipo

 

mais uma indicação de que estava aborrecido, assinou um autógrafo para o filho do homem da FAA e trepou para a limusina, à frente de Jennifer.

 

Jesus! exclamou, quando a limusina arrancou.

 

Acenou ao tipo da FAA pela janela e sorriu para ele. A seguir recostou-se no assento.

 

Não percebo, Jennifer declarou, num tom de mau agoiro. Corrige-me, se estiver enganado, mas não tens uma história. Tudo o que tens são tretas de advogados e dos seus fantoches. Não há aqui nada de substancial.

 

Temos uma história contrapôs Jennifer. Vais ver acrescentou, num tom que tentava ser confiante.

 

Marty resmungou infeliz.

 

O carro acelerou e dirigiu-se para o Norte, para Valley, a caminho da Norton Aircraft.

 

             LABORATÓRIO DE VÍDEO

 

A gravação vai começar disse Harmon, tamborilando com as pontas dos dedos na consola.

 

Casey ajeitou o corpo na cadeira, sentindo pontadas de dor. Faltavam poucas horas para a entrevista e ainda não decidira como iria enfrentá-la.

 

As imagens surgiram no monitor.

 

Harmon triplicara os frames, o que fazia com que as imagens passassem numa espécie de movimentos em câmara lenta, mas com pequenos solavancos. A alteração fizera com que as sequências parecessem ainda mais horríveis. Observou-a em silêncio, vendo corpos a trambolhar, a câmara a girar e a cair, acabando por parar junto à porta da cabina de pilotagem.

 

Volta para trás pediu.

 

Até onde?

 

Não muito, e tão devagar quanto possível.

 

Um frame de cada vez?

 

Sim.

 

As imagens recuaram. A alcatifa cinzenta. Manchas, quando a câmara se afastou da porta. O brilho da luz vindo da porta da cabina. O clarão das janelas da cabina, os ombros dos dois pilotos, de cada lado da consola central, com o comandante à esquerda e o co-piloto à direita.

 

O comandante a estender a mão para a consola. Pára!

 

Olhou para a imagem. O comandante de braço estendido, sem boné, o rosto do co-piloto virado para a frente...

 

O comandante com o braço estendido.

 

Casey fez rolar a cadeira para mais perto da consola e espreitou para o monitor. Parou por instantes, aproximou o rosto um pouco mais e estudou as linhas no ecrã.

 

Ali está, pensou. Ao vivo e a cores.

 

Porém, que podia ela fazer com aquilo?

 

Nada, concluiu. Não havia nada que pudesse fazer. Tinha a informação mas não a podia tornar pública sem perder o emprego. De qualquer modo, era muito provável que acabasse por perdê-lo. Marder e Edgarton tinham-lhe montado a armadilha da imprensa. Quer mentisse, tal como Marder desejava, quer contasse a verdade, estava metida num sarilho. Não havia saída.

 

A única solução em que conseguia pensar era a de não dar a entrevista... mas tinha de o fazer. Fora apanhada entre a espada e a parede.

 

Muito bem disse, já vi o suficiente.

 

Que queres que faça?

 

Faz outra cópia dessa fita.

 

Harmon carregou num botão e girou a cadeira, com uma expressão incomodada.

 

Casey... começou. Acho que tenho de te dizer uma coisa. As pessoas que trabalham aqui no laboratório viram a gravação e ficaram muito transtornadas.

 

Não me custa a acreditar respondeu Casey.

 

Todas elas viram aquele fulano da televisão, o tal advogado que diz que vocês andam a ocultar as causas reais do acidente...

 

Hum, hum...

 

E há uma pessoa em particular, uma mulher da recepção, que pensa que deveríamos entregar a gravação às autoridades ou às estações de televisão. É uma história semelhante à do Rodney King. Temos uma bomba nas mãos... e há vidas em perigo.

 

Casey suspirou. Não estava surpreendida, mas surgia-lhe um novo problema e tinha de o enfrentar.

 

Já o fizeram? perguntou. É o que estás a tentar dizer-me?

 

Não, ainda ninguém o fez.

 

Mas as pessoas estão preocupadas.

 

Sim.

 

E tu! O que pensas do assunto?

 

Bem... para dizer a verdade, também me sinto incomodado assentiu Harmon. Trabalhas para a empresa, tens as tuas lealdades. É incompreensível. Mas se há na verdade algo de errado nesse avião e as pessoas podem morrer por causa disso...

 

A mente de Casey trabalhava novamente muito depressa, analisando a situação. Não podia saber quantas cópias daquela gravação já deveriam ter sido feitas. Agora, já não tinha maneira de conter ou controlar os acontecimentos. Estava farta de tantas intrigas, com a transportadora, com os engenheiros, com o sindicato, com Marder, com Richman. Demasiados conflitos, e fora apanhada no meio deles, tentando conciliá-los.

 

E agora... aquele problema com o maldito laboratório de vídeo!

 

Como se chama a mulher da recepção? perguntou.

 

Christine Barren.

 

Ela sabe que a vossa empresa assinou um contrato que vos obriga a manter o segredo?

 

Sim, mas... creio que pensa que a sua consciência se sobrepõe.

 

Preciso de fazer um telefonema anunciou Casey, numa linha privada.

 

Harmon levou-a a um gabinete que não estava a ser utilizado. Casey fez dois telefonemas. Quando reapareceu, dirigiu-se a Harmon:

 

Essa gravação é propriedade da Norton. Não deve ser entregue a ninguém sem a nossa autorização, e vocês assinaram um contrato connosco, que vos impõe o segredo.

 

A tua consciência não te incomoda? perguntou Harmon.

 

Não retorquiu Casey. Não me incomoda. Estamos a investigar o caso, iremos até ao fim... e tu estás a falar de coisas que não entendes. Se divulgares esta gravação, estarás a ajudar um advogado aldrabão a processar-nos, em busca de uma indemnização. Assinaste um contrato connosco. Se o violares... diz adeus ao negócio. Não te esqueças disso.

 

Casey pegou na sua cópia da gravação e saiu.

 

               NORTON DIVISÃO DE QUALIDADE

               11:50

 

Foi sentindo-se frustrada e zangada que Casey Singleton entrou de roldão no seu gabinete da QA. Estava uma mulher idosa à sua espera. Apresentou-se como sendo Martha Gershon, especialista em treinar executivos para enfrentar os meios de comunicação. Em pessoa, parecia uma avozinha simpática. Tinha os cabelos cinzentos, presos num rolo, e um vestido bege subido até ao pescoço.

 

Lamento disse Casey, mas estou ocupada. Sei que o Marder lhe pediu para falar comigo, mas...

 

Oh, compreendo que tenha muito que fazer declarou Martha Gershon. A sua voz era calma e tranquilizadora. Não tem tempo para mim, em especial hoje. Por outro lado, também não me quer ver, pois não? Não me parece que goste do John Marder.

 

Casey deteve-se.

 

Voltou a olhar para aquela mulher agradável e sorridente, de pé no meio do seu gabinete.

 

Deve sentir que foi manipulada por Mister Marder. Compreendo perfeitamente. Agora que o conheci, devo dizer que não me deixou com uma imagem de grande integridade. Acha que a tem?

 

Não respondeu Casey.

 

Por outro lado, parece-me que também não gosta muito de mulheres prosseguiu Gershon, e você desconfia que ele arranjou maneira de a pôr em frente das câmaras de televisão, na esperança de a ver falhar. Detestaria que isso acontecesse...

 

Sente-se, por favor pediu Casey, olhando-a com atenção.

 

Obrigada, minha querida. A mulher sentou-se no sofá, com o vestido bege muito bem arrumado à sua volta. Pousou as mãos sobre o colo. Permanecia perfeitamente calma. Não demorarei acrescentou, mas talvez fique mais confortável se também se sentar.

 

Casey sentou-se.

 

Gostaria de lhe recordar algumas pequenas coisas... disse Martha Gershon antes da sua entrevista. Como sabe, vai conversar com o Marthy Reardon.

 

Não, não sabia.

 

Pois é verdade... o que significa que terá de lidar com o seu característico estilo de entrevistador, o que tornará as coisas mais fáceis.

 

Espero que tenha razão.

 

Tenho, sim, minha querida. Já se sente confortável?

 

Penso que sim.

 

Gostaria de a ver bem sentada nessa cadeira. Isso mesmo. Chegue-se para trás. Quando se chega para a frente parece demasiado ansiosa e o seu corpo fica tenso. Recoste-se, para poder pensar no que lhe dizem, e descontraia-se. Poderá querer fazê-lo durante a entrevista. Refiro-me ao recostar-se, e a descontrair-se, é claro.

 

Muito bem respondeu Casey, recostando-se.

 

Está descontraída?

 

Penso que sim.

 

Costuma manter as mãos assim tão apertadas, em cima da mesa, tal como estão agora? Gostaria de ver o que acontece se as separar. Isso. Pouse-as na secretária, tal como as tem agora. Se juntar as mãos, fica mais tensa. É melhor mostrar-se mais aberta. Muito bem. Sente-se natural?

 

Acho que sim.

 

Neste momento, deve estar sob uma grande tensão afirmou a mulher, com uma risadinha de compreensão. No entanto, conheço Martin Reardon desde os tempos em que era um jovem jornalista. O Cronkite detestava-o. Pensava que o Martin era pedante e insubstancial. Receio bem que essa opinião se tenha demonstrado verdadeira. O Martin é uma pessoa cheia de truques mas sem nenhuma substância. Não irá causar-lhe problemas, Katherine. Nunca com uma mulher com a sua inteligência. Não terá qualquer dificuldade.

 

Está a fazer com que me sinta maravilhosamente bem comentou Casey.

 

Estou apenas a dizer-lhe como as coisas são retorquiu Martha, com ligeireza. Quando estiver com o Reardon, o mais importante é não se esquecer que sabe mais do que ele. Trabalha neste ramo há anos, O Reardon é, ligeiramente, um recém-chegado. Provavelmente voou para aqui hoje de manhã e ir-se-á embora logo à noite. É brilhante, fácil e aprende depressa... mas não tem a sua profundidade de conhecimento, Recorde-se sempre disso: sabe mais do que ele.

 

Está bem concordou Casey.

 

Bom, como o Reardon quase não possui informações ao seu dispor, a sua principal habilidade consiste na manipulação das informações que você lhe der. O Reardon tem a reputação de ser impiedoso, mas se observar o seu comportamento verá que, no fundo, se limita a utilizar um único truque. Vou dizer-lhe qual é. Leva-a a concordar com toda uma série de afirmações, e põe-a a acenar, que sim, que é isso mesmo... e de repente atira-lhe com algo de completamente diferente. O Reardon fez isto durante toda a sua vida. É espantoso que as pessoas ainda não se tenham apercebido disso.

 

"Vai dizer-lhe: É uma mulher. Sim. Vive na Califórnia. Sim. Tem um bom emprego. Sim. Goza a vida. Sim. Então porque roubou o dinheiro? Como até aí esteve sempre a acenar que sim, de repente sente-se confusa, desequilibrada... e ele consegue uma reacção que poderá vir a utilizar,

 

"Recorde-se, tudo o que o Reardon pretende é uma reacção a essa frase. Se não a conseguir, voltará para trás e fará a mesma pergunta de outra maneira. Poderá voltar repentinamente ao mesmo tema. Se o vir a insistir num determinado tópico, ficará a saber que ele ainda não conseguiu o que pretende.

 

Está bem.

 

O Marty tem outro truque. Fará uma afirmação provocadora, seguida por uma pausa... e fica à espera que seja você a preencher o vácuo. Dirá: Casey, você fabrica aviões, pelo que deve saber que os aviões são pouco seguros... e fica à espera da sua resposta. No entanto, repare que não lhe foi feita uma pergunta.

 

Casey acenou.

 

Ou então, é capaz de repetir o que você lhe disse, mas com um tom de descrença.

 

Compreendo afirmou Casey.

 

Ah, compreende? disse Martha, surpreendida, levantando as sobrancelhas. Era uma boa imitação de Reardon. Está a ver o que quero dizer? Será incitada a defender-se, mas não precisa de o fazer. Se o Martin não lhe fizer uma pergunta, não precisa de responder.

 

Casey voltou a acenar. Não precisava de responder.

 

Muito bem comentou a mulher, com um sorriso. Não vai ter problemas. Recorde-se de que pode levar todo o tempo de que precisar. Como a entrevista é gravada, podem eliminar as pausas. Se não entender uma pergunta, peça-lhe que a clarifique. O Martin é muito bom a fazer perguntas vagas que provocam respostas específicas. Recorde-se: ele não sabe, de facto, do que está a falar. Veio até aqui só para fazer um trabalho.

 

Compreendo.

 

Se se sentir bem a olhar para ele, pois faça-o. Se não se sentir bem, escolha um ponto junto à cabeça do Martin, a esquina de uma cadeira, ou um quadro na parede por trás dele. Foque os seus olhos nesse ponto. A câmara não perceberá que não está a olhar para o entrevistador. Faça o que for preciso para conservar a concentração.

 

Casey experimentou, olhando para lá da orelha de Martha Gershon.

 

É isso mesmo. Vai correr tudo bem. Só quero dizer-lhe mais uma coisa, Katherine. Trabalha num negócio complexo. Se tentar explicar essa complexidade ao Martin, ficará frustrada. Sentirá que ele não está interessado, e é provável que a interrompa. Na verdade, não está nada interessado. Há muita gente a queixar-se de que a televisão não tem substância... mas é essa a sua natureza. A televisão não tem nada a ver com informação. A informação é activa e cativante. A televisão é passiva. A informação é desinteressada e objectiva. A televisão é emocional. É entretenimento. Seja o que for que ele diga, seja qual for o modo como agir, o Martin não está interessado em si, nem na empresa, nem em aviões. Foi pago para exercer o seu único talento: provocar as pessoas, levá-las a explosões emocionais, fazê-las perder as estribeiras, de modo a que digam qualquer coisa de chocante. Não está nada interessado em aviões. O que pretende é um momento mediático. Se compreender isto, poderá lidar com ele.

 

Martha Gershon sorriu o seu sorriso de avozinha.

 

Tenho a certeza de que irá correr tudo bem, Casey.

 

Vai lá estar? Na entrevista?

 

Oh, não respondeu, sempre a sorrir. O Martin e eu já nos conhecemos há muito... e não gostamos um do outro. Nas raras ocasiões em que nos encontramos no mesmo sítio... temos tendência para cuspir para o lado.

 

                 ADMINISTRAÇÃO

                 13:00

 

John Marder encontrava-se sentado à secretária, preparando documentos que não eram mais do que adereços para Casey utilizar durante a entrevista. Queria-os completos e por ordem. Em primeiro lugar, os registos da peça falsificada no motor número dois. Descobrir essa peça falsificada fora um golpe de sorte. Kenny Burne, apesar de todas as suas fanfarronadas, sempre conseguira alguma coisa de jeito. Tratava-se de uma grande peça, cuja importância era óbvia para todos. Para além disso, não existiam dúvidas quanto a ser falsa. A Pratt Whitney iria berrar de fúria quando a visse: a sua famosa águia fora gravada ao contrário. Mais importante ainda era o facto de a existência de uma peça falsificada poder impelir toda a história para uma direcção completamente diferente, diminuindo a pressão sobre...

 

O seu telefone privado tocou.

 

Levantou o auscultador e disse:

 

Marder.

 

Ouviu os sopros e estalidos de um telefone de satélite. Era Hal Edgarton, que seguia a caminho de Hong Kong e lhe telefonava de bordo do jacto da empresa.

 

Já aconteceu? perguntou.

 

Ainda não, Hal. Falta uma hora.

 

Telefona-me logo que isso terminar.

 

Assim farei, Hal.

 

É melhor que me dês boas notícias concluiu Edgarton, desligando.

 

             BURBANK

             13:15

 

Jennifer estava enervada. Tinha de deixar Marty sozinho durante um bocado... e nunca era boa ideia deixá-lo sozinho durante as filmagens. Era um homem irrequieto e cheio de energia, que precisava de atenções constantes. Tinha de haver sempre alguém que lhe segurasse na mão e o apaparicasse. Marty era como todos os outros talentos que apareciam nos ecrãs do Newsline: outrora podiam ter sido jornalistas, mas agora eram actores e possuíam todos os traços destes. Eram egoístas, fúteis e exigentes. Bem vistas as coisas, eram verdadeiras pestes.

 

Também tinha a consciência de que Marty, não obstante as suas objecções à história sobre a Norton, só estava preocupado com as aparências. O homem sabia que a peça teria de ser montada muito à pressa e que era "suja". Por isso, receava que, quando estivesse pronta, tivesse de dar a cara por uma história mal acabada. Tinha medo que os seus amigos troçassem da peça durante o almoço, no Four Seasons. Não se ralava com a responsabilidade jornalística, mas apenas com as aparências.

 

A prova, Jennifer sabia-o, estava nas mãos dela. Afastara-se apenas por vinte minutos e agora, que já estava de volta, via Marty a andar de um lado para o outro, preocupado e inquieto.

 

Uma atitude típica.

 

Jennifer saiu do carro. Marty foi direito a ela e ia começar a lamentar-se, ia começar a dizer que a história deveria ser abandonada, que telefonaria ao Dick, que aquilo não daria resultado... quando Jennifer o interrompeu.

 

Marty, dá uma olhadela a isto.

 

Pegou na cassete de vídeo que fora buscar e entregou-a ao operador de câmara. O homem meteu a cassete na câmara enquanto Jennifer se dirigia ao pequeno monitor pousado sobre a relva.

 

O que é? perguntou Marty, parado junto ao monitor.

 

Observa.

 

A gravação começou a correr. Principiava com a imagem de um bebé ao colo da mãe. Gu-gu... ga-ga... O bebé chupava os dedos dos pés.

 

Marty olhou para Jennifer, erguendo as sobrancelhas.

 

Jennifer não fez comentários.

 

A gravação prosseguiu.

 

Os pormenores eram difíceis de ver por causa do sol que batia no monitor, mas o que se via era suficiente. Corpos aos trambolhões pelo ar.

 

Marty conteve a respiração, excitado.

 

Onde arranjaste isto?

 

Foi-me entregue por uma empregada com problemas de consciência.

 

Uma empregada de quem?

 

De um laboratório de vídeo que trabalha para a Norton. Trata-se de uma boa cidadã que pensou que a gravação deveria ser divulgada. Telefonou-me.

 

É uma gravação da Norton?

 

Encontraram-na no avião.

 

Incrível disse Marty, continuando a olhar para o monitor. Incrível... Corpos aos trambolhões e a câmara aos saltos.

 

Não é fabulosa?

 

A gravação continuava. Era boa. Era inteiramente boa e até melhor do que a da CNN. Mais dinâmica, mais radical. Como a câmara se soltara e andara a saltitar de um lado para o outro, transmitia melhor o que se passara durante o voo.

 

Quem mais tem esta gravação? inquiriu Marty.

 

Ninguém.

 

Essa empregada pode...

 

Não garantiu Jennifer. Prometi pagar-lhe todas as despesas legais que possa vir a ter desde que não entregasse a gravação a mais ninguém. Não o fará.

 

Portanto, temos o exclusivo...

 

Exacto.

 

Uma fita gravada no interior do avião da Norton...

 

Exacto.

 

Nesse caso... estamos perante uma história fabulosa declarou Marty.

 

"Regressou do meio dos mortos!", pensou Jennifer, vendo Marty dirigir-se para a vedação, começando a preparar-se para gravar. A história estava salva!

 

Sabia que podia contar com Marty para acabar com a conversa fiada, Claro que aquela nova gravação não acrescentava nada de novo às informações de que já dispunham, mas Marty era um profissional. Compreendia que as histórias emitidas pela televisão viviam ou morriam graças às imagens. Se estas funcionassem junto dos espectadores, nada mais importava.

 

E a gravação que ali tinham era o máximo.

 

Por isso, agora, Marty estava alegre e bem-disposto, andando de um lado para o outro e olhando para a Norton através da vedação. Para Marty, a situação era perfeita: tinha uma gravação proveniente do interior da empresa, com tudo o que a mesma significava em termos de ocultação de informações. Era algo que podia aproveitar para espremer...

 

Enquanto a rapariga da maquilhagem lhe retocava o pescoço, Marty disse:

 

Talvez fosse melhor enviar essa gravação ao Dick, para que a possa utilizar...

 

Já o fiz retorquiu Jennifer, apontando para um dos carros, que se dirigia para a estrada.

 

Dick Shenk teria a gravação nas mãos dentro de uma hora... e daria pulos quando a visse.

 

Claro que iria utilizá-la. Aproveitaria pequenos segmentos para anunciar a emissão de sábado. "Novo e chocante filme sobre o desastre da Norton! Terríveis imagens da morte nos céus, num exclusivo do Newsline, no sábado, às dez!"

 

Emitiriam o anúncio de meia em meia hora até ao começo do programa. No sábado à noite, já todo o país estaria à espera.

 

Marty fez os seus comentários para as câmaras, e fê-los bem. Agora, estavam de novo no carro, dirigindo-se ao portão da Norton e tinham alguns minutos de avanço em relação ao horário previsto.

 

Quem é o contacto, na empresa? perguntou Marty.

 

Uma tal Singleton.

 

Uma mulher? Marty franziu as sobrancelhas. Como é isso?

 

É uma vice-presidente, já no fim da casa dos trinta e faz parte da equipa de investigação.

 

Passa-me todos esses apontamentos pediu Marty, estendendo a mão. Começou a lê-los ainda no carro. Compreendes o que temos de fazer, Jennifer? Temos de alterar a sequência da história. Aquela gravação dura quatro minutos, ou quatro e meio. Algumas das cenas podem ser mostradas por duas vezes. Era o que eu faria. Por isso, não irás ter muito tempo para o Barker e para os outros. No fim, a gravação e o porta-voz da empresa vão formar o núcleo da peça. Não há por onde escolher. Temos de nos atirar a esta mulher.

 

Jennifer não respondeu. Esperou, enquanto Marty folheava os apontamentos.

 

Eh, um momento... exclamou Marty, olhando para um dos documentos. Estás a brincar comigo?

 

Não respondeu Jennifer.

 

Isto é dinamite! declarou Marty. Onde arranjaste este material?

 

A Norton enviou-mo, há três dias, por engano, junto com outras informações...

 

Foi um engano muito infeliz... em particular para Miss Singleton.

 

             SALA DE REUNIÕES

             14:15

 

Casey atravessava a fábrica, a caminho do AAI, quando o seu telefone celular tocou. Era Steve Nieto, o representante da empresa em Vancouver.

 

Más notícias disse o homem. Ontem, fui ao hospital e descobri que o piloto morreu com um edema cerebral. Como o Mike Lee não estava presente, pediram-me para identificar o corpo e...

 

Steve interrompeu-o Casey, não digas mais nada pelo telefone. Envia-me um telex...

 

Está bem.

 

... mas não para aqui. Manda-o para FT, em Yuma.

 

A sério?

 

Sim.

 

Está bem.

 

Desligou e entrou no Hangar 4, onde as fitas cor de laranja ainda se encontravam estendidas no chão. Queria falar com Ringer a respeito do boné de piloto que haviam encontrado. Tratava-se de um pormenor crítico para a história, tal como Casey começava a aperceber-se.

 

Teve uma ideia súbita e ligou para Norma.

 

Escuta, creio que sei de onde veio aquele fax com a página da revista...

 

Faz alguma diferença?

 

Sim. Telefona para o Hospital Centinela, no aeroporto. Pede para falar com uma hospedeira chamada Kay Liang. Depois, pergunta-lhe isto... É melhor tomares nota...

 

Conversou com Norma durante vários minutos e desligou. O telefone celular tocou imediatamente.

 

Casey Singleton.

 

Por amor de Deus, onde é que tens andado? gritou Marder,

 

Estou no Hangar Quatro, a tentar...

 

Devias estar aqui para a entrevista! berrou Marder.

- A entrevista é às quatro horas.

 

Adiantaram-na... e já aqui estão.

 

A entrevista é... agora!

 

Sim, estão todos aqui, a montar o equipamento e à tua espera. Despacha-te, Casey!

 

Foi assim que se viu na Sala de Reuniões, sentada numa cadeira coma mulher da maquilhagem a empoar-lhe a cara. A sala estava cheia de gente, desde homens a instalar grandes projectores sobre tripés, a agrafar folhas de cartão ao tecto, a colocar microfones em cima da mesa e até nas paredes. Estavam ali duas equipas de filmagem, cada uma delas com suas câmaras, no total, apontando em direcções diferentes, e tinham colocado cadeiras em lados opostos da mesa, uma para ela e outra para o entrevistador.

 

Casey pensou que não era próprio estarem a prender cartões ao tecto e não sabia se Marder os autorizara a fazê-lo. Era uma falta de respeito por aquela sala, onde trabalhavam, discutiam e se esforçavam por compreender o que se tinha passado com os aviões, em pleno voo. Agora, estavam a transformá-la num cenário para um programa de televisão, e isso não lhe agradava.

 

Casey fora apanhada desprevenida e acontecera tudo demasiado depressa. A mulher da maquilhagem estava sempre a pedir-lhe para manter a cabeça quieta, para fechar os olhos e para os abrir. Eileen, a secretária de Marder, aproximou-se e meteu-lhe nas mãos uma pasta de cartolina, dizendo:

 

O John quis ter a certeza de que recebias isto. Casey tentou olhar para a pasta.

 

Por favor disse a mulher da maquilhagem, preciso que olhe para cima por um minuto. Apenas um minuto. Depois, já poderá sair daqui.

 

Jennifer Malone, a produtora, apareceu junto dela com um grande sorriso de alegria.

 

Então, Miss Singleton, que tal correm as coisas?

 

Bem, obrigada respondeu Casey, sempre a olhar para cima por causa da maquilhagem.

 

Barbara disse Malone, falando com a mulher da maquilhagem, certifica-te de que tratas de... hum... acrescentou, fazendo um gesto vago na direcção de Casey.

 

Está bem respondeu a mulher.

 

Tratar de quê? inquiriu Casey.

 

Nada, é apenas um retoque explicou a mulher.

 

Vou dar-vos um minuto para terminarem declarou Malone. Por essa altura já o Marty deve estar aqui e passaremos em revista os assuntos que vamos tratar.

 

Está bem.

 

Malone afastou-se. A mulher da maquilhagem, Barbara, continuou a tratar do rosto de Casey.

 

Vou pôr-lhe um pouco de maquilhagem por baixo dos olhos explicou, para não ficar com um ar tão cansado.

 

Miss Singleton?

 

Casey reconheceu a voz imediatamente. Ouvira-a durante anos. A mulher da maquilhagem deu um salto para trás e Casey viu Marty Reardon, de pé na sua frente. Estava de gravata mas em mangas de camisa, e tinha um lenço de papel em volta do colarinho. Estendeu-lhe a mão.

 

Sou Marty Reardon. Tenho muito prazer em conhecê-la.

 

Olá! retorquiu Casey.

 

Obrigado pela sua ajuda neste assunto prosseguiu Reardon. Tentaremos que seja tão indolor quanto possível.

 

Está bem...

 

Sabe, é claro, que vamos gravar. Por isso, se se enganar, ou lhe acontecer qualquer coisa, não se preocupe. Cortaremos esse bocado. Se pretender refazer uma resposta, não tenha dúvidas e repita-a. Pode dizer tudo o que quiser e como quiser.

 

Está bem.

 

Para começar falaremos do voo da Transpacific, mas também irei tocar nalguns outros assuntos. Algures, ao longo da conversa, falaremos da venda à China. Se houver tempo, também lhe farei perguntas a respeito das reacções do sindicato. No entanto, não aprofundaremos muito esses temas. Estou mais interessado no voo da Transpacific. Faz parte da equipa de investigação?

 

Sim.

 

Muito bem. Tenho tendência para saltitar de tema para tema. Não se preocupe com isso. Estamos aqui para compreendermos a situação o melhor possível.

 

Está bem.

 

Então, vemo-nos daqui a pouco concluiu Reardon. Sorriu e afastou-se.

 

A mulher da maquilhagem voltou a colocar-se na frente de Casey.

 

Olhe para cima pediu. Casey olhou para o tecto. Por baixo de tudo aquilo... disse a mulher é um tipo simpático. Derrete-se todo com os filhos.

 

Casey ouviu Malone gritar:

 

Quanto tempo, rapazes?

 

Cinco minutos respondeu alguém.

 

Som?

 

Estaremos prontos! Só faltam os microfones.

 

A mulher da maquilhagem começou a pôr-lhe pó no pescoço. Casey estremeceu, sentindo pontadas de dor.

 

Sabe disse a maquilhadora, tenho um número para onde pode telefonar.

 

Telefonar? Para quê?

 

É uma boa organização, com boa gente. São quase todos psicólogos e muito discretos. Podem ajudá-la.

 

Ajudar em quê?

 

Olhe para a esquerda, por favor. Ele deve ter-lhe batido com força.

 

Ah! Foi uma queda explicou Casey.

 

Pois é, compreendo. Deixo-lhe o cartão-de-visita, para o caso de mudar de opinião insistiu a mulher, aplicando-lhe o pó. Hum, talvez seja melhor aplicar uma base, para fazer desaparecer este tom azul... Virou-se para a sua caixa, pegou numa esponja com um creme e aplicou-o no pescoço de Casey. Nem imagina as coisas que vejo, neste meu trabalho... e as mulheres negam sempre. Contudo, temos de acabar com a violência doméstica.

 

Vivo sozinha declarou Casey.

 

Eu sei, eu sei continuou a mulher. Os homens contam com o nosso silêncio. Jesus, o meu próprio marido nem sequer quis ir a um conselheiro. Acabei por o largar e trouxe os meus filhos.

 

Não está a compreender...

 

Compreendo que, quando a violência nunca mais acaba, pensamos que nada podemos fazer. Isso faz parte da depressão, da sensação de impotência. Todavia, mais cedo ou mais tarde, precisamos de enfrentar a verdade.

 

Foram interrompidas por Jennifer Malone.

 

O Marty já lhe disse? Vamos tratar principalmente do acidente, e é natural que ele comece por aí. Contudo, também pode referir-se à venda à China e ao sindicato. Não tenha pressa em responder... e não se preocupe se ele mudar constantemente de assunto. Costuma fazê-lo.

 

Olhe para a direita pediu a mulher da maquilhagem, começando a tratar-lhe do outro lado do pescoço. Nesse momento, aproximou-se um homem, que lhe disse:

 

Minha senhora? Posso entregar-lhe isto? Meteu-lhe uma caixa de plástico na mão, com um fio pendurado.

 

O que é? perguntou Casey.

 

Olhe para a direita, por favor disse a mulher da maquilhagem. É o microfone. Espere um momento e ajudo-a a colocá-lo.

 

O telefone celular de Casey tocou, dentro da mala que pousara no chão.

 

Desliguem essa coisa! gritou alguém. Casey procurou o telefone e abriu-o.

 

É o meu explicou.

 

Oh, desculpe...

 

Casey levou o telefone ao ouvido e ouviu a voz de Marder.

 

A Eileen entregou-te a pasta?

 

Sim.

 

Já lhe deste uma vista de olhos?

 

Ainda não.

 

Levante um pouco o queixo pediu a maquilhadora. No telefone, Marder insistia:

 

A pasta documenta tudo aquilo de que falámos. O relatório sobre a peça falsificada, e o resto. Está tudo aí.

 

Hum, hum... Está bem.

 

Só queria ter a certeza de que estás preparada.

 

Sim, estou preparada confirmou Casey.

 

Óptimo, estamos a contar contigo.

 

Casey desligou e carregou no botão que impedia o telefone de receber mais chamadas.

 

O queixo para cima pediu a mulher da maquilhagem. Isso mesmo.

 

Terminada a maquilhagem, Casey levantou-se e a mulher escovou-lhe os ombros e colocou-lhe laca no cabelo. A seguir levou Casey para a casa de banho e mostrou-lhe como colocar o fio do microfone por dentro da blusa e por baixo do soutien, prendendo-o à lapela. O fio continuava por baixo da saia e ia ligar à caixa de plástico. A mulher fixou a caixa na cintura da saia de Casey e ligou o microfone.

 

Lembre-se... disse que a partir de agora já podem ouvir tudo o que disser.

 

Está bem respondeu Casey, ajustando as roupas. Sentia a caixa de plástico a morder-lhe a cintura e o fio contra a pele do peito, o que lhe dava uma sensação de aperto e de desconforto.

 

A mulher da maquilhagem conduziu-a de volta à sala de reuniões, segurando-a por um cotovelo. Casey sentia-se como um gladiador a ser conduzido à arena.

 

As luzes brilhavam no interior da sala de reuniões e fazia muito calor. Levaram-na para o seu lugar à mesa, disseram-lhe para não tropeçar nos cabos das câmaras e ajudaram-na a sentar-se. Tinha duas câmaras atrás das costas e duas outras pela frente. Por trás dela, um operador de câmara pediu-lhe para deslocar a cadeira um pouco para a direita. Casey assim fez. Aproximou-se um homem que lhe ajustou o microfone, explicando que se ouviam os ruídos provocados pela roupa.

 

Do outro lado da mesa, Reardon colocava o seu próprio microfone, sem qualquer ajuda, conversando com o operador de câmara. A seguir instalou-se na cadeira. Parecia descontraído e casual. Enfrentou-a e sorriu.

 

Não tem de se preocupar disse-lhe. Isto não custa nada.

 

Jennifer Malone declarou:

 

Vamos, rapazes, já estão instalados e faz calor aqui dentro.

 

Câmara Um, pronta.

 

Câmara Dois, pronta.

 

Som, pronto.

 

Luzes! ordenou Malone.

 

Casey pensara que as luzes já se encontravam acesas mas, de súbito, brilhou sobre ela uma intensa luz branca, muito dura, vinda de todas as direcções. Sentiu-se como se se encontrasse no meio de uma fornalha ardente.

Verificação de câmaras - disse Jennifer.

 

- Tudo bem.

 

- Aqui também.

 

- Muito bem, vamos a isto. Comecem a gravar. A entrevista começara.

 

             SALA DE REUNIÕES

             14:33

 

Marty Reardon fitou-a nos olhos, sorriu e fez um gesto para designar a sala.

 

Então disse, é aqui que tudo acontece. Casey acenou uma confirmação.

 

É nesta sala que os especialistas da Norton se reúnem para analisar os acidentes com os aviões.

 

Sim.

 

E a senhora faz parte dessa equipa.

 

Sim.

 

É a vice-presidente da Norton encarregue das questões de qualidade.

 

Sim.

 

Está na companhia há cinco anos.

 

Sim.

 

E dizem que esta é a "Sala de Guerra", não é verdade?

 

Sim, há quem lhe chame isso.

 

Então, porquê?

 

Casey fez uma pausa. Não conseguia descobrir, sem acabar por dizer qualquer coisa que pudesse ser tirada do seu contexto, uma maneira fácil de descrever as discussões que tinham lugar naquela sala, as manifestações de temperamento, as explosões que acompanhavam todas as tentativas para esclarecer os incidentes com os aviões.

 

É apenas uma alcunha.

 

A Sala de Guerra... repetiu Reardon. Mapas, planos de batalha, pressão. Tensões quando sob ataque. Neste momento, a sua empresa, a Norton Aircraft, está sob ataque, não é verdade?

 

Não entendo muito bem ao que se refere retorquiu Casey, levando Reardon a erguer as sobrancelhas.

 

A FÁ A, a autoridade aeronáutica europeia, recusa-se a certificar um dos vossos aviões, o N-Vinte e Dois, argumentando que não é seguro.

 

Na verdade, o avião já foi certificado, mas...

 

E estão prestes a vender cinquenta aviões à China. Contudo, agora, consta que os Chineses também estão preocupados com a segurança do avião.

 

Casey não se deixou irritar com o comentário e focou-se em Reardon. O resto da sala pareceu desvanecer-se.

 

Não tenho conhecimento de quaisquer preocupações por parte dos Chineses respondeu.

 

Mas tem conhecimento continuou Reardon das razões por trás dessas preocupações com a segurança. No princípio desta semana teve lugar um acidente grave, envolvendo um N-Vinte e Dois.

 

Sim.

 

Foi durante o voo cinco quatro cinco da Transpacific. Teve lugar em pleno voo, por cima do oceano Pacífico.

 

Sim.

 

Morreram três pessoas. Quantas ficaram feridas?

 

Julgo que foram cinquenta e seis. Sabia que o facto era assustador, fosse qual fosse o modo como respondesse.

 

Cinquenta e seis feridos entoou Reardon. Pescoços partidos. Pernas partidas. Concussões. Danos cerebrais. Duas pessoas paralisadas para o resto da vida...

 

Reardon calou-se, olhando-a.

 

Não lhe fizera uma pergunta. Casey não se manifestou. Ficou à espera, sob o calor ardente das luzes.

 

Como se sente a esse respeito?

 

Creio que toda a gente, na Norton afirmou, demonstra uma grande preocupação pelos problemas de segurança aérea. É por isso que os nossos aviões são construídos para durar três vezes mais do que o necessário.

 

Uma grande preocupação... retorquiu Reardon. Acha que se trata de uma resposta apropriada?

 

Casey hesitou. Que estava ele a dizer?

 

Desculpe disse, mas não percebi.

 

A companhia não tem a obrigação de construir aviões seguros?

 

Claro que tem, e é o que fazemos.

 

Nem toda a gente está de acordo insistiu Reardon. A FAA não está de acordo: os Chineses podem não estar de acordo... Não acha que a empresa tem a obrigação de corrigir o desenho de um avião que sabe não ser seguro?

 

Que quer dizer?

 

Quero dizer explicou Reardon que o que aconteceu ao voo cinco quatro cinco já tinha acontecido anteriormente... e muitas vezes, com outros aviões N-Vinte e Dois. Não é verdade?

 

Não.

 

Não!? As sobrancelhas de Reardon ergueram-se.

 

Não ripostou Casey, com firmeza. Chegara o momento, pensou. Aproximava-se do abismo.

 

Esta foi a primeira vez?

 

Sim.

 

Nesse caso lançou-lhe Reardon, talvez possa explicar-me isto. Fez aparecer uma folha de papel e levantou-a. Apesar de se encontrar do outro lado da mesa, Casey sabia do que se tratava. Tenho aqui uma lista de incidentes com os slats do N-Vinte e Dois, que vai até mil novecentos e noventa e dois, logo depois da introdução do avião. Oito casos. Oito casos separados. O da Transpacific é o nono.

 

Essa afirmação não está correcta.

 

Bom, explique-me porquê.

 

Casey narrou, tão brevemente quanto pôde, todo o funcionamento das chamadas Directivas de Aeronavegabilidade. Explicou porque haviam sido emitidas para o N-22, e como o problema tinha sido resolvido, excepto para as transportadoras estrangeiras que não as haviam aplicado. Nunca mais se verificara um incidente doméstico desde 1992.

 

Reardon ouviu-a com as sobrancelhas sempre erguidas, como se nunca tivesse escutado aldrabices tão chocantes.

 

Deixe-me ver se compreendi pediu. Do vosso ponto de vista, a empresa seguiu as regras ao emitir essas directivas que, supostamente. resolveram o problema.

 

Não contestou Casey. A empresa resolveu o problema.

 

Ah, sim? Segundo consta, foi por causa dos slats que morreram pessoas no voo cinco quatro cinco.

 

Isso não é correcto. Casey equilibrava-se numa corda bamba, baseada numa subtil questão técnica, e sabia-o. Se ele lhe perguntasse: "Os slats saíram?", estaria metida num sarilho. Ficou de respiração suspensa, à espera da pergunta seguinte.

 

As pessoas que nos disseram que os slats saíram estão erradas? inquiriu Reardon.

 

Não sei como puderam saber declarou Casey, que decidiu ir mais longe. Sim, estão erradas.

 

Fred Barker, um antigo investigador da FAA, está errado.

 

Sim.

 

A FÁA está errada.

 

Bom, como sabe, a FÁA atrasa a certificação por causa dos níveis de ruído e...

 

Continuemos com o que estávamos a discutir por mais alguns instantes.

 

Casey recordou o que a Gershon lhe dissera: Ele não está interessado em informações.

 

A FAA está errada? insistiu Reardon, repetindo a pergunta. Seria necessária uma resposta complicada, pensou Casey. Como responder de uma maneira simples?

 

Está errada quando diz que o avião não é seguro.

 

Então... continuou Reardon na sua opinião, não há qualquer substância nas críticas ao N-Vinte e Dois.

 

Exacto. É um avião excelente.

 

Um avião bem desenhado.

 

Sim.

 

Um avião seguro.

 

Absolutamente.

 

Voaria nele.

 

Sempre que possível.

 

Com a família e os amigos.

 

Sem dúvida.

 

Sem qualquer hesitação?

 

Nenhuma.

 

Então, qual foi a sua reacção quando a televisão mostrou a gravação feita a bordo do voo cinco quatro cinco?

 

"Vai fazer-te dizer que sim, para depois te apanhar desprevenida", pensou Casey, que já estava preparada.

 

Todos sabemos que foi um acidente muito trágico. Quando vi a gravação, senti uma grande tristeza pelas pessoas envolvidas.

 

Sentiu tristeza.

 

Sim.

 

As suas convicções sobre o avião não ficaram abaladas? Não questionou o N-Vinte e Dois"?

 

Não.

 

Então, porquê?

 

Porque o N-Vinte e Dois tem um soberbo registo de segurança. Um dos melhores na indústria.

 

Um dos melhores na indústria... troçou Reardon.

 

Sim, Mister Reardon. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. No ano passado, morreram quarenta e três mil americanos em acidentes de automóvel. Afogaram-se quatro mil pessoas. Duas mil morreram sufocadas com comida. Sabe quantas morreram nos transportes aéreos domésticos?

 

Reardon fez uma pausa e soltou uma risadinha.

 

Tenho de admitir que confundiu a questão.

 

É uma pergunta justa, Mister Reardon. Quantas pessoas morreram nos aviões comerciais, no ano passado?

 

Talvez... começou Reardon, franzindo a testa... mil?

 

Cinquenta retorquiu Casey. Morreram cinquenta pessoas. Sabe quantas morreram no ano anterior? Dezasseis. Menos do que as que morreram por andarem de bicicleta.

 

E dessas, quantas morreram no N-Vinte e Dois! inquiriu Reardon, de olhos semicerrados, procurando recompor-se.

 

Nenhuma afirmou Casey.

 

Portanto, quer dizer que...?

 

Quero dizer que temos uma nação em que todos os anos morrem quarenta e três mil pessoas em automóveis, e ninguém se preocupa com isso. Metem-se nos carros quando estão bêbedas, quando estão cansadas, e nem sequer pensam no assunto. Porém, essas mesmas pessoas entram em pânico ante a simples ideia de se meterem num avião. Porquê? perguntou Casey. Porque a televisão exagera constantemente os perigos reais. Aquela gravação vai fazer com que as pessoas tenham medo de voar... e sem nenhuma razão válida.

 

Pensa que a gravação não deveria ter sido mostrada?

 

Não disse isso.

 

Mas afirmou que a mesma levaria as pessoas a ter medo... sem uma razão válida.

 

Correcto.

 

Na sua opinião, essas gravações não deveriam ser mostradas? Casey pensou: qual será a ideia? Porque está a fazer isto?

 

Não foi o que eu disse.

 

Estou a perguntar-lhe, agora.

 

O que eu disse replicou Casey foi que essas gravações dão origem a uma percepção errónea dos perigos das viagens aéreas.

 

Incluindo os perigos do N-Vinte e Dois!

 

Já afirmei que considero o N-Vinte e Dois como sendo um avião seguro.

 

Portanto, não pensa que estas gravações devam ser mostradas ao público.

 

Onde diabo quer ele chegar! Não conseguia perceber. Não respondeu. Estava concentrada, a pensar, tentando descobrir a finalidade daquela troca de palavras. Tinha a desagradável sensação de que já a conhecia.

 

Do seu ponto de vista, Miss Casey, estas gravações deveriam ser suprimidas?

 

Não.

 

Não devem ser suprimidas?

 

Não.

 

A Norton Aircraft alguma vez suprimiu gravações?

 

"Oh, oh", pensou Casey, tentando descobrir quantas outras pessoas estariam a par da gravação. Muitas, concluiu: Ellen Fong, Ziegler, o pessoal do laboratório de vídeo. Talvez uma dúzia, ou até mais...

 

Miss Singleton... continuou Reardon. Tem consciência de que existe uma outra gravação deste incidente?

 

Limita-te a mentir, dissera Amos.

 

Sim respondeu. Sei que há outra gravação.

 

E já a viu?

 

Sim.

 

É horrível, não é? Assustadora.

 

Casey pensou: "Já a têm! Já têm a gravação." Agora, teria de proceder com muito cuidado.

 

É trágico declarou Casey. O que aconteceu ao voo cinco quatro cinco foi uma tragédia. Sentia-se cansada. A tensão era tal que sentia um ardor nos ombros.

 

Miss Singleton, permita-me que lhe faça uma pergunta directa: a Norton Aircraft suprimiu essa segunda gravação?

 

Não.

 

As sobrancelhas erguidas, a expressão de surpresa.

 

No entanto, não há dúvidas de que não a divulgou.

 

Não.

 

Então, porquê?

 

A gravação foi encontrada no avião afirmou Casey, e está a ser utilizada para a investigação em curso. Não considerámos apropriado torná-la pública antes de completarmos a investigação.

 

Não estão a ocultar os bem conhecidos defeitos do N-Vinte e Dois?

 

Não.

 

Sob esse aspecto, nem todos estão de acordo consigo, Miss Singleton, isto porque o Newsline obteve uma cópia da gravação, das mãos de uma empregada da Norton com problemas de consciência que considera que a empresa está a ocultar informações, e que achou que as mesmas deviam ser tornadas públicas.

 

Casey manteve-se rígida e, nem sequer estremeceu.

 

Está surpreendida? inquiriu Reardon, com os lábios encurvados num ligeiro sorriso.

 

Casey não respondeu. Tinha a mente a rodopiar e precisava de planear o movimento seguinte.

 

Reardon mantinha o seu sorriso trocista e paternalista. Gozava o momento.

 

Era agora.

 

Já viu essa gravação com os seus próprios olhos, Mister Reardon? perguntou, num tom que implicava que a gravação não existia e que o homem estava a inventar.

 

Oh, sim... confirmou Reardon, solene. Vi a gravação. É difícil, ou até dolorosa, de ver. É um registo terrível do que aconteceu a bordo do N-Vinte e Dois da Norton.

 

E viu-a até ao fim?

 

Claro... tal como os meus companheiros de trabalho em Nova Iorque.

 

Então, já a haviam mandado para Nova Iorque, pensou Casey.

 

Cuidado.

 

Muito cuidado.

 

Miss Singleton, a Norton tinha a intenção de divulgar a gravação?

 

Não nos cabe a nós fazê-lo. Iremos devolvê-la aos proprietários legítimos depois de a investigação estar completa. Cabe-lhes decidir o que fazer com as imagens.

 

Depois de a investigação estar completa... Reardon abanava a cabeça. Perdoe-me, mas para uma empresa que a senhora diz que está empenhada na segurança dos voos, parece existir um padrão constante de ocultação de factos...

 

Ocultação de factos?

 

Miss Singleton, se existisse um problema com esse tipo de avião... um problema grave, de que a empresa tivesse conhecimento, informar-nos-ia do mesmo?

 

Não existe qualquer problema.

 

Ah, não? Reardon olhava para baixo, para os papéis que tinha na sua frente. Miss Singleton, se o N-Vinte e Dois é na verdade tão seguro como afirma, então como explica isto?

 

Entregou-lhe uma folha de papel.

 

Casey aceitou-a e lançou-lhe uma olhadela.

 

Jesus Cristo... murmurou.

 

Reardon tinha o seu momento mediático. Captara a reacção de uma mulher desprevenida e apanhada em desequilíbrio. Casey sabia que a coisa teria mau aspecto, e que a partir daquele momento não tinha qualquer hipótese de recuperação, dissesse o que dissesse. Surpreendida, continuava concentrada no papel que se encontrava na sua frente.

 

Era a fotocópia da capa de um relatório feito três anos antes.

 

           INFORMAÇÃO CONFIDENCIAL

           APENAS PARA Uso INTERNO

           NORTON AIRCRAFT

           COMISSÃO INTERNA DE REVISÃO

           SUMÁRIO EXECUTIVO

           CARACTERÍSTICAS DA INSTABILIDADE

           EM voo DO AVIÃO N-22

 

Seguia-se uma lista de nomes dos membros da comissão. Começava pelo seu próprio nome, uma vez que presidira à comissão.

 

Casey sabia que nada existia de impróprio naquele estudo. Nem nas suas conclusões. Todavia, tudo o que nele constava, incluindo o título "Característica de Instabilidade em voo" parecia prejudicial. Iria ter muitas dificuldades para conseguir explicações.

 

Não está interessado em informações.

 

E tratava-se de um relatório interno, pensou Casey. Nunca deveria ter sido divulgado. Tinha três anos... e já não eram muitos os que se recordavam da sua existência. Como fora que Reardon o obtivera?

 

Olhou para o alto da página, viu um número de fax e o nome do serviço que o enviara: NORTON QA.

 

Era proveniente dos seus próprios serviços.

 

Como?

 

Quem o fizera?

 

"O Richman", pensou, sombria.

 

Richman colocara aquele relatório no meio do material para a imprensa que se encontrava em cima da sua secretária. O material que Casey pedira a Norma que enviasse para o Newsline por fax.

 

Mas como fora que Richman soubera?

 

Marder.

 

Marder sabia tudo a respeito daquele estudo. Fora o director do programa do N-22 e fora também quem encomendara o estudo. Agora, tornara-o conhecido quando ela se encontrava em frente da televisão, porque...

 

Miss Singleton? disse Rear don.

 

Casey olhou para cima, enfrentando novamente as luzes.

 

Sim?

 

Reconhece este relatório?

 

Sim, reconheço declarou.

 

O seu nome consta aí?

 

Sim.

 

Reardon entregou-lhe três outras folhas, que constituíam o resto do relatório.

 

De facto, presidiu a uma comissão secreta no interior da Norton que investigou as "instabilidades em voo" do N-Vinte e Dois. Não é verdade?

 

Como iria resolver aquilo?

 

Não está interessado em informações.

 

Não era nenhum segredo respondeu. É o tipo de estudos que conduzimos frequentemente sobre os aspectos operacionais dos aviões, depois de já estarem ao serviço.

 

Contudo, tal como admitem, trata-se de um estudo de instabilidades em voo.

 

Olhe ripostou Casey, estes estudos até são dignos de elogios.

 

Dignos de elogios? repetiu Reardon, levantando as sobrancelhas, surpreendido.

 

Sim. Depois dos primeiros incidentes com os slats, há quatro anos, colocava-se a questão de saber se o avião tinha características de instabilidade sob certas configurações. Não virámos as costas ao problema. Não o ignorámos. Enfrentámo-lo, formando uma comissão para testar o avião sob várias condições, a fim de verificar se era verdade. Concluímos que...

 

Deixe-me ser eu a ler interveio Reardon o seu próprio relatório: "O avião baseia-se nos computadores para a estabilização básica..."

 

Sim confirmou Casey. Todos os aviões modernos utilizam...

 

"O avião demonstrou uma marcada sensibilidade à pilotagem manual durante as mudanças de atitude."

 

Casey olhava para as páginas e acompanhava as citações.

 

Sim, mas se ler o resto da frase, verá que... Reardon voltou a interrompê-la.

 

"Os pilotos afirmaram que o avião não pode ser controlado."

 

Está a ler tudo fora do contexto.

 

Estou? As sobrancelhas ergueram-se. São afirmações que constam no vosso relatório. Um relatório secreto, da Norton.

 

Pensei que me dissera que desejava ouvir o que tenho para dizer. Casey começava a ficar zangada. Calculava que isso já se notasse, mas não se importava.

 

Reardon recostou-se na cadeira e fez um gesto com as mãos abertas. Era a verdadeira imagem do homem razoável.

 

Ah, mas faça o favor, Miss Singleton...

 

Então, deixe-me explicar. Este estudo foi efectuado para determinar se o N-Vinte e Dois tinha um problema de estabilidade. Concluímos que não tinha e...

 

É o que dizem...

 

Pensei que me deixariam explicar...

 

Claro que sim!

 

Então permita-me que coloque as suas citações nos devidos contextos continuou Casey. O relatório diz que o N-Vinte e Dois se serve de computadores. Todos os aviões modernos utilizam computadores para a estabilização em voo, e isso não significa que não possam ser dominados pelos pilotos. Claro que podem. Sob esse aspecto, não há qualquer problema. Todavia, agora as transportadoras querem aviões com um consumo de combustível extremamente eficiente. O máximo da eficiência consegue-se com uma resistência mínima durante o voo.

 

Reardon agitava uma das mãos, num gesto de desinteresse.

 

Lamento, mas tudo isso não vem ao caso...

 

Para minimizar a resistência prosseguiu Casey, o avião tem de manter uma atitude muito precisa. A atitude mais eficiente é com o nariz ligeiramente levantado. São os computadores que o mantêm nessa posição durante o voo normal, o que nada tem de invulgar.

 

Nada de invulgar? Instabilidades em voo? perguntou Reardon. Estava sempre a mudar de tema, não a deixando explicar.

 

Já lá vamos disse Casey.

 

Estou ansioso por a ouvir. O sarcasmo era claro.

 

Casey esforçou-se por manter a calma. Por muito más que as coisas estivessem, ficariam ainda piores se explodisse.

 

O senhor, há pouco, leu uma frase continuou. Deixe-me terminá-la. "O avião demonstrou uma marcada sensibilidade à pilotagem manual durante as mudanças de atitude, mas esta sensibilidade está inteiramente dentro dos parâmetros do desenho e não representa qualquer dificuldade para os pilotos devidamente certificados." É esse o resto da frase.

 

No entanto, admite que há uma sensibilidade. Não será uma palavra diferente para dizer "instabilidade"?

 

Não afirmou Casey. Sensibilidade não significa instabilidade.

 

O avião não pode ser controlado insistiu Reardon, abanando a cabeça.

 

Pode.

 

E fizeram um estudo porque estavam preocupados.

 

Fizemos um estudo porque é nossa obrigação certificarmo-nos de que o avião é seguro retorquiu Casey. Agora, temos a certeza. É seguro.

 

Um estudo secreto.

 

Não era secreto.

 

Nunca foi distribuído. Nunca foi mostrado ao público...

 

Tratava-se de um relatório interno.

 

Não têm nada a esconder?

 

Não.

 

Então por que não nos disseram a verdade a respeito do TransPacific cinco quatro cinco?

 

A verdade?

 

Fomos informados que a vossa equipa de investigação já fez uma descoberta preliminar sobre as causas prováveis... ou não será verdade?

 

Estamos lá perto respondeu Casey.

 

Perto... Miss Singleton, fizeram uma descoberta, ou não? Casey olhou para Reardon. A pergunta ficou a pairar no ar.

 

Desculpem disse o operador de câmara, por trás dela, mas temos de recarregar.

 

Recarregar câmaras!

 

Reardon parecia ter sido esbofeteado, mas recuperou quase imediatamente.

 

Continua no próximo episódio... disse, sorrindo para Casey. Estava descontraído. Sabia que a derrotara. Levantou-se e virou-lhe as costas. Os grandes projectores apagaram-se e a sala pareceu repentinamente muito escura. Alguém voltou a ligar o ar condicionado.

 

Casey também se levantou e retirou a caixa do microfone da cintura. A mulher da maquilhagem precipitou-se para ela, mas Casey levantou uma das mãos.

 

Só um minuto pediu.

 

Agora que as luzes estavam apagadas, via Richman a encaminhar-se para a porta.

 

Casey correu atrás dele.

 

           EDIFÍCIO 64

           15:01

 

Apanhou-o no corredor, agarrou-o por um braço e fê-lo dar meia volta.

 

Tu, meu grande filho da puta...

 

Eh! exclamou Richman. Tenha calma. Sorriu e fez um aceno por cima do ombro dela. Olhando para trás. Casey viu um operador de câmara e um técnico de som a aparecerem no corredor.

 

Furiosa, impeliu Richman contra a porta da casa de banho das mulheres e empurrou-o para o interior. Richman começou a rir-se.

 

Jesus, Casey, não sabia que se ralava...

 

Estavam na casa de banho. Casey encostou-o à fileira de lavatórios.

 

Meu grande sacana rosnou, não sei o que estás a tramar, mas foste tu quem fez aparecer aquele relatório e eu vou...

 

- Não vai fazer nada - declarou Richman, com uma voz subitamente muito fria e obrigando-a a largá-lo. - Ainda não compreendeu, pois não? Acabou-se, Casey. Deu cabo da venda à China. Está arrumada.

 

Casey fitou-o, sem compreender. Richman mostrava-se forte e confiante. Era uma pessoa diferente.

 

O Edgarton está liquidado. A venda à China está liquidada... e você também terminou, com um sorriso. Tal como o John disse que aconteceria.

 

"Marder", pensou Casey. Era Marder quem estava por trás de tudo aquilo.

 

Se perdermos a venda à China, o Marder também estará arrumado. O Edgarton tratará disso.

 

Richman sacudiu a cabeça, trocista.

 

Não, não o fará. O Edgarton está em Hong Kong e nem vai perceber o que lhe aconteceu. No domingo, por volta do meio-dia, o Marder será o novo presidente da Norton Aircraft. Só precisará de dez minutos de conversa com o conselho de administração... porque fizemos um negócio muito maior com a Coreia. Cento e dez aviões confirmados e uma opção para mais trinta e cinco. Dezasseis biliões de dólares. O conselho de administração vai ficar encantado.

 

Coreia... murmurou Casey, que tentava absorver as novas informações. Era uma grande encomenda, a maior na história da empresa. Mas por que iriam...

 

Porque lhes oferecemos as asas declarou Richman. Em troca, ficaram mais do que satisfeitos com a compra de cento e dez aviões. Não se preocupam com as afirmações da imprensa sensacionalista americana. Sabem que o avião é seguro.

 

O Marder vai dar-lhes as asas?

 

Claro. É um grande negócio.

 

Pois é... concordou Casey mas liquida a empresa.

 

É a economia global afirmou Richman. Temos de a acompanhar.

 

Mas... estão a dar cabo da empresa afirmou Casey.

 

São dezasseis biliões de dólares repetiu Richman. Quando esse valor for anunciado, as acções da companhia vão subir até ao céu. Toda a gente ganha.

 

Toda a gente... menos os empregados da Norton, pensou Casey.

 

O negócio está feito continuou Richman. Só precisávamos que alguém arruinasse a reputação do N-Vinte e Dois em público. Foi o que acabou de fazer.

 

Casey suspirou e deixou descair os ombros.

 

Olhando para lá de Richman, viu o seu rosto no espelho da casa de banho. Tinha uma camada de maquilhagem em volta do pescoço, camada que estava agora a estalar. Tinha olheiras bem como um aspecto desorientado. Um aspecto derrotado.

 

Por isso prosseguiu Richman, sugiro que me pergunte, com bons modos, o que deve fazer a seguir. Agora, a sua única escolha é obedecer. Faça o que lhe disserem, seja uma boa rapariga, e talvez o John lhe dê um adiamento... digamos que de três meses. Caso contrário, vai já para a rua.

 

Richman inclinou-se para ela e acrescentou:

 

Compreende o que estou a dizer?

 

Sim respondeu Casey.

 

Estou à espera... Com bons modos...

 

No meio da exaustão, a mente de Casey corria, examinando as opções, tentando descobrir uma saída, mas não via nenhuma. O Newsline emitiria a história. O plano de Marder teria êxito. Estava derrotada. Fora derrotada desde o princípio. Fora derrotada no dia em que Richman aparecera.

 

Continuo à espera disse este.

 

Casey observou-lhe o rosto macio e cheirou a água-de-colónia do homem. O sacana estava a divertir-se. Num momento de fúria, de profundo ultraje, viu outra possibilidade.

 

Desde o princípio que tentara fazer o que era correcto, ou seja, resolver o problema do 545. Fora honesta, fora recta... e isso só servira para a meter em sarilhos.

 

Ou não?

 

Tem de enfrentar os factos continuou Richman. Acabou. Já nada mais pode fazer.

 

Casey afastou-se dos lavatórios.

 

Ah, não? Então, observa.

 

Casey afastou-se e saiu da casa de banho.

 

             SALA DE REUNIÕES

             15:15

 

Casey deslizou para a sua cadeira. O técnico de som aproximou-se e voltou a colocar-lhe a caixa do microfone na cintura.

 

Diga algumas palavras pediu, para regularmos o nível de som.

 

Teste, teste, estou a ficar cansada disse Casey.

 

Está muito bem, obrigado.

 

Casey viu Richman entrar para a sala e encostar-se à parede mais distante, com um leve sorriso no rosto. Não parecia preocupado. Estava confiante de que ela nada poderia fazer. Marder conseguira um grande negócio, entregara o fabrico da asa, estava a dar cabo da Norton... e servira-se de Casey para o conseguir.

 

Reardon sentou-se na frente dela, encolheu os ombros, ajustou a gravata e sorriu.

 

Que tal se sente? perguntou.

 

Estou bem.

 

Faz calor aqui dentro, não é verdade? Lançou uma olhadela ao relógio. Estamos quase a acabar.

 

Jennifer Malone aproximou-se deles e sussurrou junto ao ouvido de Reardon. Os sussurros continuaram durante algum tempo. Reardon perguntou:

 

Ah, sim? As suas sobrancelhas ergueram-se e acenou várias vezes. Por fim, declarou: Sim, percebi.

 

Começou a remexer nos papéis que se encontravam na pasta à sua frente.

 

Jennifer Malone perguntou:

 

Rapazes... estão prontos?

 

Câmara Um, pronta.

 

Câmara Dois, pronta.

 

Som, pronto.

 

Comecem a gravar ordenou Jennifer.

 

"É agora", pensou Casey. Respirou fundo e olhou para Reardon, na expectativa.

 

O homem sorriu para ela.

 

É uma executiva da Norton Aircraft.

 

Sim.

 

Está na empresa há cinco anos.

 

Sim.

 

É uma pessoa merecedora de confiança e altamente colocada. Casey acenou. Bem gostaria de saber se era verdade.

 

Agora, tivemos um incidente com o voo cinco quatro cinco, envolvendo um avião que afirma ser perfeitamente seguro.

 

Correcto.

 

No entanto, morreram três pessoas e ficaram feridas mais de cinquenta.

 

Sim.

 

O vídeo, que já todos vimos, é horrível. A vossa equipa de investigação tem trabalhado dia e noite... e ouvimos dizer que fizeram uma descoberta.

 

Cuidado.

 

Tinha de o fazer com muito, muito cuidado. Na verdade, não tinha certezas, mas sim uma forte suspeita. Ainda necessitavam de refazer a sequência, de verificar se as coisas tinham acontecido numa certa ordem, a chamada cadeia de causas. Não havia certezas.

 

Estamos perto de uma descoberta disse Casey.

 

Escusado será dizer que estamos ansiosos por a ouvir.

 

Vamos anunciá-la amanhã.

 

Casey viu a reacção de surpresa de Richman, apesar de este se encontrar por trás das luzes. O filho da mãe não esperara aquilo... e tentava perceber o que estava a passar-se.

 

Pois que tentasse...

 

Do outro lado da mesa, Reardon virou-se e Jennifer Malone sussurrou-lhe ao ouvido. O homem acenou e voltou a enfrentar Casey.

 

Miss Singleton, se já sabe alguma coisa, por que não nos diz?

 

Porque se tratou de um acidente grave, tal como o senhor mesmo afirmou. Nesses casos, há sempre muitas especulações infundadas, vindas de muitos lados. A Norton Aircraft considera que é importante agir com responsabilidade. Antes de qualquer declaração pública é necessário confirmar as nossas descobertas durante um voo de teste, usando o avião que esteve envolvido no acidente.

 

Quando irá ser esse voo de teste?

 

Amanhã de manhã.

 

Ah! fez Reardon. com um suspiro de pesar. Será demasiado tarde para a nossa emissão. Compreende que está a negar à sua empresa a oportunidade para responder a acusações graves?

 

Casey tinha uma resposta pronta.

 

Marcámos o voo para as cinco da manhã anunciou. Daremos uma conferência de imprensa imediatamente depois, cerca do meio-dia.

 

Ao meio-dia... murmurou Reardon.

 

Exibia uma expressão vazia, mas Casey sabia que o homem estava a pensar. O meio-dia de Los Angeles correspondia às três da tarde de Nova Iorque. Ainda faltaria muito tempo para os noticiários da noite, tanto em Nova Iorque como em Los Angeles. As descobertas que a Norton fizesse seriam amplamente relatadas tanto a nível local como nacional. O Newsline, que ia para o ar às dez horas da noite de sábado, estaria desactualizado. Dependendo do que surgisse durante a conferência de imprensa, a história do Newsline, montada na noite anterior, já seria uma antiguidade. Até poderia ser embaraçosa.

 

Reardon suspirou.

 

Por outro lado disse, não queremos deixar de ser justos para convosco.

 

É compreensível afirmou Casey.

 

               ADMINISTRAÇÃO DA NORTON

               16:15

 

Que se lixe! disse Marder para Richman. Tudo o que ela possa vir a engendrar não fará qualquer diferença.

 

Mas se marcou um teste de voo...

 

E então? O teste de voo só servirá para piorar ainda mais a história. A Casey não faz a mínima ideia sobre o que causou o incidente. Também não sabe o que acontecerá se puserem o avião da Transpacific a voar. O mais provável é não conseguirem reproduzir o que se passou... e podem surgir outros problemas em que ninguém pensou.

 

Tais como?

 

Aquele avião foi submetido a esforços severos explicou Marder. Pode ter danos estruturais não detectados... e tudo pode acontecer quando o fizerem voar. Marder fez um gesto de desinteresse. Isto não muda nada. O Newsline está no ar das dez às onze de sábado à noite. No sábado de manhã notificarei o conselho de administração de que vai surgir uma má publicidade e marcaremos uma reunião de emergência para domingo de manhã. O Hal não conseguirá regressar a tempo de Hong Kong... e os seus amigos no Conselho vão deixar de o apoiar quando ouvirem falar num negócio de dezasseis biliões de dólares. Todos eles são accionistas e sabem o que o anúncio fará às suas acções. Sou o próximo presidente desta empresa e ninguém pode fazer nada para o impedir, nem o Hal Edgarton... e muito menos a Casey Singleton.

 

Olha que não sei comentou Richman. Penso que ela está a planear qualquer coisa. É uma mulher esperta, John.

 

Mas não o suficiente retorquiu Marder.

 

             SALA DE REUNIÕES

             16:20

 

As câmaras estavam arrumadas. As placas de cartão e esferovite haviam sido removidas do tecto, os microfones encontravam-se desligados, as caixas de junção e as caixas das câmaras haviam sido removidas. Contudo, as negociações arrastavam-se. Ed Fuller, o desengonçado chefe dos serviços legais, estava lá, tal como Teddy Rawley, o piloto, e também dois engenheiros que trabalhavam nos testes de voo, a fim de poderem responder a questões técnicas que pudessem surgir.

 

Pela parte do Newsline, a conversa era agora toda com Malone. Reardon andava de um lado para o outro por trás dela, e ocasionalmente parava para lhe sussurrar ao ouvido. A sua presença intimidante parecia ter-se apagado juntamente com os projectores. Agora parecia cansado, desassossegado e impaciente.

 

Jennifer Malone começou por dizer que, uma vez que o Newsline ia fazer toda uma peça a respeito do N-22 da Norton, era do interesse da companhia permitir que o programa filmasse o teste de voo.

 

Casey respondeu, dizendo que isso não representava qualquer problema. Os testes de voo eram documentados por dúzias de câmaras de vídeo, montadas tanto no seu interior como no exterior do avião. O pessoal do Newsline podia assistir a todo o teste nos monitores, no solo. A seguir podiam ficar com cópias das gravações, para a emissão.

 

Não, disse Jennifer Malone. Não seria o suficiente. A equipa do Newsline tinha de se encontrar a bordo do avião.

 

Casey respondeu que era impossível, que jamais um fabricante permitira gente estranha a bordo durante um voo de teste. Estava, afirmou, pronta a fazer uma concessão deixando-os ver os vídeos, no solo.

 

Não bastava, insistiu Jennifer Malone.

 

Ed Fuller interveio para explicar que se tratava de uma questão de responsabilidade. A Norton não podia permitir que pessoas sem seguro, e que ainda por cima não eram seus empregados, se encontrassem a bordo do avião.

 

Como deve compreender, um voo de teste traz consigo perigos inerentes que não podemos evitar.

 

Jennifer Malone declarou que o Newsline aceitaria qualquer risco e que estava pronto a assinar termos de responsabilidade.

 

Ed Fuller afirmou que precisava de redigir as declarações, mas que os advogados do Newsline teriam de as aprovar e que não havia tempo para isso.

 

Jennifer Malone contestou, dizendo que conseguiria a aprovação por parte dos advogados no espaço de uma hora, a qualquer momento do dia ou da noite.

 

Fuller mudou de campo. Disse que se a Norton ia deixar que o Newsline assistisse ao voo de teste, queria ter a certeza de que os resultados do mesmo seriam correctamente divulgados, pelo que teria de aprovar o filme.

 

Jennifer Malone retorquiu que a ética jornalística não permitia uma coisa daquelas e que, de qualquer modo, não havia tempo. Se o teste terminasse por volta do meio-dia, teria de montar o filme no próprio camião e transmiti-lo imediatamente para Nova Iorque.

 

Fuller insistiu que continuava a existir um problema para a Norton, que desejava ver os resultados do teste de voo devidamente apresentados.

 

Houve argumentos de parte a parte. Finalmente, Jennifer Malone disse que incluiria trinta segundos de comentário ao voo, sem montagens, feitos por um porta-voz da Norton. Esses trinta segundos seriam retirados da conferência de imprensa.

 

Fuller exigiu um minuto.

 

Chegaram a um compromisso: quarenta segundos.

 

Temos outro problema disse Fuller. Se vos deixarmos filmar o voo de teste, não queremos que usem a gravação que obtiveram hoje, com imagens do incidente.

 

Nem pensar retorquiu Jennifer Malone. A gravação iria para o ar.

 

Caracterizaram essa gravação como tendo sido recebida de uma empregada da Norton ripostou Fuller. É uma informação incorrecta. Queremos a proveniência devidamente esclarecida perante o público.

 

Bom, não há dúvidas de que a recebemos de alguém que trabalha para a Norton.

 

Não contrapôs Fuller, não receberam.

 

Trata-se de um dos vossos subcontratados.

 

Não, não é. Se quiser, posso fornecer-lhe a definição do IRS para um subcontrato.

 

É uma questão sem importância...

 

Já obtivemos uma declaração, com assinatura reconhecida, da recepcionista Christine Barren. Não é empregada da Norton Aircraft. De facto, nem sequer é empregada do laboratório de vídeo. É uma ajudante temporária fornecida por uma agência.

 

Que importância tem isso?

 

Queremos os factos expostos com precisão, ou seja, que obtiveram a gravação de fontes exteriores à empresa.

 

Como já disse, é uma questão sem importância afirmou Jennifer Malone, encolhendo os ombros.

 

Então, qual é o problema?

 

Jennifer Malone ficou a pensar por instantes.

 

Está bem concordou.

 

Fuller empurrou uma folha de papel por cima da mesa.

 

Este breve documento formaliza o acordo. Assine-o.

 

Jennifer Malone olhou para Reardon. Reardon encolheu os ombros e Jennifer assinou.

 

Não compreendo para que são estas complicações queixou-se. Começou a devolver o papel a Fuller mas deteve-se.

 

Duas equipas, no avião, durante o teste de voo. É esse o acordo?

 

Não retorquiu Fuller. Nunca foi esse o acordo. As vossas equipas observarão o teste no solo.

 

Isso não nos serve.

 

Casey explicou que as equipas do Newsline podiam ir à área do teste, podiam filmar os preparativos, a descolagem e a aterragem, mas não poderiam estar no interior do avião durante o voo.

 

Lamento muito disse Jennifer Malone. Teddy Rawley aclarou a garganta, pigarreando.

 

Parece-me que não está a compreender a situação, Miss Malone. Durante um teste de voo não se pode andar de um lado para o outro, a filmar dentro do avião. Todos os que seguem a bordo têm de ir amarrados com cintos de segurança com quatro pontos de fixação. Nem sequer se poderá levantar para ir fazer chichi. Não pode usar projectores ou baterias porque geram campos magnéticos que podem prejudicar as nossas leituras.

 

Não precisamos de projectores declarou Jennifer. Podemos filmar com a luz ambiente.

 

Ainda não está a perceber insistiu Rawley. As coisas podem ficar muito feias, lá em cima.

 

É por isso que temos de lá estar retorquiu Jennifer.

 

Ed Fuller pigarreou e interveio:

 

Permita-me que seja inteiramente claro, Miss Malone. A nossa empresa nunca, em nenhuma circunstância, permitirá uma equipa de filmagens a bordo do avião. Isso está absolutamente fora de questão.

 

Jennifer exibiu um rosto fechado e rígido.

 

Minha senhora disse Rawley, já deve ter entendido que há motivos para o teste ser feito sobre o deserto, um grande espaço desabitado...

 

Quer dizer que o avião pode cair...

 

Quero dizer que não sabemos o que poderá acontecer. Acredite no que lhe digo: não vai querer estar a bordo.

 

Jennifer abanou a cabeça.

 

Não. Temos de ter as nossas equipas a bordo.

 

Vamos ter de suportar forças tremendas...

 

Haverá trinta câmaras espalhadas por todo o avião explicou Casey. Cobrirão todos os ângulos imagináveis: cabina de pilotagem, asas, cabina dos passageiros, tudo. Irá ter esses filmes em exclusivo. Ninguém saberá que as vossas câmaras não se encontravam a bordo.

 

Jennifer fez uma careta, mas Casey sabia que acertara em cheio. A mulher só se interessava pelas imagens.

 

Então... quero ser eu a colocar as câmaras declarou Jennifer.

 

Hum, hum... fez Rawley.

 

Tenho de poder dizer que as nossas câmaras se encontravam a bordo continuou Jennifer. Tenho de poder dizer isso.

 

Por fim, Casey conseguiu um compromisso. O Newsline poderia posicionar a seu gosto duas câmaras, em qualquer lado do avião, que cobririam o teste. Retiraria imagens directamente dessas câmaras. Para além disso, poderia utilizar as gravações feitas por todas as outras câmaras montadas no interior, e receberia autorização para filmar Reardon no exterior do Edifício 64, que abrigava a linha de montagem.

 

Mais tarde, naquele mesmo dia, a Norton fornecia transporte às equipas do Newsline até ao local dos testes, no Arizona, e iria instalá-las num motel. No dia seguinte, de manhã, transportá-las-ia para o local dos testes, e voltaria a colocá-las em Los Angeles durante a tarde.

 

Jennifer Malone devolveu a folha de papel a Fuller e declarou:

 

Estamos de acordo.

 

Inquieto, Reardon olhava para o relógio quando saiu com Jennifer Malone para ir filmar em frente do Edifício 64. Casey ficara a sós com Rawley e Fuller, na sala de reuniões.

 

Espero que tenhas tomado a decisão correcta disse Fuller, com um suspiro, dirigindo-se a Casey. Fiz o que me pediste quando me telefonaste esta manhã, do laboratório de vídeo.

 

Sim, Ed concordou Casey. Foste perfeito.

 

No entanto, vi a gravação. É horrível. Seja qual for o resultado do teste de voo, receio bem que as pessoas só se lembrem daquelas imagens...

 

Se alguma vez forem divulgadas retorquiu Casey.

 

O que me preocupa disse Fuller é a possibilidade de o Newsline pôr a gravação no ar, independentemente de tudo o resto.

 

Quando isto terminar retorquiu Casey, não me parece que tenham vontade de o fazer.

 

Espero que tenhas razão murmurou Fuller, com novo suspiro. É uma jogada arriscada.

 

Sim, muito arriscada.

 

É melhor que lhes digas para levarem roupas quentes interveio Teddy. E tu também, garota. Outra coisa: estive a observar aquela mulher... e acho que está convencida que vai voar no avião, amanhã...

 

É provável.

 

E tu também? perguntou Teddy.

 

Talvez respondeu Casey.

 

Acho que devia pensar bem no assunto prosseguiu Teddy. Viste a análise do QAR, Casey. Aquele avião excedeu, em cento e sessenta por cento, os limites de esforço para que foi desenhado. O piloto sujeitou a estrutura a esforços que nunca previmos... e amanhã vai levantar voo e repetir tudo outra vez...

 

O Doherty verificou a fuselagem afirmou Casey, encolhendo os ombros. Submeteu-a aos raios X e...

 

Pois sim, mas não a verificou toda contrapôs Teddy. Para isso, seria preciso um mês inteiro, antes de o avião voltar ao serviço.

 

Que queres dizer?

 

Quero dizer explicou Teddy que quando voltar a submeter o avião aos mesmos esforços, há uma possibilidade de a estrutura não aguentar.

 

Estás a tentar assustar-me?

 

Não, estou apenas a informar-te. É a sério, Casey. São coisas que acontecem, lá fora, no mundo real.

 

                NO EXTERIOR DO EDIFÍCIO 64

                 16:55

 

Nunca um fabricante, em toda a história da aviação disse Reardon, permitiu uma equipa de televisão a bordo durante um voo de teste. Contudo, este teste é tão importante para o futuro da Norton Aircraft, e esta está tão confiante no resultado, que a empresa autorizou a presença das nossas equipas. Assim, hoje e pela primeira vez, veremos imagens do avião que esteve envolvido no incidente durante o voo cinco quatro cinco, o controverso N-Vinte e Dois da Norton. Os seus críticos dizem que se trata de uma armadilha mortal. O fabricante afirma que o avião é seguro. O voo de teste irá demonstrar quem tem razão.

 

Reardon fez uma pausa.

 

Está óptimo disse Jennifer.

 

Precisas de mais alguma coisa para o corte?

 

Sim.

 

A propósito, onde é que fazem o teste?

 

Em Yuma.

 

Está bem respondeu Reardon.

 

De pé sob o sol da tarde, em frente do Edifício 64, o homem olhou para baixo, para os pés, e disse num tom baixo e confidencial.

 

Encontramo-nos aqui, na área de teste da Norton, em Yuma, Arizona. São cinco horas da manhã e a equipa da Norton faz os preparativos finais para colocar o voo cinco quatro cinco no ar. Reardon levantou os olhos. A que horas é a madrugada?

 

Não faço ideia respondeu Jennifer. Di-lo de outra maneira.

 

Está bem. Voltou a olhar para os pés e entoou: Neste começo de madrugada, a tensão vai aumentando. Fez uma pausa e repetiu, num tom diferente: Na escuridão da madrugada, a tensão sobe. Agora que surge a madrugada, a tensão é cada vez maior.

 

Isso já deve dar afirmou Jennifer.

 

Como queres fechar a peça? inquiriu Marty.

 

Tens de preparar dois finais diferentes, Marty.

 

Vamos ganhar... ou não?

 

Arranja-me dois finais... pelo sim, pelo não. Mais uma vez, Reardon fitou os sapatos.

 

Agora que o avião está a pousar, a equipa mostra-se entusiasmada. Há rostos felizes por todo o lado à nossa volta. O voo foi um êxito. Pelo menos por enquanto, a Norton provou que tem a razão do seu lado. Reardon fez uma pausa para respirar. Agora que o avião pousou, a equipa mantém-se silenciosa. A Norton está devastada e a mortal controvérsia a propósito do N-Vinte e Dois irá continuar. Olhou para cima. Achas que já chega?

 

Será melhor repetires esse final da controvérsia directamente para a câmara. Podemos fechar a peça com essa imagem.

 

Boa ideia.

 

Para Marty, era sempre boa ideia ver o seu rosto aparecer no ecrã. Endireitou-se, tomou uma expressão firme e enfrentou a câmara.

 

Aqui, no edifício onde é construído o N-Vinte e Dois... Não. Por trás de mim está o edifício... não, não! Esperem. Sacudiu a cabeça, voltou a enfrentar a câmara e recomeçou:

 

Contudo, a amarga controvérsia a respeito do N-Vinte e Dois ainda não está encerrada. Aqui, no edifício onde o avião é construído, os trabalhadores têm a certeza de que se trata de um aparelho seguro e de confiança. Todavia, os críticos do N-Vinte e Dois não estão convencidos. Iremos ter outra colheita de morte nos céus? Só o tempo o dirá. Fala-vos Martin Reardon, para o Newsline, em Burbank, na Califórnia.

 

Reardon pestanejou e inquiriu:

 

Terá sido demasiado pomposo? Ou demasiado forte?

 

Foi óptimo, Marty.

 

O homem já estava a retirar o microfone da lapela e a caixa da cintura. Deu um leve beijo na face de Jennifer.

 

Vou pôr-me a andar declarou, correndo para o carro que o esperava.

 

Rapazes... disse Jennifer, virando-se para a equipa. Façam as malas. Vamos para o Arizona.

 

         SÁBADO

         ÁREA DE TESTES DA NORTON, YUMA, ARIZONA

           4:45

 

Por trás da achatada cadeia das montanhas Gila, que ficava para leste, começava a aparecer uma fina faixa de luz vermelha. O céu por cima deles era de um azul muito escuro ainda se viam algumas estrelas. O ar estava muito frio e Casey conseguia ver o vapor da sua respiração. Puxou o fecho do impermeável até acima e bateu com os pés no chão, tentando manter-se quente.

 

Na pista, os projectores brilhavam sobre a fuselagem do avião da Transpacific enquanto as equipas terminavam a instalação das câmaras de vídeo. Viam-se homens em cima das asas, em volta dos motores e junto ao trem de aterragem.

 

O pessoal do Newsline já ali estava, filmando os preparativos. Jennifer Malone permanecia ao lado de Casey, observando-o.

 

Jesus, está frio! comentou.

 

Casey dirigiu-se para o Posto de Controlo de Teste, uma construção baixa, ao estilo espanhol, que se erguia junto à torre da pista. No interior, a sala estava cheia de monitores, cada um deles a receber imagens de uma determinada câmara. Estas, na sua maioria, encontravam-se focadas em partes específicas do avião. Casey descobriu o monitor com imagens do perne de fixação falsificado. Todo o conjunto dava à sala um ambiente técnico, industrial e nada excitante.

 

Não é o que eu esperava disse Jennifer Malone. Casey apontou os vários monitores.

 

Ali está a cabina de pilotagem, vista de cima. Outra vez a cabina, mas com a câmara virada para o piloto. Pode ver o Rawley, instalado no assento. Como pode verificar, há outras câmaras em vários ângulos da cabina. Esta mostra-nos a asa direita. Esta, a asa esquerda. Aqueles monitores, ali, mostram-nos imagens do interior... e teremos imagens a partir do avião de escolta.

 

Um avião de escolta?

 

Sim, um caça F-Catorze, que acompanhará o N-Vinte e Dois durante todo o voo e que também está equipado com câmaras.

 

Não sei... murmurou Jennifer com uma voz desapontada. Pensei que as imagens seriam mais... como dizer... mais chamativas...

 

Ainda estamos no chão.

 

Contudo, Jennifer continuava de testa franzida e com uma expressão infeliz.

 

Aqueles ângulos, na cabina de passageiros... Quem irá ali estar durante o voo?

 

Ninguém.

 

Quer dizer que os lugares vão ficar vazios?

 

É verdade. Trata-se de um teste.

 

Não vai parecer muito bem queixou-se Jennifer.

 

É sempre assim, num voo de teste explicou Casey.

 

Mas não parecerá bem... no ecrã insistiu Jennifer. Não tem interesse. Deviam ver-se pessoas naqueles lugares ou, pelo menos, nalguns deles. Não podemos meter ninguém a bordo? Não posso ir a bordo?

 

É um voo perigoso replicou Casey, abanando a cabeça. A fuselagem foi muito esforçada durante o incidente. Não sabemos o que poderá acontecer.

 

Ora, vamos lá troçou Jennifer. Não há aqui nenhum advogado. Que tal a ideia?

 

Casey observou-a. Era uma garota tonta que nada sabia do mundo, que estava apenas interessada em imagens, que vivia para as aparências e que nunca aprofundava as coisas. Encarava tudo de uma maneira superficial. Sabia que devia recusar. Contudo, ouviu-se a dizer:

 

Não irá gostar...

 

Está a dizer-me que não é seguro?

 

Estou a dizer que não irá gostar.

 

Sim? Pois quero ir a bordo declarou Jennifer, fitando Casey com uma expressão de claro desafio. E você?

 

Na sua mente, Casey ouviu a voz de Marty Reardon, dizendo: Apesar de afirmar repetidamente que o N-Vinte e Dois é seguro, o próprio porta-voz da Norton, Casey Singleton, recusou-se a embarcar para o teste de voo. Declarou que não voava porque...

 

Porque... o quê?

 

Casey não tinha uma resposta ou, pelo menos, não era capaz de se lembrar de nenhuma que ficasse bem na televisão. De súbito, todos aqueles dias de tensão, de esforço para tentar explicar o incidente, de esforço para aparecer na televisão e para se certificar que não citavam uma única frase fora do seu contexto, de infelicidade por causa da indesejável intrusão da televisão na sua vida, uma intrusão que distorcia tudo, deixaram-na furiosa. Sabia exactamente o que iria acontecer. Malone vira os vídeos mas não compreendera que eram reais.

 

Está bem declarou. Vamos.

 

As duas mulheres encaminharam-se para o avião.

 

                   A BORDO DO VOO TPA 545

                   5:05

 

Jennifer estremeceu. Fazia frio dentro do avião. Sob as luzes fluorescentes, todas aquelas fileiras de assentos vazios e de longas coxias faziam-no parecer ainda mais frio. Ficou um pouco chocada ao reconhecer, em certos locais, o resultado das destruições que vira na gravação. Fora ali que tudo acontecera, pensou. Aquele era o avião. Ainda se viam dedadas sangrentas no tecto, compartimentos de bagagens esventrados, e painéis de fibra de vidro rasgados. Por outro lado, pairava no ar um estranho odor. Pior ainda era o facto de alguns dos painéis de plástico em volta das janelas terem sido arrancados, deixando ver o forro isolador prateado e os molhos de fios eléctricos. De súbito, tornava-se-lhe demasiado claro que se encontrava dentro de uma grande máquina de metal e perguntava a si mesma se não teria cometido um erro, mas Casey Singleton já lhe fazia gestos para que ocupasse um assento, mesmo na frente da cabina central, virado para uma câmara que a espreitava lá do alto.

 

Jennifer sentou-se ao lado de Casey Singleton e esperou que um técnico da Norton, um homem de fato-macaco, lhe apertasse o cinto de segurança. Tratava-se do tipo de cinto usado pelas hospedeiras de bordo durante os voos regulares. Duas correias de lona verde passavam-lhe por cima dos ombros e juntavam-se na cintura. Depois, existiam duas outras correias, mais largas, que se cruzavam por sobre as coxas. O conjunto era fixado por pesadas fivelas de metal. A coisa parecia séria.

 

O homem de fato-macaco apertou as correias com toda a força, grunhindo de esforço.

 

Jesus! exclamou Jennifer. É preciso ficarem tão apertadas?

 

Minha senhora, precisa delas tão apertadas quanto possível disse o homem. Se ainda conseguir respirar... é porque estão frouxas. Consegue sentir como lhe apertam o corpo?

 

Sim.

 

É assim que terão de estar quando voltar a pô-las. Agora, isto aqui é o sistema de abertura... explicou o homem. Experimente abri-lo.

 

Para que preciso de saber...

 

Para o caso de uma emergência. Abra-o, por favor.

 

Jennifer accionou o fecho. As correias soltaram-se do seu corpo, aliviando a pressão.

 

Volte a colocá-las outra vez, se não se importar...

 

Jenniffer colocou novamente as correias, tal como vira fazer. Não era difícil. Aquela gente complicava tanto uma coisa tão simples...

 

Agora, aperte-as, por favor, minha senhora. Jennifer apertou as correias.

 

Com mais força.

 

Se precisar delas apertadas, fá-lo-ei mais tarde.

 

Minha senhora, quando perceber que precisa delas mais apertadas... já será demasiado tarde. Faça-o agora, sim?

 

A seu lado, Casey Singleton colocava calmamente as correias de segurança, apertando-as com brutalidade. Cravavam-se-lhe nas coxas e nos ombros. Casey suspirou e recostou-se.

 

Bom, creio que as senhoras já estão preparadas disse o homem. Desejo-lhes um passeio agradável.

 

Virou-se e encaminhou-se para a porta. O piloto, Rawley apareceu vindo da cabina de pilotagem, a abanar a cabeça.

 

Senhoras... disse. Peço-lhes que reconsiderem. Olhava principalmente para Casey Singleton e quase parecia zangado com ela.

 

Põe esta coisa a voar, Teddy retorquiu Casey.

 

É a tua melhor resposta?

 

A melhor e a última.

 

O piloto desapareceu. O intercomunicador soltou um estalido.

 

Fechem as portas, por favor ouviu-se.

 

As portas fecharam-se, com duas pancadas que soaram a oco. O ar ficou ainda mais frio. Jennifer estremeceu, envolta nas correias de segurança.

 

Olhou para cima dos ombros, para as fileiras de lugares vazios. Depois, olhou para a companheira.

 

Casey Singleton fitava o vazio na sua frente.

 

Jennifer escutou o zumbido dos motores a jacto quando estes arrancaram, um zumbido que foi subindo de tom. O intercomunicador soltou um clique e a voz do piloto disse:

 

Torre, aqui Norton zero um, peço autorização para avançar. Clique.

 

Roger, zero um, pode seguir para a pista dois, contacte ponto seis. Clique.

 

Roger, torre.

 

O avião começou a deslocar-se. Jennifer viu, pelas janelas, que o céu estava a aclarar. Alguns momentos depois, o avião voltou a parar.

 

Que estão eles a fazer? perguntou Jennifer.

 

A pesar o avião explicou Casey. Pesam-no antes e depois, para garantir que simulámos as condições de voo.

 

Pesam-no... numa balança?

 

Sim... incorporada na pista. Clique.

 

Teddy, preciso que avances mais meio metro. Clique.

 

Um momento.

 

Um zumbido dos motores aumentou. Jennifer sentiu o avião a deslocar-se para a frente, muito lentamente, para voltar a parar. Clique.

 

Obrigado, está perfeito. Cinquenta e sete, dois sete G W e CG a trinta e dois por cento de MAC. Tal como queríamos.

 

Clique.

 

Adeus, rapazes, até logo. Clique.

 

Torre, voo zero um, peço autorização para descolagem. Clique.

 

Roger, zero um, pista três livre, autorizado descolar. Clique.

 

Roger.

 

O avião começou a rolar, com o zumbido dos motores a aumentar até se transformar num rugido profundo, muito mais alto do que qualquer outro motor de avião que Jennifer jamais ouvira. Sentia os saltos das rodas sobre as fendas da pista. Depois, de súbito, viram-se a subir, com o céu azul no exterior das janelas. Estavam no ar.

 

Clique.

 

Muito bem, minhas senhoras, vamos subir para o nível três sete zero, ou seja, para os onze mil metros de altitude, para a seguir descrevermos círculos entre Yuma e Carstairs, no Nevada, durante todo o tempo da nossa excursão. Estão confortáveis? Se olharem para a esquerda poderão ver o avião de escolta a aproximar-se.

 

Jennifer olhou para a janela e viu um caça a jacto prateado a brilhar sob a luz da manhã. Encontrava-se tão perto que conseguia ver o piloto a acenar mas depois, de repente, deslizou para trás.

 

Clique.

 

Hum, provavelmente não o iremos ver muitas vezes, porque seguirá por cima e por trás de nós, fora da nossa esteira, pois é esse o lugar mais seguro. Neste momento estamos a chegar aos três mil e seiscentos metros e Miss Malone talvez queira engolir em seco, uma vez que não subimos tão lentamente como um avião das linhas comerciais.

 

Jennifer engoliu e ouviu um estalo nas orelhas. A seguir perguntou:

 

Porque estamos a subir tão depressa?

 

O piloto quer ganhar altitude rapidamente, para arrefecer o avião explicou Casey.

 

Arrefecer o avião?

 

Aos onze mil metros, a temperatura do ar é de cinquenta graus negativos. Neste momento, o avião está mais quente e as suas diferentes partes arrefecem a ritmos diferentes. Durante um voo prolongado, tal como durante a travessia do Pacífico, todas as partes do avião ficam a essa temperatura. Uma das coisas que vamos verificar é se os cabos se comportam de uma maneira diferente a baixa temperatura. Por isso, o avião tem de ser colocado a uma altitude que o arrefeça rapidamente. Os testes só se iniciarão depois disso acontecer.

 

Estamos a falar de quanto tempo? perguntou Jennifer.

 

O período normal de arrefecimento é de duas horas.

 

Vamos ficar aqui sentadas durante duas horas?

 

Foi você quem quis vir lembrou-lhe Casey, olhando-a.

 

Vamos passar duas horas sem fazer nada? Clique.

 

Ora, tentaremos entretê-la, Miss Malone disse o piloto. Estamos agora a seis mil e seiscentos metros e a subir. Precisamos de mais alguns minutos para atingirmos a altitude de cruzeiro. Seguimos a duzentos e oitenta e sete nós e estabilizaremos a trezentos e quarenta, o que corresponde^a Mach zero vírgula oito ou a oitenta por cento da velocidade do som. É a velocidade de cruzeiro normal para os aviões comerciais. Estão a sentir-se bem?

 

Pode ouvir-nos? perguntou Jennifer.

 

Posso ouvi-la e posso vê-la. Se olhar para a sua direita, também me pode ver.

 

Um dos monitores que se encontrava na cabina, na frente delas, iluminou-se. Jennifer viu um ombro do piloto, a sua cabeça e os conjuntos de comandos na sua frente. Entrava uma luz brilhante pela janela.

 

Já se encontravam suficientemente altos para que o sol penetrasse pelas janelas do avião. Contudo, o interior continuava frio. Como se sentara no centro da cabina, Jennifer não conseguia ver o solo pelas janelas.

 

Olhou para Casey, que sorriu.

 

Clique.

 

Ah, muito bem, estamos agora no nível três sete zero, Doppler limpo, nenhuma turbulência e um dia magnífico nas vizinhanças. As senhoras quererão fazer o favor de desapertar os cintos e vir até à cabina?

 

Pensei que não podíamos andar de um lado para o outro.

 

Neste momento é perfeitamente seguro disse Casey.

 

Jennifer libertou-se das correias e acompanhou Casey, através da primeira classe, até à cabina de pilotagem. Sentia a ligeira vibração do avião por baixo dos seus pés, mas o aparelho mantinha-se estável. A porta da cabina de pilotagem estava aberta. Viu Rawley, na companhia de um segundo homem que não lhe foi apresentado, e de um terceiro que trabalhava com um conjunto de instrumentos. Jennifer parou à entrada, junto de Casey, e espreitou para o interior.

 

Muito bem, Miss Malone começou Rawley, entrevistou Mister Barker, não é verdade?

 

Sim.

 

Que lhe disse ele a respeito da causa do acidente?

 

Que se verificou uma saída de slats.

 

Pois bem, preste atenção. Isto, aqui, é o manípulo de flaps e slats. Estamos à velocidade de cruzeiro e à altitude de cruzeiro. Agora, vou fazer sair os slats. Rawley estendeu a mão para o manípulo entre os assentos.

 

Um momento! Deixe-me colocar os cintos!

 

Está em completa segurança, Miss Malone.

 

Quero sentar-me, pelo menos.

 

Então... sente-se.

 

Jennifer recuou para a cabina de passageiros mas verificou que Casey continuava de pé junto à porta... e a olhava. Sentindo-se parva, voltou para junto dela.

 

Vamos a isto.

 

Rawley empurrou o manípulo para baixo. Jennifer ouviu um fraco rumor que durou apenas alguns segundos. Nada mais. O nariz do avião subiu um pouco e estabilizou-se.

 

Os slats estão saídos. Rawley apontou para o painel de instrumentos. Vê a velocidade? Vê a altitude? E vê aquele indicador que diz slats? Acabámos de duplicar as condições que Mister Barker insiste que provocaram a morte a três pessoas, neste mesmo avião. Como pode ver, não aconteceu nada. A atitude do avião está firme. Quer experimentar outra vez?

 

Sim respondeu Jennifer, que não sabia que mais poderia responder.

 

Muito bem. Vamos recolher os slats. Desta vez, talvez queira ser a senhora a fazê-lo, Miss Malone. Ou então, talvez prefira chegar-se às janelas e ver o que realmente acontece quando os slats saem da asa. É engraçado.

 

Rawley carregou num botão.

 

Ah, Centro Norton, aqui zero um, podem verificar-me os monitores? Ficou à escuta por instantes. Está bem, obrigado. Miss Malone, pode chegar-se um pouco para a frente, para que os seus amigos lá em baixo a possam ver por aquela câmara? perguntou, apontando para a câmara no tecto da cabina. Também pode acenar-lhes.

 

Jennifer acenou, sentindo-se tola.

 

Miss Malone, quantas vezes quer que os slats saiam e recolham para satisfazer as suas câmaras?

 

Bom, não sei... Sentia-se mais tola de minuto a minuto. Aquele voo de teste começava a parecer-lhe uma armadilha. As imagens fariam com que Barker passasse por estúpido. Toda a história seria ridícula e...

 

Podemos continuar nisto durante todo o dia, se quiser dizia Rawley. Não há qualquer problema com o N-Vinte e Dois quando os slats saem à velocidade de cruzeiro. O avião aguenta bem.

 

Tente mais uma vez pediu Jennifer, já contraída.

 

Olhe, aqui está a alavanca. Levante a pequena tampa de metal e desça-a cerca de dois centímetros e meio.

 

Jennifer sabia o que o homem pretendia. Queria incluí-la nas imagens que estavam a ser recebidas lá em baixo.

 

É melhor que seja o senhor a fazê-lo.

 

Sim, senhora. Como quiser.

 

Rawley baixou a alavanca, ouviu-se o rumor, e o nariz do avião subiu um pouco. Tal como anteriormente.

 

Muito bem prosseguiu Rawley. O avião de escolta está lá fora, a gravar imagens dos slats a sair, pelo que terá ângulos exteriores mostrando toda a acção. Está bem? Vou recolher os slats.

 

Jennifer olhava-o, impaciente.

 

Se não foram os slats que causaram o acidente... então o que foi? Casey abriu a boca pela primeira vez.

 

Quanto tempo, Teddy?

 

Estamos cá em cima há vinte e três minutos.

 

Será o suficiente?

 

Talvez. Pode acontecer de um momento para o outro.

 

Pode acontecer... o quê? perguntou Jennifer.

 

A primeira parte da sequência explicou Casey, que deu origem ao acidente.

 

A primeira parte?

 

Sim confirmou Casey. Quase todos os acidentes com aviões são o resultado de uma sequência de acontecimentos. Chamamos-lhe "cascata". Nunca se deve a um único factor. Há uma cadeia de acontecimentos, uns atrás dos outros. Neste avião, pensamos que o acontecimento inicial foi uma informação errónea, causada por uma peça em mau estado.

 

Uma peça em mau estado? repetiu Jennifer, com uma sensação de mau agoiro.

 

A sua mente começou imediatamente a remontar a gravação, de modo a evitar aquela questão embaraçosa. Singleton dissera que seria a primeira parte da sequência. Não precisava de a pôr em destaque, em especial se fosse apenas um entre vários acontecimentos. O seguinte também deveria ser importante, e talvez até mais. No fim de contas, o que acontecera ao

545 fora aterrorizador e espectacular, envolvera todo o avião, pelo que não era razoável atirar as culpas para uma má peça...

 

Disse que houve uma cadeia de acontecimentos...

 

É verdade confirmou Casey. Pensamos que tiveram lugar várias coisas, que conduziram ao resultado final que já conhecemos.

 

Jennifer sentiu os ombros a descair.

 

Esperaram. Nada.

 

Passaram-se cinco minutos. Jennifer tinha frio e estava sempre a olhar para o relógio.

 

De que estamos à espera, com exactidão? perguntou.

 

Um pouco de paciência respondeu Casey.

 

Então, de repente, ouviu-se um ping electrónico e Jennifer viu palavras cor de âmbar a brilhar no painel de instrumentos. Diziam: DISCORDÂNCIA

 

DE SLATS.

 

Aí está anunciou Rawley.

 

Aí está... o quê?

 

A indicação de que o FDAU pensa que os slats não se encontram onde deveriam estar. Como vê, o manípulo dos slats está puxado para cima, pelo que os slats deveriam estar recolhidos... e nós sabemos que estão. No entanto, o avião está a captar uma leitura que lhe diz que não estão. Neste caso, sabemos que o aviso se deve a um sensor de proximidade avariado, na asa direita. O sensor deveria ler a presença do metal dos slats, mas foi danificado. Por isso, quando arrefece, comporta-se de um modo aleatório. Diz ao piloto que os slats estão saídos, quando não estão.

 

Jennifer abanava a cabeça.

 

Sensor de proximidade... Não estou a perceber. Que tem isto a ver com o voo cinco quatro cinco?

 

No cinco quatro cinco, a cabina recebeu um aviso de que havia algo de errado com os slats explicou Casey. Os avisos desse tipo são relativamente frequentes. O piloto não sabe se há na verdade algo de errado ou se é o sensor que está avariado. Por isso, tenta desligar o aviso, fazendo sair os slats e voltando a recolhê-los.

 

Nesse caso, o piloto do cinco quatro cinco fez sair os slats para apagar o sinal de aviso?

 

Sim.

 

Mas... não foi a saída dos slats que causou o acidente...

 

Pois não. Acabámos de lho demonstrar.

 

Então... o que foi?

 

Por favor, minhas senhoras disse Rawley, voltem aos vossos lugares porque vamos tentar reproduzir o acontecimento.

 

                   A BORDO DO VOO TPA 545

                   6:25

 

De volta à cabina de passageiros, Casey colocou as correias de segurança sobre os ombros e apertou-as com firmeza. Olhou para Jennifer Malone, que suava e tinha o rosto pálido.

 

Mais apertadas disse-lhe.

 

Já o fiz...

 

Casey esticou-se, agarrou-lhe a correia em volta da cintura e puxou-a com todas as suas forças.

 

Eh, por amor de Deus... grunhiu Jennifer.

 

Não simpatizo consigo declarou Casey, mas não quero que lhe aconteça alguma coisa enquanto eu estiver perto.

 

Jennifer limpou a testa com as costas da mão. O suor escorria-lhe pelo rosto apesar da cabina continuar fria.

 

Casey pegou num saco de papel branco e prendeu-o por baixo da coxa da mulher.

 

Para além disso, não quero que vomite em cima de mim acrescentou.

 

Acha que vamos precisar disso?

 

Posso garanti-lo retorquiu Casey.

 

Os olhos de Jennifer Malone saltitavam de um lado para o outro.

 

Escute disse, talvez fosse melhor cancelarmos isto...

 

Está a mudar de ideias?

 

Posso ter-me enganado continuou Jennifer.

 

A respeito de quê?

 

Não devíamos ter embarcado no avião. Podíamos ver tudo lá em baixo.

 

Agora, é demasiado tarde respondeu Casey.

 

Sabia que estava a ser dura para com a mulher porque também ela se encontrava assustada, não porque achasse que Teddy falara a sério quando dissera que a fuselagem podia não aguentar, uma vez que o homem não era suficientemente louco para se meter num avião que não tivesse sido completamente verificado. Não se afastara do aparelho nem por um minuto durante toda a investigação das estruturas, uma vez que já nessa altura sabia que o teria de pôr no ar dentro de alguns dias. Teddy não era estúpido.

 

Contudo, era um piloto de testes...

 

... e todos os pilotos de testes eram loucos.

 

Clique.

 

Muito bem, minhas senhoras, vamos iniciar a sequência. Estão bem presas aos assentos?

 

Sim respondeu Casey.

 

Jennifer Malone não disse uma palavra. A sua boca mexia-se mas não emitia um som. Clique.

 

Ah, escolta alfa, aqui zero um, iniciando oscilações. Clique.

 

Roger, zero um, estamos aqui, inicie quando quiser. Clique.

 

Centro Norton, aqui zero um. Verificação de monitores. Clique.

 

Monitores confirmados, um a trinta. Clique.

 

Aqui vamos nós, rapazes... agora!

 

Casey observava o monitor lateral, que mostrava Teddy na cabina de pilotagem. Os seus movimentos eram calmos e tranquilos, e a voz mantinha-se descontraída.

 

Clique.

 

Minhas senhoras, já tenho o meu sinal de discordância de slats e vou fazê-los sair para o apagar. Os slats estão saídos. Sobrepus-me ao piloto automático... o nariz sobe, a velocidade diminui... e estou em perda...

 

Casey ouviu os estridentes alarmes electrónicos que tocavam insistentemente, bem como o aviso audio, uma voz gravada, sem entoação e repetitiva:

 

Perda... perda... perda... Clique.

 

Vou baixar o nariz do avião para evitar a situação de perda. O avião inclinou-se e começou a mergulhar.

 

Era como se estivessem a precipitar-se no solo.

 

Lá fora, o rugido dos motores tornou-se num guincho. O corpo de Casey comprimia-se, com toda a força, contra as correias de segurança. A seu lado, Jennifer começou a gritar, de boca aberta, emitindo um guincho constante que se fundia com o dos motores.

 

Casey sentiu-se tonta. Tentou contar quanto tempo durava o mergulho. Cinco... seis... sete... oito segundos. Quanto tempo teria durado a descida inicial?

 

Pouco a pouco, o avião começou a endireitar-se, para sair do mergulho. O guincho dos motores diminuiu e passou para um registo mais grave. Casey sentiu o corpo ganhar peso, tornando-se pesado, mais pesado, cada vez mais pesado... até as faces serem repuxadas para baixo e os braços ficarem colados aos apoios do assento. Era a força G. Naquele momento, deviam estar sujeitos a mais de dois G... e Casey pesava cento e vinte e cinco quilos. Afundou-se no assento como se estivesse a ser empurrada por mãos gigantescas.

 

A seu lado, Jennifer deixara de gritar e emitia agora um gemido baixo e contínuo. A sensação de peso diminuiu quando o avião começou novamente a subir. Ao princípio, a inclinação foi razoável, mas a seguir tornou-se incómoda e acabou por parecer que subiam na vertical. Os motores rugiam. Jennifer gritava. Casey tentou contar os segundos mas não foi capaz. Não tinha energias para se concentrar.

 

De repente, sentiu o estômago começar a subir. Seguiram-se as náuseas e viu o monitor erguer-se do chão por instantes, embora continuasse no seu lugar graças às correias que o fixavam. No cimo da subida era como se não tivessem peso... e Jennifer lançou as mãos à boca. A seguir, o avião mudou de posição... e começou novamente a descer.

 

Clique.

 

Segunda oscilação...

 

Outro mergulho para o solo.

 

Jennifer afastou as mãos da boca e gritou, com muito mais força do que anteriormente. Casey esforçou-se por conservar as mãos agarradas ao apoio dos braços e por manter a mente ocupada. Esquecera-se de contar, esquecera-se de...

 

Novamente o peso.

 

A pressão.

 

O afundamento no assento.

 

Casey não se podia mover. Nem sequer era capaz de virar a cabeça.

 

Depois... estavam outra vez a subir, ainda mais na vertical, com o guincho dos motores a soar-lhe nos ouvidos, e Casey sentiu que Jennifer se estendia para ela e se lhe agarrava ao braço. Virou-se e viu-a, pálida, de olhos esbugalhados, a gritar:

 

Parem! Parem com isto...

 

O avião chegava ao alto da subida. O estômago a subir, uma sensação de enjoo. A expressão assustada de Jennifer, com a mão a tapar a boca. O vomitado que lhe escorria entre os dedos.

 

Mudança de posição do avião.

 

Nova descida.

 

Clique.

 

Vou abrir os compartimentos de bagagem, para terem a sensação de como foram as coisas.

 

Ao longo das duas coxias, os compartimentos escancararam-se e as duas mulheres viram cair blocos brancos de sessenta centímetros de comprimento. Eram feitos de inofensiva esferovite, mas ressaltaram para um lado e para o outro, na cabina, como uma densa tempestade branca, deslocando-se na direcção da cabina de pilotagem. Taparam-lhes a visão por todos os lados, até que, um a um, foram caindo, rolando e ficaram imóveis no pavimento. O ruído dos motores alterou-se.

 

A sensação do peso a aumentar.

 

O avião novamente a subir.

 

O piloto do F-14 de escolta viu o enorme avião da Norton a lançar-se para cima, para as nuvens, subindo com uma inclinação de vinte e um graus.

 

Teddy disse, pelo rádio, que diabo estás tu a fazer?

 

Apenas a reproduzir os dados fornecidos pelo registo de voo.

 

Jesus Cristo! exclamou o piloto do caça.

 

O grande jacto de passageiros rugiu para o alto, atravessando a cobertura de nuvens a nove mil e cem metros de altitude. Ainda cerca de mais cem metros antes de perder velocidade, aproximando-se da entrada em perda.

 

O nariz virou-se novamente para baixo.

 

Jennifer vomitou, de uma maneira explosiva, para dentro do saco. O vomitado salpicou-lhe as mãos e escorreu-lhe para o colo. Virou-se para Casey, com o rosto verde, enfraquecido e contorcido.

 

Por favor, acabem com isto...

 

O avião mudava de posição e começava a mergulhar.

 

Então não quer reproduzir tudo o que se passou, para ficar registado nas câmaras? perguntou Casey, observando-a. Dará umas belas imagens. Só faltam mais dois ciclos de subidas e descidas...

 

Não! Não...

 

O avião, todo inclinado, precipitava-se em direcção ao solo. Sem tirar os olhos de Jennifer, Casey pediu:

 

Teddy! Teddy! Tira as mãos dos comandos!

 

Os olhos de Jennifer abriram-se ainda mais, horrorizados. clique.

 

Roger, a tirar as mãos dos comandos.

 

O avião endireitou-se imediatamente com movimentos muito suaves. O grito dos motores enfraqueceu e tornou-se um rugido constante e firme. Os blocos de esferovite caíram, deram um ou dois saltos e imobilizaram-se.

 

Voo nivelado.

 

A luz do Sol entrava a jorros pelas janelas.

 

Jennifer limpou o vomitado dos lábios com as costas da mão. Com uma expressão confusa, olhou em volta, para a cabina.

 

Que... Que aconteceu?

 

O piloto largou os comandos.

 

Jennifer sacudiu a cabeça, sem compreender. Tinha os olhos vidrados. Inquiriu, num tom fresco:

 

Tirou as mãos...?

 

Isso mesmo confirmou Casey com um aceno.

 

Então, agora...

 

O piloto automático tomou conta do avião.

 

Jennifer Malone afundou-se no assento e encostou a cabeça, fechando os olhos.

 

Não percebo disse.

 

Para acabar com o incidente a bordo do voo cinco quatro cinco, o piloto só tinha de largar os comandos do avião. Se o tivesse feito, o incidente terminaria imediatamente.

 

Então por que não o fez? perguntou Jennifer Malone, com um suspiro.

 

Casey não respondeu. Virou-se para o monitor e disse:

 

Teddy, volta para trás.

 

                       CENTRO DE TESTES DE YUMA

                       9:45

 

De volta à terra, Casey atravessou a sala principal do centro de testes e entrou na sala dos pilotos. Tratava-se de uma velha sala apainelada a madeira, reservada aos pilotos de teste, datada dos tempos em que a Norton ainda fabricava aviões militares. Estava mobilada com um sofá verde, cheio de altos e baixos e desbotado pelo sol, e por um par de cadeiras metálicas encostadas a uma mesa com um tampo de formica todo riscado. O único objecto novo, naquela sala, era um pequeno televisor com um gravador vídeo incorporado. Encontrava-se ao lado de uma amolgada máquina de venda de Coca-Cola, ornamentada com um cartão que dizia; AVARIADA. Na janela havia um ruidoso aparelho de ar condicionado. Lá fora, nas pistas do aeroporto, o calor era já ardente e a sala mantinha-se incomodativamente quente.

 

Casey espreitou pela janela, para a equipa do Newsline, que caminhava em volta do avião do voo 545, filmando-o na pista. O avião brilhava sob o sol do deserto. A equipa da televisão parecia confusa, sem saber muito bem o que fazer. Apontavam as câmaras, como se estivessem a enquadrar uma imagem, mas baixavam-nas imediatamente. Tinham o ar de quem estava à espera.

 

Casey abriu a pasta de cartolina que levara consigo e observou as folhas de papel que lá se encontravam dentro. As fotocópias a cores que pedira a Richman tinham saído bastante bem. Os telexes eram satisfatórios. Estava tudo em ordem.

 

Dirigiu-se à televisão que mandara instalar ali. Enfiou uma cassete no gravador e ficou à espera.

 

Aguardava a chegada de Jennifer Malone.

 

Casey estava cansada. De súbito, lembrou-se dos pensos. Arregaçou a manga e arrancou os quatro pensos circulares dispostos em fila sobre a pele do braço. Eram de escopolamina, contra o enjoo. Fora graças a eles que não vomitara no avião. Ao contrário da Malone, soubera perfeitamente o que a esperava.

 

Casey não tinha qualquer simpatia pela outra mulher. Só desejava poder acabar com tudo aquilo e o próximo passo seria o último. Era o fim da história.

 

Na Norton, a única pessoa que sabia o que ela preparava era Fuller, o advogado. Este compreendera imediatamente quando Casey lhe telefonara a partir da Video Imaging, o laboratório de vídeo. Fuller reconhecera as implicações da entrega da gravação ao Newsline. Percebera o que a gravação poderia fazer ao programa, e como seria possível meter o Newsline num beco sem saída.

 

O voo de teste fora o fecho.

 

Continuava à espera de Malone.

 

Cinco minutos depois, Jennifer Malone entrou na sala e bateu com a porta, fechando-a atrás de si. Vestia o fato-macaco de um piloto de testes, tinha a cara lavada e o cabelo puxado para trás.

 

Para além disso, estava muito zangada.

 

Não sei o que pretenderam provar, lá em cima declarou. Tiveram o vosso momento de divertimento e gravaram-no. Pregaram-me um susto de morte. Espero que tenham ficado satisfeitos, porque isso não irá alterar em nada a minha história. O Barker tem razão. O vosso avião tem problemas com os slats, tal como ele afirmou. A única coisa que se esqueceu de dizer foi que esse problema só acontece quando o piloto automático está desligado. Foi o que a vossa pequena brincadeira de hoje acabou por demonstrar, mas a nossa história não será modificada. O avião é uma armadilha mortal. Quando emitirmos a peça, nem sequer o conseguirão vender em Marte. Vamos dar cabo desse avião de merda... e também de vocês.

 

Casey não respondeu. Limitou-se a pensar: é jovem. Jovem e estúpida. Contudo, ficou surpreendida com a dureza do seu próprio julgamento. Talvez tivesse aprendido qualquer coisa com aqueles homens, mais velhos e mais duros, que trabalhavam na fábrica. Homens que sabiam o que era o poder, em oposição às simples poses e ares empertigados.

 

Deixou Malone desabafar durante mais algum tempo e acabou por dizer:

 

Na realidade, não irá fazer nada disso.

 

Ah, não? Então esperem!

 

A única coisa que pode fazer é relatar o que na verdade se passou durante o voo cinco quatro cinco... e talvez não queira fazê-lo.

 

Esperem até sábado e vão ver! explodiu Jennifer Malone, numa espécie de silvo.

 

Sente-se ordenou Casey, com um suspiro.

 

Diabos me levem se...

 

Alguma vez se interrogou... continuou Casey. Como foi que a recepcionista de um laboratório de vídeo soube que vocês estavam a fazer uma história sobre a Norton? Como é que tinha o número do seu telemóvel e soube que era consigo que devia falar?

 

Jennifer Malone calou-se.

 

Alguma vez perguntou a si mesma como foi que o advogado da Norton descobriu tão rapidamente que vocês tinham a gravação? E como obteve uma declaração, reconhecida por um notário ajuramentado, da recepcionista que vos entregou a cassete?

 

Jennifer Malone continuou calada.

 

O Ed Fuller entrou no laboratório de vídeo apenas alguns minutos depois de a senhora ter saído de lá, Miss Malone. Na verdade, até se preocupou com a possibilidade de dar de caras consigo.

 

O que é isto...? perguntou Jennifer, de testa franzida.

 

Terá perguntado a si mesma prosseguiu Casey por que motivo o Ed Fuller insistiu tanto em que assinassem um documento dizendo que não tinham obtido a gravação das mãos de uma empregada da Norton?

 

É óbvio. A gravação é prejudicial para vocês e ele não queria que a empresa fosse acusada...

 

Acusada por quem!

 

Por... Não sei. Pelo público.

 

É melhor sentar-se disse Casey, abrindo a pasta de cartolina. Lentamente, Jennifer sentou-se, de testa franzida.

 

Um momento! exclamou. Está a dizer-me que quem me telefonou por causa da gravação não foi aquela recepcionista?

 

Casey limitou-se a olhá-la.

 

Então, quem o fez? insistiu Jennifer. Casey não respondeu.

 

Foi você?

 

Casey acenou uma confirmação.

 

Quis que eu tivesse a gravação?

 

Sim.

 

Porquê? Casey sorriu.

 

Entregou a Jennifer a primeira folha de papel.

 

Isto é o registo de inspecção de uma peça, certificado ontem mesmo por um inspector da FAA, que diz respeito ao sensor de proximidade número dois do voo cinco quatro cinco. A peça foi considerada como estando estalada e defeituosa. A estaladela é antiga.

 

Não estou a fazer uma história sobre peças declarou Jennifer.

 

Pois não confirmou Casey. Não está, porque aquilo que o teste de hoje lhe demonstrou foi que qualquer piloto competente teria sabido lidar com o aviso de slats originado pela peça defeituosa. Tudo o que tinha a fazer era deixar o avião sob o comando do piloto automático. Contudo, no voo cinco quatro cinco, o piloto não o fez.

 

Já verificámos isso afirmou Jennifer. O comandante do cinco quatro cinco era um piloto excepcional.

 

É verdade admitiu Casey, passando-lhe uma segunda folha de papel.

 

Este é o manifesto da tripulação submetida à FAA juntamente com o plano de voo, na data de partida do voo cinco quatro cinco.

 

             John Zhen Chang, comandante 5/7/51 M

             Leu Zan Ping, co-piloto 3/11/59 M

             Richard Yong, co-piloto 9/9/61 M

             Gerhard Reimann, co-piloto 7/23/49 M

             Thomas Chang, co-piloto 6/29/70 M

             Henri Marchand, técnico de voo 4/25/69 M

             Robert Sheng, técnico de voo 6/13/12 M

 

Jennifer lançou-lhe uma olhadela e pô-lo de lado.

 

E isto é o manifesto da tripulação que recebemos da Transpacific no dia a seguir ao incidente.

 

           JOHN ZHEN CHANG, COMANDANTE 5/7/51

           LEU ZAN PING, CO-PILOTO 3/11/59

           RICHARD YONG, CO-PILOTO 9/9/61

           GERHARD REIMANN, CO-PILOTO 7/23/49

           HENRI MARCHAND, TÉCNICO DE VOO 4/25/69

           THOMAS CHANG, TÉCNICO DE VOO 6/29/70

           ROBERT SHENG, TÉCNICO DE VOO 6/13/12

 

Jennifer olhou a lista e encolheu os ombros.

 

É igual.

 

Não, não é. Num deles, Thomas Chang vem indicado como co-piloto. No outro, aparece classificado como técnico de voo.

 

Foi um erro burocrático afirmou Jennifer.

 

Não afirmou Casey, abanando a cabeça e passando-lhe uma nova folha.

 

Isto é uma página da revista de voo da Transpacific, mostrando o comandante Chang e a sua família. Foi-nos enviada por uma hospedeira da Transpacific que queria que conhecêssemos a verdadeira história. Como pode ver, os filhos chamam-se Erica e Thomas Chang. Thomas Chang é filho do comandante e encontrava-se entre a tripulação do voo cinco quatro cinco.

 

Jennifer Malone franziu a testa.

 

Os Chang são uma família de pilotos. O Thomas Chang é piloto, certificado para vários tipos de aviões. No entanto, não está certificado para voar o N-Vinte e Dois.

 

Nada disso me interessa disse Jennifer.

 

No momento do incidente prosseguiu Casey, o comandante, John Chang, abandonara a cabina e dirigira-se à traseira do avião à procura de café. Encontrava-se na traseira quando o incidente teve lugar e ficou gravemente ferido. Foi submetido a cirurgia cerebral em Vancouver, há dois dias. O hospital pensou que se tratava de um co-piloto, mas a sua identidade foi agora confirmada como sendo a de John Zhen Chang.

 

Jennnifer Malone abanava a cabeça. Casey entregou-lhe um memorando:

 

     DE: S. NIETO, REP VANC

     PARA: C. SINGLETON, CENTRO DE TESTES, YUMA

ALTAMENTE CONFIDENCIAL.

AS AUTORIDADES CONFIRMARAM AGORA A IDENTIFICAÇÃO POST-MORTEM DO MEMBRO DA TRIPULAÇÃO FERIDO QUE SE ENCONTRA NO HOSPITAL DE VANCOUVER COMO SENDO JOHN ZHEN CHANG, O COMANDANTE DO VOO 545 DA TRANSPACIFIC.

 

O Chang não se encontrava na cabina de pilotagem afirmou Casey, mas sim na traseira do avião, onde o seu boné foi encontrado. Por isso, quando o incidente ocorreu, a cadeira do comandante encontrava-se ocupada por outra pessoa qualquer.

 

Casey ligou a televisão e pôs o gravador de vídeo em movimento.

 

Estes são os momentos finais da gravação que vocês obtiveram da recepcionista. Vê-se que a câmara desliza para a frente do avião, rodopiando, para eventualmente se alojar na porta da cabina de pilotagem. Porém, antes disso acontecer... aqui mesmo!... Casey imobilizou a imagem... podemos ver a cabina de pilotagem.

 

Não muito respondeu Jennifer. Estão ambos virados para a frente.

 

Percebe-se que o piloto usa um cabelo extremamente curto explicou Casey. Olhe para a fotografia que aí tem. O Thomas Chang tem o cabelo quase rapado.

 

Jennifer abanava a cabeça, agora com muito mais força.

 

Não acredito! A imagem não é suficientemente boa, o perfil está a três quartos e não dá para fazer uma identificação. Não tem qualquer significado.

 

                   0544:59

                   ALARME

                   0545:00

                   CO-PIL.

                   0545:01

                  COMAN.

                   0545:02

                   ALARME

                   0545:03

                   CO-PIL.

                   0545:04

                   COMAN.

                   0545:11

                   CO-PIL.

 

O Thomas Chang usa um pequeno brinco na orelha. Pode confirmá-lo na fotografia, nessa página da revista. No vídeo, pode ver-se que esse mesmo brinco captou a luz... aqui.

 

Jennifer ficou silenciosa.

 

Isto é uma tradução das palavras pronunciadas, em chinês, na cabina de pilotagem, tal como constam na gravação que se encontra em vosso poder. Muitas delas são ininteligíveis, por causa dos sinais de alarme. Contudo, assinalámos, para si, as passagens mais relevantes.

 

     0544:59 ALARME perda perda perda

     0545:00 CO-PIL. o que (ininteligível) tu

     0545:01 COMAN. vou (ininteligível) corrigir o

     0545:02 ALARME perda perda perda

     0545:03 CO-PIL. tom larga o (ininteligível)

     0545:04 COMAN. que faço (ininteligível) ele

     0545:11 CO-PIL.

     tommy (ininteligível) quando (ininteligível)

     é preciso (ininteligível) o...

 

Casey voltou a pegar no papel.

 

Este documento não é para si, nem para ser referido publicamente, mas serve para corroborar a gravação que se encontra em vosso poder.

 

Deixou o filho a pilotar o avião? perguntou Jennifer Malone, num tom de espanto.

 

É verdade confirmou Casey. O John Chang permitiu um piloto não certificado aos comandos do N-Vinte e Dois. Em resultado disso morreram quatro pessoas, incluindo o próprio John Chang, e outras cinquenta e seis ficaram feridas. Pensamos que o avião se encontrava em piloto automático e que o Chang deixou o filho encarregar-se, momentaneamente, do voo. Depois, surgiu o aviso de slats e o filho fê-los sair para desligar o aviso. Contudo, o rapaz entrou em pânico, corrigiu demasiado... e deu-se o incidente. Também pensamos que, muito provavelmente, o Thomas Chang acabou por ficar inconsciente por causa dos violentos movimentos do avião, e que foi nessa altura que o piloto automático tomou conta do voo.

 

Temos aqui um tipo que, durante um voo comercial, deixou a merda do filho a pilotar o avião?! perguntou Jennifer Malone.

 

Sim confirmou Casey.

 

É essa a história?

 

Sim repetiu Casey, e têm em vosso poder uma gravação que o prova. Por isso mesmo, têm conhecimento dos factos. Mister Reardon declarou, para as câmaras, que tanto ele como os seus colegas de Nova Iorque viram a gravação até ao fim. Portanto, viram esta imagem da cabina. Agora, foram informados sobre o significado das imagens. Para além disso, fornecemo-vos provas complementares. Não todas, porque há mais. Também demonstrámos, durante o voo de teste, que não há nada de errado com o avião.

 

Nem toda a gente está de acordo... começou Jennifer.

 

Já não se trata de uma questão de opiniões, Miss Malone, mas sim de factos. A senhora está, indiscutivelmente, na posse dos factos. Se o Newsline não divulgar esses factos, de que a senhora agora tem conhecimento, e se fizer qualquer sugestão, com base neste incidente, de que há algo de errado com o N-Vinte e Dois processaremos o vosso programa por "desrespeito irresponsável" e intenções maliciosas. O Ed Fuller é muito conservador mas está certo de que ganharemos o processo, isto porque foram vocês mesmos quem adquiriu a gravação que prova o nosso caso. Agora... quer que Mister Fuller telefone a Mister Shenk para lhe explicar a situação, ou prefere ser você a fazê-lo? Jennifer Malone não respondeu.

 

Miss Malone?

 

Onde é que há um telefone? perguntou.

 

Ali, naquele canto.

 

Jennifer levantou-se e dirigiu-se ao telefone. Casey encaminhou-se para a porta.

 

Jesus Cristo! disse Jennifer, abanando a cabeça. O tipo deixa o filho a tomar conta de um avião cheio de gente? Como é que isso pode acontecer?

 

Gostava do filho respondeu Casey, encolhendo os ombros. Pensamos que já lhe permitira fazer o mesmo noutras ocasiões. Há razões para os pilotos comerciais serem obrigados a treinar-se intensivamente em equipamentos específicos, até serem certificados para determinados tipos de aviões. O rapaz não sabia o que estava a fazer... e foi apanhado.

 

Casey fechou a porta e pensou: "E tu também...

 

           YUMA

           10:05

 

Jesus Cristo! exclamou David Shenk. Tenho um buraco no programa do tamanho do Afeganistão e estás a dizer-me que tens uma história sobre peças falsificadas e sobre o "perigo dos pilotos amarelos"? É isso o que estás a dizer-me, Jennifer? Não vou passar uma treta dessas. Dariam cabo de mim. Não quero ser o Pat Buchanan das ondas aéreas. Que se lixe esse merda.

 

Dick retorquiu Jennifer, não é bem assim. Trata-se de uma tragédia familiar, de um tipo que adora o filho e...

 

Não a posso utilizar interrompeu-a Shenk. O tipo é chinês. Nem sequer posso aproximar-me de umas histórias dessas.

 

Matou quatro pessoas e feriu cinquenta e seis...

 

Que diferença é que isso faz? Estou muito desapontado contigo, Jennifer. Muito, muito, desapontado. Compreendes o que isso significa? Agora, tenho de passar a história do garoto aleijadinho, na cadeira de rodas.

 

Dick, eu não provoquei o acidente. Estou só a relatar a história...

 

Espera um momento! Que espécie de treta vem a ser essa?

 

Dick, eu...

 

Estás a relatar a tua incapacidade, mais nada declarou Shenk. Lixaste tudo, Jennifer. Tinhas uma história escaldante, uma história que eu queria, sobre uma porcaria de um produto americano... e dois dias depois apareces com uma merda a respeito de um tarado? Não foi o avião, foi o piloto... e a má manutenção... e as peças falsas...

 

Dick...

 

Avisei-te que não queria uma história sobre peças. Desta vez estragaste tudo, Jennifer. Na segunda-feira, ajustamos contas.

 

Shenk desligou.

 

                     GLENDALE

                     11:00

 

As imagens finais do Newsline ainda corriam na televisão quando o telefone de Casey tocou. Pegou-lhe e ouviu uma voz áspera e pouco familiar.

 

Casey Singleton?

 

Sim.

 

Fala Hal Edgarton.

 

Oh, como está, senhor?

 

Estou em Hong Kong e um dos meus amigos no conselho de administração acabou de me dizer que o Newsline não emitiu qualquer história sobre a Norton, esta noite.

 

É verdade, senhor.

 

Fico muito satisfeito declarou Edgarton. Porque será que não a emitiram?

 

Não faço ideia, senhor respondeu Casey.

 

Bom, fosse o que fosse que tenhas feito, é óbvio que deu resultado comentou Edgarton. Partirei para Pequim dentro de algumas horas, para assinar o acordo de venda. O John Marder deveria encontrar-se comigo mas ouvi dizer que, por qualquer razão, não chegou a sair da Califórnia.

 

Não sei nada a esse respeito, senhor.

 

Óptimo, ainda bem. Nos próximos dias iremos fazer algumas alterações na Norton. Entretanto, quero dar-te os parabéns, Casey. Estiveste sob grande pressão e fizeste um trabalho extraordinário.

 

Muito obrigada, senhor.

 

Hal.

 

Muito obrigada, Hal.

 

A minha secretária irá telefonar-te para combinar-mos um almoço, quando eu regressar. Continua o bom trabalho.

 

Edgarton desligou e a seguir surgiram outras chamadas. Uma foi de Mike Lee, que lhe deu os parabéns em tons reservados e lhe perguntou como conseguira impedir a emissão da história. Casey disse que nada tivera a ver com o assunto e que o Newsline, por qualquer razão, decidira não a passar.

 

Depois surgiram outras, de Doherty, Burne, Ron Smith e Norma, que afirmou: "Querida, estou orgulhosa de ti."

 

Finalmente, recebeu um telefonema de Teddy Rawley que, por acaso, se encontrava nas vizinhanças e se interrogara sobre o que estaria ela a fazer.

 

Estou muito cansada respondeu Casey. Fica para outra altura, sim?

 

- Está bem, garota, mas foi um grande dia. O teu dia.

 

Pois foi, Teddy, mas estou realmente muito cansada. Casey desligou o telefone e foi para a cama.

 

             GLENDALE

             Domingo, 17:45

 

Estava um belo fim de tarde e Casey encontrava-se de pé, no exterior da sua vivenda, quando Amos apareceu com o cão. O animal lambuzou-lhe a mão.

 

Então disse Amos, desta já te safaste.

 

É verdade confirmou Casey. Creio que sim.

 

Na fábrica, ninguém fala noutra coisa. Toda a gente diz que enfrentaste o Marder e não quiseste mentir a respeito do cinco quatro cinco. É verdade?

 

Mais ou menos.

 

Então, foste estúpida concluiu Amos. Devias ter mentido. Eles mentem. Tudo se resume a saber quais as mentiras que vão para o ar.

 

Amos...

 

O teu pai era jornalista e tu pensas que há uma qualquer espécie de verdade que tem de ser dita. Não há. Já não há verdades há muitos anos. Observei toda aquela escumalha quando do incidente da Aloha. Tudo o que lhes interessava eram os pormenores macabros. A hospedeira foi aspirada para fora do avião. Morreu antes de atingir a água? Ainda estaria viva? Era tudo o que pretendiam saber.

 

Amos... repetiu Casey, que queria que ele se calasse.

 

Eu sei prosseguiu o homem. É tudo entretenimento. Mas digo-te, Casey, que desta vez tiveste sorte. Para a próxima, podes não a ter. Não tornes isso um hábito. Recorda-te de uma coisa: são eles quem estabelece as regras, e o jogo nada tem a ver com a precisão, os factos ou a realidade. Não passa de um circo.

 

Casey não ia discutir com ele e afagou o cão.

 

Os factos são estes: as coisas mudaram prosseguiu Amos. Antigamente, nos velhos tempos, a imagem dos meios de comunicação correspondia mais ou menos à realidade. Agora, é tudo ao contrário. A imagem transmitida pelos meios de comunicação é a realidade. Por comparação, a vida do dia-a-dia parece muito monótona. Por isso, a vida do dia-a-dia é falsa e a imagem dos meios de comunicação é verdadeira. Por vezes, olho à minha volta, na sala, e a coisa mais real é a televisão. É brilhante, e vívida... e o resto da minha vida parece miserável e incolor. Acabo por desligar a maldita coisa... e dá sempre resultado. Tenho a minha vida de volta.

 

Casey continuava a afagar o cão. O dia escurecia e avistou um par de faróis que contornavam a esquina e subiam a rua na sua direcção. Casey subiu para o passeio.

 

Bom, estou a divagar disse Amos.

 

Boa noite, Amos respondeu Casey. O carro parou e a porta abriu-se.

 

Mamã!

 

A filha saltou-lhe para os braços e rodeou-a com as pernas.

 

Oh, mãe, tive tantas saudades tuas!

 

Também eu, querida respondeu. Também tive saudades tuas.

 

Jim saiu do carro e entregou a mochila a Casey. Na quase escuridão, não lhe via bem o rosto.

 

Boa noite disse.

 

Boa noite, Jim retorquiu Casey.

 

A filha pegou-lhe na mão e avançaram para casa. Escurecia cada vez mais e o ar estava frio. Quando Casey olhou para cima, avistou o rastro deixado pelos motores de um jacto de passageiros. Estava tão alto que ainda apanhava a luz do Sol e era uma linha branca e fina a cortar o céu do crepúsculo.

 

 

COMUNICADO NOTICIOSO, COPYRIGHT TELEGRAPH-STAR, INC.

TÍTULO: A NORTON VENDE 50 JACTOS DE PASSAGEIROS À CHINA.

AS CAUDAS SERÃO FABRICADAS EM XANGAI.

ESTA ENTRADA DE CAPITAL AJUDARÁ AO DESENVOLVIMENTO DE UM NOVO JACTO.

OS DIRIGENTES SINDICAIS CRITICAM A PERDA DE POSTOS DE TRABALHO.

AUTOR: JACK ROGERS.

 

         TEXTO:

 

A Norton Aircraft anunciou hoje uma venda de oito biliões de dólares, de cinquenta jactos N-22, à República Popular da China. O presidente da Norton, Harold Edgarton, afirmou que o acordo assinado ontem em Pequim contempla a entrega dos jactos ao longo dos próximos quatro anos. O acordo também inclui o fabrico de alguns componentes na China, pelo que as caudas dos N-22 serão fabricadas em Xangai.

 

Esta venda representa uma vitória e a resolução dos problemas do fabricante de Burbank, bem como uma amarga derrota para a Airbus, que levou a cabo intensas pressões, tanto em Pequim como em Washington, para a conseguir. Edgarton afirmou que os cinquenta jactos chineses, combinados com a venda de doze novos jactos N-22 à Transpacific Airlines, darão à Norton recursos económicos suficientes para a continuação do desenvolvimento do N-XX, a grande esperança da empresa para o século XXI.

 

As notícias sobre a entrega do fabrico das caudas provocou a ira de alguns elementos do fabricante de Burbank. O presidente do sindicato local, Don Brull, criticou o acordo, dizendo que "estamos a perder milhares de postos de trabalho todos os anos, A Norton exporta os empregos dos trabalhadores americanos a fim de conseguir vendas no estrangeiro, o que não é nada bom para o nosso futuro".

 

Quando foi interrogado sobre a alegada perda de postos de trabalho, Edgarton declarou que "a concessão do fabrico de partes é um facto na vida da nossa indústria e já tem lugar há vários anos. A verdade é que, se nós não o fizermos, será a Boeing ou a Airbus a fazê-lo. Penso que é mais importante olhar para o futuro e para os novos postos de trabalho que irão ser criados pela linha de montagem do N-XX".

 

Edgarton também chamou a atenção para o facto de a China ter assinado uma opção para trinta outros aviões adicionais. A fábrica de Xangai começará a trabalhar em Janeiro do próximo ano.

 

As notícias sobre esta venda acabam com as especulações a propósito de os incidentes recentes com o N-22 terem prejudicado a venda à China. Edgarton assinalou que "o N-22 é um avião com provas dadas e com um excelente registo de segurança. Creio que a venda à China é um tributo a esse registo".

 

         DOCUMENTO: CLEX 40DLNORTON

 

TRANSPACIFIC ADQUIRE JACTOS DA NORTON A Transpacific Airlines, a transportadora com sede em Hong-Kong, encomendou hoje mais doze jactos "N-22" da Norton, o que demonstra mais uma vez que o mercado asiático é o maior sector de crescimento para as indústrias aeronáuticas.

 

         TESTEMUNHA ESPECIALIZADA

         MORDE A MÃO

         DE QUEM NÃO LHE DEU DE COMER

 

O controverso especialista aeronáutico Frederick "Fred" Barker processou Bradley King por este não lhe ter pago os prometidos adiantamentos pelas suas previstas comparências em tribunal. Não dispomos dos comentários de King por não ter sido possível contactá-lo.

 

         AIRBUS ESTUDA PARCERIA COM A COREIA

 

As Indústrias Songking, o conglomerado industrial com sede em Seul, anunciou que está a negociar com as Indústrias Airbus, de Toulouse, a possibilidade de vir a fabricar alguns importantes componentes da nova versão "A-340B". As últimas especulações têm-se centrado nos continuados esforços da Songking para estabelecer uma presença aerospacial nos mercados mundiais, agora que os boatos de negociações secretas com a Norton Aircraft, de Burbank, parece terem sido desmentidos.

 

SHENK SERÁ HOMENAGEADO EM FESTA FILANTRÓPICA Richard Shenk, o produtor de "Newsline", foi nomeado "produtor filantrópico do ano" pelo Conselho Americano Intercredos. Este conselho dedica-se à promoção "da compreensão humana entre os povos do mundo" nos meios de comunicação contemporâneos. Shenk, citado pelo seu "excepcional empenhamento de toda uma vida em defesa da tolerância", será homenageado durante um banquete no dia

10 de Junho, no Waldorf Astoria. Espera-se uma audiência repleta de personalidades famosas nos meios de comunicação.

 

         FAA CERTIFICA "N-22"

 

A FAA confirmou hoje a certificação do avião comercial "Norton N-22". O porta-voz da FAA afirmou "não existir qualquer substância" nos boatos a respeito da certificação ter sido atrasada por razões políticas.

 

         MARDER OCUPA LUGAR DE CONSULTOR

 

Numa atitude surpreendente, John Marder, de 46 anos, abandonou a Norton Aircraft para ir dirigir o Instituto para a Aviação, uma firma de consultores aerospaciais com íntimas ligações às transportadoras europeias. Marder passa a assumir o novo cargo com efeitos imediatos. Os seus colegas da Norton louvaram Marder, afirmando que se trata de "um líder de profunda integridade".

 

     EXPORTAÇÃO DE EMPREGOS AMERICANOS:

     UMA TENDÊNCIA PERTURBADORA?

 

Numa reacção à recente venda de cinquenta jactos "Norton" à China, William Campbell afirmou que a industria aeronáutica americana irá exportar cerca de 250 000 postos de trabalho ao longo dos próximos cinco anos. Como muitas dessas exportações são financiadas pelo Banco Ex-Im do Departamento do Comércio, Campbell diz: "É uma inconsciência. Os trabalhadores americanos não estão a pagar impostos para verem o governo a ajudar as companhias americanas a exportarem postos de trabalho americanos." Campbell aponta as preocupações das grandes empresas japonesas para com os seus trabalhadores como sendo completamente diferentes do comportamento das multinacionais americanas.

 

         RICHMAN PRESO EM SINGAPURA

 

Um jovem membro do clã Norton foi hoje detido pela Polícia de Singapura sob a acusação de posse de narcóticos. Bob Richman, de 28 anos, continua detido pelas autoridades à espera de ser ouvido por um juiz. Se for condenado de acordo com as draconianas leis do país contra os traficantes de drogas, Richman arrisca-se a uma pena de morte.

 

         SINGLETON CHEFIA DIVISÃO

 

Harold Edgarton nomeou Katherine C. Singleton para a chefia da Divisão de Relações com os "Média" da Norton Aircraft. Singleton era anteriormente a vice-presidente para a Garantia de Qualidade da Norton, com sede em Burbank.

 

         MALONE JUNTA-SE AO "HARD COPY"

 

Foi hoje anunciado que a produtora veterana Jennifer Malone, de 29 anos, pôs fim aos seus quatro anos com o "Newsline" para se juntar à equipa do "Hard Copy". A saída de Malone foi descrita como devendo-se a uma disputa sobre questões contratuais. Malone afirmou: "O "Hard Copy" é o que está a acontecer agora e estou muito feliz por fazer parte dele."

 

 

             RELATÓRIO DE INCIDENTE

             INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA

             APENAS PARA USO INTERNO

             RELATÓRIO N.°:

             MODELO:

             OPERADORA:

             RELATADO POR:

             REFERÊNCIA:

             OCORRÊNCIA:

             IRT-92-42 DA

             N-22 DA

 

Transpacific Fu

 

  1. Rakoski, FSR HK Lo

 

  1. a) AVN-SVC-08764/AAC Severas oscilações em voo

 

DATA DE HOJE: 18 Abril DATA DO INCIDENTE: 08 Abril FUSELAGEM N.°: 271 LOCAL: Oceano Pacífico

 

         DESCRIÇÃO DA OCORRÊNCIA:

 

Durante um voo de cruzeiro surgiu um aviso de slats e um membro da tripulação de voo fez sair os slats numa tentativa para anular o aviso. Subsequentemente, o avião experimentou severas oscilações e perdeu 1800 metros de altitude antes de regressar ao piloto automático. Morreram quatro pessoas e cinquenta e seis ficaram feridas.

 

         MEDIDAS TOMADAS:

 

Uma inspecção ao avião revelou os seguintes danos:

 

1) O interior da cabina sofreu danos substanciais.

2) O sensor de proximidade número 2 IB foi dado como defeituoso.

3) O trinco número 2 dos slats foi considerado como componente não aprovado.

4) Uma das placas do motor número 1 foi considerado como componente não aprovado.

5) Foram identificadas várias outras peças não aprovadas.

 

Uma apreciação dos factores humanos revelou o seguinte:

 

1) Os procedimentos na cabina de voo requerem um maior escrutínio por parte da transportadora.

2) Os trabalhos de manutenção no estrangeiro requerem um maior escrutínio por parte da transportadora.

 

O avião está presentemente em reparação. A transportadora está a rever os procedimentos internos.

 

David Levine Integração Técnica Apoio a Produtos Norton Aircraft Company Burbank, CA.

 

                                                                                Michael Crichton  

 

                      

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